Há Quarenta e Seis Pés

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capa

h á

q u a r e

n t a

s e i s

p é s
Este projeto foi financiado com Recursos da Lei Aldir Blanc
ficha

catalográfica
uma palinha

com o

organizador
à margem

começar um livro, começar um curso: abrir


a roda do indizível. essa antologia é um
acidente entre poetas de mais de vinte
estados, um atentado, uma produção feita
em estado de emergência e calamidade
pública.
durante dois meses, vinte e três poetas se
encontraram para discutir, organizar e criar
com minha supervisão e orientação no
curso abrindo brechas no cotidiano: deixar
o poema fruir. desse encontro, nasce há
quarenta e seis pés.
o mesmo chão rachado, diferentes danças.
dançar sobre o chão rachado, entender a
singularidade no coletivo, respeitar cada
subjetividade: criar sem cerimônias.

febraro

de oliveira
das

margens
para escrever um poema em mim
caneta para dançar mãos
entregar sem camadas
meus choros e gozos

deixo uma mensagem no espelho


para lembrar de quando eu estava ao
[lado dela
relembrar o dia que deixamos de ser
fazer crescer em si pedras de lágrimas

terça à noite criar formigas


tirar poeira das coisas
tirar o gosto ruim da mesa
dar sabor ao amarelo

ser o único, um sequer, um mínimo


[obstáculo pro beijo
desnudar o corpo da vergonha de ser
[quebrado
aproximar quem queira
desvelo
cortar a luz
destruir as noites em margens
chamar teu nome alto pra que todos
me digam que você não está mais aqui

Poetas:
Açucena Ketily, Anthony Gama, Beatriz Nascimento, Brunno Vianna, Claudinei
M., Gabriela Porto Alegre, Gabrielle Valentim, Geovanna Bragante, Inaiê Lopes,
Kelly Ezaki, Marcela Alferes, Sayra Tavares, Thais Litchy, Vinicius Alves, Vini
Duarte, Victória Carrer, Vitória Alves

Curadoria, edição e criação:


Gabriela Porto Alegre e Kelly Ezaki

*poema feito a partir dos versos de 18 poetas em um dos exercícios de escrita


criativa do curso “abrindo brechas no cotidiano: deixar o poema fruir”
h á

q u a r e

n t a

s e i s

p é s
izabella camati,
curitiba,
2006.

15 anos. acorda sentindo como se


sempre estivesse à procura de algo.
acredita na lenda chinesa do fio
vermelho. izabella camati ainda não
sabe quem é.

instagram: @palavramaisbella
ilustração
adquiri o costume de morder a tampa
da caneta enquanto te ouvia às 16
horas e 22 minutos do dia 20 de
janeiro, quarta-feira
andei encaixando os pés em espaços
de chão livre
pensei em flutuar
sou o mais pesado que carrego apesar
de quilos de ração para dois cachorros,
do estacionamento até o portão
e a primeira vez que escrevi eu nem
estava pensando em você
pensei na pressão que a mim foi
proposta naqueles 10 minutos
pensei no extra e estranho
um eu estrangeiro
me concentrei em um uso de palavras
incorreto
mas que me soava bobo, então eu ria
do que eu tentava esquecer
sou o mais pesado que carrego mas me
questiono sobre medidas
por maioria, distâncias
cavar um buraco até o outro lado não
me parece absurdo
até saber do que se trata
se bem que dançar entre tecidos e
uma bala ali perdida talvez seja
entretenimento bárbaro/besta
um tanto tentador
descobrir se sentimentos são medidos
a metro e se são árvores por abraço
explorar o peso de minhas unhas antes
de racionalizar cada palavra
caindo sobre o erro do poema
e me fazendo afundar
[3/19, 9:31 PM] iza: sempre um sonho
diferente mas ele igual em todos.
distante, como se o sonho fosse uma
sala e ele sempre no canto com olhar
cansado.
parecia tinha tanta informação rolando
na cabeça dele que confundia os
endereços de cada pensamento e
precisava refazer o percurso.

no sonho de terça-feira, [?] estava


sentado na minha frente em uma sala
vazia. o piso de quartzo verde, a
cadeira de madeira. vestia uma
camiseta branca. fiquei de pé roendo
as unhas esperando ele falar algo.
faz meses que deixo minhas unhas
crescerem
cortei elas hoje
essa noite eu vi um campo enorme e
algo parecido com um rio no meio.
estávamos em um grupo de pessoas
que eu não me lembro quem. nosso
objetivo ali era recolher o excesso de
tinta que quem pintou o lugar deixou..
algumas misturas erradas. a parte que
lembro mais nitidamente é quando eu
estava limpando uma folha pata de
vaca cheia de pigmentos rosa
[?] estava sentado em um tronco
embaixo da única árvore no centro do
campo

no de quarta-feira, cheguei em uma


recepção qualquer que tinha um
espelho enorme.
perguntei ao porteiro quando o jornal
do dia chegaria
sentei em um sofá confortável
vi [?] do lado de fora da janela. ele tava
atrasado para algo
levantei
andei até o largo. era dia de feira
nãotecompreinad
amedodealimentar
suascoresdestudard
maisficarburrademimaté
essesdiastinhafei
ranãovouteacumularpelomenosc
omoeupensava
porqualquercoisa
prenderdemai
sconhecimentos
ememurchar
aocaseirodeixed
eletarfiqueinasnotas
perdipalavradif
ícilnãoincluíd
anomeuvocabulá
riojorraralgo+1(323)c
omalegriaré
veremosintermináv
elcoloridosgrã
osdeviveremaqui
deagorante(s)
mão
[10/20/2019, 7:04 PM] maria elizabeth:
sim

luftal duas caixas de comprimido


e a calcinha? quanto?
carregador, sucrafilme
sacuda a internet
cookies? onde estão?
venha aqui
suspeito que me cheira
os pensamentos
rodeia o gramado
extenso
me sinto
embalada a vácuo
granola veio sem castanhas
reclamarei da pressão em
2segundos103807
preciso de algo me doendo ao respirar
olhos cor d’água em regiões profundas
um não escrito à minha parede
pregado em papel transparente
talvez uma des-votade
mergulhar em vidas errantes
abusar de
trocar lugar
Gabrielle
Valentim (Gaia),
São Paulo,
2000.

escorpiana. terra vermelha, água & luz.


apaixonada pela vida, latino-americana com
sangue originário que corre as veias enquanto
observo a maior metrópole do país se movimentar.
São Paulo/ZS - Grajaú.
das ruas de barro pro mundo, em constante
construção lírica e elementar.
agradeço as que vieram antes de mim, em breve
estaremos juntas. agradeço quem se dispôr a ler e
que o amor te acompanhe sempre.
"Só Isso", Emicida (2009)
ilustração
1.
por tão pouco meus olhos desfizeram-
se em rios,
alheia do mundo em devaneios janela.

Obinrin no rádio.

talvez meu corpo seja composto de


ondas e eu só percebi agora
dos cabelos, barriga & as que escorrem
opacas dos olhos-rios.

voltei a fumar.

talvez todo esse sofrimento cabocla,


seja tua alma clamando por floresta
& essa ânsia por largar berros aos
quatro cantos
seja tua pele reivindicando o amor que
cê depositou no outro.
lá fora chove. olhos-rios-janela.
2.

certa adrenalina
que flui e desatina
homeopatia, 30ml florais & incensos.

tropeço na minha língua


e piso em falso vitórias-régias,
afogo lento em devaneio cárcere.

o pensamento cria mas também


destrói.

cê é meu porto ao mesmo tempo que


é a cidade violenta que arrasta meus
joelhos
asfalto quente.
a psico disse que eu preciso permitir
mas
quando me abro vulnerável asas frágeis
despedaço.

sertralina,
fluoxetina,
sufoco ancestral & galhos queimados.
4. ¿looping?

movimento
& repetição.

repetição
& movimento.

movimento. movimento. movimento.

volta, repete
última vez
pra onde?

óh minha vida, cê pode vir pra home


da gatinha
ou só ficar.
caracóis auroras sóis e amêndoas
sempre

vão.
5. 26 de junho, 19.

Procurando por uma incógnita, talvez;


Se pá, calar uma saudade.
6.

eu descobri
que dá.

teu corpo esculpido


machado.

curvas-planícies
terra vermelha
cântico ancestral;
chamado da argila.

se amar é gostoso feito


breja geladinha
& sol que arde a pele.
descobri a existência mais bonita
espelho.

espelho-me 1995
& rexpeita minha boceta
{ou faço uma na tua cara}.

eu descobri que dá,


os pixels ensolarados
pertencem a mim & só.
Kelly Ezaki,
São Paulo,
1982.

psicanalista, poeta e publicitária.


atua e pesquisa a intersecção entre Arte e Psicanálise (poesia,
linguagem, artes plásticas, curadoria e crítica de arte).
começou a escrever em blogs e manteve por anos, o tumblr, Tua
Filha Gosta.
participou da exposição '1941’ curada por Hélvio Benício, com a
instalação poética 'Anti\Musa a Sair do Armário’ (2019), exibindo
alguns de seus poemas, cadernos originais e objetos-poéticos pela
primeira vez.
tem sete tatuagens, talvez dez.
pinta a unha com bolinhas; também os olhos.
pesquisa a plástica da linguagem.
acaba de publicar ANTI\MUSA A SAIR DO ARMÁRIO (Editora
Urutau, 2021), seu primeiro livro de poemas.

Instagram: @tuafilhagosta
ILUSTRAÇÃO
QUARENTENA DE CINZAS
[com um beijo para Adília Lopes, Luana
Carvalho e Patricia Palumbo]

365 dias,
dentro.
casas iguais
quartos iguais
meninas iguais
dias e dias
iguais-iguais.

acordar e encontrar
algum motivo pra passar o glitter.
INTERDITO

toda noite envia msgs recheadas de emojis


me ex\cita carinhos virtuais detalhados
enquanto penso o que significa o emoji
por que o coração roxo e não o vermelho?

de onde ela vem,


meia-noite toca o sino da igreja.
meia-noite e 1 é impreterivelmente o seu limite -
ela desliga o wi-fi no meio do eu te am,,,.
NEM

procuro tuas migalhas na internet


uma foto na timeline
15 segundos de stories
140 caracteres num tweet
os likes nos posts em que você chegou primeiro
teus escritos num blog antigo
você online no whatsapp
é pouco, muito pouco.
mas você é fofa, demasiadamente fofa
nem sei se você existe
ou se é só um avatar da Pixar.
nem sei se te amo,
AS HORAS

09h05
acordei.
não tem msg sua.

10h10
tomei café preto com uma tigelinha de amoras.
você me deixou com vontade.

11h30
ouvi Chet Baker.
queria te mandar a música "ALMOST BLUE".
um solo de 4min e 59seg até Chet cantar os
primeiros versos:
almost blue
almost doing things we used to do
there's a girl here and she's almost you
almost

12h45
fumei um cigarro sentada na grama no meio do
jardim pós-almoço.
imaginei você chegando e me abraçando por trás
dando um beijinho na nuca.
13h27
será que você pensa em mim com o seu
coração?
será que já tremeu ao pensar em mim?

14h14
ouvindo “TRY A LITTLE TENDERNESS”.
é a música mais linda de todos os tempos,
não importa a versão de quem canta.

15h34
queria te contar dos meus estudos em
Poesia&Psicanálise.

15h51
será que hoje nos falaremos?

16h54
queria lamber os teus dedos.

17h39
no banho, pensando:
ela será dada ao calor ou prefere frio?
morno, nem cogito.
18h34
queria fumar um cigarro com você.

19h07
entrei na live da Heloísa Buarque de Hollanda.
você não está.

20h08
OSESP ao vivo no youtube direto da Sala São
Paulo.
certeza que você também não vai assistir.

21h30
perdi a fome;
como chocolate e me transporto pra perto de você
– não há mais metafísica no mundo senão
chocolates... disse o grande poeta.

22h00
último cigarro do dia pensando em você.
22h30
hesito diante da pilha de livros:
-O Mito de Sísifo
-A Náusea
-Irmã Outsider
-Bonsai
-Tipos de Perturbação
-Um Apartamento em Urano
qual você escolheria?

23h05
você está on:
, mas não fala comigo.

00h01
tenho quase certeza, você foi dormir;

02h30
não nos falamos.
nem 1 emoji.
NO CENTRO

debruçada na janela,
ouço a vizinha da direita
gritando impropérios
contra as feministas
e a vizinha da esquerda
fazendo amor com duas minas.
DENTRO DO ARMÁRIO

o monstro dentro do armário


não me deixa dormir.
me fita de um jeito,
mas não me bota medo.

não durmo, mais por curiosidade.


o que ele quer?
quem ele é?
como foi parar ali?

será que tem medo de mim?


sabe que também sou uma monstra?
A PALAVRA

GRUNHIDO dita no seu sotaque


é um poema lindo.
CHOCOLATE AERADO

a cada amor
um buraquinho
a marcar o coração
tipo chocolate suflair.

o coração esburacado
fica assim ventilado
com espaço pra circulação do ar
impedindo a formação
de bolhas & angústias.
ESSE É O POEMA

um beija-flor
depois mais um beija-flor
e ainda um outro beija-flor
três beija-flores bem na minha frente
6 pares de asas batendo 80 vezes por segundo
480 batidas de asas sincronizadas e ininterruptas
INSTRUÇÕES Nº 26

experimente acordar às 4 da manhã


passar um café e olhar a lua.
experimente beijar sua menina no breu total
não veja, só sinta.
experimente pronunciar alguns nomes
de pessoas que você não conhece - nome e
sobrenome.
experimente não falar de si
numa conversa.
experimente sonhar um céu 100% branco
e dois sóis cor-de-rosa um em cada canto.
experimente amar sem tocar.
experimente sofrer sem reclamar.
experimente o tesão da solidão.
experimente sonhar um céu 100% preto
e dois sóis cor-de-rosa lado a lado.
experimente fumar um trago do seu cigarro
de olhos fechados.
experimente andar de mãos dadas com um novo
amor
até sincronizar os passos.
experimente deixar o seu deus descansar
confie em você.
experimente o silêncio quebrado
pela voz do amor invadindo o quarto apenas em
pensamento.
experimente as sílabas de qual_quer pa_la_vra.
experimente a seiva de uma árvore desconhecida
com a ponta da língua.
experimente a geografia do seu bairro
à pé.
experimente o calor da pedra
pise descalço também pode deitar.
experimente segurar o olhar
com uma pessoa estranha.
experimente tomar um banho de chuva
fantasiado com seus amigos após o bloquinho de
Carnaval.
experimente ficar quieto
mesmo que breve
mesmo que pese.
experimente dançar
sem música pra acompanhar.
experimente a luz do sol todos os dias
nem que seja por 1 minuto.
experimente correr num museu
de mãos dadas com uma paixão.
experimente novos vinhos
tentando buscar a singularidade de cada uva.
experimente olhar pra sua mãe
como uma mulher qualquer em que lateja desejos
e sonhos.
experimente olhar pra si mesmo
seja qual for a situação
como se fosse um outro e tudo terá menos
importância.
GRANDIOSIDADE

quero escrever poemas


com palavras grandiosas
falar de névoa, estoicismo, mixórdia
topografia, topologia, torrente
inconsciente, ululante, psicanálise
citar Freud
explicar nó borromeano
opísculos, anfíbios, tímpanos
sibilante, Kandinsky, Gávea
Beauvoir, Godard, mar
citar os filmes todos
os livros vários
faísca, átomo, atmosfera
migalha, batuque, feitiço
alucinógeno, chakra, néon
translúcido, silêncio, micróbio
mu
pio
miau
poeta, libélula, flanco
Sá Carneiro, Bishop, Szymborska
saber de cor o nome das constelações
sussurro, matiz, meandros
bicha, miocárdio, suspiro
fastio, languidez, abstração
papilas, pupilas, proteus
buceta, estrondo, ternura
o primeiro amor da vida
meticulosidade, cutícula,
existencialismo
nervo, carvão, calcificação
abismo, magnetismo, cubismo
lufada
Picasso, Kahlo, Remedios Varo
fendas, brechas, bruxas,
fofo
sucedâneo, contemporâneo, ecrã,
romã
dopamina, metafísica, lantejoulas
Caetano e Pina Bausch na Bahia
ascensão, exceção, emulação
ímã
eco, efemeridade, travessia
Paul Beatriz Preciado, urano, filosofia
serotonina, testosterona, adrenalina
da maior importância
entrelinha, plantinha
mas só sei rimar eu & você
com palavras cotidianas
e qualquer coisa pequenininha.
gabriela porto
alegre, rio
grande,
1998.

Sou reles serva de toda letra que queira ser


gestada. Sou mulher. Tenho 22 anos. A única
constante na minha vida é a poesia. Não há outra
escolha senão estar aqui, tal qual um castelo de
cacos. Os versos que seguem são sonhos, feridas e
trocas com outros dois integrantes dessa rota,
desse vão, dessa selvageria em tubo de ensaio que
foi a criação conjunta.
Ao leitor, meu acanhado (e xucro) agradecimento.
Instagram: @portoalegregabi
ilsutração
eu não sirva talvez
pra esse troço de escrever
e não queira saber
a quantos graus surge a paixão
qual a mais cáustica do catálogo de dores
pra que lado dormem os mortos
descrever o cheiro dos milharais
e definitivamente não queira
diagramar cada página do teu adeus
eu não saiba talvez
desenhar a translação dos teus olhos
emprestar a saudade pra palavra
ressuscitar numa carta meus avós
esconder um defunto no parágrafo
rugir pro vazio
alvejá-lo com alguma voz
decalcá-la por sobre o corpo
e ser-me de novo
eu não seja talvez
tudo tanto que tento ser
e eu não sirva pra esse troço
é ele que me serve
e transvaza de mim
ma(d)re

fogos de artemísia-erva
uma embarcação de mármore-olhos
um devaneio abana do cais
coloco as mãos na lateral de cada olho
quando num intervalo de fala há silêncio
e por um átimo me sinto sozinha no planeta
entregue

estamos no alto mar pacífico


e uma tempestade no meu estômago
encharca a boca
a desinteria dos recomeços é a mais doce
um corpo de bruços no boreste sincopando
um desmaio
e canhões nos meus olhos não pode ser
que de tanta morte que há pra morrer meu
pai mãe irmãos filho morram de desmaio pro
mar
o ar sobrando na boca
indo devagar
embora
uma vara fincada no chão do oceano
me arrebato do barco e nela trepo
vento, lado, salgado e ânsia
um clarão vê minha família na costa
raspo o corpo na tensão da água
engulo uma onda e devasto os membros

tão longe eu
tanto nado
a me convencer
que posso engolir sal
não respirar por um tempo

chegará um ponto em que


se me tirarem daqui
ficarei me debatendo no anzol da tua saliva
e primeiro finalmente
tem mãos que me seguram
o que é feminilidade?
o que define uma mulher?
como as mulheres são tratadas?
e o que o jeito que nos tratam imprime no
nosso comportamento?

você é linda de rosto


podia perder uns quilinhos
ter um nariz mais fino
um cabelo mais grosso
podia ter sido mais educada
falado mais baixo
feito menos sujeira
diminuído
o tom

gorda! deselegante! esquisita!piranha! feia!


feia , feia…
isso repete, ecoa: feia, feia

e algum tempo depois aparecemos sem peso


sem cabelo
sem rosto
tudo alisado, harmonizado, amputado

onde não tem nada não tem incômodo


cada vez menos eu cada vez menos eu cada
vez menos eu
pronto
agora sim
cumpri meu papel social como mulher
me cegar o bastante com a ilusão criada
pra que roam os cantos da imensidão que sou
e eu sinta incrustado em mim esse delírio
esse julgamento esse encaixotamento esse
borramento
corpo cifrão, corpo cifrão, corpo cifrão

um antiofídico na veia
uma gaiola pendurada

um plano
o país pioneiro em vaginoplastia
13 mulheres mortas
por dia
plástica e aborto clandestino
você que está aí sabe o que faz
sinto brotar do chão
as raízes do teu destrono
nós geraremos de novo a vida que nos tiraram
e a pariremos gritando

a cabra-cega acabou
estamos bem acordadas

(direção para videopoema)


de cócoras no banheiro de nosso quarto
no interior do rio grande do sul às 13
minha mãe acha que estás pronta pra
escola?

de cócoras no banheiro da nossa casa em


Dourados às 8, antes do sinal
esperando fossem me gostar assim
até botei brinco sangrou pra pôr

de cócoras no banheiro do nosso


apartamento minúsculo na região dos
lagos às dez, sangrando. entendendo o
que fazer com os tufos de cabelo caindo

de cócoras no banheiro de um
apartamento maior, eu também, às 9
depois da academia, bato na minha culote.
scorpions no mp4
toca música de amor perdido eu nunca
tinha tido amor ou toca quem era o amor
perdido

de cócoras na salle de bain de uma casa


em Annecy, neve na claraboia é dia sendo
noite. meu átrio bate no vidro. ventreloco
.vão se estragando no estômago as
palavras que só eu sei num raio de 50 kms.
marcapassio

de cócoras no banheiro de uma kitnet no


centro histérico, serena como nunca,
espelho 3D 4, livre gozo e compleição,
eu… eu… eu. eu? eu. eu?! eu!!! eu

de cócoras no banheiro dele. debulho um


gemido. tenho prurido nas palmas das
mãos. o prazer eu engulo e me regurgita.
um casco a menos. atrito e escoriação
de cócoras no banheiro dela. pranto e
sabão. já morreu pela outra pele e sabe
rezar o ecumênico racionamento da
energia do desafeto. cinco felinos. para
entrar três lances de escada a baixo.
dorme aqui. vou cozinhar. respira. sou tua
varanda essa noite.

de cócoras no banheiro do nosso quarto


no interior do rio grande de mim à uma da
manhã, um relógio dissolve sobrevulto. a
rua Dalí é perigosa não posso mais ficar
de cócoras fora de mim. água fervente no
pescoço trançado. clausura e remediação.
um piano chora no celular. uma gota sobe
de volta pelo dorso no curvar das costas
no chão.

luz gelada e pranto.


de joelhos
Com Claudinei M.,

Busquei saber se você já tinha uma nova


ocupação enquanto a minha resquiciava em
ti. Três vezes passei na frente do bar do
Antônio pra ver de perto tua reação no
agora. Nuncarreação, ração, racionamento.
Rato. Un ratito por favor . Espasmo. A sorte
é que sem mim uma parte morre e fênix.
Dois cães presos no sótão só fazem
diferença pra quem está dentro da casa se
não tem gritos que os abafem. Guardo três
gostos no palato : amargo parco, forte hálito
rebatido da máscara de pano e o terceiro...
Se nele falo já me abandona. Certas coisas
só tem razão esquecidas. Escrevo defronte
a pinga que me ofereceste dez dias antes da
corda. Destilo. Acordar e tu não existindo. A
pinga ainda embriaga teu corpo
independente de tudo existir. Árvore
levanta asfalto da estrada na região
fluminense. Gozo, gozo gozo, gozo. Se
não for por ti vai ser por mim. Se não for
por mim, exército manicomial camisa de
força e tranquilizante. Numa seringa um pó
líquido um sininho que sugo... lábios, ah,
lábios e tudo. Lábios e teso. Um ar etéreo
nos atravessa e leva: já não somos mais, já
não somos tudo que poderíamos ter sido se
o ser comportasse o foi, o será. Levando as
noites até Notredame onde possam dormir
perfuradas e corcundas. Giro uma moeda
em tuas mãos digo : decidirá nossa sorte.
Mais justo o acaso mandar. Já sabia que
seria assim desde o fim. Tem muitos cheiros
a serem paridos por palavra. Na verdade só
és quando te tornas um arquivo no word. Só
cabe um quarto entre quatro paredes. Os
cômodos podem ser organizados de
milhares de formas, mas somente em
algumas ele ainda é funcional a cama em
cima da mesa em cima do armário eu de pé
no meio com certeza uma madeira cravada
na costela e um
travesseiro na garganta. Pra caber eu tem
que não caber mais alguém. Quem? Não
tomo mais café, amo café mas ele botava o
baú em cima da cabeça na hora de dormir
pressão traumatismo satírica insônia.
Sucuri emergindo do sinteko e vindo
cavucar minha carne cinzenta. Não dorme
não olha não come. Mesmo sem comer
nada, engulo tanto ar... Preciso da fala ( a
própria palavra fala - ffffffala!- já alivia,
tenta) .Algumas maçãs num balde d’água
cada um em seu turno bota as mãos nas
costas e tenta mordê-las. Quem pecar
vence. Me preocupo com minha mãe. Esse
dizer cabe na víscera de qualquer palavra
dita. Despejo em você porque você lê.
Agradeço. Ainda tem doce na rua Salitre e
chicletes que corroem a língua no dia das
bruxas. Eu quero jambu na boca assim vai
arder mais ainda quando eu disser te odeio.
Teu suor teu suor teu suor não sei o que
fazer com ele, porr• Claudinei...
Tem tinta pra acalmar o quarto, me
disseram: indigo esfumaçado com raiz de
valeriana macerada. Quem sabe uma
xilogravura de carne vermelha no quarto: a
última expressão que cunhaste em meu
rosto pintarei de preto e esfregarei na
parede. Bato em retirada. Há tantos
asteroides pulsando no raio de visão… Me
vou. Condução número 344, pego. reviro
todo domingo pra rir e pintar. Jogo café no
teto, ele acorda, lua nova rompe a bolsa,
dilúvio e decido: adeus.
2-00 vide página x -
com Vitória A.

torrencia no antecílio a chuva dos


enterrados

subo a marquise pela barricada, fecundo


queda d’água, oiço teu abraço quase veludo

nas ranhuras da carne fibras vibram. me


ocupa frenesi. escrevo na antessala do
desolo. sou antes.

o erotismo molha os dedos num perfex de


mercado, o mundo quica entre quatro
paredes

os bicos tem peçonha que me punge.


prenso a manga ela escorre e implode.
extrato de macunaíma. cordas afinadas em
romaria
quem perdeu o sono não fica teso de
inexistir

Eu sei que você caminha pela casa rezando


pro sol nascer
Claudinei M.,
São José dos
Pinhais,
1997.

Se fosse como um conto, seria


ponto. E ponto! É pouco mas é
tudo, e etc, etc e etc.
ilustação
caído no canto do muro
tinha sarna sei lá, engraçado
cruelmente engraçado…
se morrer o Cachorro, ele ainda é cão.
dezessete e cinquenta e cinco,
cinco horas.

vêm aqui
quero muito ir
vêm

a sarna continua sarna, olhei de perto,


quem morreu foi o cachorro que continua
cachorro
eu acho. eu acho?
se o ponto tivesse um banco

eu vou, vou dar um jeito de ir vou de


bicicleta
tenho medo de morrer
?
como assim?
por causa das sequelas do Covid
mas pode?
é figurado, falamos: Morreu o vira-lata.
mas não dessarniou é sarnento,
morto, podre e infestado.
o canto que sepultou o cachorro

hospedou a sarna, gelado. Se eu tenho


medo?
sim
fibrose?
eu queria você aqui, mas não é bom sair
de casa
eu te espero vc me espera, ninguém pode
morrer.
sarna é coisa séria. talvez.
vai ver ninguém ajudou,
e agora nem querem tirar ele dali.
eles não querem pegar sarna!
Sarna é coisa séria!
fibrose?
não eu tive asma problema nos ossos eles
infeccionaeam sei lá, agr estou com um
cansaço horrível cada vez mais fraca sem
foco

talvez eu ligue para a prefeitura,


talvez eles tirem com uma pá,
coisa assim vai saber.
se eu falar do banco também?
ossinhos podres já aparecem
suco preto marrom,
comem cachorro e sarna… meu onibûs.
talvez eu volte outro dia, com uma pá.

eu te espero, vc me espera, ninguém pode


morrer.
kkkk queria que fosse assim…
se morro hoje, você apodrece num canto?
numa rua.
que passa gente
minha sarna, podre de canto
e de tanto passar não para.

eles te dariam pelo menos uma pá?


eles me dariam que fosse uma pá?
Com Gabi Porto Alegre
Parte que lido? sei lá, ela tinha esse fusca
branco com ferrugem na porta, tentamos
lidar sem gastar. A ração do gato subiu,
porra, e não é? São energias fuzilando
paredes, controlando nuvens, pintando
bolsas de sangue B, AB, B, essas coisas,
meio que eu faltei nas aulas de biologia.
Vai ficar nessa mesmo, não consigo
entender esses átomos de carbono. Aí só
me restou isso, sentei na calçada meio
cinza e rachada e ferida, ontem eu estava
entregue para um curso de jornalismo,
engraçado, não aprendi a fazer coluna,
mas aprendi um pouco de como falar
bonito, e foi isso mesmo, mim veio muito
esguia, me veio, me vai, mim vai, tanto faz,
eu gosto da língua, sabida, magrela,
rápida, bonita, cabocla, tudo isso que você
carrega no seu fusca, sabida como a
ferrugem que escolheu a melhor porta da
cidade para fazer casa. Sei que ela tenta
alçapar pelo papel qualquer que seja seu
toque, aquele que vem cheio de barro e
folha, mão de avô que lida com a terra?
Tira leite da vaca, puxa feno, sabe?
Ranhuras, rachada e ferida, me isca, fisga,
chega lambe dedos cicuta, carrego na
minha xícara veneno extraído assim
mesmo, da erva, é que minha saliva, boca
seca, taquicardia, paralisia, tremor, resta
me esperar, resta-me. Inventei de tentar
encontrar alguns sentidos que perdi,
talvez naquela viagem que fiz quando
tinha onze anos, e foi quando senti o
gosto dessa ração que acaba mais rápido
do que o preço. Complicado… eu até
aprendi a miar, são dois, então agora eu
escuto e entendo, sei qual é qual pelo tom
do miado, eu entendo tanta coisa, sem
nenhuma variante incógnita, não, não é
amar, é miar mesmo, tipo bruxo de capa e
chapéu. E por miado eu entendo que um
quebra-cabeça pode unir cabeças.
Quando eu levantei cedo não lembrei do
pouco que me veio durante a noite, o chá
que pesa minha chaleira cheira como peça
perdida, camomila, erva cidreira, cicuta,
talvez eu prove e descubra, e mesmo com
todas juntas ninguém resolve, é como
conhecimento místico, antigo, só sol
passarinho, calçada, grama, rachadura, o
leite da vaca, o arame farpado que corta
as costas, e o sangue vira um só com o pó
da estrada/ desfortúnio disparatado
2021/ assim como artéria rompida mas
sem escorrer uma gota, que porcaria de
quebra cabeça é esse? sol e passarinho,
erva daninha, milho, amendoim,
jabuticaba, nem sei de onde essas
lembranças aparecem, é que eu ainda
estou pensando no preço daquela ração.
Acho, pesa/dispareunia e é foda, eu
lembro do teu fusca, da tua ferrugem, da
sua unha aquarela lascada, e lembro de
tanta porcaria também, dói peito é duro,
pesa/dispareunia lembra quanto você me
contou? Lacera sem importância sem
vírgulas, sem porra nenhuma, não é a
ranhura da mão do avô que tira o leite da
vaca, porcaria de história/ Interpenetrar
dói, vela, apagar, queime comigo, sutura e
costura. A gente dá um jeito nessa
ferrugem da sua porta, por mais que eu a
ache charmosa. Pode ser que esse espaço
queira que as coisas caminhem e, apenas
queiram, eu quero tanta coisa também. Se
eu entro naquela memória de novo, não,
não aquela dos onze, aquela que você me
contou na calçada naquele dia, lembra?
Quando esperamos tua mãe. Me lacera./
eu sei que o amor é vão, e eu vão, você vã,
é tanto vão que a gente pensa e quer tapar
cada um deles, mas a ranhura da calçada
ainda está lá, é um cubo de cristal furado
nas arestas, é uma zarabatana carregada
com a mais pesada subjugação da
realidade, vã, é onde segurar barriga, é
índio, como meu tio caboclo do norte, que
mói o café toda manhã, senta, puxa o
palheiro e aí volta e senta naquela calçada,
come amendoim, joga milho para as
galinhas, tudo vão, essas pernas, esse
ventríloquo pendura minha mão
decepada, entre nervo, veia, vaso e tudo,
mudo, minha mão pendurada assumindo
posto, retiro, corto nervo, corto veia, no
dente, encosto no ferrugem e pego
tétano/ peixescorpião bixo que mergulha,
bixo que corre, bixo grilo, bixo que é bixo,
me pede ração, me pede e eu nem sei o
que eu quero e acabo precisando
entender cada pedido, é que a gente se
importa né? Arde, rói, resmunga, bate pó,
corta, enfia, cafeína, busca engole e
soluça. beira sabe? beira qualquer coisa
que não sei, fica perdida nas fumaças
dessas porcarias que a gente carrega. é
que no fundo de mim tem um oráculo,
drogado, perdido e induzido na fila da
internação, se deu uma previsão certeira,
olha, foi a única que eu não segui. do
desmembramento, não me sobra nada, o
tétano já me tritura/ campainha, chão
estrela, fora Via-Láctea, caminho,
caminho da anta, anta albina, anta
póstuma, via e leite, deve ser um pouco
daquela porcaria que meu oráculo usa,
mas eu já penso em tanta coisa que o
pouco que não pensa está ficando
esquizofrênico/ tem multiverso/ feche os
olhos respire fundo, inala essa poeira
batida com sangue de arame farpado,
migalha, milho, solta multiverso, e aquela
maldita ração desumana, vibra tanto, pelo
menos bilhões/ na verdade é só 2 e
cinquenta e 5/ deus/ que /me/ desce/
proteja/ a espinha. e aquele fusca branco,
protege minha ferrugem, seu gosto de
ferrugem, protege seu sangue B, AB, O
que não sei e nem você… ou esquece tudo
isso, senta aqui e conversa comigo na
calçada rasgada.
gabriela porto
alegre, rio
grande,
1998.

Sou reles serva de toda letra que queira ser


gestada. Sou mulher. Tenho 22 anos. A única
constante na minha vida é a poesia. Não há
outra escolha senão estar aqui, tal qual um
castelo de cacos. Os versos que seguem são
sonhos, feridas e trocas com outros dois
integrantes dessa rota, desse vão, dessa
selvageria em tubo de ensaio que foi a criação
conjunta.
Ao leitor, meu acanhado (e xucro)
agradecimento.
Instagram: @portoalegregabi
gabriela porto
alegre, rio
grande,
1998.

Sou reles serva de toda letra que queira ser


gestada. Sou mulher. Tenho 22 anos. A única
constante na minha vida é a poesia. Não há
outra escolha senão estar aqui, tal qual um
castelo de cacos. Os versos que seguem são
sonhos, feridas e trocas com outros dois
integrantes dessa rota, desse vão, dessa
selvageria em tubo de ensaio que foi a criação
conjunta.
Ao leitor, meu acanhado (e xucro)
agradecimento.
Instagram: @portoalegregabi

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