Anais Sialat g07

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GT 07B

Cidades e transformações do urbano


na América Latina

Coordenadores
Saint-Clair Trindade (NAEA/UFPA), Simaia das Mercês (NAEA/UFPA),
Philippe Plas (Universidade Paris 13, França), Sandra Helena Ribeiro Cruz (ICSA/UFPA),
Helena Lúcia Zagury Tourinho (UNAMA), Welson Cardoso (ICSA/UFPA-GETTAM).

Debatedores
Saint-Clair Trindade (NAEA/UFPA) e Philippe Plas (Universidade Paris 13, França)

Ementa: O campo da vida urbana tem sido um dos temas centrais nas análises das ciências
sociais abrigando várias abordagens pela sociologia, antropologia, ciência política, geografia
e pelo campo do urbanismo, permitindo conhecer a diversidade da cultura urbana como
mostram os estudos realizados nos diferentes países da América Latina, com abordagens
quantitativas e/ou qualitativas. Pretende-se com este GT discutir trabalhos resultantes de
pesquisa teórica ou empíricas sobre a vida urbana, considerando categorias chave como
tempo, espaço, identidade, singularidade, diferença, cotidiano, cultura, economia urbana
e global, política e planejamento urbano e regional. O GT contempla ainda trabalhos que
abordem as manifestações políticas nas cidades, ou em seu entorno mas a elas articuladas,
visando fomentar o debate crítico sobre o urbano e limites e potencialidades da ação política
e da democracia.
GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA
Sala Kp 10 – Pavilhão de Aulas do ICSA
Dia 27 de novembro de 2017 / segunda-feira

1ª SESSÃO: ECONOMIA E SUSTENTABILIDADE DE CIDADES NA AMÉRICA LATINA

Horário: 14h00 às 16h00

Coordenação: Sandra Helena Cruz (ICSA/UFPA) e Welson de Sousa Cardoso (ICSA/UFPA-GETTAM)

Comunicação Oral:

1. COLETA SELETIVA EM BELÉM (PA): COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA URBANA NA CRIAÇÃO


DE EMPREGO E RENDA PARA OS CATADORES
Vanusa Carla Pereira Santos (ICSA/ FACECON/UFPA)

2. NATUREZA E SIGNIFICADOS DA CENTRALIDADE EXERCIDA PELO COMÉRCIO VAREJISTA DE


IMPERATRIZ-MA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO SEGMENTO DE CONFECÇÕES DO
CALÇADÃO
Lucas Ribeiro da Silva (UEMA) e Jailson de Macedo Sousa (UEMASUL)

3. O COMÉRCIO PARA-FORMAL NA FRONTEIRA BRASIL-URUGUAY: OCUPAÇÕES


CONTROVERSAS DO ESPAÇO PÚBLICO
Eduardo Rocha (PROGRAU/ UFPel), Lorena Maia Resende (PROGRAU/ UFPel) e Rafaela Barros de Pinho
(PROGRAU/ UFPel)

4. AGRICULTURA, AGROECOLOGIA E RURALIDADES NA CIDADE: EXPERIÊNCIAS DE SÃO PAULO


E BOGOTÁ Vítor Amancio Borges Ferreira (PROLAM/USP) e Júlio César Suzuki (PROLAM/USP)

5. O URBANO COMO RESPOSTA AO RURAL: UMA ANÁLISE DA/NA CIDADE DE BALSAS PÓS
AGRONEGÓCIO GLOBALIZADO
Francisco Lima Mota (UEMASUL)

6. REDES TRANSNACIONAIS DE CIDADES PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA


AMÉRICA LATINA: O CASO DO ICLEI
Alberto Teixeira da Silva (UFPA), William Miranda Rocha (UFPA/UnB), Aline Rafaella Sena Pinto (UFPA) e
Deyvini Reis (UFPA)

7. O CAMPO CEGO DO URBANO LATINO-AMERICANO: INDUSTRIALISMO E CITADISMO NA


PERIFERIA DO CAPITALISMO
Rodrigo Castriota (CEDEPLAR/UFMG) e Bruno Siqueira (FACE/UFMG)

Pôster:

1. CRESCIMENTO E SUBDESENVOLVIMENTO: O CASO DA ILHA DE SÃO LUIS (MARANHÃO).


Leandro José Teixeira Barros (UFMA), Wantuil Kennedy Costa Corrêa Júnior (UFMA) e Welbson do Vale
Madeira (UFMA)
GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA
Sala Kp 10 – Pavilhão de Aulas do ICSA
2ª SESSÃO: ECONOMIA E SUSTENTABILIDADE DE CIDADES NA AMÉRICA LATINA

Horário: 16h00 às 18h00

Coordenação: Sandra Helena Cruz (ICSA/UFPA) e Welson de Sousa Cardoso (ICSA/UFPA-GETTAM)

Comunicação Oral:

1. PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DE UM DISTRITO EMPRESARIAL NA CIDADE


SARANDI/RS/BRASIL
Samueli Del Sant Signor (IMED) e Anicoli Romanini (UFSC)

2. ILHA DO COMBÚ: O INCREMENTO DO TURISMO EM FRAGMENTOS DA CIDADE RIBEIRINHA


NA METRÓPOLE
Ágila Flaviana Alves Chaves (NAEA/UFPA)

3. TERRITÓRIOS DE CONSUMO, CARTOGRAFIAS DE MERCADO: VESTIDOS, NOIVAS E VALOR EM


TRÂNSITO NAS E ENTRE CIDADES
Michele Escoura (UNICAMP)

4. O URBANO NO LITORAL AMAZÔNICO: AS REDES DA PESCA EM MARAPANIM (PA)


Paollo S. Kyprianous de Oliveira (UFPA), Márcio Douglas Brito Amaral (UFPA) e Luiz Marcelo da Silva
Barbosa (UFPA)

5. DINÂMICAS URBANAS CONTEMPORÂNEAS NA PERIFERIA DO CAPITALISMO


Lucas Souto Cândido (UFPA) e Ana Cláudia Duarte Cardoso (FAU/UFPA)

Pôster:

1. A FEIRA LIVRE SEMANAL DO MERCADO MUNICIPAL E SUA FUNÇÃO SOCIAL NO TERRITÓRIO


José Maria Pereira Sousa (UFT), Eliane Alves dos Santos Sousa (UFT) e Eliseu Pereira de Brito (UFT)

2. UM PANORAMA DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL NA ILHA DE SÃO LUIS DO MARANHÃO


AO LONGO DOS ANOS 2000: UMA APREENSÃO POR MEIO DE INDICADORES.
Wantuil Kennedy Costa Corrêa Júnior (UFMA), Leandro José Teixeira Barros (UFMA) e Welbson do Vale
Madeira (UFPA)

Dia 28 de novembro de 2017 / terça-feira

1ª SESSÃO: MEMÓRIA, CULTURA E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL

Horário: 14h00 às 16h00

Coordenação: Philippe Plas (Universidade Paris 13, França)


GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA
Sala Kp 10 – Pavilhão de Aulas do ICSA
Comunicação Oral:

1. "MUITXS - CIDADE QUE QUEREMOS": A DIVERSIDADE E A DIFERENÇA NA EXPERIÊNCIA


URBANA
Paulo Felipe Lopes de Carvalho (UFMG) e Lúcia Helena Alvarez Leite (UFMG)

2. “A ESBÓRNIA TAMBÉM ANDA DE BONDE”: CONFLITOS E DISPUTAS NOS USOS DE LUGARES DE


MEMÓRIA EM BELÉM DO PARÁ (1996-2016)
Sabrina Fernandes Santos (PPGA/UFPA) e Daniel da Silva Miranda (PPGA/UFPA)

3. ENTRE OS “MUROS” DA BAIXADA DO AMBROSIO: O BAIRRO, A VIOLÊNCIA E O CRIME,


DISCUSSÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA
José Luis dos Santos Leal (UNIFAP)

4. RAP NAS RUAS DE BELÉM: UM INSTRUMENTO ÉTICO PARA A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO DE


ENRIQUE DUSSEL
Júlia Glenda Farias Pantoja (UNINASSAU/PA)

5. MORADORAS DO BAIRRO DJARD VIEIRA: EXPERIÊNCIASTECIDAS NA TRAMA DO VIVER NA


CIDADE DE PARINTINS NO CONTEXTO DE REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL (1980-1990)
Dayanna Batista Apolônio (UFPA)

6. OS MUSEUS NAS PERIFERIAS URBANAS BRASILEIRAS: SOBRE A POLÍTICA CULTURAL DOS


PONTOS DE MEMÓRIA
Camila Moura Alcântara (UFPA)

7. IMAGINÁRIOS TURÍSTICOS URBANOS: PERSPECTIVAS DOS MORADORES DA CIDADE DE


PARANAGUÁ (PR)
Milene de Cássia Santos de Castro (UFPR) e Marcelo Chemin (UFPR)

2ª SESSÃO: PLANO DIRETOR, POLÍTICAS PÚBLICAS E O DIREITO À CIDADE NA PANAMAZÔNIA

Horário: 16h00 às 18h00

Coordenação: St. Clair Cordeiro Trindade Jr. (NAEA/UFPA) e Welson de Sousa Cardoso (ICSA/UFPA-
GETTAM)

Comunicação Oral:

1. POLÍTICA URBANA E GESTÃO AMBIENTAL: ANÁLISE SOBRE O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO


DE NOVO REPARTIMENTO (PA)
GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA
Sala Kp 10 – Pavilhão de Aulas do ICSA
Monique Helen Cravo Soares Farias (UEPA), Christian Nunes da Silva (UFPA) e Norma Ely Santos Beltrão
(PPGCA/UEPA)
2. SANTARÉM: UMA METRÓPOLE DIVERSA
Taynara do Vale Gomes (UFPA), Ana Cláudia Duarte Cardoso (UFPA) e Kamila Diniz Oliveira (UFPA)

3. O BIOMA E A ESTRUTURA URBANA DA CIDADE AMAZÔNICA


Jacy Soares Corrêa Neto (UNICAMP) e Lauro Luiz Francisco Filho (UNICAMP)

4. UMA PROPOSTA DE ZONEAMENTO DA PAISAGEM DA CIDADE VELHA A PARTIR DA


VOCALIDADE DE SEUS ATORES SOCIAIS
Sabrina Campos Costa (PPGA-UFPA/SECULT-PA)

5. AVALIADOR-CIDADÃO - A RELEVÂNCIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS NA AVALIAÇÃO DE BENS


IMÓVEIS E SUA IMPORTÂNCIA PARA A CIDADANIA PLENA
Aldemar Norek (PROARQ – UFRJ – PGE-RJ), Kátia Yamaguti (EMOP-RJ) e Douglas Milne-Jones (PGE-RJ)

6. ACESSIBILIDADE COMO CONDIÇÃO DE PERTENCIMENTO AO TERRITÓRIO ÀS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA: ANÁLISE DO PLANO DIRETOR DE MARABÁ/PA
Mirian Rosa Pereira (UFPA), Maria Edilene da Silva Ribeiro (UFPA) e Victor Fernando Ramos de Oliveira
(UFPA)

7. CENTRALIDADE E HIERARQUIA URBANA DE CIDADES MÉDIAS DO SUDESTE DA AMAZÔNIA


ORIENTAL
Roberto Antero da Silva (UFT)

Pôster:

1. CONDIÇÕES FÍSICAS DO TRANSPORTE COLETIVO NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELÉM


(PA): UMA ANÁLISE SOBRE A PRECARIEDADE NOS DESLOCAMENTOS URBANOS
Fabrício Tavares de Moraes (FACS/UFPA) e Suelen Reis da Conceição (PPGSA/UFPA)

2. O INDICE DE BEM ESTAR URBANO NOS MUNICIPIOS DA REGIÃO DO VALE DO PARANHANA:


UMA ANALISE REGIONAL
Marlon Eduardo Bauer (FACCAT) e Thiago José Dal Bosco (FACCAT)

Dia 29 de novembro de 2017 / quarta-feira

1ª SESSÃO: GRANDES PROJETOS URBANOS E EFEITOS DE SEGREGAÇÃO NAS CIDADES LATINO


AMERICANAS

Horário: 14h00 às 16h00

Coordenação: Sandra Helena Ribeiro Cruz (ICSA/UFPA) e Welson de Sousa Cardoso (ICSA/UFPA-
GETTAM)
GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA
Sala Kp 10 – Pavilhão de Aulas do ICSA

Comunicação Oral:
1. A COPA DO MUNDO FIFA 2014 E AS TRANSFORMAÇÕES ESPACIAIS EM ITAQUERA – SÃO
PAULO/SP Savanna da Rosa Ramos (USP/UNESP)

2. REQUALIFICAÇÃO URBANA E CIDADES CRIATIVAS: ESTUDO DA DINÂMICA SOCIESPACIAL DA


ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE CORDEIRÓPOLIS (SP)
Eduardo Alberto Manfredini (UNASP)

3. LA DIALÉCTICA DE LA INCLUSIÓN-EXCLUSIÓN SOCIO-ESPACIAL EN UNA CIUDAD DE LA


AMAZONIA BRASILEÑA: BELÉM
Marly Gonçalves da Silva (UFPA)

4. TRANSFORMAÇÃO URBANA: PROBLEMAS TÍPICOS DA CIDADE COM A SEGREGAÇÃO DOS


BAIRROS Clebson Carlos de Oliveira (UNIR) e Maxson José Barzani Jardim (UNIR)

5. NEOFAVELADO: JOGOS DE DISTINÇÃO E LÓGICA DA EXCLUSÃO EM UMA FAVELA


URBANIZADA DO RIO DE JANEIRO
Nicolas Quirion (IPPUR/UFRJ)

6. A (RE) PRODUÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIOESPACIAL URBANA: O CASO DA ZEIS ÁRVORES


VERDES EM TERESINA-PI
Edmundo Ximenes Rodrigues Neto (UFPI/ UESPI), Antônia Jesuíta de Lima (UFPI) e Bartira Araújo da Silva
Viana (TROPEN/UFPI)

Pôster:

1. O PROCESSO DE PERDA DA IDENTIDADE CULTURAL: PORTAL DA AMAZÔNIA, ESPAÇO


URBANO EM CONFLITO E TRANSFORMAÇÃO NA ORLA DE BELÉM
Warleson Sousa Ribeiro (UNAMA) e Romário Sousa da Silva (UNAMA)

2ª SESSÃO: MEMÓRIA, CULTURA E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL

Horário: 16h00 às 18h00

Coordenação: Philippe Plas (Universidade Paris 13, França)

Comunicação Oral:

1. A ESPETACULARIDADE DO BOI CUIRÃO: UM ESTUDO SOBRE SINGULARIDADE E VÍNCULOS


IDENTITÁRIOS NO DISTRITO INDUSTRIAL DE ANANINDEUA/PARÁ-BRASIL
Ytallo Kassio Franco de Souza (PPGSA/UFPA)
GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA
Sala Kp 10 – Pavilhão de Aulas do ICSA
2. CIDADE ANFÍBIA – PAISAGEM E SIMBOLO NA AMAZÔNIA
Jodival Mauricio da Costa (USP) e Valdelícer Fonsêca Silva (UNIFAP)
3. MUROS DE BELÉM DO PARÁ: A PLURALIDADE ÉTNICA NOS GRAFITES DE UMA CIDADE
AMAZÔNICA
Camille Nascimento da Silva (UFPA)

4. GRAFITE, PICHAÇÃO E A CIDADE: EXPERIÊNCIAS, SUBJETIVIDADES E INTERAÇÕES NO


ESPAÇO URBANO DE BELÉM
Roberta Aragão Machado (UFPA) e Manuela do Corral Vieira (UFPA)

5. “DAS QUEBRADAS DA VIDA” PARA O FACEBOOK: MEMES E A CONSTRUÇÃO DE


SUBJETIVIDADES DISCURSIVAS E MIDIÁTICAS SOBRE A PERIFERIA DE BELÉM
Daniel Loureiro Gomes (PPGL/UFPA), Manuela do Corral Vieira (FACOM/PPGCom/UFPA) e Danila Cal
(FACOM/PPGCom/UFPA)

6. PENSANDO E REPENSANDO O TRAFICO DE DROGAS EM TERESINA: ALGUNS APONTAMENTOS


Marcondes Brito da Costa (UECE/IFPI) e João Batista Moura Araújo Neto (Estácio/Ceut)

7. ENTRE A VIDA RURAL E URBANA NA DÉCADA DE 50 EM BRAGANÇA-PA


Vania Albuquerque do Nascimento (UFPA)

Pôster:

RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE NA DINÂMICA DA VIDA URBANA: UMA ETNOGRAFIA DO


TRABALHO VOLUNTÁRIO DO CENTRO ESPÍRITA IRMÃ CÁRITAS
Tom Lucas Viana Reis (UNIFAP)
Trabalhos completos
GT 07B

II Seminário Internacional América Latina:


Políticas e conflitos contemporâneos
II SIALAT
GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

COLETA SELETIVA EM BELÉM (PA): COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA


URBANA NA CRIAÇÃO DE EMPREGO E RENDA PARA OS CATADORES1

Vanusa Carla Pereira Santos (UFPA)2

E-mail: [email protected]

Resumo
A coleta seletiva em Belém-PA é uma necessidade, pois o consumo aumenta
incessantemente e a quantidade de resíduos sólidos aumenta na mesma proporção e cria o
problema sobre o que fazer com este lixo produzido. Uma das soluções tem sido
reaproveitar os resíduos, para diminuir a quantidade de lixo direcionado aos aterros
sanitários e ao mesmo tempo criar uma fonte de renda para os catadores, ou seja, um
programa de coleta seletiva, onde todos ganharão, além dos benefícios ambientais de uma
cidade livre de lixo. Assim, o objetivo deste trabalho é discutir estratégias para viabilizar a
coleta seletiva em Belém, através do sistema de cooperativas e associações, num trabalho
conjunto dos catadores, da Prefeitura, da comunidade e da UFPA. Logo, uma alternativa
para os trabalhadores, como geração de emprego e renda na economia. Esta é também
uma maneira de combater a degradação dos recursos naturais, marginalidade, exclusão
social e a deposição irregular dos resíduos sólidos. Os métodos da pesquisa são baseados
na pesquisa- ação, neste processo de indagações reflexivas e autoreflexivas a que nos
propomos neste trabalho. Dados comprovam que a coleta seletiva traz uma economia
significativa ao município de Belém, na questão da disposição do lixo no aterro, pois esta
disposição é paga e o valor tem um impacto substancial nas contas públicas. Diminuindo
esta disposição, via coleta seletiva, haverá uma diminuição nos gastos com lixo, que poderá
ser direcionada a outras áreas essenciais na sociedade.

Palavras Chave: Coleta seletiva, catadores, políticas públicas urbanas, economia solidária,
racionalidade ambiental.

1- INTRODUÇÃO

A necessidade de investigar, analisar e compreender a economia oriunda do lixo,


sua dinâmica econômica e socioambiental em Belém é um tema de extrema importância,
pois o lixo é uma questão que afeta a vida de todos e precisa ser tratado com a seriedade

1 Este artigo é um dos resultados do projeto de pesquisa e extensão: “Racionalidade Ambiental e Economia

Solidária: como alternativas de geração de emprego e renda para os catadores em Belém e RMB”, da Profa. Dra.
Vanusa Carla Pereira Santos, do GEMAS/FACECON – UFPA.
2Doutora em Ciências Sociais com área de concentração em Sociologia. Professora da Universidade Federal do

Pará (UFPA), Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente e Sustentabilidade (GEMAS), Instituto de
Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), Faculdade de Ciências Econômica (FACECON).

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que este tema exige. Neste contexto, a economia do lixo abrange o setor público através da
Prefeitura Municipal de Belém (PMB), que é responsável pelo gerenciamento dos resíduos
sólidos, pelo Ministério Público do Estado (MPE) e a Ordem dos Advogados que servem de
mediadores nos diversos conflitos entre a PMB, os catadores e a sociedade civil, pelo setor
privado, representado pelas cooperativas e catadores de resíduos sólidos e também pelo
Aterro Sanitário da Revita, onde o lixo é depositado e esta cobra por este serviço, além da
sociedade civil, pois todos nós produzimos lixo e somos responsáveis por sua destinação
final.

Assim, a problemática dos resíduos sólidos é extremamente conflituosa, pois há


interesses diversos dos atores envolvidos nesta questão. A racionalidade do mercado é
representada pelas cooperativas e associações de catadores e pela Revita, a racionalidade
ambiental engloba toda a sociedade que sofre com a mercantilização exagerada da
produção, logo tanto Estado como catadores, além da sociedade civil são responsáveis pela
preservação do meio ambiente. E a racionalidade do Estado se manifesta pelo fato do
mesmo ser o responsável pela gestão dos resíduos sólidos, principalmente o município, que
é o responsável direto, segundo a legislação vigente. Logo, há um conflito claro entre
Estado, mercado e sociedade civil que envolve interesses diversos, regidos por
racionalidades diferentes, mas que tem em comum a economia do lixo e precisam conviver
entre conflitos, contradições e semelhanças.

A partir destas contradições surge o objetivo deste trabalho que é discutir a coleta
seletiva como um instrumento de política pública urbana na criação de emprego e renda,
num trabalho conjunto dos catadores, da Prefeitura, da comunidade e da UFPA, analisando
o custo de oportunidade3 do desperdício e da falta de políticas públicas capaz de
conscientizar a população da importância da coleta seletiva dos resíduos sólidos. Partindo
da hipótese de que há um custo de oportunidade para a economia do lixo em Belém, que
está sendo desperdiçado e por isso a região está perdendo dinheiro e oportunidade de criar
emprego e renda pelo simples fato de não estar investindo na coleta seletiva. Para alcançar
este objetivo a metodologia utilizada foi a pesquisa-ação, uma pesquisa social, que possui
uma relação direta com uma ação ou resolução de um problema coletivo, onde os
pesquisadores e participantes da pesquisa estão envolvidos de modo cooperativo e
participativo. A metodologia da pesquisa-ação inclui várias etapas como a investigação, a
tematização e a programação/ação.
                                                            
3
Custo de oportunidade é um termo usado em economia para indicar o custo de algo em termos de uma
oportunidade renunciada, ou seja, o custo, até mesmo social, causado pela renúncia do ente econômico, bem
como os benefícios que poderiam ser obtidos a partir desta oportunidade renunciada ou, ainda, a mais
alta renda gerada em alguma aplicação alternativa.

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A organização dos catadores em Belém ocorre através de Redes, que trabalham de
maneira independente. Existem duas redes distintas, a Rede Recicla Pará que trabalha em
convênio com a PMB, numa espécie de parceria. Esta Rede faz a coleta seletiva em alguns
bairros em Belém. Tem também a rede que é a Central de Cooperativas do Estado do Pará,
que é associada à Organização das Cooperativas do Brasil (OCB). Esta rede não tem
nenhum vínculo com a PMB. E a dinâmica das cooperativas e associações de catadores
trabalham utilizando os preceitos da economia solidária, através da autogestão, ou seja,
uma tentativa de organizar o trabalho cooperativo e associativo, como um meio de erradicar
a pobreza e o desemprego em massa existente em nosso país. Logo, um instrumento de
política urbana para os trabalhadores, como geração de emprego e renda na economia.

Dados comprovam que a coleta seletiva proporcionaria uma economia significativa


ao município de Belém, na questão da disposição do lixo no aterro, pois esta disposição é
paga e o valor tem um impacto substancial nas contas públicas. Diminuindo esta disposição,
via coleta seletiva, haveria uma diminuição nos gastos com lixo, que poderia ser direcionada
a outras áreas essenciais a sociedade. É também uma maneira de combater a degradação
dos recursos naturais, marginalidade, exclusão social e a deposição irregular dos resíduos
sólidos. Diante disto, a questão ambiental é inserida na discussão de acordo com as idéias
de Leff (2006), através da necessidade de uma racionalidade ambiental para solucionar a
problemática da crise ambiental que se propagou em todo o mundo, através da
mercantilização de tudo no planeta. E pela constatação de que a economia de mercado não
tem conseguido resolver as questões relacionadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento
sustentável.

2 - ECONOMIA DE MERCADO E O DESAFIO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E DA


RACIONALIDADE AMBIENTAL

A racionalidade econômica da economia de mercado, onde tudo e todos devem


produzir o tempo todo, na busca da lucratividade e do crescimento ilimitado, direcionado ao
mercado, onde tudo é mercadoria, sobreviveu até aqui, entre uma crise e outra, nos ciclos
econômicos. A lógica da mercantilização, que orienta os indivíduos e as relações sociais,
hoje tem sido pensada como produtora da crise ecológica na qual o mundo está
mergulhado. Como saída para este impasse coloca-se a valorização de práticas e saberes,
a implementação e o favorecimento de ações na sociedade que tornem hegemônica outra
racionalidade, a racionalidade ambiental. A esta lógica corresponde ações constituindo
territórios em uma perspectiva multissetorial, na qual a natureza e o ambiente são
reapropriados em função de valores como a solidariedade, observância dos limites da

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natureza, o respeito à diferença e ao reconhecimento de saberes e práticas não só
científicos.
Neste mesma linha de pensamento, a economia solidária busca a transformação
social onde é possível uma coexistência entre a economia tradicional e a economia
solidária. Na questão dos resíduos sólidos em Belém, por exemplo, dependendo do
interesse em foco a abordagem terá um peso diferente para as questões sociais, políticas e
econômicas, cada um dos atores envolvidos defenderá o seu lado como o lado mais
importante e para isto utilizará os todos os argumentos possíveis. Segundo França
Filho4(2002), o que tem em comum entre a Economia Solidária, a Economia Social, a
Economia Popular e o Terceiro Setor seria uma vida social com trabalhos desenvolvidos
entre a esfera governamental e mercadológica, logo um estágio intermediário na sociedade.
Na verdade são conceitos em construção para um espaço da sociedade que começa a
discutir a distribuição da riqueza além do econômico, logo uma discussão sobre a formação
do emprego e da renda. Porém, como todo processo em construção, os conceitos para cada
uma destas denominações “econômicas sociais” ainda estão confusos e misturados, difícil
de diferenciar um do outro.
O desafio aqui é, diante destes conceitos ainda em construção, fazer uma
aplicabilidade à realidade dos fatos. Mostrar como seria possível identificar discussões
teóricas, ainda confusas, as situações vivenciadas no nosso cotidiano. No estudo de caso
aqui analisado há os diversos interesses dos atores envolvidos nesta questão dos resíduos
sólidos em Belém, com suas diferentes racionalidades e as situações de conflitos dos
diversos órgãos governamentais, setor privado e a sociedade civil, que se relacionam nesta
questão do lixo e defendem seus interesses.
Os conflitos existentes na questão da implantação da coleta seletiva em Belém,
onde existe um desperdício de dinheiro, ocasionado por da falta de políticas públicas para a
implantação da coleta seletiva na cidade, através de investimentos neste programa, na
conscientizar da população da importância da coleta seletiva e na infraestrutura necessária
para que a coleta seletiva seja implantada, através da construção de centros de triagem e
reciclagem que venham a suprir a demanda existente dos catadores da cidade. Existe um
custo de oportunidade para a economia do lixo em Belém que está sendo desperdiçado e
por isso a região está perdendo dinheiro e oportunidade de criar emprego e renda pelo
simples fato de não estar investindo na coleta seletiva.

                                                            
4
França Filho, Genauto Carvalho de. Terceiro Setor, Economia Social, Economia Solidária e Economia Popular:
traçando fronteiras conceituais. Bahia - Análise & Dados, Salvador - Bahia, v. 12, n. 01, p. 09-19, 2002.

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Quando ouvimos o discurso do Estado (PMB) ele nos diz que está fazendo o seu
papel, cumprindo o que foi exigido pela Lei 12.305/20105, ou seja, fechou o lixão do Aurá,
antigo depósito de lixo da cidade, e atualmente está depositando os resíduos no Aterro
Sanitário da Revita. Os catadores reclamam que a Prefeitura não fornece as condições de
trabalho necessárias para que eles possam produzir, galpões de separação da coleta,
caminhões para o transporte do material, qualificação da mão de obra para agregação de
valor ao material através da reciclagem, promessas feitas no fechamento do lixão do Aurá.
Outra reclamação dos catadores e também da sociedade civil que reside no entorno do
aterro do Revita é que o mesmo está se transformando num lixão a céu aberto, com o
chorume6 escorrendo pelo solo, o cheiro que emana do depósito de lixo incomoda toda a
área do entorno, na cidade de Marituba, que fica na região metropolitana de Belém, o que
resultou em diversas ações da população e dos catadores no Ministério Público do Estado
(MPE) e na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que funcionam como mediadores
nestes conflitos que envolvem a questão dos resíduos sólidos em Belém. A partir destas
denúncias, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) instituiu
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) impondo ao Revita que esta se adequasse as
normas de funcionamento de um aterro sanitário, seguindo todas as regras ambientais. O
Revita tem feitos as adequações exigidas pela SEMAS e os problemas tem sido resolvidos
aos poucos.
Diante disto podemos supor que, os problemas existem e cada um dos
interessados envolvidos na questão dos resíduos sólidos em Belém e sua região
metropolitana, apresentam suas ações como sendo as melhores e, claro, defendendo o que
é seu, nas palavras de Laville (2013) “metodologias diferentes onde as questões sociais,
políticas e econômicas têm pesos diferentes, dependendo de quem analisa e dos interesses
envolvidos”, e dizer que uma das questões é mais importante que outra é uma afirmação
difícil, pois a sociedade é um todo, composta de necessidades econômicas, sociais,
ambientais que fazem parte de um universo maior no qual todos nós participamos e nesta
questão específica do lixo, não há como dizer que qualquer cidadão não participe do
processo, pois somos todos produtores e consumidores e consequentemente produzimos
lixo e temos que conviver com este lixo, mas não o queremos dentro de nossas casas, logo
necessitamos que o mesmo tenha um destino responsável, ou seja, o problema é complexo

                                                            
5
Lei Federal 12.305/2010, lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), e dia que a partir de
agosto de 2014 não poderia mais existir lixão a céu aberto em todo o país.
6
Chorume: é uma substância líquida resultante do processo de putrefação (apodrecimento) de matérias
orgânicas. É viscoso e possui um cheiro muito forte e desagradável (odor de coisa podre). Este líquido é muito
encontrado em lixões e aterros sanitários.

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e envolve as políticas públicas, a vontade política, os interesses econômicos e a
participação ativa da sociedade civil.
A dinâmica da destinação dos resíduos sólidos em Belém é regida por uma
racionalidade de mercado e o desafio aqui é buscar uma racionalidade ambiental, utilizando
para isto as diversas alternativas da economia social, na tentativa de humanizar esta
economia tecnológica da lógica do mercado. A questão a se pensar é, se a racionalidade
ambiental poderia viabilizar uma saída aos impasses existentes nesta economia do lixo, que
é dominada pela racionalidade de mercado. Os autores que buscam uma alternativa a
economia de mercado, uma economia mais humana, social, cada um sugere uma solução
para que a sociedade se torne mais equilibrada entre os elementos que a compõe, sem que
o econômico tenha um destaque maior que o social, o cultural, o ambiental. Leff (2006), nas
discussões sobre a racionalidade ambiental acredita na construção de uma nova sociedade,
onde o trabalho conjunto e interdisciplinar seria o elemento fundamental para que o
econômico, o social, o ambiental, o político o cultural e quaisquer outras áreas do
conhecimento fossem contribuir de alguma forma, onde o resultado deste trabalho conjunto
seria uma realidade mais completa, pois haveria um diálogo constante entre as diferentes
áreas do conhecimento e isto aconteceria de forma racional, respeitando os limites da
natureza.
A racionalidade ambiental é percebida por Leff (2006) como o caminho de
superação de uma crise ambiental, da degradação ecológica provocada pela racionalidade
econômica, cujos fatores são: capital, trabalho e tecnologia. Esta racionalidade acelera a
morte do planeta. Os depósitos de lixo produzidos pelas metrópoles são parte dos efeitos da
racionalidade econômica no planeta. Outra racionalidade produtiva, onde a natureza é um
território de vida, e não uma base de recursos a ser explorada, baseada em princípios
produtivos e valores diferentes exige outra forma de produzir, outra forma de consumir, outra
forma de descartar o que é inservível para uns e não para outros.
A problemática dos resíduos sólidos é mais uma das muitas consequências
provocadas pela produção e consumo ilimitados, que levaram a crise ambiental, e resultou
num enorme volume de lixo que precisa ser redirecionado para um local devido, longe dos
centros urbanos, longe das pessoas que o produzem. E assim, como uma produção
excessiva causou a crise ambiental o excesso de lixo produzido, consequência desta
produção exagerada, aliado ao descaso das administrações públicas municipais,
responsáveis pela gestão dos resíduos sólidos, causaram a crise nos depósitos de lixo
brasileiros, pois como a maioria deles não está em conformidade com o que manda a
legislação ambiental7.
                                                            
7 Lei 12.305, de 02/08/2010 – Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS do governo federal.

3178 
 
 
 
 
 
2.1 - Coleta Seletiva: uma oportunidade de emprego e renda em Belém
O gerenciamento dos resíduos sólidos no Município de Belém se faz por meio do
Departamento de Resíduos Sólidos (DRES), tendo por finalidade o planejamento, a
execução, a coordenação, o controle e avaliação das atividades relacionadas às políticas,
procedimentos e diretrizes de Resíduos Sólidos, limpeza e conservação urbana do
município de Belém, através da Secretaria Municipal de Saneamento (SESAN).8 Essas
ações referem-se aos serviços de coleta de lixo domiciliar e entulho, serviços de roçagem,
serviços de varrição, capinação e limpeza de vias, eliminação de pontos críticos de resíduos
e entulho, limpeza de feiras e mercados, capinação e pintura de postes, meio-fio, limpeza e
desobstrução de canais, limpeza e desobstrução de valas, limpeza de bocas de lobo,
limpeza de galerias, drenagem de áreas alagáveis e alagadas, desobstrução e limpeza de
redes de drenagem e ações de Educação Ambiental.9

A economia do lixo, movida pela catação e reciclagem, está entre as atividades que
mais produzem riquezas no nosso país e também onde mais há desperdício de
oportunidades. A comercialização dos resíduos sólidos, por meio das associações e
cooperativas, contribui para o sustento das famílias dos trabalhadores, mas, principalmente,
para a proteção do meio ambiente. Assim, os catadores em Belém se organizam em
associações e cooperativas de resíduos sólidos na promoção de emprego e renda para o
setor.

Existe um custo de oportunidade10 do desperdício e da falta de políticas públicas


capazes de conscientizar a população sobre a importância da coleta seletiva dos resíduos
sólidos. Estes resíduos estão sendo desperdiçados e por isso a região está perdendo
dinheiro e oportunidade de criar emprego e renda pelo simples fato de não estar investindo
na coleta seletiva. Neste sentido, a formação de cooperativas de reciclagem surgiu com a
importância de demonstrar e reduzir o impacto ambiental dos resíduos sólidos, em
deposição da maneira incorreta, e incentivando a formação do trabalho da coleta seletiva,
com o apoio de empresas privadas, órgãos públicos e a sociedade civil. Por outro lado, a
desorganização das cooperativas de coleta seletiva demonstrou a dificuldade dessa
profissão em contribuir para a vida útil de produtos, na melhoria de práticas que reduzem o
impacto da deposição incorreta dos materiais sólidos e nas atividades sociais que envolvem
                                                            
8Portal da transparência da Prefeitura Municipal de Belém. Disponível em:
<http://ww3.belem.pa.gov.br/www/outros-2/>. Acesso em 28 jul.2016.
9Portal da transparência da Prefeitura Municipal de Belém. Disponível em:
<http://ww3.belem.pa.gov.br/www/outros-2/>. Acesso em 28 jul.2016.
10
Custo de oportunidade é um termo usado em economia para indicar o custo de algo em termos de uma
oportunidade renunciada, ou seja, o custo, até mesmo social, causado pela renúncia do ente econômico, bem
como os benefícios que poderiam ser obtidos a partir desta oportunidade renunciada ou, ainda, a mais
alta renda gerada em alguma aplicação alternativa.

3179 
 
 
 
 
 
o profissional: catador, com a questão da inclusão social e econômica desta profissão na
sociedade.

As cooperativas e associações no município de Belém já realizam a coleta seletiva


na cidade, mas ainda num número pequeno comparado com a necessidade da população.
Não existem cooperativas suficientes para atender todos os catadores, além da inexistência
da coleta seletiva para atender todas as demandas do município de Belém. Logo, há
necessidade de políticas públicas que controlem e separem o lixo produzido nas fontes
geradoras, como infraestrutura do município para o desenvolvimento desta coleta seletiva.
Assim, não há dúvidas que os catadores cooperados e associados são um alicerce para o
combate da poluição ambiental, para o desenvolvimento desta atividade informal gerando
emprego e renda para os catadores envolvidos e benefícios públicos, pois as cooperativas
contribuem para a diminuição dos gastos municipais com a disposição do lixo no aterro
sanitário particular (Revita), e esta disposição tem um custo por tonelada depositada e
também com transporte até o local. No último confronto entre catadores e a PMB11, o
governo do Estado se manifestou e se propôs a gerenciar o aterro junto com a Revita, este
processo ainda está em andamento, depois de alguns Termos de Ajustamentos de Conduta
(TAC), já emitidos pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade – SEMAS para o
aterro sanitário da Revita.
Desde julho de 2015, quando o antigo lixão do Aurá foi oficialmente “fechado”, em
cumprimento a Lei 12.305, de 02/08/2010 (PNRS) do governo federal, que o lixo de Belém é
destinado ao aterro sanitário da Revita, que possui capacidade para receber 4,6 milhões de
metros cúbicos e por isso, estima-se uma vida útil de 15 anos, com 4 lagoas de chorume em
funcionamento, com capacidade de 120mil ݉ଷ cada uma, mas o projeto prevê que sejam
construídas mais 10. Atualmente o Revita recebe em torno de 1.800 toneladas de lixo
diariamente e 100 hectares do local são destinados para o depósito de resíduos sólidos,
mas possui a capacidade de atender cerca de 3 milhões de pessoas que estão dentro das
cidades que compõem a RMB. Com a introdução do aterro da Revita, houve uma mudança
no Plano Municipal de Gerenciamento de Resíduos. Abaixo, segue o Quadro 1, fazendo
uma comparação do gerenciamento da PMB, pagando pela disposição do lixo no aterro da
Revita e se a mesma estivesse investindo na coleta seletiva.

                                                            
11
Este confronto ocorreu em abril de 2017, com o fechamento da rodovia na entrada de Belém e também o
acesso ao aterro da Revita.

3180 
 
 
 
 
 
Quadro 1: Gerenciamento do Lixo na RMB - Coleta Seletiva X Revita

Destinação Final do lixo: Coleta Seletiva X Revita

Gerenciamento PMB e Associações e Cooperativas de Empresa Privada:


catadores Capacidade 4,6m³ - estimativa
de uso: 15 anos

Custo PMB pagou para as cooperativas e Valor pago pela SESAN/PA:


associações dos catadores de materiais fevereiro de 2016
recicláveis: R$ 88.034,94.
R$ 1.390.489,14
(transporte mais aterro)

Custo de Sairia mais em conta para a PMB investir Está havendo um desperdício
Oportunidade na coleta seletiva do lixo do que de custo de oportunidade por
continuar pagando a sua disposição, falta de políticas públicas na
sem coleta seletiva prévia, no aterro PMB: coleta seletiva
sanitário da Revita.

Fonte: Elaborado pela autora

Segundo dados da Secretaria de Saneamento de Belém (SESAN)12 em 26 de


fevereiro de 2016 o custo para o deposito de lixo no aterro da Revita foi de R$ 1.390.489,14
em contrapartida o custo da PMB com as cooperativas e associações dos catadores de
materiais recicláveis foi no mesmo mês de R$ 88.034,94. Verifica-se a enorme diferença de
valores orçamentários entre as duas despesas. De acordo com estes dados, podemos
observar que sairia mais em conta para a PMB investir na coleta seletiva do lixo do que
continuar pagando a sua disposição, sem coleta seletiva prévia, no aterro sanitário da
Revita. Reforçando a nossa hipótese inicial de que há um custo de oportunidade que
poderia estar sendo aproveitado se houvesse políticas públicas feitas pela PMB neste
sentido. Ou seja, investir em coleta seletiva ainda é a melhor alternativa para uma gestão
sustentável dos resíduos sólidos, garantindo emprego e renda para os catadores,
contribuindo para o meio ambiente e para toda a sociedade. O aterro sanitário da Revita

                                                            
12
Portal da Transparência Belém (Consulta Detalhada - por empenho - SESAN - Atividade Manutenção do
Serviço de Limpeza Urbana)
 

3181 
 
 
 
 
 
(Fig.1) é subsidiada pela Guamá Tratamento de Resíduos, que foi contratada pela Prefeitura
Municipal de Belém (PMB) para cuidar dos resíduos sólidos da Região Metropolitana de
Belém (RMB) e está em pleno funcionamento.

Figura 1: Aterro Sanitário da Revita


Fonte: Santos, V. (2017)
O lixo se decompõe em duas etapas: o chorume e o gás metano, os quais são
extremamente danosos ao meio ambiente. O chorume é tratado através do processo
denominado osmose reversa, onde o liquido é drenado de dentro das células de lixo através
de mangueiras e processado com produtos químicos até estar pronto para ser descartado
no meio ambiente de forma correta. E o gás metano é queimado nos incineradores que
estão em cima das células de lixo, para ser transformado em dióxido de carbono que é 27
vezes menos poluente para o meio ambiente do que o metano. O projeto é que em 2018 o
grupo Solvi (soluções para a vida) da qual a Guamá tratamento de resíduos faz parte, feche
um contrato com uma empresa americana que irá financiar a implantação de um projeto no
aterro para transformar o gás metano que sai do lixo em energia. Antes desse lixo ser
jogado nas células é feita uma cobertura com uma “manta preta” ou geomembrana de
polietileno de alta densidade (PEAD), para que o lixo não entre em contato com o solo e o
chorume não alcance os lençóis freáticos. As células têm cada uma no máximo cinco
camadas de lixo e estão localizadas a um raio de 500 m de distância da comunidade mais
próxima para que o cheiro de lixo não incomode essas famílias. Os resíduos são quase
totalmente cobertos por terra e não tem mau cheiro. Havia também as incineradoras
queimando o gás metano em cima da parte das células que já estavam cobertas. Não havia

3182 
 
 
 
 
 
urubus (em cima das células), pois de acordo com informações da Revita, a empresa usa
um “pássaro mecânico” para afastá-los. (GEMAS, 201713).
Das 1500 a 1800 ton de lixo que chegam diariamente ao Revita, 1% destes
resíduos são doados a Associação de Catadores e Recicladores de Materiais Recicláveis de
Marituba (ACAREMA), que funciona dentro do aterro sanitário, como uma das exigências do
TAC. Esta Associação é composta por vinte e nove catadores, estando cinco deles na
administração geral. Na visita do GEMAS a Revita foi possível conversar com a
administradora da mesma, a qual nos relatou sobre o funcionamento da associação e suas
formas de ganho. Abaixo a Figura 2, o galpão de separação dos resíduos da ACAREMA.

Figura 2: Galpão de Separação dos Resíduos - ACAREMA


Fonte: Santos, V. (2017)

Os catadores trabalham de segunda a sexta de 08h ás 17h e aos sábados até o


meio-dia. A administradora nos relatou também sobre o maior problema enfrentado lá, que é
quando quebra o caminhão, cedido pela Revita. Este caminhão transporta o lixo não
aproveitado para as células, e quando o mesmo quebra eles ficam impossibilitados de
trabalhar por cerca de um, dois dias ou até uma semana.
O trabalho funciona da seguinte forma: o lixo é colocado no espaço no chão e
depois passado para esteira com o auxilio de um trator, em seguida é feita a separação por
tipos de materiais e são colocados em sacos, como garrafas pets, ferro, latinhas, etc. até
atingir a quantidade de toneladas e ser vendido para a Riopel. Os materiais mais lucrativos
para a associação são a garrafa pet e o plástico chamado “garrafa de quiboa”. Contudo,
pelo material ser “sujo” é descontado certo valor daquela quantidade.

                                                            
13
Estas informações são o resultado de uma visita de campo realizada ao Aterro da Revita no dia 26 de junho de
2017, pelo Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente e Sustentabilidade – GEMAS, UFPA.

3183 
 
 
 
 
 
A administradora também nos relatou que os catadores ganham uma renda maior
trabalhando dentro do Revita do que nas ruas, cerca de 300,00 por mês e por catador. Os
materiais necessários para a manutenção da associação são comprados com a renda obtida
da venda de dois materiais: o vidro transparente e o plástico da sandália rider. Para entrar
na associação são necessários apenas os documentos pessoais e numero do Nicho de
catador (que corresponde ao PIS).

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade de uma economia mais humanizada e social é uma discussão que
não tem mais volta. A ideia da economia de mercado foi única por muito tempo, mas já não
explica os problemas da sociedade atual. Por isso tantos novos conceitos estão sendo
discutidos e criados, rumo a uma sociedade mais justa. O processo ainda está em
construção, às ideias estão se organizando, mas o caminho está sendo traçado.
A construção de um novo paradigma sustentável, com racionalidade ambiental
significa que a sociedade precisa se conscientizar de que o mundo necessita da natureza e
que esta tem um limite, ou seja, ela é finita e deve ser utilizada com coerência,
racionalidade, responsabilidade e bom senso. Logo, estamos falando de algo limitado, com
limites físicos, culturais, econômicos e produtivos.

Este trabalho se propôs a analisar e compreender um processo no qual iniciativas


econômicas vinculadas ao lixo, dirigidas por uma racionalidade de mercado, tem lugar em
um contexto onde se aplicam instrumentos de política pública ambiental na forma da coleta
seletiva solidária, através de métodos da economia solidária, utilizando a autogestão.
A questão diz respeito ao confronto e, talvez, combinação de racionalidades na
constituição de uma sociedade mais justa, constituída por ações orientadas pela
racionalidade capitalista (de mercado) e por ações que consideram exigências de outra
ordem, ou seja, a racionalidade ambiental. Assim, a discussão dos fatores que envolvem a
economia dos resíduos sólidos e consequentemente, sobre os catadores, significa o início
da elaboração de uma realidade sustentável e colaborativa dos agentes principais da
problemática.

A formação de cooperativas no município de Belém e RMB destaca nitidamente a


posição social de pessoas excluídas do mercado e que por uma finalidade de renda, não
havendo outra opção, entram na cooperativa. É demonstrado que as organizações dos
catadores em cooperativas qualificam o seu papel social, formando um grupo com maior
destaque na realização de atividades e na cobrança de suas demandas internas e externas,

3184 
 
 
 
 
 
assim, é destacado que os problemas envolvidos não são mínimos e independentes,
principalmente na sua relação com o poder público. É notório identificar as carências que
esse tipo de serviço apresenta na realidade, e da mesma maneira, é de fácil identificação as
políticas voltadas para suprir essas necessidades.
Logo, a situação do resíduos sólidos em Belém se agravou após a finalização das
atividades do aterro do Aurá, que deixou catadores sem renda e não houve uma
implementação de políticas públicas urbanas para realocar essas pessoas, muitos indo
trabalhar em semáforos ou trabalhando como ambulantes em Belém. Dentro das
cooperativas e associações, é identificado a falta de uma gestão administrativa, sem um
acompanhamento de consultoria do poder público, limitando-se a administrações de
organizações como esta, a apenas a anotação da produção e seu valor remunerativo de
cada catador.
Além disso, de acordo com os dados levantados, ficou claro que seria mais em
conta para a PMB investir na coleta seletiva do lixo do que continuar pagando a sua
disposição, sem coleta seletiva prévia, no aterro sanitário da Revita. Reforçando a nossa
hipótese inicial de que há um custo de oportunidade que poderia estar sendo aproveitado se
houvesse políticas públicas feitas pela PMB neste sentido. Ou seja, investir em coleta
seletiva ainda é a melhor alternativa para uma gestão sustentável dos resíduos sólidos,
garantindo emprego e renda para os catadores, contribuindo para o meio ambiente e para
toda a sociedade, diminuindo os gastos públicos no contrato com empresas privadas para o
serviço de coleta e utilizando o que seria gasto para enterrar o lixo em obras sociais, tão
necessárias no nosso município.
O Aterro sanitário da Revita está sendo reestrutrurado, cumprindo algumas
exigências da SEMAS – PA, através do Termo de Ajuste de Conduta – TAC – 2017, depois
de muitos protestos da população do entorno do Aterro, reivindicando a mudança de local
do mesmo, pelo fato do mau cheiro que exalava do aterro. Diante disso, a situação está
sendo ajustada. E a esperança que a situação dos resíduos sólidos em Belém e RMB seja
solucionada.

4 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei no. 12.305/2010, Política Nacional de Resíduos Sólidos, Legislação


Brasileira. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ato2007-2010/lei/12305.htm,
acesso em maio 2014.

3185 
 
 
 
 
 
Fé, C.F.C.M., FARIA, M.S. Catadores de Resíduos Recicláveis, autogestão, economia
solidária e tecnologias sociais. In: Zanin, M, Gitierrez, R.F. (org.) Cooperativas de
Catadores: reflexões sobrepráticas. São Carlos : Claraluz, 2001, E-Book.

FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de. Terceiro Setor, Economia Social, Economia
Solidária e Economia Popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia - Análise & Dados,
Salvador - Bahia, v. 12, n. 01, p. 09-19, 2002.

FERNANDES, R .C., Privado porém público – o terceiro setor na América Latina, ed.
Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1994.
KRAEMER, Maria Elisabeth Pereira. Gestão Ambiental: um enfoque no desenvolvimento
sustentável. Disponível em http://www.gestaoambiental.com.br. Acesso em 16 nov 2004.

LAVILLE, J-.L. e EME, B., “Pour une approche pluraliste du tiers secteur”, in Mana, Revue
de Sociologie et d’Anthropologie, Presses Universitaires de Caen, n.7 (dossier :
“France/Brésil - Politiques de la question sociale”), premier semestre 2000.

Laville, Jean-Louis Professor do CNAM – Paris – Seminário: Sociologie de l´economie


solidaire et desmouvements sociaux. Perspectives croisées.
http://www.ehess.fr/fr/enseignements/2012/eu/800/ Seminários realizados no primeiro
semestre de 2013 – CNAM – EHESS – Paris – França.
LEFF, Enrique - Entrevista a Pagina 22, em julho de 2010.
http://pagina22.com.br/index.php/2010/07/entrevista-enrique-leff/
LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. Ed. Cortez - SP, 2002.

LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental – A Reapropriação Social da Natureza. Ed.


Civilização Brasileira – RJ, 2006.

3186 
 
 
 
 
 

GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

NATUREZA E SIGNIFICADOS DA CENTRALIDADE EXERCIDA PELO COMÉRCIO


VAREJISTA DE IMPERATRIZ-MA: uma abordagem a partir do segmento de
confecções do Calçadão

Lucas Ribeiro da Silva (Universidade Estadual do Maranhão)1


[email protected]

Jailson de Macedo Sousa (Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão)2


[email protected]

RESUMO

Este artigo buscou refletir e compreender as expressões e significados da centralidade


econômica desempenhada pelo comércio varejista da cidade de Imperatriz. Elegemos como
recorte espacial o Calçadão, que é uma área tradicional deste segmento, já que concentra a
maior quantidade de estabelecimentos ligados ao setor varejista. Procuramos refletir sobre
os aspectos históricos da urbanização brasileira e seus desdobramentos na região
Amazônica, contextualizando alguns elementos do processo de urbanização de Imperatriz.
Buscamos relacionar as formas de comércio encontradas no Calçadão com a formação de
centralidade conduzida pelo setor terciário. Como estratégias metodológicas, as opções
adotadas para o desenvolvimento deste estudo se pautaram na abordagem qualitativa, por
entendermos que a cidade se apresenta como um espaço dinâmico que é construído por
distintos sujeitos que apresentam diferentes interesses. Também fizemos o uso da técnica
de entrevistas. Estes instrumentos foram amparados nas contribuições metodológicas
fornecidas por Gil (2010) e Lakatos & Marconi (2003).

Palavras-chave: Centralidade, Comércio, Imperatriz.

1. INTRODUÇÃO

Este estudo aborda aspectos essenciais da dinâmica do comércio varejista


materializado na cidade de Imperatriz – MA. Buscamos compreender como se encontra a
estrutura e o funcionamento deste segmento, dando um enfoque maior para o setor de
confecções, tendo em vista que esse desempenha fortes expressões no cenário do
comércio imperatrizense. A área escolhida para a realização deste estudo foi o Calçadão, já
que esta é uma das áreas de maior concentração deste segmento, conforme mostram as
fotos 1 e 2 a seguir.
                                                            
1Professor Substituto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão/IFMA.
2Professor Adjunto I da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão/UEMASUL.

3187 
 
 
 
 
 

Foto 1: Imperatriz/MA – Calçadão. Foto 2: Imperatriz/MA – Calçadão.


Fonte: SILVA, 2016. Fonte: SILVA, 2016.

É reconhecido que o comércio varejista se apresenta como uma das principais


atividades econômicas de Imperatriz, tendo grande importância no contexto municipal e
regional, sendo um dos principais geradores de emprego e renda para muitas famílias. Por
estar se expandindo e se consolidando na economia municipal, este segmento tornou-se um
grande propulsor de fluxo de capitais e de pessoas, colocando Imperatriz em segundo lugar,
no ranking das cidades com maior PIB do estado Maranhão.
Nesta interpretação, foi necessário entender os elementos que evidenciam o
fenômeno urbano no Brasil, que tem sido marcado por intensa diversificação e
complexidade das cidades.
No processo de diversificação e complexidade da urbanização brasileira, há desde a
década de 1950 um aumento significativo da população urbana em relação às populações
rurais, ou seja, o ritmo de crescimento da população urbana é superior ao ritmo da
população rural. Nesse contexto, cabe destacar alguns fatores que contribuíram para esse
processo. São eles: O processo de industrialização, que motivou a migração para as
grandes cidades que passaram a polarizar a economia do país; A modernização dos
processos produtivos no campo, que passou a absorver cada vez menos mão-de-obra e os
papeis atribuídos a mídia, que através do rádio e televisão, induziram a população do campo
a migrar para as cidades.
Neste contexto, o presente trabalho propõe compreender a centralidade do
segmento varejista e a sua influência para a economia urbana de Imperatriz. Além disso,
pretendemos analisar a estrutura e dinâmica do segmento varejista, considerando a
participação do setor de confecções no Calçadão de Imperatriz – MA.
Compreendemos que a metodologia nos estudos de natureza científica se constitui
mediante a adoção de abordagens teóricas, métodos científicos e técnicas de pesquisa que

3188 
 
 
 
 
 
são condizentes aos processos de investigação desenvolvidos pelo pesquisador. Para tanto,
este estudo utilizou a abordagem de natureza qualitativa, por esta propiciar uma melhor
análise do problema em questão. O método científico adotado foi o dialético, já que este se
propõe a penetrar no mundo dos fenômenos por meio de sua ação recíproca, da
contradição inerente ao objeto investigado e a mudança dialética que ocorre na natureza e
na sociedade. Além disso, foram utilizadas como técnicas de investigação a observação
simples e as entrevistas estruturadas.
Este estudo nos orientou a (re)pensar o contexto urbano de Imperatriz, para entender
elementos fundamentais da sua dinâmica recente, além de fornecer uma direção para a
compreensão da centralidade do segmento varejista imperatrizense, principalmente no que
diz respeito a área do Calçadão. Também serviu de estímulos para compreender a função
que esta atividade desempenha no cenário econômico da cidade. Com isso verifica-se a
importância deste estudo, já que possibilitou uma análise e compreensão do comércio
varejista em Imperatriz.

2. A URBANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: COMPLEXIDADE E


DIVERSIFICAÇÃO

O processo de urbanização contemporâneo difundido no território brasileiro evidencia


marcas e características de uma urbanização que se apresenta, ao mesmo tempo, como
complexa e diversificada. Esta diversificação é resultante de intensas desigualdades e
diferenças. Estes são traços particulares à formação do espaço regional brasileiro e ao
modo como a divisão territorial do trabalho tem atuado nas diferentes regiões do país. A
este respeito, Santos (1996) destaca:

A rede urbana brasileira é cada vez mais diferenciada, cada vez mais
complexificada. Cada cidade e seu campo respondem por relações
específicas, próprias às condições novas da realização da vida econômica e
social do país. A complexa organização territorial e urbana do Brasil guarda
profundas diferenças entre suas regiões. Em 1980, é a região Sudeste a
mais urbanizada, com um índice de 82,79%. A menos urbanizada é a região
Nordeste, com 50,44% de urbanos, quando a taxa de urbanização do Brasil
era de 65,57%. (SANTOS, 1996, p. 53-58).

Estas diferenças regionais da urbanização brasileira encontram estreitas explicações


em razão do modo como a divisão territorial do trabalho, ou seja, da maneira como as
especializações produtivas têm manifestado no território brasileiro. Quanto mais
especializações produtivas se estabelecerem nas regiões brasileiras, mais intenso será o
processo de urbanização no Brasil.

3189 
 
 
 
 
 
O processo de urbanização contemporâneo no Brasil adquiriu maior visibilidade,
sobretudo, após a segunda metade do século XX, com a inserção das atividades industriais
no Centro-Sul do país e as especializações produtivas que irão se irradiar nas distintas
regiões brasileiras. A tabela 1 indicada a seguir ilustra essa realidade de acordo com cada
região brasileira.

Tabela 1: Evolução Regional da População Urbana Brasileira (1950-2010) - %


Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul
Centro-
Oeste
1950 36,2% 31,5% 25,4% 47,5% 29,5% 24,4%
1960 44,9% 37,4% 33,9% 57,0% 37,1% 34,4%
1970 55,9% 42,6% 41,8% 72,7% 44,3% 50,7%
1980 67,6% 50,3% 50,5% 82,8% 62,4% 70,8%
1991 75,5% 59,0% 60,6% 88,0% 74,1% 81,3%
1996 78,4% 62,0% 65,0% 89,0% 77,0% 84,0%
2000 81,2% 69,9% 69,1% 90,5% 80,9% 86,7%
2010 84,4% 73,5% 73,1% 92,9% 84,9% 88,8%
Fonte: BAENINGER (2003). Dados atualizados conforme resultado do censo 2010
Organização: FERNANDES (2011)

Nas regiões sul e sudeste o desenvolvimento da indústria foi mais expressivo,


permitindo a instalação de um sistema moderno de transportes e comunicações, facilitando
assim, a ampliação do comércio e a expansão da produção. Com isto se intensificaram as
relações econômicas permitindo, consequentemente o avanço e a consolidação do
processo de urbanização no território brasileiro.
Esse fato se deu graças aos incentivos que essas regiões passaram a receber na
década de 1960, principalmente São Paulo, que passou a ser a maior área produtiva e
polarizadora de recursos do Brasil, por deter maior disponibilidade de capitais, trabalhadores
qualificados e infraestruturas adequadas. Sobre estes fatos, Milton Santos (1994) enfatiza:

No Sul e no Sudeste, onde existe uma rede urbana mais desenvolvida, a


interação entre as cidades acelera o processo de divisão territorial do
trabalho que lhes deu origem e, por sua vez, vai permitir o avanço dos
índices de urbanização, renovando assim, num círculo virtuoso, os impulsos
para um novo patamar na divisão internacional do trabalho. (SANTOS,
1994. p. 60).

A situação urbana de cada região brasileira, também pode ser explicada através das
mudanças que ocorreram em função da divisão internacional do trabalho. A organização das
atividades econômicas tem acarretado diferenciações notáveis entre as regiões brasileiras,
visto que, quanto maior for a divisão do trabalho em determinada área, maior será a taxa de
urbanização ali presente.

3190 
 
 
 
 
 
Mais recentemente, todas as regiões do Brasil passaram a vivenciar um notório
aumento em seu processo de urbanização, mesmo acontecendo em formas e níveis
diferentes. Isso se dá graças às variadas formas de utilização de técnicas modernas no
território brasileiro. Nas décadas de 1960 e 1970, essas mudanças não são apenas em
níveis quantitativas, mas também qualitativas. Nessa direção, Milton Santos (2011)
comenta:

As técnicas da produção e da circulação e o uso dos novos meios de


transporte e informação permitiram a uma boa parte da população brasileira
vencer as mesmas distâncias em tempo menor e, desse modo, contribuíram
para a proliferação de núcleos urbanos. Essa nova divisão territorial do
trabalho aumenta a necessidade do intercâmbio, que agora se dá em
espaços mais vastos. Afirma-se uma especialização dos lugares no Brasil
que, por sua vez, alimenta a especialização do trabalho. (SANTOS, 2011, p.
135-279).

As especializações produtivas se disseminaram pelo território brasileiro. Nenhuma


região do país tem escapado às racionalidades impostas pelo capital nesta atual fase. Este
processo tem implicado em uma reestruturação do país, sendo notória em suas distintas
regiões. Esta reestruturação expressa as estreitas ligações do país com a atual fase da
globalização.
Santos (2005, p. 146) nessa direção afirma, “a instantaneidade da informação
globalizada aproxima os lugares, torna possível uma tomada de conhecimentos imediatas e
cria entre esses lugares uma relação unitária na escala do mundo”. Para compreendermos
este caráter complexo e diversificado que tem mobilizado o processo de urbanização no
Brasil, é interessante situar as especificidades desse fenômeno, considerando a realidade
da urbanização amazônica. É sobre estes aspectos que iremos discorrer a seguir.

3. FORMAS E CONTEÚDOS DA URBANIZAÇÃO AMAZÔNICA

Desde a década de 1950, a Amazônia brasileira vem sofrendo grandes mudanças


em seu cenário socioespacial. Estas mudanças foram acarretadas em razão da adoção de
várias ações socioeconômicas, que até então era considerada como um “espaço vazio”.
Nessa direção, Becker (1991) comenta:

Num outro ângulo, situa-se o mito da imagem oficial difundida sobre a


fronteira como “espaço vazio”, noção que estrategicamente serve de válvula
de escape a conflitos sociais em áreas densamente povoadas e de campo
aberto para investimentos. (BECKER, 1991. p. 10).

3191 
 
 
 
 
 
Nesse sentido, era necessária a inserção da Amazônia no processo de ocupação,
visto que o Brasil passava por um estreito vínculo com o sistema capitalista global. Esta
interação com o mundo capitalista permitiu que o território brasileiro vivenciasse grandes
mudanças, ocasionadas pelo acelerado surgimento de inovações.
Outro fator determinante para a intensificação da ocupação e povoamento da
Amazônia brasileira é o fato de ser considerada uma região com grande valor econômico, o
que facilitaria a reprodução do capital. Sobre estes aspectos, Becker (1982) fala:

As fronteiras de recursos são definidas como zonas de povoamento novo,


em que o território virgem é ocupado e tornado produtivo. [...] Em virtude do
alto valor de seus recursos naturais e do seu despovoamento, esta região é
capaz de absorver inovações e atrair efeitos de difusão do crescimento.
Constitui-se, assim, como uma fronteira de recursos, ou seja, uma região de
novas oportunidades. (BECKER, 1982, p. 650).

A ocupação da Amazônia passou a ser uma prioridade durante os governos


militares, que tinham como objetivo a implantação de uma rede de integração espacial, que
visava a modernização do país e a conexão do território amazônico não somente com os
espaços produtivos do Brasil mas também ao mundo. A este respeito, Becker (1991)
enfatiza:

A ocupação da Amazônia se torna prioridade máxima após o golpe de 1964,


quando, fundamentado na doutrina de segurança nacional, o objetivo básico
do governo militar torna-se a implantação de um projeto de modernização
nacional, acelerando uma radical reestruturação do país, incluindo a
redistribuição territorial de investimento de mão-de-obra, sob forte controle
social. (BECKER, 1991, p. 12).

Através desses fatos indicados, notamos que a urbanização da região amazônica foi
motivada em razão do desenvolvimento de programas e projetos governamentais, com o
intuito de integrar a região ao resto do país, fazendo com que esta região conhecesse novos
padrões de urbanização, adquirindo formas e conteúdos atrelados ao processo de
reprodução de capital, que permitiram a intensificação da ocupação e povoamento da região
amazônica e de suas cidades.
Ao considerar estas transformações socioespaciais ocorridas na Amazônia brasileira
a partir de 1950 é que situamos as particularidades destas alterações na cidade de
Imperatriz, uma vez que esta cidade encontra-se estabelecida nos limites territoriais da
Amazônia Legal.

4. CENTRALIDADE URBANA: revisitando conceitos

3192 
 
 
 
 
 
Este espaço é dedicado à compreensão do conceito de “centralidade urbana”, que se
apresenta como conceito essencial nos processos que envolvem a produção do espaço
urbano. Neste caso, analisamos a centralidade que vem sendo produzida através do
segmento terciário, em particular a centralidade desenvolvida a partir do segmento de
comércio varejista materializado na cidade de Imperatriz.
Nesta análise, a centralidade urbana se apresenta como um conceito chave que
permite a compreensão das relações e interações socioespaciais estabelecidas no interior
das cidades e ainda, em relação às interações estabelecidas em um contexto interurbano.
Dessa forma, o Calçadão de Imperatriz se apresenta como uma área que exerce tal
centralidade urbana voltada às atividades terciárias. Isso se explica, pelo fato de ser um
espaço que dispõe e concentra um maior número de estabelecimentos varejistas. Além
disso, passa a gerar e manter fluxos (de pessoas, capitais, mercadorias, etc), o que faz
dessa área um espaço diferenciado, com um maior poder de articulação e atratividade.
Cabe ressaltar que tal centralidade não é exercida pelo fato de estar localizada no
centro da cidade, e sim por se manifestar a partir da reunião e concentração de atividades
econômicas dominantes do lugar central, que em geral, são oferecidas em relação aos
demais espaços da cidade.
A cidade em sua forma é vista como uma paisagem que contem muitas marcas
deixadas pela história. Desse modo, para esta análise é indispensável a associação da
cidade com centralidade urbana. Assim, Whitacker (2003) enfatiza:

Não existe cidade sem centralidade por isso, se compreende que a única
categoria que pode ser utilizada para definir a cidade em todos os tempos é
o centro. Mas deve-se procurar compreender o conteúdo da centralidade
nos diferentes momentos históricos e recortes empreendidos para sua
apreensão, na perspectiva de se entender como ela se realiza no âmbito de
diferentes formações sociais. (WHITACKER, 2003, p. 127).

Este comando pode se manifestar a partir da reunião e concentração de atividades


econômicas dominantes do lugar central, que em geral, são oferecidos em relação aos
demais espaços da cidade. É através desta posição hierárquica e das relações de
complementaridade e dependência que o lugar central exerce, em relação aos demais que a
centralidade urbana se afirma. Conforme Iara França (2012) comenta:

Aquelas cidades que desempenham importantes funções na rede urbana


em que se inserem são denominadas de lugares centrais ou localidades
centrais, ou seja, são dotados de centralidade. São espaços dinâmicos,
podendo conduzir toda a rede urbana ao dinamismo. A configuração da
rede mostrará a hierarquia das cidades (ou lugares centrais), conforme a
posição e área de influência de cada uma delas, o que decorre de seu
dinamismo e da sua especialização. [...] A centralidade resulta da

3193 
 
 
 
 
 
capacidade de polarização de alguns centros nas redes em que se inserem.
(FRANÇA, 2012, p. 70).

A compreensão de centralidade urbana não pode ser entendida sem a participação


das atividades terciárias, uma vez que esta relação gera um (re)ordenamento das atividades
que estavam limitadas apenas ao centro principal da cidade. Segundo Beltrão Sposito
(2001):

Essa redefinição da lógica de reestruturação interna das cidades resulta,


ainda, de uma tendência de concentração econômica de empresas do setor
comercial e de serviços, o que leva a uma ampliação dos estabelecimentos
de médio e grande porte, ligados muitas vezes a empresas de porte
nacional e transnacional. (SPOSITO, 2001, p. 236).

Dessa maneira, podemos considerar que as transformações do comércio e a


necessidade de consumir os produtos associados às imagens impulsionaram as mudanças
no comércio, além da “globalização da economia que contribuiu para acelerar as mudanças
dos lugares, através da “expansão urbana e da explosão do consumo” (SANTOS, 1996, p.
15).
A compreensão da constituição da centralidade urbana requer o entendimento das
interações espaciais entre os núcleos urbanos. O entendimento destas interações passa
pelos significados conferidos aos fluxos materiais e imateriais estabelecidos entre eles. Ao
considerar o dinamismo desses fluxos em Imperatriz, as interações espaciais encontram
fortes explicações em razão da pujança conferida ao terciário, sobretudo, à força
socioeconômica comandada pela atividade comercial e a prestação de serviços. Montessoro
(2006) nesta direção afirma:

A centralidade pode ser entendida pelos fluxos estabelecidos nas diversas


áreas que compõem o tecido urbano, pois é uma justaposição de
movimentos que assinalam as constantes mudanças no tempo e no espaço
em função da localização de atividades comerciais e de serviços por toda a
cidade, umas com densidade maior que outras, sendo comum a cada nova
localização das formas espaciais a constituição de nós de circulação e
articulação entre as pessoas, mercadorias, informações que fazem parte do
todo social. (MONTESSORO, 2006, p. 65).

Esses apontamentos sobre a constituição da centralidade urbana contribuíram para


expressar algumas ideias a respeito da temática, já que estaremos partindo dessas
concepções para analisar a realidade da cidade de Imperatriz - MA num contexto de
relações entre os diversos atores sociais e a produção do espaço urbano. Assim sendo, o
item a seguir aborda resultados parciais obtidos nesse período de pesquisa.

3194 
 
 
 
 
 
5. A CIDADE DE IMPERATRIZ E A CONSTITUIÇÃO DE CENTRALIDADE DO COMÉRCIO
VAREJISTA

Como optamos por trabalhar aspectos do dinamismo do comércio varejista, e a


centralidade exercida por este, elegemos nesse contexto as formas tradicionais de
comércio, representadas nesse caso, pelo segmento de confecções na área que
compreende o calçadão3 que se localiza no centro tradicional ou principal desta cidade.
As atividades comerciais inseridas na cidade têm papel de grande importância para a
compreensão da urbanização, já que na medida em que ocorre o crescimento populacional
em algumas localidades, este segmento serve de suporte à manutenção social e econômica
da população. A respeito desta relevância das atividades comerciais Pintaudi (1999)
pondera:

Mas as atividades comerciais e de serviços, embora com transformações,


permanecem ali, pois são constitutivas do modo de vida urbano e, por tanto,
da forma urbana, mesmo quando aparecem em locais como as rodovias.
Assim, entendemos que a análise do comércio permite uma melhor
compreensão do espaço urbano, na medida em que comércio e cidade são
elementos indissociáveis, como podemos comprovar historicamente.
(PINTAUDI, 1999, p. 144).

No caso de Imperatriz, estas atividades foram instaladas desde a década de 1980 e


é reconhecido que elas passaram a exercer fortes expressões e importância para a
economia urbana e regional desde então. A este respeito são válidas as contribuições
fornecidas através dos estudos de Sousa (2013)

No caso específico de Imperatriz, observa-se desde o início da década de


1980 forte destaque econômico desta cidade no cenário regional em face da
difusão da atividade comercial bem como a ofertas de diversos serviços,
especialmente, àqueles ligados à educação superior, serviços públicos e
privados de saúde manifestado por meio da ampliação significativa de
clínicas especializadas e há que se ressaltar ainda, no período recente o
avanço do segmento da construção civil, através do aumento de edificações
nesta cidade. (SOUSA, 2013, p. 15).

Para definição do número de estabelecimentos ligados ao setor de confecções,


realizamos um recorte espacial delimitando a área que corresponde ao calçadão, que é a
Av. Getúlio Vargas, que fica entre as ruas Simplício Moreira e Sousa Lima, para aplicarmos
os roteiros de entrevista. Conforme podemos observar no mapa 1 de localização da área de
estudo:

Mapa 1: Localização da área de estudo


                                                            
3 Verificar Mapa 1 - Localização da área de estudo.

3195 
 
 
 
 
 

Fonte: ARAÚJO, 2016.

O motivo para a escolha dessa área se deu pelo fato de ser a mais movimentada,
onde há mais estabelecimentos voltados para o comércio varejista. Além disso, existem
razões de qualificação deste espaço urbano, sobretudo na utilização de transportes
públicos, o que facilita o deslocamento não só de pessoas residentes em Imperatriz, mas
também para os visitantes ocasionais.
A realização das entrevistas se deu em dois momentos distintos. A primeira etapa foi
realizada entre os dias 20 a 24 de junho de 2016. Na qual a finalidade central foi
compreender os motivos que levaram os comerciantes a instalarem suas lojas no Calçadão
e a analisar o valor que essa área comercial representa para os comerciantes.
A segunda etapa de execução das entrevistas ocorreu nos dias 29 e 30 do mesmo
mês, sendo direcionada ao representante da associação dos lojistas do Calçadão, no intuito
de entender o papel que essa área desempenha na vida desses comerciantes e das
pessoas que a frequentam. O quadro 1 a seguir, mostra as etapas desta pesquisa.

3196 
 
 
 
 
 
Quadro 1: Imperatriz – Sujeitos da Pesquisa, 2016
MUNICÍPIO SUJEITOS FINALIDADES DATA
- Lojistas/ Encarregados - Compreender a noção de
(Gerentes) do setor de centralidade econômica dessa
confecções do Calçadão de área tradicional de comércio 20 a 24/06/2016
Imperatriz (20); varejista e sua
Imperatriz representatividade para os
lojistas e clientes que frequentam
essa área. 29 e 30/06/2016
- Representante da
associação dos lojistas do - Entender o papel que essa área
Calçadão (01). desempenha na vida desses
comerciantes e das pessoas que
a frequentam.
Organização: SILVA, 2016.

Na área delimitada foram contabilizados 50 estabelecimentos, na qual foram


aplicados 30 roteiros de entrevista. Tais roteiros permitiram a compreensão da centralidade
exercida pelo comércio varejista (setor de confecções) e constituição de uma centralidade
urbana para a cidade de Imperatriz.
Com relação aos dados colhidos, o roteiro de entrevista apurou que os proprietários
dos estabelecimentos situados no calçadão estão implantados nesta área há mais de 3
anos, o que mostra a representatividade exercida por esse centro comercial.
Por meio destes roteiros, foi possível perceber ainda os fatores determinantes para
estes estabelecimentos se concentrarem nessa área. Fora o valor afetivo, que se dá pelo
fato deles considerarem uma área central, onde terão clientela garantida, pois ao se falar em
compras de confecções, a população tem o calçadão como o centro de concentração deste
segmento.
Das respostas dadas pelos comerciantes, 100% afirmam atender clientela de outros
municípios do Maranhão, tais como Carolina, Açailândia, João Lisboa, etc; e até mesmo de
outros estados, como é o caso do Tocantins e Pará, o que apenas confirma a influência
exercida pelo comércio de Imperatriz, às cidades do seu entorno.
A origem das mercadorias é variada. Do total de 30 lojas que foram aplicados
roteiros de entrevista, 10% responderam que adquirem suas mercadorias na cidade de São
Paulo; 60% dizem adquirir em Goiânia e 30% adquirem em Fortaleza.
Sobre a origem de residência dos proprietários, todos informaram ser do município
de Imperatriz, o que nos sugere que haja uma concentração do número de
estabelecimentos em propriedades de famílias mais antigas, que há várias décadas faz
parte da sociedade imperatrizense. Essa constatação não foge à regra do setor comercial,
cuja atividade exige presença mais constante do proprietário nas atividades do cotidiano do
estabelecimento (PEREIRA & LAMOSO, 2005).

3197 
 
 
 
 
 
Nesse sentido, cabe destacar algumas falas de lojistas que foram apreendidas no
decorrer das entrevistas, e que são de fundamental importância para o processo de
entendimento da centralidade urbana do comércio varejista no calçadão de Imperatriz-MA:

“Estou instalada aqui no Calçadão pra mais de três anos e me


fixei aqui por conta de ter clientela garantida, já que sim,
considero aqui uma área central de Imperatriz e do comércio
varejista, pois se encontra tudo. Trago meus produtos de
outros estados, tais como São Paulo, Goiás, Ceará, etc. E
revendo aqui não somente para pessoas da própria cidade de
Imperatriz, mais também de outras cidades circunvizinhas e até
mesmo de outros estados, como Tocantins e Pará.” (Lojista 1.
Entrevista realizada no dia 27/06/2016).

“Meu estabelecimento se encontra aqui no Calçadão pra mais


de três anos. Tive sucesso de venda, por que aqui o fluxo
diário de pessoas é altíssimo e com isso consigo ter bons
lucros. Minhas mercadorias são oriundas de outros estados,
como Goiás, Ceará e Paraná. Atendo pessoas de tudo que é
lugar, pessoas daqui, de cidades próximas e de outros estados.
Por isso essa área tem um valor inestimável para mim”. (Lojista
2. Entrevista realizada no dia 28/06/2016).

“Eu estou aqui tem mais de três anos, pois essa loja é uma
continuidade da minha família. A origem das minhas
mercadorias é bem ampla, pois trago produtos do Ceará, São
Paulo, Santa Catarina Goiás, além de outros países como, a
Guiana Francesa. Atendo pessoas diariamente aqui de
Imperatriz, mais também de outras cidades e estados, como o
Pará. Acredito que há essa procura pelo Calçadão, por estar no
centro da cidade de Imperatriz”. (Lojista 3. Entrevista realizada
no dia 28/06/2016).

“O Calçadão representa uma área econômica de grande


importância para a cidade de Imperatriz. Já que é um pólo
comercial, pois atende muitos municípios circunvizinhos e
cidades de outros estados como o Pará e Tocantins. Além
disso, essa área acaba adquirindo uma expressão enorme no
que se refere a empregabilidade, pois muitas pessoas se
deslocam para lá em busca de um emprego. O comércio
varejista vem somar com o crescimento e desenvolvimento de
Imperatriz, movimentando assim o PIB da cidade. Com isso o
Calçadão se torna o oxigênio de Imperatriz. (Representante
comercial”. Entrevista realizada no dia 29/06/2016).

Por meio destes relatos fica comprovada a importância do Calçadão para muitas
pessoas, não somente de Imperatriz mais também para aquelas oriundas de outras cidades
e estados, à medida que esta área ganha um valor social e econômicode grande
representatividade,se configurando como um centro tradicional de compras.

3198 
 
 
 
 
 
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O referido estudo se ocupou em abordar a questão da centralidade urbana exercida


pela cidade de Imperatriz através do comércio varejista (confecções) no calçadão. Pudemos
constatar desse modo que o comércio varejista tem papel de destaque no contexto urbano e
econômico desta cidade, ao passo que atende pessoas do centro-sul do Maranhão, do
extremo norte do Estado do Tocantins e do Sul e Sudeste do Pará.
Este fato pode de certa forma ser explicado através das políticas regionais que se
centralizam em Imperatriz e também da força econômica que a cidade exerce através da
atividade comercial. A interpretação que buscamos fazer acerca desta centralidade
comandada pela cidade de Imperatriz só adquire explicações contundentes se associarmos
ao mesmo tempo a dimensão política às dimensões econômica e social. A centralidade
nesse sentido não é apenas econômica.
De acordo com as vozes dos sujeitos investigados pudemos perceber a importância
do comércio varejista e do Calçadão para a cidade de Imperatriz. É reconhecido que esta
área desempenha uma múltipla funcionalidade, à medida que engaja grandes
empreendimentos de cunho varejista e atende uma grande parcela de populações provindas
de outras cidades circunvizinhas e até mesmo de outros estados, como é o caso do Pará e
Tocantins.
A partir daí fica a nossa preocupação em compartilhar aos interessados, o papel
adquirido por este segmento comercial e a centralidade do Calçadão como um centro
tradicional de comércio, que adquire grande valor social e econômico e que expressa
amplas expressões para a cidade de Imperatriz-MA.

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configurações socioespaciais. (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Uberlândia,
2012.

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LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de Metodologia
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cidade na região e a região na cidade: a dinâmica socioeconômica de Imperatriz e
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WHITACKER, Arthur Magon. Reestruturação urbana e centralidade em São José do Rio
Preto. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual Paulista – Presidente Prudente, 2003.

3200 
 
 
 
 
 
GT 07 - Cidades e transformações do urbano na américa latina

O COMÉRCIO PARA-FORMAL NA FRONTEIRA BRASIL-URUGUAY:


OCUPAÇÕES CONTROVERSAS DO ESPAÇO PÚBLICO

Eduardo Rocha (Universidade Federal de Pelotas/RS)1


[email protected]
Lorena Maia Resende (Universidade Federal de Pelotas/RS)2
[email protected]
Rafaela Barros de Pinho (Universidade Federal de Pelotas/RS)3
[email protected]

RESUMO

Ao realizar uma viagem contínua por toda linha fronteiriça Brasil-Uruguay, a pesquisa se
dedica a dar voz e visualidade as para-formalidades encontradas nas seis cidades-gêmeas,
a partir de cartografias urbanas que auxiliam a compor um novo universo sobre a cidade na
contemporaneidade. O objetivo é identificar esse para-formal que existe/resiste na fronteira
e poder analisá-lo em diferentes propostas de aproximação com a cidade, suas implicações
e contribuições, através de elementos de leitura de planos e cartografias. Experimentam-se
os espaços não regulados, onde se produzem atividades que tendem a subverter as leis da
economia tradicional, do urbanismo e das relações humanas, gerando mudanças
importantes, tanto teóricas como práticas, na maneira de pensar e planejar a cidade. Esses
são espaços “para-formais” (camelos, ambulantes, artistas de rua, moradores de rua, etc.).
Nos resultados observados o para-formal na fronteira Brasil-Uruguay é exclusivamente
comercial, visto que a região da fronteira é um lugar de troca, de fluxos de pessoas,
mercadorias, culturas e o comércio - lícito ou ilícito - tornou-se durante muitos anos um fator
relevante no desenvolvimento da região; quanto ao lugar do para-formal ocupa o espaço
público principalmente localizado nas calçadas; já o equipamento utilizado é bem variado
em seu tamanho e mobilidade prevalecendo aqueles que são móveis e possuem mais
flexibilidade e; o corpo para-formal é o protagonista em grande parte do tempo. A pesquisa,
no momento em que reconhece o para-formal na fronteira, contribui para os avanços tanto
metodológicos como na produção de conhecimento sobre configurações complexas da
cidade na contemporaneidade.
Palavras-chave: Fronteira, Comércio para-formal, Cartografia urbana.

1. INTRODUÇÃO

Este escrito é fruto do projeto de pesquisa4 que dedica desde o ano de 2016 a
experimentar essas “para-formalidades” nos centros urbanos das cidades-gêmeas5  da

                                                            
1 Ex: Doutor em Arquitetura e Urbanismo, professor e pesquisador no Programa de Pós-graduação em
Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UFPel. Pelotas/RS Brasil
2 Ex: Estudante de pós-graduação, bacharel em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade Federal de

Pelotas/RS Brasil
3 Ex: Mestra em Arquitetura e Urbanismo, pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

(PROGRAU) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UFPel. Pelotas/RS Brasil

3201 
 
 
 
 
 
fronteira entre Brasil e Uruguay. A proposta vem de encontro às controvérsias urbanas pelo
que sofrem as cidades latino-americanas na contemporaneidade, trazendo a superfície os
conflitos e acomodações no espaço público das áreas centrais.

1.1 O Para-formal

O "para-formal" nasce com grupo argentino GPA (2010)6, é um conceito de


fronteira, que ao contrário da oposição entre o formal e o informal – a partir de áreas do
conhecimento como o urbanismo e a economia, que categorizam seus estudos e objetos em
cidade/economia formal e informal – busca experimentar a fresta ou o interstício entre
categorias, que aqui denominamos como cenas urbanas "para-formais". Um modelo de
investigação "para-formal" se apropria de categorias alternativas para explorar o “campo do
meio”, a zona cinza, onde se desenvolve a verdadeira máquina da cidade.
O para-formal nesse sentido, é algo artificial e provisório, algo relativo à forma, mas
que ao mesmo tempo não se configura como tal. Um modelo abstrato, que tem como
polaridade o formal e o informal, uma atividade menos delimitável, heterogênea. O para-
formal é um lugar do cruzamento entre o formal (formado) e o informal (em formação). O
“para-formal” é um lugar de cruzamento entre o previsível e o imprevisível. O para-formal é:

A: a cidade em formação, o princípio de acordos, regras e projetos.


B: a cidade em desagregação, os processos urbanos conflitivos, friccionantes e catastróficos.
C: as situações urbanas onde há fortes “indiferenças estratégicas” entre os autores (GPA, 2010).

Enquanto o para-formal no qual referimos neste estudo (numa escala diferente da


proposta pelo grupo GPA, que espia grandes massas e conjuntos para-formais) encontra-se
no cruzamento do formal (formado) e do informal (em formação), entendemos o para-formal
como todas as atividades (comerciais, culturais, moradia, lazer, mistas, etc.) encontradas
nos espaços abertos e públicos da cidade, que não fazem parte de seu desenho urbano
(GHEL, 2010) original, mas que agora – na contemporaneidade7 – fazem parte de seu

                                                                                                                                                                                          
4 A pesquisa intitulada “O Para-formal na fronteira Brasil-Uruguay: controvérsias e mediações no uso do espaço
público” coordenada pelo Laboratório de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPel com
financiamento do Cnpq. 
5 O conceito de cidades gêmeas, segundo o Ministério da Integração Nacional, considera os municípios que são

divididos por uma linha de fronteira – marco político internacional –, sendo seca ou fluvial, conurbada ou não,
que apresentem potencial de integração econômica e cultural, podendo ainda apresentar continuidade da malha
urbana com o país vizinho. Cidades com população inferior a dois mil habitantes não são considerada cidades
gêmeas.
6 O grupo Gris Público Americano (GPA) é um coletivo independente, formado por um grupo de arquitetos

argentinos com sede em Buenos Aires, integrado por Mauricio Corbalán, Paola Salaberri, Pío Torroja, Adriana
Vázquez, Daniel Wepfer e Norberto Nenninger [https://www.facebook.com/grispublicoamericano.gpa]. Propõe
investigações que tem como ponto central as situações de controvérsias urbanas, polêmicas e/ou complexas.
7 “A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, dele toma

distâncias [...]” (AGANBEM, 2009, p. 59).  

3202 
 
 
 
 
 
cotidiano (CERTAU, 1994). São cenas urbanas, individualizadas por imagens fotográficas e
anotações. O "para-formal" no cotidiano das cidades gera controvérsias (disputas, opiniões
diversas ou debates) na sua relação cidade-corpo e corpo-cidade, às vezes veladas e
dóceis outras reveladas e desobediente.

1.2 A Fronteira Brasil-Uruguay

Fronteira: um conceito que constantemente evolui, se cria e re-cria no espaço-


tempo. De um lugar de conflito, disputa por poder e posse territorial, até um lugar estratégico
de potencializadades e integração. Ser fronteira é lidar com o dualismo cotidiano, perceber o
eu e o outro, as diferenças e semelhanças, se enraizar as tradições ou desejar a errância e
nomadismo. Segundo Deleuze, fronteira pode ser entendida como movimento, construção e
produção, aproximando-se mais como abertura e atualidade do que como acabada,
finalizada. Locais de mutação e subversão. Também são sítios de agitação e do excesso
onde os “limites” são ultrapassados tornando então um espaço de ruptura - conflitante ou
pacífica. É no limiar que se aprende a conviver com o imprevisível e inacabado.
(DUARTE,2012)
No Estatuto da Fronteira (PUCCI, 2010) define limite como uma linha que separa o
território de dois estados, enquanto a fronteira é a região ao redor do limite. Em sua acepção
original, a fronteira (etim. lat. frons, frontis: o que está na frente) era simplesmente no man s
land, área instável de transição entre dois poderes políticos, mas sem a presença do poder.
Somente no século XVI, com os avanços da cartografia e o surgimento do Estado burguês,
desenvolveu-se a teoria jurídica do território, para atender às novas necessidades de
organização do espaço econômico. Hoje a faixa da fronteira, unidade espacial de 150 km de
largura em torno do limite, determinada pela Constituição Federal de 1988 trata a área como
indispensável à segurança nacional. Enquanto a linha de fronteira é como um traçado
imaginário na periferia geográfica das nações, estabelecimento jurídico que separa os povos
ou, ainda, ponto de junção entre nacionalidades (CAMPIGOTO, 2008).
No Rio Grande do Sul, a fronteira Brasil se estende por 985 km desde a tríplice
fronteira Brasil-Argentina-Uruguay a oeste até a foz do Arroio Chuí, ponto extremo Sul do
Brasil. No trecho oeste a fronteira é marcada pelo Rio Quaraí, afluente do Rio Uruguai e
pelas 'Coxilhas de Santana'. No trecho mais a leste pelo Rio Jaguarão que deságua na
Lagoa Mirim e pela porção sul dessa lagoa até o Chuí.
Essa fronteira é constituída pelas
seis cidades gêmeas: Chuí-Chuy, Jaguarão-Rio Branco, Santana do Livramento-Rivera,
Quaraí-Artigas, Barra do Quaraí-Bella Unión e Aceguá-Acegua.

3203 
 
 
 
 
 
A linha de fronteira das cidades de Jaguarão-Rio Branco, Barra do Quaraí-Bella
Unión e Quaraí-Artigas se assemelham ao possuírem uma ponte que faz a ligação entre
cidades, uma vez que o limite sócio-político entre os países é propiciado pela linha
geográfica do rio. Jaguarão (BR) e Rio Branco (UY) somam juntas uma população de
41.398 habitantes, a Ponte Internacional Mauá (340m) sobre o Rio Jaguarão é o cartão
postal das cidades. As cidades de Quaraí (BR) e Artigas (UY) com população total de
67.021 habitantes, são ligadas pela Ponte Internacional da Concórdia (750m) sobre o Rio
Quaraí. E por fim, as cidades de Barra do Quaraí (BR) e Bella Unión (UY) somam uma
população de 17.208 habitantes, que são ligadas pela ponte Internacional também sobre o
Rio Quaraí e ao lado dessa ponte resiste a antiga ponte férrea de aço desativada, mas que
moldura a memória do lugar.
Em uma mesma linguagem a linha de fronteira das cidades de Chui-Chuy,
Aceguá-Acegua e Santana do Livramento-Rivera se aproximam por não terem uma
delimitação tão rígida – como o curso do rio – na divisão de cada país. A esse tipo de
fronteira seca, como é denominada, incide uma rua e/ou praça sendo que cada cidade
apresenta sua particularidade. Nas cidades de Chuí (BR) e Chuy (UY) a soma da
população é de 16.320 habitantes, separadas apenas por uma avenida comum a ambas as
cidades. Essa avenida é muito movimentada e agitada comercialmente pelos freeshops.
Enquanto na cidade de Aceguá (BR) e Acegua (UY) são as menores cidades da fronteira
em ambos lados com população aproximada de 5.887 habitantes. Nesse caso apresentam
um caráter mais rural, ambiente de cidade pequena, calmaria. Finalmente, a última cidade-
gêmea seca é Santana do Livramento (BR) e Rivera (UY), com população juntas de 146.939
habitantes, maiores cidades da fronteira em ambos os lados. A ligação de ambas é por uma
via comum, a Av. 33 Orientales, no lado uruguaio, e Av. João Pessoa, no lado brasileiro,
como se fosse uma só avenida, e também pela comum Av. Paul Harris, que tem esse nome
nos dois lados, na chamada “Fronteira da Paz” ou “La Mas Hermana de Todas Las
Fronteras del Mundo”, além de uma praça internacional que se encontra no meio dessas
avenidas, marco de unidade.
A fronteira Brasil-Uruguay faz parte do Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (Territórios da Paz) e áreas definidas pelo Governo Federal como Territórios
da Cidadania. É um território, segundo a Carta de Fronteira (2010) elaborada pelas
prefeituras e movimentos culturais da região, onde encontra-se a maior densidade
populacional entre as fronteiras da América do Sul, apresentando por esse motivo
singularidades e complexidades culturais, que precisam ser mais compreendidos. Ao
adentrar na heterogeneidade dinâmica da fronteira pretende-se incorporar ao discurso da
Linha de Fronteira fenômenos contemporâneos que até hoje não foram sistematizados

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sobre a região da Fronteira Brasil-Uruguay e são de grande relevância para futuros projetos
de intervenção, como a visibilidade das para-formalidades.

1.3 O espaço público na cidade contemporânea

A cidade contemporânea é um lugar de ruptura, uma cidade de troca, onde


proliferam zonas abandonadas, baldias e, ao mesmo tempo, surgem novas culturas e
subculturas, - tais como as atividades para-formais - as quais são manifestações cotidianas
da cidade. A cidade contemporânea é o caos, é a co-existência de diversos tipos de
pessoas, de diferentes classes econômicas, que buscam modos de vida diferentes, é a
diversidade. E a contemporaneidade, portanto, "é uma singular relação com o próprio
tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias." (AGAMBEN, 2009).
Por sua vez, o termo espaço público, em seu aspecto mais abrangente, pode ser
entendido como um local dentro de um território urbano tradicional - com nítida delimitação
entre público e privado - sendo utilizado e apropriado de forma coletiva e pertencente ao
poder público. Ao mesmo tempo é um espaço de ação ou de possibilidade de uma práxis
política (SERPA, 2004).
No entanto, na contemporaneidade, o espaço público não está definido e limitado
pelos planos urbanísticos, em muitas ocasiões são os habitantes da cidade que decidem
que espaço vai ser público e qual não vai ser; que espaço cumprirá uma função ou outra. E
é assim que surgem as atividades para-formais, nessas "zonas de ninguém", zonas que
passam a cumprir uma função diversa do original. Dessa forma, essa ideia de espaço
comum vai além de cenários de encontros da diversidade e expressividade cultural, avança
como formador de intersubjetividade, identidade comunitária e apropriação do sentimento de
coletividade.
Podemos destacar ainda diferentes perspectivas ou categorias que analisam os
espaços públicos: Hertzberger (1999) volta sua atenção para a acessibilidade, as formas de
uso e os usuários; Roberto da Matta (1997) percebe a relação dinâmica entre o espaço
doméstico e as atividades na rua, relacionando-os; o geografo Milton Santos (1985) vai
voltar suas observações para os fluxos com um viés econômico afirmando que: “o subsetor
governamental orienta os fluxos econômicos e humanos e determina a sua viabilidade e
direção” (SANTOS, 1985, p. 76).
Pela lógica do sistema capitalista, o espaço público é visto como mercadoria para o
consumo de poucos. Harvey (1992) salienta a intencionalidade política e ideológica de
propostas inovadoras em áreas públicas, atitudes que comprovam a espetacularização das
cidades e a valorização do consumo, ocasionando segregação de classes, especulações

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imobiliárias e a gentrificação. Mas, ao mesmo tempo, esses lugares são solicitados,
inventados, re-inventados, criados e recriados, territorializados e des-territorializados pela
população em seu cotidiano. Foi importante para o projeto observar as pessoas que
ocupam, transitam, intervém nesses espaços como são na realidade com seus desejos,
ansiedade, expectativas não apenas como usuários de uma classe social. Compreender o
espaço público sem a ingenuidade da influência política-econômica, contudo se detendo as
transformações provocadas por seu uso na contemporaneidade.
Observa-se que os espaços públicos encontrados nas cidades-gêmeas de fronteira
são ocupados pelos mais diferentes usuários e fluxos, morfologicamente são constituídos na
forma de ruas, calçadão, praças, parques; ou vazios e abandonos urbanos. Lugares do
encontro e desencontro, de uma certa hospitalidade e/ou hostilidade. Ressalta-se ainda que
é no centro comercial da cidade o lugar onde se produzem atividades que tendem a
subverter as leis da economia tradicional, do urbanismo e das relações humanas. Assim, a
pesquisa aproxima-se das áreas centrais da cidade, que são os lugares de diversidade e
densificação de atividades para-formais. Encontra-se nesses espaços, o "outro urbano",
aquele que escapa, resiste, vive e sobrevive no cotidiano dessa outra urbanidade, através
de táticas de resistência e apropriação do espaço urbano, de forma anônima (ou não) e
dissensual, radical. Esse "outro urbano" se explicita através da figura do morador de rua,
ambulante, camelô, catador, prostituta, artistas, entre outros.
A partir de toda essa complexidade analítica frente as práticas humanas em
espaços públicos, própria da contemporaneidade, podemos vislumbrar a possibilidade de
cartografar tais dinâmicas para-formais afim de desvelar seus potenciais, possibilidades e
tensões na linha fronteiriça Brasil-Uruguay.

2. A CARTOGRAFIA URBANA

A palavra cartografia remete a mapas, desenho em duas e/ou três dimensões


confeccionados digitalmente que podem ser impressos ou virtuais que representam um
espaço, um lugar seja ele geográfico, imaginário ou conceitual. Os mapas são meios de
comunicação e análise. Comunicação visual, mas também imagética, sonora, sensitiva. De
não só localizar, mas de sentir o lugar. A cartografia não só comunica como é fotografia,
psicologia, desenho. Pode-se dizer que a cartografia de um espaço é determinada por um
conjunto de mapas que são representados de maneiras distintas, pois cada mapa tem um
objetivo específico e uma maneira de representação próprios.
A cartografia urbana que adotamos nesse projeto se aproxima do conceito trazido
pelos filósofos da diferença Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997). Esse método procura
percorrer a cidade em busca da diferença, de cenários não marcados no mapa habitual das

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cidades, como o para-formal; a cartografia não se configura como um método tradicional, é
uma maneira de proceder que pode admitir as modificações temporais no espaço e busca
mediar a experiência corporal do pesquisador. Um método dinâmico, constituído de infinitas
linhas que se cruzam, de dobras, desdobras, de territórios, desterritórios e reterritórios
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009).
Constituindo um método de mapear as dinâmicas da contemporaneidade, é
possível construir mapas que nos falem de muitas cidades não visíveis, que convivem com
as nossas cidades, mapas que nos falem da vida cotidiana em que vivemos, dos caminhos,
dos eventos urbanos, daquilo que não é só estático, que não está cheio, do simultâneo, do
híbrido, do que pode estar à margem, do que não é central, de tudo que está soterrado,
abandonado nos lugares físicos e espaciais nas cidades em que vivemos. Se busca a
perspectiva contemporânea de experimentar um lugar, com olhares laterais, pelas frestas,
que tendem a diminuir a distância entre o observador e o observado, habilitando, assim,
uma espécie de mediação subjetiva e circunstancial durante a aproximação ao território
cartografado.

2.1 Pedagogia da Viagem

Quando um ser humano ocupa um espaço, isso está relacionado a ideia de


território e de domínio; mas também pela busca de lugares que sejam acolhedores. No caso
do viajante, existe a necessidade da busca de lugares para reabastecer suas necessidades,
vivenciando um novo espaço. “Quem viaja leva o corpo e seus anseios, desloca o sentido
das respirações, da alimentação, do clima” (OLIVEIRA, 2014, p.169), chega em um local
desconhecido para ele, se desterritorializa, sente-se fora do seu habitat. Cabe ao “local”
oferecer-lhe um lugar para experenciar, conhecer e trocar conhecimento. O que no princípio
parece diferente, se apresenta, ensina e mostra sua história; gera movimento. Ocorre uma
Ocorre uma relação de troca, que é o que faz a diferença, se estabelecem valores.
A pedagogia da viagem acontece pelo universo da descoberta, além da viagem
exploratória, mas uma constatação de certos aspectos que estavam ali – ocultos. A viagem
embora trace caminhos preparados, conhecidos – “porque de certa forma conhecemos para
onde vamos” – pode nos apontar novos e diversos caminhos a seguir (pensar). E no mesmo
caminho abrindo brechas para expandir nossos próprios caminhos e sempre reorientar
criticamente nossas concepções (cartografia). Então podemos dividir a experiência da
pedagogia da viagem em 3 partes: temos uma bagagem antes da viagem, preparamos as
malas com as intenções da viagem; viajamos e nos abrimos ao novo, carregamos coisas
pelo caminho e deixamos outras e; por fim chegamos, desfazemos as malas, com todas as

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coisas coletadas junto com as que levamos, é preciso organizá-las, pensá-las, saber o que
guardar, o que dar, o que presentear, o que devolver e o que esquecer (resistências).
A viagem permite com que vejamos a vida além do pensamento, do estudado;
permite com que nos desterritorializemos, provocando novos encontros e acontecimentos,
permite revelar a essência dos lugares, experimentando-os e desnudando-os. A informação
transforma-se constantemente, e misturasse com as diversas experiências proporcionadas,
reterritorializando-nos.
Seguimos na pedagogia da viagem uma espécie de coexistência entre o pensar e
o escrever. A escrita como uma espécie de declaração do pensamento. Enquanto o
pensamento é orgânico, vai e volta, segue o caminho, entra em atalhos e becos, atravessa
muros, erra a passagem e flui com a vida (rizoma). Mesmo sendo um local conhecido, a
pesquisa in loco nos proporciona novos pensamentos; e nos re-encaminha e re-orienta
sobre nossas percepções, reunindo elementos heterogêneos, disparatados, favorecendo
acontecimentos múltiplos.
Encontros com os espaços públicos das cidades, conexões entre subjetividades e
intensidades. A arquitetura, as calçadas, as estruturas; mas também os efeitos,
acontecimentos, relações entre corpos que não possuem identidade plena e imutável. Cada
encontro possui efeitos que emergem nas relações estabelecidas e nas conexões que os
compõem. Essas conexões se dão entre as intensidades, corporificadas ou não, criando e
recriando incessantemente o que é e o que está por vir.
Para Grinover (2003): De modo quase intuitivo o viajante, o turista, imigrante
quando chega em uma cidade e percorre os espaços que constroem esta forma urbana, é
submetido a um sem número de percepções, de situações e de processos importantes de
informações. Esses lhe são impostos por elementos tangíveis e intangíveis, que o envolvem
e o induzem a comportamentos hospitaleiros, ou não, caracterizados num espaço
suficientemente definido, e pelas atitudes dos que dos que habitam esse espaço, perante o
“status” de “estrangeiro”.
Seria essa uma pedagogia da viagem, uma pedagogia do entre, da fresta nas
cidades e nas concepções de qualidades de um bom lugar. Por outro lado, essas
experiências no entre, são do que se agita na fresta, “o sentido é apenas um vapor
movendo-se no limite das coisas e das palavras” (Deleuze, 2006, p. 225). Por isso adentrar
no mundo da viagem nas frestas da cidade é da ordem da complexidade e das
multiplicidades. A pedagogia da viagem por frestas permite experimentá-las, descobri-las e
vivê-las inventando novas relações, para fazer emergir quem sabe relações menores,
desterritorializantes, provocando novos encontros e acontecimentos (hospitalidade e
hostilidade).

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2.1 Errância

Errância urbana é um tipo específico de apropriação do espaço público, que não foi
pensado nem planejado pelos urbanistas ou outros especialistas do espaço urbano. Errante,
então, é aquele que nega o ritmo veloz imposto pela contemporaneidade, capaz de
experimentar o cotidiano da cidade com o próprio corpo. O estado de corpo errante pode ser
comparado ao estado da lentidão, de Milton Santos, que é um estado de desorientação,
contrário ao que busca o urbanismo (JACQUES, REDOBRA, 2012, p.198 e 199). O errante
sai sem rumo, não tem um ponto de partida e nem de chegada fixos, caminha perdido por
dentre um território urbano conhecido e ignorado ao mesmo tempo.
O forasteiro/viajante é sempre aquele outro que está de passagem, ele é o errante
pronto para chegar ou partir a qualquer momento, mas também propenso a permanecer
independentemente da vontade do hospedeiro. É o outro que desestrutura o espaço
planejado, que tira as minhas coisas do lugar. Ele diminui, acrescenta e transforma.
Como afirma Fernando Fuão (2012), o errante é outro tipo de ocupação, de
temporalidade, um desvio na origem do uso do um espaço e do tempo, já
programaticamente definido. O errante é o que provoca o acontecimento, modifica o espaço
perturbando. Quando o errante chega, quando se encosta, desdobra o sentido da coisa em
outra coisa, transborda.
Foi realizada esta prática de experiência nas cidades onde o que é mais relevante
são as ações e os percursos, sem a preocupação com mapas ou planos. Sem a
preocupação em se construir uma representação da situação atual ou de uma proposta. “A
preocupação do errante estaria mais na desorientação, sobretudo em deixar seus
condicionamentos urbanos, uma vez que que toda a educação do urbanismo está voltada
para a questão do se orientar.” (JACQUES, 2008).

3. O COMÉRCIO PARA-FORMAL NA FRONTEIRA

Ao experienciar as cidades-gêmeas na fronteira Brasil-Uruguay e observar a


potência que os para-formais resistem no contexto urbano, é possível compreender os
benefícios e impactos que são produzidos. O para-formal é carregado de costumes e
identidade entendida como forma de pertencer e participar, nos ensinando novas soluções
para a cidade na contemporaneidade, mas ao mesmo tempo ele também polui várias cenas,
atrapalha e violenta a cidade e o cidadão. As pistas que a cartografia urbana proporcionou
consideram três frentes: o lugar (espaço público), o equipamento e o corpo.
Ao percorrer todas as doze cidades fronteiriças começamos a nos questionar o
motivo pelo qual o para-formal encontrado é exclusivamente comercial. Em nenhum

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momento nos deparamos com artistas de rua, eventos culturais no espaço público ou até
mesmo moradores de rua. Uma das possíveis respostas para esta indagação pode ser
embasada pela história e geografia da região. Na dimensão econômica, observa-se certa
sensibilidade quando se trata das políticas monetárias e tributárias, a começar que em uma
região de fronteira são dois países com normas e moedas com valores distintos. Mas, ao
mesmo tempo, essa fronteira apresenta certa autonomia ao burlar as normas econômicas, o
contrabando. Suzana Souza (1996) relata que o comércio e o contrabando são atividades
conexas na fronteira, pois a troca das mercadorias a sua maneira atende as necessidades
da região – uma questão de sobrevivência. Ainda ressalta que as cidades-gêmeas
brasileiras e uruguaias desde sua trajetória de delimitação possuíam seus entraves a nível
político e administrativo, mas quanto ao nível econômico se complementavam.
Ao longo da evolução histórica-econômica da fronteira nota-se essa dependência
mútua – não declarada – entre os países limítrofes. O homem fronteiriço se adequa as
situações mediante as condições econômicas da época, escolhe migrar de um país a outro
observando onde a condição de mercado está mais favorável. Dessa forma, se um país está
prosperando em uma área o outro consequentemente terá uma decadência nesse setor,
tendo assim que criar outras formas de serviço.
Um exemplo nítido dessa co-dependência econômica das cidades-gêmeas, é a
conurbação urbana das cidades de Santana do Livramento e Rivera. Do lado brasileiro a
quantidade de farmácias, postos de gasolina e supermercados supera a demanda da
cidade. Serviços que oferecem bons preços, horários flexíveis, variedade de produtos além
de uma forte companha midiática em ambos lados da fronteira. Essa quantidade e
prosperidade do comércio brasileiro só é entendida se lermos as cidades-gêmeas como
uma só, em que os uruguaios também desfrutam desses serviços. Em contrapartida, o
governo uruguaio instala os free shops como uma concorrência e atrativo para os
consumidores brasileiros. Dispõem de lojas variadas com produtos importados que tem uma
diminuição ou isenção significativa dos impostos. Percebe-se como a força do mercado é
um fator de integração que supera até mesmo acordos políticos (PUCCI, 2010).
Gladys Bentacor (1996) afirma que a região fronteiriça se tornou um centro atrativo
dos trabalhadores excedentes de outros centros urbanos próximos. A cidade de fronteira
como uma oportunidade de melhorar a condição de vida, seja por conseguir um preço mais
vantajoso na alimentação, ou pelas múltiplas ofertas de trabalho informal na linha-fronteiriça
– lugar de trânsito e agitação de muitos turistas e consumidores.
Esse histórico econômico retifica, até certo ponto, a exclusividade do para-formal
em atividades comerciais na fronteira, constituindo mais um elemento que
expõem/comprova a integração. Mas, em cada cidade há uma particularidade desse para-

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formal, que carrega um caráter também cultural e identitário. A seguir, será exposto com
mais detalhes as características encontradas nas três frentes: lugar, corpo e equipamento.

3.1 Lugar

Encontramos para-formalidades nos seguintes espaços: calçadas, ruas, debaixo de


marquises, esquinas, praças, abandonos, vazios, entre outros. Acoplamentos aos
equipamentos urbanos (banco, poste, lixeiras, etc.) que podem ser referência para os
lugares das “para-formalidades”. Muitos buscam a sombra em lugares onde o clima é
quente ou o sol para esquentar nos dias de frio. O movimento do sol e das sombras delimita
um certo lugar utilizável pelos “para-formais” no espaço público.
Nas seis cidades-gêmeas visitadas o lugar mais intenso da atividade para-formal é
na linha de fronteira, no caso das cidades secas, em que o limite é uma rua ou avenida em
comum. No caso das cidades unidas por uma ponte o maior número das para-formalidades
coincide com o centro comercial das cidades. No entanto, essa afirmativa não constitui uma
regra, pois o para-formal tem um caráter dinâmico e movimenta-se com facilidade –
principalmente com os ambulantes ou equipamentos móveis. O que se pode perceber é que
essa atividade informal acompanha o fluxo dos consumidores, se faz presente na ebulição
da cidade.
Em muitas cidades a categoria “para-formal no formal” era frequente. Consiste nas
atividades “para-formais” que ocorrem anexas às atividades formais (lojas, restaurantes,
ferragens, etc.). O formal avança sobre o espaço público indiscriminadamente,
acomodando-se nas calçadas, fachadas e até mesmo em vagas de estacionamento e
caixas de rolamento. Uma espécie de extensão das vitrines.
As praças compõem um lugar favorável à atuação para-formal em ambas as
nacionalidades, uma vez que são consideradas locais de encontro e passagem. As
atividades ali instaladas geralmente são de caráter fixo e se apropriam da estrutura de um
trailer para realizar a comercialização. No entanto, apesar das semelhanças, ressalta-se a
diferença na identidade cultural do produto comercializado de cada país.
Tanto do lado brasileiro como uruguaio os para-formais se assemelhavam quanto
ao espaço que ocupavam, no entanto, nas cidades-gêmeas Chuí-Chuy uma diferença
peculiar foi percebida. No Chuí (BR) o para-formal utiliza predominantemente a calçada,
forma corredores inteiros de manequins e mostruários dos produtos. Há uma certa
dificuldade ao caminhar, pois a mercadoria compete com o pedestre. Enquanto no Chuy
(UY) o para-formal ocupa em grande parte dos casos a rua, uma vaga de estacionamento,
direciona seu produto para a calçada e para o público, no entanto não ocupa o lugar do

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pedestre. Embora os dois países sejam separados somente por uma avenida, em que o
contato físico e visual é direto e rápido, a escolha do lugar para-formal mostrou essas
pequenas nuances.
Concluiu-se, então, que o uso das calçadas pode “poluir a visual” das ruas, porém,
em muitas das cidades, este hábito é aceito pela população que inclusive “interage” com os
produtos, podendo ver e tocar na mercadoria sem precisar entrar no estabelecimento. Outro
destaque é que alguns desses estabelecimentos, em frente às suas instalações, oferecem
serviços e equipamentos públicos aos moradores da cidade, como: bancos para descansar,
lixeiras, para-ciclos, sombra, etc. Observa-se que essa invasão do espaço público quando
indiscriminada nos passeios públicos pode obstruí-los e torná-los obstáculos para os
pedestres.

3.2 Equipamento

Os equipamentos foram divididos em três categorias quanto: ao tamanho,


mobilidade e instalações. Encontrou-se muitas para-formalidades pequenas e móveis e
outras muitas grandes e fixas (como os trailers, que possuem, em sua maioria, instalações
hidráulicas e elétricas).
Não existe um critério definido para cada região de qual equipamento é mais
utilizado, no entanto, notou-se uma correspondência entre o tamanho do para-formal com o
número populacional das cidades. Santana do Livramento-Rivera, a maior cidade-gêmea
fronteiriça, apresenta o maior número de equipamentos para-formais em grandes
dimensões, principalmente trailers do ramo alimentício. Por sua vez, a cidade de Aceguá-
Acegua com o menor número populacional, expõe os equipamentos menores, efêmeros e
móveis.
Capturamos durante a errância um universo de equipamentos. Dos mais simples
como carrinho de mão, araras de metal e bolsas no próprio corpo; até os mais complexos
como nichos feito de paletes, carros que transportam a mercadoria e grandes bancadas de
madeira. Quanto a mobilidade observou que em grande parte dos casos é móvel, tanto pela
facilidade de perambular pela cidade como por sua natureza informal de não se sentir
seguro fixando em locais públicos.
Assim, entende-se que os equipamentos grandes e fixos não possuem um número
significativo quanto ao comércio ambulante e móvel, que animam o espaço público da
cidade, fazendo com que a cada momento nos deparemos com novidades, sensações, sons
e paisagens diferentes. Os ambulantes e móveis trazem soluções criativas para o centro da
cidade, inventam novos usos e para isso não poupam estratégias de sobrevivência e

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vivência. Conseguem criar uma rede de dependência para seus usos e atividades – “é
impossível viver sem eles”.

3.3 Corpo

O corpo “para-formal” geralmente está presente nas atividades que observamos e


muitas vezes ele é a própria “para-formalidade”, é o protagonista. Podem estar sentados,
em pé ou caminhando. Em grupos ou solitários.
O “corpo-para-formal” é aquele que tenta vender seu produto sem “ponto comercial
fixo”, sem um local determinado no mapa da cidade, a cada dia ou hora podem se deslocar,
seja a procura de sombra ou de possíveis novos clientes, mas estão sempre por perto de
aparatos, sejam públicos ou que eles próprios carregam.
Observou-se também que os corpos que acompanhavam os equipamentos médios
e móveis geralmente se encontravam sentados ou em pé, ao lado do equipamento. Já nos
trailers por exemplo, os corpos estavam dentro do próprio equipamento, podendo
movimentar-se com certa facilidade. Não observamos nenhuma diferença significativa
quanto ao corpo nos diferentes países.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao visualizar e reconhecer o para-formal como parte da cidade, dos espaços


públicos, é possível refletir a coexistência de uma urbe formal e informal. Conhecer a cidade
como um organismo vivo é ir de encontro as frestas, aos espaços indiscerníveis, onde se
pode abandonar ou descobrir tudo que outrora havia perdido. Se por um lado a cidade
limita, por outro liberta o movimento de vários corpos resistentes, que denunciam as
mazelas da espetacularização. É da resistência, da zona de atrito, das fronteiras, que nasce
o novo.
Como produto dos estudos realizados, pode-se apontar as seguintes observações:
o para-formal é carregado de costumes e identidade entendida como forma de pertencer e
participar, nos ensinando novas soluções para a cidade na contemporaneidade, assim como
anima, ensina, vive e experimenta a cidade; o desenho urbano existente (legal) acomoda-se
às cenas para-formais e vice-versa; ele também polui, atrapalha e violenta a cidade e o
cidadão. De uma maneira geral, o para-formal pode ser visto como um termômetro
econômico, político e social dos acontecimentos dinâmicos nas cidades fronteiriças. Além de
destacar que nessas cidades a atividade é exclusivamente comercial, o que reafirma a
interdependência e a integração entre as cidades-gêmeas através da economia, dos fluxos
de pessoas e mercadorias lícitas ou ilícitas.

3213 
 
 
 
 
 
E, não menos importante, a pesquisa contribui metodologicamente ao compreender
a importância das errâncias urbanas como forma de construção da cidade, abrindo espaço
para discussões e pensamentos a respeito do lugar do ser humano, interferido diretamente
na dinâmica da vida urbana e trazendo novas formas de pensar a cidade.

5. REFERÊNCIA

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícios


Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BENTANCOR, Gladys Teresa. Frontera y integración. In CASTELLO, Iara Regina (Org.)
Práticas de Integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS. 1996.
CAMPIGOTO ,José Adilçon. Narrativas e Culturas de Fronteira na América do Sul. In:
Revista da Faculdade de Historia e do Programa de Pós-graduação em Historia da UFG. V.
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3215 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

AGRICULTURA, AGROECOLOGIA E RURALIDADES NA CIDADE:


EXPERIÊNCIAS DE SÃO PAULO E BOGOTÁ

Vítor Amancio Borges Ferreira (Universidade de São Paulo)1


[email protected]
Júlio César Suzuki (Universidade de São Paulo)2
[email protected]

RESUMO
A agricultura urbana e periurbana (AUP) é uma das práticas alternativas que têm se
destacado nos últimos anos por causa de seu potencial multifuncional de transformação na
cidade, as quais, então, se constituiriam em espaços híbridos, com a presença de
elementos urbanos e de elementos rurais, implicando na noção de movimento: o urbano em
contato com o rural gerando novos elementos com feições próprias. A presença do rural no
espaço das cidades é compreendida por meio da categoria de ruralidades na cidade. Além
disso, propomos enxergá-las por meio da Agroecologia, ciência e conjunto de práticas que
pretende ser a base para o planejamento e o manejo de sistemas de agricultura que
considerem os aspectos ambiental, social, cultural e econômico. Sendo assim, o presente
trabalho visa compreender o significado da agricultura urbana e periurbana de base
agroecológica nas transformações de ordem ambiental, social, econômica e cultural nas
cidades por meio da produção de ruralidades, tendo como base empírica os casos de São
Paulo e Bogotá no período de 2004 a 2017. Como resultados, veremos como as
experiências de agricultura urbana e periurbana têm sido ferramentas importantes de
transformação territorial em diversos aspectos, apontando para um possível caminho para
as grandes cidades latino-americanas.

Palavras-chave: agricultura; cidade; América Latina; agroecologia; ruralidades.

1. Introdução

A agricultura urbana e periurbana (AUP) é uma prática social que tem se difundido
no espaço das cidades e que dialoga com um movimento crescente de insatisfação urbana
e com um movimento de busca por uma agricultura alternativa. O objetivo desta análise,
então, é compreender o significado da agricultura urbana e periurbana de base
agroecológica nas transformações de ordem ambiental, social, econômica e cultural nas
cidades por meio da produção de ruralidades, tendo como base empírica alguns casos de
São Paulo e Bogotá no período compreendido entre os anos de 2004 e 2017.
A análise teórica está estruturada a partir de alguns conceitos e categorias
importantes, como o direito à cidade, o rural e o urbano e, como consequência, as
ruralidades na cidade, com a definição do que é a agricultura urbana e periurbana e de
                                                            
1 Graduado em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), cursando, atualmente, o mestrado no

Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM/USP).


2 Professor Doutor junto ao Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) e ao Programa de

Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM/USP).

3217 
 
 
 
 
 
como ela se relaciona com a agroecologia. Por fim, apresentamos três experiências práticas
de AUP nas cidades de São Paulo e Bogotá.

2. Na busca pelas categorias e relações

O direito à cidade vem sendo muito debatido por diversos autores desde a
formulação inicial do conceito por Lefebvre (1968). Harvey (2014) realiza um esforço em
trazer o conceito do direito à cidade para os problemas do século XXI e considera que,
assim como no contexto inicial de concepção do direito à cidade, atualmente a busca por
este direito surge das ruas e dos bairros, como uma resposta à população angustiada pelos
problemas enfrentados. E quais seriam estes problemas?
Gehl (2015, p. 3) afirma que “uma característica comum de quase todas as cidades
– independentemente da localização, economia e grau de desenvolvimento – é que as
pessoas que ainda utilizam o espaço da cidade em grande número são cada vez mais
maltratadas”, mostrando que o incômodo com as cidades é generalizado. Ele ainda
completa a sua discussão relatando alguns dos problemas enfrentados por quem nelas vive:
“espaço limitado, obstáculos, ruído, poluição, risco de acidentes e condições geralmente
vergonhosas são comuns para os habitantes, na maioria das cidades do mundo”.
Precisamos considerar o significado do direito à cidade no bojo de uma situação de
esgotamento da relação entre as pessoas e o modo de vida urbano. Para Harvey (2014, p.
28), por exemplo,
O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso
individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de
mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos
desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez
que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder
coletivo sobre o processo de urbanização.

O direito à cidade, então, está diretamente relacionado à possibilidade de pensar a


cidade, seus rumos e de sonhar com uma cidade diferente, mais próxima dos anseios de
quem efetivamente vive, produz e reproduz a vida urbana. O grande problema, porém, é que
esta possibilidade não está disponível como deveria ou poderia. Pelo contrário, tal
possibilidade existe, mas concentrada nas mãos de poucos. Harvey (2014, p. 63) comenta
este problema afirmando que
O direito à cidade como hoje existe, como se constitui atualmente, encontra-
se muito mais estreitamente confinado, na maior parte dos casos, nas mãos
de uma pequena elite política e econômica com condições de moldar a
cidade cada vez mais segundo suas necessidades particulares e seus mais
profundos desejos.

Apesar da concentração deste direito nas mãos de poderes hegemônicos, a cidade


se configura como um campo muito importante para o surgimento de iniciativas

3218 
 
 
 
 
 
contestadoras da ordem vigente e que procuram, de alguma maneira, com pautas
variadíssimas e objetivos distintos, retomar a capacidade de intervenção nas cidades pelas
pessoas que efetivamente a produzem diariamente.
Mesmo com todos os problemas, as cidades são compreendidas por muitos como
pontos de incubação de grandes movimentos e ideias (HARVEY, 2014), elementos que
demonstram que aquelas, as cidades, possuem uma grande capacidade de planejamento e
invenção de soluções para enfrentar suas crises e dificuldades (JACOBS, 2011). A cidade,
portanto, pode ser o campo para o surgimento de iniciativas, individuais ou coletivas, que
busquem ser alternativas ao modelo hegemônico, o que pode muda-las, fugindo de uma
perspectiva da ação do poder público ou dos grandes atores hegemônicos; é a ação das
pessoas que vivem nas cidades e que vivem as cidades.
Harvey (2014, p. 143) reforça a ideia das pequenas ações como transformadoras
das cidades em que vivemos, afirmando que “as qualidades humanas da cidade emergem
de nossas práticas nos diversos espaços da cidade, mesmo que eles sejam passíveis de
cercamento, controle social e apropriação, tanto pelos interesses privados como pelos
público-estatais”. A apropriação dos espaços pelos cidadãos com a consequente utilização
diversificada destes espaços, a partir das práticas das pessoas, é o que de fato os
qualificará, em última instância.
A qualidade dos espaços não deixa de ser um fator de grande importância para a
sua boa apropriação e para a valorização da vida comunal da cidade, fator que tem sido
perdido progressivamente com um viver cada vez mais individualista. Entretanto, são as
práticas que efetivarão o potencial de cada espaço. Para Harvey (2014, p. 144), por
exemplo, “embora esses espaços e bens públicos contribuam intensamente para as
qualidades dos comuns, faz-se necessária uma ação política por parte dos cidadãos e das
pessoas que pretendam apropriar-se deles ou concretizar essas qualidades”.
A agricultura urbana e periurbana (AUP) tem se revelado uma importante e
oportuna prática alternativa ao modelo hegemônico de cidade, principalmente por seu
potencial multifuncional de transformação territorial, ambiental, econômica, social, política e
cultural. Para que possamos realizar uma discussão efetiva sobre a AUP, algumas noções
se mostram de grande relevância. É por isso que retomaremos, inicialmente, os conceitos
de rural e de urbano.
Quando pensamos em agricultura, é possível que já façamos a sua associação
imediata com o meio rural. O rural, portanto, é frequentemente apreendido como sendo
totalmente vinculado aos aspectos agrícolas, com o foco direcionado na produção. De fato,
rural e urbano foram enxergados – geralmente e ao longo do tempo – como categorias
estanques, imobilizadas. O rural, como um conceito que abarcaria o que é próprio do

3219 
 
 
 
 
 
campo, estaria confinado geograficamente a ele. Com o urbano, a mesma dinâmica. Ele,
expressão de um modo de vida característico das cidades, estaria a elas confinado. Estudos
mais recentes, porém, têm mostrado a necessidade de que as categorias rural e urbano
sejam repensadas à luz do que tem acontecido na realidade, como é o exemplo do
crescente fenômeno da agricultura urbana e periurbana. Neste sentido, a discussão
realizada por Rua (2006) é bastante relevante. O autor, tratando da necessidade de uma
revisão conceitual de rural e de urbano, propõe um novo modo de enxergar a realidade
baseado na noção de hibridez.
Devemos propor um outro modo de ver a realidade, oposto àquele fundado
em dois polos distintos – rural e urbano, retomando a ideia de um espaço
híbrido, isto é, um conjunto inseparável de sistemas de objetos e sistemas
de ações (variando em cada momento histórico) [...] (RUA, 2006, p. 88).

A elucidação sobre o conceito de hibridez pode ser buscada no estudo de Canclini


(2015) sobre culturas híbridas. Para Canclini (2015, p. XIX), a hibridação se caracteriza por
“processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Falar de espaços
híbridos na discussão sobre a reconceituação de rural e de urbano indica, portanto, a
compreensão de que, no rural, há elementos urbanos, e no urbano, elementos rurais,
gerando novas territorialidades particulares e diversas. O conceito de espaço híbrido – em
oposição à noção de rural e de urbano como categorias estanques – possui na sua essência
a ideia de movimento, de um rural que abriga elementos urbanos que, em contato com o
rural, adquirem feições próprias diferentes das que tinha. Suzuki (2007, p. 144) corrobora a
noção de espaço híbrido e ressalta que a separação entre rural e urbano baseada no
perímetro urbano é insuficiente:
[...] o perímetro urbano é extremamente falho para a diferenciação do rural e
do urbano, sobretudo porque há, por um lado, muito de rural em
aglomerações urbanas, particularmente as mais diminutas, mas, também,
nas médias e nas grandes, ou mesmo nas metrópoles. Enquanto, por outro
lado, há muito de urbano no campo brasileiro, sobretudo nas áreas mais
próximas das metrópoles ou das cidades de maior porte.

A proposta de Rua (2006, p. 90), então, é tentar “uma visão mais integradora das
territorialidades em que o urbano e o rural se mesclam definindo particularidades e
singularidades que marcam cada localidade”. Certas expressões territoriais tipicamente
urbanas que ocorrem no campo não seriam, dentro desta perspectiva, novas ruralidades, e
sim o urbano presente no campo, caracterizando o que é chamado pelo autor de
urbanidades no rural. Da mesma forma, podemos pensar na agricultura urbana e periurbana
como uma ruralidade na cidade, uma expressão territorial distinta do urbano, mas que
ocorre nele, gerando territorialidades particulares e diversas.

3220 
 
 
 
 
 
Tal perspectiva sobre os espaços híbridos e as ruralidades na cidade nos ajuda a
compreender a ideia de a cidade ser, inerentemente, um lugar de encontros: encontro de
pessoas diferentes, de práticas variadas, de opiniões distintas e até mesmo do urbano com
o rural. Gehl (2015, p. 23) fala sobre a experiência de viver a diversidade proporcionada
pelas cidades, originada pela ação das pessoas:
Experienciar a vida na cidade é também um entretenimento estimulante e
divertido. As cenas mudam a cada minuto. Há muito a se ver:
comportamentos, rostos, cores e sentimentos. E essas experiências estão
relacionadas a um dos mais importantes temas da vida humana: as
pessoas.

A agricultura urbana e periurbana está inserida na perspectiva da cidade como um


lugar de encontros, como um espaço híbrido que contém elementos do urbano e elementos
do rural, podendo ser compreendida a partir destas noções. Contudo, é necessário que
definamos a AUP de maneira mais contundente.
Um dos aspectos importantes para a definição do que é a agricultura urbana e
periurbana é a sua localização. A AUP é uma modalidade de agricultura presente em
territórios predominantemente urbanos, seja propriamente na cidade ou em suas franjas. A
qualificação da agricultura como urbana é ainda um elemento diferenciador da agricultura
presente nos territórios rurais – considerando que não existe apenas uma agricultura no
rural, mas agriculturas que variam muito em todas as suas características; não apenas um
rural, mas diversas ruralidades.
Além da localização, há alguns outros elementos que colaboram na definição do
que é a agricultura urbana e periurbana. Cabe, entretanto, a ressalva de que definir o que é
a AUP não é uma tarefa simples. Fantini (2016, p. 82) ressalta alguns dos desafios em
conceituar detalhadamente o que é a agricultura urbana e periurbana:
[...] dar uma definição detalhada do que representa hoje em dia esse tipo de
agricultura não é fácil, sobretudo se pensamos que sua forma é
extremamente variada, refletindo as diferenças, as desigualdades e as
contradições do mundo globalizado. De fato, o fenômeno da agricultura
urbana e periurbana tem sido tratado nas últimas décadas por urbanistas,
geógrafos, sociólogos, engenheiros agrônomos etc., mas ainda assim não
se chegou a um acordo na sua definição, existindo, ainda, um debate
acadêmico para estabelecer quais são as variáveis para incluir uma
agricultura como urbana.

Nagib (2016, p. 52) reforça a dificuldade na definição da agricultura urbana e


periurbana, atribuindo aos diferentes olhares que ela tem recebido de urbanistas, geógrafos,
sociólogos e diversos outros profissionais – como explicitado por Fantini (2016) na citação
anterior – a possibilidade de diferentes conexões:
Quando buscamos, portanto, uma conceituação de ‘agricultura urbana’,
encontramos um emaranhado de definições que exploram as necessidades
de cada pesquisador, de acordo com seu contexto temporal e espacial e

3221 
 
 
 
 
 
com o olhar de sua área de atuação, permitindo estabelecer múltiplas
conexões sobre a agricultura urbana.

Além da complicada definição de AUP, há também uma grande oportunidade. A


AUP, como um fenômeno multifuncional, tem recebido olhares de diversas áreas, permitindo
a complexificação do debate. Apesar, porém, da dificuldade exposta sobre a definição do
que é a agricultura urbana e periurbana e dos diferentes olhares que ela tem recebido, há
elementos essenciais que ajudam na sua caracterização. Suzuki e Berdoulay (2016, p. 2)
afirmam que a AUP é:
[...] definida a partir de sua localização (realizada sobre o ‘território urbano’),
da atividade em si mesmo (produção alimentar ou outra), de sua razão
econômica (entradas para os agricultores) e de sua inclusão no sistema
alimentar convencional ou num sistema alternativo.

Nagib (2016) corrobora a definição de Suzuki e Berdoulay (2016), sistematizando a


definição da agricultura urbana e periurbana em três elementos essenciais, com o acréscimo
de um aspecto como essencial para a sua definição, ressaltando a importância de
considerarmos os atores individuais ou coletivos envolvidos diretamente com esse tipo de
agricultura: “Em geral, as três dimensões essenciais da agricultura urbana são: a variedade
de áreas (intra ou periurbanas); os personagens, instituições e organismos dela
participantes; e as atividades e práticas oriundas de motivações distintas” (NAGIB, 2016, p.
42).
Tomando a contribuição das duas definições explicitadas, podemos aprofundar o
debate sobre os outros elementos importantes na definição da agricultura urbana e
periurbana. Se já falamos da localização como o primeiro aspecto a ser considerado, o
próximo elemento é a atividade em si. A AUP apresenta uma grande diversidade nas suas
formas, práticas e fins, e esta diversidade está ligada às motivações que conduzem à
criação de experiências de agricultura urbana e periurbana.
Tendo como base o trabalho de Fantini (2016), a nossa proposição é que as
motivações para a criação de experiências de agricultura urbana e periurbana giram em
torno de dois eixos principais: motivações vinculadas ao sustento e às necessidades
alimentares e motivações vinculadas às noções e ideais de sustentabilidade, de inclusão
social e de transformação da sociedade. Segundo Fantini (2016, p. 91, tradução nossa), as
diferenças de motivação seriam em parte explicadas por uma questão de contexto: “[...] a
influência das motivações é distinta e depende da situação geográfica, econômica e
sociopolítica de cada experiência”. Suzuki e Berdoulay (2016, p. 2) identificam eixos
similares de motivações para o surgimento das experiências de agricultura urbana e
periurbana, tendo em vista que a AUP “[...] apresenta inúmeras faces, como a de significado

3222 
 
 
 
 
 
econômico para os agricultores, mas, também, a de apontar para a construção de outra
cidade, em que a preservação e a restauração da biodiversidade estejam mais presentes”.
As principais motivações, como podemos ver, são bastante distintas entre si.
Ambas, porém, representam um certo tipo de potencial questionador comum. A agricultura
urbana e periurbana – seja em sua expressão produtiva ou em sua expressão ativista –
possui um caráter intrínseco de alternativa ao sistema dominante. Como Fantini (2016, p.
91, tradução nossa) afirma, “[...] se nota um traço comum entre os elementos [...]: todas as
motivações representam uma resposta, espontânea ou mais articulada e estruturada, às
faltas, contradições e aspectos críticos do paradigma de desenvolvimento urbano e
agroalimentar capitalista”. Fantini (2016, p. 93, tradução nossa) ainda completa:
Um elemento interessante é que em ambos os casos as motivações
vinculadas com a criação de oportunidades econômicas e canais
alternativos de produção/distribuição, e com a criação de inclusão social e
empoderamento político, desempenham um papel importante [...]. Tal
importância confirma uma vez mais a capacidade desse tipo de agricultura
de responder às faltas e desigualdades do sistema econômico e político
global, e explica, apesar das dificuldades, dos conflitos e da competência
para o uso do solo em zonas potencialmente sujeitas à atividade imobiliária
e comercial, a enorme expansão da agricultura nas franjas periurbanas das
últimas décadas.

A agricultura urbana e periurbana, então, por meio de sua multifuncionalidade e


pela criação de diferentes ruralidades no urbano, compreendendo as ruralidades como
manifestações materiais e imateriais, se caracteriza como um importante fenômeno para a
resistência ao modelo hegemônico capitalista, e especificamente neoliberal de nossas
cidades, mas também para a proposição de um modelo alternativo. Há um grande potencial
na prática da agricultura urbana e periurbana (que, apesar de não ser uma prática recente,
ocorrendo desde tempos remotos nas cidades, só agora, nas últimas décadas, vem sendo
valorizada).
O potencial da agricultura urbana e periurbana, o último elemento essencial que
define a AUP, é posto em prática pelos atores envolvidos no processo. Muitas vezes temos
o nosso foco ajustado para a escala do macro, identificando grupos sociais e atribuindo a
eles certo comportamento que seria comum ao grupo. A agricultura urbana e periurbana,
entretanto, se apresenta como um fenômeno muito diverso e com muitas possibilidades.
Propomos, portanto, que o foco seja ajustado para os pequenos atores que, por meio da
prática da AUP, contribuem para a criação de novas ruralidades, resgatando valores
importantes que, outrora, haviam sido perdidos. Para estudarmos um fenômeno diverso,
precisamos de um olhar que dê conta do movimento e da escala micro. Como Suzuki e
Berdoulay (2016, p. 5) propõem:
Sem necessariamente fechar-se na ideologia pós-modernista, constata-se,
de fato, hoje, uma valorização das diferenças espaciais, da diversidade de

3223 
 
 
 
 
 
ambientes, e as possibilidades de desenvolvimento oferecidas por contextos
geográficos diferentes. O elo íntimo tecido entre o sujeito e o lugar torna-se
uma problemática da sociedade e atrai a atenção dos pesquisadores. Trata-
se de um pensamento que se poderia nomear heterotópico, no sentido que
insiste sobre os lugares e não sobre um espaço sem qualidades [...]. Mas é,
sobretudo, interessante notar que a ideia de lugar – em oposição a de
espaço – implica uma relação direta com a subjetividade do indivíduo e ao
seu desejo de ser autor de sua própria vida. Ensaiando de ser autônomo e
ativo, este indivíduo-sujeito revela as possibilidades do ambiente no mesmo
tempo que ele o modifica e que se modifica a si mesmo.

O olhar proposto para o estudo da agricultura urbana e periurbana, portanto, se


baseia no movimento: nas diferenças espaciais, de ambientes, de contextos geográficos e
nas múltiplas possibilidades que essas diferenças permitem na relação com os indivíduos,
que modifica o seu ambiente e a si mesmo nessa relação. Talvez seja este o grande
potencial que unifica as experiências de agricultura urbana, sejam produtivas, sejam
ativistas. O potencial de o indivíduo, por meio de uma prática como a AUP, modificar o seu
espaço (qualificado de lugar, um espaço com sentido) e modificar-se a si mesmo, criando,
ele mesmo, em conjunto com outras pessoas e de acordo com o seu contexto geográfico,
político, econômico, cultural, ambiental e social, novas ruralidades que modificam o espaço
urbano e que abrem novas possibilidades: uma produção alternativa, que promove inclusão
social, gera emprego, renda, alimentos para consumo próprio, mercados alternativos etc.,
mas também uma nova sociabilidade, com o resgate de certos valores, com o
empoderamento de indivíduos, com a busca por uma outra cidade e por um outro modo de
vida.
É necessário questionarmos como, porém, as ruralidades na cidade produzidas a
partir da agricultura urbana e periurbana podem ter assegurado o seu potencial de
transformação real da sociedade como modelo de resistência e também de alternativa aos
modelos dominantes e hegemônicos.
A AUP coloca em foco questões muitas vezes negligenciadas no modelo de
desenvolvimento neoliberal. Se no modelo dominante o foco será a esfera econômica em
detrimento das outras, a agricultura urbana e periurbana reinsere as esferas do social, do
ambiental e do cultural como elementos fundamentais na consecução de uma outra
experiência. A AUP dialoga muito, portanto, com a Agroecologia, que surge no contexto de
uma crise enraizada no sistema socioeconômico hegemônico e da necessidade de uma
agricultura que contemple outras dimensões que não apenas a técnica ou a econômica, ou
seja, propondo uma nova ruralidade no campo. A sua base seria, exatamente, um enfoque
multifuncional na agricultura. Caporal e Costabeber (2000, p. 17) destacam que o
planejamento de uma agricultura alternativa, “[...] para ser operacional, precisa ser

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relacionado não apenas com a sustentabilidade econômica, mas também, e principalmente,
com a sustentabilidade socioambiental e cultural de sociedades concretas [...]”.
A Agroecologia se apresenta tanto como uma ciência, que fornece as bases
teóricas para a inspiração, o planejamento e o manejo de sistemas de agricultura
sustentáveis, quanto como um conjunto de práticas que, aplicadas, procuram alcançar o
objetivo de uma agricultura sustentável, já que
[...] fornece as bases científicas, metodológicas e técnicas para uma nova
revolução agrária não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Os sistemas de
produção fundados em princípios agroecológicos são biodiversos,
resilientes, eficientes do ponto de vista energético, socialmente justos e
constituem os pilares de uma estratégia energética e produtiva fortemente
vinculada à noção de soberania alimentar (ALTIERI, 2012, p. 15).

A Agroecologia, portanto, pode ser uma ferramenta metodológica muito importante


para que a agricultura urbana e periurbana desenvolva todo o seu potencial de
transformação. Os princípios agroecológicos estão em consonância com as características,
o potencial, as necessidades e a aplicabilidade da AUP, já que promovem tanto a teoria, em
seu caráter científico, quanto a ação, como um conjunto de práticas. Além disso,
reconhecem as diversas funcionalidades e dimensionalidades da agricultura urbana e
periurbana, oferecendo ferramentas úteis para a construção de uma AUP relevante. Fantini
(2016, p. 105, tradução nossa) propõe, finalmente, que:
Com seu enfoque interdisciplinar, sua ênfase nos conceitos de soberania
alimentar e desenvolvimento sustentável e suas propostas de
desenvolvimento participativo e endógeno, tal disciplina [a Agroecologia]
segue representando um importante marco teórico/prático de referência
para muitos experimentos e projetos de agricultura urbana e periurbana,
especialmente por sua capacidade de fornecer ferramentas eficazes e
comprovadas e indicadores quantitativos e qualitativos que permitem tornar
visíveis os benefícios das atividades e gerar informação relevante para a
tomada de decisões.

Entendemos que a Agroecologia pode contribuir muito para que a agricultura


urbana e periurbana atinja todo o seu inerente potencial transformador, seja como atividade
produtiva, seja como um ativismo, afinal, ela surgiu exatamente como uma forma de
imprimir, no espaço rural, uma ruralidade diferente da que é característica da agricultura
convencional. A agricultura urbana e periurbana, criando, nas cidades, ruralidades, pode se
basear nos princípios agroecológicos para que estas ruralidades tenham um caráter
transformador na busca de uma outra cidade.

2.1. As experiências de São Paulo e Bogotá

Como estudos de caso, abordaremos agora três experiências de agricultura urbana


e periurbana que dialogam com o conteúdo teórico abordado, buscando compreender se o

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potencial multifuncional da AUP se efetiva na prática nos casos estudados e se a produção
de ruralidades na cidade por meio da prática de agricultura tem sido um instrumento real de
transformação dos espaços.
Buscaremos responder tais anseios explorando, rapidamente, duas experiências na
cidade de São Paulo e uma experiência na cidade de Bogotá, na Colômbia, as metrópoles
mais importantes em seus países e que possuem um papel de destaque na América Latina
como centros econômicos, culturais e políticos, além de serem cidades bastante populosas.
São Paulo e Bogotá, portanto, possuem similaridades em termos de significados nacionais e
configuram casos representativos para o estudo das grandes cidades na América Latina, e
especificamente para o estudo da agricultura urbana e periurbana nas grandes cidades.

Horta das Corujas – São Paulo

Ocupando 800m² de área e localizada no bairro de Vila Beatriz, um distrito do Alto


de Pinheiros, está a Horta das Corujas, uma horta comunitária de orientação agroecológica
no espaço da Praça das Corujas. Todo o processo histórico do uso do espaço da Praça, de
sua regulamentação e implementação é contado, com grande detalhamento e excelência,
na pesquisa de Nagib (2016).
A Horta, criada em 2012, foi fruto de uma ação conjunta de ativismo, com destaque
para o grupo Hortelões Urbanos, e da participação de pessoas em conselhos municipais,
com destaque para a ação dos moradores da região. Este movimento propiciou a
materialização da Horta das Corujas (NAGIB, 2016). Em meio à complexidade da cidade de
São Paulo e de um distrito altamente urbanizado, como o Alto de Pinheiros, vemos uma
ruralidade sendo construída e apontando para caminhos significativos em relação ao
problema em tela, o de análise da agricultura urbana e periurbana.
As ruralidades da experiência da Horta das Corujas podem ser vistas em aspectos
variados. Em primeiro lugar, a própria paisagem é alterada, com o florescimento visual de
diferentes cultivos de alimentos, de plantas medicinais, contrastando com plantas de
finalidade estética, que circundam a Horta.
Além disso, a ruralidade pode ser percebida por meio da criação de novas relações
humanas e do próprio incremento na qualidade de vida dos cidadãos. A Horta propicia o
contato entre os diferentes: sejam moradores da área, sejam ativistas urbanos, sejam
pessoas que utilizam o espaço da Horta como passagem ou para outros fins, este espaço
tem servido como um lugar de encontro, desenvolvendo uma sociabilidade muitas vezes
vista no campo, mas adaptada ao contexto urbano da diversidade, ou seja, uma nova
ruralidade, híbrida, potencializada, ainda, pela necessidade de compartilhamento de todos

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os recursos, já que a horta é comunitária e o trabalho voluntário. Nagib (2016, p. 198) afirma
que “o engajamento comunitário [...] traduz [...] o desejo por maior segurança (emocional e
física) adquirida pelos laços de solidariedade e de identidade com o espaço público”.
A ruralidade também pode ser apreendida por meio da valorização dos aspectos
socioambientais num contexto urbano. Com o distanciamento entre o homem e a terra, entre
o consumidor e a produção de seu alimento, perdemos importantes noções e valores em
relação ao ambiente. Devemos considerar, também, que a realidade do campo brasileiro é
de uma agricultura convencional, baseada no uso de insumos químicos sintéticos, gerando
certa insegurança alimentar. A Horta, entretanto, tem servido como um meio de retomar a
importância dos valores perdidos, de promover uma agricultura alternativa e também como
uma ferramenta pedagógica para que seus diversos frequentadores compreendam a
importância das questões ambientais na cidade. Segundo Nagib (2016, p. 313),
A horta também recebe o público infantil em visitas monitoradas de escolas
do entorno, que a integraram enquanto espaço de aprendizagem para o
desenvolvimento de suas atividades pedagógicas semanais. [...] As escolas
de educação infantil (crianças de até seis anos de idade) Piccolino e Espaço
Brincar, bem como o Barro Molhado, possuem canteiros próprios na Horta
das Corujas para que as crianças possam realizar as atividades que lhes
são introduzidas.

A Horta das Corujas, portanto, tem sido um instrumento efetivo de educação para
diversas gerações de pessoas. A retomada do contato entre o homem e a terra traz à tona
diversos valores esquecidos. É provável que as crianças que estão em contato direto com a
Horta tenham, no futuro, outra consciência sobre a importância da valorização do ambiente
e de iniciativas assim nas nossas cidades.

Horta Comunitária da Faculdade de Medicina da USP – São Paulo

Outro caso significativo, também na cidade de São Paulo, é o da Horta Comunitária


da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), situada no bairro de
Cerqueira César, numa importante avenida chamada Doutor Arnaldo, no centro expandido
da capital. Nos fundos de um dos prédios do complexo da FMUSP, área até então
inutilizada, um grupo começou, em 2013 e de forma embrionária, uma horta, com apenas
um tipo de plantação. A Horta, no entanto, cresceu, e em 2016 possuía 520m² de área com
centenas de espécies plantadas (FMUSP, 2016).
A Horta tem sido um instrumento efetivo de promoção de diversos valores, como a
agroecologia, a biodiversidade e a alimentação saudável. Além disso, promove também o
convívio decorrido do trabalho em grupo, já que a Horta é comunitária, como seu próprio
nome diz, e depende do trabalho de voluntários. É interessante pensarmos como as práticas
dos voluntários da Horta e sua própria existência criam ali um espaço qualificado. Se antes

3227 
 
 
 
 
 
podíamos pensar em um espaço cimentado, árido e inutilizado, agora, ao lado de uma
grande avenida, aquele espaço faz até mesmo com que esqueçamos o que está do outro
lado dos muros. Assim, a existência desta experiência e as práticas ocorridas ali geram uma
ruralidade que qualifica e transforma o espaço.
A experiência da Horta tem trazido resultados práticos muito interessantes. Ela
propiciou interesse de pesquisadores, principalmente da área da saúde, que têm publicado
textos diversos sobre a Horta Comunitária da Faculdade de Medicina da USP. Como
destaque, mencionamos o “Guia Informativo sobre Plantas Medicinais”3, publicado pela
própria FMUSP, que relaciona a especificidade da área da medicina com a própria Horta,
falando sobre as plantas que ali são cultivadas e que têm fins medicinais.
Segundo Mauad4, idealizadora da Horta, a FMUSP, como instituição, não via com
bons olhos a iniciativa no início do projeto. Com o passar do tempo, entretanto, a visão foi se
alterando sistematicamente, e hoje o projeto é apreciado e valorizado, ainda que tenha
poucos recursos financeiros para ser mantido.

Jardim Botânico de Bogotá (JBB) “José Celestino Mutis” – Bogotá

O JBB é uma importante entidade que, desde 2004, coordena diversos projetos
distritais de agricultura urbana e periurbana de Bogotá. Se, nos outros dois exemplos, o foco
era observar experiências de AUP a partir de ações ativistas de hortelões, vemos, agora,
uma experiência de AUP como política pública.
Entre 2004 e 2017, o Jardim Botânico de Bogotá tem sido um importante centro de
pesquisas e de difusão do conhecimento sobre a agricultura urbana e periurbana, gerindo
projetos importantes com focos distintos. A sua ação é tanto de planejamento e gestão de
políticas, como de capacitação prática para os agricultores, por meio da horta urbana que é
mantida ali (JBB, 2017)5.
Do início das ações, em 2004, até hoje, em 2017, foram executados três projetos
importantes e que mostram o amadurecimento da visão sobre a importância da agricultura
urbana e periurbana nas cidades. Entre 2004 e 2012, o Proyecto 319 tinha o objetivo de
solucionar a questão da fome em Bogotá. A promoção da AUP, portanto, tinha o objetivo de
ser uma ferramenta para o combate da fome, com a capacitação técnica de populações

                                                            
3 Disponível em: https://issuu.com/karenterra/docs/guia_horta_fmusp_revisado. Acesso em: 03 set. 2017.
4 Thais Mauad é professora do Departamento de Patologia da FMUSP, foi a idealizadora da Horta Comunitária
da FMUSP e é, atualmente, a coordenadora do projeto. O depoimento mencionado foi obtido numa fala de
Mauad para os alunos do curso de Geografia da Universidade de São Paulo, na própria Horta, no dia 02 de
setembro de 2017.
5 Conforme o sítio eletrônico do Jardim Botânico de Bogotá. Disponível em:
http://www.jbb.gov.co/index.php/agricultura-urbana. Acesso em: 10 out. 2017. 

3228 
 
 
 
 
 
pobres para que desenvolvessem cultivos próprios para o seu consumo (VALENCIA; CELIS,
2011; HERNÁNDEZ; RINCÓN; PINZÓN, 2017).
Entre 2012 e 2016, o Proyecto 863 já rumava para um objetivo diferente,
dialogando com as tendências da época sobre mudanças climáticas e a necessidade de
melhoria da cobertura vegetal da cidade. O objetivo, portanto, era que a AUP fosse uma
ferramenta para a reabilitação da estrutura ecológica da cidade de Bogotá (HERNÁNDEZ;
RINCÓN; PINZÓN, 2017). Vemos, neste caso, que o potencial multifuncional da agricultura
urbana e periurbana começava a ser mais compreendido e valorizado.
Por fim, no ano de 2016, se iniciou o Proyecto 1119, com uma significativa
alteração nos objetivos dos projetos anteriores. O projeto atual pretende tornar a cidade
mais saudável e agradável para os cidadãos, focando na questão da qualidade de vida e de
ambientes esteticamente agradáveis. A AUP é vista, então, como um instrumento para a
promoção do incremento da qualidade de se morar na cidade (HERNÁNDEZ; RINCÓN;
PINZÓN, 2017). Mais uma vez, o potencial multifuncional da AUP é enfatizado.
A experiência do Jardim Botânico de Bogotá mostra a promoção das práticas de
agricultura urbana e periurbana e, portanto, das ruralidades criadas a partir destas práticas,
como forma de combater diversos problemas enfrentados pela metrópole, causando,
diretamente, transformações territoriais importantes e relevantes nos aspectos social,
ambiental, político e cultural.

3. Considerações finais

A agricultura urbana e periurbana tem sido uma importante prática de


transformação territorial em diversos aspectos, corroborando o seu grande potencial
multifuncional. Por meio do estudo das três experiências citadas, podemos ver que
transformações ambientais, sociais, econômicas e culturais têm ocorrido, advindas da
criação de ruralidades a partir da prática da AUP nas cidades de São Paulo e Bogotá.
As hortas urbanas têm sido adotadas tanto por movimentos ativistas, que buscam,
de maneira geral, um novo modo de viver nas grandes cidades, quanto pelos governos
locais, que enxergam na prática da agricultura urbana e periurbana uma ferramenta
importante para a superação da fome, para a melhoria das condições de vida dos cidadãos,
para o combate dos problemas ambientais e para a construção de uma cidade mais
agradável.
Dentro de um espaço híbrido – contendo, além de tudo, elementos urbanos e
elementos rurais –, complexo e diversificado como o das grandes cidades, praticar a

3229 
 
 
 
 
 
agricultura tem sido uma saída para que os cidadãos se apropriem dos espaços e retomem
a busca pelo direito à cidade.
As experiências de São Paulo e Bogotá apontam, ainda, para um possível caminho
para as grandes cidades da América Latina. Como os casos das duas cidades revelam, a
AUP tem sido efetiva na busca e na construção de uma nova cidade. Além disso, a prática
da agricultura urbana e periurbana se mostra capaz de auxiliar significativamente na
resolução de problemas importantes vividos, quase como um padrão, pelas nossas grandes
cidades: pobreza urbana, fome, insegurança alimentar, impactos ambientais negativos e até
mesmo cidades pouco agradáveis e confortáveis para as pessoas que ali residem.

4. Referências

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. 3. ed.
rev. ampl. São Paulo, Rio de Janeiro: Expressão Popular, 2012.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
4. ed. São Paulo: Edusp, 2015.
CAPORAL, Francisco Roberto; COSTABEBER, José Antônio. Agroecologia e
desenvolvimento rural sustentável: perspectivas para uma Nova Extensão
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jan./mar. 2000.
FANTINI, Andrea. Cultivando ciudades: la agricultura urbana y periurbana como práctica de
transformación territorial, económica, social y política. 2016. 210 f. Tese (Doutorado) - Curso
de Geografia, Departamento de Geografía y Ordenación del Territorio, Universitat Autònoma
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http://www.tesisenred.net/bitstream/handle/10803/400657/anfa1de1.pdf?sequence=1&isAllo
wed=y. Acesso em: 04 abr. 2017.
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.
HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo:
Martins Fontes, 2014.
HERNÁNDEZ, Katherine Alexandra Herrera; RINCÓN, Ruth Zamira Herrera; PINZÓN,
Yohanna Marcela. Proyectos de Agricultura Urbana del Jardín Botánico de Bogotá José
Celestino Mutis, Analizados desde la Perspectiva de la Educación Ambiental (2004 -
2016). 2017. 106 f. Monografia (Especialização) - Curso de Especialización En Educación y
Gestión Ambiental, Facultad de Ciencias y Educación, Universidad Distrital Francisco José
de Caldas, Bogotá, 2017. Disponível em:
http://repository.udistrital.edu.co/bitstream/11349/5824/1/HerreraHernándezKatherineAlexan
dra2017.pdf. Acesso em: 13 out. 2017.
JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. Paris: Anthropos, 1968.
NAGIB, Gustavo. Agricultura urbana como ativismo na cidade de São Paulo: o caso da
Horta das Corujas. 2016. 434 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-18082016-124530/pt-br.php. Acesso
em: 04 jan. 2017.

3230 
 
 
 
 
 
RUA, João. Urbanidades no rural: o devir de novas territorialidades. Campo-território:
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http://www.seer.ufu.br/index.php/campoterritorio/article/viewFile/11781/6895. Acesso em: 02
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SUZUKI, Júlio César. Campo e cidade no Brasil: transformações socioespaciais e
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SUZUKI, Júlio César; BERDOULAY, Vincent. Agricultura urbana entre necessidade e utopia:
experiências paulistanas. In: XIV COLOQUIO INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA: LAS
UTOPÍAS Y LA CONSTRUCCIÓN DE LA SOCIEDAD DEL FUTURO, 2016, Barcelona:
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coloquio/SuzukiBerdoulay.pdf. Acesso em: 03 jan. 2017.
VALDIONES, Ana Paula Gouveia. Panorama da agricultura urbana e periurbana no
município de São Paulo. 2013. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação
Política) - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2013. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100134/tde-
04112013-162810/pt-br.php. Acesso em: 03 mai. 2017.
VALENCIA, Laura Mercedes Barriga; CELIS, Diana Carolina Leal. Agricultura urbana en
Bogotá: Una evaluación externa-participativa. Bogotá: Universidad del Rosario, 2012.
Disponível em: http://repository.urosario.edu.co/bitstream/handle/10336/2880/53067834-
2012.pdf?sequence=1. Acesso em: 03 mai. 2017.

3231 
 
 
 
 
 
GT 07 - Cidades e transformação do urbano na América Latina

REDES TRANSNACIONAIS DE CIDADES PARA A GOVERNANÇA DO


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA AMÉRICA LATINA: O CASO DO ICLEI

Alberto Teixeira da Silva1


[email protected]
William Miranda Rocha2
[email protected]
Aline Rafaella Sena Pinto3
[email protected]
Deyvini Reis4
[email protected]

Resumo
Nas últimas décadas observa-se a emergência de redes transnacionais que atuam
articulando e mobilizando cidades para a governança ancorada no tripé do desenvolvimento
sustentável: eficiência econômica, justiça social e prudência ecológica. Estas redes tem
avançado com a interdependência e globalização de fluxos de ideais e defesa do meio
ambiente na era de agendas sistêmicas e sinergéticas, transbordando em movimentos e
iniciativas subnacionais, para além das fronteiras nacionais e territoriais. Neste artigo,
buscamos apreender a atuação da Rede ICLEI, considerada uma das mais importantes
redes globais pela governança do desenvolvimento sustentável. Considera-se bastante
relevante a atuação do ICLEI, pela capacidade de aglutinar cidades e fomentar políticas
públicas para a melhoria do padrão de bem estar nas áreas urbanas da América Latina. O
enfrentamento das mudanças climáticas na América Latina traduz um importante
compromisso do ICLEI, catalisando demandas das cidades que, cada vez assumem mais
centralidade e protagonismo neste debate.

Palavras-chave: Cidades; Redes Transnacionais; Desenvolvimento Sustentável, ICLEI;


Governança; América Latina.

INTRODUÇÃO

O objetivo desta reflexão é abordar a relevância e atuação de redes transnacionais


que tem contribuído para a promoção do desenvolvimento sustentável nas cidades, na
medida em que "não há cenário sobre o século 21 que ignore a centralidade do mundo
urbano para o desenvolvimento sustentável nas próximas décadas" (FGV; Instituto Arapyaú,
2017). Nas últimas décadas observa-se a emergência de redes que articulam e mobilizam
cidades numa estratégica de governança para o desenvolvimento sustentável em vários
                                                            
1 Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP, Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA).
2 Mestre em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Doutorando em Relações Internacionais pela UnB/UFPA e Professor da Universidade da Amazônia (UNAMA).
3 Graduada em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia (UNAMA), Mestranda em Ciência

Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (UFPA).


4 Graduada em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia (UNAMA), Mestranda em Ciência

Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (UFPA).

3233 
 
 
 
 
 
continentes. Estas redes tem avançado com as interdependências e processos globais de
comunicação e defesa do meio ambiente na era de agendas sistêmicas e sinergéticas,
transbordando em movimentos e iniciativas subnacionais, para além das fronteiras nacionais
e territoriais.
Neste artigo, buscamos apreender a atuação da Rede ICLEI, considerada uma das
mais importantes redes globais pela governança do desenvolvimento sustentável. Particular
atenção será dada ao enfrentamento das mudanças climáticas na América Latina, onde as
cidades assumem cada vez mais centralidade e protagonismo. Não por acaso, as cidades
numa perspectiva planetária, Não por acaso, respondem por 80% do Produto Interno Bruto
(PIB) global, 70% do consumo mundial de energia e emitem 80% dos Gases do Efeito
Estufa (GEE).
Como assinou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “as cidades se transformaram
em depósitos de problemas causados pela globalização” (BAUMAN, 2009: 32). As grandes
cidades estão se tornando terrenos caóticos de problemáticas que evoluem para condições
de degradação socioambiental, mas também são reconhecidas como locomotivas das
mudanças estruturais que desencadeiam políticas públicas para o reordenamento urbano e
o bem-estar dos cidadãos. (SILVA; BUENDÍA, 2017).
Além da introdução e conclusão, este artigo se distribui em três seções. No primeiro
momento, serão apresentadas considerações sobre o paradigma do desenvolvimento
sustentável, como idéia-força que tem orientado ações, políticas e agendas diversas por
instituições e redes de governança global. Na segunda parte, buscaremos informar o
contexto onde redes transnacionais emergem e como estas catalisam agendas voltadas à
sustentabilidade de governos locais e subnacionais. Finalmente, a terceira seção abordará a
atuação da Rede ICLEI no cenário latino-americano, como experiência que tem cristalizado
avanços relevantes na construção de políticas públicas sustentáveis, notadamente aquelas
voltadas governança climática local e urbana.

O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO AGENDA DE


MOBILIZAÇÃO DE CIDADES

O debate sobre uma proposta de desenvolvimento alternativo ao padrão de


desenvolvimento industrial que reinava na década de 1960, vem evoluindo sobretudo a
partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo,
1972) por ser o marco da governança ambiental internacional. Contudo, somente com a
publicação do Relatório Brundtland em 1983 e a Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro, em 1992, que o

3234 
 
 
 
 
 
debate do desenvolvimento sustentável alcança o patamar de um marco paradigmático e se
consuma numa verdadeira agenda institucionalizada de compromissos e políticas públicas
no cenário internacional e global (ELLIOTT, 1998; RIBEIRO, 2010).
A adoção da agenda global em prol do desenvolvimento sustentável pela ONU em
2015, mais conhecida como Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), reforça a
necessidade de esforço coletivo que envolva a participação de múltiplos atores, no sentido
de incentivar e promover parcerias público-privadas e com a sociedade civil eficazes, a partir
da experiência das estratégias de mobilização. Neste contexto, a conformação de cidades
sustentáveis desponta com um dos grandes desafios da ONU, notadamente quando
enfatiza na Agenda ODS, precisamente no Objetivo 11 "Tornar as cidades e os
assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis". (ONU, 2015).
Além da ODS, outras duas importantes agendas que focam na sustentabilidade
global, dão grande visibilidade para o processo de urbanização, do ponte de vista de
garantir espaços urbanos sob a ótica do desenvolvimento sustentável. O Acordo de Paris,
aprovado em dezembro de 2015 e ratificado em 2017, reconhece a posição estratégica que
as cidades possuem na geopolítica das mudanças climáticas.
Já antes o relatório do Intergovernamental Panel of Climate Change (IPCC, 2014),
tinha incorpororado a temática das cidades de forma incisiva e definitiva, apontando a
intensificação das mudanças climáticas e urgência de políticas de mitigação e adaptação
nas diversas esferas dos governos e sociedades, tendo em vista os riscos associados à
vulnerabilidade urbana decorrente dos eventos climáticos extremos e da degradação
ambiental.
Por outro lado, a proclamada Nova Agenda Urbana, documento final da terceira
Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano- no Sustentável
– Habitat III, realizada em outubro de 2016 no Equador, colocou em evidência a idéia de
direito à cidade, fundado no princípio de que todos devem poder usufruir dos recursos
urbanos e fazer e refazer a cidade (HARVEY, 2012).
As agendas geopolíticas no cenário da globalização se alargaram para dar conta de
novos desafios epistemológicos e territoriais, para além do arcabouço teórico-metodológico
centrado no Estado nacional. No contexto da crise civilizatória atual, a governança do
desenvolvimento sustentável passa a ser uma questão chave, ganhando visibilidade e
importância na pauta das instituições multilaterais, redes transnacionais, governos
nacionais, subnacionais e locais.
A rigor, a questão da sustentabilidade como paradigma norteador do
desenvolvimento, ganhou impulso institucional e legitimidade pública com a realização da
famosa reunião de cúpula do Rio de Janeiro em 1992. No bojo do imperativo ético de

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responsabilidade com as futuras gerações e da oxigenação da política ambiental
Internacional traduzidos em resultados diplomáticos consubstanciados numa agenda de
cooperação, notadamente a Agenda 21, Convenção sobre Mudanças Climáticas,
Convenção sobre Biodiversidade, Declaração do Rio e Declaração de Princípios sobre
Florestas (CNUMDA, 1991; SACHS, 1993; SILVA, 2009).
Portanto, é fato que uma plataforma de compromissos de governança do
desenvolvimento sustentável vem se consolidando como pauta irreversível do sistema de
governança global coordenado pela ONU, que se traduzem nas Agendas ODM (Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio) e ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável).
As agendas de políticas públicas sustentáveis são absolutamente fundamentais para
que o planejamento urbano se viabilize como modelo civilizatório sintonizado com a
satisfação de demandas sociais, melhoria das condições de vida, sobretudo dos segmentos
mais vulneráveis e dependentes do poder público, além garantia do meio ambiente sadio e
bem administrado, o que significa priorizar investimentos em saneamento básico e
comprometimento permanente com uma política de educação que alcance todos os níveis e
setores da sociedade.

REDES TRANSNACIONAIS DE CIDADES: EMERGÊNCIA E DINÂMICA

Com as transformações do sistema internacional após a queda do muro de Berlim e


derrocada do socialismo real, os processos de expansão das interdependências ecológicas,
políticas, sociais econômicas e tecnológicas, que já vinham se constituindo deste a década
de 1970, foi fortemente amplificado pela globalização multidimensional, fazendo emergir
movimentos vigorosos de escopo transnacional, forjando redes, atores e uma diversificada
agenda de políticas públicas sustentáveis: do local ao global.
A partir sobretudo da década de 1990, com a amplificação do espaço público que
colocou em evidência o embrião daquilo que se poderia chamar de "sociedade civil mundial"
e um corresponde sentimento cosmopolita de uma cidadania de escopo planetário, vai
evoluindo uma agenda complexa de questões que atravessam fronteiras, fazendo
desembocar ações em várias partes do mundo.
Com efeito, uma diversidade de atores ligados a causas humanísticas e ambientais
estão colocando em marcha movimentos orgânicos que buscam espaço na arena da
cooperação global, atraindo e formatando coalizões e/ou iniciativas que transcendem às
fronteiras nacionais, através de dinâmicas e estruturas flexíveis e ágeis, incitando a
formação de agendas transversais de políticas públicas.

3236 
 
 
 
 
 
A constituição de redes na nova ordem geopolítica que se abre com a globalização
multidimensional, na fratura dos espaços nacionais expostos pela erosão do poder estatal
centralizado, ganha musculatura e define novos caminhos para pensar a governança para
além da visão esdocêntrica, ou seja, a sociedade em rede provoca o surgimento padrões de
governança em vários níveis (governança multinível).
A compreensão assinalada resulta da crítica ao sistema político interestatal, na
medida que este modelo está sendo substituído na contemporaneidade pela política pós-
internacional, conforme aponta Beck (1999), "a humanidade ultrapassou a era da política
internacional; esta se caracterizava pelo predomínio e monopólio do cenário internacional
por parte do Estados nacionais. Agora se inicia uma era pós-política internacional, na qual
os atores nacionais-estatais são obrigados a partilhar o cenário e o poder global com
organizações internacionais, companhias transnacionais, além de movimentos políticos e
sociais transnacionais" (BECK, 1999: pag. 71).
A gestão dos problemas ambientais urbanos globais (mudanças climáticas, escassez
de água, saneamento, perda de biodiversidade) está dando espaço para articulações entre
atores estatais e não estatais e coalizões transnacionais diversas, que envolvem múltiplas
arenas de governança multinível, catalisando agendas progressistas de temas relevantes no
contexto das agendas de políticas públicas, notadamente em regiões da América latina.
A erosão dos Estados nacionais e a fragmentação de agendas de interesse global
têm forjado novas arenas geopolíticas na contemporaneidade. O cenário trágico dos
desastres e calamidades climáticas e ambientais tem ensejado iniciativas e experiências de
paradiplomacia de megacidades no âmbito do combate aos efeitos nocivos das mudanças
climáticas, conformando poderosas redes de cidades transnacionais que influem no mapa
das decisões e negociações multilaterais.
Redes de cidades no século XXI estão assumindo forma crescente, protagonismo na
definição e gestão de agendas políticas públicas, estimulando e mobilizando governos e
segmentos da sociedade, na participação e execução de diversas políticas públicas, em
vários níveis, esferas e escalas de governança. É inquestionável a inserção geopolítica dos
grandes centros urbanos na agenda de temas transversais estimulados pela visão do
desenvolvimento sustentável.
Neste cenário, tem avançado bastante experiências de paradiplomacia, ou seja, a
inserção internacional de governos subnacionais, impulsionada pela globalização da
economia, urbanização acelerada e integração regional (RIBEIRO, 2009: 17), promovendo o
surgimento de uma paradiplomacia paralela de governos locais (municípios, cidades,
estados) que buscam interagir e articular seus interesses com outros atores e regiões no
contexto da sociedade global.

3237 
 
 
 
 
 

A ATUAÇÃO DO ICLEI PARA O AVANÇO DAS CIDADES SUSTENTÁVEIS NA AMÉRICA


LATINA

O ICLEI (International Council for Local Environmental Initiatives) foi criado na


perspectiva de representar interesses e agendas do poder local, dentro do slogan "pense
globalmente e haja localmente". O ano de 1990 que marca seu surgimento, de alguma
forma, já refletia a visibilidade da dimensão local na governança dos grandes desafios
globais, na esteira do contexto histórico de transformação da política internacional, que
retirava da camisa de força do conflito bipolar, temáticas como meio ambiente, direitos
humanos, engendrando novas idéias, novas esperanças. (CERVO, 2006: pag. 7).
A fundação do ICLEI aconteceu no primeiro Congresso Mundial de Governos Locais
por um Futuro Sustentável na sede das Nações Unidas em Nova York, com a presença de
200 governos locais de 43 países. A rede ICLEI participou diretamente na elaboração da
Agenda 21 Global - um dos documentos mais importantes da ECO-21, através do capitulo
que tratou sobre a participação dos governos locais, assumindo protagonismo na Agenda 21
Local, um programa de promoção da governança participativa e planejamento do
desenvolvimento sustentável local. Ainda na década de 1990, o ICLEI formulou a proposta
do Programa "Cidades pela Proteção do Clima" (CCP), considerado o primeiro e maior
programa do mundo de apoio a cidades para planejamento da ação climática.
A rede ICLEI congrega um vasto campo de iniciativas de governança, a saber: redes,
governos subnacionais, incluindo um grande número de cidades e administrações locais,
além de participar de fóruns e de agendas de mobilização multilaterais e globais. Portanto,
não é exclusivamente uma rede de cidades, embora a questão da sustentabilidade urbana,
seja uma preocupação recorrente na linha de atuação da ICLEI, presente nos programas e
projetos desenvolvidos nos diversos continentes.
A Rede ICLEI expressa também o compromisso de governos locais para a
construção da sustentabilidade planetária. Neste sentido, constitui uma rede global de mais
de 1.500 cidades e regiões comprometidas com um modelo de civilização ancorado na
inclusão social, eficiência econômica e prudência ecológica, ou seja, baseia-se num
paradigma de sociedade resiliente, voltado para uma economia de baixo carbono, que
valoriza a biodiversidade e pactua estratégias inteligentes de ordenamento urbano, no
sentido da prosperidade coletiva e bem estar dos cidadãos. Desenvolve atividades em
diversas regiões do mundo, conforme quadro de secretarias e escritórios abaixo.

3238 
 
 
 
 
 

Fonte: http://www.iclei.org/about/iclei-around-the-world.html

Vale esclarecer que os Programas do ICLEI deixaram de trabalhar apenas aspectos


ambientais para abraçar questões de sustentabilidade de forma mais ampla. Por isso, em
2003 foi renomeada ICLEI - Local Governments Sustainability (Governos Locais pela
Sustentabilidade). O ICLEI promove ações para enfrentar a realidade cruel do padrão de
urbanização, e por isso busca fortalecer e apoiar cidades no que tange aos impactos das
mudanças climáticas e outros desafios urbanos. Neste propósito o ICLEI une os governos
locais e regionais na criação de mudanças positivas através da aprendizagem coletiva,
intercâmbio e capacitação. (ICLEI, 2017).
O ICLEI tem atuado na América Latina desde 1994. O primeiro escritório para a
América Latina e Caribe foi estabelecido em Santiago, Chile, em junho de 1996, e o primeiro
Secretariado Regional foi sediado pelo Rio de Janeiro, em outubro de 2000. A cidade de
Buenos Aires foi escolhida como sede do Secretariado para América Latina e Caribe entre
2006 e 2010, período em que se estabeleceu, também, um escritório de projetos no Brasil,
em São Paulo. Em 2011, estabeleceu-se o atual Secretariado para América do Sul, em São
Paulo, Brasil.
Em 2011, um novo modelo para as nossas atividades na região foi aprovado, com
dois secretariados, o Secretariado para América do Sul (SAMS), liderado atualmente pelo
escritório do ICLEI na Cidade de São Paulo, Brasil e o Secretariado para o México, América
Central e Caribe (MECS), liderado pela equipe do escritório do ICLEI no México.
Os programas e ações do ICLEI para a governança do desenvolvimento sustentável
na América Latina são inúmeros e diversificados. Vale registrar estudos e experiências
importantes de sustentabilidade urbana, envolvendo diversas temáticas (gestão de resíduos,

3239 
 
 
 
 
 
incentivo à produção e consumo, mobilidade urbana, biodiversidade, infra-estrutura, gestão
de recursos hídricos, incentivo à eficiência energética e uso de energias renováveis,
mitigação e adaptação às mudanças climáticas) em várias cidades latino-americanas como
Rio de Janeiro, Toluca, León, Recife, Lima, Bogotá, Medellín, Cidade do México e San
Rafael de Heredia (ICLEI; Fundação Konrad Adenauer, 2014).
ICLEI e redes transnacionais importantes como C405, R206, Nrg4sd7, Uclg8, dentre
outras, fazem parte de um amplo movimento de articulação de cidades na era de combate
às mudanças climáticas e seus efeitos nocivos sobra a economia, saúde, turismo, além dos
impactos geopolíticos e sociais.
Importante considerar o esforço de integração das cidades do Mercosul, que tem
sido viabilizado pela Rede Mercocidades9. Com efeito, trata-se de uma "rede de cooperação
horizontal integrada atualmente por 323 cidades de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai,
Venezuela, Chile, Bolívia, Equador, Colômbia e Peru, que promociona a inserção das
mesmas no processo de integração regional do Mercosul, e cuja importância vem
crescendo, tanto em quantidade de membros como em intercâmbio de experiências"10.
As políticas e ações do ICLEI em termos de políticas de governança climática vem se
desenvolvendo desde a década de 1990, notadamente com a criação do Programa Cidades
pela Proteção do Clima (CPC), em 1997.
De acordo com informações contidas no site oficial da instituição11, a "Campanha
Cidades pela Proteção do Clima presta assistência a cidades pela adoção de políticas e
implementação de medidas quantificáveis para a redução de emissões locais de gases de
efeito estufa como forma de melhorar a qualidade do ar e de vida nos centros urbanos. A
campanha é baseada em uma estrutura de performance inovadora através de cinco marcos
com os quais os governos locais estão comprometidos. Esses marcos permitem aos
governos locais, compreenderem de que forma as decisões em âmbito municipal afetam o
uso de energia e como essas decisões podem ser úteis para mitigar as mudanças climáticas
enquanto melhoram a qualidade de vida da comunidade".
As ações do ICLEI no âmbito do CPC já apresentam resultados satisfatórios, pois na
América Latina inclui 9 cidades no México,7 cidades no Brasil,2 cidades na Argentina,uma
no Chile e uma na Colômbia. A maioria dessas cidades já completou seu inventário e
elaborou um Plano de Ação Local para reduzir suas emissões de GEE (ICLEI, 2017).
                                                            
5
http://www.c40.org/
6
https://regions20.org/
7
http://www.nrg4sd.org/
8
https://www.uclg.org/
9
http://www.mercociudades.org/pt-br
10
http://www.mercociudades.org/pt-br/node/2251
11
http://archive.iclei.org/index.php?id=1759 

3240 
 
 
 
 
 
A Rede ICLEI se constitui também um canal valioso de inserção de pequenas,
médias, grandes e megacidades na governança das mudanças climáticas, tendo papel
destacado na elaboração das agendas climáticas de cidades como por exempo como São
Paulo, que integra o comitê executivo do ICLEI desde 2005 (BACH, 2012).

CONCLUSÃO

A Rede ICLEI como parte de um movimento global de governança de questões


ambientais e sistêmicas espalhadas no planeta, condensa experiências exitosas em termos
de disseminar valores e internalização de ações para a sustentabilidade de cidades e países
latino-americanos.
As cidades expressam de forma vibrante a dinâmica da sociedade em rede na
contemporaneidade, que tem avançado de forma latente com a globalização e os fluxos da
era informacional, transbordando em movimentos e iniciativas subnacionais, para além das
fronteiras nacionais e territoriais.
Nas últimas décadas observa-se a emergência de redes transnacionais que
assumem o protagonismo como atores coletivos atuando em espaços transfronteiriços,
amalgamando agendas transversais e multilaterais. Considera-se bastante relevante a
atuação do ICLEI, pela capacidade de mobilizar atores cidades e atores subnacionais e
fomentar políticas públicas para a melhoria do padrão de bem estar nas áreas urbanas da
América Latina.
O enfrentamento das mudanças climáticas na América Latina mostra o compromisso
do ICLEI com as agendas de governança climática, na medida em que catalisa, apóia e
projeta demandas de cidades para um novo patamar e desenho de planejamento urbano,
com base na economia de baixo carbono, valorização do patrimônio público, apropriação
dos espaços de cidadania e melhoria da qualidade de vida da população através de políticas
públicas inclusivas e sustentáveis.

REFERÊNCIAS

BACH, Adalberto Gregório. (2012). Agenda climática do município de São Paulo:


contribuição de redes transnacionais de governos locais. Revista Teoria & Pesquisa. vol. 21,
Nº 2, jul./dez.

BECK, Ulrich. (1999). O que é globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e
Terra.

BAUMAN, Zygmunt. 2009. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Editora Zahar.

3241 
 
 
 
 
 
CERVO, Amado Luiz. A ação internacional do Brasil em um mundo em transformação. IN:
OLIVEIRA, Henrique Altemani de. & LESSA, Antonio Carlos (Orgs.) Relações
internacionais do Brasil: temas e agendas. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2006.

COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (1991) Nosso


futuro comum. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas.

ELLIOTT, Lorraine. The global politics of the environment. New York: New York
University Press, 1998.

Fundação Getúlio Vargas; Instituto Arapyaú. 2017. Construindo a participação em


agendas para cidades sustentáveis.
http://mediadrawer.gvces.com.br/publicacoes/original/2017_participacao-cidades-
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HARVEY, David. 2012. Direito à Cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p.73-89.

HARVEY, David. (2014) Cidades rebeldes: Do direito à cidade à revolução urbana.


Tradução Jeferson Camargo. São Paulo, Martins Fontes.

ICLEI, 2017. Mudanças climáticas e desenvolvimento limpo: um guia do ICLEI.


http://archive.iclei.org/fileadmin/user_upload/documents/LACS/Portugues/Servicos/Ferramen
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ICLEI. 2017. Corporate Report 2016-2017.


http://e-lib.iclei.org/wp-content/uploads/2017/08/20170310_ICLEI-corporate-Report-2016-
2017_online-version.pdf.

ICLEI & FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER. 2014. Sustentabilidade urbana: experiências


na América Latina. 1ª edição. São Paulo.
UNITED NATIONS (2015b). “Adoption of the Paris Agreement”. Conference of the Parties.
Twenty-first session. https://unfccc.int/resource/docs/2015/cop21/eng/l09r01.pdf. acesso
02.01.2016.
UNITED NATIONS (2015a). “Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable
Development”.
https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/21252030%20Agenda%20for%20
Sustainable%20Development%20web.pdf. Acesso 23.12.2015.
RIBEIRO, Maria Clotilde Meirelles. Globalização e novos atores: a paradiplomacia das
cidades brasileiras. Salvador: Editora EDUFBA. 2009.

RIBEIRO, Wagner da Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto,


2001.
SACHS, Ignacy (1993). Estratégias de transição para o século XXI. In: BURSZTYN, M.
(Org.) Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Brasiliense.
SILVA, Alberto Teixeira da. Integração e governança na América do Sul: o caso da OTCA.
IN: ARAGÓN, Luis Eduardo & OLIVEIRA, José Aldemir de. (Orgs.) Amazônia no Cenário
Sul-Americano. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazônas. 2009.

SILVA, Alberto Teixeira da; BUENDIA, Mercedes Pardo. As cidades no coração da


governança climática global. Mundorama, v. 19, p. 1-1, 2016.

3242 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

O CAMPO CEGO DO URBANO LATINO-AMERICANO: INDUSTRIALISMO E


CITADISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO

Rodrigo Castriota (CEDEPLAR/UFMG)1


[email protected]
Bruno Siqueira (FACE/UFMG)2
[email protected]

RESUMO
Questões urbanas além das cidades se mostram cada vez mais relevantes diante da atual
problemática urbana. Diversos estudos contemporâneos revisitam a hipótese de Henri
Lefebvre da urbanização completa da sociedade. Para Lefebvre, o urbano emergente – da
diferença, do encontro e da simultaneidade – superaria o protagonismo industrial e a
racionalidade da indústria. Entretanto, um ‘campo cego’ ofusca o urbano emergente pois,
embora tentemos alcançar essa realidade emancipatória, nossos olhares e conceitos ainda
são moldados pelas teorias e práticas da industrialização. Na América Latina o campo cego
tem características importantes associadas à obsessão com o crescimento e o
desenvolvimento econômico na tentativa de superar a condição do subdesenvolvimento,
este reduzido pelas percepções e conceitos cotidianos moldados pelo industrialismo. Esse
trabalho revisita tal problemática no contexto contemporâneo do Brasil pós-golpe
adicionando uma espacialidade cegante: o citadismo, i.e. a obsessão teórica e prática com a
cidade como unidade de análise e de realidade privilegiada. Argumentamos que este
fenômeno não apenas invisibiliza questões urbanas fora da cidade como também dentro da
cidade – associada aos seus próprios imperativos sociometabólicos. Seguindo a ideia de
Goonewardena (2005) do sensório urbano, discutimos o citadismo e suas relações com as
mobilizações políticas no Brasil depois do golpe de 2016.

Palavras Chave: Urbanização, Campo Cego, Citadismo, Henri Lefebvre.

1. INTRODUÇÃO

O estudo de questões urbanas além da cidade permeia inúmeros debates no campo


dos estudos urbanos contemporâneos (em diferentes agendas de pesquisa), muitos dos
quais revisitando a hipótese de Lefebvre (1970) da urbanização completa da sociedade. A
emergência virtual de uma ‘sociedade urbana’ a partir da ‘implosão-explosão’ da cidade
industrial projeta um ‘período urbano’ de diferença, simultaneidade e encontro. A revolução
                                                            
1
Doutorando em Economia Regional e Urbana, Departamento de Economia, Centro de Desenvolvimento e
Planejamento Regional, CEDEPLAR/UFMG. Integrante do Grupo de Pesquisa Urbanização, Natureza e
Desenvolvimento.
2
  Graduando em Economia, Departamento de Economia, Faculdade de Ciências Econômicas
(FACE/UFMG). Integrante do Grupo de Pesquisa Urbanização, Natureza e Desenvolvimento. 

3243 
 
 
 
 
 
urbana – qual seja, o conjunto de transformações necessárias para que a problemática
urbana prevaleça sobre o industrialismo – levaria a um período (ou campo) de multiplicidade
e complexidade, do valor de uso superando o valor de troca, de fruição frente à necessidade
e o trabalho. Em última instância, o urbano emerge não apenas como categoria
epistemológica mas também como um período que sucede o período industrial.

Neste trabalho, exploramos a seguinte questão: e se a cidade, no contexto


contemporâneo da chamada ‘era urbana’ (UN Habitat, 2007; Brenner e Schmid, 2014), for
também um elemento cegante e redutor não apenas no que tange à produção de
conhecimento, mas também à prática social (política)? Para discutir essa questão, partimos
da crítica ao ‘citadismo metodológico’ (Angelo e Wachsmuth, 2015), i.e. ‘o privilégio,
isolamento e talvez naturalização analíticas da cidade em estudos de processos urbanos
onde a não-cidade também pode ser significativa’, para estender o argumento dos autores
para além da prática teórica (Lefebvre, 1974) e ampliar o significado do citadismo a partir do
contexto brasileiro do início do século XXI.

Enquanto centralidades urbanas continuam a ser um locus importante de conflitos e


lutas políticas (Lefebvre, 1968; Monte-Mór, 2004) bem como de produção do conhecimento
e inovação (Jacobs, 1969; Silva, 2017), o citadismo não apenas ofusca questões urbanas
além das cidades como também engendra um suposto ‘sensório urbano’ (Goonewardena,
2005) no qual o espaço da cidade informa práticas cotidianas e representações das
estruturas globais de relações sociais.

Na primeira seção, discutimos três agendas de pesquisa contemporâneas que


exploram uma perspectiva ex-cêntrica do urbano e dos processos de urbanização. A
segunda seção explora a ideia de ‘citadismo’ a partir de Angelo e Wachsmuth (2015) e
discute a relação entre o ‘cidade-centrismo’ e a produção de conhecimento. A terceira e
última sessão aborda as articulações entre o ‘sensório urbano’ e o ‘citadismo’ e suas
relações às mobilizações políticas no Brasil pós-golpe. Se a cidade é, de fato, o locus
privilegiado da política, das lutas e manifestações quando há ameaças à democracia, então
o que acontece com as demandas políticas da ‘não-cidade’ neste cenário? Devemos
esperar que os cidadãos das grandes aglomerações brasileiras lutem pela ‘não-cidade’,
responsável por suprir e responder aos imperativos sociometabólicos das metrópoles
globais?

2. RUMO A UMA TEORIA EX-CÊNTRICA DO URBANO: SUBURBANISMOS


GLOBAIS, URBANIZAÇÃO PLANETÁRIA E URBANIZAÇÃO EXTENSIVA

3244 
 
 
 
 
 
A condição citadista das abordagens teóricas se tornou mais clara depois que
acadêmicos de diferentes contextos geográficos começaram a examinar o urbano a partir de
uma perspectiva ex-cêntrica – todos eles influenciados pelo trabalho de Henri Lefebvre
(1970). Nesta seção, apresentaremos brevemente essas três agendas de pesquisa que não
apenas exploram processos urbanos além das cidades, como também oferecem críticas
poderosas de abordagens cidade-cêntricas.

A primeira delas é a pesquisa em ‘urbanização extensiva’ desenvolvida por Roberto


Monte-Mór (1988) ainda nos anos 1980 que examinou este processo pelas lentes de
Lefebvre em relação à geo-história brasileira, com ênfase na fronteira amazônica.3 Este
processo teve início na segunda metade do século XX através das políticas populistas e
desenvolvimentistas do governo de Juscelino Kubitschek – particularmente em energia e
transportes – e se aprofundou após do golpe de 64, quando os militares tomaram o controle
das instituições envolvidas na integração territorial e na produção do espaço e fizeram
alianças com o capital estrangeiro e nacional na tentativa de promover crescimento
econômico. Os investimentos extraordinários em um território nacional desarticulado e
fragmentado resultaram em uma concentração demográfica e econômica intensa nas
(poucas) grandes cidades brasileiras e suas circunvizinhanças imediatas levando à
implosão-explosão da cidade industrial de São Paulo (Monte-Mór, 2004).

O tecido urbano-industrial inicialmente tomou as periferias metropolitanas e,


eventualmente, atingiu espaços mais distantes da materialidade e da lógica capitalistas
onde prevaleciam outras economias – marcadas pela subsistência, por lógicas populares e
solidárias, por enclaves agrícolas ou extrativistas. Tais áreas eram ativadas e
‘transformadas de acordo com as necessidades que emanavam dos centros urbano-
industriais’ (Monte-Mór, 2004: 291) e representavam uma nova rodada de colonização por
parte dos grandes centros de decisão do Sudeste do país (Castriota, 2016).

Embora este processo representasse a extensão da fronteira capitalista para áreas


antes organizadas de acordo com relações não-capitalistas, ele permitiu a co-existência de
grandes investimentos – particularmente mineração, energia e agronegócio – com
economias extrativistas ou agrícolas de pequeno porte, produzindo um hibridismo que
embaralhava a dualidade urbano-rural no país (Monte-Mór, 1994). De um lado, os encontros
entre tecido urbano e floresta produziam a formação de mercados formais de terra e
trabalho e subsequentes mobilizações e lutas (urbanas) marcadas pela exclusão,
dominação e violência contra comunidades locais (camponeses, indígenas, ribeirinhos, etc.).
                                                            
3
 Uma análise apropriada desta pesquisa e suas interlocuções com a agenda contemporânea internacional em 
urbanização planetária pode ser encontrada em Castriota (2016, 2017). 

3245 
 
 
 
 
 
Por outro lado, a urbanização extensiva engendrava um hibridismo espaço-temporal de
formas e processos inextricavelmente conectados à política do espaço, levando a uma
(re)criação de estratégias e práticas tradicionais (Monte-Mór, 2004). Este processo de
cidadania extensiva que marca o urbano no mundo contemporâneo aprofunda as trocas e
articulações socioculturais em diferentes escalas.

Em última instância, o trabalho de Monte-Mór oferece ferramentas para


compreensão da condição política do país nos anos 1980 a partir da urbanização extensiva
que materializava a revolução urbana vislumbrada por Lefebvre para além das cidades
brasileiras. Essa perspectiva ex-cêntrica iluminou práticas de extração de recursos de larga
escala e grandes projetos de infraestrutura na Amazônia – ativada e mobilizada, até nos
dias de hoje, por grandes centros urbanos globais – bem como a urbanização de (antes
invisíveis, ditas ‘rurais’) populações amazônicas que, ao contrário, se fizeram presentes e
fundamentais no processo de lutas políticas dos anos 1980. A urbanização extensiva foi
também importante para compreensão de mediações urbanas entre sociedade e natureza –
não em cidades ou através de cidadãos de grandes aglomerações, mas através de
combinações híbridas envolvendo o tecido urbano estendido e populações e práticas
espaciais tradicionais – apesar da enorme presença do industrialismo, i.e. da indústria como
protagonista e como mediação privilegiada de relações sociais (Silva, 2017).

A segunda perspectiva teórica ex-cêntrica é a pesquisa liderada por Roger Keil


(2011) acerca dos processos globais de suburbanização. A hipótese central desta pesquisa
é o deslocamento de conceitos cidade-cêntricos do urbano argumentando que o
crescimento sub-urbano se tornou o processo (urbano) dominante do século XXI. Dessa
forma, seu objetivo é a restruturação da teoria e da questão urbana através de uma posição
ontológica ex-centrica: o que é ser em um mundo sub-urbano?

No contexto da ecologia política da urbanização, Roger Keil (2003: 729) já havia


chamado a atenção para a necessidade de resposta ao “desafio de Lefebvre de criar uma
ciência urbana para um mundo urbano’ e, mais recentemente, argumentou que a
‘universalização da urbanização deve ser levada a sério não apenas como objeto empírico
de investigação mas também como uma questão desafiadora em um nível teórico’ (Hamel
and Keil, 2015: 7). A suburbanização é definida como ‘a combinação de crescimento
populacional e econômico não-central e extensão espacial urbana’ (Ekers, Hamel and Keil,
2015: 22, grifo nosso). Analogamente, este conceito engendra uma compreensão de que
‘grande parte, senão a maioria, do que hoje se considera urbanização é, na verdade,
periférica’ (Keil, 2013: 9, grifo nosso). Esse processo geraria novos e qualitativamente
diferentes ‘modos de vida suburbanos’, ou suburbanismos, cujas particularidades (como
3246 
 
 
 
 
 
subúrbios são vividos) não são obscurecidos pelo universalismo do processo de
suburbanização. Essa pesquisa, então, tenta compreender processos de suburbanização e
suas formas de vida cotidiana através do estudo de dinâmicas que moldam a produção de
subúrbios.

Através dessa lente, seria possível entender a era contemporânea de pós-


suburbanização, onde os subúrbios tradicionais dão lugar a estruturas metropolitanas com
diferentes relações com a natureza. Para tal, seria necessário ‘abandonar pontos
historicamente privilegiados para observar a urbanização. Isso inclui tanto o privilégio do
centro urbano quanto o privilégio do Norte global’ (Keil, 2013: 9).

A terceira e última agenda de pesquisa que pretende uma abordagem ex-cêntrica é


intitulada ‘urbanização planetária’. Esta implica mais dramaticamente no fim de um ‘lado de
fora’ para o urbano e para a teoria urbana (Brenner, 2014), no sentido de que não existe
mais uma rota de fuga, i.e. a urbanização capitalista e as relações de produção alcançaram,
em níveis e graus distintos, todo o planeta.

Dois grupos de novas ideias são de importância particular nos debates acerca da
urbanização planetária. O primeiro deles se refere à produção de uma perspectiva ex-
cêntrica que, por sua vez, demanda uma revisão de conceitos e representações do urbano
(ver Schmid, no prelo) precisamente porque os estudos urbanos tem sido focados em um
suposto privilégio da cidade enquanto objeto de análise e realidade. Foi necessário,
portanto, apresentar a condição da cidade enquanto ideologia (Lefebvre, 1970; Wachsmuth,
2014), a crítica do ‘citadismo metodológico’ (Angelo e Wachsmuth, 2015) e a crítica ao
discurso da era urbana (Brenner e Schmid, 2014) de modo a (re)afirmar a distinção entre a
cidade e o urbano até, por fim, seguir rumo a uma nova epistemologia do urbano (Brenner
and Schmid, 2015).
A segunda inovação teórica que emerge da necessidade de alcançar essa
perspectiva ex-cêntrica é a conceitualização da urbanização em três momentos:
concentrada, extensiva e diferencial (Brenner e Schmid, 2015). A articulação dialética entre
esses três momentos seria capaz de deslocar o foco teórico das cidades para espaços
anteriormente ‘rejeitados’ em função de seu caráter ‘não-citadino’. O momento da
urbanização concentrada se refere ao processo bem conhecido dos estudiosos das
economias de aglomeração – em última instância responsável pela produção de cidades tal
qual se faz nas teorias mais tradicionais da urbanização. A urbanização diferencial é
associada a processos de destruição criativa capitalistas e subsequentes conflitos e lutas
urbanas. Entretanto, essa tentativa de incorporar a dimensão política e utópica lefebvriana –
tendências ao ‘espaço diferencial’ (Lefebvre, 1974) – encontrou pouco fôlego e espaço
3247 
 
 
 
 
 
nessas teorizações iniciais e precisa ser mais extensamente desenvolvido sobre alguma
base empírica.
Finalmente, o momento da urbanização extensiva, conforme conceitualizado por
Brenner e Schmid (2015: 167), ‘envolve a operacionalização de lugares’ distantes dos
grandes centros urbanos para dar suporte às ‘atividades quotidianas e dinâmicas
socioeconômicas da vida urbana’. A produção dessas paisagens operacionais de
urbanização extensiva resulta ‘dos imperativos sociometabólicos mais básicos associados
ao crescimento urbano’, a saber, a produção e circulação de água, alimentos, energia e
materiais de construção – bem como as externalidades negativas advindas dessas
atividades, geralmente vinculadas à problemática ambiental – e a mobilização de mão-de-
obra para essas atividades. Neste processo, se reorganiza a base material dessas áreas
não-metropolitanas, levando a um espessamento do tecido urbano sobre o planeta inteiro,
inclusive sobre os já mencionados territórios extremos. Por fim, a urbanização extensiva
envolve o cercamento de terras para apropriação do privado – por vezes a partir da
despossessão de seus usuários anteriores.
A urbanização extensiva parecer ser o elemento vital que reúne as três agendas de
pesquisa. Ela possibilita a constatação de que não existe fuga do urbano uma vez que a
sociedade é completamente urbana – daí a urgência de produzir uma perspectiva ex-
cêntrica dentro do campo dos estudos urbanos.
Dessa forma, processos de urbanização devem ser compreendidos e analisados
como fenômenos cada vez mais globais ou planetários enquanto as centralidades devem
ser analisadas em articulação com o tecido urbano estendido – como postulado por
Lefebvre (1970). A ‘cidade’, por sua vez, deve ser analisada em sua condição ideológica
através do questionamento perene de seu caráter ilusório de sua suposta coerência e
replicabilidade.

Para explorar questões urbanas além da cidade, será necessário compreender que
tais questões afetam – para não dizer que deterioram, destroem e interrompem – ritmos e
práticas da vida quotidiana nas próprias centralidades urbanas. Nesse sentido, discutimos
na seção a seguir alguns desafios contemporâneos da produção de conhecimento que
contribuem para a invisibilização dessas questões e ilustramos a relação entre o citadismo e
a produção científica nos estudos urbanos e regionais brasileiros.

3. CITADISMO METODOLÓGICO E A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NO BRASIL

Hillary Angelo e David Wachsmuth (2015: 16) introduziram a ideia de ‘citadismo


metodológico’ para criticar o ‘foco analítico e empírico na cidade tradicional’ e a ‘exclusão de

3248 
 
 
 
 
 
outros aspectos de processos de urbanização contemporâneos’ no contexto da ecologia
política da urbanização (EPU). Como grande parte dos trabalhos em EPU tomavam o
urbano e a cidade como conceitos equivalentes, não apenas escapava a tais estudos
cidade-cêntricos a complexidade do fenômeno urbano, como também as questões (urbanas)
da não-cidade eram invisibilizadas pela própria teoria crítica. A questão do citadismo é,
então, associada à produção de conhecimento em termos metodológicos – através da
sobreênfase nas cidades em estudos urbanos. Entretanto, o citadismo tem outras
implicações para produção de teoria no Brasil e em outros países da América Latina.

Tomemos, por exemplo, o trabalho pioneiro de Harley Silva (2017) que explora
alternativas de desenvolvimento econômico na Amazônia brasileira tomando o urbano como
mediação privilegiada entre sociedade e natureza – ante a narrativa tradicional do
protagonismo industrial. Para este autor, a região Amazônica é uma expressão do
subdesenvolvimento dependente (ao qual se referia Celso Furtado) porém,
simultaneamente, expressa uma abundância de alternativas inexploradas que não vão na
direção industrialista da exploração da sócio- e da bio-diversidade. A questão da
dependência tecnológica que perpetua a condição do subdesenvolvimento é associada à
precariedade material e à falta de poder para desenvolver respostas às restrições cotidianas
presentes na periferia. Entretanto, existe um grande potencial inovativo em áreas periféricas
que podem promover desenvolvimento econômico endogenamente mas são, ao contrário,
invisibilizadas, representadas

Para Silva, existe um grande potencial de inovação em áreas não-centrais que


podem gerar um processo de desenvolvimento econômico endógeno, mas, ao invés disso,
permanecem invisibilizadas, representadas como formas de arcaísmo. Além do problema do
poder do industrialismo nas economias periféricas, o citadismo também é responsável por
manter invisível práticas não centradas na cidade, fazendo com que avanços tecnológicos
para a cidade tenham um locus privilegiado na produção de conhecimento. A grande maioria
dos arquitetos, urbanistas, planejadores, designers e engenheiros vivem, estudam e
trabalham em grandes aglomerações urbanas, contribuindo com o processo de “ignorância
assimétrica” (Robinson, 2002), em que supõe-se que o centro é o “modelo” que deve
projetar “soluções” para a periferia, geralmente tratados como problemas que demandam
soluções especializadas.

O esforço de construir soluções sofisticadas para os problemas cotidianos ainda


está, em sua maioria, concentrado nas cidades com maior quantidade de recursos de
pesquisa. Esse cenário não apenas aprofunda o problema do conhecimento concentrado na

3249 
 
 
 
 
 
cidade, mas, também, demanda uma investigação mais complexa e a des/construção crítica
de práticas teóricas herdadas.

O exercício de desconstruir o conhecimento citadista, portanto, requer uma


imaginação ex-cêntrica. Mas, quão longe podemos ir tentando entender e teorizar sobre a
periferia, se grande parte da nossa experiência vivida ainda está localizada e moldada pelo
centro? Se não podemos perceber um espaço sem antes concebe-lo (Lefebvre, 1974) e se
nosso ambiente sensorial é crescentemente citadista, como podemos pesquisar em espaços
periféricos (ou suburbanos) sem uma perspectiva cidade-cêntrica colonialista?

Iremos explorar essas questões na próxima seção. Ao mesmo tempo, enquanto


Angelo e Wachsmuth (2015: 21) acredita que a EPU atualmente existente é ‘culpada de
citadismo metodológico’, questionaremos até que ponto, nós, cidadãos de grandes
aglomerados urbanos, também somos culpados do citadismo – particularmente quando se
trata de mobilizações sociais e de demandas políticas.

4. O SENSÓRIO URBANO E O CITADISMO

Se assumirmos que nossos ambientes sensoriais percebidos tem um papel decisivo


em (in)formar nossos entendimentos e em formar nossas representações, então quais são
as implicações de viver em cidades no mundo contemporâneo? Essa questão nos parece
central para as pesquisas contemporâneas uma vez que são muitas suas possíveis
implicações – não apenas para o campo dos estudos urbanos, mas para todos os campos
disciplinares. Na verdade, ela pode ser levada ainda mais longe – além da produção
‘acadêmica’ do conhecimento – uma vez que o ‘sensório urbano’ não afeta apenas
acadêmicos e intelectuais.

A ideia do “sensório urbano”, colocada por Kanishka Goonewardena (2005), articula


os estudos lefebvrianos sobre mediações (com sua teoria da produção do espaço), o
conceito Althusseriano de ideologia e a ideia Gramsciniana de hegemonia. O autor discute a
relação entre estética – que diz respeito ao reino dos sentidos – e política, enquanto
identifica a capacidade do espaço urbano de mediar ideologias e produzir hegemonia.

Para Althusser, ideologia é a “representação da relação imaginária entre os


indivíduos e sua real condição de existência” (Ibid: 47). Sua realidade, entretanto, é
imperceptível dado que não se apresenta como tal e depende de diferentes mecanismos
para ser captada: para ser efetiva, nota o autor, uma ideologia deve ser afetiva, daí sua
dependência da nossa vida sensível – afeições e aversões. A ideia do sensório urbano é,
então, de incorporar o espaço urbano como elemento crucial da nossa vida sensível.

3250 
 
 
 
 
 
Para esclarecer a ideia do sensório urbano, Goonewardena (2005) utiliza a história
do Pequeno Budha, cuja vida foi envolvida por seu pai, através da remoção de qualquer
possibilidade de experimentar ou ter contato com o sofrimento humano ou o envelhecimento
– “sequestrando-o em um sensório particular” (Ibid: 49) e, acrescentamos, de um sensório
urbano particular. Enquanto preso a um espaço onde a percepção de qualquer forma de
sofrimento humano era impossível, este também era inconcebível, fazendo com que o
Pequeno Budha vivesse como se a vida fosse a beleza eternizada. Sua virada
epistemológica ocorre durante um ‘tour’ em sua cidade, onde viu dois homens idosos (seu
primeiro contato com o envelhecimento), trabalhadores, pessoas doentes e mortas –
ganhando, portanto, a capacidade de ir além das suas antigas concepções através de novas
percepções. Através dessa história podemos entender que ‘existe uma relação entre (a
produção de) uma idelogia particular e (a produção de) um certo tipo de espaço urbano’
(Ibid: 50). Ideologia, nesse sentido, é a simultânea representação e deturpação da realidade,
dado que somos incapazes de conhecer a totalidade das relações sociais através da
consciência humana. Assim, continua Goonewardena, a falta de transparência da sociedade
é que reflete a necessidade das representações ideológicas – que nos informam através das
texturas sensoriais da nossa experiência cotidiana no espaço urbano. Em outras palavras,
existe um gap entre nosso ambiente sensorial percebido na nossa experiência urbana
cotidiana e a “totalidade invisível e não-representada das relações sociais “globais”
(tradução nossa, Ibid: 55).

Chegamos, assim, em nossa questão central para pensar o citadismo na “era


urbana” contemporânea:

“se existe um ‘gap’ entre … [o espaço urbano] e nossas consciências


cotidianas do mesmo, e um gap correspondente entre a nossa
experiência vivida e a totalidade, então qual é a relação entre essas
duas dinjunções? Ou, colocando de forma diferente, qual é o papel
da estética e da política do espaço – i.e. o sensório urbano, como
elaboro aqui – na produção e reprodução da disjunção durável entre
a consciência da nossa ‘vida cotidiana’ urbana ... e a atual estrutura
global de relações sociais que é, ela mesma, responsável, em última
instância, por produzir os espaços de nossa experiência vivida?”

Se assumirmos uma perspectiva ex-cêntrica para pensar sobre o sensório urbano,


poderíamos nos perguntar: qual a diferença entre as representações produzidas pelos
espaços da cidade e da não-cidade (ambos urbanos)? Colocando de maneira diferente:
quão diferente é o papel do espaço urbano na mediação das ideologias nos territórios de
“urbanização concentrada” e “urbanização extensiva” (Brenner and Schimid, 2015)? De

3251 
 
 
 
 
 
maneira similar, qual o papel do sensório urbano considerando-se diferente formas de
“suburbanismos” (Keil, 2013)?

A totalidade das estruturas globais (Estado e Capital) e as relações sociais são


responsáveis pela produção do espaço urbano em uma escala planetária, mas as
representações e a consciência acerca dessas estruturas globais podem ser
dramaticamente diferentes no centro de São Paulo, na Região Metropolitana de Belo
Horizonte ou nos assentamentos ribeirinhos da Amazônia Oriental.

Acrescentando mais uma camada de complexidade à questão do citadismo,


poderíamos nos perguntar: se a cidade pode ser considerada o locus privilegiado da
mobilização sociopolítica como centro da tomada de decisão (Lefebvre, 1996 [1968]) – isso
inclui os centros de poder federais, estaduais e municipais, os de grandes corporações e de
imprensa – então, pelo que a cidade luta? O que acontece se as preocupações do cidadão
médio, formada através de seu próprio sensório, não são nada além de cidade-cêntricas?
Em outras palavras, qual o papel desempenhado pelo sensório citadista em termos de
mobilização política?

Para discutir essa questão, analisamos grandes mobilizações e manifestações no


Brasil pós-Golpe, buscando identificar as principais demandas políticas desses que ocupam
as ruas em resposta às reformas neoliberais. A discussão sobre o processo que levou ao
impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef, em 31 de agosto de 2016, está além do
escopo desse artigo. No entanto, é importante dizer, seguindo a interpretação de Avritzer
(2017) e Guerras et al (2017), que esse processo está enraizado em mudanças estruturais
na participação social, especificamente da classe média e dos partidos brasileiros de direita.
A emergência dessa coalizão levou a um processo de rápida e crescente neoliberalização
sem precedentes no Brasil: austeridade seletiva, privatização, destruição da legislação
trabalhista e de programas sociais, desregulação ambiental e mudanças dramáticas na
legislação urbana e rural. Essa agenda política foi reforçada pelo congresso Brasileiro
conservador, pelo judiciário e pela mídia hegemônica – grande parte envolvida em
escândalos de corrupção – produzindo ativamente conteúdo e agitando a opinião pública
sobre o impeachment de Dilma Rousseff. A ascensão do vice-presidente Michel Temer à
presidência causou revolta generalizada que, instantaneamente, tomou as ruas do país,
enquanto a legitimidade de seu governo e as medidas anunciadas eram amplamente
contestadas.4

                                                            
4
A pesquisa IBOPE (2017) de 28 de Julho mostra que a taxa de reprovação de Temer já alcança 70%.

3252 
 
 
 
 
 
Quatro grandes mobilizações sociais são de particular importância no período pós-
Golpe. Manifestações que levaram milhões de pessoas as ruas das principais cidades
brasileiras – mobilizações em cidades pequenas foram raras e quase desconhecidas.
Buscando escapar da seletividade da mídia hegemônica brasileira, envolvida no golpe,
utilizamos informações disponíveis na “Mídia Ninja” – uma rede alternativa de comunicação
online que ganhou força e visibilidade a partir das jornadas de junho de 2013. Através das
postagens nas contas do Facebook, do Instagram e do Twitter da Mídia Ninja, mapeamos as
datas, os lugares e as demandas nessas grandes rodadas de manifestações – compiladas
na Tabela 2.

A maioria dos movimentos se posicionou contra o governo ilegítimo de Temer e suas


reformas na legislação trabalhista e na previdência social. Também é notável a prevalência
de questões relacionadas a (re)produção social na cidade – incluindo uma potencial
demanda pelo direito à cidade. Os cidadãos estavam, em sua maioria, preocupados com
seus direitos à comunicação e à cultura, com a privatização de companhias públicas e com
a nova lei da terceirização, que quebrou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
estabelecidas em 1930.

Por outro lado, demandas associadas à não-cidade são extremamente raras.


Reformas sub-urbanas, em particular as emendas que afetam diretamente o tamanho das
reservas ambientais e indígenas na Amazônia, não geraram participações populares
expressivas na cidade. E, mais recentemente, o decreto que extinguiu a Reserva Nacional
do Cobre na Amazônia teve movimentos de resistência apenas em plataformas online –
usando imagens que reforçam uma Amazônia vazia e primitiva, com largas paisagens
verdes e sem a presença humana.

Por fim, a ideia de um sensório urbano implica em um reconhecimento simples e,


ainda, fundamental para o século XXI: nosso ambiente sensorial percebido cotidianamente
desempenha um papel fundamental na produção do nosso entendimento e representações
das estruturas globais do capitalismo, bem como seu conjunto de relações sociais mais
gerais e abstratas. Mas o que acontece se grande parte das narrativas, produzidas pelas
redes televisivas hegemônicas ou disponibilizadas online por grandes corporações, são
pensadas por indivíduos cujo sensório urbano está limitado a mega-regiões urbanas? O que
acontece se a maior parte do conhecimento e da informação científica não é apenas
ensinada nas cidades, mas também construídas dentro da doxa formada pela cidade? Se
estudiosos, políticos, jornalistas, arquitetos, planejadores, etc. estão sujeitos a um sensório
urbano cêntrico, quais são os efeitos para a vida urbana cotidiana ex-cêntrica? Essas

3253 
 
 
 
 
 
questões estão abertas e necessitam de uma investigação mais profunda na medida em que
os territórios suburbanos e periféricos estão sendo manipulados e neoliberalizados.

When? Where? Why?

Pro-democracy, Labor Rights, Freedom for Polical


Prisioners, Rights to Communication, Right to Culture,
Fortaleza, Natal, Recife, Maceió, Brasília,
Popular sovereignty over mining, Black people's rights,
07-Sep-2016 Goiânia, Campo Grande, Rio de Janeiro, São
Women's rights, Indigenous' rights, LGBTIQ's rights,
Paulo, Belo Horizonte, Vitória, Porto Alegre
'Favelados' rights, Punishment for the involved in the
Mariana mining Disaster, restore Dilma's presidency.

Against Labor Reform, Against Pension Reform,


Fortaleza, Goiânia, São Paulo, Belo
07-Sep-2017 Habitation, Pro-Democracy, Social Rights, LGBT cause,
Horizonte, Florianópolis.
Anti-Privatization, Right to the City.

Against Educational Reform, Against Freezing


Salvador, São Luís, Natal, São Paulo, Rio de
11-Oct-2016 Government Expenditures in Education and Health; Social
Janeiro, Curitiba, Brasília
Rights; In defense of university occupations

Fortaleza, Salvador, São Luís, Maceió, João


Pessoa, Recife, Teresina, Aracaju, Campo
Against PEC 241/55, Against Labor Reform, Against
Grande, Brasília, Goiânia, Cuiabá, Rio de
28-Apr-2017 Pension Reform, Pro-CLT, Against "Outsourcing", Pro-
Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Vitória,
Labor Rights
Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Belém,
Macapá, Natal, Boa Vista, Palmas

Tabela 1. Principais manifestações políticas no pós-Golpe no Brasil.

5. CONCLUSÃO

Nesse artigo buscamos explorar uma perspectiva ex-cêntrica do urbano – e não uma
perspectiva anti-cêntrica, é importante que se diga. Argumentamos que o “citadismo” –
como discutido aqui – não é apenas uma questão “metodológica” como em Angelo e
Wachsmuth (2015). Mais do que isso: o citadismo não diz respeito apenas a produção de
conhecimento. Se levarmos em conta o papel que o espaço urbano desempenha na
mediação da ideologia e na formação de compreensões e de representações das estruturas
globais do capitalismo, o citadismo ganha uma dimensão muito maior e afeta todo ser vivo
na terra – se assumirmos que o urbano se tornou planetário.

À medida em que o mundo volta sua atenção para as cidades (incluindo seus
moradores), os territórios da urbanização extensiva (periféricos) se tornam cada vez mais
invisíveis, mais operacionalizáveis, e as formas locais de resistência, suas lutas cotidianas,
perdem ligação com sua contrapartida nos centros. No contexto contemporâneo do Brasil
pós-Golpe, manifestações, revoltas urbanas e demandas políticas – majoritariamente

3254 
 
 
 
 
 
localizadas em espaços políticos privilegiados: centros de decisão que reúnem os poderes
federais, estaduais e municipais, as grandes corporações e a imprensa) – parecem
privilegiar as demandas do centro. Além disso, é importante notar que: as demandas ex-
cêntricas suburbanas periféricas são intrinsecamente conectadas com os imperativos
sociometabólicos do centro. É uma tarefa coletiva, portanto, tornar a periferia visível e, ao
invés de focarmos na cidade ou na não-cidade, devemos sempre considerar a articulação
da centraliadade com o urbano extensivo em diversos níveis e escalas. Caso contrário, os
manifestantes enfurecidos do Centro de São Paulo poderão acordar no dia seguinte sem
comida para o café da manhã, sem água para tomar banho e sem eletricidade para carregar
seus celulares.

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3256 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e transformações do urbano na América Latina

PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DE UM DISTRITO EMPRESARIAL NA


CIDADE DE SARANDI/RS/BRASIL

Samueli Del Sant Signor (Faculdade Meridional - IMED)1


[email protected]
Anicoli Romanini (Universidade Federal de Santa Catarina)2
[email protected]

RESUMO

A existência de áreas subutilizadas e esquecidas nos centros urbanos são grandes barreiras
para o crescimento de uma cidade. Ao mesmo tempo, este mesmo espaço pode apresentar-
se como oportunidade para o desenvolvimento da região. A partir desta afirmação, aliado ao
fato do município de Sarandi, cidade localizada ao norte do Estado do Rio Grande do Sul,
não possuir espaços específicos para a instalação de novas empresas do terceiro setor,
bem como não haver diretrizes mais específicas para o desenvolvimento do município,
verifica-se a necessidade de se elaborar planos estratégicos de desenvolvimento que
fomentem o seu crescimento econômico e sustentável. Segundo Ferreira (2011), o
desenvolvimento estratégico está associado aos conhecimentos da realidade,
potencialidade e problemas locais, em que critérios são elaborados a fim de abordar as
estratégias regionais e nortear as definições a serem seguidas. Com isto, é importante que
as cidades sejam devidamente estruturadas, e que a relação de oferta de empregos, com
uso do solo e infraestrutura entre as diferentes áreas, seja distribuída de forma igualitária e
coerente. Nos últimos anos, tem-se verificado a aglomeração de empresas em determinado
local a fim de melhorar a qualidade e oferta dos empregos, além de suprir melhor o potencial
da região. Apresenta-se neste trabalho o estudo preliminar para o desenvolvimento do
planejamento estratégico de um Distrito Empresarial para o município de Sarandi/RS, a fim
de contribuir para o crescimento ordenado da região nordeste da cidade, que durante muito
tempo ficou esquecida, e ainda hoje, carece de políticas para o desenvolvimento desta área.

Palavras-chave: Distrito Empresarial, Planejamento Estratégico, Planejamento Urbano e


Regional.

1. INTRODUÇÃO

As transformações na dinâmica social moderna estão impondo novos desafios para a


compreensão dos fenômenos urbanos, de modo que passam a demandar uma visão mais
ampla e, porque não dizer, mais completa das interações entre os segmentos atuantes na
                                                            
1 Arquiteta Urbanista e Pós-Graduanda em Arquitetura Comercial pela Faculdade Meridional – IMED. Atualmente
trabalha na empresa FOR ALL, escritório de Arquitetura e Urbanismo com ênfase em arquitetura e interiores na
cidade de Passo Fundo e região e atua como Presidente Fundadora do LIONS Clube Centenário, com sede em
Sarandi/RS.
2 Arquiteta Urbanista e Mestre em Engenharia: Infraestrutura e Meio Ambiente pela Universidade de Passo

Fundo. Atualmente é doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e
professor/pesquisador em licença interesse da Faculdade Meridional - IMED. Tem experiência na área de
Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Planejamento e Projetos da Edificação, atuando principalmente nos
seguintes temas: planejamento urbano, desenvolvimento social e projeto de arquitetura e urbanismo. Integrante
do Grupo de Pesquisa “Urbanidades: Forma Urbana e Processos Socioespaciais”.

3257 
 
 
 
 
 
produção do espaço e a articulação de estratégias nos processos de desenvolvimento de
determinada região.
Assim, cidades sustentáveis, compactas, com um planejamento focado no
crescimento de áreas subutilizadas e geralmente “esquecidas” nos centros urbanos,
promovem uma reestruturação do espaço, a partir do momento que são encaradas como
oportunidade para o desenvolvimento estratégico local.
Cada vez mais, áreas industriais obsoletas estão se tornando oportunidade para
grandes projetos, objetivando estratégias de intervenções a fim de apresentar um novo
modelo de empreendimento. Os Clusters urbanos são exemplos destes vazios urbanos que
recebem projetos aliados com políticas públicas e parecerias público-privado (LEITE;
AWAD, 2012, p.9-10).
“Desenvolvimento local, criação de territórios, empreendedorismo territorial, atração
de capitais, marketing urbano, entre outros” (VAINER, 2008), são instrumentos utilizados na
promoção do planejamento estratégico municipal, que, devidamente estruturados
“favorecem a inovação, a partir da conjunção de ações materiais (adequação, implantação e
renovação de infraestruturas) e imateriais (trocas de conhecimento e informações), além de
reforçar a representatividade política” (MOURA, 2016, p.19).
Tais elementos se beneficiam dos efeitos da proximidade e desenvolvem um
conjunto de atividades articuladas, complementares e dependentes, que ao constituírem
organizações espaciais homogêneas, unem de maneira funcional o conjunto na dinâmica
produtiva. Scott et al. (2001), “justificam como necessária a proximidade, dadas as formas
pelas quais as diferentes atividades econômicas são interconectadas, em termos das
relações transnacionais ou de rede entre elas mesmas e o resto do mundo”. E
complementam: “a produtividade e o desempenho são favorecidos pela concentração
urbana, pois esta garante sobretudo a ciência do sistema econômico e intensifica a
criatividade, a aprendizagem e a inovação, tanto pela flexibilidade crescente dos produtores,
quanto pelos fluxos de ideias e de conhecimento.”

A partir das afirmações acima, aliado ao fato do município de Sarandi, cidade


localizada ao norte do Estado do Rio Grande do Sul, não possuir espaços específicos para a
instalação de novas empresas do terceiro setor, bem como não haver diretrizes mais
específicas para o desenvolvimento do município, verifica-se a necessidade de se elaborar
planos estratégicos de desenvolvimento que fomentem o seu crescimento econômico e
sustentável.
Desta forma, apresenta-se neste trabalho o estudo preliminar para o
desenvolvimento do planejamento estratégico de um Distrito Empresarial para o município

3258 
 
 
 
 
 
de Sarandi/RS, a fim de contribuir para o crescimento ordenado da região nordeste da
cidade, que durante muito tempo, ficou esquecida, em função da Rodovia existente, que
servia como barreira de crescimento para a região, e ainda hoje, carece de políticas para o
desenvolvimento desta área.

2. DESENVOLVIMENTO REGIONAL E PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO

“Ao se pensar o desenvolvimento de uma região em particular, deve-se ter em


mente o conceito de desenvolvimento regional.” (MADUREIRA, 2015, p.8). Nesse sentido, o
desenvolvimento regional deve ser entendido como o resultado das políticas de
desenvolvimento global, que considerem, em seus objetivos, “uma forma mais adequada
para um racional equilíbrio na utilização e dinamização de um território” (IPADES, 2010).
Nesse processo, a participação da sociedade local no crescimento, planejamento e
ocupação do espaço, são fundamentais, visto que “as principais teorias que abordam esse
tema embasam-se na industrialização como o meio para atingi-lo, através de relações em
cadeia, visando impulsionar as principais atividades econômicas da região atingida.”
(CAVALCANTE, 2008, apud MADUREIRA, 2015, p. 8).
Quando o planejamento e o desenvolvimento de uma região baseiam-se em relações
de cadeia produtiva, ou seja, por um “conjunto de operações de transformação em um
produto que podem ser separadas ou agrupadas entre si ou em suas distintas etapas”
(RIPPEL, 1995 apud MADUREIRA, 2015, p.8), as relações financeiras e comerciais e os
fluxos de trocas são capazes de promover os setores da economia local.
“Assim, ao planejar estratégias para o desenvolvimento, devem ser consideradas
medidas sequenciais que conduzam à formação de capital complementar e de conformidade
com o aprendizado local, porém sem acabar com os desequilíbrios que devem continuar a
estimular o processo.” (RIPPEL, 1995 apud MADUREIRA, 2015, p.14).

O enfoque estratégico no desenvolvimento local diminui as indecisões e


favorece as transformações econômicas, sociais e políticas para tratar com
coerência a multiplicidade de iniciativas sobre o município, buscando um
consenso entre os múltiplos atores (inclusive o governo) na seleção de um
futuro desejável e factível (LLONA ET AL., 2003 apud REZENDE e
ULTRAMARI, 2007).

Segundo Lopes, (1998) é fundamental que todas as formas tradicionais de


planejamento urbano sejam integradas ao planejamento estratégico, criando-se uma visão
macro das diretrizes de ocupação territorial, planos de transporte em massa, urbanísticos,
orçamentos, transformando-se como alicerce para as decisões futuras e correta elaboração
das diretrizes estratégicas.

3259 
 
 
 
 
 
O modelo de projetos por gestão abre a possibilidade de intervenções pontuais,
trazendo melhorias para a região, ao contrário dos planejamentos mais tradicionais e rígidos
(VILAN, 1999; CHADOIN; GODIER; TAPIE, 2000, apud SÁNCHEZ et al., 2004). Na
concretização da aplicabilidade destes modelos faz-se necessário a parceria público-
privada, fundamentada na tendência mundial de urbanismo estratégico.
Como atualmente, vê-se crescimento nas ações empresarias urbanas, faz-se
necessário planos para a dinâmica polícia-econômica, a fim de regulamentar o adequado
crescimento do espaço. Contra os conflitos de interesses, o planejamento deve regular em
três distintos planos:

“prático-estratégico, logístico e ideológico: prático-estratégico, com a


subordinação dos recursos do território urbano aos objetivos políticos de
valorização e reordenamento dos diferentes mercados que incidem no
lugar; logístico, através do caráter instrumental do espaço e dos meios de
ação utilizados para atender a interesses de mercado; ideológico, mediante
a difusão das estratégias dos organismos internacionais, construção de
representações, imagens e discursos associados às cidades tomadas como
modelos.” (SÁNCHEZ ET AL., 2004, p.48).

O planejamento estratégico surge então para coordenar todos os índices que


influenciam o cotidiano dos ambientes, abrangendo múltiplas análises, mas com objetivo
especifico referindo-se ao foco que o planejamento irá abordar, indicadores de desempenho
e prioridades estratégicas baseadas nos resultados de levantamentos anteriores e gestão
integrada a prática correta do planejamento, medida pelo monitoramento das ações.

3. OS DISTRITOS EMPRESARIAIS

Desde a Revolução industrial, diversas transformações vêm ocorrendo na sociedade


civil, e nas últimas décadas, a economia industrial vem criando novas técnicas empresariais.
Este paradigma global provoca mudanças nas dinâmicas tecnológicas e organizacionais,
definindo novos modelos competitivos, como é o caso dos Distritos Empresariais.
O conceito de Distrito Industrial é baseado nas ideias de Alfred Marshall (1934),
cujos recursos locais dão origem a organizações dinâmicas, com profunda divisão de
segmento, surgindo interdependência entre estas empresas e a própria comunidade. O
conceito de Cluster estabelece um grupo de corporações com relações de trabalho intensas,
como: subcontratação, cooperação, divisão de trabalho, socialização máquinas, mas não
necessariamente locadas em um mesmo espaço geográfico. Já o Milieu Innovateur consiste
em um grupo de fatores, como técnicas, empresas, treinamento, relações mercado, todos
com inter-relações, que surgiram pelas características locais e situadas no mesmo local
geográfico (ARAUJO, 1999).

3260 
 
 
 
 
 

Os Distritos Industriais surgiram principalmente a partir de 1930 com a


tentativa do governo britânico em solucionar problemas de depressão
econômica e desemprego em determinadas áreas, obtendo relativo sucesso
e sendo posteriormente implementado em diversos países, como por
exemplo, EUA, Canadá, nordeste da Itália, Baden-Württemberg (Alemanha),
etc, aparecendo atualmente em diversos países do globo. (OLIVEIRA, 1976,
apud MELO, 2005).

Não exclusivamente pela importância da descentralização dos empreendimentos nas


cidades, mas também como instigante ao desenvolvimento de espaços como tática de
desenvolvimento pontual, atualmente, os distritos têm sido alvo de investigações científicas
e políticas públicas, tornando-se importante fator para a restruturação industrial dos anos 70
(MELO, 2005), relação socioeconômica, desenvolvimento do tecido social e geração de
renda até os dias atuais (ECONOMIA BR apud JORDÁN; ZAPATA, 1998).
O termo Distrito Empresarial é ainda pouco difundido no país, porém comenta-se
sobre os Centros de Negócios, conceito muito próximo do aqui proposto para a cidade de
Sarandi:

O termo CBD, Central Business District ou Distrito de Negócios Central,


refere-se a um ponto em uma cidade dotado de escritórios, centro
comercial, sendo características também haver centros de lazer e uma rede
de transportes. CBD não é necessariamente a área central de uma cidade,
ao pé da letra, os distritos centrais de negócios se desenvolvem em pontos
que favoreçam o fluxo e o escoamento da mercadoria, daí a importância de
se localizarem ao longo de rodovias e ferrovias. (GOMES, 2010).

Estes centros distinguem-se das áreas de comércio comuns pela oferta de


empreendimentos como: comércio varejista, transporte, lazer e escritórios, criando-se na
área, um fluxo constante, mesmo após o horário comercial.

O CBD tem um núcleo central, [...] frequentemente várias áreas, no núcleo,


encontram-se algumas grandes lojas, restaurantes e o comércio
especializado. Nas cidades de média dimensão, também se podem situar
neste núcleo um edifício administrativo e um parque [..]. No CBD ou nas
suas imediações existem normalmente parques de estacionamento
subterrâneos ou em altura, que permitem acolher um grande número de
viaturas”. (INFOPÉDIA, 2003).

“Esse novo jeito de pensar as cidades e realocar os espaços contribui para o melhor
aproveitamento dos espaços” (GOMES, 2010), muito pelo uso misto que estes ambientes
oferecem, com diversas atividades que ocorrem em diferentes horários.

3261 
 
 
 
 
 
O centro é visto como uma realidade material, historicamente produzida,
que resulta da ação convergente, ao longo do tempo, de inúmeros agentes,
que a partir de suas ações individuais contribuem para a conformação do
centro [...]. Mesmo quando se trata de um centro planejado, produzido em
pouco tempo e por um único grupo empresarial, [...] a localização do mesmo
depende da forma como o espaço urbano foi produzido naquele local, [...]
esse novo centro modifica a estruturação urbana, tornando se em muitos
casos uma nova centralidade. (SILVA, 2013).

Um exemplo de Distrito Empresarial desenvolvido no Brasil, está sendo implantado


pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, como “uma peça dentro de um conjunto de
ações que condicionam o desenvolvimento local.” (PMRP, 2017). Com este, a
Prefeitura busca consolidar as vantagens do município “em termos de localização,
qualificação da mão de obra, qualidade de vida, infraestrutura, entre outras” e “colocá-las à
disposição para o desenvolvimento empresarial” (PMRP, 2017). Segundo o site da
Prefeitura (PMRP, 2017), o Distrito tem por finalidade:
 explorar as vantagens competitivas do município (vocação econômica);
 prover insumos críticos à atividade econômica na sociedade de conhecimento:
informações, conhecimento e capital humano;
 possibilitar a exploração de atuação conjunta e a busca de economias externas;
 propiciar um ambiente saudável de trabalho respeitando o ser humano;
 propiciar a troca de informações e experiências entre as empresas;
 facilitar a implantação de técnicas modernas de gestão;
 facilitar a integração das empresas instaladas no mercado nacional e mundial, por
meio de atividades de suporte às mesmas;
 criar um ambiente propício ao desenvolvimento tecnológico.

4. PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DO DISTRITO EMPRESARIAL DE SARANDI/RS

O município de Sarandi localiza-se na região Norte do Estado do Rio Grande do Sul


(Figura 01). Com uma área de 353,387 km², o município tem uma taxa de urbanização que
supera os 84%, além da expectaviva de vida ser 76,5 anos (FEE, 2015). E de acordo com
site IBGE (2015), Sarandi possui aproximadamente 22.800 habitantes e mais de mil
empresas atuantes no mercado, cujo PIB do setor serviços é superior a 300 mil.

3262 
 
 
 
 
 

Figura 01 – Localização do muniípio.


Fonte: Google Maps, 2015, editado pelas autoras.

Sarandi é pólo da Região Norte, em que diversos municípios menores a utilizam


como referência nos serviços e empregos disponibilizados pela cidade. Além de sua
localização estratégica, às margens da BR-386, mais conheicada como Rodovia da
Produção (Figura 02). Além do fácil acesso ao município torna-se um diferencial para o
empreendedor investir, visto que o município tem como economia de base o setor industrial
e comercial.

Figura 02 - Localização Estratégica de Sarandi em relação aos demais municípios.


Fonte: Google Maps, 2015, editado pelas autoras.

Os setores que sobressaem na economia sarandiense, de acordo com Castoldi,


(2014) são agronegócio, indústrias têxtil, moveleira e calçadista, transporte, construção civil
e educação, representando um Valor Adicionado Bruto (VAB) de R$ 370.737.160,56
(Gráfico 01), em um PIB per capta municipal de R$17.417,76 e Valor Adicionado Bruto
(VAB) Agrícola/pessoa de R$32.992,86,

3263 
 
 
 
 
 

Valor Adicionado Bruto
40

35

30

25

20

15

10

0
Agropecuária Industria Serviço Comércio

Gráfico 01 - Dados do PIB.


Fonte: Prefeitura Municipal de Sarandi, 2015.

Sarandi é uma cidade com diversas gerações de renda, em que o setor industrial e o
agropecuário se sobressaem de maneira relativa ao comércio, porém de forma mais
significativa se comparada ao setor de serviços. Algumas empresas se destacam no
município em função do número de funcionários admitidos das cidades vizinhas que
contribuem para o desenvolvimento de toda a região.
Pode-se destacar a Cotrisal como a terceira maior empresa do setor de
agronegócios no estado, a qual possui 31 sedes de recebimentos em 25 municípios da
região. O setor têxtil conta com 99 empresas e lojas situadas no município, podendo ser
destacado a Mirasul, empresa que conta com 337 funcionários e possui a maior cadeia de
produção do setor na cidade. Já no setor industrial, tem destaque o Frigorífico Aurora, que
dos 650 funcionários, 40% são das cidades vizinhas (Rondinha, Ronda Alta, Barra Funda,
entre outras) em que ainda parte da produção é exportada para a Rússia, Canadá, Coréia e
Estados Unidos. A empresa Dakota possui um total de 400 funcionários, exportando
mercadorias para todo o país.
No setor moveleiro, tem-se como destaque a Finger Móveis Planejados, que
empregam 260 funcionários, e suas máquinas de última geração importadas da Alemanha
geram um produto de qualidade internacional. Outras empresas moveleiras em destaque
nacionalmente são a Souzano Móveis e Móveis Boa Vista.

3264 
 
 
 
 
 
No setor de transporte, a Transportadora Expresso São Miguel destaca-se pelas 13
sedes espalhadas no país. Além desta, existem mais 38 empresas de transporte rodoviário
de cargas, seis agências de viagens, 12 transportadoras de passageiros e 59 empresas de
transporte rodoviário de cargas municipais, estaduais e internacionais, números que
mostram a importância geográfica da cidade, possuindo uma logística de escoamento e
distribuição de matérias-primas para a região.
Sarandi possui 14 empresas de materiais de construção, 16 construtoras, oito
empresas de prestação serviços de engenharia e quatro empresas da tecnologia na
construção civil de estradas e topografia. A empresa Construbrás destaca-se no setor de
terraplenagem e pavimentação asfáltica, com mais de 350 funcionários e é reconhecida
nacionalmente pelos serviços prestados aos Estados, cuja atividade desenvolvida na cidade
trouxe um leque de opções de oficinas de recuperação maquinários e veículos.
Na educação, destaca-se a UPF, com mais de 700 alunos, cuja demanda de ensino
de quatorze municípios da região é suprida nos cursos de Administração, Ciências
Contábeis e Direito, de pós-graduação em Direito Civil e Direito Processual Civil e Técnico
em Enfermagem. Sarandi ainda possui outras faculdades, o Centro de Ensino Superior
Riograndense (CESURG), a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) – polo Sarandi, a
Universidade Aberta do Brasil, entre outras.
O município possui hoje um distrito industrial, mais antigo, localizado na região norte
da cidade e outro implantado na região sul. Em processo de implantação, encontra-se o
distrito da região oeste. A partir de análises realizadas, identifica-se a necessidade de união
destes três distritos industriais, diferenciando-se dos mesmos pelo conceito atualmente em
voga, no qual empresas unem-se a fim de conseguir vantagens estratégicas, em busca de
maiores desenvolvimentos para a cidade e região.
A intervenção proposta insere-se na região leste da cidade, e teve como princípio
costurar o novo projeto à malha existente, criando-se um projeto unificador dos bairros
dispersos na malha urbana, diminuindo as distâncias, promovendo maior infraestrutura e
espaços públicos para os cidadãos. Outra importância do terreno deve-se ao fato de
entrecer os dois distritos industriais, funcionando como elo de cooperação mútua entre as
empresas do terceiro setor do complexo proposto e as empresas dos distritos industriais
existentes.
O Planejamento Estratégico do Distrito Empresarial busca uma proposta inovadora,
unindo diversos conceitos teóricos, a fim de um resultado projetual satisfatório. Aliado aos
setores comerciais, corporativos e residenciais, conceitos como mobilidade, acessibilidade,
centralidade e sustentabilidade influenciaram as diretrizes tomadas no desenvolvimento do
projeto, que a partir da costura entre as malhas existentes e nova, buscou propiciar o

3265 
 
 
 
 
 
convívio entre os diversos tipos de usuários, criando-se uma área agregadora e com
identidade local, em uma área total de 254.262,49 m2 (Figura 03).

Figura 03 – Proposta de intervenção urbana.


Fonte: Autoras, 2015.

O Distrito Empresarial é um projeto de mercado inovador, que reúne uma diversidade


de empresas, como escritórios, administrativo de lojas, além dos setores de gestão das
industrias que estão localizadas nos três distritos industriais da cidade (Figura 04). Busca-se
melhorar a qualidade e oferta dos empregos, com o uso do solo misto e grande oferta de
infraestrutura para suprir as necessidades do terceiro setor, e contribuir de forma igualitária
e coerente para o desenvolvimento econômico e social da cidade de Sarandi, RS.

Figura 04 – Zoneamento proposto no Distrito Empresarial.


Fonte: Autoras, 2015.

3266 
 
 
 
 
 

Atualmente a cidade adota um uso excessivo de transporte individual motorizado,


elevado índice de construção sem as devidas providencias urbana, sejam recuos,
tratamento de escoto, taxas de permeabilidade e gabarito de altura, entre outros inúmeros
fatores de uma cidade mal planejada e mal coordenada no âmbito de crescimento urbano.
O projeto então aborda sistema modais de transporte, incentivando o uso de bicicleta
e caminhadas, aumentando a ciclovia existente que liga os dois distritos industriais,
introdução de transporte público, reordenamento do transito, da arborização entre outras
intervenções da macro escala (Figura 05).
Para a meso escala a preocupação com o entorno residencial, assim como a malha
urbana já consolidada guiaram as decisões projetuais, aliado a falta de espaço público e
áreas institucionais deficitárias.

Figura 05 – Proposta de implantação do distrito Empresarial.


Fonte: Autoras, 2015.

Na micro escala, o projeto apoia-se em novas ferramentas do desenho urbano para


incentivar o desenvolvimento da cidade e arredores. Para isso algumas ações propostas
foram: o uso de calçadas amplas, ciclovia em todas as ruas, cruzamentos seguros,
mobiliário público personalizado, sem esquecer de térreo ou esquinas que priorizem a vida
noturna, fazendo o complexo ser seguro 24 horas por dia, aliado ao fato que iluminação e
convivência afasta consideravelmente a chance de assaltos e mal uso do espaço (Figura
06).

3267 
 
 
 
 
 

Figura 06 – Proposta de implantação do distrito Empresarial.


Fonte: Autoras, 2015.

Na parte externa, uso de mobiliário urbano, espaços de convívio e civismo, materiais


inovadores, abraçam a causa principal do projeto, servir como exemplo para a implantação
de empreendimentos de forma inovadora e consciente, e com certeza, é um diferencial para
a inclusão da população na utilização deste Distrito.
O resultado formal é um grande empreendimento preocupado com o viver e conviver
melhor, com estudos que abrangem diversas preocupações, como é o caso de leis
especificas para diminuir a especulação imobiliária da região, propostas de intervenções em
áreas próximas degradadas, além de prédios implantados e funcionando de forma
sustentável, ao fato que diretrizes projetuais dos prédios serão entregues, como uso
grandes planos para iluminação, porém com brises e esquadrias duplas, reuso de água
pluvial e cinzas, cobertura verde, materiais ecologicamente correto, entre outros.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Distrito Empresarial é um marco para a região, a partir do momento que agrega


soluções inovadoras, e por ser um projeto que busca retomar o desenvolvimento de parte da
cidade, que a Rodovia separou. O empreendimento propõe o uso da área de forma
consciente, através da integração de diferentes usos, gabarito de altura com índices
construtivos coerentes, regularização de recuos, permeabilidade do solo, preocupações com
especulações imobiliárias, além de unir distritos segregados com a provisão de
infraestrutura, com espaços de lazer e melhor mobilidade, como é o exemplo da rede verde
que ligará a cidade inteira margeando a ciclovia proposta, ou pela conscientização do

3268 
 
 
 
 
 
construir pensando no futuro, com diretrizes, materiais e soluções que preservem as futuras
ampliações urbanas, as permeabilidades visuais, pluviais e de interação.
Em suma, o projeto pretende ser um piloto na nova forma de projetar, aliando
arquitetura e desenho urbano de forma agregadora, costurando as diferentes malhas do
tecido urbano de forma permeável e acessível, melhorando e qualificando o espaço
construído, mas funcionando também como provedor das necessidades das imediações.
Pretende-se por fim, apresentar um modelo de crescimento urbano que promova o
desenvolvimento econômico e social da área, que venha contribuir positivamente com os
moradores da cidade de Sarandi e das regiões próximas.

REFERÊNCIAS

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Milico Innovateur. TCC (Graduação) - Curso de Ciências Econômicas, Faculdade de
Economia, Administração, Atuárias e Contabilidade Curso de Ciências Econômicas,
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3270 
 
 
 
 
 
GT 7 - CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA

ILHA DO COMBÚ: O INCREMENTO DO TURISMO EM FRAGMENTOS DA


CIDADE RIBEIRINHA NA METRÓPOLE

Ágila Flaviana Alves Chaves (NAEA/ UFPA)1


[email protected]

RESUMO
Da coexistência de distintos tempos-históricos, permanências de formas e conteúdo de
populações anteriores, sintetiza-se, na região insular de Belém, um conjunto de relações
que entrelaçam o modo de vida urbano ao modo de vida ribeirinho. A visualização desse
contato se dá principalmente pela produção de uma cotidianidade, manifestada nas
características do sistema capitalista de produção, que foge ao processo de ocupação,
história e cultura das ilhas. Do entendimento das especificidades e da diversidade
socioespacial das cidades amazônicas, compreende-se as implicações do contato entre os
agentes que produzem o espaço na ilha do Combú, uma unidade de conservação de uso
sustentável localizada na região metropolitana. Assim, o espaço é produzido a partir da
reprodução humana, e o turismo, mesmo da forma mais alternativa, transforma os locais
quando deles se apropria. Nesse sentido, o rio, o trapiche, as embarcações e as casas
exercem novas funções inseridas material e simbolicamente às práticas relacionadas ao
turismo, ganhando destaque nos novos processos de apropriação dessa fração do espaço
ainda tão expressiva do que um dia fora a cidade ribeirinha de Belém. Esses elementos,
além de refletir um valor de troca, pois se tornam domínio dos fluxos de agentes particulares
que confiscam essa parte da região insular de maneira privada, por outro lado, também
parecem revelar um valor de uso, que resiste e se adapta ao seu modo às novas práticas e
intervenções.
Palavras-chave: Produção do espaço. Turismo. Ilha do Combú.

1. INTRODUÇÃO

A capital paraense é composta por uma extensa rede hídrica e por um grande
número de ilhas, sua dimensão territorial é de 50.582,30 hectares, sendo a porção
continental correspondente a 17.378,63 hectares ou 34,36% da área total, a porção insular
corresponde a 33.203,67 hectares ou 65,64% (BELÉM, 2012). Localizada na confluência da
baía do Guajará com a foz do rio Guamá, seu nascimento e crescimento, a partir da orla

                                                            
1 Turismóloga pela Faculdade de Turismo da Universidade Federal do Pará, mestranda em Planejamento do
Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), especialista em Gestão de Cidades
e Sustentabilidade pelo Núcleo de Meio Ambiente (NUMA/UFPA). Desenvolve atividades de pesquisa no Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Ordenamento Territorial e Urbanodiversidade na Amazônia (GEOURBAM –
NAEA/UFPA).
3271 
 
 
 
 
 
fluvial, fez com que a cidade fosse reconhecida historicamente como ribeirinha2, devido a
estreita relação com as águas.
Durante décadas, a região insular da cidade recebera o tratamento de periferia,
destinada ao acolhimento de categorias da população consideradas marginalizadas e
inadequadas para o convívio social. Em outros momentos as ilhas desempenharam o papel
de localização estratégica para grupos revolucionários, servindo, ainda, de apoio para ações
militares. Dentre as formas de ocupação, incluíam-se pequenos grupos de sesmeiros, de
sitiantes sem-terra, de quilombolas e de índios destribalizados (DERGAN, 2006).
A partir da década de 1960, a cidade passou por um processo de reestruturação
espacial, a abertura de novas vias rodoviárias incentivou o surgimento de novas dinâmicas
econômicas, contribuindo assim, com a expansão da malha urbana para outros municípios,
trazendo à cidade, até então fluvial, ares de metrópole. Nesse sentido, se por um lado, as
características geográficas e históricas reforçavam a identidade ribeirinha, por outro, Belém
acompanhou a modernidade, sua sofisticação e desigualdades.
Até o final do século passado, a órbita da vida social nas ilhas3 da parte sul estava
diretamente vinculada ao extrativismo, às relações familiares e de compadrio entre os
membros das comunidades, todavia, essa dinâmica começou a sofrer modificações de
ordem externa. De acordo com Dergan (2006), a partir do final dos anos de 1980, a
construção, organização e funcionamento do Centro Comunitário do Combú surgiu como
possibilidade de estabelecimento de novas relações como as que se tem conhecimento
hoje, principalmente, pelo contato com pesquisadores, órgãos e instituições de ensino e
pesquisa que passaram a realizar estudos no local.
Por meio do contato e interesse em realizar estudos diversos sobre o Combú,
órgãos e instituições de ensino e pesquisa, como o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG),
que passaram a visitá-la com frequência, foram possibilitados os primeiros registros de
atividades com características semelhantes às desenvolvidas pelos lugares turísticos
(DERGAN, 2006). Nesse sentido, novas dinâmicas passaram a ser inseridas no espaço das
ilhas, influenciadas, principalmente, pelo modo de vida urbano do entorno.

                                                            
2 A interessante projeção de saberes das populações tradicionais, que veiculam valores e elementos da cultura
ligados a um gênero de vida alicerçado na dinâmica da floresta e dos rios, fez com que certos núcleos urbanos
fossem reconhecidos como cidades verdadeiramente locais (TRINDADE JÚNIOR, 2013).
3
  Segundo dados do Anuário Estatístico do Município, apresentados pelo projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia (2008), Belém possui 43 ilhas, distribuídas geograficamente em quatro regiões: a) ao norte encontram-
se quinze ilhas, com destaque para Mosqueiro e São Pedro, por suas extensões e atividades econômicas; b) ao
centro-leste são encontradas três, destacando-se a de Caratateua ou Outeiro, a maior das ilhas dessa região; c)
o extremo-leste é composto por dezessete ilhas, sendo as mais importantes, Cotijuba, Tatuoca, Jutuba e
Urubuoca ou Paquetá-Açu; d) ao sul são encontradas oito ilhas, sendo as mais extensas, as de Cintra ou
Maracujá, Combú, Murutucu e Grande. 
 
3272 
 
 
 
 
 
Analisa-se o incremento do turismo na ilha do Combú, procurando compreender as
relações sociais arroladas no espaço, por meio da leitura das especificidades de usos e da
dinâmica diversificada de novos e antigos agentes. Assim como, se essas novas relações
tentam incorporar essa fração do espaço, suas dimensões originais, lúdicas e simbólico-
culturais a uma lógica de acumulação hegemônica.
O procedimento teórico-metodológico para a realização do estudo iniciou com a
revisão de literatura, seguido pela observação sistemática em campo, nos períodos de
janeiro, abril e julho de 2017, contribuindo como base para o processo de conhecimento
crítico acerca de reflexões sobre a produção social do espaço (LEFÈBVRE, 1974; SANTOS,
2006), da vida cotidiana (LEFÈBVRE, 1991), noções sobre a urbanodiversidade na
Amazônia (TRINDADE JÚNIOR, 2010) e sobre a formação do espaço turístico
(RODRIGUES, 1997).
A presente análise está estruturada da seguinte maneira: na primeira seção,
apresentam-se, os elementos teóricos e conceituais que dizem respeito ao espaço
socialmente produzido, ao cotidiano e à cotidianidade, e o fenômeno do turismo; na segunda
parte, descreve-se o recorte espacial dando subsídios interpretativos de como essa fração
do espaço urbano ainda é tão expressiva do que um dia fora a Belém ribeirinha; e no
terceiro momento, discute-se a maneira como o lazer e o turismo manifestam-se enquanto
centralidades do mundo contemporâneo, e como suas práticas vêm sendo (re)produzidas na
ilha do Combú.

2. COTIDIANO, COTIDIANIDADE E TURISMO: PRINCIPAIS PRESSUPOSTOS


TEÓRICOS CONCEITUAIS

O espaço não existe em si mesmo, é produzido, processando-se como parte


integrante das práticas sociais, sendo resultado e pré-condição da sociedade (LEFEBVRE,
1974). A teoria social do espaço analisa os discursos e práticas desenvolvidos em diferentes
tempos históricos, onde apresentam-se inquietações quanto à relação entre o tempo-
histórico, o espaço e a vida cotidiana.
O espaço se torna, assim, a melhor referência de análise para as contestações
sobre a vida cotidiana da sociedade moderna, por traduzir os tipos de relações de poder que
nele estão projetadas. Numa concepção dialética, entende-se que é no tempo e no espaço
que está a resposta para compreender a predominância do capitalismo, enquanto sistema
hegemônico atual.
Para Lefèbvre (1974), a triplicidade espacial manifesta-se através da prática
espacial (espaço percebido), das representações do espaço (espaço concebido), e dos

3273 
 
 
 
 
 
espaços de representação (espaço vivido). O espaço percebido compreende todos os
signos e códigos relacionados à materialidade dos elementos, engloba a percepção humana
do cotidiano e das práticas espaciais onde as relações sociais coexistem. O espaço
concebido é ligado à produção do conhecimento, nele encontram-se os cientistas, os
engenheiros, os tecnocratas, os planejadores e os agenciadores dos meios técnicos de
produção dominantes, onde as representações mentais e ideológicas se encontram
misturadas. E no espaço vivido, estão os habitantes que não se sujeitam ao que é
homogêneo. Trata-se do plano da vivência, onde se encontram implícitos no tempo os
símbolos e imagens que fazem parte da história humana.
A busca pela compreensão do vínculo dialético estabelecido no interior desta
triplicidade, permite-nos estudar os laços, a gênese, as distorções, os deslocamentos e as
interferências na dinâmica de reprodução das relações sociais.
Entende-se que a espacialização do turismo no Combú ocorre por meio da
propagação de um modo de vida urbano diretamente pautado pelas relações de produção
capitalista, no qual a difusão do fenômeno moderno, reivindicado como uma necessidade
primária de seus usuários, passa a ser difundido em um contexto socioespacial ribeirinho.
Para Lefèbvre (1991) o cotidiano engloba três modalidades de tempo social: o
tempo obrigatório (do trabalho profissional), o tempo livre (dos lazeres) e o tempo imposto
(aquele das exigências diversas fora do trabalho). Bahia (2012) atribui ao lazer, vivenciado
no tempo disponível das pessoas, possibilidades de vivências com diversos conteúdos
culturais e suas manifestações (esporte, arte, turismo, literatura, entre outros).
A visualização das interferências e alterações observadas em determinada fração
do espaço se dá principalmente pela produção de uma cotidianidade4, que foge ao processo
de ocupação, história e cultura dos lugares. A cotidianidade programa a sociedade para ter
hábitos voltados para a produção e para o consumo, criando espaços abstratos, onde
prevalecem a força das imagens e da razão estética.
O turismo revela-se visando atender interesses de determinada parcela da
sociedade, colocando as populações residentes em condição de subordinação frente a
lógicas que fogem à vida cotidiana, nesse caso, a vida cotidiana ribeirinha.
Rodrigues (1997) coloca que o espaço turístico é constituído pela demanda
turística, formada por homens, seres individuais e sociais, pelas populações residentes e por
todos os outros representantes das firmas, do poder público e das instituições. As firmas são
constituídas pelos meios de hospedagem, de alimentação, pelas operadoras de viagens,
empresas aéreas, transportadoras turísticas, centros de eventos e convenções, serviços de
                                                            
4Lefèbvre (1991) afirma que sempre foi preciso alimentar-se, vestir-se, abrigar-se, produzir objetos, reproduzir o
que o consumo devora, entretanto, assume-se que até o século XIX, até "o capitalismo de livre-concorrência e
até o desenvolvimento do 'mundo da mercadoria', não existia o reino da cotidianidade" (LEFÈBVRE, 1991, p. 52).
3274 
 
 
 
 
 
entretenimento, sistemas de promoção e marketing. As instituições correspondem às
superestruturas que regulam o turismo. As infraestruturas são compostas pelas redes de
serviços de apoio ao turismo. O meio ecológico é formado pelos ecossistemas e paisagens,
intocados e modificados, cada vez mais técnicos.
O espaço turístico resulta das relações entre os agentes sociais que utilizam o
espaço geográfico para fins turísticos. Tais relações podem ser econômicas (relações de
trabalho), políticas (planos e projetos públicos) e simbólico-culturais (linguagem e
imaginário). Daí a importância de entender o espaço também como uma instância social
(SANTOS, 2006)5, por este ser o reflexo da sociedade nele inserida.
No processo de produção do espaço pelo e para o turismo no Combú, local de
tradição ribeirinha, revela-se a coexistência de diversos tempos. As contradições e as
articulações que nele existem, podem ser identificadas através da leitura das permanências
de usos que não estão presos a modelos pré-estabelecidos pela vida social moderna.

3. ENTRE PAISAGENS E RELAÇÕES: CONTEXTUALIZANDO O COTIDIANO


RIBEIRINHO DE UMA ILHA DENTRO DA METRÓPOLE

O componente fluvial é fundamental para o entendimento das vivências e


resistências das populações ribeirinhas presentes nas metrópoles amazônicas. Nos cursos
de águas da baía do Guajará são transportados os produtos vindos da floresta que
abastecem as feiras e os mercados da capital paraense, principalmente aqueles localizados
na parte central e orla sul, como o Porto da Palha, o Porto da Conceição, a Feira do Açaí e o
Ver-o-Peso.
A importância dos rios também se dá no seu aproveitamento para fins domésticos,
para a locomoção dos moradores até o continente, utilização como complemento à renda
familiar através do transporte de passageiros, tendo ainda a relevância contemplativa e de
tranquilidade para aqueles que dele se beneficiam.
O Combú possui cerca de 1.500 habitantes, divididos em 240 famílias, distribuídas
em quatro comunidades: comunidade do Igarapé Combú, comunidade Beira Rio,
comunidade Santo Antônio ou do Igarapé do Piriquitaquara e comunidade do São Benedito
a Preservar ou do Furo do São Benedito (CIRILO, 2013).
A ilha faz parte do Distrito Administrativo do Outeiro (DAOUT) e está cerca de 1,5
km de distância em relação à orla da cidade (PDITS, 2011). A travessia dura em média 15

                                                            
5 Por suas qualidades funcionais, o espaço como qualquer estrutura social (a nível da sociedade, se se prefere
dizer assim) é, por sua estrutura mais que por sua forma, um reflexo da sociedade, seu dinamismo sendo
consequência da cisão social da sociedade global e sua consequente distribuição sobre o território (SANTOS,
2006, p. 181).  
3275 
 
 
 
 
 
minutos, por meio de embarcações que saem de pequenos portos localizados em diversos
pontos da cidade, sendo o mais conhecido o da praça Princesa Isabel, no bairro da Condor. O
acesso fluvial é a única forma de se chegar ao local, cuja frequência de embarcações diárias
e travessias depende do número de passageiros.
Os objetos espaciais demarcam atividades e interações cotidianas, constituídas por
forte subjetividade e simbolismo. O Combú não possui um trapiche ou porto central, no local
são encontrados pequenos portos e atracadouros espalhados pelos inúmeros terrenos da
orla insular, servindo como ponto de encontro entre moradores e aqueles que os visitam.
Nesses espaços de vivência e identidade ribeirinha6 (LIMA; NUNES, 2011) são difundidas
sociabilidades mais orgânicas cujo tempo lento, das relações mais diretas, repletas de laços
de parentescos e amizades (MALHEIRO; TRINDADE JÚNIOR, 2005) vão de encontro com
o tempo rápido da parte continental.
O mapa da ilha (Mapa 1) apresenta a localização espacial e suas delimitações: ao
norte, está situada às margens do Rio Guamá; ao sul, pelo Furo de São Benedito; a leste
pelo Furo da Paciência; e a oeste, pela Baía do Guajará. Sendo entrecortada pelos igarapés
Combú e Piriquitaqura.
O ecossistema sofre influência direta das marés do estuário do rio Guamá e,
normalmente, durante o período de dezembro a maio, apresenta inundações, permitindo a
caracterização do solo como sendo de várzea temporária (MATTA, 2006), pouco propício
para a agricultura. Os residentes têm na economia doméstica, voltada para a extração de
produtos da floresta, como o açaí, e mais recentemente, o cacau, sua base de produção.

Mapa 1 – Ilha do Combú: localização geográfica.

                                                            
6 Para Lima e Nunes (2011) tratam-se de espaços permeados por uma diversidade de práticas sociais ligadas a
uma temporalidade lenta, fortemente marcada pela dinâmica do rio e da natureza, onde as relações mais diretas
e aproximativas se realizam cotidianamente. Nesses espaços, as necessidades desenham, muitas vezes,
diversas relações de vivência e sobrevivência da população das águas, em suas várias dimensões funcionais,
lúdicas e simbólico-culturais. Numa análise antropológica, Nunes (2017) afirma que a partir da relação
homem/natureza, a compreensão do ser ribeirinho vai muito além do fato de estar na beira de um rio, existindo
outros elementos que complementam a significação de tal categoria, como as concepções de lugar, território,
identidade e pertença.

3276 
 
 
 
 
 

Fonte: Lab. de Análises Espaciais do NAEA Prof. Dr. Thomas Peter Hurtienne (LAENA, 2017).

A ocupação humana se deu a partir da sua orla insular, espalhando-se ao longo


das margens de igarapés, furos de rio e ao longo da orla insular (MATTA, 2006). O interior
da ilha é pouco habitado, reservado para a floresta e para pequenas plantações. A
população residente procura conservar a floresta, de onde extrai parte de seu sustento,
praticando atividades de manejo baseadas no saber tradicional, passado de pais para filhos.
Em uma dinâmica socioespacial intimamente ligada ao rio, a maioria das famílias
possuem um membro cuja profissão seja a de barqueiro, sendo esta atividade
complementar à principal, que é a extração de produtos da floresta. Atualmente, além da
cooperativa de barqueiros das ilhas, existe também a cooperativas de lanchas, constituída
no ano de 2016, pertencente aos moradores do Combú e de outras ilhas próximas.
Todas as habitações possuem como principal ou único meio de transporte as
embarcações, a inexistência de ruas de terra ou de chão batido dificulta até mesmo a
presença e uso de bicicletas, encontradas apenas em algumas poucas residências. A falta
de ruas para circulação, faz com que vários pequenos caminhos sejam abertos de maneira
espontânea e sobre certa racionalidade.
Os laços de vizinhança e de proximidade são muito expressivos, todos se
conhecem e dividem experiências cotidianas. Na multiplicidade de usos e símbolos
detectados, destacam-se ainda as áreas utilizadas para o cultivo do açaí, assim como suas
3277 
 
 
 
 
 
formas de consumo. Na frente das casas e nos quintais, assim como ilha adentro, a planta
compõe boa parte do levantamento florístico local.
O açaí aparece entre os alimentos básicos para o sustento das famílias da região
insular, e mesmo em bairros da parte continental da cidade, o seu consumo ganha
destaque. Andrade (2014) evidencia que o morador genuinamente paraense traz o hábito de
ingestão do açaí de suas origens ribeirinhas, consumido como uma espécie de sopa
acompanhado por peixe e farinha de mandioca, remetendo ao modo de vida daqueles
grupos populacionais cuja vivência se estrutura à beira dos rios. Outrossim, reconhece-se
que nos espaços mais urbanizados, o açaí assume diversas outras formas de consumo,
transformado em sobremesas, bombons, bebida alcoólica, dentre outros produtos.
Os bares e restaurantes são presença marcante ao longo da orla insular, contudo,
se apresentam de maneiras diferenciadas de acordo com sua localização espacial na ilha.
Esses objetos estão entre as maiores construções do local, e apesar de muitos possuírem
estrutura simples e improvisada, alguns se destacam pela arquitetura, semelhante a
encontrada na parte continental. Nessa perspectiva, entende-se que os espaços voltados
para as atividades econômicas de lazer, se encontram de duas formas distintas.
Na primeira, situam-se os empreendimentos localizados, em sua maioria, nas
comunidades do Furo da Paciência e de São Benedito, construídos e geridos por moradores
da ilha, frequentados em sua maioria, pelos próprios moradores do Combú e das ilhas
próximas. Nesses pequenos comércios, a natureza, o rio e os produtos extraídos da floresta
são tratados enquanto necessários para o uso, pois deles são retirados os recursos
necessários para a manutenção do seu negócio e a garantia de sua sobrevivência.
Os bares e restaurantes compreendidos no segundo grupo de análise estão, em
sua maioria, localizados ao longo das margens do rio Guamá, na comunidade Beira Rio e na
comunidade do Igarapé Combú, além do serviço de alimentação, apresentam um conjunto
de opções recreativas, como piscinas para crianças e adultos, parques infantis, área para
eventos, trilhas ecológicas, ocupando inclusive, estacionamentos e portos particulares na
orla continental. Nesse último grupo, a natureza, o rio e os produtos extraídos da floresta
parecem assumir o papel de potenciais recursos para o desenvolvimento do turismo.
A dimensão ribeirinha de Belém, assim como de outras grandes cidades
amazônicas, é refletida, principalmente, pelo que diz respeito à dinâmica e ao papel dos
rios, seus fortes elos em relação à natureza e à vida rural não moderna (TRINDADE
JÚNIOR, 2010). O elemento rio expressa, portanto, múltiplos usos do tempo e do espaço,
materializado em atividades econômicas, como também, em proporções simbólicas,
pertencentes ao plano do vivido, que não se sujeita ao que é programado e homogêneo.

3278 
 
 
 
 
 
Existe um campo de tensão estabelecido entre o valor de uso e o valor de troca,
nas diversas formas de viver, assim como nos diversos tempos e temporalidades. A história,
a memória e a natureza das comunidades do Combú, reafirmam que os espaços são, cada
vez mais, criados pelas representações que deles fazemos, diferenciadas na função e forma
de se relacionar com a natureza. Nesse sentido, há, primeiro, a necessidade em tornar
nítido o processo de desenvolvimento do turismo na ilha como elo entre a dimensão
ribeirinha e a vida urbana contemporânea na produção do espaço.

4. ENTRE A ORDEM PRÓXIMA E A ORDEM DISTANTE: O LUGAR DO TURISMO


NAS RELAÇÕES COTIDIANAS DO COMBÚ

Para Lefebvre (2001) a cidade é uma mediação entre as mediações, podendo


conter uma ordem próxima e uma ordem distante. Na primeira, a cidade sustenta relações
de produção e de propriedade, é o local de sua reprodução. Na segunda, está contida a
primeira, que a sustenta, encarna-a e idealiza-a sobre um terreno (o lugar) e sobre um
plano, o plano da vida imediata (cotidiana). Nesse novo ambiente, onde a ordem próxima e
a ordem distante se misturam e se relacionam, o turismo passa a ser um condutor veloz no
processo de circulação das pessoas, dos objetos e das informações.
Por ser uma unidade de conservação de uso sustentável (UC)7, a ilha tem a
produção espacial acontecendo sob "a atuação do Estado, do capital e da sociedade"
(MOLINA, 2006, p. 16). Os agentes do Estado são representados, pelos técnicos e gerentes
de planejamento das políticas públicas, pertencentes aos órgãos ligados à gestão ambiental
e turística da ilha; os agentes do mercado, representados pelas empresas de viagens,
donos de bares e restaurantes, empresas de transporte, comércio e prestação de serviços;
a sociedade, representada pelos visitantes (locais e externos) e pelos moradores (novos e
antigos).
A prática do turismo em unidades de conservação, está cada vez mais envolvida à
essas lógicas externas, voltando-se à formas de circulação e de conexão, que contribuem
para a anulação, (re)definição ou ainda (re)direcionamento das relações com o rio.

                                                            
7
 No Brasil, nos anos de 1960, foi oficializado um código florestal que separava áreas de preservação integral de
áreas onde são permitidas a exploração de recursos naturais. Na década de 1980, criou-se as Áreas de
Proteção Ambiental (APAS), as Estações Ecológicas (EE) e as Áreas de Relevante Interesse Ecológico. Com a
Constituição de 1988, reforça-se o embate em torno das Unidades de Conservação (Artigo 225 do capítulo IV), e
é declarado que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e, de uso comum do povo,
impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações (BRASIL, 2000). Este artigo de lei consolida no Brasil a preocupação mundial, a respeito da utilização
dos recursos naturais e as consequências do mau uso deste bem, que, até então, era visto pela maioria da
população como inesgotável.

3279 
 
 
 
 
 
Observa-se que no Combú, o rio, as embarcações, os pequenos portos e trapiches,
adquirem novos usos por parte dos atuais agentes que desenvolvem atividades no espaço.
A orla insular apresenta usos de caráter residencial e comercial e uma diversidade de
práticas ligadas ao lazer e ao turismo.
As margens do Igarapé Combú, onde residem os moradores da comunidade de
mesmo nome, concentram-se as residências, instituições, pequenos comércios, bares e
restaurantes, além de uma pequena fábrica de beneficiamento do cacau extraído na região,
apresentando a melhor infraestrutura voltada para fins de lazer e turismo. Nesses
ambientes, os frequentadores podem apreciar a culinária local, com destaque para os
peixes de água doce e para o açaí, consumido como uma espécie de sopa, acompanhado
por farinha de mandioca, peixe, camarão ou charque, complementos da refeição.
Os trapiches e as diversas rampas de acesso ao rio, servem como elo de circulação
dos agentes do mercado e os visitantes. A presença de barqueiros e agentes do circuito
inferior é significante, uma vez que por uma pequena quantia em dinheiro transportam os
frequentadores interessados em usufruir os espaços dos restaurantes, dos bares e da
produção artesanal de chocolate.
A faixa de orla das comunidades do Igarapé Piriquitaquara e do Furo de São
Benedito, apresentam um ambiente mais preservado (ecológico), de expressão
predominantemente residencial, diferindo significativamente da faixa de orla do furo do
Igarapé Combú e Beira Rio.
Nesse sentido, na ilha do Combú, predominam atividades pertencentes ao circuito
inferior da economia urbana (SANTOS, 2004), caracterizadas pela presença do emprego
familiar, pelos pequenos comerciantes, que atendem a certas normas legais, empresariais e
trabalhistas, e pela existência de comércios e serviços informais.
Dentre os componentes do circuito superior, destaca-se a presença das agências
de viagens e da mídia, que divulgam e prestam serviços para grupos de turistas que visitam
a região. Os barqueiros e comerciantes parecem habituados com os visitantes transitando
pelos trapiches e atracadouros espalhados pelos muitos terrenos da ilha. Nesse adentrar
fantasioso, encontram-se os moradores, que não se envolvem diretamente com as
atividades turísticas, das janelas e portas das casas, se mostram curiosos e muitas vezes
incomodados com o ir e vir dos grupos de turistas.
Assume-se que nesses locais há uma convergência entre hábitos de consumo mais
modernos e os de valor afetivo, preocupa-se que essa tomada de elementos típicos de uma
condição tradicional, sejam subvertidos e direcionados por referenciais contemporâneos que
fogem à realidade desses lugares.

3280 
 
 
 
 
 
No local são realizadas visitações de curta duração, no qual os visitantes
permanecem apenas por período curto de tempo, posteriormente, retornando às
residências, casas de amigos e parentes, ou hotéis da cidade. Até o momento, não existe
equipamentos de meios de hospedagem, principalmente, pelo fato da ilha ser uma área de
proteção ambiental.
Nos passeios, compras de produtos artesanais, excursões, trilhas, banhos de
igarapés e rio, acampamentos, práticas de canoagem, descanso, contemplação e serviços
de alimentação, é possível perceber a combinação de novas temporalidades e
espacialidades. Do processo de (re)organização do espaço, surgem novas relações de
trabalho, impulsionando o aumento da circulação de pessoas, de mercadorias, de
informações e de ideias. Impõe-se ao local uma nova ordem de relações, entre os homens e
o meio.
Aos fins de semana e na entressafra do açaí, período em que as vendas do fruto
diminuem, é comum ver os moradores, em especial os jovens, realizando atividades
remuneradas nos empreendimentos de lazer, vendo nesta prática, uma maneira de
amenizar a sua condição de pobreza.
De acordo com Cirilo (2013), a venda e aluguel de terrenos/lotes na ilha do Combú
é expressiva. Apesar da prática ser proibida desde a Constituição Federal de 1988, que
declara as ilhas pertencentes à União, tal prática acaba sendo uma queixa constante de
alguns moradores junto à Gerência da UC. Os novos combuenses estabelecem negócios
relacionados ao turismo ou até mesmo segundas residências, parecendo não ter
necessariamente os mesmos vínculos que os antigos.
Ribeiro (2010) afirma que, com a chegada dos novos atores sociais, visitantes e
moradores recém-chegados, passaram a ocorrer uma série de tensões e
descontentamentos por parte dos antigos moradores, cujos relatos demonstram a
insatisfação e o sentimento de rejeição para com os novos residentes, além do incômodo
causado pela presença de lanchas, voadeiras e jet-skis, que circulam sempre em alta
velocidade, próximo de suas casas ou locais de pesca.
Até o momento, o local não possui plano de manejo, instrumento legal de gestão
das UC. Nesse sentido, apresentam-se outros problemas, como a erosão do solo da orla
insular, a falta de programas de ordenamento territorial, a indefinição da vocação econômica
da ilha, pois alguns defendem seu potencial turístico e outros defendem a atividade
extrativista como a principal fonte de recursos econômicos. Não há a configuração de
sistemas de infraestrutura básicos para visitação e acesso dos próprios moradores,
acarretando uma série de outros empecilhos ao desenvolvimento econômico e social do
turismo.

3281 
 
 
 
 
 
Atualmente, os planos e programas de turismo seguem a lógica de
descentralização do governo federal, fazendo com que os municípios e governos estaduais
passem a arcar com políticas e ações que deem conta de minimizar os impactos
ocasionados pelas atividades nas regiões. Os discursos atuais buscam resgatar a Amazônia
ribeirinha, fazendo forte apelo à paisagem e às formas espaciais, e não necessariamente
aos elementos que identificam a interação cidade-rio (TRINDADE JUNIOR, 2011).
Considera-se que mesmo diante das rupturas que alteram completamente a
configuração territorial da Amazônia, não se excluem as resistências e permanências de
modos de vida anteriores. Reforça-se ao espaço amazônico, a condição de ambiente
complexo e diverso. No turismo e no lazer, se respeitadas as relações de horizontalidades e
as memórias enraizadas no lugar, pode-se ter uma oportunidade única de desenvolvimento
local.

5. DE TRILHAS À CAMINHOS: CONSIDERAÇÕES FINAIS

A região insular de Belém, na presença de suas comunidades, pela circulação de


barcos e canoas, pequenos portos, trapiches e atividades ligadas ao circuito inferior da
economia, demarca-se uma dinâmica regional de forte expressão cultural. A paisagem não é
apenas um acumulado de objetos, mas são formas agregadas à vida das pessoas, cheias
de significado e significação.
O Combú apresenta duas realidades dentro de um mesmo processo espacial, de
um lado manifesta-se o espaço enquanto lugar de festa, do prazer e do lúdico, reconhecido
pelas atividades ligadas à floresta e aos rios, diretamente ligados ao seu valor de uso; do
outro lado, encontra-se um ambiente atraente para o mercado turístico, das ações
planejadas, engendradas pelos agentes do estado e do mercado, das relações sociais
conduzidas por um valor de troca.
A busca por novas aspirações econômicas, como a vinda de novos moradores para
abrir comércios, inspirados pelo crescimento do turismo no local, pode até ocupar o centro
das disputas socioespaciais, entretanto, entende-se que podem haver outros motivos em
jogo, como a busca por mais qualidade de vida ou o estabelecimento de novos laços
afetivos entre antigos e novos residentes.
Acredita-se que o turismo possibilita a complementação na receita familiar, pois os
visitantes atraídos pela beleza, bucolismo e biodiversidade do local, adquirem os produtos e
serviços disponíveis. Contudo, ao mesmo tempo, entende-se que a atividade pode trazer
outros componentes que alteram o modo de vida de maneira considerável.

3282 
 
 
 
 
 
Trindade Júnior (2002), ao discutir as cidades, a partir das espacialidades e
temporalidades urbanas e ribeirinhas, remete-nos a pensar que em Belém as contradições
nos espaços vão desde a sua projeção para a concepção de um “homem amazônico”,
quanto para a proeminência do espaço para um “homem turista”.
Nesse sentido, vislumbra-se a necessidade em se pensar políticas que não fiquem
presas a modelos esquemáticos, que reconheçam as dinâmicas e as diferenças no espaço
da cidade. A prática do turismo deve estabelecer pressupostos que valorizem as vivências e
trocas de experiências entre os sujeitos que dela participam, nesse encontro de mundos, a
análise do vivido é a melhor alternativa para se pensar a cidade.

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GT 07 B – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA

TERRITÓRIOS DE CONSUMO, CARTOGRAFIAS DE MERCADO: VESTIDOS,


NOIVAS E VALOR EM TRÂNSITO NAS E ENTRE CIDADES

Michele Escoura (UNICAMP)1


[email protected]

RESUMO

Festas de casamento se firmaram como carro-chefe de um setor que, em 2016, movimentou


R$17 bilhões. Mas seja pelo lado dos profissionais ou dos casais que protagonizam esses
eventos, mais do que dinheiro gira em torno deste mercado. Nesta pesquisa, persigo as
relações, processos de diferenciação ou aliança, acionadas durante a preparação de tais
festas em São Paulo e Belém. Os materiais foram produzidos a partir de trabalho de campo
em lojas de comercialização de vestidos de noivas e também na interação com uma rede de
casais nos dois municípios. Neste paper, contextualizo os territórios do mercado e sigo a
circulação de mulheres pelas cidades e entre cidades em busca de seus vestidos de noiva.
A baixa preocupação em “economizar” quando o assunto é vestido me aponta para a
centralidade do objeto na constituição de uma noiva e traz como questão as diferentes
dimensões para a determinação de preço desses produtos. Sob a noção de “qualidade”,
disputas narrativas sobre o processo de produção e dos territórios de venda das peças
surgem como chaves explicativas para a demarcação de distinção. Já do lado das noivas,
deslocar-se pelos territórios surge como estratégia de produção de valor para si e emulação
de uma ascensão econômica, ainda que extraordinária. Assim, a pesquisa mostra que do
trânsito entre vestidos e mulheres na cidade e entre cidades, reputações são constituídas,
disputadas e transferidas a partir da relação entre pessoas, objetos e lugares.

Palavras-chave: Deslocamento, vestido de noiva, valor, etnografia, cidades.

1. INTRODUÇÃO

“Modéstia à parte, eu acho que meu vestido foi um dos mais bonitos que já teve
aqui nessa cidade”, me dizia Juliana meses depois de seu casamento em Belém, capital do
estado do Pará. Nenhuma economia havia sido feita para conseguir aquele que, para ela,
era o item mais importante em sua festa: cinco viagens e cerca de R$ 45 mil, num total de
15% dos custos da festa de R$ 300 mil. “A noiva é o personagem principal da noite e as
pessoas esperam que ela esteja deslumbrante”, dizia para justificar tanto engajamento em
torno da peça e os motivos que a levaram para o atelier de Lethicia Bronstein, localizado na
região dos Jardins, zona oeste na capital paulista.

                                                            
1 Doutoranda no Programa de Ciências Sociais, onde vincula-se ao Núcleo de Pesquisas Pagu. É também
pesquisadora do NUMAS/USP e assessora de pesquisas e avaliações de políticas públicas em educação na
ONG Ação Educativa. Coautora do livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola, pelo selo
Reviravolta da Companhia das Letras.

3287 
 
 
 
 
 
E parece que a estratégia tinha dado certo. Já não bastasse a curiosidade em torno
daquele que é mantido como o maior segredo da festa de casamento, o rumor de que o
vestido era uma peça feita pela estilista que veste também as celebridades acrescentou
ainda mais interesse ao evento. “Teve gente que se escondeu, foi pra Basílica [onde ocorria
a cerimônia religiosa], ficou na porta só pra ver o vestido” me contou a noiva, satisfeita,
enquanto me mostrava também o número de visualizações que o vídeo de seu vestido
obteve em uma rede social.
Distante dali, na zona leste de São Paulo, Natália também foi longe atrás de seu
vestido. “Não é a gente que escolhe o vestido, é o vestido que escolhe a gente” era o que
dizia sobre o momento em que decidiu qual roupa usar no dia de seu casamento, em 2015.
Com celular em punho e passando pelas dezenas de fotos da festa que tinha acontecido
semanas antes, a jovem do Jardim Conquista, bairro vizinho de São Mateus, se animava em
mostrar aquele que também tinha sido um dos itens mais caros de sua festa. Luiz, o noivo,
riu quando eu perguntei “como era o vestido”: “Caro! Caro!”. Mas ela intercedeu dizendo que
“não foi caro, foi dois mil e quinhentos, foi super barato” enquanto dava zoom na foto para
me mostrar os detalhes da peça que, talvez não por coincidência, custou 15% do total de
seu casamento orçado em R$ 20 mil.
Já em Jundiaí, Camila, aprendeu do modo mais difícil que em se tratando de
vestido de noiva, não se pode economizar. Passada a temporada de insegurança e de
piadas no ambiente de trabalho sobre se sua roupa iria mesmo chegar depois de comprada
da China via internet, o vestido foi entregue tal como ela imaginava e queria. Entretanto, a
máxima de que a “noiva manda” tão em voga no mercado de festas de casamento pareceu
não garantir tanta tranquilidade para ela em relação às expectativas de sua mãe:
Enquanto todas as noivas vão e experimentam e todo mundo chora “ai, que lindo,
você é a pessoa mais linda do universo!”, minha mãe olhou e falou: “ai, não sei”. E ela não
deixou eu me ver, eu não tinha espelho na minha casa. Eu coloquei, ela não gostou, eu só
conseguia me ver assim olhando pra baixo. Ela falou que não gostou, que tava largo, que
tava muito simples... E ela acabou comigo. Eu me senti a pior pessoa do universo, mas eu
tinha gostado do vestido. (...) Aí ela: “parece que você tá com um vestido de outra pessoa,
que não foi feito pra você. Se o problema são os cinco mil reais eu te dou, você vai lá e
aluga”. E eu estava com meu vestido e eu estava feliz com meu vestido. (Camila, Jundiaí,
2016).
Esta é uma pesquisa sobre relações durante a organização de festas de
casamento. Firmadas como carro-chefe de um setor que somente em 2016 movimentou
R$17 bilhões, festas desse tipo obtiveram um fôlego renovado na última década e têm
mobilizado profissionais e casais, fazendo muito dinheiro girar. Mas não é só dinheiro que

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circula por este mercado. Aqui, metodologicamente, persigo relações, processos de
diferenciações e de alianças manejados por meio de tensões e conflitos durante a
preparação dessas festas em São Paulo e Belém. Os materiais foram produzidos a partir de
trabalho de campo em lojas de comercialização de vestidos de noivas e também na
interação com uma rede de casais nos dois municípios. Em recorte, neste paper, apresento
algumas das sistematizações detalhadas na proposta de primeiro capítulo da tese, no qual
tento olhar para as diferenças econômicas a partir de recursos descritivos e, nesse sentido,
experimentar um movimento etnográfico para a análise sobre classe.

2. Cartografia do véu e da grinalda

Fosse entre as noivas de festas com orçamento de R$20 mil ou de R$300 mil,
deslocar-se pela cidade e entre as cidades era um recurso amplamente utilizado por elas
quando em busca do vestido ideal para seus casamentos. Regularmente também, tais
vestidos vindos de longe eram muito mais caros do que aqueles encontrados em seus
bairros ou cidade e, invariavelmente, tanto os custos da roupa quanto os trânsitos territoriais
eram justificados pela noção de “qualidade”.
Mirela, outra noiva de Belém, lembrou de uma ocasião em que foi recebida de
“qualquer jeito” por uma estilista paraense, quando “atendeu a gente na sacada dela, com
funcionário passando em volta, tudo voando. É menos profissional o negócio, sabe?”. Já em
São Paulo, a noiva avalia que “tem toda essa questão de que parece que é tudo muito
melhor. O atendimento é melhor em tudo, o agendamento funciona”. Além disso, considera
que, em Belém, é comum as pessoas terem a capital paulista como uma “referência de tudo
que é bom”. Para ela, há uma sensação compartilhada de que “São Paulo tem um glamour”.
A noiva escolheu então a estilista Wanda Borges para confeccionar sua peça e, em
uma das arborizadas alamedas dos Jardins, a estilista conquistou a cliente não apenas por
seu produto, conforme ela mesma descreve: “é uma casa toda de era. Aí tu chegas na casa
e é tudo almofadado, sabe? As poltronas são todas antigas, Luís XV, não sei o que... Tudo
meio bege, as cortinas grandes, com as flores perto da janela, tudo bonito. E ela é uma
postura assim, parece que ela é uma lady”. Garantir um vestido vindo de São Paulo, para
ela, era garantir automaticamente um vestido melhor.
Entretanto, a “São Paulo” de Mirela não é a mesma daquela pela qual circula
Natália, a moradora da zona leste e cliente da Rua São Caetano, no centro da capital
paulista. Nesta pesquisa, tenho explorado a cartografia do mercado de vestidos de noiva a
partir de uma cisão entre três regiões de produção e comercialização na capital paulista.

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Lojas de bairro, tal como a de “trajes a rigor” que acompanhei em trabalho de campo em
São Mateus, se particularizam por oferecer peças de vestuário para festas dos mais
variados tipos no mesmo lugar e também por um baixo preço.
Localizada na Avenida Mateu Bei, endereço de grande movimentação comercial da
região, a loja de São Mateus dispunha de modelos de vestidos de noivas a partir de R$ 800
e contava também com peças de “primeiro aluguel” a partir de R$1.500: uma modalidade
especial de locação na qual a cliente além de ser a primeira a usar o vestido, adquire
também o direito de decidir sobre toda a confecção da peça. Mas nem mesmo a
possibilidade de um atendimento “exclusivo” de “personalização” do vestido pareceu
compensar para Natália, que saiu de seu bairro por avaliar a loja de São Mateus como
“super antiprofissional” e gastou R$2.500 por um vestido já usado da Rua das Noivas.
Localizada na região central da cidade, próxima à estação da Luz, a Rua São
Caetano é conhecida na cartografia do mercado por abrigar a maior concentração de
empresas especializadas em vestuário de festas. Mas dentre tantas lojas de trajes, tecidos e
calçados, o que de fato prepondera são as vitrines de vestidos de noivas que atraem
diariamente uma multidão de clientes vindas de todos os cantos da capital e do Brasil. Daí a
designação popular do endereço como “Rua das Noivas”.
Lá conheci e acompanhei o cotidiano da loja de Fernanda, uma das maiores e mais
conhecidas da região. Na loja da Rua das Noivas, as clientes não tinham acesso às araras
de vestido e as peças provadas dependiam sempre da escolha feita pelos estilistas – os
quais conduziam todos os atendimentos. O primeiro contraste desde quando entrei lá em
seguida à loja de São Mateus, foi notar não apenas a presença de homens trabalhando em
um ambiente que no bairro era exclusivamente feminino como, também, em perceber os
efeitos da autoridade dos estilistas sobre os momentos de escolha dos vestidos de noiva.
“Estilista é que nem o papa: você falou, todo mundo obedece” se gabava Maurício, um
funcionário experiente da loja que, sem muito esforço, convencia as clientes de levar seus
produtos: vestidos a partir de R$ 3 mil para aqueles já usados e até R$ 10 mil para um
primeiro aluguel.
Tais preços, embora superiores àqueles encontrados na loja de bairro, não eram
tão acima dos fixados em vestidos da loja onde acompanhei o atendimento da noiva
Mariana, na Avenida Rebouças e outro importante território de comercialização em trajes de
casamento. No estabelecimento localizado num suntuoso casarão dos tempos áureos do
café, “primeiro aluguel” tinha um significado diferente: como a loja só trabalha com coleções
fechadas e assinadas pelos estilistas anualmente, clientes não podem interferir nos modelos
dos vestidos e, assim, “primeiro aluguel” equivale literalmente a alugar uma peça nunca
antes usada. E se à primeira vista parecesse não haver muita vantagem econômica gastar

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R$ 10 mil no aluguel de um produto que, na Rua das Noivas, podia ser produzido
detalhadamente a partir de suas exigências, a ida de Mariana para a Av. Rebouças
apontava para outro tipo de interesse. Antes que a campainha do casarão fosse acionada,
uma foto seguida de post trazia a imagem de seus pés sobre o tapete de entrada da loja,
cuidando para não esconder o “Jardins” inscrito logo abaixo do nome da empresa.
Composta por bairros diferentes entre si embora todos economicamente muito
valorizados, a região dos Jardins abriga um conjunto também heterogêneo de empresas
especializadas em vestuário de festas. A vocação do território neste tipo de mercado é
certamente mais visível pela concentração de grandiosas lojas na extensão de três
quarteirões da Avenida Rebouças. Entretanto, a distinção provocada pela alcunha “Jardins”
no mercado deve-se sobretudo às “maisons” de “haute couture” espalhadas nas Alamedas
internas dos bairros. Estão lá os mais prestigiosos endereços de ateliês de venda vestidos
de noivas de São Paulo – e certamente também do Brasil.

2.1. Um vestido de valor


Foi para as alamedas dos Jardins que Mirela e Juliana, de Belém, partiram em
busca de seus vestidos e desembolsaram, uma R$ 28 mil e outra cerca de R$ 45 mil em
cada peça sem os assessórios. Quando perguntei para Mirela se alguma estilista paraense
conseguiria produzir um vestido como o seu, a resposta negativa foi rápida e justificada pela
ideia de que “o material é diferente”. Foi o fascínio pelas “rendas maravilhosas que ela traz
da Europa” que levou a noiva ao “atelier” de Wanda Borges e a avaliação de que “não existe
nada mais feminino do que renda” que motivou a confecção de uma peça em três camadas
desse tipo de tecido a partir do encontro de Juliana com Lethicia Bronstein. Lá na Rua das
Noivas, as rendas eram também o único tecido mostrado, comparado e avaliado nas
negociações das peças.
Tirados de um discreto armário no canto da sala de atendimento, os rolos de renda
serviam de incremento aos atendimentos e os estilistas não poupavam elogios para os
detalhes do material. Em um dos atendimentos, Maurício fez a cliente tatear o tecido
enquanto explicava que aquilo “parece uma renda, mas não é uma renda de verdade”, pois
além de muito mais pesado era constituído por um relevo de bordado em cima do tule que
lhe servia de fundo. Renda “de verdade” seria aquela mais molinha, mais leve e cujo o
desenho é criado pela trama da própria linha que produz o tecido como um todo, sem
sobreposição de bordado. Em seguida, pegou outro rolo de tecido e abriu-o efusivamente
sobre a mesa. “Isso aqui é uma renda ‘chantilly’ francesa, percebe a diferença? É muito
mais delicado!”, dizia ele ao orientar o olhar da cliente e o meu, na mesa ao lado.

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Destacar a procedência francesa da renda já havia sido um recurso usado pelo
estilista que atendeu Mariana na Avenida Rebouças e ecoava muito com o “traz da Europa”
que Mirela destacava da estilista das alamedas do Jardins. Evocado em momentos de
negociação direta dos vestidos, esse tipo de enunciação era recorrentemente usado como
forma de criar um efeito de destaque às peças em comparação umas às outras e como uma
explicação em sentido de obviedade de uma maior qualidade do material. Se uma renda era
“chantilly” francesa, parecia claro que ela era melhor e, portanto, mais caro.
Mas a seriedade no trato com as rendas logo se dissipou quando, mais tarde, eu
pedi ajuda para entender as diferenças entre os tecidos e Maurício, com desdém, disse que
“essas rendas, a gente chama de francesa, mas 90% vem da China”. Distante do olhar das
clientes, ele então me explicava: era chamado de renda francesa não porque vinha da
França e muito menos de Chantilly, mas porque seguia uma forma que foi lá inventada.
A conversa com o estilista imediatamente me lembrou do meu primeiro dia na loja,
quando ao final do expediente Fernanda, a proprietária do estabelecimento, me contou que
tinha ido há alguns anos para a China. Não revelando exatamente os motivos de sua
viagem, usou exatamente a renda “chantilly” como exemplo para o início da conversa.
Explicou que grandes marcas de vestuário e assessórios mantém produções na China,
preservando exatamente as mesmas características dos produtos para não perder aquilo
que seria distintivo de sua “qualidade”. Embora a procedência não fosse francesa, era uma
renda exatamente “do tipo” francesa.
Em relação aos vestidos de noiva, ela concluía que não haveria nenhum motivo
para desqualificar as peças produzidas nas fábricas que conheceu na Ásia (como o
comprado por Camila), mas é em tom de confidência que revela que os vestidos de sua
principal concorrente são de lá – a rede cuja matriz é sua vizinha na Rua das Noivas e que
Mariana foi cliente na Avenida Rebouças. Segundo ela, a dinâmica dessas lojas que
considera “grandes” são todas parecidas: o estilista da marca faz as criações em croquis,
depois a oficina produz os moldes e uma espécie de “piloto” do vestido é montado e enviado
para a confecção chinesa contratada. Em seguida, a empresa recebe de encomenda uma
sequência de vestidos do mesmo modelo replicados em diferentes tamanhos e distribui
entre suas lojas. Assim se daria, portanto, a criação de suas “coleções”.
Embora afirmasse que esse tipo de prática seja comum entre suas concorrentes,
Fernanda não me disse e nem deu espaço para perguntar se o mesmo acontecia em sua
loja. Esse assunto só foi retomado meses à frente em um diálogo com Tati, quando depois
de eu perguntar se ela tinha vontade de um dia se casar vestida de noiva, a gerente de
vendas ter brincado com a história dela já ter usado muitos vestidos, uma vez que “quando
chega, eles [estilistas] me fazem provar tudo”.

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“Chega?” indaguei para logo em seguida ouvir que a oficina ali era muito pequena e
por isso de nem todas as peças serem internamente fabricadas: “vimos que tinha que
importar” explicou sem citar o nome da China. Depois contou que Fernanda tinha viajado
para conhecer algumas confecções no país asiático. Mas ressaltou que o processo de sua
loja era diferente das marcas maiores, já que não encomendavam vários tamanhos
diferentes para um mesmo modelo. Brinca em repúdio às concorrentes e diz que aí seria
fácil, “é só desembalar e vestir na cliente, mas nós não trabalhamos com essa política”.
Vindos em quantidade reduzida, ela buscou enfatizar que cada peça que chegava passava
por muitas mudanças, ajustes e reconfigurações, num esforço de me convencer que por
meio do manejo manual e local, outro status seria atribuído àquelas peças.
A informação sobre algo ser produzido na China parecia ter um poder
desestabilizador e de desvalorização dos produtos. Fernanda destacava que o fato de um
objeto ser produzido lá não significava nenhuma perda de “qualidade”. Mas ainda assim, a
garantia dos atributos físicos parecia não ser suficiente para que sua procedência fosse
revelada. Ao contrário, como em um jogo de torções de termos, enquanto aquilo que não
era de fabricado na França era adjetivado como francês, a procedência chinesa virava
“importado” para garantir valor ao objeto.
Quanto mais eu me inseria em campo e tinha acesso às informações sobre a
produção dos vestidos de noivas, menos conseguia entender sobre o porquê das distâncias
de preços entre os produtos. Solange, a gerente-modelista de São Mateus achava que os
vestidos da Rua das Noivas eram “mais chiques” porque feitos por estilistas com
conhecimento de técnicas formais de riscar moldes, cortar e montar as roupas. Mas uma
vez na Rua São Caetano, o que aparecia eram estilistas trabalhando em convencer noivas a
alugar peças “importadas” ou investir em projetos de vestidos que, passada a etapa de
desenho dos croquis, eram fabricados por costureiras como Solange, que atuavam nos
bastidores da loja. A diferença então seriam os materiais?
Maurício riu de mim quando perguntei se ele achava que um vestido Lethicia
Bronstein era mais caro porque seus materiais eram diferentes. Apontou para a noiva em
prova na sala, pediu para a vendedora mostrar a camada de tule paetizado e
complementou: “os tules são os mesmos, só tem um. Seja o do vestido vendido por 8 mil ou
o por 20, 30 mil”. Em seguida satirizou, sem que a noiva pudesse ouvir, que “é tudo
poliéster” enquanto Carlos brincava que “se tiver uma faísca, pega fogo em tudo em dois
segundos, é tudo plástico!”. Em seguida, os dois se mostraram desconfiados da narrativa de
que as rendas utilizadas fossem de outra procedência que não a chinesa e defenderam que,
mesmo se fosse francesa “de verdade”, a quantidade de tecido utilizado não explicaria por si
só um preço de R$ 50 mil.

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Para eles, o que dá preço ao vestido é a “marca”. Maurício enquanto apontava para
o vestido na noiva, continuou: “se fosse na vitrine do concorrente, seria vendido por R$ 30
mil, aqui é R$ 8 mil”. Assim, um vestido seria caro porque é “Lethicia Bronstein”, não porque
em sua composição física algo o distinguiria necessariamente de outros modelos.
Essa controvérsia sobre os materiais e as técnicas de confecção de vestido por
todo tempo foi algo difícil de ser capturado pelo meu olhar leigo no universo da moda e da
indústria têxtil. Meu tato nunca foi capaz de perceber alguma diferença entre a renda
chinesa dita francesa na loja da Rua das Noivas e aquela dita ser trazida da Europa por
Wanda Borges no vestido de Mirela. E assim como eu, a noiva também não era capaz de
discorrer sobre os insumos que compuseram sua peça senão a partir daquilo que a estilista
teria lhe dito.
Desprovidas desse treino sensitivo, o que podíamos perceber de nuances físicas
entre os vestidos estava sempre muito mediado por disputas narrativas entre os
profissionais do mercado sobre seus materiais e suas técnicas de trabalho. E se nesse meu
campo de pesquisa é de comum acordo que o vestido é o principal segredo de uma noiva,
certamente a origem dos materiais e o processo de confecção desse vestido são os grandes
segredos dos estilistas.

2.2. Para uma noiva de valor


“Na loja normal a pessoa compra uma geladeira de R$ 10 mil e leva a geladeira pra
casa. Aqui eu preciso convencer a pessoa a pagar R$ 10 mil e levar só um papel pra casa”
analisava Fernanda quando a questionei sobre a especificidade de um mercado que, mais
importante do comprovar que uma renda vinha da França, tinha que convencer que a renda
podia ser francesa.
Diante do variado cardápio de lojas espalhadas pela cidade e entre as cidades, era
no processo de atendimento direto que clientes colocavam não só vestidos, mas também o
prestígio profissional de um estilista à prova. O glamour da São Paulo encontrada no
casarão com “poltronas Luís XV” de Wanda Borges, o “profissionalismo” da Rua das Noivas
em contraste com a loja de São Mateus e a parede “cheia de fotos de celebridades vestindo
os vestidos” de Lethícia Bronstein foram os principais indicadores de qualidade verificados
pelas noivas enquanto fechavam seus contratos de venda ou aluguel.
Uma cenografia precisa que evocasse noções de nobreza ou de fama, e a
performance corporal de funcionários que remetesse à sentidos de profissionalismo valia
muito mais do que notas fiscais comprovando a procedência dos materiais. No complexo
cálculo entre preço e qualidade, era o atendimento que confirmava a reputação do produtor,
criava a relação de confiança da negociação e atribuía valor para o produto.

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Nessa batalha constante entre profissionais e clientes pela definição da “qualidade”,
não apenas cada uma das lojas criava mecanismos internos de diferenciação dos seus
produtos como, também, o valor de uma loja ia se constituindo na relação dela com as
outras. Narrativas e clientes são disputadas no território da cidade e entre as cidades numa
tentativa de delimitação de fronteiras de concorrência na qual a “qualidade”, nunca
consensuada, serve de horizonte para configurar preços e valores. E assim, o contexto de
produção das roupas, afinal, produzia também o valor do vestido.
Quando uma noiva entra em uma cerimônia de casamento, os custos de sua peça
nem sempre são conhecidos pelos convidados. Mas levar para Belém um vestido de São
Paulo ou do centro da cidade para um bairro da “quebrada” era uma forma de comunicar,
sem evocar uma métrica numérica de preço, que aquele produto era, afinal, valioso.
Entretanto, ao mesmo tempo não bastava um produto vir de longe para ser considerado
automaticamente um vestido melhor, o que certamente teria evitado que a mãe de Camila
rejeitasse o vestido importado da China.
Para ser “um dos mais bonitos que já teve aqui nessa cidade”, um vestido tinha que
vir de algum território também mais valorizado, acionando hierarquias entre os lugares
(FRANÇA, 2010) e produzindo diferenças pelas noivas entre si. Ao mesmo tempo em que o
contexto de produção de um vestido era o que produzia seu preço, deslocar-se pela cidade
e entre as cidades nos diferentes territórios de produção desses trajes era a estratégia
utilizada pelas clientes para se constituírem também enquanto uma noiva de valor: Natália
diz ter sido incontrolavelmente “escolhida” por seu vestido, mas foi ela, sem dúvida, que
escolheu onde se “deixaria” ser escolhida.
Paralelamente, ao dizer que “não é a gente que escolhe o vestido, é o vestido que
escolhe a gente”, a noiva parecia também notar uma certa agência do objeto e indicar que
na relação com seu corpo, o vestido ganhava vida ao mesmo tempo em que a transformava
em noiva. O vestido produz a noiva e a noiva produz o vestido. E a despeito da constante
reinvindicação por autoria e autoridade entre os profissionais do setor, um estilista não faz
um vestido sozinho.
Wanda Borges é conhecida por ter excelentes materiais, mas é igualmente famosa
por não deixar que suas clientes se aproximem do seu acervo de rendas e escolhe ela
mesma, sozinha, aquela que irá compor a peça da noiva. E “estilista é que nem o papa”,
lembrava Maurício na loja onde nenhuma noiva tinha acesso ao estoque de vestidos e
indicando que a autoridade era consequência direta da autoria dos produtos nesse mercado.
Inferir a possibilidade de um vestido ser produzido em escala industrial, sem
conexão entre produtor e o corpo da cliente, era ideia rechaçada nesses espaços – tal como
indicava também o deboche de “é só desembalar” feito por Tati ao falar sobre o esquema de

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importação da concorrente. Um vestido de “qualidade” é consequência direta da relação
entre autoria das mãos que o produz com o corpo que o consome e, por isso, a mãe de
Camila é enfática em sua denúncia contra o vestido chinês: “não foi feito pra você”.
Um vestido é ao mesmo tempo produto e produtor da relação entre noivas e
estilistas (GELL, 1988). Suas peças são “criações exclusivas” pois são impressões
particulares dos profissionais sobre a “personalidade” de mulheres específicas. E por isso
são restritas. E caras. Além disso, da mesma forma como o valor do território de produção
de um vestido parece poder ser estendido para o valor de uma noiva, o objeto se torna
também capaz de transferir qualidades entre as biografias de estilistas para noivas
(APPADURAI, 2008).
Um vestido Lethicia Bronstein é um vestido de “qualidade” porque é Lethicia
Bronstein. É um vestido tal como aqueles usados pelas “celebridades”, como a noiva fazia
questão de destacar, mas também é um objeto que materializa o prestígio da estilista
(criado pela relação com as celebridades) e permite que Juliana produza em si também uma
reputação ao colocar seu corpo em interação com a roupa. Usar um vestido Lethicia
Bronstein era uma forma de vincular sua personalidade às relações que garantiam prestígio
para a estilista. E com milhares de views no Instagram e desconhecidos à porta da igreja
esperando-a chegar, a noiva se tornava ao seu modo também uma celebridade.
Estilistas e noivas produzem vestidos que, por sua vez, produzem diferentes
lugares de distinção para estilistas e noivas, num intercâmbio de reputações (LEAL, 2016)
que movimenta pessoas e objetos pelos mais diferentes territórios do mercado. E dessas
relações entre estilistas, vestidos e noivas, preços são fixados na proporção em que valores
são conformados numa complexa cartografia de reputações e prestígios. Tomando de
empréstimo a expressão de Juliana, “modéstia à parte”, parecia que assim também se
produziam posições de classe.

Referências
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural.
Rio de Janeiro: EDUFF, 2008.

FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: Homossexualidade,


consumo e produção de subjetividades na cidade de São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas,
Campinas.

GELL, Alfred. The problem defined: the need for an Anthropology of Art. In: Art and Agency.
Oxford: Oxford University Press, 1998.

LEAL, Natacha. Nome aos bois: zebus e zebuzeiros em uma pecuária brasileira de elite.
São Paulo: Hucited; Anpocs, 2016.

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GT 07 – Cidades e transformações do urbano na américa latina

O URBANO NO LITORAL AMAZÔNICO: AS REDES DA PESCA EM MARAPANIM


(PA)

Paollo Schmuellermann Kyprianous de Oliveira1


[email protected]
Márcio Douglas Brito Amaral (UFPA)2
[email protected]
Luiz Marcelo da Silva Barbosa3
[email protected]

RESUMO
Embora já exista uma produção voltada ao entendimento da diversidade territorial e urbana
na Amazônia, pode-se dizer que a mesma ainda é insuficiente quando se considera que
uma porção expressiva da região (a microrregião do Salgado Paraense) não foi
contemplada nessas investigações. A respeito dessa região do Salgado, pode-se afirmar
que contém particularidades que revelam semelhanças e diferenças com outras realidades
urbanas da Amazônia. Na presente pesquisa procura-se contribuir com o entendimento da
participação da cidade de Marapanim e da vila de Camará no circuito espacial da pesca.
Para tanto, foi feito um levantamento bibliográfico que nos orientou na problemática, um
levantamento documental, entrevistas semiestruturadas gravadas com agentes econômicos
e políticos envolvidos com o circuito e um mapeamento dos pontos que conectam a
produção pesqueira. Isto permitiu uma compreensão de que, apesar de Marapanim não
apresentar um grande volume de capital - considerando a composição orgânica - nem uma
conexão regional e nacional regular, assim como não dispor de uma acumulação acelerada,
não se pode negar que de um lado o território se organiza para garantir a produção
econômica de produtos pesqueiros (peixe, caranguejo, sarnambi, turú), que atendem
principalmente a própria cidade de Marapanim, o distrito turístico de Marudá (nível local), a
cidade de Castanhal e a região metropolitana de Belém (nível regional); e que, de outro
lado, as atividades humanas que compõem o circuito espacial da produção pesqueira são
envolvidas de sociabilidades que tornam o acesso à alimentação, ao trabalho, ao transporte,
ao lúdico e a política, mediados por fatores sociais como solidariedade e coletividade
orgânicas, e não apenas pela lógica das trocas materiais e monetárias. Essas sociabilidades
advindas de processos, contínuos e descontínuos, do espaço-tempo na Amazônia
produziram e produzem formas-conteúdos singulares, particulares e universais que nos
ajudam a ampliar o debate sobre a diversidade territorial e urbana não apenas como
contribuição de informações sobre as realidades dessas áreas, mas principalmente, como
tentativa de contribuir no entendimento do fenômeno urbano.

Palavras-chaves: Pesca, Marapanim, Território.


 

INTRODUÇÃO.

                                                            
1 Graduado em Bacharelado e Licenciatura Plena em Geografia pela UFPA e mestrando em Geografia pelo
Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPA.
2Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia e da Faculdade de Geografia e Cartografia da UFPA,

doutor em Geografia Humana pela USP e coordenador do projeto PROINT 2016-2017, Laboratório de Ensino de
Geografia e a prática de ensino em ambientes não-escolares no litoral de rias paraense, financiado pela
PROEG/UFPA.
3 Graduado em Bacharelado e Licenciatura Plena em Geografia pela UFPA e bolsista do PROINT/PROEG/UFPA

na pesquisa que deu origem ao presente trabalho.

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O presente trabalho estuda a participação da cidade de Marapanim e da vila de
Camará, localizadas no litoral de rias paraense, no circuito espacial da pesca. Para isso,
analisa o processo produtivo em sentido lato, a produção, a circulação e o consumo do
pescado, bem como suas implicações espaciais.
A realização de uma pesquisa dessa natureza visa, de forma mais ampla, dar
visibilidade a uma porção do território paraense que historicamente foi relegado pelas
pesquisas acadêmicas relativas à região, bem como pelas políticas públicas, portanto, pode-
se dizer que se trata de um “espaço invisível”. A razão dessa invisibilidade está no fato
dessa região não ter sido atingida por grandes eventos econômicos e/ou territoriais como
ocorreram com outras porções da Amazônia, em contexto recente (pós-década de 1950).
Na verdade, como destacou Oliveira (2008), é possível encontrar na região amazônica
áreas altamente articuladas aos fluxos da mundialização, mas também, áreas que
funcionam muito mais como reservas territoriais para existência de um outro modo de vida.
Deve-se reconhecer, contudo, que algumas pesquisas recentes têm procurado
revelar esse caráter da diversidade territorial e urbana da região, a chamada
urbanodiversidade, nos termos de Trindade Jr., (2010), que procura sustentar que embora
tenha predominado um discurso sobre a biodiversidade, ou mesmo, sobre a
sociodiversidade regional, não se deve desprezar o fato de que a maior parte da população
regional vive em ambientes classificados como urbanos e, mais do que isso, esses espaços
se apresentam de modo diferenciado em termos de formas e de conteúdos socioespaciais.
A pesquisa aqui apresentada utilizou-se da teoria dos circuitos espaciais da
produção (SANTOS, 2003) e da economia política da urbanização e da cidade (SANTOS,
2009), bem como fez algumas incursões sobre o papel das pequenas cidades na rede
urbana (SPOSITO, 2009; CORRÊA, 2011). Em termos de procedimento de pesquisa, além
da revisão bibliográfica acerca dos temas indicados, fez-se um levantamento documental,
junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Prefeitura Municipal de
Marapanim e a Colônia dos Pescadores Z-6 de Marapanim. Também foram realizadas
também entrevistas semiestruturadas na vila e na cidade com pescadores, agentes
intermediários, comerciantes de materiais para pesca, representante da secretaria de pesca
da Prefeitura, presidente da Colônia dos pescadores Z-6 e do Mercado Municipal.
Por fim, o trabalho ficou organizado em três partes, além da introdução e da
conclusão. Na primeira faz-se uma breve reflexão sobre as pequenas cidades e a
diversidade urbana amazônica, a fim de mostrar que embora tem existido um esforço para
incorporar diferentes áreas da região nas pesquisas, o litoral paraense ainda está invisível.
Na segunda parte constrói-se um histórico da formação socioespacial do litoral paraense,
destacando o papel de Marapanim nesse processo. Na terceira e última parte, faz-se uma

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análise sobre o envolvimento da cidade de Marapanim e da vida de Camará nas redes que
envolvem o circuito espacial da produção pesqueira.

1. AS PEQUENAS CIDADES E A DIVERSIDADE URBANA AMAZÔNICA


Um olhar, mesmo que breve, sobre a dinâmica regional amazônica revela uma
grande diversidade de formas espaciais e de conteúdos que evidenciam no espaço a teia de
relações em que a região está imersa. Assim, a paisagem, principalmente a da cidade, não
acumula apenas objetos, mas também tempos, técnicas e símbolos produzidos sobre a
região ao longo da história.
Ao tratar dessa diversidade urbana relacionada às pequenas cidades e sua relação
com a região em que se insere, Trindade Jr. (2013) recorre ao par dialético, “cidade da
floresta” e “cidades na floresta”. A primeira refere-se aquelas cidades que dominaram a cena
amazônica até a década de 1960, se apresentando como pequenas e associadas à
circulação fluvial, bem como tendo fortes interações espaciais com a natureza, com a vida
rural não moderna, com a floresta ainda pouco explorada e com seus entornos imediatos e
cidades próximas. A segunda, por outro lado, se refere aquelas cidades instaladas na região
em face do processo de modernização regional, apresentando forte articulação com
demandas externas, deixando a floresta de fora da integração da sociedade aos novos
valores da vida urbana e vendo-a principalmente como espaço de exploração econômica.
Ao refletir sobre as pequenas cidades da Amazônia, Oliveira (2001) afirma que a elas
se pode chegar de diferentes maneiras. As primeiras são alcançadas pelo rio, as chamadas
cidades ribeirinhas, uma espécie de “recanto sedutor”, que em geral se chega de barco,
navegando lentamente pelos rios da região, são cidades que de longe se avista a torre da
igreja (mas também, na atualidade, a torre da telefonia celular) e que parecendo um quadro
emoldurado entre a folhagem verde-escuro da floresta. Nelas as ruas e caminhos terminam
no porto, estando na primeira rua ou rua da frente, as melhores casas e, a medida que dela
se afasta, vão surgindo os casebres. Às segundas se chegam por “estradas esburacadas”,
sendo o trajeto feito de caminhão, de automóvel ou mesmo a pé, de modo que de um jeito
ou de outro se vai e se vem. Destaca que ao longo do caminho são encontradas casas de
diferentes tipos, umas boas e outras ruins, sendo a maior parte casebres. Quando se
alcançam essas cidades, “pequenas cidades cor de terra”, não se observa nada de
extraordinário, pois são semelhantes a outras áreas de fronteira da Amazônia ou mesmo se
assemelham as periferias das grandes e médias cidades da região (OLIVEIRA, 2001).
Oliveira (2001; 2008), por sua vez, ao estudar essas pequenas cidades da
Amazônia, chama a atenção para o fato de que nelas podem surgir formas e relações
sociais que não se tornaram vencedoras, especialmente se observadas sobre o prisma da

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mundialização, no entanto, podem se revelar num determinado momento histórico como
possibilidade de emersão de modo de vida alternativos, de espacialidade e de
temporalidades diferentes daquelas que se tornaram dominante.
Parece ser esse o caso de Marapanim e das cidades localizadas no litoral paraense,
na chamada microrregião do Salgado, cuja singularidade vai sendo revelada pela
proximidade do oceano Atlântico, presente no cotidiano das práticas socioespaciais ali
materializadas, pela localização no estuário amazônico, que permite vivenciar uma
diversidade de ambientes físicos, resultantes das interações entre terra-firme, várzea,
mangue, rio e mar; por ser uma área litorânea de ocupação antiga, tradicional e que
apresenta muitas aglomerações humanas de pequeno porte; por possuir uma rede
rodoviária expressiva e relativamente bem estruturada, mas que não interliga ou conecta
diretamente as sedes dos municípios litorâneos entre si; por ser composta de territórios de
relativa proximidade com a metrópole Belém (PA) e a cidade de Castanhal (PA); e, por
apresentar uma diversidade de atividades econômicas, tais como, agrícolas, principalmente
ligadas à produção camponesa, pesqueira (industrial e artesanal), turística e imobiliária
(segunda residência), que relacionam dialeticamente o tradicional e o moderno.

2. FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL DO LITORAL PARAENSE E A GÊNESE DE


MARAPANIM
Para fazer uma breve discussão acerca da formação socioespacial do litoral
paraense é interessante inicialmente notar que entre os séculos XVII e XIX as ações dos
governos português e depois brasileiro tentaram estabelecer a comunicação entre Belém e
São Luís e, para tanto, existiam três caminhos principais para alcançar São Luís do
Maranhão, sede administrativa e base do abastecimento da província, naquele momento: o
primeiro caminho pelo litoral, pela via marítima, que deu origem a um conjunto de pequenos
núcleos utilizados como base logística para navegação entre essas capitais; o segundo
caminho é aquele realizado pelo rio Guamá, em que se navega de Belém até a altura de
Ourém, passando pelo núcleo de São Miguel (do Guamá), e daí, por via terrestre, até as
cabeceiras do rio Caeté, para então chegar até Bragança, por trilhas de índios e, de lá, até
São Luís do Maranhão, viajando ao longo da costa; o terceiro caminho é uma precária
estrada para Bragança, que fica localizada numa extensa área de mata entre o litoral e o rio
Guamá, que era utilizada para transporte de gado, em que estão localizados os núcleos de
Castanhal, Igarapé-Açu, Timboteua e Capanema (ÉGLER, 1961; VALVERDE; DIAS, 1967).
Como o contato por via terrestre não se concretizava, era pela costa a principal
forma de comunicação entre essas duas capitais, principalmente na época da Companhia
Geral do Grão Pará e Maranhão que foi um dos resultados das políticas pombalinas

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(FURTADO, 1987). A via marítima era feita por pequenas embarcações a vela que por conta
da demora e do perigo no trajeto, necessitavam aportar com frequência para o
abastecimento e abrigo em alguns locais, resultando num conjunto de núcleos de
povoamento ao longo da costa paraense que se localizavam na desembocadura dos rios,
assim esses povoados eram entrepostos seja entre as capitais, seja entre a via marítima e o
acesso fluvial para o interior mais próximo do continente. Esses núcleos, no trecho entre
Belém e Bragança, foram Quatipuru, São João de Pirabas, Salinas, Maracanã, Marapanim,
Curuçá, São Caetano de Odivelas e Pinheiro, sendo núcleos de povoamento que foram
base da configuração do que hoje entendemos como microrregião do Salgado (ÉGLER,
1961).
Na área do que é hoje o município de Marapanim se destacam entre os séculos XVII
e XIX a formação e depois diluição da aldeia missionaria de Arapijó, as concessões de
terras por meio de sesmarias que foram a base da configuração do município e onde
predominava práticas agrícolas, além do núcleo de povoamento que era entreposto entre
Belém e São Luís, como visto anteriormente. Assim, o povoamento dessa área estava
localizava sobretudo no interior do continente, próximo aos principais cursos d’água, como o
rio Marapanim, e onde predominava a agricultura (CASTRO, 1998; FURTADO, 1987).
O segundo momento da formação socioespacial do litoral está relacionado, pode-se
dizer, com o início da ocupação planejada da região, no contexto da expansão do
extrativismo da borracha (1850-1920) na Amazônia. Esse período do extrativismo da
borracha foi responsável por diferentes transformações na região, especialmente em suas
capitais, Manaus e Belém. De acordo com Corrêa (1987), foi por meio desse produto,
existente em grande abundância no interior da floresta amazônica e valorizada pelo
mercado internacional como matéria-prima para a indústria de pneumáticos, que a região
amazônica foi inserida na divisão internacional do trabalho.
É importante ressaltar que se, por um lado, o boom da borracha trouxe grandes
transformações político-econômicas e no modo de vida da região, por outro lado, não se
pode esquecer que ela também promoveu o declínio da atividade agrícola, o que acabou por
provocar uma crise de abastecimentos de Belém, bem como um conflito de ordem política
entre a oligarquia latifundiária tradicional e setor extrativista da borracha. A forma
encontrada para solucionar esses problemas foi à política de colonização da região
Bragantina (ocorrida entre as últimas décadas do séc. XIX até a primeira década do séc.
XX), realizada ao longo da Estrada de Ferro de Bragança (EFB), por meio da criação de
numerosas colônias agrícolas, cujas sedes transformaram-se em núcleos urbanos naquela
região e, inicialmente, fazendo uso da mão-de-obra do europeu (especialmente

3301 
 
 
 
 
 
portugueses, franceses e espanhóis), e, posteriormente, com maior êxito, da mão-de-obra
nordestina (ÉGLER, 1961; WESLEY, 1990).
De acordo com Miranda (2009) a EFB promoveu uma nova organização espacial na
Bragantina, cuja expressão é a formação de nós ferroviários, em que as estações,
localizadas em cada colônia agrícola, representavam “parada, área de concentração, de
convergência, lócus de afluência e ponto inicial de distribuição de mercadorias, indivíduos e
informações” (2009, p. 91). A linha do trem significava a passagem, a circulação, o fluxo de
pessoas, mensagens, produtos e objetos em geral, de maneira que a dinâmica da
Bragantina passou a funcionar em torno da EFB, alguns chegam mesmo a afirmar que a
história da região Bragantina se confunde com a história da EFB.
Acrescente-se a isso que aquelas áreas que não foram alcançadas materialmente
pela via férrea, principalmente, a região do Salgado, não ficaram imunes a sua centralidade,
pois como demonstrou Furtado (1987) para o caso de Marapanim, foram adotadas
diferentes estratégias para alcançar a estrada de ferro e, por meio dela, fazer a produção
chegar à Belém: a primeira dessas formas era, navegando pelo rio Marapanim, até chegar à
localidade de Cipoal de onde, por terra, após seis quilômetros, se alcança a parada do trem
em Jambu-Açu; a segunda forma é se deslocando até a estrada Curuçá-Castanhal, que
existe desde 1902, mas cujo acesso a partir de Marapanim era muito difícil (bastante
tortuoso), o que somente foi solucionado em 1938, com a construção de uma “estrada
carroçável” ligando Marapanim à estrada de Curuçá-Castanhal; a terceira forma de acesso à
estrada de ferro é subindo o rio Marapanim até a localidade de Matapiquara e, desta,
percorrendo vinte quilômetros (20 Km) por terra, chega-se ao núcleo de Igarapé-Açu, onde
pode-se encontrar uma estação ferroviária (FURTADO, 1982).
Particularmente em Marapanim, esse segundo momento é marcado pelo início e
consolidação do município (1895) por meio, sobretudo, dos esforços do padre José Maria do
Vale e seus familiares que fundaram paralelamente a sede marapaniense. O município é
fundado num momento que ainda as populações se localizavam no interior e se dedicavam
principalmente a agricultura que foi a principal atividade econômica municipal até a metade
do século XX, apesar de também ocorrer outras atividades como a pesca com a
comercialização de pescado seco e salgado (CASTRO, 1998; FURTADO, 1987).
O terceiro momento dessa formação está relacionado às políticas de modernização
implantadas na Amazônia depois dos anos de 1950, cujo objetivo central foi promover a
integração nacional, do território e do mercado, e expandir o modo de produção capitalista
em direção às fronteiras de recursos, principalmente, para a Amazônia.
A implantação da rodovia Belém-Brasília acabou por provocar grandes impactos na
região Bragantina. Dentre eles pode-se destacar à desativação da Estrada de Ferro de

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Bragança em 1965, considerada arcaica e deslocada do novo projeto de modernização que
passou a privilegiar as rodovias. De acordo com Conceição (2002), o traçado da rodovia
Belém-Brasília, inaugurada em 1961, atingiu a Bragantina no trecho que vai de Santa Maria
do Pará, passando por Castanhal, Santa Izabel até chegar em Benevides e, posteriormente,
Belém. Dentre suas consequências imediatas destaca a integração dos mercados, a oferta
de serviços rodoviários, o aumento do fluxo de pessoas, mercadorias e comércio, o sistema
financeiro e o incremento demográfico de cidades e vilas.
Com a expansão das estradas na Bragantina, foi possível o maior acesso às áreas
do município de Marapanim, permitindo mais contato entre as povoações marapanienses e
desses com outros centros urbanos, tais como Belém e Castanhal, e populações
extramunicipais. Esse acesso fez com que centros de consumo demandassem pescado,
aumentando o número de agentes intermediários que iam às áreas pesqueiras
marapanienses onde negociavam com os pescadores que, por conta do aumento da
circulação e a maior rapidez no transporte, conseguiam aumentar a produção do pescado
“in natura”, diversificando assim os produtos comercializados. Com a possibilidade de
relações de mercado de alcance maior, oportunizando maior aceleração do retorno da renda
no trabalho, muitas famílias que moravam no interior do município, de outros municípios e
da cidade de Marapanim começaram a se fixar na costa para se dedicarem a atividade
pesqueira. Deste modo, ocorreu uma migração da área interiorana para a costa atlântica,
onde foram se formando vilas especializadas na pesca. Isso impulsionou a distinção de
duas áreas no município já percebida na década de 1950. Uma, no interior, que a atividade
agrícola era predominante, e outra na costa que se especializou na atividade pesqueira
(FURTADO, 1978).

3. MARAPANIM NAS REDES DA PESCA DO LITORAL PARAENSE


Para entender como a cidade de Marapanim e a vila de Camará participam da
Divisão Territorial do Trabalho, buscamos identificar e conceber as redes que estão
envolvidas com o circuito espacial da produção (SANTOS, 2012) da pesca em ambos os
locais. Deste modo, podemos compreender como, a partir da dinâmica da pesca artesanal
marapaniense, é a economia política da urbanização que considera a divisão territorial do
trabalho na superfície de um país e a economia política da cidade que é a forma como a
cidade se organiza segundo a produção e como os agentes da vida urbana estão inseridos,
em cada momento, dentro dela (SANTOS, 2009).
O circuito espacial da produção nos ajuda a perceber as redes no sentido de que é
por meio do circuito que identificamos as diversas etapas que passam um produto, deste o
começo da produção até o consumo final, como explica Santos (2012). Assim, é possível

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analisar como as diversas etapas da produção do pescado se inscrevem no espaço,
animando objetos e relações socioespaciais, que provocam interações entre os agentes e
suas localidades (SANTOS, 2012). Por meio do circuito espacial da produção da pesca,
podemos identificar e analisar algumas das redes que a cidade de Marapanim e a vila
pesqueira de Camará participam.
Elencamos três etapas do circuito da pesca nessas localidades de Marapanim: a
pesca, a comercialização e o consumo. Mas antes mesmo de abarcar o início do processo
de produção, que é a extração do pescado, esclarecemos a etapa de obtenção do material
para a pesca.

3.1. Materiais para a pesca.


Chamamos de materiais para pesca aos objetos necessários para a prática
pesqueira dos pescadores e identificamos basicamente cinco: os alimentos, as
embarcações, a gasolina, o gelo e os artigos de pesca. Os pescadores da vila de Camará
podem obter os alimentos tanto na vila, quando a quantidade de produtos é pequena,
quanto na cidade de Marapanim, quando a quantidade de produtos é grande, por conta do
menor preço4. Já os pescadores da sede obtêm os alimentos na mesma. O acesso aos
alimentos, em ambos os locais, pode ocorrer pela compra em estabelecimentos comerciais,
ou ainda, pela doação de algum indivíduo próximo (vizinho, parente, amigo, etc.) ao
pescador. Esse agente pode comprar os alimentos com o seu próprio dinheiro, mas também
há casos em que agentes intermediários fornecem um crédito em dinheiro (chamado de
“vale”) que possibilita o acesso do pescador aos alimentos. As obtenções de gasolina e de
gelo são semelhantes ao que ocorrem com os alimentos na sede marapaniense5, enquanto
que os pescadores da vila necessitam ter acesso a gasolina da sede e gelo fabricado na
cidade de Marapanim e na vila de Vista Alegre, seja por conta própria, seja por meio de
agentes intermediários.
Também é possível obter na sede marapaniense as embarcações, onde existem
carpinteiros navais que atendem a cidade e outras localidades dentro e fora do município6.
Na vila de Camará há uma produção de embarcações de pequeno porte, como as canoas,
no entanto a maioria dos barcos são buscados pelos pescadores fora desse local, tais como
nas cidades de Marapanim, de Vigia e de Bragança7 que são locais de produção naval
antiga, como observou Furtado (1987) na sede marapaniense. O acesso a embarcação,
                                                            
4 Informações cedidas por Carlos da Silva Carvalho, pescador da vila de Camará, no dia 21 de junho de 2017.
5 Informação cedida por Raimundo Cordovil Favacho (“Mundinho”), marreteiro e diretor do Mercado Municipal na
cidade de Marapanim, no dia 23 de junho de 2017.
6 Informação cedida por Raimundo Torres dos Santos, pescador do Porto da Pedra na cidade de Marapanim, em

20 de junho de 2017.
7 Informações cedidas por Carlos da Silva Carvalho, pescador da vila de Camará, no dia 21 de junho de 2017.

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pelo pescador, tanto na vila quanto na cidade, ou é por meio da compra ou pelo uso da
embarcação de um outro indivíduo, pescador ou agente intermediário, que fica com uma
parte do que for pescado.
Quanto aos artigos de pesca, são oferecidos na vila de Marudá e em
estabelecimentos comerciais na sede. Na cidade de Marapanim alguns estabelecimentos
varejistas vendem variadas mercadorias, dentre elas, os materiais para a pesca como
motores/rabetas, redes malhadeiras, cordas plásticas e de nylon, chumbo, panagens,
isopores e anzóis. Assim, os pescadores da sede obtêm esses materiais na mesma,
enquanto que os de Camará compram de representantes comerciais que vão à vila, de
estabelecimentos na cidade de Marapanim, ou mesmo, se deslocam a Belém onde
procuram principalmente as redes8.
A oferta de artigos de pesca na pequena cidade de Marapanim nos revelou que a
obtenção dos produtos, pelos estabelecimentos comerciais, está conectada com as cidades
de São Paulo (SP), Diadema (SP), Curitiba (PR), Belém (PA) e Capanema (PA). Portanto,
estabelecem redes materiais nacionais (Sul e Sudeste do Brasil) e regionais e,
paralelamente, redes imateriais de um circuito de cooperação espacial (SANTOS, 2012)
representadas por trocas via e-mail, telefone, internet e pelo sistema bancário. Ainda
revelam as relações entre o circuito inferior da economia com o circuito superior da
economia (SANTOS, 1979), pois o comércio varejista da sede marapaniense que atende a
cidade e as povoações circunvizinhas municipais com relações, por vezes, próximas com
seus clientes faz transações comerciais com empresas industriais, modernas e
multinacionais permeadas por relações impessoais.

3.2. A pesca.
A vila de Camará é um dos espaços especializados na pesca artesanal no município
de Marapanim, onde é capturado espécies que regionalmente são conhecidos como peixes
de água salgada devido sua localização na costa atlântica do município. Enquanto que a
cidade de Marapanim também é um espaço de extrativismo do pescado em que é possível
observar a captura de peixes de água doce e de água salgada que desembarcam em vários
portos que rodeiam a cidade, ao longo das margens dos rios Marapanim e Cajutuba e dos
igarapés do Seco-Velho e Pagé.
As espécies de peixes são capturadas de acordo com as safras durante o ano
(SANTOS et al., 2005). E a presença de determinados cardumes está diretamente
relacionada ao regime anual das águas dos rios da região (FURTADO, 1987). Além desse
                                                            
8 Informações cedidas por João da Costa, pescador e agente intermediário na vila de Camará, no dia 21 de
junho de 2017.

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regime anual, o trabalho de pescaria também acompanha a dinâmica diária de marés, pois a
partir de determinado período do dia há ou não disponibilidade de peixes em um
determinado local e a possibilidade de deslocamento até esse local.
A sazonalidade das espécies pesqueiras também influi no trabalho e na produção,
pois os instrumentos de trabalho possuem atributos de acordo com as intenções dos
pescadores e das espécies de interesse que têm em cada espécie um modo e uma arte
particular de captura (ALVES et al., 2015), mas isso não é suficiente para entender essa
produção. Se por um lado há uma influência das condições da natureza, por outro existe a
pressão do mercado, as condições tecnológicas e sociais para a dinâmica da pesca, como
esclarece Furtado (1987).
A produção da pesca na cidade de Marapanim é de pequena escala e, ao mesmo
tempo, que tem a finalidade de comercialização do produto, também possui a intensão de
autoconsumo dos pescadores e de pessoas próximas a eles. Segundo os dados de Alves et
al. (2015), os pescadores do porto do Bugário, que é o principal porto na sede
marapaniense, vendem, em sua maioria, para os marreteiros (atravessadores) e apenas 6%
destinam seus produtos exclusivamente para os consumidores, realidade que pode ser
encontrada no restante dos portos da sede. O lucro da comercialização é geralmente usado
para a compra de outras mercadorias, tanto para consumo quanto para o trabalho de
pescaria. Mas devido a baixa renda dos pescadores, haja vista que 87% deles possuem
renda familiar mensal de no máximo um salário mínimo, há uma dificuldade de capital e
estabilização financeira que dê acesso aos produtos de consumo e instrumentos de
trabalho, como aponta Alves et al. (2015) e alguns pescadores9.
Na vila de Camará há uma grande produção de pescado e os pescadores, assim
como na cidade, também mesclam finalidades de comercialização e autoconsumo dos
mesmos e de seus próximos. Segundo Borcem et al. (2011), toda a produção é entregue
aos agentes intermediários na própria vila, onde a influência desses agentes é maior do que
na cidade, por se entroncar distante do Mercado Municipal e do público consumidor.

3.3. A comercialização.
É possível afirmar que a maior parte do pescado capturado pelos pescadores da
sede é comercializada na cidade de Marapanim e, como já vimos, a sua maioria se destina
aos marreteiros/atravessadores que intermediam a produção e o consumo. Santos et al.
(2005) classifica esses agentes intermediários em patrão aviador, atravessadores e
marreteiros. É importante destacar que não há uma separação clara desses agentes
                                                            
9Informações cedidas por Napoleão da Costa Freitas e Manoel Salomão Moreira Barata, pescadores do Porto
do Bugário na cidade de Marapanim, em 22 de junho de 2017.

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intermediários, podendo um mesmo sujeito ter características das três categorias apontadas
anteriormente, o que revela, de certo modo, a complexa rede de agentes e relações
econômicas da comercialização da pesca artesanal no Nordeste do Pará (SANTOS et al.,
2005).
Os agentes intermediários da sede marapaniense adquirem o pescado da cidade de
Marapanim e de outras localidades do município homônimo como as vilas pesqueiras de
Marudá, Vista Alegre, Camará e Tamaruteua; do município de Curuçá como a cidade-sede
de mesmo nome e as localidades de Araquaim e Abade; do município de Vigia como a
cidade-sede homônima; do município de Salinópolis na localidade de Cuinarana; do
município de São João de Pirabas; e até da metrópole de Belém10. Deste modo, a compra
do pescado dos marreteiros da cidade de Marapanim pode ter alcance na microrregião do
Salgado e até na cidade de Belém.
A venda dos agentes intermediários da cidade é destinada, sobretudo, ao consumo
interno da sede. Sendo possível comprar o pescado desses marreteiros em dinheiro à vista
e a prazo na forma de crédito ou “fiado”. Há a comercialização com outros atravessadores
que atendem e vem de cidades como Castanhal (PA) e Belém (PA), mas quando a
produção da cidade é expressiva. Em alta produção, os portos da cidade de Marapanim,
principalmente o Porto do Bugário, e o Mercado Municipal abastecem caminhões frigoríficos
de supermercados de Belém que também adquirem pescados nas vilas pesqueiras, tais
como as vilas de Camará e Vista Alegre, mas nesses ocorre com mais frequência durante o
ano11.
Os capitais adquiridos com a comercialização da pesca na cidade são utilizados
principalmente para a manutenção da atividade comercial, do estabelecimento que
geralmente é parte da casa do comerciante e da reprodução familiar diária.
Na vila pesqueira de Camará, toda a produção é destinada aos agentes
intermediários (BORCEM et al., 2011) que já adquirem o pescado na própria vila e vendem,
sobretudo, para localidades fora do município, principalmente centros urbanos como
Castanhal, Belém, Bragança, Viseu e São Luís (MA). A vila também abastece espaços do
município como a cidade de Marapanim12. Assim, Camará mantém relações de
comercialização, por meio dos agentes intermediários que adquirem o pescado desse local,
mais de cunho regional do que local e municipal.
                                                            
10 Informações cedidas por Raimundo da Silva Barroso (“seu Barroso”) e Manoel Barata Rodrigues (“Barata”) que

são marreteiros e Raimundo Cordovil Favacho (“Mundinho”), marreteiro e diretor do Mercado Municipal, no dia
23 de junho de 2017.
11Informações cedidas por Raimundo da Silva Barroso (“seu Barroso”) e Manoel Barata Rodrigues (“Barata”) que

são marreteiros e Raimundo Cordovil Favacho (“Mundinho”), marreteiro e diretor do Mercado Municipal, no dia
23 de junho de 2017.
12 Informações cedidas por Carlos da Silva Carvalho, pescador da vila de Camará, e por João da Costa,

pescador e agente intermediário na vila de Camará, no dia 21 de junho de 2017

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A comercialização da pesca na pequena cidade de Marapanim e na vila de Camará é
sobretudo do circuito inferior da economia (SANTOS, 1979) em que as relações econômicas
entre pescadores, agentes intermediários e consumidores é permeada por trocas
comerciais, mas também por solidariedades e proximidades entre os agentes econômicos.
O circuito espacial da produção da pesca artesanal, paralelamente ao seu círculo de
cooperação espacial, constituído na sede, possui alcance predominantemente na própria
cidade de Marapanim, podendo ter contato com centros de abastecimento na microrregião
do Salgado e alcançar centros consumidores como Castanhal e Belém, ou seja, um circuito
de atuação regional. Porém, o circuito é envolvido com redes materiais e imateriais que
conectam essa pequena cidade com as cidades no Sul e Sudeste do Brasil, com as cidades
e povoações da microrregião do Salgado, com a metrópole Belém e a cidade de Castanhal
e com os aglomerados humanos do município marapaniense. Assim, estabelece redes
locais, regionais e nacionais.
Já o circuito espacial da produção da vila pesqueira de Camará, também em paralelo
ao seu circuito de cooperação espacial, possui alcance na mesorregião do Nordeste
Paraense, chegando até no estado do Maranhão, pois o pescado da vila abastece cidades
como Marapanim, Castanhal, Belém, Bragança, Viseu e São Luís (MA) e outros
aglomerados humanos. Como o circuito da vila está relacionado as redes da cidade de
Marapanim, o circuito de Camará também é envolvido por redes materiais e imateriais
locais, regionais e nacionais.
Assim, o circuito espacial da produção da vila de Camará possui um caráter regional,
enquanto que da cidade é local, mas ambas estabelecem redes, através de seus circuitos,
que têm abrangências locais, regionais e nacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se estudar o circuito espacial da pesca em Marapanim o que se buscou reforçar
foi à diversidade territorial e urbana existente na região, incorporando uma área nova que
estava esquecida – o litoral paraense – às classificações existentes, mas acima de tudo,
uma área cuja importância não pode ser esquecida, seja pela sua importância para
ocupação do território amazônico, seja pelo papel que exerce relacionado a uma atividade
produtiva, a pesca industrial e artesanal, fundamental para o entendimento da divisão
territorial do trabalho regional.
Outra contribuição da pesquisa foi apontar algumas particularidades relativas à
formação socioespacial da Amazônia, reveladas pela história do litoral paraense, mais
precisamente de Marapanim. Trata-se da circulação marítima existente entre o Pará e o
Maranhão no período colonial, bem como da presença de uma produção monocultora e

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escravista existente no litoral, mas também da circulação ferroviária e da colonização
agrária com uso de mão de obra estrangeira e nordestina, que acabou por produzir no litoral
mais do que uma “civilização do rio” e uma “civilização da estrada”, podendo mesmo se falar
numa “civilização do mar”.
Por fim, pode-se contribuir, empiricamente, com o estudo da pesca, mostrando
como uma cidade e uma vila do município de Marapanim participam do circuito espacial, ou
seja, como o território e a sociedade se organizam para atender aos ditames da produção,
neste caso, uma produção de natureza artesanal. Apesar de Marapanim não apresentar um
grande volume de capital - considerando a composição orgânica - nem uma conexão
regional e nacional regular, assim como não dispor de uma acumulação acelerada, não se
pode negar que de um lado o território se organiza para garantir a produção econômica de
produtos pesqueiros (peixe, caranguejo, sarnambi, turú), que atendem principalmente a
própria cidade de Marapanim, o distrito turístico de Marudá (nível local), a cidade de
Castanhal e a região metropolitana de Belém (nível regional); e que, de outro lado, as
atividades humanas que compõem o circuito espacial da produção pesqueira são envolvidas
de sociabilidades que tornam o acesso à alimentação, ao trabalho, ao transporte, ao lúdico e
a política, mediados por fatores sociais como solidariedade e coletividade orgânicas, e não
apenas pela lógica das trocas materiais e monetárias.

REFERÊNCIAS

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artesanal no município de Marapanim, Pará, Brasil. Observatorio de la economia
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CASTRO, Joaquim A. Noções da história de Marapanim. Belém, Gráfica e Editora
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Carvalho de Lima. O espaço no fim de século: a nova raridade. São Paulo: Contexto,
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Amazônia brasileira. OLIVEIRA, M. P; COELHO, M. C. N; CORRÊA, A. M. O Brasil, a
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3310 
 
 
 
 
 
GT 07 – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA PERIFERIA DO
CAPITALISMO

DINÂMICAS URBANAS CONTEMPORÂNEAS NA PERIFERIA DO CAPITALISMO

Lucas Souto Cândido (PPGAU/UFPA)1


[email protected]
Ana Cláudia Duarte Cardoso (FAU/PPGAU/UFPA)2
[email protected]

RESUMO
Neste texto, Canaã dos Carajás é foco da discussão sobre dinâmicas urbanas emergentes
em cidades amazônicas no século XXI. A rápida metamorfose da vila rural em cidade a
partir da introdução da mineração nos anos 2000 lhe impôs desafios comuns em contextos
metropolitanos. O parcelamento especulativo da terra, subsidiado pela associação entre
agentes locais e empresas nacionais e regionais do ramo imobiliário, promoveu um súbito
crescimento urbano. A lógica capitalista na produção do espaço urbano resultou na escassa
oferta de espaço públicos e locais de convivência. O aquecimento econômico não favoreceu
a qualidade de vida da população mais pobre, que permanece à margem dos benefícios
trazidos pela mineração. O descaso ao contexto biofísico pré-existente, de notável
importância na Amazônia, findou na progressiva degradação ambiental e na invisibilização
das potencialidades existentes na floresta. Este caso ilustra um novo momento de
exploração do território amazônico, historicamente sujeito a interesses exógenos, e que
inseriu a região no processo contemporâneo de urbanização capitalista através da
exploração de commodities. A leitura lefebvriana, observações de campo, entrevistas e
questionários, conduzem nossa investigação sobre às novas dinâmicas urbanas que
configuram o território amazônico no século XXI, objetivando evidenciar as distorções
econômicas, sociais e ambientais observadas nessa periferia econômica, agora agravadas
pelo neoliberalismo.

Palavras-chave: Urbanização contemporânea; Amazônia; Neoliberalismo.

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta Canaã dos Carajás como um fragmento da cidade
neoliberal, buscando evidenciar o caráter extensivo (MONTE-MÓR, 1994) da urbanização
contemporânea e suas manifestações particulares no contexto de fronteira no qual se insere
a Amazônia. A cidade em questão foi inicialmente concebida como uma vila de apoio à
produção agrícola (vila CEDERE II) em suporte ao Programa Grande Carajás (PGC) nos
anos 1980, e se expandiu nas décadas subsequentes seguindo o ritmo de atividades
econômicas (extração madeireira, pecuária leiteira) e práticas sociais tradicionalmente
relacionadas à ruralidade (pesca, caça, agricultura de subsistência, entre outras). No

                                                            
1 Arquiteto e Urbanista (UFPA), Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
(PPGAU/UFPA), bolsista CAPES e pesquisador do Laboratório Cidades na Amazônia (LABCAM/FAU/UFPA).
2 Arquiteta e Urbanista (UFPA), Mestre em Planejamento Urbano (UnB), Phd em Arquitetura, pesquisadora em

produtividade do Cnpq, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFPA), e coordenadora do


Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFPA)

3311 
 
 
 
 
 
entanto, a introdução da mineração de larga escala a partir dos anos 2000 transformou a
realidade local ao estabelecer processos econômicos vinculados à escala financeirizada do
capital, engendrando descompassos entre as dinâmicas locais previamente instituídas e
aquelas introduzidas pelas novas atividades produtivas (BANDEIRA, 2014).
As expectativas de ganhos geradas pelo vultoso montante de capital aplicado pela
mineradora e o enorme fluxo migratório atraído pelas ofertas de emprego34 estimularam uma
súbita expansão da malha urbana, amparada pela conversão do uso da terra e pela
reestruturação do campo. Nesse sentido, a visão utilitarista que concebeu a vila
acompanhou sua evolução em cidade, que permanece como ponto de apoio à produção,
sem atenção a atributos espaciais que ensejem o uso e que atendam à esfera reprodutiva
da vida. Esses processos aceleraram a degradação ambiental, invisibilizando as
potencialidades existentes na floresta e impondo a lógica capitalista às relações entre
sociedade e natureza.
O contexto em tela ilustra o padrão de exploração típico da fronteira, historicamente
imposto sobre a Amazônia desde o período da colonização portuguesa, mas que tem seus
limites e impactos amplificados em função da renovação das estratégias de acumulação
observadas pela atuação do capitalismo neoliberal. Sobretudo a partir dos anos 2000,
observa-se um novo momento de exploração do território amazônico, marcado pelo avanço
das frentes de expansão agropecuária, mineral e imobiliária, capazes de articular
diretamente o mercado financeiro global ao espaço periférico, e que inseriram as cidades da
região no epicentro do processo contemporâneo de urbanização capitalista.
A região do sudeste paraense, que desde a década de 1980 se apresenta como
protagonista da narrativa da fronteira em decorrência das ações de exploração mineral do
PGC, vê essa condição reforçada pela grande escala de recursos aplicados pela Vale S.A,
agora uma empresa de capital aberto, na implantação do Projeto S11D, a maior mina de
ferro a céu-aberto do mundo, em Canaã dos Carajás. O novo ritmo de investimentos (menor
tempo de rotação do capital) e as novas condições de operação das minas (altamente
automatizadas e de baixa demanda de capital humano) contrastam com a realidade pré-
estabelecida, ampliando a extensão dos impactos sociais, espaciais e ambientais, e criando
expectativas de geração de empregos e dinamismo econômico irreais para a fase
contemporânea do capitalismo.

                                                            
3 Segundo informações da Vale, o projeto contou com investimentos de US$6,4 bilhões, e gerou mais de 40 mil
empregos durante o pico das obras.
4 A população municipal de Canaã dos Carajás passou de 10.922 habitantes, em 1991; 23.757 hab. em 2000;

26.716, em 2010; e uma estimativa de 36.027 habitantes em 2017 (IBGE, 2017). Estiamamos que o número
atual de moradores seja ainda maior devida às dinâmicas particulares deste contexto, não abarcadas nos
cálculos do IBGE.  

3312 
 
 
 
 
 
Particularmente em Canaã dos Carajás, essa desarticulação se manifesta pelas
tensões entre as expectativas e visões de mundo que organizam o território. Nesse sentido,
a expectativa de máximo rendimento da empresa e do empreendedor imobiliário, e a
expectativa de crescimento municipal (e consequentemente aumento da arrecadação
tributária) da administração pública local, se chocam com as expectativas de melhoria das
condições de vida (serviços, equipamentos, etc.) de quem viveu o processo de
transformação desde a fase da vila rural até a chegada das atividades urbanas (os
pioneiros); e as expectativas do migrante que chegou junto da frente de investimentos.
Os fenômenos aqui descritos apresentam aproximações com construções
ideológicas importadas de contextos exógenos, e ilustram as distorções decorrentes da
atuação do neoliberalismo na região. Nessa perspectiva, objetivamos com este artigo
investigar as novas dinâmicas urbanas no território amazônico no século XXI a partir de uma
narrativa do avanço do capitalismo na sua fase neoliberal, articulando os fenômenos no
âmbito mundial aos seus rebatimentos na Amazônia e, particularmente, nas transformações
observadas em Canaã dos Carajás. Quem representa a ação colonizadora neoliberal e
como ela se estrutura? Quem pode efetivamente contribuir para a construção de uma cidade
socialmente mais justa? Estas são algumas das questões debatidas ao longo deste
trabalho.
Nosso percurso teórico e metodológico se estrutura, sobretudo, a partir da leitura
lefebvriana (LEFEBVRE, 1991, 1999, 2001, 2007). Entendemos o espaço como prática
social, isto é, que não pode ser visto como objeto abstrato, dissociado das relações sociais.
Por essa razão, adotamos uma perspectiva interdisciplinar, a partir de contribuições
oriundas da geografia, da economia, das ciências política e social, do campo do
planejamento urbano e da arquitetura, entre outras disciplinas, como estratégia central para
(tentar) entender o fenômeno urbano na sua totalidade (dimensões físicas e não-físicas). A
abordagem dialética entre os níveis de realidade social lefebrvianos5 (LEFEBVRE, 1999)
estrutura essa leitura, que busca entender criticamente as estruturas, ideologias, discursos e
processos que atuam na produção do espaço e suas manifestações na esfera da vida
cotidiana.

2. NEOLIBERALISMO NA FRONTEIRA: PARALELISMOS PROCESSUAIS E


INVISIBILIDADE DE PROCESSOS

As transformações contemporâneas das dinâmicas urbanas da Amazônia são melhor


compreendidas à luz dos paradigmas de desenvolvimento dominantes, que desde a
colonização portuguesa enxergam a região como um vazio portador do atraso, dessa forma
                                                            
5 DEFINIR OS NÍVEIS DE REALIDADE SOCIAL

3313 
 
 
 
 
 
sujeitando-a a consecutivas colonizações (missionária, pombalina, dos aviadores,
desenvolvimentista, financeirizada). A desarticulação entre a racionalidade que se
estabeleceu como hegemônica, incapaz de enxergar a natureza como suporte à vida, e a
realidade pré-estabelecida, impulsionou não apenas metamorfoses territoriais e o
desequilíbrio ambiental, como também desvalorizou saberes e modos de vida tradicionais,
que historicamente lograram sucesso no balanço sociedade-natureza (SILVA, 2017).
Essa trajetória foi particularmente acelerada durante o século XX como
consequência das estratégias de modernização seletiva prescritas pelo Estado brasileiro
como o caminho para o progresso. A reformulação do projeto político brasileiro empenhado
pelo Estado Novo varguista representou um primeiro momento no qual o objetivo foi
consolidar a unidade nacional através da centralização política e econômica do poder
(FERREIRA, 1999). Para garantir a efetiva subordinação dos diversos segmentos sociais e
culturais, o Estado impôs uma nova cultura nacional, “n[a] qual a cidadania passa por todo
um processo de reelaboração voltada para a ‘obrigação ao país’” (ibidem: 35), que negava
as particularidades regionais e conservava o privilégio aos interesses das elites.
Essas estratégias legitimaram as ações do Estado empenhadas em um segundo
momento, marcado pelas políticas de base industrialista dos governos militares a partir dos
anos 1970. O favorecimento à escala regional e ao grande capital, e o incentivo à migração,
desconsideraram as dinâmicas econômicas e a relações entre homem e natureza pré-
estabelecidas (BECKER, 2013) e fundamentaram a atuação imperialista do Estado no
controle das riquezas e na dominação e extermínio das populações tradicionais (índios,
quilombolas e ribeirinhos).
Tal paradigma se enquadrava dentro do projeto de consolidação do neoliberalismo
como discurso político-econômico hegemônico no plano internacional. Esse movimento, que
se desenvolveu a partir da Segunda Guerra Mundial como uma resposta das classes
capitalistas dominantes ao cenário contrário à sua primazia de poder (HARVEY, 2005),
adquiriu status institucional partir dos anos 1980 com as eleições de R. Reagan e M.
Thatcher, quando passou a ser propagado como o único modelo de sociedade capaz de
garantir a prosperidade. Esse feito foi alcançado, como sugerem alguns autores, através da
reedição de práticas imperialistas e pela substituição da antiga ordem de dominância global,
compartilhada entre as nações europeias, por um novo quadro de poder, centralizado na
figura dos Estados Unidos (HARDT, NEGRI, 2004; HARVEY, 2003).
Harvey (2005) discute o estabelecimento do neoliberalismo como “a única trajetória
possível” por meio da ideia de “construção do consenso”. O autor argumenta que um
ambiente ideológico foi projetado de maneira a legitimar a virada neoliberal se apropriando
de valores centrais para a sociedade, como dignidade humana e liberdade individual,

3314 
 
 
 
 
 
através de diversas entidades institucionais (corporações, mídia, universidades, igrejas),
concebendo o neoliberalismo como “o garantidor exclusivo da liberdade”. Hardt e Negri
(2004), por sua vez, atribuem a difusão dessa nova forma de poder a três mecanismos ou
aparelhos principais, responsáveis por transformar as políticas imperialistas dos países de
capitalismo central no pós-guerra: disciplina, descolonização e descentralização. Nessa
perspectiva, a consolidação do neoliberalismo na escala global seria fruto de estratégias
político-ideológicas de validação da disciplina capitalista (lógica de mercado), cuja eficácia
foi amplificada pela abertura de novos mercados, possível através da descolonização dos
países africanos e asiáticos, e pela manutenção dos vínculos de dependência econômica,
garantidos pela descentralização produtiva e pela maior flexibilidade do capital na sua forma
financeirizada.
Esses processos alcançaram a América Latina na forma de ditaduras militares, que
alinhadas aos interesses geopolíticos norte-americanos, transformaram a região em um
laboratório por excelência de experimentos neoliberais (SADER, 2009). Na Amazônia, em
particular, a lógica de mercado liberalista que acompanhou as políticas de desenvolvimento
incorreu na súbita reformulação dos valores coletivos e de comunalidade da terra que
tradicionalmente orientaram os modos de vida e os arranjos espaciais. Para Davies (2016),
a orientação cultural e ideológica do período entre 1979-1989 (ao qual ele se refere como
“neoliberalismo combativo”) foi direcionada de forma a validar a lógica capitalista em
descrédito às ideias defendidas pelos comunistas. As imagens dos socialistas como
“monstros” e os símbolos do padrão de vida da classe média suburbana dos EUA (o carro
próprio, a casa do subúrbio, eletrodomésticos modernos), material difundido através de
filmes e publicidades como práticas de um imperialismo cultural, atendiam exatamente ao
objetivo de afirmar os valores individualistas e meritocráticos do capitalismo como
superiores aos ideais de coletivização dos meios de produção dos soviéticos. Esses
fenômenos, por sua vez, apontam para o que Bourdieu (1998) trata como um “programa de
destruição metódica dos coletivos”, intrínseco ao ehtos neoliberal, e que coloca em xeque
não apenas os coletivos que defendiam os direitos trabalhistas (sindicatos, associações,
cooperativas), mas qualquer organização coletiva, incluindo aqui a nação e a família.
A projeção dessas construções de mundo, que exaltavam a individualidade, a
propriedade privada e o consumo, sobre a Amazônia promoveu a desvalorização do
indígena e das formas secularmente praticadas de habitar o território (palafitas, beira de
rios, proximidade com a natureza). Nesse contexto, a terra perde seu valor de uso e passa a
ser encarada como um prêmio para aqueles que persistiram e resistiram às dificuldades da
(re)colonização empenhada pelo Estado ao longo do século XX. O sulista, o migrante
“pioneiro”, portador da técnica e da experiência, e que refunda o território em negação ao

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índio, o Outro, tem sua posição privilegiada pelo incentivo à migração e pela grande oferta
de terras, refletindo o posicionamento do Estado, que enxergava esses indivíduos como os
que deveriam fundar o “novo território” (SILVA, 2014). Eles integram a nova estrutura social,
via de regra, como membros da elite fortalecendo o processo regional que atribuiu poder
político às oligarquias, e carregando consigo elementos da “velha gramática brasileira” de
relacionamento entre Estado e sociedade: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento
burocrático, e o universalismo (NUNES, 2003), conforme já abordado em Cardoso, Cândido
e Melo (2017).
A construção dessa “nova realidade amazônica” foi amplamente amparada por um
Estado brasileiro que reconhecia nos EUA o modelo ideal de sociedade a ser perseguido, e
foi legitimada pelo que Souza (2009) trata como “o mito da brasilidade”, isto é, a ideia
simbólica de união nacional, manipulada pela elite reformadora de maneira a conceber um
ambiente que justificasse quaisquer ações do Estado. É a partir desse marco que se valida
o discurso desenvolvimentista que legitimou a atuação exploratória do território amazônico
durante o século XX em benefício a interesses exógenos, e que, a despeito das promessas
de progresso, representaram na esfera cotidiana o desmantelamento das articulações
virtuosas entre espaço construído-pessoas-natureza.
O paradigma capitalista imposto sobre a região nega um valioso acúmulo de
conhecimento endógeno, que apenas recentemente vem sendo reconhecido através de
achados de pesquisas arqueológicas e antropológicas. Não obstante o discurso do atraso e
do vazio, que serviu como o fio condutor da narrativa de exploração do território amazônico,
estes estudos apontam para a presença de grandes populações sedentárias na Amazônia
pré-colombiana, que dominavam técnicas construtivas avançadas (capazes de construir
pontes e diques), e que se beneficiavam das áreas de várzea para praticar a agricultura,
sendo de fundamental importância para o enriquecimento do solo e o aumento da
biodiversidade (HECKENBERGER, 2005; CLEMENT ET AL, 2015; GRANN, 2009;
PIZZARO, 2012; PRESTES-CARNEIRO ET AL, 2015). A desconsideração dessa forma
anterior de apropriação do território reduziu as possibilidades de articulação entre trabalho
novo e trabalho velho, negando o que, na visão jacobiana, representa o pilar central do
desenvolvimento econômico: a diversidade (JACOBS, 1969, 2001).
Tal reformulação da realidade social manifesta adaptações locais de processos
universais descritos pelas ciências sociais. Para Lefebvre (1991) trata-se de uma “sociedade
burocrática de consumo dirigido”, que cultua o objeto técnico e a imagem “sem a mediação
de um pensamento que domina a técnica”, que não a reflete, e que por isso “tende a
eliminar as mediações que geraram a alta complexidade da vida social, que agregaram à
produção material, ideologias, valores, conjuntos de signos e significados, rivais muitas

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vezes, mas que também animam a vida social” (Lefebvre, 1991: 57-8). Bauman (2001) fala
em uma “sociedade de consumo”, marcada pela volatilidade das relações interpessoais e
pela presunção de que o consumo é capaz de preencher toda e qualquer lacuna gestada
pela corrosão dos laços pessoais; uma realidade fugaz e efêmera que o autor denomina de
“modernidade líquida”. Harvey (1989) complementa afirmando que essas transformações
são frutos de uma sociedade pós-moderna, marcada pela compressão do espaço-tempo,
que teve um efeito desorientador e um impacto disruptivo sobre as práticas econômicas, o
equilíbrio de classes, assim como sobre a vida social e cultural, impondo à vida cotidiana um
cenário de constantes mudanças.
São esses elementos – o culto à tecnocracia, o privilégio ao consumo e a
efemeridade/velocidade das mudanças – que compõem a nova lógica de ocupação do
território emergente a partir de meados do século XX. O traçado orgânico, que melhor se
articulava com a natureza, e também que aproximava as pessoas dos rios – locais de
fundamental importância para a reprodução da vida local –, foi gradativamente substituído
por um tecido mais retilíneo e racionalizado que tinha os eixos viários como principais
pontos de apoio (CORRÊA, 2006). O distanciamento dos rios e avanço da ocupação para às
margens das ruas, no entanto, não foram acompanhados pelo suporte à construção de
espaços democráticos que ensejassem as relações sociais. Esse processo dialoga com a
tese de Leitão (2009) na medida em que a negação ao rio (que no contexto local acumula
também a função de espaço público) representa também a negação ao índio e ao caboclo,
populações indesejadas na renovada vida social das cidades; as ruas/estradas, por sua vez,
aparecem como símbolos da industrialização e do progresso, signos da superação do atraso
e da reconstrução do território. O resultado é que no contexto amazônico nem as ruas,
reduzidas à função de circulação, nem as beiras de rios, desprestigiados pelos valores
metropolitanos, aparecem como espaços dedicados às trocas e ao convívio social, expondo
a desconsideração aos espaços públicos que marca as cidades amazônicas.
Dessa forma, o processo de urbanização da Amazônia caracterizou-se por núcleos
que cresceram como base logística de expansão da fronteira, e não como possíveis polos
de articulação de desenvolvimento para a região (CARDOSO, LIMA, 2006). A explosão do
número de cidades na região6 e o crescimento dos antigos centros durante o fim do século
XX foi acompanhado não pela expectativa de melhora nas condições de acesso à
infraestrutura e serviços que supostamente acompanhariam a urbanização (educação,
saúde, saneamento), mas pela precarização da vida da população local. No diálogo com a
perspectiva lefebvriana, observa-se que a desarticulação entre o espaço concebido, gestado
pelo nível global (pelos planos, pelos interesses de mercado, pelas políticas públicas), e o
                                                            
6 DADOS

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espaço vivido, entendido como fruto das trocas que permeiam o nível cotidiano, gera um
cenário no qual o avanço do tecido urbano está dissociado dos mecanismos de acesso ao
direito à cidade.
Esse quadro se agrava a partir do século XXI na medida em que a exploração
capitalista da terra foi fortalecida pelo capital financeirizado e pelo caráter globalizado das
dinâmicas econômicas contemporâneas. Neste novo momento, o processo de produção do
espaço aparece como elementar para a acumulação capitalista, e a cidade se anuncia como
espaço-mercadoria, fruto do aprofundamento da contradição valor de uso/valor de troca
(CARLOS, 2015). A ação neoliberal expande, ainda, o processo espoliatório de “acumulação
por despossessão” narrado por Harvey (2003) para além do direito à terra, invadindo
elementos sociais e ambientais imprescindíveis para a reprodução da vida (água, alimentos,
espaços verdes etc).
A nova lógica de planejamento urbano, que como pontua Hall (2016 [1988]: 500)
“deixou de regular o crescimento e passou a encorajá-lo por todos os meios possíveis e
imagináveis”, configura uma nova rede urbana global na qual as cidades se comportam de
forma competitiva, como empresas (MUXÍ, 2009). Esse fenômeno se manifesta
espacialmente através da coleção de novos atributos arquitetônicos e urbanísticos
dedicados às elites, particularmente em cidades que buscam se destacar
internacionalmente (VALENÇA, 2016). São formas espaciais construídas por um urbanismo-
empreendedor que privilegia as populações de alta renda e que assume a cidade como o
lugar de poucos e do convívio com os iguais na medida em que media as relações
socioespaciais através da renda individual. Em diálogo com a perspectiva augeliana (AUGÉ,
1994), estes novos arranjos espaciais (condomínios fechados, edifícios corporativos,
moradias de alto padrão, shopping-centers) promovem o enfraquecimento das relações
entre os indivíduos, e entre esses e o espaço, ensejando o surgimento de “não-lugares”, isto
é, espaços vazios de conteúdo e sentido, que se sobrepõem aos lugares antropológicos das
trocas significadas, e que ensejam a solidão e a homogeneidade.
Na Amazônia contemporânea, a exploração imobiliária acompanha o avanço das
frentes de exploração agropecuária e mineral, e é particularmente beneficiada pela injeção
de investimentos do Estado na produção imobiliária nacional e incentivo à produção de
casas para a população de baixa renda (através do PMCMV), pela incorporação do mercado
de terras nacionais ao portfólio das securitizadoras internacionais e pela implantação da
infraestrutura de suporte aos “novos grandes projetos” (UHE Belo Monte, Projeto S11D,
entre outros). Assim, as cidades da região permanecem sujeitas a um modelo de
planejamento atrelado a um paradigma de desenvolvimento ambiental e socialmente

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insustentável (FURTADO, 1974), que reforça a supressão do maciço verde, a desorientação
dos ciclos hídricos e o desmantelamento dos modos de vida locais.
Diante disso, a contradição do espaço enquanto possibilidade de realização da
riqueza contesta a cidade como lócus da reprodução da vida. A organização do espaço
urbano a partir de aparelhos de produção industrial (padronização, produção em massa)
acelera a degradação do valor de uso. Na esteira, ao privilegiar a individualização, o
consumo e a propriedade privada, fragmenta também as relações sociais, construindo uma
sociedade de indivíduos que não se enxergam como um coletivo. Perde-se, nesse sentido, a
cidade como espaço catalisador da transformação que emana da convivência estreita e
contínua das pessoas, e do conhecimento renovado pelas possibilidades de conexão que a
cidade oferece através do entrelaçamento entre diferentes modos de vida.

3. POSICIONANDO CANAÃ DOS CARAJÁS: PROCESSOS GLOBAIS, RESPOSTAS


LOCAIS
A somatória dos processos apresentados até aqui – a mercantilização da terra, o
desmantelamento das relações sociais, a degradação da natureza – é a base na qual se
apoia o processo de urbanização de Canaã dos Carajás. Neste contexto, a terra funcionou
como o ponto de contato (e também a porta de entrada) entre os aparelhos de dominação
econômica e ideológica, postos pelo nível global, e a realidade local. A evolução da cidade a
partir dos anos 1980 paralelamente ao processo de desmantelamento do estado de bem-
estar social e ao fortalecimento das políticas neoliberais, incorporou no seu processo de
urbanização os aparelhos institucionais e simbólicos neoliberais que negam as
particularidades locais e que enxergam a cidade e a natureza de forma instrumentalizada,
apenas como mercadorias.
Estes processos foram fortemente ensejados pela concentração fundiária que
amparou o crescimento da cidade, fruto da ação negligente do Estado. Apenas três anos
após a implantação do projeto de assentamento, o órgão responsável pelo projeto foi
extinto, esmaecendo as metas para o desenvolvimento regional e negligenciando os
cuidados aos colonos, o que acarretou o abandono/venda de terras que deu início ao
processo de concentração de terras; estima-se que apenas 10% das 1.551 famílias
assentadas até 1985 permaneceram em suas terras na década de 1990 (BANDEIRA, 2014).
A grande oferta de terras “livres” estimulou o parcelamento especulativo da terra, que em
um primeiro momento foi articulado por fazendeiros, empresários e proprietários de terra
locais de maneira improvisada. A introdução de dinâmicas ligadas ao mercado imobiliário
incentivou o abandono dos aparelhos produtivos ligados à ruralidade (que enxergavam a
terra como suporte à reprodução da vida) e importou uma visão que entende a terra como

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produto comercializável. Esse movimento foi amplificado pela chegada da atividade
mineradora nos anos 2000 e fortalecido pelas expectativas de lucro gestadas pelo Projeto
S11D, nos anos 2010. Esse período remarca um segundo momento no qual os promotores
imobiliários locais se articularam a empresas imobiliárias de capital nacional e regional
associadas a securitizadoras internacionais (Buriti Empreendimentos Imobiliários, Direcional
Engenharia, Nova Bairros Planejados, entre outras), de maneira a complementar o mercado
local de terras (CARDOSO ET AL, 2017).
As expectativas geradas pela grande ordem de investimentos e oferta de empregos
promoveram um súbito crescimento populacional de 60% na primeira década do século XXI
(IBGE, 2010), e se traduziram em um crescimento urbano de cerca de 210% no mesmo
período. Esse fenômeno foi intensificado nos anos 2010, quando a malha urbana cresceu
158%. Na esteira da expansão urbana, observou-se um aumento vertiginoso do preço do
lote médio que, de acordo com levantamentos realizados por Bandeira (2014), passou de
R$31,90/m² nos anos 2000 (antes da chegada da mineração), para R$340,00/m² em 2014.
Essas dinâmicas convergem para aquelas identificadas por Melo (2015) nas cidades de
Marabá e Parauapebas, que seja a articulação entre atores locais e o grande capital na
exploração do mercado de terras das cidades amazônicas, sugerindo tendências de
produção do espaço urbano sob o impacto da mineração no sudeste paraense.
O avanço do parcelamento especulativo para as franjas da cidade introduziu novas
formas espaciais (loteamentos urbanos, condomínios fechados) que remetem ao padrão
modernista e ao modelo dos subúrbios norte-americanos: privilegiam o transporte passivo;
são distantes de serviços e comércios; são carentes de espaços de convivência; e sem
vitalidade ou atrativos espaciais que ensejem a identidade com o morador. A dominância da
rua neste contexto acompanha o padrão “beira de estrada” que domina o cenário amazônico
após os anos 1960, e que assume estes espaços apenas como locais de circulação de
mercadorias e pessoas. Em consequência, identifica-se a escassa oferta de espaços
públicos na cidade.
A contínua expansão da cidade foi acompanhada pelo descaso com a realidade
biofísica pré-existente, aspecto fundamental no contexto amazônico, resultando na
progressiva destruição da natureza e na invisibilização de potenciais paisagísticos que
poderiam suprir a demanda por espaços públicos da cidade. Dessa forma, o desmonte de
morros, a derrubada da mata e o assoreamento dos cursos d’agua acentuou a corrosão dos
vínculos tradicionalmente estabelecidos entre homem e natureza, anuviando possíveis
articulações virtuosas entre cidade e natureza.
Na esfera cotidiana, esses fenômenos se manifestam pela precarização das
condições de vida. A expansão excessiva aliada aos altos preços praticados na venda e

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aluguel de imóveis na área central, região melhor servida de comércio e serviços, promoveu
a expulsão das populações mais pobres – o que inclui uma parcela considerável dos novos
migrantes atraídos pela mineração – em direção a áreas periféricas, carentes de
infraestrutura e distante dos locais de trabalho. A condição desses assentamentos informais
agrava a questão ambiental, uma vez que alguns deles ocupam áreas ambientalmente
frágeis, e é agravada pela inexistência de transporte público e pelas dificuldades de
deslocamento através de modais ativos (por falta de calçadas, ciclovias e de arborização),
O empobrecimento está diretamente vinculado às expectativas da população de se
inserir no mercado formal, frustradas pela baixa demanda de capital humano das minas
automatizadas. A desarticulação entre as expectativas da empresa e da população local se
evidencia pela elevação dos níveis de desemprego na cidade após o início das operações
do S11D. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED),
do Ministério do Trabalho, ao passo que a cidade acumulou variações positivas entre o
número de admitidos e demitidos em todos os anos entre 2010 e 2015, essa realidade
mudou em 2016 (momento de finalização das obras de construção da mina), que encerrou
com um número negativo de 7.023 postos de trabalho; em 2017, ano em que a mina entrou
em funcionamento, esse número já é de 5.135 postos de trabalho negativos.
Esses processos foram acompanhados pelo recente arrefecimento do mercado de
imóveis da cidade, que atualmente passa por uma fase de baixa marcada pelas altas taxas
de inadimplência e devolução de lotes, como indicam as entrevistas realizadas com
empreendedores imobiliários locais. No limite, revelam o choque de racionalidades entre
aqueles que enxergam a cidade como possibilidade de lucro e aqueles que nela veem o
espaço de vivência.
Dessa maneira, a cidade de Canaã dos Carajás expressa espacialmente a
polarização social entre os ‘pioneiros e os ‘Outros’ que, segundo Silva (2014), remarca a
estrutura social do sudeste paraense: na área central moram os pioneiros, os sulistas,
trabalhadores “que vieram para somar”, os verdadeiros moradores da cidade, enquanto que
nas periferias moram os outros, aqui personificados principalmente pelos maranhenses,
trabalhadores das minas e moradores temporários, atraídos apenas pelo dinheiro,
indesejados na vida social coletiva da cidade. Favorecidos pelo poder político adquirido pelo
controle da terra, via de regra, os pioneiros locais integram a estrutural social como
membros da elite, manifestando localmente a assimilação dos interesses políticos pelas
forças econômicas característica das sociedades neoliberais.
A entrada da cidade na racionalidade industrial-financeira é marcada pelas
mudanças nos valores e padrões de consumo, explicitando reverberações locais dos
processos universais descritos pelas ciências sociais. O surgimento de grande varejo e a

3321 
 
 
 
 
 
chegada de marcas nacionais e internacionais carrega consigo modelos de consumo
atrelados ao grande capital, que inviabilizam a consolidação de um mercado forte de
empresas locais, e reformulam as relações de trocas econômicas, pautadas agora pela
impessoalidade e os riscos de endividamento promovidos pelas facilidades contemporâneas
de obtenção de crédito. Em Canaã dos Carajás é possível encontrar cadeias nacionais e
internacionais de fast-food e lojas de médio e alto padrão, que demonstram que a
progressiva desvalorização e consequente abandono dos hábitos e valores tradicionais é
acompanhada pela (incompleta) substituição pelos gostos e padrões de consumo
sofisticados das elites metropolitanas.
Essa lógica homogeneizante é reforçada pelas ações do poder público local que,
crente que a mineração pode dar suporte infindável ao desenvolvimento do município,
negligencia outros arranjos produtivos. Desconsiderando atividades econômicas e saberes
previamente estabelecidos, a administração pública mina as potencialidades de integração
entre trabalho velho (práticas rurais empenhadas pelos pioneiros) e trabalho novo (possível
inovação tecnológica atraída pela mineração), e desvaloriza a diversidade social gerada
pela migração.
É essa mentalidade privatista e individualista que cultua formas de agir, de pensar e
de morar construídas em contextos exógenos, “tão ao gosto do Brasil patriarcal” (LEITÃO,
2009: 242), que nega a rua e os espaços públicos e financia uma visão de mundo que
associa os novos arranjos espaciais contemporâneos (loteamentos urbanos, condomínios
fechados, edifícios altos, shopping-centers) à modernidade e ao desenvolvimento. A
evolução do espaço urbano de Canaã dos Carajás é assim marcada por morfologias
espaciais que privilegiam os espaços privados (bares, restaurantes, casa, chácaras) como
espaços de convívio social, entravando as trocas coletivas, o encontro com o diferente e o
senso de pertencimento à cidade, dessa maneira reforçando o estranhamento ao outro e o
empobrecimento da esfera política.
“Ninguém conhece mais ninguém”, relatam muitos dos moradores mais antigos;
certamente um fenômeno promovido pelo súbito crescimento populacional, mas amplificado
pela forma construída na medida em que esta não privilegia as relações de vizinhança e
proximidade que orientavam a vida em comunidade da vila rural. Isso se manifesta, por
exemplo, pela transformação das casas, que anteriormente se abriam diretamente para as
ruas, acumulando uma série de atributos positivos de urbanidade, mas que atualmente são
cercadas por altos muros que impedem a transição gradativa entre público-privado.
O tempo quase-instantâneo dessas transformações, ligado à velocidade da vida na
metrópole, também entra em descompasso com a realidade local, melhor representada pelo
tempo lento das cidades de interior e do ambiente rural. Essa compreensão do tempo-

3322 
 
 
 
 
 
espaço (HARVEY, 1989) dificulta a compreensão crítica dos processos que acompanham a
exploração neoliberal na cidade. Diante desse marco, o “desenvolvimento” ao qual os
moradores se referem para tratar da trajetória de mudanças em Canaã dos Carajás se
aproxima mais da ideia de “’des-envolvimento’ das populações locais se suas práticas
socioculturais”, que funciona como “condição para a entrada de uma racionalidade
hegemônica baseada nas relações capitalistas e na modernização do consumo” (MONTE-
MÓR, 2015: 66).
O caráter extensivo (MONTE-MÓR, 1994) desse processo de urbanização se
aprofunda pelo avanço do tecido urbano para a escala do município. Na porção norte,
florescem loteamentos de chácaras de finais de semanas, que acompanham as estradas
construídas pela mineradora e são, via de regra, limitados à população mais rica. Essas
chácaras remetem a um híbrido entre os arranjos espaciais importados (loteamentos e
condomínios fechados) e as formas de habitar tradicionais da cultura local canaãnense
(sítios e fazendas), representando uma adaptação local de morfologias metropolitanas. Esse
marco aponta para a incapacidade de articulação entre cidade e natureza, uma vez que
estes espaços, distantes da área urbana, funcionam como pontos de aproximação entre
pessoas e o ambiente natural.
A concentração em massa de serviços e comércios na sede criou laços de
dependência entre as vilas rurais e a cidade, agravados pelas dificuldades de deslocamento
(ausência de transporte regular). No entorno mais próximo da cidade, a dependência dos
moradores dos loteamentos de chácaras localizados fora do perímetro urbano e habitados
pela população mais pobre (localizadas ao sul da sede urbana) e na vila Planalto (vila rural
localizada a 15km ao norte da cidade) criou um movimento pendular semelhante ao
commuting, fenômeno característico de cidades de maior porte, e também uma espécie de
“proto-conurbanação” manifesta pela recente emergência de ocupações precárias na
estrada que liga Canaã dos Carajás à Parauapebas (CARDOSO et al, 2017).
Dessa forma, Canaã dos Carajás se apresenta como a materialização da severa
exploração capitalista do espaço e distorção de cidade (e de sociedade?). Neste contexto, a
produção do espaço não engloba dois dos pontos fundamentais de sustentação da
realidade social: as pessoas e a natureza. Nada paga tão bem quanto a mineração, e isso
legitima qualquer tipo de ação, desconsiderando qualquer ônus derivado desse processo,
uma visão de mundo que só se justifica dentro de uma sociedade modificada pelas forças
de mercado.

3323 
 
 
 
 
 
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3326 
 
 
 
 
 

GT 07 - Cidades e transformações do urbano na América Latina

"MUITXS - CIDADE QUE QUEREMOS": A DIVERSIDADE E A DIFERENÇA NA


EXPERIÊNCIA URBANA

Paulo Felipe Lopes de Carvalho (Universidade Federal de Minas Gerais)1


[email protected]
Lúcia Helena Alvarez Leite (Universidade Federal de Minas Gerais)2
[email protected]
RESUMO

Este trabalho reflete, como o "Muitxs; cidade que queremos", coletivo urbano de Belo
Horizonte - MG, em interação com a cidade, interroga as relações que são impostas nos
territórios urbanos. O coletivo é composto por sujeitos que historicamente têm sido
invisibilizados pela lógica economicista e capitalista predominante na construção social da
cidade, como negras/negros, mulheres, LGBTs, pessoas das camadas populares, jovens.
Como resultado de sua inserção na política de Belo Horizonte, o coletivo, atualmente, tem
representações na câmara municipal a partir da vereança de duas mulheres eleitas pelo
movimento, em 2016. Nesse sentido, discutimos os modos de ler, mapear e viver a cidade,
a partir da perspectiva dos sujeitos pertencentes a esses grupos sociais, identificando e
refletindo sobre as configurações políticas emergentes nas interações das "Muitxs" pela
metrópole. Discute-se, a construção de uma cidade mais plural, mais democrática e que
possibilite a vivência da cidadania para todos, dimensões sociais perpassadas pelo
reconhecimento e pela legitimação dos modos de vida e dos saberes desses sujeitos
produzidos como inexistentes. Nesse diálogo, a categoria gênero emerge como dimensão
importante, dentre outras, que altera a circulação e o pertencimento das pessoas na cidade
e se coloca como elemento que contribui para a concepção da cidadania, do que é ser
cidadão, interpelando a cidade ao criar experiências e olhares diversos e diferentes sobre
esse território.

Palavras-Chave: Cidade, diversidade, diferença, gênero.

1. INTRODUÇÃO

Neste texto, dialogaremos com o "Muitxs; cidade que queremos", coletivo urbano
de Belo Horizonte - MG, que em interação na cidade e com a cidade, perturba e interroga as
relações que são impostas nos territórios urbanos. Esse coletivo é composto por sujeitos
que historicamente têm sido invisibilizados pela lógica economicista e capitalista
predominante na construção social da cidade, como negras/negros, mulheres, LGBTs,
pessoas das camadas populares, jovens. As reflexões presentes aqui colocam em diálogo

                                                            
1Mestre e doutorando em Educação, integrante do grupo TEIA/UFMG (Territórios, Educação Integral e
Cidadania), professor de educação básica/Geografia.
2 Doutora em Educação, professora do departamento de administração escolar da FaE/UFMG, coordenadora do

grupo TEIA/UFMG (Territórios, Educação Integral e Cidadania).

3327 
 
 
 
 
 
os estudos de gênero com os estudos decoloniais e abordagens das "Epistemologias do
Sul," campos teóricos não dissonantes, elegidos para a construção da pesquisa de
doutorado que esse texto se origina.

Como resultado de sua inserção na política de Belo Horizonte, o coletivo


atualmente tem representações na câmara municipal a partir da vereança de duas mulheres
eleitas pelo movimento, em 2016. Nesse sentido, discutimos os modos de ler, mapear e
viver a cidade, a partir da perspectiva dos sujeitos pertencentes a esses grupos sociais,
identificando e refletindo sobre as configurações políticas emergentes nas interações das
"Muitxs" pela metrópole.

Essas discussões se constroem relacionadas à perspectiva etnográfica e nos dão


margem para discutirmos a construção de uma cidade mais plural, mais democrática e que
possibilite a vivência da cidadania para todos, dimensões sociais perpassadas pelo
reconhecimento e pela legitimação dos modos de vida e dos saberes desses sujeitos
produzidos como inexistentes.

No diálogo com as proposições decoloniais e das Epistemologias do Sul,


discutimos como as grandes cidades contemporâneas como Belo Horizonte se estruturam
colonialmente, tendo como paradigma as linhas abissais (Santos, 2009) de reprodução da
sociedade, bem como aspectos da colonialidade do poder (Quijano, 1985).

Essa associação existe na medida em que as políticas públicas urbanas pouco


atingem os sujeitos invisibilizados e quando os enxergam, tentam fazer com que mudem de
lado da linha, se modelando à lógica colonial que ainda se verifica na reprodução social do
espaço urbano. Nesse diálogo, a dimensão do gênero emerge como dimensão importante
que altera a circulação e o pertencimento das pessoas na cidade e se coloca como
elemento que também contribui para a concepção da cidadania, do que é ser cidadão.

Em interação com as Muitxs pela cidade, percebemos que a experiência urbana na


metrópole é alterada fortemente em função do gênero. Espaços de circulação públicos
rechaçam corpos femininos, rechaçam mulheres, cis e trans e determinam lugares sociais
no acontecer da urbes. Soma-se a isso outros resultados cruéis da subalternização da
mulher e do feminino na cidade, uma vez que são crescentes os casos de estupros,
feminicídios, LGBTfobia, dentre outros crimes determinados por questões de gênero.

Por fim, refletimos, no tocante à dimensão de gênero como essa interseção entre
“minorias” e metrópole podem politizar as inserções dos sujeitos no urbano interpelando a
cidade ao criar experiências e olhares diversos e diferentes sobre esse território.

2. CORPOS E SUBVERSÕES POLÍTICAS NAS MUITXS DE BELO HORIZONTE

3328 
 
 
 
 
 
O "Muitxs - cidade que queremos", é um grupo nascido em Belo Horizonte em
2015 composto por sujeitos oriundos de coletivos urbanos diversos da cidade, bem como
ativistas sociais, agentes culturais e artistas. O movimento agrega sujeitos de ações
coletivas que reivindicam pautas sociais emergentes nos últimos anos e que envolvem a
mudança de concepção política da cidade, trazendo como elementos centrais as questões
de raça, gênero, acesso à cultura, moradia e mobilidade urbana. Nesse sentido,
negras/negros, LGBTs, mulheres, pessoas das camadas populares, ao se articularem no
Muitxs buscam a valorização de todos os sujeitos que da cidade fazem parte, de suas
vivências e práticas sociais, agindo na busca de uma cidade 'Outra', mais diversa, mais
humana e que respeite as diferenças. E além disso, que consiga fazer de encontros
cotidianos atos políticos potentes para o público no qual o Muitxs centraliza suas ações.

É importante contextualizar o Muitxs em um fenômeno verificado em Belo


Horizonte e estudado em pesquisas recentes que é o advento de grupos de contestação
social que constroem novas configurações políticas, novos modos de fazer política que
muitas vezes são deslegitimados, mas na perspectiva dos sujeitos que protagonizam essas
ações e vivências podem ser potentes. Oliveira (2012), ao analisar o fenômeno 'Praia da
Estação' de Belo Horizonte, identifica o diálogo entre grupos urbanos diversos, na maioria
das vezes protagonizados por jovens, que engendram novas características aos
movimentos sociais urbanos como, por exemplo, carnavalização do protesto e organização
em rede. Outra constatação importante dessa pesquisa foi a potência do movimento ao
evidenciar à cidade a problemática urbana e do poder municipal. O autor ainda considerou
o fenômeno Praia da Estação de Belo Horizonte como uma "antena parabólica ativista".

A “antena parabólica” praieira se constituiu, em nosso entendimento, como


canal de comunicação de novas necessidades urbanas de uma parcela da
juventude ativista de Belo Horizonte, cidade conjugada à solidariedade com
outros movimentos urbanos que traziam antigas necessidades. Os desejos
de qualidade de vida na cidade, do livre usufruto dos espaços públicos, da
mobilidade urbana digna e adequada, do livre fruir cultural na cidade (tanto
da produção, quanto da recepção da cultura), o desejo de uma cidade
ambientalmente saudável em todas as dimensões, da produção de uma
cidade em que caibam todos e todas e que permita a existência de um viver
digno, a luta contra a cidade-empresa, cidade-mercadoria, cidade do
controle, a denúncia das injustiças, a denúncia do impacto dos mega-
eventos — como a Copa do Mundo na vida cotidiana das pessoas. Enfim, o
direito amplo à cidade (OLIVEIRA, 2012, p. 196).

3329 
 
 
 
 
 
Essa antena parabólica praieira, foi responsável, além de colocar diversos coletivos
urbanos de Belo Horizonte em diálogo, por evidenciar as pautas que esses 'Outros' sujeitos
demarcam para a construção da cidade. Percebeu-se também a emergência de novos
coletivos urbanos, o retorno do carnaval de rua de Belo Horizonte, pautado na discussão da
ocupação dos espaços públicos e também fez por emergir um movimento contra o poder
municipal, chamado "Fora Lacerda".

É nesse contexto de intensa movimentação e emergências de grupos de


contestação social que há o advento do Muitxs em 2015. A partir de maio desse ano, um
grupo de pessoas ligadas a coletivos sociais e culturais diversos começaram a marcar
encontros periódicos em espaços públicos da cidade, esses encontros eram sempre
divulgados pela internet, nas redes sociais e conclamava toda população de Belo Horizonte
a pensar as pautas para a cidade. Ao longo dos encontros, as discussões levaram à decisão
de lançar candidaturas a vereadores para as eleições municipais de 2016, visando a
representatividade das pessoas historicamente marginalizadas na construção política da
metrópole Belo Horizonte, as minorias, no que tange ao acesso aos espaços de poder.

A ideia foi lançar uma candidatura coletiva, que tivesse candidatas3 que
representassem as pautas da cidade, do ponto de vista dos coletivos populares. Nesse
sentido, foram lançadas 12 candidaturas pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). O fato
de se propor uma candidatura coletiva, pelo movimento, onde um apoia o outro integrante
foi motivo de efervescência pela cidade e marca assim a emergência de uma nova forma de
se fazer política, mesmo que pela velha via partidária, que em tempos contemporâneos tem
dado sinal de falência. Nesse ínterim, podemos considerar que o Muitxs é um movimento
inédito em Belo Horizonte e representa uma forma coletiva, em rede de levar
representatividade das minorias à câmara municipal.

No processo de constituição do movimento, nos encontros abertos realizados em


espaços públicos, foram discutidas questões tensas que vão desde a necessidade do
movimento fazer uma política que vá além da estrutura partidária, até a valorização das
culturas urbanas presentes em nossa cidade, bem como o reconhecimento de todos como
cidadãos, buscando pluralidade na representatividade. Negros, brancos, indígenas,
mulheres (trans e cis), homens (trans e cis), homossexuais, bissexuais, moradores das
ocupações urbanas e territórios marcados por pobreza. A questão de gênero, nesse ínterim,
desde as primeiras discussões do grupo, foi algo central e perpassou todas as escolhas do
movimento durante a campanha eleitoral.
                                                            
3
O termo candidatas será utilizado sempre no feminino quando se tratar do coletivo Muitxs. Reitera-se que é
uma escolha do grupo em afirmação e valorização do gênero feminino.

3330 
 
 
 
 
 
Com forte apego à questão de gênero, campanha eleitoral, realizada em 2016, se
distanciou do que é costumeiramente verificado nas disputas eleitorais. Mantendo o caráter
coletivo, uma candidata pedia voto para a outra, afirmando as pautas do movimento e
corroborando sempre a necessidade de reconhecimento dos sujeitos e coletivos
marginalizados . O resultado das eleições trouxe muitos desafios e colocaram o Muitxs em
um novo espaço de diálogo, uma vez que duas candidatas foram eleitas, Áurea Carolina,
mulher e negra, foi a mais votada da cidade, com 17.420 votos e Cida Falabella com 3.454
votos. Ainda vale ressaltar que Bella Gonçalves, mulher, lésbica, ativista das ocupações
urbanas e Crystal, mulher trans, negra e periférica foram respectivamente as terceira e
quarta mais votadas, sendo assim suplentes das vereadoras eleitas.

Vejamos um trecho de uma chamada do movimento à época da campanha


eleitoral, disponível em: http://www.muitxs.org/explosao-programatica-feminismos-poetica-
democratica-radical-e-lutas-da-cidade/, o título da publicação na internet é FEMINISMOS,
POÉTICA DEMOCRÁTICA RADICAL E LUTAS DA CIDADE.

As feridas estão sangrando. Elas falam de sofrimento, mas a injustiça


impulsiona a luta. Contra existências negadas, exigem reconhecimento. As
palavras cortam a tarde de sábado, envolvem corpos brutalizados, calam
fundo na alma. Não há conforto no gramado do Parque Municipal. São
mulheres negras, trans, lésbicas, jovens, idosas, pobres, sobreviventes,
lutadoras. Suas vozes politizadas reivindicam feminismos críticos, que
compreendam a interseccionalidade de gênero, raça, orientação sexual e
origem social. Para enfrentar o machismo, o racismo, a transfobia e todas
as formas de violência, é urgente desconstruir privilégios masculinos, da
branquitude, da heteronormatividade, de classe. Belo Horizonte precisa de
serviços qualificados de atendimento às mulheres em situação de violência,
de políticas de inclusão das mulheres trans no mundo do trabalho, de
mobilidade urbana com perspectiva de gênero, de mais mulheres nos
espaços de poder. Por amor à vida, elas cantam, poetizam, trançam
cabelos crespos, encenam, doam beleza para o mundo. São rainhas que
ensinam sobre a radicalidade de uma política realmente emancipatória:
Cristal Lopez, Élida Lima, Sarah Brito, Gisella Lima, Nathalia Duarte, Zaika
dos Santos, Júlia Moysés, Sarah Guedes, Nina Caetano e tantas outras que
fizeram daquela tarde uma oportunidade preciosa de aprendizado e
empoderamento feminista.

3331 
 
 
 
 
 
Uma cidade que se realiza buscando a cidadania de todos os sujeitos que dela
fazem parte, deve respeitar os diferentes corpos que transitam, se encontram, criam seus
pedaços pelo território urbano. Mas não é isso que se verifica no cotidiano da metrópole. A
mulher é acusada de seu próprio estupro, a travesti morre assassinada nas ruas da cidade
pela transfobia, a troca de carinho entre duas mulheres é falta de rola bem dada, a bicha
pobre e afeminada é bicha pão com ovo e se confinam em guetos que compõem o mosaico
humano e social que é a cidade.

Nesse sentido, considerando a expressão de Judith Burtle (2002) algumas ações


do Muitxs podem ser consideradas subversivas na medida em que criaram espaços de
potência de enfrentamento das imposições que o machismo confere à cidade. Inúmeras
vezes em diálogo e encontro com as Muitxs pela cidade faz-se presente performances
feministas tanto de mulheres cis, quanto de mulheres trans, essas impactavam mais quem
passava, observa, mas demarcavam que aqueles sujeitos ali estão, e a cidade deve
reconhecer seus modos de vida.

Vejamos o trecho de uma entrevista com Cristal Lopez, candidata do Muitxs e a


quarta colocada nas eleições, hoje assessora parlamentar da vereadora Áurea Carolina. Na
entrevista ela relata como a participação no Muitxs conferiu visibilidade à causa trans de
Belo Horizonte.

As pessoas passaram a me respeitar mais, me ver como mulher, trans e


negra com respeito. Referência é muito bom. Na minha transição não tive
referência de mulher trans, me fiz sozinha. Hoje, sou uma referência para
estas gerações...

Fonte:https://blogdoarcanjo.blogosfera.uol.com.br/2016/05/30/conheca-
cristal-lopez-a-diva-da-cultura-em-belo-horizonte/)

Nesse sentido, ao associarmos a perspectiva política da cidade e as ações do


Muitxs aos estudos de gênero, podemos entender que essa categoria como eixo das ações
políticas do grupo sinaliza para a reconstrução da cidade à partir da valorização e do
respeito aos corpos femininos, à mulher, à travesti, à sapatão, à bicha. Ou seja, às diversas
identidades que compõe o mosaico metropolitano. Conversando ainda com Judith Burtle
(2002) essas subversividades questionam e interrogam os processos de exclusão social que
se dão pelas estruturas de poder e ao mesmo tempo, têm a potência de estabelecer outras
miradas e vivências pela cidade. Aquelas exclusões que invizibilizam indivíduos que não
seguem a ordem hegemônica.

3332 
 
 
 
 
 
3. A QUESTÃO DE GÊNERO EM ARTICULAÇÃO COM AS EPISTEMOLOGIAS DO SUL E
OS ESTUDOS DECOLONIAIS

A dinâmica do Muitxs e o fortalecimento das discussões referentes a gênero que


emergem a partir do advento do grupo na cidade nos permite ler essa dinâmica a partir do
conceito de Colonialidade do Poder de Aníbal Quijano e de reflexões das Epistemologias do
Sul, elaborada por Boaventura de Souza Santos. Isso pois, podemos afirmar que as
estruturas fixas, bem como as relações humanas e sociais impostas no território da
metrópole são coloniais. Nesse sentido, conferem a noção de cidadania a quem segue um
padrão que é imposto.

Aníbal Quijano, autor decolonial, em 1989 elaborou o termo colonialidade a fim de


denunciar que a dominação existente nos istemas coloniais ainda perdura mesmo após o
fim das colônias. Mais além, a elaboração desse conceito nos permite analisar, na
contemporaneidade, processos de subalternização/marginalização que não foram
superados pelo fim do colonialismo, eles persistem e são tangenciados, por três eixos
estruturantes: raça, gênero e trabalho. É a partir desses eixos que se materializam as
relações de exploração/dominação/conflito. Nesse sentido, "a colonialidade é um dos
elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista" (QUIJANO,
2010, p.85).

Não obstante, essa colonialidade proposta por Quijano, não atinge apenas a
dimensão do poder, mas também do saber e do ser. Isto é, o padrão de poder/saber/ser
imposto pela lógica capitalista, européia, 'nortecentrada', legitima lógicas de vida e
organização social e invisibiliza outras, muitas delas por questões de gênero. A
colonialidade gera processos de classificação social que legitima sujeitos e ideologias em
detrimento de outras, propositalmente deslegitimadas na organização do mundo global.
Nesse sentido,

no capitalismo mundial, são a questão do trabalho, da "raça", e do "gênero",


as três instâncias centrais a respeito das quais se ordenam as relações de
exploração/dominação/conflito. Portanto, os processos de classificação
social consistirão, necessariamente, em processos onde essas três
classificações estarão presentes (QUIJANO, 2010, p. 114).

Nesse sentido, Miguel Arroyo (2012) versa sobre os movimentos sociais e seus
sujeitos trazendo à tona a questão da colonialidade. O autor assume que os confrontos
entre culturas e identidades, bem como dos modos de pensar, inerentes na formação de
nossas sociedades que são permeadas de tensões na diversidade de fronteiras. Tensões

3333 
 
 
 
 
 
essas que continuam transpassadas pelo padrão dominante de poder/saber/ser que
classifica culturas e racionalidades. Arroyo afirma também que esse processo está,

associado ainda há um padrão cognitivo e pedagógico que tem operado


como padrões de classificação social, étnica, racial, de gênero, de
hierarquizações e bipolaridades cognitivas dos coletivos humanos: coletivos
primitivos, irracionais, incultos, selvagens, ignorantes, segregados, do poder
versus coletivos racionais, cultos, civilizados, detentores do poder/saber
(ARROYO, 2012, p.38).

Trazendo Boaventura de Souza Santos, para esse diálogo, podemos perceber


críticas que se aproximam das considerações de Quijano, porém à partir de conceitos
diferenciados. Ao discorrer sobre a sociedade moderna ocidental, Santos (2010) afirma que
há um pensamento abissal que se caracteriza por distinguir os visíveis e os invisíveis. Essa
divisão, segundo o autor, é produzida por linhas radicais (as linhas abissais) que separam a
realidade social em dois lados distintos.

A divisão é tal que o 'outro lado da linha' desaparece enquanto realidade,


torna-se inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de
ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como
inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao
universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo
o Outro. A característica principal do pensamento abissal é a possibilidade
de copresença no dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na
medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela, há
apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética (SANTOS, 2010,
p. 32).

Para exemplificar as formas de materialização do pensamento abissal, o autor


afirma que o conhecimento e o direito moderno representam os campos mais ferozes de
manifestação desse tipo de pensamento. No campo do conhecimento o pensamento abissal
se expressa na legitimidade da ciência em monopolizar o que é verdadeiro e falso, o que faz
por deslegitimar os saberes que não se produzem em espaços legitimados pela ciência. Já
no campo do direito, a distinção entre o que é legal e ilegal é dominada pelo direito oficial
do Estado ou com o direito internacional (SANTOS, 2010).

Ao estabelecer um diálogo entre as colocações de Boaventura de Souza Santos e


as dinâmicas do Muitxs e ao considerarmos os sujeitos a partir da dimensão de gênero,
podemos pensá-los como 'Outros', Arroyo (2012) o que corrobora a ideia de que esses

3334 
 
 
 
 
 
sujeitos são produzidos como inexistentes tornando-os marginalizados perante às lógicas de
dominação desenvolvidas pelo pensamento abissal.

Quando se pensam os outros como marginais, excluídos, desiguais,


inconscientes, se reconhece sua existência, é possível a copresença do
Nós e do Outro. No pensamento abissal, o lado de cá esgota a realidade
relevante, existente. O Nós esgota a existência [...] Logo os Outros, ao não
existirem, não são passíveis de serem incluídos, nem reguláveis, nem
emancipáveis, nem capazes de estar copresentes nos mesmos espaços e
nas mesmas pedagogias (ARROYO, 2012, p. 50)

Podemos fazer algumas conexões desses pressupostos com o movimento 'Muitxs -


cidade que queremos', nosso interlocutor de pesquisa. Isso porque é um movimento
formado por sujeitos produzidos como inexistentes pelas linhas abissais que regulam a
sociedade. Seu surgimento se deu a partir do encontro de sujeitos subalternizados na
cidade em busca de representatividade nos espaços de poder, em busca de se tornar
existentes na cidade. Assim, esses sujeitos ainda se mostram afirmadamente presentes na
cena social, enquanto sua inexistência é decretada pelo pensamento colonial, "mostram-se
existentes, copresentes, provocando a reação" (ARROYO, 2012).

4. CAMINHOS A CONSTRUIR NAS FISSURAS DA METRÓPOLE

Ao lançar um olhar de perto e de dentro sobre a cidade Magnani (2004), em


articulação com o movimento Muitxs de Belo Horizonte, percebemos que a dimensão do
gênero trazida nas diversas performances urbanas que seus sujeitos trazem no fazer
político cotidiano têm causado novas fissuras no mosaico urbano. Isso, pois traz à cena
pública e em espaços de poder corpos políticos que a estrutura colonial da cidade
invizibiliza, subalterniza, excluindo sujeitos da vida urbana.

Arroyo (2012) chama a atenção para a centralidade dada às ações desses coletivos
nesses espaços de legitimação do conhecimento, das formas de organização da vida, de
poder. A chegada desses sujeitos nos lugares "onde se validam as formas de pensá-lo pode
ser um indicador de que aí pretendem marcar sua presença contestadora das formas de
pensá-los ( p.58).

O Muitxs como coletivo formado para defender as pautas dos sujeitos


subalternizados e que nasceu numa Belo Horizonte efervescente em relação às pautas
sociais, se coloca como um profícuo campo de investigação para entendermos como a
dimensão do gênero pode fissurar as relações urbanas hegemônicas.

3335 
 
 
 
 
 
Essas questões ainda nos permitem entender o Muitxs como um território
fronteiriço. A escolha desse conceito para lermos os movimentos e interações dos sujeitos
subalternos, parte do pressuposto que a cidade é constituída por diversas fronteiras, que
não dizem só dos limites físicos do território, mas põem em diálogo as vivências e os
saberes que se produzem em cada território, podendo ser esse também simbólico.

Como território fronteiriço, o Muitxs carrega consigo as fronteiras, essas


subjetivamente se colocam como espaços de abertura para o mundo exterior, o front
(HISSA, 2006). Assim, as fronteiras são capazes de interrogar os limites e até mesmo
apagá-los, fazendo com que se transformem em territórios de contato, as fronteiras são
móveis. Em nosso caso, a fronteira se dá no contato das dimensões existentes entre os
diversos territórios com os quais o Muitxs dialoga em suas subversividades urbanas Assim:

Fronteiras e limites, em princípio, fornecem imagens conceituais


equivalentes. Entretanto, aproximações e distanciamentos podem ser
percebidos entre fronteiras e limites. Focaliza-se o limite: ele parece
consistir de uma linha abstrata, fina o suficiente para ser incorporada pela
fronteira. A fronteira, por sua vez, parece ser feita de um espaço abstrato,
areal, por onde passa o limite. O marco de fronteira, reivindicando o caráter
de símbolo visual do limite, define por onde passa a linha imaginária que
divide territórios. Fronteiras e limites ainda parecem dar-se as costas. A
fronteira coloca-se à frente (front), como se ousasse representar o começo
de tudo onde exatamente parece terminar; o limite, de outra parte, parece
significar o fim do que estabelece a coesão do território. O limite visto do
território está voltado para dentro, enquanto a fronteira, imaginada do
mesmo lugar, está voltada para fora como se pretendesse a expansão
daquilo que lhe deu origem. O limite estimula a idéia sobre a distância e a
separação, enquanto a fronteira movimenta a reflexão sobre o contato e a
integração. (HISSA, 2006, p. 34).

Assim, coletivos como o 'Muitxs - cidade que queremos', potencializa dimensões


importantes para a modificação social da cidade como gênero e raça, por exemplo. Isso,
através da emersão de novas articulações políticas que no território urbano faz por insurgir
saberes e práticas sociais inauditas e não validadas pela urbis. Amplia o presente ao
incorporar sujeitos subalternizados ao desconstruir o futuro desejado pelos planejamentos
urbanos, e, assim, o contrai ao fazer presente e visível novas demandas de ampliação das
esferas de participação no mundo público.

O jogo entre visível e invisível, entre centro e periferia, entre feminilidades e


masculinidades, entre o dentro e o fora, entre o preto e o branco, são inscritos nas

3336 
 
 
 
 
 
paisagens ao fazer com que outros corpos anunciem sua presença e tomem a palavra,
subvertam!

E o 'Muitxs - cidade que queremos' faz barulho, aponta novas inflexões nas regras
com que se joga, pertuba assim, as relações urbanas com corpos políticos em trânsito.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARROYO, Miguel Gonzáles. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Editora


Vozes, 2012.

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan. Sobre los límites materiales y discursivos del
«sexo». Buenos Aires: Paidós. 2002 [1993].

HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na


crise da modernidade. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

HISSA, Cássio Eduardo Viana Fronteiras entre ciência e saberes locais: arquiteturas do
pensamento utópico. In: IX Colóquio Internacional de Geocrítica: los problemas Del
mundoactual. Soluciones y alternativas desde lageografía y lascienciassociales. Porto
Alegre, 28 de mayo - 1 de junio de 2007. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 2.
ed. São Paulo, Editora Hucitec, 1998.

OLIVEIRA, Igor Thiago Moreira. Uma "Praia" nas Alterosas, uma "antena parabólica"
ativista: configurações contemporâneas da contestação social de jovens em Belo
Horizonte. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 2012.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: Epistemologias do Sul.


São Paulo. Cortez, 2009, p. 84-130.

SANTOS, Boaventura de. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de; Meneses, Maria Paula. Epistemologias
do Sul. São Paulo. Cortez, 2009,p.31-83.

SANTOS, Boaventura de. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social.


São Paulo. Boitempo, 2010.

3337 
 
 
 
 
 
GT 07 – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA

RAP NAS RUAS DE BELÉM: UM INSTRUMENTO ÉTICO PARA A


FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO DE ENRIQUE DUSSEL.

Júlia Glenda Farias Pantoja1


[email protected]

RESUMO
No Brasil, o rap é visto como uma expressão marginalizada, que normalmente, não
está inserida nos padrões ditados pela modernidade, uma vez que o padrão são
expressões artísticas que possuem características europeias, ou seja, que estão
inseridas naquilo que a modernidade eurocêntrica chama de “Centro”. O Rap possui
várias vertentes, uma delas apresenta-se com letras contendo denúncias sociais e
representa, muitas vezes, as pessoas que estão enquadradas em territórios e
comunidades tidas como periféricas. Parte-se da filosofia de Enrique Dussel e da
Filosofia da Libertação para compreender o rap paraense como instrumento de
libertação, valendo-se de alguns conceitos desta filosofia. Valendo-se de conceitos
como “centro-periferia”, “alteridade”, etc., fez-se recorte para análise o pensamento
libertário nas músicas dos artistas Pelé do Manifesto e Shaira Mana Josy, onde são
encontrados assuntos como a crítica ao racismo e discriminação fixados contra os
estereótipos relacionados aos negros de comunidades marginalizadas e crítica à
sociedade machista. Percebeu-se que as vozes das vítimas do sistema excludente,
pensadas em conformidade com a modernidade, coincidem na filosofia da
Libertação e nos Raps selecionados para análise.

Palavras-chave: Modernidade, Libertação, Alteridade, Periferia, Rap.

1. INTRODUÇÃO
A Filosofia da Libertação parte de um pensamento latino-americano que busca
desvencilhar-se do pensamento moderno europeu. Isto é, criar um pensamento original,
pautado no povo oprimido da América-Latina. Sendo assim, o pensador desta filosofia,
pensa no sujeito latino-americano, no contexto desse sujeito, na experiência e realidade
deste homem. Um pensamento genuíno da América-Latina.
Tal pensamento busca desconstruir paradigmas e regras impostas pela modernidade
eurocêntrica, cujo fundamento é estudo do ser: a ontologia, a qual se configura como um
pensamento totalitário e excludente. Tal pensamento busca a superação da fundamentação

                                                            
1 Graduada em Licenciatura em Filosofia pela Universidade do Estado do Pará – UEPA, graduanda do curso de

Bacharelado em Direito da Faculdade Maurício de Nassau, estagiária do Núcleo de Atendimento Criminal –


NACRI da Defensoria Pública do Estado do Pará – DPE-PA. Contato (91) 3271-2550 / (91) 98117-5914.
3339 
 
 
 
 
 
ontológica através da metafísica ética, a qual passa a pensar e trazer para a discussão a
relação entre todos os seres, sem exclusão daqueles vistos como distintos.
As relações de exclusão criadas a partir da divisão do mundo em centros e periferias,
foi a grande perpetuadora do pensamento opressor criado com a filosofia clássica, uma vez
que os indivíduos que permaneciam de fora do centro ideológico, cultural, político, etc., eram
considerados como o “não-ser”. Sendo assim, a América-Latina e seu povo eram
caracterizados como a periferia, o Outro, o não-ser, quando relacionada ao centro
eurocêntrico, pois sua cultura, sua ideologia, política e pensamento, eram visto como
diferente.
Em vista disso, Enrique Dussel passou a analisar formas de libertação para a
América-Latina e seu povo, trazendo em seu pensamento formas para o respeito,
conhecimento e compreensão. A Filosofia da Libertação possui um método libertador, que
engloba todos os sujeitos latino-americanos: a mulher, o homem político, a criança, o
homem religioso, etc.. Esta filosofia busca o respeito, a alteridade, a compreensão, quer se
desvencilhar das opressões, da dominação, e busca isso através das relações éticas e
fraternas.
O Rap é considerado uma das vertentes principais do Movimento Hip Hop, o qual
nasceu nos subúrbios de Nova Iorque, tendo como principal objetivo desvencilhar os jovens
da violência, da criminalidade e das drogas que assolavam aquela região. Este movimento
chegou ao Brasil em meados de 1980 e desde então se configura como a voz da periferia,
onde seus rappers (como são chamados os cantores de Rap) denunciam as mais diversas
atrocidades que os negros, mulheres e podres marginalizados sofrem nessas áreas tidas
como comunidade periféricas, as quais são excluídas e caladas pelo Centro. Neste sentido,
o presente artigo foi construído a modo que fosse possível entender os principais conceitos
e objetivos da Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, assim como, compreender de que
forma o Rap se enquadra neste pensamento.

2. O Mito da Modernidade:
Quando Descartes expressa definitivamente e por completo o “Eu penso”, surge o
primeiro momento do que Enrique Dussel chama de “constituição da modernidade”, datando
no período de 1492 a 1636. Ao final do século XVI Espanha e Portugal não estão mais
localizados no período feudal, o que os levam ao primeiro passo rumo à modernidade, como
nações renascentistas. Tais nações se configuram como a primeira região europeia a
(DUSSEL, 1993, pag. 15, grifos do autor) “ter a experiência originária de constituir o Outro
como dominado e sob o controle do conquistador, do domínio do centro sobre a periferia”.

3340 
 
 
 
 
 
Para Dussel (2005), o ego cogito moderno antecede em mais de um século o ego
conquiro (eu conquisto), prática comum para a cultura luso-hispânica que impôs sua própria
vontade, a chamada “vontade-de-poder”, sobre os índios americanos. Nesse contexto, o ego
moderno teve seu primeiro grande feito ao conquistar o México, o que evidenciava a grande
superioridade da Europa às culturas astecas, incas, maias, etc., em decorrência,
principalmente, das armas de ferro que os europeus possuíam.
A superioridade europeia se dá, em grande parte, pelos acúmulos de riquezas,
conhecimentos, experiência, etc. oriundos da conquista da América Latina. Conforme
explica Enrique Dussel (2005, p. 30), “a modernidade, como novo ‘paradigma’ de vida
cotidiana, de compreensão da história, da ciência, da religião, surge ao final do século XV e
com a conquista do Atlântico”, que posteriormente culminou em inserir a América Latina na
modernidade como a outra face, no papel de dominado, conquistado, explorado e
encoberto.
A modernidade europeia possui um processo irracional que não está diante de seus
próprios olhos, de acordo com Dussel (2005) “por seu conteúdo secundário e negativo
mítico, a ‘modernidade’ é justificativa de uma práxis irracional de violência.”, que é evidente
quando relacionada à forma como a América Latina foi conquistada e dominada. Sendo
assim, o Mito da Modernidade pode ser descrito como a civilização moderna sendo a mais
desenvolvida e de maior superioridade, dando amparo a uma posição de domínio cultural
eurocêntrico.
Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras),
violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido
quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias
vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador
(o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição
ecológica, etcetera). (DUSSEL, 2005, p. 30)

Para o dominador moderno, o bárbaro tem uma espécie de culpa, que é justificada
pelo fato de se opor ao processo de modernização. Sendo assim, a modernidade se aponta
como inocente e “salvadora” dessa culpa de suas próprias vítimas, no caso os bárbaros.
Além disso, para a modernidade, é inevitável o sofrimento causado pelo processo
civilizatório, uma vez que este traz para os povos “atrasados” a “modernização”. Para
Apoliceno e Dias (2012) “o mito da modernidade é um inversão. A vítima é transformada em
culpada, e o vitimador culpado é considerado inocente, caracterizando-se como uma forma
de irracionalismo.”. A vítima desse sistema de modernização é conhecida como o Outro,
aquele que é excluído, marginalizado, calado. O Outro tem sua cultura subjugada e
renegada, mas não de uma maneira total. Essa cultura não é vista como de todo ruim, mas
precisa ser “melhorada”.
O mito da modernidade nega o Outro e a sua cultura, apresentando-o
como culpado, e o vitimador, como inocente, bem como legitima a
3341 
 
 
 
 
 
violência para compelir o Outro a fazer parte da civilização. A cultura
do Outro é negada porque é vista como barbárie, mas sua cultura não
precisa ser destruída e sim melhorada e aperfeiçoada. (APOLICENO;
DIAS. 2012. p. 97, grifos dos autores)

3. Os Paradigmas da Modernidade:
Para entender a modernidade, fez-se necessário estabelecer a divisão de dois
principais paradigmas. O primeiro, partindo de uma visão eurocêntrica, situa a modernidade
como um fenômeno exclusivamente europeu, o qual se iniciou com a Idade Média e
desenvolveu-se por todo o mundo. Este fenômeno ocorreu por características internas e
exclusivas da Europa, essencialmente por sua racionalidade, uma vez que o pensamento
moderno está fundamentado na razão.
Além disto, Dussel (2012) atenta para a questão de que, de acordo com os filósofos
modernos, em grande parte Hegel, o espírito europeu é pensado como uma verdade
absoluta e que se realiza por si mesmo, sem interferências e sem dever nada a ninguém, de
forma absoluta. De acordo com este paradigma, “a Europa tivera características
excepcionais internas que permitiram que ela superasse, essencialmente por sua
racionalidade, todas as outras culturas” (DUSSEL, 2012, p. 51, grifos do autor). Este é o
chamado “paradigma eurocêntrico” que foi imposto não só na Europa, mas por todo o
mundo intelectual periférico.

O segundo paradigma estabelece à Modernidade o papel de cultura do “sistema-


mundo”. A modernidade europeia não é um sistema independente, e, sim, uma parcela do
“sistema-mundo”, é – na verdade – o centro desse sistema. Sendo assim, para Dussel
(2012), “a modernidade é um fenômeno que vai se mundializando”, num primeiro momento
com a constituição da Espanha com referência à sua periferia (Ameríndia) e logo depois
com a Europa (cidade italianas renascentistas e Portugal), transformando-se em centro
sobre uma periferia cada vez mais crescente (Ameríndia, Brasil, povos escravizados, etc.).

Diante destes dois paradigmas, Dussel construiu uma terceira tese onde defende
que a centralidade da Europa no sistema-mundo não está condicionada apenas à
superioridade intelectual e cultura interna desta, mas também ao fato do descobrimento, da
conquista, da colonização da Ameríndia, que servirá de vantagem comparativa
determinante. Conforme Dussel (2012), “a ‘gestão’ da centralidade do ‘sistema-mundo’
permitirá que a Europa se transforme em algo como a ‘consciência reflexiva’ (a filosofia
moderna) da história mundial”. O que é totalmente relevante ao estudo da Filosofia da
Libertação, uma vez que o ato da colonização Ameríndia foi, principalmente, um dos
grandes fatores que ajudou a expandir o pensando e controle intelectual europeu.

3342 
 
 
 
 
 
4. A Ontologia do Eu: Dialética Dominadora:
O processo de modernização imposto pelo eurocentrismo nas culturas ditas
“atrasadas” acarreta uma espécie de violência, uma vez que há a imposição da cultura,
religião, economia, etc. europeias, criando inúmeras e diversas vítimas. Além disso, a
Modernidade se apresenta como inocente, pois acredita que o sofrimento dessas vítimas é
um sacrifício necessário e inevitável para que o “atraso” civilizatório dessas regiões seja
compensado com a modernização.
Nesse sentido, a fundamentação principal para essa dominação moderna é a
ontologia, que é o estudo do Ser. Dussel baseia-se na crítica de Martin Heidegger à
ontologia clássica, onde percebe que o estudo do ser para a filosofia ocidental clássica,
derivada dos gregos, tem como fundamentação a ontologia da totalidade, o que legitima o
processo de dominação imposto pelo pensamento moderno. Conforme Zimmermann (1986),
a totalidade pode ser entendida como um âmbito ontológico fechado, o princípio originante e
justificador de toda dominação e da afirmação do ser como absoluto e, consequentemente,
princípio do ato do reconhecimento, da alteridade.
Segundo Zatti (s/d, p. 36), “Dussel compreende a categoria da Totalidade como
categoria essencial de toda ontologia. A origem dessa filosofia está na experiência de
dominação e opressão que as nações do centro exerceram sobre outros seres humanos.”.
Sendo assim, Dussel teve uma forte influência dos estudos de Heidegger, pois
compreendeu que a ontologia dominadora do pensamento filosófico clássico poderia ser
superada.
Conforme Dussel (1974, p. 265), citado por Zimmermann (1986, p. 170), “o
fundamento ontológico... se encontra na subjetividade do sujeito que coloca a objetividade
do objeto, isto é, desde o ego cogito.” Em outras palavras, a fundamentação ontológica está
pautada no Eu (Ser) como o centro, apenas este formula a tese, síntese e antítese, não
dando espaço para a aparição da alteridade. Para Matos (2007), esta ontologia proporciona
um fechamento do ser humano nele mesmo, o qual se dá de tal forma que o único ser
existente passa a ser apenas o eu, e todos aqueles com quem se relaciona, tornam-se
objetos, entes. Essa é a chamada dialética da dominação.

5. Superação da Dialética Dominadora através da Metafísica Ética:


5.1 Totalidade, Exterioridade e Alteridade:

Ainda em suas pesquisas acerca da ontologia de Heidegger, Dussel percebeu que a


ontologia dominadora da filosofia clássica poderia ser superada através da metafísica ética.
A ontologia ocupa-se com o “o que parece ser”, ou seja, como o indivíduo parece a partir do

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sistema, enquanto que a epifania é a revelação do oprimido, não é aparência nem
fenômeno, leva em consideração a exterioridade metafísica.

Com base na filosofia da alteridade de Emmanuel Lévinas, Enrique Dussel parte do


conceito de exterioridade para defender que o Outro está além das esferas do ser, o que
implica em ser considerado o não-ser, uma vez que o ser é o fundamento do sistema, assim
como da vida cotidiana. Ou seja, há realidade para além das esferas do ser, realidade essa
que não é admitida pelo centro (ser), e, em vista disso, o Outro é caracterizado como o não-
ser, não possuidor de racionalidade, o marginalizado, o diferente que não merece ser
reconhecido.

Ao falar de exterioridade, o autor fala do pobre, do oprimido, do marginalizado. Isto é,


do ponto de vista da metafísica ética, todos aqueles que são exteriores à totalidade
dominante, ao sistema dominante. A metafísica busca compreender algo mais além do
mundo, do ponto de vista e da perspectiva do Outro, quando este provoca. O Outro
enquanto outro é exterior ao sistema, ao mundo de cada indivíduo.

Enquanto exterioridade o Outro está além da razão, uma vez que foge das amarras
impostas pelo processo de modernização fundamentado na razão, e por conta de sua
alteridade não pode ser reconhecido. Sendo assim, para que haja o processo de
alteridade/reconhecimento, esse Outro deve ser respeitado enquanto outro, ter suas
peculiaridades e diferenças respeitadas, e não deverá ser reduzido ao Mesmo que se
considera o centro. Isto é, o Outro não deve ser igualado ao Mesmo, uma vez que a
alteridade proporciona o contato face-a-face. Conforme PROSPERO (1999), “o mal não é o
Outro, mas a aversão ao Outro. Da mesma forma que o bem não é a totalidade, a unidade,
a igualdade, mas a aceitação do Outro.”.

O método que Dussel propõe é o chamado analético, que é distinto do método


dialético, tem como ponto de partida a alteridade, o ato de reconhecer o Outro. Requer a
abertura para pensar, para ouvir, para ver, para compreender o Outro. Esse método é
condicionado a um ato de compaixão e humildade.

Na dialética, o logos vai interpelando cada horizonte, tendo em si mesmo o ponto de


partida, voltando ao primeiro para esclarecer seu pensar; diferente acontece na analética,
aonde o logos vem do além e ultrapassa cada horizonte, onde cada um é um ponto de apoio
para passagem ou crescimento, esse deslocamento ocorre à medida que o outro se abre ao
reconhecimento. Para MATOS (2007, p. 143), “analético quer dizer que o logos vem do
além; ou seja, que há um primeiro momento em que surge a palavra interpelante, além do

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meu mundo (...)”. Diante disto, o método analético surge desde o Outro e avança
dialeticamente.

5.2 Proximidade
Os conceitos dusselianos de totalidade, exterioridade e alteridade estão intimamente
interligados, uma vez que a totalidade imposta pelo centro nega a exterioridade do outro,
desrespeitando sua alteridade. Sendo assim, é necessário entender por meio de que forma
ocorre a aproximação entre os seres, superando, assim, a alienação proveniente da divisão
do mundo em sistemas-mundo.
A proximidade não é a convencional da palavra, a de chegar perto de alguma coisa
para comprá-la, vendê-la, ou pegá-la. Conforme Dussel (1977) é aproximar-se no sentido da
fraternidade, de encurtar a distância para alguém que pode aceitar-nos ou rejeitar-nos, como
anterioridade anterior a toda anterioridade. Dussel caracteriza esse ato de encurtar
distâncias como práxis, é um aproximar-se da proximidade, é agir para o outro como outro.
É diferente de ir até alguém e tocá-lo, beijá-lo; é compreender e abraçar a realidade desse
alguém.
Para o sistema, o Outro é diferente, é aquele que põe em risco a unidade do Mesmo.
É nesse sentido que Dussel traz para a discussão a figura do sábio, aquele que “vê com
absoluta claridade” (DUSSEL, 1977, p. 56). Sendo assim, o sábio tem o dever, em sua
ontologia, de alertar o perigo que o Outro representa para a totalidade do sistema. E, ao ser
visto como um perigo, o Outro acaba se tornando um inimigo desse sistema. Conforme
Dussel (1977), uma vez que este perigo, ou mal, é assinalado, a ontologia totalitária fica em
paz.

5.3 Libertação:

Ao se falar em libertação, precisamos entender a figura do “herói”, aquele que vai


contra o sistema, contra as leis e regras impostas. Para Dussel, é necessário que haja a
virada metafísica do ontológico para o transontológico, isto é, para além do ser, para a
realidade, para o Outro. Neste momento, o pensamento ontológico é ultrapassado, ficando
para trás o pensamento totalizador pautado no Eu, trazendo à tona a realidade que não é
pensada, a realidade do outro.

Existem duas condições para que a voz do Outro seja ouvida, a primeira diz respeito
ao fato de que devemos ser ateus do sistema ou que encontremos nosso fetichismo; o
segundo é necessário respeitar o outro enquanto distinto, em outras palavras, é deixar o
Outro ser outro da forma que é. Dussel deixa claro que esse respeito não é pelo sistema,
mas sim por alguém e pela liberdade deste alguém, transformando o respeito em uma
atitude metafísica que serve como ponto de partida para a justiça.
3345 
 
 
 
 
 
O homem justo que tem respeito pelo Outro, será capaz de ouvir seu lamento, grito,
protesto; será descentrado. Este indivíduo tomará para si a dor e irá se tornar responsável
pelo Outro, expondo-se ao sistema. O responsável será considerado um herói para o Outro
e um anti-herói para o sistema, sendo perseguido por este uma vez que percebe a
necessidade de uma nova ordem. Conforme Dussel (1977, p. 66), “responsabilidade é assim
coragem suprema, fortaleza incorruptível, autêntica clarividência da estrutura totalitária,
sabedoria”.

A libertação pode ser entendida como o ato em que o oprimido se “deso-prime” e tem
dois momentos: negação da negação do sistema. No método dialético há a negação da
negação, onde o ser nega o distinto visto como diferente. Sendo assim, negar o negado se
configura como uma afirmação do sistema. Entretanto, negar a negação e afirma a sua
exterioridade, ou seja, aquilo que o deixa de fora do sistema por ser distinto, é uma prática
de

6 - O Rap como Instrumento de Libertação:

Parte-se desse pensamento latino para compreender em que sentido o Rap pode ser
entendido como um instrumento para a filosofia da libertação. O rap nasceu nos Estados
Unidos, por volta de 1970. Nesta época, ocorriam muitas lutas e protestos contra as leis de
segregacionistas e de vários conflitos políticos ocorridos na década de 60. Além disso,
época em que muitos movimentos negros ganharam força, por conta da violência e
preconceito sofridos por essas pessoas. Com grande influência de líderes como Martin
Luther King Jr., a população marginalizada encontrou na música e na rima um instrumento
de reinvidicações. O rap nasceu com o propósito de dar voz a esse grupo excluído e
marginalizado, denunciando as atrocidades sofridas por estes.

Não diferente, o Brasil adotou esta cultura em meados dos anos de 1980. Com o
mesmo propósito, o rap surgiu como uma maneira de denunciar os acontecimentos das
favelas de São Paulo. Ainda que seja um pouco diferente da cultura norte americana, o rap
brasileiro prosseguiu com o mesmo intuito: o da crítica social.

É importante notar que a difusão do rap para além das fronteiras dos
Estados Unidos também se refere à propagação entre subalternos de
algo que cativa, diz respeito e faz sentido. Uma rede comunicacional
de periferia para periferia forjada sobre a experiência comum que
normalmente conjuga exploração de classe e opressão étnico-racial.
(LOUREIRO, B. R. C.. 2016, p. 237, grifos do autor).

Sendo conhecido como cultura de periferia, o Rap e todos aqueles que fazem parte
dessa expressão cultural foram fortemente subjugados pela sociedade brasileira. Ainda
hoje, quem o canta é bastante discriminado, apesar de ter conquistado uma legião de fãs e
3346 
 
 
 
 
 
adeptos. A discriminação e o preconceito contra estereótipos sociais de comunidades
marginalizadas é um dos grandes assuntos formulados e discutidos pelo Rap, o que
fomenta a discussão acerca dos negros, pobres e ditos “favelados”. Neste sentido, podemos
entender o Rap como instrumento de libertação onde essa expressão musical se configura
como a voz do oprimido, uma vez que é a partir disso que os sujeitos que sofrem com a
exclusão social, preconceito e discriminação passam a falar e dialogar com aqueles que os
excluem. Isto e, o Rap se caracteriza como uma forma de os sujeitos dialogarem e
argumentarem com o sistema excludente e que os marginaliza.

6.1 O Rap e a Libertação Política:

Neste momento metafísico, a proximidade que ocorrerá entre os indivíduos é a de


irmão-irmão, irmão-irmã, irmã-irmã, a fraternidade, isto é, a relação política. É toda a ação
humana social e prática, diferente da erótica, pedagógica ou antifetichista. Segundo Dussel
(1977, p.74) “é tanto o governante como governado, o nível internacional, nacional, de
grupos ou classes sociais, formações sociais e seus modos de produção, etc.. Com a
expressão irmão-irmão queremos sugerir esta amplíssima extensão conceitual.”.

Além da totalidade política criada pelo estruturalismo e funcionalismo, encontra-se o


povo, o povo enquanto nação periférica. Segundo Dussel, as classes oprimidas são partes
caracterizadas como problema da estrutura da totalidade política. Para Dussel (1977, p. 75),
“são partes que devem realizar trabalhos que os alienam, que os impedem de satisfazer as
necessidades que o próprio sistema produz neles.”. Nas nações periféricas temos as
classes oprimidas, caracterizadas pelo proletário, o povo, de uma forma geral; e as classes
marginalizadas, caracterizadas pelo mendigo, pelas empregadas domésticas, bóias-frias,
etc..

Para que haja a libertação política, é preciso saber quem precisa ser libertado e que
conheça quem será libertado. É a partir desse momento que será dada a voz ao povo
oprimido, aquele que precisa ser libertado. Assim, o partido ou o sujeito político irá ouvir
esse povo oprimido, colocando-se como ouvinte, mostrando que o povo está além de
qualquer totalidade política, tendo como fundamento a benevolência, isto é, o querer bem do
outro.

Para exemplificar este pensamento, analisaremos a letra da música de “Sou


Neguinho”, interpretada pelo rapper Pelé do Manifesto. Esta canção faz uma reflexão crítica
sobre o modo de vida dos negros, principalmente os das comunidades tidas como
periféricas na cidade de Belém.

3347 
 
 
 
 
 
“Sou neguinho sim, sou preto com muito amor, daqueles que se olha no espelho e
acha foda a sua cor” passagem da música em que Pelé deixa claro o quanto sente orgulho
da cor da sua pele. Este trecho nos leva a refletir sobre a questão que Dussel propõe para a
libertação, onde o outro deve se reconhecer como outro, deve afirmar a sua exterioridade.
Sendo assim, a afirmação e o orgulho de ser negro se configuram como os primeiros passos
para a Filosofia da Libertação.

O rapper expressa de uma forma bem explícita sua indignação pelo racismo que
sofre, onde expõe o histórico dos seus antepassados, afirmando que veio do navio negreiro:
“paraíso onde? Se eu vim nos navios negreiros”, nos remetendo ao período escravocrata, o
que mantém referência direta ao Mito da Modernidade, o qual foi o responsável pela criação
do “sistema-mundo”, culminando na divisão do mundo em centro e periferias, trazendo para
a esfera periférica a figura do negro, escravizado, marginalizado. Desde o período escravo
até hoje, os negros sofrem com esse sistema, uma vez que o preconceito por parte do
centro moderno ainda marginaliza esse povo.

Mais além, no trecho “toda vez que eu entro no shopping o segurança me segue,
todo mundo percebe, todo mundo repara, as câmeras me perseguem, a polícia sempre me
para” percebemos a marginalização sofrida pelos negros, uma vez que estes sempre são
vistos como ladrões, marginais. Prática corriqueira, levando em consideração a
marginalização sofrida por esse povo durante vários anos, desde o período da escravidão.
Pelé expressa novamente este pensamento no trecho “não vem com ‘caô’ dizendo que não
é preconceito, se acha que preto é ladrão desde que mama no peito.”.

Para MATTOS (2007), “o ethos da libertação é uma atitude constante no situar-se


cara-a-cara e é por isso que é um amor ao outro como outro.”. Em vista disso, partimos da
reflexão de que a relação face-a-face é o fundamento para a libertação, uma vez que o
centro, ao se relacionar com o outro, passa a amá-lo e respeitá-lo enquanto outro, distinto, e
não diferente.

Seguindo a análise da música, percebemos que o rapper também critica a


padronização imposta pelo centro, uma vez que no trecho “mais de quatro conduções,
currículo na mão, a secretaria sempre diz que eu não me encaixo no padrão” percebemos
que mesmo almejado um futuro diferente, o povo negro sofre com a padronização imposta,
uma vez que o normal é o povo branco trabalhar em determinadas funções, nos levando,
ainda mais, ao problema da divisão de classes oriundas da divisão do trabalho. Sendo
assim, o negro é aquele que deve trabalhar com as classes marginalizadas, tendo o trabalho
mais pesado e braçal.

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Além disso, podemos perceber o fato de que o rapper se afirma enquanto negado, e
indo mais além, se afirma enquanto negro. O cantor não tenta se igualar aos brancos, muito
pelo contrário, afirma a sua exterioridade, assim como, a sua distinção, como vemos no
trecho “eu não sou preto de alma branca (...), se eu pudesse, até a palma da minha mão era
preta.”.

6.2 O Rap e a Libertação Erótica

Além da libertação política dos irmãos/irmãs, Dussel também propõe a libertação


erótica da mulher em sua relação aos homens. Tendo como base a libertação do sistema
machista, a mulher enquanto outro deve ser ouvida, compreendida, tendo sua alteridade e
exterioridades respeitadas. Para Zimmermann (1986, p. 185), “pela metafísica a alteridade
estabelece-se o princípio da valorização, da existência, da autonomia, da autodeterminação
tanto do varão como da mulher.”.

Uxoricídio é como Dussel chama a morte da mulher em uma sociedade


ideologicamente machista. Neste sentindo de libertação, é homem enquanto espécie, não
enquanto varão dominador. Nosso filósofo parte do pensamento de Merleau, onde para este
é normal em uma sociedade um homem constituir uma intenção sexual para com a mulher,
esta intenção se configura como sensibilidade ao corpo do outro. Todavia, a intenção
sexual, ou erotização, totalizada tende a ignorar o outro.

Este pensamento é o que nos leva a pensar no que acontecia com as mulheres na
América-Latina pré-hispânica, onde estas eram caracterizadas como objetos sexuais, entes
a serviço do dominador. É a proximidade que afasta esse caráter de objeto do corpo do
outro, é o contato face a face, é o beijo. É necessário haver a vontade de ambos, caso
contrário, é opressão, abuso. Conforme Dussel (1977, p. 87), “se superarmos o dualismo
corpo-alma e afirmarmos a unidade da carne, poderemos compreender que a erótica, mais
ainda do que a sensibilidade do corpo do outro, é realizar o desejo do outro como outro,
como exterioridade.”.

Este é o ponto de partida para entendermos de que forma o sujeito feminino que
canta o rap tenta se libertar da ideologia machista, através da proximidade, nem sempre no
sentido da intenção sexual, mas no sentido de encurtar distâncias para promover o diálogo e
a intercomunicação, num ato dualístico, partindo de ambas as partes, com o
desaparecimento da figura do varão, para dar lugar ao homem enquanto espécie que
compreender a mulher.

Atualmente, o cenário feminino no rap tem se expandido bastante, cada vez mais as
mulheres têm ganhado espaço neste estilo musical. As letras femininas contêm temáticas
3349 
 
 
 
 
 
referentes às críticas sociais, racismo e discriminação. Entretanto, as mulheres trazem para
suas letras o grito de “empoderamento” feminino. Isto é, estão mostrando através do rap que
precisam se desvencilhar da sociedade machista que as cercam. Para exemplificar a
libertação erótica das mulheres no rap, analisamos a música “Reflexão Feminina”, composta
e interpretada pela rapper paraense Shaira Mana Josy, onde deixa bem explícito a luta das
mulheres para combater o machismo.

“Sai! Não acredito em Cinderela nem em príncipe encantado que aparece na


novela. Ele usa, ele abusa, depois larga e nem dá trela.”. Neste trecho, pode-se entender
que aquele homem, o príncipe encantado, vendido pelas novelas, não existe, uma vez que o
homem real costuma ter atitudes que transformam a mulher em apenas um objeto, na
maioria das vezes sexual. Isto nos remete à época da colonização, onde os colonizadores
brancos transformaram as mulheres latino-americanas em objetos sexuais, através de uma
violência moral e, principalmente, física. Neste sentido, a mulher latino-americana sofreu
duplamente: por ser mulher e por ser latino-americana. Não acreditar no homem “perfeito”
vendido pelas mídias, é uma forma de mulheres se voltarem contra esse sistema que tanto
oprime.

Relacionando com o pensamento de Enrique Dussel, podemos constatar que a


ideologia machista aliena não só a mulher, como também o homem, uma vez que este se
ver impotente ao não conseguir se relacionar com alguém.

A mulher popular, a mulher da cultura periférica, acaba sofrendo assim um


duplo embate, uma dupla violação: violada por ser uma cultura e não
oprimida, por ser membro de uma classe dominada, por ser mãe de sexo
violentado. Mulher pobre dos pobres do mundo. (DUSSEL, 1977, p. 90).

Neste sentido, quando o outro se volta contra o sistema, tende a ser alienado e
calado, pois põe em risco a autonomia e o poder do centro, no caso da erótica, o poder do
varão. Sendo assim, a mulher enquanto outro negado e excluído, quando passa a ter
consciência da exclusão causada pelo centro, isto é, da negação, passa a negar o sistema,
buscando a libertação através da palavra, suplicando que sua exterioridade seja respeitada,
para que haja o movimento ana-dia-lético baseado no reconhecimento do outro enquanto
diferente.

No trecho “não encosta a mão, canalha. Sou fogo e tu é lenha. Conheço meu direito,
eu tenho a lei Maria da Penha” a mulher demonstra conhecer seu direito natural à vida,
aquele que não pode sofre interferência de nenhum outro ser. A lei 11.340/06, conhecida
como Lei Maria da Penha, nasceu com o intuito de coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher. Sendo uma lei para amparar mulheres que sofrem com as mais diversas
violências, Shaira deixou bem claro o conhecimento de tal, isto é, uma forma de mostrar
3350 
 
 
 
 
 
para o centro que a oprime que conhece seus direitos, que tem consciência da opressão
que sofre e que está lutando contra com a ajuda de outros mecanismo, demonstrando o
quanto é forte e corajosa a ponto de ir contra o sistema dominante, uma vez que ir contra o
sistema é uma tarefa difícil, pois, lembrando os conceitos de alienação, o diferente – como é
visto o distinto – se torna inimigo do sistema.

Indo mais além, no trecho “o que acontece na mente masculina? Bloqueada ao


diálogo, não raciocina”, podemos perceber a falta de respeito com a exterioridade do ser
visto como diferente. O homem não aceita a mulher como um ser distinto, não diferente. O
homem oprime, exclui, cala tudo aquilo que lhe aparece como diferente, não o
reconhecendo como um outro ser distinto, que possui suas próprias características. Isto é, o
homem é alienado, tende a negar o outro enquanto outro. Cabe à mulher, negar esta
negação, através da palavra, numa forma de libertação.

Em “mulher no microfone, ideologia fortalece. Politizada, sempre alerta, te convido,


é só chegar” neste sentido o Outro chama o centro dominador para dialogar, para mostrar a
realidade em que vive, num ato de tentar a proximidade, onde o centro será capaz de se
deparar e compreender a realidade do Outro, de encurtar distâncias possibilitando um
contato rosto a rosto. Conforme Dussel (1977) é aproximar-se no sentido da fraternidade, de
encurtar a distância para alguém que pode aceitar-nos ou rejeitar-nos.

Sendo assim, pode-se perceber que o rap feminino se apresenta como a voz
dessas mulheres que não mais querem ser oprimidas, que querem dialogar e mostrar a
realidade em que vivem e a violência sofrida com a sociedade machista, mostrando para o
dominador que a opressão também aliena o opressor. Através do rap as mulheres buscam o
respeito, a alteridade, a compreensão. Não buscam superioridade, mas sim o
reconhecimento enquanto distintas e, por isso, outras.

7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constituir um pensamento genuíno da América Latina tornou-se o principal objetivo


da Filosofia da Libertação de Dussel, uma vez que se desvencilhar das amarras impostas
pelo pensamento europeu era algo necessário para a efetiva libertação do povo latino-
americano. Compreendendo a filosofia do autor, fomos capazes de perceber o quanto o Mito
da Modernidade impôs uma espécie de “violência mascarada”, visto que encarava como
necessário o sofrimento pelo qual os latino-americanos passavam, com o discurso de que
precisavam deixar de ser uma cultura “atrasada”. uma vez que não estavam de acordo com
os padrões ditados pela cultura eurocêntrica.

3351 
 
 
 
 
 
Esta violência acarretou à América Latina a exclusão dos povos considerados
bárbaros, onde o colonizador europeu exerceu o papel de dominante, excluindo, por
completo, todos aqueles que não estivessem de acordo com os padrões modernos de Ser,
sendo considerados como o Não-ser, o Outro, o marginalizado e excluído. Foi através da
metafísica ética que Dussel propõe uma maneira para a libertação desse povo
marginalizado, através da alteridade, isto é, o ato de reconhecer o outro como um ser
distinto, através da palavra, da interpelação e do contato face a face.

Neste sentido, analisando algumas músicas do rap atual é possível perceber que o
rap aliado à Filosofia da Libertação pode se tornar um instrumento para a libertação desses
povos oprimidos, uma vez que se configura como a voz da periferia, dos oprimidos. Sendo
assim, foi possível constatar conceitos da filosofia da libertação em algumas músicas, como
no caso da música “Sou neguinho”, onde percebemos a busca pela proximidade, assim
como, a busca pela alteridade, os malefícios que a alienação traz e, também, a práxis da
libertação.

É neste gênero musical que o negro, o pobre, mulher, dialogam com o centro
dominador, numa busca pelo reconhecimento, pela alteridade. O Rap traz em suas letras as
denúncias do sofrimento pelo qual esses indivíduos passam, seja pelo preconceito
enraizado pelo período de escravidão, seja pela violência machista que a mulher sofre, seja
pelas diferenças sociais que o pobre tenta superar. Além disso, esse povo oprimido não
está mais calado, a partir do rap conseguiram voz e com isso, conseguiram mostrar para os
dominadores o quanto a periferia é negada pela exclusão proveniente desses centros. A
periferia não mais se cala para as atrocidades que vive, é com o rap que esses indivíduos
buscam a libertação, buscam ser ouvidos e compreendidos.

REFERÊNCIAS

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Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Classen, Lúcia M. E. Orth. 4. ed. Petrópoles, Rio de
Janeiro: Vozes, 2012.

___________. Filosofia da Libertação na América Latina; tradução de Luiz João Gaio.


Piracicaba, São Paulo: Unimep, 1977.

___________. 1942: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade:


Conferências de Frankfurt; tradução Jaime A. Clasen. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
1993.

3352 
 
 
 
 
 
___________. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, EDGARDO. (Org.) A
colonialidade do saber: eurocentrismo e clíncias sociais. Perspectivas latino-americanas.
Trad. Carlos Walter Porto Gonçalves. Argentina: Buenos Aires, 2005. p. 24-32.

JOSY, Shaira Mana. Reflexão Feminina. DRX Produções, 2011.

LOUREIRO, B. R. C. Arte, cultura e política na história do Rap nacional. Revista Instituto


de Estudos Brasileiros. n. 63. P. 235-241. abr. 2016.

MATOS, H. A. Uma introdução à Filosofia da Libertação latino-americana de Enrique


Dussel. Livro eletrônico gerado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Metodista de São Paulo, sob a orientação de Daniel Pansareli. São Paulo,
2008.

MANIFESTO, Pelé do. “Sou Neguinho”. In: CD Gambiarra Periférica. DRX Produções,
2014.

PROSPERO, V. G. Uma abordagem da Noção de Sujeito sob o Prisma da


Homossexualidade a partir da Alteridade em Dussel. Revista da Faculdade de Direito da
UFPR. v. 32, p. 165-169, 1999.

TEPERMAN, R. I. Improviso decorado. Revista Instituto de Estudos Brasileiros. n 56, p.


127-150, jun. 2013.

ZATTI, V. Heidegger e Dussel: entre a crítica à ontologia ocidental e a questão de uma


pedagogia da libertação. Prâkasis, revista do Instituto de Ciências Humanas, Letras e
Artes, s/d.

ZIMMERMANN, R. América Latina o Não-Ser: Uma abordagem filosófica a partir de


Enrique Dussel (1962-1976). Petropólis, São Paulo: Vozes, 1986.

3353 
 
 
 
 
 

GT 07 - CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA

ENTRE OS “MUROS” DA BAIXADA DO AMBROSIO: O BAIRRO, A VIOLÊNCIA E O


CRIME, DISCUSSÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA

José Luis dos Santos Leal (UNIFAP)1


[email protected]

RESUMO

Este trabalho é fruto de reflexões iniciadas na pesquisa “Representações da Criminalidade


Urbana: Medo e Insegurança Social no Estado do Amapá”, realizada pelo GEPVIC (Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Violências e Criminalizações). Parte dessas incursões são
resultados também do trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Amapá. O presente trabalho pretende apresentar análises e
reflexões feitas a partir das noções de medo e insegurança nas cidades modernas sob a luz
de Zygmunt Bauman; e as formas de segregação espacial e discriminação frutos da
violência e do medo discutidas por Tereza Caldeira. Neste trabalho, abordaremos as
análises de Bauman e Caldeira tendo como plano de compreensão os principais sujeitos
que participam da ocupação desordenada e da formação histórica do bairro “Baixada do
Ambrósio/AP”. Nesta pesquisa, cabe a importância de discutir os conflitos vivenciados pela
comunidade, bem como, discutir de que forma os grupos de indivíduos que se formam na
comunidade convivem com as representações da violência e da criminalidade urbana. A
perspectiva de Bauman parte da metáfora da modernidade líquida e como se dá esse
processo de “dissolução dos sólidos” para a constituição de uma nova ordem social
marcada pelo afrouxamento dos laços humanos e a gradual decomposição da
solidariedade. Essa decomposição impede a construção ou manutenção da comunidade
enquanto lugar seguro de inteira confiança entre seus membros. Neste contexto, as
incursões etnográficas referentes ao bairro serão analisadas visando estabelecer as tramas
das relações que são constituídas em um ambiente de conflito.

Palavras-chave: Violência, Medo, Segregação Espacial.

1. INTRODUÇÃO

Frutos de uma ocupação desordenada, a Baixada do Ambrósio constituiu-se


sobre os alicerces do comércio informal, das dinâmicas ilícitas e das casas de
prostituição. As principais vias de acesso são pelos canais às margens do rio
Amazonas e principalmente pelas ruas Beira Mar, Rio Jari, Avenida Shalon e rua
Jesus de Nazaré. Essas ruas aglutinam uma grande quantidade de
                                                            
1Servidor da Delegacia Federal do Desenvolvimento Agrário, estudante do curso de Licenciatura em Filosofia e
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá. Membro do Núcleo de Estudos sobre
Violência Urbana/UNIFAP.

3355 
 
 
 
 
 
estabelecimentos como: “casa de show”, “casa de stripers”, bares, hotéis, pousadas,
botecos e em geral funcionam o dia e a noite toda, resquícios de uma rede de
serviços voltada para atender os trabalhadores da antiga ICOMI (Cf. FILHO et al,
2009).
A empresa construiu um cais flutuante, hoje localizado no bairro da Área
Portuária. A influência deste cais incentivava o comércio e a indústria de pequeno
porte, estimulando a chegada de trabalhadores oriundos de diversas ilhas do Pará,
do interior do Amapá e nordestinos vindos principalmente do Maranhão (Cf. SILVA,
2006, p.47).
A dinâmica do cais possibilitou a insurgência de diversos ramos do comércio
e de serviços. Essa dinâmica alterou extremamente o fluxo populacional, econômico
e social do lugar, provocando impactos na paisagem primitiva principalmente na
área de várzea, que é hoje conhecida como Baixada do Ambrósio, dada as
circunstâncias que neste local, viajantes, ribeirinhos, migrantes alojaram-se em
pequenos barracos e palafitas.
O trânsito de trabalhadores e comerciantes possibilitou a criação de vilas e
ampliou o cenário urbano do município. Ribeirinhos e migrantes se instalaram nas
mediações da área portuária na expectativa de emprego e melhores condições de
vida (Cf. FARIAS; FLEXA, 2008).
Neste trabalho abordarei as tramas das relações que se estabeleceram
durante o processo histórico de ocupação da comunidade, procurando articulares os
diversos sujeitos que constituem as relações da violência urbana. Desta forma, as
análises de Zygmunt Bauman e Tereza Caldeira com relação ao medo e a
insegurança moderna dentro dos espaços urbanos principalmente no que toca à
criminalidade são minhas principais categorias de análises.
A perspectiva de Bauman parte da metáfora da modernidade líquida e como
se dá o processo de “dissolução dos sólidos2” para a constituição de uma nova
ordem social marcada pelo afrouxamento dos laços humanos e a gradual
decomposição da solidariedade. Essas características, então, podem ser percebidas
de maneira mais clara nas grandes cidades, como muito bem descreve Caldeira
(2000), segundo ela, as cidades passam a ser lugares de segregação ao invés de
promover o encontro. A dinâmica desse processo é permeada pelo medo do outro,
                                                            
2Cf. BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008.

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do desconhecido, do estrangeiro, e, de maneira mais abrangente das “classes
perigosas”.

2. A BAIXADA DO AMBRÓSIO: UMA COMUNIDADE INVISÍVEL

Construída sobre um alagado de área de várzea, tendo majoritariamente, uma


população socioeconomicamente vulnerável do município, as casas são palafitas
suspensas em área de ressaca, distribuídas de forma aleatória compondo um
cenário dividido entre casas, estabelecimentos comerciais, igrejas, associações e
estabelecimentos compostos (casa/comércio), na maioria apresentam estrutura de
madeira. Possuindo como única via de acesso pontes deterioradas.
Esse cenário de casas aglutinadas umas nas outras alimentam conflitos que
surgem a todo o momento, conflitos que são gerados e ampliados por diversos
motivos, que vai desde o som muito alto a sujeira produzida pelo vizinho ao lado.
Essa decomposição a partir destes conflitos impedem a construção ou
manutenção da comunidade enquanto lugar seguro de inteira confiança entre seus
membros. Isto, por suas vez, contribui para a difusão do medo e da insegurança na
sociedade ocasionados pela sensação constante da existência de perigos que não
podemos calcular e muito menos evitar.
Essa sensação de insegurança e de medo líquido produz sobre a sociedade
padrões e necessidades, relacionadas à violência criminal do bairro que parece cada
vez mais preencher o imaginário social dos moradores.
A extrema individualidade, característica intrínseca da modernidade, tem
origem no “desejo moderno” de se libertar das obrigações morais e éticas que não
permitiriam a emergência da verdadeira racionalidade capitalista pautada no
dinheiro.
Marcada como muitas das áreas “invisíveis” de nosso país, a Baixada do
Ambrósio, do ponto de vista de politicas públicas, é extremamente esquecida pelo
Estado, principalmente na condição da infraestrutura e nos serviços públicos básicos
do bairro.
Segundo o censo de 2010 realizado pelo IBGE, são 953 domicílios
particulares ocupados em área de ressaca para uma população de
aproximadamente 4555 pessoas, uma média de 4,8 moradores por casa.
3357 
 
 
 
 
 
Por outro lado, o desamparo do poder público facilitou a instalação de redes
do tráfico de drogas, e principalmente a dinâmica dos confrontos de gangues, que já
existe no bairro desde as primeiras gerações dos anos de 1990.
Durante as entrevistas realizadas no bairro, constatei que os moradores são
percebidos como sujeitos imersos em um permanente sentimento de medo
ambíguo: primeiro, seja por conta da criminalidade instaurada no local a partir dos
furtos, roubos e assassinatos; segundo, seja por conta da grande sensação de medo
que a abordagem policial representa para os moradores.
Para Bauman (2008), a violência urbana produz na sociedade um sentimento
de insegurança e medo, onde as estruturas sólidas são preenchidas pela rápida
fluidez da modernidade líquida. A insegurança sentida cria uma segregação racional,
em que o lugar público é esvaziado e o lugar privado é preenchido.
Em Caldeira, a construção dos estereótipos ligados às “classes perigosas” é
fruto de uma visão categorizante que se dá em diversos níveis e em todos os grupos
sociais. Tal fenômeno tem estreita relação com os sentimentos de medo e
insegurança e se refletem na construção de verdadeiras fortalezas urbanas ou em
pequenas atitudes do dia-a-dia revelando o que para Bauman é uma “paranóia”
moderna.
O resultado de tudo isto é a convivência diária com a incerteza, o vázio, o
medo, a segregação social, a morte da política, e o esvaziamento de categorias e
instituições como a família, a classe, o bairro e a emergência do individualismo
competitivo.

3. VIOLÊNCIAS: UMA “MARCA” PRESENTE


A conceituação da violência enquanto fenômeno está situado no fato de ser
um fenômeno da ordem do cotidiano, cujas manifestações estão assentadas em
uma carga emocional muito forte para quem sofre, comete ou para quem presencia
(Cf. MINAYO, 2006, p.14). Sensações estas que estão tão fortemente presentes no
tecido social da Baixada do Ambrósio.
Na produção espacial da Baixada do Ambrósio podemos destacar como “atos
de violência”, os atos que são “visíveis” à dinâmica dos indivíduos como, por
exemplo: furtos, roubos, assaltos, agressões, assassinatos, rede de tráfico de
drogas e confronto de gangues.
3358 
 
 
 
 
 
Para o “estado de violência” destaca-se a sensação da violência, a
acumulação social da violência mais especificamente a imagem de uma comunidade
tomada pelos atos de violência, a sensação do medo difuso, a idealização de estar
inserido em um campo minado.
Dentro da dinâmica do bairro é preciso primeiramente distinguir a violência
partir de duas concepções:
a) violência física, aquela que atinge diretamente a estrutura corporal e pode
ser manifestada nos homicídios, nas agressões e nas violações a o patrimônio;
b) violência moral e simbólica, aquela que exerce a dominação cultural,
ofendendo a dignidade e desrespeitando o direito do outro. Esta última vem sendo
diretamente representada principalmente pela suspeição policial, que nas
abordagens agride de forma moral e simbólica os moradores.
Por outro lado, as ações dos catraieiros representam um dos elementos que
segundo Machado da Silva (2004), compõem o que ele chama de “sociabilidade
violenta”, ou seja, elementos que surgem e se desenvolvem nos dias atuais,
baseando-se especificamente em recursos da violência, “uma nova sociabilidade
marcada por suas próprias táticas, por suas próprias informações e próprias
linguagens especificas a um novo modo de vida” (MACHADO DA SILVA, 2004,
p.55).
Seguindo o raciocínio do autor, as ações violentas não são mais um conjunto
de comportamentos isolados, mas sim uma representação da estrutura social do
bairro.
Nos anos 1990, iniciou na Baixada do Ambrósio um fenômeno que foi muito
recorrente a todo município de Santana/AP, a consolidação dos confrontos de
gangues. Nesse período, duas gangues eram protagonistas dentro do bairro: a
American Breacke a RB (Ratos da Baixada).
A “American Breack3”, que lutava contra as investidas da R. B. pelo espaço
geográfico de dominação interna do bairro. Os limites se estendiam em toda parte
baixa seguindo até o término das pontes de madeiras que dão acesso às ruas
asfaltadas. A “RB4”que tinha como espaço geográfico de dominação a parte externa

                                                            
3O nome American Breack faz referência ao grande sucesso do filme exibido nos anos 1990, que tinha como
temática a disputa de grupos de Breack nos Estados Unidos.
4A RB, ou os Ratos da Baixada, foi inspirado no nome, Ratos do Porão uma banda brasileira dos anos 1980 de

tinha como estilo musical o hardcore punk/crossover.

3359 
 
 
 
 
 
do bairro, suas ações concentravam-se em toda a área alta, nas ruas asfaltadas e
principalmente na Rua Jari.
O que começou como grupo rival de dança ao longo dos anos passou a se
tornar grupos que se confrontavam para estabelecer o domínio local. Esses grupos
produziam entre eles inúmeros atos violentos que ultrapassavam as fronteiras do
Ambrósio. Esses grupos ficaram marcados no imaginário social da comunidade.
Assim, indivíduos e lugares são marcados pela profunda acumulação social
da violência, fortalecendo jargões como “bandido bom é bandido morto”. Esse
fenômeno é em verdade, “a construção de um fantasma consistente, que espreita o
cotidiano público e privado e o equaciona com outros signos, como a miséria, a
desigualdade econômico-social” (MISSE, 1999, p.15).
Conforme Misse (1999), misturam-se na representação social diferentes
signos da violência: “aumento de furtos e assaltos, aumento das mortes por
atropelamentos, agressividade no trânsito e nos encontros cotidianos, confrontos
nas ruas, entre policiais e bandidos, aparecimento de esquadrões da morte” (MISSE,
1999, p.22).
Enfim, signos multifacetados, “um fantasma avolumado”, uma sensação de
desordem e caos urbano, somado a isso uma polícia ineficiente.
Segundo a imprensa escrita do município de Santana/AP a pobreza e a
criminalidade da região do Ambrósio são percebidas, pelos demais bairros da
cidade, como responsáveis pela produção da “marginalidade”, uma comunidade que
deve ser colocada sempre em vigilância, principalmente após a constituição da
grande rede do tráfico de drogas no bairro (Cf. ANDRADE, 2014, p.10).
Para Zigmunt Bauman (2005), o “excesso de gente” não integrada que é
temporariamente excluída, sem qualquer tipo de atividade funcional dentro do
sistema capitalista, está mais propenso a ser rotulada de “classes perigosas” (Cf.
BAUMAN, 2005), que neste caso é facilmente imputada aos moradores da Baixada
do Ambrósio, haja vista que o bairro é constituído de uma grande população de
moradores de baixa renda.
Segundo Magalhães (2009, p.31) é fato que os meios de comunicação
passaram a fazer parte da representação do cotidiano da sociedade,
desempenhando um papel relevante na construção do mundo social, pois criam e

3360 
 
 
 
 
 
reproduzem representações sociais da realidade. No entanto, tal contribuição gerou
diversos fenômenos, entre eles a espetacularização da violência urbana.
No caso da mídia local não é diferente, as reportagens policiais, somada ao
grande número de ocorrências registradas pela polícia militar, contribuem para a
afirmação de que a Baixada do Ambrósio é um dos bairros mais violentos do
município de Santana/AP.
Por outro lado, a cidade que foi um espaço pensado primeiramente para
proteger os seus habitantes, é associada cada vez mais ao perigo, como pontua
Bauman, aumentando o investimento em segurança particular, vigilância de locais
públicos e descrédito da segurança pública juntamente com a redução do controle
estatal, na “Baixada” não é diferente, mesmo sem recursos os moradores investem
como podem para proteger suas casas.
A busca por essa segurança levou cada vez mais a sociedade a produzir
fronteiras tanto materiais quanto imaginárias. A solidariedade, essência da
comunidade, deu lugar ao individualismo, desconfiança e falta de diálogo. As
cidades espaços privilegiados para o encontro entre os diferentes, se tornou espaço
para a segregação.
Sendo assim, como afirma Caldeira, “a violência e o medo combinam-se a
processos de mudanças sociais nas cidades contemporâneas, gerando novas
formas de segregação espacial e discriminação social” (CALDEIRA, 2000, p.9).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Bauman, o medo na sociedade moderna: “(...) é o nome que damos


a nossa incerteza: ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do
que não pode – para fazê-la parar ou enfrenta-la, se cessá-la estiver além do nosso
alcance” (BAUMAN, 2008, p.8).
Para o autor, nas trevas está a incerteza, a “modernidade” seria então, a
possibilidade de acabar com o medo na medida em que as luzes da razão iluminista
iriam dissipar as trevas da ignorância, mas esta foi uma promessa que não se
cumpriu.
A ideia de que na Baixada do Ambrósio “só dá marginal” veio se acumulando
ao longo do tempo desde o advento das gangues. Somado a isso outras imagens

3361 
 
 
 
 
 
circulam no terreno fértil do bairro, como por exemplo, o “bairro dos perigosos”, o
“bairro dos ladrões”, o “bairro dos traficantes” e o “bairro das prostitutas”.
A acumulação social da violência não alimenta apenas a atividade policial,
mas alimenta também as classificações de indivíduos nas predefinições de quem é,
ou não um bandido.
Os fenômenos do medo, da insegurança, da criminalidade, da falta de
solidariedade, da segregação espacial e da discriminação. Há um processo
crescente de dissolução dos laços que antes ligavam os homens voluntariamente e
diretamente sem a presença de nenhum mediador.
Nas cidades existem os bairros considerados perigosos, muitas vezes por
conta da difusão do medo “produzido”, em grande parte, pela fala do crime5
reforçada pelos meios de comunicação. Ao contrário do que se imagina, nesses
lugares há a presença de “atitudes” e aparatos relacionados à segurança privada de
acordo com a condição financeira do indivíduo, que vão desde pequenas atitudes
até mais elaboradas.
Por fim, as cidades vêm intensificando e reafirmando a formação dessas
fronteiras. O espaço urbano, como afirma Caldeira, “(...) reforça e valoriza as
desigualdades e separações e é, portanto, um espaço público não-democrático e
não-moderno.” (CALDEIRA, 2000, p.12). A única saída que Bauman aponta é a
tentativa da construção da verdadeira comunidade restabelecendo os laços
humanos e a política.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Arthur Anthunes Leite de. Representações da criminalidade urbana:


medo e insegurança social no bairro da Baixada do Ambrósio/AP. UNIFAP.
[Relatório Final do Programa de Iniciação Científica], Macapá, 2014.
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na Cidade.Tradução Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
________. Medo Líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar ed., 2008.
CALDEIRA, Tereza. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo. São Paulo: 34/Edusp, 2000.
                                                            
5(...)
todos os tipos de conversas, comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o
medo como tema (...) (CALDEIRA, 2000, p.27).

3362 
 
 
 
 
 
FARIAS, Aline Suzana de; FLEXA, Gianna Gomes. Degradação ambiental e
exclusão social na Baixada do Ambrósio: Santana/AP. Macapá, [Trabalho de
Conclusão de Curso], UNIFAP, 2008.
FILHO, Edilson; CONTENTE, Paulo; FERREIRA, Tatiane. Aspectos sócio-
ambientais no bairro Área Portuária do Município de Santana-AP. Macapá,
[Trabalho de Conclusão de Curso], UNIFAP, 2009.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE, (2010).
Aglomerados subnormais – CENSO/2010 » Baixada do Ambrósio » Domicílios
particulares ocupados em aglomerados subnormais. Amapá. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/92/cd_2010_aglomerados_subn
ormais pdf>. Acesso em 25/10/2013.
MACHADO DA SILVA, Luis Antonio. Sociabilidade violenta: por uma
interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Revista
Sociedade e Estado. Brasília, v. 19, n. 1, p.53-84, jan./jun., 2004.
MAGALHÃES, Nara. Significados de violência em abordagens da mensagem
televisiva. Revista Sociologias. Porto Alegre, v. 11, n. 21, p.318-343, jan./jun., 2009.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2006.
MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da
violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, [Tese de Doutorado em Sociologia],
IUPERJ, 1999.
SILVA, Helba da Cruz. Condições de moradia da população do Ambrósio.
Santana/AP. Macapá, [Trabalho de Conclusão de Curso], UNIFAP, 2006.

3363 
 
 
 
 
 

GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

OS MUSEUS NAS PERIFERIAS URBANAS BRASILEIRAS: SOBRE A POLÍTICA


CULTURAL DOS PONTOS DE MEMÓRIA

Camila de Fátima Simão de Moura Alcântara (UFPA)1


[email protected]

RESUMO

A prática museológica tem sofrido alterações significativas ao longo do último século com a
consolidação da museologia social que defende os compromissos sociais dos museus com
a comunidade representada dentro dessas instituições. No Brasil, essas práticas ganharam
força com o aparecimento dos Pontos de Memória, que são iniciativas comunitárias que
reconhecem a importância dos museus para as transformações sociais em territórios
musealizados, sendo ferramenta útil para afirmação de identidades e patrimônios locais. O
Programa Pontos de Memória criado em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Museus,
reconheceu inicialmente 12 iniciativas comunitárias situadas em territórios periféricos dos
centros urbanos brasileiros, entre eles, o bairro da Terra Firme em Belém do Pará, com o
Ponto de Memória da Terra Firme. Por meio da teoria antropológica e do fazer etnográfico
frente as formas de atuação das comunidades integradas à Ação-Piloto do Programa Pontos
de Memória e em meio ao processo museológico instaurado no bairro da Terra Firme,
proponho nesse trabalho, refletir por que essas comunidades periféricas se organizam
politicamente por meio dos museus, trazendo observações e experimentos em campo.
Desse modo, procuro dialogar com dois campos disciplinares: Antropologia e Museologia,
ao desenvolver uma pesquisa de antropologia urbana. Em curso, afirmo que os museus
presentes nas periferias urbanas brasileiras provocam o protagonismo comunitário de
comunidades que não tiveram a oportunidade de expor seus valores sociais e culturais,
garantindo assim o exercício ao direito à memória.

Palavras-chave: Museus, Periferias, Pontos de Memória, Terra Firme, Política Cultural.

1. INTRODUÇÃO
No ano de 2009, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) lançou o Programa Pontos
de Memória (PPM), tomado por um processo transformador no campo museológico que
iniciou na segunda metade do século XX. O objetivo principal era o de apoiar ações e
iniciativas de reconhecimento e valorização da memória social a partir do protagonismo
comunitário, partindo do entendimento de que os museus seriam meios de mudança social e
desenvolvimento sustentável de comunidades que não tinham a oportunidade de expor seus
valores sociais e culturais (IBRAM e OEI 2016, MOURA 2016). Para iniciar o Programa, o

                                                            
1 Estudante de pós-graduação, Bacharel em Turismo Mestra em Antropologia pela Universidade Federal do
Pará, Programa de Pós-Graduação em Antropologia (UFPA/PPGA). Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de
Pesquisa “Turismo Cultural e Patrimonialização: campo de relações, referências culturais e gestão para
visitação”, coordenado pela Professora Dra. Renata de Godoy (UFPA/PPGA).

3365 
 
 
 
 
 
IBRAM propôs para 12 comunidades urbanas periféricas a realização de uma Ação-Piloto
que consistiria em um experimento prático do PPM.
Consideradas como pontos pioneiros (BRASIL 2017), as iniciativas comunitárias
contempladas inicialmente são: Comunidade do bairro da Terra Firme (Belém-PA);
Comunidade do Taquaril (Belo Horizonte – MG), Comunidade da Estrutural (Brasília-DF);
Comunidade do Sítio Cercado (Curitiba-PR); Comunidade Grande Bom Jardim (Fortaleza-
CE); Comunidade do Jacintinho (Maceió-AL); Comunidade da Lomba do Pinheiro (Porto
Alegre-RS); Comunidade do Coque (Recife-PE); Comunidades do Pavão-Pavãozinho-
Cantagalo (Rio de Janeiro-RJ); Comunidade da Brasilândia (São Paulo-SP); Comunidade do
Beiru (Salvador-BA) e Comunidade do São Pedro (Vitória-ES).
Esses pontos fizeram parte de uma consolidação de políticas públicas para os
campos do Patrimônio Cultural, da Memória Social e dos Museus, resultado da parceria
entre o IBRAM com os Programas Mais Cultura e Cultura Viva do Ministério da Cultura, o
Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI) do Ministério da Justiça
(MJ), com apoio da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI/Brasil). É válido
salientar que no ano de 2011 o PPM ampliou-se a partir da concretização do Edital Prêmio
Pontos de Memória2. Contudo, essa pesquisa restringe-se aos doze pontos iniciais
contemplados pelo Programa.
Ao vivenciar o processo de formação do Ponto de Memória da Terra Firme no bairro
da Terra Firme em Belém do Pará e a consolidação dos Pontos de Memória em seus locais
de atuação, proponho nesse paper, refletir por que comunidades periféricas escolhem se
organizar politicamente por meio dos museus, tomando como estudo de caso a Ação-Piloto
do Programa Pontos de Memória. Utilizo a teoria antropológica e o fazer etnográfico para
observar e experimentar essas práticas museológicas que vem ganhando força no Brasil
nos últimos anos.
Compreendo que os pontos pioneiros “são museus por trabalharem com identidades
locais, narrativas e representações dentro de pressupostos de um tipo de representação
museal” (MOURA e GODOY 2017, p. 7), por exemplo museus de território, museus de
percurso, museus de cultura periférica. Entretanto, os considero museus comunitários por
serem proponentes de comunidades locais que vivem e trabalham em simbiose com a
população de seu território de pertencimento, emergidos a partir de pessoas que militam por
seus patrimônios reconhecidos e legitimados (VARINE 2005). Desse modo, são

                                                            
2
  O edital promovido pelo IBRAM visa reconhecer e premiar práticas museais e processos dedicados às
memórias desenvolvidas por grupos, povos e comunidades em âmbito nacional e por comunidades brasileiras no
exterior.  

3366 
 
 
 
 
 
apreendidos nessa pesquisa como iniciativas comunitárias que tomam os museus como
espaços de representação e reflexão de suas realidades (MOURA e GODOY 2017).
No Brasil, o museus tem contribuído para o processo de transformação social em
comunidades que são marcadas pelo abandono e esquecimento do poder público. Na
defesa desses museus, em contextos urbanos, apresento aqui escritos de minha
dissertação de mestrado e os primeiros resultados da continuação dessa pesquisa no
doutorado em Antropologia Social (realizada na UFPA, por meio do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia) que busca dialogar com o campo da Museologia, tendo como
objeto de estudo os Pontos de Memória. Nesse momento, o meu interesse é contribuir no
debate sobre diferentes formas de organização política dentro de comunidades periféricas
que resistem bravamente ao descaso do poder público.

2.OS NOVOS MUSEUS BRASILEIROS


O século XX representou o surgimento do que convencionou-se chamar de Nova
Museologia, dada pelas transformações teóricas e metodológicas no campo dos museus
(DUARTE 2013). Segundo Sepúlveda (2004), nesse momento diversos campos do saber
provocaram críticas quanto à representação histórica e autoritarismo das elites presentes
nesses espaços. Para a autora (Ibidem) assim como outras instituições públicas, os museus
foram capazes de ordenar, civilizar e disciplinar grandes setores da civilização.
Contudo, a Nova Museologia propiciou o empoderamento social dentro dos museus.
Espaços que antes consistiam em um cenário silencioso, superado e desajustado, se
afirmam como um lugar de prazer, aprendizado e troca; de inclusão de novos temas, objetos
e recortes diferentes (SEPÚLVEDA 2004, MORAES 2009, DUARTE 2013, MOURA 2016).
Desse modo, os museus tornaram-se instituições que salvaguardam as linguagens,
categorias e símbolos de uma dada sociedade com o propósito de representar aspectos de
sua cultura, sendo meios de afirmação e legitimação de uma identidade coletiva a fim de se
tornarem agentes de transformação social no lugar onde atuam (MOURA 2016).
Como resultado dessas mudanças de pensamento e comportamento museológico
surgiram novas designações baseadas em conceitos, como o de museu integral3, que
implicaram no surgimento de: museus de sociedade, museus de civilização, museus de
culturas, ecomuseus, museus comunitários, por exemplo (DIAS 2007). Sabe-se que cada
sociedade desenvolve uma cultura específica que percebe e define o museu à sua maneira.
Porém, o processo de musealização acontece de mesmo modo nas diferentes apreensões
                                                            
3
 Conceito apresentado e discutido durante o 18° Encontro Anual do ICOM, na cidade de Santiago, Chile, no ano
de 1972. Em que considera que os museus podem e devem desempenhar um papel decisivo na educação da
comunidade representada dentro desses espaços.

3367 
 
 
 
 
 
culturais, em que dentro de um determinado território há transformação de um conjunto
patrimonial que define o espaço musealizado cabível de memória e representação,
conforme a necessidade da comunidade detentora desses patrimônios (MOURA 2016).
Frente a esses acontecimentos passou-se a chamar museologia social a nova forma
de se fazer museus, relacionada à questão dos compromissos sociais que o museu assume
e se vincula, se referindo a compromissos éticos de dimensões científicas, políticas e
poética (CHAGAS e GOUVEIA 2014). Os museus emanados dessa museologia social
tornaram-se meios para a construção de sujeitos coletivos que se apropriam desses
espaços para propiciar a reflexão e a crítica em torno de suas realidades (LERSCH e
OCAMPO 2004). É nesse contexto que surge o Programa Pontos de Memória.
A proposta de criação dos Pontos de Memória foi resultado de um movimento político
iniciado com a implantação do Departamento de Museus e Centros Culturais (DEMU)4 no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no ano de 2003, que provocou
diversos avanços no campo dos museus no Brasil, as frentes políticas priorizaram ações
voltadas para a consolidação da museologia social no país. No entanto, é importante
destacar que os museus comunitários dentro de bairros, favelas e centros culturais já era
uma realidade brasileira, refiro-me ao: Ecomuseu do Quarteirão e Museu da Maré no Rio de
Janeiro; Ecomuseu da Serra do Ouro Preto, cidade de Ouro Preto em Minas Gerais; Museu
Treze de Maio, em Santa Maria no Rio Grande do Sul; como também o Ecomuseu da
Amazônia, em Belém (MOURA 2016).
Essas iniciativas surgiram após a Eco-925, que discutiu e reconheceu no país a
importância sócio educacional dos museus para os novos espaços e também os em
funcionamento. Desde 2004, essas experiências se articulam por meio da Associação
Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários (ABREMC)6, que buscam desenvolvimento
sociocultural a partir do processo museológico dentro de comunidades compromissadas
com sua memória, território e patrimônio cultural. Portanto, a importância da implantação do
Programa Pontos de Memória, pelo Instituto Brasileiro de Museus, é o reconhecimento do
poder público sobre as transformações sociais que os museus provocam nos lugares e nas
pessoas.
Assim, o PPM surge com a proposta de incentivar a criação e quiçá reconhecer
novas iniciativas dentro da sociedade brasileira, que na maioria dos casos, se mantém a
                                                            
4
  Unidade institucional responsável em promover estratégias de mobilização política e coorporativa, difundir e
estimular ações específicas e algumas reflexões no campo dos museus 
5
  Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento na cidade do Rio de Janeiro,
Brasil, em 1992.

6
  É uma associação civil, sem fins lucrativos e que tem por finalidade fomentar a criação, cooperação e
divulgação de ecomuseus e museus comunitários no Brasil.   

3368 
 
 
 
 
 
margem de políticas públicas sociais. Porém, sabe-se que a política dos Pontos de Memória
trata-se, também, de uma promoção do estado de bem-estar das comunidades urbanas que
sofrem com as mazelas das grandes cidades. Contudo, a estratégia política de identificar,
selecionar e apoiar grupos que valorizam a cultura periférica é decisiva para o sucesso do
programa.
As comunidades selecionadas que integram a Ação-Piloto do Programa Pontos de
Memória são grupos oriundos da periferia, pelo qual resistem a opressão social por meio de
suas expressões culturais que estão nas músicas, nas danças, nas vestimentas e também
em outros tipos de linguagens corporais e de comunicação. Essas expressões que vêm das
periferias para os centros da cidade estão se afirmando no século XXI, presente em lugares
de formação recente que surgiram com a expansão das grandes cidades e articulação
sociopolítica das pessoas que conseguem se firmar enquanto grupo e território (MOURA e
GODOY 2017). Podemos tomar como exemplo a Comunidade do Cantagalo-Pavão-
Pavãozinho, na cidade do Rio de Janeiro, a primeira inciativa comunitária de memória e
museologia social reconhecida dentro do PPM.
Nessa comunidade existe o Museu de Favela (MUF) desde o ano de 2008, uma
associação privada de interesse comunitário sem fins lucrativos fundada por moradores das
favelas de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho. “O MUF já nasceu com um plano museológico e
um forte modo de experimentalista, sem modelos nos quais se inspirar” afirmam Pinto et. al
(2012, p. 147). Com o propósito também de experimentar, técnicos do IBRAM se
deslocaram para mais 11 (onze) capitais, mencionadas anteriormente, para mapear as
comunidades periféricas. Levaram em consideração: a história dos grupos, ações voltadas
para a afirmação da memória e identidade, apropriação da cultura popular e vontade de
formarem coletivamente um museu comunitário.
Feito o mapeamento dessas comunidades o Programa Pontos de Memória passou a
promover no período de 2009 a 2013 as seguintes ações: 1) Teias da Memória7 – encontros
nacionais com as comunidades selecionadas no programa, com o objetivo de estimular a
troca de experiências, a gestão participativa no PPM e reflexões sobre as realidades
socioculturais dos lugares onde atuam os pontos de memória; 2) suporte técnico – a
coordenação do programa dividiu-se entre os pontos pioneiros ministrando oficinas de
formação para os Conselhos Gestores8 das iniciativas, com temas relacionados à memória,
patrimônio, identidade e museus; 3) consultoria locais - seleção de consultores locais para
atuarem nas comunidades afim de viabilizar consultoria técnica-operacional em torno da

                                                            
7
 O primeiro encontro ocorreu em dezembro de 2009 na cidade de Salvador.
8 Representatividades civis dos Pontos Pioneiros.

3369 
 
 
 
 
 
memória social legitimada por esses grupos; 4) redes de pontos de memórias9 - com o
interesse de aproximar e articular ações e trocas de experiências entre iniciativas culturais.
(CHAGAS E GOUVEIA 2014, MOURA 2016, IBRAM e OEI 2016)
Essas ações realizadas de maneira gradativa de acordo com as peculiaridades
locais, estruturais e de momento, foram essenciais para a consolidação do Programa Pontos
de Memória como uma política cultural (IBRAM e OEI 2016), o processo que iniciou em
2009 veio ao longo dos anos legitimando essas iniciativas comunitárias de memória e
museologia social como organizações civis importantes que provocam transformações
socioculturais e educacionais em seus lugares de atuação. Essa legitimação deve-se muito
a uma militância política, constituída em sua maioria por lideranças comunitárias dos pontos
pioneiros, que tomam posicionamentos críticos frente as mudanças que começaram a surgir
dentro do programa (MOURA 2016). A militância exige principalmente representatividade
dentro da manutenção do PPM, além de continuação de oficinas, visitas técnicas e
promoção da Teia da Memória.
No entanto, apreendo que uma das principais, se não a principal contribuição dessa
militância política é a forma como resignificaram a categoria museu, incorporando amplas
dimensões simbólicas e sociais. Nos primeiros anos, buscaram o reconhecimento como
museus que seguiam os pressupostos da museologia social, porém nos últimos tempos, os
Pontos de Memória passaram a se afirmar e a exigir reconhecimento como tal. Os sujeitos
atuantes no processo entendem como Pontos de Memória qualquer iniciativa comunitária
que se identifiquem com as perspectivas da memória social e/ou da museologia social,
atribuindo diversos significados a suas organizações (MOURA 2016).
Contudo, é válido assegurar que o interesse em se afirmarem como iniciativas
comunitárias de caráter sociocultural deve-se ao objetivo dessas comunidades de
participarem de diversas políticas públicas culturais pelo país, que possam contribuir para o
seu fortalecimento e manutenção local. Dado pelo fato de que serem “apenas” museus
ficam restritos a políticas públicas específicas para o campo museológico, que de certa
maneira são escassas no país. Entretanto, não ditar, nomear, conceituar essas iniciativas
de memória e museologia social como museus, não desmerecem o protagonismo social por
meio de ações museológicas (MOURA 2016).
Varine ao referir-se aos novos museus afirma “alguns nem se chamarão museus,
mas todos seguirão os princípios da nova museologia (Santiago, Quebec, Caracas) no seu
espírito ou na sua escrita (teoria)” (1996: 2014; p. 247). A partir dessa perspectiva defendo
que os pontos pioneiros são museus, em sua maioria, sendo processos comunitários
dinâmicos que entendem o papel transformador dos museus e seus desdobramentos, indo
                                                            
9 Destaca-se a Rede de Memória e Iniciativas Comunitárias da Região Norte.

3370 
 
 
 
 
 
além do conceito pré-estabelecido no sentido institucional. Desse modo, os comunitários
reconhecem as linguagens reveladas, categoriais criadas, símbolos e rituais expostos, bem
como instituições afirmadas (BARTH 2000) que envolvem o processo de formação e
execução do Programa Pontos de Memória.
O programa alcançou reconhecimento nacional e internacional no que se refere à
aplicação na prática dos conceitos atrelados a museologia social, compartilhando saberes e
fazeres das experiências metodológicas dos pontos pioneiros, o que contribuiu para um
maior desenvolvimento e qualificação, inclusive do seu pessoal (MOURA 2016). Reconhece
a importância dessa política, mas sabe-se que é por meio do empoderamento das
comunidades relacionadas aos pontos pioneiros que a eleva ao status de eficácia, passando
a ser reconhecida como uma importante política cultural do estado brasileiro. Abordar os
desdobramentos dessa política é o objetivo da próxima seção.

3. POLÍTICA CULTURAL DOS PONTOS DE MEMÓRIA


A partir da década de 1990 iniciou no Brasil um movimento político em defesa da
cultura como agente formador e articulador no processo de luta e consciência social, em que
defendia-se propostas de descentralização cultural. Nesse momento, a idéia de diferença foi
incorporada no cotidiano dos grupos sociais que exigiam instituições de vida própria inserida
no cotidiano das cidades, da indústria cultural e da cultura de massas (MORAES 2009). No
campo dos museus, intelectuais e agentes comunitários trabalharam em defesa de políticas
públicas que pudessem promover, valorizar e difundir o patrimônio cultural.
Frentes políticas voltadas para museus passaram a militar por mudança no quadro
político da época, conseguindo ascensão no governo Lula no ano de 2003. Todo tipo de
profissional de museus como museólogos, antropólogos e educadores integraram-se a
instituições culturais pelo país, por exemplo no DEMU/IPHAN, mencionado anteriormente.
Nesse contexto, iniciou um processo de formulação de documentos e autarquias museais,
surgindo a Política Nacional de Museus (PNM)10, o Sistema Brasileiro de Museus (SBM)11 e
o Estatuto de Museus (EM)12 em 2006 até a aprovação e constituição do Instituto Brasileiro
de Museus, em 2009.
Moraes nos assegura que essas ações “modificaram as relações estruturantes,
relações gerenciais, políticas, econômicas, sociais, relacionais e simbólicas políticas (...) isto
é, o museu não é mais um fim em si mesmo, não se esgota em si, mas é parte de uma
                                                            
10
 Propõe promover a valorização, a preservação e a fruição do patrimônio cultural brasileiro. 
11 Sua finalidade é facilitar o diálogo entre museus e instituições afins, objetivando a gestão integrada e o
desenvolvimento dos museus, acervos e processos museológicos brasileiros.
12
  Lei 11.904/2009. Com a finalidade de preservação do patrimônio cultural musealizado e passível de
musealização, o decreto coloca para o setor uma série de ações e procedimentos que devem ser seguidos e
confere ao IBRAM ações de fiscalização.

3371 
 
 
 
 
 
estratégia social e simbólica” (2009, p. 63). Portanto, essa estratégia social e simbólica
identificada pelo autor representou o surgimento do Programa Pontos de Memória, onde o
estado apreende essa política como sendo uma metodologia fundamental ao combate dos
problemas sociais existentes nas periferias, como a violência (GEISE 2014, MOURA 2016,
MOURA e GODOY 2017).
Desse modo, o PPM foi pautado no Plano Nacional de Cultura e o Plano Nacional de
Museus, sob responsabilidade da Coordenação de Museologia Social e Educação
(COMUSE) do Departamento de Processos Museais (DPMUS) do IBRAM. Pelo qual,
reconhece comunidades organizadas, por meio das lembranças, práticas cotidianas,
expressões artísticas e religiosas, fazeres e saberes; que expressam por outros suportes de
memória os seus valores patrimoniais (CHAGAS 2009). Sendo a favor de movimentos que
lutam por redução de injustiças e desigualdades sociais a partir de processos museais
(CHAGAS E GOUVEIA 2014). Atualmente são mais de 150 iniciativas reconhecidas no país,
além de 18 premiadas no exterior, a partir dos editais prêmios.
Os princípios do programa foram definidos em 2012, com participação dos pontos
pioneiros, representantes do campo da museologia social e técnicos do instituto. Esses
sujeitos redigiram a “Carta dos Pontos de Memória e Iniciativas Comunitárias em Memória e
Museologia Social” (IBRAM 2012) contendo os seguintes princípios:

1. Garantir o direito à memória às comunidades, grupos e sujeitos locais


historicamente excluídos;
2. Salvaguardar que os Pontos de Memória e demais iniciativas comunitárias em
memória e museologia social sejam geridas por instâncias participativas,
organizadas para esta finalidade, no seio de suas próprias populações;
3. Garantir a autonomia e a descentralização das iniciativas comunitárias de
memória, fomentando a cooperação entre as redes estaduais de memória e
museologia social;
4. Reconhecer, respeitar e valorizar as diversidades, especificidades e
potencialidades das comunidades, priorizando o desenvolvimento local e visando à
sustentabilidade;
5. Adotar metodologias de conhecimento sistêmico do território como garantia da
relação entre memória social e sustentabilidade;
6. Instituir a formação em rede como parte do processo de articulação das redes
estaduais, garantindo uma formação continuada que atenda às reais necessidades
de desenvolvimento e sustentabilidade dos Pontos de Memória e demais iniciativas
comunitárias em memória e museologia social.

A definição desses princípios foi uma conquista da militância política dos pontos de
memória que pressionou a COMUSE para a garantia de que o PPM fosse definitivamente
uma política pública do IBRAM. As articulações dos sujeitos envolvidos intensificaram com a
formação da Comissão Provisória de Gestão Compartilhada/Participativa (COGEPACO)
durante o 5º Fórum Nacional de Museus na cidade de Petrópolis, no estado do Rio de
Janeiro (realizado no mesmo ano de 2012). A COGEPACO possibilitou o intercâmbio entre

3372 
 
 
 
 
 
as experiências de pontos de memória (reconhecidas até o momento) e na capacitação dos
pontos premiados pelo primeiro edital, além da realização da IV Teia da Memória em Belém
no ano de 2014.
A IV Teia recebeu os representantes de 120 Pontos de Memória existente naquele
momento, como também profissionais, pesquisadores e estudantes da museologia social no
Brasil e no mundo. O evento teve como principal resultado o debate sobre a minuta de
portaria para a constituição de um Conselho de Gestão Participativa e Compartilhada do
Programa Pontos de Memória e a eleição dos conselheiros, que são representantes dos
pontos pioneiros e dos premiados, além de representantes específicos das Redes de Pontos
de Memória (MOURA 2016, IBRAM 2017). Identificou-se ao longo desses últimos anos que
a instabilidade política do país influenciou diretamente na articulação dos pontos que
perderam forças dentro do programa, principalmente no período de 2015 a 2016.
Isso é claramente percebido quando observamos que o Conselho de Gestão
Participativa e Compartilhada do Programa Pontos de Memória não teve atuação no período
descrito, resultando na não aprovação da minuta de criação do conselho dentro do IBRAM.
Porém, no ano de 2017 as forças políticas efervesceram novamente e conseguiram
participação desse mesmo conselho dentro do 7º Fórum Nacional de Museus ocorrido em
maio na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Para uma primeira etapa de campo de
minha tese acompanhei os debates acirrados entre os representantes do Conselho de
Gestão Participativa do PPM com os representantes do IBRAM, inclusive com forte pressão
ao atual presidente do instituto, Marcelo Mattos Araújo.
Os representantes dos Pontos de Memória presentes no 7º Fórum garantiram a
agilidade ao processo de criação de uma autarquia civil na gestão do PPM. O momento foi
de negociação, de avanços e de rupturas entre as esferas envolvidas. Tendo como principal
encaminhamento a publicação da Portaria nº 315 que institucionaliza o Programa Pontos de
Memória, após alguns meses, em setembro de 2017.
Na portaria os princípios do PPM estão registrados, as experiências comunitárias
participantes da Ação-Piloto são reconhecidas como pontos pioneiros, o Comitê Consultivo
do Programa Pontos de Memória (uma negociação dentro do 6º Fórum que substituí o
formato de Conselho por Comitê) é constituído, o IBRAM compromete-se a promover
debates e ações com representantes de pontos de memória e fixa-se o prazo de 240 dias
para a publicação do regimento interno do Comitê Consultivo. No entanto, identifico que as
rupturas impossibilitam que ações realizadas nos pontos pioneiros possam avançar para os
demais pontos de memória, principalmente nas que se referem a processos museológicos.
Moraes afirma que “a política cultural ainda depende de circunstâncias e de alianças
conjunturais” (2009, p. 67). Desse modo, percebe-se que as políticas culturais voltadas para

3373 
 
 
 
 
 
os museus não se diferenciam de qualquer outra política pública cultural brasileira, mesmo
as pautadas no protagonismo comunitário. Contudo, as iniciativas comunitárias que muitas
vezes nem entendem conceitos de museu e memória social, ao militarem por seus
patrimônios internalizaram a política dos Pontos de Memória como um importante processo
de ação e mobilização social. Com o intuito de expor de que modo a política acontece em
níveis locais, trago na próxima seção algumas observações e experimentos de campo.

4. REFLEXÕES SOBRE MUSEUS NAS PERIFERIAS


Participo do processo de formação e consolidação do Programa Pontos de Memória
desde sua fase inicial quando tornei-me conselheira do Ponto de Memória da Terra Firme
(período de 2010 a 2011) e, posteriormente, consultora local do programa no PMTF (anos
de 2011 e 2012). Ao cursar Antropologia passei a pesquisar sobre essas iniciativas
comunitárias, tomando como referência a existente em Belém. Fato que possibilita-me
experimentar o fazer antropológico frente a um processo complexo, inacabado e construtivo
do campo dos museus no país.
Dentre algumas imersões em campo, na oportunidade de perguntar a um grupo de
moradores do bairro da Terra Firme o que significa ter um museu na periferia? Obtive a
seguinte resposta13: “Museu na periferia é dar espaço ao novo, é narrar a vida, é valorizar o
conhecimento, a diversidade e o movimento em comunidade. Mas, museu na periferia, é,
sobretudo, dar representatividade”. A partir dessa definição busco observar o que isso
significa na prática para os pontos pioneiros.
Ao visitar a exposição “Movimentos da Estrutural – Luta, Resistência e Conquista” do
Ponto de Memória da Estrutural, no Distrito Federal, conheci a história do lugar com a
representação de fatos que contribuíram para a identidade local e o fortalecimento dos laços
comunitários, por meio de conjuntos expositivos criados a partir de objetos reciclados. No
Rio de Janeiro, visitei o Museu de Favela pelo Circuito Casas Tela que narra a memória e a
cultura local por meio de 27 telas de arte grafite/naif de vários artistas dos morros
Cantagalo, Pavão e Pavãozinho. Em Salvador, vivenciei alguns encontros no Ponto de
Memória do Beiru onde pude conhecer um pouco da luta pela valorização da memória do
líder negro, Gbeiru (Beiru, em Yorubá)14, que deu origem ao nome do bairro, por ser
considerado símbolo de luta e resistência entre os moradores da região (IBRAM 2016).

                                                            
13 Nessa imersão em campo, estive acompanhada de Camila Quadros, pedagoga, mestranda do Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Pará, pesquisadora no bairro da Terra Firme. Em maio
de 2017 realizamos a oficina Viver para lembrar, morrer para esquecer? A Terra Firme e suas representações
museais” para estudantes, lideranças e moradores do bairro da Terra Firme. A definição de “museu na periferia”
foi um dos resultados desse trabalho.
14
 Nigeriano da cidade de Oió, chegou ao Brasil em 1820. O líder destaca-se por ter organizado um quilombo na
região que atualmente é o bairro do Beiru.  

3374 
 
 
 
 
 
Caminhei no bairro Lomba do Pinheiro em Porto Alegre para conhecer os percursos
trilhados pelos moradores na garantia de seus direitos, como educação, saúde e moradia;
luta diária do Ponto de Memória Lomba do Pinheiro.
As realidades, por mim identificadas, são próximas as do bairro da Terra Firme em
Belém, meu lugar de pertença dentro dos Pontos de Memória. O lugar foi formado a partir
da década de 1960 por meio de um processo de ocupação de trabalhadores de baixa renda
que se deslocaram do centro urbano da cidade e do interior do estado com o intuito de
fixarem moradia em áreas de várzeas pertencentes à União, mais precisamente a
Universidade Federal do Pará (MOURA 2016). Sem planejamento urbano e se mantendo
por um longo período à margem da sociedade belenense o bairro da Terra Firme foi
abandonado pelas políticas públicas governamentais. Contudo, é um lugar de organização
política ativa em que moradores reivindicam seus direitos por meio de associações e
cooperativismo, sendo chamado por Quadros (2014) de a “periferia dos direitos”.
Segundo Fernandes e Mata (2015) a formação de periferias se dá para além da
distância geográfica, elas indicam uma distância simbólica constituída pela perda de
qualquer coisa que coloca em ordem o urbano, como também pela perda de recursos
materiais e de um estilo de vida marcado por padrões de conforto e acesso a esses
recursos. A partir dessas construções simbólicas dentro das cidades são gerados os mais
variados estigmas, rótulos, etiquetagem social sobre esses lugares, fala-se de “bairros de
tráfico”, “bairros de droga”, “bairros de imigrantes”, “bairros de realojamento” dentre tantas
outras classificações locais/nativas. Para os autores “viver nas periferias desqualificadas
gera uma condição social subalterna, e esta tem um impacto sobre o indivíduo, desde logo
sobre o seu corpo e a sua saúde, mas também sobre o seu autoconceito” (Ibidem, p. 9).
As periferias inseridas no Programa Pontos de Memória são marcadas por
agravantes sociais e antagonismos de classes, porém a organização social por parte de
seus moradores possibilita na transformação desses lugares, visando constantemente a
melhoria na qualidade de vida. E dentre diversos atos de transformação desses grupos,
observamos o processo de musealização de seus territórios, tocados pela vontade de
memória. Para Abreu (2016) a memória social é constituída entre o lembrar e o esquecer
que propicia em novos mundos, ao possibilitar a apropriação de experiências para a
transformação de acontecimentos já vividos. Bosi nos afirma que “na maior parte das vezes,
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar” (1999, p. 55).
Essas citações são importantes para compreendermos que o processo museológico
instaurado nessas comunidades possibilita um novo arranjo social, provocado pelo
surgimento de novos mundos que são constituídos pelo ação de refazer, reconstruir e
repensar as experiências lembradas e vividas. Portanto, os impactos sobre os corpos, saúde

3375 
 
 
 
 
 
e autoconceito dos indivíduos, mencionados por Fernandes e Mata (2015), são vencidos
conforme essas rearranjos sociais acontecem, principalmente quando suas memórias são
instrumentos de resistência e empoderamento social.
Em vista disso, Lifschitz (2016) defende que em alguns povos recusa-se esquecer,
resultando no surgimento do que compreende-se como memória política. Para o autor, “a
memória política se articula a vínculos intencionais (...) Ou seja, que mais que compreender,
a questão é como exercer influência sobre outros ou confrontar-se para atingir uma
finalidade” (Ibidem:71-72). A finalidade levantada por ele é a de intervir no mundo social,
confrontando a realidade jurídica, cultural e política por meio de narrativas e práticas de
memória.
Desse modo, compreende-se que esses novos museus brasileiros, os Pontos de
Memória, surgem com a intenção de valorizar e enaltecer o processo de construção da
identidade coletiva de seus lugares de pertencimento. Identidade formada sob forte
influência de movimentos sociais, como: o feminismo, o negro, o LGBT, entre tantos outros
significativos. Esses movimentos mobilizam pessoas na formação de redes de instituições
comunitárias que atendem as necessidades básicas dos sujeitos envolvidos (WACQUANT
2007).
Tais sujeitos são marcados por processos de subalternidade, marginalidade e
discriminação social. Muitos são negros e negras oriundos de famílias pobres que tiveram
pouco acesso à educação de qualidade, pelo qual sofrem com a estigmação que os
reduzem a uma situação de minoridade. Contudo, são a grande maioria da população
brasileira que resiste bravamente ao racismo e ao preconceito, os aprisionando nessa
situação ao longo de suas vidas.
A realidade de formação desses Pontos de Memória, em especial os pioneiros,
acontece dentro de mudanças na conjunta política do país. Em que homens e mulheres
lutam pela garantia de suas direitos conseguindo aos poucos por meio de políticas
afirmativas acessar a educação de ensino superior. Esses sujeitos retornam aos seus
lugares de pertencimento refletindo junto com suas redes relações pessoais e profissionais
sobre a sua realidade e a do seu lugar.
Desse modo, conseguem enaltecer e valorizar a própria vida, o conhecimento local,
a diversidade e o movimento de suas comunidades, conseguindo representatividade dentro
de espaços de luta e poder, como os museus. Nesses novos museus são narrados
memórias que não quiseram ser esquecidas, de um tempo de luta frente a várias situações
em que sofram coagidos em suas próprios lugares, como por exemplo o Grito da Terra
Firme em 1992 onde levou mais de 20 mil pessoas as ruas de Belém exigindo a garantia do
direito à moradia. Essas memórias são contatadas por meio de movimentos artísticos de

3376 
 
 
 
 
 
produção local, como o Circuito Casas Tela do MUF e a exposição Movimentos da
Estrutural do Ponto de Memória da Estrutural, que valoriza o potencial cultural desses
lugares.
No mais, a contribuição mais significativa dos Pontos de Memória em seus lugares
de atuação é a melhoria na autoestima dos sujeitos, que em sua maioria são trabalhadores
e/ou estudantes que diariamente realizam seus afazeres com muita dificuldade, mas que
não são reconhecidos, se quer vistos dentro da rede de relações opressoras que instalam
em seus lugares de moradia e trabalho. É o autoconceito, afirmado por Fernandes e Mata,
que ao ser trabalhado torna-se uma ferramenta de luta frente a essas situações de
opressões sociais. Os pontos pioneiros, ao longo desses oito anos de atuação, vem
contribuindo para a formação de identidades coletivas fortes, atuantes e operantes, pelo
qual ajuda os sujeitos na descoberta de si e seus pares dentro dos territórios em que atuam.
Visualizamos essa contribuição quando nos deparamos com o principal objetivo do
Ponto de Memória do Beiru, em que por meio da história do líder Beiru a formação da
identidade do bairro vem sendo consolidada e operacionalizada como instrumento de
resistência histórica e sociocultural dentro da cidade de Salvador. Identificamos esse
interesse também no Ponto de Memória da Terra Firme quando jovens estudantes do bairro
são convidados a produzirem dois vídeos documentários - “Todo Dia é Dia de Feira na Terra
Firme” e “Ritmos, Cores e Rostos da Terra Firme” – que os possibilitaram refletir sobre as
realidades cotidianas e artísticas do bairro da Terra Firme.
Esses e outros conflitos íntimos dos Pontos de Memória tem-me levado a realidades
muito semelhantes pelas periferias brasileiras, mas com arranjos sociais diferentes
conforme as necessidades de cada lugar. Imergir nesses lugares provoca-me inquietações
muito pessoais sobre o país, sobre quem sou nesse país e como sou vista nesse lugar.
Desbravar esses lugares e suas provocações em nós é um dos objetivos da minha
pesquisa. Contudo, espero, mesmo de maneira breve, conseguir afetar a você, leitor, sobre
as escolhas que são feitas a partir do momento que não se esquece algo, e que os Pontos
de Memória contribuem para esses debates de resistência política no Brasil.

5. BREVE CONCLUSÃO
As ações que implicam na consolidação do Programa Pontos de Memória,
propiciam autonomia e o protagonismo comunitário dentro de territórios marginalizados pela
opressão social. Poder falar em primeira pessoa, militar a favor de suas necessidades tem
contribuído para a valorização da memória social desses sujeitos, bem como o
fortalecimento de suas identidades, impulsionando a economia de produção local.

3377 
 
 
 
 
 
Sobretudo, tem contribuído para a melhoria na autoestima do cidadão marcado por
estereótipos fundamentados em preconceitos.
Ao trabalhar com um olhar, um ouvir e uma escrita tematizada tenho proposto
construir uma etnografia que desafie os conceitos do senso comum ao observar os sujeitos
envolvidos no processo relacionando com as teorias sobre o tema. O objetivo é desmitificar
as marcas desses territórios, permitindo reflexões sobre suas potencialidades, identidades e
memórias. Desse modo, desafio você também a treinar seu olhar e reconhecer o outro que
mora ao lado!

REFERÊNCIAS
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Phábrica.
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MORAES, N. A. 2009. Políticas públicas, políticas culturais e museu no Brasil. Revista
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Turismo Cultural: uma proposta da Amazônia Brasileira. O Ideário Patrimonial 8: 73-91.
QUADROS, C. A. 2014. A Educação como Direito Humano Fundamental: a experiência do
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Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em Pedagogia) – Faculdade de Educação, Universidade
Federal do Pará
SEPÚLVEDA, M. S. 2004. Museus Brasileiros e Política Cultural. Revista Brasileira de Ciências
Sociais.v. 19, n. 55. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n55/a04v1955.pdf > Acesso
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VARINE, H. 2005. O museu comunitário é herético?. Coletânea de Artigos 1-11.
WACQUANT, L. 2007. Urban Outcasts: A Comparative Sociology of Advanced Marginality.

3379 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina.
IMAGINÁRIOS TURÍSTICOS URBANOS: PERSPECTIVAS DOS MORADORES DA
CIDADE DE PARANAGUÁ (PR)

Milene de Cássia Santos de Castro (Universidade Federal do Pará)1


[email protected]
Marcelo Chemin (Universidade Federal do Paraná)2
[email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade analisar os resultados encontrados a partir da


aplicação de formulários semiestruturados na Cidade de Paranaguá. Também discutir a
imagem dos atrativos turísticos na visão dos moradores do município que está
intrinsecamente relacionada ao seu Porto. A partir desse entendimento cabe-se medir qual o
grau de envolvimento da população com esses atrativos. Também, foram relacionados à
imagem da cidade os efeitos causados pela gestão pública. Para isso, foi utilizado um método
de pesquisa qualitativo que objetivou o conceito individual e a compreensão da situação
questionada aos entrevistados.

Palavras-Chave: Imaginário urbano, Atrativos turísticos, Paranaguá-PR.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo faz uma síntese com referência ao imaginário turístico urbano da Cidade
de Paranaguá, a principal cidade do Litoral Paranaense e cidade mais antiga do estado.
Assim, para a realização do estudo utilizou-se como base metodológica o livro Imaginários
Urbanos, de Armando Silva. A obra trata-se de uma pesquisa que objetivou verificar o
imaginário urbano dos moradores de cidades da América Latina, mais especificamente as
Cidades de Bogotá e São Paulo. No entanto, para esse estudo foi realizada uma adaptação
da metodologia utilizada na obra, a fim de verificar o imaginário urbano da Cidade de
Paranaguá.
Objetivou-se com o levantamento de dados, caracterizar o entendimento dos
moradores da cidade e/ou visitantes em relação aos atrativos turísticos de Paranaguá. E
também, analisar se os moradores valorizam esse patrimônio. Todavia, os resultados obtidos
atenderam as expectativas de pesquisa. E colaboraram para o rascunho do imaginário urbano
da localidade.

                                                            
1 Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Mestra em Turismo e Desenvolvimento pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR) Brasil. E-mail: [email protected].
2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Pará (UFPR). Professor da Universidade Federal do Paraná

(UFPR – Setor Litoral), Brasil, E-mail: [email protected].

3381 
 
 
 
 
 
FIGURA 1: LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DO MUNICÍPIO DE PARANAGUÁ

FONTE: PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO DE


PARANAGUÁ. PDDI PARANAGUÁ, 2007. FUNPAR.

Segundo informações provenientes da Prefeitura do município, Paranaguá (Figura 1)


está distante a 91 km de Curitiba. Faz limite com os Municípios de Antonina e Guaraqueçaba
(ao norte), Com Guaratuba e Matinhos (ao sul), com Pontal do Paraná (a leste) e Morretes (a
oeste). O município tem área de 826, 652 km², e população estimada em 149, 467 habitantes,
dados provenientes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A seguir,
segundo dados do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES)
está subdividida em 2 distritos administrativos, Paranaguá e Alexandra. E tem a maioria de
sua população residente concentrada em área urbana. E tem a estimativa de população de
148.232 habitantes.
Ainda com base nos dados disponibilizados pela Prefeitura de Paranaguá, a fundação
da cidade trata-se de 1550 por meio da navegação realizada em Ararapira e Superagui.

3382 
 
 
 
 
 
Também existem relatos que a colonização foi realizada pela imigração de moradores das
localidades de São Vicente e de Cananéia (SP) que se estabeleceram na Ilha de Cotinga.
Data-se de 1554 as primeiras manifestações de comércio marítimo com o porto de
Paranaguá. Com isso, a evolução a Distrito foi em 1647 e de Município em 29 de julho de
1648.
Posteriormente, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) da localidade
é de 0,750 e Produto interno Bruto (PIB) per capita é de 70. 251, 04 reais. Entorno de 59.000
moradores são católicos, seguidos por 53.000 evangélicos e aproximadamente 2000 espiritas.
A maioria da população é formada por mulheres e cerca de 123 000 moradores são
alfabetizados.
No que diz respeito ao turismo em Paranaguá, o município apresenta vários atrativos
para os seus moradores e visitantes. Esses atrativos são apresentados por meio do Guia
Turístico da cidade, que foi elaborado pela Fundação Municipal de Turismo (FUMTUR) em
parceria com a Prefeitura de Paranaguá. No guia é apresentado os principais pontos turísticos
e também um breve histórico do município.

2. PLANEJAMENTO URBANO E TURÍSTICO

Compreendo o termo urbano como algo entrelaçado com áreas urbanizadas,


desenvolvimento industrial e com altas concentrações populacionais. Aspectos como as
especificidades culturais da sociedade urbana são omitidos (MOURA E BAHL, 2010). Contudo
o urbano pode ser caracterizado como um meio social e cultural adaptado para tornar-se um
espaço de convívio e de moradia social humana (MOURA E BAHL, 2010). Sobre esse espaço
de convívio continue a ser agradável e um local de representações sociais e culturais o
planejamento tornar-se um instrumento necessário para a consumação dessa tarefa.
Com o intuito de discorrer acerca do planejamento, que por definição está associado
ao ato de criar e/ou planejar ações para a melhoria de um determinado objetivo. Torna-se
necessário dissertar a acerca dos tipos e da duração do planejamento. Para isso, Yázigi
(2009) define o planejamento como uma ramificação política que tem necessidade de técnicas
e negociações políticas. No que se relaciona ao turismo, o ato de planejar carece de outros
elementos além dos já citados. Ainda para o autor, falta a visão para os governantes e para
cidadãos da importância do planejamento por meio de programas que visem o beneficiamento
coletivo. (YÁZIGI, 2009).
No entendimento de Yázigi (2009) o planejamento pode ser dividido em: curtíssimo
prazo, curto prazo, médio prazo e longo prazo. Ainda pode ser denominado como
planejamento integral e planejamento estratégico. Sendo o primeiro, com o intuito de abarcar

3383 
 
 
 
 
 
um planejamento em sua totalidade e o segundo com o objetivo de criação de aglomerados,
também conhecidos como clusters. Essa modalidade do planejamento tem características
neoliberais.
Com disposição a realidade encontrada em Paranaguá, infere-se que o governo local
no que diz respeito ao turismo, tem realizado ações de planejamento estratégico de curto e
médio prazo. Com a construção de atrativos turísticos, áreas de lazer e com investimentos na
criação do Guia turístico e da FUMTUR. No entanto, não investiu na restauração de prédios
históricos da cidade, e nem na manutenção dos prédios que já foram restaurados. O que cria
uma situação de insatisfação em alguns pontos da paisagem urbana de Paranaguá.

2.1 Pontos de vista do Cidadão de Paranaguá

Buscar o entendimento do cidadão a respeito dos recursos históricos é uma categoria


de análise pertinente para os gestores de turismo. Devido ao fato de que se houver uma
identificação do cidadão com o patrimônio local infere-se que esse patrimônio seja valorizado
e caracterizado como uma imagem da cidade e dos moradores. Para Silva (2006) o ponto de
vista cidadão é definido por várias estratégias discursivas pelas quais ao cidadão conta a sua
história, uma vez que essas histórias podem estar relacionadas com imagens visuais da
localidade.
No tocante as noções territoriais, Silva (2006) esclarece que “a cidade desde sua
origem expõe condições territoriais”. O que apresenta a importância da relação do homem
com a terra para o autor. Evidencia o sentimento de pertencimento a terra, como sendo a terra
de seus pais e sua terra pátria. Posteriormente, o território é definido como um espaço
imaginário, onde habitamos e recordamos o passado. O território pode ser definido como
limites geográficos e simbólicos (SILVA, 2006).
No século vigente, a globalização criou e incorporou novos paradigmas territoriais por
meio do crescimento urbano, o simbolismo e o pertencimento territorial foram sendo
minimizados. Silva (2006) sinaliza que com essa nova realidade urbana foi enfatizada a
cultura e não a arquitetura, e que seus cidadãos tornaram-se cidadãos urbanos. O que vem
a resultar nos imaginários urbanos, como um conjunto de ideias e expressões dos moradores
de um determinado território urbano.
Em suma ao desafio de fomento do planejamento urbano, representado nesse estudo
pelo desenvolvimento do turismo urbano. Será utilizado como premissa de análise o modelo
criado nas cidades da Europa como uma possibilidade de ação para a cidade de Paranaguá.
O modelo objetivou compor um grupo de trabalho para debater questões relacionadas a
“questão urbana” e definir temas chaves. Dentre os temas definidos estão questões acerca

3384 
 
 
 
 
 
da mobilidade, reafirmação de atrações urbanas, processo de turístificação do sistema urbano
e a função turística e de lazer (JANSEN-VERBEKE E LIEVOIS, 2002). Em resumo o grupo
analisou o mercado de turismo Europeu, realizaram pesquisas a respeito dos destinos
turísticos escolhidos pelos europeus nas férias e quais os principais critérios para a escolha
desses destinos.
O resultado foi uma revitalização cultural dos destinos urbanos da localidade em
decorrência de uma análise das potencialidades e das inabilidades do destino turístico. Como
potencialidade notou-se o interesse pelo turismo cultural, que é visto como um segmento que
mais cresce no mercado Turístico (RICHARS, 1996 apud JANSEN-VERBEKE E LIEVOIS,
2002). A partir desses dados o mercado turístico atentou-se para o interesse dos turistas por
destinos que ofereçam uma herança cultural por meios de lugares históricos e atrações
culturais.
Similar ao ocorrido nas Cidades Europeias, Paranaguá pode realizar um processo
similar a fim de valorizar as suas heranças culturais. Como identificado na coleta de dados,
os entrevistados identificam-se com o porto, e relatam memórias a partir desse
reconhecimento. O acidente do Navio Vicuña foi lembrado pelos entrevistados e proporcionou
verificar diferentes pontos de vista de um mesmo fato. A morte do Ex-prefeito, a construção
da ponte de Valadares e a Festividade do Rocio foram outros assuntos que possibilitaram
diferentes perspectivas dos entrevistados. No entanto, a acerca do centro histórico foi citado
como um dos melhores lugares da cidade. Porém, não esteve relacionado às memórias dos
entrevistados.

3. METODOLOGIA

Esse estudo foi realizado com uma abordagem metodológica qualitativa, por meio da
aplicação de 10 formulários semiestruturados, no dia 08 de novembro de 2014, na Cidade de
Paranaguá. Relativamente ao método qualitativo Creswell (2010) identifica como uma
possibilidade de assimilar a definição que indivíduos e grupos concedem a um determinado
problema social ou humano. Ainda em relação a coleta de dados qualitativos, Creswell (2010)
determina que a compilação de dados é realizada no ambiente do participante, com uma
verificação indutiva produzida através das minúcias dos temas e do entendimento realizado
pelo pesquisador sobre as informações coletadas.
No entanto, esse estudo utilizou também como modelo de pesquisa o trabalho
intitulado: Imaginários urbanos, produzido na década de 1990, pelo Autor Armando Silva. A
obra trata-se de uma pesquisa que objetivou verificar o imaginário dos moradores de cidades
da América Latina, em relação a imagem da cidade e a sua interligação com as formações

3385 
 
 
 
 
 
simbólicas. Por conseguinte, o estudo de Armando Silva foi de enfoque comparativo e
procurou entender problemas da cultura urbana por meio de um ensaio interdisciplinar, com
base em aportes teóricos e metodológicos da Antropologia, da Psicanálise, da Teoria da
Comunicação, da Estética e da História.
A obra Imaginários Urbanos desenhou a imagem urbana das Cidades de Bogotá e de
São Paulo, por meio da aplicação de croquis, construídos de acordo com a maneira que os
moradores imaginavam sua cidade. Os resultados da pesquisa pautaram um rascunho
simbólico do contexto social, político e histórico das cidades na década de 1990. A seguir, o
autor definiu 3 categorias de investigação, que também foram utilizadas na observação
realizada em Paranaguá. Essas categorias são: Dados de localização, de evocação e de uso.
A pesquisa praticada em Paranaguá foi feita aos moldes da aplicada por Armando
Silva. No tocante a estrutura do formulário foi definida do seguinte modo, em um primeiro
momento, dentro da categoria de localização foi perguntado sobre o sexo, idade e cidade de
origem do entrevistado. Em um segundo momento, na categoria de evocação foi perguntado
a respeito de fatos e personagens importantes na cidade e para finalizar na categoria de uso
foi questionado quanto aos lugares que identificam a cidade, os melhores lugares das cidades,
ruas turísticas, pontos turísticos, o que falta na cidade e lugares para a prática de lazer.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

No processo de coleta de dados, os entrevistados foram escolhidos aleatoriamente. A


pesquisa foi aplicada no centro histórico e próximo a Praça 29 de julho. Respeitou-se a
disponibilidade de tempo dos entrevistados e os mesmos autorizaram a divulgação dos dados
coletados. Aplicou-se 10 formulários com 3 perguntas fechadas e as demais abertas.
No que se refere aos entrevistados e a primeira categoria de análise, foram 10
pessoas, sendo 5 do sexo feminino e 5 do sexo masculino. A maioria dos entrevistados tinha
idade de 40 a 50 anos, os demais tinham de 20 a 30 anos e mais de 60 anos. A metade dos
entrevistados nasceu em Paranaguá, no entanto houve entrevistados de outras cidades, como
Curitiba (PR), Maringá (PR), Guaraqueçaba (PR), Loanda (PR) e Santa Rosa (RS), no entanto
todos moram atualmente em Paranaguá.
Tendo em consideração a segunda categoria de pesquisa, foram direcionadas aos
entrevistados 2 perguntas, os questionamentos foram sobre fatos e personagens importantes.
Quanto a primeira pergunta, as respostas foram: a Explosão do Navio Vicunã, a Festa de
Nossa Senhora do Rocio, a morte do Ex-Prefeito Mário Roque, a construção da Ponte de
Valadares, do Aquário de Paranaguá, da eleição do Ex-prefeito Mário Roque e da criação da
FUMTUR. Em relação a segunda pergunta, as respostas foram: José Baka Filho, Valter do

3386 
 
 
 
 
 
mercado (vendedor de peixe no mercado da cidade), Waltel Branco (maestro e compositor),
o Ex-prefeito Mário Roque, Tony Lagos (um apresentador de TV local), Júlia da Costa
(Poetisa), o Ex-prefeito José Vicente Elias, Ivone Marques (Professora), o atual prefeito
Edison de Oliveira Kersten e Tadayuki Nakayama (corredor de maratona que competiu até os
seus 84 anos).
No que diz respeito a última categoria de pesquisa (Quadro 1), foi sondado a respeito
dos (1) lugares que identificam a cidade, (2) quais os melhores lugares, (3) quais ruas são
consideradas turísticas, (4) pontos turísticos, (5) lugares para prática de atividades de lazer e
o (6) que falta em Paranaguá.

(1) (2) (3)

 Porto de Paranaguá;  Praça 29 de julho;  Rua da Praia;


 Igreja do Rocio;  Praça Fernando Amaro;  Rua Conselheiro Siminbú
 Mercado de Café;  Centro Histórico; (Estradinha);
 Casa Brasílio Itiberê;  Ilha de Valadares;  Rua 15 de novembro;
 Mercado Muffato;  Ilha do Mel;  Rua Vieira dos Santos.
 Praça 29 de julho.  Rua Conselheiro
Sinimbú;
 Igreja Batista Jardim
América;
 Baía de Paranaguá;
 Aeroparque.
(4) (5) (6)

 Aquário;  Aeroparque;  Saúde;


 Porto;  Teatro Rachel Costa;  Educação;
 Orla;  Centro da cidade;  Limpeza;
 Igreja do Rocio;  Praça 29 de julho;  Organização urbana;
 Museu de  Cinema.  Acessibilidade;
Arqueologia e  Manutenção dos prédios
Etnologia. históricos;
 Divulgação da cidade;
 Construção de mais
pontos turísticos.

3387 
 
 
 
 
 
Como já era esperado, o Porto de Paranaguá foi o principal lugar de identificação da
cidade na visão dos entrevistados, seguido pela Igreja do Rocio. Em referência aos melhores
lugares de Paranaguá a Praça 29 de Julho e o Centro Histórico foram os lugares mais citados.
A seguir, a rua turística mais citada pelos entrevistados foi a Rua da Praia. Dando
continuidade, os principais pontos turísticos foram: O Aquário, o porto, a Orla e a Igreja do
Rocio. No tocante a penúltima pergunta, o lugar de lazer para os entrevistados é o
Aeroparque, sendo citado nas 10 entrevistas. Para finalizar, os principais problemas de
Paranaguá são: saúde, educação e limpeza.
Ao analisar os dados coletados foi criada a hipótese de a localização da realização da
pesquisa ter influenciado a resposta dos participantes. E também devido ao período ser
próximo a Festividade do Rocio. Outro ponto importante foi a percepção dos entrevistados em
relação ao Centro Histórico, os mesmos evidenciam a necessidade de manutenção e
conservação desse patrimônio. No entanto, os prédios históricos não foram apontados como
um lugar de identificação da cidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento de aplicação dos formulários foi identificada a necessidade de realização


de um pré-teste, a fim de beneficiar os resultados ulteriores do estudo. Também de testar os
questionamentos definidos anteriormente, e de acrescentar questões relevantes a localidade
que apenas foram percebidas durante a aplicação dos formulários em campo. Outro ponto foi
a falta de disponibilidade dos entrevistados e curto período para a aplicação da pesquisa.
A respeito das considerações de campo, os moradores que participaram das
entrevistas assinalaram a falta de conservação dos atrativos históricos da cidade como um
dos principais motivos de descontentamento da população. Também foi comentado que a
cidade necessita de estratégias turísticas mais eficientes a fim de atrair mais turistas. E a
gestão pública é o ponto que mais gerou insatisfação dos entrevistados.
Esse estudo proporcionou um rascunho do entendimento de uma amostra de 10
moradores da cidade de Paranaguá. Que sinalizaram os pontos fortes e fracos da cidade. E
também permitiram uma inferência do entendimento da população em relação aos atrativos
históricos e turísticos. O estudo aponta a necessidade de realização de pesquisa com os
moradores para a criação de políticas públicas participativas, com o intuito de permitir a
participação popular no processo de tomada de decisão no município.
Se faz necessário atualizar os resultados com o intuito de verificar possíveis mudanças
na percepção dos entrevistados, haja vista que este estudo foi realizado no ano de 2014.
Também estima-se que a aplicação de mais formulários poderiam fornecer informações mais

3388 
 
 
 
 
 
detalhadas e significativas acerca da imagem dos atrativos da Cidade de Paranaguá, no que
diz respeito aos moradores. Conclui-se que tais informações podem auxiliar na gestão
municipal dos atrativos de Paranaguá.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:


http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=411820&idtema=16&search=par
ana|paranagua|sintese-das-informacoes. Acesso em: 14 Dez 2014.
CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto
Alegre: Artmed, 3 ed. 2010.
JANSEN-VERBEKE. M; LIEVOIS, E. Análise de Recursos Históricos para Turismo Urbano
em Cidades Europeias. (In) PEARCE. D.G. Desenvolvimento em Turismo: Temas
Contemporâneos. São Paulo: Contexto, 2002.
MOURA, N; BAHL, M. Planejamento Urbano e Representações Sociais no Bairro Capela
Velha, Araucária/PR. R. RA´E GA, Curitiba, n. 19, p. 35-52, 2010. Editora UFPR.
PARANÁ. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social. Disponível em:
http://www.ipardes.gov.br/cadernos/Montapdf.php?Municipio=83200. Acesso em: 13 Dez
2014.
PARANAGUÁ. Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de. Disponível em:
http://www.paranagua.pr.gov.br/plano_diretor/+%20PLANO%20DIRETOR/PDF/PDDI%20%2
0Volume%20I%20An%C3%A1lise%20e%20Diagn%C3%B3stico.pdf. Acesso em: 15 Dez
2014.
____________. Prefeitura Municipal de. Disponível em:
http://www.paranagua.pr.gov.br/conteudo/a-cidade/localizacao. Acesso em: 15 Dez 2014.
SILVA, A. Imaginários urbanos. Bogotá: Perspectiva, 5 ed. 2006. Disponível em:
https://docs.google.com/file/d/0By0eEXvO4oLFdTMtaTdQQWt5RW8/edit. Acesso em: 10
Dez 2014.
YÁZIGI. E. Saudades do Futuro: Por Uma Teoria do Planejamento Territorial do
Turismo. Brasil: CNPQ, 1 ed. 2009.

3389 
 
 
 
 
 
GT 07 - Cidades e transformações do urbano na América Latina

POLÍTICA URBANA E GESTÃO AMBIENTAL:


ANÁLISE SOBRE O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE NOVO
REPARTIMENTO (PA)

Monique Helen Cravo Soares Farias (Universidade Federal do Pará)1


[email protected]

Christian Nunes da Silva (Universidade Federal do Pará)2

Norma Ely Santos Beltrão3

RESUMO

O desenvolvimento local e regional dos municípios envolve inúmeras e divergentes questões,


vinculadas às diversas temáticas e assuntos municipais. Nesse sentido, os municípios têm
constantemente passado por desafios políticos, sociais, ambientais, financeiros e na sua
forma de gestão, em que os munícipes têm exigido uma qualidade de vida mais adequada e
demandado sua participação na condução do município. A procura por novas alternativas, a
conscientização e o cumprimento da legislação ambiental foram passos importantes para a
redução das consequências negativas oriundas das ações antrópicas no meio. Dentre os
instrumentos de gestão ambiental urbana, o Plano Diretor destaca-se como um dos principais,
pelo fato de não existir uma tradição de política ambiental em esfera municipal no Brasil.
Assim, este trabalho tem como objetivo avaliar aspectos legais abordados no Plano Diretor
do município de Novo Repartimento, estado do Pará, visando contribuir com tomadores de
decisão na solução dos problemas enfrentados na região. Por meio da Lei nº 550, em 14 de
novembro de 2007, foi instituído o Plano Diretor do Município de Novo Repartimento, no
estado do Pará, abrangendo a totalidade do território, sendo o instrumento básico da política
urbana do Município e integrando o sistema de planejamento municipal.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Planejamento. Território.

1. INTRODUÇÃO

O desenvolvimento local e regional dos municípios envolve inúmeras e divergentes


questões, vinculadas às diversas temáticas e assuntos municipais. Nesse sentido, os
municípios têm constantemente passado por desafios políticos, sociais, ambientais,
financeiros e na sua forma de gestão, em que os munícipes têm exigido uma qualidade de
vida mais adequada e demandado sua participação na condução do município. O Estatuto da

                                                            
1 Mestre em Ciências Ambientais; Pesquisadora do Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente na
Amazônia (GAPTA/UFPA).
2 Doutor em Ecologia Aquática e Pesca na Amazônia; Pós-Doutor em Desenvolvimento Regional no

PPGMDR/UNIFAP; Professor Adjunto II da Universidade Federal do Pará (UFPA); Pesquisador do Grupo


Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente na Amazônia (GAPTA/UFPA).
3 Doutora em Economia Agrícola; Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA),

Universidade do Estado do Pará (UEPA)

3391 
 
 
 
 
 
Cidade, tal como apresentado por Mesquita & Ferreira (2017), é o nome dado à lei que
regulamenta o capítulo “Política Urbana” da Constituição Brasileira de 1988 e tem como
princípio básico o planejamento participativo e a função social da propriedade.
Para Serafim & Ricci (2017), historicamente, o Planejamento Urbano, materializado
através do Plano Diretor, passou por inúmeras mudanças em sua estrutura, que podem ser
dispostas em três grandes momentos. Inicialmente, no começo do século passado, as
propostas contidas no instrumento de Planejamento Urbano priorizavam melhoramentos e
projetos de embelezamentos dos grandes centros das cidades no Brasil (em uma tentativa de
romper com a estrutura colonial presente até aquele momento). Em seguida, o Planejamento
passou a ser caracterizado pela presença de uma forte técnica com base científica a fim de
solucionar os problemas ditos urbanos. O terceiro momento do Planejamento é caracterizado
pela proposta atual dos planos diretores em que busca contemplar aspectos econômicos,
físicos, sociais e políticos das cidades. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
no início do processo de redemocratização do País, um novo elemento foi agregado à
discussão sobre o Plano Diretor: a função social da cidade. Segundo o texto, o ordenamento
territorial seria regido pelo Poder Público Municipal e caberia a ele fixar, por lei, o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes. Desta
forma, os municípios com mais de 20 mil habitantes possuem a obrigatoriedade de elaborar
seus Planos Diretores. A ideia por trás dessa obrigatoriedade para municípios também de
pequeno porte estaria na municipalização da Reforma Urbana, garantindo a aplicação da
função social da cidade e do bem-estar da cidade.
Ao Plano Diretor, de acordo com Almeida et al. (2014), como principal instrumento
de planejamento territorial urbano cabe, portanto, implementar mecanismos que permitam
atingir às condições necessárias à garantia do direito à cidade e da própria vida. Assim, o
objetivo fundamental do Plano Diretor se concretiza na plena realização das funções sociais
da cidade, que se materializam no acesso à moradia, às infraestruturas de transporte e
saneamento, ao meio ambiente saudável, ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico e aos
equipamentos de educação, saúde, lazer e tantos outros fundamentais à vida moderna.
A procura por novas alternativas, a conscientização e o cumprimento da legislação
ambiental foram passos importantes para a redução das consequências negativas oriundas
das ações antrópicas no meio. Dentre os instrumentos de gestão ambiental urbana, o Plano
Diretor destaca-se como um dos principais, pelo fato de não existir uma tradição de política
ambiental em esfera municipal no Brasil.
Assim, este trabalho tem como objetivo avaliar aspectos legais abordados no Plano
Diretor do município de Novo Repartimento, visando contribuir com tomadores de decisão na
solução dos problemas enfrentados na região.

3392 
 
 
 
 
 
2. METODOLOGIA

2.1 Descrição da Área de Estudo

Esta pesquisa foi desenvolvida no município de Novo Repartimento, na Região


de Integração Tucuruí, a sudeste do estado (Figura 1). Sua área abrange 1.539.800
hectares, e abriga 62.050 habitantes, dos quais 45% estão na área urbana e 55% na
área rural (IDESP, 2012). O município abriga, total ou parcialmente, 1 Terra Indígena
(TI), 3 Unidades de Conservação (UC’s) e 31 Projetos de Assentamentos (PA’s)
(IMAZON, 2014).

Figura 1- Localização do Município de Novo Repartimento (Pará)

Fonte: IBGE/Landsat, 2015.

2.2 Coleta de Dados

Os aspectos teóricos e conceituais foram obtidos por meio da análise de


artigos científicos nacionais, legislações e relatórios e publicações institucionais.

3393 
 
 
 
 
 
3. CONTEXTO DE NOVO REPARTIMENTO

Novo Repartimento foi fundado em 1991 e sua história se confunde com a do


município de Tucuruí, do qual foi desmembrado. O povoado foi iniciado com um
vilarejo às margens do Rio Repartimento. Por ser vizinho da primeira área demarcada
como Reserva Indígena, Parakanã, denominaram o novo local de vila de
Repartimento (MMA, 2009). Com a formação do reservatório de Tucuruí, parte da
reserva onde viviam os índios foi inundada; a área restante foi cortada pela construção
do desvio da Transamazônica (BR-230). Em 1981, as terras localizadas junto à
fronteira leste da antiga reserva Parakanã foram utilizadas para relocar camponeses
expropriados que eram, em sua maioria, colonos expropriados das margens do
traçado original da estrada Transamazônica, migrantes vindos dos mais diferentes
pontos do país e que, na década de 70, levados pelos incentivos do governo federal,
deslocaram-se para a Amazônia, onde tinham promessas de oferta de terras e
subsídios à agricultura e à moradia (ACSELRAD & SILVA, 2011).
A inundação do Reservatório de Tucuruí e o processo de relocação geraram
indignação na população, que se viu obrigada a viver em acampamentos
improvisados ou em superlotados imóveis de Novo Repartimento - núcleo urbano, na
época, em implantação (ACSELRAD, 1991). Dedicada, em sua maioria, às atividades
extrativas, parte dessa população foi relocada em loteamentos implantados às
margens do reservatório. Lançados bruscamente no trabalho agrícola em áreas cuja
paisagem natural desconheciam, os relocados não puderam estabilizar-se
economicamente, o que favoreceu a reconcentração fundiária e o desmatamento
(ACSELRAD, 2010).

4. PLANO DIRETOR: INSTRUMENTO DE PLANEJAMENTO E GESTÃO DO


DESENVOLVIMENTO

O conceito de Plano Diretor no Brasil surge por volta da década de 1950, embora já
se utilizasse a expressão no Plano Agache em 1930. No entanto, foi após a promulgação da
Constituição Federal (1988), nos artigos 182 e 183, que o Plano Diretor passou a ser usado
como instrumento de política e desenvolvimento urbano, tendo como uma das suas principais
funções ordenar a expansão urbana e o desenvolvimento das funções sociais, garantindo o
bem-estar dos habitantes no município. Embora não sendo obrigatório aos municípios com

3394 
 
 
 
 
 
menos de 20 mil habitantes, muitos deles utilizam-no como mecanismo de desenvolvimento
urbano e municipal (FERREIRA, 2017).
Por meio do Estatuto da Cidade, de acordo com Martins & Godinho (2016), o Plano
Diretor foi definido como o principal instrumento da política urbana, responsável por fazer
cumprir a função social da cidade e da propriedade, resumindo e tornando expresso o
propósito acordado para o Município, estabelecendo princípios, diretrizes e normas a serem
empregadas como sustentação para as decisões dos envolvidos no processo de
desenvolvimento, orientando a todos os públicos envolvidos para que caminhem, tanto quanto
possível, na direção desses objetivos.
Define Braga (2001) que o Plano Diretor é um instrumento eminentemente político,
cujo objetivo precípuo deverá ser o de dar transparência e democratizar a política urbana, ou
seja, o plano diretor seve ser, antes de tudo, um instrumento de gestão democrática da cidade.
Nesse sentido, é importante salientar esses dois aspectos do Plano: a transparência e a
participação democrática. A transparência é um atributo fundamental em qualquer política
pública. Desse modo, um objetivo essencial do plano diretor deve ser o de dar transparência
à política urbana, na medida em que esta é explicitada num documento público, em uma lei.
Tornar públicas as diretrizes e prioridades do crescimento da cidade, de forma transparente,
para a crítica e avaliação dos agentes sociais, esta é uma virtude básica de um bom plano
diretor.

5. RESULTADOS

5.1 Apresentação do Plano Diretor Municipal

Por meio da Lei nº 550, em 14 de novembro de 2007, foi instituído o Plano Diretor do
Município de Novo Repartimento, no estado do Pará, abrangendo a totalidade do território,
sendo o instrumento básico da política urbana do Município e integrando o sistema de
planejamento municipal, devendo o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei
do orçamento municipal orientar-se pelos princípios fundamentais, objetivos gerais e diretrizes
nele contidas. Apresenta como principais objetivos:

 Considerar, no processo de planejamento e execução das políticas públicas a


integração social, econômica, ambiental e territorial do Município;
 Construir um sistema democrático e participativo de planejamento e gestão da
cidade;

3395 
 
 
 
 
 
 Regular o uso, ocupação e parcelamento do solo urbano a partir da capacidade
de suporte do meio físico, da infraestrutura de saneamento básico e das características do
sistema viário;
 Preservar visuais significativos dos principais marcos da paisagem urbana;
 Promover a urbanização e a regularização fundiária das áreas irregulares
ocupadas por população de baixa renda;
 Induzir a utilização de imóveis não edificados e não utilizados;
 Distribuir equitativamente os equipamentos sociais básicos;
 Preservar os ecossistemas e recursos naturais;
 Promover o saneamento ambiental em seus diferentes aspectos;
 Reduzir os riscos ambientais;
 Promover a reabilitação e o repovoamento da área central da cidade;
 Promover a acessibilidade universal, garantindo o acesso de todos os cidadãos a
qualquer ponto do território, através da rede viária e do sistema de transporte coletivo;
 Promover políticas especificas as comunidades indígenas do Município;
 Implementar mecanismo para o desenvolvimento territorial urbano sustentável a
agrovilas.

5.2 Ênfase na Gestão Ambiental

No processo de elaboração de seu Plano Diretor, destaca-se a preocupação da


inserção do viés ambiental à política urbana, verificado na adoção dos seguintes princípios
básicos: função social da cidade, a função social da propriedade, a gestão democrática da
cidade, equidade e a sustentabilidade da cidade.

Previu-se a gestão da cidade de forma democrática, incorporando a participação dos


diferentes segmentos da sociedade em sua formulação, execução e acompanhamento,
garantindo:

 A participação popular e descentralização das ações e processos de tomadas de


decisões públicas em assuntos de interesses social;
 A participação popular nas definições de investimentos do orçamento público;
 O desenvolvimento sustentável;
 O acesso público e irrestrito às informações e análises referentes à política
urbana;

3396 
 
 
 
 
 
 A capacitação dos atores sociais para a participação no planejamento e gestão da
cidade;
 A participação popular na formulação, implementação, avaliação, monitoramento
e revisão da política urbana.

Por meio de sua Política de Ordenamento Territorial, foi possível condicionar a


ocupação territorial à proteção e respeito ao meio ambiente, aos recursos naturais e ao
patrimônio arqueológico, histórico, cultural e paisagístico, compatibilizando-a com a
capacidade de infraestrutura, do sistema de mobilidade urbana e com a proteção ao meio
ambiente.
Para orientar o ordenamento e a gestão territorial do Município, o Plano Diretor definiu
como ferramentas o Macrozoneamento Territorial e o Zoneamento Urbano. O
Macrozoneamento Territorial Municipal se respalda em estudos antrópicos, físicos e bióticos,
caracterizando e definindo índices de degradação ambiental, objetivando a elaboração,
consolidação e monitoramentos das diretrizes do uso e ocupação do solo e desenvolvimento
territorial sustentável do Município, fortalecendo assim as políticas setoriais. Já o Zoneamento
Urbano institui as normas destinadas a regular o uso e a ocupação do solo urbano para cada
uma das Zonas em que se subdivide a sede do município, tendo como objetivos fazer cumprir
as funções sociais da cidade e da propriedade urbana, tendo em vista o estado da
urbanização, as condições de implantação da infraestrutura de saneamento básico e do
sistema viário e do meio físico; e atribuir diretrizes específicas de uso e ocupação do solo para
as zonas. Aqui, traz-se o conceito de Zonas de Interesse Especial, definidas em função das
necessidades de proteção integral e dos diferentes graus de usos sustentáveis permitidos são
compostas por ecossistemas de interesse para a preservação, conservação e ao
desenvolvimento de atividades sustentáveis.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar dos reconhecidos avanços alcançados com a instituição e leis acerca do


planejamento e ordenamento territorial, verifica-se que ainda é limitada a abordagem da
gestão ambiental nas políticas públicas, sendo refletida assim na elaboração dos planos
diretores municipais. Sem esse aprofundamento, permanecem lacunas na compreensão
planejamento urbano e uma consequente dificuldade no ordenamento territorial.
Dessa forma, a discussão acerca d a inserção da gestão ambiental nas políticas
urbanas municipais torna-se imprescindível e imediata, proporcionando inclusão da temática

3397 
 
 
 
 
 
de integração regional como estratégia de desenvolvimento socioeconômico e
ambientalmente sustentado.

REFERÊNCIAS
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do deslocamento de populações em Tucuruí. Revista de Administração Pública, v. 25, n. 4,
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Brasil. Revista Geográfica de América Central, v. 1, n. 58, p. 331-355, 2017.
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Desmatamento da Amazônia Legal: Operação Arco Verde. Brasília: MMA, 2009, 50 p.
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3398 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e transformações do urbano na América Latina

O BIOMA E A ESTRUTURA URBANA DA CIDADE AMAZÔNICA

Jacy Soares Corrêa Neto (UNICAMP)1


[email protected]
Lauro Luiz Francisco Filho (UNICAMP)2
[email protected]

RESUMO

O desenvolvimento das cidades se relaciona também com a criação e adaptação de


técnicas relativas às estruturas urbanas sob as estruturas ambientais em diferentes
localizações geográficas, as quais permitem que a condição urbana se estabeleça. Na
Amazônia, a urbanização é, por vezes, negligenciada em função do apartamento entre
questões ambientais e urbanas. Nesse contexto, o bioma, tal como uma categoria ecológica,
se apresenta como uma alternativa de unidade de análise frente à problemática ambiental e
urbana. Sendo assim, esta pesquisa visa compreender de que maneira os elementos do
bioma são incorporados pela estrutura urbana da cidade amazônica. O delineamento
adotado tange ao estudo de caso, de caráter explicativo, a partir de técnicas de pesquisa
documental, bibliográfica e de observação direta. Para tanto, o objeto empírico consiste em
Afuá, uma cidade estruturada em palafitas de madeira e circunscrita no bioma Amazônia; na
bacia hidrográfica amazônica; na Amazônia Legal; na Região Norte do Brasil; no estado do
Pará e no arquipélago do Marajó. Do exposto, os elementos característicos do bioma, tais
como aspectos climáticos, edáficos e a utilização de materiais construtivos autóctones
advindos floresta, além da sazonalidade dos rios, são incorporados pela estrutura urbana.
Dessa forma, constatou-se que o padrão de estrutura urbana em palafitas consiste em uma
forma de adaptação de assentamentos urbanos mais eficaz ao bioma Amazônia,
principalmente quando relacionado aos ecossistemas ripários ou de várzea.

Palavras-chave: Urbanização, Estrutura urbana, Bioma Amazônia, Palafitas

1. INTRODUÇÃO

A apropriação da natureza implica na transformação do ambiente através de sua


incorporação nos processos de ocupação antrópica, sendo a urbanização uma das
atividades de grande impacto (NEWMAN, 2006). Na contemporaneidade, o fenômeno
urbano tem se mostrado caótico e crescente, uma vez que se estima que em 2050 cerca de
75% da população mundial seja urbana, portanto, ter-se-á o que Angels et. al. (2011)
designam de “planeta de cidades”.
Torna-se evidente que esse modo de produção capitalista do espaço urbano
implica em desigualdades sociais e na degradação ambiental em diversas escalas
                                                            
1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade, bacharel em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade Federal do Amapá, pesquisador no Núcleo de Estudos em Estética do Úmido.
2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente no Programa de Pós-graduação

em Arquitetura, Tecnologia e Cidade, coordena o Laboratório de Investigações Urbanas e é líder do Grupo de


Pesquisa sobre Planejamento Urbano Saudável.

3399 
 
 
 
 
 
(HARVEY, 2005). Nesse contexto, Santos (2014) enfatiza a utilização do estudo regional na
compreensão de formas específicas que permeiam a produção globalizada do espaço. Da
mesma maneira, salienta a variabilidade desse fenômeno a partir de sua distribuição no
mundo, evidenciada a partir da região.
Estudos recentes analisam a associação da dinâmica demográfica com a região
ambiental compreendida por biomas (HOGAN, 2001, 2005; HOGAN, MARANDOLA JR. e
OJIMA, 2010; OJIMA e MARTINE, 2012). Tais pesquisas indicam essa escala como crucial
ao entendimento das dinâmicas atinentes à relação população-ambiente. Além disso,
incorporam nas discussões de distribuição da população a variável da urbanização e
fornecem bases que auxiliam a compreensão do fenômeno urbano mediante limites não
administrativos.
Trazendo esse debate à Amazônia, frente ao intenso processo de pressões
antrópicas, materializadas mais especificamente nas atividades de desmatamento,
transformações no uso do solo (BARRETO et. al., 2005) e, sobretudo, na conversão de
florestas em áreas urbanas, torna-se imprescindível o conhecimento mais detalhado cenário
urbano dessa região. Cabe destacar também outra questão salutar recorrente nos estudos
amazônicos, relacionada à dificuldade de definição de limites e conceitos acerca da região.
Nesse panorama, se verifica a preponderância de investigações de cunho ambiental em
contraponto a outras temáticas, embora a Amazônia seja caracterizada tanto por uma
diversidade de populações como de ambientes (OLIVEIRA e SCHOR, 2008).
Ademais, esse relativo apartamento se aplica também às pesquisas urbanas, muito
embora a condição de "floresta urbanizada" – tal como enfatizado internacionalmente em
Becker (1995) – exiba sua dinamicidade através de um intenso e acelerado processo de
urbanização. Do exposto, a adoção da Amazônia como bioma se justifica diante da
compreensão da realidade urbana e ambiental, bem como na elaboração de políticas
urbanas condizentes com a região. Ao adotar este ponto de vista, busca-se compreender a
urbanização da Amazônia circunscrita nos limites territoriais e características funcionais sob
um viés ecológico: o bioma. Este caracterizado de maneira geral, a partir de um conjunto de
agrupamentos de ecossistemas semelhantes mediante seus aspectos climáticos3,
fitofisionômicos4, edáficos5, orográficos6 e hidrográficos (IBGE, 2004; COUTINHO, 2006,
2016; RICKLEFS, 2010). Sendo assim, a associação entre bioma e a urbanização se exibe

                                                            
3 Diz respeito ao "estado médio mensal da atmosfera, particularmente com relação à temperatura e precipitação
pluviométrica ao longo do ano" (COUTINHO, 2016, p. 17).
4 Aspecto ou aparência da vegetação com base em diferentes formas de crescimento, tais como árvores,

arbustos, palmeiras, herbáceas, lianas, suculentas ou touceiras (COUTINHO, 2016).


5 Trata-se da “parte agrícola ou coloidalmente mais ativa do solo", isto é, ao horizonte de nutrientes do solo

(GUERRA, 1993, p. 147)


6 Tange aos aspectos de altitude e às diferentes formas de relevo (GUERRA, 1993). 

3400 
 
 
 
 
 
como um campo recente nas investigações de cunho urbano-ambiental. Dessa forma, esta
pesquisa visa compreender de que maneira os elementos do bioma são incorporados na
estrutura urbana da cidade amazônica.
Destaca-se a preferência pelo emprego do termo "estrutura urbana da cidade
amazônica" no título desta pesquisa ao invés do termo "estrutura urbana amazônica". Isso
porque, embora possua relativa redundância, a primeira expressa a condição da produção
do espaço autóctone de “cidades da floresta”, àquelas que agregam características próprias
do ambiente amazônico em suas configurações urbanas, em contraste com “cidades na
floresta” – relacionadas a novos arranjos espaciais por conta da expansão da fronteira
agrícola e urbana (TRINDADE JR., 2010).

2. AMAZÔNIAS E O BIOMA AMAZÔNIA

Em que pese acerca da definição de Amazônia, destaca-se que não há de fato uma
delimitação e conceituação unânime sobre a região, mas sim um conjunto de limites e
expressões que varia de acordo com o que se pretende tratar e das intencionalidades de
quem o trata (ARAGÓN, 2005). Assim, o termo Amazônia traz consigo diferentes
representações espaciais e abordagens, o que possibilita a multiplicidade do termo e a
existência de várias ‘Amazônias’ (GONÇALVES, 2015).
Nessa perspectiva, com frequência as expressões mais utilizadas acerca dessa
região se relacionam aos critérios: (i) hidrográficos, quando se considera a bacia
hidrográfica do rio Amazonas; (ii) florestais, em virtude da cobertura de floresta tropical
úmida; (iii) político-administrativos, que designam tratados e limites convencionados em
função de políticas conjuntas de desenvolvimento aos países que a compõem e, ainda; (iv)
nacionais, que concernem à delimitações que cada nação outorga para aplicação de
instrumentos de planejamento e desenvolvimento regional (GUTIÉRREZ REY, ACOSTA
MUÑOZ e SALAZAR CARDONA, 2004).
No Brasil, destaca-se a existência de ‘duas Amazônias’ largamente e
institucionalmente definidas segundo os critérios hidrográficos e político-nacionais, sendo
estas a Região Hidrográfica Amazônica e a Amazônia Legal, respectivamente. A bacia
hidrográfica amazônica cobre 3.869.953 km² do território nacional e corresponde à cerca de
63% da área total do país (ANA, 2017). Por sua vez, a Amazônia Brasileira é formada com
base nos limites territoriais hidrográficos e florestais, é composta pelos estados do Acre,
Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, trata-se
de uma regionalização criada em 1953 para a definição de áreas específicas incorporadas
ao planejamento, desenvolvimento regional e à aplicação de políticas públicas.

3401 
 
 
 
 
 
Cabe salientar o apartamento desses critérios em investigações relacionadas à
Amazônia. Por vezes, se estuda a floresta tropical ou a bacia amazônica de forma isolada,
ou ainda a Amazônia Legal em estudos relacionados à urbanização, por exemplo, o que
expressa que não há, de fato, integração entre suas variáveis ambientais constituintes.
Consequentemente, essa incompatibilidade implica em diferentes espacializações face a
pluralidade da região, resultando em diferenças nas distribuições regionais (ARAGÓN,
2005). Diante dessa realidade, se faz imprescindível pensar outra forma de definição do
limite amazônico. Assim, o bioma pode consistir em uma alternativa, já que agrega grande
parte dos critérios acima discutidos, apresenta limites mais condizentes com a realidade
ambiental da região e com as discussões acerca da problemática ambiental-urbana.
O bioma Amazônia representa grande parcela de bioma de floresta tropical úmida
ou floresta tropical pluvial do território brasileiro e resulta de uma expressão elaborada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2004). Essa denominação corresponde
a um bioma de abrangência continental, que designa a agregação de biomas com
características análogas. Esse bioma se situa em uma condição peri-equatorial, seus
componentes e principais características são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1 – Principais características ecológicas do Bioma Amazônia.


Componentes Características
clima dominante quente e úmido; chuvas torrenciais bem distribuídas por todo o ano;
Climáticos
temperatura média de 25°C; alta precipitação pluviométrica, média de 2300mm/ano.
predominância da fisionomia florestal ombrófila densa; existência de outras tipologias
vegetacionais como a floresta ombrófila aberta, floresta estacional semidecidual e decidual,
campinaranas, savanas, mangues e áreas de tensão/contato ecológicas entre biomas;
Fitofisionômicos vegetação diversificada, abrange desde espécies como árvores, palmeiras, arbustos a
lianas; árvores podem atingir cerca de 40 a 60 metros de altura; as florestas de várzeas
(inundadas sazonalmente) e de igapós (inundação permanente) consistem em duas
variações dessa fisionomia vegetal, estão relacionadas com a flutuação cíclica dos rios.
Presença predominante de oxissolos, que apresentam elevadas concentrações de alumínio
Edáficos e ferro, as quais caracterizam a coloração avermelhada e o baixo teor em nutrientes
minerais;
Orográficos geomorfologia variada que engloba planaltos, planícies e depressões;
Contexto da bacia hidrográfica do Rio Amazonas; densas redes de rios, igarapés e outros
tipos de corpos d’águas; características hidroquímicas de rios de água branca (coloração
Hidrográficos marrom, pH neutro, presença de metais alcalinos e da alta concentração de sais minerais),
preta (cor marrom-avermelhada devido deposição de matéria orgânica vegetal, pH ácido) e
clara (aspecto transparente-esverdeado, variação de acidez).
Fonte: elaborado com base em Junk (1983), Sioli (1984), Moran (1990), IBGE (2004), Coutinho (2006; 2016),
Puig (2008) e Agren e Andersson (2012).

3. ESTRUTURA URBANA: ABORDAGENS, NOÇÕES E ELEMENTOS

Ao considerar que o espaço urbano se manifesta como condição do espaço


geográfico (CARLOS, 2007; CORRÊA, 1989), considera-se também que aquele se

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configura como sistema, o qual através de uma leitura dinâmica, permite a compreensão da
interrelação entre forma, função, estrutura e processo (SANTOS, 1985 apud TOURINHO).
Tal característica acarreta em uma organização não aleatória, correlacionada aos processos
sociais que possibilitam a definição de especificidades de tipos e períodos das organizações
sociais que o produzem (CASTELLS, 2009).
Villaça (2001, p. 12) afirma que o termo estrutura configura “[...] um todo constituído
de elementos que se relacionam entre si de tal forma que a alteração de um elemento ou de
uma relação altera todos os demais elementos e todas as demais relações”. Essa noção de
estrutura7, por conta de seu caráter polissêmico, possibilita abordagens analíticas em
diversos campos do conhecimento científico (SANTOS, 2008), tais como na sociologia,
economia, geografia, planejamento urbano e regional, arquitetura e urbanismo, entre outros.
Para esta pesquisa, se enfatiza o entendimento da urbanização a partir da estrutura
urbana, particularmente vinculada aos campos do planejamento urbano, arquitetura e
urbanismo. Sendo assim, Villaça (2001) denomina de “estrutura territorial” à correlação
entre atividades (usos do solo) e sistemas de infraestrutura, isto conjuga a existência de
estruturas territoriais ligadas a atividades e usos do solo à outras estruturas que dão suporte
ao seu desenvolvimento: os sistemas de infraestrutura. Essa correlação de tipologias de
estruturas existentes no espaço urbano, é também articulada a estruturas não territoriais,
tais como processos econômicos, políticos, ideológicos, que, em suma, convergem a
processos sociais (VILLAÇA, 2001).
Com relação à estrutura urbana nos campos da arquitetura e urbanismo, esta pode
ser compreendida mediante estudos da forma (ambiente construído) e função (usos).
Quanto à forma, remete a morfologia urbana enquanto estrutura física da cidade (PANERAI,
2006). O método proposto pelo autor considera a identificação de elementos e lógicas
relacionais, sendo assim, o tecido urbano como “forma total” da cidade implica na existência
de três conjuntos fundamentais os quais lhe dão forma, a saber: a rede de vias, o
parcelamento fundiário e as edificações.
De modo a corroborar com as abordagens apresentadas anteriormente, Crowther e
Echenique (1975) buscam construir um modelo analítico da “estrutura espacial urbana”.
Conforme os autores, a estrutura do espaço urbano é constituída por um par de
localizações, atinentes às atividades e aos recursos. A primeira engloba o aspecto funcional,
a partir das atividades “dentro de sítios”, que remetem às localizações de usos do solo
(residencial, comercial, industrial, etc.) e as “entre sítios”, que se referem à conexão entre
diferentes fluxos gerados pelos distintos usos na cidade.

                                                            
7 Para maior entendimento sobre esta noção, consultar Santos (2008) e Tourinho (2011).

3403 
 
 
 
 
 
No que diz respeito à localização de recursos, esta implica no aspecto físico-material
da estrutura urbana, se manifesta mediante “espaços adaptados” e “canais”. A adaptação de
espaços concerne às construções e o solo (físico) como bases das atividades, é classificada
por conta de seus tipos estruturais, idade e condição. Crowther e Echenique (1975) dão
ênfase ao aspecto estrutural devido sua importância quer para a realização de atividades
específicas como para suas formas de adaptação. Nesse sentido, as estruturas urbanas
podem ser adaptáveis tanto para às atividades que abrigam quanto para a realidade
ambiental diferenciada de um padrão de estrutura urbana hegemônico. Por conseguinte, os
canais constituem meios para o desenvolvimento das atividades, compreendem as redes de
infraestrutura (CROWTHER e ECHENIQUE, 1975).
Diante do exposto, os componentes relacionados às atividades entre sítios e canais,
podem se correlacionar aos serviços urbanos (públicos ou não) e com o sistema de
infraestrutura urbana, respectivamente. As definições entre esses termos se exibem de
forma tênue uma vez que estão interligadas. Para Mascaró e Yashinaga (2004) o sistema de
infraestrutura urbana se define a partir de elementos que possibilitam a associar forma,
função e a estrutura no espaço urbano.
Para Zmitrowicz (1997, p. 2) o sistema de infraestrutura urbana consiste em um
“sistema técnico de equipamentos e serviços necessários ao desenvolvimento das funções
urbanas", o qual se divide em subsistemas com base em suas funções. Pelo fato consistir
um sistema técnico atua tanto como rede de suporte e como rede de serviços, em que
“procura-se integrar, no conceito de sistema técnico, sua função dentro do meio urbano, o
serviço prestado à população e seus equipamentos e rede física” (ZMITROWICZ, 1997, p.
8).
Por conseguinte, a noção de serviços urbanos, neste caso, os públicos, tange ao
provimento de formas de atendimento perante as necessidades coletivas, a partir da gestão,
tarifação e manutenção de determinada rede de infraestrutura ligada à oferta de algum
serviço (ABIKO, 2011). Sendo assim, parte-se do pressuposto que o sistema de
infraestrutura urbana e seus subsistemas pode se correlacionar com os serviços urbanos a
partir de relações diretas ou indiretas, conforme expressa o Quadro 2. Portanto, entende-se
que a estrutura urbana tem como base a organização dos componentes da forma – rede de
vias, o parcelamento fundiário, as edificações, espaços abertos, em suma o ambiente
construído – e da função –
usos do solo e atividades – do espaço urbano, ao passo que media e é mediada pelos
processos sociais.

3404 
 
 
 
 
 
Quadro 2 – Correlação entre sistema de infraestrutura urbana e principais serviços urbanos.
Sistema de Infraestrutura Serviços Urbanos Serviços Urbanos
Urbana Diretamente relacionados Indiretamente relacionados

Trânsito e tráfego
Subsistema Viário Transporte coletivo
Arruamento, alinhamento e
nivelamento
Pavimentação
Coleta de lixo e limpeza de vias e
Subsistema de Drenagem Pluvial de logradouros públicos
Educação e ensino; Saúde e
Drenagem de águas pluviais
higiene; Assistência social;
Mercados, feiras e matadouros;
Sub. de Abastecimento de Água Serviço funerário; Segurança
Água e esgoto sanitário pública; Esporte, lazer, cultura e
Sub. de Esgotamento Sanitário recreação;Defesa civil.

Energia elétrica
Subsistema Energético Iluminação pública
Distribuição de gás

Subsistema de Comunicações Serviços telefônicos

Fonte: elaboração do autor com base em Zmitrowicz (1997), Mascaró e Yoshinaga (2004) e Abiko (2011).

4. A INTERFERÊNCIA DO BIOMA NA ESCALA DA CIDADE: O CASO DE AFUÁ


Como forma de associar a urbanização – com ênfase na estrutura urbana – ao bioma
amazônico, busca-se compreender a interferência dos elementos ecológicos na estrutura
físico-material e funcional da cidade. Para tanto, objeto empírico definido consiste na cidade
de Afuá, localizada no arquipélago do Marajó, no estado do Pará. A definição dessa cidade
como caso único, deve-se, sobretudo, pela sua imersão no bioma Amazônia, assim como
pela circunscrição nos limites da bacia hidrográfica amazônica, da Amazônia Legal e da
Região Norte do Brasil, tal como apresentado na Figura 1. Além disso, grande parcela do
sistema construtivo da cidade se estrutura em palafitas de madeira.
No tocante aos aspectos fisiográficos, a cidade se situa em uma porção insular de
zona de Floresta Ombrófila Densa Aluvial (IBGE, 2004), circunscrita pelos rios Afuá,
Cajuúna e Marajozinho, na planície do Rio Amazonas em cotas altimétricas que variam de 4
a 8m. Cabe ressaltar que a presença de igarapés intercepta o espaço interno da cidade, fato
que lhe rendeu a denominação local de “Veneza Marajoara”.

3405 
 
 
 
 
 
Figura 1 – Localização da cidade de Afuá-PA.

Fonte: elaboração de Jacy Soares Corrêa Neto, 2017. Base cartográfica: IBGE, MMA e ANA, 2017.

A gênese e o desenvolvimento da cidade de Afuá tiveram seu início a partir de um


núcleo ribeirinho. Sua constituição foi influenciada por atributos da ocupação territorial da
colonização portuguesa, uma vez que se formou ao redor da igreja matriz às margens do rio
Afuá por ser um ponto comercial de paragem (DIAS e SILVA, 2011). A evolução urbana
dessa cidade é também resultado das transformações administrativas relacionadas à
dinâmica territorial do município homônimo do qual integra atualmente como sede
administrativa.
Em termos populacionais, o município possui menos de 40.000 habitantes, contudo,
registra-se notória variação de concentração demográfica. De acordo com as informações
do censo demográfico de 2010, 27% da população vive na cidade-sede, enquanto que a
maioria reside nas áreas rurais. De maneira geral, a economia do município orienta-se às
atividades relacionadas ao extrativismo vegetal através da extração do açaí (Euterpe
oleracea, fruto e palmito) e da atividade madeireira como principais formas de geração de
renda. Destaca-se também, receitas advindas de atividades comerciais e dos empregos
gerados pela administração pública (PARÁ, 2014).
Quanto às características do sistema viário, grande parte da cidade se estrutura por
meio de vias em estivas ou palafitas de madeira. Há vias construídas em concreto armado

3406 
 
 
 
 
 
que são também elevadas do solo, localizadas na porção central e, principalmente,
circundam a orla da cidade, como apresenta a Figura 2. A elevação das vias gira em torno
de 1,50m em relação ao solo, isso ocorre em função dos fenômenos de enchente e vazante
dos rios, os quais exibem seus ápices em períodos denominados popularmente como
“lançantes”, por volta dos meses de março e abril.
Os leitos carroçáveis das vias possuem cerca de 3m de largura, os quais abrigam
apenas o tráfego de pedestres e de veículos não motorizados, o que é assegurado pela
legislação municipal devido à resistência das vias e dos solos aluviais em que se apoiam.
Em virtude dessa característica, a mobilidade intraurbana é realizada por meio de bicicleta e
adaptações, tais como triciclos e os bicitáxis8 – adaptação de duas bicicletas soldadas na
forma de um automóvel, com alguns elementos característicos como volante, teto, assento
para quatro passageiros, por exemplo. Soma-se ainda a existência da mobilidade fluvial, por
meio de pequenas embarcações por conta da presença de igarapés e rios.
Em que pese acerca do parcelamento fundiário, este é marcado pela existência de
duas zonas – que são separadas por uma pista de pouso –, sendo essas os bairros Central
e Capim-Marinho. O primeiro existe desde a fundação da cidade, caracterizado por lotes de
testada estreita e comprimento alongado, expressa um padrão de traçado irregular e
adensado, pois denota o acompanhamento da hidrografia tanto dos rios como de igarapés.
Já no bairro Capim-Marinho, os lotes são estreitos, em alguns casos, o traçado apresenta
irregularidade e ocupação menos densa, contudo, por se tratar de uma área de vetor de
expansão relativamente planejada, o traçado segue um padrão ortogonal. Em suma, a
cidade de Afuá possui um tecido urbano denso e compacto.

                                                            
8 A denominação se relaciona com sua função quando idealizado, foi uma criação voltada ao passeio, tal como

um táxi direcionava-se a mobilidade de passageiros, geralmente turistas. Atualmente, seu uso foi largamente
ampliado por vários habitantes que os utilizam também no lazer e recreação.

3407 
 
 
 
 
 
Figura 2 – (a) via estruturada em palafitas com arruamento em madeira; (b) via com
arruamento em concreto armado, situada “rua da frente” na orla da cidade; feições das vias
durante o período de lançante: (c) em palafitas de madeira, conexão com o bairro Capim-
Marinho; (d) em concreto armado, orla da cidade, e; (e) e (f) adaptações em meios e de
transporte, triciclo e bicitáxi, respectivamente.

Fotos: acervo do autor.

No tocante às edificações, o sistema construtivo largamente utilizado é o de palafitas


de madeira, cabe destacar também o crescente número de edificações em alvenaria e
estrutura mista (madeira e alvenaria), como expressa a Figura 3. Sinteticamente, a tipologia
palafita em madeira em edificações, designa a incorporação dos elementos do bioma tais
como o clima, solo, vegetação e hidrografia, ainda que variem na maneira de seu emprego
devido a diversidade de edificações. De modo geral, as estratégias arquitetônicas adotadas
estão ligadas de modo predominante à ventilação cruzada, à existência de beirais e
aberturas verticais, à sazonalidade das marés, ao solo aluvial dado o emprego de fundações
do tipo estaca, assim como à vasta utilização da madeira como principal material
construtivo.

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Figura 3 – (a) sistema construtivo de edificação em palafita de madeira; (b) sistema


construtivo misto de edificação em palafita de madeira com fechamento e piso em alvenaria;
(c) interligação entre residências em palafitas de madeira com a via e espaços adaptados ao
descanso; (d) residência situada às margens de igarapé.

Fotos: acervo do autor, 2017.

Com relação ao abastecimento de água, cerca de 25% dos domicílios possui


tratamento de água potável realizado por uma companhia estadual de tratamento e
saneamento (IBGE, 2010). Grande parcela da população utiliza outros meios de
abastecimento em que coleta de água se dá diretamente nos corpos hídricos (rios e
igarapés) existentes. Além disso, a infraestrutura de distribuição de água é incorporada sob
as vias ora de madeira ou concreto.
A cidade de Afuá não possui sistema de tratamento de esgoto sanitário, os dejetos
produzidos são em maioria depositados no solo de várzea através de latrinas ligadas às
fossas rudimentares e valas. Isso porque, devido a influência da cultura ribeirinha, os
banheiros e latrinas são alocados no exterior do domicílio ao fundo do lote, conectados por
estivas em madeira. Segundo o IBGE (2010) apenas 3,2% dos domicílios possuem
esgotamento sanitário adequado, o qual é realizado por meio de fossas sépticas. Essa
inexistência de sistema de esgoto pode estar relacionada com a dificuldade de construção
de um sistema compatível com as características do solo e da sazonalidade das marés.
No que tange ao subsistema de energia elétrica, em Afuá a geração se dá por meio
de uma usina termelétrica que funciona a óleo diesel, uma vez a cidade que não é
interligada ao sistema nacional de distribuição devido a sua condição insular. No que que

3409 
 
 
 
 
 
tange ao fornecimento, este é distribuído ao longo de postes de concreto armado, os quais
são fincados ao solo. O atendimento pelo serviço abrange mais de 7.000 habitantes.
Sobre os usos do solo e as atividades, devido a orla atuar como fronteira de conexão
com a hidrografia e das relações população-ambiente, é principal espaço coletivo, o que a
torna mais ativa e diversificada do que outras áreas. Existem desde usos comerciais,
residenciais e institucionais, mais presentes ao longo da orla e no bairro Central. Os
mercados e feiras situados ao longo da orla atuam na comercialização de produtos regionais
(ver Figura 4), tais como pescados, crustáceos (camarão), carne bovina, fruto do açaí e
hortaliças. Isso porque se situam na confluência das relações urbanas e rurais conforme
como destaca (LOMBA e NOBRE-JUNIOR, 2013).

Figura 4 – Dinâmica de mercados e feiras na cidade de Afuá: (a) mercado de carnes; (b)
atividades relacionadas às vendas de hortaliças; (c) feira do pescado, comercialização de
peixes e crustáceos da região, e (d) embarcações ancoradas às proximidades das feiras e
mercados.

Fotos: acervo do autor, 2017.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento dessa pesquisa permitiu a compreensão dos principais aspectos
da estrutura urbana da cidade de Afuá e a relação de seus elementos com os
condicionantes ambientais do bioma Amazônia. Verifica-se que no caso de Afuá, por tratar-
se de uma cidade imersa na floresta amazônica e pela sua condição fisiográfica de várzea,
o bioma Amazônia é determinante na estrutura física de palafitas e também pode implicar na
formação de usos e atividades característicos devido as relações entre população e
ambiente.

3410 
 
 
 
 
 
A pesquisa revelou características urbanas essenciais da estrutura urbana no bioma
Amazônia, mais especificamente, a partir da análise intraurbana da cidade de Afuá. De
modo que se compreendeu as principais peculiaridades que permeiam a dinâmica e
desenvolvimento urbanos de uma pequena cidade, mediante a compreensão da localização
de usos do solo, das principais atividades, serviços e redes de infraestrutura relacionados à
estrutura urbana, assim como a adaptação ou não desses elementos de desenvolvimento
urbano ao bioma.
Nessa perspectiva, a compreensão das especificidades do fenômeno urbano
amazônico pode fornecer subsídios que auxiliem o entendimento dos cenários intraurbanos,
que de alguma forma possam colaborar na elaboração de políticas e instrumentos de
desenvolvimento urbano no âmbito de planos, programas e projetos, consoantes com a
realidade local e regional das cidades do bioma estudado.

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Grupo de Trabalho 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América
Latina

UMA PROPOSTA DE ZONEAMENTO DA PAISAGEM DA CIDADE VELHA A


PARTIR DA VOCALIDADE DE SEUS ATORES SOCIAIS

Sabrina Campos Costa (PPGA-UFPA/SECULT-PA)1

[email protected]

RESUMO
O Centro Histórico de Belém concentra quase que exclusivamente as ações culturais mais
significativas promovidas na capital do Pará, Amazônia brasileira. Neste sentido, buscou-se a
partir de referências bibliográficas e documentais, levantamento de projetos, caminhadas de
identificação, observação participante e entrevistas com moradores da Cidade Velha,
responder que funções, usos, pessoas e instituições constituem sua paisagem urbana,
trabalhando os conceitos de política cultural (CALABRE, 2009), referências culturais
(FONSECA, 2001) e apropriação cultural (ZUKIN, 2000) para se chegar a um zoneamento
que se instituiu a partir de seus atores sociais.

Palavras-chave: Paisagem, Vocalidade, Cidade Velha. Pará. Amazônia brasileira.

1. INTRODUÇÃO

A educação patrimonial foi minha porta de entrada para a pesquisa e vivência do


patrimônio cultural, possibilitada pela atuação profissional, desde 2008, no departamento
responsável pela construção da política patrimonial, veiculado à Secretaria de Estado de
Cultura do Pará, Amazônia brasileira. Vivência esta com diferentes grupos sociais
(estudantes, lideranças na área cultural, professores, secretários municipais de cultura,
turismo, meio ambiente, igualdade racial) em ações de sensibilização e capacitação
promovidas em 17 municípios2, abrangendo projetos de arqueologia, tombamento, formação
de professores, de restauro, etc., quando foi possível observar a estreita associação entre
afetividade e atribuição de valor na relação que estes diferentes grupos têm com o patrimônio
cultural.

                                                            
1 Turismóloga, arqueóloga e cientista social, mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Pará, é

Técnica em Gestão Cultural no Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, Secretaria de Estado
de Cultura do Pará.
2 Belém, Cachoeira do Arari, Ponta de Pedras, Tomé-açu, Bragança, Aveiro, Santarém, Parauapebas, Salinópolis,

Vigia, Cametá, Afuá, Barcarena, Moju, Abaetetuba, Bujaru e Baião.

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Neste sentido, motivei-me a pesquisar que relações os moradores há mais de 20
anos mantêm com o bairro da Cidade Velha. O recorte temporal, situado entre a década de
1990 aos dias atuais, foi pautado pela consolidação da política de proteção, requalificação e
gestão do patrimônio cultural, e neste sentido a pesquisa procurou compreender que pessoas
e instituições, com seus distintos usos e apropriações, vêm construindo sua paisagem urbana,
através de referências bibliográficas e documentais, levantamento de projetos desenvolvidos
no bairro, caminhadas de identificação, observação participante, e entrevistas com 20
famílias, divididas em duas etapas. A primeira etapa contemplou os moradores da Cidade
Velha patrimonial ou tombada como Centro Histórico, que corresponde à porção da Praça
Frei Caetano Brandão, e seu entorno imediato até a confluência com a Avenida Almirante
Tamandaré; a outra porção corresponde à Cidade Velha não patrimonial ou de entorno3.
Na primeira sessão, apresento os atores sociais que atuam no espaço do bairro da
Cidade Velha. Na segunda sessão, que formas de uso o bairro tem apresentado, segundo as
fontes bibliográficas e orais consultadas. Por fim, segue uma proposta de zoneamento
resultante das narrativas de seus moradores.

1.1 Os atores sociais e suas vocalidades

Uma das maiores características do bairro da Cidade Velha é o adensamento de


instituições, especialmente as públicas, que atendem aos três poderes, desde a sede da
Prefeitura Municipal de Belém à Assembleia Legislativa do Estado. Durante a semana, é
constante o movimento por estas instituições, provocando, segundo os moradores, muitos
transtornos no trânsito, o que tem levado a Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana
quase diariamente a retirar por guincho dezenas de automóveis por estacionamento em local
proibido, como os calçamentos tombados de pedras de lioz.
O Núcleo Cultural Feliz Lusitânia, entorno do núcleo inicial de ocupação da cidade,
talvez seja o exemplo mais emblemático de ator sociocultural do bairro, dadas suas
proporções de cerca de 50.000 m², destacando-se na paisagem. O lugar concentra o Museu
do Forte do Presépio, Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, Igreja de Santo Alexandre,
Museu de Arte Sacra, Praça Frei Caetano Brandão.
O movimento no bairro é quase ininterrupto. No horário comercial existem as
instituições públicas, comércios e serviços – especialmente as de produtos e serviços para
embarcações –, fábrica de velas, o Mercado do Guamá, os portos, o Parque Naturalístico

                                                            
3 O Centro Histórico de Belém foi definido a partir do conjunto da Lei n. 7.401/88, sobre a política municipal de
desenvolvimento urbano, do primeiro Plano Diretor Urbano, datado de 1988, e o tombamento da Lei Orgânica do
Município de 1990.

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Mangal das Garças, durante a noite, as igrejas, carrinhos de lanches, casas de shows;
espaços e atores sociais que vão conformando o espaço ao longo do dia, entre eles
moradores, flanelinhas, ambulantes, trabalhadores, clientes, passageiros dos portos,
frequentadores do mercado, servidores públicos, artistas, funcionários das igrejas e
irmandades religiosas, pesquisadores, moradores de rua. O bairro se tornou muito visado para
a realização de projetos culturais como os promovidos pelo Roteiro Geoturístico4, Fórum
Landi5, Centro Cultural do Carmo, Circular Campina-Cidade Velha6, as festividades em torno
da celebração do Círio de Nossa Senhora de Nazaré 7, como também pela vida noturna em
torno dos bares e casas de shows.
Sobre os diferentes públicos da Cidade Velha, Miranda (2006) divide o bairro na face
dos moradores comuns, as famílias de prestígio e os moradores das palafitas; na face dos
outsiders, da vanguarda, carnavalesca e dos artistas; os técnicos; os frequentadores do Feliz
Lusitânia; em outros termos, “os nativos, os forasteiros, os farofeiros, os pichadores e
vândalos” (p. 55).
Estes atores sociais mantêm relações que também envolvem tensões, como ilustra
o depoimento de D. Terezinha, moradora próxima da faixa que concentra as casas de shows.
Ela acredita que o bairro tem um uso indevido devido aos transtornos causados pelos
frequentadores destes espaços, devido à ocupação das calçadas por carros, ao barulho,
gritos, drogas, brigas (Informação verbal: TEREZINHA, 21/10/13).
Cada um destes atores sociais mantêm uma percepção e relação diferenciada com
o bairro, seja a do espaço do trabalho, do lazer e diversão, da moradia, do afeto, seja da
vigilância e fiscalização, criando suas referências culturais próprias. Moradores, o universo
pesquisado neste trabalho, têm com a Cidade Velha a relação do afeto, da admiração pelas
edificações históricas e da tradição, conjuntamente com o privilégio da moradia em uma área
central.
O termo referências culturais foi usado na política pública pela primeira vez durante
o governo militar, com a criação do Centro Nacional de Referências Culturais, visando suprir
a brecha de atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – voltado para
os bens de valor excepcional e monumentais – e serviu de base para a inclusão, no artigo
216 da Constituição Federal de 1988, do conceito de patrimônio cultural como bens de

                                                            
4 Projeto de extensão do da Faculdade de Geografia e Cartografia da Universidade Federal do Pará, que realiza
caminhadas gratuitas com o objetivo de fomentar práticas de turismo cultural.
5 Veiculado à Universidade Federal do Pará, com sede na Cidade Velha, é projeto de pesquisa sobre as obras do

arquiteto italiano Antônio Landi no bairro.


6 Gerenciado pela galeria Kamara Kó, é projeto que está na 19ª edição e realiza a cada dois meses, aos domingos,

ações socioculturais nos bairros centrais de Belém, valorizando a arte, a cultura, o patrimônio cultural.
7 Celebração religiosa, considerada patrimônio pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

e a Cultura (UNESCO), ocorre em Belém todo segundo domingo de outubro, considerado “Natal dos paraenses”
pela sua importância sociocultural e econômica.

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natureza material e imaterial. Posteriormente, foi cunhado por Fonseca para contemplar bens
além daqueles considerados consagrados – segundo critérios técnicos – a exemplo dos
associados aos indígenas, negros, classes populares e imigrantes, deslocando o foco para o
valor que é atribuído aos bens e práticas culturais, cujas dimensões simbólicas são plurais e
diversificadas, e incluem a complexidade de ocupações e usos do espaço. De direito difuso,
as referências culturais, juntamente com a qualidade de vida e a proteção ao meio ambiente,
são conquistas recentes no entendimento da cidadania de grupos minoritários de uma
sociedade democrática (FONSECA, 2001).
Observamos assim, através de uma caracterização do bairro, que a Cidade Velha
atualmente ganhou uma importância que, além de histórica, passou a ser das instituições de
caráter público, museus e espaços de entretenimento, manifestações e eventos, ou seja, uma
importância patrimonial e econômica para a cidade.

1.2 A Velha Nova Cidade Velha: funções, usos e apropriações

[...] quando pensam em qualquer política tudo é centralizado, tudo na Cidade Velha,
aqui no centro...tudo é [praça da] República e [praça] Batista Campos. Por que o
Arraial do Pavulagem8 não vai no [bairro do] Telégrafo, Jurunas? Se governante não
pensar a cidade, vai acontecer isso. Edmilson9 fazia o Nazaré pra Todo Canto. Onde?
Em [bairro de] Nazaré e na Cidade Velha! Por aqui acontece tudo. Se está agora nos
bairros, é iniciativa da população, não adianta isso. (Informação verbal: SALOMY,
09/01/14).

A fala da moradora, uma professora universitária e frequentadora dos museus e


programações culturais do bairro, ilustra como a política de eventos de Belém tem se
construído em torno do centro, especialmente na Cidade Velha.
A conformação de espaços para o lazer e o turismo proporciona a oferta de
entretenimento, que na Cidade Velha aparecem na forma de shows, carnavais de rua, desfiles
de moda, salões de arte. Os eventos realizados no bairro cresceram a tal ponto que tiveram
de passar por regulamentação e ordenamento, a exemplo do carnaval, para o qual a prefeitura
de Belém estabeleceu uma série de normas a partir de 2014, como a proibição de som
automotivo em área tombada, como vemos a seguir no depoimento da autônoma Juliana,
moradora da avenida que passou a concentrar a reunião dos veículos.

Eu gosto de barulho, tem vizinho que não gosta, de vez em quando eles colocam aí,
porque é muito alto, som automotivo, o pessoal encosta no canal [da Avenida
Tamandaré] mesmo. E essa época [de carnaval] é mais, porque parece que acaba lá
no Portal [da Amazônia], aí o pessoal desce e coloca aqui... uma das coisas que eu
                                                            
8Instituto de cunho cultural que pesquisa e promove cortejos musicais na forma de “arrastões”, com concentração,
caminhada e culminância em show durante a quadra junina e a festividade do Círio de Nazaré.
9 Prefeito de Belém no período de 1997 a 2004. O projeto, porém, foi criado há 12 anos pelo Governo do Estado,

promovendo espetáculos musicais e teatrais no período de outubro, em torno das homenagens à Nossa Senhora
de Nazaré, por ocasião da celebração do Círio.

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não gostei foi isso, porque tiraram da [avenida] Tamandaré, o [bloco do] Kaveira todo
ano mandava botar palco aqui no canal da Tamandaré, muita gente podia ganhar
dinheiro vendendo suas coisas. Tiraro. Eu vendia lanche. É uma época que dá pra
ganhar um poucozinho [...] Carro é mais pra cá, na frente do posto, ou então no canal.
Aí a polícia de vez em quando vem aí, eles baixam. Aí vai embora, aumentam de
novo. Eu gosto de movimento, de música, aí o pessoal boto, só que a maioria dos
vizinhos não gostam, o pessoal vive chamando a polícia...creio que seja as pessoas
de idade que chamam o [Delegacia de Meio Ambiente] DEMA. (Informação verbal:
JULIANA,19/02/14).

O bairro da Cidade Velha, portanto, passou a ser, até os dias atuais, objeto de
pesquisa, protesto, apropriações diversas, onde intelectuais, empresários e artistas mediam,
conjuntamente com gestores do patrimônio e do turismo, formas de uso do bairro. Para Zukin
(2000), esta mediação é a apropriação cultural, que acontece quando um grupo social não
nativo da paisagem ou das práticas tradicionais assume uma perspectiva de ambos ou
quando impõe sua perspectiva transformando o tradicional em paisagem. A comunicação de
massa contribui neste processo pois cria as representações culturais de paisagem a partir de
colagens, onde o consumidor se move e muda constantemente de perspectiva.
A Nova Cidade Velha é atualmente uma síntese da diversidade paraense, que
convive de diferentes modos, nem sempre desprovidos de conflitos ou divergências.

2. PROPOSTA DE ZONEAMENTO

Para nos ajudar a pensar a dinâmica da capital do Pará, é preciso entender a política
cultural como um conjunto de ações

“elaboradas e implementadas de maneira articulada pelos poderes públicos, pelas


instituições civis, pelas entidades privadas, pelos grupos comunitários dentro do
campo do desenvolvimento do simbólico, vindo a satisfazer as necessidades culturais
do conjunto da população” (CALABRE, 2009, p. 12).

Neste sentido, vários atores vêm atuando como agentes modeladores do espaço,
seja pela requalificação urbana no restauro de edificações, na preferência por áreas de
intervenção artística, no aproveitamento econômico, na promoção de eventos no bairro, entre
outros usos. O fato é que a Cidade Velha experimentou entrar para o circuito de projetos e
eventos de proporções significativas na cidade, atraindo investidores da área do
entretenimento, projetos artísticos e culturais, e ainda a chegada de novos moradores com
perfil intelectual ou artístico.
Deste modo, foram identificadas grandes zonas segundo os usos do bairro, de
acordo com as narrativas dos moradores, reunidas como proposta deste trabalho a partir da
afinidade, como apresentado a seguir:

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Cidade Velha das águas: o bairro foi construído às margens da Baía do Guajará, e
as “janelas para o rio10”, orlas de acesso livre – sem pagamento de ingresso nem horário de
funcionamento – como o Portal da Amazônia, o píer do Espaço Cultural Casa das Onze
Janelas e o Parque Naturalístico Mangal das Garças, são espaços de contemplação citados
como utilizados pelos moradores para o lazer, com respectivamente 40%, 25% e 25% das
preferências, como demonstra abaixo a fala do morador da Passagem do Carmo.

[...] Ah, minha juventude tudinho foi aqui, estudava aí no Carmo na minha juventude,
foi muito bacana, batia bola de manhã, de tarde, e de noite, 3 vezes...noutro dia
tomava banho [no rio], ia pro colégio, saía pensando em tomar banho [no rio], brincava
de pião, peteca e furinho, tinha disputa aí na praça [do Carmo], era muito bom...hoje
ninguém quer saber disso. (Informação verbal: MARCOS, 12/02/2014).

O morador das margens da baía referiu-se ao hábito de tomar banho no rio, que
devido à densificação de ocupação do solo e moradias, foi sendo substituído pelo gosto da
contemplação. Esta categoria, “das águas”, que proponho neste trabalho, inclui ainda a zona
portuária que resiste na Cidade Velha, apesar da criação de acesso rodoviário – a Alça Viária
– a muitos municípios e a criação de um Terminal Hidroviário de grande porte, em outro bairro.
Ali se encontram os portos de passageiros e mercadorias Guarumã, Arapari, Beira Dão,
Vasconcelos, Brilhante, do Sal, Palmeiraço, Santa Efigênia.
Cidade Velha do entretenimento: área constituída pelo corredor do Núcleo Cultural
Feliz Lusitânia, a Rua Siqueira Mendes, a Rua São Boaventura e a Rua Óbidos, que
concentram a maior parcela de restaurantes e lanchonetes, frequentado por 20% dos
moradores; casas de shows, que ao lado do forte são frequentadas por 15% dos moradores;
e bares, frequentados por 10% dos moradores, seguidos pela Igreja de Santo
Alexandre/Museu de Arte Sacra, com 5% das preferências.
Cidade Velha verde: resultado do planejamento e embelezamento urbano do período
áureo da borracha, o bairro possui grande concentração de praças, como a Frei Caetano
Brandão, a D. Pedro II, a do Relógio, a do Carmo, o Largo de São João, a praça Carneiro da
Rocha (conhecida como praça do Arsenal de Marinha), e a Felipe Patroni, além do Parque
Naturalístico Mangal das Garças. Observe-se que metade das praças são compostas por
mangueiras, espécie importada da Índia que se adaptou ao clima e que são patrimônios
tombados11 pelo estado. Ao lado dos espaços abertos à contemplação do rio, as praças são

                                                            
10 Modo como são chamados os espaços em Belém com vista e acesso direto ao rio, foi nomenclatura utilizada no
mandato do prefeito Edmilson Rodrigues, que a partir do Plano Diretor Urbano de Belém e o Plano de
Reestruturação da Orla de Belém (Pró-Belém) inaugurou os primeiros projetos de acesso ao rio, a saber: Terminal
Fluvial Turístico da Praça Princesa Isabel, a Orla de Icoaraci e o Complexo Ver-o-Rio, mudando as características
da cidade que cresceu “de costas” para o rio (COSTA et al., 2014).
11 Sob a denominação “mangueiras e samaumeiras existentes nas ruas, praças e parques da área metropolitana

de Belém, bem como os espécimes existentes no município de Ananindeua”, tombamento publicado no Diário
Oficial do Estado no dia 18 de maio de 1983.

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os locais preferidos para o lazer dos moradores do bairro, citadas em 40% das entrevistas,
como narrado abaixo por D. Maria José, moradora de mais de 80 anos.
[...] frequento a praça [Frei Caetano Brandão] da Sé [...] vou de bicicleta com meu neto
[...] ele vai pela praça [Frei Caetano Brandão] da Sé, igreja [da Sé], praça da prefeitura
[Felipe Patroni], praça do leão [D. Pedro II]. (Informação verbal: MARIA JOSÉ,
07/11/13).

O morador Arthur, natural de Baião, foi sintético ao afirmar que “o canal [da Avenida
Tamandaré, que separa o bairro] é nossa referência, e praça passa a ser referência maior”
(Informação verbal: ARTHUR, 14/12/13). Praças são carinhosamente denominadas – “praça
do Leão”, “praça da Sé”, “praça do Abdon” – e constituem paisagens culturais que foram
entrecortadas pela concentração de empreendimentos privados. As praças, portanto, servem
de pontos de localização e referência na Cidade Velha, além de amenização do clima,
concentração de blocos de carnaval, espaços de apresentações culturais, exposições e feiras,
entorno de bares e no corrente ano, seu interior passou a ser explorado por flanelinhas como
estacionamento para os frequentadores das casas de shows.
Cidade Velha dos eventos: nos espaços da Cidade Velha se realizam eventos
representativos de Belém, como a saída da procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré,
a Romaria Poética12, o Auto do Círio13, a Feira de Miriti14, os arrastões do Arraial do
Pavulagem, o Carnaval tradicional, auto de Natal, desfiles de moda, Arte Pará. Nas praças do
bairro artistas como a antiga banda Calypso gravaram seus DVDs, são realizados eventos
comemorativos de programas de televisão, shows musicais e projetos culturais como os
citados anteriormente.
Cidade Velha das instituições: inclui a sede da Prefeitura Municipal de Belém e
Museu de Arte de Belém, Museu Histórico do Estado do Pará, Defensoria Pública, Justiça
Militar do Estado, Tribunal de Justiça do Estado, Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
Fórum Civil e Criminal, Assembleia Legislativa do Estado, Banco do Estado do Pará, etc.
Existem ainda as escolas públicas Rui Barbosa, David Mufarrej, e General Gurjão e privadas
como o Colégio do Carmo e a escola Dom Mário, que fazem parte do bairro. Há ainda a
Fraternidade Santa Clara, o Fórum Landi e diversos empreendimentos particulares, a exemplo
do Centro Cultural do Carmo e da Casa Rosada, pertencente ao Grupo Alubar.
Cidade Velha dos fluxos de veículos: Um fluxo intenso de carros segue no sentido Ver-
o-Peso-Arsenal de Marinha-Portal da Amazônia-Jurunas, pela Rua Dr. Assis, e outro pela

                                                            
12 Evento da programação do Círio de Nazaré, a Romaria Poética realiza em 2017 sua 5ª edição, com declamação
de poesias, sarau e lançamento de livros.
13 Homenagem teatralizada coordenada pela Universidade Federal do Pará em meio às comemorações do Círio.
14 Os artesãos do município de Abaetetuba passam o ano todo confeccionando brinquedos com fibras da palmeira

do buriti ou miriti, elemento que faz parte das comemorações do Círio, e vem sendo exposto desde 2014 nas
praças D. Pedro II e do Carmo.

3421 
 
 
 
 
 
Avenida Portugal-Avenida Tamandaré-São José Liberto. O contra fluxo vem no sentido
Jurunas-Cidade Velha pela Rua Dr. Malcher. É a Cidade Velha do fluxo de veículos.
Este zoneamento do bairro vem se desenvolvendo até o presente, e seus moradores
buscam uma alternativa para a minimização dos impactos causados pelos diversos usos que
a Cidade Velha vem adquirindo, como o combate à poluição sonora, estabelecimento de
horários para término de eventos, etc., como podemos ver na “Multa Moral”, instrumento
simbólico de sensibilização criado pela Associação dos Moradores da Cidade Velha (Cvviva).
FIGURA 1: Multa moral

Fonte: Cvviva
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do reconhecimento e delimitação do Centro Histórico de Belém, na década de 1990,


à progressiva assimilação de referências culturais enquanto instrumento de direitos,
empoderamento e reivindicação de novas concepções culturais, atores sociais e diferentes
funções a que serve o bairro da Cidade Velha, foram abordadas, no decorrer do trabalho,
algumas propostas de zoneamento da paisagem urbana, dividida na Cidade Velha das águas,
Cidade Velha do entretenimento, Cidade Velha verde, Cidade Velha dos eventos, Cidade
Velha das instituições, e Cidade Velha dos fluxos de veículos.
Alguns destes usos foram são considerados desejáveis e adequados pelos
moradores da Cidade Velha, como a abertura de “janelas para o rio”, o embelezamento de
espaços que a tornou “cartão-postal” da cidade e atrativa para o turismo e a realização de

3422 
 
 
 
 
 
eventos que levaram movimentação para o bairro e fonte de renda para os moradores. Outros
usos foram considerados indevidos por trazerem transtornos para os moradores, como o
trânsito pesado, a poluição sonora, a demanda por estacionamento e a pressão exercida no
bairro por bares, casas de shows e eventos que atraem multidões.
Os locais do bairro preferidos pelos moradores surpreenderam ao longo da pesquisa,
pois imaginava que frequentavam aqueles espacialmente próximos de suas residências, o
que não foi confirmado. Moradores preferem espaços ao ar livre como as praças, áreas verdes
e de contato com o rio. As praças são carinhosamente denominadas como “Praça do Leão”,
“Praça da Sé”, assim como as igrejas, a exemplo da “São Joãozinho”. Paisagens culturais
estas que são entrecortadas por espaços fragmentados pela política pública, a intervenção
do Estado, dos intelectuais, artistas e pela concentração de empreendimentos privados.
Nas cidades, o papel dos valores culturais associados a certas áreas é tão essencial
quanto a infraestrutura, a acessibilidade e as amenidades, impactadas por sentimentos
históricos, estéticos e familiares, haja vista que a força dos sentimentos é mais forte do que a
racionalidade econômica. Esta é uma interpretação alternativa que Corrêa (2004) oferece à
visão economicista que domina a maioria das análises, por exemplo, de centros históricos.
Compreender o bairro com reverberação na vida afetiva e do cotidiano dos
moradores, portanto, resultou no encontro com nuances do que significa um “bom lugar para
viver”, que significa localização central, acesso fácil, arborização, tranquilidade, uma
vizinhança “como uma família”, o que se mostrou um campo aberto a novas possibilidades no
planejamento urbano e na gestão da Cidade Velha enquanto bairro histórico.

REFERÊNCIAS

CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de
Janeiro: FGV, 2009 (Coleção FGV de Bolso. Série Sociedade & Cultura).

CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 2004, série
Princípios.

COSTA, Márcia Josefa Bevone; VASCONCELLOS SOBRINHO, Mário; FARIAS,


André Luis Assunção de. Planejamento e gestão de orlas urbanas na amazônia:
uma experiência democrático-participativa em Belém (PA). In: Revista ORG & DEMO,
Marília, v. 15, n. 1, p. 37-58, Jan./Jun., 2014. Disponível em:
<www.file:///f:/tcc%202015/produ%c3%a7%c3%a3o%20textual/janelas%20para%20r
io%20artigo.pdf>. Acesso em 6 out. 2017.

3423 
 
 
 
 
 

FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: base para novas políticas
de patrimônio. In: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Politicas sociais –
acompanhamento e análise, nº. 2, 2001. Disponível em <www.ipea.gov.br/agencia/
images/stories/PDFs/politicas_sociais/referencia_2.pdf>. Acesso em 15 out. 2017.

MIRANDA, Cybelle Salvador. Cidade Velha e Feliz Lusitânia: Cenários do


Patrimônio Cultural em Belém. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais. Universidade Federal do Pará. Belém, 2006.

ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In


ARANTES, Antônio A. O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000, pp. 81-
103.

Informação verbal:
CLAUDIA HELENA CAMPOS NASCIMENTO, 15/05/13.
DULCE ROSA ROCQUE, 17/05/13
FLÁVIO AUGUSTO SIDRIM NASSAR, 21/05/13.
MARIANA BATISTA SAMPAIO, 23/05/13.
LUZIA GOMES FERREIRA, 24/05/13.
TEREZINHA, 21/10/13.
MARIA JOSÉ, 07/11/13
ARTHUR, 14/12/13
ELIANA, 07/01/14
SALOMY, 09/01/14
ZAIRE: 15/01/2014
CELSO, 15/01/14
JADER, em 17/02/14
ALESSANDRA: 28/01/2014
CARLOS 04/02/14
MARCOS, 12/02/2014
JULIANA,19/02/14
MAXILENE 23/02/14
MARINA, 23/02/14 

3424 
 
 
 
 
 
GT 07 A – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA
LATINA.

AVALIADOR-CIDADÃO - A RELEVÂNCIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS


NA AVALIAÇÃO DE BENS IMÓVEIS E SUA IMPORTÂNCIA
PARA A CIDADANIA PLENA.

Aldemar Norek (IPROARQ | UFRJ – PGE-RJ)1


[email protected]
Kátia Yamaguti (EMOP-RJ)2
[email protected]
Douglas Milne-Jones (PGE-RJ)3
[email protected]

RESUMO

O instituto da expropriação é utilizado para implementar políticas públicas que ora são bem
vistas e aceitas pela sociedade, ora questionadas por todos, por parcelas prejudicadas ou
que defendem maiores debates para sua efetivação. Ferramenta a priori para determinação
do valor de mercado dos bens a serem desapropriados, a atividade do avaliador imobiliário
a serviço do poder executivo (municipal, estadual ou federal), reveste-se de relevante cunho
político para a consolidação da justiça social implicada nos complexos processos das
reformas urbanas. Assim, o avaliador, a despeito de utilizar instrumentos objetivos – a
estatística inferencial e dados censitários oficiais ou do mercado –, deve desenvolver uma
crítica sobre as políticas públicas que seu trabalho viabiliza, para se constituir, nos limites de
sua atribuição, num fiel da balança: nem o cidadão deve ter seu direito à justa indenização
desrespeitado, nem o interesse coletivo vilipendiado por valores exorbitantes do bem
desapropriando. Sob esta perspectiva, o presente artigo postula que não basta ao avaliador
dominar métodos das ciências exatas, e se debruça sobre a relevância das ciências
humanas na abordagem da avaliação de bens imóveis, demonstrando que elas não apenas
não se conflitam com as normas técnicas, como ainda tornam sua utilização mais refinada.
Nossa hipótese é que metodologias propostas pela economia, antropologia, sociologia e
história são indispensáveis às avaliações bem fundamentadas teoricamente. Concluiu-se
que a interdisciplinaridade é fundamental para a compreensão dos processos de formação
dos preços imobiliários, e que o avaliador deve abraçar as ferramentas destas outras
ciências em sua análise do território, atuando como cidadão em prol dos seus pares.

Palavras-chave: Avaliações, Ciências humanas, Políticas públicas.

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo se debruça sobre a relevância das metodologias das ciências
humanas para a abordagem da avaliação de bens imóveis, e a demonstração de que elas

                                                            
1Mestre em Ciências da Arquitetura pelo PROARQ, Doutorando no mesmo programa, integrante dos Grupos de
PesquisaPaisagens Híbridas (EBA | UFRJ) e Grupo de Pesquisa. Pensamento, História e Crítica (PROARQ |
FAU | UFRJ). Arquiteto e avaliador da PGE-RJ, avaliador da CEF, perito judicial..
2Arquitetura da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro.
3Arquiteto e avaliador da PGE=RJ.

3425 
 
 
 
 
 
não apenas não se conflitam com o respeito às normas técnicas que regem a atividade,
como ainda tornam sua utilização mais refinada. O problema que nos propomos enfrentar é
a desconstrução da ideia, corrente em alguns círculos profissionais, de que a avaliação de
imóveis é uma atividade que pode ser desenvolvida tão somente com instrumentos da
estatística e alguns procedimentos proto-científicos de observação e análise. Este problema
remete à multifacetada questão da formação do valor do solo urbano, questão atravessada
por dinâmicas políticas, econômicas e sociais de tal complexidade que, como substratos de
solos diversos, recobrem o objeto que se deseja encontrar, qual seja, o preço de um
determinado imóvel: cabe ao avaliador levar a efeito a sua sondagem deste solo variegado
até atingir o fundo firme que poderá ser afirmado como o preço do bem avaliando.
Prosseguindo na metáfora, a sondagem a que se lança o avaliador não é isenta de
surpresas – se um solo pode ser uniforme, como o são aqueles constituídos exclusivamente
por areia, pode ser também composto e apresentar matacões que dificultem a penetração
do amostrador, pode esconder um lençol freático, pode apresentar bolsões de lama ou
domos, pode até enganar os menos afeitos à variabilidade dos estratos minerais
sedimentares e, após uma camada cuja resistência suportaria o peso a ser distribuído pelas
fundações do edifício que se pretende construir, encontraremos uma camada de argila muito
mole, que determina o prosseguimento da sondagem até camadas mais profundas.
A avaliação de bens imóveis guarda tal semelhança com a sondagem à percussão,
e não basta ao avaliador um reconhecimento de seu objeto para que obtenha, ao final do
percurso de seu trabalho, um resultado que possa ser considerado correto. Outras
características, ainda, aproximam os dois objetos: (i) a sondagem constitui-se numa
investigação de algo que não se conhece bem; (ii) durante a realização do ensaio à
percussão, são coletadas amostras; (iii) em seguida, deve ser empreendida a análise dos
resultados, materializada num relatório; (iv) corretamente realizada, a sondagem revela uma
fotografia de seu objeto, o substrato que se pretende analisar, permitindo decisões como a
determinação dos parâmetros para o dimensionamento das fundações da construção
projetada. Em contrapartida, nossa metáfora não se realiza por completo porque, quando
tratamos dos solos, podemos falar em perfis geológicos típicos, ou contínuos ou até
invariáveis para determinadas regiões. Inversamente, se tratamos da determinação do preço
de venda de um imóvel, o objeto é fugidio, cercado por imprecisões, influências endógenas
e exógenas ao seu campo, de tal forma que, para citar a frase que serve de título ao
conhecido livro de Marshall Berman (por sua vez, capturada ao Manifesto Comunista de
Marx e Engels), “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Relacionando as duas metáforas,
poderíamos dizer que, sob a fina embrana de uma realidade aparentemente estável,
poderemos encontrar a presença de solos pantanosos ou mesmo areia movediça, ou

3426 
 
 
 
 
 
engolideira, como é conhecida no norte do Brasil – e, assim, os esforços do avaliador
podem ser tragados pelas aparências e resultarem em análises equivocadas.
Iniciaremos, então, pela definição do trabalho de avaliação, desfazendo a nitidez
das linhas que definem a especificidade de seu campo disciplinar, na medida em que o
consideramos, como hoje desenhado, uma redução da disciplina, passando à genealogia
das definições da norma para valor do solo, e, após, a uma contextualização destas
definições no panorama das ciências sociais, como a economia e a antropologia.

2. O VALOR DO SOLO E AS REPRESENTAÇÕES COLETIVAS

Podemos abordar a questão pela aproximação ao que postulam as normas


técnicas: a NBR 14.653, em sua parte 1, apresenta as definições consideradas necessárias
à perfeita elaboração de uma avaliação imobiliária. Segundo esta norma, em seu item 3.44,
o valor de mercado é a “quantia mais provável pela qual se negociaria voluntariamente e
conscientemente um bem, numa data de referência, dentro das condições do mercado
vigente.” O IBAPE-SP, em sua ‘Norma para avaliação de imóveis urbanos’ aprofunda um
pouco mais a definição: “Quantia mais provável pela qual um bem seria negociado em uma
data de referência, entre vendedor e comprador prudentes e interessados no negócio, com
conhecimento de mercado, mas sem compulsão, dentro das condições mercadológicas.”

Digno de observação é o pequeno deslocamento – com efeitos de grandes


proporções - que a forma da segunda definição introduz ao problema, tornando explícita a
presença de dois entes que estão subentendidos na primeira: o vendedor e o comprador,
estes dois atores do processo econômico. Interessante é, como, na redação dada à norma
da ABNT, o que está em relevo é o mercado, na medida em que, como expresso, ele impõe
as condições, uma abstração que não corresponde inteiramente à realidade, ainda que tal
realidade seja difícil de abarcar. Cabe delimitar o que seja esta abstração, o mercado:

O conceito de mercado na Economia Neoclássica define um mecanismo


abstrato de determinação de preço que é interpretado como resultado lógico
das demandas de eficiência. O mesmo conceito, em Sociologia, indica
estruturas sociais concretas e processos associados resultantes da prática
de um conjunto de ações estratégicas. Se existe algum ponto de
coincidência entre as duas perspectivas, este seria a idéia do mercado
como um tipo de mecanismo de coordenação que implica na transferência
dos direitos de propriedade do vendedor ao comprador. Porém, enquanto
um vê este mecanismo de coordenação no singular como resultado de um
tipo de comportamento universal, o outro vê os mercados no plural, como
estruturas sociais que são construídas por interações em contextos
institucionais específicos. (WANDERLEY, 2002: 1)

3427 
 
 
 
 
 
Os conflitos em torno da definição de mercado datam do século XVIII, com as
teorias fisiocráticas e utilitaristas. Os fisiocratas, economistas franceses que desenvolveram
o pensamento de François Quesnay (1694 – 1774) expuseram uma concepção do mercado
na qual ele é dependente apenas dos movimentos da economia per se. Abordam o
problema do valor normal e as causas que o impedem de coincidir com o valor corrente.
Adam Smith (1723 – 1790) propôs um modelo conhecido por Laissez-Faire (MATOS,2008:
6), no qual o mercado é uma instituição, capaz de transformar o interesse individual em
interesse social, sem necessidade de intervenção da mão-invisível do Estado. O papel do
Estado é somente garantir a ordem institucional e administrar a justiça. Smith foi o primeiro a
formular um modelo abstrato, coerente e completo da natureza, estrutura e funcionamento
do sistema capitalista na sua gênese. A existência de um ser moral que objetiva atender
suas necessidades individuais de maneira pura é a representação da mão oculta que
conduz o destino e a consciência dos participantes do mercado (POLANYI, 2000: 23).

Para Keynes (1883 – 1943), no entanto, os mercados livres geram conflitos de


interesse e não conseguem equacionar os intrincados males da sociedade, seja o pleno
emprego ou a distribuição de riqueza e renda. Ele critica de forma contundente a doutrina e
a política do laissez-faire smithiano, considerando-as totalmente inoportunas para a solução
dos problemas econômicos e sociais, principalmente no que se refere ao desemprego
(MATOS,2008: 8). A ingenuidade abandonara a teoria econômica e, a partir desta nova
perspectiva, Hayek (1899 – 1992) comparou o mercado a um jogo no qual os jogadores
estão aptos para jogar, mas não sabem de fato se irão vencer:

O fato de desconhecer o resultado implica, contraditoriamente, em um maior


interesse em jogá-lo. Apesar de ter uma quantidade muito expressiva de
“jogadores” envolvidos nesse sistema sem se conhecerem, existe uma rede
de comunicações para quem quiser participar e o que determina a
recompensa é justamente o preço da mercadoria. No entanto, a visão
tradicional de competição perfeita, de mercado perfeito, de equilíbrio
perfeito, é combatida por ele. O estudo da economia é justamente para
perceber como são feitos os ajustes das mudanças. A troca de informação
entre os agentes econômicos possibilitaria um conhecimento maior, mas
não integral, dos fatores que influenciam o mercado. (MATOS, 2008: 11)

Para J. A. Schumpeter (1883 - 1950), o mercado ecoa a atitude dos agentes


econômicos, que, para além de serem também consumidores e desenvolverem outras
atividades, dão prioridade à atividade econômica, pela aquisição de bens por meio de
produção ou troca. A atividade de tais agentes seria tão racional que mesmo sem qualquer
experiência no consumo e possuindo a vontade de vender um dado produto, um indivíduo
procuraria, conscientemente e por seus próprios meios, um modo de realizá-lo. Assim, a

3428 
 
 
 
 
 
atividade econômica tem por fim satisfazer as necessidades tanto dos consumidores, quanto
dos produtores, seja por que razão for, incluindo as espirituais.

Este breve panorama do pensamento econômico demonstra que a economia


analisa uma única dimensão da realidade social, considerando que os fenômenos
econômicos são uma abstração desta mesma realidade. Assim, após o percurso que
fizemos, podemos voltar a nossos dois personagens, o comprador e o vendedor, imersos
agora numa concepção de mercado enquanto redes de relações sociais concretas. Mas,
que tipo de estrutura social observável é o mercado e de que modo opera um mecanismo de
mercado como o que envolve nossos dois personagens, o mercado imobiliário?

[...] vários estudos tentaram compreender os mecanismos que orientam as


decisões dos atores econômicos, partindo do suposto de que as
informações não estão naturalmente disponíveis. O conceito de status foi
introduzido por Poldony (1992) como um sinal da qualidade intrínseca dos
produtos em relação aos outros disponíveis no mesmo mercado. Ele
sugeriu que os mercados deveriam ser vistos como ordens de status em
que as posições dos produtores formam uma hierarquia aos olhos dos
consumidores e definem vantagens comparativas entre competidores. A
análise de Poldony contribuiu para a definição dos mercados como sendo
estruturas socialmente construídas através da percepção dos participantes
do mercado. (WANDERLEY, 2008:19)

Se vislumbramos a concepção pela qual o mercado é constituído por redes de


relações sociais concretas, no caso dos processos de formação do preço do solo urbano há
um complexo tópico que não deve ser desconsiderado: estas relações se apóiam no
território, e é sobre ele que precisam ser analisadas, porque há relações espaciais e
temporais determinadas por questões de relevo, posição, distância, eixos viários,
centralidades comerciais, aglomerações subnormais e tantos outros fatores valorizantes ou
desvalorizantes, todos também permeados por motivações objetivas e subjetivas, estas
últimas podendo ser, como já visto, motivações espirituais.

Não se pode desconsiderar que as condicionantes abordadas no parágrafo acima


como apenas atinentes ao indivíduo (os nossos comprador e vendedor, esquematicamente
desenhados) também se manifestam no plano coletivo, sendo ao mesmo tempo dele
resultantes. Deste modo, podemos nos indagar por que meios o valor do solo urbano é o
fruto do jogo de forças e representações coletivas. Hoje, é evidente, somos dotados de
ferramental teórico que o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945) não possuía
quando, em 1909, apresentou sua tese de doutorado, Les Expropriations et les prix des
terrains – 1860/19004. Halbwachs, pioneiramente, discutiu a questão dos preços dos lotes
urbanos: no mercado imobiliário, os preços seriam determinados, em grande parcela, por
                                                            
4As desapropriações e os preços dos terrenos – 1860/1900.

3429 
 
 
 
 
 
mais razões do que simplesmente o valor econômico do solo. O monopólio da propriedade
fundiária, o crescimento permanente da população e o jogo de oferta e demanda elevariam
os preços. Os especuladores teriam a seguinte prática: comprariam os terrenos a preços
normais (baseados em informação privilegiada), antes que as pessoas não vinculadas
diretamente ao mercado imobiliário desconfiassem das vantagens futuras da situação, e
logo que as vantagens apareciam, eles os revendiam, fixando um preço que lhes
recompensasse bem acima das taxas de mercado para outras aplicações, que
corresponderiam ao valor ou utilização do terreno, quando determinada via traçada fosse
construída, ou certo pólo valorizante fosse edificado nas cercanias. A estratégia dos
especuladores – e a força que dela resulta – estaria em esperar o momento favorável para a
venda pelo melhor preço. Os especuladores, segundo Halbwachs, limitariam sua ação aos
bairros ricos, enquanto que os operários se instalariam nos bairros abandonados pela
população burguesa. Sua tese é um dos primeiros trabalhos a tratar da questão fundiária e a
destacar o papel dos especuladores.

Entre as idéias expostas no parágrafo acima, a de maior interesse para o


argumento deste artigo é a questão das representações coletivas. Um autor seminal para
abordar esta questão é Georg Simmel (1858-1918), cujas ideias tiveram grande influência
na sociologia urbana norte-americana. Em seu texto Metrópole e Mentalidade, de 1903,
tendo metrópoles como Berlim e Londres como cenário, Simmel observa a transformação do
homem na (e pela) grande cidade, considerando a intensificação dos estímulos que ocorre
em seus espaços. O autor estabelece comparativos entre as metrópoles e as pequenas
cidades: o psiquismo urbano teria caráter fundamentalmente intelectualizado5, enquanto o
da pequena cidade seria mais ligado à sensibilidade. O primeiro reagiria com a
racionalidade, sua forma de proteção contra a violência dos grandes centros. Por outro lado,
as grandes cidades eram também, já então, sedes da economia monetária, que estaria em
relação estreita com o reino do intelecto. A natureza aritmética do dinheiro seria dotada de
uma precisão que pode ser comparada com a pontualidade, ou seja, pontualidade, precisão
e exatidão seriam impostos na vida das cidades grandes, criando habitus mentais. Daí a
atitude blasée do homem da metrópole, sua indiferença (e até sua antipatia) como
mecanismo de proteção. As cidades seriam também sedes da mais profunda divisão
econômica do trabalho, interessando-nos, para o contexto das representações mentais, a
seguinte afirmação de Simmel: “[...] a vida na cidade transformou o combate com a natureza
pela subsistência no combate entre os homens pelo lucro”. Nas cidades, enfim, a vida seria
                                                            
5Numa evidente herança do pensamento de Charles Baudelaire, que mais tarde seria trabalhado também por
Walter Benjamin, entre outros textos, no célebre trabalho sobre as passagens de Paris, elegendo o flaneur como
personagem daquela contemporaneidade, o desarraigado, submetido a estímulos ora positivos ora negativos, o
exilado definitivamente numa modernidade que não compreendia tão bem, apenas intuía.

3430 
 
 
 
 
 
infinitamente fácil, de “todos os lados são oferecidos excitações, interesses e maneiras de
preencher o tempo e a consciência”, mas ao preço de conteúdos impessoais e do
nascimento de duas formas de individualismo: a independência e a originalidade. Não é
demais ressaltar a atualidade de Simmel: seu texto, do início do século XX, ainda aponta
transformações na personalidade dos homens das grandes metrópoles.

Imprescindível, então, desfazer a nitidez das linhas que definem a especificidade do


campo disciplinar da engenharia de avaliações, na medida em que consideramos tal campo,
como historicamente desenhado, uma redução. A interpretação genealógica das definições
da norma para valor do solo conduz à interdisciplinaridade, de fundamental interesse para a
compreensão dos processos pelos quais se formam e oscilam os preços nas cidades; o
avaliador não deve desprezar tais ferramentas em sua análise do território e do modo como
nele se movem as forças econômicas. A práxis da avaliação, hoje, pode e deve incorporar o
diálogo com as ciências humanas, ressistematizando a aproximação ao nosso objeto, qual
seja, a compreensão da formação do preço nos terrenos urbanos.

3. FATORES OBJETIVOS DA FORMAÇÃO DOS PREÇOS DA TERRA URBANA.

A despeito da complexidade que reveste a formação de preços do solo urbano,


podemos constatar aspectos permeados de interesse metodológico para nosso estudo:

a) São identificáveis tendências regionais de preços, ou seja, preços médios dotados


de validade para cada setor da cidade;

b) Estes preços médios se dispõem em categorias definidas pela posição do terreno em


relação à organização viária da cidade, o que implica em acessibilidade e
temporalidade, ou seja, de que modo os cidadãos mediam os seus deslocamentos,
em seus trajetos para o trabalho, para o lazer ou outras atividades. Neste contexto,
não apenas a distância do terreno aos pólos valorizantes e às centralidades, mas
também sua posição relativa às vias principais dota-o de um atributo significativo.

As constatações acima podem ser reduzidas a uma: à hierarquia dos preços


corresponde outra, espacial, que conjuga facilidade de acesso, localização relativa no setor
específico em que se situa o imóvel, usabilidade, legislação edilícia e outros fatores. O preço
dos imóveis não se constitui, portanto, em um fato social autônomo – depende do território,
de ações políticas e individuais. Tal dependência não anula, no entanto, os aspectos de
comportamento coletivo que contribuem para a formação do valor de seu metro quadrado.

3431 
 
 
 
 
 
Fatores como a relação dos habitantes com o território, suas estruturas físicas e
políticas, bem como com os fenômenos naturais se imbricam: os equipamentos urbanos, por
exemplo, transformam a natureza, organizam as relações dos cidadãos em sociedade e
com o território, além de interagirem com a paisagem, num sentido amplo. Excede aos
limites deste trabalho analisar cada um dos aspectos objetivos que atuam na formação dos
preços de um dado imóvel urbano, e só abordamos alguns para exemplificar a diferenciação
entre fatores objetivos e subjetivos, havendo ainda uma zona intermediária indiscernível, a
ser abordada em trabalho futuro. Por hora, nos deteremos em fatores ligados à cultura cujas
matrizes influenciam a formação do preço imobiliário.

4. A INTERFERÊNCIA DO OBSERVADOR NO EXPERIMENTO

Necessário pôr em relevo que um avaliador, tal como um cientista quando aborda
seu objeto, está imerso em certo horizonte cultural, em ideologia, e uma miríade de fatores
que fazem com que sua avaliação seja qualquer coisa menos ‘objetiva’ strictu sensu. Se as
ciências da natureza já teorizaram sobre a determinante influência do observador no
experimento, na avaliação imobiliária não poderia ser diferente.

O princípio da incerteza6 de Werner Heisenberg (1927) é recurso útil para o


presente argumento: sempre que observamos e analisamos um objeto, temos uma
interação com ele; ou pesamos para ver seu peso, ou golpeamos para testar sua dureza, ou
simplesmente olhamos para ele, se queremos definir sua posição. O princípio da incerteza
pressupõe que qualquer interação produz uma perturbação na propriedade que desejamos
determinar no objeto. Isaac Asimov explicou-o pelo seguinte exemplo: diante de uma
banheira com água quente além do suportável, quer-se medir a temperatura antes de entrar
no banho. Pode-se, então, mergulhar um termômetro na água para testar sua temperatura.
Mas o termômetro não é algo abstrato, tem volume, peso e temperatura: está mais frio que a
água, e sua presença faz com que ela fique um pouco menos quente. Ou seja, a
temperatura já não vai ser a mesma pelo simples fato de que o observador quis medi-la.
Pode-se objetar que essa alteração é imperceptível, mas há uma perturbação no sistema.
Outro exemplo: toda pessoa que já calibrou um pneu sabe que, quando se utiliza um
compressor com um bico que se acopla à válvula do pneu, uma pequena quantidade de ar
escapa do pneu quando se aperta o bico de encontro ao mecanismo da válvula: a pressão
de ar dentro do pneu baixou um pouco no ato de tentar medi-la. Ao tentar medir ou conhecer

                                                            
6O que implica, por oposição interna, nos limites da certeza, sendo as duas um par inseparável, porque nunca
podemos dizer que chegamos a conhecer algo por inteiro, em toda a sua complexidade.

3432 
 
 
 
 
 
qualquer coisa causamos uma interferência na realidade. Seria preciso desenvolver
instrumentos de medição tão mínimos e sensíveis, dotados da capacidade de utilizar
métodos indiretos, para que não seja introduzida qualquer sutil modificação na propriedade
que se precisa medir. Werner Heisenberg concluiu que isto não é possível.

Estamos falando de mudanças físicas – temperatura, pressão – que, de tão


pequenas, não nos afetam; mas, a despeito disso, existem. Além do mais, a questão pode
ser de escala: lidando com partículas subatômicas, mudanças insignificantes assumem
proporções enormes: se desejamos saber a posição de um elétron, teríamos que fazer
incidir sobre ele um quantum de luz, um fóton de raio gama. Só deste modo, poderíamos ver
o elétron - mas o fóton empurraria o elétron quando se chocasse com ele, que, por isso, não
permaneceria na posição que se queria medir, e nossa intenção estaria frustrada. Não só
isso: sua velocidade também seria alterada. Deste modo, o observador influencia o
comportamento das partículas, provocando o fenômeno denominado colapso da função de
onda: o elétron só está naquele estado específico porque observado – poderia estar em
qualquer outro. O observador altera o que observa, e se descreve a experiência, seu relato
é o relato de uma interferência; não há relato neutro ou narrador isento.

O experimento teórico conhecido como ‘o gato de Schrödinger’ tem relação com o


princípio da incerteza7, por ser um experimento mental que leva a um paradoxo. Parece
provável que Schrödinger quis demonstrar, na formulação de Heisenberg, a insuportável
hipótese da indeterminação, da impossibilidade de dizer com certeza se algo está ou não
está, e a possibilidade incômoda de que ambos sejam realidades simultâneas. O gato é,
aqui, o nosso elétron8 observado e medido com os princípios propostos por Heisenberg,
corpo cuja posição é uma questão de probabilidade, nunca definível, questão, portanto, de
narrativa, dependente do observador. O que Schrödinger propôs? Um gato preso dentro de
uma caixa opaca, com um frasco de ácido cianídrico dentro, um martelo e um tubo contador
Geiger interligados por mecanismo de acionamento que pode fazer o martelo quebrar o
frasco do ácido. Dotado de um cheiro forte de amêndoas amargas, o ácido é extremamente
venenoso: colhido na mandioca brava, é usado pelos índios do Xingu como instrumento de
pesca, bloqueando a recepção do oxigênio pelo sangue e matando os peixes por
sufocamento. O mesmo ocorre com gatos, homens e outros animais.

No tubo contador Geiger deve haver uma pequena porção de substância radioativa
(com seus átomos instáveis), tão pequena que provavelmente, passada uma hora, um dos

                                                            
7 O que implica, por oposição interna, nos limites da certeza, sendo as duas um par inseparável, porque nunca
podemos dizer que chegamos a conhecer algo por inteiro, em toda a sua complexidade.
8E podemos, sem grande dificuldade, transladar este experimento para o campo das avaliações imobiliárias.

3433 
 
 
 
 
 
seus átomos decaísse, mas também, com igual probabilidade, nenhum decaísse (nos
átomos instáveis o núcleo decai), emitindo radiação sob a forma de partículas ou ondas
eletromagnéticas. Se isso acontecer, o contador libera uma descarga e, através de um relé,
solta o martelo que vai estilhaçar o frasco com o ácido. “Se deixarmos todo este sistema
isolado durante uma hora”, disse o Schrödinger, “então diremos que o gato ainda vive, se
nenhum átomo decaiu durante esse tempo”. A função de onda do sistema iria expressar isto
contendo o gato vivo e o gato morto ao mesmo tempo; isso porque a função de onda é uma
descrição mais completa possível de sistemas regidos pela mecânica quântica. Se na
mecânica clássica a descrição completa de um sistema consistia na tarefa de encontrar a
posição e a velocidade de todas as partículas e, com esta descrição, tornar possível prever
todos os movimentos futuros e passados do sistema, na mecânica quântica não se pode
descrever todas as grandezas desejadas com a mesma certeza, como postulou Heisenberg.
A narrativa do real opera com múltiplas probabilidades simultâneas.

Em que isso se relaciona com a avaliação imobiliária? O princípio da incerteza nos


leva a uma percepção de granulosidade na realidade, como nas fotografias: se ampliarmos
muito tais imagens veremos apenas pequenos grãos ou pontos, perdendo-se a noção do
conjunto. Tal consciência nos lança diretamente em direção à nossa ignorância, e é dela
que precisamos partir, munidos do melhor ferramental possível, para observar e interpretar a
realidade – em nosso caso, a formação dos preços das terras urbanas.

5. A AVALIAÇÃO IMOBILIÁRIA COMO UM ATO DA CULTURA

De todo o exposto até o momento, podemos inferir que a avaliação imobiliária não é
uma ação desvinculada da cultura – está inteiramente mergulhada nela, não sendo, como
tivemos oportunidade de afirmar no começo de nosso argumento, redutível a procedimentos
estatísticos e matemáticos. Segundo Max Weber, o homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu e, neste ponto, podemos dizer com Geertz (2008) que
a cultura se constitui por essas teias e por sua análise – seguindo este raciocínio, a cultura
(território incluído) não pressupõe ciências experimentais em busca de leis, mas ciências
interpretativas em busca de significados.

Por esta via, devemos opor alguma desconfiança em relação à pura operatividade
que caracteriza certas práticas dos avaliadores, que abordam o problema de estabelecer o
valor de um dado bem imóvel como uma série de procedimentos aparentemente sob
controle total de suas mãos, porque matemáticos ou matematizáveis. No entanto, o que se
desenrola no teatro da avaliação não pode ficar subsumido em um escopo convertível em

3434 
 
 
 
 
 
fórmulas, procedimentos e resultados. A expressão ‘teatro da avaliação’ não pretende, de
forma alguma, apontar para qualquer traço ficcional (e, portanto, narrativo) do processo
avaliatório; ao contrário, o que se quer dizer é que este processo se insere no próprio teatro
das relações sociais, e, como dito, suas redes de significados.

Podemos aqui nos valer da descrição que Geertz faz do trabalho etnográfico e
traçar um paralelo entre ele e o processo de avaliação, e, principalmente, da restrição que
faz o autor quanto ao entendimento do processo que descreve. Diz ele:

Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os


praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a
etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se
pode começar a entender o que representa a análise antropológica como
forma de conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa não é uma
questão de métodos. Segundo a opinião dos livros-texto, praticar a
etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever
textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por
diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os processos
determinados, que definem o empreendimento. O que o define é o tipo de
esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma
‘descrição densa’, tomando emprestada a noção de Gilbert Ryle. (GEERTZ,
2008: 4)
O paralelo nos parece muito apropriado, na medida em que apresenta uma possível
superficialidade metodológica no exercício da etnografia, o que, a nosso ver, tem um grande
equivalente no processo avaliatório, dependendo de como ele for levado a efeito: numa das
hipóteses, ele pode também se tornar uma ‘descrição densa’ do objeto avaliado, ou, pelo
menos, valer-se desta descrição densa para atingir seu objetivo, que é o de definir o valor
do bem avaliando dentro das premissas da norma, como já descrito no começo deste
trabalho, tarefa complexa na medida em que, como vimos no item 4 supra, a própria ação
de observar o mercado não é algo simples e objetivo: observar não apenas nubla .

Cabe ressaltar, na expressão descrição densa, um contraste com uma série de


procedimentos levados a efeito sem a necessária profundidade e perspectiva da questão, e,
pela força da expressão de Ryle, podemos estabelecer um par antitético entre denso e
rarefeito. Devemos nos afastar, no processo da avaliação, de toda rarefação.

A afirmação de que o processo de avaliação constitui-se num ato da cultura não


necessita ir além da constatação de que seu objeto é o espaço urbano, sendo a polis um
artefato muito antigo, resultado de uma acumulação secular de significados em constante
transformação que demanda sempre acurácia e precisão na sua análise. Se, como postula
Geertz (2008:30), não existem generalizações que possam ser feitas sobre o homem
enquanto homem além da que ele é um animal muito variado, ou “de que o estudo da
cultura nada tem a contribuir para a descoberta de tais generalizações”, e sendo o espaço

3435 
 
 
 
 
 
urbano produção deste mesmo homem – uma de suas produções mais antigas e
complexas, na medida em que funde imaginário, desejo e utilidade – , não podemos abordar
o processo de avaliação a partir de generalizações: cada caso constitui-se num processo
único que pode até guardar similaridades com outros, mas nunca uma similaridade plena.

Esta constatação não elide o fato de que podemos, esquematicamente, tentar


dispor as possibilidades em categorias, de modo a reduzir sua quantidade inabarcável; sem
isso, a avaliação seria um procedimento inviável, na medida em que premissas de um dado
caso nunca se poderiam aplicar a outro integralmente. Aqui, alguma esquematização pode
ser útil, em termos metodológicos. No entanto, tal esquematização não pode perder de vista
a complexidade de seu objeto, visto que a não consideração desta levará, sem remissão, o
avaliador a erros conceituais que afastarão, quase certamente, o resultado de seu trabalho
do valor correto que se deseja obter (considerando sempre que ao empregarmos a
expressão valor correto estamos falando de um intervalo, e não de um valor pontual).

A metodologia descrita no parágrafo acima pode, se adicionarmos ainda outros


pressupostos (que existem, mas não cabe elencá-los nos limites deste trabalho) caracterizar
a avaliação imobiliária como uma ciência, e, no que concordamos com Geertz (2008:132)
ciências são obras críticas e imaginativas, ou seja, são estruturas simbólicas, sistemas
culturais que se utilizam de estruturas simbólicas para representar dadas situações:

A ciência nomeia a estrutura das situações de tal forma que revela, no


conteúdo de sua atitude, seu desinteresse. Seu estilo é contido,
parcimonioso, resolutamente analítico; evitando os artifícios semânticos que
formulam de forma mais efetiva o sentimento moral, ela procura maximizar
a clareza intelectual. [A ciência se preocupa] com a definição de uma
situação problemática e constitui respostas a uma falta sentida de
informações necessárias. [...] a ciência é a dimensão de diagnóstico, de
crítica da cultura [...]. (GEERTZ, 2008: 133)

Desinteressada, a ciência da avaliação constitui-se numa interpretação daqueles


significados do território que podem ser convertidos ou consubstanciados em valor, o que
nos aproxima de outra complexidade do objeto que estudamos: estes significados são
móveis, não são representações fixas que as pessoas trazem congeladas em sua imagem
do mundo, e, como tal, podem ser consubstanciados em valores diversos, conforme o
momento e o observador, para tomarmos apenas duas componentes desta enorme
equação. Um exemplo disso seria a avaliação de terras onde existem matas nativas para
fins de expropriação: para cada uma das partes interessadas aquele patrimônio ecológico
possui significados distintos, e, portanto, valores distintos. Outro objeto que nos conduz a
questionamentos quase incontornáveis é o patrimônio histórico, cujo valor oscila em uma
escala dilatada, a depender de quem o está interpretando, ou seja, avaliando.

3436 
 
 
 
 
 
Neste sentido, o avaliador deveria situar-se em relação a seu objeto como um
etnógrafo, buscando uma experiência pessoal que possa, como consequência, converter-se
em algo comunicável. Para isso, é preciso que o avaliador não se abandone a uma
abstração imaginativa, o que quer dizer que deve postar-se junto ao território que busca
analisar num corpo-a-corpo concreto, e também é preciso que não se deixe envolver por
totalizações que nada mais fazem que instilar, por simetria formal, uma rigidez acadêmica.

Este processo tem uma qualidade interessante: não nos permite ilusões – quanto
mais aprofundarmos a análise teórica e ampliarmos o campo da avaliação, mais profunda,
também, será a tensão que nos seguirá durante o processo, porque o objeto não se entrega
com facilidade e a cada face desnudada pelo menos outra nos surgirá com sua
apresentação de esfinge. A solução é debruçarmo-nos sobre cada sutil distinção que
pudermos produzir neste caminho (por exemplo, na eleição dos atributos que aplicaremos
como variáveis para interpretar o mercado específico que estudamos) em vez de nos
distrairmos em generalizações que nos afastam do objeto que buscamos.

6. CONCLUSÃO: POR UMA TEORIA AMPLIADA DA AVALIAÇÃO IMOBILIÁRIA

Do percurso empreendido podemos concluir, ao fim, que a interdisciplinaridade é


fundamental para a compreensão dos processos pelos quais se formam os preços da terra,
e que o avaliador não deve desprezar ferramentas das ciências humanas em sua análise do
território. Tarefa complexa, não raras vezes exposta a contradições de toda ordem, a
avaliação fica enriquecida na aproximação com campos disciplinares aparentemente
distintos, mas, no fundo, em tudo coincidentes com a tarefa que se nos impõe diariamente,
qual seja, a de determinar o valor de bens imóveis que vão ser adquiridos, alienados,
segurados etc. Uma teoria da avaliação necessita avançar por estes campos – e tornar-se,
assim, uma teoria ampliada – se o avaliador não se ativer a uma prática limitada a saltos
abstratos mediados, exclusivamente, por conceitos matemáticos que não reproduzem as
complexas relações no espaço urbano, definidoras dos valores de compra, venda e locação.
Ultrapassado este limiar, podemos, enfim, abraçar os procedimentos da estatística
de modos bem mais refinados e certeiros.

REFERÊNCIAS

ABNT, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 14.653 – 1– Avaliação


de bens – Parte 1: Procedimentos gerais. Rio de Janeiro, 2001.

3437 
 
 
 
 
 
AMITRANO, Cláudio Roberto. O Tratado sobre a Moeda e a Teoria Geral de Keynes:
continuidades e rupturas (IE/UNICAMP e CEBRAP). Disponível em:
http://www.anpec.org.br/encontro2005/artigos/A05A008.pdf. Acesso em: 15 jan 2017

DEMO, Pedro. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 1991.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

MATOS, Ligia Aparecida Inhan. Notas sobre a Teoria de Mercado segundo a visão de
AdamSmith, Jean-Baptista Say, John Maynard Keynes, Friedrich Hayek e Joseph A.
Schumpeter. HEERA – Revista de História Econômica e Economia Regional Aplicada, Vol.
3 nº 4 – Jan-Jun. 2008. Juiz de Fora: Ed. UFJF. Disponível em
<http://www.ufjf.br/heera/files/2009/11/04artigo_1.pdf> Acesso em 21 Jan. 2017

POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. 2. ed. Rio de


Janeiro: Elsevier, 2000.

POLDONY, Joel. A status-based model of market competition. American Journal of


Sociology , n. 98, 1992. inWANDERLEY, 2002.

SCHUMPETER, J. A. Teoria do Desenvolvimento Econômico . Rio de Janeiro: Editora


Fundo de Cultura. 1961.

WANDERLEY, Fernanda. Avanços e desafios da Nova Sociologia Econômica: notas


sobre os estudos sociológicos do mercado. Soc. estado, Brasília, v. 17, n. 1, p. 15-38,
June 2002. Disponível em<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69922002000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 14 Jan. 2017.

3438 
 
 
 
 
 
GT 07 - Cidades e transformação do urbano na América Latina

ACESSIBILIDADE COMO CONDIÇÃO DE PERTENCIMENTO AO TERRITÓRIO ÀS


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: LUTAS SOCIAIS EM MARABÁ/PA

Mírian Rosa Pereira (PPGED/UFPA)1


E-mail: [email protected]
Maria Edilene da Silva Ribeiro (PPGED/UFPA)2
E-mail: [email protected]
Victor Fernando Ramos de Oliveira(PPGED/UFPA)3
E-mail: [email protected]

RESUMO
O presente trabalho aborda a desigualdade e exclusão sociais diretamente relacionadas
com acessibilidade e o pertencimento ao território, em que as formas e desvantagens
trazem invisibilidades às pessoas. Na atualidade, defende-se a garantia de locomoção de
maneira autônoma pelo território e espaços de uso coletivo. O movimento de luta por
direitos tem sido o lema das pessoas com deficiência para combater a persistente exclusão
social e de pertencimento ao lugar. Neste sentido, tem-se como intuito analisar as condições
de acessibilidade e as demonstrações de lutas sociais por um território na perspectiva
inclusiva no município de Marabá, estado do Pará, localizado na Amazônia Paraense. Para
tanto, a metodologia está fundamentada em referência bibliográfica e estudo documental
analítico, tendo como base a referência jurídica produzida a partir da luta de classe das
pessoas com deficiência em prol de acessibilidade e os registros fotográficos dos
apontamentos manifestados. Os resultados materializam o cenário de exclusão social e
ausência de cumprimento da legislação concerne à acessibilidade e delimita as relações de
distanciamento de pertencimento ao território local. Também, apresenta elementos de
denúncia dos limites das normas de organização do município, dos obstáculos que impede o
pertencimento das pessoas com deficiência ao território e, consecutivamente, violação de
direito, bem como, provoca os órgãos de justiça à busca de fiscalização das políticas
públicas e cumprimento das normas e da lei para promoção da acessibilidade como
elemento imprescindível para conceber os direitos básicos e sociais que constitui a
dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Acessibilidade. Pessoa com Deficiência. Território.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda o direito à acessibilidade como condição humana e de


pertencimento de território às pessoas com deficiência, de maneira que seja garantido o
acesso aos demais direitos fundamentais e sociais. Nesse sentido, compreende-se
acessibilidade como fundamental a toda população.
A marca que envolve o território é a desigualdade social, que está diretamente
relacionada com acessibilidade e o pertencimento ao território, em que desencadeia formas
                                                            
1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação, UFPA, Belém, Pará, Brasil.
2 Professora Doutora do Programa de Pós Graduação em Educação, UFPA, Belém, Pará, Brasil.
3 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Educação, UFPA, Belém, Pará, Brasil.

3489
 
 
 
 
 
de obstáculos e de desvantagens que provocam em invisibilidades aos sujeitos. Portanto, o
movimento de luta por direitos tem sido o lema das pessoas com deficiência para combater
a persistente exclusão e de pertencimento.
Neste sentido, tem-se como intuito analisar as condições de acessibilidade e as
demonstrações de lutas sociais por um território na perspectiva inclusiva no município de
Marabá, estado do Pará, localizado na Amazônia Paraense. A metodologia está
fundamentada em referência bibliográfica e estudo documental analítico, tendo como base a
referência jurídica produzida a partir da luta de classe das pessoas com deficiência em prol
de acessibilidade e os registros fotográficos dos apontamentos manifestados.
Os resultados materializam o cenário de exclusão social e ausência de
cumprimento da legislação concerne à acessibilidade e delimita as relações de
distanciamento de pertencimento ao território local.

1.1 Território e Acessibilidade para Pessoas com Deficiência

Para compreensão de território partimos do pensamento de David Harvey, como


organização da dinâmica social, que é definida pelo modo de habitar no mundo de forma
imaterial, e, pela transformação da infraestrutura dos espaços da cidade como
materialidade, ou seja, corresponde a lógica do capitalismo, para além de apenas um
sistema de desenvolvimento econômico.

A política do capitalismo é dirigida pela necessidade de encontrar terrenos


lucrativos para a absorção de capital excedente. Se há uma escassez de
trabalho e os salários são muito altos, então ou o trabalho existente tem de
ser disciplinado (desemprego tecnologicamente induzido ou uma dura
crítica contra o poder da classe trabalhadora organizada são dois dos
principais métodos) ou força de trabalho fresca tem de ser encontrada (pela
imigração, exportação de capital ou proletarização (HARVEY, 2009, p. 10).

Assim sendo, a maneira que determina a organização do território está ligada a


lógica de mercadoria do fluxo do capital, em que mobiliza os arranjos sociais através do
afastamento e exclusão das pessoas. Acontecem a partir do consentimento do mercado e
do capital excedente que conduzem os processos urbanos por meio de dívidas financiadas
para o Estado, as mudanças de infraestrutura que produzem impactos nas vidas das
pessoas e provoca uma “limpeza social”, ou seja, ficam afastadas, as margens da
localização urbana, onde os empreendimentos não estão presentes.

Nos Estados Unidos se aceita a sabedoria de que o mercado imobiliário foi


um importante estabilizador da economia desde pelo menos o ano 2000
(após a quebra da alta tecnologia no final da década de 1990). Ele absorveu
diretamente uma grande parte do capital excedente quando a rápida
inflação de preços de ativos imobiliários sustentados por uma pródiga onda

3490
 
 
 
 
 
de refinanciamentos de hipotecas a históricas baixas taxas de juros
impulsionou o mercado interno de bens de consumo e de serviços. A
urbanização da China nos últimos vinte anos foi ainda mais importante. Seu
ritmo cresceu enormemente após a breve recessão em 1997 ou próximo
disso, de tal modo que a China absorveu quase metade do suprimento de
cimento de todo o mundo desde 2000. As consequências para a economia
global foram significativas: o Chile cresce por causa da demanda de cobre,
a Austrália prospera e mesmo o Brasil e a Argentina se recuperam em parte
por causa da força da demanda da China por matérias-primas. Mais de 100
cidades cresceram vertiginosamente acima da marca de um milhão de
habitantes na China e várias estão rumando para o nível de 10 milhões e
vastos projetos infraestruturais estão transformando a paisagem
novamente, tudo financiado por dívidas. É a urbanização da China o
principal estabilizador do capitalismo global? A resposta tem de ser um sim
parcial. Mas a China é apenas o epicentro de um processo de urbanização
que se tornou agora genuinamente global em parte através da
impressionante integração global dos mercados financeiros que usam sua
flexibilidade para os projetos urbanos financiados por dívidas, desde Dubai
até São Paulo e de Mumbai até Hong Kong e Londres (HARVEY, 2009, p.
11-12).

Corresponde à totalidade, da conjuntura do capitalismo internacional que direciona


as transformações em escala crescente para economia dos países, principalmente dos
emergentes, das regiões e cidades, consecutivamente com limitação do território, pois
produz para minoria capital, enquanto para maioria a pobreza afetada pela injustiça social.
Neste sentido, há correlação de forças e conflitos com capital financeiro em prol da
sobrevivência humana.
O Estado é complacente com o capital, de modo que a atuação está na
organização do território, que reflete na dinâmica da economia e da sociedade que constitui,
ou seja, o crescimento urbano desdobra em investimentos, especulação imobiliária que
torna o lugar como o excedente do capital e resulta em desigualdade social, logo,
prevalecem os obstáculos que impedem a movimentação humana e trazem invisibilidade
dos sujeitos.
As pessoas são excluídas a partir de uma trama de complexidade, como ausência
de condição de habitação digna. Neste caso o valor de uso, a moradia, torna-se irrelevante
para o capital diante do valor de troca, pois as propriedades tornam como demonstração da
força do capital. Enquanto, para o proletariado, o acesso e as condições básicas de moradia
envolve fatores de localização inapropriada, falta de saneamento, asfalto e por vezes água
potável, sobretudo, ausência de acessibilidade.
De tal modo, as relações estabelecidas no território manifestam-se na luta de
classe de classe, que constroem o homem, não de modo estático e definitivo, mas, que
pode ocorrer transformação social conforme a necessidade humana. É a partir da inquietude
social na busca de revolução que enfrentará as condições e os problemas enraizados pelo
capital.

3491
 
 
 
 
 
A ampliação da legislação e as políticas públicas surgem para amenizar questões
pontuais da estrutura do capital e alarmante exclusão social em detrimento da qualidade de
vida. Aqui, vamos pontuar a questão da acessibilidade como um dos elementos da
mobilidade urbana do processo de circulação das pessoas.

A mobilidade é a capacidade de as pessoas se deslocarem para realizar


suas atividades. As capacidades são valores gerais que guiam uma
sociedade no estabelecimento das necessidades humanas básicas cujo
atendimento permite ter uma vida digna. Devem-se considerar as variações
das capacidades e das funcionalidades, ou seja, a realização das atividades
da vida diária – tudo aquilo que as pessoas desejam e conseguem executar
com suas capacidades. Vários fatores, como a renda, a idade ou o sexo,
influenciam a mobilidade, que pode sofrer redução permanente ou
temporária (PIRES, 2010, p. 229).

A discussão sobre acessibilidade envolve diferentes abordagens conceituais, este


estudo, foca a movimentação humana nos espaços urbanos como condição de
pertencimento territorial, ou seja, direito de deslocar de maneira igualitária e com
necessidades e capacidades cotidianas alcançadas.
Acessibilidade para garantia de descolamento dos sujeitos ainda é marcada por
barreiras que deságuam em exclusão como o resultado inerente do contexto de
desigualdade social, em que as pessoas com deficiência enfrentam problemas sociais e de
mobilidade urbana. Os fatores de limites e de exclusão que envolve as pessoas com
deficiências estão cada vez mais emaranhado na lógica do capital, uma vez que os espaços
territoriais são de disputas entre a vivência humana e os produtos oriundos do sistema
capital.
Pensar a lógica de organização dos espaços urbanos está para além dos
transportes e engarrafamento de veículos, mas, nas condições de acessibilidade das
calçadas, organização e sinalização das vias, entre outros, de maneira que resulte em
segurança e dignidade da pessoa. De tal modo, acessibilidade permanece como lema de
luta, ou seja, não apenas como condição estática do ambiente, mas, como determinante
para obtenção dos direitos sociais.
Ainda é comum somente o discurso pelo reconhecimento da necessidade da
acessibilidade. Contudo, não evolui em termo de ações concretas, continua com as
condições inadequadas do direito de ir e vir. Na perspectiva da garantia de direito à
cidadania e à dignidade da pessoa humana invocamos a Constituição Federal de 1988, no
artigo 5º menciona que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Em relação às
especificidades das pessoas com deficiência a Lei Nº 7.405/85 e o Decreto Nº 3.298/99,

3492
 
 
 
 
 
definem a obrigatoriedade do Símbolo Internacional de Acesso para os espaços e serviços,
bem como, estabelece a política nacional para integração e normas de proteção da pessoa
com deficiência.
Na Lei Nº 10.048/2000 determina a prioridade de atendimento às pessoas com
deficiência. E a Lei Nº 10.098/2000, denominada da lei da acessibilidade, dispõe de normas
e critérios voltados à promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com
mobilidade reduzida, com eliminação de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços
públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de
transporte e de comunicação. No artigo 2º define:

I - acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com


segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos,
edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus
sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos
ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana
como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade
reduzida;
II - barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que
limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a
fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de
movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à
compreensão, à circulação com segurança, entre outros (BRASIL, 2000, p.
01)

O Decreto nº 5.296/04, que regulamenta as leis mencionadas voltado para a


construção das cidades com a visão do acesso universal ao espaço público. De tal modo, há
uma legislação em torno da acessibilidade voltada pessoas com deficiência, mas, prevalece
ausência de materialidade de ações de política pública com eficiência, sem sincronia com
determinações legais.
Para tanto, fundamental a compreensão sobre a definição de deficiência. Nesta
perspectiva, a concepção está fundamentada no modelo social, ou seja, nas barreiras
sociais que trazem limitação aos sujeitos, nas ações públicas que mascaram os dilemas
sociais e nas omissões do Estado que manifestam em desvantagem para pessoas com
impedimentos corporais.

A desvantagem social vivenciada pelas pessoas com deficiência não é uma


sentença da natureza, mas o resultado de um movimento discursivo da
cultura da normalidade, que descreve os impedimentos corporais como
abjetos à vida social. O modelo social da deficiência desafiou as narrativas
do infortúnio, da tragédia pessoal e do drama familiar que confinaram o
corpo com impedimentos ao espaço doméstico do segredo e da culpa. As
propostas de igualdade do modelo social não apenas propuseram um novo
conceito de deficiência em diálogo com as teorias sobre desigualdade e
opressão, mas também revolucionaram a forma de identificação do corpo

3493
 
 
 
 
 
com impedimentos e sua relação com as sociedades (DINIZ et al, 2009,
p.74).

Para assegurar o compromisso pela inclusão das pessoas com deficiência através
de implementação de ações pública por parte da união, em nível federal, mas, em regime de
cooperação com Municípios, Estados e Distrito Federal, foi institui o Comitê Gestor de
Políticas de Inclusão das Pessoas com Deficiência com a homologação do Decreto Nº
6.215/2007.
Seguindo a compreensão do modelo social, o Brasil ratificou a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Assembléia
Geral da Organização das Nações Unidas, incorpora à legislação brasileira com status de
emenda constitucional conforme o Decreto N°. 6.949/09. Assim como, a Lei Federal Nº
12.587/2012, Política Nacional de Mobilidade Urbana através do Estatuto da Cidade, onde
determina aos municípios a tarefa de planejamento e execução da política de mobilidade
urbana. Contudo, requer outros instrumentos legais para complementar a concretização da
demanda das necessidades sociais e crescimento das cidades, como: Lei Orgânica do
Município, Plano Diretor, Código de Obras, Código de Postura e outros.
Atualmente a Lei Nº. 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência, define como acessibilidade:
Art. 53. A acessibilidade é direito que garante à pessoa com deficiência ou
com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer seus
direitos de cidadania e de participação social [...]
Art. 55. A concepção e a implantação de projetos que tratem do meio físico,
de transporte, de informação e comunicação, inclusive de sistemas e
tecnologias da informação e comunicação, e de outros serviços,
equipamentos e instalações abertos ao público, de uso público ou privado
de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, devem atender aos
princípios do desenho universal, tendo como referência as normas de
acessibilidade [...]
Art. 60. Orientam-se, no que couber, pelas regras de acessibilidade
previstas em legislação e em normas técnicas, observado o disposto na Lei
nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, no 10.257, de 10 de julho de 2001,
e no 12.587, de 3 de janeiro de 2012:
I - os planos diretores municipais, os planos diretores de transporte e
trânsito, os planos de mobilidade urbana e os planos de preservação de
sítios históricos elaborados ou atualizados a partir da publicação desta Lei;
II - os códigos de obras, os códigos de postura, as leis de uso e ocupação
do solo e as leis do sistema viário;
III - os estudos prévios de impacto de vizinhança;
IV - as atividades de fiscalização e a imposição de sanções;
V - a legislação referente à prevenção contra incêndio e pânico (BRASIL,
2015, p. 05).

A partir da legislação com ênfase na acessibilidade foi criado o Programa Brasil


Acessível, com intuito de estimular e apoiar os governos municipais e estaduais a
desenvolver ações que garantam a acessibilidade para pessoas com impedimento de

3494
 
 
 
 
 
circulação e mobilidade em áreas públicas, nos sistemas de transportes e equipamentos
urbanos. O debate que envolve a mobilidade urbana e acessibilidade tem-se ampliado nos
últimos anos, e, vai além de garantia de locomoção, mas, está diretamente ligada aos
direitos sociais, como educação, saúde, moradia, transporte público e outro, sobretudo, que
a organização da vida em sociedade seja alcançada com políticas publicas de compromisso
do Estado.

2. TERRITÓRIO DE MARABÁ/PA: LUTAS SOCIAIS


O município de Marabá está localizado no sudeste paraense no encontro entre dois
rios, o Itacaiúnas e Tocantins, com a distância de 485 km para Belém, a capital do estado.

Figura 1: Mapa do Brasil com indicativo da localização de Marabá/PA.

Dispõe de uma área territorial de 15.128,058 km², dividida em cinco núcleos


urbanos: Marabá Pioneira/Velha Marabá, Cidade Nova, Nova Marabá, São Felix I e II,
Morada Nova.

Figura 2: Fotografia panorâmica do encontro dos rios.


Fonte: Prefeitura Municipal de Marabá.

Marabá é um pólo regional socioeconômico da Amazônia Oriental, sendo referência


para os demais municípios circunvizinhos do sudeste e sul do estado do Pará. Atualmente

3495
 
 
 
 
 
estima a população de 271.5944 habitantes, desse total, 178.174 pessoas são consideradas
alfabetizadas, ou seja, aproximadamente 35% não são alfabetizadas (IBGE, 2015).
O estudo está fundamentado em uma metodologia de estudos bibliográfico e com
análise documental de referência jurídica produzida a partir da luta de classe das pessoas
com deficiência em prol de acessibilidade e os registros fotográficos dos apontamentos
manifestados, como: documentos e recomendações do Conselho Municipal dos direitos das
Pessoas com Deficiência, Ministério Público Estadual, reportagens, legislação municipal e
fotografias.
No município de Marabá do estado do Pará há um movimento de luta de classe das
pessoas com Deficiência. No estudo será apresentada a atuação do Conselho Municipal dos
Direitos da Pessoa com Deficiência de Marabá5, constituído de representantes governamental e
não governamental. Entretanto, o maior envolvimento e compromisso em prol da luta dos direitos
são exercidos pelos conselheiros da representação não governamental. Para fortalecer o
movimento de luta, proteção e promoção dos direitos das pessoas com deficiência o Conselho
tem estabelecido diálogos junto ao Ministério Público Estadual, através da 13ª Promotoria de
Justiça de Direitos Humanos, Órfãos, Interditos, Incapazes, Pessoas com Deficiência e Idosos.
Cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Marabá:
Art. 4º Compete ao Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência:
[...]
IV – opinar e acompanhar a elaboração de leis municipais que tratem dos
direitos das pessoas com deficiência;
V- supervisionar e divulgar o cumprimento da legislação, bem como defender a
ampliação dos direitos das pessoas com deficiência;
VI – receber e encaminhar aos órgãos competentes denúncias ou reclamações
formuladas por qualquer pessoa ou entidade, quando ocorrer discriminação,
ameaça ou violação de direitos das pessoas com deficiência, exigindo a adoção
de medidas efetivas de proteção e reparação (MARABÁ, 2012, p. 2).

Para constatar acessibilidade e o cumprimento das determinações de normas


técnicas voltadas para padronização arquitetônica, os conselheiros realizaram vistorias e
visitas técnicas a partir de amostragem em diferentes estabelecimentos privados e
instituições públicas nos meses de dezembro de 2013 até abril 2014. Os resultados
observados estão no relatório enviado ao Ministério Público, nos quesitos de calçadas,
rampas e circulação registraram:
a) CALÇADAS: prevalece a inexistência de larguras e inclinação
mínimas, ausência de sinalização, ausência de revestimento de piso
antiderrapante, além do difícil acesso motivado também pelo
estacionamento indevido de veículos. Notamos ainda no que se refere a
REBAIXAMENTO DE CALÇADAS e RAMPAS que na maioria dos

                                                            
4 Informações disponíveis no site <https://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=150420>. Acesso em 19
out. 2017.
5 Foi criado através da Lei Nº 17.550, de 26 de novembro de 2012.

3496
 
 
 
 
 
estabelecimentos são inexistentes, sendo que quando existem estão fora
dos padrões de acessibilidade da ABNT.
b) CIRCULAÇÃO: no interior dos estabelecimentos verificamos que os
pisos não são antiderrapantes e táteis sob quaisquer condições; que na
maioria dos estabelecimentos os pisos são planos e com área de circulação
de 1,20 cm, porém, possui obstáculos, como: coletores de lixos.
Também, mostraram a inexistência de placas de sinalização, assim como
espaços inadequados para o deslocamento de cadeirantes em virtude da
presença de degraus fora dos padrões de acessibilidade arquitetônica [...]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mencionamos que vivenciamos algumas dificuldades para a execução das
atividades, tais como: [...]
3. Dificuldade de alguns conselheiros (deficiente físico) em transitar pelas
vias públicas e no acesso aos estabelecimentos, em virtude da ausência de
acessibilidade arquitetônica (MARABÁ, 2014a, p. 03).

No dia 03 de março de 2016, os membros do Conselho juntamente com Ministério


Público Estadual realizaram a primeira audiência pública para discutir as situações que
apresentam os obstáculos no dia-a-dia de locomoção das pessoas com deficiência e como
levantamento de demanda a serem reivindicadas ao poder municipal.
Segundo a promotora de justiça Lílian Viana Freire a audiência pública “é uma forma de
se ouvir a população de Marabá. Eu digo que é um momento histórico, porque nunca em Marabá
se foi feita esta oitiva formalmente”. E para Luiz Carlos Dias, conselheiro representante não-
governamental, usuário de cadeira de rodas devido uma lesão há 15 anos, registra a dificuldade
vivenciada cotidiana para transita pela cidade. “Há 15 anos que eu ando brigando para melhoria
não só para mim, mas para todos os portadores de necessidades especiais. Toda cidade precisa
de acessibilidade”. E para aposentada Maria Inês relata que há um mês caiu em uma calçada,
“caminhando eu escorreguei porque a calçada era meio lisa. Do nada eu escorreguei e caí” 6.
Como alternativa diante das reivindicações, inúmeras irregularidades nas obras pública
e privadas, ausência de acessibilidade e inexistência de legislação municipal, a 8ª e 13ª
Promotorias de Justiça elaboram a Recomendação7 Conjunta Nº 002/2017-MP/13ª-8ªPJMab que
trata:
CONSIDERANDO a Audiência Pública sobre Acessibilidade Urbanística e
Arquitetônica em 03 de março de 2016 neste Município, na qual fora constatada
a premente necessidade de se eliminar as barreiras arquitetônicas e
urbanísticas existentes na cidade de Marabá-PA para a garantia da
acessibilidade das pessoas com deficiência e mobilidade reduzida;
CONSIDERANDO que a garantia da acessibilidade urbanística e arquitetônica
constitui objetivo prioritário de atuação das Promotorias de justiça de Urbanismo

                                                            
6 Entrevistas disponíveis no site <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2016/03/audiencia-publica-discute-falta-de-
acessibilidade-em-maraba.html> Acesso em 19 out. 2017.
7 As recomendações, em sentido estrito, não tenham caráter vinculante, isto é, a autoridade destinatária não

esteja juridicamente obrigada a seguir as propostas a ela encaminhadas, na verdade têm grande força moral, e
até mesmo implicações práticas. Com efeito, embora as recomendações não vinculem a autoridade destinaria,
passa esta a ter o dever de: a) dar divulgação às recomendações; b) dar resposta escrita ao membro do
Ministério Público, devendo fundamentar sua decisão (MAZILLI apud PARISE et al, 2005, p. 02).

3497
 
 
 
 
 
e da Pessoa com Deficiência e das Pessoas Idosas de Marabá no biênio
2016/2017.
RESOLVER RECOMENDAR
1. que encaminhe à Câmara Municipal de Marabá, no prazo de 90 (noventa)
dias, projeto de lei disciplinando a padronização arquitetônica das calçadas do
município, nos termos da legislação vigente que disciplina a matéria, inclusive a
NBR-9050 [...]
4. que sejam os Conselhos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência
consultadas acerca do projeto de lei a ser apresentado à Câmara Municipal de
Marabá (PARÁ, 2017, p. 07).

No município de Marabá/PA apresenta poucas iniciativas em prol da mobilidade urbana


e acessibilidade, quando existem a implementação de ação pública ou privada são de caráter
obrigatório ou com irregularidade das determinações das normas técnica. Como por exemplo: o
perímetro e a construção da passarela sobre o Km 120 da Rodovia Transamazônica8 estão
fora das normas técnicas NBR 9050, comprometendo a travessia com segurança das
pessoas, no caso, pessoas com deficiência.
Os conselheiros realizaram inspeção no dia 15 de novembro de 2014, posterior, o
Ministério Público, foram constatadas as irregularidades de ordem técnica na obra.

Programada para ser entregue em 2012, a passarela foi previamente concluída


em outubro de 2013. Porém, após vistoria do Ministério Público Estadual (MPE),
a passarela que auxiliaria os pedestres na travessia da rodovia Transamazônica
não pode ser liberada para circulação, pois foi constado o não cumprimento de
algumas exigências técnicas do projeto. Assim, a obra entrou no seu quinto ano
e acumula gastos de R$ 2 milhões. Enquanto isso, a população precisa se
arriscar ao atravessar a movimentada rodovia pelas apagadas faixas de
pedestres, que geram insegurança e desconfortos aos cidadãos. De acordo com
a prefeitura de Marabá estão sendo feitas readequações que foram exigidas
após uma vistoria do MPE, que apontou irregularidades, como a falta de
acessibilidade e por isso precisa ser readequada, mas não determinou a data da
conclusão da obra. Quanto a remarcação das faixas de pedestres, a prefeitura
não informou quando serão pintadas novamente9.

Diante do fato, o Conselho expede o ofício circular nº 001/2015 que solicita


intervenção e providências dos órgãos de justiça federal e estadual e do Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT).
Diante da reivindicação, surgiram às seguintes providências: o DNIT expediu ofícios
com o seguinte teor:
somos inteiramente solidários às preocupações preeminentes e decorrentes
do isolamento físico da passarela sobre a rodovia BR-230/PA, no Km 120.

                                                            
8 Rodovia Transamazônica foi inaugurada em 27/08/1972, a partir de projeto rápido do presidente general Emílio
Garrastazu Médici. Foi projetada com extensão de oito mil quilômetros, entretanto, está inacabada até hoje,
somente 4.223 km foram construídos ligando as regiões Norte e Nordeste do Brasil com Peru e Equador e
ligando a cidade de Cabedelo, Paraíba, à Lábrea, no Amazonas, passando por sete estados brasileiros: Paraíba,
Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e Amazonas (PIACENTINI, 2017).
9 Reportagem com título: Passarela de R$ 2 milhões ainda não foi entregue em Marabá. Disponível em:<

http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2016/06/passarela-de-r-2-milhoes-ainda-nao-foi-entregue-em-maraba.html> Acesso em: 24 out.


2017.

3498
 
 
 
 
 
Mas, a referida passarela é patrimônio público da PMM – Prefeitura
Municipal de Marabá e, segundo documentação enviada a este DNIT,
envidava esforços de educar, através de campanha pública, os munícipes a
utilizarem a mesma por segurança às suas vidas (MARABÁ, 2014b, p. 1).

para garantirmos uma alternativa de travessia segura e viável aos


usuários no Km 120 da rodovia BR 230/PA, no centro urbano de Marabá,
local da passarela de pedestre de patrimônio dessa PMM,temos de
autorização concedida por parte deste DNIT, que a PMM renove a
sinalização da faixa de travessia de pedestre até que se conclua e se faça a
entrega definitiva da passarela aos munícipes. Portanto, este ato de ação
pública em conjunto Governo Municipal/Governo Federal retornará ao que
antes vinha amenizando tal travessia (MARABÁ, 2014c, p. 1).

coube ao DNIT, como responsável pela BR-230/PA, permitir com


autorização a execução desse bem de uso público. E quanto à função de
acessibilidade da mesma, não sabemos ainda se ela está totalmente
concluída. E ainda, nesse sentido, como o projeto e também a execução
são acervos técnicos da PMM, ela teria mais informações a prestar [...]
Ainda, este DNIT já fez alguma exigências, á PMM, referente à renovação
de sinalização da Faixa de pedestre e, no possível, ela vem cumprindo esta
parceria com o DNIT (MARABÁ, 2014d, p. 1).

Aos quesitos de acessibilidade e a função social do bem público são ignorados, ou


seja, há ação pública de autorização de execução, mas, infelizmente prevalece o silêncio na
forma de conivência. Já, o Ministério Estadual, 13ª Promotoria instaurou o inquérito Civil Nº
000037-913/2015 e a comprovação das irregularidades foram registradas nos Laudos
Periciais Nº 2015.03.000038 e 2016.03.000007, do Centro de Perícias Renato Chaves que
concluiu como inapropriada.
Ainda, no caso da ausência de acessibilidade na passarela, no dia 18 de julho de
2017, ocorreu uma manifestação dos conselheiros e pessoas com deficiência. As
reclamações e cobranças foram destinadas ao poder público em prol de uma cidade de
acessível, como um todo.

Figura 3: Fotografia do ato da manisfetação na BR 230, km 120.


Fonte: Site Zedudu.

Este fato demonstra não só ausência de acessibilidades, mas, um obstáculo


arquitetônico e social, em que os direitos das pessoas são severamente afetados, em

3499
 
 
 
 
 
contrapartida o poder econômico continua prevalece, na obra de construção sem plena
função social e isolamento das pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, que para
transitar nos espaços territoriais desafiam a própria vida.
Em relação à reserva de vaga destinada para pessoas com deficiência segue
definição da legislação. No município de Marabá ainda prevalece reclamação e denúncia do
uso com práticas infratores. Segundo Luiz Antônio Golfeto, usuário de cadeira de rodas
menciona que “falta rampa, não temos espaço de estacionamento e quando tem as pessoas que
tem carro não respeitam. Então eu acho que o que deixa a desejar na cidade é também o bom
senso da população”. Nessa perspectiva a Recomendação Conjunta Nº 004/2016-MPP13 E
8ªPJMab menciona:
CONSIDERANDO a prática recorrente dos munícipes de Marabá de estacionar
em vagas reservadas às pessoas com deficiência, inclusive prática esta adotada
por condutores de viatura da polícia militar.
RESOLVER RECOMENDAR
1. Ao Departamento Municipal de Trânsito de Marabá e à Polícia Rodoviária
Federal o fiel cumprimento ao artigo 181, XVIII do Código de trânsito Brasileiro
em relação às vagas de estacionamento destinados às pessoas idosas e com
deficiência [...]
2. Ao 4º Batalhão da Polícia Militar de Marabá para que fiscalize o
estacionamento irregular de veículos pertencentes àquela instituição em vagas
reservadas às pessoas com Deficiência, em especial na Praça São Francisco –
Núcleo Cidade Nova, bem como, que instaure procedimento próprio para apurar
a conduta dos policiais infratores (PARÁ, 2016, p. 05).

Diante das reclamações de violação de direitos referente acessibilidade ao transporte e


determinação da legislação brasileira foi elaborada pelo Ministério Público Estadual, 13ª
Promotoria a Recomendação Ministerial Nº 015/2017-13ªPJMP/Mab que considera e
recomenda:
CONSIDERANDO as constantes reclamações recebidas por esta Promotoria de
Justiça quanto à discriminação das pessoas com deficiência no embarque e
desembarque, inclusive com o uso de expressões pejorativas por motoristas e
cobradores, e que ainda, por vezes estes não param os veículos nos pontos de
ônibus quando constatam que a Pessoa com Deficiência aguarda o embarque,
não garantindo, desta forma, o seu direito ao transporte, à dignidade e à não
discriminação.
Resolver RECOMENDAR:
1. Às empresas que realizam transporte público municipal:
1.2 que promovam curso permanente e periódico de capacitação de todos os
seus funcionários (motoristas, fiscais e cobradores), a fim de que respeitem os
direitos das Pessoas com Deficiência, em especial o direito à não discriminação;
1.3 que apresentem à Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência de
Marabá, no prazo de 60 (sessenta) dias, relatório pormenorizado demonstrando
o cumprimento dos termos desta recomendação, inclusive com plano de
atuação específico;
2. Ao Município de Marabá que proceda a fiscalização do Transporte Público
Municipal a fim de que seja garantido direito a não discriminação das Pessoas
com Deficiência no Transporte Público Municipal (ônibus coletivo urbano) e
informe no prazo de 30 (trinta) dias as medidas adotadas, ouvindo-se, por

3500
 
 
 
 
 
oportuno, o Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (PARÁ,
2017, p. 5).

Este tipo de situação traz intimidação, mas, não resolver, permanece a situação
ordeira do sistema econômico e negligência do Estado.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A concepção de deficiência não está na limitação do corpo, mas, nas barreiras que
afetam a vida das pessoas. De tal modo, a organização dos espaços sociais apresentam
limitação para movimentação dos sujeitos.
No território de Marabá, estado do Pará, as pessoas com deficiência e mobilidade
reduzida enfrentam obstáculo estrutural de ordem arquitetônico e social que envolve os
limites urbanos e os direitos fundamentais a partir de violações de maneira explícita e
implícita pelo poder público. Assim, não é acessível, o dilema torna-se mais agravante pelo
inegável resultado das obras públicas que desencadeiam em exclusão das pessoas.
De tal modo, acessibilidade ainda permanece como desafio da atualidade, pois os
efeitos das ausências provam múltiplas barreiras, como por exemplo, as vias e calçadas
com piso desnivelado, rampas inclinadas e outros, tornam quase impossível a pessoa com
deficiência pertencer ao território. A deficiência não está em utilizar a cadeira de rodas ou
mobilidade reduzida ou qualquer impedimento sensorial, mas, nas barreiras que trazem
obstáculos para o ir e vir, de freqüentar a escola, o trabalho, atendimento à saúde, a praça e
outros.
O Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com deficiência tem movimentado
a luta pela defesa e proteção dos direitos das pessoas com deficiência, a partir de
cobranças de ação de políticas públicas. Também, apresenta como essencial para ecoar a
denúncia diante das irregularidades que provocam obstáculos de impede e pertencimento
das pessoas com deficiência ao território, das omissões cometidas pelo poder público e dos
limites das normas de organização do município, sobretudo, tem dialogado com os órgãos
de justiça à busca de fiscalização, criação de políticas públicas e cumprimento das normas e
da lei para promoção da acessibilidade.
Já, o Ministério Público através da 13ª Promotoria de Justiça tem contribuído com
a defesa dos direitos das pessoas com deficiência em busca de acessibilidade. Assim, a
ação tem refletido em mediação entre as determinações do ordenamento jurídico, a
comunidade e o Estado, em que tem demandado ao poder público assumir a
responsabilidade junto à comunidade através de recomendações, mesmo sem força
coercitiva.

3501
 
 
 
 
 
Ressaltamos que a inacessibilidade produz invisibilidade dos sujeitos que ficam
isolados em certos espaços sociais ou vivem do limite da existência, uma vez que as leis e
normas exigidas em torno da acessibilidade não são cumpridas de acordo com as
especificidades, logo, as obras seguem com ilusão de existência de padronização
arquitetônica do modelo universal e funcionalidade para as pessoas com deficiência.
Acabam definidos como pessoa invisível e sem bem-estar, por exemplo, podem até
usar o melhor aroma de perfume, mas, será um sujeito sem cheiro, ou seja, o que será
impregnado são odor dos esgotos e outros odores das mazelas conduzidas pelo sistema
capital. Neste caso, os sujeitos que usam cadeira de rodas, são descaracterizados enquanto
pessoa, sua dignidade é afeta, por diversos fatores, entre eles que notoriamente é visto
ausência de saneamento básico, acessibilidade e outros.
O que predomina ainda é a opressão da classe trabalhadora, onde as barreiras impedem de
participação da vida em comunidade e acesso a educação, saúde, moradia digna e outros.
Somente a transformação social possibilitará condições dignas de existência e de
pertencimento ao território.

REFERENCIAIS

BRASIL. Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 10
out. 2017.

______. Lei No 10.098, de 19 de dezembro de 2000. ei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015.


Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10098.htm>. Acesso em: 10 out.
2017.

______. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2015.


Disponível em <www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php/codmun=150420>. Acesso em:
20abril 2017.

DINIZ; Debora; BARBOSA, Lívia; SANTOS, Wederson Rufino dos. Deficiência, direitos
humanos e justiça. Sur, Revista Internacional dos Direitos Humanos. 2009, vol.6, n.11,
pp.64-77. ISSN 1806-6445.

HARVEY, David. A Liberdade da Cidade. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, nº 26,
pp. 09 - 17, 2009.

MARABÁ. Lei Nº 17.550, de 28 de novembro de 2012.

______. Conselho da Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Marabá.


Relatório de Vistorias. 2014a.

3502
 
 
 
 
 
______. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT). Ofício nº 069/2014-
Ul de Marabá, 24 de novembro de 2014b.

______. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT). Ofício nº 071/2014-


Ul de Marabá, 26 de novembro de 2014c.

______. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT). Ofício nº 081/2014-


Ul de Marabá, 15 de dezembro de 2014d.

PARÁ.

PARÁ. Ministério Estadual, 8ª e 13ª Promotorias de Justiça. Recomendação Conjunta Nº


004/2016-MP/13ª-8ªPJMab.

____. Ministério Estadual, 8ª e 13ª Promotorias de Justiça. Recomendação Conjunta Nº


002/2017-MP/13ª-8ªPJMab.

____. Ministério Estadual, 13ª Promotorias de Justiça. Recomendação Conjunta Nº 015/2017-


MP/13ª-8ªPJMab.

PARISE, Elaine Martins; ALMEIDA, Gregório Assagra de; LUCIANO, Júlio César; ALMEIDA,
Renato Franco. O poder de recomendação do Ministério Público como instrumento útil para
a provocação autocontrole da constitucionalidade. MPMG Jurídico. Edição comemorativa
de lançamento. Ano I, edição 001, setembro de 2005. Acesso em:
<https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/936/3.1.2%20O%20poder
%20de%20recomenda%C3%A7%C3%A3o%20do%20MP.pdf?sequence=1) Disponivel em
20 out. 20017.

PIRES, Fátima Lauria. Deficiência e mobilidade: uma análise da legislação brasileira sobre
gratuidade no transporte público. In. DINIZ, Débora; SANTOS, Wederson. Deficiência e
discriminação. Brasília: LetrasLivres, EdUnb, 2010.

3503
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e transformações do urbano na América Latina

CENTRALIDADE E HIERARQUIA URBANA DE CIDADES MÉDIAS DO SUDESTE


DA AMAZÔNIA ORIENTAL

Roberto Antero (UFT)1


[email protected]

RESUMO
Neste trabalho de investigação debate-se sobre a centralidade e hierarquia urbana de
cidades médias da sub-região delimitada como Sudeste da Amazônia Oriental. As cidades
selecionadas foram Araguaína (TO), Imperatriz (MA) e Marabá (PA). A opção por estes três
centros urbanos é motivada pela proximidade territorial, o que aponta para possibilidade de
troca de fluxos em área de influência compartilhada. Nesta sub-região, os principais nós da
rede urbana são as cidades médias, que estabelecem interações espaciais com metrópoles
internas e externas à região, com as cidades menores em sua área de influência, e entre as
próprias cidades médias, que sobrepõem e compartilham territórios. A metodologia
operacional utilizada consta de revisão de literatura especializada; e o uso de dados
secundários, coletados de sítio eletrônico do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), sobretudo informações extraídas dos documentos Regiões de Influência das
Cidades (IBGE, 2008), Produto Interno Bruto dos Municípios (IBGE, 2012) e Gestão do
Território (IBGE, 2014); além de dados demográficos e grau de urbanização. O resultado da
análise destas informações demostra uma interdependência entre estas cidades e a
superposição de domínios nas áreas de influência, que indicam interações espaciais em
múltiplas escalas, entre essas cidades médias.

Palavras-chave: Amazônia, Cidades médias, Centralidade, Hierarquia urbana.

1. INTRODUÇÃO
Araguaína, Imperatriz e Marabá na condição de cidades médias do Sudeste da
Amazônia Oriental, representam o topo da hierarquia urbana2, exercendo centralidade nesta
região, expandindo e compartilhando área de influência que extrapolam seus limites
estaduais. Estes três centros urbanos mantém relativa proximidade territorial, o que aponta
para possibilidade de troca de fluxos em área de influência compartilhada.
O Sudeste da Amazônia Oriental é aqui classificado como uma sub-região da
Amazônia Oriental que compreende o estado do Tocantins, Sudeste/Sul do Pará e o Sul do
Maranhão, e recebe influência de Belém (PA), São Luiz (MA) e Goiânia (GO). Nesta sub-
região, os principais nós da rede urbana são as cidades médias, que estabelecem
interações espaciais com metrópoles internas e externas à região, com as cidades menores

                                                            
1 Professor Doutor do Curso de Geografia, Universidade Federal do Tocantins (UFT), Brasil.
2 Palmas, a capital do Tocantins é outra cidade média com hierarquia Urbana similar e/ou maior que estas.

3505 
 
 
 
 
 
em sua área de influência, e entre as próprias cidades médias, que sobrepõem e
compartilham territórios.
A afirmação sobre a classificação das cidades selecionadas como médias, é
sustentada em pesquisas de Castelo Branco (2006), Ribeiro (1998), Trindade Júnior e
Pereira (2007), que reconhecem os papéis destas cidades como centro sub-regional da
Amazônia, e com base no documento Região de Influência das Cidades.
A metodologia operacional utilizada consta de revisão de literatura especializada
sobre Amazônia e cidade média; e o uso de dados secundários, coletados de sítio eletrônico
do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobretudo informações extraídas dos
documentos Regiões de Influência das Cidades (IBGE, 2008), Produto Interno Bruto dos
Municípios (IBGE, 2012) e Gestão do Território (IBGE, 2014); além de dados demográficos
e grau de urbanização. Os elementos selecionados esclarecem sobre a denominação de
centralidade, Produto Interno Bruto (PIB) a preços correntes, participação no PIB na
Unidade da Federação, nível de centralidade de comércio e serviços, nível de centralidade
de graduação – Educação superior, nível de centralidade de saúde, oferta de serviços
avançados, centralidade da gestão pública, centralidade da gestão do território.

2. CIDADES MÉDIAS NO SUDESTE DA AMAZÔNIA ORIENTAL

As políticas de reordenamento territorial promovidas pelo Estado, para inserção da


Amazônia no processo de expansão capitalista, a partir da segunda metade do século XX,
ocasionaram transformações econômicas, sociais e na rede urbana regional. Neste
contexto, atribuíram às cidades funções econômicas de acumulação, comandando uma rede
de municípios em seu entorno, por meio da distribuição de bens e serviços e controle da
produção primária para exportação, papel que também passou a ser desempenhado por um
tipo de cidade até então inexistente da rede urbana: as cidades médias.
Quando se fala sobre Amazônia, há uma maior associação referente ao aspecto
natural da grande floresta, em que o bioma Amazônia é confundido com a Amazônia Legal,
o recorte utilizado nesta pesquisa.
No Brasil, o bioma Amazônia cobre 49,29% do território nacional, sendo formado
principalmente pela floresta ombrófila, um tipo de vegetação relacionada ao clima tropical
(quente e úmido), que ocupa a totalidade de cinco unidades da federação (Acre, Amapá,
Amazonas, Pará e Roraima), grande parte de Rondônia, mais da metade de Mato Grosso,
além de parte de Maranhão e Tocantins (IBGE, 2004).
Já a Amazônia legal é uma região de planejamento criada em lei de 1953, alterada
em 1966 e que, além do bioma Amazônia, inclui Cerrados, Pantanal, e áreas de trasição. Os

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estados que compõe a Amazônia Legal são Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima, Tocantins e a parte do estado do Maranhão que se situa a oeste do
meridiano 44º de longitude oeste. Assim, essa Amazônia é formada pelos sete estados da
região Norte, mais um do Centro-Oeste e outro do Nordeste.
Esta região é fragmentada em subregiões, com divisão oficial distinguida em
Amazônia Oriental (leste-sul do Pará, Tocantins e sudoeste do Maranhão); Amazônia
Meridional (Acre, Rondônia e Mato Grosso), e a Amazônia Ocidental (Amazonas e
Roraima).
Nesta divisão, o Tocantins pertence a Amazônia Oriental, que é ainda mais
fragmentada em outras sub-regiões. Para Becker (1990) na Amazônia Oriental o alcance e
resultados da apropriação induzida pelo governo federal foram mais intensos e
diferenciados, promovendo maior fracionamento do espaço.
A Amazônia Oriental é estudada por Trindade Júnior e Pereira (2007), Trindade
Júnior e Ribeiro (2009), e Trindade Júnior (2011) como a área de influência da metrópole de
Belém, notadamente, sobre as cidades paraenses de Marabá, Santarém e Castanhal. São
Luiz também é vista por Sousa (2013) como metrópole que propaga área de influência para
Amazônia Oriental, abrangendo a cidade de Imperatriz, no Sul do Maranhão.
O Tocantins está sob influência metropolitano de Goiânia. A subordinação de
cidades da Amazônia a capitais ou metrópoles externas à região é uma das características
urbanas descritas por Becker (2009), com efeito na rede urbana tocantinense.
Brito (2009), ao estudar o papel de Palmas na rede de integração regional,
adotando como principal critério formação socioespacial a partir da ocupação induzida pelo
Estado, propõe uma sub-região denominada de Sudeste da Amazônia Oriental, que
compreende o estado do Tocantins, Sudeste/Sul do Pará e o Sul do Maranhão, proposta de
subdivisão também utilizada nesta pesquisa.

3507 
 
 
 
 
 
Figura 1 - Sudeste da Amazônia Oriental

Fonte: Brito (2009, p. 36)

Nesta sub-região, os principais nós da rede urbana são as cidades médias, que
estabelecem interações espaciais com metrópoles internas e externas à região, recebendo
influência de Belém (PA), São Luiz (MA) e Goiânia (GO). Além de Araguaína, Imperatriz e
Marabá, outros centros urbanos em Tocantins também receberam classificação de cidades
médias em pesquisa de Silva (2016), Palmas, a capital estadual, e Gurupi.
No entendimento de Ribeiro (1998, p.66), o principal foco das políticas territoriais
implantadas na Amazônia foi a cidade, impactando a rede urbana preexistente, passando de
um padrão dentrítico para rodoviário, e promovendo transformações na forma, nas
funções, e nas interações espaciais que se tornaram complexas. Neste sentido, os núcleos
urbanos na Amazônia apresentam características funcionais com múltiplos papéis,
relacionados à produção, distribuição e à gestão (RIBEIRO, 1998).
Para Trindade Júnior (2011, p.1-3), esse quadro culminou em uma “dinâmica de
urbanização que toma forma difusa e diversa na região”, uma “urbano diversidade regional”,
termo utilizado para identificar as diferentes e plurais realidades urbanas da região, com

3508 
 
 
 
 
 
“maior complexidade relacionada não só às formas das cidades, como também aos seus
conteúdos”.
Assim, a rede urbana da Amazônia foi afetada pela ação do Estado subordinado ao
capital, processo que tornou a cidade e a difusão da urbanização estratégicas para a rápida
ocupação da região, e para reprodução do capital.
Na atualidade, reconhece-se uma participação cada vez mais crescente das
cidades médias, como expressão da tendência de urbanização amazônica. Neste
cenário desempenham no contexto econômico, político e social, importantes funções,
exercendo centralidades urbano-regionais na região de influência, a exemplo de Marabá
e Santarém (TRINDADE JÚNIOR, 2011; TRINDADE JÚNIOR e RIBEIRO, 2009).
Na pesquisa em tela, a cidade média é observada considerando como critérios a
variável demográfica; classificação hierárquica entre as cidades; a posição e sua
importância na rede urbana; centralidade; funções comerciais de distribuição de bens e
serviços para população local e de cidades circunvizinhas, configurada também como
papeis regionais.
Conforme Sposito (2004, 2006,2007) na classificação de cidade média, deve ser
contemplado um conjunto de elementos: o quantitativo de população, a situação geográfica
da aglomeração ou centro urbano, suas relações intermediárias entre cidades pequenas e
metrópoles, bem como seus papéis político-administrativos. Nesta pesquisa uma questão
primordial a ser considerada está relacionada à competência de ofertar bens e serviços.

Papéis regionais sempre estiveram associados às cidades médias, às vezes


denominadas cidades regionais. Assim pensada, cada cidade média
associava-se à área ou à região que comandava, o que pressupunha
relações diretas com um número de cidades pequenas e o desempenho de
funções de intermediação destas com a cidade maior de que eram todas
tributárias, tanto a cidade média como as pequenas (SPOSITO, 2007, p.
234)

Assim, a definição de cidades médias deve considerar além do tamanho da cidade,


a sua situação funcional, ou seja, como se estabelece no território a divisão regional do
trabalho e como a cidade comanda esse território.
Acompanhando a tendência de valorização do papel funcional, Trindade Junior e
Ribeiro (2007, p. 314), em estudo sobre cidades na Amazônia, definem cidades médias
como [...] aquelas que assumem um determinado papel na estrutura urbana regional como
centro sub-regional, [...] que são capazes de polarizar um número significativo de centros
menores e articular relações de toda ordem como anteparo e suporte às metrópoles
regionais”.

3509 
 
 
 
 
 
No entendimento de Trindade Júnior (2011, p. 136) e, também, seguindo
pressuposto analítico anteriormente mencionado, o principal critério de definição de cidades
médias seria a centralidade econômica, representada pelos papéis exercidos por estas
cidades numa determinada rede urbana. Nesta abordagem a cidade média é caraterizada
“pelas fortes centralidades que se materializam por meio de fluxos, a ponto de contribuírem
significativamente para o ordenamento do espaço regional em que se inserem”. E quando
essas cidades “assumem um determinado papel na estrutura urbana regional como centro
sub-regional”.
Neste sentido, são os fluxos que definem a centralidade econômica da cidade
média. A capacidade de articular relações que possibilitem desempenhar suas funções
regionais, e a observação da inserção geográfica, completam os atributos.
A centralidade da cidade média captada em Trindade Jr. e Ribeiro (2011) tem por
base a noção de fixos (infraestrutura de comércio/serviços/indústria) e fluxos (movimento de
bens, consumidores, serviços, informações, etc.). Na perspectiva analisada, considerando
cidades médias da Amazônia, mesmo que haja relevância quanto à densidade dos fixos, o
que define a centralidade dessas cidades são os fluxos, com uso e reutilização de modo
intenso e contínuo dos fixos disponíveis (TRINDADE JR.; RIBEIRO, 2011).
Quando se observa o indicador demográfico de cidade média ou de porte médio, é
mais usual classificar como tal a cidade com população entre 100 e 500 mil habitantes.
Considerando este critério, a rede urbana da Amazônia é formada por 27 sedes municipais
de porte médio, no entanto, muitas delas, não ascendem à categoria de cidades médias,
pois estão incorporadas a regiões metropolitanas (IBGE, 2010).
Estas cidades de porte médio concentram 5,3 milhões de habitantes ou 22% da
população amazônica, sendo um grupo formado pelas capitais estaduais, Porto Velho (RO),
Boa Vista (RR), Macapá (AP), Rio Branco (AC), Palmas (TO); e mais outras 22 cidades:
Parintins (AM), Santana (AP), Ji-Paraná (RO), Araguaína (TO), Ananindeua, Santarém,
Marabá, Castanhal, Parauapebas, Abaetetuba, Cametá, Bragança e Marituba, no Pará;
Várzea Grande, Rondonópolis e Sinop, em Mato Grosso; Imperatriz, São José de Ribamar,
Codó, Paço do Lumiar, Açailândia e Bacabal, no Maranhão (IBGE, 2010).
Araguaína, Imperatriz e Marabá são cidades médias da rede urbana do Sudeste da
Amazônia Oriental, mantém posição hierárquica em uma região com raros centros urbanos
que exercem alguma centralidade. No recorte geográfico utilizado, além das já citadas
cidades médias, há apenas mais dois centros urbanos com população acima de 100 mil
pessoas: Palmas, a capital tocantinense e Açailândia no Maranhão.

3510 
 
 
 
 
 
Conforme Trindade Júnior (2006) a cidade média é fenômeno muito recente na
Amazônia, que só adquire importância na rede urbana após as mudanças ocorridas a partir
da década de 1960, visto que anteriormente este tipo de cidade era quase inexistente.
Assim, houve a ascensão das cidades médias na rede urbana, que passaram a
desempenhar papeis econômicos e destino do fluxo de migrantes, mas foram as metrópoles
que mantiveram papel central e de comando da rede urbana, sendo esta uma tendência que
acompanha a dinâmica urbana nacional.
Castelo Branco (2006) apresenta uma seleção de cidades médias brasileiras, na
qual Araguaína e Marabá são incluídas como cidades médias de centralidade incipiente. Já
Imperatriz, a outra cidade do Sudeste da Amazônia Oriental, possuiria centralidade média.
Os estudos sobre redes de influência das cidades, elaborados pelo IBGE, permitem
entender os papéis que estas desempenham, por meio de uma classificação funcional das
cidades. A posição hierárquica entre as cidades, sua importância e a centralidade na rede
urbana são elementos adicionais que a literatura especializada colocou na identificação e
classificação de uma cidade como média.

3. CENTRALIDADE E HIERARQUIA DE ARAGUAÍNA, IMPERATRIZ E MARABÁ EM


AREA DE INFLUÊNCIA COMPARTILHADA

A raridade destes centros médios urbanos no Sudeste da Amazônia Oriental, é


situação geográfica específica e favorável ao estabelecimento de hierarquia e centralidades,
numa rede de dominação das cidades maiores sobre as menores, dependentes daquelas,
pelas funções que exercem de distribuição de bens e serviços para os moradores locais e a
população das cidades menores, em seu entorno.
Araguaína, Imperatriz e Marabá são importantes nós, os pontos centrais, desta
subregião e possuem requisitos para exercerem papéis de cidades médias, capazes de
exercer interação funcional econômica, social e política, articuladas pelo escopo
metropolitano de Belém, Goiânia e São Luiz.
No caso de Imperatriz e Marabá há vinculação as suas respectivas capitais
estaduais. Enquanto que para Araguaína, a primazia mantida por Goiânia, pois a relação do
Tocantins com esta metrópole é histórica, e foi fortalecida pelas políticas estatais, que
priorizavam integração econômica entre a Amazônia e o Sudeste brasileiro.
É uma tendência na Amazônia. O papel relacional das metrópoles regionais
amazônicas é segmentado pela atuação de centros metropolitanos de outras regiões, que

3511 
 
 
 
 
 
atuam na coleta, manipulação e utilização de informações. E é técnica, a serviço da
reprodução da economia e dos lucros (TRINDADE JR, 2006).
A cidade de Araguaína é centro regional de apoio à pecuária estadual, e principal
fornecedora de carne bovina ao mercado mundial, acumulando ainda funções de
distribuição de bens e serviços especializados, dentre os quais, de educação superior e
saúde, para população local e de cidades circunvizinhas Silva (2012).
Marabá destaca-se como centro urbano da Amazônia Oriental e do Sudeste do
estado do Pará, desempenhando função econômica regional, sendo “uma cidade que vem
sendo locus de grandes investimentos, pela importância produtiva, comercial, distribuição de
serviços e liderança política” no contexto regional (TRINDADE JR., 2011, p. 6).
Em Imperatriz destaca-se atividades terciárias modernas, sobretudo, em razão
da atuação do comércio atacadista e varejista, complementada por serviços públicos e
privados de saúde, da educação superior e mais recentemente importante
participação do segmento da construção civil (SOUSA, 2015).
A Tabela 1 condensa informações sobre a hierarquia urbana e centralidade das
cidades médias do Sudeste da Amazônia Oriental, com ênfase na hierarquia, funções
econômicas, na capacidade de gestão e riqueza, com base em dados por municípios
extraídos dos documentos Regiões de Influência das Cidades (IBGE,2008), Produto Interno
Bruto dos Municípios (IBGE, 2012) e Gestão do Território (IBGE, 2014).
Não há grandes diferenciações nos padrões de hierarquia, centralidade e
capacidade de gestão do território entre estes centros urbanos do Sudeste da Amazônia
Oriental, mas na maioria dos parâmetros utilizados, há destaque Marabá3, que detém maior
prosperidade econômica, com produto interno bruto (PIB) de 4,42 bilhões, valor corresponde
ao dobro do de Araguaína, e 65% maior que o de Imperatriz (Tabela 1).
Há similaridade no nível centralidade entre Araguaína, Marabá e Imperatriz, que
recebem a mesma categorização hierárquica de capital regional C. Nenhuma destas
cidades, entretanto, é capaz de exercer o papel de comando hierárquico da região, que
como já frisado é assumido por metrópoles externas e internas a Amazônia Legal.

                                                            
3Palmas, a outra cidade média do Sudeste da Amazônia Oriental, não listada na tabela, é a que apresenta os
melhores indicadores regionais de riqueza, hierarquia urbana e centralidade.  

3512 
 
 
 
 
 
Tabela 1 – Indicadores de centralidade e hierarquia urbana nas cidades médias
selecionadas no Sudeste da Amazônia Oriental (2007, 2012, 2014)
Sedes municipais de porte médio
Indicadores
Araguaína (TO) Marabá (PA) Imperatriz (MA)

Denominação de centralidade (2007) Capital Reg. C Capital Reg. C Capital Reg. C

PIB a preços correntes (Mil reais) (2012) 2.201.523 4.423.290 2.853.989

Participação no PIB da Unidade da


11,27 4,86 4,85
Federação (%) (2012)
Nível de centralidade de comércio e
4 4 4
serviços (2007) (1)
Nível de centralidade de graduação –
5 5 5
Educação superior (2007) (1)
Nível de centralidade de saúde (2007)
4 5 4
(1)
Oferta de serviços avançados (%) (2014)
46,7 51,1 48,9
(2)
Centralidade da gestão pública (2014)
8 8 8
(1)
Centralidade da gestão do território
6 6 5
(2014) (1)
Fonte: IBGE (2008), IBGE (2012b), IBGE (2014).
Notas: (1) A centralidade expressa é distribuída em intervalo que considera 1 como o maior nível e 9 como o
nível mais elementar. (2) Serviços avançados são aqueles relacionados as áreas de contabilidade, propaganda e
publicidade, finanças, seguros e direito.

Localizadas em rede urbana de maior complexidade econômica e de urbanização,


a participação de Marabá (4,86%) e Imperatriz (4,85%) no PIB estadual é menos
significativa do que a de Araguaína (11,27%). Cotejando esta informação com o valor total
deste indicador de riqueza, nota-se que essa maior participação de Araguaína na geração
das riqueza estaduais, denota a origem de rede urbana tocantinense ainda incipiente,
neste caso, do ponto de vista econômico.
O quantitativo e a diversidade das atividades econômicas em comércio e serviços
dimensionam o nível de centralidade de comércio e serviços, que são oferecidos com
semelhante padrão nas cidades de Araguaína, Imperatriz e Marabá. Essa padronização
permanece, quando pormenorizada a oferta de serviços de educação superior; e na
centralidade da gestão pública, avaliada pelo quantitativo e alcance de instituições públicas
federais4 (Tabela 1).

                                                            
4 São consideradas instituições públicas federais as agências, unidades de atendimento, gerências regionais,
superintendências e sedes do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), do Ministério do Trabalho e Emprego,

3513 
 
 
 
 
 
Nos serviços de saúde, medidos pela complexidade de atendimento e volume de
internação, Araguaína, e Imperatriz apresentam mesmo nível de centralidade, enquanto que
em Marabá, esse nível de centralidade é mais baixo, conforme listado na referida tabela.
As firmas que prestam serviços categorizados como avançados possuem maior
concentração em Marabá, correspondente a mais da metade do total de serviços ofertados,
e contribuem para a manutenção da hierarquia desta cidade, seguidas por Araguaína e
Imperatriz com menor percentual deles (Tabela 1).
A análise da gestão do território enfoca as instituições públicas, representantes do
Estado, e as privadas, constituídas pelo mercado e gestão empresarial, em que Imperatriz
possui a maior centralidade da gestão do território regional, e em um nível levemente
inferior, Araguaína e Marabá (Tabela 1).
Outro importante elemento da centralidade e hierarquia urbana destas cidades
médias, e a formação de área de influência compartilhadas, comunicando-se com cidades
externa aos seus limites estaduais, expandindo suas hinterlândias. A proximidade territorial
entre Araguaína e Imperatriz (247km), e Marabá (287 km) favorece a troca de fluxos, assim
como entre Imperatriz e Marabá (260km).
A interdependência entre estas cidades e a superposição de domínios nas áreas de
influência indicam interações espaciais em múltiplas escalas, entre essas cidades médias.
Para Corrêa (2007, p. 30) as cidades médias apresentam interações espaciais intensas,
complexas, multidirecionadas e com sobreposição de múltiplas influências em um mesmo
espaço e tempo.
A troca de fluxos, em área de influência partilhada, é entre Araguaína e Marabá,
com a cidade tocantinense propagando sua hierarquia para o estado do Pará, e do mesmo
modo, Marabá para o Tocantins. Já entre Araguaína e Imperatriz, a área de domínio
hierárquico compartilhada é no norte do Tocantins e no sul maranhense.
Esse mesmo compartilhamento não se repete entre Imperatriz e Marabá. O
tamanho da hinterlândia dessas cidades médias auxilia na compreensão deste quadro, pois
enquanto Araguaína tem área de influência formada por 86 outros centros urbanos, Marabá
possui 50, e Imperatriz 38.
A sobreposição de área de influência de Araguaína sobrea de Marabá ocorre sobre
as cidades paraenses de Água azul, Bannach, Conceição do Araguaia, Floresta do
Araguaia, Ourilândia do Norte, Piçarra, Redenção, São Félix do Xingu, São Geraldo do
Araguaia Tucumã e Xinguara IBGE, 2008). Esse alcance da influência de Araguaína, tem

                                                                                                                                                                                          
a Secretaria da Receita Federal, da Justiça Federal, dos Tribunais Regionais Eleitorais, dos Tribunais Regionais
do Trabalho, e do próprio IBGE. (IBGE, 2014)

3514 
 
 
 
 
 
larga extensão, chegando a quase 800 km de distância, exemplificado por São Félix do
Xingu.
Por sua vez, Marabá compartilha área de influência com Araguaína na cidade
tocantinenses de Couto Magalhaes. Como se nota, na troca de fluxos em área de influência
compartilhada entre Araguaína e Marabá, há uma maior sobreposição de Araguaína.
Já Imperatriz, adentra área de influência de Araguaína no extremo norte do
Tocantins, entre Araguatins, Augustinópolis, Axixá do Tocantins, Buriti do Tocantins,
Cachoeirinha, Carrasco Bonito e Esperantina. Na verdade, esta área é muito mais
subordinada à Imperatriz do que a Araguaína (IBGE, 2008).
Araguaína também estende área de influência para território maranhense, sobre as
cidade de Alto Parnaíba, Balsas, Fortaleza dos Nogueiras, Riachão, Sambaíba, São Félix de
Balsas, São Pedro dos Crentes e Tasso Fragoso, está cerca de 500 km de distancia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A centralidade exercida por Araguaína extrapola os limites políticos administrativos


estaduais, estendendo e compartilhando área de influência para o sul-sudeste do Pará e sul
do Maranhão, com outras cidades médias inclusas no Sudeste da Amazônia Oriental; e sem
o aparato da metrópole, tem capacidade de se conectar diretamente com o mercado
mundial, como fornecedora de produção primária.
Esse estudo da centralidade e hierarquia urbana de cidades médias da sub-região
delimitada como Sudeste da Amazônia Oriental, mostrou que Araguaína, Imperatriz e
Marabá são cidades funcionais, importantes nós da rede urbana regional; exercendo
funções comerciais de distribuição de bens e serviços em uma área compartilhada.
Essa troca de fluxos em área na influência partilhada entre Araguaína, Imperatriz e
Marabá, fortalece o papel funcional destas cidades médias na Amazônia, e contribui para
nova reconfiguração regional, denotando-se em um triângulo amazônico.

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GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

A COPA DO MUNDO FIFA 2014 E AS TRANSFORMAÇÕES ESPACIAIS EM


ITAQUERA – SÃO PAULO/SP

Savanna da Rosa Ramos (USP)1


[email protected]

RESUMO

Ao tomar a categoria espaço para análise das transformações que os megaeventos podem
trazer ao ambiente urbano, a problemática da pesquisa se fez a partir da evolução espacial,
delimitando-se o bairro de Itaquera (São Paulo/SP) para a pesquisa especificamente no
entorno do Estádio Itaquera, com os novos usos do território considerando a instalação de
equipamentos que levariam, teoricamente, a melhoria do bairro. A área, escolhida é
permeada por conflitos sociais e econômicos, que no decorrer do desenvolvimento histórico
do bairro, levam a compreender as escolhas e decisões por parte dos agentes hegemônicos
no seu processo de desenvolvimento. De modo a se colocar em evidência as contradições
que orientaram as dinâmicas do megaevento Copa do Mundo FIFA 2014, objetivou-se
apresentar e analisar a evolução espacial na área de estudo. O método dialético,
fundamentado por investigações documentais, bibliográficas e levantamento de dados
trouxe resultados indicando que o processo histórico das transformações espaciais foram
adaptadas a novos usos do espaço no Bairro de Itaquera. Procurou-se deixar claro que a
área tem grandes carências em termos de infraestrutura, assim como de necessidades
básicas, além de poucas oportunidades de emprego para a população, que ficam
concentradas na região central da metrópole, não havendo este quadro se alterado após a
Copa do Mundo. Pelo contrario, é possível levantar a hipótese de que as transformações
pelas quais passou o bairro nos últimos anos aprofundaram as desigualdades
historicamente presentes.

Palavras-chave: Copa do Mundo; Produção do Espaço; São Paulo.

1. INTRODUÇÃO
A realização de megaeventos vem refletindo a sociedade na qual acontecem e, por
outro lado, podem influenciá-la, criando alterações nos mais diversos campos, entre eles, o
campo espacial. Com a trajetória da Copa do Mundo e sua representatividade para o Brasil,
aconteceram transformações sócio-espaciais em diversas cidades brasileiras. No entanto,
tal megaevento só pode ser executado se estiver apoiado sobre a infraestrutura e politica
local, e com o universo do trade turístico. Em termos de legado do megaevento, de modo
geral, foram prometidas reformas e construções de estádios e melhorias no entorno de cada
um, bem como otimização da mobilidade urbana, aeroportos e portos nas 12 cidades-sede,
obras que envolveriam dinheiro público e privado.

                                                            
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP).
Professora Assistente no Curso de Turismo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP/SP/BRA). Mestre em Turismo e Hotelaria (UNIVALI/SC/BRA). Bacharel em Turismo (UNISC/RS/BRA).

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No caso de São Paulo, especialmente atentando as realidades atuais no Bairro de
Itaquera localizado na Zona Leste, a problemática se fez a partir da evolução espacial,
especificamente no entorno do Estádio Itaquera, com os novos usos do território
considerando a instalação de equipamentos para a melhoria do bairro. Com isso, a análise
proposta, ao focar a evolução espacial na área de estudo, considerou as determinações
previstas em Leis, Projetos/Planos Urbanísticos e Regionais para o município de São Paulo.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO TEORICA
Num cenário de muitas decisões globais e competitividade com que (con)vivemos
no século XXI, discutir as transformações espaciais das cidades passa a ser um grande
desafio, bem como para os governos locais a definição de políticas públicas e estratégias,
que necessariamente estão exigindo parcerias entre setores público e privado e a sociedade
civil organizada. Com objetivo de competitividade, as cidades vêm, cada vez mais,
envolvendo-se em processos que conduzem a ideias de verdadeiras batalhas, incentivadas
de um lado, pelas políticas públicas e de outro pela expansão de novos negócios. Com isso,
Santos (1994) complementa que se mudam também as necessidades de espaço, tanto em
função dos requisitos da produção como da circulação mais exigente de rapidez, o que leva
a cada dia, a mais espaço sendo preparado de maneira particular para cada tipo de
produção.
Daí toda vez que a cidade se torna inviável para um determinado capital, faz-se um
novo plano urbano ou remenda-se o já existente, de modo a criar novas economias urbanas,
de aglomeração, ou o que seja, viabilizando, de novo, a produção (SANTOS, 1994). Assim,
a cidade tem a possibilidade de atração de investimentos, com elevação da sua força
econômica, sendo um dos meios, a captação de eventos, que se tornou um importante
instrumento na geração de fluxo turístico para as cidades. No entanto, os legados e efeitos
dos megaeventos atualmente, que são amplamente difundidos pelos gestores públicos e
pelas empresas em prol de resultados positivos, dependem em grande medida, do
banimento de determinadas politicas, da eliminação do conflito (pelo menos aparente) e das
condições em parte do exercício da cidadania. (DACOSTA, 2008).
Discute-se sobre como vem ocorrendo o planejamento urbano no pais, baseado na
ideia do planejamento estratégico onde implica a direta e imediata apropriação da cidade
por interesses empresariais globalizados, e depende, em grande medida, do banimento de
determinadas politicas e da eliminação do conflito (pelo menos aparente) e das condições
em parte do exercício da cidadania. A venda da cidade requer, necessariamente, insumos
valorizados pelo capital transnacional: espaços para eventos, parques industriais/
tecnológicos, oficinas de informação e assessoramento a investidores e empresários, torres

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de comunicação e comércio, segurança. Assim, Vainer (2002) observa a importância do
planejamento estratégico urbano das cidades, para se entender como governantes e
organizadores de megaeventos nomeiam necessidades econômicas, culturais e sociais em
prol do recebimento do megaevento. No Brasil, a década de 90 marcou o início da forte
influência do planejamento estratégico nas políticas de planejamento urbano das cidades.
No processo de planejamento e de decisão, as logicas empresariais a que ficam submetidas
as cidades, sendo a produtividade e competitividade os elementos da gestão urbana atual,
ficam evidenciadas a partir do estabelecimentos de normatizações na forma de leis,
decretos, normativas, que no território asseguraram sua presença e representatividade.
Dentre os legados mais citados, pode-se destacar o urbanístico ligado à
intervenção em infraestrutura; os saberes e conhecimentos adquiridos; a divulgação da
cidade para o mundo; melhoria da qualidade de vida da população local; instalações
esportivas; modernização e/ou ampliação da rede hoteleira; entre outros (MATIAS, 2011).
No entanto, a reversão também pode se dar de forma negativa, gerando conflitos como: o
deslocamento de pessoas de suas casas para a utilização do espaço para construção da
acessibilidade e por meio dos impactos ambientais que podem ser causados. Essa situação
geralmente vem sendo mais agravada nas grandes metrópoles, pois vê-se a necessidade
de atenção, zelo, proteção, estima, tanto por parte do poder público como de seus cidadãos,
a partir do planejamento urbano que começa a ser executado para o megaevento.

3. DIMENSAO EMPIRICA: BAIRRO DE ITAQUERA


Até os anos de 1980, a população de Itaquera aumenta exponencialmente e este
se consolida como bairro dormitório, a partir da construção de grandes Conjuntos
Habitacionais pela Prefeitura (Companhia e Habitação de São Paulo - Cohab-SP). A efeito
disso, a população pressionou o poder público por serviços essenciais de saúde e
educação, sendo em parte atendida (uma vez que até hoje a prestação de serviços públicos
é deficitária) (LEMOS; FRANÇA, 1999; GEISE, 2012). A Linha 3 Vermelha2 do metrô
começou a ser construída em 1972, mas alcançou o bairro de Itaquera apenas em 1988,
quando decidiu-se por manter como ponto final a leste a Estação Corinthians–Itaquera,
referendando o bairro enquanto centralidade da Zona Leste. (RAMALHOSO, 2013).
A consolidação da dinâmica de exclusão sócio-espacial iniciada nas décadas
anteriores em Itaquera, assim como, na Zona Leste de modo geral foi percebida pelas
fragilidades estruturais no espaço com a conjugação de três procedimentos, conforme
analisa Geise (2012), a conivência com a abertura de loteamentos irregulares; a construção
                                                            
2A linha, ao ser inaugurada, já se encontrava saturada: só o bairro de Itaquera já contava, em 1980, com mais
de 255 mil pessoas, número que chegou a 430 mil até o fim da década.

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de conjuntos habitacionais de escala desproporcional e desconectados das redes de
infraestrutura urbana; e, a falta de uma política de desenvolvimento urbano que estimulasse
a instalação de atividades geradoras de empregos.
Nos anos 90, teve-se a elaboração de grandes projetos, assim a ligação estratégica
entre o Aeroporto de Guarulhos e o Porto de Santos é utilizada como justificativa de uma
‘vocação logística’, servindo-se desse argumento para investimentos que visavam aflorar
esse potencial e atrair o interesse do mercado na região. Desse modo, criou-se um
Programa de Incentivos Seletivos para a Área Leste destinada a estabelecimentos fabris
(Lei Municipal Nº13.833/2004) e posteriormente a Operação Urbana Consorciada Rio Verde-
Jacu3 (2004 e 2011–Lei Municipal Nº 13.872/2004) constantes no Plano Regional
Estratégico da Subprefeitura de Itaquera de 2004 (Lei Municipal Nº13.885/2004), com a
intenção de atrair indústrias e gerar empregos, assim como, compreendeu em seu perímetro
a implantação do Parque Linear Rio Verde. Entretanto, foi sobreposta, na região de
Itaquera, a um tecido urbano anterior, resultado de uma urbanização precária e espontânea,
composto por uma malha irregular de pequenas vias e grande adensamento, culminando
numa relação conflituosa com a avenida. Atualmente, a Zona Leste é uma região
diversificada, tanto comercial, quanto residencial, que está em desenvolvimento e passando
por processos de urbanização e regularização de áreas risco (favelas), canalização de
córregos e do Rio Aricanduva, além da verticalização pela valorização imobiliária promovida,
principalmente, pela vinda da Copa do Mundo ao bairro. (PREFEITURA, 2015).
Além de todas as dificuldades comuns aos bairros de periferia como Itaquera, o
desenvolvimento espontâneo e sem direcionamentos financeiros constantes para essa
região, apresenta vias de acesso ineficientes, bem como ruas e avenidas locais mal
asfaltadas e sinalizadas, com grandes pontos de estrangulamento de tráfego e
atropelamentos, como exemplo, a saída do metrô Itaquera e Radial Leste. Portanto, um
ordenamento geral provoca uma ordem indesejada pelos agentes hegemônicos em alguns
fragmentos da cidade. Logo, a população perde em qualidade de vida, ao mesmo tempo,
que tem a carência de recursos.

4. APORTES METODOLOGICOS

                                                            
3 Sob o ponto de vista da legislação urbanística, deve ser mencionada a Lei Nº13885/2004, que complementou
as disposições do Plano Diretor Estratégico, trazendo a nova legislação de uso e ocupação do solo e os Planos
Regionais Estratégicos, além de prever expressamente a revisão da Operação Urbana Rio Verde-Jacu (art. 63).
Em relação à política de incentivos seletivos, deve ser mencionada a edição da Lei Nº14.654/07, complementada
pela Lei Nº14.888/09, que propôs um novo perímetro para aplicação dos incentivos fiscais, focando sua
aplicação nas áreas de centralidades e ao longo dos eixos estruturais viários e de transporte coletivo.
(PREFEITURA, 2016)

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O método dialético, fundamentado por investigações documentais, bibliográficas e
levantamento de dados, considerando as fontes digitais oficiais disponíveis (Leis, Projetos e
Planos Urbanísticos e Regionais) para conhecimento público, trouxe resultados que
permitiram compreender as relações que se expressaram. O recorte temporal se deu de
2007 a 2014, considerando 2007, ano da proposta de captação do megaevento no qual o
Brasil foi escolhido para sediar os jogos mundiais de futebol, sendo o período de sete anos
correspondente a sua fase pré-evento (planejamento e organização), e 2014, ano de
ocorrência do evento. Os anos posteriores foram considerados para as análises referentes
ao pós-megaevento. Quanto ao recorte espacial, a partir da Figura 1, estipulou-se o bairro
de Itaquera (integrante do Distrito de Itaquera) e a área de entorno ao Estádio Itaquera,
localizado na Zona Leste de São Paulo4, o qual tem uma área de 14.64 km2 e densidade
demográfica de 14.924.56 hab/km2.

Figura 1: Imagem de satélite de localização do Estádio no Bairro de Itaquera, adjacente a estação do metrô.
Fonte: Google Earth, 2015.
No caso da área de estudo considerar-se-á no Distrito de Itaquera5, dentre seus
bairros, o de Itaquera. Nesse território foi construído e adequado o Estádio Itaquera
adjacente a estação do metrô Corinthians-Itaquera, onde foi realizado o jogo de abertura da
Copa do Mundo FIFA 2014. Ainda, é possível visualizar a concentração populacional do
bairro pela imagem de satélite.

5. RESULTADOS DA PESQUISA

                                                            
4 A cidade de São Paulo está subdividida em 31 subprefeituras e estas são divididas em distritos, que somados
resultam em 96 subdivisões administrativas. A Zona Leste de São Paulo, designada “Região Leste 1”, é uma
região administrativa estabelecida pela prefeitura de São Paulo englobando as Subprefeituras: de Penha, de
Ermelino Matarazzo, de Itaquera e de São Mateus.
5 O Distrito de Itaquera vem sendo considerado um bairro dormitório; com uma população, na sua maioria, entre

20 e 45 anos, sendo que 60% dessa população tem renda entre 0 e 5 salários mínimos.

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A partir da análise da evolução histórica espacial do bairro de Itaquera, percebe-se
como características marcantes, o crescimento populacional e urbano de forma espontânea
e a carência de serviços públicos básicos, como educação, saúde e transporte. Nota-se
também a falta de direcionamento de recursos para o desenvolvimento da região, o que
aumentou a demanda por deslocamento da população para as regiões centrais da cidade e
para o eixo do ABC Paulista, onde há maior oferta de trabalho. Portanto, um ordenamento
geral vem provocando uma ordem indesejada pelos agentes hegemônicos em alguns
fragmentos da cidade. Consequentemente, a população perde em qualidade de vida, ao
mesmo tempo, que tem a carência de tais recursos.
Trazendo o contexto do terreno onde fora inserido o Estádio Corinthians (197.095
m²), era uma antiga pedreira que passou para propriedade da COHAB na década de 1970
quando a Prefeitura adquiriu diversos terrenos na região para a construção dos conjuntos
habitacionais. De acordo com a Figura 2 (A) a seguir, a área apresenta nessa época um
vazio urbano, onde encontram-se a Estrada de Ferro Central do Brasil (1) e a pedreira6 (2).
Segundo reportagem da Revista Placar de outubro de 1986, o terreno havia sido
doado pela prefeitura paulistana ao Corinthians em 1978 para construção do estádio. “Três
anos depois, seu projeto estava aprovado, porém nunca foi executado. Em maio de 1986 o
então prefeito Jânio Quadros rescindiu a concessão do terreno, alegando que o Corinthians
não havia executado qualquer benfeitoria na área (!).” (GEISE, 2012, p. 141). Ainda em sua
gestão, a autora complementa, por mecanismos jurídicos, instituiu-se a Lei N. 10.622 de 9
de setembro de 1988, onde o terreno que havia sido doado pela prefeitura ao Corinthians,
volta a pertencer ao Clube, mediante contrapartidas sociais. Com as determinações
urbanísticas para a área, percebe-se, de acordo com a Figura 2 (B), as áreas delimitadas
para as obras da estação Corinthians-Itaquera do Metro/CPTM (3) incluindo as obras do
pátio de manobras do metro (4).
Conforme previsto em tal lei o Art. 3o, definem-se as obrigações do Sport Club
Corinthians:
a) a construir, na área concedida, as edificações necessárias à instalação e
funcionamento de seu estádio de futebol e obras complementares;
b) a apresentar, para prévia aprovação pelos órgãos técnicos da Prefeitura,
no prazo máximo de 1 ano, a partir da lavratura do competente instrumento
público de concessão, o projeto completo do conjunto das edificações e
instalações a serem executadas, observando a legislação pertinente;
c) a iniciar as obras de fechamento do contorno do terreno, serviços de
terraplenagem e execução das obras relativas as águas pluviais, no prazo
                                                            
6 A Pedreira Itaquera teve grande importância no desenvolvimento do bairro, pois garantia empregos à
população do entorno ao mesmo tempo em que fornecia toda a pedra britada necessária para a construções do
bairro. No entanto, a instalação das COHABs no entorno da área da pedreira fez com que, em pouco tempo, a
extração de pedras fosse interrompida, considerando os efeitos das explosões, da britagem e de outros
procedimentos normais para a exploração de uma pedreira, os quais eram incompatíveis com a proximidade da
comunidade (tardiamente, em 1999, a extração mineral na pedreira foi encerrada).

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máximo de 90 dias, a contar da lavratura do instrumento de concessão, bem
como a concluí-las no prazo máximo de 6 meses, a partir de seu início;
d) a ter o estádio de futebol, ainda que não totalmente construído, em
condições de realização de jogos oficiais, no prazo de 4 anos a contar da
aprovação dos necessários projetos;
e) a observar as condições que regem a faixa de oleoduto da Petróleo
Brasileira S/A - PETROBRÁS que atravessa a área concedida;
f) a arcar com todas as despesas oriundas da concessão, inclusive as
relativas à lavratura e registro do competente instrumento;
g) a atender as requisições da Prefeitura;
h) zelar pela limpeza e conservação do imóvel, devendo providenciar, às
suas expensas, quaisquer obras de manutenção e conservação que se
fizerem necessárias, bem como aquelas tendentes a garantir sua
segurança;
i) a responder, inclusive perante terceiros, por eventuais danos resultantes
das obras, serviços e trabalhos que realizar no local.

E esclarece no Art. 6º que o descumprimento das condições determinadas na lei,


bem como a inobservância de qualquer prazo fixado, implicaria na automática rescisão da
concessão, o que reverteria a área à disponibilidade do Município as benfeitorias nela
construídas, ainda que necessárias, sem direito de retenção e independentemente de
qualquer pagamento ou indenização, seja a que título for. E ainda, no Art. 9º estabelece que
“A Prefeitura não será responsável, inclusive perante terceiros, por quaisquer prejuízos
decorrentes da execução das obras, serviços ou trabalhos a cargo do concessionário”. Tais
comprometimentos nunca foram cumpridos e o terreno apenas abrigava o Centro de
Treinamento do Corinthians, ate o inicio das obras do estádio, em 2011.
Geise (2012) explica que foi por esse motivo que, em 2001, teve-se uma ação contra
o Corinthians pedindo a anulação da concessão do terreno pelo descumprimento de suas
clausulas, iniciada a partir da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI 94) das áreas
públicas, que avaliou a situação. O processo foi extinto em 2002 e reaberto em 2005 por
decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, arrastando-se até 2011, quando foi assinado
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público, Corinthians e
Prefeitura de São Paulo. Tal Termo devolveu o terreno para uso do clube através de um
contrato de cessão válido até 2078, mediante pagamento de contrapartidas sociais no valor
de R$ 12 milhões. O valor se baseia em um calculo equivalente à quantia compensatória do
período em que o terreno foi usado, considerando os últimos 3 anos contados a partir da
assinatura do TAC.
A partir da Figura 2 (C), é possível perceber o adensamento populacional no
entorno da área aumentado pelo crescimento de áreas com construções irregulares no
bairro e as divisões que tal área começa a ter ao agregar outras funções, como a de
serviços pelo estabelecimento do Poupatempo Itaquera (2).

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No projeto urbanístico, de acordo com a Figura 2 (D), no espaço destinado a
COHAB (4), foi identificado como glebas vazias. Contudo, destaca-se a formação (área
central da direita da figura) da Favela da Paz em área próxima ao córrego Rio Verde já no
inicio no ano de 1991, mas pertencente a COHAB. Atualmente abriga 377 famílias (de
acordo com levantamento da Prefeitura de 2013) e localiza-se a 800 metros do novo
estádio.

A B

C D
Figura 2: Vazio urbano em 1970 (A); Vazio urbano em 1980 (B); Ocupação urbana em 2003 (C);
Ocupação urbana em 2007 (D).
Fonte: Projeto Urbanístico do Polo Institucional de Itaquera. SMDU, 2012; SMSP, 2012.
Referente a área da pedreira (5) Figura 2 (C), Scheliga (2012) destaca que a foi
convertida em um depósito de material inerte, o popular entulho, e que após a conclusão do
preenchimento da cava, no ano de 2006, a área de cerca de 11 alqueires (aproximadamente
266 mil metros quadrados) estava pronta para ser edificada. O Grupo Itaquera, responsável
pela Pedreira Itaquera e pela exploração e implementação da nova área, declarou estar
desenvolvendo um Plano Master, já com o incentivo da Prefeitura Municipal de São Paulo, a
fim de atender às necessidades da região e tornar-se assim uma alternativa de negócio para
quem participar da implementação do novo bairro de Itaquera. Nesse sentido, a Operação
Urbana Consorciada Rio Verde-Jacu, com inicio das obras em 2006 e o programa de
incentivos a estabelecimentos fabris na Zona Leste articulam a possível vocação logística
que se pretendia ao bairro.

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Em 2007, as cidades-sede e os locais de realização dos jogos ainda não haviam
sido escolhidos. Itaquera sendo uma região que concentra o maior número de moradores de
São Paulo e apresenta déficits de investimentos (D’ANDREA, 2013) teve essa necessidade
usada como argumento para a escolha do local de construção do estádio de realização dos
jogos (FRONCILLO;ALMEIDA, 2013). Os direcionamentos políticos que levaram a essa
escolha fez com que novos usos daquele território fossem planejados com a inserção de
empreendimentos em um território marcado por um contexto histórico-social e político
conflituoso (AZEVEDO, 1945/1958; LANGENBUCH, 1971; DAMIANI, 1993, SILVA, 2006;
BONDUK, 2011) e que teoricamente levariam a proporcionar uma melhoria do bairro e, até
mesmo, um possível desenvolvimento da atividade turística.
A exemplo, a implantação do Parque Linear Rio Verde, levou a remoção de famílias
que estariam em áreas de risco ou aquelas que precisariam ser realocadas em razão de
alguma das obras para sua viabilização, pois o parque se sobrepunha a diversas
comunidades no entorno do novo estádio, incluindo a Favela da Paz (CPC-SP, 2015), na
Figura 3 bem abaixo vê-se um pequeno fragmento da favela no espaço destinado ao Polo
Institucional (C), também vê-se ao fundo as COHABs (B) e bairro. Em face do incentivo ao
megaevento e aos incentivos fiscais propostos para a região Leste da metrópole pela Lei
13.833/2004, evidencia-se também a delimitação do espaço no bairro (A), a partir do
Decreto Nº 55.010, de 9 de abril de 2014, que dispõe as Áreas de Restrição Comercial,
previstas na Lei Geral da Copa (Lei Federal 12.663/2012), e as atribuições das autoridades
municipais durante os eventos da Copa do Mundo FIFA 2014, como atendimento às
garantias formalmente prestadas pelo Estado à FIFA em 2007, afim que de o país não
perdesse o direito de sediar a competição.

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Cita-se que o terreno em que foi construído o estádio fica sobre um duto da
Petrobrás, o que significa que grande parte de sua área é não edificável. A solução para
esta área adotada no projeto do estádio foi a da colocação de uma grande área de
estacionamento em mais da metade do terreno. O monitoramento dos impactos e as
violações relacionados ao megaevento foi feito pelo Comitê Popular da Copa – SP (CPC-
SP). Relatam-se as relações conflituosas a que, tanto o bairro de Itaquera como toda a
metrópole paulista ficou exposta nesse período do megaevento.

A B

C D
Figura 3: Zona delimitada como área de restrição comercial para o megaevento (A); COHAB (B);
Vista panorâmica da área em 2014 (C); Ocupação urbana em 2016 (D).
Fonte: Decreto No 55.010/2014. (A); SMSP, 2012 (B, C); Google Earth, 2015 (D).

Posteriormente, houve outros direcionamentos para esse espaço (anteriormente


destinado a COHAB), como poderá ser visualizado a seguir na Figura 4. Mostra-se o projeto
do Polo Institucional Itaquera, parceria da Prefeitura Municipal de São Paulo com o governo
estadual previsto antes da escolha da sede da Copa, contudo, foi anunciado pela Prefeitura
em 2011, ano em que o estádio do Corinthians foi confirmado pela FIFA como sede da
abertura da Copa. O referido Projeto previu diversos serviços na área de estudo, como as
futuras implantações do SENAI, do Parque Tecnológico da Zona Leste, da obra social Dom
Bosco e do Batalhão da Policia Militar. sendo considerado que o local, segundo a
administração municipal, seria “o centro de uma cidade que se formará dentro da própria
São Paulo”. E considerando que o estádio “tem potencial para acelerar as iniciativas
previstas para a zona leste e criar novo vetor de desenvolvimento” na região. (LEITE, 2015).

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No entanto, constatou-se, apos um ano da realização do megaevento que dos 10
equipamentos previstos, além do estádio (4), apenas dois foram concluídos: as unidades da
Faculdade de Tecnologia (FATEC) e Escola Técnica (ETEC) (8), do governo do Estado, e o
Parque Linear do Rio Verde (13), da Prefeitura. (LEITE, 2015).

Figura 4: Polo Institucional Itaquera - SMSP, 2012.


Fonte: Estadão Online, 2015.

Dos oito projetos que não estão prontos, apenas um está em obras: o novo terminal
de ônibus de Itaquera (de R$ 424 milhões, que está sendo construído na frente da estação
do Metrô). Já o local onde estava previsto um Batalhão da Policia Militar dará lugar a uma
Unidade de Pronto-Atendimento (UPA).
Na área onde estavam previstos uma unidade do Senai e um Parque Tecnológico,
na frente da FATEC, havia a época (2015) apenas uma grande lona montada pelo Circo
Moscou. O terreno onde foi anunciada a construção de um Fórum de Justiça, ao lado do
estádio foi ocupado por um grupo de aeromodelismo da região. Também não saíram do

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papel o centro de convenções e eventos e o edifício de salas comerciais, entre o estádio e a
FATEC. A Prefeitura informou que, no que compete a ela, a negociação para a instalação do
Senai está em curso com a Federação das Industrias do Estado de São Paulo (Fiesp). O
Parque Tecnológico também depende dos governos federal e estadual e da iniciativa
privada.
A partir disso, percebe-se que as obras viárias feitas antes da Copa para facilitar a
ida ao estádio, com a Radial Leste e entorno, podem ser consideradas como benfeitorias
físicas permanentes ao bairro e região, mas contraditoriamente, ocorreu a valorização
imobiliária do bairro com o estádio e o consequente aumento do custo de vida dos
moradores do bairro.(LEITE, 2015).
Pode-se inferir que os projetos urbanos priorizam a melhoria da infraestrutura de
circulação, o estabelecimento de equipamentos urbanos diversos, mudanças funcionais e
ressignificação da centralidade, buscando atender a uma valorização do solo urbano para o
mercado pelos agentes do poder público e tendo como consequência uma mudança na
dinâmica urbana de muitas cidades.(MOLINA, 2013).
O discurso de que “grandes eventos esportivos induzem o desenvolvimento de uma
região”, foi utilizado pela gestão municipal também para a promoção do estádio em Itaquera,
sendo concedidos R$ 420 milhões em incentivos fiscais para a sua construção, normatizada
pela Lei Municipal Nº15.413/2011. Em fevereiro de 2014, ampliou-se o escopo e foi lançado
o Programa de Incentivos Fiscais para a Zona Leste, que oferece benefícios em impostos
municipais, como a isenção de Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) e Imposto sobre
Transmissão de Bens Intervivos (ITBI), Imposto incidente sobre a compra de terrenos e a
redução da alíquota do Imposto Sobre Serviços (ISS) para 2% sobre ramos da atividade
comercial, para novas empresas se estabelecerem, buscando gerar emprego e reduzir os
deslocamentos para o centro pela Lei Municipal Nº15.931/2013, regulamentada pelo
Decreto 54.760/2014. Tal programa terá a duração de 25 (vinte e cinco) anos contados a
partir de 1º de fevereiro de 2014 e setores como: informática, educação(escola de idiomas),
saúde, estética, gráfica, limpeza, call center e hotéis podem ser cadastrados.
Até junho de 2015, segundo a Prefeitura, apenas cinco empresas haviam se
cadastrado no programa, com previsão de abrir 6 mil postos de trabalho. Metade dessas
vagas pela empresa Flex Contact Center, de relacionamento com cliente, que abriu sua
unidade em São Mateus em maio de 2015 e ainda trabalha com 50 funcionários, sendo a
expectativa de chegar a 300. Outras 25 empresas estão buscando terrenos na região, entre
elas um shopping e uma universidade. A Prefeitura afirma que o programa é de médio e
longo prazo e deve gerar mais de 50 mil empregos.

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A isso, também analisa-se que o uso do estádio em dias que não há jogos tem
grande importância para a manutenção de sua vitalidade durante o período pós-
megaevento. Tal questão, no caso do Estádio do Corinthians, é abordada através da
inserção de um centro de compras em seu interior, com lojas e restaurantes abertos ao
publico. A problemática da aposta em shopping centers, mostra que tais empreendimentos
são responsáveis pela aniquilação do comércio dos bairros e prejuízo resultante a vitalidade
das ruas. (SCHELIGA, 2012).
Sobre a ação do Estado nesse processo, sua maior intervenção na economia
reflete-se na possibilidade de maior regulação, principalmente, a partir do planejamento
territorial, em especial o urbano e regional (caso Zona Leste de São Paulo). Com isso,
desempenha um papel fundamental, sendo o único agente, com poder de lei e força, que
atua na remoção de outros agentes e objetos inconvenientes para os novos investimentos.
Como atuante, utiliza-se dos dispositivos legais e da força para, em nome do que se
convencionou chamar de “utilidade pública”, promover a cidade como um negócio privado.
(SANTOS, 2006; ALVAREZ, 2012).
Tal situação vem apontando maior possibilidade de intervenção de diferentes
setores e interesses sociais em tais projetos, ao mesmo tempo que se tem o processo de
mercantilização da cidade pelos agentes do poder público.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a perspectiva da totalidade e na tentativa da perceber a realidade social em
Itaquera (São Paulo/SP), aponta-se para um discurso e uma pratica no espaço deixando
claro seu sentido politico e estratégico. A compreensão do contexto histórico e social de
bairro de Itaquera assim como as decisões políticas sobre esse espaço por parte do Estado
foi essencial para se entender como se deu a projeção de Itaquera para receber os jogos do
mundial de futebol. Pode-se inferir que a definição da localização do estádio do megaevento
em São Paulo fez parte da politica urbana na metrópole. Como exposto pelas normatizações
(como a de doação do terreno ao Corinthians ainda nos anos 70 e 80 e de incentivos fiscais
para Zona Leste) para a área de construção do estádio, as diretrizes de políticas publicas
fazem parte desse processo, que se tornou estratégico para um possível desenvolvimento
acelerado e estabelecimento de conexões com outras regiões na área de estudo que vão
além do próprio bairro, sendo considerado um “vetor de desenvolvimento no sentido da
Zona Leste”. Assim, percebeu-se que a opção por Itaquera nunca foi um fato aleatório, mas
integrante de um plano maior à Zona Leste da capital do Estado.
Considerando as transformações espaciais no bairro neste inicio de século, reforça-
se uma questão importante para os investigadores, que consiste em analisar as interações

3531 
 
 
 
 
 
dos lugares de eventos com seu entorno, considerando a comunidade residente, analisando
as zonas de influência que podem acarretar impactos em vias de acesso; na localização dos
espaços; nos fluxos turísticos; na gestão de transportes; e no deslocamento de outras
atividades. Ainda, necessária é a conscientização da sociedade sobre os processos
socioespaciais em curso e sua luta pelo direito à cidade.
Em face do megaeventos, os planos e projetos, apontam para a mudança do
modelo de planejamento, visando transformar parcelas mais restritas do espaço urbano,
considerando a potência do processo de revalorização que podem desencadear. Assim, o
papel do Estado é central, como um nível sem o qual a reprodução do espaço não se
realizaria.

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urbano. Revista Cidades. v. 9, no 16, 2012. p. 62-85.
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3533 
 
 
 
 
 

GT-07 Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

REQUALIFICAÇÃO URBANA E CIDADES CRIATIVAS: ESTUDO DA DINÂMICA


SOCIESPACIAL DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE CORDEIRÓPOLIS (SP)

Eduardo Alberto Manfredini (UNASP / EINSTEIN)1


[email protected]

RESUMO

O presente estudo trata das ações públicas e privadas no espaço urbano, em uma cidade
de pequeno porte paulista, abordando a dinâmica socioespacial reproduzida neste cenário,
ações que adquiriram relevância para o cotidiano conforme decorreram os modos de
ocupação urbana sobre os quais a urbe se constituiu. Analisam-se desta maneira, alguns
destes indutores e resultantes representados no cotidiano socioespacial cidade de
Cordeirópolis, localizada na região administrativa de Campinas, tendo como objeto de
estudos a área da histórica Estação Ferroviária – instalada no ano de 1.876 e única no país
implantada “em curva”. A pesquisa utilizou-se de levantamentos de dados referentes ao
município e ainda de estudos e pesquisas, focados nos principais problemas urbanos
presentes na área em questão. A partir desta análise, este estudo procurou então
demonstrar, apropriando-se dos conceitos voltados à promoção de cidades criativas,
sustentáveis e inteligentes, possibilidades imbricadas a uma mudança de paradigmas na
condução do planejamento urbano local. Tal hipótese materializou-se em uma proposta
teórica de aplicação de instrumentos e ações de requalificação urbana e predial na área da
Estação Ferroviária, que possam instigar uma dinâmica diferenciada ao lugar, de modo que
o local possa adquirir e/ou retomar determinadas características que a impulsionem o
desenvolvimento socioespacial. Objetivou-se assim estabelecer possíveis contrapontos à
exclusão, ocupação irregular, segregação socioespacial e outras resultantes ora presentes,
considerando dentre outros, fatores como a capacidade de suporte da infraestrutura local,
valorização da vida humana e geração de emprego e renda, como instrumentos de
valoração e reordenação qualitativa do espaço urbano.

Palavras-chaves: dinâmica socioespacial, problemas urbanos, cidades criativas e


requalificação urbana, espaço urbano.

                                                            
1 Doutor em Engenharia Urbana, professor dos cursos de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário
Adventista de São Paulo, UNASP, Engenheiro Coelho (SP) e das Faculdades Integradas Einstein de Limeira
(SP), arquiteto e urbanista, coordenador do Grupo de Pesquisas Dinâmica Socioespacial Urbana e Regional do
curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo do UNASP, Engenheiro Coelho (SP).

3534 
 
 
 
 
 
1. INTRODUÇÃO

Ao estudo do conjunto de ações, tanto públicas, quanto privadas, que tem como
resultado a ocupação do território urbano, denomina-se dinâmica socioespacial.
Este tema foi tratado neste trabalho, em conjunto com os estudos da economia
criativa, abordada a seguir, relacionando-os às temáticas atreladas ao crescimento
populacional, a evolução física da cidade, bem como sua formação e evolução, tendo como
foco a área da antiga Estação Ferroviária de Cordeirópolis, cidade do Leste paulista,
localizada na Região Administrativa de Campinas (FIGURA 1).
FIGURA 1: Localização de Cordeirópolis

Fonte: CRIONI, 2012, p.11

A área da Estação, composta pela gare, espaços de antigas oficinas e moradias de


trabalhadores da estrada de ferro – ainda ocupadas por algumas famílias remanescentes do
trabalho na ferrovia e por invasores, hoje está caracterizada como ocupação irregular -
encontra-se em estado de semiabandono, ladeada pelas com composições de trens de
carga que ainda passam por alí.

3535 
 
 
 
 
 
Abordaram-se de modo a compor um entendimento geral dos processos de
ocupação do solo na área da Estação Ferroviária (FIGURA 2), os eventuais dispositivos
legais e políticas de gestão, com suas ramificações, em especial aquelas relacionadas à
dinâmica aplicada para a ocupação fundiária do solo na cidade e às questões do transporte
ferroviário.
Na contextualização das atividades de caráter privado concentrou-se na
caracterização dos setores produtivos no município, em especial a indústria cerâmica, que
impulsionou a produção imobiliária voltada ao atendimento das necessidades habitacionais
dos trabalhadores a partir da década de 1980.
FIGURA 2: Estação ferroviária de Cordeirópolis na década de 1980

Fonte: PASCON, 2013, p. 01

Importa destacar que a atividade cerâmica foi uma das atividades que pautou as
propostas no sentido de estabelecer contribuição ao estudo de proposta e soluções criativas
para a dinâmica do socioespaço, sua história e suas resultantes para as comunidades das
pequenas cidades paulistas.

2. O CONCEITO CRIATIVO

É notável que as ocorrências resultantes da dinâmica socioespacial em


Cordeirópolis e consequentemente, propostas para a mitigação de problemas e aplicação de
instrumentos de gestão, são passíveis de integrar-se ao conceito de cidades criativas, em

3536 
 
 
 
 
 
uma proposta para aplicar os estudos neste campo de pesquisas pois, como apontado por
Landry:
Uma cidade criativa estimula a inserção de uma cultura de criatividade, no modo
como se participa da cidade. Ao incentivar a criatividade e legitimar o uso da
imaginação nas esferas pública, privada e da sociedade civil, amplia-se o conjunto
de ideias de soluções potenciais para qualquer problema urbano. Esse é o
pensamento divergente, que gera múltiplas opções e deve ser alinhado ao
pensamento convergente, que fecha as possibilidades, a partir das quais as
inovações urbanas que se mostraram viáveis podem emergir. Uma cidade criativa
demanda infraestruturas que vão além do hardware – edifícios,ruas ou saneamento.
Uma infraestrutura criativa é uma combinação de hard e soft, incluindo a
infraestrutura mental, o modo como a cidade lida com oportunidades e problemas;
as condições ambientais que ela cria para gerar um ambiente e os dispositivos que
fomenta para isso, por meio de incentivos e estruturas regulatórias. Para ser criativa,
a infraestrutura soft da cidade precisa incluir: força de trabalho altamente capacitada
e flexível; pensadores, criadores e implementadores dinâmicos, já que a criatividade
não se refere apenas a ter ideias; infraestrutura intelectual ampla, formal e informal –
mesmo assim, muitas universidades que parecem fábricas com linhas de produção
não ajudam; ser capaz de dar vazão a personalidades diferentes; comunicação e
redes fortes, internamente e com o mundo exterior, bem como uma cultura geral de
empreendedorismo, seja com fins sociais ou econômicos. (Landry, 2013:13-14).

Este autor destacou também que um aproveitamento máximo da criatividade existente no


lugar deve ser pautar no conhecimento amplo do desenvolvimento de sua história e cultura:
Levar a cultura em consideração nos ajuda a entender de onde um lugar vem, por
que ele está como está e como pode criar seu futuro, por meio de seu potencial.
Esses recursos culturais são a matéria-prima da cidade e sua base de valores; seus
ativos, substituindo o carvão, o aço ou o ouro. (LANDRY, 2013, p. 5)

Deste modo o conceito de criatividade poderia ser utilizado como instrumento para
explorar os recursos disponíveis no plano local e está atrelado neste estudo à questão
histórica e cultural da evolução urbana de Cordeirópolis, sem perder de vista as atividades
produtivas, tendo como foco a Área da Estação.
Procurou-se, caracterizar e integrar fatores como a criatividade, a cultura e a
questão dos arranjos produtivos locais, de modo a propor ferramentas que venham
contribuir com a construção de uma metodologia voltada ao reconhecimento, gestão e
exploração dos recursos locais.
Como observado por Landry, esta cultura deve ser considerada ao estabelecer os
critérios e técnicas “do planejamento e do desenvolvimento urbanos, ao invés de ser vista
como um acessório marginal a ser considerado, uma vez que as questões importantes de
planejamento, como habitação, transporte ou ocupação do solo, estiverem resolvidas. ”
(LANDRY, 2013, p.15)
Assim, as tratativas propostas buscaram contemplar as condicionantes culturais e
também as questões produtivas locais, dentro do contexto do ramo cerâmico de cunho
artesanal existente no município, buscando apresentar propostas para a evolução da
economia criativa e justiça social, pautadas no planejamento urbano sustentável e atreladas
ao incentivo da preservação da história e cultura locais.

3537 
 
 
 
 
 

3. DINÂMICA SOCIOESPACIAL NA CIDADE

Nota-se que as urbanizações presentes necessitam de planejamento atrelado à


realidade fundiária, pautados na análise do cenário local e focados em eficiência, eficácia e
resultados que possam garantir estas resultantes positivas aos espaços inertes no plano das
cidades.
Assim, a cidade real deveria acompanhar os anseios do cidadão, todavia, dever
permear suas necessidades de modo a garantir que cada ação ou proposta elaborada pelo
poder público venha a resultar em benefícios diretos e indiretos à população, bem como
garantir que as estratégias de melhoria, presentes nas propostas, sejam implementadas.
Tais estratégias poderiam ser o alvo para a aplicação das políticas de revitalização
e reestruturação do espaço, visando solucionar os problemas urbanos e trazer benefícios
para toda a comunidade.
Deste modo, seria possível buscar a garantia das condições de integração e uso
espacial as áreas degradadas e sem uso definido (em inércia espacial), estas enquanto
objetos de consumo, por exemplo, imputando-lhes dinâmicas que as socializem e tornem
estes sítios urbanos eventualmente estagnados, integrados e funcionais ao contexto da
cidade.
Considerando o exposto com relação aos espaços em desuso, ou de uso
incompatível com determinadas porções das cidades, há que se apontar que tais áreas são
identificadas em praticamente todos os cenários urbanos brasileiros, sendo passíveis –
aplicados os instrumentos disponíveis no arcabouço técnico e legal existente – da promoção
de consumo do espaço pautado em um planejamento estratégico, este voltado, por
exemplo, as questões da criatividade e valorização da cultura local.
Como observado por Howkins, “Imagine andar por uma cidade; em alguns lugares
é um prazer, em outros um aborrecimento. É muito melhor quando há um conjunto de
pessoas e atividades diferentes, em vários espaços e locais”. (HOWKINS, 2011, p.128)
Como apontado por Souza (2003), no âmbito dos cenários urbanos brasileiros,
desejar e propor, como muito se fez no urbanismo tecnicista ainda presente em nossas
cidades, são verbos distantes da realidade atual econômica, social e política, onde é
crescente a exigência da participação dos variados grupos que compõe o conjunto da
comunidade.
Inserindo nestes locais, propostas desenvolvidas por intermédio da discussão e
participação dos diversos atores sociais, como poder público, associações de classes,
associações de moradores e demais agentes presentes na sociedade, com projetos que

3538 
 
 
 
 
 
venham a beneficiar toda a cidade, é possível recuperar e ordenar as dinâmicas destes
locais, de modo a garantir seu desenvolvimento e torná-los objetos de uso e consumo
comuns.
Estes ideais, aplicados aos estudos de áreas decadentes e deterioradas espacial e
socialmente, por exemplo, poderiam trazer novamente à atividade extensas áreas próximas
às ferrovias em cidades paulistas interioranas como Cordeirópolis (FIGURA 3), Limeira e Rio
Claro, incentivando seu uso pela comunidade com atividades que atendessem as
disposições das leis de uso e ocupação do solo e necessidades locais.
Implantar nestes pontos das cidades atividades que não tenham exigências e
incompatibilidades atreladas a sua localização estratégica distante das áreas centrais, que
sejam suplementares às necessidades da população local e de toda a comunidade, ou
sirvam à estratégia e/ou ao marketing voltado à promoção do município e incentivo à cultura,
ao emprego e à geração de renda.
Quanto às áreas estagnadas de interesse do patrimônio local, deve-se apontar para
o cuidado em sua caracterização quanto à importância histórica e cultural, visando planejar
de modo técnico e político o incentivo dinâmico ao suo, promovendo dentro do escopo da
preservação, as melhorias de suas condições estruturais.
Também importa atrelar os pontos em inércia no tecido das cidades em questão,
aos ideais de melhoria na oferta e uso do transporte urbano, tanto de pedestres e ciclistas,
quanto de motoristas, objetivando ampliar as condições de segurança - notadamente no
período noturno - dinamizando, por exemplo as iniciativas comerciais e de gestão
empresarial e política dos sistemas apontados.

3539 
 
 
 
 
 
FIGURA 3 Pátio da Estação ferroviária de Cordeirópolis

Fonte: SANCHES, 2014, p. 96

Analogamente entende-se que propostas para áreas nas cidades em processos de


inércia e deterioração carecem em especial do planejamento quanto a elaboração de suas
estratégias de ocupação e retomada, voltadas à requalificação e ao uso.
Assim, tais locais urbanos poderiam abrigar atividades compatíveis com sua
infraestrutura e potencial para absorção das mesmas, procurando iniciativas pautadas em
se desenvolver o consumo dinâmico e evolutivo, no atendimento as necessidades que
tragam benefícios urbanos de modo pontual, com resultantes também para os panoramas
externos regional e global.
A existência nestas áreas de ações no ramo comercial de varejo por exemplo, bem
como a presença de casas noturnas e restaurantes, pode sinalizar para a valorização das
mesmas enquanto alavancas para o direcionamento das estratégias de planejamento local
de desenvolvimento destas atividades.
A resposta pode estar então na estratégia e na participação social, decidindo uma
das necessidades primordiais do socioespaço urbano: a dinâmica.

3540 
 
 
 
 
 
4. EXPANSÃO DA CULTURA CRIATIVA

A questão da aplicação dos conceitos de economia criativa, tendo como foco a


Estação Ferroviária de Cordeirópolis passaria então por fatores ligados a questão da
preservação do patrimônio histórico e cultural local, ao planejamento urbano e, em especial
à gestão urbana.
A situação de degradação - gradativa e silenciosa - esconde problemas urbanos
como a segregação, a subabitação, a violência e a desvalorização humana e socioespacial,
impondo condições de miséria aos ocupantes daquela porção do território urbano.
Entende-se que sob a tutela da economia e do conceito de cidades criativas, estas
focadas na utilização da criatividade presente no local como instrumento de transpasse dos
problemas socioespaciais, poder-se-ia mitigar e solucionar a maioria dos conflitos ora
representados naquela área da cidade.
Utilizando-se por exemplo, da capacitação dos moradores como ferramenta de
inclusão e ampliando as oportunidades locais de geração de emprego e renda, apoiando
estas iniciativas no regate da dignidade e da cidadania, seria possível diminuir distâncias e
aproximar diferenças no socioespaço de Cordeirópolis.
Nota-se que incentivando a criatividade, esta se torna um instrumento capaz de
fomentar a expansão de oportunidades não somente locais, como por todo o município.
Entretanto, cabe apontar que a cidade criativa deve ser liderada pela gestão e esta
estar voltada a promoção socioespacial das melhorias urbanas, como observou Iversen:
Também nos parece importante discutir o papel dos governos locais no
desenvolvimento de uma política cultural e da economia criativa, que favoreça a
diversidade, a criação de empregos, o desenvolvimento econômico, a regeneração
urbana e o investimento em infraestrutura criativa e em design. (IVERSEN, 2013, p.
131)

Estes fatores integrados como partes de um planejamento estratégico elaborado


pela gestão local, poderiam se tornar atrativos para negócios diferenciados em um futuro
não muito distante, pautado em uma adequação das atividades realizadas no espaço da
Estação Ferroviária, direcionadas para ramos de interesse do pensamento voltado ao
desenvolvimento criativo do município, bem como pautados ainda em outras questões
estruturais, como definiu a autora:
As cidades devem se preparar e gerar vantagens pelo uso de transportes modernos,
atraentes e favoráveis ao ambiente, o que também torna os negócios mais
atraentes. O planejamento de longo prazo inclui clima, energia, meio ambiente e
também transporte, que foi incorporado na parte de uso do solo, no Plano Diretor. É
preciso coordenar os vários planos. Bom transporte público e uma rede de ciclovias,
que levem e tragam as pessoas do trabalho, com conforto e eficácia, aumentam a
atratividade do trabalho em Bergen. Também devemos olhar além dos limites de
nossa cidade e colaborar com nossos vizinhos. (IVERSEN, 2013, p. 135)

3541 
 
 
 
 
 
Também os conceitos de formação e educação oferecidos poderiam deste modo
estar concentrados em capacitar os interessados em áreas do conhecimento – algumas
atreladas à história e cultura local - ainda pouco desenvolvidas no plano local,
proporcionando formação de mão de obra atrativa em ramos como informática, preservação
ambiental e cultura.
Neste ínterim, como apontado por Newbigin, tendo como parâmetros a história e a
cultura local, a “economia criativa”, se diferencia das demais áreas econômicas em especial
por intermédio da “complexa herança cultural”:
[...] a origem da economia criativa, como se chama normalmente, se deu quando as
antigas tradições do trabalho cultural e industrial – design, produção, decoração e
representação – começaram a ter vínculos com uma gama mais ampla de atividades
produtivas modernas –a publicidade, o design de roupa, o desenho gráfico e a mídia
de imagens em movimento – e, mais importante ainda, quando começaram a ter
maior abrangência pelo poder da tecnologia digital. é o que diferença a economia
criativa de qualquer outro setor da economia. (NEWBIGIN, 2010, p.13)

O autor comentou ainda que no decorrer de parte significativa da história da


humanidade, esta dinâmica cultural do processo criativo não ocorreu atrelada à economia,
pois englobava normalmente atividades exercidas pelas pessoas de modo não profissional,
como lazer ou após a aposentadoria, entretanto no período recente tais ações são
consideradas “expressões do valor cultural e econômico.” (NEWBIGIN, 2010, p.13).
Newbigin em sua análise sugeriu ainda que:
Além do seu valor de troca, (que é o estágio final para que os bens e serviços
encontrem o seu nível de preço ótimo no mercado) e seu valor funcional
(determinado pela maneira como se usam no dia a dia), a maioria dos produtos e
serviços das indústrias criativas têm um ‘valor expressivo’, um significado cultural
que pouco ou nada tem a ver com os custos da sua produção ou utilidades. Por
exemplo, uma bolsa da alta moda, um filme, uma marca bem-sucedida, um ícone
religioso ou um novo design conceitual.” (NEWBIGIN, 2010, p.13)

Outro fator importante está então na questão da recuperação da área da Estação


Ferroviária, enquanto objeto integrante da cultura e do socioespaço local.
Deste modo entende-se que a expansão deste costume passa antes de qualquer
fator pela vontade do poder público local no incentivar e promover a requalificação da área
em questão, buscando parcerias nas esferas superiores de poder.
Também é possível posteriormente ao processo de mencionado de recuperação do
local, a concessão de incentivos fiscais, mitigação de entraves legais e administrativos, e
demais processos atrativos à iniciativa privada, que possa estabelecer programas
governamentais voltados à manutenção e melhoria do ambiente local.
Com esta atuação, estariam programadas e planejadas ações voltadas a garantir
maiores chances na atração de investidores e fixação do ideal de funcionamento do
complexo de edifícios e, em especial da produção de atividades com foco criativo.

3542 
 
 
 
 
 
Entende-se desta forma que a decisão do poder público local precisa estar pautada
na justa apreciação do bem público, na transparência de atitudes e foco na recuperação do
socioespaço e da qualidade de vida na cidade.
A este respeito, em seus estudos sobre Brownfields2, Vasques comentou:
[...] uma política que vise auxílio para os programas de refuncionalização de
brownfields deve contar com o reconhecimento do interesse público na questão,
deve estar aberta à participação dos poderes públicos e da iniciativa privada,
conceder crédito para a limpeza das áreas mais urgentes, e instituir parcerias
criando um clima de cooperação entre os agentes. As comunidades devem ser
vistas como sócios, ao mesmo tempo em que os governos locais devem estar
dispostos a envolver as comunidades e a patrocinar a refuncionalização,
possibilitando assim, maiores chances de obter sucesso. Atualmente, os governos
vêm dando prioridade à recuperação dos centros históricos e seus patrimônios,
negligenciando antigas áreas não centrais. Algumas áreas próximas ao centro
apresentam, quase sempre, déficits de acessibilidade, visibilidade e de
equipamentos e serviços que imprimam neles funções centrais.” (VASQUES, 2005,
p.50)

Um exemplo atual da tentativa de requalificação urbana pautada no processo


criativo é a cidade de Detroit, nos Estados Unidos, conhecida mundialmente a partir da
década de 1950, por produzir aproximadamente cinquenta por cento da produção de
veículos e que segundo Trevisan (2014) tinha àquele período cerca de dois milhões de
habitantes, figurando como a quarta maior cidade americana.
Segundo a autora, entre as décadas de 1970 e 2010 a cidade presenciou – em
especial dada a fatores como a concorrência da indústria japonesa de veículos no mercado
norte americano – brusca queda em sua participação nos mercados local e mundial produtor
de veículos e também retração populacional.
Trevisan (2014) comentou que atualmente a cidade conta com 685 mil habitantes, e
cerca de vinte por cento das indústrias locais:
[...] O desequilíbrio financeiro foi agravado por alguns governos desastrosos e outros
corruptos, que contribuíram para empurrar Detroit à insolvência, com uma dívida de
US$ 18 bilhões. No dia 3 de dezembro de 2013, ela se tornou a maior cidade
americana a entrar em concordata, dando início a um processo de negociação com
credores que será acompanhado de perto por municípios como Chicago e Los
Angeles, que enfrentam problemas semelhantes em seus deficitários fundos de
pensão. As estatísticas apresentadas no pedido de concordata revelam uma cidade
incapaz de prover serviços básicos aos moradores, imersos em alguns dos piores
indicadores sociais dos Estados Unidos. O porcentual de pessoas que vivem abaixo
da linha da pobreza é de 36%, mais que o dobro da média de 15,7% do Estado de
Michigan. Apenas 12,2% da população concluiu a faculdade, comparado a 25,3% no
Estado. O índice de desemprego é de 16,2%, quase dez pontos porcentuais acima
dos 7% registrados nacionalmente.” (TREVISAN, 2014, p.01)

                                                            
2
Na última década, o redesenvolvimento de áreas industriais abandonadas vem sendo uma ação prioritária por parte do
governo federal, estadual, municipal e de algumas comunidades norte-americanas. Nos Estados Unidos, estas antigas
instalações industriais abandonadas são conhecidas como brownfields e ocupam bairros ou cidades inteiras, principalmente no
nordeste e centro-oeste americano, onde a indústria estava localizada. (C.f. Vasques, 2005, p.02)

3543 
 
 
 
 
 
A saída para a cidade parece estar ligada a economia criativa, atrelada à atração
de empresas do ramo de serviços, que passam a ocupar as áreas abandonadas da área
central e dos setores industriais.
Segundo Trevisan (2014) algumas empresas do ramo de tecnologia como o Twitter
e o Google, gigantes das vendas pela internet como a Amazon, além de empresas de
publicidade e mesmo escritórios de arquitetura, estão tomando posse dos antigos edifícios,
tanto atraídas pelo baixo custo dos imóveis, quanto pelo ideal proveniente do cenário de
recuperação.
Com relação à tipologia dos trabalhos que podem ser desenvolvidos de modo
criativo, trabalho elaborado pela Bop Consulting (2010), com o apoio do British Council,
apresenta um gráfico dividindo as indústrias criativas em quatro grandes áreas – serviços
criativos, conteúdos criativos, experiências criativas e originais criativos – e demonstrando
processos de interseção entre elas, distribuindo as diversas atividades nestas grandes áreas
ou em suas interseções (FIGURA 4).
Assim, faz-se importante que exista uma reflexão e estudo pormenorizado e
integrado à realidade das atividades, bem como da cultura e do socioespaço local, trabalho
este realizado por especialistas de áreas diversas, que levem em consideração fatores e
especificidades de cada localidade, desde o escopo municipal até o regional e nacional3.
Neste contexto o objeto de estudos referenciado na antiga estação ferroviária de
Cordeirópolis, estabelecida a relação com as áreas supramencionadas poderia abrigar –
referencialmente após a recuperação parcial ou geral do conjunto – atividades como
escritórios de arquitetura, design e publicidade (serviços criativos) em especial ligados ao
ramo cerâmico, como a especificação e projeto de aplicação de materiais, design de pisos e
revestimentos e mesmo na área de divulgação e marketing dos produtos, tanto através da
implantação de escritórios e prestadores de serviços, quanto na instalação de cursos,
formação de mão de obra e desenvolvimento de matéria prima e produtos.
Também poderiam estar ali instalados laboratórios profissionais e atividades
educativas nas áreas de música, áudio e vídeo (conteúdos criativos) atrelados à produção e
divulgação estabelecida no primeiro conceito dos serviços criativos. Cabe ressaltar que o
município já conta com o “Projeto Guri” que em uma de suas vertentes já realiza cursos que
ensinam a arte dos instrumentos musicais promovidos pela Secretaria Municipal da Cultura
em parceria com os governos federal e estadual, que já tem capacidade para oferecer
alunos e profissionais para as atividades propostas.

                                                            
3
C.f. BOP CONSULTING, 2010, p.36.

3544 
 
 
 
 
 
FIGURA 4: Proposta de áreas para atividades criativas.

Fonte: BOP CONSULTING, 2010, p. 39

No ramo das experiências criativas o município poderia se apropriar de espaços


para a instalação de um museu que abrigasse sua história e a da ferrovia, além de
exposições referenciadas na história da ocupação regional esta representada pelos acervos
das antigas fazendas de café como a Ibicaba e a Santa Gertrudes, ainda hoje preservadas,
bem como de área para a realização de feiras e eventos que possam estabelecer um maior
conhecimento acerca dos produtos, cultura e história locais e regionais.
Destaca-se ainda a oportunidade em se ampliar as atividades ligadas ao
artesanato, as antiguidades e as artes visuais (originais criativos), abrindo espaços para a
ampliação da capacidade de geração de emprego e renda local e, em especial, para a
expansão da cultura criativa local.
Assim, ter-se-ia ainda os processos de interseção entre as áreas criativas, que
promoveriam dinâmicas ao espaço da Antiga Estação, ampliando os usos daquele local e
ainda de outros espaços existentes na cidade, como o Teatro, o antigo salão do “Cordeiro
Clube” e sua sede esportiva, trazendo recursos para a efetivação da melhoria econômica e
socioespacial de todo o município.

3545 
 
 
 
 
 
5. CONSIDERAÇÕES

Sem perder de vista as atividades produtivas no município e, tendo como foco a


Área da Estação propõe-se aplicar os conceitos de criatividade como instrumentos para
explorar alguns dos recursos disponíveis no plano local como a mão de obra, o potencial
dos setores cerâmico e logístico e a posição estratégica no plano regional, atrelados às
questões histórica e cultural local.
Procurou-se desta maneira propostas pautadas em caracterizar e integrar fatores
como a criatividade, a cultura e a produção - esta com foco na questão dos arranjos
produtivos locais - de modo a propor atividades para a área da estação que possam
contribuir com a construção de uma metodologia voltada ao reconhecimento, gestão e
exploração dos recursos presentes no município.
Assim, as tratativas propostas para a área da antiga estação ferroviária de
Cordeirópolis buscaram contemplar as condicionantes culturais e também as questões
produtivas locais, no sentido de apresentar propostas para a evolução da economia criativa
e também da justiça social, pautadas no planejamento urbano sustentável, inteligente e
criativo.
Muitos dois as autores estudados abordam em seus estudos que no planejamento
da cidade criativa faz-se essencial a valorização do espaço urbano pautada na ampliação da
capacidade de espaços públicos e privados de promover a sociabilização da distribuição de
oportunidades aos ocupantes da cidade, como materialidades capazes de dinamizar as
relações socioespaciais de modo equilibrado, garantindo a mitigação da luta de classes pela
apropriação dos resultados do capital.
Entende-se desta maneira que a melhoria nas condições de infraestrutura local na
área da Estação pode acarretar aprimoramento na ocupação do solo da região central da
cidade, pautada ainda na oferta de serviços públicos e privados, bem como na ampliação
dos espaços de lazer, turismo, cultura e educação, atraindo assim para a área em questão,
demanda impulsionada pelo atendimento de suas necessidades e, portanto, disposta à
obtenção de atendimento, o que poderá gerar emprego e renda.
Como instrumento de intervenção, a economia criativa teria então, atrelada ao
planejamento urbano, o papel de impulsionar o sentimento de identidade que o socioespaço
representa para a comunidade.
Esta identificação, no caso da antiga Estação Ferroviária em Cordeirópolis teria, por
exemplo, tal representatividade pautada em se constituir a área como um ponto de encontro
e convívio das pessoas, neste período não como o local de chegadas e partidas, mas de
encontro e conjunção de ideias.

3546 
 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS

BOP CONSULTING. Guia Prático para o mapeamento das indústrias criativas. Trad.
Diana Marcela Rey e João Loureiro. Londres: British Council, 2010. Disponível em
<http://creativeconomy.britishcouncil.org/media/uploads/files/Mapping_guide_-
_Portuguese.pdf> Acesso em: 19.set.2017.

CRIONI, Andréa Galhardi de Oliveira. Patrimônio cultural e identidade territorial: estudo


do bairro de Cascalho – Cordeirópolis - SP. 2012. 138f. Dissertação (Mestrado em
Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual paulista
Julio de Mesquita Filho, Rio Claro. Disponível em: <
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/95624/crioni_ago_me_rcla.pdf?sequence
=1&isAllowed=y > Acesso em 29.mar.2017.

HOWKINS, J. Ecologias criativas. In.: REIS, Ana Carla Fonseca; KAGEYAMA, Peter,
(Orgs.). Cidades criativas: perspectivas. São Paulo: Garimpo de Soluções, 2011.

IVERSEN, L. Desenvolvimento urbano, clima e meio ambiente como vantagens


competitivas. In.: REIS, Ana Carla Fonseca; KAGEYAMA, Peter, (Orgs.). Cidades criativas:
perspectivas. São Paulo: Garimpo de Soluções, 2011.

LANDRY, C. Origens e futuro da cidade criativa. São Paulo: SESI, 2013.

NEWBIGIN, John (2010). A economia criativa: um guia introdutório. Série Economia


Criativa e Cultural / 1. Trad. Diana Marcela Rey e João Loureiro. Londres: British Concil,
2010. Disponível em<
http://creativeconomy.britishcouncil.org/media/uploads/files/Intro_guide_-_Portuguese.pdf>
Acesso em: 13.jun.2017.

PASCON, José Roberto. Estações ferroviárias: Cordeirópolis. Site Estações Ferroviárias,


2017. Disponível em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/c/cordeiropolis.htm> Acesso
em: 09.ago.2017.

SANCHES, Renan. Parcelamentos e ocupações irregulares.2014. 148f. Monografia


(Graduação em Engenharia Civil) – Faculdade de Engenharia Civil, Faculdades Integradas
Einstein, Limeira. Disponível em: <http://www.einsteinlimeira.com.br/portal/8/49> Acesso em:
29.mar.2017.

SOUZA, M. L. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos.


2. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

TREVISAN, Cláudia. A destruição do sonho americano de Detroit. In: Jornal “O Estado de


S. Paulo”, São Paulo, 5.jan.2014. Economia, B6 e B7. Disponível em:
<http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-destruicao-do-sonho-americano-de-
detroit,174417e> Acesso em: 05.mai.2017.

VASQUES, Amanda Ramalho. Refuncionalização de Brownfields: estudo de caso na


zona leste de São Paulo-SP. 2005.160 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Disponível em
<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/95620/vasques_ar_me_rcla.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y> Acesso em: 26.mar.2017.

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GT 07 - CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO


NA AMÉRICA LATINA

TRANSFORMAÇÃO URBANA: PROBLEMAS TÍPICOS DA CIDADE


COM A SEGREGAÇÃO DOS BAIRROS

Clebson Carlos de Oliveira (UNIR)1


[email protected]

Maxson José Barzani Jardim (UNIR)2


[email protected]

RESUMO: Diante das transformações urbanísticas ocorridas nas cidades os processos que
se seguem não atende de forma igualitária todos os lugares urbanos, isso é um fator que
altera o processo de convivência entre os grupos sociais e nesse processo de
transformações o cotidiano da população urbana é o lugar que mais tem impactos no pós-
transformação, na hipótese de melhores condições de vida grande parcela da população
migram constantemente para os meios urbanos. Com o aumento populacional o meio
urbano se modifica e ocorre a segregação dos bairros com o surgimento dos bairros
periféricos que são continuamente penalizados pela ausência do Estado, esse ao permitir a
existência de classes subalternas. O objetivo desse trabalho é discutir os problemas sociais
urbanos que surgem no pós-transformação das cidades, uma alteração com o aumento
populacional e segregação dos bairros nos meios urbanos. A metodologia utilizada foi uma
pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, calcada em autores que discutem políticas
públicas e problemas urbanos, material utilizado foram livros, artigos e outros. Os dados
apresentam uma análise dos problemas urbanos emergidos e aumentados no pós-
transformação de cidades, um agravante social derivado do aumento populacional, situação
problema dos lugares pobres com a falta de saneamento básico, saúde, educação escolar,
segurança e outras políticas. Conclui-se que o meio social urbano é formado por um
conjunto de diferentes localidades, e os problemas agravam com espaços divididos
geograficamente, como bairros nobres e não nobres.

Palavras-chave: Transformações, Cidades, Problemas Urbanos

1. INTRODUÇÃO

Diante das transformações atuais os meios sociais são sempre alterado para
atender e oferecer um lugar mais agradável com melhores condições de subsistência para o

                                                            
1Graduado em História, Graduando em Serviço Social, Mestrando em História e Estudos Culturais na
Universidade Federal de Rondônia - UNIR; bolsista CAPES, Pós-graduado em Gestão Cultura e Políticas
Públicas na Amazônia.
2Graduado em História, Mestrando em História e Estudos Culturais na Universidade Federal de Rondônia -

UNIR, bolsista CAPES, Pós-graduado em Gestão Cultura e Políticas Públicas na Amazônia. 

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3550
 
 
 
seres humanos, e esses lugares que antes eram lugares sem o mínimo de intervenção
humana se transforma para uma projeção artificial, ou seja, se transformam em cidades que
aparentemente são planejadas em todos os cantos. Embora tenta-se fazer planejamentos
com projetos urbanísticos e infraestruturas que atendam a todos e a todas, os
planejamentos nem sempre atende, nem atende os lugares e muito menos a todos e a todas
as pessoas que depende do processo das transformações para viver com o mínimo de
dignidade humana, pessoas que são vítimas do processo de transformação das cidades
vivem continuamente na lado a lado com a pobreza, pessoas essas que vivem
continuamente com alto grau de vulnerabilidade social.
O objetivo desse trabalho busca discutir alguns dos problemas sociais urbanos que
surgem no pós-transformação das cidades, uma alteração que ocorre nos meios urbanos
que ao serem planejadas como “cidades” as mesmas se transformam permitindo
segregação dos bairros e aumento populacional em áreas subalternas. A metodologia
utilizada foi uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, que teve como fundamentação
teórica autores que discutem políticas públicas sociais e problemas nos meios urbanos.

2. PROBLEMAS URBANOS

“Quando a população das cidades cresce mais que a das zonas rurais, acontece o
fenômeno que chamamos de urbanização” (COSTA, 2005, p. 01), isso é influenciado pela
ideologia de viver melhor nos meios urbanos, provocando a escassez populacional no meio
rural e agravando os problemas urbanos com o inchaço populacional, os meios rurais e
urbanos são dependente dos setores como primeiro, segundo e terceiro setor, porém essa
necessidade é maior em áreas urbanas decorrente de falta de emprego, moradia, saúde,
educação dentre outras, primeiro setor é o governo, o segundo as empresas e o terceiro as
Associações, Organizações não Governamental (ONGs) dentre outras, a participação de
todos os setores e extremamente importante para manutenção dos processos de
transformações urbanas. Esse processo com grandes aglomerações de pessoas residindo
em um mesmo lugar/próximos é a principal característica no meio urbano. “Esse processo
se expande de tal modo, que o conjunto da sociedade passa a ser dominado por valores,
expectativas e estilo de vida urbanos. Este processo de mudança comportamental e
relacional é reconhecido como urbanização” (SILVA; MACÊDO, 2009, p. 02-03).
Em outros momentos históricos a sociedade teve diferentes estilos ou modos de
vida, não é somente na atualidade em que há mais pessoas morando na cidade do que em
áreas rurais, já houve momentos na história da civilização em que grande parte da
população residiam no meio urbano, no caso de Roma na Idade Antiga, e outros em que

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3551
 
 
 
eram totalmente rurais como período Medieval, esses processos é histórico “a urbanização
é um fenômeno não apenas recente como também crescente, e em escala planetária”
(SANTOS, 2008, p.13). Nos últimos séculos as ofertas para residir nos meios urbanos estão
diretamente relacionados aos processos de industrialização que necessita continuamente de
mão-de-obra, porém exige mão-de-obra qualificada, o que são restrito as melhores
qualificações para uma minoria urbana, provocando assim o aumento da desigualdade
social.

Nos países industrializados de hoje, entre 60 e 90% dos indivíduos vivem


em áreas urbanizadas. As causas principais da urbanização nos países
capitalistas desenvolvidos foram a industrialização e a mecanização do
campo. Mecanização essa impulsionada por esse mesmo processo de
industrialização. A industrialização do campo liberou mão-de-obra, na
medida em que as maquinas passaram a realizar o trabalho de várias
pessoas. (SILVA; MACÊDO, 2009, p. 15)

Giddens (2005) Apud Silva e Macêdo (2009) afirmam que no início do século XIX a
população mundial era superior em áreas rurais não chegava nem a 20% de população
urbana, as cidades ainda estavam se modernizando e a procura para habitar em cidades
ainda era pouco, apareceu no século XIX com grandes destaques de urbanização entre os
anos de 1800 a 1900 ela considerada a maior cidade do mundo Londres, que de 1,7 milhão
de habitantes cresceu para 7 milhões de habitantes no final do século XIX. “Londres era
então, de longe, a maior cidade que o mundo jamais havia visto, um vasto centro
manufatureiro, comercial e financeiro no coração de um império britânico ainda em
expansão” (GIDDENS, 2005, p. 456). Esse século foi marcado por grandes transformações
no meio urbano, transformações que proporcionavam a aumento populacional nas cidades,
não era somente Londres que obteve esse aumento populacional entre os anos de 1800 a
1900, pois no mesmo período “[...] a população de Nova York saltou de 60 mil pessoas para
4,8 milhões” (SILVA; MACÊDO, 2009, p. 03).
Como nossos modelos de modernização estão atrelados a modelos americanos ou
europeus países como Brasil tende a copiar modelos de tais cidades (europeias ou
americanas) como se fosse o modelo ideal/padronizado para a convivência social.
Vasconcelos (2006, p. 28), confirma que até os modelos norte-americano também
apresentação as mesmo características nas cidade, com formações de bairros periféricos.

[...] o modelo norte-americano é parcial e invertido, permanecendo as


divisões centro-periferia, mas com a pobreza localizada, em sua maioria, no
entorno precário da cidade, em conjuntos habitacionais, loteamentos

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irregulares, e, sobretudo, em terrenos invadidos, refletindo no espaço a
persistência e a ampliação da pobreza urbana.

No Brasil o processo de urbanização e replicação dos modelos não é atual, isso já


acontece a séculos, antes no período colonialista e depois no período imperialista, segundo
Sposito (1989, p. 44) “No Brasil, durante o século XVI, foram fundadas 18 cidades, segundo
os dados levantados por Nestor Goulart Reis Filho em seu livro Evolução urbana no Brasil,
tendo esse número aumentado para 28 no século XVII”. O processo de urbanização
continua e nos séculos XIX e XX as cidades brasileiras já apresentam um grande aumento
populacional. Como a própria história nos apresenta o aumento populacional brasileiro teve
processos iniciais de urbanização em áreas costeiras, como firma (LOPES, 2008, p. 23).

Vemos que em 1872 cerca de 6 por cento da população estava em cidades


de mais de cinqüenta mil habitantes (Rio, Salvador, Recife e São Paulo,
nessa ordem); só as três primeiras possuíam população maior que cem mil
e nenhuma alcançara o marco do meio milhão. Em 1960, tínhamos perto de
23 por cento da população em aglomerados urbanos de cinquenta mil
habitantes ou mais; tais aglomerados eram em número de 73, 31 dos quais
com mais de cem mil habitantes, e seis dentre eles tendo atingido mais de
meio milhão de habitantes.

Percebe-se que na década de 60 a população urbana do Brasil ainda era de 23%,


os processos de urbanização continuaram e sucederam com as transformações diante da
necessidade que percorreu ao longo dos próximos anos os meios urbanos, que foi e
continua sendo alvo de milhares de pessoas, porém tais lugares apresentam situações
contraditórias do proposto para a convivência humana, pois hora são meios desejáveis e
regulares, hora são meios indesejáveis e irregulares para a condição social, isso deriva dos
projetos urbanísticos que nem sempre atende as necessidades de todos cidadãos, projetos
sendo alguns maus estruturados acabam não conseguindo urbanizar com qualidade
igualitária em todos os setores das cidades, essa problemática não atende os princípios
fundamentais como Universalidade e Equidade.
Na figura 01 representa uma boa infraestrutura, ou ao menos como é entendido no
século XXI como boa infraestrutura para uma cidade, está é a cidade de Songdo na Corrêa
do Sul, o local da cidade em que é visível através da imagem mostra uma cidade muito bem
planejada ou ao menos é o que parece através da imagem, inclusive com uma boa logística
urbana com avenidas largas, pavimentação asfáltica e semáforos, ao contrário do que se
percebe em algumas outras cidades, inclusive no Brasil. Percebe-se ainda que tem uma boa
limpeza urbana o que influencia na educação da população.

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3553
 
 
 
O problema é que sempre essas belas imagens, que apresenta as cidades, são
fotos retiradas dos grandes centros urbanos, lugar onde consegue aproximar das condições
necessária para a vida urbana, em centros iguais a esse são recebido vários serviços com
qualidade diferente dos destinados as periferias das cidades, são atendido pelos órgãos
públicos como deve ser o planejamento urbanístico da cidade, diferentemente de lugares
deslocados dos centros urbanos que os serviços não chegam com a mesma
intensidade/qualidade.

Figura 01: Cidade sul-coreana, Songdo, ao lado do Rio Amarelo.

FONTE: PARONAMA, 2017. (Planejamento de Infraestrutura)

Percebe-se ainda na mesma figura 01 que esta cidade, Songdo, é uma obra prima
da humanidade, ela representa o que sempre almejamos, a modernidade representada pela
as cidades, sempre os projetos urbanísticos tentam aproximar de algo assimilar a de
Songdo, porém infelizmente nem sempre obtém-se o mesmo resultado para os centros e
nem para os recantos das cidades. Infelizmente as cidades não seguem o planejamento
desejado, até mesmo aquelas que tem uma boa estrutura no centro, é drasticamente
desfavorável aos seus redores, surgindo assim a periferia. (D’INCÃO, 1997)
As cidades se tornam um problema de espaço por não suportar o contingente
populacional na medida em as próprias pessoas começam a se organizarem
independentemente fora das ações ou interferência do Estado, as cidades sem
planejamentos urbanos se tornam espaços maciçamente precários, espaços que para um
ser vivente traz grandes problemas sociais, ainda diante dos problemas há certas confusões

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que aliena os moradores, pois muitos residentes que ao pensar que é normal viver em um
pequeno espaço precário ainda continuam a viver a mercê da sociedade, ainda que queiram
e descobrem que os problemas estão agravando no meio urbano mantenham-se no
conformismo da urbanização precária que corrobora para a pobreza, “Essa urbanização
sem planejamento criou uma situação caótica nas principais capitais do país e suas regiões
metropolitanas, com aumento da pobreza e da violência” (UGEDA JUNIOR, 2009, p. 08).
Os meios urbanos precários são lugares que por falta de ações governamentais
acabam se tornando cada vez mais problemáticos e tais ambientes projetados como
cidades teria como principal objetivo atender às necessidades que são necessária para nós
seres humanos, para D’incão (1997, p. 351) “O que temos é um simulacro de sociedade
desenvolvida, onde as pessoas anseiam pela apropriação dos símbolos da modernização
travestida de urbanização com seus equipamentos”. Tem como consequência disso a
formação de bairros periféricos.
Segundo Mota (1999, p. 17) “O aumento da população e a ampliação das cidades
deveria ser sempre acompanhado do crescimento de toda a infraestrutura urbana, de modo
a proporcionar aos habitantes uma mínima condição de vida.” O que não acontece nas
cidades, pois elas conseguem atender, na maioria das vezes, somente os centros urbanos
com saneamento básico, educação, segurança dentre outras, já em lugares periféricos a
ausência do Estado as vezes só aparece com a ação da polícia, o que pode ser entendido
como uma ação muito tarde diante do agravamento social. Em uma análise dos bairros
periféricos de Manchester Reino Unido, Engels Apud Sposito (1989, p. 67) descreve que “As
casas são velhas, sujas e do tipo menor, as ruas são desiguais, cheias de buracos e em
parte não calçadas e destituídas de canalização”. Lugar típico da periferia.
Esses problemas e visível em bairros periféricos de todas as cidades brasileiras,
um problema social que deriva do processo de urbanização.

[...] os inúmeros "problemas" urbanos advindos da rápida industrialização


incentivaram o comportamento individual e a separação espacial das
classes sociais dentro da cidade: os bairros de pobres, os bairros de ricos…
Ter uma residência individualizada cercada de espaços era sinal de
prestígio social, só possível para os mais ricos. (SPOSITO, 1989, p. 68)

Uma problemática tipicamente das cidades, por não conseguir manter o domínio
estrutural do meio urbano é as divisões locais, são claramente percebidas ao circular em
bairros localizados nos recantos das cidades, as diferenças sociais aparecem junto com as
desigualdades sociais e econômicas. O poder aquisitivo se agrava diante da grande
ideologia capitalista. “A cidade moderna tende a expandir seus limites, criar novos bairros,

3554 
 
3555
 
 
 
subúrbios e a periferia cresce indefinidamente, que podem dar origem a novas cidades”.
(SILVA; MACÊDO, 2009, p. 07)
Como afirma Silva e Macêdo (2009) realmente as cidades crescem exorbitantes e
não conseguem atender todas as necessidades urbanas, quando as cidades crescem elas
se transforma em uma outra cidade que foge das respectivas da população e do controle
governamental, situações como as da figura 02 é encontrado em várias partes do mundo,
essa na figura 02 é a favela Cantinho do Céu, uma das muitas favelas existentes na cidade
de São Paulo.

Figura 02: Favela Cantinho do Céu, Grajaú, Zona Sul, SP.

FONTE: Google imagens

Lugares como da figura 02, representa claramente o que é pobreza e mostra


pessoas que sobrevivem dentro de um lugar que oferece muito pouco para a dignidade

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humana, lugares esses é até entendidos como cidades, porém não tem infraestrutura de
cidades, Noronha (2003, p. 382) diz que:

[...] podemos identificar como ausência do Estado em sua vertente


redistributiva e uma face repressiva ambígua. Vemos que grande parte da
ascensão das taxas de criminalidade nas cidades brasileiras é
frequentemente atribuída à insuficiência de políticas sociais. Associado a
isso, vem a ineficácia das instituições de prevenção e controle do crime, em
especial nos espaços urbanos dos pobres.

A figura 02, é vulnerável ao crime, lugares iguais a esse que visivelmente mostra a
falta de muitas coisas para ser reconhecida como cidades, são cidades que não oferece o
mínimo de condições possíveis para a sobrevivência humana, cidades como essa são uma
imaginação de cidade, pois não atende os modelos de cidades representada pela figura 01,
as cidades iguais a da figura 02 são vítimas do próprio capital que promove a segregação
das pessoas, são lugares que falta saneamento básico, saúde, educação o que na ausência
de tais políticas públicas, o crime ganha espaços e resistências entre os moradores.
Os bairros precisam de estruturas diferentes, atenção regionalizada, ou seja,
precisa de políticas que equipara as classes sociais, uma classe que se considera desigual
progressivamente ira manter-se sob o poder de outras classes, caso o Estado não atenda
as classes que vivem em subalternidade as práticas sociais continuarão a aumentar diante
da ausência do Estado. As condições sociais do qual as poluções urbanas vivem tem efeitos
gradativos não somente para a população local, mais também para toda a sociedade que
depende do processo da construção social.
Burnett e Venâncio (2008) diz que o problema da segregação dos bairros deixa as
cidades com grandes diferenças, diferenças visíveis entre o centro e os lugares nos
recantos das cidades, esses considerados periféricos. É notório que nas cidades os centros
recebem maiores investimentos, é no centro urbano que se valoriza e detêm a concentração
das melhores escolas, melhores mercados, melhores lojas, ou seja, é no centro de qualquer
cidade que a melhor infraestrutura é mantida com qualidades, nos centros urbanos a
segurança pública atua com mais vigor, inclusive com mais atenção e responsabilidade.
Procede Burnett e Venâncio (2008, p. 13) que:

(...) finalmente será lograda a perseguida segregação social que, incapaz de


se realizar nas áreas centrais da cidade, fará a classificação de áreas
nobres e populares, através do zoneamento, programando e legislando
sobre a separação espacial da população. Assim, enquanto as áreas
litorâneas são mantidas fora do alcance dos mais pobres, o restante do
novo território é ocupado por dezenas de bairros populares, surgidos às
margens das inúmeras avenidas construídas no período.

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Por não haver uma equiparação estrutural nas cidades os ambientes ganham
características diferentes, meios mais desassistidos pelo Estado sofrem mais com
vulnerabilidade social, os meios que fazem parte dos recantos urbanos sempre recebem os
últimos benefícios de logística urbana e ainda com atrasos. Diante da não equiparação dos
serviços prestados à população, os lugares assim tem como principal característica a
desigualdade social.
Dentro os grandes problemas urbanos estão a má observação e fiscalização dos
setores/órgãos que representam o Estado, assim não cumprem com suas finalidades, de
acordo com Pereira (2008, p. 148)
O Estado é ao mesmo tempo uma relação de dominação, ou a expressão
política da dominação do bloco no poder, em uma sociedade territorialmente
definida, e um conjunto de instituições mediadoras e reguladoras dessa
dominação, com atribuições que também extrapolam a coerção. Nesse
contexto, o governo ganha persona própria, jurídica, separada tanto da
persona física do governante quanto da instituição estatal.

Sendo o Estado um bloco de poder ou quem domina os blocos de poderes


legalmente constituído, ele deve manter a atenção em toda a sociedade, já ele regula e faz
mediação entre as instituições, a atenção deve ser de forma eficiente ao fazer uso dos
recursos públicos, sabemos que a desigualdade social sempre estará presente em um
sistema capitalista, porém o Estado não deve se ausentar, deve tentar resolver os
problemas que são gerados em lugares considerados periféricos, pois se os problemas
existem, sendo o Estado mantenedor de poderes supremos, então cabe a ele analisar e
aplicar políticas públicas e políticas sociais que atendem com Equidade todos os
setores/bairros urbanos.
Zanatta e Motta (2015) compreendem que os agravos sociais são inerente a própria
humanidade, porém as formas para melhorar cabe ao Estado aplicar, nos bairros
desassistidos os problemas se prosperam como um efeito dominó, ou seja, se faltar políticas
que atendam com qualidade no momento presente, essa falta trará maiores problemas para
o futuro, essa falta pode ser percebida em áreas como a saúde, educação, nos saneamento
básico, segurança e outras.
Dentre as áreas supracitadas está a segurança pública infelizmente tem graves
problemas em execução nos serviços, a sociedade vive apavorada em saber que as cidades
apresentam hoje insegurança para a população. Os bairros periféricos não são eles os
típicos causadores das violência urbana, mas são em lugares que sofrem com a
vulnerabilidade social que os índices de práticas violentas tem maiores números, práticas
essas que chamam atenção pelos altos índices que são provocadas até mesmo pelos
jovens, os considerados jovens em conflito com a lei.
3557 
 
3558
 
 
 
A sociedade carece de interação social, necessita de mais contatos interbairros
para que as práticas consideradas irregulares são diminuídas, para Nóbrega (2010, p. 20)
A interação social é dependente de frágeis articulações, inconstantes,
instáveis e temporárias em contínua e permanente elaboração no meio
social comunitário, devidamente assimilada pelos atores locais que a
utilizam para observar e interpretar as realidades em que vivem.

As mudanças que ocorrem na sociedade são parte da construção da mesma, um


processo evolutivo com falhas e acertos no âmbito social, são ações que fazem parte de
processos que englobam todos e todas. As transformações e logísticas nos meios urbanos
devem necessariamente também observar as transformações constantes da sociedade, ou
seja, um conjunto de políticas e ações que mantem o atendimento de acordo com o
crecimento populacional é extremamente necessário para não permitir que pessoas vivem
sempre em vulnerabilidade social. Manter sempre o foco na inclusão das classes sociais,
trabalhar para que as políticas públicas e políticas sociais sejam discutidas entre as
unidades governamentais ou não governamentais como as do segundo e terceiro setor, são
uma ação Inter setorial para combater os problemas que emergem da ausência de políticas
sociais e que pode agravar com problemas que resulta em violência no meio urbano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe ainda um aprofundamento na pesquisa para apontar as principais causas das


desigualdades sociais e ainda enfatizar os maiores problemas urbanos, problemas como
violência, pouco investimento na cultura, pobreza, educação dentre outros ocorridos nas
cidades, pois as causas podem ser um conjunto de problemas sociais que se relacionam
com renda, moradia, racismo e mais agravos que não são atendidos pelas políticas sociais e
que prove a desigualdade social.
Diante disso conclui-se que se o Estado não investir em ações que reparam as
estrutura dos bairros, se não impedir a segregação dos bairros o que provoca a
periferia/subúrbios das cidades, tais consequências terão efeitos negativos para toda
sociedade, pois os efeitos virão o mais cedo ou mais tarde, e na falta de ações que ampara
e resolva os maiores problemas urbanos o Estado não conseguirá atender no futuro com
políticas públicas, que dependera de um período curto de tempo.

REFERÊNCIAS

BURNETT, Frederico L.; VENANCIO, Marluce W. C. “Breve Perfil Histórico da Habitação


Popular em São Luís”. In: São Luís, Ilha do Maranhão e Alcântara. Guia de Arquitetura e

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3559 
 
 
 
 
 

GT 07 A – Cidades e transformações do urbano na América Latina

NEOFAVELADOS: JOGOS DE DISTINÇÃO E LÓGICA DA EXCLUSÃO EM UMA


FAVELA URBANIZADA DO RIO DE JANEIRO

Nicolas Quirion (IPPUR/UFRJ)1


[email protected]

RESUMO

Devido ao contraste que imprimem na paisagem da cidade moderna, as favelas do


Rio de Janeiro se impuseram no sentido comum como o espaço de exclusão
socioeconômico por excelência. Porém, no caso de determinados assentamentos situados
em áreas valorizadas da cidade, as dinâmicas sociais e econômicas parecem cada vez mais
emaranhadas com aquelas da cidade formal. A realização de grandes eventos
internacionais acelerou a repercussão de fenômenos urbanos globais em certas favelas; e
alguns desses bairros populares se tornaram atrativos para novos tipos de moradores, que
tipificamos aqui como “neofavelados”. A presença desses indivíduos, frequentemente
apresentados como gentrificadores, pode acarrear restruturações das configurações sociais
locais. Com base em observações empíricas, são colocadas considerações transescalares
no tocante à relação indivíduo-território, estilos de vida e novas formas de segregação
urbana.

Palavras-chave: favela, gentrificação, Rio de Janeiro, distinção, exclusão.

1. INTRODUÇÃO

No seio de uma cidade onde a circulação de bens, ideias e pessoas é fluida e


intensa, o senso comum costuma atribuir às favelas uma série de caraterísticas que as
distinguem do resto do espaço urbano. Ora estigmatizadas como lócus de pobreza e
violência, ora valorizadas enquanto incubadoras de culturas urbanas emergentes ou, ainda,
categorizadas como territórios de sobrevivência de certo habitus comunitário, as favelas
cariocas aparecem embrulhadas por um denso tecido de representações polifônicas; sejam
                                                            
1 Doutorando em planejamento urbano e regional.

3561 
 
 
 
 
 
elas produzidas pelas mídias, as artes, os discursos políticos, as narrativas nativas ou,
também, as ciências sociais (VALLADARES, 2005). Receptáculos históricos dos excluidos
produzidos pela sociedade pós-escravagista e pelo êxodo rural, as favelas nasceram à
margem das dinâmicas do desenvolvimento urbano formal e da legalidade, mantendo
ambivalentes relações para com os poderes públicos. Depois do abandono do ideal de
erradicação que vigorou durante boa parte do século XX, com destruições particularmente
numerosas durante a primeira parte da ditadura militar, as favelas passaram
progressivamente a ser beneficiadas por um esforço incremental de urbanização, ao passo
que lhes eram concedidas sérias garantias legais de permanência (GONÇALVES, 2013).

Com o decorrer do tempo, e sob os efeitos dos melhoramentos realizados tanto por
parte dos próprios habitantes quanto das autoridades, certas favelas (ou pelo menos
determinadas localidades dentro daquelas) foram adquirindo qualidades urbanísticas
relativamente satisfatórias, podendo às vezes superar aquelas dos bairros populares
periféricos ou de certos conjuntos habitacionais sociais2. Sem surpresa, os assentamentos
situados no coração da principal zona de concentração de riqueza da cidade, a Zona Sul,
foram os que se beneficiaram (proporcionalmente) do maior esforço de urbanização
(CAVALLIERI; VIAL, 2012: p.4). Por estarem situadas na vizinhança imediata de bairros
nobres, com relativa facilidade de acesso às amenidades da centralidade (emprego,
infraestruturas de saúde, de educação ou de lazer, patrimônio natural e cultural, etc.), o
valor do mercado imobiliário informal em certas dessas favelas conheceu uma progressiva
inflação, tanto para aluguel como para compra. Alvos principais da controversa política dita
de "pacificação", certas dessas favelas experimentaram, em um primeiro momento, um
melhoramento de certos indicadores de segurança (CANO, 2012). No entanto, a
estabilidade e a eficácia desse processo estão hoje fortemente questionadas, com base na
crise profunda que afeta o modelo de controle territorial pela força simbolizado pelas
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

Em virtude de tácita convenção social, a moradia nos assentamentos populares


informais, genericamente considerados como perigosos e insalubres, parece
“vocacionalmente” reservada a pessoas de baixa extração social, e costuma ser fortemente
repulsivos para categorias mais abastadas. Ora, de alguns anos para cá, a circulação e a
instalação de novos indivíduos visivelmente oriundos de meios socioeconômicos
relativamente elevados em algumas favelas situadas nas proximidades das centralidades
urbanas do Rio de Janeiro (especialmente na Zona Sul, a mais valorizada econômica,

                                                            
2
  Para refletir o resultado cumulativo desses esforços incrementais, a Secretária Municipal de Habitação do Rio
de Janeiro adotou o uso de uma nova categoria: a “Comunidade Urbanizada”.

3562 
 
 
 
 
 
cultural e simbolicamente) constituiu um fato chamativo, amplamente comentado pelos mais
diversos observadores (GAFFNEY, 2013). Desde uma perspectiva liberal, esse fenômeno
emergente deixou conjeturar uma ruptura para com o modelo de segregação em vigor no
Rio de Janeiro, baseado na tradicional dicotomia entre “morro” e “asfalto”. Em contraste,
uma crítica de inspiração mais social vislumbrou nessa progressiva integração das favelas
pelo mercado um risco pela permanência dos moradores mais vulneráveis, no seio de
assentamentos construídos pelos seus próprios esforços. Entre essa polarização ideológica
fundamental e o aporismo imposto pelas escassas possibilidades de controle do mercado
imobiliário em territórios onde o poder normativo da lei permanece fraco, poucos estúdios se
debruçaram (a nosso ver) sobre o aspecto empírico da questão desde uma perspectiva
microssociológica.

Partindo desta constatação, o presente artigo se articula ao redor de duas perguntas


principais:

1) Que fatores socioantropológicos podem repelir ou, ao contrario, favorecer a opção de


moradia em favelas urbanizadas por parte de novos habitantes oriundos de um meio
socioeconômico considerado como mais elevado?

2) Quais mecanismos de inclusão ou de exclusão podem ser revelados pela instalação de


novos moradores em assentamentos informais populares dentro dos quais — não obstante
uma aparenta homogeneidade — certas divisões estão previamente inscritas no território?

Longe de querer esgotar as questões em um texto tão breve, optamos por uma
abordagem crítica do conceito de distinção elaborado por Pierre Bourdieu (1979) e por
aplicar uma leitura localizada dos mecanismos de exclusão intracomunitários desvendados
por Elias e Scotson (2000). Para levar a bem essa tentativa de operacionalização empírica
das análises bourdieusianas e elisianas, ancoramos a nossa reflexão dentro de um recorte
temporal e territorial limitado. Foram aqui mobilizados parte dos resultados obtidos em uma
observação participante desenvolvida com base em uma residência de um ano na favela
Pereira da Silva, situada entre Santa Teresa e Laranjeiras (QUIRION, 2015), e prolongada
por visitas regulares que continuam até o dia de hoje. Em paralelo, trabalhos de campo
occoreram de forma regular em outras favelas das zonas Sul e Central da cidade. Apesar
dos infinitos matizes que foram encontrados, determinamos que as observações e hipóteses
tiradas do trabalho na favela Pereira da Silva podiam ter validade além do recorte micro-
local em questão. Com base em entrevistas estruturadas e conversas informais, foi assim
possível observar a partir desses lugares os efeitos de um momento muito particular do
Brasil, que abrange a preparação e a realização da Copa do Mundo de Futebol, em junho e

3563 
 
 
 
 
 
julho de 2014, e das Olimpíadas de agosto de 2016. Com efeito, as intenções de
acumulação de capital, fortemente incentivadas por esses tipos de eventos mundiais, se
repercutiram também nas favelas.

2. A SEGREGAÇÃO TERRITORIAL DAS FAVELAS EM UMA PERSPECTIVA


BOURDIEUSIANA

Tentaremos aqui entender alguns dos elementos que favorecem a persistência do


opróbrio lançado sobre a favela pelas classes superiores. No nosso entendimento, a
excepcionalidade da mobilidade de pessoas relativamente abastadas até as favelas não
pode ser explicada unicamente pela falta de segurança atribuída a esses espaços:
determinismos sociológicos também devem ser considerados. Com efeito, a representação
da favela e dos seus moradores por parte do resto da população da cidade cristaliza
tensões relativas à estratificação de uma sociedade profundamente desigual.

No Brasil, apesar dos progressos efetuados desde a democratização (e mais


particularmente ao longo da última década), os indivíduos que se beneficiam de uma
situação econômica elevada e consolidada, capaz de colocá-los em um patamar de conforto
e de consumo comparável àquele alcançado pelos países mais ricos, continuam ocupando
uma posição demograficamente minoritária3. Nessa configuração, se impõe para as
camadas mais abastadas a necessidade de defender, seja de que maneira for, os privilégios
associados a uma posição social diferenciada. A aquisição e a ostentação de bens de
consumo, a opção por uma residência em bairros socialmente mais valorizados, a escolha
de uma formação acadêmica ou de uma profissão socialmente valorizada, tanto quanto
práticas culturais ou de lazer consideradas como sofisticadas, desempenham para essas
categorias um potente motor de diferenciação no espaço social. No plano residencial, nas
grandes cidades brasileiras, a preferência pelos condôminos fechados, particularmente
notável entre as camadas superiores, revela um reflexo de autossegregação marcado pela
intenção de se proteger não somente do crime endêmico, senão também da mera
possibilidade de contato indesejável com os mais pobres (CALDEIRA, 2000).

Enquanto isso, a suposta “nova classe média” (NERI, 2010), constituída daqueles
que ascenderam à classe de renda C na segunda metade da década de 2000, se encontra
lesada pela fragilidade do seu estatuto recém-adquirido. Os seus membros sentem na carne
                                                            
3
  Em 2013, o conjunto das classes A e B representava menos de 30% da população do Brasil (Fonte: CPS/FGV
a partir dos dados do PNAD/POF/PME/IBGE). 

3564 
 
 
 
 
 
as ameaças que pairam em caso de desaceleração econômica. Existe assim comumente
por parte desses indivíduos uma vontade marcada de privilegiar o contato com as camadas
sociais mais altas, o que pode favorecer em consequência uma tendência a querer se
distinguir, ora dos seus pares, ora daqueles que ficaram associados às categorias ainda
mais baixas. Para Jessé de Souza (2010) esse estrato social constituído de “batalhadores”
mobiliza através de diversas estratégias um esforço considerável a fim de conseguir um
objetivo essencial: “escapar da ralé”4.

Voltando à análise bourdieusiana, entendemos que, tanto por parte da elite


econômica quanto dos “batalhadores”, está em ação um jogo de distinção, dinamizado
principalmente pelo medo da degradação social. No caso específico do Rio de Janeiro, as
relações de dominação socioeconômicas encontram uma materialização emblemática no
espaço urbano através da dicotomia imediatamente perceptível (e inúmeras vezes
comentada) entre “asfalto” e “morro”. Os habitantes dos assentamentos pobres foram
relegados pelos dominantes a uma condição de alteridade e de subalternidade radicais,
territorializando de forma particularmente nítida a questão da pobreza urbana.

Para Bourdieu (1997), o lugar ocupado no espaço social indica uma posição no seio
de uma ordem, que pressupõe a distinção e a imposição de uma distância em relação aos
que ocupam posições inferiores. Desde a demolição dos cortiços no âmbito da reforma
Pereira Passos no início do século XX, até o ideal de remoção das favelas durante a
ditadura militar, passando pela truculência policial e as mais diversas discriminações que
atingem até hoje os moradores de favelas, é possível distinguir os esforços de uma elite em
prol de uma reafirmação da distância social que a separa dos habitantes de territórios
geograficamente próximos. Se por um lado a elite brasileira soube estabelecer ao longo da
história do país um modelo singular de relações assimétricas (tanto econômicas como
culturais) com as suas populações marginalizadas; por outro, a violência da segregação e
da repressão policial que atinge os moradores de certas zonas urbanas precárias também
parece sem comum medida no plano internacional5.

3. OS DISTINTOS PARADIGMAS DA DISTINÇÃO

                                                            
4
  Segundo as palavras utilizadas pelo filósofo e teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger no prefácio à
obra de Souza (2010). 
5
 Segundo a ONG Human Right Watch “A taxa de homicídios cometidos por policiais no Rio foi de 3,9 para cada
100.000 habitantes em 2015, quase cinco vezes maior do que a taxa sul-africana, de 0,8 homicídios para cada
100.000 habitantes e quase 10 vezes maior do que nos Estados Unidos”
<https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0716portweb_5.pdf>

3565 
 
 
 
 
 
A circulação de indivíduos de médios socioeconômicos relativamente elevados
dentro das favelas cariocas tem sido rara por causa do medo à violência e dos reflexos de
evitamento do contato com as classes populares, fatores que se alimentam um ao outro. No
entanto, em anos recentes, o turismo ofereceu uma via paradoxal e fortemente controvertida
em favor da valorização simbólica desses espaços. Em contraponto ao universo
estandardizado das zonas nobres, a favela surge, com as suas caraterísticas sui generis,
como uma manifestação paroxística de “autenticidade” que costuma exercer certa
fascinação nos visitantes vindos de outras regiões ou outros países. Afirmações como “os
verdadeiros cariocas vivem nos morros”, ou “a cultura do Rio vem da favela” são clichés
batidos, integrados de maneira funcional às narrativas exploradas pelos mais diversos
atores e com as mais diversas intenções. A extensão das fronteiras do turismo às favelas no
Rio de Janeiro já foi objeto de vários estudos (FREIRE-MEDEIROS, 2009; MORAES, 2017)
e costuma causar desconforto na opinião pública, por ser percebida como uma fetichização
da pobreza. Mas, como deve ser apreendida a questão da escolha — aparentemente muito
mais radical — de uma residência no próprio âmbito da favela por parte de pessoas
consideradas exógenas a esse sistema social? Como esses indivíduos que optam por viver
na favela (temporariamente ou em longo prazo) lidam com a apropriação do espaço e do
imaginário que carrega?

Focaremos sobre um tipo de morador de favela que deve ainda ser considerado
como nitidamente marginal e que chamaremos doravante de “neofavelado”, em oposição
aos moradores tradicionais. Segundo uma primeira definição mínima formulada durante o
trabalho etnográfico realizado no morro Pereira da Silva, os “inabituais” novos moradores da
favela carioca seriam indivíduos considerados como de classe média ou média alta, com
ensino superior completo ou em curso, e que efetuaram uma mobilidade residencial recente
até a favela (uma zona menos valorizada, econômica e simbolicamente, do que aquela da
qual provêm). Realizaram desse jeito uma mudança de territorialidade socialmente
considerada como “de alto para baixo”. Essa escolha chama a atenção, pois estamos
considerando indivíduos que, a priori, não têm um histórico residencial (pessoal ou familiar)
ligado à favela e poderiam, aparentemente, pagar o preço de uma vivenda em um bairro
formal. Em diversas zonas da cidade, é de fato possível observar um fluxo contínuo,
dinâmico e intenso de estudantes e jovens trabalhadores “de classe média” que se
estabelecem dentro de certas favelas. Essa modalidade de moradia lhes permite aproveitar
dos preços sensivelmente mais baixos dos alugueis, morando nas proximidades das
amenidades urbanas e driblando ao mesmo tempo as dificuldades burocráticas que se
apresentam na cidade formal na hora de alugar uma vivenda. As mídias e os discursos

3566 
 
 
 
 
 
habituais designaram os agentes não brasileiros como mais propícios a se encaixarem
nessa tipologia (GAFFNEY, 2013); o que pôde ser verificado de maneira empírica no
campo, onde a consequente presença de “gringos” é um fato facilmente observável e bem
conhecido dos moradores tradicionais. Porém, ficou evidente que a grande maioria desses
estrangeiros realiza apenas uma passagem transitória nesse território. Essa experiência é
geralmente vivida como positiva, pois existem nas favelas “um calor humano” e
sociabilidades mais intensas do que no resto da cidade, como manifestaram a maioria dos
informantes.

De fato, nas entrevistas conduzidas com neofavelados (estrangeiros ou não),


apareceu em muitos casos que essa escolha residencial não se devia exclusivamente à
racionalidade econômica (procura de alugueis ou bens imobiliários mais baratos), mas era
motivada pelo desejo de se integrar a uma dinâmica social percebida como diferente: mais
"humana" e "autêntica”. Essa constatação permitiu estabelecer que as escolhas residenciais
em questão eram orientadas por um sentido construído em relação a outrem, e
determinadas em função de um sistema de valor peculiar — podendo, destarte, ser objeto
de uma atenção sociológica.

O tipo ideal do neofavelado corresponde segundo as nossas observações a um perfil


de pessoa que prioriza modalidades de consumo não associadas à aquisição de bens
materiais, tais como viagens e saídas. No que diz respeito ao padrão residencial, os
neofavelados parecem ter aberto mão (pelo menos nessa fase das suas vidas) de códigos
de distinção próprios ao médio social do qual eles provém. No entanto, o acesso às
centralidades urbanas e suas amenidades (cultura, lazer, etc.) constitui uma prioridade.
Representativos de certa juventude urbana descolada, boêmia e de mente aberta, parecem
ter superado certos bloqueios que mantêm duravelmente afastadas das favelas a maioria
das pessoas que não vivem nelas. A relativa degradação das suas situações econômica por
causa do forte aquecimento do mercado imobiliário no Rio de Janeiro em anos recentes
limitou o acesso deles ao mercado residencial de qualidade superior. Porém, não parecem
viver essa situação como socialmente degradante e declaram, habitualmente, certa
satisfação de morar em uma favela, com um nível de conforto não forçosamente inferior ao
que conheceram em bairros formais.

Se um desejo de distinção decorrente do medo da degradação social constitui um


dos fatores que mantem as classes favorecidas brasileiras longe das favelas, poderíamos
contrapor a segurança relativa enquanto a um estatuto consolidado de classe média, que

3567 
 
 
 
 
 
constitui uma “norma” para certos indivíduos, em particular aqueles oriundos de países que
são (segundo os critérios ortodoxos) economicamente mais avançados6. O descompasso
que parece existir em relação às representações sobre a favela poderia, segundo essa linha
de análise, refletir o leque de gostos e valores socialmente produzidos por meios e
sociedades distintamente particularizados. Bourdieu (1979) vinculou de maneira assaz rígida
as inclinações por determinadas práticas culturais e de consumo à estratificação que
observou na sociedade francesa da segunda metade do século XX. Segundo ele, no jogo
relacional da distinção “o bom gosto é quase sempre o desgosto dos gostos dos outros”7 —
e, mais particularmente, dos gostos das classes populares, cuja cultura é considerada como
não-legitima. No entanto, trabalhos mais recentes tendem a oferecer novos desdobramentos
às suas conclusões. Notadamente, o sociólogo Bernard Lahire (2004) propõe a hipótese
segundo a qual, nas sociedades contemporâneas dos países de capitalismo avançado, os
gostos culturais e os estilos de vida seriam antes caracterizados por um pertencimento a
múltiplos círculos e subgrupos. Essa fragmentação identitária tenderia a implantar no
referencial do indivíduo sistemas de pensamento, de percepção e de disposição mais
complexos, qualificados por Lahire de “dissonâncias culturais”. Como parte da tensão que
existe na vontade de distinção social, existiria, por conseguinte, uma tendência a querer se
distinguir dos próprios critérios de distinção habituais dentre do grupo ao qual pertence
primariamente o agente. No âmbito desse sofisticado jogo social, as subculturas e os estilos
de vida populares deixariam assim de ser sistematicamente estigmatizados; ao contrario se
tornariam fonte de interesse e, às vezes, de cobiça. A qualidade do indivíduo distinguido
seria a partir desse momento revelada pela sua capacidade a transitar naturalmente no meio
de uma paisagem eclética, formada de práticas culturais e estilos de vida variados. Sem que
essa vadiagem ameaçasse um estatuto social consolidado, muitas vezes herdado das
gerações precedentes e protegido por um sistema de previdência ainda relativamente
eficaz.

Como o vimos antes, a elite carioca apresenta uma tendência a autossegregação


que se materializa pela preferência dada aos condomínios residenciais fechados. Nesses
espaços, as classes consideradas como inferiores circulam também, mas ficam relegados
                                                            
6
  Precisamos aclarar nessa etapa que as classes médias e médias baixas dos países considerados como “mais
avançados” no caminho de um desenvolvimento ortodoxo experimentam também de maneira tendencial a
ameaça da degradação social. Em particular, nos anos recentes, turbulências econômicas têm alimentado nas
sociedades ocidentais fortes tensões sociais, reflexos xenofóbicos violentos e acirrados conflitos políticos que
traduzem a profunda complexidade do “viver juntos” em sociedades multiculturais, colocando em questão a
representação de homogeneidade relativa que se tem habitualmente delas. No entanto, as entranhas dessas
sociedades não constituem o objeto do presente estudo e, portanto, não aprofundaremos o assunto. 
7
  Tradução livre a partir do original em francês “Le goût est presque toujours le dégoût du goût des autres”
(BOURDIEU, 1984, p. 215) 

3568 
 
 
 
 
 
ao exercício de papeis subalternos, como evidencia a presença de porteiros, zeladores e
diversos empregados maioritariamente de pele escura; fato que evidencia a persistência na
sociedade brasileira de estruturas herdadas da escravidão. A complacência da elite urbana
brasileira na manutenção de modos arcaicos de dominação social pode ser objeto de um
julgamento severo, já que revela estratégias de diferenciação social claramente afirmadas,
que podem ser identificadas como uma imperdoável “falta de bom gosto”. Com efeito, para
Bourdieu, a objetivação da intenção de distinção constitui uma manifestação do vulgar,
denunciando e evidenciando a insegurança de categorias recentemente elevadas a uma
condição social superior.

4. OS EFEITOS SOBRE O TERRITÓRIO: UMA GENTRIFICAÇÃO EM CURSO?

A vinda às favelas de indivíduos mais abastados a fins residenciais não vai sem
despertar a preocupação de certos atores locais e observadores externos, que veem nessa
aproximação uma ameaça à permanência dos mais frágeis em setores às vezes fortemente
valorizadas da cidade, colocando em xeque o direito à cidade dessas populações. Nesse
sentido, foi acionado nos últimos anos o conceito de gentrificação pela imprensa, alguns
pesquisadores e certa crítica política para tipificar as mutações observadas em algumas das
favelas mais "privilegiadas" do Rio de Janeiro; consagrando o morro do Vidigal como caso
exemplar. Comentou-se que os recém-chegados adquiriam casas, realizavam obras de
melhoramento e exploravam o lugar pelo aluguel de apartamentos ou propondo novos
serviços (bar, hotéis, galerias de arte, etc.), correspondendo desse jeito ao perfil típico de
“pioneiros” de um processo de gentrificação em curso. Essa dinâmica foi então regularmente
denunciada como aceleradora do processo de “remoção pelo mercado” denunciado por Neil
Smith (1996) como a principal arma da “cidade revanchista”. Segundo essa leitura, a
chegada de novos moradores mais abastados em um bairro pobre (via locação ou compra
de bens imobiliários) contribuiria ao aumento dos preços e, in fine, à expulsão mecânica dos
residentes mais frágeis até periferias longínquas. Por outra parte, a presença acrescida de
categorias socioculturais superiores no âmbito de um bairro popular ou tradicional
provocaria uma temível homogeneização dos modos de sociabilidade e de consumo,
destrutora das práticas e culturas preexistentes.

No campo, como já foi mencionado, é efetivamente possível observar fluxos


dinâmicos de visitantes e residentes de classe média (incluindo um número relativamente
importante de estrangeiros) que, às vezes, terminaram comprando bens imobiliários na
própria favela. Se a realidade dessa presença é palpável, a falta de dados quantitativos

3569 
 
 
 
 
 
fiáveis impede pelo momento medi-la de outra forma que através das apreciações e
percepções diferenciadas que cada um tem do fenômeno8. Além disso, pesquisas
acadêmicas recentes (CUMMINGS, 2013; BONAMICHI, 2016; RIBEIRO, T. F., 2017)
ressaltaram as dificuldades que existem em encaixar as evoluções das favelas cariocas
dentro de um marco conceitual projetado para estudar dinâmicas próprias dos países onde o
termo “gentrificação” foi cunhado (tipicamente, os países da Europa ocidental e os Estados
Unidos). Simples fatores objetivos e materiais, tais como a instabilidade da situação
securitária, a ausência de regularização fundiária e a existência de um estoque limitado e
dificilmente aumentável de imóveis podendo oferecer condições de conforto ótimas são
suficientes para conjecturar que as favelas continuarão duravelmente repulsivas pelas
classes mais abastadas, que podem (no estado atual das coisas) pagar o preço de uma
residência em outro lugar.

5. EXCLUSÃO DOS RECÉM-CHEGADOS POBRES

Durante a observação participante em Pereira da Silva, foi possível estabelecer que


a percepção dos moradores tradicionais sobre os turistas e neofavelados que visitavam ou
se instalavam na favela era, na maioria dos casos, globalmente positiva. “Dá valor ao morro”
e “a favela fica bem vista” eram reflexões comuns na hora de avaliar o impacto da presença
de novos habitantes, que todos identificavam espontaneamente como “gringos”.

No entanto, em paralelo dos fluxos de turistas e da instalação de neofavelados,


principalmente na parte alta do morro (a mais favorecida), certos habitantes tradicionais
costumavam se queixar da chegada de novos moradores pobres, que continuavam se
instalando na parte baixa da favela (a mais precária), a um ritmo considerado importante.
Sem que haja sido possível presenciar algum tipo de ato discriminatório, os recém-chegados
pobres eram geralmente alvos nos discursos de certa hostilidade por parte dos moradores
mais antigos. Nomeadamente, a parte da favela onde as famílias menos favorecidas se
amontoavam era pejorativamente chamada de “Complexo dos Paraíbas”, o que não deixa
de surpreender dado que, de fato, grande parte dos moradores do conjunto da favela
(inclusive os estabelecidos de longa data), eram igualmente oriundos da região nordestina.
Segundo as próprias palavras da presidenta da associação de moradores, entrevistada em
relação a esse tema:
                                                            
8
  Retomando a premissa geralmente admitida que esses “gentrificadores” seriam na sua esmagadora maioria
estrangeiros, perguntamos a responsáveis do IPP e do SMH se existia alguma variável de nacionalidade nos
diferentes censos levados a cabo nos aglomerados subnormais e nas comunidades urbanizadas cariocas,
obtendo uma resposta negativa por parte de ambas as instituições. 

3570 
 
 
 
 
 
Hoje em dia, nos ganhamos nordestinos demais, com quem não há
parceria. Eles não têm essa preocupação da união, sabe, é cada um por si.
Isso piorou muito, muito mesmo. As pessoas já vêm com costumes de
outros lugares, o problema é esse. Se não têm o costume, o hábito de
limpeza, de cuidado…

Esse “opróbrio da imundície” (ELIAS, 2000) ligado aos recém-chegados pobres era
recorrente nas falas dos moradores mais antigos. Em contraste, esses habitantes das partes
mais consolidadas da favela insistiam na faculdade que eles mesmos supostamente tinham
de organizar com regularidade mutirões de limpeza. O cuidado e a higiene eram
constantemente mobilizados (como que em resposta ao estigma injustamente vinculado às
favelas em geral) para o auto-enaltecimento do grupo dominante, tornando-se o elemento
central do seu carisma grupal.

Semelhantemente ao que descreveram Norbert Elias e John L. Scotson em “Os


Estabelecidos e os outsiders” (2000), os recém-chegados pobres da favela Pereira da Silva
podiam ser vistos como vítimas de um “racismo sem raça”. No estudo, realizado durante os
anos 1950 em uma pequena cidade do sul da Inglaterra, de nome fictício Winston Parva, os
científicos não constataram diferenças significativas de nacionalidade, ascendência étnica,
cor, renda, ocupação o nível educacional entre os residentes de duas das três zonas que
estudaram. No entanto, uma das zonas, constituída dos moradores mais antigos (os
estabelecidos) mantinha uma coesão baseada no seguimento “das normas comuns capazes
de induzir à euforia gratificante que acompanha a consciência de pertencer a um grupo de
valor superior, com o desprezo complementar por outros grupos” (Ibid., p.21). Ao contrário,
os recém-chegados (os outsiders) eram estigmatizados, nomeadamente através das fofocas
que circulavam e com as quais “o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo
outsider as caraterísticas ‘ruins’ de sua porção ‘pior’ — de sua minoria anômica”. Em
contraste, “a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor
exemplar, mais “nômico” ou normativo — na minoria de seus ‘melhores’ membros” (idem).

A configuração social do “Nós” e dos “Eles” constitui por conseguinte o alicerce sobre
o qual se desdobra a lógica da exclusão. Contudo, como vimo-lo, na favela Pereira da Silva,
nem todos os recém-chegados eram mal recebidos. Efetivamente, os moradores
“estabelecidos” não pareciam conceber os turistas e neofavelados como uma ameaça à
coesão da comunidade e aos seus valores. Posseiros das suas casas e pouco dispostos a
cedê-las, não pareciam tampouco temer a “remoção branca”, vaticinada pelos que agitam o

3571 
 
 
 
 
 
espectro da gentrificação nas favelas cariocas. Observadores incansáveis das suas vielas,
em constante comunicação uns com os outros através de múltiplos ritos de convivência,
interiorizaram provavelmente o caráter transitório da presença dos estrangeiros. Segundo as
nossas conclusões, turistas como neofavelados eram apreendidos como uma interessante
fonte de renda potencial, seja através do estímulo que provocam no comercio local, da mão
de obra à qual recorrem pela execução das mais diversas tarefas, ou ainda dos imóveis que
alugam ou compram. Além disso, a simples presença deles parecia ser percebida como
permitindo a “valorização” da favela, através principalmente da reabilitação da sua imagem.
O aspeto afetivo obviamente não podia ser deixado de lado, e a esse título os indivíduos
exógenos à realidade da favela costumavam ser apreciados em função das trocas culturais,
dos momentos festivos, das amizades ou ainda das experiências eróticas9 que podiam
proporcionar.

Em resumo, na Pereira da Silva, os “gringos” e neofavelados desempenhavam pelos


moradores mais antigos — os estabelecidos — um papel de recurso, de trunfo, que podia
ser mobilizado para obter um eventual avanço das suas posições no jogo social local. O
legado de capital econômico tanto como cultural que “os de fora” podiam deixar despertava
sem dúvida um interesse marcado por parte do conjunto dos moradores da favela, mas
apenas os mais favorecidos conseguiam habitualmente usufruir dos benefícios desses. Com
efeito, a presença de turistas e neofavelados era concentrada na parte melhor urbanizada
da favela, onde vivem também os moradores dos grupos dos “estabelecidos”.

6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora esteja em refluxo desde o final dos grandes eventos e por causa da
deterioração das condições de segurança (relacionada à profunda crise do modelo
conhecido como "pacificação"), a presença de neofavelados em certas favelas cariocas
parece ter deixado uma sedimentação importante. Mas, de qualquer forma, o aspecto
quantitativo do problema não deveria de ser considerado primordial. Um dos fatores que
motivou essa pesquisa foi justamente relevar o fato que a presença “estrangeira” em
determinadas favelas suscitava comentários (por parte da imprensa, dos intelectuais ou até
dos próprios moradores) fortemente desproporcional a sua importância real; confirmando
que era mais relevante tratar da questão através dos seus aspetos simbólicos.
                                                            
9
 A proposito desse último item, cabe mencionar que — em uma destacável inversão do paradigma colonial — a
acessibilidade sexual atribuída à mulher “gringa” era fonte de grandes expetativas por parte da população
masculina da favela, lugar onde os “casos” entre moradores são refreados pelo poder quase onisciente da
fofoca. 

3572 
 
 
 
 
 

As favelas próximas às centralidades no seio de uma cidade mundial como o Rio de


Janeiro são aqui consideradas um laboratório que permite vislumbrar fenômenos urbanos
emergentes. As politicas urbanas e as lógicas de mercantilização da cidade que atingiram a
capital fluminense como um todo, inclusive as suas favelas, podem contribuir a alisar
paulatinamente as asperezas que mantiveram determinadas zonas em uma situação de
quase confinamento; ocasionando uma intensificação das relações de interdependência
entre os diferentes grupos sociais que compõem a metrópole globalizada. Ao perceber o
emaranhamento do formal e do informal, identificando os vetores que atravessam esse
registro binário da cognição sobre a cidade brasileira, parece possível atingir uma melhor
compreensão de situações sócio-urbanas mais abrangentes.

No entanto, ao examinar o caso desses territórios informais — dotados de


caraterísticas arquitetônicas, urbanísticas, jurídicas e sociais sui generis — é preciso
redobrar de cautela na absorção da leitura internacional sobre o fenômeno de gentrificação.
Se, em pano de fundo, as questões do desenvolvimento (e sua contrapartida em um sistema
neoliberal: o subdesenvolvimento) aparecem bastante nitidamente nas recentes evoluções
que conheceram algumas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro; a expulsão a grande
escala dos mais pobres e sua substituição por indivíduos mais abastados não parece
constituir um risco iminente. Porém, os progressos urbanísticos e sociais observados em
determinadas localidades — ocupadas pelos moradores estabelecidos e (marginalmente)
pelos neofavelados — poderia ter como corolário o desenvolvimento acrescido de “sub-
favelas” nos mesmos assentamentos; com ofertas de alojamento locativo de muito baixa
qualidade a fim de responder às imperiosas necessidades dos trabalhadores pobres — os
outsiders. As conclusões provisórias da pesquisa apontam assim para um reforço das
dinâmicas de exclusão no próprio âmbito das favelas engajadas em um processo de
urbanização avançado e de integração progressiva à cidade formal, devido à existência de
configurações sociais que reproduzem, na escala micro, a estrutura socioespacial desigual e
excludente das grandes cidades capitalistas.

REFERÊNCIAS

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favelas no Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado) – IPPUR/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.
BOURDIEU, Pierre. Efeitos do Lugar. In: Bourdieu, P. (coord.) A Miséria do Mundo.
Petrópolis : Vozes, 1997.

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_____. La Distinction, critique sociale du jugement. Paris: Editions de Minuit, 1979.
_____. Questions de sociologie. Paris: Editions de Minuit, 1984.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em


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populacional com base no censo 2010. Coleção estudos cariocas. N° 20120501,
IPP/Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2012.
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VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela - Do mito de origem a favela.com.
Rio de Janeiro: edições Fundação Getúlio Vargas, 2005.

3574 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e transformações do urbano na América Latina.

A (RE) PRODUÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIOESPACIAL URBANA: O CASO DA


ZEIS ÁRVORES VERDES EM TERESINA-PI

Msc. Edmundo Ximenes Rodrigues Neto (UFPI)1


[email protected]
Dra. Antônia Jesuíta de Lima (UFPI)2
[email protected]
Dra. Bartira Araújo da Silva Viana (UFPI)3
[email protected]
RESUMO
O presente texto examina o caso da ZEIS Árvores Verdes em Teresina-PI no sentido de
compreender sua particularidade em termos de localização do ambiente construído para
atender famílias de baixa renda. Subsidiado pela literatura nacional e local sobre questão
urbana, dados oficiais e imagéticos, foi possível constatar a incorporação distorcida das
normas urbanísticas existentes no âmbito do arcabouço jurídico-político urbano
regulamentado pelo Estatuto da Cidade implicando na reprodução da desigualdade
socioespacial urbana.

Palavras-chave: Espaço urbano; Direito à cidade; Estatuto da Cidade; ZEIS; Desigualdade


socioespacial.

1. INTRODUÇÃO
A aprovação do Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01 (BRASIL,2001), que fixa
parâmetros para a aplicação do capítulo de política urbana da Constituição de 1988, se
constitui num suporte jurídico/institucional que assegura direitos urbanos, definindo
princípios e instrumentos que estipulam mecanismos de efetivação da função social da
cidade.
Entre os vários instrumentos urbanísticos presentes no Estatuto da Cidade,
destacam-se as Zonas Especiais de Interesse Social, que é um zoneamento dentro do qual
se admite aplicação de regras especiais de uso e ocupação do solo em assentamentos de
baixa renda, tendo como foco a efetividade do direito à moradia. A efetivação deste instituto
tem potencial de assegurar o acesso à terra legal e urbanizada, alterar padrões urbanísticos

                                                            
1 Mestre em políticas públicas pela UFPI, aluno de doutorado do mesmo programa. Professor de História da
UESPI.
2 Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de

Estudos em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí.


3 Doutora em Geografia e Meio Ambiente – TROPEN/UFPI. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.

Professora de Geografia da UFPI.


 

3575 
 
 
 
 
 
destinando habitação de interesse social em áreas valorizadas ou retidas para valorização
(BUENO, 2012).
A existência das ZEIS antecede a Constituição de 1988, como nos casos de Recife
e Belo Horizonte. Sua implementação estava vinculada, sobretudo a programas de
regularização fundiária. Tais experiências foram consideradas inovadoras por reconhecerem
assentamentos populares e informais como legais. Na década de 1990, munícipios paulistas
como Santos, Diadema e Santo André passaram também a fazer uso deste instrumento
(FERREIRA; MOTISUKE, 2012).
Com a promulgação do Estatuto da Cidade e a nova política urbana, construída a
partir da criação do Ministério das Cidades, Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003 (BRASIL,
2003), as ZEIS vêm sendo regulamentadas e incentivadas como um instrumento a ser
adotado pelos municípios brasileiros para cumprimento da função social da cidade e da
propriedade.
A Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa
Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas
urbanas, define ZEIS como “[...] parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou
definida por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia de população de
baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo”
(BRASIL, 2009).
Segundo documento do Ministério das Cidades (BRASIL, 2009), que orienta a
implantação desse instrumento nos municípios, existem as ZEIS de áreas ocupadas por
assentamentos precários destinados a ação de regularização fundiária e urbanística e as
ZEIS de áreas vazias ou subutilizadas com destinação predominante para a produção de
Habitação de Interesse Social. A implantação de ZEIS em áreas vazias próximas de áreas
mais centralizadas com infraestrutura se constituíra como umas das ações mais
consistentes no direito à cidade, pois significaria enfrentar a especulação fundiária para fins
sociais.
Avaliação sobre a implantação de Plano Diretor (PD) no país (SANTOS JUNIOR;
MANTANDOR, 2011), aponta para a evolução na incorporação das ZEIS nos PDs
municipais, que passaram de 403, em 2005, para 991, em 2009, evidenciando, assim, um
incremento de 145%. Apesar de a ZEIS ter sido o instrumento mais presente nos planos, em
relação aos demais dispositivos associados à questão urbana (81%), menos da metade não
definiu a sua localização espacial. Nos casos de delimitação das áreas, constatou-se que,
na maioria dos PDs, tratava-se de regulamentação de assentamentos precários já
consolidados, enquanto poucos delimitaram ZEIS vazias, destacando-se, entre elas, cinco
cidades em SP, duas no RN, uma no RJ e uma PI.

3576 
 
 
 
 
 
Segundo Ferreira e Motisuke (2012), a delimitação de ZEIS em áreas vazias tem o
potencial de garantir um estoque de terras para provisão habitacional e uma contenção dos
valores fundiários. Entretanto, é pouco utilizada devido a pressões de setores do mercado
imobiliário ou de proprietários para que não sejam demarcadas.
Entre 2007 e 2012, em Teresina, capital do estado do PI, foram criadas seis ZEIS,
destas, quatro ocupações consolidadas: Parque Brasil, Copagre e Embrapa, na zona norte,
e Jerusalém, na zona sul; duas foram criadas como ZEIS vazias para produção de
habitação de interesse social ZEIS Nova Brasília, na zona norte, e ZEIS Árvores Verdes, na
zona leste; essa última chamou a atenção porque foi implantada numa pequena faixa de
terra no limite do perímetro urbano, na fronteira com a zona rural, abrigando 717 famílias.
Com efeito, o presente artigo examina o caso da ZEIS Árvores Verdes no sentido
de compreender sua particularidade em termos de localização do ambiente construído para
atender famílias de baixa renda, inclusive como constrangedora de normas urbanísticas
existentes no âmbito do arcabouço jurídico-político urbano regulamentado pelo Estatuto da
Cidade (BRASIL, 2001).

2. ABORDAGENS SOBRE A DESIGUALDADE SOCIOESPACIAL URBANA NAS CIDADES


BRASILEIRAS
O processo de urbanização experimentado pelas cidades brasileiras, sobretudo a
partir de 1950, com intenso e desordenado crescimento, contribuiu para que a organização
espacial refletisse a produção capitalista do espaço: um ambiente social, desigualmente
apropriado e construído. Como produto mais problemático deste processo, Maricato (2003)
destaca a cidade ilegal representada pela contínua expansão dos assentamentos precários
e informais a exemplo de loteamentos irregulares ou clandestinos, cortiços, favelas e
habitações subnormais.
Estudos como de Rolnik (1997), Maricato (2002) e Villaça (2012) evidenciam que a
ilegalidade persistente em grande parte do espaço citadino e os problemas urbanos não
devem ser imputados simplesmente pela ausência de legislações ou planejamentos
urbanos, mas compreendida no âmbito das relações de desigualdade sociais, políticas e
econômicas vigentes no Brasil. Na verdade, a aparente ineficiência e desuso das normas
urbanas, se revelam como instrumento político, ideológico e econômico, eficaz para
manutenção de uma ordem social desigual no espaço citadino expresso pela coexistência
do espaço legal e ilegal.
Rolnik (1997), chama atenção que não se deve entender o “ilegal” apenas
associado aos cortiços e favelas, pois dentro das formas e práticas ditas legais, encontram-

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se grandes desiquilíbrios urbanos, a própria ambiguidade da legislação ou sua forma de
aplicação, consente e promove o “ilegal”, reproduzindo a desigualdade social vigente.
Para Maricato (2003) a legalidade e a ilegalidade urbana não se constituem em um
universo paralelo, mas mediante uma realidade complexa expressa na ambiguidade e no
ato discricionário entre o legal e o ilegal, atravessando a sociedade e conquistando posição
de destaque nas instituições públicas. O uso da legislação é legitimadora tanto da ação de
enfrentamento da questão social como de sua reprodução, sobretudo quando adota a
posição legal como justificadora da omissão.
Marques (2005), mesmo reconhecendo que o Estado, com seu arcabouço político-
técnico-jurídico, muitas vezes mediado por práticas políticas patrimonialistas, tende a aplicar
desigualmente a lei contra os pobres e dificilmente contra os ricos, produzindo e
reproduzindo as desigualdades no espaço urbano, adverte também para as análises sobre a
questão urbana no Brasil verificarem a possibilidade do inverso.
Nesse sentido, para uma aproximação mais real da realidade urbana, é
fundamental identificar tensões, continuidades e mudanças nos padrões de intervenção,
estatal ou privada, no espaço citadino que formam, conformam e deformam uma dada
periferia a qual pode produzir nova centralidade e novos padrões de segregação
socioespacial. A esse processo, Levebre (2006), entende como fenômeno urbano
associando-o a uma dinâmica explosiva-implosiva do espaço concentrado, projetando
fragmentos múltiplos e disjuntos que produzem, por exemplo, tais periferias. Assim como o
espaço é policêntrico e transformado, a periferia, como forma estilhaçada dele, é também
re-configurada, podendo ela mesma tornar-se uma nova centralidade.
Estudos recentes evidenciam tanto a dinâmica de espaços, até então considerados
periféricos, que conquistaram status de centros, num processo de reabilitação urbana e
apropriação capitalista do espaço (valorização imobiliária), que desapropria e exclui seus
moradores dos benefícios do progresso globalizado (FIX, 2001), como a diversidade de
situações (favelas, loteamentos clandestinos ou irregulares, cortiços e conjuntos
habitacionais), marcadas por intensa heterogeneidade interna, resultante de distintas
intervenções e investimentos estatais (MARQUES, 2005).
Assim, a periferia, antes concebida como lugar homogêneo, os “aglomerados
distantes dos centros e carentes de infraestrutura” (KOWARICK, 1983, p.3), pode possuir
características diferentes dentro do mesmo território da cidade. Com efeito, a análise da
periferia urbana, pode revelar gradações e hierarquias entre assentamentos de baixa renda
verificados pelo grau de cobertura ou não de infraestrutura e serviços executados pelo
Estado, pelo grau de qualidade dos serviços onde esta cobertura foi ofertada, pelo perfil de

3578 
 
 
 
 
 
renda, pela proximidade de centralidades, entre outras variáveis (BONDUKI; ROLNIK, 1982;
MARQUES; TORRES, 2005).
Ademais, a produção e adensamento de assentamentos precários, ilegais e
irregulares, uns distantes, outros até justapostos com a produção de residenciais de médio e
alto padrão, mas apartados pelos muros dos condomínios ou residenciais de luxo são
expressões acentuadas desta lógica desigual da sociedade contemporânea. Tal fenômeno
representado pela disseminação em grandes centros urbanos de verdadeiros enclaves
fortificados enseja um novo padrão de segregação socioespacial, pois impõem regras de
admissão e exclusão implicando em fragmentação da circulação e do uso de espaços
públicos (CALDEIRA, 1997, LAGO 2002).
Nesta perspectiva, o entendimento da segregação socioespacial de forma
multidimensional deve levar em consideração tanto as problemáticas relativas aos
processos de produção do ambiente construído como a espacialização das desigualdades
de acesso às oportunidades e aos serviços sociais (MARQUES; TORRES, 2005). Seu
padrão se constitui não apenas como ato de separação física e/ou distanciamento
geográfico entre ricos e pobres refletidos numa relação dualista (centro e periferia), mas se
reflete na dinâmica desse processo, inclusive, nas similaridades e dissimilaridades entre
assentamentos de baixa renda, compreendendo as causas e formas diversas de (re)
produção desse fenômeno.
Com efeito, a dinâmica urbana e a respectiva configuração de novas áreas
periféricas nas médias e grandes cidades, Teresina-PI, não foge dessa realidade, continua
sendo lócus fundamental para compreensão da segregação socioespacial. Ademais, as
expectativas trazidas pela redemocratização consubstanciadas pela Constituição de 1988 e
o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), que preconizam a democratização da gestão pública
e a função social da cidade, retoma a centralidade do planejamento citadino e a participação
da população como instrumentos fundamentais para construção de urbes mais justas e
sustentáveis. Entretanto, entre o formal e o real, o legal e o ilegal, se constituem impasses,
tensões e ambiguidades exigindo análises de experiências de implantação de instrumentos
jurídico, políticos e fundiários previstos no Estatuto (BRASIL, 2001) no sentido de verificar o
enfrentamento ou a reprodução das desigualdades socioespaciais.

2. DINÂMICA URBANA E SUAS EXPRESSÕES SOCIOESPACIAIS EM TERESINA-PI


A partir da década de 1950, Teresina experimenta um intenso fluxo migratório e a
expansão da infraestrutura urbana básica as quais promoveram uma série de alterações,
constituindo uma nova dinâmica de crescimento populacional, acelerando sua expansão
físico-espacial. Conforme dados do IBGE (1950, 2010), a população passou de 90.723

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habitantes, em 1950, para 814.230 habitantes, em 2010, elevando, assim, o total da
população urbana de 56,7%, em 1950, para 94,3%, no ano 2010.
Não obstante o elevado grau de urbanização ocorrido nestes cinquenta anos,
seguindo uma tendência observada nas grandes e médias cidades, a partir da década de
1990, Teresina vem passando por alterações em seu regime de crescimento demográfico.
Análise dos dados censitários entre 1960 e 2010, atestam que ao contrário do ritmo de
crescimento elevado experimentado pela cidade nas décadas de 1960-1970 (4,5% ao ano),
de 1970-1980 (5,5% ao ano), de 1980-1991 (4,3% ao ano), entre 1991-2000 essa taxa cai
para 1,90% ao ano, desacelerando, entre 2000-2010 para, 1,30% ao ano. Tal diminuição
reflete, tanto o declínio da fecundidade, como a queda dos fortes fluxos migratórios de
populações provenientes do meio rural e de outras cidades que marcaram a cidade,
sobretudo, nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
A despeito da redução do ritmo de seu crescimento demográfico, a cidade continua
expandindo sua malha urbana, em todas as direções, preservando um processo inaugurado
no final da década de 1960, com a implantação de grandes conjuntos habitacionais nas
franjas da cidade, impulsionada, dentre vários fatores, pela produção de infraestrutura de
sistemas de circulação (LIMA, 2010).
Como desdobramento deste processo de expansão da malha urbana associado
com especulação fundiária, crescimentos das ocupações urbanas (assentamentos
precários), inconsistência do planejamento e ação governamental no espaço citadino, as
regiões norte, sul, sudeste e leste vai aumentando sua população residente, se dispersando
no tecido urbano e se instalando, sobretudo nas franjas da cidade, enquanto o centro, que
até 1991 era a região mais populosa (IBGE, 1991), tem um significativo decréscimo no
número de habitantes, tornando-se em 2010 (IBGE, 2010) a zona com menos residentes.
Em Teresina, ao contrário do praticado nas capitais do sul e sudeste, os
investimentos na industrialização foram inexpressivos, razão pela qual foram os
investimentos públicos em infraestrutura e em equipamentos urbanos e o crescimento do
setor de serviços, que fizeram da cidade uma grande receptora de populações vindas do
meio rural e de pequenos municípios do Piauí e de Estados vizinhos4. Nessa dinâmica, as
formas de apropriação do espaço urbano ganham uma maior complexidade, ensejando a
emergência de diversos atores e processos sociais, que tornaram mais visível a construção
de um território desigual, social e espacialmente.

                                                            
4Pesquisa de Lima (2003) evidencia que essas populações migrantes, mais do que atraídas, foram, na verdade,
expulsas do campo, pela exploração do processo de trabalho e pela ausência de acesso à terra, a equipamentos
sociais e serviços públicos.

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Considerando que, como visto, durante as décadas de 1990 e 2000, há uma queda
no ritmo de crescimento demográfico da cidade, pode-se concluir que a expansão urbana de
áreas então consideradas limítrofes e rurais, nesse período, é resultante do processo de
migração intra-urbana, provocado tanto pela impossibilidade de os setores de baixa renda
se manterem em áreas centrais ou em áreas já urbanizadas, quanto pela ação dos
diferentes atores que produzem a cidade – movimentos sociais, Estado, proprietários
fundiários e promotores imobiliários.
Vale observar que, a partir da década de 1990, cresceram os assentamentos
precários, que se antes apareciam de forma pulverizada, em todas as regiões da cidade,
inclusive nas mais centrais, estes foram se adensando nas franjas da cidade, pelo processo
de remoção de pequenos núcleos localizados ao longo da malha. A ocupação de áreas de
expansão da zona norte, sul e leste evidencia estratégia da prefeitura de suscitar o
esvaziamento de assentamentos precários, que até então resistiam em áreas centrais com
infraestrutura urbana, removendo-os para áreas mais periféricas, produzindo
reassentamentos oficiais de baixa renda (LIMA, 2010).
Outra iniciativa que promove a expansão e o adensamento populacional em áreas
limítrofes do perímetro urbano é a construção de novos conjuntos habitacionais, entre 2008
e 2012, oriundos de recursos do Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC)5 e do
Programa Minha Casa Minha Vida6, lembrando em parte, como visto em estudos de Lima
(2010), a estratégia de enfrentamento da favelização, promovida pelo governo estadual e
municipal, durante as décadas de 1970 e 1980, os quais impuseram certos padrões de
segregação socioespacial a um contingente cada vez mais numeroso de famílias sem
moradia.
Já os movimentos sociais de luta por moradia, participa desse processo de
reconfiguração da periferia da cidade, interferindo no tecido urbano a partir de inúmeras
ocupações coletivas que se realizam em todas as regiões da cidade, especialmente, nos
interstícios das construções dos novos conjuntos habitacionais7 e nos próprios loteamentos,
localizados longe do perímetro urbano. O avanço das ocupações urbanas, como um dos
expedientes usados como alternativas de solução e defesa do direito à habitação podem ser
constatadas em dados da Prefeitura Municipal de Teresina, ao apresentar uma elevação

                                                            
5 Residencial Jacinta Andrade, que envolveu recursos da ordem de R$ 147 milhões oriundos do Pró-Moradia,
para a construção de 4.300 unidades para famílias de baixa renda, maioria que viviam em condições precárias,
em áreas irregulares, de alto risco ambiental e sujeitas ao alagamento (BRASIL, 2011).
6 Conjunto Habitacional Jornalista Paulo de Tarso Moraes, Vila Nova e Inglaterra, que somados possuem 1.100

unidades habitacionais instalados no bairro Aroeiras (BRASIL 2013).


7 É o caso da Vila Dilma Rossuef, ocupação realizada em área privada, possui cerca de três anos, portanto,

considerada não consolidada (PMT, 2012), conquistou visibilidade nacional, tanto pelo fato do assentamento ter
o nome da presidenta, como de ter sido instalado ao lado do conjunto Jacinta Andrade.

3581 
 
 
 
 
 
dos assentamentos de baixa renda de 150, em 1999, para 251, em 2012. (TERESINA,
2012).8
Além disso, outra fonte de adensamento populacional é causada pela especulação
imobiliária advindo do processo de investimento e urbanização de determinadas regiões
norte, sul, leste e sudeste, que abrigam bairros que conquistaram status de zonas
comerciais ao longo da década de 1990, que passam a ser objeto de empreendimentos
públicos e privados voltados às classes médias e alta. Como em outras cidades do país,
Teresina experimenta a produção de empreendimentos horizontais de alto padrão na
periferia, como Aldebaran Ville9, na periferia, da zona leste, e Alphaville Teresina, na
periferia da zona sudeste10, intensificando assim, conforme enuncia Corrêa (2013), um
processo de autosegregação, no espaço urbano, dos grupos de alto status. Os bairros mais
pobres da cidade estão localizados na periferia das zonas norte, sul e leste, e conforme
dados intercensitários foram os que mais cresceram demograficamente (BUENO, 2015).
Desse modo, a expansão do perímetro urbano de Teresina com o grande aumento
populacional de bairros limítrofes, gesta novas periferias e os habitantes desta passaram a
vivenciar uma série de dificuldades no que tange às condições de sobrevivência e
habitabilidade, uma vez que eles se instalaram ou foram instalados em áreas com
características fortemente rurais, distantes do centro da cidade e com precária infraestrutura
urbana e de serviços, como é o caso dos que vivem no residencial Árvores Verdes.

3. ZEIS ÁRVORES VERDES: distorção oficial urbana e segregação socioespacial


Não é por ausência de planos e leis que Teresina-PI continuou se expandindo de
forma desordenada e segregada expressas pelo crescimento vertiginoso de assentamentos
precários. Em 1988, frente as mudanças ocorridas com a descentralização administrativa,
as inovações trazidas pela nova Constituição, o governo local elabora e publica seu II Plano
Estrutural (TERESINA, 1988) que renovava a intenção de ordenação do solo urbano. Entre
suas diretrizes está o reconhecimento das múltiplas formas de apropriação do solo urbano,
dentre elas, a definição de padrões diferenciados para acesso à terra urbanizada a
população de baixa renda, de instrumentos que contemplavam projeto de reforma urbana
defendido pela sociedade civil, sobretudo os movimentos sociais de luta pela moradia.
Apesar dos compromissos formais assumidos, o diagnóstico produzido pelo
governo local para elaboração do Plano Diretor, em 2002, denominado de Agenda 2015,
                                                            
8 A imprecisão e ausência de dados mais atualizados e sistematizados pela Prefeitura de Teresina sobre as
ocupações urbanas reflete o que Maricato (2002) discute quando destaca que a cidade ilegal é desconhecida
pelo poder público, sendo tal omissão funcional para as relações políticas arcaicas, para um mercado imobiliário
restrito e especulativo, para a aplicação arbitrária da lei, de acordo com a relação de favor.
9 Localização disponível em < http://www.aldebaranville.com.br/> acesso em: 10.15.2015
10Localização disponível em < http://www.alphaville.com.br/empreendimento/alphavilleteresina> acesso em:

10.15.2015.

3582 
 
 
 
 
 
constatou que a cidade continuo crescendo de forma desigual e fragmentada, destacando,
como os principais problemas relativos à apropriação do solo urbano a: ilegalidade e
irregularidade urbana das ocupações, reduzida ação pública contra a especulação, controle
urbanístico ineficaz, extensão excessiva do perímetro da cidade encarecendo custos
públicos e dificultando o acesso de parcela da população aos benefícios da cidade
(TERESINA, 2002).
Com efeito, o PD de 2002 (TERESINA, 2002) define como estratégia uma melhor
gestão e estruturação do espaço citadino estipulando como metas a atualização de
legislação urbana com o objetivo de adequá-las as diretrizes do Estatuto da Cidade
(BRASIL, 2001), sobretudo, quanto a delimitação de áreas adequadas para promoção de
habitação de interesse social servindo-se dos vazios urbanos existentes em áreas com
infraestrutura.
Apesar do compromisso formal do PD de 2002, o conjunto de leis complementares
referida acima, só foi formulada e aprovada após a restituição legal do PD, em 2006
(TERESINA, 2006), que fixou diretrizes norteadoras para o desenvolvimento do espaço
urbano do município. Tal PD de Teresina não trata de ZEIS, entretanto, esse instrumento foi
contemplado em lei complementar, especificamente na que trata das diretrizes do uso do
solo urbano (TERESINA, 2006a). Após a aprovação da legislação complementar, foram
criadas seis ZEIS: quatro na zona norte (Parque Brasil, Nova Brasília, Copagre e Embrapa),
uma na zona sul (Jerusalém) e outra na zona leste (Árvores Verdes).
A ZEIS Árvores Verdes foi definida pela Lei nº 3.790, de 18 de julho de 2008, a
época localizada no bairro Verde Lar11, zona leste. Sua delimitação exigiu a ampliação do
perímetro urbano através da Lei nº 389, de 18 de julho de 2008. Como se pode evidenciar
no próprio texto da referida lei, tal a ampliação e a respectiva delimitação da ZEIS se
justificou exclusivamente pela implantação de um loteamento de baixa renda.

Art. 1º Esta lei altera o perímetro da zona urbana de Teresina, na região de


Árvores Verdes tendo em vista a criação de zona especial de interessocial e
a implantação de loteamento para a população de baixa renda, financiado
com recursos do Orçamento Geral da União e do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. (TERESINA, 2008).

Análise da Planta da área acrescida à zona urbana de Teresina (TERESINA, 2008)


evidencia no seu entorno, a vila Santa Bárbara (assentamento precário), bairro Verde Lar, e
áreas privadas, entre as quais, destaca-se área vazia, a época pertencente à imobiliária
Jurema. Nesse sentido, além da prefeitura ter usado do expediente legal de transformar
terras rurais em urbanas onde não existia cidade, com vistas a realizar um investimento de

                                                            
11O bairro Árvores Verdes foi criado por meio da Lei nº 4.423, de 16 de julho de 2013, e revoga a Lei
Complementar nº 3.789, de 18 de julho de 2008.

3583 
 
 
 
 
 
baixo custo para atender famílias de baixa renda, evitou conflito com proprietários fundiários
e operadores imobiliários ao não abranger suas terras como área de interesse social, ao
contrário, valorizo-as, tanto pela proximidade do perímetro urbano, como pelos
investimentos públicos exigidos para atender a população instalada.
As imagens de satélite revelam as transformações que ocorreram no ambiente
construído, entre 2007 e 2013, na área onde foi instalada a ZEIS, evidenciando a
incorporação das terras no entorno pelo mercado imobiliário. Em 2007, tal área onde seria
implantada a ZEIS e, parte considerável do seu entorno era formada por áreas verdes
vazias (Figura 1, p.11), com exceção da área ocupada referente a Vila Santa Bárbara e o
Baixão dos Solteiros.
Após 4 anos da delimitação da ZEIS Árvores Verdes, em 2013, a imagem (Figura 1,
p.11) já define o Residencial Árvores Verdes, logo no seu entorno, fora do perímetro urbano,
conjunto construído pela RG Construtora, financiado pela Caixa Econômica Federal via
PMCMV, para famílias de 3 a 6 salários mínimos, denominado de Jardins do Leste. A área
verde da imobiliária Jurema foi incorporada pelo empreendimento Terras Alphaville. Seus
lotes definidos como de alto padrão estão à venda e se estendem da BR 343, porta de
entrada do condomínio, até os limites com o Residencial Árvores Verdes.

FIGURA 1: Imagens de satélite de 2007 de área onde seria delimitado a ZEIS Árvores Verdes e de 2013
após a delimitação e instalação do residencial ÁrvoresVerdes.

Imagem 2013
___ Residencial Árvores Verdes
___ Jardins do Leste
Imagem 2007 ___ Terras Alphaville
____ ZEIS vazia

Fonte: Google Earth (2015).

Tal procedimento de instalação se contrapõe às próprias diretrizes previstas no PD


(2006), dentre elas, o artigo 15º que trata do uso e ocupação do solo e aponta como ações,
dentre várias: a implementação de instrumentos legais que evitem a expansão
descontrolada da zona urbana, visando atingir taxa média de densidade urbana acima de

3584 
 
 
 
 
 
100 hab./ha; o incentivo ao aumento da densidade habitacional, nas áreas laterais aos
grandes eixos de transporte coletivo; a prioridade de ocupar os vazios urbanos pelos
programas habitacionais.
Quanto à função de provisão habitacional, na ZEIS Árvores Verdes foi construído,
com recursos do BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, do
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC/OGU e de contrapartida da Prefeitura de
Teresina, o Residencial Árvores Verdes. Tal conjunto de 717 unidades habitacionais foi
destinado a pessoas que viviam em leito de ruas ou áreas de risco na zona leste da cidade
(Pedra Mole, Morros, Cidade Jardim, Novo Uruguai, Porto do Centro, Satélite, São João,
Planalto, Ininga, Recanto das Palmeiras, Vale quem Tem, Verde Lar e Piçarreira).
A despeito do discurso governamental tornar público que a localização do
Residencial estava próxima do local onde as famílias removidas moravam (Portal 180 graus,
2009), análise dos cadastros das famílias removidas, revela o inverso. Destarte, famílias que
se instalavam mesmo que precariamente em áreas mais centrais ou próximas do centro, a
exemplo do bairro São João, foram reassentadas em uma área mais periférica.
Tal processo de reassentamento só foi possível com a exclusão da participação das
famílias no processo de demarcação ou escolha do referido local. Segundo pesquisa de
Lopes (2015), mesmo existindo a demanda de famílias da zona leste por moradia a bastante
tempo, o contato da prefeitura com as famílias só ocorreu em 2009, depois de escolhido o
terreno.
Essa prática, ao tempo que contraria o próprio PD (2006), que no seu artigo 18º
trata de diretrizes relativas a habitação preconiza a participação da população nos
processos decisórios de planejamento e implantação de programas habitacionais populares,
não contempla princípios do Estatuto da Cidade, que preconizam a democratização do
processo de aquisição e uso do espaço urbano, contribuindo para a reprodução de uma
dinâmica de apropriação/exclusão do espaço urbano mediante uma migração intraurbana
dos pobres para os extremos da cidade descaracterizando um instrumento legal, que na
sua concepção deveria induzir “o acesso a promoção da democratização do acesso à terra
urbanizada, bem localizada e próxima dos centros de emprego e serviço” (OLIVEIRA &
BIASSOTO, 2011, p.75). A escassez de serviços e equipamentos públicos no local,
obrigando as famílias de baixa renda a se deslocarem para bairros vizinhos, evidencia esse
caráter desigual e regressivo adotado pela administração local através do uso distorcido
desse instrumento na realidade de Teresina.

3585 
 
 
 
 
 
Ademais, a venda de imóveis pelos moradores “beneficiados” pela remoção, como
constatado inclusive em portais de venda de imóveis12 e em noticiários13, revelam que a não
alteração no padrão socioeconômico das famílias ou as dificuldades de se manter no local,
especialmente depois da valorização da área, implicam no círculo perverso onde a moradia
é descartada como valor de troca, migrando para outros locais mais precários, inclusive
retornando para as áreas de origem de onde foram removidos.
Se como diz Eduardo Marques (2005, p.50), uma das estratégias estatal de
enfrentamento da segregação social e de promoção de equidade está baseada na mistura
social, “forçando pobres e ricos a viver e interagir mais intensamente”, o que se constata é
que não foi apenas a distância geográfica imposta pela prefeitura que afastou os moradores
da ZEIS Árvores Verdes do direito a cidade, mas a própria omissão e condescendência
oficial com a separação física de grupos promotores da auto-segregação, prática visível nos
muros construídos entre o Residencial Árvores Verdes (baixa renda), o Residencial Jardins
do Leste (média renda) e as Terras Alphaville (alta renda), inclusive, implicando ilegalmente
em obstrução de vias.
Com efeito, o isolamento dos pobres representado, dentre vários aspectos, pela
distância e as dificuldades de mobilidade associada com o processo de auto-segregação
dos segmentos sociais de maior renda, é ao mesmo tempo produto reiterado e emblemático
de uma desigualdade que, ao invés de ser enfrentada, se reproduz.

4. CONSIDERAÇÃO FINAL
No contexto de construção de uma nova ordem urbanística, fundada no princípio da
função social da propriedade, as ZEIS se consolidaram como um tipo especial de
zoneamento, cujo principal objetivo é a inclusão da população de menor renda no direito à
cidade e à terra urbana servida de equipamentos e infraestrutura.
Entretanto, o caso ZEIS Árvores Verdes analisado, evidencia o uso arbitrário e
distorcido deste instrumento do tipo ZEIS vazia em Teresina, não se efetivando como
política urbana democratizadora do espaço urbano. Além de não ter induzido processos de
mobilidade espacial contrário aos padrões de segregação, instalou a população pobre em
áreas distantes de regiões mais centrais dotadas de serviços e oportunidade de empregos,
não promovendo a mistura de classes. A aplicação governamental de um instrumento
considerado redistributivo e distributivo, como a ZEIS vazia, se deu no caso do Árvores
                                                            
12
  Vende-se casa no Residencial Arvores verdes. Valor R$ 40.000, não aceitamos financiamentos. OXL.
Disponível em: < http://teresina.olx.com.br/residencial-arvores-verdes-40-000-iid-659806867> acesso em:
10.15.2015.
13 SDU investiga venda de casas no Árvores Verdes, zona Leste. CIDADE VERDE. Disponível em:

<http://cidadeverde.com/sdu-investiga-venda-de-casas-no-arvores-verdes-zona-leste-76209> acesso em:


10.15.2015.

3586 
 
 
 
 
 
Verdes, em Teresina, de forma postiça e tradicional, implicando na separação funcional e
induzindo o aumento da segregação dos pobres e reforçando a auto-segregação dos ricos.

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3589 
 
 
 
 
 

GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina.

A ESPETACULARIDADE DO BOI CUIRÃO: UM ESTUDO SOBRE


SINGULARIDADE E VÍNCULOS IDENTITÁRIOS NO DISTRITO INDUSTRIAL DE
ANANINDEUA/PARÁ-BRASIL.

Ytallo Kassio Franco de Souza (UFPA)1


[email protected]

RESUMO
O presente trabalho aborda questões sobre espetacularidade, singularidade e vínculos
identitários a partir da festividade do Boi “Cuirão” que ocorre no Bairro do Distrito Industrial,
Ananinideua, Pará, Brasil. Nesta perspectiva, a festividade introduz sistemas sociais de
valores específicos, trata-se de uma comunicação de vínculos identitários responsáveis pela
formação da manifestação comunitária. A prática espetacular projeta de modo performático
os valores, os laços sociais e as práticas relacionais dos moradores do bairro, no qual a
diferença cultural dispõe sobre um cenário de articulação e disposição nos espações de
identificação cultural. Designadas nas formas de contradição e antagonismo social do
espaço urbano, a manifestação cria estados de consciência que resultam em estratégias
políticas responsáveis pela produção de espaços de significação subalterna.

Palavras-chave: Espetacularidade, Singularidade, Vínculos Identitários.

1. INTRODUÇÃO

A festividade do “Boi Cuirão, o encantado de Mocajatuba” é uma manifestação


popular que ocorre no bairro do Distrito Industrial, Ananindeua-PA. Realizada anualmente
nos meses de Junho e/ou Julho é organizada por uma comissão de moradores locais que
através de parceiros e colaboradores acontece desde a década de 1990.
Mocajatuba era antigo nome o bairro do Distrito Industrial, com o passar dos anos e
o processo de urbanização muitas das histórias e da trajetória dos antigos moradores se
perderam. Com intuito de narra suas trajetórias, reafirmar suas identidades e transmitir seu

                                                            
1 Estudante de pós-graduação, mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia-
PPGSA, UFPA, licenciado/bacharel em Ciências Sociais, pela Universidade da Amazônia, Professor de
Sociologia no Centro Educacional de Benevides.

3591 
 
 
 
 
 
saber às gerações mais novas a comunidade articulou-se para criar a manifestação artística
do “Boi Cuirão”.
A festividade envolve a comunidade como um todo no período em que é realizada,
por meio das músicas e danças são contadas as lendas, encantados e trajetória mítica do
“boi que na margem do Rio Mocajatuba perseguia os meninos cuirão (travessos)"2.
Todos são convidados a cantar, dançar e pular com o boi que já não persegue as
crianças desobedientes, mas é responsável pelo fortalecimento das identidades locais, os
corpos que vivem o ritual são o espetáculo que contribui para criação do sentimento de
pertencimento.
O “Boi Cuirão” é responsável pela introdução de sistemas sociais de valores
específicos, trata-se de uma comunicação de reconhecimento identitário. O espetacular cria
uma linguagem significativa que expressa um discurso unificador entre os indivíduos e sua
comunidade, forma subjetiva que emerge de uma posição de marginalidade, no qual sua
identificação é reivindicada a partir de sua relação com espetacular. Ao reencarnar no
passado introduz temporalidades culturais incomensuráveis na tradição, que se reinscreve
através de condições de contrariedade como uma forma de identificação, um resgate a
historicidade através de um processo cultural que reafirma o seu saber frente a realidade do
mundo moderno.

2. A ESPETACULARIDADE DO BOI CUIRÃO E OS VÍNCULOS IDENTITÁRIOS

O bairro do Distrito Industrial no período da festividade, é o domínio das


experiências intersubjetivas e coletivas de interesse da comunidade. O “entre-lugar” que
expressa estratégias da representação de identificação, de histórias comuns e distintas que
partem do espaço político de sua enunciação, no qual o espetacular introduz
individualidades que se contrapõe aos significados homogêneos. Trata-se do local da
articulação da heterogeneidade que é representada através da performance, de sua
individualidade que emerge nos limites do descentramento imposto pelo processo global e
fragmentário.
Neste sentido de acordo com Bhabha (1998), o “passado-presente” torna-se parte
da necessidade, a arte não apenas retoma ao passado como precedente cultural ou causa

                                                            
2 Fala extraída de conversa informal com o Sr. Paulo Ronaldo, jornalista e morador do Bairro do Distrito
Industrial, Ananindeua-PA em: 11/05/2016.

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social, se reconfigura em um “entre-lugar” que renova o passado. A manifestação
espetacular do “Boi Cuirão” fornece espaço para subjetivação de signos de identidades que
ajudam na articulação de diferenças culturais, a festividade permite que a comunidade narre
subjetividades originárias de sua historicidade que são politicamente cruciais na formação
dos sujeitos.
A performance dos sujeitos traduz sua visão de mundo, e o seu corpo e vocal ao
viver o ritual é a expressão sensorial desta localidade, um estado de consciência no qual o
performativo expressa a linguagem de identificação cultural que através do mítico enuncia
estratégias culturais de resistência frente a homogeneização que é característica da
sociedade contemporânea.
O “Boi Cuirão” em suas músicas, danças, lendas e encantados resgata as matrizes
culturais locais, um movimento de visibilidade e representação das identidades comunitárias
que permite aos corpos dos participantes a produção de identificações heterogêneas. Insere
os indivíduos em seu local de pertencimento internalizando elementos subjetivos que
influenciam sua consciência sobre a realidade.
O espetacular assume uma importante função no processo de diferença cultural, ao
retornar a imagem de identidade, traz símbolos culturais da memória histórica deste povo,
as práticas corporais assumem uma linguagem política específica com significados
particulares que apenas são reconhecidos dentro da própria comunidade. Designadas nas
formas de contradição e antagonismo social no qual os seus estados de consciência são
resultado de estratégias políticas responsáveis pela produção de espaços de significação
subalterna (BIÃO, 2009).
Nesses novos tempos no interior do pós-modernismo, os signos culturais falados as
margens da identidade estão imersos ao antagonismo social e a contrariedade desta
sociedade. A globalização cultural que emerge da relação entre o global e o local, fomenta a
formação de identidades fragmentados e descentrados de sua originalidade histórica. Em
meio ao cenário no qual as relações sociais da modernidade são concebidas em estruturas
hegemônicas do poder, é necessário um contínuo questionamento das condições de
existência.
Segundo Hall (1992), os indivíduos que anteriormente tinham uma identidade
estável passam por um processo de fragmentação, e as mudanças estruturais e funcionais
prejudicam sua identificação. Este processo é responsável pela produção do sujeito na pós-
modernidade, não permitindo a criação de uma identidade fixa. Na medida, em que os
sistemas de significação e representação cultural são reproduzidos, os sujeitos são
confrontados pela multiplicidade de identidades possíveis, prejudicando a formação de uma
identidade específica.

3593 
 
 
 
 
 
Nessa perspectiva, as identidades são formadas na "interação" entre o eu e a
sociedade, sendo formada e modificada numa interação contínua com os mundos culturais
"exteriores". A construção identitária, portanto, está diretamente ligada a internalização de
significados e valores, que criam sentimentos subjetivos com os lugares ocupados no
mundo social e cultural.
Os indivíduos são formados não de uma única, mas de várias identidades, que por
vezes contraditórias ou não resolvidas, resultado de mudanças estruturais e institucionais.
As identidades culturais tornaram-se provisórias, variáveis e problemáticas, transformadas
continuamente em relação as formas pelas quais representam os sistemas culturais que os
rodeiam. Isso não permite que o sujeito pós-moderno tenha uma identidade fixa, essencial
ou permanente, ele assume identidades distintas em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas, mas contraditórias, de diferentes direções, de tal modo que as
identificações são continuamente deslocadas.
Os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, possibilitando
um leque de identidades possíveis, trazendo símbolos e representações que constituem os
sentidos que influenciam e organizam as ações individuais.
Apesar do crescimento da homogeneização cultural e a desintegração de
identidades culturais, novas identidades surgem, e outras identidades “locais” são
reforçadas pela resistência a globalização. Na medida que essas identidades estão mais
expostas as influências externas, é necessário fortalecê-las em meio ao a infiltração cultural
da sociedade contemporânea. A relação entre o global e o local traz em si efeitos sobre as
identidades, provocando a proliferação de novas posições que dão a possibilidade da
globalização leve ao fortalecimento das identidades locais.
Nesta perspectiva, o “Boi Cuirão” é importante para o fortalecimento das
identidades, enquanto rito espetacular que vincula a comunidade as suas matrizes culturais.
A expressão corporal e vocal da festividade contribui para que os sujeitos produzam um
sentimento de pertencimento, favorecido por um espaço compartilhado que uni o grupo pela
identificação se contrapondo a ética da modernidade.
O encantado é capaz de organizar suas identificações e saberes da coletividade em
um território simbólico que produz conhecimentos subjetivos, resistindo aos processos
homogeneizantes da sociedade contemporânea, através de sua performance pode criar a
consciência que o espetacular local é importante na formação de suas identidades.

3. A SINGULARIDADE DO BOI ENQUANTO INVENÇÃO DA CULTURA

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O rito em sua significação cria valores culturais centrais que conduzem a sentidos a
vida social rotineira dos sujeitos que realizam a festividade, espetáculo revelador das
relações sociais comunitárias que constitui uma forma artística própria que de maneira
performática apresenta o universo local.
A prática espetacular do Boi se desenvolve em fronteiras fluidas e intercambiantes
entre participantes e espectadores, no qual as músicas, danças e cantos produzem a
polissemia que atrai os diversos grupos. As formas expressivas são baseadas no uso dos
significados da visão e da audição tal como categorizadas vividas em seus respectivos
contextos rituais.
A natureza mítica do Boi a partir de uma temporalidade tradicional e cíclica
compõem múltiplas linguagens, uma estrutura simbólica que estabelece relações com os
vínculos identitários responsáveis pela organização social comunitária.
Nesse sentido a “cultura” adquire um sentido amplo e um sentido restrito, sentido
“marcado” e “não marcado” (WAGNER,2012). A produtividade e criatividade do espetacular
se constitui em um contexto de significação. Um processo de integração entre a comunidade
e os sujeitos que convergem seus esforços para realização da festividade. Os indivíduos em
seu processo criativo desenvolvem técnicas, ideias e descobertas que são responsáveis
pela reinvenção da prática do Boi que em sua dinamicidade molda um valor cultural próprio.
Assim, a manifestação torna-se um precedente histórico e normativo para a cultura
da comunidade como um todo, que redefine os indivíduos na vivencia e tradução de seus
significados. Os símbolos produzidos pelo Boi se transformam durante as apresentações do
espetacular em símbolos comunitários, que concebe aos sujeitos experiências do cotidiano
mediantes certos tipos de regras, tradições, fatos imaginados e construídos (WAGNER,
2012).
Através da narrativa do mito os participantes da festa comunicam-se com os
demais membros da comunidade por meio da cultura, um campo de significação dotado de
experiências que é responsável pelo compartilhamento de convenções e signos que
influenciarão os modos de vida.
Experiências são construídas em ambiente no qual os elementos simbólicos se
relacionam entre si, formados no relacionamento de um contexto de reconhecimento
identitário. No rito elementos variam no tempo e no espaço, são familiares e exóticos, coisas
e experiências em si mesmos, que incluem os não participantes do espetacular na
articulação da tradição e do novo na vida cotidiana da localidade.
Os elementos simbólicos são envolvidos nos vários contextos culturais, segundo
Wagner (2012), esses usos são uma extensão inovadora das associações adquiridas por
meio de sua integração convencional em outros contextos. O significado é produto das

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relações, e as propriedades significativas de uma definição são resultados do ato de
relacionamento do constructo expressivo. A mediação da convenção impede que o
significado seja completamente relativo, pois a comunicação só se torna possível na medida
que o compartilhamento dessas associações derivadas da comunicação que o espetacular
produz.
As associações simbólicas do ritual proporcionam toda uma expressão significativa
que evidencia a especificidade do Boi, que compartilha em suas narrativas a historicidade
de um povo, de um lugar e de uma história, que não necessariamente traduzem harmonia e
homogeneidade, mas revela as incompletudes, conflitos e incompreensões desse contexto
cultural.
A comunidade em sua relação com a manifestação cria contextos convencionais
em torno da imagem do mito, que fornece significados de existência e base relacionais
coletivas na vivencia de cada morador. Experiências de pessoas, objetos e lugares
singulares da vida cotidiano criam formas distintas relacionais que se dão em contextos
contrastante.
Uma força política e simbólica que encena a vida cotidiana da comunidade,
aproxima o espetacular dos sujeitos não participantes que vivem na localidade, e cria um
espaço de visibilidade no qual os sujeitos podem se identificar. A performance mitifica a
própria história da comunidade, o corpo e a linguagem estabelecem um elo de
pertencimento, e ao mesmo tempo mantém uma estrutura própria que é responsável pela
produção criativa de seus signos e símbolos.
A prática espetacular de modo sensorial permite aos indivíduos a experiência de
seu lugar, a festividade se constituiu como parte da condição da formação de seus sistemas
culturais.
Nesse sentido Geertz (1997), nos mostra que a arte existe em um mundo próprio, o
espetacular fala por si mesmo, traduz símbolos de vínculos identitarios da comunidade. A
prática partilha valores estéticos que produzem o sentimento de pertencimento ao lugar, a
memória e o imaginário popular se constituem com aspectos importantes na expressão
performática das práticas relacionais dos moradores do bairro.
A questão da diferença cultural dispõe sobre um cenário de articulação e disposição
da prática espetacular organizada em um espaço de identificação cultural. Um sistema de
símbolos que conecta aspectos da experiência humana local, no qual a vida prática e
cotidiana durante a festividade é organizada pelo espetacular que influencia outros
segmentos da cultura local.
Para Geertz (1997), o fenômeno estético, em sua forma ou a habilidade que o
produziu, é anexado às outras formas de atividade social, incorporando um padrão de vida

3596 
 
 
 
 
 
específico. O processo de incorporação atribui aos objetos de arte um significado cultural,
um processo local que transforma a emoção em concretude. Desta maneira as crenças,
músicas, danças, e trajetória mítica do Boi não são apenas formas imediatas, mas maneiras
de estar no mundo, o espetacular não conta apenas parte da história da comunidade,
representa a vivência de um povo, a troca de sensibilidade entre os indivíduos que é produto
da experiência coletiva local.
Essa experiência coletiva cria participação no sistema particular, a arte, e através
da participação no sistema geral de formas simbólicas, a cultura, pois segundo Geertz o
primeiro sistema nada mais é que um setor do segundo. Nesse sentido, arte e cultura
tornam-se desassociáveis, uma teoria da arte, é, ao mesmo tempo, uma teoria da cultura.
Na perspectiva do autor, é necessária uma etnografia dos veículos que transmitem
significados e sentidos da prática espetacular, os indicadores e símbolos, que transmitem
significados desempenham um papel na vida da comunidade, a interpretação dos sistemas
simbólicos que seja capaz de identificar o sentido que as coisas têm para a vida a seu redor.
Na realização da festividade os símbolos convencionais constroem uma união entre
sujeito e objeto, que envolve a articulação de aspectos do espetacular, representando uma
significância específica do contexto local. Um contexto de ação convencionalizado, coletivo
e diferenciado que constrói um código social, uma linguagem comum a expressão da festa
singular (WAGNER,2012).
O espetacular recria e estende o contexto convencionalizado de forma particular,
transforma seu tipo de vida, mas em alguma medida, difunde um contexto não
convencionalizado, sua maneira única de dar sentido a expressão coletiva da festa.
Na perspectiva de Wagner (2012), os contextos de cultura são perpetuados por
atos de objetificação, por sua invenção a partir dos outros e uns por meio dos outros.
Significa que não podemos apelar para a tradição para dar conta da continuidade cultural,
ou da mudança cultural. As associações simbólicas compartilhadas são dependentes de
continua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes que percebem a si mesmas e o
mundo que os rodeia.
A invenção perpetua não apenas o aprendizado, músicas e danças do Boi, mas as
regularidades de percepção, tempo e espaço próprios da comunidade. O coletivo é filtrado
pelo particular, e as características individuais do mundo são reconhecidas, na medida que
são crivadas na regularidade convencional coletiva.
A espetacularidade enquanto invenção torna-se crucial na apreensão da ação e do
mundo da ação dos sujeitos, a convenção cultural molda a perspectiva dos indivíduos que
sem a invenção, em sua distinção do inato/artificial não permitiria a continuidade. Tais
distinções convencionais, orientam os sujeitos em seu mundo, lhes dizendo que são, e o

3597 
 
 
 
 
 
que podem fazer, conferindo as suas ações uma motivação convencional que permite a
invenção.
De acordo com Wagner (2012), esse conjunto de convenções culturais é uma
distinção dos tipos de contextos, os não convencionalizados, ou a própria convenção, são
articulados no ato da ação dos sujeitos, no qual o tipo de contextos serão contrainventados
de modo convencional em relação ao dado/inato. Esse conjunto de convenções que surgem
por meio da manifestação espetacular permite a diferenciação de sua ação na
contrainvenção coletiva motivada como “inata”, e os sujeitos que coletivizam irão
contrainventar essa diferenciação motivadora como modos de pensamento, percepção e
ação contrastantes.
Portanto, a orientação coletiva produzida pelo espetacular é responsável pelo modo
como os indivíduos aprendem e experimentam a ação e o mundo da ação. Uma convenção
que constantemente se reinventa sob as formas de contextos convencionais, pelo qual é
estendida, e reinventada na diferenciação e particularização em termos de contextos não
convencionalizados.
A expressão da invenção que a prática espetacular promove garante a
comunicação e significação da continua reinvenção de um por meio de outro, invenção que
recria sua orientação, e uma orientação que permite a sua própria reinvenção.
Nesse sentido a festividade do Boi torna-se necessidade da invenção dada pela
convenção cultural, e necessidade da convenção cultural pela invenção. A convenção e
orientação que mantém uma relação dialética, de interdependência e contradição que está
presente em todas as culturas humanas.
Assim, na prática do Boi a cultura é inventada por meio da experiência e criação da
realidade, no qual extraiu-se as características objetivas, a dialética e interdependência dos
vários contextos criam a necessidade da invenção que no esgotamento de símbolos, produz
novas articulações simbólicas que possibilitam a reinvenção de seus significados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS (INCONCLUSIVAS)

O espetacular está imerso em uma sociedade de constantes transformações e


dinamicidades dos mundos culturais, que são responsáveis por introduzir nos indivíduos
suas concepções de mundo, determinando sua consciência e a maneira pela qual
representam a si próprios e os outros em sua existência.
Os problemas contemporâneos em sua complexidade exigem uma compreensão
que busque problematizar os valores culturais da modernidade, promovendo pensamentos

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reflexivos que visem ampliar o olhar antropológico para não limitar sua análise as
manifestações e expressões culturais coletivas. Uma compreensão que seja capaz de
construir novas possibilidades de se pensar e ver as culturas em sua heterogeneidade,
mutação e inconstância de nosso tempo.
A multiplicidade de sentidos e signos da experiência da prática espetacular formam
relações sociais locais e globais, que se dão em estruturas antagônicas relevando os
conflitos entre as tradições e as novas práticas. Um dilema entre os aspectos culturais locais
e globais que se manifesta em variadas formas no mundo moderno.
Pensar as divisões e diferenças da questão cultural no campo prático-social em que
está imersa a produção e consumo de bens culturais torna-se necessário. Um processo de
transformação conflitante da realidade social que é responsável pela transmissão de modos
de se pensar e estar no mundo que não está ligado a categorias específicas, ou aspectos
isolados, mas se introduz na consciência e na práxis da vida humana.
A cultura nesta sociedade cria modos de representações instantâneos que se
relacionam a vida social e com o mundo sem estabilidade e fixidez, um sentido reprodutivo e
normativo associado as condições de fluidez do mundo moderno. No qual as relações
sociais de existências são baseadas no imediatismo e não criam bases ou vínculos
permanentes, pois o tempo e espaço de nosso tempo são líquidos dificultando a
preservação de traços culturais.
Na busca da preservação de suas memórias a festividade do Boi “Cuirão” se
reinventa e adquire novas formas de significação diversas e contraditórias, práticas culturais
responsáveis pela formação de discursos, representações e valores que dão uma nova
roupagem as tradições dos moradores do Bairro do Distrito Industrial/Ananindeua-PA.

REFERÊNCIAS

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BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. A presença do corpo em cena nos estudos da


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Jul./Dez., 2011.

______. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos.Prefácio de Michel Maffesoli.


Salvador: P & AGráfica e Editora, 2009.

CAVALCANTI, M. L. Os sentidos no espetáculo. Revista de Antropologia, São Paulo,


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CAMPBELL, S. A estética dos outros. Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano
02, vol.01, n. 02, nov. 2010.

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GEERTZ, Clifford. “A arte como um sistema cultural” In: O Saber Local. Petrópolis: Vozes,
1997, pp. 142-181.

Hall, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1992.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 23. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar,2009.

OVERING, Joanna. A estética da produção: o senso da comunidade entre os Cubeo e os


Piaroa. Revista de Antropologia, vol. 34, 1991, pp. 7-34.

PAES LOUREIRO, João de Jesus. A etnocenologia poética do mito. In: Ensaio Geral,
Belém, Vol VI, nº 02, Jul/Dez de 2009.

SANTA BRÍGIDA, Miguel de. A etnocenologia na Amazônia: trajetos-projetos-objetos-


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STRATHERN, Marylin. Artefatos da História: os eventos e a interpretação das imagens, In: -


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TAYLOR, Diana. Cidadania em Performance: os artistas vão às ruas In: P. Raposo, V.


Cardoso, J. Dawsey, T. Fradique (Orgs.), A Terra do Não-Lugar: diálogos entre
antropologia e performance. Florianópolis: Ed. UFSC, 2013, pp. 213-222.

WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 49-72.

3600 
 
 
 
 
 
GT 07 – Cidades e Transformações do Urbano na América Latina

MUROS DE BELÉM DO PARÁ: A


PLURALIDADE ÉTNICA NOS GRAFITES DE UMA CIDADE AMAZÔNICA

Camille Nascimento da Silva1 (UFPA),


Ivânia dos Santos Neves2 (UFPA)

RESUMO

Nas cidades latino-americanas é comum encontrar evidências da descendência indígena? A


percepção do silenciamento dos sujeitos indígenas em grande parte da sociedade, motivou
o olhar para materialidades que visibilizam os discursos sobre sociedades indígenas, como
os grafites. Este artigo tem o objetivo de discutir os discursos que emergiram por meio de
grafites produzidos em Belém do Pará, com a presença do sujeito indígena, entre os anos
de 2015 e 2017. Na pesquisa, entende-se o grafite como uma materialidade discursiva que
se realiza nas grandes cidades. Como suporte teórico, o trabalho traz estudos que
relacionam a cidade, o espaço urbano e a comunicação na cidade. Duas formulações
teóricas são importantes para compreender os grafites na cidade de Belém: a metrópole
comunicacional do antropólogo italiano Massimo Canevacci e a cidade interativa da
pesquisadora e professora Lucrécia D’Alessio Ferrara. Os apontamentos sobre os estudos
do discurso presentes no trabalho, tem como principal referencial o autor Michel Foucault, a
partir de seu entendimento sobre a história descontínua, enunciado, discurso,
acontecimento discursivo, utilizados para compreender a movimentação histórica das
memórias indígenas que emergem nos grafites. Como corpus de pesquisa, analisa-se os
grafites produzidos por Cely Feliz e Sebá Tapajós, ambos paraenses, com características
diferentes nos grafites que produzem com a presença indígena.

Palavras-chaves: Grafites; Cidades; Discurso.

INTRODUÇÃO

Para iniciar este trabalho, convidamos leitores e leitoras a fazerem um passeio por
Belém do Pará, a voltarem o seu olhar às paredes, aos muros, postes, viadutos e outras
superfícies em que possam serem encontradas as inscrições conhecidas como grafites.
Observaremos um elevado número de grafites, pichações, frases soltas, nomes e outras
comunicações que nos últimos anos, vem aumentando na capital paraense.
Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado defendida em abril de 2017, sob o
título “A presença indígena nos grafites de Belém: entre fraturas e resistências”, no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade
Federal do Pará (PPGCOM/UFPA).
                                                            
1 Mestre, Instituto de Letras e Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e
Amazônia, UFPA, Brasil. Email: [email protected]
2 Doutora, Instituto de Letras e Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e

Amazônia, UFPA, Brasil. Email: [email protected]  

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Figura 1: Saída Rodoviária de Belém – Mulher Indígena

 
Foto: Shirley Penaforte

Nos grafites analisados na dissertação observamos a recorrência da questão étnica


e a forte presença feminina, tanto no ato de grafitar, como nos grafites já prontos. O que
possibilitou o aparecimento dos traços indígenas nos muros, paredes, postes e viadutos da
cidade, já que em outro momento os grafites abordavam outros temas? É o que a nossa
pesquisa busca problematizar.
Entendemos que o nosso objeto de pesquisa, o grafite com a presença indígena, se
configura como uma materialidade produtora de sentidos e nos propomos a estudar a
presença indígena nas grafitagens da cidade de Belém, na Amazônia. Quais os sentidos
sobre as sociedades indígenas que os grafiteiros de Belém desenham nos muros da
cidade? Esta é a indagação que inicia a pesquisa. Partimos da premissa de que os grafites
se inserem em um processo comunicacional, que junto com a cidade, comunicam
enunciados. Neste trabalho a atenção é voltada para os grafites que representam a figura
indígena, os quais vão de encontro a outros tipos de mídias e de arte que dão visibilidade
apenas às matrizes culturais europeias e silenciam a memória das sociedades existentes
antes da chegada do colonizador em terras brasileiras.

Neste artigo, tomamos como corpus os grafites do artista Sebastião Tapajós Júnior,
conhecido como Sebá Tapajós, e da artista Cely Feliz, integrante de dois coletivos nacionais
(Ratinhas Crew e Flores do Brasil). Ambos trazem em seus grafites mulheres indígenas.
Para cada um deles, estas mulheres apresentam conotações diferentes.

Cely Feliz é integrante de coletivos de grafiteiras feministas, prefere as ruas dos


bairros periféricos de Belém como cenário do seu grafite, embora esteja ciente do perigo

3602 
 
 
 
 
 
pela falta de segurança. Sebá Tapajós, além de grafitar ruas, também ocupa outros espaços
como galerias de arte. Ambos utilizam as redes sociais como um outro espaço para os seus
grafites. Para realização deste trabalho, também entrevistamos os dois grafiteiros.

O referencial teórico é apoiado nos conceitos teóricos da Análise do Discurso,


propostos pelo francês Michel Foucault; da metrópole comunicacional, definida pelo
antropólogo italiano Massimo Canevacci; cidade interativa, da pesquisadora Lucrécia
D’Aléssio Ferrara; e nos estudos sobre o grafite na América Latina, realizado pelo
pesquisador Armando Silva.

1. CONVERSA INICIAL SOBRE O GRAFITE

A palavra grafite vem da expressão italiana graffti3, plural de grafito, do grego


graphis, “carvão natural”, a matéria com a qual se fabrica o grafite usado em lápis e
lapiseiras. Há também as variações do vocábulo em língua espanhola, “em países como
Venezuela e Colômbia, houve a tendência de denominar a expressão grafite como pintas ou
pintadas, sobretudo em ambientes universitários, enquanto no Brasil se fala também em
pichações” (SILVA, 2014, p. 24).

Nas grandes metrópoles mundiais, o grafite, hoje, ocupa um significativo espaço de


produção de sentidos, portanto, envolve processos de interação, relações de poder,
administração dos gestos de leitura, silenciamentos, interdições. O grafite começou a ganhar
visibilidade, juntamente com o movimento Hip-Hop, em Nova Iorque. Esta complexa prática
cultural, Hip-Hop, construída historicamente pelo discurso da resistência às desigualdades
sociais, especialmente juvenil, é composta pelo rap, o break-dance e o grafite. 

A família do hip-hop, composta por grafite, rap e break dance, teve início no
final dos anos 1980 nos Estados Unidos e logo se espalhou pela América
Central e América do Sul. Em São Paulo, assume-se como fenômeno único,
percebendo-se os hip-hopeiros como grafiteiros, com destaque para a
“especificidade da geografia local” em seus movimentos. (SILVA, 2014, p.
64).

Nos anos de 1980, já se destacava o nome do afro-americano Jean-Michel Basquiat,


que fazia grafites em prédios abandonados, em Manhatan, mas que também teve seus
trabalhos expostos em galerias de arte. Mesmo com esse marco temporal, consideramos,
neste trabalho, a prática do grafite uma referência também a formas de comunicação de
sociedades não necessariamente inscritas num contexto urbano. Neste sentido, podemos

                                                            
3  Optamos por utilizar a grafia “grafite” no decorrer do trabalho, devido ser considerada por nossa referência
bibliográfica o termo mais apropriado para a língua portuguesa. 

3603 
 
 
 
 
 
pensar nos grafismos de sociedades indígenas e africanas, ou ainda remontar mais atrás na
história da humanidade, às práticas humanas de interação com a sociedade por meio “da
escritura” em paredes, muros e postes, como as pinturas rupestres.

Pintados, escritos, raspados ou colados sobre muros e outras superfícies, os grafites


tornaram-se habituais nas grandes cidades. Apropriados como uma forma radical de
expressão, constituem-se como um código diferente e especial e como uma marca da
visualidade urbana. Espontaneamente deixados na rua, os grafites se apresentam como um
tipo de manifestação aberta e híbrida, propícia a entrecruzamentos com a mídia, mais
especificamente com as redes sociais, com a arquitetura, vindo a se firmar como uma forma
de contestação política, poética e de afirmação social.

Esse movimento se globalizou, sem se uniformizar, e se revela um fenômeno que


deseja atribuir novo sentido à cidade, tornando-a um espaço de manifestação de “uma voz
bastarda” e “transgressora” que não se preocupa com as convenções sociais. Inicialmente a
prática do grafite esteve relacionada a certos setores culturais, a exemplo de militantes
políticos, universitários, feministas, operários e empregados de baixa qualificação
acadêmica. Era por meio do grafite que estes setores da sociedade expressavam suas
necessidades econômicas, políticas ou sexuais. Até então, o grafite era reconhecido por sua
natureza de marginalidade urbana. Mais tarde, com a reformulação de conceitos e técnicas,
este caráter vai se expandir. (SILVA, 2014).

1.1 – A BELÉM GRAFITADA

Em Belém, a prática do grafite encontrou o seu cenário. A cidade tem uma herança
colonial muito forte, bairros como a Cidade Velha, o Reduto e a Campina guardam um rico
patrimônio histórico, o qual, ao nosso olhar não recebe adequada manutenção. Este
abandono pelo espaço público em alguns bairros de Belém foi o que motivou alguns
grafiteiros da cidade a organizarem eventos e encontros como o “Rota Urbana pela Arte”
(2013), organizado pela artista Drika Chagas e o “Reduto Walls” (2014), organizado pelo
grafiteiro Sebá Tapajós, os grafiteiros se uniram e propuseram a ocupação e limpeza da
cidade, utilizando o grafite.

Atualmente, observamos algumas características dos grafites produzidos nas


paisagens da capital paraense, a saber, a forte presença feminina, os grafites espraiados
nas plataformas digitais, a diversidade étnico-racial presente nestas materialidades urbanas.
É visível também a presença de vários coletivos de grafites, como Cosp tinta; ACN Crew;

3604 
 
 
 
 
 
Rataria; Esc; Resistência; Freedas Creew, entre estes, alguns são formados exclusivamente
por mulheres, característica bem recente no cenário do grafite.4

Porém, a história do grafite em Belém, assim como no restante do Brasil, é


heterogênea e se constitui com caminhos plurais. Alguns grupos de grafiteiros ou mesmo os
que atual individualmente, preferem os bairros não centrais, optam pelos muros das ruas;
outros chegam com o seu grafite aos bairros mais elitizados e também às galerias. Neste
artigo, nossa análise é voltada para os grafites do artista Sebastião Tapajós Júnior,
conhecido como Sebá Tapajós, e da artista Marcely Gomes Feliz, a Cely Feliz.

Marcely Gomes Feliz, conhecida entre grafiteiros e grafiteiras como Cely Feliz, é
paraense, nascida na capital, integra os coletivos Ratinhas Crew e Flores do Brasil, que
trazem o traço indígena com um diferencial em suas produções. Em entrevista realizada
com a grafiteira, ela nos contou como começou a grafitar, como vê este cenário em Belém e
quais as diferenças entre os muros masculinos e os femininos. Para a artista, a prática do
grafite não tem objetivo de deixar um muro bonito, mas sim de passar uma mensagem.
Segundo a grafiteira, ela começou a grafitar o sujeito indígena porque sente falta desta
exaltação nos muros ao seu redor, o que ela sempre via era os muros sendo grafitados com
traços que vinham do eixo Sul-Sudeste do Brasil ou mesmo do exterior, “eu sempre senti
falta da figura indígena e da figura negra nas paredes de Belém” (CELY,2017).

Paraense do município de Santarém, Sebá Tapajós é um grafiteiro, artista visual, e já


foi tatuador. Filho do violonista Sebastião Tapajós, Sebá é daltônico, deficiência visual que
dificulta o reconhecimento das cores e principal característica de seus grafites é o colorido
bem acentuado. Como ele não consegue diferenciar algumas cores, ele precisa ler na lata
do spray o nome da cor que vai utilizar. Segundo o grafiteiro, a sua inspiração para os
grafites com a presença indígena é a descendência familiar, principalmente as mulheres de
sua família. Sebá é organizador de vários eventos que reúnem grafiteiros do mundo todo5.

2 - NAS TEIAS DO DISCURSO: O GRAFITE

A Análise do Discurso (AD) é uma metodologia de interpretação, com o objetivo de


compreender a produção social dos sentidos, realizada pelos sujeitos históricos, por meio da

                                                            
4 CAMPOS (2008) observava que a natureza do grafite estava associada a uma dupla condição, etária e de
gênero. Quem realizava os grafites eram homens e jovens. A nossa pesquisa ampliou estas características, a
principal característica nos grafites analisados é a heterogeneidade de seus sujeitos.
5 No artigo “Nas paredes, nos rios, nas galerias: o Street River de Sebá Tapajós”, analisamos o evento realizado

em homenagem aos 400 anos de Belém do Pará. Disponível em: http://www2.uesb.br/labedisco/wp-


content/uploads/2016/05/Anais-do-I-Encontro-Foucault-e-Discurso-no-Brasil-Completo.pdf

3605 
 
 
 
 
 
materialidade das linguagens. É uma teoria interdisciplinar, não consistindo em uma
abordagem uniforme de investigação, pois, abriga diferentes origens teóricas e,
consequentemente enfoques metodológicos. Aqui, tomamos os grafites como enunciados
espraiados nas paisagens das grandes metrópoles. Partimos dos estudos da AD, sobretudo
as formulações de Michel Foucault para compreender a presença indígena nas inscrições
urbanas de Belém, utilizando alguns grafites de Sebá Tapajós.

Figura 2: Indígenas com flores nos cabelos

Fonte: http://sebatapajos.com.br/ Acesso em 03/05/2015, às 16h. 

Na capital paraense, desde a entrada da cidade, passando por seus bairros


periféricos e também pelos centrais, o grafite com a presença indígena tem ocupado espaço
na paisagem, figura esta que é silenciada na nossa história amazônica, impregnados de
estereótipos, alijados de políticas públicas. Andar pelas ruas da nossa cidade e ver a
presença indígena estampada em nossas paredes é tornar visível a memória silenciada
destas sociedades. Na figura acima, observamos um dos grafites inseridos na série “índios
pop”6, produzida pelo grafiteiro Sebá Tapajós. Observamos o grafite em um grande muro,
num espaço de produção de sentidos que por muito tempo o definiu como grafite: a rua.

No centro das questões que a AD propõe está a constituição da história do sujeito na


sociedade ocidental (FOUCAULT, 2009), ou seja, uma história das práticas de subjetivação.
A questão que Foucault (2008b, p. 351) se coloca é saber quem somos nós hoje, o que nos
ajuda a entender as identidades em circulação em nossa sociedade. Para tanto, ele analisa
os discursos que se entrecruzam na constituição dos sujeitos de forma heterogênea, por
meio de lutas e batalhas, em que saber e poder se interrelacionam.

                                                            
6 Em entrevista realizada em 2015, para a nossa pesquisa de mestrado, Sebá Tapajós justifica o nome da série

de grafites, “Índios Pop”, pela mistura entre práticas culturais globais e locais. Podemos observar marcas como o
colorido intenso e adereços como os óculos escuros.

3606 
 
 
 
 
 
FiguraFigura
3: Indígena pop de
4: Cabelo óculos
Caiapó

 
Fonte: http://sebatapajos.com.br/ Acesso em 03/05/2015, às 16h.
Fonte: http://sebatapajos.com.br/ Acesso em 03/05/2015, às 16h 

O grafite, portanto, como todas as expressões humanas, está inserido em relações


sociais, é produzido por sujeitos historicamente construídos, ele se modifica, se atualiza,
inscreve-se em memórias discursivas. Eles são enunciados que circulam nos espaços
urbanos, mas também já estão presentes nas redes sociais e podem tanto silenciar ou
visibilizar discursos. Neste trabalho, nos interessa discutir esta materialidade com os
estudos da Análise do Discurso e também com a comunicação urbana.

Para Foucault (2006a, p. 253), analisar discurso é examinar “as diferentes maneiras
pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que
o poder está implicado, e para o qual o poder funciona”. O poder não é origem do discurso,
e sim opera através deste, pois o discurso é um elemento de um dispositivo estratégico de
relações de poder.

O autor propõe que seus estudos sejam entendidos a partir de suas fases
arqueológica e genealógica. Em sua arqueologia do saber, Foucault (2008) propõe superar
a forma tradicional de fazer história, a qual é organizada em forma de narrativas sequenciais
de acontecimentos, em uma continuidade que elide os acidentes e descontinuidades que
marcam as lutas dos sujeitos no interior da sociedade. Também deve ser abandonada a
noção de uma ruptura radical com uma determinada forma de saber, de sujeito e de
pensamento, como a história tradicional apresenta os fatos. Em vez da busca pela origem e
pela ruptura, nos ocuparemos aqui, na esteira da genealogia de Foucault (2013), dos
acontecimentos que provocaram, ao longo da história, transformações nas concepções que
temos sobre o objeto de discurso em análise.

Assim como a arqueologia, a descrição genealógica (FOUCAULT, 2013), para ser


empreendida, requer que se renuncie à forma tradicional como se faz história, sem se

3607 
 
 
 
 
 
ocupar das gêneses. A arqueogenealogia não tenta descobrir o que está oculto nos
discursos, mas os próprios discursos enquanto práticas que obedecem a regras de
construção, as quais são históricas e controladas por relações de poder. Portanto, quais
acontecimentos permitem que grafites como estes sejam recorrentes na paisagem urbana
de Belém?

Para Foucault, os sentidos são históricos e sociais, além disso, os discursos vivem
em tensionamentos, são controlados em determinada sociedade, assim como a memória,
para que um exista, é necessário a invisibilidade do outro.

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo


tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terminável
materialidade. (FOUCAULT, 2014, p. 8).

Assim, entendemos o grafite como enunciado, uma materialidade produtora


de sentidos, que atualmente em Belém, retoma discursos antes silenciados: a
memória das sociedades indígenas. Observa-se que neste trabalho há “duas vozes”
que em certos períodos foram silenciadas, mas agora estão evidência: o grafite e a
presença indígena no grafite.

Analisar a circulação dos enunciados, as posições de sujeito aí assinaladas,


as materialidades que dão corpo aos sentidos e as articulações que esses
enunciados estabelecem com a história e a memória. Trata-se, portanto, de
procurar acompanhar trajetos históricos de sentidos materializados nas
formas discursivas da mídia (GREGOLIN, 2007, p. 13).

3 - OS GRAFITES E A CIDADE COMUNCACIONAL

Entendemos o grafite como uma materialidade discursiva inserida no processo


comunicacional, expressão artística identificada precipuamente com o espaço urbano.
Canevacci (2004) considera os grafites como fenômeno da comunicação urbana, são
materialidades que permitem novas formas de comunicação urbana em todos os seus
múltiplos ambientes e espaços. Este autor compreende as cidades como ambientes
carregados de sentidos; denominadas “cidades de arte ou de cultura”, cujo o foco não é
apenas o aspecto físico e estrutural, mas também a dimensão simbólica. Neste processo, os
grafites modificam a paisagem urbana, produzem nas cidades as “interzonas”, possibilitam
outras cartografias com olhares múltiplos para as cidades. Para ele, a existência de
múltiplos espaços nas metrópoles é constituída tanto por condições materiais quanto
imateriais. Esta análise de Canevacci (2004) resulta no conceito da “metrópole
comunicacional”.

3608 
 
 
 
 
 
Tal conceito vai ao encontro do que Ferrara (2010), em suas pesquisas sobre as
cidades comunicativas ou interativas, também elabora. A cidade interativa “é
desestruturante e sem ambições midiáticas, mas é o único lugar capaz de sobreviver de
modo democrático”. Para nós, é nesta cidade, a interativa, que o grafite se materializa,
trazendo para todos que o veem os discursos e memórias antes silenciados.

Nessa cidade interativa, observa-se a semiose de uma dimensão política da


comunicação que ultrapassa sua simples dimensão fenomênica e
simplesmente enunciativa, para aderir a uma formação discursiva que se
deixa perceber em vozes que, no tempo, gritam ou se calam. Observa-se
que a simples descrição fenomênica é insuficiente para perceber a
densidade daquelas formações discursivas que exigem outras estratégias
metodológicas. (FERRARA, 2015, p. 160).

Assim, partimos para a análise dos grafites de Cely Feliz, os quais reivindicam a
igualdade de gênero, são contra qualquer tipo de violência contra a mulher, tanto física,
como também verbal. A grafiteira integra dois coletivos nacionais de grafiteiras, o Ratinhas
Crew e o Flores do Brasil, ambos com o objetivo de viabilizar a produção feminina e
feminista de artistas urbanas atuantes fora do eixo Sul-Sudeste.

3609 
 
 
 
 
  Figura 5: Grafite “La piel del índio te ensenãra”

 
Foto: Camille Nascimento

Nos grafites de Cely Feliz emergem enunciados visuais de indígenas e negros, que
fogem ao padrão de como eles aparecem na televisão, nos jornais impressos, nos livros
didáticos, geralmente estereotipados. Muitos grafites trazem a referência indígena menos
explícita, por meio de alguns grafismos em torno do “desenho” principal ou por enunciados
verbais como “La piel del índio te enseñara”, como no grafite da figura 5. Canevacci (2004)
observa como “a cidade se comunica com os seus edifícios, ruas, insígnias, lojas, e com o
fluxo de um tráfego insaciável” (CANEVACCI, 2004, p.14). Ele aponta como a comunicação
visual da cidade está envolta pelas relações de poder, assim como pelas relações sociais.

Mais do que simulacros vazios, a comunicação urbana, bem como a da


mass media, me pareceu sempre ser uma forte concentração das relações
de poder entre quem detém o controle das comunicações e quem é
reduzido apenas à passividade de espectador. As classes sociais, os

3610 
 
 
 
 
 
grupos étnicos, as identidades de gênero ou de geração, os muitos norte-sul
do mundo, constituem conflitos presentes na comunicação e por ela
reciclados. E a cidade permanece como o seu coração visível.
(CANEVACCI, 2004, p. 16).

Os corpos pintados nos grafites de Cely Feliz produzem um estranhamento nas


pessoas que acreditam em identidades fixas, pois em muitos de seus enunciados não
identificamos claramente o indígena, o negro, o branco e o morador da região. Será possível
identificar estas diferenças apenas observando os fenótipos dos corpos, numa região como
a Amazônia? Estes grafites causam uma certa polêmica, pois, como as pessoas se
reconhecem neles, rejeitam que sejam indígenas e alegam que são apenas moradores da
região que estão desenhados.

A partir dos estudos de Foucault, compreendemos que a história é descontínua. Isso


significa que estes discursos sobre a pluralidade étnica da cidade de Belém são nós em
uma rede de memória, que se movem, se complementam, se refutam, se transformam. É
muito difícil determinar quem é o outro do indígena em cidades como Belém, tão
intensamente constituídas pelas matrizes culturais indígenas.

Canevacci (2004) propõe o método polifônico, referente ao fato de que a cidade é


feita de muitas vozes, que se cruzam, se sobrepõem umas às outras, isolam-se ou
contrastam-se. É o que observamos neste tipo de grafite que traz discursos e enunciados
com a presença indígena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos, a partir das formulações foucaultianas que estas grafitagens são


produzidas por sujeitos historicamente construídos, pluralizam as identidades indígenas e
fazem
Figura 6: Mulher Amazônica

 
Foto: Cely Feliz

3611 
 
 
 
 
 
emergir os discursos sobre sociedades indígenas e sobre o movimento feminista.

A partir do nosso olhar sobre os grafites com a presença indígena em Belém, este
nosso objeto de pesquisa nos convidou a pesquisar também sobre o processo
comunicacional na cidade, como a cidade de Belém pode comunicar por meio destes
grafites com a presença indígena, culminando nos conceitos propostos por Canevacci
(2004) e Ferrara (2015), de metrópole comunicacional e cidade interativa. As vozes que se
cruzam na cidade comunicativa a transformam na cidade polifônica (CANEVACCI, 2004).
Em Belém, elas apareceram em nossa pesquisa como um grande muro de grafitagens
indígenas que estavam o tempo todo ao lado de discursos completamente hegemônicos,
apenas não apareciam.

Nossa pesquisa mostrou como os grafites com a presença indígena reivindicam


discursos antes silenciados sobre estas sociedades. O trabalho configura uma reivindicação
de vozes silenciadas: a do próprio grafite, pois, é uma prática urbana que, apesar de estar
em determinados momentos em circuitos oficiais, como instituições e mídia, ainda não
dialoga como um discurso hegemônico; e dos sujeitos indígenas, que como vimos, tem seus
discursos interditados e modificados, gerando o estereótipo e preconceito presente nos não-
indígenas.

Nas entrevistas realizadas com os grafiteiros Cely Feliz e Sebá Tapajós, ambos
falam sobre a suas influências para grafitarem sujeitos indígenas, sobre o porquê de
grafitarem figuras indígenas, o espaço que cada um tem no cenário do grafite. Para ambos a
inspiração vem da família: a família de Cely é natural do Arquipélago do Marajó; Sebá tem a
influência de Santarém; Cely nasceu e cresceu no bairro do Bengui, uma das periferias mais
abandonadas de Belém; Sebá morou no Bairro do Reduto, por isso a grande quantidade de
grafites assinados por ele neste bairro.

Ambos têm como semelhança nos trabalhos o sujeito indígena como principal tema
dos grafites. No entanto, divergem quanto aos locais em que grafitam e entre as suas
concepções sobre o que é o grafite. Cely é integrante de coletivos de grafiteiras feministas,
prefere as ruas dos bairros periféricos de Belém como cenário do seu grafite, embora esteja
ciente do perigo pela falta de segurança. Sebá Tapajós, além de grafitar ruas, também
ocupa outros espaços como galerias de arte. Ambos utilizam as redes sociais como um
outro espaço para os seus grafites.

“Eu grafito as etnias indígena e negra porque sinto falta delas nos muros de
Belém. Acho que a gente tem que pintar essa cidade inteira com aquilo que
nós somos, com a nossa aparência mesmo, e não com o que vem de fora”.

3612 
 
 
 
 
 
Cely Feliz

REFERÊNCIAS

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SABERES E PRÁTICAS, 2008, Lisboa. Anais eletrônicos... Lisboa, 2008. Disponível em
http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/98.pdf. Acesso 14/05/2015.

CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação


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FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Cidade: meio, mídia e mediação. Revista Matrizes. N. 2. São
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____. A outra caixa de Pandora. Revista Matrizes. V.10. N.2, São Paulo, 2016. P. 61 – 74,
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____. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.

______. O que são as luzes? In: ______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas
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____. A ordem do discurso – aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970. 24 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

GREGOLIN, Maria do Rosário. A mídia e a espetacularização da cultura. In: GREGOLIN, M.


(org). Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos, 2003. Cap. 1, p. 9 -20.

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NEVES, Ivânia. A invenção do índio e as narrativas orais Tupi. Tese (doutorado) -
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____. EtiniCidades: os 400 anos de Belém e a presença indígena. Revista Moara. N. 43 jan-
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http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/moara/article/view/2634. Acesso em: agosto/2015.

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Belém: as índias de Sebá e Cely. In: II COLÓQUIO INTERNACIONAL MÍDIA E DISCURSO
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Edições Sesc, 2014.

3614 
 
 
 
 
 

GT 07 – Cidades e transformações do urbano na América Latina

GRAFITE, PICHAÇÃO E A CIDADE: EXPERIÊNCIAS, SUBJETIVIDADES E


INTERAÇÕES NO ESPAÇO URBANO DE BELÉM

Roberta Aragão Machado (UFPA)1


[email protected]
Manuela do Corral Vieira (UFPA)2
[email protected]

RESUMO

Este artigo visa observar a experiência urbana na cidade de Belém no que tange às
representações políticas e culturais através do grafite e da pichação, em que pese seus
distanciamentos e aproximações, em um contexto da Metrópole Comunicacional e
Imaginário Urbano. O artigo tem como marco teórico as proposições de David Harvey
(2014), ao destacar que o que movimenta a cidade do ponto de vista político são os
processos oriundos de uma cultura da horizontalidade. A pesquisa foi realizada através de
trabalho etnográfico empreendido em Belém, no qual buscou-se dialogar com os
interlocutores do grafite e da pichação do cotidiano da cidade na perspectiva de
compreender suas singularidades e interações com a vida urbana, especialmente com as
contribuições das relações antropológicas e sociológicas dos estudos de sociabilidade,
interação e experiência de si e da relação com o outro e o meio político e em como as
cidades se empenham num trabalho de identidade visual, de imagem e de comunicação
segundo Lipovestky & Serroy (2015). Elevamos metaforicamente o objeto cidade à categoria
de sujeito, permitindo que as narrativas e os percursos de cada interlocutor tornem-se
relatos do cotidiano, essa variedade de vozes e ações compõem o diálogo com o conceito
de Matriz polifônica da cidade conforme Canevacci (2008). Durante a pesquisa deste
trabalho identificamos em suas falas a heterogeneidade, a potencialidade da ação política e
o inesperado de intenções comunicativas que nos revela a transformação da experiência
urbana em um constante diálogo com as apropriações simbólicas do espaço. Por isso
mesmo, nesta ordem, a partir da relação entre o fato social e sua representação percebe-se
novas possibilidades de criação, de pertencimento, e, portanto, de identificação e de
protagonismo com o espaço e os sujeitos nele relacionados e presentes.

Palavras-chave: Espaço urbano; Sociabilidade; Cotidiano.

                                                            
1
Mestranda em Ciência da Comunicação pelo Programa de Pós- Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia
da Universidade Federal do Pará, UFPA, Brasil. Especialista em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas, FGV,
Brasil. E-mail: [email protected]
2
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará , mestre em Marketing pela Universidad Autónoma
de Madrid e professora adjunta da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação Comunicação,
Cultura e Amazônia da UFPA. Coordena o Grupo de Pesquisa “Comunicação, Consumo e Identidade”. E-mail:
[email protected].

3615 
 
 
 
 
 
1. INTRODUÇÃO
 

1.1 Cidade

Observe a cidade e sinta as palavras e as coisas que dela emergem


e nela existem. Leia a cidade, regozije-se, revolte-se e mude o seu
cotidiano urbano se assim achar melhor. Escolha uma de suas
inúmeras facetas e brinque com ela. A cidade grita, chora, resmunga,
sussurra, ouve, sente.
Ela, sobretudo, responde. Entre evidências e surpresas, a cidade
produz permanentemente sentidos e significados para cada um de
seus habitantes. (Freitas, 2011, p.7)

A cidade, entendida como objeto de pesquisa, é um fenômeno que percorre muitas


disciplinas. Sob o ponto de vista da Comunicação, interessa-nos investigar o lugar das
práticas comunicativas – da pichação e do grafite – na experiência urbana. Assim,
elevaremos metaforicamente o objeto cidade à categoria de sujeito, permitindo que as
narrativas e os percursos de cada interlocutor tornem-se relatos do cotidiano.
Nessa busca, é importante evidenciar como o modelo urbano nasceu paradoxal na
América Latina se comparado a Europa: a efervescência cultural convive com a
criminalização de ações políticas e a visibilidade de formas de violência que passam a ser
qualificadas como eminentemente metropolitanas, onde a vasta perspectiva de inclusão
permite e, em alguns casos, demanda fortes políticas de exclusão. No meio disso tudo,
essa dita modernidade que as cidades passam, sobressalta aos olhos as diferentes
estratégias através das quais diferentes atores sociais mesclam interações entre fluxos
globais e fluxos locais. Para Hoff, a praia e a rua por exemplo efetivam-se e possuem
particularidades consideradas cenários exemplares na tessitura de comportamento críticos e
efetivos lugares de exercício de subjetividades contestatórias e ou contra-hegemônicas
(Rocha e Hoff, 2014, p. 18).
Dito isso, antes de observarmos de perto o tema cidade é importante realizar um
retrospecto para que possamos compreender como a esfera pública, parte integrante da
cidade, tornou-se palco de inúmeras lutas e transformações e como ela modificou a forma
que dialogamos com ela, em um processo constante infinito. Segundo Figueiredo (2004), foi
por volta dos séculos XIV e XV com o surgimento e fortalecimento econômico da classe
social burguesa em substituição ao clero e à nobreza, que as estruturas de dominação e
organização social sofreram mudanças e foram transformadas para atender aos interesses
dessa classe. Por consequência, muitas alterações ocorreram perpassando diferentes
setores, como a arte, onde conceitos e referências sobre essa categoria também foram se
transformando. Os questionamentos enfrentados pelas artes visuais a partir dos anos 1960

3616 
 
 
 
 
 
colaboraram para a ruptura com determinados condicionamentos históricos e para a
inauguração de novos valores e práticas estéticas. Com a contemporaneidade, coloca-se
em discussão o papel e o lugar da arte promovendo a sua saída dos espaços idealizados
das instituições. Discussão essa que compreende a arte realizada nos espaços públicos
convertendo-se em estratégia de aproximação com a realidade e com o público.
Para Michel Foucault, pioneiro a refletir sobre o espaço e sobre as relações de poder
que através dele se estabelecem, a organização do espaço e dos elementos arquitetônicos
que compõem os espaços não determinam tudo sobre ele. Nesse sentido é importante
buscarmos sobre os vestígios da sociabilidade que podem ser encontrados nos espaços,
pois compreendemos que cultura e poder perpassam as interações em diversos planos e
dimensões, incluindo o corpo dos sujeitos envolvidos. Sobre este tema, Simmel (1983) é
influência importantíssima na constituição do pensamento coletivo, e especialmente na
contemporaneidade, na sociedade em rede, na era da informação. O autor compreende que
a sociabilidade deixa rastros, configura-se em discursos difusos e dispersos, mas também
inscritos textual e performaticamente, em grande quantidade e com grande rapidez.
Portanto a metrópole, que para Canevacci (2009) é uma metrópole comunicacional,
é fundamentada na comunicação e na cultura, “instâncias” que abrigam valores. O autor
pontua que “agora com a metrópole comunicacional, é muito mais fluida a situação”
(CANEVACCI 2009, p. 5). Essa fluidez é parte da experiência cultural e urbanística da
contemporaneidade. Nesse contexto, discutem-se as novas formas de interação e
comunicação entre os indivíduos na sociedade, tensionamento este que é o foco da
presente discussão.
O caráter plural da arte contemporânea capaz de conciliar diversas linguagens
distendeu o seu suporte tradicional para uma escala urbana, desta forma a adoção dos
espaços públicos imprime novas questões: a performance, o anônimo e a sua dissolução na
estrutura-cidade. Compreendemos que as diferentes linguagens que a arte utiliza nos
espaços públicos permeiam, além das questões físicas e culturais da cidade, outras
questões, como ser produzida pelos que estão à margem da sociedade, os que sofrem a
violência urbana, os que estão envoltos das contradições da cidade, etc. A cidade com sua
dinâmica, lugar do coletivo, da vida cotidiana se converte num reflexo do mundo e o artista
utiliza-a como meio de reflexão das relações entre o sujeito e a realidade e este é um dos
tensionamento abordados na presente pesquisa.

1.2 Metodologia
Ao refletirmos em como a cidade agora é atravessada por uma fluidez que conduz a
novas interações e como isso possivelmente propicia a explosão de vozes e manifestações

3617 
 
 
 
 
 
no urbano, perguntamo-nos como analisar essa cidade? Como observar a expressão da
pichação e do grafite nestes centros urbanos?
Para nossos objetivos, dialogaremos com os estudos de Canevacci, que no livro
Metrópole Comunicacional identifica a cidade como uma multiplicidade de vozes autônomas
que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se contrastam;
O autor também designa uma determinada escolha metodológica de “dar voz a muitas
vozes”, experimentando assim um enfoque polifônico com o qual se pode representar o
mesmo objeto justamente a comunicação urbana. A polifonia estaria no objeto e não no
método.

A cidade se caracteriza pela sobreposição de melodias e harmonias,


ruídos e sons, regras e improvisações cuja soma total, simultânea ou
fragmentária, comunica o sentido da obra. Estou convencido de que,
por meio da multiplicação de enfoques - os “olhares” ou “vozes” -
relacionados com o mesmo tema, seja possível se avizinhar mais à
representação do objeto da pesquisa, que é, neste caso a própria
cidade. (Canevacci, 2008, p.18)

Tensionando mais o tema em busca de enxergarmos a cidade multifacetada, na obra


Fetichismos visuais: corpos erópticos e metrópole comunicacional (2008), Canevacci,
aponta também alguns caminhos em como pensar este espaço urbano que deve ser numa
perspectiva heterogênea, complexa, hibridizado e multicultural. Nesta pesquisa que busca
compreender as narrativas, os re-significados propostos pelo grafite e a pichação, a escolha
pela utilização dos conceitos propostos por Canevacci é justificada pois o autor compreende
que os fetiches-visuais3 se estratificam transversalmente sobre a publicidade, arte, cinema,
performance, design, moda, escrita e até mesmo a música. Por isso, a aproximação
metodológica polifônica, isto é, de pesquisa de estilos escriturais, composições imagéticas,
lógicas irregulares que variam nos diversos capítulos e que se entrecruzam com a
autonomia relativa das imagens (Canevacci, 2008, p. 15).
Assim, parece-nos interessante conceber a paisagem urbana e os corpos nela
inseridos resgatando a força metafórica dos atratores. Portanto, se a intenção metodológica
é seguir os atratores do olhar, ou ainda, considerar o olhar- os caminhos fetichistas do olhar,
na concepção de Canevacci - como a perspectiva adotada para as reflexões a respeito das
inter-relações entre cidade e corpo, não se pode fugir das dimensões do imaginário.

                                                            
3
O antropólogo italiano Massimo Canevacci rediscute o conceito marxiano de Fetisch para compreender as
contradições da cidade contemporânea. A alteração das relações entre seres humanos e mercadorias envolve
fetichismos visuais disseminados, sobretudo, pela tecnologia digital. Esse novo estilo de vida mistura publicidade,
moda, música, arte e design – não mais mercadorias clássicas. Isso exige, então, uma “metodologia estupefata”,
polifônica, que dê conta das mutações na metrópole comunicacional.

3618 
 
 
 
 
 
Segundo Canevacci, da instância material à imaterial, a cidade se apresenta para o
olhar do sujeito que nela passeia/viaja como uma paisagem que se propõe a seduzir. Esta
experiência se manifesta no âmbito do olhar, das visualidades. A cidade/metrópole, na sua
expressão mais intensa de “mundo/lugar”, configura-se como uma experiência do olhar,
convidado a permanecer nos códigos da visualidade. O que o autor propõe é: a paisagem
urbana indistinta, sem limites, de múltiplas identidades, se apresenta ao olhar dos sujeitos
que por ela transitam.
É importante ressaltar que este universo complexo apontado por Canevacci, é
apontado também por Fortuna pelos mesmo aspectos, os de que, por exemplo, como as
cidades não cabem em representações fechadas, seus sentidos são múltiplos, intensos
tecidos por experiências individuais e às vezes contraditórias fruto de diferentes percepções.
É um cenário que merece ser problematizado pois é tecido por narrativas e discursos que
forma representações e imaginários (Fortuna, 2014, p. 129).
Outro ponto importante que fez parte da nossa metodologia, foi a entrevista semi
estruturada com perguntas abertas e fechadas buscando perceber não só a experiência em
si mas a narrativização, perceber no ambiente do urbano em que os corpos dos indivíduos
relacionam-se entre si, com a arquitetura e com o lugar, as interações sensíveis, que conduz
a sociabilidade movida pela pichação e pelo grafite.
Como ponto de partida para refletir sobre o grafite e a pichação em Belém,
buscamos entrevistar os mais variados pichadores e grafiteiros buscando extrair as mais
variadas percepções sobre a cidade, sobre a publicidade e os tensionamentos que ocorrem.
Optamos por identificar os autores das manifestações que estavam presentes em espaços
de cultura na cidade e aqueles que explicitam mensagens de resistência. A decisão pelos
locais de cultura é justificada pelos atravessamentos e tensionamentos que os autores
colocam que dela emergem na/da cidade.
Os interlocutores que contribuíram para o trabalho foi o Graf, que faz parte do
coletivo Cosp Tinta, que existe há 15 anos. O segundo entrevistado, Caos, faz parte de
grupo, criado para realizar grafites e pichações na cidade, cujo nome é TOC (Transtorno
Obsessivo Compulsivo). O terceiro entrevistado se chama K-xorro, um nome indicado pelos
outros interlocutores por ser referência em Belém por conta dos enfrentamentos e reflexões
que realiza não só nos muros mas também e ações de arte-educação. E o quarto
interlocutor, se chama Dedeh que já fez parte do Coletivo Cosp Tinta e hoje trabalha de
forma individual.
Mas antes de dialogarmos com os interlocutores é importante realizar o registro e
voltar um pouco no tempo, para refletir sobre o surgimento em Belém do grafite e da
pichação.

3619 
 
 
 
 
 

1.3 Da Pichação ao Grafite


Na busca em compreender o universo da pichação e do grafite, fez-se necessário
pontuar que, existe não só uma diferença da técnica entre os que fazem pichação e aqueles
que se propõem a grafitar, já que comumente a pichação está relacionada às gangues.
Fator esse que socialmente denigre também a imagem dos grafiteiros, conforme apontado
pelos entrevistados, pois no ato da grafitagem eles acabam sendo tratados como marginais.
Entretanto, é importante destacar que independente de qual técnica seja utilizada, se ela é
considerada legal ou ilegal, tais inscrições praticadas por esses grupos são linguagens de
identificação, narrativas que compõem suas identidades.
Analisando a relação entre imagens, corpos e cidades, percebemos como ela abriga
processos nos quais se cristalizam transformações cognitivas e perceptuais. Esta mutação
nas maneiras de experimentar e representar o mundo resulta não apenas em alterações
simbólicas, mas para Rocha e Hoff há outros processos que também envolvem isso. O
modo como tecemos nossos laços societais, nos comunicamos e vivemos o mundo como
espaço ou arena comunicacional articula-se a experiências de partilha, de vínculos corporais
mediados pela experiência urbana e a exercícios do ver e do sentir que comportam
questões, políticas, de visibilidade. (Rocha e Hoff, 2014, p.19)
Para Fábio Luís Moraes Cardoso, um dos interlocutores desta pesquisa,
artisticamente conhecido como Graf, que considera-se um ex-pichador e atual grafiteiro e
arte educador, membro do coletivo Cosp Tinta Crew, algumas experiências que colocaram
sua vida em risco enquanto atuava na clandestinidade, como membro de gangue e pichador
faziam parte de :

(...) um cotidiano violento. Eu vi amigos meus morrerem e matarem


(sic). A minha passagem do grafite pra pichação foi bem natural. Eu
só queria utilizar o spray, mas sem voltar pra pichação, então eu fui
pro grafite por saber que era ali que eu ia me sentir bem. (Graf,
entrevistado em Belém em 2017).

Essa transição da pichação para o grafite tem sido um caminho seguido por diversos
jovens e adolescentes que, seja por experiências negativas que tiveram durante suas ações
na cidade, ou inspirados pelos inúmeros coletivos de arte urbana, eles encontraram um
caminho de continuar exercendo sua arte sem os riscos que o mundo das gangues e da
pichação oferecem por conta das ações do estado. John D. H. Downing (2002) comenta
como o grafite exerce esse papel de mídia radical alternativa, sobretudo como instrumento
de comunicação entre jovens e adolescentes. Mais do que isso, o grafite é uma mídia que

3620 
 
 
 
 
 
apresenta mistura das culturas popular e de oposição, qualidade direta do impacto estético,
acessibilidade de baixo custo e poder ser exercido em situações de extrema repressão, para
o autor:

São interações de esfera pública que incitam as próprias conversas e


interações (ainda que sub-reptícias) que nutrem os movimentos
sociais e o movimento rumo à democracia ou a uma cultura de
feições democráticas mais fortes. (Downing, 2002).

Por se tratar de uma manifestação da identidade (tanto grupal como individual), de


processos de experiência e de sociabilidade o grafite possui em sua essência um viés
político, mas ainda assim para algumas pessoas é difícil precisar qual o papel de uma forma
de expressão tão controversa, então, historicamente, a recriminação sempre fez parte dos
movimentos dessa mídia radical. Dentre muitas coisas que podemos apontar é que essa
arte surge de uma necessidade de expressão. Para a professora e designer Donis A.
Dondis, cuja a obra, Sintaxe da linguagem Verbal, trata do alfabetismo visual, o ser humano
sempre precisou se expressar e isso envolve muitas razões, portanto:

Quais são as razões básicas e subjacentes para a criação


(concepção, fabricação, construção, manufatura) de todas as
inúmeras formas de matérias visuais? As circunstâncias são muitas,
algumas vezes claras e diretas, outras multilaterais e sobrepostas. O
principal fator de motivação é a resposta a uma necessidade, mas a
gama de necessidades humanas abrange uma área enorme. Podem
ser imediatas e práticas, tendo a ver com questões triviais da vida
cotidiana, ou podem estar voltadas para necessidades mais elevadas
de auto-expressão de um estado de espírito ou de uma ideia (Dondis,
2007, p. 183).

Assim, a cidade com suas complexidades, com questões triviais da vida cotidiana, acaba por
se constituir como metáfora da própria realidade, em que as artes visuais, muitas das vezes
associada à arquitetura, colaboraram na revelação e reflexão deste processo. Trata-se, pelo
que observamos de um processo que ora modifica, ora concede ao indivíduo a capacidade
de interpretar e utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no
projeto de quem o determinou; enfim, dar-lhe a possibilidade de não assimilar, mas de reagir
ativamente ao ambiente.

1.4 Grafite em Belém: Coletivo Cosp Tinta


Na capital paraense, lócus da pesquisa, o movimento grafite surge no final da década
de 90 e chega por meio da influência dos dançarinos de break e cantores de rap e hip-hop,
segundo o relato de Graf é nessa perspectiva, de estar na rua, mostrar as suas ideias no

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ambiente em que a trânsito de pessoas, que o Coletivo Cosp Tinta percebeu que a arte do
grafite poderia ser considerada uma das formas de comunicação e também de contravenção
radical.
Criado em 2002, atualmente o coletivo possui sete membros: Fábio Graf, Ed Paulo,
Rog, DK, Dwe, Marcelo Boção e seu fundador, George. A filosofia do grupo é propor
intervenções em locais de risco e ao mesmo tentar mostrar que os jovens podem seguir
outros caminhos além da pichação e da marginalidade expressando-se de forma artística.
Na fala do entrevistado há a busca da utilização do poder da arte urbana como arma social,
Para isso, o coletivo promove diversas ações com o intuito de mostrar, principalmente para
os jovens que se encontram em situação de risco, que o grafite pode ser usado como
instrumento de luta. Segundo o relato de Graf, a maioria dos membros que compõem o
grupo atualmente é proveniente de gangues, e antes de entrarem para o mundo do grafite,
praticavam pichação pelos muros da cidade de Belém. Mas após algumas situações, busca
por outras perspectivas se tornou maior e eles resolveram sair da clandestinidade para
mostrar, à luz do dia e sem medo de repressões o trabalho artístico que desenvolvem e o
poder de sua arte como mídia alternativa.
Seguindo a perspectiva de estudo apontado por Canevacci de que é importante
perceber que na cidade seus sentidos são múltiplos, intensos, tecidos por experiências
individuais e às vezes contraditórias fruto de diferentes percepções e o posicionamento
político que a arte pode ter. Para o interlocutor Caos, a forma de enfrentamento é o grafite,
uma forma de resistência e essa resistência é exercida de diversas formas. Em Belém, ele
afirma que um dos alvos de enfrentamento é contra muitas das vezes a publicidade. Nas
palavras do entrevistado: “O material está todo na rua e ninguém nos pergunta se queremos
aceitar ou consumir. Eles vão jogando, eles intervém também no espaço urbano, mas
ninguém se incomoda. Porque é uma intervenção que gera dinheiro.”
Segundo o entrevistado, outra forma de resistência que o grafiteiro encontra é o
grafite político. Que geralmente apresenta-se na forma de uma frase, mas que só o ato em
si para os membros do coletivo é também uma resistência. Nas palavras do interlocutor: “E
até uma resistência da gente sobre a cidade. Tipo, é uma mensagem que enviamos, do tipo:
tá vendo essas ruas perigosas, mesmo assim estou vivo escrevendo nelas, o que é mais
perigoso ainda”.para o entrevistado, por conta da cidade de Belém ser perigosa, a
resistências muitas das vezes é o ato de estar andando nela.
O que passa despercebido é que constantemente perdemos espaço para a
publicidade, para a propaganda, nas palavras de Caos: “a gente ganha espaço, perde
espaço. Fazemos intervenções em cima de outdoor, de propaganda política. Já que eles
estão na rua e a gente também está”. Quando perguntado se a forma que ele se expressa e

3622 
 
 
 
 
 
a sua intenção é compreendida pelas pessoas que transitam pela rua, para o entrevistado
“rola o pré-conceito mas também rola como eu já vi acontecer, da pessoa se sensibilizar da
intervenção, geralmente é um trabalho de grafite. E aí ela passa a ver outras intenções na
rua” (Caos, 2017). Mas que essa percepção ela só muda quando a mensagem está bem
elaborada na parede, geralmente quando é um grafite. Possivelmente um mensagem mais
artística, esteticamente falando, tendendo pro lado mais comercial mais industrial da coisa
(Caos, 2017). Que é diferente do que ele faz.
É possível propor um imaginário da cidade a partir da experiência urbana, por meio
da leitura da aventura citadina e suas corpografias? A observação participante e as
entrevistas mostraram uma importante relação entre as intenções comunicativas e a
experiência proporcionada pela própria cidade. Caos, por exemplo, quando perguntado
sobre como ele percebe essas expressões comunicativas esclareceu: que quando tem uma
narrativa, quando quer dizer alguma coisa, quando tem uma frase parece que tem mais
aceitação pelo público e uma maior interação: “Elas pensam: não é só um rabisco, quer
dizer alguma coisa” (Caos, 2017).

Figura 1

Fonte: imagem cedida pelo grupo (2017)

Sobre as intenções pelas quais, Caos é movido a pichar, ele relata que há muitos:
“os motivos fúteis”, como passa muitas pessoas por uma rua movimentada “então queremos
riscar pra ser visto”. E pode ser contra a publicidade, avaliando o que tem no local,
dependendo do que já está escrito na rua. Sobre a percepção das pessoas sobre a real
intenção de quem realiza a pichação, ele acredita que geralmente as pessoas não
enxergam.
Esta concepção, ao qual o imaginário urbano é atravessada pelas práticas sociais
nele contido, está presente em diversas obras que tratam da questão, como em Certeau
(1994). O autor estabelece a divisão entre o que chamou de a “cidade conceito” e a “cidade

3623 
 
 
 
 
 
praticada”. A primeira está inscrita no contexto da “utopia urbanística”, na visão dos
planejadores urbanos ao produzir um projeto de cidade. A cidade praticada, por sua vez,
agrega as relações sociais em torno deste lugar, dotando-a de sentido simbólico para além
de sua materialidade concreta.
Essa relação entre quem grafita ou picha e aqueles que transitam o olhar pela cidade
e como um influencia o outro, em um processo contínuo, em como as pessoas percebem
essas expressões é apontada por Canevacci também, para o autor a cidade é um
organismo subjetivo que absorve como uma esponja o que acontece e elabora a sua própria
linguagem.

Esse tipo de linguagem que a cidade, especialmente a área


metropolitana elabora, influencia profundamente o tipo de
comportamento das pessoas que moram nessa área metropolitana.
Por isso seria possível dizer que a linguagem da metrópole é
baseada sobre lugares, espaços, e, principalmente sobre interstícios,
isto é, um espaço que está in between, que está entre, um espaço
conhecido e um desconhecido.” (Canevacci, 2009, p.15)
Essa pluralidade de imagens que encontramos na cidade para alguns autores,
destaca-se como uma musealização do urbano. Para Rocha e Hoff, “na simbiose entre o
lugar midiático e o espaço-tempo urbanos, caminha-se do espetáculo para a introjeção dos
artifícios: estetização da cultura, para alguns; musealização do urbano, para outros”. Mas
também a explosão em cascata de imagens-mundo, multiplicação das miradas, profusão
dos imaginários, contrabando irrefreável de afetos e sentidos. De um lado, é defensável
localizar o papel seminal que a experiência metropolitana desempenha na caracterização de
uma sociedade midiática. Também seria inegável o reconhecimento de como as malhas e
rede urbanas, e os fluxos que lhe são concernentes, fundaram-se irreversível e
progressivamente em termos de processos comunicacionais, muitos deles de fundamento
tecnológico ou de estruturação tecnológica ou informacionalmente mediada ( Rocha e Hoff,
2014,p.19).
Dentro dessa mesma perspectiva para o coletivo Cosp Tinta, as mensagens
transmitidas nos muros da cidade tentam fazer com que as pessoas possam refletir sobre
questões cotidianas, ressaltando temas que usualmente não são pautados pela mídia
tradicional. O que para o autor Figueiredo:

(...) o desenvolvimento desses meios de comunicação possibilitou


uma participação/resposta cada vez mais ativa das pessoas que,
historicamente, eram consideradas apenas espectadores do que
fosse transmitido por esses canais. E principalmente, possibilitou
também a articulação dos diversos grupos que não compartilhassem
da mesma visão de mundo dos dominantes. (Figueiredo, 2004, p. 24)

Para o outro interlocutor, o K- Xorro, que denomina a sua expressão nas ruas como

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pintura, o estado é quem criminaliza tanto o grafite como a pichação. Ela existe porque o
estado, nutre isso, cria marginais para dar emprego para os policiais. Em suas palavras: “é
uma forma de sustentar o sistema corrupto de segurança. Criam a insegurança para
sustentar o sistema corrupto. Temos o carro prata, o carro preto em Belém. O policial
matando negros na favela”. Para o interlocutor, essas ações não são outra coisa, senão um
crime organizado. “Que criminaliza diversas expressões na cidade para se auto-sustentar”
(K-xorro, 2017).
O interlocutor, que hoje também é professor de artes visuais, compreende que por
ter vindo das ruas, hoje consegue entender porque o pichador é tratado da forma que é
tratado, criminalizado na escola quando tenta colocar sua tag. O entrevistado inclusive
aponta a obra de Foucault, Vigiar e punir (1975), como estudo que analisa o sistema que
rodeia a relação das pessoas em suas expressões na cidade e o estado: “o professor como
uma engrenagem do sistema para criar um problema para expulsar um aluno que está com
mensagens de contravenção. O professor que não conhece vai encontrar aquele cara que tá
pichando na cadeira como um crime” (K-xorro, 2017).

Figura 2

Fonte: Acervo da pesquisadora (2017)

CONSIDERAÇÕES
De forma preliminar pensamos que a necessidade de comunicação e expressão dos
anseios, dúvidas, dilemas, transforma-se em responsabilidade social na medida em que os
interlocutores tomaram para si o papel de denunciar o males que afligem a comunidade (em
sua maioria, nas periferias) de que eles fazem parte. Desse modo, o grafite apresenta mais
uma característica de mídia radical quando usa de sua plataforma de comunicação para
expor o que há de errado com o ambiente em que vive e tenta de alguma forma mudar a
ordem estabelecida, contando a história que os grandes meio de comunicação não contam e
tentando transmitir outras mensagens para a sociedade.
Quando percebemos segundo os relatos, a utilização do grafite como recurso
pedagógico extracurricular, nota-se uma reconfiguração do seu papel: se antes, a pichação
3625 
 
 
 
 
 
e o grafite eram vistos como demarcação de território, saudações e ameaças por gangues,
hoje, o grafite trabalha com a inclusão social e expressão não-violenta de sua identidade.
Analisar esse processo pela perspectiva dos estudos da sociedade contemporânea deixa
claro como essa mídia alternativa é essencialmente mutável e inconstante. Talvez daí venha
seu apelo com o público jovem e a sua capacidade de reinvenção.
Nas escolas, centros comunitários, igrejas, o grafite ganhou espaço como mídia de
acesso rápido e barato, que chama a atenção das pessoas que circulam pela cidade para os
desenhos elaborados e permite análise crítica. Ideia esta apontada por Downing (2004), que
compreende que cultura popular, hegemonia, resistência, movimentos sociais, diálogo,
democracia, são conceitos que caminham junto com o conceito de mídia radical alternativa,
daí portanto os relatos atravessarem diferentes perspectivas.
De acordo com Downing, não basta ter um discurso puramente transformador, mas a
atuação dessa mídia no campo do real deverá ser obrigatoriamente transformadora. O autor
acredita que “comunicadores e intelectuais/ ativistas se integrem organicamente com as
classes trabalhadoras para o desenvolvimento de uma ordem social justa e culturalmente
superior.” (2002, p. 48). Os alternativos, portanto, materializam aquilo que Downing acredita
ser essencial; é da matriz da mídia radical alternativa, o de dar voz independente da pauta
dos poderes constituídos. (Downing, 2004).
Essa mutação nas maneiras de experimentar e representar o mundo resulta não
apenas em medidas de contravenção mas puramente alterações simbólicas. O modo como
tecemos nossos laços societais, nos comunicamos e vivemos o mundo como espaço ou
arena comunicacional articula-se a experiência de partilha, de vínculos corporais conforme
os estudos apontados por Canevacci.

“É claro que essa performance passiva de olhar e ir embora ainda


continua acontecendo, mas em grande parte, o que a comunicação
contemporânea está favorecendo é que o público seja parte
constitutiva da obra e que possa representar a sua própria história, o
seu próprio conto, a sua própria imaginação.” (Canevacci, 2009, p.12)

Percebemos então as principais diferenças que devem ser pontuadas entre a


pichação e o grafite segundo nossos interlocutores: enquanto o primeiro é motivado pela
necessidade de chamar atenção, de ganhar fama e demarcar território em geral em seu
estágio inicial, o segundo visa expressar de maneira artística conteúdos sociais e culturais e
tenta modificar o cenário urbano. Enquanto os pichadores geralmente atuam na escuridão e
na clandestinidade, os grafiteiros por mais que atuem na clandestinidade em determinados
momentos, por conta da sua estética possuem certo reconhecimento, principalmente das
comunidades carentes onde promovem ações dentro da cidade.

3626 
 
 
 
 
 
Por outro lado, a cidade é, pois, representação, construção visual e imaginária, que
se explica desde o mapa urbano que a configura, as ações dos interlocutores que nela se
expressam, na sua forma de organização que explicita o modo de conceber o espaço
construído. A cidade é plural, que ora concretiza a visão de mundo dos que apenas nela
trafegam, ora demonstram o universo cultural dos homens que a edificaram e que, ao longo
do tempo, continuam reformulando-a, ampliando-a, transformando-a. Nas palavras de
Rocha e Hoff: “Enfim, conferindo-lhe novas edificações e significações. Afinal, a cidade é
metáfora - metáfora de um sonho de civilidade e também metáfora das perversões desta
mesma civilidade”. (Rocha e Hoff, 2014, p. 21).
REFERÊNCIAS

CANEVACCI, Massimo. A comunicação entre corpos e metrópoles. Revista Signos do


Consumo – V.1, N.1, 2009. P 8 – 20

CANEVACCI, Massimo. Fetichismos visuais - Corpos Erópticos e Metrópole


Comunicacional. São Paulo, SP: Ateliê Editorial, 2008.

Cosp Tinta Crew - Arte, Cor e Luta. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?


v=OZ6Djz4qgRw> Acesso em 15 de junho de 2017

DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual; tradução: Jefferson Luiz Camargo - 3ªed.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.

DOWNING, John D.H. A imprensa. In: Mídia Radical: rebeldia nas comunicações e
movimentos sociais. John D.H. Downing com colaboração de Tamara Villarreal Ford,
Genève Gil e Laura Stein. São Paulo: Editora SENAC SP. 2002.

FIGUEIREDO, João Batista Leão; UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. De pichador a


grafiteiro: valores e transformação da atividade artística em adolescente. 2004. 156 f.:
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Pará, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento, 2004.

Grafite vai transformar paisagens de Belém. Disponível em


<http://www.ebc.com.br/cultura/galeria/videos/2013/09/grafite-vai-transformar-paisagens-de-
belem> Acesso em 10 de junho de 2017.

ROCHA, Rose de Melo; HOFF, Tânia. Culturas do Consumo, Corporalidades e urbanidade


como tecidos contemporâneos. IN: FREITAS, Ricardo Ferreira [et al.] Corpo e consumo
nas cidades - Volume 2. 1.ed. - Curitiba, PR: CRV, 2014. (Série Sabor Metrópole).

SIMMEL, G. A natureza sociológica do conflito; a competição; conflito e estrutura de


grupo; sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal. In: MORAIS FILHO, E.
(Org.). Simmel. São Paulo: Ática. 1983. p. 122-181.

3627 
 
 
 
 
 
GT 07 – Mídia, produção de imagens e estratégias de discursos em disputa

“DAS QUEBRADAS DA VIDA” PARA O FACEBOOK: MEMES E A CONSTRUÇÃO


DE SUBJETIVIDADES DISCURSIVAS E MIDIÁTICAS SOBRE A PERIFERIA DE
BELÉM

Daniel Loureiro Gomes (UFPA)1


[email protected]
Manuela do Corral Vieira (UFPA)2
[email protected].
Danila Cal (UFPA)3
[email protected]

RESUMO
Considerando a internet como heterotopia por excelência (Foucault, 2003; Gregolin, 2015),
este trabalho analisa discursivamente a produção de subjetividades da periferia de Belém a
partir da página do Facebook “Malaco Intelectual” por meio de memes e comentários
publicados nela. Ao pensar os memes como unidade simbólica de propagação cultural
(Dawkins, 2007), gênero midiático (Chagas, 2015; Shifman, 2014) e como unidades
enunciativas (Foucault, 2008) situadas em condições históricas específicas, propomos uma
investigação sobre a visibilidade construída sobre a periferia de Belém nessa página, em
que, além dos memes como materialidade de análise, seus comentários legitimam - ou não -
aquilo que é dito nos memes. Assim, a análise dos memes publicados e legitimados por um
perfil sobre a periferia permite a compreensão de como esse processo se desdobra em
demandas por reconhecimento (Honneth, 2003) e pela construção de uma gramática moral
que desloque os sujeitos de periferia dos lugares tradicionalmente atribuídos a eles por meio
dos discursos sociais e midiáticos hegemônicos (Rocha; Maia, 2014). Como referencial
metodológico, partimos da Análise do Discurso de orientação francesa e pensada com
Michel Foucault que permite entender de que forma são discursivizadas as subjetividades
do morador da cidade, pertencente ou não a essa periferia, e que historicamente instituiu um
processo de colonização no qual as heranças africanas e indígenas são silenciadas pelo
seu acondicionamento em “lugares” minoritários da sociedade, sendo esse silenciamento
parte dos mecanismos do dispositivo colonial (Foucault 2006; Neves, 2015) que simbolizam
o discurso como uma das arenas de disputa social.

Palavras-chave: Redes Sociais na Internet, Memes, Periferia.

                                                            
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Pará (UFPA),
graduado em Letras e especialista em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do
Pará (UEPA).
2 Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará

(UFPA) e professora na Faculdade de Comunicação (FACOM) e no Programa de Pós-Graduação em


Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCom) da UFPA . Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Consumo e
Identidade (Consia).
3 Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da

Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da UFPA.


Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia – Compoa (CNPq/UFPA).

3629 
 
 
 
 
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar as subjetividades da periferia produzidas no
Facebook por meio da página de internet Malaco Intelectual, nela são publicados memes
que produzem um discurso social sobre a periferia - conceito que discutiremos no item 2
deste trabalho - cujo sujeito principal é aquele que dá nome à página. Um personagem
fictício nas redes sociais, mas que evoca uma figura social marginalizada por não ser o
jovem da elite, por não morar em bairro nobre, com acesso a diversos bens de consumo e
culturais.
Dentro de uma perspectiva discursiva, os memes precisam ser vistos a partir de
sua condição de existência histórica e social, para que se entenda esse tipo de texto como
uma produção situada em contextos específicos de produção e circulação. Dessa forma,
Foucault já nos sinalizava para a compreensão dos discursos em sua emergência histórica e
suas capacidades de reprodução.
É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua
irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa
dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido,
transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de
todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à
longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância.
(FOUCAULT, 2008, p. 28).

O termo meme aparece pela primeira vez, originalmente, em 1976 na obra O Gene
Egoísta, de Richard Dawkins. Nela, o autor designa memes como entidades mentais
capazes de transmitir informações, saberes e comportamentos, equivalendo-o aos genes,
que transmitem características biológicas.
Exemplos de memes são melodias, ideias, "slogans", modas do vestuário,
maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os
genes se propagam no "fundo" pulando de corpo para corpo através dos
espermatozoides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-
se no "fundo" de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um
processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação.
(DAWKINS, 2007, p. 148).

Assim, podemos considerar os memes como unidades de reprodução cultural de


ideias, de enunciados, de objetos pertencentes a uma dada sociedade como parte de suas
práticas. A partir dessa consideração, os conteúdos que viralizam na internet compreendem
parte desse arcabouço cultural produzido e compartilhado na rede, cujo efeito está
relacionado a alguma identificação entre o texto e seu leitor, por meio de uma linguagem
humorística, mas que é capaz de disseminar ideias e opiniões acerca de temas diversos
como política, cultura, comportamentos e cotidiano. O que se vê são valores intersubjetivos

3630 
 
 
 
 
que se constroem em imagens de si (na terminologia de Goffmam, 1972, o self) e do outro,
entre os quais se produzem reconhecimentos.
Assim, os desejos de face, os valores sociais e os movimentos de afiliação
e/ou desafiliação com o grupo, com os interlocutores e com os próprios
valores daquele grupo, podem ser representados e/ou reivindicados através
de discursos cômicos, satíricos, críticos, etc., através da propagação
memética, com os mais diversos objetivos interacionais. (BARRETO, 2015,
p. 40)

É por meio dessa linguagem humorística que se reivindicam, com linguagem risível,
determinados valores, prática e situações que circulam no cotidiano dos diversos sujeitos da
periferia. Contudo, vale ressaltar que essa perspectiva de humor é também uma forma
velada de denunciar mazelas, numa espécie de jogo de eufemismos sobre seus próprios
problemas. O que nos permite entender que, nesse gênero discursivo, a construção de
sentidos é algo social e crítico, que está além do humor e que explora significados que estão
além do signo semiótico e linguístico. (GUERREIRO; SOARES, 2016, p. 192)
Neste trabalho, consideraremos os memes publicados entre os meses de janeiro e
fevereiro de 2017, como forma de perceber as pluralidades de uma cidade em curto período
de tempo a partir de seus conteúdos publicados e os respectivos comentários como forma
de entender como esse discurso sobre Belém é recebido por seus moradores. Para isso, os
memes serão considerados como gêneros discursivos, práticas de linguagens que estão
associadas a funções específicas na sociedade. O gênero do discurso, nos dizeres de
Machado é
[...] concebido como uso com finalidades comunicativas e expressivas não é
ação deliberada, mas deve ser dimensionado como manifestação da
cultura. Nesse sentido, não é espécie nem tampouco modalidade de
composição; é dispositivo de organização, troca, divulgação,
armazenamento, transmissão e, sobretudo, de criação de mensagens em
contextos culturais específicos. (2007, p. 158).

Outra importante perspectiva assumida por nós é a de que os memes devem ser
considerados como gênero midiático, uma vez que essa visão “pressupõe tentar
compreender as motivações e manifestações que são expressas por meio destas peças de
conteúdo e comportamentos específicos.” (CHAGAS et al, 2015, p. 13). Nesse sentido, é
preciso estabelecer relação entre o conteúdo veiculado e suas motivações de exposição e
compartilhamento, em meio à web, no qual usuários tornam-se (re)produtores ativos de tais
conteúdos.
Como primeiro exemplo, temos a página “Malaco intelectual”, em que foi publicado
o meme a seguir, que conta com 217.100 seguidores e que foi criada no dia 1 de agosto de

3631 
 
 
 
 
2013. Até a data de 09 de outubro de 2017, a página possuía 2040 publicações. É uma
página dedicada à publicação de memes em que vários temas sobre a cidade de Belém e a
cultura paraense estão presentes. Assuntos de grande repercussão regional ou nacional são
traduzidos para uma linguagem que mescla o humor e crítica social.
A figura social que dá nome à página, malaco, é socialmente visibilizada na cidade
de Belém como um jovem do sexo masculino que, pertencente à periferia, é marcado por
práticas culturais locais. Vestimentas, registro linguístico, preferências musicais e etc. são
práticas sociais que instituem a esse sujeito um lugar marginalizado, uma vez que não
pertence ao centro – Jurunas, Terra Firme e Guamá são os bairros considerados periféricos
com os quais esses sujeitos mantêm relação e é uma lenda, um feito heroico e quase
impossível, por nunca ter sido assaltado neles (Fig.1). Assim, o malaco surge como a figura
invisibilizada socialmente, mas que ganha espaço na web em virtude dessa pluralidade de
discursos permitidos por ela.
É nessa periferia que estão aqueles que são marginalizados desde o processo de
colonização, um dispositivo (FOUCAULT, 2008) que se altera e remodela, demonstrando
quais sujeitos pertencem a esse lugar. Não coincidentemente, a figura do homem negro é
aquele que sobrevive ao assalto na periferia, um sujeito determinado historicamente e fora
de uma ordem hegemônica branca e europeia que ocupa os centros da cidade de Belém.
(NEVES, 2015, p. 28).
FIGURA 1

FONTE:
https://www.facebook.com/malacointelectual/photos/a.143412345820152.29324.143241805837206/6900028778
27760/?type=3&theater. Acesso em: 27 de Mar. 2017.

3632 
 
 
 
 
Nem sempre a figura do malaco está presente como tema central, mas seus
memes são capazes de indicar visões de mundo próprias da periferia, seus movimentos,
sujeitos, práticas, etc. Assim, é importante considerar o valor histórico dos enunciados
produzidos, uma vez que estão sujeitos a
[...] falhas abertas por sua não-coerência, em sua superposição e
substituição recíproca, em sua simultaneidade que não pode ser unificada e
em sua sucessão que não é dedutível; em suma, tem de dar conta do fato
de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma
história [...] (MACHADO, 2007, p. 144.).

Portanto, discutir sobre a periferia faz-se necessário para entender como sua
configuração social atravessa o discurso do sujeito intitulado malaco, tendo em vista que
não são apenas condições geográficas que o colocam em um lugar da relação periferia/não
periferia. É preciso observar como essa subjetividade é construída em meio a uma cultura
própria que o singulariza enquanto sujeito social, discursivo e midiático.
Nosso interesse se pauta pela discussão acerca do cotidiano de uma cidade cujos
bairros periféricos estão fora dos debates públicos midiáticos e hegemônicos, os quais são
permitidos, produzidos e disseminados pela web e suas linguagens midiáticas, “ferramenta
na qual os cidadãos têm acesso aos fatos públicos da agenda política, conferindo-lhes
visibilidade e contribuindo assim para maior controle e vigilância sobre a ação dos
representantes”. (FREIRE, 2016, p. 36). Os cidadãos da periferia agora podem ser ouvidos,
em seus problemas, seus desejos, críticas e subjetividades, por meio das redes sociais que
lhes dão a oportunidade de serem parte colaborativa dessa mídia.

2. DE QUE PERIFERIA ESTAMOS FALANDO


A formação de grandes metrópoles tem colocado em evidência o poder econômico
e desenvolvimentista de algumas regiões do mundo. Nesse cenário, o Brasil destacou-se
pela urbanização mais rápida que a da Europa a partir da década de 50, um processo em
que as formas de ocupação foram irregulares em virtude do grande volume de pessoas que
migraram para os novos centros urbanos, seduzidas pela industrialização oportunizada por
uma política desenvolvimentista no governo Kubitschek. Começam então a surgir as
periferias, como nos mostram Castro e Freitas (2014 apud Santos, 2007).
A pobreza gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de
trabalho e das classes sociais, superpõe-se à pobreza gerada pelo modo
territorial. Este, afinal, determina quem deve ser mais ou menos pobre
somente por morar neste ou naquele lugar. Onde os bens sociais existem
apenas na forma mercantil, reduz-se o número dos que potencialmente lhes
têm acesso, os quais se tornam ainda mais pobres por terem de pagar o

3633 
 
 
 
 
que, em condições democráticas normais, teria de lhes ser entregue
gratuitamente pelo poder público. (CASTRO; FREITAS 2014, p. 74, apud
SANTOS, 2007, p. 143-144).

A exclusão leva os moradores da periferia a diferentes formas de construção


subjetiva, pois, ao se considerarem não pertencentes às elites econômicas e culturais, os
residentes dessas áreas fomentam práticas que os singularizam como pertencentes a essa
periferia. Há uma série de fatores que acabam aproximando a população dessas áreas, uma
vez que suas relações de convivência tendem ao partilhamento das mesmas condições
sociais, culturais, linguísticas, etc.
As periferias constituem-se como espaços sociais de segregação/exclusão
social no Brasil e no mundo. Geograficamente, um espaço que se distancia
do espaço central das cidades, entre as cidades e entre países (daí cidades
e países periféricos na ordem capitalista mundial), também conglomera
populações segregadas e excluídas pela classe social, pela raça, por seu
registro linguístico e seus hábitos e produções culturais, entre outros
caracteres. (PAULA; PAULA, 2011, p. 115).

É em virtude dessa segregação que se torna possível agregar, uma vez que a
aproximação entre esses sujeitos da periferia lhes oportuniza a vivência coletiva de práticas
em comunidade, cujo reconhecimento entre si e de si é um fator preponderante para que a
unidade social se concretize. Para Honneth (2003), a estima social é um valor de
autorrealização ocasionado pela coletividade, ou seja, os indivíduos se satisfazem em
virtude de, intersubjetivamente, praticarem a solidariedade como forma de horizontalizar as
relações. “Seu alcance social e a medida de sua simetria dependem então do grau de
pluralização do horizonte de valores socialmente definidos.” (HONNETH, 2003, p. 200)
Nota-se, assim, que a exclusão e marginalização de tais sujeitos permite a eles
formas de visibilidade, buscar por promoções sociais que os distingam dos demais da
“cidade”. Nessa distinção, surge a ideia de quão heterotópica é Belém, uma cidade plural
com suas mazelas e abandonos pelo poder público, ao mesmo tempo em que bairros de
alto padrão se avizinham e aprimoram o processo de exclusão de seus sujeitos. Embora
essa periferia esteja concretize sua coesão por meio de formas de apropriação e construção
subjetivas pela mídia e por discursos que os fazem emergir no espaço virtual.

3. SUBJETIVIDADES NA REDE
Pensar a periferia não se restringe aqui a apenas pensá-la como uma demarcação
geográfica entre centro-periferia, mas como um espaço social de construção de
subjetividades que capitaliza práticas singulares de visibilização. Os problemas da periferia,

3634 
 
 
 
 
ao serem observados pelas lentes das páginas de memes, não são fatos noticiáveis, na
verdade tornam-se formas de construções sociais que relativizam a realidade desse espaço
e de seus moradores. Assim, pensar a web como outra forma de espaço, faz-se necessário
em virtude de suas múltiplas capacidades de linguagens, discursos, subjetivações e práticas
interativas, mas, acima de tudo, de permitir que seus usuários produzam colaborativamente
conteúdos a serem publicados e compartilhados em redes sociais.
As redes sociais são um espaço online, uma dimensão virtual da realidade em que
relações subjetivas são criadas ou mesmo são recriadas a partir do off-line. As organizações
sociais estabelecidas nesses espaços redimensionam práticas culturais que simbolizam o
cotidiano, estabelecendo a partir de diferentes linguagens, novas subjetividades que estão
para além do espaço. Como afirma Gregolin (2008, p. 94).
Como dispositivo social, a mídia produz deslocamentos e
desterritorializações. Ao mesmo tempo, esse trabalho discursivo de
produção de identidades cumpre funções sociais básicas tradicionalmente
desempenhadas pelos mitos - a reprodução de imagens culturais, a
generalização e a integração social dos indivíduos.

A noção de espaço também sofre modificações consideráveis se partirmos da ideia


de que as redes sociais na internet são uma dimensão territorial. O território torna-se um
espaço praticado a partir da interação entre os indivíduos que o constroem, ideia que se
coaduna à de Certeau (2008) acerca da consideração dos aspectos subjetivos na
construção e operacionalização dos conceitos de espaço, território e lugar (Vieira, 2013, p.
47).
Dessa forma, as redes sociais da internet são como outros espaços que existem
online em que fluem identidades a partir das quais os sujeitos tornam virtual aquilo que é
praticado em interações não virtuais. Caso consideremos um espaço como a periferia,
seremos capazes de perceber como ela é instituída online, com múltiplas faces que
abarcam diferentes sujeitos e práticas sociais. Assim, a periferia online seria outro espaço
da periferia off-line.
Em “Outros Espaços”, Foucault (2013, p. 415) afirma que em qualquer civilização
existem espaços reais delineados pela própria sociedade que se efetivam como
contraposições, espaços que estão dentro da cultura, mas fora de todos os lugares. Ao
serem esquecidas pelo poder público, dominadas pelo poder paralelo da violência e
simbolizarem a exclusão, as periferias seriam como “heterotopias” de uma metrópole. Está
lá, localizável, viva, mas ao mesmo tempo silenciada pela visibilidade da grande mídia e da
própria sociedade não periférica.

3635 
 
 
 
 
Publicado em 25 de janeiro de 2017, o meme a seguir (Fig. 2) apresenta uma rua
alagada pela qual um transporte incomum para esse tipo de via passa, um barco. Nele, o
enunciado “Terra Firme São Braz” referencia a cidade de Belém por meio de um de seus
bairros. A imagem carrega uma hipérbole que denota o grau do problema trazido pela
ausência do poder público, uma vez que o tratamento adequado de esgoto e escoamento
pluvial de vias parecem não ser comuns na periferia da cidade. Vale ressaltar que a
referência à “Terra Firme” pode ser considerada como um recurso de hiponímia, pois a
identidade individual do bairro carrega a identidade coletiva da periferia, pois os
alagamentos são um fato constante nos diversos bairros considerados periféricos em
Belém.
FIGURA 2

FONTE:
https://www.facebook.com/malacointelectual/photos/a.143412345820152.29324.143241805837206/6870034614
61035/?type=3&theater. Acesso em 27 de Mar. 2017.

Esse meme revela uma periferia, que além de sofrer com a violência, também está
exposta a problemas de saúde pública, transportes e saneamento. É plurissignificativa a
leitura do quanto esses bairros estão dentro e fora de Belém, muitos ao lado de bairros de
alto padrão, mas que padecem de problemas básicos. Uma visível heterotopia de exclusão,
na qual estar em Belém não é estar nela, pois as condições de moradia e mobilidade urbana
são prejudicadas pela ausência do poder público.
Com 516 curtidas, 91 compartilhamentos e 16 comentários, essa publicação torna
visível os diferentes graus de engajamentos dos usuários da rede social com esse meme,
pois curtidas, compartilhamentos e comentários são formas distintas de se inserir e interagir
com a publicação. Recuero (2014), aponta que “Comentar” é uma ação que demanda maior
engajamento por parte daquele que o faz, interessa a uma visibilidade participativa,

3636 
 
 
 
 
permitindo assim a incursão em debates. Já o ato de “Compartilhar” é a valorização da
informação por meio da visibilização desta frente aos demais usuários, a clara intenção de
promover um conteúdo para os amigos da rede. Por fim, o botão “Curtir” funciona como
[...] uma forma de tomar parte na conversação sem precisar elaborar uma
resposta. Toma-se parte, torna-se visível a participação, portanto, com um
investimento mínimo, pois o ator não necessariamente precisa ler tudo o
que foi dito. É uma forma de participar da conversação sinalizando que a
mensagem foi recebida. Além disso, ao “curtir” algum enunciado, os atores
passam a ter seu nome vinculado a ele e tornam público a toda a sua rede
social que a mensagem foi “curtida” [...]. (RECUERO, 2014, p. 119).

Esses números de interações com a publicação revelam uma desproporção entre


tais atividades, pois há uma valorização de curtidas e uma menor participação por meio de
comentários. Isso é um importante indicativo de como os usuários que pertencem à rede
preferem sinalizar a leitura de conteúdos, assumindo uma postura menos expositiva. No
entanto, há que se salientar um número de compartilhamentos que supera o de
comentários, algo incomum em publicações, já que a promoção de debates é muito
frequente por meio de comentários. Tais compartilhamentos induzem a uma percepção de
como os usuários da rede buscam incorporar aos seus discursos o conteúdo veiculado pela
publicação e também a vontade de fazer circular tais discursos.
Ao analisar os comentários, temos a concordância dos usuários quanto a essa
problemática: “invejosos dirão que é montagem”, no qual a alusão à “montagem” ironiza a
possível “inverdade” representada na imagem, dando a ela uma crítica condição de
conformismo diante do contexto; “cara, isso é Belém, isso é Pará”, o pronome referindo-se à
imagem categoriza não apenas a periferia, mas a cidade como um todo, demonstrando que
esse tipo de fato já é cotidiano na realidade do morador de Belém; “Tem que bota uma via
João Paulo 2 curió Utinga”, discurso que ratifica a noção de que a problemática pertence
aos demais bairros, uma vez que o “Curió Utinga” também pertence à periferia da capital.
O comentário, portanto, parece envolver um maior engajamento do ator com
a conversação e um maior risco para a face, pois é uma participação mais
visível. Isso porque aquilo que é dito pode ser facilmente
descontextualizado quando migrar para outras redes através das
ferramentas de compartilhamento, de curtida e mesmo de comentário.
(RECUERO, 2014, p 121).

Desta forma, a periferia é como uma heterotopia da exclusão, na qual


aparentemente os sujeitos pertencem à metrópole, pois estão territorialmente nela. No
entanto, ao estar inserido na periferia, automaticamente se está fora do centro e do todos os
seus acessos a bens socioculturais, infraestruturais e políticos. “[...] todo mundo pode entrar

3637 
 
 
 
 
nesses locais heterotópicos, mas, na verdade, não é mais que uma ilusão: acredita-se
penetrar e se é, pelo próprio fato de entrar, excluído.” (FOUCAULT, 2013, p. 420).
FIGURA 3

FONTE
https://www.facebook.com/malacointelectual/photos/a.143412345820152.29324.143241805837206/6936753507
93846/?type=3&theater. Acesso em 27 de Mar. 2017.

Publicado em 7 de fevereiro de 2017, o meme da Figura 3 apresenta dois tópicos


importantes sobre a identidade da periferia. Um primeiro está associado às práticas
alimentares dela, já que a imagem do ovo e da farinha refere-se a alimento de baixo custo,
muito populares e altamente consumidos. Assim, denota-se também uma questão
econômica discutida pelo meme. Castro e Freitas (2013), esse indicativo é citado como o
segundo maior caracterizador da periferia de Belém.
um lugar violento (tema citado em 21% das respostas); um lugar de baixo
poder aquisitivo (19%); com precária infraestrutura física (15%), um espaço
de pobreza (14%); um espaço de exclusão social (8%); um espaço
esquecido pelo Poder Público (7%); um espaço de alta concentração
populacional (6%); um lugar inseguro (5%). (CASTRO; FREITAS, 2014, p.
78).

Quanto à constituição do meme, a sobreposição de enunciados verbal e visual


evidencia o pouco trabalho gráfico da imagem, prevalecendo uma produção quase
artesanal. Uma forma de também mostrar a questão econômica, uma vez que em áreas
periféricas os smartphones são a plataforma mais usada para acesso à internet4.

                                                            
4
Segundo pesquisa divulgada pelo site Yesbil, 72% dos acessos ao Facebook no Pará são feitos somente pelo
celular, e 25% fazem pelo celular e pelo desktop. Disponível em http://www.yesbil.com/para-no-facebook-perfil-
dos-usuarios-2017/. Acesso em 27 de mar. 2017.

3638 
 
 
 
 
O poder aquisitivo é um dos elementos que caracterizam a identidade social da
periferia. Como é uma área afastada do centro da cidade, geralmente os preços mais
baratos estão associados a essa área, desde os terrenos e casas às venda até as
necessidades básicas de consumo, como a alimentação.
Os espaços mais comumente usados para abrigar essa população foram as
zonas do intrincado sistema aquático da cidade, bacias hidrográficas
formadas por canais, rios e inúmeros igarapés, desvalorizadas tanto por sua
condição alagadiça como por receberem o esgotamento sanitário das áreas
urbanizadas. Essas áreas, conhecidas localmente como baixadas, foram
ocupadas com moradias precárias, em geral, não titularizadas, nas quais
hoje se reproduzem condições sociais tipicamente causadas pelo abandono
estatal, como as de favelização, violência, desemprego, informalidade,
endemias e degradação dos recursos naturais. (CASTRO; FREITAS, 2014,
p. 75).

A perspectiva econômica, causada em boa parte pelo desemprego e culminando


com a violência, é um dos fatores mais incisivos na caracterização da periferia, uma vez que
é por meio de suas materializações que se pode perceber o valor social de algo. A
suntuosidade da mansão ou as palafitas cercadas de pontes de madeira, o carro importado
do ano ou o veículo antigo e deteriorado, as roupas de marcas internacionais ou as
compradas nas pequenas lojas da feira, os pratos requintados de restaurante ou a
combinação de ovo e farinha. É nesse jogo entre crítica e humor que se estabelece um
potencial político para os memes, como afirma Chagas (2015), ao citar Shifman (2014), ao
discutirem realidades e problemas sociais por meio de um humor que facilita a difusão de
conteúdos e na medida em que inspira sentimentos positivos.
As interações permitidas pelas ferramentas do Facebook constituem uma dinâmica
de experiências cotidianas, na qual os valores sociais atribuídos a bens materiais, a
alimentos, etc. representam o reconhecimento entre o sujeito da periferia e aquele que
interage na rede, pensa-se então em representações sociais como formas de motivação
para tais interações.
O estudo das representações sociais tem uma nítida orientação
fenomenológica, à medida que procura perceber a experiência
compreensiva dos sujeitos investigados no contexto pragmático da sua
quotidianidade. Essa orientação fenomenológica permite compreender a
representação como um processo dialógico, sempre em curso. (CASTRO;
FREITAS, 2014, p. 70)

As 551 curtidas, os 89 compartilhamentos e os 24 comentários denotam a presença


de usuários que interagem com esse discurso e apontam para a aceitação de que, de fato,
essa prática alimentar é parte da identidade da periferia de Belém. Em comentários como

3639 
 
 
 
 
“Tira a farinha e coloca o limão”, o usuário coloca-se como adepto de práticas alimentares
pouco comuns, dando a entender que a combinação ovo e farinha já é trivial; “imaginei se o
cara do náufrago tivesse esse kit tava lá até hj”, em que o potencial alimentar é destacado,
referindo-se ao personagem de um filme que ficou perdido em uma ilha quase sem
alimentos e que teria se satisfeito por muitos anos apenas com ovo e farinha; “bora”, a
aceitação do convite explicitado no enunciado “indo almoçar”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos memes buscou apresentar de que forma a periferia de Belém é vista
por seus sujeitos, representada no Facebook e aceita (ou não) pelos usuários das páginas
de internet analisadas. São composições de natureza verbo visual em que a riqueza da
comunicação com a periferia está em sua contextualização.
Embora possamos considerar como representações reducionistas ao negativismo,
tem-se nesses memes uma face confirmada no âmbito público. A natureza humorística
desse gênero discursivo emergente no ambiente digital não impede que seja lançado um
olhar crítico e reflexivo sobre o tratamento dado pela sociedade e pelo poder público a essas
áreas tão marginalizadas da cidade. Tal humor, acaba por ser uma estratégia de reforço
para os estereótipos criados acerca da periferia, convencionados a partir de relações de por
com o centro ao utilizar-se da produção de imagens sociais antagônicas, por vezes.
Para além da mera localização geográfica, a periferia tem um território
politicamente delimitado, mas parece ser um lugar ausente no mapa social, pois seus
problemas demonstram como a ausência de políticas públicas básicas deixam entrever uma
espécie de invisibilidade, a partir da qual o jogo discursivo instaurado por uma página,
precipuamente de humor, enuncia verdades confirmadas pelos demais usuários.
Isso implica dizer que a noção de cidadania está intimamente atrelada ao
território, uma vez que, para ser um cidadão integral, faz-se necessária a
garantia dos direitos civis fundamentais. Pode-se concluir que as periferias
constituem espaços segregados e de segregação, independentemente de
sua posição geográfica em relação a um hipotético centro. (CASTRO;
FREITAS, 2014, p. 74)

Inesgotáveis possibilidades estão representadas não apenas na periferia, mas


também na cidade de Belém, tomada por muitos como uma cidade de menor visibilidade
nacional perante outras, comparada nessa dimensão a uma periferia do Brasil. São
discursos que indicam a exclusão com que os espaços são tratados, espaços que
condicionam identidades não apenas por sua geografia, mas por seu conjunto social em que
temas tão relevantes para a qualidade de vida seja permitida. Uma relação que extrapola a

3640 
 
 
 
 
dualidade centro e periferia em uma cidade como como a capital paraense, uma vez que
tem essa mesma lógica entre a própria Belém e o restante do país, uma constante
“periferização das periferias”
Assim, a pesquisa aqui apresentada é uma maneira de mostrar o papel
fundamental da cibercultura no âmbito comunicativo, pois estas ferramentas
comunicacionais, os modos de interação e de produção de informação podem ser palcos de
visibilidades e experiências sociais diversas, nas quais identidades, que antes estavam
silenciadas pelos muros sociais, puderam ser visualizadas, curtidas, compartilhadas e
comentadas. Para além disso, é importante considerar o teor humorístico como estratégia
crítica, uma vez que é nesse jogo entre o risível e o crítico que se suavizam as marcas de
poder historicamente estabelecidas e que colocam os sujeitos em hierarquias sociais
diferenciadas.
A periferia, ao ter sua imagem produzida a partir de um discurso de humor, tende a
tocar o problema de forma controversa, tornado engraçado aquilo que necessita de um olhar
sério do poder público, no entanto o efeito traz à tona a separação entre o que está posto
como centro, privilegiado pelas políticas públicas, e como periferia, fora da linha visível
deste poder, a qual padece de carências várias ao ponto de recolocar seus problemas para
o entretenimento como forma de suavizá-los.

REFERÊNCIAS

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GT 07 – CIDADES E TRANSFORMAÇÕES DO URBANO NA AMÉRICA LATINA

PENSANDO E REPENSANDO O TRAFICO DE DROGAS EM TERESINA: ALGUNS


APONTAMENTOS

Marcondes Brito da Costa 1

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Joao Batista Moura Araújo Neto²

Resumo:
A complexidade das relações estabelecidas pelo tráfico de drogas para com a juventude,
seus estigmas para certos grupos sociais, o discurso de demonização de seus partilhantes,
principalmente os jovens pobres, além do crescente envolvimento da juventude nessa
relação perigosa e mortífera, vem demonstrar a importância urgente de se pensar sobre a
questão, seja para desnudar preconceitos, ou mesmo, planejar ações de intervenção. Saber
quem são esses personagens, como eles constroem teias identitarias é a direção intentada
por esse artigo, percurso realizado em trabalho de campo de dissertação de mestrado
realizado durante os anos de 2009 e 2010 na cidade de Teresina no Estado do Piaui. Essa
pesquisa foi realizada em vilas e favelas da Região Sul de Teresina, um lugar onde o poder
nas conotações elencadas por Foucault (1989), não mina de um lugar para outro numa
única linha atravessando os corpos para controlá-los, mas é disputada a todos os momentos
por grupos, seja de outros traficantes em busca de aumentar sua influência, ou pela policia
em busca de dinheiro, e também influência, palavra que a cada dia nesse contexto de tráfico
de drogas tem sentido mais fluido e passageiro, mas não menos violento autoritário.
Desnudar essa relação e apontar como os jovens se constroem nesses espaços de
negação institucional, onde o trafico aparece como um lugar onde eles lançam alguns de
seus ancora mentos em suas construções subjetivas, é a proposta desse pequeno texto.

Palavras-cheves: Trafico de drogas; Juventude; Estado.

1 – INTRODUÇÃO:
PARA INÍCIO DE CONVERSA: O TRÁFICO DE DROGAS E O QUE O DISCURSO
HEGEMÔNICO NÃO DIZ

Para compreendermos o tráfico de drogas, no Brasil, mas especialmente a sua


manifestação no Piauí, em sua capital, Teresina, se faz necessário visualizar a sua
construção histórica e o processo de sua qualificação enquanto realidade de destaque no

                                                            
1
Cientista Social e Mestre em Políticas Publicas Pela Universidade Federal do Piauí. Doutorando em Sociologia
Pela Universidade Estadual do Ceara –UECE..Professor do instituto Federal do Piaui- campus São Raimundo.
Integra o Núcleo de Pesquisa E estudos sobre Criança Adolescentes e Jovens da UFPI- NUPEC.Estuda os
temas: Juventude; Violência, Trafico de Drogas. E o COVIO-Conflitualidade e Violencia da UECE, e o Nucleo de
Estudos e Pesquisas sobre Familia e Diversidade-NEP, da Faculdade Ademar Rosado-FAR. Pesquisa
identidades, juventudes, violência tráfico de drogas.
² Estudante de Direito pela Faculdade Estácio/Ceut, contista e cronista.

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mundo, rompendo com a naturalização contemporânea acerca do que seja este fenômeno.
É fato, hoje o comércio de drogas é algo ilegal, tido como imoral e fato arduamente
combatido pelas sociedades mundo afora. Mas em nossa breve historiografia nem sempre
foi assim, pois até 1938 maconha e cocaína podiam ser adquiridas nas farmácias de vários
lugares do Brasil para fins medicinais. Além disso, muito embora as primeiras leis de
repressão se relacionassem às práticas de grupos marginalizados, somente a partir da
primeira guerra mundial (COSTA, 1991, p.50), a repressão se instaurou numa perspectiva
de criminalização social de alguns segmentos sociais.
O que cabe aqui pensar, e que se mostra como linha de compreensão deste artigo,
é justamente perceber o perigo de naturalizar processos dinâmicos e conflitantes, ligados a
poderes, instituições, interesses e ações de grupos dominantes, como alerta Soares
(1993).Nesse contexto, a perspectiva da proibição da droga, aliada à repressão daqueles
que gravitam em torno dela é a tônica da abordagem veiculada, caracterizando com a
violência as medidas de enfrentamento desenvolvidas. Como conseqüência, deixa-se de
lado o centro do problema quando da implementação das políticas, optando-se por reprimir,
segregar e estigmatizar grupos, especialmente os jovens em situação de tráfico de drogas,
“os culpados” pela sua existência.
Argumentando nesse sentido, Zaluar (2008, p.9) postula que:

Apesar desta política repressiva de combate as drogas, apesar dos fortes


preconceitos apontados contra os usuários e aqueles que defendem uma
política menos repressiva, o consumo delas continua se alastrando
rapidamente, em especial entre os mais jovens e entre as populações mais
pobres. Nesses setores mais vulneráveis à ação policial, os efeitos da
própria repressão podem ser desastrosos por estimularem a criminalidade
violenta. Isto, porque no combate ao uso de drogas, a polícia tem um
enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como
traficante, crime considerado hediondo.
 
Além disso, como fator também importante para perceber essa questão,
entendemos que “a atividade do tráfico de drogas é altamente rentosa no atacado, onde
empresários, fazendeiros, negociantes e banqueiros com vínculos transnacionais
comandam o investimento, a produção, a comercialização e a lavagem de dinheiro”
(ZALUAR, 2004, p. 59). Assim, caso desejemos nos ocupar do fulcro da questão outro
aspecto surge para análise é o grande montante de recursos gerados no mercado de
substâncias ilícitas, aparecendo articulado nos continentes e pelo mundo inteiro. Essa
realidade coloca sob dúvida o real poder que grupos minoritários das comunidades,
geralmente de pessoas com baixa instrução, sem treinamento profissional e vivendo sob
condições cotidianas extremadas de vida - rotineira ameaça, sem paradeiro certo,
desconfiando de todos e sem maior estrutura física – tem de gerenciar com sucesso um

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negócio que gera montantes consideráveis de recurso por ano, envolvendo um sem número
de equipes por todo o país, no caso do Brasil. Não seria o caso de se perguntar quais outros
sujeitos estariam envolvidos no aquecido mercado do tráfico? Refletindo sobre a
problemática, Zaluar, 2004 não se intimida em atestar: “A organização internacional é
complexa, cambiante, móvel, e dependente das armas para a resolução dos conflitos
comerciais, traições aos princípios e regras da organização ou questões pessoais[...]” (p.
73).
Entretanto, do modo como se estabelecem, com a capilaridade que exibem, a força
que demonstram, os processos nos quais se fazem presentes, fazem-nos ver que algumas
atividades dos traficantes seriam impossíveis de acontecer sem a participação do Estado,
como a aquisição de armas de grosso calibre de posse exclusiva do exército e da polícia
militar e civil, a lavagem de dinheiro etc.
Não obstante, a corrupção, ao invés de ser entendida como uma anomalia deve ser
pensada como uma parte fundamental da lógica de funcionamento do comércio de drogas
ilícitas, que por sua vez, tem como limite a sociedade capitalista. Portanto, se a mercadoria
precisa circular para propiciar a geração de riquezas e dividendos, os obstáculos precisam
ser removidos, entre esses, a presença da polícia: essa precisa ser controlada, se não
comprada, negociada, transformada numa parte do circuito por onde tem que circular a
droga. Por outro lado, a investida da polícia contra as rotas de comércio ou contra uma
facção do tráfico implica em mudanças na dinâmica local da atividade em si, não na solução
do que seria o problema. Isto significa dizer que a polícia se torna o fiel da balança do
mercado ilegal de drogas, na medida em que sua presença, mais ou menos efetiva, altera a
relação de custo da droga nos territórios do tráfico. Quando a polícia atua em um nível mais
local de repressão, em muitos casos altera o nível de risco da circulação da droga e a
possibilidade de maior estoque da mesma. Ao ocorrerem prisões de membros uma
quadrilha numa certa área, perde-se o estoque e havendo migração de alguns integrantes
para outro local, acarretando o enfraquecimento desse grupo perante outros. Nesse caso,
ou submete-se à dominação sumária por outra facção via confronto dilacerante ou por
adesão subalterna, quando não contesta o domínio do grupo antigo. Outra alternativa
possível é o grupo reprimido passar a aliar-se em condições de igualdade a grupos da
região, potencializando as ações naquele território e, novamente, influenciando a geopolítica
do tráfico na cidade. Assim, a ação da polícia altera a conformação territorial das quadrilhas,
dos traficantes, o movimento das bocas e o preço da droga, daí a relevância de contar com
a sua aquiescência de algum modo para comercializar a droga propriamente dita e para se
estabelecer enquanto comerciante potente.

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Outro ponto relevante é a questão da lavagem do dinheiro do tráfico. Neste aspecto
corroboram Soares (2000) e Zaluar (2008), avançando na concordância que demonstram
acerca de outros pontos realmente relevantes da questão do tráfico. Zaluar (2004) esclarece
a inaptidão dos órgãos públicos dedicados à abordagem do tráfico de drogas em focar o seu
real nascedouro quando afirma: “a investigação sobre o tráfico de drogas não tem seguido o
caminho do dinheiro, ninguém sabe, por exemplo, onde os muitos milhões já arrecadados
no tráfico de drogas no Brasil [...] foram parar” (ZALUAR, 1998, p. 96). Essa realidade é
também nítida em Teresina, como tem apontado os jornais locais quanto a atividades
desenvolvidas no espaço de lojas de carros e de outros ramos empresariais. (Portalaz, 25
de março de 2010: Traficantes montam farmácias e lojas de carros para lavagem de
dinheiro acessado em:
<http://www.portalaz.com.br/noticia/policia/157609_traficantes_montam_farmacias_e_lojas_
para_lavar_dinheiro_das_drogas.html>)
Compreendemos, portanto, que entender o tráfico de drogas pela perspectiva
reducionista de repressão e punição dos elos visíveis da cadeia, como veicula a mídia
cotidianamente, tira o foco, obscurece a questão, simplificando-a e responsabilizando quem,
na escala do sistema, é o mais prejudicado, ou seja, os usuários ou os pequenos traficantes.
Nessa perspectiva, a mídia tem um papel extremamente importante na construção de uma
imagem de medo e de descontrole que parte de uma violência da qual desconhecemos a
origem primeira, mas apenas que é gerada por jovens pobres, desempregados, pequenos
traficantes ou usuários de drogas, oriundos das favelas de Teresina.
É importante salientar que em muitos casos, o poder dos traficantes cresce na
fraqueza do poder público, em sua ausência ou em sua corrupção. Todavia, tal fraqueza não
significa unicamente ausência de políticas públicas, mas sim o enfraquecimento do público
como esteio da sociedade moderna, como regulador das relações, tendo no estado
moderno liberal o seu representante primeiro. De fato, em Teresina, o poder do tráfico não
se constitui em um estado “paralelo”, e sim em uma instância privada de resolução dos
problemas, poder e controle no território das vilas e favelas, trata-se de uma impostura
decorrente de certa lógica mercantil e empresarial. Logo, dentro desse movimento privatista
de caráter mercadológico, envolve vários atores: usuários, aviões, soldados do tráfico,
boqueiros, traficantes locais, traficantes nacionais, internacionais e instituições públicas,
várias denunciadas cotidianamente por práticas de corrupção junto ao tráfico e pela ação
majoritariamente punitiva junto a usuários e pequenos negociantes de drogas instalados em
vilas e favelas. Esses são aspectos, dentre outros, que aclaram a complexidade do tráfico.

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TRÁFICO DE DROGAS, CONSUMO E VIOLÊNCIA: VÁRIOS ASPECTOS, UMA SÓ
QUESTÃO

Quando pensamos nos jovens em situação de tráfico de drogas, a leitura textual e


subtextual dos depoimentos colhidos durante a pesquisa de campo, nos revela a forma e os
momentos em que a sociedade, seguida e constantemente, não tem lhes oferecido outras
possibilidades, obstruindo-lhes os caminhos e as formas de caminhar, encurtando suas
possibilidades de ancoragem positiva, restringindo a possibilidade de acesso unicamente ao
mercado, reservando também este único caminho para sua humanização. As interlocuções
que os jovens mantêm com o mundo lhes diz que é comprando aquilo que desejam que
serão alguém no mundo: vista a roupa A, com ela você ficará mais bonito e terá sucesso
profissional; beba refrigerante B, é o mais gostoso, para conquistar a garota que você
deseja; use a vitamina C para ter uma vida saudável; dirija o carro D para ter uma vida com
mais adrenalina.
Bombardeando os ”novos” valores, o tráfico e o dinheiro dele advindo despontam
para estes jovens como meio de satisfazer necessidades socialmente construídas, de estar
pelo menos na perspectiva do acreditar que assim o será, dentro desse sistema que
enquadra as subjetividades e a cidadania no plano meramente econômico. A força do apelo
é tão forte que tem justificado o risco que correm no tráfico, dando seqüência ao modelo de
cidadania capitalizada e mercantil - que atribui valores a aparência – geradora de produtos,
violentos e indigestos, mas necessário para alimentar a eugenia do sistema.
Para o jovem que vive nas vilas e favelas, essa realidade é gritante e violenta, pois
se depara com os chamamentos do discurso mercadológico e com poucas possibilidades de
inserção no mercado formal de trabalho. Visto na complexidade posta, concordamos com
Feffermann (2006, p. 16), quando identifica o tráfico não como uma anomalia, mas como
“um protótipo da sociedade de consumo, mas, em adição a outros, expressa toda a violência
nela embutida e produz ainda mais violência”.
Por outro lado, no universo juvenil excluído, vítima primeira do alastramento do
tráfico,

Para conseguir ter o respeito dos colegas e admiração das mulheres, o


jovem necessita estar com dinheiro no bolso que lhe permita consumir
rapidamente o que conseguir ganhar rapidamente. Segue-se a isso a
exibição constante da disposição para a briga e a orgia do consumo
interminável, na qual o jovem cria para si mesmo um circulo vicioso, do qual
não consegue sair. É preciso estar repetindo sempre o ato criminoso para
ganhar o dinheiro fácil que sai fácil do seu bolso. Esse círculo demoníaco
fecha-se ainda mais pelo pagamento do butim aos quadrilheiros mais
armados e poderosos do que ele, assim como ao policial corrupto. Para

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continuar a agir criminalmente a fim de ganhar dinheiro fácil, o jovem cria
em torno de si uma rede de obrigações em forma de pagamentos de
dinheiro e outros favores, como, por exemplo, matar algum inimigo desses
poderosos chefes do mundo da contravenção e do crime. (ZALUAR, 2004.
p. 63)

No ambiente do tráfico encontramos em curso o uso da violência como medida


orgânica das atividades, mas também a vivência da auto-afirmação dos sujeitos pelos
gestos violentos, aliados ao enfraquecimento do ethos do trabalho e da moralidade. O
universo consumista e violento de produção de identidades faz do crime uma forma de auto-
afirmação e subjetivação.
Nesse cenário, os valores vinculados à família, à religião, à vizinhança e ao
trabalho, instrumentos de controle social da classe hegemônica no decorrer deste Século
XX, começam a perder o poder diante das novas leis de mercado, do fetiche da mercadoria,
do aumento das desigualdades sociais e do desejo de consumir destes jovens, que, aliados
à falta de perspectivas de um futuro, fazem do imediato – e das figuras a ele vinculadas - a
regra de suas existências, e com cada vez mais intensidade.
Temos nesse sentido uma triste realidade se constituindo. Uma realidade em que o
tráfico passa a permitir, solitariamente, às camadas mais pobres e miseráveis das vilas e
favelas por esse Brasil a fora a expressassem suas ambiguidades latentes, seu desprezo,
ódio e frustrações; seu recalque, suas pequenas e grandes humilhações, fazendo desses
lugares os geradores do tipo de inserção que produzem na vida em sociedade. Para
aqueles que assistem ao problema à distância, fica cômodo julgar e condenar ex-ante os
jovens pelo envolvimento com as drogas e cobrar, a qualquer custo, rígidas punições, uma
vez que não indagam como e porque nossa sociedade anula, impossibilita, eclipsa, segrega,
negligencia, restringe, solapa possibilidades a seus integrantes de uma tal forma que os leva
a encarar uma atividade criminosa e mortífera como possibilidade de melhoria de suas
condições de vida e, por conseguinte, de construção da construção da existência e
subjetivação.
Essa dinâmica retém os jovens sob o controle do tráfico, deixando-os com pouca
possibilidade de contestação. As festas patrocinadas por traficantes, embora inclua a farta
distribuição de drogas, de remédios, de comida e até eletrodomésticos – como ocorre na
zona norte de Teresina - são estratégias assentadas na busca da legitimação, mas
pressupõem também a obediência cega e o castigo severo ou até a morte para os
desobedientes. Na resolução dos conflitos na esfera privada do tráfico de drogas, concentrar
inclusive o poder de matar transforma o traficante no todo-poderoso, alguém a ser imitado.
Assim, ou os jovens estão enredados simbolicamente, comprometidos com o ethos do

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tráfico, ou por ele estão impedidos de viver alternativas fora da lógica da droga, como
experimentar a confiança no outro enquanto lugar de construção de laços duradouros.
Embora tratando de outra realidade, Soares (2000) destaca conseqüências
igualmente desastrosas para as comunidades pobres do Rio de Janeiro. A partir de dados
empíricos de observação participativa, afirma que:

o tráfico provoca um assustador número de mortes, dos homicídios dolosos


que ocorreram em 1992 na “cidade do Rio de Janeiro, cerca de 65 %
apresentavam alguma vinculação, direta ou indireta, com o tráfico de
drogas”, ocorre um processo de desorganização da vida associativa e
política das comunidades, uma vez que o domínio criminoso na favela
manifesta-se no controle, direto ou indireto, sobre as organizações civis
locais. As comunidades passam a ser subordinadas pelos criminosos que
lidam com o comércio de drogas; a pobreza e os pobres são
estigmatizados, porque os bairros populares são vistos como fontes do mal
pelos indivíduos que não moram nesses ambientes [...] (p. 267- 273, grifos
do autor).

Como se pode ver, além do cerceamento individual, as ações desencadeadas pelo


tráfico de drogas em comunidades pobres por todo o Brasil, têm chegado ao controle das
organizações comunitárias, afetando diretamente os nascentes processos democráticos. Os
micro-poderes da teia do tráfico, violentos e autoritários, são instrumentos utilizados para
eclipsar ou silenciar os demais grupos comunitários das decisões e da participação
comunitária, eliminando qualquer possibilidade de oposição via pena de morte e torturas
diversas. Essa lógica é simultânea à ineficiência de uma proteção mínima por parte do
Estado, combinada com a política de repressão e violência indiscriminada para com esses
moradores, que não diferencia traficantes de pessoas não envolvidas ao tráfico.
Comparando a convivência que têm entre o tráfico e o Estado, a população empobrecida
tem escolhido buscar nos traficantes a resolução de problemas cotidianos de carências,
desproteção etc. pela certeza que vem construindo de uma distância maior em relação ao
poder público. No círculo vicioso em curso, os filhos que assistem a esse gesto dos pais e
mães, revalidam a referência de que no tráfico está a saída. Fecha-se o cerco. É pelo tráfico
que os jovens passam a buscar o retorno financeiro para consumir e o respeito para colocar-
se diante da comunidade.

O TRÁFICO EM TERESINA: NOTAS PRELIMINARES PARA SUA COMPREENSÃO

Em Teresina notamos, no transcorrer da pesquisa, tanto em nossas observações


de campo, como nas entrevistas, algumas particularidades. Aqui existem pelo menos duas
constituições de tráfico, quais sejam: o tráfico endógeno, que é aquele em que o traficante

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cresce na comunidade e apesar da violência empregada nos seus atos para com os locais,
estabelece uma relação simultânea de proximidade, de apadrinhamento, sendo tais laços
originários (e mantidos) dos processos de socialização da infância, alimentadas pelas
trajetórias dos jovens traficantes e das comunidades. Ao que parece, as memórias de
partilhas que antecederam a realidade do tráfico, permanecem – de algum modo –
orientando a ação dos traficantes locais na sua relação com os moradores, num processo
de mão dupla. Os moradores, por exemplo, permanecem se referindo aos traficantes como
“o fulano, filho de beltrano” ou com expressões íntimas que denotam os vínculos do
passado. Talvez pudéssemos dizer que algum afeto persiste, mesmo que não endossado
pela racionalidade do discurso, mas como marca presente das relações longínquas onde
todos eram apenas as crianças do bairro, parceiros de brincadeiras inocentes. O traficante,
por sua vez, no limite possível da ação que concretiza, também deixa antever essa
referência, embora distante. Pelo proceder de ambos, o traficante não deixa de ser “do
grupo” comunitário, tendo sua presença e ações guardadas pelo silêncio e aceitação nas
vilas e favelas, sendo o gesto possivelmente incrementado pela repulsa que essas
comunidades vêm adquirindo ao poder público devido a constante violação de seus direitos
pelo aparato policial ou pela ausência de serviços básicos.
A origem do tráfico endógeno, conforme encontrado nas vilas pesquisadas, também
se relaciona diretamente com a ocupação territorial das vilas, capitaneada por lideranças
políticas do meio ou por movimentos sociais consolidados, e, na maioria das vezes,
motivada pela carência de moradia e clareza mínima acerca do direito negado. Alguns
jovens que após participar desse momento inicial de ocupação, posteriormente se
transformam em traficantes da área, mantêm uma relação diferenciada com os moradores,
tendo sua liderança aceita com maior tranqüilidade. Além disso, algo facilita o seu trabalho:
os territórios consolidados a partir das ocupações urbanas normalmente se originam e se
desenvolvem territorial e urbanamente nos limites das possibilidades locais, no vácuo da
presença estatal, desprovidos de tudo. Mostra-se compreensível que as pessoas se
aproximem e defendam aquilo que pode viabilizar sua existência mais imediata.
A outra presença do tráfico é a exógena, que se consuma quando um traficante de
outra favela ou vila ou mesmo de outra cidade/estado extermina um traficante local,
tomando sua boca e se mantendo nela unicamente pela truculência de suas ações ou
ancorado no poder violento do grupo do qual passa a fazer parte, normalmente temido nas
comunidades. Nesse caso não há legitimação mínima, não há trocas simbólicas assentadas
na partilha de memórias comuns. O líder se mantém pela via da opressão, expulsão ou
extermínio sumário de quem se coloca contra ele. Essa nova forma começa a surgir em

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Teresina pelas disputas de bocas de fumo e, especialmente, via entrada de traficantes de
outras regiões, principalmente do eixo Rio-São Paulo.
A introdução de grupos exógenos no tráfico de Teresina aponta para a mudança do
modo do tráfico relacionar-se com as comunidades, além de revelar alterações no modo do
tráfico organizar-se comercialmente. Observamos que pode estar se desenhando uma nova
dinâmica para o tráfico de drogas em Teresina, o qual passa a ter um comando central
localizado fora do Piauí. Possivelmente se imporá na perspectiva da violência para se
estabelecer, e mais violência ainda para se manter, estabelecendo alianças e concessões
com alguns traficantes locais e retaliando severamente os opositores – traficantes ou não.
Na nossa avaliação, a mudança apontada radicalizará o uso da violência nas vilas e favelas,
aumentando o nível de vulnerabilidade daqueles que escolhem viver fora das condições do
tráfico, mas também dos jovens que se envolverem com os novos chefes das drogas,
consumando o mesmo percurso que os jovens já vivenciam no eixo-Rio São Paulo, por
exemplo2.
Isso nos leva a uma constatação básica: nem todo o poder do traficante é oriundo
do seu autoritarismo e violência. Apesar de se firmar nessas relações, uma parte desse
poder, dependendo de como as relações do tráfico foram estabelecidas em determinada
comunidade. Aquilo que numa visão unilateral venha a se chamar de medo, pode ser
traduzido nesse contexto como respeito ou confiança tecida em uma rede de afetividade e
solidariedade construída antes do acirramento das relações trazidas pelas relações do
tráfico de drogas. Relações de outrora vizinhança, de associativismo, de enfrentamentos e
partilha de problemas em conjunto.
Quando as relações e ordenamentos são estabelecidos pelo tráfico consolidado
externamente à constituição das comunidades, normalmente o nível da opressão é maior e
até dirigido a algumas pessoas. Essa é prática comum, por exemplo, quando uma boca de
fumo é tomada por outra, estabelecendo a perseguição contra muitos dos parentes, aliados
ou simpatizantes do traficante anterior. Embora tímida essa é uma realidade que já
encontramos em Teresina. Quando o traficante surge entre os moradores da própria
comunidade - perfil de todos os entrevistados -, em geral, as relações são de apoio e
respeito, remontando àquelas vigentes antes do ingresso do jovem na vida do tráfico.
                                                            
2Nas periferias algumas comunidades já tem sentido as diferenças surgidas, com carros importados circulando
em suas vielas esburacadas e sem nenhuma estrutura, com armas de grosso calibre para intimidar os
moradores ou mesmo a exibição de armas pesadas em via pública para mostrar a que vieram. O poder público
parece silenciar diante da problemática, pois nenhuma medida foi tomada, como se não tivesse nada sob esse
subterrâneo ainda intocado e sublimado de todas as formas. Talvez essa postura encontre estofo ou explicação
na lógica da governança, de não “levar o caos à ordem vigente” e defendida a todo custo pelo estado. O caos
não combina com a política e nem com as metas estabelecidas para o processo de governança, ainda mais
quando esse caos gera medo e requer ações planejadas e enérgicas, de curto, médio e longo prazo, que nem
sempre geram dividendos eleitorais.
 

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Não queremos com isso dizer que o tráfico local não significa medo, violência,
exceção. Que as relações entre a população e os traficantes sejam harmônicas, mas
apontar que as relações entre traficantes locais, moradores das vilas e favelas são
marcadas por uma profunda ambigüidade de sentidos e interesses, mas certamente
estabelecendo a tensão como regra maior.
Não obstante as diferenças entre as manifestações do tráfico em Teresina, uma
questão merece ser destacada quanto à posição assumida pela população atingida pelo
tráfico, que é de dependência e ausência de possibilidades maiores de resistência. Imaginar
que os moradores de favelas, acossados por traficantes e sem o apoio do poder público,
têm a opção de ser ou não coniventes com os traficantes, é uma posição profundamente
idealista. A exacerbação das dificuldades faz com que, em alguns momentos, os traficantes
funcionem até como ícones para os moradores, principalmente quando empreendem
ousadas ações contra a polícia e em defesa de parentes, vizinhos ou conhecidos.

UMA OUTRA INTERPRETAÇÃO É POSSÍVEL: APONTAMENTOS CONCLUSIVOS

A despeito da complexidade que caracteriza a questão do tráfico e da sua


localização na intrincada rede das tensões urbanas contemporâneas, o discurso
hegemônico ainda fala do domínio de uma força, a do mal, que deve ser alijada, separada e
extirpada do convívio social, para que este tenha harmonia. Já quando se refere à virtude, à
normalidade a referência é o homem de bem, independente de suas ações ou crimes
anteriores, para os quais, se forem contra os cofres públicos e de grande abrangência de
recursos, seu perdão, às vezes, vem mais rapidamente. Assim se consolida o conveniente
discurso maniqueísta punitivo.
Esse protótipo de forma societária é, para a imprensa e os planejadores da
segurança pública, a sociedade, a boa sociedade. Aquela que estão construindo com
empenho. Esse é o modelo que uma determinada visão de mundo busca implantar e
sustentar como a forma possível de relacionamento entre agentes sociais. A má sociedade
é a dos bandidos, dos traficantes ou de todos aqueles que ofendem a harmonia desse
padrão de relacionamento social, seja pela proposição de outro modelo social, seja como
resultante da efetividade de suas práticas extremas, que negam parâmetros e valores das
práticas hegemônicas. A boa sociedade é a dos burgueses e a má sociedade é a de todos
os outros que não a aceitam conforme posta em suas regras e dinâmicas. Aquela é e a
outra não é. No entanto, não podemos esquecer que nessas duas construções de
sociedade parece haver um mimetismo da criadora e da criatura, sendo que a sociedade da

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maldade (criada) é alimentada pela sociedade da bondade com seus instrumentos
midiáticos e simbólicos, para sustentá-la e lhe servir de argumento para suas ações de
repressão e discursos produzidos sobre as mesmas, como os discursos do medo e da
violência.
Infelizmente essa visão de mundo dicotomizada e maniqueísta tem se apresentado
e sido plantada com uma força e intensidade cada vez mais presentes e nos momentos de
crise social se amplia, passando a ignorar outras formas de se pensar a realidade. Nesse
emaranhado de práticas e sentidos não conseguiremos conceber as construções oferecidas
pelo tráfico de drogas se não o percebermos dentro da ampla teia de significações que ele
representa.
O propósito de realçar os reais determinantes e as capilaridades do tráfico em
nossa sociedade precisa abarcar não apenas o fenômeno em seu aspecto macro, mas
também nas suas manifestações localizadas, como é o caso apontado de Teresina. Embora
tenhamos clareza das especificidades piauienses, assim o compreendemos por três razões:
a primeira, em virtude das dimensões e sistemática porque se manifesta o tráfico no Brasil e
no mundo, articulando intensamente o local com o regional. A segunda por considerarmos
que o Estado brasileiro, aqui e alhures, enfrenta problemas similares na sua relação com o
tráfico de drogas e, por fim, que a juventude tem se constituído na vítima preferencial da
problemática do tráfico, independente de como e onde ela se estabeleça. Isso deveria
implica que instituições, pensadores e a sociedade se sentissem suficientemente
estimulados em levar a questão a sério e abordá-la na complexidade exigida. Assim,
possivelmente, poderíamos colaborar para o estancamento de uma realidade onde os
jovens – e demais - elejam o consumo como parâmetro maior das relações sociais. Uma
realidade onde, para serem vistos e respeitados como consumidores, não tenham de apelar
para o “dinheiro fácil” do tráfico; para existirem como sujeitos sociais, não tenham que
colocar sob alto risco sua própria existência física. Não há mais o que esperar para
dividirmos socialmente essa responsabilidade.
No caso de Teresina a situação requer urgência, uma vez que, ao que sugerem as
informações coletadas, o consumo de drogas tem se expandido, inclusive com a maior
presença de mulheres, ano a ano. Claro, também se expandem todas as conseqüências do
fenômeno, como proliferação de grupos, confrontos de bocas, envolvimento dos jovens
como comerciantes e consumidores de droga. Além disso, estamos atualmente saindo de
uma lógica, de algum modo, própria de comércio de drogas, para a entrada numa
sistemática nacional, o que - pelo que analisamos - implica num recrudescimento das
dificuldades, dos danos e da vitimização de incontáveis famílias, seus pais, mães, filhos...
especialmente, seus jovens.

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Referências
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3654 
 
 
 
 

GT 07 – Cidades e transformações do urbano na América Latina

ENTRE A VIDA RURAL E URBANA NA DÉCADA DE 50 EM BRAGANÇA-PA

Vania Albuquerque do Nascimento (UFPA) 1


[email protected]

RESUMO
Este artigo visa analisar as dinâmicas, transformações e interações sociais ocorridas
em Bragança, Pará no período de 1951 a 1960, no qual podemos perceber que a
cidade experimentou um processo desigual de desenvolvimento. Pequenos
comportamentos cotidianos de uma cidade eminentemente rural, que eram
fundamentais para o equilíbrio social daquele momento, “deveriam ser paulatinamente
abandonados”, pois havia uma fronteira tênue entre a vida rural e urbana, fazendo
com que os modos de vida e práticas cotidianas dos cidadãos considerados
“indigentes” fossem transformados. Pautamo-nos na análise bibliográfica no campo da
História Social baseada na perspectiva de que a história deve ser contada, não
somente levando em consideração “os grandes fatos” da história oficial e seus heróis,
mas, sobretudo pela observação dos fatos ocorridos com pessoas que fazem parte da
massa esquecida (THOMPSON, Apud. SHARP Jim, 1992). Em seguida, uma pesquisa
nos seguintes acervos: Cemitério Santa Rosa de Lima – registros de enterramentos;
Cartório Martins 3º Ofício – certidões de óbitos; Arquivo Histórico-Documental do
Município de Bragança – decretos e projetos de lei. Revelando que os “tempos do
progresso” pareciam fazer parte dos sonhos da sociedade abastada e poder público,
que buscavam vivenciar os “benefícios” da política nacional-desenvolvimentista que,
segundo suas concepções, estava pronta para ser modelada conforme estes
almejavam para a cidade. Evidenciou-se que as relações e transformações ao longo
do tempo alteraram realidades das vidas rural e urbana. Haja vista que a zona rural da
cidade era destinada aos pobres e indigentes, em contrapartida, o urbano destinado
gradativamente à elite e ao poder público.

Palavras-Chave: Dinâmicas sociais, Rural e urbano, Bragança-Pará.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de pesquisas realizadas no âmbito do trabalho de


conclusão de curso pela Universidade Federal do Pará e busca compreender o
contexto histórico da cidade de Bragança2 nos anos 1950, de modo que possamos
perceber a teia de relações que dizem respeito às dinâmicas sociais dos sujeitos
considerados indigentes. Pois a idealização de uma sociedade, a partir de “cidadãos
modelares”, costumes “civilizados” e ajustados aos princípios de uma cidade moderna

1 Graduada em História, professora da Rede Pública de Ensino, integrante do Grupo de Pesquisa em


Patrimônio Cultural do DPHAC/SECULT.
2 Bragança está localizada na região Nordeste do Pará, a 210 quilômetros de Belém, capital do Estado.

Sua população estimada em 2016 era de 122.881 habitantes. Fonte: IBGE

3655
 
 
se ilustrava na marginalização destes sujeitos. Uma vez que, este momento
representava o ensejo das autoridades em afastar tudo àquilo que se vinculava às
praticas tidas como “incivilizadas” e “atrasadas” a fim de alcançar o progresso.

1.1 A política Nacional-Desenvolvimentista.

A política nacional-desenvolvimentista no Brasil dos anos 1950 se constituiu


como um período marcado por efervescentes processos sócios históricos. No qual, por
meio das eleições ocorridas neste ano e o retorno de Getúlio Vargas ao poder, esta
política ainda se manifestava com vigor, pois estava presente toda uma ideologia que
dava sustentação as políticas do governo, revertidas dos valores do populismo,
nacionalismo e desenvolvimentismo de Vargas que diziam respeito, principalmente, às
bases do controle social orientados pelo Estado (ANNI, 1975).
Cabe salientar que esta política seria direcionada, posteriormente, por
Juscelino Kubitschek, sob a égide de uma ideologia na crença da mudança e do
progresso que foi a grande “alavanca de desenvolvimento” e, ao mesmo tempo, do
controle social no Brasil, na medida em que este projeto cerceava a atuação popular e
a sua liberdade, fazendo com que cada vez mais as pessoas ficassem submetidas à
política desenvolvimentista através de diferentes projetos que visavam moldar
comportamentos e fiscalizar as ações das pessoas (WERNECK VIANNA, 1976, p.13).
A partir disso, esta política ajudou a concentrar o poder e a renda nas mãos
de poucos fazendo que houvesse uma maior desigualdade entre os grupos sociais.
Sendo muito conveniente e lucrativa para alguns grupos privilegiados, enquanto
outros, dentre os quais a população mais pobre continuava sem a possibilidade de
melhorias em sua condição de vida e sofria com os efeitos desta tal política.
Nessa perspectiva, nos anos 1950 se reproduzia no Brasil “um discurso no
qual o mundo rural era identificado como velho, típico de um passado retrogrado,
enquanto o mundo urbano seria visto como moderno” (OLIVEIRA, 2005, p.117) e
progressista que foi se estabelecendo na maioria das cidades. Onde o mundo urbano
sobrepujou o rural em termos de imaginário na sociedade sendo que o país era ainda
eminentemente rural.
Os tempos do progresso pareciam fazer parte dos sonhos e das utopias de
um Brasil, “país do futuro”, e esses ideais seriam então representados também na
figura de Kubitschek, como o ideal de homem empreendedor, empenhado na
construção de um país urbano e moderno. Como sabemos, pretendia-se desenvolver
em seu governo um “Plano de Metas” que deveria ser alcançado em 5 anos, o famoso
slogan: “50 anos em 5”, para que assim se pudesse alcançar a ideologia

3656
 
 
desenvolvimentista no país. Não muito diferente das ideias de Vargas, Kubitschek,
também, utilizava um discurso do nacionalismo, tais como, “desenvolvimento nacional,
dos interesses nacionais, da integração nacional”, para que sua aproximação tanto
com a elite nacional, como com o povo fosse reforçada (MOREIRA, 2003, p. 161).
Este ideário de progresso e desenvolvimento durante a administração de
Kubitschek se consolidou como um estilo de governo e, também, de projeto social que
estava presente no imaginário de boa parte da população brasileira.
A perspectiva do moderno se contrastava com o antigo e com o tradicional a
fim de alcançar uma nova realidade social através de um cenário onde se desejava o
desenvolvimento. Sob a ótica do progresso e da modernidade, o crescimento do
sentimento de civilidade seria representado, sobretudo, nas formas modernas das
interações sociais, isto é, de pensar, agir e se sentir de maneira moderna, que foi de
certa maneira difundindo e consolidando a “cultura do moderno” na sociedade.
A partir das leituras de textos literários da época, notamos como os reflexos
dos discursos desta política se caracterizaram no cenário de Bragança, na qual,
também, pretendia estabelecer o ideário de progresso através da construção de novos
valores e comportamentos cotidianos, tais como, a idealização de perfis sociais
relacionados ao modelo de uma cidade pretensamente moderna, assim como na
construção de aspectos e sociabilidades que apresentassem características urbanas e
consideradas “civilizadas” para aquele momento.
O poeta Rodrigues Pinagé escreveu em 1959 a respeito deste momento em
que se desejava ver em Bragança a representação do “futuro” e do progresso.
O progresso encheu de ruas
O teu solo que se expande,
Sepultando as margens nuas
Do tranquilo Rio Grande;
Não há mais lírios nos campos,
Nem tochas de pirilampos
Pintalgando a escuridão;
Hoje, a lâmpada ilumina
A figura pequenina
Do saturno lampião. [...]
Bragança! És sempre Bragança,
No presente ou no passado,
És futuro e és esperança
De um povo civilizado3.

Em seu poema fica evidente a aspiração ao progresso para Bragança, pois a


imagem de uma cidade nos moldes do “moderno” se encaixaria dentro de um desejo
de se romper e até mesmo de fugir das amarras de uma realidade vista como

3Ver BRAGANÇA. Revista da Academia Bragantina de Artes e Cultura Popular – ABACP, Bragança-
Pará, Brasil – Ano I nº 01 – julho/2003, p. 34-36.

3657
 
 
desagradável, isto é, como retrograda e atrasada. Pois, grande parte da sociedade,
também, sonhava acompanhar o progresso que estava sendo inserido no restante do
país. Os modos de vida, bem como os espaços urbanos estavam cada vez mais
inaugurando um novo cenário de desenvolvimento.
Para Pinagé o progresso tornaria a cidade um “lugar do futuro e da esperança
de um povo civilizado”, ao qual, representava o pragmatismo das utopias da elite mais
abastada e do poder público municipal da época. O poema expressa outro olhar, ou
seja, de quem desejava o progresso.
Diferente do poema, o livro “Menina que vem de Itaiara”, registros das
memórias da autora Lindanor Celina4, nos mostra traços da Bragança desde os anos
de 1940, no qual encontraremos registros de populares, os costumes e os modos de
ser do “bragantino” daquela época. Vinda de uma família tradicional, Lindanor Celina
nos faz perceber nas nuances de suas memórias, como Bragança com toda a sua
característica de cidade interiorana, isto é, de sociabilidade entre agentes e modos de
vida particulares, eram importantes para o cotidiano da cidade. O aspecto rural, nas
impressões da autora, fazia com que a cidade fosse mais atraente, nas suas palavras
“um rio para tomar banho, as árvores para refrescar as tardes, uma vizinhança
modesta” (CELINA, 1997, p.30). A cidade interiorana servia como inspiração dos
costumes e dos modos de vida do bragantino, onde a mesma descrevia o rural como
um lugar de aconchego.
Faz-se necessário observar, então, que existia como ainda hoje existe na
maioria das cidades, uma dualidade entre o espaço rural e o urbano. Logo, nesse
campo sócio espacial, nota-se que há um subjugo do rural pelo urbano tanto nas
representações do espaço, como nas dinâmicas sociais. Estas relações muitas vezes
são marcadas por conflitos de valores e relações de sociabilidade. Revelando que as
diferenças entre a vida rural e urbana criam simultaneamente identificações e, ao
mesmo tempo afastamentos nas interações sociais, pois “a imagem comum do campo
é agora uma imagem do passado, e a imagem comum da cidade, uma imagem do
futuro” (WILLIAMS, 1989, p.397), ou seja, dando a entender que o rural visto como
“atrasado” e urbano como o “progresso”.
Deste modo, é interessante analisar que dependendo do lugar onde se olhava
a Bragança haviam impressões diferenciadas quanto aos aspectos do rural e ao ideal

4 Lindanor Coelho de Miranda, mas ficou conhecida como Lindanor Celina foi considerada uma escritora
paraense contemporânea e de uma originalidade incomum, além de ser uma Romancista de grande
porte. Com modo peculiar de narrar os modos do cotidiano, tanto no romance quanto na Crônica,
Lindanor Celina teve fama somente no Brasil, mas ganhou fronteiras internacionais. Disponível em Blog
do Prof. Dário Benedito Rodrigues.

3658
 
 
de progresso. O último parecia representar o desenvolvimento, enquanto o rural era
visto como algo positivo, mas que talvez, marginalizava e ao mesmo tempo excluía
uma parcela da sociedade.
Portanto, observamos que a política ideológica do desenvolvimento buscava
estabelecer uma fase que caracterizaria o progresso para a cidade. Porém, ao
contrário disso, reproduziu e reforçou as desigualdades presentes na sociedade, uma
vez que esta política sustentou-se em discursos de melhorias do espaço urbano e da
convivência social. Mas, para a situação da população mais pobre que foram as que
mais sofreram neste processo de modernização, nem todos podiam ter acesso aos
novos meios de uma cidade moderna. O que realmente se evidenciou através disso foi
à exclusão e a marginalização desta população em relação ao projeto de
modernização para cidade. Como abordará a próxima seção.

1.2 “A classe perigosa”: pobres e indigentes.

É sabido que a figura do pobre sempre existiu nas sociedades, porém em


cada momento histórico a pobreza agregou perspectivas distintas no entendimento
sobre sua representação social. Faz-se necessário ressaltar que dentre vários estudos
que se dedicaram a falar sobre os pobres e a pobreza, dois importantes autores se
destacaram: Michel Mollat e Bronislaw Geremek.
Mollat, em sua análise sobre o pobre e a pobreza, faz uma abordagem a
partir da submissão a um conjunto de “infortúnios” em que a pobreza está circunscrita.
“O pobre é aquele que, de modo permanente ou temporário,
encontra-se em situação de debilidade, dependência e humilhação,
caracterizada pela privação dos meios, variáveis segundo as épocas
e as sociedades, que garantem força e consideração social: dinheiro,
relações, influência, poder, ciências, qualificação técnica,
honorabilidade de nascimento, vigor físico, capacidade intelectual,
liberdade e dignidades pessoais. Vivendo no dia-a-dia, não tem
qualquer possibilidade de revelar-se sem a ajuda de outrem”
(MOLLAT, 1989, p.5).

A citação acima demonstra que as situações vivenciadas pelo pobre


expressam a complexidade do termo. A partir disso, na busca de uma definição, Mollat
procura identificar os limites em que a precariedade se transforma na miséria. Pois,
em um primeiro momento a pobreza era concebida a partir da caridade e dos valores
cristãos, em seguida vista como indigência, na qual a sociedade se envergonhava e,
por isso, fazia-se de tudo para escondê-la e por último passou a ser considerada como
a negação ao paraíso (MOLLAT, 1989, p.21-23).
Todos estes limites da precariedade demostram a imagem dos rejeitados
sociais, na qual se incluem os “potencialmente criminosos”, que ao negar as leis, o

3659
 
 
Estado, a família e a sociedade, “entram no caminho da heresia, da subversão ou da
criminalidade”. Desse modo, a pobreza torna-se facilmente associada à marginalidade
dos que se encontravam nessa condição na sociedade.
Já Geremek destaca os diferentes tipos de “miseráveis” encontrados e
descritos na literatura da época medieval, tais como o vagabundo, andarilho, o
vigarista e o mendigo, onde todas estas designações se assemelham ao fato de
atribuírem-se a sujeitos identificados como o “amálgama social de fatores negativos”, e
sem “nenhuma qualidade” para a sociedade daquela época.
Sua análise busca delinear um “esboço das questões que podem ser
consideradas elementos indispensáveis para uma interpretação histórica da imagem
do pobre” (GEREMEK, 1995, p.28). O autor se baseia em estudos sobre a história dos
mendigos que servem de “espelho” para descrever a condição social em cada período.
“Nessas diferentes situações ao longo do tempo, o modelo do pobre
apresentado pela literatura e a sua tipologia sociológica variam
bastante. Ora se trata de um mendigo humilde que encontra na
renuncia a satisfação moral, ora de um filosofo que vê na pobreza
uma condição para o cultivo da reflexão independente. Por vezes o
pobre é um miserável, vitima de reações RAÇÕES sociais, a quem a
necessidade empurrou para as práticas infames. – (...) A longa
permanência dos principais traços da imagem do pobre na literatura
europeia está relacionada com o valor negativo que a sociedade
atribui a essa imagem” (GEREMEK, 1995, p. 7-9).

A sociedade da época estava referenciada a uma lógica de relações sociais


hierarquizadas, baseadas na nobreza medieval e na religião. E estes componentes
sociais, de certo modo, são responsáveis pela construção de um discurso em torno da
pobreza muito bem circunstanciada.
Geremek (1986) ao retratar a “história da miséria e da caridade na Europa”,
considera que na Idade Moderna com o desenvolvimento do capitalismo os processos
de pauperização e conflitos sociais tenderam a encarar a pobreza como um fenômeno
de “envergadura social”, na qual se relacionava a uma visão de que esta é uma
“doença vergonhosa” da sociedade que é premente em debelar por meios novos.
Já o pensamento contemporâneo vê a pobreza como um fenômeno
puramente negativo, onde muitas vezes é confundida com atos “ilícitos” fazendo
associação de que pessoas que se encontram nessa condição são alvos de vergonha
e considerados “indignos” por se assemelhar a indigência.
Na década de 50 do século XX o termo pobreza regressa a linguagem
econômica e social, na qual esta característica é, também, concebida de maneira
exclusivamente negativa. “Existe como uma correspondência entre o seu papel
degradante no plano material e o desprezo – assim como no ínfimo lugar na hierarquia

3660
 
 
dos valores – que a sociedade lhe reserva” (GEREMEK, 1986, p.12). Logo, os
discursos construídos ao longo do tempo sobre o pobre e a pobreza sempre estiveram
relacionados aos valores morais da sociedade, demonstrando ser persuasivo e
convincente para endossar a marginalização, julgamentos e práticas discriminatórias.
Discutir sobre o conceito de pobreza nos ajuda a compreender que o papel da
população pobre na cidade de Bragança dos anos 1950 se definia através da
marginalização sofrida pelos mesmos, baseada na ideia de que tais sujeitos não
tinham características que condiziam com a realidade que se desejava para aquele
momento, pois estes se configurariam como “criminosos” que perturbavam a ordem
social, outrora estabelecida na sociedade.
Notamos a construção de um discurso no qual o pobre carrega estigmas, que
são marcas sociais construídas historicamente, para a submissão dos sujeitos que
estão fora do padrão de “normalidade” com objetivo de justificar a propensão à
marginalidade, ou seja, responsabilizando-os por sua condição.
Assim, os sujeitos que apresentavam “potencialidades” de disseminar algum
perigo para a saúde da população deveriam passar por certo tipo de fiscalização e
controle. Logo, os pobres e indigentes representavam o lócus dessa preocupação, já
que, possivelmente, estes eram moradores de habitações insalubres, de hábitos
cotidianos “imorais”, caracterizando-os como uma “classe perigosa”5 para a sociedade.
Diante do exposto, percebemos que toda a sociedade de Bragança estava
submetida a esta ideologia desenvolvimentista dos anos 1950. Porém, como
compreender os reflexos desta política sobre os sujeitos pobres e indigentes, ao qual
foram os mais afetados, na medida em que estes representavam o “avesso” de tudo
que se pretendia de moderno para a cidade?
Para o poder público municipal e a elite mais abastada as pessoas pobres
que circulavam no espaço urbano, de certo modo, os “incomodavam”, por serem vistas
como “necessitadas, desprovidas ou carentes”. Pois, o cotidiano desta população foi
tornando-se cada vez mais alvo de preocupação, controle e fiscalização, para que
assim, estes pobres não se tornassem “entrave” para o processo de modernização da
cidade. Já que o desenvolvimento e progresso que se desejava alcançar não os

5 Concepção construída desde fins do século XIX e início do XX, onde Sidney Chalhoub retrata como o
Estado brasileiro e a sociedade “tratou, curou e higienizou a cidade do Rio de Janeiro”, então capital do
império, no recorte temporal entre 1870-1930, tendo uma relação ideológica entre pobreza e a
proliferação das doenças contra as classes consideradas perigosas e suas moradias, que sofreram
segregação pelos métodos de higienização aplicados pelo poder público para a obtenção de um espaço
urbano “limpo”. Ver CHALHOUB, Sidney, 1996.

3661
 
 
inseriam, ao contrário disso, os marginalizavam ainda mais. Como aponta a resolução
n° 1055 de um Decreto-Lei que foi publicado no Diário Oficial do Estado em 19556.
Resolução nº 1055
De 22 de Novembro de 1955

O Prefeito Municipal de Bragança, usando de suas atribuições legais


e em conformidade com a resolução nº 1055, do departamento
administrativo do Estado,

RESOLVE:
I – negar, nos termos em que se encontra regido o projeto de decreto-
lei, da prefeitura municipal de Bragança, que pessoas necessitadas,
desprovidas ou carentes circulem com frequência na área urbana de
Bragança.
II – aprovar pelas razões consignadas no substitutivo ao parecer nº
1884, que passa a fazer parte integrante desta resolução, autorisação
à prefeitura Municipal de Bragança para realizar demolições com
construções não autorizadas.
III – sujeitar a multa todo sujeito cujo não cumprir tais atribuições.

Observamos que dentre aqueles que estavam sujeitos a estes novos


padrões de comportamento e moradia, os pobres destacavam-se por haver regras
contundentes que cerceavam a sua circulação no centro urbano da cidade e quando
não obedecidas ficavam submetidos a penalidades.
O centro que se pretendia modernizar com os ares do progresso caberia,
possivelmente, a elite e ao poder público municipal. Aos pobres que com seu cotidiano
de vida e moradias que não correspondiam aquele padrão do moderno, caberia à
exclusão e a marginalização. Permitindo-nos entender, também, como estes sujeitos
“participaram” deste processo de modernização, onde paradoxalmente sua
participação ocorreu por meio da exclusão.
Nos anos de 1950 foi registrado um total de 3.986 enterramentos e que 179
destes eram enterramentos de pessoas consideradas indigentes e que representava
4% de uma população potencialmente “perigosa”, assim como o eventual “atraso” da
cidade. Estes considerados potencialmente “perigosos” foram obrigados a ocuparem
outros espaços onde os “marginais sociais” deveriam permanecer a fim de serem
separados da elite que ocuparia os centros urbanos, de tal modo, que pudesse se
exercer alguns mecanismos de controle e exclusão que se engendravam sobre seu
cotidiano, burocratizando os hábitos de circulação e moradia. Porém, provavelmente
havia aqueles que mesmo assim ainda podiam ser encontrados transitando ou
residindo no espaço que lhes proibiam.

6FONTE: Livro de Relatório da Intendência Municipal – Período de 1955 a 1957. Encontrado no Arquivo
Histórico-Documental do Município de Bragança (AHDMB).

3662
 
 
A idealização de uma sociedade moderna tanto nos seus aspectos sociais
como de saúde perpassavam por questões que diziam respeito, como vimos
justamente ao cotidiano dos pobres que deveriam se “espelhar” segundo os padrões
de uma elite mais letrada. Pois, os instrumentos de normatização tinham, também,
como objetivo impor controle à sociedade no que tange ao comportamento,
estabelecendo, por exemplo, modelos de moradia e de convivência social.
Considerados pelo poder público municipal, causadores da “perturbação da
ordem” cotidiana, tal processo contribuiu paulatinamente para certa hierarquização dos
espaços, como também das pessoas. Dessa maneira, as ações de controle e
fiscalização tentavam impedir que houvesse a circulação destes sujeitos considerados
indigentes no centro da cidade, a fim de desconstruir as relações sociais presente e os
rotulando como desordeiros.
Estas medidas de “modernidade” juntamente com o crescimento da cidade
faziam com que em nome do interesse público as moradias que eram consideradas
anti-higiênicas, ou seja, moradias precárias de pessoas pobres que já se encontravam
naquele espaço, não pudessem mais permanecer no centro, pois as moradias que se
encontravam ali deveriam ser higienizadas e seguir certo padrão de arquitetura que se
harmonizava ao moderno.
Nesses “aperfeiçoamentos” estavam instalados os interesses em remodelar,
higienizar e controlar a cidade, sendo a população pobre seu principal público alvo,
uma vez que, a “condição miserável” e que poderia comprometer a saúde pública
obrigava-os a morar em casas consideradas impróprias. E, foi através disso que a
administração municipal, tentou criar um espaço urbano higienizado e que controlasse
o comportamento dos sujeitos que não se adequavam ao progresso desejado.
De tal modo, a crença no progresso intimamente ligada com o desejo da elite
em se distinguir na hierarquia social, bem como dos novos hábitos que estavam sendo
impostos ao comportamento das pessoas mais pobres, fizeram que estas
características fossem os principais desafios desta população para a sua inserção e
consolidação aos “novos tempos” da cidade.
Em vista disso, o Arquivo Histórico-Documental do Município de Bragança7
nos apresenta entre os anos de 1952 a 1954, documentos de diferentes naturezas,
entre os quais, cartas e ofícios que nos remetem a recortes da história de vida de
diferentes sujeitos, moradores das colônias agrícolas da zona bragantina e da cidade

7 Foram pesquisados diversos livros do Arquivo Histórico-Documental da Prefeitura Municipal de

Bragança (AHDPMB) - Contendo documentação de diversos teores. – ver Anexo nº- Diário Oficial do
Estado, Ofícios, Decretos e Códigos de Posturas.

3663
 
 
de Bragança, relatos estes que diziam respeito a uma política de interesse que se
fazia entre o poder público, na figura do então Prefeito Dr. Simpliciano Fernandes
Medeiros Júnior, e seus representantes na cidade.
Assim, através do conhecimento que possuíam com as autoridades, seus
representantes pediam certos favores, como também as próprias autoridades nessas
relações de interesse, mostrando que essas situações, por vezes apareciam nesses
documentos pedindo pelos seus conhecidos a diferentes órgãos do Estado que,
conduziam, portanto, pedidos pelos colonos de passagens no trem da Estrada de
Ferro de Bragança, internações em hospitais quando em situação de doença e etc.
Aqui apresentamos uma carta em nome do prefeito Simpliciano Fernandes
Medeiros Júnior que na época, também, era médico e que foi enviada ao Secretário de
Saúde Pública do Estado em favor do lavrador Semeão Corrêa, que se encontrava
com grave enfermidade e se tornou indigente devido ao seu estado de saúde.

“Gestor Simpliciano Medeiros Junior

Exm. Snr. Dr. Secretário do Estado de Saúde Pública.

Apresento a V. Excia. o lavrador Semeão Corrêa que, devido grave


enfermidade que acometia, tornou-se indigente, em estado grave de
saúde, pelo que venho solicitar a V. Excia. se digne de mandar que
seja recolhido ao Hospital da Santa Casa, para ver se há
possibilidade de renovar sua saúde.
Com os protestos de alta distinção, apresento a V. Excia. as minhas

Saudações

Dr. Simpliciano Medeiros Junior

Prefeito Municipal”8.

Percebemos aqui que inicialmente o prefeito poderia estar apenas


preocupado com o estado de saúde do lavrador e se disponibilizando a ajudá-lo, haja
vista que o mesmo estaria cumprindo a sua função de médico, e assim, recorrer ao
Secretário de Saúde Pública do Estado. Mas, o agravamento do estado de saúde do
lavrador Semeão Corrêa fazendo com que o mesmo se “tornasse indigente”9 e que
poderia levá-lo a óbito representava um perigo para a sociedade e, com isso, a morte
destes sujeitos deveriam estar sob o controle do poder público. Ademais, manter a

8 Ofício presente no livro nº 044 – 16 de fevereiro, ano de 1952. Gestão de Simpliciano Fernandes
Medeiros Junior. Encontrado no Arquivo Histórico-Documental da Prefeitura Municipal de Bragança.
9 Tornar-se indigente, na maioria das vezes, esteve atrelada a concepção de inatividade do cidadão e,

assim na incapacidade de aumento da produtividade, fazendo com que esta característica fosse motivo
de preocupação, no qual, o Estado brasileiro visava extinguir mediante as “oportunidades de acesso a
uma vida ativa e à plena participação na sociedade através da obtenção de um emprego”. Ver BLASS,
Leila Maria da Silva. 2006. 110p.

3664
 
 
cidade higienizada e seus cidadãos saudáveis, também fazia parte do projeto de
modernização desejado.
A intervenção do poder público nas relações cotidianas das pessoas serviu de
instrumento para unificação do poder entre a elite e as autoridades que pretendia a
implantação de uma ordem à cidade. Logo, percebemos que além dos espaços, as
pessoas também eram submetidas a intervenções. Os pobres, doentes e
desocupados passaram a ser tomados então como objetos de preocupação do espaço
urbano e da ordem pública.
Podemos evidenciar através das certidões de óbitos10 que havia muitos
sujeitos em condição de indigência na cidade, que por falta de assistência médica, e
talvez, de assistência pública na decorrência de serem indigentes representavam para
as autoridades um perigo social, pois muitos chegavam a óbito. Isto pode ser
explicado por estes sujeitos não serem vistos como sujeitos formadores de uma
sociedade moderna.
Apresentamos uma certidão de óbito no intuito de melhor observarmos
nossos argumentos.
Certifico ter registrado o óbito de Maria Conceição da Silva com
sessenta anuos de idade, natural deste município, casada filha de
Antônio de [...] falleceu à espera de assistência médica, hoje às
seis horas da manhã, nesta cidade.
Indigente (grifos meu)
O referido é verdade, Bragança 23 de agosto 195311.

Este é apenas um exemplo dos inúmeros registros encontrados no Cartório,


no qual, pelo menos 07 a cada 10 mortes de indigentes ocorriam sem assistência
médica (O número leva em consideração as mortes registradas na década de 1950).
Isso nos leva a pensar que a saúde em Bragança nesse período era muito fragilizada
e que esta parte da população tinha um acesso ainda mais dificultoso, ou seja,
revelando o “retrato da falta de recursos desta população”.
Morrer sem assistência ou à espera de assistência médica, na maioria das
vezes, significava que a pessoa não recebia acompanhamento de um profissional de
saúde. Além do mais, observamos que o serviço de saúde pública nessa época era
bastante precário, uma vez que havia pessoas que morriam sem que esta pudesse
chegar, ou seja, vemos que este serviço não era tão eficiente, principalmente, para os
sujeitos mais pobres.

10 Cartório Martins 3º Ofício, ano 1951 a 1960, Bragança-Pará. Livros nº 18 (ano 1949 a 1951), nº 22 (ano

1952 a 1954), nº 20 (ano 1954 a 1957), nº 21 (ano 1957 a 1958), nº 22 (ano 1958 a 1960).
11 Cartório Martins 3º Ofício, Bragança-Pará. Livro nº 18, registro nº 9313 (ano 1953).

3665
 
 
A partir de então, se fazia necessário à intervenção através das “políticas
públicas de saúde”12, buscando cada vez mais tornar Bragança um símbolo da
modernidade e do progresso, pois garantir atendimento à saúde, também fazia parte
dessa política “modernizadora”. Mesmo que para isso, fosse necessária a intervenção
pessoal ou baseada em favores, já que a assistência médica não era proporcionada
para todos.
Percebemos, então, que toda a população passava por certa dificuldade em
relação à saúde e saneamento básico, no qual a parcela pobre era ainda mais
afetada. Com isso, o desejo de tornar Bragança um símbolo da modernidade, também,
através dos aspectos de saúde, foi criado um projeto de lei para que toda a população
pudesse ter algumas garantias e melhorias de vida, principalmente no que dizia
respeito ao saneamento básico.
Projeto de lei nº 424 - De 27 de Outubro de 195513.

CRIA O SERVIÇO AUTONOMO DE ÁGUA E ESGOTO.

A câmara Municipal de Bragança instituiu e eu sanciono e publico a


seguinte lei.
CAPÍTULO I
Da criação, natureza e finalidade do serviço.
Autônomo de água e esgotos:
Art 1º - fica o serviço de Água e Esgotos (SAAE), com presonalidade
jurídica e autonomia, administrativa e financeira, nos termos da
presente lei.
Art 2º - o SAAE será subordinado diretamente ao prefeito municipal,
que nomeará o seu pessoal ou contratará a sua administração com
sua organização especializada.
Art 3º - o SAAE terá exclusividade e monopóli [o] para exploração dos
serviços de água e esgotos da sede do município, cabendo-lhes
cuidar da operação, manutenção, conservação e ampliações do
sistema.

Este projeto de lei representava parte dos planos do poder público municipal,
para a que a população não viesse a ser um problema no projeto de modernização.
Porém, o mesmo não se deu de maneira efetiva, principalmente, para a população
pobre nos anos de 1950, pois os mesmos continuaram a sofrer com o problema de
saúde, moradia e saneamento básico na cidade. Somente nos anos de 1970 é que a

12 Conceituar saúde pública é um problema que surgiu precisamente em função das necessidades de
planejar ações de saúde individuais e coletivas, na qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1947
formulou o seguinte conceito: “saúde é o estado de mais completo bem estar-físico, mental e social, e não
apenas a ausência de enfermidade”. A partir disso, a relação saúde-enfermidade passou por certo tipo de
intervenção com objetivo de evitar doenças, prolongar a vida e promover a saúde física e mental. Visando
o saneamento do meio, o controle das infecções, a educação do individuo nos princípios da higiene
pessoal e o desenvolvimento de mecanismos que assegure a cada pessoa o padrão de vida adequado
para que, assim, haja a manutenção da saúde. Ver SCLIAR, Moacyr. 2002, p. 17-18.
13 Associação Sócio - Cultural Recreativa de Bragança – ASCURBRA – Projeto: Memória de nossa

Terra, Conhecendo Bragança. 2005, p.76.

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saúde pública juntamente com outros aspectos de melhoria de vida passou a ocorrer
de maneira mais efetiva devido à expansão da cidade, tornando- se necessário
atender as demandas, realizando projetos que de fato fossem concretizados.
A cidade que cada vez mais estava se constituindo como um espaço de
diferentes comportamentos dos seus cidadãos, assim como da higiene e das práticas
do moderno, tece uma estreita relação entre estas medidas, como também nas
práticas da elite bragantina que se constituía num modelo ilusório a ser seguido. A
relação entre as diferentes formas de sociabilidades, espaços privilegiados e espaços
excluídos, articularam-se, por um lado com o sentimento da diferença e da
desigualdade existentes na cidade.

CONCLUSÃO
O processo de exclusão que se podia evidenciar na sociedade, sofrido por
aqueles que deveriam ser assistidos de modo a serem controlados e fiscalizados, os
afastava cada vez mais do processo de modernização. Pois a participação destes
sujeitos se dava através da marginalização.
Portanto, os pobres aos olhos do poder público municipal tinham que ser
tratados com uma devida “atenção”. Atenção esta que os controlava mesmo que fosse
um controle imaginário ou utópico. Pois, o controle social, de certa maneira, atendia
aos desejos e interesses de se ter uma cidade, como também seus sujeitos com
padrões “civilizatórios modernos”.
Em contrapartida, não podemos deixar de considerar que este controle podia
ou não funcionar de modo efetivo, uma vez que estes sujeitos que eram excluídos
deste processo de modernização, mas, que também buscavam meios de fazerem
parte do processo de desenvolvimento. Pois, o sentimento nacionalista deveria ser
vistos como algo de “todos para todos”, o que interessava basicamente não era
expulsar estes sujeitos pobres da vida social ou de fato impedir o exercício de suas
atividades, e sim gerir a vida destes sujeitos controlando as suas ações, para que se
tornasse possível alcançar o desenvolvimento, mesmo que para isso fosse necessário
forjar esta tal modernidade.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Terceira Parte – Poder e Classes Sociais.

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