Cristianismo Mágico - O Uso Mágico Dos Salmos (Atualização 3)

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DA SÉRIE

CRISTIANISMO MÁGICO:
A MAGIA DOS SALMOS
~ CURSO DE OCULTISMO CATÓLICO ~
FERNANDO DE LIGÓRIO

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SUMÁRIO

Apresentação a Magia dos Salmos


Apresentação ao Ocultismo Católico
Introdução ao Ocultismo Católico
Magia é Teologia Prática
Magia & Tradição Católica
A Lei do Conhecimento; A Lei da Imitação; A Lei do Mentalismo; A Lei da
Correspondência; A Lei do Contágio.

A Vida Celestial
Introdução a Hierarquia Celeste do Ocultismo Católico
Palavras Iniciais; Dionísio Pseudo-Areopagita; Os Primórdios da Magia;

(texto a terminar)

Teurgia & Liturgia (texto a terminar)


Seção 1: A Teurgia de Jâmblico; O Ritual & a Ordem Cósmica; Sunthēmata;
Em defesa da Imagem: os Símbolos na Teurgia #1; Em defesa da Imagem: os
Símbolos na Teurgia #2; Seção 2: A Doutrina do Ícone na Tradição Católica;
Seção 3: Santo Agostinho & a Herança Teúrgica; Seção 4: A Liturgia na Igreja
Primitiva.

Teurgia & Goécia


Um Elogio a Magia Tradicional Salomônica
Magia Tradicional Salomônica & Iniciação
Magia Astral & Magia Tradicional Salomônica
O Método Salomônico
Consagração; Invocação; Evocação; Constrição; Ligação; Licença para partir.

Primeira Parte
Seção 1: Preparação & Conhecimento Técnico
1. Tabulação de Horas Planetárias
A Lua nas Casas Zodiacais; Mansões Lunares; Conjunções adequadas para
Magia; Anjos das Horas do Dia e da Noite; Nome dos Anjos das Estações;
Nome dos Anjos das Horas Planetárias (Dia); Nome dos Anjos das Horas
Planetárias (Noite); Hierarquia Espiritual; Propriedade das Medicinas Pla-
netárias para fins de Operações Mágicas.

2. Correspondências Mágicas Diversas (texto a terminar)


Correspondência de Cores e o Zodíaco; Correspondência de Planetas e suas
Cores; Correspondência de Planetas e seus Metais; Correspondência de Pla-
netas e suas Minerais; Correspondência do Zodíaco e Minerais; Correspon-
dência de Planetas, Metais, Minerais e Arcanjos; As virtudes dos Minerais;
Correspondência de Planetas e Vegetais; Correspondência de Planetas e Ár-
vores Especiais para Magia; Correspondência de Planetas e Fisiologias Vege-
tais; Simbolismo geral dos Vegetais; Virtudes de Vegetais Especiais para Ma-
gia; Virtudes Gerais dos Vegetais para Magia; Correspondência de Planetas e
Perfumes para Fumigações na Magia; As Virtudes dos Perfumes principais

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utilizados na Magia; Fumigações para os dias da Semana; Compostos para
Fumigações Planetárias; Compostos para Fumigações Planetárias Coloridas;

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APRESENTAÇÃO A MAGIA DOS SALMOS

Os Salmos não são nada mais do que um meio para o assento da Majestade de Deus
por meio do qual vocês se reúnem com os devidos poderes para aplicar suas nature-
zas aos santos Anjos. ~ Arcanjo Uriel a John Dee em 10 de março de 1582.

As palavras do Senhor são palavras sinceras, puras como a prata acrisolada, isenta de
ganga, sete vezes depurada. ~ Salmo 11:7.

O trabalho que agora vos entrego, meus alunos do Curso de Ocultismo


Católico, é o uso prático e mágico dos Salmos do Rei Davi como dis-
tribuídos em um grimório do Séc. XVII para utilização em amuletos,
encantamentos, orações e feitiços chamado O LIVRO DE OURO (Le
Livre d’Or). O LIVRO DOS SALMOS na BÍBLIA pode de longe ser considerado o
mais magicamente inclinado; os Salmos têm sido utilizados desde a Antigui-
dade em amuletos para os mais variados fins, sejam apotropaicos, cura ou
coerção de espíritos. Pelo menos desde o Séc. III d.C. os Salmos têm sido con-
siderados como uma tecnologia mágica de poder fenomenal, manifestações
do próprio poder de Deus cujas linhas iniciais foram utilizadas como símbo-
los que contêm o poder de todo o Salmo.
Pelo seu conteúdo e estilo, os Salmos têm uma nítida influência da ma-
gia egípcia e babilônica e eles podem ser considerados uma herança mágica
destas duas tradições espirituais. Vamos nos lembrar que os hebreus foram
cativos de ambas as nações egípcia e babilônica, daí a lógica desta interpre-
tação. Com o cruzamento cultural das crenças judaicas, helênicas, cristãs e
gnósticas que ocorreu entre os Sécs. I e IV d.C., os Salmos foram amplamente
utilizados pelos magos da Antiguidade cuja grande síntese mágica constitui
os PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS. Nos papiros gregos inúmeras referências
sobre o uso mágico dos Salmos são encontradas como a frase: um encanta-
mento testado [Salmo usado] por Pibechis [para livrar] aqueles possuídos por
daimones.1
Os Salmos desde então têm sido encontrados em amuletos ou na forma
de encantamentos em inúmeras línguas como o aramaico, copta-demótico,
grego, hebraico, latim, inglês, francês, português etc. Vários hinos de paje-
lança cabocla da região amazônica, por exemplo, contêm extratos e até por-
ções inteiras dos Salmos. O primeiro texto que conhecemos a utilizar osten-
sivamente os Salmos de maneira mágica é o hebraico SEPHER SHIMMUSH TEHI-
LIIM (O Uso Mágico dos Salmos) que data por volta do Séc. VIII d.C. Embora
não haja cópias preservadas deste texto, inúmeras referências a ele são en-
contradas em textos posteriores. A utilização dos Salmos sobre a qual vamos
nos debruçar nessa lição de Cristianismo Mágico: A Magia dos Salmos, basea-

1 THE GREEK MAGICAL PAPIRY IN TRANSLATION, Betz (Ed.).

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da em O LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or), deriva de uma versão tardia do SEPHER
SHIMMUSH TEHILIIM datada do Séc. XVIII.
Desde sua utilização judaica e cristã na Antiguidade tardia, o uso mági-
co dos Salmos se espalhou por toda Europa, influenciando a tradição dos
grimórios medievais e a magia popular europeia. Os grimórios medievais
são intricados livros contendo listas de demônios/espíritos, instruções ritu-
ais, conjurações e encantamentos que eram reproduzidos manualmente, às
vezes com acréscimos pessoais ou revisões de quem os copiavam. Esses
grimórios se espalharam rapidamente pela Europa entre os Sécs. XIII e XVIII.
A quantidade de Salmos usados em grimórios como A CHAVE MAIOR DE SALO-
MÃO, o LEMEGETON ou A CHAVE MENOR DE SALOMÃO e O LIVRO DA MAGIA SAGRADA
DE ABRAMELIN, O MAGO, demonstra não só o poder dos Salmos na magia, mas
sua ampla utilização por parte dos magos da Antiguidade e Idade Média. O
LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or) ainda traz uma profunda influência de grimó-
rios como HEPTAMERON, STENOGRAPHIA e o LIBER JURATUS.
Os Salmos têm sido usados para cura e proteção contra maldições, ma-
gia negra e espíritos malignos tanto pela tradição da Igreja quanto pela ma-
gia popular, primeiro na Europa e hoje em várias partes do mundo, incluin-
do o Brasil, como no caso da pajelança cabocla das comunidades ribeirinhas
da bacia amazônica e religiões populares como a Barquinha, a Jurema e o
Santo Daime. Do mesmo modo, os Salmos têm sido usados ostensivamente
como oráculos. Esse tipo de uso é datado desde o Séc. XI na Europa e se es-
palhou por todos os continentes católicos. Escolhe-se em sorteio um dos
Salmos e utiliza-se ele em orações, cantos, inscrito em amuletos ou escrito e
dobrado em papel ou pergaminho dentro de patuás. Na comunidade do San-
to Daime conhecida como Céu do Mapiá na Amazônia um dos Salmos é sor-
teado e lido todos os dias no Ritual da Oração que ocorre às 18:30. Há um
pequenino livro contento os Salmos que é usado por católicos todos os dias.
Escolhe-se aleatoriamente um dos Salmos para ser lido durante o dia ou nas
orações da manha.
O LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or) é um grimório francês anexado a um
manuscrito de A CHAVE MAIOR DE SALOMÃO datado de 1202 (Lansdowne MS), o
que configura uma relação direta com esse grimório. Ao analisarmos ambos
os manuscritos é possível inferir que a utilização dos Salmos nessa relação é
para fins exclusivamente seculares, não espirituais:

 Para proteção: 40 Salmos;


 Para cura e saúde: 27 Salmos;
 Para amizade e influenciar pessoas: 18 Salmos;
 Para boa sorte e fortuna: 15 Salmos;
 Para magia de amor: 14 Salmos;
 Para livrar alguém da prisão ou condenação: 9 Salmos;
 Para matar ou destruir inimigos: 8 Salmos.

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Como podemos ver, por esse tipo de inclinação os Salmos são usados osten-
sivamente para magia e, não raras vezes, em seus aspectos maléficos.
Durante a Idade Média a Igreja utilizava os Salmos contra a magia pagã
das várias culturas europeias. Há o caso de São Patrício que duelou magica-
mente contra os druidas na Irlanda usando os Salmos. Inúmeras conjurações
nos grimórios medievais contêm versos dos Salmos. Na tradição cipriânica
da magia, várias orações também contêm versos dos Salmos. Abramelin re-
comenda que todos os Salmos devem ser lidos pelo menos duas vezes por
semana. Dessa maneira, é inegável que a tradição da magia tem se valido do
poder dos Salmos para empoderar seus ritos, encantamentos e conjurações.
Como veremos nessa lição de cristianismo mágico, os salmos podem ser
inscritos em papel, pergaminho fino, papiros, placas de vidro, amuletos de
metal, barro ou feitos de pedras. Para consagrações são usados vários ele-
mentos como água, óleo de oliva ou olíbano, mástique (resina de aroeira) ou
aloés. Mas algumas consagrações pedem sangue de sacrifício animal, o que
denota uma estreita conexão com os grimórios. Os animais para sacrifício
são: morcegos, sapos, pombas brancas, galos pretos e bodes. Em outros ca-
sos, sangue menstrual é requerido. Os símbolos utilizados nos amuletos dos
Salmos são caracteres de alfabetos mágicos diversos, alquímicos e herméti-
cos. Nesse caminho, ficará claro que o uso dos Salmos como vamos explorar
é mágico e tem finalidade material tangível: o que se quer é mudar a estrutu-
ra da realidade através de seu uso.
Um ritual para uso geral será delineado a seguir tendo como base o
HEPTAMERON e a CHAVE MAIOR DE SALOMÃO. Estes dois grimórios são, portanto,
essenciais ao nosso estudo, bem como A MAGIA DE ARBATEL. Para uma eficiên-
cia completa deste estudo prático, considera-se que o mago deva ter tam-
bém familiaridade com A CHAVE MENOR DE SALOMÃO (Goécia), O LIVRO DA MA-
GIA SAGRADA DE ABRAMELIN, O MAGO e o STENOGRAPHIA.
Como ficará claro nessas instruções para o curso de Ocultismo Católico,
os rituais delineados, as instruções indicadas para uso de equipamentos ce-
rimoniais, as consagrações diversas de amuletos, talismãs e pantáculos se-
guem uma estrutura salomônica de magia. Isso implica certo conhecimento
acerca da magia salomônica e alguma intimidade com os grimóirios acima
citados. O método salomônico, como vimos no Curso de Filosofia Oculta, é
uma fórmula geral para magia salomônica evocatória apresentada por Cor-
nélio Agrippa no QUARTO LIVRO DE FILOSOFIA OCULTA. Essa fórmula será de
muita utilidade aqui. A magia tradicional salomônica é animista. Isso signifi-
ca que cada objeto utilizado na prática da magia possui um espírito que deve
ser conjurado e obrigado a fazer um laço, contrato ou compromisso com o
operador através de conjuros, imprecações e fundamentalmente, juramen-
tos. Nessa instrução vamos nos debruçar então sobre esse aspecto da magia
dos Salmos do Rei Davi. Cada um dos 150 Salmos possui um espírito. O mago
precisa, portanto, conjurar essas entidades e construir para elas um receptá-
culo de poder, que tanto será um assentamento magicamente preparado e

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um amuleto teurgicamente consagrado que servirá de lanterna mágica para
influência espiritual do espírito de cada Salmo.
Para fazer este trabalho espiritual é necessário, dessa maneira, a utili-
zação de equipamento mágico, pantáculos salomônicos para construção de
assentamentos para os espíritos dos Salmos e outros equipamentos. Como
se trata de uma prática de magia orientada a católicos praticantes, será ne-
cessário o crucifixo, a BÍBLIA, cálice e patena, pão ou hóstia e vinho para co-
munhões do Corpo e Sangue de Cristo. Tudo arranjado em um templo ou
santuário de poder com um círculo mágico no chão. A toda essa tecnológica
mágica é requerido uma piedade cristã mística diária, tanto matutina quanto
noturna. Abaixo também será delineado um plano geral para essa piedade
cristã, no entanto, seria interessante que o mago estivesse bem familiarizado
com a obra de Agrippa, OS TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA, bem como obras
católicas essenciais: COMPÊNDIO DE TEOLOGIA ASCÉTICA E MÍSTICA do Padre A-
dolphe Tanquerey; DO GRANDE MEIO DA ORAÇÃO do Santo Afonso de Ligório;
TRATADO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA VIRGEM do Santo Luís Maria
Grignion de Montfort. Além disso, algum conhecimento teológico prático, o
que constitui a essência do ocultismo católico.
Diversas vezes eu digo que o exercício da magia tradicional salomônica
seria muito mais eficiente se o operador for um sacerdote consagrado da
Igreja. A magia salomônica, vamos nos lembrar, durante a Idade Média pode
ser considerada magia para letrados, pois os grimórios eram livros de feiti-
çaria em latim. Esses grimórios foram introduzidos na Europa a partir dos
Sécs. XI e XII de fontes derivadas da tradição bizantina. Quando Maomé II, o
Conquistador (1432-1481), atacou Constantinopla por volta de 1422, ini-
ciou-se uma grande migração ou transferência de cultura mágica da Grécia
para Itália. A perda de Constantinopla e, portanto, do Império Bizantino para
o Islã em 1453, resultou em uma transferência quase que total da cultura
mágica da Grécia para Itália, onde já havia uma maciça presença bizantina.
Foi na Itália, portanto, que o HYGROMANTEIA foi traduzido do grego para o
latim e logo se tornou a CLAVÍCULA DE SALOMÃO (Chaves Maiores). Uma vez
traduzidos para o latim, os grimórios gregos logo se espalharam para o Nor-
te da Itália para o resto da Europa: França, Alemanha e Inglaterra. Foi so-
mente a partir de 1641 que estes grimórios latinos começaram a ser tradu-
zidos para o inglês. Embora o latim fosse à língua de comum uso da elite eu-
ropeia, a Corte e a Igreja, inúmeras perturbações como a guerra civil da In-
glaterra que influenciou movimentos anticlericais em toda Europa, provoca-
ram o início do declínio do latim. Além disso, a partir de 1641 diversos livros
em inglês começaram a circular em toda Europa. Isso abriu caminho para
que grimórios em latim como a CLAVÍCULA DE SALOMÃO e o LEMEGETON logo
fossem traduzidos para o inglês e espalhados pela Europa. Assim, quando
me refiro a magia tradicional salomônica praticada pela elite europeia, me
limito apenas a magia como compreendida na Idade Média, antes do Renas-
cimento.

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Nesse período, antes do renascimento, a magia foi preservada princi-
palmente nas mãos de sacerdotes, por isso a cosmovisão transmitida pelos
grimórios é essencialmente cristã, embora sua linguagem principal seja a-
quela da tradição ou magia judaica. Soldo: embora a linguagem dos grimó-
rios seja essencialmente judaica, a visão de mundo que neles encontramos é
essencialmente cristã. Toda hierarquia angelical e demoníaca dos grimórios
é cristã, não judaica. Disso, muitas das consagrações dos instrumentos mági-
cos requerem uma consagração sacerdotal. Não é muito melhor se o mago
operante fosse um sacerdote consagrado da Igreja, um entendedor profundo
da cosmovisão dos grimórios? Sim, seria! Hoje é possível que um ocultista
católico se torne um sacerdote, mesmo tendo família e filhos. Na Igreja Orto-
doxa, por exemplo, sacerdotes consagrados podem ser casados. No entanto,
caso isso não seja possível, para praticar a magia dos grimórios com eficiên-
cia, melhor seria, muito melhor mesmo, se o mago fosse um cristão devoto
que participasse constantemente dos sacramentos da Igreja.
Desde a aurora dos tempos, os magos têm entrado em contato com di-
versos espíritos para praticar magia. Tradições de mistérios da Antiguidade
fizeram amplo mapeamento desses espíritos. A Igreja propôs uma reinter-
pretação nessa hierarquia de espíritos, dividindo o mundo espiritual em du-
as categorias apenas: anjos e demônios. Trata-se de uma realidade o fato de
termos de aceitar isso para operar com os grimórios com eficiência. É com a
chave correta que se abre uma porta. A porta mágica da magia tradicional
salomônica só se abre com a chave da cosmovisão cristã da Idade Média. Por
isso autores que operam com essa tradição como Lisiewski dizem que para
se operar com a magia «old school» é necessário assumir a visão de mundo dos
magos «old school».2 Eu costumo dizer que contra fatos não há argumentos.
Toda tentativa de burlar essa realidade trata-se de uma adaptação da magia
salomônica e não pode, de fato, dizer-se magia tradicional salomônica.
Então nós podemos falar um pouco acerca de adaptações modernas.
Aos meus alunos eu costumo dizer: chega de papel. A magia moderna, prin-
cipalmente a partir da Ordem Hermética da Aurora Dourada, coloca ênfase
na construção de pantáculos em papel. O papel, além de ser perecível, é um
péssimo acumulador e transmissor de energia vital. Ademais, pantáculo para
ser eficiente deve ter peso. Os grimórios consistem uma segunda síntese da
magia, derivados da primeira síntese da magia dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-
EGÍPCIOS. Os pantáculos que aparecem em alguns manuscritos da CLAVÍCULA
DE SALOMÃO não são encontrados nos papiros da Antiguidade ou mesmo no
HYGROMANTEIA. Isso significa que eles foram introduzidos originalmente a
partir de fontes exclusivamente judaicas. Eles aparecem efetivamente em
um manuscrito chamado SEPHER HA-OTOT (O Livro dos Selos). Portanto, a ver-
são popular das CLAVÍCULAS DE SALOMÃO que McGregor Mathers (1854-1918)
apresentou ao mundo a partir de manuscritos modernos (franceses e ingle-

2 Joseph C. Lisiewski, CEREMONIAL MAGIC & THE POWER OF EVOCATION. As aspas são minhas. Preferi não traduzir o
termo old school (escola velha ou antiga). O termo faz referência a magia como praticada na Idade Média, antes
da era moderna iniciada com o Renascimento.

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ses), trata-se de uma versão moderna derivada de manuscritos originalmen-
te judeus, pois os pantáculos não estão presentes em manuscritos gregos ou
qualquer versão do HYGROMANTEIA. Foi somente quando os grimórios gregos
foram traduzidos para o hebraico que a tecnologia dos pantáculos foi intro-
duzida na magia tradicional salomônica. Isso coloca um ponto final na ques-
tão: o método salomônico de magia evocatória é baseado em magia hebraica
ou grega? Não há nenhuma evidência de que o método salomônico de magia
que utiliza a tecnologia do círculo mágico e o uso de armas mágicas consa-
gradas tenha aparecido em qualquer manuscrito judeu antes de 1700. Po-
demos dizer com certeza absoluta que a magia tradicional salomônica vem
da magia grega, não da magia judaica.
Seja como for, a utilização da tecnologia dos pantáculos que encontra-
mos nos grimórios é produzida em: pedras, metal, pergaminho ou papiro. O
melhor mesmo são pantáculos de pedra, pois acumulam e retêm mais ener-
gia vital. Depois o metal e o pergaminho. Pantáculos em papiro são tão pere-
cíveis como em papel moderno. Quando o mago não possui uma base mágica
efetiva para o pantáculo ou amuleto, sua eficiência é totalmente psiúrgica e o
operador terá de contar apenas com a influência noética do símbolo no pan-
táculo (ou amuleto) e o poder de sua mente. Magia se faz com ajuda do corpo
de Deus, isso inclui não somente espíritos diversos, mas o uso de pedras,
plantas, metais e conjunções astrológicas adequadas. Isso dá a magia sua
eficiência, do contrário, é apenas a mente trabalhando no processo. Isso não
é magia, mas psicurgia. Magia tradicional salomônica é magia, não psicurgia,
muito embora a psicurgia seja usada para dar mais força ao processo da ma-
gia. No curso de Ocultismo Católico, principalmente no uso mágico dos Sal-
mos, magia e psicurgia caminham de mãos dadas. Às vezes o trabalho mági-
co com um dos Salmos inclui a produção de um amuleto que servirá de lan-
terna astral para a influência do espírito do Salmo; outras vezes um óleo é
consagrado com orações e a inscrição de símbolos nas mãos do operador
que se ungirá com o óleo; este servirá como lanterna mágica para influência
do espírito do Salmo.
Para seguir a cosmovisão salomônica, os espíritos dos Salmos nós cha-
mamos de anjos, os quais devemos evocar para energizarem assentos de
poder e alimentarem pantáculos, amuletos e óleos diversos. A intenção é,
dessa maneira, construir um manaim (acampamento) de anjos ao redor do
mago, uma corrente mágica que servirá aos mais variados fins na vida do
mago.
Essa instrução de Cristianismo Mágico: A Magia dos Salmos será dividi-
da em duas partes. Na primeira parte nós trataremos de uma longa jornada
por correspondências mágicas que incluem horas planetárias, alfabetos de
poder, pedras e plantas, nomes de poder das hierarquias angélicas, tempos
de poder como estações e conjunções astrológicas, instruções rituais e exer-
cícios místicos de teurgia. Na segunda parte nós trataremos de cada um dos
150 Salmos e sua utilização na magia.
Bom estudo.

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APRESENTAÇÃO AO OCULTISMO CATÓLICO

[Texto retirado do Curso de Ocultismo Católico.]

O curso que agora lhe chega às mãos é fruto de uma síntese na minha
jornada espiritual que chamo de ocultismo católico. Hoje existem
mais de dois bilhões de católicos no mundo. A tradição espiritual
do Ocidente, o que ocultistas têm chamado de Tradição Esotérica
Ocidental, é fundamentalmente católica. É inquestionável que a Igreja Católi-
ca tenha construído a sociedade e moldado a cultura ocidental. Como vere-
mos extensamente nesse curso, a tradição católica encerra em seu escopo
religioso, teúrgico e mágico os Arcanos dos cultos de mistérios da Antigui-
dade clássica e tardia, além de concentrar um amalgama de tradições religi-
osas do Mediterrâneo e Oriente Médio. A Igreja Católica é uma tradição de
mistérios e, quem sabe, a maior ordem mágica da história do homem.
Ocultistas em geral são levados a acreditar, por desinformação, imatu-
ridade ou ignorância espiritual, que a Igreja Católica: 1. não possui mistérios
de iniciação; 2. perdeu seus arcanos e mistérios; 3. que sua doutrina impede
e condena tudo o que os ocultistas gostam de fazer, quer dizer, estudar a
verdade, o oculto por trás dos fenômenos da natureza, compreender suas
leis e aprender a manipulá-las. No entanto eu concluí que a tradição católica
contém os arcanos de iniciação de vários dos cultos de mistérios da Antigui-
dade, mas muito poucos são capazes de perceber. Eu percebi também que a
teurgia, quer dizer, a união da Alma com Deus e que a magia, o contato com
espíritos de todo o tipo para realização de tarefas cuja única intenção e su-
perar as demandas da vida, estão contidos no exercício da liturgia e comu-
nhão dos sacramentos, bem como no contato com anjos, arcanjos, tronos,
santos etc. para os mais variados fins possíveis. Assim, nesse curso você verá
que a invocação de um herói na teurgia clássica grega não é distinta da ora-
ção para um santo na tradição católica. Você verá como os anjos da teurgia
grega se tornaram as autoridades na hierarquia católica e fundamentalmen-
te, como os daimons dos gregos ou djinns dos mulçumanos se tornaram os
principados ou os demônios caídos. Por fim, você concluirá que a magia é só
um nome que os pagãos dão a aplicação prática da teologia.
Jâmblico – o maior gigante de todos que influenciou a tradição da magia
para nós ocultistas e hermetistas – em seu DE MYSTERIIS colocou ênfase em
duas questões fundamentais: a teurgia como exercício de união entre a Alma
e Deus está contida em todas as religiões culturais e que seu exercício é me-
lhor aplicado quando o teurgo pratica a teurgia de sua cultura. A maior tra-
dição teúrgica do Ocidente ainda é o cristianismo católico. Como tradição
espiritual e ordem mágica, o ritual de iniciação é a cerimônia do batismo. Ao
ser batizado por um sacerdote de Jesus Cristo a Alma leva para sempre a

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chancela da Igreja Católica (Apostólica Romana ou Ortodoxa). A maioria das
pessoas, a grande maioria mesmo, foi batizada na Igreja Católica. Os batiza-
dos, assim, são assistidos espiritualmente por essa tradição espiritual e têm
acesso direto a seu núcleo central ao se dirigirem a Nosso Senhor Jesus Cris-
to e a Nossa Santa Imaculada e Sempre Virgem Maria sobre toda humanida-
de. Diante desse conhecimento, Jâmblico chama de infantil aquele que adora
deuses de outras culturas. E é isso mesmo! Adorar deuses mortos cujo culto
e tradição foram há muito esquecidos é uma tarefa no mínimo laboriosa em
demasia. Para que a adoração de deuses mortos de outras culturas funcione
o mago precisa energizar a egrégora do culto ou tradição em questão. Imagi-
ne cultos e egrégoras como lâmpadas incandescentes brilhantes nos planos
internos. Na medida em que estes cultos e tradições são esquecidos, suas
lâmpadas perdem potência e sua luz diminui até apagar-se completamente.
Dessa maneira, o mago tem de se esforçar para fazer essa lâmpada brilhar
novamente, caso contrário seus esforços mágicos ou místicos produzirão
apenas um resultado: a falha.
A egrégora da tradição católica está brilhando nos planos internos. Seu
acesso é fácil a qualquer um que dizer: Pai Nosso que estais nos Céus. A cada
cinco minutos existem pelo menos cinco mil católicos rezando o terço ou
fazendo novena, invocando a ajuda de santos. Como ocultistas, porque não
olhar com mais profundidade a teurgia e magia da tradição católica? Bem,
neste caminho nós vamos constatar que o exercício do rosário é uma jorna-
da de pathworking na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo; que a liturgia não é
apenas um exercício de comunhão pessoal com Nosso Senhor Jesus Cristo,
mas uma caridade ou ação social em favor das Almas de toda humanidade;
que a tradição cristã tem amuletos e talismãs para várias causas e fins; que a
cruz, velas, o óleo santo, a água benta ou exorcizada, o sal, a roupa sacerdotal
etc. são poderosas armas utilizadas na teurgia e magia da tradição católica.
O conceito fundamental deste curso de ocultismo católico é que a magia
como os pagãos em geral entendem é a aplicação prática da teologia. A teo-
logia é um estudo que procura compreender a fé, a relação entre Deus e o
homem e a própria definição de Deus. Em TIAGO (2:17) nós aprendemos que
a fé sem obras é morta em si mesma e embora a aplicação dessa doutrina
seja elástica, ela se relaciona também ao conceito fundamental que damos a
magia neste curso: teologia aplicada. Dessa maneira, entendemos esse exer-
cício teológico não apenas como uma prática intelectual para compreender
os mecanismos da fé e nossa relação com Deus, mas o contato direto com
Deus para iluminação e salvação da Alma (teurgia) e o contato com os san-
tos, anjos, arcanjos, tronos etc. para superar os obstáculos que o mundo da
geração impõe a toda Alma (magia).
Como um ocultista e praticante de magia cerimonial levado a crer que a
tradição católica é desprovida de conteúdo mágico, você pode indagar: mas
não existe no catolicismo a tecnologia mágica que a magia cerimonial oferece,
como a utilização de símbolos (círculo mágico, triangulo da arte, adaga, espa-

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da etc.); como tornar a religiosidade católica em uma prática mágica adequa-
da a ocultistas católicos? Bem, é a intenção desse curso demonstrar isso.
Primeiro, como veremos a tradição mágica que mais se afiniza com
uma piedade mística católica é a magia tradicional salomônica. Os grimórios
salomônicos foram produzidos e reproduzidos pela classe letrada da socie-
dade medieval europeia, quer dizer, os sacerdotes, que fizeram várias ver-
sões latinas dos grimórios a partir do Séc. XII, talvez um pouco antes segun-
do alguns especialistas. Dessa maneira, nós notamos uma intimidade entre a
magia dos grimórios e a piedade mística católica.
O mago da Idade Média – sacerdotes ou civis de alta cultura – quando
pensava em salvar a sua Alma se dirigia a igreja; mas quando precisava re-
solver as demandas da vida, recorria à arte de Salomão contida nos grimó-
rios. Neste curso nós adentraremos aos rincões da história e cavaremos as
raízes dessa conexão entre a tradição católica e a magia dos grimórios, de-
monstrando como é possível cruzar a magia dos grimórios e a piedade cató-
lica diariamente.
Segundo, o catolicismo no Brasil, principalmente nas regiões caboclas e
crioulas do país, tem uma longa tradição de feitiçaria cristã. Na verdade,
desde o Séc. I d.C. a Igreja Católica manteve um forte apelo ao trabalho com
os santos de impacto distinto em várias comunidades. Um desses impactos
distintos é a famosa arte do hoodoo, uma tradição mágica folclórica e católica
com elementos sincréticos da cabala crioula, xamanismo norte-americano e
europeu que nasceu no estado do Mississipi nos EUA. O hoodoo é uma tradi-
ção ecumênica que incorporou e continua a incorporar elementos de outras
culturas. Voltando no tempo, o cristianismo copta no início da Era Cristã in-
corporou em sua prática elementos do paganismo egípcio e hoje temos aces-
so aos seus rituais graças a sobrevivência dos PAPIROS MÁGICOS COPTAS. No
Brasil a tradição do Santo Daime encarna esse ecumenismo católico em suas
cerimônias. O Santo Daime é uma religião cabocla formado por um tripé: o
catolicismo romano, a espiritismo kardecista e o xamanismo sul-americano.
Todas essas tradições católicas, o hoodoo, o cristianismo primitivo copta e o
Santo Daime compartilham do mesmo espírito ecumênico e contêm em seu
escopo e exercício uma típica feitiçaria cristã.

13
INTRODUÇÃO AO OCULTISMO CATÓLICO

[Texto retirado do Curso de Ocultismo Católico.]

[...] Os sete sacramentos da Igreja são as cores prismáticas da luz branca de um único
Mistério ou Sacramento, o do segundo nascimento, que o Mestre ensinou a Nicode-
mos em sua conversa iniciática noturna.3 É isso que o hermetismo cristão entende
por «Grande Iniciação».
Não é necessário dizer que ninguém inicia os outros, se entendermos por «inicia-
ção» o Mistério do segundo nascimento ou o Grande Sacramento. A Iniciação vem do
alto e tem o valor e a duração da eternidade. O Iniciador está no alto; cá em baixo só
se encontram condiscípulos e estes se reconhecem no amor que têm uns aos outros.
Também não existem Mestres, porque existe um só Mestre, que é o Iniciador que es-
tá no alto. Sem dúvida, sempre existem mestres que ensinam suas doutrinas e inici-
adores que comunicam alguns de seus segredos a outros, que se tornam, por sua vez,
«iniciados», mas tudo isso não tem nada a ver com os Mistérios da Grande Iniciação.4

O cristianismo da tradição católica constitui uma grande síntese dos


mistérios e arcanos contidos nas antigas religiões pagãs que flo-
resceram na região do Mediterrâneo na Antiguidade média e tar-
dia. Configurados sob uma nova perspectiva, estes mistérios e ar-
canos permaneceram ocultos na filosofia e religiosidade católica. A turgia
neoplatônica, condenada por Santo Agostinho de Hipona ser uma prática de
contato com demônios disfarçados de anjos,5 sobreviveu no exercício da li-
turgia, transformando a tradição católica uma das mais antigas escolas de
mistérios envolta e mergulhada em dois mil anos de prática ritualística. A
Igreja Católica desenvolveu com o tempo uma tecnologia mágica e teúrgica,
poderosos rituais de iniciação, auxílio e cura espiritual, técnicas místicas e
ascéticas de meditação e uma profunda riqueza espiritual pouco explorada
pelos ocultistas católicos, mas bem conhecida a católicos praticantes.
Mas isso não se trata de um segredo oculto aos fiéis, mas bem conhecido
aos padres. Não! Nada disso! Os segredos espirituais da Igreja Católica, seus
Arcanos e Mistérios, estão disponíveis a qualquer católico que tenha com-
preensão para percebê-los e sabedoria para praticá-los. Segundo o Direito
Canônico da Igreja, o cristianismo católico é um livro aberto a qualquer um
capaz de compreendê-lo.
Desde o Séc. IV d.C., quando o cristianismo católico tornou-se a religião
oficial do estado romano, os cristãos iniciaram uma longa perseguição e
condenação daqueles que anteriormente os acusavam de praticar magia.
Foram os esforços de Santo Agostinho que demonizaram os deuses e cultos
pagãos, nascendo daí uma nova interpretação acerca de espíritos e criaturas

3 JOÃO, 2:23-3:21.
4 MEDITAÇÕES SOBRE OS 22 ARCANOS MAIORES DO TARÔ, autor anônimo.
5 Santo Agostinho, A CIDADE DE DEUS.

14
espirituais, não mais deuses ou heróis, mas anjos caídos, demônios.6 O cris-
tãos perseguiram, condenaram e executaram praticantes de magia e feitiça-
ria, iniciando a primeira grande caça as bruxas da Era Cristã e queima de
manuscritos mágicos.
Para qualquer católico, portanto, a prática da magia é uma violação das
leis da Igreja, mais precisamente, uma violação do primeiro mandamento da
Lei Mosaica. A definição que a Igreja Católica dá a magia é essa: a arte de rea-
lizar proezas além do poder do homem com ajuda de poderes sobrenaturais
além do Divino.7 Outra definição no DICIONÁRIO DE LITURGIA PASTORAL de Rupet
Berger é essa: Postura que acredita poder forçar o aparecimento e a interven-
ção da divindade mediante certos ritos e atos, colocando-a a serviço dos pro-
pósitos humanos, ao passo que no culto [da Igreja] a comunidade realiza os
ritos em conformidade com instituição na esperança e na confiança cheia de fé
de que Deus cumprirá por graça sua promessa. Devem ser qualificados por
atos mágicos não tanto aqueles isolados, mas a postura espiritual de quem os
pratica. No agir mágico o ser humano não mais se considera no âmbito de a-
tuação de Deus, mas se isola na sua própria iniciativa.
O contraste reside aqui: para receber a graça divina de uma cura física
ou espiritual ou para que os entraves no caminho sejam retirados por esta
mesma graça de Deus, é preciso que o cristão tenha merecimento. Deus a tudo
dá e provê, Deus tudo possibilita, mas aqueles que merecem receber a graça,
estando completamente apartados do pecado. Sob a perspectiva mística da
fé, abraçar essa prerrogativa é um passo definitivo na vida de qualquer cris-
tão. Magia entra exatamente aqui: caso o cristão não mereça a graça divina
ele recorre ao que a Igreja chama de demônios disfarçados de anjos. Como
falei no texto Magia Astral & Magia Tradicional Salomônica, qualquer defini-
ção sóbria sobre a magia envolve o contato com entidades diversas do corpo
de Deus, as quais o mago recorre para resolver os problemas que não conse-
gue através da graça de Deus. Isso fere diretamente o primeiro mandamento
da Lei Mosaica, o que está em harmonia com as definições acima. Assim, co-
mo ser um ocultista e ao mesmo tempo um cristão católico?
Meu nome é Fernando de Ligório, praticante de cristianismo ortodoxo
primitivo. Quando iniciei minhas buscas espirituais trinta anos atrás, eu
pensei em me tornar um sacerdote da Igreja Católica. Na época eu pensava
que se me tornasse sacerdote, a Igreja não me permitiria explorar a magia e
seus mistérios e arcanos. Mas eu estava completamente equivocado. Anos de
busca me levaram a encontrar ou enxergar na tradição católica uma síntese
das escolas de mistérios do passado, quando passei a explorar com mais
profundidade a espiritualidade católica, percebendo em sua prática popular
a grandeza de sua magia e na sua prática litúrgico-sacerdotal toda profundi-
dade da teurgia de Jâmblico e Proclo. Isso me fez reencantar pelo cristianis-
mo católico.

6 Para uma interpretação atual veja SVMMA DAEMONIACA: TRATADO DE DEMONOLOGIA E MANUAL DE EXORCISTAS do
padre exorcista José Antonio Fortea.
7 THE CATHOLIC ENCYCLOPEDIA, Vol. 11.

15
O cristianismo hermético ou ocultismo católico abrange tanto a magia
quanto a teurgia. Nós podemos dizer com segurança que a teurgia é um con-
junto de métodos ritualísticos que nos conectam com Deus. Esse é o papel da
liturgia e seus sacramentos, conectar a Alma a Deus. A finalidade da liturgia
é transmitir a mente de cristo,8 a consciência que Jesus manifestou da Reali-
dade Última, Abbá. A liturgia, portanto, é um acontecimento teologal: Deus
vem ao encontro dos fiéis iluminando seus ovos áuricos, transformando-os
por meio de sua Palavra, o Logos, através dos rituais e símbolos sacramen-
tais. Na cerimônia de crisma o bispo abençoa com óleo santo e imposição de
suas mãos o corpo astral dos fiéis crismados com as palavras: Recebe, por
este sinal, o dom do Espírito Santo, quando nos tornamos discípulos do Cristo
ressuscitado. Na cerimônia de eucaristia todos repetimos: Anunciamos, Se-
nhor, a vossa morte e proclamamos vossa ressurreição. Vinde Senhor Jesus.
Comungando do pão e do vinho sobre os quais foi pronunciada a ação de
graças e invocando o Espírito Santo, somos todos cristificados pela eucariza-
ção (beraká), transformando-nos em um só corpo em Cristo. Isso é teurgia
pura! A meta da liturgia teúrgica da Igreja católica é transformar a Alma dos
fiéis no corpo de Cristo, na sarx do Logos, quer dizer, na Carne da Palavra. A
ação litúrgica empreendida pelo sacerdote e imitada pela congregação é a
ação do próprio Cristo e de seu Espírito vivificante para que participemos de
sua vida, permanecendo com Ele em comunhão perpétua.
A magia dentro da tradição católica pode ser explorada sobre amplas
perspectivas, incluindo a mariolatria e a magia com os santos. Acima eu falei
que a Igreja Católica constitui uma grande síntese das escolas de mistérios
do passado. Isso se deve ao fato da Igreja ter se esforçado para incluir no seu
corpo iniciático e religioso as tradições pagãs que em sua gênese competiam
diretamente com ela. Toda teurgia neoplatônica de invocação dos heróis, por
exemplo, pode ser encontrada nas diversas orações e receita de culto aos
santos. Essas orações e receitas são poderosas invocações, exorcismos e fei-
tiçaria reconfigurados para atender a fé cristã. A mariolatria, por outro lado,
inclui uma série de rituais para paz e bem-estar espiritual, proteção contra
inimigos, sabedoria, saúde, assistência espiritual, purificação, exorcismo etc.
No início do cristianismo, seu período primitivo, a magia misturava-se com a
fé como unha e carne. O cristianismo copta do Egito é um dos exemplos mais
tangíveis dessa mistura que vamos explorar profundamente neste curso.
E é interessante notar especificamente o caráter privado dos feitiços, in-
vocações e sortilégios dos PAPIROS MÁGICOS COPTAS que em sua grande maio-
ria serviam para: pedidos de desculpas e acerto de contas; proteção contra
mau olhado; proteção contra fantasmas e espíritos dos mortos; feitiços con-
tra pesadelos; proteção contra perigos em datas especiais, geralmente festi-
vidades equinociais; proteção contra problemas no dia-a-dia; proteção con-
tra doenças de todos os tipos; inflamações; hemorragias; dores de cabeça, de
dentes ou no abdômen; proteção contra acidentes que possam ferir qual-

8 Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo. 1 CORÍN-
TIOS, 2:16.

16
quer parte do corpo; cegueira; problemas no parto; proteção para as crian-
ças recém-nascidas; proteção contra animais de todos os tipos; proteção
contra inimigos, difamadores e caluniadores; proteção contra magia negra;
etc. É interessante notar também que nestes papiros coptas a maioria dos
feitiços servia para se proteger de alguma coisa, muitas vezes de ataques
mágicos. É uma característica da magia copta, quer dizer, a magia cristã da
Antiguidade tardia no Egito, não utilizar qualquer artifício mágico para pre-
judicar outras pessoas. E isso é deveras interessante por três motivos:
Primeiro, porque é possível notar certo nível de ética cristã na magia, o
que dificulta discernir o limiar entre religião e magia.
Segundo, porque por todo o Mediterrâneo na Antiguidade tardia as pala-
vras mageia e magoi eram utilizadas de forma pejorativa para descrever in-
divíduos exóticos e perigosos, conhecedores de palavras de poder e ritos
desconhecidos ou estrangeiros estranhos, taxados como bárbaros. Um mago,
portanto, representava uma figura invasiva a piedade tradicional cívica e a
coesão cultural. Na era Imperial, os imperadores romanos queimaram esses
papiros e prenderam qualquer pessoa que carregasse consigo amuletos má-
gicos. Os magos eram indivíduos marginalizados pela sociedade e ridiculari-
zados pelos sátiros da época. Muitos estudiosos argumentam que foi por
conta dessa perseguição cristã ao paganismo que filósofos que praticavam
invocações aos deuses como Jâmblico e Proclo defenderam o exercício da
teurgia como distinta da goécia, caracterizada pela inclinação grosseira e
ignorante de seus praticantes. Esse duelo entre teurgia e goécia continua até
os dias de hoje na forma de alta magia ou magia branca contra baixa magia
ou magia negra.
O que torna a magia copta interessante é o axis mundi que seu exercício
estabelece: a magia cristã da Antiguidade é ao mesmo tempo mística e mági-
ca; seus rituais de poder levam a Alma do mago aos planos de luz e perfeição
e as profundezas da terra. Quanto mais nos aprofundamos na magia copta
fica mais difícil discernir entre a prática da piedade religiosa cristã e pagã
unidas e a feitiçaria. Em nenhum desses rituais coptas de poder a palavra
magia ou qualquer outra palavra grega, latina ou demótica que tenha o
mesmo significado é usada; estes rituais eram poderosas invocações desti-
nadas a proteção contra magia negra e demandas do dia-a-dia. Muito prova-
velmente as pessoas que utilizavam estes rituais não se consideravam magos
ou pensavam estar praticando magia, que possuía péssimas conotações. Os
termos que eles utilizavam, phylakterion (amuleto) e apologia (feitiço), por
exemplo, significavam proteção e defesa. Não seria apropriado no contexto
copta chamar essa prática de magia, da mesma maneira que um pastor e-
vangelista ora sobre a BÍBLIA pedindo proteção para si e para igreja.
Terceiro, porque a profunda mudança cultural que ocorreu entre os
Sécs. I a.C. e V d.C. nos ajuda a compreender a característica individual e pri-
vada do exercício de rituais de poder. Ainda no período helênico, ouve uma
quebra na autoridade das cidades-estados que foi acompanhada por um de-
clínio na atividade religiosa que mantinha a sociedade coesa. As pessoas se

17
tornaram cidadãs de um mundo muito maior e com uma identidade de gru-
po mal definida. Isso permitiu que pequenos grupos isolados tentassem res-
taurar antigas práticas e cultos espirituais por toda parte na Antiguidade
tardia. Muitos autores de livros de magia moderna e pós-moderna dizem
que o mago realiza seus ritos de poder individualmente porque é um pros-
crito da sociedade. Isso até certa medida está correto quando avaliamos a
situação apenas da perspectiva da perseguição, preconceito e intolerância
religiosa; no entanto, o que leva um indivíduo a isolar-se da comunidade e
individualmente tratar direto com os deuses é uma profunda fragilidade e
falta de identidade cultural: ele está só e a parte daqueles que o cercam. E
isso tem se mostrado um aspecto importante do processo. Seja como for,
individualmente ou celebrando uma cerimônia religiosa para muitas pesso-
as, um indivíduo dentre todos se levanta sobre eles porque tem o talento
necessário para manipular um tipo de poder que aparentemente está dispo-
nível a qualquer um. A magia pode muito melhor ser definida apenas pela
palavra ritual e que é a atitude do mago em relação ao ritual que confere a
ele o seu poder.
A encruzilhada que nos encontramos mesmo tendo definido a magia
como teologia prática é essa: seja como for, Jesus Cristo não precisava de
nenhuma tecnologia da magia para operar milagres. Ele curava enfermos,
ressuscitava mortos e exorcizava demônios apenas com o poder da palavra.
A piedade cristã ortodoxa nos ensina que o caminho de todo cristão é a imi-
tação de Cristo. Assim, se Jesus Cristo não precisava de círculos mágicos ou
sacrifícios para operar milagres, por que nós precisamos? Jesus Cristo no
cristianismo hermético é MeShIa-H, Rei e Regente dos Céus e da Terra, o
SheMa dos SheMaIM com poder sobre os nomes de Deus. Na execução da
magia com toda sua tecnologia o ocultista católico ou cristão hermético imita
Nosso Senhor Jesus Cristo como soberano e supremo SheMa-IM, Senhor dos
Nomes de Deus, pois efetivamente a magia opera com o poder dos Nomes
Divinos, uma arte pela qual Jesus Cristo era Mestre e Iniciador.
Iniciamos aqui um curso completo de Cristianismo Hermético ou Ocul-
tismo Católico para hermetistas católicos na intenção de prover informações
confiáveis em como unir a fé cristã ao exercício da magia sem trair as Leis de
Deus. O curso explorará a piedade cristã adequada a prática da magia tradi-
cional salomônica e o uso de orações, rezas, benzeduras com ervas, fumiga-
ções e passes energéticos.

18
MAGIA É TEOLOGIA PRÁTICA

[Texto retirado do Curso de Ocultismo Católico.]

Nada nos certifica da divindade de Cristo mais do que Magia e Cabala.9


E mesmo se ele usar adornos, pela virtude do Nome Divino e pela virtude das obras
de Cristo, Seu Nascimento, Paixão e Morte Preciosa, pelo qual o diabo foi conquistado
e expulso; tais bênçãos, encantamentos e exorcismos serão chamados lícitos, e aqueles
que os praticam são exorcistas ou feiticeiros legais.10

O período da Renascença é um capítulo da história da magia impor-


tante, porque é nele que a antiga tradição dos magos começa a ser
redescoberta e reinterpretada. Disso nasceu um pequeno afluente
do grande mar da tradição mágica hermética que nos dias de hoje
conhecemos como magia moderna. O Renascimento fez nascer uma nova
perspectiva de uma antiga arte, finalizando por reclassificar conceitos e tec-
nologias mágicas. Como estudamos no Curso de Filosofia Oculta, por exem-
plo, a tecnologia mágica da evocação tratava-se de apenas chamar ou convo-
car uma entidade do corpo de Deus. Na magia moderna, por outro lado, evo-
cação mágica significa tirar de dentro do inconsciente profundo entidades e
projetá-las no triângulo da arte. O que antes eram entidades do corpo de
Deus passaram a ser entidades da mente. E por mais que aparentemente se
trate de uma poderosa instrumentação da magia – na interpretação moder-
na –, ela tem se mostrado deveras ineficiente. Isso é um fato! Outro exemplo
é o próprio conceito de magia. Para os magos da Antiguidade e Idade Média
o conceito de magia envolvia a comunicação com espíritos do corpo de Deus
que, evocados e conjurados pelo mago em nome de Deus e vestido da auto-
ridade do próprio Criador dos Céus e da Terra, comanda-os a executar sua
vontade. O conceito ou ressignificação moderno da magia passa longe disso.
A definição moderna clássica dada a magia é a hegemônica interpretação de
Aleister Crowley (1875-1947), considerado o pai da magia moderna que em
seu MAGIA EM TEORIA & PRÁTICA define: Magia é a Ciência e a Arte de causar
mudança na Natureza de acordo com a Vontade. Dessa maneira, diferente do
mago da Antiguidade e Idade Média que se vestia da autoridade de Deus pa-
ra conjurar criaturas espirituais, o mago moderno com sua vontade dirigida
é a autoridade suprema e a mudança requerida para transformar a realidade
depende somente dele, de seu poder. Isso não é magia! É psicurgia!
Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) foi um dos grandes estudi-
osos do período da Renascença que tentou reinterpretar a magia a partir de
9 Giovanni Pico della Mirandola, ORAÇÃO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM. Conclusiones philosophicae, cabalisticae et
theologicae sive theses DCCCC, conclusão 9, versículo 38: nulla est scientia quae nos magis certificet de divinitate
Christi quam Magia et Cabala.
10 Sprenger e Kramer, O MARTELO DAS FEITICEIRAS (Malleus Maleficarum).

19
fontes antigas. Ele chegou a dizer que a magia trata-se, efetivamente, da ado-
ração do divino.11 Aos ouvidos de um católico tradicional trata-se de uma
heresia, pois parece que Pico equipara a cabala dos judeus e a magia dos pa-
gãos a Palavra do Evangelho. Mas para o ocultista católico, a afirmação de
Pico tem certo grau de verdade, pois na medida em que o fiel católico que
opera sua magia em nome de Adonai e de Nosso Senhor Jesus Cristo vê suas
preces sendo respondidas e disso ter suas necessidades resolvidas, maior é a
confiança em Deus e seu poder provedor. A fé se aprofunda e disso nasce um
sincero sentimento de gratidão ao Eterno.
Inspirado por Jâmblico, Pico tenta equiparar a antiga arte dos sacerdo-
tes persas (mageia), a teurgia, dizendo ela ser uma arte superior a goēteia.12
Assim, para Pico a magia eleva o devoto a Deus, a goécia sendo uma arte pro-
fana para feiticeiros pedantes e desclassificados, arrasta os buscadores a la-
ma, pois estabelece tráfico com demônios e espíritos malignos que perver-
tem as leis divinas da natureza. Neste curso de ocultismo católico nós classi-
ficamos diferente:

I. Teurgia cristã: Através da piedade cristã tradicional, o que impli-


ca em seguir uma disciplina moral católica da Lei Mosaica, orações,
mortificações e participação nos sacramentos de Cristo, o mago re-
cebe a luz de Deus para curar sua Alma, preenchê-la com a Luz
Hermética prismática através dos sacramentos com os códigos de
luz do Eterno.
Os sacramentos são aquele mistério tratado no Evangelho nas
cartas aos Efésios e Colossenses, quer dizer, são o mistério de
Deus revelando Jesus Cristo. É este o mistério celebrado nas litur-
gias através de palavras e ações teúrgicas.
Através de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus tocou toda humani-
dade para redimi-la. Esse encontro acontece todos os dias na vida
do mago através de sua participação nos sacramentos, que reve-
lam o mistério de Deus quando Jesus Cristo toca sua Alma através
da sacramentação. É assim que o Cristo ressuscitado cristifica a
Alma do mago.
Os sacramentos são prismas de uma mesma luz, cores distintas
de uma única luz e através deles o mago alimenta e ilumina sua
Alma com a totalidade dessa luz, preparando-se para a iniciação
derradeira do segundo nascimento que Cristo ensinou a Nicode-
mos, a Grande Iniciação.
II. Magia Cristã: Através da utilização de armadilhas de espírito ade-
quadas, tecnologias mágicas salomônicas como o círculo mágico,
pantáculos, as armas de poder e os Salmos, o mago conjura a milí-
cia celeste e manifesta um manaim ao seu redor, um acampamento
de anjos do Senhor para auxiliá-lo nas questões espirituais mais

11 Ibidem. Oratio quaedam elegantissima sive de hominis dignitate, conclusão 9, versículo 231.
12
Veja o Curso de Filosofia Oculta para um estudo profundo e comparativo entre magia, teurgia e goécia.

20
difíceis. Ainda, através de rezas e conjuros de santos, o mago ob-
tém prosperidade, quebra demandas, realiza cura e purificações. A
sua disposição há uma hierarquia celeste de serafins, anjos, arcan-
jos e santos para toda sorte distinta de magia.
A prática da magia cristã neste curso de ocultismo católico é es-
sencialmente a magia tradicional salomônica – descartando o LE-
MEGETON – adaptada a uma piedade teúrgica cristã hermética, o
que inclui exercícios espirituais de todos os tipos.

Na citação do início deste capítulo retirada do MALLEUS MALEFICARUM nós vi-


mos que é lícito praticar magia em nome de Jesus Cristo tornando-se um fei-
ticeiro legal, nome dado aos sacerdotes exorcistas, os magos da Igreja. O
MELLEUS MALEFICARUM exorta sobre a legalidade da feitiçaria, esclarecendo
que todo o poder vem de Deus, não do diabo. O ocultista católico, portanto,
faz pactos com Deus apenas e não convoca nenhum demônio para operar os
milagres que em verdade última são apenas de Deus.
Um dos grandes defensores do ocultismo católico foi Eliphas Levi
(1810-1875), um diácono católico destituído da Igreja. Em sua obra O GRAN-
DE ARCANO, ele cita a Igreja Católica como uma grande ordem mágica que so-
zinha detinha todo monopólio da magia. Neste curso de Ocultismo Católico
seguimos àquela mesma ideia que exploramos no Curso de Filosofia Oculta,
que ao mago salomônico é melhor que seja um sacerdote consagrado da I-
greja Católica, seja Romana ou Ortodoxa. Assim o é também ao praticante
católico de ocultismo: melhor que seja um sacerdote consagrado, conheça os
nomes de Deus e seja capaz de administrar os sacramentos da salvação da
Alma.
O ocultista católico pode ser assim um feiticeiro legal cuja única fonte
de poder que reconhece é a de Deus acima de todas as coisas. Ele não convo-
ca demônios para realizar aquilo que em toda sua grandeza Deus realiza. É
dentro desta realidade e não fora dela que podemos com segurança dizer
que a magia é apenas a aplicação efetiva da teologia. Nessa perspectiva a
teologia ganha duas linhas: a teórica que trata apenas da especulação acerca
da fé e de Deus; e a prática, que trata da experiência direta da fé e do poder
de Deus.

21
MAGIA & TRADIÇÃO CATÓLICA

P ara um católico o termo magia é recebido com considerável antipa-


tia; a própria ideia da prática da magia é proibida pelas leis da Igre-
ja, tanto no Catecismo Romano e Catecismo Ortodoxo, quanto no Có-
digo de Direito Canônico, descrita como uma violação do primeiro
mandamento da Lei Mosaica. Se entendermos magia como nos códices legais
da Igreja, quer dizer, a arte de realizar proezas além do poder do homem com
ajuda de poderes sobrenaturais além do Divino,13 então o seu exercício seria
realmente pecaminoso.
Essa definição de magia vem da ENCICLOPÉDIA CATÓLICA, que também in-
forma aos fiéis que a palavra magia vem do sumeriano ou turaniano imga,
que significa profundo e era usado para se referir a uma classe de sacerdo-
tes-feiticeiros proto-caldeus. Na antiga Pérsia esta palavra tornou-se magus
e foi usada para os sacerdotes da religião zoroastriana. Dos zoroastrianos, a
palavra passou para os gregos e tornou-se μάγος (mago), significando um
praticante de μαγεία (mageia/magia), uma pessoa dotada de conhecimento e
poder secretos como um mago persa.
Isso nos leva à linguagem grega coiné do NOVO TESTAMENTO. Há cerca de
seis passagens onde a magia é mencionada no NOVO TESTAMENTO, e três ter-
mos separados são usados: μαγεία (mageia), φαρμακεία (pharmakeia) e πε-
ρίεργα (símbolo). Este último só é encontrado uma vez em referência à
queima de livros em ATOS DOS APÓSTOLOS (19:19). O temo significa curiosida-
de e pode ser interpretado como curiosidade mágica, mas dizer qualquer
coisa além disso é mera especulação por parte de quem traduz.
Do termo mageia há mais o que podemos dizer. Os sábios que vieram
ver Jesus no seu nascimento são descritos como magos no grego coiné pelo
Apóstolo Mateus (2:1) e foi pela arte deles, presumivelmente a astrologia,
que vieram encontrá-lo na manjedoura. O NOVO TESTAMENTO também se refe-
re a dois outros indivíduos como magos: Simão, o Mago em ATOS DOS APÓSTO-
LOS (8:9-13)14 e BarJesus (13:6-11), mas embora ambos sejam retratados
sob uma perspectiva negativa como vimos no Curso de Filosofia Oculta, em
nenhum lugar do NOVO TESTAMENTO a prática de mageia é explicitamente
condenada.
O que é condenado no NOVO TESTAMENTO é a prática da pharmakeia, que
se refere ao uso de fármacos, o equivalente moderno a usar drogas ou ser
drogado por um fármaco, quer dizer, um feiticeiro que usa diversas substân-
cias para envenenar ou intoxicar. É esse termo, descrevendo um tipo separa-
do de prática mágica, que ocorre em todas as passagens onde o exercício da
magia é explicitamente proscrito: GÁLATAS (5:20); APOCALIPSE (9:21; 18:23;

13 THE CATHOLIC ENCYCLOPEDIA, Vol. 11.


14 Para uma introdução a Simão, o Mago, veja Lição 2 do Curso de Filosofia Oculta.

22
21:8; 22:15). A essa condenação, nos dias de hoje nós podemos inferir a prá-
tica dos xamãs e pajés.
O NOVO TESTAMENTO distingue, portanto, três tipos de magia. Contudo, a
EPISTOLA DE BARNABÉ (20:1), escrita no fim do Séc. I d.C. pelo mesmo, sendo
ele um dos principais ajudantes do Apóstolo Paulo, assim como o DIDADIQUÊ
(2:2), a doutrina dos doze apóstolos que trata do catecismo cristão, conde-
nam veementemente a prática da mageia. Por que? A resposta depende de
muitos fatores. Nós podemos considerar a injunção simples de que as fórmu-
las mágicas gregas mudaram com o tempo, o que acompanhou a evolução da
língua grega em contraste direto com o hebraico do VELHO TESTAMENTO, a
cultura e as leis contra a prática de mageia na Grécia pré-cristã. No hebraico
do LIVRO DOS SALMOS (96:5) no VELHO TESTAMENTO temos: ‫ י ;ים‬, ‫ים‬ ‫ם‬
‫י‬ ‫י‬ -‫ י י‬, , que significa pois os deuses dos povos pagãos são apenas
ídolos, enquanto o Eterno é o criador dos céus. A palavra hebraica ‫ים‬, ‫( י‬eli-
lim) significa ídolo ou coisas sem valor. Quando a versão grega coiné foi tra-
duzida pela primeira vez do hebraico ficou assim: ὅτι πάντες οἱ θεοὶ τῶν ἐθ-
νῶν δαιμόνια, ὁ δὲ Κύριος τοὺς οὐρανοὺς ἐποίησεν, que significa os deuses
dos povos pagãos são criaturas espirituais (daimones), enquanto o Eterno é o
criador dos céus. Como sabemos, daimones são criaturas espirituais diversas:
espíritos de mortos, elementais etc. Do hebraico para o grego coiné e poste-
riormente com a evolução da língua grega nos próximos cem anos as criatu-
ras diversas da natureza, quer dizer, os daimones do Corpo do Eterno, torna-
ram-se demônios perversos. Essa corrupção linguística se cristalizou perma-
nentemente na Igreja com Santo Agostinho (359-430 d.C.) em sua obra mais
celebrada, A CIDADE DE DEUS. Na cultura grega os daimones, as criaturas di-
versas da natureza, são regidos pelos deuses (theoí). Isso significa que tanto
os deuses dos pagãos quanto as criaturas espirituais que estão sob o seus
desígnios são menores que o Eterno, o Deus Uno na tradição cristã. Com o
tempo a tradução grega evolui decisivamente para: os deuses dos povos pa-
gãos são demônios, enquanto o Eterno é o criador dos céus.
Esse desenvolvimento da cultura e língua gregas pode ser visto de ma-
neira clara nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, que datam entre o fim do
Séc. I a metade do Séc. IV d.C. Como temos visto nas lições do Ano I do Curso
de Filosofia Oculta, os papiros contêm inúmeros feitiços e conjurações para
convocar e controlar daimones diversos, fazendo-os trazer mulheres para o
mago operador, quer dizer, o ancestral da amarração amorosa moderna; ma-
tar inimigos do mago ou trazer-lhe boa fortuna. A prática dos PAPIROS MÁGI-
COS GRECO-EGÍPCIOS é o ancestral direto da posterior goécia salomônica da
Idade Média. O exercício mágico dos papiros era ecumênico e sincrético,
misturando elementos culturais e religiosos do Egito, Grécia-Roma e outras
culturas como a semita. Esses papiros são essencialmente mágicos e seus
feitiços envolvem inúmeros propósitos escusos, violentos e criminosos.
Na sociedade pagã pré-cristã já existiam leis rígidas contra a prática de
mageia. O cristianismo primitivo, como veremos no texto Jesus o Magista &
Feiticeiro, estava profundamente envolvido com a cultura grega. Isso signifi-

23
ca que ele não nasceu do nada. Nenhuma cultura nasce e cresce do nada. Ela
se desenvolve a partir de outra cultura, absorvendo muitos elementos da
cultura que a precedeu. A tradição católica não é diferente. Ao contrário, é o
fruto direto de uma nova mensagem que nasceu de um profundo choque cul-
tural.
Entre os pagãos, portanto, a prática de mageia há muito se tornara ile-
gal. Desde o Sec. V a.C. mageia já era depreciada como vimos na Lição 1 do
Curso de Filosofia Oculta. No Séc. II a.C. o CÓDIGO DE HAMURABI abre com uma
pena de morte para qualquer um que lançasse feitiços sobre outras pessoas
(ou morte para o acusador, se a acusação for falsa):

Se um homem acusar outro homem de feitiçaria e não puder provar isso, aquele que é
acusado de feitiçaria irá para um rio, atirar-se nele e se o rio o vencer, seu acusador
tomará para si sua casa. Se o rio mostrar que o homem é inocente e ele sair ileso, a-
quele que o acusar de feitiçaria será morto. Aquele que se lançou no rio tomará para si
a casa do seu acusador.

Na cultura romana, a mageia foi proibida desde o início. Em as LEIS DAS DOZE
TÁBUAS, estabelecidas em 450 a.C., temos:

Quem encanta cantando um feitiço do mal [...]; se alguém canta ou compõe um encan-
tamento que pode causar desonra ou vergonha a outro [...]; ele sofrerá uma penalidade
de capital.

Júlio Paulo, um autor do Séc. III cita em seu SENTENTIAE AD FILIUM um docu-
mento perdido já em seu tempo chamado LEGES CORNELIAE DE SICARIIS ET VE-
NEFICIIS (As Leis de Cornélio contra Assassinos & Feiticeiros), que diz:

As pessoas que celebram, ou fazem com que sejam celebrados ritos ímpios ou notur-
nos, de modo a encantar, enfeitiçar ou amarrar alguém, serão crucificados ou lançados
a feras.
Qualquer pessoa que sacrificar um homem, ou tentar obter suas virtudes por meio
de seu sangue, ou poluir um santuário ou um templo, será atirada a feras ou, se for de
nível superior, será punido com a morte.
Foi decidido que as pessoas que são viciadas na arte da magia sofrerão punições
extremas; isto é, devem ser jogados a feras ou crucificados. Os magos serão queimados
vivos.
Ninguém será autorizado a ter livros sobre a arte da magia em sua posse, e quando
forem encontrados com alguém, eles serão queimados publicamente, e aqueles que os
tiverem, depois de serem privados de suas propriedades, se forem de nível superior,
serão deportados para uma ilha e, se forem de posto inferior, serão mortos; não só a
prática dessa arte é proibida, mas também o conhecimento da mesma.

Como podemos ver a condenação contra a prática de mageia é muito anteri-


or ao cristianismo ou a tradição católica. Dizer tal imprecisão é no mínimo
desonestidade intelectual.
Suetonio em seu A VIDA DE AUGUSTO, diz que por volta de 16 a.C., quando
Augusto assumiu o cargo de Pontifex Maximus, ele reuniu mais de dois mil
escritos gregos e latinos sobre profecias e os incendiou. Desse período em
diante, entramos na Era Cristã, quando já existiam leis rígidas e penas duras
contra praticantes de mageia. O CÓDIGO DE JUSTINIANO, por exemplo, registra o
24
pronunciamento de Constâncio II em 357 d.C: Ninguém deve consultar um
adivinho ou fazer previsões proféticas perversas. Caldeus, magos e outros que
são comumente chamados de malfeitores serão mortos e humilhados com a
espada vingadora. Diante de tais leis, a prevalência de escritos mágicos ex-
plicitamente invocando demônios (daimones) foi reduzida completamente
após o advento do cristianismo como religião estatal. O fato de esses textos
prometerem resultados que os cristãos considerariam pecaminosos ou que
estariam além dos poderes de seus procedimentos litúrgicos era o suficiente
para caçar e condenar seus possuidores.
Ao avaliarmos a história com honestidade compreendemos porque
Santo Agostinho em 397 d.C. condena em seu SOBRE A DOUTRINA CRISTÃ a ma-
geia como idolatria, supertição e comunhão com demônios. A estes, assim
diz Santo Agostinho, Deus dará as costas, permitindo que chafurdem nos
pecados. Os cristãos, portanto, deveriam evitar veementemente os pratican-
tes de mageia, proscritos pelo próprio Deus. A comunhão com os demônios,
para Santo Agostinho, impedia que até os arrependidos retornassem ao cris-
tianismo.
Na Idade Média desenvolveu-se uma nova síntese e interpretação da
magia, com grimórios salomônicos e outros. Nesse desenvolvimento medie-
val, os nomes de Deus e de Jesus foram ostensivamente utilizados para con-
jurar e imprecar demônios. Muitos desses escritos foram atribuídos a Pontí-
fices Romanos que, assim reza as lendas, utilizavam a Santa Missa para res-
tringir e comandar os habitantes do inferno para qualquer objetivo deseja-
do. Muitos desses grimórios atribuídos a Pontífices Romanos ou ao Rei Sa-
lomão trazem um conteúdo que hoje chamamos de baixa magia.
São Tomás de Aquino (1225-1274) trata da mageia em vários tópicos
da SUMA CONTRA OS GENTIOS e da SUMA TEOLÓGICA. Na SUMA CONTRA OS GENTIOS
São Tomás diz que a magia ocorre através da comunicação com inteligências
espirituais de natureza maligna, pois estes auxiliam em atos pecaminosos.15
Na SUMA TEOLÓGICA São Tomás parte de Santo Agostinho e declara a magia
como ilícita e fútil, que consiste em sinais vazios, uma espécie de aliança feita
com demônios, e que nunca alguém adquiriu conhecimento por meio de de-
mônios.16
Diante de todo esse histórico, o que nós ocultistas católicos devemos
fazer? Se por um lado o NOVO TESTAMENTO abre ampla margem de interpre-
tação sobre o que é a prática da magia, seus intérpretes e a tradição católica
não. O caminho das pedras é este: se a Igreja Católica chama de magia su-
perstições vãs e pactos com demônio, devemos nos perguntar se é isso que
fazemos como católicos. A resposta é de caráter individual, mas este Curso
de Ocultismo Católico não se trata de superstição ou mesmo pactos com de-
mônios. Pelo contrário, o ocultismo católico trata de teologia prática. Essa
aplicação precisa de fé no poder de Deus, no ofício litúrgico da Santa Missa, a
Eucaristia e outros sacramentos, na intercessão dos santos, anjos, arcanjos e

15 São Tomás de Aquino, SUMA CONTRA OS GENTIOS, Parte III, caps. 105 e 106.
16 São Tomás de Aquino, SUMA TEOLÓGICA, Parte II: ii, q. 93, a. 1.

25
toda milícia celeste. No texto anterior, Magia é Teologia Prática, em mencio-
nei que todo esse exercício de ocultismo católico está dividido em dois gran-
des temas: a teurgia e a magia cristã. Essas são as duas pernas do ocultismo
católico.
No contexto deste Curso de Ocultismo Católico nós utilizamos a palavra
magia como um sinônimo de teologia prática, quer dizer, o uso prático do
conhecimento revelado no Evangelho. Se a teologia trata-se da busca pelo
entendimento de Deus e dos caminhos da fé, a magia trata-se do exercício
deste entendimento, seja este exercício místico ou mágico. Fundamental-
mente, a teologia é a tentativa positiva de construir uma definição de base
racional acerca da identidade de Deus, quem somos nós e qual o nosso papel
em relação a essa identidade. Teologia prática é a aplicação deste conheci-
mento e de suas leis, as quais vamos nos debruçar a partir de agora.
Até o presente nós discutimos a palavra mageia na interpretação da I-
greja, nas mentes dos fiéis católicos, suas concepções ou equívocos. Agora
vamos discutir aspectos importantes da teoria mágica do ocultismo católico.
Essa teoria mágica, como veremos, pode muito bem ser resumida por um
número razoavelmente pequeno de leis que estão sugeridas ou expressas
diretamente nos ensinamentos da Igreja ou na liturgia.

1. A Lei do Conhecimento: Quanto mais um ocultista católico conhece a


si mesmo, o mundo e as hierarquias espirituais, mais eficaz será a a-
plicação prática da teologia. O ocultista católico precisa conhecer a si
mesmo para que esteja consciente de suas limitações, pecados, forças
e fraquezas. Da mesma forma ele deve saber o máximo que puder so-
bre o mundo ao seu redor e as hierarquias espirituais, desse modo ele
poderá interagir melhor com anjos, arcanjos, santos etc. Embora pos-
sa não parecer, a Igreja encoraja as pessoas a conhecerem a si mes-
mas, seu mundo e sua fé. Através de uma piedade mística e ascética é
possível conquistar profundos graus de conhecimento acerca de si
mesmo. Essa piedade envolve estudo do Evangelho e a teologia dos
Santos Padres, autoestudo, reflexão e meditação, além de disciplina
rígida a observância da Lei Mosaica.
2. A Lei da Imitação: Quanto mais um ocultista católico age como uma
pessoa, seja ela de comportamento animalesco ou de comportamento
espiritual, mais esse ocultista católico se tornará como pessoa imita-
da, quer dizer, mais se comportará como um profano de atitudes tor-
pes e ignorantes ou um iniciado cristão de atitudes honradas, deifican-
tes e santas. Na vida cristã todos somos incentivados a imitar o com-
portamento de Cristo ou da Virgem Maria. Cristo é a cabeça do Corpo
Cristão, a Igreja. Vivendo no Corpo de Cristo devemos tê-lo como Nor-
te em todos os nossos comportamentos. O ocultista cristão busca imi-
tar Cristo para assimilar suas virtudes espirituais.
3. A Lei do Mentalismo: Todos nós estamos imersos na Mente do Cria-
dor, por isso se diz que tudo é mente ou que tudo é mental. Na medida

26
em que nos alinhamos com o Eterno, suas leis imutáveis e o movimen-
to do cosmos, nos inserimos em sua demiurgia, nos tornando coparti-
cipantes e cocriadores de sua obra (teurgia). Na liturgia o que o Sa-
cerdote faz é este alinhamento com a Mente de Deus, o que o coloca no
coração de todo o cosmos. Dessa maneira, quando o ocultista católico
preocupa-se com este alinhamento também, sua mente atua em sin-
cronia com a Mente de Deus, por isso o Apóstolo Marcos (11:23-24)
diz: Porque em verdade vos digo que qualquer que disser a este monte:
Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar em seu coração, mas crer que
se fará aquilo que diz, tudo o que disser lhe será feito. Por isso vos digo
que todas as coisas que pedirdes, orando, crede receber, e tê-las-eis.
4. A Lei da Correspondência: Tem-se dito: assim como é acima também
é abaixo; assim como é abaixo também é acima. A Lei da Correspon-
dência está em sincronia direta com a Lei do Mentalismo, pois trata do
alinhamento propriamente dito com a Mente e Corpo (cosmo) de
Deus. É somente quando o ocultista católico se propõe a este alinha-
mento que seu microcosmo (corpo físico, emoções e mente) e ambien-
te de trabalho (templo/santuário) tornam-se um espelho do macro-
cosmo. É por meio dessa correspondência que os planos invisíveis a-
tuam sobre o plano físico e o plano físico atua sobre os planos invisí-
veis. Na sua EPÍSTOLA AOS HEBREUS (9:23-24) o Apóstolo Paulo diz: Por-
tanto, era necessário que as cópias das coisas que estão nos céus fossem
purificadas com esses sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais com
sacrifícios superiores. Pois Cristo não entrou em santuário feito por ho-
mens, uma simples representação do verdadeiro; ele entrou no próprio
céu, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor.
A palavra grega ὑποδείγματα (hypodeigmata) refere-se a cópia ou
modelo, no sentido de que as coisas da terra, em especial o templo, são
espelhos do que está nos céus. Esse é o princípio por trás da liturgia,
por isso o Papa João Paulo II dizia: a liturgia é o céu na terra. A adora-
ção dos homens a Deus na liturgia emula a adoração dos anjos e dos
santos a Deus nos céus descritas no Evangelho.
5. A Lei do Contágio: Quando um objeto entra em contato com outro
objeto, então o primeiro objeto continuará a exercer influência sobre
o segundo. Por exemplo, na Igreja há ocasiões em que se congela a
Água Benta que pode ser misturada com uma quantidade menor de
água não abençoada. Pela Lei do Contágio, a bênção da Água Benta in-
fluenciará a água não abençoada e assim a bênção será transferida. A
Hóstia consagrada durante a Santa Missa também pode, ao entrar em
contato com as mãos de alguém ou um objeto, transferir sua consa-
gração. Após a consagração da Hóstia (na Igreja Latina) o sacerdote
mantém os dedos que tocam a Hóstia unidos até que após a liturgia
ele lave as mãos, tomando cuidado para não tocar em mais nada com
eles. Na Igreja Ortodoxa, para evitar isso, a Eucaristia é feita com pão e
vinho que estando juntos dentro do Cálice Santo, são retirados com

27
uma pequenina colher litúrgica e administrados pelo sacerdote dire-
tamente sobre a língua dos fiéis.

Como veremos nesse Curso de Ocultismo Católico, essas cinco leis estão em
permanente ação tanto na teurgia quanto na magia cristã.

28
A VIDA CELESTIAL

Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são lá de cima, onde Cristo está sen-
tado à destra de Deus; afeiçoai-vos às coisas que são lá de cima, não às que estão sobre
a terra.17

ida celestial é um termo usado por São Tomás de Aquino (1225-


V 1274) para referir-se a vida interior de um místico cristão. Para que
cada ocultista católico possa aproveitar ao máximo este trabalho má-
gico com os Salmos, faz-se necessário o cultivo de uma vida celestial.
Este tipo de vida celestial se faz cultivando o Logos, que é o Cristo em mim (Gl
2:20), o Cristo em vós (Cl 1:27). O Logos é a razão ou Alma Intelectual que
dota a cada um de nós, humanos, criaturas distintas e superiores as outras
criaturas que caminham sobre a terra. Um homem, em acordo ao Evangelho,
trata-se de uma criatura dotada de corpo e Alma. É essa união que possibili-
ta a todos nós sermos chamados de homem. São Gregório de Nissa (335-394
d.C.) chama essa união de amizade, um amor que corpo e Alma perpetuam
até mesmo após a morte. Santo Atanásio de Alexandria (296-373 d.C.) diz
que a Alma é uma substancia espiritual dotada de razão cuja natureza é i-
mortal, incorpórea e impassível. São Gregório de Nissa completa dizendo
que é esta substância incorpórea dotada de razão que comunica aos órgãos e
aos sentidos seu princípio vital. Estes dois Padres da Igreja chamam a Alma
de essência (ousia) com existência própria. Esta Alma ou essência que nos
capacita a vivermos tanto a experiência corpórea material quanto a existên-
cia incorpórea espiritual é a preocupação íntima de cada ocultista católico,
que não medirá esforços para salvá-la do cativeiro do inferno.
A salvação da Alma do cativeiro do inferno não se trata de um exercício
mágico, mas místico e ascético, dedicando-se a uma vida celestial. Santo Ata-
násio de Alexandria inicia sua obra CONTRA OS PAGÃOS, a qual denuncia a ori-
gem do mal e da idolatria, que é devido às inclinações da Alma animal e o
cultivo das paixões corpóreas que o homem tornou-se suscetível à influência
da Serpente. Para superar as paixões e os desejos da carne, evitando a idola-
tria, faz-se necessário o cultivo da vida celestial, quer dizer, manter-se conec-
tado às coisas do Reino Celestial. O cultivo do Logos, dessa maneira, consiste
em um treinamento árduo da Alma Intelectual, mantendo-a nas coisas de
Deus, no Reino Celestial, evitando ceder às paixões e apegos da carne. São
Bernardo de Claraval (1090-1153) diz que aquele que depois das lamenta-
ções e penitência não retorna aos consolos carnais, senão que se abandona
com confiança à misericórdia divina, e se adentra na devoção e gozo do Espíri-
to Santo, e não tanto se compugne com a recordação dos pecados passados
quanto se deleita em recordar e se inflama no desejo dos prêmios eternos, este

17 COLOSSENSES, 3:1-2.

29
certamente ressuscitará com Cristo; porque o deleite santo não é para aquele
que está preocupado com os desejos mundanos. Nem pode mesclar-se as coisas
verdadeiras às vãs, as eternas com as caducas, as espirituais com as carnais, as
ínfimas com as sublimes, de modo que aprecie igualmente as do alto e as da
terra.
Portanto este texto introdutório de nosso Curso de Ocultismo Católico é
uma advertência aos associados. O uso mágico dos Salmos como aqui va-
mos explorar através de O LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or) pode seduzir mali-
ciosamente a Alma Intelectual como a Serpente seduziu Eva, levando o ocul-
tista católico a idolatria utilizando equivocadamente a magia dos Salmos. O
Ocultismo Católico depende, quer dizer, está conectado a uma Nova Vida, ou
seja, as ações de um cristão verdadeiramente convertido. Mesmo após a
Conversão, a metanoia (a mudança de mentalidade) e epistrofé (a mudança
de atitude ou direção), os desejos e paixões da Alma animal ainda continuam
assolar o cultivo do Logos. Aqueles que ainda se encontram nas primeiras
moradas da Alma são vorazmente tentados por suas inclinações animales-
cas. São Tomás de Aquino diz que a Vida Nova de Conversão é o cultivo da
vida celestial que deve ser renovada diariamente pela graça: Renova-os no
vosso espírito e nos vossos pensamentos (Ef 4:23). Como Cristo ressuscitou dos
mortos pela glória do pai, assim nós vivamos uma vida nova (Rm 6:4). Saben-
do que Cristo, ressuscitado dos mortos não morre mais (Rm 6:9), assim tam-
bém vós considerai-vos como estando mortos para o pecado, mas vivos para
Deus, em Jesus Cristo (Rm 6:11).
Mas como fazê-lo professor? Você perguntará. A graça se cultiva atra-
vés de uma vida de oração. Este é o método de iluminação que todos os San-
tos da Igreja praticaram e pelo qual todos conquistaram as últimas moradas
do castelo da Alma. Entre todos os meios que Jesus Cristo nos recomendou
no Evangelho, deu o primeiro lugar à oração. E nisto quis que sua Igreja e
religião se distinguisse de outras seitas, querendo que ela especialmente se
chamasse casa de oração (Mt 21:13). A oração, portanto, é o princípio, o pro-
gresso e o complemento de todas as coisas, por este motivo três horários ao
dia são dedicados a oração. A regra do 3x8, quer dizer, oito horas de oração,
oito horas de trabalho e oito horas de descanso ainda é, ao cristão, a melhor
de todas as disciplinas. Santo Afonso de Ligório (1696-1797) diz que sem a
oração é impossível resistir às tentações das paixões e praticar com fidelida-
de a Lei Mosaica. Isso porque nas trevas, misérias e perigos da vida em que
nos encontramos é na súplica da oração que devemos buscar forças para
salvação de nossas Almas.
Santo Agostinho (354-430 d.C.) diz que certa medida de graça é nos
dada pelo Senhor. No entanto, essa medida não é suficiente para que possa-
mos cumprir todos os preceitos requeridos na Lei Mosaica. Assim, através
da oração Santo Agostinho diz que podemos receber mais graça de Deus e é
essa graça a mais que nos torna capacitados a observância fiel da Lei Mosai-
ca. Através da oração nós obtemos o remédio da graça de Deus para lavar o
pus do pecado. Deus nos dá forças para fazermos o que sozinhos ou por nós

30
mesmos não podemos fazer. Disso Santo Agostinho nos ensina que a Lei Mo-
saica nos foi dada para que pudéssemos pedir a graça de Deus; por outro
lado, a graça nos é dada para que possamos cumprir a Lei de Deus. É por
meio da Lei de Deus que reconhecemos nossa pequenez e incapacidade, as-
sim pedimos auxílio a Deus pela nossa salvação.
Santo Afonso de Ligório diz que aquele que não recorre a Deus através
da oração diante das tentações já está há tempos perdido. Desse modo, a ú-
nica defesa que temos contra as tentações de nossas paixões é a oração, por
isso Santo Afonso de Ligório chama a oração de grande meio de salvação. A
castidade, por si só, não temos poder para observar. É de Deus que vem o
poder para conservar a castidade. Na verdade, Santo Afonso de Ligório diz
que a castidade é dada por Deus e Ele somente a concede aquele que verda-
deiramente pede com o relicário da fé no trono do coração. São João Crisós-
tomo (348-407 d.C.) diz: Com o auxilio da graça resultará poderes suportar a
tentação. Quem cai o faz porque descuida da oração, visto que se tivesse orado,
não seria vencido pelos inimigos.
São Tomás de Aquino em sua SUMA CONTA OS GENTIOS18 explora os mila-
gres de Deus em detrimento das façanhas dos magos, analisando o que de
verdade está por trás das ações taumatúrgicas deles. Em sua análise ele de-
fine a magia como os magos da Antiguidade e Idade Média o faziam, quer
dizer, a realização de proezas através ou por meio de inteligências indepen-
dentes que, como Santo Agostinho já o tinha feito em A CIDADE DE DEUS, trata-
se do próprio demônio. São Tomás esclarece que nada na criação de Deus é
essencialmente mal, pois tudo vem de Deus. O mal é ausência de Bem. Por-
tanto, o demônio que auxilia os magos em suas operações não é mal, mas
nele, bem como nos magos, há o pecado e a inclinação ao mal. Nesses mes-
mos capítulos São Tomás faz críticas duras às ações dos magos medievais,
que imprecam e conjuram demônios para realizar façanhas macabras, escu-
sas e criminosas; ele certamente tinha em mãos o LEMEGETON para fazer tal
crítica. Como sabemos, a magia dos grimórios medievais foi disseminada
através de monges da Igreja e na SUMA CONTA OS GENTIOS São Tomás faz uma
crítica direta a esses monges e padres: Além disso, nas ações das supracitadas
artes aparecem ilusões e coisas desarrazoadas, pois elas requerem um homem
não afeito ao sexo e, no entanto, são usadas seguidamente para arranjar en-
contros ilícitos. Ora, nas obras de um intelecto bem disposto não se encontra
nada de irracional, ou contra si mesmo. Logo, estas artes não recebem a prote-
ção de um intelecto bem disposto quanto à virtude. São Tomás insiste, com
razão, que as obras dos magos não vêm de si mesmos ou do próprio Logos
neles, mas de uma inteligência corrompida que se afiniza com o que há de
pior nos magos: suas paixões e vícios.
No Curso de Ocultismo Católico o mago não opera a magia através de
demônios. O conceito de teologia aplicada se aplica ao contato com santos da
Igreja, anjos, arcanjos, tronos, querubins, serafins etc. O ocultista católico
não se interessa pelo contato com demônios para operar coisas escusas e

18 Parte III, caps. 101-9.

31
criminosas. Um ocultista católico é dado a uma vida celestial, o que implica
uma vida devotada a prática dos ensinos de Cristo que estão no Evangelho e
as coisas superiores de uma vida dedicada ao estudo e a oração.

32
UMA INTRODUÇÃO A HIERARQUIA CELESTE
DO OCULTISMO CATÓLICO

PALAVRAS INICIAIS

A ntes de seguirmos adiante, precisamos de um esclarecimento acer-


ca da hierarquia celeste e sua relação com as plantas, pedras, metais
etc. usadas na magia (teologia aplicada) do Curso de Ocultismo Cató-
lico, uma vez que não utilizamos em nossa prática o contato com
demônios como compreendido pela visão tradicional e ortodoxa da Igreja
Católica. Nós sabemos que a magia opera através de entidades objetivas do
Corpo de Deus e para ocultistas católicos isso se dá pela intervenção de Deus
por meio de anjos e santos. A escatologia cristã católica oferece uma hierar-
quia celestial simplificada, consistindo basicamente de anjos, demônios e
mortos. Nessa introdução nós lidaremos com esse tema importante.
Como vimos anteriormente nos textos que abrem esse estudo, Liturgia
trata-se de um exercício coletivo de inserção na Obra de Deus através de Je-
sus Cristo e o milagre da Eucaristia. Teurgia trata-se do esforço individual ou
coletivo de inserir-se na Obra de Deus através de uma miríade de daimones,
estes, no entanto, condenados como demônios pela Igreja Católica. De acor-
do com essas definições, o que anteriormente chamamos de teurgia cristã
trata-se do exercício da liturgia e que a magia cristã trata-se do exercício da
teurgia com anjos, arcanjos e santos, quer dizer, espíritos do Corpo de Deus
com os quais é lícito na Tradição Católica travar contato.
A definição clássica de magia estabelece que se trata da ciência e a arte
de entrar em contato com espíritos do Corpo de Deus para mudar a Natureza
(taumaturgia) em acordo com a vontade. Mas a magia cristã (teurgia) não se
trata disso, entrar em contato com espíritos do Corpo de Deus, nesse caso
anjos, arcanjos e santos, para mudar a natureza (ou realidade)? Sim, é isso
mesmo! Essas criaturas do Corpo de Deus são lícitas de se travar contato na
Tradição Católica. O que é ilícito, o que a Igreja condena, é travar contato
com demônios e mortos.
Santo Agostinho – e a partir dele a Igreja incontestavelmente – demoni-
zou deuses, heróis e daimones (espíritos sublunares como elementais, mor-
tos etc.) do paganismo, simplificando toda hierarquia espiritual da Igreja
Católica em detrimento da complexa hierarquia pagã, fundamentalmente a
greco-romana, mas não só ela, como demonstra Santo Atanásio em seu CON-
TRA OS PAGÃOS. No entanto, um importante filósofo cristão neoplatônico que
viveu e escreveu no fim do Séc. V e início do Séc. VI d.C., Dionísio Pseudo-
Areopagita, também conhecido como Pseudo-Dionísio, faz uma classificação
bem mais esclarecida que Santo Agostinho, o que influenciou profundamen-

33
te a hierarquia celestial do cristianismo que se seguiu e facilita muito a nossa
jornada como ocultistas católicos.

DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA

Os ATOS DOS APÓSTOLOS (17:34) narra que após o Apóstolo Paulo anunciar ao
areópago que o Deus dos cristãos era o mesmo deus desconhecido adorado
pelos gregos, alguns juntaram-se a ele, dentre os quais estavam Dionísio, o
Areopagita, uma mulher chamada Dâmaris, e outros. Essa passagem dos ATOS
DOS APÓSTOLOS ganhou grande repercussão com a obra de Dionísio, o CORPUS
DIONYSIACUM, onde ele faz parecer que a passagem acima se trata dele mes-
mo:

Tu não ignoras que outrora nós mesmos, tu e muitos dos nossos santos irmãos nos re-
uníamos para ver o corpo que é a fonte da vida e morada de Deus, e estavam presentes
também Tiago, o irmão do Senhor, e Pedro, chefe e decano [...].

É com tom apostólico, portanto, que o próprio Dionísio no CORPUS DIONYSIA-


CUM afirma ser um seguidor direto do Apóstolo Paulo e de um de seus discí-
pulos de nome Hieroteu. O CORPUS DIONYSIACUM tem várias passagens que
estabelecem uma conexão direta com os acontecimentos narrados nos ATOS
DOS APÓSTOLOS durante o Séc. I d.C. Dionísio afirma, por exemplo, que teste-
munhou o eclipse narrado por Lucas (23:44-45) que ocorreu no momento
da crucificação de Cristo:

O que dirás do Eclipse solar ocorrido quando puseram o Salvador na cruz? Estávamos
os dois em Heliópolis e ambos presenciamos o fenômeno extraordinário da Lua ocul-
tando o Sol.

Por conta de passagens como essas, muitos leitores desavisados durante a


Idade Média tomaram o CORPUS DIONYSIACUM como uma autoridade apostóli-
ca para questões filosóficas e teológicas. Mas somente leigos tomaram este
caminho, tanto na Idade Média como nos dias de hoje. É muito simples, ao
atento, identificar profundas divergências entre essas passagens do CORPUS
DIONYSIACUM e o período apostólico narrado nos ATOS DOS APÓSTOLOS, de-
monstrando uma larga diferença de tempo. Por exemplo, a liturgia descrita
por Dionísio é pautada em uma hierarquia espiritual que começa com o bis-
po e culmina nos ministros inferiores distribuídos em diversos graus, bem
como a introdução do Credo na liturgia, presente no seu HIERARQUIA CELESTE.
O Credo foi introduzido pela primeira vez na liturgia em 476 d.C., muito
tempo depois do período apostólico.
Outro exemplo: o CORPUS DIONYSIACUM foi citado pela primeira vez como
autoridade em questões de fé somente no Concílio de Constantinopla em 533
d.C. para refutar as questões divergentes entre severianos e ortodoxos. Se
Dionísio foi mesmo discípulo do Apóstolo Paulo no período apostólico não é
curioso que autores cristãos como Irineu de Lião, Tertuliano, Orígenes, Ata-

34
násio e Cirilo, ambos de Alexandria, não o tivessem citado anteriormente? Se
fosse o caso, Dionísio não teria influenciado a visão de Santo Agostinho?
Essa confusão começou, na verdade, com Hilduíno, abade do mosteiro
São Dionísio, que identificou Dionísio como o bispo de Atenas, decapitado
por Lutécia. Esse foi o início da fábula do mártir morto em terras francesas.
O despertar pelo interesse das ideias de Dionísio foi graças a autores como
Escoto Eriúgena, São Tomás de Aquino, Alberto Magno, Boaventura e Marsí-
lio Ficino que incorporaram seu pensamento em suas obras. Aqueles atentos
ao neoplatonismo de Dionísio, verão nítidos em seus escritos a profunda in-
fluência de Jâmblico e Proclo, principalmente no tocante ao problema da o-
rigem do mal, o que demonstra que ele viveu em um período da história,
posterior ao Séc. V, onde as ideias destes filósofos fervilhavam. Por exemplo,
a linguagem que Dionísio usa em seus escritos (mónada, hénada, triadas etc.)
não está presente na BÍBLIA e muito menos na patrística. Muito pelo contrá-
rio, é caldeia e presente em Jâmblico e Proclo. Assim, mesmo com profundas
inclinações cristãs em sua obra, Pseudo-Dionísio não foi discípulo do Após-
tolo Paulo, mas um sírio que viveu entre os Sécs. V e VI d.C.
A obra de Dionísio é um reflexo, portanto, do tempo em que ele viveu,
um período em que as teses cristãs exigiam uma base teórica por parte da
filosofia e esta, de outro modo, estava imersa em cultos, deuses diversos e
práticas mágicas-teúrgicas. Assim, a obra de Dionísio é um espelho que refle-
te a profunda influência do neoplatonismo dos Sécs. V e VI d.C. nas ideias
cristãs. As questões levantadas pelos cristãos já haviam, desde Plotino e ago-
ra com Jâmblico e Proclo, sido levantadas e exploradas pelos filósofos neo-
platônicos; por exemplo: como explicar a geração (multiplicidade) a partir
da unidade? Essa é a questão, na verdade, mais fundamental do neoplato-
nismo e quiçá seu elemento fundante. O lugar do homem no mundo, a graça,
a trindade, a encarnação etc., temas que o cristianismo da Antiguidade tardia
tentou responder baseando-se em muitas ideias neoplatônicas.
O CORPUS DIONYSIACUM que influenciou cristãos neoplatônicos por mais
de dez séculos é composto por quatro tratados e dez cartas, organizados as-
sim:

CORPUS DIONYSIACUM Temas


Sobre a Alma
Esboços teológicos
DOS NOMES DIVINOS Propriedade e ordem dos anjos
O juízo divino
Teologia simbólica
Dos nomes divinos
TEOLOGIA MÍSTICA Esboços teológicos
Teologia simbólica
Teologia simbólica
HIERARQUIA CELESTE
Hinos divinos
Hierarquia celeste

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Hierarquia Eclesiástica Objetos do conhecimento espiritual e sensível
CARTAS Teologia simbólica

Das maiores contribuições de Dionísio nós podemos destacar três:

1. A teologia apofática ou negativa onde Dionísio procurou fundir as i-


deias do Uno platônico com o Deus abraâmico através de uma precio-
sa exploração dos nomes de Deus encontrados na BÍBLIA e a descrição
que ela dá a eles. Para Dionísio, essa descrição é divinamente inspira-
da, estabelecendo alguma equivalência, mesmo que distante, com os
nomes teúrgicos encontrados nos ORÁCULOS CALDEUS. Deus não pode
ser conhecido pelo que é revelado, pois embora Deus esteja manifesto
na criação, também está além dela. A teologia apofática de Dionísio
nos permite contemplar Deus através daquilo que não é evidente na
criação. Isso ficará claro quando estudarmos catafatismo e apofatismo
no nosso Catecismo do Ocultista Católico.
2. A hierarquia celestial estabelecida por Dionísio a partir de Jâmblico
definiu o coro angélico utilizado pela Igreja Católica: serafins, queru-
bins, tronos, domínios, poderes, autoridades, principados, arcanjos e an-
jos, a parte disso sendo Almas humanas no reino da geração, santos
(Almas iluminadas), mortos e demônios. Em Dionísio, essa hierarquia
celeste está diretamente associada à hierarquia eclesiástica. Conecta-
da a essa discussão, Dionísio ainda coloca ênfase dos efeitos teúrgicos
dos Sacramentos em ambas as hierarquias.
3. Enquanto os teurgos pagãos utilizavam sunthēmatas noéticos, inter-
mediários e naturais, Dionísio utiliza em sua teurgia apenas sunthē-
matas noéticos baseados (ou retirados) do Evangelho. Ele construía
símbolos a partir do Evangelho, uma técnica que foi na Era Moderna e
continua sendo até os dias de hoje (Era pós-Moderna) apropriada pe-
las escolas de mistérios e sociedades secretas, alimentando muitas
das construções que Papus chama de psicurgia. Essa técnica é essen-
cialmente valiosa no ocultismo católico, como veremos em nossas li-
ções.

Abaixo segue a classificação de Dionísio espelhando-se na hierarquia celesti-


al estabelecida por Jâmblico:

Jâmblico Santo Dionísio


Deuses Hipercósmicos Serafins
Deuses Liberados Querubins
Deuses Encósmicos Tronos
Deuses Sublunares Domínios
Arcanos Poderes (Potestades)
Anjos Autoridades
Daimones: Principados:

36
kakodaimones & aghatodaminones aghatodaimones
Heróis Arcanjos
Almas purificadas
Anjos e Santos
(iluminadas)
Homem:
Homem
(alma corrupta ou anatrópica
-- Demônios:
Kakodaimones

Uma descrição acurada sobre essa hierarquia celestial de Jâmblico está dis-
ponível na Lição 3 do Curso de Filosofia Oculta. Santo Agostinho, demonizan-
do a feitiçaria (goēteia) magia (mageia) e a teurgia (theourgia) e sua intrica-
da hierarquia divide assim:

Tradição Pagã Greco-Romana Santo Agostinho


Deus
Anjos
Deuses
Heróis Demônios
Daimones
Homens Homens

A Igreja se inspira na classificação de Dionísio acerca da hierarquia celeste


(angélica), mas assume a classificação simplificada de Santo Agostinho de
modo geral, o que se confirma na SUMA TEOLÓGICA e SUMA CONTA OS GENTIOS de
São Tomás de Aquino.
A magia natural, já na Idade Média, São Tomás invalida completamente.
Ele se inspirou profundamente em Dionísio que descarta sunthēmatas in-
termediários e naturais e em sua SUMA CONTA OS GENTIOS ele diz que a magia
não opera através das influências (o que Agrippa chama de virtudes) celestes
ou das plantas, minerais, metais etc. Para São Tomás a magia é apenas influ-
enciada pelos demônios. Bom, ele não está tão enganado assim, não é mes-
mo? Uma vez que as virtudes naturais e celestes dependem de um agente,
um espírito (aghatodaimon), que a Igreja classifica como demônio, São To-
más não está nada longe da realidade. No entanto, os espíritos das pedras,
metais etc. são tão divinos quanto os espíritos (anjos) dos Salmos que vamos
utilizar nessa lição, a diferença é que os espíritos dos Salmos são sunthēma-
tas noéticos e intermediários, e os espíritos das gemas, vegerais, metais etc.
são sunthēmatas naturais. No Curso de Ocultismo Católico nós vamos utilizar
todas as sunthēmatas, o que está em acordo com a tradição salomônica da
magia, associada ao ocultismo católico. Os espíritos das plantas, metais, mi-
nerais etc. são anjos que doam as virtudes dessas matérias primas para exe-
cução da magia cristã.

37
OS PRIMÓRDIOS DA MAGIA

Texto do Curso de Filosofia Oculta.

A magia começou nos primórdios da humanidade com o homem empreen-


dendo a busca por ela. Os primeiros magos não tinham professores. Eles
descobriram por si mesmos a magia e então desenvolveram suas técnicas, as
quais usamos até hoje. Nós não praticamos nada diferente do que os magos
do passado praticavam. Isso significa que a busca da magia é uma caracterís-
tica individual, um processo de desenvolvimento pessoal em conhecimento
da arte e ciência da magia. Existem leis na magia, um conjunto de princípios
universais que devem ser descobertos e aplicados pelos que buscam os ca-
minhos da magia. Um destes princípios universais da magia, quem sabe a-
quele que a define verdadeiramente, é o conhecimento e a conversação com
espíritos diversos do Corpo de Deus (cosmos). Um xamã é, por definição do
termo, um homem que conversa com espíritos. Se o conhecimento e a con-
versação com espíritos é a característica fundamental da magia, um mago no
verdadeiro sentido do termo está muito próximo de um xamã. Dessa manei-
ra, se desejamos ir fundo nos primórdios da magia, primeiro precisamos
buscar no xamanismo, o lugar onde tudo começou.
Quando exploramos a cultura do xamanismo, descobrimos que seus
xamãs representantes declaram ter contato com diversos espíritos, seja os
possuindo como servidores (ou familiares) ou os controlando (conjurando).
Neste caminho, o xamã estabelece uma relação com estes espíritos, que aca-
bam por se tornar seus ajudantes. Uma vez que o xamã tem controle sobre
estes espíritos e não eles têm controle sobre ele, então se trata de um conju-
rador, um homem com condições de se comunicar e ordenar tarefas a ele-
mentais simples ou compostos, mortos ou demônios; na Antiguidade tardia,
quem invocava essa imagem e poder na região do Mediterrâneo eram os
magos (magoi) dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, feiticeiros (goēs) e teur-
gos; da mesma maneira, quem invocou essa imagem e poder do xamã na I-
dade Média na Europa foram os magos da magia tradicional salomônica: o
controle e ordenamentos de espíritos diversos é o objetivo central dos gri-
mórios medievais. Dessa maneira, o conhecimento e conversação com espí-
ritos é o fio de ariadne da tradição da magia.
A tradição salomônica herda, incontestavelmente, este legado da tradi-
ção xamânica. Como sabemos, os grimórios podem ser considerados uma
segunda tentativa de sistematizar a magia, muito embora sejam blocos de
notas particulares de magos praticantes. Essa segunda síntese foi uma rein-
terpretação da primeira tentativa de síntese da magia, os PAPIROS MÁGICOS
GRECO-EGÍPCIOS da Antiguidade tardia. Os magos dos papiros herdaram, por
sua vez, o legado do feiticeiro (goēs) grego e de outras culturas mágicas do
Mediterrâneo como a dos egípcios e babilônios, como vimos nas lições do

38
Curso de Filosofia Oculta. Essas culturas têm suas raízes em comunidades
pré-agrárias cuja magia deriva do conhecimento e conversação com espíri-
tos diversos. Assim, este se trata do fio de ariadne da tradição dos magos
porque é o elo de continuidade entre a cultura arcaica da magia, a magia da
Antiguidade tardia representada pelos papiros e pela teurgia de Jâmblico e a
magia tradicional salomônica dos grimórios medievais.
Como sempre tenho afirmado, os grimórios – assim como os PAPIROS
MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS – podem ser considerados a porta de entrada para
que os magos iniciantes desenvolvam uma consciência animista que lhes
permita obter o conhecimento e a conversação com os espíritos. Nos papiros
não há uma sistematização coesa para tal e é necessário que o mago seja
treinado por um tutor que entenda da magia dos papiros ou que já tenha
experiência na comunicação com espíritos. No entanto, a sistematização dos
grimórios é mais coesa, embora mediocremente pobre. Pobre porque eles
ensinam o método, mas não a lógica por trás do método. Os papiros, por ou-
tro lado, nem método apresentam. Dessa maneira, após o mago adquirir a-
través dos grimórios essa experiência no conhecimento e conversação com
espíritos e tenha desenvolvido um elevado grau de comunicação com eles,
ele deve deixar para trás os grimórios e caminhar por conta própria, cons-
truindo seus próprios grimórios. A própria tradição dos grimórios medievais
apresenta isso de certa maneira. Como vimos no início, os primeiros magos
não tinham professores e eles conseguiram acesso a espíritos diversos e a-
través deles, do conhecimento adquirido no trato com eles, desenvolveram
os procedimentos que praticamos hoje. Na Idade Média, período dos grimó-
rios salomônicos, era muito difícil estabelecer uma relação de professor e
aluno com algum mago praticante, pois os magos eram censurados e dura-
mente perseguidos. Uma linha de sucessão espiritual não se desenvolve a-
propriadamente em circunstâncias como estas. Então, de posse dos grimó-
rios, o mago da Idade Média podia começar solitariamente a desenvolver sua
conexão com os espíritos e se tornar, por conta própria, um novo elo na cor-
rente espiritual de magos que remonta aos primórdios da magia.
Durante a Idade Média na Europa cristianizada, a magia era compreen-
dia como qualquer ideia filosófica e religiosa que fugisse da ortodoxia católi-
ca dominante, quer dizer, a fonte de um conhecimento ilícito e proibido de-
rivado das revelações criminosas dos espíritos, estes sendo considerados
demônios. Visto que o mago medieval era basicamente um conjurador de
demônios, ele tornou-se um perigo a Igreja. Diferente da tradição islâmica
que consideravam os djinns espíritos bons, maus e neutros, a tradição cristã
preferiu classifica-los negativa e restritivamente nas categorias de demônios
e mortos em embates perpétuos com os anjos de Deus.
Desde a Antiguidade tardia ao fim da Idade Média, o cristianismo de-
senvolveu-se através de embates violentos. Desde o início os cristãos foram
duramente refutados. Jesus Cristo além de ser ele mesmo acusado de um
mago, não deixou uma única página escrita e diante das mudanças e contras-
tes escatológicos da época, os apóstolos se viram obrigados a reinterpretar a

39
mensagem de Cristo se quisessem que o cristianismo prosperasse: a pro-
messa de Cristo era retornar antes que aquela geração morresse, o que não
aconteceu. Era urgente uma reinterpretação de sua mensagem! Por conta
disso, inúmeros concílios foram feitos ao longo da história para refinar a
doutrina cristã sob a luz do conhecimento já existente na época. Tanto a le-
gislação judaica quanto a romana perseguiram ferozmente os magos devido
ao perigo que eles representavam. Trata-se na verdade de um medo primor-
dial que a imagem e papel do mago na sociedade representam. Essa perse-
guição não acontece porque a cultura regente é cética e desacredita a magia,
mas ao contrario, porque ela reconhece o poder e a eficiência da magia. Os
magos, desde os primórdios, são considerados perigosos e há um consenso,
daí a perseguição, de que seria melhor que eles não estivessem por aí. Então
a perseguição não é um ato cristão, mas um fenômeno cultural: existe um
medo inato na maioria das pessoas acerca dos magos.
Nesse caminho, os primeiros padres da Igreja decidiram acusar a magia
de tudo aquilo que contrastava a Igreja, atribuindo seus méritos exclusiva-
mente aos demônios. Na tradição cipriânica da magia, encontramos no CON-
FESSIO CYPRIANI, escrito por volta do Séc. IV d.C. um quadro muito claro desse
panorama: São Cipriano teria sido iniciado nos mistérios pagãos de Roma e
na arte da magia; o texto acusa que o conhecimento adquirido por São Cipri-
ano é o resultado direto de seu contato com o Diabo. O contato com os de-
mônios passou a ser identificado pela Igreja como a fonte do conhecimento
arcano da magia e é por isso que durante a Idade Média os perseguidores
dos magos acusavam Ham, um dos três filhos de Noé, como o patrono da
magia, aquele que iniciou a transmissão desta arte amaldiçoada e proibida.
Na verdade, a fonte primordial do conhecimento da magia, segundo a tradi-
ção cristã em um exercício de exegese bíblica e apócrifa confuso, foi a intera-
ção dos anjos caídos com as filhas dos homens. O resultado foi à corrupção
da humanidade, levada pelo dilúvio por conta de tanta iniquidade. Cassiano,
o monge fundador da Abadia de São Victor em Marselha por volta de 415
d.C. e que influenciou profundamente as ideias da Igreja na Idade Média, a-
tribui a magia como um conhecimento provindo diretamente de Seth, filho
de Adão e Eva fora do Éden. É de sua linhagem ou sangue herdado de Adão
que vem a profecia por inspiração divina, o conhecimento das virtudes das
plantas, pedras e astros, dos espíritos das estações e seus fluxos sazonais, as
virtudes dos elementos, o conhecimento de todas as coisas escondias e a sa-
bedoria inata. Os filhos de Seth, maravilhados com a beleza das filhas de Ca-
im, se uniram a elas e delas receberam o conhecimento arcano da magia. As
filhas do sangue de Caim teriam aprendido a magia com demônios, repas-
sando o conhecimento aos filhos do sangue de Seth.
É interessante nesse momento notar o paralelo com a tradição salomô-
nica: no HYGROMANTEIA: O TRATADO MÁGICO DE SALOMÃO, nós temos: E Robão
disse a seu pai Salomão: «Pai, em que reside a virtude das coisas?» E Salomão
disse: «Toda arte, graça e virtude daquilo que procuramos está nas ervas, nas
palavras e nas pedras. Mas antes de tudo, você deve conhecer a posição dos

40
sete planetas.» Nós podemos notar que o conhecimento das virtudes das
plantas, pedras e astros, dos espíritos das estações e seus fluxos sazonais, as
virtudes dos elementos, o conhecimento de todas as coisas escondias e a sabe-
doria inata trata-se justamente do que Salomão ensina a seu filho Robão, o
que finalmente ficou conhecido na Renascença como magia natural; o mo-
vimento de magos renascentistas buscava salubrizar a prática da magia, re-
dimi-la, assim podemos dizer, do contato com demônios. Por isso os magos
renascentistas repetiam as mesmas condenações que a Igreja fazia contra os
magos conjuradores da magia salomônica. A magia natural e astrológica,
diferente da magia salomônica, foi considerada por estes magos da Renas-
cença como um tipo de magia positiva que todos podiam praticar. O ARBATEL,
um grimório renascentista de 1575 que trata do contato com os Espíritos
Olímpicos, regentes planetários, é um fruto deste movimento de salubriza-
ção da magia. Esse tipo de magia proporcionaria ao mago o poder da profe-
cia por inspiração divina. Foi Marsilio Ficino que parece ter inaugurado essa
salubrização da magia, condenando veementemente a magia conjuratória
salomônica e de eras anteriores. No mesmo caminho foram Paracelso, Gior-
dano Bruno e John Dee. Esse movimento renascentista que tentou salubrizar
a magia despontou na Era Moderna com ordens como a Ordem Hermética da
Aurora Dourada, podemos dizer, um fruto moderno do pensamento destes
autores.
Em contraste a essa tradição renascentista está a magia salomônica,
que apresenta o mago como um representante sacerdotal, um homem cujas
virtudes o capacitam a comandar os espíritos. O TESTAMENTO DE SALOMÃO, es-
crito por volta do Séc. VI d.C., embora haja autores que o aloquem no Séc. III
ou muito antes, é o escrito mais antigo da tradição salomônica. Nele, o co-
nhecimento e conversação com demônios e a ajuda dada por eles ocorre por
meio da intervenção do poder de Deus e sua milícia celeste. No HYGROMAN-
TEIA: O TRATADO MÁGICO DE SALOMÃO, nós temos: Você deve saber, ó homem,
esta primeira e mais importante, última e última instrução para tudo relatado
aqui. [...] Ore a Deus com toda a sua alma antes de cada operação, e recite o
seguinte com o coração puro e humilde: «Senhor nosso Deus, Adonai, Elisabaó,
Lamekh, Sante, Lanatou, Khamantan, Tetragrammaton, Início e Fim, Santo,
Santo, Santo, Senhor Sabaó, todo céu e terra estão cheios de tua glória; o nosso
Pai que estás nos céus, sustenta-nos com os teus santos nomes, Senhor Deus
Sabaó; pelas operações dos santos antepassados Enos, Cainã, Maalaleel, Mete-
laela, Seth, Enoque, Noé, Melquisedeque, Josué o filho da freira, Abraão, Isaque
e Jacó, Davi e Jessé, Salomão e Robão; pelas orações de seus santos, ó Senhor
nosso Deus, seja nosso salvador, misericordioso comigo, defensor e assistente.»
A ideia de permissão, autoridade e apoio divino na arte conjuratória
não é medieval e reside nos primórdios da magia goética da Antiguidade,
onde divindades celestes, ctônicas e daimones superiores eram convocados
para conferirem ao mago poderes sobre daimones menores, espíritos inferi-
ores. Mas durante a Idade Média, frente a escatologia reformada que a Igreja
propôs, a única fonte disponível de autoridade, força e poder era Deus e sua

41
milícia celeste. Por conta disso, para eficiência completa da magia dos gri-
mórios, os magos têm que ter uma profunda compreensão da cosmovisão
cristã e demonologia medieval; salvo engano, vivenciá-la e compartilhar de
crenças reais nela. Os grimórios, sendo frutos da revelação demoníaca, de-
pendiam do conhecimento daimônico, quer dizer, uma visão animista acerca
dos espíritos que permitia ao mago conhecer sua hierarquia e estabelecer
distinção entre eles, assim como de suas funções espirituais. O que valida
uma operação de magia salomônica, portanto, é a presença divina de Deus
através de sua milícia celeste. Por isso os magos competiam diretamente
com os sacerdotes da Igreja: porque alguém deveria frequentar a Igreja e ter
acesso a Deus através dos sacerdotes se é possível, através da magia dos
grimórios, invocar a intervenção, autoridade e poder de Deus sem o inter-
médio da Igreja?
A cosmovisão dos grimórios salomônicos é cristã, depende de uma ma-
neira cristã de enxergar a realidade. A própria temática do texto que inaugu-
ra a magia tradicional salomônica, O TESTAMENTO DE SALOMÃO, foi estruturada
sobre uma base cristã. Isso é o suficiente para provar que se trata de um es-
crito da Era Cristã e não antes dela, como alguns têm apontado. Por exemplo,
o demônio Rath, apresentando-se na forma de um leão, faz uma profecia
concernente à vinda de Emanuel. Essa é uma questão que deve ser averigua-
da pelo ângulo correto: inserir essa profecia em O TESTAMENTO DE SALOMÃO
foi uma maneira de tentar validar a prática da magia salomônica! Disso nós
podemos inferir que se O TESTAMENTO DE SALOMÃO, considerado o texto que
inicia a tradição salomônica, tem sua escrita na Antiguidade tardia entre os
Sécs. IV e VI d.C. quando o cristianismo estruturava suas bases através do
crescimento e expansão da Igreja, então a magia tradicional salomônica tra-
ta-se da primeira tentativa cristã de sistematizar uma forma de magia que
fosse lícita onde a demonologia cristã é apresentada e aceita e o trato com os
demônios é permissível pela ajuda de Deus e de sua milícia celeste. Desse
modo, a magia salomônica resgata o fio de ariadne dos primórdios da magia
onde o conhecimento e conversação com espíritos, bem como a sabedoria
obtida através deles, trata-se do fundamento da prática. É isso que une a
tradição salomônica medieval ao xamanismo paleolítico universal.
A tradição dos grimórios se desenvolveu em uma Europa cristianizada.
Não existe nenhuma evidência de que o mago salomônico europeu acredi-
tasse ou tivesse qualquer ideia filosófica e religiosa acerca de outras tradi-
ções espirituais que não fosse aquela vigente de sua época e contexto histó-
ria. Isso significa que o mago salomônico medieval não via os espíritos goéti-
cos, por exemplo, como daimones ou até mesmo deuses antigos de outras
religiões: ele os via como demônios de acordo com a cosmovisão cristã e es-
perava que os espíritos se comportassem como tal. O HYGROMANTEIA: O TRA-
TADO MÁGICO DE SALOMÃO, demonstra isso claramente. Nele a convocação e
imprecação dos demônios com a ajuda de Deus e sua milícia celeste é o cer-
ne do trabalho espiritual: Por estes nomes eu os conjuro, espíritos e demônios

42
das quatro partes do mundo,19 para se materializar, assumir uma forma hu-
mana mansa, bela e que se apresente diante de mim para fazer o que eu quero.
Eu os conjuro, impreco, amarro e amaldiçoo. [...]. Ó demônios, apareçam dian-
te de mim e não me desobedeçam, nestes santos nomes [...]. Eu os constranjo,
eu os obrigo e eu os ligo pelo [poder dos] anjos Mikael, Gabriel e Rafael [...].
Nenhuma tradição se sustenta sem um pano de fundo mitológico. Não
poderia ser diferente com a magia tradicional salomônica. Na mitologia sa-
lomônica, um aspecto importantes valida o seu exercício: Salomão teria re-
cebido uma graça divina que o possibilitou ser o iniciador de um método de
magia outorgado pelo próprio Deus, um método que requer a presença ini-
cial da milícia celeste de Deus para que o mago se abra a revelação divina e
controle os espíritos. As CHAVES DE SALOMÃO narram que a magia tradicional
salomônica é fruto de uma revelação de Deus em virtude de um homem dig-
no de recebê-la. Dessa maneira, quando um mago se prepara através de je-
juns, orações e consagrações, na verdade está se preparando para estabele-
cer a mesma aliança que Salomão estabeleceu com Deus. Ao invocar os anjos
e uma miríade de criaturas celestiais no início da operação, além de confir-
mar essa aliança através da invocação dos poderes e autoridade de Deus, se
abre a revelação divina. Fazendo isso, o mago salomônico se torna um elo na
tradição salomônica da magia, o continuador sacerdotal de uma casta de
magos que se iniciou com Salomão e sua aliança com Deus. A cada ritual esse
elo é reforçado, essa aliança é recriada. Salomão é, portanto, a inspiração de
uma dignidade espiritual e moral que todo mago deve buscar, pois somente
os dignos são eleitos para forjarem essa mesma aliança com Deus e de inte-
grarem essa tradição como elos de uma corrente salomônica.
Quando a magia salomônica tradicional foi redescoberta, um homem
digno de redescobri-la, Iohé Grevi, a recebeu de um anjo enviado por Deus: E
imediatamente apareceu-me um anjo do Senhor, dizendo: «Recorda-ti que os
segredos de Salomão parecem ocultos e obscuros a ti, que o Senhor assim dese-
jou, para que tal sabedoria não caia nas mãos dos ímpios; portanto, prometa-
me que não desejas que uma sabedoria tão grande chegue a qualquer ser vi-
vente, e o que revelares a qualquer um que eles saibam que devem guardá-lo
para si, senão os segredos são profanados e nenhum efeito pode segui?» Eu
respondi: «Eu te prometo que a ninguém os revelarei, exceto para honra do
Senhor e com muita disciplina, as pessoas penitentes, secretas e fiéis.» Então o
anjo respondeu: «Vá e leia a chave, e suas palavras que eram obscuras devem
ser manifestadas e clareadas a ti.» E depois disso o anjo subiu aos céus em uma
chama de fogo.20 Os magos salomônicos, portanto, como inferimos dessa
passagem, são pessoas penitentes, secretas e fiéis, dignos de receber de Deus
mesmo conhecimento que Salomão recebeu, o poder de se comunicar com
os espíritos de todo Corpo de Deus, aqueles que operam diretamente na de-
miurgia do cosmos: E disse Salomão: ouve, meu filho, e recebe minhas pala-

19 Note nessa situação o uso dos termos espíritos e demônios das quatro partes do mundo. Existem não só de-
mônios associados às direções do espaço, mas outros espíritos também, o que confirma e é uma prova da visão
animista de mundo.
20 A CHAVE DE SALOMÃO, Editada por S.L. MacGregor Mathers, ver. por Joseph H. Peterson.

43
vras e aprende as maravilhas de Deus. Pois, em certa noite, quando me deitei
para dormir, invoquei o santíssimo nome de Deus, IAH, e orei pela inefável sa-
bedoria. E quando comecei a fechar os olhos, o anjo do Senhor, até mesmo
Homadiel apareceu-me, falou muitas coisas com cortesia, e disse: Ouve, ó Sa-
lomão! A tua oração diante do Altíssimo não é em vão, e já que não pedistes
vida longa, nem muita riqueza, nem as almas dos teus inimigos, mas pediste a
sabedoria para realizar a justiça, assim diz o Senhor: «Conforme a tua palavra
te dei um coração sábio e entendido, de modo que diante de ti não há seme-
lhante a ti, e jamais se erguerá um.» E quando compreendi o discurso que me
foi feito, compreendi em mim que havia conhecimento de todas as criaturas,
tanto nas coisas que estão nos céus quanto das coisas que estão abaixo dos
céus [...]. Deste modo, como podemos perceber, o conhecimento e conversa-
ção com os espíritos diversos da natureza e autoridade sobre os demônios, o
poder da conjuração, depende de uma intimidade com Deus e o merecimen-
to de suas graças.21
Mas existe uma novidade na tradição salomônica da magia. Em inúme-
ras culturas e tradições anteriores como as da Mesopotâmia e Egito, a auto-
ridade de Deus era invocada para que o mago pudesse conjurar os demô-
nios, os espíritos malignos da natureza (kakodaimones), no entanto, o TES-
TAMENTO DE SALOMÃO é o primeiro escrito da tradição ocidental a usar demô-
nios para boas ações. Mas é a ideia de se operar com demônios para magia
de boas obras que produziu a inclinação agressiva da magia salomônica, ao
ponto dos rituais de magia equipararem-se as cerimônias de exorcismo da
Igreja. Além disso, a magia salomônica era uma magia de elite, de pessoas
letradas, pois somente o clero e os homens de educação, nobres aristocratas,
tinham acesso aos grimórios. O que reforçou ainda mais essa inclinação a-
gressiva dos grimórios salomônicos. O mesmo não ocorre com grimórios
anteriores a latinização deles, como o HYGROMANTEIA: O TRATADO MÁGICO DE
SALOMÃO, ou grimórios tardios como o GRIMORIUM VERUM. Nestes grimórios
existe uma relação mais branda entre o mago e os espíritos, onde há o exer-
cício de oferendas de alimentos a eles.
Desde os primórdios da magia, do xamanismo paleolítico a magia tradi-
cional salomônica, uma intricada tecnologia mágica de purificação e de pre-
paro para magia como requisitos fundamentais ao seu exercício tem se de-
senvolvido, dotando a tradição da magia com requinte de sacerdócio, a típica
imagem do magus persa, como vimos nos textos anteriores. Isso não foi in-
serido na tradição salomônica porque sua cosmovisão é cristã, mas ao con-
trário, é outro fio de ariadne da tradição da magia que vem se desenvolven-
do desde os primórdios. A purificação espiritual através desse preparo inici-
al possibilita receber a graça de Deus, seu conhecimento e autoridade para
se comunicar com os espíritos diversos do cosmos. É esse aspecto sagrado
da magia tradicional salomônica que fazia do mago medieval um concorren-
te da Igreja. Por outro lado, a Igreja oferecia o santo, que possuindo os mes-

21 Ibidem.

44
mos poderes de um mago salomônico, condenava a magia como uma arte de
profanos e o resultado de uma comunicação ilícita com demônios.

45
TEURGIA & LITURGIA

A liturgia do Cristianismo é e permanece cósmica, inseparável e inconfundível, e, so-


mente assim, ela subsiste em toda sua grandeza. Existe a novidade única representada
pela realidade cristã e, todavia, esta não rejeita a busca da história das religiões; ela
acolhe em si todos os elementos válidos das religiões do mundo, mantendo um vínculo
com elas.22

E m diversos lugares costumo colocar ênfase que a Igreja Católica her-


dou inúmeros elementos de tradições pré-cristãs e constituiu uma
síntese dos mistérios contidos nessas tradições. As palavras acima do
Pontífice Bento XVI (Joseph Ratzinger) ilustram isso perfeitamente. O
presente texto explora essa ideia na ritualística cristã na Igreja Ocidental e
Oriental, a Liturgia Sagrada. De onde vem o ritual cristão? Trata-se de uma
derivação direta da teurgia clássica neoplatônica da Antiguidade tardia. Nos
textos anteriores você entrou em contato com o termo teurgia cristã; por ele
entenda liturgia, uma expressão do pensamento de Deus e do próprio mo-
vimento do cosmos. Trata-se de um acontecimento teologal: Deus vem ao
encontro do homem e o imanta com sua Luz transmutadora para que ele se
transforme completamente na sarx do Logos, quer dizer, na carne da Palavra
de Deus (Rm 12:1).
Liturgia é o nome que a Igreja Primitiva deu a sua versão particular da
teurgia neoplatônica, embora os nomes tenham raízes e significados preci-
samente diferentes. É conveniente considerar como propõe Ilinca Tanasea-
nu-Döbler, que a teurgia no período da Antiguidade tardia inventou a tradi-
ção mágica do ritual, o qual foi completamente aperfeiçoado pela igreja primi-
tiva.23 Eu completaria dizendo que o Concílio Vaticano II foi o responsável
por refinar completamente a Liturgia Sagrada da Igreja pelo do desenvolvi-
mento da tradição cristã apostólica universal através dos séculos, garantin-
do sua perpetuação desde o advento de Pentecostes (At 2:1-13).
Embora Santo Agostinho (354-430 d.C.) deprecie a teurgia, é possível
encontrar bases teúrgicas em seu pensamento, assim como no pensamento
de Orígenes (184-253 d.C.), que precedeu a revolução teúrgica helênica da
qual Santo Agostinho foi testemunha. Por exemplo, existe uma reivindicação
de que o pensamento de Orígenes sobre a ascensão da Alma como ser racio-
nal a Deus e o papel da Igreja e do sacramento na mediação dessa ascensão
pode ser entendido como uma influência direta da teurgia. Isso não implica
que Orígenes era um criptoteurgo, quer dizer, um pagão disfarçado de cris-
tão ocultando suas insinuações de ritos tradicionais teúrgicos dentro do con-
texto cristão. Ao contrário, é a sua teologia do Logos governante, onde o

22 Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), TEOLOGIA DA LITURGIA: O FUNDAMENTO SACRAMENTAL DA EXISTÊNCIA CRISTÃ,
Obras Completas, Vol. XI.
23 Ilinca Tanaseanu-Döbler, THEURGY IN LATE ANTIQUITY.

46
Deus transcendente, materialmente manifestado à humanidade, torna a par-
ticipação na vida divina acessível num grau não previamente concebido, que
convida a uma assimilação conceitual do pensamento teúrgico. Sua teologia,
portanto, obriga os pensadores cristãos a repensarem sobre a capacidade da
realidade material de mediar o divino, o que existe profundamente na tradi-
ção da teurgia.
Teurgia, como veremos com profundidade, é a Obra de Deus, o próprio
movimento do cosmos. Jâmblico insistia que no momento do rito teúrgico, o
teurgo se vestia com o manto dos deuses e a partir deste momento se inseria
na Obra de Deus, dentro do movimento cosmorgânico da criação. A liturgia,
por outro lado, etimologicamente vem das palavras gregas  (povo) e
 (trabalho, ação), significando, dessa maneira, trabalho para ou em favor
do povo. Teologicamente a palavra  em liturgia é teândrica, quer dizer,
uma obra divina para o povo ou uma Obra de Deus para o povo porque no
curso do ritual Deus em amor na pessoa de seu filho, Nosso Senhor Jesus
Cristo, vem ao encontro de cada cristão que comunga com profundidade e
verdade da Eucaristia para salvar a sua Alma. Da mesma maneira que na
teurgia o teurgo exercita a obra dos deuses se inserindo no organismo do
cosmos, o sacerdote na liturgia exercita a obra sacerdotal do próprio Cristo,
quer dizer, a santificação do homem e a glorificação de Deus pelo Batismo e
pela Eucaristia. O Concílio Vaticano II diz:

Com Razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo.


Nela, os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação
dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo- Cabeça e membros – presta a Deus
o culto público integral. Portanto, qualquer celebração litúrgica é, por ser Obra de Cris-
to sacerdote e do Seu Corpo que é a Igreja, ação sagrada por excelência, cuja eficácia,
com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igre-
ja.24

Inúmeros tomos já foram escritos tanto sobre teurgia quanto sobre liturgia.
Esse texto que agora vos entrego não é capaz de iluminar o mínimo que seja
todo esse conteúdo produzido por autores, teólogos e teurgos, tão vasto e
tão complexamente completo. Espero que me perdoem por isso. Tanto a
teurgia quanto a liturgia podem ser estudadas sobre amplos aspectos distin-
tos. Neste texto vamos explorá-las sobre um aspecto comum: a ordem cós-
mica. Nossa jornada será longa e de início vamos começar com aspectos his-
tóricos da teurgia neoplatônica de Jâmblico e depois vamos explorar a litur-
gia no cristianismo.

SEÇÃO . I .
A TEURGIA DE JÂMBLICO

A teurgia neoplatônica de Jâmblico tem uma premissa fundamental: tornar-


se o mais próximo possível do divino. Com esse objetivo como meta última, os

24 DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Paulus, 2017. Os itálicos são meus.

47
neoplatônicos se dedicavam primeiro ao estudo da filosofia na intenção de
fundamentar ou estruturar seu trabalho espiritual. A filosofia é o alicerce do
trabalho espiritual neoplatônico. Mas se a filosofia é o alicerce da espiritua-
lidade neoplatônica, a religiosidade são as paredes que dão estrutura a essa
prática espiritual. A religiosidade neoplatônica opera sobre dois fundamen-
tos: sacrifícios e preces. A prática religiosa purifica o filósofo, preparando-o
para o encontro com o Uno. Nesse caminho, a espiritualidade neoplatônica
não se tratava de um exercício amorfo, antes disso, um caminho onde é pos-
sível experimentar o Sagrado diariamente com alto grau de refinamento in-
telectual. Na visão neoplatônica, essa prática combinada, religião e filosofia,
dá nascimento e nutre a virtudes purificatórias essenciais, àquelas que le-
vam o praticante acima das virtudes políticas da mente ordinária. Essas vir-
tudes purificatórias são de natureza espiritual e por conta disso, elas refi-
nam o aparato intelectual. O entendimento disso é o passo inicial que coloca
o teurgo em contato com o divino e com a divinação.
Mas por que o passo inicial? Porque não é o suficiente para que um pra-
ticante seja considerado um teurgo. Qualquer pessoa ordinária pode estudar
filosofia e praticar rituais de adoração. Mas embora sejam esses ingredientes
fundamentais na prática da teurgia, por si mesmos eles não fazem de nin-
guém um teurgo. Um filósofo e um religioso não são teurgos, mas um teurgo
é sempre um filósofo e um religioso.
Em palavras muito simples, o Candidato deve transcender o reino da
mente. Ele deve encontrar um mecanismo que o leve além. Jâmblico dizia
que o pensamento puro, uma qualidade de mente produzida pela filosofia –
que implica em prática contemplativa e reflexiva sobre a vida e os próprios
processos da mente – não é o suficiente para transformar o Candidato em
um teurgo. Assim, teurgia não se trata de conhecimento – embora o conhe-
cimento seja um pré-requisito para a prática – mas ao invés disso, algo que
está além do conhecimento.
A palavra teurgia deriva de duas fontes: a palavra grega theos que signi-
fica Deus e a palavra ergon que significa trabalho ou atividade, portanto,
teurgia é um termo que tem sido traduzido como trabalho divino ou opera-
ção divina, quer dizer, Obra de Deus. Para a maioria dos teurgos pagãos neo-
platônicos, teurgia se trata de um engajamento, um trabalho diário com o
Sagrado. No entanto, a palavra tem sido compreendida na magia moderna
como um tipo de operação ritualística com anjos e inteligências planetárias.
Na verdade, o ocultismo moderno considera qualquer interação com criatu-
ras espirituais de tipo superior como teurgia. Mas para os neoplatônicos,
teurgia compreendida como um trabalho diário de contato com o Sagrado
implica em vários ritos e etapas de iniciação: hierougia (rituais sagrados),
mustagogia (iniciação nos mistérios), hieratike (liturgia), hieratike tachne
(arte sagrada), theosophia (ritos de sabedoria espiritual). Tudo isso sendo
teurgia.
Jâmblico se esforçou em demonstrar que a teurgia era uma prática es-
piritual muito distinta da baixa magia, feitiçaria e até mesmo da goécia, no-

48
ção que foi corrompida nos grimórios de magia da Idade Média. E embora a
prática teúrgica implique em utilizar as técnicas e as tecnologias da magia e
da feitiçaria, a teurgia não é a técnica ou a tecnologia, pois se trata de meca-
nismos puramente humanos. No entanto, se compreendido de maneira a-
propriada, esses elementos podem ser utilizados como ferramentas da teur-
gia.
Nas palavras de Jâmiblico: A teurgia apresenta um aspecto duplo. Por
um lado ela é executada por homens e como tal devemos observar nossa posi-
ção natural no universo. Mas por outro lado ela controla os símbolos divinos e
em virtude disso o homem alcança a união com os poderes superiores, os quais
passam a dirigi-lo. Harmoniosamente em concordância com a dispensação dos
símbolos o homem assume o manto dos deuses. É por causa dessa distinção
que a arte invoca os poderes superiores. Vestido com as virtudes desses símbo-
los inefáveis, o homem é capaz de dominá-los, com a hierática autoridade dos
deuses.25
A teurgia de Jâmblico embora executada pelo homem, tratava-se de um
trabalho essencialmente divino. Nesse caminho, ela diferenciava-se das téc-
nicas de baixa magia e feitiçaria que tratavam com entidades e criaturas es-
pirituais inferiores. Jâmblico acreditava que a magia popular de sua época se
tratava apenas de uma tecnologia para o domínio do plano físico e que por-
tanto, produzia um resultado pernicioso de padrão artificial que simulava a
operação divina da teurgia. Embora não fosse ilícita, a magia popular não
poderia dar ao executor as condições de se aproximar do Uno. A teurgia, por
outro lado, envolvia padrões vibracionais mais sutis e superiores, além do
mundo gerador.
Para Jâmblico a principal função da teurgia é divinizar o homem. Theo-
sis, quer dizer, tornar-se o máximo possível como o próprio Deus. Como falei
acima, embora inspirada em princípios espirituais superiores, a teurgia uti-
liza as mesmas tecnologias usadas na magia e na feitiçaria, mas o teurgo é
algo além de um mago ou feiticeiro. Ritos hieráticos, telestéticos e teúrgicos
na teurgia divinizam o praticante. A teurgia tem um amplo campo de atuação
prática, desde a invocação de deuses e daimones, animação de ícones ou es-
tatuetas, rituais de união com o Sagrado etc., no entanto, o teurgo está mais
interessado na origem das forças por trás de cada ação ritualística, seja nos
sacrifícios ou na liturgia, na meditação ou na contemplação. Uma vez que as
forças divinas estão presentes por trás de cada ação ritual, podemos consi-
derar ser um rito de teurgia.
Uma vez que a teurgia tem um vasto arranjo de elementos práticos, a
divinização que ocorre através de sua execução é observada em muitos fe-
nômenos distintos como a adoração e os sacrifícios, a invocação de deuses
em estatuetas, telismância, ritos de purificação e cura e o mais importante, o
congressus cum daemone, a invocação do daimon pessoal. O congressus cum
daemone é a operação de teurgia mais importante para Jâmblico, pois é so-
mente através do daimon pessoal que o praticante pode se considerar um

25 Citado em LIVING THEURGY, Jeffreys S. Kupperman.

49
teurgo. Ninguém pode se considerar um teurgo até que tenha obtido o con-
tato com seu daimon pessoal.
É possível rastrear nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS e nos sistemas
de teurgia de outros períodos como o de Pseudo-Dionísio ou a telismância
astrológica de Marsilio Ficino que, para que o exercício da teurgia seja eficaz,
o reino da geração do qual o homem faz parte deve ser completamente i-
nundado pela força do Uno, proveniente de planos divinos superiores. Jâm-
blico ensinava que os poderes superiores eram aterrados temporariamente
no plano da geração e neste breve espaço de tempo o teurgo se vestia da au-
toridade do próprio Uno-Deus. Mas Jâmblico insistia em uma diferença fun-
damental que, segundo ele, distinguia o teurgo do feiticeiro. Se por um lado
um feiticeiro poderia invocar as forças e os poderes superiores para o plano
da geração, por outro lado ele não tinha a principal característica de um
teurgo: a capacidade de elevar-se ao plano do Uno, o ingrediente fundamen-
tal na prática da teurgia, o que a distingue da feitiçaria. Um teurgo não é a-
penas àquele que invoca os poderes superiores, mas que fundamentalmente
é capaz de subir aos planos superiores e comungar com o Uno. E isso se re-
flete na prática da teurgia. Um teurgo deve ser capaz de divinizar todos os
procedimentos e tecnologia que utiliza em suas operações. Por exemplo,
tradicionalmente os talismãs são utilizados porque eles são veículos pneu-
máticos para forças praeter-humanas. No entanto, ele somente se torna efe-
tivo se o teurgo o diviniza, isso inclui consagração para dotar-lhe de um cor-
po de luz adequado para receber a assinatura e a presença da força que nele
foi invocada. O talismã passa a fazer parte de uma hierarquia de códigos de
luz, o que o possibilita orbitar na vibração de determinada divindade.
A divinação ocorre na teurgia através da possessão divina, o que requer
ao teurgo a capacidade de assumir formas divinas na intenção de ser inun-
dado pelos poderes da deidade invocada. Embora seja nas mãos de Jâmblico
que a teurgia ganhou requinte e prestígio, ela é rastreada no Séc. II d.C. já
com Plotino, que utilizou pela primeira vez o termo teurgia para explicar o
poder divinatório dos ritos dos ORÁCULOS CALDEUS. Na execução desses ritu-
ais, Jâmblico compreendeu o propósito último da filosofia: a união com o
divino. Ele foi responsável por definir a importância da visão de Platão em
TIMEU na cosmologia teúrgica e o racional por trás dos rituais. Seus ensina-
mentos remodelaram o Neoplatonismo que não foi mais o mesmo após Jâm-
blico, desde o paganismo de Proclo ao Cristianismo de Pseudo-Dionísio, o
Areopagita e Marsílio Ficino. Em Jâmblico aprendemos que os rituais de
teurgia têm o poder de sacramentar a matéria (hylé), constituindo o Casa-
mento Místico, quer dizer, a União com o Divino. Em sua magna obra, DE
MYSTERIIS, ele diz:

Desde que seja necessário que as coisas da terra não sejam privadas da participação
no divino, a terra recebe certa porção divina capaz de receber os Deuses. A arte teúr-
gica, portanto, reconhece esse princípio geral e tendo descoberto os receptáculos a-
propriados, em particular, como sendo apropriados a cada um dos Deuses, trazem er-
vas, pedras, animais, perfumes e outros objetos sagrados, perfeitos e deiformes de ti-

50
pos similares. Então, disso tudo se produz um receptáculo perfeito para receber o di-
vino.

Através dos ritos de teurgia, dessa maneira, hylé (um termo técnico para ma-
téria cunhado por Aristóteles), produz-se um receptáculo apropriado para
receber a Luz do Uno, seja na Alma humana ou no aparato teúrgico utilizado
para ser a morada dos Deuses. Foi também através dos ritos de teurgia que
Jâmblico percebeu e depois defendeu que a experiência direta com o divino,
a experiência direta com o mais elevado Bem, não necessita de renúncia da
matéria, mas que, muito pelo contrário, o teurgo deveria abraçar completa-
mente a vida na matéria e a multiplicidade agindo como um demiurgo. Nesse
caminho Jâmblico conectou a execução dos ritos de teurgia com a paideia, a
disciplina filosófica intelectual. Uma das chaves do sistema de Jâmblico é a
doutrina da anamnesis de Platão, que trabalha no redespertar da Alma quan-
do ela entra em contato com o mundo sensível das ideias através da henosis.
Toda cosmologia que envolve os ritos teúrgicos de Jâmblico foi exposta por
Platão em TIMEU.
Para Jâmblico, a realização última da filosofia não era a imaterialidade
da razão, mas a participação na Obra de Deus através da teurgia. Para ele, é o
poder dos ritos teúrgicos e não a abstração filosófica a chave para a união
com o divino. A Visão não-dualista de Jâmblico que unia o divino a matéria e
sua ênfase sobre a liturgia ritualística da teurgia influenciou profundamente
o Cristianismo ortodoxo, como oposto ao maniqueísmo gnóstico. Para Jâm-
blico, diferente dos gnósticos dualistas que depreciam a matéria, ideia tam-
bém encontrada em Plotino, de certa maneira, a encarnação da Alma na ma-
téria é o único meio pelo qual a Salvação pode acontecer. Essa Salvação o-
correria através da execução dos ritos teúrgicos, cuidadosamente baseados
no entendimento preciso da encarnação da Alma como demonstrada por
Platão em TIMEU, onde a Alma imita o deimurgo enquanto encarnada na ma-
téria. Essa imitação ou assunção de forma divina reside no coração da teurgi-
a.
Essa interpretação de Jâmblico, por outro lado, discorda da visão de
Plotino, que ensinava que a Alma não encarna completamente na matéria e,
portanto, não necessita ser divinizada ao reino dos Deuses. Jâmblico discor-
dava completamente dessa ideia de Plotino e dizia que a Alma encarna com-
pletamente no reino da matéria e por conta disso não possuía acesso direto
ao divino. Uma vez encarnada, a Alma não pode fugir ou se esquivar da ma-
téria e através da mediação de um ato sacramental, e apenas por meio dele,
é possível a alma receber a graça da teurgia dos Deuses, o método pelo qual
a Alma se refina ao ponto de se assemelhar ou possuir as qualidades de um
Deus. Essa ideia de Jâmblico foi tão impactante na Antiguidade que ela resi-
de ainda hoje no cerne da prática litúrgica da Igreja Romana, o sacramento
da Missa.
O mecanismo por trás do sacramento da Missa na Igreja de Roma resi-
de no fato de que por meio dele é possível a Alma ascender ao Reino de Deus
através da encarnação de Deus no mundo no momento em que a hóstia é

51
consagrada pelo Sacerdote. Quando a hóstia consagrada e sacramentada é
consumida, ocorre a descida da graça e o Espírito Santo atua diretamente
sobre a Alma, elevando-a ao Reino de Deus. Michel Salamolard em A EUCA-
RISTIA, ONDE TUDO SE TRANSFORMA, diz:

Acima, observei que, em todo sacramento [...] as duas realidades que se encontram
não são coisas, mas sujeitos, Deus e homem, parceiros de uma aliança de amor e de vi-
da. É possível agora definir a natureza desse encontro, o qual se realiza no e pelo Cris-
to. Ele é nossa porta de entrada na comunhão trinaria (cf. João, 10: 1-10), razão do que
é fácil de entender. É nele, em sua pessoa, que se realizou de maneira única, plena e
insuperável a união do humano com o divino. [...] Nele, todo humano está associado ao
divino. Portanto, cristificando-nos e tornando-nos semelhantes a Cristo, unindo-nos a
Ele, o sacramento nos diviniza.26

Santo Agostinho criticou duramente a magia e os tratos com os daimones, no


entanto, é inegável a influência da teurgia neoplatônica de Jâmblico sobre ele
quando diz que o procedimento litúrgico do sacramento só é possível pela
descida de Deus e sua encarnação no sacramento. Todo esse procedimento
litúrgico no preparo do sacramento na Cristandade é uma herança da teur-
gia neoplatônica que ensina a divinizar a matéria, a parte mais densa da cri-
ação através de imagens e outros elementos, sendo possível comunicar o
transcendente, transformando a matéria em um sacramento. Falando sobre o
princípio fundamental que diviniza a matéria através da Encarnação de
Deus, seus COMENTÁRIOS AOS SALMOS, Santo Agostino diz: a matéria [...] se tor-
na por sua participação em Cristo o mistério através do qual a salvação é con-
quistada.27
É interessante notar que por volta do Séc. VIII d.C., quando de frente ao
conflitante dualismo iconoclástico cristão e islâmico, João Damasceno (676-
749), o último dos Pais Gregos da Igreja, defendeu a veneração de ícones (i-
magens) dentro da cristandade, o que incluía roupa, metal, marfim, madeira,
mosaicos, escrituras e estatuetas, de maneira muito similar a Jâmblico. Em
seu DE IMAGINIBUS, ele diz:

O que a BÍBLIA é para os que sabem ler, a imagem o é para os iletrados.


Antigamente Deus, que não tem corpo nem face, não poderia ser absolutamente re-
presentado através de uma imagem. Mas agora que Ele se fez ver na carne e que Ele
viveu com os homens, eu posso fazer uma imagem do que vi de Deus.
A beleza e a cor das imagens estimula a minha oração. É uma festa para os meus o-
lhos, tanto quanto o espetáculo dos campos estimula o meu coração para dar glória a
Deus.
Como fazer a imagem do invisível? Na medida em que Deus é invisível, não o repre-
sento por imagens; mas, desde que viste o incorpóreo feito homem, fazes a imagem da
forma humana: já que o invisível se tornou visível na carne, pinta a semelhança do in-
visível
Outrora Deus, o incorpóreo e invisível, nunca era representado. Mas agora que Deus
se manifestou na carne e habitou entre os homens, eu represento o «visível» de Deus.
Não adoro a matéria, mas o Criador da matéria, que se tornou matéria para o meu bem
e aceitou residir na matéria e através da matéria operou minha salvação. Não vou dei-
xar de reverenciá-lo na matéria, através da qual minha salvação é trabalhada. [...] Pois

26 Michel Salamolard, A EUCARISTIA, ONDE TUDO SE TRANSFORMA.


27 Santo Agostinho, PATRÍSTICA: COMENTÁRIOS AOS SALMOS.

52
o corpo de Deus se transformou em Deus Imutável através da hipostática união, e o
que provém da unção permanece matéria animada, pois é formada uma alma intelec-
tual e racional e não algo incriado. Portanto, eu adoro a matéria cheia de energia divi-
na e graça, e prostro-lhe respeito por que através dela minha salvação alcanço.28

Para João Damasceno, a matéria é completamente divinizada pela encarna-


ção da graça divina na parte mais densa da criação. Essa descida da graça
tem a única finalidade de levar a Alma ao reino de Deus. Talvez a influência
mais profunda e concreta de Jâmblico na teologia cristã resida nessa ideia
defendida por João Damasceno: a matéria está plena com o poder de comu-
nicar o que está mais radicalmente além da matéria.
Ao defender a veneração de ícones,29 João Damasceno cria uma cone-
xão entre a teologia cristã e a teurgia de Jâmblico que postulava a dignidade
intrínseca da matéria. Jâmblico considerava que a matéria, em toda sua den-
sidade cosmológica, trata-se de uma expressão da Fonte Una Paternal.30
Dessa maneira, a matéria como imagens naturais e ícones construídos pelo
homem pode se tornar uma fonte de moradia perpétua do divino,31 agindo
como um veículo de comunicação entre o teurgo e o divino.32 Através dos
ritos teúrgicos, preces e invocações, oblações e fumigações, o poder intrínse-
co da matéria receptivo ao divino é desbloqueado, transformando-a em um
veículo adequando a morada e comunicação com a energia divina. Mas a
chave para este desbloqueio reside na henosis. É a henosis a experiência ca-
paz de elevar a Alma ao reino do Bem e trazer de lá para matéria seus códi-
gos de luz. Por esse motivo imagens naturais e ícones construídos pelo ho-
mem podem transmitir os códigos de luz do Bem para as profundezas som-
brias da matéria.33 Jâmblico chama isso de a pura e divina forma da maté-
ria,34 que transmite ou comunica os códigos de luz do divino. É seguindo es-
sa ideia que João Damasceno defendia a veneração de ícones, os quais po-
dem preencher a Alma humana com os arquétipos imateriais do divino. O
paradoxo reside aqui: enquanto que para Jâmblico a forma divina da matéria
está além dela, para João Damasceno e Pseudo-Dionísio esta forma divina é
Jesus Cristo.

28 Citado pelo Papa Bento XVI no artigo: São João Damasceno: da veneração das imagens ao louvor da matéria,
«o grande mar de amor de Deus pelo homem».
29 O Papa Bento XVI diz: João Damasceno foi um dos primeiros a distinguir, no culto público e privado dos cris-

tãos, entre adoração e veneração: a primeira só pode dirigir-se a Deus, sumamente espiritual; a segunda, no
entanto, pode utilizar uma imagem para se dirigir àquele que é representado na própria imagem. Veja o artigo:
São João Damasceno: da veneração das imagens ao louvor da matéria, «o grande mar de amor de Deus pelo ho-
mem».
30 Não é possível dizer precisamente que João Damasceno leu Jâmblico, no entanto, pesquisadores supõem que

sim, devido a seu conhecimento íntimo de Platão e Aristóteles, além de sua afinidade óbvia com o neoplato-
nismo. Assim, supostamente João Damasceno conhecia Jâmblico, mas deliberadamente procurou omitir seu
nome. Isso ainda é motivo de pesquisa entre acadêmicos estudiosos, historiadores e filósofos.
31 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, III, 28.
32 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, V, 23.
33 Os magos da Idade Média compreenderam esse processo através da teurgia-goécia, cujo objetivo era elevar a

Alma ao reino dos deuses (As Chaves Maiores de Salomão) e trazer de lá os códigos de luz por eles transmitidos
a Alma. Os magos transmitiam estes códigos de luz a matéria através dos daimones, que operavam sob o co-
mando dos magos (As Chaves Menores de Salomão).
34 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, III, 30; V, 15.

53
O paradoxo reside no cerne da discussão filosófica sobre a encarnação
do divino: para os cristãos o divino encarna como Jesus Cristo, mas para os
teurgos neoplatônicos o divino encarna como a Alma humana. Toda a dou-
trina cristã está repleta da noção neoplatônica de que o divino desce a maté-
ria e através da matéria divinizada é possível retornar ao divino. A diferença
é que para os cristãos a matéria precisa ser redimida, enquanto que para os
neoplatônicos a matéria não precisa se redimir, pois ela contém e transmite
toda divindade do Bem. As crenças são paradoxalmente semelhantes, pois
através de atos sacramentais é possível retornar ao Reino de Deus. Os cris-
tãos chamam isso de salvação, mas os teurgos poderiam chamar poetica-
mente de alinhamento ou sintonização com o divino através da henosis.
Jâmblico ensinava que preces, invocações e atos sacramentais não mo-
dificam a mente dos deuses, por isso não são feitas na forma de petições, as-
sim como não funcionam como terapia, como é ensinado pelas escolas mo-
dernas. Ao contrário, sua prática leva a um tipo de sintonização com o divi-
no, transformando a matéria em um mecanismo através do qual o divino a
influencia diretamente. Essa sintonização é a própria Obra de Deus (teurgia),
que estabelece um tipo de sinergia entre a matéria e o divino. Jâmblico pos-
tulava que através da teurgia o mundo se torna o mundo divino, quer dizer, o
mundo que compreende o Uno, o Bem, deuses, daimones e heróis, diferente
do mundo não divino, compreendido como desprovido dos códigos de luz do
Uno,35 ideia defendia por outras correntes filosóficas e que encontram algum
respaldo em Plotino.
Jâmblico dizia que a teurgia é uma atividade divina compartilhada co-
munitariamente e não um conhecimento experienciado individualmente,
pois é impossível participar individualmente da ordem universal, mas apenas
em comunhão com o coro divino e àqueles que se levantam juntos, unidos em
mente. O Meio para se chegar ao Uno não está disponível a cada indivíduo por
si mesmo, a menos que ele se alinhe com o todo, retornando ao princípio co-
mum junto com todas as coisas.36 A teurgia, portanto, opera fundamental-
mente através da participação individual na ordem cósmica, não se esca-
pando da realidade material. Para Jâmblico, todas as experiências da Alma
humana encarnada na matéria são necessárias para que o teurgo possa rea-
lizar seu trabalho espiritual. Trata-se de uma visão não-dualista que vê o
mundo de maneira positiva, iluminada. Diferente da visão de Plotino que
rejeitava a matéria em detrimento de uma realidade espiritual, Jâmblico en-
sinava que é através da comunhão com os ciclos naturais, daimones, deuses e
heróis que a Alma se alimenta e retorna ao Uno.
Porfírio, biógrafo e editor de Plotino, foi duramente criticado por Jâm-
blico por dizer que os deuses eram espirituais demais para serem acessados
através de rituais teúrgicos pela razão da matéria ser completamente des-
provida de luz e sacralidade:

35 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, I, 9-15.


36 Jâmblico, citado por Gregory Shaw, THEURGY AND THE SOUL: THE NEOPLATONISM OF IAMBLICHOS.

54
Essa doutrina [diz Jâmblico] soletra a ruína de todo rito sagrado e a comunhão teúrgi-
ca entre os deuses e os homens, uma vez que ela coloca os seres superiores fora da
terra. Isso equivale dizer que o divino está distante da terra e que ele não se mistura
com o homem e que esta região inferior é como um deserto desprovido de deuses.37

Em contraste a essa visão turva, a teurgia de Jâmblico sustenta a continuida-


de dos deuses na matéria, reconhecendo sua presença nos animais, vegetais
e minerais, resgatando o animismo das tradições órfica e pitagórica. Através
dos ritos teúrgicos, Jâmblico postulava que é possível entrar em contato com
a divindade na matéria: através da teurgia o divino é revelado em todas as
coisas.38
Nas tradições neoplatônica e pitagórica o cosmos é uma teofania e a
teurgia é a prática através da qual é possível ao homem entrar em contato e
perceber que o cosmos está em perfeita sincronia com a matéria. Por conta
disso, Jâmblico negava a hipótese de se escapar da matéria ou dividi-la em
dois mundos: um superior e divino e um inferior desprovido de divindade.
Para ele, o mais elevado e divino se encontra no mundo inferior da matéria,
quer dizer, o Uno está presente na realidade material. Os deuses não se en-
contravam isolados em um lugar muito além ou mais sutil que a matéria,
mas eram revelados no mundo. Jâmblico afirmava que os daimones revela-
vam a vontade dos deuses, não por divulgação ou ocultação, quer dizer, não
como alguém que revelaria ou ocultaria informação objetiva. Na teofania de
Jâmblico, o divino permanece oculto em sua aparição. Ele acreditava que es-
te era o caminho da cosmogênese e a sagrada tradição que ela encarnava:
uma atividade que ele descreve como simbólica.39
Na cosmologia de Jâmblico, os poderes emanados do Uno são recebidos
e orquestrados por uma atividade noética personificada por Platão como um
Demiurgo que tecia estes poderes divinos em um cosmos vivo. Assim, os
princípios espirituais ocultos mais elevados eram revelados através da ma-
téria, incluindo todas as paixões humanas. A teurgia, portanto, é a arte de
aprender a receber essa processão de maneira a encarnar essa demiurgia
que continuamente cria e sustenta a matéria. Ignorar a divindade intrínseca
na matéria não é apenas negar este poder, mas negar a própria realidade
humana. Isso faria do mundo, nas palavras de Jâmblico, um deserto desprovi-
do de deuses. A luta de Jâmblico era contra uma visão dualista e distorcida da
matéria que assolava os homens de sua época, impedindo-os de ver a reali-
dade espiritual animista nela contida.
A teurgia neoplatônica, dessa maneira, valoriza a encarnação da Alma
na matéria, pois ela possibilita a descida total do divino no mundo. A teurgia
cristã caminha de maneira similar ao considerar que a encarnação de Jesus
Cristo no ato sacramental da missa satura o mundo com a presença divina,
possibilitando que os participantes do sacramento experienciem o sagrado.
A experiência do sacramento da missa cristã é teúrgica, pois ela provê aos

37 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 28, 4-8.


38 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 32, 5.
39 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 136, 1-7.

55
congregantes a possibilidade de elevar a Alma ao Reino de Deus através da
liturgia, liberando-a de seu transe material. Como acima mencionado, a
teurgia de Jâmblico teve profundo impacto na teologia postulada por João
Damasceno que, sob a luz da encarnação de Deus no sacramento, dizia que
toda a matéria era preenchida com a energia da graça. Isso foi completamen-
te demonstrado por Jâmblico quando ensinava que o Uno penetra comple-
tamente a realidade material, dando suporte as ideias defendidas por João
Damasceno acerca da encarnação. Jâmblico dizia que os códigos de luz do
Uno, que ele chamou de princípios superiores, são mais penetrantes (drium-
terai) que a influência densa das realidades inferiores. Proclo, por outro la-
do, ensinava que essa influência é mais extensiva. Seja como for, isso explica
que a inefável presença do Uno está também nos níveis mais densos da ma-
téria.
Na teurgia o cosmos material é uma algama, ou seja, um santuário do
Demiurgo. Em TIMEU (37c) Platão diz:

E quando o pai o gerou [quer dizer, o universo] o percebeu em movimento e vivo, um


monumento aos deuses eternos, também ele se regozijou; e estando ele devidamente
satisfeito, pensou em torná-lo ainda mais estreitamente semelhante ao seu modelo.

Assim, o cosmos material revela a presença dos deuses e por conta disso
Jâmblico via a matéria como uma teofania. Longe de ser caída, a natureza é a
face e o símbolo vivo do divino.
João Damasceno tem forte influência de Jâmblico, como observamos, o
que implica que a teologia cristã compartilha dessa mesma visão do cosmos
revelado pelo divino, um monumento aos deuses como postulado por Platão
na citação acima, mas diferente da interpretação pagã, um monumento cria-
do por Deus. A diferença é que a doutrina platônica é cosmocêntrica enquan-
to que a doutrina cristã é antropocêntrica. Como mencionado anteriormen-
te, a cristandade postula que a natureza é caída e por conta disso necessita
ser redimida. A encarnação do Homem Divino no papel de Jesus Cristo é es-
sencial para redenção da natureza e da ordem material. Após o evento da
encarnação de Deus na Terra, o cosmos material na interpretação cristã pas-
sa a ter a mesma função do cosmos material na interpretação de Jâmblico,
como uma diferença: para Jâmblico, o poder sacramental da matéria não ne-
cessita da encarnação de Jesus Cristo. O cosmos material é e sempre foi, in-
trinsecamente e inalteradamente, sagrado. Para o teurgo neoplatônico não
há a necessidade de uma nova criação ou a redenção de uma natureza caída,
pois a natureza é o seu corpo de salvação. A expressão natural no contínuo
progresso da demiurgia revela a coreografia de uma antiga e perpétua teo-
fania. Baseado neste conhecimento divino, Jâmblico ensinava que a teurgia
deve estar em sincronia e analogia com a criação.40 Os procedimentos teúrgi-
cos, assim, são efetivamente uma Obra de Deus quando estão em harmonia e
analogia com a atividade cosmogônica e é isso que distingue, fundamental-

40 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 65, 4-11.

56
mente, a teurgia da goécia (feitiçaria).41 Em DE MYSTERIIS Jâmblico postula
que àqueles que desviam os poderes espirituais de seus propósitos demiúr-
gicos são feiticeiros que, cedo ou tarde, cairão em desgraça.42 Jâmblico hon-
rava e venerava os egípcios pelo fato de seus rituais refletirem mimetica-
mente a demiurgia dos deuses. Ele defendia que a cultura egípcia era teúrgi-
ca, seus ritos e preces preservavam a medida eterna da criação.
Para Jâmblico, os rituais de teurgia de cada raça sagrada revelam o po-
der de seus deuses e a maneira apropriada de invocá-los. A teurgia neopla-
tônica se revela dentro de um cosmos pluralista e politeísta: a variedade de
culturas e o ambiente geográfico que elas pertencem corresponde a uma so-
ciedade teúrgica diversificada. Isso é consistente com a metafísica de Jâmbli-
co onde o inefável Uno só pode ser completamente conhecido por meio da
multiplicidade da matéria, o Um nos Muitos, uma hierofania tanto revelada
quanto que revela a Fonte Prístina. A teurgia, dessa maneira, é uma ativida-
de cosmogônica enraizada na Fonte Prístina que se manifesta na pluralidade
da matéria como uma ação generosamente demiúrgica.
Uma das maiores contribuições que Jâmblico fez ao Neoplatonismo foi
sua insistência, a despeito dos ensinamentos de Plotino e Porfírio, de que a
Alma desce completamente a matéria (corpo) e se encontre sujeita a todas
as consequências da existência mortal. Jâmblico define a Alma da seguinte
maneira:

A média entre divisível e indivisível, seres corpóreos e incorpóreos, [é] a totalidade


das proporções universais (logoi) que, após as Formas, servem ao trabalho da criação;
[a Alma é] àquela Vida que, tendo procedida do Intelecto, possui vida por si mesma e é
a processão de classes do Ser Real como um todo a um estado inferior.43

A Alma para Jâmblico desdobra o logoi do universo até sua manifestação no


reino da multiplicidade das formas. Para servir ao trabalho da criação, a Al-
ma deve animar o corpo mortal, quer dizer, para que possamos participar da
demiúrgia a Alma precisa encarnar na matéria. Isso não mais permite que a
Alma retorne por introspecção a um estado inefável, como Plotino ensinava.
Como um platonista, Jâmblico acreditava que mesmo estando profundamen-
te imersa na matéria, a Alma permanecia imortal.

A Alma é o meio (mesē), não apenas entre o dividido e o não dividido, o remanescente
e o processo, o noético e o irracional, mas também entre o não gerado e o gerado [...].
Assim, o que é imortal na Alma é preenchido completamente com a mortalidade e não
permanece apenas imortal.44

A henosis do Salvador que aparta a si mesmo da divindade para se tornar


mortal, uma generosidade paradoxal de Deus é, para os teurgos neoplatôni-

41 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 168, 10-12.


42 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 182, 11-13.
43 Jâmblico, DE ANIMA. Essa definição da Alma, Jâmblico diz, foi compartilhada por Platão, Aristóteles, Pitágoras

e todos os Ancestrais, se referindo provavelmente aos filósofos pré-socráticos. Citado por Gregory Shaw,
THEURGY AND THE SOUL: THE NEOPLATONISM OF IAMBLICHOS.
44 Jâmblico, DE ANIMA, 89.33-37.

57
cos, a condição de toda Alma humana. Como encarnados, nós somos imortais
e mortais ao mesmo tempo. Para Jâmblico, isso é uma coincidentia opposito-
rum: a encarnação muda não apenas a atividade da Alma, mas também sua
natureza ou essência. Nossa unidade se torna dividida, nossa imortalidade
se torna mortal, nossa identidade se torna autoalienação. Jâmblico dizia que
quando encarnada, a Alma faz outro (heteroiousthai) de nós mesmos. E
mesmo assim, é somente através dessa autoalienação (allotriōthen) que
constitui nossa existência que somos capazes de participar da perpétua de-
miurgia do cosmos. Como um mediador da cosmogênese, o teurgo coopera
com a obra do Demiurgo tecendo uma unidade em meio a multiplicidade,
permitindo assim que as Formas se tornem corporificadas.
Na teurgia a Alma coopera com o Demiurgo e para fazê-lo ela deve es-
tar em meio a divisão, fraqueza e mortalidade. É apenas nessa condição, i-
mersa a multiplicidade, que a Alma pode contatar a atividade unificadora do
Demiurgo. Através da teurgia, diz Jâmblico, a Alma experimenta completa-
mente este paradoxo:

O escopo da teurgia se apresenta em um aspecto duplo: um é que ela é conduzida pelo


homem, o que preserva nossa hierarquia natural no universo; o outro é que, estando
empoderados pelos símbolos divinos, é possível ascender através deles a um estado
de união com os deuses e isso [nos] leva até sua harmoniosa ordem. Isso pode ser cer-
tamente chamado de tomar a forma dos deuses.45

O teurgo assume a forma dos deuses enquanto permanece humano e man-


tém sua hierarquia no universo. Segundo Jâmblico, as invocações e preces
teúrgicas aumentam o nosso divino eros (theion erōta) e estimulam o elemen-
to divino da Alma (to theion tēs psychēs).46 Existe um elemento que permeia
todo cosmos e durante um rito teúrgico ele está presente, pois é a própria
essência da Obra de Deus: a generosidade do Demiurgo (TIMEU 29e). Para o
teurgo, o mundo é uma manifestação da generosidade demiúrgica e a encar-
nação da Alma na matéria é uma expressão dessa generosidade. A deificação
do teurgo durante os ritos também é, segundo Jâmblico, uma expressão da
mesma generosidade (apthonōs). Defendendo a sacralidade dos ritos de
teurgia, Jâmblico diz:

Se as formas adoradas [nos ritos de teurgia] são apenas costumes humanos e recebem
sua autoridade apenas de hábitos culturais, alguém poderia argumentar que o culto
aos deuses é uma invenção criada pelo pensamento. Mas o fato é que aquele invocado
nos sacrifícios é Deus e ele os preside47 e um grande número de deuses e anjos o cer-
cam. E cada raça nessa terra é atribuído um guardião por este Deus e a cada templo
também é atribuído um guardião particular.48

45 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 184, 1-8.


46 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 144, 10-11. Em DE ANIMA Jâmblico diz que as Almas encarnadas são confinadas em
uma única forma e divididas entre os corpos. Assim, quando encarnada, a Alma humana é identificada e limitada
pela estrutura do corpo físico.
47 Este Deus que se refere Jâmblico é o Demiurgo Nous, que preside todos os deuses e demais entidades. Veja

DE MYSTERIIS, 273.
48 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 236, 1-6.

58
Em um mundo repleto de poderes divinos, a tarefa do teurgo é encontrar
uma maneira de honrar os deuses de forma apropriada, levando em consi-
deração as condições culturais e geográficas, bem como os elementos essen-
ciais para execução dos seus ritos de teurgia. A geografia é sempre impor-
tante e ela revela os meios de adoração discerníveis a olho nu.

O RITUAL & A ORDEM CÓSMICA

Um dos temas filosóficos mais fundamentais no neoplatonismo de Jâmblico é


a doutrina do imitatio dei, quer dizer, a imitação do Demiurgo ou imitação
dos deuses. Como teurgos, nosso objetivo é descobrir a nossa natureza e nos
harmonizarmos com a demiurgia do cosmos cumprindo a nossa tarefa. Nós
realizando essa tarefa na intenção de conquistarmos uma vida dourada, quer
dizer, uma vida equilibrada e harmônica com a Obra de Deus (theougia). Mas
a vida, assim nos ensinam os mitos helênicos, é um problema e não é possí-
vel que ela seja melhor do que já é. A despeito dos ideias de grandeza que
possamos produzir, nos colocando às vezes acima dos deuses, a humanidade
é fraca, pequena e vê muito pouco da totalidade da demiurgia cósmica. Se-
gundo Jâmblico, existe uma cura para essa pequenez (oudeneia) congênita,
confusão e fome incessante no homem: participar o máximo possível da luz
divina.49
Para os neoplatônicos tudo o que existe é uma irradiação ou processão
da Luz do Uno, não importando seu nível de vibração, classificação ou or-
dem. A tarefa de cada teurgo não é apenas seguir seus próprios arquétipos
noéticos, mas retornar a suprema e inefável fonte de luz. O fogo central nos
ritos teúrgicos representa essa fonte.
Nessas lições, nós estamos explorando a conexão entre a filosofia e a
teurgia e nesse caminho nós poderíamos perguntar: não seria a filosofia uma
forma de teurgia? A teurgia é a própria demiurgia do cosmos. O teurgo ape-
nas participa dessa demiurgia através de seu ritual. Ele não inicia ou encerra
a teurgia, pois ela é a ação do próprio Demiurgo, um continuum pulsante e
incessante. Ao praticar a teurgia, o teurgo participa desse processo não mais
como um telespectador, mas como o próprio Demiurgo, daí a importância do
imitatio dei. A filosofia é considerada um meio para se ascender a Alma aos
planos superiores, participar da demiurgia cósmica e retornar a prístina fon-
te de luz. Nesse caminho, uma vida de filosofia também é uma vida de teur-
gia, onde inferimos que theoria e theourgia, quer dizer, telesiourgia, é o ca-
minho de retorno ao Uno através da adoração litúrgica da teurgia e a con-
templação como exercício da filosofia.
Para o teurgo, o cosmos é um mito em que ele pode participar ativa-
mente, imitando o Demiurgo, os deuses e os heróis. Nesse caminho, a teurgia
ou a veneração do divino através de um ato devocional litúrgico e a filosofia
ou contemplação racional dos arcanos e mistérios da matéria, da Alma e do
cosmos, não podem ser compreendidas como matérias distintas, mas antes

49 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 144, 13.

59
disso, como matérias irmãs e que se complementam. Isso porque a teurgia
segue alguns padrões universais – em um sentido historicamente determi-
nado de gênero espiritual – e a filosofia é parcialmente baseada na trans-
formação do ritual para o discurso racional, quer dizer, uma cerimônia má-
gica de pensamentos.
O ritual é tanto ação, trabalho, empreendimento, ordem, regra e lei. As-
sim, o ritual e a ordem cósmica, incluindo a ordem das estações e a ordem do
logoi, que estão em sincronia e são inseparáveis. Em TIMEU (37c) Platão diz
que os cosmos é um monumento aos deuses eternos. A dialética filosófica ne-
oplatônica segue este mesmo curso de manifestação divina e gradual inte-
gração das múltiplas partes manifestas na fonte de luz primordial.

SUNTHĒMATA

Em seu DE MYSTERIIS Jâmblico se refere a três tipos símbolos (objetos, ferra-


mentas, mecanismos) através dos quais o teurgo pode entrar em contato
com o divino transcendente. Por este termo, divino transcendente, me refiro
às criaturas espirituais dos éteres superiores e inferiores. O termo sunthē-
mata Jâmblico importou diretamente dos ORÁCULOS CALDEUS. Em um de seus
fragmentos é dito que estes símbolos estão espalhados por todo o cosmos e
como tal, são pensamentos da Inteligência paternal, quer dizer, o próprio
nous, o demiurgo que rege e controla todo o cosmos, a Mente de Deus. Estes
símbolos são em realidade poderes dinâmicos ou portais de acesso através
dos quais podemos nos comunicar com deuses, heróis, anjos, arcanjos, dai-
mones etc., assim como retornar ao Bem. E como tal, estes símbolos não estão
presentes somente no cosmos, mas também na Alma humana: a própria Al-
ma é um símbolo capaz de se comunicar diretamente com a Mente de Deus.
Existem três tipos de símbolos: 1. materiais; 2. Intermediários; 3. noéti-
cos. Os símbolos naturais são àqueles que existem no cosmos: pedras, ervas,
animais, zonas de poder, astros como o Sol e a Lua etc. Is símbolos intermedi-
ários são aqueles construídos pela mente humana: estatuetas, amuletos, ta-
lismãs e pantáculos, rituais, feitiços e encantamentos etc. Os símbolos noéti-
cos são aqueles existentes no plano das ideias: formas geográficas em geral
com o pentagrama e o hexagrama, números, os nomes bárbaros etc. Um rito
teúrgico deve conter estes três símbolos no curso de sua liturgia.

EM DEFESA DA IMAGEM: OS SÍMBOLOS NA TEURGIA #1

A teurgia clássica neoplatônica tem sido associada a espiritualidade transmi-


tida pelos ORÁCULOS CALDEUS, tanto no sentido cosmológico como soteriológi-
co. Essa é uma discussão que ainda está em aberto. Alguns estudiosos têm
argumentado que a Teurgia Clássica é apenas a versão helênica de um con-
junto de práticas mágicas e místicas de várias tradições espirituais que flo-
resceram no Oriente Médio e Egito. Uma versão teúrgica de várias ideologias

60
de realeza que propunham o Estado como um espelho do cosmos.50 Estas
tradições espirituais e suas tecnologias místicas e mágicas que propunham
uma harmonia entre todas as partes da Alma humana e o continuum do cos-
mos, quer dizer, a teurgia propriamente dita, se transformou e sobreviveu
como um mecanismo de aperfeiçoamento – ou enriquecimento – da Alma e
seu processo de salvação, tema sobre o qual toda tradição Platônica se de-
bruça.
Nesse caminho, a Teurgia Clássica Neoplatônica cujo expoente mais
destacado é Jâmblico (245-325 d.C.) seria a helenização de uma tradição me-
tafísica comum de renascimento e imortalidade solar compartilhado, por
exemplo, pelos pitagóricos, órficos, dionisíacos, caldeus, babilônios, egípcios
e no Extremo Oriente, védicos.
Dito isso, faz sentido olhar a theourgia não em um sentido Neoplatônico
apenas, que leva em consideração o neologismo cunhado no Séc. III d.C. a
partir dos ORÁCULOS CALDEUS, mas de maneira mais simples, como a obra dos
deuses (theon erga) e a teofania que essa obra implica. Assim temos teurgia
como:

1. O poder divino mágico e criativo que sustenta e permeia tudo o que


existe: os mundos material, psíquico e espiritual. Como veremos abai-
xo, o teurgo que se coloca a praticar a obra dos deuses não a inicia ou a
finaliza, pois isso não compete sua individualidade finita ou posição
no cosmos como Alma encarnada na matéria. Ele apenas torna-se um
agente da demiurgia do próprio Demiurgo na obra dos deuses.
2. Toda metaestrutura eidética do cosmos-estado e seu raciocínio de re-
aleza ontogenética e escatológica, suportado por mitos soteriológicos
ritualizados que seguem os ritmos diários do cosmos.

Para que os dois pontos acima sejam aceitos como válidos, deve haver uma
cosmovisão que os respalde. E ela existe: espírito e matéria se entrelaçam
dentro de uma mesma substância. Essa cosmovisão subjaz a própria hiero-
fania dos deuses no mundo e, portanto, sustenta que não existe diferença
entre os deuses e suas imagens (estatuetas, símbolos ou ídolos, estações do
ano, paisagens, templos, árvores ou seres humanos como dramatis persona-
e). Quando elas são utilizadas como veículos para invocar o nome ou a es-
sência da substância dos deuses, tornam-se animadas, quer dizer, magica-
mente transformadas de uma mera imagem material em um ídolo magneti-
zado ou infundido com a substância noética que ele representa. A matéria é
a manifestação da Luz noética que soa e provê vida; dito de outra forma, o –
ou no – mundo a luz noética vibra e permeia em todas as coisas, animando
tudo com vida e substância espiritual. As imagens (sinthemāta) sagradas,
dessa forma, são veículos da presença do divino.
Em DE MYSTERIIS, fica nítido o apelo que Jâmblico faz aos mistérios do
Egito. Neste ensaio, o qual responde inúmeras indagações e postulados acer-

50 Veja Algis Uždavinys, PHILOSOPHY & THEURGY IN LATE ANTIQUITY, p. 293.

61
ca da teurgia feitos por seu professor, Porfírio (cerca de 234-304 d.C.), Jâm-
blico sustenta a visão Platônica de que a teologia egípcia é teúrgica pelo fato
de imitar a engenharia dos cosmos e a energia criativa dos deuses como a-
gentes ou vetores de força da grande engrenagem do Universo. Na teologia
egípcia, uma ação que esteja em ressonância direta com o cosmos é uma a-
ção ritualística, quer dizer, uma ação executada liturgicamente. Essa ação, no
entanto, não é individual. Nos rituais de teurgia, os sacerdotes egípcios se
identificavam com os deuses. Esse tipo de ação ritual está presente até nos
PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, onde a consciência individual chega a ser
anulada em detrimento da possessão divina. Os filósofos e sábios caldeus,
hermetistas e representantes da genuina tradição dos maghdim, não se colo-
cavam como executores individuais da teurgia, mas apenas símbolos ou más-
caras que imitavam a demiurgia do cosmos. Ao fazê-lo, eles apenas compar-
tilhavam diretamente com os deuses da Obra Divina (theourgia), como veí-
culos dela, não seus executores, iniciadores ou finalizadores. A teurgia ocor-
re no continuum perpetuamente como a obra dos deuses. O teurgo apenas
participa dela através do ritual. Essa visão sobreviveu particularmente no
Neoplatonismo e no neopitagorismo.
A Imagem Sagrada dos deuses, sua sunthemāta, são animadas com seus
veículos pneumáticos noéticos e elas podem ser, como acima demonstrado,
árvores, o sol, a lua e as estrelas, as montanhas, estações e o por do sol, mas
também pedras, estatuetas ou ícones. Neste último caso pode-se fazer um
paralelo com a doutrina tântrica do nyāsa, cujo objetivo é infundir ritualisti-
camente prāṇa (essência vital) em uma estatueta ou no próprio corpo físico,
transformando ou transubstanciando sua matéria densa em um corpo divi-
no, simbolizado no conceito filosófico de āsana, não como assento, mas como
perfeição adquirida. É neste sentido e não àquele do assento, que o Yogasū-
tra do sábio Patañjali diz que āsana leva o praticante a se tornar imune dos
pares de opostos. Continuando, uma ação que não seja ritualizada não é uma
ação divina, mas apenas um ato secular ordinário. Uma ação ritualizada es-
tabelece um padrão eidético na mente, fazendo daquele que o executa um
mediador da luz neótica entre a matéria e os planos de luz e perfeição.
A compreensão do que é um ritual de teurgia é necessária para o fe-
chamento de nosso raciocínio. Um ritual de teurgia invoca a perfeição divina.
Essa é a interpretação de inúmeros teúgos da Antiguidade até os dias de ho-
je. Através da execução de um rito teúrgico, um portal de acesso é aberto,
fazendo do teurgo um mediador entre o céu e a terra. O ritual em si ocorre
no reino dos deuses, que o testemunham e participam dele em um eterno
continuum, quer dizer, a própria demiurgia do cosmos. É isso que torna um
ritual de teurgia sagrado, pois através dele espírito e matéria se entrelaçam
dentro de uma mesma substância. Nesse caminho, o ritual dá ao teurgo o
acesso a esse perpétuo entrelaçamento de matéria e espírito.
Da mesma maneira que um teurgo neoplatônico se transforma no deus
que ele invoca, o teurgo tântrico também assume a forma do deus no iṣta-
devatā. Esse é o ponto crucial da ritualística teúrgica, quando o corpo do

62
teurgo se torna um verdadeiro templo, um agalma ou imagem viva trans-
formada em acordo a iconografia cultural e ritualística. Um teurgo em seu
ritual, dessa maneira, é um agathos aner, uma imagem do próprio divino e
encarnação da virtude e de tudo o que é belo, harmônico e estável.

EM DEFESA DA IMAGEM: OS SÍMBOLOS NA TEURGIA #2

Na teurgia clássica neoplatônica, um símbolo () é um portal de


acesso direto e capaz de estabelecer uma conexão inefável com o divino
transcendente por ele representado e essa é a mecânica do talismã.51 Um
talismã no contexto da teurgia trata-se de uma conexão ontológica com aqui-
lo que ele representa, uma conceituação distinta da concepção moderna na
qual o talismã é apenas uma representação metafórica daquilo que se pre-
tende representar. Um símbolo (sunthāmata) na teurgia pode ser uma pe-
dra, ervas, ossos, incenso, um encantamento, hino, música, ritual, texto sa-
grado ou qualquer outro objeto material que esteja conectado a uma deida-
de por simpatia e em amor.52 Os nomes bárbaros ( ) ou
voces magicae são poderosos encantamentos considerados um símbolo do
divino transcendente na teurgia. Estes   são considerados
nomes inefáveis ininteligíveis () e inexprimíveis () no con-
texto ritual ou inscritos em estatuetas e outros aparatos ritualísticos como
talismãs.53 Jâmblico explica que os   são nomes secretos
dos deuses e por isso eles operam em um nível de realidade supraracional,
entregues aos homens pelos próprios deuses.
Falando sobre os procedimentos da teurgia, Jâmblico sustenta que os
rituais teúrgicos são símbolos consagrados a eternidade e as entidades supe-
riores.54 O ritual como um símbolo do transcendente desperta na Alma suas
qualidades superiores, quer dizer, eles ativam na Alma seu elemento divino,
pois o teurgo, por meio dos símbolos inefáveis do ritual, envolve a si mesmo
no papel hierático dos deuses. Em outras palavras, os símbolos do ritual cri-
am um tipo peculiar de afinidade ou reconhecimento de sua causa divina na
Alma, capacitando o teurgo elevar-se aos reinos de luz e perfeição, a morada
dos deuses e das virtudes.55 Os símbolos (sunthāmata), portanto, compõem
todo o material utilizado pelo teurgo, desde as estatuetas telestéticas e os
nomes bárbaros nelas inscritos, a vestimenta sagrada para execução dos ri-
tuais, os encantamentos proferidos etc.

51 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 1, 21; 138, 1-5; 210, 11.


52 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 5, 23.
53 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 7, 4-5; 8, 5.
54 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 1, 11.
55 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 4, 2.

63
SEÇÃO . I I .
A DOUTRINA DO ÍCONE NA TRADIÇÃO CATÓLICA

Existe na tradição católica, latina e ortodoxa, alguma equivalência com esse


conhecimento grego da sunthēmata? Sim: trata-se da doutrina do ícone de-
fendida por São João Damasceno como mencionado acima e a doutrina do
mysterium ou sacramentum, que se trata dos símbolos usados na Divina Li-
turgia. Seguimos então com uma breve explanação sobre o ícone na Igreja e
seu uso, para depois adentrarmos ao tema da liturgia como mysterium e sa-
cramentum.
A palavra ícone deriva do termo grego eikón, que significa generica-
mente imagem. Todavia, na história da arte e também na linguagem comum,
a palavra ícone é reservada a uma pintura, geralmente portátil, de gênero
sagrado, executada sobre madeira com uma técnica particular, e segundo
uma tradição transmitida pelos séculos. A pátria do ícone é o Oriente bizan-
tino que, com desvelo, conservou obras-primas artísticas de grande valor
espiritual que chegaram até nós. Os ícones representam Jesus Cristo, a Mãe
de Deus, os anjos, os santos e outros temas religiosos, mas o ícone é muito
mais do que uma simples figuração; somente o acontecimento da Encarna-
ção de Nosso Senhor o tornou possível.
No ANTIGO TESTAMENTO, Deus tinha proibido que se tentasse reproduzir
a sua imagem. Textos bíblicos (Dt 4, 12 e 15) nos dizem que, também quan-
do se ouviu o som das palavras de Deus, nenhuma imagem foi vista, e muitas
censuras foram feitas a cada nova tentação de esculpir e adorar um ídolo!
Somente a arte decorativa, prevalecendo a de forma geométrica, quer dizer,
noética, exprimia o sentido do infinito, como vemos ainda hoje com os he-
breus ou os muçulmanos. Tão-só a representação dos anjos foi permitida no
ANTIGO TESTAMENTO (Ex 25:17-22) e sobre a arca da aliança havia-se esculpi-
do o ícone dos querubins como prenúncio de acontecimento futuro.
A hora do nascimento terreno do Filho de Deus é a hora do nascimento
do ícone: Jesus Cristo, com efeito, não é apenas o Verbo de Deus, mas tam-
bém a sua imagem, uma sunthēmata do Divino Transcendente: Cristo é a i-
magem (eikón) do Deus invisível (Cl 1, 15). São João Damasceno, o teólogo
poeta que nos seus três tratados pela defesa dos santos ícones, na época ico-
noclasta, tanto aprofundou esta questão, explica a superação da proibição
das Escrituras de se representar o Deus invisível:

Quando virmos aquele que não tem corpo tornar-se homem por nossa causa, então
poderemos executar a representação de seu aspecto humano. Quando o Invisível, re-
vestido de carne, se tornar visível, então representa a imagem daquele que apareceu
[...]. Quando aquele que é a Imagem consubstancial do Pai despojou-se, assumindo a
imagem de escravo (Fl 2:6-7), tornando-se assim limitado na quantidade e na qualida-
de por se ter revestido da imagem carnal, então pintamos [...] e expomos à vista de to-
dos Aquele que se quis manifestar. Pintemos o seu nascimento da Virgem, o seu ba-
tismo no Jordão, a sua Transfiguração no monte Tabor, pintemos tudo com a palavra e
com as cores nos livros e na madeira.56

56 São João Damasceno, APOLOGIA CONTRA OS QUE CONDENAM AS IMAGENS SAGRADAS, Paulus.

64
O fundamental e primeiro ícone - tomando a palavra no seu significado mais
amplo de imagem - é, assim, a própria face de Cristo. E podemos representá-
la, porque não se trata mais de uma imagem inacessível à vista, mas de uma
pessoa real. O ícone de Jesus Cristo exprime, através da imagem, o dogma do
Concílio da Calcedônia em 451: o ícone não representa tão-só a natureza di-
vina, nem só a natureza humana de Cristo, mas representa a sua Pessoa, a
pessoa de Deus-Homem, que reúne em si «sem mistura nem divisão» as duas
naturezas. No ocultismo católico, portanto, o ícone fundamental do altar do
mago é a Cruz de Cristo.

Doravante, serão possíveis também os ícones da Mãe de Deus, mesmo quan-


do a Virgem Santíssima carrega o Filho divino (e são pouquíssimos os ícones
sem a presença de Jesus); eles são às vezes denominados ícones da Encarna-
ção.
Serão possíveis os ícones dos santos, porque, assumindo a natureza
humana, o Filho de Deus não só renova no homem a imagem obscurecida
com a queda de Adão, mas a recria mais profundamente à imagem de Deus.
Cristo abre para o homem o caminho da transfiguração pela graça. Como diz
o Apóstolo Paulo: Nós que [...] refletimos como num espelho a glória do Se-
nhor, somos transfigurados nessa mesma imagem (2Cor 3:18). Assim, o ícone
transmite verdadeiramente a imagem do um homem purificado, transfigu-
rado, revestido da beleza incorruptível do Reino de Deus, de uma pessoa
humana transformada em ícone vivente de Deus.
Os ícones, visíveis representações das magnificências misteriosas e so-
brenaturais, para usarmos a antiga fórmula de São Dionísio Areopagita, têm
lugar importantíssimo na tradição espiritual ortodoxa. E, se quisermos a-
pressar a união entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente - elas que no pri-
meiro milênio tinham em comum também a língua viva do sinal iconográfico
-, devemos conhecê-los, apreciá-los, compreendê-los como um tesouro espi-
ritual; o que eles representam para os cristãos da tradição bizantina.

65
O ícone não é o resultado de uma intuição ou a figuração de uma im-
pressão do artista; ele é fruto de uma tradição e, antes de ser pintado, é uma
obra profundamente meditada, pacientemente elaborada por gerações de
pintores. O ícone não é um quadro; nele vem representado não aquilo que o
pintor tem diante dos olhos, mas certo protótipo a que ele deve ater-se. A
veneração dos ícones deriva da veneração do protótipo. Os ícones são beija-
dos; através deles esperam-se curas; são venerados, porque são representa-
ções de Cristo, da Virgem Maria, dos Santos. Os ícones entram no ofício litúr-
gico. A iconografia é, de certo modo, uma arte ritual. A reverência devida ao
ícone e a sua criação foram rigidamente regulamentadas pelo VII Concílio
Ecumênico. Os eclesiásticos consideravam-se verdadeiros criadores de íco-
nes e os artistas eram tidos como realizadores das ideias deles.
Os ícones são janelas que se abrem para eternidade. Através do ícone o
divino nos ilumina. A luz é o atributo principal da glória celeste e os ícones
representam os habitantes do Reino, contempladores da luz incriada, pela
qual se deixam penetrar até se tornarem esplendorosos, como indica o nim-
bo ao redor de seus rostos (os nimbos não são, como as auréolas ou as coro-
as, simples sinais da santidade). O ícone, visto com os olhos do coração ilu-
minados pela fé, nos abre para a realidade invisível, para o mundo do Espíri-
to, para a economia divina, para o mistério cristão na sua totalidade ultra-
terrena. É lugar teológico, antes, teologia visual.
O ícone é inspirado e sagrado de modo específico, símbolo que contém
presença, cujo tempo, espaço e movimento não são representados pela per-
cepção comum. A própria laconicidade de seus traços nos remete para uma
mensagem de fé, a visão do Invisível, para empregar as palavras do Apóstolo
Paulo (Hb 11:1). O ícone se afirma independentemente do artista e do espec-
tador e suscita não a emoção, mas a vinda do transcendente, cuja presença
ele atesta. O artista se esconde atrás da Tradição que fala. A obra torna-se
uma manifestação de Deus, diante da qual devemos nos prostrar num ato de
adoração e de oração. No recolhimento e no silêncio, os olhos se abrem para
a luz da Transfiguração e seremos naturalmente conduzidos pela força do
Espírito à luz do ícone, a fim de contemplar não só a face de Jesus, mas tam-
bém a luz da verdade divina.
Os ícones estão presentes, portanto, nos rituais de teurgia e magia cris-
tã em conformidade com a teologia prática do ocultismo católico. Estes íco-
nes são símbolos do Divino transcendente através do qual podemos acessar
a Fonte Paterna ou Pai das Luzes, Deus, e toda sua milícia celeste que traz as
medicinas planetárias para cura da personalidade do mago e o enriqueci-
mento de sua Alma com os códigos de luz do Reino dos Céus.
Nós passaremos ao estudo da liturgia, mas antes devemos ver no pen-
samento de Santo Agostinho e da Igreja Primitiva como a doutrina teúrgica
pode ser encontrada dentro da tradição cristã como uma herança espiritual.

66
SEÇÃO . I I I .
SANTO AGOSTINHO & A HERANÇA TEÚRGICA

No início deste texto foi mencionado que é possível encontrar uma herança
teúrgica tanto no pensamento de Santo Agostinho como no pensamento de
Orígenes. A teologia do Logos governante de Orígenes onde o Deus trans-
cendente, materialmente manifestado à humanidade, torna a participação na
vida divina acessível num grau não previamente concebido é o que convida a
uma assimilação conceitual do pensamento teúrgico no cristianismo e que
sua teologia obriga os pensadores cristãos a repensarem sobre a capacidade
da realidade material de mediar o divino. É a conceituação cristã do Logos
como a Palavra de Deus decorrente de um sentimento de que Deus se tornou
acessível aos seres racionais, tornando possível através do Logos à diviniza-
ção da Alma. Trata-se de uma clara adaptação do pensamento teúrgico que
tratamos acima.
Existem algumas formas através das quais é possível um encontro com
o Logos: as teofanias do ANTIGO TESTAMENTO, o engajamento exegético com o
Evangelho, a Carne e o Sangue de Cristo através do Sacramento Eucarístico.
O engajamento exegético e a participação sacramental são para Orígenes as
práticas da formação cristã, onde o cristão é alimentado pela Palavra de
Deus tanto sob a forma de exegese escrituristicamente fundamentada e ho-
milética, como a forma de pão eucarístico, onde o pão é apreendido como
uma extensão da encarnação, o pão vivo que desceu do céu. A Palavra é assim
manifestada tanto sob a forma de palavras do Evangelho que a expressam,
quanto sob a forma da Carne e do Sangue de Cristo que a veste, permane-
cendo em continuidade com o pão que alimenta. Dentro deste complexo de
ideias, não é difícil ver como esse alimento para a alma, o pão da vida, con-
cebido nas linhas do corpo material, é razoavelmente conceituado como um
símbolo, que media um encontro com o Logos, no qual a Alma é reconstituída
de acordo com seu modelo próprio, e passa a participar da Vida de Cristo,
eterno e ressuscitado, alcançando uma ascensão a Deus. Na teurgia de Jâm-
blico, o envolvimento ritual com o símbolo do culto expressa a participação
interna da Alma no Logoi disseminado através da realidade pelo Demiurgo
criativo; no sacramento cristão, a participação ritual no símbolo eucarístico é
invocada como expressão de um encontro interior com o próprio Logos, que
purifica e reconstitui a Alma Intelectual (ou ser racional) de acordo com o
modelo estabelecido por Cristo, a corporificação do Logos. Essa visão, impul-
sionada pela encarnação do Logos, naturalmente requer que os pensadores
cristãos reconfigurem a corporificação material como um local de santifica-
ção e, da mesma forma, eliminem outras formas de mediação transcenden-
tes, como os daimones platônicos que agora são vistos como obstáculos para
a própria ascensão da Alma.
Nesta seção, espero sugerir que o envolvimento indireto de Santo Agos-
tinho com a teurgia em seu A CIDADE DE DEUS pode fornecer informações in-

67
teressantes para uma discussão das tendências teúrgicas no pensamento
cristão primitivo. Como um orador latino no Ocidente, removido cultural e
temporalmente do Oriente grego e semítico de Orígenes e Jâmblico, Santo
Agostinho é um caso interessante por várias razões. Obviamente, seu traba-
lho oferece a oportunidade de testemunhar como um pensador cristão lida-
va diretamente com a teurgia, já que, na época de Santo Agostinho, ela se
tornara um sistema de pensamento, ou pelo menos um conjunto reconhecí-
vel de questões controversas até para os filósofos pagãos, enquanto que o
pensamento de Orígenes precede a virada teúrgica do neoplatonismo tardio
por vários anos. Santo Agostinho pode assim ser lido como um participante
direto nas disputas geradas pelo trabalho de Jâmblico, especialmente consi-
derando que seus argumentos em A CIDADE DE DEUS são dirigidos diretamen-
te a Porfírio, professor de Jâmblico e cujas objeções o levaram à defesa da
teurgia em seu monumental DE MYSTERIIS. Principalmente, porém, nosso in-
teresse deve estar no fato de que Santo Agostinho justifica a eucaristia cristã
dentro de parâmetros que são paralelos ao que vemos em CONTRA CELSO de
Orígenes. Paralelamente ao pensamento de Orígenes da teurgia à luz da teo-
logia do Logos e sua assimilação do símbolo (symbolum ou sacramentum) a
um discurso sacramental, Santo Agostinho emprega a linguagem do signo
(signum) para marcar o ponto do encontro sacramental com a realidade
transcendente. É curioso que Santo Agostinho tente modificar a linguagem
de Orígenes tão parecida a linguagem teúrgica de Jâmblico para justificar
diferenças tangíveis entre a prática ritualística cristã (liturgia) e a prática
ritualística helênico-filosófica de Jâmblico (teurgia).57
Na doutrina do signo de Santo Agostinho o pão eucarístico, concebido
como signum, pode ser entendido como conceitualmente paralelo a uma pa-
lavra vocalizada, verbum, que é entendida como transmitindo uma realidade
incorpórea substantiva. Essa substância interior, sustentada pelo enunciado
material de uma palavra, explicada por Santo Agostinho em termos de sua
teoria da palavra interior, cria um espaço conceitual para um signo ritual,
posicionado tanto nessa teoria da linguagem quanto em sua teologia o Logos
e, grosseiramente análoga ao symbolum de Orígenes, que é também um ter-
mo linguístico essencial, reimplantado em um contexto ritual. Assim, tanto o
signum de Santo Agostinho quanto o symbolum de Orígenes são reconfigura-
dos como designadores de uma manifestação real de uma realidade substan-
tiva invisível, como signos ou símbolos exteriores que significam a realidade
transcendente do Verbum, o Logos ao qual o cristão assimila como uma me-
dicina de cura para Alma. Assim, a eucaristia torna-se, para Santo Agostinho
como para Orígenes, um rito teúrgico como aos ritos da teurgia de Jâmblico,
mas vinculado exclusivamente a um mediador singular, fornecido pela teo-
logia cristã como um encontro mais imediato com Deus.

57A diferença tangível de teurgia para liturgia é que a teurgia trata-se de um esforço pessoal em inserir o teur-
go na Obra de Deus; a liturgia, por outro lado, é um esforço coletivo como o próprio nome ensina, quer dizer,
um serviço divino em favor do povo, uma caridade de Deus para o povo, sendo assim de função exclusiva a de
inserir todos os fiéis na Obra de Deus através do sacrifício da Eucaristia.

68
Ao desenvolver essa teoria, Santo Agostinho emprega uma retórica du-
alista a seu favor, mascarando seus necessários endossos da realidade mate-
rial por trás de um argumento antimaterial, frequentemente estridente à
medida que ele descarta o ritual de cultos pagãos que utilizam daminones
(que agora são demônios) como mediadores de culto58 entre Logos e os ho-
mens. Ele então introduz a Eucaristia cristã como o substituto perfeito para
os rituais pagãos defeituosos erroneamente ligados aos daimones, oferecen-
do o Cristianismo como a alternativa às antigas tradições que não oferecem
uma ascensão genuína da Alma na esquiva da materialidade na qual os pa-
gãos estão inescapavelmente fundamentados. Assim como Orígenes, Santo
Agostinho retalha suas intenções através de um argumento que enfatiza a
diferença, tentando mascarar sua adoção de princípios teúrgicos similares
àqueles que sustentam os ritos pagãos tradicionais de teurgia. Precisamos
considerar:

1. Santo Agostinho descarta os daimones da hierarquia espiritual pagã


criticando o pensamento pagão sobre a influência daimônica sobre a
Alma. Em sua apresentação revisada do conceito e atuação dos dai-
mones, agora demônios, eles se revelam piores do que as Almas59 en-
carnadas, em virtude de seu confinamento eterno em um estado telú-
rico que sujeita às paixões qualquer um que esteja em contato com e-
les.
2. Os daimones ou demônios na visão de Santo Agostinho estão por trás
do exercício e dos resultados da magia, feitiçaria (goēteia) e teurgia –
e ele não estava enganado nisso – não havendo para ele nenhuma dis-
tinção entre essas práticas e que não permitem nenhuma purificação
significativa da Alma, consistindo apenas de manipulações encómicas
que prendem a Alma em um mundo material inconstante e ilusório.
3. Enquanto na tradição pagã da teurgia os daimones consistiam na liga-
ção entre os homens e os deuses, na tradição cristã o único mediador
entre os homens e Deus é Jesus Cristo. Santo Agostinho demonstra be-
lamente essa mudança de paradigma religioso demonizando os dai-
mones e santificando a mediação de Cristo, por isso ele argumenta que
a Eucaristia da Liturgia Divina é mais eficiente à salvação da Alma do
que o contato com os daimones que ao invés de auxiliarem na sua sal-
vação, muito pelo contrário, mantêm a Alma agrilhoada ao plano da

58 O propósito central dos livros 6-10 de A CIDADE DE DEUS é promover a afirmação de que sacrificios aos dai-
mones (demônios) ou a outras divindades inferiores (também demônios) é insignificante e ineficaz no que diz
respeito à vida após a morte humana. De fato, apesar do elogio que ele de outra forma reserva para eles, Santo
Agostinho condena Platão e seus herdeiros por sua singular falha em permitir o culto aos daimones. Plotino,
Jâmblico, Porfírio e Apuleio eram todos distintos, mas mesmo eles, e os outros que eram da mesma escola e, de
fato, o próprio Platão, sustentavam que os ritos sagrados deveriam ser realizados em honra de muitos deuses.
Santo Agostinho, por sua vez, afirma que ser enlaçado e enganado pela astúcia dos espíritos malignos [daimo-
nes] é vagar longe do verdadeiro Deus, com quem sozinho, e em quem sozinho e por quem somente o humano -
que é, o racional e intelectual - a alma é abençoada.
59 Na tradição pagã da teurgia, os daimones estão acima das Almas encarnadas na hierarquia divina. Na sua

interpretação, interior a hierarquização celestial formulada por Dionísio Pseudo-Areopagita no Séc. V, Santo
Agostinho aloca os daimones (demônios) abaixo das Almas encarnadas. Veja o próximo texto.

69
existência material. A Eucaristia convoca para o tempo e o espaço atu-
ais a presença de Jesus Cristo que, uma vez Encarnado, Deu-Homem
manifesto carne, demonstrou ser possível divinizar a matéria pelo
poder do Logos. Os demônios (daimones) miseráveis uma vez imortais
são assim substituídos pelo abençoado e (passageiro) Cristo mortal –
um movimento que faz de Cristo um remédio preciso para os defeitos
identificados na tradição pagã. O argumento de Santo Agostinho pode
inicialmente parecer metafisicamente dualista, uma vez que ele é ur-
gente em negar qualquer vantagem resultante da influência daimôni-
ca, mas o dualismo se atenua à medida que o foco do argumento muda
dos daimones para Cristo, quando Santo Agostinho esclarece sua visão
da matéria como um substrato neutro para a mediação do contato
com um principium divino (o Logos encarnado).60
4. Santo Agostinho, como mencionado acima, explica através de sua dou-
trina dos signos a mediação de Cristo entre os homens e Deus no culto
eucarístico. O segredo reside na convicção da palavra interior, o Ver-
bum na expressão tangível de um signo que possui uma substância in-
corpórea. Essa realidade incorpórea espiritual é transmitida de mente
a mente durante a Eucaristia, um sinal sacramental que opera como
veículo de participação de todos os presentes no sacrifício de Cristo
que se torna tudo em todos (Cl 3:11).
Esse argumento é inicialmente obscurecido pelo distanciamento
que Santo Agostinho tenta estabelecer entre o culto litúrgico cristão e
seus equivalentes pagãos. Para fazer esse trabalho ele estabelece uma
diferença entre o signo conforme a interpretação pagã e sua diferença
da interpretação cristã, nos moldes muito parecidos aqueles estabele-
cidos na Índia por Śāṅkarācārya na promulgação do Vedānta como o
culto que nasceu para reinterpretar a tradição bramânica dos Vedas.
Assim como Śāṅkarācārya defendeu o sacrifício interior em detrimen-
to dos sacrifícios exteriores executados pelos sacerdotes brâmanes,
Santo Agostinho defendeu que o signo como compreendido no rito eu-
carístico tratava-se de um sacrifício interior, o oratio, que o Pontífice
Bento XVI explana belamente: [...] os sacrifícios animais e todos os cos-

60 A doutrina Cristã não nega o corpo ou o mundo como afirmam muitos desentendidos, mas ao contrário, ela
nos exorta a disciplinar o corpo e os sentidos para experimentar no mundo a graça de Deus. O desprezo do
corpo foi uma doutrina herética pregada por gnósticos, montanistas e maniqueístas cujas doutrinas foram alvo
de críticas pelos Pais da Igreja. São João Crisóstomo diz sobre eles: Muitos hereges afirmam que o corpo não é
criado por Deus. Vejamos, ele não merece ter sido criado por Deus, eles dizem, evocando a sujeira, o suor, as lá-
grimas, o esforço, a exaustão, e todas as outras imperfeições corporais [...]. Mas não falam para mim sobre o ho-
mem caído, condenado e humilhado. Se quisésseis saber qual é o corpo que Deus tinha nos oferecido no princípio,
vamos para o paraíso contemplar o primeiro homem criado. Quando o cristianismo critica o corpo, refere-se ao
pecado cometido em detrimento das paixões e sentidos viciados, o que distancia a todos nós da luz. A ascese
cristã com o exercício da mortificação visa aniquilar as paixões da Alma, não desprezar o corpo como se ele
fosse uma catacumba para ela. A ascese mística cristã luta contra o pecado original que mancha a Alma, por-
tanto, trata-se de uma purificação espiritual para tornar a Alma digna do modelo divino. Uma vez com corpo e
Alma purificados somos livres para louvar a grandeza de Deus (Ef 1:5-6) e agradecer a graça de estarmos
vivos. É pela graça de possuir o Logos, a razão, que o homem é capaz de reconhecer e louvar a Deus. A visão
que o cristianismo tem do homem e do mundo é, portanto, positiva e todos somos exortados a inferir Deus
através da maravilha da criação (Sl 19:1-6), como nos ensina o Apóstolo Paulo (Rm 1:20-21).

70
tumes que existiam e existem até agora entre vós e que, todavia, não
podem satisfazer ninguém, foram agora substituídos. No lugar deles, as-
sumiu o sacrifício-palavra. Nós somos a religião espiritual na qual, na
verdade, tem lugar o culto na modalidade da palavra, em que não são
mais imolados cabras e novilhos, mas vem dirigida a Deus a palavra
como expressão de nossa existência, a palavra que se funde a «Palavra»
em sentido absoluto, com o Logos de Deus que nos atrai para dentro da
verdadeira adoração. [...] Nesta «oratio» o sacerdote fala juntamente
com o Eu do Senhor: «isto é meu corpo», «isto é meu sangue», na consci-
ência de que ele, agora, não fala mais em nome próprio, mas em virtude
do Sacramento por ele recebido, se torna a voz do Outro que agora fala
e age através dele. Esse agir de Deus que se cumpre através do discurso
humano é a «Verdadeira» ação de que toda criação está à espera. [...] A
verdadeira ação na liturgia, a qual todos devemos fazer parte, é o agir
do próprio Deus.61 Se liturgia não é a teurgia em âmbito coletivo, o que
mais pode ser?
O efeito dessa estratégia de Santo Agostinho é distanciar o rito cris-
tão de qualquer associação com magia, teurgia ou cultos pagãos enfa-
tizando primariamente o conteúdo ético de uma disposição sacrificial
adequada; no entanto, quando Santo Agostinho vincula a disposição
interior de sacrifício à ideia mística de auto-oblação de todos os cris-
tãos unidos em Cristo, ele começa a dotar o signum / sacramentum
tangível e visível da Eucaristia com uma força ritual que atrai cristãos
em unidade verdadeira com Cristo, que é o sacrifício interno e invisí-
vel da Igreja, transmitido aos cristãos através do signum. Quer dizer, a
Eucaristia como um signo deve, na verdade, mediar uma conexão di-
vina e direta com Deus através de Cristo, não simplesmente sustentar
alegoricamente uma alegoria como muitos insinuam.

SEÇÃO . I V .

61Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), TEOLOGIA DA LITURGIA: O FUNDAMENTO SACRAMENTAL DA EXISTÊNCIA CRISTÃ,
Obras Completas, Vol. XI.

71
A LITURGIA NA IGREJA PRIMITIVA

Pelo termo cristianismo primitivo nós podemos considerar a Igreja dirigida


pelos apóstolos no período em que surgiram os escritos do NOVO TESTAMEN-
TO.

No ocultismo católico o mysterium ou sacramentum incluem toda tecnologia


mágica utilizada em armadilhas de espírito, símbolos litúrgicos-teúrgicos de
nossos rituais: imagens, pedras, ervas, o Evangelho, a vestimenta cerimonial,
o templo, altar e liturgia, equipamentos como cálice, patenas, crucifixo, es-
pada e adaga, selos, pantáculos e talismãs, fumigações e banhos mágicos etc.

72
TEURGIA & GOÉCIA

[Texto retirado do Curso de Filosofia Oculta.]

Poderá o tempo varrer de longe os nomes da- Que os profanos daqui se afastem! Que os sacrí-
queles que outrora foram gigantes e fundaram legos daqui se afastem! Que os traiçoeiros daqui
nossa Tradição Esotérica Ocidental. No entanto, se afastem! Que os assassinos daqui se afastem!
estes viverão eternos na memória daqueles que Nós juramos devoção aos Deuses, honra aos
em sabedoria valorizam àquilo que vem primei- Heróis, solidariedade aos nossos irmãos e re-
ro. Em nossas memórias, Jâmblico, o divino, pulsão aos zombadores, difamadores, delatores
para sempre viverás. e perjuros.

Fernando Liguori Ritual do Colegiado da Luz Hermética

A diferença entre teurgia e  (goécia) foi muito bem estabe-


lecida por Jâmblico (245-325 d.C.) e de forma criteriosa. Essa di-
ferença ocorre nos campos da prática tradicional religiosa, mágica
e teúrgica. Às vezes é difícil discernir a teurgia de uma ação religi-

A
osa. Por exemplo, a Missa da Igreja Católica é considerada um ritual teúrgico
e na verdade, toda a liturgia católica foi inspirada na teurgia neoplatônica.
Neste campo de análise muitos autores, acadêmicos e estudiosos, têm tenta-
do estabelecer uma relação entre a magia e o exercício religioso, no entanto,
pela ampla gama de definições produzidas acerca do termo  (mageia),
entramos em um terreno pantanoso quando comparamos e tentamos dife-
renciar teurgia, magia e religião.
O termo grego  é utilizado para descrever um amplo arranjo de
práticas mágicas que vão desde encantamentos e maldições, fascinação espi-
ritual, amuletos mágicos e uso de intoxicantes de todos os tipos: álcool, dro-
gas, fumos, plantas de poder, poções () e veneração aos mortos
(necrurgia e necromancia). Essas práticas desde a Antiguidade são associa-
das às palavras  (mageia) e feitiçaria. O exercício da teurgia, antes de
ser derivado de um arranjo de práticas mágicas, pode ser rastreado em vá-
rias tradições religiosas da Antiguidade como por exemplo o pūjā tântrico, a
invocação e o sacrifício das culturas helênica e egípcia, assim como os orácu-
los dos deuses, principalmente àquele através de estatuetas, uma das princi-
pais práticas religiosas para divinação da cultura egípcia na Antiguidade,
onde deidades (neteru) eram cultuadas e carregadas em procissões, uma
prática tanto pública quanto familiar. No entanto, alguns elementos da ritua-
lística teúrgica, como por exemplo os   (nomes bárbaros),
muitas vezes referidos como voces magicae, são técnicas mágicas por exce-
lência. O uso de símbolos e insígnias mágicas utilizadas nos ritos teúrgicos
foram extensamente empregados nos cultos de mistérios da Antiguidade
como as tradições divinatórias, onde símbolos eram utilizados oracurlamen-

73
te para presságios e outros prognósticos, assim como a tradição pitagórica
onde eles denotam aforismos de sabedoria. No entanto, como veremos no
texto OS SÍMBOLOS NA TEURGIA, a utilização do símbolo na liturgia teúrgica
permite ao teurgo acesso aos reinos de luz e perfeição onde residem, por
exemplo, os espíritos das virtudes da sabedoria, coragem, temperança, pru-
dência etc.
Na visão teúrgica neoplatônica de Jâmblico, podemos dizer herdeira da
tradição pitagórica, existe a noção de iniciação, prática também herdada de
tradições de mistérios como Eleusis, originária da Grécia e amplamente co-
nhecida por todo o Mediterrâneo.
Tem sido difícil estabelecer uma relação entre a teurgia e a magia pelo
fato do termo  ser associado a um grande número de práticas e por-
que vários termos utilizados na Antiguidade denotavam o exercício de
, como o termo , utilizado sempre de forma pejorativa. A pa-
lavra  (no latim magia) deriva da palavra persa magos, que significa
sacerdote, sendo usada em um contexto estritamente religioso. Mas a partir
do Séc. VI d.C. os gregos passaram a conectar o termo  a mendigos,
feiticeiros, idólatras e adivinhos de todos os tipos, acumulando conotações
negativas no mundo greco-romano, o que levou a utilização popular depre-
ciativa dos termos  (magia) e  (goécia), utilizados de forma
intercambiável. No entanto, embora essa utilização depreciativa dos termos
fosse popularmente praticada, desde a Antiguidade alguns filósofos se esfor-
çavam para manter fiel o significado do termo  como uma função sa-
cerdotal persa. É por isso que Jâmblico se recusa a utilizá-lo em sua obra DE
MYSTERIIS, evitando assim qualquer má interpretação, generalização ou po-
lêmica, contrariando a visão cristã de que teurgia e magia eram as mesmas
artes.
Mas Jâmblico, por outro lado, é categoricamente criterioso e rígido na
distinção entre teurgia e magia no sentido de goécia:

1. O estilo de vida e a receptividade do ritualista praticante.


2. O uso dos símbolos em acordo com o amor divino e simpatia (o cami-
nho do teurgo) ou em acordo somente com a simpatia (o caminho do
feiticeiro (goés – ) e os reinos metafísicos com os quais os símbo-
los estão conectados.
3. A medida que o praticante ritualista vê suas capacidades e uso do po-
der ritual como sendo seus (feiticeiro) ou como sendo dons de Deus
(teurgo).

Estes critérios estabelecidos por Jâmblico estão completamente interligados,


pois a utilização de símbolos pelo ritualista praticante está estreitamente
conectada com sua atitude e propósito ritual, estilo de vida e receptividade.
Mas a diferença entre teurgia e magia (goécia) apoia-se mais sobre o ritua-
lista do que os próprios critérios, pois eles se aplicam sobre o indivíduo, seu
nível de consciência e receptividade, bem como os reinos que ele consegue

74
acessar através do ritual. O termo  foi utilizado por Jâmblico somen-
te duas vezes no seu DE MYSTERIIS, denotando o feiticeiro, não sua ação ritual.
A diferença essencial entre teurgia e  é, portanto, o estilo de vi-
da e a receptividade do ritualista praticante, pois a teurgia trata-se de elevar
a Alma aos reinos de luz e perfeição. Isso clareia bastante a distinção entre
teurgia e , pois revela que a diferença reside na disposição interna
do praticante, sua motivação fundamental. O teurgo é àquele que se dedica a
uma vida de disciplina, purificação, estudo, devoção e a prática das virtudes.
Em DE MYSTERIIS Jâmblico responde as indagações de Porfírio acerca da ca-
racterização mágico-ritualística do praticante dizendo: Por causa destes que
dela [i.e. ] fazem mau uso, não é fácil fazer justiça a essa forma de di-
vinação em uma simples definição.62 Aqui Jâmblico estabelece uma distinção
entre o magista, quer dizer, o mago-feiticeiro () e o teurgo. O feiticeiro
usa da falsidade e da mentira em seus métodos, produzindo na Alma um
movimento anatrópico e centrípeto. Esse movimento de inversão total da
Alma, por outro lado, cria o ambiente ideal para aproximação de entidades
densas e de força cega (kakodaimones), miasmas e cascões de todos os tipos.
A teurgia, por outro lado, inverte a condição anatrópica da Alma, levando o
teurgo aos reinos de luz e perfeição onde habitam os deuses e os espíritos
das virtudes. Desse modo, a teurgia não dá acesso a entidades densas e de
força cega, pois nela existe a presença da luz divina dos reinos celestiais. Es-
sa luz divina é um bloqueio para a presença de entidades densas e feiticeiros
de caráter torpe e duvidoso.63 A luz não aceita nada que seja distinto de sua
natureza.
Porfírio e Jâmblico estavam em acordo sobre a natureza da magia
() e que o mago-feiticeiro () atrai para si a obsessão de kako-
daimones (entidades malignas) através de sua impureza, impiedade e ilega-
lidade, marcando uma diferença contrastante ao homem divino, àquele que
é sábio sobre as coisas de Deus e cuja piedade age como guarda e proteção
na sua busca por forjar conexões com os planos de luz e perfeição. Jâmblico
argumenta ainda que o feiticeiro () é espiritualmente inferior ao teurgo,
pois ao feiticeiro falta receptividade, disciplina, persistência e preparação
filosófica. Para Jâmblico o feiticeiro deturpa a ideia de contemplação divina,
acabando por servir e trabalhar em função de entidades malignas, tornando-
se, em certa medida, escravos delas. Dessa forma, nós vemos em Jâmblico a
critica a postura do feiticeiro, não a tecnologia mágica que ele utiliza. O que
Jâmblico condena é a falta de disciplina espiritual e treinamento filosófico, o
que purifica e inverte a condição anatrópica da Alma. Em sua disciplina, o
teurgo se alinha a demiurgia do cosmos, atuando como um canal-vivo de ex-
pressão dos deuses: suas ações imitam a natureza eterna e ontológica dos
deuses, construindo uma afinidade e reciprocidade com eles, reafirmando a
sabedoria arcana de que os semelhantes se atraem. O feiticeiro, por falta de
treinamento filosófico adequado, disciplina espiritual e o cultivo das virtu-

62 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 3, 13; 129, 14-15.


63 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 3, 13, 29; 129, 15; 130, 14.

75
des, não constrói essa afinidade e reciprocidade com os deuses, que cospem e
sua face, tamanha vergonha e prepotência. Um feiticeiro trabalha para si
mesmo, não para a Obra do Divino, como o teurgo assim se coloca. O teurgo é
um receptáculo dos deuses. Através de um estilo de vida filosófico, que im-
plica ritual, ética e aprimoramento intelectual, ele purifica sua Alma, criando
nela a receptividade apropriada para atrair e assimilar as forças divinas,
tornando-se um receptáculo apropriado aos deuses. Isso porque a teurgia é
a própria operação dos deuses e somente um teurgo que tornou-se um re-
ceptáculo adequado aos deuses pode executá-la.64 Porfírio, o professor de
Jâmblico, argumentava que os ritos de teurgia somente funcionam se o pra-
ticante cultivar uma vida filosófica, a prática das virtudes e o cultivo de qua-
lidades éticas.
O teurgo acredita que os deuses em sua benevolência qualificam os
homens com capacidades teúrgicas, o que os possibilita invocá-los através
do uso correto dos símbolos (sunthāmata) adequados em ritos de teurgia. O
conhecimento e a forma como empregar corretamente estes símbolos são
considerados um dom conferido pelos deuses e aqui reside, quem sabe, a
maior distinção entre teurgia e : a maneira com a qual os símbolos
são utilizados nos rituais. Jâmblico ensinava que os símbolos utilizados nos
rituais de teurgia estão conectados àquilo que eles representam, quer dizer,
sua causa divina. Isso determina que cada símbolo utilizado no ritual seja
uma fonte ou um portal de acesso àquilo que ele representa, pois ele está
conectado a própria causa de poder daquilo que representa, embora ambos,
o símbolo e sua causa divina, tenham identidades e funções distintas na or-
dem do cosmos. A conexão, portanto, entre a Alma e o símbolo cria um en-
trecruzamento vibracional, quer dizer, abre-se uma encruzilhada de poder
que servirá como acesso operando através da simpatia horizontal da Alma
com os códigos de luz verticais do divino. Quer dizer, através do símbolo a
Alma pode elevar-se aos reinos de luz e perfeição. Dessa maneira, qualquer
ritual que falhe em elevar a Alma aos planos de luz e perfeição através da
utilização de seus símbolos não é teurgia, mas magia (). Colocando
de outra maneira: os símbolos do ritual dão acesso a fonte divina represen-
tada por eles. Se estes símbolos conectam o praticante ritual aos planos de
luz e perfeição, trata-se de teurgia, caso contrário, se o acesso que eles pos-
sibilitam são outros reinos densos, trata-se de magia ().
A palavra magia () na Antiguidade greco-romana passou a des-
crever um rótulo social polêmico que desqualificava não apenas feiticeiros,
mas até os praticantes de outras religiões. Essa desqualificação tomou gran-
de voz através dos teólogos cristãos, que argumentavam inclusive, que a
teurgia neoplatônica era só outro nome para mageia. Jâmblico nega essa i-
deia, defendendo que as diferenças entre um teurgo e um mago-feiticeiro
() não são apenas filosóficas, mas também éticas. A teurgia depende da
continuidade de propósito, pois se trata de um esforço empregado ao logo
de toda a vida e baseado sobre uma sólida disciplina ética. Para Jâmblico e-
64 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 2, 11; 98, 6-10.

76
xistia um abismo ético e filosófico entre o teurgo que se dedica disciplina-
damente a execução de seus rituais em um esforço soteriológico de ilumina-
ção de sua Alma através da assimilação dos códigos de luz dos deuses, das
virtudes e dos heróis, bem como de sua participação harmoniosa na demiur-
gia do cosmos. A teurgia trata-se, portanto, de um estilo de vida filosófico e
ético muito distinto do estilo de vida errante e mendicante de feiticeiros que
viajavam de cidade em cidade vendendo amuletos, maldições, amarrações,
poções mágicas etc. a qualquer um com dinheiro para pagar, com pouca ou
nenhuma consideração ética sobre o dano que poderiam causar na vida das
pessoas.
O tipo ou a qualidade de mageia que Jâmblico descreve e aconselha evi-
tar é caracterizada pelos magos-feiticeiros praticantes da magia contida nos
PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, uma coleção de encantamentos, amarra-
ções, feitiços e maldições coletadas de fontes egípcias, coptas e greco-
romanas. Estes papiros se tratam de um conjunto de práticas e métodos de
magia () como executados na Antiguidade, no entanto, eles também
incluem toda uma liturgia baseada em um culto soteriológico a Mitras, con-
siderado uma prática teúrgica por sua busca pela imortalização da Alma.
A fonte mais rica por trás dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS é a cultu-
ra egípcia, onde não é possível separar a magia da prática religiosa como
ocorre na cultura greco-romana. No Egito, os sacerdotes que realizavam as
celebrações oficiais também realizavam cerimônias menores nas cidades,
vilarejos e comunidades a convite de famílias locais como magos freelance
em suas horas de folga. Jâmblico estava consciente disso e coloca ênfase, co-
mo antes foi dito, mais na conduta pessoal do que na prática em si ao dife-
renciar teurgia de magia (). Alguns aspectos dos PAPIROS MÁGICOS
GRECO-EGÍPCIOS, portanto, podem ser considerados teúrgicos, devido a influ-
encia magico-religiosa e soteriológica da cultura egípcia.

UMA CONFUSÃO MODERNA:


O DEBATE SOBRE MAGIA BRANCA & MAGIA NEGRA

A distinção de Jâmblico entre teurgia e magia () levou alguns autores


a uma interpretação equivocada que eles denominaram de alta teurgia e
baixa teurgia. Nessa classificação, o que se conveniou chamar de alta teurgia
trata-se de uma prática mística e filosófica, evitando o uso de rituais. A baixa
teurgia, por outro lado, faria uso da ritualística cerimonial e todo seu apara-
to. Este tipo baixo de teurgia seria destinado àquelas Almas demasiadamen-
te apegadas a matéria enquanto que a teurgia de tipo superior seria destina-
da a teurgos que transcenderam a necessidade do ritual e os aspectos den-
sos da encarnação. Este tipo de divisão estaria, supostamente, adequado às
ideias de Jâmblico: a baixa teurgia sendo considerada magia () e a
alta teurgia àquela que Jâmblico se refere como sendo superior. Estes dois
tipos de teurgia formariam:

77
 Alta Teurgia: eixo vertical.
 Baixa Teurgia: eixo horizontal.

O maior defensor dessa ideia é Andrew Smith, que argumenta que a baixa
teurgia, de tipo horizontal, não tem poder para ir além dos limites deste
mundo (a matéria), não podendo levar o teurgo a união com o divino. A alta
teurgia de tipo vertical, por outro lado, é mais adequada, pois sua prática
produz a noese,65 possibilitando ao teurgo se unir ao divino.66 Para Smith, o
cerne de sua definição reside aqui: a teurgia de tipo horizontal opera somen-
te através da simpatia física do teurgo; a teurgia de tipo vertical utiliza a
simpatia transcendente ou a causa desta simpatia transcendente, o amor di-
vino, pois ela vai muito além da matéria e procura a verdadeira fonte da cau-
salidade.
Sobre essa classificação de Smith, outra autora, Anne Sheppard, faz uma
reclassificação, dividindo a teurgia em três tipos de rituais: a prática teúrgica
destinada à resolução de problemas cotidianos do dia-a-dia, o que ela com-
para a magia branca; a prática superior de teurgia que alimenta a Alma e,
finalmente, a prática mais elevada de teurgia que possibilita a mania divina,
proporcionando a união com o divino.67 Sheppard afirma que os dois pri-
meiros tipos de teurgia empregam rituais, mas a teurgia mais elevada não.
Em comparação com a classificação de Smith, o primeiro tipo de teurgia de-
fendida por Sheppard é a baixa teurgia (horizontal).
Essas duas classificações de Smith e Sheppard não existem na teurgia de
Jâmblico e elas estão no cerne do duelo que muitos autores têm postulado
acerca da distinção entre magia branca e magia negra. Jâmblico postulou
que, dependendo da qualidade da Alma, quer dizer, o objetivo pelo qual a
Alma encarna na matéria, haverá uma abordagem e um tipo de ritual teúrgi-
co distinto. Dessa forma, a teurgia é abordada em contextos diferentes, de-
pendendo da qualidade da Alma.
Três são os tipos de Alma encarnada na matéria: as Almas torpes que
Jâmblico classificou como rebanho, sem aptidões ou volições espirituais pre-
sentes; as Almas que ele classificou como estarem no meio do caminho, quer
dizer, embora torpes, têm capacidades e volições espirituais; e finalmente, as
Almas perfeitas e completas que estão acima da natureza e do destino. Para
cada tipo de Alma, portanto, há um tipo de ritual teúrgico adequado. Todas
elas, no entanto, precisam dos ritos de teurgia, pois padecem do mesmo di-
lema: encarnação da matéria. Isso está em perfeita sincronia com a cultura
tântrica que também vê distinção entre os praticantes de tantra. O paśu (ga-
do, rebanho, besta) é o praticante débil e de maus hábitos; o vīra (herói) é o
praticante que possui domínio sobre si mesmo e capacidade de aprofunda-
65 Compreensão ou percepção imediata. Em nosso estudo de teurgia do Colegiado da Luz Hermética, levando
em consideração a teoria que subjaz essa interpretação de Smith, poderíamos dizer que a alta teurgia trata-se
dos exercícios espirituais e lectio divina sobre os quais nos debruçamos. Veja Pierre Hadot, EXERCÍCIOS ESPIRITU-
AIS E FILOSOFIA ANTIGA, Realizações.
66 Adrew Smith, PORPHYRY’S PLACE IN THE NEOPLATONIC TRADITION: A STUDY IN POS-PLOTINIAN NEOPLATONISM. P. 91,

111-121.
67 Anne Sheppard, Proclus Attitide to Theurgy, em CLASSICAL QUARTERLY, p. 212-224.

78
mento; o divya (puro) é o praticante cuja Alma já foi refinada através das
inúmeras encarnações ou um santo. Para cada um destes praticantes a cul-
tura tântrica oferece um tipo de ritual (pūjā).
Em Jâmblico, portanto, não existe alta e baixa teurgia. Assim como na
cultura tântrica, Jâmblico acredita que a Alma se aperfeiçoa na medida em
que encarna sucessivas vezes na matéria, o que ele chama de efeito cumula-
tivo.68 A teurgia é necessária para cada tipo de Alma. Nas suas encarnações
sucessivas e através da teurgia, a Alma se alimenta dos códigos de luz dos
deuses, heróis e virtudes até que seja capaz de executar a adoração incorpó-
rea, um alto nível de prática teúrgica onde o Ego é completamente suplanta-
do pela consciência divina no estado de henosis.
Ainda, estes três tipos de teurgia classificados por Jâmblico segundo a
qualidade da Alma, são inclusivos, quer dizer, eles se integram ao ponto de
aperfeiçoarem uns aos outros. E a classificação de Smith sobre a teurgia ver-
tical e horizontal não encontra referência real em Jâmblico. Para Jâmblico,
qualquer rito teúrgico é exclusivamente vertical, pois eleva a Alma aos rei-
nos de luz e perfeição, conectando o teurgo com os deuses. Quer dizer, seja
lá a qualidade da Alma, a teurgia irá guiá-la até os deuses.
Esse dilema e má interpretação da teurgia clássica neoplatônica de Jâm-
blico tem inspirado uma ávida discussão sobre a natureza da magia, se bran-
ca ou negra, nas tradições modernas e pós-modernas. Embora alimentada
por outras disputas, Jâmblico reside na gênese dessa discussão e para com-
preendê-la seria saudável, como nos aconselha Pitágoras (570-495 a.C.),
buscar na fonte àquele que veio primeiro!

68 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 5, 14.

79
UM ELOGIO A MAGIA TRADICIONAL SALOMÔNICA

[Texto retirado do Curso de Filosofia Oculta.]

N este grupo nós estamos «trabalhando», «redespertando» e «resga-


tando» a Magia Tradicional Salomônica. Por que esses termos? Pelo
fato de que a interpretação moderna e pós-moderna da magia tem
«degenerado» a Arte dos Magi. Quando falamos de magia ou her-
metismo medieval (ou magia em um âmbito geral), Agrippa permanece in-
superável. Foi graças aos esforços de Agrippa que hoje nós temos um siste-
ma de magia cerimonial coeso, bem «amarrado» e «fechado». Tudo o que
nós precisamos para praticar a Magia Tradicional Salomônica, quer dizer,
tudo o que precisamos saber para colocar a magia dos grimórios medievais
em prática, está na obra de Agrippa. Assim, não é ousado ou desmedido, mas
ao contrário, justo e correto dizer que se não fosse os esforços de Agrippa,
estaríamos completamente perdidos no exercício da magia cerimonial. E é
porque a interpretação moderna da magia esqueceu-se completamente de
Agrippa, supervalorizando autores pífios como Mathers, Crowley, Fortune,
Regardie etc. que a magia moderna tornou-se desprovida de conteúdo, força
e poder. A escola inglesa de magia, autora das interpretações moderna e
pós-modernas, degenerou o Ocultismo e a Arte dos Magi. Portanto, no cami-
nho de se trabalhar efetivamente a Magia Tradicional Salomônica, necessi-
tamos tomar o cuidado para não «contaminar» nosso estudo e prática com
qualquer influência da magia moderna e seus principais intérpretes.
Em sua obra, OS TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA, Agrippa nos provê in-
formações valiosas de quem pode ou está apto a ser um mago e de onde vem
o seu poder para manipular as virtudes ocultas dos elementos e sua autori-
dade sobre as diversas criaturas espirituais que ele conjura. Já no início de
sua obra, Agrippa define a magia:

«Magia é uma faculdade de maravilhosa virtude, cheia dos mais nobres mistérios, con-
tendo a mais profunda contemplação das coisas mais secretas junto à natureza, ao po-
der, à qualidade, à substância e às virtudes delas, bem como o conhecimento de toda a
natureza, e ela nos instrui acerca da diferença e da concordância das coisas entre si,
produzindo assim maravilhosos efeitos, unindo as virtudes das coisas pela da aplica-
ção delas uma em relação a outra, unindo-as e tecendo-as bem próximas por meio dos
poderes e das virtudes dos corpos superiores.»69

Depois, ao explicar como o mago adquire poder na magia, para manipular as


virtudes dos elementos e para adquirir poder sobre as criaturas espirituais
conjuradas, Agrippa diz:

69 Agrippa, OS TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA, Parte I, Capítulo 2.

80
«Uma vez que a compreensão, que é em nós a maior faculdade da alma, é a única ver-
dadeira operadora de milagres e a qual, se sobrecarregada de excessos com a carne e
ocupada com a alma sensível do corpo, não é digna do comando de substâncias divi-
nas; assim, muitos perseguem essa arte em vão. É, portanto, mister que aqueles dentre
nós que se empenham em alcançar tão grande altura meditem de modo especial em
duas coisas: a primeira, como deixar as afeições carnais, o fraco sentido e as paixões
materiais; a segunda, como e por qual meio nós podemos ascender a um intelecto pu-
ro e imbuído dos poderes dos deuses, sem os quais jamais teremos a felicidade de as-
cender ao escrutínio das coisas secretas e ao poder das operações maravilhosas, ou
milagres; pois é nisso que consiste a dignificação, que a natureza, o merecimento e
uma certa arte religiosa compõem. [...] Mas a dignidade que é adquirida pela arte da
religião é aperfeiçoada por determinadas cerimônias religiosas, expiações, consagra-
ções e ritos sagrados, que procedem daquele cujo espírito foi consagrado pela religião
pública e que tem o poder da imposição das mãos e de iniciar com o poder sacramen-
tal, pelo qual o caráter da divina virtude e poder é em nós impingido, o qual chama-
mos de consentimento divino, e pelo qual um homem sustentado com a natureza divi-
na e tornado companheiro dos anjos carrega consigo o poder importado de Deus; e es-
se rito é mencionado nos mistérios eclesiásticos. Se, portanto, você quiser ser um ho-
mem perfeito na sagrada compreensão da religião, meditar nela com devoção e cons-
tância, acreditar sem duvidar e for o tipo de indivíduo ao qual a autoridade dos ritos
sagrados e da natureza conferiu dignidade acima dos outros, e que os poderes divinos
não desprezam, então, por meio da oração, da consagração, do sacrifício e da invoca-
ção, você será capaz de atrair poderes espirituais e celestiais e impingi-los no que qui-
ser, vivificando assim todo trabalho de magia; mas aquele que, sem a autoridade de tal
ofício, sem o mérito da santidade e do aprendizado, fora da dignidade da natureza e da
educação, tiver a pretensão de realizar qualquer intento mágico, trabalhará em vão e
enganará tanto a si mesmo quanto aqueles que nele acreditam, além do perigo de in-
correr no desagrado dos poderes divinos.»70

Essa passagem de Agrippa elucida muita coisa na prática da Magia Tradicio-


nal salomônica e vou anunciar alguns pontos importantes, explicando-os.
«Uma vez que a compreensão, que é em nós a maior faculdade da alma,
é a única verdadeira operadora de milagres e a qual, se sobrecarregada de
excessos com a carne e ocupada com a alma sensível do corpo, não é digna
do comando de substâncias divinas; assim, muitos perseguem essa arte em
vão.» Agrippa trabalha com o conceito platônico de Alma onde ela é constitu-
ída de três partes: Intelectual, Emocional e Animal. A parte superior da Alma
é a Intelectual, o próprio Logos de Deus no homem, o que os hindus têm
chamado de ātma. No mago, a Alma Intelectual deve reger as outras duas
partes da Alma, caso contrário, se ele ainda está perdido no alvoroço de suas
emoções e aprisionado pelas paixões da Alma Animal, ele não tem a dignida-
de necessária para manipular as virtudes dos elementos ou comandar os es-
píritos. Sua «palavra» é pífia; não se trata da Palavra de Deus, o Logos, que
reverbera em todos os planos existenciais e multiuniversos. Por isso, Agrip-
pa diz, muitos praticam em vão essa arte, ou seja, eles pensam ser magos,
eles pensam ter poderes, mas de fato não o tem. São como Simão, o Mago,
que queria comprar o «dom de Deus». Ele não exercia a Arte dos Magi em
nome do Eterno e sua milícia celeste, mas em nome de si mesmo.71 Isso nos
lembra da típica atitude dos magos moderninhos cujo objetivo é tornar o
Ego poderoso, construindo uma Torre de Babel para tentarem tomar o Céu
70 Agrippa, OS TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA, Parte III, Capítulo 3. Os itálicos são meus.
71 Veja o texto Simão, o Mago.

81
por assalto, a típica atitude do pagão crioulo comunista que invade e toma a
terra que não lhe pertence por direito ou mérito.
Certa feita o autor que aqui lhes escreve presenciou um trabalho mági-
co de cura espiritual através do exorcismo. Ao usar o nome de Nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo, a entidade disse ao conjurador: «Você? Logo você
que é o mais pecador de todos acha que tem qualquer autoridade sobre
mim?» O enfermo continuou obsediado.
Agrippa continua:
«É, portanto, mister que aqueles dentre nós que se empenham em al-
cançar tão grande altura meditem de modo especial em duas coisas: a pri-
meira, como deixar as afeições carnais, o fraco sentido e as paixões materi-
ais; a segunda, como e por qual meio nós podemos ascender a um intelecto
puro e imbuído dos poderes dos deuses, sem os quais jamais teremos a feli-
cidade de ascender ao escrutínio das coisas secretas e ao poder das opera-
ções maravilhosas, ou milagres; pois é nisso que consiste a dignificação, que
a natureza, o merecimento e uma certa arte religiosa compõem.» Diversas
vezes tenho colocado ênfase que a Magia Tradicional Salomônica caminha de
mãos dadas com uma típica e também tradicional piedade cristã católica ou
ortodoxa. Isso implica em conduta moral e virtuosa na prática das Leis de
Moisés, as mesmas defendidas e ensinadas por Jesus Cristo. Uma estrita dis-
ciplina de orações, confissões, participação nos sacramentos da Igreja, medi-
tações, exames de consciência e penitência. Através dessa piedade cristã, o
mago domina suas paixões animalescas, aperfeiçoa e refina a Alma Intelec-
tual. Dessa maneira, é possível ascender aos planos de luz e perfeição, parti-
cipar dos códigos de luz dos arcanjos e anjos, recebendo deles as virtudes de
Deus e a compreensão das coisas ocultas, sobrenaturais. Agrippa é cuidado-
so em usar a palavra dignificação, quer dizer, o mago tem de se tornar um
homem digno em ações, pensamentos e palavras; um homem que espelhe as
virtudes do próprio Cristo, o maior exemplo e ícone de Mago a ser seguido. E
isso faz parte da piedade cristã: imitar Jesus Cristo em obras. É dessa manei-
ra que a Alma Intelectual comanda e organiza as funções das Almas Emocio-
nal e Animal. «Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o
caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; E por-
que estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que
a encontrem.»72 As portas do Céu se abrem ao digno apenas; por isso, aque-
les que constroem a Torre de Babel na intenção de invadir e tomar a força
seu lugar entre os merecedores da glória são fulminados por um Raio Divi-
no. Tolos comunistas daimônicos...
«Mas a dignidade que é adquirida pela arte da religião é aperfeiçoada
por determinadas cerimônias religiosas, expiações, consagrações e ritos sa-
grados, que procedem daquele cujo espírito foi consagrado pela religião pú-
blica e que tem o poder da imposição das mãos e de iniciar com o poder sa-
cramental, pelo qual o caráter da divina virtude e poder é em nós impingido,
o qual chamamos de consentimento divino, e pelo qual um homem susten-

72 MATEUS, 7:13-14.

82
tado com a natureza divina e tornado companheiro dos anjos carrega consi-
go o poder importado de Deus; e esse rito é mencionado nos mistérios ecle-
siásticos.» Anteriormente eu havia falado que melhor seria ao mago, no e-
xercício da Magia Tradicional Salomônica, tivesse sagração eclesiástica, quer
dizer, fosse um sacerdote cristão. No entanto, Agrippa está nos informando
nessa passagem que pelo exercício da piedade cristã e pela consagração da
Alma através dos Santíssimos Sacramentos da Igreja, o mago está apto a o-
perar magia, donde no círculo mágico terá o mesmo «dom» sacramental de
imposição das mãos como um sacerdote. Se só pelo poder dos Santíssimos
Sacramentos sobre a Alma um mago pode desenvolver este poder sacramen-
tal e sacerdotal, muito mais sucesso e eficiência terá sua Arte caso ele seja
um sacerdote consagrado. Veja que é por meio dessa piedade cristã, seus
ritos e sacramentos, estilo de vida virtuoso e moral, que o mago adquire a
dignidade necessária para operar os milagres na magia.
Indico aqui o LIVRO DO ECLESIÁSTICO no Antigo testamento. Agrippa ter-
mina:
«Se, portanto, você quiser ser um homem perfeito na sagrada compre-
ensão da religião, meditar nela com devoção e constância, acreditar sem du-
vidar e for o tipo de indivíduo ao qual a autoridade dos ritos sagrados e da
natureza conferiu dignidade acima dos outros, e que os poderes divinos não
desprezam, então, por meio da oração, da consagração, do sacrifício e da in-
vocação, você será capaz de atrair poderes espirituais e celestiais e impingi-
los no que quiser, vivificando assim todo trabalho de magia; mas aquele que,
sem a autoridade de tal ofício, sem o mérito da santidade e do aprendizado,
fora da dignidade da natureza e da educação, tiver a pretensão de realizar
qualquer intento mágico, trabalhará em vão e enganará tanto a si mesmo
quanto aqueles que nele acreditam, além do perigo de incorrer no desagrado
dos poderes divinos.» Nessa passagem, fica claro que o exercício da magia,
ou melhor, seu efeito milagroso através de Deus por meio do sacerdote ou
mago praticante, depende de um estilo de vida filosófico, apartado da ba-
gunça, desordenamento de conduta, conversas tolas, vícios, maus hábitos e
costumes. O poder na magia vem de Deus, não do mago. Era isso que Simão
não compreendia em Pedro ou em Paulo. Eles faziam milagres (taumaturgia)
através de uma graça auspiciosa de Deus, pois eram valorosamente virtuo-
sos. Agrippa então nos aconselha a olhar para nosso caminho e nos endirei-
tarmos caso queiramos, de verdade, receber a graça e o dom de Deus. Ficou
claro também o que acontece, cedo ou tarde, com todos os que perseguem
essa Arte em vão.
Por conta disso, por estarmos alinhados a valores magísticos e cristãos
como Agrippa acaba de demonstrar, nesse grupo não são bem-vindos thele-
mitas, hermetistas modernos da Aurora Dourada, satanistas, luciferianos,
kimbandeiros, umbandistas etc. Qualquer pagão ou mago que reconheça A-
leister Crowley como um «grande mago», coisa que ele nunca foi, não é acei-
to entre nós. Bem como absolutamente ninguém alinhado com ideias pagãs e
crioulas como marxismo, comunismo, feminismo, gayzismo etc.

83
MAGIA TRADICIONAL SALOMÔNICA & INICIAÇÃO

[Texto retirado do Curso de Filosofia Oculta.]

epois que criamos este grupo alguns participantes enviaram mensa-


D gens em privado. Eu demoro um pouco para responder essas mensa-
gens, pois são muitas por dia e eu as respondo por ordem de entrada.
Uma questão interessante que me foi colocada é sobre o que fa-
lei em minha última postagem: goécia é o fim do caminho! Há dois anos eu
carreguei no You Tube meu primeiro vídeo acerca de goécia. Naquele vídeo
eu digo que um fator importante para convocação dos espíritos demoníacos
é a iniciação. Através da prática da Magia Tradicional Salomônica, a iniciação
ocorre da seguinte maneira:
Primeiro, através do contato sistemático com os arcanjos e sua corte
celestial. Toda hierarquia celeste dos grimórios derivou-se da hierarquia
neoplatônica de deuses, heróis e daimones. Enquanto os kakodaimones gre-
gos tornaram-se os demônios cristãos e os aghato-daimones tornaram-se os
anjos, os heróis gregos tornaram-se os arcanjos cristãos. Na teologia platôni-
ca, os heróis representam a força que liberta o teurgo da influência dos dai-
mones. Os teurgos, portanto, mantinham uma piedade para com os heróis na
finalidade de se libertarem da influência anatrópica dos daimones e o poder
sobre eles. Quando levamos esse conhecimento para dentro da hierarquia
celeste cristã, fica nítido o fato de que primeiro é necessário um contato pro-
fundo com arcanjos e anjos antes de se tratar diretamente com os espíritos
malígnos. Esse contato enriquece a Alma humana com luz e virtude. Eles são
responsáveis pela iniciação e em nome deles o material da arte é consagrado
e o mago conjura as entidades menores.
Segundo, através de uma série piedade cristã. Na maioria dos grimórios
exige-se a necessidade do mago receber os sacramentos da igreja e manter
uma piedade cristã disciplinada. Essa piedade educa e estrutura o caráter
através de um código de moral rígido, essencial a autoridade do mago sobre
os demônios e seu poder de conjurá-los. Em outra parte daquele texto que
citei na última postagem, eu escrevi:

Este exercício de piedade espiritual diária deve ser considerado sagrado para todo
bispo, sacerdote ou diácono de nossa Eclésia, pois através dele exercita-se a perfeição
da Alma. O primeiro passo dessa piedade é uma oração a Deus, um colóquio afetuoso
ao Pai Celestial para nos lembrarmos de nosso ideal constantemente perseguido como
nos ensina Nosso Senhor: «Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é
perfeito». O aprendiz se coloca na presença de Deus, fonte e modelo de toda perfeição
e na presença de Nosso Senhor Jesus Cristo que quando encarnado refletiu essa per-
feição divina e sobre o qual temos a graça de imitar para receber suas virtudes.

84
Todo praticante sério de Magia Tradicional Salomônica primeiro invoca a
hierarquia celeste dos planos de luz e perfeição e somente depois se lança ao
contato com os demônios.

85
MAGIA ASTRAL & MAGIA TRADICIONAL SALOMÔNICA

[Texto retirado do Curso de Filosofia Oculta.]

A nteriormente nós estudamos que uma definição sóbria acerca da


magia envolve uma visão de mundo animista. O mago deve possuir
uma consciência daimônica, quer dizer, ele deve conversar com es-
píritos, o que em realidade define um xamã. E este é o arquétipo do
mago que inspira a todos nós: um homem de sabedoria, recluso e imerso em
seus estudos, ritos de invocação e evocação de criaturas espirituais de todos
os tipos e entidades do corpo de Deus,73 consagrando medicinas naturais e
manipulando virtudes astrais através da construção de pantáculos, amuletos
etc. É a consciência daimônica que permite o mago invocar deuses, anjos, he-
róis e conjurar demônios (daimones) através de rituais e consagração de ta-
lismãs e amuletos. A magia, portanto, trata-se de causar mudança na nature-
za através de agentes espirituais, criaturas e entidades do corpo de Deus,
compelidas ou persuadidas pelo mago através de tecnologias mágicas ou o
que anteriormente definimos como sunthēmata:74 nomes sagrados de poder,
talismãs etc., todos os símbolos materiais, intermediários e noéticos que uti-
lizamos em nossas cerimônias magísticas.75
Uma vez que isso está bem solidificado em nossas estruturas, quer di-
zer, que a magia envolve o contato com criaturas e entidades espirituais,
passamos a definição exata de magia tradicional salomônica e magia astral,
pois no presente, desde a época do Iluminismo, ambas as matérias são vistas
como uma só; no entanto, elas são áreas distintas na história e tradição da
magia. A confusão ainda aumenta quanto associamos o termo magia às ex-
pressões: divinação e bruxaria. Mas a magia – salomônica –não tem nada a
ver com isso. A magia salomônica também não se trata de bruxaria popular
folclórica como o Hoodoo por exemplo. Diferente disso, a magia salomônica
na Idade Média era praticada e documentada pela classe letrada da socieda-

73 Aqui, diferente dos termos utilizados até o presente, fazemos uma distinção entre criaturas e entidades do
corpo de Deus. Anteriormente utilizamos a expressão criaturas espirituais para indicar deuses, daimones (ele-
mentais, cascões mortos, zombeteiros, obsessões etc.), almas perfeitas (santos), anjos, arcanjos e toda sorte de
entidades do corpo de Deus e até elementares. Mas neste momento de nossa jornada cabe fazer uma distinção
entre criaturas e entidades do corpo de Deus. Quando nos referinos a entidades do corpo de Deus, queremos
dizer toda criação de Deus, configurando deuses, anjos, arcanjos e daimones. O termo criatura, por outro lado,
denota criação do homem. Um elementar é uma criatura espiritual criada pelo homem; um elemental é uma
entidade espiritual criada por Deus.
A magia tradicional salomônica lida com a invocação e a evocação de entidades do corpo de Deus: espíritos
(ou anjos para seguir a classificação dos grimórios salomônicos) das horas e dias planetários, estações do ano,
arcanjos, anjos e demônios. A magia astral lida com essas mesmas entidades do corpo de Deus na consagração
de pantáculos, talismãs, amuletos, estátuas, ícones etc.
74 Veja Carta 4: Magia #1.
75 Até o presente ficou claro, portanto, que magia se trata de produzir efeitos miraculosos na natureza (tauma-

turgia) e que teurgia se trata de elevar a Alma até os planos de luz e perfeição onde habitam anjos, arcanjos e
deuses.

86
de e membros do clero. Os grimórios salomônicos foram obra dos sacerdo-
tes católicos e estão associados diretamente a uma piedade cristã.
E é pelo fato da magia salomônica ser distinta daquela bruxaria popular
folclórica que a ela não pode ser confundida ou associada ao termo bruxa. O
termo bruxaria é anglo-saxão moderno e vem de bruxa, que significa mulher
de sabedoria, expressão aplicada as mulheres que praticavam bruxaria popu-
lar folclórica que utiliza ervas e unguentos para cura ou lançar maldições,
uma prática muito distinta, como está claro, das invocações e evocações sa-
lomônicas. Isso descarta definitivamente interpretações modernas e absur-
das como a expressão goécia luciferiana, um non sense estapafúrdio que mis-
tura bruxaria moderna (ou neobruxaria) e magia salomônica, criando um
aborto espiritual.
Não existe no latim, a língua original dos grimórios, nenhum equivalen-
te para a palavra bruxa ou bruxaria. No clássico MALLEUS MALEFICARUM, in-
corretamente traduzido como O MARTELO DAS FEITICEIRAS,76 Heinrich Krae-
mer (1430-1505) utiliza a palavra maleficarum que significa perverso ou
criminoso que, no entanto, não está diretamente associado a magia ou a ex-
pressão feiticeira (ou bruxa).77 As palavras bruxa ou bruxaria não são encon-
tradas no Mundo Antigo na região do Mediterrâneo, Egito e Oriente Médio.
Não está presente nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS (fonte e origem dos
grimórios medievais) ou da piedade bizantina e romana da Antiguidade. Di-
ferente disso, a bruxaria está associada a prática popular folclórica de magia
entre os Sécs. XI e XVII da Europa na Idade Média. Autores modernos como
Gerald Gardner (1884-1964), Alex Sanders (1926-1988), Michael W. Ford e
outros utilizam o termo incorretamente, o retrocedendo no tempo e o alo-
cando em culturas e períodos que desconheceram completamente essa prá-
tica.78
Existe um abismo gigantesco separando a bruxaria da magia tradicio-
nal salomônica. Os feitiços e augúrios lançados pelas bruxas são muito dis-
tintos das intricadas cerimônias magísticas e invocações ou evocações de
criaturas e entidades espirituais. Como os grimórios salomônicos foram
produzidos no latim, apenas pessoas letradas podiam ler suas instruções,
diferente dos camponeses que praticavam bruxaria.
A bruxaria foi uma cultura popular de magia transmitida por gerações
dentro de clãs familiares. Com o tempo essas práticas começaram a ser es-
critas em livros, a partir de então se popularizando e levando o conhecimen-
to de ervas, encantamentos e bonecos mágicos por toda Europa. A magia
tradicional salomônica foi transmitida através de complexos grimórios em

76 Que em sua última edição no Brasil pela Editora Record traz uma introdução comunista-obsessiva de Rose
Marie Murado. Simplesmente degradante.
77 É somente no Brasil a tradução O MARTELO DAS FEITICEIRAS. No inglês é O MARTELO DAS BRUXAS.
78 Alguns pesquisadores acadêmicos têm associado o termo bruxaria a prática da magia popular folclórica da

Tessália. No entanto, o termo que eles têm utilizado para bruxa tentando retroceder a bruxaria até a Antigui-
dade é pharmakis que, no entanto, denota alguém que sabe administrar fármacos, quer dizer, remédios a base
de ervas e que não está diretamente ligado a magia, mas antes disso a medicina. No entanto, é um fato também
que tais administradores de fármacos, homens ou mulheres, pudessem praticar a magia grega popular e folcló-
rica da Tessália. Essa é uma teoria ainda em discussão.

87
latim e requerem uma longa preparação para prática e utilização de ferra-
mentas espirituais como círculos mágicos, robes, pantáculos, lâmens etc.
Diferente do termo bruxaria, a palavra feitiçaria, por outro lado, pode
ser associada a magia tradicional salomônica, pois no mundo bizantino a
evocação e o contato com demônios é uma arte denominada de feitiçaria.
Isso coloca a feitiçaria em contraste direto e oposto ao termo bruxaria.79
Nós podemos dizer que a divinação é parte integral da tradição da ma-
gia, principalmente na tradição neoplatônica e cultos de mistérios na região
do Mediterrâneo e Oriente Médio. No entanto, a divinação trata-se de um
método passivo de previsão do futuro (ou recepção de profecias). A magia,
por outro lado, pretende mudar o futuro através de agentes espirituais. Da
mesma maneira, é correto dizer que a magia astral (ou astrológica | sideral)
que envolve cálculos astrológicos exatos para consagrações mágicas (atra-
vés de invocações ou evocações) também faz parte da tradição mágica, no
sentido que influenciou a magia dos grimórios, mas sua origem é bem distin-
ta. As diversas técnicas encontradas nos papiros como lychnomanteia (divi-
nação através do fogo), lekanomanteia (divinação através da água) e hygro-
nomanteia (divinação através de cristal/água) não são, per si, consideradas
técnicas de divinação, mas de evocação utilizando um jovem virgem como
vidente.
Embora a magia astral, quer dizer, a arte de se manipular as virtudes
dos astros, tenha influenciado a magia tradicional salomônica ou magia ritu-
al, sua origem é bem distinta e deveras longínqua. Ibn Khaldūn (1332-1406),
um polímata árabe que tirou muitas de suas conclusões do PICATRIX, um livro
de magia astral originalmente chamado GHĀYAT AL-ḤAKĪM (O Objetivo do Sá-
bio) que sintetiza tratados anteriores de magia hermética, classificou a ma-
gia em:

 Feitiçaria: magia demoníaca ilícita (como referência e incluindo magia


salomônica);
 Magia talismânica que influencia elementos naturais a partir de virtu-
des astrais (siderais) através da conexão entre os elementos naturais
e suas contrapartes celestiais.

Essa distinção entre feitiçaria (magia salomônica) e magia astral (ou talis-
mânica) foi introduzida na Europa através das primeiras traduções dos li-
vros árabes de magia a partir do Séc. XI. Johannes Trithemius (1462-1516),
professor de Agrippa (1486-1535), fez ampla distinção entre magia astral e
magia salomônica em uma lista de livros separados por temas escrita em
1508 (mas publicada somente em 1606) chamada ANTIPALUS MALEFICIOURUM,
que podemos traduzir como O INIMIGO DA BRUXARIA. Em seguida, Marsílio Fi-
cino (1433-1499) e Pico della Mirandola (1463-1494) tentaram explorar

79No CFO nós classificamos a feitiçaria, no entanto, como: a arte de manipular matéria física (ou material de
base) para movimentar materia magicae e causar efeitos espirituais desejados, sejam eles psíquicos, energéti-
cos ou físicos.

88
outra classificação da magia, sendo ela: magia astral, magia ritual (quer di-
zer, salomônica) e magia natural que operava sem a influência ou presença
de criaturas e entidade e sem a influência dos astros.80 Embora Agrippa fos-
se aluno de Trithemius, ele seguiu a linha de pensamento de Ficino e Pico na
classificação da magia:

 Magia cerimonial ou magia teológica que lida com a invocação e evo-


cação de criaturas e entidades;
 Magia matemática ou magia astral (talismânica) que inclui a regência
dos astros;
 Magia natural ou magia herbácia que lida com ervas, plantas, minerais
e animais para cura de mazelas. A magia herbácia era supostamente
lícita pelo fato de não lidar diretamente com a influência de nenhuma
entidade invocada ou evocada.81

Na Idade Média, portanto, a classificação da magia incluía essas três áreas de


atuação, claramente distintas entre si. A magia astral (hoje chamada de ma-
gia planetária, astrológica, talismânica ou sideral) veio diretamente do mun-
do árabe para Europa através da Espanha nos Sécs. XI e XII e cuja ancestrali-
dade pode ser buscada em Harã na Mesopotâmia, hoje um sítio arqueológico
no Sul da Turquia. A teoria ainda em discussão é que Harã tornou-se o últi-
mo reduto dos filósofos da Academia de Atenas, fundada por Platão (428-
348 a.C.) em 387 a.C. e fechada pela segunda vez em 529 d.C. pelo Imperador
Justianiano (462-565 d.C.). Muitos filósofos teurgos eram sírios ou de algu-
ma região da Palestina, e eles supostamente retornaram as a terra natal após
o fechamento da Academia ou fugiram de perseguições.82 Os neoplatônicos
refugiados em Harã se apresentavam como sabeus para evitar perseguições
mulçumanas. Esses neoplatônicos pagãos que se diziam sabeus receberam
indulto do califa Almamune (786-833 d.C.) em 830, tendo sido autorizados a
manter sua prática espiritual. Os sabeus são uma das quatro tradições espiri-
tuais reconhecidas pelo ALCORÃO.
No entanto, se passaram cinco séculos até que no Séc. XVII a magia as-
tral ganhou proeminência na Europa. A lógica por trás da magia astral resi-
de na ação de construir talismãs, amuletos, ícones e estátuas (e na sua influ-
ência sobre a magia salomônica, armas e instrumentos ritualísticos) sob a
direta virtude dos astros. Para isso se exigem cálculos precisos para ajustar
as consagrações às horas planetárias, dias e conjunções astrológicas ade-
quadas.

80 Essa é, no entanto, uma classificação equivocada. A magia natural sofre influência direta de entidades espiri-
tuais, pois através de uma consciência daimônica (cosmovisão animista) do universo, tudo é animado por enti-
dades ou criaturas espirituais.
81 Ibidem.
82 A outra teoria é que Umar II (628-720 d.C.), um dos califas mais prestigiados do islamismo, transferiu a

Escola de Medicina e a Academia de Filosofia de Atenas para Harã, influenciando os árabes de dentro para fora,
mantendo oculto dentro do islã o paganismo neoplatônico até 1032 ou 1083, espalhando-se posteriormente
pela Europa e cultura cristã por todo Oriente Médio.

89
A magia astral é uma herança persa que chegou a Europa via Arábia e
Mesopotâmia. A magia ritual salomônica é uma herança dos papiros e cultu-
ra greco-egípcia do Mediterrâneo. Os primeiros tratados de magia astral que
chegaram a Europa foram DE IMAGINIBUS (Séc. X), DE IMAGINIBUS (de Beleno,
nome árabe de Apolônio de Tiana, 15-100 d.C.), porções do PICATRIX (Séc. XI)
e o LIBER LUNAE. Não há em nenhum destes trabalhos, no entanto, qualquer
influência neoplatônica, mas essencialmente babilônica. O PICATRIX chegou a
Europa traduzido para o latim entre os Sécs. XII e XIII, mas sua proeminên-
cia destacou-se apenas no Séc. XV, na mesma época que uma tradução em
latim da CLAVIS SALOMONIS também espalhava-se rapidamente pela Europa.
Esses livros de magia astral tratam das correspondências entre plantas,
animais, pedras, bestas de todos os tipos e conjunções astrológicas; a cons-
trução e consagração de talismãs e estatuetas sob as virtudes celestes dos
astros apropriados. As invocações contém nomes de poder corretos a serem
utilizados para as medicinas planetárias. Essa literatura conquistou prestí-
gio na Europa porque não faziam referência a demônios, mas apenas espíri-
tos planetários. E é porque a magia astral destes tratados se passou por ma-
gia natural é que ela se espalhou rapidamente. Toda essa ciência e arte da
magia astral, as invocações dos anjos das estações, horas e dias planetários,
as consagrações e vestimenta cerimonial, as fumigações e libações influenci-
aram em certa medida a magia salomônica que usa todas essas técnicas má-
gicas no seu exercício. No entanto, essas técnicas dentro da magia salomôni-
ca não são em si objeto central da prática, mas adjuntos rituais apenas. O
objetivo da magia salomônica é invocar ou evocar entidades do corpo de
Deus a aparição visível, seja na bola de cristal, no espelho mágico, na bacia
d’água ou na fumaça do incenso.
A magia tradicional salomônica pode ser tecnicamente definida como
invocação e evocação de entidades do corpo de Deus a aparição visível. Para
isso o mago utiliza uma tecnologia mágica magicamente preparada através
de diversas consagrações. Os elementos que configuram o exercício da ma-
gia salomônica são:

 A tradição salomônica, assim prefiro chamar tratando do tema magia


salomônica, é transmitida através de grimórios que devem ser pro-
fundamente estudados pelos aprendizes.83 Ela também é transmitida
de professor a estudante dentro de uma respeitosa relação discipular.
O professor lança luz nos grimórios, auxiliando o aprendiz caminhar
em uma gigantesca terra desértica que é o xamanismo do deserto.
 O mago utiliza sempre um círculo mágico em suas cerimônias magís-
ticas de invocação ou evocação. O círculo mágico é uma tecnologia da
magia muita antiga e foi amplamente explorada pelos semitas. É um
traço peculiar do xamanismo do deserto o uso do círculo mágico.
83Os grimórios salomônicos são tratados sistemáticos de magia, livros de instrução técnica a todo mago salo-
mônico seja aprendiz ou avançado. O autor dos grimórios é o Rei Salomão, supostamente. Mas a tecnologia
mágica explorada por eles não está conectada, de fato, ao Rei Salomão histórico como muitos têm argumenta-
do. E embora sua maior influência seja a cultura judaica, as técnicas não são, efetivamente, judaicas

90
 O mago utiliza um amplo arranjo de instrumentos mágicos. Estes de-
vem ser consagrados sob conjunções astrológicas adequadas através
de um longo período que antecede a operação. A construção deste e-
quipamento leva tempo e aqui jaz um segredo profundo: a operação
magística em verdade se inicia já na construção e consagração dos e-
lementos essenciais e necessários ao seu exercício. Desde esse primei-
ro momento o mago mantém um ritmo diligente de vida, adequado
aos estudos e práticas espirituais de purificação, mortificação e reclu-
são.
 A maior influência espiritual nos grimórios herdada dos papiros é de
origem judaica. Os nomes de poder vibrados durante a cerimônia são
de origem judaica e é requerido conhecimento do hebraico.
 Como vimos em nossa Lição 2, Agrippa postulou o método salomônico
que parece estar em coerência com os grimórios salomônicos. Uma
cerimônia magística salomônica deve seguir o método salomônico de
Agrippa ou alguma estrutura ritual semelhante.

O método salomônico de Agrippa nós exploramos na Lição 2, junto a outras


estruturas rituais greco-egípcias. Esse texto foi escrito em detrimento da
indagação enviada por um aluno do CFO sobre a relação da bruxaria, feitiça-
ria, divinação e magia salomônica no contexto de nosso curso.

91
O MÉTODO SALOMÔNICO

[Texto retirado do Curso de Filosofia Oculta.]

A grippa está entre os primeiros magos que se preocupou em deli-


near as etapas rituais de uma cerimônia magística. Tanto nos pa-
piros da Antiguidade quanto nos grimórios da Idade Média, a
fórmula mágica utilizada pelos magos foi aquela da autoridade
espiritual. Como vimos na lição anterior, o racional dessa fórmula é a ideia
de que o mago, por si mesmo, não tem autoridade para conjurar e controlar
o espírito rebelde. O mago então utiliza um poder maior que ele mesmo. Em
seu DE MYSTERIIS Jâmblico diz que o teurgo deve vestir-se com o manto dos
deuses. Nos papiros o mago veste-se com a autoridade de inúmeros deuses:
Osíris, Set, Apolo, Jesus Cristo, Iadabaoth etc.; nos grimórios o mago veste-se
com a autoridade do Senhor Adonai e toda sua milícia de anjos e arcanjos; na
magia cristã hermética o mago se veste com a autoridade de Jesus Cristo. E
estando esta autoridade muito além de si mesmo e da criatura espiritual
conjurada, é com ela que o mago tem poder sobre todas entidades84 dos rei-
nos sub-lunar (espíritos telúricos) e inferior (espíritos ctonianos). Essa au-
toridade se estende, portanto, até as bordas do círculo mágico, que recebe os
nomes divinos de proteção e do lâmen (ou pantacléia) que o mago leva no
peito.
Tanto nos papiros quanto nos grimórios o mago invoca primeiro a au-
toridade mais elevada de sua cosmovisão. Um teurgo da Antiguidade na in-
tenção de conjurar uma criatura espiritual solar, quer dizer, um daimon de
virtudes solares, primeiro invocaria o poder e a autoridade espiritual do
próprio Uno, passando ao Demirgo e então culminando na invocação de
Apolo. Tendo recebido a autoridade e autorização espiritual de Apolo, ele
passaria a conjurar o daimon em questão. Um mago dos grimórios, invocaria
a autoridade do Senhor, passaria a invocar os arcanjos e anjos regentes da
operação e com a autoridade deles, convocaria o demônio (daimon) que de-
sejasse trabalhar. Ele também incluiria nessa hierarquia o daimon (ou an-
jo)85 da hora planetária correta, do dia e da estação. A síntese da magia apre-
sentada nos grimórios já é bem mais refinada do que aquela apresentada
anteriormente nos papiros.

84 Outro fator determinante para que o mago tenha autoridade sobre as entidades que convoca foi discutido no
texto Um Elogio a Magia Tradicional Salomônica (Fernando Ligório), enviado separadamente.
85 A magia apresentada nos grimórios tentou não conflitar-se com a autoridade religiosa da Igreja de Roma. Se

por um lado temos Jâmblico no Séc. IV defendendo a teurgia como uma prática elevadamente distinta da goē-
teia, colocando ênfase nas virtudes essenciais e necessárias para se executar a teurgia e sem as quais a prática
tornar-se-ia goēteia, por outro lado na mesma época temos Santo Agostinho denegrindo tanto a teurgia, a
goēteia e a mageia, criando uma hierarquia espiritual que transformava todo e qualquer tipo de daimon em
demônio. Por suposto, as horas planetárias passaram a ser regidas por anjos e não por daimones nos grimó-
rios.

92
Tendo conjurado o espírito desejado, o mago dos grimórios o restringe
em uma área onde ele irá ser compelido a responder com veracidade a ar-
guição do mago que, com uso das chaves adequadas, o obriga a realizar al-
guma tarefa lhe comandada a fazer. Após receber do espírito as respostas
desejadas e dele arrancar-lhe um juramento de que irá realizar a tarefa lhe
ordenada, então o mago lhe dá a licença para partir. Mas nem os papiros e
nem os grimórios trazem detalhes sobre esse passo-a-passo. É preciso per-
correr por todos eles e buscar um tipo de padrão e nessa pesquisa as peças
vão se encaixando. Dessa maneira, um dos primeiros desafios na prática da
magia como sintetizada nos papiros ou grimórios é conseguir encontrar esse
padrão. Embora Jâmblico não tenha deixado instruções sobre isso, Agrippa
tentou elucidar muito bem no seu QUARTO LIVRO DE FILOSOFIA OCULTA. Como
escrevi na Carta 2: Magia, por onde começar? enviada a vocês, é nesta obra
(atribuída a) Agrippa que é possível ver uma estrutura ritual delineada, o
que não encontramos em seu TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA que diferente
do QUARTO, traz as informações mais adequadas para executar a magia tradi-
cional salomônica. Na estrutura que Agrippa forneceu temos:

 Consagração
 Invocação
 Evocação
 Constrição
 Ligação
 Licença para partir

Consagração:
A consagração envolve muitos procedimentos litúrgicos de consagrações e,
principalmente, a consagração de si mesmo para o trabalho magístico sacer-
dotal, o que envolve ascese e mortificação disciplinada, purificações diárias,
vigílias de orações e invocações, a prática da caridade, participação dos Sa-
cramentos da Igreja e a prática invejável de um rígido código de moral. Espí-
ritos e entidades podem ler os pensamentos do mago, investigar suas me-
mórias mais sombrias, seus desejos mais sórdidos. Somente um homem de
moral inquestionável tem autoridade real sobre demônios de todos os tipos.
A oração feita por um justo pode muito em seus efeitos.86
Nesse caminho, a primeira etapa da cerimônia magística proposta por
Agrippa se inicia dias antes do início do ritual. A preparação para o ritual,
portanto, é um tipo de consagração de si mesmo ao trabalho magístico sa-
cerdotal. Essa preparação dota o mago com equilíbrio e controle sobre si
mesmo, seus impulsos e emoções, o que ele precisa ter ao lidar com as cria-
turas espirituais que conjurar.
Seguindo uma disciplina diária de banhos, fumigações, consagrações e
invocações que antecedem a operação, mantendo-se fiel e verdadeiro aos
princípios espirituais da Lei de Moisés e comungando dos Sagrados Sacra-
86 TIAGO, 5:16.

93
mentos da Igreja, o mago prepara-se para defrontar as criaturas que ele con-
jurar.
No dia da operação o mago intensifica sua vigília de orações, invoca-
ções e purificações, procurando receber do Eterno autorização e autoridade
espiritual. Essa preparação pode ser feita com uma longa litania composta
pelos Salmos. Inúmeros magos de calibre classificaram os Salmos como a
melhor preparação para execução de operações magísticas, pois eles exal-
tam a majestade e a glória de Deus, invocam a presença dos Arcanjos como
um manaim, um acampamento de anjos ao redor do mago. Os salmos têm
sido utilizados por magos salomônicos para composição de ritos de exor-
cismo e banimento, purificação, exaltação dos poderes de Deus etc.
Os Salmos Penitenciais (6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142) de Davi são óti-
mos para consagração, cantados no período que antecede a operação e no
dia em que ela for realizada. Esses Salmos são penitenciais porque através
deles é possível fazer uma profunda penitência a Deus que começa com a
confissão dos pecados e a súplica para que Deus purifique o mago. A confis-
são dos pecados a um sacerdote é uma prática litúrgica e sacramento de pu-
rificação espiritual adotada por muitos magos salomônicos na preparação
para cerimônia magística.
Ralph Walker, um sacerdote cristão que enche igrejas em seus sermões,
faz algumas pontuações interessantes sobre os Salmos Penitenciais:

Lendo (para esta tarefa) os escritos no diário de Davi, que descrevem suas lutas com o
pecado, descobri duas coisas. Primeiro, senti uma atitude diante do pecado que não
me é familiar. Segundo, vi um padrão de pensamento emergir dos vários textos (Sal-
mos 6, 37, 38, 51, 143).

A atitude de Davi diante do pecado

Ironicamente, é como pecador que vejo claramente Davi como um homem segundo o
próprio coração de Deus. Se o coração de Deus é a pura santidade, então essa mesma
santidade dirige Davi. Quando, em sua iniquidade, a repugnância de Davi ao que ele se
tornou salta aos olhos. Nem desculpas, nem justificativas, nem incriminações; só um
absoluto esmagamento pela tristeza e a culpa. Davi sabe que sua rebelião afastou-o de
Deus. Ele admite que está perecendo e não pode fazer nada pessoalmente para rever-
ter seu perigo. Não fale a Davi sobre uma pequena impiedade; este conceito lhe é es-
tranho, como o é a seu Deus! Se um verdadeiro entendimento de santidade e pecado
define o coração divino, vejo Davi repousando nos aposentos interiores do coração de
Deus.

O padrão da penitência

Ainda que todos os passos que eu discuto aqui não sejam encontrados em cada salmo
examinado, vejo repetição suficiente para chamar a isto um padrão.
Confissão.Confissão significa falar a mesma coisa. Ao confessar o pecado, dizemos
sobre ele a mesma coisa que Deus diz dele. Davi é enfático em suas confissões: seu pe-
cado é sua morte. Ele se refere a debilitar-se fisicamente, a ausência de paz de espírito,
a proliferação dos inimigos externos, o isolamento total da presença de Deus. Ele não
tem ilusão de que Deus possa talvez ter deixado de ver sua desobediência, ou que ele
possa utilizar um padrão de julgamento sem rigor e aprová-lo mesmo assim. Ele de-
cepcionou ao Senhor e está arrasado por isso.
Quando releio a descrição de seu pecado, por Davi, dou-me conta que realmente
não conheço esta profundidade de sentimento. Não me recordo de ser tão esmagado

94
em espírito como foi Davi, quando ele pecou. Não posso desculpar isso baseado em
que não fiz nada para merecer um esmagamento semelhante. Pecado é pecado, e meus
pecados são tão mortais para minha alma como os dele foram para ele. Ah, se eu pu-
desse ver o pecado como Davi e Deus o veem! Se Deus me ajudar, verei.
Não somente Davi confessa sua pecaminosidade, mas confessa também dois fatos
sobre Deus. Primeiro, ele admite que Deus é justo. Ainda que Davi esteja sofrendo
tremendamente nas mãos deste Deus, ele reconhece que isso é merecido. Deus, como
Juiz e Carcereiro, é justo, e Davi não é alguém encarcerado indevidamente, como ele o
vê. Quando o salmista roga pela libertação da punição e da dor, é na base da justiça de
Deus; ele pagou o preço, aprendeu suas lições e pede absolvição. Ele até se vale da jus-
tiça de Deus como o apoio de que precisa para recuperar seu favor.
Segundo, Davi confessa a amorosa bondade de Deus. Parece estranho que um ho-
mem, sendo assim esmagado por Deus, esteja elogiando seu amor. Ainda que pais fre-
quentemente falem de amor e punição na mesma frase (porque eu te amo, estou te ba-
tendo), nenhuma criança sob o castigo associaria estas palavras uma a outra como Da-
vi o faz. Davi sabe que Deus o ama. Este é o único raio de esperança em toda sua escu-
ridão. Como o Salmo 130:3 o mostra, se Deus não amar, quem permanecerá?
Petição. Depois de confessar seu pecado, a justiça de Deus e o amor de Deus, Davi
faz os seguintes pedidos:
Limpa-me do pecado. Obviamente, se o pecado é o que o separa de Deus, ele quer
que ele seja removido. Este desejo vem somente depois que ele confessa claramente e
tristemente o que fez de errado. O perdão não é conseguido onde não tenha sido bus-
cado.
Purifica-me para o serviço. Davi quer ser servo de Deus novamente. Em 51:13 ele
espera pelo tempo quando puder ajudar outros a se converterem ao seu Deus. Se Deus
precisar de motivação para libertar Davi do seu castigo, aqui está ela. O penitente de-
seja voltar ao serviço do seu Mestre.
Davi também deseja a pureza que o capacitará a adorar efetivamente (51:14-15).
Estou admirado com santos que honrarão Deus publicamente durante anos e então
são expostos em algum pecado que o acompanha há muito tempo. Davi respeita e co-
nhece Deus bem demais para tentar um tal jogo. Deus não pode ser enganado!
Estes salmos penitenciais mostram-me mais sobre meu pecado do que às vezes
quero saber. Mais do que isso, revelam um Deus digno de que abandonemos tudo que
este velho mundo tem para oferecer, só para aquecermo-nos em seu amor.

Para o mago dos grimórios, espiritualidade e salvação da alma estavam atre-


ladas a uma vida de piedade cristã. Até porque é somente através de uma
vida dedicada a ascese e mortificação cristã, o exercício de um código de mo-
ral inquestionável, é que o mago tem poder sobre os espíritos. Assim, para o
mago salomônico a espiritualidade, quer dizer, a preocupação em salvar a
sua alma, não estava diretamente associada a magia, mas a piedade mística
cristã. Um dos fatores mais importantes da piedade cristã é a confissão dos
pecados, seja diante de um sacerdote ou diante de Deus. Somente após uma
purificação adequado é que o mago salomônico pensava em iniciar a ceri-
mônia
Vamos lembrar que os grimórios foram produzidos pela classe letrada
da Idade Média, os padres católicos. Então eles seguem uma estrutura judai-
co-cristã que caminha de mãos dadas com uma piedade mística cristã. Ou
seja, quanto melhor você for um devoto fiel de Jesus Cristo, seguindo seus
passos e participando dos Sacramentos, mais potencial e melhor mago você
será.

95
Invocação:
A palavra invocar vem do latim vocatus que significa chamar, convocar ou
convidar. No HEPTAMERON, o médico, astrônomo e filósofo Pedro de Abano
(1257-1315), que foi duas vezes julgado pela Inquisição e acusado da prática
de magia, diz que a invocação deve seguir a consagração, convocando os an-
jos das quatro partes do mundo, quer dizer, dos quadrantes do espaço (Leste,
Sul, Oeste e Norte). Os nomes dos anjos no HEPTAMERON são apropriados às
estações e aos dias da semana. O SEPHER RAZIEL, por outro lado, nos dá in-
formações detalhadas sobre porque os nomes dos anjos das estações e das
horas planetárias devem mudar, bem como os nomes do Sol e da Lua, que
também devem mudar nas estações do ano.

E Salomão explicou que cada planeta e que cada coisa nteriormente mencionada muda
de nome a cada estação, [assim como] da mesma árvore vem quatro coisas [de acordo
com a estação]. Destas quatro coisas a primeira é quando brota, a segunda é a floração.
A terceira é o fruto e a quarta é a semente. Portanto, na primeira estação o Sol é quen-
te e úmido. Na segunda [estação] é quente e seco. Na terceira é frio e seco, e na quarta
é frio e úmido. Estes são os trabalhos [ou as operações] do Sol e suas propriedades
[são conferidas] sobre todas as coisas. [...] Assim saiba que cada uma dessas coisas
muda seu nome. Como nós dizemos que um homem primeiro é uma criança, depois
um jovem e então um adulto e na quarta estação um velho, [...] entenda [o mesmo]
com relação aos metais e todas as outras coisas.87

Toda essa doutrina mágica da magia tradicional salomônica também é en-


contrada nos precursores greco-bizantinos dos grimórios e faz parte de uma
arcaica tradição que foi deixada de lado pelos grimórios medievais tardios.
Os nomes dos anjos das estações, dias e horas planetárias devem ser incor-
porados no círculo mágico, mas somente àqueles que seguem a estrutura do
HEPTAMERON ou outros grimórios influenciados por ele.
Dessa maneira, nós podemos ver que a etapa da invocação segundo a
estrutura ritual de Agrippa não se trata, como alguns supõem, da invocação
de uma entidade eleita per si, mas ao contrário, de todas as invocações ne-
cessárias para o curso efetivo da operação de magia. Isso inclui a invocação
do anjo da estação do ano, quer dizer, seu espírito regente, dos anjos do dia e
da hora planetária e, finalmente, do anjo aniquilador ou conquistador, quer
dizer, o anjo que tem poderes reais sobre o demônio (daimon) e por cujo
nome ele é subjugado. Essa doutrina é tão antiga que ela aparece em O TES-
TAMENTO DE SALOMÃO, quando o Arcanjo Michael (Miguel) aprisiona o demô-
nio Ruax e quando o Arcanjo Gabriel aprisiona o demônio Barsafael. A evo-
lução desta doutrina na magia tradicional salomônica aparece no LEMEGETON
onde os 72 Anjos Aniquiladores conquistam e subjugam os 72 demônios da
goécia. Estes 72 Anjos Aniquiladores são os tradicionais do Shem ha-
Mephorash. E muito embora essa estrutura de operação seja datada do Séc.
XVI, ela já aparece no Séc. II em O LIVRO DE TOBIAS.88

87SEPHER RAZIEL, editado por Don Karr e Stephen Skinner, 2010, p. 209.
88Na teurgia clássica de Jâmblico, os daimones eram evocados sob a tutela direta da deusa Hécate, a rainha de
todos os daimones, os cães que lhe acompanham ou sob a autoridade de uma deidade maior como Apolo, caso

96
É somente após a invocação do Anjo Aniquilador que o demônio pode
ser evocado. Pedro de Abano preferiu utilizar a palavra exorcismo ao invés
de evocação do demônio. A palavra exorcismo – da mesma maneira que a
palavra daimon – evoluiu com o tempo, distanciando-se de seu significado
inicial. Um exorcismo era, inicialmente, o simples ato de convocar uma enti-
dade. Posteriormente sob a tutela da Igreja de Roma, exorcismo passou a ser
identificado com o livramento de um estado de possessão demoníaca. A lógi-
ca do exorcismo é que o demônio deve ser evocado antes de ser banido do
corpo de sua vítima. Algo similar ocorreu com a palavra necromancia, usada
originalmente para convocar espíritos de mortos para fins de divinação. O
termo foi confundido com outra palavra, nigromancia, quer dizer, evocação
cerimonial de demônios através dos mecanismos de conjuração, adjuração
divina e exorcismo. Necromancia também foi confundida com necrurgia, a
evocação de espíritos de mortos para fins de ataques mágicos, amarrações,
maldições etc.

Evocação:
Na magia tradicional salomônica o termo evocação tem um significado dis-
tinto daquele difundido pela magia moderna. A evocação como compreendi-
da pelos modernistas trata-se de projetar para fora, geralmente para dentro
de um triângulo mágico, um demônio da mente inconsciente. O paradigma
moderno da magia como estabelecido por alguns membros da Ordem Her-
mética da Aurora Dourada ou por sua verdadeira representante, a Astrum
Argentum fundada por Aleister Crowley (1875-1947) a partir dos escombros
da velha e destruída ordem, ensina que os demônios do LEMEGETON são par-
tes da mente inconsciente.89 A magia tradicional salomônica, por outro lado,
segue a visão animista apresentada nos grimórios medievais. Como temos
estudado neste curso, a prática da magia na Antiguidade e Idade Média exige
uma consciência daemonica, quer dizer, a crença na existência de criaturas
espirituais separadas da consciência humana, entidades do corpo de Deus.
Sem isso a prática da magia tradicional salomônica trata-se de uma impossi-
bilidade.
No contexto dos grimórios, a evocação é o elemento central da opera-
ção magística. A palavra evocação vem do latim evoco que significa chamar
ou convocar as entidades do corpo de Deus de maneira agressiva, usando
ameaças ao invés de adulação e barganha ou bondade e caridade.90 Uma o-
peração magística evocatória, portanto, consiste na utilização de tecnologias

os daimones evocados fossem solares. Isso demonstra uma técnica multicultural encontrada em diversas cul-
turas.
89 Tecnicamente Crowley diz que os demônios do LEMEGETON são partes do cérebro, fazendo entender que se

tratava de entidades internas, pessoais. Crowley não descarta entidades objetivas do corpo de Deus e isso ele
demonstrou por volta de 1929 quando produziu seus aforismos sobre magia, tendo ainda confirmado em
palavras claras no fim da vida a existência de entidades objetivas. Veja Aleister Crowley: GOETIA, MAGIA EM TEO-
RIA & PRÁTICA e MAGIA SEM LÁGRIMAS. A partir do Iluminismo Científico de Crowley, a magia tornou-se cada vez
mais psicológica. Veja NATURAL OCCULTISM de Frater IAO131.
90 Adulação e barganha é o método dos feiticeiros como praticado nas choupanas de Cabala Crioula, especifi-

camente a kimbanda. Bondade e caridade como praticado nos centros espíritas e ecléticos como a tradição do
Santo Daime por exemplo.

97
mágicas e armadilhas de espírito que separam o mago do demônio convoca-
do devido à criação da virtude da hostilidade por meio das ameaças mágicas.
Essa é uma influência nitidamente católica devido a cosmovisão dos grimó-
rios medievais, todos produzidos pela elite intelectual da Idade Média, quer
dizer, os padres da Igreja Católica.
A barreira principal erigida entre o mago e o demônio é o círculo mági-
co, central em todas as operações de magia tradicional salomônica. O HY-
GROMANTEIA, ancestral direto das CHAVES DE SALOMÃO, esboça pelo menos dois
tipos de operação evocatória.
Esse tema traz a mente uma experiência pessoal que ocorreu por volta
de 2013 no Céu das Estrelas, Igreja do Santo Daime e representante regional
lá na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Depois de uma sessão de concen-
tração, alguns dias antes do Trabalho do Dia das Mães, lá pelas tantas da
meia noite, o comandante da igreja, Fernando Ribeiro, toca meu ombro es-
querdo e diz: Fernando, estão te chamando aqui no quartinho. Ele se referia
ao quartinho de cura que ficava atrás da biqueira do Daime, o altar onde o
sacramento era despachado nas sessões.
Prontamente o acompanhei até o quartinho de cura. Quando lá cheguei
havia um irmão, o Bibim com nós o chamávamos, arqueado como um exu
pagão, quer dizer, da porteira para fora, que me disse logo que entrei: Então,
você não gosta do demônio? Tô aqui. Diante dele me prontifiquei com pé es-
querdo à frente, acionando o hemisfério direito do cérebro, aquele que re-
almente faz magia e tem o poder do conjuro. Coloquei a mão esquerda sobre
a estrela consagrada da doutrina, no lado direito de meu peito. Estendi a
mão direita à frente, na direção dos olhos da entidade. Os dedos polegar, in-
dicador e médio unidos enquanto que os dedos anular e mindinho encosta-
dos na palma da mão. Este é o símbolo cristão do fogo do Espírito Santo, uti-
lizado em batismos, unções, bendições, consagrações, conjurações e exor-
cismos. Ao me prontificar disse: Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e do
Eterno Pai Celestial nas alturas e da Santíssima Mãe de Deus, qual é o teu no-
me? A entidade cabisbaixa relutou e esperneou dizendo: Meu nome é Zé! En-
tão retruquei: Zé? Povo de Rua? A entidade resmungou e resmungou sem
nenhuma lógica. Logo identifiquei que se tratava de uma entidade zombetei-
ra, pois não conseguia raciocinar as minhas perguntas. Eu perguntava: Quan-
to é dois mais dois? Ela respondia resmungando e nada dizia. A entidade mal
sabia falar. Quem te mandou aqui? Com que autoridade você se apresenta?
Essas eram perguntas que a entidade não sabia responder.
Eu optei por fazer algo muito distinto da doutrina do Santo Daime. Nes-
sas circunstâncias a orientação da doutrina é tratar com carinho, doutrinar e
curar. Essa cura o próprio Santo Daime é quem dá. Após a doutrinação da
entidade o fiscal ou comandante lhe dá uma dose de Santo Daime, que cristi-
fica e cura a entidade, seja zombeteira, demônio etc. No entanto, em minhas
veias correm sangue de mago, optando por exorcizar a entidade zombeteira.
Isso foi desonroso ao método da casa, como depois me avaliou o comandan-
te, infelizmente.

98
Ao perceber que ali estava uma entidade zombeteira, me prontifiquei a
conjurar após fazer o Sinal da Cruz na face dele: Senhor Jesus Cristo, Palavra
de Deus Pai, Deus de toda criatura que destes aos vossos apóstolos o poder de
subjugar os demônios e inimigos hostis de seus servos. Em nome do deus Santo
e de sua Palavra Nosso Senhor Jesus Cristo, vá-te daqui demônio. Eu repeti e-
xaustivamente esse exorcismo junto ao Salmo 90 – Sob a Proteção do Altíssi-
mo. Por fim, o irmão da casa se viu livre da entidade zombeteira quando lhe
impus ambas as mãos e roguei: Senhor, nosso refúgio e proteção, livrai o vos-
so servo das prezas do demônio, dos laços do ardiloso, protegei-o nas sombras
de vossas santas asas divinas lhe enviando São Miguel e São Gabriel para de-
fender-lhe.
Após o ocorrido o comandante da casa me repreendeu severamente,
dizendo que não é daquela maneira que ali se lidava com este tipo de pos-
sessão. Eu pedi desculpas dizendo que de onde eu venho, esse tipo de entida-
de nós sentamos a espada na cabeça. O comandante disse: Aqui não! Aqui nós
tratamos os espíritos com «bondade e caridade».
A evocação mágica na magia tradicional salomônica remonta aos PAPI-
ROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS e trata-se de uma operação magística cuja finali-
dade é convocar e imprecar um demônio a sua aparição visível. A tecnologia
espiritual da evocação de um demônio é, portanto, violenta e hostil. Ela não
está interessada em projetar demônios da mente inconsciente, mas convocar
a aparição entidades do corpo de Deus. A principal armadilha de espírito
para evocação de um demônio é o triângulo mágico, presente tanto na magia
egípcia quanto na magia greco-romana. Pessoalmente, eu melhorei a tecno-
logia do triângulo ao incluir o cabo de aço e água na evocação de um demô-
nio.

Constrição:
A palavra constrição vem do latim constringo que significa confinar ou agri-
lhoar. Quando for claro ao mago no curso da cerimônia magística que o de-
mônio evocado fez-se presente, ele passará ao próximo passo: a constrição
do demônio. O propósito da constrição é garantir que o demônio convocado
será confinado no triângulo da arte, tábua de evocação, bola de cristal ou
arca de bronze fora do círculo mágico. A arca de bronze também é conhecida
como vaso de latão91 na magia moderna. Originalmente na magia tradicional
salomônica a arca de bronze ficava dentro do círculo mágico, não fora, sendo
usada para demônios domesticados, quer dizer, que se tornaram espíritos
familiares do mago operante. A arca de bronze é utilizada no lugar do triân-
gulo da arte fora do círculo somente se o mago não possuir o triângulo no
chão, mas é uma interpretação moderna.

91O bronze é uma liga de cobre, estanho, chumbo e zinco. O latão é apenas cobre e zinco. Magicamente, o bron-
ze oferece a constrição saturnina (por causa do chumbo), o que o latão não oferece. É por isso que na Arte da
Alquimia o latão é considerado o bronze dos pobres. O efeito mágico do bronze é infinitamente superior ao
efeito do latão. Quando avaliamos as tabelas de proporção dessas ligas metálicas, notamos que as razões ma-
temáticas do bronze são mais adequadas que o latão para arte da magia. O latão por sua vez tem razões mate-
máticas imprecisas e não produz razões áureas, dessa maneira, gera espíritos de segunda grandeza, quer dizer,
forças essencialmente cegas.

99
Essas tecnologias mágicas não são idênticas como muitos autores de
magia moderna têm ensinado, quer dizer, a fórmula mágica que alimenta a
arca de bronze não é a mesma que alimenta o triângulo da arte, a bola de
cristal ou a mesa de evocação. Por exemplo, a arca de bronze é usada para
tornar os demônios cativos e familiares, já o triângulo da arte serve para co-
locar o demônio em prontidão, uma atitude interna apropriada a servir e
trabalhar sob as ordens do mago. Tecnicamente a arca deve ser utilizada an-
tes do triângulo da arte e isso é algo que você não encontrará nos livros mo-
dernos que tratam do assunto, mas está em perfeita harmonia com a visão
da feitiçaria dos grimórios. O exemplo abaixo ilustrará de forma mais efeti-
va:
Imagine que a arca de bronze é um grande curral onde o fazendeiro
(mago) coloca os cavalos bravos (daimones) do campo (corpo de Deus) que
estavam livres na natureza. O fazendeiro vai lá no ambiente dos cavalos bra-
vos, o campo, e os laça, levando-os a força para dentro do curral. Uma vez
dentro do curral, os cavalos bravos são açoitados, amansados, adestrados,
treinados e alimentados. Depois que o fazendeiro treinou, adestrou, alimen-
tou e tornou submissos os cavalos do curral, então ele irá selecionar um den-
tre eles e levará para fora do curral, onde colocará nele uma cela e arreio (o
triângulo da arte) e o montará, comando-o a seguir um curso adequado e
apropriado aos fins do fazendeiro.
A arca de bronze, portanto, serve para tornar os daimones da natureza
que não possuem pactos com os homens submissos ao mago que, através do
triângulo da arte, os comandará a fazerem a sua vontade. E é por isso que
essa goécia ensinada na magia moderna trata-se só de psicurgia e efetiva-
mente não funciona, é a arte dos tolos. Antes de confinar um demônio no tri-
ângulo da arte, ele deve ser preparado dentro da arca de bronze. A arca de
bronze é o equivalente a lâmpada para aprisionar os djinns dos mulçumanos
ou o baú (caixa preta) da feitiçaria crioula.
O LEMEGETON (ou GOÉCIA) ao descrever o 13° demônio, Beleth cujo Anjo
Aniquilador é Jazalel, explica o processo de constrição:

[O demônio será] poderoso e terrível em um primeiro momento e terá aparência furiosa


enquanto o Exorcista segura com Coragem um bastão de avelã em sua mão, golpeando
os quadrantes sul e leste, traçando um triângulo [fora do] Circulo, comandando-o e o
obrigando [pelas conjurações e] pelo laço e cargo de espíritos que daqui por diante o
acompanharão. E se ele não adentrar no triângulo, pelas ameaças, nem pelo recitar das
ligações e os encantos, então se deve rendê-lo em obediência e obriga-lo a vir, através
do que é dito no Exorcismo. Contudo deve recebê-lo gentilmente [...].92

Embora o método da evocação mágica na magia tradicional salomônica seja


hostil, o mago é aconselhado a receber o demônio de forma cortês. Este é o
momento em que o demônio é testado para que o mago tenha certeza de que
a entidade que ali se apresentou se trata do demônio convocado e não qual-
quer entidade zombeteira como o ocorrido no caso citado na seção anterior.

92 THE GOETIA OF DR. RUDD editado por Stephen Skinner & David Rakine, p. 115.

100
A averiguação é importante para que o mago siga seguro na operação e não
frustrado como John Dee (1527-1608) que se viu enganado por demônios
(daimones) que se diziam anjos.
Nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS essa etapa da operação chama-se
fórmula compulsiva e ela compreende uma miríade de procedimentos distin-
tos usados na intenção de trazer o deus ou daimon a aparição. O procedi-
mento que aparece primeiro nos papiros como técnica coerciva para trazer
uma entidade a aparição visível é o corte, quer dizer, sacrifício das partes de
um animal que possua equivalência com o daimon ou deus que terá sua ima-
gem pintada no chão ou em um papiro.

Se ele não aparecer, sacrifique o cérebro de um cordeiro preto e no terceiro dia a unha
da perna direita traseira, a mais próxima do tornozelo; no quarto [dia], o cérebro de
uma íbis; no quinto, desenhe a figura [do carneiro] em um papiro com tinta de mirra,
envolva ela em uma peça de roupa de alguém que tenha morrido violentamente e a a-
tire no forno de uma casa de banho.93

Alguns papiros trazem a instrução para não jogar no forno, pois é uma ação
muito extrema, mas ao contrário, suspender sobre uma lamparina acesa. É
possível ver aqui o antecedente medieval de se ameaçar o demônio colocan-
do seu selo dentro de uma caixa de metal com enxofre e assafétida suspensa
sobre um braseiro com carvão em chamas (ou em brasa), o que torturará o
demônio através de sua calcinação. Como o selo do demônio deverá ser ins-
crito em um papiro – o que demonstra sua ancestralidade a partir dos PAPI-
ROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS – este procedimento pode durar horas.
Se o mago colocar o papiro sobre a lamparina acesa e mesmo assim o
daimon ou espírito não aparecer, ele segue jogando no forno de uma casa de
banho no quinto dia. Esse procedimento é acompanhado de invocações aos
deuses para forçar a aparição do Sem Cabeça (traduzido modernamente co-
mo Não Nascido). Outra fórmula compulsiva que acompanha a anterior é a
ameaça de que um grandioso deus punirá o daimon calcinado:

Se você me desobedecer e não for até ele [i.e. a pessoa que se deseja contatar ou envi-
ar uma mensagem através da experiência onírica] eu direi ao grande deus e após ele
lhe espancar, irá lhe cortar em pedaços e alimentará os cães sarnentos que moram en-
tre os montes de esterco com eles. Por isso, ouça-me agora, imediatamente, rápido. Eu
não o ameaçarei novamente! 94

O grande deus referido neste papiro é Set. A ideia de que o mago pode co-
mandar um deus maior a repreender ou torturar uma entidade menor apa-
rece nos grimórios latinos onde os espíritos são punidos pelo demônio rei e
regente dos quadrantes do espaço. Em todo caso, seja na Antiguidade ou I-
dade Média, o sucesso da operação depende do espírito convocado e agri-
lhoado reconhecer o poder do mago. No texto que enviei a vocês anterior-
mente, Um Elogio a Magia Tradicional Salomônica, eu disse que o que confe-

93 PGM II. 44-52.


94 PGM XII. 141-43.

101
re poder real sobre os demônios é a conduta moral do mago, replicando o
que Agrippa já havia ensinado. Neste texto eu contei sobre a experiência que
presenciei de um exorcismo mal sucedido onde o possuído disse: Você? Logo
você que é o mais pecador de todos acha que tem qualquer autoridade sobre
mim?
Como a experiência relatada na seção anterior, essa também aconteceu
no Céu das Estrelas em maio de 2006. Tratou-se de um Trabalho de Jovens,
quer dizer, um trabalho só para os jovens da igreja, sem a presença dos dois
comandantes, Fernando e Rodolfo. O jovem escolhido para comandar o tra-
balho foi o cunhado de Rodolfo, o Evandro. Eu fiquei na fiscalização do salão
e do terreno, o Rodrigo ficou como fiscal de porta. O fiscal de porta é como
um guardião, ele fica na porta da igreja. O fiscal de salão e de terreno cuida
dos pontos acesos, lava os copos de Santo Daime e fica a disposição do co-
mandante do trabalho.
Neste dia em questão, enquanto eu estava lavando os copos do último
despacho de Santo Daime, o fiscal da porta teve de correr do lado de fora
para socorrer um irmão que estava endiabrado, o Lele. O trabalho foi em
uma noite de Lua Nova e Lele corria para todo lado, pulava e rolava no meio
do mato, socava e batia a cabeça no chão. Literalmente ele deu trabalho a
noite toda e no fim da sessão, ele ainda estava endiabrado.
Após eu lavar os copos, corri para render o fiscal da porta e lá fiquei,
sem nada poder fazer. Enquanto eu estava ali na porta, por um momento o
fiscal conseguiu trazer o Lele bem próximo da porta da igreja, quando ele
caiu sentado no chão dizendo ao fiscal: Você? Logo você que é o mais pecador
de todos acha que tem qualquer autoridade sobre mim? Eu não vou para igre-
ja nada. Após dizer isso ao fiscal, Lele saltou do chão e saiu correndo para
dentro do mato, pulou a cerca de trás da igreja e subiu lá para o alto da mon-
tanha. Quando o outro fiscal disse ao comandante que o Lele tinha saído cor-
rendo da igreja, ele me chamou e disse: Fernando, vai atrás do Lele e traz ele
de volta. Eu prontamente saí correndo atrás do Lele.
Ao encontrar o Lele em uma plataforma no alto da montanha, consegui
conversar tranquilamente com ele que, hora estava consciente, hora não fa-
lava coisa com coisa. Bem lentamente fomos conversando e ele optou por
retornar. Nós somos muito amigos e devido a isso ele manteve-se controla-
do.
Eu consegui trazê-lo para igreja. No entanto, ele permaneceu atrapa-
lhando o trabalho, interrompendo os hinos, pedindo outros hinos. Tivemos
de lidar com ele até o fim da sessão dando problemas. Ele não foi levado ao
cruzeiro e nem tomou Santo Daime de cura. O comandante preferiu deixa-lo
na fila entre os irmãos. Será que se o comando da casa estivesse ali ele teria
passado por tudo aquilo? Eu refleti que não, conhecendo o Lele, que espera-
va o tempo certo, quer dizer, quando a casa se encontrasse sem autoridade
espiritual do comando para exorcizar, ele mesmo, os demônios que lhe a-
companham e lhe açoitam.

102
Ligação:
Ligação vem do latim ligatio, que significa acorrentar, prender, arrear, atre-
lar, subordinar, couraçar ou conectar. No contexto de uma operação magísti-
ca da evocação mágica de uma entidade do corpo de Deus, trata-se de pren-
der o espírito a um juramento mágico. Esse é um procedimento que data pe-
lo menos da Antiguidade tardia. Em seu A VIDA DE ISIDORO, referência a Isido-
ro de Alexandria, filósofo neoplatônico sucessor em comando na Escola de
Filosofia de Proclo no Séc. V, Damáscio, autor do ensaio que conviveu com
Isidoro, relata que o sábio Teosébio forçou um demônio a sair do corpo de
uma mulher através de um juramento (horkise) em nome dos raios do Sol e
do Deus dos judeus.
É desta parte da cerimônia magística que vem o conceito de pacto, no
entanto, deveras distinto do conceito de pacto que deriva da obra de Fausto,
que implica a entrega da Alma. Os verdadeiros pactos, como é o caso deste
feito pelo sábio Teosébio, são raros. Um dos verdadeiros, datado de um pe-
ríodo anterior a 1641, é o pacto com Padiel. O interessante é que este pacto
demonstra claramente que a tarefa mais onerosa dele fica a cargo e compe-
tência da entidade, não do mago:

Eu um Espírito Presidencial conhecido pelo nome Padiel, residindo e servindo sob [a


regência de] Carnasiel, o Rei do ângulo ou Mansão do Oeste, sob o Comando do Sobe-
rano Chefe de minhas Ordens, e com meu próprio acordo, pela virtude, poder e força
da Invocação em nome disso [i.e. o pacto], me conecto e me obrigo por meio deste, a-
parecer Visivelmente, de forma justa e descente, para [a pessoa] A:B e C:D ou ambas,
em todos os tempos e em todos os lugares, sempre e em qualquer parte [...], seja em
recipiente de vidro [i.e. espelho mágico] ou em outra coisa, nas ocasiões ou condições
de quaisquer assuntos requeridos ou por Operações propriamente e necessariamente
requeridas. E eu, o Espírito Padiel, prendo e obrigo a mim mesmo [as ordens de] A:B e
C:D ou ambos em nome do verdadeiro Deus e pelo principal chefe de minhas Ordens, e
por este Selo e pela Virtude dele, o sinal pelo qual todos os Espíritos em seus muitos e
respectivos graus, Ordens e Ofícios, servem de acordo, com honra e obediência.95

Neste pacto, a entidade é requerida assinar o Liber Spirituum que o mago


deve deixar aberto dentro do triângulo da arte.96 Esse tipo de acordo que
segue as premissas da lei nos diz que o mago que o escreveu entendia de
legislação e isso não é incomum nos magos do passado, a maioria deles ver-
sados em direito. Como pode ser observado, não há neste pacto qualquer
menção ao mago prometendo sua Alma. Ao contrario, a entidade é comple-
tamente dominada e obrigada a fazer o que o mago deseja em nome de Deus
e das entidades superiores a ela. É a entidade que se vê subjulgada a vontade
do mago, não o contrário.
O espírito deve assinar seu selo no livro já consagrado pelo mago, ou
pelo menos fazê-lo de maneira bem característica e peculiar. Na prática, uma
concordância verbal para realizar o que foi cobrado ao espírito tem sido
considerado o suficiente. Após a entidade ter sido satisfatoriamente subor-
dinada e ter cessado de causar pânico e medo nos assistentes, o mago deve

95 THE GOETIA OF DR. RUDD editado por Stephen Skinner & David Rakine, p. 365.
96 Veja meu vídeo O Livro & a Consagração.

103
comandá-la a fazer o que ele ordena. As ordens do mago, no entanto, devem
estar em harmonia com os poderes e funções da entidade convocada. Muitos
magos relatam falhas por ordenarem demônios (daimones) a fazerem o que
não está sob sua regência.
E preciso prender o espírito, confinando-o dentro da urna de bronze.
Após um período de cárcere, o mago irá conjurá-lo e imprecá-lo no triângulo
da arte, ordenando-o a fazer sua vontade. Do contrário, o espírito pode se
recusar a fazer o que o mago ordena ou, pior, fazer o contrário. A entidade,
portanto, deve concordar e se comprometer a realizar as ordens do mago
através de um juramento mágico. Este é um dos passos mais importantes em
uma cerimônia magística de evocação cerimonial, frequentemente omitida
nos grimórios posteriores ao Séc. XVII.

Licença para partir


Assim como o fechamento de templo é uma etapa importante em uma opera-
ção magística, a licença para partir também é fundamental em um ritual de
evocação mágica, constituindo a última etapa do método salomônico evoca-
tório. A licença para partir está presente em ritos egípcios arcaicos, nos PA-
PIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, no HYGROMANTEIA e nas CLAVÍCULAS DE SALOMÃO
até os grimórios tardios e vernaculares da Europa.
A licença para partir é importante por duas razões: a segurança do ma-
go e seus assistentes e para ordenar a entidade que retorne pacificamente
quando for novamente convocada. Esta licença também inclui agradecimen-
tos pela presença da entidade, o que reforça uma relação cordial entre as
partes, tornando conjurações futuras mais fáceis.
A licença para partir trata-se de uma permissão de retirada, não um ba-
nimento como ensinado na magia moderna. Por isso rituais como o Menor do
Pentagrama não têm validade alguma aqui. Isso é consistente com a atitude
de liberar a entidade de seu agrilhoamento ao invés de expulsá-la do triân-
gulo da arte. Não é coerente prender, evocar e conjurar a entidade e depois
bani-la. Caso todos os passos deste método salomônico tenham sido diligen-
temente empreendidos, então a entidade partirá sem problemas após a li-
cença para partir.
A experiência que agora discorrerei ilustra a importância da licença pa-
ra partir. Eu estou sempre falando que um dos magos mais proficientes que
já tive a oportunidade de conhecer é um amigo de longa data, Alex Elias
(Xamã Montanha Vermelha), praticante de xamanismo paleolítico e líder do
Instituto Terra Sagrada. Por mais de vinte anos nós realizamos inúmeros
rituais juntos e o fazemos até hoje. Mas eu não estava presente neste ritual
que aqui irei relatar.
Segundo Alex, após um ritual de evocação do demônio de Marte, Bart-
zabel, que durou mais de doze horas com pelo menos vinte magos dentro do
círculo mágico, por conta do cansaço coletivo, ele não cumpriu todos os re-
quisitos da licença para partir, querendo finalizar logo a operação. Quando
os assistentes e magos já começam a cair pelo círculo mágico de cansaço,

104
não há muito que se fazer: evocações mágicas exigem força, firmeza de pro-
pósito e muito preparo atlético. Ao cansaço soma-se o estado de êxtase que
todos se encontravam, pois o sacramento utilizado no ritual foi o Santo Dai-
me.
No fim da operação, Alex que era o oficiante, deixou de completar a li-
cença de partir. Ele conta que Bartzabel destruiu os encanamentos de sua
casa, destruindo uma estante de livros medievais de magia e grimórios. No
vídeo Goécia & a Arte da Evocação, ele conta pessoalmente a história.
Estes são os seis passos do método salomônico que devem ser seguidos
com as armadilhas de espírito necessárias como o círculo mágico, triângulo,
lâmen consagrado etc.

105
. PRIMEIRA PARTE .

INTRODUÇÃO A MAGIA DOS SALMOS


SEÇÃO 1: PREPARAÇÃO & CONHECIMENTO TÉCNICO
SEÇÃO 2: TREINAMENTO MÍSTICO & ASCÉTICO

106
SEÇÃO 1: PREPARAÇÃO &
CONHECIMENTO TÉCNICO

107
CAPÍTULO 1
TABULAÇÃO DE HORAS PLANETÁRIAS

Q uando falamos em horas planetárias na tradição da magia, queremos


dizer tempos de poder. Estes tempos de poder são ao mesmo tempo
portais para a virtude de um dos sete planetas ou céus e ao mesmo
tempo, são zonas de poder que cumprem a função de permitir a atu-
ação de um espírito (arcanjo), sua influência na matéria e, portanto, no psi-
quismo do mago, além de amplificar a assinatura astral produzida pelo ritu-
al. O círculo mágico, dessa maneira, serve como i. protetor, pois o círculo ex-
terior é protegido pelos poderes dos nomes sagrados de Deus; ii. acumula-
dor e expansor da matéria mágica produzida pelo ritual; iii. um portal de a-
cesso a zonas de poder temporais, os tempos de poder, e uma bateria que
produz a assinatura astral do ritual. Para isso, no interior do círculo mágico
deve ser inscrito os nomes das horas planetárias, o nome de seus respecti-
vos grigoris, assim como o nome da estação do ano e seu grigori. Talvez o
axioma mais importante sobre horas planetárias seja este: cada hora plane-
tária trata-se de um reino espiritual. Conjurar o tempo de poder correto e seu
grigori permite o acesso a uma miríade de criaturas espirituais que trazem
os códigos de luz de seus astros regentes, os sete planetas.

Círculo Mágico de Francis Barrett no seu MAGUS demonstrando os


três círculos descritos acima. Veja Lição 2 do Curso de Filosofia Oculta
para uma descrição mais Detalhada acerca destes três círculos mágicos.

Não é possível rastrear na história quando a tecnologia espiritual das horas


planetárias começou a ser usada. No entanto, inúmeras culturas atribuem

108
deuses as horas e aos dias. Na tradição ocidental este conhecimento remonta
a Babilônia. A teurgia clássica neoplatônica opera através de uma intricada
conjuração de deuses e daimones no curso dos ritos teúrgicos para que o te-
úrgo tenha acesso a um amplo espectro de seres. No início de um ritual de
teurgia conjura-se o daimon do país, o daimon do estado, o daimon da cidade,
o daimon da estação, o daimon do mês, o daimon do dia e da hora, o daimon
do local onde se está fazendo a operação e se for dentro de uma estrutura de
templo (temenus), seu daimon também.
A magia antiga, vamos assim dizer, anterior ao Renascimento, sempre
propôs relevância na execução de operações mágicas no e durante o tempo
de poder correto. Apenas na tradição moderna da magia que isso se tornou
um paradigma superado. Os praticantes da magia antiga são animistas. Isso
significa que parte importante do trabalho mágico consiste em se alinhar aos
poderes do cosmos, o Corpo de Deus. Isso garante que a assinatura astral
produzida pelo ritual use o universo como sua caixa de ressonância. É so-
mente estando alinhados com o cosmos que nossas projeções rituais rever-
beram e têm seu poder amplificado pelo próprio movimento do Corpo de
Deus. Negar a importância disso é dizer ao cosmos que você não precisa de
sua ajuda e que pode movimentar as forças que necessita apenas com o po-
der da projeção de sua vontade, somente com os poderes de sua mente. Bem,
é justamente por isso que a magia moderna não funciona.
O tempo de poder mais forte na tabulação de horas planetárias é o pri-
meiro tempo ou hora do dia, pois esta primeira hora recebe a força total das
virtudes planetárias do dia. Como o mapeamento se inicia ao nascer do Sol, a
primeira hora planetária do dia sempre é às 6:00, variando em minutos se-
gundo a região. Domingo, por exemplo, é um dia atribuído ao Sol. A primeira
hora do domingo, portanto, é a hora do Sol. A divisão em horas planetárias
diurnas e noturnas é claramente uma influência egípcia, quando extratos
mitológicos diversos descrevem a Barca de Rá viajando pelos céus de dia e
adentrando ao Duat à noite, com feitiços e nomes adequados para atravessar
cada um de seus portais noturnos. É interessante notar O LIVRO DOS MORTOS
que registra detalhadamente cada um dos distintos reinos das horas da noi-
te. Assim como a primeira hora do dia começa ao nascer do Sol, a primeira
hora da noite começa ao por do Sol e início da noite, quando nasce a Lua. Ca-
da hora planetária dura uma hora (60 minutos) e, dependendo da estação, às
vezes menos.
Aqui surge uma discussão interessante. Se cada hora planetária dura 60
minutos, as operações mágicas devem ser iniciadas e finalizadas dentro des-
sa janela de 60 minutos? Tecnicamente não, embora idealmente sim, mas
trata-se de uma impossibilidade às vezes. Existem operações mágicas que
duram mais de doze horas. Então no curso dessas doze horas a influência
das virtudes planetárias requeridas para o ritual diminuem. Todavia, há ma-
gos que conseguem fazer um ritual bem feito no curso de 60 minutos. De-
pende do conhecimento, técnica e, vamos dizer, pegada pessoal.

109
Através dos tempos de poder, isso é imprescindível dizer, também é
possível manipular o que se conveniou chamar de luz astral, um agente uni-
versal através do qual as virtudes dos astros (planetas e conjunções zodia-
cais) podem ser manipuladas: canalizadas e dirigidas através de contra par-
tes físicas, o que inclui feitiços diversos e armadilhas de espírito. De modo
geral, operações mágicas com Saturno, Marte e Lua servem para invocações
e orações ordinárias; operações com o Sol e Vênus para amizade e amor; o-
perações com Saturno e Marte para magia negra, ódio e vingança; operações
com mercúrio para estudos, produção de talismãs e consagrações de anéis
mágicos; operações com Júpiter e Vênus para evocações de forças superiores
e iniciações. No fim deste capítulo há uma ampla lista das virtudes planetá-
rias retiradas dos grimórios medievais, tábuas de correspondências mágicas
produzidas por magos consagrados do passado, além de inúmeras corres-
pondências encontradas nos ORÁCULOS CALDEUS, HINOS HOMÉRICOS e ÓRFICOS, e
dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS.
Não só o Sol, mas também o poder da Lua deve ser levado em conside-
ração. Para operações rituais de construção, expansão e crescimento, a Lua
deve estar em sua fase Crescente; para operações de destruição, a Lua deve
estar em sua fase Minguante; para operações de limpeza e purificação a Lua
deve estar em sua fase Nova/Negra; para operações de energização, fertili-
dade, atração e magnetismo, a Lua deve estar em sua fase Cheia. Inúmeros
grimórios instruem que se a Lua estiver muito perto do Sol no curso da ope-
ração, sua influência diminui drasticamente. Alguns magos insistem que é
melhor se orientar pela Lua para fazer operações mágicas do que pelo Sol.
Quer dizer, mesmo que o dia e a hora planetária estejam corretos, a opera-
ção pode não produzir os efeitos desejados se a conjunção lunar não for a-
dequada. Vamos nos lembrar que a grande maioria dos espíritos convocados
em uma operação mágica estão na região sublunar e, portanto, a Lua exerce
sobre eles grande influência. Espíritos/daimones (anjos) das estações, me-
ses, lugares etc. estão todos sob a regência da Lua.
A influência da Lua nas casas zodiacais também tem sido considerada
pelos magos como mais importante do que a presença do Sol. O Sol perma-
nece um mês em cada casa zodiacal, mas a Lua permanece cerca de dois dias.
As operações mágicas, nesse caminho, são escolhidas a partir da Lua nas ca-
sas zodiacais, não a partir do Sol como muitos magos têm feito.
O segredo da hora planetária reside na conjuração de seu espírito. Isso
tanto é verdade que os magos dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS acredita-
vam que se o operador não estabelece primeiro contato com este espírito da
hora planetária, os deuses, quer dizer, os seres dos planos internos, o consi-
deravam um não iniciado nos mistérios. Na tradição dos papiros, primeiro
conjura-se o deus da hora e depois seu daimon; na tradição dos grimórios
primeiro se conjura o nome da hora, o equivalente ao deus dela, e depois o
anjo correspondente sob sua regência.
Como cada hora do dia e da noite está atribuída a uma medicina plane-
tária, inúmeras virtudes são associadas a elas. As tabulações que seguem

110
servirão de mapa para escolha de dias corretos e as horas apropriadas para
as operações mágicas.

A Lua nas Casas Zodiacais

Lua em Objetivos
Virgem Qualquer coisa que se queira obter a curto prazo.
Libra Operações de necromancia e necrurgia.
Escorpião Operações para infligir o mal, destruição.
Sagitário Invocações, feitiços e encantos que envolvam o Sol e a Lua.
Operações para se obter resultados positivos em tudo que se
Capricórnio
quer conquistar.
Aquário Operações para atração e magia de amor.
Peixes Operações de previsão de futuro e profecias.
Operações de divinação e oráculos diversos. Operações de Visão
Áries (skrying) em bola de cristal ou lamparina. Magia de amor.
Touro Operações de evocação em lamparinas ou bola de cristal.
Gêmeos Operações para ganhar favores de alguém.
Câncer Operações para fazer e consagrar talismãs.
Leão Operações de amarração diversas.
Mansões Lunares

Término Signo Nome Objetivo


Produção de pantáculos97
1 12°32’26’’ Áries Alnach para viagem; encantamentos
e feitiços de amor e ódio.
Produção de pantáculos pa-
2 25°42’12’’ Áries Albothain ra riqueza; encantamentos e
feitiços de ódio.
Produção de pantáculos pa-
ra viagem marítima; encan-
3 8°34’18’’ Touro Ascorija
tamentos e feitiços de amor;
Alquimia.
Encantamentos e feitiços de
4 28°34’2’’ Touro Aldebaran ódio.
Produção de pantáculos pa-
ra viagens e para aumentar
5 4°17’10’’ Gêmeos Aluxer
talentos inatos; encantamen-
tos e feitiços para inimizade.
Encantamentos e feitiços

97 Nessa tabulação, entenda também produção de talismãs, o que pode ser feito com a magia dos Salmos desta
lição.

111
6 17°8’30’’ Gêmeos Althaia para vitória em contendas e
prejudicar colheitas.
Produção de pantáculos pa-
ra melhorar comércios, via-
gens marítimas e boa sorte;
7 0° Câncer Addyvat encantamentos e feitiços pa-
ra obter favores de pessoas
importantes e semear dis-
córdia.
Produção de pantáculos pa-
ra amor, para amizades ou
para viagens terrestres; en-
8 12°51’26’’ Câncer Mathura cantamentos e feitiços para
amizades, amarrações e dis-
córdia.
Produção de pantáculos pa-
ra prejudicar viagens, criar
9 25°25’51’’ Câncer Ataris discórdia e inimizade; encan-
tamentos e feitiços de ódio.
Produção de pantáculos pa-
ra amor; encantamentos e
feitiços para vencer inimiza-
des, construção de projetos,
10 8°34’18’’ Leão Alzeral buscar ajuda para construir
algo, buscar benevolência de
juízes e promotores.
Produção de pantáculos pa-
ra facilitar o comércio; en-
11 21°25’44’’ Leão Azobre cantamentos e feitiços para
livrar presos da cadeia ou de
condenações.
Produção de pantáculos pa-
ra boa colheita e fartura;
encantamentos e feitiços pa-
12 4°7’1’’ Virgem Discorsa
ra melhorar a vida de cati-
vos, escravos e amigos; des-
truir propriedades.
Produção de pantáculos pa-
ra beneficiar comércio e boa
colheita; encantamentos e
13 17°8’6’’ Virgem Alalma
feitiços para obter favores de
poderosos e criar aversão
entre os cativos e escravos.
Produção de pantáculos pa-
ra amor e cura de doenças;

112
encantamentos e feitiços pa-
14 0° Libra Azimel ra destruir searas e impedir
colheitas, fazer mal e causar
danos a viajantes; obter fa-
vores de chefes de estado.
Produção de pantáculos pa-
ra descobrir tesouros; encan-
tamentos e feitiços para des-
15 12°51’26’’ Libra Algalia
truir inimigos e beneficiar
amigos; encontrar tesouros
ocultos.
Encantamentos e feitiços de
16 15°42’52’’ Libra Alcibene
ódio e destruição.
Produção de pantáculos pa-
ra felicidade de iludidos e
vítimas de golpe, para sorte e
17 8°36’ Escorpião Alchil longevidade de propriedades
e projetos; encantamentos e
feitiços para conquistar pes-
soas e fazer amigos.
Produção de pantáculos pa-
ra conspirações e proteção
18 21°25’44’’ Escorpião Arcalo contra inimigos; encanta-
mentos e feitiços para dis-
córdia.
Produção de pantáculos pa-
ra sorte em batalhas; encan-
tamentos e feitiços para des-
19 4°27’10’’ Sagitário Exarala
truir inimigos, fuga de cati-
vos e escravos, prejudicar e
destruir propriedades.
Produção de pantáculos pa-
ra saúde e cura de doenças;
20 17°8’46’’ Sagitário Nahaim
encantamentos e feitiços pa-
ra ódio e destruição.
Produção de pantáculos pa-
ra proteção de propriedades,
21 0° Capricórnio Albelda colheita e riquezas; encan-
tamentos e feitiços para des-
fazer amarrações amorosas.
Produção de pantáculos pa-
ra cura de doenças; encan-
22 12°51’26’’ Capricórnio Caalbeda tamentos e feitiços para dis-
córdia entre amigos, para
fazer um inimigo tornar-se

113
amigo.
Produção de pantáculos pa-
ra cura de doenças e fazer
23 25°42’32’’ Capricórnio Caaldebolach amizades; encantamentos e
feitiços para desfazer amar-
rações amorosas.
Produção de pantáculos pa-
ra sorte no comércio, sorte
no amor e triunfo sobre ini-
24 8°24’28’’ Aquário Caadochot
migos; encantamentos e fei-
tiços para prejudicar pessoas
e propriedades.
Produção de pantáculos pa-
ra proteger exércitos, ativar
vingança, proteger mensa-
25 21°25’44’’ Aquário Caalda geiros e executar com efici-
ência trabalhos em geral;
encantamentos e feitiços de
amor e de ódio.
Produção de pantáculos pa-
26 4°17’10’’ Peixes Alm ra amor e proteção contra
perigos.
Produção de pantáculos pa-
ra sorte no comércio, contra
as doenças, proteger amiza-
27 17°8’26’’ Peixes Algafermuth des e colheitas; encantamen-
tos e feitiços para proteger
amigos e criar inimizade en-
tre cativos.
28 0° Peixes Anaxhe Produção de pantáculos pa-
ra sorte no comércio, prote-
ger amigos e criar laços de
amor entre casados; encan-
tamentos e feitiços para pre-
judicar pessoas e destruir
propriedades.

Conjunções adequadas para Magia

Sol com Saturno para produzir oposição entre as pessoas.


criar desprezo, indiferença e inimizade entre
Lua com saturno para
pessoas.
Lua com Marte para produzir versatilidade.
Mercúrio com Júpiter para criar desprezo entre amigos.

114
Vênus com Marte para produzir chacota e zombaria contra inimigos.
produzir suscetibilidade em outras pessoas a
Marte com Saturno para
projetos nossos; indução de ideias.
luta pela vida; coragem e vontade de viver; dis-
Sol com Marte para
ciplina e continuidade de propósito.
conseguir honrarias, cargos eclesiásticos, pro-
Sol com Júpiter para
moções no trabalho.
Lua com Júpiter para produzir riquezas.
Mercúrio com Marte para sorte no comércio.
Mercúrio com Saturno para adquirir inteligência e profundidade de ideias.
Vênus com Lua para casamentos e amarrações amorosas.
Vênus com Júpiter para fertilidade e procriação.
Saturno com Júpiter para sabedoria.

Anjos das Horas do Dia e da Noite

Anjos das Horas do Dia Anjos das Horas do Dia


1. Yain 1. Beron
2. Yanor 2.Barol
3. Nasnia 3.Thami
4. Salla 4. Athar
5. Sacecali 5. Methon
6. Thamur 6. Rana
7. Ourer 7. Netos
8. Thamic 8. Tafrac
9. Neron 9. Sassur
10. Yayon 10. Agle
11. Abai 11. Calerva
12. Natalon 12. Salam

Nome dos Anjos das Estações

Primavera Verão Outono Inverno


(Talvi) (Casmaran) (Adarcel) (Farlas)
Caracasa Gargatel Tarquam Amabael
Core Tariel Guabarel Cetarari
Anjos:
Amatiel Gaviel
Comissoros
Cabeça
Spugliguel Tubiel Torquaret Attarib
do Signo
Nome da
Amadai Festativi Rabinnara Geremiah
Terra

115
Nome do
Abraim Athemai Abragini Commutoff
Sol
Nome da
Agusita Armatus Matasignais Affaterim
Lua

Nome dos Anjos das Horas Planetárias (Dia)

Hora Domingo Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado


Sol Lua Marte Mercúrio Júpiter Vênus Saturno
1. Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel
2. Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel
3. Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael
4. Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael
5. Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael
6. Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael
7. Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel
8. Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel
9. Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel
10. Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael
11. Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael
12. Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael

Nome dos Anjos das Horas Planetárias (Noite)

Hora Domingo Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado


Sol Lua Marte Mercúrio Júpiter Vênus Saturno
1. Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael
2. Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel
3. Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel
4. Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel
5. Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael
6. Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael
7. Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael
8. Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael
9. Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel
10. Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel Anael Kassiel
11. Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael Rafael Sachiel
12. Rafael Sachiel Anael Kassiel Mikael Gabriel Kamael

116
Hierarquia Espiritual

O nome dos anjos das horas planetárias são, como podemos ver, arcanjos de
Deus. Na hierarquia espiritual cristã/católica e, portanto, no ocultismo cató-
lico, os arcanjos são uma das nove categorias de criaturas espirituais:

1. Os Serafins: Criaturas espirituais de muita grandeza que estão pró-


ximas ou sobrevoando a Coroa do Pai das Luzes. No ocultismo católico
são invocados para operações de purificação, iluminação espiritual e
conhecimento dos mistérios e arcanos de Deus que residem além do
terceiro céu.
2. Os Querubins: Criaturas espirituais invocadas em operações de pro-
teção espiritual.
3. Os Tronos: Criaturas espirituais que carregam o trono de Deus e são
invocados para aplicação da justiça e severidade de Deus.
4. As Dominações: Criaturas espirituais que agem em função das Leis de
Deus e são invocadas para legitimar autoridade espiritual, obediência
a hierarquia espiritual, o conhecimento lúcido de nós mesmos e para
melhorar/empoderar as capacidades inatas da Alma.
5. As Virtudes: Criaturas que representam toda grandeza e esplendor de
Deus. São invocadas para superação de vícios e ignorância espiritual,
fraqueza mental (ou de vontade), fortaleza ante as fraquezas da Alma
e das tentações.
6. Os Poderes: Criaturas espirituais que agem em acordo aos desígnios
de Deus para manter o cosmos em ordem. São invocados para harmo-
nizar a Alma com os poderes dos cosmos e sua relação com todas as
criaturas vivas ou espirituais.
7. Os Principados: Criaturas espirituais que agem como agentes para
implantar no cosmos os desígnios de Deus. São invocados auxiliarem
em novos projetos criados, seja lá em qualquer área da vida, e alinhar
os objetivos do mago aos desígnios de Deus.
8. Os Arcanjos: Criaturas espirituais que regem partes distintas do cos-
mos e são invocados para curar a personalidade do mago infundindo
em sua Alma as virtudes dos planetas. Os arcanjos sempre se apresen-
tam com um coro de anjos.
9. Os Anjos: Criaturas espirituais do reino sub-lunar que estão muito
próximas as Almas. São mensageiros de Deus que trazem Dele seus
desígnios até nós e leva até Ele nossas preces e orações. Eles são invo-
cados para interceder diretamente por nós perante Deus. Também
são invocados para facilitar o conhecimento de ciências ocultas ou lai-
cas, bem como auxiliar em inúmeras demandas da vida.

117
Propriedade das Medicinas Planetárias
para fins de Operações Mágicas

Os arcanjos que infundem na personalidade humana as virtudes das medici-


nas planetárias são invocados para:

Planeta Propriedades Aspectos Aspectos


Arcanjo Gerais Positivos Negativos
Início de uma Geração, fertili- Energia escassa,
jornada espiritu- dade, memória, vampirismo, ina-
Lua al. Sonho, sono, crescimento e bilidade em se
(Gabriel) memória, silên- movimento, ca- adaptar, medo,
cio, ciclos e mu- pacidade de mu- paranoia, inapti-
dança. Reprodu- dança e adapta- dão para mudan-
ção. ção. ças, ilusão.
Desenvolvimento
Fraude, corrup-
do intelecto. Co-
Razão, intelecto, ção, ganância por
municação. Co-
invenção, cresci- dinheiro, inteli-
Mercúrio mércio. Magia em
mento de inteli- gência usada pa-
(Rafael) geral. Prudência,
gência, investiga- ra fins malignos,
sabedoria, ideias
ção da verdade. pecados, mente
novas e inven-
turva e confusa.
ções.
Domínio e con- Desejo, harmonia, Concupiscência,
trole sobre as bem-aventurança depravação, pai-
Vênus emoções. Arte, física e emocio- xões devastado-
(Anael) amor e relações. nal, uniões har- ras, pecado da
Desejos, prazeres mônicas e enri- carne, prazeres
e bem-estar. quecedoras. viciantes.
Trabalhos sobre o
ego e personali- Disciplina, justi-
Falta de gracejo,
dade. Domínio de ça, sucesso, hon-
arrogância, fra-
Sol si mesmo e dos ra, dignidade,
casso, ego infla-
(Mikael) aspectos da vida. liderança e ilu-
mado, síndrome
Nutrição e cres- minação espiri-
de superioridade.
cimento. Ilumina- tual.
ção espiritual.
Desenvolvimento
da vontade e
Ação colérica,
cumprimento de Coragem, força,
audácia profana,
Marte propósitos. Im- vontade, continu-
atitudes impulsi-
(Kamael) pulso para supe- idade de propósi-
vas, guerra, beli-
ração de obstácu- to, veemência
gerância, fúria
los na vida. Con- ardente.
descontrolada.
118
tenda, raiva, ódio
e justiça severa.
Desenvolvimento Criação, poder de
Perda de saúde e
de poder. Meios colocar assuntos
capacidade de
para trazer ou e projetos em
gerenciamento
produzir poder e movimento, rea-
da vida; perda de
controle sobre o leza, comporta-
controle e de rea-
Júpiter que se deseja. Ex- mento prudente,
leza, desconheci-
(Sachiel) pansão de objeti- intelecto prático
mento de si mes-
vos já construídos e criativo, fortu-
mo, falta e fome,
e colocados em na, esperança,
vida difícil, pro-
prática. Boa sor- paz, bondade,
blemas financei-
te, esperança e clareza mental e
ros.
paz. espiritual.
Fim de uma jor-
nada. Ponto de Intelecto filosófi- Preguiça, melan-
Saturno partida para um co refinado, po- colia, tristeza,
(Kassiel) novo começo. der de razão, jus- falta de higiene,
Queima de peca- tiça. falsidade, ilusão.
dos.

119
CAPÍTULO 2
CORRESPONDÊNCIAS MÁGICAS DIVERSAS

N as vídeo-aulas 8 e 9 do Curso de Filosofia Oculta nós estudamos


como atrair as virtudes celestes e como suas contra-partes terres-
tres, quer dizer, ervas, gemas e metais, agem sobre a Alma. A parte
de tudo o que foi ensinado nestas duas aulas, neste capítulo trata-
remos das principais correspondências entre as virtudes celestes e suas con-
tra-partes terrestres que são de uso geral na magia.
Na execução da magia nós utilizamos símbolos que, como estudamos
anteriormente, são sunthēmatas noéticos (símbolos no plano das ideias ou
reino celestial), intermediários (criados pelo homem como estátuas, pantá-
culos e talismãs) e naturais (que existem à disposição no cosmos). A corres-
pondência entre estes símbolos (e isso ficará claro no segundo ano do Curso
de Filosofia Oculta quando estudarmos a maneira correta de atrair o veículo
pneumático de uma deidade, sendo no ocultismo católico um anjo, arcanjo
etc., para habitar uma estátua, pantáculo ou talismã) ocorre porque as virtu-
des das forças cósmicas se plasmam na Alma do Mundo (que Eliphas Levi
chamou de luz astral) e se materializam no plano físico. Um cabalista diria
assim: as forças cósmicas do plano existencial de briah constituem plasmas
energéticos em yetzirah e se materializam em assiah. A natureza terrestre é,
dessa maneira, a materialização de forças cósmicas, derivada dos mesmos
princípios aos quais correspondem. Quando Eliphas Levi fala que a chave da
magia reside na sábia manipulação da luz astral, ele quer dizer que o mago
deve ser capaz de manipular o plasma energético ou a correta combinação
astral destes símbolos (sunthēmatas).
Da mesma maneira que um átomo e seus elétrons constitui um micro-
cosmo de um cosmo maior, tudo o que existe na natureza é um microcosmo
de todo o cosmos, quer dizer, o Corpo de Deus. Daí que para magia funcionar
efetivamente, deve haver uma combinação adequada de virtudes celestes e
suas contra-partes terrestres, tornando possível a máxima hermética assim
como é acima também é abaixo. O estabelecimento dessa conexão pela ação
do mago reside na sua capacidade de comunicação com os espíritos (anjos)
de todas as contra-partes terrestres e seus equivalentes celestes, daí que ele
se especializa na arte da conjuração, evocação (convocação) e imprecação.
Saber discernir entre os espíritos diversos e a relação deles com o Corpo de
Deus constitui quem sabe um dos elementos mais fundamentais para execu-
ção da taumaturgia, e é por isso que o Curso de Filosofia Oculta inicia com
esse tema: o desenvolvimento de uma visão animista de mundo, tornando
possível ao mago estabelecer e desenvolver comunicação com os espíritos
(anjos) de todos os símbolos (sunthēmatas) usados na magia.

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Os símbolos (sunthēmatas) naturais são tanto celestes como o Sol, a
Lua, as estrelas e conjunções astrológicas, quanto terrestres, minerais, vege-
tais, animais e condensadores fluídicos orgânicos em geral. Nesse capítulo
vamos estudar a correspondências entre esses símbolos celestes e terres-
tres. As correspondências levadas em conta pela magia são fundamental-
mente astrológicas e se referem aos signos do zodíaco e planetas, quer dizer,
qualquer astro móvel, o que inclui o Sol e a Lua.

Correspondência de Cores e o Zodíaco

Áries vermelho-fogo
Touro verde-sombrio
Gêmeos marrom
Câncer prata
Leão ouro
Virgem multicor
Libra verde-água
Escorpião vermelhão
Sagitário azul-celeste
Capricórnio preto
Aquário cinza
Peixes azul-marinho

As correspondências planetárias são o próprio fundamento das correspon-


dências zodiacais. Os planetas são relacionados às cores de seus domicílios
zodiacais:

Correspondência de Planetas e suas Cores

Sol ouro/dourado
Lua prata/prateado
Mercúrio multicor/mutável/prateado
Vênus verde
Marte vermelho
Júpiter azul
Saturno preto

Os metais possuem correspondências planetárias, mas não zodiacais. Os mi-


nerais, por outro lado possuem correspondências planetárias e zodiacais:

Correspondência de Planetas e seus Metais

Sol ouro
Lua prata

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Mercúrio mercúrio
Vênus cobre
Marte ferro
Júpiter estanho
Saturno Chumbo

Correspondência de Planetas e suas Minerais

Sol carbúnculo/diamante/safira
Lua diamante/cristal de rocha
Mercúrio sardônia/pedra de imã
Vênus esmeralda
Marte rubi/esmeralda
Júpiter safira/cornalina
Saturno obsidiana/turqueza

Correspondência do Zodíaco e Minerais

Áries calcedônia
Touro esmeralda
Gêmeos sardônix
Câncer sardônia
Leão crisólita
Virgem berilo
Libra topázio
Escorpião crisoprásio
Sagitário jacinto
Capricórnio ametista
Aquário Jaspe
Peixes Safira

Correspondência de Planetas, Metais, Minerais e Arcanjos

Sol Ouro olho de tigre Mikael


Lua Prata cristal de rocha Gabriel
Mercúrio Mercúrio ágata Rafael
Vênus Cobre esmeralda Anael
Marte Ferro Diamante Kamael
Júpiter Estanho safira Sachiel
Saturno Chumbo ônix Kassial

As virtudes dos Minerais

Ágata boa acolhida; vitória sobre adversários.


Ametista justiça; evita alcoolismo e embriaguez.

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Berilo estudo, simpatia, proteção espiritual, justiça.
Calcedônia preserva dos perigos de viagens; faz ganhar processos.
Crisólita preserva de gota e males dos rins e fígado.
Coral prudência e julgamento lúcido; preserva da gripe.
Cornalina boa sorte e preserva contra hemorragias e ferimentos.
Diamante proteção e justiça; auxilia no parto.
Esmeralda protege a visão; amadurece e fortifica a castidade.
Granada saúde; proteção em viagens.
Jacinto causa esterilidade.
Jaspe preserva contra animais peçonhentos; proteção.
produz pesadelos; aumenta depressão; absorve negati-
Ônix
vidade de ambientes e pessoas.
fortifica a castidade; produz leveza espiritual e pleni-
Pérola
tude de mente.
Safira fortifica a castidade; boa sorte.
Sardônia boa sorte.
Salenita proporciona simpatia e magnetismo pessoal.
Topázio proporciona simpatia e boa sorte.

Para que as virtudes naturais desses minerais (sunthēmatas naturais) pos-


sam ser ativadas para influenciar a Alma do mago que as utiliza, é necessário
gravar nelas símbolos (sunthēmatas noéticos) mágicos adequados. Essas vir-
tudes são potencializadas se os minerais forem combinados com metais.

Correspondência de Planetas e Vegetais

angélica, açafrão, alecrim, balsameiro, calêndula, canela, car-


damomo, celidônia, cevada, ciclâmen, couve, cravo, heliotrópio,
Sol laranjeira, lavanda, lótus, louro, manjerona, morrião, sândalo,
tomilho, orégano e trigo.
abóbora, alface, aveia, berinjela, cânfora, junco, melancia, me-
Lua lão, nenúfar, papoula, pepino, repolho, sândalo branco, tamar-
gueira, tília.
acácia, acelga, anis, avelã, camomila, cenoura, chicória, ligus-
tro, madressilva, margarida, mil-folhas, milho, rosa branca,
Mercúrio sabugueiro, salsaparrilha, selo-de-salomão, tabaco, valeriana,
zimbro.
açucena, agrião, amendoeira, barba-de-bode, buxo, cabrito-de-
vênus, cânhamo, cássia, calidônia, coentro, couve-flor, espina-
Vênus fre, espora-brava, íris, jacinto, lilás, limoeiro, macieira, malva,
melissa, miosótis, mirta, musgo-de-rocha, rosa vermelha, ver-
bena, visco.
absinto, agrião, aipo, alcachofra, alho, alho poro, amexeira
brava, artemísia, aspargo, bardana, beladona, cardo, cebola,
Marte cebolinha, espinhosa, eufrásia, fava, feto, giesta, gladíolo, hor-
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telã, manjericão, mostarda, noz-moscada, pimenta, taioba, ur-
tiga.
aloés, amaranto, ameixeira, amoreira, beterraba, betônica, bu-
glossa, cárpea, cedro, cerejeira, choupo, couve vermelha, espi-
Júpiter nheiro, figueira branca, freixo, gatunha, gergelim, linho, mar-
meleiro, morangueiro, orelha-de-asno, peônia, plátano, raba-
nete, sorveira, trigo-mourisco, violeta.
acônito, arruda, cacto, cicuta, cipreste, coca, cominho, figueira
Saturno
preta, funcho, mandrágora, salgueiro, salsa.

Correspondência de Planetas e Árvores Especiais para Magia

Sol carvalho
Lua nogueira
Mercúrio oliveira
Vênus mirta
Marte azevinho
Júpiter bétula
Saturno pinheiro

Correspondência de Planetas e Fisiologias Vegetais

Sol semente
Lua folhas
Mercúrio casca
Vênus flores
Marte caule
Júpiter fruto
Saturno raiz

Simbolismo geral dos Vegetais

Flor de amaranto simboliza imortalidade


Carvalho simboliza força
Cedro simboliza orgulho
Dormideira simboliza preguiça
Espinheiro simboliza inveja
Heléboro simboliza calúnia
Flor de íris simboliza solidão
Flor de laranja simboliza inocência
Líquen simboliza paz
Flor de lírio simboliza pureza
Flor de lótus simboliza castidade
Fruto de macieira simboliza pecado
Manjericão simboliza cólera

124
Grão de mostarda simboliza onisciência
Mirta simboliza compaixão
Ramo de oliveira simboliza paz
Folha de palmeira simboliza Vitória
Paritária simboliza pobreza
Flor de roseira simboliza amor
Sabugueiro simboliza zelo
Trevo simboliza ternário

Virtudes de Vegetais Especiais para Magia

Sol sempre-noiva ardor e vigor no amor


Lua crista-marinha segurança em viagens
Mercúrio Quinquefólio conhecimento e sabedoria
Vênus Verbena amor, alegria e talento.
Marte Arnica coragem
Júpiter Meimendro riqueza
Saturno Feto proteção contra maus espíritos

Virtudes Gerais dos Vegetais para Magia

Agrimônia levada consigo afasta maus espíritos


Aloés em decocção facilita o discernimento
Flor de amaranto levada consigo confere favores importantes
Amêndoa mastigada confere potência
Angélica levada consigo protege contra feitiços de sedução
protege contra feitiços e maus es-
Artemísia levada consigo píritos
Aveleira levada consigo para encontrar fontes de água
Asfódelo como baqueta para evocações diversas
Beldroega levada consigo evita pesadelos
Betônica levada consigo protege contra feitiços
Bétula levada consigo evita melancolia
Briônia (raiz) queimada afugenta espíritos zombeteiros
misturada com
sangue e quei- provoca expansão da consciência e
Centáures visões astrais
mada em lampa-
rina
Cinoglosa levada consigo provoca magnetismo e carisma
Cravo mastigado aumenta pode de hipnose
Flor de crisântemo levada consigo protege de malefícios
Dictamno queimado proporciona vidência
Heliotropo em chá proporciona vidência
Urtiga levada consigo proporciona coragem
Verbena como perfume é um filtro amoroso

125
Correspondência de Planetas e Perfumes para Fumigações na Magia

Sol Heliotrópio
Lua Íris
Mercúrio zimbro
Vênus verbena
Marte urze
Júpiter menta
Saturno Dormideira

As Virtudes dos Perfumes principais utilizados na Magia

Mirra Provoca admiração


Benjoim Provoca êxtase religioso
Olíbano Provoca êxtase religioso
Coentro Provoca êxtase religioso
Angélica Provoca ideias alegres
Anis Provoca ideias amorosas
Tomilho Provoca ideias amorosas e ímpeto de crescimento
Cravo Provoca ideias amorosas
Rosa vermelha Provoca ideias amorosas
Lavanda Provoca leveza espiritual e repele maus espíritos
Canela Provoca leveza espiritual e repele maus espíritos

Fumigações para os dias da Semana

Domingo (Sol) sândalo vermelho


Segunda (Lua) aloés
Terça (Marte) Pimenta
Quarta (Mercúrio) resina de almáceda
Quinta (Júpiter) Açafrão
Sexta (Vênus) noz moscada
Sábado (Saturno) Enxofre

Compostos para Fumigações Planetárias

açafrão (5 gramas)
aloés (5 gramas)
bálsamo (5 gramas)
semente de loureiro (5 gramas)
Domingo (Sol) cravo (5 gramas)
mirra (5 gramas)
olíbano (5 gramas)
almíscar (uma pitada)
grãos de papoula (5 gramas)

126
estoraque (5 gramas)
Segunda (Lua) benjoim (5 gramas)
cânfora (5 gramas)
eufórbia (5 gramas)
boélio (5 gramas)
bicarbonato de sódio (5 gramas)
Terça (Marte)
raiz de heléboro (uma pitada)
enxofre (uma pitada)
resina de férula (5 gramas)
almácega (5 gramas)
Quarta (Mercúrio) olíbano (5 gramas)
cravo (5 gramas)
grãos de freixo (5 gramas)
aloés (5 gramas)
Quinta (Júpiter)
estoraque (5 gramas)
benjoim (uma pitada)
mandrágora (5 gramas)
almíscar (5 gramas)
âmbar (5 gramas)
aloés (5 gramas)
Sexta (Vênus) rosa vermelha (10 pétalas)
coral vermelho (5 gramas)
café (5 granmas)
mel (1 grama)
grãos de papoula (5 gramas)
grãos de meimendro (5 gramas)
raiz de mandrágora (5 gramas)
Sábado (Saturno)
mirra (uma pitada)
enxofre (uma pitada)
resina de férula (5 gramas)

Compostos para Fumigações Planetárias Coloridas

nitrato de sódio seco (75mg)


Domingo (Sol) enxofre (20mg)
carvão em pó (6mg)
nitrato de sódio seco (75mg)
enxofre (20mg)
Segunda (Lua)
zinco (20mg)
nitro (20mg)
nitrato de estrôncio seco (40mg)
enxofre (20mg)
Terça (Marte)
pólvora (5mg)
carvão em pó (5mg)
clorato de potássio (40mg)

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nitro (20mg)
enxofre (20mg)
Quarta (Mercúrio)
óxido de cobre (10mg)
sulfureto de mercúrio (3mg)
nitro (5mg)
Quinta (Júpiter) enxofre (2mg)
antimônio em pó (5mg)
óxido de bário (60mg)
enxofre (10mg)
Sexta (Vênus) cloreto de potássio (20mg)
sulfureto de arsênico (5mg)
carvão em pó (5mg)
clorato de potássio (50mg)
enxofre (20mg)
Sábado (Saturno) giz em pó (20mg)
óxido de cobre (5mg)

128
129
130
131
. SEGUNDA PARTE .

A MAGIA DOS SALMOS


SENDO:

O LIVRO DE OURO
CONCERNENTE AS QUALIDADES & CARACTERÍSTICAS
DOS SALMOS DO PROFETA DAVI E SEU USO MÁGICO
RESTAURADO POR FERNANDO DE LIGÓRIO

132
PRIMEIRO SALMO
BEATUS VIR QUI NON ABIIT. A. LET

Escreva este Salmo com a frase em latim Et folium ejus nin defluet com os
caracteres e letras mágicas abaixo em um amuleto de pergaminho (couro),
consagrado com mástique (resina de aroeira). Uma mulher grávida que está
em perigo de abortar deve usá-lo no braço direito ou dentro de um patuá
pendurado no pescoço. O amuleto deve ser feito e consagrado quando a Lua
(R) estiver em Sagitário (I) ou em Peixes (L) na hora e dia de Júpiter (V).

El HH.AD

Prece de Consagração:

Torne-nos, ó Senhor, tão férteis como uma árvore carregada de frutos diante
de Tua glória, de modo a sermos cultivados entre a multidão de Tuas plantas e
possamos ser dignos de receber de Ti um excelente fruto de sua fecundidade
através de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

Comentário:

A frase em latm Et folium ejus nin defluet trata-se do início do primeiro Sal-
mo, que diz: «Bem-aventurado o homem que não segue o conselho dos ím-
pios». O Salmo todo pode ser lido no ato da consagração do talismã.
O uso deste Salmo como amuleto (filactério) mágico em O LIVRO DE OU-
RO é equivalente aquele encontrado no SEPHER SHIMMUSH TEHILIM, salvo que
no judaísmo ortodoxo o filactério é utilizado no braço esquerdo.
As letras El HH.AD representam o nome divino AL ChD (El Chad), o
Grande e Único Deus, retirado das seguintes palavras no corpo do Salmo: As-
chre (verso 1), Lo (verso 4), Jatzliach (verso 3) e Vederech (verso 6). O couro
utilizado para este amuleto mágico é pele de veado.

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