Rae 042021

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Número 232

Abril 2021

Sob o olhar da Mãe


do Bom Conselho
CURSO ONLINE

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http://fatima.arautos.org/
Ano XX, nº 232, Abril 2021
SumáriO
Escrevem os leitores ���������������������������������������� 4 Mestres que nos ensinam a
ver e ouvir o sobrenatural
ISSN 1982-3193
Revista de cultura
e inspiração católica Conselhos (Editorial) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 ...................... 32
publicada por:
Uma Páscoa portuguesa,
Associação Brasileira A voz dos Papas –
Arautos do Evangelho com certeza!
Embaixadores de Cristo
CNPJ: 03.988.329/0001-09
www.arautos.org.br
ou do mundo?
...................... 35
........................ 6
Amparados pela proteção
Diretor Responsável:
Mario Luiz Valerio Kühl de uma mãe celeste
Comentário ao Evangelho –
Um Rei bondoso
Conselho de Redação: até o extremo ...................... 38
Severiano Antonio de Oliveira;
Silvia Gabriela Panez;
........................ 8 Arautos no mundo
Marcos Aurelio Chacaliaza C.
“Dai-me também
Administração a coragem, a força e a fé” ...................... 42
Rua Diogo de Brito, 41
Aconteceu na Igreja e
02460-110 - São Paulo - SP
[email protected]
...................... 14 no mundo

Assinatura e Queda de edifícios ...................... 44


simbólicos: prenúncio de
atendimento ao assinante:
novas eras? História para crianças... –
(11) 2971-9050
(nos dias úteis, de 8 às 17:00h) ...................... 18 Uma ave do Paraíso

Assinatura e Participação
...................... 46
Assinante (anual): .............. R$ 204,00 únicos Sublime intimidade
entre o Menino e a Mãe Os Santos de
Participante (por tempo indeterminado):
cada dia
Colaborador.................... R$ 40,00 mensais
Benfeitor......................... R$ 50,00 mensais ...................... 24
Grande Benfeitor............ R$ 60,00 mensais ...................... 48
Exemplar avulso................ R$ 17,00
São Francisco de Paula – Como uma árvore abatida
Os artigos desta revista poderão ser Para ele, tudo era possível pela tempestade
reproduzidos, desde que se indique a fonte
e se envie cópia à Redação. O conteúdo das
matérias assinadas é da responsabilidade
dos respectivos autores.
...................... 28 ...................... 50

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E screvem os leitores

que ultrajavam o Pai caíram sobre importantes quanto as notas. Nesses


Ele (cf. Sl 68, 10). dois segundos que dura o silêncio ele
Muitos de nós, católicos, sentimos quase sempre é rompido pelo auditó-
esta mesma “santa indignação” quan- rio, emocionado. E imediatamente o
A pequena Nellie do vemos os templos de Deus ultraja- público, assim como o rei em seu dia,
dos e convertidos em plataformas de se põe de pé: Hallelujah.
Muito interessante a história de
Ellen Organ, a pequena Nellie, no discursos e reivindicações políticas, María de la Encarnación Romero
artigo Ardor eucarístico num coração sociais ou de paixões desenfreadas… Via revistacatolica.org
inocente. Sou muito devoto dela e es- Como católico, me entristece dizer,
mas infelizmente existem algumas Orientações seguras em
tava procurando um artigo que con-
igrejas em que as homilias ouvidas situações difíceis
tasse a sua história, e esse foi o me-
lhor que eu já li sobre ela, o mais apelam para os sentimentos e as ideo- Tenho acompanhado as publica-
completo e detalhado. Parabéns, fi- logias das pessoas, trocando o “louva- ções da revista Arautos do Evangelho,
cou muito bom! Uma coisa interes- do seja Deus” pelo “quero, sinto, ne- fonte preciosa e indispensável para
sante também, seria colocar a sua cessito”, substituindo a figura central a formação dos católicos, especial-
oração ou uma oração a ela. de Deus para colocar seu “eu” no al- mente nos dias em que estamos, sem-
tar, deixando de oferecer sacrifícios pre mais carentes de instrução reli-
Wesley Ubirajara Lima Gurgel
a Deus para estabelecer cultos pes- giosa.
Via revistacatolica.com.br
soais, ideológicos, mundanizados e, Na minha profissão de Delega-
Uma pergunta que deveríamos em todo caso, desordenados… do de Polícia Civil, tenho me depa-
fazer-nos todos os dias “Retiraram” Deus dos templos, es- rado muitas vezes com situações di-
Ao ler este artigo de Mons. João vaziando-os de significado sobrena- fíceis, e sempre encontro orientações
Scognamiglio Clá Dias, na edição tural e sentido transcendental. “Rou- seguras nas considerações espirituais
de fevereiro último, nos perguntáva- baram” a glória de Deus para entre- tão oportunas da Revista. Especial-
mos: “E tu, quem dizes que Eu sou?” gá-la ao mundo. “Despejaram” Deus mente belos são os comentários de
É uma pergunta que deveríamos fa- de sua casa, expulsando a Verdade Mons. João Scognamiglio Clá Dias
zer-nos todos os dias ao levantarmos, de seus corações. Transformaram o sobre os Evangelhos. Quero deixar
pois é no início do dia que começa louvor a Deus em louvor ao homem, aqui a minha gratidão por tantos be-
nosso combate. substituindo a Palavra de Deus por nefícios que a Revista tem trazido
palavras humanas. Corromperam a fé para nossa família.
Detivemo-nos especialmente na
em Cristo para impor uma nova mo- Edmundo Ferreira Gomes
segunda parte: A imortalidade da Igre-
ral cristã do século XXI. Construí- São Carlos – SP
ja edificada sobre um homem mortal.
ram uma igreja-mundo, para que se
Isto é um grande mistério que enche
de ânimo e confiança a alma de quem
adapte aos tempos, um templo que dê Fervente desejo de ir
lugar a “mercadores” que fazem tráfi- ao Céu sem demora
quer seguir a Cristo.
co com seus interesses. Santa Maria, Que maravilha ver como se repe-
Raúl González Galán e Mãe de Deus, rogai por nós! te, em todas as aparições marianas,
Carlota Estéban
Alberto Mestre o fervente desejo de ir ao Céu sem
Madrid – Espanha
Via revistacatolica.org demora, como manifesta Santa Ber-
Comentário ao editorial nadette em um escrito publicado na
de fevereiro “Silêncio sinfônico!” edição eletrônica da Revista de feve-
Jesus subiu a Jerusalém duran- Tive o prazer – porque é um ver- reiro: Quero ficar convosco ao pé da
te a Páscoa e ao entrar no Templo fi- dadeiro prazer – de reger, em vá- Cruz. Que magnífica contemplação
cou horrorizado. Que cena tão terrí- rias ocasiões e com diferentes músi- celestial deve ocorrer, para que os vi-
vel deve ter contemplado para rea- cos e coros, o Hallelujah do Oratório dentes desejem deixar de imediato
gir assim! A casa de oração havia se do Messias. O instante a que se refe- este mundo e ir ao Céu, de mãos da-
convertido em uma cova de ladrões! re o artigo Silêncio sinfônico! contém das com a Santíssima Virgem!
Sem dúvida, o zelo pelo Templo do uma força quase sobrenatural. Os si- Jesús Ferrando Valls
Senhor o consumiu e os insultos dos lêncios, na maioria das vezes, são tão Via revistacatolica.org

4      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Editorial
Conselhos

A Santíssima Trindade poderia ser comparada a um conselho, ou seja, à har-


monia de Divinas Pessoas que Se contemplam, vivem e atuam rumo ao
fim supremo. Sendo intimamente difusivo, o Sumo Bem quis expandir a
sua bondade ao máximo e enviou ao mundo o seu próprio Filho, o “Conselhei-
ro Admirável” (Is 9, 5), para assumir a nossa humanidade e elevá-la à divindade.
Utilizou-Se para isso de outro conselho, a Sagrada Família, “trindade” terrena e
modelo absoluto de sociedade humana.
Jesus também quis constituir para Si um conselho. Inicialmente formado por
doze Apóstolos, estes, sob o élan do Paráclito, depois conduziram uma multidão de
almas para o seio da Igreja, expandindo-a por todo o orbe.
A palavra conselho, por extensão de sentido, denota também um precioso dom
do Espírito Santo, que conduz a alma em graça a julgar casos particulares discer-
nindo o fim sobrenatural. Foi por tal dom que Noé realizou tudo quanto Deus lhe
ordenara (cf. Gn 7, 5), Abraão obedeceu sem entender (cf. Hb 11, 8), Moisés ouviu
a voz do Alto e a ecoou ao povo.
Após a Ascensão de Cristo, a multiforme graça divina continuou a iluminar
incontáveis santos pastores que apascentaram a grei do Senhor. Dentre eles des-
Número 1
232
tacam-se os fundadores, como Bento de Núrsia, Francisco de Assis, Inácio de
Loyola… Entretanto, a maior guia do povo fiel foi Nossa Senhora. Não só por
Abril 202

sua participação na Encarnação e na Redenção da humanidade, mas também


por suas constantes intervenções nos ponteiros da História, seja através da devo-
ção popular, seja por meio de aparições, como em Lourdes e Fátima, ou mesmo
de milagres, como os realizados em torno do ícone da Mãe do Bom Conselho em
Genazzano.
Mãe
lhar da Após a aparição deste afresco na Itália, a Conselheira Admirável logo operou
Sob o o n s e lho
Co
do Bom uma feeria de prodígios. Mais tarde a Soberana Rainha, sob a mesma invocação,
conquistou duas destacadas vitórias que salvaram o Ocidente da usurpação oto-
mana: em Lepanto, sob o penacho do almirante João d’Áustria, e em Viena, pelo
Monsenhor João cetro do rei da Polônia, João Sobieski. Em ambos os casos, os comandantes, im-
Scognamiglio buídos do dom de conselho, receberam a mesma aclamação: “Houve um homem
Clá Dias, EP, enviado por Deus, cujo nome era João” (Jo 1, 6)!
fotografado em O conselho é o único dos sete dons que se distingue com o adjetivo bom. Isso
julho de 2020 junto porque, de fato, existem maus conselhos… Através destes, pulularam traições,
a uma cópia do corrupções e tiranias que abalaram o mundo. Basta recordar a sugestão da ser-
afresco de Mater pente no Paraíso, passando pelas insídias dos fariseus contra Jesus, até chegar às
Boni Consilii perseguições à Igreja, que ainda hoje espalham as suas tramas. Para tal, o demô-
Foto: Teresita Morazzani
nio e seus asseclas constituem não conselhos, mas sim conciliábulos, como aquele
infame que se reuniu para crucificar o Messias.
Enfim, diante de tal panorama, a Conselheira Admirável bem poderia dar um
bom conselho a esses ímpios perseguidores: “Não toquem em meus filhos! Como
no passado, continuo a suscitar Santos e heróis que, sob o meu patrocínio, sem-
pre vencerão!” Se não diretamente, com certeza Ela intervirá por meio de outros
“Joões”… ²

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      5


A voz dos Papas

Embaixadores de Cristo
ou do mundo?
Quem prega sem cuidar de conduzir seus ouvintes a um maior
conhecimento de Deus poderá ser definido como um declamador fútil, não
um pregador evangélico. Poderá obter o aplauso dos tolos, mas não se
furtará ao severíssimo juízo de Cristo.

P
or sua Morte no altar da a obra da salvação eterna seja leva- dizer que os Apóstolos encontraram
Cruz, Jesus Cristo operou a da avante pela pregação da sabedo- tempos melhores que os nossos, como
Redenção do gênero huma- ria cristã. A justo título deve ela ser se em sua época o mundo fosse mais
no. E querendo levar os ho- contada entre as coisas de suprema dócil ao Evangelho ou menos refratá-
mens a conquistar a vida eterna, pela importância e, portanto, merece to- rio à Lei de Deus. […]
observância dos Mandamentos, não das as nossas atenções e solicitudes, É fácil compreender o que os pre-
recorreu a outros meios que o da voz máxime se houver razões para crer gadores devem ter em vista, no exer-
de seus pregadores encarregados de que de algum modo tenha ela perdi- cício de seu encargo: eles podem e de-
anunciar ao mundo as coisas necessá- do algo de sua autenticidade original, vem afirmar de si mesmos o que es-
rias para crer e salvar-se: “Aprouve a diminuindo assim sua eficácia. […] creveu São Paulo: “Somos embaixa-
Deus salvar os que creem pela loucura Porventura, a Palavra de Deus não dores de Cristo” (II Cor 5, 20). Ora,
da pregação” (I Cor 1, 21). é mais aquela que o Apóstolo chama se são embaixadores de Cristo, de-
Escolheu, pois, os Apóstolos, in- de viva e eficaz, mais penetrante que vem querer, no exercício de sua mis-
fundiu-lhes pelo ministério do Es- uma espada de dois gumes (cf. Hb são, o mesmo que Cristo pretendeu
pírito Santo os dons apropriados a 4, 12)? Embotou-se, talvez, pelo uso ao enviá-los; aquilo que Ele próprio
tão elevada missão e disse: “Ide por ao longo do tempo? Se ela perde com Se propôs durante sua vida terrena.
todo o mundo e pregai o Evangelho” frequência sua força, é decerto por Pois os Apóstolos, e depois deles os
(Mc 16, 15). E precisamente esta culpa dos ministros que não sabem pregadores, não tiveram missão di-
pregação renovou a face da terra. manejá-la. Com efeito, não se pode ferente da de Cristo: “Como o Pai
Pois, se a Fé cristã converteu as men- Me enviou, também Eu vos envio”
tes dos homens de múltiplos erros ao (Jo 20, 21).
conhecimento da verdade, e suas al-
mas da abjeção dos vícios à excelên- Porventura, a Procuraram o aplauso dos tolos,
encontrarão o juízo de Cristo
cia de todas as virtudes, converteu
pela via da pregação: “A fé vem pela
Palavra de Deus não Sabemos o motivo pelo qual Cris-
pregação e a pregação, pela Palavra é mais aquela que to desceu do Céu, pois Ele o decla-
de Cristo” (Rm 10, 17). rou expressamente: “Vim ao mun-
o Apóstolo chama do para dar testemunho da verdade”
Terá a Palavra de Deus (Jo 18, 37); “Vim para que tenham
perdido sua eficácia? de mais penetrante vida” (Jo 10, 10). Portanto, os prega-
De fato, visto que por disposi- que uma espada dores sacros devem visar uma e outra
ção divina as coisas são mantidas pe- coisa, ou seja: difundir a verdade re-
las mesmas causas que as geraram, é de dois gumes? velada por Deus, suscitar e desenvol-
evidente ser por vontade divina que ver nos fiéis a vida sobrenatural; em

6      Arautos do Evangelho · Abril 2021


suma, promover a glória de Deus, Paulo se empenhou em que os ho-
empenhando-se na salvação das mens conhecessem sempre me-
­almas. lhor Jesus Cristo, e O conhe-
Errado seria denominar cessem não tanto pelo que
médico alguém que não precisavam crer, mas pelo
exerce a medicina, ou que deviam viver.
mestre em alguma arte Em consequência,
quem não a ensina. Do pregava sobre todos
mesmo modo, quem os dogmas e precei-
prega sem cuidar de tos de Cristo, inclu-
conduzir seus ouvin- sive os mais severos,
tes a um maior conhe- sem qualquer reticên-
cimento de Deus pode- cia ou abrandamento:
rá ser definido como um falava da humildade, da
declamador fútil, não um abnegação de si mesmo,
pregador evangélico. […] da castidade, do desprezo
ay
E já que há entre as coisas Bo
ul das coisas terrenas, da obe-
i s
reveladas por Deus algumas ç o diência, do perdão aos inimi-
an
Fr
que assustam a débil e decaída na- gos e de outros temas similares.
tureza humana, e por isso não são Não tinha medo algum de pro-
próprias a atrair multidões, destas Doze Apóstolos - Paróquia de Santa clamar que é preciso escolher en-
eles cautamente não falam; preferem Brígida, Montreal (Canadá) tre Deus e Belial, pois não é possí-
tratar de temas nos quais, exceto a vel servir a ambos; que todos, logo
natureza do lugar, nada há de sagra- após a morte, serão sujeitos a um
do. E não é raro acontecer que, tra- Não se pode dizer terrível julgamento; que não é pos-
tando da verdade eterna, baixam ao sível transigir com Deus; que quem
nível da política, sobretudo se algo que os Apóstolos cumpre toda a Lei pode esperar a
desse gênero fascina seus ouvintes. vida eterna, mas, ao contrário, deve
Sua preocupação parece ser ape-
encontraram um temer o fogo eterno quem negligen-
nas esta: agradar aos ouvintes e con- mundo mais dócil cia seus deveres para satisfazer suas
tentar aqueles que, segundo São paixões.
Paulo, “têm prurido de escutar novi- ao Evangelho ou Com efeito, nunca ocorreu ao
dades” (II Tim 4, 3). Daí aqueles ges- “pregador da verdade” a ideia de
tos não calmos nem graves, próprios menos refratário ­abster-se desses temas sob o pretex-
de espetáculos e de comícios; daí as
patéticas entonações da voz ou as im-
à Lei de Deus to de que, dada a corrupção vigen-
te, eles poderiam parecer por demais
petuosas tragicidades; daí o estilo de duros aos seus ouvintes.
falar próprio dos jornais; daí aquela quando com isso se expõem à desa- Portanto, fica claro o quanto são
abundância de citações colhidas, não provação de todos os sábios e, pior reprováveis os pregadores que, pelo
nas Sagradas Escrituras nem nos Pa- ainda, ao tremendo e severíssimo juí- temor de enfastiar seus ouvintes, não
dres da Igreja, mas em escritores zo de Cristo? […] ousam tratar de certos tópicos da
ímpios e acatólicos; daí, por fim, a doutrina cristã. Porventura prescre-
vertiginosa verbosidade, que se en-
Não é possível servir verá o médico um remédio inútil ao
contra na maioria deles, a qual ser-
a Deus e a Belial doente, se este recusar os eficazes?
ve para entorpecer os ouvidos e pas- Retornemos, porém, ao Apósto- Ademais, o orador dará provas de
mar os ouvintes, mas não lhes pro- lo Paulo e procuremos saber de quais força e habilidade se conseguir ex-
porciona nada de bom. temas ele costumava tratar em suas por de forma agradável os temas de-
É realmente incrível o engano do pregações. Ele os resume nestas pa- sagradáveis. ²
qual tais pregadores são vítimas. Tal- lavras: “Entre vós, não julguei saber
vez consigam dos tolos o aplauso que coisa alguma, a não ser Jesus Cristo, Excertos de: BENTO XV.
procuram com muita fadiga e não e este, crucificado” (I Cor 2, 2). Com Humani generis redemptionem,
sem profanação; mas vale a pena, todo o fervor de sua alma apostólica, 15/6/1917

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      7


a  Evangelho  A
Naquele tempo, disse Jesus: 11  “Eu
sou o Bom Pastor. O Bom Pastor
dá a vida por suas ovelhas. 12 O mer-
cenário, que não é pastor e não é
dono das ovelhas, vê o lobo chegar,
abandona as ovelhas e foge, e o lobo
as ataca e dispersa. 13 Pois ele é ape-
nas um mercenário e não se impor-
ta com as ovelhas. 14 Eu sou o Bom
Pastor. Conheço as minhas ovelhas,
e elas Me conhecem, 15  assim como
o Pai Me conhece e Eu conheço o
Pai. Eu dou minha vida pelas ove-
lhas. 16  Tenho ainda outras ovelhas
que não são deste redil: também a
elas devo conduzir; escutarão a mi-
nha voz, e haverá um só rebanho e
um só Pastor. 17 É por isso que o Pai
Me ama, porque dou a minha vida,
para depois recebê-la novamente.
18 
Ninguém tira a minha vida, Eu a
dou por Mim mesmo; tenho poder
de entregá-la e tenho poder de rece-
bê-la novamente; esta é a ordem que
recebi do meu Pai” (Jo 10, 11-18). Darío Lallorenzi

Bom Pastor - Igreja de Nossa Senhora das


Mercês, Salta (Argentina)

8      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Comentário ao Evangelho – IV Domingo da Páscoa

Um Rei bondoso
até o extremo
Conhecer o amor incomensurável do Bom Pastor por todas e
cada uma de suas ovelhas é o melhor incentivo para encetar
com entusiasmo as vias da santidade.

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

I – Jesus, o Rei bondoso nhor dos senhores até a chegada do verdadeiro


A Liturgia deste domingo põe em evidência Filho de Davi, o libertador de Israel.
a figura do pastor, criada pelo Divino Artífice Este futuro Pastor se distinguiria por sua bon-
para, em certo momento, simbolizar a Si mesmo. dade, ou seja, por seu Coração transbordante de
Pelos lábios do profeta Ezequiel, o Altíssi- benquerença para com as ovelhas. E assim o foi!
mo havia denunciado os maus pastores de Israel, Quem poderia imaginar que a Segunda Pessoa
aqueles monarcas e sacerdotes que procuravam da Trindade assumiria nossa natureza no seio vir- Pelos lábios
suas vantagens pessoais em detrimento do reba- ginal de Maria Santíssima para trazer a salvação
nho a eles confiado: “Vós não fortaleceis as ove- ao gênero humano transviado pelo pecado? Sim, do profeta,
lhas fracas; a doente, não a tratais; a ferida, não
a curais; a transviada, não a reconduzis; a perdi-
o Verbo Eterno feito carne Se constituiria Pastor
de Israel, como anunciara Ezequiel: “Sou Eu que
o Altíssimo
da, não a procurais; a todas tratais com violên- apascentarei minhas ovelhas, sou Eu que as farei havia
cia e dureza” (34, 4). Em consequência, ameaçou repousar – oráculo do Senhor Javé” (34, 15).
castigá-los e, como santa e reparadora vingança, Narram os Santos Evangelhos que, ao percor- denunciado os
prometeu: “Pois eis o que diz o Senhor Javé: vou rer as cidades e aldeias, Jesus tomou-Se de com-
tomar Eu próprio o cuidado com minhas ove- paixão pela multidão que O seguia, “porque es-
maus pastores
lhas, velarei sobre elas” (34, 11). tava enfraquecida e abatida como ovelhas sem de Israel
Essa bela profecia realizou-se plenamente, pastor” (Mt 9, 36). Então, como Pastor cheio de
mas de modo inesperado, superando todas as ex- suavidade, delicadeza e amor, ensinou-lhes mui-
pectativas. Com efeito, a casa de Judá perdeu o tas coisas. Esse afeto dadivoso de Nosso Senhor
poder régio a partir do exílio babilônico, tempo manifestou-se inúmeras vezes ao longo da vida
em que ressoaram com força os oráculos de Eze- pública, culminando com o perdão outorgado
quiel; os maus pastores foram depostos pelo Se- aos seus algozes na Cruz.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      9


Eis o Monarca terníssimo, forte e insuperável Cabe ainda compreender a quem faz referên-
enviado pelo Pai a fim de nos redimir e de con- cia o Divino Salvador quando menciona os lobos.
ceder repouso aos que combatem pela própria Por lobo pode-se entender, em primeiro lugar, o
santificação: “Vinde a Mim, vós todos que estais demônio, comparado por São Pedro “ao leão que
aflitos sob o fardo, e Eu vos aliviarei” (Mt 11, 28). ruge, buscando a quem devorar” (I Pd 5, 8). Os
A esse Rei, que nos amou até o fim, o Evange- hereges ou os falsos profetas também são equipa-
lho do 4º Domingo da Páscoa nos apresenta em rados a tais feras, pois dilaceram a grei com suas
todo o seu fulgor, graça e encanto. mentiras e seduções. E a eles se somam os tira-
nos que, perseguindo de modo cruento ou psico-
II – “Eu sou o Bom Pastor” lógico os fiéis, procuram levá-los à apostasia. A
todas essas espécies de lobos Nosso Senhor opôs
São João narra no capítulo 9 de seu Evange- resistência e, para vencê-los definitivamente, en-
lho a cura do cego de nascença, episódio éclatant tregou sua vida como Cordeiro Imaculado.
e não desprovido de certas notas de ironia, que le-
varam a humilhação dos fariseus ao extremo. No
Um amor divino, que excede todos os limites
capítulo seguinte, vemos Nosso Senhor explicar a
14 
“Eu sou o Bom Pastor. Conheço as
Agindo seu auditório o porquê de tais prodígios operados minhas ovelhas, e elas Me conhecem,
em favor das ovelhas mais necessitadas. Agindo 15 
assim como o Pai Me conhece e Eu
assim, dava assim, dava ao público que O acompanhava ele-
conheço o Pai. Eu dou minha vida pe-
mentos suficientes para considerar as colossais di-
elementos ferenças existentes entre Ele, o Bom Pastor, e os las ovelhas”.
suficientes mercenários, ou seja, os membros do Sinédrio. Jesus alegra-Se em repetir um estribilho que
ressoa com toda a força e doçura da palavra divi-
para O Bom Pastor e o mercenário na: “Eu sou o Bom Pastor”. Nos versículos ante-
Naquele tempo, disse Jesus: 11 “Eu sou riores O era pelo prisma do contraste com o mer-
considerar o Bom Pastor. O Bom Pastor dá a vida cenário. Agora, porém, apresenta-Se como tal
as colossais por suas ovelhas. 12 O mercenário, que pelo fato de ter para com as ovelhas um relacio-
namento semelhante ao que existe entre Ele e o
não é pastor e não é dono das ovelhas,
diferenças vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e
Pai.
Com efeito, Nosso Senhor conhece o Pai en-
existentes foge, e o lobo as ataca e dispersa. 13 Pois quanto Verbo de Deus e enquanto Homem ver-
entre Ele e ele é apenas um mercenário e não se dadeiro. No primeiro caso, Ele é a imagem per-
importa com as ovelhas”. feita do Pai, O abarca e compreende por inteiro,
os membros amando-O com laços de caridade infinita. Con-
Ao chamar-Se Bom Pastor, Nosso Senhor Se siderado em sua humanidade, unida substancial-
do sinédrio compara aos cuidadores dos rebanhos, cuja missão mente à divindade, a afeição de Jesus Cristo pelo
consistia em encontrar pastagens vicejantes e or- Pai é a maior de toda a História. Nenhum ser hu-
ganizar a defesa contra os assaltos dos predadores. mano pôde conhecer e amar a Primeira Pessoa
Tratava-se, sem dúvida, de pessoas habituadas ao da Santíssima Trindade com tanto ardor, dedi-
sacrifício e à vigilância; todavia, nenhum deles, por cação e ternura como Ele. E foi em virtude des-
mais zeloso que fosse, estaria disposto a morrer se amor que o Filho, tendo-Se encarnado no seio
pelas ovelhas! Jesus é, portanto, um pastor nunca virginal de Maria, quis Se imolar no Calvário.
antes visto, sui generis, que leva seu amor pela grei De modo análogo, o Bom Pastor conhece suas
até o extremo de dar a vida para protegê-la. ovelhas e elas O conhecem. Mediante o dom da
O mercenário, porém, busca tão só o próprio graça, concedido à criatura racional pela Reden-
interesse. Assim, apenas intui o perigo no hori- ção, estabelece-se um imbricamento todo divino
zonte abandona suas custodiadas, que acabam entre o Filho Unigênito e seus irmãos. Ele nos
por ser mortas e dispersas. conhece à luz do amor que o Pai possui por cada

10      Arautos do Evangelho · Abril 2021


um de seus filhos sições de espírito
de adoção, e nós pode dizer que co-
O conhecemos em nhece o Bom Pas-
função de sua di- tor, pois partici-
vindade e entrega pa do amor que O
na Cruz. Tal rela- caracteriza, o qual
cionamento supera ultrapassa todos
em muito o conví- os limites concebí-
vio existente entre veis.
simples homens,
por mais perfeitos
As ovelhas
ou inteligentes que
escutarão a voz
sejam. Trata-se de
de seu Pastor
um verdadeiro co-
16 
“Tenho ain-
mércio celestial, da outras ove-
que se inicia nes- lhas que não
ta terra e chegará
são deste redil: Para
à plenitude quan-
do O virmos face a também a elas corresponder
face. devo conduzir;

Francsico Lecaros
Ora, semelhan- escutarão a mi- à infinita
te amor deve tra- nha voz, e ha- caridade do
duzir-se em obras verá um só re-
e, por esse motivo,
banho e um só
Bom Pastor,
Jesus volta a decla-
rar: “Eu dou mi- O Bom Pastor - Mosteiro Real de Brou,
Pastor”. devemos estar
nha vida pelas ove-
lhas”. Gerado des-
Bourg-en-Bresse (França) Nosso Senhor
profetiza a futura
dispostos a
de toda a eternidade pelo Pai, o Filho foi enviado conversão dos pagãos ao anunciar a existência procurar o
ao mundo a fim de resgatar os homens da escra- de outras ovelhas que, no futuro, também seriam
vidão ao pecado e da morte. O preço a pagar era conduzidas por Ele, constituindo um só rebanho bem de nosso
alto: derramar seu Sangue na Cruz, até a última sob a égide de um único Pastor.
gota. Obedientíssimo em sua humanidade, Ele Trata-se de uma grei enorme, descrita pelo
próximo até
Se fez carne e levou seu amor à mais extrema ma- Apocalipse nestes termos: “Depois disso, vi uma dar a vida
nifestação, entregando-Se por nós como vítima grande multidão que ninguém podia contar, de
de propiciação. toda nação, tribo, povo e língua: conservavam- por ele
Consideremos a afeição desmedida que o -se em pé diante do trono e diante do Cordeiro,
Bom Pastor nos tributa, compreendamos a radi- de vestes brancas e palmas na mão, e bradavam
calidade de seu sacrifício em nosso favor e perce- em alta voz: ‘A salvação é obra de nosso Deus, que
bamos com clareza que amor com amor se paga, está assentado no trono, e do Cordeiro’” (7, 9-10).
como explica São João na sua primeira epístola: Estaremos nós em meio a essa multidão? Te-
“Nisto temos conhecido o amor: Jesus deu sua remos a alegria de festejar o nosso triunfo junto
vida por nós. Também nós devemos dar a nossa a Nosso Senhor e os Bem-Aventurados? Para ob-
vida pelos nossos irmãos” (3, 16). Eis o horizon- ter tal graça – a maior entre todas! – há apenas
te que nos desvelam esses versículos: o de corres- uma condição: ouvir a voz do Pastor. Mas o que
ponder à infinita caridade de Nosso Senhor, dis- isso significa? Trata-se de prestar atenção nos
pondo-nos a procurar o bem de nosso próximo ensinamentos divinos do Redentor e pô-los em
até dar a vida por ele. Só quem possui tais dispo- prática com fidelidade e perfeição.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      11


Desse modo, nossa filiação divina atingirá Nosso Senhor prossegue anunciando sua Res-
o auge na eternidade e gozaremos de uma ale- surreição: “Dou a minha vida, para depois rece-
gria sem fim, que não pode ser expressa com nos- bê-la novamente”. Ninguém seria capaz de infli-
so pobre vocabulário humano. São João assim o gir a morte a Jesus sem o seu consentimento. Por
anuncia: “Considerai com que amor nos amou o isso, embora o sacrifício da Cruz tenha sido fruto
Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. de uma urdidura dos agentes do mal, ele jamais
E nós o somos de fato. […] Caríssimos, desde haveria se realizado se não fosse um desígnio di-
agora somos filhos de Deus, mas não se mani- vino, como revela o Salvador: “Ninguém tira a
festou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, minha vida, Eu a dou por Mim mesmo”.
quando isso se manifestar, seremos semelhan- Essa determinação voluntária de enfrentar as
tes a Deus, porquanto O veremos como Ele é. E dores da Paixão e o drama da morte por amor ao
todo aquele que n’Ele tem essa esperança torna- Pai e aos homens nos põe, uma vez mais, dian-
-se puro, como Ele é puro” (I Jo 3, 1-3). te do incomensurável afeto do Bom Pastor. ­Jesus
Vivamos com nosso olhar interior fixo na gló- faz questão de repetir as ideias numa cadência
ria do Bom Pastor no Céu. Então receberemos quase poética, a fim de nos compenetrar das ver-
a força para sermos fiéis nesta vida e, unidos à dades enunciadas. Trata-se de um mistério de
imensa grei de Cristo, cantaremos por todo o entrega e de benquerença tão alto que temos di-
sempre a glória de suas vitórias e conquistas. ficuldade de compreendê-lo e, por isso, torna-se
necessário insistir, favorecendo que o coração
O amor e a obediência do Bom Pastor humano se abra sempre mais à dileção divina.
A vida do “É por isso que o Pai Me ama, porque
17 
Entretanto, assim como a morte é voluntá-
Cordeiro dou a minha vida, para depois recebê- ria em sua aceitação, a ressurreição é igualmen-
-la novamente. 18 Ninguém tira a minha te querida: “Tenho poder de entregá-la [a vida]
Divino, vida, Eu a dou por Mim mesmo; tenho
e tenho poder de recebê-la novamente”. E assim
aconteceu na aurora radiante do Domingo de
imolado sobre poder de entregá-la e tenho poder de re- Páscoa. Na Ressurreição de Jesus está anuncia-
o altar da cebê-la novamente; esta é a ordem que da nossa própria ressurreição, caso nos determi-
recebi do meu Pai”. nemos a dar a vida por nossos irmãos, como afir-
Cruz, esteve ma São Paulo: “Se morremos com Cristo, cremos
que viveremos também com Ele” (Rm 6, 8).
toda feita de Por último, Nosso Senhor declara categori-
obediência camente: “Esta é a ordem que recebi do meu
Pai”. A vida do Cordeiro Divino, imolado sobre
o altar da Cruz, esteve toda feita de obediên-
cia. Pelo fato de conhecer o Pai como ninguém,
Ele sabia medir até que ponto o pecado O in-
juriava; de outra parte, compreendia o tesouro
extraordinário que os homens haviam perdido
com sua revolta. Pois bem, seu amor pelo Pai e
total união de vontade com Ele moveram-No a
Se entregar, a fim de reparar a glória de Deus
ultrajada e resgatar os filhos de Adão das garras
Thiago Tamura

do demônio. A obediência tornou-se a ­medida


de seu amor, e também o será para suas ove-
lhas: “Aquele que tem os meus Mandamentos e
os guarda, esse é que Me ama. E aquele que Me
Cordeiro imolado - Mosteiro de São Bento, ama será amado por meu Pai, e Eu o amarei e
São Paulo Me manifestarei a ele” (Jo 14, 21).

12      Arautos do Evangelho · Abril 2021


III – Receptáculos da
caridade infinita de Jesus
O Evangelho deste 4º Domingo da Páscoa
nos apresenta, à maneira de feéricos fogos de ar-
tifício, a bondade sem limites de Nosso Senhor
Jesus Cristo, que supera qualquer capacidade
imaginativa. No Bom Pastor vemos o suprassu-
mo da entrega e do zelo pelas ovelhas levados até
a morte, e morte de Cruz.
Contudo, uma dúvida poderia em algo em-
panar esse horizonte tão grandioso e benfaze-
jo para nossas almas: a ideia de que Nosso Se-
nhor morreu por uma imensa multidão, da qual
constituímos apenas uma ínfima parcela. Nada
mais falso. A desmentir tal objeção está a pará-
bola da ovelha perdida (cf. Lc 15, 4-6), em que
fica patente o amor de Jesus por cada um de nós
individualmente considerado. Nela o Bom Pas- A melhor
tor d­ eixa seu rebanho no aprisco e parte à pro-
maneira de

Leandro Souza
cura da ovelha tresmalhada. Quando a encontra,
carrega-a sobre os ombros até o redil e, em segui-
da, chama seus amigos para comemorar o fato de
compreender
tê-la recuperado. até que ponto
Na realidade, se é certo que Nosso Senhor
morreu por todos os homens, seria ainda mais
Celebração Eucarística na Casa Lumen Maris,
Ubatuba (SP) esse amor se
preciso afirmar que Ele deu sua vida especifica-
mente por cada um. Assim o expressa Dr. ­Plinio seremos capazes de todos os sacrifícios e de to-
dirige a cada
Corrêa de Oliveira, mestre espiritual do Autor das as renúncias para corresponder às torrentes alma em
destas linhas, numa oração composta na conclu- de sua caridade infinita!
são de um retiro espiritual: “Ó Senhor Bom Je- A melhor maneira de compreender até que particular é a
sus! Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso ponto essa afeição se dirige a cada alma em par-
olhar de misericórdia, parecendo desejar que, ticular é a contemplação do mistério da Eucaris- contemplação
de meu lado, também eu levante o meu para Vos
considerar! Sim, para Vos considerar em vossa
tia. Após a consagração das espécies do pão e do
vinho, nelas já não se encontra a substância des-
do mistério da
infinita perfeição e no insondável abismo das do- tes alimentos, mas sim o Corpo, Sangue, Alma e Eucaristia
res que padeceis… por mim. Pois bem sei que to- Divindade de Jesus, nosso Senhor. E no divino
das essas dores, Senhor, Vós as sofreríeis só por banquete Ele Se dá por inteiro, num incêndio de
mim ou por outro homem qualquer, se este fosse amor, estabelecendo uma relação exclusiva com
o único a depender de tais padecimentos para se aquele que comunga. É na recepção do Pão dos
salvar”. E São Paulo, com sua contundência ha- Anjos que se evidencia em nossas vidas o desvelo
bitual, o afirma de modo peremptório: “A minha do Bom Pastor por suas ovelhas.
vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho Acorramos à Sagrada Mesa com fé acesa e
de Deus, que me amou e Se entregou por mim” ânimo bem disposto, a fim de adorar nosso Re-
(Gal 2, 20). dentor pelo afeto incomensurável com que nos
Essa íntima convicção de ter sido objeto di- cumula. Tornar-nos-emos assim dignas ovelhas
reto e pessoal do amor redentor de Jesus deve do redil do único e verdadeiro Pastor de nossas
marcar nossos corações a fundo, a ponto de nos almas, conscientes de sermos amados por Ele,
transformar por inteiro. Assim compenetrados cada um, com uma dileção sem limites. ²

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      13


“Dai-me também a coragem,
a força e a fé”
Na pugna pela santificação Deus reserva a parte mais
importante para Si, isto é, sua graça. Mas cabe ao homem
empenhar-se para cooperar com Ele. O Altíssimo exige de nós
“a coragem, a força e a fé”.
Ney Henrique Meireles

E ra o dia 27 de julho de Antes de enterrá-lo, vasculha- contra elas, a ponto de implorar “a


1942. Um grupo de elite ram seus bolsos e encontraram um coragem, a força e a fé”.
do exército francês aventu- pequeno caderno de anotações: Quem era aquele soldado para-
rava-se nas cálidas areias simples, discreto, um tanto rude e quedista cuja alma suplicava, com
do deserto. Seu alvo? Uma base aérea gasto pelo uso. Muito superior ao palavras de fogo, aquilo que é tido
alemã no Egito. valor material daquele objeto era normalmente como causa de triste-
Em meio aos tiros de metralha- o seu conteúdo. Dentre os escritos za, cansaço e penar?
dora e ao bombardeio dos stuka lá contidos, uma oração intitulada
alemães, um dos soldados é ferido La prière du para – A Oração do Pa-
Anseio pelos
no ombro e no abdômen. Lesões raquedista, composta pelo faleci-
mais árduos combates
graves, como logo se percebe pelo do, havia de ser fonte de estímulo André Zirnheld nasceu em Pa-
profuso sangramento. Sua fisiono- para quem dedica sua vida a gran- ris, a 7 de março de 1913. Sua famí-
mia pálida e seus lábios quase des- des ideais. lia, de origem judia, provinha da Al-
corados parecem indicar que o bra- Trata-se de um poético gemido sácia, região acostumada desde há
vo militar não ficará vivo por mui- surgido do íntimo de um coração séculos às guerras e disputas terri-
to tempo. cinzelado pelo sofrimento e abra- toriais com a Alemanha. Quando
De fato, pouco depois ele mor- sado no amor a Deus. Quem o com- contava apenas nove anos de idade,
re, ali, em pleno deserto, em meio pôs estava ciente de suas más incli- a morte bateu às portas de casa, co-
à guerra. Momentos antes de en- nações, mas compenetrado da luta lhendo-lhe o pai.
tregar sua alma a Deus, disse a um
de seus companheiros, com a tran-
quilidade de alguém que soube lu- O que se passava
tar e confiar na Providência: “Eu
vou deixá-lo. Está tudo em ordem
na alma daquele
em mim”.
Devido ao turbilhão do momen-
militar, filósofo e
to, seus companheiros improvisa- filho de uma famí­lia
ram uma sepultura com as pedras
do local, encimada por uma cruz burguesa, para assim
feita com dois pedaços de madei-
ansiar pelos mais
Reprodução

ra. E guardaram cuidadosamente as


coordenadas do lugar, para depois André Zirnheld árduos combates?
recuperarem seus restos mortais.

14      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Na ausência de
tudo o que significa
a estabilidade, o
paraquedista sente
a felicidade de quem
se abandonou nas
mãos de Deus
Pixabay (pexels.com)

Paraquedista desce no
Fort Lewis perto do
Monte Rainier (EUA)

Terá o comodismo batido em al-


gum momento às portas da alma da-
Em outubro de 1938, tendo-se for- lha fosse mais difícil e arriscada. Em quele paraquedista, convidando-o a
mado em Filosofia e feito o serviço 1942, oferece-se como voluntário na fugir dessa vida de constantes sobres-
no exército, foi enviado para a Síria Primeira Companhia de Paraque- saltos que poderiam lhe ser mortais?
a fim de lecionar no Colégio da Mis- distas, conhecida como Esquadrão Terá sussurrado aos seus ouvidos o
sion Laïque Française, na qualidade Francês. “conselho” de escolher um outro des-
de militar.1 E quando, em 1939, ini- O que se passava na alma daquele tino mais seguro e estável?
ciou-se a Segunda Guerra Mundial, militar, filósofo e filho de uma famí- É certo que sim, pois os ventos de-
foi convocado ao Líbano a fim de lia burguesa, para assim ansiar pelos letérios da mediocridade nunca dei-
servir sua pátria naquele país. mais árduos combates? Obviamen- xam de soprar com força sobre os que
Em pouco tempo, os acontecimen- te, não o sabemos. Mas podemos le- trilham as vias do heroísmo. Tudo leva
tos se precipitaram. Os panzer ale- vantar algumas hipóteses úteis para a crer que, como os demais homens,
mães avançaram imparáveis em dire- refletir sobre a nossa própria exis- André sentiu também em si as duas
ção a Paris, forçando o governo fran- tência. leis de que fala São Paulo: a do espí-
cês a assinar vergonhosa rendição. rito e a da carne, que se opõem cons-
Com o armistício de 22 de junho de
Santidade, luta e cruz tantemente entre si (cf. Gal 5, 17).
1940, estabeleceu-se um regime co- A prática do paraquedismo tem A luta faz parte da herança deixa-
laboracionista que, sob a direção do algo de singular. Sem a segurança da por Adão a seus filhos de todos os
Marechal Pétain, obedecia às ordens de um solo firme sob os pés, na au- tempos: se se quer ser bom, é preciso
do governo inimigo… Para aqueles sência de tudo aquilo que significa esforçar-se por sê-lo! “O caminho da
que persistiam na intenção de comba- a estabilidade para um ser humano, perfeição passa pela cruz. Não existe
ter, não havia situação mais frustran- na incerteza que supõe lançar-se no santidade sem renúncia e sem comba-
te e desanimadora. ar a centenas de metros de altitude te espiritual” – ensina o Catecismo.2
André, no entanto, não se rende. e confiando tão somente no próprio Nesta pugna pela santificação
Quer continuar a defender seu país, paraquedas, é possível sentir a pro- Deus reserva para Si a parte mais im-
custe o que custar. Cruzando a fron- funda felicidade de quem se aban- portante: sua graça, sem a qual nada
teira do Líbano em direção à Palesti- dona nas mãos de Deus. podemos fazer. No entanto, pede do
na, à época sob controle da Inglater- André Zirnheld estava lutando homem que se empenhe em coope-
ra, consegue unir-se às tropas france- pela pátria. Um élan interior o impe- rar até onde lhe for possível com os
sas que continuavam a pelejar. lia a assumir riscos por amor ao que divinos desígnios.3
Inicialmente é colocado para lhe era superior. Por isso anelava o Ora, a tentação de levar uma vida
atuar no serviço de inteligência e perigo e aquilo que todo o mundo re- medíocre e sem esforço muitas ve-
propaganda, mas isso não o satis- cusa. Ansiava “a luta e a tormenta”, a zes se apresenta para nós. Chama-
faz. Seu anelo era lutar onde a bata- “insegurança e a inquietação”. dos a viver em harmonia com os bens

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      15


Terá o comodismo
batido às portas
da alma de André,
convidando-o a
fugir dessa vida
de constantes
sobressaltos?
Pixabay (pexels.com)

Paraquedistas no
momento exato do salto

c­ elestes e a praticar a virtude até o louvor. Mas maior admiração mere- aquilo que ninguém tinha coragem de
heroísmo, como verdadeiros filhos ce quem venceu suas mazelas e ape- pedir: a insegurança, o infortúnio, a in-
da luz, somos nessas horas atraídos gos para oferecê-los em holocausto quietação, a luta e a tormenta.
pela falsa tranquilidade e a ilusória diante do trono da Santíssima Trin- A via do heroísmo militar se en-
paz de um comodismo deletério. dade: “A oblação do justo enriquece riquece assim com a virtude do des-
o altar; é um suave odor na presença prendimento. O caminho do risco,
A mais difícil luta de do Senhor” (Eclo 35, 8). da dor e do perigo se eleva e trans-
André Zirnheld forma numa senda gloriosa pela qual
Quem quer seguir o caminho da
O heroísmo do desapego galgar um cume ainda mais alto: o
santidade precisa ter a coragem de Se André Zirnheld dominou suas heroísmo do desapego.
enfrentar os vagalhões do demônio, imperfeições com a mesma bravu-
do mundo e da carne; deve estar de- ra com que realizou suas façanhas, o
Ousado como militar e
terminado a carregar a cruz; e, so- bem venceu verdadeiramente em seu
na oração
bretudo, precisa querer inflamar-se interior. A perspectiva da morte que Se o paraquedista esteve imbuí-
do entusiasmo e a energia necessá- a guerra traz e a incerteza de cada do desse espírito enquanto efetuava
rios para avançar audaciosamente salto são grandes educadoras. Deus arriscadas missões, na possibilidade
rumo à meta almejada, transpondo as usa como valioso instrumento de a qualquer momento ser alvejado
com firmeza os obstáculos que se para estimular em nós o amor à vida pelo inimigo, operar-se-ia nele, entre
opõem à Lei divina. eterna. Terá se servido delas o nosso tiros de fuzil e explosões de granada,
Não sendo alheio a esta luta, o pa- paraquedista para purificar a alma e a obra da salvação.
raquedista André, enquanto pairava elevar-se até o Criador? A análise dos acontecimentos per-
no céu, enfrentando o risco com des- Em certo momento do salto, no mite-nos pensar que, com efeito, as-
temor, talvez sentisse sua alma ser po- imenso silêncio dos céus, Nosso Se- sim sucedeu.
derosamente atraída pelos piores ví- nhor deve ter-lhe feito ouvir a suavís- Certa vez, por exemplo, ele sal-
cios e defeitos. Teve a coragem de lan- sima voz divina, fazendo brotar no- tou com mais quatro homens sobre
çar-se de uma aeronave para atingir o vos anseios em seu espírito: “Mon um campo de aviação inimiga, con-
alvo, é verdade; acostumara-se a en- Dieu, donnez-moi la tourmente, la seguindo abater seis aviões no solo. E
frentar com galhardia a insegurança souffrance, l’ardeur au combat! – Dai- como já tinha realizado outras proe-
que o paraquedas proporciona, mas -me, meu Deus, a tormenta, o sofri- zas bélicas, destruindo linhas férreas
quiçá se sentisse covarde para lutar mento, o ardor para o combate!” essenciais para o exército alemão, foi
contra os próprios defeitos. Ao impulso dessa graça, terá apren- condecorado com a Cruz de Guerra
Alguém que, em prol de um ideal, dido a desprezar ainda mais os vãos com duas palmas em vermeil.
é capaz de vencer o próprio instinto prazeres deste mundo; a amar a dor; a Contudo, mesmo depois de ter re-
de conservação é digno de encômio e rejeitar a vida confortável; e a desejar cebido esse valioso reconhecimento,

16      Arautos do Evangelho · Abril 2021


os laços que o amarravam à terra fo-
ram perdendo valor. Seu coração co-
meçava a firmar vínculos unicamen- A Oração
te com Deus.
Arrebatado por estes anseios, ele
escreveu o famoso poema que viria a do Paraquedista
ser conhecido como a Oração do Pa-

D
raquedista, perfeitamente aplicável a
ai-me, Senhor meu Deus, o que Vos resta,
todos que desejam voar pelas sendas
do heroísmo. A santidade exige a co- aquilo que ninguém Vos pede.
ragem, a força e a fé. Obriga a voar,
mesmo sem despegar os pés no chão, Não Vos peço o repouso nem a tranquilidade,
e convida a sempre combater.
nem de alma nem de corpo. Não Vos peço a rique-
“Quem ousa, vence”, dizia o lema
do esquadrão ao qual Zirnheld per- za, nem o êxito, nem a saúde. Tantos Vos pedem is-
tencia, e o nosso paraquedista soube
fazer honra a essa máxima. Foi ousa- to, meu Deus, que já não Vos deve sobrar mais na-
do como soldado na terra e ousado
da para dar.
Dai-me, Senhor, o que Vos resta; dai-me aquilo
“O caminho
que todos recusam. Quero a insegurança e a inquie-
da perfeição
tação, quero a luta e a tormenta.
passa pela cruz.
Dai-me isto, meu Deus, definitivamente, dai-me a
Não existe
certeza de que isto será a minha parte para sempre,
santidade sem porque nem sempre terei a coragem de Vo-la pedir.
renúncia e sem Dai-me, Senhor, o que Vos resta, dai-me aqui-
combate espiritual” lo que os outros não querem, mas dai-me também a
coragem, a força e a fé.
nos desejos apresentados a Deus em
sua famosa oração. Sejamos nós tam-
bém arrojados em tudo o que tange
à glorificação do Altíssimo. Marque-
mos os nossos objetivos com valentia,
convictos de que o vigor necessário
para alcançá-los virá se suplicarmos
humildemente a ajuda divina, pela
qual seremos capazes de feitos sem
precedentes na História. ²
Reprodução

1
Organização criada em 1902 por Pier-
re Deschamps com o objetivo de difundir
pelo mundo a língua e a cultura francesas.
2
CCE 2015.
3
Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Te- Estampas contendo a oração foram amplamente
ología de la perfección cristiana. 12.ed. difundidas no exército francês
Madrid: BAC, 2008, p.343.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      17


Queda de edifícios
simbólicos:
Library of the Congress

prenúncio de novas eras?


Regra da História ou misteriosa coincidência? O certo é
que a queda e ruína de edifícios ou cidades especialmente
simbólicos costuma ser eloquente sinal de mudanças radicais
no rumo dos acontecimentos.
João Paulo de Oliveira Bueno

H
á milênios se constrói. A saúde ou mesmo prática de esportes, ao Senhor e a miserável autossufi-
bem dizer, não se pode os edifícios são indispensáveis e não ciência humana?
precisar a origem da ar- se compreende a vida sem eles. Mais adiante, o mesmo Deus sepul-
quitetura, pois os edifí- Mas, também nessa matéria, há tará, sob o fogo e o enxofre, as cidades
cios sempre formaram parte essencial algo que transcende o campo prático. de Sodoma e Gomorra (cf. Gn 19, 24-
na vida do homem. 25), por causa de suas abominações,
Dos mais elementares e rústicos
Caráter simbólico dos edifícios tornando-as símbolo do pecado que
monumentos de povos pré-históricos No Gênesis, alguns capítulos praticavam para os séculos futuros.
às colossais pirâmides egípcias – túmu- após a narração do dilúvio, vemos Mas, em sentido contrário, as edi-
los reais que abrigavam as múmias dos como os homens se organizaram a ficações também podem refletir al-
faraós1 –, dos suntuosos templos que se fim de levar a cabo um imenso pro- tas realidades. Não é sem motivo que
elevavam sobre as acrópoles gregas às jeto: “Vamos, façamos para nós uma o Apóstolo utiliza a imagem de um
imensas catedrais da Europa medie- cidade e uma torre cujo cimo atin- templo, ao tratar dos membros do
val, a arquitetura talvez seja a arte mais ja os céus” (11, 4). Esta iniciativa de- Corpo Místico de Cristo: “Sois con-
expressiva das aptidões, conhecimen- sagradou ao Altíssimo, por estar ba- cidadãos dos Santos e membros da
tos e necessidades de um povo. seada na vanglória e na rejeição a família de Deus, edificados sobre
Para moradia, culto religioso, tra- Ele. E não é verdade que Babel pas- o fundamento dos Apóstolos e dos
balhos ou estudos; para o cuidado da sou a representar a desobediência profetas, tendo por pedra angular

18      Arautos do Evangelho · Abril 2021


o próprio Cristo Jesus. É n’Ele que ­ arece que a própria corrente da His-
p nele albergada. Impressiona, também,
todo edifício, harmonicamente dis- tória muda de sentido”.4 o fato de ter acontecido a derrubada
posto, se levanta até formar um tem- Tanto para regiões pequenas ou desse incomparável Templo no mesmo
plo santo no Senhor” (Ef 2, 19-21). grandes civilizações, essas datas exis- dia e mês em que os babilônios o ha-
E São João tomará no Apocalip- tem e muitas delas são sublinhadas viam incendiado outrora.6
se a figura de uma “nova Jerusalém”, pela queda e ruína de edifícios ou ci- Símbolo terrível da desgraça que
para pôr em termos sua visão toda dades inteiras, anunciando mudan- se abateu sobre Israel, a perda do
mística e cercada de mistérios: “Vi, ças radicais nos acontecimentos. A Templo e a tomada de Jerusalém fo-
então, um novo céu e uma nova terra tomada de Jerusalém em 70 d.C. ilus- ram um marco na história dos he-
[…]. Eu vi descer do céu, de junto de tra bem essa realidade. breus. Para eles, a vida já não seria
Deus, a Cidade Santa, a nova Jerusa- Na Sião de outrora, o Templo era o mais a mesma: “Da resistência judai-
lém, como uma esposa ornada para o orgulho da nação hebraica. Pois bem, ca restaram apenas alguns grupos in-
esposo” (Ap 21, 1-2). ele desmoronou por duas vezes. A pri- significantes, ocultos entre os escom-
Poucas cidades no mundo se torna- meira delas ocorreu quando a cidade bros, que sucumbiram nos anos se-
riam tão representativas como Jeru- foi conquistada por Nabucodonosor, guintes. A Judeia tornou-se uma pro-
salém. Ela foi símbolo da unidade do rei da Babilônia (cf. Jr 42-43). O edi- víncia romana, separada da Síria e
povo eleito, que por ela sempre mani- fício erigido por Salomão foi recons- ocupada por uma legião aquartelada
festou grande apreço: “Se eu me es- truído entre os reinados de Ciro e Da- em Jerusalém. Desapareceram o Si-
quecer de ti, ó Jerusalém, que minha rio (cf. Es 6), sendo consagrado por nédrio e o sumo-sacerdócio”.7
mão direita se paralise! Que minha lín- volta de 515 a.C. Em 70 d.C., porém,
gua se me pegue ao palato, se eu não passou pelo episódio trágico que cul-
Queda de Bizâncio,
me lembrar de ti, se não puser Jerusa- minaria com sua definitiva ruína.
fim da Idade Média
lém acima de todas as minhas alegrias” Na Páscoa daquele ano, Roma re- Muitos séculos depois outra im-
(Sl 136, 5-6); e depois passou a repre- solveu pôr ponto final às sucessivas re- portante cidade sucumbiria. Virava-
sentar, entre outros atributos, a unida- voltas dos judeus. Assim, o Impera- -se mais uma página da História.
de da própria Igreja Católica.2 dor Vespasiano enviou seu filho Tito
Certas construções adquirem, por- a Jerusalém com todas as hostes e má-
tanto, um caráter verdadeiramente quinas necessárias: “[…] cinco meses E São João tomará
simbólico segundo as circunstâncias mais tarde, após indescritíveis cenas
em que são erigidas, utilizadas ou des- de horror, o cerco chegou ao fim. Je- no Apocalipse a
truídas. rusalém estava em ruínas, milhares
de cadáveres rolavam sob as patas dos figura de uma “nova
Uma mudança radical no
panorama de Israel
cavaleiros núbios a serviço de Roma”.5
E o Templo? Fora incendiado, a
Jerusalém”, para
Para o conhecido historiador Da- contragosto do próprio Tito, que ha- pôr em termos sua
niel-Rops, “a evolução das sociedades via ordenado a sua preservação.
humanas não conhece cortes bruscos Afirma o historiador hebreu Flávio visão toda mística e
e, do passado para o futuro, as mu- Josefo, com uma pitada de exagero pa-
danças se fazem mais por transfor- triótico, ter-se tratado da destruição da
cercada de mistérios
mação do que por mutação repenti- obra mais esplêndida que existira so-
Embaixo, Jerusalém vista do Monte das
na”.3 Isso, entretanto, não impede a bre o orbe, seja pela estrutura, magni- Oliveiras; na página anterior, as Torres
existência de datas fatídicas, “em que ficência e riqueza, seja pela santidade Gêmeas pouco antes de colapsarem
Gustavo Kralj

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      19


Corria o ano de 1452. As tentati- Haverá outra tomada que, como ça, que tomba estrepitosamente. O
vas de reunificação da Igreja, após o essas, seja considerada um marco pátio é invadido e os edifícios postos
Grande Cisma do Oriente de 1054, simbólico? a saque. A multidão, ébria de sangue,
ainda resultavam inúteis. “É melhor corre aos Paços do Conselho. O pre-
que reine em Constantinopla o tur-
A pusilanimidade derruba sidente do município, Flesselles, páli-
bante dos turcos do que a mitra dos
uma fortaleza do, vem ao seu encontro. Ainda não
latinos”,8 exclamavam publicamente, Voltemo-nos para o Reino de tinha dado três passos, quando, por
sob os aplausos da multidão, altos dig- França, a 14 de julho de 1789. sua vez, é morto e degolado.10
nitários de Bizâncio. E assim se fez. Se um literato tivesse ousado ima- Aquela antiga fortaleza medie-
Um ano depois da mencionada ginar o acontecido naquele dia em val fora transformada numa prisão
declaração, as tropas de Maomé II Paris, correria o sério risco de ser do governo que contava à época com
pilhavam a grande cidade. Na Ba- taxado de louco e conspirador. Mas apenas sete prisioneiros: quatro falsi-
sílica de Santa Sofia, “os milhares não se tratava de ficção. A própria ficadores, um jovem preso a pedido
de cristãos que ali se haviam refu- História se encarregou de pintar com da família, e dois loucos. Ao toma-
giado para rezar foram todos deca- as tintas da mais pura realidade uma rem a Bastilha os revolucionários es-
pitados. Mais de cinquenta mil gre- trágica sucessão de horrores. tavam em busca do armamento e da
gos de ambos os sexos e de todas as A multidão armada aflui junto à munição lá depositados. A fortaleza
idades foram vendidos como escra- fortaleza da Bastilha. Disparando in- de si não tinha maior transcendên-
vos. […] Inestimáveis tesouros da cessantemente e buscando incendiar cia; sua conquista, porém, foi exalta-
arte e da inteligência foram saquea- uma das torres, consegue, por fim, da pelos propagandistas, enaltecida
dos e estupidamente destruídos: es- quebrar as amarras da ponte levadi- pela Assembleia, aprovada pela corte
tátuas, colunas raras, ornamentos e legitimada por Luís XVI. Tornou-
religiosos, manuscritos e evangeliá- -se o sinal da pusilanimidade real e a
rios […]. Para a maior parte “prova de que a monarquia renuncia-
“Por fim, em Santa Sofia, cujas va aos seus próprios princípios”.11
paredes tinham sido caiadas com dos historiadores, os A invasão da Bastilha se transfor-
gesso para obliterar as figuras odia-
das pelo Alcorão, o vencedor fez a
acontecimentos de mou num dos maiores emblemas da
Revolução Francesa. Por quê? O povo
sua entrada solene, recitou as pre- 1453 em Bizâncio se dirigiu para lá procurando armas, é
ces muçulmanas e, com uma pala- verdade. Mas o gesto possuía uma di-
vra, mandou pôr fim ao massacre. delimitaram o mensão mais profunda: o castelo era
Encerravam-se mais de mil anos de símbolo do regime com o qual queriam
grandeza cristã”.9
fim do período da romper. Assim, sua ruína representou
Para a maior parte dos historia- Idade Média o desmoronamento da monarquia, que
dores, os acontecimentos de 1453 em fora até então, nesta terra, “o supremo
Bizâncio delimitaram o fim do perío- Embaixo, conquista de Jerusalém - recurso contra a maldade dos homens
do da Idade Média. Museu de Belas Artes, Gante (Bélgica) e a hostilidade das coisas”.12

20      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Novo ponto de referência
para o mundo
Podem-se ainda mencionar ou-
tros fatos eloquentes, como o bom-
bardeio das cidades europeias na Pri-
meira Guerra Mundial. Tal confli-
to reduziu a destroços diversas par-
tes da Europa – outrora o “centro do
mundo” – enquanto que, do outro
lado do Atlântico, novos ares de pro-
gresso se faziam sentir.
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira,
tendo vivido essas transformações do
panorama mundial, escreverá: “Dian-
te do esplendor da jovem e gigantes-
ca nação norte-americana, a Europa,
bela, conservadora e respeitável, mas
esmagada pela guerra, parecia apo-

Reprodução
sentada pelos fatos e impossibilitada
de resolver seus problemas, a não ser
na medida em que o colosso a ajudas-
se. Continente nimbado pelas glórias Tomada da Bastilha, por Jean-Pierre Houël
do passado, é verdade, mas incapaz de O maior atentado
Biblioteca Nacional da França (Paris)
dominar o presente, e, sobretudo, de terrorista da História
produzir o futuro. A terra das coisas “Um dia de trevas na história da
belas e dos contos de fada, que não ti- humanidade”, assim foi qualificado, Ora, a invasão da
nham mais razão de ser, era substituí- pelo Sumo Pontífice, aquele 11 de se-
da por uma nova potência. tembro de 2001.14 Bastilha possuía
“A opinião pública mundial teve
subitamente a noção de que seu pró-
Às 8h45, horário de Nova York,
uma aeronave sequestrada por
uma dimensão mais
prio eixo se deslocara: a Europa fora terroristas colidia contra um dos profunda: o castelo
outrora o centro das atenções, mas, maiores edifícios do mundo. De-
agora, o mundo passava a apresentar zoito minutos mais tarde, o prédio era símbolo do
um outro ponto de referência”.13 contíguo ao anterior era golpeado
Mas este novo modelo sofreria por outro avião. Quando o relógio
regime com o qual
uma misteriosa afronta ao despontar marcava 10h30, as torres gêmeas do queriam romper
do terceiro milênio. World Trade Center – edifícios de
Reprodução

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      21


GodefroyParis (CC by-sa 4.0)
Francisco Lecaros

À esquerda, Torre de Babel, por Lucas van


cento e dez andares –, estavam no Valckenborch - Museu do Louvre, Paris; à
ma com muita precisão: “As crises
chão, reduzidas a escombros de fer- direita, incêndio em Notre-Dame de Paris que abalam as sociedades humanas
ro e concreto. em 15/4/2019 começam sempre por serem crises
Passados cerca de quarenta minu- espirituais: os acontecimentos polí-
tos da primeira explosão, um tercei- ticos e as convulsões sociais não fa-
ro avião atingiu o Pentágono, sede O mundo se fechou zem mais do que traduzir nos fatos
do Departamento de Defesa Ameri- um desequilíbrio cuja causa é mais
cano; e às 11h29 um quarto caiu em para o Altíssimo profunda”.18
Pittsburgh (Pensilvânia). Os atenta-
dos causaram milhares de vítimas.15
e parece colher Ora, a “causa profunda” de even-
tos como esse não estaria relacio-
Ataque impiedoso, condenado os frutos da nada intimamente àquele desprezo
pela totalidade das autoridades in- para com Deus e aos errados crité-
ternacionais, não deixou de conter desordem que rios humanos, de que nos falava João
seu aspecto altamente simbólico. Paulo II em sua visita a Fátima?19
Para o então chanceler da Alema-
semeou no pecado O mundo se fechou para o Altís-
nha, Gehrard Schroeder, os atenta- e na iniquidade simo e parece colher os frutos da de-
dos foram uma “declaração de guer- sordem que semeou no pecado e na
ra a todo o mundo civilizado”.16 Um iniquidade. Aliás, foi bem a este pro-
articulista destacaria: “[Inicia-se] ções, logo nos albores de um novo sé- pósito que Nossa Senhora adver-
uma nova página da História […] O culo, de um novo milênio? tiu a humanidade, através dos pas-
veredicto é peremptório: o mundo torinhos, quando pedia uma ur-
entra em novas e abomináveis pai-
O destino de uma civilização gente conversão dos corações. Mas
sagens”.17
abandonada ao pecado nem esse aviso maternal encontrou
Deixando à parte as questões po- Claro está que em um mundo ba- eco nas almas. Ora, que resultados
líticas e econômicas que envolvem o seado na moral e na Lei de Deus, ja- se poderiam obter dessa rejeição à
fato, não significará algo de muito sé- mais haveria espaço para atrocida- ­vontade de Deus e de Nossa Senho-
rio um acontecimento dessas propor- des desse gênero. Daniel-Rops afir- ra, senão os piores desastres?

1
Afirmavam os egípcios que “a 2
Cf. BÍBLIA DE JERUSA- 5
DANIEL-ROPS, Henri. His- 7
DANIEL-ROPS, História da
casa era um lugar de passa- LÉM. São Paulo: Paulus, tória da Igreja de Cristo. A Igre- Igreja de Cristo. A Igreja dos
gem, mas a tumba, uma man- 2016, p.998. ja dos Apóstolos e dos már- Apóstolos e dos mártires, op.
são eterna” (cf. AYERVE, 3
DANIEL-ROPS, Henri. Histó- tires. São Paulo: Quadrante, cit., p.52-53.
CMF, Francisco Naval. Curso ria da Igreja de Cristo. A Igreja 1988, p.51. 8
DANIEL-ROPS, História da
Breve de Arqueología y Bellas da Renascença e da Reforma. 6
Cf. JOSEFO, Flávio. História Igreja de Cristo. A Igreja da Re-
Artes. 8.ed. Madrid: Coculsa, São Paulo: Quadrante, 1996, dos Hebreus. São Paulo: Amé- nascença e da Reforma, op.
1950, p.106.). v.I, p.104.
ricas, 1963, v.VIII, p.295. cit., p.92.
4
Idem, ibidem.

22      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Quiçá os terríveis acontecimentos
que abriram o séc. XXI, há exatos
vinte anos, sejam símbolo eloquen-
te do destino de uma civilização que
quis chafurdar no pecado. Talvez as
forças do inferno tenham se regozija-
do com a queda das Torres Gêmeas,
prevendo o advento de uma era na
qual avançariam, como nunca, para
consumar a perdição de um mundo
que pretendem já dominar.
Aliás, rememorando aquelas ce-
nas de horror, não podemos evitar
de evocar as chamas inclementes que
consumiram tantas igrejas ao redor
do mundo nos últimos anos, em es-
pecial a incomparável Catedral de
Notre-Dame de Paris.
De qualquer forma, essas ímpias
labaredas jamais poderão ser penhor
do triunfo dos infernos. Quando os
demônios menos esperarem, o pró-
prio Jesus fará ruir, com um único
sopro (cf. II Ts 2, 8), a “Babel” cons-
truída pelo demônio e seus sequazes.
Então veremos em que mãos estão
as autênticas “rédeas” dos aconteci-
mentos! ²

“Os acontecimentos
políticos e as
convulsões sociais
não fazem mais do
Library of the Congress
que traduzir nos fatos
um desequilíbrio cuja
causa é mais profunda”

9
Idem, p.96. São Paulo: Retornarei, 2010, XII, N.39411 (12 set., 2001), história. In: O Estado de São
v.II, p.63. p.A1; A4. Paulo, op. cit., p.A11.
10
Cf. GAXOTTE, Pierre. A Re-
volução Francesa. Porto: Tava- 14
SÃO JOÃO PAULO II. Audi- 16
Cf. MUNDO CONDENA E 18
Cf. DANIEL-ROPS, A Igreja
res Martins, 1945, p.92-93. ência geral, 12/9/2001. PEDE UNIÃO CONTRA O da Renascença e da Reforma,
TERROR. In: O Estado de op. cit., p.106.
11
Idem, p.94. 15
Cf. EDITORIAL. Um país
São Paulo, op. cit., p.A14.
em estado de choque. In: O 19
SÃO JOÃO PAULO II.
12
Idem, ibidem.
Estado de São Paulo. Ano CX- 17
LAPOUGE, Gilles. Violên- Homilia na Missa em
13
CORRÊA DE OLIVEIRA, cia, sem precedentes, abala a Fátima,13/5/1982.
Plinio. Notas Autobiográficas.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      23


Sublime intimidade
entre o Menino e a Mãe

Ao comentar os sentimentos que a contemplação do afresco


de Nossa Senhora do Bom Conselho desperta na sua alma,
Dr. Plinio descreve as encantadoras profundidades do
convívio entre o Menino Jesus e sua Mãe Santíssima.
Plinio Corrêa de Oliveira

N ossa Senhora do Bom


Conselho se apresen-
ta a nós como uma in-
vocação que, à primeira
vista, talvez não pareça ter muita re-
Filho, quer bem àquele Filho; Nosso
Senhor é Filho, e Filho daquela Mãe!
A união de alma entre Mãe e Fi-
lho explica a tranquilidade e qua-
se imobilidade daquele afeto. Este
no com todas as feições de criança
daquela idade, sem nada de comum
com um “hominho” precoce, mas
com uma profundeza de sentimen-
to e pensamento, que nem sequer um
lação com o afresco. Este representa chegou tão ao fundo, que Eles não homem feito tem. E isso corresponde
uma Rainha de um pequeno país bal- têm nada para Se dizer. Estão quie- inteiramente à Doutrina Católica so-
cânico, o que se nota na figura, nos or- tos, apenas querendo-Se bem, como bre o Homem-Deus.
namentos e, mais ainda, no tipo mar- quem nota que, de parte a parte, o A unidade das naturezas divina e
cadamente oriental, com os olhos um conhecimento e a benquerença che- humana na mesma Pessoa traz como
pouco em amêndoa, e voltados para garam até o fim. Não há mais o que consequência que aquele Menino, da-
baixo. considerar; apenas fruir a bem-aven- quela idade, concebido sem pecado
Ela está com o Menino nos braços turada delícia daquele mútuo enten- original, sem ter passado, portanto,
numa atitude de muita intimidade, dimento e mútuo estar juntos! por nenhuma das debilidades e das –
dando a impressão de ter esquecido Nesse ponto, o artista foi mui- digo isso no sentido etimológico lati-
de que Ela é Rainha e Ele, Rei! Não to delicado porque pintou o Meni- no – imbecilidades e fraquezas da in-
significa que hajam pedido demissão fância, tenha tal perfeição no sentir.
ou abdicado da realeza, mas, no mo- Ele está consciente de quem é aque-
mento, aquilo que está no primeiro A união la Mãe, das profundezas de alma que
plano da atenção e do modo de sentir, Lhe oferece, e entra tão a fundo nes-
é o fato de Ela ser Mãe e Ele, Filho! de alma entre sas profundezas que Se põe na mão

Profundeza de sentimento Mãe e Filho d’Ela como uma criança!


Há aqui um sublime parado-
e de pensamento
explica a xo: aquele Menino é em tudo uma
Uma das coisas que mais me atrai criança, exceto no entender e que-
no quadro é a forma com que repre- tranquilidade e rer as coisas sublimes, extraordiná-
senta a profunda intimidade de re- rias. Não me espanta, portanto, que
lacionamento entre ambos, fazen-
quase imobilidade quisesse depender d’Ela para co-
do sentir até o fundo da alma d’Eles: daquele afeto brir as necessidades mais modestas
Nossa Senhora é Mãe, e Mãe daquele e corriqueiras, porque é assim que

24      Arautos do Evangelho · Abril 2021


n’Ele, ou em torno d’Ele, sem ser ime-
diatamente notado por sua Mãe San-
tíssima. Exerce uma dulcíssima vigi-
lância materna, mas não deixa trans-
parecer a menor preocupação de que
O tirem dos braços d’Ela. Sabe pos-
suir um tesouro que não se divide ao
ser compartido: ao entregá-Lo para
outro, entende que Ele permanece in-
teiramente com quem O deu e com
quem O recebeu.
No quadro, a posição do rosto de
Nossa Senhora foi calculada com cui-
dado para, sem propriamente mos-
trar o Menino, nada ocultar da sua
face. Ele fica em primeiro plano en-
quanto Ela fica no segundo.
Pelo respeito e pela seriedade tran-
quila, distendida e afetuosa com que
O carrega, vê-se ter Ela inteira noção
de estar portando o Filho de Deus.
Adora-O com o mais profundo res-
peito mas sente-se, ao mesmo tempo,
penetrada pelo afeto d’Aquele a quem
respeita, ao ponto de sentir-Se desem-
baraçada para, sem nenhuma vacila-
Tiago K. Galvão

ção ou acanhamento, dar ordens ao


seu próprio Deus.
Cabe a Nossa Senhora deliberar
quando deitá-Lo ou tirá-Lo do berço,
Mãe do Bom Conselho – Santuário de Genazzano, Itália decidir se chegou ou não o momento
do repouso. Mesmo sabendo que Ela
é nada, ou como que nada, diante do
se ­compagina a condição de crian- Criador não teme dizer: “Meu Deus,
ça no Menino-Deus. Pelo respeito e pela chegou a hora de descansar!” E Ele,
cuja natureza humana está hipostati-
Quadro de um extraordinário seriedade tranquila camente ligada à Segunda Pessoa da
voo sobrenatural
O afresco exprime isto admiravel-
e afetuosa com que Santíssima Trindade, fecha os olhos e
dorme, porque sua Mãe mandou.
mente. É uma obra de arte media- O carrega, vê-se ter Desdobramentos da Encarnação
na, mas com um voo sobrenatural ex-
traordinário! Dá-nos bem a noção da Ela inteira noção As reflexões acima se inserem no
relação entre Eles. “et Verbum caro factum est, et habitavit
Nossa Senhora carrega o Meni-
de estar portando in nobis” do prólogo do Evangelho de
no como alguém que porta um tesou- o Filho de Deus São João: “O Verbo Se fez carne, e ha-
ro de valor infinito, mas é também bitou entre nós” (Jo 1, 14). Todo esse
uma pessoa muito generosa. Ao ima- celeste turbilhão de relações vertigi-
ginarmos um indivíduo levando um perto e não amole, porque é meu!” nosas, admiráveis e dulcíssimas são
tesouro, representamo-lo agarrado Mas Ela não faz isto. desdobramentos do Mistério da En-
a ele, voltado a impedir que alguém Nossa Senhora segura seu Divino carnação.
o roube e com atitude de quem diz: Filho com muito cuidado e delicade- Não conhecemos detalhes do con-
“Isto é meu, não é seu! Não chegue za, de maneira tal que nada se passa vívio entre Mãe e Filho, mas pode ter

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      25


acontecido, por exemplo, que, com um cia e delicadeza devia transparecer no -se até quase o infinito. Em certo mo-
pouco mais de idade, o Menino Jesus Menino Jesus enquanto dormia! Mas mento, Nosso Senhor A vê chorar. A
tenha querido brincar com uma bola, às vezes, enquanto sua Mãe O con- Santíssima Trindade, da qual Ele faz
mas não tenha podido pedi-la por não templava, via transparecer n’Ele de parte, está Lhe dando esclarecimen-
saber ainda falar. Deus queria brincar! fugidio, de repente, não um menino tos sobre sua Paixão e Morte. Nota a
E cabia a sua Mãe Santíssima adivi- incomum, mas sim o próprio Deus! docilidade de sua Mãe e, ao mesmo,
nhar, por amor, o que Ele desejava. Sabemos, pelo Gênesis, que antes a espada que transpassa sua alma.
Podemos imaginar Nossa Senho- de repousar Deus “contemplou toda Deleita-Se em considerar que, pelo
ra e São José confabulando sobre o ta- a sua obra e viu que tudo era mui- amor que Ela tem aos homens, tam-
manho, o diâmetro dessa bola, sobre to bom” (1, 31). Mas nada do que ti- bém aceita e quer sua morte. E no dia
a matéria de que seria feita, pensan- nha feito era tão sublime como Nos- seguinte, quando Ela se levanta, per-
do como torná-la oca, para não ficar sa Senhora. Ao vê-La, o Menino Je- cebe em sua fisionomia um sulco de
muito pesada na mãozinha d’Ele, etc. sus, enquanto Criador, confabulava dor que Lhe outorga uma majestade,
Mas imaginando, ao mesmo tempo, – por assim dizer – com sua nature- gravidade e interioridade verdadeira-
em cima dessa bola uma cruz como as za humana e pensava: “Como é linda mente indescritíveis.
que podemos ver nos orbes presentes esta Mãe que Eu fiz e da qual nasci! Podemos imaginar também Nossa
nas mãos de incontáveis reis da terra! Que alma incomparável!” Senhora tendo conhecimento proféti-
Podemos imaginar também Ma- Estando entreaberta a porta do co dos milagres, ensinamentos e pará-
ria Santíssima prestando atenção para quarto, via-A rezando iluminada por bolas do seu Divino Filho. Ou vendo
descobrir de que comida gostava mais, uma candeia de chama indecisa. Nota a figura d’Ele que caminha rumo ao
ou rezando a Ele para saber qual refei- que reza para Ele, mas não entra no alto de um monte. A Paixão, a Cruz,
ção desejava naquele dia. E o Menino quarto. Percebe que
Jesus, ainda com dificuldade para fa- está orando também
lar, balbuciava uma palavra qualquer para o Padre Eter-
cujo sentido era misteriosamente per- no e para o Divi-
cebido por Ela: “Não sabeis, minha no Espírito, e, como
Mãe, que Eu vim à terra para sofrer?” Segunda Pessoa da
Ninguém pode calcular o que fo- Santíssima Trinda-
ram as relações entre Nossa Senhora e de, toma conheci-
seu Divino Filho durante sua infância, mento de suas pre-
nem os mistérios e sublimidades de um ces. Entretanto, che-
Deus ainda em idade de brincar! Diz a gou a hora de cha-
Escritura que, antes de todos os sécu- má-La para que
los, a Sabedoria Eterna também brin- tome alguma provi-
cava sobre o globo da terra (cf. Pr 8, 27- dência concreta, e
31). Mas entre isso e uma bolinha feita grita: “Mamãe!”
na oficina de Nazaré… Que diferença! Situações como
essa multiplicaram-
A Mãe que criei
e da qual nasci
Ora, se Nosso Se- O Menino Jesus
nhor se transfigurou
para três Apósto- balbuciava, e Ela
los no alto do Mon-
te Tabor, quantas
percebia o sentido...
Cabia a sua
Juan Carlos Villagomez

vezes não terá se


transfigurado para
Ela? E em que mo- Mãe Santíssima
mentos? Durante o
sono, talvez…
adivinhar, por amor,
Quanto poder, o que Ele desejava
majestade, inocên- Pintura da escola cusquenha - Coleção privada, São Paulo

26      Arautos do Evangelho · Abril 2021


João S. Clá Dias

Dr. Plinio durante sua peregrinação ao Santuário de Genazzano, em setembro de 1988

a Morte e a glória da Ressurreição… mas vezes rezar sob esta invocação,


Quem poderia imaginar tudo isso Aconteceu nesse que eu notava ser excelente, mas não
adequadamente? Ninguém! me dizia grande coisa, porque a vida
momento algo como de piedade é assim: às vezes algo ex-
Quadro do Colégio São Luís
No Colégio São Luís havia um
quando um pequeno celente não nos fala muito à alma.
Essa distância se manteve até eu ler
quadro da Mãe do Bom Conse- facho de luz se torna um livro sobre Nossa Senhora de Ge-
lho colocado no retábulo do altar nazzano, pouco antes de sofrer aquela
da modesta capela, uma sala trans- imenso: daí surgiu crise de diabetes e suceder tudo quan-
formada em oratório na qual entrei to sucedeu.1 Aconteceu nesse mo-
inúmeras vezes.
uma devoção que mento algo como quando um facho de
Para celebrar o mês de maio, por marcou minha vida luz, nascido de uma lâmpada peque-
exemplo, todos os alunos entravam na, mas forte, torna-se imenso. Dessa
diariamente cantando na capela em primeira visualização surgiu uma de-
honra de Nossa Senhora. Nessas oca- sus. Vejo-A sob outra invocação, ves- voção que marcou minha vida. ²
siões, naturalmente eu olhava para a tida com outra roupagem. Mas é A
imagem e minha atenção era solici- mesma! Vou rezar a Ela, porque já Extraído, com adaptações, de:
tada tanto pela Mãe de Deus como experimentei como é bondosa co- Dr. Plinio. São Paulo. Ano XVIII.
pelo Menino Jesus, mas tomados em migo e sem isso eu não me arranjo. N.205 (Abr., 2015); p.22-25.
tese, conforme a Doutrina Católica Com a misericórdia d’Ela, porém, al-
Os considera e conforme a mente de canço tudo. Eis mais uma oportuni-
uma criança pode alcançar. dade de me unir a Ela.”
1
Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O
dom de sabedoria na mente, vida e obra de
Então pensava: “Aqui está a Mãe Eu sabia que o título daquele qua-
Plinio Corrêa de Oliveira. Città del Vati-
de Deus, Maria Santíssima, que me dro era Mater Boni Consilii, portanto, cano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ,
deu aquela graça no Coração de Je- Mãe do Bom Conselho. Tentei algu- 2016, v.IV, p.237-332.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      27


São Francisco de Paula

Para ele,
tudo era possível
Fr
a
nc
is
co
Le
ca
ro
s

Uma vocação peculiar surge em meio à decadência de costumes do


século XV: um solitário que reúne multidões, um penitente que vive
por vinte e quatro anos nas cortes, um profeta e taumaturgo que quis
chamar-se “Mínimo”.
Daniel Vinicius Almeida da Paixão

U m curioso evento agitava Poverello realizava milagres, implo- teza de ter sido atendida; a partir de
naquela noite a cidade de raram a São Francisco que lhes desse ­então a criança foi se curando, res-
Paola. Os habitantes, re- um filho. Pouco tempo após o regres- tando-lhe apenas uma pequena cica-
unidos em torno da casa so a Paola, ocorreu o enigmático por- triz como testemunha do fato, até o
de um camponês, observavam preo- tento acima narrado. fim da vida.
cupados algo que ali sucedia. Giaco- Por fim, no dia 27 de março de
mo, o proprietário da residência, per- 1416, o lar de Giacomo tornou-se no-
Um peculiar modo de viver
cebendo o tumulto formado à sua vamente a atração da cidade: para lá Quando Francisco contava aproxi-
porta, saiu para averiguar o que esta- confluíam amigos e parentes a fim de madamente treze anos, Vienna julgou
va acontecendo e constatou, estupefa- conhecer o recém-nascido, a quem que ele já estava em condições de ser
to, qual era o objeto de tanta atração: foi dado o nome de Francisco, em entregue ao serviço de Deus, e apre-
uma misteriosa língua de fogo, acom- honra ao Santo de Assis. Giacomo sentou-o no Convento franciscano de
panhada de angélicas melodias, a pai- e Vienna, lembrando-se daquele fe- San Marco Argentano. Muito adian-
rar sobre o seu modesto casebre. Nin- nômeno, entenderam que Deus lhes tado na prática de orações e penitên-
guém sabia o que significava, mas pa- concedera um herdeiro incomum. cias devido à formação recebida dos
recia ser um presságio. Tudo ficaria Para confirmar a predileção que piedosos pais, o menino encontraria
claro nove meses mais tarde. depositara no menino, a Providência junto aos frades menores os primeiros
quis assinalá-lo com a glória do so- vislumbres de sua extraordinária vo-
A aurora de uma grande frimento. Ainda bem novo, foi aco- cação. Os religiosos imaginavam que
vocação metido por um abscesso no olho que ele seria um excelente membro da Or-
Quinze anos tinham se passado ameaçava deixá-lo cego. Mais uma dem; entretanto, Deus o chamava a
desde que Giacomo D’Alessio des- vez, a piedosa mãe acorreu aos pés lutar em outras frentes.
posara Vienna di Fuscaldo; a Pro- do Chagado de Assis e prometeu Concluído seu ano de oblato, Fran-
vidência, porém, exigia-lhes a dura oferecer o filho como oblato duran- cisco retornou ao lar de sua infância,
prova de não possuírem descendên- te um ano, assim que tivesse ele con- mas pouco tempo depois partiu nova-
cia. O casal julgou então que devia dições para isto. Misteriosamente, mente, acompanhado dos pais, para
fazer violência ao Céu. Peregrinos no regresso a Paola sentiu-se tomada uma longa peregrinação cujo itinerá-
em Assis, onde havia dois séculos o por uma grande tranquilidade e cer- rio passaria por Roma, Assis, Loreto,

28      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Monteluco e Montecassino. Foi nessa -lhe audiência, a qual foi prontamen- perto e de longa data São Francisco e
viagem que ele discerniu, afinal, sua te concedida. Comunicou então ao seus confrades, a fim de ouvir o que ti-
peculiar missão. Regressaria a Paola, monge que o modo de viver por ele nham a dizer. Os testemunhos resul-
mas não à casa paterna; sua morada imposto aos seus discípulos “não era taram numa abundante documenta-
seriam as grutas da redondeza, onde compatível com a debilidade da nos- ção a favor dos religiosos, a qual sa-
viveria como ermitão. sa natureza” e, portanto, estava “de- tisfez ao Pontífice, desfazendo suas
Revestido de saco e cingido por saprovado pelas pessoas mais pruden- preocupações. Contudo, tendo faleci-
uma rude corda, o jovem anacoreta tes”1 da época. Concluiu sua exposi- do Paulo II alguns anos depois, coube
iniciou assim o período de retiro no ção afirmando que deveria modificar ao seu sucessor, Sisto IV, dar a apro-
qual Deus lhe forjaria a alma para as o proceder dos seus seguidores. Fran- vação à congregação, em 1474.
lutas que sobreviriam no futuro. Seu cisco, silencioso, limitou-se a dirigir- Anos mais tarde, o santo fundador
exemplo não tardou em atrair ou- -se ao braseiro junto ao qual ambos empenhou-se em elaborar uma regra
tras vocações: passados apenas cinco se aqueciam e, tomando com as mãos que regesse sua Ordem ao longo dos
anos, surgiram nas cercanias de Pao- um punhado de carvões ardentes, re- séculos. Escreveu-a entre muitas ora-
la numerosas cabanas habitadas por darguiu: “Vede, Monsenhor: para ções e penitências, deixando bem de-
ascetas que se conformavam à regra quem ama a Deus, tudo é possível!” lineado o estilo de vida de “perpé-
de vida estabelecida pelo virtuoso O prelado despediu-se atônito, os- tua Quaresma” que define o carisma
homem de Deus e seguiam seus con- culando a túnica do taumaturgo. An- dos Mínimos. Ela foi definitivamente
selhos. tes de retornar a Roma, procurou al- aprovada em 1506 pelo Papa Júlio II.
Em pouco tempo, os “ermitãos do gumas pessoas que conheciam de A crescente expansão da Ordem
Frei Francisco” – como eram chama- logo tornou necessária a constitui-
dos pelo povo – inspiraram a criação ção de um ramo feminino e outro de
de novas comunidades no então Rei- terciários.
no de Nápoles, e a fama do eremita
Deus quis
Incomum taumaturgo,
começou a se estender por toda a Eu- cumular a exemplo de humildade
ropa.
A constituição da Ordem dos Mí- reluzente virtude Como se não bastasse a reluzen-
nimos, porém, não se realizaria sem te virtude de Francisco para atrair as
obstáculos. No ano 1467, tendo co-
de Francisco, que multidões, Deus quis cumulá-lo com
nhecimento do curioso estilo de vida atraía multidões, o dom de realizar milagres.
levado por esses religiosos, o Papa Em pouco tempo tornou-se conhe-
Paulo II enviou Mons. Baldassare de com o dom de cido esse seu singular carisma, o qual
Gutrossis à Calábria como seu legado. ele sempre exercia com pitoresca sim-
Chegando ao agreste local onde realizar milagres plicidade: ora passava ileso pelas cha-
morava o Santo, o prelado pediu- mas, a fim de consertar uma fornalha;

Fotos: Gustavo Kralj

Cenas da vida de São Francisco de Paula: à esquerda, ele é salvo do incêndio ocorrido durante a construção do convento;
à direita, atravessando sobre o manto o estreito de Messina – Museus Vaticanos; na página anterior,
São Francisco de Paula - Palácio Abatellis, Palermo (Itália)

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      29


ora fazia surgir o fogo quando neces- -o com presentes. Certo dia, ofere- O milagre que ninguém esperava
sitava acender uma lamparina. Tendo ceu-lhe uma bandeja de prata reple- Diferente foi a reação de outro so-
alguns operários roubado um cordei- ta de moedas de ouro, para que o berano, Luís XI de França, o qual, de-
ro que lhe pertencia, com o intuito de homem de Deus edificasse um con- sesperado pela perspectiva da morte,
assá-lo, não duvidou em retirá-lo in- vento, ao que este respondeu: “Ma- implorou ao santo varão que o curas-
tacto do forno; ao passo que, em outra jestade, vosso povo vive oprimido; o se. Por mandato do Papa, Francis-
ocasião, sendo-lhe oferecidos alguns descontentamento é geral; a adula- co para lá se dirigiu no ano de 1483.
peixes, respondeu educadamente que ção dos cortesãos impede que os gri- Prepararam-lhe um apoteótico corte-
não os desejava e os lançou na água, tos de tantas desgraças cheguem ao jo de recepção, mas o ermitão ingres-
fazendo-os voltar à vida… vosso augusto trono. Lembrai-vos, sou no país com o olhar baixo e, che-
Naturalmente tão prodigioso po- Majestade, que Deus pôs o cetro em gado ao castelo real, escolheu como
der, embora usado com humilda- vossas mãos para procurar a felici- aposento uma cabana que se encon-
de, não tardou em suscitar inve- dade e bem-estar dos vassalos e não trava ali perto.
jas. Um sacerdote de nome Anto- para satisfazer vossas ânsias desme- — Prolongai minha vida, ó padre!
nio ­Scozzetta começou a denegri- suradas de orgulho e vaidade. Acaso – suplicou, emocionado, o rei.
-lo do púlpito e, não contente com credes que não existe inferno para — A vida dos reis, Majestade – res-
isto, dirigiu-se à cela do Santo para os que mandam?”3 pondeu-lhe São Francisco –, como a
o afrontar. Francisco o acolheu se- E o exortou com firmeza: “Eu vos de qualquer de seus vassalos, está nas
renamente e ouviu a descompostu- conjuro, Majestade, a emendar ime- mãos de Deus. Ponde em ordem vos-
ra; depois foi até o braseiro, tomou sa consciência e vosso Estado.
algumas brasas e as aproximou do Um grande milagre começou a se
visitante, dizendo: “Por caridade, operar, maior do que uma cura, maior
meu bom padre, aqueça-te, pois de- “A vida dos reis, até que uma ressurreição. O monarca,
ves estar com muito frio. De resto,
nada poderá impedir que se cumpra
como a de qualquer que durante longos anos vivera longe
do temor de Deus, reconciliou-se com
a vontade de Deus”.2 Aterrorizado de seus vassalos, está o Criador e entregou-lhe o espírito a
pelo fogo que subia das mãos do er- 30 de agosto de 1483, rogando: “Nos-
mitão, o detrator não teve outra res- nas mãos de Deus. sa Senhora, minha boa Mãe, ajudai-
posta senão ajoelhar-se e, osculan- -me!” O passamento se deu num sába-
do-lhe os pés, pedir perdão.
Ponde em ordem do, como profetizara o Santo, garan-
Esses prodígios, somados às inú- vossa consciência tindo-lhe que estaria, assim, protegi-
meras curas de paralíticos, leprosos, do pela Santíssima Virgem.
cegos, surdos e mudos, bem como e vosso Estado”
às ressurreições e exorcismos, fize-
Sustentáculo da fidelidade de
ram com que alguns potentados qui-
Santa Joana de Valois
sessem tê-lo junto de si. Frei Francis- diatamente vossa conduta e melho- O Eremita de Paola permaneceu
co deveria agora dirigir-se às cortes rar vosso governo. Se não restabele- ainda na França como influente con-
para dar continuidade ao seu aposto- cerdes a ordem, a paz e a justiça no selheiro durante a regência de Ana, fi-
lado. vosso povo – devo dizer-vos da parte lha de Luís XI, e no reinado de Car-
de Deus –, vosso trono ruirá e vossa los VIII. Também orientou em alguns
A voz de Deus ressoa estirpe se extinguirá em pouco tem- assuntos o rei da Espanha, Fernando,
nas cortes po!”4 o Católico, sobretudo no tocante às
Diferentemente de tantos outros, Para confirmar suas palavras, o guerras da Reconquista e à expansão
ele não se deixaria tisnar em nada Santo tomou uma moeda e, apertan- da Fé no Novo Mundo.
pelo ambiente mundano dos palá- do-a, fez escorrer sangue dela. De- Contudo, ele deveria ainda reali-
cios; pelo contrário, como um novo pois continuou: “Eis, Majestade: o zar uma última e gloriosa obra nas
João Batista, seria a própria voz de sangue dos vossos súditos clama vin- terras da Filha Primogênita da Igre-
Deus a clamar nas consciências. gança diante de Deus!”5 Ao que pa- ja: sustentar a fidelidade da Prince-
Quando Francisco chegou à cor- rece, o fato não foi suficiente para sa Joana de Valois, “a filha não ama-
te do Rei Ferrante de Nápoles, em mudar o ímpio coração do rei, cuja da de Luís XI e a esposa desprezada
1482, logo tentou o monarca miti- linhagem se extinguiu ainda em vida de Luís XII, fundadora da Ordem
gar as suas censuras comprando- de São Francisco. da Anunciação”.6 São Francisco de

30      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Paula foi “conselheiro iluminado, como o deu a outros servos seus. Sei
amigo fiel, anjo do consolo”7 para que incrédulos e réprobos ridiculari-
esta alma temperada desde a infân- zarão minhas cartas e as rejeitarão,
cia pela prova, cujos méritos diante mas elas serão recebidas pelas almas
de Deus iam se tornar evidentes no católicas fiéis que aspiram ao Santo
Domingo de Pentecostes de 1950, Paraíso. […] Através dessas cartas
ao ser proclamada Santa Joana de se conhecerá quem pertence a Nos-
França por Pio XII. so Senhor Jesus Cristo e quem não
Lhe pertence, quem é predestinado e
Uma profecia divisora quem é precito”.10
de águas
A figura deste incomparável varão
Esteira de luz que o tempo
de Deus não estaria bem compreen-
jamais apagará
dida se deixássemos de mencionar, A Quaresma de 1507 veio anun-
por fim, o eminente dom de profecia ciar ao Santo seu encontro com
com que foi agraciado. Deus. Sentindo as forças se esvaí-
Talvez a mais famosa dessas pro- rem, recomendou a seus filhos a fide-
fecias seja a contida numa série de lidade à regra e deu-lhes ainda uma
cartas datadas entre os anos de 1482 derradeira mostra de humildade: fez
e 1496, em que o Santo narra a um questão de lavar-lhes os pés na Quin-
certo Simón de la Limena, benfeitor ta-Feira Santa.
da Ordem dos Mínimos, o que a Pro- Na Sexta-Feira Santa, 2 de abril,
vidência lhe revelara sobre uma mis- encomendou-se ao Redentor e sua
Francisco Lecaros
teriosa congregação, a dos Santos Mãe Santíssima, aos quais rendeu a
Crucíferos de Jesus Cristo, que surgi- alma às dez horas da manhã. Deixava
ria em tempos futuros. Trata-se, diz atrás de si noventa e um anos de in-
São Francisco, de “uma nova Ordem contáveis exemplos de virtude, e trin-
Religiosa, muito necessária, a qual ta e três conventos fundados em qua-
São Francisco de Paula - Santuário de
fará mais bem ao mundo do que to- Santa Maria da Vitória, Málaga (Espanha) tro nações da Europa.
das as outras juntas”.8 Depois da morte, São Francisco
Sobre ela exclama o fundador dos continuou a fazer milagres e obteve,
Mínimos: de certa forma, algo que muito dese-
“Ó Santos Crucíferos, eleitos do
“Ó gente santa! jara durante a vida: o martírio. Em
Altíssimo, quão agradáveis sereis Ó gente bendita da 1562, cinquenta e cinco anos após
ao grande Deus, muito mais do que sua entrada no Céu, os hugueno-
o foi o povo de Israel! […] Ó gente Santíssima Trindade! tes invadiram o Convento de P ­ lessis,
santa! Ó gente bendita da Santíssi- onde se encontrava seu corpo incor-
ma Trindade! Vencedor se chamará Vencedor se chamará rupto, e atearam-lhe fogo impiedo-
seu fundador, pois vencerá o mun-
do, a carne e o demônio”.9
seu fundador, pois samente. Apenas alguns ossos foram
resgatados.
“Louvado seja Jesus Cristo, pois vencerá o mundo, a Contudo, o facho de luz que o san-
Se dignou dar a mim, indigno e po- to fundador dos Mínimos lançou so-
bre pecador, o espírito de profecia de carne e o demônio” bre o futuro jamais o tempo ou o ódio
um modo claríssimo, e não obscuro dos infiéis conseguirão apagar. ²

1
CASTIGLIONE, OM, Anto- Paula. In: ECHEVERRÍA, 5
Idem, ibidem. 9
SÃO FRANCISCO DE PAU-
nio. San Francesco di Paola: Lamberto de; LLORCA, SJ, LA. Carta a Simón de la Lime-
6
POBLADURA, op. cit., p.21.
Vita illustrata. 4.ed. Paola: Pu- Bernardino; REPETTO BE- na, 7/3/1495.
bliepa, 1989, p.119. TES, José Luis (Org.). Año
7
Idem, ibidem. 10
SÃO FRANCISCO DE PAU-
Cristiano. Madrid: BAC, 2003, 8
SÃO FRANCISCO DE PAU-
2
Idem, p.95. LA. Carta a Simón de la Lime-
v.IV, p.19. LA. Carta a Simón de la Lime- na, 13/8/1496.
3
POBLADURA, OFM, Mel- 4
CASTIGLIONE, op. cit., p.159. na, 13/1/1489.
chor de. San Francisco de

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      31


Mestres
que nos ensinam a
ver e ouvir
o sobrenatural
Dario Lallorenzi

Após o pecado original, nossa capacidade de relacionamento com


o mundo espiritual precisa ser “despertada” e “educada” pelos
Anjos. Eles nos ajudam a suprir nossa deficiência e aprender uma
“linguagem” superior.
Ir. Cecília Grasielle Ramos Levermann, EP

Q ual deve ser a experiência


de alguém que nunca teve o
sentido da visão? Ou de uma
pessoa cujo ouvido jamais
deixando-nos cegos para o sobrena-
tural, moucos à voz do Céu e emude-
cidos na comunicação com o Altíssi-
mo… Como remediar tal desastre?
Helen era acostumada ao silên-
cio e às trevas, a ponto de pensar que
todo mundo vivia de igual modo. Po-
rém, essa ideia não a tornava isenta de
detectou som algum e que, em conse- A história de uma norte-america- profundos aborrecimentos e insatis-
quência, não é capaz de comunicar-se na do século passado poderá nos aju- fações, mesmo sendo ela ainda mui-
fluentemente com o próximo? O leitor dar a entender melhor as consequên- to pequena, incapaz de compreender
já se pôs nessa perspectiva? cias desse “bloqueio”, bem como o a sensação de vazio no fundo da alma.
Ora, nós nos encontramos em “remédio” preparado com anteci- Possuindo uma inteligência inco-
uma situação análoga… Análoga? pação pela Providência Divina para mum, Helen começou a notar que
Sim, e não hesito em dizer pior, pois que os homens recuperassem de al- havia uma diferença entre ela e os
a cegueira, surdez e mudez de que so- gum modo a primitiva aliança entre outros. Sobre isso narrou posterior-
fremos são ainda mais prejudiciais o mundo material e o espiritual. mente: “Acontecia-me, por vezes, fi-
por se oporem violentamente à nos- car entre duas pessoas que conversa-
sa natureza.
Sepultada na solidão vam e, apalpando-as, ao impulso de
Composto de corpo e alma, “o ho- Helen Adams Keller nasceu a 27 uma necessidade interior, cheguei
mem ocupa um lugar único na cria- de junho de 1880, em Tuscumbia, a descobrir que moviam os lábios.
ção”, uma vez que “em sua própria Alabama. Seus primeiros dezoito Acabei assim percebendo que dis-
natureza une o mundo espiritual e o meses de vida foram os de uma crian- punham de um meio de comunicar-
mundo material”,1 os quais nele são ça inteiramente normal, até que uma -se que me era estranho. Incomoda-
elevados à participação na vida divina “febre cerebral”, diagnóstico que lhe va-me não poder compreendê-las.
pela graça. Essa harmoniosa síntese, foi dado na época, privou-a irreme- Comecei, também, por minha vez,
porém, ficou truncada após o pecado diavelmente dos sentidos da visão e am­ exer com os lábios, gesticulando
original, que estabeleceu uma luta en- audição, fazendo com que se desen- freneticamente, sem obter resultado
tre o espírito e a carne (cf. Rm 8, 23), volvesse isolada do mundo exterior. algum. Estes insucessos me punham

32      Arautos do Evangelho · Abril 2021


num estado de cólera terrível: batia elemento fresco e o gesto sobre sua língua de sua instrutora, assimilan-
com os pés no chão e soltava gritos mão, formando em sua mente o con- do os movimentos e produzindo vi-
de raiva, até ficar completamente es- ceito de água. brações semelhantes. Assim, domi-
gotada”.2 Através deste método, duran- nou não apenas o inglês, seu idioma
te anos Anne Sullivan foi abrindo vernáculo, mas também o alemão e o
Uma mestra dá rumo diante de Helen um novo panorama francês, com bastante desenvoltura.
à vida da menina em relação ao mundo; e, pela intei- E embora sua entonação de voz fosse
Preocupados com o estresse e a ra confiança que a cega e surda-mu- um tanto rouca e seca, devido à nula
agressividade da filha, seus pais, Ca- da possuía em sua preceptora, desen- experiência auditiva, sua pronúncia
pitão Arthur Keller e Kate Adams volveram-se rapidamente importan- em alemão era excelente; enquanto
Keller, procuraram alguém capaz de tes conhecimentos. que o francês, falava-o de forma mais
“domar” a criança, e encontraram a “Quanto mais conhecia as coisas, inteligível que o próprio inglês.
Profa. Anne Sullivan. Com apenas mais ficava contente de viver”5 – afir- Lia em quantidade livros em brai-
vinte anos de idade e deficiente vi- ma Helen. Pouco mais tarde apren- le e chegou a escrever várias obras,
sual, a jovem acabava de sair da mes- deu a falar, apalpando os lábios e a do tamanho de enciclopédias, numa
ma escola em que fora educada máquina específica para cegos,
Laura Bridgman, famosa surdo- com muita perfeição e agilidade.6
-cega cujo exemplo de vida deu
esperança ao casal.
Dedicação da professora,
O dia 3 de março de 1887 foi,
confiança da aluna
pois, para Helen, o “mais memo- Tudo isso só foi possível a He-
rável de sua vida”.3 A partir de en- len porque ela se deixou guiar
tão, com perseverança e esme- pela meticulosa e infatigável dili-
ro infatigáveis por parte da mes- gência de uma pessoa que parti-
tra, a menina seria educada para cipava plenamente de um mundo
aprender a superar suas deficiên- até então incognoscível para ela.
cias e conquistar metas que nin- Dessa maneira, Anne Sullivan
guém ousaria imaginar. Sobre pôde traduzir o universo às limi-
sua querida instrutora, ela co- tações de sua aluna, tornando-o
Alexander Graham Bell

mentaria: mais do que “levantar visível à sua cegueira, perceptível


o véu tirano que escondia de mim à sua surdez e interlocutor de sua
todas as coisas belas do mundo, mudez.
[…] [Anne] ia amar-me com o A confiança, gratidão e reco-
mais santo amor, a mais concen- nhecimento à Srta. Sullivan, He-
trada ternura e a mais profunda len os deixa claros em sua auto-
dedicação que alguém já teve por Helen Keller fotografada em 1899 com sua biografia: “Minha mestra cons-
professora, Anne Sullivan; na página anterior,
outrem sobre a terra”.4 Anjo da Guarda - Basílica de Nossa Senhora titui tanta coisa para mim, que é
Assim, sob a direção cotidiana de Buenos Aires (Argentina) difícil separar sua personalida-
da Srta. Sullivan, Helen logrou, de da minha. Nunca serei capaz
com o tempo, vencer de maneira in- de determinar até que ponto o amor
crível suas incapacidades sensitivas e “Minha mestra do belo me é inato e até que ponto o
desenvolver quase todas as faculda- devo aos sábios incentivos dela. Sinto
des de um ser humano comum. constitui tanta que sou dela e sigo suas pegadas. De-
Certo dia, ao passearem pelo jar- vo-lhe o melhor do que sou: não há,
dim, Anne levou sua aprendiz para
coisa para mim, em mim, talento, inspiração ou ale-
junto do poço e tocou a bomba para que é difícil gria, que não tivesse brotado ao con-
que a água jorrasse na caneca que tato de sua amizade”.7
a pequena trazia. Quando o líqui- separar sua
do passou a transbordar sobre sua
Um Anjo que nos “educa”
mão, escreveu repetidamente, na ou-
personalidade para o sobrenatural
tra palma livre, a palavra “água”. Isso da minha” Como aconteceu com Helen antes
despertou na menina o nexo entre o da chegada da Profa. Anne, a tentati-

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      33


va de preenchermos por nós mesmos apetências carnais a nos moldarmos berdade de ação junto a nós, o que
o vazio de nossa alma traz-nos sem- à sublime impostação a que eles nos eles só obtêm com o nosso consenti-
pre insatisfações tediosas e incômo- chamam… Entretanto, como arque- mento e colaboração.
das. típicos “Sullivans”, eles jamais desis- Devemos, pois, ser-lhes fiéis e dó-
Vendo-nos presos em nossa pró- tem de conquistar a nossa confian- ceis, recorrendo sempre a eles em to-
pria insuficiência, sufocados por dra- ça e amizade; pelo contrário, desdo- dos os momentos. A nossa capaci-
mas e aflições que a cada dia se lan- bram-se constantemente em cuida- dade de relacionamento com o so-
çam sobre nós, temos de nos reco- dos para conosco. brenatural precisa ser “despertada”
nhecer necessitados de um auxílio Lembremos as palavras de He- e “educada” por nossos Anjos. Para
que nos una ao sobrenatural. E essa len sobre sua mestra, e veremos aprendermos a “linguagem” do mun-
assistência ninguém pode nos prestar quão aplicáveis são ao nossos Custó- do superior temos, por assim dizer,
de maneira mais eficaz do que nosso dios: “[Amam-nos] com o mais san- que utilizar desse “tato” para suprir
bom Anjo da Guarda. to amor, a mais concentrada ternu- a deficiência dos sentidos afetados
Uma porção de modos de ver, ra e a mais profunda dedicação que pelo pecado original.
sentir e entender, que a pessoa con- alguém já teve por outrem”. Um de
trai por causa do pecado são reti- seus maiores desejos é ter plena li-
Deixemo-nos guiar por
ficados pela simples presença do
nossos Anjos!
Anjo; uma porção de preconceitos e Uma vez abertos à salutar ação
modos de pensar errados, a atuação A nossa capacidade
do nosso guardião celeste, ele fará
dele remove, de maneira a tornar a com que nossas almas se tornem re-
batalha pela santificação muito mais de relacionamento
ceptáculos de graças. Ademais, po-
viável, muito menos cheia de impas-
ses, alçapões e surpresas do que é
com o sobrenatural
lirá nossos sentidos sobrenaturais,
tornando-os agudos à percepção
normalmente. precisa ser dos desígnios de Deus e permitindo-
Ao designá-lo como nosso Custó- -nos analisar tudo o que se passa ao
dio, Deus nos outorga um guardião, “despertada” e nosso redor segundo a visão da sa-
um tutor e um amigo, responsável bedoria.
pela nossa salvação. Ele nos acom-
“educada” por nossos
Para isso, recolhamo-nos e peça-
panhará a todo instante, protegen- Anjos da Guarda mos o socorro de nosso protetor an-
do-nos, guiando-nos e unindo-nos ao gélico, que pressurosamente se porá
Céu.8 Deus criou-o ten- ao nosso lado para
do em mente o homem nos atender e liber-
do qual aquele espírito tar das amarras terres-
angélico cuidaria, e por tres e das ciladas infer-
isso estabelece-se en- nais, elevando as nos-
tre ambos – protetor e sas mentes e corações
protegido – uma conso- ao alto.
nância muito grande, a Confiemos em nos-
bem dizer, única. sos queridos amigos.
Ora, quantas ve- Assim, ao completar-
Reprodução

zes não nos esquece- mos nossa corrida nes-


mos destes nossos me- sa terra e chegarmos ao
lhores amigos, agindo fim da árdua batalha
com mau humor diante da vida, conviveremos
das suas inspirações, e Detalhe do Juízo Final, por Fra Angélico - Museu com eles, sem véus, por
preferindo ouvir nossas Nacional de São Marcos, Florença (Itália) toda a eternidade! ²

1
CCE 355. 3
Idem, p.28. 7
Idem, p.45-46. encontrar, por exemplo, em:
ROYO MARÍN, OP, Anto-
2
KELLER, Helena; MACY, 4
Idem, p.29. 8
Os benefícios espirituais e ma-
nio. Dios y su Obra. Madrid:
John (Coord.). A história de mi- teriais que os Anjos da Guar-
5
Idem, p.32. BAC, 1963, p.412-413.
nha vida. 2.ed. Rio de Janeiro: da derramam sobre seus cus-
José Olympio, 1940, p.17.
6
Cf. Idem, p.186. todiados, o leitor poderá em

34      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Uma Páscoa
portuguesa,
com certeza!
Entre as amêndoas doces, preparadas com chocolate, licor e
açúcar de diversas cores, há um elemento muito convidativo
que, por seu especial sabor e simbolismo, nunca é recusado
pelos visitantes: o folar de Páscoa.
Ir. Maria Susana Moreira Carneiro, EP

É
o dia da Páscoa. Escuta-se mino”, que significa “Cruz em que o zar as alegrias da Ressurreição. Logo
o bimbalhar dos sinos no Senhor padeceu”. Ela dá nome a uma atrás segue a “caldeirinha” conten-
alto dos campanários das tradição que consiste na visita feita do a água benta para aspergir as ca-
igrejas e o vibrante ecoar pelo pároco aos lares no período pas- sas. Por fim vêm as campainhas que,
das campainhas que anunciam a Res- cal, conduzindo um crucifixo, para badalando pelas ruas, praças e vielas,
surreição do Senhor. deixar sua bênção às famílias. Trata- convidam as famílias de fé a abrirem
Dentre os variados costumes com -se de um costume antiquíssimo, que as portas de suas casas e de seus co-
que os diferentes povos a celebram, remonta à Idade Média, conforme se rações Àquele que Se ofereceu por
destaca-se uma tradição portuguesa comprova num documento do ano nós no madeiro da Cruz.
conhecida como Compasso Pascal. 1357, conservado em Coimbra.1 O cortejo de capas púrpuras e alvas
A farpa do Compasso é dirigi- entra em cada casa, causando um ver-
Uma tradicional da pelo sacerdote ou, na falta deste, dadeiro estremecimento de emoção ao
procissão portuguesa por um ministro: o juiz da Cruz. Ele anunciar: “O Senhor ressuscitou, ale-
A palavra compasso nada mais é porta o crucifixo processional da pa- luia, aleluia!” Em seguida, os mem-
do que uma forma abreviada da ex- róquia, que nesse dia é ornado com bros da família são convidados a vene-
pressão latina “Crux cum passo Do- flores e faixas brancas para simboli- rar Cristo crucificado, o qual osculam

O “compasso”
consiste na visita
feita pelo pároco aos
lares, conduzindo
Paulino Pedrosa

um crucifixo, para
Nuno Mouro

deixar sua bênção


À esquerda, procissão do Compasso na aldeia de Lustosa (Porto); à direita, arautos às famílias
recebem o Compasso em sua casa de Sameiro (Braga)

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      35


com grande devoção. Não é raro que nome de Amaro a fim de socorrê-lo, aos pés da imagem um ramo de flo-
alguns dentre eles tenham viajado de tornou-se clara sua decisão: o lavra- res. Qual não foi o seu encanto ao ver
longe, dos diversos “portugais”, para se dor era o noivo escolhido. Contudo, que sua protetora lhe sorria! Voltou a
unirem ao patriarca da família e com no dia da Páscoa, estando já marcado casa confiante e deparou-se com uma
ele participarem desse ato anual. o matrimônio, Mariana andava muito nova surpresa: sobre a mesa havia um
angustiada: chegara-lhe aos ouvidos o grande bolo, feito com ovos inteiros e
Belas e saborosas iguarias rumor de que o fidalgo apareceria na rodeado de flores, as mesmas que ela
Na despedida, o senhor da casa cerimônia do casamento para assassi- própria tinha depositado no altar.
oferece, além de uma espórtula para nar seu futuro esposo. Imediatamente procurou Amaro
a Igreja, algo da sua colorida mesa Uma vez mais, Mariana recorreu a para lhe contar a novidade e constatou
aos valorosos mensageiros. Entre as Santa Catarina. Foi até o altar que lhe com espanto que ele havia recebido
amêndoas doces, preparadas com era dedicado, fez seu pedido e deixou um bolo semelhante… Julgando am-
chocolate, licor e açúcar de diversas bos que se tratava de um gesto do fidal-
cores, há um elemento muito convi- go, foram até a casa deste para agrade-
dativo que, por seu especial sabor e cê-lo. Entretanto, descobriram que ele
simbolismo, nunca é recusado pelos recebera também o mesmo bolo! Ma-
visitantes: o folar de Páscoa. riana percebeu então que Santa Cata-
Inicialmente chamado de folore, rina de Alexandria tinha se utilizado
com o passar do tempo ficou conhe- desse estratagema para trazer a recon-
cido como folar, nome que conser- ciliação no dia da Santa Páscoa.
va até hoje. Ele faz parte da tradicio-
nal gastronomia portuguesa, e exis-
Símbolo da união e
tem inúmeras variantes de sua recei-
harmonia cristãs
ta espalhadas pelos dezoito distritos Assim surgiu o costume de prepa-
e onze ilhas do país. Pode ser doce ou rar esta iguaria, tal como fora ofereci-
salgado, conter especiarias, presun- da por Santa Catarina, como símbo-
tos ou queijos… Mas há um carac- lo da união cristã. E quando os afilha-
terístico ingrediente que nunca fal- dos, seguindo outra antiga tradição,
ta: os ovos cozidos colocados inteiros presenteiam suas madrinhas de Ba-
dentro da massa. tismo com ramos de violeta no dia da
Como surgiu tal ideia?
Francisco Lecaros

Ressurreição do Senhor, estas lhes re-


tribuem com um folar.
Entre a lenda e a história Esses costumes singulares per-
A origem dessa tradição multisse- petuam até os dias atuais como fru-
cular chegou até nós através de uma to do Preciosíssimo Sangue de Nosso
lenda. Conta-se que Mariana, uma jo- Santa Catarina de Alexandria - Museu Senhor Jesus Cristo, cujas cinco cha-
vem que se sentia chamada a consti- de Belas Artes, Valência (Espanha) gas estão tão presentes na origem do
tuir família, rezou a Santa Catarina de Reino de Portugal.
Alexandria para encontrar um bom es- Assim, convidamos os nossos ca-
poso católico, que fosse do agrado de
Uma antiga lenda ros leitores a participarem das bên-
Deus. Rogava com tanta fé que encon- conta como nasceu o çãos pascais elaborando em suas ca-
trou não um, mas dois jovens que pe- sas um folar. E desejamos que suas
diam a sua mão em casamento: um no- costume de preparar famílias possam também desfrutar
bre fidalgo e um honesto lavrador, de desta delícia que tanto evoca a ver-
nome Amaro. Depois de conversar se- esta iguaria, tal dadeira benquerença e harmonia que
paradamente com cada um, ficou com-
binado que ela tomaria uma decisão
como fora oferecida deve existir entre os filhos da Santa
Igreja Católica. ²
até o Domingo de Ramos. por Santa Catarina,
Antes do prazo estipulado, porém,
a jovem soube que surgira uma con- como símbolo da 1
Cf. COELHO DIAS, Geraldo J. A. Ori-
gem medieval do Compasso - Visita Pas-
tenda entre os pretendentes. Dirigiu-
-se ao local da disputa e, ao gritar o
união cristã cal. In: Lusitania Sacra. Lisboa. N.4
(1992); p.90.

36      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Receita de Folar da Páscoa

Maria Luíza Brito


Ingredientes
500 g de farinha / 10 g de fermento de padeiro / 50 ml de leite morno / 1 pitada de sal / 100 g de
açúcar / 75 g de manteiga / 3 ovos / raspas de uma laranja / 1 colher (café) de canela em pó / 20 ml
de brandy / 4 ovos cozidos em água com cascas de cebola.

Preparação cesso, polvilhe com farinha sempre que ne-


Deite um pouquinho do leite morno num cessário. Deixe a massa levedar em algum lu-
recipiente pequeno, acrescente o fermento gar aquecido até dobrar de volume.
junto com duas colheres de farinha e misture Tendo reservado uma pequena quantidade
bem. Deixe repousar por dez minutos. de massa para os detalhes finais, deposite o
Passe o leite com o fermento para um re- restante num tabuleiro, untado com mantei-
cipiente maior, acrescente a farinha, o sal, o ga e polvilhado com farinha, formando uma
açúcar, a manteiga, dois ovos crus, as raspas bola achatada. Insira os ovos cozidos fazen-
de laranja, a canela e o brandy. Bata todos os do com que fiquem bem presos. Com a por-
ingredientes, acrescentando aos poucos o res- ção da massa previamente reservada, faça
tante do leite, até a massa ficar homogênea. duas longas tiras e coloque-as no topo do
Deite a massa sobre uma superfície salpi- bolo formando uma cruz. Bata o ovo que so-
cada de farinha, polvilhe com mais farinha e brou numa tigela pequena, pincele a massa
continue a amassar até ficar macia, elástica e com ele e asse em forno médio, durante cer-
descolar facilmente da mesa. Durante o pro- ca de trinta minutos, até dourar.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      37


Luzes da intercessão de Dona Lucilia

Amparados pela proteção


de uma mãe celeste

Ao longo dos cinquenta e dois anos transcorridos desde


sua partida para a eternidade, Dona Lucilia tem requintado a
manifestação do carinho maternal que a caracterizou na sua vida
terrena, derramando inúmeras graças a todos os que recorrem à
sua bondosa e infalível intercessão.
Elizabete Fátima Talarico Astorino

A
quela que na manhã do dia ciais “LCO”, Jorge Zaghi habituou- ração, mas o dia não podia ser mais
21 de abril de 1968 adorme- -se a recorrer à sua intercessora em complicado. Tratava-se de uma sex-
ceu no Senhor, enquanto fa- todas as necessidades. Certo dia, ta-feira à tarde, véspera de um feria-
zia um sereno e majestoso após ter um de seus veículos apreen- do prolongado…
sinal-da-cruz, recebeu por missão na didos durante o transporte de uma “O tempo corria, o cliente cobrava
vida eterna tornar mais compreensí- mercadoria urgente para um de seus a mercadoria e não víamos saída pos-
vel aos homens a bondade do Sagrado principais clientes, adveio outro im- sível. Não fazer a entrega e deixar o
Coração de Jesus. previsto que lhe trouxe grande preo­ veículo no pátio durante todo o feria-
Os socorros prestados por esta cupação: do era algo que não podia acontecer
nobre e generosa dama, enquanto “Como o motorista trafegava des- de forma alguma. Seria uma tragé-
ainda estava na terra, a pessoas que cuidado, sem uma das placas de iden- dia. Entretanto, caminhávamos para
passavam por dificuldades extremas tificação, o veículo ficou retido no esse desfecho”.
têm se multiplicado desde que ela pátio do posto policial. Dirigimo-nos Como era praticamente impos-
adentrou na eternidade. Os afagos até o local para tentar obter a libe- sível obter uma nova placa naque-
feitos ao próximo necessitado tor- le momento, Sr. Jorge resolveu co-
naram-se mais sobrenaturais e in- locar o caso nas mãos da sua pro-
tensos. Os que foram tetora:
Isso é o que podemos comprovar “Em meio a esse quadro de ten-
através dos inúmeros relatos recebi- beneficiados pelos são, inquietação e já de desânimo,
dos dos seus devotos que, tendo sido
beneficiados por ela, desejam propa-
afagos de lembrei-me de recorrer a Da. Luci-
lia, pedindo-lhe que interviesse de
gar o poder de sua maternal e eficaz Da. Lucilia, desejam alguma forma e me desse uma saída,
intercessão. uma solução”.
propagar o poder Para sua surpresa, não tardou
Carro retido, cliente à espera muito para que essa bondosa senho-
Tendo consagrado sua empre-
de sua maternal e ra resolvesse o problema: “Andando
sa de transportes à proteção de eficaz intercessão um tanto sem rumo pelo pátio, olhei
Da. Lucilia ao nomeá-la com as ini- e vi, aos pés de uma árvore, uma

38      Arautos do Evangelho · Abril 2021


­ laca laranja com os exatos números
p Foi nessa conjuntura que Da. Ro- No local, ao conversar com o res-
do produto que estava no caminhão. sângela lembrou-se de ter ouvido co- ponsável, este lamentou-se por não
Era a placa que eu precisava!” mentários sobre a elevada virtude de poder ajudá-la, dizendo ser de fato
Assim, muito antes do que ima- Da. Lucilia, cuja extremosa bondade impossível achar um pequeno pacote
ginava, o transtorno estava solucio- levava-a a se compadecer das pessoas no meio do lixo de toda a região me-
nado e logo puderam efetuar a en- aflitas e necessitadas. Rezou a ela e tropolitana. Além disso, por razões
trega: “Pregamos a placa no veícu- prometeu-lhe que, caso fosse atendi- de segurança e salubridade, não era
lo, chamamos o policial, fomos vis- da, executaria alguma obra piedosa permitido a entrada de qualquer pes-
toriados e liberados! Isso se deu já como forma de agradecimento. soa naquele imenso depósito de deje-
no fim da tarde, mas ainda foi possí- tos. Levou-a apenas para ver o lugar
vel concluir a entrega a tempo e en-
Um pequeno volume de chegada e processamento dos re-
cerrar o drama”.
achado no meio do caos síduos, a fim de convencê-la a desis-
Já na manhã seguinte Da. Rosân- tir de sua busca.
O salário do mês literalmente gela procurou o órgão responsável Mas, para a estupefação de todos,
jogado no lixo… pela coleta de lixo, a fim de informar- enquanto ainda conversava com o
Da. Rosângela Felde, de Curitiba -se sobre o caminhão que passara em atendente Da. Rosângela viu, de re-
(PR), após ouvir dizer que Da. Luci- sua rua. Disseram-lhe, então, que o pente, o embrulho que continha todo
lia “atendia com inefável maternali- material recolhido já havia sido en- o dinheiro da família passar bem
dade aqueles que a ela rezavam pe- caminhado para o aterro sanitário, diante de seus olhos em uma enor-
dindo sua intercessão junto a Deus”, de modo que seria impossível encon- me esteira que transportava o mate-
também resolveu recorrer a ela e trar seu dinheiro novamente… Mes- rial que seria processado. Sem mais
hoje nos escreve a fim de relatar a mo assim, Da. Rosângela dirigiu-se formalidades, foi até lá e apanhou o
graça alcançada. até lá, certa de que Da. Lucilia resol- que queria.
Sendo administradora das des- veria o caso. Todos os funcionários ficaram
pesas da casa, recebia de seu côn- espantados, pois nunca tinham
juge, que trabalhava em três em- visto nada do gênero. Era incogi-
pregos para conseguir suprir as tável encontrar um volume tão pe-
necessidades da família, o salário queno em meio ao caos daquelas
obtido por ele no início de cada instalações!
mês. Certo dia, porém, ela dei- O fato marcou muito toda a fa-
xou este valor envolto em um pa- mília, que pôde confirmar o quan-
pel sobre a tábua de passar rou- to Da. Lucilia estava disposta a
pas, e seu esposo, julgando tra- atendê-los, resolvendo um caso na
tar-se de algum lixo, jogou fora o aparência insolúvel.
Reprodução

embrulho…
Ao dar-se conta do desapareci-
A realização de uma
mento do dinheiro, Da. Rosângela
venda impossível
pôs-se a procurá-lo por toda a casa. Sr. Jorge Zaghi Também Mayra Lage de Araú-
À noite, quando seu esposo voltou do jo Monteiro, de Belo Horizonte
trabalho, ela perguntou-lhe a respei- (MG), envia-nos o relato de uma
to do valor, mas este, a princípio, não graça recebida durante o difícil pe-
soube lhe informar. “Andando um tanto ríodo que viveu logo após a morte
Depois de algum tempo de con- de seu pai:
versa, o casal deu-se conta do que
sem rumo pelo pátio, Naquela época, “uma grande mu-
tinha acontecido: todo o dinheiro olhei e vi, aos pés dança e preocupação surgiu em mi-
do mês fora literalmente jogado no nha vida. Minha mãe ficava sozinha
lixo… E este, para piorar a situação, de uma árvore, uma sem a presença de seu marido, gran-
havia sido recolhido naquele mesmo de companheiro e amigo, e eu fica-
dia. Isso não só prejudicava financei-
placa laranja... Era va responsável por administrar o co-
ramente a família, mas criava um de-
sagradável estado de tensão entre os
o que eu precisava!” mércio de vestuário que meu pai pos-
suía há aproximadamente quarenta
esposos. anos”.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      39


Não tendo condições de cuidar ­ uita fé, pedi: ‘Da. Lucilia, vós que
m zia que as preocupações logo chega-
adequadamente dele decidiu pô-lo à riam ao fim:
estais ao lado de Nossa Senhora, nos-
venda. Porém, apesar de todos os es- sa Mãe, concedei-me a graça de ven- “Ao mesmo tempo em que a an-
forços e tentativas, não conseguia en- gústia me afligia, eu sentia dentro de
der e livrar minha mãe desta loja que
contrar um comprador para o comér- mim uma paz e tranquilidade como
hoje, sem a presença de meu pai, so-
cio, que já há alguns anos não tra- se algo me dissesse que em breve
mente traz tristeza e angústia a ela.
zia lucros para a família, mas apenas Peço-vos, Da. Lucilia, com muita fétudo iria se resolver”.
preocupações. e devoção, ajudai-me e intercedei E, de fato, a confirmação desta
Uma vez que Maysa morava lon- pela obtenção desta grande graça. inspiração que a enchia de confian-
ge de sua mãe e não conseguia se de- Amém!” ça não tardou a se verificar de forma
dicar inteiramente ao caso, resolveu concreta:
confiar e rezar, rogando por um auxí-
“Fui abençoada e “Eis que recebemos em nossa casa
lio sobrenatural:
atendida por um pedido feito a visita de um rapaz, junto ao seu so-
“Minha mãe, sentindo o peso da
com fé a Da. Lucilia” gro, interessado em comprar o nos-
ausência de meu pai e muito cansa- Os dias se passaram e, com eles, so comércio. Disse que por acaso
da do ponto de vista físico e mental, as férias de Maysa. Tudo parecia in- passou em frente à loja, viu a pla-
desanimava e se entristecia cada vez dicar que o seu pedido não fora ouvi- ca de ‘vende-se’ e logo se interessou.
mais. Eu não sabia o que fazer. Dis- do, mas, em seu interior, algo lhe di- Com a graça de Deus, Nossa Senho-
tante dela e vendo a situa- ra e Da. Lucilia, levamos os
ção ficando a cada dia pior, dois para conhecer o local
comecei a rezar e pedir a e, no mesmo instante, foi fe-
Nossa Senhora e a Da. Lu- chado o negócio.
cilia que fizessem o melhor “O rapaz não quis saber
para nós”. da lucratividade da empre-
sa e nem fazer uma pes-
Um apelo feito a quisa de mercado para in-
Da. Lucilia formar-se sobre os retor-
O tempo passava e a loja nos financeiros da mesma.
permanecia sem nenhum Isso demonstra, mais uma
comprador interessado… vez, a força do milagre.
Maysa resolveu intensificar Como uma pessoa compra
suas orações, fazendo um uma empresa, quase fali-
apelo a Da. Lucilia: da, sem ao menos pesqui-
Reprodução

“Tirei uns dias de férias sar sobre seus retornos fi-


e, na expectativa de conse- nanceiros? A venda foi tão
guir resolver o mais rápido abençoada que nem mes-
possível a situação, fiz al- Da. Maysa Lage de Araújo Monteiro com sua mãe, mo o nome do comércio
gumas promoções e afixei segurando uma lembrança de Da. Lucilia foi mudado”.
mais cartazes de venda na Manifestando alegria e
porta da loja. Mas nada foi resolvido. gratidão por ver-se objeto de tama-
Faltando três dias para minhas férias “Ao mesmo tempo nha bondade de sua intercessora ce-
acabarem, entrei em estado de ansie- leste, Maysa conclui:
dade e frustração por não ter solucio- em que a angústia me “Enfim, com este breve testemu-
nado o problema que tanto entriste-
cia minha mãe.
afligia, eu sentia uma nho posso dizer que eu fui abençoa-
da e atendida por um pedido feito
“Foi quando coloquei, abaixo paz e tranquilidade com fé a Da. Lucilia. Tenho certeza
da imagem de Nossa Senhora Apa- de que este foi um milagre alcança-
recida que tinha na loja, a fotogra- como se algo me do e que aquele que acredita e tem
fia de Da. Lucilia Corrêa de Olivei- em seu coração grande devoção a
ra, a quem, com uma grande e fer-
dissesse que em breve ela alcançará graças e mais graças a
vorosa fé, fiz meu apelo de filha que tudo iria se resolver” todo momento. Obrigada, Da. Lu-
tanto queria ver sua mãe feliz. Com cilia, mais uma vez, por este grande

40      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Trato ameno
e todo feito de
bondade

Q uem teve a felicidade de frequentar seu


apartamento, convivendo com Da. Lucilia
nos últimos meses de sua existência terrena, bem
pôde avaliar o alto grau de consideração, gentile-
za e estima inerentes a seu nobre trato, mesmo em
suas mais simples expressões. De índole respeito-
sa e afetiva, era ela mestra na difícil arte de se di-
rigir aos outros com afável dignidade, de modo a
deixá-los sempre à vontade.
Por um sobrenatural senso de compaixão,
João S. Clá Dias

causava-lhe profundo sofrimento ver alguém


entristecido ou magoado, ainda que se tratasse
de um desconhecido. E era admirável o esmero
com que logo procurava aplicar o lenitivo da pa- Da. Lucilia aos 92 anos
lavra justa, da fórmula adequada, do bom con-
selho para a difícil situação, do afago para a dor, Porém, quando sua benquerença não era corres-
da esmola para a necessidade. pondida, jamais cedia ao menor sentimento de
Para Dona Lucilia, a felicidade do próximo rancor, pois não visava qualquer benefício pes-
era a dela… Sua alma se movia pelo desejo de soal ou vantagem própria nesse relacionamento.
causar contentamento a cada um, e daí seu gran-
de pesar quando não podia fazê-lo. Era o afe- Extraído de:
to de um coração total e essencialmente católi- CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio.
co. Sua alegria consistia em querer bem aos ou- Dona Lucilia. Città del Vaticano-São Paulo:
tros por amor de Deus, e ser por eles querida. LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, p.623-624

presente que a senhora deu à minha na-se cada vez mais evidente a mis- sublimado aquilo que realizou em
mãe, meu irmão e a mim!” são celestial desta bondosa dama. sua vida terrena, derramando inú-
*     *     * Ao longo dos cinquenta e dois anos meras graças a todos os que recor-
Conforme cresce o número de transcorridos desde sua partida rem à sua bondosa e infalível inter-
relatos de graças alcançadas, tor- para a eternidade, Da. Lucilia tem cessão. ²

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      41


Fotos: Roberto Sala

Guatemala – No dia 22 de fevereiro, 20º aniversário da Aprovação Pontifícia dos Arautos, um conjunto
de cooperadores renovou seus compromissos durante uma Missa celebrada na Casa de Formação situada em
San José Pinula. A Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima foi coroada antes da Celebração.

1 2 3
Fotos: Paulo Miiguel dos Anjos

4 5 6

Incessantes atividades evangelizadoras no Ceará


D esde o final do ano passado numerosas ativida-
des evangelizadoras foram realizadas em Fortale-
za. Nas fotos: Primeira Comunhão na Casa dos Arau-
sião do início da Quaresma (fotos 2 e 3); visitas da Ima-
gem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima às famílias
(foto 4); Sacramento do Matrimônio (foto 5) e atendi-
tos (foto 1); imposição das cinzas e Santa Missa por oca- mento nos hospitais (foto 6). ²

42      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Fotos: Eric Salas
Alex Glez

Espanha – Os Arautos realizam todos os meses, na Basílica Real de Santo Isidro, em Madri a devoção dos Primeiros
Sábados pedida por Nossa Senhora em Fátima (centro). Em março, houve cerimônias semelhantes na Paróquia de
San José, em Gijón (esquerda) e na do Bom Conselho, em Torrent (direita).

Fotos: Maroliber Martinez


Estados Unidos – Também em Miami os Arautos do Evangelho promoveram a Coroação da Imagem Peregrina de
Nossa Senhora de Fátima, meditação do Santo Rosário e Missa solene por ocasião do Primeiro Sábado do mês de
março. O ato litúrgico se desenvolveu na Paróquia do Bom Pastor.

Fotos: Valdeci Junior

Campos dos Goytacazes (RJ) – Como acontece em muitas outras cidades brasileiras, os Arautos promoveram em
sua casa de Campos dos Goytacazes a devoção dos Primeiros Sábados, em desagravo ao Sapiencial e Imaculado
Coração de Maria. A cerimônia teve início com a entrada e coroação da Imagem Peregrina.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      43


ta o desafio que supõe transmitir a Fé Fiéis de várias partes dos Esta-
às gerações mais novas ou o declínio dos Unidos doaram fundos para o
das vocações. conserto da imagem, realizado pela
A Polônia conta com 1.050 san- Daprato Rigali Studios. A original
tuários católicos, sendo que 793 são havia sido fabricada em 1917 pelo
dedicados a Nossa Senhora. mesmo ateliê, e agora foi restaurada
pelos sucessores dos primeiros arte-
sãos que nela trabalharam.

gaudiumpress.org
Ataques a capelas nas
Filipinas
Quase a totalidade da população Por ocasião do início da Quares-
polonesa se declara católica ma, diversos locais de culto das Fili-
O relatório intitulado Igreja na pinas sofreram atos de violência.
Polônia, publicado no dia 6 de mar- Hóstias não sofrem dano No dia 17 de fevereiro, as capelas
ço pela KAI (sigla em polonês para em enchente de Santo Isidoro e da Imaculada Con-
Agência Católica de Informação) for- Em meados de fevereiro, na cida- ceição, na cidade de Lamitan City, fo-
nece importantes dados a respeito da de de Carangola (MG), uma chuva in- ram atacadas. Quando os fiéis chega-
fé neste país. Segundo o documento, tensa elevou o nível do rio que atra- ram a fim de preparar o local para a
91,9% dos poloneses se reconhecem vessa o município, provocando uma Missa de Quarta-Feira de Cinzas en-
católicos; e destes, 36,9% participam enchente de grandes proporções. As contraram as principais imagens de-
regularmente da Santa Missa. águas entraram na Capela Santo An- capitadas ou caídas na estrada, além
Segundo Marcin Przeciszewsk, tônio e atingiram o sacrário. As Hós- de outros objetos sagrados danifica-
presidente da KAI, o estudo mos- tias ali depositadas, porém, não sofre- dos. Viram também, na mesma oca-
tra que “a sociedade polonesa é mui- ram dano: estavam intactas e secas. sião, um crucifixo e várias estátuas de
to mais resistente às tendências con- Santos jogados na rua na vila de Ma-
temporâneas de secularização do que
Restaurada a imagem ganda.
outras sociedades europeias”. Isso
vandalizada no Texas No domingo seguinte, desconhe-
não significa que a igreja local esteja A imagem do Sagrado Coração de cidos quebraram a mão direita da
livre de problemas, pois se “o relató- Jesus, da Igreja de São Patrício de El imagem de Nossa Senhora que se en-
rio apresenta uma instituição relati- Paso, no Texas, vandalizada em se- contrava na entrada da Paróquia de
vamente jovem e dinâmica, com for- tembro do ano passado, teve sua res- São Pio, em Legazpi, e danificaram
tes estruturas apostólicas”, não ocul- tauração terminada. outra imagem de um Anjo.

China demolirá igreja por ser “demasiadamente vistosa”

A Igreja do Sagrado Coração de Jesus, de Yining, na frontei-


ra ocidental da China será destruída como parte da política
de “sinização” promovida pelo Presidente Xi Jinping, sob o pre-
texto de ser “demasiadamente vistosa” e estar construída em ter-
reno de alto valor comercial. O edifício foi erigido no ano 2000,
fora da cidade, justamente para não ser visível; agora, porém, o lo-
cal tornou-se caminho para o aeroporto, donde a decisão de de-
molir o templo.
asianews.it

Desde 2018 esta igreja vem sofrendo danos por parte do


Departamento de Assuntos Religiosos. Fizeram retirar os quatro
baixos-relevos que adornavam a fachada, as imagens de São Pedro
e São Paulo e a cruz que coroava o tímpano, e demoliram as cúpulas A Igreja do Sagrado Coração de Jesus,
e campanários que rematavam as torres. Outras igrejas também antes e depois da primeira intervenção das
foram destruídas com a mesma justificativa. autoridades políticas

44      Arautos do Evangelho · Abril 2021


Ano de 2020, dramático para o Santuário de Fátima

O Pe. Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário de Fáti-


ma, em Portugal, revelou como o ano de 2020 foi dra-
mático pela diminuição do número de peregrinos, devido à
pandemia do COVID-19.
As cifras evidenciam o contraste entre 2019 e 2020: no
primeiro ano, houve um registro de 6,3 milhões de pere-
grinos em dez mil celebrações; no segundo, caiu para 1,4
milhão de fiéis em somente 4.384 atos litúrgicos.

Gustavo Kralj
Declarou o padre reitor que “2020 não foi só um ano
diferente e estranho: foi um ano difícil” porque “nos con-
frontou com a necessidade de fechar espaços dedicados a
acolher, receber, estar abertos”. Desse modo, também a
realização da Quaresma, Semana Santa e Páscoa se deu sendo agosto o mês com maior número de peregrinos,
sem a participação dos devotos. E acrescentou: “Tivemos com 383.293 fiéis em 448 celebrações. Em contrapartida,
que celebrar, pela primeira vez, o 12 e 13 de maio sem a os seguidores da website do santuário aumentaram.
presença física dos peregrinos, e o 12 e 13 de outubro com O Pe. Cabecinhas assinalou que “Fátima foi sempre
somente seis mil peregrinos na ampla sala de oração”. resiliente. Em mais de um século de história, experimen-
As doações ao santuário também foram drasticamente tou muitas dificuldades e sempre saiu mais forte. Quere-
reduzidas, pois dependem do comparecimento e da gene- mos que agora este também seja o caso”. E terminou ma-
rosidade dos visitantes. nifestando seu anelo: “Apesar de viver, agora, um momen-
O mês de abril foi o pior para o Santuário de Fátima. to dramático, temos a esperança de que este ano seja um
Entre maio e setembro a situação melhorou um pouco, ano de recuperação”.

Lançado dossiê sobre os de serem reconhecidos como tais ofi- ta novos casos em acompanhamento
Santos da Ordem Salesiana cialmente. pela Postulação.
A Congregação de São Francis- O documento revela já haver 9 A santidade é um caminho per-
co de Sales publicou em dezembro Santos, 118 Beatos, 18 Veneráveis e corrido em conjunto. É o que desta-
de 2020 um dossiê da Postulação Sa- 28 Servos de Deus dentro da família ca o dossiê ao afirmar que os Santos
lesiana, contendo a lista de todos os espiritual fundada por São João Bos- “estão sempre em companhia: onde
seus membros já proclamados San- co, números estes que tendem a cres- há um, sempre encontramos muitos
tos pela Igreja e os que estão em via cer uma vez que há cerca de sessen- outros”.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      45


História para crianças... ou adultos cheios de Fé?

Uma ave do Paraíso

Seu cântico era proporcional à sua beleza!


Extasiados, três meninos contemplavam
uma linda ave que pousara numa árvore.
Anahid e Dibran, porém, nada viam.

Valeria Araya Chaves

H
á muito tempo, numa pe- mas não praticantes, pois já em sua — Coisa antiquada... Historinha
quena aldeia próxima do pouca idade se encontravam submer- para criança boba.
monte Ararat, onde, se- sos no vício e no erro. O fato de três Narek, enfurecido, não se conteve:
gundo conta a lenda, re- adolescentes caminharem alegres — Tontos são vocês, que despre-
pousa a Arca de Noé oculta entre o para participar de uma cerimônia re- zam o maior dom dado aos homens: a
gelo e a rocha, viviam três meninos ligiosa era visto por eles com um as- Eucaristia! Vamos, amigos. Não per-
de famílias católicas, unidos por uma sombro que logo depois se transfor- camos tempo com estes… – e mor-
inocente amizade. Seus nomes eram mou em ódio e inveja. deu os lábios sem terminar a frase,
Vartan, Narek e Tabel. Sendo um pouco maiores do que enquanto lançava um olhar pesaro-
Numa manhã de domingo, encon- Vartan, Narek e Tabel, tramaram so àqueles rapazes que via afundados
travam-se brincando próximo ao bos- uma caçoada que os fizesse desistir. no vício.
que quando um som nobre e brilhante Para isso, ocultaram-se entre os ar- Tabel, antes de lhes dar as costas,
soou ao longe: eram os sinos da igreja, bustos e, quando os três amigos pas- prometeu:
que chamavam à Santa Missa. Ao ou- saram junto a eles, deram um grito — Rezaremos por vocês.
vi-los, Vartan imediatamente parou horrível, saíram correndo de seu es- Na Missa, durante a consagra-
de correr e disse: conderijo e riram sinistramente. ção, os três amigos se entreolharam
— Amigos, chegou a hora de rece- — Aonde vocês vão?! Não que- e juntos elevaram ao altar uma sú-
ber Jesus na Eucaristia! rem se divertir conosco? – perguntou plica por Anahid e Dibran. Pediam
Há pouco tempo eles tinham fei- Anahid. para eles a conversão ou o castigo,
to a Primeira Comunhão, e estavam Tabel, o menorzinho, respondeu mas rogavam, sobretudo, que Deus
cheios de entusiasmo primaveril. Cada com ufana firmeza: não fosse mais ofendido. Sim, pois
vez que recebiam Jesus Sacramentado — Não podemos. Agora vamos à aqueles rapazes haviam perdido seu
a graça enchia suas jovens almas. Missa. maior tesouro: a luz da inocência.
— Vamos, depressa! Não podemos — Hahahaha – riu Dibran – Que Terminada a celebração, quando
chegar atrasados! – respondeu Narek. perda de tempo! Deixem de bobagens! estavam ainda a poucos metros da
E dirigiram-se rapidamente rumo — O quê? – prosseguiu o peque- igreja, os três devotos meninos sur-
à igreja. no, indignado – Bobagem ir ao en- preenderam-se com uma silhueta lu-
Não longe deles, encontravam-se contro do próprio Deus?! minosa que passou sobre suas cabe-
Anahid e Dibran, também católicos, E Dibran continuou: ças. Mas a ­surpresa foi ainda maior

46      Arautos do Evangelho · Abril 2021


quando, pouco depois, escutaram o Mal terminara de falar, e o pás- vou os dois rapazes até o altar de Nos-
canto de um pássaro, lindo e harmo- saro emitiu uma linda melodia, que sa Senhora, e lhes disse:
nioso como nenhum outro! Curio- todos, inclusive Anahid e Dibran, — Não há nada que Ela não pos-
sos, dirigiram-se ao local de onde vi- puderam escutar. Os dois continua- sa consertar. Até mesmo a inocência
nha a doce melodia. vam procurando entre as folhas… Ela restaura. Peçam-Lhe com força e
No ramo de um robusto carvalho, mas nada viam. entusiasmo e tenham certeza de que
repousava uma ave que mais parecia — Seu canto é proporcional à sua Ela os atenderá!
joia viva do que animal desta terra. beleza! – comentou Narek. Difícil era saber, para quem con-
Era do tamanho de uma águia, com Anahid e Dibran ficaram pro- templava a cena, quem tinha mais
cabeça e pescoço muito elegantes, fundamente envergonhados. Sa- fervor: se os dois jovens converti-
recobertos por penas azuis de diver- biam ser seu estado pecaminoso o dos, ou Tabel, que desejava profun-
sos tons que lembravam o topázio e a que lhes tornava incapazes de ver a damente vê-los no caminho da vir-
água-marinha. ave. Então, o pequeno Tabel, inspi- tude…
Seu bico era fino e desafian- rado pela graça, aproximou-se deles Enquanto assim rezavam, chega-
te. Parecia feito de metal precioso. e disse: ram por fim Vartan e Narek, para
Tons de turquesa e prata refulgiam — Acho que vocês deveriam se avisá-los que a linda ave tinha par-
por todo o corpo, e seu peito pare- confessar… tido. Os dois rapazes ficaram pena-
cia feito de esmeralda. A longa cau- Eles abaixaram a cabeça. Não po- lizados. Haviam recuperado o esta-
da estava enriquecida por matizes diam negá-lo: era verdade. Arrepen- do de graça mas, mesmo
violeta. didos, foram até a igreja acompa- assim, talvez nunca
Os três meninos nunca tinham vis- nhados pelo solícito Tabel. mais poderiam ver
to coisa igual! Ao contemplar aquela Após restabelecerem a ami- aquela extraordi-
ave ficaram encantados! Não sabiam, zade com Deus, o menino le- nária criatura.
porém, que, perto deles, no Porém, re-
caminho, estavam os dois pentinamen-
rapazes incrédulos, obser- te viram en-
vando com espanto a ati- trar pela por-
tude dos amigos diante ta do templo
daquele carvalho… aquele pássa-
Anahid e Dibran se ro misterioso,
aproximaram, pensan- que sobrevoou
do que estavam caçoan- a l e g r e m e nt e
do deles, pois não viam a Rainha dos
mais que as ramagens Céus em meio a
da árvore. Aquele pás- resplendores de luz
saro era invisível para os e de cor.
olhos corrompidos pelo Os cinco meninos
pecado. não cabiam em si de feli-
Enraivecidos, grita- cidade. A graça lhes havia
ram: aberto os olhos da alma
— Que teatro ridícu- para contemplar as mara-
Ilustrações: Giuliana D’Amaro

lo é esse? Vocês querem vilhas que Deus reserva


zombar de nós? aos inocentes.
Tabel, espantado, res- Depois de um sublime
pondeu: canto de despedida, a ave
— Por acaso vocês desapareceu. Seria ela um
não veem essa ave mara- Anjo ou um pássaro do Pa-
vilhosa? Olhem que co- raíso Terrestre? Os meni-
res esplêndidas! nos nunca o souberam. Mas
E Vartan exclamou: Haviam recuperado o estado de graça mas, sua beleza, prêmio da ino-
— Deve ser, sem dúvi- mesmo assim, talvez nunca mais poderiam cência, eles jamais esquece-
da, uma ave do Paraíso! ver aquela extraordinária criatura… ram. ²

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      47


Os Santos de cada dia  ________
1. Quinta-Feira Santa. Instituição 3. Sábado Santo sionário franciscano martiriza-
da Sagrada Eucaristia. São Gandolfo de Binasco Sac- do em Thane, Índia quando se di-
Santa Maria Egipcíaca, peni- chi, presbítero (†c. 1260). Sacerdo- rigia para pregar o Evangelho na
tente (†séc. V). Famosa pecado- te franciscano, contemporâneo de China.
ra de Alexandria que, pela inter- seu fundador. Levou uma austera
10. São Beda, o jovem, monge
cessão da Santíssima Virgem, se vida de solidão em Polizzi, Sicília,
(†c. 883). Depois de servir duran-
converteu a Deus na Cidade San- e percorreu as regiões limítrofes
te muitos anos os reis da terra,
ta e levou vida penitente além do para pregar a Palavra de Deus.
passou o resto de sua vida a ser-
Jordão. 4. Domingo da Páscoa na viço do Senhor, num mosteiro em
Ressurreição do Senhor. Gavello, Itália.
2. Sexta-Feira da Paixão do Senhor.
Santo Isidoro de Sevilha, Bis-
São Francisco de Paula, ere- 11. II Domingo da Páscoa. Domingo
po e Doutor da Igreja (†636 Sevi-
mita (†1507 Castelo de Plessis- da Misericórdia.
lha - Espanha).
-les-Tours - França). Santo Estanislau de Cracóvia,
Beato José Bento Dusmet, Bis-
São João Payne, presbítero Bispo e mártir (†1079 Cracóvia -
po (†1894). Religioso beneditino
e mártir (†1582). Educado por Polônia).
nomeado Bispo da Catânia, Itália.
protestantes, converteu-se à Santo Antipas, mártir. Cha-
Fé Católica ainda jovem. Foi 5. São Vicente Ferrer, presbítero mado pelo Apóstolo João de “tes-
falsamente acusado de traição (†1419 Vannes - França). temunha fiel”, entregou a vida
e enforcado em Chelmsford, Santa Ferbuta, mártir (†c. 342). por Cristo em Pérgamo, na Ásia
Inglaterra. Irmã do Bispo São Simeão, foi Menor.
morta durante a perseguição pro-
12. Santa Teresa de Jesus de Los
movida por Sapor II, na Pérsia.
Andes, virgem (†1920). Religiosa
6. Beata Catarina de Pallanza, carmelita que consagrou sua vida
virgem (†1478). Sua família mor- a Deus pela salvação do mundo
reu vítima de uma epidemia em pecador e morreu aos vinte anos
Novara, Itália. Aos quinze anos, no mosteiro de Los Andes, Chile.
impressionada com um sermão
13. São Martinho I, Papa e mártir
sobre a Paixão, ingressou num
(†656 Quersoneso - Ucrânia).
mosteiro sob a regra agostiniana.
Beata Margarida de Città di
7. São João Batista de la ­Salle, Castello, virgem (†1320). Nascida
presbítero (†1719 Rouen - em Metola, Itália, foi abandonada
França). pelos pais em razão de ter nasci-
Santo Aiberto, presbítero e do cega. Acolhida e educada por
monge (†1140). Recitava todos os um casal, fez-se terciária domini-
dias o Saltério junto ao mosteiro cana e dedicou-se à oração e às
de Crespin, França, e ministrava boas obras.
o Sacramento da Penitência aos
14. Santo Asaco, Bispo (†séc. V). Dis-
pecadores que a ele acorriam.
cípulo de São Patrício e primeiro
Gustavo Kralj

8. Santa Júlia Billiart, virgem Bispo de Elphin, na Irlanda.


(†1816). Fundou a Congrega-
15. São Damião de Veuster, presbí-
ção das Irmãs de Nossa Senhora
tero (†1889). Religioso da Con-
de Namur e propagou ardorosa-
gregação dos Missionários dos
mente a devoção ao Sagrado Co-
Sagrados Corações de Jesus e
Santa Maria Salomé com seus filhos, ração de Jesus.
São Tiago e São João, por Bernhard Maria, que se consagrou à as-
Strigel - Galeria Nacional de Arte, 9. Beato Tomás de Tolentino, sistência aos leprosos na ilha de
Washington presbítero e mártir (†1321). Mis- Molokai.

48      Arautos do Evangelho · Abril 2021


_______________________ A bril
16. Santa Bernadette Soubirous, Beato Egídio de Assis, reli-
virgem (†1879). Depois de ter gioso (†1262). Animado pelo
sido favorecida pelas aparições exemplo de alguns amigos,
de Nossa Senhora, em Lour- tornou-se discípulo de São
des, França, ingressou na Con- Francisco e o acompanhou
gregação das Irmãs da Carida- nas pregações.
de de Nevers, onde foi modelo de
24. São Fidélis de ­Sigmaringa,
humildade.
presbítero e mártir (†1622
17. Santo Acácio, Bispo (†c. 435). Seewis - Suíça).
Foi injustamente deposto da sede Santa Maria de Cléofas
episcopal por defender a ortodo- e Santa Salomé. Junto com
xia da Fé contra a heresia de Nes- Santa Maria Madalena, fo-
tório, durante o Concílio de Éfeso. ram bem cedo no dia da Pás-
coa ao Sepulcro do Senhor,
18. III Domingo da Páscoa.
para ungir o seu Corpo, e re-
Santa Atanásia, viúva
ceberam o primeiro anúncio
(†séc. IX). Tendo falecido seu es-
da Ressurreição.
poso, tornou-se eremita em Egi-
na, Grécia. 25. IV Domingo da Páscoa.
São Marcos, Evangelista.

Reprodução
19. São Geroldo, eremita (†c. 978).
Santa Franca de Piacen-
Membro de nobre família da
za, abadessa (†1218). Supe-
Saxônia, levou uma vida de peni-
riora do mosteiro cisterciense
tência e oração na região de Vo-
de Montelana, Itália, passava
rarlberg, nos Alpes da Baviera.
noites inteiras em oração. São Pio V recebendo a notícia
20. Santo Aniceto, Papa (†c. 166). da vitória em Lepanto - Basílica
26. Nossa Senhora do Bom de Nossa Senhora de Luján
Recebeu como hóspede a São Po-
Conselho. (Argentina)
licarpo de Esmirna para tratarem
juntos sobre a data da Páscoa. Beato Júlio Junyer Padern,
presbítero e mártir (†1938). Sa- São Prudêncio, Bispo
21. Santo Anselmo, Bispo e Doutor cerdote salesiano acusado de es- (†séc. V/ VI). Governou a dioce-
da Igreja (†1109 Cantuária - Rei- pionagem e traição durante a se de Tarazona, na Espanha, des-
no Unido). Guerra Civil Espanhola. Morreu tacando-se sobretudo pelo empe-
Santo Apolônio, filósofo e már- fuzilado, oferecendo a vida pelo nho em manter a paz.
tir (†185). Cidadão romano mar- bem da Igreja e da nação.
tirizado após fazer uma insigne 29. Santa Catarina de Sena, virgem e
27. São Lourenço Nguyen Van
apologia do Cristianismo ante o Doutora da Igreja (†1380 Roma).
Huong, presbítero e mártir
prefeito Perennio e o Senado de Santo Hugo, abade (†1109).
(†1856). Preso numa noite em que
Roma. Regeu durante sessenta e um
visitava um moribundo, foi flage-
22. Santa Oportuna, abades- lado e decapitado em Ninh-Binh, anos o célebre Mosteiro de Cluny.
sa (†c. 770). Filha do conde de Vietnã, porque se recusou a pisar
30. São Pio V, Papa (†1572 Roma).
­Exmes, governou o mosteiro be- em uma Cruz.
neditino de Almenéches, França. Santa Maria da Encarnação
28. São Luís Maria Grignion de Guyart, religiosa (†1672). Após a
23. Santo Adalberto de Praga, Bis- Montfort, presbítero (†1716 morte do marido, fez profissão re-
po e mártir (†997 Tenkitten - Saint-Laurent-sur-Sèvre - ligiosa no convento das ursuli-
Rússia). França). nas em Tours, França. Fundou no
São Jorge, mártir (†séc. IV São Pedro Chanel, presbítero e Canadá um convento dedicado à
Palestina). mártir (†1841 Futuna - Oceania). educação das meninas aborígines.

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      49


Como uma árvore
abatida pela

Por acaso nossa vida não pertence a Deus? Não é verdade


que Ele cuida de nós com infinito desvelo paterno, de cujo
conhecimento não escapa nem sequer um fio de cabelo que
se desprenda da nossa cabeça?

C ontaram-me que certa vez,


realizando explorações no
interior da Rússia, um en-
genheiro alemão deparou-
-se com um pinheiro gigantesco
de, aceitou ser tratado como um de-
linquente por seu próprio superior –
santo, além do mais! –, a quem tanto
amava.
Que ligação há entre as duas situa-
raldo tinha gravada a ferro e fogo no
fundo de sua alma a convicção ina-
balável de que não seria abandonado.
Não temia receber notícias funestas,
porque seu coração, como o do sal-
atravessado na boca de um profun- ções, aparentemente tão distintas? mista, estava “firme e confiante no
do abismo. A árvore fora derrubada O que levou o santo redentorista a Senhor” (Sl 111, 7).
por violenta tempestade séculos an- superar tamanha provação com sere- Tal atitude é bem ilustrada pela
tes e, com o passar do tempo, tinha nidade foi a certeza de que sua exis- situação do pinheiro, seja ela fictícia
se transformado em pedra sólida. tência estava nas mãos de Deus, que ou não. Tudo indicava que ele seria
Naquele momento, ela jazia ali para traçava, por entre espinhos, o cami- como os demais: alto, forte, robus-
servir de ponte forte e segura para nho através do qual ele subiria ao to. Em suas ramas habitariam pássa-
os transeuntes. Céu e cumpriria sua missão. São Ge- ros e esquilos. Talvez um dia, quan-
Minha interlocutora narrou-me
ainda outro fato, desta vez tirado da
vida de São Geraldo Majella, ardoro-
so discípulo e filho espiritual de San-
to Afonso Maria de Ligório: acusado
de imoralidade e havendo cartas que
“provavam” tal calúnia, recebeu do
Daniel Schwen (CC by-sa 3.0)

venerável fundador a proibição de co-


Olga Ernst (CC by-sa 4.0)

mungar e de entrar em contato com


pessoas exteriores à Ordem, o que lhe
valeu sofrer por mais de dois meses
o vexame e a suspeita de seus irmãos
de vocação. Essa alma reta, ciente da
fraude que lhe manchava a dignida-

50      Arautos do Evangelho · Abril 2021


tempestade

Francisco Lecaros
São Geraldo Majella - Igreja Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro e Santo Afonso, Montevidéu;
embaixo árvores petrificadas fotografadas
na Namíbia, à esquerda, e Navajo (EUA),
Ir. Ana Belén Espínola Gravo, EP ao centro e à direita

do morresse, seriam fabricados mó- A enorme árvore derrubada ilus- Ele cuida de nós com infinito des-
veis de primeiríssima categoria com tra os dissabores e desafios que a vida velo paterno, de cujo conhecimen-
sua madeira… Até que uma ingente lança ao longo da existência huma- to não escapa nem sequer um fio
borrasca o deitou ao chão. na: uma quebra financeira, o faleci- de cabelo que se desprenda da

zhang kaiyv / pexels.com


É de se notar, entretanto, que a fú- mento de um ente querido, um defeito nossa cabeça (cf. Mt 10, 30)? Não
ria do vento fê-lo tombar de uma ma- pessoal que nunca conseguimos ven- temos a melhor protetora do mun-
neira providencial: suas extremida- cer… Em situações como essas, o que do, a própria Mãe de Deus? Já se
des ficaram cada uma de um lado do nos mantém firmes são as certezas en- ouviu dizer que alguém que tenha
precipício. E, conformado com sua raizadas na Fé que levamos dentro da recorrido a Nossa Senhora fosse
triste sorte, o pinheiro foi se petrifi- alma, tal como São Geraldo Majella desamparado?
cando languidamente ao longo dos no período de incompreensão. Interessante imagem essa a da
anos até adquirir uma utilidade que Por acaso nossa vida não per- madeira petrificada! Antes, simples
nunca poderia excogitar. tence a Deus? Não é verdade que lenho; posteriormente, rija e bonita
pedra, com a qual se podem fabri-
car objetos, rosários, decorações…
ou até mesmo a ponte da nossa len-
da! Isto significa que, quando des-
carregar-se sobre nossos ombros o
peso das desgraças, dificuldades e
tristezas, não podemos jamais nos
deixar afligir. Por mais que os ma-
les nos abatam, a Providência usa-
rá deles para nos tornar almas mais
fortes e decididas, resultando em
Reprodução

benefício para nós e para as gera-


ções futuras, a exemplo do santo re-
dentorista. ²

Abril 2021 · Arautos do Evangelho      51


Gustavo Kralj

Alegrias
vibrantes e
castíssimas

A Santa Igreja se ­serve


das alegrias vibrantes
e castíssimas da Páscoa para
fazer brilhar aos nossos
olhos, mesmo nas tristezas
da ­situação contemporânea,
a certeza triunfal de que
Deus é o supremo Senhor de
todas as coisas.
Cristo é o Rei da glória,
que venceu a morte e esmagou
o demônio. Sua Igreja é
rainha de imensa majestade,
capaz de se reerguer de todos
os escombros, de dissipar
todas as trevas, e de brilhar
com mais luzidio triunfo
no momento preciso em
que parecia aguardá-la a
mais terrível e irremediável
das derrotas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Cristo Ressurrecto - Igreja de Santa Maria Novella, Florença (Itália)

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