Livro Trabalho e Subjetividade Marmoristas

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Este livro mostra uma abordagem huma-

nista, qualitativa e subjetiva, do ponto


de vista do trabalhador de marmoraria
Trabalho e subjetividade (cortador, lustrador, acabador e coloca-
dor), revelando significados, emoções,
pensamentos, medidas e qualidades que
dos marmoristas foram por eles atribuídas. As informações
foram coletadas no ano 2009 com visitas
Tereza Luiza Ferreira dos Santos
às marmorarias, e muitas conversas indi-
(coordenadora)
viduais e em grupo realizadas no sindi-
Leila Cristina Alves
cato da categoria e na Fundacentro. Para
Vanda Deli de Souza Teixeira
analisar as informações, dialogamos com
estudiosos como Dejours, Boltanski,
Mullan, Minayo, entre outros.

Exibimos nas páginas do livro aspectos


inéditos sobre o trabalho em marmora-
ria; equipe de trabalho; a pedra como
objeto de criação; saúde compreendendo
queixas / doenças; acidentes de trabalho;
consumo alcoólico e silicose (a doença
que mata).

O trabalho do marmorista é pesado, mo-


nótono, perigoso e até fatal. Contraria-
mente, esta mesma atividade proporcio-
na a possibilidade de criar, de transfor-
mar e de se transformar. No processo de
trabalho várias estratégias defensivas são
utilizadas, mas não garantem a saúde e a
ausência de acidentes do trabalho. A sub-
jetividade dos trabalhadores é permeada
pelo medo, pelo desafio, baixa autoesti-
MINISTÉRIO
DO TRABALHO ma e um sentimento de desvalorização.
ISBN 978-85-92984-09-0 Percebemos também que a bebida alcoó-
lica bastante consumida, usada para lim-
par o pó da garganta, é uma forma de se
9 788592 984090 >
limpar do pó simbolicamente, e de lim-
par a própria vida.
Este livro mostra uma abordagem huma-
nista, qualitativa e subjetiva, do ponto
de vista do trabalhador de marmoraria
Trabalho e subjetividade (cortador, lustrador, acabador e coloca-
dor), revelando significados, emoções,
pensamentos, medidas e qualidades que
dos marmoristas foram por eles atribuídas. As informações
foram coletadas no ano 2009 com visitas
Tereza Luiza Ferreira dos Santos
às marmorarias, e muitas conversas indi-
(coordenadora)
viduais e em grupo realizadas no sindi-
Leila Cristina Alves
cato da categoria e na Fundacentro. Para
Vanda Deli de Souza Teixeira
analisar as informações, dialogamos com
estudiosos como Dejours, Boltanski,
Mullan, Minayo, entre outros.

Exibimos nas páginas do livro aspectos


inéditos sobre o trabalho em marmora-
ria; equipe de trabalho; a pedra como
objeto de criação; saúde compreendendo
queixas / doenças; acidentes de trabalho;
consumo alcoólico e silicose (a doença
que mata).

O trabalho do marmorista é pesado, mo-


nótono, perigoso e até fatal. Contraria-
mente, esta mesma atividade proporcio-
na a possibilidade de criar, de transfor-
mar e de se transformar. No processo de
trabalho várias estratégias defensivas são
utilizadas, mas não garantem a saúde e a
ausência de acidentes do trabalho. A sub-
jetividade dos trabalhadores é permeada
pelo medo, pelo desafio, baixa autoesti-
MINISTÉRIO
DO TRABALHO ma e um sentimento de desvalorização.
ISBN 978-85-92984-09-0 Percebemos também que a bebida alcoó-
lica bastante consumida, usada para lim-
par o pó da garganta, é uma forma de se
9 788592 984090 >
limpar do pó simbolicamente, e de lim-
par a própria vida.
Tereza Luiza Ferreira dos Santos (coordenadora)
Leila Cristina Alves
Vanda Deli de Souza Teixeira

Trabalho e Subjetividade
dos Marmoristas

MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO

FUNDAÇÃO JORGE DUPRAT FIGUEIREDO DE SEGURANÇA E MEDICINA DO TRABALHO


Presidente da República
Michel Temer

Ministro do Trabalho
Ronaldo Nogueira de Oliveira

Fundacentro

Presidente
Paulo Ricardo Arsego

Diretor Executivo Substituto


Allan David Soares

Diretor Técnico
Robson Spinelli Gomes

Diretora de Administração e Finanças


Leonice Alves da Paz
Tereza Luiza Ferreira dos Santos (coordenadora)
Leila Cristina Alves
Vanda Deli de Souza Teixeira

Trabalho e Subjetividade
dos Marmoristas

São Paulo

2018
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO

FUNDAÇÃO JORGE DUPRAT FIGUEIREDO DE SEGURANÇA E MEDICINA DO TRABALHO


Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Disponível também em: www.fundacentro.gov.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Serviço de Documentação e Biblioteca – SDB / Fundacentro
São Paulo – SP
Sergio Roberto Cosmano CRB-8/7458

Trabalho e subjetividade dos marmoristas [texto] / coordenação de


Tereza Luiza Ferreira dos Santos, Leila Cristina Alves, Vanda
Deli de Souza Teixeira. - São Paulo : Fundacentro, 2018.
119 p. : il.

ISBN 978-85-92984-09-0

1. Mármore. 2. Silicose. 3. Riscos para a saúde. 4. Segurança e saúde no


trabalho. 5. Trabalhador. I. Santos, Tereza Luiza Ferreira dos (coord.).
II. Alves, Leila Cristina. III. Teixeira, Vanda Delli de Souza. IV. Título.

CIS Fuko Nipis Yh A Wa CDU 691.214.8 + 613.6

Ficha técnica
Editora-chefe, arte-final capa: Glaucia Fernandes
Preparação de textos: Karina Penariol Sanches
Projeto gráfico, capa e miolo: Flávio Galvão
Agradecemos a todos os trabalhadores do ramo de
marmoraria que se dispuseram a expor suas vidas no
ambiente de trabalho, seu trabalho, suas esperanças,
seu orgulho, suas tristezas e suas dores... E ao Sitima-
gran pelo apoio fundamental, abrindo as portas para
a pesquisa.

Dedicamos este estudo a todos aqueles que, para embe-


lezar lares e outros locais, amargaram dores por todo o
corpo e respiraram aromas e poeiras que minaram suas
vidas...

Ao Sr. Nivaldo (In memoriam)


Sumário

1.
Introdução....................................................................................9
2.
Metodologia.................................................................................13
3.
Sobre o sindicato da categoria...........................................................17
4.
O trabalho na marmoraria............................................................... 21
4.1. Falando sobre a pedra como matéria prima......................................28
4.2. Sobre comer muito...................................................................31
4.3. A Equipe de trabalho................................................................34
4.3.1. O ajudante................................................................35
4.3.2. O lustrador ou polidor..................................................39
4.3.3. O serrador ou cortador.................................................47
4.3.4. O acabador...............................................................55
4.3.5. O colocador...............................................................61
5. Saúde........................................................................................69
5.1. Queixas de saúde....................................................................70
5.2. Como lidam com os problemas de saúde e queixas........................... 79
5.3. Acidentes de trabalho...............................................................82
5.4. O pó traidor: silicose, a doença que mata.......................................88
5.5. A bebida alcoólica – tomar uma para limpar o pó da garganta...............97
6. Considerações finais.....................................................................109
Referências ...............................................................................115
1 Introdução

Marmorarias, segundo Abdala et al. (2008), constituem a terceira eta-


pa da industrialização do mineral granito ou mármore, também chamada de
beneficiamento. São, assim, formadas pelos setores de polimento ou lustração,
corte ou serra, acabamento e montagem. O ramo de atividade das marmora-
rias é classificado como Indústria e Comércio de Mármore e Granito, perten-
cendo ao setor secundário da economia. Os principais produtos ofertados são
pias e bancadas para banheiros e cozinhas, tampos de mesas, rodapés, pisos,
soleiras etc.

Estudos realizados pela Fundacentro mostraram que os trabalhadores


de marmorarias estão adoecendo devido às precárias condições no ambiente de
trabalho que os deixam sujeitos à exposição à sílica, ao ruído, à vibração, entre
outros riscos (SANTOS, 2005; BON 2006; CUNHA, 2006).

Essas pesquisas mostraram que o tamanho da partícula inalável, to-


rácica e respirável, é capaz de conduzir à formação de silicoses, bem como
estabelecer correlação entre a exposição à sílica e a silicose. Mostraram, ainda,
a presença de outros riscos nesses ambientes de trabalho, tais como ruído,
vibração e outros agravos à saúde do trabalhador.

A Silicose é uma doença incurável causada pelo acúmulo de


poeira contendo sílica nos pulmões e a consequente reação
dos tecidos pulmonares. Ela leva ao endurecimento dos pul-
mões, dificultando a respiração e podendo causar até a morte.
(KULCSAR NETO, 1995)

Diante da gravidade do problema, técnicos da Fundacentro, sindicatos,


órgãos públicos e entidades parceiras se reuniram dando origem ao Grupo de
Trabalho de Marmorarias (GT), em 2004, com um intuito de integrar as ações
de diversas instituições e propor medidas para reduzir a exposição dos traba-
lhadores aos agentes ambientais, com ênfase no controle da poeira contendo
sílica cristalina no ramo de marmorarias (SANTOS et al., 2008).

9
Das atividades realizadas pelo GT, apontamos como resultados: a) a
publicação “Marmoraria: manual de referência: recomendações de segurança
e saúde no trabalho” (2008); b) o acordo firmado pela Portaria no 43, de 11
de março de 2008, do Ministério do Trabalho e Emprego/Secretaria de Ins-
peção do Trabalho (BRASIL, 2008); e c) o seminário “Prevenção e controle da
exposição aos agentes ambientais em marmorarias: da pesquisa à prática”. Isso
mostra um caminho já percorrido com o desenvolvimento de ações efetivas,
que teve como ápice a recomendação da mudança do processo de trabalho em
marmoraria – de seco para úmido, reduzindo as partículas suspensas no ar e a
exposição do trabalhador.

O trabalho dos marmoristas também foi abordado a partir de outras


perspectivas, como a análise psicossocial dos acidentes de trabalho no setor
de extração e beneficiamento do mármore e do granito, com alguns estudos
realizados por Moulin e colaboradores (2001, 2006, 2007, 2008, 2010), de
metodologia qualitativa, ouvindo os trabalhadores e tendo suas falas como re-
ferência principal para análise. Abdala et al. (2008), por sua vez, estudaram o
trabalho de marmoristas do ponto de vista da análise ergonômica do trabalho,
e Silva et al. (2008) efetuaram um levantamento das condições de trabalho
mediante a legislação vigente das Normas Regulamentadoras.

No entanto, em que pesem essas abordagens, o trabalho em marmoraria


é pouco contemplado, não se esclarece a visão de trabalho de quem atua em
marmoraria, o que revela uma lacuna quanto a investigações que abordem as
sutilezas dos sentimentos, das emoções, o sofrimento no trabalho, bem como
o prazer ou mesmo o seu significado em relação ao ritmo, ao processo, à carga
e às condições do trabalho nos ambientes das marmorarias.

Por entendermos que os trabalhadores necessitavam de um espaço di-


ferenciado onde expressassem seus problemas de saúde e sintomas, o seu tra-
balhar com a pedra, a relação entre eles, analisando essas informações do seu
ponto de vista, desenvolvemos este estudo cujo objetivo é conhecer a ativida-
de dos trabalhadores de marmoraria, como eles se posicionam com relação ao

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seu trabalho, como é o seu universo de significados, sua relação com a equipe,
ferramentas e equipamentos, bem como as formas de fazer, de pensar e sentir
sua atividade.

Antes de visitar uma marmoraria, imaginávamos um trabalhador co-


berto de pó branco. Após a visita, que confirmou esta suposição, outros aspec-
tos se somaram, tais como o trabalho que os marmoristas têm com a matéria-
-prima – a pedra, a rocha, a lasca – e que os transforma em artistas, artesãos
e, portanto, capazes de exercer a criatividade, como uma expressão positiva e
criativa do processo de trabalho. Por outro lado, estes mesmos trabalhadores
planejam e executam a partir de uma encomenda, em que sua criação não é
livre, é limitada.

Outro aspecto interessante é a relação do trabalhador com a rocha,


a partir da qual cria peças lindíssimas, mas que também, por sua dimensão
e seu peso, pode ser o elemento causador de um esmagamento/acidente de
trabalho.

Por fim, observa-se como o marmorista se situa dentro da empresa e


diante da sua própria produção, apesar de desenvolver uma atividade pesada,
árdua e desgastante; como a necessidade de ter uma fonte de renda para suprir
suas necessidades e de sua família, a baixa escolaridade, as poucas oportuni-
dades de mudar esta situação podem impedir o trabalhador de sentir-se no
direito a ter direitos.

11
2. Metodologia

O universo desta pesquisa foi o mundo das marmorarias, ou seja,


a indústria do beneficiamento do mármore que produz peças a partir de enco-
mendas de clientes. Fazem parte dessa população os trabalhadores da marmo-
raria das seguintes funções: lustradores, cortadores ou serradores, acabadores,
colocadores e ajudantes.

A investigação ocorreu na cidade de São Paulo, no entanto, seus resul-


tados podem ser generalizados para outras regiões, e o trabalho de campo foi
realizado entre janeiro e setembro de 2009. Nesse período, as marmorarias
estavam em evidência devido à mudança do processo de trabalho de seco para
úmido, conforme a Portaria no 43 (BRASIL, 2008), o que fez com que os pes-
quisadores pensassem acerca da subjetividade dos trabalhadores neste ramo
de atividade. Assim, efetuamos contato com o presidente do Sindicato dos
Trabalhadores nas Indústrias de Mármores, Granitos e Pedras Ornamentais
de São Paulo (Sitimagran) para propormos a pesquisa com os trabalhadores.

O estudo foi uma abordagem qualitativa, descritivo, humanista e do


ponto de vista do trabalhador. Para apreender os significados dessa atividade,
optamos por uma pesquisa em que prevaleceu a não rigidez, a diversidade de
técnicas e uma relação próxima entre pesquisadores e sujeitos.

Quando nos referimos a não rigidez, falamos da necessidade do pes-


quisador estar “atento” e “aberto” às diversas informações, oportunidades
e direcionamentos para o qual pode ser levado durante o desenvolvimento da
pesquisa.

No que se refere à abordagem qualitativa, afirma Minayo (1994,


p. 21):

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares.


Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realida-
de que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o

13
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores
e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis.

Assim, o objeto de estudo se relacionou com a afetividade, a vivência,


os sentimentos, os prazeres, as emoções suscitadas pelas experiências concretas
decorrentes das situações vivenciadas no mundo do trabalho pelos marmoristas.

Nosso estudo se apoiou em conceitos de Dejours (1987, 1993, 2004,


2007, 2008) e Boltanski (1989), tendo em vista refletir a vivência subjetiva
dos trabalhadores no seu dia a dia de marmorista, as noções de saúde, corpo e
cuidados com a saúde a fim de compreender seu modo de estar frente a situa-
ções de trabalho, perigosas e penosas.

Minayo (1994, p. 18) aponta que “as teorias são explicações parciais
da realidade... também iluminam a análise dos dados organizados embora não
possam direcionar totalmente essa atividade sob pena de anulação da origina-
lidade da pergunta inicial”.

Buscando apreender diversas facetas, nuances, significados da ativida-


de, utilizamos as seguintes técnicas para coleta de dados: levantamento docu-
mental, observação do local de trabalho, entrevistas individuais com os diri-
gentes sindicais e entrevistas com grupo de trabalhadores.

O levantamento documental consistiu em reunir as convenções coletivas


da categoria do período de 1988 a 2010, além de atas de reuniões e panfletos
do Sitimagran. O objetivo dessa técnica foi situar a categoria quanto às con-
quistas efetuadas, especialmente aquelas relacionadas à saúde e segurança do
trabalhador de marmoraria.

A observação do local de trabalho foi realizada através de visitas a em-


presas de porte médio na cidade de São Paulo acompanhadas por membros
do sindicato da categoria. Estas visitas foram agendadas pelo Sitimagran. Nas

14
empresas, foram observados e fotografados o processo de trabalho e o desen-
volvimento da atividade do lustrador, serrador ou cortador e acabador, além
de efetuadas conversas com os trabalhadores sem roteiros previamente esta-
belecidos. Durante as visitas, tivemos maior aproximação com o mundo do
trabalho em marmorarias e este era nosso objetivo.

es-
Nas entrevistas individuais com os dirigentes sindicais, além de buscarmos
clarecimentos acerca da história do sindicato e levantarmos dados, objetiva-
mos aproximar-nos a fim de estudar e situar as ações já encampadas pelos
representantes dos trabalhadores.

foram realizadas na sede


Por fim, as entrevistas com grupo de trabalhadores
do Sitimagran (07 reuniões) e na sede da Fundacentro (01 reunião), em dias e
horários previamente agendados, com duração de duas horas e trinta minutos
cada e vinte minutos de intervalo para o lanche. O número de encontros foi
definido durante o processo das entrevistas, observando se os temas levanta-
dos já eram recorrentes. As entrevistas foram norteadas pela pergunta “como
é o seu trabalho?”, visando à riqueza de detalhes a fim de propiciar reflexão e
análise pelo próprio trabalhador do seu mundo profissional e possibilitar co-
nhecermos a atividade dos marmoristas a partir do seu ponto de vista.

O grupo constituiu-se de 01 colocador, 02 lustradores, 02 serradores


ou cortadores e 02 acabadores, sendo que o número de participantes em cada
encontro girou em torno de 06 trabalhadores. A constituição dos grupos obe-
deceu alguns critérios como: trabalhadores de diferentes marmorarias, pe-
quenas, médias e grandes; trabalhadores com tempo de experiência, de fun-
ções e idades diferenciadas.

Para favorecer a aproximação entre os membros do grupo e possibili-


tar o desenvolvimento de relação de confiança e interesse entre pesquisadores
e informantes, utilizamos técnicas “quebra-gelo” de dinâmica de grupo, tais
como: apresentação de duplas trocadas; debate de temas específicos em pe-
quenos grupos; e representações de situações vividas no ambiente de trabalho.

15
Destacamos a importância de estarmos atentos aos sujeitos da pes-
quisa durante os momentos informais, no lanche, por exemplo. Essa parada
na entrevista em grupo representava um momento de descontração regado
a diversos e saborosos sucos e bolos, bolachas e frutas, possibilitando maior
aproximação entre pesquisadores e sujeitos enquanto brincavam e questiona-
vam sobre o nosso trabalho.

Vale ressaltar que tivemos participação ativa do Sitimagran, que en-


viou cartas-convite aos trabalhadores para participarem da pesquisa se pro-
pondo ainda a custear o transporte e o lanche de cada um nos encontros.

Buscando superar as dificuldades evidenciadas na coleta de dados devi-


do às diferentes especificidades dos trabalhadores, tratamos em primeiro lugar
o trabalho em marmoraria de uma forma geral e, após, as entrevistas foram
realizadas obedecendo ao critério por função.

Aos entrevistados, foram garantidos o sigilo e o anonimato de suas


identidades por uma questão de ética na pesquisa e proteção ao trabalhador.
Todas as entrevistas, individuais e em grupo, foram gravadas e posteriormente
transcritas e analisadas.

A análise dos dados constituiu-se de várias escutas, anotando as im-


pressões, leitura das transcrições das fitas, elencando os diversos temas e agru-
pando por categorias: trabalho/atividade; condições do trabalho; organização
do trabalho; a pedra; riscos à saúde e queixas/problemas, que emergiram dos
discursos dos entrevistados, tendo em vista a compreensão do pensar e do
agir dos trabalhadores estudados. Realizamos, portanto, uma análise temáti-
ca buscando os sentidos atribuídos que demonstrassem valores e modelos de
comportamento.

16
3. Sobre o sindicato da categoria

O Sindicato dos Trabalhadores de Mármores e Granitos do Estado de


São Paulo (Sitimagran) foi fundado em 14 de maio de 1907, sendo que em
1906 se constituía enquanto Associação União dos Canteiros.

Localizado, desde 1954, no bairro da Liberdade, na Rua São Paulo,


número 50, na cidade de São Paulo, em sede própria, o sindicato envolve as
seguintes funções: trabalhadores da indústria de mármore, granito e pedras
ornamentais, de extração de bloco de pedreira, da blindagem da pedra, de cal-
cetagem, de canteiros, lustrador ou polidor, cortador ou serrador, acabador,
medidor e colocador.

O número de trabalhadores registrados na base da categoria é de


sete mil e quinhentos, distribuídos em doze municípios do estado de São
Paulo e a quantidade de associados está em torno de quatrocentos (SITIMA-
GRAN, 2009).

Segundo o presidente do sindicato dos trabalhadores, existem mil e


quatrocentas empresas cadastradas no Sindicato das Indústrias de Mármore
e Granito do Estado de São Paulo (Simagran), no entanto, o número real está
em torno de novecentos. Segundo a diretoria do sindicato, a mesma empresa
é cadastrada mais de uma vez, o que ocorre com bastante frequência.

O Sitimagran oferece assistência médica e custeia parcialmente os exa-


mes de sangue, fezes e urina, tem serviço de assistência jurídica na área traba-
lhista e colônia de férias da Federação a qual pertence.

Por 15 anos, o presidente do sindicato é o Senhor Aristóteles, o qual


teve seu primeiro contato com a categoria de forma organizada ao buscar
seus direitos e reivindicações trabalhistas. Associou-se em 1986 e, a partir de
então, tornou-se uma liderança importante. Após três anos de suplência e fa-
zendo parte da comissão negociadora, foi eleito presidente.

17
Quando ingressou no sindicato, na década de 1980, a convenção da
categoria tinha onze cláusulas, sendo duas sobre leis. Outras leis eram re-
ferentes aos direitos das mulheres, dos estudantes e ao alistamento. Já nas
convenções coletivas da categoria do período de 1990 a 2010 levantadas junto
ao Sitimagran, observa-se que, em 1990, o sindicato realizou convenções que
continham 30 cláusulas e, em 2010, o número de cláusulas era de 76.

Esta categoria traz na sua trajetória histórias e momentos importan-


tes e decisivos quando nos referimos à saúde do trabalhador, à melhoria das
condições de trabalho, a mudanças no processo de trabalho, sendo o sindicato
atuante e envolvido nas propostas e nas lutas. Desta forma, observamos espe-
cialmente as cláusulas dos acordos relacionados às questões de saúde e segu-
rança do trabalhador e constatamos o que se aponta a seguir:

Década de 1980

Observa-se a convenção de número 15 – “No caso de falecimento ou


invalidez permanente”, decorrente de fatos ocorridos na empresa, e a inclusão
de cláusula relacionada aos intervalos, assegurando 15 minutos para lanche
ou repouso nos períodos matutino e vespertino. Nota-se também importante
cláusula referente à diminuição da jornada de trabalho para 44 horas a partir
da Constituição Federal de 1988.

Década de 1990

A categoria passa a contar, além dos itens especificados acima, com


acordo referente ao fornecimento, pelas empresas, de fardamentos e ferra-
mentas, inclusive de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), à instalação
de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) nas empresas, a me-
didas de proteção coletivas e individuais, à comissão técnica de estudos sobre
segurança e medicina de grupo, visando à realização de estudos na área de se-
gurança e medicina do trabalho e exames médicos periódicos e demissionais.

18
Em 1995, é incluída importante cláusula referente à garantia de em-
prego e salário quando o trabalhador da categoria for afastado por doença ou
acidente de trabalho.

No século XXI, observamos a inclusão de duas cláusulas específicas de


segurança e saúde: 68A. Saúde e segurança do trabalho, visando elaborar um
código de segurança e saúde no trabalho da categoria em questão, e 70A. EPIs
– uso de equipamentos de segurança nas formas da lei.

A convenção 2008/2009 aumenta o número de cláusulas e traz uma


inclusão importante no sentido da saúde, que é a obrigatoriedade de forneci-
mento de água potável por parte do empregador nos locais de trabalho. Por
outro lado, esta inclusão denota um ambiente de trabalho bastante precário.

Ainda nessa década, ocorre a inclusão da cláusula 75A. Eliminação


de poeiras, através da Portaria no 43 (BRASIL, 2008) proibindo o processo de
corte e acabamento a seco de rochas ornamentais. Esta mudança é um marco
em termos de segurança
e saúde do trabalhador,
“No início, a silicose era muito frequente, no en-
pois pretende, a partir tanto não sabiam que era silicose, uma vez que
da alteração do processo era tratada como tuberculose. Naquela época ha-
de trabalho, eliminar o via um profissional capaz de ler o RX de tórax e
diagnosticar a silicose e, a partir daí, os casos que
risco de exposição à sí- foram surgindo foram diagnosticados e as empresas
lica. Vale ressaltar que a eram processadas.”
categoria está enquadra- (Fala do presidente do Sitimagran)
da no grau de risco 4.

No início do mês de agosto de 2009, um dirigente sindical,


que participou desde o início do processo deste estudo e que também deveria
estar presente no sexto encontro, faleceu com histórico de exposição à sílica,
pois profissionalmente desenvolveu suas atividades em marmoraria. Assim

19
como ele, muitos trabalhadores, após uma vida de exposição à sílica e a outras
condições indignas de trabalho, deixaram sua saúde junto com as pedras
nas marmorarias.

E a esse respeito, refletimos acerca de outros trabalhadores, que de-


senvolveram esta e outras patologias em decorrência do trabalho, da impor-
tância da denúncia e também de buscar caminhos e propostas que alterem
definitivamente a noção de que o trabalho tem de adoecer e invalidar pessoas,
de fatalismo atribuído a determinadas categorias profissionais.

20
4. O trabalho na marmoraria

O homem se humilha se lhe castram seu sonho, seu sonho é sua


vida e a vida é o trabalho... e sem o seu trabalho, o homem não
tem honra e sem a sua honra se morre, se mata, não dá pra ser
feliz... (Fagner)

Na música, na poesia, encontramos inúmeras referências ao trabalho


e seus significados. Falar de trabalho é equivalente a falar da vida; fala-se do
trabalhar como se fala do comer ou beber para reunir tudo o que está envolvido
em um agir: um ato orientado para um objetivo de produção incluindo os pen-
samentos que são indissociáveis dele (DEJOURS, 2008). Admitimos, assim,
que o trabalho assume uma posição central na existência humana, como afir-
mam alguns estudiosos (TOLFO; PICCININI, 2007).

No decorrer dos tempos e da história, o trabalho assumiu diversas


acepções, embutidas e incorporadas. Quem não se lembra da concepção de
trabalho associado ao tripalium, ou mesmo às noções de sofrimento, obriga-
ção, punição, padecimento, cativeiro (WOLECK, 2000)? Trabalho escravo,
trabalho sujo, trabalho como subsistência, trabalho precário, trabalho domina-
do são modos de classificar as atividades segundo determinados critérios que,
sem sombra de dúvida, pensam a inserção e o modo de estar de quem está no
centro – o trabalhador.

Nesta pesquisa, pudemos constatar que, segundo os próprios trabalha-


dores, o trabalho na marmoraria apresenta diversas características positivas
e negativas e significados. Em função desses diversos aspectos, como o tra-
balho pesado, a desvalorização da mão de obra, consideram sua atividade um
trabalho escravo. Vale esclarecer: o que determina se um trabalho é escravo é
a ausência de liberdade. Segundo a OIT, isso se dá através de quatros fatores:
apreensão dos documentos, presença de guardas armados de comportamento
ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográ-

21
ficas do local que impedem a fuga. Desse modo, trata-se aqui não do trabalho
escravo nas condições delimitadas pela OIT, mas sim de um sentido maior
atribuído. Segundo Seligmann-Silva (2011), na noção de trabalho escravo está
presente e embutida a característica da desqualificação, e estariam “nessa situ-
ação de desqualificação especialmente aqueles cujos conhecimentos e experi-
ências profissionais passaram a ser desvalorizados e descartados em decorrên-
cia do advento de novos saberes e de novas tecnologias”, o que é encontrado
em algumas marmorarias.

O trabalho pesado, destacado pelos


marmoristas, relaciona-se aos equipamen- “Você está com a lixadeira,
que ela pesa no mínimo,
tos arcaicos e sucateados, exigindo deles no mínimo cinco quilos.”
diversas manobras, estratégias e grande es-
forço físico.

Essa característica está presente também em outra situação: o deslo-


camento das chapas do cavalete para seu posto de trabalho, item que será
melhor detalhado no Capítulo 5, que aborda questões relacionadas à saúde e
aos acidentes do trabalho.

Do trabalho pesado decorre ainda a criação de gambiarras, macetes e


jeitinhos, desenvolvidos nos equipamentos, na forma de transportar a pedra
e também nos corpos dos trabalhadores, com o objetivo de garantir a pro-
dução. Ou seja, as condições de trabalho são extremamente desfavoráveis e,
se não houver a interferências deles com seus macetes e gambiarras, não será
possível atender aos pedidos dos clientes:

“Mas é uma escravidão porque o trabalhador, ele podia trabalhar melhor, ter
a matéria-prima melhor para trabalhar, sem ter tanto esforço físico, porque
eu, eu trabalho em uma máquina que faz cinquenta anos, desde que abriu
a marmoraria que ela está lá. Marmorarias novas aí se modernizaram e eles
continuam com aqueles pau velho. Hoje cai ali, faz uma gambiarra ali,
faz outra gambiarra ali para você poder trabalhar o dia a dia.”

22
Segundo Dejours (2008, p. 39):

Trabalhar é preencher o espaço entre o prescrito e o efetivo.


Ora, o que é preciso ser feito para preencher esse espaço não
pode ser previsto de antemão. O caminho a percorrer entre
o prescrito e o real deve ser inventado ou descoberto a cada
vez pelo sujeito que trabalha. Assim, para o clínico do trabalho,
este se define como o que o sujeito deve acrescentar ao que
foi prescrito para poder alcançar os objetivos que lhe foram
atribuídos. Ou ainda: o que ele deve acrescentar por decisão
própria para enfrentar o que não funciona quando ele se limita
escrupulosamente à execução das prescrições.

O aspecto da desvalorização da mão


de obra que se mostra na ausência de equi- “É a escravidão monetária,
é aquela escravidão que
pamentos em boas condições uso e na falta
você se sente escravo, você
de matéria-prima de qualidade também se se oferece como escravo,
reflete nos salários considerados baixos, ex- para ganhar o dinheiro
pressando mais uma nuance do significado para sobreviver.”
do trabalho escravo para eles.
Uma das enunciações muito presentes entre trabalhadores remete à
ideia de trabalho enquanto modo de sustentar a família, uma garantia de so-
brevivência. Seja qual for o trabalho, em quaisquer condições, trabalhar repre-
senta garantir a vida e a dignidade. Nesse sentido, ainda que a vida e a saúde
sejam colocadas em risco pelas condições e pela organização do trabalho, é
necessário trabalhar.
O trabalho executado em sistema de ganho por produção também as-
sume aspectos de trabalho escravo segundo os marmoristas. A referência a
este tipo de atividade apresenta aspecto relacionado ao ritmo, à intensificação
do processo produtivo e indiretamente ao desgaste sentido pelo trabalhador.
Essa percepção pelos marmoristas também se relaciona à divisão do
trabalho, uma vez que passou a realizar sozinho todas as tarefas e as ações que
deveriam ser realizadas também com a colaboração de outros. O trabalhador

23
tem conhecimento da sua sobrecarga de trabalho e faz referência às consequ-
ências dessa forma de produzir.
Segundo informações da diretoria do sindicato, a atividade desenvol-
vida em marmoraria era motivo de grande orgulho em determinado período
para os trabalhadores que percebiam altos salários, o que lhes conferia um
status de poder e realização. Nesse contexto, para participarem das assembleias
da categoria, vestiam-se de paletó e gravata e eram transportados de taxi até
o local:

Com o estabelecimento da divisão do trabalho, o homem vive


numa base de troca. Isso lhe garante, por meio do exercício do
emprego, os bens e serviços de que necessita, pois recebe em
troca um salário com o qual compra o que é necessário para
sobreviver ou, pelo menos, o que seja possível adquirir para vi-
ver. Muitos deles, atualmente, não conseguem mais viver com
dignidade com os salários que recebem. (WOLECK, 2000)

Essa é uma das queixas reveladas pelos trabalhadores de marmoraria


que já vivenciaram tempos áureos.
Nesta atividade, fazem referência ao trabalho sujo em função do pó
da sílica que se espalha no ambiente e em seus corpos. Este aspecto, que vai
além de uma representação, pode ser verificado pelas pesquisadoras quando
da realização das visitas às empresas, em que os ambientes não primavam pelas
condições de higiene nem de conforto, como veremos mais adiante.
Paradoxalmente, nem tudo é sofrimento. Este mesmo trabalhador en-
contra, nesse mesmo ambiente, situações alegres, prazerosas. Para além do
trabalho considerado escravo, pesado, sujo, identificamos uma atividade que
possibilita a criação, a transformação, estimula a criatividade e enaltece sua
dignidade, que na peça encomendada vislumbra uma forma de realização pes-
soal.
Para Marx, o trabalho é uma manifestação da capacidade humana de
criar a própria forma de existência. Não se trata certamente de uma liberdade

24
infinita, porque a produção está sempre relacionada com as condições mate-
riais e com as necessidades já criadas (SOARES, 2013). No entanto, é também
através do trabalho, na sua relação ativa com a natureza, que o homem é cria-
dor de si próprio. E nesse sentido é importante entender um trabalho como
elemento constitutivo e presente no embrião da identidade, na sua constitui-
ção no dia a dia.
Dejours (1993) aponta que a questão não é o trabalhar. Não trabalhar
é igualmente perigoso. O que se coloca como fator crucial é Qual trabalho? O
trabalho é “um espaço da construção do sentido e, portanto, de conquista de
identidade, da continuidade e historização do sujeito” (DEJOURS et al., 1994
apud MOULIN, 2001). Nesse sentido, a marmoraria se mostra também como
um espaço de desafio, criação, arte, transformação.

“Porque eles descontariam tudo ali no próprio servi-


ço...Você chega às vezes, com um ódio tremendo, você
começa a trabalhar ali na pedra mesmo, ou em ferro,
qualquer coisa você bate, você desgasta aquela vonta-
de ruim, aquelas coisas [...]”

O trabalho com a pedra é portador de situações que possibilitam a ex-


teriorização desses “sentimentos ruins” de uma forma produtiva e socialmente
aceitável. Desse modo, uma vez que o incômodo (raiva, ódio) é exteriorizado,
o trabalhador e seu contexto são protegidos. O trabalho, portanto, é colocado
como elemento essencial para estruturação ou reestruturação, no sentido de
reorientar afetos e subjetividade, reorganizando o indivíduo.
Além da representação enquanto luta para manter o autocontrole e a
preservação da dignidade (SELIGMANN-SILVA, 2011), o trabalho também
traz consigo outros desafios, de criação, transformação de algo bruto em algo
belo, artesanal, valoroso:
A possibilidade de criar, de transformar deixava o trabalhador apaixo-
nado: “é paixão mesmo, fica apaixonante mesmo e dessa forma, o trabalhador namora
a pedra”.

25
As novidades impostas pelas peças encomendadas à quebra da rotina e
o envolvimento do trabalhador são fatores que despertam sua subjetividade,
seu desejo de mudar, transformar e se ver em cada produto.

“Desafia a pessoa. A pessoa vai se envolvendo, vai gostando, vai ficando,


não é? E também tinha aquela, hoje não, hoje não se faz mais nada de arte,
mas antigamente se fazia muito. Você passava, via um cara
fazendo uma coluna, toda redonda, toda isso e aquilo dava uma
sensação de fazer aquilo também, você passava, via um canteiro trabalhando,
desgastando uma pedra ou preparando alguma coisa esculturosa, não é?
Dava vontade de você fazer aquilo.”

Essas falas se reportam a um passado nas marmorarias, porém o pro-


cesso criativo descrito ainda parece manter-se, a despeito das mudanças tec-
nológicas.

O processo de criação nessa atividade envolve necessariamente o seu


objeto de trabalho – a pedra. Portanto, é impossível falar do trabalho sem falar
da pedra. Para alguns trabalhadores tudo se inicia namorando a pedra.

“Quando olho no desenho, e eu começo a pensar o desenho que eu vou fazer,


que eu pego o metro e faço uns 10, 15 minutos lendo a pedra, então
eu decoro tudo aquilo ali, eu faço o resto do serviço só com aquilo,
ali olhei aquilo ali, calculei o que eu vou fazer, se ninguém mexer mais
no serviço aquele que já foi ali, que eu peguei de manhã e já olhei, já era.”

“[...] às vezes eu olhava


A concretização do trabalho se faz pra pedra assim de tudo, porque
na arte de perceber os detalhes observa- às vezes, não encontrava como
começar aquele serviço. Começar
dos pelo trabalhador no projeto inicial e pra matar a peça é fácil, mas
transformar a pedra em peça primeira- come-çar e aproveitar a peça,
mente no seu imaginário, antes dela de não matar a peça, é difícil
e às vezes era coisa feita com
fato acontecer. Na fala ao lado, verifica-
material que já era raro [...]”

26
mos detalhadamente essa assimilação e interiorização do projeto explicitado
minuciosamente pelo trabalhador.

“[...] como a guaripocaba negra O cuidado com o tipo de


estava em extinção, então, não era fácil material a ser utilizado, tendo em
de você pegar qualquer material e ele vista não o desperdiçar, é mais um
ficar com medo de começar e já não dar
certo e pensava um dia, pensava dois, dos tantos fatores que preocu-
trabalhando em outras coisas e olhando pam o trabalhador no processo de
pra pedra, fazendo outras coisas.” transformação da pedra em peça.

Essa fala traduz na prática o que aponta Dejours (2004, p. 31): “O


trabalho não é, como se acredita frequentemente, limitado ao tempo físico
efetivamente passado na oficina ou no escritório. O trabalho ultrapassa qual-
quer limite dispensado ao tempo de trabalho; ele mobiliza a personalidade por
completo”.

A introjeção, por fim, do projeto e das qualidades da pedra, o desejo


de fazer benfeito e de criar transpõe os muros da marmoraria. O trabalhador
se envolve de tal forma que a solução do problema surge muitas vezes através
de um sonho.

“Aí ficava olhando pra pedra, mas eu tava olhando pra ela procurando
como é que eu ia fazer, porque eu não encontrava a forma de sair, às vezes,
dormindo, eu estava, muitas vezes eu despertava todo mundo lá em casa:
Achei! Achei! Dava aquele grito, aí já me levantava, pegava papel e lápis
já desenhava aquilo que eu tinha sonhado. Já desenhava, acredita? Quando
eu pegava aquela peça pra fazer e seguia aquele roteiro que eu tinha
encontrado no sonho, estava certinha.”

O processo de interiorização, planejamento e organização das infor-


mações atreladas à subjetividade promove em um dado instante um insight,
uma intuição, e o processo de produção flui facilmente, pois ele reúne o pro-
jeto/encomenda, as qualidades da pedra e o seu saber.

27
O trabalhar com a pedra, seu objeto de trabalho, envolve sutilezas em
relação à matéria-prima que despertam ou exigem desse trabalhador muita
atenção, experiência e uma grande dose de curiosidade para “descobrir” a pe-
dra e lidar com ela.

“A pedra tem 4 lados, as Ao mesmo tempo que ne-


pessoas têm que conhecer o lado cessita conhecer a matéria-prima,
dela pra trabalhar, cada lado o trabalhador do mármore sinaliza
tem uma forma pra você traba-
lhar, tem um lado que você pode certo controle sobre o processo de
esculpir tranquilamente, e tem produção. Este controle é relativo
outro lado que se você bater, aos movimentos que deverá realizar,
você arranca pedaços... não é
como ferro, como o aço.” garantindo-lhe certa autonomia.

4.1. Falando sobre a pedra como matéria-prima


Os marmoristas apontam aspectos “[...] me entendi como mar-
morista porque gostei do mármo-
apaixonantes relacionados ao trabalho com
re, é porque quando eu olhei pro
o mármore e o granito e ao desenvolvi- mármore eu senti paixão pela
mento de sua atividade com determinado pedra, pelas aquelas requadra-
tipo de objeto como a pedra. ções, aquelas lareiras.”

O envolvimento, o desafio, a pai-


xão pelo trabalho com a pedra os levam a referirem-se a ela como se fosse
pessoa, pois, para eles, é mais importante do que muitas pessoas: “honestamente
ela foi um desafio, e desafio você respeita. Essa guaripocaba era um desafio”.

Quando questionados sobre os tipos de pedra, relacionam as facilida-


des e as dificuldades, estando nisso embutido o gostar e o não gostar de deter-
minados tipos de matéria-prima.

Cinza andorinha, juparaná, rosa biritiba, ubatuba, vermelho bragança,


capão bonito, mármore carrara, guaripocaba negra, ardósia, tijuco preto, pe-
dra verde, pedra madeira, cinza Mauá, xita pele de onça, mortadela, esses são

28
alguns exemplos de pedra com as quais os marmoristas lidam. Segundo eles,
algumas são melhores para trabalhar, enquanto outras são melhores para dar
acabamento. A cinza andorinha, por exemplo, é o tipo de pedra bem mais fácil
de lidar quando se exige uma grande produção, diferentemente da Ubatuba,
que, embora mais mole, é muito complicada de usar, pois risca muito.

“A pedra mole é a que gasta fácil [...]”


“O mármore carraro é muito macio, é tão macio que dá
para você fazer uma escultura com uma ferramenta.”
“[...] a tijuca é complicada pra fazer, é muito mole
e risca o trabalho todo.”

Pedra mole, pedra dura, pedra macia são qualidades atribuídas a cada
tipo para designar o grau de dificuldade que cada uma apresenta, as formas de
se executar o trabalho e para quais tipos de encomendas são mais apropriadas.
Por exemplo:

“[...] é a pedra mais dura que existe, o significado: nem todo


profissional trabalha com ela, [...] pedra de tanto segredo,
muito mais dura do que o aço [...] tão dura e tão melindrosa, então
tudo aquilo que é muito difícil de você domar [...]
de dizer tenho capacidade de fazer, conquista.”

Outras pedras exigem extremo profissionalismo e paixão por parte


do trabalhador para lidar com ela. Temos como exemplo a guaripocaba negra.

Segundo os trabalhadores de marmoraria, outras qualidades atribuídas


à pedra são de ser porosa ou fechada. Toda pedra fechada é boa de lustrar, ao
contrário de toda pedra porosa. Estas qualidades são indicadores de maior ou
menor produção em função da dificuldade que as pedras impõem.

29
Algumas pedras têm gosto, sabor, outras têm cheiro ruim, e esse
gosto, esse cheiro se entranham no trabalhador às vezes como um alimento,
às vezes como um mau cheiro que provoca repulsa, nojo.

“A mortadela mesmo, ela tem gosto


de mortadela mesmo. Ela tem o sabor de morta-
dela e dá um danado na barriga da gente quan-
do está trabalhando com ela.Você trabalha
um dia com ela você passa dois,
três dias arrotando ela.”
“Você trabalha com ela
de dia depois você passa dois,
três dias arrotando aquele sabor,
aquele gosto de mortadela, aquele cheiro
de mortadela. Eu odeio mortadela.”

A pedra de onça ou xita é apontada como algo repulsivo em função


do seu fedor.
“[...] a xita, a pedra de onça, aquilo ali
era meio salgadinha e tinha uma nhaca danada...
Nhaca mesmo, cheiro de cachorro
que nunca tomou banho.”

O processo de trabalho a seco leva o trabalhador a sentir mais o cheiro


da pedra e o processo a úmido inibe essa sensação, segundo eles.

“Esse cheiro, esse gosto que você sente


é quando exala o pó, é o pó.
No caso do acabamento, no caso de um
corte a seco, então você sente, no molhado
você já não sente porque o pó não
vem para você”.

A acidez da pedra e a radioatividade são outros aspectos referidos pe-


los trabalhadores. Nada passa despercebido acerca do seu objeto de trabalho.

30
“Tem pedra que tem uma acidez danada, tem
pedra, a grande maioria, você sabe, toda pedra
ela é radioativa, sabia disso?”

“Toda pedra é radioativa, se colocar a língua


lá, tem pedras que você toma um choque.
Toda pedra é radioativa.”

4.2. Sobre comer muito


Os trabalhadores de marmoraria referem que sua necessidade de in-
gestão calórica ou de alimentar-se é proporcional ao tipo de trabalho por eles
desenvolvido. Assim, o marmorista principalmente “come bem, porque é um ser-
viço bruto e a pessoa sente muita fome”.
“Nem sempre a oferta
Houve época em que o empresá- por parte do empresariado
rio oferecia o café da manhã e o lanche de lanches ou café da manhã
no período da tarde. No entanto, essa ocorria. O patronal, ele não
tinha obrigação de servir
prática não acontecia em todas as mar- o trabalhador como serve
morarias e também não se fixou até os agora é 2 pãezinhos à tarde,
dias atuais. 2 pãezinhos de manhã.”

Dessa forma, desenvolvia-se uma rede de solidariedade entre os pró-


prios trabalhadores, sem a participação do empresário, que possibilitava ali-
mentação também dos colegas que não tinham condição para tal.

“Tinha trabalhador que você era obrigado a trazer o lanche a mais pra dar
pra ele, porque você via que ele não tinha condição.”

Segundo eles, “o trabalhador já trabalha mais satisfeito” porque essa meren-


da daria para suprir suas necessidades alimentícias até a hora do almoço. Este

31
aspecto supervalorizado é associado ao ritmo da atividade, que é intenso, e ao
trabalho pesado, como já vimos.
“[...] se movimenta o dia inteiro,
eu não sou de comer muito, mas quando estou
numa atividade na marmoraria, como de tudo,
eu tenho um armário ali repleto de comida
só pra mim, tem de tudo, tem coco, tem jaca,
tem goiaba, tem tudo, quer dizer, tenho
muita fome.”dias arrotando ela.”

“[...] às vezes a gente fica devendo


pra poder comer, não é que o cara tem o
pensamento de ficar robusto, de que acha
que tem que comer bem, porque a carên-
cia exige, o sujeito sente fome.”

A esse respeito, é interessante destacar o grande consumo de alimen-


to para suprir suas necessidades, as dificuldades financeiras dos trabalhado-
res para se alimentarem adequadamente para lidar com o trabalho pesado e
a expressiva utilização de bebidas alcoólicas. Estas últimas, especialmente as
destiladas e as de uso popular, como a cachaça, a pinga, possuem alto valor
energético que confere a sensação de saciedade da fome. Assim, é importante
ponderar a possibilidade de ser usada como forma de suprir essas deficiências.
O consumo de bebidas alcoólicas será retomado mais adiante.

4.2.1 Sobre o almoço e onde almoçar


Alguns trabalhadores almoçam em restaurantes, outros, o que parece a
maioria, leva almoço de casa, marmita: “Às vezes na sexta-feira que almoçava fora,
mas a maioria, todos eles almoçavam dentro da marmoraria”.

O tempo para realização de refeições é em média de uma hora para


o almoço e quinze minutos nos períodos da manhã e tarde para o lanche,
chamado de café e o local na empresa a elas destinado, segundo seus relatos,
não apresenta as mínimas noções ou cuidados de higiene. Esta parcimônia se
estende também à ausência de refeitórios e marmiteiros.

32
“[...] passei oito anos levando marmita, só que
até no lugar de você almoçar, na hora de você
almoçar, tinha que fazer uma limpeza na mesa
que estava cheia de pó, de canto a canto.”

“É, onde eu trabalhava era a mesma


coisa. Um pó, uma sujeira.”

A estratégia utilizada para manter o mínimo de assepsia era um traba-


lhador se dirigir ao refeitório por volta de dez minutos antes da refeição: “aí
passava água na mesa para o pessoal almoçar”.

Quando não há refeitório, os trabalhadores improvisam, lançam mão


de estratégias para a “montagem” de uma mesa, de um local para alimentação.

“... um almoçava aqui, outro almoçava mais para lá, outro fazia
uma banquinha de qualquer jeito lá no pé da parede e tudo.”

Outra situação improvisada é o aquecimento da comida levada nas


marmitas. Criavam um tipo de espiriteira com os utensílios que tinham às
mãos. Colocavam álcool e esquentavam a comida.

“[...] comprava aquele litro de álcool e no meio-dia punha aquele foguinho nas
tampinhas de cola, um pouquinho de álcool, duas, três colheres de álcool, dava
para esquentar bem uma marmita, mas não que tinha aquele negócio daquele para
esquentar [...]”

Em outros casos, a existência do marmiteiro também não garantia a higiene do


local. Marmiteiro, almoço e refeitório parecem coisas desarticuladas.

33
[...] levava marmita todo dia, levava todo mundo, colocava no marmiteiro e o pessoal
almoçava tudo dentro da marmoraria...Você almoçava no pó. Então assim, você via a
poeira e você almoçava na mesa [...]”

Outros tipos de riscos enfrentados pelos trabalhadores do mármore,


em função de falta de higiene, era a presença de ratos nas marmorarias, espe-
cialmente nos horários reservados à alimentação.

“... muita sujeira lá, às vezes você estava


almoçando aqui e os ratos passando, os ratos
faziam passarela lá na hora do almoço, porque
eles queriam comer [...]”
“Era uns gordão, era uns que pareciam um,
aqueles grandão mesmo, ratazana, e eles passando,
o homem, o patrão nem ligava.”

4.3. Equipe de trabalho


Em uma marmoraria encontramos as seguintes funções: lustrador ou
polidor, cortador ou serrador, acabador, colocador1 e ajudante. Independen-
temente da função do marmorista sua atividade é realizada na posição em pé,
em movimento e com curvatura do corpo.

Apesar de este grupo ser, em geral, constante em uma marmoraria,


nem sempre o trabalho é executado em série. O que determina por onde co-
meça e por quem passa a produção é a própria encomenda.

“O trabalho em marmoraria é em equipe, mas não


é em série, pois dependendo da encomenda,
pode nem passar pelas mãos do lustrador ou outro.”

1
Algumas marmorarias mantêm o colocador na empresa, mas isso não é regra. Em muitos casos, o
colocador é um profissional autônomo e atende a diversas marmorarias.

34
Portanto, o sentido de trabalho em equipe aqui é diferenciado. Surgem
elementos como cooperação e solidariedade entre os trabalhadores que serão
observados na leitura da análise de cada função dentro de uma marmoraria.

“Isso, vai uma pessoa da marmoraria lá e mede, a senhora vai dizer


eu quero assim e assim, aí ele faz um desenho do jeito que a senhora fez,
leva para o serrador, o serrador serra por aquela medida, passa para o acabador,
o lixamento que é o acabamento, e depois por último vai um
colocador da firma lá, montar no lugar.”

Apresentaremos a seguir as tarefas, o agir, o pensar e o sentir do tra-


balhador de cada função, as dificuldades, os sofrimentos e os prazeres sentidos
no desenvolvimento de sua atividade.

4.3.1. O ajudante
A maneira mais usual de se começar a vida profissional na indústria
de beneficiamento do mármore e granito, ou seja, em marmorarias é como
ajudante. São vários os relatos dos trabalhadores, como a seguir:

“Eu fazia serviço de ajudante geral, quando


eu entrei na firma tinha serraria e tinha mais
ou menos uns vinte empregados.”
“Primeiro eu entrei como ajudante na
marmoraria, com um ano e pouco lá eu passei
para lustrador, lá fui aprendendo tudo.”

As situações de início, mesmo como ajudante, são inusitadas e por ve-


zes incluem outro elemento no contexto: o da migração. Muitos trabalhadores
com procedência da área rural, com baixa ou nenhuma escolaridade formal,
vindo para a cidade de São Paulo, adaptam-se às mais diversas situações de
trabalho, como relata este acabador que veio do interior de Minas Gerais.

35
“Aí fui morar com uns parentes que trabalhavam na marmoraria
nos fundos da marmoraria e de lá passei a trabalhar como ajudante na
marmoraria e já está com quase 30 anos que trabalho.”

As condições de vida e de trabalho se entrelaçam, mostrando a preca-


riedade existente nas marmorarias ainda nos dias atuais.

Morava na marmoraria em um quartinho, eu fui morar


com ele porque eu não tinha parente nenhum aqui em São Paulo.”

As relações familiares entre as pessoas parecem ser uma das portas de


entrada para o ingresso na marmoraria e as relações entre empregadores e
empregados continuam tendo uma força grande na determinação das condi-
ções de trabalho como veremos adiante.

“Trabalhava numa lavoura lá no interior, então quando eu cheguei aqui


em São Paulo, fui trabalhar com o irmão da minha mãe, que é um pequeno
dono de marmoraria [...]”

O início é como ajudante, mas o percurso, ou seja, assumir outra fun-


ção dentro da marmoraria, segundo os trabalhadores, dependerá do próprio
ajudante:

“[...] a maioria começa sempre de ajudante,


vai e se ele se interessar ele vai prosperando daqui
a pouco tem 2 opções ou será o acabamento
ou a lustradeira e depois disso aí vem a serra,
que é mais assim de uma responsabilidade
dentro da oficina.”

“A gente começa, a princípio, como ajudante e por ali,


depois daquela função ali, existe duas possibilidades para
a pessoa que está começando: ou ele vai trabalhar
na bancada, no acabamento ou senão vai pra lustração.
Foi por aí que eu passei e depois passei num certo tempo,
pra frente, passei a trabalhar na cortadeira
e aí foi até o fim, como cortador.”

36
O ajudante assiste a todos os trabalhadores da marmoraria, faz massa
para os colocadores, carrega peças, faz o carregamento do caminhão e tam-
bém o descarregamento dentro e fora da empresa.
“Ajudante faz massa para os colocadores para
a parte de colocação, faz esse serviço assim porque
não tem uma profissão [...]”
“[...] faz o serviço geral, o ajudante assiste os demais
profissionais, carrega a peça e transmite para o geral,
tudo que tem em cima da bancada é assistido pelo
ajudante, ele faz o carrego do caminhão e vai
descarregar na obra esse tipo de coisa, ele assiste
a tudo dentro e fora da empresa.”

Embora não haja um plano de carreira estruturado enquanto política


de ascensão profissional, o ajudante é apenas o início na marmoraria e sua
evolução ou mesmo sua mudança desse cargo para o de lustrador, acabador ou
cortador obedece a algumas regras, dentre as quais ter o desejo de aprender o
trabalho e, para tal, precisa seguir a orientação dada pelos colegas experientes.

Assim, mudar para outra função depende não apenas da vontade do


trabalhador e do seu desejo de aprender, depende também da colaboração dos
colegas mais experientes que permitem a realização de pequenos trabalhos,
peças mais simples e também orientam, dando dicas de como utilizar equipa-
mentos etc.
“Depois de uns dois ou três anos que eu estava
dentro da firma, quando eu ia para as obras com o colocador,
aí eu pegava a lixadeira para fazer alguma coisinha,
com aquele medo de fazer errado, mas aí alguém dava
uma explicação para mim aí eu comecei, aí saiu um rapaz
que era profissional e trabalhava com lixadeira
e eu fiquei na vaga dele [...]”
“Eu com a lixadeira, eu ia fazendo aquele rodapé, porque
eu não tinha prática, então me davam aqueles rodapés
para fazer, logo no início, seria mais fácil, tinha
que passar a lixadeira.”

37
O ajudante também enfrenta situações de medo, tensão e sofrimento,
como o medo de fazer errado e o de ter que aprender a lidar com o equipa-
mento. O medo de errar significa perder a oportunidade de aprender e de
ter um emprego, a possibilidade do desemprego e até do desprezo ou de ser
excluído pelos companheiros de trabalho.

“[...] e eu ficava com medo como eu estava falando,


ficava com medo de quebrar aquela peça e eu, novo
de firma também [...]”
“Você pega naquela máquina ali tem um mês
para você aprender, aprender a pegar
na máquina tudo, lustrar e os caras
ensinando tudo [...]”

Portanto, a capacitação do ajudante e sua ascensão aos cargos de lus-


trador, acabador ou serrador se fazem no dia a dia, durante a própria atividade
de trabalho, sem nenhum treinamen-
to formal proporcionado pela empre- “Eu comecei na marmoraria como
ajudante e hoje sou acabador de
sa para lidar com os equipamentos ou mármores e granito.”
mesmo para carregar uma lastra.

A solidariedade dos trabalhadores experientes é um dos fatores posi-


tivos nesta posição, garantindo a continuidade no trabalho em marmoraria e
até mesmo a profissionalização ou qualificação da mão de obra antes apenas
ajudante.

No entanto, este percurso sem orientação sobre as questões relativas


à segurança, à saúde e aos acidentes de trabalho somado ao baixo número
de ajudantes que precisam assistir a vários
“Me acidentei mais por isso,
porque o ajudante estava distante profissionais pode levar a potencializar si-
e eu não queria chamar tuações de risco que se transformam em
o ajudante, eu não queria chamar acidentes, em especial quando se faz a rela-
o ajudante, o ajudante estava
lá e ia demorar.” ção entre o ritmo de trabalho e o ajudante.

38
A ausência de condições de “[...] e ali o ajudante é obrigado
trabalho adequadas e que protejam a pegar aquela chapa [pedra] quente
os trabalhadores os expõe a risco de e mudar ela para outro cavalete para
poder flamear a chapa que está atrás.
acidente de trabalho e doenças ocu-
Então hoje em dia dentro da marmoraria
pacionais ou relacionadas ao traba- esse é um trabalho que também está
lho, tal como ter de pegar uma cha- prejudicando muito o trabalhador [...]”
pa quente.

Observamos, assim, que uma das portas de entrada na marmoraria


é essa posição de ajudante: um trabalho desqualificado, um trabalhador sem
experiência e sem conhecimento do que irá encontrar adiante. Nele, é preciso
que estejam presentes sempre, de acordo com os relatos, a necessidade de
trabalhar e o desejo de apreender, que pode ser facilitado ou dificultado pelos
colegas na marmoraria.

4.3.2. O lustrador ou polidor


No processo de produção da encomenda, o lustrador é o trabalhador
que vem em primeiro lugar. Sua atividade consiste em lustrar a chapa (pedra)
e cabe a ele ligar a lustradeira no início do dia e realizar uma preparação no
equipamento em função do tipo de pedra que irá desengrossar2. Isso inclui a
escolha dos abrasivos que serão utilizados no processo.

Ao contrário do polidor e do serrador, “para ser lustrador, não se exige


leitura nenhuma”, referindo-se aqui à falta de uma escolaridade formal. Seu
aprendizado se faz no dia a dia com a lustradeira3 e a pedra.

Segundo o lustrador, seu trabalho não “dá muito valor, não tem muito
aquela responsabilidade”, refletindo um sentimento de menos-valia, talvez em

2
Termo usado pelos trabalhadores que significa começar com um abrasivo grosso, indo até o mais
fino com objetivo de afinar, alinhar, nivelar a pedra.
3
Lustradeira: equipamento utilizado para nivelar e polir a chapa (pedra).

39
função da ausência da escolaridade formal, embora esta não condiga com a
importância de seu ofício no fluxo de trabalho.

Chamamos atenção para a exploração e o controle da subjetividade


que é posta a serviço e à disposição do empregador. Parece-nos que este sen-
timento foi criado na marmoraria com a finalidade de manter o lustrador na
mesma posição, sem lhe dar oportunidades, nem aumentos salariais ou outras
condições adequadas de trabalho.

“[...] o meu patrão nunca me tirou da lustradeira para colocar


em outro trabalho. Então eu fiquei esses 30 anos na lustradeira aqui na
firma que foi uma coisa que atrasou meu lado, eu poderia aprender
outros serviços, mas ele queria que eu ensinasse os lustradores
novos que chegavam pra lustrar [...]”

Desqualificar o outro para justificar e encobrir irregularidades é uma


prática denunciada pelos trabalhadores. Neste caso, o lustrador é o protago-
nista da trama.

“[...] o serviço mais ingrato dentro da marmoraria é a lustração. Porque


o lustrador, ele passa apertado pra fazer muita chapa [...]
Aquele mesmo abrasivo que o patrão compra pra fazer, porque o patrão,
ele vai querer comprar sempre o mais barato [...]
Então você trabalha com aquela coisa ruim você não tem como
dar a qualidade que ele quer na pedra [...]”

Além de ser um trabalho escravo, sujo, pesado, esta atividade, do pon-


to de vista do lustrador, adquire outra qualidade, a de um trabalho ingrato.
Essa característica refere-se a uma conjunção de fatores que dificultam a reali-
zação da tarefa: o volume grande de trabalho, os materiais de qualidade duvi-
dosa que lhe são colocados à disposição e o fato de ter de mostrar um trabalho
de qualidade, apesar dessas condições.

40
Outro critério para ser lus-
trador e manter-se na função, dife- “[...] quando eu falo o pessoal pergunta
pra mim “você faz academia”, eu digo
rentemente do cortador ou do aca- não, é pedra mesmo porque a lustradeira
bador, é a força física, ser forte, pois não é qualquer um que trabalha não,
“na lustradeira tem que ser cara que en- tem que ser meio forte.”
tenda, tem que ser cara meio forte”.

Segundo os trabalhadores, a força física é fundamental para o desen-


volvimento da atividade do lustrador. Mais que isso, seu corpo é, além da
lustradeira, outra ferramenta de trabalho.

“Aqui é o volante da lustradeira. Eu tenho que segurar com uma


mão e desligar a lustradeira com a outra [...] Eu tenho que levantar
a máquina com uma mão e segurar a lustradeira com a outra também
apoiando o peito pra segurar o peso, né?”

O trabalho do lustrador é realizado na posição em pé e andando, em


movimento, durante toda a sua jornada.

Nessa “dança”, seu instrumento de


“É uma dança, você vai lá com
a máquina, você vai lá e às vezes, trabalho é bastante pesado e tem que
vai até o fim da pedra para poder estar em sincronicidade com o corpo do
ir para o outro canto. lustrador,que é uma extensão da lustradeira
Você fica nessa dança para lá
e a qual ele tenta dominar com todas as
e pra cá, o dia inteiro.”
suas forças.

“É uma dança, você vai lá com a máquina, você vai lá e às vezes, vai até o
fim da pedra para poder ir para o outro canto.Você fica nessa dança para lá
e pra cá, o dia inteiro.”

O trabalhador destaca ainda como se utiliza de todos os membros e


partes do seu corpo para dominar a máquina e obter um bom resultado.

41
“Então é isso aí que eu falei, a máquina mesmo faz com que a pessoa vá
para um lado ou para o outro, tem que procurar um jeito, às vezes tem umas
que puxam, eu nunca trabalhei nisso aí não, mas eu tenho um cunhado que
trabalhou nisso aí, porque é pesado e quando esquenta ela pesa.”

Associado ao controle da máquina-corpo, o lustrador precisa também


ter um controle sobre o processo de desengrossar a pedra, devendo ser capaz
de saber o ponto, o momento exato de trocar o abrasivo para dar continuidade
à tarefa, caso contrário sofrerá acidentes e sua peça não terá a qualidade satis-
fatória. Cada detalhe é fundamental.

“Porque quando você sentir que o material já tá desengrossado, aí você tem


que parar a máquina e trazer a máquina toda pra frente pra poder trocar
de abrasivo, se você está com abrasivo grosso com trinta e seis, todo
granito começa com trinta e seis que é pra desengrossar o material, quando
não tiver mais nada pra desengrossar aí você tem que trocar de abrasivo,
então você puxa a máquina, levanta a máquina e coloca cento e vinte, que
cada abrasivo desse é um detalhe um afinamento na pedra.”

A sequência de inúmeros detalhes é demonstrada na fala a seguir, des-


velando a experiência do lustrador e o seu saber, sabedoria esta que se fez no
cotidiano com a lustradeira na marmoraria.

“A máquina levanta, você têm que parar a máquina, levantar, aí você pega
duas chaves, tira seis abra-sivos do satélite e coloca mais seis abrasivos no
satélite; depois que você colocou, você tem que levar, aí você puxa
com abrasivo, a máquina fica numa altura boa então você
trocou o abrasivo, aí você tem que levar a máquina pra trás para
que ela possa pegar o nível da chapa, aí você deixa
na altura que você vai sentir, você não pode deixar com muito peso
na hora que você vai ligar a máquina senão com o tempo queima
o motor, então você tem que deixar a máquina meio leve, aí você liga a
máquina e vai levando a lixadeira pra trás só que não pode esquecer
que a chapa automática, se você esquecer, pegar a lixadeira até o fim, ela
queima o motor, então você tem que ficar ligado em todos os movimentos.”

42
A experiência do lustrador mostra, portanto, que o trabalho é consi-
derado desqualificado não do ponto de vista do ofício em si, mas sim, como já
mencionado, em relação à escolaridade formal, pois, aos olhos do emprega-
dor, seu saber construído no dia a dia qualifica-o a ensinar o seu ofício aos que
estão começando.

“Olha, o processo de levantar a máquina e trocar o abrasivo


em cinco minutos, essa sequência tirou o abrasivo colocou em cima de uma
mesa, pegar aquele da mesa e coloca na lixadeira, então tem esse processo
de levar e trazer, tem que deixar sempre na mesma posição
pra quando você for fazer outro material.”

Outro aspecto que deve ser ressaltado é a capacidade de atenção aos


diversos detalhes na atividade, atenção esta requerida porque, segundo eles:

“[...] as máquinas são perigosas. São


perigosíssimas. As máquinas de lustração são
muito perigosas.”

É um trabalho que você tem que estar ligado


no movimento. Da Politriz, porque pode
escapar um abrasivo e te ma-chucar.”

“Tem que ter muita atenção.”

Dessa maneira, o trabalho do lustrador é por eles considerado um ser-


viço perigoso e que exige atenção fortemente concentrada em todo o proces-
so, nos detalhes e na extensão da máquina, que é o seu próprio corpo.

Segundo os trabalhadores, em dado momento da história utilizava-se o


chumbo no processo de desengrossar a chapa. Havia referências à exposi-
ção ao chumbo e talvez a possibilidade de desenvolver o saturnismo.

43
“[...] no começo era chumbo, já era mais diferente o costume, o cara sofria
além da poluição, o pó que sentia a força que fazia [...]”

Para dominar a máquina – e aqui é no sentido de luta, de competir e


ver quem pode mais, o lustrador ou a lustradeira –, o esforço físico é intenso,
as mãos ficam calejadas e os dedos, tortos, além de deixar o trabalhador meio
lesado.4
“[...] fica preocupado ali com o serviço pode
ser isso mesmo, mas não, de tanto esforçar
muito a gente trabalha com a força da mão e
do corpo e tudo, e fica lesado, ruim da cabeça
meio zonzo, tonto meio tonto [...]”

A atividade desenvolvida pelo lustrador é, ainda, por ele considerada


ingrata em função da matéria-prima utilizada. Este aspecto nos revela o traba-
lhar de “cabeça quente”, uma vez que seu conhecimento, seu saber-fazer, não
garante que alcance a qualidade desejada por conta do tipo de material com
o qual está lidando, lustrando. O risco na chapa lustrada é indicativo de um
trabalho de qualidade negativa, portanto, ele também trabalha sob tensão, sob
estresse.

“[...] às vezes você dá tudo de você no material e no fim, quando você está
no fim do material na hora de lustrar, o material está todo riscado,
então o lustrador nunca trabalha com a cabeça fresca, ele sempre trabalha
com a cabeça quente rezando pra que quando chegar
ao final não tenha risco nenhum [...]”

Em sua fala, o lustrador aponta para a existência de modos de fazer,


de desenvolver sua atividade que não estão escritos em lugar algum, ou seja,
são os macetes utilizados, estratégias que permitem a realização do processo

4
Lesado no sentido de ficar tonto, abestalhado, fora do ar, desligado.

44
de produção e uma racionalização do tempo. Dessa forma, elimina algumas
etapas do processo e ganha tempo.

Assim, paralelamente à qualidade da peça atribuída pelo lustrador, há


uma lógica de economia de tempo, que somente é possível para o trabalhador
que conhece sua atividade. Conhecendo o processo de trabalho, pode deter-
minar exatamente quais etapas pular sem prejudicar a qualidade do material.

“[...] e eu, não querendo falar de mim, eu sempre fui um lustrador dentro
daquilo que dava, a melhor produção era comigo, se outro lustrador fazia 4
chapas, eu fazia 5, mas não que eu era puxa-saco, pela experiência do dia a
dia, a prática e a experiência vale tudo dentro da lustração. Eu posso passar
por uma chapa na mesa e passar 36, e antes do 36 eu já passei a 120 e não
a 180, ai eu já pulei um abrasivo estou ganhando ali 15 minutos, entendeu
como funciona, é uma pedra mal lustrada, tô ganhando ali uns 15 minutos,
aí eu passo 180 3f e não passo o 1000 e não passo 1200, eu já estou
ganhando ali 2 abrasivos, quer dizer, a pedra não vai ficar beleza pura mais
vai ficar mais ou menos, não vai ficar tão bem afinada que eu sei porque
não passei todos os abrasivos [...]”

Essa economia de tempo, a necessidade de pular etapas, como pode-


mos verificar, é ditada pelo ritmo da produção e da necessidade de fazer mais
chapas.

Além da quantidade, existem as exigências de detalhes da própria ta-


refa, visando à qualidade, alguns cuidados que o trabalhador precisa ter com a
chapa para que ela esteja de acordo com essas exigências: é necessário puxar
bem a água para verificação de riscos ou outras anormalidades que possam
aparecer após a lustração. Somente puxan-
“[...] se você gastou duas
horas em cima desse material do a água é possível enxergar esses defeitos,
você vai gastar mais duas pra caso contrário será preciso refazer todo o
tirar aquele risco, você tem processo, o que demanda aproximadamente
que fazer tudo de novo, todo o
processo de novo.” mais duas horas.

45
A ausência de manutenção do equi- “Ela estando no nível é
pamento, o desnivelamento e a instalação menos, se você deixar ela alta
demais, você deixou ela alta,
da lustradeira em condições inadequadas ela vai puxar pro lado direi-
trazem reflexos diretos ao processo de tra- to, você puxou, ela baixa, ela
balho, aumentando o esforço físico para o vai puxar pro lado esquerdo,
lustrador e maltratando ainda mais o seu então isso maltrata o corpo
do trabalhador, tem que
corpo já sofrido. procura deixar ela no nível,
que no nível ela fica mais
Ao trabalhar com a água, é preciso ou menos, você que conduz a
ter uma sequência na utilização dos abrasi- máquina entendeu?”
vos, iniciando pelo mais grosso, chamado
36, até o mais fino, que é o 1200. Sendo assim, a água do início do processo
“Se você ver qualquer anormalidade, aí é mais suja, ficando um pouco
você vai ver que não está boa pra tirar da mais limpa no final para que se
base, aí você vai ver qual o melhor abrasivo visualizem as anormalidades na
pra passar na pedra.”procura deixar ela no
chapa em que se trabalha.
nível, que no nível ela fica mais ou menos,
você que conduz a máquina entendeu?” Quando termina a lus-
tração, é necessário deixar a chapa secar para verificar se está de acordo com o
solicitado, e é neste momento que o trabalhador consegue ver se ficou alguma
deformidade, tal como riscos aparentes ou fissuras. O trabalho de retirada da
chapa da mesa de lustração é muito delicado, pois exige muitos cuidados e a
ajuda dos colegas, conforme relatos a seguir.

“[...] você terminou a chapa, você tem que


deixar ela seca, puxou a água da chapa, põe a
lustradeira no local dela pra não deixar em cima
da chapa [...]”
“[...] tenho que chamar um companheiro
para puxar, ela puxa em duas pessoas...
ponho um caibro aqui e outro aqui, a chapa
vem até aqui mais ou menos, então eu ponho
um de cada lado... pego o carrinho, trago o
carrinho, ponho ali no meio daqueles caibros,
aí tenho que chamar 4 companheiros para

46
tirar a chapa de cima da mesa que aí fica
2 em cima da mesa, da base, e 2 embaixo,
porque aqui de baixo tem que fazer força pra
não quebrar o material [...]”

Esses relatos claramente delineiam o que pondera Dejours (2004;


2008) sobre o significado e a importância do corpo no trabalho:

A habilidade, a destreza, a virtuosidade e a sensibilidade técnica


passam pelo corpo, se capitaliza e se memorizam no corpo e se
desenvolvem a partir do corpo. O corpo inteiro – e não apenas
o cérebro – constitui a sede da inteligência e da habilidade no
trabalho [...] (DEJOURS, 2004)

O conhecimento do trabalho e do ofício é o conhecimento do


corpo [...] é um conhecimento de corpo mesmo que não seja
simbolizado, que não seja visível nem facilmente transmissível.
(DEJOURS, 2008)

4.3.3. O serrador ou cortador


A denominação da função refere-
“[...] um lugar chama de serrador
-se àquele trabalhador que corta ou serra e outro chama de cortador, mas não
a chapa de acordo com as medidas espe- muda nada. Muda de marmoraria
só isso, mas faz a mesma coisa.”
cificadas no projeto.

Por ter de lidar com medidas e cálculos, para ser serrador exige-se um
nível de escolaridade com conhecimentos de matemática, desenho, ângulos.

Ele tem que entender de medida, de calcular, por exemplo.Tem um vão,


daqui até lá tem uns dois metros e meio, vamos calcular quantas peças vai,
tem que saber fazer a conta de quantas pedras do meio que tamanho vai ali
porque se colocar um tamanho menor e outro maior fica feio.”

47
Além disso, exige-se do trabalhador conhecimento em relação ao ma-
terial com o qual lida.

“[...] tem que conhecer o material por nome, por cor, por exemplo, tem cinza,
mas tem cinza escuro, tem outro claro, não pode misturar, tem que acompa-
nhar sempre por entorno da medida [...]”

Segundo os trabalhadores de marmoraria, o serrador deve possuir al-


gumas outras características específicas para o bom desempenho de sua ativi-
dade, tais como calma e concentração, pois a atividade envolve a observação
de muitos detalhes.

“E também não precisa ser afobado, não


pode ser lerdo, mas não precisa ser afobado,
não pode querer correr porque tem serviço
que dá muito trabalho.”
“Outra coisa, o nosso trabalho, ele exige muita
concentração, não é? O senhor está concentrado em
olhar a pedra pra ela não ter um trinco, pro senhor não
marcar em um lugar errado, pra aquele pedaço de pedra
não quebrar sua perna ou estragar o serviço que vai
fazer, não é? Aí o senhor está concentrado no desenho,
nas medidas, em um monte de coisa”.

Além disso, observa-se nesta função condutas relacionadas à organiza-


ção, à estruturação de sequência e ao planejamento sem o que algumas enco-
mendas seriam inviabilizadas.

“[...] uma lareira que eu montei parecendo uma sanfona, pedra para dentro,
pedra para fora, para fazer isso aqui a gente faz quarenta e cinco que
não sai quarenta e cinco aqui, depois faz aqui sem contar que você tem
ela bem pequena e já vai tem outra aqui desse lado casar isso aqui, para
casar isso aqui para ela ficar todinha [...]”

48
O serrador não pode ser afobado e não pode ser lerdo, pois em algumas en-
comendas precisará lidar com o controle de determinados períodos de tempo
necessários para a finalização da peça.

“[...] foi a primeira e única que eu fiz em noventa e quatro no apartamento


dele, o cara que eu trabalhava na época, essa lareira deu
um trabalho porque a gente cortava, esperava ela secar no gesso, marcava
todinha com o giz para poder cortar novamente porque não dava para
ela já sair direto não, foi cortada peça por peça, por isso deu um trabalhão.”

Os segredos de ser serrador


Toda atividade, para ser desenvolvida, implica também na utilização da
experiência adquirida, na criação de jeitos de fazer e macetes que permitam a
realização do produto.

Além da observação dos detalhes, da experiência, da capacidade de


concentração e da calma, é fundamental que o serrador tenha uma visão
do conjunto, ou seja, das par- Às vezes vem uma folha com o tamanho das
tes da peça e do todo em fun- peças, na outra vem o desenho, a gente tem
ção do tipo de rocha, da cor, que dá uma analisada no desenho e ver qual a
melhor forma de executar para poder
dos detalhes da lastra e do fazer o material.”
produto encomendado.

Algumas falas de seu próprio discurso demonstram essa forma de


trabalhar:
“Tem alguns materiais, por exemplo,
como este aqui que vemos aqui na frente,
que este material ele tem, ele tem,
veio como vocês vê, às vezes os clientes pede
um serviço quase nada então a gente tem
que fazer com o máximo cuidado
para casar os veios.”
“É colocar os veios dentro da medida para encontrar
de uma com a outra.”

49
“Este rajadinho, este preto indiano aí.”
“Tem que decifrar, onde tem o preto encontrar com o
preto e onde tem o branco encontrar com o branco,
por exemplo, tem este risco branco aqui, a gente tem
que procurar onde que tem esse o risco branco para
dar continuidade.”

Essa sequência exige uma organização do trabalho pelo próprio ser-


rador, para o serrador e também para os colegas que irão dar continuidade à
encomenda, no caso, o acabador. Essas características da atividade conferem a
este trabalhador autoridade e autonomia para julgar o que é mais conveniente
e adequado na forma de produzir.

“Na verdade, esse serviço, a gente numera com um giz


as placas e numera as peças que quando cortar passa
a régua e a linha fica totalmente igualzinha.
Então a gente trabalha igual a juiz, tem uma pauta,
então a pauta deste pedido é de um material como
o cliente deseja, se é paginado ou não, muitas vezes
vem um pedido de peças, vem uma folha,
vem o desenho anexo a ela.”
“Naquele desenho você tem que numerar o
desenho, e depois numerar as pedras, igual está
no desenho para na hora que colocar, se ela foi
cortada assim e ele virar ela já não dá, tem que
ser na sequência.”

E os macetes, assim como a experiência acumulada, são fundamentais


para obter uma encomenda adequada, que começa na lustração.

“[...] para fazer um piso dessa casa aqui


vão várias chapas, se o material for bem
lustro para você serrar ela certinho dá
para serrar e parecer uma chapa só [...]”

50
“Por exemplo, você tira a primeira e vai
colocando, depois na hora de cortar vem
uma, duas do mesmo jeito que eu estou aqui
serrando.”

“É você não pode tirar uma e pegar


outra e mudar a sequência dela, tem que
seguir a sequência.”

Além de suas próprias exigências com relação a um trabalho bem rea-


lizado, de acordo com as encomendas, o serrador também passa por um con-
trole de qualidade externo, que pode ser uma pessoa física ou uma empresa/
construtora, representada por arquitetos etc.

“Arquiteto devolve no ato se passar um


piso, por exemplo, do banheiro
para o arquiteto ele devolve no mesmo
dia, então a gente tem que sempre
olhar esses detalhes.”

“[...] o colocador, na hora que ele chegava


lá e estava qualquer coisa diferente
do que ele queria [...] se não tivesse
do jeito que ele queria, ele pedia para
arrancar tudo [...]”

Apesar das atividades dos trabalhadores em marmoraria serem bem


distintas umas das outras, existe uma sequência lógica entre elas que não pode
e não deve ser desprezada, pois cada etapa depende da anterior.

“Na hora que colocar vai começar dali, ali está o número um eu tenho que
saber que aquela ali é a número um, porque senão ele mistura elas todas, já
põe o três, quatro, aí já fica errado. Aí o colocador olhar ele vai saber que ali
é uma sequência? Ele vai saber que é uma sequência.”

51
Tipos de peças
O serrador faz qualquer tipo de peça, tais como pia, piso, lavatório,
coluna, lareira. Segundo os trabalhadores, algumas são mais difíceis e algumas
despertam maior satisfação e prazer quando acabadas.

“É uma lareira esse tipo de trabalho assim que leva


maior tempo para você pensar onde vai cortar,
onde não vai cortar, onde vai casar um veio com outro,
onde não vai casar, para no final, quando
o cara for fazer o acabamento e o colocador falar
está pronto, aquele negócio fica bonitinho
como a gente pensa.”
“A coisa que eu acho mais difícil de fazer
é um pé de mesa que você tem que fazer
a quarenta e cinco grau e a máquina
não vira o disco [...]”

Ferramentas para o corte


As ferramentas utilizadas para o trabalho são disco diamantado, serra e
disco diamantado fixo. Às vezes, a makita, a marreta e a talhadeira também são
utilizadas no processo de fabricação. O metro, a trena e o giz também fazem
parte desse instrumental para o trabalho. Nas marmorarias visitadas, além do
relato dos trabalhadores a respeito, observamos a utilização de carrinhos para
o transporte das chapas, o que é proibido pela legislação.

Nem sempre as ferramentas e os equipamentos utilizados estão em


condições de uso e sem riscos de acidentes para o trabalhador. Ele tem de
lançar mão de outros recursos para garantir a realização da atividade e da pro-
dução da encomenda.

Dependendo do tipo de trabalho, seja para um corte pequeno ou para


um corte grande, o uso da makita gera pó.

52
“Quando você compra a makita, já vai o equipamento
de por água... Mas se você não tem uma torneira
próxima você não tem como por água aí normalmente
a gente pega uma garrafinha e umedece.”
“Se você for cortar a seco, vai dar um pó
danado e o diamante vai sair daquela aí,
vai estourar, tem que ser a úmido.”

Outra “ferramenta” utilizada pelos trabalhadores é o calço, que pode


ser de madeira, de pedra ou ferro. O uso constante deste “equipamento” in-
formal, criado pelos próprios cortadores, faz com ele já saiba a medida exata
e necessária para apoiar a pedra durante o corte.

“[...] eu uso, por exemplo, tem o piso aqui para cortar, aqui, esse piso aqui,
creio eu que deve ser quarenta e cinco, quarenta, tem uma faixa ali que vai
ser trinta e eu vou colocar essa aqui que é de quarenta, mas vai
ter outro de trinta. O menor a gente deixa sempre por último,
mas eu tenho um calço de teste que na hora que eu termino de cortar
o de quarenta eu tenho o calço de teste entre aquela guia e o disco,
então já está a medida, entendeu?”

Esses equipamentos criados pelos trabalhadores fazem parte do dia


a dia deles e foram tão fortemente incorporados ao processo de trabalho do
corte que muitos confiam muito mais nessas ferramentas que em outras.

“Eu tirei o de sete, então eu não tenho que estar medindo a toda hora,
eu já tenho que confiar nos meus calços que já estão na medida exata.”

Contrariamente, outros trabalhadores preferem não usar o calço que


é uma maneira mais “artesanal” de trabalhar e apostar na eficiência do próprio
equipamento.

Observamos também que a utilização de calços e outras ferramentas


improvisadas começam a perder o seu espaço em função da inserção de tecno-

53
logias mais atuais e desenvolvidas especificamente para determinadas tarefas,
como, por exemplo, o corte da pedra, como demonstra a fala abaixo.

“[...] então como eu gosto de uma coisa mais prática, eu vou na manivela
mesmo e vou levando o disco para frente ou para traz do tamanho
que eu quero e hoje como tem muita máquina moderna que já vem com o
motor, é só apertar o motor ela vai e volta, então também eu acho mais fácil
também, então eu uso pouco esses calcinhos.”

O treinamento para manipular o equipamento é ministrado pelo fabri-


cante. De qualquer maneira, os jeitos e macetes, estratégias, o aprender a fa-
zer se faz no dia a dia na marmoraria através do esforço diário do trabalhador.

“[...] esta firma que eu estou, o cara no final do ano


passado comprou uma máquina que é mais fácil,
a gente digita lá aperta o botão e o motor vai,
quando chega na medida o computador para, quer
dizer, a senhora digitou, apertou o botão que está no
tamanho exato.”
“O fabricante, quando vai instalar a
máquina, ele leva o manual de instrução
e dá as orientações básicas, aí o resto,
o sujeito na prática do dia a dia vai descobrir
o restante.”

As transformações e mudanças nos ambientes de trabalho também


chegam às marmorarias, o que coloca a reflexão sobre esses equipamentos,
sejam as máquinas digitais ou manuais, do ponto de vista da segurança desse
trabalhador: quais jeitos, macetes e jeitinhos permaneceram e quais serão cria-
dos a partir dessa nova tecnologia? O fato é que esses macetes, apesar de facili-
tarem o desenvolvimento de sua atividade em função da ausência de condições
apropriadas e vinculadas ao saber-fazer do trabalhador, não garantem a manu-
tenção e a promoção da sua saúde. Os acidentes de trabalho podem acontecer
quando até estes macetes já não suportarem mais condições tão danosas.

54
4.3.4. O acabador
No processo de produção da encomenda na marmoraria, o acabamen-
to é o último estágio e utiliza equipamentos e máquinas como makita, lixadei-
ra, chicote ou rebolo para retirar as rebarbas e a lixa d’água para dar brilho.
O acabador, como o próprio nome já diz, é quem finaliza a peça que seguirá
para o cliente.

“É o acabador, depois que passa pela mão do acabador pode levar para a
entrega, para o serviço final e consiste no polimento e a montagem da peça.”

A finalização da peça consiste no polimento e na montagem da enco-


menda, portanto, segundo os trabalhadores, o acabador deve ter algum conhe-
cimento sobre desenho e medidas.

“[...] acabador precisa saber também do desenho


pra ele saber onde vai uma peça, pra ele saber ali
montar uma peça de um lado e uma peça de outro
e as medidas certinhas [...]”
“[...] eu pego uma pia, aí a pia vem para
minha mesa, aí eu dou acabamento nela
todinha, se precisar colar os frontão eu vou
colar, deixar tudo pronto, depois eu vou colar
a cuba, que quando eu colo a cuba ela está
pronta parar ir para obra.”

O acabamento é mais uma etapa que exige atenção a todos os detalhes.


Nela, pode ocorrer a necessidade do desbaste, processo que exala odor e gera
queixas pelos trabalhadores.

Na hora do desbaste exala um cheiro ruim [...] é um


processo do esmeril e o nylon, ali é fundido naquele
processo e aquilo ali vai queimando os dois, em
um processo rápido, fede. Perturba. Quando se está

55
desbastando a pedra, aquele cheiro perturba.
É que é um fedor agressivo.”
“[...] às vezes uma peça de um metro,
dois metros, ou mais, depois que a gente deu
aquele acabamento, a gente encosta ali
e já vai pegar outra e ai começa tudo
de novo [...]”

Na atividade do acabador, constata-se certa rotina exaustiva, com rit-


mo intenso e monótona por ter de fazer a mesma coisa durante toda a jornada
de trabalho e todos os dias.

“[...] é o dia todo, menos os quinze minutos que a gente


tem, e horário de almoço, mas a gente, o nosso que era
parte do acabamento é direto.”
“[...] se é um boleado ou meia cana é aquela,
a fresa, aquela barulhenta, a gente faz
aquele boleado, depois passa um disco
de disfarce, depois já vem a lixadeira,
as lixas, e dali a gente já tem que levar
a maquininha de água, de autobrilho,
se tem firma que tem a pessoa só para fazer
aquele processo de autobrilho, aí é com
ele lá, mas aí a gente volta e vai
pegar tudo de novo [...]”

Portanto, o ritmo é intenso e os trabalhadores referem diversos pro-


blemas ou dificuldades na execução da sua tarefa, problemas esses que, em
função das condições de trabalho, levam ao prejuízo de sua saúde. Este aspecto
será tratado no Capítulo 5 - Saúde, mas merece menção aqui, pois se trata de
uma função em que a produção do pó da sílica é intensa. A ausência de equi-
pamentos de proteção coletiva e individual adequados e até sua ausência total,
como os óculos, traz consequências sérias, não importando se este processo
de trabalho é realizado nos dias atuais ou anos atrás.

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“[...] aquela poeira que fica todinha aqui você joga ela todinha para dentro
do olho, todos os acabadores sabem disso.”

O equipamento de proteção individual, além de não ser o adequado,


aumenta mais o risco de exposição da visão.

“Eu trabalhei muitas vezes também no acabamento, porque, aquelas letras


hebraicas eram feitas toda à mão e era eu que fazia à mão, então
eu sei que nesse episódio de desbaste a gente sacrifica muito o olho,
nessa máscara descartável, ela não é boa, aquela poeira grossa todinha
no respirar e soltar joga tudo no olho e aquilo ali o olho fica ardendo
e exalando uma água.”

Em seu processo de trabalho, para executar um de suas tarefas, a mon-


tagem da peça, o acabador utiliza a cola e várias são as queixas relacionadas a
ela. O uso desse produto leva-os a criar pequenas pausas, que são ocultadas
do patrão.

“[...] porque como o serviço era muito forte e a cola, o cheiro, era muito forte,
o catalisador e tal, essas coisas, quando eu terminava normalmente eu saía
pro banheiro, saía para tomar água, saía para fazer qualquer coisa porque o
cheiro era insuportável.”

Esta etapa deixa o “acabador engasgado” em função de reunir produtos


como a cola e o catalisador e produzir pó. Os riscos a saúde se sobrepõem.

“[...] você sai engasgado com a poeira, sai engasgado com a cola, sai
engasgado com o catalisador com tudo isso, aí você, normalmente eu saía uns
5 minutos mais ou menos, ia no banheiro, às vezes o dono estava lá e dizia
‘cadê o fulano’, diziam ‘foi no banheiro’.”

Ir ao banheiro, botar o rosto para fora dos muros da empresa significa


uma pausa para respirar, para desengasgar, uma forma de tentar se refazer da
exposição aos riscos que invadem todos os espaços da marmoraria.

57
“Às vezes você botava até a cara do lado de fora da rua para, e lá não tinha
o portão e a gente botava a cara do lado de fora da rua para respirar
um pouco porque a firma normalmente estava tomada de pó e o cheiro
da cola, o cheiro do catalisador.”

É exigida do acabador certa pressa quando da montagem da peça e


esse tempo é determinado pelo tempo de secagem do catalisador adicionado
à cola.

“[...] se o tempo estiver quente, dependendo da hora também, a cola


rapidinho seca, às vezes já começa aquela peça, vê se está quente, dependendo
do tempo, quando junta o calor e quando tem o calor, coloca aquele
catalisador secante que mistura quando você pega duas espátulas e vai passar
naquela peça lá já está emborrachando.”

O acabador deve estar atento às condições climáticas (temperatura),


pois esta altera o tempo de secagem da cola. Esta habilidade de saber o mo-
mento exato existe em função de sua experiência, a qual lhe permite “relaxar”
ou “correr”.

“A fusão do catalisador [...] Se está em um tempo frio, ele demora mais,


você pode até abusar, se você está em um tempo médio,
dá um tempo bom de trabalho, mas se está em um tempo
quente às vezes você termina de enxertar e ela já está emborrachando.”

Em conjunto com a colagem da peça, os acabadores referem também


a utilização de “sargentos”, que são instrumentos utilizados para fixar as partes
da peça conforme o projeto que lhes foi passado.

Aí não pode, você deixar passar, e a cola não pode secar e o sargento
é justamente para deixar tudo em ordem, e o desenho, quando você vai olhar
o desenho, você vai ver o desenho e tem que deixar daquele jeito, não pode
porque senão quando você for por na parede não vai dar na parede
e se você for por com a outra não vai dar com a outra,
então o acabamento exige muito isso.”

58
O trabalho do acabador é a etapa anterior a do colocador e, nesta fase,
não se pode admitir alterações que impossibilitem a colocação da encomenda.

“As peças para você na hora que colocar você apertar tudinho para
que eles não fujam, porque se eles fugir, você sai perdendo tudo, porque
a maioria das coisas é tudo com desenho, então, um milímetro a mais,
dois tal, às vezes não faz nem diferença, mas se passar três por
aí normalmente já dá diferença.”

Nesta etapa do processo de produção, a peça deve receber todo o tipo


de tratamento necessário para que fique bonita.

“Então por isso que o acabamento você tem que trabalhar 100% inclusive
o brilho, o brilho da frente de uma peça tem que ficar muito bonito [...]
Porque o correto mesmo é você dar o acabamento no brilho de água, na água,
brilho na água, aí ela vem para nossa mesa [...] nós vamos dar mais um
acabamento e daí a gente vai fazer as outras coisas, a gente vai fazer uma
colagem, colagem de peça.”

Os trabalhadores referem ter preferência em executar o trabalho em


função do tipo de peça a ser produzida. Tal preferência envolve critérios como
praticidade, pois “uma pia, melhor, mais prático, não tem aqueles detalhes”, e dificul-
dade, pois quanto mais “trabalhoso”, mais empenho, mais a peça é valorizada
pelo trabalhador.

“[...] um lavatório muitas vezes dependendo do dono, ele vai pedir com vários
tipos de detalhe, aí a gente vê quando sai de lá só a frente lustrada ela
vem para nossa mesa e a gente vai dar o acabamento final, vai colar
as peças e no final a gente cola a cuba para quando chegar lá e colocar
no banheiro o dono olhar e dizer ‘muito bom’ [...]”

De qualquer maneira, prevalece a perfeição ressaltando o “orgu-


lho”, elevando a autoestima do acabador quando ele enfim se reconhece no
objeto produzido.

59
Para sentir na sua pele esse orgulho do fazer benfeito, o trabalhador
passa por muitas situações desagradáveis, desfavoráveis em função das con-
dições de trabalho, dos equipamentos sucateados, da ausência de tecnologias
que lhe deem suporte necessário.

“[...] a gente tem que estar seguro com ela ali,


firme e sempre, centrali-zado ali, porque qualquer
coisa também ela pode escapar dali e fazer um
arraso com a gente. A gente tem que por força,
depende do granito também que a gente vai fazer,
porque tem uns materiais que são mais duros do que
o outro, é, a gente precisa por força.”

“Você com uma lixadeira daquela, o dia todo,


forçando, que ela deve ficar com uns dez, porque
você, para fazer um redondo, de uma peça de três
milímetros, mais ou menos isso, não é?
Você, para fazer um redondo, você tem que fazer
isso aqui, quer dizer, você tem que trabalhar numa
posição forçando a fresa, a lixadeira, senão
você não consegue fazer, depois você vai ter que
virar o outro lado, para fazer o outro lado, para
ficar redondo, então o dia todinho.”

O trabalhador refere-se a uma “culpa” que ele assume como sendo


responsável pelo acidente em função de seu difícil processo de trabalho. A
ausência de planejamento, de organização, de layout adequado, de tecnologia
que não incorra em esforços e riscos, além da lacuna existente em relação à
capacitação ou treinamento o leva ao acidente.

“[...] então você tem que trabalhar com muito cuidado, forçando a má-quina,
a lixadeira, para que você não deixa a peça torta. Então qualquer
descuido você se acidenta. Aqui a gente liga e desliga, mas, por exemplo,
no caso de um acidente é menos do que um piscar de olho da gente,
a máquina já acidentou a gente.”

60
Em resumo, o trabalho do acabador apresenta, segundo eles, qualida-
des como ritmo intenso, monotonia, perigo, meticulosidade e inventividade
para criação de estratégias tendo como fim lidar com o ritmo e os riscos a que
estão expostos.

4.3.5. O colocador
Na sequência do processo de trabalho como um todo, desde o início
até a instalação da peça, o colocador é o último, é quem instala a peça enco-
mendada pelo cliente.

As ferramentas usadas por ele são marreta, talhadeira, espátula para


rejuntar e a makita. Alguns preferem ter suas ferramentas, pois, na necessida-
de de realizar algum reparo, eles o fazem e isso representa mais que um empe-
nho, representa o orgulho de sua profissão, de se esforçar para fazer benfeito,
a despeito de quaisquer condições e lugar.

“[...] é um trabalho externo, o colocador e o medidor


são um trabalho externo [...]”

Por ser uma atividade externa à marmoraria e por ser o colocador


o responsável pela instalação da encomenda, impõe-se a este trabalhador o
contato com o público, embora ele possa desenvolver sua atividade tanto em
locais habitados, como em locais onde a obra ainda está em execução.

“A minha função que está na carteira, eu trabalho externo, eu venho na


marmoraria carrego aquela picape ou caminhão eu vou na frente, eu vou
até... Isso, vou até o consumidor final que é o cliente.”

Em função de seu contato com o público e do tipo de peças produzi-


das, muitas vezes o serviço é finalizado, cortado ou acabado no local de insta-
lação para satisfazer as necessidades do cliente.

61
O contato do colocador com a marmoraria pode ser mínimo:

“[...] e às vezes ele mesmo, passa anos sem ir na marmoraria, recebe na


própria obra pelo medidor ou pelo administrador [...]”

Ele “também pode trabalhar com um tipo de vínculo com a marmoraria”, não
com registro em sua carteira profissional, mas como autônomo, e a empresa o
requisita sempre que há um serviço a ser realizado.

Este profissional trabalha com um ajudante que faz massa para a parte
de colocação, no entanto, não são todas as empresas que colocam um ajudante
à disposição dele.

Para ser colocador, existem certas exigências, como ter experiência,


um pouco de conhecimento da escola formal em matemática e saber ler.

“Eu comecei colocando uma pia, colocando


um lavatório e peguei já a manha de tirar
prumo, de tirar nível, porque o segredo
da coisa é o prumo e o nível, um piso
para você colocar você tem que tirar prumo,
ver aonde vai ficar a caída, então
você observando isso, você começa
a colocar um piso [...]”

“[...] a pia, você tem que colocar ela


no nível porque se não a hora que você
vai lavar a louça a água bate na pia e vai
empossar no canto ela não vai ficar na bacia,
é assim que funciona o nível, e na parede é
prumo, não tem se você colocar na parede fora
de prumo ela vai cair a pedra então
tem que ser prumo.”

62
Alguns trabalhadores não tiveram estudo formal em escolas ou cursos,
tendo aprendido tudo na prática. Esse conhecimento adquirido através da ex-
periência do dia a dia, através da observação do trabalho do colega, incorre no
risco de se repetir erros, de aprender vícios e macetes realizados pelo colega
mais antigo que nem sempre são os mais adequados e corretos do ponto de
vista da segurança e da saúde do trabalhador.

Abrindo um parênteses sobre o trabalho do medidor


Entre o colocador e a colocação da peça já finalizada há outro traba-
lhador: o medidor colocador ou o colocador medidor. Ele é responsável por
medir, definir as medidas da peça/encomenda que vão para os outros traba-
lhadores da marmoraria. Sua função é definida pelo colocador:

“[...] ele iria até um cliente, até a construção


civil, a obra, ele seria o responsável maior
perante o proprietário e também
aos funcionários. Aquela medição é que vem
para as bancadas, como vai cortar, como
é o tamanho, porque tem aquele grau, porque
tem aquele ângulo.”

“A responsabilidade do medidor é muito certa


porque se o medidor errar nas medidas perde
todo o material.”

Portanto, o medidor mostra a importância da técnica e do conheci-


mento para efetuar o trabalho, bem como o caminho para que o colocador
tenha sucesso no momento de “encaixar” a peça encomendada:

“[...] não querendo desmerecer os meus colegas de dentro da marmoraria,


todos eles trabalham bem, mas eles não procuram conhecer ângulos, medidas,
porque significa aquele ângulo o nome daquilo, então as peças ficam sem

63
nome, no meu ver as peças ficam sem nome, aquele redondo, aquele bico não
pode ser bico, tem que ser um ângulo, quarenta e cinco graus, vinte e dois
e meio alguma coisa desse modo [...]”

Na fala anterior, além da crítica feita pelo colocador ao fato dos colegas
da marmoraria não saberem a matemática formal, observamos uma evidência
de duas culturas diferenciadas, ainda que o produto seja o mesmo.

“[...] o medidor é o responsável pelo sucesso do colocador e da empresa, ele


tira essa medida aqui, vamos dizer que com esse pano ele tira essa medida, ele
é responsável pela divisão para que dê todas as pedras com uma só medida e
que não tenha muita requadração, ou seja, ajustes [...]”

Pode ocorrer de o colocador receber a peça pronta e ter de fazer “mi-


lagres”, porque nem sempre a medida da peça corresponde ao espaço dispo-
nível para seu encaixe. Isso significa dizer que pode ter havido uma medição
inadequada quando do início da encomenda.

“O colocador pode ser um bom profissional, ele já pega a peça no tamanho,


ele vai fazer aquilo que dá pra ele fazer.”

O medidor tem uma visão geral de todo o processo de trabalho dentro


da marmoraria e da obra para onde foi feita a encomenda e a peça.

“[...] na obra, tem que fazer medição na obra e depois ele também tem que
ter olhos para o material, para não haver perda de material se ele tirar isso
aqui, se ele projetar isso aqui de um tamanho que as lastras
que ele tenha gera perda ele também vai ter desperdício de mate-rial,
então ele é responsável por todo quadro da obra do piso, do que ele mede,
ele é responsável e dali ele é que, muito embora o arquiteto planeja,
faça tudo, mas ele responsável para que tudo ali dê certinho, não sobra
emendas, não tenha requadração [...]”

64
Além da necessidade de saber realizar cálculos, ou seja, de certo nível
de escolaridade, há também a experiência, a sabedoria do próprio trabalhador
que apenas ao olhar já detecta irregularidades ou não. E quando não há um en-
caixe perfeito entre o espaço e a peça, há necessidade de adaptar, mas apenas
se houver uma autorização de algum superior.

“Se eu achar que o limite dá pra refazer, eu contato com alguém, superior
a mim, porque isso tem um valor alto, não é um valor assim que eu posso ir
estragando assim cortando do meu jeito [...] Eu vou passar para aquela
pessoa, agora aquela pessoa confia em mim plenamente, ele vai falar pra
mim, então você corta e faz, você não sai daí sem que você não faz,
nem que você não terminou hoje, volta amanhã.”

Com a autorização expressa, o colocador faz o possível e o impossível


para executar sua tarefa, desenvolver um bom trabalho, pois este profissional
é como o “cartão de visita da empresa”. E isso independe de haver pessoas ou não
no local.

Em uma casa habitada, o colocador pode estar exposto a diversas si-


tuações, muitas vezes vexatórias e constrangedoras. A seguir observamos um
exemplo de situação que pode enfrentar enquanto desenvolve sua atividade:

“[...] a mulher tinha uma criança recém-nascida, eu praticamente, que


estava todo errado, eu recortei tudo dentro do apartamento dela, eu recortei,
remendei e recortei e dei conta do recado só que eu avisei pra ela, a senhora
talvez não vai conseguir ficar com o apartamento por hoje, mas se a senhora
quiser que faz vai ser assim e assado, bati um (rádio) pro meu encarregado,
ele falou:‘Faça, ou faça ou nós vamos parar na justiça, no Procon’.

Nem sempre a colocação é tranquila, alegre. Às vezes, o colocador


necessita de muito jogo de cintura para superar dificuldades com relação ao
cliente e também com relação a uma encomenda que não foi produzida segun-
do a solicitação.

65
“[...] estava atrasado quase noventa dias da cozinha, nós já fomos xingado
no batente da porta, quando chegamos todos alegres, a gente tem que ser
alegre:‘Oi bom dia, com licença, cheguei no seu lar para fazer a colocação
da sua cozinha’.‘Ai, que você não prestam, eu não sei o que, vocês não são de
palavra [...], não sei nem o que vocês vieram fazer mais aqui.”

O relato do colocador diante desta recepção é pelo menos de causar


tristeza. Se por um lado é o cartão de visita da empresa, por outro também é
um “testa de ferro”.

“Então aquilo para um ser humano, que nem café direito tomou de manhã,
é muito duro e muito difícil aí dá vontade de você chorar e ajuntar tudo,
você pensa na sua família, pensa no profissional que você é, pensa na sua
capacidade de manter o diálogo com aquela senhora que está te xingando
como já aconteceu muito comigo, eu tive que cantar para uma advogada loira
linda, parecia um furacão dois mil, eu cantei para a advogada, ela me deu
caixinha, deu para o meu colega de montagem.”

Observa-se a manobra interna da sua própria subjetividade para con-


seguir realizar a sua tarefa, convencer a cliente a recebê-los, a aceitar a enco-
menda que não era a esperada, ultrapassar sua indignação pelo grande atraso
na colocação da peça e, além disso, sair feliz e com uma gorjeta.

“[...] eu comecei conquistar ela porque estava aberta uma porta que
o pedreiro deixou, conforme vou fazer poeira vai sujar lá onde não há
necessidade, eu tenho uma serrinha de madeira, eu vou cortar a porta pra
senhora e vou colocar e fechar, inclusive até os cachorrinhos não vem aqui
pra não se machucar, aí eu comecei a conquistar ela daí por diante, não me
lembro mais da música, sei que eu estava cantando, que é tanta coisa do dia a
dia que dar para encher duas carretas, e eu comecei cantar para a advogada,
daqui a pouco ela falou:‘estou gostando da sua música, você canta muito
bem’. Falei:‘mas só que eu sou marmorista não sou poeta’. Porque já pensou
uma pessoa xingando e você conseguir reverter aquilo não é muito tempo não,
você não tem muito tempo para reverter e montar aquilo.”

66
O tempo de colocação das peças pode ser uma forma de expressão da
exploração da mão de obra do colocador, como explicita o trabalhador na fala
que se segue:

“Duas, (cozinhas) imensa, não estou falando


cozinha pequena não, estou falando imensa,
eu cheguei envelhecer três anos da minha
vida dentro dessa empresa, não tinha hora
pra comer, não tinha hora pro café,
só tinha hora pra chegar na empresa.”

“Eu saio para colocar, por exemplo,


um piso de um banheiro, eu vou colocar
aquele piso em um dia e eu ligo para empresa
e digo que estou terminando, aí eles vão
buscar a minha ferramenta e dali eles já
vão para outro lugar.”

O fato de sua atividade ser desenvolvida em espaço físico externo à


empresa, de contar com um profissional competente e seguramente preocu-
pado em satisfazer o cliente e de este mesmo profissional querer realizar um
trabalho, ou melhor, uma colocação que abranja todos os fatores aqui citados,
facilita a expropriação da sua mão de obra, quase que uma absoluta dominação
da sua força de trabalho a favor
“De manhã eu tinha que assinar o ponto oito
da empresa, pois o desgaste fica horas da manhã, depois quando entrou o RH,
evidenciado como “uma forma passou para o cartão eletrônico, tinha que
de envelhecimento” sentida pelo bater o cartão no relógio eletrônico quinze
para as oito da manhã.”
trabalhador.

O controle do tempo exercido pela empresa através do relógio de


ponto e da delegação da tarefa a alguém muito responsável profissionalmente
também é exemplo dessa dominação da força de trabalho.

67
“Eu chegava ser liberado meia noite, uma hora da manhã, duas horas,
eu cheguei passar uma semana sem ir na minha casa,
cheguei dormir na rua pra não perder o emprego.”

“O normal, as firmas hoje é tem umas que já estão fazendo às sete e meia,
mas como a gente trabalha em prédios
e a maioria são condomínios o horário é às nove horas.”

Isso tudo resulta em medo, medo do desemprego, de ser demitido, de


não corresponder às exigências do mercado de trabalho, de não poder mais
proporcionar o sustento de sua família, ou seja, é o controle da subjetividade
mais profunda do trabalhador.

“[...] e eu com pouco de ferramenta que tinha, que não era pancada não, era
cavalete não era nada, punha em cima de alguma coisa, de duas cadeiras, não
sei o que, e me virei e deixei a cozinha pronta.”

“Das duas uma, ou eu perdia o emprego, ou eu perdia a família com todo o


patrimônio que eu já tenho que não é pouco, que eu lutei pra conseguir isso
daí, lutamos não foi só eu, foi eu e minha família e uma certa hora a minha
família falou bom agora chegou o final.”

A empresa se apropria, ainda, do “defeito” do bom colocador de pen-


sar nos outros e o explora também enquanto cartão de visita da empresa:

“[...] acabei aquela e passei pra outra, deixei tudo limpinho,


aspirei tudo entreguei [...] Eu levava aspirador, não sei quantas vassouras,
pano branco limpo.”

“[...] quando eu vou na casa do cliente, eu vou decidido, vou seja numa
empresa [...] eu fui, eu vesti a camisa não da empresa, a minha mesma,
tudo que estava errado eu recorto dou conta do recado dou pronto,
porque eu penso em mim penso na minha família e dos que ficaram na
empresa, eu tenho esse defeito de pensar nos outros só.”

68
5. Saúde

É curioso, pois, embora este capítulo seja denominado saúde, basta


correr os olhos rapidamente por ele para perceber que elencamos queixas e
diagnósticos de problemas de saúde, ou seja, de doenças e agravos.

Falar de saúde é sempre difícil. Evocar o sofrimento e a doença é, em


contrapartida, mais fácil: todo mundo o faz. Como se, a exemplo de Dante,
cada um tivesse em si experiência suficiente para falar do inferno e nunca do
paraíso (DEJOURS, 1987).

Para os nossos trabalhadores não é diferente, e quando questionados


sobre o que seria saúde, referem representações que expressam a importância
do tema, atribuindo significados que, diríamos, são quase um divisor de águas:

“A saúde para mim é tudo.”

“Saúde é tudo. Sem saúde nada do que existe faz sentido para gente [...]
E não tendo saúde não adianta.Você não tem prazer em nada,
nada serve para você.”

Outra representação do que seja saúde para os trabalhadores de mar-


moraria, ao contrário da anterior, está relacionada ao conceito de harmo-
nia, equilíbrio entre mente e corpo. Beiram a utopia diante de algo que não
conseguem alcançar concretamente em seu quotidiano, muito distante
deles, inatingível:

“Saúde é harmonia.”

“Para mim saúde seria um bem-estar geral entre mente e corpo,


mas na realidade a palavra para mim, saúde é utopia, porque
eu só vivi um plágio dela.”

69
Demonstram ainda que saúde está relacionada ao ânimo, à mente, aos
componentes psicológicos e emocionais, imprimindo uma dinâmica, um mo-
vimento e não um estado. Portanto, ter saúde remete ao conceito de que
“saúde é liberdade de movimento do corpo e da mente, é a possibilidade de
ter esperança e potencializar esta esperança em ação” (DEJOURS, 1986 apud
SAWAIA, 1999).

“Se você for um cabra, um cara, sempre, sistema nervoso, parecendo ser até
um forte, graças a Deus, forte, até forte, mas tem um sistema de nervoso, de
fraqueza, quer dizer assim, no cérebro. Então é isso aí. A saúde que eu sinto é
a mente. Sempre pensar positivo. É isso aí mesmo.”

Um dos trabalhadores da marmoraria aponta um aspecto importante


ao destacar que uma aparência saudável nem sempre condiz com o que de fato
sente em seu corpo, que a não visibilidade de sintoma é incoerente com a sua
condição real. Refere-se a uma dificuldade de respirar, como exemplo, que
está associada às condições de seu ambiente de trabalho, com exposição ao pó
da sílica por anos consecutivos.

“[...] é, eu pareço até forte assim, o corpo assim,


mas eu sinto muita dificuldade de respirar.”

Percebe-se que associa os agravos sentidos no corpo e seus determi-


nantes ao desenvolvimento de sua atividade de trabalho em marmoraria, ad-
mitindo o nexo entre trabalho e problemas de saúde.

5.1. Queixas de saúde


Os trabalhadores relataram diversas queixas e/ou problemas de saúde
por eles relacionados à atividade de trabalho em marmoraria: dor em todo o
corpo e cansaço físico; problemas na coluna, hérnias e água no joelho; “pica-
das” na vista; perda de audição e outros5.

5
A silicose, por ser uma questão fundamental entre estes trabalhadores, será tratada em capítulo
próprio.

70
Dor em todo o corpo
O tipo de trabalho desenvolvido pelos trabalhadores de marmoraria,
segundo eles mesmos, é pesado, o qual exige muito esforço físico em de-
terminadas tarefas. Assim, lustradores, cortadores, acabadores e colocadores
referem sentir um conjunto de dores em todo o corpo.

“Eu não tava como estou agora, agora dói o braço, porque é muita força, às
vezes dói os braços, dói a perna. Dói os braços, dói as pernas,
dói as costas [...]”

Em outras situações, estas dores surgem de maneira localizada na co-


luna, por exemplo, em função de ter que descarregar a pedra ou a chapa do
caminhão para o interior da área de produção.

“Descarrego de caminhão, no outro dia você está quebrado, isso aqui dói,
porque esse tronco aqui dói.”

Segundo os marmoristas, com o passar do tempo estas dores vão mol-


dando o corpo no sentido de quais incômodos/dores irão carregar consigo e
também na sua postura, como veremos mais adiante.

“Todo o trabalhador de marmoraria, ele vai sentindo a mudança no corpo,


uma dorzinha aqui, outra dorzinha ali, entendeu?Você pega uma pedra de
mau jeito, a coluna já sai fora de lugar.”

Para eles, essas dores “adquiridas” durante o exercício da atividade de


trabalho em marmorarias acompanham-nos durante toda a sua vida, o que
significa minar sua saúde, causando prejuízo permanente.

“Essas dores acompanham o sujeito à vida inteira, porque é pesado demais,


você está sempre erguendo uma pedra, em posição irregular, está sempre
fazendo uma coisa, empurrando uma coisa para cima de um caminhão, a
gente sempre, coisa diferenciada e cada vez altera uma coisa, dói uma coisa,

71
um dia é a coluna, outro dia é o pescoço, um dia você já levanta, não é jeito
não, é que sei lá, levanta com o pescoço assim, e não é jeito,
dali a pouco você dá uns dois estalos, ele melhora, quando é três dias depois
ele está duro para o outro lado.”

Quando questionados sobre qual parte do corpo dói mais em um dia


de trabalho, os cortadores afirmam ser a coluna, pois “a maneira de você ficar
na máquina, você fica com o corpo curvado [...] A máquina, geralmente ela é
baixa”.

Outro aspecto curioso refere-se às pausas de final de semana e às fé-


rias. Quando do retorno ao trabalho, ainda que após dois dias (final de sema-
na), percebem a intensificação da dor.

“É, quando chega na segunda-feira [...]Você fica meio dolorido, quando


chega na terça, daí em diante, aí já está normalizado.”

As dores sentidas evidentemente não se restringem a doer apenas no


ambiente de trabalho. Muitos relataram que sentem poucas dores durante o
exercício da atividade, mas, ao final do dia, elas os perseguem, pois estão em
seus corpos. Vejam a fala abaixo:

“Eu tenho uma dor nesse ombro aqui que à noite, tem dia que eu não consigo
dormir, o ortopedista que eu estava com ele, ele me deu tanto remédio para a
coluna e para as dores.”

O mesmo ocorreu durante os encontros para coleta de dados


desta pesquisa:

“Eu estou sentado aqui, estou sentindo dor nas costas, estou sentindo dor
na perna. Por quê?Varizes. A força que você faz é tanta, que depois começa
a aparecer varizes na perna e varizes dói, para ser sincero mesmo, eu estou
sentado aqui com dor nas costas, estou com dor na perna.”

72
Segundo Boltanski (1989), a valorização da atividade física e da força
física, que é correlativa de um uso instrumental do corpo, faz com que a doença
seja sentida como entrave à atividade física, ocasionando um sentimento de
“fraqueza”.

Os trabalhadores também apontaram o cansaço físico e a fadiga, que,


embora não constituam sintomas de patologia, são engendrados pelo processo
produtivo nas condições em que é executado.

“Não adianta que é assim, se falar que está há 30 anos na marmoraria,


voltou, sente, voltou, sente, não adianta. É pesado. É mais pesado do que
construção civil, é mais pesado do que qualquer outro serviço. Porque, além de
toda essa movimentação de pedra, pedra também pequena, não é?
É, tem o esforço do trabalho, você tem que estar tirando pedra daqui pra cá,
daqui pra lá, ajudando o outro, fazendo, quando tem descarrego de caminhão,
no outro dia o cara está quebrado. Está doido. Está doido.”

Apesar de referir que o cansaço físico não incomoda, o trabalhador de


marmoraria preferia não quebrar seu ritmo intenso e pesado vivido no traba-
lho, chegando em casa após o trabalho e indo caminhar com seu filho por um
período de aproximadamente uma hora e meia. O trabalhador explicita sua
contradição quando relata que preferia não tirar férias, porque:

“[...] o cansaço físico era tamanho que, quando você voltava, era o mesmo
que tomar uma surra de vara os primeiros dias, pelo amor de Deus, de tanto
esforço físico que você faz, mas quando você já está acostumando com aquele
esforço físico, ele não machuca tanto, não é isso?”

“[...] até os primeiros 15 dias depois que voltei, eu ainda estava amargando
dor por toda parte do corpo, por causa das movimentações de pedra aí eu
fiquei com medo de pegar férias, de gozar as férias.”

O ritmo do tempo fora do trabalho não é somente uma contamina-


ção, mas antes uma estratégia destinada a manter eficazmente a repressão dos

73
comportamentos espontâneos que marcam uma brecha no comportamento
produtivo (DEJOURS, 1987). Assim, os marmoristas apontam a necessidade
de manterem-se em atividade para preparar o corpo ou suprir suas carências
diante do desenvolvimento de sua atividade. O referencial é o trabalho, orga-
nizam a vida em função da sua atividade.

“Quando eu estou parado, por exemplo, eu fico mais cansado do que quando
eu estou trabalhando, por isso eu estou trabalhando nesse horário de trabalho,
faço uma correria gigante pra ir pra casa.”

Os trabalhadores relatam muito cansaço às segundas-feiras e no re-


torno das férias. Segundo eles, os primeiros esforços “parecem” aumentar o
cansaço e as dores no corpo.

“É, está mais cansado. Faz um esforço, um esforço. Eles passam, a maioria
das empresas, param na sexta o cara para sábado e domingo,
quando chega na segunda, faz outra vez esforço, sente. Só que não sente
igual quando você sai de férias e volta, não é?”

As dores no corpo e o cansaço físico descritos pelos trabalhadores são


relacionados por eles ao tipo de trabalho desenvolvido na marmoraria: o tra-
balho pesado e duro. Estes dois qualificativos referem-se ao peso tanto das
rochas por eles movimentadas, como dos equipamentos que utilizam, quase
sempre ultrapassados e sem manutenção adequada.

Outro aspecto mencionado é o cansaço mental como sendo um esfor-


ço para manter sua integridade física e psíquica.

“Eu estou dizendo é a questão do cansaço físico, não é tão ruim não.
Não é ruim, não é ruim não. Ele não incomoda tanto não, o mental incomoda
mais. Bem mais. Eu saía da marmoraria, tomava aquele trem,
como eu trabalhava ali na Penha [...] Então, quando dava 6 horas,
6 e pouco, eu já estava em casa. Eu podia muito bem já ir deitar, descansar
mais cedo, jantar mais cedo, mas não, eu saia, andava.”

74
Problemas na coluna, hérnias e água no joelho
Coluna, é exatamente este termo usado pelos trabalhadores para expli-
citar problemas em toda essa região do corpo. A queixa surge, segundo eles,
por ficarem com o corpo curvado em função de sua adaptação ao nível do
equipamento.

“Dependendo da espessura da pedra, era o tanto de corte que eu tinha


que dar [...] quatro cortes ou eu ficava nessa posição, até dar os
quatro cortes, porque eu voltava assim, trazia a máquina
na posição, só estirava o corpo para abaixar, voltava para a posição de novo.
Então, aí, eu ficava mais tempo nessa função, mas mesmo assim,
acho que no caso deles, também o mais ruim é a mesma posição [...]”

É importante apontar a adaptação do trabalhador ao problema, no caso


da coluna, referida por ele como “acostumar-se”.

“Eu, por exemplo, não sei se vocês perceberam, eu tenho o corpo curvado,
então a minha coluna acostumou do jeito de trabalhar.”

A necessidade de executar a atividade, de manter o vínculo de traba-


lho, de garantir os meios de sobrevivência faz com que o trabalhador se man-
tenha sempre em movimento com o corpo aquecido, evitando a sensação de
dor e até obtendo certo controle sobre ela ou sobre o sintoma, embora isso
seja algo ilusório.

“A dor na coluna é constante, só que na hora que começa a trabalhar para de


doer, é sempre quando não está trabalhando que dói.”

A hérnia, em especial a bilateral, é um problema referido de ma-


neira frequente pelos trabalhadores de marmoraria e associado ao esfor-
ço físico intenso e constante relacionado ao peso que precisam movimentar
a todo momento no trabalho. Os sintomas relatados englobam ardor, câimbra
e formigamento.

75
“É. Era mais a hérnia bilateral e de umbigo. Essa é o tipo de hérnia que dá
mais no sujeito que movimentou mais corte e cantaria.
Sente ardor e dormência nas pernas.”
“Eu tive hérnia bilateral, mas foi esforço mesmo, foi esforço.”

As dores sentidas pelos trabalhadores parecem ultrapassar as noções


de localização do problema, levando-os a confundir a origem e a causa da dor.

“É, por causa do ardor, do ardor e da questão da perna que dava câimbra,
câimbra mesmo. No começo até era um formigamento meio estranho,
mas depois começou dar câimbra, quando ficava numa localidade só e eu
pensava que era coluna, que eu tenho problema de coluna desde
os dezoito anos de idade, foi do serviço, não é?”

É nesse sentido que Boltanski (1989) pondera que o esforço físico


torna difícil a seleção e a indicação das sensações doentias ou, se quisermos,
introduz ruído na comunicação entre o sujeito e seu corpo. Refere ainda que
os trabalhadores prestam menos atenção ao corpo e mantêm com ele uma
relação menos consciente em função da necessidade de agirem fisicamente.

A água no joelho, por sua vez, é uma queixa mencionada como sendo
específica da função do lustrador ou polidor em um determinado período em
que o equipamento utilizado para o lustre era de prato duro.

“Isso é corriqueiro em uma marmoraria, essa questão de água no joelho em


polidor, na época em que nos tínhamos quase 70% da categoria só polidor,
porque dava isso, numa marmoraria que tinha 10 pessoas 7 eram polidor,
se tinham 20, 14 eram polidor, então eram muitos polidores.”

Mesmo tendo ocorrido mudança no equipamento para o uso de saté-


lites, se estivesse fora de nível, “matava o lustrador, trabalhava muito encostando a
perna, encostando o joelho ou encostando essa região na tábua, na bancada, era comum,
nem todos trabalhavam encostando, mas era comum na grande maioria”.

76
Esta representação de “matar o lustrador” soa-nos como ausência de
controle sobre o problema, sobre a dor, sobre seu corpo que não mais o obe-
decia e, neste sentido, “a doença, aquilo que por definição não se tem poder,
constitui para eles, aquilo que interrompe o tempo, que corta inutilmente o
desenrolar normal da vida e oblitera o futuro inteiro” (BOLTANSKI, 1989).

Por fim, outra situação apontada pelos trabalhadores e observada por


nós é a presença de rigidez nas mãos e nos dedos relacionada ao peso excessivo
e ao esforço empreendido por esta parte do corpo para controle dos equipa-
mentos de trabalho.

Picadas na vista
Os trabalhadores ressaltam também sofrer de problemas de visão aos
quais denominam vista fraca e picadas na vista. Referem um olhar que não pode
ser desviado, a um olhar focado durante um longo período de tempo sobre
seu objeto de trabalho – a pedra – e sobre o equipamento para assim obter o
controle da tarefa.

“[...] a vista, pra você ficar focado naquilo ali, é pior do que computador.
Eu senti que a vista está bem fraca, entendeu?”

As picadas na vista, segundo eles, ocorrem devido à liberação de fagu-


lhas ou “escalhas” das pedras projetadas nos olhos.

“[...] conforme você corta, você lixa, aquele fagulho que saí lá, ela vai
começando a cortar a vista, até quando você trabalha com uma lixa grossa
aquele pó, você pisca [...] e começa a formar ranhuras no olho[...]”
“[...] escalhas, são escalhas, uma rotação de uma lixação de um
esmerilhamento, aquilo vem no impacto e você nem sente, dois anos depois
eu já estava no sindicato afastado, eu ia no oculista e ele tirava escalhas do
meu olho [...] Dois anos depois, meu olho é todo perfurado também [...] meu
olho é todo perfurado esse esquerdo aqui é muito mais em função disso porque
o problema dele é direto, as vezes ele infecciona.”

77
“[...] também pela poeira ou pelo brilho das pedras, tem material que você
assim... chega faz mal à vista, você nota que faz mal à vista.”

Outros riscos à visão apontados pelos marmoristas relacionam-se aos


produtos químicos utilizados na produção das peças.

“[...] eu não sei se com o produto químico que você trabalha no acabamento,
que é muito produto químico, que pode ter estragado a minha vista.”

O risco de perder a visão é real, seja por câncer ou pela perda da reti-
na, como verificamos nas citações a seguir:

“[...] tomasse muito cuidado porque senão eu poderia ter um câncer de vista
e depois do câncer não tinha mais jeito.”
“[...] cunhado que é cego, ele perdeu a retina do olho em pancada, ele era
cortador de marmoraria, eu tenho no mínimo uns 10 colegas de quando eu
comecei dentro da marmoraria que têm o olho cego e todos foram de pancada,
até dois anos depois.”

Perda de audição
A perda auditiva também é referida pelos trabalhadores e está relacio-
nada ao ruído intenso neste ramo de atividade.

“[...] escutando pouco. A moça me falou, o senhor perdeu 50% de audição,


tá ruim, hein? Que vem aquele barulho pi, pi, pi. Eu já não estava escutando
nem pi pi, nada mais.”

Outros
Este grupo de problemas de saúde denominado outros inclui o “grão”
que cresceu (problema na próstata) e a hemorroida, “problemas” pouco ci-

78
tados, pois dizem respeito “às partes de baixo” de uma categoria profissional
composta por homens que primam pela virilidade.

Independentemente da questão do estereótipo de virilidade observa-


do nesta categoria, as duas queixas estão relacionadas ao trabalho pesado e ao
grande esforço físico realizado em especial na etapa de lustração da pedra.

5.2. Como lidam com os problemas de saúde e as queixas


Para os trabalhadores de marmoraria, lidar com as queixas e os sinto-
mas que sentem e que estão relacionados à sua saúde é conflituoso. Isso nos
mostra uma dualidade sobre o que priorizar, o trabalho ou a saúde, e expressa
a dimensão do trabalho em suas vidas. Vejam a fala a seguir:

“De repente você está trabalhando, você até pensa, eu deveria ir ao médico,
mas quem vai fazer o serviço que eu tenho que fazer amanhã [...]”

A fala do trabalhador vai ao encontro do que aponta Boltanski (1989),


segundo o qual os membros das classes populares se recusam a cuidar-se ou
esperam até o último minuto para ir ao médico, fazer uma cirurgia ou hospi-
talizar-se, pois as coerções cotidianas e principalmente econômicas o proíbem
ou pelo menos tornam muito difícil o abandono das tarefas diárias, do traba-
lho, do trabalho físico que continuamente exige de seus corpos.

Outro aspecto a ser ressaltado e que, somado ao anterior, impõe mais


empecilhos à busca de atendimento médico é a dificuldade de acesso aos ser-
viços básicos.

“Você sem um plano de saúde do jeito que a saúde está poluída, inclusive no
Brasil, a tendência é disso a pior. O trabalhador da marmoraria, inclusive
é disso a pior, porque ele não tem um plano de saúde, ele não tem condições,
o que ele ganha é muito pouco para que ele tenha uma saúde perfeita.”

79
Ainda que o trabalhador justifique que o baixo salário é injusto frente
às demandas que necessita enfrentar durante sua atividade na marmoraria,
ainda que esse salário não lhe dê condições de repor a saúde perdida, ainda que
justifique de várias formas, entendemos existir mais uma explicação da qual tal-
vez não tenham se dado conta. A esse respeito Dejours (1987) aponta que,
para que uma doença seja reconhecida, para que se resigne a consultar um
médico, para que se aceite ir ao hospital, é preciso que a doença tenha atingido
uma gravidade tal que ela impeça a continuidade de sua atividade profissional.

Explicitada mais uma dificuldade, verificamos tendências dos trabalha-


dores quando necessitam de cuidados. Procurar atendimento médico é uma
delas, citada por alguns como uma alternativa de busca e recuperação da saúde
perdida.

“[...] eu fui por causa do ardor, eu fui, foi naquele hospital São Miguel lá.
Cheguei lá, falei para o médico. Eu até fiquei assim quando ele mandou eu
deitar na maca [...]”
“Ele citou esse termo assim: você está com uma puta hérnia aí, rapaz, você
está desgraçado da sua vida [...]”

Após mais ou menos vinte anos, o trabalhador procura um atendi-


mento médico e constata a presença de uma hérnia bilateral de umbigo e se
submete à cirurgia.

Em outros casos, no entanto, a procura por atendimento médico nem


sempre implica em cirurgia, às vezes a terapêutica é paliativa, uma vez que,
após fisioterapia ou uso de medicação, o trabalhador retorna ao mesmo posto
de trabalho e continua exposto aos mesmos riscos da atividade.

“[...] a gente vai no massagista, o massagista põe no lugar, mas se volta a


trabalhar, já sai do lugar de novo, você, para não estar lá toda hora, você vai
convivendo com aquele sintoma [...]”
Segundo Dejours (1987), para esses trabalhadores que tentam algu-

80
mas terapêuticas que se mostram ineficazes em função de terem de voltar ao
mesmo posto de trabalho – aquele que determinou essa condição de dor –, o
problema não é evitar a doença, mas sim domesticá-la, contê-la, controlá-la,
viver com ela. Sarar, para o subproletariado, é antes de tudo um problema de
ânimo. A cura não deve ser compreendida como desaparecimento do processo
patogênico. Sarar... é domesticar a dor.

“[...] eu estou com uma dor nesse ombro aqui, não consigo dormir à noite,
muito forte, quer dizer, estou tomando remédio, muito pouco, eu vou ao posto
no PS, aí eu tomo duas injeções, o médico lá passa duas injeções, eu tomo as
duas ao mesmo tempo, e melhora um pouco, tanto a coluna como o braço.”

Outra tendência dos trabalhadores é procurar por terapêuticas


populares quando a medicina não apresenta respostas satisfatórias para
a cura ou a manutenção da saúde ou quando ocorrem problemas após
o tratamento médico.

“[...] chama Baço6 da Amazônia, isso é um santo remédio.”


“lá na casa de mamãe, a gente tem furúnculo, essas coisas, e ela pegava essas
folhas de mamona, fervia e botava em cima ali, e ali aquilo puxava, aí eu
pensei, eu falei para minha ex-mulher, eu vou tacar é mamona aqui.”

A última tendência está relacionada a crenças e religiosidade, buscan-


do-se ajuda espiritual e intervenções neste âmbito.

“[...] tanto a hérnia inguinal como a coluna melhorou para mim,


melhorou, cada um de nós tem a nossa religião, melhorou porque eu fiz uma
operação espiritual.”

6
Bálsamo

81
A expectativa da aposentadoria
Os trabalhadores de marmoraria expõem alguns pensamentos que
permitem perceber certo conteúdo mágico quando se referem a dar fim aos
problemas de saúde após conseguirem a aposentadoria.

“Então no meu caso, eu estou trabalhando na marmoraria, é um sacrifício.


Eu estou no sacrifício até sair a minha aposentadoria.”

Percebe-se a aposentadoria também como uma maneira de lidar com


os problemas de saúde ou, pelo menos, como uma ilusão de se afastar deles,
sendo uma questão muito acentuada e comentada por todos o fato de “ter de
trabalhar com dor, o de ter de lidar com a dor, sabendo que esta não desaparecerá”.

“[...] agora com o pedido de aposentadoria, espero que saia breve


para que eu possa sair desse ramo, porque quem está dentro desse ramo sabe,
marmoraria é um serviço bruto.”

A aposentadoria implica também se afastar de um ramo de atividade


no qual o trabalho é muito pesado, exigindo grande esforço físico e gerando
desgaste, em especial quando as condições de trabalho são extremamente pre-
cárias. Têm consciência do agravamento das queixas e sintomas se permanece-
rem no mesmo posto ou ramo de atividade.

“[...] inclusive esses dias eu fui no médico otorrino e ele falou pra mim:‘Você
tem que evitar pó, poeira e cheiro forte’. Aí eu falei pra ele:‘Só se eu parar de
trabalhar, porque o que tem é pó e poeira numa marmoraria’ [...]”

5.3. Acidentes de trabalho


Alguns acidentes são mais frequentes dentro da marmoraria devido ao
tipo de tarefa executada pelos trabalhadores, como, por exemplo, o corte com

82
a serra circular, o manuseio da lixadeira, o esforço físico despendido na lustra-
deira ou mesmo no deslocamento de chapas. Escassos, porém, são os estudos
realizados com trabalhadores desse ramo, especialmente no que se refere aos
significados atribuídos a sua atividade.

Conforme aponta Moulin (2006), com frequência ouvimos falar de


acidentes fatais, mulheres que ficaram sem maridos e filhos e homens que
perderam pernas ou braços na luta pela sobrevivência através da extração,
beneficiamento e transporte do mármore (MOULIN, 2006). Ainda segundo a
pesquisadora, apesar da beleza das peças de mármore, o processo de trabalho
é considerado insalubre, penoso, perigoso e com condições extremamente
precárias que antecederiam a chamada Terceira Revolução Industrial.

Os trabalhadores de marmoraria relataram para Moulin et al. (2001) o


que nossa pesquisa também confirmou: que a profissão se aprende na prática.
Iniciam como ajudantes, e esta tarefa em uma marmoraria, onde o trabalho
é penoso, perigoso e insalubre, não é fácil, pois, além de aprender todos os
vícios dos companheiros experientes que ensinam o que sabem do jeito que
sabem ensinar, estão também sujeitos a não considerar a questão da saúde e
da segurança ou mesmo das condições de trabalho, assim como tantos outros
trabalhadores em diversas empresas e ramos de atividade.

O início do trabalhador na marmoraria, com sua falta de experiência e


treinamento específico, bem como de conhecimento do processo de trabalho,
leva o ajudante a estar bastante exposto a fatores que também contribuem
para a ocorrência de acidentes.

“[...]você, uma pessoa que começa dentro da marmoraria,


normalmente ele começa disposto a fazer as coisas e ele não
tem habilidade, muitas das vezes habilidade, ele não tem a calma
de trabalhar e às vezes ele se acidenta fácil.”

São diversos os relatos e as queixas dos trabalhadores sobre os aciden-


tes que ocorrem no deslocamento das chapas, pois são de maior gravidade

83
devido ao peso excessivo que elas possuem, podendo causar esmagamento de
membros ou mesmo levar a óbito.

“Às vezes, na colocação do carrinho, eu vi pessoas terem acidente nas mãos


porque ele não sabia colocar o carrinho na chapa.”
“[...] pedra caindo nos pés, quando você menos esperava
a pessoa estava acidentada [...]”

Oliveira (2007), Almeida (2006), Vilela et al. (2004) investigaram a


construção de uma ideologia da culpa que responsabiliza o trabalhador pelo
acidente de trabalho, ainda que as condições do ambiente de trabalho de uma
forma geral sejam precárias e incorram em situações que potencializem e in-
tensifiquem os riscos de acidentes de trabalho. Foi possível verificarmos nas
falas dos trabalhadores referências aos próprios colegas indicando que os aci-
dentes ocorreram porque eles não sabiam colocar o carrinho direito, pegavam
o carrinho de qualquer jeito, abaixavam-se do modo errado, não conseguiam
segurar a lastra, e tantas outras referências poderiam ser enumeradas.

Imputar a culpa do acidente ao acidentado inocenta a empresa e a


exime de responsabilidades, tais como organização e melhoria das condições
de trabalho, aquisição de equipamentos novos e/ou com manutenção ade-
quada e tantas outras obrigações, inclusive de responsabilidade social. Como
exemplo, destacamos a fala do trabalhado que refere o uso de um carrinho
(cachorrinho)7 para movimentação das lastras mesmo sua utilização tendo sido
proibida nas marmorarias.

“A pessoa pega o carrinho de qualquer jeito e põe a mão no carrinho,


que tem que se colocar de lado para que você não
sofra o acidente e isso eu vi muito dentro da marmoraria [...]”

7
Denominação dada pelos trabalhadores ao carrinho utilizado para movimentação das chapas.

84
As péssimas condições de trabalho, a ausência de tecnologia que os
ampare, como, por exemplo, no deslocamento das chapas, o número reduzido
de pessoal levando o trabalhador a executar sozinho tarefas que deveriam ser
realizadas por dois ou mais, levam-nos a desenvolver macetes, jeitos, gam-
biarras sem as quais não dariam conta da produção. No entanto, esses modos
operacionais por eles desenvolvidos nem sempre estão cercados de proteção e
segurança, aumentando o risco da ocorrência de acidentes. Trata-se de estra-
tégias coletivas de defesa que não dão conta de manter a proteção diante de
inúmeros descasos no ambiente de trabalho. Desta forma, ocorre o acidente
como uma brecha da estratégia defensiva.

“Outra vez ele mesmo quase morreu, escorregou um bloco e o bloco pegou no
estômago, tinha um caminhão de areia na frente [...] era um monte de areia
e o segundo tombo do bloco ficou em cima da areia, mas aquela areia era
para serrar pedra, e o que ele fez, tacou um monte de escora de terra e falou
para um cara ir tirando a areia. Outra improvisação.”

Os acidentes vivenciados por esses trabalhadores da indústria do be-


neficiamento do mármore são graves, podendo até ser incapacitantes e levar
ao óbito em função do peso das pedras e das lastras que precisam movimentar
sem guindastes, usando apenas sua própria força física.

“Eu tive que colocar um piso no banheiro e tinha que colocar um vaso
também e fazer o encaixe e tal, mas eu estava sozinho [...] na hora de cortar
eu coloquei a chapa em cima de um caixote de fazer massa e preparei a
máquina que eu estava trabalhando e travei a chave dela, porque uma mão
precisava segurar a máquina e a outra segurar a pedra, mas o fato de não ter
muita firmeza, a pedra não ter ficado bem firme, a pedra deu uma mexida
e aquele desacerto provocou uma pressão terrível da minha mão jogou a
máquina da minha mão, jogou alto assim e ela desceu bateu aqui ó,
esta aqui ó, e foi por Deus que era para eu ter perdido essa mão, porque olha
a emenda aqui no tendão, não chegou cortar todo o tendão
e ali já me levaram pro hospital.”

85
No processo de trabalho arcaico e sem tecnologia adequada, no qual
os trabalhadores são obrigados a deslocar chapas de grande peso, ainda que a
tarefa seja realizada por quatro trabalhadores, há o risco de acidentes de tra-
balho.

“[...] se acidentou várias vezes com esse negócio de estar caindo, até caindo
por cima da gente, uma vez a gente estava com uma chapa daquela e ele caiu
por cima da gente, só não machucou porque nós estávamos em
4 e ela caiu em cima dos 4. Entendeu? Ela veio vagarosamente até porque
eles estavam de pé e aí foi derrubando os 4 e deixou os 4,
nego ficou ali mais de uma semana ruim da coluna.”

Equipamentos sem manutenção ou sucateados com os quais são obri-


gados a desenvolver suas atividades por ausência de outros recursos mais mo-
dernos também são apontados como fatores de risco para a ocorrência de
acidentes de trabalho.

“[...] na lustradeira, que eu estava lustrando uma chapa e a lustradeira


era muito antiga, era um “pau veio”, ninguém queria trabalhar naquela
lustradeira que já era um pau veio de marmoraria, pau veio quer dizer
o seguinte: era máquina de quando começou a firma, ela estava
lá e ela soltou do cabo de aço lá em cima e caiu e eu quis segurar aquele peso,
e uma lustradeira tem mais ou menos uns 500kgs, aquele tranco foi na
minha coluna, foi onde eu passei um ano em casa.”
“[...] ter que tirar uma chapa que está, por exemplo, no meio ou atrás e tem
5, 6 placas, 4, fica um homem segurando aqui e tomba as chapas, isso aí
também acontece bastante acidente, eu já vi vários.”

As atividades nas marmorarias são desenvolvidas tipicamente por pes-


soas do sexo masculino, a maior parte com características de baixa escolari-
dade, poucos recursos e um estereótipo de virilidade. Trazem consigo o sen-
timento de ser macho, viril e assim poder desafiar o perigo, usado como uma
forma de vencer a produção, vencer o desafio e dar conta de sua tarefa. Na
verdade, isso surge entre esses trabalhadores como uma estratégia coletiva de
defesa contra o medo.

86
No entanto, é sabido que o acidente de trabalho é a expressão da que-
bra da estratégia, ou seja, quando ele ocorre denuncia mais uma vez um siste-
ma inoperante e inadequado que já não pode mais ser sustentado pelo grupo,
apesar de seu desejo.

“[...] foi quase uma bobagem minha, fui fazer um serviço que não deveria e
acabei não conseguindo segurar a barra, e acabei me acidentando.”
“[...] fui pegar umas placas para olhar um outro pedaço de pedra que estava
atrás e, crente que eu seguraria [...] então eu fui fazer, aí eu puxei um
pouquinho, ajeitou, aí eu puxei mais um pouquinho e não consegui segurar,
aí foi tarde, caíram sobre minha perna.”

A causa imediata do acidente, no geral, reside na desvalorização do


trabalhador frente à produção – o que impera é a norma de que a máquina não
pode parar –, ou na precariedade das condições materiais de trabalho, ou no
excesso de esforço exigido do trabalhador (COHN et al., 1985).

“[...] era comum você montar com a madeira enterrada e tal, aquela
madeira de vez em quando ela declina para frente, a máquina tem uma
movimentação, balança a madeira então ela declina.”

Vale enfatizar que, para os trabalhadores desse ramo de atividade, todo


o processo de trabalho apresenta grandes riscos, sendo os mais intensos, se-
gundo eles, o equipamento e o material, o barulho e o movimento do material, ou
seja, tudo.

O afastamento do trabalho em decorrência de acidentes traz consigo


consequências graves ao trabalhador, que pode apresentar sequelas e assim
dificultar a sua reinserção no processo produtivo.

“O acidente me atingiu a coluna e hoje eu sinto dificuldade, se eu for


trabalhar eu acredito que eu, trabalhando, vou sentir dificuldade
para me adaptar porque o mármore todo ele é pesado, quem trabalha no
mármore ou granito sabe que é difícil.”

87
Além dos aspectos já citados, cada fala dos trabalhadores acerca dos
problemas de saúde e dos significados e sentidos atribuídos ao trabalho re-
alizado em marmoraria, coloca nesta atividade um caráter de fatalismo, tra-
duzido por “quem trabalha no mármore ou granito sabe que é difícil”. Parece não
vislumbrarem mudanças e terem de aceitar e se submeter a estas condições
sem questionar.

Segundo Dejours (2007), existe uma proibição quanto à verbalização


do medo e uma obrigatoriedade com relação à existência de seus contrários:
coragem, resistência à dor, força física, invulnerabilidade, os quais, articula-
dos, reapresentam os constituintes da virilidade. Parece-nos ser esse o caso.

5.4. O pó traidor: silicose, a doença que mata


Incorporando a pergunta “Qual a sua ocupação?” ao interrogatório dos
trabalhadores doentes, Bernardo Ramazzini, no final do século XVII, apontou
a existência de relações entre a ocupação e a forma de adoecer dos trabalhado-
res. Assim, incluiu no seu famoso livro “As doenças dos trabalhadores” um capítulo
específico sobre as doenças dos lapidários, estatutários e britadores.

Embora não seja específica dos trabalhadores do mármore, esta classi-


ficação os abrange e demonstra já a identificação de um pó que adoece e mata
e a preocupação com ele – a sílica.

Atinge-os um vapor metálico desprendido do mármore, do


tufo e de outras pedras com manifesto prejuízo do nariz e do
cérebro; assim, os trabalhadores que lavram pedra perto da Lí-
dia, aspirando continuamente seu pesado odor, sentem dores
de cabeça e de estômago e são levados a vomitar; nos cadáveres
dissecados desses artífices, encontram-se os pulmões cheios de
pequenos cálculos. [...] tendo dissecado seus corpos e encon-
trado nos pulmões areia amontoada, ao cortar com sua faca as
vesículas pulmonares, sentiu que cortava também corpos are-
nosos; repete-se aí a manifestação do que viu em um mestre

88
lapidário, que, enquanto talhava a pedra, notava levantar-se um
pó tão fino que transpassava uma bexiga de boi pendurada na
oficina e, ao cabo de um ano, havia um punhado daquele pó
dentro da bexiga, pó esse, conforme imaginava, que os incautos
lapidários aspiravam, levando-os à morte paulatinamente. (RA-
MAZZINI, 2016, p. 153)

Estamos nos referindo à silicose, doença pulmonar incurável causada


pelo acúmulo de poeira contendo sílica cristalina nos alvéolos. Essa poeira
muito fina agride os tecidos pulmonares, levando ao seu endurecimento e
dificultando a respiração (SANTOS et al., 2000).

Esclarecimento sobre a sílica, o pó que mata, na linguagem dos traba-


lhadores, merece destaque. “É um mineral encontrado na natureza e que está
presente na maioria das rochas, sendo o quartzo o tipo mais comum de sílica
cristalina. Encontrada em maior quantidade nos arenitos, quartzitos, granitos
e ardósias” (SANTOS et al., 2000).

Segundo Bon e Santos (2010), essas poeiras são partículas respiráveis


que, devido ao seu tamanho, podem ser invisíveis a olho nu, permanecer no ar
por períodos mais longos de tempo e percorrer grandes distâncias. Por essas
características tem o potencial de atingir uma gama muito maior de indivíduos
que não estão trabalhando diretamente com a sílica e, a princípio, não estão
sob risco (BON, SANTOS, 2010). Ainda tem potencial para afetar o ambiente
do entorno (RIBEIRO apud BON, SANTOS, 2010).

Para a produção das peças e das encomendas na marmoraria, como


já referido no Capítulo 4, existem etapas a serem seguidas: lustração, corte e
acabamento. Nelas, ocorre grande geração de poeira, sílica.

Nosso foco neste capítulo é a compreensão subjetiva do sentir, pensar


e agir do trabalhador com relação ao risco de exposição, à detecção do proble-
ma e a como lida com a questão.

89
Segundo os marmoristas, a silicose atinge tanto os trabalhadores, como
os empresários deste ramo de atividade:

“ele era o patrão mesmo, ele não trabalha nesse serviço, só mais ficava dentro,
vendo o pó, que o pó vai lá, conforme trabalha.”

É referido pelos trabalhadores caso de óbito de empresário com diag-


nóstico de silicose:

“ele morreu de silicose, mas tem uns dez anos já, de lá para cá eu tenho visto
mais trabalhador, visto mais, mas é uma doença que atinge também o setor
patronal e bem, porque é como se diz, não tem uma só localidade que não
seja atingida pela poeira fina e é a poeira fina que provoca a silicose.”

E segue-se uma discussão entre os trabalhadores, que pretendem es-


pecificar qual das funções estaria mais exposta à sílica, sem, no entanto, terem
certeza a respeito.

“Então você pode trabalhar na lustradeira, você pode trabalhar na serra,


que você pega o mesmo, pega menos, o companheiro pega o mesmo
pó que o acabador pega, porque, antigamente, o acabador não trabalhava
com muita máscara, não trabalhava com os aparelhos que hoje
tem dentro da marmoraria pra trabalhar.”
“O pó prejudica o acabador, mas o mais prejudicado é o serrador ou talvez se
equipara, não sei”.
“a poeira lá que é uns mais, outros menos, mas todo mundo tem problema no
pulmão, por causa dessa bendita dessa poeira do mármore, então claro, que
em uns é agravado, outros menos agravado, mas que todos têm.”

Portanto, têm conhecimento de quão insidioso, perigoso e invasivo


é o pó da sílica.
“o pó dentro da marmoraria ele é traidor, porque às vezes você pensa que está
trabalhando lá na esquina, você não pega o pó,
mas o pó fino é o pior pó que tem, o pó fino que penetra.”

90
Assim, segundo outros, todos os trabalhadores, independentemente
de sua função, estão expostos à poeira de sílica e podem desenvolver silicose
ou outros problemas, como rinite alérgica, tosses, pneumonias, dificuldades
de respirar: “criei uma rinite alérgica por causa do pó”.

A silicose é uma doença que leva um grande período de tempo para


ser diagnosticada e, dessa forma, muitos trabalhadores, após uma vida de
exposição, já aposentados, ainda vivenciam os problemas decorrentes da ex-
posição à sílica. Os sintomas identificados resultam de exposições passadas
(RIBEIRO, 2010).

“depois de muitos anos, dentro de marmoraria, trabalhadores que já saíram


há muitos anos, hoje que está aparecendo a doença, porque ele não
aguenta andar até na esquina mais que sente canseira, entendeu?
Aí passa pelo médico e o diagnóstico é silicose.”

O diagnóstico de silicose surge e o consequente afastamento também.

“agora estou afastado por problema de pó de mármore no pulmão,


estou com silicose, inclusive está constatada.”

Na fala do trabalhador, não só há a constatação do diagnóstico de si-


licose, mas as dificuldades impostas pelo quadro após o retorno à empresa.
É recomendado a ele que seja reenquadrado em uma função que não o expo-
nha ao pó da sílica. Outro problema se inicia, pois marmoraria ainda é sinôni-
mo de presença de pó.

“Passei a trabalhar na marmoraria e já está com quase 30 anos que trabalho,


estou afastado por problema pulmonar devido ao pó e foi isso aí que a gente
conversou, está afastado já há algum tempo, está para voltar para a firma,
mas a firma tem que arranjar um setor que eu trabalhe que não tem pó
nem umidade, e o que marmoraria não tem é isso, todo setor de marmoraria,
mesmo se for trabalhar no escritório, tem pó.”

91
O que fazer com este trabalhador que demonstra em sua fala uma falta
de perspectiva devido ao problema e a ausência de preparação tanto da empre-
sa como do próprio trabalhador para lidar com a questão?

“a firma não tem vaga para mim trabalhar, porque tudo que tem lá
é poeira e eu não posso tomar friagem também porque me dá pneumonia
com esse problema que eu estou.”

Os sintomas do problema e as comorbidades surgem e limitam a ação


do trabalhador, limitam sua forma de estar no mundo, põem um sinal verme-
lho à sua vida profissional e pessoal, familiar.

“[...] qualquer pouquinho que eu pego peso eu já tenho que descansar,


inclusive outro dia minha esposa veio do mercado com 10 kgs de açúcar e um
pacote de arroz, eu tive que descansar umas três vezes, colocar no chão umas
três, a minha esposa falou pra mim:‘puxa vida, você trabalhava tanto, era tão
trabalhador, pegou bastante peso, agora já não está aguentando’.”

Nas condições de trabalho em geral oferecidas pelas marmorarias, um


dos sujeitos aponta uma situação envolvendo o pó agravada pela ação de um co-
lega, refletindo a competição ou a maldade, como o dirigente sindical coloca,
e distanciando-nos de aspectos já discutidos, como a solidariedade para salva-
guardar a vida dos colegas.

“[...] eu fui trocar o carvão, troquei agachado, aí ele ligou a lixadeira dele lá
em cima da mesa dele, como tinha uma pedra aqui e outra aqui,
com uma espessura de 18 cm a 20 cm, estava cheio de poeira que ele tirava de
lá jogava pra cá, tirava de cá e jogava para ali, trabalhava nesse meio, nessa
parte aqui e aqui e ele jogou, e eu aqui quando, aquilo tapou de poeira [...]
Aí encheu minha boca de poeira, encheu que eu não pude respirar, desceu
poeira pra cá que eu inalei, chupei aquilo lá.”

“E pó de mármore, tudo, cola, tudo misturado ali, aí inalei, secou minha boca
que eu não pude respirar, senti seco aqui, joguei água na boca duas vezes e

92
sem respirar. Foi Deus mesmo que aí, para eu voltar a respirar,
que eu senti seco aqui, eu joguei água. Quando eu joguei água na boca
que eu engoli, saiu rasgando por aqui raspando aqui minha garganta,
eu fiquei preocupado.”

Após algum tempo, a tosse começa...

“Eu deixei para lá, depois, imediato,


aí eu comecei tossindo, tossindo, tossindo.”

O pó da sílica não está apenas na garganta. Em visita à marmoraria,


pôde-se observar a presença de uma névoa de poeira que até impede de
visualizar o trabalhador nesse ambiente.

Mesmo estando em implantação o processo a úmido, como prescreve a


Portaria nº 43 (BRASIL, 2008), o uso dos equipamentos de proteção individual
(EPIs) nesta realidade parece-nos importante, embora alguns trabalhadores
tenham reclamado de que os EPIs não são trocados com frequência e muitas
vezes trabalham até quase duas semanas com a mesma máscara, por exemplo.

Ainda em relação aos EPIs utilizados, alguns trabalhadores relataram


desconfortos como o causado pelo uso dos óculos de segurança cujas lentes
embaçam, forçando-os a retirá-los para limpá-las e então voltar a usá-los. Do
mesmo modo, citaram o protetor auricular, que é tirado para ouvir o que o
colega fala. Essas e várias outras queixas mostram incômodos em relação ao
uso dos EPIs que resultam em sua não utilização. Todavia, precisam ter cons-
ciência de que esses equipamentos são necessários para diminuir a exposição
aos riscos existentes em sua atividade.

Têm-se também situações em que não há interesse algum em disponi-


bilizar o equipamento de proteção ao trabalhador.

“Para a gente pegar uma camisa na firma que eu trabalhava teve que fazer
sim, uma mesa redonda na justiça, para conseguir uma camisa,
a bota lá, para ele dar uma bota.”

93
“É como eu disse, àquela hora o que uma marmoraria fornecia era a bota e o
avental, ultimamente está dando o protetor de ouvido.”

Outras marmorarias fornecem equipamentos inadequados em suas di-


mensões e para o tipo de risco a que se estão expostos.

“[...] a máscara, quando você pega essa máscara que está nesse processo,
ela leva tudo para o olho, leva tudo para o olho porque quando você respira
aqui saí por essa parte do nariz, não fecha tudo, esse tipo de máscara
descartável não fecha tudo.”

Outras marmorarias colocam o equipamento à disposição do traba-


lhador.

“Onde eu trabalhava, tinha tudo aí, era pedir e recebia,


tanto roupa, roupa eram duas mudas, bota, a gente tinha,
era rachado, qualquer coisa, já pegava outra.”

“Lá a gente tem tudo, e a gente pedir, às vezes demora um pouquinho, mas
tem, material de segurança e uniformes a gente tem.”

E ainda tem aquelas marmorarias que fornecem um tipo de equipa-


mento, mas não disponibiliza outros:

“[...] usava duas coisas, um par de botas de borracha e um avental, mas


protetor de ouvido essas coisas assim, não tinha nada, nada.”

De qualquer forma, não se discute o risco, a exposição e a implantação


do processo a úmido e assim a fala a seguir resume o problema central.

“[...] precisamos trabalhar para nos colocar mais segurança,


mais perfeição e manter isso aqui de uma maneira que o ser humano possa
trabalhar e sobreviver e não trabalhar para morrer.”

94
Em nossos encontros com trabalhadores, dois sujeitos estavam com
um quadro clínico da doença bem avançado, sendo que um deles veio a falecer
no decorrer da pesquisa e sentimos a dor da perda junto com seus colegas
de profissão.

“O João8 estava com vários problemas, ele tinha problema de pressão,


ele tinha diabetes, ele tinha silicose e tinha sido detectado
no fígado dele um tumor, um tumor no fígado que foi o que
mais preocupou os médicos do hospital das clínicas.”

Percebemos que esses trabalhadores não sabiam como identificar a si-


licose, pois as dores sentidas são muitas e, talvez, mascarem ou encubram a
insidiosa silicose. Uma dor no peito ou um cansaço físico, por exemplo, pode-
riam ser decorrentes de um resfriado mau curado ou dos esforços físicos do
trabalho tão pesado.

“ele tem consciência, só que ele não acredita que vai acontecer com ele, o
senhor Antonio9 morreu de silicose, tinha mascara lá dentro, essas máscaras
descartáveis, tinha pouca, mas tinha, e o Manoel10 nunca usava.”
“[...] médico otorrino e ele falou pra mim:‘Você tem que evitar pó, poeira e
cheiro forte’. Aí eu falei pra ele:‘Só se eu parar de trabalhar, porque o que
tem é pó e poeira numa marmoraria’.”

Como viver sem respirar se, ao sentir cheiros e aromas, esse processo
se confunde ao processo de enviar oxigênio para o pulmão e assim manter o
ciclo da vida?!

“Tem o sabor porque inclusive a gente sente o cheiro daquele aroma,


do pó, inclusive, como eu estou com o problema de silicose que é do pó do

8
Nome fictício
9
Nome fictício
10
Nome fictício

95
mármore, do granito, às vezes estou sempre tossindo, de vez em quando,
quando eu vou lá na firma [...] eu entro dentro da firma aí eu sinto
aquele aroma, já vem aquela vontade de tossir.”

Remete-nos a Süskind (1985):

[...] as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza,


do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da
melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao
aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Com esta, ele
penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram
viver. E bem pra dentro delas é que vai o aroma, diretamente
para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração
e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os
odores dominaria o coração das pessoas. (p. 158)

No caso dos trabalhadores de marmoraria, respirar significa o con-


trário, quanto mais se respira no ambiente de trabalho, mais forte se torna a
possibilidade da morte em função da exposição ao pó, do endurecimento do
pulmão, de outros problemas que surgem em conjunto e da própria silicose.

“a gente não se via um ao outro, então o trabalhador sugando todo aquele


mármore, aquele pó, aquele pó de mármore fino, ele só tem que ficar
mesmo doente, porque chega tarde você perde mais tempo de limpar o nariz,
de tirar aquelas coisas brancas do nariz, nariz sujo de granito,
de pó de granito dentro do nariz.”

A silicose foi incluída na lista de doenças relacionadas ao trabalho pelo


Ministério da Saúde em 1999, através da Portaria nº 1.339 (BRASIL, 1999).
Pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação, torna-se objeto de
notificação compulsória em todo o país. Tais iniciativas demonstram a gravidade
do quadro.

A ocorrência de silicose é previsível para as pessoas expostas a poeiras


em vários processos de trabalho, é incurável e pode ser progressiva, mesmo após

96
ter cessado a exposição. Portanto, a medida paliativa mais imediata após a
exposição dever ser o reconhecimento precoce e as intervenções de apoio
(RIBEIRO, 2010).

5.5. A bebida alcoólica – tomar uma para limpar o pó da garganta


Parece improvável que a humanidade em geral seja algum dia
capaz de dispensar os paraísos artificiais, isto é,... a busca de
auto transcendência através das drogas ou... umas férias quí-
micas de si mesmo... A maioria dos homens e mulheres levam
vidas tão dolorosas – ou tão monótonas, pobres e limitadas,
que a tentação de transcender a si mesmo, ainda que por alguns
momentos é e sempre foi um dos principais apetites da alma.
(Aldous Huxley)11

O alcoolismo é considerado mundialmente um problema de saúde pú-


blica, tamanha a prevalência do consumo de álcool entre a população jovem e
adulta (WAISSMAN, 2004). De acordo com a Organização Mundial de Saúde
(OMS, 2001), cerca de 10% das populações de centros urbanos consomem
abusivamente substâncias psicoativas. A estimativa é de que a ingestão exces-
siva de álcool é a terceira causa de morte, depois do câncer e das cardiopatias.

No Brasil, o álcool é responsável por 95% dos casos de dependência


química e por 50% das internações psiquiátricas. Em torno de 50% das mor-
tes por acidentes de transito e 66% dos crimes violentos acham-se associados
à ingestão de bebidas alcoólicas (KARAM, 2010).

Estudo nas 107 maiores cidades brasileiras aponta que 19,4% da popu-
lação pesquisada já fizeram uso na vida de drogas, sendo que a maconha apare-
ce em primeiro lugar dentre as drogas ilícitas, com 6,9% dos entrevistados. A

Huxley, A. As Portas da Percepção. Tradução Oswaldo de Araújo Souza. São Paulo:


11

Globo, 2002. p. 5.

97
estimativa de dependentes de álcool foi de 11,2%, o que corresponde a uma
população de 5.283.000 pessoas (CARLINI et al., 2001).

Levantaram também que 1% dos entrevistados relataram já terem tido


complicações no trabalho decorrentes do efeito do álcool ou de alguma ou-
tra droga, especialmente homens na faixa etária entre 25 a 34 anos de idade
(CARLINI et al., 2001).

Segundo Karam (2010), o alcoolismo é uma das primeiras causas ge-


radoras de morte, licenças de saúde e faltas ao trabalho. Segundo Waissman
(2004), é o terceiro motivo para absenteísmo. Na região sudeste, 0,7% dos
entrevistados relatou que teve complicações durante o trabalho por estar sob
o efeito de álcool ou de outras drogas (CARLINI et al., 2001).

Esta problemática é mais comumente encontrada em determinadas


ocupações e situações de trabalho a elas associadas, sobretudo onde as ativida-
des são socialmente desprestigiadas, como aquelas que, Segundo Seligmann-
-Silva (2011), envolvem atos ou materiais considerados desagradáveis ou re-
pugnantes. Fonseca (2007) aponta que essas atividades são determinantes de
certa rejeição, tais como contato com cadáveres, lixo ou dejetos, apreensão e
sacrifício de cães, atividades em que a tensão seja constante e elevada, situações
em que se mantém longe do lar (plataformas marítimas, zonas de mineração).

Assim, o trabalho é considerado um dos fatores psicossociais de risco


para o alcoolismo crônico, sendo que o consumo coletivo de bebidas alcoólicas
associado a situações de trabalho pode ser decorrente de uma prática defensiva
(FONSECA, 2007).

Segundo os marmoristas, o consumo de álcool é uma questão que


apresenta duas tendências: uma relacionada a algo comum na vida, corriquei-
ro, inevitável e imprescindível, como, por exemplo, os cuidados de higiene;
outra, paradoxalmente, associa o beber ao tipo de trabalho executado.

98
“A bebida é quase que naturalmente, não é? A bebida é como fazer refeição
sem fazer uma higiene primeiro, quer dizer naturalmente é como [...]”

Nas falas a seguir, evidencia-se a relação entre o tipo de trabalho exe-


cutado e o beber alcoólico.

“[...] a maior parte dos marmoristas são beberrões, a maior parte dos
marmoristas bebe muito. Assim uns 70%. Uns 70% bebe muito.”

“É, parece que tem a ver com o serviço que quase todo
marmorista bebe muito. Quase todos.”
“É muito difícil um marmorista assim como eu, que não bebe nada. Coisa
mais difícil, rara mesmo, você ver alguém que na hora do almoço, do café não
vai mamar uma, sem contar os que levam a garrafa para dentro da empresa.”

Mencionam que “antigamente bebia mais, mas hoje ainda bebe bem”, em
uma correlação da ingestão de bebida alcoólica proporcional ao processo de
trabalho e aos equipamentos mais rudimentares utilizados na época, mas in-
dicando também que, mesmo o processo e os equipamentos tendo, de certo
modo, evoluído, hoje o trabalho permanece duro e pesado, mantendo-se ainda
sua associação com o consumo de álcool.

No Brasil, entre as camadas desfavorecidas, desde os tempos do Brasil


colônia, a cachaça já era usada para enfrentar condições climáticas e a fadiga
dos trabalhos pesados (MURTA, 2007). Essa bebida, bastante utilizada pela
população por ser de baixo custo, possibilitando grande consumo com pouco
dinheiro, é também conhecida por outras categorias profissionais como remé-
dio de garrafa (SANTOS, 1999).

Segundo os trabalhadores, antigamente o consumo alcoólico era maior:


“quando eu entrei na marmoraria nós bebíamos uma garrafa de Cavalinha [...]” 12.
Portanto, a preferência é pela pinga.

12
Fala de um lustrador com mais de trinta anos na atividade de marmoraria.

99
Além do uso da bebida alcoólica entre esses trabalhadores, foi relatado
o uso de drogas ilícitas, por exemplo, a maconha.

“Na hora do almoço, quando nós saímos para almoçar, quando eu voltei os
caras estavam fumando maconha na empresa aí eu fiquei prestando atenção.”
“[...] Os caras fumaram lá no meio-dia, na nossa frente, meio-dia, não tinha
nem almoçado, ainda iam almoçar.”

Os horários em que se consomem bebidas alcoólicas no trabalho sofre-


ram alterações ao longo do tempo. Antes, quase não existia nenhuma norma
da empresa, levando-os a uma transgressão, evidenciada no pular o muro para
comprar bebidas.

“[...] quando eu entrei na marmoraria, às vezes a gente até pulava o muro


pra ir comprar, tinha um mercadinho na esquina, a gente pulava o muro e ia
lá comprar, bebia no trabalho.”

Atualmente, mantem-se o consumo da bebida, porém, bebe-se no bar.


De todo modo, ainda trabalham sob o efeito do álcool.

“Hoje em dia, os companheiros vão no boteco, igual ontem, teve


3 companheiros que foram no bar, era meio-dia ... Eles estavam no bar, cada
um com um copo de cachaça, foi os 3 trabalhar bêbados [...]”

Araujo (1986), Vaissman (1995) e Campana (1997) apontam alguns


fatores que contribuem para maior risco profissional em relação ao consumo
excessivo de bebidas, dentre eles, os relacionados à atividade dos marmoris-
tas, como: a disponibilidade do álcool, pois, há certas ocupações em que o
acesso ao produto ocorre durante o trabalho; a pressão social para beber, uma
vez que, em certas profissões, há uma tradição quanto a se beber muito; a au-
sência de supervisão; trabalhadores de baixa renda; empregos com alta tensão,
estresse e perigo (SANTOS et al., 2000).

100
Significados do uso da bebida alcoólica
Observamos alguns significados importantes para esses trabalhadores
quanto ao uso da bebida alcoólica, ou seja, ela tem uma função dentro desse
contexto do trabalho em marmorarias.

O trabalho pesado é um fator de risco para o consumo dessa bebida.


Nesse sentido, estabelece-se uma relação entre o trabalho em olarias e o tra-
balho em marmoraria como sendo serviços brutos que traduziremos como
pesados, duros.

“[...] os oleiros, três, quatro horas da manhã já começam a trabalhar e pra


esquentar aquele clima [...] já começa a beber de manhã.”

Também em outras profissões, iniciar o dia de trabalho consumindo


bebidas alcoólicas indica uma necessidade de uma dosagem extra de energia
e coragem para lidar com um tipo de trabalho duro, pesado, perigoso e em
péssimas condições ambientais.

“vai ali pra aquela friagem; porque tem que pisar no barro, aquele barro
todo, então as pessoas sempre bebem um pouco pra poder trabalhar com mais
liberdade, porque fica até com o corpo mais leve.”

A exemplo dos oleiros, os trabalhadores do mármore também fazem


uso de álcool para ter pique no início das atividades de trabalho, remetendo-
-nos à bebida como uma dosagem extra de energia e como um complemento
alimentício.

“antes de começar o trabalho a gente ia no boteco, a mulher do boteco fazia


uns torresmos logo cedo, aí a gente pedia uma garrafa de Cavalinho e um
copo liso cada um, a gente bebia um copo cada um daquela aguardente lá, e
depois comia uns dois torresmos e entrava pra trabalhar.”

101
A aguardente é uma dose de energia nem tanto física, mas psicológica,
que ajuda a enfrentar as condições de trabalho. Antes de retornar ao trabalho,
uma dose de álcool ajuda por seu valor simbólico (DEJOURS, 1987).

A bebida, ainda, é usada como uma espécie de antisséptico para limpar


o pó da sílica inalado pelo trabalhador e que se aloja na garganta, é uma ne-
cessidade de se limpar por dentro, até para se reconhecer como ser humano,
ao que eles se referem de uma maneira até pitoresca: “bebia uma pra limpar a
garganta, pra tirar o pó da sílica da garganta”.

Apontam também para a relação entre pó e ruído como expressões


de péssimas condições de trabalho, por exemplo, equipamentos sem manu-
tenção, ausência de EPI, etc. e o uso do álcool como atenuador ou calmante
frente a essas condições.

“Não, eu, na minha visão, eu acho que o pó, o excesso de pó, aquele barulho
que irrita o cara, ele toma uma para ficar meio calmo, não?”

Nesse sentido, o consumo do álcool está presente em toda a história da


humanidade. Na Idade Média foi introduzida a destilação, e as bebidas passa-
ram a ser consideradas um remédio para todas as doenças, pois dissipavam as
preocupações mais rapidamente que o vinho e a cerveja, além de produzirem
um alívio mais eficiente da dor, surgindo então à palavra Whisky que signifi-
ca “água da vida” (MURTA, 2007). Em relação ao trabalho pesado dentro da
marmoraria, não é diferente, a bebida alivia a dor e o cansaço, age como um
relaxante muscular e anestésico.

“A bebida, ela relaxa. É ou não é? Ela relaxa. Se o peso é 50kgs,


parece que você está sentindo 25.”
“Bebida alivia porque, se o cara bebe um pouco, ele já passa a não sentir mais
aquela canseira no corpo, é ou não é?”

102
O trabalhador nos traz outro significado interessante relacionado ao
beber, qual seja o de um divisor do espaço e do tempo do trabalho e da casa,
favorecendo o desligamento do trabalho.

“Porque a pessoa, ele pode sair da marmoraria cansado, mas se ele chega em
casa, toma uma cerveja, toma alguma coisa, aquilo já tira ele fora da mente,
do corpo, entendeu? No outro dia é que ele vai sentir.”

Além disso, observamos outra dimensão atribuída à bebida, qual seja,


de aproximar pessoas. Em geral, as pessoas realizam refeições em grupo e
também consomem bebidas em grupo.

“Ele se vicia, ele começa tomando uma para almoçar,


porque ele gosta da companhia daquele outro companheiro ou por
qualquer razão e acaba se viciando.”

Nesse ponto, a bebida facilita a adaptação do trabalhador calouro aos


veteranos como um desinibidor, uma forma de mostrar as regras dos trabalha-
dores da marmoraria e incluir quem está entrando.

“Aí chega lá, ele está meio tímido, porque aí o colega fala ‘vamos ali no
boteco tomar uma’, aí ele vai, daí a pouco ele passa a beber mais.”

Além disso, em estudo realizado (SELIGMANN-SILVA, 1994), obser-


vou-se que trabalhadores que migraram de outras regiões frequentavam mais
rodas de bar e consumiam mais bebidas alcoólicas buscando a aproximação
com pessoas como uma forma de pertencer a um grupo, ter companhia e fazer
parte.

Porém, no entendimento deles, nem sempre os resultados do beber


são “positivos”, pois pode desencadear situações de conflito e agressão.

103
“Eu já vi funcionário trabalhador brigar bêbado dentro da marmoraria,
ele bebeu na hora do almoço, depois do horário de serviço,
brigar dentro da firma, já vi.”

O uso de bebidas alcoólicas leva outros trabalhadores a desenvolverem


certos comportamentos que poderíamos chamar de precaução e de risco com
relação aos colegas que mantêm esta dependência ou consumo. Segundo eles,
o trabalho em equipe fica prejudicado e a confiança no outro também. No en-
tanto, o número reduzido de funcionários não possibilita escolhas: ou solicita
a colaboração do colega sob efeito do álcool, ou executa o trabalho sozinho, e
executar o trabalho sozinho implica torná-lo mais pesado.

Quando questionado sobre o trabalho em equipe, afirma que “chama [o


colega para ajudá-lo], porque ele está na empresa e não tem outro, às vezes o outro não
pode”, mas percebe que sua atividade requer, em situações várias, uma atenção
focada, concentrada e de precisão, condições que o indivíduo alcoolizado não
apresenta.

“Se tivesse outro eu chamaria, deixaria fora, porque talvez não tenha
a precisão que a gente precisa para trabalhar, a atenção.”

Apesar de não ter condições de optar, o trabalhador tem consciência


da situação de risco e perigo a que se expõe e também ao outro, e esses tipos de
situações remetem a sentimentos de medo, ameaça à integridade física e, no
tocante a subjetividade, conduz ao sofrimento mental.

“Por estar envolvido com a droga, ele não tem atenção recomendada para
o serviço, quer dizer, se tem outra pessoa disponível, eu não vou chamar o
sujeito, porque é muito perigoso.”

Os relatos de ocorrências de acidentes de trabalho em horário de ex-


pediente em trabalhadores que fizeram uso de bebidas alcoólicas são inúme-
ros. Vejam a seguir:

104
“Fez vários rasgos na barriga e foi por causa de bebida também, porque ele
bebia bem, inclusive eu tive que sair chutando a lixadeira até quando ela se
distanciou de todo mundo para poder arrancar o fio, desligando.”
“Mas eu vi cortador nosso lá mesmo que bebia, que tirava peça da máquina e
deixava cair em cima do pé porque estava meio... entendeu?”
“Uma sexta-feira, já vi o cara misturar café com coca-cola e cachaça na
hora do almoço e almoçou lá, comeu um pedaço de alguma coisa que não
lembro agora o que e voltou a trabalhar, quando deu duas e meia, os caras
precisaram desligar a máquina senão ela ia matar o sujeito.”

Observem que as medidas apontadas nessas falas foram tomadas pelos


empregados, sem nenhuma interferência dos dirigentes da empresa, ou seja,
demonstra ausência de uma política de segurança e saúde e também expressa
permissividade com relação ao beber dos trabalhadores.

Outra forma de lidar com a ausência de uma política de segu-


rança da marmoraria é a organização dos trabalhadores definindo regras
de segurança e manutenção da vida: trabalhar sem se acidentar.

“Os mais novos, eles traziam escondido várias vezes eu peguei e joguei lá
dentro do Tietê lá, não ia permitir que bebesse dentro da firma apesar
de eu não ser gerente, não ser nada, mas eu fazia reunião com eles e discutia,
não permitia mesmo não, dependia da minha vida, da minha integridade
física também, não ia permitir.”

Os efeitos causados no organismo do trabalhador após algumas horas


da ingestão de bebidas alcoólicas também são observados e relatados pelos
colegas, como a sonolência, a embriaguez.

“Eles bebiam todo esse volume de cachaça, de duas a três garrafas


em três, em quatro, e vinha e almoçava bonzinho, e trabalhavam normal
de uma até três horas, mas quando chegava três e meia para lá,
acho que a comida começava a perder alguma coisa e o álcool
voltava a dominar, eles ficavam bêbadozinho.”

105
“Eu já vi um cara trabalhar uma tarde sem almoço [...] Isso só ia fazer efeito
duas horas depois, uma, duas horas e meia, três horas [...] Dormia nada, cinco
horas já saía, cinco e meia, ainda saía de lá bêbado.”

Segundo os trabalhadores, devido o uso exagerado da bebida, além de de-


senvolverem algumas doenças, como inchaço nos pés, labirintite, por exemplo,
também ocorreu a morte de alguns colegas.

“Alguns até morreram igual o seu, a história do sabe, o X que trabalhava lá noY,
já morreu, é... Ele bebia e inchava o pé.”
“Foi um problema grave dele, inchava o pé, lá em Guarulhos eu conheci outro cara
lá que morreu também, não sei se só da bebida, mas creio eu que a bebida ajudou.”
“Ajuda, eu conheço um rapaz que trabalha aqui mesmo, ele trabalhou comigo
20 anos, ele aposentou, mas aí começou a beber mais acentuadamente mesmo [...]
Começou a ter problema de labirintite, começou a ter um monte de problema e
morreu com hemorragia digestiva, fazendo vômito de sangue.”

Resumindo, o consumo alcoólico no trabalho pode ser também uma forma


de viabilizar o próprio trabalho, em decorrência de seus efeitos farmacológicos:
calmante, euforizante, estimulante, relaxante, indutor do sono, anestésico e an-
tisséptico. Pode, assim, ser considerado como um dos diversos meios para fazer
frente ao estresse. No entanto, essa é uma estratégia útil apenas em curto prazo.
Para Dejours, trata-se de uma estratégia coletiva de defesa contra o sofrimento,
uma confrontação com a organização do trabalho.

Podemos indicar ainda que, além do beber ter uma função de incluir o tra-
balhador entre os seus iguais, ou seja, de adaptá-lo ao ambiente de trabalho e fazer
sentir-se pertencendo ao grupo, demonstra, conforme a fala dos trabalhadores,
que o processo inverso também é verdadeiro. Desse modo, ocorre a exclusão do
trabalhador, quando este extrapola uma linha muito tênue do consumo de bebidas.
Ele é quase que excluído das tarefas, nele não se confia mais, pois é uma parte a
menos no processo de cooperação e de solidariedade entre eles.

Seligman-Silva (2011) insere o alcoolismo no trabalho no capítulo da psico-


patologia da violência e suas expressões clínicas, como uma forma de se entender
106
a violência sociolaboral. Aponta que o desgaste e o sofrimento mental que se origi-
nam em determinadas ocupações, que também ferem a dignidade humana, podem
suscitar o surgimento de depressões e diferentes processos psicopatológicos.

Tanto a busca de bebidas alcoólicas, como a de diferentes drogas,


pode, em muitos casos, representar tão somente a forma pela qual
alguém está procurando fugir do contato com a própria angústia [...]
Trata-se, frequentemente, de um “tratamento” equivocado [como o
remédio de garrafa], adotado defensivamente, contra a depressão.
(ALCOOLISMO..., 2016)

107
6. Considerações finais

A marmoraria é constituída pelos setores de polimento ou lustração, corte


ou serra, acabamento e montagem. Este ramo de atividade é classificado como
Indústria e Comércio de Mármore e Granito, sendo os principais produtos pias
e bancadas para banheiros e cozinhas, tampos de mesas, rodapés, pisos, soleiras,
lareiras etc.

A atividade é considerada trabalho escravo em função de diversos aspectos:


pesado, arriscado, penoso e com mão de obra desvalorizada. Para Seligman-Silva
(2011), a desqualificação está embutida na noção de trabalho escravo ou engloba
especialmente aqueles cujos conhecimentos e experiências profissionais passaram
a ser desvalorizados e descartados em decorrência do advento de novos saberes e
tecnologias, o que é encontrado em algumas marmorarias. Além disso, todos os
marmoristas entrevistados desenvolvem sua atividade em pé, em movimento, com
muito esforço físico no lidar com os instrumentos e o peso das pedras.

Paradoxalmente, vislumbramos aspectos positivos da atividade, qual seja,


a possibilidade de inventar e criar (pés de mesa, requadrações etc.), a solidariedade
entre os colegas, ainda que expressa em situações de risco extremo, como o
acidente de trabalho. Para alguns trabalhadores, tudo se inicia “namorando a pedra”.
O envolvimento, o desafio, a paixão pelo trabalho com a pedra leva-os a referir-se
a elas como se fossem pessoas, e os mais experientes e orgulhosos de sua atividade
sabem qual tipo de pedra é a mais adequada de acordo com a encomenda. Conhecem
seu cheiro, seu brilho e sua beleza. É esse envolvimento que lhes permite vivenciar
formas de alegria, de prazer.

Na marmoraria identificamos cinco funções: o lustrador, o cortador, o aca-


bador, o colocador e o ajudante, sendo que a maneira mais comum de se começar
neste ramo de atividade é como ajudante, função que, segundo eles, constitui-se
de trabalho desqualificado, executado por um trabalhador sem experiência e sem
conhecimento do que irá encontrar adiante. A necessidade de trabalhar e o desejo
de aprender facilitam ou dificultam a permanência do ajudante na marmoraria.

109
O lustrador, por sua vez, tem como principal tarefa desengrossar a pedra,
propiciando-lhe brilho adequado. Para tanto, utiliza muita força física e seu corpo
assume a função de extensão da lustradeira. Essa interação com a máquina apre-
senta aspectos de leveza, como uma dança, e aspectos de rudeza, como uma luta,
vencendo o mais forte. O esforço físico é intenso, deixa o trabalhador meio lesado,13
as mãos calejadas e os dedos tortos.

A atividade de serrador exige “muita calma e concentração”, pois sua tarefa


abrange muitos detalhes e determina as partes da peça e do todo em função do tipo
de rocha, da cor, dos detalhes da lastra e do produto encomendado.

O acabador é quem finaliza a peça que seguirá para o cliente. Sua rotina
é exaustiva, com ritmo intenso e, paradoxalmente, monótona, por ter de fazer a
mesma coisa durante toda a jornada de trabalho e todos os dias. Além disso, me-
ticulosidade e inventividade são qualidades associadas a esses trabalhadores para
criação de estratégias tendo como fim lidar com o ritmo intenso e os riscos a que
estão expostos.

Por fim, o colocador, que é o único a ter contato com o público em função
de sua atividade ser externa à marmoraria e de ser responsável pela colocação das
encomendas. Esse contato com o público leva-o a desenvolver uma flexibilidade
acentuada para lidar com diversas situações.

O conhecimento de alguns desses trabalhadores nem sempre é aquele


aprendido na escola ou nos cursos, porque não tiveram estudo formal, mas sim
aquele adquirido pela experiência do dia a dia, pela observação do trabalho do co-
lega e pela prática, incorrendo no risco de repetir erros, vícios e macetes realizados
pelo colega mais antigo. Esses jeitos de fazer muito utilizados nem sempre são os
mais adequados e corretos ou cercados de proteção e segurança, aumentando o
risco da ocorrência de acidentes e de prejuízos à saúde do trabalhador. Trata-se,
portanto, de estratégias coletivas de defesa que não dão conta de manter a proteção
diante de inúmeros descasos no ambiente de trabalho.

13
Lesado no sentido atribuído significa algo como tonto, abestalhado, fora do ar, desligado.

110
Para os marmoristas, a saúde está relacionada ao conceito de harmonia,
equilíbrio entre mente e corpo, algo que está muito distante deles, inatingível,
beirando, assim, a utopia. Isso porque, para eles, o corpo tem a função principal
de trabalhar e, enquanto instrumento de trabalho, não podem dar ouvidos às suas
queixas para tratar delas, pois isso implica em parar de trabalhar, não manter o seu
papel de provedor em casa nem sua dignidade enquanto ser humano, enquanto
alguém que tem um trabalho.

As queixas e/ou problemas de saúde relacionados à atividade de trabalho


em marmoraria são: dor em todo o corpo e cansaço físico; problemas na coluna,
hérnias e água no joelho; picadas na vista; perda de audição e silicose. Para tratar
deles, quando estão no limite de suas dores, a atenção ou os cuidados são contradi-
tórios: algumas ações se voltam para a procura de médicos e orientações de cirur-
gias, outras são paliativas, como a busca por massagens em fisioterapeutas e, ainda,
por terapias ou recomendações populares.

Dentre os acidentes de trabalho em marmorarias, muitos ocorrem no des-


locamento das chapas e são de alta gravidade devido ao peso excessivo que estas
possuem, podendo causar o esmagamento de membros ou mesmo levar a óbito.
Outros estão relacionados ao uso de equipamentos sucateados, sem manutenção
– o referido “pau veio” – para os quais não têm nenhuma alternativa. Apesar disso,
quando do acidente, o trabalhador sente-se culpado, repetindo os mecanismos que
imputam a responsabilidade do acidente ao acidentado. Isso inocenta a empresa e
a exime de seus deveres, tais como a organização e a melhoria das condições de
trabalho, a aquisição de equipamentos novos e/ou a manutenção adequada e tantas
outras obrigações, inclusive de responsabilidade social.

Um problema grave e sério para esta categoria profissional é a sílica. Co-


nhecida por eles como o pó que mata, está em todos os lugares e recônditos. Todos
estão expostos à poeira de sílica e podem desenvolver silicose ou outros proble-
mas, como rinite alérgica, tosses, pneumonias, dificuldades de respirar, sintomas
do problema e comorbidades que determinam o seu presente e futuro.

Percebemos que esses trabalhadores não sabiam como identificar a silicose,


pois as dores sentidas são muitas e os confundem, exatamente por desconhecerem
111
quais sintomas podem ser possíveis sinais dessa doença. Uma dor no peito ou um
cansaço físico, por exemplo, poderiam ser decorrentes de um resfriado mau cura-
do ou dos esforços físicos do trabalho tão pesado. Assim, os sintomas da silicose
devem ser esclarecidos aos trabalhadores, constituindo-se numa forma de preven-
ção a essa doença.

Outro problema identificado é o consumo de bebidas alcoólicas, prefe-


rencialmente destilados, que abre uma discussão importante relacionada ao tipo
de trabalho executado: a ingestão de bebidas nos horários de almoço e em outros
horários dentro da empresa.

O trabalhador traz significados relacionados ao beber, tais como ser o di-


visor do espaço e do tempo do trabalho e da casa, favorecendo o desligamento do
trabalho, ou ser um alívio para a dor e o cansaço, agindo como relaxante muscular
e anestésico em relação ao trabalho pesado dentro da marmoraria.

A bebida também é usada como facilitador da adaptação do trabalhador


calouro com os veteranos, como um desinibidor, uma forma de mostrar as regras
dos trabalhadores da marmoraria e incluir quem está iniciando na atividade.

O consumo alcoólico no trabalho pode ser ainda uma forma de viabilizar o


próprio trabalho, em decorrência de seus efeitos farmacológicos: calmante, eufo-
rizante, estimulante, relaxante, indutor do sono, anestésico e antisséptico.

Desta forma e diante das condições explicitadas, sugerimos a intensifica-


ção da fiscalização competente, verificando e aplicando as normas regulamentado-
ras disponíveis e adequadas, pois o ambiente de trabalho em marmorarias ainda é
muito precário, a ponto de não dispor de água potável ou local adequado para se
alimentarem, pois se nota a presença de ratos. O jogo de cintura desta população é
o que lhe permite buscar meios, estratégias e mecanismos que garantam sua sobre-
vivência, mantendo vivo o homem, ainda que precariamente.

Assim, sendo o trabalho algo centralizador da vida do ser humano, capaz


de formar e reconstruir sua identidade, questionamos: que identidade é essa que
está sendo construída a partir de situações de menosprezo e de baixa autoestima?
112
A prevenção, a mudança da concepção de trabalho, a implantação de pro-
gramas de saúde e outras ações se fazem prementes, urgentes e fundamentais se se
pretende fazer do trabalho um meio de vida e não de morte.

113
7. Referências

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119
Sobre o livro
Composto em Times New Roman 11 (textos)
em papel offset 90g/m² (miolo)
e cartão supremo 250g/m² (capa)
no formato 16x23 cm

MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO

FUNDAÇÃO JORGE DUPRAT FIGUEIREDO DE SEGURANÇA E MEDICINA DO TRABALHO


Este livro mostra uma abordagem huma-
nista, qualitativa e subjetiva, do ponto
de vista do trabalhador de marmoraria
Trabalho e subjetividade (cortador, lustrador, acabador e coloca-
dor), revelando significados, emoções,
pensamentos, medidas e qualidades que
dos marmoristas foram por eles atribuídas. As informações
foram coletadas no ano 2009 com visitas
Tereza Luiza Ferreira dos Santos
às marmorarias, e muitas conversas indi-
(coordenadora)
viduais e em grupo realizadas no sindi-
Leila Cristina Alves
cato da categoria e na Fundacentro. Para
Vanda Deli de Souza Teixeira
analisar as informações, dialogamos com
estudiosos como Dejours, Boltanski,
Mullan, Minayo, entre outros.

Exibimos nas páginas do livro aspectos


inéditos sobre o trabalho em marmora-
ria; equipe de trabalho; a pedra como
objeto de criação; saúde compreendendo
queixas / doenças; acidentes de trabalho;
consumo alcoólico e silicose (a doença
que mata).

O trabalho do marmorista é pesado, mo-


nótono, perigoso e até fatal. Contraria-
mente, esta mesma atividade proporcio-
na a possibilidade de criar, de transfor-
mar e de se transformar. No processo de
trabalho várias estratégias defensivas são
utilizadas, mas não garantem a saúde e a
ausência de acidentes do trabalho. A sub-
jetividade dos trabalhadores é permeada
pelo medo, pelo desafio, baixa autoesti-
MINISTÉRIO
DO TRABALHO ma e um sentimento de desvalorização.
ISBN 978-85-92984-09-0 Percebemos também que a bebida alcoó-
lica bastante consumida, usada para lim-
par o pó da garganta, é uma forma de se
9 788592 984090 >
limpar do pó simbolicamente, e de lim-
par a própria vida.

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