A Detração L Karnal

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A DETRAÇÃO: BREVE ENSAIO SOBRE O MALDIZER

SINOPSE

Este livro trata daquele inescapável hábito, de toda hora, do ser humano falar mal do outro, seja do que esse outro
fez ou disse, seja do que pretende fazer. A detração permeia nosso cotidiano sem que nos apercebamos dessa prática.
São múltiplas as modalidades do maldizer e isso é o que aborda o pensador Leandro Karnal por meio de uma narrativa
leve, clara, mesmo bem-humorada, mas que não faz concessões ao seu rigor intelectual.

4
Os muitos que de mim falaram mal, os que me
 K18d Karnal, Leandro, 1963- insultaram, os que me agrediram e os que me
A detração : breve ensaio sobre o maldizer / Leandro desejaram um fracasso retumbante. Todos, de alguma
Karnal. - São Leopoldo : Ed. UNISINOS, 2016. 102 p. forma, ajudaram a lapidar meu narciso e indicaram
- (Aldus) caminhos interessantes que os que me amavam tinham
ISBN 978-85-7431-744-1 dificuldades em ver. Os detratores cumpriram muito
bem sua função pedagógica e de estímulo à humildade
1. Fofocas - História. 2. Crime contra a honra
na minha jornada. Agradeço a todos, do fundo do
-História.
coração, e a eles dedico este texto.
I. Título. II. Série.
 CDD 177.2 Fico feliz que a maioria esteja perto de morrer ou já
tenha fracassado. Obrigados duplos!
CDU 177.2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Agradecimentos
(CIP) Agradeço muito a paciência do meu editor, Carlos
(Bibliotecário: Flávio Nunes - CRB 10/1298) Alberto Gianotti, que soube entender as insanidades da
A COLEÇÃO ALDUS minha agenda. Sou grato a indicações preciosas de
Igor Gandra, Rose Karnal e Carlos Frederico Coelho
Nogueira.
A partir de 1501, numa época em que os livros eram
caros e difíceis de manusear, Aldus iniciou a produção Os acertos devem muito a eles. Os erros são autênticos
de livros com formato pequeno. Para diminuir o meus.
volume e o preço, encomendou do ourives Francesco O Editor apresenta
Griffo um tipo de letra que permitia um maior número
de caracteres por página. Este tipo veio a ser conhecido Passei diante da TV e pude ver e ouvir um político que
como itálico. proferia horrores sobre seu colega, presumivelmente
doutro partido. O psitacismo era o habitual, abundante
Hoje, o formato livro de bolso é o preferido pela
em solecismos; e a argumentação, mexeriqueira e
maioria dos leitores do planeta.
inconsistente. Aquela cena midiática dava o que
A Editora Unisinos, mediante esta coleção, em formato pensar.
diferenciado e impressa em papel especial, procura
O que julgaria alguém tido como bem-pensante, da
levar assuntos interessantes aos leitores por um preço
dita elite intelectual, que assistisse àquela detração,
acessível.
vazada naqueles termos? Mas logo também me dei
Sobre o autor conta de que a maledicência não é uma exclusividade
dos políticos, ainda que nisso eles pareçam ser os tais,
Leandro Karnal, natural de São Leopoldo, RS, cursou
e que os próprios bem-pensantes também a praticam.
História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
Mais: pelo menos em alguns momentos, quem não será
UNISINOS.
maledicente? O bispo?, o ministro?, o sindicalista?, o
É doutor em História Social pela USP e professor de professor?, o jurisconsulto?, o psicanalista?, o
História na UNICAMP, São Paulo. Tem diversos chanceler?
livros publicados, como Teatro da fé (Hucitec),
Acaso terá o leitor visto alguma vez, no seu ambiente
Conversas com um jovem professor (Contexto) e Pecar
de trabalho, algo ter sido mal feito - digamos, um erro
e perdoar (Nova Fronteira).
cometido pelo agente que resultou em prejuízo
Foi curador de exposições, como "A Escrita da institucional - e o responsável assumir o erro? Ou o
Memória" e profere palestras em diversas instituições figurino nesses casos será cada qual do setor ficar na
no Brasil e no exterior. sua e, à boca pequena, imputar a culpa a outrem?
Dedicatória com detração Aliás, o local de trabalho é campo fértil para a
detração, que corre solta comendo por baixo: você nem
Dedico este livro a todos os detratores com quem se dá conta de que estão a maldizê-lo, a passar-lhe uma
deparei, ao longo da minha vida. rasteira. Mas isso acontece também no dia a dia de
âmbito mais comezinho, o familiar: pais falam mal da Pois foi aquele político enunciando enormidades de
vida dos filhos adultos, e estes sobre a dos pais; irmãos outro pela TV que me induziu a considerar
malquistam-se e mexericam a vida um do outro. A objetivamente sobre como a detração faz parte do
divisão de uma herança, normalmente, dá muito pano nosso cotidiano - diria, uma faculdade quase orgânica
para maldizeres que acabam em malquerenças... E do ser humano -, e que esse tema poderia ser objeto de
entre amigos, você já constatou detrações? Claro que um ensaio para um pequeno livro. Convidei Leandro
sim! E o que suas vizinhas dirão de você? E suas Karnal para escrevê-lo, e aqui está este envolvente
companheiras de academia, ou seus parceiros de "Breve ensaio sobre o maldizer".
futebol sete das quartas à noite? C. A. G.
02/2016 4

Sumário Mestre Houaiss informa que fofoca vem,


provavelmente, do banto, ou seja, é uma palavra
BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO (NÃO PULE!) derivada de uma língua africana. Detração tem sólida
CAPÍTULO 1 HISTÓRIA COMO DETRAÇÃO raiz latina. Africanos e clássicos latinos
CAPÍTULO 2 POLÍTICA, OU A ARTE DE compartilharam do mesmo mal. Como ambas
DESVIAR DA DETRAÇÃO apresentam, entre muitas possibilidades, o falar mal de
alguém, nós as usaremos como sinônimas.
CAPÍTULO 3 DEUS TE VÊ
CAPÍTULO 4 DA DETRAÇÃO NA TERRA DE A lei trata da distinção entre injúria, calúnia e
SANTA CRUZ E EM OUTRAS TERRAS difamação. Trataremos disso nesta obra, mas nosso
CAPÍTULO 5 DETRAÇÃO E PRECONCEITO objetivo não é jurídico. No inglês existe uma distinção
REFERÊNCIAS entre "pride gossips" (que seriam fofocas elogiosas) e
"blame gossips", que equivaleriam à clássica
maledicência. Trataremos aqui, predominantemente,
da maledicência.
BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO (NÃO PULE!)
Todos falam mal de todos. Salvo eu, claro, que
O inferno são os outros. A máxima de Sartre remete detesto uma fofoca (não é o que todos dizemos?). Eu
ao nosso drama social mais intenso. Somos animais não tolero maledicências porque não sou como aqueles
sociais. Vivemos em grupo. Humanos são mamíferos que ficam no cafezinho da empresa falando da saia da
gregários que encontram sua realização e sua nova funcionária. Ops! Acabei de falar mal dos que
destruição em bando. Do casal à família, da família à falam mal. Haveria escapatória?
sociedade e desta à humanidade: o plural é a luz
sedutora e mortal de cada um de nós. Seria a detração uma forma de aliança? Fofoco
porque desejo estabelecer vínculos de defesa e ataque?
Há solitários e eremitas, mas são gotas no oceano da Seria uma maneira catártica de me excluir da maldade
sociabilidade. alegando que ela está no outro? Seria uma defesa
contra o mal que habita em mim? Constituiria uma
Por quê? Somos todos diferentes uns dos outros. forma de psicanálise primitiva, na qual eu falo
Conviver com a diferença implica comunicação e é indiretamente de mim ao fofocar, exorcizando meus
sempre um desafio. Conhecimento é poder, afirmava fantasmas nos outros? Talvez - ah, Poliana - uma
Francis Bacon. Conhecer sobre os outros garante forma de interesse com vetor invertido? Fofoqueiros
defesa e aliança. Quem oferece risco? Quais os seriam pessoas sem ter o que fazer? Falar mal, em
defeitos de quem está próximo a mim? Com quem essência, estaria associado ao feminino ou ao
devo me agrupar? Tudo isso pode ser resolvido com o masculino?
hábito da detração. Acabo de usar uma bela palavra:
detração. Há piores: fofoca, maledicência, maldizer, Por que a vida alheia seduz tanto? A minha biografia
difamação, mexerico, boato, babado, intriga - tudo estaria monótona ou linear demais? Falo mal porque
decorre de um cérebro ardiloso, um coração ressentido meu vazio interior é tão insuportável que prefiro o
e uma língua ferina. Esse é o tripé básico da detração. ataque a terceiros a pensar na minha miséria? Tantas
perguntas...
O texto trata de todas essas questões, cada uma do que o tipo de comentário que faço, especialmente o
contendo um aspecto específico da humana fofoca. É maldoso.
um ensaio sobre o maldizer, sobre o escárnio e o
ataque. É um texto sobre o momento em que baixamos Observe um discurso de formatura. Falamos bem das
a entonação vocal, chamamos alguém para um canto e, pessoas e da instituição. Agradecemos a nossos
com voz cúmplice e visível prazer, descrevemos um excelentes professores, homenageamos nossos amados
borrão na biografia alheia. Mas é um ensaio amplo pais e indicamos as qualidades excelsas daquela turma.
sobre a História vista como análise da detração. É um Gostamos de ouvir isso.
ensaio sobre nossa natureza detratora. É uma jornada
noite adentro e uma busca pelos quartos fechados da Achamos indelicado alguém ser crítico naquela hora 4
alma humana. É um foco de luz num canto muito de consagração. Mas... a maioria dos rostos está
escuro da nossa tradição tribal. É um pequeno livro entediada. Os elogios emocionam alguém, mas
sobre ser humano. entediam. As virtudes, reais ou retóricas, não prendem
muito a atenção.

Imagine se o mesmo orador, em vez de desfilar


II clichês edificantes na sua fala, se pusesse a destacar
coisas erradas nas pessoas que ali estão. Se, com ironia
Muitos sinônimos, mas sempre o mesmo sentido: a e humor, revelasse quem deitou com quem ao longo
expressão maledicente que busca diminuir os méritos daquele bacharelado. Quais colavam? E se indicasse os
de alguém ou inventar uma fama negativa. professores picaretas? Quais as falcatruas da
instituição? Pronto, em ambiente tenso ou às
A detração não é, necessariamente, uma mentira. gargalhadas, todos focariam na fala do orador. Falar e
Pode ser verdadeira ou falsa. O que marca a detração é ouvir o mal é uma delícia; desde que não sejamos o
a intenção de atacar, de diminuir, de jogar lama no alvo. Essa é a espécie à qual pertencemos.
alvo do meu veneno. Depreciar, como já insinuamos,
significa elevar a minha posição. Essa é a chave do Houve um imenso esforço de algumas celebridades
sucesso do detrator. A infâmia anunciada pelo narrador brasileiras para controlar a publicação de suas
pode nascer de fato concreto e comprovado. Pode ser biografias. Ao exercer esse controle, queriam
invenção absoluta. estabelecer uma narrativa que contasse as muitas
coisas boas, virtuosas e agradáveis que a vida de todos,
O objetivo é o mesmo: quero arranhar ou quebrar o inclusive celebridades, possui. Os fatos escabrosos, as
vítreo telhado alheio. fofocas, as calúnias ou as verdades dolorosas, essas
deveriam ser caladas e silenciadas. Não devemos
O importante é puxar bem para baixo, desnudar condená-los de imediato: todos gostaríamos de
histórias, atacar. Bem, por definição, a expressão puxar controlar as narrativas sobre nós.
para baixo implica reconhecer que estou abaixo de
quem falo mal. A fofoca é anárquica e cresce em progressão
geométrica. No boca-a-boca clássico e presencial ou
Esse é um dos problemas do falar mal: ele reconhece nas redes sociais, ela escapa a qualquer controle.
que me sinto abaixo ou, ao menos, que desejo estar por Tememos tudo o que foge à nossa supervisão. Calúnia
cima ao falar mal. é comparada a um travesseiro de penas aberto em torre
alta. Uma vez iniciada, entra em modo aleatório.
Reza velho adágio que, dada nossa fisiologia usual,
um dedo apontado para alguém significa quatro dedos III
voltados para mim. Pelo silêncio ou por oposição, o
fofoqueiro fala de si também. Nossas maldades seriam Maledicência é uma arte. Há regras. O fofoqueiro
a melhor forma de perseguir o ideal socrático: conhece jamais pode ignorá-las. Vamos a algumas:
a ti mesmo.
a) Preciso demonstrar que não falo por maldade, mas
Todos somos capazes de atos de bondade e por vontade de ajudar. Revelo a coisa a você para que
abnegação. Hitler amava cachorros e defendia dieta esteja precavido contra aquela pessoa. Insinuo que
vegetariana. Hitler matou milhões. A ternura, mesmo gosto da pessoa sobre a qual falo; no entanto... Destaco
na mais infame criatura, fala de nós e nossos valores. até alguns pontos positivos. Ela é tão pontual, pena
Porém, nada deixa mais evidente minha personalidade que... Ele é muito esforçado, pena que... Olha, eu até
gosto dela, mas acontece que... Um elogio a meia-voz O livro tenta achar a chave desse ambíguo contrato
é o prólogo de uma fofoca. O detrator não pode de hospedagem. Se a fofoca é tão feia, por que a temos
destilar maldade sem manifestar que é uma ótima conosco diariamente? Que estranho amor é esse?
pessoa e que ressalva aquilo para ajudar.
Parto de um princípio: onde houver pessoas, há falas;
b) Quem me escuta não pode sentir-se parte do mal. onde houver fala, há detração.
Não posso rir da gordura alheia, se meu interlocutor
estiver acima do peso. Nunca jogaria a pedra tendo A detração nasce com a sociedade humana e não
como testemunha alguém com telhado idêntico ao que desaparecerá enquanto houver seres humanos. Contra
ataco. A fofoca tem de estabelecer uma alteridade, uma ela, há princípios bíblicos; regras morais; manuais de 4
diferença, algo distintivo. Deve focar em algo que eu e etiqueta; formadores de caráter: uma luta de milênios
você abominamos (ou tememos). que só demonstra a permanência do problema. Meu
princípio: somos todos, em graus e formas variadas,
c) A maledicência deve ser crível, não pode fugir do fofoqueiros contumazes. Resta o livro: por quê?
plausível, mesmo que seja uma mentira. O bom CAPÍTULO 1
fofoqueiro sabe que há limites.
HISTÓRIA COMO DETRAÇÃO
d) A melhor detração insinua mais do que afirma.  "O que é dito no ouvido de um homem, frequentemente é
Veneno diluído é melhor aceito. É o floral de Bach do ouvido a 100 km de distância." Provérbio chinês
ácido, a homeopatia do cáustico.

Há o risco de ser menos entendido, porém é o recurso


mais interessante. Ataque pelas bordas, calúnia Sou historiador por formação. O homem no tempo e
indireta: é uma arte sutil a destruição de outro ser a construção da memória são minhas pedras
humano. fundamentais na profissão. Das lições históricas do
Ensino Médio dadas até a faculdade de História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS, a
"Ela é tão fiel ao marido. Por isso acho que ele nem
História parecia fluir de um manancial inesgotável.
se importa que ela saia com tantos amigos no sábado à Também no doutorado, com a professora Janice
noite." "Ele é um homem tão sensível, tão ligado à Theodoro, aprendi o prazer das "mansas inverdades"
moda, sempre sai com amigas e não gosta de futebol, de Marco Polo, dos cronistas indígenas, dos reis de
ele é quase feminino..." Assim, dizendo sem afirmar, Espanha e dos governantes astecas.
elogiando quando se condena, dizendo limpar quando
enlameia, o detrator-fofoqueiro terá grande sucesso. Contei umas linhas disso para o leitor ter uma noção
do prazer imenso que tenho na minha área. Já
Essas são regras gerais. Cada fofoqueiro sempre foi professor experiente em São Paulo, almoçava com uma
livre para escolher sua técnica. senhora aristocrata portuguesa, de brasão no anel, fala
escandida e modos teatrais.
O interesse pela vida alheia e a detração subsequente
apresentam infinitas variedades. Dona Adriana revelou-me, entre uma garfada e outra,
que aprendera a desconfiar da História. Diante do meu
espanto, afirmou:
O domínio da fofoca tem muitas subdivisões até
chegar ao gênero e à espécie. As tentativas de
- Aprendi com minha mãe que é feio falar mal dos
generalização são aproximativas.
outros. História fala quem casou com quem, quem
traiu a quem e quem tinha defeitos graves. História é
IV coisa de gente fofoqueira.

Já que prometi brevidade, encerro a Introdução. O Meditei gravemente nas palavras da marquesa. Ela
objetivo desta pequena obra é buscar as práticas e acabara de presentear-me com uma belíssima edição
origens do ato de falar mal. Afinal, se o consideramos das "Elegias de Duíno", de Rilke. Decidi não rebater,
errado, por que persiste, em todos os lugares, o hábito pois o presente era generoso e a octogenária
de fazer detração? Enorme contradição: sendo um ser aristocrática não parecia admitir réplicas.
abominável, desagradável e indesejável, a senhora
fofoca é atacada em público por todos, mas volta
conosco para nossa cama e dorme, escura e pérfida, na
sombra do coração.
Dona Adriana não está mais entre nós. Toma chá de mais célebres mostram essa língua ferina, e, não sendo
tílias e madeleines em outro plano. Seria a História exatamente fofocas, devolvem o veneno triplicado:
uma fofoca com método científico? A pergunta
permanece.  

Um historiador profissional sabe que sua área está Churchill e Elizabeth Braddock:
muito distante do século XIX.
- Senhora, você é feia.
Naqueles dias, historiar era narrar fatos, ao menos
para a maioria dos profissionais. Durante decênios do - Senhor, você está bêbado.
4
século XX, a identidade do professor de História foi a
de um narrador com compromisso com a verdade, - Pela manhã, ao menos, estarei sóbrio.
diferente do literato. A História profissional assumiu
tom sociologizante e compromissos políticos e sociais. Ou esta troca de farpas:
Falamos mais de classes do que de pessoas, mais de
forças econômicas do que de datas, e analisamos mais Convite de Bernard Shaw para Churchill:
representações sociais do que indivíduos.
- Tenho o prazer e a honra de convidar o digno
Um historiador profissional, hoje, raramente fica primeiro-ministro para a primeira apresentação de
preso ao anedótico ou ao fato moral. Uma boa aula minha peça Pigmaleão. Venha e traga um amigo, se
contemporânea pensa criticamente fontes e como tiver.
narrativas foram criadas e a partir de quais
condicionamentos, entre outras coisas.

Mas... pensando como professor, sei que o que Bernard Shaw.


realmente prende a atenção dos alunos é a narrativa
biográfica e fática. Disserte uma hora sobre a mudança Resposta de Churchill para Bernard Shaw:
na composição social romana nas crises da República
ou no aprofundamento do déficit financeiro da cidade. - Agradeço ao ilustre escritor o honroso convite.
Os alunos prestarão atenção, digamos, difusa. Indique, Infelizmente não poderei comparecer à primeira
de relance, que Júlio César era bissexual, e uma apresentação. Irei à segunda, se houver.
centelha de pólvora incendiará a sala. O quê? Conte
mais, professor...

O pessoal, aquilo que estabelece um gancho com Winston Churchill.


nosso mundo e lança algo que continua sendo alvo de
detração hoje: isso capta muito a atenção. Gostamos desse tom ferino, dessa rapidez mental que
devolve o veneno com veneno redobrado. Parece ser
Nas origens da Grande Guerra, destacamos sempre o uma defesa e uma prova de vitalidade, ou até de
Imperialismo. Os alunos, com sorte, anotam. Tríplice masculinidade.
Aliança contra Tríplice Entente? Bocejos... De repente
escapa: o kaiser Guilherme II, da Alemanha tinha um Não levo desaforo para casa! Seria uma forma de não
braço defeituoso e isso o tornava ressentido. ser passivo ou submisso.

Que fascinante! Como era esse braço, professor? Ele A língua afiada é, em geral, admirada, desde que não
conseguiu segurar algo? Então você conta detalhes do se dirija a nós.
parto dele e os alunos mostram vivo interesse,
ofuscando o "secundário": Imperialismo, Paz Armada, Mas nem tudo é tão divertido. Analise a estrutura dos
Guerra Franco-Prussiana... fascismos. Há um interesse médio. Mas afirme: Hitler
talvez só tivesse um testículo. Até o último da fila
O anedótico brilha, e o estrutural e o sociológico são levanta do seu sono secular. Sim, um dos mais
opacos. comentados fatos sobre a anatomia do Führer é sua
ausência do clássico par. Falei que isso seria próprio
O jogo prossegue nos próximos pontos. do interesse dos alunos? Façamos um teste longo:
Parlamentarismo inglês? Difícil fascinar. Mas pense em cinco anos o que você guardou deste livro e,
Churchill bebia demais? Diga uma das frases maldosas creio, essa informação estará viva na sua memória.
e rápidas do primeiro-ministro conservador, e ela
ficará para todo o sempre na memória dos alunos. As
O jogo é infinito e complexo. Toda personagem, É possível avançar nos séculos e focar outro autor.
gênio artístico ou genocida, tem facetas passíveis de William Shakespeare solidificou a fama de algumas
detração. Jorge Luis Borges era racista? O papa Júlio II personagens. Foi o caso claro da peça "Ricardo III".
era homossexual? O pintor romântico Delacroix talvez
fosse filho do ministro Talleyrand? O rei Henrique de O autor inglês precisava carregar nas tintas sobre a
Castela, meio-irmão de Isabel, era impotente? D. João família York, já que trabalhava na época Tudor. A
VI foi surpreendido numa cena de intimidade suspeita personagem dramática Ricardo III é, aparentemente,
com um empregado do palácio? Pedro I era epilético? muito pior do que o Ricardo III real. Na obra, um
Pedro II passava o pé nas coxas da condessa do Barral corcunda asqueroso e assassino domina nossa
durante a aula que esta dava para as princesas Isabel e imaginação.
4
Leopoldina?
A mensagem do bardo: vivemos uma época gloriosa.
Isso, sim, eletriza uma classe de Ensino Médio e o Por quê? Porque a passada tinha coisas terríveis como
público em geral. Ricardo III. Ricardo III, o corcunda, combateu
Henrique Tudor, que vem a ser avô da minha chefe:
O bom professor sabe dosar algumas dessas Elizabeth I...
informações com análises mais, digamos, científicas.
São como torrões de açúcar para premiar a atenção do Viram? Fofoca pode ter motivo político e interesse
cavalo. Todos que dão aula sabem que esses torrões pessoal...
terão mais longevidade do que a análise sociológica do
partido jacobino. No passado, reis e rainhas pagavam autores de
panegíricos elogiosos, encomendavam quadros que
Sim, a parte com que o grande público e os alunos se podiam melhorar o aspecto do retratado, publicavam
deleitam é a pura detração. Fofoca não é o tema mais sua própria versão da História.
científico, mas é o que mais pega o leigo. Dona
Adriana sorri do além. Sexo, ambiguidades morais, Hoje diríamos que todo governante tem uma
defeitos de caráter: o desfile das personagens é quase assessoria de imprensa que deve dar a versão palatável
um caso clínico. ao grande público.

O romano Suetônio, ao escrever "A vida dos doze Aqui, entramos num pilar importante da fofoca. Ela
Césares", tinha dado um bom pontapé. Tibério precisa criar uma personagem.
ensinava crianças a nadarem e a mordiscarem suas
partes íntimas. Chamava-as "meus peixinhos". O teatro e a literatura ensinam a estrutura da fofoca.
Caligula não precisa de nenhum adjetivo. Cláudio era A personalidade é boa para ser fofocada se for possível
realmente estranho: foi o único imperador do século I a ser transformada em personagem. Uma personagem
gostar só de mulheres. Cada tipo estranho no Império clássica é bem marcada. Ricardo III só consegue ser
Romano... corcunda e ambicioso. Não excede os limites estreitos
dessa moldura. Por isso é notável. Suas marcas são de
A História anedótica, feita de episódios escabrosos e fácil retenção pelo público.
constrangedores, pode gozar de baixa estima na
academia; todavia, é de imenso sucesso fora dos muros O avarento de Molière, o judeu de O Mercador de
da universidade. Veneza shakespeariano, Jezebel na Bíblia: todos são
quase apenas uma coisa e por isso podem ser mal
Mas há obras de análise de panfletos satíricos ou até falados.
de piadas. Porém, para submeter esse objeto-- mosaico
ao método, acabamos eliminando o humor de tudo ou a A personagem-alvo da fofoca deve entrar em um tipo
maldade, submetidas ao discurso acadêmico. que podemos chamar de "ideal"; só assim a luz do meu
olhar (ou a sombra) a pode identificar e transformar
Quando um autor fala do passado, podemos imaginar em foco da minha maledicência. A fofoca é um tipo de
que ele tenha um alvo político indireto: elogiar alguém reflexo no espelho.
do presente. No mundo dos imperadores Trajano,
Adriano e Marco Aurélio, era importante pensar que o O alvo da fofoca deve ser alguém quase
passado tinha sido um horror moral. estereotipado. Se for mau, deve ser muito mau.

As detrações de Suetônio são elogios a imperadores Se for homossexual, deve ser afetado, pois isso está
do século II. Seria a fofoca um serviço político? no estereótipo do senso comum.
O burro será um monumento à burrice. Se for suas notáveis implicações. Laurentino escreve com
grosseiro, as histórias serão quase monolíticas. A gosto e escreve bem. Ele tem narrativa corrente e com
fofoca é, também, uma forma de reter uma verdade, ou o foco de um excelente narrador. Laurentino Gomes
o que desejamos que seja uma verdade. faz uma sólida pesquisa e não rejeita nenhum dos
grandes autores profissionais do tema. Não pretende
Mas voltemos aos historiadores. A detração tem um (creio) ser a palavra mais original da pesquisa em
objetivo. Ela humaniza a personagem, aproxima-a de arquivos, mas pretende (imagino) falar de coisas que
nós. os acadêmicos sabem, mas que ocultam sob o rigor da
linguagem acadêmica pesada, seca e raramente
Júlio César, o romano, Napoleão Bonaparte, o corso: literária. Ele quer que o leitor fique interessado, que
4
ambos jogaram com habilidades sexuais em diversos crie o prazer por grandes temas e datas e que chegue
campos para atingir seus objetivos. É o momento em bem e feliz ao fim do livro.
que o gênio da conquista da Gália ou o estratego de
Austerlitz deixam de ser deuses. Até nas descrições Era o momento do bicentenário da Corte, já
físicas estão contidas essas questões. Júlio César era dissemos.
calvo; Napoleão era baixo.
Surge o best-seller "1808 - Como uma rainha louca,
Há um curioso impulso de aproximação estabelecido um príncipe medroso e uma Corte corrupta enganaram
pela fofoca. Contra narrativas que tornam os grandes Napoleão e mudaram a História de Portugal e do
homens quase deuses, os fofoqueiros arrastam os Brasil".
líderes para a lama da humanidade.
O subtítulo diz tudo: é um gancho pessoal, detrator,
A História tradicional, dos grandes mitos nacionais, de amplo apelo público. Imagine-se o rigor do texto de
estimula isso. O professor monótono constrói um uma referência como Raymundo Faoro sobre o mesmo
Duque de Caxias perfeito e modelar? Os alunos, tema.
especialmente brasileiros, querem o outro lado. A
sexualidade do inventor Santos Dumont, os debates Fantasio como seria desenvolvido pelo jurista
sobre a vida privada de Mário de Andrade ou de gaúcho... "1808 - Como o estamento burocrático
Zumbi dos Palmares, a fidelidade da rainha Vitória à lusitano de matriz conceitual weberiana foi
memória do amado Albert: não há setor, pessoa, ressignificado no Brasil interiorizando a metrópole".
período ou momento que não tenha sido alvo direto do Perceberam? O segundo é mais acadêmico e de menor
coro dos detratores. Talvez Dona Adriana tivesse apelo.
razão.
Mas vejam: Laurentino não abandona as grandes
A história postula uma proposta mais sociológica explicações sociológicas, historiográficas ou
hoje. Em vez das grandes personagens, demonstramos econômicas do momento. Há no livro muitos trechos
mais as forças coletivas, econômicas, os grandes de boa narrativa geral sobre questões econômicas. Mas
movimentos sociais ou as formas culturais de definição Laurentino Gomes não escreve para uma banca ou para
do real. Historiadores universitários acham até um uma editora universitária. Ele quer o grande público,
pouco "vulgar" ficar falando de vidas pessoais. Parece aquele que usualmente não compraria um livro de
antigo, menor, mesquinho e indigno da nobre função História do Brasil para leitura de lazer. Ele quer as
de um filho de Clio. rodas de livros dos aeroportos e as listas dos mais
vendidos das grandes revistas. Ele consegue? A
Neste momento curioso, no qual a grande corrente fórmula? Incluir na narrativa o tom do suspense, o
dos historiadores profissionais está afastada da fixação detalhe pessoal e até o folhetinesco. Fazer parecer ao
nos detalhes pessoais, emerge uma bem construída leitor como se estivéssemos numa sala de estar,
narrativa de pessoas (na maioria jornalistas) que faz vizinhos ao Paço Real, e uma pessoa nos dissesse:
um sucesso imenso adicionando o pessoal, o "Sabe o que eu ouvi sobre Carlota Joaquina?" Bem,
anedótico, o irrepetível que está contido... na detração. nossos ouvidos ficariam aguçados. É uma estratégia, e
uma boa estratégia.
Vejamos o exemplo notável, entre tantos, do sucesso
dos livros de Laurentino Gomes. O autor foi triplamente premiado. O primeiro prêmio
foi o imenso sucesso de público, confirmado nas novas
O paranaense Laurentino tem excelente formação e obras com os títulos cronológicos de 1822 e 1889.
produziu obras de imenso alcance de público. Quando Também recebeu o ambicionado prêmio Jabuti. Por
o Brasil debatia os 200 anos da chegada de D. João ao fim, há o prêmio do mau humor acadêmico.
Brasil, houve muitos lançamentos de textos
acadêmicos retratando diversos aspectos da Corte e Nós, das universidades, fazemos livros que,
usualmente, levam anos para esgotar 1.500 ou 3 mil
exemplares. Nosso espaço na mídia é modesto. fofoca talvez seja a mais longa duração da vida
Falamos para nós e nossos pares. Logo, muitos de nós humana.
lançamos um mau humor terrível sobre esse tipo de
sucesso. Como dissemos, a fofoca de personagens reais
apresenta, de forma clara, um objetivo de poder ou de
O azedume da raposa sobre as uvas esconde muitas enfraquecimento dele. Já citamos o rei Henrique IV de
das nossas dores de acadêmicos. Intelectuais, como Castela, apelidado de "o impotente". Quando o rei
todos os seres humanos, cumprem a máxima de Nelson conseguiu uma filha, Joana de Trastâmara, a Corte e os
Rodrigues: perdoamos tudo, menos o sucesso alheio, inimigos deram o apelido maldoso de "beltraneja" à
este continua sendo uma ofensa pessoal. menina. Por quê?
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Na França e nos EUA, a categoria de divulgação Beltrán de La Cueva era amante da rainha, da mulher
histórica não é considerada concorrente, mas de Henrique IV. Como o rei era famoso pela
complementar da busca acadêmica. Sempre achei que incapacidade sexual, chamar sua herdeira de
os dois campos poderiam se beneficiar muito um do beltraneja, filha de Beltrão, não era apenas uma
outro. Os acadêmicos conseguiriam aliar rigor formal a maldade clássica, era um projeto político.
beleza narrativa, como ocorria em grandes do passado:
Sérgio Buarque de Holanda, Marc Bloch e Capistrano Bastarda, Joana não poderia herdar o trono de
de Abreu. Os divulgadores poderiam tentar um rigor Castela, e a outra pretendente, Isabel, a Católica,
menos polarizado ou focado no anedótico. Ambos poderia (como conseguiu) reclamar a Coroa. Fofocas
ganhariam. políticas são mísseis teleguiados.

Há outro campo que mostra a sedução do detalhe e O mesmo pode ser dito de Antonieta no século
do individual: as biografias. XVIII. Atacar a rainha era uma forma de destruir o
poder absoluto de Luís XVI, seu marido.
Os leitores, em geral, gostam mais delas do que dos
recortes amplos. A vida de Maria Antonieta rende mais Talvez por causa de tudo isso os políticos e as
do que História geral da economia francesa do Antigo celebridades precisem, até hoje, cuidar da imagem.
Regime. Sabem que serão julgados por coisas muito objetivas,
como capacidade administrativa. Porém, é necessário
Por quê? Obviamente, porque encontraremos na vida que a mulher de César pareça honesta. O político deve
da última rainha do Absolutismo francês detalhes ter família constituída, aparência agradável, e afastar,
específicos e uma proximidade que os grandes recortes da sua biografia, elementos incômodos. Há antipatia e
não permitem. simpatia do eleitorado a partir de valores tão
anedóticos quanto aqueles que levam o grande público
Ela teria dito mesmo que o povo deveria comer a falar mal das personagens do passado. A arte da
brioche na falta de pão? Teria tido um caso lésbico? política e a detração serão os temas do nosso próximo
Teria seduzido o próprio filho, como a acusaram no capítulo.
tribunal? Teria sido infiel a Luís XVI com um belo
nobre no Trianon? Isso é parte da detração, da fofoca
pura, que um dia teve o objetivo político de atingir CAPÍTULO 2
Antonieta e o Absolutismo, mas que hoje, sem reis de
direito divino, se conserva ainda. Mais de 220 anos POLÍTICA, OU A ARTE DE DESVIAR DA
depois de a rainha ter perdido a cabeça, a detração da DETRAÇÃO
austríaca ainda faz sucesso. O que aprendemos?

Mudou o Antigo Regime. Mudou o Absolutismo. A


França virou uma República. "Um príncipe, em particular um príncipe novo, não pode
praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são
Duas guerras devastaram a Europa. Socialismos, considerados bons, uma vez que, frequentemente, é
obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a
anarquismos, liberalismo, terrorismos, Imperialismo,
caridade, contra a humanidade, contra a religião."
revoluções industriais e internet: tudo virou de pernas
para o ar. O mundo é inteiramente outro. Não temos
Nicolau Maquiavel
mais nada com aquele momento de 1789.

Porém... continuamos os mesmos fofoqueiros


A detração é uma forma de fazer alianças. Ela surge
profundamente interessados na vida da rainha. A
como um recurso para estabelecer jogos de poder.
Tenho de obter informações do outro, especialmente
seus pontos fracos. Tudo fica mais forte e intenso se Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Imaginemos que ele
esse outro é meu adversário. Mas, igualmente, preciso não defenda nem firme pé em questões morais,
saber de meus amigos, de meus vizinhos, do considerando que é candidato a um cargo
condomínio e de tudo: mesmo no campo da confiança administrativo, e não é guardião da vida pessoal de
é preciso estar precavido. Conhecimento é poder, ideia ninguém. Nesse caso, não.
já citada de Francis Bacon. Mesmo assim, o eleitor tem o direito de escolher
Uma campanha eleitoral, num sistema democrático, é alguém com comportamento pessoal similar ao seu. No
um tsunami de vida pessoal arregaçada na tela. Um entanto, impera aqui nossa consciência. Poucas
candidato quase obrigou sua companheira a um pessoas apresentam vida 100% dentro dos altos
aborto? Foi fato-bomba em período recente. Outro padrões morais que exigem dos outros. Vale a ideia de 4
teria usado maconha ou não acreditava em Deus? que a mulher de César deve, ao menos, parecer
Impossível elegê-lo. Um ilibado empresário-candidato honesta, já que o próprio César não era um modelo de
usaria trabalho escravo nas suas fazendas? Outro virtude moral. Quase sempre a reclamação de César
possuiria recursos em ilhas alheias a controle fiscal? E nasce da desconfiança que tem de si próprio.
meu adversário, caro eleitor, você "sabe se ele é O candidato é religioso? Resposta ambígua. Ateísmo
casado? Se tem filhos?" A insinuação é clara. Houve afasta o eleitor mediano, que ainda identifica a falta de
um que realizava cultos de magia negra em casa. crença numa entidade como sinal de um caráter
Soube-se de fonte segura a pior de todas: supositórios duvidoso. Mas ser adepto de uma religião exótica em
de cocaína! Imagine só! relação ao seu eleitorado médio também pode
Não espalhe, mas a carne que você compra enriquece despertar o medo. Ele é fundamentalista? Nesse caso,
seu inimigo político... como dirigirá milhões de outros eleitores que não o
Verdadeiras, falsas, caluniosas, francamente são? Como ele conviverá com a diversidade e com o
construídas para o ataque, pouco resistentes a críticas caráter heterogêneo de um país complexo? A
documentais e investigativas, essas peças de detração informação passa a ser relevante.
lembram um certo clima de faroeste político Os norte-americanos resistiram um pouco ao
marqueteiro: quem disparar mais assalta o banco, ou catolicismo de J. F. Kennedy num país dirigido, até
seja, leva o cargo. Novidade? Infelizmente, não. então, apenas por protestantes. Ele teve de declarar que
É importante notar que a detração política não é não seguiria as ordens do papa para comandar os EUA.
munição exclusiva dos profissionais da área. Ela Foi o único presidente católico daquele país e o quarto
funciona porque é moeda franca entre os eleitores, ocupante da Casa Branca a ser assassinado.
entre gente comum, alguém como eu, que escrevo, e Os brasileiros não chegaram a temer o luteranismo
você, que lê. É o grande público comum que se do presidente Ernesto Geisel, até porque esse, talvez,
constitui no solo ávido de informações, de dados fosse o menor dos medos que poderíamos ter diante do
pessoais. general-presidente. Em 1974, quando Geisel assumiu o
É uma dialética extensa. Tem sentido eu saber se o poder, não existia uma eleição aberta, e a escolha do
candidato X mantém um caso extraconjugal? Isso presidente atendia a demandas corporativas das Forças
diminuiria a força da sua proposta sobre política fiscal? Armadas e das forças civis de apoio à ditadura, não ao
A amante seria uma prova de que ele não compreende gosto médio da população.
os meandros dos Brics ou do Mercosul? Eu afirmei que é complexo examinar este ponto: a
A infidelidade viria de mãos dadas com uma mancha detração política.
insuperável na competência? Sim e não. Primeiro: é complexo porque quem se entrega a uma
Sim, se o candidato se apresentar como modelo de vida pública, por definição, terá de conviver com uma
ética e de família tradicional e conservadora. Sim, se a linha elástica de separação entre o que é de todos e o
defesa da estrutura monogâmica fizer parte do seu que é privado. Qual informação seria relevante para eu
discurso. julgar um político? O que seria indevassável?
Nesse caso, uma amante desconstrói o discurso dele e É um campo delicado. Europeus tendem a considerar
mostra que ele mente ou, no mínimo, é hipócrita. Essa menos a vida privada na escolha de candidatos. A
falsidade pode ser isolada ou estrutural. Porém, em homossexualidade de um prefeito de Paris ou a filha
todo caso, a detração tem sentido: se ele engana as fora do casamento de um presidente francês não
pessoas mais próximas, a sua família, a quem ele parecem ter abalado a campanha. Cidadãos dos EUA
conhece e com quem convive, imagine com você, caro (e nós, brasileiros) tendemos a dar grande relevância
leitor. Nesse caso, de forma enfática, sim. ao foro íntimo. No caso dos Estados Unidos, ter uma
família constituída e ser religioso são elementos
O não é mais complexo. Suponha que ele não essenciais. A virtude pública começa pela sacra
acredite na ideia de monogamia e que sua esposa esteja trindade: mulher/filhos/fé.
inteiramente informada de sua vida paralela. Suponha
que ambos tenham um acordo aberto, ao estilo Jean- Deslizes no passado? Podem existir, se confessados e
superados. Foi o caso do presidente dos EUA George
Bush filho, ex-alcoólatra que se dizia renascido em Naquele clima de medo, insegurança e total opressão
Cristo (Reborn In Christ), expressão para alguém que sobre a liberdade política, uma crítica pública a uma
reencontrou o caminho de uma fé intensa e existencial autoridade colonial poderia significar cadeia e morte.
e abandonou os vícios. O defeito virou virtude: Bush Nesse ambiente, surge a personagem literária
saiu do "pecado" pelas mãos da sua fé, e isso o tornou Fanfarrão Minésio. Cartas fictícias dirigidas de um
mais especial aos olhos do eleitorado conservador e suposto Chile e criticando um governador local, as
religioso. "Cartas chilenas" eram uma forma de detração possível
Podemos mudar de ideia, e isso pode ser mostra de num mundo de censura. Um grupo de letrados, como
uma mente crítica e inquieta. Também pode ser mostra Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga,
clara de oportunismo. O conservador Carlos Lacerda, dialogam e criticam a direção de Vila Rica, da
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político que tanto colaborou para o desfecho do golpe capitania e de toda a Colônia. Os pseudônimos: Tomás
militar de 1964, tinha sido simpatizante do marxismo é Critilo, que escreve a Cláudio, Doroteu.
na juventude. O liberal D. Hélder Câmara, arcebispo Quem seria o alvo da detração? Pouca dúvida restava
identificado com posições progressistas, flertou com o na época e hoje: era o governador Luís da Cunha
integralismo no início da sua vida. Sim, podemos Meneses... Sua descrição foi reconhecida por todos de
sempre mudar de opinião. Se pretendemos um cargo Vila Rica, mesmo sendo um governador imaginário do
público, seria prudente demonstrar o percurso dessa Chile:
mudança e seu itinerário em nós. É sempre mais sábio  
antecipar-se aos detratores. Contar antes e contar do " Tem pesado semblante, a cor é baça,
seu jeito ajuda a controlar a versão. o corpo de estatura um tanto esbelta,
A detração busca a transparência, nem sempre pelos feições compridas e olhadura feia;
bons caminhos, em meio ao esforço titânico de tem grossas sobrancelhas, testa curta,
opacidade dos políticos. Controlar dados da sua vida nariz direito e grande, fala pouco
pessoal é o grande esforço do homem público. em rouco, baixo som de mau falsete;
Pessoalmente, confesso que, se um homem se sem ser velho, já tem cabelo ruço,
apresentasse como modelo de moral, tendo casado e cobre este defeito e fria calva
virgem com a primeira namorada, religioso fervoroso, à força de polvilho que lhe deita.
pai de quatro filhos lindos e disciplinados, jamais Ainda me parece que o estou vendo
tendo levado uma multa, sua voz desconhecendo no gordo rocinante escarranchado,
qualquer alteração no trânsito ou no jogo de futebol, as longas calças pelo embigo atadas,
seu olhar imune à tentação da jovem que passa ao seu amarelo colete, e sobre tudo
lado tendo também jamais transposto o limite do vestida uma vermelha e justa farda."
 
álcool... eu nunca votaria nele. Um político vai
governar homens, não anjos. Bem, mesmo os anjos já A rápida ascensão do governador e da família e o
tiveram uma rebelião expressiva. No entanto, não enriquecimento em meio à corrupção foram também
preciso pensar nesse candidato: ele não existe. alvo do texto:
 
No Brasil, a cena familiar é importante, bem como a
religiosa, mas, aparentemente, um pouco menos do que "Preza-se de fidalgo e não se lembra
nos Estados Unidos. Porém, para evitar o escândalo, a Que seu pai foi um pobre, que vivia
exigência é a clássica do vitorianismo: vale o que De cobrar dos contratos os dinheiros,
aparece em público. O presidente Juscelino Kubitschek De que ficou devendo grandes somas,
teve amante; entretanto, só aparecia com dona Sara nos Sinal de que ele foi um bom velhaco.
bailes oficiais. Getúlio Vargas e sua esposa nem O filho, Doroteu, tomou-lhe as manhas:
compartilhavam mais o quarto, mas eram um casal Era um triste pingante, que só tinha
oficial. O seu pequeno soldo; agora veio
Para inspetor das obras e já ronca,
A esposa é a cena pública, e o público exige a
Já empresta dinheiros, já tem casas,
sagrada família formal. A detração, nesse caso, parece
Já tem trastes de custo e ricos móveis;"
nascer de um conservadorismo difuso, uma espécie de  
cenografia: você é o que diz ser e o que aparece. Entre
O Fanfarrão é acusado de um comportamento teatral
ser e parecer, vale o velho conselho de Maquiavel:
e maquiavélico. Chora ao rezar, transmite em público a
pareça! Aliás, invocando o florentino, ser plenamente
pura piedade. Na vida política e pessoal escapa de toda
fiel à sua palavra pode atrapalhar muito a vida de um
virtude. Tomás o chama de Nero, que no início fez um
governante. Todo o resto pertence ao campo da
bom governo e depois deixou claros os desmandos. Há
maledicência.
insinuações sobre orgias sexuais no palácio. Nada
Voltemos um pouco ao século XVIII, capitania das escapa à detração do poeta árcade.
Minas Gerais.
Na avaliação da Inconfidência Mineira, de 1789, os
ventos da liberdade sibilavam em reuniões secretas.
Vinho do Porto, noites frias nas Gerais... Havia debates Os cardeais entram na Capela Sistina. Estão se
e, óbvio, estes incluíam uma boa dose de detração. preparando para eleger o representante da última
Marília de Dirceu convivia com as mulatas teocracia do planeta: a Igreja Católica. Procedimento
apaniguadas que os inconfidentes, em maior ou menor básico: os prelados fazem voto de silêncio absoluto
grau, sustentavam. Segredos de polichinelo de uma sobre tudo o que ocorrer sob os lindos afrescos de
moral ambígua do XVIII e de todos os tempos. Michelangelo.
Tudo o que estourou em Vila Rica e, depois, chegou O juramento só aumenta nossa curiosidade. São
ao Rio de Janeiro foi um processo de fofoca: Quem publicadas reportagens minuciosas sobre o que cada
viu? Quem falou com quem? Quem estava com quem? cardeal recebeu de voto em cada eleição. São feitos
O que fulano soube de sicrano? A Devassa, a peça de filmes detalhados sobre as eleições. O público recebe 4
inquérito da máquina repressiva colonial, é infográficos nos jornais sobre o total de votos de cada
"juridiquês" sobre a vida alheia. Emerge nela uma um.
personagem importante, mas boquirrota: Tiradentes. Qual a fonte? Provavelmente nenhuma; são peças
Joaquim José da Silva Xavier falava em alto e bom ficcionais. Mas é exatamente o segredo bem guardado
tom que havia uma sedição em curso. Bebia e falava. dos príncipes da Igreja que estimula aceitarmos como
Tornou-se convicto das ideias e delas falava verdadeiras informações que são, no máximo,
abertamente. Porém, preso, não entrou no usual suposições. Ou haveria um cardeal que, após uma
"denuncismo" dos inconfidentes. Não denunciou e não pasta carbonara e uma garrafa de bom vinho, soltaria a
negociou. língua? Não sabemos, e isso é perfeito para a fofoca.
D. Maria I mandou matar alguém que tinha falado Quando queremos segredos e eles não existem,
muito quando livre e nada quando preso. Tiradentes basta... inventá-los. Uma das mais famosas peças de
virou herói. Teve a língua solta pelo caminho do ouro calúnia da história, o livro "Os protocolos dos sábios
e calou-se no final. Seus colegas mais cultos e ricos, de Sião", é criação de uma corrente antissemita que
quase todos, fizeram o contrário: foram discretos na inventa, costura e constrói uma lógica de dominação
sedição e falantes no processo. judaica sobre o mundo. Umberto Eco ironizou essa
Joaquim Silvério dos Reis foi o traidor. Falou antes fantasia com outra invenção, o livro "O cemitério de
de todos, com esperança de ter sua dívida com a Coroa Praga".
perdoada. É o traidor, o modelo de Judas, o que Nesse caso, estamos diante de uma detração trágica.
aprendemos a odiar. Joaquim Silvério dos Reis é o A calúnia criada pelos Protocolos foi recebida como
traidor porque falou antes. Quase todos os verdade no mundo do preconceito. Esse tipo de
inconfidentes heróis, que hoje estão em prédio maldade e de fofoca, já foi dito, abriria as portas de
histórico em Ouro Preto como heróis, falaram depois. Auschwitz. Integrando a maldade humana, a detração
Tiradentes, pelo que sabemos, não denunciou também pode ser fatal. A calúnia mata.
ninguém. É o herói maior. A história da traição e do
heroísmo pode ser uma história do 'timing' da fofoca. A fofoca pode ser uma defesa contra a autoridade. Já
indicamos isso com o Fanfarrão Minésio. A caricatura
Sedições são terreno fértil da detração. Se derem bem-feita do governante desnuda o poder. Os romanos
certo, a fofoca foi bem guardada até o fim. Se falaram escolheram uma estátua com orifício na boca para
antes, o movimento fracassa pela falta de discrição. A colocar panfletos contra autoridades da Cidade Eterna,
invasão da Baía dos Porcos em Cuba, em 1961, falhou especialmente o papa. A estátua, próxima da Praça
porque ninguém guardou segredo. A invasão da Navona, chamava-se pasquino, e dela deriva a palavra
Normandia, em 1944, parece ter sido eficaz porque, pasquim, jornal satírico. Era a mais célebre das muitas
entre outros fatores, foi um segredo mais bem "statue parlanti" (estátuas falantes) de Roma.
guardado. Seria parte do êxito estratégico a capacidade
de manter segredo? O pasquim pode ser uma resistência democrática. É o
recurso contra sistemas opressivos. Falar mal, sendo
O segredo é o espaço cercado da fofoca. Fato-bomba coerente ou não com a verdade, é uma arma contra
bem guardado tem imenso poder. Maçons, templários, quem não permite nenhuma oposição pública. A fofoca
jesuítas, judeus: cada grupo já foi atacado por possuir é corrosiva. Rir de quem se apresenta acima do bem e
um segredo que não é compartilhado. Parte da teoria do mal, fazer detração dos poderes que nos governam:
conspiratória sobre esses grupos nasce de uma vontade eis aí uma sólida tradição.
de saber o que eles sabem. Seriam bem-informados?
Conheceriam coisas que não sabemos? Também há, aqui, uma das fraquezas da detração.
Um tirano é ruim porque é um tirano. Seu defeito está
Eles vivem em mundos onde a informação na tirania, no exercício autoritário do cargo. A detração
privilegiada é moeda corrente. Seria o preconceito não trabalha com esse conceito em si. Não é uma
construído contra esses grupos parte de um esforço de reflexão teórica política. Não critica a desigualdade
ser informado, de não ficar "de fora" dos fatos mais entre os poderes ou o descumprimento constitucional.
interessantes? A detração não traz um fato entre sussurros e diz:
"Você soube que o presidente não respeitou um habeas
corpus?"... A maneira de atacar o poder é falar das colaborar sexualmente para a longa dificuldade do
inconsistências pessoais. Ele quer mandar no país, mas Delfim, do seu marido, em consumar o casamento.
dizem que sua esposa é quem manda... Ele é Sendo estrangeira e de uma família que lutou com
autoritário, mas impotente do ponto de vista sexual? frequência contra a França, ela era considerada quase
Ela não conseguiu manter o marido junto a si e quer espiã.
manter o país unido? A detração, além de não teórica, Maria Antonieta foi tragada pelos acontecimentos
é, em geral, conservadora. A comédia quase sempre é revolucionários. Levada a julgamento, teve de ouvir
conservadora. Reacionários quase nunca gostam do uma lista longa de acusações. Teria conspirado contra
humor. Umberto Eco, no célebre "O nome da rosa", a França (forças austríacas estavam lutando contra a
cria um erudito e azedo beneditino de nome Jorge, Revolução), teria sido amante do oficial sueco Hans 4
disposto a matar e destruir em nome do humor que Axel von Fersen, teria tido intimidades com damas de
abominava. Mas, curiosamente, o humor ataca a companhia, teria feito gastos extravagantes em plena
"prática desviante" do ponto de vista social e moral. Os penúria do Tesouro e, por fim - a única acusação que a
temas da detração são as infrações heteronormativas, fez gritar no Tribunal -, teria tido um ato incestuoso
por exemplo. São as quebras da família patriarcal e com seu filho, o jovem Luís.
clássica. São ataques ao ideal apolíneo de beleza. Quando Antonieta ouviu a acusação de incesto,
Nunca alguém chamou você a um canto e, com voz pronunciou-se energicamente e apelou às mães
reduzida e sorriso maroto, disse: "Você soube que ela é presentes, na maioria mulheres simples e próximas aos
heterossexual, linda, magra, inteligente, fiel ao marido, jacobinos. A identidade das mulheres mães falou mais
religiosa e feliz ao extremo?". E o ouvinte comenta: alto do que suas preferências políticas. Ela foi
"Não me diga, conte mais, conte mais"... Esse diálogo aplaudida pelas mulheres. Foi um breve e final triunfo
improvável demonstra uma veia reacionária da de Antonieta. Até a fofoca apresenta limites.
detração, mesmo quando a serviço de um fim
revolucionário. Jorge, o azedo religioso, deveria rir As historietas sobre a rainha francesa circulavam
mais se percebesse as ligações claras entre sua falta de havia muito tempo, acompanhadas, muitas vezes, de
humor e o humor em si. pinturas caricatas e sexualmente ofensivas. A mais
famosa, uma frase nunca dita pela rainha, diz respeito
Importante ressaltar sempre: o humor é uma poderosa a ter indicado brioches para o povo que não tinha pão.
arma política. Humoristas sempre foram alvo de Seria como indicar um carro de luxo para quem não
repressão dos ditadores. O humor é uma forma intensa está contente com o transporte público. Tornou-se sua
de participação política, embora, com frequência, ande frase mais conhecida, e, mesmo assim, nunca foi
de mãos dadas com formas conservadoras e até possível provar que tenha sido proferida por ela.
reacionárias. Nos seus alvos usuais, o humor ataca o
nordestino, a mulher loira, o português imigrante, o Maria Antonieta foi guilhotinada por herdar a raiva e
gay, o negro, o pobre e o judeu. Nesses momentos, o ressentimento de séculos.
quase sempre fascistas e humoristas poderiam beber Não foi, nem de longe, a pior rainha francesa nem
algo num bar; a amizade seria quase instantânea. notavelmente mais alienada do que suas antecessoras.
Rindo, podemos derrubar ditadores. Infelizmente, Não era esperado isso de uma rainha. Era boa mãe,
rindo também podemos abrir os portões terríveis do queria que os filhos tivessem contato com pessoas
Holocausto. simples, renunciou a alguns luxos para amparar
Entre sorrisos escancarados ou discretos, fazemos pobres, mas era o símbolo de um sistema concentrado,
nossas detrações. injusto e terrivelmente violento. Foi executada por
isso, mas também pelas fofocas. Maria Antonieta
Cortes e detração perdeu sua cabeça, em parte, pelo que as outras
O ambiente por excelência da detração é a Corte. Lá cabeças falavam dela. É, provavelmente, a mais
os nobres vivem em torno do rei, em geral ociosos, e famosa vítima da fofoca. Era uma mulher comum,
correm fofocas intermináveis. A vida na Corte é uma como a definiu Stefan Zweig.
vida de conversas, chás, passeios e... fofocas. Mas a mulher mediana era rainha e estava no topo de
Talvez o maior exemplo de alvo de fofocas tenha um sistema injusto que ruía no fim do século XVIII.
sido a já citada Maria Antonieta. Também é da França o texto que mais analisou a
A jovem princesa austríaca já foi recebida em detração política. Trata-se do "Breviário dos políticos",
1
Versalhes com uma frase dita entre murmúrios: que ela do cardeal Mazarin, regente do reino. O livro é uma
era "l'Autrichienne". A palavra contém um jogo análise astuciosa da vida na Corte e dos meios
francês: significa austríaca, mas, dita separada, políticos da França do século XVII. Cinismo,
significa a cadela (chienne) da Áustria. Quantos dissimulação, teatralidade política: uma sequência de
risinhos não devem ter sido difundidos pela fala entre realismo sem nenhuma concessão à bondade ou à
leques que soltou essa piadinha infame! ética.
A vida na Corte não foi muito mais fácil depois do
início ruim. Maria Antonieta era acusada de não
O cardeal recomenda que sejam ouvidos empregados autônomo e a recompensa do bem é o bem em si. Com
e pajens, mas que evitemos "fazer uso imediato dos efeito, essa é uma abstração mais difícil de ser
segredos que eles te revelarem"2. observada pela maioria.
O cardeal aconselha a contar uma história diferente a Lógico que esse caminho não resume a moral: as
cada pessoa, com variações, mas pedindo segredo. propostas religiosas vão muito além disso. Mas o
Assim, a história que se espalhar denunciará quem é o argumento da observação divina é forte e funcional.
fofoqueiro. Fazer o bem pelo bem? Ser bom porque é bom?
Do início ao fim, o prelado maquiavélico fala da Estabelecer a virtude pela virtude em si? Todas
fofoca como um instrumento de controle e dominação perguntas fáceis de serem respondidas, mas dificílimas
política. Passados mais de 300 anos, a obra continua de serem vividas. 4
com uma imensa atualidade. Temos livre-arbítrio. É uma ideia sólida em muitas
Tal como a inveja, a detração é um erro que não se religiões. Escolher a luz ou a sombra é uma decisão
assume. Ninguém afirma que quer falar mal porque pessoal e intransferível. No entanto, é importante notar
gosta do veneno da conversa corrosiva. A detração que escolher A implica felicidade futura, o Paraíso e
política se reveste de vontade piedosa e de cidadania. tudo o que se possa imaginar de bom. Escolher B é o
Falo mal porque, afinal, quero o melhor para meu país. contrário: morte, choro e ranger de dentes. Aqui
Precisamos desmascarar este deputado, aquela prefeita, tropeça parte do livre-arbítrio, pois a escolha fica
este governador, aquela presidenta. Por quê? Óbvio: induzida. Não existe livre concorrência entre os dois
porque ele mente e desejamos alguém probo a nos caminhos, já que os resultados seriam opostos. Se
representar. O verniz da virtude é sempre muito frágil, fossem dois restaurantes, a propaganda diria: venha
mas indispensável. para o Restaurante Éden, onde o serviço é perfeito, a
Quase sempre, como a inveja, a detração da pessoa comida é gratuita e maravilhosa, e tudo será de uma
pública é uma seta envenenada dirigida a um ídolo. O qualidade extrema; ou venha para o Restaurante
sucesso deve ser punido. O poder é intolerável. A Inferno, onde a intoxicação alimentar é garantida, os
beleza... um insulto pessoal. Felicidade e dinheiro? preços são absurdos e os garçons, agressivos. Hum...
Insuportáveis! O que resta como arma é o falatório, que dúvida no meu livre-arbítrio... Não sei se vou ao
uma espécie de homenagem de vetor trocado. Mas este primeiro ou ao segundo. Quem pode me ajudar?
político não é tudo aquilo que dizem dele? Preciso ler muito e consultar muitas avaliações para
Provavelmente sim e muito mais. É por isso que nós tomar essa decisão difícil.
merecemos todos. O leitor notou, nessa ironia, os limites do livre-
Um debate político contemporâneo, como temos arbítrio.
assistido, não é um confronto de ideias ou propostas. Há liberdade? Claro. Na escolha em si. Sou livre
Um debate político hoje é um rosário de ataques para ser bom ou ser mau. Sou livre para ser um ladrão
pessoais. Mais uma vez: seria esse um defeito da corrupto na política e desviar merenda de crianças
política? Acho que sim, mas é também um defeito do carentes para comprar meu carro importado. A
eleitor. liberdade é forte; todavia, existe no ato, não no
CAPÍTULO 3 resultado. Para um religioso, o destino final é oposto
DEUS TE VÊ para cada escolha. A ideia é meio estranha, mas, e se
todos fossem para o Céu? Políticos corruptos e almas
"O que você não viu com os olhos, não testemunhe com abnegadas que lutaram honestamente? Então teríamos,
a boca." Provérbio judaico de verdade, livre-arbítrio, mas perderíamos o efeito de
controle da moral. Essa é uma típica pergunta do
Cave, cave, Deus videt. Cuidado!, cuidado!, Deus mundo contemporâneo, incompreensível para ouvidos
te vê! antigos.
A advertência está numa pintura maravilhosa de H. As religiões morais sempre lutaram para reprimir a
Bosch, no Museu do Prado, em Madri. Ilustra os sete detração. Deus condena levantar falso testemunho. É
pecados capitais e mostra a observância divina sobre um mandamento básico de decálogo.
nossas falhas. Representa uma visão de Deus e de Tomemos um exemplo clássico. José do Egito é
moral típica daquela época. Devo me comportar bem vítima desse tipo de calúnia. A mulher de Potifar (ou
porque existe o testemunho permanente divino e Putifar) o acusa de sedução - sem base, claro. Ela foi
porque dele deriva uma punição. Não sou, exatamente, rejeitada por José e, na sua dor, inventou que ele a
um observador da moral pelo seu valor em si, uma vez seduzira. A história está no capítulo 39 do Gênesis, o
que sou um prisioneiro com um guarda na minha primeiro livro da Torá judaica. A Bíblia não diz o
frente. Talvez esse seja o argumento mais fácil de ser nome dessa mulher, porém a tradição a denominava
ensinado. Ande na trilha certa, ou você será punido na Zuleica. Preterida, ela ataca o jovem José e o denuncia.
errada e premiado na outra. É abstrato demais querer a A questão é grave: José trabalha na casa, e isso, no
compreensão de que a virtude deveria ser um valor
mundo antigo, daria mais do que uma demissão por um deles. José não é um vidente como a maioria dos
justa causa. videntes, que anunciam tudo o que o interessado/
José foi preso. Não deu certo. José conta com a pagante deseja ouvir. José tem compromisso com a
proteção de Deus. O carcereiro percebe a habilidade antidetração. É sua retidão de fala e objetividade que o
administrativa do hebreu. Ele é sábio e operoso. Os tornam uma personagem notável.
detidos são confiados a José, que se torna, na prática, Mas, já dissemos e insistiremos, as personagens
um subadministrador do cárcere. bíblicas são mais ricas do que isso.
A roda da vítima inocente gira. José tem como A história de José prossegue e, já no papel de
companheiros de cela um copeiro e um padeiro do administrador-geral do Egito, ele recebe os que o
próprio faraó, presos por terem desagradado ao rei do perseguiram no passado: seus irmãos. Aqui a 4
Egito. Os dois ex-servos reais apresentam um sonho personagem José fica com mais matizes. Ele introduz
curioso, e José, habilíssimo na interpretação, se oferece artimanhas, ou, se preferirem, mentiras. Acusa os
para decifrá-lo. Na Bíblia, os sonhos podem ser irmãos de serem espiões sabendo que não o são, exige
mensagens mandadas do alto. Bem mais tarde, outro a presença de Benjamin, o mais novo, como um
famoso José, o pai adotivo de Jesus, saberá, por meio "resgate", introduz uma taça de prata na bagagem do
de sonhos, que Maria é inocente ou que deve fugir para irmão para acusá-los de roubo... Aí é que volto a
o Egito. destacar a riqueza das personagens: José está
O sonho dos servos implica dois caminhos caluniando exatamente como foi caluniado. Se a
distintos: o copeiro será reabilitado; o padeiro, mulher de Potifar estava ressentida por não ter sido
enforcado. Cumpridos três dias, isso acontece a ambos. amada, José está ressentido porque seus irmãos
José pede ao copeiro que interceda por ele junto ao tentaram matá-lo. A partir de suas dores pessoais,
faraó. Ele está na cadeia por um comentário maldoso. ambos tramaram uma vingança.
Deseja que um comentário bondoso o liberte. Porém, Zuleica é de menor projeção moral do que José. Ela
narra o Gênesis, o copeiro esqueceu-se dessa foi até o fim com a calúnia. José retrocede ao final e
intermediação. Tendo sido perdoado, nada fez a favor perdoa seus irmãos agressores. Mas nosso herói bíblico
de José. tem, antes do perdão, uma chance de demonstrar que a
Um novo sonho duplo do faraó traz ao copeiro a detração sempre tem lugar no jogo político e pessoal.
memória do hábil intérprete. O copeiro esquecido cita O mundo volta a girar. Os hebreus foram trazidos
José ao rei. O senhor do Nilo o chama do cárcere, e ao Egito e prosperaram. Foram escravizados
José lança luz sobre o sonho: as vacas e as espigas e      libertados por Moisés. Os descendentes de José do
sonhadas anunciavam sete anos de fartura seguidos de Egito, já libertos, também murmuraram. Essa é uma
sete anos de escassez. Mais: José sugere que um expressão muito bíblica. Fugiram de 400 anos de
homem sábio recolha a quinta parte da produção no escravidão no Nilo e chegaram ao deserto do Sinai.
septênio abundante, para poder ter reservas no período Fome, sede e medo: foram essas as bases dos
de fome. A habilidade de José, sua convicção e o resmungos. A liberdade foi atingida, mas não a
caráter franco agradaram ao faraó. O homem sábio que satisfação do corpo. Almas livres e corpos famintos.
o faraó indica é o próprio José. Ele ganha anel, colar, Reclama-se da falta do peixe, das cebolas, do alho, dos
roupa e carro com cavalos. Ganha até esposa. Ele se pepinos e dos melões (Números 11 , 5). Murmuram e
torna um "primeiro-ministro" que fala e age em nome falam mal: é uma detração coletiva. Deus oferece a
do faraó e inicia o projeto de recolhimento da Terra Prometida e a eternidade, mas o povo chora
abundância. pelas cebolas deixadas!
A lição da Bíblia apresenta muitas coisas a De novo, a massa reclama: Moisés subiu ao monte
concluir. Deus, como diz no livro de Jó, age de forma há tanto tempo! Será que está vivo? Alguns dizem que
misteriosa e pode usar o gesto ruim para dele obter o não. Teria Deus libertado o povo para matá-lo no
bem. José foi caluniado. Sofreu fofoca injusta de uma deserto? A fofoca corre solta no acampamento
mulher ressentida com sua recusa. Dessa detração israelita. Parece um vento sobre um trigal: ondula,
injusta, José vai para a masmorra. Está criado o fato cresce e se espalha. Desse murmúrio, resultará uma
estranho (por que sofrem os bons?) de que Jó tanto conspiração. O povo fez um bezerro de ouro e foi
trata. Do fato estranho, Deus extrai novos fatos e leva à severamente punido. Da detração, surgiu a idolatria, e
exaltação de José do Egito. Juntamente com o futuro desta, um castigo para toda uma geração.
rei Salomão, José é exemplo de administração eficaz. Há, aqui, um aspecto pouco explorado da detração.
Colocam-se aqui os modelos morais. A mulher de A Bíblia não diz, mas, como em todas as histórias
Potifar mente, calunia, usa da detração para sanar a dor similares que vemos, alguém deve ter dito: eu tenho
de ter sido rejeitada. José, inocente, diz sempre a um primo que viu o corpo de Moisés. Em toda fofoca
verdade. Diz a verdade ao amo, diz a verdade aos alguém tem um parente/amigo que comprova isso.
carcereiros, diz a verdade ao copeiro e ao padeiro, A idolatria grave, que foi duramente punida por
mesmo que essa verdade implique prever a morte de Deus, mudou o rumo da peregrinação do povo hebreu
no Sinai. Mas pouca gente destaca que ela nasceu de Estranhei essa resistência lógica ao fato concreto.
pequenas e coletivas detrações. O bezerro é Levei anos para perceber que o ataque à rede talvez
consequência do medo, da covardia diante do novo, da fosse o ataque a um sucesso, ou a uma popularidade,
zona de conforto que o Egito representava. Mas é ou até à nossa alegria naquela noite. Alguma dor
também fruto da fofoca. interna provocara o ataque. A realidade jamais seria
O mais curioso na história narrada no Êxodo e no suficiente para superar esse vazio.
livro dos Números é que a peregrinação do povo Há as detrações não registradas na Bíblia, mas bem
naquela península foi povoada de milagres e fáceis de supor. É o caso claro de Jezebel (ou Jezabel),
interferências divinas. uma das vilas mais famosas da Bíblia (I Reis).
Deus lançou as pragas antes da fuga, abriu o mar Sabemos que ela convidava sacerdotes de Baal (o deus 4
Vermelho, guiava o povo com colunas de fogo, fazia o errado) para sua mesa, que perseguia os justos de Deus
Sinai tremer, fez surgir maná e codornizes do nada. O e que seduziu o rei de Israel, Acab.
mais cético dos céticos estaria convencido. Com um Nada é dito do murmúrio popular, das insinuações
décimo desses milagres estrondosos, todos os ateus do maldosas, inclusive sobre sua beleza. Sim, porque uma
mundo contemporâneo cairiam de joelhos. Só um cego rainha estrangeira, da sofisticada Fenícia, deveria ter
não veria a interferência direta de Deus na história do despertado muita fofoca na modesta comunidade
povo. israelita de então. Bonita, estrangeira e desviando o rei
Aqui uma lição bíblica importante. Os sinais são do caminho reto? Se hoje as primeiras-damas, tão mais
muitos. Podemos chamá-los, no mundo atual, de discretas (em geral), já são alvo de intensa fofoca,
provas. Mesmo assim, as fofocas continuam ao longo imagine-se naquela época. Bela e sedutora, sofisticada
dos quarenta anos no deserto. Em outras palavras, para e pagã? Coisas demais. Ela deveria ser o tema
o insatisfeito e fofoqueiro, a realidade empírica, aquilo preferido dos lares do povo eleito.
que pode ser visto e testado, é irrelevante. A realidade A fofoca anda de mãos dadas com a cobiça e a
não é a fonte da fofoca ou do desmentido dela. A inveja. Nosso interesse pelas celebridades indica isso.
fofoca nasce de dores que não são o objeto direto do Ela é jovem, faz sucesso no cinema e é rica? Moldura
tema. As dores são do fofoqueiro, do detrator. Esse ser perfeita para eu pintar o quadro da detração.
fala mal não porque teria visto algo ou sabe de algo, Ha outro "caso quente" que deve ter animado ceias
mas porque tem dores e medos que o levam a falar. familiares em Jerusalém. O velho rei Davi tem muitas
Mesmo tendo visto algo concreto (o que é possível), esposas. No entanto, idoso, sente muito frio à noite.
ele espalha o que viu porque seu foco é um ataque que Seus auxiliares diretos procuram uma jovem para
não tem por meta, exatamente, falar mal do outro, mas "aquecer seu leito". A virgem era Abisag ou Abisague
diminuir uma dor própria sua. (I Reis, 1), mas o rei não "a conheceu", significando
Na linguagem atual, o povo hebreu murmurou por que não houve sexo de fato entre eles.
causa da saudade da sua zona de conforto e por não No mundo antigo, não existia o conceito de infância
apresentar o valor tão defendido hoje pelo mundo ou de pessoa menor de idade, como conhecemos hoje.
capitalista: empreendedorismo. Para essa dor, para tal Meninas de nove anos eram dadas em casamento. Mas
medo, nenhum fato ou ideia poderia provocar seria impossível não notar: o velho rei estava com uma
mudança. jovem que poderia ser sua bisneta.
Lembro-me de que estávamos com um grupo de Não chega a ser isso um desejo original - nem
amigos rindo alto numa rede de fast-food. Um deles, o naquela época, nem hoje. No fundo, é um arquétipo,
mais azedo, lançou um anúncio terrível: este descrito no polêmico e genial texto de Gabriel Garcia
hambúrguer é feito de carne de minhoca. Depois, deu Márquez "Memória de minhas putas tristes". Na obra
os detalhes usuais: ele tinha visto, alguém tinha falado, do colombiano, um senhor nonagenário deseja uma
etc., etc. virgem adolescente. História bem narrada e incômoda,
Uns pararam de comer, outros ignoraram. porque roça o horror da pedofilia.
Fui atrás de algumas informações. A primeira era o A primeira frase tem a força da narrativa do
preço da minhoca vendida para adubar a terra. Era bem colombiano: "No ano que completei noventa anos, quis
alto. presentear-me com uma noite de amor louco com uma
As minhocas vendidas a quilo eram um produto de adolescente virgem".
luxo e, provavelmente, ficavam inviáveis A detração ocorre entre homens, que gostariam de
economicamente como matéria-prima em escala fazer o mesmo e podem ter de disfarçar isso com a
industrial. Se o objetivo era baratear a produção, a censura moral. Sorriam, ao saber da fofoca que o rei
minhoca era uma escolha insensata. Levei os dados ao não dava mais conta de uma jovem, que não a
detrator. Ele contestou e reafirmou aquilo de que tinha conhecia biblicamente. Condenar moralmente que
certeza: um amigo de um primo do vizinho tinha visto alguém faça o que desejaríamos fazer, caso
tudo. pudéssemos, é um recurso tradicional da nossa espécie.
A fofoca pode ter corrido livremente entre que estão falando de mim? Nada mais humano: quero
mulheres: "Este homem velho não se dá ao respeito". saber o que pensam de mim nesta família, nesta
Este homem é velho, rico e rei. Morrerá logo. Qual empresa, neste condomínio.
teria sido melhor marido? Por que ele não me Situação das mais divididas: o que eu mais quero e
escolheu? De novo: a detração é uma maneira rica para aquilo que mais me assusta é saber o que os outros
revelar meus anseios e meus limites. Todos falam mal falam de mim. Jesus tem seu lado humano e pergunta
do que os assusta e do que desejam. diretamente: "Quem diz a multidão que eu sou?"
Tirando, é claro, você, leitor, e eu, incapazes de (Lucas 9, 18). "E, respondendo, eles disseram: João, o
algo assim. Mas sabe aquela sua vizinha? E lá vamos Batista; outros, Elias; e outros, que um dos antigos
nós... profetas ressuscitou" (Lucas 9, 19). 4
Todo o chamado Antigo Testamento está povoado A pergunta é muito humana. Temos imensa
dessas histórias. Quando desejou sintetizar o episódio curiosidade em saber a opinião alheia. Adoraríamos,
do sacrifício de Isaac, no Génesis, com o final da todos, ter acesso às conversas sobre nós fora da nossa
Odisseia de Homero, o escritor E. Auerbach destacou presença.
que a linguagem bíblica é tomada pelo implícito e Esse episódio lembra uma pequena experiência
necessita de interpretação. As personagens bíblicas comigo. Há muitos anos, eu coordenava uma
apresentam mais sombras do que as personagens instituição. Uma funcionária veio, chorosa, falar do
homéricas. clima de fofoca que reinava num determinado setor.
Nas sombras aludidas de Auerbach está parte da Reclamação principal dela: soubera que as mais
riqueza das personagens. Mulheres enganando o antigas estavam dizendo coisas terríveis a seu respeito.
marido para conseguirem a bênção da primogenitura; Fiz o que um chefe deve fazer: deixar claro que isso
mulheres entregando sua escrava para o marido sempre ocorria em todos os ambientes e que ela
reproduzir e depois mandando expulsá-la; homens deveria ser superior. "Faça seu trabalho e ignore a
seduzidos por rainhas estrangeiras; e assim por diante. fofoca", aconselhei, paternal. Insisti: dar atenção à
Ao contrário das posteriores histórias de santos fofoca era um mau caminho e atrapalhava a felicidade.
medievais, os homens de Deus do Velho Testamento Ela, ainda chorosa, lançou uma frase dura:
são de uma riqueza e uma contradição assombrosas. - Não é só de mim. Você sabe o que elas falam do
Adão desobedece a Deus, Abraão mente e entrega senhor?
sua esposa como irmã ao faraó; Jacó mente e luta com Meu próprio conselho me obrigou a responder que
a gente celeste; Davi peca com a esposa do soldado eu não queria saber, que isso era irrelevante, etc., etc.
Urias; e assim prosseguem estas histórias tão humanas. Nossa, eu adoraria saber o que elas falavam de mim.
E veja, caro leitor, querida leitora: estamos falando dos Mas, naquela situação, não poderia perguntar sem
heróis, dos ungidos, não dos vilões terríveis, como o desconstruir tudo o que eu dizia como sábia reflexão.
ministro Hamã, do livro de Ester. A curiosidade ainda me queima.
No meio dessas idas e vindas que povoam a rica Numa das passagens finais da sua existência, Jesus
narrativa sagrada, está o espaço dos comentários, da pede segredo a uma mulher que, pela tradição, e não
fofoca, da maledicência e dos murmúrios, expressos ou pelo texto do Evangelho, teria sido prostituta.
insinuados. Aparecendo a Maria Madalena logo após a
Seria possível fazer uma longa narrativa da história ressurreição, diz a ela que não espalhe a notícia. Ela
da detração bíblica. A história da salvação também é a não foi capaz. Correu a contar aos outros. Teria sido
história da fofoca. essa a verdadeira intenção do Messias?
Mas, se quiséssemos destacar a posição-síntese do José Saramago, no Evangelho segundo Jesus
Antigo Testamento contra a detração, deveríamos Cristo, conta que essa era a maior prova do amor de
prestar atenção ao livro da Sabedoria: Jesus por Madalena. Ele tem algo novo e impactante
"Guardai-vos, pois, do murmúrio inútil, poupai à para contar: ressuscitei!
vossa língua a maledicência; não há frase furtiva que A quem você deseja narrar isso? À pessoa que você
caia no vazio, a boca mentirosa mata a alma" mais ama. Ninguém ganha na loteria e corre para
(Sabedoria 1, 11). narrar ao síndico ou à sogra. Não, ao menos, em
Sim, os homens de Deus não eram perfeitos e condições normais. Mas Jesus desejou contar para
viveram em mundos imperfeitos. Todavia, o princípio Madalena. A partir do fato bíblico, Saramago, que era
moral está estabelecido de forma inequívoca: a fofoca ateu, aproveita e requenta velha fofoca: eles tinham um
desagrada a Deus. caso...
Há um efeito colateral do murmúrio que é pouco Diversas vezes, os Evangelhos narram que os
trabalhado: meu interesse em minha imagem junto aos fariseus, grupo atacado por Jesus, falavam mal dele,
outros. O que os outros estão falando de mim? Jesus murmuravam. Os inimigos de Jesus utilizaram até um
não escapou disso. O que os homens dizem que sou? O recurso clássico de detração: a origem. Como este
homem pode ser assim, se veio da Galileia, O que seria o defeito, o espinho de Paulo? Quase
especificamente de Nazaré? Acaso pode vir algo bom tudo já foi aventado. Paulo é representado muito calvo
de lá? Pelo que percebemos, a Galileia não gozava de na tradição imagética medieval e moderna. Seria sua
boa fama. O tema aparece várias vezes, inclusive com calvície? Seriam as tentações da carne, os desejos?
o israelita Natanael, logo no início do Evangelho de Um defeito físico? Uma doença? Paulo diz que não
João (João 1, 45-51). Porém, Natanael começa casou e que não vive queimando de ardores, pois é
desconfiado e muda de ideia. Os outros detratores de melhor casar do que viver "abrasado". Seria a
Jesus permaneceram fixos na ideia: nada de bom pode perseguição dos que discordavam dele? Os golpes que
vir da Galileia. Curiosamente, Jesus não era galileu, recebeu ao ser preso? Outra coisa? Até uma hipótese
mas tinha sido criado lá. Até hoje, no Brasil, por de homossexualidade foi aventada. Está aberta a 4
exemplo, usamos argumentos geográficos para atacar temporada de fofocas. Ao morrer decapitado em
um político, por exemplo. Roma, no ano de 67, Paulo levou o segredo para o
Há regiões que facilmente entram na lista de túmulo.
lugares que não podem criar nada de bom. Viver em comunidade é um desafio. Se o grupo for
A fofoca é incrivelmente persistente nos seus pequeno, o foco fica ainda mais direcionado sobre os
métodos. indivíduos. Por esse motivo, cidades grandes são um
Há, aqui, circularidade na detração. Uma opinião espelho de duas faces: são terrivelmente solitárias
negativa sobre a Galileia emerge; no entanto, ela é porque estamos diluídos em um mundo no qual
usada porque existe uma opinião negativa sobre Jesus. ninguém se importa muito conosco; e são libertadoras
Difícil saber, pelas passagens do Evangelho, se Jesus porque podemos ser quem somos, sem muita
não seria boa coisa (aos olhos dos fariseus e doutores preocupação com os vizinhos.
da lei) por ser da Galileia ou se não seria boa coisa em Mas as comunidades trazem cada um para o
si e a Galileia entra aqui como reforço do argumento pequeno círculo da lente de aumento do olhar alheio.
detrator. Circularidade porque o negativo de Jesus e o Quando a comunidade é fundada em nome de um ideal
da Galileia se alimentam. como o religioso ou o serviço de uma ONG, aí a
Há uma passagem de que gosto em particular. detração fica mais terrível, porque era o tipo de coisa
Paulo, o grande criador das cartas que definiram o que deveria ter ficado de fora de almas tão nobres
cristianismo original, reclama de murmúrios, de reunidas para fim tão especial.
fofocas surgidas a respeito dele na agitada comunidade Bento de Núrsia é um dos grandes gestores da vida
de Corinto. Na segunda carta aos Coríntios, ele insinua comunitária ocidental. Ele criou as bases para um
esta reclamação com uma ironia: modelo de vida religiosa em conjunto que influenciou
"(...) não vos fui pesado. Mas, astuto como sou, o mundo católico por mais de 1.500 anos.
conquistei-vos fraudulentamente" (2 Cor 12, 16). Bento começou como todo ser que, no início da
Paulo deve ter ouvido essa fofoca e essa acusação. Idade Média, sente um anseio muito forte pela vida
Assume com ironia o que disseram dele: "astuto", consagrada: retirou-se para uma pequena gruta perto
"fraudador", "pesado à comunidade". Seu enviado Tito de Roma. Isolado por anos, contemplando a linda
deve ter trazido notícias e bate-bocas da comunidade. paisagem do vale à sua frente em Subiaco, viveu no
Estamos nos primeiros anos do cristianismo, e as silêncio, na contemplação e numa relação que só
comunidades, em contato direto com os apóstolos e comportava a ele e a Deus. Por vezes, imagino que
discípulos, já mostram complexidades e opiniões tenham sido os anos mais felizes da sua vida.
distintas. Bento abandonou seu retiro por insistência de um
Mas, antes dessa reclamação, Paulo nos dá uma mosteiro vizinho. Sem um superior, os religiosos
indicação que despertou quase dois mil anos de imploraram para que ele se tornasse o líder. Relutante,
debates e curiosidade. No mesmo capítulo 12 da Bento aceitou.
segunda epístola aos Coríntios, ele anuncia, no Porém, na nova comunidade, encontrou um grupo
versículo 7, possuir um aguilhão (um espinho) na pouco afeito às obrigações monásticas.
carne, um anjo de Satanás que o espanca, para que ele Passou a cobrar horários e virtudes. Os religiosos,
não se encha de orgulho. arrependidos da nova chefia, colocaram veneno na sua
Paulo confessa ter um defeito grave, e que isso o bebida. O santo fez um sinal da cruz e o recipiente
impede de se tornar soberbo. Todavia, meus queridos quebrou-se por completo.
leitores e leitoras, já imaginaram um palestrante dizer O veneno foi o pretexto para Bento abandonar
em público: tenho um defeito grave, grave mesmo, aquela comunidade. Era também uma metáfora dos
algo muito forte, mas que não direi agora. Somos venenos que podem acabar com a vida comunitária.
hipnotizados pela ideia! Imagine se essa revelação Bem mais tarde, uma medalha faria sucesso na ordem
fosse feita por uma namorada, um namorado, ou pelo beneditina. Nela vemos uma cruz de são Bento e
marido ou pela mulher. Nenhum de nós dormiria mais. inscrições em latim que, traduzidas, dizem: "A Cruz
sagrada seja minha luz, não seja o dragão (demônio) o juntos e, agora, trabalham juntos. Todos estão sentados
meu guia. Afasta-te, Satanás. Nunca me aconselhes diante do trabalho. Um pinta mais rápido do que outro.
coisas vãs. É mau o que tu ofereces; bebe tu mesmo o Um expressa de forma mais talentosa a arte de decorar
teu veneno". as primeiras letras do capítulo. O abade elogia um,
Bento acabou ampliando o projeto. Criou uma recrimina outro. Um vai muito ao banheiro. Aqui está
comunidade, um grupo de monges em torno do ideal. o caldeirão da fofoca.
Para isso, teve de administrar algo distinto da gruta O mesmo deve ocorrer com frades cultivando a
original: tensões. terra ou com freiras fazendo doces conventuais. Uma
Sua Regra está cheia de referências a esses atritos e faz os melhores e mais finos biscoitos. Outra parece
desafios. Artigos curiosos sobre luz acesa nos quartos estar sempre atrasada. Uma é a queridinha da 4
ou sobre porte de armas mostram o desafio do coletivo superiora. Outra é mais bonita ou mais hábil. É
mesmo em locais de ideias e ideais piedosos. possível supor que, como todo agrupamento humano,
as cozinhas, bibliotecas, capelas e quartos da vida do
O trecho da Regra Beneditina que nos toca é sobre claustro tenham sido povoados de detração.
a reclamação entremeada de fofocas: a murmuração.
Cada convento beneditino conviveu com o mesmo O maldizer é, também, um gesto político. Trata-se
gesto do povo diante de Moisés. de uma arma, como já analisamos antes, contra o
poder. A moral da Cúria Romana raramente foi
São Bento declara, no capítulo 4 da sua influente exemplar. Mas, quando o papa é estrangeiro, como
Regra, que não ser murmurador (39) e não ser detrator Alexandre VI, o papa Bórgia, e poderoso, sua vida
(40) é uma das obrigações básicas da vida monacal. A pessoal se torna um elemento político. Comparemos: o
desaprovação de São Bento à detração é visível, pois a maior difusor de fofocas sobre Alexandre VI era seu
palavra volta 12 vezes na Regra, sempre acompanhada inimigo pessoal que disputou a eleição com ele e
de anátema. perdeu, o cardeal Dela Rovere, futuro papa Júlio II.
A murmuração é um vício, um desvio da caridade Júlio fez um imenso jogo de propaganda sobre a vida
cristã, uma hipocrisia de um monge que obedece, pessoal escandalosa do concorrente. O cardeal Bórgia
porém segue relutante em seu coração, um divisor de e o cardeal Dela Rovere eram, com frequência, muito
comunidades. O irmão murmurador é uma espécie de mais próximos do que gostariam.
doente que deve ser curado com o auxílio do abade e Ambos eram sobrinhos de papas e devem sua
da comunidade. Caso isso não seja feito, quebra-se a carreira ao nepotismo (favorecimento de parentes) que
comunhão do grupo (a koinonia grega). reinava na corte pontifícia. Ambos eram ambiciosos
O básico do murmúrio entredentes, do som baixo politicamente e usaram de violência na ascensão. Se é
dito a um irmão sobre uma tarefa ou sobre o abade, é verdade que Alexandre VI teve amantes famosas como
que ele introduz a mentira, cujo pai é Lúcifer. Se digo a bela Farnese, também é verdade que Júlio II era
sim por gesto político, mas internamente digo não, essa homossexual e pouco inclinado à castidade. Ambos
divisão só pode se originar do demônio. terminaram o pontificado muito odiados e, em geral,
Jesus advertiu: "Seja o vosso sim, sim, e o vosso criticados por cardeais que também levavam vida
não, não. O que passa disso vem do maligno" (Mt 5, pessoal fora dos padrões divinos, como o cardeal
37). Médici, futuro papa Leão X.
Bento, pai do monaquismo ocidental, odiou a Em resumo: é pouco provável que o ataque e as
fofoca e a detração. Viveu-a já na sua época. fofocas que enlameavam o currículo de tantos papas
Imaginemos que a difusão de mosteiros masculinos e fossem originados de fontes morais que desejavam
femininos ao longo dos séculos seguintes não tenha restaurar a santidade do cargo. O mais comum eram
superado o problema identificado pelo fundador. pessoas ambiciosas e tidas como imorais pelos padrões
teóricos determinados naquela época que atacavam
É um exercício plausível de imaginação. Dezenas pessoas muito parecidas com objetivo político. Nisso,
ou centenas de religiosos convivendo sob o mesmo acabavam trazendo à tona tanto os "podres reais" como
teto, sem filhos, comendo juntos, rezando juntos, "podres imaginários" de cada personagem. Na dúvida,
vivendo décadas lado a lado. Você acha que existe em geral, quase todos acreditamos nos dois.
fofoca na sua empresa? Fala-se mal de alguém na sua
sala de aula? Pessoas que convivem costumam Pense bem, querido leitor, querida leitora: o insulto
produzir material pejorativo umas sobre as outras. Mas contra um árbitro de futebol começa quando ele toma
você sai da empresa e vai para casa. Um dia, há férias uma decisão que eu considero prejudicial ao meu time.
na escola. Imagine-se morando com os colegas de O que está em jogo, teoricamente, é a competência
trabalho ou de estudo a vida toda. técnica do juiz, sua capacidade de acompanhar os
lances duvidosos, conhecer as regras e aplicá-las com
Vamos supor algo: quarenta beneditinos copiando isenção e competência. Só podem existir três
livros e iluminando obras preciosas no scriptorium ou acusações contra um juiz: a) ele não viu o que ocorreu;
biblioteca, com pouca iluminação. Acordaram juntos, b) ele não conhece as regras do futebol; c) ele favorece
rezaram o ofício juntos, tomaram a primeira refeição um dos times de forma desleal.
Vamos seguir dos papas para o campo do futebol. Igreja ou das igrejas. Trata-se do humano. Onde
Você já viu alguém insultar o juiz como despreparado houver dois humanos, haverá comparação.
tecnicamente ou com problemas de visão? Geralmente, Onde existirem grupos, existirá esforço para
o que aparece é uma referência a uma suposta vida alianças e jogos de poder. Em qualquer hipótese social,
escandalosa da progenitora do árbitro ou uma a detração ocupará um espaço. Nas comunidades
afirmação direta sobre sua preferência sexual. Reflita, religiosas, nas famílias, nos condomínios: ela é um
criticamente, comigo: em primeiro lugar, uma suposta subproduto derivado da existência da humanidade.
mãe prostituta não tem nenhuma relação direta com a Havendo plural, há fofoca. Juntem-se muitas pessoas, e
atuação de alguém em campo. Da mesma forma, uma isso aumenta exponencialmente.
mãe mais virtuosa do que a mulher de César não
garante nenhum conhecimento técnico do futebol. Bem-vindos à Humanidade! 4

Igualmente, a preferência sexual não pode ser um Um jornalista de veia satírica, Henry Louis
insulto. Em sexualidade, fora de histerias Mencken (1880-1956), escreveu que "uma igreja é um
conservadoras, só existem duas regras morais: nunca lugar onde senhores que nunca estiveram no céu dizem
contra a vontade de alguém e nunca com menores de maravilhas a respeito dele para pessoas que nunca irão
idade. Mas, se o juiz mantiver uma relação para lá".
homoafetiva, como isso o impediria de bem julgar um O jornalista tornou-se um clássico dos insultos
lance com bola? Se o juiz for um tradicional homem dizendo coisas como: "A democracia é a arte de
heterossexual e fiel à esposa com dois filhos e administrar o circo através da jaula dos macacos" ou
religioso praticante, como isso atinge o conhecimento "O casamento é uma instituição maravilhosa, mas
das regras do pênalti ou do impedimento? quem gostaria de viver numa instituição?". O público
Voltando a papas e juízes: a detração serve para brasileiro encontra, em português, essas e várias outras
solapar o poder ou a validade da decisão alheia. frases em "livro dos insultos".3
Fofocas servem, novamente, para encobrir meu projeto Em geral, a detração sobre o campo religioso é a
político ou meu desejo. mais fácil de ser enunciada.
É inegável que o papado ganhou uma autoridade O papa Bento XVI dizia que a religião era o único
moral no mundo contemporâneo que nem sempre teve campo do preconceito válido no mundo acadêmico.
na Idade Média ou Moderna. Podem ocorrer Tinha certa razão: detração sobre questões de gênero
divergências políticas com a posição do papa X ou Y são alvo de críticas e detrações sobre questões de raça
no século XX; no entanto, não existem mais acusações podem levar à cadeia. Insultos à pobreza, à origem
morais sobre a vida privada de papas há bastante geográfica de alguém e outros são sempre suscetíveis
tempo. A vida de João Paulo II ou de João XXIII, de reações iradas. Depois de séculos queimando
comparada à de muitos papas do Renascimento aqui humoristas, as igrejas são o alvo mais fácil do ataque.
citados, é exemplar. E a fofoca? Teria morrido?
Desapareceu? Talvez seja, exatamente, o caráter do sagrado que
torna o iconoclasmo, o ataque a valores e ídolos, tão
Em 22 de dezembro de 2014, o papa Francisco atrativo. Iconoclastas eram hereges medievais que
falou para toda a Cúria. Apontou, de forma direta e até destruíam imagens.
dura, quinze pecados da Cúria Romana, a
administradora máxima da Igreja Católica. O pecado Hoje, é uma metáfora também, e, segundo mestre
número 9 é bom para encerrar este capítulo: Houaiss, iconoclasta é "aquele que ataca crenças
estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra
"A doença das bisbilhotices, das murmurações e do qualquer tradição". Amamos iconoclastas, desde que
mexerico. Já falei muitas vezes dessa doença, mas não ataquem nossos valores.
nunca é suficiente. É uma doença grave, que começa
simplesmente, quem sabe, para trocar duas palavras e CAPÍTULO 4
se apodera da pessoa, transformando-a em "semeadora DA DETRAÇÃO NA TERRA DE SANTA CRUZ E
de cizânia" (como Satanás), e em tantos casos EM OUTRAS TERRAS
"homicida a sangue-frio" da fama dos seus colegas e
"A maldade é a vingança do homem contra a sociedade
confrades. É a doença das pessoas covardes que, não pelas restrições que ela impõe. É o resultado do conflito
tendo a coragem de falar diretamente, falam pelas entre nossos instintos e nossa cultura." S. Freud
costas. São Paulo nos adverte: "Fazei todas as coisas
sem murmurações nem críticas a fim de serdes
irrepreensíveis e inocentes" (FI 2,14-18). Irmãos, O ano era 1994. Uma escola chamada Base foi
guardemo-nos do terrorismo das maledicências! subitamente acusada de promover abuso sexual contra
crianças. O tema da pedofilia é muito sensível para a
A fofoca continua, de Paulo a Francisco... No
sociedade em geral e com razão. Quando notícias
cristianismo primitivo dos anos 50 ou na Igreja
dessa natureza começaram a aparecer, imediatamente
triunfante do século XXI, continua a denúncia da
grandes órgãos da imprensa passaram a publicar os
detração. Creio que a base é a mesma. Não se trata da
relatos da monstruosidade que ocorreria ali.
A escola foi depredada pela população raivosa. Os meu erro destrói de forma irreversível a vida de
muros foram pichados com frases de ódio. Ameaças de alguém?
morte explodiram de todo lado para os proprietários, A imprensa tem célebres antecedentes na detração.
para um motorista e para outras pessoas. Um tabloide O empresário e jornalista Assis Chateaubriand
mais sensacionalista atiçava com manchetes dominou o cenário da mídia brasileira por décadas. É o
chamativas: "Kombi era motel na escolinha do sexo". introdutor da televisão no País. Era figura ousada, e
Aumentava o ódio contra os responsáveis. Um seu legado inclui grandes fatos culturais, como o
delegado passou a dar muitas informações para a MASP, o Museu de Arte de São Paulo, que hoje anexa
imprensa. A vida dos envolvidos estava destruída. ao seu nome o nome de Chateaubriand.
Surgiu um laudo do IML que atestava abuso sexual. O Chatô recebeu uma notável biografia póstuma, de 4
furor atingiu proporções impactantes. autoria de Fernando Morais. Na obra, aparece um caso
O castelo de cartas, no entanto, mostrou sua do passado que seria um monumento à detração.
fragilidade. O laudo tinha sido inconclusivo, mas fora Rubem Braga, cronista de um jornal ligado ao império
apresentado ao público como prova sólida. Uma leve dos Diários Associados, redigiu um texto que
investigação demonstrava que nada tinha ocorrido. Foi desagradou aos católicos de Minas. A crônica foi
um dos mais célebres casos de precipitação da considerada ofensiva contra Nossa Senhora de Lourdes
imprensa. e, para piorar, fora publicada no dia sagrado da Sexta
Sem verificar fatos, sem investigar de fato, sem da Paixão. O arcebispo da capital mineira, Dom
ouvir realmente os envolvidos, todos foram julgados Antônio dos Santos Cabral, instruiu todos os párocos a
pela opinião pública e pela imprensa. A pressa por atacarem o jornal e o autor dos seus púlpitos na
público, a falta de ética e de profissionalismo, a busca arquidiocese. Um bom católico não poderia ler nada
de manchetes retumbantes que agradassem ao senso daquele jornal, pois era ofensivo à figura da Mãe de
comum e muitas outras coisas pairaram sobre os Deus. A bomba estourou na tradicional sociedade
acusadores. Todos publicaram e fizeram reportagens mineira.4
televisivas e de rádio sem conhecer os fatos, baseados Informado do atrito no Rio, o magnata da imprensa
num rumor. exigiu do jornal que publicasse que o arcebispo havia
Público e organismos de imprensa fizeram o papel estuprado a irmã. Recebeu então a informação de que
de uma senhora interiorana na janela que ouve a D. Antônio era filho único e não poderia ter sido o
vizinha afirmar coisas e crê, dogmaticamente, no que autor de um crime como esse. Chatô então, colérico,
escuta. Mas, se no caso da interiorana fictícia isso é gritava ao telefone que isso caberia ao arcebispo
quase divertido, na escola Base foi trágico. provar. Era uma consciência absoluta da calúnia. Um
crime falso era imputado a um prelado e não poderia
Os processos contra os detratores começaram. ter a menor base. Era maldade racional de estrategista
Vários órgãos de imprensa foram condenados. As sem escrúpulos.
retratações publicadas foram fracas e nunca disseram
de fato que os leitores haviam sido completamente A guerra não foi maior porque os diretores mineiros
enganados pelos autores das reportagens. decidiram, num acordo, transferir Rubem Braga para
São Paulo. Mas o fantasma de Chatô, pioneiro em
Alguns disseram que o caso fora encerrado por falta tantas coisas no Brasil, ainda paira sobre a imprensa
de provas, algo mais leve do que seria dizer: erramos brasileira.
feio e caluniamos de forma criminosa gente inocente.
Nosso ilustre Assis Chateaubriand tinha uma
As indenizações atuais e futuras podem trazer vantagem sobre os jornalistas do caso da escola Base.
algum alívio financeiro aos sobreviventes. Porém, a Chatô era um homem destituído de qualquer escrúpulo
vida daquelas pessoas foi destruída. Alguns sofrem de ou ética, mas sabia e se orgulhava disso. Ornava seu
transtornos psíquicos, como síndrome de pânico, até amoralismo como um ponto de afirmação pessoal e de
hoje. Imagine você deitar como um empresário ascensão profissional. Ser um caluniador audaz e
honesto e trabalhador e acordar como um monstro assumido era uma forma de intimidar, seja um desafeto
pedófilo odiado por todos. Nunca haverá dinheiro arquiepiscopal, seja a elite paulista em busca de
suficiente para refazer uma vida. doações para o MASP.
O trator da calúnia produziu um sulco devastador. O paraibano que controlou a opinião pública
O caso da escola Base virou obrigatório nos cursos brasileira por muito tempo não se escondia atrás de
de Jornalismo. Manchetes sem investigação, jargões ou de mantos morais. Punia seus inimigos com
divulgação de nomes sem verificação efetiva, calúnias mentiras e ameaçava até seus patrocinadores. Era um
jogadas ao vento e vidas destruídas. detrator assumido. Seria um caso isolado?
Há momentos nos quais a detração deixa de ser um Entre os anos 1970 e 1980, despontou um galã que
problema moral e passa a ser criminosa. Todas as hipnotizava o Brasil com seus olhos claros e porte
pessoas e todas as instituições erram em algum físico: Mário Gomes. O Brasil tinha sido seduzido pelo
momento. A pergunta difícil é: o que acontece quando
sorriso fácil e pelo talento do carioca. Era o apogeu da aqui. Essa responsabilidade existe, claro. Mas ela
fama de um "sex symbol". existe em função de um interesse forte, das pessoas em
Do outro lado do ringue havia um produtor e geral, sobre detração. Quando vejo um político de
agitador cultural famoso pela vida pouco exemplar: posição extremada vociferando alguma barbaridade,
Carlos Imperial. Parece ter ocorrido um sei que ele teatraliza para seu eleitorado.
desentendimento entre Carlos Imperial e Mário Gomes Atrás do homem que brada valores de punho
em função do filme "O Sexo das Bonecas", de 1974. O cerrado, há um eleitor. Da mesma forma, atrás do
filme fora baseado na peça "Greta Garbo, Quem Diria, jornalista inescrupuloso, ou simplesmente pouco
Acabou no Irajá", na qual Mário Gomes tinha cuidadoso, existe um público leitor, um telespectador,
despontado como ator. Os cartazes de divulgação do um ouvinte de rádio. Atrás do maldizer há o 4
filme mostravam um Mário Gomes travestido de consumidor dele. Essa é a parte complexa.
mulher, técnica agressiva de marketing, já que Mário O foco numa história (verdadeira ou não) mostra
era a encarnação da sedução sobre as mulheres. A que temos, por vários motivos, desejo de saber
briga chegou à Justiça. Carlos Imperial ficou muito detalhes ruins de outros, especialmente famosos.
irritado e teria dito que "amigo meu não tem defeito. Talvez isso tenha como berço nossa vontade de
Inimigo, se não tiver, eu vou lá e invento". Era a exorcizar nossos medos e frustrações. Eu sou feio, eu
imposição do critério afetivo sobre a verdade. sou pobre, eu não seduzo nenhuma mulher. Porém,
No meio desse desentendimento, o irado Imperial aquele galã lindo é adepto de objetos exóticos do reino
forneceu material detrator contra Mário. Um jornal vegetal. Logo, a beleza e a masculinidade dele não
fluminense publicou como fato que um célebre ator mais desafiam meu restrito campo de atuação sexual
teria sido internado por causa de uma cenoura ou minha abalada autoestima. Fulano ou fulana são
introduzida em orifício menos comum para o presidentes do país e mandam em muita gente, ao
tradicional legume. contrário de mim. Porém, eu sei que ele tem um filho
As indiretas apontavam para Mário Gomes. fora do casamento, ou que bebe, ou que tem outro
"defeito". Voltamos ao já dito aqui desde a Introdução:
A detração havia sido plantada por Carlos Imperial. toda detração fala mais de mim do que do alvo da
Funcionou. O galã passou a ser perseguido pela minha maldade.
história. O Brasil era, por incrível que pareça, ainda
mais preconceituoso do que hoje, e boatos que O fofoqueiro, quase sempre, é alguém
atacassem a masculinidade eram particularmente profundamente infeliz e invejoso. A vida alheia só tem
danosos à imagem de um sedutor. interesse total se a minha for insípida. E, como a
maioria absoluta das vidas é insípida mesmo, a estrada
Não havia internet nem celular na ocasião. Mas a asfaltada da detração se oferece para um tráfego
história se tornou conhecida de todos. Nunca mais volumoso.
desgrudou da imagem de Mário Gomes, apesar de ser
uma comprovada falsidade. Carlos Imperial morreu e Os Evangelhos sempre narram que os fariseus e
Mário Gomes continua trabalhando. Como perdoar um doutores da lei tinham inveja do sucesso, da autoridade
detrator, mesmo morto? Como pensar em alguém que, e dos milagres de Jesus. Era desse sentimento que
sabendo da extensão do mal que causava, fez o ato e partiam para atacar.
jamais se arrependeu? A detração, como a inveja, funciona como uma
Passamos por três exemplos de detração baseados homenagem de vetor trocado. Ou seja, é vergonhoso
em ideias falsas. Cada um, à sua maneira - escola ter inveja ou ser flagrado em fofoca porque é um
Base, arcebispo de Belo Horizonte vs Chatô e Mário reconhecimento forte da minha fraqueza e do meu
Gomes -, teve um preço a pagar pelo ataque. As problema na contemplação. É o espírito de um
histórias falsas deveriam ser uma lição. Inimizades versículo famoso de Jesus contra esses julgamentos:
políticas existem até hoje, e a calúnia e a difamação "Por que reparas no cisco que está no olho do teu
são boa artilharia em campanhas. Outro fato irmão, quando não percebes a trave que está no teu?"
importante: a imprensa precisa vender, e histórias (Mt 7,3).
escabrosas são ouro no mercado. Muitas vezes, isso Os fariseus queriam a autoridade, o poder e o
pode ser um determinante fundamental na busca de carisma do Messias. Não tinham. Assim, aderiam à
histórias ou na criação delas. Por fim, até mais do que detração que o levou à cruz. Crucificar é o objeto final
no passado, hoje há uma indústria de fofocas, de sites e do fofoqueiro e do invejoso. Só ali, na dor e na morte
blogs, de gente especializada no maldizer. Todos expostas, no fracasso e no sofrimento do outro, enfim,
ouviram de fonte segura que tal coisa ocorreu. a alma do detrator se aquieta um pouco, porque
Adultérios, ambiguidades sexuais, escândalos em conseguiu matar a dor da luz alheia.
geral: há um mercado muito importante que se Usamos aqui a palavra calúnia, quando nos
abastece disso. O que pensar? referimos ao caso da escola Base. Calúnia é prevista no
Em primeiro lugar, é preciso trazer o público à Código Penal Brasileiro, parte especial, capítulo V,
tona. Falamos da responsabilidade da imprensa até artigo 138. Lá é definida como a imputação falsa de
um crime a alguém. Assim, é um tipo específico de científica, salvo quando inequívoca a intenção de
detração, pois implica enredar outro em ato criminoso injuriar ou difamar".
falso. A pena a isso é de seis meses a dois anos de O artigo 143, para encerrar, considera que, se o
detenção e multa. Acrescente-se que é também calúnia caluniador ou o difamador realizar uma retratação
ouvir a falsa imputação e, sabendo que se trata de fato cabal antes da sentença, fica isento da pena. Detalhe:
infundado, propalá-la. se o ataque em questão ocorreu em órgão de imprensa,
Curiosamente, há também punição para a calúnia a retratação deve buscar o mesmo espaço.
contra os mortos, já que a maldade de muitos alcança o Assim, caros leitores, o conhecimento da lei sobre
além. Nesse caso, a vítima não é o morto, mas os calúnia, difamação e injúria deveria tornar as pessoas
parentes que ficam e a quem a memória do finado é mais cuidadosas, especialmente na internet, por onde 4
cara. fluem montagens, acusações e outros quejandos que,
A difamação está no artigo 139. Implica imputar a se fossem levados a juízo, causariam problemas aos
alguém não um crime em si, mas fato ofensivo à sua acusadores.
honra. Aqui estamos no caso da cenoura do ator. Não Querem um exemplo? Recentemente, um ex-
sendo um crime levantado, mas algo que macula o ministro da Fazenda entrou num restaurante paulistano
bom nome de alguém, a pena cai de três meses para para jantar. Em clima de polarização política, dois
um ano de detenção e multa. frequentadores teriam gritado "ladrão, ladrão" e outros
Calúnia e difamação atingem a chamada "honra impropérios. Tendo o fato ocorrido em lugar público,
objetiva" da pessoa humana, ou seja: sua reputação no com ampla divulgação na internet, o advogado do
meio social, seu bom nome, seu patrimônio de ministro entrou com queixa-crime de calúnia, injúria e
honradez perante o círculo em que vive e, dependendo difamação. As ofensas implicavam uma acusação de
do alcance da ofensa, perante toda a sociedade. crime contra o ex-ministro e feriam sua honra de forma
O artigo 140 versa sobre a injúria. Aqui não se trata direta. Inquiridos judicialmente, não podendo
de crime falso ou de algo que macule a honra, mas de apresentar provas do seu sentimento, os dois
uma ofensa. Grito aos quatro ventos que você é muito agressores tiveram de fazer uma retratação. Um
feio. Não é crime, felizmente, ser feio. A reputação de afirmou que o ex-ministro era "probo, honesto e
alguém não fica abalada pela observação da feiura, digno". O outro teve de reconhecer que nada sabia que
pois há homens éticos particularmente feios, como o pudesse desabonar a conduta do atacado. O ex-
presidente Abraham Lincoln. Estamos aqui no campo ministro, magnânimo, aceitou as desculpas, e o caso
de uma honra mais subjetiva e da falta de decoro. O foi encerrado.
juiz pode relevar a injúria se o ofendido, de forma Trago à tona esse caso verdadeiro para que todos
reprovável, provocou o injuriador de forma direta. saibamos que uma frase de ataque a alguém deve ser
A resposta a uma injúria com outra injúria também medida, pois implica riscos.
pode levar o juiz a considerar que não houve crime. Há Um grande amigo meu, professor respeitado da área
injúrias físicas, que pioram se forem aviltantes. Um de Direito, Carlos Frederico Coelho Nogueira,
tapa no rosto não imputa crime a ninguém, não mancha advertiu-me sobre algo que eu desconhecia: a prática
o currículo e a honra, mas é uma injúria física grave. das leis, um pouco mais branda do que a teoria do
Por fim, se a base do xingamento for raça, cor, texto parecia indicar. Diz o doutor Carlos Frederico:
etnia, religião, origem ou condição de idoso ou "(...) apesar de serem crimes a calúnia, a difamação
deficiente, o crime será chamado de "injúria e a injúria, hoje em dia (desde 1995, quando saiu a Lei
discriminatória". n° 9.099) elas não levam ninguém à prisão, nem por
Nos casos de racismo, por exemplo, crime previsto condenação, nem por flagrante, nem por preventiva,
como inafiançável, os defensores do racista tentam por causa da mencionada lei (que criou os "Juizados
caracterizar a ofensa como injúria discriminatória, pois Especiais Criminais"). Tudo se resolve, em juízo, no
a pena é menor. Juizado, em uma audiência preliminar em que se
discute o ressarcimento dos danos materiais e morais
Há dois detalhes pouco conhecidos das pessoas de causados pela ofensa e, se houver acordo
fora do Direito. O artigo 141 aumenta a pena de um indenizatório, não haverá processo criminal. Se não
terço se o alvo da injúria for o presidente da República, houver acordo, poderá haver uma transação de caráter
um chefe de Estado estrangeiro, um funcionário penal para evitar o processo criminal em si, desde que
público, em razão das suas funções, ou se for a ofensa o autor da ofensa aceite uma pena restritiva de direitos
proferida na presença de várias pessoas. Será que todos (como prestação de serviços à comunidade, pagamento
possuem consciência disso quando atacam um político de cestas básicas etc.) ou simplesmente uma multa."
nas redes sociais?
A exceção, ainda segundo os conselhos do meu
Também gosto sempre de lembrar, o artigo 142 amigo, seria a injúria discriminatória, especialmente a
afirma que não constitui injúria ou difamação "a racial, que acaba escapando dos juizados especiais e
opinião desfavorável da crítica literária, artística ou vai para o juízo criminal comum.
Em resumo, para um historiador e não advogado estigmatizado. Ou seja, o alvo da fofoca incorpora o
como eu, a lei é dura, a prática é branda e o mundo preconceito. Era o caso de uma "gangue" de garotos da
tupiniquim segue caluniando, difamando e injuriando. zona chamada 3 (área dos operários), que eram
Seríamos os brasileiros mais fofoqueiros do que a rejeitados pelo estigma difundido em fofocas sobre seu
média? Não existe medida confiável para isso. Os comportamento e, cada vez que eram rejeitados,
homens acusam as mulheres de serem mais comportavam-se pior.
fofoqueiras; os europeus acham que nós, latinos, temos A fofoca aumenta a coesão social e estabelece
mais necessidade de falar da vida alheia; os mais identidades. Cada grupo fofoca porque precisa
velhos deploram o hábito iconoclasta dos jovens. estabelecer essa identidade. O livro penetra fundo na
Parece que só temos uma certeza: o fofoqueiro é o análise das relações de poder, dependência, exclusão e 4
outro. Fofoca é como inveja: mal alheio, sempre. identidade de um grupo urbano.
Em 1936, o historiador Sérgio Buarque de Holanda Porém, após a leitura do brilhante texto de Elias e
lançou um texto que nasceu clássico: "Raízes do Scotson, fica uma certeza consoladora: o brasileiro é
Brasil". Uma ideia do texto atravessou muitos debates: cordial e fofoqueiro, e o inglês é fleumático e
o brasileiro seria cordial. Por cordial, entendia o autor, fofoqueiro.
não se dizia que o brasileiro era doce e amável sempre, O historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie
mas que funcionava com o coração, passionalmente. fez um estudo inovador sobre uma pequena aldeia dos
O brasileiro é descrito como passional pelos Pirineus durante a época da heresia cátara. O livro,
viajantes estrangeiros, densamente compilados por publicado em 1975, (Montaillou, village occitan de
Sérgio. Um inglês não entende o motivo de ter de fazer 1294 à 1324)6 utilizou os arquivos inquisitoriais que,
amigos para fazer negócios no Brasil. Para um pela sua natureza, permitem o registro de conversas de
europeu, negócios são negócios e não se misturam com vizinhos e, no fundo, "fofocas". Por meio desses
amizade. Mas essa passionalidade implica também documentos, o historiador estabeleceu como os
dizer que, sim, temos um interesse pessoal na vida falatórios entre as casas iam produzindo consciência
alheia, porque nossa maneira de dialogar com a sobre o que seria, de fato, o catarismo ou os princípios
sociedade passa pelo pessoal. A informalidade no católicos.
tratamento, o uso abundante de apelidos, a dispensa de O livro é um tratado de Antropologia histórica,
fórmulas mais elevadas para o circuito social são porque abre mão dos grandes nomes e narrativas e
basilares numa análise da cultura brasileira. Assim, desce ao cotidiano nos documentos de Jacques
nesse sentido, sim, temos mais interesse na vida Fournier, o zeloso inquisidor que se tornaria o papa
privada alheia e, sim, seríamos mais fofoqueiros. Bento XII de Avignon. Ao longo do texto fascinante,
Em nossa defesa: dois estudos separados e muito dezenas de bate-bocas e fofocas entre vizinhos,
importantes analisam a fofoca em áreas muito maledicências e detrações.
distintas. O grande Norbert Elias, juntamente com Calúnias, injúrias e difamações povoam a modesta
John Scotson, produziu um estudo publicado em 1965 e tumultuada aldeia francesa.
sobre uma comunidade real, mas que recebeu, na obra,
o pseudônimo de Winston Parva.5 Assim, brasileiros cordiais, ingleses fleumáticos e
franceses heréticos ou católicos estão unidos pelo
Em Winston Parva os pesquisadores analisaram, antigo e perigoso prazer da detração. Quem fofoca
com entrevistas e outros recursos, como a comunidade, menos? Provavelmente, o grupo sobre o qual os
em plena industrialização, encarava e praticava estudiosos ainda não se debruçaram em pesquisas.
questões como violência, discriminação e exclusão
social. É um estudo científico que toca, com
frequência, na clássica fofoca. Como se produzia a CAPÍTULO 5
estigmatização social? Como um grupo comentava o DETRAÇÃO E PRECONCEITO
que seria uma infração do outro grupo? Como se
"Cada um chama de barbárie aquilo com o que não está
definia a chamada "normalidade" na consciência da
acostumado". Michel de Montaigne
cidade?
Na obra, fica claro que a fofoca é um processo de
estabelecimento da normalidade ou do aceito  Falta, para encerrar este pequeno livro, refletir sobre
socialmente, já que seu alvo tradicional é o desvio. o embasamento mais comum da detração, o
Para reafirmar seu pertencimento ao grupo correto, preconceito. Como vimos na obra de Norbert Elias, a
todos os fofoqueiros precisavam enfatizar esse laço, e fofoca estabelece um modelo de comportamento aceito
a própria fofoca servia não apenas para estigmatizar e ataca, com o ato de fofocar, um comportamento
outro grupo ou pessoa, mas para reafirmar a mim, que desviante. O detrator, com frequência, cria um padrão
conto a fofoca a você, que ambos somos do grupo de normalidade e de comportamento aceitável ao
bom. Com o tempo, e isto é notável, o fato negativo contar para alguém (que compartilha supostamente
tende a ser incorporado como usual inclusive pelo desse código) sobre um terceiro que estaria fora do
código dito "normal". Assim, preconceito e detração onde posso distinguir as irmãs aranhas dos outros
são gêmeos xifópagos. predadores. A teia do preconceito é um local para viver
Mas... "Eu não tenho preconceito"... Essa frase e acasalar, matar e procriar. Sem a teia, as aranhas
tornou-se um clássico das conversas contemporâneas. teriam de refletir sobre sua existência e seu propósito.
Quase sempre, depois da afirmativa anterior, vem a Talvez sentissem que não poderiam mais existir.
partícula adversativa MAS. Assim, em conversas Talvez se questionassem mais.
correntes, a declaração "eu não tenho preconceito" é Pedir a alguém que abandone seu preconceito e os
uma espécie de pedágio necessário para a enunciação comentários maliciosos é pedir que essa pessoa deixe,
de um sólido preconceito. em parte, de ser, ou pelo menos de ser como imaginou
"Eu não sou preconceituoso, mas convenhamos que o até então. A reação de um preconceituoso ao 4
Nordeste..." questionamento do seu preconceito é, em geral, muito
exaltada. Sua irritação não é apenas narciso
"Eu não tenho preconceito, mas os gays contrariado, mas apego a um universo que ameaça ruir.
ultimamente...", e la nave va...
Não é uma reação só de discordância, mas de
Existe uma variante dessa contradição. Para atenuar a mobilização pela sobrevivência, pela sobrevivência do
enunciação de um preconceito, apresentamos uma rede mundo como era até então. Exigir que um racista ou
afetiva: "eu tenho amigos gays" ou "meu melhor amigo homofóbico pense e atue de forma distinta é pedir que
é um negro" ou "adoro as praias do Nordeste...". A ele recomece seu mundo de outro patamar.
presença de um negro nas minhas relações sociais Naturalmente, a resistência é enorme.
funcionaria, nesse caso, como uma rede de proteção ou
um outdoor autoevidente contra a calúnia de eu ser Uma ideia preconceituosa é uma Bastilha: sua queda
racista. E, como no primeiro caso, após ter sido simboliza muita coisa. Mudar uma cabeça é como
anunciado o nome do meu amigo negro, elaboro um cortar uma cabeça. A guilhotina da razão é pesada, e
discurso forte (e preconceituoso) contra alguma seu alvo vai espernear.
medida de incorporação positiva, como cotas. Linguagem, identidade e universalidade: já
O que se aprende desse cacoete retórico? Ter classificamos e até adjetivamos o conceito. Mas ainda
preconceito já não "pega" tão bem como no passado. falta o substantivo em si: afinal, o que é o preconceito
Talvez seja a ascensão do politicamente correto. na base da pirâmide da detração?
Talvez seja a criminalização de alguns preconceitos ou O nome preconceito traz uma explicação em si. Basta
um esforço educacional. O certo é que já não é tão decompor a palavra: é "pré" e é "conceito". Em outras
"legal" ser preconceituoso, nos dois sentidos que a palavras, toda ideia elaborada antes do conhecimento
palavra legal pode ter na nossa língua: inserido na lei e concreto, toda concepção anterior à experiência, toda
socialmente agradável. postura apriorística, toda opinião sem base real é,
Situação curiosa: se eu sinto que devo atenuar a conceitualmente, um preconceito.
frase, é porque tenho certeza de que ela contém algo Aqui já vai a primeira desconstrução crítica do
ruim. Seria, nesse caso, um pecado consciente: eu sei preconceito. Ter preconceito é ter uma falha de visão,
que é ruim e, mesmo com tal consciência, enuncio o um procedimento não científico, porque criou opinião
preconceito. A vontade de enunciar é maior do que a sem conhecimento, elabora afirmativas carentes de
consciência do mal. O preconceito é algo muito forte. objetividade, julga sem ver e afirma sem conhecer. O
Suas raízes são milenares, e sua representação, preconceito é um ato de pouca inteligência, ainda que
universal. Por quê? gente muito inteligente possa ser preconceituosa.
Há algo de fascinante e terrível na constatação da O preconceito é sempre burro, mas pode ser
força do preconceito. Chineses da era Tang, compartilhado por gênios e estúpidos.
adolescentes em Paris, portugueses do Renascimento, A primeira característica do preconceito é sua falta
empresários na Nova York do século XXI, indígenas de base científica. Enunciar um preconceito deveria ser
no Brasil, negros em tribos da África, religiosos na feito com mais cautela do que o comum, pois implica
Índia: não conseguimos encontrar um único grupo reconhecer que ao menos uma parte minha funciona de
profissional, étnico, etário, etc. sobre o qual não se forma insatisfatória ou limitada. Mesmo que eu seja
construa um discurso ou prática preconceituosos. São uma pessoa capaz e mentalmente avançada, reconheço
frases, piadas, pinturas, ações violentas e até (ao ser preconceituoso) que uma parte minha não
genocídios. O preconceito é universal, primeiramente. acompanha essa sagacidade.
Mas o preconceito é uma teia de aranha, também. Nós,
humanos, não estamos sob essa teia. Nós somos as É um ponto cego ou um canto obscuro da minha
aranhas que tecemos os fios e sobre eles andamos. A consciência e racionalidade. Mostra minha limitação,
detração é o fio do preconceito. O preconceito é uma mas mostra meu medo também.
maneira de existir no mundo. O preconceito é um lar, Aqui iniciamos o segundo pilar do preconceito. Além
um suporte, uma forma de sobreviver e uma de ser uma limitação mental, é uma demonstração de
linguagem. O preconceito é uma zona de conforto de medo. O alvo do meu ódio é o objeto do meu medo. Os
pobres, os negros, as mulheres, os gays, os mais elaboradas; por exemplo, somos descendentes da
nordestinos: imagino-os capazes de me destruírem. deusa X, que criou o primeiro do nosso grupo.
Na minha fantasia, suponho-os com força suficiente Com o tempo haveria registros de pinturas e escritos
para acabar com meu mundo. Tenho medo e, como demonstrando que sempre fomos as pessoas boas
toda criança assustada, fico agitado, agressivo, tenso. e      confiáveis, e que os do rio de baixo sempre foram
O medo é um dos pais do preconceito. O ódio é seu inferiores e mais agressivos.
filho primogênito. É uma família complementar. Com o tempo, o amplo leque da civilização criaria
Saltam aos olhos os eixos negativos do preconceito: explicações sofisticadas, e haveria até discursos
burrice e medo. Mas apenas gente limitada ou muito científicos provando que o rio de baixo era um espaço
negativa teria preconceito? A resposta, um pouco ruim para a civilização. Talvez o clima quente os 4
dolorosa, é não. tornasse mais preguiçosos, talvez o peixe fosse a base
Há milhões de anos, no atual continente africano, de uma lentidão no falar, talvez os genes... Mas, antes
uma espécie começou a ficar diferenciada em relação a de tudo isso, ainda na aurora da Pré-História, eram
outros mamíferos. Os chamados hominídeos eram bem apenas dois bandos desesperados por comida,
mais frágeis do que a média dos outros. Faltavam assustados, que confiavam apenas nos mais próximos.
garras, tamanho que inspirasse respeito e pele dura. O preconceito nasceu como forma de defesa e
Faltava força. Faltava tudo. Assustados, em estado de sobrevivência. Falar de perigos, individualizar sua
busca constante de comida, com ninhadas frágeis e fonte (inclusive perigos reais de inimizades entre
vidas curtas: a primeira humanidade era um caniço de grupos) era uma forma clara e declarada de defesa.
pouca resistência. Um vento forte, uma seca, um leão: Poderíamos dizer que os mais desconfiados, os mais
tudo poderia destruir essa semente humana. preconceituosos ou os que acreditaram mais nos riscos
Para sobreviver, esses parentes próximos dos símios verdadeiros ou ilusórios foram, provavelmente, os que
tiveram de elaborar ferramentas e estratégias. O sobreviveram. Somos descendentes dos covardes.
homem é mortal por seus temores e imortal por seus Somos filhos em linha direta de preconceituosos.
desejos, diria o sábio Pitágoras muito tempo depois. Somos imersos em preconceito. Alguns seriam
Mas o primeiro tempo humano não era de Filosofia: positivos? Uma amiga minha, nascida no interior
era uma dura luta pela sobrevivência. paulista, identificava, no sotaque com o "R" reforçado,
Dissemos que havia estratégias e ferramentas. As um conforto afetivo.
ferramentas foram estimuladas pelo polegar opositor, Se alguém falasse "porrrrrrrta" perto dela, ela sorria e
nosso dedo mais estranho e mais fundamental da mão. desenvolvia, imediatamente, a ideia de que essa pessoa
Sem ele o machado e a caneta seriam pouco úteis. As era boa e de que havia potencialmente uma chance de
ferramentas deram força à frágil mão humana. Pedras, amizade. Essa pessoa séria confiável. Era, claro, um
paus, depois metais: ganhamos uma energia inédita. A preconceito positivo.
humanização passou pelo primeiro de nós que decidiu
elaborar uma ferramenta. Já era possível apostar nos Preconceito positivo é quando eu concluo
seres humanos numa bolsa de futuro. Claro: a aposta previamente que algo é bom, a partir de coisas como
ainda era bem arriscada, mas havia uma luz fraca de origem ou até sotaque. "Hum!, este vinho é francês?"
futuro para a espécie. "Esta massa é típica italiana?" "Este livro é do filósofo
alemão?" Em todos os infinitos casos que poderíamos
Houve muitas estratégias. Andar em bandos foi a arrolar, procedência já indica muito. Claro que há
mais natural. O coletivo dava força e protegia. Um vinhos franceses intragáveis. É óbvio que há filósofos
grupo de caçadores e guerreiros fortalecia o êxito. alemães medíocres e massas italianas ruins. Existem
Nascemos gregários, mas, acima de tudo, preconceitos positivos.
sobrevivemos também pelo bando.
Tal como os negativos, não são científicos. Mas, ao
A principal lição do bando primitivo foi que havia contrário dos negativos, não excluem nem agridem,
menos perigo em gente do meu bando do que em gente pelo menos não de forma tão direta.
do grupo rival. A tribo concorrente, ou o simplesmente
diferente, era o desafio, a insegurança e o risco. Confie Deixamos de lado os muitos preconceitos positivos.
nos iguais e desconfie dos diferentes: talvez tenha sido Buscaremos os negativos, pois esses têm a chance
esse o primeiro processo cultural relevante que histórica de maior dano. Esses podem causar até morte.
desenvolvemos. Após essas definições iniciais, trataremos de
Você é da tribo do rio de cima e coleta sementes preconceitos concretos. Só assim ocorrerá a
junto com raízes e come animais pequenos? possibilidade de lançar luzes sobre essa área sombria
da psique humana.
Aprenda que o grupo do rio de baixo, que come mais
peixe e usa lanças menores, é ruim, perigoso e não O preconceito de gênero, a misoginia, por exemplo, é
confiável. Com o tempo surgiram explicações culturais quase universal e tem facetas trágicas. O racismo
marca a história de muitos países, como o Brasil, por
exemplo.
A homofobia gera assassinatos e piadas. A lista é Se fôssemos sábios, não atacaríamos a ninguém, nem
interminável. Vivemos a lipofobia, o horror aos faríamos piadas de ninguém, nem teríamos
gordos; cresceu entre nós a demofobia, a resistência ao preconceitos com ninguém. Se fôssemos sábios, não
povo e sua presença e valores. A homofobia causa haveria detração nem problemas no mundo causados
muitos assassinatos no Brasil. A lista é infinita. pelo preconceito.
O espaço do livro leva a escolhas técnicas. Em vez de risos nervosos por piadas preconceituosas,
É incômodo reconhecer: por mais que analisemos o riríamos com as crianças, com o Sol e com o mar. Se
preconceito, sempre haverá itens que ficarão de fora. A fôssemos sábios...
abundância nesse campo é um dado ruim.
REFERÊNCIAS 4
O preconceito gera detração. Com frequência, essa
detração vem acompanhada de humor. A comédia
flerta, amiúde, com o preconceito. Claro, sabemos Eis alguns livros que citei e outros que não citei e que
todos: rindo se corrigem os costumes (ridendo podem ajudar a aprofundar o conceito.
castigas mores). O riso é detestado pelo poder porque Para enfoques sociológicos:
é um gesto político de desconstrução do poder. A frase ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos
jocosa e a piada escancaram os podres que todos os e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
agentes de poder tentam ocultar. O riso é uma de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge
poderosa arma de crítica política e social. Zahar, 2000.
Mas, desde a comédia grega, vemos em Aristófanes OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Sociologia da fofoca:
uma desconfiança da democracia, do poder das notas sobre uma forma de narrativa do cotidiano.
mulheres e até da Filosofia. Para alguns, peças que Apresentado no 34° Encontro Anual da Anpocs. Texto
ironizavam Sócrates poderiam estar na base do disponível na internet:
processo que levou à sua morte. Já foi dito que a piada http://portal.anpocs.org/portal/index. php?
antissemita abriu os portões de Auschwitz e que a option=com_docman&task=doc_view&gid=1676&Ite
piada misógina, de desconfiança da capacidade mid=350 (Acessado em 10 de fevereiro de 2016.)
feminina, encontra, no fim, o resultado trágico nas
Coletâneas de frases maldosas e sobre a maldade
delegacias da mulher.
humana, algumas utilizadas no livro:
Faça um esforço para lembrar alguma piada que não
CASTRO, Ruy. O melhor do mau humor. São Paulo:
insulte ou jogue preconceito sobre uma nacionalidade,
Cia das Letras, 1989.
um gênero, uma religião, uma faixa etária, uma etnia,
uma opção sexual ou uma tipologia física. As piadas FRANCO, Gustavo H. B.; GIAMBIAGI, Fabio.
que causam mais sucesso são, exatamente, aquelas que Antologia da maldade - um dicionário de citações,
nascem e crescem no preconceito e proclamam uma associações ilícitas e ligações perigosas. Rio de
detração injuriosa sobre algo ou alguém. Janeiro: Jorge Zahar, 2015.
Não há muitas piadas sobre homens loiros, cristãos, MENCKEN, H. L. O livro dos insultos. São Paulo: Cia
heterossexuais, nascidos num grande centro urbano, das Letras, 1988.
bem-sucedidos financeiramente e com doutorado em Fontes históricas e biografias:
Yale.
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, village
Há mais piadas sobre loiras, homossexuais, judeus, occitan de 1294 à 1324. Paris: Galimard, 1975. Há
islâmicos, negros, nordestinos, portugueses, pobres, versão em português de Portugal pela Edições 70.
gordas, etc. Só essa lista já deveria servir para
MAZARIN, Giulio. Breviário dos políticos. São Paulo:
entendermos que o humor, o preconceito e a detração
Editora 34, 1997.
fazem parte do mesmo triângulo equilátero.
MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo:
O processo é o mesmo. Conto uma detração sobre
Cia das letras, 1994.
alguém desse grupo, provavelmente, para uma segunda
pessoa que não pertence a esse grupo. Não seria muito Citações da Bíblia: utilizei a Bíblia de Jerusalém.
inteligente contar uma piada de argentinos num lotado
estádio de Buenos Aires. Notas
A piada, como todo preconceito, busca estabelecer
laços com alguém, identidade. O meio mais rápido [←1]São Paulo, Editora 34, 1997. Tradução de Paulo Neves.
para unir um grupo, bem sabiam os nazistas, é criar um
inimigo em comum. Talvez a verdadeira graça de toda [←2]MAZARIN. Breviário dos políticos. Op. cit., p. 107.
piada e o prazer que provoca esteja nisto: não sou
aquela pessoa/grupo do qual nós estamos rindo. Sou [←3]São Paulo: Cia das Letras, 1988.
como você e, rindo, nós nos consideramos superiores
ao alvo da detração. [←4]MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo:
Cia. das Letras, 1994, p. 336-337.
[←5]ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos
e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de
uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.

[←6]Paris: Gallimard, 1975.

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