A Detração L Karnal
A Detração L Karnal
A Detração L Karnal
SINOPSE
Este livro trata daquele inescapável hábito, de toda hora, do ser humano falar mal do outro, seja do que esse outro
fez ou disse, seja do que pretende fazer. A detração permeia nosso cotidiano sem que nos apercebamos dessa prática.
São múltiplas as modalidades do maldizer e isso é o que aborda o pensador Leandro Karnal por meio de uma narrativa
leve, clara, mesmo bem-humorada, mas que não faz concessões ao seu rigor intelectual.
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Os muitos que de mim falaram mal, os que me
K18d Karnal, Leandro, 1963- insultaram, os que me agrediram e os que me
A detração : breve ensaio sobre o maldizer / Leandro desejaram um fracasso retumbante. Todos, de alguma
Karnal. - São Leopoldo : Ed. UNISINOS, 2016. 102 p. forma, ajudaram a lapidar meu narciso e indicaram
- (Aldus) caminhos interessantes que os que me amavam tinham
ISBN 978-85-7431-744-1 dificuldades em ver. Os detratores cumpriram muito
bem sua função pedagógica e de estímulo à humildade
1. Fofocas - História. 2. Crime contra a honra
na minha jornada. Agradeço a todos, do fundo do
-História.
coração, e a eles dedico este texto.
I. Título. II. Série.
CDD 177.2 Fico feliz que a maioria esteja perto de morrer ou já
tenha fracassado. Obrigados duplos!
CDU 177.2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Agradecimentos
(CIP) Agradeço muito a paciência do meu editor, Carlos
(Bibliotecário: Flávio Nunes - CRB 10/1298) Alberto Gianotti, que soube entender as insanidades da
A COLEÇÃO ALDUS minha agenda. Sou grato a indicações preciosas de
Igor Gandra, Rose Karnal e Carlos Frederico Coelho
Nogueira.
A partir de 1501, numa época em que os livros eram
caros e difíceis de manusear, Aldus iniciou a produção Os acertos devem muito a eles. Os erros são autênticos
de livros com formato pequeno. Para diminuir o meus.
volume e o preço, encomendou do ourives Francesco O Editor apresenta
Griffo um tipo de letra que permitia um maior número
de caracteres por página. Este tipo veio a ser conhecido Passei diante da TV e pude ver e ouvir um político que
como itálico. proferia horrores sobre seu colega, presumivelmente
doutro partido. O psitacismo era o habitual, abundante
Hoje, o formato livro de bolso é o preferido pela
em solecismos; e a argumentação, mexeriqueira e
maioria dos leitores do planeta.
inconsistente. Aquela cena midiática dava o que
A Editora Unisinos, mediante esta coleção, em formato pensar.
diferenciado e impressa em papel especial, procura
O que julgaria alguém tido como bem-pensante, da
levar assuntos interessantes aos leitores por um preço
dita elite intelectual, que assistisse àquela detração,
acessível.
vazada naqueles termos? Mas logo também me dei
Sobre o autor conta de que a maledicência não é uma exclusividade
dos políticos, ainda que nisso eles pareçam ser os tais,
Leandro Karnal, natural de São Leopoldo, RS, cursou
e que os próprios bem-pensantes também a praticam.
História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
Mais: pelo menos em alguns momentos, quem não será
UNISINOS.
maledicente? O bispo?, o ministro?, o sindicalista?, o
É doutor em História Social pela USP e professor de professor?, o jurisconsulto?, o psicanalista?, o
História na UNICAMP, São Paulo. Tem diversos chanceler?
livros publicados, como Teatro da fé (Hucitec),
Acaso terá o leitor visto alguma vez, no seu ambiente
Conversas com um jovem professor (Contexto) e Pecar
de trabalho, algo ter sido mal feito - digamos, um erro
e perdoar (Nova Fronteira).
cometido pelo agente que resultou em prejuízo
Foi curador de exposições, como "A Escrita da institucional - e o responsável assumir o erro? Ou o
Memória" e profere palestras em diversas instituições figurino nesses casos será cada qual do setor ficar na
no Brasil e no exterior. sua e, à boca pequena, imputar a culpa a outrem?
Dedicatória com detração Aliás, o local de trabalho é campo fértil para a
detração, que corre solta comendo por baixo: você nem
Dedico este livro a todos os detratores com quem se dá conta de que estão a maldizê-lo, a passar-lhe uma
deparei, ao longo da minha vida. rasteira. Mas isso acontece também no dia a dia de
âmbito mais comezinho, o familiar: pais falam mal da Pois foi aquele político enunciando enormidades de
vida dos filhos adultos, e estes sobre a dos pais; irmãos outro pela TV que me induziu a considerar
malquistam-se e mexericam a vida um do outro. A objetivamente sobre como a detração faz parte do
divisão de uma herança, normalmente, dá muito pano nosso cotidiano - diria, uma faculdade quase orgânica
para maldizeres que acabam em malquerenças... E do ser humano -, e que esse tema poderia ser objeto de
entre amigos, você já constatou detrações? Claro que um ensaio para um pequeno livro. Convidei Leandro
sim! E o que suas vizinhas dirão de você? E suas Karnal para escrevê-lo, e aqui está este envolvente
companheiras de academia, ou seus parceiros de "Breve ensaio sobre o maldizer".
futebol sete das quartas à noite? C. A. G.
02/2016 4
Já que prometi brevidade, encerro a Introdução. O Meditei gravemente nas palavras da marquesa. Ela
objetivo desta pequena obra é buscar as práticas e acabara de presentear-me com uma belíssima edição
origens do ato de falar mal. Afinal, se o consideramos das "Elegias de Duíno", de Rilke. Decidi não rebater,
errado, por que persiste, em todos os lugares, o hábito pois o presente era generoso e a octogenária
de fazer detração? Enorme contradição: sendo um ser aristocrática não parecia admitir réplicas.
abominável, desagradável e indesejável, a senhora
fofoca é atacada em público por todos, mas volta
conosco para nossa cama e dorme, escura e pérfida, na
sombra do coração.
Dona Adriana não está mais entre nós. Toma chá de mais célebres mostram essa língua ferina, e, não sendo
tílias e madeleines em outro plano. Seria a História exatamente fofocas, devolvem o veneno triplicado:
uma fofoca com método científico? A pergunta
permanece.
Um historiador profissional sabe que sua área está Churchill e Elizabeth Braddock:
muito distante do século XIX.
- Senhora, você é feia.
Naqueles dias, historiar era narrar fatos, ao menos
para a maioria dos profissionais. Durante decênios do - Senhor, você está bêbado.
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século XX, a identidade do professor de História foi a
de um narrador com compromisso com a verdade, - Pela manhã, ao menos, estarei sóbrio.
diferente do literato. A História profissional assumiu
tom sociologizante e compromissos políticos e sociais. Ou esta troca de farpas:
Falamos mais de classes do que de pessoas, mais de
forças econômicas do que de datas, e analisamos mais Convite de Bernard Shaw para Churchill:
representações sociais do que indivíduos.
- Tenho o prazer e a honra de convidar o digno
Um historiador profissional, hoje, raramente fica primeiro-ministro para a primeira apresentação de
preso ao anedótico ou ao fato moral. Uma boa aula minha peça Pigmaleão. Venha e traga um amigo, se
contemporânea pensa criticamente fontes e como tiver.
narrativas foram criadas e a partir de quais
condicionamentos, entre outras coisas.
Que fascinante! Como era esse braço, professor? Ele A língua afiada é, em geral, admirada, desde que não
conseguiu segurar algo? Então você conta detalhes do se dirija a nós.
parto dele e os alunos mostram vivo interesse,
ofuscando o "secundário": Imperialismo, Paz Armada, Mas nem tudo é tão divertido. Analise a estrutura dos
Guerra Franco-Prussiana... fascismos. Há um interesse médio. Mas afirme: Hitler
talvez só tivesse um testículo. Até o último da fila
O anedótico brilha, e o estrutural e o sociológico são levanta do seu sono secular. Sim, um dos mais
opacos. comentados fatos sobre a anatomia do Führer é sua
ausência do clássico par. Falei que isso seria próprio
O jogo prossegue nos próximos pontos. do interesse dos alunos? Façamos um teste longo:
Parlamentarismo inglês? Difícil fascinar. Mas pense em cinco anos o que você guardou deste livro e,
Churchill bebia demais? Diga uma das frases maldosas creio, essa informação estará viva na sua memória.
e rápidas do primeiro-ministro conservador, e ela
ficará para todo o sempre na memória dos alunos. As
O jogo é infinito e complexo. Toda personagem, É possível avançar nos séculos e focar outro autor.
gênio artístico ou genocida, tem facetas passíveis de William Shakespeare solidificou a fama de algumas
detração. Jorge Luis Borges era racista? O papa Júlio II personagens. Foi o caso claro da peça "Ricardo III".
era homossexual? O pintor romântico Delacroix talvez
fosse filho do ministro Talleyrand? O rei Henrique de O autor inglês precisava carregar nas tintas sobre a
Castela, meio-irmão de Isabel, era impotente? D. João família York, já que trabalhava na época Tudor. A
VI foi surpreendido numa cena de intimidade suspeita personagem dramática Ricardo III é, aparentemente,
com um empregado do palácio? Pedro I era epilético? muito pior do que o Ricardo III real. Na obra, um
Pedro II passava o pé nas coxas da condessa do Barral corcunda asqueroso e assassino domina nossa
durante a aula que esta dava para as princesas Isabel e imaginação.
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Leopoldina?
A mensagem do bardo: vivemos uma época gloriosa.
Isso, sim, eletriza uma classe de Ensino Médio e o Por quê? Porque a passada tinha coisas terríveis como
público em geral. Ricardo III. Ricardo III, o corcunda, combateu
Henrique Tudor, que vem a ser avô da minha chefe:
O bom professor sabe dosar algumas dessas Elizabeth I...
informações com análises mais, digamos, científicas.
São como torrões de açúcar para premiar a atenção do Viram? Fofoca pode ter motivo político e interesse
cavalo. Todos que dão aula sabem que esses torrões pessoal...
terão mais longevidade do que a análise sociológica do
partido jacobino. No passado, reis e rainhas pagavam autores de
panegíricos elogiosos, encomendavam quadros que
Sim, a parte com que o grande público e os alunos se podiam melhorar o aspecto do retratado, publicavam
deleitam é a pura detração. Fofoca não é o tema mais sua própria versão da História.
científico, mas é o que mais pega o leigo. Dona
Adriana sorri do além. Sexo, ambiguidades morais, Hoje diríamos que todo governante tem uma
defeitos de caráter: o desfile das personagens é quase assessoria de imprensa que deve dar a versão palatável
um caso clínico. ao grande público.
O romano Suetônio, ao escrever "A vida dos doze Aqui, entramos num pilar importante da fofoca. Ela
Césares", tinha dado um bom pontapé. Tibério precisa criar uma personagem.
ensinava crianças a nadarem e a mordiscarem suas
partes íntimas. Chamava-as "meus peixinhos". O teatro e a literatura ensinam a estrutura da fofoca.
Caligula não precisa de nenhum adjetivo. Cláudio era A personalidade é boa para ser fofocada se for possível
realmente estranho: foi o único imperador do século I a ser transformada em personagem. Uma personagem
gostar só de mulheres. Cada tipo estranho no Império clássica é bem marcada. Ricardo III só consegue ser
Romano... corcunda e ambicioso. Não excede os limites estreitos
dessa moldura. Por isso é notável. Suas marcas são de
A História anedótica, feita de episódios escabrosos e fácil retenção pelo público.
constrangedores, pode gozar de baixa estima na
academia; todavia, é de imenso sucesso fora dos muros O avarento de Molière, o judeu de O Mercador de
da universidade. Veneza shakespeariano, Jezebel na Bíblia: todos são
quase apenas uma coisa e por isso podem ser mal
Mas há obras de análise de panfletos satíricos ou até falados.
de piadas. Porém, para submeter esse objeto-- mosaico
ao método, acabamos eliminando o humor de tudo ou a A personagem-alvo da fofoca deve entrar em um tipo
maldade, submetidas ao discurso acadêmico. que podemos chamar de "ideal"; só assim a luz do meu
olhar (ou a sombra) a pode identificar e transformar
Quando um autor fala do passado, podemos imaginar em foco da minha maledicência. A fofoca é um tipo de
que ele tenha um alvo político indireto: elogiar alguém reflexo no espelho.
do presente. No mundo dos imperadores Trajano,
Adriano e Marco Aurélio, era importante pensar que o O alvo da fofoca deve ser alguém quase
passado tinha sido um horror moral. estereotipado. Se for mau, deve ser muito mau.
As detrações de Suetônio são elogios a imperadores Se for homossexual, deve ser afetado, pois isso está
do século II. Seria a fofoca um serviço político? no estereótipo do senso comum.
O burro será um monumento à burrice. Se for suas notáveis implicações. Laurentino escreve com
grosseiro, as histórias serão quase monolíticas. A gosto e escreve bem. Ele tem narrativa corrente e com
fofoca é, também, uma forma de reter uma verdade, ou o foco de um excelente narrador. Laurentino Gomes
o que desejamos que seja uma verdade. faz uma sólida pesquisa e não rejeita nenhum dos
grandes autores profissionais do tema. Não pretende
Mas voltemos aos historiadores. A detração tem um (creio) ser a palavra mais original da pesquisa em
objetivo. Ela humaniza a personagem, aproxima-a de arquivos, mas pretende (imagino) falar de coisas que
nós. os acadêmicos sabem, mas que ocultam sob o rigor da
linguagem acadêmica pesada, seca e raramente
Júlio César, o romano, Napoleão Bonaparte, o corso: literária. Ele quer que o leitor fique interessado, que
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ambos jogaram com habilidades sexuais em diversos crie o prazer por grandes temas e datas e que chegue
campos para atingir seus objetivos. É o momento em bem e feliz ao fim do livro.
que o gênio da conquista da Gália ou o estratego de
Austerlitz deixam de ser deuses. Até nas descrições Era o momento do bicentenário da Corte, já
físicas estão contidas essas questões. Júlio César era dissemos.
calvo; Napoleão era baixo.
Surge o best-seller "1808 - Como uma rainha louca,
Há um curioso impulso de aproximação estabelecido um príncipe medroso e uma Corte corrupta enganaram
pela fofoca. Contra narrativas que tornam os grandes Napoleão e mudaram a História de Portugal e do
homens quase deuses, os fofoqueiros arrastam os Brasil".
líderes para a lama da humanidade.
O subtítulo diz tudo: é um gancho pessoal, detrator,
A História tradicional, dos grandes mitos nacionais, de amplo apelo público. Imagine-se o rigor do texto de
estimula isso. O professor monótono constrói um uma referência como Raymundo Faoro sobre o mesmo
Duque de Caxias perfeito e modelar? Os alunos, tema.
especialmente brasileiros, querem o outro lado. A
sexualidade do inventor Santos Dumont, os debates Fantasio como seria desenvolvido pelo jurista
sobre a vida privada de Mário de Andrade ou de gaúcho... "1808 - Como o estamento burocrático
Zumbi dos Palmares, a fidelidade da rainha Vitória à lusitano de matriz conceitual weberiana foi
memória do amado Albert: não há setor, pessoa, ressignificado no Brasil interiorizando a metrópole".
período ou momento que não tenha sido alvo direto do Perceberam? O segundo é mais acadêmico e de menor
coro dos detratores. Talvez Dona Adriana tivesse apelo.
razão.
Mas vejam: Laurentino não abandona as grandes
A história postula uma proposta mais sociológica explicações sociológicas, historiográficas ou
hoje. Em vez das grandes personagens, demonstramos econômicas do momento. Há no livro muitos trechos
mais as forças coletivas, econômicas, os grandes de boa narrativa geral sobre questões econômicas. Mas
movimentos sociais ou as formas culturais de definição Laurentino Gomes não escreve para uma banca ou para
do real. Historiadores universitários acham até um uma editora universitária. Ele quer o grande público,
pouco "vulgar" ficar falando de vidas pessoais. Parece aquele que usualmente não compraria um livro de
antigo, menor, mesquinho e indigno da nobre função História do Brasil para leitura de lazer. Ele quer as
de um filho de Clio. rodas de livros dos aeroportos e as listas dos mais
vendidos das grandes revistas. Ele consegue? A
Neste momento curioso, no qual a grande corrente fórmula? Incluir na narrativa o tom do suspense, o
dos historiadores profissionais está afastada da fixação detalhe pessoal e até o folhetinesco. Fazer parecer ao
nos detalhes pessoais, emerge uma bem construída leitor como se estivéssemos numa sala de estar,
narrativa de pessoas (na maioria jornalistas) que faz vizinhos ao Paço Real, e uma pessoa nos dissesse:
um sucesso imenso adicionando o pessoal, o "Sabe o que eu ouvi sobre Carlota Joaquina?" Bem,
anedótico, o irrepetível que está contido... na detração. nossos ouvidos ficariam aguçados. É uma estratégia, e
uma boa estratégia.
Vejamos o exemplo notável, entre tantos, do sucesso
dos livros de Laurentino Gomes. O autor foi triplamente premiado. O primeiro prêmio
foi o imenso sucesso de público, confirmado nas novas
O paranaense Laurentino tem excelente formação e obras com os títulos cronológicos de 1822 e 1889.
produziu obras de imenso alcance de público. Quando Também recebeu o ambicionado prêmio Jabuti. Por
o Brasil debatia os 200 anos da chegada de D. João ao fim, há o prêmio do mau humor acadêmico.
Brasil, houve muitos lançamentos de textos
acadêmicos retratando diversos aspectos da Corte e Nós, das universidades, fazemos livros que,
usualmente, levam anos para esgotar 1.500 ou 3 mil
exemplares. Nosso espaço na mídia é modesto. fofoca talvez seja a mais longa duração da vida
Falamos para nós e nossos pares. Logo, muitos de nós humana.
lançamos um mau humor terrível sobre esse tipo de
sucesso. Como dissemos, a fofoca de personagens reais
apresenta, de forma clara, um objetivo de poder ou de
O azedume da raposa sobre as uvas esconde muitas enfraquecimento dele. Já citamos o rei Henrique IV de
das nossas dores de acadêmicos. Intelectuais, como Castela, apelidado de "o impotente". Quando o rei
todos os seres humanos, cumprem a máxima de Nelson conseguiu uma filha, Joana de Trastâmara, a Corte e os
Rodrigues: perdoamos tudo, menos o sucesso alheio, inimigos deram o apelido maldoso de "beltraneja" à
este continua sendo uma ofensa pessoal. menina. Por quê?
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Na França e nos EUA, a categoria de divulgação Beltrán de La Cueva era amante da rainha, da mulher
histórica não é considerada concorrente, mas de Henrique IV. Como o rei era famoso pela
complementar da busca acadêmica. Sempre achei que incapacidade sexual, chamar sua herdeira de
os dois campos poderiam se beneficiar muito um do beltraneja, filha de Beltrão, não era apenas uma
outro. Os acadêmicos conseguiriam aliar rigor formal a maldade clássica, era um projeto político.
beleza narrativa, como ocorria em grandes do passado:
Sérgio Buarque de Holanda, Marc Bloch e Capistrano Bastarda, Joana não poderia herdar o trono de
de Abreu. Os divulgadores poderiam tentar um rigor Castela, e a outra pretendente, Isabel, a Católica,
menos polarizado ou focado no anedótico. Ambos poderia (como conseguiu) reclamar a Coroa. Fofocas
ganhariam. políticas são mísseis teleguiados.
Há outro campo que mostra a sedução do detalhe e O mesmo pode ser dito de Antonieta no século
do individual: as biografias. XVIII. Atacar a rainha era uma forma de destruir o
poder absoluto de Luís XVI, seu marido.
Os leitores, em geral, gostam mais delas do que dos
recortes amplos. A vida de Maria Antonieta rende mais Talvez por causa de tudo isso os políticos e as
do que História geral da economia francesa do Antigo celebridades precisem, até hoje, cuidar da imagem.
Regime. Sabem que serão julgados por coisas muito objetivas,
como capacidade administrativa. Porém, é necessário
Por quê? Obviamente, porque encontraremos na vida que a mulher de César pareça honesta. O político deve
da última rainha do Absolutismo francês detalhes ter família constituída, aparência agradável, e afastar,
específicos e uma proximidade que os grandes recortes da sua biografia, elementos incômodos. Há antipatia e
não permitem. simpatia do eleitorado a partir de valores tão
anedóticos quanto aqueles que levam o grande público
Ela teria dito mesmo que o povo deveria comer a falar mal das personagens do passado. A arte da
brioche na falta de pão? Teria tido um caso lésbico? política e a detração serão os temas do nosso próximo
Teria seduzido o próprio filho, como a acusaram no capítulo.
tribunal? Teria sido infiel a Luís XVI com um belo
nobre no Trianon? Isso é parte da detração, da fofoca
pura, que um dia teve o objetivo político de atingir CAPÍTULO 2
Antonieta e o Absolutismo, mas que hoje, sem reis de
direito divino, se conserva ainda. Mais de 220 anos POLÍTICA, OU A ARTE DE DESVIAR DA
depois de a rainha ter perdido a cabeça, a detração da DETRAÇÃO
austríaca ainda faz sucesso. O que aprendemos?
Igualmente, a preferência sexual não pode ser um Um jornalista de veia satírica, Henry Louis
insulto. Em sexualidade, fora de histerias Mencken (1880-1956), escreveu que "uma igreja é um
conservadoras, só existem duas regras morais: nunca lugar onde senhores que nunca estiveram no céu dizem
contra a vontade de alguém e nunca com menores de maravilhas a respeito dele para pessoas que nunca irão
idade. Mas, se o juiz mantiver uma relação para lá".
homoafetiva, como isso o impediria de bem julgar um O jornalista tornou-se um clássico dos insultos
lance com bola? Se o juiz for um tradicional homem dizendo coisas como: "A democracia é a arte de
heterossexual e fiel à esposa com dois filhos e administrar o circo através da jaula dos macacos" ou
religioso praticante, como isso atinge o conhecimento "O casamento é uma instituição maravilhosa, mas
das regras do pênalti ou do impedimento? quem gostaria de viver numa instituição?". O público
Voltando a papas e juízes: a detração serve para brasileiro encontra, em português, essas e várias outras
solapar o poder ou a validade da decisão alheia. frases em "livro dos insultos".3
Fofocas servem, novamente, para encobrir meu projeto Em geral, a detração sobre o campo religioso é a
político ou meu desejo. mais fácil de ser enunciada.
É inegável que o papado ganhou uma autoridade O papa Bento XVI dizia que a religião era o único
moral no mundo contemporâneo que nem sempre teve campo do preconceito válido no mundo acadêmico.
na Idade Média ou Moderna. Podem ocorrer Tinha certa razão: detração sobre questões de gênero
divergências políticas com a posição do papa X ou Y são alvo de críticas e detrações sobre questões de raça
no século XX; no entanto, não existem mais acusações podem levar à cadeia. Insultos à pobreza, à origem
morais sobre a vida privada de papas há bastante geográfica de alguém e outros são sempre suscetíveis
tempo. A vida de João Paulo II ou de João XXIII, de reações iradas. Depois de séculos queimando
comparada à de muitos papas do Renascimento aqui humoristas, as igrejas são o alvo mais fácil do ataque.
citados, é exemplar. E a fofoca? Teria morrido?
Desapareceu? Talvez seja, exatamente, o caráter do sagrado que
torna o iconoclasmo, o ataque a valores e ídolos, tão
Em 22 de dezembro de 2014, o papa Francisco atrativo. Iconoclastas eram hereges medievais que
falou para toda a Cúria. Apontou, de forma direta e até destruíam imagens.
dura, quinze pecados da Cúria Romana, a
administradora máxima da Igreja Católica. O pecado Hoje, é uma metáfora também, e, segundo mestre
número 9 é bom para encerrar este capítulo: Houaiss, iconoclasta é "aquele que ataca crenças
estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra
"A doença das bisbilhotices, das murmurações e do qualquer tradição". Amamos iconoclastas, desde que
mexerico. Já falei muitas vezes dessa doença, mas não ataquem nossos valores.
nunca é suficiente. É uma doença grave, que começa
simplesmente, quem sabe, para trocar duas palavras e CAPÍTULO 4
se apodera da pessoa, transformando-a em "semeadora DA DETRAÇÃO NA TERRA DE SANTA CRUZ E
de cizânia" (como Satanás), e em tantos casos EM OUTRAS TERRAS
"homicida a sangue-frio" da fama dos seus colegas e
"A maldade é a vingança do homem contra a sociedade
confrades. É a doença das pessoas covardes que, não pelas restrições que ela impõe. É o resultado do conflito
tendo a coragem de falar diretamente, falam pelas entre nossos instintos e nossa cultura." S. Freud
costas. São Paulo nos adverte: "Fazei todas as coisas
sem murmurações nem críticas a fim de serdes
irrepreensíveis e inocentes" (FI 2,14-18). Irmãos, O ano era 1994. Uma escola chamada Base foi
guardemo-nos do terrorismo das maledicências! subitamente acusada de promover abuso sexual contra
crianças. O tema da pedofilia é muito sensível para a
A fofoca continua, de Paulo a Francisco... No
sociedade em geral e com razão. Quando notícias
cristianismo primitivo dos anos 50 ou na Igreja
dessa natureza começaram a aparecer, imediatamente
triunfante do século XXI, continua a denúncia da
grandes órgãos da imprensa passaram a publicar os
detração. Creio que a base é a mesma. Não se trata da
relatos da monstruosidade que ocorreria ali.
A escola foi depredada pela população raivosa. Os meu erro destrói de forma irreversível a vida de
muros foram pichados com frases de ódio. Ameaças de alguém?
morte explodiram de todo lado para os proprietários, A imprensa tem célebres antecedentes na detração.
para um motorista e para outras pessoas. Um tabloide O empresário e jornalista Assis Chateaubriand
mais sensacionalista atiçava com manchetes dominou o cenário da mídia brasileira por décadas. É o
chamativas: "Kombi era motel na escolinha do sexo". introdutor da televisão no País. Era figura ousada, e
Aumentava o ódio contra os responsáveis. Um seu legado inclui grandes fatos culturais, como o
delegado passou a dar muitas informações para a MASP, o Museu de Arte de São Paulo, que hoje anexa
imprensa. A vida dos envolvidos estava destruída. ao seu nome o nome de Chateaubriand.
Surgiu um laudo do IML que atestava abuso sexual. O Chatô recebeu uma notável biografia póstuma, de 4
furor atingiu proporções impactantes. autoria de Fernando Morais. Na obra, aparece um caso
O castelo de cartas, no entanto, mostrou sua do passado que seria um monumento à detração.
fragilidade. O laudo tinha sido inconclusivo, mas fora Rubem Braga, cronista de um jornal ligado ao império
apresentado ao público como prova sólida. Uma leve dos Diários Associados, redigiu um texto que
investigação demonstrava que nada tinha ocorrido. Foi desagradou aos católicos de Minas. A crônica foi
um dos mais célebres casos de precipitação da considerada ofensiva contra Nossa Senhora de Lourdes
imprensa. e, para piorar, fora publicada no dia sagrado da Sexta
Sem verificar fatos, sem investigar de fato, sem da Paixão. O arcebispo da capital mineira, Dom
ouvir realmente os envolvidos, todos foram julgados Antônio dos Santos Cabral, instruiu todos os párocos a
pela opinião pública e pela imprensa. A pressa por atacarem o jornal e o autor dos seus púlpitos na
público, a falta de ética e de profissionalismo, a busca arquidiocese. Um bom católico não poderia ler nada
de manchetes retumbantes que agradassem ao senso daquele jornal, pois era ofensivo à figura da Mãe de
comum e muitas outras coisas pairaram sobre os Deus. A bomba estourou na tradicional sociedade
acusadores. Todos publicaram e fizeram reportagens mineira.4
televisivas e de rádio sem conhecer os fatos, baseados Informado do atrito no Rio, o magnata da imprensa
num rumor. exigiu do jornal que publicasse que o arcebispo havia
Público e organismos de imprensa fizeram o papel estuprado a irmã. Recebeu então a informação de que
de uma senhora interiorana na janela que ouve a D. Antônio era filho único e não poderia ter sido o
vizinha afirmar coisas e crê, dogmaticamente, no que autor de um crime como esse. Chatô então, colérico,
escuta. Mas, se no caso da interiorana fictícia isso é gritava ao telefone que isso caberia ao arcebispo
quase divertido, na escola Base foi trágico. provar. Era uma consciência absoluta da calúnia. Um
crime falso era imputado a um prelado e não poderia
Os processos contra os detratores começaram. ter a menor base. Era maldade racional de estrategista
Vários órgãos de imprensa foram condenados. As sem escrúpulos.
retratações publicadas foram fracas e nunca disseram
de fato que os leitores haviam sido completamente A guerra não foi maior porque os diretores mineiros
enganados pelos autores das reportagens. decidiram, num acordo, transferir Rubem Braga para
São Paulo. Mas o fantasma de Chatô, pioneiro em
Alguns disseram que o caso fora encerrado por falta tantas coisas no Brasil, ainda paira sobre a imprensa
de provas, algo mais leve do que seria dizer: erramos brasileira.
feio e caluniamos de forma criminosa gente inocente.
Nosso ilustre Assis Chateaubriand tinha uma
As indenizações atuais e futuras podem trazer vantagem sobre os jornalistas do caso da escola Base.
algum alívio financeiro aos sobreviventes. Porém, a Chatô era um homem destituído de qualquer escrúpulo
vida daquelas pessoas foi destruída. Alguns sofrem de ou ética, mas sabia e se orgulhava disso. Ornava seu
transtornos psíquicos, como síndrome de pânico, até amoralismo como um ponto de afirmação pessoal e de
hoje. Imagine você deitar como um empresário ascensão profissional. Ser um caluniador audaz e
honesto e trabalhador e acordar como um monstro assumido era uma forma de intimidar, seja um desafeto
pedófilo odiado por todos. Nunca haverá dinheiro arquiepiscopal, seja a elite paulista em busca de
suficiente para refazer uma vida. doações para o MASP.
O trator da calúnia produziu um sulco devastador. O paraibano que controlou a opinião pública
O caso da escola Base virou obrigatório nos cursos brasileira por muito tempo não se escondia atrás de
de Jornalismo. Manchetes sem investigação, jargões ou de mantos morais. Punia seus inimigos com
divulgação de nomes sem verificação efetiva, calúnias mentiras e ameaçava até seus patrocinadores. Era um
jogadas ao vento e vidas destruídas. detrator assumido. Seria um caso isolado?
Há momentos nos quais a detração deixa de ser um Entre os anos 1970 e 1980, despontou um galã que
problema moral e passa a ser criminosa. Todas as hipnotizava o Brasil com seus olhos claros e porte
pessoas e todas as instituições erram em algum físico: Mário Gomes. O Brasil tinha sido seduzido pelo
momento. A pergunta difícil é: o que acontece quando
sorriso fácil e pelo talento do carioca. Era o apogeu da aqui. Essa responsabilidade existe, claro. Mas ela
fama de um "sex symbol". existe em função de um interesse forte, das pessoas em
Do outro lado do ringue havia um produtor e geral, sobre detração. Quando vejo um político de
agitador cultural famoso pela vida pouco exemplar: posição extremada vociferando alguma barbaridade,
Carlos Imperial. Parece ter ocorrido um sei que ele teatraliza para seu eleitorado.
desentendimento entre Carlos Imperial e Mário Gomes Atrás do homem que brada valores de punho
em função do filme "O Sexo das Bonecas", de 1974. O cerrado, há um eleitor. Da mesma forma, atrás do
filme fora baseado na peça "Greta Garbo, Quem Diria, jornalista inescrupuloso, ou simplesmente pouco
Acabou no Irajá", na qual Mário Gomes tinha cuidadoso, existe um público leitor, um telespectador,
despontado como ator. Os cartazes de divulgação do um ouvinte de rádio. Atrás do maldizer há o 4
filme mostravam um Mário Gomes travestido de consumidor dele. Essa é a parte complexa.
mulher, técnica agressiva de marketing, já que Mário O foco numa história (verdadeira ou não) mostra
era a encarnação da sedução sobre as mulheres. A que temos, por vários motivos, desejo de saber
briga chegou à Justiça. Carlos Imperial ficou muito detalhes ruins de outros, especialmente famosos.
irritado e teria dito que "amigo meu não tem defeito. Talvez isso tenha como berço nossa vontade de
Inimigo, se não tiver, eu vou lá e invento". Era a exorcizar nossos medos e frustrações. Eu sou feio, eu
imposição do critério afetivo sobre a verdade. sou pobre, eu não seduzo nenhuma mulher. Porém,
No meio desse desentendimento, o irado Imperial aquele galã lindo é adepto de objetos exóticos do reino
forneceu material detrator contra Mário. Um jornal vegetal. Logo, a beleza e a masculinidade dele não
fluminense publicou como fato que um célebre ator mais desafiam meu restrito campo de atuação sexual
teria sido internado por causa de uma cenoura ou minha abalada autoestima. Fulano ou fulana são
introduzida em orifício menos comum para o presidentes do país e mandam em muita gente, ao
tradicional legume. contrário de mim. Porém, eu sei que ele tem um filho
As indiretas apontavam para Mário Gomes. fora do casamento, ou que bebe, ou que tem outro
"defeito". Voltamos ao já dito aqui desde a Introdução:
A detração havia sido plantada por Carlos Imperial. toda detração fala mais de mim do que do alvo da
Funcionou. O galã passou a ser perseguido pela minha maldade.
história. O Brasil era, por incrível que pareça, ainda
mais preconceituoso do que hoje, e boatos que O fofoqueiro, quase sempre, é alguém
atacassem a masculinidade eram particularmente profundamente infeliz e invejoso. A vida alheia só tem
danosos à imagem de um sedutor. interesse total se a minha for insípida. E, como a
maioria absoluta das vidas é insípida mesmo, a estrada
Não havia internet nem celular na ocasião. Mas a asfaltada da detração se oferece para um tráfego
história se tornou conhecida de todos. Nunca mais volumoso.
desgrudou da imagem de Mário Gomes, apesar de ser
uma comprovada falsidade. Carlos Imperial morreu e Os Evangelhos sempre narram que os fariseus e
Mário Gomes continua trabalhando. Como perdoar um doutores da lei tinham inveja do sucesso, da autoridade
detrator, mesmo morto? Como pensar em alguém que, e dos milagres de Jesus. Era desse sentimento que
sabendo da extensão do mal que causava, fez o ato e partiam para atacar.
jamais se arrependeu? A detração, como a inveja, funciona como uma
Passamos por três exemplos de detração baseados homenagem de vetor trocado. Ou seja, é vergonhoso
em ideias falsas. Cada um, à sua maneira - escola ter inveja ou ser flagrado em fofoca porque é um
Base, arcebispo de Belo Horizonte vs Chatô e Mário reconhecimento forte da minha fraqueza e do meu
Gomes -, teve um preço a pagar pelo ataque. As problema na contemplação. É o espírito de um
histórias falsas deveriam ser uma lição. Inimizades versículo famoso de Jesus contra esses julgamentos:
políticas existem até hoje, e a calúnia e a difamação "Por que reparas no cisco que está no olho do teu
são boa artilharia em campanhas. Outro fato irmão, quando não percebes a trave que está no teu?"
importante: a imprensa precisa vender, e histórias (Mt 7,3).
escabrosas são ouro no mercado. Muitas vezes, isso Os fariseus queriam a autoridade, o poder e o
pode ser um determinante fundamental na busca de carisma do Messias. Não tinham. Assim, aderiam à
histórias ou na criação delas. Por fim, até mais do que detração que o levou à cruz. Crucificar é o objeto final
no passado, hoje há uma indústria de fofocas, de sites e do fofoqueiro e do invejoso. Só ali, na dor e na morte
blogs, de gente especializada no maldizer. Todos expostas, no fracasso e no sofrimento do outro, enfim,
ouviram de fonte segura que tal coisa ocorreu. a alma do detrator se aquieta um pouco, porque
Adultérios, ambiguidades sexuais, escândalos em conseguiu matar a dor da luz alheia.
geral: há um mercado muito importante que se Usamos aqui a palavra calúnia, quando nos
abastece disso. O que pensar? referimos ao caso da escola Base. Calúnia é prevista no
Em primeiro lugar, é preciso trazer o público à Código Penal Brasileiro, parte especial, capítulo V,
tona. Falamos da responsabilidade da imprensa até artigo 138. Lá é definida como a imputação falsa de
um crime a alguém. Assim, é um tipo específico de científica, salvo quando inequívoca a intenção de
detração, pois implica enredar outro em ato criminoso injuriar ou difamar".
falso. A pena a isso é de seis meses a dois anos de O artigo 143, para encerrar, considera que, se o
detenção e multa. Acrescente-se que é também calúnia caluniador ou o difamador realizar uma retratação
ouvir a falsa imputação e, sabendo que se trata de fato cabal antes da sentença, fica isento da pena. Detalhe:
infundado, propalá-la. se o ataque em questão ocorreu em órgão de imprensa,
Curiosamente, há também punição para a calúnia a retratação deve buscar o mesmo espaço.
contra os mortos, já que a maldade de muitos alcança o Assim, caros leitores, o conhecimento da lei sobre
além. Nesse caso, a vítima não é o morto, mas os calúnia, difamação e injúria deveria tornar as pessoas
parentes que ficam e a quem a memória do finado é mais cuidadosas, especialmente na internet, por onde 4
cara. fluem montagens, acusações e outros quejandos que,
A difamação está no artigo 139. Implica imputar a se fossem levados a juízo, causariam problemas aos
alguém não um crime em si, mas fato ofensivo à sua acusadores.
honra. Aqui estamos no caso da cenoura do ator. Não Querem um exemplo? Recentemente, um ex-
sendo um crime levantado, mas algo que macula o ministro da Fazenda entrou num restaurante paulistano
bom nome de alguém, a pena cai de três meses para para jantar. Em clima de polarização política, dois
um ano de detenção e multa. frequentadores teriam gritado "ladrão, ladrão" e outros
Calúnia e difamação atingem a chamada "honra impropérios. Tendo o fato ocorrido em lugar público,
objetiva" da pessoa humana, ou seja: sua reputação no com ampla divulgação na internet, o advogado do
meio social, seu bom nome, seu patrimônio de ministro entrou com queixa-crime de calúnia, injúria e
honradez perante o círculo em que vive e, dependendo difamação. As ofensas implicavam uma acusação de
do alcance da ofensa, perante toda a sociedade. crime contra o ex-ministro e feriam sua honra de forma
O artigo 140 versa sobre a injúria. Aqui não se trata direta. Inquiridos judicialmente, não podendo
de crime falso ou de algo que macule a honra, mas de apresentar provas do seu sentimento, os dois
uma ofensa. Grito aos quatro ventos que você é muito agressores tiveram de fazer uma retratação. Um
feio. Não é crime, felizmente, ser feio. A reputação de afirmou que o ex-ministro era "probo, honesto e
alguém não fica abalada pela observação da feiura, digno". O outro teve de reconhecer que nada sabia que
pois há homens éticos particularmente feios, como o pudesse desabonar a conduta do atacado. O ex-
presidente Abraham Lincoln. Estamos aqui no campo ministro, magnânimo, aceitou as desculpas, e o caso
de uma honra mais subjetiva e da falta de decoro. O foi encerrado.
juiz pode relevar a injúria se o ofendido, de forma Trago à tona esse caso verdadeiro para que todos
reprovável, provocou o injuriador de forma direta. saibamos que uma frase de ataque a alguém deve ser
A resposta a uma injúria com outra injúria também medida, pois implica riscos.
pode levar o juiz a considerar que não houve crime. Há Um grande amigo meu, professor respeitado da área
injúrias físicas, que pioram se forem aviltantes. Um de Direito, Carlos Frederico Coelho Nogueira,
tapa no rosto não imputa crime a ninguém, não mancha advertiu-me sobre algo que eu desconhecia: a prática
o currículo e a honra, mas é uma injúria física grave. das leis, um pouco mais branda do que a teoria do
Por fim, se a base do xingamento for raça, cor, texto parecia indicar. Diz o doutor Carlos Frederico:
etnia, religião, origem ou condição de idoso ou "(...) apesar de serem crimes a calúnia, a difamação
deficiente, o crime será chamado de "injúria e a injúria, hoje em dia (desde 1995, quando saiu a Lei
discriminatória". n° 9.099) elas não levam ninguém à prisão, nem por
Nos casos de racismo, por exemplo, crime previsto condenação, nem por flagrante, nem por preventiva,
como inafiançável, os defensores do racista tentam por causa da mencionada lei (que criou os "Juizados
caracterizar a ofensa como injúria discriminatória, pois Especiais Criminais"). Tudo se resolve, em juízo, no
a pena é menor. Juizado, em uma audiência preliminar em que se
discute o ressarcimento dos danos materiais e morais
Há dois detalhes pouco conhecidos das pessoas de causados pela ofensa e, se houver acordo
fora do Direito. O artigo 141 aumenta a pena de um indenizatório, não haverá processo criminal. Se não
terço se o alvo da injúria for o presidente da República, houver acordo, poderá haver uma transação de caráter
um chefe de Estado estrangeiro, um funcionário penal para evitar o processo criminal em si, desde que
público, em razão das suas funções, ou se for a ofensa o autor da ofensa aceite uma pena restritiva de direitos
proferida na presença de várias pessoas. Será que todos (como prestação de serviços à comunidade, pagamento
possuem consciência disso quando atacam um político de cestas básicas etc.) ou simplesmente uma multa."
nas redes sociais?
A exceção, ainda segundo os conselhos do meu
Também gosto sempre de lembrar, o artigo 142 amigo, seria a injúria discriminatória, especialmente a
afirma que não constitui injúria ou difamação "a racial, que acaba escapando dos juizados especiais e
opinião desfavorável da crítica literária, artística ou vai para o juízo criminal comum.
Em resumo, para um historiador e não advogado estigmatizado. Ou seja, o alvo da fofoca incorpora o
como eu, a lei é dura, a prática é branda e o mundo preconceito. Era o caso de uma "gangue" de garotos da
tupiniquim segue caluniando, difamando e injuriando. zona chamada 3 (área dos operários), que eram
Seríamos os brasileiros mais fofoqueiros do que a rejeitados pelo estigma difundido em fofocas sobre seu
média? Não existe medida confiável para isso. Os comportamento e, cada vez que eram rejeitados,
homens acusam as mulheres de serem mais comportavam-se pior.
fofoqueiras; os europeus acham que nós, latinos, temos A fofoca aumenta a coesão social e estabelece
mais necessidade de falar da vida alheia; os mais identidades. Cada grupo fofoca porque precisa
velhos deploram o hábito iconoclasta dos jovens. estabelecer essa identidade. O livro penetra fundo na
Parece que só temos uma certeza: o fofoqueiro é o análise das relações de poder, dependência, exclusão e 4
outro. Fofoca é como inveja: mal alheio, sempre. identidade de um grupo urbano.
Em 1936, o historiador Sérgio Buarque de Holanda Porém, após a leitura do brilhante texto de Elias e
lançou um texto que nasceu clássico: "Raízes do Scotson, fica uma certeza consoladora: o brasileiro é
Brasil". Uma ideia do texto atravessou muitos debates: cordial e fofoqueiro, e o inglês é fleumático e
o brasileiro seria cordial. Por cordial, entendia o autor, fofoqueiro.
não se dizia que o brasileiro era doce e amável sempre, O historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie
mas que funcionava com o coração, passionalmente. fez um estudo inovador sobre uma pequena aldeia dos
O brasileiro é descrito como passional pelos Pirineus durante a época da heresia cátara. O livro,
viajantes estrangeiros, densamente compilados por publicado em 1975, (Montaillou, village occitan de
Sérgio. Um inglês não entende o motivo de ter de fazer 1294 à 1324)6 utilizou os arquivos inquisitoriais que,
amigos para fazer negócios no Brasil. Para um pela sua natureza, permitem o registro de conversas de
europeu, negócios são negócios e não se misturam com vizinhos e, no fundo, "fofocas". Por meio desses
amizade. Mas essa passionalidade implica também documentos, o historiador estabeleceu como os
dizer que, sim, temos um interesse pessoal na vida falatórios entre as casas iam produzindo consciência
alheia, porque nossa maneira de dialogar com a sobre o que seria, de fato, o catarismo ou os princípios
sociedade passa pelo pessoal. A informalidade no católicos.
tratamento, o uso abundante de apelidos, a dispensa de O livro é um tratado de Antropologia histórica,
fórmulas mais elevadas para o circuito social são porque abre mão dos grandes nomes e narrativas e
basilares numa análise da cultura brasileira. Assim, desce ao cotidiano nos documentos de Jacques
nesse sentido, sim, temos mais interesse na vida Fournier, o zeloso inquisidor que se tornaria o papa
privada alheia e, sim, seríamos mais fofoqueiros. Bento XII de Avignon. Ao longo do texto fascinante,
Em nossa defesa: dois estudos separados e muito dezenas de bate-bocas e fofocas entre vizinhos,
importantes analisam a fofoca em áreas muito maledicências e detrações.
distintas. O grande Norbert Elias, juntamente com Calúnias, injúrias e difamações povoam a modesta
John Scotson, produziu um estudo publicado em 1965 e tumultuada aldeia francesa.
sobre uma comunidade real, mas que recebeu, na obra,
o pseudônimo de Winston Parva.5 Assim, brasileiros cordiais, ingleses fleumáticos e
franceses heréticos ou católicos estão unidos pelo
Em Winston Parva os pesquisadores analisaram, antigo e perigoso prazer da detração. Quem fofoca
com entrevistas e outros recursos, como a comunidade, menos? Provavelmente, o grupo sobre o qual os
em plena industrialização, encarava e praticava estudiosos ainda não se debruçaram em pesquisas.
questões como violência, discriminação e exclusão
social. É um estudo científico que toca, com
frequência, na clássica fofoca. Como se produzia a CAPÍTULO 5
estigmatização social? Como um grupo comentava o DETRAÇÃO E PRECONCEITO
que seria uma infração do outro grupo? Como se
"Cada um chama de barbárie aquilo com o que não está
definia a chamada "normalidade" na consciência da
acostumado". Michel de Montaigne
cidade?
Na obra, fica claro que a fofoca é um processo de
estabelecimento da normalidade ou do aceito Falta, para encerrar este pequeno livro, refletir sobre
socialmente, já que seu alvo tradicional é o desvio. o embasamento mais comum da detração, o
Para reafirmar seu pertencimento ao grupo correto, preconceito. Como vimos na obra de Norbert Elias, a
todos os fofoqueiros precisavam enfatizar esse laço, e fofoca estabelece um modelo de comportamento aceito
a própria fofoca servia não apenas para estigmatizar e ataca, com o ato de fofocar, um comportamento
outro grupo ou pessoa, mas para reafirmar a mim, que desviante. O detrator, com frequência, cria um padrão
conto a fofoca a você, que ambos somos do grupo de normalidade e de comportamento aceitável ao
bom. Com o tempo, e isto é notável, o fato negativo contar para alguém (que compartilha supostamente
tende a ser incorporado como usual inclusive pelo desse código) sobre um terceiro que estaria fora do
código dito "normal". Assim, preconceito e detração onde posso distinguir as irmãs aranhas dos outros
são gêmeos xifópagos. predadores. A teia do preconceito é um local para viver
Mas... "Eu não tenho preconceito"... Essa frase e acasalar, matar e procriar. Sem a teia, as aranhas
tornou-se um clássico das conversas contemporâneas. teriam de refletir sobre sua existência e seu propósito.
Quase sempre, depois da afirmativa anterior, vem a Talvez sentissem que não poderiam mais existir.
partícula adversativa MAS. Assim, em conversas Talvez se questionassem mais.
correntes, a declaração "eu não tenho preconceito" é Pedir a alguém que abandone seu preconceito e os
uma espécie de pedágio necessário para a enunciação comentários maliciosos é pedir que essa pessoa deixe,
de um sólido preconceito. em parte, de ser, ou pelo menos de ser como imaginou
"Eu não sou preconceituoso, mas convenhamos que o até então. A reação de um preconceituoso ao 4
Nordeste..." questionamento do seu preconceito é, em geral, muito
exaltada. Sua irritação não é apenas narciso
"Eu não tenho preconceito, mas os gays contrariado, mas apego a um universo que ameaça ruir.
ultimamente...", e la nave va...
Não é uma reação só de discordância, mas de
Existe uma variante dessa contradição. Para atenuar a mobilização pela sobrevivência, pela sobrevivência do
enunciação de um preconceito, apresentamos uma rede mundo como era até então. Exigir que um racista ou
afetiva: "eu tenho amigos gays" ou "meu melhor amigo homofóbico pense e atue de forma distinta é pedir que
é um negro" ou "adoro as praias do Nordeste...". A ele recomece seu mundo de outro patamar.
presença de um negro nas minhas relações sociais Naturalmente, a resistência é enorme.
funcionaria, nesse caso, como uma rede de proteção ou
um outdoor autoevidente contra a calúnia de eu ser Uma ideia preconceituosa é uma Bastilha: sua queda
racista. E, como no primeiro caso, após ter sido simboliza muita coisa. Mudar uma cabeça é como
anunciado o nome do meu amigo negro, elaboro um cortar uma cabeça. A guilhotina da razão é pesada, e
discurso forte (e preconceituoso) contra alguma seu alvo vai espernear.
medida de incorporação positiva, como cotas. Linguagem, identidade e universalidade: já
O que se aprende desse cacoete retórico? Ter classificamos e até adjetivamos o conceito. Mas ainda
preconceito já não "pega" tão bem como no passado. falta o substantivo em si: afinal, o que é o preconceito
Talvez seja a ascensão do politicamente correto. na base da pirâmide da detração?
Talvez seja a criminalização de alguns preconceitos ou O nome preconceito traz uma explicação em si. Basta
um esforço educacional. O certo é que já não é tão decompor a palavra: é "pré" e é "conceito". Em outras
"legal" ser preconceituoso, nos dois sentidos que a palavras, toda ideia elaborada antes do conhecimento
palavra legal pode ter na nossa língua: inserido na lei e concreto, toda concepção anterior à experiência, toda
socialmente agradável. postura apriorística, toda opinião sem base real é,
Situação curiosa: se eu sinto que devo atenuar a conceitualmente, um preconceito.
frase, é porque tenho certeza de que ela contém algo Aqui já vai a primeira desconstrução crítica do
ruim. Seria, nesse caso, um pecado consciente: eu sei preconceito. Ter preconceito é ter uma falha de visão,
que é ruim e, mesmo com tal consciência, enuncio o um procedimento não científico, porque criou opinião
preconceito. A vontade de enunciar é maior do que a sem conhecimento, elabora afirmativas carentes de
consciência do mal. O preconceito é algo muito forte. objetividade, julga sem ver e afirma sem conhecer. O
Suas raízes são milenares, e sua representação, preconceito é um ato de pouca inteligência, ainda que
universal. Por quê? gente muito inteligente possa ser preconceituosa.
Há algo de fascinante e terrível na constatação da O preconceito é sempre burro, mas pode ser
força do preconceito. Chineses da era Tang, compartilhado por gênios e estúpidos.
adolescentes em Paris, portugueses do Renascimento, A primeira característica do preconceito é sua falta
empresários na Nova York do século XXI, indígenas de base científica. Enunciar um preconceito deveria ser
no Brasil, negros em tribos da África, religiosos na feito com mais cautela do que o comum, pois implica
Índia: não conseguimos encontrar um único grupo reconhecer que ao menos uma parte minha funciona de
profissional, étnico, etário, etc. sobre o qual não se forma insatisfatória ou limitada. Mesmo que eu seja
construa um discurso ou prática preconceituosos. São uma pessoa capaz e mentalmente avançada, reconheço
frases, piadas, pinturas, ações violentas e até (ao ser preconceituoso) que uma parte minha não
genocídios. O preconceito é universal, primeiramente. acompanha essa sagacidade.
Mas o preconceito é uma teia de aranha, também. Nós,
humanos, não estamos sob essa teia. Nós somos as É um ponto cego ou um canto obscuro da minha
aranhas que tecemos os fios e sobre eles andamos. A consciência e racionalidade. Mostra minha limitação,
detração é o fio do preconceito. O preconceito é uma mas mostra meu medo também.
maneira de existir no mundo. O preconceito é um lar, Aqui iniciamos o segundo pilar do preconceito. Além
um suporte, uma forma de sobreviver e uma de ser uma limitação mental, é uma demonstração de
linguagem. O preconceito é uma zona de conforto de medo. O alvo do meu ódio é o objeto do meu medo. Os
pobres, os negros, as mulheres, os gays, os mais elaboradas; por exemplo, somos descendentes da
nordestinos: imagino-os capazes de me destruírem. deusa X, que criou o primeiro do nosso grupo.
Na minha fantasia, suponho-os com força suficiente Com o tempo haveria registros de pinturas e escritos
para acabar com meu mundo. Tenho medo e, como demonstrando que sempre fomos as pessoas boas
toda criança assustada, fico agitado, agressivo, tenso. e confiáveis, e que os do rio de baixo sempre foram
O medo é um dos pais do preconceito. O ódio é seu inferiores e mais agressivos.
filho primogênito. É uma família complementar. Com o tempo, o amplo leque da civilização criaria
Saltam aos olhos os eixos negativos do preconceito: explicações sofisticadas, e haveria até discursos
burrice e medo. Mas apenas gente limitada ou muito científicos provando que o rio de baixo era um espaço
negativa teria preconceito? A resposta, um pouco ruim para a civilização. Talvez o clima quente os 4
dolorosa, é não. tornasse mais preguiçosos, talvez o peixe fosse a base
Há milhões de anos, no atual continente africano, de uma lentidão no falar, talvez os genes... Mas, antes
uma espécie começou a ficar diferenciada em relação a de tudo isso, ainda na aurora da Pré-História, eram
outros mamíferos. Os chamados hominídeos eram bem apenas dois bandos desesperados por comida,
mais frágeis do que a média dos outros. Faltavam assustados, que confiavam apenas nos mais próximos.
garras, tamanho que inspirasse respeito e pele dura. O preconceito nasceu como forma de defesa e
Faltava força. Faltava tudo. Assustados, em estado de sobrevivência. Falar de perigos, individualizar sua
busca constante de comida, com ninhadas frágeis e fonte (inclusive perigos reais de inimizades entre
vidas curtas: a primeira humanidade era um caniço de grupos) era uma forma clara e declarada de defesa.
pouca resistência. Um vento forte, uma seca, um leão: Poderíamos dizer que os mais desconfiados, os mais
tudo poderia destruir essa semente humana. preconceituosos ou os que acreditaram mais nos riscos
Para sobreviver, esses parentes próximos dos símios verdadeiros ou ilusórios foram, provavelmente, os que
tiveram de elaborar ferramentas e estratégias. O sobreviveram. Somos descendentes dos covardes.
homem é mortal por seus temores e imortal por seus Somos filhos em linha direta de preconceituosos.
desejos, diria o sábio Pitágoras muito tempo depois. Somos imersos em preconceito. Alguns seriam
Mas o primeiro tempo humano não era de Filosofia: positivos? Uma amiga minha, nascida no interior
era uma dura luta pela sobrevivência. paulista, identificava, no sotaque com o "R" reforçado,
Dissemos que havia estratégias e ferramentas. As um conforto afetivo.
ferramentas foram estimuladas pelo polegar opositor, Se alguém falasse "porrrrrrrta" perto dela, ela sorria e
nosso dedo mais estranho e mais fundamental da mão. desenvolvia, imediatamente, a ideia de que essa pessoa
Sem ele o machado e a caneta seriam pouco úteis. As era boa e de que havia potencialmente uma chance de
ferramentas deram força à frágil mão humana. Pedras, amizade. Essa pessoa séria confiável. Era, claro, um
paus, depois metais: ganhamos uma energia inédita. A preconceito positivo.
humanização passou pelo primeiro de nós que decidiu
elaborar uma ferramenta. Já era possível apostar nos Preconceito positivo é quando eu concluo
seres humanos numa bolsa de futuro. Claro: a aposta previamente que algo é bom, a partir de coisas como
ainda era bem arriscada, mas havia uma luz fraca de origem ou até sotaque. "Hum!, este vinho é francês?"
futuro para a espécie. "Esta massa é típica italiana?" "Este livro é do filósofo
alemão?" Em todos os infinitos casos que poderíamos
Houve muitas estratégias. Andar em bandos foi a arrolar, procedência já indica muito. Claro que há
mais natural. O coletivo dava força e protegia. Um vinhos franceses intragáveis. É óbvio que há filósofos
grupo de caçadores e guerreiros fortalecia o êxito. alemães medíocres e massas italianas ruins. Existem
Nascemos gregários, mas, acima de tudo, preconceitos positivos.
sobrevivemos também pelo bando.
Tal como os negativos, não são científicos. Mas, ao
A principal lição do bando primitivo foi que havia contrário dos negativos, não excluem nem agridem,
menos perigo em gente do meu bando do que em gente pelo menos não de forma tão direta.
do grupo rival. A tribo concorrente, ou o simplesmente
diferente, era o desafio, a insegurança e o risco. Confie Deixamos de lado os muitos preconceitos positivos.
nos iguais e desconfie dos diferentes: talvez tenha sido Buscaremos os negativos, pois esses têm a chance
esse o primeiro processo cultural relevante que histórica de maior dano. Esses podem causar até morte.
desenvolvemos. Após essas definições iniciais, trataremos de
Você é da tribo do rio de cima e coleta sementes preconceitos concretos. Só assim ocorrerá a
junto com raízes e come animais pequenos? possibilidade de lançar luzes sobre essa área sombria
da psique humana.
Aprenda que o grupo do rio de baixo, que come mais
peixe e usa lanças menores, é ruim, perigoso e não O preconceito de gênero, a misoginia, por exemplo, é
confiável. Com o tempo surgiram explicações culturais quase universal e tem facetas trágicas. O racismo
marca a história de muitos países, como o Brasil, por
exemplo.
A homofobia gera assassinatos e piadas. A lista é Se fôssemos sábios, não atacaríamos a ninguém, nem
interminável. Vivemos a lipofobia, o horror aos faríamos piadas de ninguém, nem teríamos
gordos; cresceu entre nós a demofobia, a resistência ao preconceitos com ninguém. Se fôssemos sábios, não
povo e sua presença e valores. A homofobia causa haveria detração nem problemas no mundo causados
muitos assassinatos no Brasil. A lista é infinita. pelo preconceito.
O espaço do livro leva a escolhas técnicas. Em vez de risos nervosos por piadas preconceituosas,
É incômodo reconhecer: por mais que analisemos o riríamos com as crianças, com o Sol e com o mar. Se
preconceito, sempre haverá itens que ficarão de fora. A fôssemos sábios...
abundância nesse campo é um dado ruim.
REFERÊNCIAS 4
O preconceito gera detração. Com frequência, essa
detração vem acompanhada de humor. A comédia
flerta, amiúde, com o preconceito. Claro, sabemos Eis alguns livros que citei e outros que não citei e que
todos: rindo se corrigem os costumes (ridendo podem ajudar a aprofundar o conceito.
castigas mores). O riso é detestado pelo poder porque Para enfoques sociológicos:
é um gesto político de desconstrução do poder. A frase ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos
jocosa e a piada escancaram os podres que todos os e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
agentes de poder tentam ocultar. O riso é uma de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge
poderosa arma de crítica política e social. Zahar, 2000.
Mas, desde a comédia grega, vemos em Aristófanes OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Sociologia da fofoca:
uma desconfiança da democracia, do poder das notas sobre uma forma de narrativa do cotidiano.
mulheres e até da Filosofia. Para alguns, peças que Apresentado no 34° Encontro Anual da Anpocs. Texto
ironizavam Sócrates poderiam estar na base do disponível na internet:
processo que levou à sua morte. Já foi dito que a piada http://portal.anpocs.org/portal/index. php?
antissemita abriu os portões de Auschwitz e que a option=com_docman&task=doc_view&gid=1676&Ite
piada misógina, de desconfiança da capacidade mid=350 (Acessado em 10 de fevereiro de 2016.)
feminina, encontra, no fim, o resultado trágico nas
Coletâneas de frases maldosas e sobre a maldade
delegacias da mulher.
humana, algumas utilizadas no livro:
Faça um esforço para lembrar alguma piada que não
CASTRO, Ruy. O melhor do mau humor. São Paulo:
insulte ou jogue preconceito sobre uma nacionalidade,
Cia das Letras, 1989.
um gênero, uma religião, uma faixa etária, uma etnia,
uma opção sexual ou uma tipologia física. As piadas FRANCO, Gustavo H. B.; GIAMBIAGI, Fabio.
que causam mais sucesso são, exatamente, aquelas que Antologia da maldade - um dicionário de citações,
nascem e crescem no preconceito e proclamam uma associações ilícitas e ligações perigosas. Rio de
detração injuriosa sobre algo ou alguém. Janeiro: Jorge Zahar, 2015.
Não há muitas piadas sobre homens loiros, cristãos, MENCKEN, H. L. O livro dos insultos. São Paulo: Cia
heterossexuais, nascidos num grande centro urbano, das Letras, 1988.
bem-sucedidos financeiramente e com doutorado em Fontes históricas e biografias:
Yale.
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, village
Há mais piadas sobre loiras, homossexuais, judeus, occitan de 1294 à 1324. Paris: Galimard, 1975. Há
islâmicos, negros, nordestinos, portugueses, pobres, versão em português de Portugal pela Edições 70.
gordas, etc. Só essa lista já deveria servir para
MAZARIN, Giulio. Breviário dos políticos. São Paulo:
entendermos que o humor, o preconceito e a detração
Editora 34, 1997.
fazem parte do mesmo triângulo equilátero.
MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo:
O processo é o mesmo. Conto uma detração sobre
Cia das letras, 1994.
alguém desse grupo, provavelmente, para uma segunda
pessoa que não pertence a esse grupo. Não seria muito Citações da Bíblia: utilizei a Bíblia de Jerusalém.
inteligente contar uma piada de argentinos num lotado
estádio de Buenos Aires. Notas
A piada, como todo preconceito, busca estabelecer
laços com alguém, identidade. O meio mais rápido [←1]São Paulo, Editora 34, 1997. Tradução de Paulo Neves.
para unir um grupo, bem sabiam os nazistas, é criar um
inimigo em comum. Talvez a verdadeira graça de toda [←2]MAZARIN. Breviário dos políticos. Op. cit., p. 107.
piada e o prazer que provoca esteja nisto: não sou
aquela pessoa/grupo do qual nós estamos rindo. Sou [←3]São Paulo: Cia das Letras, 1988.
como você e, rindo, nós nos consideramos superiores
ao alvo da detração. [←4]MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo:
Cia. das Letras, 1994, p. 336-337.
[←5]ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos
e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de
uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.