Cristianismo Mágico - O Uso Mágico Dos Salmos (Atualização 3)
Cristianismo Mágico - O Uso Mágico Dos Salmos (Atualização 3)
Cristianismo Mágico - O Uso Mágico Dos Salmos (Atualização 3)
CRISTIANISMO MÁGICO:
A MAGIA DOS SALMOS
~ CURSO DE OCULTISMO CATÓLICO ~
FERNANDO DE LIGÓRIO
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SUMÁRIO
A Vida Celestial
Introdução a Hierarquia Celeste do Ocultismo Católico
Palavras Iniciais; Dionísio Pseudo-Areopagita; Os Primórdios da Magia;
(texto a terminar)
Primeira Parte
Seção 1: Preparação & Conhecimento Técnico
1. Tabulação de Horas Planetárias
A Lua nas Casas Zodiacais; Mansões Lunares; Conjunções adequadas para
Magia; Anjos das Horas do Dia e da Noite; Nome dos Anjos das Estações;
Nome dos Anjos das Horas Planetárias (Dia); Nome dos Anjos das Horas
Planetárias (Noite); Hierarquia Espiritual; Propriedade das Medicinas Pla-
netárias para fins de Operações Mágicas.
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utilizados na Magia; Fumigações para os dias da Semana; Compostos para
Fumigações Planetárias; Compostos para Fumigações Planetárias Coloridas;
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APRESENTAÇÃO A MAGIA DOS SALMOS
Os Salmos não são nada mais do que um meio para o assento da Majestade de Deus
por meio do qual vocês se reúnem com os devidos poderes para aplicar suas nature-
zas aos santos Anjos. ~ Arcanjo Uriel a John Dee em 10 de março de 1582.
As palavras do Senhor são palavras sinceras, puras como a prata acrisolada, isenta de
ganga, sete vezes depurada. ~ Salmo 11:7.
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da em O LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or), deriva de uma versão tardia do SEPHER
SHIMMUSH TEHILIIM datada do Séc. XVIII.
Desde sua utilização judaica e cristã na Antiguidade tardia, o uso mági-
co dos Salmos se espalhou por toda Europa, influenciando a tradição dos
grimórios medievais e a magia popular europeia. Os grimórios medievais
são intricados livros contendo listas de demônios/espíritos, instruções ritu-
ais, conjurações e encantamentos que eram reproduzidos manualmente, às
vezes com acréscimos pessoais ou revisões de quem os copiavam. Esses
grimórios se espalharam rapidamente pela Europa entre os Sécs. XIII e XVIII.
A quantidade de Salmos usados em grimórios como A CHAVE MAIOR DE SALO-
MÃO, o LEMEGETON ou A CHAVE MENOR DE SALOMÃO e O LIVRO DA MAGIA SAGRADA
DE ABRAMELIN, O MAGO, demonstra não só o poder dos Salmos na magia, mas
sua ampla utilização por parte dos magos da Antiguidade e Idade Média. O
LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or) ainda traz uma profunda influência de grimó-
rios como HEPTAMERON, STENOGRAPHIA e o LIBER JURATUS.
Os Salmos têm sido usados para cura e proteção contra maldições, ma-
gia negra e espíritos malignos tanto pela tradição da Igreja quanto pela ma-
gia popular, primeiro na Europa e hoje em várias partes do mundo, incluin-
do o Brasil, como no caso da pajelança cabocla das comunidades ribeirinhas
da bacia amazônica e religiões populares como a Barquinha, a Jurema e o
Santo Daime. Do mesmo modo, os Salmos têm sido usados ostensivamente
como oráculos. Esse tipo de uso é datado desde o Séc. XI na Europa e se es-
palhou por todos os continentes católicos. Escolhe-se em sorteio um dos
Salmos e utiliza-se ele em orações, cantos, inscrito em amuletos ou escrito e
dobrado em papel ou pergaminho dentro de patuás. Na comunidade do San-
to Daime conhecida como Céu do Mapiá na Amazônia um dos Salmos é sor-
teado e lido todos os dias no Ritual da Oração que ocorre às 18:30. Há um
pequenino livro contento os Salmos que é usado por católicos todos os dias.
Escolhe-se aleatoriamente um dos Salmos para ser lido durante o dia ou nas
orações da manha.
O LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or) é um grimório francês anexado a um
manuscrito de A CHAVE MAIOR DE SALOMÃO datado de 1202 (Lansdowne MS), o
que configura uma relação direta com esse grimório. Ao analisarmos ambos
os manuscritos é possível inferir que a utilização dos Salmos nessa relação é
para fins exclusivamente seculares, não espirituais:
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Como podemos ver, por esse tipo de inclinação os Salmos são usados osten-
sivamente para magia e, não raras vezes, em seus aspectos maléficos.
Durante a Idade Média a Igreja utilizava os Salmos contra a magia pagã
das várias culturas europeias. Há o caso de São Patrício que duelou magica-
mente contra os druidas na Irlanda usando os Salmos. Inúmeras conjurações
nos grimórios medievais contêm versos dos Salmos. Na tradição cipriânica
da magia, várias orações também contêm versos dos Salmos. Abramelin re-
comenda que todos os Salmos devem ser lidos pelo menos duas vezes por
semana. Dessa maneira, é inegável que a tradição da magia tem se valido do
poder dos Salmos para empoderar seus ritos, encantamentos e conjurações.
Como veremos nessa lição de cristianismo mágico, os salmos podem ser
inscritos em papel, pergaminho fino, papiros, placas de vidro, amuletos de
metal, barro ou feitos de pedras. Para consagrações são usados vários ele-
mentos como água, óleo de oliva ou olíbano, mástique (resina de aroeira) ou
aloés. Mas algumas consagrações pedem sangue de sacrifício animal, o que
denota uma estreita conexão com os grimórios. Os animais para sacrifício
são: morcegos, sapos, pombas brancas, galos pretos e bodes. Em outros ca-
sos, sangue menstrual é requerido. Os símbolos utilizados nos amuletos dos
Salmos são caracteres de alfabetos mágicos diversos, alquímicos e herméti-
cos. Nesse caminho, ficará claro que o uso dos Salmos como vamos explorar
é mágico e tem finalidade material tangível: o que se quer é mudar a estrutu-
ra da realidade através de seu uso.
Um ritual para uso geral será delineado a seguir tendo como base o
HEPTAMERON e a CHAVE MAIOR DE SALOMÃO. Estes dois grimórios são, portanto,
essenciais ao nosso estudo, bem como A MAGIA DE ARBATEL. Para uma eficiên-
cia completa deste estudo prático, considera-se que o mago deva ter tam-
bém familiaridade com A CHAVE MENOR DE SALOMÃO (Goécia), O LIVRO DA MA-
GIA SAGRADA DE ABRAMELIN, O MAGO e o STENOGRAPHIA.
Como ficará claro nessas instruções para o curso de Ocultismo Católico,
os rituais delineados, as instruções indicadas para uso de equipamentos ce-
rimoniais, as consagrações diversas de amuletos, talismãs e pantáculos se-
guem uma estrutura salomônica de magia. Isso implica certo conhecimento
acerca da magia salomônica e alguma intimidade com os grimóirios acima
citados. O método salomônico, como vimos no Curso de Filosofia Oculta, é
uma fórmula geral para magia salomônica evocatória apresentada por Cor-
nélio Agrippa no QUARTO LIVRO DE FILOSOFIA OCULTA. Essa fórmula será de
muita utilidade aqui. A magia tradicional salomônica é animista. Isso signifi-
ca que cada objeto utilizado na prática da magia possui um espírito que deve
ser conjurado e obrigado a fazer um laço, contrato ou compromisso com o
operador através de conjuros, imprecações e fundamentalmente, juramen-
tos. Nessa instrução vamos nos debruçar então sobre esse aspecto da magia
dos Salmos do Rei Davi. Cada um dos 150 Salmos possui um espírito. O mago
precisa, portanto, conjurar essas entidades e construir para elas um receptá-
culo de poder, que tanto será um assentamento magicamente preparado e
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um amuleto teurgicamente consagrado que servirá de lanterna mágica para
influência espiritual do espírito de cada Salmo.
Para fazer este trabalho espiritual é necessário, dessa maneira, a utili-
zação de equipamento mágico, pantáculos salomônicos para construção de
assentamentos para os espíritos dos Salmos e outros equipamentos. Como
se trata de uma prática de magia orientada a católicos praticantes, será ne-
cessário o crucifixo, a BÍBLIA, cálice e patena, pão ou hóstia e vinho para co-
munhões do Corpo e Sangue de Cristo. Tudo arranjado em um templo ou
santuário de poder com um círculo mágico no chão. A toda essa tecnológica
mágica é requerido uma piedade cristã mística diária, tanto matutina quanto
noturna. Abaixo também será delineado um plano geral para essa piedade
cristã, no entanto, seria interessante que o mago estivesse bem familiarizado
com a obra de Agrippa, OS TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA, bem como obras
católicas essenciais: COMPÊNDIO DE TEOLOGIA ASCÉTICA E MÍSTICA do Padre A-
dolphe Tanquerey; DO GRANDE MEIO DA ORAÇÃO do Santo Afonso de Ligório;
TRATADO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA VIRGEM do Santo Luís Maria
Grignion de Montfort. Além disso, algum conhecimento teológico prático, o
que constitui a essência do ocultismo católico.
Diversas vezes eu digo que o exercício da magia tradicional salomônica
seria muito mais eficiente se o operador for um sacerdote consagrado da
Igreja. A magia salomônica, vamos nos lembrar, durante a Idade Média pode
ser considerada magia para letrados, pois os grimórios eram livros de feiti-
çaria em latim. Esses grimórios foram introduzidos na Europa a partir dos
Sécs. XI e XII de fontes derivadas da tradição bizantina. Quando Maomé II, o
Conquistador (1432-1481), atacou Constantinopla por volta de 1422, ini-
ciou-se uma grande migração ou transferência de cultura mágica da Grécia
para Itália. A perda de Constantinopla e, portanto, do Império Bizantino para
o Islã em 1453, resultou em uma transferência quase que total da cultura
mágica da Grécia para Itália, onde já havia uma maciça presença bizantina.
Foi na Itália, portanto, que o HYGROMANTEIA foi traduzido do grego para o
latim e logo se tornou a CLAVÍCULA DE SALOMÃO (Chaves Maiores). Uma vez
traduzidos para o latim, os grimórios gregos logo se espalharam para o Nor-
te da Itália para o resto da Europa: França, Alemanha e Inglaterra. Foi so-
mente a partir de 1641 que estes grimórios latinos começaram a ser tradu-
zidos para o inglês. Embora o latim fosse à língua de comum uso da elite eu-
ropeia, a Corte e a Igreja, inúmeras perturbações como a guerra civil da In-
glaterra que influenciou movimentos anticlericais em toda Europa, provoca-
ram o início do declínio do latim. Além disso, a partir de 1641 diversos livros
em inglês começaram a circular em toda Europa. Isso abriu caminho para
que grimórios em latim como a CLAVÍCULA DE SALOMÃO e o LEMEGETON logo
fossem traduzidos para o inglês e espalhados pela Europa. Assim, quando
me refiro a magia tradicional salomônica praticada pela elite europeia, me
limito apenas a magia como compreendida na Idade Média, antes do Renas-
cimento.
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Nesse período, antes do renascimento, a magia foi preservada princi-
palmente nas mãos de sacerdotes, por isso a cosmovisão transmitida pelos
grimórios é essencialmente cristã, embora sua linguagem principal seja a-
quela da tradição ou magia judaica. Soldo: embora a linguagem dos grimó-
rios seja essencialmente judaica, a visão de mundo que neles encontramos é
essencialmente cristã. Toda hierarquia angelical e demoníaca dos grimórios
é cristã, não judaica. Disso, muitas das consagrações dos instrumentos mági-
cos requerem uma consagração sacerdotal. Não é muito melhor se o mago
operante fosse um sacerdote consagrado da Igreja, um entendedor profundo
da cosmovisão dos grimórios? Sim, seria! Hoje é possível que um ocultista
católico se torne um sacerdote, mesmo tendo família e filhos. Na Igreja Orto-
doxa, por exemplo, sacerdotes consagrados podem ser casados. No entanto,
caso isso não seja possível, para praticar a magia dos grimórios com eficiên-
cia, melhor seria, muito melhor mesmo, se o mago fosse um cristão devoto
que participasse constantemente dos sacramentos da Igreja.
Desde a aurora dos tempos, os magos têm entrado em contato com di-
versos espíritos para praticar magia. Tradições de mistérios da Antiguidade
fizeram amplo mapeamento desses espíritos. A Igreja propôs uma reinter-
pretação nessa hierarquia de espíritos, dividindo o mundo espiritual em du-
as categorias apenas: anjos e demônios. Trata-se de uma realidade o fato de
termos de aceitar isso para operar com os grimórios com eficiência. É com a
chave correta que se abre uma porta. A porta mágica da magia tradicional
salomônica só se abre com a chave da cosmovisão cristã da Idade Média. Por
isso autores que operam com essa tradição como Lisiewski dizem que para
se operar com a magia «old school» é necessário assumir a visão de mundo dos
magos «old school».2 Eu costumo dizer que contra fatos não há argumentos.
Toda tentativa de burlar essa realidade trata-se de uma adaptação da magia
salomônica e não pode, de fato, dizer-se magia tradicional salomônica.
Então nós podemos falar um pouco acerca de adaptações modernas.
Aos meus alunos eu costumo dizer: chega de papel. A magia moderna, prin-
cipalmente a partir da Ordem Hermética da Aurora Dourada, coloca ênfase
na construção de pantáculos em papel. O papel, além de ser perecível, é um
péssimo acumulador e transmissor de energia vital. Ademais, pantáculo para
ser eficiente deve ter peso. Os grimórios consistem uma segunda síntese da
magia, derivados da primeira síntese da magia dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-
EGÍPCIOS. Os pantáculos que aparecem em alguns manuscritos da CLAVÍCULA
DE SALOMÃO não são encontrados nos papiros da Antiguidade ou mesmo no
HYGROMANTEIA. Isso significa que eles foram introduzidos originalmente a
partir de fontes exclusivamente judaicas. Eles aparecem efetivamente em
um manuscrito chamado SEPHER HA-OTOT (O Livro dos Selos). Portanto, a ver-
são popular das CLAVÍCULAS DE SALOMÃO que McGregor Mathers (1854-1918)
apresentou ao mundo a partir de manuscritos modernos (franceses e ingle-
2 Joseph C. Lisiewski, CEREMONIAL MAGIC & THE POWER OF EVOCATION. As aspas são minhas. Preferi não traduzir o
termo old school (escola velha ou antiga). O termo faz referência a magia como praticada na Idade Média, antes
da era moderna iniciada com o Renascimento.
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ses), trata-se de uma versão moderna derivada de manuscritos originalmen-
te judeus, pois os pantáculos não estão presentes em manuscritos gregos ou
qualquer versão do HYGROMANTEIA. Foi somente quando os grimórios gregos
foram traduzidos para o hebraico que a tecnologia dos pantáculos foi intro-
duzida na magia tradicional salomônica. Isso coloca um ponto final na ques-
tão: o método salomônico de magia evocatória é baseado em magia hebraica
ou grega? Não há nenhuma evidência de que o método salomônico de magia
que utiliza a tecnologia do círculo mágico e o uso de armas mágicas consa-
gradas tenha aparecido em qualquer manuscrito judeu antes de 1700. Po-
demos dizer com certeza absoluta que a magia tradicional salomônica vem
da magia grega, não da magia judaica.
Seja como for, a utilização da tecnologia dos pantáculos que encontra-
mos nos grimórios é produzida em: pedras, metal, pergaminho ou papiro. O
melhor mesmo são pantáculos de pedra, pois acumulam e retêm mais ener-
gia vital. Depois o metal e o pergaminho. Pantáculos em papiro são tão pere-
cíveis como em papel moderno. Quando o mago não possui uma base mágica
efetiva para o pantáculo ou amuleto, sua eficiência é totalmente psiúrgica e o
operador terá de contar apenas com a influência noética do símbolo no pan-
táculo (ou amuleto) e o poder de sua mente. Magia se faz com ajuda do corpo
de Deus, isso inclui não somente espíritos diversos, mas o uso de pedras,
plantas, metais e conjunções astrológicas adequadas. Isso dá a magia sua
eficiência, do contrário, é apenas a mente trabalhando no processo. Isso não
é magia, mas psicurgia. Magia tradicional salomônica é magia, não psicurgia,
muito embora a psicurgia seja usada para dar mais força ao processo da ma-
gia. No curso de Ocultismo Católico, principalmente no uso mágico dos Sal-
mos, magia e psicurgia caminham de mãos dadas. Às vezes o trabalho mági-
co com um dos Salmos inclui a produção de um amuleto que servirá de lan-
terna astral para a influência do espírito do Salmo; outras vezes um óleo é
consagrado com orações e a inscrição de símbolos nas mãos do operador
que se ungirá com o óleo; este servirá como lanterna mágica para influência
do espírito do Salmo.
Para seguir a cosmovisão salomônica, os espíritos dos Salmos nós cha-
mamos de anjos, os quais devemos evocar para energizarem assentos de
poder e alimentarem pantáculos, amuletos e óleos diversos. A intenção é,
dessa maneira, construir um manaim (acampamento) de anjos ao redor do
mago, uma corrente mágica que servirá aos mais variados fins na vida do
mago.
Essa instrução de Cristianismo Mágico: A Magia dos Salmos será dividi-
da em duas partes. Na primeira parte nós trataremos de uma longa jornada
por correspondências mágicas que incluem horas planetárias, alfabetos de
poder, pedras e plantas, nomes de poder das hierarquias angélicas, tempos
de poder como estações e conjunções astrológicas, instruções rituais e exer-
cícios místicos de teurgia. Na segunda parte nós trataremos de cada um dos
150 Salmos e sua utilização na magia.
Bom estudo.
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APRESENTAÇÃO AO OCULTISMO CATÓLICO
O curso que agora lhe chega às mãos é fruto de uma síntese na minha
jornada espiritual que chamo de ocultismo católico. Hoje existem
mais de dois bilhões de católicos no mundo. A tradição espiritual
do Ocidente, o que ocultistas têm chamado de Tradição Esotérica
Ocidental, é fundamentalmente católica. É inquestionável que a Igreja Católi-
ca tenha construído a sociedade e moldado a cultura ocidental. Como vere-
mos extensamente nesse curso, a tradição católica encerra em seu escopo
religioso, teúrgico e mágico os Arcanos dos cultos de mistérios da Antigui-
dade clássica e tardia, além de concentrar um amalgama de tradições religi-
osas do Mediterrâneo e Oriente Médio. A Igreja Católica é uma tradição de
mistérios e, quem sabe, a maior ordem mágica da história do homem.
Ocultistas em geral são levados a acreditar, por desinformação, imatu-
ridade ou ignorância espiritual, que a Igreja Católica: 1. não possui mistérios
de iniciação; 2. perdeu seus arcanos e mistérios; 3. que sua doutrina impede
e condena tudo o que os ocultistas gostam de fazer, quer dizer, estudar a
verdade, o oculto por trás dos fenômenos da natureza, compreender suas
leis e aprender a manipulá-las. No entanto eu concluí que a tradição católica
contém os arcanos de iniciação de vários dos cultos de mistérios da Antigui-
dade, mas muito poucos são capazes de perceber. Eu percebi também que a
teurgia, quer dizer, a união da Alma com Deus e que a magia, o contato com
espíritos de todo o tipo para realização de tarefas cuja única intenção e su-
perar as demandas da vida, estão contidos no exercício da liturgia e comu-
nhão dos sacramentos, bem como no contato com anjos, arcanjos, tronos,
santos etc. para os mais variados fins possíveis. Assim, nesse curso você verá
que a invocação de um herói na teurgia clássica grega não é distinta da ora-
ção para um santo na tradição católica. Você verá como os anjos da teurgia
grega se tornaram as autoridades na hierarquia católica e fundamentalmen-
te, como os daimons dos gregos ou djinns dos mulçumanos se tornaram os
principados ou os demônios caídos. Por fim, você concluirá que a magia é só
um nome que os pagãos dão a aplicação prática da teologia.
Jâmblico – o maior gigante de todos que influenciou a tradição da magia
para nós ocultistas e hermetistas – em seu DE MYSTERIIS colocou ênfase em
duas questões fundamentais: a teurgia como exercício de união entre a Alma
e Deus está contida em todas as religiões culturais e que seu exercício é me-
lhor aplicado quando o teurgo pratica a teurgia de sua cultura. A maior tra-
dição teúrgica do Ocidente ainda é o cristianismo católico. Como tradição
espiritual e ordem mágica, o ritual de iniciação é a cerimônia do batismo. Ao
ser batizado por um sacerdote de Jesus Cristo a Alma leva para sempre a
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chancela da Igreja Católica (Apostólica Romana ou Ortodoxa). A maioria das
pessoas, a grande maioria mesmo, foi batizada na Igreja Católica. Os batiza-
dos, assim, são assistidos espiritualmente por essa tradição espiritual e têm
acesso direto a seu núcleo central ao se dirigirem a Nosso Senhor Jesus Cris-
to e a Nossa Santa Imaculada e Sempre Virgem Maria sobre toda humanida-
de. Diante desse conhecimento, Jâmblico chama de infantil aquele que adora
deuses de outras culturas. E é isso mesmo! Adorar deuses mortos cujo culto
e tradição foram há muito esquecidos é uma tarefa no mínimo laboriosa em
demasia. Para que a adoração de deuses mortos de outras culturas funcione
o mago precisa energizar a egrégora do culto ou tradição em questão. Imagi-
ne cultos e egrégoras como lâmpadas incandescentes brilhantes nos planos
internos. Na medida em que estes cultos e tradições são esquecidos, suas
lâmpadas perdem potência e sua luz diminui até apagar-se completamente.
Dessa maneira, o mago tem de se esforçar para fazer essa lâmpada brilhar
novamente, caso contrário seus esforços mágicos ou místicos produzirão
apenas um resultado: a falha.
A egrégora da tradição católica está brilhando nos planos internos. Seu
acesso é fácil a qualquer um que dizer: Pai Nosso que estais nos Céus. A cada
cinco minutos existem pelo menos cinco mil católicos rezando o terço ou
fazendo novena, invocando a ajuda de santos. Como ocultistas, porque não
olhar com mais profundidade a teurgia e magia da tradição católica? Bem,
neste caminho nós vamos constatar que o exercício do rosário é uma jorna-
da de pathworking na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo; que a liturgia não é
apenas um exercício de comunhão pessoal com Nosso Senhor Jesus Cristo,
mas uma caridade ou ação social em favor das Almas de toda humanidade;
que a tradição cristã tem amuletos e talismãs para várias causas e fins; que a
cruz, velas, o óleo santo, a água benta ou exorcizada, o sal, a roupa sacerdotal
etc. são poderosas armas utilizadas na teurgia e magia da tradição católica.
O conceito fundamental deste curso de ocultismo católico é que a magia
como os pagãos em geral entendem é a aplicação prática da teologia. A teo-
logia é um estudo que procura compreender a fé, a relação entre Deus e o
homem e a própria definição de Deus. Em TIAGO (2:17) nós aprendemos que
a fé sem obras é morta em si mesma e embora a aplicação dessa doutrina
seja elástica, ela se relaciona também ao conceito fundamental que damos a
magia neste curso: teologia aplicada. Dessa maneira, entendemos esse exer-
cício teológico não apenas como uma prática intelectual para compreender
os mecanismos da fé e nossa relação com Deus, mas o contato direto com
Deus para iluminação e salvação da Alma (teurgia) e o contato com os san-
tos, anjos, arcanjos, tronos etc. para superar os obstáculos que o mundo da
geração impõe a toda Alma (magia).
Como um ocultista e praticante de magia cerimonial levado a crer que a
tradição católica é desprovida de conteúdo mágico, você pode indagar: mas
não existe no catolicismo a tecnologia mágica que a magia cerimonial oferece,
como a utilização de símbolos (círculo mágico, triangulo da arte, adaga, espa-
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da etc.); como tornar a religiosidade católica em uma prática mágica adequa-
da a ocultistas católicos? Bem, é a intenção desse curso demonstrar isso.
Primeiro, como veremos a tradição mágica que mais se afiniza com
uma piedade mística católica é a magia tradicional salomônica. Os grimórios
salomônicos foram produzidos e reproduzidos pela classe letrada da socie-
dade medieval europeia, quer dizer, os sacerdotes, que fizeram várias ver-
sões latinas dos grimórios a partir do Séc. XII, talvez um pouco antes segun-
do alguns especialistas. Dessa maneira, nós notamos uma intimidade entre a
magia dos grimórios e a piedade mística católica.
O mago da Idade Média – sacerdotes ou civis de alta cultura – quando
pensava em salvar a sua Alma se dirigia a igreja; mas quando precisava re-
solver as demandas da vida, recorria à arte de Salomão contida nos grimó-
rios. Neste curso nós adentraremos aos rincões da história e cavaremos as
raízes dessa conexão entre a tradição católica e a magia dos grimórios, de-
monstrando como é possível cruzar a magia dos grimórios e a piedade cató-
lica diariamente.
Segundo, o catolicismo no Brasil, principalmente nas regiões caboclas e
crioulas do país, tem uma longa tradição de feitiçaria cristã. Na verdade,
desde o Séc. I d.C. a Igreja Católica manteve um forte apelo ao trabalho com
os santos de impacto distinto em várias comunidades. Um desses impactos
distintos é a famosa arte do hoodoo, uma tradição mágica folclórica e católica
com elementos sincréticos da cabala crioula, xamanismo norte-americano e
europeu que nasceu no estado do Mississipi nos EUA. O hoodoo é uma tradi-
ção ecumênica que incorporou e continua a incorporar elementos de outras
culturas. Voltando no tempo, o cristianismo copta no início da Era Cristã in-
corporou em sua prática elementos do paganismo egípcio e hoje temos aces-
so aos seus rituais graças a sobrevivência dos PAPIROS MÁGICOS COPTAS. No
Brasil a tradição do Santo Daime encarna esse ecumenismo católico em suas
cerimônias. O Santo Daime é uma religião cabocla formado por um tripé: o
catolicismo romano, a espiritismo kardecista e o xamanismo sul-americano.
Todas essas tradições católicas, o hoodoo, o cristianismo primitivo copta e o
Santo Daime compartilham do mesmo espírito ecumênico e contêm em seu
escopo e exercício uma típica feitiçaria cristã.
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INTRODUÇÃO AO OCULTISMO CATÓLICO
[...] Os sete sacramentos da Igreja são as cores prismáticas da luz branca de um único
Mistério ou Sacramento, o do segundo nascimento, que o Mestre ensinou a Nicode-
mos em sua conversa iniciática noturna.3 É isso que o hermetismo cristão entende
por «Grande Iniciação».
Não é necessário dizer que ninguém inicia os outros, se entendermos por «inicia-
ção» o Mistério do segundo nascimento ou o Grande Sacramento. A Iniciação vem do
alto e tem o valor e a duração da eternidade. O Iniciador está no alto; cá em baixo só
se encontram condiscípulos e estes se reconhecem no amor que têm uns aos outros.
Também não existem Mestres, porque existe um só Mestre, que é o Iniciador que es-
tá no alto. Sem dúvida, sempre existem mestres que ensinam suas doutrinas e inici-
adores que comunicam alguns de seus segredos a outros, que se tornam, por sua vez,
«iniciados», mas tudo isso não tem nada a ver com os Mistérios da Grande Iniciação.4
3 JOÃO, 2:23-3:21.
4 MEDITAÇÕES SOBRE OS 22 ARCANOS MAIORES DO TARÔ, autor anônimo.
5 Santo Agostinho, A CIDADE DE DEUS.
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espirituais, não mais deuses ou heróis, mas anjos caídos, demônios.6 O cris-
tãos perseguiram, condenaram e executaram praticantes de magia e feitiça-
ria, iniciando a primeira grande caça as bruxas da Era Cristã e queima de
manuscritos mágicos.
Para qualquer católico, portanto, a prática da magia é uma violação das
leis da Igreja, mais precisamente, uma violação do primeiro mandamento da
Lei Mosaica. A definição que a Igreja Católica dá a magia é essa: a arte de rea-
lizar proezas além do poder do homem com ajuda de poderes sobrenaturais
além do Divino.7 Outra definição no DICIONÁRIO DE LITURGIA PASTORAL de Rupet
Berger é essa: Postura que acredita poder forçar o aparecimento e a interven-
ção da divindade mediante certos ritos e atos, colocando-a a serviço dos pro-
pósitos humanos, ao passo que no culto [da Igreja] a comunidade realiza os
ritos em conformidade com instituição na esperança e na confiança cheia de fé
de que Deus cumprirá por graça sua promessa. Devem ser qualificados por
atos mágicos não tanto aqueles isolados, mas a postura espiritual de quem os
pratica. No agir mágico o ser humano não mais se considera no âmbito de a-
tuação de Deus, mas se isola na sua própria iniciativa.
O contraste reside aqui: para receber a graça divina de uma cura física
ou espiritual ou para que os entraves no caminho sejam retirados por esta
mesma graça de Deus, é preciso que o cristão tenha merecimento. Deus a tudo
dá e provê, Deus tudo possibilita, mas aqueles que merecem receber a graça,
estando completamente apartados do pecado. Sob a perspectiva mística da
fé, abraçar essa prerrogativa é um passo definitivo na vida de qualquer cris-
tão. Magia entra exatamente aqui: caso o cristão não mereça a graça divina
ele recorre ao que a Igreja chama de demônios disfarçados de anjos. Como
falei no texto Magia Astral & Magia Tradicional Salomônica, qualquer defini-
ção sóbria sobre a magia envolve o contato com entidades diversas do corpo
de Deus, as quais o mago recorre para resolver os problemas que não conse-
gue através da graça de Deus. Isso fere diretamente o primeiro mandamento
da Lei Mosaica, o que está em harmonia com as definições acima. Assim, co-
mo ser um ocultista e ao mesmo tempo um cristão católico?
Meu nome é Fernando de Ligório, praticante de cristianismo ortodoxo
primitivo. Quando iniciei minhas buscas espirituais trinta anos atrás, eu
pensei em me tornar um sacerdote da Igreja Católica. Na época eu pensava
que se me tornasse sacerdote, a Igreja não me permitiria explorar a magia e
seus mistérios e arcanos. Mas eu estava completamente equivocado. Anos de
busca me levaram a encontrar ou enxergar na tradição católica uma síntese
das escolas de mistérios do passado, quando passei a explorar com mais
profundidade a espiritualidade católica, percebendo em sua prática popular
a grandeza de sua magia e na sua prática litúrgico-sacerdotal toda profundi-
dade da teurgia de Jâmblico e Proclo. Isso me fez reencantar pelo cristianis-
mo católico.
6 Para uma interpretação atual veja SVMMA DAEMONIACA: TRATADO DE DEMONOLOGIA E MANUAL DE EXORCISTAS do
padre exorcista José Antonio Fortea.
7 THE CATHOLIC ENCYCLOPEDIA, Vol. 11.
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O cristianismo hermético ou ocultismo católico abrange tanto a magia
quanto a teurgia. Nós podemos dizer com segurança que a teurgia é um con-
junto de métodos ritualísticos que nos conectam com Deus. Esse é o papel da
liturgia e seus sacramentos, conectar a Alma a Deus. A finalidade da liturgia
é transmitir a mente de cristo,8 a consciência que Jesus manifestou da Reali-
dade Última, Abbá. A liturgia, portanto, é um acontecimento teologal: Deus
vem ao encontro dos fiéis iluminando seus ovos áuricos, transformando-os
por meio de sua Palavra, o Logos, através dos rituais e símbolos sacramen-
tais. Na cerimônia de crisma o bispo abençoa com óleo santo e imposição de
suas mãos o corpo astral dos fiéis crismados com as palavras: Recebe, por
este sinal, o dom do Espírito Santo, quando nos tornamos discípulos do Cristo
ressuscitado. Na cerimônia de eucaristia todos repetimos: Anunciamos, Se-
nhor, a vossa morte e proclamamos vossa ressurreição. Vinde Senhor Jesus.
Comungando do pão e do vinho sobre os quais foi pronunciada a ação de
graças e invocando o Espírito Santo, somos todos cristificados pela eucariza-
ção (beraká), transformando-nos em um só corpo em Cristo. Isso é teurgia
pura! A meta da liturgia teúrgica da Igreja católica é transformar a Alma dos
fiéis no corpo de Cristo, na sarx do Logos, quer dizer, na Carne da Palavra. A
ação litúrgica empreendida pelo sacerdote e imitada pela congregação é a
ação do próprio Cristo e de seu Espírito vivificante para que participemos de
sua vida, permanecendo com Ele em comunhão perpétua.
A magia dentro da tradição católica pode ser explorada sobre amplas
perspectivas, incluindo a mariolatria e a magia com os santos. Acima eu falei
que a Igreja Católica constitui uma grande síntese das escolas de mistérios
do passado. Isso se deve ao fato da Igreja ter se esforçado para incluir no seu
corpo iniciático e religioso as tradições pagãs que em sua gênese competiam
diretamente com ela. Toda teurgia neoplatônica de invocação dos heróis, por
exemplo, pode ser encontrada nas diversas orações e receita de culto aos
santos. Essas orações e receitas são poderosas invocações, exorcismos e fei-
tiçaria reconfigurados para atender a fé cristã. A mariolatria, por outro lado,
inclui uma série de rituais para paz e bem-estar espiritual, proteção contra
inimigos, sabedoria, saúde, assistência espiritual, purificação, exorcismo etc.
No início do cristianismo, seu período primitivo, a magia misturava-se com a
fé como unha e carne. O cristianismo copta do Egito é um dos exemplos mais
tangíveis dessa mistura que vamos explorar profundamente neste curso.
E é interessante notar especificamente o caráter privado dos feitiços, in-
vocações e sortilégios dos PAPIROS MÁGICOS COPTAS que em sua grande maio-
ria serviam para: pedidos de desculpas e acerto de contas; proteção contra
mau olhado; proteção contra fantasmas e espíritos dos mortos; feitiços con-
tra pesadelos; proteção contra perigos em datas especiais, geralmente festi-
vidades equinociais; proteção contra problemas no dia-a-dia; proteção con-
tra doenças de todos os tipos; inflamações; hemorragias; dores de cabeça, de
dentes ou no abdômen; proteção contra acidentes que possam ferir qual-
8 Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo. 1 CORÍN-
TIOS, 2:16.
16
quer parte do corpo; cegueira; problemas no parto; proteção para as crian-
ças recém-nascidas; proteção contra animais de todos os tipos; proteção
contra inimigos, difamadores e caluniadores; proteção contra magia negra;
etc. É interessante notar também que nestes papiros coptas a maioria dos
feitiços servia para se proteger de alguma coisa, muitas vezes de ataques
mágicos. É uma característica da magia copta, quer dizer, a magia cristã da
Antiguidade tardia no Egito, não utilizar qualquer artifício mágico para pre-
judicar outras pessoas. E isso é deveras interessante por três motivos:
Primeiro, porque é possível notar certo nível de ética cristã na magia, o
que dificulta discernir o limiar entre religião e magia.
Segundo, porque por todo o Mediterrâneo na Antiguidade tardia as pala-
vras mageia e magoi eram utilizadas de forma pejorativa para descrever in-
divíduos exóticos e perigosos, conhecedores de palavras de poder e ritos
desconhecidos ou estrangeiros estranhos, taxados como bárbaros. Um mago,
portanto, representava uma figura invasiva a piedade tradicional cívica e a
coesão cultural. Na era Imperial, os imperadores romanos queimaram esses
papiros e prenderam qualquer pessoa que carregasse consigo amuletos má-
gicos. Os magos eram indivíduos marginalizados pela sociedade e ridiculari-
zados pelos sátiros da época. Muitos estudiosos argumentam que foi por
conta dessa perseguição cristã ao paganismo que filósofos que praticavam
invocações aos deuses como Jâmblico e Proclo defenderam o exercício da
teurgia como distinta da goécia, caracterizada pela inclinação grosseira e
ignorante de seus praticantes. Esse duelo entre teurgia e goécia continua até
os dias de hoje na forma de alta magia ou magia branca contra baixa magia
ou magia negra.
O que torna a magia copta interessante é o axis mundi que seu exercício
estabelece: a magia cristã da Antiguidade é ao mesmo tempo mística e mági-
ca; seus rituais de poder levam a Alma do mago aos planos de luz e perfeição
e as profundezas da terra. Quanto mais nos aprofundamos na magia copta
fica mais difícil discernir entre a prática da piedade religiosa cristã e pagã
unidas e a feitiçaria. Em nenhum desses rituais coptas de poder a palavra
magia ou qualquer outra palavra grega, latina ou demótica que tenha o
mesmo significado é usada; estes rituais eram poderosas invocações desti-
nadas a proteção contra magia negra e demandas do dia-a-dia. Muito prova-
velmente as pessoas que utilizavam estes rituais não se consideravam magos
ou pensavam estar praticando magia, que possuía péssimas conotações. Os
termos que eles utilizavam, phylakterion (amuleto) e apologia (feitiço), por
exemplo, significavam proteção e defesa. Não seria apropriado no contexto
copta chamar essa prática de magia, da mesma maneira que um pastor e-
vangelista ora sobre a BÍBLIA pedindo proteção para si e para igreja.
Terceiro, porque a profunda mudança cultural que ocorreu entre os
Sécs. I a.C. e V d.C. nos ajuda a compreender a característica individual e pri-
vada do exercício de rituais de poder. Ainda no período helênico, ouve uma
quebra na autoridade das cidades-estados que foi acompanhada por um de-
clínio na atividade religiosa que mantinha a sociedade coesa. As pessoas se
17
tornaram cidadãs de um mundo muito maior e com uma identidade de gru-
po mal definida. Isso permitiu que pequenos grupos isolados tentassem res-
taurar antigas práticas e cultos espirituais por toda parte na Antiguidade
tardia. Muitos autores de livros de magia moderna e pós-moderna dizem
que o mago realiza seus ritos de poder individualmente porque é um pros-
crito da sociedade. Isso até certa medida está correto quando avaliamos a
situação apenas da perspectiva da perseguição, preconceito e intolerância
religiosa; no entanto, o que leva um indivíduo a isolar-se da comunidade e
individualmente tratar direto com os deuses é uma profunda fragilidade e
falta de identidade cultural: ele está só e a parte daqueles que o cercam. E
isso tem se mostrado um aspecto importante do processo. Seja como for,
individualmente ou celebrando uma cerimônia religiosa para muitas pesso-
as, um indivíduo dentre todos se levanta sobre eles porque tem o talento
necessário para manipular um tipo de poder que aparentemente está dispo-
nível a qualquer um. A magia pode muito melhor ser definida apenas pela
palavra ritual e que é a atitude do mago em relação ao ritual que confere a
ele o seu poder.
A encruzilhada que nos encontramos mesmo tendo definido a magia
como teologia prática é essa: seja como for, Jesus Cristo não precisava de
nenhuma tecnologia da magia para operar milagres. Ele curava enfermos,
ressuscitava mortos e exorcizava demônios apenas com o poder da palavra.
A piedade cristã ortodoxa nos ensina que o caminho de todo cristão é a imi-
tação de Cristo. Assim, se Jesus Cristo não precisava de círculos mágicos ou
sacrifícios para operar milagres, por que nós precisamos? Jesus Cristo no
cristianismo hermético é MeShIa-H, Rei e Regente dos Céus e da Terra, o
SheMa dos SheMaIM com poder sobre os nomes de Deus. Na execução da
magia com toda sua tecnologia o ocultista católico ou cristão hermético imita
Nosso Senhor Jesus Cristo como soberano e supremo SheMa-IM, Senhor dos
Nomes de Deus, pois efetivamente a magia opera com o poder dos Nomes
Divinos, uma arte pela qual Jesus Cristo era Mestre e Iniciador.
Iniciamos aqui um curso completo de Cristianismo Hermético ou Ocul-
tismo Católico para hermetistas católicos na intenção de prover informações
confiáveis em como unir a fé cristã ao exercício da magia sem trair as Leis de
Deus. O curso explorará a piedade cristã adequada a prática da magia tradi-
cional salomônica e o uso de orações, rezas, benzeduras com ervas, fumiga-
ções e passes energéticos.
18
MAGIA É TEOLOGIA PRÁTICA
19
fontes antigas. Ele chegou a dizer que a magia trata-se, efetivamente, da ado-
ração do divino.11 Aos ouvidos de um católico tradicional trata-se de uma
heresia, pois parece que Pico equipara a cabala dos judeus e a magia dos pa-
gãos a Palavra do Evangelho. Mas para o ocultista católico, a afirmação de
Pico tem certo grau de verdade, pois na medida em que o fiel católico que
opera sua magia em nome de Adonai e de Nosso Senhor Jesus Cristo vê suas
preces sendo respondidas e disso ter suas necessidades resolvidas, maior é a
confiança em Deus e seu poder provedor. A fé se aprofunda e disso nasce um
sincero sentimento de gratidão ao Eterno.
Inspirado por Jâmblico, Pico tenta equiparar a antiga arte dos sacerdo-
tes persas (mageia), a teurgia, dizendo ela ser uma arte superior a goēteia.12
Assim, para Pico a magia eleva o devoto a Deus, a goécia sendo uma arte pro-
fana para feiticeiros pedantes e desclassificados, arrasta os buscadores a la-
ma, pois estabelece tráfico com demônios e espíritos malignos que perver-
tem as leis divinas da natureza. Neste curso de ocultismo católico nós classi-
ficamos diferente:
11 Ibidem. Oratio quaedam elegantissima sive de hominis dignitate, conclusão 9, versículo 231.
12
Veja o Curso de Filosofia Oculta para um estudo profundo e comparativo entre magia, teurgia e goécia.
20
difíceis. Ainda, através de rezas e conjuros de santos, o mago ob-
tém prosperidade, quebra demandas, realiza cura e purificações. A
sua disposição há uma hierarquia celeste de serafins, anjos, arcan-
jos e santos para toda sorte distinta de magia.
A prática da magia cristã neste curso de ocultismo católico é es-
sencialmente a magia tradicional salomônica – descartando o LE-
MEGETON – adaptada a uma piedade teúrgica cristã hermética, o
que inclui exercícios espirituais de todos os tipos.
21
MAGIA & TRADIÇÃO CATÓLICA
22
21:8; 22:15). A essa condenação, nos dias de hoje nós podemos inferir a prá-
tica dos xamãs e pajés.
O NOVO TESTAMENTO distingue, portanto, três tipos de magia. Contudo, a
EPISTOLA DE BARNABÉ (20:1), escrita no fim do Séc. I d.C. pelo mesmo, sendo
ele um dos principais ajudantes do Apóstolo Paulo, assim como o DIDADIQUÊ
(2:2), a doutrina dos doze apóstolos que trata do catecismo cristão, conde-
nam veementemente a prática da mageia. Por que? A resposta depende de
muitos fatores. Nós podemos considerar a injunção simples de que as fórmu-
las mágicas gregas mudaram com o tempo, o que acompanhou a evolução da
língua grega em contraste direto com o hebraico do VELHO TESTAMENTO, a
cultura e as leis contra a prática de mageia na Grécia pré-cristã. No hebraico
do LIVRO DOS SALMOS (96:5) no VELHO TESTAMENTO temos: י ;ים, ים ם
י י - י י, , que significa pois os deuses dos povos pagãos são apenas
ídolos, enquanto o Eterno é o criador dos céus. A palavra hebraica ים, ( יeli-
lim) significa ídolo ou coisas sem valor. Quando a versão grega coiné foi tra-
duzida pela primeira vez do hebraico ficou assim: ὅτι πάντες οἱ θεοὶ τῶν ἐθ-
νῶν δαιμόνια, ὁ δὲ Κύριος τοὺς οὐρανοὺς ἐποίησεν, que significa os deuses
dos povos pagãos são criaturas espirituais (daimones), enquanto o Eterno é o
criador dos céus. Como sabemos, daimones são criaturas espirituais diversas:
espíritos de mortos, elementais etc. Do hebraico para o grego coiné e poste-
riormente com a evolução da língua grega nos próximos cem anos as criatu-
ras diversas da natureza, quer dizer, os daimones do Corpo do Eterno, torna-
ram-se demônios perversos. Essa corrupção linguística se cristalizou perma-
nentemente na Igreja com Santo Agostinho (359-430 d.C.) em sua obra mais
celebrada, A CIDADE DE DEUS. Na cultura grega os daimones, as criaturas di-
versas da natureza, são regidos pelos deuses (theoí). Isso significa que tanto
os deuses dos pagãos quanto as criaturas espirituais que estão sob o seus
desígnios são menores que o Eterno, o Deus Uno na tradição cristã. Com o
tempo a tradução grega evolui decisivamente para: os deuses dos povos pa-
gãos são demônios, enquanto o Eterno é o criador dos céus.
Esse desenvolvimento da cultura e língua gregas pode ser visto de ma-
neira clara nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, que datam entre o fim do
Séc. I a metade do Séc. IV d.C. Como temos visto nas lições do Ano I do Curso
de Filosofia Oculta, os papiros contêm inúmeros feitiços e conjurações para
convocar e controlar daimones diversos, fazendo-os trazer mulheres para o
mago operador, quer dizer, o ancestral da amarração amorosa moderna; ma-
tar inimigos do mago ou trazer-lhe boa fortuna. A prática dos PAPIROS MÁGI-
COS GRECO-EGÍPCIOS é o ancestral direto da posterior goécia salomônica da
Idade Média. O exercício mágico dos papiros era ecumênico e sincrético,
misturando elementos culturais e religiosos do Egito, Grécia-Roma e outras
culturas como a semita. Esses papiros são essencialmente mágicos e seus
feitiços envolvem inúmeros propósitos escusos, violentos e criminosos.
Na sociedade pagã pré-cristã já existiam leis rígidas contra a prática de
mageia. O cristianismo primitivo, como veremos no texto Jesus o Magista &
Feiticeiro, estava profundamente envolvido com a cultura grega. Isso signifi-
23
ca que ele não nasceu do nada. Nenhuma cultura nasce e cresce do nada. Ela
se desenvolve a partir de outra cultura, absorvendo muitos elementos da
cultura que a precedeu. A tradição católica não é diferente. Ao contrário, é o
fruto direto de uma nova mensagem que nasceu de um profundo choque cul-
tural.
Entre os pagãos, portanto, a prática de mageia há muito se tornara ile-
gal. Desde o Sec. V a.C. mageia já era depreciada como vimos na Lição 1 do
Curso de Filosofia Oculta. No Séc. II a.C. o CÓDIGO DE HAMURABI abre com uma
pena de morte para qualquer um que lançasse feitiços sobre outras pessoas
(ou morte para o acusador, se a acusação for falsa):
Se um homem acusar outro homem de feitiçaria e não puder provar isso, aquele que é
acusado de feitiçaria irá para um rio, atirar-se nele e se o rio o vencer, seu acusador
tomará para si sua casa. Se o rio mostrar que o homem é inocente e ele sair ileso, a-
quele que o acusar de feitiçaria será morto. Aquele que se lançou no rio tomará para si
a casa do seu acusador.
Na cultura romana, a mageia foi proibida desde o início. Em as LEIS DAS DOZE
TÁBUAS, estabelecidas em 450 a.C., temos:
Quem encanta cantando um feitiço do mal [...]; se alguém canta ou compõe um encan-
tamento que pode causar desonra ou vergonha a outro [...]; ele sofrerá uma penalidade
de capital.
Júlio Paulo, um autor do Séc. III cita em seu SENTENTIAE AD FILIUM um docu-
mento perdido já em seu tempo chamado LEGES CORNELIAE DE SICARIIS ET VE-
NEFICIIS (As Leis de Cornélio contra Assassinos & Feiticeiros), que diz:
As pessoas que celebram, ou fazem com que sejam celebrados ritos ímpios ou notur-
nos, de modo a encantar, enfeitiçar ou amarrar alguém, serão crucificados ou lançados
a feras.
Qualquer pessoa que sacrificar um homem, ou tentar obter suas virtudes por meio
de seu sangue, ou poluir um santuário ou um templo, será atirada a feras ou, se for de
nível superior, será punido com a morte.
Foi decidido que as pessoas que são viciadas na arte da magia sofrerão punições
extremas; isto é, devem ser jogados a feras ou crucificados. Os magos serão queimados
vivos.
Ninguém será autorizado a ter livros sobre a arte da magia em sua posse, e quando
forem encontrados com alguém, eles serão queimados publicamente, e aqueles que os
tiverem, depois de serem privados de suas propriedades, se forem de nível superior,
serão deportados para uma ilha e, se forem de posto inferior, serão mortos; não só a
prática dessa arte é proibida, mas também o conhecimento da mesma.
15 São Tomás de Aquino, SUMA CONTRA OS GENTIOS, Parte III, caps. 105 e 106.
16 São Tomás de Aquino, SUMA TEOLÓGICA, Parte II: ii, q. 93, a. 1.
25
toda milícia celeste. No texto anterior, Magia é Teologia Prática, em mencio-
nei que todo esse exercício de ocultismo católico está dividido em dois gran-
des temas: a teurgia e a magia cristã. Essas são as duas pernas do ocultismo
católico.
No contexto deste Curso de Ocultismo Católico nós utilizamos a palavra
magia como um sinônimo de teologia prática, quer dizer, o uso prático do
conhecimento revelado no Evangelho. Se a teologia trata-se da busca pelo
entendimento de Deus e dos caminhos da fé, a magia trata-se do exercício
deste entendimento, seja este exercício místico ou mágico. Fundamental-
mente, a teologia é a tentativa positiva de construir uma definição de base
racional acerca da identidade de Deus, quem somos nós e qual o nosso papel
em relação a essa identidade. Teologia prática é a aplicação deste conheci-
mento e de suas leis, as quais vamos nos debruçar a partir de agora.
Até o presente nós discutimos a palavra mageia na interpretação da I-
greja, nas mentes dos fiéis católicos, suas concepções ou equívocos. Agora
vamos discutir aspectos importantes da teoria mágica do ocultismo católico.
Essa teoria mágica, como veremos, pode muito bem ser resumida por um
número razoavelmente pequeno de leis que estão sugeridas ou expressas
diretamente nos ensinamentos da Igreja ou na liturgia.
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em que nos alinhamos com o Eterno, suas leis imutáveis e o movimen-
to do cosmos, nos inserimos em sua demiurgia, nos tornando coparti-
cipantes e cocriadores de sua obra (teurgia). Na liturgia o que o Sa-
cerdote faz é este alinhamento com a Mente de Deus, o que o coloca no
coração de todo o cosmos. Dessa maneira, quando o ocultista católico
preocupa-se com este alinhamento também, sua mente atua em sin-
cronia com a Mente de Deus, por isso o Apóstolo Marcos (11:23-24)
diz: Porque em verdade vos digo que qualquer que disser a este monte:
Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar em seu coração, mas crer que
se fará aquilo que diz, tudo o que disser lhe será feito. Por isso vos digo
que todas as coisas que pedirdes, orando, crede receber, e tê-las-eis.
4. A Lei da Correspondência: Tem-se dito: assim como é acima também
é abaixo; assim como é abaixo também é acima. A Lei da Correspon-
dência está em sincronia direta com a Lei do Mentalismo, pois trata do
alinhamento propriamente dito com a Mente e Corpo (cosmo) de
Deus. É somente quando o ocultista católico se propõe a este alinha-
mento que seu microcosmo (corpo físico, emoções e mente) e ambien-
te de trabalho (templo/santuário) tornam-se um espelho do macro-
cosmo. É por meio dessa correspondência que os planos invisíveis a-
tuam sobre o plano físico e o plano físico atua sobre os planos invisí-
veis. Na sua EPÍSTOLA AOS HEBREUS (9:23-24) o Apóstolo Paulo diz: Por-
tanto, era necessário que as cópias das coisas que estão nos céus fossem
purificadas com esses sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais com
sacrifícios superiores. Pois Cristo não entrou em santuário feito por ho-
mens, uma simples representação do verdadeiro; ele entrou no próprio
céu, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor.
A palavra grega ὑποδείγματα (hypodeigmata) refere-se a cópia ou
modelo, no sentido de que as coisas da terra, em especial o templo, são
espelhos do que está nos céus. Esse é o princípio por trás da liturgia,
por isso o Papa João Paulo II dizia: a liturgia é o céu na terra. A adora-
ção dos homens a Deus na liturgia emula a adoração dos anjos e dos
santos a Deus nos céus descritas no Evangelho.
5. A Lei do Contágio: Quando um objeto entra em contato com outro
objeto, então o primeiro objeto continuará a exercer influência sobre
o segundo. Por exemplo, na Igreja há ocasiões em que se congela a
Água Benta que pode ser misturada com uma quantidade menor de
água não abençoada. Pela Lei do Contágio, a bênção da Água Benta in-
fluenciará a água não abençoada e assim a bênção será transferida. A
Hóstia consagrada durante a Santa Missa também pode, ao entrar em
contato com as mãos de alguém ou um objeto, transferir sua consa-
gração. Após a consagração da Hóstia (na Igreja Latina) o sacerdote
mantém os dedos que tocam a Hóstia unidos até que após a liturgia
ele lave as mãos, tomando cuidado para não tocar em mais nada com
eles. Na Igreja Ortodoxa, para evitar isso, a Eucaristia é feita com pão e
vinho que estando juntos dentro do Cálice Santo, são retirados com
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uma pequenina colher litúrgica e administrados pelo sacerdote dire-
tamente sobre a língua dos fiéis.
Como veremos nesse Curso de Ocultismo Católico, essas cinco leis estão em
permanente ação tanto na teurgia quanto na magia cristã.
28
A VIDA CELESTIAL
Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são lá de cima, onde Cristo está sen-
tado à destra de Deus; afeiçoai-vos às coisas que são lá de cima, não às que estão sobre
a terra.17
17 COLOSSENSES, 3:1-2.
29
certamente ressuscitará com Cristo; porque o deleite santo não é para aquele
que está preocupado com os desejos mundanos. Nem pode mesclar-se as coisas
verdadeiras às vãs, as eternas com as caducas, as espirituais com as carnais, as
ínfimas com as sublimes, de modo que aprecie igualmente as do alto e as da
terra.
Portanto este texto introdutório de nosso Curso de Ocultismo Católico é
uma advertência aos associados. O uso mágico dos Salmos como aqui va-
mos explorar através de O LIVRO DE OURO (Le Livre d’Or) pode seduzir mali-
ciosamente a Alma Intelectual como a Serpente seduziu Eva, levando o ocul-
tista católico a idolatria utilizando equivocadamente a magia dos Salmos. O
Ocultismo Católico depende, quer dizer, está conectado a uma Nova Vida, ou
seja, as ações de um cristão verdadeiramente convertido. Mesmo após a
Conversão, a metanoia (a mudança de mentalidade) e epistrofé (a mudança
de atitude ou direção), os desejos e paixões da Alma animal ainda continuam
assolar o cultivo do Logos. Aqueles que ainda se encontram nas primeiras
moradas da Alma são vorazmente tentados por suas inclinações animales-
cas. São Tomás de Aquino diz que a Vida Nova de Conversão é o cultivo da
vida celestial que deve ser renovada diariamente pela graça: Renova-os no
vosso espírito e nos vossos pensamentos (Ef 4:23). Como Cristo ressuscitou dos
mortos pela glória do pai, assim nós vivamos uma vida nova (Rm 6:4). Saben-
do que Cristo, ressuscitado dos mortos não morre mais (Rm 6:9), assim tam-
bém vós considerai-vos como estando mortos para o pecado, mas vivos para
Deus, em Jesus Cristo (Rm 6:11).
Mas como fazê-lo professor? Você perguntará. A graça se cultiva atra-
vés de uma vida de oração. Este é o método de iluminação que todos os San-
tos da Igreja praticaram e pelo qual todos conquistaram as últimas moradas
do castelo da Alma. Entre todos os meios que Jesus Cristo nos recomendou
no Evangelho, deu o primeiro lugar à oração. E nisto quis que sua Igreja e
religião se distinguisse de outras seitas, querendo que ela especialmente se
chamasse casa de oração (Mt 21:13). A oração, portanto, é o princípio, o pro-
gresso e o complemento de todas as coisas, por este motivo três horários ao
dia são dedicados a oração. A regra do 3x8, quer dizer, oito horas de oração,
oito horas de trabalho e oito horas de descanso ainda é, ao cristão, a melhor
de todas as disciplinas. Santo Afonso de Ligório (1696-1797) diz que sem a
oração é impossível resistir às tentações das paixões e praticar com fidelida-
de a Lei Mosaica. Isso porque nas trevas, misérias e perigos da vida em que
nos encontramos é na súplica da oração que devemos buscar forças para
salvação de nossas Almas.
Santo Agostinho (354-430 d.C.) diz que certa medida de graça é nos
dada pelo Senhor. No entanto, essa medida não é suficiente para que possa-
mos cumprir todos os preceitos requeridos na Lei Mosaica. Assim, através
da oração Santo Agostinho diz que podemos receber mais graça de Deus e é
essa graça a mais que nos torna capacitados a observância fiel da Lei Mosai-
ca. Através da oração nós obtemos o remédio da graça de Deus para lavar o
pus do pecado. Deus nos dá forças para fazermos o que sozinhos ou por nós
30
mesmos não podemos fazer. Disso Santo Agostinho nos ensina que a Lei Mo-
saica nos foi dada para que pudéssemos pedir a graça de Deus; por outro
lado, a graça nos é dada para que possamos cumprir a Lei de Deus. É por
meio da Lei de Deus que reconhecemos nossa pequenez e incapacidade, as-
sim pedimos auxílio a Deus pela nossa salvação.
Santo Afonso de Ligório diz que aquele que não recorre a Deus através
da oração diante das tentações já está há tempos perdido. Desse modo, a ú-
nica defesa que temos contra as tentações de nossas paixões é a oração, por
isso Santo Afonso de Ligório chama a oração de grande meio de salvação. A
castidade, por si só, não temos poder para observar. É de Deus que vem o
poder para conservar a castidade. Na verdade, Santo Afonso de Ligório diz
que a castidade é dada por Deus e Ele somente a concede aquele que verda-
deiramente pede com o relicário da fé no trono do coração. São João Crisós-
tomo (348-407 d.C.) diz: Com o auxilio da graça resultará poderes suportar a
tentação. Quem cai o faz porque descuida da oração, visto que se tivesse orado,
não seria vencido pelos inimigos.
São Tomás de Aquino em sua SUMA CONTA OS GENTIOS18 explora os mila-
gres de Deus em detrimento das façanhas dos magos, analisando o que de
verdade está por trás das ações taumatúrgicas deles. Em sua análise ele de-
fine a magia como os magos da Antiguidade e Idade Média o faziam, quer
dizer, a realização de proezas através ou por meio de inteligências indepen-
dentes que, como Santo Agostinho já o tinha feito em A CIDADE DE DEUS, trata-
se do próprio demônio. São Tomás esclarece que nada na criação de Deus é
essencialmente mal, pois tudo vem de Deus. O mal é ausência de Bem. Por-
tanto, o demônio que auxilia os magos em suas operações não é mal, mas
nele, bem como nos magos, há o pecado e a inclinação ao mal. Nesses mes-
mos capítulos São Tomás faz críticas duras às ações dos magos medievais,
que imprecam e conjuram demônios para realizar façanhas macabras, escu-
sas e criminosas; ele certamente tinha em mãos o LEMEGETON para fazer tal
crítica. Como sabemos, a magia dos grimórios medievais foi disseminada
através de monges da Igreja e na SUMA CONTA OS GENTIOS São Tomás faz uma
crítica direta a esses monges e padres: Além disso, nas ações das supracitadas
artes aparecem ilusões e coisas desarrazoadas, pois elas requerem um homem
não afeito ao sexo e, no entanto, são usadas seguidamente para arranjar en-
contros ilícitos. Ora, nas obras de um intelecto bem disposto não se encontra
nada de irracional, ou contra si mesmo. Logo, estas artes não recebem a prote-
ção de um intelecto bem disposto quanto à virtude. São Tomás insiste, com
razão, que as obras dos magos não vêm de si mesmos ou do próprio Logos
neles, mas de uma inteligência corrompida que se afiniza com o que há de
pior nos magos: suas paixões e vícios.
No Curso de Ocultismo Católico o mago não opera a magia através de
demônios. O conceito de teologia aplicada se aplica ao contato com santos da
Igreja, anjos, arcanjos, tronos, querubins, serafins etc. O ocultista católico
não se interessa pelo contato com demônios para operar coisas escusas e
31
criminosas. Um ocultista católico é dado a uma vida celestial, o que implica
uma vida devotada a prática dos ensinos de Cristo que estão no Evangelho e
as coisas superiores de uma vida dedicada ao estudo e a oração.
32
UMA INTRODUÇÃO A HIERARQUIA CELESTE
DO OCULTISMO CATÓLICO
PALAVRAS INICIAIS
33
te a hierarquia celestial do cristianismo que se seguiu e facilita muito a nossa
jornada como ocultistas católicos.
DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA
Os ATOS DOS APÓSTOLOS (17:34) narra que após o Apóstolo Paulo anunciar ao
areópago que o Deus dos cristãos era o mesmo deus desconhecido adorado
pelos gregos, alguns juntaram-se a ele, dentre os quais estavam Dionísio, o
Areopagita, uma mulher chamada Dâmaris, e outros. Essa passagem dos ATOS
DOS APÓSTOLOS ganhou grande repercussão com a obra de Dionísio, o CORPUS
DIONYSIACUM, onde ele faz parecer que a passagem acima se trata dele mes-
mo:
Tu não ignoras que outrora nós mesmos, tu e muitos dos nossos santos irmãos nos re-
uníamos para ver o corpo que é a fonte da vida e morada de Deus, e estavam presentes
também Tiago, o irmão do Senhor, e Pedro, chefe e decano [...].
O que dirás do Eclipse solar ocorrido quando puseram o Salvador na cruz? Estávamos
os dois em Heliópolis e ambos presenciamos o fenômeno extraordinário da Lua ocul-
tando o Sol.
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násio e Cirilo, ambos de Alexandria, não o tivessem citado anteriormente? Se
fosse o caso, Dionísio não teria influenciado a visão de Santo Agostinho?
Essa confusão começou, na verdade, com Hilduíno, abade do mosteiro
São Dionísio, que identificou Dionísio como o bispo de Atenas, decapitado
por Lutécia. Esse foi o início da fábula do mártir morto em terras francesas.
O despertar pelo interesse das ideias de Dionísio foi graças a autores como
Escoto Eriúgena, São Tomás de Aquino, Alberto Magno, Boaventura e Marsí-
lio Ficino que incorporaram seu pensamento em suas obras. Aqueles atentos
ao neoplatonismo de Dionísio, verão nítidos em seus escritos a profunda in-
fluência de Jâmblico e Proclo, principalmente no tocante ao problema da o-
rigem do mal, o que demonstra que ele viveu em um período da história,
posterior ao Séc. V, onde as ideias destes filósofos fervilhavam. Por exemplo,
a linguagem que Dionísio usa em seus escritos (mónada, hénada, triadas etc.)
não está presente na BÍBLIA e muito menos na patrística. Muito pelo contrá-
rio, é caldeia e presente em Jâmblico e Proclo. Assim, mesmo com profundas
inclinações cristãs em sua obra, Pseudo-Dionísio não foi discípulo do Após-
tolo Paulo, mas um sírio que viveu entre os Sécs. V e VI d.C.
A obra de Dionísio é um reflexo, portanto, do tempo em que ele viveu,
um período em que as teses cristãs exigiam uma base teórica por parte da
filosofia e esta, de outro modo, estava imersa em cultos, deuses diversos e
práticas mágicas-teúrgicas. Assim, a obra de Dionísio é um espelho que refle-
te a profunda influência do neoplatonismo dos Sécs. V e VI d.C. nas ideias
cristãs. As questões levantadas pelos cristãos já haviam, desde Plotino e ago-
ra com Jâmblico e Proclo, sido levantadas e exploradas pelos filósofos neo-
platônicos; por exemplo: como explicar a geração (multiplicidade) a partir
da unidade? Essa é a questão, na verdade, mais fundamental do neoplato-
nismo e quiçá seu elemento fundante. O lugar do homem no mundo, a graça,
a trindade, a encarnação etc., temas que o cristianismo da Antiguidade tardia
tentou responder baseando-se em muitas ideias neoplatônicas.
O CORPUS DIONYSIACUM que influenciou cristãos neoplatônicos por mais
de dez séculos é composto por quatro tratados e dez cartas, organizados as-
sim:
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Hierarquia Eclesiástica Objetos do conhecimento espiritual e sensível
CARTAS Teologia simbólica
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kakodaimones & aghatodaminones aghatodaimones
Heróis Arcanjos
Almas purificadas
Anjos e Santos
(iluminadas)
Homem:
Homem
(alma corrupta ou anatrópica
-- Demônios:
Kakodaimones
Uma descrição acurada sobre essa hierarquia celestial de Jâmblico está dis-
ponível na Lição 3 do Curso de Filosofia Oculta. Santo Agostinho, demonizan-
do a feitiçaria (goēteia) magia (mageia) e a teurgia (theourgia) e sua intrica-
da hierarquia divide assim:
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OS PRIMÓRDIOS DA MAGIA
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Curso de Filosofia Oculta. Essas culturas têm suas raízes em comunidades
pré-agrárias cuja magia deriva do conhecimento e conversação com espíri-
tos diversos. Assim, este se trata do fio de ariadne da tradição dos magos
porque é o elo de continuidade entre a cultura arcaica da magia, a magia da
Antiguidade tardia representada pelos papiros e pela teurgia de Jâmblico e a
magia tradicional salomônica dos grimórios medievais.
Como sempre tenho afirmado, os grimórios – assim como os PAPIROS
MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS – podem ser considerados a porta de entrada para
que os magos iniciantes desenvolvam uma consciência animista que lhes
permita obter o conhecimento e a conversação com os espíritos. Nos papiros
não há uma sistematização coesa para tal e é necessário que o mago seja
treinado por um tutor que entenda da magia dos papiros ou que já tenha
experiência na comunicação com espíritos. No entanto, a sistematização dos
grimórios é mais coesa, embora mediocremente pobre. Pobre porque eles
ensinam o método, mas não a lógica por trás do método. Os papiros, por ou-
tro lado, nem método apresentam. Dessa maneira, após o mago adquirir a-
través dos grimórios essa experiência no conhecimento e conversação com
espíritos e tenha desenvolvido um elevado grau de comunicação com eles,
ele deve deixar para trás os grimórios e caminhar por conta própria, cons-
truindo seus próprios grimórios. A própria tradição dos grimórios medievais
apresenta isso de certa maneira. Como vimos no início, os primeiros magos
não tinham professores e eles conseguiram acesso a espíritos diversos e a-
través deles, do conhecimento adquirido no trato com eles, desenvolveram
os procedimentos que praticamos hoje. Na Idade Média, período dos grimó-
rios salomônicos, era muito difícil estabelecer uma relação de professor e
aluno com algum mago praticante, pois os magos eram censurados e dura-
mente perseguidos. Uma linha de sucessão espiritual não se desenvolve a-
propriadamente em circunstâncias como estas. Então, de posse dos grimó-
rios, o mago da Idade Média podia começar solitariamente a desenvolver sua
conexão com os espíritos e se tornar, por conta própria, um novo elo na cor-
rente espiritual de magos que remonta aos primórdios da magia.
Durante a Idade Média na Europa cristianizada, a magia era compreen-
dia como qualquer ideia filosófica e religiosa que fugisse da ortodoxia católi-
ca dominante, quer dizer, a fonte de um conhecimento ilícito e proibido de-
rivado das revelações criminosas dos espíritos, estes sendo considerados
demônios. Visto que o mago medieval era basicamente um conjurador de
demônios, ele tornou-se um perigo a Igreja. Diferente da tradição islâmica
que consideravam os djinns espíritos bons, maus e neutros, a tradição cristã
preferiu classifica-los negativa e restritivamente nas categorias de demônios
e mortos em embates perpétuos com os anjos de Deus.
Desde a Antiguidade tardia ao fim da Idade Média, o cristianismo de-
senvolveu-se através de embates violentos. Desde o início os cristãos foram
duramente refutados. Jesus Cristo além de ser ele mesmo acusado de um
mago, não deixou uma única página escrita e diante das mudanças e contras-
tes escatológicos da época, os apóstolos se viram obrigados a reinterpretar a
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mensagem de Cristo se quisessem que o cristianismo prosperasse: a pro-
messa de Cristo era retornar antes que aquela geração morresse, o que não
aconteceu. Era urgente uma reinterpretação de sua mensagem! Por conta
disso, inúmeros concílios foram feitos ao longo da história para refinar a
doutrina cristã sob a luz do conhecimento já existente na época. Tanto a le-
gislação judaica quanto a romana perseguiram ferozmente os magos devido
ao perigo que eles representavam. Trata-se na verdade de um medo primor-
dial que a imagem e papel do mago na sociedade representam. Essa perse-
guição não acontece porque a cultura regente é cética e desacredita a magia,
mas ao contrario, porque ela reconhece o poder e a eficiência da magia. Os
magos, desde os primórdios, são considerados perigosos e há um consenso,
daí a perseguição, de que seria melhor que eles não estivessem por aí. Então
a perseguição não é um ato cristão, mas um fenômeno cultural: existe um
medo inato na maioria das pessoas acerca dos magos.
Nesse caminho, os primeiros padres da Igreja decidiram acusar a magia
de tudo aquilo que contrastava a Igreja, atribuindo seus méritos exclusiva-
mente aos demônios. Na tradição cipriânica da magia, encontramos no CON-
FESSIO CYPRIANI, escrito por volta do Séc. IV d.C. um quadro muito claro desse
panorama: São Cipriano teria sido iniciado nos mistérios pagãos de Roma e
na arte da magia; o texto acusa que o conhecimento adquirido por São Cipri-
ano é o resultado direto de seu contato com o Diabo. O contato com os de-
mônios passou a ser identificado pela Igreja como a fonte do conhecimento
arcano da magia e é por isso que durante a Idade Média os perseguidores
dos magos acusavam Ham, um dos três filhos de Noé, como o patrono da
magia, aquele que iniciou a transmissão desta arte amaldiçoada e proibida.
Na verdade, a fonte primordial do conhecimento da magia, segundo a tradi-
ção cristã em um exercício de exegese bíblica e apócrifa confuso, foi a intera-
ção dos anjos caídos com as filhas dos homens. O resultado foi à corrupção
da humanidade, levada pelo dilúvio por conta de tanta iniquidade. Cassiano,
o monge fundador da Abadia de São Victor em Marselha por volta de 415
d.C. e que influenciou profundamente as ideias da Igreja na Idade Média, a-
tribui a magia como um conhecimento provindo diretamente de Seth, filho
de Adão e Eva fora do Éden. É de sua linhagem ou sangue herdado de Adão
que vem a profecia por inspiração divina, o conhecimento das virtudes das
plantas, pedras e astros, dos espíritos das estações e seus fluxos sazonais, as
virtudes dos elementos, o conhecimento de todas as coisas escondias e a sa-
bedoria inata. Os filhos de Seth, maravilhados com a beleza das filhas de Ca-
im, se uniram a elas e delas receberam o conhecimento arcano da magia. As
filhas do sangue de Caim teriam aprendido a magia com demônios, repas-
sando o conhecimento aos filhos do sangue de Seth.
É interessante nesse momento notar o paralelo com a tradição salomô-
nica: no HYGROMANTEIA: O TRATADO MÁGICO DE SALOMÃO, nós temos: E Robão
disse a seu pai Salomão: «Pai, em que reside a virtude das coisas?» E Salomão
disse: «Toda arte, graça e virtude daquilo que procuramos está nas ervas, nas
palavras e nas pedras. Mas antes de tudo, você deve conhecer a posição dos
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sete planetas.» Nós podemos notar que o conhecimento das virtudes das
plantas, pedras e astros, dos espíritos das estações e seus fluxos sazonais, as
virtudes dos elementos, o conhecimento de todas as coisas escondias e a sabe-
doria inata trata-se justamente do que Salomão ensina a seu filho Robão, o
que finalmente ficou conhecido na Renascença como magia natural; o mo-
vimento de magos renascentistas buscava salubrizar a prática da magia, re-
dimi-la, assim podemos dizer, do contato com demônios. Por isso os magos
renascentistas repetiam as mesmas condenações que a Igreja fazia contra os
magos conjuradores da magia salomônica. A magia natural e astrológica,
diferente da magia salomônica, foi considerada por estes magos da Renas-
cença como um tipo de magia positiva que todos podiam praticar. O ARBATEL,
um grimório renascentista de 1575 que trata do contato com os Espíritos
Olímpicos, regentes planetários, é um fruto deste movimento de salubriza-
ção da magia. Esse tipo de magia proporcionaria ao mago o poder da profe-
cia por inspiração divina. Foi Marsilio Ficino que parece ter inaugurado essa
salubrização da magia, condenando veementemente a magia conjuratória
salomônica e de eras anteriores. No mesmo caminho foram Paracelso, Gior-
dano Bruno e John Dee. Esse movimento renascentista que tentou salubrizar
a magia despontou na Era Moderna com ordens como a Ordem Hermética da
Aurora Dourada, podemos dizer, um fruto moderno do pensamento destes
autores.
Em contraste a essa tradição renascentista está a magia salomônica,
que apresenta o mago como um representante sacerdotal, um homem cujas
virtudes o capacitam a comandar os espíritos. O TESTAMENTO DE SALOMÃO, es-
crito por volta do Séc. VI d.C., embora haja autores que o aloquem no Séc. III
ou muito antes, é o escrito mais antigo da tradição salomônica. Nele, o co-
nhecimento e conversação com demônios e a ajuda dada por eles ocorre por
meio da intervenção do poder de Deus e sua milícia celeste. No HYGROMAN-
TEIA: O TRATADO MÁGICO DE SALOMÃO, nós temos: Você deve saber, ó homem,
esta primeira e mais importante, última e última instrução para tudo relatado
aqui. [...] Ore a Deus com toda a sua alma antes de cada operação, e recite o
seguinte com o coração puro e humilde: «Senhor nosso Deus, Adonai, Elisabaó,
Lamekh, Sante, Lanatou, Khamantan, Tetragrammaton, Início e Fim, Santo,
Santo, Santo, Senhor Sabaó, todo céu e terra estão cheios de tua glória; o nosso
Pai que estás nos céus, sustenta-nos com os teus santos nomes, Senhor Deus
Sabaó; pelas operações dos santos antepassados Enos, Cainã, Maalaleel, Mete-
laela, Seth, Enoque, Noé, Melquisedeque, Josué o filho da freira, Abraão, Isaque
e Jacó, Davi e Jessé, Salomão e Robão; pelas orações de seus santos, ó Senhor
nosso Deus, seja nosso salvador, misericordioso comigo, defensor e assistente.»
A ideia de permissão, autoridade e apoio divino na arte conjuratória
não é medieval e reside nos primórdios da magia goética da Antiguidade,
onde divindades celestes, ctônicas e daimones superiores eram convocados
para conferirem ao mago poderes sobre daimones menores, espíritos inferi-
ores. Mas durante a Idade Média, frente a escatologia reformada que a Igreja
propôs, a única fonte disponível de autoridade, força e poder era Deus e sua
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milícia celeste. Por conta disso, para eficiência completa da magia dos gri-
mórios, os magos têm que ter uma profunda compreensão da cosmovisão
cristã e demonologia medieval; salvo engano, vivenciá-la e compartilhar de
crenças reais nela. Os grimórios, sendo frutos da revelação demoníaca, de-
pendiam do conhecimento daimônico, quer dizer, uma visão animista acerca
dos espíritos que permitia ao mago conhecer sua hierarquia e estabelecer
distinção entre eles, assim como de suas funções espirituais. O que valida
uma operação de magia salomônica, portanto, é a presença divina de Deus
através de sua milícia celeste. Por isso os magos competiam diretamente
com os sacerdotes da Igreja: porque alguém deveria frequentar a Igreja e ter
acesso a Deus através dos sacerdotes se é possível, através da magia dos
grimórios, invocar a intervenção, autoridade e poder de Deus sem o inter-
médio da Igreja?
A cosmovisão dos grimórios salomônicos é cristã, depende de uma ma-
neira cristã de enxergar a realidade. A própria temática do texto que inaugu-
ra a magia tradicional salomônica, O TESTAMENTO DE SALOMÃO, foi estruturada
sobre uma base cristã. Isso é o suficiente para provar que se trata de um es-
crito da Era Cristã e não antes dela, como alguns têm apontado. Por exemplo,
o demônio Rath, apresentando-se na forma de um leão, faz uma profecia
concernente à vinda de Emanuel. Essa é uma questão que deve ser averigua-
da pelo ângulo correto: inserir essa profecia em O TESTAMENTO DE SALOMÃO
foi uma maneira de tentar validar a prática da magia salomônica! Disso nós
podemos inferir que se O TESTAMENTO DE SALOMÃO, considerado o texto que
inicia a tradição salomônica, tem sua escrita na Antiguidade tardia entre os
Sécs. IV e VI d.C. quando o cristianismo estruturava suas bases através do
crescimento e expansão da Igreja, então a magia tradicional salomônica tra-
ta-se da primeira tentativa cristã de sistematizar uma forma de magia que
fosse lícita onde a demonologia cristã é apresentada e aceita e o trato com os
demônios é permissível pela ajuda de Deus e de sua milícia celeste. Desse
modo, a magia salomônica resgata o fio de ariadne dos primórdios da magia
onde o conhecimento e conversação com espíritos, bem como a sabedoria
obtida através deles, trata-se do fundamento da prática. É isso que une a
tradição salomônica medieval ao xamanismo paleolítico universal.
A tradição dos grimórios se desenvolveu em uma Europa cristianizada.
Não existe nenhuma evidência de que o mago salomônico europeu acredi-
tasse ou tivesse qualquer ideia filosófica e religiosa acerca de outras tradi-
ções espirituais que não fosse aquela vigente de sua época e contexto histó-
ria. Isso significa que o mago salomônico medieval não via os espíritos goéti-
cos, por exemplo, como daimones ou até mesmo deuses antigos de outras
religiões: ele os via como demônios de acordo com a cosmovisão cristã e es-
perava que os espíritos se comportassem como tal. O HYGROMANTEIA: O TRA-
TADO MÁGICO DE SALOMÃO, demonstra isso claramente. Nele a convocação e
imprecação dos demônios com a ajuda de Deus e sua milícia celeste é o cer-
ne do trabalho espiritual: Por estes nomes eu os conjuro, espíritos e demônios
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das quatro partes do mundo,19 para se materializar, assumir uma forma hu-
mana mansa, bela e que se apresente diante de mim para fazer o que eu quero.
Eu os conjuro, impreco, amarro e amaldiçoo. [...]. Ó demônios, apareçam dian-
te de mim e não me desobedeçam, nestes santos nomes [...]. Eu os constranjo,
eu os obrigo e eu os ligo pelo [poder dos] anjos Mikael, Gabriel e Rafael [...].
Nenhuma tradição se sustenta sem um pano de fundo mitológico. Não
poderia ser diferente com a magia tradicional salomônica. Na mitologia sa-
lomônica, um aspecto importantes valida o seu exercício: Salomão teria re-
cebido uma graça divina que o possibilitou ser o iniciador de um método de
magia outorgado pelo próprio Deus, um método que requer a presença ini-
cial da milícia celeste de Deus para que o mago se abra a revelação divina e
controle os espíritos. As CHAVES DE SALOMÃO narram que a magia tradicional
salomônica é fruto de uma revelação de Deus em virtude de um homem dig-
no de recebê-la. Dessa maneira, quando um mago se prepara através de je-
juns, orações e consagrações, na verdade está se preparando para estabele-
cer a mesma aliança que Salomão estabeleceu com Deus. Ao invocar os anjos
e uma miríade de criaturas celestiais no início da operação, além de confir-
mar essa aliança através da invocação dos poderes e autoridade de Deus, se
abre a revelação divina. Fazendo isso, o mago salomônico se torna um elo na
tradição salomônica da magia, o continuador sacerdotal de uma casta de
magos que se iniciou com Salomão e sua aliança com Deus. A cada ritual esse
elo é reforçado, essa aliança é recriada. Salomão é, portanto, a inspiração de
uma dignidade espiritual e moral que todo mago deve buscar, pois somente
os dignos são eleitos para forjarem essa mesma aliança com Deus e de inte-
grarem essa tradição como elos de uma corrente salomônica.
Quando a magia salomônica tradicional foi redescoberta, um homem
digno de redescobri-la, Iohé Grevi, a recebeu de um anjo enviado por Deus: E
imediatamente apareceu-me um anjo do Senhor, dizendo: «Recorda-ti que os
segredos de Salomão parecem ocultos e obscuros a ti, que o Senhor assim dese-
jou, para que tal sabedoria não caia nas mãos dos ímpios; portanto, prometa-
me que não desejas que uma sabedoria tão grande chegue a qualquer ser vi-
vente, e o que revelares a qualquer um que eles saibam que devem guardá-lo
para si, senão os segredos são profanados e nenhum efeito pode segui?» Eu
respondi: «Eu te prometo que a ninguém os revelarei, exceto para honra do
Senhor e com muita disciplina, as pessoas penitentes, secretas e fiéis.» Então o
anjo respondeu: «Vá e leia a chave, e suas palavras que eram obscuras devem
ser manifestadas e clareadas a ti.» E depois disso o anjo subiu aos céus em uma
chama de fogo.20 Os magos salomônicos, portanto, como inferimos dessa
passagem, são pessoas penitentes, secretas e fiéis, dignos de receber de Deus
mesmo conhecimento que Salomão recebeu, o poder de se comunicar com
os espíritos de todo Corpo de Deus, aqueles que operam diretamente na de-
miurgia do cosmos: E disse Salomão: ouve, meu filho, e recebe minhas pala-
19 Note nessa situação o uso dos termos espíritos e demônios das quatro partes do mundo. Existem não só de-
mônios associados às direções do espaço, mas outros espíritos também, o que confirma e é uma prova da visão
animista de mundo.
20 A CHAVE DE SALOMÃO, Editada por S.L. MacGregor Mathers, ver. por Joseph H. Peterson.
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vras e aprende as maravilhas de Deus. Pois, em certa noite, quando me deitei
para dormir, invoquei o santíssimo nome de Deus, IAH, e orei pela inefável sa-
bedoria. E quando comecei a fechar os olhos, o anjo do Senhor, até mesmo
Homadiel apareceu-me, falou muitas coisas com cortesia, e disse: Ouve, ó Sa-
lomão! A tua oração diante do Altíssimo não é em vão, e já que não pedistes
vida longa, nem muita riqueza, nem as almas dos teus inimigos, mas pediste a
sabedoria para realizar a justiça, assim diz o Senhor: «Conforme a tua palavra
te dei um coração sábio e entendido, de modo que diante de ti não há seme-
lhante a ti, e jamais se erguerá um.» E quando compreendi o discurso que me
foi feito, compreendi em mim que havia conhecimento de todas as criaturas,
tanto nas coisas que estão nos céus quanto das coisas que estão abaixo dos
céus [...]. Deste modo, como podemos perceber, o conhecimento e conversa-
ção com os espíritos diversos da natureza e autoridade sobre os demônios, o
poder da conjuração, depende de uma intimidade com Deus e o merecimen-
to de suas graças.21
Mas existe uma novidade na tradição salomônica da magia. Em inúme-
ras culturas e tradições anteriores como as da Mesopotâmia e Egito, a auto-
ridade de Deus era invocada para que o mago pudesse conjurar os demô-
nios, os espíritos malignos da natureza (kakodaimones), no entanto, o TES-
TAMENTO DE SALOMÃO é o primeiro escrito da tradição ocidental a usar demô-
nios para boas ações. Mas é a ideia de se operar com demônios para magia
de boas obras que produziu a inclinação agressiva da magia salomônica, ao
ponto dos rituais de magia equipararem-se as cerimônias de exorcismo da
Igreja. Além disso, a magia salomônica era uma magia de elite, de pessoas
letradas, pois somente o clero e os homens de educação, nobres aristocratas,
tinham acesso aos grimórios. O que reforçou ainda mais essa inclinação a-
gressiva dos grimórios salomônicos. O mesmo não ocorre com grimórios
anteriores a latinização deles, como o HYGROMANTEIA: O TRATADO MÁGICO DE
SALOMÃO, ou grimórios tardios como o GRIMORIUM VERUM. Nestes grimórios
existe uma relação mais branda entre o mago e os espíritos, onde há o exer-
cício de oferendas de alimentos a eles.
Desde os primórdios da magia, do xamanismo paleolítico a magia tradi-
cional salomônica, uma intricada tecnologia mágica de purificação e de pre-
paro para magia como requisitos fundamentais ao seu exercício tem se de-
senvolvido, dotando a tradição da magia com requinte de sacerdócio, a típica
imagem do magus persa, como vimos nos textos anteriores. Isso não foi in-
serido na tradição salomônica porque sua cosmovisão é cristã, mas ao con-
trário, é outro fio de ariadne da tradição da magia que vem se desenvolven-
do desde os primórdios. A purificação espiritual através desse preparo inici-
al possibilita receber a graça de Deus, seu conhecimento e autoridade para
se comunicar com os espíritos diversos do cosmos. É esse aspecto sagrado
da magia tradicional salomônica que fazia do mago medieval um concorren-
te da Igreja. Por outro lado, a Igreja oferecia o santo, que possuindo os mes-
21 Ibidem.
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mos poderes de um mago salomônico, condenava a magia como uma arte de
profanos e o resultado de uma comunicação ilícita com demônios.
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TEURGIA & LITURGIA
22 Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), TEOLOGIA DA LITURGIA: O FUNDAMENTO SACRAMENTAL DA EXISTÊNCIA CRISTÃ,
Obras Completas, Vol. XI.
23 Ilinca Tanaseanu-Döbler, THEURGY IN LATE ANTIQUITY.
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Deus transcendente, materialmente manifestado à humanidade, torna a par-
ticipação na vida divina acessível num grau não previamente concebido, que
convida a uma assimilação conceitual do pensamento teúrgico. Sua teologia,
portanto, obriga os pensadores cristãos a repensarem sobre a capacidade da
realidade material de mediar o divino, o que existe profundamente na tradi-
ção da teurgia.
Teurgia, como veremos com profundidade, é a Obra de Deus, o próprio
movimento do cosmos. Jâmblico insistia que no momento do rito teúrgico, o
teurgo se vestia com o manto dos deuses e a partir deste momento se inseria
na Obra de Deus, dentro do movimento cosmorgânico da criação. A liturgia,
por outro lado, etimologicamente vem das palavras gregas (povo) e
(trabalho, ação), significando, dessa maneira, trabalho para ou em favor
do povo. Teologicamente a palavra em liturgia é teândrica, quer dizer,
uma obra divina para o povo ou uma Obra de Deus para o povo porque no
curso do ritual Deus em amor na pessoa de seu filho, Nosso Senhor Jesus
Cristo, vem ao encontro de cada cristão que comunga com profundidade e
verdade da Eucaristia para salvar a sua Alma. Da mesma maneira que na
teurgia o teurgo exercita a obra dos deuses se inserindo no organismo do
cosmos, o sacerdote na liturgia exercita a obra sacerdotal do próprio Cristo,
quer dizer, a santificação do homem e a glorificação de Deus pelo Batismo e
pela Eucaristia. O Concílio Vaticano II diz:
Inúmeros tomos já foram escritos tanto sobre teurgia quanto sobre liturgia.
Esse texto que agora vos entrego não é capaz de iluminar o mínimo que seja
todo esse conteúdo produzido por autores, teólogos e teurgos, tão vasto e
tão complexamente completo. Espero que me perdoem por isso. Tanto a
teurgia quanto a liturgia podem ser estudadas sobre amplos aspectos distin-
tos. Neste texto vamos explorá-las sobre um aspecto comum: a ordem cós-
mica. Nossa jornada será longa e de início vamos começar com aspectos his-
tóricos da teurgia neoplatônica de Jâmblico e depois vamos explorar a litur-
gia no cristianismo.
SEÇÃO . I .
A TEURGIA DE JÂMBLICO
24 DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Paulus, 2017. Os itálicos são meus.
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neoplatônicos se dedicavam primeiro ao estudo da filosofia na intenção de
fundamentar ou estruturar seu trabalho espiritual. A filosofia é o alicerce do
trabalho espiritual neoplatônico. Mas se a filosofia é o alicerce da espiritua-
lidade neoplatônica, a religiosidade são as paredes que dão estrutura a essa
prática espiritual. A religiosidade neoplatônica opera sobre dois fundamen-
tos: sacrifícios e preces. A prática religiosa purifica o filósofo, preparando-o
para o encontro com o Uno. Nesse caminho, a espiritualidade neoplatônica
não se tratava de um exercício amorfo, antes disso, um caminho onde é pos-
sível experimentar o Sagrado diariamente com alto grau de refinamento in-
telectual. Na visão neoplatônica, essa prática combinada, religião e filosofia,
dá nascimento e nutre a virtudes purificatórias essenciais, àquelas que le-
vam o praticante acima das virtudes políticas da mente ordinária. Essas vir-
tudes purificatórias são de natureza espiritual e por conta disso, elas refi-
nam o aparato intelectual. O entendimento disso é o passo inicial que coloca
o teurgo em contato com o divino e com a divinação.
Mas por que o passo inicial? Porque não é o suficiente para que um pra-
ticante seja considerado um teurgo. Qualquer pessoa ordinária pode estudar
filosofia e praticar rituais de adoração. Mas embora sejam esses ingredientes
fundamentais na prática da teurgia, por si mesmos eles não fazem de nin-
guém um teurgo. Um filósofo e um religioso não são teurgos, mas um teurgo
é sempre um filósofo e um religioso.
Em palavras muito simples, o Candidato deve transcender o reino da
mente. Ele deve encontrar um mecanismo que o leve além. Jâmblico dizia
que o pensamento puro, uma qualidade de mente produzida pela filosofia –
que implica em prática contemplativa e reflexiva sobre a vida e os próprios
processos da mente – não é o suficiente para transformar o Candidato em
um teurgo. Assim, teurgia não se trata de conhecimento – embora o conhe-
cimento seja um pré-requisito para a prática – mas ao invés disso, algo que
está além do conhecimento.
A palavra teurgia deriva de duas fontes: a palavra grega theos que signi-
fica Deus e a palavra ergon que significa trabalho ou atividade, portanto,
teurgia é um termo que tem sido traduzido como trabalho divino ou opera-
ção divina, quer dizer, Obra de Deus. Para a maioria dos teurgos pagãos neo-
platônicos, teurgia se trata de um engajamento, um trabalho diário com o
Sagrado. No entanto, a palavra tem sido compreendida na magia moderna
como um tipo de operação ritualística com anjos e inteligências planetárias.
Na verdade, o ocultismo moderno considera qualquer interação com criatu-
ras espirituais de tipo superior como teurgia. Mas para os neoplatônicos,
teurgia compreendida como um trabalho diário de contato com o Sagrado
implica em vários ritos e etapas de iniciação: hierougia (rituais sagrados),
mustagogia (iniciação nos mistérios), hieratike (liturgia), hieratike tachne
(arte sagrada), theosophia (ritos de sabedoria espiritual). Tudo isso sendo
teurgia.
Jâmblico se esforçou em demonstrar que a teurgia era uma prática es-
piritual muito distinta da baixa magia, feitiçaria e até mesmo da goécia, no-
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ção que foi corrompida nos grimórios de magia da Idade Média. E embora a
prática teúrgica implique em utilizar as técnicas e as tecnologias da magia e
da feitiçaria, a teurgia não é a técnica ou a tecnologia, pois se trata de meca-
nismos puramente humanos. No entanto, se compreendido de maneira a-
propriada, esses elementos podem ser utilizados como ferramentas da teur-
gia.
Nas palavras de Jâmiblico: A teurgia apresenta um aspecto duplo. Por
um lado ela é executada por homens e como tal devemos observar nossa posi-
ção natural no universo. Mas por outro lado ela controla os símbolos divinos e
em virtude disso o homem alcança a união com os poderes superiores, os quais
passam a dirigi-lo. Harmoniosamente em concordância com a dispensação dos
símbolos o homem assume o manto dos deuses. É por causa dessa distinção
que a arte invoca os poderes superiores. Vestido com as virtudes desses símbo-
los inefáveis, o homem é capaz de dominá-los, com a hierática autoridade dos
deuses.25
A teurgia de Jâmblico embora executada pelo homem, tratava-se de um
trabalho essencialmente divino. Nesse caminho, ela diferenciava-se das téc-
nicas de baixa magia e feitiçaria que tratavam com entidades e criaturas es-
pirituais inferiores. Jâmblico acreditava que a magia popular de sua época se
tratava apenas de uma tecnologia para o domínio do plano físico e que por-
tanto, produzia um resultado pernicioso de padrão artificial que simulava a
operação divina da teurgia. Embora não fosse ilícita, a magia popular não
poderia dar ao executor as condições de se aproximar do Uno. A teurgia, por
outro lado, envolvia padrões vibracionais mais sutis e superiores, além do
mundo gerador.
Para Jâmblico a principal função da teurgia é divinizar o homem. Theo-
sis, quer dizer, tornar-se o máximo possível como o próprio Deus. Como falei
acima, embora inspirada em princípios espirituais superiores, a teurgia uti-
liza as mesmas tecnologias usadas na magia e na feitiçaria, mas o teurgo é
algo além de um mago ou feiticeiro. Ritos hieráticos, telestéticos e teúrgicos
na teurgia divinizam o praticante. A teurgia tem um amplo campo de atuação
prática, desde a invocação de deuses e daimones, animação de ícones ou es-
tatuetas, rituais de união com o Sagrado etc., no entanto, o teurgo está mais
interessado na origem das forças por trás de cada ação ritualística, seja nos
sacrifícios ou na liturgia, na meditação ou na contemplação. Uma vez que as
forças divinas estão presentes por trás de cada ação ritual, podemos consi-
derar ser um rito de teurgia.
Uma vez que a teurgia tem um vasto arranjo de elementos práticos, a
divinização que ocorre através de sua execução é observada em muitos fe-
nômenos distintos como a adoração e os sacrifícios, a invocação de deuses
em estatuetas, telismância, ritos de purificação e cura e o mais importante, o
congressus cum daemone, a invocação do daimon pessoal. O congressus cum
daemone é a operação de teurgia mais importante para Jâmblico, pois é so-
mente através do daimon pessoal que o praticante pode se considerar um
49
teurgo. Ninguém pode se considerar um teurgo até que tenha obtido o con-
tato com seu daimon pessoal.
É possível rastrear nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS e nos sistemas
de teurgia de outros períodos como o de Pseudo-Dionísio ou a telismância
astrológica de Marsilio Ficino que, para que o exercício da teurgia seja eficaz,
o reino da geração do qual o homem faz parte deve ser completamente i-
nundado pela força do Uno, proveniente de planos divinos superiores. Jâm-
blico ensinava que os poderes superiores eram aterrados temporariamente
no plano da geração e neste breve espaço de tempo o teurgo se vestia da au-
toridade do próprio Uno-Deus. Mas Jâmblico insistia em uma diferença fun-
damental que, segundo ele, distinguia o teurgo do feiticeiro. Se por um lado
um feiticeiro poderia invocar as forças e os poderes superiores para o plano
da geração, por outro lado ele não tinha a principal característica de um
teurgo: a capacidade de elevar-se ao plano do Uno, o ingrediente fundamen-
tal na prática da teurgia, o que a distingue da feitiçaria. Um teurgo não é a-
penas àquele que invoca os poderes superiores, mas que fundamentalmente
é capaz de subir aos planos superiores e comungar com o Uno. E isso se re-
flete na prática da teurgia. Um teurgo deve ser capaz de divinizar todos os
procedimentos e tecnologia que utiliza em suas operações. Por exemplo,
tradicionalmente os talismãs são utilizados porque eles são veículos pneu-
máticos para forças praeter-humanas. No entanto, ele somente se torna efe-
tivo se o teurgo o diviniza, isso inclui consagração para dotar-lhe de um cor-
po de luz adequado para receber a assinatura e a presença da força que nele
foi invocada. O talismã passa a fazer parte de uma hierarquia de códigos de
luz, o que o possibilita orbitar na vibração de determinada divindade.
A divinação ocorre na teurgia através da possessão divina, o que requer
ao teurgo a capacidade de assumir formas divinas na intenção de ser inun-
dado pelos poderes da deidade invocada. Embora seja nas mãos de Jâmblico
que a teurgia ganhou requinte e prestígio, ela é rastreada no Séc. II d.C. já
com Plotino, que utilizou pela primeira vez o termo teurgia para explicar o
poder divinatório dos ritos dos ORÁCULOS CALDEUS. Na execução desses ritu-
ais, Jâmblico compreendeu o propósito último da filosofia: a união com o
divino. Ele foi responsável por definir a importância da visão de Platão em
TIMEU na cosmologia teúrgica e o racional por trás dos rituais. Seus ensina-
mentos remodelaram o Neoplatonismo que não foi mais o mesmo após Jâm-
blico, desde o paganismo de Proclo ao Cristianismo de Pseudo-Dionísio, o
Areopagita e Marsílio Ficino. Em Jâmblico aprendemos que os rituais de
teurgia têm o poder de sacramentar a matéria (hylé), constituindo o Casa-
mento Místico, quer dizer, a União com o Divino. Em sua magna obra, DE
MYSTERIIS, ele diz:
Desde que seja necessário que as coisas da terra não sejam privadas da participação
no divino, a terra recebe certa porção divina capaz de receber os Deuses. A arte teúr-
gica, portanto, reconhece esse princípio geral e tendo descoberto os receptáculos a-
propriados, em particular, como sendo apropriados a cada um dos Deuses, trazem er-
vas, pedras, animais, perfumes e outros objetos sagrados, perfeitos e deiformes de ti-
50
pos similares. Então, disso tudo se produz um receptáculo perfeito para receber o di-
vino.
Através dos ritos de teurgia, dessa maneira, hylé (um termo técnico para ma-
téria cunhado por Aristóteles), produz-se um receptáculo apropriado para
receber a Luz do Uno, seja na Alma humana ou no aparato teúrgico utilizado
para ser a morada dos Deuses. Foi também através dos ritos de teurgia que
Jâmblico percebeu e depois defendeu que a experiência direta com o divino,
a experiência direta com o mais elevado Bem, não necessita de renúncia da
matéria, mas que, muito pelo contrário, o teurgo deveria abraçar completa-
mente a vida na matéria e a multiplicidade agindo como um demiurgo. Nesse
caminho Jâmblico conectou a execução dos ritos de teurgia com a paideia, a
disciplina filosófica intelectual. Uma das chaves do sistema de Jâmblico é a
doutrina da anamnesis de Platão, que trabalha no redespertar da Alma quan-
do ela entra em contato com o mundo sensível das ideias através da henosis.
Toda cosmologia que envolve os ritos teúrgicos de Jâmblico foi exposta por
Platão em TIMEU.
Para Jâmblico, a realização última da filosofia não era a imaterialidade
da razão, mas a participação na Obra de Deus através da teurgia. Para ele, é o
poder dos ritos teúrgicos e não a abstração filosófica a chave para a união
com o divino. A Visão não-dualista de Jâmblico que unia o divino a matéria e
sua ênfase sobre a liturgia ritualística da teurgia influenciou profundamente
o Cristianismo ortodoxo, como oposto ao maniqueísmo gnóstico. Para Jâm-
blico, diferente dos gnósticos dualistas que depreciam a matéria, ideia tam-
bém encontrada em Plotino, de certa maneira, a encarnação da Alma na ma-
téria é o único meio pelo qual a Salvação pode acontecer. Essa Salvação o-
correria através da execução dos ritos teúrgicos, cuidadosamente baseados
no entendimento preciso da encarnação da Alma como demonstrada por
Platão em TIMEU, onde a Alma imita o deimurgo enquanto encarnada na ma-
téria. Essa imitação ou assunção de forma divina reside no coração da teurgi-
a.
Essa interpretação de Jâmblico, por outro lado, discorda da visão de
Plotino, que ensinava que a Alma não encarna completamente na matéria e,
portanto, não necessita ser divinizada ao reino dos Deuses. Jâmblico discor-
dava completamente dessa ideia de Plotino e dizia que a Alma encarna com-
pletamente no reino da matéria e por conta disso não possuía acesso direto
ao divino. Uma vez encarnada, a Alma não pode fugir ou se esquivar da ma-
téria e através da mediação de um ato sacramental, e apenas por meio dele,
é possível a alma receber a graça da teurgia dos Deuses, o método pelo qual
a Alma se refina ao ponto de se assemelhar ou possuir as qualidades de um
Deus. Essa ideia de Jâmblico foi tão impactante na Antiguidade que ela resi-
de ainda hoje no cerne da prática litúrgica da Igreja Romana, o sacramento
da Missa.
O mecanismo por trás do sacramento da Missa na Igreja de Roma resi-
de no fato de que por meio dele é possível a Alma ascender ao Reino de Deus
através da encarnação de Deus no mundo no momento em que a hóstia é
51
consagrada pelo Sacerdote. Quando a hóstia consagrada e sacramentada é
consumida, ocorre a descida da graça e o Espírito Santo atua diretamente
sobre a Alma, elevando-a ao Reino de Deus. Michel Salamolard em A EUCA-
RISTIA, ONDE TUDO SE TRANSFORMA, diz:
Acima, observei que, em todo sacramento [...] as duas realidades que se encontram
não são coisas, mas sujeitos, Deus e homem, parceiros de uma aliança de amor e de vi-
da. É possível agora definir a natureza desse encontro, o qual se realiza no e pelo Cris-
to. Ele é nossa porta de entrada na comunhão trinaria (cf. João, 10: 1-10), razão do que
é fácil de entender. É nele, em sua pessoa, que se realizou de maneira única, plena e
insuperável a união do humano com o divino. [...] Nele, todo humano está associado ao
divino. Portanto, cristificando-nos e tornando-nos semelhantes a Cristo, unindo-nos a
Ele, o sacramento nos diviniza.26
52
o corpo de Deus se transformou em Deus Imutável através da hipostática união, e o
que provém da unção permanece matéria animada, pois é formada uma alma intelec-
tual e racional e não algo incriado. Portanto, eu adoro a matéria cheia de energia divi-
na e graça, e prostro-lhe respeito por que através dela minha salvação alcanço.28
28 Citado pelo Papa Bento XVI no artigo: São João Damasceno: da veneração das imagens ao louvor da matéria,
«o grande mar de amor de Deus pelo homem».
29 O Papa Bento XVI diz: João Damasceno foi um dos primeiros a distinguir, no culto público e privado dos cris-
tãos, entre adoração e veneração: a primeira só pode dirigir-se a Deus, sumamente espiritual; a segunda, no
entanto, pode utilizar uma imagem para se dirigir àquele que é representado na própria imagem. Veja o artigo:
São João Damasceno: da veneração das imagens ao louvor da matéria, «o grande mar de amor de Deus pelo ho-
mem».
30 Não é possível dizer precisamente que João Damasceno leu Jâmblico, no entanto, pesquisadores supõem que
sim, devido a seu conhecimento íntimo de Platão e Aristóteles, além de sua afinidade óbvia com o neoplato-
nismo. Assim, supostamente João Damasceno conhecia Jâmblico, mas deliberadamente procurou omitir seu
nome. Isso ainda é motivo de pesquisa entre acadêmicos estudiosos, historiadores e filósofos.
31 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, III, 28.
32 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, V, 23.
33 Os magos da Idade Média compreenderam esse processo através da teurgia-goécia, cujo objetivo era elevar a
Alma ao reino dos deuses (As Chaves Maiores de Salomão) e trazer de lá os códigos de luz por eles transmitidos
a Alma. Os magos transmitiam estes códigos de luz a matéria através dos daimones, que operavam sob o co-
mando dos magos (As Chaves Menores de Salomão).
34 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, III, 30; V, 15.
53
O paradoxo reside no cerne da discussão filosófica sobre a encarnação
do divino: para os cristãos o divino encarna como Jesus Cristo, mas para os
teurgos neoplatônicos o divino encarna como a Alma humana. Toda a dou-
trina cristã está repleta da noção neoplatônica de que o divino desce a maté-
ria e através da matéria divinizada é possível retornar ao divino. A diferença
é que para os cristãos a matéria precisa ser redimida, enquanto que para os
neoplatônicos a matéria não precisa se redimir, pois ela contém e transmite
toda divindade do Bem. As crenças são paradoxalmente semelhantes, pois
através de atos sacramentais é possível retornar ao Reino de Deus. Os cris-
tãos chamam isso de salvação, mas os teurgos poderiam chamar poetica-
mente de alinhamento ou sintonização com o divino através da henosis.
Jâmblico ensinava que preces, invocações e atos sacramentais não mo-
dificam a mente dos deuses, por isso não são feitas na forma de petições, as-
sim como não funcionam como terapia, como é ensinado pelas escolas mo-
dernas. Ao contrário, sua prática leva a um tipo de sintonização com o divi-
no, transformando a matéria em um mecanismo através do qual o divino a
influencia diretamente. Essa sintonização é a própria Obra de Deus (teurgia),
que estabelece um tipo de sinergia entre a matéria e o divino. Jâmblico pos-
tulava que através da teurgia o mundo se torna o mundo divino, quer dizer, o
mundo que compreende o Uno, o Bem, deuses, daimones e heróis, diferente
do mundo não divino, compreendido como desprovido dos códigos de luz do
Uno,35 ideia defendia por outras correntes filosóficas e que encontram algum
respaldo em Plotino.
Jâmblico dizia que a teurgia é uma atividade divina compartilhada co-
munitariamente e não um conhecimento experienciado individualmente,
pois é impossível participar individualmente da ordem universal, mas apenas
em comunhão com o coro divino e àqueles que se levantam juntos, unidos em
mente. O Meio para se chegar ao Uno não está disponível a cada indivíduo por
si mesmo, a menos que ele se alinhe com o todo, retornando ao princípio co-
mum junto com todas as coisas.36 A teurgia, portanto, opera fundamental-
mente através da participação individual na ordem cósmica, não se esca-
pando da realidade material. Para Jâmblico, todas as experiências da Alma
humana encarnada na matéria são necessárias para que o teurgo possa rea-
lizar seu trabalho espiritual. Trata-se de uma visão não-dualista que vê o
mundo de maneira positiva, iluminada. Diferente da visão de Plotino que
rejeitava a matéria em detrimento de uma realidade espiritual, Jâmblico en-
sinava que é através da comunhão com os ciclos naturais, daimones, deuses e
heróis que a Alma se alimenta e retorna ao Uno.
Porfírio, biógrafo e editor de Plotino, foi duramente criticado por Jâm-
blico por dizer que os deuses eram espirituais demais para serem acessados
através de rituais teúrgicos pela razão da matéria ser completamente des-
provida de luz e sacralidade:
54
Essa doutrina [diz Jâmblico] soletra a ruína de todo rito sagrado e a comunhão teúrgi-
ca entre os deuses e os homens, uma vez que ela coloca os seres superiores fora da
terra. Isso equivale dizer que o divino está distante da terra e que ele não se mistura
com o homem e que esta região inferior é como um deserto desprovido de deuses.37
55
congregantes a possibilidade de elevar a Alma ao Reino de Deus através da
liturgia, liberando-a de seu transe material. Como acima mencionado, a
teurgia de Jâmblico teve profundo impacto na teologia postulada por João
Damasceno que, sob a luz da encarnação de Deus no sacramento, dizia que
toda a matéria era preenchida com a energia da graça. Isso foi completamen-
te demonstrado por Jâmblico quando ensinava que o Uno penetra comple-
tamente a realidade material, dando suporte as ideias defendidas por João
Damasceno acerca da encarnação. Jâmblico dizia que os códigos de luz do
Uno, que ele chamou de princípios superiores, são mais penetrantes (drium-
terai) que a influência densa das realidades inferiores. Proclo, por outro la-
do, ensinava que essa influência é mais extensiva. Seja como for, isso explica
que a inefável presença do Uno está também nos níveis mais densos da ma-
téria.
Na teurgia o cosmos material é uma algama, ou seja, um santuário do
Demiurgo. Em TIMEU (37c) Platão diz:
Assim, o cosmos material revela a presença dos deuses e por conta disso
Jâmblico via a matéria como uma teofania. Longe de ser caída, a natureza é a
face e o símbolo vivo do divino.
João Damasceno tem forte influência de Jâmblico, como observamos, o
que implica que a teologia cristã compartilha dessa mesma visão do cosmos
revelado pelo divino, um monumento aos deuses como postulado por Platão
na citação acima, mas diferente da interpretação pagã, um monumento cria-
do por Deus. A diferença é que a doutrina platônica é cosmocêntrica enquan-
to que a doutrina cristã é antropocêntrica. Como mencionado anteriormen-
te, a cristandade postula que a natureza é caída e por conta disso necessita
ser redimida. A encarnação do Homem Divino no papel de Jesus Cristo é es-
sencial para redenção da natureza e da ordem material. Após o evento da
encarnação de Deus na Terra, o cosmos material na interpretação cristã pas-
sa a ter a mesma função do cosmos material na interpretação de Jâmblico,
como uma diferença: para Jâmblico, o poder sacramental da matéria não ne-
cessita da encarnação de Jesus Cristo. O cosmos material é e sempre foi, in-
trinsecamente e inalteradamente, sagrado. Para o teurgo neoplatônico não
há a necessidade de uma nova criação ou a redenção de uma natureza caída,
pois a natureza é o seu corpo de salvação. A expressão natural no contínuo
progresso da demiurgia revela a coreografia de uma antiga e perpétua teo-
fania. Baseado neste conhecimento divino, Jâmblico ensinava que a teurgia
deve estar em sincronia e analogia com a criação.40 Os procedimentos teúrgi-
cos, assim, são efetivamente uma Obra de Deus quando estão em harmonia e
analogia com a atividade cosmogônica e é isso que distingue, fundamental-
56
mente, a teurgia da goécia (feitiçaria).41 Em DE MYSTERIIS Jâmblico postula
que àqueles que desviam os poderes espirituais de seus propósitos demiúr-
gicos são feiticeiros que, cedo ou tarde, cairão em desgraça.42 Jâmblico hon-
rava e venerava os egípcios pelo fato de seus rituais refletirem mimetica-
mente a demiurgia dos deuses. Ele defendia que a cultura egípcia era teúrgi-
ca, seus ritos e preces preservavam a medida eterna da criação.
Para Jâmblico, os rituais de teurgia de cada raça sagrada revelam o po-
der de seus deuses e a maneira apropriada de invocá-los. A teurgia neopla-
tônica se revela dentro de um cosmos pluralista e politeísta: a variedade de
culturas e o ambiente geográfico que elas pertencem corresponde a uma so-
ciedade teúrgica diversificada. Isso é consistente com a metafísica de Jâmbli-
co onde o inefável Uno só pode ser completamente conhecido por meio da
multiplicidade da matéria, o Um nos Muitos, uma hierofania tanto revelada
quanto que revela a Fonte Prístina. A teurgia, dessa maneira, é uma ativida-
de cosmogônica enraizada na Fonte Prístina que se manifesta na pluralidade
da matéria como uma ação generosamente demiúrgica.
Uma das maiores contribuições que Jâmblico fez ao Neoplatonismo foi
sua insistência, a despeito dos ensinamentos de Plotino e Porfírio, de que a
Alma desce completamente a matéria (corpo) e se encontre sujeita a todas
as consequências da existência mortal. Jâmblico define a Alma da seguinte
maneira:
A Alma é o meio (mesē), não apenas entre o dividido e o não dividido, o remanescente
e o processo, o noético e o irracional, mas também entre o não gerado e o gerado [...].
Assim, o que é imortal na Alma é preenchido completamente com a mortalidade e não
permanece apenas imortal.44
e todos os Ancestrais, se referindo provavelmente aos filósofos pré-socráticos. Citado por Gregory Shaw,
THEURGY AND THE SOUL: THE NEOPLATONISM OF IAMBLICHOS.
44 Jâmblico, DE ANIMA, 89.33-37.
57
cos, a condição de toda Alma humana. Como encarnados, nós somos imortais
e mortais ao mesmo tempo. Para Jâmblico, isso é uma coincidentia opposito-
rum: a encarnação muda não apenas a atividade da Alma, mas também sua
natureza ou essência. Nossa unidade se torna dividida, nossa imortalidade
se torna mortal, nossa identidade se torna autoalienação. Jâmblico dizia que
quando encarnada, a Alma faz outro (heteroiousthai) de nós mesmos. E
mesmo assim, é somente através dessa autoalienação (allotriōthen) que
constitui nossa existência que somos capazes de participar da perpétua de-
miurgia do cosmos. Como um mediador da cosmogênese, o teurgo coopera
com a obra do Demiurgo tecendo uma unidade em meio a multiplicidade,
permitindo assim que as Formas se tornem corporificadas.
Na teurgia a Alma coopera com o Demiurgo e para fazê-lo ela deve es-
tar em meio a divisão, fraqueza e mortalidade. É apenas nessa condição, i-
mersa a multiplicidade, que a Alma pode contatar a atividade unificadora do
Demiurgo. Através da teurgia, diz Jâmblico, a Alma experimenta completa-
mente este paradoxo:
Se as formas adoradas [nos ritos de teurgia] são apenas costumes humanos e recebem
sua autoridade apenas de hábitos culturais, alguém poderia argumentar que o culto
aos deuses é uma invenção criada pelo pensamento. Mas o fato é que aquele invocado
nos sacrifícios é Deus e ele os preside47 e um grande número de deuses e anjos o cer-
cam. E cada raça nessa terra é atribuído um guardião por este Deus e a cada templo
também é atribuído um guardião particular.48
DE MYSTERIIS, 273.
48 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 236, 1-6.
58
Em um mundo repleto de poderes divinos, a tarefa do teurgo é encontrar
uma maneira de honrar os deuses de forma apropriada, levando em consi-
deração as condições culturais e geográficas, bem como os elementos essen-
ciais para execução dos seus ritos de teurgia. A geografia é sempre impor-
tante e ela revela os meios de adoração discerníveis a olho nu.
59
disso, como matérias irmãs e que se complementam. Isso porque a teurgia
segue alguns padrões universais – em um sentido historicamente determi-
nado de gênero espiritual – e a filosofia é parcialmente baseada na trans-
formação do ritual para o discurso racional, quer dizer, uma cerimônia má-
gica de pensamentos.
O ritual é tanto ação, trabalho, empreendimento, ordem, regra e lei. As-
sim, o ritual e a ordem cósmica, incluindo a ordem das estações e a ordem do
logoi, que estão em sincronia e são inseparáveis. Em TIMEU (37c) Platão diz
que os cosmos é um monumento aos deuses eternos. A dialética filosófica ne-
oplatônica segue este mesmo curso de manifestação divina e gradual inte-
gração das múltiplas partes manifestas na fonte de luz primordial.
SUNTHĒMATA
60
de realeza que propunham o Estado como um espelho do cosmos.50 Estas
tradições espirituais e suas tecnologias místicas e mágicas que propunham
uma harmonia entre todas as partes da Alma humana e o continuum do cos-
mos, quer dizer, a teurgia propriamente dita, se transformou e sobreviveu
como um mecanismo de aperfeiçoamento – ou enriquecimento – da Alma e
seu processo de salvação, tema sobre o qual toda tradição Platônica se de-
bruça.
Nesse caminho, a Teurgia Clássica Neoplatônica cujo expoente mais
destacado é Jâmblico (245-325 d.C.) seria a helenização de uma tradição me-
tafísica comum de renascimento e imortalidade solar compartilhado, por
exemplo, pelos pitagóricos, órficos, dionisíacos, caldeus, babilônios, egípcios
e no Extremo Oriente, védicos.
Dito isso, faz sentido olhar a theourgia não em um sentido Neoplatônico
apenas, que leva em consideração o neologismo cunhado no Séc. III d.C. a
partir dos ORÁCULOS CALDEUS, mas de maneira mais simples, como a obra dos
deuses (theon erga) e a teofania que essa obra implica. Assim temos teurgia
como:
Para que os dois pontos acima sejam aceitos como válidos, deve haver uma
cosmovisão que os respalde. E ela existe: espírito e matéria se entrelaçam
dentro de uma mesma substância. Essa cosmovisão subjaz a própria hiero-
fania dos deuses no mundo e, portanto, sustenta que não existe diferença
entre os deuses e suas imagens (estatuetas, símbolos ou ídolos, estações do
ano, paisagens, templos, árvores ou seres humanos como dramatis persona-
e). Quando elas são utilizadas como veículos para invocar o nome ou a es-
sência da substância dos deuses, tornam-se animadas, quer dizer, magica-
mente transformadas de uma mera imagem material em um ídolo magneti-
zado ou infundido com a substância noética que ele representa. A matéria é
a manifestação da Luz noética que soa e provê vida; dito de outra forma, o –
ou no – mundo a luz noética vibra e permeia em todas as coisas, animando
tudo com vida e substância espiritual. As imagens (sinthemāta) sagradas,
dessa forma, são veículos da presença do divino.
Em DE MYSTERIIS, fica nítido o apelo que Jâmblico faz aos mistérios do
Egito. Neste ensaio, o qual responde inúmeras indagações e postulados acer-
61
ca da teurgia feitos por seu professor, Porfírio (cerca de 234-304 d.C.), Jâm-
blico sustenta a visão Platônica de que a teologia egípcia é teúrgica pelo fato
de imitar a engenharia dos cosmos e a energia criativa dos deuses como a-
gentes ou vetores de força da grande engrenagem do Universo. Na teologia
egípcia, uma ação que esteja em ressonância direta com o cosmos é uma a-
ção ritualística, quer dizer, uma ação executada liturgicamente. Essa ação, no
entanto, não é individual. Nos rituais de teurgia, os sacerdotes egípcios se
identificavam com os deuses. Esse tipo de ação ritual está presente até nos
PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, onde a consciência individual chega a ser
anulada em detrimento da possessão divina. Os filósofos e sábios caldeus,
hermetistas e representantes da genuina tradição dos maghdim, não se colo-
cavam como executores individuais da teurgia, mas apenas símbolos ou más-
caras que imitavam a demiurgia do cosmos. Ao fazê-lo, eles apenas compar-
tilhavam diretamente com os deuses da Obra Divina (theourgia), como veí-
culos dela, não seus executores, iniciadores ou finalizadores. A teurgia ocor-
re no continuum perpetuamente como a obra dos deuses. O teurgo apenas
participa dela através do ritual. Essa visão sobreviveu particularmente no
Neoplatonismo e no neopitagorismo.
A Imagem Sagrada dos deuses, sua sunthemāta, são animadas com seus
veículos pneumáticos noéticos e elas podem ser, como acima demonstrado,
árvores, o sol, a lua e as estrelas, as montanhas, estações e o por do sol, mas
também pedras, estatuetas ou ícones. Neste último caso pode-se fazer um
paralelo com a doutrina tântrica do nyāsa, cujo objetivo é infundir ritualisti-
camente prāṇa (essência vital) em uma estatueta ou no próprio corpo físico,
transformando ou transubstanciando sua matéria densa em um corpo divi-
no, simbolizado no conceito filosófico de āsana, não como assento, mas como
perfeição adquirida. É neste sentido e não àquele do assento, que o Yogasū-
tra do sábio Patañjali diz que āsana leva o praticante a se tornar imune dos
pares de opostos. Continuando, uma ação que não seja ritualizada não é uma
ação divina, mas apenas um ato secular ordinário. Uma ação ritualizada es-
tabelece um padrão eidético na mente, fazendo daquele que o executa um
mediador da luz neótica entre a matéria e os planos de luz e perfeição.
A compreensão do que é um ritual de teurgia é necessária para o fe-
chamento de nosso raciocínio. Um ritual de teurgia invoca a perfeição divina.
Essa é a interpretação de inúmeros teúgos da Antiguidade até os dias de ho-
je. Através da execução de um rito teúrgico, um portal de acesso é aberto,
fazendo do teurgo um mediador entre o céu e a terra. O ritual em si ocorre
no reino dos deuses, que o testemunham e participam dele em um eterno
continuum, quer dizer, a própria demiurgia do cosmos. É isso que torna um
ritual de teurgia sagrado, pois através dele espírito e matéria se entrelaçam
dentro de uma mesma substância. Nesse caminho, o ritual dá ao teurgo o
acesso a esse perpétuo entrelaçamento de matéria e espírito.
Da mesma maneira que um teurgo neoplatônico se transforma no deus
que ele invoca, o teurgo tântrico também assume a forma do deus no iṣta-
devatā. Esse é o ponto crucial da ritualística teúrgica, quando o corpo do
62
teurgo se torna um verdadeiro templo, um agalma ou imagem viva trans-
formada em acordo a iconografia cultural e ritualística. Um teurgo em seu
ritual, dessa maneira, é um agathos aner, uma imagem do próprio divino e
encarnação da virtude e de tudo o que é belo, harmônico e estável.
63
SEÇÃO . I I .
A DOUTRINA DO ÍCONE NA TRADIÇÃO CATÓLICA
Quando virmos aquele que não tem corpo tornar-se homem por nossa causa, então
poderemos executar a representação de seu aspecto humano. Quando o Invisível, re-
vestido de carne, se tornar visível, então representa a imagem daquele que apareceu
[...]. Quando aquele que é a Imagem consubstancial do Pai despojou-se, assumindo a
imagem de escravo (Fl 2:6-7), tornando-se assim limitado na quantidade e na qualida-
de por se ter revestido da imagem carnal, então pintamos [...] e expomos à vista de to-
dos Aquele que se quis manifestar. Pintemos o seu nascimento da Virgem, o seu ba-
tismo no Jordão, a sua Transfiguração no monte Tabor, pintemos tudo com a palavra e
com as cores nos livros e na madeira.56
56 São João Damasceno, APOLOGIA CONTRA OS QUE CONDENAM AS IMAGENS SAGRADAS, Paulus.
64
O fundamental e primeiro ícone - tomando a palavra no seu significado mais
amplo de imagem - é, assim, a própria face de Cristo. E podemos representá-
la, porque não se trata mais de uma imagem inacessível à vista, mas de uma
pessoa real. O ícone de Jesus Cristo exprime, através da imagem, o dogma do
Concílio da Calcedônia em 451: o ícone não representa tão-só a natureza di-
vina, nem só a natureza humana de Cristo, mas representa a sua Pessoa, a
pessoa de Deus-Homem, que reúne em si «sem mistura nem divisão» as duas
naturezas. No ocultismo católico, portanto, o ícone fundamental do altar do
mago é a Cruz de Cristo.
65
O ícone não é o resultado de uma intuição ou a figuração de uma im-
pressão do artista; ele é fruto de uma tradição e, antes de ser pintado, é uma
obra profundamente meditada, pacientemente elaborada por gerações de
pintores. O ícone não é um quadro; nele vem representado não aquilo que o
pintor tem diante dos olhos, mas certo protótipo a que ele deve ater-se. A
veneração dos ícones deriva da veneração do protótipo. Os ícones são beija-
dos; através deles esperam-se curas; são venerados, porque são representa-
ções de Cristo, da Virgem Maria, dos Santos. Os ícones entram no ofício litúr-
gico. A iconografia é, de certo modo, uma arte ritual. A reverência devida ao
ícone e a sua criação foram rigidamente regulamentadas pelo VII Concílio
Ecumênico. Os eclesiásticos consideravam-se verdadeiros criadores de íco-
nes e os artistas eram tidos como realizadores das ideias deles.
Os ícones são janelas que se abrem para eternidade. Através do ícone o
divino nos ilumina. A luz é o atributo principal da glória celeste e os ícones
representam os habitantes do Reino, contempladores da luz incriada, pela
qual se deixam penetrar até se tornarem esplendorosos, como indica o nim-
bo ao redor de seus rostos (os nimbos não são, como as auréolas ou as coro-
as, simples sinais da santidade). O ícone, visto com os olhos do coração ilu-
minados pela fé, nos abre para a realidade invisível, para o mundo do Espíri-
to, para a economia divina, para o mistério cristão na sua totalidade ultra-
terrena. É lugar teológico, antes, teologia visual.
O ícone é inspirado e sagrado de modo específico, símbolo que contém
presença, cujo tempo, espaço e movimento não são representados pela per-
cepção comum. A própria laconicidade de seus traços nos remete para uma
mensagem de fé, a visão do Invisível, para empregar as palavras do Apóstolo
Paulo (Hb 11:1). O ícone se afirma independentemente do artista e do espec-
tador e suscita não a emoção, mas a vinda do transcendente, cuja presença
ele atesta. O artista se esconde atrás da Tradição que fala. A obra torna-se
uma manifestação de Deus, diante da qual devemos nos prostrar num ato de
adoração e de oração. No recolhimento e no silêncio, os olhos se abrem para
a luz da Transfiguração e seremos naturalmente conduzidos pela força do
Espírito à luz do ícone, a fim de contemplar não só a face de Jesus, mas tam-
bém a luz da verdade divina.
Os ícones estão presentes, portanto, nos rituais de teurgia e magia cris-
tã em conformidade com a teologia prática do ocultismo católico. Estes íco-
nes são símbolos do Divino transcendente através do qual podemos acessar
a Fonte Paterna ou Pai das Luzes, Deus, e toda sua milícia celeste que traz as
medicinas planetárias para cura da personalidade do mago e o enriqueci-
mento de sua Alma com os códigos de luz do Reino dos Céus.
Nós passaremos ao estudo da liturgia, mas antes devemos ver no pen-
samento de Santo Agostinho e da Igreja Primitiva como a doutrina teúrgica
pode ser encontrada dentro da tradição cristã como uma herança espiritual.
66
SEÇÃO . I I I .
SANTO AGOSTINHO & A HERANÇA TEÚRGICA
No início deste texto foi mencionado que é possível encontrar uma herança
teúrgica tanto no pensamento de Santo Agostinho como no pensamento de
Orígenes. A teologia do Logos governante de Orígenes onde o Deus trans-
cendente, materialmente manifestado à humanidade, torna a participação na
vida divina acessível num grau não previamente concebido é o que convida a
uma assimilação conceitual do pensamento teúrgico no cristianismo e que
sua teologia obriga os pensadores cristãos a repensarem sobre a capacidade
da realidade material de mediar o divino. É a conceituação cristã do Logos
como a Palavra de Deus decorrente de um sentimento de que Deus se tornou
acessível aos seres racionais, tornando possível através do Logos à diviniza-
ção da Alma. Trata-se de uma clara adaptação do pensamento teúrgico que
tratamos acima.
Existem algumas formas através das quais é possível um encontro com
o Logos: as teofanias do ANTIGO TESTAMENTO, o engajamento exegético com o
Evangelho, a Carne e o Sangue de Cristo através do Sacramento Eucarístico.
O engajamento exegético e a participação sacramental são para Orígenes as
práticas da formação cristã, onde o cristão é alimentado pela Palavra de
Deus tanto sob a forma de exegese escrituristicamente fundamentada e ho-
milética, como a forma de pão eucarístico, onde o pão é apreendido como
uma extensão da encarnação, o pão vivo que desceu do céu. A Palavra é assim
manifestada tanto sob a forma de palavras do Evangelho que a expressam,
quanto sob a forma da Carne e do Sangue de Cristo que a veste, permane-
cendo em continuidade com o pão que alimenta. Dentro deste complexo de
ideias, não é difícil ver como esse alimento para a alma, o pão da vida, con-
cebido nas linhas do corpo material, é razoavelmente conceituado como um
símbolo, que media um encontro com o Logos, no qual a Alma é reconstituída
de acordo com seu modelo próprio, e passa a participar da Vida de Cristo,
eterno e ressuscitado, alcançando uma ascensão a Deus. Na teurgia de Jâm-
blico, o envolvimento ritual com o símbolo do culto expressa a participação
interna da Alma no Logoi disseminado através da realidade pelo Demiurgo
criativo; no sacramento cristão, a participação ritual no símbolo eucarístico é
invocada como expressão de um encontro interior com o próprio Logos, que
purifica e reconstitui a Alma Intelectual (ou ser racional) de acordo com o
modelo estabelecido por Cristo, a corporificação do Logos. Essa visão, impul-
sionada pela encarnação do Logos, naturalmente requer que os pensadores
cristãos reconfigurem a corporificação material como um local de santifica-
ção e, da mesma forma, eliminem outras formas de mediação transcenden-
tes, como os daimones platônicos que agora são vistos como obstáculos para
a própria ascensão da Alma.
Nesta seção, espero sugerir que o envolvimento indireto de Santo Agos-
tinho com a teurgia em seu A CIDADE DE DEUS pode fornecer informações in-
67
teressantes para uma discussão das tendências teúrgicas no pensamento
cristão primitivo. Como um orador latino no Ocidente, removido cultural e
temporalmente do Oriente grego e semítico de Orígenes e Jâmblico, Santo
Agostinho é um caso interessante por várias razões. Obviamente, seu traba-
lho oferece a oportunidade de testemunhar como um pensador cristão lida-
va diretamente com a teurgia, já que, na época de Santo Agostinho, ela se
tornara um sistema de pensamento, ou pelo menos um conjunto reconhecí-
vel de questões controversas até para os filósofos pagãos, enquanto que o
pensamento de Orígenes precede a virada teúrgica do neoplatonismo tardio
por vários anos. Santo Agostinho pode assim ser lido como um participante
direto nas disputas geradas pelo trabalho de Jâmblico, especialmente consi-
derando que seus argumentos em A CIDADE DE DEUS são dirigidos diretamen-
te a Porfírio, professor de Jâmblico e cujas objeções o levaram à defesa da
teurgia em seu monumental DE MYSTERIIS. Principalmente, porém, nosso in-
teresse deve estar no fato de que Santo Agostinho justifica a eucaristia cristã
dentro de parâmetros que são paralelos ao que vemos em CONTRA CELSO de
Orígenes. Paralelamente ao pensamento de Orígenes da teurgia à luz da teo-
logia do Logos e sua assimilação do símbolo (symbolum ou sacramentum) a
um discurso sacramental, Santo Agostinho emprega a linguagem do signo
(signum) para marcar o ponto do encontro sacramental com a realidade
transcendente. É curioso que Santo Agostinho tente modificar a linguagem
de Orígenes tão parecida a linguagem teúrgica de Jâmblico para justificar
diferenças tangíveis entre a prática ritualística cristã (liturgia) e a prática
ritualística helênico-filosófica de Jâmblico (teurgia).57
Na doutrina do signo de Santo Agostinho o pão eucarístico, concebido
como signum, pode ser entendido como conceitualmente paralelo a uma pa-
lavra vocalizada, verbum, que é entendida como transmitindo uma realidade
incorpórea substantiva. Essa substância interior, sustentada pelo enunciado
material de uma palavra, explicada por Santo Agostinho em termos de sua
teoria da palavra interior, cria um espaço conceitual para um signo ritual,
posicionado tanto nessa teoria da linguagem quanto em sua teologia o Logos
e, grosseiramente análoga ao symbolum de Orígenes, que é também um ter-
mo linguístico essencial, reimplantado em um contexto ritual. Assim, tanto o
signum de Santo Agostinho quanto o symbolum de Orígenes são reconfigura-
dos como designadores de uma manifestação real de uma realidade substan-
tiva invisível, como signos ou símbolos exteriores que significam a realidade
transcendente do Verbum, o Logos ao qual o cristão assimila como uma me-
dicina de cura para Alma. Assim, a eucaristia torna-se, para Santo Agostinho
como para Orígenes, um rito teúrgico como aos ritos da teurgia de Jâmblico,
mas vinculado exclusivamente a um mediador singular, fornecido pela teo-
logia cristã como um encontro mais imediato com Deus.
57A diferença tangível de teurgia para liturgia é que a teurgia trata-se de um esforço pessoal em inserir o teur-
go na Obra de Deus; a liturgia, por outro lado, é um esforço coletivo como o próprio nome ensina, quer dizer,
um serviço divino em favor do povo, uma caridade de Deus para o povo, sendo assim de função exclusiva a de
inserir todos os fiéis na Obra de Deus através do sacrifício da Eucaristia.
68
Ao desenvolver essa teoria, Santo Agostinho emprega uma retórica du-
alista a seu favor, mascarando seus necessários endossos da realidade mate-
rial por trás de um argumento antimaterial, frequentemente estridente à
medida que ele descarta o ritual de cultos pagãos que utilizam daminones
(que agora são demônios) como mediadores de culto58 entre Logos e os ho-
mens. Ele então introduz a Eucaristia cristã como o substituto perfeito para
os rituais pagãos defeituosos erroneamente ligados aos daimones, oferecen-
do o Cristianismo como a alternativa às antigas tradições que não oferecem
uma ascensão genuína da Alma na esquiva da materialidade na qual os pa-
gãos estão inescapavelmente fundamentados. Assim como Orígenes, Santo
Agostinho retalha suas intenções através de um argumento que enfatiza a
diferença, tentando mascarar sua adoção de princípios teúrgicos similares
àqueles que sustentam os ritos pagãos tradicionais de teurgia. Precisamos
considerar:
58 O propósito central dos livros 6-10 de A CIDADE DE DEUS é promover a afirmação de que sacrificios aos dai-
mones (demônios) ou a outras divindades inferiores (também demônios) é insignificante e ineficaz no que diz
respeito à vida após a morte humana. De fato, apesar do elogio que ele de outra forma reserva para eles, Santo
Agostinho condena Platão e seus herdeiros por sua singular falha em permitir o culto aos daimones. Plotino,
Jâmblico, Porfírio e Apuleio eram todos distintos, mas mesmo eles, e os outros que eram da mesma escola e, de
fato, o próprio Platão, sustentavam que os ritos sagrados deveriam ser realizados em honra de muitos deuses.
Santo Agostinho, por sua vez, afirma que ser enlaçado e enganado pela astúcia dos espíritos malignos [daimo-
nes] é vagar longe do verdadeiro Deus, com quem sozinho, e em quem sozinho e por quem somente o humano -
que é, o racional e intelectual - a alma é abençoada.
59 Na tradição pagã da teurgia, os daimones estão acima das Almas encarnadas na hierarquia divina. Na sua
interpretação, interior a hierarquização celestial formulada por Dionísio Pseudo-Areopagita no Séc. V, Santo
Agostinho aloca os daimones (demônios) abaixo das Almas encarnadas. Veja o próximo texto.
69
existência material. A Eucaristia convoca para o tempo e o espaço atu-
ais a presença de Jesus Cristo que, uma vez Encarnado, Deu-Homem
manifesto carne, demonstrou ser possível divinizar a matéria pelo
poder do Logos. Os demônios (daimones) miseráveis uma vez imortais
são assim substituídos pelo abençoado e (passageiro) Cristo mortal –
um movimento que faz de Cristo um remédio preciso para os defeitos
identificados na tradição pagã. O argumento de Santo Agostinho pode
inicialmente parecer metafisicamente dualista, uma vez que ele é ur-
gente em negar qualquer vantagem resultante da influência daimôni-
ca, mas o dualismo se atenua à medida que o foco do argumento muda
dos daimones para Cristo, quando Santo Agostinho esclarece sua visão
da matéria como um substrato neutro para a mediação do contato
com um principium divino (o Logos encarnado).60
4. Santo Agostinho, como mencionado acima, explica através de sua dou-
trina dos signos a mediação de Cristo entre os homens e Deus no culto
eucarístico. O segredo reside na convicção da palavra interior, o Ver-
bum na expressão tangível de um signo que possui uma substância in-
corpórea. Essa realidade incorpórea espiritual é transmitida de mente
a mente durante a Eucaristia, um sinal sacramental que opera como
veículo de participação de todos os presentes no sacrifício de Cristo
que se torna tudo em todos (Cl 3:11).
Esse argumento é inicialmente obscurecido pelo distanciamento
que Santo Agostinho tenta estabelecer entre o culto litúrgico cristão e
seus equivalentes pagãos. Para fazer esse trabalho ele estabelece uma
diferença entre o signo conforme a interpretação pagã e sua diferença
da interpretação cristã, nos moldes muito parecidos aqueles estabele-
cidos na Índia por Śāṅkarācārya na promulgação do Vedānta como o
culto que nasceu para reinterpretar a tradição bramânica dos Vedas.
Assim como Śāṅkarācārya defendeu o sacrifício interior em detrimen-
to dos sacrifícios exteriores executados pelos sacerdotes brâmanes,
Santo Agostinho defendeu que o signo como compreendido no rito eu-
carístico tratava-se de um sacrifício interior, o oratio, que o Pontífice
Bento XVI explana belamente: [...] os sacrifícios animais e todos os cos-
60 A doutrina Cristã não nega o corpo ou o mundo como afirmam muitos desentendidos, mas ao contrário, ela
nos exorta a disciplinar o corpo e os sentidos para experimentar no mundo a graça de Deus. O desprezo do
corpo foi uma doutrina herética pregada por gnósticos, montanistas e maniqueístas cujas doutrinas foram alvo
de críticas pelos Pais da Igreja. São João Crisóstomo diz sobre eles: Muitos hereges afirmam que o corpo não é
criado por Deus. Vejamos, ele não merece ter sido criado por Deus, eles dizem, evocando a sujeira, o suor, as lá-
grimas, o esforço, a exaustão, e todas as outras imperfeições corporais [...]. Mas não falam para mim sobre o ho-
mem caído, condenado e humilhado. Se quisésseis saber qual é o corpo que Deus tinha nos oferecido no princípio,
vamos para o paraíso contemplar o primeiro homem criado. Quando o cristianismo critica o corpo, refere-se ao
pecado cometido em detrimento das paixões e sentidos viciados, o que distancia a todos nós da luz. A ascese
cristã com o exercício da mortificação visa aniquilar as paixões da Alma, não desprezar o corpo como se ele
fosse uma catacumba para ela. A ascese mística cristã luta contra o pecado original que mancha a Alma, por-
tanto, trata-se de uma purificação espiritual para tornar a Alma digna do modelo divino. Uma vez com corpo e
Alma purificados somos livres para louvar a grandeza de Deus (Ef 1:5-6) e agradecer a graça de estarmos
vivos. É pela graça de possuir o Logos, a razão, que o homem é capaz de reconhecer e louvar a Deus. A visão
que o cristianismo tem do homem e do mundo é, portanto, positiva e todos somos exortados a inferir Deus
através da maravilha da criação (Sl 19:1-6), como nos ensina o Apóstolo Paulo (Rm 1:20-21).
70
tumes que existiam e existem até agora entre vós e que, todavia, não
podem satisfazer ninguém, foram agora substituídos. No lugar deles, as-
sumiu o sacrifício-palavra. Nós somos a religião espiritual na qual, na
verdade, tem lugar o culto na modalidade da palavra, em que não são
mais imolados cabras e novilhos, mas vem dirigida a Deus a palavra
como expressão de nossa existência, a palavra que se funde a «Palavra»
em sentido absoluto, com o Logos de Deus que nos atrai para dentro da
verdadeira adoração. [...] Nesta «oratio» o sacerdote fala juntamente
com o Eu do Senhor: «isto é meu corpo», «isto é meu sangue», na consci-
ência de que ele, agora, não fala mais em nome próprio, mas em virtude
do Sacramento por ele recebido, se torna a voz do Outro que agora fala
e age através dele. Esse agir de Deus que se cumpre através do discurso
humano é a «Verdadeira» ação de que toda criação está à espera. [...] A
verdadeira ação na liturgia, a qual todos devemos fazer parte, é o agir
do próprio Deus.61 Se liturgia não é a teurgia em âmbito coletivo, o que
mais pode ser?
O efeito dessa estratégia de Santo Agostinho é distanciar o rito cris-
tão de qualquer associação com magia, teurgia ou cultos pagãos enfa-
tizando primariamente o conteúdo ético de uma disposição sacrificial
adequada; no entanto, quando Santo Agostinho vincula a disposição
interior de sacrifício à ideia mística de auto-oblação de todos os cris-
tãos unidos em Cristo, ele começa a dotar o signum / sacramentum
tangível e visível da Eucaristia com uma força ritual que atrai cristãos
em unidade verdadeira com Cristo, que é o sacrifício interno e invisí-
vel da Igreja, transmitido aos cristãos através do signum. Quer dizer, a
Eucaristia como um signo deve, na verdade, mediar uma conexão di-
vina e direta com Deus através de Cristo, não simplesmente sustentar
alegoricamente uma alegoria como muitos insinuam.
SEÇÃO . I V .
61Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), TEOLOGIA DA LITURGIA: O FUNDAMENTO SACRAMENTAL DA EXISTÊNCIA CRISTÃ,
Obras Completas, Vol. XI.
71
A LITURGIA NA IGREJA PRIMITIVA
72
TEURGIA & GOÉCIA
Poderá o tempo varrer de longe os nomes da- Que os profanos daqui se afastem! Que os sacrí-
queles que outrora foram gigantes e fundaram legos daqui se afastem! Que os traiçoeiros daqui
nossa Tradição Esotérica Ocidental. No entanto, se afastem! Que os assassinos daqui se afastem!
estes viverão eternos na memória daqueles que Nós juramos devoção aos Deuses, honra aos
em sabedoria valorizam àquilo que vem primei- Heróis, solidariedade aos nossos irmãos e re-
ro. Em nossas memórias, Jâmblico, o divino, pulsão aos zombadores, difamadores, delatores
para sempre viverás. e perjuros.
A
osa. Por exemplo, a Missa da Igreja Católica é considerada um ritual teúrgico
e na verdade, toda a liturgia católica foi inspirada na teurgia neoplatônica.
Neste campo de análise muitos autores, acadêmicos e estudiosos, têm tenta-
do estabelecer uma relação entre a magia e o exercício religioso, no entanto,
pela ampla gama de definições produzidas acerca do termo (mageia),
entramos em um terreno pantanoso quando comparamos e tentamos dife-
renciar teurgia, magia e religião.
O termo grego é utilizado para descrever um amplo arranjo de
práticas mágicas que vão desde encantamentos e maldições, fascinação espi-
ritual, amuletos mágicos e uso de intoxicantes de todos os tipos: álcool, dro-
gas, fumos, plantas de poder, poções () e veneração aos mortos
(necrurgia e necromancia). Essas práticas desde a Antiguidade são associa-
das às palavras (mageia) e feitiçaria. O exercício da teurgia, antes de
ser derivado de um arranjo de práticas mágicas, pode ser rastreado em vá-
rias tradições religiosas da Antiguidade como por exemplo o pūjā tântrico, a
invocação e o sacrifício das culturas helênica e egípcia, assim como os orácu-
los dos deuses, principalmente àquele através de estatuetas, uma das princi-
pais práticas religiosas para divinação da cultura egípcia na Antiguidade,
onde deidades (neteru) eram cultuadas e carregadas em procissões, uma
prática tanto pública quanto familiar. No entanto, alguns elementos da ritua-
lística teúrgica, como por exemplo os (nomes bárbaros),
muitas vezes referidos como voces magicae, são técnicas mágicas por exce-
lência. O uso de símbolos e insígnias mágicas utilizadas nos ritos teúrgicos
foram extensamente empregados nos cultos de mistérios da Antiguidade
como as tradições divinatórias, onde símbolos eram utilizados oracurlamen-
73
te para presságios e outros prognósticos, assim como a tradição pitagórica
onde eles denotam aforismos de sabedoria. No entanto, como veremos no
texto OS SÍMBOLOS NA TEURGIA, a utilização do símbolo na liturgia teúrgica
permite ao teurgo acesso aos reinos de luz e perfeição onde residem, por
exemplo, os espíritos das virtudes da sabedoria, coragem, temperança, pru-
dência etc.
Na visão teúrgica neoplatônica de Jâmblico, podemos dizer herdeira da
tradição pitagórica, existe a noção de iniciação, prática também herdada de
tradições de mistérios como Eleusis, originária da Grécia e amplamente co-
nhecida por todo o Mediterrâneo.
Tem sido difícil estabelecer uma relação entre a teurgia e a magia pelo
fato do termo ser associado a um grande número de práticas e por-
que vários termos utilizados na Antiguidade denotavam o exercício de
, como o termo , utilizado sempre de forma pejorativa. A pa-
lavra (no latim magia) deriva da palavra persa magos, que significa
sacerdote, sendo usada em um contexto estritamente religioso. Mas a partir
do Séc. VI d.C. os gregos passaram a conectar o termo a mendigos,
feiticeiros, idólatras e adivinhos de todos os tipos, acumulando conotações
negativas no mundo greco-romano, o que levou a utilização popular depre-
ciativa dos termos (magia) e (goécia), utilizados de forma
intercambiável. No entanto, embora essa utilização depreciativa dos termos
fosse popularmente praticada, desde a Antiguidade alguns filósofos se esfor-
çavam para manter fiel o significado do termo como uma função sa-
cerdotal persa. É por isso que Jâmblico se recusa a utilizá-lo em sua obra DE
MYSTERIIS, evitando assim qualquer má interpretação, generalização ou po-
lêmica, contrariando a visão cristã de que teurgia e magia eram as mesmas
artes.
Mas Jâmblico, por outro lado, é categoricamente criterioso e rígido na
distinção entre teurgia e magia no sentido de goécia:
74
acessar através do ritual. O termo foi utilizado por Jâmblico somen-
te duas vezes no seu DE MYSTERIIS, denotando o feiticeiro, não sua ação ritual.
A diferença essencial entre teurgia e é, portanto, o estilo de vi-
da e a receptividade do ritualista praticante, pois a teurgia trata-se de elevar
a Alma aos reinos de luz e perfeição. Isso clareia bastante a distinção entre
teurgia e , pois revela que a diferença reside na disposição interna
do praticante, sua motivação fundamental. O teurgo é àquele que se dedica a
uma vida de disciplina, purificação, estudo, devoção e a prática das virtudes.
Em DE MYSTERIIS Jâmblico responde as indagações de Porfírio acerca da ca-
racterização mágico-ritualística do praticante dizendo: Por causa destes que
dela [i.e. ] fazem mau uso, não é fácil fazer justiça a essa forma de di-
vinação em uma simples definição.62 Aqui Jâmblico estabelece uma distinção
entre o magista, quer dizer, o mago-feiticeiro () e o teurgo. O feiticeiro
usa da falsidade e da mentira em seus métodos, produzindo na Alma um
movimento anatrópico e centrípeto. Esse movimento de inversão total da
Alma, por outro lado, cria o ambiente ideal para aproximação de entidades
densas e de força cega (kakodaimones), miasmas e cascões de todos os tipos.
A teurgia, por outro lado, inverte a condição anatrópica da Alma, levando o
teurgo aos reinos de luz e perfeição onde habitam os deuses e os espíritos
das virtudes. Desse modo, a teurgia não dá acesso a entidades densas e de
força cega, pois nela existe a presença da luz divina dos reinos celestiais. Es-
sa luz divina é um bloqueio para a presença de entidades densas e feiticeiros
de caráter torpe e duvidoso.63 A luz não aceita nada que seja distinto de sua
natureza.
Porfírio e Jâmblico estavam em acordo sobre a natureza da magia
() e que o mago-feiticeiro () atrai para si a obsessão de kako-
daimones (entidades malignas) através de sua impureza, impiedade e ilega-
lidade, marcando uma diferença contrastante ao homem divino, àquele que
é sábio sobre as coisas de Deus e cuja piedade age como guarda e proteção
na sua busca por forjar conexões com os planos de luz e perfeição. Jâmblico
argumenta ainda que o feiticeiro () é espiritualmente inferior ao teurgo,
pois ao feiticeiro falta receptividade, disciplina, persistência e preparação
filosófica. Para Jâmblico o feiticeiro deturpa a ideia de contemplação divina,
acabando por servir e trabalhar em função de entidades malignas, tornando-
se, em certa medida, escravos delas. Dessa forma, nós vemos em Jâmblico a
critica a postura do feiticeiro, não a tecnologia mágica que ele utiliza. O que
Jâmblico condena é a falta de disciplina espiritual e treinamento filosófico, o
que purifica e inverte a condição anatrópica da Alma. Em sua disciplina, o
teurgo se alinha a demiurgia do cosmos, atuando como um canal-vivo de ex-
pressão dos deuses: suas ações imitam a natureza eterna e ontológica dos
deuses, construindo uma afinidade e reciprocidade com eles, reafirmando a
sabedoria arcana de que os semelhantes se atraem. O feiticeiro, por falta de
treinamento filosófico adequado, disciplina espiritual e o cultivo das virtu-
75
des, não constrói essa afinidade e reciprocidade com os deuses, que cospem e
sua face, tamanha vergonha e prepotência. Um feiticeiro trabalha para si
mesmo, não para a Obra do Divino, como o teurgo assim se coloca. O teurgo é
um receptáculo dos deuses. Através de um estilo de vida filosófico, que im-
plica ritual, ética e aprimoramento intelectual, ele purifica sua Alma, criando
nela a receptividade apropriada para atrair e assimilar as forças divinas,
tornando-se um receptáculo apropriado aos deuses. Isso porque a teurgia é
a própria operação dos deuses e somente um teurgo que tornou-se um re-
ceptáculo adequado aos deuses pode executá-la.64 Porfírio, o professor de
Jâmblico, argumentava que os ritos de teurgia somente funcionam se o pra-
ticante cultivar uma vida filosófica, a prática das virtudes e o cultivo de qua-
lidades éticas.
O teurgo acredita que os deuses em sua benevolência qualificam os
homens com capacidades teúrgicas, o que os possibilita invocá-los através
do uso correto dos símbolos (sunthāmata) adequados em ritos de teurgia. O
conhecimento e a forma como empregar corretamente estes símbolos são
considerados um dom conferido pelos deuses e aqui reside, quem sabe, a
maior distinção entre teurgia e : a maneira com a qual os símbolos
são utilizados nos rituais. Jâmblico ensinava que os símbolos utilizados nos
rituais de teurgia estão conectados àquilo que eles representam, quer dizer,
sua causa divina. Isso determina que cada símbolo utilizado no ritual seja
uma fonte ou um portal de acesso àquilo que ele representa, pois ele está
conectado a própria causa de poder daquilo que representa, embora ambos,
o símbolo e sua causa divina, tenham identidades e funções distintas na or-
dem do cosmos. A conexão, portanto, entre a Alma e o símbolo cria um en-
trecruzamento vibracional, quer dizer, abre-se uma encruzilhada de poder
que servirá como acesso operando através da simpatia horizontal da Alma
com os códigos de luz verticais do divino. Quer dizer, através do símbolo a
Alma pode elevar-se aos reinos de luz e perfeição. Dessa maneira, qualquer
ritual que falhe em elevar a Alma aos planos de luz e perfeição através da
utilização de seus símbolos não é teurgia, mas magia (). Colocando
de outra maneira: os símbolos do ritual dão acesso a fonte divina represen-
tada por eles. Se estes símbolos conectam o praticante ritual aos planos de
luz e perfeição, trata-se de teurgia, caso contrário, se o acesso que eles pos-
sibilitam são outros reinos densos, trata-se de magia ().
A palavra magia () na Antiguidade greco-romana passou a des-
crever um rótulo social polêmico que desqualificava não apenas feiticeiros,
mas até os praticantes de outras religiões. Essa desqualificação tomou gran-
de voz através dos teólogos cristãos, que argumentavam inclusive, que a
teurgia neoplatônica era só outro nome para mageia. Jâmblico nega essa i-
deia, defendendo que as diferenças entre um teurgo e um mago-feiticeiro
() não são apenas filosóficas, mas também éticas. A teurgia depende da
continuidade de propósito, pois se trata de um esforço empregado ao logo
de toda a vida e baseado sobre uma sólida disciplina ética. Para Jâmblico e-
64 Veja Jâmblico, DE MYSTERIIS, 2, 11; 98, 6-10.
76
xistia um abismo ético e filosófico entre o teurgo que se dedica disciplina-
damente a execução de seus rituais em um esforço soteriológico de ilumina-
ção de sua Alma através da assimilação dos códigos de luz dos deuses, das
virtudes e dos heróis, bem como de sua participação harmoniosa na demiur-
gia do cosmos. A teurgia trata-se, portanto, de um estilo de vida filosófico e
ético muito distinto do estilo de vida errante e mendicante de feiticeiros que
viajavam de cidade em cidade vendendo amuletos, maldições, amarrações,
poções mágicas etc. a qualquer um com dinheiro para pagar, com pouca ou
nenhuma consideração ética sobre o dano que poderiam causar na vida das
pessoas.
O tipo ou a qualidade de mageia que Jâmblico descreve e aconselha evi-
tar é caracterizada pelos magos-feiticeiros praticantes da magia contida nos
PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS, uma coleção de encantamentos, amarra-
ções, feitiços e maldições coletadas de fontes egípcias, coptas e greco-
romanas. Estes papiros se tratam de um conjunto de práticas e métodos de
magia () como executados na Antiguidade, no entanto, eles também
incluem toda uma liturgia baseada em um culto soteriológico a Mitras, con-
siderado uma prática teúrgica por sua busca pela imortalização da Alma.
A fonte mais rica por trás dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS é a cultu-
ra egípcia, onde não é possível separar a magia da prática religiosa como
ocorre na cultura greco-romana. No Egito, os sacerdotes que realizavam as
celebrações oficiais também realizavam cerimônias menores nas cidades,
vilarejos e comunidades a convite de famílias locais como magos freelance
em suas horas de folga. Jâmblico estava consciente disso e coloca ênfase, co-
mo antes foi dito, mais na conduta pessoal do que na prática em si ao dife-
renciar teurgia de magia (). Alguns aspectos dos PAPIROS MÁGICOS
GRECO-EGÍPCIOS, portanto, podem ser considerados teúrgicos, devido a influ-
encia magico-religiosa e soteriológica da cultura egípcia.
77
Alta Teurgia: eixo vertical.
Baixa Teurgia: eixo horizontal.
O maior defensor dessa ideia é Andrew Smith, que argumenta que a baixa
teurgia, de tipo horizontal, não tem poder para ir além dos limites deste
mundo (a matéria), não podendo levar o teurgo a união com o divino. A alta
teurgia de tipo vertical, por outro lado, é mais adequada, pois sua prática
produz a noese,65 possibilitando ao teurgo se unir ao divino.66 Para Smith, o
cerne de sua definição reside aqui: a teurgia de tipo horizontal opera somen-
te através da simpatia física do teurgo; a teurgia de tipo vertical utiliza a
simpatia transcendente ou a causa desta simpatia transcendente, o amor di-
vino, pois ela vai muito além da matéria e procura a verdadeira fonte da cau-
salidade.
Sobre essa classificação de Smith, outra autora, Anne Sheppard, faz uma
reclassificação, dividindo a teurgia em três tipos de rituais: a prática teúrgica
destinada à resolução de problemas cotidianos do dia-a-dia, o que ela com-
para a magia branca; a prática superior de teurgia que alimenta a Alma e,
finalmente, a prática mais elevada de teurgia que possibilita a mania divina,
proporcionando a união com o divino.67 Sheppard afirma que os dois pri-
meiros tipos de teurgia empregam rituais, mas a teurgia mais elevada não.
Em comparação com a classificação de Smith, o primeiro tipo de teurgia de-
fendida por Sheppard é a baixa teurgia (horizontal).
Essas duas classificações de Smith e Sheppard não existem na teurgia de
Jâmblico e elas estão no cerne do duelo que muitos autores têm postulado
acerca da distinção entre magia branca e magia negra. Jâmblico postulou
que, dependendo da qualidade da Alma, quer dizer, o objetivo pelo qual a
Alma encarna na matéria, haverá uma abordagem e um tipo de ritual teúrgi-
co distinto. Dessa forma, a teurgia é abordada em contextos diferentes, de-
pendendo da qualidade da Alma.
Três são os tipos de Alma encarnada na matéria: as Almas torpes que
Jâmblico classificou como rebanho, sem aptidões ou volições espirituais pre-
sentes; as Almas que ele classificou como estarem no meio do caminho, quer
dizer, embora torpes, têm capacidades e volições espirituais; e finalmente, as
Almas perfeitas e completas que estão acima da natureza e do destino. Para
cada tipo de Alma, portanto, há um tipo de ritual teúrgico adequado. Todas
elas, no entanto, precisam dos ritos de teurgia, pois padecem do mesmo di-
lema: encarnação da matéria. Isso está em perfeita sincronia com a cultura
tântrica que também vê distinção entre os praticantes de tantra. O paśu (ga-
do, rebanho, besta) é o praticante débil e de maus hábitos; o vīra (herói) é o
praticante que possui domínio sobre si mesmo e capacidade de aprofunda-
65 Compreensão ou percepção imediata. Em nosso estudo de teurgia do Colegiado da Luz Hermética, levando
em consideração a teoria que subjaz essa interpretação de Smith, poderíamos dizer que a alta teurgia trata-se
dos exercícios espirituais e lectio divina sobre os quais nos debruçamos. Veja Pierre Hadot, EXERCÍCIOS ESPIRITU-
AIS E FILOSOFIA ANTIGA, Realizações.
66 Adrew Smith, PORPHYRY’S PLACE IN THE NEOPLATONIC TRADITION: A STUDY IN POS-PLOTINIAN NEOPLATONISM. P. 91,
111-121.
67 Anne Sheppard, Proclus Attitide to Theurgy, em CLASSICAL QUARTERLY, p. 212-224.
78
mento; o divya (puro) é o praticante cuja Alma já foi refinada através das
inúmeras encarnações ou um santo. Para cada um destes praticantes a cul-
tura tântrica oferece um tipo de ritual (pūjā).
Em Jâmblico, portanto, não existe alta e baixa teurgia. Assim como na
cultura tântrica, Jâmblico acredita que a Alma se aperfeiçoa na medida em
que encarna sucessivas vezes na matéria, o que ele chama de efeito cumula-
tivo.68 A teurgia é necessária para cada tipo de Alma. Nas suas encarnações
sucessivas e através da teurgia, a Alma se alimenta dos códigos de luz dos
deuses, heróis e virtudes até que seja capaz de executar a adoração incorpó-
rea, um alto nível de prática teúrgica onde o Ego é completamente suplanta-
do pela consciência divina no estado de henosis.
Ainda, estes três tipos de teurgia classificados por Jâmblico segundo a
qualidade da Alma, são inclusivos, quer dizer, eles se integram ao ponto de
aperfeiçoarem uns aos outros. E a classificação de Smith sobre a teurgia ver-
tical e horizontal não encontra referência real em Jâmblico. Para Jâmblico,
qualquer rito teúrgico é exclusivamente vertical, pois eleva a Alma aos rei-
nos de luz e perfeição, conectando o teurgo com os deuses. Quer dizer, seja
lá a qualidade da Alma, a teurgia irá guiá-la até os deuses.
Esse dilema e má interpretação da teurgia clássica neoplatônica de Jâm-
blico tem inspirado uma ávida discussão sobre a natureza da magia, se bran-
ca ou negra, nas tradições modernas e pós-modernas. Embora alimentada
por outras disputas, Jâmblico reside na gênese dessa discussão e para com-
preendê-la seria saudável, como nos aconselha Pitágoras (570-495 a.C.),
buscar na fonte àquele que veio primeiro!
79
UM ELOGIO A MAGIA TRADICIONAL SALOMÔNICA
«Magia é uma faculdade de maravilhosa virtude, cheia dos mais nobres mistérios, con-
tendo a mais profunda contemplação das coisas mais secretas junto à natureza, ao po-
der, à qualidade, à substância e às virtudes delas, bem como o conhecimento de toda a
natureza, e ela nos instrui acerca da diferença e da concordância das coisas entre si,
produzindo assim maravilhosos efeitos, unindo as virtudes das coisas pela da aplica-
ção delas uma em relação a outra, unindo-as e tecendo-as bem próximas por meio dos
poderes e das virtudes dos corpos superiores.»69
80
«Uma vez que a compreensão, que é em nós a maior faculdade da alma, é a única ver-
dadeira operadora de milagres e a qual, se sobrecarregada de excessos com a carne e
ocupada com a alma sensível do corpo, não é digna do comando de substâncias divi-
nas; assim, muitos perseguem essa arte em vão. É, portanto, mister que aqueles dentre
nós que se empenham em alcançar tão grande altura meditem de modo especial em
duas coisas: a primeira, como deixar as afeições carnais, o fraco sentido e as paixões
materiais; a segunda, como e por qual meio nós podemos ascender a um intelecto pu-
ro e imbuído dos poderes dos deuses, sem os quais jamais teremos a felicidade de as-
cender ao escrutínio das coisas secretas e ao poder das operações maravilhosas, ou
milagres; pois é nisso que consiste a dignificação, que a natureza, o merecimento e
uma certa arte religiosa compõem. [...] Mas a dignidade que é adquirida pela arte da
religião é aperfeiçoada por determinadas cerimônias religiosas, expiações, consagra-
ções e ritos sagrados, que procedem daquele cujo espírito foi consagrado pela religião
pública e que tem o poder da imposição das mãos e de iniciar com o poder sacramen-
tal, pelo qual o caráter da divina virtude e poder é em nós impingido, o qual chama-
mos de consentimento divino, e pelo qual um homem sustentado com a natureza divi-
na e tornado companheiro dos anjos carrega consigo o poder importado de Deus; e es-
se rito é mencionado nos mistérios eclesiásticos. Se, portanto, você quiser ser um ho-
mem perfeito na sagrada compreensão da religião, meditar nela com devoção e cons-
tância, acreditar sem duvidar e for o tipo de indivíduo ao qual a autoridade dos ritos
sagrados e da natureza conferiu dignidade acima dos outros, e que os poderes divinos
não desprezam, então, por meio da oração, da consagração, do sacrifício e da invoca-
ção, você será capaz de atrair poderes espirituais e celestiais e impingi-los no que qui-
ser, vivificando assim todo trabalho de magia; mas aquele que, sem a autoridade de tal
ofício, sem o mérito da santidade e do aprendizado, fora da dignidade da natureza e da
educação, tiver a pretensão de realizar qualquer intento mágico, trabalhará em vão e
enganará tanto a si mesmo quanto aqueles que nele acreditam, além do perigo de in-
correr no desagrado dos poderes divinos.»70
81
por assalto, a típica atitude do pagão crioulo comunista que invade e toma a
terra que não lhe pertence por direito ou mérito.
Certa feita o autor que aqui lhes escreve presenciou um trabalho mági-
co de cura espiritual através do exorcismo. Ao usar o nome de Nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo, a entidade disse ao conjurador: «Você? Logo você
que é o mais pecador de todos acha que tem qualquer autoridade sobre
mim?» O enfermo continuou obsediado.
Agrippa continua:
«É, portanto, mister que aqueles dentre nós que se empenham em al-
cançar tão grande altura meditem de modo especial em duas coisas: a pri-
meira, como deixar as afeições carnais, o fraco sentido e as paixões materi-
ais; a segunda, como e por qual meio nós podemos ascender a um intelecto
puro e imbuído dos poderes dos deuses, sem os quais jamais teremos a feli-
cidade de ascender ao escrutínio das coisas secretas e ao poder das opera-
ções maravilhosas, ou milagres; pois é nisso que consiste a dignificação, que
a natureza, o merecimento e uma certa arte religiosa compõem.» Diversas
vezes tenho colocado ênfase que a Magia Tradicional Salomônica caminha de
mãos dadas com uma típica e também tradicional piedade cristã católica ou
ortodoxa. Isso implica em conduta moral e virtuosa na prática das Leis de
Moisés, as mesmas defendidas e ensinadas por Jesus Cristo. Uma estrita dis-
ciplina de orações, confissões, participação nos sacramentos da Igreja, medi-
tações, exames de consciência e penitência. Através dessa piedade cristã, o
mago domina suas paixões animalescas, aperfeiçoa e refina a Alma Intelec-
tual. Dessa maneira, é possível ascender aos planos de luz e perfeição, parti-
cipar dos códigos de luz dos arcanjos e anjos, recebendo deles as virtudes de
Deus e a compreensão das coisas ocultas, sobrenaturais. Agrippa é cuidado-
so em usar a palavra dignificação, quer dizer, o mago tem de se tornar um
homem digno em ações, pensamentos e palavras; um homem que espelhe as
virtudes do próprio Cristo, o maior exemplo e ícone de Mago a ser seguido. E
isso faz parte da piedade cristã: imitar Jesus Cristo em obras. É dessa manei-
ra que a Alma Intelectual comanda e organiza as funções das Almas Emocio-
nal e Animal. «Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o
caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; E por-
que estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que
a encontrem.»72 As portas do Céu se abrem ao digno apenas; por isso, aque-
les que constroem a Torre de Babel na intenção de invadir e tomar a força
seu lugar entre os merecedores da glória são fulminados por um Raio Divi-
no. Tolos comunistas daimônicos...
«Mas a dignidade que é adquirida pela arte da religião é aperfeiçoada
por determinadas cerimônias religiosas, expiações, consagrações e ritos sa-
grados, que procedem daquele cujo espírito foi consagrado pela religião pú-
blica e que tem o poder da imposição das mãos e de iniciar com o poder sa-
cramental, pelo qual o caráter da divina virtude e poder é em nós impingido,
o qual chamamos de consentimento divino, e pelo qual um homem susten-
72 MATEUS, 7:13-14.
82
tado com a natureza divina e tornado companheiro dos anjos carrega consi-
go o poder importado de Deus; e esse rito é mencionado nos mistérios ecle-
siásticos.» Anteriormente eu havia falado que melhor seria ao mago, no e-
xercício da Magia Tradicional Salomônica, tivesse sagração eclesiástica, quer
dizer, fosse um sacerdote cristão. No entanto, Agrippa está nos informando
nessa passagem que pelo exercício da piedade cristã e pela consagração da
Alma através dos Santíssimos Sacramentos da Igreja, o mago está apto a o-
perar magia, donde no círculo mágico terá o mesmo «dom» sacramental de
imposição das mãos como um sacerdote. Se só pelo poder dos Santíssimos
Sacramentos sobre a Alma um mago pode desenvolver este poder sacramen-
tal e sacerdotal, muito mais sucesso e eficiência terá sua Arte caso ele seja
um sacerdote consagrado. Veja que é por meio dessa piedade cristã, seus
ritos e sacramentos, estilo de vida virtuoso e moral, que o mago adquire a
dignidade necessária para operar os milagres na magia.
Indico aqui o LIVRO DO ECLESIÁSTICO no Antigo testamento. Agrippa ter-
mina:
«Se, portanto, você quiser ser um homem perfeito na sagrada compre-
ensão da religião, meditar nela com devoção e constância, acreditar sem du-
vidar e for o tipo de indivíduo ao qual a autoridade dos ritos sagrados e da
natureza conferiu dignidade acima dos outros, e que os poderes divinos não
desprezam, então, por meio da oração, da consagração, do sacrifício e da in-
vocação, você será capaz de atrair poderes espirituais e celestiais e impingi-
los no que quiser, vivificando assim todo trabalho de magia; mas aquele que,
sem a autoridade de tal ofício, sem o mérito da santidade e do aprendizado,
fora da dignidade da natureza e da educação, tiver a pretensão de realizar
qualquer intento mágico, trabalhará em vão e enganará tanto a si mesmo
quanto aqueles que nele acreditam, além do perigo de incorrer no desagrado
dos poderes divinos.» Nessa passagem, fica claro que o exercício da magia,
ou melhor, seu efeito milagroso através de Deus por meio do sacerdote ou
mago praticante, depende de um estilo de vida filosófico, apartado da ba-
gunça, desordenamento de conduta, conversas tolas, vícios, maus hábitos e
costumes. O poder na magia vem de Deus, não do mago. Era isso que Simão
não compreendia em Pedro ou em Paulo. Eles faziam milagres (taumaturgia)
através de uma graça auspiciosa de Deus, pois eram valorosamente virtuo-
sos. Agrippa então nos aconselha a olhar para nosso caminho e nos endirei-
tarmos caso queiramos, de verdade, receber a graça e o dom de Deus. Ficou
claro também o que acontece, cedo ou tarde, com todos os que perseguem
essa Arte em vão.
Por conta disso, por estarmos alinhados a valores magísticos e cristãos
como Agrippa acaba de demonstrar, nesse grupo não são bem-vindos thele-
mitas, hermetistas modernos da Aurora Dourada, satanistas, luciferianos,
kimbandeiros, umbandistas etc. Qualquer pagão ou mago que reconheça A-
leister Crowley como um «grande mago», coisa que ele nunca foi, não é acei-
to entre nós. Bem como absolutamente ninguém alinhado com ideias pagãs e
crioulas como marxismo, comunismo, feminismo, gayzismo etc.
83
MAGIA TRADICIONAL SALOMÔNICA & INICIAÇÃO
Este exercício de piedade espiritual diária deve ser considerado sagrado para todo
bispo, sacerdote ou diácono de nossa Eclésia, pois através dele exercita-se a perfeição
da Alma. O primeiro passo dessa piedade é uma oração a Deus, um colóquio afetuoso
ao Pai Celestial para nos lembrarmos de nosso ideal constantemente perseguido como
nos ensina Nosso Senhor: «Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é
perfeito». O aprendiz se coloca na presença de Deus, fonte e modelo de toda perfeição
e na presença de Nosso Senhor Jesus Cristo que quando encarnado refletiu essa per-
feição divina e sobre o qual temos a graça de imitar para receber suas virtudes.
84
Todo praticante sério de Magia Tradicional Salomônica primeiro invoca a
hierarquia celeste dos planos de luz e perfeição e somente depois se lança ao
contato com os demônios.
85
MAGIA ASTRAL & MAGIA TRADICIONAL SALOMÔNICA
73 Aqui, diferente dos termos utilizados até o presente, fazemos uma distinção entre criaturas e entidades do
corpo de Deus. Anteriormente utilizamos a expressão criaturas espirituais para indicar deuses, daimones (ele-
mentais, cascões mortos, zombeteiros, obsessões etc.), almas perfeitas (santos), anjos, arcanjos e toda sorte de
entidades do corpo de Deus e até elementares. Mas neste momento de nossa jornada cabe fazer uma distinção
entre criaturas e entidades do corpo de Deus. Quando nos referinos a entidades do corpo de Deus, queremos
dizer toda criação de Deus, configurando deuses, anjos, arcanjos e daimones. O termo criatura, por outro lado,
denota criação do homem. Um elementar é uma criatura espiritual criada pelo homem; um elemental é uma
entidade espiritual criada por Deus.
A magia tradicional salomônica lida com a invocação e a evocação de entidades do corpo de Deus: espíritos
(ou anjos para seguir a classificação dos grimórios salomônicos) das horas e dias planetários, estações do ano,
arcanjos, anjos e demônios. A magia astral lida com essas mesmas entidades do corpo de Deus na consagração
de pantáculos, talismãs, amuletos, estátuas, ícones etc.
74 Veja Carta 4: Magia #1.
75 Até o presente ficou claro, portanto, que magia se trata de produzir efeitos miraculosos na natureza (tauma-
turgia) e que teurgia se trata de elevar a Alma até os planos de luz e perfeição onde habitam anjos, arcanjos e
deuses.
86
de e membros do clero. Os grimórios salomônicos foram obra dos sacerdo-
tes católicos e estão associados diretamente a uma piedade cristã.
E é pelo fato da magia salomônica ser distinta daquela bruxaria popular
folclórica que a ela não pode ser confundida ou associada ao termo bruxa. O
termo bruxaria é anglo-saxão moderno e vem de bruxa, que significa mulher
de sabedoria, expressão aplicada as mulheres que praticavam bruxaria popu-
lar folclórica que utiliza ervas e unguentos para cura ou lançar maldições,
uma prática muito distinta, como está claro, das invocações e evocações sa-
lomônicas. Isso descarta definitivamente interpretações modernas e absur-
das como a expressão goécia luciferiana, um non sense estapafúrdio que mis-
tura bruxaria moderna (ou neobruxaria) e magia salomônica, criando um
aborto espiritual.
Não existe no latim, a língua original dos grimórios, nenhum equivalen-
te para a palavra bruxa ou bruxaria. No clássico MALLEUS MALEFICARUM, in-
corretamente traduzido como O MARTELO DAS FEITICEIRAS,76 Heinrich Krae-
mer (1430-1505) utiliza a palavra maleficarum que significa perverso ou
criminoso que, no entanto, não está diretamente associado a magia ou a ex-
pressão feiticeira (ou bruxa).77 As palavras bruxa ou bruxaria não são encon-
tradas no Mundo Antigo na região do Mediterrâneo, Egito e Oriente Médio.
Não está presente nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS (fonte e origem dos
grimórios medievais) ou da piedade bizantina e romana da Antiguidade. Di-
ferente disso, a bruxaria está associada a prática popular folclórica de magia
entre os Sécs. XI e XVII da Europa na Idade Média. Autores modernos como
Gerald Gardner (1884-1964), Alex Sanders (1926-1988), Michael W. Ford e
outros utilizam o termo incorretamente, o retrocedendo no tempo e o alo-
cando em culturas e períodos que desconheceram completamente essa prá-
tica.78
Existe um abismo gigantesco separando a bruxaria da magia tradicio-
nal salomônica. Os feitiços e augúrios lançados pelas bruxas são muito dis-
tintos das intricadas cerimônias magísticas e invocações ou evocações de
criaturas e entidades espirituais. Como os grimórios salomônicos foram
produzidos no latim, apenas pessoas letradas podiam ler suas instruções,
diferente dos camponeses que praticavam bruxaria.
A bruxaria foi uma cultura popular de magia transmitida por gerações
dentro de clãs familiares. Com o tempo essas práticas começaram a ser es-
critas em livros, a partir de então se popularizando e levando o conhecimen-
to de ervas, encantamentos e bonecos mágicos por toda Europa. A magia
tradicional salomônica foi transmitida através de complexos grimórios em
76 Que em sua última edição no Brasil pela Editora Record traz uma introdução comunista-obsessiva de Rose
Marie Murado. Simplesmente degradante.
77 É somente no Brasil a tradução O MARTELO DAS FEITICEIRAS. No inglês é O MARTELO DAS BRUXAS.
78 Alguns pesquisadores acadêmicos têm associado o termo bruxaria a prática da magia popular folclórica da
Tessália. No entanto, o termo que eles têm utilizado para bruxa tentando retroceder a bruxaria até a Antigui-
dade é pharmakis que, no entanto, denota alguém que sabe administrar fármacos, quer dizer, remédios a base
de ervas e que não está diretamente ligado a magia, mas antes disso a medicina. No entanto, é um fato também
que tais administradores de fármacos, homens ou mulheres, pudessem praticar a magia grega popular e folcló-
rica da Tessália. Essa é uma teoria ainda em discussão.
87
latim e requerem uma longa preparação para prática e utilização de ferra-
mentas espirituais como círculos mágicos, robes, pantáculos, lâmens etc.
Diferente do termo bruxaria, a palavra feitiçaria, por outro lado, pode
ser associada a magia tradicional salomônica, pois no mundo bizantino a
evocação e o contato com demônios é uma arte denominada de feitiçaria.
Isso coloca a feitiçaria em contraste direto e oposto ao termo bruxaria.79
Nós podemos dizer que a divinação é parte integral da tradição da ma-
gia, principalmente na tradição neoplatônica e cultos de mistérios na região
do Mediterrâneo e Oriente Médio. No entanto, a divinação trata-se de um
método passivo de previsão do futuro (ou recepção de profecias). A magia,
por outro lado, pretende mudar o futuro através de agentes espirituais. Da
mesma maneira, é correto dizer que a magia astral (ou astrológica | sideral)
que envolve cálculos astrológicos exatos para consagrações mágicas (atra-
vés de invocações ou evocações) também faz parte da tradição mágica, no
sentido que influenciou a magia dos grimórios, mas sua origem é bem distin-
ta. As diversas técnicas encontradas nos papiros como lychnomanteia (divi-
nação através do fogo), lekanomanteia (divinação através da água) e hygro-
nomanteia (divinação através de cristal/água) não são, per si, consideradas
técnicas de divinação, mas de evocação utilizando um jovem virgem como
vidente.
Embora a magia astral, quer dizer, a arte de se manipular as virtudes
dos astros, tenha influenciado a magia tradicional salomônica ou magia ritu-
al, sua origem é bem distinta e deveras longínqua. Ibn Khaldūn (1332-1406),
um polímata árabe que tirou muitas de suas conclusões do PICATRIX, um livro
de magia astral originalmente chamado GHĀYAT AL-ḤAKĪM (O Objetivo do Sá-
bio) que sintetiza tratados anteriores de magia hermética, classificou a ma-
gia em:
Essa distinção entre feitiçaria (magia salomônica) e magia astral (ou talis-
mânica) foi introduzida na Europa através das primeiras traduções dos li-
vros árabes de magia a partir do Séc. XI. Johannes Trithemius (1462-1516),
professor de Agrippa (1486-1535), fez ampla distinção entre magia astral e
magia salomônica em uma lista de livros separados por temas escrita em
1508 (mas publicada somente em 1606) chamada ANTIPALUS MALEFICIOURUM,
que podemos traduzir como O INIMIGO DA BRUXARIA. Em seguida, Marsílio Fi-
cino (1433-1499) e Pico della Mirandola (1463-1494) tentaram explorar
79No CFO nós classificamos a feitiçaria, no entanto, como: a arte de manipular matéria física (ou material de
base) para movimentar materia magicae e causar efeitos espirituais desejados, sejam eles psíquicos, energéti-
cos ou físicos.
88
outra classificação da magia, sendo ela: magia astral, magia ritual (quer di-
zer, salomônica) e magia natural que operava sem a influência ou presença
de criaturas e entidade e sem a influência dos astros.80 Embora Agrippa fos-
se aluno de Trithemius, ele seguiu a linha de pensamento de Ficino e Pico na
classificação da magia:
80 Essa é, no entanto, uma classificação equivocada. A magia natural sofre influência direta de entidades espiri-
tuais, pois através de uma consciência daimônica (cosmovisão animista) do universo, tudo é animado por enti-
dades ou criaturas espirituais.
81 Ibidem.
82 A outra teoria é que Umar II (628-720 d.C.), um dos califas mais prestigiados do islamismo, transferiu a
Escola de Medicina e a Academia de Filosofia de Atenas para Harã, influenciando os árabes de dentro para fora,
mantendo oculto dentro do islã o paganismo neoplatônico até 1032 ou 1083, espalhando-se posteriormente
pela Europa e cultura cristã por todo Oriente Médio.
89
A magia astral é uma herança persa que chegou a Europa via Arábia e
Mesopotâmia. A magia ritual salomônica é uma herança dos papiros e cultu-
ra greco-egípcia do Mediterrâneo. Os primeiros tratados de magia astral que
chegaram a Europa foram DE IMAGINIBUS (Séc. X), DE IMAGINIBUS (de Beleno,
nome árabe de Apolônio de Tiana, 15-100 d.C.), porções do PICATRIX (Séc. XI)
e o LIBER LUNAE. Não há em nenhum destes trabalhos, no entanto, qualquer
influência neoplatônica, mas essencialmente babilônica. O PICATRIX chegou a
Europa traduzido para o latim entre os Sécs. XII e XIII, mas sua proeminên-
cia destacou-se apenas no Séc. XV, na mesma época que uma tradução em
latim da CLAVIS SALOMONIS também espalhava-se rapidamente pela Europa.
Esses livros de magia astral tratam das correspondências entre plantas,
animais, pedras, bestas de todos os tipos e conjunções astrológicas; a cons-
trução e consagração de talismãs e estatuetas sob as virtudes celestes dos
astros apropriados. As invocações contém nomes de poder corretos a serem
utilizados para as medicinas planetárias. Essa literatura conquistou prestí-
gio na Europa porque não faziam referência a demônios, mas apenas espíri-
tos planetários. E é porque a magia astral destes tratados se passou por ma-
gia natural é que ela se espalhou rapidamente. Toda essa ciência e arte da
magia astral, as invocações dos anjos das estações, horas e dias planetários,
as consagrações e vestimenta cerimonial, as fumigações e libações influenci-
aram em certa medida a magia salomônica que usa todas essas técnicas má-
gicas no seu exercício. No entanto, essas técnicas dentro da magia salomôni-
ca não são em si objeto central da prática, mas adjuntos rituais apenas. O
objetivo da magia salomônica é invocar ou evocar entidades do corpo de
Deus a aparição visível, seja na bola de cristal, no espelho mágico, na bacia
d’água ou na fumaça do incenso.
A magia tradicional salomônica pode ser tecnicamente definida como
invocação e evocação de entidades do corpo de Deus a aparição visível. Para
isso o mago utiliza uma tecnologia mágica magicamente preparada através
de diversas consagrações. Os elementos que configuram o exercício da ma-
gia salomônica são:
90
O mago utiliza um amplo arranjo de instrumentos mágicos. Estes de-
vem ser consagrados sob conjunções astrológicas adequadas através
de um longo período que antecede a operação. A construção deste e-
quipamento leva tempo e aqui jaz um segredo profundo: a operação
magística em verdade se inicia já na construção e consagração dos e-
lementos essenciais e necessários ao seu exercício. Desde esse primei-
ro momento o mago mantém um ritmo diligente de vida, adequado
aos estudos e práticas espirituais de purificação, mortificação e reclu-
são.
A maior influência espiritual nos grimórios herdada dos papiros é de
origem judaica. Os nomes de poder vibrados durante a cerimônia são
de origem judaica e é requerido conhecimento do hebraico.
Como vimos em nossa Lição 2, Agrippa postulou o método salomônico
que parece estar em coerência com os grimórios salomônicos. Uma
cerimônia magística salomônica deve seguir o método salomônico de
Agrippa ou alguma estrutura ritual semelhante.
91
O MÉTODO SALOMÔNICO
84 Outro fator determinante para que o mago tenha autoridade sobre as entidades que convoca foi discutido no
texto Um Elogio a Magia Tradicional Salomônica (Fernando Ligório), enviado separadamente.
85 A magia apresentada nos grimórios tentou não conflitar-se com a autoridade religiosa da Igreja de Roma. Se
por um lado temos Jâmblico no Séc. IV defendendo a teurgia como uma prática elevadamente distinta da goē-
teia, colocando ênfase nas virtudes essenciais e necessárias para se executar a teurgia e sem as quais a prática
tornar-se-ia goēteia, por outro lado na mesma época temos Santo Agostinho denegrindo tanto a teurgia, a
goēteia e a mageia, criando uma hierarquia espiritual que transformava todo e qualquer tipo de daimon em
demônio. Por suposto, as horas planetárias passaram a ser regidas por anjos e não por daimones nos grimó-
rios.
92
Tendo conjurado o espírito desejado, o mago dos grimórios o restringe
em uma área onde ele irá ser compelido a responder com veracidade a ar-
guição do mago que, com uso das chaves adequadas, o obriga a realizar al-
guma tarefa lhe comandada a fazer. Após receber do espírito as respostas
desejadas e dele arrancar-lhe um juramento de que irá realizar a tarefa lhe
ordenada, então o mago lhe dá a licença para partir. Mas nem os papiros e
nem os grimórios trazem detalhes sobre esse passo-a-passo. É preciso per-
correr por todos eles e buscar um tipo de padrão e nessa pesquisa as peças
vão se encaixando. Dessa maneira, um dos primeiros desafios na prática da
magia como sintetizada nos papiros ou grimórios é conseguir encontrar esse
padrão. Embora Jâmblico não tenha deixado instruções sobre isso, Agrippa
tentou elucidar muito bem no seu QUARTO LIVRO DE FILOSOFIA OCULTA. Como
escrevi na Carta 2: Magia, por onde começar? enviada a vocês, é nesta obra
(atribuída a) Agrippa que é possível ver uma estrutura ritual delineada, o
que não encontramos em seu TRÊS LIVROS DE FILOSOFIA OCULTA que diferente
do QUARTO, traz as informações mais adequadas para executar a magia tradi-
cional salomônica. Na estrutura que Agrippa forneceu temos:
Consagração
Invocação
Evocação
Constrição
Ligação
Licença para partir
Consagração:
A consagração envolve muitos procedimentos litúrgicos de consagrações e,
principalmente, a consagração de si mesmo para o trabalho magístico sacer-
dotal, o que envolve ascese e mortificação disciplinada, purificações diárias,
vigílias de orações e invocações, a prática da caridade, participação dos Sa-
cramentos da Igreja e a prática invejável de um rígido código de moral. Espí-
ritos e entidades podem ler os pensamentos do mago, investigar suas me-
mórias mais sombrias, seus desejos mais sórdidos. Somente um homem de
moral inquestionável tem autoridade real sobre demônios de todos os tipos.
A oração feita por um justo pode muito em seus efeitos.86
Nesse caminho, a primeira etapa da cerimônia magística proposta por
Agrippa se inicia dias antes do início do ritual. A preparação para o ritual,
portanto, é um tipo de consagração de si mesmo ao trabalho magístico sa-
cerdotal. Essa preparação dota o mago com equilíbrio e controle sobre si
mesmo, seus impulsos e emoções, o que ele precisa ter ao lidar com as cria-
turas espirituais que conjurar.
Seguindo uma disciplina diária de banhos, fumigações, consagrações e
invocações que antecedem a operação, mantendo-se fiel e verdadeiro aos
princípios espirituais da Lei de Moisés e comungando dos Sagrados Sacra-
86 TIAGO, 5:16.
93
mentos da Igreja, o mago prepara-se para defrontar as criaturas que ele con-
jurar.
No dia da operação o mago intensifica sua vigília de orações, invoca-
ções e purificações, procurando receber do Eterno autorização e autoridade
espiritual. Essa preparação pode ser feita com uma longa litania composta
pelos Salmos. Inúmeros magos de calibre classificaram os Salmos como a
melhor preparação para execução de operações magísticas, pois eles exal-
tam a majestade e a glória de Deus, invocam a presença dos Arcanjos como
um manaim, um acampamento de anjos ao redor do mago. Os salmos têm
sido utilizados por magos salomônicos para composição de ritos de exor-
cismo e banimento, purificação, exaltação dos poderes de Deus etc.
Os Salmos Penitenciais (6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142) de Davi são óti-
mos para consagração, cantados no período que antecede a operação e no
dia em que ela for realizada. Esses Salmos são penitenciais porque através
deles é possível fazer uma profunda penitência a Deus que começa com a
confissão dos pecados e a súplica para que Deus purifique o mago. A confis-
são dos pecados a um sacerdote é uma prática litúrgica e sacramento de pu-
rificação espiritual adotada por muitos magos salomônicos na preparação
para cerimônia magística.
Ralph Walker, um sacerdote cristão que enche igrejas em seus sermões,
faz algumas pontuações interessantes sobre os Salmos Penitenciais:
Lendo (para esta tarefa) os escritos no diário de Davi, que descrevem suas lutas com o
pecado, descobri duas coisas. Primeiro, senti uma atitude diante do pecado que não
me é familiar. Segundo, vi um padrão de pensamento emergir dos vários textos (Sal-
mos 6, 37, 38, 51, 143).
Ironicamente, é como pecador que vejo claramente Davi como um homem segundo o
próprio coração de Deus. Se o coração de Deus é a pura santidade, então essa mesma
santidade dirige Davi. Quando, em sua iniquidade, a repugnância de Davi ao que ele se
tornou salta aos olhos. Nem desculpas, nem justificativas, nem incriminações; só um
absoluto esmagamento pela tristeza e a culpa. Davi sabe que sua rebelião afastou-o de
Deus. Ele admite que está perecendo e não pode fazer nada pessoalmente para rever-
ter seu perigo. Não fale a Davi sobre uma pequena impiedade; este conceito lhe é es-
tranho, como o é a seu Deus! Se um verdadeiro entendimento de santidade e pecado
define o coração divino, vejo Davi repousando nos aposentos interiores do coração de
Deus.
O padrão da penitência
Ainda que todos os passos que eu discuto aqui não sejam encontrados em cada salmo
examinado, vejo repetição suficiente para chamar a isto um padrão.
Confissão.Confissão significa falar a mesma coisa. Ao confessar o pecado, dizemos
sobre ele a mesma coisa que Deus diz dele. Davi é enfático em suas confissões: seu pe-
cado é sua morte. Ele se refere a debilitar-se fisicamente, a ausência de paz de espírito,
a proliferação dos inimigos externos, o isolamento total da presença de Deus. Ele não
tem ilusão de que Deus possa talvez ter deixado de ver sua desobediência, ou que ele
possa utilizar um padrão de julgamento sem rigor e aprová-lo mesmo assim. Ele de-
cepcionou ao Senhor e está arrasado por isso.
Quando releio a descrição de seu pecado, por Davi, dou-me conta que realmente
não conheço esta profundidade de sentimento. Não me recordo de ser tão esmagado
94
em espírito como foi Davi, quando ele pecou. Não posso desculpar isso baseado em
que não fiz nada para merecer um esmagamento semelhante. Pecado é pecado, e meus
pecados são tão mortais para minha alma como os dele foram para ele. Ah, se eu pu-
desse ver o pecado como Davi e Deus o veem! Se Deus me ajudar, verei.
Não somente Davi confessa sua pecaminosidade, mas confessa também dois fatos
sobre Deus. Primeiro, ele admite que Deus é justo. Ainda que Davi esteja sofrendo
tremendamente nas mãos deste Deus, ele reconhece que isso é merecido. Deus, como
Juiz e Carcereiro, é justo, e Davi não é alguém encarcerado indevidamente, como ele o
vê. Quando o salmista roga pela libertação da punição e da dor, é na base da justiça de
Deus; ele pagou o preço, aprendeu suas lições e pede absolvição. Ele até se vale da jus-
tiça de Deus como o apoio de que precisa para recuperar seu favor.
Segundo, Davi confessa a amorosa bondade de Deus. Parece estranho que um ho-
mem, sendo assim esmagado por Deus, esteja elogiando seu amor. Ainda que pais fre-
quentemente falem de amor e punição na mesma frase (porque eu te amo, estou te ba-
tendo), nenhuma criança sob o castigo associaria estas palavras uma a outra como Da-
vi o faz. Davi sabe que Deus o ama. Este é o único raio de esperança em toda sua escu-
ridão. Como o Salmo 130:3 o mostra, se Deus não amar, quem permanecerá?
Petição. Depois de confessar seu pecado, a justiça de Deus e o amor de Deus, Davi
faz os seguintes pedidos:
Limpa-me do pecado. Obviamente, se o pecado é o que o separa de Deus, ele quer
que ele seja removido. Este desejo vem somente depois que ele confessa claramente e
tristemente o que fez de errado. O perdão não é conseguido onde não tenha sido bus-
cado.
Purifica-me para o serviço. Davi quer ser servo de Deus novamente. Em 51:13 ele
espera pelo tempo quando puder ajudar outros a se converterem ao seu Deus. Se Deus
precisar de motivação para libertar Davi do seu castigo, aqui está ela. O penitente de-
seja voltar ao serviço do seu Mestre.
Davi também deseja a pureza que o capacitará a adorar efetivamente (51:14-15).
Estou admirado com santos que honrarão Deus publicamente durante anos e então
são expostos em algum pecado que o acompanha há muito tempo. Davi respeita e co-
nhece Deus bem demais para tentar um tal jogo. Deus não pode ser enganado!
Estes salmos penitenciais mostram-me mais sobre meu pecado do que às vezes
quero saber. Mais do que isso, revelam um Deus digno de que abandonemos tudo que
este velho mundo tem para oferecer, só para aquecermo-nos em seu amor.
95
Invocação:
A palavra invocar vem do latim vocatus que significa chamar, convocar ou
convidar. No HEPTAMERON, o médico, astrônomo e filósofo Pedro de Abano
(1257-1315), que foi duas vezes julgado pela Inquisição e acusado da prática
de magia, diz que a invocação deve seguir a consagração, convocando os an-
jos das quatro partes do mundo, quer dizer, dos quadrantes do espaço (Leste,
Sul, Oeste e Norte). Os nomes dos anjos no HEPTAMERON são apropriados às
estações e aos dias da semana. O SEPHER RAZIEL, por outro lado, nos dá in-
formações detalhadas sobre porque os nomes dos anjos das estações e das
horas planetárias devem mudar, bem como os nomes do Sol e da Lua, que
também devem mudar nas estações do ano.
E Salomão explicou que cada planeta e que cada coisa nteriormente mencionada muda
de nome a cada estação, [assim como] da mesma árvore vem quatro coisas [de acordo
com a estação]. Destas quatro coisas a primeira é quando brota, a segunda é a floração.
A terceira é o fruto e a quarta é a semente. Portanto, na primeira estação o Sol é quen-
te e úmido. Na segunda [estação] é quente e seco. Na terceira é frio e seco, e na quarta
é frio e úmido. Estes são os trabalhos [ou as operações] do Sol e suas propriedades
[são conferidas] sobre todas as coisas. [...] Assim saiba que cada uma dessas coisas
muda seu nome. Como nós dizemos que um homem primeiro é uma criança, depois
um jovem e então um adulto e na quarta estação um velho, [...] entenda [o mesmo]
com relação aos metais e todas as outras coisas.87
87SEPHER RAZIEL, editado por Don Karr e Stephen Skinner, 2010, p. 209.
88Na teurgia clássica de Jâmblico, os daimones eram evocados sob a tutela direta da deusa Hécate, a rainha de
todos os daimones, os cães que lhe acompanham ou sob a autoridade de uma deidade maior como Apolo, caso
96
É somente após a invocação do Anjo Aniquilador que o demônio pode
ser evocado. Pedro de Abano preferiu utilizar a palavra exorcismo ao invés
de evocação do demônio. A palavra exorcismo – da mesma maneira que a
palavra daimon – evoluiu com o tempo, distanciando-se de seu significado
inicial. Um exorcismo era, inicialmente, o simples ato de convocar uma enti-
dade. Posteriormente sob a tutela da Igreja de Roma, exorcismo passou a ser
identificado com o livramento de um estado de possessão demoníaca. A lógi-
ca do exorcismo é que o demônio deve ser evocado antes de ser banido do
corpo de sua vítima. Algo similar ocorreu com a palavra necromancia, usada
originalmente para convocar espíritos de mortos para fins de divinação. O
termo foi confundido com outra palavra, nigromancia, quer dizer, evocação
cerimonial de demônios através dos mecanismos de conjuração, adjuração
divina e exorcismo. Necromancia também foi confundida com necrurgia, a
evocação de espíritos de mortos para fins de ataques mágicos, amarrações,
maldições etc.
Evocação:
Na magia tradicional salomônica o termo evocação tem um significado dis-
tinto daquele difundido pela magia moderna. A evocação como compreendi-
da pelos modernistas trata-se de projetar para fora, geralmente para dentro
de um triângulo mágico, um demônio da mente inconsciente. O paradigma
moderno da magia como estabelecido por alguns membros da Ordem Her-
mética da Aurora Dourada ou por sua verdadeira representante, a Astrum
Argentum fundada por Aleister Crowley (1875-1947) a partir dos escombros
da velha e destruída ordem, ensina que os demônios do LEMEGETON são par-
tes da mente inconsciente.89 A magia tradicional salomônica, por outro lado,
segue a visão animista apresentada nos grimórios medievais. Como temos
estudado neste curso, a prática da magia na Antiguidade e Idade Média exige
uma consciência daemonica, quer dizer, a crença na existência de criaturas
espirituais separadas da consciência humana, entidades do corpo de Deus.
Sem isso a prática da magia tradicional salomônica trata-se de uma impossi-
bilidade.
No contexto dos grimórios, a evocação é o elemento central da opera-
ção magística. A palavra evocação vem do latim evoco que significa chamar
ou convocar as entidades do corpo de Deus de maneira agressiva, usando
ameaças ao invés de adulação e barganha ou bondade e caridade.90 Uma o-
peração magística evocatória, portanto, consiste na utilização de tecnologias
os daimones evocados fossem solares. Isso demonstra uma técnica multicultural encontrada em diversas cul-
turas.
89 Tecnicamente Crowley diz que os demônios do LEMEGETON são partes do cérebro, fazendo entender que se
tratava de entidades internas, pessoais. Crowley não descarta entidades objetivas do corpo de Deus e isso ele
demonstrou por volta de 1929 quando produziu seus aforismos sobre magia, tendo ainda confirmado em
palavras claras no fim da vida a existência de entidades objetivas. Veja Aleister Crowley: GOETIA, MAGIA EM TEO-
RIA & PRÁTICA e MAGIA SEM LÁGRIMAS. A partir do Iluminismo Científico de Crowley, a magia tornou-se cada vez
mais psicológica. Veja NATURAL OCCULTISM de Frater IAO131.
90 Adulação e barganha é o método dos feiticeiros como praticado nas choupanas de Cabala Crioula, especifi-
camente a kimbanda. Bondade e caridade como praticado nos centros espíritas e ecléticos como a tradição do
Santo Daime por exemplo.
97
mágicas e armadilhas de espírito que separam o mago do demônio convoca-
do devido à criação da virtude da hostilidade por meio das ameaças mágicas.
Essa é uma influência nitidamente católica devido a cosmovisão dos grimó-
rios medievais, todos produzidos pela elite intelectual da Idade Média, quer
dizer, os padres da Igreja Católica.
A barreira principal erigida entre o mago e o demônio é o círculo mági-
co, central em todas as operações de magia tradicional salomônica. O HY-
GROMANTEIA, ancestral direto das CHAVES DE SALOMÃO, esboça pelo menos dois
tipos de operação evocatória.
Esse tema traz a mente uma experiência pessoal que ocorreu por volta
de 2013 no Céu das Estrelas, Igreja do Santo Daime e representante regional
lá na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Depois de uma sessão de concen-
tração, alguns dias antes do Trabalho do Dia das Mães, lá pelas tantas da
meia noite, o comandante da igreja, Fernando Ribeiro, toca meu ombro es-
querdo e diz: Fernando, estão te chamando aqui no quartinho. Ele se referia
ao quartinho de cura que ficava atrás da biqueira do Daime, o altar onde o
sacramento era despachado nas sessões.
Prontamente o acompanhei até o quartinho de cura. Quando lá cheguei
havia um irmão, o Bibim com nós o chamávamos, arqueado como um exu
pagão, quer dizer, da porteira para fora, que me disse logo que entrei: Então,
você não gosta do demônio? Tô aqui. Diante dele me prontifiquei com pé es-
querdo à frente, acionando o hemisfério direito do cérebro, aquele que re-
almente faz magia e tem o poder do conjuro. Coloquei a mão esquerda sobre
a estrela consagrada da doutrina, no lado direito de meu peito. Estendi a
mão direita à frente, na direção dos olhos da entidade. Os dedos polegar, in-
dicador e médio unidos enquanto que os dedos anular e mindinho encosta-
dos na palma da mão. Este é o símbolo cristão do fogo do Espírito Santo, uti-
lizado em batismos, unções, bendições, consagrações, conjurações e exor-
cismos. Ao me prontificar disse: Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e do
Eterno Pai Celestial nas alturas e da Santíssima Mãe de Deus, qual é o teu no-
me? A entidade cabisbaixa relutou e esperneou dizendo: Meu nome é Zé! En-
tão retruquei: Zé? Povo de Rua? A entidade resmungou e resmungou sem
nenhuma lógica. Logo identifiquei que se tratava de uma entidade zombetei-
ra, pois não conseguia raciocinar as minhas perguntas. Eu perguntava: Quan-
to é dois mais dois? Ela respondia resmungando e nada dizia. A entidade mal
sabia falar. Quem te mandou aqui? Com que autoridade você se apresenta?
Essas eram perguntas que a entidade não sabia responder.
Eu optei por fazer algo muito distinto da doutrina do Santo Daime. Nes-
sas circunstâncias a orientação da doutrina é tratar com carinho, doutrinar e
curar. Essa cura o próprio Santo Daime é quem dá. Após a doutrinação da
entidade o fiscal ou comandante lhe dá uma dose de Santo Daime, que cristi-
fica e cura a entidade, seja zombeteira, demônio etc. No entanto, em minhas
veias correm sangue de mago, optando por exorcizar a entidade zombeteira.
Isso foi desonroso ao método da casa, como depois me avaliou o comandan-
te, infelizmente.
98
Ao perceber que ali estava uma entidade zombeteira, me prontifiquei a
conjurar após fazer o Sinal da Cruz na face dele: Senhor Jesus Cristo, Palavra
de Deus Pai, Deus de toda criatura que destes aos vossos apóstolos o poder de
subjugar os demônios e inimigos hostis de seus servos. Em nome do deus Santo
e de sua Palavra Nosso Senhor Jesus Cristo, vá-te daqui demônio. Eu repeti e-
xaustivamente esse exorcismo junto ao Salmo 90 – Sob a Proteção do Altíssi-
mo. Por fim, o irmão da casa se viu livre da entidade zombeteira quando lhe
impus ambas as mãos e roguei: Senhor, nosso refúgio e proteção, livrai o vos-
so servo das prezas do demônio, dos laços do ardiloso, protegei-o nas sombras
de vossas santas asas divinas lhe enviando São Miguel e São Gabriel para de-
fender-lhe.
Após o ocorrido o comandante da casa me repreendeu severamente,
dizendo que não é daquela maneira que ali se lidava com este tipo de pos-
sessão. Eu pedi desculpas dizendo que de onde eu venho, esse tipo de entida-
de nós sentamos a espada na cabeça. O comandante disse: Aqui não! Aqui nós
tratamos os espíritos com «bondade e caridade».
A evocação mágica na magia tradicional salomônica remonta aos PAPI-
ROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS e trata-se de uma operação magística cuja finali-
dade é convocar e imprecar um demônio a sua aparição visível. A tecnologia
espiritual da evocação de um demônio é, portanto, violenta e hostil. Ela não
está interessada em projetar demônios da mente inconsciente, mas convocar
a aparição entidades do corpo de Deus. A principal armadilha de espírito
para evocação de um demônio é o triângulo mágico, presente tanto na magia
egípcia quanto na magia greco-romana. Pessoalmente, eu melhorei a tecno-
logia do triângulo ao incluir o cabo de aço e água na evocação de um demô-
nio.
Constrição:
A palavra constrição vem do latim constringo que significa confinar ou agri-
lhoar. Quando for claro ao mago no curso da cerimônia magística que o de-
mônio evocado fez-se presente, ele passará ao próximo passo: a constrição
do demônio. O propósito da constrição é garantir que o demônio convocado
será confinado no triângulo da arte, tábua de evocação, bola de cristal ou
arca de bronze fora do círculo mágico. A arca de bronze também é conhecida
como vaso de latão91 na magia moderna. Originalmente na magia tradicional
salomônica a arca de bronze ficava dentro do círculo mágico, não fora, sendo
usada para demônios domesticados, quer dizer, que se tornaram espíritos
familiares do mago operante. A arca de bronze é utilizada no lugar do triân-
gulo da arte fora do círculo somente se o mago não possuir o triângulo no
chão, mas é uma interpretação moderna.
91O bronze é uma liga de cobre, estanho, chumbo e zinco. O latão é apenas cobre e zinco. Magicamente, o bron-
ze oferece a constrição saturnina (por causa do chumbo), o que o latão não oferece. É por isso que na Arte da
Alquimia o latão é considerado o bronze dos pobres. O efeito mágico do bronze é infinitamente superior ao
efeito do latão. Quando avaliamos as tabelas de proporção dessas ligas metálicas, notamos que as razões ma-
temáticas do bronze são mais adequadas que o latão para arte da magia. O latão por sua vez tem razões mate-
máticas imprecisas e não produz razões áureas, dessa maneira, gera espíritos de segunda grandeza, quer dizer,
forças essencialmente cegas.
99
Essas tecnologias mágicas não são idênticas como muitos autores de
magia moderna têm ensinado, quer dizer, a fórmula mágica que alimenta a
arca de bronze não é a mesma que alimenta o triângulo da arte, a bola de
cristal ou a mesa de evocação. Por exemplo, a arca de bronze é usada para
tornar os demônios cativos e familiares, já o triângulo da arte serve para co-
locar o demônio em prontidão, uma atitude interna apropriada a servir e
trabalhar sob as ordens do mago. Tecnicamente a arca deve ser utilizada an-
tes do triângulo da arte e isso é algo que você não encontrará nos livros mo-
dernos que tratam do assunto, mas está em perfeita harmonia com a visão
da feitiçaria dos grimórios. O exemplo abaixo ilustrará de forma mais efeti-
va:
Imagine que a arca de bronze é um grande curral onde o fazendeiro
(mago) coloca os cavalos bravos (daimones) do campo (corpo de Deus) que
estavam livres na natureza. O fazendeiro vai lá no ambiente dos cavalos bra-
vos, o campo, e os laça, levando-os a força para dentro do curral. Uma vez
dentro do curral, os cavalos bravos são açoitados, amansados, adestrados,
treinados e alimentados. Depois que o fazendeiro treinou, adestrou, alimen-
tou e tornou submissos os cavalos do curral, então ele irá selecionar um den-
tre eles e levará para fora do curral, onde colocará nele uma cela e arreio (o
triângulo da arte) e o montará, comando-o a seguir um curso adequado e
apropriado aos fins do fazendeiro.
A arca de bronze, portanto, serve para tornar os daimones da natureza
que não possuem pactos com os homens submissos ao mago que, através do
triângulo da arte, os comandará a fazerem a sua vontade. E é por isso que
essa goécia ensinada na magia moderna trata-se só de psicurgia e efetiva-
mente não funciona, é a arte dos tolos. Antes de confinar um demônio no tri-
ângulo da arte, ele deve ser preparado dentro da arca de bronze. A arca de
bronze é o equivalente a lâmpada para aprisionar os djinns dos mulçumanos
ou o baú (caixa preta) da feitiçaria crioula.
O LEMEGETON (ou GOÉCIA) ao descrever o 13° demônio, Beleth cujo Anjo
Aniquilador é Jazalel, explica o processo de constrição:
92 THE GOETIA OF DR. RUDD editado por Stephen Skinner & David Rakine, p. 115.
100
A averiguação é importante para que o mago siga seguro na operação e não
frustrado como John Dee (1527-1608) que se viu enganado por demônios
(daimones) que se diziam anjos.
Nos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS essa etapa da operação chama-se
fórmula compulsiva e ela compreende uma miríade de procedimentos distin-
tos usados na intenção de trazer o deus ou daimon a aparição. O procedi-
mento que aparece primeiro nos papiros como técnica coerciva para trazer
uma entidade a aparição visível é o corte, quer dizer, sacrifício das partes de
um animal que possua equivalência com o daimon ou deus que terá sua ima-
gem pintada no chão ou em um papiro.
Se ele não aparecer, sacrifique o cérebro de um cordeiro preto e no terceiro dia a unha
da perna direita traseira, a mais próxima do tornozelo; no quarto [dia], o cérebro de
uma íbis; no quinto, desenhe a figura [do carneiro] em um papiro com tinta de mirra,
envolva ela em uma peça de roupa de alguém que tenha morrido violentamente e a a-
tire no forno de uma casa de banho.93
Alguns papiros trazem a instrução para não jogar no forno, pois é uma ação
muito extrema, mas ao contrário, suspender sobre uma lamparina acesa. É
possível ver aqui o antecedente medieval de se ameaçar o demônio colocan-
do seu selo dentro de uma caixa de metal com enxofre e assafétida suspensa
sobre um braseiro com carvão em chamas (ou em brasa), o que torturará o
demônio através de sua calcinação. Como o selo do demônio deverá ser ins-
crito em um papiro – o que demonstra sua ancestralidade a partir dos PAPI-
ROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS – este procedimento pode durar horas.
Se o mago colocar o papiro sobre a lamparina acesa e mesmo assim o
daimon ou espírito não aparecer, ele segue jogando no forno de uma casa de
banho no quinto dia. Esse procedimento é acompanhado de invocações aos
deuses para forçar a aparição do Sem Cabeça (traduzido modernamente co-
mo Não Nascido). Outra fórmula compulsiva que acompanha a anterior é a
ameaça de que um grandioso deus punirá o daimon calcinado:
Se você me desobedecer e não for até ele [i.e. a pessoa que se deseja contatar ou envi-
ar uma mensagem através da experiência onírica] eu direi ao grande deus e após ele
lhe espancar, irá lhe cortar em pedaços e alimentará os cães sarnentos que moram en-
tre os montes de esterco com eles. Por isso, ouça-me agora, imediatamente, rápido. Eu
não o ameaçarei novamente! 94
O grande deus referido neste papiro é Set. A ideia de que o mago pode co-
mandar um deus maior a repreender ou torturar uma entidade menor apa-
rece nos grimórios latinos onde os espíritos são punidos pelo demônio rei e
regente dos quadrantes do espaço. Em todo caso, seja na Antiguidade ou I-
dade Média, o sucesso da operação depende do espírito convocado e agri-
lhoado reconhecer o poder do mago. No texto que enviei a vocês anterior-
mente, Um Elogio a Magia Tradicional Salomônica, eu disse que o que confe-
101
re poder real sobre os demônios é a conduta moral do mago, replicando o
que Agrippa já havia ensinado. Neste texto eu contei sobre a experiência que
presenciei de um exorcismo mal sucedido onde o possuído disse: Você? Logo
você que é o mais pecador de todos acha que tem qualquer autoridade sobre
mim?
Como a experiência relatada na seção anterior, essa também aconteceu
no Céu das Estrelas em maio de 2006. Tratou-se de um Trabalho de Jovens,
quer dizer, um trabalho só para os jovens da igreja, sem a presença dos dois
comandantes, Fernando e Rodolfo. O jovem escolhido para comandar o tra-
balho foi o cunhado de Rodolfo, o Evandro. Eu fiquei na fiscalização do salão
e do terreno, o Rodrigo ficou como fiscal de porta. O fiscal de porta é como
um guardião, ele fica na porta da igreja. O fiscal de salão e de terreno cuida
dos pontos acesos, lava os copos de Santo Daime e fica a disposição do co-
mandante do trabalho.
Neste dia em questão, enquanto eu estava lavando os copos do último
despacho de Santo Daime, o fiscal da porta teve de correr do lado de fora
para socorrer um irmão que estava endiabrado, o Lele. O trabalho foi em
uma noite de Lua Nova e Lele corria para todo lado, pulava e rolava no meio
do mato, socava e batia a cabeça no chão. Literalmente ele deu trabalho a
noite toda e no fim da sessão, ele ainda estava endiabrado.
Após eu lavar os copos, corri para render o fiscal da porta e lá fiquei,
sem nada poder fazer. Enquanto eu estava ali na porta, por um momento o
fiscal conseguiu trazer o Lele bem próximo da porta da igreja, quando ele
caiu sentado no chão dizendo ao fiscal: Você? Logo você que é o mais pecador
de todos acha que tem qualquer autoridade sobre mim? Eu não vou para igre-
ja nada. Após dizer isso ao fiscal, Lele saltou do chão e saiu correndo para
dentro do mato, pulou a cerca de trás da igreja e subiu lá para o alto da mon-
tanha. Quando o outro fiscal disse ao comandante que o Lele tinha saído cor-
rendo da igreja, ele me chamou e disse: Fernando, vai atrás do Lele e traz ele
de volta. Eu prontamente saí correndo atrás do Lele.
Ao encontrar o Lele em uma plataforma no alto da montanha, consegui
conversar tranquilamente com ele que, hora estava consciente, hora não fa-
lava coisa com coisa. Bem lentamente fomos conversando e ele optou por
retornar. Nós somos muito amigos e devido a isso ele manteve-se controla-
do.
Eu consegui trazê-lo para igreja. No entanto, ele permaneceu atrapa-
lhando o trabalho, interrompendo os hinos, pedindo outros hinos. Tivemos
de lidar com ele até o fim da sessão dando problemas. Ele não foi levado ao
cruzeiro e nem tomou Santo Daime de cura. O comandante preferiu deixa-lo
na fila entre os irmãos. Será que se o comando da casa estivesse ali ele teria
passado por tudo aquilo? Eu refleti que não, conhecendo o Lele, que espera-
va o tempo certo, quer dizer, quando a casa se encontrasse sem autoridade
espiritual do comando para exorcizar, ele mesmo, os demônios que lhe a-
companham e lhe açoitam.
102
Ligação:
Ligação vem do latim ligatio, que significa acorrentar, prender, arrear, atre-
lar, subordinar, couraçar ou conectar. No contexto de uma operação magísti-
ca da evocação mágica de uma entidade do corpo de Deus, trata-se de pren-
der o espírito a um juramento mágico. Esse é um procedimento que data pe-
lo menos da Antiguidade tardia. Em seu A VIDA DE ISIDORO, referência a Isido-
ro de Alexandria, filósofo neoplatônico sucessor em comando na Escola de
Filosofia de Proclo no Séc. V, Damáscio, autor do ensaio que conviveu com
Isidoro, relata que o sábio Teosébio forçou um demônio a sair do corpo de
uma mulher através de um juramento (horkise) em nome dos raios do Sol e
do Deus dos judeus.
É desta parte da cerimônia magística que vem o conceito de pacto, no
entanto, deveras distinto do conceito de pacto que deriva da obra de Fausto,
que implica a entrega da Alma. Os verdadeiros pactos, como é o caso deste
feito pelo sábio Teosébio, são raros. Um dos verdadeiros, datado de um pe-
ríodo anterior a 1641, é o pacto com Padiel. O interessante é que este pacto
demonstra claramente que a tarefa mais onerosa dele fica a cargo e compe-
tência da entidade, não do mago:
95 THE GOETIA OF DR. RUDD editado por Stephen Skinner & David Rakine, p. 365.
96 Veja meu vídeo O Livro & a Consagração.
103
comandá-la a fazer o que ele ordena. As ordens do mago, no entanto, devem
estar em harmonia com os poderes e funções da entidade convocada. Muitos
magos relatam falhas por ordenarem demônios (daimones) a fazerem o que
não está sob sua regência.
E preciso prender o espírito, confinando-o dentro da urna de bronze.
Após um período de cárcere, o mago irá conjurá-lo e imprecá-lo no triângulo
da arte, ordenando-o a fazer sua vontade. Do contrário, o espírito pode se
recusar a fazer o que o mago ordena ou, pior, fazer o contrário. A entidade,
portanto, deve concordar e se comprometer a realizar as ordens do mago
através de um juramento mágico. Este é um dos passos mais importantes em
uma cerimônia magística de evocação cerimonial, frequentemente omitida
nos grimórios posteriores ao Séc. XVII.
104
não há muito que se fazer: evocações mágicas exigem força, firmeza de pro-
pósito e muito preparo atlético. Ao cansaço soma-se o estado de êxtase que
todos se encontravam, pois o sacramento utilizado no ritual foi o Santo Dai-
me.
No fim da operação, Alex que era o oficiante, deixou de completar a li-
cença de partir. Ele conta que Bartzabel destruiu os encanamentos de sua
casa, destruindo uma estante de livros medievais de magia e grimórios. No
vídeo Goécia & a Arte da Evocação, ele conta pessoalmente a história.
Estes são os seis passos do método salomônico que devem ser seguidos
com as armadilhas de espírito necessárias como o círculo mágico, triângulo,
lâmen consagrado etc.
105
. PRIMEIRA PARTE .
106
SEÇÃO 1: PREPARAÇÃO &
CONHECIMENTO TÉCNICO
107
CAPÍTULO 1
TABULAÇÃO DE HORAS PLANETÁRIAS
108
deuses as horas e aos dias. Na tradição ocidental este conhecimento remonta
a Babilônia. A teurgia clássica neoplatônica opera através de uma intricada
conjuração de deuses e daimones no curso dos ritos teúrgicos para que o te-
úrgo tenha acesso a um amplo espectro de seres. No início de um ritual de
teurgia conjura-se o daimon do país, o daimon do estado, o daimon da cidade,
o daimon da estação, o daimon do mês, o daimon do dia e da hora, o daimon
do local onde se está fazendo a operação e se for dentro de uma estrutura de
templo (temenus), seu daimon também.
A magia antiga, vamos assim dizer, anterior ao Renascimento, sempre
propôs relevância na execução de operações mágicas no e durante o tempo
de poder correto. Apenas na tradição moderna da magia que isso se tornou
um paradigma superado. Os praticantes da magia antiga são animistas. Isso
significa que parte importante do trabalho mágico consiste em se alinhar aos
poderes do cosmos, o Corpo de Deus. Isso garante que a assinatura astral
produzida pelo ritual use o universo como sua caixa de ressonância. É so-
mente estando alinhados com o cosmos que nossas projeções rituais rever-
beram e têm seu poder amplificado pelo próprio movimento do Corpo de
Deus. Negar a importância disso é dizer ao cosmos que você não precisa de
sua ajuda e que pode movimentar as forças que necessita apenas com o po-
der da projeção de sua vontade, somente com os poderes de sua mente. Bem,
é justamente por isso que a magia moderna não funciona.
O tempo de poder mais forte na tabulação de horas planetárias é o pri-
meiro tempo ou hora do dia, pois esta primeira hora recebe a força total das
virtudes planetárias do dia. Como o mapeamento se inicia ao nascer do Sol, a
primeira hora planetária do dia sempre é às 6:00, variando em minutos se-
gundo a região. Domingo, por exemplo, é um dia atribuído ao Sol. A primeira
hora do domingo, portanto, é a hora do Sol. A divisão em horas planetárias
diurnas e noturnas é claramente uma influência egípcia, quando extratos
mitológicos diversos descrevem a Barca de Rá viajando pelos céus de dia e
adentrando ao Duat à noite, com feitiços e nomes adequados para atravessar
cada um de seus portais noturnos. É interessante notar O LIVRO DOS MORTOS
que registra detalhadamente cada um dos distintos reinos das horas da noi-
te. Assim como a primeira hora do dia começa ao nascer do Sol, a primeira
hora da noite começa ao por do Sol e início da noite, quando nasce a Lua. Ca-
da hora planetária dura uma hora (60 minutos) e, dependendo da estação, às
vezes menos.
Aqui surge uma discussão interessante. Se cada hora planetária dura 60
minutos, as operações mágicas devem ser iniciadas e finalizadas dentro des-
sa janela de 60 minutos? Tecnicamente não, embora idealmente sim, mas
trata-se de uma impossibilidade às vezes. Existem operações mágicas que
duram mais de doze horas. Então no curso dessas doze horas a influência
das virtudes planetárias requeridas para o ritual diminuem. Todavia, há ma-
gos que conseguem fazer um ritual bem feito no curso de 60 minutos. De-
pende do conhecimento, técnica e, vamos dizer, pegada pessoal.
109
Através dos tempos de poder, isso é imprescindível dizer, também é
possível manipular o que se conveniou chamar de luz astral, um agente uni-
versal através do qual as virtudes dos astros (planetas e conjunções zodia-
cais) podem ser manipuladas: canalizadas e dirigidas através de contra par-
tes físicas, o que inclui feitiços diversos e armadilhas de espírito. De modo
geral, operações mágicas com Saturno, Marte e Lua servem para invocações
e orações ordinárias; operações com o Sol e Vênus para amizade e amor; o-
perações com Saturno e Marte para magia negra, ódio e vingança; operações
com mercúrio para estudos, produção de talismãs e consagrações de anéis
mágicos; operações com Júpiter e Vênus para evocações de forças superiores
e iniciações. No fim deste capítulo há uma ampla lista das virtudes planetá-
rias retiradas dos grimórios medievais, tábuas de correspondências mágicas
produzidas por magos consagrados do passado, além de inúmeras corres-
pondências encontradas nos ORÁCULOS CALDEUS, HINOS HOMÉRICOS e ÓRFICOS, e
dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS.
Não só o Sol, mas também o poder da Lua deve ser levado em conside-
ração. Para operações rituais de construção, expansão e crescimento, a Lua
deve estar em sua fase Crescente; para operações de destruição, a Lua deve
estar em sua fase Minguante; para operações de limpeza e purificação a Lua
deve estar em sua fase Nova/Negra; para operações de energização, fertili-
dade, atração e magnetismo, a Lua deve estar em sua fase Cheia. Inúmeros
grimórios instruem que se a Lua estiver muito perto do Sol no curso da ope-
ração, sua influência diminui drasticamente. Alguns magos insistem que é
melhor se orientar pela Lua para fazer operações mágicas do que pelo Sol.
Quer dizer, mesmo que o dia e a hora planetária estejam corretos, a opera-
ção pode não produzir os efeitos desejados se a conjunção lunar não for a-
dequada. Vamos nos lembrar que a grande maioria dos espíritos convocados
em uma operação mágica estão na região sublunar e, portanto, a Lua exerce
sobre eles grande influência. Espíritos/daimones (anjos) das estações, me-
ses, lugares etc. estão todos sob a regência da Lua.
A influência da Lua nas casas zodiacais também tem sido considerada
pelos magos como mais importante do que a presença do Sol. O Sol perma-
nece um mês em cada casa zodiacal, mas a Lua permanece cerca de dois dias.
As operações mágicas, nesse caminho, são escolhidas a partir da Lua nas ca-
sas zodiacais, não a partir do Sol como muitos magos têm feito.
O segredo da hora planetária reside na conjuração de seu espírito. Isso
tanto é verdade que os magos dos PAPIROS MÁGICOS GRECO-EGÍPCIOS acredita-
vam que se o operador não estabelece primeiro contato com este espírito da
hora planetária, os deuses, quer dizer, os seres dos planos internos, o consi-
deravam um não iniciado nos mistérios. Na tradição dos papiros, primeiro
conjura-se o deus da hora e depois seu daimon; na tradição dos grimórios
primeiro se conjura o nome da hora, o equivalente ao deus dela, e depois o
anjo correspondente sob sua regência.
Como cada hora do dia e da noite está atribuída a uma medicina plane-
tária, inúmeras virtudes são associadas a elas. As tabulações que seguem
110
servirão de mapa para escolha de dias corretos e as horas apropriadas para
as operações mágicas.
Lua em Objetivos
Virgem Qualquer coisa que se queira obter a curto prazo.
Libra Operações de necromancia e necrurgia.
Escorpião Operações para infligir o mal, destruição.
Sagitário Invocações, feitiços e encantos que envolvam o Sol e a Lua.
Operações para se obter resultados positivos em tudo que se
Capricórnio
quer conquistar.
Aquário Operações para atração e magia de amor.
Peixes Operações de previsão de futuro e profecias.
Operações de divinação e oráculos diversos. Operações de Visão
Áries (skrying) em bola de cristal ou lamparina. Magia de amor.
Touro Operações de evocação em lamparinas ou bola de cristal.
Gêmeos Operações para ganhar favores de alguém.
Câncer Operações para fazer e consagrar talismãs.
Leão Operações de amarração diversas.
Mansões Lunares
97 Nessa tabulação, entenda também produção de talismãs, o que pode ser feito com a magia dos Salmos desta
lição.
111
6 17°8’30’’ Gêmeos Althaia para vitória em contendas e
prejudicar colheitas.
Produção de pantáculos pa-
ra melhorar comércios, via-
gens marítimas e boa sorte;
7 0° Câncer Addyvat encantamentos e feitiços pa-
ra obter favores de pessoas
importantes e semear dis-
córdia.
Produção de pantáculos pa-
ra amor, para amizades ou
para viagens terrestres; en-
8 12°51’26’’ Câncer Mathura cantamentos e feitiços para
amizades, amarrações e dis-
córdia.
Produção de pantáculos pa-
ra prejudicar viagens, criar
9 25°25’51’’ Câncer Ataris discórdia e inimizade; encan-
tamentos e feitiços de ódio.
Produção de pantáculos pa-
ra amor; encantamentos e
feitiços para vencer inimiza-
des, construção de projetos,
10 8°34’18’’ Leão Alzeral buscar ajuda para construir
algo, buscar benevolência de
juízes e promotores.
Produção de pantáculos pa-
ra facilitar o comércio; en-
11 21°25’44’’ Leão Azobre cantamentos e feitiços para
livrar presos da cadeia ou de
condenações.
Produção de pantáculos pa-
ra boa colheita e fartura;
encantamentos e feitiços pa-
12 4°7’1’’ Virgem Discorsa
ra melhorar a vida de cati-
vos, escravos e amigos; des-
truir propriedades.
Produção de pantáculos pa-
ra beneficiar comércio e boa
colheita; encantamentos e
13 17°8’6’’ Virgem Alalma
feitiços para obter favores de
poderosos e criar aversão
entre os cativos e escravos.
Produção de pantáculos pa-
ra amor e cura de doenças;
112
encantamentos e feitiços pa-
14 0° Libra Azimel ra destruir searas e impedir
colheitas, fazer mal e causar
danos a viajantes; obter fa-
vores de chefes de estado.
Produção de pantáculos pa-
ra descobrir tesouros; encan-
tamentos e feitiços para des-
15 12°51’26’’ Libra Algalia
truir inimigos e beneficiar
amigos; encontrar tesouros
ocultos.
Encantamentos e feitiços de
16 15°42’52’’ Libra Alcibene
ódio e destruição.
Produção de pantáculos pa-
ra felicidade de iludidos e
vítimas de golpe, para sorte e
17 8°36’ Escorpião Alchil longevidade de propriedades
e projetos; encantamentos e
feitiços para conquistar pes-
soas e fazer amigos.
Produção de pantáculos pa-
ra conspirações e proteção
18 21°25’44’’ Escorpião Arcalo contra inimigos; encanta-
mentos e feitiços para dis-
córdia.
Produção de pantáculos pa-
ra sorte em batalhas; encan-
tamentos e feitiços para des-
19 4°27’10’’ Sagitário Exarala
truir inimigos, fuga de cati-
vos e escravos, prejudicar e
destruir propriedades.
Produção de pantáculos pa-
ra saúde e cura de doenças;
20 17°8’46’’ Sagitário Nahaim
encantamentos e feitiços pa-
ra ódio e destruição.
Produção de pantáculos pa-
ra proteção de propriedades,
21 0° Capricórnio Albelda colheita e riquezas; encan-
tamentos e feitiços para des-
fazer amarrações amorosas.
Produção de pantáculos pa-
ra cura de doenças; encan-
22 12°51’26’’ Capricórnio Caalbeda tamentos e feitiços para dis-
córdia entre amigos, para
fazer um inimigo tornar-se
113
amigo.
Produção de pantáculos pa-
ra cura de doenças e fazer
23 25°42’32’’ Capricórnio Caaldebolach amizades; encantamentos e
feitiços para desfazer amar-
rações amorosas.
Produção de pantáculos pa-
ra sorte no comércio, sorte
no amor e triunfo sobre ini-
24 8°24’28’’ Aquário Caadochot
migos; encantamentos e fei-
tiços para prejudicar pessoas
e propriedades.
Produção de pantáculos pa-
ra proteger exércitos, ativar
vingança, proteger mensa-
25 21°25’44’’ Aquário Caalda geiros e executar com efici-
ência trabalhos em geral;
encantamentos e feitiços de
amor e de ódio.
Produção de pantáculos pa-
26 4°17’10’’ Peixes Alm ra amor e proteção contra
perigos.
Produção de pantáculos pa-
ra sorte no comércio, contra
as doenças, proteger amiza-
27 17°8’26’’ Peixes Algafermuth des e colheitas; encantamen-
tos e feitiços para proteger
amigos e criar inimizade en-
tre cativos.
28 0° Peixes Anaxhe Produção de pantáculos pa-
ra sorte no comércio, prote-
ger amigos e criar laços de
amor entre casados; encan-
tamentos e feitiços para pre-
judicar pessoas e destruir
propriedades.
114
Vênus com Marte para produzir chacota e zombaria contra inimigos.
produzir suscetibilidade em outras pessoas a
Marte com Saturno para
projetos nossos; indução de ideias.
luta pela vida; coragem e vontade de viver; dis-
Sol com Marte para
ciplina e continuidade de propósito.
conseguir honrarias, cargos eclesiásticos, pro-
Sol com Júpiter para
moções no trabalho.
Lua com Júpiter para produzir riquezas.
Mercúrio com Marte para sorte no comércio.
Mercúrio com Saturno para adquirir inteligência e profundidade de ideias.
Vênus com Lua para casamentos e amarrações amorosas.
Vênus com Júpiter para fertilidade e procriação.
Saturno com Júpiter para sabedoria.
115
Nome do
Abraim Athemai Abragini Commutoff
Sol
Nome da
Agusita Armatus Matasignais Affaterim
Lua
116
Hierarquia Espiritual
O nome dos anjos das horas planetárias são, como podemos ver, arcanjos de
Deus. Na hierarquia espiritual cristã/católica e, portanto, no ocultismo cató-
lico, os arcanjos são uma das nove categorias de criaturas espirituais:
117
Propriedade das Medicinas Planetárias
para fins de Operações Mágicas
119
CAPÍTULO 2
CORRESPONDÊNCIAS MÁGICAS DIVERSAS
120
Os símbolos (sunthēmatas) naturais são tanto celestes como o Sol, a
Lua, as estrelas e conjunções astrológicas, quanto terrestres, minerais, vege-
tais, animais e condensadores fluídicos orgânicos em geral. Nesse capítulo
vamos estudar a correspondências entre esses símbolos celestes e terres-
tres. As correspondências levadas em conta pela magia são fundamental-
mente astrológicas e se referem aos signos do zodíaco e planetas, quer dizer,
qualquer astro móvel, o que inclui o Sol e a Lua.
Áries vermelho-fogo
Touro verde-sombrio
Gêmeos marrom
Câncer prata
Leão ouro
Virgem multicor
Libra verde-água
Escorpião vermelhão
Sagitário azul-celeste
Capricórnio preto
Aquário cinza
Peixes azul-marinho
Sol ouro/dourado
Lua prata/prateado
Mercúrio multicor/mutável/prateado
Vênus verde
Marte vermelho
Júpiter azul
Saturno preto
Sol ouro
Lua prata
121
Mercúrio mercúrio
Vênus cobre
Marte ferro
Júpiter estanho
Saturno Chumbo
Sol carbúnculo/diamante/safira
Lua diamante/cristal de rocha
Mercúrio sardônia/pedra de imã
Vênus esmeralda
Marte rubi/esmeralda
Júpiter safira/cornalina
Saturno obsidiana/turqueza
Áries calcedônia
Touro esmeralda
Gêmeos sardônix
Câncer sardônia
Leão crisólita
Virgem berilo
Libra topázio
Escorpião crisoprásio
Sagitário jacinto
Capricórnio ametista
Aquário Jaspe
Peixes Safira
122
Berilo estudo, simpatia, proteção espiritual, justiça.
Calcedônia preserva dos perigos de viagens; faz ganhar processos.
Crisólita preserva de gota e males dos rins e fígado.
Coral prudência e julgamento lúcido; preserva da gripe.
Cornalina boa sorte e preserva contra hemorragias e ferimentos.
Diamante proteção e justiça; auxilia no parto.
Esmeralda protege a visão; amadurece e fortifica a castidade.
Granada saúde; proteção em viagens.
Jacinto causa esterilidade.
Jaspe preserva contra animais peçonhentos; proteção.
produz pesadelos; aumenta depressão; absorve negati-
Ônix
vidade de ambientes e pessoas.
fortifica a castidade; produz leveza espiritual e pleni-
Pérola
tude de mente.
Safira fortifica a castidade; boa sorte.
Sardônia boa sorte.
Salenita proporciona simpatia e magnetismo pessoal.
Topázio proporciona simpatia e boa sorte.
Sol carvalho
Lua nogueira
Mercúrio oliveira
Vênus mirta
Marte azevinho
Júpiter bétula
Saturno pinheiro
Sol semente
Lua folhas
Mercúrio casca
Vênus flores
Marte caule
Júpiter fruto
Saturno raiz
124
Grão de mostarda simboliza onisciência
Mirta simboliza compaixão
Ramo de oliveira simboliza paz
Folha de palmeira simboliza Vitória
Paritária simboliza pobreza
Flor de roseira simboliza amor
Sabugueiro simboliza zelo
Trevo simboliza ternário
125
Correspondência de Planetas e Perfumes para Fumigações na Magia
Sol Heliotrópio
Lua Íris
Mercúrio zimbro
Vênus verbena
Marte urze
Júpiter menta
Saturno Dormideira
açafrão (5 gramas)
aloés (5 gramas)
bálsamo (5 gramas)
semente de loureiro (5 gramas)
Domingo (Sol) cravo (5 gramas)
mirra (5 gramas)
olíbano (5 gramas)
almíscar (uma pitada)
grãos de papoula (5 gramas)
126
estoraque (5 gramas)
Segunda (Lua) benjoim (5 gramas)
cânfora (5 gramas)
eufórbia (5 gramas)
boélio (5 gramas)
bicarbonato de sódio (5 gramas)
Terça (Marte)
raiz de heléboro (uma pitada)
enxofre (uma pitada)
resina de férula (5 gramas)
almácega (5 gramas)
Quarta (Mercúrio) olíbano (5 gramas)
cravo (5 gramas)
grãos de freixo (5 gramas)
aloés (5 gramas)
Quinta (Júpiter)
estoraque (5 gramas)
benjoim (uma pitada)
mandrágora (5 gramas)
almíscar (5 gramas)
âmbar (5 gramas)
aloés (5 gramas)
Sexta (Vênus) rosa vermelha (10 pétalas)
coral vermelho (5 gramas)
café (5 granmas)
mel (1 grama)
grãos de papoula (5 gramas)
grãos de meimendro (5 gramas)
raiz de mandrágora (5 gramas)
Sábado (Saturno)
mirra (uma pitada)
enxofre (uma pitada)
resina de férula (5 gramas)
127
nitro (20mg)
enxofre (20mg)
Quarta (Mercúrio)
óxido de cobre (10mg)
sulfureto de mercúrio (3mg)
nitro (5mg)
Quinta (Júpiter) enxofre (2mg)
antimônio em pó (5mg)
óxido de bário (60mg)
enxofre (10mg)
Sexta (Vênus) cloreto de potássio (20mg)
sulfureto de arsênico (5mg)
carvão em pó (5mg)
clorato de potássio (50mg)
enxofre (20mg)
Sábado (Saturno) giz em pó (20mg)
óxido de cobre (5mg)
128
129
130
131
. SEGUNDA PARTE .
O LIVRO DE OURO
CONCERNENTE AS QUALIDADES & CARACTERÍSTICAS
DOS SALMOS DO PROFETA DAVI E SEU USO MÁGICO
RESTAURADO POR FERNANDO DE LIGÓRIO
132
PRIMEIRO SALMO
BEATUS VIR QUI NON ABIIT. A. LET
Escreva este Salmo com a frase em latim Et folium ejus nin defluet com os
caracteres e letras mágicas abaixo em um amuleto de pergaminho (couro),
consagrado com mástique (resina de aroeira). Uma mulher grávida que está
em perigo de abortar deve usá-lo no braço direito ou dentro de um patuá
pendurado no pescoço. O amuleto deve ser feito e consagrado quando a Lua
(R) estiver em Sagitário (I) ou em Peixes (L) na hora e dia de Júpiter (V).
El HH.AD
Prece de Consagração:
Torne-nos, ó Senhor, tão férteis como uma árvore carregada de frutos diante
de Tua glória, de modo a sermos cultivados entre a multidão de Tuas plantas e
possamos ser dignos de receber de Ti um excelente fruto de sua fecundidade
através de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
Comentário:
A frase em latm Et folium ejus nin defluet trata-se do início do primeiro Sal-
mo, que diz: «Bem-aventurado o homem que não segue o conselho dos ím-
pios». O Salmo todo pode ser lido no ato da consagração do talismã.
O uso deste Salmo como amuleto (filactério) mágico em O LIVRO DE OU-
RO é equivalente aquele encontrado no SEPHER SHIMMUSH TEHILIM, salvo que
no judaísmo ortodoxo o filactério é utilizado no braço esquerdo.
As letras El HH.AD representam o nome divino AL ChD (El Chad), o
Grande e Único Deus, retirado das seguintes palavras no corpo do Salmo: As-
chre (verso 1), Lo (verso 4), Jatzliach (verso 3) e Vederech (verso 6). O couro
utilizado para este amuleto mágico é pele de veado.
133
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