Ginzburg, Carlo - Sinais: Raízes de Um Paradigma Indiciário

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SINAIS

R A ÍZ ES D E UM PA R A DIGM A IN D IC1Á R I0

Deus está no particular.


A . W arburg

Um objeto que fala da perda, da destruição, do


desaparecimento de objetos. Não fala de si. Fala
de outros. Incluirá também a eles?
J. Joh n s

N essas págin as ten tarei m ostr ar com o, por volta do fin al do


século xix , em ergiu silen ciosam en te n o âm bito das ciên cias h um a­
nas um m odelo epistem ológico (caso se pr efira, um p ar ad igm a1)
ao qual até agora n ão se pr estou suficien te aten ção. A an álise desse
paradigm a, am plam en te operan te de fato, ain da que n ão teorizado
explicitam en te, talvez p ossa aju dar a sair dos in côm odos da con ­
traposição en tre “ racion alism o” e “ irracion alism o” .

I.

1. En tr e 1874 e 1876, apareceu na Z eitschrift für bildende
Kun st um a série de artigos sobre a pin tura italian a. Eles vinh am
assin ados por um descon h ecido estudioso r u sso, Ivan Lerm olieff,
e for a um igualm en te descon h ecido Joh an n es Sch warze que os

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traduzira par a o alem ão. O s artigos propun h am um n ovo m étodo
para a atribuição dos qu adros an tigos, que suscitou en tre os h is­
t oriadores da arte reações con trastan tes e vivas discu ssões. Som en ­
te algun s an os depois, o autor tirou a dupla m áscara n a qual se
escon dera. De fato, tratava-se do italian o Giovan n i M orelli (sobre­
n om e do qual Sch w arze é um a cópia e Ler m olieff o an agram a, ou
qu ase). E do “ m étodo m orellian o” os h istoriadores da arte falam
corren tem en te ain da h oje.2
Vejam os rapidam en te em que con sistia esse m étodo. O s m u ­
seu s, dizia M orelli, estão ch eios de quadros atribu ídos de man eira
in correta. M as devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor é
difícil: m u itíssim as vezes encon tram o-n os fren te a obras não-assi-
n adas, talvez repin tadas ou n um m au estado de con servação. N es­
sas con dições, é in dispen sável poder distin gu ir os origin ais das
cópias. P ar a tan to, porém (dizia M orelli), é preciso n ão se basear,
com o n orm alm en te se faz, em características m ais vist osas, portan ­
to m ais facilm en te im itáveis, dos qu adr os: os olh os ergu idos para
o céu dos person agen s de Peru gin o, o sorriso dos de Leon ardo, e
assim por dian te. P elo con trário, é n ecessário exam in ar os porm e­
n ores m ais n egligen ciáveis, e m en os in fluen ciados pelas caracterís­
ticas da escola a que o pin tor perten cia: os lóbu los das orelh as,
as un h as, as form as dos dedos das m ãos e dos pés. Dessa m an eira,
Morelli descobriu , e escru pulosam en te catalogou, a form a de ore­
lha pr ópria de Botticelli, a de Cosm è Tu ra e assim por dian te:
traços presen tes n os origin ais, m as n ão nas cópias. Com esse m éto­
do, pr opôs dezen as e dezen as de n ovas atribuições em algun s dos
prin cipais m useu s da Eu ropa. Freqüen tem en te tratava-se de atri­
buições sen sacion ais: n um a Vên us deitada con servada n a galeria
de Dresden , que passava por um a cópia de um a pin tu ra perdida de
Tician o feit a por Sassofer r at o, M orelli iden tificou um a das pou ­
qu íssim as obras seguram en te au tografas de Giorgion e.
Apesar desses resu ltados, o m étodo de M orelli foi m uito cri­
ticado, talvez tam bém pela seguran ça quase arrogan te com que era
pr opost o. Posteriorm en te foi ju lgado mecân ico, grosseiram en te po­
sitivista, e caiu em descrédito.3 (P or ou tro lado, é possível que

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m uitos est u diosos que falavam dele com desdém con tin uassem a
usá-lo tacitam en te para as su as atribuições.) O ren ovado in teresse
pelos trabalh os de M orelli é m érito de W in d, que viu n eles um
exem plo típico da atitude m odern a em relação à obra de arte —
atitude que leva a apreciar os porm en ores, de preferên cia à obra
em seu con jun to. Em M orelli existiria, segun do W in d, um a exa­
cerbação do culto pela im ediaticidade do gên io, assim ilado por ele
n a ju ven tude, no con tato com os círculos rom ân ticos berlin en ses.4
É um a in terpretação pouco con vin cen te, vist o que M orelli n ão se
colocava problem as de ordem estética (o que depois lhe foi cen su­
r ado), m as sim problem as prelim in ares, de ordem filológica.3 Na
realidade, as im plicações do m étodo pr opost o por M orelli eram
ou tras, e m uito m ais ricas. Verem os que o próprio W in d esteve
m uito próxim o de in tuí-las.

2. “ O s livros de M or elli” — escreve W in d — “ têm um


aspecto bastan te in sólito se com parados aos de ou tros h istoriado­
res da arte. Eles estão salpicados de ilustrações de dedos e orelh as,
cu idadosos registros das m in úcias características que traem a pre­
sença de um determ in ado artista, com o um crim in oso é traído
pelas suas im pressões d igit ais. . . qualquer m useu de arte estu ­
dado por M orelli adquire im ediatam en te o aspecto de um museu
cr im in al. . . ” 6 Essa com paração foi brilh an tem en te desen volvida
por Casteln u ovo, que aproxim ou o m étodo in diciário de M orelli
ao que era atribuído, qu ase n os m esm os an os, a Sh erlock H olm es
pelo seu criador, Arth u r Con an Doyle.7 O con h ecedor de arte é
com parável ao detetive que descobre o au tor do crime (do qu a­
dro) baseado em in dícios im perceptíveis para a m aioria. O s exem ­
plos da perspicácia de H olm es ao in terpretar pegadas n a lam a,
cinzas de cigarro etc. são, com o se sabe, in con táveis. M as, para se
con vencer da exatidão da aproxim ação proposta por Casteln u ovo,
veja-se um con to com o “ A caixa de p ap elão” (1892), n o qual
Sh erlock H olm es literalm en te “ dá um a de M or elli” . O caso com e­
ça exatam en te com duas orelh as cortadas e en viadas pelo correio
a um a in ocen te sen h orita. Eis o con h ecedor com m ãos à obra:
H olm es

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se interrompeu e eu [W atson ] fiquei surpreso, olhando-o, ao ver
que ele fixava com singular atenção o perfil da senhorita. Por
um segundo foi possível ler no seu rosto ansioso surpresa e satis­
fação ao mesmo tempo, ainda que, quando ela se virou para
descobrir o motivo do seu silêncio, Holmes tivesse se tornado
impassível como sempre.3
M ais adian te, H olm es explica a W atson (e aos leitores) o
percurso do seu brilh an te trabalh o m en tal:
Na sua qualidade de médico o senhor não ignorará, W atson, que
não existe parte do corpo humano que ofereça maiores variações
do que uma orelha. Cada orelha possui características propria­
mente suas e difere de todas as outras. Na Revista Antropológica
do ano passado o senhor encontrará sobre este assunto duas bre­
ves monografias de minha lavra. Portanto, examinei as orelhas
contidas na caixa com olhos de especialista e observei acurada­
mente as suas características anatômicas. Imagine então a minha
surpresa quando, pousando os olhos sobre a senhorita Cushing,
notei que a sua orelha correspondia exatamente à orelha feminina
que havia examinado pouco antes. Não era possível pensar numa
coincidência. Nas duas existia o mesmo encurtamento da aba, a
mesma ampla curvatura do lóbulo superior, a mesma circunvo­
lução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais trata-
va-se da mesma orelha. Naturalmente percebi de imediato a enor­
me importância de uma tal observação. Era evidente que a vítima
devia ser uma parente consangüínea, provavelmente muito pró­
xima, da sen h or it a...9

3. Verem os em breve as im plicações desse paralelism o.10


An tes, porém , será bom retom ar um a ou tra preciosa in tuição de
W in d:
A alguns dos críticos de Morelli parecia estranho o ditame de
que “ a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal
é menos intenso” . Mas sobre este ponto a psicologia moderna
estaria certamente do lado de Morelli: os nossos pequenos gestos
inconscientes revelam o nosso caráter mais do que qualquer ati­
tude formal, cuidadosamente preparada por nós.11

“ O s n ossos pequen os gestos in c o n sc ie n t e s...” : a gen érica


expressão “ psicologia m odern a” pode ser diretam en te substituída
pelo n om e de Freud. As págin as de W in d sobre M orelli, de fato,

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atraíram a aten ção dos estu diosos 12 para uma passagem , por m uito
tem po n egligen ciada, do fam oso en saio de Freu d O M oisés de
Michelangelo (1914). N o com eço do segun do par ágr afo, Freu d
escrevia:

Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicanálise,


vim a saber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff,
cujos primeiros ensaios foram publicados em alemão entre 1874
e 1876, havia provocado uma revolução nas galerias da Europa
recolocando em discussão a atribuição de muitos quadros a cada
pintor, ensinando a distinguir com segurança entre as imitações
e os originais, e construindo novas individualidades artísticas a
partir daquelas obras que haviam sido liberadas das suas atri­
buições anteriores. Ele chegou a esse resultado prescindindo da
impressão geral e dos traços fundamentais da pintura, ressaltando,
pelo contrário, a importância característica dos detalhes secundá­
rios, das particularidades insignificantes, como a conformação das
unhas, dos lobos auriculares, da auréola e outros elementos que
normalmente passavam desapercebidos e que o copista deixa de
imitar, ao passo, porém, que cada artista os executa de um modo
que o diferencia. Foi depois muito interessante para mim sabei
que sob o pseudônimo russo escondia-se um médico italiano de
nome Morelli. Tendo se tornado senador do reino da Itália, Mo-
relli morreu em 1891. Creio que o seu método está estreitamente
aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por
hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elemen­
tos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou “ refugos”
da nossa observação (auch diese ist gewöhnt, aus gering geschätz­
ten oder nicht beachtenten Zügen, aus dem Abhub — dem
“refuse” — der Beobachtung, Geheimes und Verbotegenes zu
erraten).13

O en saio sobre o M oisés de Mich elan gelo n um prim eiro m o­


m en to aparecera an ôn im o: Freu d recon h eceu sua patern idade so­
m en te n a ocasião de in cluí-lo em suas obras com pletas. Supôs-se
que a ten dên cia de M orelli para apagar, ocultan do-a sob pseu d ó­
n im os, sua person alidade de autor acabasse de certo m odo por
con tagiar tam bém a Fr eu d ; apresen taram -se h ipóteses m ais ou
m en os aceitáveis sobre o sign ificado dessa con vergên cia.14 O certo
é que, coberto pelo véu do an on im ato, Fr eu d declarou de m an eira
ao m esm o tem po explícita e reticen te a con siderável in fluên cia

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in telectual que M orelli exerceu sobre ele, n um a fase m uito an te­
rior à descoberta da psican álise (“ lan ge bevor ich etw as von der
Psych oan alyse h ören k on n te. . . ” ). Reduzir essa in fluên cia, como
se fez, apen as ao en saio sobre o M oisés de M ich elan gelo, ou em
geral aos en saios sobre tem as ligados à h istória da ar te,15 sign ifica
restrin gir in devidam en te o alcan ce das palavras de Fr eu d: “ Creio
que o seu m étodo (de Morelli) está estreitam en te aparen tado à
técnica da psican álise m édica” . Na realidade, toda a declaração
de Freu d qu e citam os garan te a M orelli um lugar especial n a h is­
tória da form ação da psican álise. D e fato, trata-se de um a con exão
docum en tada, e n ão con jetural, com o a m aior parte dos “ an tece­
d en t es” ou “ pr ecu r sor es” de Fr eu d; além do m ais, o en con tro com
os textos de M orelli ocorreu , com o já dissem os, n a fase “ pré-ana-
lítica” de Freud. Tem os de tratar, portan to, com um elemen to
que con tribuiu diretam en te para a cristalização da psican álise,
e n ão (como n o caso da págin a sobre o son h o de J. P opper
“ Lyn k eu s” , lem brada n as reedições da Traum deutun g) 16 com uma
coin cidên cia en con trada posteriorm en te, qu an do já se dera a des­
coberta.

4. An tes de ten tar en ten der o que Freu d pôde extrair da


leitura dos textos de M orelli, será oportun o determ in ar o m om en ­
to em que ocorreu essa leitura. O m om en to, ou m elh or, os m o­
m en tos, visto que Freud fala de dois en con tros distin tos: “ m uito
tem po an tes que eu pudesse ou vir falar de psican álise, vim a
saber que um especialista de arte ru sso, Ivan Le r m olieff. . . ” ;
“ Foi depois m uito in teressan te para mim saber que sob o pseu dô­
n im o r u sso escon dia-se um m édico italian o de n ome M or elli. . . ” .
A prim eira afirm ação é datável apen as h ipoteticam en te. Com o
term inus ante quem podem os colocar 1895 (an o da publicação
dos Estudos sobre a histeria de Fr eu d e Breuer) ou 1896 (quan do
Freu d usou pela prim eira vez o term o “ psican álise” ).17 Com o ter­
m inus post quem , 1883. Em dezem bro daqu ele an o, de fato, Freud
con tou n uma lon ga carta à n oiva a “ descoberta da p in tu r a” feita
duran te um a visita à galeria de Dresden . N o passad o, a pin tura
n ão o in teressara; agora, escrevia, “ tirei de mim a barbárie e com e­

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cei a adm irar” .18 É difícil su por que, an tes d essa data, Freu d fosse
atraído pelos textos de um descon h ecido h istoriador da arte; é
perfeitam en te plau sível, pelo con trário, que se pu sesse a lê-los
pouco depois da carta à n oiva sobre a galeria de Dresden , visto
que os prim eiros en saios de M orelli reun idos em livro (Leipzig,
1880) referiam -se às obras dos m estres italian os n as galerias de
Mun ique, Dresden e Berlim .19
O segun do en con tro de Fr eu d com os textos de M orelli é da-
tável com um a precisão talvez m aior. O verdadeiro n om e de Ivan
Ler m olieff tornou-se público pela prim eira vez no fron tispício da
tradução in glesa, publicada em 1883, dos en saios que acabam os
de citar; n as reedições e traduções posteriores a 1891 (data da
m orte de Morelli) aparecem sem pre tan to o n om e como o pseu dô­
n im o.20 N ão é de se exclu ir que um desses volu m es ch egasse an tes
ou depois às m ãos de Fr eu d ; m as provavelm en te ele veio a co­
nh ecer a iden tidade de Ivan Ler m olieff por puro acaso, em setem ­
bro de 1898, bisbilh otan do n um a livraria m ilan esa. N a biblioteca
de Freu d con servada em Lon dres, de fato, aparece um exem plar
do livro de Giovan n i M orelli (Ivan Ler m olieff), Da pin tura ita­
liana. Estu dos históricos críticos. A s galerias Borghese e Doria
Pam phili em Rom a, M ilão, 1897. N o fron tispício está escrita a
data da aquisição: M ilão, 14 de setem bro.21 A ún ica estada m ila­
n esa de Freud ocorreu no outon o de 1898,22 Naqu ele m om en to,
por ou tro lado, o livro de M orelli tin h a para Fr eu d m ais um outro
m otivo de in teresse. H avia algun s m eses, ele vin h a se ocupan do
dos lapsos; pouco tem po an tes, na Dalm ácia, ocorreu o episódio,
depois an alisado na Psicopatologia da vida cotidiana, em que ten ­
tara in utilm en te lem brar o n om e do au tor dos afrescos de Orvie-
to. O r a, tan to o verdadeiro au tor (Sign orelli) com o os autores
fictícios que num prim eiro m om en to vieram à m em ória de Freud
(Botticelli, Boltr affio) eram m en cion ados no livro de M orelli.23
M as o que pôde represen tar para Freu d — par a o jovem
Freu d, ain da m uito distan te da psican álise — a leitura dos ensaios
de M orelli? É o próprio Freu d a in dicá-lo: a proposta de um m é­
todo in terpretativo cen trado sobre os resídu os, sobre os dados
m argin ais, con siderados reveladores. D esse m odo, porm en ores nor-

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m alm en te con siderados sem im portân cia, ou até triviais, “ b aixos” ,
forn eciam a ch ave para aceder aos pr odu tos m ais elevados do espí­
rito h um an o: “ os m eus ad ver sários” , escrevia iron icam en te Mo-
relli (um a iron ia talh ada para agradar a Fr eu d ), “ comprazem -se
em me ju lgar com o alguém que n ão sabe ver o sen tido espiritual
de um a obra de arte e por isso dá um a im portân cia particular a
m eios exteriores, com o as form as da m ão, da orelh a e até, horri-
bile dictu, de um objeto tão an tipático com o as u n h as” .24 Morelli
tam bém poderia se apropriar do lem a virgilian o caro a Freu d, es­
colh ido como epígrafe para A interpretação de son h os: “ Flectere
si n equeo Su peros, Ach eron ta m ovebo” [Se n ão posso dobrar os
poderes su periores, m overei o A qu er on t e].25 Além disso, esses
dados m argin ais, para M orelli, eram reveladores porqu e con sti­
tuíam os m om en tos em que o con trole do ar tista, ligado à tradi­
ção cu ltural, disten dia-se para dar lugar a traços puram en te in di­
vidu ais, “ que lhe escapam sem que ele se dê con ta” .26 Ain da mais
do que a alu são, n ão excepcion al n aqu ela época, a um a atividade
in con scien te,27 im pression a a iden tificação do n úcleo ín tim o da in ­
dividu alidade artística com os elem en tos subtraídos ao con trole da
con sciên cia.

5. Vim os, por tan to, delin ear-se um a an alogia en tre os m éto­
dos de M orelli, H olm es e Freud. D o n exo M orelli— H olm es e M o­
relli— Freu d já falam os. D a sin gular con vergên cia en tre os proce­
dim en tos de H olm es e os de Freu d por sua vez falou S. M a r c u s*
O próprio Fr eu d, aliás, m an ifestou a um pacien te (“ o h omem dos
lob o s” ) o seu in teresse pelas aven turas de Sh erlock H olm es. M as,
a um colega (T. Reick) que aproxim ava o m étodo psican alítico ao
de H olm es, falou an tes com adm iração, n a prim avera de 1913,
das técn icas atribu tivas de Morelli. N os três casos, pistas talvez
in fin itesim ais perm item captar um a realidade m ais profu n da, de
ou tra form a in atin gível. P ist as: m ais precisam en te, sin tom as (no
caso de Fr eu d ), in dícios (n o caso de Sh erlock H olm es), sign os
pictóricos (n o caso de M or elli).29
Com o se explica essa tripla an alogia? A resposta, à prim eira
vista, é m uito sim ples. Fr eu d era um m édico; M orelli formou-se

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em m edicin a; Con an Doyle h avia sido m édico an tes de dedicar-se
à literatu ra. N os três casos, entrevê-se o m odelo da sem iótica m é­
dica: a disciplin a qu e perm ite diagn osticar as doen ças in acessíveis
à observação direta na base de sin tom as superficiais, às vezes
irrelevan tes aos olh os do leigo — o dou tor W atson , por exem plo.
(De passagem , pode-se n otar que a dupla H olm es — W atson , o de­
tetive agu díssim o e o m édico obtu so, represen ta o desdobram en to
de um a figu ra real: um dos pr ofessor es do jovem Con an Doyle,
fam oso pelas suas extraordin árias capacidades d iagn ost icas.)30 M as
n ão se trata sim plesm en te de coin cidên cias biográficas. N o final
do século x ix — m ais precisam en te, na década de 1870-80 — ,
com eçou a se afirm ar n as ciên cias h um an as um paradigm a indi-
ciário baseado justam en te n a sem iótica. M as as suas raízes eram
m uito an tigas.

II.

1. P or m ilên ios o h om em foi caçador. Du ran te in úm eras per­


seguições, ele apren deu a recon struir as form as e m ovim en tos das
presas in visíveis pelas pegadas n a lam a, ram os qu ebrados, bolotas
de esterco, tu fos de pêlos, plu m as em aran h adas, odores estagn a­
dos. Apren deu a far ejar, r egistrar, in terpretar e classificar pistas
in fin itesim ais como fios de barba. Apren deu a fazer operações m en ­
tais com plexas com rapidez fulm in an te, n o in terior de um den so
bosqu e ou n uma clareira ch eia de ciladas.
Gerações e gerações de caçadores en riqueceram e tran sm iti­
ram esse patrim ôn io cogn oscitivo. N a falt a de um a docum en tação
verbal para se pôr ao lado das pin turas rupestres e dos artefatos,
podem os recorrer às n arrativas de fábu las, que do saber daqueles
rem otos caçadores tran sm item-n os às vezes um eco, m esm o que
tardio e deform ado. Três irm ãos (n arra um a fábu la orien tal, d i­
fu n dida en tre os quirqu izes, tártaros, h ebreus, tu r cos. . . ) 31 en con ­
tram um h om em que perdeu um cam elo — ou, em ou tras varian ­
tes, um cavalo. Sem h esitar, descrevem -n o para ele: é bran co,
cego de um olh o, tem dois odres n as costas, um ch eio de vin h o, o

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ou tro ch eio de óleo. P ortan to, viram -n o? N ão, não o viram . En tão
são acusados de roubo e su bm etidos a julgam en to. É, para os
irm ãos, o triun fo: n um in stan te dem on stram com o, através de
in dícios m ín im os, puderam recon struir o aspecto de um animal
que n unca viram .
O s três irm ãos são eviden tem en te d epositários de um saber
de tipo ven atório (m esm o que n ão sejam descritos como caçado­
r es). O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de
dados aparen tem en te n egligen ciáveis, rem on tar a um a realidade
com plexa não experim en tável diretam en te. Pode-se acrescen tar que
esses dados são sem pre dispostos pelo observador de m odo tal a dar
lugar a um a seqüên cia n arrativa, cuja form ulação m ais sim ples po­
deria ser “ alguém passou por lá” .[Talvez a própria idéia de n arra­
ção (distin ta do sortilégio, do escon juro ou da in vocação)32 tenha
n ascido pela prim eira vez n uma sociedade de caçadores, a partir da
experiên cia da decifração das p ist as^ O fato de que as figu ras retóri­
cas sobre as quais ain da h oje fun da-se a lin guagem da decifração
ven atória — a parte pelo todo, o efeito pela causa — são recondu-
zíveis ao eixo n arrativo da m eton ím ia, com rigorosa exclusão da
m etáfora,33 reforçaria essa h ipótese — obviam en te in dem on strável.
O caçador teria sido o prim eiro a “ n arrar um a h istória” porque era
o único capaz de ler, n as pistas m udas (se n ão im perceptíveis)
deixadas pela presa, um a série coeren te de even tos.
“D ecifr ar ” ou “ ler ” as pistas dos an im ais são m etáforas. Sen ­
timo-n os ten tados a tomá-las ao pé da letra, como a con den sação
verbal de um processo h istórico que levou, n um espaço de tem po
talvez lon gu íssim o, à in ven ção da escrita. A m esm a con exão é
form u lada, sob form a de m ito etiológico, pela tradição ch in esa que
atribuía a in ven ção da escrita a um alto fun cion ário, que observara
as pegadas de um pássaro im prim idas n as m argen s aren osas de um
r io.34 P or outro lado, se se aban don a o âm bito dos m itos e h ipó­
teses pelo da h istória docum en tada, fica-se im pression ado com as
in egáveis an alogias en tre o paradigm a ven atório que delin eam os
e o paradigm a im plícito n os textos divin atórios m esopotâm icos,
redigidos a partir do terceiro milên io a.C. em dian te.35 Am bos
pressupõem o m in ucioso recon h ecim en to de uma realidade talvez

152
ín fim a, para descobrir pistas de even tos n ão diretam en te experi­
m en táveis pelo observador. De um lado, esterco, pegadas, pêlos,
plu m as; de ou tro, en tran h as de an im ais, gotas de óleo n a água,
astros, m ovim en tos in volun tários do corpo e assim por dian te. É
verdade que a segun da série, à diferen ça da prim eira, é pratica­
men te ilim itada, no sen tido de que tu do, ou quase tudo, podia
tornar-se objeto de adivin h ação para os adivin h os m esopotâm icos.
Mas a prin cipal divergên cia aos n ossos olh os é ou tra; o fato de
que a adivin h ação se voltava par a o fu tu ro, e a decifração, par a o
passado (talvez um passado de segun dos). Porém a atitude cognos-
citiva era, n os dois casos, m uito parecida; as operações in telectuais
en volvidas — an álises, com parações, classificações — , form alm en ­
te idên ticas. É certo que apen as form alm en te: o con texto social
era totalm en te diferen te. Notou-se, em particu lar,36 com o a in ven ­
ção da escrita m odelou profu n dam en te a arte divin atória mesopo-
tâmica. Às divin dades, de fato, era atribuída, en tre as ou tras prer­
rogativas dos soberan os, a de se comun icar com os súditos através
de m en sagen s escritas — nos astros, n os corpos h um an os, em toda
parte — , que os adivin h os tinh am a tarefa de decifrar (idéia essa
destin ada a desem bocar n a im agem m ultim ilen ar do “ livro da na­
tu reza” ). E a iden tificação da arte divin atória com a decifração
de caracteres divin os in scritos n a realidade era reforçada pelas
características pictográficas da escrita cun eiform e: ela tam bém ,
com o a arte divin atória, design ava coisas através de coisas.37
Tam bém um a pegada in dica um an im al que passou . Em com ­
paração com a con cretude da pegada, da p ista m aterialm en te en ­
ten dida, o pictogram a já represen ta um in calculável passo à fren te
no cam in h o da abstração in telectual. M as as capacidades abstrati-
vas, pr essu postas n a in trodução da escrita pictográfica, são por
sua vez bem poucas em com paração com as exigidas pela passagem
para a escrita fon ética. De fato, elem en tos pictográficos e fon éti­
cos con tin uaram a coexistir na escrita cun eiform e, assim como na
literatura divin atória m esopotâm ica a pr ogressiva in ten sificação
dos traços apriorísticos e gen eralizan tes n ão apagou a ten dência
fun dam en tal de in ferir as causas a partir dos efeitos.38 É essa atit u ­
de que explica, por um lado, a in filtração na lín gua da arte divi­

153
n atória m esopotâm ica de term os técn icos ext r aídos do léxico ju r í­
dico; por ou tro, a presen ça n os tr atados divin atórios de trech os
de fisiogn om on ia e sem iótica m édica.39
Depois de um lon go rodeio, por t an t o, voltam os à sem iótica.
En con tram o-la in cluída n um a con stelação de disciplin as (m as o
term o é eviden tem en te an acrôn ico) de aspecto sin gular. Poder-se-ia
ficar ten tado a con trapor du as pseu dociên cias com o a arte divin a­
tória e a fisiogn om on ia a du as ciên cias com o o direito e a m edici­
na — atribuin do a h eterogen eidade da aproxim ação à distân cia
espacial e tem poral das sociedades de que estam os falan do. M as
seria um a con clusão superficial. Algo ligava realm en te essas fo r ­
m as de saber na an tiga M esopotâm ia (se excluirm os a adivin h ação
in spirada, que se fu n dava em experiên cias de tipo ext ático):40 um a
atitude orien tada par a a an álise de casos in dividu ais, recon struí-
veis som en te através de pistas, sin tom as, in dícios. O s próprios
textos de jurisprudên cia m esopotâm icos n ão con sistem em coletâ­
n eas de leis ou orden ações, m as n a discu ssão de um a casuística
con creta.41 Em sum a, pode-se falar de paradigm a in diciário ou d i­
vin atório, dirigido, segun do as for m as de saber, para o passado,
o presen te ou o fu tu ro. Para o fu tu ro — e tinh a-se a arte divin a­
tória em sen tido próprio — ; para o passado, o presen te e o fu t u ­
ro — e tinha-se a semiótica m édica n a sua du pla face, diagn ostica
e progn ostica — ; para o passad o — e tin ha-se a ju rispru dên cia.
M as, por trás desse paradigm a in diciário ou divin atório, entrevê-
se o gesto talvez m ais an tigo da h istória in telectual do gên ero
humano:- o do caçador agach ado na lam a, que escruta as pistas
da presa.

2. Tu do o que dissem os até aqu i explica como um a diagn ose


de traum atism o craniano, form ulada a p artir de um estrabism o
bilateral, podia se encontrar num tratado de arte divin atória me-
sop ot âm ico;42 de m odo mais geral, explica com o apareceu h istor i­
cam en te um a con stelação de disciplin as cen tradas na decifração
de sign os de vários tipos, dos sin tom as às escritas. P assan do das
civilizações m esopotâm icas para a Gr écia, essa con stelação m udou
profu n dam en te, em seguida à con stituição de disciplin as n ovas,

154
com o a h istoriografia e a filologia, e à con qu ista de um a n ova
auton om ia social e epistem ológica por parte das an tigas discipli­
n as, com o a m edicin a. O corpo, a lin guagem e a h istória dos
h om en s foram su bm etidos pela prim eira vez a um a in vestigação
sem precon ceitos, que por prin cípio excluía a in terven ção divin a.
Dessa virada decisiva, que caracterizou a cu ltura da polis, nós
som os, com o é óbvio, ain da h erdeiros. M en os óbvio é o fato de
que n essa virada um papel de prim eiro plan o ten h a sido desem pe­
n h ado por um paradigm a defin ível como sem iótico ou in diciário.43
Isso é particularm en te eviden te no caso da m edicin a h ipocrática,
que defin iu seus m étodos refletin do sobre a n oção decisiva de sin ­
tom a (sem eion ). Apen as observan do aten tam en te e registran do
com extrem a min úcia todos os sin tom as — afirm avam os hipocrá-
ticos — , é possível elaborar “ h istór ias” precisas de cada doen ça:
a doen ça é, em si, in atin gível. Essa in sistên cia na n atureza indi-
ciária da m edicin a in spirava-se, com todas as probabilidades, na
con traposição — en un ciada pelo m édico pitagórico Alcm eon —
en tre a im ediatez do con h ecim en to divin o e a con jeturalidade do
h um an o.44 N essa n egação da tran sparên cia da realidade, im plícita
legitim ação en con trava um paradigm a in diciário de fato operan te
em esferas de atividades m uito diferen tes. O s m édicos, os h isto­
riadores, os políticos, os oleiros, os carpin teiros, os m arin h eiros,
os caçadores, os pescadores, as m ulh eres: são apen as algum as entre
as categorias que operavam , para os gregos, no vasto território do
saber con jetural. O s con fin s desse território, sign ificativam en te go­
vern ado p or um a deusa com o M étis, a prim eira esposa de Jú p it er ,
que person ificava a adivin h ação pela águ a, eram delim itados por
term os como “ con jetu r a” , “ con jetu r ar ” ( tek m or, tek m airesthai).
M as esse paradigm a perm an eceu, como se disse, im plícito — esm a­
gado pelo pr estigioso (e socialm en te mais elevado) m odelo de co­
nh ecim en to elaborado por P lat ão.45

3. O tom apesar de tudo defen sivo de certas passagen s do


“ cor p u s” h ip ocr át ico46 dá a en ten der que, já n o século V a.C., co­
m eçara a m an ifestar-se a polêm ica, destin ada a durar até n ossos
dias, con tra a in certeza da m edicin a. Tal persistên cia se explica

155
pelo fato de que as relações en tre o m édico e o pacien te — carac­
terizadas pela im possibilidade, para o segun do, de con trolar o
saber e o poder detidos pelo prim eiro — n ão m udaram m uito
desde o tem po de H ipocr ates. M udaram , pelo con trário, duran te
quase 2500 an os, os term os da polêm ica, a par com as profun das
tran sform ações sofridas pelas n oções de “ r igor ” e “ ciên cia” . Com o
é óbvio, a cesura decisiva n esse sen tido é con stitu ída pelo apare­
cim en to de um paradigm a cien tífico cen trado n a física galilean a,
m as que se revelou m ais duradou ro do que ela. Ain da que a físi­
ca m odern a n ão se possa defin ir com o “ galilean a” (m esm o n ão
ten do ren egado Galileu ), o sign ificado epistem ológico (e sim bóli­
co) de Galileu para a ciên cia em geral perm an eceu in tacto.47 O ra,
é claro que o grupo de disciplin as que ch am am os de in diciárias
(in cluída a medicin a) n ão en tra absolutam en te n os critérios de
cien tificidade deduzíveis do paradigm a galilean o. Trata-se, de fato,
de disciplin as em in en tem en te qu alitativas, que têm por objeto
casos, situ ações e docum en tos in dividu ais, enquanto in dividuais, e
justam en te por isso alcan çam resu ltados que têm um a margem
in elim in ável de casualidade: b asta pen sar no peso das con jeturas
(o pr ópr io term o é de origem d ivin at ór ia)48 n a m edicin a ou na
filologia, além da arte m ân tica. A ciên cia galilean a tin h a um a n atu ­
reza totalm en te diversa, que poderia adotar o lem a escolástico
individuum est in effabile, do que é in dividual n ão se pode falar.
O em prego da m atem ática e o m étodo experim en tal, de fato, im­
plicavam respectivam en te a quan tificação e a repetibilidade dos
fen ôm en os, en quan to a perspectiva in dividualizan te excluía por
defin ição a segun da, e adm itia a prim eira apen as em fun ções auxi­
liares. Tu do isso explica por que a h istória n un ca con segu iu se
torn ar uma ciên cia_galilean a. Ju stam en te duran te o século x v i i ,
pelo con trário, o en xerto dos m étodos do con h ecim en to an tiqu á­
rio n o tron co da h istoriografia trouxe in diretam en te à luz as
distan tes origen s in diciárias desta últim a, ocultas duran te séculos.
Esse pon to de partida perm an eceu in alterado, n ão obstan te as
relações sem pre m ais estreitas que ligam a h istória às ciên cias
sociais. A h istória se m an teve como uma ciência social sui generis,
irrem ediavelm en te ligada ao con creto. M esm o que o h istoriador
n ão possa deixar de se referir, explícita ou im plicitam en te, a séries
de fen ôm en os com paráveis, a sua estratégia cogn oscitiva assim
como os seus códigos expressivos perm an ecem in trin secam en te
in dividualizan tes (m esm o que o in divíduo seja talvez um grupo
social ou um a sociedade in teira). Nesse sen tido, o h istoriador é
com parável ao m édico, que utiliza os quadros n osográficos para
an alisar o m al específico de cada doen te. E , como o do m édico, o
con h ecimen to h istórico é in direto, in diciário, con jetural.49
M as a con traposição que sugerim os é esquem ática dem ais. N o
âm bito das disciplin as in diciárias, um a delas — a filologia, e m ai^
precisam en te a crítica textual — con stitu iu desde o seu surgim en ­
to um caso sob certos aspectos atípico.
O seu objeto, de fato, con stitui-se através de um a drástica
seleção — destin ada a se reduzir ulteriorm en te — dos elem en tos
pertin en tes. Esse acon tecim en to in tern o da disciplin a foi escon di­
do por duas cesuras h istóricas decisivas: a in ven ção da escrita e a
da im pren sa. Com o se sabe, a crítica textual nasceu depois da
prim eira (quan do decidiu-se tran screver os poem as h om éricos) e
con solidou-se depois da segun da (quan do as prim eiras e freqü en ­
tem en te apressadas edições dos clássicos foram substitu ídas por
edições m ais con fiáveis).50 In icialm en te, foram con siderados não
pertin en tes ao texto os elem en tos ligados à oralidade e à gestuali-
dade; depois, tam bém os elem en tos ligados ao caráter físico da
escrita. O resu ltado dessa dupla operação foi a progressiva desm a­
terialização do texto, con tin uam en te depurado de todas as refe­
rên cias sen síveis: m esm o que seja n ecessária um a relação sen sível
para que o texto sobreviva, o texto n ão se iden tifica com o seu
su porte.51 Tu do isso n os parece óbvio, h oje, m as n ão o é em term os
absolutos. Basta pen sar n a fun ção decisiva de en ton ação n as lite­
raturas or ais, ou da caligrafia na poesia ch in esa, para perceber que
a n oção de texto que acabam os de in vocar está ligada a um a esco­
lha cultural, de alcan ce in calculável. Q u e essa escolh a n ão tenh a
sido determ in ada pela afirm ação da reprodução mecân ica em lugar
da m an ual é dem on strado pelo exem plo clam oroso da Ch in a, onde
a in ven ção da im pren sa n ão rom peu o elo en tre texto literário e

157
caligrafia. (Verem os em breve como o problem a dos “ textos” figu ­
rativos se colocou h istoricam en te em term os totalm en te dife­
ren tes.)
Essa n oção profun dam en te abstrata de texto explica por que
a crítica textu al, m esm o se m an ten do largam en te divin atória, tinha
em si poten cialidades de desen volvim en to em sen tido rigorosa­
m en te cien tífico que am adureceriam duran te o século x ix .52 Com
um a decisão radical, ela levara em con sideração apen as os elemen ­
tos reprodutíveis (an tes m an ualm en te, depois m ccan icam en te, a
partir de Gu ten berg) do texto. Desse m odo, m esm o assum in do
com o objeto os casos in dividu ais,53 acabara por evitar o prin cipal
obstáculo das ciên cias h um an as: a qu alidade. É sign ificativo que,
no m om en to em que se fun dava — com um a redução igualmen te
drástica — a m odern a ciên cia da n atureza, Galileu ten h a in vocado
a filologia. A tradicion al com paração m edieval en tre m un do e
livro funda-se na evidên cia, na legibilidade im ediata de am bos:
Galileu , pelo con trário, ressaltou que “ a filosofia . . . escrita n este
en orm e livro que está con tin uam en te aberto dian te dos n ossos
olh os (digo o u n iver so). . . não se pode entender se antes não se
aprende a entender a língua, conhecer os caracteres nos quais está
escrito”, isto é, “ triân gulos, círculos e ou tras figu r as geom étri­
cas” .54 P ara o filósofo n atural, com o par a o filólogo, o texto é
um a en tidade profu n da in visível, a ser recon struída par a além dos
dados sen síveis: “ as figu r as, os n úm eros e os m ovim en tos, m as
não os odores, nem os sabores, nem os son s, os quais fora do ani­
m al vivo não creio que sejam nada além de nom es",55
Com essa fr ase Galileu im prim ia à ciên cia da n atureza uma
guin ada em sen tido ten den cialm en te an tian tropocên trico e anti-
an tropom órfico que ela n ão viria m ais a aban don ar. N o m apa do
saber abria-se um rasgo destin ado a se alargar con tin uam en te. E
certam en te en tre o físico galilean o, profission alm en te surdo aos
son s e in sen sível aos sabores e aos odores, e o m édico con tem po­
rân eo seu, que arriscava diagn ósticos pon do o ou vido em peitos
estertoran tes, ch eiran do fezes e provan do urin as, o con traste não
poderia ser m aior.

158
4. Um desses m édicos era Giu lio Man cin i, de Sien a, médíco-
m or de Urban o v iu . N ão parece que con h ecesse Galileu pessoal­
m en te; m as é bem provável que os dois ten h am se en con trado,
porque freqüen tavam os m esm os am bien tes rom an os (da corte
papal à Accadem ia dei Lin cei) e as m esm as pessoas (de Federico
Cesi a Giovan n i Ciam poli, a Giovan n i Fab er ).56 Num vivíssim o
retrato, Nicio Er itreo, alias Gian Vittorio Rossi, delin eou o ateís­
mo de M an cin i, su as extraordin árias capacidades diagn osticas (des­
critas com term os do léxico divin atório) e a falta de escrúpulos
em extor qu ir dos clien tes os qu adros de que era “ intelligen-
tissim u s” .57 Man cin i de fato redigira um a obra in titu lada A lgu­
m as considerações referentes à pin tura com o deleite de um gentil-
hom em nobre e com o introdução ao que se deve dizer, que circulou
am plam en te em m an uscrito (a prim eira im pressão in tegral remon ­
ta a duas décadas).58 O livro, como m ostra o título, era dirigido
n ão aos pin tores, m as aos gen tis-h om en s diletan tes — aqueles vir-
tuoses que, em n úm ero sem pre m aior, lotavam as exposições de
qu adros an tigos e m odern os que acon teciam todos os an os no
Pan th eon , em 19 de m arço.59 Sem esse m ercado artístico, a parte
talvez m ais n ova das Considerações de M an cin i — a dedicada ao
“ recon h ecim en to da p in t u r a” , isto é, aos m étodos par a recon h ecer
os falsos, par a distin gu ir os origin ais das cópias e assim por
d ian t e60 — n un ca teria sido escrita. A prim eira ten tativa de fu n ­
dação da connoisseurship (como se ch am aria um século depois)
rem on ta, port an t o, a um m édico célebre pelos seus fulm in an tes
diagn ósticos — um h om em que, en con tran do um doen te, com um
rápido olh ar “ quem exitum m orbus ille esset h abiturus, divin abat”
[adivin h ava que fim aquela doen ça viria a t e r ].61 Será perm itido,
a esse pon to, ver n o par olh o clín ico-olho do con h ecedor algo
m ais que um a sim ples coin cidên cia.
An tes de seguir de pert o os argum en tos de Man cin i, desta­
quem os um pressu posto comum a ele, ao “ gen til-h om em n obre” a
quem se dirigiam as Considerações, e a n ós. Um pressu posto n ão
declarado porque ju lgado (erron eam en te) óbvio; o de que entre
um quadro de Rafael e uma cópia sua (trate-se de uma pin tura,
um a gravura ou, h oje, um a fotografia) existia um a diferen ça ineli-

159
m in ável. A s im plicações com erciais desse pressu posto — de que
um a pin tu ra é por defin ição um unicum , ir r epetível62 — são
óbvias. A elas está ligado o surgim en to de um a figu ra social como
o do con h ecedor. M as trata-se de um pr essu posto que n asce de
um a escolh a cultural de form a algum a prevista, como m ostra o
fato de n ão se aplicar aos textos escritos. O s su postos caracteres
etern os da pin tu ra e da literatu ra n ão cabem aí. Já vim os antes
as guin adas h istóricas pelas quais a n oção de texto escrito foi de­
pu r ada de um a série de elem en tos con siderados n ão-pertin en tes.
N o caso da pin tu ra, essa depuração (ain da) n ão se verificou. Por
isso, aos n ossos olh os, as cópias m an uscritas ou as edições do
Orlando Furioso podem reproduzir exatam en te o texto desejado
por Ar iosto; as cópias de um retrato de Rafael, n un ca.63
O diferen te estatu t o das cópias na pin tura e n a literatura
explica por que Man cin i n ão podia se servir, en quan to conhece­
dor, dos m étodos da crítica textu al, m esm o estabelecen do em prin ­
cípio um a an alogia en tre o ato de pin tar e o ato de escrever.64
M as, justam en te partin do d essa an alogia, recorreu em busca de
aju da a ou tras disciplin as, em vias de form ação.
O prim eiro problem a que ele se colocava era o da datação
das pin tu ras. P ara tan to, afirm ava, é n ecessário adquirir “ uma
certa prática n a cogn ição da variedade da pin tura quan to ao seu
tem po, como têm esses an tiquários e bibliotecários dos caracteres,
os qu ais recon h ecem o tem po da escrita” .65 A alu são à “ cogn i­
ção. . . dos caracteres” refere-se quase certam en te aos m étodos ela­
borados n os m esm os an os por Leon e Allacci, bibliotecário da Va-
tican a, para datar os m an u scritos gregos e latin os — m étodos
destin ados a ser retom ados e desen volvidos m eio século m ais tarde
pelo fu n dador da ciên cia paleográfica, M abillon .66 M as, “ além da
propriedade comum do sécu lo” , existe — con tin uava Man cin i —
“ a propriedade própria in dividu al” , assim com o “ vem os n os escri­
tores em que se reconh ece essa propriedade d istan t e” . O n exo
an alógico en tre pin tura e escrita, sugerido an tes em escala m acros­
cópica (“ os tem pos” , “ o sécu lo” ), era en tão n ovam en te proposto
em escala m icroscópica, in dividual. N esse âm bito, os m étodos
protopaleográficos de um Allacci n ão eram u tilizáveis. H ou ver a

160
porém , n esses m esm os an os, um a ten tativa isolada de subm eter à
an álise, de um pon to de vista in com um , as escritas in dividu ais. O
médico Man cin i, citan do H ipócrates, observava que é possível re­
m on tar das “ oper ações” às “ im pr essões” da alm a, que por sua vez
têm raízes n as “ propriedades” dos corpos sin gu lares: “ suposição
pela qual e com a qu al, com o creio, algum as belas in teligên cias
deste n osso século escreveram e quiseram dar regra para recon h e­
cer o in telecto e a in teligên cia dos ou tros com o m odo de escrever
e da escrita deste ou daquele h omem ” ._Uma dessas “ belas in teli­
gên cias” era, com todas as pr obabilidades, o m édico bolon h ês.
Cam illo Baldi, que em seu Tratado sobre como de um a carta m is­
siva se conhece a natureza e a qualidade do escritor h avia in cluído
um capítu lo que pode-se con siderar o m ais an tigo texto de gr afo­
logia já aparecido na Eu ropa. “ Q u ais são os sign ificados” — é o
título do capítu lo vi do Tratado — “ que na figu ra do caráter
podem-se apreen der” : on de “ car áter” design a “ a figu r a, e o traça­
do da letra, que se ch amà elem en to, feito com a pen a sobre o
pap el” .67 M as, n ão obstan te as palavras elogiosas que lem bram os,
Man cin i desin teressou-se quan to ao objetivo declarado da n ascen te
grafologia, isto é, a recon strução da person alidade dos escreven tes
rem on tan do-se do “ car áter ” escrito ao “ car áter” psicológico (sino-
n ím ia esta que rem ete, um a vez m ais, a um a m esm a rem ota matriz
disciplin ar). Ele se deteve, pelo con trário, n o pr essu posto da n ova
disciplin a: a diversidade, ou m elh or, a sin gularidade in im itável
das escritas in dividuais. Isolan do n as pin turas elem en tos igualm en ­
te in im itáveis, estaria alcan çado o fim que Man cin i se pr efixava:
a elaboração de um m étodo que perm itisse distin gu ir en tre os
origin ais e os falsos, as obras dos m estres e as cópias ou trabalh os
de escola. Tu do isso explica a exortação para se con ferir se n as
pin turas:

vê-se aquela desen voltura do m estre, e em particular n aquelas


partes que n ecessariam en te fazem-se com resolução, de m odo que
não podem passar bem com a im itação, como são em particular
os cabelos, a barba, os olh os. Que o an elar dos cabelos, quan do
se deve im itar, faz-se com m uito custo, que depois na cópia apa­
rece, e, se o copiador n ão quer im itá-lo, en tão n ão tem a per­
feição do m estre. E essas partes na pin tura são como os traços e
os volteios na escrita, que precisam daquela desenvoltura e reso­
lução de mestre. Isso deve-se ainda observar em alguns sopros e
golpes de luz de espaço em espaço, que pelo mestre são postos
de uma vez e com a resolução de uma pincelada inimitável; assim
nas. dobras dos tecidos e em sua luz, os quais dependem mais da
fantasia e resolução do mestre do que da verdade da coisa criada.68

Com o se vê, o paralelo, já sugerido por Man cin i em vários


con textos, en tre o ato de escrever e o de pin tar é retom ado n essa
passagem de um pon to de vista n ovo, sem preceden tes (se se exce­
tu ar um a fugaz alu são de Filaret e, que Man cin i podia n ão co­
n h ecer 69). A an alogia se r essalta com o uso de term os técn icos
recorren tes n os tratados de escrita con tem porân eos, com o “ desen ­
volt u r a” , “ tr aços” , “ volteios” .70 Tam bém a in sistên cia na “ veloci­
d ad e” tem a m esm a origem : n um a época de crescen te desen vol­
vim en to bu rocrático, as qualidades que asseguravam o sucesso de
uma letra ch an celeresca cursiva no mercado escriturário eram , além
da elegân cia, a rapidez no ductus (con dução da pen a).71 Em geral,
a im portân cia atribuída por Man cin i aos elem en tos orn am en tais
dem on stra um a reflexão n ão superficial sobre as características dos
m odelos de escrita predom in an tes na It ália en tre o fin al do século
xvi e o início do século x v ii.72 O estudo da escrita dos “ caracte­
r e s” m ostrava que a iden tificação da m ão do m estre deveria ser
procurada de preferên cia n as partes do quadro a) execu tadas m ais
rapidam en te e, por tan to, b) ten dencialm en te desligadas da repre­
sen tação do real (em aran h ado de cabeleiras, tecidos que “ depen ­
dem m ais da fan tatsia e resolução do m estre do que da verdade
da coisa cr iada” ). Sobre a riqueza que jaz n essas afirm ações —
uma riqueza que nem Man cin i n em os seus con tem porân eos foram
capazes de trazer à luz — , voltarem os m ais adian te.

5. “ Car acter es” . Por volta de 1620, a própria palavra


retorn a, em sen tido próprio ou an alógico, de um lado n os textos
do fu n dador da física m odern a e, de ou tro, n os in iciadores da pa­
leografia, da grafologia e da connoisseursh ip, respectivam en te. É
certo que, en tre os “ caracteres” im ateriais que Galileu lia com os
olh os do cér eb r o73 no livro da n atureza, e os que Allacci, Baldi
ou Man cin i decifravam m aterialm en te em papéis e pergam in h os,

162
telas ou qu adr os, o paren tesco era apen as m etafórico. M as a iden ­
tidade dos term os ressalta ain da m ais a h eterogen eidade das disci­
plin as que com param os. O seu grau de cien tificidade, na acepção
galilean a do term o, decrescia bruscam en te, à m edida que das
“ propriedades” u n iversais da geom etria passava-se às “ proprieda­
des com un s do sécu lo” das escritas e, depois, às “ propriedades
próprias in dividu ais” das pin tu ras — ou até das caligrafias.
Essa escala decrescen te con firm a que o verdadeiro obstáculo
à aplicação do paradigm a galilean o era a cen tralidade m aior ou
men or do elem en to in dividual em cada disciplin a. Q uan to mais
os traços in dividu ais eram con siderados pertin en tes, tan to m ais se
esvaía a possibilidade de um con h ecim en to cien tífico rigoroso.
Certam en te a decisão prelim in ar de n egligen ciar os traços in divi­
duais n ão garan tia por si só a aplicabilidade dos m étodos físico-
m atem áticos (sem a qual n ão se podia falar em adoção do par a­
digm a galilean o propriam en te dito) — m as, pelo m en os, excluía-a
de vez.

6. N esse pon to, abriam-se duas vias: ou sacrificar o con h eci­


m en to do elem en to in dividu al à gen eralização (m ais ou m en os ri­
gorosa, m ais ou men os form u lável em lin guagem m atem ática), ou
procurar elaborar, talvez às apalpadelas, um paradigm a diferen te,
fu n dado n o con h ecim en to cien tífico (m as de toda um a cien tifici­
dade por se defin ir) do in dividu al. A prim eira via foi percorrida
pelas ciên cias n aturais, e só m uito tem po depois pelas ciências
h um an as. O m otivo é eviden te. A ten dên cia a apagar os traços in ­
dividuais de um objeto é diretam en te proporcion al à distân cia
em ocion al do observador. Num a págin a do Tratado de arquitetura,
Filar ete, depois de afirm ar que é im possível con struir dois edifí­
cios perfeitam en te idên ticos — assim com o, apesar das aparên cias,
as “ fu ças tár tar as, que têm todas a m esm a cara, ou as da Etiópia,
que são todas n egras, se olh ares direito, verás que existem dife­
ren ças n as sem elh an ças” — , adm itia que existem “ m uitos an im ais
que são sem elh an tes un s aos ou tros, com o as m oscas, form igas,
verm es e rãs e m uitos peixes, que daqu ela espécie n ão se recon h e­
ce um do ou t r o” .74 Aos olh os de um arqu iteto europeu, as diferen-

163
ças m esm o pequ en as en tre dois edifícios (europeus) eram relevan ­
tes, as en tre du as fu ças tártaras ou etíopes, n egligen ciáveis, e as
en tre dois verm es ou duas form igas, até in existen tes. Um arqu i­
teto tártaro, um etíope descon h ecedor de arqu itetu ra ou uma
form iga teriam pr opost o h ierarquias diferen tes. O con h ecimen to
in dividualizan te é sem pre an tropocên trico, etn ocên trico e assim
por dian te especifican do. É certo qu e tam bém os an im ais, m in e­
rais ou plan tas poderiam ser con siderados n um a perspectiva in di­
vidualizan te, por exem plo d ivin at ór ia75 — sobretu do n o caso de
exem plares claram en te for a das n orm as. Com o se sabe, a terato-
logia era um a parte im portan te da arte divin atória. N as prim eiras
décadas do século x v n , a in fluên cia exercida m esm o que in direta­
men te por um paradigm a com o o galilean o ten dia a subordin ar o
estu do dos fen ôm en os an orm ais à pesqu isa sobre a n orm a, a adivi­
n h ação ao con h ecim en to gen eralizan te da n atureza. Em abril de
1625, n asceu n as cercan ias de Rom a um bezerro com duas cabe­
ças. O s n atu ralistas ligados à Accadem ia dei Lin cei in teressaram -
se pelo caso. N os jardin s vatican os de Belvedere, encon travam -se
em discu ssão Giovan n i Faber, secretário da Accadem ia, Ciam poli
(am bos, com o se disse, m uito ligados a Galileu ), Man cin i, o car­
deal Agostin o Vegio e o pap a Urban o v iu . A prim eira pergu n ta
a ser colocada foi a seguin te: o bezerro bicéfalo deve ser con side­
rado um an im al ún ico ou d u plo? Para os m édicos, o elemen to que
distin gu e o in divíduo é o cérebro; para os seguidores de Aristóte­
les, é o coração.76 N essa descrição de Faber , percebe-se o eco pre­
sum ível da in terven ção de Man cin i, o ún ico m édico presen te n a
discu ssão. Port an to, apesar dos seus in teresses astrológicos,77 ele
an alisava as características específicas do parto m on struoso não
com um fim de tirar auspícios, m as para ch egar a um a defin ição
m ais precisa do in divíduo n orm al — o in divíduo que, por perten ­
cer a uma espécie, podia com todo o direito ser con siderado repe-
tível. Com a m esm a aten ção que n orm alm en te dedicava ao exam e
de um a pin tura, Man cin i teve de in vestigar a an atom ia do bezerro
bicéfalo. M as a an alogia com a sua atividade de con h ecedor parava
por aí. Num certo sen tido, justam en te um person agem como M an ­
cini expressava a un ião en tre o paradigm a divin atório (o Man cin i

164
diagn osticador e con h ecedor) e o paradigm a gen eralizan te (o Man-
cini an atom ista e n atu r alista). A un ião, m as tam bém a diferen ça.
N ão obstan te as aparên cias, a descrição precisa da au t ópsia do
bezerro, redigida por Fab er , e as m in uciosas gravu ras que a acom ­
pan h avam , represen tan do os órgãos in tern os do an im al,78 n ão se
propun h am captar as “ propriedades com u n s” (aqu i n atu rais, n ão
h istóricas) da espécie. Desse m odo, era retom ada e aperfeiçoada a
tradição n atu ralista que se fu n dava em Ar istót eles. A vista, sim ­
bolizada pelo lin ce de olh ar agu díssim o que orn am en tava o brasão
da Academ ia de Federico Cesi, torn ava-se o órgão privilegiado das
disciplin as par a as quais estava vedado o olh o supra-sen sível da
m atem ática.79

7. En tr e essas estavam , pelo m en os aparen tem en te, as ciên­


cias h um an as (como as defin iríam os h oje). A fortiori, n um certo
sen tido — quan do m en os pelo seu ten az an tropocen trism o, expres­
so com tan ta sim plicidade na págin a já lem brada de Filarete. No
en tan to, h ouve ten tativas de in troduzir o m étodo m atem ático tam ­
bém n o estudo dos fatos h um an os.80 É com preen sível que a pr i­
m eira e m ais bem -sucedida — a dos aritm éticos políticos — tenh a
adotado com o seu objeto os gestos h um an os m ais determ in ados
em sen tido biológico: n ascim en to, procriação e m orte. Essa drásti­
ca redução perm itia um a pesqu isa rigorosa — e, ao m esm o tem ­
po, bastava para as fin alidades cogn oscitivas m ilitares ou fiscais
dos Estad os absolu tistas, orien tados, dada a escala das suas opera­
ções, em sen tido exclusivam en te quan titativo. M as a in diferen ça
qu alitativa dos com iten tes da n ova ciên cia — a estat íst ica — n ão
desfez totalm en te vín culo en tre ela e a esfera das disciplin as que
ch am am os de in diciárias. O cálculo das probabilidades, como diz
o título da obra clássica de Bern ou illi (A rs conjectandi), procura­
va dar um a form ulação m atem ática rigorosa aos problem as que
h aviam sido en fren tados pela arte divin atória de m an eira com ple­
tam en te diferen te.81
M as o con jun to das ciên cias h um an as perm an eceu solidam en ­
te an corado n o qualitativo. Não sem m al-estar, sobretu do no caso
da m edicin a. Apesar dos progressos realizados, seus m étodos m os­

165
travam -se in certos, e os resu ltados, dú bios. Um texto como A cer­
teza da m edicina de Caban is, publicado n o fin al do século x v i i i ,82
adm itia essa falta de rigor, ain da que depois se esforçasse em reco­
nh ecer à m edicin a, apesar de tu do, um a cien tificidade sui generis.
As razões da “ in certeza” da m edicin a pareciam ser fun dam en tal­
men te duas. Em prim eiro lugar, n ão bastava catalogar todas as
doen ças até compô-las n um quadro orden ado: em cada in divíduo,
a doen ça assum ia características diferen tes. Em segun do lugar, o
con h ecim en to das doen ças perm an ecia in direto, in diciário: o corpo
vivo era, por defin ição, in atin gível. Certam en te podia-se seccion ar
o cadáver; m as com o, do cadáver, já corrom pido pelos processos
da m orte, ch egar às características do in divíduo v iv o ?83 Dian te
dessa du pla dificu ldade, era in evitável recon h ecer que a própria
eficácia dos procedim en tos da medicin a era in dem on strável. Em
con clusão, a im possibilidade de a m edicin a alcan çar o rigor próprio
das ciências da n atureza derivava da im possibilidade da quan tifi­
cação, a n ão ser em fun ções puram en te au xiliares; a im possibili­
dade da qu an tificação derivava da presen ça in elim in ável do qu ali­
tativo, do in dividu al; e a presen ça do in dividu al, do fato de que o
olh o h um an o é m ais sen sível às diferen ças (talvez m argin ais) entre
os seres h um an os do que às diferen ças en tre as pedras ou as folh as.
N as discu ssões sobre a “ in certeza” da m edicin a, já estavam for ­
m ulados os fu tu r os n ós epistem ológicos das ciên cias h um an as.

8. En tr e as lin h as do texto de Caban is tran sparecia um a


com preen sível im paciên cia. Apesar das objeções, m ais ou men os
ju st ificadas, que lh e poderiam ser dirigidas n o plan o m etodológico,
a m edicin a sem pre se m an tin h a, porém , um a ciência plen am en te re­
con h ecida do pon to de vista social. M as n em todas as form as de
con h ecim en to in diciário se ben eficiavam , n aqu ela época, de sem e­
lh an te prestígio. Algu m as, como a connoisseurship, de origem re­
lativam en te recen te, ocupavam um a posição am bígua, à margem
das disciplin as recon h ecidas. O u t r as, m ais ligadas à prática conti-
dian a, estavam sim plesm en te de fora. A capacidade de reconh ecer
um cavalo defeitu oso pelos jarretes, a vin da de um tem poral pela

166
repen tin a m udan ça do ven to, um a in ten ção h ostil num r osto que
se som breia certam en te n ão se apren dia n os tratados de alveitaria,
de m eteorologia ou psicologia. Em todo caso, essas form as de
sab er 'er am m ais ricas do que qualquer codificação escrita; n ão
eram apren didas n os livros m as a viva voz, pelos gestos, pelos
olh ares; fun davam -se sobre sutilezas certam en te n ão-form alizáveis,
freqüen tem en te nem sequer traduzíveis em n ível verbal; con sti­
tuíam o patrim ôn io, em parte un itário, em parte diversificado, de
h om en s e m ulh eres perten cen tes a todas as classes sociais. Um sutil
paren tesco as un ia: todas n asciam da experiên cia, da con cretude da
experiên cia. N essa con cretude estava a força desse tipo de saber,
e o seu lim te — a in capacidade de servir-se do poderoso e terrí­
vel in strum en to da abstração.84
Desse corpo de saberes locais,85 sem origem n em m em ória ou
h istória, a cultura escrita ten tara dar a tem po um a form ulação
verbal precisa. Tratava-se, em geral, de form ulações desbotadas e
em pobrecidas. Bast a pen sar n o abism o que separava a rigidez
esquem ática dos tratados de fisiogn om on ia e a acuidade fisiogno-
môn ica flexível e rigorosa de um am an te, um m ercador de cavalos
ou um jogador de cartas. Talvez só n o caso da m edicin a a codifi­
cação escrita de um saber in diciário ten h a dado lugar a um verda­
deiro en riquecim en to (m as a h istória das relações en tre medicin a
culta e m edicin a popu lar ain da está por ser escrita). Ao lon go do
século x v ili, a situação m uda. H á um a verdadeira ofen siva cultu­
ral da bu rgu esia, que se apropria de gran de parte do saber , in di­
ciário e n ão-indiciário, de artesãos e cam pon eses, codifican do e
sim ultan eam en te in ten sifican do um gigan tesco pr ocesso de acultu­
ração, já in iciado (obviam en te com form as e con teúdos diversos)
pela Con tra-Reform a. O sím bolo e o in strum en to cen tral dessa
ofen siva é, n aturalm en te, a Encyclopédie. M as tam bém seria pre­
ciso an alisar episódios in sign ifican tes m as reveladores, como a in ­
terven ção do an ôn im o m estre-pedreiro rom an o, que dem on stra a
W in ckelm an n , provavelm en te est u pefato, que a “ pedrin h a pequ e­
na e ch at a” recon h ecível en tre os dedos da mão de um a estátua
descoberta em Porto d ’An zio era a “ buch a ou a rolh a da âm bu la” .

167
A coletân ea sistem ática desses “ pequ en os discern im en tos” ,
como ch ama-os W in ckelm an n em ou tro lu gar,86 alim en tou entre
os sécu los x v iii e x ix as n ovas form u lações de an tigos saberes —
da cozinh a à h idrologia e à veterin ária. Para um n úm ero sem pre
crescen te de leitores, o acesso a determ in adas experiên cias torna-
se cada vez m ais m ediado pelas págin as dos livr os. O roman ce
sim plesm en te forn eceu à bu rgu esia um su bstitu to e, ao mesmo
tem po, um a reform ulação dos ritos de in iciação — ist o é, o acesso
à experiên cia em geral.87 E é ju stam en te graças à literatura de
im agin ação que o paradigm a in diciário con h eceu n essa época um
n ovo, e in esperado, destin o.

9. Já lem bram os, a propósito da rem ota origem provavelm en ­


te ven atória do paradigm a in diciário, a fábu la ou con to orien tal
dos três irm ãos que, in terpretan do um a série de in dícios, con se­
guem descrever o aspecto de um an im al que n un ca viram . Esse
con to apareceu pela prim eira vez no O ciden te através da coletân ea
de Sercam bi.88 P osteriorm en te, retorn ou como pon to alto de um a
coletân ea de con tos m uito m ais am pla, apresen tada com o tradu ­
ção do persa par a o italian o aos cuidados de Cr istófor o Arm ên io,
que apareceu em Ven eza n a m etade do século xv i sob o título
Peregrinação dos três joven s filh os do rei de Serendip. Dessa
form a, o livro foi reeditado e traduzido ou tras vezes — an tes em
alem ão, depois, duran te o século x v n i, n a on da da m oda orienta-
lizan te de en tão, n as prin cipais lín guas eu ropéias.89 O sucesso da
h istória dos filh os do rei de Seren dip foi tal que levou H orace
W alpole, em 1754, a cun h ar o n eologism o serendipity par a desig­
n ar as “ descobertas im previstas, feitas graças ao acaso e à in teli­
gên cia” .90 Algun s an os an tes, Voltaire reelaborara, n o terceiro ca­
pítu lo de Z adig, o prim eiro con to da Peregrinação, que lera na
tradução fran cesa. Na reelaboração, o cam elo do origin al h avia se
tran sform ado n um a cadela e n um cavalo, que Zadig con seguia
descrever m in uciosam en te decifran do as pistas sobre o terren o.
Acu sado de fu r to e con duzido peran te os ju izes, Zadig justificava-
se recon stituin do em voz alta o trabalh o m en tal que lhe perm itira
traçar o retrato dos dois an im ais que n un ca h avia visto:

168
J ’ai vu sur la sable les traces d ’un animal, et j’ai jugé aisément
que c’étaient celles d ’un petit chien. Des sillons légers et longs,
imprimés sur de petites éminences de sable entre les traces des
pattes, m ’ont fait connaître que c’était une chienne dont les
mamelles étaient pendantes, et qu’ ainsi elle avait fait des petits
il y a peu de jours. . .93

N essas lin h as, e n as que seguiam , estava o em brião do ro­


man ce policial. N elas in spiraram -se P oe, Gab or iau , Con an Doyle
— os dois prim eiros diretam en te, o terceiro talvez in diretam en te.92
O s m otivos do extraordin ário destin o do rom an ce policial
são con h ecidos. Sobre algun s deles voltarem os adian te. M as pode-
se observar desde já que ele se fu n dava n um m odelo cogn oscitivo
ao m esm o tem po an tiqüíssim o e m odern o. D a su a an tiguidade
sim plesm en te im em orial já falam os. Q u an to à sua m odern idade,
bastará citar a págin a em que Cu rvier exaltou os m étodos e suces­
sos da n ova ciên cia paleon tológica:
. . . aujourd’hui, quelqu’un qui voit seulement la piste d ’un pied
fourchu peut en conclure que l’animal qui a laissé cet empreinte
ruminait, et cette conclusion est tout aussi certaine qu’aucune
autre em physique et en morale. Cette seule piste donne donc à
celui qui l’observe, et la forme des dents, et la forme des mâchoi­
res, et la forme des vertèbres, et la forme de tous les os des
jambes, des cuisses, des épaules et du bassin de l’animal qui
vient de passer: c’est une marque plus sûre que toutes celles de
Zadig.93

Um sin al m ais seguro, talvez; m as tam bém in tim am en te se­


m elh an te. O n om e de Zadig torn ara-se tão sim bólico que Th om as
H u xley, em 1880, n o ciclo de con ferên cias proferidas para a difu ­
são das descobertas de Darw in , defin iu como “ m étodo de Z ad ig”
o procedim en to que reun ia a h istória, a arqu eologia, a geologia, a
astron om ia física e a paleon tologia: isto é, a capacidade de fazer
profecias retrospectivas. Disciplin as com o estas, profun dam en te
perm eadas pela diacron ia, n ão podiam deixar de se voltar para o
paradigm a in diciário ou divin atório (e H u xley falava explicita­
m en te de adivin h ação voltada para o p assad o),94 descartan do o
paradigm a galilean o. Q uan do as causas n ão são reproduzíveis, só
resta in feri-las a partir dos efeitos.

169
111.

1. Poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa


aos fios de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-
se numa trama densa e homogênea. A coerência do desenho é ve­
rificável percorrendo o tapete com os olhos em várias direções.
Verticalmente, e teremos uma seqüência do tipo Serendip-Zadig-
Poe-Gaboriau-Conan Doyle. Horizontalmente, e teremos no início
do século xv in um Dubos que classifica, uma ao lado da outra,
em ordem decrescente de inconfiabilidade, a medicina, a connois-
seursh ip e a identificação das escritas.95 Até mesmo diagonalmen­
te — saltando de um contexto histórico para outro — , e às costas
de monsieur Lecoq, que percorreu febrilmente um “ terreno in­
culto, coberto de n eve” , pontilhado de pistas de criminosos, com­
parando-o à “ imensa página branca onde as pessoas que procura­
mos deixaram escrito não só seus movimentos e seus passos mas
também seus pensamentos secretos, as esperanças e angústia que
as agitavam ”,96 veremos perfilarem-se autores de tratados sobre a
fisiognomonia, adivinhos babilónicos empenhados em ler as men­
sagens escritas pelos deuses nas pedras e nos céus, caçadores do
Neolítico.
O tapete é o paradigma que chamamos a cada vez, conforme
os con textos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico.
Trata-se, como é claro, de adjetivos não-sinônimos, que no entan­
to remetem a um modelo epistemológico comum, articulado em
disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo emprésti­
mo de métodos ou termos-chave. Ora, entre os séculos xvn i e xix,
com o aparecimento das “ciências h uman as” , a constelação das
disciplinas indiciárias modifica-se profundamente: aparecem novos
astros destinados a um rápido crepúsculo, como a frenologia,97 ou
a um grande destino, como a paleontologia, mas sobretudo afirma-
se, pelo seu prestígio epistemológico e social, a medicina. A ela se
referem, explícita ou implicitamente, todas as “ciências humanas” .
Mas a que parte da medicina? Na metade do século xix, vemos
desenhar-se uma alternativa: o modelo anatômico de um lado, o
semiótico de outro. A metáfora da “ anatomia da sociedade” , usada

170
numa passagem crucial também por Marx,98 exprime a aspiração
a um conhecimento sistemático numa época que vira enfim o des­
moronamento do último sistema filosófico, o hegeliano. Mas, não
obstan te o grande destino do marxismo, as ciências humanas aca­
baram por assumir sempre mais( com uma relevante exceção, como
veremos) o paradigma indiciário da semiótica. E aqui reencontra­
mos a tríade Morelli-Freud-Conan Doyle da qual partimos.

2. Até agora falamos de um paradigma indiciário (e seus si­


nônimos) em sentido lato. Chegou o momento de desarticulá-lo.
Uma coisa é analisar pegadas, astros, fezes (animais ou h umanas),
catarros, córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro;
outra é analisar escritas, pinturas ou discursos. A distinção entre
natureza (inanimada ou viva) e cultura é fundamental — certa­
mente mais do que aquela, infinitamente mais superficial e mutável,
entre as disciplinas individuais. Ora, Morelli propusera-se buscar,
no in terior de um sistema de signos culturalmente condicionados
como o pictórico, os signos que tinham a involuntariedade dos
sintomas (e da maior parte dos indícios). Não só; nesses signos
in voluntários, nas “ miudezas materiais — um calígrafo as chama­
ria de garatujas” comparáveis às “palavras e frases prediletas”
que “ a maioria dos homens, tanto falan do como escrevendo. . .
introduzem no discurso às vezes sem intenção, ou seja, sem se
aperceber” , Morelli reconhecia o sinal mais certo da individuali­
dade do artista.99 Dessa maneira, ele retomava (talvez indiretamen­
te) 100 e desenvolvia os prin cípios de método formulados havia
tanto tempo pelo seu predecessor Giulio Mancini. Que aqueles
prin cípios viessem a amadurecer depois de tanto tempo não era
casual. Justam en te então vinha surgindo uma tendência cada vez
mais nítida de um controle qualitativo e minucioso sobre a socie­
dade por parte do poder estatal, que utilizava uma noção de in di­
víduo baseada, também ela, em traços mínimos e involuntários.

3. Cada sociedade observa a necessidade de distinguir os seus


componentes; mas os modos de enfrentar essa necessidade variam
conforme os tempos e os lugares.101 Existe, antes de mais nada, o

171
nome; mas, quanto mais a sociedade é complexa, tanto mais o
, nome parece insuficiente para circunscrever inequivocamente a
identidade de um indivíduo. No Egito greco-romano, por exemplo,
de quem se comprometia perante um notário a desposar uma
mulher ou a cumprir uma transação comercial eram registrados,
ao lado do nome, poucos e sumários dados físicos, acompanhados
pela indicação de cicatrizes (se existiam) ou outros sinais particula­
res.102 As possibilidades de erro ou substituição dolosa da pessoa,
porém, continuavam elevadas. Em comparação, a assinatura aposta
ao pé da página nos contratos apresentava muitas vantagens: no
final do século xv n i, numa passagem da sua História pictórica, de­
dicada aos métodos dos conhecedores, o abade Lanzi afirmava que
a in imitabilidade das escritas individuais fora desejada pela n atu­
reza para a “ segurança” da “ sociedade civil” (burguesa).103 Certa­
mente, as assinaturas também podiam ser falsificadas — e, sobre­
tudo, excluíam do controle os analfabetos. Mas, apesar dessas
falh as, por séculos e séculos as sociedades européias não sentiram
a necessidade de métodos mais seguros e práticos de averiguação
da identidade — nem quando o nascimento da grande in dústria,
a mobilidade geográfica e social a ela ligada, a rapidíssima forma­
ção de gigantescas concentrações urbanas alteram radicalmente os
dados do problema. Todavia, numa sociedade com tais caracterís­
ticas, fazer desaparecer os próprios rastros e reaparecer com uma
outra identidade era uma brincadeira de criança — não só numa
cidade como Londres ou Paris. Mas somente nas últimas décadas
do século xix foram propostos por vários lados, em concorrência
entre si, novos sistemas de identificação. Era uma exigência que
surgia dos fatos contemporâneos da luta de classes: a constituição
de uma associação internacional dos trabalhadores, a repressão da
oposição operária depois da Comuna, as modificações da crimina­
lidade.
O aparecimento de relações de produção capitalistas havia
provocado — na In glaterra desde 1720 aproximadamente,104 no
resto da Europa quase um século depois, com o Código Napoleô-
nico — uma transformação, ligada ao novo conceito burguês de
propriedade, da legislação, que aumentara o número de delitos

172
puníveis e o valor das penas. A tendência à criminalização da luta
de classes veio acompanhada pela construção de um sistema carce­
rário fundado sobre a detenção por longo prazo.105 Mas o cárcere
produz criminosos. Na França, o número de reincidentes, em con­
tínuo aumento a partir de 1870, alcançou no final do século uma
porcentagem igual à metade dos criminosos submetidos a proces­
so.106 O problema da identificação dos reincidentes, que se colocou
naquelas décadas, constituiu de fato a cabeça-de-ponte de um pro­
jeto geral, mais ou menos consciente, de controle generalizado e
sutil sobre a sociedade.
Para a identificação dos reincidentes era necessário provar
a) que um indivíduo já havia sido condenado, e b) que o indiví­
duo em questão era o mesmo que já sofrera condenação. 107 O pri­
meiro ponto foi resolvido pela criação dos registros policiais. O
segundo levantava dificuldades mais sérias. As antigas penas que
marcavam um condenado para sempre, estigmatizando-o ou muti­
lando-o, haviam sido abolidas. O lírio gravado no ombro de Mi-
lady permitira a D ’Artagnan reconhecer nela uma envenenadora
já punida no passado pelos seus crimes — enquanto dois fugiti­
vos como Edmond Dantés e Jean Valjean puderam reaparecer na
cena social disfarçados sob trajes respeitáveis (bastariam esses
exemplos para mostrar até que ponto a figura do criminoso rein­
cidente pesava na imaginação oitocen tista).108 A respeitabilidade
burguesa precisava de sinais de reconhecimento igualmente in de­
léveis, mas menos sanguinários e humilhantes do que os impostos
sob o ancien régime.
A idéia de um enorme arquivo fotográfico criminal foi num
primeiro momento descartada, porque colocava problemas de clas­
sificação insolúveis: como recortar elementos discretos no contí­
nuo da imagem? 109 A via da quantificação pareceu mais simples
e rigorosa. De 1879 em diante, um funcionário da prefeitura de
Paris, Alphonse Bertillon, elaborou um método antropométrico
(que depois ilustrou em vários ensaios e m em órias)110 baseado em
minuciosas medições do corpo, que convergiam para uma ficha
pessoal. É claro que um pequeno engano de poucos milímetros
criava as premissas de um erro judicial; mas o principal defeito do

173
método antropométrico de Bertillon era outro, isto é, o de ser pu­
ramente negativo. Ele permitia separar, no momento do reconhe­
cimento, dois in divíduos diferentes, mas não afirmar com seguran­
ça que duas séries idênticas de dados se referissem a um mesmo
indivíduo.111 A. irredutível elusividade do in divíduo, expulsa
pela porta através da quantificação, voltava a entrar pela janela.
Por isso, Bertillon propôs integrar o método antropométrico com
o chamado “ retrato falado” , isto é, a descrição verbal analítica
das unidades discretas (nariz, olhos, orelhas etc.), cuja soma deve- )
ria restituir a imagem do indivíduo — possibilitando assim o pro­
cedimento de identificação. As páginas de orelhas exibidas por
Bertillon 112 relembram irresistivelmente as ilustrações que, nos
mesmos anos, Morelli incluía em seus ensaios. Talvez não se tra­
tasse de uma influência direta — ainda que seja surpreendente
verificar que Bertillon, em sua atividade de especialista grafológi-
co, considerava indícios reveladores de uma falsificação as parti­
cularidades ou “ idiotism os” do original que o falsário não conse­
guia reproduzir e, eventualmente, substituía pelas suas próprias.113
Como se terá percebido, o método de Bertillon era incrivel­
mente complicado. Já nos referimos ao problema posto pelas me­
diações. O “ retrato falado” piorava ainda mais as coisas. Como
distinguir, no momento da descrição, um nariz giboso-arcado de
um nariz arcado-giboso? Como classificar os matizes de um olho
verde-azulado?
rMas desde a sua dissertação de 1888, posteriomente corrigi­
da e aprofundada, Galton propusera um método de identificação
muito mais simples, no que se referia tanto à coleta dos dados
como à sua classificação.114 O método baseava-se, como se sabe,
nas impressões digitais. Mas o próprio Galton , com muita hones­
tidade, reconhecia ter sido precedido, teórica e praticamente, por
outros.
A análise científica das impressões digitais iniciara-se desde
1823 com o fun dador da histologia, Purkyne, na sua dissertação
Com m entatio de exam ine physiologico organi visus et sy stem atis
cutanei.w Ele distinguiu e descreveu nove tipos fundamentais de
linhas papilares, ao mesmo tempo afirmando, porém, que não exis-

174
tem dois in divíduos com impressões digitais idênticas. As possibi­
lidades de aplicação prática da descoberta eram ignoradas, ao con­
trário de suas implicações filosóficas, discutidas num capítulo
intitulado “De cognitione organismi individualis in genere” .116 O
conhecimento do in divíduo, dizia Purkyne, é central na medicina
prática, a começar pela diagnose: em indivíduos diferentes os sin ­
tomas se apresentam de formas diferentes e, portanto, devem ser
curados de modos diferentes. Por isso, alguns modernos, que não
nomeava, definiram a medicina prática como “ artem individuali-
sandi (die Kun st des In dividualisiren s)” .117 Mas os fundamentos
dessa arte se encontravam na filosofia do indivíduo. Aqui Purky­
ne, que quando jovem estudara filosofia em Praga, reencontrava
os temas mais profundos do pensamento de Leibniz. O indivíduo,
“ ens omnimodo determinatum” [en te totalmente determ in ado],
possui uma singularidade verificável até em suas características
imperceptíveis, infin itesimais. Nem o acaso nem os influxos exter­
nos bastam para explicá-la. É necessário supor a existência de uma
norma ou “ typus” interno, que mantém a diversidade dos orga­
nismos dentro dos limites de cada espécie: o conhecimento dessa
“ n orma” (afirmava profetivamente Purkyne) “ descerraria o co­
nhecimento oculto da natureza in dividual” .118 O erro da fisiogno-
monia foi o de enfrentar a diversidade dos in divíduos à luz de
opiniões preconcebidas e conjeturas apressadas; dessa maneira, foi
até agora impossível fundar uma fisiognomonia científica, descriti­
va. Abandonando o estudo das linhas da mão à “ vã ciência” dos
quiromantes, Purkyne concentrou a sua atenção num dado muito
menos aparente — e nas linhas impressas nas pontas dos dedos
encontrava a senha oculta da individualidade.
Deixemos a Europa por um momento e passemos à Ásia. À
diferença de seus colegas europeus, e de forma totalmente inde­
pendente, os adivinhos chineses e japoneses também haviam se
in teressado pelas linhas pouco aparentes que sulcam a pele da mão.
O costume, atestado na China, e sobretudo em Bengala, de impri­
mir nas cartas e documentos uma ponta de dedo borrada de piche
ou t in t a119 provavelmente tinha por trás uma série de reflexões
de caráter divinatório. Quem estava habituado a decifrar escritas

175
misteriosas nos veios das pedras ou da madeira, nos rastros dei­
xados pelos pássaros ou nos desenhos im pressos nas costas das
t artaru gas120 certamente chegaria sem esforço a conceber como
uma escrita as linhas impressas por um dedo sujo numa superfície
qualquer. Em 1860, sir W illiam Herschel, administrador-chefe do
distrito de Hooghly em Bengala, notou esse costume difundido
entre as populações locais, avaliou sua utilidade e pensou em
usá-lo para um melhor funcionamento da administração britânica.
(Os aspectos teóricos da questão não o in teressavam; a disserta­
ção latin a de Purkyne, que por meio século permaneceu como
letra morta, era-lhe totalmente desconhecida.) Na realidade, obser­
vou Galton retrospectivamente, sentia-se uma grande necessidade
de um instrumento de identificação eficaz — nas colônias britâni­
cas, e não somente na ín dia: os nativos eram analfabetos, litigio­
sos, astutos, mentirosos e, aos olhos de um europeu, todos iguais
entre si. Em 1880, Herschel anunciou em N ature que, depois de
dezessete anos de experiências, as impressões digitais foram intro­
duzidas oficialmente no distrito de Hoogh ly, onde já eram usadas
havia três anos com ótimos resultados.121 O s funcionários impe­
riais tinham-se apropriado do saber indiciário dos bengaleses e
viraram-no contra eles.
Do artigo de Herschel, Galton tirou a inspiração para repen­
sar e aprofundar sistematicamente toda a questão. O que possibi­
litava sua pesquisa era a confluência de três elementos muito dife­
rentes. A descoberta de um cientista puro como Purkyne; o saber
concreto, ligado à prática cotidiana das populações bengalesas; a
sagacidade política e administrativa de sir W illiam Herschel, fiel
funcionário de Sua Majestade Britânica. Galton prestou homena­
gem ao primeiro e ao terceiro. Tentou, além disso, distinguir
peculiaridades raciais nas impressões digitais, mas sem sucesso;
de qualquer maneira, comprometeu-se a prosseguir as pesquisas
sobre algumas tribos indianas, na esperança de nelas encontrar
características “ mais próximas às dos macacos” (a more monkey-
like pattern ).122
Além de dar uma contribuição decisiva à análise das impres­
sões digitais, Galton , como se disse, vira também suas implicações

176
prátjcas. Em pouquíssimo tempo o método foi introduzido na
In glaterra, e dali gradualmente no mundo todo (um dos últimos
países a ceder foi a França). Desse modo, cada ser humano —
observou orgulhosamente Galton , aplicando a si mesmo o elogio
ao seu concorrente Bertillon proferido por um funcionário do
Min istério do In terior francês — adquiria uma identidade, uma
individualidade sobre a qual poder-se-ia se basear de modo certo
e duradouro.123
Assim , aquela que, aos olhos dos administradores britânicos,
fora até pouco antes uma multidão indistinta de “ fuças” benga-
lesas (para usar o termo pejorativo de Filarete) tornava-se subita­
mente uma série de indivíduos assinalados cada qual por um traço
biológico específico. Essa prodigiosa extensão da noção de indivi­
dualidade ocorria de fato através da relação com o Estado e seus
órgãos burocráticos e policiais. Até o último habitante do mais
miserável vilarejo da Ásia ou da Europa tornava-se, graças às im­
pressões digitais, reconhecível e controlável.

4. Mas o mesmo paradigma indiciário usado para elaborar


formas de controle social sempre mais sutis e minuciosas pode se
converter num in strumento para dissolver as névoas da ideologia
que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social como a do
capitalismo maduro. Se as pretensões de conhecimento sistemático
mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a idéia
de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de
uma profun da conexão que explica os fenômenos superficiais é
reforçada no próprio momento em que se afirma que um conheci­
mento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca,
existem zonas privilegiadas — sinais, indícios — que permitem
decifrá-la.
Essa idéia, que constitui o ponto essencial do paradigma in di­
ciário ou semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos cognosci-
tivos, modelando profundamente as ciências humanas. Minúsculas
particularidades paleográficas foram empregadas como pistas que
permitiam reconstruir trocas e transformações culturais — com
uma explícita invocação a Morelli, que saldava a dívida que Man-

177
cini contraíra junto a Allacci, quase três séculos antes. A repre­
sentação das roupas esvoaçantes nos pin tores florentinos do século
xv, os neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escrófula
pelos rçis da França e da In glaterra são apenas alguns entre os
exemplos sobre o modo como, esporadicamente, alguns indícios
mínimos eram assumidos como elementos reveladores de fenôme­
nos mais gerais: a visão de mundo de uma classe social, de um
escritor ou de toda uma sociedade.124 Uma disciplina como a psica­
nálise constitui-se, como vimos, em torno da hipótese de que por­
menores aparentemente negligenciáveis pudessem revelar fenôme­
nos profun dos de notável alcance. A decadência do pensamento
sistemático veio acompanhada pelo destino do pensamento aforis-
mático — de Nietzsche a Adorno. O próprio termo “ aforism ático”
é revelador. (É um indício, um sintoma, um sinal: do paradigma
não se escapa.) Com efeito, A forism os era o título de uma famosa
obra de Hipócrates. No século xvii, começaram a sair coletâneas
de A forism os políticos,125 A literatura aforismática é, por defin i­
ção, uma tentativa de formular juízos sobre o homem e a socieda­
de a partir de sintomas, de in dícios: um homem e uma sociedade
que estão doentes, em crise. E também “crise” é um termo médi­
co, h ipocrático.126 Pode-se demonstrar facilmente que o maior ro­
mance da nossa época — a Recherche — é constituído segundo
um rigoroso paradigma indiciário.127

5. Mas pode um paradigma indiciário ser rigoroso? A orien­


tação quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza
a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável
dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a re­
sultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para
chegar a resultados de pouca relevância. Só a lingüística conse­
guiu, no decorrer deste século, subtrair-se a esse dilema, por isso
pondo-se como modelo, mais ou menos atingido, também para
outras disciplinas.
Mas vem a dúvida de que este tipo de rigor é não só inatin­
gível mas também indesejável para as formas de saber mais ligadas
à experiência cotidiana — ou, mais precisamente, a todas as situa­
ções em que a unicidade e o caráter in substituível dos dados são,
aos olhos das pessoas en volvidas, decisivos. Alguém disse que o
apaixonar-se é a superestimação das diferenças marginais que exis­
tem entre uma mulher e outra (ou entre um homem e outro). Mas
isso também pode se estender às obras de arte ou aos cavalos.128
Em situações como essas, o rigor flexível (se n os for permitido o
oxímoro) do paradigma indiciário mostra-se ineliminável. Trata-se
de formas de saber tendencialmente m udas — no sentido de que,
como já dissemos, suas regras não se prestam a ser formalizadas
nem ditas. Nin guém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnos-
ticador limitando-se a pôr em prática regras preexisten tes. Nesse
tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) ele­
mentos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição.
Até aqui abstivemo-nos escrupulosamente de empregar esse
termo minado. Mas, se se in siste em querer usá-lo, como sinônimo
de processos racionais, será necessário distinguir entre uma in tui­
ção baixa e uma intuição alta.
A antiga fisiognomonia árabe estava baseada na {irasa: noção
complexa, que designava em geral a capacidade de passar imediata­
mente do conhecido para o desconhecido, na base de in dícios.129 O
termo, extraído do vocabulário dos sufi, era usado para designar
tanto as intuições místicas quanto as formas de discernimento e
sagacidade, como as atribuídas aos filh os do rei de Serendip.130
Nessa segunda acepção, a firasa não é senão o órgão do saber indi­
ciário.131
Essa “intuição baixa” está arraigada nos sentidos (mesmo su­
perando-os) — e enquanto tal não tem nada a ver com a intuição
supra-sensível dos vários irracionalismos dos séculos xix e xx. É
difundida no mundo todo, sem limites geográficos, históricos,
étnicos, sexuais ou de classe — e está, portan to, muito distante
de qualquer forma de conhecimento superior, privilégio de poucos
eleitos. É patrimônio dos bengaleses expropriados do seu saber
por sir W illiam Herschel, dos caçadores, dos marinheiros, das
mulheres. Une estreitamente o animal homem às outras espécies
animais.

179
kungen zur Sala dei Gigan ti Giulio Rom an os”, em M itteilungen des
Kunsthistorischen In stitutes in Florenz, xxi (1977), pp. 35-68 (que me foi
assinalado por Carlos Dion isotti). Sobre a dedicatória de Dolce a Ticiano,
discutida acima, ver as indicações de C. Dion isotti, “Tizian o e la letterattura” ,
em Tiziano e il m anieristno europeo, a cargo de R. Pallucchini, Florença,
1978 (mas o ensaio todo é importan te). (No mesmo livro, ver o ensaio de
M. Gregori, “ Tiziano e Aretin o” .) A importância das vulgarizações de Ovídio
para Ticiano foi ressaltada, seguin do Dion isotti, por A. Ch astel, “ Titien et
les human istes”, em Tiziano V ecellio (atas dos colóquios dos Lincei, 29),
Roma, 1977, pp. 31-48. De opin ião diferente, A. Gen tili, Da Tiziano a
Tiziano, Roma, 1980, que polemiza (pp. 173 ss.) com a interpretação pro­
posta por mim. Corrijo um engano a propósito do nome do tradutor de
Achille Tazio e esclareço que a referência à Dan ae de Tician o valia para
ambas as versões. De resto, não me parece que Gen tili tenha en ten dido o
sentido da minha argumentação, que visava a n egar não a capacidade de
invenção de Ticiano (im agin e!), mas simplesmente a sua dependência em
relação ao texto latino, conforme a h ipótese de Pan ofsky. As tentativas de
desvalorizar a importância da passagem, tão clara, da dedicatória de Dolce,
estão evidentemente fadadas ao in sucesso].

SIN A IS

(1) Em prego este termo na acepção proposta por T. S. Kuh n , La


struttura delle rivoluzioni scientifich e, Turim , 1969, prescindin do das dis­
tinções e especificações posteriormente introduzidas pelo próprio autor (cf.
“Post-script — 1969”, em Th e structure of scientific revolutions, 2.“ ed. am­
pliada, Chicago, 1974, pp. 174 ss).
(2) Sobre Morelli, cf. antes de tudo E. W ind, A rte e anarchia, Milão,
1972, pp. 52-7, 166-8, e a bibliografia ali citada. Para a biografia acrescentar
M. Ginoulh aic, “Giovan ni Morelli. La vita” , em Bergom um , xxxiv (1940),
n.° 2, pp. 51-4; ao método morelliano voltaram recentemente R. W olheim,
“ Giovan ni Morelli and the origins of scientific con n oisseursh ip”, em On art
and the mind. Essay s and lectures, Lon dres, 1973, pp. 177-201; H . Zerner,
“ Giovan ni Morelli et la science de l ’art” , em Revue de 1’A rt, 1978, n.° 40-1,
pp. 209-15, e G. Previtali, “A propos de Morelli” , idem , 1978, n.° 42, pp.
27-31. Outras contribuições estão citadas na nota 12. In felizmen te, falta um
estudo geral sobre Morelli que analise, além dos textos de h istória da arte,
a formação científica juvenil, as relações com o ambiente alemão, a amizade
com De Sanctis, a participação na vida política. No que se refere a De
San ctis, ver a carta na qual Morelli o indicava para a cadeira de literatura
italiana no Politécnico de Zurich (F. De San ctis, Lettere dalV esilio [1853-
1860], a cargo de B. Croce, Bari, 1938, pp. 34-8), e também os índices dos
volumes do Epistolario desanctisiano (4 vol., Turim , 1956-69). Sobre o
engajamento político de Morelli, ver por ora as rápidas referências de G.
Spini, Risorgim ento e protestan ti, Nápoles, 1956, pp. 114, 261, 235. Para
a repercussão européia dos textos de Morelli, ver o que ele escrevia de
Basiléia a Minghetti, em 22 de junho de 1882: “O velh o Jacob Burckh ardt,

260
que fui visitar ontem à noite, deu-me a melhor acolhida, e quis passar
comigo toda a noite. É um homem originalíssimo tanto no fazer como no
pensar, e agradaria também a você, mas seria de agrado prin cipalmente à
nossa senhora Laura. Falou-me do livro dê Lerm olieff, como se o conhecesse
de cor, e serviu-se dele para me fazer uma infinidade de perguntas — coisa
que lisonjeou não pouco o meu amor-próprio. H oje de manhã vou me en­
contrar de novo com ele. ...” (Biblioteca Comunale di Bologna [Archiginna-
sio], Carte Mingh etti, xxin , 54).
(3) Longhi julgava Morelli, em comparação ao “gran de” Cavalcaselle,
“menor, mas também n otável” ; mas logo depois falava de “ indicações. . .
materialistas” que tornavam o seu “método presunçoso e esteticamente im­
prestável” (“Cartella tizianesca”, em Saggi e ricerche — 1925-1928, Floren ­
ça, 1967, p. 234), [Sobre as implicações deste e outros juízos semelh antes de
Longh i, cf. G. Contini, “Lon gh i prosatore”, em A ltri esercizi (1942-1971),
Turim, 1972, p. 117.] A comparação com Cavalcaselle, totalmente desfavo­
rável a Morelli, é retomada por exemplo por M. Fagiolo em G. C. Argan e
M. Fagiolo, Gu ida alia storia dell’arte, Floren ça, 1974, pp. 97, 101.
(4) Cf. W in d, A rte, cit., pp. 64-5. Croce, ao invés, falou de “ sensuali­
dade dos pormenores imediatos e separados” (La critica e la storia delle arti
figurative. Question i di m etodo, Bari, 19462, p. 15).
(5) Cf. Longh i, Saggi, cit., p. 321: “Para o sentido de qualidade em
Morelli, aliás tão pouco desenvolvido e tão freqüentemente desviado do poder
irresistível dos simples atos do ‘reconhecedor’. . . logo depois defin e Mo­
relli defin itivamente como o “medíocre e n efando crítico de Gorlaw ” (Gor-
law é a versão russa de Gorle, localidade perto de Bergamo onde morava
Morelli-Lermolieff).
(6) Cf. W in d, A rte, cit., p. 63.
(7) Cf. E. Castelnuovo, “ Attribution ”, em Ency clopaedia un iversalis,
vol. II, 1968, p. 782. Mais em geral, A. H auser, Le teorie delVarte. Tendenze
e m etodi delia critica m oderna, Turim, 1969, p. 97, compara o método de
detetive de Freud ao de Morelli (cf. nota 12).
(8) A. Conan Doyle, “Th e cardbord box” , em Th e com plete Sherlock
Holm es sh ort stories, Lon dres, 1976, pp. 92-47 (trad. it. em L ’ultim o saluto
di Sherlock Holm es, vol. i, Milão, 1974, pp. 73-108). A passagem citada
encontra-se, respectivamente, nas pp. 932 e 86.
(9) Cf. id., The com plete Sherlock Holm es, cit., pp. 937-8 (e L ’ultimo
soluto, cit., pp. 94-5). “Th e cardbox” apareceu pela primeira vez em The
Stran d M agazine, v, janeiro-junh o de 1893, pp. 61-73. Ora, foi n otado (cf.
id., Th e ann otated Sherlock Holm es, a cargo de W. S. Baring-Gould, Lon ­
dres, 1968, vol. ii, p. 208) que na mesma revista, poucos meses depois, foi
publicado um artigo anônimo sobre as diferen tes formas da orelha humana
(“Ear s: a chapter on ”, em The Stran d M agazine, vi, julho-dezembro 1893,
pp. 388-91, 525-27). Segun do o curador da A nn otated Sh erlock Holm es
(cit., p. 208), o autor do artigo até poderia ter sido Conan Doyle, que teria
acabado por redigir a contribuição de Holmes ao A nthropological Journ al
(engano em lugar de Journ al of A nthropology ). Mas tratava-se provavel­
mente de uma suposição gratuita: o artigo sobre as orelhas precedido, sempre
no Stran d Magazine, v, janeiro-junho de 1893, pp. 119-23, 295-301, por um

261
artigo intitulado “ H an ds”, assin ado por Beckles W ilson. De qualquer ma­
neira, a págin a do Stran d M agazine que reproduz as várias formas de orelha
lembra irresistivelmente as ilustrações que acompanham os textos de Mo-
relli — o que confirma a circulação de temas do gênero na cultura daqueles
anos.
(10) Todavia, não se pode excluir que se trata de algo mais que um
paralelismo. Um tio de Conan Doyle, Henry Doyle, pin tor e crítico de arte,
tornou-se em 1869 diretor da National Art Gallery de Dublin (cf. P. Nordon ,
Sir A rth ur Connan Doyle. L'h om m e et l'oeuvre, Paris, 1964, p. 9). Em 1887
Morelli encontrou Henry Doyle, e escreveu ao amigo sir Henry Layard: “Ce
que vous me dites de la Galérie de Dublin m ’a beaucoup in téressé et
d ’autan t plus que j ’ai eu la chance à Lon dres de faire la connaissance per­
sonnelle de ce brave Monsieur Doyle, qui m ’a fait la meilleure des impres­
sion s. . . hélas, au lieu des Doyle quels personn ages trouvez vous ordinaire­
ment à la direction des Galeries en Eu r o p e?!” (British Museum, Add. ms.
38 965, Layard Papers, vol. xxxv, f. 120i>). O conhecimento do método mo-
relliano por parte de Hen ry Doyle (óbvio, na época, para um h istoriador,
da arte) é provado pelo Catalogue of the w ork s of art in the N ational Gal­
lery of Ir élan d (Dublin , 1890) por ele redigido, que utiliza (cf., por exem­
plo, p. 87) o manual de Kugler, profun damente reelaborado por Layard em
1887 sob a orientação de Morelli. A primeira tradução inglesa dos textos de
Morelli apareceu em 1883 (cf. a bibliografia em Italien ische M alerei der
Renaissance im Briefw ech sel von Giovan n i M orelli und ]ean Paul Rich ter
— 1876-1891, a cargo de J. e G. Rich ter, Baden-Baden, 1960). A primeira
aventura de Holmes (A study in scarlet) foi impressa em 1887. Tudo isso
sugere a possibilidade de um conhecimento direto do método morelliano por
parte de Connan Doyle, por intermédio do tio. Mas trata-se de uma supo­
sição não-necessária, na medida em que os textos de Morelli certamente não
eram o único veículo de idéias como as que tentamos analisar.
(11) Cf. W in d, A rte, cit., p. 62.
(12) Além de uma referência precisa de Hauser (Le teorie deli’arte,
cit., p. 97; o original é de 1959), ver: ,T. J. Spector, “Les méth odes de la
critique d ’art et la psychanalyse freudienn e”, em Diogènes, 1969, n.° 66, pp.
77-101; H . Damisch , “La partie et le tout” , em Revue d ’Esth étique, 2,
1970, pp. 168-88; id., “Le gardien de l ’interprétation ”, em Tel Quel, n.° 44,
invemo 1971, pp. 70-96; R. W ollheim, “Freud and the un derstanding of the
art” , em On art an d the m ind, cit., pp. 209-10.
(13) Cf. S. Freud, Il M osè di Michelangelo, Turim, 1976, pp. 36-7
(para o texto original, cf. “Der Moses des Mich elangelo” , em S. Freud,
Gesam m elte W erk e, vol. x, p. 185). R. Bremer, “Freud and Mich elangelo’s
Moses” , em A m erican Im ago, 33, 1976, pp. 60-75, discute a interpretação do
M oisés proposta por Freud, sem ocupar-se de Morelli. Não pude ver K.
Victorius, “Der ‘Moses des Mich elangelo’ von Sigmund Freu d”, em En tfal­
tung der Psychoanalyse, a cargo de A. Mitscherlich, Stuttgart, 1956, pp.
1- 10 .
(14) Cf. S. Kofman , L ’enfance de l ’art. Une interprétation de l'esth é­
tique freudienn e, Paris, 1975, pp. 19, 27; Damisch, “ Le gardien ”, cit., pp.
70 ss; W ollheim, On art and the m ind, cit., p. 210.

262
(15) É uma exceção o ótimo ensaio de Spector, que porém nega a
existência de uma relação real entre o método de Morelli e o de Freud
(“Les méth odes” , cit., pp. 82-3).
(16) Cf. S. Freud, L'in terpretazione dei sogni, Turim, 1976, p. 289,
nota (na p. 107, nota, estão indicados dois textos posteriores de Freud sobre
suas relações com “ Lyn keus”).
(17) Cf. M. Robert, La rivoluzione psicoanalitica. La vita e l'ópera di
Freud, Turim , 1967, p. 84.
(18) Cf. E. H . Gombrich , “ Freud e 1’arte”, em Freud e la psicologia
dell’arte, Turim , 1967, p. 14. É significativo que Gombrich nesse ensaio não
mencione a passagem de Freud sobre Morelli.
(19) I. Lermolieff, Die W erk e italienischer M eister in den Galerien
von München, Dresden und Berlin. Ein k ritischer V ersuch. A us dem R ussi­
schen übersetzt von Dr. Joh an n es Sch w arze, Leipzig, 1880.
(20) G. Morelli (I. Lerm olieff), Italian m asters in Germ an galleries. A
critical essay on the Italian pictures in the galleries of Munich, Dresden and
Berlin, trad, do alemão por L. M. Rich ter, Lon dres, 1883.
(21) Cf. H . Trosman e R. D. Simmons, “ Th e Freud library”, em
Journ al of the A m erican Psychoanaly tic A ssociation, 21, 1973, p. 672 (agra­
deço vivamente a Pier Cesare Bori por essa indicação).
(22) Cf. E. Jon es, V ita e opere di Freud, vol. i, Milão, 1964, p. 404.
(23) Cf. Robert, La rivoluzione, cit., p. 144; Morelli (I. Lermolieff),
Deila pittura italiana, cit., pp. 88-9 (sobre Sign orelli), 159 (sobre Boltraffio).
(24) Ibid., p. 4.
(25) A escolha do verso de Virgílio por parte de Freud foi interpre­
tada em vários modos: ver W. Sch oenau. Sigm und Freuds Prosa. Literarische
Elem ente sein es Stils, Stuttgart, 1968, pp. 61-73. A tese mais convincente me
parece ser a de E. Simon (p. 72) segundo a qual a epígrafe significa que a
parte oculta, invisível, da realidade não é menos importante do que a visível.
Sobre as possíveis implicações políticas da epígrafe, já usada por Lassalle, ver
o belo ensaio de C. E. Sch orske, “Politique et parricide dan s 1’ ‘In terpreta­
tion des rêves’ de Freud”, em A nn ales ESC, 28, 1973, pp. 309-28 (em
esp. pp. 325 ss).
(26) Cf. Morelli (I. Lerm olieff), Deila pittura italiana, cit., p. 71.
(27) Cf. o necrológico de Morelli escrito por Rich ter (ibid., p. xv m ):
“aqueles particulares indícios [descobertos por M orelli], . . os quais um de­
termin ado mestre costuma apresentar por efeito do hábito e quase incons­
cientemente . . . ”
(28) Cf. a sua introdução a A. Conan Doyle, The adventures of
Sh erlock Holm es. A facsim ile of the stories as they w ere first publish ed in
the Stran d Magazine, Nova York, 1976, pp. x-xi. Ver ainda a bibliografia
colocada em rodapé por N. Mayer, La soluzione sette per cento, Milão, 1976,
p. 214 (trata-se de um romance centrado sobre Holmes e Freud, que teve
um imerecido sucesso).
(29) Cf. Th e W olf-Man by the W olf-M an, a cargo de M. Gardin er,
Nova York, 1971, p. 146: T. Reik, II rito religioso, Turim 1949, p. 24. Para
a distinção entre sintomas e indícios cf. C. Segre, “La gerarchia dei segn i” ,
em Psicanalisi e sem iótica, a cargo de A. Verdiglione, Milão, 1975, p. 33; A.

263
T. Sebeok, Con tribution s to the doctrine of sign s, Bloomington (In dian a),
1976.
(30) Cf. Conan Doyle, Th e ann otated Sherlock Holm es, cit., vol. ï,
introdução (“Tw o doctors and a detective: Sir Arth ur Conan Doyle, Joh n
A. W atson, M. D., and Mr. Sherlock Holmes of Baker Street”), pp. 7 ss, a
propósito de Joh n Bell, o médico que inspirou o personagem Holmes. Cf.
também A. Conan Doyle, M em ories an d adven tures, Lon dres, 1924, pp.
25-6, 74-5.
(31) Cf. A. W esselofsky, “Ein e March engruppe” , em A rch iv fü r sla-
vische Ph ilologie, 9, 1886, pp. 308-9, com bibliografia. Para o destino poste­
rior dessa fabula, ver adiante.
(32) Cf. A. Seppilli, Poesia e m agia, Turim , 1962.
(33) Cf. o famoso ensaio de R. Jakobson , “ Due aspetti del lin guagio e
due tipi di afasia” , em Saggi di lin guistica generale, a cargo de L. Heilmann,
Milão, 1966, sobretudo as pp. 41-2.
(34) E. Cazade e C. Th omas, “Alfabeto”, em En ciclopédia Ein audi,
vol. ï, Turim, 1977, p. 289 (e ver também Étiemble, La scritura, Milão, 1962,
pp. 22-3, onde afirma-se também, num eficaz paradoxo, que o homem antes
aprendeu a 1er e depois a escrever). Em geral sobre esses temas, ver as
páginas de W. Benjamim, “Sulla facoltà mimetica”, em A n gelus n ovus, Tu ­
rim, 1962, sobretudo as pp. 70-1.
(35) Sirvo-me do excelente ensaio de J. Bottéro, “Symptômes, signes,
écritures”, em v.a., Divin ation et ration alité, Paris, 1974, pp. 70-197.
(36) Ibid., pp. 154 ss.
(37) Ibid., p. 157. Sobre o nexo entre escrita e advin haçâo na China,
cf. J. Gern et, “La Ch in e: aspects et fon ctions psychologiques de l ’écriture”,
em v. a., L ’écriture et la psychologie des peuples, Paris, 1963, sobretudo as
pp. 33-8.
(38) Trata-se da inferência que Peirce chamou de “presun tiva” ou
“abdutiva” , distinguindo-a da indução simples: cf. C. S. Peirce, “Deduzion e,
induzione e ipotesi”, em Caso, am ore e logica, Turim , 1956, pp. 95-110, e
“La logica dell’abduzione” , em Scritti di filosofia, Bolonh a, 1978, 289-305.
No ensaio citado, Bottéro insiste pelo contrário nas características “deduti­
vas” (como ele ch ama, “ faute de mieux” : cf. “Symptômes”, cit., p. 89) da
advinhaçâo mesopotâmica. É uma defin ição que simplifica indevidamente,
até deformá-la, a complicada trajetória tão bem recon struída pelo próprio
Bottéro (cf. ibid., pp. 168 ss). Tal simplificação parece ditada por uma
defin ição restrita e unilateral de “ciência” (p. 190), desmentida de fato pela
significativa analogia proposta a um certo pon to entre a adivinh ação e uma
disciplin a tão pouco dedutiva como a medicina (p. 132). O paralelismo pro­
posto acima entre as duas tendências da adivinh ação mesopotâmica e o
caráter misto da escrita cuneiforme desenvolve algumas observações de Bot­
téro (pp. 154-7).
(39) Ibid., pp. 191-2.
(40) Ibid., pp. 89 ss.
(41) Ibid., p. 172.
(42) Ibid., p. 192.
(43) Cf. o ensaio de H . Diller, em Herm es, 67, 1932, pp. 14-42, sobre­

264
tudo pp. 20 ss. A contraposição ali proposta entre método analógico e mé­
todo semiótico será corrigida interpretando este último como um “uso empí­
rico” da analogia: cf. E. Melandri, La linea e il circolo. Studio logico-filoso-
fico sull'an alogia, Bolonha, 1968, pp. 25 ss. A afirmação de J.-P. Vernant,
“ Parolo et signes m uets”, em Divin ation , cit., p. 19, segundo a qual “o pro­
gresso político, histórico, médico, filosófico e científico consagra a ruptura
com a mentalidade divin atória”, parece identificá-la exclusivamente com a
adivinhação in spirada (mas cf. o que diz o próprio Vernant na p. 11, a pro­
pósito do problema não-resolvido con stituído pela coexistência, também na
Grécia, entre as duas formas de adivinh ação, in spirada e analítica). Uma
implícita desvalorização da sintomatologia hipocrática transparece na p. 24
(cf., ao invés, Melandri, La linea, cit., p. 251, e sobretudo o livro do próprio
Vernant e Détienne, cit., na nota 45).
(44) Cf. a introdução de M. Vegetti a H ipocrates, Opere, cit., pp. 22-3.
Para o fragmento de Alcmeon, cf. Pitagorici. Testim onianze e fram m enti, a
cargo de M. Timpan aro Cardin i, vol. I, Floren ça, 1958, pp. 146 ss.
(45) Sobre tudo isso, ver a pesquisa muito rica de M. Détien ne e J.-P.
Vernant, Les ruses de l ’intelligence. La m étis des grecs, Paris, 1974. As carac­
terísticas divin atórias de Métis são mencionadas nas pp. 104 ss; mas cf. tam­
bém, para a conexão entre os tipos de saber enumerados e a adivinh ação, pp.
145-9 (a propósito dos marinheiros) e 270 ss. Sobre a medicina, cf. pp. 297
ss; sobre a relação entre hipocrâticos e Tucidides, cf. a introdução, cit., de
Vegetti, p. 59 (mas acrescentar Diller, art. cit., pp. 22-3). É de se indagar,
aliás, o elo medicina— h istoriografia também em sentido inverso: cf. os estu­
dos sobre a “autópsia” lembrados por A. Momigliano, “Storiografia greca”,
em Rivista Storica Italian a, l x x x v i i (1975), p. 45. A presença das mulheres
no âmbito dominado pela m etis (cf. Détienne-Vernant, Les ruses, cit., pp.
20, 267) coloca problemas que serão discutidos na versão defin itiva do pre­
sente texto.
(46) Cf. Hipocrates, Opere, cit., pp. 143-4.
(47) Cf. P. K. Feyerabend, I problem i deli’em pirism o, Milão, 1971,
pp. 105 ss; e id., Contro il m etodo, Milão, 1973, passim-, e também as obser­
vações polêmicas de P. Rossi, Im m agini della scienza, Roma, 1977, pp. 149-50.
(48) Coniector é quem faz os vaticín ios (vate). Aqui e em outros
lugares retomo algumas observações de S. Timpanaro, Il lapsus freudiano.
Psican alisi e critica testuale, Floren ça, 1974, mas, por assim dizer, inver­
tendo-lhe o sinal. Em poucas palavras (e simplifican do): en quanto para
Timpan aro a psicanálise deve ser refutada por ser intrinsecamente próxima
à magia, eu procuro demonstrar que não só a psicanálise mas a maior parte
das ditas ciências humanas inspiram-se numa epistemologia de tipo divina­
tório (sobre as implicações disso, ver a última parte do en saio). Às expli­
cações individualizan tes da magia, e às características individualizan tes de
duas ciências como a medicina e a filologia, já se referira Timpan aro, II
lapsus, cit., pp. 71-3.
(49) Sobre o caráter “provável” do conhecimento h istórico escreveu
páginas memoráveis M. Bloch, A pologia delia storia o m estiere deüo storico,
Turim, 1969, pp. 110-22. Sobre suas características de conhecimento indireto,
baseado em pistas, insistiu K. Pomian, “ L ’histoire des sciences et l’histoire

265
de 1’h istoire”, em A nnales ESC, 30, 1975, pp. 935-52, que retoma implicita­
mente (pp. 949-50) as considerações de Bloch sobre a importância do método
crítico elaborado pelos Maurini (cf. A pologia, cit., pp. 81 ss.). O texto de
Pomian, rico de agudas observações, termina com uma rápida referência às
diferenças en tre “h istória” e “ciência” ; entre elas não é mencionada a pos­
tura mais ou menos individualizante dos vários tipos de saber (cf. “ L ’his-
toire”, cit., pp. 951-2). Sobre o nexo entre medicina e saber h istórico, cf.
M. Foucault, M icrofisica dei potere. In terven ti politici, Turim , 1977, p. 45
(e ver aqui nota 44); mas cf., de um outro pon to de vista, G.-G. Gran ger,
Pensée form elle et sciences de 1’hom m e, Paris, 1967, pp. 206 ss.
A insistência n as características individualizan tes do conhecimento h is­
tórico soa suspeita, porque foi associada demasiadas vezes à ten tativa de
fun dar tal conhecimento na empatia, ou à identificação da h istória com a
arte, e assim por diante. É eviden te que estas págin as foram escritas numa
perspectiva completamente diferente.
(50) Sobre as repercussões da invenção da escrita, cf. J. Goody e I.
W att, “Th e consequences of literacy”, em Com parative Studies in Society
and History , v (1962-63), pp. 304-45 (e ora J. Goody, Th e dom estication of
the sav age m ind, Cambridge, 1977). Ver também E. A. H avelock, Cultura
orale e civiltà della scrittura. Da Om ero a Platone, Bari, 1973. Sobre a
h istória da crítica textual depois da invenção da imprensa, cf. E. J. Kenney,
Th e classical text. A spects of editing in the age of prin ted hook s, Berkeley
(Cal.), 1974.
(51) A distinção proposta por Croce entre “expressão” e “man ifes­
tação” artística capta, ainda que em termos m istificados, o processo histórico
de depuração da noção de texto que se tentou delin ear aqui. A extensão
dessa distinção à arte em geral (óbvia do ponto de vista de Croce) é in sus­
tentável.
(52) Cf. S. Timpanaro, La genesi dei m etodo Lach m an n , Florença,
1963. Na p. 1 a fun dação da recensio é apresentada como o elemento que
tornou científica uma disciplin a que, antes do século xix, era mais uma
“arte” do que uma “ciência” , pois se identificava com o em endatio, ou arte
conjetural.
(53) Cf. o aforismo de J. Bidez lembrado por Tim pan aro, 11 lapsu s,
cit., p. 72.
(54) Cf. G. Galilei, 11 Saggiatore, a cargo de L. Sosio, Milão, 1965,
p. 38. Cf. E. Garin , “La nuova scienza e il simbolo dei ‘libro’ ” , em La
cultura filosofica dei Rinascim ento italiano. Ricerch e e docum enti, Floren ça,
1961, pp. 451-65, que discute a interpretação dessa e de outras passagen s
galileanas oferecida por E. R. Curtius, de um ponto de vista próximo ao
aqui proposto.
(55) Galilei, 11 Saggiatore, cit., p. 264. Cf. também, sobre esse ponto,
J. A. Martinez, “Galileo on primary and secondary qu alities” , em Journ al
of the History of Behavioral Sciences, 10, 1974, pp. 160-9. O s grifos nas
passagens galileanas são meus.
(56) Para Cesi e Ciampoli, cf. adiante; para Faber, cf. G. Galilei,
Opere, vol. x i i i , Florença, 1935, p. 207.
(57) Cf. J. N. Eritreo (G. V. Rossi), Pinacotheca im aginum illustrium ,

266
doctrinae vel ingenii laude, v iro ru m ..., Lipsiae, 1962, vol. n , pp. 79-82.
Como Rossi, também Naudé julgava Mancini “gran d et parfait Ath ée” (cf.
R. Pin tard, Le libertinage érudit dans la prem ière m oitié du X V I I ' siècle,
vol. i, Paris, 1943, pp. 261-2).
(58) Cf. G. Mancini, Considerazioni sulla pittura, a cargo de A. Ma-
rucch i, 2 vol., Roma, 1956-7. Sobre a importância de Mancini como “conhe­
cedor” in sistiu D. Mah on, Studies in Seicento art and tbeory , Lon dres, 1947,
pp. 279 ss. Rico de informações, mas com juízos excessivamente redutores,
J. H esse, “Note manciniane”, em Miincbener Jah rbuch der bildenden K u n st ,
série u i, xix (1968), pp. 103-20.
(59) Cf. F. H askell, Patron s and painters. A study in the relations
betw een Italian art and society in the age of Baroque, Nova York, 1971,
p. 126; ver também o cap. “Th e private patron s” (pp. 94 ss.).
(60) Cf. Mancini, Considerazion i, cit., pp. 133 ss.
(61) Cf. Eritreo, Pin acotheca, cit., pp. 80-1 (o grifo é meu). Um pouco
adiante (p. 82), um outro diagn óstico de Mancini que se revelou exato (o
paciente era Urban o v iu ) é defin ido “seu vatician tio, seu praedictio” [ou
vaticín io ou predição].
(62) O problema posto pelas gravuras é evidentemente diferen te do
das pin turas. Em geral, pode-se observar que h oje há uma tendência a minar
a unicidade da obra de arte figurativa (pense-se nos “m últiplos”); mas
também existem tendências opostas, que reforçam a irrepetibilidade (da
perform ance, mais que da obra: body art, land art).
(63) Isso tudo pressupõe naturalmente W . Benjamim, L ’opera d ’arte
n ell’epoca delia sua riproducibilità técnica, Turim , 1974, que porém só fala
das obras de arte figurativa. A unicidade dessas — e em especial dos qua­
dros — é contraposta à reprodutibilidade mecânica dos textos literários
por É. Gilson , Pein ture et réalité, Paris, 1958, p. 93 e, sobretudo, 95-6
(devo a indicação desse texto à gentileza de Renato Turci). Mas trata-se
para Gilson de uma contraposição intrín seca, não de caráter h istórico, como
aqui tentou-se mostrar.
Um caso como o das “falsificações de autor” de De Chirico mostra como
a noção atual de sin gularidade absoluta da obra de arte tende a prescindir
até da unidade biológica do indivíduo-artista.
(64) Cf. uma alusão de L. Salerno em Mancini, Considerazioni, cit.,
vol. ii, p. xxiv, nota 55.
(65) Cf. ibid., vol. i, p. 134 (no fin al da citação corrijo “ pin tura”
por “ escrita” , como exigido pelo sentido).
(66) O nome de Allacci é proposto pelos seguin tes motivos. Numa
passagem anterior, semelh ante à citada, Mancini fala de “bibliotecários, e em
especial da Vatican a”, capazes de datar uma escrita antiga tanto grega como
latina (ibid., p. 106). Ambos os trechos faltam na versão breve, o dito
Discorso di pin tura concluído por Mancini antes de 13 de novembro de 1619
(cf. ibid., p. xxx; o texto do Discorso nas pp. 291 ss; a parte sobre o
“reconhecimento das pin turas” nas pp. 327-30). Ora, Allacci fora nomeado
“scriptor” (escrevente) jun to à Vaticana aproximadamente na metade de
1619 (cf. J. Bignami Odier, La bibliotèque V atican e de Sixte IV à Pie X I . . . ,
Cidade do Vatican o, 1973, p. 129; recentes estudos sobre Allacci estão

267
enumerados n as pp. 128-31). Por outro lado, na Roma daqueles anos nin­
guém, fora Allacci, possuía a competência paleográfica grega e latina men­
cionada por Mancini. Sobre a importância das idéias paleográficas de Allacci,
cf. E. Casamassim a, “Per una storia delle dottrin e paleografich e dall’Uma-
nesimo a Jean Mabillon ” , em Studi m edievali, série III, v (1964), p. 532,
nota 9, que também avança o nexo Allacci— Mabillon remetendo, para a
respectiva documentação, à continuação do ensaio, infelizmente jamais publi­
cada. No epistolário allacciano conservado na Biblioteca Vallicelliana de
Roma n ão aparecem traços de relações com Man cini; n o en tanto, os dois
faziam parte do mesmo ambiente intelectual, como demon stra a amizade
comum com G. V. Rossi (cf. Pin tard, Le libertinage, cit., p. 259). Sobre as
boas relações entre Allacci e Maffeo Barberini antes de seu pontificado,
cf. G. Mercati, N ote per la storia di alcune biblioteche rom ane nei secoli
X V I- X IX , Cidade do Vatican o, 1952, p. 26, n ota 1 (de Urban o v iu , como
se disse, Mancini fora o médico-mor).
(67) Cf. Mancini, Considerazioni, cit., p. 107; C. Baldi, T rat t at o ..
Carpi, 1622, pp. 17, 18 ss. Sobre Baldi, que escrevera também sobre a
fisiognomonia e a adivinh ação, ver as informações bibliográficas reun idas
no verbete do Dizionario biográfico degli italiani (5, Roma, 1963, pp.
465-7) redigido por M. Tron ti (que conclui adotan do o desden h oso juízo
de Moréri: “on peut bien le mettre dans le catalogue de ceux qui ont écrit
sur des sujets de n éan t”). É de se n otar que no Discorso di pittura, con­
cluído antes de 13 de novembro de 1619 (ver n. 66), Mancini escrevia:
“ . . . a propriedade individual do escrever fora tratada por aquele nobre
espírito que, no seu livrinho que anda pelas mãos dos homens, tentara
demonstrar e dizer as causas dessa propriedade, em vez de, pelo modo do
escrever, tentar dar preceitos sobre a temperatura e costumes de quem
escreveu, coisa curiosa e bela, mas um pouco limitada dem ais” (cf. Consi­
derazioni, cit., pp. 306-7; corrijo “astratta” (abstrata) por “astretta” (limi­
tada) a partir da lição oferecida pelo ms 1698 (60) da Biblioteca Un iversitaria
di Bologna f, 34r). A passagem põe duas dificuldades para a identificação
com Baldi, sugerida acima: a) a primeira edição impressa do Trattato deste
ú ltin o apareceu em Capri em 1622 (portan to, em 1619, ou pouco antes,
não poderia circular sob forma de “ livrinho que anda pelas mãos dos ho­
m en s’ ); b) Mancini no Discorso fala de “nobre espírito”, n as Considerazioni
de “belas inteligên cias” . Mas as duas dificuldades se dissolvem à luz da
advertência aos leitores acrescentada pelo editor à primeira edição do Trattato
de Baldi “O autor deste pequen o tratado, quan do o fez, jamais pensou
que viesse a público; mas, visto que uma pessoa, que era o secretário, com
muitos escritos, cartas e composições de outros o havia dado à publicação
sob seu nome, julguei ser honesto fazer com que apareça a verdade, e
devolva-se a quem de direito o que é seu ”. É claro que Mancini conhecera
antes o “livrinh o” do “secretário” (que não consegui iden tificar), depois
também o Trattato de Baldi, que em todo caso circulou manuscrito numa
versão levemente diferente da posteriormente publicada (pode-se vê-lo, com
outros textos de Baldi, no ms 142 da Biblioteca Classen se di Ravenna).
(68) Mancini, Considerazion i, cit., p. 134.
(69) Cf. A. Averlino, dito o Filarete, Trattato di arquitettura, a cargo

268
de A. M. Fin oli e L. Grassi, Milão, 19/2, vol. i, p. 28 (mas ver em geral
as pp. 25-8). A passagem está assin alada, como prenúncio do método
“ morellian o” , em J. Sch losser Magnino, La letteratura artística, Florença,
1977, p. 160
(70) Ver, por exemplo, M. Scalzin i, 11 se c re t ario ..., Ven eza, 1585,
p. 20: “ . . . quem costuma escrever nela em brevíssimo tempo perde a
velocidade e a desenvoltura natural da m ã o . . . ” ; G. F. Cresci, L ’i d e a...,
Milão, 1622, p. 84: “ . . . não se deve porém crer que aqueles traços, os
quais eles se gabaram nas suas obras de fazer com uma só pen ada com
tantos volteios. . . ”, e assim por diante.
(71) Cf. Scalzin i, II secretario, cit., pp. 77-8: “Digam-me por cortesia
esses in divíduos, que com régua e tin ta comodamente escrevem, se estivessem
aos serviços de algum Prín cipe ou Senhor ao qual ocorresse, como comu-
mente acontece, escrever em quatro ou cinco horas quarenta ou cinqüenta
longas cartas, e que fossem ch amados ao quarto para escrever, em quanto
tempo executariam tal serviço?” (a polêmica dirige-se contra “mestres van-
gloriadores” não nomeados, acusados de difun dir uma letra chanceleresca
lenta e cansativa).
(72) Cf. E. Casamassima, T rattati di scrittura dei Cin quecento italian o,
Milão, 1966, pp. 75-6.
(73) “ . . . desse gran díssimo livro, que essa natureza continuamente
mantém aberto dos que têm olhos no rosto e no cérebro” (citado e comen­
tado por E. Raimondi, II rom anzo senza idillio. Saggi sui "Prom essi Sposi",
Turim, 1974, pp. 23-4).
(74) Cf. Filarete, Trattato, cit., pp. 26-7.
(75) Cf. Bottéro, “Symptômes”, cit., p. 101, que porém atribui a me­
nor freqüên cia da adivinh ação por min erais, vegetais e, em certa medida,
animais a uma suposta “pauvreté form elle” , antes que, mais simplesmente,
a uma perspectiva antropocêntrica.
(76) Cf. Rerum m edicarum N ovae H ispan iae Th esarus seu plantarum
anim alium m ineralium M exicanorum H istoria ex Francisi Hernan dez novi
orbis m ediei prim arii relation ibus in ipsa M exicana urbe conscriptis a Nardo
A ntonio R e cch o ... collecta ac in ordinem digesta a Ioann e Terren tio Lyn-
c e o . . . n otis illustrata, Romae, 1651, pp. 599 ss (essas págin as fazem parte
da seção redigida por Giovan n i Faber, o que n ão aparece no fron tispício).
Sobre esse livro escreveu belas págin as, ressaltando-lhe justamente a impor­
tância, Raimondi, II rom anzo, cit., pp. 25 ss.
(77) Cf. Mancini, Considerazion i, cit., vol. i, p. 107, on de refere-se,
remetendo a um texto de Francesco Giun tin o, ao h oróscopo de Dürer (o edi­
tor das Considerazioni, n , p. 60, n. 483, não indica de qual texto se trata;
cf. ao invés F. Giun tin o, Speculum astrologia?, Lugdun i, 1573, p. 269v).
(78) Cf. Rerum m edicarum , cit., pp. 600-27. Foi o próprio Urbano
VIII quem in sistiu para que a descrição ilustrada fosse impressa: cf. ibid.,
p. 599. Sobre o interesse desse ambiente para a pin tura de paisagem, cf. A.
Ottan i Cavin a, “On the theme of lan dscape, I I : Elsh eimer and Galileo”,
em Th e Burlington M agazine, 1976, pp. 139-44.
(79) Cf. o en saio, muito sugestivo, intitulado “Verso il realism o”, de
Raimondi, II rom anzo, cit., pp. 3 ss — mesmo que, na pista de W hitehead

269
(pp. 18-9), ele tenda a atenuar excessivamente a oposição entre os dois
paradigmas, o abstrato-matemático e o concreto-descritivo. Sobre o contraste
entre ciências clássicas e ciências baconianas, cf. T. S. Kuh n , “Tradition
mathématique et tradition expérimentale dans le développement de la phy­
siqu e”, em A nnales ESC, 30, 1975, pp. 975-98.
(80) Cf., por exemplo, “Craig’s rules of h istorical evidence, 1699” ,
em H istory and Th eory — Beih eft 4, 1964.
(81) Sobre esse tema, aqui nem roçado, cf. o livro muito rico de I.
Hacking, Th e em ergence of probability. A ph ilosoph ical study of early ideas
about probability , induction an d statistical inference, Cambridge, 1975. Mui­
to útil a resenha de M. Ferrian i, “ Storia e ‘preistoria’ del concetto di pro-
babilità n ell’eta moderna”, em Riv ista di Filosofia, n.° 10, fevereiro de 1978,
pp. 129-53.
(82) Cf. P.-J.-G. Caban is, La certezza nella m edicina, a cargo de S.
Moravia, Bari, 1974.
(83) Cf. sobre esse tema M. Foucault, N ascita della clinica, Turim,
1969, e M icrofisica, cit., pp. 192-3.
(84) Cf., também, C. Gin zburg, II form aggio e i vermi. II cosm o di
un m ugnaio del'500, Turim , 1976, pp. 69-70.
(85) Retomo aqui, num sentido um pouco diferen te, algumas consi­
derações de Foucault, M icrofisica, cit., pp. 167-9.
(86) Cf. J. J. W inckelmann, Briefe, a cargo de H . Diepolder e W.
Rehm, vol. II , Berlim, 1954, p. 316 (carta de 30 de abril de 1763 a G. L.
Bianconi, de Roma) e nota na p. 498. A referência ao “pequen o discerni­
mento” está em Briefe, vol. I, Berlim, 1952, p. 391.
(87) Isso vale não só para os Bildungsrom anem . Desse pon to de vista,
o romance é o verdadeiro herdeiro da fábula (cf. V. I. Propp, Le radiei
storiche dei raconti di fate, Turim, 1949).
(88) Cf. E. Cerulli, “Un a raccolta persian a di novelle tradotte a Ve­
nezia nel 1557”, em A t ti deli'A ccadem ia Nazionale dei Lincei, c c c l x x i i
(1975), Dissertações do curso de ciências morais etc., série v iu , vol. xvn i,
fase. 4, Roma, 1975 (sobre Sercambi, pp. 347 ss). O ensaio de Cerulli sobre
as fon tes e a difusão do Peregrinaggio deve ser integrado, no que se refere
às origens orientais da novela (cf. acima, n. 31) e o seu destino indireto,
através de Z adig, no romance policial (ver adiante).
(89) Cerulli cita traduções em: alemão, francês, inglês (do fran cês),
holandês (do fran cês), din amarquês (do alemão). Essa lista será even tual­
mente completada a partir de um livro que n ão pude ver, Seren dipity
and the three prin ces: from the Peregrinaggio of 1557, a cargo de T. G.
Remer, Norman (O kl.), 1965, que enumera n as pp. 184-90 edições e tra­
duções (cf. W. S. Hecksch er, “Petites perception s: an Account of sortes
W arburgianae”, em Th e Journ al of M edieval and Renaissance Studies, 4,
1974, p. 31, nota 46).
(90) Cf. ibid., pp. 130-1, que desenvolve uma alusão contida em id.,
“Th e Gen esis of Icon ology”, em Stil und Ueberlieferung in der Kun st des
A bendlandes, vol. ill, Berlim, 1967 (Akten des xix. In ternationalen Kon-
gresses für Kun stgesch ich te in Bonn, 1964), p. 245, nota 11. Esses dois
ensaios de Hecksch er, riquíssimos de idéias e indicações, examin am a gênese

270
do método de Aby W arburg de um ponto de vista que em parte coincide
com o adotado neste trabalho. Numa versão posterior prometo seguir, entre
outras coisas, uma pista leibniziana indicada por Heckscher.
(91) “Vi na areia as pegadas de um' animal. Descobri facilmente que
eram as de um cão pequen o. Sulcos leves e longos, impressos n os montículos
de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de
uma cadela cujas tetas estavam pendentes e que, portan to, não fazia muito
que dera c r i a . . . ” Cf. Voltaire, “Zadig ou la destin ée”, em Rom ans et
contes, a cargo de R. Pomeau, Paris, 1966, p. 36 [a trad. cit. é de M.
Quin tan a, S. Paulo, 1972, pp. 22-3 (N. T .)].
(92) Cf., em geral, R. Méssac, Le "detective novel” et 1'influence
de la pensée scien tifique, Paris, 1929 (excelente, ain da que hoje um pouco
envelh ecido). Sobre a relação entre o Peregrinaggio e Z adig, cf. pp. 17 ss
(e 211-2).
(93) (“ • • • h oje, qualquer um que vê apenas a pista de um casco
bifurcado pode daí concluir que o animal que deixou essa marca ruminava,
e tal conclusão é tão correta quanto qualquer outra em física e moral. Esta
única pista dá pois a quem a observa a forma dos dentes, a forma dos
maxilares, a forma das vértebras, a forma de todos os ossos das pernas, das
coxas, dos ombros e da bacia do animal que acaba de passar: é uma
marca mais segura do que todas as de Zadig”.) Ibid., pp. 34-5 (de G.
Curvier, Recherches sur les ossem ents f o ssile s.. . , vol. I, Paris, 1834, p. 185).
(94) Cf. T. Huxley, “On the method of Zadig: retrospective prophecy
as a function of science” , em Science and culture, Lon dres, 1881, pp.
128-48 (trata-se de uma conferência realizada no ano anterior; chamou a
atenção sobre esse texto Méssac, Le "detectiv e novel”, cit., p. 37). Na
p. 132 Huxley explica que “ even in the restricted sense of ‘divin ation ’, it
is obvious that the essence of the prophetic operation does not lie in its
backward or forward relation to the course of time, but in the fact that
it is the apprenhension of that which lies out of the sphere of immediate
knowledge; the seeing of that which to the natural sense of the seer is
in visible” [mesmo no sentido restrito de “ adivinh ação”, é evidente que a
essência da operação profética não reside em sua relação com o tempo em
seu curso passado ou futuro, mas no fato de ser a apreensão daquilo que
escapa à esfera do conhecimento imediato; a visão daquilo que é invisível
ao sentido natural de quem vê]. E cf. E. H . Gombrich , “Th e evidence of
im ages”, em In terpretation , a cargo de C. S. Singleton, Baltimore, 1969,
pp. 35 ss.
(95) Cf. (J.-B. Dubos), Réflexion s critiques sur la poesie et sur la
peinture, vol. n , Paris, 1729, pp. 362-5 (citado em parte por Zerner,
“Giovan ni Morelli”, cit., p. 215, n ota).
(96) Cf. E. Gaboriau, M onsieur Lecoq, vol. I: L'en quete, Paris,
1877 10, p. 44. Na p. 25 a “jeune th éorie” do jovem Lecoq é contraposta à
“ vieille pratique” do velho policial Gévrol, “ch ampion de la police positi-
viste” (p. 20), que se detém nas aparências e por isso não consegue ver nada.
(97) Sobre o prolon gado sucesso popular da frenologia na Inglaterra
(enquan to a ciência oficial já a considerava com desdém ), cf. D. De Gius-

271
La rinascita dei paganesim o an tico, Florença, 1966 (o primeiro ensaio é de
1893); L. Spitzer, Die W ortbildung ais stilistisch es M ittel exem plifiziert an
Rabelais, H alle, 1910; M. Bloch, I re taum aturgbi. Studi sul carattere so-
vrannaturale attribuito alia potenza dei re particolarm ente in Fran cia e in
in gh ilterra, Turim, 1973 (a edição original é de 1924). Trata-se de uma
exemplificação que se poderia esten der: cf. G. Agamben, “Aby W arburg e
la scienza senza n ome”, em Settan ta, julho-setembro de 1975, p. 15 (onde
estão citados W arburg e Spitzer; na p. 10 é mencionado também Traube).
(125) Além dos A forism i politici de Campanella, publicados original­
mente em tradução latina como parte da Realis ph ilosoph ia (De politica in
aph orism os digesta), cf. G. Canini, A forism i politici cavati dall’Historia
d’lt alia di M. Francesco Guicciardin i, Veneza, 1625 (cf. T. Bozza, Scrittori
politici italiani dal 1550 al 1650, Roma, 1949, pp. 141-3, 151-2). E ver
também o verbete “aph orism e” no Dictionnaire de Littré.
(126) Ain da que a acepção original fosse jurídica; para uma rápida
história do termo, cf. R. Koselleck, Critica illum inista e crisi delia società
borghese, Bolonha, 1972, pp. 161-3.
(127) Retorn arei amplamente a esse ponto na versão defin itiva do
presente trabalho.
(128) Cf. Sten dh al, Ricordi di egotism o, Turim, 1977, p. 37: “Victor
[Jacqu em on t] me parece um homem excepcional; como um conhecedor
(perdoem-me o termo) consegue ver o belo cavalo num potro de quatro
meses com as pernas ain da desajeitadas” (cf. Souven irs d'egotism e, a cargo de
H . Martin eau, Paris, 1948, pp. 51-2). Sten dh al desculpa-se com o leitor
por servir-se de um termo de origem fran cesa como conn oisseur na acepção
que adquirira na In glaterra. Cf. a observação de Zerner, “Giovan ni Morelli” ,
cit., p. 215, n ota 4, de que ain da hoje não existe em fran cês uma palavra
equivalen te a connoisseurship.
(129) Cf. o livro, muito rico e pen etrante, de Y. Mourad, La phy-
siognom onie arabe et la "Kit ab A l-Firasa” de Fak h r Al-Din A l-Razi, Paris,
1939, pp. 1-2.
(130) Cf. o extraordin ário episódio atribuído a Al-Sh afi’i (século ix
da Era Cristã), ibid., pp. 60-1, que realmente parece extraído de um conto
de Borges. O nexo entre a firasa e as proezas dos filh os do rei de Serendippo
foi precisamente referido por Méssac, Le "detectiv e n ovel”, cit.
(131) Cf. Mourad, La ph y siogn om onie, cit., p. 29, enumera a seguinte
classificação dos vários tipos de fisiogn omonia, contida no tratado de
Tash kopru Zãdeh (ano 1560 da Era Cristã): “ 1) ciência das pin tas; 2) quiro­
mancia; 3) escapulomancia; 4) adivinhação através das pegadas; 5) ciência
genealógica através da inspeção dos membros e da pele; 6) arte de se orientar
nos desertos; 7) arte de descobrir as n ascentes; 8) arte de -descobrir os
lugares onde se encontram os metais; 9) arte de prever a ch uva; 10) previsão
através de eventos passados e presen tes; 11) previsão através dos movi­
mentos involun tários do corpo”. Nas pp. 15 ss Mourad propõe uma aproxi­
mação muito sugestiva, que será desenvolvida, entre a fisiognomonia árabe e
as pesquisas dos psicólogos da Gestalt sobre a percepção da individualidade.

274
[Estas págin as suscitaram numerosas intervenções (entre outras uma de
I. Calvino, em La Republica, 21 de janeiro de 1980) que seria supérfluo
enumerar. Remeto apenas a Quadertii di Storia, vi, n.° 11, janeiro-junh o de
1980, pp. 3-18 (textos de A. Carandini e-M. Vegetti); também n.° 12, julho-
dezembro de 1980, pp. 3-4 (várias intervenções, com uma réplica do autor);
Freibeuter, 1980, n.° 5. Marisa Dalai fez-me notar que deveria ter citado, a
propósito de Morelli, o agudo juízo de J. von Sch losser, “ Die W iener
Schule der Kun stgesch ich te”, em Mitteilun gen des Oesterreichischen In stituts
für Gesch ich tsforsch un g, Ergänzungs-Band x m , n.° 2, In n sbruck, 1934,
pp. 165 ss.]

M IT O LO G IA GER M Â N ICA E N A Z IM O

[Ver um novo ensaio de A. Momigliano, “Georges Dumézil and the tri-


functional approach to Roman civilization ”, em History and Theory, xxm
(1984), pp. 312-30, e uma resposta de Dumézil, em L ’oubli et l ’hom m e et
l ’honneur des dieux, Paris, 1985, pp. 299-318. Ver também a réplica de
Dumézil a estas págin as: Science et politique. Réponse à Carlo Ginzburg
in A nnales ESC, 40 (1985), pp. 985-9].

(1) Cf., por 'último, as declarações feitas por Dumézil em 1980 a J.


Bonnet e D. Pralon, em F. Desbordes e outros, Georges Dum ézil, Paris,
1981, pp. 20-3. Também na bibliografia comentada que fecha o volume, a
cesura de 1938 é assin alada explicitamente (p. 341).
(2) Cf. G. Dumézil, Gli dèi dei Germ an i, trad, it., Milão, 1974, p. 11.
(3) Cf. A. Momigliano, “ Promesse per una discussion e su Georges
Dum ézil” , em O pu s, il (1983), p. 331. O fascículo contém vários ensaios,
quase todos apresentados num seminário sobre Dumézil, realizado em Pisa
em janeiro de 1983.
(4) Ele curiosamente n ão figura no catálogo da Biblioth èque Nationale
nem no da Biblioth èque de la Sorbonne. Na British Library aparece como
“mislaid”. Encontrei dois exemplares: um na Carolin a Rediviva, de Uppsala,
o outro no Deutsch es Archäologisches In stitut de Roma.
(5) Cf. Deutsch e Literaturzeitun g, 61 (1940), col. 943-5.
(6) Cf. M. Bloch, em Revue H istoriqu e, 188 (1940), pp. 274-6.
(7) Cf. G. Dumézil, M y thes et dieux des Germ ains, Paris, 1939, pp.
153-7. Escan dalosamen te superficial o comentário de C. S. Littleton , The
new com parative mythology, Berkeley, 1982 3, p. 63; “ It was perh aps ironic
that it was in 1939, the year H itler’s legions began their grisly march, that
Dumézil first focused his attention upon the Germanic branch of the I. E.
speakin g w orld” [Irôn ico talvez que tenha sido em 1939, ano em que as le­
giões de Hitler iniciaram sua pavorosa marcha, que Dumézil concentrou pela
primeira vez sua atenção sobre o ramo germânico do mundo de língua I.-E.].
(8) Ibid., pp. 79 ss, em esp. pp. 90-1.
(9) Ibid., p. 157.

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