Niassa 5

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Autor: HICA

Edição de Autor
4.ª Edição

2007

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A despedida na Gare Marítima de Alcântara

A bordo, ainda era assim !!!!!

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C R O N O L O G I A D E A C O N T E C I M E N T O S
E N T R E M A R Ç O E D E Z E M B R O D E 1 9 7 0

31 DE MARÇO - Kaulza de Arriaga substitui Augusto dos Santos, no cargo de Comandante Chefe de
Moçambique. Novas ideias de quem se revelava na disposição de acabar com a Frelimo, o que mais tarde
se veio a verificar ser um sonho sem bases de sustentação. A vaidade de um homem que tudo quis
varrer na sua frente e que pertencia à Força Aérea.

20 DE ABRIL - A operação Chão Manjaco, realizada na Guiné por António Spínola, com o intuito de fazer
a paz com o PAIGC, redunda num fracasso. São mortos três majores que há algum tempo mantinham
conversações secretas e no mato com a guerrilha, depois de atraídos a uma emboscada.

21 DE ABRIL - Costa Gomes é nomeado comandante chefe de Angola, vindo a obter bons resultados na
luta com o MPLA, pacificando um pouco a guerra. Sá Carneiro e Pinto Balsemão, apresentam um projecto
de Lei de Imprensa com o intuito de ampliar as liberdades, terminando com a Censura.

10 DE MAIO - A FRELIMO, afasta Una Simango da sua presidência e elege Moisés Samora Machel,
tornando a organização mais radicalmente adepta das convicções chinesas e soviéticas. Intensifica-se a
pressão da FRELIMO, sobre o empreendimento de Cahora Bassa, barragem que irá assegurar no futuro
uma despesa incomportável para a economia nacional.

1 DE JULHO - Amilcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, dirigentes respectivamente do
PAIGC, MPLA e FRELIMO, deslocam-se ao Vaticano onde são recebidos pelo Papa Paulo VI, em audiência
oficial, o que deixa incrédula a nação portuguesa, fortemente de formação católica. Portugal fica mais
isolado politicamente nas três frentes de guerrilha.

27 DE JULHO - Salazar acaba os seus dias no forte de S. Julião da Barra, finalmente com 81 anos de
idade a nação fica livre da sua presença física, mas não da sua ideologia política, pois os seus delfins e
organizações que tinha posto a funcionar, asseguram a continuidade da cultura salazarista.

3 DE AGOSTO - Com eficácia e resultados bastante satisfatórios para as suas forças, o PAIGC, ataca
simultaneamente 32 campos militares portugueses e, consolida a sua vantagem no teatro de guerra. O
serviço militar obrigatório passa a ser de 28 meses.

26 DE OUTUBRO - O navio Cunene, atracado no porto de Lisboa, é alvo de uma sabotagem, executada
através de uma carga explosiva, transportada por um elemento da Acção Revolucionária Armada que
fazendo-se transportar num pequeno barco movido a remos, a coloca no casco do barco. Foi esta acção a
primeira executada pela ARA, mas da qual resultou um efeito psicológico muito grave sobre os
embarques futuros de tropas. Nós embarcámos menos de um mês depois deste atentado, quando ainda
estavam bem presentes nas memórias as imagens desta acção. Calculem o efeito nefasto que esta
sabotagem atingiu.

22 DE NOVEMBRO - Alpoim Galvão, na Operação Mar Verde, invade Conakry, com o seu grupo de
fuzileiros, domina a cidade durante largas horas, dá fim ao cativeiro de algumas dezenas de prisioneiros
de guerra portugueses, falhando outros objectivos delineados. Esta operação tem larga repercussão
internacional, devido à invasão de um País pelo outro, mas refaz um tanto o moral das tropas
portuguesas estacionadas na Guiné.

8 DE DEZEMBRO - O Conselho de Segurança da ONU, em reunião plenária, condena veementemente a


invasão de Conakry. Portugal e a África do Sul, desistem dos seus planos de invasão da Tanzânia, com o
objectivo de atacar a base Nachingwea, onde a FRELIMO, tinha a sua força de sustentação, bem como o
seu comando.

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1 - A PARTIDA
2 - A ILHA E AS BANANAS

3 - A REINVINDICAÇÃO
4 - OS SALTEADORES

5 - RIVALIDADES
6 - A PASSAGEM DO EQUADOR
7 - O MAR

8 - LUANDA
9 - O ASSALTO AO PORÃO
10 - LOURENÇO MARQUES
11 - A BEIRA E O BOICOTE
12 - NACALA E A BAÍA MARAVILHOSA

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A P A R T I D A

21 de Novembro de 1970, eis que as amarras são soltas no cais da Rocha do Conde de Óbidos e
num Novembro solarengo de S. Martinho (que alguns não mais veriam), o Cagalhão Flutuante deixa em
terra de “adeus até ao meu regresso” e com os olhos cheios de lágrimas, os corações despedaçados e os
cérebros toldados pela mentira do Para África Já e Em Força, parte pelos gloriosos mares do Gama,
mais uma carrada de sangue pulsante de juventude nacional.

Uns dias antes, tinha sido o rebentamento de uma bomba no Niassa (o Cagalhão Flutuante),
atracado no Cais da Fundição, e as esperanças de que o embarque não se fizesse era para alguns a
última esperança da fuga ao Ultramar é Nosso, outros pareciam não ter a consciência daquilo que os
esperava, alguns por pouco tempo regressaram a suas casas, à sua família.

Era com um destes, o Libertino, filho de Moçambique e colega de curso, que na noite anterior tinha
estado no Casino Estoril, junto com as nossas namoradas e a avó da dele (que nesses tempos a coisa
fiava mais fino). Enfim sempre tinha sido uma despedida em grande, como mandam as regras, bem ao
meu gosto.

As famílias no cais, acenavam os seus lenços de despedida, a amarga despedida, daqueles que até
instantes antes tinham no seu seio, daqueles que eram parte de si mesmas. Quantas lágrimas corriam
pelas faces daquela gente, alguns pais, não era a primeira vez que se iam despedir dos filhos, havia
famílias para as quais o momento doloroso se tinha repetido.

Lembrava eu já com saudade, os meus pais, a minha namorada, os amigos, os meus queridos
irmãos, enfim tudo o que tinha sido até aí o meu pequeno e feliz Mundo e que não o sabia agora, mas
tanto valor iria dar às coisas que ora deixava.

Dois dias antes o meu amigo padre Dâmaso, jovem de mais 7 anos que eu e que fez o favor de
me distinguir com a sua amizade, apesar de saber que eu não tinha quaisquer convicções religiosas, me
tinha alertado para todos os perigos que iria correr e também as virtudes de África de onde ele tinha sido
expulso (Moçambique), devido às suas ideias políticas, não serem convergentes com as do Estado Novo e
agora ficava durante uns tempos em Lisboa de onde seguiria para os Açores, como espécie de desterro
imposto pelo Patriarcado.

Padre liberal, este homem de ideias muito fortes com quem fiz uma boa amizade e de quem em
Moçambique recebi algumas cartas que ainda hoje guardo, nas quais veladamente me ia informando
daquilo que se passava ao nível político na nossa querida Pátria.

Meu pai que também tinha as suas ideias políticas, bastante vincadas, apesar de patrão, o que na
época não era muito habitual, foi uma fonte de conhecimentos para mim e para os meus irmãos, criados
de forma um tanto austera, sendo eu o mais rebelde.

Verificava que a maioria dos meus companheiros que tinham subido a bordo, aceitava com
naturalidade a defesa da querida Pátria, mas para mim as coisas já não eram bem assim. Questionava
muito até onde iria o dever de defender a Pátria e onde acabavam outros interesses que defendiam muito

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mais o capital. Mas enfim, pouco poderia fazer para mudar o Mundo, apesar de todas as ilusões da
juventude.

Será que esta rebeldia me foi útil? Ainda hoje não sei para que lado pendem os pratos da balança,
mas acima de tudo fui EU, e tenho muito orgulho nisso.

Adeus Lisboa, adeus família, sei lá o que vou encontrar lá tão longe, só sabendo que seria em
Moçambique (provavelmente nenhum de nós sabia a Base onde iria prestar serviço). Olho as caras
daquela rapaziada do Exército, onde vejo alguns olhos cheios de alegria que talvez nunca tivessem visto
o mar. Que merda, para que te serve a tristeza, cabeça ao alto como te dizia o instrutor na recruta, para
não veres a nuca do careca à tua frente na formatura.

Visto do cais o Niassa estava lindo, limpinho, e talvez me assomasse uma enorme dose de
aventura, aquela aventura de quem nunca tinha feito uma viagem de barco, sem ser a travessia do
maravilhoso Tejo, nos belos cacilheiros e no Évora (ex-libris dos barcos que ligavam o Barreiro a
Lisboa).

Ora, deixa a amurada do Cagalhão Flutuante, dá mais uma olhada à marginal e vai lá ver o belo
navio, orgulho da marinha mercante nacional, coloca as ideias no lugar e começa a pensar na melhor
forma de passares estes 28 dias de mar.

Larga amarras o navio cerca das 16 horas, alguns como o Jorge Santos Silva, não têm por opção
própria ou não, qualquer familiar a despedir-se no cais. Em princípio eu também estava apostado em não
ter lá ninguém, pis sempre fui contra despedidas e todos os incovenientes que delas decorrem, mas não
achei justo privar o meu pai de um abraço que poderia Ter sido o último.

Algumas pessoas no cais, andavam numa roda viva tentando encontar alguém que lhes pudesse
transportar uma qualquer encomenda para um familiar ou amigo. Mesmo que fosse um estranho a
transportar a encomenda, o que era o mais habitual, as pessoas confiavam e muitas vezes eram
defraudadas pois essas encomendas não chegavam aos seus destinos, por motivos que deixo à
imaginação de cada um.

Sai o Jorge Silva correndo do 4.º piso do porão, até ao convés, procurando lavar a cara num
qualquer balde de água, pois o Fernando não se aguentava com o enjôo provocado pelos balanços do
navio, e como o Jorge “morava” no piso inferior do beliche, levou em cima com o vomitado quentinho,
proveniente daquele estômago torturado.

Ainda não é passada a barra e já muito menino assenta a alva peida na latrina que baptiza o Niassa
com o sugestivo nome de Cagalhão Flutuante. São umas casinhas no convés da proa do navio,o lugar
onde se fazem as necessidades fisiológicas, terão uns 20 m2, são abertas na parte inferior, por onde a
trampa escorre pela parte lateral do barco, acompanhada da urina e que dão umas riscas de beleza
colorida ao Cagalhão Flutuante, que impante da sua importância sulca o Oceano em direcção ao Funchal,
onde vamos buscar “mais carne para canhão”.

O movimento no navio é muito, são cerca de 2.000 pessoas a bordo, a noite vai aproximar-se a
passos largos e lá vou eu mais o Libertino, procurar o nosso alojamento, é o primeiro porão da proa, um
armazém enorme, com camas em beliche de 3 andares, a azáfama é grande, toda a rapaziada tenta
arrumar-se o melhor possível, ao aproximar-se da escada olho para baixo e conto mais dois andares,
onde a rapaziada do Exército está arrumada como gado. Tenho de me safar dali.

Coitados dos meus amigos a frustração é enorme, tenho de animar e ajudar esta malta o melhor
possível. Como é possível fazer viajar seres humanos nestas condições. Como viajarão os oficiais? Tino,
Gil, venham daí, vamos ver.

Porra, alguma coisa hei-de poder fazer.

Não nos querem deixar entrar nas instalações destinadas aos oficiais e nos sargentos temos a
mesma sorte, não há problema, amanhã veremos com os nossos próprios olhos. Nós também somos

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sargentos, só que a Força Aérea lavou as mãos e deixou-nos sózinhos, aqui quem manda é o Exército
que deixa os seus jovens a viver nas mais desumanas condições.

Amanhã veremos o que fazer.

De regresso ao convés, passamos por caras mais tristes que a Virgem Macarena, olhos fixos no
nada, o enjôo começa a fazer os seus estragos.

Tudo no navio é novidade, os meus olhos não deixam por um momento de apreciar. A noite está
bela, algum pouco, frio e vento, poucas nuvens permitem ver algumas estrelas, o espectáculo é
impressionante. Vamos tentar pomposamente um sargento de muita tarimba e de algumas comissões no
solo africano, onde já sacou em qualquer cidade onde a guerra não chega o suficiente para ter comprado
alguns apartamentos na Metrópole, classificou de refeitório do exército embarcado.

É gira a sala de jantar, um rectângulo em ferro que mais parece um contentor de transporte de
mercadorias e ali a rapaziada se arruma o melhor possível, esperando pelo confortador jantar. Vamo-nos
sentar, mas não, ainda não é a nossa vez e eu que estava a achar aquilo giro. A malta está a sorver a
sopa e ao mesmo tempo espreita pela escotilha e mira o alvo cú que na latrina, deixa escorregar pela
borda fora os dejectos que vão embelezar a nossa viagem. Com humor se calhar isto vai ser giro, vamos
em frente.

Tino, não te parece que o navio está a dar a volta?

Não sejas tonto, vai gozar o caraças, ainda não te convenceste que vamos para África? Porra pá,
para mim vai ser bom, não agoires, quero ir ver a minha família!

Claro que tenho de perceber o Tino, ele veio de Lourenço Marques para na Força Aérea tirar o
curso de electricista e voltar para a sua terra e ver a sua família é motivação para que esta gaita
continue a navegar sempre em frente e que dobre o Cabo Bojador.

Tino o gajo está a virar para trás. Do lado esquerdo víamos as luzes de terra, agora estamos a ver
do lado direito, acorda pá, estamos mesmo a voltar para trás!

E assim fomos para o convés gozar o espectáculo da cidade mais linda do Mundo, Lisboa. A baía de
Cascais está majestosamente à nossa frente.

Gaita Tino e agora, isto é uma miragem?

Quase todo o bicho careta opinava porque seria que tínhamos voltado para Lisboa, eram tecidas as
mais dispares opiniões e havia quem afirmasse com a mais ingénua das certezas, que a guerra tinha
acabado e voltávamos para a nossa terra. Santa ingenuidade. O navio parado frente a Cascais, ainda iria
afectar aqueles que mais conscientes eram das coisas. Um suplício olhar aquele Casino onde ainda
anteontem eu via os seis sedosos daquela jovem que se despia saindo de dentro de uma concha e fazia o
mais possível de entendido; perante a minha namorada que nunca tinha visto um espectáculo daquela
natureza. Lembrava os beijos e carícias que tínhamos trocado e as juras de amor eterno (que ainda hoje
dura).

Havia que saber a certeza daquilo que se passava, o mistério do retorno do cagalhão flutuante
estava por descobrir. Vamos então procurar o namorado de uma minha amiga que é oficial de máquinas
dentro deste navio. Não o conhecia, mas depois daquilo que tinha visto dentro do navio, das condições
em que iríamos viver, verifiquei que o Zé Martinho me poderia ajudar não só a viver melhor nesta
espelunca, mas também a descobrir o mistério.

Não sabia que espécie de rapaz iria encontrar, mas mesmo bem informado das suas boas
qualidades, como sempre tenho feito até hoje, só iria emitir a minha opinião depois de o olhar olhos nos
olhos. Disse com a maior humildade que precisava de ajuda, e tive a felicidade que a vida nunca mais me
vai deixar esquecer, de encontrar um homem com H grande que colocou à minha disposição tudo aquilo
que para mim dentro daquele navio era um verdadeiro luxo. O seu camarote passou a ser meu, a sua
amizade passou a ser a minha e o mistério do regresso do navio também foi desvendado.

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Vamos mudar a bagagem para o camarote do Zé Martinho, desta já me safei. Os meus amigos,
tristes por perderem a minha companhia no segundo andar de um beliche mal amanhado, mas contentes
com a minha promoção social dentro do navio, fazem comigo a viagem pelo convés, cada qual
transportando o meu sumptuoso enxoval civil e militar, em procissão de acção de graças e vai para o
catano que te safaste.

Foi um dos meus melhores amigos, companheiro da minha juventude, quando passava as férias
em casa de minhas tias na Moita do Ribatejo, tinha por nome João Lourenço Vences Barroso e faleceu na
Guiné em 21 de Dezembro de 1969, quando um dos poucos saltos de pára-quedistas naquela Província,
foi alvejado em pleno vôo.

Que saudades meu bom amigo, no sítio onde estás que esta minha memória te acompanhe. Que
horror deve ser morrer com a tua idade e cheio das ilusões da vida. Que horror deve ser morrer em
pleno ar, tu que foste um jovem de pés sempre assentes na terra.

Também embarcaram no Cagalhão Flutuante cerca de dezoito pára-quedistas, e foi ao ver um


grupinho deles que me lembrei de ti, excelente amigo. Que a sorte ajude todos estes rapazes.

Então vamos lá ao mistério que colocou os corações em polvorosa, aquela mole humana que iria
viver em condições desumanas. A Pátria tinha sido abalada havia pouco tempo, pelo rebentamento de
petardos na Base Aérea da Ota e também no Cais da Fundição, segundo se sabia à boca fechada, nos
abastecimentos que iriam embarcar no Niassa, neste mesmo cagalhão flutuante onde estávamos
embarcados.

Ora a entente que tinha colocado esses petardos e que se supunha ser o P.C.P., também teria feito
constar que estaria uma bomba a bordo.

Que alhada para a Nação!

Vieram as minas e armadilhas, mas ainda hoje penso que no meio de toda aquela bagunçada era
impossível descobrir, caso houvesse, qualquer bomba que tivessem colocado. Era humanamente
impossível, mesmo que os meios de detecção fossem os mais sofisticados da época e assim obedecendo
ao desenrascanço nacional, e à sorte que sempre temos tido nas empresas a que acometemos, as
cabeças da Nação resolveram que o navio devia seguir.

Pensava eu, como era possível tanta falta de respeito pelos milhares de vidas que ali estavam, mas
do mais mísero soldado (se é que tiveram conhecimento), até ao mais graduado oficial, não ouvi
qualquer lamento, o mais pequeno queixume. Éramos mesmo uma carneirada, tinham-nos despejado da
mais leve capacidade de revolta. Como foram frios e despojados de humanidade as cabeças da Nação.
Para mim, isto era só o começo. Seria mais fácil explicar perante a opinião pública (será que havia?) uma
qualquer catástrofe a bordo, do que o desembarque dos militares. E lá seguimos.

22 de Novembro, hoje faço 22 anos, uma capícua.

O navio continua o seu caminho e o Balbino, Electricista, algarvio de Alte, mete dó, um moreno
branco, tal a palidez da face devido ao enjôo, pobre rapaz, toda a gente quer ajudar, um diz para comer
bacalhau crú, outro que coma chocolate e mais outro que pão seco faz bem, e vêm mais largar a sua
sentença, quais médicos, quais irmãos, quais mães, já habituando ao que mais tarde viríamos a ser uma
mística de amizade que até hoje une aqueles que a guerra de África recebeu.

Seguimos em direcção à Ilha da Madeira, a alimentação é má, as instalações péssimas (sorte a


minha o Zé Martinho ter-me dado guarida no seu quarto de oficial de máquinas), e começa a germinar na
rapaziada Especialista da Força Aérea, um enorme sentimento de revolta a que urge dar força e é isso
que vamos fazer, não abertamente, mas de forma subtil, para que forme uma bola de neve que irá dar
origem a um episódio giro que mais à frente desvendarei.

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Como comandante do pessoal da Força Aérea, a bordo, (Serviço Geral, Pára-Quedistas e
Especialistas) tinhamos um tenente da Polícia Aérea de nome Tomás, bom homem ao qual colocámos a
alcunha de Meirim (treinador de futebol, muito em voga na época, pela sua psicologia).

E não é que o tenente, nos queria pôr a fazer ginástica no convés do navio e dar alguma disciplina,
no meio daquele vai e vem de militares, pelo convés do barco, a nós que não pensávamos noutra coisa
que não fosse chegar à Madeira o mais rápido possível, para acabar com o sobe e desce do navio e claro
com a rapaziada a largar pela boca o pouco que comia, em qualquer sítio livre, mais próximo e que nem
sempre era o mar.

Pobre Mariano Fernandes, rapaz frágil de físico que comigo tinha estudado na Industrial Afonso
Domingues, como te vais arranjar para viver nas condições em que estes gajos nos puseram, quando sair
da ilha, vou ter que arranjar coragem, para pedir ao Zé que te deixe dormir no camarote. E claro lá ficou
o Zé com mais um companheiro, até que o PóPó (como mais tarde ficou conhecido o Mariano), conseguiu
encontrar um amigo que o alojou.

Quando a malta soube que eu fazia anos, logo a imaginação que o engenho aguça, resolveu fazer
uma pequena festa, tão singela como sensibilizante e lá apareceram umas garrafitas, e como não se
conseguia um bolo de Aniversário que bem que serviu uma brôa com um fósforo a arder. Nunca mais
esquecerei este dia, por muitos anos que viva como eles me desejaram.

Lá está ela a Ilha da Madeira, vamos a terra malta!

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A ILHA E AS BANANAS

Enfim terra firme, dizia a rapaziada. O entusiasmo era enorme, quem nunca tinha visto ia admirar
pela primeira vez as excelsas belezas da Ilha da Madeira, vista do mar e com um sol radioso, lá estava
ela pronta para nos receber.

Ao descer a escada de portaló, mesmo havendo alguém que reprimia a sua alegria, era impossível
calar a algazarra feliz de tanto jovem que naquele momento, nem tempo tinham para pensar que
brevemente iriam ser lançados na grande aventura de uma guerra que era deles, desde os bons velhos
tempos do “lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim”, com que não se cansavam de nos
bombardear desde as primeiras letras da instrução primária. E como era primária a nossa experiência da
vida e logo haveríamos de saber, da guerra também.

Ali estavam muitos jovens que a partir daquele momento iriam ter de gerir as suas vidas, sem o
apoio directo do pai e o seio materno, acolhedor e protector. Era chegada a alturar, e escolher os bons
amigos, os bons confidentes, aqueles que teriam a melhor palavra e a sã atitude que tanta falta fariam
nos momentos difíceis, dos 24 meses, mais uns “pósinhos”.

Pisando terra firme, dos que não tinham enjoado no mar, larga percentagem logo se ia abaixo das
canetas e vomitava abundantemente, que eu bem via, com um riso de gozo e de valentão qual um Vasco
da Gama que aguentava as agruras do mar. Mais tarde vim a saber que era vulgar as pessoas vomitarem
ao pisar terra firme, depois de estarem em mar encapelado.

Como era curioso e como a malta que aguentava o enjôo se divertia a ver os pobres companheiros,
amarelos e surpreendidos pelo que lhes estava a suceder. Um fartote.

Em grupos, que mais ou menos já tinham sido combinados no navio, lá seguia a rapaziada para os
restaurantes, cafés, visitas nos autocarros que corriam o Funchal e os mais atrevidos ou desejosos de
carne fresca, procuravam os dancings. Alguns para dar um pé de dança, outros para tratar de pôr a
“escrita” em dia.

Os mais afortunados, lá seguiam nos táxis e autocarros afim de ver a Ilha, tão linda e tão
primitiva, contrastando com os hotéis do Funchal, outros a pé firme faziam a sua visita.

O Álvaro José Figueiroa e Silva, fazia de cicerone ao nosso grupo, pois é filho da Ilha, muito nos
queria mostrar, mas a saudade da família falou mais alto e depois de uma ligeira passeata, lá foi conviver
com os familiares. Bom cicerone, mais ainda pela dificuldade de percebermos aquilo que os madeirenses
falavam, pois a sua peculiar guturalidade das palavras era difícil de entender.

Saber o autocarro que devíamos tomar para o “Restaurante Seta”, revelou uma dificuldade de
entendimento, eu conto. Um de nós foi perguntar a um simples homem de trabalho com aspecto de
campónio qual o autocarro a apanhar, e quando chegou junto de nós, sorria, e dizia que não tinha
entendido nada do que o indivíduo lhe dissera. Logo outro mais esperto ripostou que ele estava surdo.
Iria ele falar com o homem e logo perceberia.

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Quando ele chegou depois da conversa com o senhor, perguntámos: Qual é então o autocarro?
Responde ele: Também não percebi!! Engraçado como Portugal é belo e diferente na sua pequenez.

A noite chegou e com ela a vontade de procurar uns bons momentos nos dancings e outras casas
de passe que muitas havia neste Funchal tão lindo.

E foi assim, num destes dancings, após um lauto jantar no Seta, que dei de caras com o pinta,
dançarino e chulo que frequentava os bailes que eu abrilhantava com a minha voz, onde os Carlos,
Mários, Eduardos, Serros e outros, faziam o favor de me acompanhar de tocar as suas violas, baterias,
saxofones, orgãos, etc..

Pela milésima vez, o Chunga me confundiu com um dos dele, decididamente além de proxeneta e
outras habilidades, era cego. Será que nunca iria perceber que eu não era um dos dele. Mas era assim o
Chunga, uma alma boa, mas com uma capa má, muito má. Eu tinha ao mesmo tempo pena e uma
aversão enorme àquele tipo de gente, era a vida que os tinha feito assim, mas não nego que gostava de
os conhecer, de estudar os seus tiques e reacções, as suas formas de falar, de andar, que tão úteis me
eram quando ousava ser artista teatral.

Logo ali o Chunga, após umas boas vindas presidenciais, fez perante as raparigas, um elogio
formidável a este vosso escriba e que estavam em presença da melhor voz do Planeta, e que Hica assim,
o Hica assado. Vocês vão ouvir e aquelas coisas do costume. E elas deliciadas, olhavam admiradas e
curiosas, o Caruso, como dizia o Chunga.

Tens de cantar pá, as garinas vão cair por ti. Cá o pinta faz o reclame. Vai ser uma noite “ baril “.
Pá isto aqui é uma mina, nunca andei com a valise tão recheada.

Que não, dizia eu. Ia ali para me divertir e não para divertir os outros. Que estava cansado e
outras coisas assim.

O meu grupo, Gil, Nunão, Libertino, etc., pouco batidos no ambiente, também me incitavam a
cantar, esperando obter benefícios como amigos do artista, mas eu não estava para aí virado. Tinha era
curiosidade em auscultar o ambiente que tão diferente era de Lisboa.

As histórias das raparigas, são iguais em todo o mundo, mas era verdade que as nativas eram
diferentes, muito diferentes e sobretudo morenas e mais naturais, como aquelas que tinha conhecido na
Ilha Terceira.

A Terceira. Que saudades daquela Ilha também imponente. Ali passei sete meses maravilhosos na
Base das Lages, mas isso são contos para aqui não chamados. Que saudades Maria Clélia, Paula e Luisa.

E o Chunga insistia e o meu grupo apoiava e os copos ajudavam a que o apoio fosse vivaz, mas de
mim, estamos conversados, não estava ali para cantar. Queria divertir-me de outra forma.

Queria analisar as raparigas e ouvir a história de como o Chunga tinha ido ali parar.

E o Chunga, depois de uns bons copos, uns passes de dança à Alunos de Apolo, entremeados com
umas apalpadelas à sua garina, começou a desfiar a história da sua vinda para a Madeira.

Era um vez um senhor engenheiro que tinha uma empregada doméstica daquelas que tinham
vindo da santa terrinha, desembarcada em Lisboa, com recomendações da família do porta-te bem, sê
humilde, não sejas respondona e junta algum para seres alguém na vida e sempre que possas não
esqueças os 7 irmãos e manda algum, para pôr uns fundilhos nas calças dos teus irmãos mais novos.

E assim a moçoila, lá foi vivendo a sua vidinha de burro de carga da família do senhor engenheiro,
fugindo como podia aos avanços do dito cujo e mandando algum para os fundilhos, mas um diabinho de
saias (uma colega de profissão), logo que foi possível levou a Maria, para uns bailaricos em que Lisboa
era fértil...

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Aí conheceu o Chunga, rapaz de Lisboa, bem penteado, com o banho semanal tomado e a cheirar a
água de colónia primavera, um espanto de rapaz, tanto na conversa, como no pisar a sala ao som do
bolero.

Que paixão, a da Maria. Nada de magalas como as outras, o Chunga, tinha outro estilo.

Que alegria a dar à família, quando o Chunga a acompanhasse à sua terra. Aquilo era um moço de
jeito, alto, bem posto e com algo de seu, que o Chunga não era de meias medidas e logo inventou uma
família de gente ordeira, trabalhadora e abastada. Ele que nem sabia quem era o pai.

Depois de conquistada a confiança da rapariga, ele, como rapaz de princípios, logo lhe incutiu a
ideia de juntar algum, não era que ele necessitasse, pois aquilo que ganhava chegava para os sustentar à
grande quando tivessem o seu lar, mas ela precisava de ir mandando algum para os pais e quando
fossem à terra, tinha de ser em grande, bons vestidos e boa aparência.

Claro que ela teria que abrir uma conta no banco, que o dinheiro em casa podia desaparecer, o
dinheiro à mão é fácil de gastar e outras aleivosias que a mente maldosa do Chunga debitava.

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A REIVINDICAÇÃO

Após a conta aberta no banco, era necessário aprender a assinar os cheques, coisa que tinha de
ser treinada, pois a Maria mal sabia assinar o nome, dado que com cinco irmãos para tomar conta, mais
a horta para tratar, não sobrava tempo para a escola.

E que letra redondinha que ela tinha, dizia o Chunga a babar-se de gozo. Mas provavelmente com
alguma inveja, pois também não tinha passado da segunda classe, apesar do esforço da mãe que não se
cansava de lhe dar porrada.

Primeiro eram as assinaturas em folhas brancas e depois para treinar a sério, e como a Maria já
tinha requisitado um livro de cheques a assinatura tinha mesmo de ser feito à séria, para ela se
ambientar. E bem redondinha.

Entre uns avanços na rapariga (que lá o Chunga nisso tinha fama) e uns cheques assinados o
tempo ia correndo. Bastou o Chunga guardar dois cheques assinados, entre aqueles que rasgava e
colocava no caixote e a trapaça estava feita.

Logo que sentiu que estava o suficiente na conta da Maria, o pinta não foi de modas e em dois dias
diferentes sacou todo o dinheiro que tanto a rapariga tinha alombado para juntar.

A Maria cheia de lágrimas, o Chunga cheio de massa. Mas o senhor engenheiro qual defensor dos
fracos e oprimidos, quis saber da moça o que tinha sucedido. E o pinta ficou com o engenheiro à perna.
Fuga para a Madeira, esperto o Chunga!!!

A esta hora da noite e com a curiosidade saciada, faltava a rapaziada saciar a carne e assim se fez
a vontade do corpo.

De manhã regressámos ao cagalhão flutuante. Era um vaivém de magalas. E que vimos nós. Mais
uma cena hilariante que figurará para sempre na minha memória. Metade dos magalas que se dirigiam
ao navio, carregavam às costas no mínimo um cacho de bananas e espanto dos espantos, alguns
chegavam de táxi a atafulhar de cachos.

Parecia que por momentos tudo tinha parado, as reivindicações da malta da Força Aérea por
melhores condições, estavam esquecidas, era preciso acordá-los. Foi o que fizemos.

Era preciso arregimentar as massas. Felizmente havia na nossa rapaziada muita gente com a
coragem e inteligência suficiente para perceber que havia de pôr cobro à situação de desumanidade e
desconforto pelas quais passavam dentro do cagalhão flutuante. Não era justo que pessoas fossem
tratadas como carga e colocadas num porão como de gado se tratasse.

Fomos passando de boca ao ouvido que era a altura certa para reivindicar as condições que nos
faltavam, só com uma atitude firme nos seria dada atenção. Se estávamos ali para ir à guerra, porque
não começá-la já ali naquele cais e naquele instante?

14
Não posso jamais esquecer aqui a coragem dos poucos páraquedistas que nos acompanharam,
assim como a de um seu cabo que juntava à coragem o bom senso. O tempo fez-me esquecer o seu
nome, mas se acaso tiver o privilégio, que leia estas minhas despretenciosas linhas, aqui fica a minha
sincera homenagem.

Havia como é obvio os resignados com a sua sorte, mas a união faz a força e tinhamos de apelar à
sua vaidade de especialistas técnicos e vencer a sua hesitação com provavelmente o melhor dos
argumentos; que pior sorte poderiam ter, do que ir para a guerra?

E assim se ia formando a bola de neve. Fomos formando toda a rapaziada da Força Aérea junto à
escada do portaló da proa e aquilo que para as altas patentes embarcadas era de princípio uma injusta
reivindicação, passou a ser para eles uma dor de cabeça.

Lá veio o Meirim (tenente Matos), com o seu poder de persuasão, que o tinha, tentar que nós
desistissemos dos nossos intentos e que punham uma esponja sobre o assunto, como se nada tivesse
passado. Mas nós sabíamos que aquilo que estávamos a fazer tinha a força da razão e poderia ser para
eles um enorme factor de pressão, pois não queriam decerto que o caso fosse do conhecimento de outros
rapazes que mais tarde viessem nos navios.

Que não tínhamos razão, que tinha de ser assim, pois a Pátria tinha em nós os seus olhos,
éramos nós os filhos da Nação e se ela nos pedia mais um sacrifício, nós com o orgulho dos portugueses,
tínhamos de a honrar. Honra para nós, boa cama, boa mesa e carteira farta para eles.

E assim se passava o tempo e nós não arredávamos pé do cais. Eles que subam que nós vos
perdoamos, nós que não subimos enquanto não nos for prometida sobre palavra de honra que as nossas
condições de vida a bordo melhoram. E não havia avanço nas negociações.

Eis que salta o verniz ao comandante das forças embarcadas. Se voçês não entram, nós soltamos
amarras e o navio faz-se ao mar. O que ele foi dizer. Então não era tão bom nós ficarmos ali mais uns
dias, a juntar à felicidade que tínhamos tido no pouco que ficámos na ilha, onde fomos maravilhosamente
recebidos pela hospitalidade das boas gentes madeirenses?

Que falta de tacto para lidar com os subordinados.

A tropa do exército que já estava toda a bordo, ajudava com os aplausos a aumentar a moralização
da nossa rapaziada, e por mim nunca esqueci essa solidariedade ao longo do tempo que passámos em
Moçambique e esse apoio mais força deu à nossa razão.

A essa altura do incidente já o “Meirim” tinha desistido da sua missão, e endossado aos maiores a
responsabilidade de nos fazer desistir dos nossos intentos. Nem a ameaça de prisão colectiva (éramos
cerca de oitenta), nos tinha feito desistir.

Chegámos a um entendimento, nós podiamos comer na sala de sargentos, tinhamos direito a banho
bi-semanal nas instalações dos mesmos, mas dormir, como era lógico tinha de ser no porão onde
estávamos anteriormente. E embarcámos debaixo de aplausos e com a alma mais limpa e orgulho de
homens tonificado.

Adeus Madeira, adeus morena que nos ternos braços de dezoito anos acolheste este jovem que vai
para o desconhecido.

O Chunga não mais o vi, mas a vida está cheia de tantos Chungas.

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4

OS SALTEADORES

O mar calmo e as boas temperaturas, enfim chegavam, o Niassa navegava agora a caminho da
Guiné, a paisagem era soberba, nunca tinha admirado a vastidão do Oceano Atlântico, na amurada do
navio íamos passando o tempo olhando o mar sem fim de que nos falava Luis de Camões, nas
intermináveis estrofes dos Lusíadas que nas escolas nos eram injectadas à pressão, como se delas
dependesse o Mundo.

O altifalante do navio, ligado à Emissora Nacional, debitava o noticiário da Metrópole e alguma


música, durante algum pouco tempo, mas o que dava gozo à rapaziada era o relato do futebol que aos
domingos conseguia todas as atenções que exacerbavam as rivalidades clubísticas.

Era o passar do tempo que ajudava às conversas que nos faziam conhecer mais em profundidade
os companheiros de jornada. Os jogos de cartas, com a “lerpa” à frente de todos, onde se
movimentavam muitas notas do Banco de Portugal e onde às vezes os maus perdedores chegavam a vias
de facto que logo eram sanadas, pela maior calma e sensatez dos que não jogavam.

Recordar tempos não muito distantes, pois a idade ainda era verde, também fazia as delícias de
muitos. Tanta coisa boa iria ficar para trás e o que seria que lá vinha? às vezes o silêncio e a calma eram
tão profundos à noite, que praticamente só se ouvia o som sempre igual e monocórdico do barulho dos
motores.

Mas existem sempre aqueles que mais fracos de espírito ou por doença que não era detectada nas
inspecções militares (feitas sem qualquer critério médico, toda a gente era apurada), se deixam arrastar
por pensamentos negativos.

E lá saltou para a água um coitado Zé tropa que estando no bar do deck superior, a bombordo, e
sensivelmente a meio do navio, não deu tempo a que ninguém o agarrasse e saltando por cima da
amurada, foi cair no Oceano que raramente devolve vidas.

O alarme foi dado de imediato, mas fazer parar rapidamente e voltar para trás, era tarefa muito
difícil para aquele navio tão grande e carregado enormemente.

Os gritos dos que tinham assistido ao salto para a morte eram desesperantes, mas nada havia a
fazer, lá longe já não se via o corpo do desgraçado que tão mau pensamento tinha tido numa hora
infeliz. Diziam alguns que os tubarões infestavam aqueleas águas, mas verdade seja que não tinham
ainda sido vistas as barbatanas dorsais que tanto terror infundiam.

Ficava ali o primeiro cadáver desta leva que seguia agora mais triste e alguns já começavam a
evitar estar junto à amurada, e outros iam ficando o mais possível nos porões, onde o ar puro (ou talvez
não) ia chegando através de umas mangas de tecido grosso, mas o calor era muito e havia que subir até
ao ar livre.

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Por um desses dias estava este vosso amigo com Gil e o Tino, no convés do navio, quando se
aproximam dois soldados do exército que misturados com muitos mais ali ficaram a apanhar o sol em
cima da tampa do porão da proa, junto de nós.

Eu o Gil e o Tino, falávamos ao acaso, sobre as nossas vidas e outras banalidades, mas o Gil que
estava de frente para eles e era um observador nato e bem esperto, achou que estavam interessados em
entrar na conversa e alimentou o seu desejo.

Ali ficámos eles dizendo que eram de Lisboa e que davam pelos nomes de Guita e Bebé. Eram dois
pintas. Falavam em calão dos bairros populares da minha terra. Pouco deviam à inteligência, mas eram
simplórios e nós estávamos a achar graça ao que diziam e deixámos que o tempo se fosse escoando,
ouvindo as suas aventuras que eram giras.

A hora de jantar chegou e o Guita e o Bebé, lá foram para a papa, todos felizes do novo
conhecimento que tinham feito e nós estivémos mais um pouco a comentar aquele encontro.

À noite encontraram o Gil ou fizeram-se encontrados com ele. Aí começa a aventura dos
salteadores no cagalhão flutuante.

Na manhã seguinte e já em frente a Bissau, onde o navio parou para descarregar alguns militares,
alimentos, material de guerra, etc., a azáfama era grande e para nós mais um motivo de entretimento,
verificar todas as manobras de descarga para os batelões, já que o barco estava ao largo, mas com a
cidade à vista.

O Gil, vinha morto de riso, junto com a gargalhada fácil do Costa e Silva e quando chegaram junto
de mim atiraram:

- Senhor Raúl, como está chefe? Tem plano para algum assalto hoje?

- Porra, que raio de conversa é essa? Foram à pinga? (nas malas com que a rapaziada embarcou,
vinham algumas garrafitas bem à portuguesa, assim como alguns comes).

E eles não continham o riso. Era giro vê-los assim e claro contagiava de alegria a malta que estava
em volta. E contaram.

O Guita e o Bebé, tinham fugido para a Metrópole num barco que trazia militares em final de
comissão, depois de já terem cadastro militar e civil, claro tinham sido apanhados e estiveram presos na
Trafaria, agora regressavam no Niassa, debaixo de prisão, para irem cumprir a pena em Angola.O melhor
ainda estava para vir.

O Guita que era o mais batido e já na casa dos trinta, tinha confundido este vosso amigo com o
Raúl, chefe de “ gang “ muito famoso, assassino e ladrão já com um enorme rol de prisões no cadastro.

O Gil tinha alimentado a confusão dos pintas. Que eu era o tal Raúl, ele o meu braço direito e
essas patranhas todas por aí adiante que aqueles cabecinhas fracas tudo engoliram.

- Gil, isto vai dar merda.

- É pá, vai-te lixar, isto vai ser é muito giro, nós agora somos capangas.

A malta estava a gozar à brava e eu claro também estava a saborear o pitéu que isto um homem
não é de ferro, e rir é muito bom e melhor ainda para esquecer para onde vamos. Pelo menos enquanto
riamos tudo ia bem.

Chegaram os pintas e o Gil a alimentar a farsa. Eu não sou santo e vamos então ajudar à felicidade
dos pintas, por estarem inseridos na quadrilha do Raúl, e o Costa e Silva também a fazer parte da
banditagem.

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Foi um alimentar de conversa, durante aquele dia, mas no dia seguinte e depois de termos
partido de Bissau os pintas estavam impacientes e perguntavam ao Gil quando iríamos fazer a valise
(mala) a algum, quando iríamos dar a palmada (roubo), pois eles já tinham visto que no navio havia
muito para afanar (roubar). E que graça tinha aquele calão vernáculo.

A confusão que tinham feito entre mim e o tal Raúl, vim a perceber, era por ser muito parecido
com ele e também belfo ou sopinha de massa, conforme o vulgo diz. Como não o conheciam tu cá tu lá,
foi fácil de se enganarem, pois até a voz era igual. Para eles uma enorme promoção na vida do roubo,
fazerem parte da quadrilha do Raúl. Era o pódio da ladroagem. Nós o melhor que sabíamos íamos
dizendo que não estavamos ali para roubar que isso ficava guardado para quando estivéssemos em terra
e patranha para cá, patranha para lá.

Mas a insistência deles era muita, para mostrarem serviço.

- Raúl, manda fazer o que quiseres que a malta cumpre. Conta com a gente.

O respeito deles pelo Raúl era enorme, tal a fama que este devia ter como gatuno de primeira e
que já tinha feito o seu assassinato. Fama que me dava a possibilidade de falar com eles, como se
fossem meus inferiores e de não lhes dar confiança, tal era a submissão com que me tratavam. E o
sacana do Gil a alimentar aquilo tudo, mais o Costa e Silva e o Pópó que também eram uns bons
cromos.

E chegou finalmente a noite em que os pintas querendo mostrar serviço, e quando estávamos a
ver o luar e recordar os nossos bocados no convés da proa, onde fazia mais fresco que o calor era muito
naquelas paragens, apareceram carregados com uma enorme mala, tão cheia que deveriam ter tido
dificuldade em fechá-la. parecia que toda a felicidade do Mundo lhes tinha caído em cima, tal era o peso
a que vinham ajoujados e a cara de alegria que afivelavam. Felizes os pintas.

- Que gaita os gajos trazem ali?

Dizia eu já a adivinhar a complicação que se aproximava no escuro, banhado pela lua.

- Deve ser a colheita do dia que os teus meninos foram fazer. Dizia o Gil a gozar e antever como iria
eu sair daquela trapalhada.

Então os carregadores da mala, chamaram-nos à parte e com o ar mais solene e satisfeito do


Mundo, abriram a valise.

Parecia que estava ali tudo o que cobria as prateleiras da barbearia que era também a papelaria de
bordo. Meu Deus, os gajos eram mesmo malucos. E agora, olhava eu à rasca para o Gil que também se
via aflito para manter o sangue frio.

Tinha que pensar numa saída o mais airosa possível para aquela situação, nós é que tínhamos
alimentado aquilo e aqueles cabeças fracas tinham ido na conversa que elas próprias haviam criado.
Assim se fazem as maiores burlas, aproveitando a ingenuidade e fazendo as pessoas acreditarem naquilo
que mais desejam.

Eram sabonetes, relógios, pulseiras, canetas, toalhas, garrafas e um sei lá mais quê de tralhas. E a
cara de satisfação deles.

A face do dever cumprido.

Resolvi com o ar mais solene e pintoso que consegui encontrar dentro de mim que não queriamos
complicações antes de chegar a terra que lá teríamos muito tempo, um blá-blá-blá mole não deixando de
elogiar a coragem e as mãozinhas que tão bem tinham trabalhado. Muitas coisas haviamos de fazer
juntos, íamos pôr Luanda do avesso e outras merdas do género.

E eles que sim, o chefe era eu, portanto decidia como queria.

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E resolvi que a mala tinha que ir ao mar para não haver complicações. Aquilo que estava ali dentro
eram ninharias comparadas com os outros que iriamos sacar. E foi com um baque surdo que os
salteadores se despediram do produto, o baque de uma mala a bater nas águas do Atlântico.

Jamais poderei esquecer a cara de tristeza daqueles dois pintas ao ver a mala fazer o vôo picado
até às águas, mas também nunca olvidarei a felicidade do dever cumprido com que naquela noite se
despediram de mim e do resto da “quadrilha”. Tinha pena, mas também gostava deles, não eram maus,
a vida é que gerara aqueles seres.

A vocês Guita e Bebé, onde estiverem, as minhas sinceras desculpas e a certeza de que nunca vos
esquecerei e de maneira nenhuma deixarei de recordar a tristeza com que no cais de Luanda se
despediram de mim, ladeados de quatro polícias militares, as lágrimas que rolaram nas vossas faces,
tinham sido o garante do carinho que sempre vos deve ter faltado.

Até hoje acho que o Guita e Bebé, nunca devem ter descoberto que eu não era o Raúl e se
descobriram que se tenham rido, tanto como nós o fizemos.

Ao homem que explorava a barbearia/papelaria do Niassa as minhas desculpas.

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RIVALIDADES

Estamos ao largo de Bissau e recordo-me de se falar em Lisboa de um dos que para mim foram os
mais horrendos momentos das guerras de África. A luta entre fuzileiros e pára-quedistas. Mas passo a
contar, com mais alguns pormenores, porque aquilo que se sabia em Portugal, era pouco ou quase nada,
dado o medo de que a ouvir estivesse uma das orelhas da Nação, vulgo informadores.

Em meados de 1968, por Bissau jogava-se um torneio de andebol que, entre outras equipas tinha
como favoritas ao troféu, a UDIB (constituída maioritariamente por fuzileiros e Armada) e o ASA (na qual
pontificavam elementos pára-quedistas e Força Aérea). Depois de eliminadas as restantes equipas,
ficaram estas duas como era habitual noutros anos para disputar a final.

De notar que anteriormente havia uma salutar convivência entre estas duas Forças Especiais o
que, como se verá a seguir, parece que não agradava aos superiores interesses dos oficiais generais, ou
queriam estes sobressair nos seus “actos heróicos de gabinete” através das façanhas dos seus comandos
que no mato detinham mais derrotas que vitórias, a maioria delas, por culpa desses mesmos “génios de
gabinete”.

Ao longo do torneio os ânimos foram aquecendo, sempre com a condescendência e por vezes
aquiescência dos superiores, dizendo melhor, alimentada por estes de tal forma que no próprio dia da
final, em ambos os quartéis, as claques partiram para o recinto de jogo mais moralizadas para a violência
do que para assistir a um jogo de amizade.

Armados de tudo o que fosse possível, paus, correntes, ferros, etc..., lá seguiam em enormes
grupos. Não chegou o jogo ao seu final, pois antes do apito do árbitro, as duas facções envolveram-se à
pancada, quais inimigos fidagais. Já fora do recinto e a caminho dos seus quartéis, os páras foram
surpreendidos pelos fuzos, que carregaram sobre eles com armas de fogo. Resultado da contenda: dois
pára-quedistas mortos, o Ismael e o Marques.

E foram os oficiais, tanto de um lado como do outro que instigaram estes acontecimentos.
Inqualificável!!

Como perceber que só porque se tinha uma qualificação académica superior ao 7.º ano, qualquer
indivíduo, pudesse comandar outros que com menos grau de ensino, eram militares de carreira,
sargentos, com tarimba feita? Jovens que nada da vida ainda sabiam e quase imberbes, só porque
tinham estudado, eram preferidos a comandar, onde outros já homens feitos e com qualidades se tinham
de resignar a ser seus subalternos. Que porra de tropa esta.

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6

A PASSAGEM DO EQUADOR

A festa dentro do Niassa não atingiu as proporções daquilo que lia nos livros, que via nos filmes,
enfim, sempre era a passagem do Equador e foi para mim mais uma novidade, dentro de todas as
novidades que dia a dia iam sucedendo, no seio de um universo de dois milhares de pessoas.

Neste dia fiz amizade com o Ermesinde (Joaquim Augusto Dias e Silva), mecânico de aviões e não
mais me esquecerei de tão bom amigo. Rapaz simples, nascido em Ermesínde, daí a sua alcunha e com
uma garra tremenda. Já em Nacala e num dia de praia maravilhoso, o Silva quis ficar bronzeado, apesar
de ser bastante moreno e mesmo apesar dos nossos avisos de que o Sol queimava imenso, ele ficou
quase pelado, com queimaduras bastantes fortes.

Mas, iria o Ermesinde ter um fim trágico. No dia 23 de Abril de 1972, estava na placa em Mueda,
numa manhã de denso nevoeiro e frio, quando ouvimos uma explosão muito violenta, que pensávamos
ser da nossa tropa a bater a zona com os obuzes, o que era habitual. Sabíamos que de Porto Amélia,
tinha descolado uma DO-27, com colegas nossos, para virem ajudar numa operação, mas nunca nos
passou pela cabeça o que se viria a confirmar depois.

Pelo pessoal das Comunicações ficávamos a saber que tinha sido a DO que o transportava que
tinha embatido no planalto de Mueda, a escassos dois quilómetros da pista devido a já voarem baixo (os
altímetros dos aviões tinham sido construídos há mais de 30 anos), e também muita inexperiência do
piloto que eram largados para a guerra, ainda mais inexperientes que nós mecânicos.

Descolámos com helicópteros para ir buscar os infelizes (não houve sobreviventes), sob a
protecção dos caças T6. Tinham morrido com o embate da aeronave numa ravina do planalto, e também
se algo de vida lhes restava o fogo tinha acabado por consumi-los.

E não tenho dúvidas que o Ermesinde, não morreu pelo embate, mas que ainda estava vivo e foi
terminado pelas chamas, tal a posição dos braços e mãos, pois fui eu que fiz o reconhecimento dos
corpos, já em Mueda junto ao hospital. Ao Silva coitado que só tinha a parte superior do corpo, fiz o
reconhecimento por uma aliança que nunca deixava de usar no dedo, lembrança, que me dizia, de um
grande amor.

Nunca mais voei de calças e camisa da farda, pois tive ali ocasião de verificar que eram altamente
inflamáveis e comburentes. Mais um erro dos senhores da guerra nas secretárias, que de certeza
aproveitava a alguém. Carne para canhão e também carne para derreter.

Como é triste que a lembrança que tenho da passagem no Equador, seja o nefasto acontecimento
que vitimou os meus amigos, entre eles o Silva que nunca esquecerei. Para ti meu amigo Joaquim, onde
estiveres, acredita que vives um pouco na minha memória.

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7

O MAR

Tudo é novidade, mas talvez aquela que mais nos impressiona seja o mar. O céu é lindo, as noites
são calmas, com as estrelas cadentes cortando os céus a velocidades loucas, raramente de dia se vê no
céu alguma nuvem negra, o tempo é maravilhoso, mas o mar, esse sim, é formidável.

Os peixes voadores parece que saem debaixo do casco do navio para voarem alguns, muitos
metros, e tornarem a mergulhar nas águas. Que espectáculo fabuloso, até custava acreditar que estes
pequenos peixes pudessem voar tantos metros, e eu que julgava que não tinham asas. Mais uma
surpresa, como tantas e tantas iria ter nestes 27 meses que ainda me faltavam para regressar a
Portugal.

Os golfinhos acompanhavam o barco quilómetros e quilómetros a fio, num sobe-mergulha,


verdadeiramente empolgante, com a sua pele brilhante e lisa. Era sabido que quando tínhamos o prazer
de ver este bailado maravilhoso, não havia por perto a barbatana impressionante do tubarão, pois de
certeza o golfinho era mais forte.

Todos correm à proa do navio ao ouvir o barulho de gritos de alegria e fascinação, numa tarde
esplendorosa de sol e calor. Uma raia gigante aproxima-se da proa, qual nave espacial, com as asas
abertas, enorme numa flutuação lenta e vem quase bater no casco do barco. É formidável no seu
tamanho, mas de certeza está morta, pois segue a todo o comprimento do navio e só a vamos perder de
vista já na ré, quando se mistura com a revolução de água que sai impulsionada pela força dos hélices
dos potentes motores, que tive o prazer de observar aquando de uma visita com o Zé Martinho à casa
das máquinas, ele sempre com a sua imagem de marca, um trapo de limpeza saído do bolso traseiro dos
calções. Recordas-te Zé?

Parece que algumas gaivotas nunca deixaram de acompanhar o barco desde Lisboa, o seu voar e
planar é lindo. Sempre se vão alimentando dos alimentos que ficam expostos no convés, deixados cair
pelos que ali vão comendo alguma coisa e vão elas também petiscando alguns peixes pescados das
águas pelos seus mergulhos de segundos e dos detritos largados das cozinhas.

O horizonte é enorme e deixa adivinhar e sonhar com o que estará para lá de tantos quilómetros de
água. O nascer e pôr do Sol são sempre um espectáculo que nos deleita, com as suas cores sempre sob o
vermelho que até hoje nunca mais vi em parte alguma.

Maravilhoso Mar que alguns não terão mais o prazer de ver.

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LUANDA

Continuam os dias a suceder aos dias.

Lá vou tomando as minhas banhocas com o sabonete “life boy” o único que faz espuma com
aquela horrível água, mas nisso sou um dos felizardos, tal como o Mariano Fernandes e o Vasco
Varandas, pois temos a felicidade de ter sido acolhidos em camarotes de tripulantes, o que faz de nós
motivo de alguma inveja, pois o resto da tropa só tem direito a banho semanal e às vezes nem isso.

Uma preparação para o banho “macua” que em Nacala e Mueda será o pão nosso de cada dia, ou
seja, uma lata de litro tira a água do bidon de 200 litros, e todos em volta do bidon lavam as íntimas
partes. Em Mueda, na central eléctrica, e como o clima por vezes era frio, tínhamos o luxo de água
quente dentro do bidon, através de uma resistência mergulhada na água (que perigo). Lembras-te
Giordano Couto, recordas-te Felizardo Bandeira, tens memória Machado “tombalotes” .

Durou pouco o cinema. Um écran enorme foi colocado na ré, entre os mastros e a rapaziada
procurou forma de arranjar os melhores lugares que sobravam de umas cadeiras colocadas em tipo
plateia, para suportar os benditos cús das altas individualidades embarcadas no navio. Individualidades
que fariam o favor de ficando nos gabinetes nas cidades entre o ar condicionado, as queridas esposas e
algumas prostitutas pretas de ocasião, bom marisco e ordenado chorudo, e alguns orientanços, de dirigir
uma guerra que não conheciam no seu âmago e à qual só se deslocavam com grande escolta, para tirar
fotografias e arranjar pontos para a medalhinha e o louvor a receber no 10 de Junho, no palanque do
Terreiro do Paço, das mãos daqueles que tal como eles, pouco pela Pátria faziam, mas em seu nome
muito ganhavam.

Mas os filmes duraram pouco, pois a algazarra da rapaziada, por não ter lugar e só lhe sobrarem os
mastros e as posições amacacadas de onde pudessem ver algo, fez com que o castigo fosse: não há mais
cinema, pois os meninos não se portaram bem. E lá vinha o tenente Matos (Meirim), com a ameaça de
“amanhã vai tudo para o convés fazer ginástica”.

E assim como o entretenimento era pouco, lá tínhamos de inventar alguma coisa com que nos
entreter, pois o meu grupo nunca foi muito dado a jogos de azar (como se jogava forte naquele navio).

Quando chegaram ao seu destino haviam muitos rapazes que já tinham perdido ao jogo todo o
dinheiro que tinham arregimentado para levar até terras de África.

Pois é verdade, vamos dar conta do entretém que arranjámos para passar o tempo. Como o vento
estava sempre de prôa, e de noite devido ao calor muita gente dormia e dormitava no convés,
resolvemos tirar os pirilaus de fora, ir mesmo para o bico da prôa e fazer uma mijarada para o ar, sendo
o líquido levado pelo vento indo cair em forma de chuva em cima da malta que mais adiante estava.

Foi giro ouvir a gritaria que a malta fazia: “fujam está a chover”, “seus filhos de p... parem com
essa merda senão mato-vos”, enfim uma cegada do catano. Mas lá que a malta gozou, isso é verdade. E
depois daí muito mais rapaziada imitou a cena, motivo pelo qual quem ía para o bico da prôa estava logo
sob vigilância atenta.

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E o Cagalhão Flutuante lá continuava imponente a sulcar os mares do Gama, todo ufano das suas
riscas abaixo das cagadeiras.

Enfim estamos frente a Luanda.

Impressionante é o que se pode dizer daqueles morros de terra vermelha, daquela baía tão linda
cheia de coqueiros e aquele porto de mar carregado de navios, com uma azáfama que não esperava
encontrar.

Aqui vão sair diversos amigos que serão encaminhados para as diversas bases e quartéis. Alguns
com a esperança de ficar em Luanda, o que não será fácil e tocará apenas aos protegidos da sorte, e
àqueles que tenham a “cunha” sempre uma instituição nacional.

Também recordo a saída do Guita e do Bebé “os salteadores”, duas galinhas de campo que vão ser
guardadas no presídio militar para acabar de cumprir o resto da pena a que foram condenados. Eram
dois simples coitados.

E depois das despedidas de alguns que logo partem, vamos sair do navio em grupos já
previamente seleccionados, pois é verdade que havia grupos, como é natural. O grupo da
Electromêcanica de Paço de Arcos, o grupo dos jactos de Monte Real, o grupo de Tancos dos
helicópteros, o grupo de Coimbra e arredores com a sua filosofia bairrista académica, e outros mais.

Luanda tem um movimento de pessoas e viaturas muito intenso e nada faz lembar que estamos em
guerra. Pela primeira vez pisamos África e sentimos uma qualquer coisa interiormente, tudo é diferente.

Ali encontro o António, ex-contínuo na Escola Industrial e que por causa de uns reles panfletos de
propaganda comunista e umas ideias que não convinham ao Estado Novo, foi preso e depois para ali
deportado. Vendia ambulantemente lotaria e trocava dinheiro de Angola por escudos, como se esta Pátria
não fosse a mesma. Selamos este feliz encontro com um abraço de verdadeira amizade, com este filho
do bairro chinês em Lisboa e que tanto apreciava ver-me jogar futebol no Oriental, com campo mesmo
ali à beirinha da casa onde vivia.

Ficámos, eu e os meus camaradas ali ouvindo as suas histórias e bebendo umas “loiras”, ao mesmo
tempo que apreciávamos o bulício daquela cidade, num maravilhoso dia de sol africano. E que
espectáculo. Bafa o sinaleiro negro do alto da sua peanha dirigindo o trânsito, todo imponente até
ralhava com os automobilistas.

Uma parte da rapaziada seguiu para o Bairro Operário, para matar a fome de carne “fêmea”, pois
as brancas da cidade levavam caro pelo serviço. Bairro onde imperava a prostituição, tanto branca, como
negra. Não conheci este bairro mas pelo relato da rapaziada, era para nós difícil de entender que
prostitutas brancas estivessem em casas ao lado das negras, mas assim sucedia.

A vida nocturna de Luanda, intensa e participada deixou-nos deslumbrados. Fomos à ilha,


verdadeiro ex-libris da cidade e deambulámos pelos diversos dancings e cervejarias da cidade. Que sorte
para quem fica em Luanda.

E tomámos o “machimbombo” para o mais longe possível da cidade, na santa Ingenuidade de ver a
Selva, aquela Selva do Tarzan que nas histórias aos quadradinhos fazia a nossa delícia de miúdos. Bem
se ria o Tino da nossa ingenuidade e claro da selva, nicles. E no regresso rimos e gozámos da nossa
“barraca”.

Adeus Luanda, adeus amigo Gil, até depois camaradas que esperamos tenham tanta sorte como
aquela que desejamos ter.

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O ASSALTO AO PORÃO

Os companheiros que mais tempo tinham passado no navio, ou por falta de dinheiro, ou porque lhe
davam mais importância do que ele efectivamente tinha, verificaram que tinha sido carregado a bordo
uma carga de latas de conserva, vinhos, etc.....,mesmo por baixo do último porão da proa, e logo ali
começou a germinar a ideia de dar um jeito ao material armazenado.

Uns achavam que não se devia fazer nada, tendo à cabeça os Coca-Colas (moçambicanos que
tinham a esperança de ficar em bases perto das suas famílias), outros diziam que se devia atacar,
argumentando que havia fome, mas eu acho que seria mais pelo gozo da aventura e do risco.

Claro que ganharam os adeptos do ataque. E lá fomos cerca de dez descendo as escadas estreitas
até ao último porão da proa, pela calada da noite, tentando não acordar os que lá dormiam o que se
verificou ser impossível.

Levantado o oleado que cobria as pesadas tábuas que suportavam os beliches, também alguns
arredados para arranjar espaço, com grande esforço pois as tábuas pareciam pesar chumbo, eis que se
nos depara uma carga enorme de caixas com latas de conserva, vinhos e outras coisas mais.

E começou o corropio escadas acima com a carga às costas e já não eram só os primeiros dez, mas
mais um magote deles que entretanto tinham acordado e vencido o medo.

Foi fartar vilanagem e o convés da proa mais parecia palco de um pic-nic nocturno.

Durante o dia deliciavamo-nos a comer e a beber e admirando o espectáculo das latas e garrafas a
flutuar junto do casco do navio.

Fiquei espantado de as altas individualidades a bordo, nunca terem sabido da nossa façanha, o que
era um óptimo sinal de que não havia bufos junto de nós.

Mas como não há bela sem senão as coisas modificaram-se.

De tanto tirar mercadoria e também devido aos balanços do barco, um ou dois dias depois,
quando se estava a levantar mais uma carrada, eis que uns caixões não sabemos se ocupados ou não,
deslizam perigosamente para cima das cabeças dos que estavam na parte inferior a passar as caixas para
cima. Foi o ponto final.

Parece-me que ninguém mais teve coragem para ir abastecer-se, pois os gozões inventaram as
mais diversas piadas acerca dos caixões, como era de esperar. Que tinham mortos dentro, que eram
para nos trazer a nós no regresso e outras coisas macabras, que acabaram por tirar o moral aos
salteadores. Mas acrescento eu que a rapaziada também já estava farta de tudo aquilo, e a novidade da
brincadeira já tinha passado. Tristes ficaram o Machado e o Balbino, verdadeiras máquinas de mastigar.

Passado o Cabo das Tormentas, começava a ser altura de pensar que estávamos perto de
Lourenço Marques, e ali saíram alguns poucos para cumprir os 24 meses de comissão e todos pensavam
ser os afortunados. Os coca-colas então estavam radiantes, mas seriam as “cunhas” deles
suficientemente fortes para arranjarem colocação em Lourenço Marques?

Não seria fácil. Eis que chega o Índico e com ele Lourenço Marques.

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LOURENÇO MARQUES

A alegria do Tino é contagiante, muito me tinha ele contado sobre a sua terra e ali estava ela
defronte de nós, tão airosa, muito menos buliçosa que Luanda, mais pacata, mas não menos bela.

As ilusões foram tiradas sobre aquele convés pelo Meirim, que lia em voz alta e lenta o nome dos
que ficavam em Lourenço Marques e que eram muito poucos. Enfim, talvez na Beira.

Todo o nosso grupo foi almoçar a casa do Tino. Uns pais maravilhosos e o irmão Zé um puto
porreiro que iria falecer jovem, e que muito bom companheiro foi quando estive com o Rui Valoroso e o
Zeferino Peres de férias em Lourenço Marques.

Como diferente era a vida daquela família comparada com a nossa na metrópole. Os criados e
cozinheiro pretos. A calma que se respirava naquela família diferia em muito das nossas casas onde a
vida era mais acelerada e até as palavras faladas mais altas e com mais velocidade. Lourenço Marques
vivia em tudo lenta e sossegada, também aqui os sinais de guerra ainda eram menores do que em
Luanda.

Os carros circulavam como em Inglaterra, pela esquerda, o que atrapalhava imenso quando havia
necessidade de atravessar as ruas, não é conversa, atrapalhava mesmo. De tal ordem que um camarada
que estava a bordo connosco tinha sido atropelado.

E com o Tino lá fomos ver o santuário das putas. A rua Araújo, vulgo rua do crime, junto ao porto,
estava pejada de um lado e de outro de bares e cabarets, desde o mais modesto, o Pinguim destinado
exclusivamente a pretas e mulatas, até ao bonito e bem frequentado Aquário, cheio de modernidades
como não conhecia nenhum outro.

Então os sul-africanos e os rodesianos, reis do racismo foram uma surpresa enorme para mim, ao
vê-los agarrados a tudo o que é preta o mais negra possível. Que surpresa, isto é o fruto proibido, pois
na sua terrra nunca o poderiam fazer sem ser muito resguardado.

E que movimento e que luz dos neons tinha a rua do crime e gajas boas também, como dizia o
Angêlo Carvalho o “bacano”.

O Scala e o Continental, duas pastelarias enormes, uma defronte da outra eram ponto de
passagem e de paragem obrigatória da cidade. A cervejaria Nacional, onde degluti o melhor “ chacúti “
da minha vida. A Facim - Feira Internacional e as praias mesmo junto à cidade.

Conheci a família Cardiga, o seu patriarca Vladimiro, um homem excepcional e a sua esposa que
mais tarde me acolheram quando estive lá de férias, mas isso serão contos para outras páginas.

E lá embarcámos para mais uma etapa até à Beira, com o Tino triste e preocupado com a sua
sorte, mas havia que levantar o moral.

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A BEIRA E O BOICOTE

Dia de sol maravilhoso, aquece o convés do Niassa, a esperança dos que pensam ficar colocados
na Beira ou Vila Cabral (base que até tem piscina e onde muitos gostariam de cumprir a sua comissão),
contrasta com a tristeza daqueles que pensam que lhes tocará Tete (terra do calor e onde a guerra já é
mais acentuada).

Continua o boicote ao porto de mar da Beira, executado pelos navios da Marinha Real Inglesa. A
bordo há alguma expectativa em relação à atitude que esses navios pudessem tomar, e a especulação a
bordo é bastante, pois num universo de dois mil homens, registam-se as opiniões mais desencontradas.

Uns opinam que eles nos vão atacar e será uma catástrofe, outros mais optimistas brincam com a
situação, e as opiniões dividem-se e tomam proporções com alguma gravidade e como sempre é
habitual, da parte das forças que comandam esta tropa, nem uma palavra surge, dado que estão mais
preocupados com o bridge que jogam nos salões e com os bons vinhos com que se dessedentam junto ao
bar, que tive o privilégio de visitar com o Zé Martinho e onde fui olhado com aquele ar de, o que é que
este papalvo está aqui a fazer.

Eis que surge o navio de guerra da marinha inglesa e que do horizonte se começa a aproximar,
mas para gáudio da soldadesca também uma canhoneira portuguesa já estava junto do Niassa, recebida
com aplausos de regozijo. Pobre navio de guerra português de tão pequeno e tão velho, o que poderias
fazer em combate desigual contra um navio moderno e carregado de peças de artilharia, e não sabíamos
o quê !!

A velha carcaça lusitana acompanha o Cagalhão Flutuante, lado a lado, imponentes na sua pobreza
e que gargalhadas de ironia se deveriam produzir a bordo do navio inglês. A rapaziada amedrontada
uma, gozada a outra, lá estava no convés vivendo aquele momento inusitado. Dizia um camarada de
armas com o bom e natural ar alentejano “nós somos tantos que se nos pomos todos a mijar para dentro
do navio inglês, aquela merda vai ao fundo alagada com o suco dos verdadeiros heróis da Pátria”.

E assim seguimos até ao porto, carregado de barcos com as suas mercadorias e muito movimento
de camionetas e de comboios, motivo pelo qual os ingleses lhe faziam o boicote, pois muito do
escoamento de produtos provinha da Rodésia que queria a sua independência da Grã Bretanha.

Chegou a altura da leitura do destino que iríamos ter, nas terras de África e mais uma vez a
expectativa era enorme. E lá se fizeram as despedidas e os colocados em Tete, Vila Cabral, e Beira,
arrumadas as malas seguiam escadas abaixo em direcção ao desconhecido, dois anos de tristezas e
alegrias que muito iriam marcar a futura vida destes jovens e que ainda hoje sentem reflexos tanto
físicos, como psicológicos.

Nós os que iríamos seguir para Nacala e Nampula (com destacamentos em Porto Amélia, para a
felizarda “família” dos Fiats G91 e guerra em Mueda, para os menos sortudos dos tecotecos e hélis),
esperámos a ordem de desembarque, depois das comovidas despedidas de camaradas que só muitos
anos depois, e já na Metrópole, teríamos o prazer de encontrar nos muitos almoços de confraternização

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de que é ponto crucial o almoço anual da Associação de Especialistas, onde carpimos as nossas alegrias e
mágoas à mistura com os copos e algumas lágrimas.

É natural, os anos fizeram-nos mais sentimentais e tomamos agora consciência de coisas. que na
nossa juventude não valorizávamos tanto.

Como é de bom tom e fazia parte da formação do Zé Especialista, (desenrascado, vivo, inteligente
e amigo da boa pandega), logo tentámos saber onde havia os bares e dancings que pudessem de
alguma forma amenizar os dias de clausura que levávamos a bordo do navio.

Era o Moulin Rouge, com as suas garotas estonteantes para a época e com melhores espectáculos
do que aqueles que podíamos assistir na Metrópole, pois a proximidade da África do Sul e Rodésia,
geravam uma onda de modernismo e desinibição, mais liberdade e mais sensualidade, a que o clima não
é alheio.

Lá estavam os “bifes”, reis do racismo, agarrados a pretas e mulatas, com as mesas e estômagos
carregados de cerveja (as denominadas bazucas) e o seu vozeirão “africander” que inundava as salas.
Sexo para eles era de menor importância, privilegiavam aquilo que lhes estava vedado no seu País, a
fartura de álcool e as pretas.

No Campino, encontrei o fadista bailarino de seu nome Alfredo Duarte Júnior, filho de Alfredo
Marceneiro, com a sua voz arrastada como a do pai e também como quem sai aos seus não degenera,
um verdadeiro fadista. Ali tivemos uma conversa bem animada e a recordação de bons tempos da nossa
fadistagem. Como não podia deixar de ser, tive de cantarolar uns faditos, pois a saudade de cantar
acompanhado de viola e guitarra, era muita, já que no navio poucas foram as cantorias, e só a solo.

Tinha uma vida engraçada a Beira. Uma praça onde existiam cafés e restaurantes a que chamavam
o “picadeiro”, dado que aos domingos as senhoras ali passeavam a pé, os seus vestidos e os seus dotes
físicos, algumas trazendo a reboque os seus criados negros que tomavam conta dos meninos.

Terra onde se notava bastante a diferença de idades entre marido e mulher, pois era habitual os
homens casarem por procuração com raparigas mais novas vindas da Metrópole, e que só conheciam
fisicamente na generalidade, no dia em que de avião ou barco chegavam à cidade.

O cinema S. Jorge, onde mais tarde aquando de uma ida à Beira para montar uma asa num T6,
fui integrado em espectáculos bastante participados pelo público local, que sempre acorria às bilheteiras
ávido de novidades de alguns poucos artistas que recebia com muito carinho.

O meu grupo de amigos mais chegados ia desfazendo-se aos poucos, pois alguns foram seguindo
para outras unidades. Havia que unirmos mais aqueles que seguiriam até Nacala, pois com esses
estaríamos seguramente dois anos.

Numa noite no barco tinha conhecido o Orlando, cabo do exército prestando serviço como polícia
militar e que estava em Lanceiros 2, aquando da final do campeonato de andebol da região militar de
Lisboa.

Recordámos essa final, jogando eu como guarda-redes da Escola Prática de Electromecânica de


Paço de Arcos, e que a minha equipa na qual jogavam o Angêlo de Carvalho (excelente jogador, com o
centro de gravidade muito baixo e de uma habilidade e mobilidades enormes); o Cardoso, que acabou
por chumbar na Força Aérea e mais tarde tive o prazer de receber como soldado do Serviço Geral da
Polícia Aérea, em Nacala (jogador de muita habilidade e que fazia o lugar de pivot, para mim o melhor
jogador da equipa); os irmãos Monteiro (um deles chegou a jogar no F.C.Porto, com bastante
notoriedade), um dos quais seguiu comigo para Nacala, perdemos por três golos de diferença.

Não me perdoei desse mau dia na baliza do Pavilhão Gimno Desportivo da Calçada da Tapada em
Lisboa, pois foi por culpa minha que perdemos o jogo, pois nunca encontrei forma de contrariar os
remates que a equipa contrária apontava aos ângulos superiores da baliza.

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Os jogadores da P.M., jogavam todos ao mais alto nível nos campeonatos nacionais, visto que os
desportistas para terem uma vida de acordo com as suas atribuições atléticas, eram colocados lá, por
terem uma vida militar menos atribulada, mas nós tinhamos equipa para eles, daí eu me ter sentido
bastante triste pela derrota ser mais de minha culpa.

Fiquei nesse jogo com os reflexos diminuídos devido ao que agora posso confessar.

A vida que tinha de música e desporto, como é óbvio, não era compatível, e antes do jogo fizemos
um aquecimento muito prolongado e em vez de ficar com os músculos quentes, fiquei sem reflexos, mas
a vaidade de jogar aquele jogo da final e a não constatação de imediato das condições físicas em que
estava, prejudicou o trabalho dos meus restantes colegas e amigos.

Assim a vocês as minhas desculpas, por terem na vossa estante de troféus a medalha do 2.º lugar
e não a do 1.º, que tudo fizeram para isso.

Conclusão da história, o Orlando ficou a saber uma causa da vitória e fica patente que música e
andebol não ligam muito bem.

Foi breve a passagem pela Beira, mas parece-me que pelo menos ficou o desejo de voltar, ainda
hoje muitas vezes sinto a saudade de África e compreendo a tristeza que deve invadir aqueles que ali
tinham a sua vida estabilizada, e que tiverem de abandonar por força das alterações produzidas no 25 de
Abril de 1974.

Ainda hoje estou para descobrir como foi possível, alguém ter roubado de bordo, um ventoinha de
largas dimensões que pertencia a um dos tectos dos salões do navio e sair com ela do barco. Que tenha
feito bom proveito ao atrevido que a furtou, dando-lhe uns momentos de conforto e vento fresco.

E rumámos a Nacala.

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NACALA E A BAÍA MARAVILHOSA

Estamos perto de Nacala, o nosso destino, pensamos nos colegas que iremos substituir, como será
a base e Mueda o que será?

Qual o serviço que vamos fazer, será que seremos competentes para o fazer? Quem serão os
nossos chefes? Toda uma nova vida se abre perante nós. Como irão correr as coisas, que perigos nos
espreitam?

Um mar de interrogações para as quais não tínhamos respostas, e que seriam de todos, desde o
menos preocupado até àqueles mais optimistas e para quem as coisas parece que sempre estavam bem.

Nacala, entrada da baía, maravilhoso, impressionante, desde a tonalidade da água à cor azul
celeste do céu, as praias, as árvores enormes, junto às areias. Se fosse para passar umas férias seria um
verdadeiro paraíso.

E assim chegámos ao terminus da nossa viagem de 28 dias. O navio encosta à muralha e nós de
malinhas na mão com o ar mais surpreendido do Mundo, descemos a escada de portaló em direcção ao
cais.

Primeira surpresa. Vêm direitos a nós dois javalis com as presas grandes e afiadas, mas surpresa
das surpresas, são domesticados. Foram para ali pequenos e como tinham bastante que comer dos grãos
de cereais que estavam espalhados pelo chão, estavam nas suas sete quintas. Mas é verdade que a
rapaziada ficou com medo, ficou sim senhor.

Fomos então literalmente atirados com os nossos queridos pertences para cima de uma camioneta
de caixa aberta que entre solavancos pela picada até à Base, nos deixou à porta das camaratas.

Foi-nos dada a possibilidade de escolher entre duas camaratas: a dos “amarelos” e a dos
noctívagos. Escolhi a dos amarelos e tinha as minhas razões que explicarei noutro pequeno livrinho que
tenho a pretensão de escrever, relatando as minhas andanças pela guerra de África.

Adeus Niassa, adeus Cagalhão Flutuante, como podes verificar ficaste bem gravado na minha
memória, não pelas coisas más que em ti passei mas também das coisas muito boas, das quais distingo
as amizades com que fui distinguido.

Apesar de tudo bem hajas e paz à tua alma.

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L I G E I R A A P R E C I A Ç Ã O À Q U E L E S
Q U E R E C O R D O E D O S Q U A I S A
M E M Ó R I A N Ã O M E F A L H A

FELIZARDO BANDEIRA - Sempre leal amigo. Aquele ar especial que Coimbra dá aos seus filhos e que faz
com que não se sinta a sua vaidade. Ainda hoje recordo com saudade o esfregar da sua direita na
esquerda e o seu sotaque especial.

GIORDANO JACINTO DO COUTO - Enfeitava a sua inexperiência, com tiradas que pareciam seguras.
Nunca o vi zangado, mas muitas vezes triste. Tirámo--lo à força da prisão. Meu amigo e muito próximo
de mim, pois aniversariamos no mesmo dia.

ÂNGELO CARVALHO - Portista ferrenho, baixinho. Tinha umas mãos às quais as coisas com facilidade se
pegavam. Um coração e uma lealdade inexcedíveis. Sempre a roçar a marginalidade, em tudo.

ARTUR LOBÃO - Intelectual e novo riquismo. Por algum motivo os camaradas foram rejeitando a sua
agressividade que se tornou latente com o passar dos meses de comissão.

ÁLVARO COSTA E SILVA - O relojoeiro. Filho de Lisboa, com muitos expedientes mas falta de coragem
para os colocar em prática. Ainda hoje tenho saudades da sua voz e dinamismo. Muita qualidade e
incapaz de prejudicar alguém.

VASCO VARANDAS - O grandão. Lento por natureza, calão por opção. Tinha medo e conseguiu fugir
sempre de Mueda. Bom amigo que sempre me aturou mesmo as brincadeiras mais parvas, sem me bater
com aquelas mãos enormes.

FRANCISCO HENRIQUES “O KIKAS” - Verdadeiro ou mentiroso? Cobarde ou fanfarrão? Vaidoso ou


complexado? Nunca o consegui verdadeiramente entender. Já homens feitos e na Metrópole, percebo.

ANTAS - Um ar de aristocrata, um porte altivo, tendo por detrás um rapaz simples. Um amigo leal.

ÁLVARO JOSÉ FIGUEIROA E SILVA - Madeirense de boas famílias, até tocava piano o que na época não era
vulgar. Um companheirão a quem o meu grupo no Niassa muito deve pela forma como se integrou.

VENTURA SECO - Sisudo, circunspecto, com alguma tristeza, mas que sabia rir nos momentos de bom
humor. Sempre um bom amigo.

JUDICE - Uma alma louca num coração de pomba. A personificação do homem impulsivo.
Imensamente influente no meu grupo, mais um que teve o azar de ser colocado no BCP e até o mato
conheceu in-loco. Forte amizade.

EASTWOOD - Sempre com a cabeça a funcionar como um bom especialista, em tudo o que fosse boa
vida. Desenrascado. Pouco lúcido. Tinha sempre um gesto de carinho para este bom amigo.

TÓ SEQUEIRA (PILAS) - Amizade que já vinha das Lages na Terceira. Tal como eu um “artista”. Muito
boas coisas fizemos no navio, muito boas coisas fizemos nos Açores. Um homem extremamente sensível,
para quem a amizade era um doce.

MIRANDELA - A simplicidade de uma educação austera e provinciana. Tudo nele era simples às vezes
até um pouco primitivo, mas onde as atitudes e o amor ao próximo tinham um lugar privilegiado. A
admiração que tinha por ele gerou uma amizade eterna.

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RICARDO NEWPART VIEIRA - O filho mau das boas famílias. Sempre pronto para uma boa aventura. Um
bom ribatejano. Uma amizade com muita ternura.

FERNANDO GUERRA - Um bom companheiro com quem a convivência não foi muita.

MEIRIM - Um pouco implicativo. Em Mueda num momento mau tivemos uma altercação grave que
com dificuldade foi por ele esquecida. Águas passadas.

LEITÃO (SAPO) - Lento, mas muito perspicaz, combinava muito bem. Um ser de quem não se
esperava maldade. Sabia ser amigo.

VERMELHINHO - Um fórmula 1, tudo feito sempre em velocidade, mesmo os pensamentos, quanto


mais as atitudes. Bom carácter, bom amigo.

MEIRELES - Ainda hoje não consigo definir bem até que ponto o seu ar de ternura não seria efeito de
algumas carências afectivas. Muitas vezes vilipendiado, mas sempre atento sem se deixar ir abaixo. Fez
sempre o favor de me admirar e de me distinguir com a sua amizade.

JOSÉ ALCOBIA RIBEIRO - O mecânico. Bom copo bom garfo, sempre alegre e bonacheirão.

CARAPINHA - O rei dos mecânicos, o rei dos copos, o rei da amizade, o rei do carácter. Um saloio que
muito me dignificou ter como amigo.

VITORINO - A alma minhota. Um amigo desde os tempos da recruta, que nunca alterou o seu
comportamento. Dono de um humor simples mas muito cáustico. Sempre gostei dele.

MONTEIRO - Uma amizade desde Paço de Arcos num nortenho, com fibra, raça e pão-pão-queijo-
queijo. Um dos gémeos.

JOAQUIM - De outro grupo de gémeos com imensa qualidade. Uma simplicidade, uma ternura,
sempre pronto a ajudar nos momentos maus. Amigo dos quatro costados.

VITOR GUERREIRO - O algarvio. Forte como um touro, mas um pouco burro. Muito justo e sempre
firme na amizade.

SANTOS - Um misto de militar e de temeridade. Um pouco adesivo, mas muito sincero.

BALBINO - Sério, honesto, leal mas burro como o caraças. Sovina à boa maneira algarvia. Dele
nunca ninguém recebeu deslealdade. Dava a amizade a conta-gotas.

DAVID - Um pouco influenciável, mas por outro lado bastante ponderado. Um amigo.

COSTINHA - Um profissional muito competente, com o qual aprendi bastante. Muita sensibilidade.
Teve para comigos gestos de amizade que me foram muito benéficos.

GIL - Amigo dos tempos da escola. A loucura em movimento. Gil vamos fazer uma malandrice? Já
está feita! A amizade para uma vida inteira.

NUNÃO - Rijo como aço. Duro nas convicções. Valente com um coração de manteiga. Grande
companheiro e amigo, talvez o mais carismático do grupo do Niassa.

ESTEVÃO - Alegria a rodos. O maior fã dos meus pobres fados. Um camarada a sério com quem
passei momentos inolvidáveis. O meu melhor amigo no Algarve.

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ANTÓNIO MARIANO FERNANDES (PÓPÓ) - Um físico muito frágil. Desde os tempos de escola sempre
tentei proteger. Um filho que tive quase com a minha idade. Que mais posso dizer.

TENENTE MEIRIM - Até meu empresário foi, nas coisas da música. Um homem com charme, simples,
extremamente afável e com um grau de humanidade a toda a prova. Foi muito meu amigo.

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Um dos primeiros Alouette II em Moçambique, operação de evacuação

Escrito sem prefácio, por ninguém ter tido a veleidade


de o ler e analisar antes do prelo, aos 19 de Maio de 2001.

Dados do autor:

Sem muita habilidade para os lançar.

Montagem: C. Jeremias

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