Os Pescadores
Os Pescadores
Os Pescadores
1923
memria de meu av, morto no mar
NDICE Foz do Douro De Caminha Pvoa Pequenas notas A pesca da sardinha A ria de Aveiro Palheiros de Mira Mulheres Pequenas notas A morte do arrais Alguns tipos As Berlengas Nazar Lisboa, Setbal, Sesimbra e Caparica Olho A pesca do atum Sagres
Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo ento apontamentos rpidos seis linhas um tipo uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas pginas de memrias. Meia dzia de esboos afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, so melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto at mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho bzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. Eu tambm nunca mais a esqueci...
FOZ DO DOURO A CANTAREIRA Abril - 1920 Foz para mim a Corguinha, o Castelo e A0 Monte com o rio da Vila a atravesslo, e a Rua da Cerca at ao Farol. O que est para l no existe... S me interessa a vila de pescadores e martimos que cresceu naturalmente como um ser, adaptando-se pouco e pouco vida do mar largo. E ainda essa Foz se reduz cada vez mais na minha alma a um cantinho a meia dzia de casas e de tipos que conheci em pequeno, e que retenho na memria com razes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas medida que me entranho na morte. O mundo que no existe o meu verdadeiro mundo. Esta vila adormecida estava a cem lguas do Porto e da vida. Ali moravam alguns pescadores e martimos, o Antnio Lus, a Poveira, as senhoras Ferreiras, a D. Ana da Botica e as Capazorias. E, na Foz e na pensativa Lea, uma gente desaparecida com os navios de vela, os embarcadios que iam ao Brasil em longas viagens de trs meses. As casas, limpas como o convs de um navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras. Todas tinham um grande culo de engonos, para ver o iate ou a barca que partia, ou para procurar ansiosamente, l no fundo, o navio que trazia a bordo o marido ou o filho ausente, e um mastro no quintal para lhes acenar pela derradeira vez. Meu av materno partiu um dia no seu lugre; minha av Margarida esperou-o desde os vinte anos at morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos ps, at aos cabelos brancos com que foi para o tmulo. Quando os rolos de espuma rebramiam no Cabedelo, apertavam-se os coraes no peito, e luz da candeia rezavam horas esquecidas pelos que andam sobre as guas do mar. Conheo ainda, to bem como ontem, todos os cantos da casa de minha av: as escadas com um cabo de navio a servir de corrimo, a sala da frente com dois painis escuros nas paredes, Jesus crucificado e S. Joo Baptista, e o estrado onde ela e a tia Iria, todo o dia sentadas, trabalhavam nas almofadas de bilros. A renda de bilros uma indstria da beira-mar, destas mulheres loiras, de olhos azuis e rosto comprido as da Foz, as de Lea e as de Vila do Conde que passavam a vida espera dos homens, enquanto as mos geis iam tecendo ternura e espuma do mar... Nesta sala abriam-se duas portas, uma para os quartos interiores, e outra para o corredor onde os rapazes dormiam num armrio com beliches. Ao lado da casa, que subia em socalcos pelo monte, subia tambm uma escada de pedra em patamares at l acima. Do quintal, mais alto que os telhados, via-se o mundo. Era dali, saltando o muro, que eu partia para excurses maravilhosas atravs do pinheiral do Lage... Costumes muito simples, muito outros. Uma pescada custava seis vintns, e minha av gemia da carestia da vida, falando com saudade do tempo do arroz de quinze. Tinham-se calado as marteladas nos estaleiros de Miragaia e do Ouro, onde os calafates, os ferreiros e os carpinteiros de machado, erguiam outrora, entre clares de forja e cheiro a pinho descascado, as carcaas dos palha-botes, das barcas e dos iates, mas eu ainda conheci alguns tipos curiosos de capites aposentados, no americano que se inaugurara e que levava a gente ao Porto numa hora, alumiado noite por uma luzinha de petrleo, e com reforo de mulas em Massarelos. Nesses carros andava sempre a mesma meia dzia de pessoas para baixo e para cima, e o servio era dirigido com 3
ferocidade por um major de pra pintada com esmero, que mantinha a disciplina numa gaiola do Ouro. Ora, entre as pessoas que faziam comigo a travessia, quando a Aninhas do Jeremias me levava pela mo ao colgio, nunca mais esquecerei o capito Bernardes, um do Carvalho que chegou a almirante, o tio Bento, o irascvel capito Sena, de quem se contava com terror que fora apanhado no mar alto por uma trovoada as fascas como chuva levando os pores carregados de plvora, o alegre capito Serrabulho, casado com uma mulher fantasmtica homem prodigioso, com uma grande barriga sacudida de risadas: Acaba-se aqui o mundo com uma ceia de peixe! e que fez andar num corrupio at morte a Foz do Douro e a Baa, e entre todos eles, principalmente, o capito Celestino, que tendo comeado a vida como pirata a acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me no lembro sem inveja. Falava pouco. Sorria sempre numa satisfao interior, completa, perfeita, com uma cara de pscoas rosada e inocente, enquadrada pela barba de passa-piolho toda branca. A sua vida anterior fora misteriosa e feroz. De uma vez com sacos de cal despejados no poro sufocara uma revolta de pretos, que ia buscar costa de frica para vender no Brasil. Outras coisas piores se diziam do capito Celestino... Mas o que eu sei com exactido a seu respeito que para alporques de cravos no havia outro no mundo. Todo o dia um fio de gua escorrendo por condutos invisveis de que s ele sabia o segredo, caia pingue-que-pingue nos alegretes caiados de branco; todo o dia o velho corsrio, com mos delicadas de mulher, tratava embevecido as flores cultivadas como filhas. E acabou assim a vida mondando e podando, sem uma dvida na conscincia tranquila... Maio - 1921 Sonolncia doirada com dois ou trs acontecimentos: as catraias que chegam da pesca, um grande paquete que entra majestosamente a barra, os batis que despejam na praia os montes de sardinha. Vm os dias de nvoa, quando o sino da igreja tange chamando os homens perdidos na cerrao, o tempo do svel no rio, a pesca da lampreia com um fogaru no bico do cabedelo, e, em Dezembro, a safra da sardinha. O senhor piloto-mor passeia no cais com as mos atrs das costas ralhando aos velhos da Penso, e trs martimos conversam acol naquele banco de pedra, ao p da torre dos pilotos, onde j meu av se sentava. Um dia lana-se a nossa catraia ao mar. Os calafates, com estopa embreada, tomam-lhe as juntas de pinheiro por pintar. Alguns homens do-lhe uma mo de piche, e um desenha-lhe nas tbuas do costado: Senhora dos Navegantes. Chega da Pvoa o Manuel Serro, homem de poucas falas e calas de lona branca, e talha-lhe a vela estendida na areia. Corta-se o mastro no pinheiral do Lage. O senhor abade toca o sino asperge-a de gua benta, e a companha, com os barretes na mo e fatos de ver a Deus, espera o ltimo latim para a lanar sobre roletes ensebados pela lingueta abaixo. So quinze homens como torres com o arrais e o moo. o Jeremias, alto, de barbas de sargao, o Bil e o Mandum, o Joaquim Sota, o meu compadre Matias, o Jos das Facadas, o Mouco e o Bexiga, queimados pelo ar do largo, aquele velho de cachimbo nos dentes, que de tanto remar ficou curvado para sempre, o Manuel Arrais, grisalho e calado, e o moo o Nel, de olhos inocentes de bicho, que vai pela primeira vez ao mar. Agora! As mulheres da fonte deixam os cntaros e deitam a correr, e a companha mete o ombro ao costado do barco e oupa! retesando os msculos, empurra a Senhora dos Navegantes, que desliza nas pedras e entra no rio. Dois homens saltam dentro e levamna para as amarras. 4
Estes factos insignificantes impressionaram-me para sempre a retina e a alma. Muito tempo perdi-os no tropel da vida, impem-se-me hoje com um relevo extraordinrio. Vejo outra vez tudo; as fisionomias, as coisas, a cor e a luz. Vejo os barcos encalhados com as letras mal feitas, escritas a piche no costado, Vai com Deus, Senhora da Ajuda, Deus te guie, as redes nos varais e os pescadores de agulha na mo a remend-las, as catraias e os batis nas linguetas. Vejo as mulheres sentadas nos degraus, a Maria da Viela, as Papeiras e as Bexigas. Manh de no sei quando, manh que no existe e vou desenterr-la tal qual, azul e nvoa, nvoa e mar... Alarido nos tanques: chegam os batis da sardinha. Em Sobreiras as mulheres arrastam os quartos do svel, metidas na gua at cinta... Quem quer ganhar um quinho?... Alm o cabedelo e o mar desfeito em p azul, e a Outra Banda inteiramente verde. Conheo aquele grande pinheiro manso sobre a casa gtica desde que me conheo, os areais e o largo rio, onde dois ou trs barcos da Afurada pescam a tainha. O homem atira a rede, e a mulher, num gesto rtmico, bate com o bicheiro na gua para assustar os peixes, que se vo lanar na malha. So nadas que faro sorrir os outros. So efectivamente nadas... E no entanto reconheo que essa foi a melhor parte da minha existncia, minuto nico de saudade em que a luz se suspende e o universo se entranha para sempre na alma. a prpria vida com um encanto que no torna, o abrir dos olhos para uma manh deliciosa, quando se salta pela primeira vez do ninho e se sente ainda o calor do ninho. Tudo novo e esplndido. Embriaga o ar que se respira e o primeiro sonho que sonhamos. novo e cheio de surpresas o Vero, quando os grandes barcos rabelos, a vela latina cheia de vento e o homem em ceroulas no alto da caranguejola, carregados de achas que cheiram a bravio, descem devagar as guas; novo o Inverno quando a grande toalha lquida das cheias brilha e o sol reluz com mais gosto, ou quando aquela voz rude engrossa, comea a pregar e a lufada no cessa de bater nas vidraas. Est algum fora da barra? E as vigas do travejamento rangem como as quilhas dos navios, e a noite trgica, em que suponho ouvir gritos, nunca mais acaba. A voz cresce... Ouo-a agora perto, ouo-a melhor. O que foi eco quase extinto, aumenta num clamor cada vez mais alto, chamando de novo por mim... Junho - 1921 que tudo, at as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida extraordinria; um ser esplndido, o rio, a que me entrego dentro de quatro tbuas; o cabedelo cheio de mistrio, onde ponho os ps com terror; o largo, o profundo mar, que me levou alguns dos meus, constante preocupao desta gente, e que de quando em quando os mata minha vista. As figuras em sonhos tornam-se a debruar para mim, estendendo-me outra vez as mos... E sonhando tambm que me recordo de certas coisas sem importncia: do jeito que era preciso dar s portas manhosas, para as poder abrir, de uma expresso de que me separam lguas de esquecimento, de pequenos nadas que duram um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura. Acontece que s vezes acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra... Os meus mortos esto cada vez mais vivos. saudade, mas no s saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos so guiados por mos desaparecidas e a minha convivncia com fantasmas. Este cheiro a alcatro vou lev-lo nas narinas para a cova; esta paisagem mar, rio e cu entranhou5
se-me na alma, no como paisagem, mas como sentimento. Ressuscito as horas que perdi debruado no velho muro e sinto o gro da pedra onde punha as mos quando contemplava a engenhoca do meu vizinho Antnio Lus, que com escorros de gua, dois arames e um bocado de cortia, fazia manobrar uma azenha, o moleiro e o competente burro com os sacos de farinha, de uma maneira mais absorvente que todas as mgicas a que assisti mais tarde nos teatros de Londres. Ressuscito as primeiras impresses. A Foz est viva! Tenho-a diante de mim, a Foz de outrora, a Foz que j no existe, a Foz dos mortos, com o movimento, os tipos e a paisagem. L em cima o Monte tingese de sol, c em baixo o rio tinge-se de azul. A Cantareira, num cantinho, adormece a grande fonte de granito doirado, a casa do Antnio Lus, a nossa velha casa com os degraus de pedra, os varais das redes at Corguinha lajeada de grossos burgos e ao largo o farol. O mar embala o cabedelo. Uma luz como no h outra e que estremece com o movimento e os reflexos da gua, um ar como no h outro e que ainda hoje respiro como a prpria vida! Silncio... A Foz vai doirando lentamente, ano atrs de ano, crestada pelo ar da barra, camada de sol, camada de salitre... O que revivo mais profundamente? Revivo a expresso de uns olhos hmidos que me seguiam sempre, e compreendo que toda esta cor e este oiro que desapareceram e teimam em reluzir, correspondem a um momento nico da vida em que se descobre o mundo que vai morrer e que se fixa por fim em saudade e ternura. o que tenho mais pena de deixar quando sinto que me levam no sei para onde e cada vez para mais longe. Agita-se ento em sonhos o mundo que no existe, e os mortos adquirem uma expresso que a da minha prpria alma. Se isto ternura, a ternura o que h de melhor no mundo; se saudade, a morte o que h de melhor na vida. A prpria paisagem s depois que a perdi que a entendi bem, talvez porque a amo mais. Diante de mim tm desfilado as maiores e as mais belas, mas h uma humilde que faz parte integrante do meu ser. A vida passa e um momento da vida no passa mais transforma-se. E a aproximao da morte reveste-o de outra cor. Por isso agora vejo tudo cada vez mais ntido... Vejo os buracos nos muros e os reflexos ao lume de gua que duram um momento e se renovam sempre. o sol que lhes d vida e os ilumina. So instantneos. Movem-se, somem-se e do lugar a outros. So agitados e doirados. Uma aparncia, um jogo de luz, como as existncias efmeras que passam e o sonho que no deixa vestgios e s um instante se desenha superfcie da vida... Tudo dura o que duram os reflexos agitados. S este rio imenso segue o seu curso inaltervel e incessante para aquele mar profundo. IDA AO MAR 5 de Setembro Se fecho os olhos sinto logo esta mo spera e enorme que me leva na noite hmida e cerrada. No vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hlito salgado e ouo-lhe ao longe o clamor. No primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, l ao fundo distingo outra voz mais rouca e para alm um lamento que no cessa, donde irrompe de quando em quando um grito. De noite apaga-se o mundo e s esta voz enche o mundo... So trs horas. O moo anda de porta em porta batendo com um seixo. E vai chamando na cerrao: s Manuel, c pra baixo pr mar! E mais afastado torna 6
outra vez a sair do escuro o apelo prolongado, como se fosse o mar que os chamasse um a um: s Jos... c pra baixo pr mar! O arrais leva-me pela mo at lingueta viscosa, e salto dentro da catraia. Rumor. Vultos. Alguns homens ajeitam-se nos bancos, outros fincam os remos nas pedras para afastarem o barco. Mais perto, sempre mais perto, o bafo salgado... Uma lufada, uma onda, um ah monstruoso o clamor negro e espesso e samos a barra. Chego-me para o arrais, que no larga da mo a cana do leme, imvel e atento. Mete-me medo o negrume que no tem limites de escurido e de vida e de que me separa a espessura de uma tbua. A mar vaza. O arrais manda: Ia a vela! Os homens saltam nos bancos e o pano bate no escuro. ia! ia!... A escota range no moito e a grande vela triangular sobe, debate-se, enche-se de vento. A catraia mete a borda. Uma hesitao na marcha e logo nos entranhamos na agitao infinita, na noite infinita. A luz da lanterna remexem sombras indecisas. So os homens que se deitam nos bancos ou no fundo do cavername entre os baldes, os batedores, e o grande cabo do mar de oitenta braas, que serve para largar o ancorote quando a barra se fecha entrada. S o arrais continua agarrado ao leme, de olhos fixos na agulha de marear. Chego-me mais para ele... gua negra, respirao negra. Um frmito de vida, uma humidade que se cola boca e s mos, e a escurido, mas a escurido como um ser imenso que no distingo e de que sinto o contacto um flego cego e vivo que remexe l ao longe, cheio de mistrio, de u u u desordenado e que desaba em montanhas e salpicos amargos. Vem at mim. Rodeia-me. Quase lhe vejo as mos enormes. Escuto o negrume cheio de rumores, de vozes, de sombras movedias, que se debruam para ns como um che... che... mais alto, mais baixo, que no cessa. Um grito parece vir de muito longe, da vida monstruosa e profunda em que me entranho. Mas j me no mete medo o mar. O lampio ilumina a cara do arrais, rude e grave, serena. E a meu lado a gua escorrega no costado, chape-que-chape, sempre com o mesmo rudo montono que adormece e embala. da terra que vem a luz. Um livor indeciso e depois um chuveiro. A chuva sangra o vento diz o sota baixinho. Para acol a ndoa anda tona da gua como um olhar sem expresso: esparralhase no cu. Mas para o largo a noite imensa que nos traga redobra de espessura: o negrume aumenta. S no nascente a claridade se dilui em neblinas, em farrapos e nvoas esparsas que flutuam. Sobem, deixam-se cair em vus moles sobre as guas. Escondem o mar. Durante um momento um fio azul estremece superfcie, e logo a cortina vaporosa se mistura exalao das guas e cerra-se de todo. Esperem... Uma vaga, uma ondulao verde, outra ainda... Mais nvoa... luz... um grande farrapo desgrenhado... O estertor no cessa, mas sente-se que a nvoa se adelgaa pouco e pouco, enquanto o negrume se concentra e recua mais para longe e o ar adquire uma transparncia azulada. Tenho diante de mim s matria impondervel, cheia de frescura e de vida, donde vai sair a nova criao. O mar no se v ainda, mas a voz vem das profundas cada vez mais alta, e adivinham-se na espessura da neblina, entre velas despedaadas que se debatem nos ares, colunas de fantasmas que fogem na cerrao dispersa. S um, maior, teima, quer fixar-se, debate-se com a luz e desaparece enfim entre clamores no horizonte ilimitado. Uma paragem sufocada luz a jorros e o mar em ondulaes verdes, cada vez mais transparentes e com reflexos metlicos. Vejo agora o barco adornado com o vento, a vela metida nos rizes e os homens estendidos nos bancos. A gua diante de mim ondula como um vu difano, s frescura 7
e transparncia, s poeira verde que desmaia toda arrepiada... Fios delicados de algas biam ao sabor da onda e ao meu lado corre um veio mais escuro e profundo, quase negro, onde um bando de toninhas persegue, logo de manh, a manta da sardinha. Os grandes dorsos azulados irrompem das guas, afundam-se e tornam a aparecer e a reluzir ao longe, todos molhados, num resto de nvoa a dissolver-se... No h cor como esta verde, que hlito puro ao mesmo tempo; nem vida como esta vida, que surge intacta diante dos meus olhos deslumbrados. Reluz a esteira do sol, e o primeiro voo das gaivotas corta o cu. Um homem da companha, de p proa, procura a bia das redes com a mo sobre os olhos. O sota, debruado na amurada, deita a sonda. Quarenta braas, o mar do peixe. As bias!... exclama outro. Arreia! a voz do arrais. Solta-se a escota e a verga cai sobre os bancos. Os homens remam. Estamos vista da caa, que no Vero se deixa ficar no mar de um dia para o outro. Prepara-se a pol e um grupo proa tira as bias e depois os cadoiros. A ver a fortuna que Deus nos d. Ala! ala! As redes alastram o fundo e dois homens e o moo, de batedor em punho, deitam a gua fora. Olhem esses cabos! Atirem para c o bicheiro. Enrodilham-se no escuro dos fios coisas viscosas, debatem-se as pescadas e os ruivos. A todo o momento as atitudes, os gestos e os grupos se modificam. Cresce o alarido: Agora! agora! S o velho de cachimbo nos dentes golpeia, inaltervel, os peixes. Ala! ala! Eh rapazes! oupa! Pela borda fora, de navalha em punho, a companha marca os peixes no cachao e no lombo, e atira-os ainda vivos para a caverna. Cada pescador tem a sua marca: sal ao atravessar do rabo; sal e risco |; p de galinha ; galha, risco cortado na patola do rabo; duas galhas, dois riscos no mesmo stio; um lombo, o mesmo risco no rabo, da banda do lombo; dois lombos, dois riscos; do lado, um risco e dois riscos; um cachao, um risco no cachao; dois cachaos, dois riscos; uma cruz no cachao; um papo, um risco no papo; dois papos, dois riscos; cruz ao papo e meio rabo. As cortias das redes tm tambm os seus sinais, para o dono as distinguir: signo salimo; grelhas X grelhas e cruz; grelhas e um risco; grelhas e dois riscos; lampio e outros.1 Saltam no fundo as pescadas de lombo preto, os bonitos, as raias, os capates, e uma toninha reluzente que os homens matam com os bicheiros. So ruivos de dorso vermelho e doirado e grande cabeorra cartilaginosa, um peixe-rei e caes acinzentados. E algas, algas emaranhadas como cabelos verdes, nos peixes-sapos, na tremelga cor de vinho e na espalmada raia, que abre a boca sufocada; nos peixes-lixas cheios de piques e nas carapaas de caranguejos desajeitados, que correm com os ferres abertos no ar. E os homens, encharcados e de perna nua, continuam a meter as redes a escorrer para dentro do barco. O fundo da catraia escorrega cheio de gua, e daquela vida que se debate, misturada e calcada, cheirando a frescum. uma mescla de dorsos, de escamas, de peles com reflexos molhados, de tons escorregadios e metlicos das savelhas, de ventres esbranquiados dos linguados que se voltam e mostram uma pele quase humana, de viscosidades e de prata movedia. E as redes continuam a subir, e o peixe preso pelas guelras a debater-se enquanto os homens de navalha em punho o golpeiam. Alguns de braos arregaados e mos viscosas lavam-se no mar. Outros juntam-se ao moo com batedores deitando a gua fora, e proa separam os solhes, os
Devido a dificuldades do foro informtico, os smbolos apresentados no correspondem exactamente ao original.
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rodovalhos e o peixe chato do fundo, que vem envolvido em areia. Est a caa dentro. Quanto? Pra a dois centos. a pescada; o outro peixe no se conta. Vamos voltar bolina para aproveitar o vento. Outra vez a vela, e o rudo do mar manso que me embala. Atrs de ns fica uma larga estrada de prata. Na poalha de oiro que cai do cu, descubro um risco indeciso: a terra. Primeiro, nuvem distante. Um momento e acentuam-se os traos deslavados da areia. Mais cor agora... a terra, a princpio desvanecida e roxa e depois verde nos eternos pinheirais. Um areal doirado, um ponto branco que estremece o Senhor da Pedra. O vento enche a vela e, pouco e pouco, todo o panorama transparente sai do mar a escorrer tinta. No fundo ergue-se a costa com manchas escuras dos pinheiros, que no se distinguem ainda. Fasca envolta em nvoa a brancura das casas, e toda a larga paisagem renasce diante de mim com cores fracas de aguarela. A terra voluptuosa cabedelo de oiro, montes plidos, que saem da gua como seios entreabre-se para nos acolher. Eis os gigantescos braos de Leixes, to leves que a luz os trespassa, a penedia afiada de Carreiros, onde o mar escachoa, e o pontilho coberto de espuma. Ao sul Lavadores, o areal de Espinho, bruma afastada e cor de cinza. Cai a tarde, vamos entrar a barra. Quase toco de um lado no velho castelo rodo de salitre e do outro no bico do cabedelo, onde as gaivotas apanham o ltimo sol, com os ps metidos na gua. Vem a vaga e alastra-se, vai a vaga e a espuma referve na areia molhada, de um oca mais escuro. As mulheres correm pelo cais: Quantas dzias? quantas dzias? Mas os homens no respondem. De p, nos bancos, com os barretes na mo, entoam o Bendito. Escurece. o momento em que a luz desmaia, em que a cor transparncia e a natureza se esvai entontecida. As tintas so p de tinta, os montes so fantasmas, e o rio um grande lago azul. J sei: o mundo azul... Fios de oiro perdidos na Outra Banda estremecem e vo desaparecer. Nas lanchas arribadas alarido de poveiros. O grande pano sem vento cai sobre os bancos e o ltimo impulso que nos traz, no jorro da enchente, que entra pela barra cheio de espumas. O rio no tem consistncia voltou-se o cu, e ns vogamos numa poeira roxa que a todo o momento se transforma. Agora lils o mundo, violeta, um sonho que se some pouco e pouco e que a noite vai tragar. O peixe atirado aos montes para as pedras, e as mulheres da lingueta, os homens de dentro do barco, cada um segura pela ponta as suas redes, lavando-as no rio. Olho... A Outra Banda, violeta, desapareceu na noite. O rio azul, depois difano e cor de cinza, desfez-se em violeta. No cu violeta, um resto de poalha vai sumir-se na bruma, onde s a jia do farolim cintila. Os tons violetas afogaram tudo e a paisagem desfalece. O mundo no existe o mundo a luz.
DE CAMINHA PVOA A COSTA 10 de Agosto - 1921 Esta nossa terra portuguesa vai pela costa Li fora sempre de braos abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si. Comea em Caminha at ao forte de ncora de ncora ao extremo do monte da Gelfa, e dai ao farol de Montedor, em trs largas reentrncias, que tm como pano de fundo a cadeia azulada dos montes, de onde emerge um ou outro cone transparente... Todas as povoaes so viradas para o mar. O sol doira uma janela, uma eira, um espigueiro, o campo de milho alimentado a sargao que tem os ps na gua. E o biombo cor de lousa desenrola-se sempre ao lado do comboio... 12 de Agosto Caminha esta manh um sonho doirado que tenho medo se vai esvair na atmosfera. O rio azul, o grande monte fronteirio, a gua, o cu, no tm existncia real. Sobre o esplndido panorama difano e azul, sobre o cone imenso e compacto de Santa Tecla, sobre a povoao de Campozandos, sobre os pinheirais verdes e os campos verdes, sobre a gua que no bole, passou agora mesmo um pincel molhado em tinta acabada de fazer. A vila de ruas lajeadas e a igreja de pedra roda pelo ar salgado, com a Galiza em frente e o fio branco de espuma l para a barra, parece adormecida e encantada. Deviam-na deixar morrer intacta, sem lhe deitarem as muralhas abaixo, envolta no doirado que a traz entontecida. Arranco-me a custo contemplao e vou Rua dos Pescadores, que tm quase todos fugido para Manaus e para Santos. So casinhas muito limpas com um postigo aberto na porta. Para a vida do mar largo restam duas lanchas, uma delas quase abandonada. A gente que a ficou emprega-se no trapiche da Galiza ou na pesca de gua doce. A pescada falta: o mar d canejas (caes), sardas e as sarapintadas melcas. Num dia largam a caa, no outro vo busc-la. Existem ainda alguns barcos de faneca, e os que empregam no rio meias-saveiras, de proa alta, e popa cortada os pescadores do svel, do salmo e da tainha, que acode ao lume de gua em cardumes e fasca como prata no azul. A tainha e o robalo apanham-se ao anzol; com os quartos, que se colhem para dentro do barco, e com os algerifes, que se arrastam para terra, pesca-se o svel e o salmo. Cuido que esta vila foi sempre mais importante como povoao de marinheiros que de pescadores. L est na igreja o altar do Senhor dos Mareantes, que o atesta com os ingnuos votos barcas, palhabotes, navios, iates, Milagre que o Senhor dos Mareantes fez a Fulano, etc. Agora Caminha adormecida vai morrer. No tem movimento. No passa ningum nas ruas. As casas esto desertas. S num recanto da praia alguns homens afadigados constroem a toda a pressa um navio para levar o resto dos habitantes para o mar. Cheira a breu e a pinheiro novo. Os carpinteiros de machado descascam o ltimo mastro. Martelam-se as cavilhas. embarcar! embarcar!... 13 de Agosto 10
Daqui at Pvoa de Varzim a povoao mais importante de pescadores a Lagarteira (ncora), na segunda reentrncia da costa. Deito-me a p pela estrada, atravs do lindo pinheiral do Estado, que, de cismtico, me lembra Antnio Nobre, e fico perdido de sonho no Moledo. Em 13 de Agosto de manh h uma ligeira nvoa, um nada, um bafo. So nove horas. O azul entontece. Perco a linha da paisagem, o verdeescuro do pinheiral que vai at ao mar, e tudo isto se me afigura uma larga concha azul, formada pelo mar azul e pelo cu azul, com uma borda de areal onde alguns velhos moinhos em fila batem as asas para meu encanto. O forte da Senhora da nsua fica num extremo, com o monte de Santa Tecla, que saiu agora do mar a escorrer, e no outro extremo da curva, onde a amplido do azul infinita, a penedia a desfazer-se em espuma... No posso. Por mais que queira no posso arredar-me daqui, com a cabea estonteada. Fico. E s ao fim da tarde que consigo chegar a ncora, com dois jactos de azul metidos pelos olhos dentro. Logo hoje, at muito tarde, no se apaga do cu um doirado de iluminura, que se prolonga at noite velha e morre com aflio... 14 de Agosto Perto de ncora fica a povoao de Gontinhes, de pescadores e de pedreiros, os pescadores ao p do mar, os outros l em cima no Calvrio, unidos pelo caminho da Lagarteira, torto e lajeado. uma aldeia pobre e humilde, pobre e doirada. Do escadrio descobre-se o panorama, a amplido do vale, o morro compacto que entra pelo mar e o fio manso do rio... Aqui o sonho no azul, o sonho verde. ao mesmo tempo esquecido e verde, doirado e verde. Tambm a vida baixinha: so as mulheres que lavram e as vacas que puxam os carros. Os homens foram por esse mundo rachar o lajedo e afeioar a pedra. direita, encostado ao forte de Lippe, que forma o outro lado da bacia, com o portinho e o varadouro, ficam as casas dos pescadores. Mais um momento... A custo me arranco deste sonho verde, primeiro escuro nos montes, depois pacfico no vale, e que to bem se liga com a humildade da terra e o azul do mar infinito... Falem mais baixo; em cada paisagem h sempre um deus escondido... Deso, atravesso a aldeia, dou com um castanheiro que, no podendo crescer em altura, estendeu os braos cobrindo todo o adro. Fico a contempl-lo. Quando o deitarem a terra acaba-se a poesia deste stio to lindo para envelhecer. Tocam o sino para a novena. Ouo um momento os passos dos vivos e dos mortos... Em todas as aldeias que conheo, e que deixo com saudades, o que idealiza o monte bruto e espesso, a vida rude e o stio agreste, sempre a igreja, a torre e a cruz. A parte dos pescadores no areal difere completamente nos tipos, nos costumes e nas casas, naturalmente noutros tempos barracas de madeira construdas sobre estacas. H quatrocentos pescadores pouco mais ou menos, e cento e trinta e dois barcos varados na praia, todos pintados de vermelho. So masseiras, de fundo chato, tripuladas por dois homens, volanteiras ou lanchas de pescada por doze homens, e barcos de sardinha, que levam cinco ou seis peas de sessenta braas cada uma, e quatro homens. As redes tm estes nomes: peas as da sardinha, volantes as da pescada. Chama-se galricho a uma espcie de nassa com que se apanha a faneca; rasto ao camaroeiro patelo rede que colhe o caranguejo ou mexoalho; e rasco da lagosta. As redes da sardinha so do mestre, e as da pescada dos pescadores. Os quinhoes dividem-se conforme o peixe. No Agosto comea a faina do patelo, assim se chama ao mexoalho ou pilado, que se deita vivo terra para estrume. Junta-se no mar uma esquadra de barcos, que vm da Pvoa, de Viana e de Caminha; junta-se na praia uma fiada de carros de todas as 11
aldeias, prximas ou longnquas, que o transportam para o interior das terras. O areal est alastrado de patelo que remexe. Vende-se a lano ou a cesto, que leva cada um dois alqueires, e custa trs tostes. E por toda a costa neste tempo vai a mesma agitao na apanha do sargao. reentrncia que forma a bacia de Ancora e que termina pelo monte da Gelfa com outro forte de Lippe arruinado, segue-se a que vai at salincia do Montedor, com o farol que se conjuga com o de Vigo e o de Leixes. O mar escachoa em toda a vasta praia eriada de rochedos onde incessantemente homens e mulheres apanham, secam, dobram em mantas, carregam nos carros, a dorso de jericos, ou simplesmente cabea, o sargao e as algas, que, com o patelo, so o alimento e a fartura destas terras. As mulheres, de gadanho e ancinhos, de saia ensacada e perna a mostra, apanham as algas na flor das ondas ou no fundo das poas quando a mar vaza; rapam-na das pedras esverdeadas; estendem-na no areal a secar ou despejam-na nos carros enquanto os bois pastam as ervas rasteiras e amargas que crescem beira-mar, salpicadas de espuma. Mas de Montedor que melhor se abrange este quadro cheio de movimento e de luz, e ao mesmo tempo o panorama, azul para o norte at Galiza, verde para o sul at Viana. Montedor uma povoaozinha criada ao ar do largo com eiras de palmo e seis espigas amarelas a secar nas eiras. A paisagem imensa a cada hora muda de cor, e o mar infinito acompanha ao longe esta sinfonia maravilhosa. Se eu fosse pintor dava isto com trs brochas cheias de tinta uma pincelada, maior, para o mar azul que no tem fim, at linha doirada do areal outra para o mar verde e raso dos milharais, na larga plancie que vai de Montedor at Viana, outra enfim verde-escura para o biombo recortado que cinge esta faixa desde Caminha foz do Lima. Por fim dois ou trs toques para os montes ensaboados, muito ao longe, e um outro, lils para um ponto que tremeluz e talvez Esposende, ou talvez no exista... Fim de tarde. a hora em que anda errtica no sei que alma extasiada, e os montes se tornam transparentes como nuvens. At aquele morro espesso empalidece e desmaia... Mistura-se p verde l longe na gua, e um vulco de fogo entre nuvens torna o horizonte apotetico. 31 de Agosto Deixo esta manh Viana e os incaractersticos pescadores da Ribeira e sigo pelo pinhal de Darque, Anha, S. Romo de Neiva, para Esposende, com o rio esquerda, por terras vermelhas, donde irrompem alguns tufos de pinheiros majestosos como templos. Ao longe a serra de Arga e as torres de S. Silvestre... Ficam-me na retina uma igreja branca, a de Darque, recortada no cu, e a verde solido dos pinheirais, que associo sempre ideia do mar largo. Pela estrada incaracterstica acompanho carradas de sargao e de patelo, at que chego a Belinho, onde o grande poeta exilado bate as portas na cara do mar que detesta depois de atravessar um fio de gua, com o morro selvtico do Castelo de Neiva em frente. De Belinho para S. Bartolomeu j me envolve a poalha da tarde e depois uma luz violeta nas Marinhas. Tenho de um lado os montes escuros e do outro o mar verde com o resplendor do cu em cima. beira da estrada, branca de poeira, movem-se ainda trabalham noite e dia alguns grupos de moinhos. E esta engenhoca seduz-me: anima a paisagem e tem alguma coisa de navio e de brinquedo de criana. Faz-se tarde. No fundo mais negro as casas, mais plidas, embranquecem: s o milho fica loiro e o cu fica doirado. Logo adiante o areal africano da feia Esposende, terra da beira-mar, de onde no consigo ver o mar, terra de tristes pescadores. As redes de arrasto deram cabo do peixe matando a criao. S resta uma catraia para a pescada, 12
alguns batis para a raia, com redes de malha muito larga, e diferentes barquinhos para a pesca do rio, que d o svel, a tainha e o robalo na vazante, e a solha que se fisga com a petada nos fundos de areia mais escura. 3 de Setembro Doutro lado do Cvado Fo, onde surpreendo de passagem uma linda alameda de rvores, e logo a seguir a estrada que se deita a caminho entre campos para a Pvoa de Varzim. Nestas terras rasteiras sente-se sempre a atmosfera martima. O milho anainho e as rvores agacham-se para suportar o vento. Alm, pelo areal, fica a Aplia; mais longe, atravs dos eternos pinheirais, a Aguadoura, por fim Avelomar. Em todo o longo percurso da estrada s encontro poveiras que acarretam sardinha. A Pvoa fornece e alimenta todas estas povoaes. Descalas, de saia arregaada, correm num passo miudinho, ajoujadas sob o peso... J me aproximo outra vez do mar. Sinto-o, vejo-o. Um rasgo no panorama e l est o azul vivo, o azul esplndido. Respiro-o. Atravessando Avelomar, estou na Pvoa de Varzim. Manh. Redemoinho de nvoa l no largo; vo chegar as lanchas e os batis. Uns atrs dos outros bolina j os distingo muito ao longe. No areal todo de oiro secam redes encascadas, e entre os batis varados formam-se grupos de mulheres que os esperam. Outras correm. Puxam pelos cabos das lanchas como homens ou carregam a caa que sai do cavername a escorrer. Dois, trs barcos j na praia... Uma companha encosta os ombros ao costado de uma lancha e oupa! empurram-na para cima. Mais batis: a fora da sardinha despejada no areal. Mulheres acodem, o movimento aumenta e os gritos, os gestos, as atitudes imprevistas. Com os dedos metidos nas guelras algumas arrastam os caes sarapintados, as raias espalmadas, os congros ferozes, com a cabea aberta pelo machado para no morderem a mo que os apanha. Um monte de raias, peles escuras e viscosas misturadas com areia, outro de peixessapos de goela voraz, s boca e dentes, e ainda outro de sardas mosqueadas. Treze vintns! catorze vintns! o leilo. A berraria redobra. Neste grupo confundem-se as vozes. Cheira a mar, a peixe e a fartum, e as mulheres curvam-se sobre a pesca e regateiam-na, enquanto em baixo os barcos despejam mais peixe vivo, toninhas, gorazes e a sardinha que comea a alastrar de prata todo o vasto areal. Duas mulheres, de perna nua e saia arregaada at ao joelho, engancharam um croque na boca de um peixe-co e arrastam-no a custo para cima. Mais peixe o fundo do mar misterioso revelado, de mistura com a areia, e algas, gritos e alarido. Uma lancha mete o mastro. Dois moos carregam um cabo, enfiado num pau atravessado nos ombros. Redemoinhos negros de mulherio se deslocam. Trs tostes! seis tostes! Reparo nos tipos: so feias e espessas, de pernas como trancas, todas vestidas de escuro; velhas com uma saia pelas costas cheirando a fartum de sardinha, e metendo dinheiro nos bolsos misturado com areia; arrostalhadas no cho, separando o peixe com as unhas gordurosas; homens de camisola e cala, secos e to entranhados do salitre como os pranches das lanchas de madeira por pintar. Acol dentro dos batis os pescadores sentaram-se nos bancos e cada um tem um pequeno ao colo: entregaram-lhos as mes enquanto vendem. J outros barcos se preparam metendo as redes, e a grita e a agitao aumenta, o alarido aumenta. a sardinha que continua a despejar-se pela praia e que se vende a lotas de um a dois milheiros, cada vez mais disputada. Levam-na em canastras, carregam-na nos carros, compram-na as peixeiras j prontas a partir e a aprego-la. H a gorda e enorme que fasca como prata, e que logo ali disposta, cabea para um lado e rabo para o outro, camada de sal e camada de sardinha nos cestos canastreiros; h a mais moda e pequena, 13
que se vende aos montes para a gente pobre, e a despedaada e calcada que, com as tripas e as cabeas, se aproveita para estrume. Cheira que tresanda. E mais gritos, maior balbrdia... Seis tostes! um quartinho! Estripam-na, lavam-na em gua do mar, dividem-na em grande, mdia e mida. Mulheres a escorrer salmoura carregam-na cabea e correm para a fbrica com os filhos nus agarrados s saias... O largo quadro de cor quase uniforme hmido e salino, oca na areia molhada, escuro nos vestidos e figuras, esverdeado no rolo das ondas que espumam e o enchem de um p tnue l para o fundo. Mas todo o interesse vem do movimento e da expresso, da pele dos peixes que reluz, dos tipos que no cessam de agitar-se no amplo varadouro em ocasies de pescaria. Mais batis vo largar e outros chegam e amainam as velas no mar cada vez mais azul, de onde brota toda esta vida surpreendida e arrastada pela areia... 20 de Setembro S tendo a morte quase certa que o poveiro no vai ao mar. Aqui o homem acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se de salitre. Desde que se mete terra, o poveiro modifica-se: perde em agilidade e equilbrio, hesita, baloua-se, no sabe onde h-de pr os ps. Conheo esses homenzarres broncos e espessos, de cara rapada ou suas, barrete na cabea e cala branca de l, desde que me conheo. Iam dormir Foz dentro das lanchas e todas as tardes o moo passava minha porta com o barril de gua cabea. Dormiam no rio cobertos com a vela, e primeiro que pregassem olho era um falatrio que se ouvia em toda a vila. Minha me, quando as criadas falavam alto na cozinha, repreendia-as sempre nestes termos: Ento isto aqui alguma lancha de poveiros? O poveiro no usa faca, mas terrvel e certeiro com pedras na mo. Ou porque lhe cortassem a caa, estragando-lhe as redes, ou porque andassem de rixa velha, havia s vezes no alto mar verdadeiros combates entre poveiros e sanjoaneiros. Os barcos avanavam uns para os outros fora de remo e a pedrada fervia. Os da Pvoa, que so, creio eu, os nicos pescadores que usam pedras em lugar de chumbeiras, levavam sempre a melhor. s vezes chegavam abordagem, de remos no ar, numa algazarra feroz, e havia feridos e at mortos. O poveiro ignora tudo fora da sua profisso, mas essa conhece-a como nenhum outro pescador. Sabe onde est o banco da sardinha pelo voo do mascato, que l do alto cai a prumo sobre o cardume; quando ela anda terrenha, isto , perto da costa, e torneira ou flor das guas. Sabe a palmos o mar da Cartola que d a pescada, o da Ferralhuda, que d a raia, o da Gata, que d raia e cao, o Bianco, o Lameiro, etc. Acima de tudo est Deus, e para eles o Senhor do Mar que d a fome e a fartura. Na Pvoa h o homem livre e o homem empregado, isto , o que traz redes de outra pessoa. O homem livre leva para a pescada trs cartis, que fazem uma rede; o homem empregado leva cinco cartis; o mestre oito a dez, sendo trs para o barco, trs para ele, uma rede para a lancha e outra de ferrar a bia. A lancha leva tambm uma rede da Senhora, a rede de mais a mais, a rede de beber e outras. No batel de sardinha o pescador leva duas redes. Quando o Inverno grande, a misria obriga-o a internar-se, em bandos, de barrete na mo, pedindo pelas armas do Purgatrio. Quem ? o poveirinho, o probinho do pescador. que em todas as terras beira-mar o homem acumula, lavrador e pescador ao mesmo tempo. O poveiro no, tem de seu o areal e o mar. E esse mesmo lho disputam. Foi sempre um eterno explorado pelo fisco, pelos regates, pelos 14
homens de negcio e por ltimo tiraram-lhe o areal, que era a nica coisa em que ele fazia finca-p para os seus varais, para as suas velas, para os seus costumes. No mar, com a rede de arrasto, mataram a criao. Vi eu muitas vezes os vapores deitarem fora sacos de peixe por criar, que a rede de malha mida rapava nos fundos. Conseguiu-se assim destruir uma comunidade com carcter e vida prpria. O poveiro era um tipo com individualidade, como o soldado e o lavrador so tipos criados custa de acumulaes seculares. Estragmo-lo como estragmos as nossas vilas, as nossas aldeias, os nossos costumes, para os substituirmos pela fealdade e pelo incaracterstico horror. Todas as povoaes de pescadores que conheo esto arruinadas. Faamos as contas: os de Valbom mortos, os de Esposende mortos; mortos os da Foz; os de Mira com quatro companhas em vez de quinze, e os da Pvoa, que perderam todos os seus costumes, arruinados e fugindo para o Brasil e para a frica. E por toda a costa portuguesa a pesca rareia. Como temos o condo de estragar tudo, empobrecemos as populaes da beiramar, para enriquecer meia dzia de felizes. Cultivar o mar uma coisa ofcio de pescadores; explorar o mar outra coisa ofcio de industriais. Como vivem estes homens? Agrupam-se no extremo sul da povoao. Roupas a secar, interiores que so pocilgas, casebres com uma porta e uma janela, e alguns s com uma porta e um postigo aberto na porta. Trapos, velhas redes, raias escaladas ao sol enfiadas num pau. Ao lado apodrecem barcos e estende-se o sargao. As mulheres escorrem salmoura e por toda a parte h restos de sardinha e filharada. A vida pulula, a vida prdiga e incessante. Dentro dos casebres uma salinha com uma dependncia, a camarata, onde dorme o casal, e o falso, para guardar o que ele tem de mais precioso, as redes. A caixa, alguns bancos. Debaixo da cama o bero dos filhos e panais velhos. A cozinha mete medo com caldeira de cozer a casca, o forno e os potes de ferro. De noite tudo isto alumiado pela luz da graxa de peixe, que enfuma as paredes e cheira que tresanda. Eis como vivem estes homens. Como morrem dizia-o, muito melhor do que eu, o velho cemitrio da Pvoa, que j no existe. Ia-se passando de tmulo em tmulo e liase sempre: Antnio Lib, morto no mar; Francisco Perneta, morto no mar; Jos Mouco, morto no mar... De onde a onde havia uma redoma de vidro com alguns ossos brancos e mirrados que tinham dado costa. E depois, seguiam-se os letreiros sempre! sempre! Domingos Reigoia, morto no mar; Joaquim Monco, morto no mar... Todos eles vivem no mar e morrem no mar.
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PEQUENAS NOTAS PORES DO SOL Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pr do Sol beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. um espectculo extraordinrio. H-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. H-os trgicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte mm um ar de ameaa, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, oeste ar to carregado de salitre que toma a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ... U m poente desgrenhado, mm nuvens negras l no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do forte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bia nas guas e no quer morrer... H na areia uns charcos onde se reflecte o universo o cu, a luz, o poente. No bolem e a luz demora-se a at ao anoitecer. E como o poente oiro fundido sobre o mar inteiramente verde, que a noite vai empolgar no tarda, os charcos, entre a areia hmida e escura, teimam em guardar a luz concentrada e esquecida. Em todo o dia, o mar no se viu nitidamente. Nvoa esbranquiada, grandes rolos de poeira e sol misturados, gua de que se exala um hlito verde envolvido nas ondas. Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinria. Agora este, teatral, com largas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cengrafo para uma apoteose, e outro que no sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efmero, um nada de luz no cu efmero e a montanha roxa ao fundo prestes a desvanecer-se... Agora prata, daqui a pouco oiro, e quando o Sol desaparecer de todo, ainda o horizonte fica por muito tempo iluminado. Oiro desvanecido e p de gua que ascende do mar. Um pouco de nvoa e dois jactos projectados no cu verde e oiro, oiro e verde. Esta tarde, o Sol pe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balo de fogo num oceano revolto, at que entra numa grande nuvem espessa com interstcios de fogo e explode, iluminando o espao e a gua cor de chumbo. Este faz sobressaltar e sonhar. Trs horas da tarde. Cu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O Sol desce pouco e pouco, majestoso e sereno, no cu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que comea a meus ps, na espuma ensanguentada, e chega ao Sol. meu amor, no acredites na vida mesquinha, no duvides: d-me a tua mo e vamos partir por essa estrada fora direitos ao cu! 16
O NEVOEIRO Sol e azul e depois nvoa. s vezes comea em Agosto, outras em Setembro. Uma barra ao longe anuncia-a, uma barra que cresce em fumarada sobre a terra, ou que se dispersa correndo para o sul, em labaredas sobre o mar esverdeado. H outras nvoas no Vero que se descerram lentamente como cortinas, ficando o panorama lmpido como uma aguarela acabada de pintar. Outras tm lguas de extenso e levam dias a passar. E o mar exala um cheiro mais vivo quando o nevoeiro parece dissolver-se, para logo voltar mais denso e compacto. s vezes v-se entre a neblina um ponto da costa cheio de luz, um rasgo no mar, uma nica pedra iluminada entre o cu infinito e o mar infinito. Tenho visto tambm umas nvoas esbranquiadas que ficam l para muito fundo embebendo-se de luz. Nvoa, um pouco de sol e brancura, tudo emborralhado. A onda vem de longe, irrompe da nvoa, e s se vem os grandes rolos brancos revolvidos de espuma muito ao perto quando se despedaam. Em Sagres assisti a um nevoeiro extraordinrio. Aparecem primeiro uns flocos no cu, e a luz tomou-se logo mais azul, pegando azul pele, molhando de azul as mos estendidas. Depois a nvoa, que no Vero dura segundos, doirou e subiu ao ar, tornando o horizonte mais ilimitado e fantasmagrico... As nvoas anunciam o Inverno. Comeam a vir os nevoeiros compactos, que se metem pelas narinas e cheiram a mar e a fumo. H-os que tm lguas de espessura e levam dias a passar, coortes desordenadas de fantasmas enchendo todo o horizonte. O sino tange. No se v palmo diante do nariz. L fora os barcos, como cegos, s se guiam pelo som. 0 mar um misterioso fantasma que os envolve. Cerrao cada vez mais mole e espessa... S a voz se ouve, e o lamento parece vir de mais longe e de mais fundo. s vezes adelgaa-se um pouco na costa, e grandes rolos de fumaceira crescem do mar sobre a terra. o Inverno que vem a. A voz imensa tem j plangncias de dor desabar infinito de lgrimas. De sul para o norte as nuvens correm sempre, coortes sobre coortes que saem das profundas e avanam, deslizam sobre as guas sem rudo, enchendo o cu de farrapos enormes, de fantasmas criados naquele mar salgado e que se seguem em tropel num galope monstruoso para uma grande batalha desconhecida. E de quando em quando o sino chama, chama sempre pelos homens perdidos na nvoa espessa que leva dias a passar. REDES Na Foz so os pescadores que fazem as redes, sentados no areal, com a primeira malha metida no dedo grande do p, na mo direita a agulha com o fio e na mo esquerda o muro. As melhores redes eram as de ticum e o melhor ticum o que se vendia em Lordelo. As redes so muito variadas. H as redes da pescada; as robaleiras para o robalo na restinga e fora da barra; os quartos para o svel; e para a solha que vive na areia e cor da areia, uma rede especial, a feiticeira, com duas ordens de malhas. A rede, quando vem do mar, lavada; seca e encascada. Depois remenda-se e mete-se nos cestos. H 17
tambm diferentes linhas e espinis, para a faneca, para o robalo, que gosta das guas remexidas e dos stios onde rebenta a onda, para a enguia, que to voraz que nem precisa de anzol, apanha-se com engodo, e at para o congro, no mar alto, tendo-se o cuidado de levar um machado, porque esses peixes, quando grandes, so terrveis, e mesmo dentro do barco, levantam-se para os homens como feras. Barcos, houve na Foz catorze catraias (j no h nenhuma), batis para a sardinha, que levavam quatro homens e seis peas, botes para a faneca e gamelas para o servio do rio. Tenho por estas quatro tbuas com o fundo chato uma especial predileco. Foi nelas que aprendi a gingar, o que se faz s com um remo e certo movimento de pulso, e foi nelas tambm que aprendi a nadar fora, porque se voltam na ressaca com uma extrema facilidade. Quanto a quinhes, era assim: vendido o peixe, metade do dinheiro que a mulher do pescador ganhava com a canastra tomava conta dele o arrais, que o dividia em quinze partes para os homens, uma para o moo e duas para a embarcao. Assim, at os que por sorte no apanhavam peixe tinham um quinho garantido do mealheiro comum. Ficava ainda uma pequena parte nas mos do arrais para o tempo de Inverno, quando se no podia ir ao mar. PRAMOS Estava na carreira de tiro em Esmoriz. No via o mar, mas sentia-o no peito dilatado. Perto de mim, uma moita de pinheiros novos; e as agulhas escorriam molhadas de fresco. Uma nora, um choupo. Ao longe, as barracas de madeira agrupadas Pramos. Uma gaivota pairando sobre um charco... Para o outro lado, campos lavradios com milho rasteiro que sabe a ar salgado, casas de lavradores perdidas entre sebes, de telhados muito baixos onde secam abboras amarelas. Aqui, o pescador vive em barracas de madeira que tm o aspecto de povoao lacustres. Em certos dias ia-se o camaroeiro e a este sinal, esperado no interior das terras, comeam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar, as pesadas juntas de bois levadas soga pelas moas. O lavrador associa-se ao homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede que se usa para estas bandas e que as bateiras lanam gua. um espectculo extraordinrio ... Isto est de todo apagado nos meus apontamentos, mas ainda hoje, depois de tantos anos, tenho a impresso da paisagem de areal e pinheiros, do hlito azul matutino molhando a vegetao e da claridade hesitando em pousar e o sol em aquecer. H manhs beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais nada. Um pouco de tinta e frescura. A prpria luz molhada estremece. O doirado tem muita gua e desbota. Uma gota de azul basta para o mar e o cu. E a manh, trespassada e a escorrer, nascida e hesitando, faz medo que se desvanea como fantasmas de manh. NO CABEDELO O Cabedelo para mim era o deserto cheio de prestgio e de aventuras... Era no Cabedelo que tomvamos os melhores banhos, deitados na areia, deixando vir sobre ns a vaga num rodilho de algas e espuma. Andar um momento envolvido na crista da onda, ser atirado numa sufocao sobre a areia, correr de novo para o mar, direito 18
vaga que se encapela l no fundo, formando concha, outra vez aturdido e impregnado de uma vida nova; e depois procurar, a escorrer, um cncavo quentinho de areia que nos sirva de abrigo contra o vento e secar-se a gente naquele lenol doirado uma das coisas boas da terra. E outro prazer simples e extraordinrio E ir descalo pelo grande areal fora com os ps na gua. A onda vem, espraia-se, molha-nos e salpica-nos de espuma. Calca-se esse mosto branco e salgado, que gela e vivifica, e caminha-se sempre ao lado dos sucessivos rolos que se despedaam na areia. Ao longe o mar chapeado de placas movedias... A onda vem, cresce e, antes de se despedaar em espuma, o sol veste-a de uma armadura de ao a reluzir. H-as de um esverdeado de alga morta, h-as que se derretem e fundem em torvelinhos de branco e h-as que recuam e se enovelam noutras ondas prestes a desabar. Mas h umas, esplndidas, que vi em Mira, ao pr do Sol, quando o vasto areal fica todo ensanguentado. A onda forma-se e corre por aquela magnfica estrada que vem do sol at praia, ganha primeiro reflexos doirados na crista e depois, quando se estira pelo areal molhado, fica cor do vinho nos lagares. Outras vezes percorramos o Cabedelo a p como exploradores. H l canaviais, poas de gua azul e polida, rochas luzidias por onde escorregvamos, peixes nascidos que procuram o refgio das pedras e a gua aquecida para se acabarem de criar, caranguejos nas fisgas e, na vazante da mar, grandes lagos que navegvamos ao acaso, deixando o barco ir toa e encalhar no areal... O Cabedelo produz, alm das canas, uma espcie de cardo, plantas rasteiras e humildes de folha dura, que do uma flor pequenina e vermelha, outras que parecem os chapotos que nascem nos velhos muros, e ainda outras mais pobres com a folha em escama pela haste acima. Estes vastos areais, revestidos s vezes de cabelos de oiro que seguram as dunas, esto todo o ano a concentrar-se para em Agosto sair daquela secura e do amargo do sal, um lrio branco que os perfuma, dura algumas horas e logo desaparece.
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A PESCA DA SARDINHA Foz do Douro, Dezembro - 1900 Manh. O trao do Cabedelo separa o azul do rio do p verde do mar. O hlito salgado que respiro renova todas as tintas, e a Outra Banda, como um biombo verde, emerge no fundo do quadro. Azul mais azul ainda... Vejo, agora que a virao do norte arrasta para o largo os ltimos farrapos de neblina, os barcos da sardinha que h mais de um ms largam todas as noites para a pesca. A safra da sardinha comea no ms dos Santos e acaba na Senhora da Guia. O batel, trs homens e outras tantas redes. So s centenas, uma frota que distingo pelas velas para l do areal, e que, no azul desmaiado e na nvoa a dissolver-se, parecem suspensos no ar. Todas as tardes entram a barra uns atrs dos outros, em fila, para despejarem nas linguetas viscosas o peixe mido que salta aos montes nos cavernames. Duas, trs horas... o momento em que as mulheres saem das tocas: as Bexigas, a Papeira, a Maria da Viela, que passam a vida pelas estradas com a canastra cabea e o p descalo; as matosinheiras, as de Afurada, quase sempre de luto, porque o mar lhes leva os homens e os filhos. Conheo-as todas de pequeno. De Aveiro a Viana, do interior das terras, das aldeias solitrias do Douro, entre paredes temerosos e compactos (l em cima reluz uma estrelinha) dos stios perdidos de Trs-os-Montes, desce tambm neste tempo para a costa o formigueiro humano que vem atrs do apresigo para o Inverno, do negcio que os tenta, e da fartura que o mar prodigaliza. No h terriola de seis cavadores submersa pelos montes, onde a sardinha no chegue viva da costa. nesta poca que reaparecem os bandos de homens magros e tisnados, as mulheres descalas com a saia pela cabea, para disputarem a quem mais d os lotes de sardinha dispersos no areal. Carregam-na os almocreves nos burros canastreiros e os do Douro nos barcos rabelos de grande vela latina, com o arrais de p sobre a gaiola de pinho descascada; os vareiros s costas, com a vara atravessada no ombro e um cesto em cada ponta, os regates que a acamam em gigos ou a salgam no fundo das barricas, as sanjoaneiras e as vareiras que de perna mostra e a canastra cabea correm pela estrada ribeirinha, a caminho do Porto: De Espinho viva! E at os famintos esperam os dias em que ela tanta que se d a quem a leva, fazendo-se o quinho dos pobres. Os grupos discutem na lingueta, as mulheres apregoam, e chegam mais batis que despejam nas pedras os montes viscosos de prata. Quem d mais? quem d mais? So seis horas. Reparem: desmaia a tinta azul e oiro da Outra Banda. O p verde do mar sobe outra vez em neblina. Ouve-se o chapinhar das redes que se lavam e o grasnido das gaivotas assustadas. As mulheres gritam. Sobem os lanos. Duas engalfinhamse. Os almocreves caminham frente dos burros inalterveis. As vareiras carregam pressa as ltimas canastras. J um fio trmulo de lua vem reluzir na gua, e depois, nos peixes por vender. Biam ainda restos de sol esquecidos na lividez do rio, quando um fogaru se acende e aviva as primeiras sombras, num claro que seria um achado para um pintor de gnero... Baleal, Setembro - 1920 H manhs em que a poeira do mar se mistura poeira azul do cu. Um hlito fresco e hmido, uma exalao viva e salgada, vem do largo e das profundas de toda 20
essa constante agitao, que nos d um sentimento de vida ilimitada. Sai dos farrapos da nvoa, dos laivos onde biam espumas, dos redemoinhos lvidos de clera. A esta hora o dia est de chumbo. No horizonte a claridade debate-se para irromper, e s ilumina uma parte do mar em fuso. No se v ainda a costa. A nvoa flutua em farrapos, e de repente, l do fundo uma espessa fumarada cresce sobre a terra. S muito longe uma ndoa azul esparralhada flutua superfcie das guas... Os barcos formam circulo para alm da baa, entre as Berlengas e a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se preparam para erguer a armao da sardinha uma grande rede com um saco o copo. A sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os pescadores com a xalavara para dentro dos barcos. uma onda de prata que sai da tinta azul. Cheira a algas e a mar vivo. Impregna-me e trespassa-me. Deixa-me sal nos beios. Oito horas. Mais uns minutos e descerra-se a cortina vaporosa: dissolvem-se os ltimos fantasmas e o panorama surge como uma apario do fundo do mar. Ei-lo diante de mim. Primeiro a costa, ao longe, violeta e vermelha, mais longe roxa e difana, mais longe ainda perdida na bruma. Aqui e ali uma aldeia ao sol o Ferrel, Casais de Martim Mendes, a Atouguia da Baleia, e no espinhao dos montes a linha azul dos pinheiros. No fundo Peniche e a formidvel cenografia do Carvoeiro, que entra pelo mar dentro; direita as Berlengas, que pelo recorte e pela cor parecem duas nuvens pousadas no mar; esquerda as terras cortadas a pique. Uma grande rocha no mar, o Baleal, ligada terra por um fio de areia, com uma baa ao norte e outra ao sul. Distingo-lhe as pedras cor de giz, outras avermelhadas, outras rodas e estranhas, que as vagas salpicam de espuma... Tudo isto feito de p, e sempre duas tintas predominando, a do mar azul e a do cu azul, uma esverdeada como uma soluo de sulfato, a outra infinita e etrea. Ala! ala! Do fundo do mar continua a sair a sardinha, da onda cobalto a prata reluzente. Os homens gritam. a gente morena de Peniche ou do Ferrel que acumula, e que, terminada a vindima, e recolhido o mosto nas cubas, vai, com as mos ainda tintas do cacho, apanhar a sardinha, que salta ao lume de gua, a sarda e a moreia, ou com o bicheiro fisgar os polvos, que se escondem nas pedras. Ala! ala! Isto dura horas, dura o dia. No regresso j o sol desaparece atrs de Santa Catarina, e a luz confunde-se com a luz do luar que tremeluz na esteira mgica do barco. Cintila e some-se o farol das Berlengas, e mais longe reluz o do cabo, que fixo. O mar exala uma luz prpria e tem outra cor. O mar azul ou verde? Perto de mim tem todas as tonalidades do verde, verdes-escuros quase negros, verdes de podrides, esverdeados com restos de algas, espumas e babugens, e ao longe empalidece e sonha, desfeito em poalha quase etrea. H tons violetas esparsos, e tudo para mim se confunde, sonho e realidade, quando a voz plangente se transforma em voz clamorosa: ao aproximar-nos da costa o grande coro de lamentos sobe cada vez mais alto... Apenas arrematada em Peniche, os almocreves levam a sardinha pela estrada, que atravessa os campos areentos, os salgados, a Atouguia da Baleia, a Serra dEl-Rei at bidos e S. Mamede. Nesta poca um vaivm incessante de cargas: o pavimento arruinado cheira a salmoura. Sai pela via frrea. Cada vez se inventam mais aperfeioados modos de a destruir, redes, aparelhos, armaes. Nem sequer a desviam do seu caminho. s vezes os pescadores hesitam em lanar a caa diante do banco formidvel que, como o destino, nenhuma fora modifica ou altera. A manta obstinada e cega leva e destri-lhes as redes, e segue o seu roteiro, para, depois de desovar na costa, voltar ao largo quase intacta, apesar de todas as 21
devastaes. O cardume, que foi fora e vida misteriosa, que formou um s corpo e passou obedecendo no sei a que instinto ou a que inteligncia superior, cai sobre Lisboa como vem de Setbal, do Algarve e das praias ignoradas de toda a costa lusitana, das grandes armaes e dos pequenos barcos. espalhada pelo pas. Comem-na assada na brasa os trabalhadores da estrada e os homens esfaimados do campo com um pedao seco de broa. De Inverno seca, mas pelo S. Joo pinga no po. No norte o lavrador espera-a para o jantar: o seu melhor conduto. Os pobres fregem-na numa gota de azeite, e salgada ou saltando no cesto, fresquinha da barra, viva de Espinho, gorda, antes da desova, sem cabea e escruchada, com a guelra em sangue, ou laivos amarelos da salmoura, constitui um manjar para pobres e para ricos. Entra em todas as casas. H quem goste dela de caldeirada e quem a prefira simplesmente assada deixando cair no lume a gordura que rechina. H-os que s saboreiam a de lombo gordo e preto, e os que acham muito melhor a mida, que se chama petinga e que se devora com escama e tudo, afirmando com uma convico respeitvel que a mulher e a sardinha quer-se da pequenina...
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A RIA DE AVEIRO A PAISAGEM 21 de Julho de 1920 A ria um enorme plipo com os braos estendidos pelo interior desde Ovar at Mira. Todas as guas do Vouga, do gueda e dos veios que nestes stios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilmetros de comprido, formando uma srie de poas, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a gua de escoar; do outro o homem que junta a terra movedia e a regulariza. Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnfica estrada, que lhe d o estrume e o po, o peixe e a gua da rega. Abre canais e valas. Semeia o milho na ria. Povoa a terra alagadia, e custa de esforos persistentes, obriga a areia intil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a gua, conquistando-a, como na Gafanha, onde alastra pela ria. Aduba-a com o fundo que lhe d o junco, a alga e o escasso, detritos de pequenos peixes. Exploram a ria os mercantis, que fazem o trfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes martimos, os rendeiros das praias que lhe aproveitam os juncais, os marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os moliceiros, que apanham as algas, e finalmente os pescadores da Murtosa, que so os nicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre outras redes usam a solheira, a rede de salto, a murgeira e a branqueira. O homem nestes stios quase anfbio: a gua -lhe essencial vida e a populao filha da ria e condenada a desaparecer com ela. Se a ria adoece, a populao adoece. Segundo Pinho Leal, em 1550, Aveiro tinha doze mil habitantes e armava 150 navios. A barra entulha-se, a terra decai. Em 1575, com a barra outra vez entupida, os campos tornam-se estreis e a cidade despovoa-se. A alma desta terra na realidade a sua gua. A ria, como o Nilo, quase uma divindade. S ela gera e produz. Todos os limos, todos os detritos vm carreados na vazante at plancie onde repousam. Isto gua e estrume, terra vegetal que se transforma em leite e po. Palpa-se a camada de terra gordurosa sobre a areia. E alm de fecundar e engordar, a ria d-lhes a humidade durante todo o ano, e com a brisa do mar refresca durante o Estio as plantas e os seres. Uma atmosfera de humidade constante envolve a paisagem como um hlito. Ningum aqui vem que no fique seduzido, e noutro pas esta regio seria um lugar de vilegiatura privilegiado. um stio para contemplativos e poetas: qualquer fio de gua lhes chega e os encanta. um stio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tbuas, descobrindo motivos imprevistos. -o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos que s se arriscam num palmo de gua porque a ria lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Vero. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prtica e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaru, uma vara, a caldeirada... Comeam a luzir no cu e na ria ao mesmo tempo mirades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica um resduo de beleza que nunca mais se extingue. a ria tambm stio para os que querem descobrir novas terras proa do seu barco e para os que amam a luz acima de todas as coisas. Eu por mim adoro-a. -me mais necessria que o po. E este talvez o ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na ria o ar tem nervos. A luz 23
hesita e cisma e esta atmosfera comunica distino aos homens e s mulheres, e at s coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensvel que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar... 8 horas da manh A no. Um charco. Tomo um barco moliceiro. A chuva em poeira cai sobre os campos verdes da Gafanha. A paisagem molhada escorre gua e a ria lisa como um espelho reflecte o cu bao. Mulheres vestidas de escuro, com grandes molhos de erva cabea, saem dos agueiros como rs, e uma cachopa atravessa a ria com as saias pelas coxas, a pingar. Os longes esfumados perdem-se na bruma. A bem dizer, no chove: o cu derrete-se. Silncio. As terras baixas, atravessadas de regos e de valas onde a gua repousa e apodrece, embebem-se ainda mais desta gua peneirada que no cessa de cair. Ria cinzenta, cu cinzento, campos alagadios e uma luz molhada que atravessa as nuvens pegajosas e envolve os seres e as coisas no mesmo tom casto e uniforme. As tintas desvanecem-se. Silncio hmido neste paraso da erva, coberta de um P fino que goteja. Largamos. Canais, poas, agua imvel. Passo ao cabeo da Capela, passo ao Forte Velho antiga barra. A gua escorregadia fecha-se logo sob o barco- Olho para os fundos, mas no fundo emborralhado s distingo at Arnelas nvoas sobrepostas, de onde irrompe um nico fio indistinto a Vagueira. Ao p de mim, ao p da chapa polida da gua um moinho bate as asas e passa... Logo um canal estreito entre terras estacadas para no esboroarem, a Carreira. Outro charco mais largo, cor de estanho, e sempre o mesmo lodo cultivado, o mesmo tom bao, a mesma cinza caindo pingue-quepingue sobre a larga paisagem empapada e cheia de humidade: o lago da Labrega, quieto e solitrio, num cu que se derrete em gua morna. Um peixe fasca e toda a superfcie se arrepia para voltar imobilidade. Um cabeo com ervas emerge flor das guas. s vezes o barco faz marola, encosta terra, pega-se no fundo, e os homens de perna nua empurram-no vara. Na antiga barra encalha, e para o levarmos temos de nos meter todos gua. Vagueira, dois riscos esbranquiados muito ao longe os faris. A ria alarga. Com a manh, que se adianta, as gotas de chuva embebem-se de outra luz esbranquiada. Ganham os tons baos transparncia e uma claridade difusa bia no cu. Baba-se. A amplido da gua reflecte j outras tintas. A neblina a todo o momento desmaia e a vasta plancie vaporizada ilumina-se de uma luz cor de prola que hesita em pousar; os verdes so mais claros, as rvores suspensas no ar e as casas construdas na gua. Alm esquerda mostram-me os palheiros da Costa Nova mas tudo ainda adormecido na terra, no silncio e na gua. Uma tainha salta... Depois desta srie de canais e de charcos estagnados e polidos, na plancie baixinha feita com lodo extrado da ria, e com areais do outro lado, onde os sarraus e os borrelhos piam, sob um cu empastado e baixo encontro-me diante de uma amplido indefinida, onde a terra e a ria se confundem. um sonho que se dissolve? Onde acaba a gua e comea a terra? Aquelas velas vm da barra ou do mistrio?... Ao p de mim dois homens arrastam uma chincha num barco estranho. H-os com o costado por pintar, h-os todos negros, com o grande pescoo esguio de cisne, no momento em que volta a cabea para trs, e com um toque de vermelho no leme... gente da Murtosa que habita esta bateira. De dia, em geral, dormem, noite pescam. A ria d enguia, pimpo, tainha, solha e robalito. Levam ali dentro uma panela para a caldeirada, um cesto com batatas, uma esteira para dormir no toldo que armam a proa, e um saco de malha metido na gua, para a enguia e a tainha se conservarem vivas. Mais distante um velho e um 24
rapaz armaram um saltadoiro, com a manhosa estendida ao lume de gua e segura com espeques. Por largo lanam outra rede, o cerco, e o rapaz bate com uma vara no costado do barco. O peixe assusta-se, foge, depara com a sombra, forma o salto, fasca como um pingo de estanho, e cai dentro do curral, onde logo se emalha. Coloquem estas figuras num fundo discreto, numa luz delicada, num ambiente indefinido... Aqui o drama o da humidade... As nvoas tm na ria uma vida extraordinria: cada gota possui uma alma distinta e irisa-se como uma bola de sabo. De forma que no s as figuras se harmonizam com os fundos, mas a todo o momento e minha vista a paisagem hmida se transforma e muda de aspecto: afasta-se, prolongase, no tem fim nem realidade. Ao longe rvores violetas nascem na gua, o horizonte ainda cinzento teima em fixar-se, mas espumas azuis j estremecem junto a reflexos verdes. Bois pastam na gua, um barco navega no interior das terras... A ria mgica e possui uma luz prpria que a veste. Vem acol uma vela vermelha que uma nota indita neste sonho diludo em gua... este o momento em que comea a aparecer o azul e que convm anotar. Dissolvem-se as nvoas, mas deixam o ar carregado de humidade, deixam a luz reflectindo-se em milhares de gotas invisveis, deixam a atmosfera impregnada de frescura e de vida. Esta passagem para o azul faz-se lentamente at o azul dominar de todo. Atenuam-se as neblinas e ficam ainda farrapos suspensos, derretidos nos agueiros, agarrados terra e embrulhados nas ervas. Um grande lano de gua vem at mim em pequenas ondulaes azuis e por camadas sucessivas, como estas manchas que os pintores acumulam nos quadros com a ajuda da esptula. Junto ao barco a gua reflecte um azul vivo e fresco como nunca vi. Longe azul desmaiado, perto azul como tinta. Vejo diante de mim a amplido azul, num assombro. E todo este azul se pe a estremecer nos milhes de gotas extticas de que se compe a atmosfera e que se impregnam agora e ao mesmo tempo da mesma cor... Azul, azul, azul... 24 de Julho H trs dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladro de estrada, e fora de toda a realidade. Afigura-se-me que vivo num pas estranho amplido, gua e sonho. Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da Torreira... Que me importa! Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente. A vida navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto. dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das guas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do outro. sair desta amplido para a descoberta do charco, do canal, da gota de gua, dos stios escondidos e ignorados. assistir transformao das guas e navegar vela ao p das casas e no interior das casas. Distingo um fundo muito roxo o recorte dos montes. Aqui a ria, mais larga, aumenta ainda e divide-se, de um lado at Ovar, do outro at Salreu. alm, alm... Casinhas num reprego da encosta, onde apetece viver, perdidas no mundo e esquecidas do mundo. Mesmo beira de gua e reflectida na gua, a Murtosa, aureolada de oiro: algumas casas brancas reluzindo, algumas rvores muito verdes em contraste e um canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o leme estrambtico atravessado por um pau. Aconchego e sol. A fantstica esquadrilha desdobra-se na gua que estremece, menos em certos veios que ficam lisos de propsito para reflectirem os mastros num sarrabiobisco at ao fundo. 25
Este lindo barco serve para tudo. Vai pesca e carrega o sal e o molio pelas terras dentro. o meio ideal de transporte entre estas terras ribeirinhas. Substitui os animais de carga, as diligncias nas feiras e o encanto da ria. Tem no sei qu de ave e de composio de teatro. Anima a paisagem. s vezes usa uma vela latina, s vezes duas, a segunda colocada proa e mais pequena. Navega vela pelo interior das terras, e estou em dizer que capaz de escorregar por cima das ervas. Por ltimo chega a servir de casa: tem um cubculo onde se dorme perfeitamente agasalhado. No conheo outro mais artstico, mais leve, mais adequado s funes que exerce e paisagem que o circunda. Esta manh a ria est cheia deles que a cruzam em todos os sentidos, rapandolhe infatigavelmente o fundo tapetado de cabelos verdes. Amontoam-nos, metem-nos na terra ou secam-nos no areal para o Inverno. Todo o horizonte est cheio de velas. Saem da cinza e da noite, saem do sol e dos buracos alagadios, do lodo e das nuvens. Um rapaz ao leme e dois homens em cada barco, com os grandes ancinhos seguros nas tamancas, vo rapando sempre, arrancando sempre ria os seus cabelos finos, que s resistem enquanto verdes. Tira-se o ancinho cheio de fios a escorrer e mete-se o molio na caverna. E o barco segue, levando proa uma padiola com degraus para o descarregar e ao lado uma prancha que lhe serve de segundo leme. Mal tocam na gua... Ao longe outros e outros ainda rapam, fazendo circuitos leves de andorinha. Rapam as mulheres da lavoura, rapam os homens de perna nua metidos na gua at cinta, e acol anda um bando de cachopinhas a rapar, sempre a rapar, com as saias ensacadas... 4 horas da tarde neste ponto, depois da barra, que a ria desvanecida se imaterializa e atinge a perfeio suprema. S. Jacinto das Areias, pintado de vermelho e envernizado de novo, rev-se no espelho lmpido das guas. Adiante h um pinheiral na duna, pequenino e j misterioso. direita, em diferentes gradaes de roxo, o vasto acampamento das salinas estende-se muito ao longe at serra. Azul, azul vivo, azul que a luz trespassa e estremece, azul que no tem limites. Tambm a terra se prolonga e o amplo panorama se torna irreal. Aqui a matria no existe. As terras alagadas tm tanta transparncia como a ria. Distingo rvores, mas as rvores so traos de cor diluda e nascem na gua; adiante riscos de uma paliada ou um pedao de areia desvanecida... O que h azul a jorros, uma vasta amplido indistinta como num sonho, cheia de ar hmido e envolvida em luz carinhosa. As coisas so to leves, que a luz as atravessa... Vogamos. Seis horas, sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparncia dos seres e das coisas, que a cada minuto se transformam. O mesmo panorama toma novos aspectos de sonho translcido medida que a luz esmorece e o barco se desloca. s oito horas estamos de novo perto da barra e o jorro que vem do mar parece lava fundida. O poente avermelha as areias e acende na gua um rasto de estrelas. Ardem as janelas da Praia Nova e navego numa soluo de sulfato com reflexos sanguneos. L no fundo incendeiam-se os borres violetas das nuvens. Outra vez a amplido se modifica. A todos os instantes estremece e muda de cor, e a fantasmagoria aumenta com os espectros que saem da terra e dos boeiros. So neblinas em farrapos que ascendem dos fundos. A humidade alapardada entra de novo em cena e engendra nova vida. Reparo no cu... Como num quadro inverosmil de Turner as nvoas esgaradas embebem-se em reflexos vermelhos cores delicadas de ncar, interiores de conchas, tons rseos bebidos pelas gotas de humidade. A ria uma grande poa onde Lady Macbeth lava sem cessar as mos h sculos, mas no cu que se representa a verdadeira tragdia: os tons violetas da agonia carregam-se e condensam-se; as nuvens ensopam-se de tinta mais escura e um grande 26
vu lils interpe-se pouco e pouco entre mim e a paisagem. Todas as cambiantes vo reflectir-se nas guas onde bia ainda o doirado do poente. Sinto que a tinta que envolve a paisagem morre a muito custo, e que toda esta humidade se quer fartar de luz, transformando-se como numa mgica em exploses e cores desgrenhadas pelos ares e em cenrios irreais na terra cheia de mistrio, at que um nico risco de oiro ao cimo de gua, oscila, serpenteia e acaba por desaparecer num ltimo arabesco... J noite regresso num barco de cagarus que vo festa de S. Tom, em Mira. Regresso deslumbrado. Tenho a alma a escorrer tintas estranhas. Estendo-me popa, farto de iluses, farto de luz e entorpecido entre um rancho de raparigas que cantam, e que de quando em quando erguem a saia, saltam gua desembaraadas, de perna nua mostra, e puxam o barco sirga i105 sequeiros... OS STIOS IGNORADOS 5 de Julho Mas o que tem para mim um grande encanto so os stios ignorados da ria, onde a gua cismtica encharca, embebida no cu e reflectindo meia dzia de ervas e dois barcos encalhados. gua esquecida ou pedao do cu translcido?... Acol um borro azul empoado diante de uma trincheira verde. E este azul entranha-se na terra baixa e empapada, infiltra-se no subsolo, reaparece em fios e charcos. inesperado e imprevisto. No se sabe onde vai ter. Estou na terra ou na gua? um lago ou um rego? Uma vela navega entre campos verdes. um saleiro. Ao longe na vasta plancie retalhada, correndo a par de um biombo de pinheiros, outro barco desliza sobre a erva tenra dos arrozais. ...Outro canal. Carros de bois. A plancie imensa cortada, riscada, atravessada por fios de gua que convergem para um canal mais largo. H charcos verdes atufados de nenfares em flor, gordos e espalmados ao lume de gua, com um boto branco a abrir. Alguns tufos de rvores rasteiras desdobram-se na gua negra e profunda. Mais poas e, no Inverno e nos dias baos e parados, os ramos finos das rvores desenhando-se fio a fio, pena, na gua adormecida. No ar adormecido e na gua que no existe, porque tudo parece atmosfera. So terras impregnadas de gua em baixo e envolvidas carinhosamente pela atmosfera martima. Um rasgo e avisto os montes de sal espalhados pelo campo farto. Nos milharais andam grupos de cachopas enterradas at ao joelho e os arrozais deslavados atiram para o cu as hastes com os ps metidos na gua. Um grande trecho liquido empoado. Lodo emaranhado de valas e de regos. Silencio e luz. Fios de terra encaixilhando a vasta superfcie dividida em rectngulos, com renques de rvores baixinhas torturadas pela poda. Silncio hmido. gua imvel. O que eu queria dar s o podem fazer os pintores os tons molhados, os reflexos verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa superfcie polida, e, por fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa da luz. No cu no a mesma coisa, no cu perde-se tudo num momento... Nestas poas os dourados entranham-se misturados podrido dos verdes e levam muito tempo a esvair, agarrados gua numa aflio. S aqui se compreende bem o que a luz lhe custa morrer...
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Isto, a bem dizer, um charco. Tenho-os minha porta que reflectem o cu e se cobrem de limo verde, onde na Primavera se passa exactamente o mesmo drama da cor. Apodrecem. Criam reflexos metlicos, verdes de r, e resplendores ao pr do sol. No duram nada... A questo de tamanho. Tudo aqui ganha com a amplido e a luz o grande pintor. ela que nos ilude na atmosfera carregada de vapores invisveis, que transformam a terra entremeada de pedaos de vidro, de mil espelhos vivos que a reflectem. Reparem... Acol um homem proa do barco esguio lana a fisga, a petarda, espetando no fundo areento a solha ou a enguia escondida na lama. nada. Mas na figura escura, no gesto sbrio no h uma linha que corrigir. A gua polida estremece um instante. As linhas reflectidas quebram-se e enrugam-se, para logo voltarem limpidez e imobilidade enquanto a figura elegante guarda ainda um momento a atitude e o gesto. um nada um quadro onde a luz tem o papel principal. 8 de Julho Ao lado do areal onde se finca a povoao de Mira, h um resto da ria de Aveiro, que teve aqui noutros tempos uma sada para o mar e que se chama ainda hoje a Barrinha. uma gota de gua pensativa a cinquenta passos do mar. Canaviais e areias... Mas a lagoazinha bebe a luz do cu e parece ainda mais melanclica e pacfica ao lado do grande oceano atormentado. No sei se faz versos sei que sonha e que a certas horas fica estonteada a contemplar-se. Ao p do mar, ningum a ouve, mas talvez seja essa a poesia superior; talvez a poesia ntima e ignorada seja a mais bela e a nica que Deus escuta. Alimentam a Barrinha dois veios de gua doce da Fervena, que fazem moer alguns moinhos primitivos. Quatro tbuas e o esguicho que sai de troncos de rvores cavados, to velhos que se babam pelas fendas. Em volta, areia alagadia que o pescador de Mira transforma em campos, fora de mexoalho e de sardinha. Todos trazem a sua terra aforada, e nesta poca do ano as mulheres vem da lavoura para casa guiando vara o barquinho carregado de milho. s vezes a embarcao leve e escura mete a borda na gua azul e polida, cheia de abboras amarelas, e uma passa por mim, onde ouo um choro que no cessa. Levanto a cabea para ver. O vulto esbelto da mulher empurra o barco com a vara, de p, popa, num movimento compassado e fcil, e, num bero proa, uma criana embrulhada nos panos chora pedindo de mamar. aqui que se pescam as melhores tainhas, luzidias, negras, de cabea chata, de uma maneira original e que talvez a maneira primitiva, anterior linha, ao anzol e rede. O barqueiro lana uma esteira ao lume de gua e vai guiando devagarinho o barco. De repente, o peixe, ao deparar com a sombra, assustado, salta, cai na esteira e debate-se at que o homem lhe deita a mo. Mais um momento... A tainha, atrs do pasto, procura a libelinha que voa ao lume de gua fasca ao sol, cai na esteira. Outro peixe para dentro do barco. Apanham-se tambm na Barrinha magnficas enguias, que o Lus Milheiro, o grande homem da terra, transforma em saborosas caldeiradas. 1 de Agosto Este velho brao, que liga a ria Barrinha de Mira atravs da plancie humedecida, poa aqui, poa acol, adelgaando-se at chegar ao fio, ou alargando-se at se transformar num charco, acaba enfim por desaguar no Ano. A plancie coberta de erva rasteira que as mulheres constantemente rapam para a curtirem nos estrumes, 28
tem um grande encanto de amplido deserta. As rs escorregadias saltam sob os ps, e as noites, cheias de estrelas, parecem maiores e mais profundas. Meto-me num barco. Deixo-o deslizar ao sabor da gua, de mansinho, entre canaviais que irrompem do tapete gordo de chapotas, de um lado doiradas pelo sol, do outro mais verdes ao sop das canas. Encolho os braos para poder passar. Silncio. Um fio de cu em cima, um fio de gua em baixo, correndo sobre a areia que reluz. Ao longe, superfcie, grandes manchas de sol movedias. s vezes um canalzinho ao lado para a rega, cheio de folhas espalmadas sobrepostas, camada sobre camada, e um nada de humidade que empoou. Um passadio de madeira, duas tbuas atiradas de lado a lado, destas coisas rsticas, que, pela simplicidade primitiva, tm o encanto dum quadrinho. s vezes um pedao mais sombrio, quando as canas so maiores e mais espessas: gua verde por baixo e um cu de folhas esguias. s vezes um espao aberto onde o sol bate em cheio. De um lado e de outro o areal cultivado. A cinquenta passos o mar. E aqui ao p de mim, tona de gua, mil reflexos luz bebida luz esquecida luz parada. E o barco desliza sempre ao sabor da gua. Se a vida corresse sempre assim, para o mar eterno, neste stio ignorado onde nem canta uma ave!... 5 horas da tarde Agora o barco encalhou e a gua est dourada at onde a vista alcana. Deixo-me ficar, olhando para o fundo da areia. A meu lado h um verde que nenhuma paleta pode dar, um verde vivo, um verde trespassado da luz que se coa pelos canaviais e todo se arrepia superfcie do veio, ao mexer das quatro tbuas do barco, para enfim parar absorto no silncio. Bia aqui nestas guas uma alma entontecida, humilde e tmida, to tnue que pode desaparecer num sopro de um momento para o outro. Existe, mas no sabe bem que existe. quase nada. Um fio de oiro, silncio, um reflexo de luz... Andem devagarinho com o barco no vamos ns assust-la.
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PALHEIROS DE MIRA A PESCA Julho de 1922 Em todo o vasto areal que se estende de Espinho ao cabo Mondego, a pesca de arrasto e a grande abundncia de sardinha, grande, mdia e pequena ou, por outra, vareirinha, como lhe chamam no interior das terras. O areal e o mar ensinam e exigem a pesca colectiva um grande barco, uma grande rede e uma forte companha. A sada perigosa, e de um momento para o outro, a onda cresce e o barco no pode abicar. Da as enormes embarcaes, as redes, as cordas e os bois para as puxar. Para o sul, at Pedrogos, em Lavos, em Buarcos, a pesca tambm costeira e de arrasto. Depois, o pescador muda de barco e de processos. Durante a safra, que dura oito meses, de Abril ao Natal, leva-se o peixe em cargas pelas estradas da regio, a dorso de cavalgadura a sardinha que sabe a lombo de burro dizem que a melhor ou em pequenos carros de bois que o carreiro guia pela fala, sem se servir da aguilhada: Vamos l... Ento... Eixe... E o boizinho paciente l retoma o trilho voz conhecida e amiga que o guia e encaminha. Sai para a Bairrada, para a Anadia, para os hotis do Buaco e para as terras longnquas. A todo o momento se encontra um macho, com dois ceires em perfeito equilbrio, e ao lado o homem tisnado e seco, ou a mulher de chapu redondo e xaile, correndo pelo areal e pela estrada, com a saia ensacada at ao joelho. 15 de Julho De Cantanhede a Mira so quatro horas de caminho. Pinheiros, sempre pinheiros, e um cantar desabalado de cigarras como nunca ouvi na minha vida. Depois, num carro de bois, a travessia do areal, sob a reverberao do sol, e por fim Mira, terra de pescadores, palheiros de madeira estacados na ondulao da duna, que sobe como uma vaga at ao alto. De um lado uma poa, do outro, l no fundo, o mar levantando a areia com o bater compassado e eterno. Atravesso o charco por um pontilho. Subo uma rua. Escurece. Palheiros, tbuas podres, estbulos de cavalgaduras e armazns de salga. Mulheres, crianas, porcos. Subo sempre entre barracas velhas, algumas com os ps metidos na gua; outras, l em cima, derreadas e cambadas, defendendo-se da areia que as subverte com paliadas de pinheiro. Sombras, confuso de ruelas fedorentas e escuras, falatrio nas tabernas. Restos de peixe por toda a parte e de ceires velhos que apodrecem, entre a vida que pulula e ao ar do mar que vem do largo e tudo varre e purifica. Com a noite a confuso redobra: a terra parece maior e mais escura. Continuo a subir e l no alto descubro enfim o mar, mais palheiros esparsos no esplndido areal e alguns barcos estranhos e arcaicos, que erguem at ao cu as proas e as popas desmedidas. Tudo isto foi um areal e um charco. O charco secou, reduzido Barrinha; o areal, que vem do norte at onde a vista alcana, estaca no trao lils do cabo Mondego. S trs cores dominam na amplido do mar e na extenso da areia o azul, o verde e o oca. muito grande e muito simples.
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Manh. Primeira ida ao mar das quatro e quarenta e cinco minutos. Um serouqueiro do sul que envolveu de bruma a noite acaba de desaparecer. Mas da nvoa ficou nvoa misturando-se ao azul e frescura que dilata os pulmes e inebria. Um rapaz, no alto da duna, sopra o bzio com as bochechas cheias, chamando a companha para a pesca. O barco est pronto. Uma esteira de varas, duas juntas de bois para o puxar, homens nus metidos na gua e agarrados s cordas, e a onda que salpica e os alaga. Entra para dentro a companha. Refervem as ondas que o sacodem l no alto... Os fortes rapages agarram-se aos quatro remos, a proa alvora... este o momento angustioso, enquanto se no safam da cova do mar. Eh arrais, carago, a mar agora! diz o Joo Custdio, revezeiro. O arrais segura a corda, que o nico leme deste barco. Tudo consiste em saber ferrar a volta na r para o livrar do vagalho tudo consiste em destreza e pulso, seno o barco sacudido enche-se de gua e vira. Dois homens, os caladores, ajudam-no a soltar o extenso cabo enrolado popa, que nunca mais larga da mo. Num instante se livra da onda que quebra, mas a manobra complicada. O barco tem quatro remos nos quatro bancos: o do castelo da proa, o do remo da proa, o do remo da r e o do castelo da r. A cada um destes pesadssimos remos se agarram quatro homens de p nas estorveiras, que ficam nos intervalos dos bancos, seis sentados e ainda outros, os camboeiros, puxando os cambes todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo ritmo. O revezeiro, que ordena a sada para o mar, manda tambm em cada remo. Na parte mais delgada remam os caneiros, que trilham o remo e fazem a voga, ajudados pelos segundos. O barco vai largando o grosso cabo com ns, que se chamam balizas, at ao momento em que o arrais sente o peixe mais terra, a aguagem, pela mudana da cor, ou distingue o alcatraz que nas guas lzias cai a pique sobre a manta da sardinha. Outras vezes a fervena ou gorgolhido que lhe indica onde est o peixe pequenas bolhas de ar que ascendem superfcie ou mesmo a ardentia com que os grandes bancos de sardinha iluminam o mar. Ento o arrais de p d o sinal dizendo: Em nome do Santssimo Sacramento, saco ao mar! Toda a companha se descobre. Larga-se a cuada de malha mais mida, a manga, pea mais grossa, e por fim o cabo, que se desenrola at terra. Voltam e o momento dramtico repete-se. O barco vem no alto da ressaca. Larga! larga! Os homens remam cantando. Inunda-os um jorro mais impetuoso. Agora, o arrais que na pancada do mar traz a corda na mo guiando o barco. Um vagalho de espuma vai despeda-lo e arrasta-o num ltimo impulso pelo areal acima. Dois rapazes, metidos na gua, enfiam logo nas argolas do costado duas ganchorras de ferro. Salpicos. Alarido. A companha salta em terra, jungem-se os bois s cordas, lanase o estrado de varais pela areia; sobre os varais, roletes; e puxado pelos bois e pelos homens o barco enorme sobe, de proa voltada ao mar, e pronto para nova arremetida. O espraiado imenso... A areia de oiro sem fim, desmaiada pouco e pouco e envolta no fundo em p das ondas o mar infinito, verde-escuro, verde-claro, rolos sobre rolos, e por fim, num cncavo junto ao cabo, desfazendo-se em espuma e brancura. Ao norte nvoa leitosa e viva, que sobe ao ar como um grande claro branco. gua sem limites cu sem limites areia sem limites e a voz imensa, o lamento eterno, dia e noite, mais baixo, mais alto, mas que nunca cessa de pregar... Tenho diante de mim o fulvo areal, a agitao do mar at onde a vista alcana e a agitao humana num quadro mais restrito. So quatro companhas e cada companha tem noventa e seis partes, entre homens que vo ao mar, homens da terra e mulherio 31
para os cestos. Junta-se mais gente que acode venda, regates e almocreves, mulheres de saia arregaada, chapu e xaile, com as xalavaras e os baldes cabea. E este movimento repete-se e redobra, medida que os barcos entram e saem, porque fazem trs e quatro lanos cada dia. Aumenta a labuta com o lavar das redes no mar, com a sua conduo pelo areal, suspensas em bambinelas, s costas de cinquenta raparigas, em cordo e aos pares, com um carro de bois frente que traz o saco encharcado. E sempre, num vaivm, sobem e descem a rampa de areia as juntas de bois, seis por corda, que vo puxando os interminveis cabos durante quatro longas horas, at o saco chegar a terra. Gritos. Homens passam a correr, conduzindo cordas atravessadas num espeque. So trs horas da tarde. No mar grandes chapadas de prata na esteira do sol, que no areal reverbera e ofusca. Julho. Nortada rija enchendo a boca de areia e de salpicos de espuma amarga. Doirado e verde. O quadro to largo que se perdem as mincias: concentro-me neste pedao de areia de uns poucos de quilmetros afogado em luz e agitado de vida, no azul do cu e na onda que enconcha e estoira, repercutindo-se em som e espalhando-se em p esverdeado. Reverberao de sol, poeira de gua luminosa que vibra e estremece. Alarido de mulheres que saem aos cardumes dos palheiros. Iamse os pendes, chamando mais gente para o peixe. Grupos, cordes humanos, gente das aldeias que acode catraia. Um barco sai no alto da onda, outro regressa. agora! agora! E os bois ajoelham sob o peso. Outros, mais longe, vagarosamente vo puxando sempre a grande rede para a terra, agarrados s balizas pelas cordas. Sobem ao alto do areal, tornam ao fundo, descem ao mar, entram no mar... Um rapaz agita o barrete, e outro, ao longe, responde ao sinal regulando o andamento dos bois: Arriba! Arriba! No alto o azul, no fundo o mar que desmaia e se dissolve em oiro no horizonte. A brasa do sol ao mergulhar vai fazer exploso. No h uma nuvem no cu; temos hoje o raio verde com certeza. No areal os eternos rolos brancos espraiam-se e sucedem-se da Costa Nova ao cabo Mondego. J se vem ao lume de gua as primeiras bias da rede, os arinques, e a faina no cessa pela areia fora. Grupos enovelam-se. Muito longe, os bois puxam outras redes. Uma junta foge e aumenta a confuso. L em cima, no dorso do monte doirado, os carpinteiros de machado remendam dois esqueletos de barcaas... Vem-se agora as pandas: juntam-se os cabos e a boca da rede cada vez se aperta mais. A vida atinge o auge. Arriba! Arriba! Todos deitam as mos s cordas. Corre o mulherio. Rapazes quase nus metem-se espuma e agarram a rede. Os bois, espicaados, parecem compreender que o momento decisivo: Eixe! Eixe! E l em cima retesam os msculos no ltimo esforo. Depois largam o cabo, correm ao fundo, entram na gua, que esguicha, guiados pelas cachopas de aguilhada no ar e salpicados de espuma. A vm os outros: desligam-nos e tornam logo arriba. Mais depressa! Mais depressa sempre! A onda enconcha, com um friso refervendo-lhe na crista a desabar e bois, cachopas. homens quase nus, agarram o saco, inundados de espuma que os envolve. O ltimo esforo... Dois rapazes saltam na gua e apertam a boca do saco com uma corda para o peixe no fugir. Eh! Eh! Mais gritos. O mar, cada vez mais impetuoso, rebenta sobre o areal, rolo atrs de rolo, e os homens e os bois saem a correr do vagalho de espuma... Foi diante de um quadro assim que Ferdinand Denis exclamou, assombrado: Que estranho pas este onde os bois vo lavrar o prprio oceano?!... As mulheres e os almocreves excitados deitam mo rede e o saco sai da gua, a rasto pela areia entre laivos verdes que escorrem... J o sol desapareceu e no vi o raio verde. S reparei nas atitudes para um escultor fixar, nos movimentos admirveis de presteza e vida, nas grandes linhas gerais. A cuada est em seco, escorrendo babas de um verde nufrago. Ia-se um pendo num mastro 32
cortia, farrapo ou cesto, e as mulheres acodem l de cima chamada, de gigo cabea. Um ltimo berro ecoa: o saco que vem cheio... Viva! Viva! Uma mulher desdentada grita ao p de mim: Viva o homem e morra o peixe! E dois velhotes desatam a danar. O movimento mais apaixonado da pesca sempre o alar das redes, que em Mira se faz na areia largo quadro para pintores que dessem em pochade o movimento, a cor e a luz. O grande saco negro estremece de vida, cheio de estalidos. Rodeiam-no as mulheres com os cabazes no cho. Um homem de navalha em punho abre-o a todo o comprimento e aquela prata remexe e ferve: carapau e lavadinha, mais escura, debatemse misturados, com reflexos de oiro e fogo nas escamas. Saltam-lhe em cima homens de tanga e tiram-no para fora com o redenho. Separam o mexoalho e coisas gelatinosas (medusas) de um azul-da-prssia carregado e de um verde suspeito e transparente. Aparta-se o peixe da renda, o linguado, a tainha, e a raveta; o negro, parecido com a tainha, mas que se distingue por uma pinta doirada na cabea, e porque d s um salto fora da gua quando a tainha chega a sete; a faneca, de um verde transparente; a esplndida corvina, de um azul metlico na cabea e com reflexos de oiro pelo lombo; a listrada sarda; a azevia, mais chata e mais larga que o linguado; a lacraia, pequeno peixe, com dois espinhos acerados, um na guelra, outro no dorso, que enervam e adormecem a mo e o brao que se picam; os chocos e as lulas, fios verdes emaranhados saindo de dentro de um saco e com dois olhos embaciados e fixos de fantasmas. E as mulheres despejam nos gigos os montes de sardinha ou de chicharro grande, que se chama charru, e de um tom bao de prata antiga. O rapazio, gil, por entre as filas de mulheres, mete a mo e rouba dois carapaus, uma chavelha, seis sardinhas o que pode. Faz-se a praa. Os gigos esto em linha. Trinta mil ris! Quarenta mil ris! Outro barco abica ao longe. Vai repetir-se o quadro. Mulheres lavam os gigos. Grande algazarra l no fundo. Foi um saco que rebentou ao chegar terra. O peixe foge e todos acodem catraia. Homens, mulheres, velhos e cachopos saltam ao mar e empurram-se, caem na gua, gritam, barafustam. O peixe de quem mais apanha. Com as xalavaras ou unha, metem os braos na gua, num coro de gritos e de risos, quando a onda vem, desaba e os inunda entre a apupada, deixando-os encharcados e felizes... Anoitece. Volto-me e quase grito de aflio. A lua cheia e enorme, toda branca, surge sobre o areal avermelhado, e j no mar comea a desenrolar-se o grande mistrio da noite... L no fundo ficou numa poa de gua represada, onde a luz se demora. Para alm e sempre! sempre! a grande toalha de espuma, espraiando-se e sumindo-se na areia molhada mais escura, onde os fios de luar vo reluzindo. Nvoa quase nada. O grande areal indeciso desmaia. Ao sul o cabo escurece... Amplido embaciada, frescura e mar, onde apetece a gente mergulhar, entranhar-se, morrer e dissolver-se... O BARCO Vai cair a tarde. O azul desmaia sobre o areal doirado. Mais p esbranquiado l ao fundo para o norte nvoa ou luz que nasce, no sei bem; para o sul o morro transparente que entra pelo mar... Trs grandes barcos decorativos esto num grupo, de 33
proa gua, que a toda a hora esmorece. Somem-se as casas denegridas, a agitao e os homens; s o barco se me afigura cada vez maior, sobre a vaga imensa do areal, sob o resplendor imaculado do sol, enchendo o cu e a terra com as suas grandes linhas decorativas. primeira vista parece uma coisa teatral, prestes a desconjuntar-se, s cenrio e mais nada, com quatro patas desajeitadas de bicho, sem o alicerce da quilha a sustent-lo, imprprio para o mar e para a terra obra de lavradores que resolveram um dia ir sardinha. Os quatro remos pesadssimos, com uma parte mais grossa e reforada, que se chama cgado, so coevos do alfange, e estes bicos aguados, que to bem ficam no areal e no cu, no tm solidez nenhuma. Na realidade um barco destes, que parece intil, um produto de engenho secular. Como no h porto nem abrigo e a embarcao tem de passar logo do areal para a onda que escachoa, atravessando a arrebentao para sair ao largo ou para regressar terra, era necessrio oferecer onda a menor resistncia e saltar-lhe no dorso: por isso ergueu a proa. E como a dana das ondas se sucede durante alguns minutos, era foroso tambm que, mal assentasse na gua, lhe andasse ao de cima: e a popa fugiu-lhe para o cu. O barco tem exactamente o feitio cncavo do espao que vai de vaga a vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas extremidades. Estas grandes embarcaes constroem-se na Lagoa, onde s carpinteiros especiais lhes sabem dar o estaleiro necessrio, e vm em carros de bois puxados por doze juntas at Banha. So levantadas proa, castelo da proa, e aguadas at ponta, bica; e levantadas r com a sua bica na extremidade. No castelo da proa tm duas mozinhas salientes para as ligar terra por uma corda chamada rangedeira, no as deixando descair quando o vento as impele e elas esguelham, e quatro escalames de ferro onde entram os buracos dos quatro grandes remos. Hoje s h em Mira quatro companhas, com os seguintes arrais: Manuel Maria Patro, Manuel F, Manuel Miro e Gabriel Janeiro; mas j houve onze, comandadas por Jos Patro, Manuel Cera, Arraizinho, Tito Marrete, etc., todos mortos. OS PESCADORES Tudo aqui pobre e humilde mas no grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lanadas. Mesmo as feias tm um ar de distino. A famlia sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o cho, o convvio com o mar obriga-o a levantar a cabea. Quando saem do barco e o encalham os pescadores no fazem mais nada deitam-se na areia. O resto compete mulher: ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha. A sorte destas famlias numerosas melhorou muito desde que a Cmara lhes aforou terrenos no areal para cultivo. So as mulheres tambm que, depois da sardinha disputada a lano, a levam cabea para a casa da salga, grandes barraces de madeira com manjedouras encostadas s paredes para as bestas e um depsito de sal branco de Aveiro. ali que o almocreve a salpica de fresco antes de se meter a caminho, ou as mulheres a lavam em gua ensossa. S em Mira h vinte desses barraces, onde, quando muita, ou no tem comprador, a metem em lagares de madeira e em domas, ficando de salmoura at chegar o Inverno quando o homem esfaimado a estende num pedao de po sabendo-lhe a mais... Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filsofo como eu. construda sobre espeques na areia, com tbuas de pinho e um forro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida: cheiram que consolam, quando novas, a resina, a rvore descascada e a monte; ressoam 34
como um velho bzio e so leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinria, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No cho dois tijolos para o lume, em esteiras alguns peixes a secar. Do Natal at Maio no h pesca: vo cavar para o Alentejo ou para mais longe, e as mulheres ficam em casa com os filhos. Alm da jorna, que regula de quatro mil ris a dois mil e quinhentos por dia, todos tm o seu quinho nos dias de fartura alguns punhados de sardinha ou de chicharros. Felizes ou infelizes? No sei bem. Apesar de abandonados pelo Estado, que os rouba, cobrando-lhes de fisco uma exorbitncia, quatrocentos contos o ano passado e quase o dobro este ano, no lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que os instrua, um mdico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens, sem organizao nem instruo, sem um padre que lhes fale em Deus ou nas coisas eternas (a capelinha de madeira est fechada) esta gente to fundamentalmente boa que h cinquenta anos para c, no consta de um roubo, de um crime ou de um delito. Pode-se dormir com a porta aberta. Eu nunca fechei a minha. Quando chegam a velhos e no podem trabalhar, como no h um simulacro de cooperativa, e a lei do seguro os no abrange, l se socorrem uns aos outros como podem. A misria quase desconhecida neste pequeno povo de mais de duzentos fogos e de cerca de mil habitantes. Mira, punhado de casebres a apodrecer um mundo. A vida aqui no uma mentira. E todos os dias a arriscam, porque quase todos os dias ouo as mulheres implorando Deus, quando o barco vai ao mar e se enche de gua. E tambm no uma explorao esta vida pobre e humilde, sob a abbada do cu, no grande areal deserto, com Deus e o mar. At aos ltimos anos ningum enriqueceu em Mira com a pesca. A pesca como o jogo, uma questo de sorte, e as despesas muito grandes com os barcos, os armazns e as companhas. J disse que cada companha emprega noventa e seis partes e doze juntas de bois, que ganham cada uma catorze mil ris por dia. A companha despende por ano cento e cinquenta contos e at h pouco s constava de um proprietrio que tivesse lucrado com o negcio, o Figueiredo, que passa por forreta. Os outros empobreceram e ainda hoje se fala no Carradas, grande lavrador, que se meteu a proprietrio e acabou a pedir. Mas agora, com os preos excessivos do peixe, tudo mudou de figura. J o ano passado se ganhou muito dinheiro, quando o cabaz de sardinha dava vinte mil ris. Que far este ano, que regula entre cinquenta e sessenta? H lanos de cinco contos, e j se diz que alguns se sentam em libras sobre os buracos que abrem na areia para as esconder. As casas de salga fazem tambm um grande negcio. Enriquece o almocreve, o patro e o negociante; s o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca acaba e o mar deles... Donde veio esta gente para o areal? a mesma raa prolfica da beira-mar, que nos enobrece e que eu conheo da Murada at Leiria, os homens graves e serenos diante do perigo, e as mulheres trabalhadeiras, sempre de chapelinho redondo e xaile. Levantam-se de chapu, trabalham de chapu, deitam-se de chapu e cuido que dormem com ele na cabea. Nunca deixam a beiramar, como se a respirao do mar lhes fosse indispensvel vida e foram-se estendendo sempre pela costa at ao Algarve, onde fundaram uma colnia em Olho. Estes, de Mira, vieram das proximidades, de Mira vila, de Porto-Mor, etc. Ainda h memria de s existirem aqui meia dzia de palheiros o do tio Soldado, o do tio Domingos Rabita e poucos mais. Na poca da pesca acode gente do Seixo, Cabea e 35
outras povoaes dos arredores. Alm dos barcos grandes, usa-se em Mira a robaleira e a manhosa, todos do mesmo feitio mas mais pequenos. A robaleira leva rede de arrasto e doze homens de companha, e a manhosa, seis homens e rede de emalhe, com trs panos, os exteriores, albitanos, um de cada lado do pano de dentro. A robaleira vai tambm ligada terra por um cabo, mas a manhosa no leva cabo. para a tainha. Cerca-se e bate-se. H cinquenta anos que no lembra que morresse aqui ningum de desastre no mar. s vezes a onda vira o barco, envolve os homens e deixa-os sem sentidos. Quando os tiram por mortos, para fora do mar, metem-nos no sal como as sardinhas, para lhes apertar os ossos. grande remdio, dizem. Ano passado, houve um que, depois de estar no sal quarenta e oito horas, ainda tornou a si...
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MULHERES Foz do Douro. Esta velha, crestada pela desgraa e pelo tempo, com sulcos de velhice e de lgrimas na cara, que os impele para o mar. E o mar tem-lhos levado todos. Dobra-se-lhe o corpo exausto, rodilha gasta pela vida. Mas quando o Inverno chega e a fome aperta, ela que os injuria: M raios partam o mar! Ento quereis morrer fome e os mininos? Se os batis esto em perigo, corre a costa, aoitada pelo vento, bebendo as lgrimas e o cuspo do mar, e contendo o corao em farrapos, com as mos negras apertadas sobre a tbua rasa do peito. Quem lhe falta, tiazinha? O meu filho, o meu neto. J o maldito me levou o pai, leva-me agora os filhos! Andou toda a vida de luto. Viu-os despedaados nas pedras, e deitou toda a ternura que tinha para deitar. Mas incita-os, pragueja, empurra-os, para que no haja fome em casa. S o mar d o sustento e a morte. H mais de um ms que dura o Inverno. M raios partam o mar! E corre com as redes cabea, a cesta no brao, e os soluos represados na garganta, levando o neto atrs de si a rasto para o barco. Tenho chorado tantas lgrimas como aquele mar salgado!... Ao escurecer, na Cantareira, passam da fonte as raparigas, com o cntaro cabea e as mos na cinta. a hora do namoro. Param a conversar com os rapazes, que as esperam nos varais. Em Mira clara luz do sol: elas sentadas, eles deitados de bruos, atiram-se de quando em quando punhados de areia. Em Matosinhos, os pares vo de mos dadas pelo areal fora, enquanto a velha cautelosa espreita porta e ralha: Olha l se perdes a cortia da marca, rapariga! No h-de ter dvida... E sorri, envergonhada. Vai com ele para a praia e depois pe-te a barregar: tio, tio, deite para c o batei. H muitos traos que s descortino em sonho: uma velha com a boca desdentada sempre a rir-se para mim quando eu passava. Esqueci a figura, e a fisionomia varreu-seme de todo mas a boca, s com um dente a escorrer ternura, levo-a comigo para a cova Outros pequenos quadros me recordam. Na.. das. Ranchos de raparigas que andam lia mar gravalha, de perna fina, curvadas e puxando para si restos de lenha. Os tipos mais grosseiros das moas ruivas e sardentas molhadas, trespassadas de sol e de salitre, que correm as estradas de Matosinhos, como as de calcanhar rachado que pisam os caminhos de Esposende e as ruas de Gontinhes, cheirando a peixe, a alga e a sargao, com a canastra cabea e a perna nua mostra. E entre todas elas, uma de pele doirada, com una pique a maresia, que dava um instantneo: esvoaavam-lhe os cabelos loiros, e o riso aflorava-lhe boca sem querer, como se toda ela fosse riso: Viva da Costa! A sanjoaneira calca todo o dia a estrada ribeirinha, a vender peixe ou a fazer carretos. s vezes trazem os pequenos ao colo. A Papeira me e av de homens louros, grandes como torres, dispersos pelo Brasil e pelo mar, e ainda ganha para comer com a canastra. A Joaquina das Coxas no sei dela... A sanjoaneira traz a casa lavada, e melhor do que lavada, tr-la asseada. o hbito antigo, do navio. esperta. Governa o homem e dirige o negcio. Vende, apregoa e remenda. No se deixa dominar pela 37
desgraa. Conserva as redes lavadas e encasca-as. Trabalham tanto e mais que os pescadores. Conheci muitas que, ficando com os filhos por criar, aguentaram a famlia numerosa, vendendo peixe nas estradas. Sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente. Ali defronte so os tanques, onde vinte, trinta mulheres de saias arregaadas lavam a roupa suja. Gritos, rixas, alarido. Um momento de silncio e ouve-se o bater compassado da mar que vai, vem e lhes molha as pernas nuas. Pegada minha casa fica a do Moutinho viela escura, trapos, peixe e dez famlias numerosas. E do outro lado a fonte de granito, para onde passam as raparigas com as mos na cinta e o cntaro de barro equilibrado cabea sobre a rodilha. Sei tudo. A vida vem para a rua a cada passo. Gritos de mulheres, descomposturas... E depois de se atirarem os podres cara umas das outras, acabam por se engalfinhar pelos cabelos, enquanto o rapazio forma roda e as aula. Separam-nas. E desgrenhadas, excitadas, o momento em que dizem os ltimos palavres... Saibam todos... Sejam muito boas testemunhas... Acodem as do tanque e as da fonte. A vida ali exposta. Mais gritos. Enrodilham-se atirando os braos ao ar. Ningum se entende j. Vai haver mortes, com certeza e cada uma parte para seu lado, com os filhos agarrados s saias. Da a bocado comeam a passar as amigas, para casa duma e doutra, com a caneca de caf debaixo do avental... Outra vez rebulio agora na fonte. Balbrdia. Algumas so desbocadas, e aquela, no auge da fria, curva-se e bate palmadas em certo stio, sobre as saias quando no faz pior e o mostra... Ento o barulho ensurdece. Bateste no meu filho, grande porca! Arrolada! diz a outra. Arrolada a pior de todas as injrias... Dois cntaros partidos nas cabeas. A gua inunda-as e refrescaas. E tudo volta ao silncio. S se ouve cantar nos tanques e o bater compassado da onda no cais. A tornam a passar as raparigas, com o cntaro cabea, a mo na cinta, e um fio hmido a escorrer-lhes pela cara, apesar da cortia que usam superfcie da gua, para no se espalhar o lquido... A Murada fica da outra banda do Douro, casas apinhadas em duas ou trs ruas cheirando mal. Tripas de peixe pelo cho e uma vida que formiga nas tabernas, nos buracos e nas crianas que se enrodilham nas pernas de quem passa. O tipo o de lhavo, de Ovar ou da Murtosa, no sei bem, que fundou uma colnia neste recanto do Douro. O homem percorre incessantemente o rio ou o mar rapando-o, at ao fundo, do mexoalho com que se adubam as terras, da solha nas areias, da faneca ou da sardinha na boca da barra, e do svel quando ele vem desova. As mulheres, altas, airosas e trigueiras, trabalham como mouras. Tenho-as visto lanar as redes e remar naqueles lindos barcos feitos com duas cascas de tbua, bateiras ou saveiras, com que os homens atravessam a terrvel barra do Douro, morrendo muitas vezes, volteados pelas ondas, quando regressam com a borda metida na gua. Mulheres que tm filhos s ninhadas e que nem por isso deixam de correr as ruas da cidade, com a canastra cabea e o p descalo, o prego na boca, e o mais novo ao colo ou deitado no fundo do cesto com um resto das sardinhas mistura. Andam lguas, so infatigveis e j as vi lanar sozinhas as redes do svel, pux-las para a terra e dividir o quinho. A de Mira, feia mas esbelta, tem um ar grave e senhoril quase sempre. Lava as redes, puxa os cabos, carrega os gigos, cozinha no lar enfumado com dois tijolos no cho, e faz a lavoura o prazo. Em resumo, a mulher trabalha mais do que o homem trabalha o dobro do homem. No sai de Mira, no vende o peixe, mas anda empregada na companha, por conta do proprietrio, ou salga, por conta do almocreve. No interior 38
de tbuas possui um cntaro, dois potes, alguns farrapos nas paredes e uma enxerga sobre os bancos. Vejo-as aos grupos, espera que saia a rede ou roda de um fogaru onde assam as batatas. Vejo-as, num carreiro de formigas, subindo e descendo o areal, altas e direitas, do hbito de carregar o gigo cabea, ou volta do saco, haste bem lanada para o cu, sempre vestidas de escuro e o lindo chapelinho sobre o leno. A Florinda Rabita senta-se ao p de mim e conta-me a sua vida de desgraa. Traz um pequeno ao colo com o olhar inexprimvel das crianas que sofrem, e mais dois se chegam para ela. Sem espalhafatos, com uma dor contida e um ar modesto, fala do homem morto e de trs filhos para sustentar com alguns tostes por dia. Deita sangue pela boca e todo o dia, empregada na companha, percorre o areal, para baixo e para cima. Aguenta-se como pode. um tipo dorido, destes que vivem e morrem com dignidade, sem ningum lhes ouvir uma queixa. De quando em quando vem-me ideia esta figura de doente, com os trs filhos agarrados s saias, a carregar at ao fim, at cuspir o ltimo farrapo de pulmo. Quando passei na Gafanha, vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na gua a rapar o molio. Feias e ingnuas. A uma calculei-lhe: Tem para a treze ou catorze anos. Tenho vinte e um, e trs filhos, respondeu. Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mos postas sobre os seios redondinhos sobre aquilo, como diz a tia Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa... A ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por l se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapu na cabea e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil h muitos anos ( o rei dos homes!... ), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenas, lutos. Nunca desanimou. A fora que a sustenta admirvel, profunda e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheo. Deitouse vida lavrou os campos. Vieram mais aflies e outras mortes. Ento de que lhe morreram os filhos? Sei l, a morte no se quer culpada. Era preciso sustentar a famlia. Pegou nos bois e no carrinho e comeou a transportar sal da Gafanha para Mira. Fez mais: antigamente no Ano tambm havia companhas, e quando faltava um pescador a ti Ana agarrava-se ao remo como um homem e ia ao mar no barco. Nem do diabo tenho medo. S tenho medo aos ces loucos. A extensa plancie que atravessa, duas, trs vezes por dia, um deserto. A ti Ana vai e vem de noite, sozinha, com os bois que lhe fazem companhia. Agora tem um campo, barcos para o molio, novos netos para criar e olha cara a cara o destino sem esmorecer. A sua vida uma grande lio de energia. A mulher da Murtosa, dizem os entendidos, no se confunde com a de lhavo e de Ovar: baixa e atarracada, e a de Ovar delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia de predicados domsticos e morais. As de lhavo passam por as mais lindas, pelo sorriso que encanta, pelo olhar, e pela magia que exalam. Que o agradeam ria. Todas as mulheres da beira marinha so postas em destaque pela luz carinhosa que as envolve e protege. Criam-se nesta esplndida paisagem de gua e cor, ao mesmo tempo pacfica e delicada. No meu entender, a luz o grande agente da beleza. A ria tem uma luz como nunca vi em parte nenhuma. doirada e viva, sem ser forte. feita de gua azul trespassada de sol. Nem mesmo em pleno Vero senti que fosse dura. Abre como um sorriso morre quase sempre enternecida. s sem chegar sade exuberante. s e delicada. Envolve os seres e as coisas do mesmo tom carinhoso e meigo. As mulheres 39
desenvolvem neste ambiente uma alma serena e respondem ao sorriso da luz com um sorriso de ternura. So como certas flores, criadas num momento feliz, que atingem a perfeio. O que aqui fica bem o vestido escuro e a limpidez de sentimentos. Esta luz inteligente sabe muito bem que a arte o encanto da vida e a mulher a suprema criao da arte. A poveira, a bem dizer, um homem. Feia e rude, pernas como trancas. J se tem atirado para dentro das lanchas, obrigando os homens a arrostar com o temporal. Ou eles, ou elas. So mes extremosas, e grandes parideiras de filhos para o mar. Quando lhes chega o tempo, metem-se na cama, com um casaco ou uma cala dos homens pelos ombros, esperando a hora com pacincia. S tm o cuidado de que a luz da graxa fique acesa todo o dia e toda a noite no casebre, para que o minino tenha alminha. O seu noivado dura pouco o que dura sempre a amarga vida trabalhosa. Dantes o moo, em vsperas de casrio, atava o leno da noiva, como bandeira, proa do barco. Duas lanchas, as enviadas, iam apanhar-lhe o peixe para a boda. E elas fiavam durante meses o ticum para as redes do casal... Eternas sacrificadas, tiram-no boca para aparelhar o cesto dos homens: vendem, carregam as redes, lavam-nas, sem um fio enxuto no corpo, metem o ombro aos barcos para os deitar ao mar. Acabada a pesca, todo o trabalho cabe mulher, que fabrica a graxa, que trata dos filhos, que faz redes, as lava e as conserta, e que vai vender por esses caminhos fora. E ainda o pior para todas estas mulheres no serem bestas de carga, dias atrs de dias encharcadas e escorrendo salmoura... A mocidade dura-lhes o que duram as rosas. Quase sempre de uma beleza delicada, a mulher da beira-mar, com excepo da do Algarve, que a prenda da casa, logo que casa carrega com quase todo o peso do lar, cresta-se e envelhece. Acusam-na de imprevidncia. Imprevidente o homem, que gasta na taberna tudo o que ganha. O lavrador avaro: tira o po da arca a medo, como quem sabe o que ele lhe custa de esforos persistentes o pescador, num dia de fartura, enche a casa de po. E o mar inesgotvel no lhe foge... Mas ela no. Ela, remenda, poupa e vai arranc-lo taberna. Conheo-lhes desde pequeno os extremos de dedicao e de fora diante da desgraa. Esta pobre mulher terra virgem de ternura merecia um lugar parte na nossa terra, pela sua abnegao, pela sua energia, e at pela distino de sentimentos. Em Mira o lar sagrado. -o em todas as povoaes da costa portuguesa que ficam longe dos centros corruptores. Mas o trabalho pesado no ainda o pior o pior o sobressalto constante da sua vida. A da lavoura tem o lar seguro. Vem o Inverno temeroso e a noite que no tem fim. Fechada no casebre, roda do lar, ela, o homem e a moa, com o filho no bero (ao lado na corte os bois fartos esmoem) sente-se tranquila: sabe que na arca puda h meio carro de po, o suor do seu rosto, e algumas moedas juntas. Pode o temporal abalar o tecto de colmo e o nevo cair l fora. Ardemos raizeiros no lume e as traves de castanho so eternas, O buraco tem alicerces de granito at ao fundo do globo. Quanto ao pescador, esse h-de ir ao mar, nico campo que lavra, ainda que arrisque a vida. Os pequenos pedem-lhe po e ele no tem outro ofcio. O tempo est mau e dias atrs de dias passam. Sempre vou... Ela sente o corao oprimido, mas cala-se. Sabe perfeitamente pelas outras o futuro que a espera. Quantas conheci sempre de luto, sem ir muito longe da minha casa!... Por fim diz: Pois vai... As redes, a cesta e ele embarca. Fica sozinha na noite que no tem fim. Fica com ela um bando de pequenos, e com o corao aos saltos pe o ouvido escuta... A onda brame no cabedelo com um eco prolongado. No tem dvida, o mar que chama o leste. Mas agora, a voz ou40
tra, mais funda, o vento mudou para o sul e a barra cerra-se. Iro arribar a Leixes?... Que tempo no mar alto, na noite trgica, e s negrume em roda! Nas mos de Deus! nas mos de Deus! Cabe-lhes sempre o pior quinho da negra vida. Trabalham o dobro dos homens e vivem mais do que eles, porque sofrem muito mais. Conheo na Foz esta mulher a quem chamam a Rata, corcovada, com uma saia pelos ombros, a apanhar peixe rodo que lhe atiram por esmola um cao, uma raia ou uns punhados de sardinha em dias de fartura. Velha, dura e negra, cheirando a peixe entranhado nos farrapos e a sal de sardinha, vive na Corguinha, entre pedaos de rede e de tbuas que o mar atira costa. Passa o Inverno na ressaca a apanhar o molio com as mos. No tem ningum. No fala nem pede. a Rata, que corre as linguetas mal chegam as catraias e os batis. Uma vez perguntei a um velho meu amigo, que est sempre de cachimbo na boca, quem ela era. No sei, a Rata. Morou muito tempo em Sobreiras e era a Rata das Sobreiras. Depois mudou para a Corguinha, onde vive num buraco que empesta a graxa de peixe e a raias escaladas. Passam-se s vezes semanas que ningum v essa figura descarnada, suja, com a saia de remendos pelos ombros. Mas chega o Inverno, e nos dias de perigo a Rata a primeira a aparecer. No cu lvido, espumas que o temporal atira costa. O camaroeiro iado. Nos penedos, os grandes rolos colricos despedaam-se em ribombos que ecoam, erguendo at ao cu esguichos de gua com laivos amarelos dos fundos. A voz temerosa. Os homens esto em perigo. Aparecem as mulheres desesperadas. J se sabe que vai morrer algum. No se suporta o vento acol no farolim, ou nos penedos da praia. S a Rata est de p, no meio do temporal, e ignora o clamor; no d pela gua que a aoita, nem ouve os gritos das mulheres. Parece uma esttua sob o cu de chumbo. Todas as outras rezam. Um momento de ansiedade. Corre-se ao salva-vidas. Vida ou morte? Todas ajoelham com os braos atirados para o cu e a Rata continua impassvel como o destino; seus olhos fixos no se despegam daquele espectculo tremendo. Nem um estremeo, nem um gesto. O estupor da velha!... murmurei. E ento aquele homem calado, de cachimbo na boca, disse-me baixinho, ao ouvido: O mar levou-lhos todos...
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PEQUENAS NOTAS PEIXES A raia, para ser boa, deve ser comida de caldeirada de pitau (Mira), menos em Maio, porque raia em Maio, tumba porta, e a faneca com trs fff fresca, fria e frita. Cada peixe tem a sua poca: a solha, no tempo do milho, come-a com o teu amigo, a sardinha antes da desova e o prprio caranguejo s l para Agosto que, assado na casca, atinge a perfeio. Mas todo o peixe regala quando sai da rede para o lume: tem um sabor nico a mar, e at a reluzente savelha e o horrvel cao, lavados e amanhados na mar, se tornam tolerveis. Quanto ao linguado, ao goraz, corvina, gordssima sarda, pescada e saborosa sardinha, para no falar dos peixes hoje quase desaparecidos, do rodovalho, do peixe-rei, ignora-lhes o sabor e o delicado perfume quem os no trouxe do barco para casa, ainda a escorrer dentro do cabaz, sobre uma cama de algas e de limos. So ento esplndidos assados, fritos, de caldeirada, com um fio de azeite, ou preparados pelo prprio pescador sobre umas brasas. Quando a mar vaza, os pescadores procuram a serrada para iscar os espinis, e a praia fica a descoberto: as poas de gua so jias cheias de reflexos entre o lodo, e cada penedo com a sua cabeleira escura de sargao verde hmido e translcido um ser vivo. Em todas as poas fascam as enguias que se metem nos aloques, o caranguejo traioeiro e voraz, que espera a presa na sua clausura de pedra, as mantas de pequenos peixes por criar, reluzindo quando, num movimento brusco, mostram ao mesmo tempo o ventre esbranquiado, e um bicho mole como a lesma que se arrasta pelo limo. H fragas enormes, rodas, venerveis, cobertas de lapas aderentes, de mexilhes aos cachos que, sentindo gente, fecham logo a casa, e onde o azul empoa em buracos que reflectem o universo: cabem l dentro o cu, a luz e as estrelas. A toninha, que anda sempre atrs do banco da sardinha, afigura-se-me o ser mais feliz do mar. Tem a mesa sempre posta e inesgotvel. Folgam como um bando solta de rapazes. Do-me sempre uma impresso de liberdade e de vida deliciosa... Saltam, v-se-lhes o dorso reluzente, mergulham e irrompem, com o costado azul a escorrer, quando menos se espera, l ao fundo... s vezes vm pela barra dentro, na onda e na espuma, no jorro impetuoso, quando o mar, como um seio que cresce com volpia e se dilata, se mete pela terra. Setembro mars vivas. As toninhas! Alarido na Cantareira: os homens saltam nos barcos. Um proa leva o arpo, espera o momento e joga-lho. Aquela morre, as outras fogem logo para o mar. Entre estes bichos e outros que conheo, pavorosos, h um salto enorme de pesadelo. Vi as tremelgas nos fundos espessos e lvidos entre os grandes penedos do Baleal, onde as guas tm a cor horrvel das morgues. Pior que podrido e l para o fundo um remexer de vida misteriosa. Reparo, e de repente levanta-se de baixo uma revoada de pavor, panos vivos que arfam sacudidos, asas moles e disformes de morcegos que palpitam, dum verde indistinto e elctrico. So as tremelgas, que vm aos milhares superfcie, no sei como nem para qu, vida que faz cismar e mete medo. Suponho o contacto com aquelas peles viscosas, com aquela vida obscura, nos subterrneos esverdeados onde a luz no penetra e fujo! fujo!...
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LUZ E COR O mar s vezes parece um vu difano, outras p verde. s vezes dum azul transparente, outras cobalto. Ou no tem consistncia e cu, ou confuso e clera. De manh desvanece-se, de tarde sonha. E h dias de nevoeiro em que ele extraordinrio, quando a nvoa espessa pouco e pouco se adelgaa, e surge atrs da ltima cortina vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes biam na gua, esbranquiados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com restos de onda que se desfaz e redemoinha at ao longe. E ainda outros azulados, com a cor das podrides. Tudo isto graduado e dependendo do cu, da hora e das mars. H momentos em que me julgo metido dentro duma esmeralda, e, depois, numa jia esplndida, dum azul nico que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando exala-se como um perfume. uma grande flor que desfalece. O doirado no simplesmente doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem uma alma delicada e exttica. AVES Ao fim da tarde, sento-me no paredo do farolim. O mar calmo, a Outra Banda verde, a costa perdida em bruma violeta e o cabedelo entre o rio azul e o mar azul. Atrs de mim acende-se o farol, e na areia um bando de gaivotas aninhadas grasna baixinho. A felicidade aquilo. Mergulham, patinham na gua e levantam voo de repente, embebendo-se no azul para carem a prumo sobre as mantas de petinga. As mais novas, as grazinas, nadam numa poa, outras desfolham-se em revoadas sobre a onda e outras andam tripa na restinga. Tenho visto muitos ninhos, mas nunca encontrei pedras nem ninhos de gaivota... Ei-las outra vez que se juntam num grasnido insolente, com os ps metidos no azul... Um bando de maaricos-reais voa ao lume de gua. Do mar cresce o p verde. A capelinha do Senhor da Pedra, l ao longe, ainda reluz. Mas os ninhos... S mais tarde, muito tarde, que descobri que as gaivotas, os borrelhos e o alguivo, fazem ninho nos areais despovoados, chocando num buraco os ovos pintalgados. Fazem-nos tambm, e principalmente, nas Berlengas. Aquilo delas e do cu. um espectculo enternecedor v-las de p sobre uma pedra e roda os pequenos grotescos a nadar. Por um hbito secular, tm como inviolvel esse asilo. Quase no fogem ao homem, e ningum devia ter o direito de lhes tocar nessa poca de ternura. Uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos, Madame Russell Sage, comprou na Luisiana a rocha de March Island para lugar de nidificao das aves perseguidas. um refgio no mundo. Daqui sado Madame Russell, ou a sua sombra, se j no existe. Se eu fosse rico, comprava tambm ao Estado as Berlengas para as aves marinhas fazerem os seus ninhos, livres da ferocidade humana, que no tem limites, e que at l as vai procurar para lhes destruir a criao. Entre todas estas aves, h porm umas, que vi no Baleal, que me interessaram extraordinariamente. So as galhetas, que comeam a passar em Setembro. Ao escurecer ouvia entre o barulho da ressaca vozes baixinhas e agourentas de bruxedo. Eram as galhetas, que andam sempre aos bandos e pousam nas pedras, ao rs de gua, para dormir. Como senhoras vizinhas, antes de fecharem o olho, conversam de pouso para pouso. Rumor mais alto, mais baixo... Uma risada. Que ? Que ? ouve-se distintamente. 43
Quem ? E logo outra: Matou-a! Matou-a! Uma risada sarcstica e depois um coro: Ol! Ol! noite calou-se tudo, menos o mar, que fala sempre.
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A MORTE DO ARRAIS FOZ DO DOURO Dezembro - 1893 Chegam os dias de Inverno, e aquela voz colrica, que ouo desde pequeno, engrossa e mete medo. um rebramir que acaba sempre na mesma nota profunda u-uu que entra pela terra e pelas almas dentro. Andam enrodilhados no ar farrapos de nuvens e espuma, que o vento cospe para o alto. Cu desordenado e negro como as guas. Os barcos da Foz, da Murada e da Pvoa vm arribados e procuram recolher-se a toda a pressa. Dominando a ventania, o bramido do mar ecoa cada vez mais alto: outra voz imensa e trgica, clamorosa e trgica... A barra cerrou-se de todo em novelos sobre novelos de espuma esverdeada. L fora, para alm da arrebentao, vinte, trinta barcos esperam uma acalmia para entrar. Grandes nuvens desgrenhadas pela lufada dispersamse nos ares. A voz da tempestade e no cu a lividez da morte... Escurece mais: no horizonte fundo remexem cleras indistintas, e quando a vaga se levanta, vem-se os do mexoalho nos saveiros quatro tbuas algumas lanchas da Pvoa e as catraias da Foz esperando o momento decisivo. Durante alguns segundos aquela clera aplaca-se: fica ento um corredor estreito onde o mar no quebra, que preciso atravessar a toda a pressa, fora de remo, num curto espao de tempo, entre a vida e a morte. Tenho-os visto hesitar e desaparecer enovelados a cem passos de distncia. O piloto-mor est no cais e o salva-vidas a postos. Pelas estradas acode o mulherio, com a saia pela cabea, a correr, gemendo e chorando, cheias de angstia e de lgrimas. Algumas so muito velhas e trotam desengonadas com gritos de desespero: Ai o meu rico filho, que o no torno a ver!... E a voz sobe, a voz redobra e aumenta, vagalho sobre vagalho que se despedaa nas pedras, domina o vento e os gritos, e varre em catadupas cerradas o farolim, o cabedelo e o cais, coorte atrs de coorte monstruosa, alagando tudo de espuma, numa fria que chega s nuvens. Ai Jesus! Ai Jesus! Mais gritos, mais mulheres de todos estes stios, com a boca torcida pela dor, salpicadas de espuma e amolgadas como trapos, com os pequenos agarrados s saias. Diz-me o corao que o no torno a ver. No desespere, tiazinha. Talvez arribem a Leixes... Vida de sobressalto, o corao retalhado, correndo sempre a costa, primeiro pelos homens, mais tarde pelos filhos e depois, pobres destroos sem serventia, pelos netos, mal podendo j com a carcaa, e vendo-os desaparecer um a um naquele mar profundo. O piloto-mor mandou iar o camaroeiro, e, com a bandeira na mo, vai dar o sinal aos pobres seres, s angstia, perdidos na bruma, na clera, na luz esfarrapada e lgubre. O salva-vidas est a postos mas quem se atreve?... Duns aos outros no medeiam talvez quinhentos metros a morte. O cais est cheio de gente, todo o cais grita de dor. Esto aqui as mulheres, as mes, as velhas com a garganta sufocada, e que perguntam, numa nsia: Viram-nos? Viram-nos? A lancha onde anda o seu homem no est na barra. Oh Jesus! Talvez no tivesse chegado ainda, talvez esteja j em Leixes. 45
E um velho pescador explica: Est a a companha do Jacintro. Vem l ao fundo outra com a vela rasgada. Esperem... esperem. E os da ti Ana? Por ora no se sabe deles. O meu rico home! O meu rico home! Reparo num grupo petrificado. Fixo uma mulher alta, ossuda, com cara de cavalo, toda vestida de escuro, que geme baixinho a meu lado. A roupa encharcada pega-se-lhe ao corpo, as mos magras e tisnadas, de unhas rodas pelo trabalho, fincam-se-lhe no peito para conter os soluos que lho estalam. Geme sempre, e os olhos tem-nos presos ao longe no negro torvelinho de mar e cu que se confundem. das poucas que no gritam, das poucas, talvez, que compreendem... Mas no cessa de gemer, no pode abafar de todo aquele rangido que lhe vem de dentro, e que talvez o prprio corao esmigalhado pela desgraa... Mais adiante esto aquelas mulheres atarracadas e grosseiras da Pvoa, de saias pela cabea e que exteriorizam a dor com espalhafato. Trs homens, de sueste na cabea e fisionomia grave, perscrutam e procuram adivinhar o momento em que o mar acalma, farto de violncias. Na barra, para c do cabedelo, o salva-vidas dana. Mais gritos. Um bando de mulheres chega ltima hora, vindas de mais longe, com as mesmas lgrimas e os mesmos olhos de pasmo. Detenho-me em frente de outro grupo, com os pequenos agarrados s saias... S aquela, acol, que no chora como quem sabe que as lgrimas so inteis, ou porque no tem mais lgrimas para deitar. Continua a gemer baixinho, na ltima triturao da dor. Senhor dos Navegantes, acudi-lhes! Meu rico Senhor!... Mas o mar e o cu exigem tragdia. Alguns homens arriscaram-se a ir para o farolim e espreitam para longe. Longe uma barafunda turva, um esvurmar de cleras, um redemoinho onde s se distinguem alguns mastros oscilando, e quando a vaga cresce, os barcos sacudidos no alto da vaga. Rolos formidveis desabam sobre o penedo do Co e galgam o cais cobrindo-o de gua a referver. Depois as guas recuam verde-escuro, em placas movedias que deslizam sobre tons lvidos, babugens e riscos amarelados de areia que veio tona. Acol ao fundo uma claridade turva, uma ndoa imvel, talvez o stio do sol; em baixo um movimento confuso de guas com pedaos de nuvens arrancadas ao cu fnebre. Por fim, um largo espao onde uma luz difusa incide e onde se passa uma tragdia maior. No a tempestade, a ameaa; no a desordem, o pavor suspenso. Na barra as ondas avanam cada vez mais altas e mais cerradas, primeiro com uma crista lvida de espuma e depois a desabar em catadupas de gua, em esguichos de gua, em massas que se embatem revolvendo-se, enquanto outras se preparam l para o largo. Varrem a costa, despedaam-se nas pedras. Carreiros um torvelinho esbranquiado; no cabedelo, em Lavadores, at onde a vista alcana, o mesmo desabar infinito toda a costa alastrada de espumas. E a voz imensa deste marulhar de gua agitada sobe cada vez mais alto e enche todo o espao dum clamor que mete medo u-u-u... agora! agora! O piloto-mor d o sinal com a bandeira. Do seu olhar, do seu saber, da sua experincia, depende a vida daqueles homens. agora! Os barcos, levantados no alto da onda ou arrastados para os abismos cavados entre vaga e vaga, avistaram-no l de longe. Alguns mais atrevidos remam. No cais toda a gente sufocou numa rodilha de dor assombrada. As mulheres caem de joelhos. Pedi por eles, Senhor Jesus Cristo! O meu home! O meu rico home! E as da Pvoa arrastam os joelhos nas pedras, gritando: 46
corao de Maria, pidi ao Senhor por eles! Chagas abiertas, Corao ferido, sangue derramado de Nosso Senhor Jesus Cristo, ponde-vos entre eles e o perigo! Uma bate punhadas no peito, outra rasga a cara com as unhas: Perdo para o meu filho nessas guas mrditas! Aquela horrvel suspenso dura dois minutos, trs minutos. Alguns barcos passam; outros hesitam retardados e apanha-os a vaga, que os sacode e despedaa entre cleras e espumas. No cais um grito um grito intil. M raios partam o mar! L vem agora a nossa catraia. Conheo-a e quase distingo um a um os homens curvados sobre os remos. So dezasseis vidas, contando com o moo, so dezasseis coraes diante da morte, a dois passos das mulheres que lhes estendem os braos. volta as ondas redemoinham. Sufocados, curvam-se e endireitam-se, mos nos remos, ps nos bancos, num ltimo esforo desesperado, fazendo parte do barco, corpo e tbua tudo ligado e unido numa s pea. Alguns remos partem. De p, popa, meio nu, agarrado ao leme, o arrais injuria-os para lhes dar nimo: Ah malandros! Ah ladres! Ah filhos duma grande..., remem! Remem! Fora agora!... E a mo convulsa no larga o leme. Logo atrs do barco a vaga monstruosa a desabar sobre eles sempre maior! sempre mais perto!... Remem! remem! berram de terra. E os gritos no cais confundem-se num grito, e o rebramido ecoa nas almas. Um segundo, dois segundos, e esto salvos... Mas a onda quebra. Desaba em catadupas e outra enrodilha-os logo. O clamor das mulheres confunde-se com o eco da tempestade e disperso pela lufada. O salva-vidas apanha um, outro acol agarrado a um remo... O moo! O moo!... O vento cresce, do mar mais escuro avana o negro torvelinho... J no entra mais nenhum. Vo arribar a Leixes. E as mulheres l correm outra vez pela estrada fora, as saias pela cabea, encharcadas de gua, com o mesmo anh! anh!... de aflio, gemendo, chorando, implorando. Algumas velhas tm o olhar fixo do espanto e as mos enclavinhadas sobre o corao que j no pode mais. E rangem anh... ahn... Trpegas, descalas, sob o aguaceiro que desaba, to amolgadas pela vida que parecem farrapos molhados de lgrimas e cuspidos de espuma. E l seguem... Talvez entrem em Leixes ... E l seguem tendo caminhado lguas, rezando, suplicando, chorando, ou, pior, emudecidas pela dor, a tbua do peito apertada, a boca entreaberta e os olhos fixos no mar... Ai Jesus! Ai Jesus!... O arrais encontrado ao outro dia morto no cabedelo. O mar partiu o barco pela quilha, enterrando na areia a carcaa intacta da r, e torceu-lhe o brao como quem torce uma corda. Mas nem o mar nem a morte conseguiram arrancar-lhe o leme das mos crispadas.
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ALGUNS TIPOS Conheci muitos pescadores na Foz. Conheci o Bil e o Mandum, que findou a vida a passar inglesas para Lavadores. Conheci os Condes, dois irmos secos, denegridos, ambos mortos no mar; os Jeremias, um que acabou embarcadio e o outro piloto da barra; o Joaquim Banheiro, ruivo e alto, com desenhos nos braos que eram o meu envelo uma ncora e um corao atravessado por uma seta; o manhoso Tarrafa, de fala retardada e voz pastosa e lbrica, que convidava as moas para irem com ele praia alar um espinhel; o Joo Mouco, que com uma linha e engodo pescava comigo enguias na lingueta da Cantareira, entre o alarido das mulheres e o salpico das ondas na enchente... Lembro-me dos que moravam na tortuosa Corguinha, lajeada de grossos seixos, e que corriam com um rudo estrondoso de socos quando largavam os barcos dos pilotos. Vejo-os nos seus stios, ouo-os falar, aos vivos e aos mortos, no minuto em que se fixaram na minha memria como uma srie de instantneos, uns apagados, outros to ntidos que lhes distingo a cor do plo. Acol porta do armazm da Penso est sentado um velho a desfazer cabos para estopa com os dedos grossos e hesitantes. O Teca, que correu todos os mares da frica e do Brasil, conserta a rede no varal. Ningum como ele sabe onde d peixe. Cheira-lhe. Na revessa do cabedelo apanha o pimpo e a faneca e com a chincha o peixe mido nos charcos da vazante. Todos os dias sai no caque para largar os espinis, ou vai na robaleira para a boca da barra. O Teca, apesar de velho como a serpe, no tem idade determinada: conserva o cabelo cor de estopa sem uma branca, e os dentes todos. E com esta a quarta vez que casa. sr. Jos, ento agora... e com uma rapariga?! E ele, sem se alterar: Eu c, menino, at morte mulheres e espinis. Lembro-me do Manuel Calafate todo o dia a meter estopa nos interstcios das tbuas, e dos carpinteiros de machado a remendar os barcos dos pilotos sombra das trs primeiras rvores do Passeio Alegre. O homem da Maria da Viela viveu e morreu piteireiro. Nunca falava: sorria sempre, com o olho pisqueiro, o ar satisfeito, o cachimbo de barro metido na goela. Quanto ganhou, quanto estafou na taberna. Ela barafustava e no sei se lhe batia. Ia-o buscar loja e levava-o aos empurres para casa, ralhando todo o caminho e ele, calado, inaltervel, a cuspinhar, numa satisfao interior e perfeita. Todas as noites saa a barra sozinho, dentro do caque, a remo ou a vela, e a cair de bbado. Voltou sempre mar manso, mar ruim e nunca deixou de trazer peixe para beber. Um dia, com medo a um desastre, no o deixaram mais ir ao mar. Arranjou outro oficio: passava para a Outra Banda as mulheres que vm ao Porto com as canastras, e que depois, no regresso, embarcam na lingueta de Lordelo. A passagem nesse tempo custava trinta ris, o que evidentemente no lhe chegava para beber sua medida. Puxou pela imaginao e abriu no fundo do barco um furo que tapava com uma rolha. Embarquem, meninas! Embarquem! dizia o rapaz que o ajudava, chamando a freguesia. Embarcavam as mulheres aos ranchos e depois de tudo arrumado, toca a remar. Meio do rio Alto! dizia ele ao rapaz. E o rapaz parava. E ele baixava-se e tirava a rolha. E o esguicho repentino de gua enchia de terror o mulherio, que se punha em p aos gritos. No se mexam! Agora quem quiser chegar Outra Banda tem de dar mais um 48
pataco! Creio que foram estas as palavras que pronunciou mais vezes durante a sua vida. Por fim, naturalmente, o caque do Jos da Viela foi olhado com desconfiana e terror embora o rapaz, em quem ele batia com uma corda, se esfalfasse a gritar no cais! Embarquem, meninas! Embarquem! que temos mar de feio! Foi ento que se decidiu a morrer de desgosto, bbado como sempre, a cuspinhar para o lado e de cachimbo na mo. E s depois que a Maria da Viela respirou e botou cordes de ouro com o ganho da canastra. O sr. piloto-mor s abre a boca para ralhar. De quando em quando aquele vozeiro tremendo ecoa na Cantareira e cala-se tudo. Toda a gente tem medo desse homem seco e tisnado, autoritrio e duro, de grandes barbas brancas revoltas. Ningum se atreve a dirigir-lhe a palavra e todos os pescadores, quando ele passa como uma rajada, tiram os barretes da cabea. Noutro dia estiveram alguns barcos em perigo. O salva-vidas!... E o salva-vidas l desceu pelo guindaste at ao rio, mas no apareceu ningum para o tripular. Ento ningum vai?... perguntou o piloto-mor. Mas os homens em grupo, encolhidos, no responderam. Ento vocs tm alma para os deixarem morrer ali nossa vista? Um mais atrevido disse, por fim: Quem l for, l fica. O salva-vidas no se aguenta com este mar. E o vozeiro a sair das barbas brancas: Pois ento vou eu, com os diabos! Vou eu e fico l. E vou sozinho se ningum quiser ir comigo. Saltou dentro do barco e com ele uma dzia de homens. A Maria da S ficou viva, com dois filhos que faziam grande diferena de idade. Um andava na catraia do Manuel Jacinto, mas ao mais pequeno no o deixava ela ir ao mar. No, tu no vais... Todos os pequenos da Cantareira se juntam nas poas, com barquinhos de cortia. Arranjam uma vela com um farrapo, fazem um leme dum pedao de casca, e arregaados, descalos, aprendem a manobrar os barcos com entusiasmo. Ora! Ora! Ceia agora... Olha o meu como bolina! Se a Maria da S o surpreendia com os outros, deitava-lhe as calas abaixo e batialhe como uma desalmada. Custaste-me muito a criar. Hs-de perder o sestro. Mas ele no perdia o sestro. O mar atraa-o irresistivelmente. Um dia lanou-se a nova catraia ao mar e o irmo interveio: Deixe ir o pequeno comigo. Vai ganhando... No vai, j to disse. Ambos pediam, um falando, o outro agarrado mo do irmo, com medo me, e no tirando dela os olhos ansiosos. No sei para que vossemec o est a criar... Vai como moo, ganha um quarto, e ns precisamos, bem o sabe... No! 49
Eu sei o que vossemec pensa. Tolices. L por o pai ter morrido na barra no se segue... E eu? Ento vossemec tem-lhe mais amor do que mim? Tu s um homem. Deixe-o ir comigo. Na minha salvao, que lho trago. Eu respondo por ele. E o pequeno, de olhos muito abertos, numa nsia de ir ao mar, como o pai, como os irmos, como os homens: Me, deixe-me ir. Foi. Foi muitas vezes, at que l ficou com a catraia na barra. Oito dias, contados um a um, andou aquela figura vestida de escuro, a correr a costa, a espreitar os areais e os penedos, com os olhos fixos, espera que o mar lhos restitusse. O mar acaba sempre por vomitar os mortos. Mais dia menos dia os arrolados vm tona e depois praia. Apareceram no cabedelo, unidos um ao outro. O mais velho erguia nos braos o mais pequeno, procurando salv-lo. Fui v-los. Os caranguejos tinham-lhes rodo os olhos e as bocas. Metiam medo mas havia naquele grupo de horror uma ternura to profunda e indestrutvel que nem a morte conseguira separ-los... Ainda tenho diante de mim o moo agarrado aos braos rgidos do irmo, que o levantava para o alto, sempre para o alto, num derradeiro e desesperado esforo. Um dia inteiro, cobertos com o lenol branco que o vento sacudia, estiveram arrolados no areal, e ao lado deles, de joelhos e curvada, falando-lhes baixinho, aquele vulto escuro, que no auge do desespero no tinha uma lgrima para deitar. Dentre os muitos poveiros que vinham Foz, taberna ou fonte, houve um, o Jos Lib, que se me afeioou. Um dia dei-lhe uma navalha velha e ficou meu amigo para a vida e para a morte. Era um colosso. Dois olhinhos sumidos na cabeorra, mos enormes, braos como trancas e um corpo macio e quadrado, a que ele, desajeitado, no sabia o que fazer. Na taberna enfumada da Cantareira era eu quem lhe escrevia as cartas para a namorada. Ponha l, senhor Arriulo... Ponha l o qu?... No dizia mais palavra. S olhava para mim suando de aflio. Mas era tanta a ternura nos seus olhos, que se estabelecia entre ns dois uma espcie de comunicao magntica... Tenho perdido tudo. Deixei passar por mim as melhores coisas da vida quase sem dar por elas. Tambm perdi, com indiferena, a cpia dessas extraordinrias cartas de amor de um poveiro a uma poveira. Ele trazia na cesta, com o po e o conduto, o papel bordado para a carta e sentava-se na minha frente, com a cabea vermelha de ruivo apertada entre as mos como cepos. E olhava-me numa imensa aflio: Ponha l, senhor Arriulo espera que eu encontrasse as palavras mgicas com que havia de enternecer o corao da Josefa Perneta. Queres que diga mais alguma coisa, Jos? Ele, fascinado, acenava com a cabea que sim. Mais alguma coisa... Ponha l, senhor Arriulo. Isto estabeleceu entre ns, que pouco tnhamos que comunicar, porque o Jos s sabia a meia dzia de palavras necessrias sua profisso e sua vida muito simples, uma amizade que s acabou quando o poveiro partiu para Momedes, j casado. Bateram um dia porta da viela: era ele que vinha despedir-se e que tomava todo o espao das ombreiras, com um saco de conchas, um bicheiro novo e duas pescadas enormes. As pescadas comi-as, deitei fora as conchas, e o bicheiro conservo-o a um canto do meu quarto, espera de ver que destino Deus lhe reserva... Conheci muitos destes homens, sanjoaneiros, poveiros, da Murada, e at os 50
valboeiros da Pvoa, que na Foz se chama de Cima, hoje desaparecidos, lavradores da margem do Douro que desciam rio abaixo nas lanchas de madeira por pintar, grosseiros e tartamudos, acudindo ao cheiro da pescada em certas pocas do ano, com as suas redes, os seus tipos de trogloditas e uma vozearia infernal que durava at a noite velha nos barcos fundeados na revessa do Relgio... Assisti muitas vezes s conversas dos pescadores quando me deitava ao lado deles na Cantareira. Falavam do mar, das redes, dos quinhes. Silncio... Alguns dormiam ao sol. Depois falavam todos ao mesmo tempo, sem se entenderem at que o arrais, que desfazia no cncavo da mo o charuto de picar, dizia a ltima palavra sobre a questo. So preguiosos. Enquanto a taberna fia, ningum arranca o manteigueiro ao falatrio e loja. As mulheres vo-nos buscar: Ento estes diabos no vo ao mar? O que distinguia o antigo pescador era o conhecimento das pedras da barra da Laje, da Eira, da Pedra do Co, do hbito dos peixes, das redes e do mar das quarenta braas, e um instinto especial que adquiriam fora de hbito e que se parecia com o faro. Fora disto eram crianas. Um vozeiro que metia medo e qualquer pessoa os prendia e cativava. O velho Patarra de Mira, porque um amigo meu lhe falou com bondade pagando-lhe um copo de vinho, todos os dias, s escondidas, lhe atirava peixe pelas janelas dentro. Quando partiu, todos os pescadores o acompanharam pelo areal fora, at que ele lhes disse: Agora vo-se embora. Ento abraaram-no desatando a chorar. Mas os velhos, com as cabeas brancas, esses ento so crianas perfeitas. Os da Penso, na Foz, eram homens de poucas falas, que s abriam a boca para cumprimentarem o sr. piloto-mor. Quando entrava algum navio e a barra estava perigosa, ouvia-se gritar: Os homens da Penso! E eles l iam, balouando-se, de barba de passa-piolho, compenetrados da sua importncia e saber. Rudes, grosseiros, crestados pelo mar, embreados como velhas tbuas de teca e olhos azuis e inocentes de criana olhos de leite... Os vagares passavam-nos a abrir, na cortia ou no pinho mole de Flandres, barcas, iates, lugres com todos os apetrechos, todas as cordas, todas as velas talhadas a preceito, e lindos nomes escritos no costado: A Boa Nova, a Mariquinhas, a 2 Esperana. De todas estas figuras ficou-me uma figura para sempre: um tipo sem nome, maior que a realidade, de msculos como cordas. Sua misso no mundo remar. De trilhar o remo ficou curvo, e tem as palmas to encortiadas que nelas afia a navalha como numa pedra de amolar. O mar denegriu-o e engrandeceu-o. No sabe exprimir-se e mal nos conseguimos entender. Mas no me mete medo como outras figuras trgicas da vida: olha para mim e s lhe leio nos olhos ingenuidade e ternura...
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AS BERLENGAS Agosto - 1919 bidos visto da estrada o cenrio dum prespio, com as muralhas recortadas e moinhos de vento a trabalhar na encosta. S lhe faltam alguns pastores, com gaitas de foles, descendo o monte... Pequena vila adormecida e quase intacta. Nunca passo por uma destas terrinhas que no me fique pena de l no morar algum tempo, no silncio recolhido, deixando a minha vida presa aos vivos e aos mortos. Isto tem um ar to afastado do mundo! No se ouve rumor. Um sino tange ao longe... Se h aqui interesses, esto submersos. A vila foi agora mesmo desenterrada com as suas igrejas, e a ruazinha principal onde no mora ningum tudo cercado de muralhas de pedra escura, que aproveitaram as ondulaes do terreno, at se fecharem l em baixo na porta principal com azulejos, e que parecem ter crescido to naturalmente do morro como as rvores... Alguns minutos e sigo pela estrada triste at Serra dEl-Rei. O cho produz milho amarelo, baixinho, e a areia um vinho branco que tem fama. So trs horas de caminho at este stio onde viveu D. Pedro, o Cruel. Do seu drama restam paredes desmanteladas e uma fonte que continua a correr e a apagar a sede de quem passa. Curvei-me, bebi tambm, e, transposto o pinheiral, dei com o amplo panorama de terra e mar: a costa, esquerda o cabo Carvoeiro, em frente a rocha do Baleal e ao fundo as Berlengas delicadamente pousadas na gua... Peniche horrvel. Por toda a parte por onde tm passado os homens dos municpios por toda a parte transformaram as terras cheias de carcter em terras incaractersticas, com edificaes banais, avenidas novas e chals de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi uma fortificao e um ninho de piratas isolado e feroz, espreita do naufrgio e da presa, cheira que tomba, e s conserva duas coisas interessantes: o cabo (ho-de deit-lo abaixo) com a Senhora dos Remdios, e a esplanada, que um esplndido cenrio para o ltimo acto da Tosca, e um ponto de vista admirvel para o sul grande trao indistinto a roxo, com um ou outro casal, uma ou outra aldeia dispersa e sem nome. Mas Peniche sobretudo horrvel para mim porque o tipo da pesca industrializada, o barraco, a fbrica de peixe, a caserna da sardinha, onde impera o Fialho do Algarve. S me ficou uma impresso grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora e entrei por acaso num rs-do-cho, escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez anos. Outras ainda menos. Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas mulherezinhas, sentadas no cho e debruadas sobre os bilros e os piques, levantaram a cabea e puseram-se a rir para mim... Elas ho-de ser mulheres, eu hei-de ser mais velho do que sou, e no me passa a impresso de ingenuidade e de pureza, dos olhos a sorrir e dos biquitos abertos cor-de-rosa... Daqui ao cabo meia lgua atravs de muros, vinhas e casebres. Quero olhar para as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei cismtico... A Senhora dos Remdios escavada na rocha subterrnea, junto a fragas enormes que mal se sustentam de p e que os vagalhes assaltam formidavelmente. Que voz l no fundo, e que esplendor de luz nesta mole negra e cenogrfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspecto estranho de torres medievais, com gua esverdeada a escav-las e a ro-las nos antros e cavernas, que ficam a cinquenta metros de profundidade e que repercutem ecos, ameaas, uivos e lamentos de desespero, splicas dramticas! o Castelo do Diabo... E 52
no fundo do horizonte sempre aquelas trs nuvens pousadas sobre o mar, chamando por mim. Atraem-me e fascinam-me. Vou primeiro ao Baleal, que a mais linda praia da terra portuguesa. No passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros mas esta rocha uma ossada, e talvez o ltimo vestgio da Atlntida, saindo do mar azul a escorrer azul, e presa terra por um fio de areia que nas mars mais vivas chega a desaparecer. Deste ancoradouro, com uma baa ao sul formada pelo Carvoeiro, e com outro cncavo ao norte entre a rocha e a costa, v-se o esplndido panorama da terra, do mar e do cu. Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no meio do mar dramtico. Voga-se em toda a luz do cu e em toda a cor do mar. Dum lado o areal em circo e aquele grande morro estendido pelo mar dentro; do outro, e at onde a vista alcana, todos os tons da costa, desde as labaredas das terras sulfurosas e as chapadas negras dos rochedos, com riscos de vermelho, at ao biombo que vai passando e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois transparente at atingir o indistinto e o difano numa ltima palpitao de claridade nublosa. E tudo isto muda de cor e se transforma segundo as horas que passam. H momentos em que doirado, de manh ou hora do poente. H outros em que me sinto abismado em azul e atascado em azul. O movimento das ondas esmorece e acalma. volta s luz e cor. A costa some-se. Uma apoteose de ouro e verde l no fundo. Do horizonte praia corre e cintila a esplndida estrada do sol. E agora reparem! reparem! o mar verde e o cu perdeu a cor... A aco das guas incessante nestas velhas pedras carcomidas, onde meia dzia de casas de pescadores se agarraram como lapas. A ressaca infiltra-se nos buracos, gasta-as e desgasta-as, at as reduzir a crie, a penedos com baba, a ossadas pulverulentas, petrificao da prpria vaga quase a desabar. H-as cor de giz, cortadas em fatias, dispostas umas sobre as outras, h-as amareladas como caveiras e formando praiazinhas enconchadas, de areia muito fina, onde at o mar se esquece e espraia adormecido. No vi rvores. Nasceu aqui uma figueira por acaso, que, no podendo crescer, alargou a roda e tem um metro de altura. A nica vegetao a das ervas, a quem um pouco de terra basta para viver. So inteis. So vidas humildes que a tudo se sujeitam e chegam a cumprir o seu destino custa de sofrimento. Do meio da ilhota sai uma fraga mais saliente com a capelinha de Santo Estvo no alto e a praia dos batis no fundo. L para diante outra rocha destacada, a ilha das Pombas, todo o dia salpicada de espuma. Tudo isto perdido no azul ou assaltado pelas ondas colricas. Os vagalhes avanam e despedaam-se de encontro s pedras, que vomitam espuma e ficam a babarse pelos buracos pudos. E outra l vem outra incessantemente para o assalto! Algumas enormes varrem o extremo norte do Baleal numa clera tremenda. As noites so profundas, admirveis e cintilantes de pedraria grandes como Deus. Pesca quase no h. A pesca mudou para Peniche. O ltimo batel chamava-se Santo Estvo, tinha duas velas e levava redes de pescada e redes de lagosta. De cada rede era distribudo um quinho para o homem, outro para o patro e um quarto para a companha. Mas vm aqui pescadores de fora. Um dia encontrei com alvoroo uma saveira encalhada no areal. Vocs donde so? Somos da Amurtosa. Estes homens morenos e geis, da Murtosa, da Torreira e da Murada, tenho-os encontrado com as suas saveiras em toda a costa norte at Lisboa. Encontrei-os em Peniche, na Caparica e em Sesimbra, onde lhes chamam ilhos, nos esbeltos barcos escuros, 53
pescando a lagosta com os roscos; encontrei-os na Foz do Douro apanhando o mexoalho; ao arrasto do svel nos rios, e fisgando a solha ou a lampreia, que se apanha noite com um candeio e um garfo atado num pau. A sua casa o barco. Metem-se em todas as anfractuosidades da costa. Quando pressentem o temporal vo acolher-se a Peniche ou Figueira. Andam sempre em famlias de trs e quatro barcos. Acampam na areia, e com o mastro atravessado, uma panela e a lenha apanhada no mar e que desfazem em cavacos com a machadinha, traste indispensvel em cada barco, acendem a fogueira como ciganos. Mas se o mar est manso e a noite de luar, no vm terra. Largam a fateixa ou a poita e acendem o lume a bordo para a saborosa caldeirada. Sempre que via brilhar os fogarus invejava profundamente aquela vida simples diante de Deus e do mar. Ao fim da pesca, que dura meses, e quando se anuncia o Inverno, recolhem pressa s suas terras como aves emigradoras. Se o vento de feio, em doze horas pem-se em Aveiro. Se contrrio, quando a vaga cresce e as gaivotas se metem grasnando pela terra dentro, arribam aqui e ali e levam dias a chegar a casa, onde passam com as mulheres e os filhos a poca das rudes invernias. Passo trs dias deitado numa pedra a namorar o recorte delicado das Berlengas. Atraem-me como em pequeno as ilhas misteriosas e desertas dos meus sonhos. Por fim meto-me num barco, e depois de trs horas a remos vejo-as mudar de cor e encher o horizonte. Distingo as mincias na Berlenga grande, em Santa Catarina e Farilhes, e ponho o p em terra com assombro. um monte espesso com um castelo na base, assente numa pedra destacada e ligado terra por uma ponte em aqueduto. Mas o monte solitrio sai todo vermelho da gua verde e grossa como um vidro e o castelo o ltimo refgio dum pirata que surpreende mulheres na costa para as violar na ilha... Este granito est coberto de lquenes ferrugentos, que ao pr do sol escorrem sangue, e cor da rocha compacta contrape-se a da fortaleza de tijolo, carcomida e doirada, que data de 1676, e que se rev na gua translcida. Nunca vi gua assim: uma lente esverdeada, que desvenda fundos mgicos. Subo um carreirinho a pique. Sento-me no planalto, e olho. Olho, no bem trespasso-me. Trespasso-me de cor, de luz, de amplido. O que aqui existe e domina e o azul do cu e o azul do mar. Bebo-o. Vaguei-o uns dias ao vento falando s. Viver aqui viver em pleno cu. ser nuvem e mar, ser azul. A vida sobre esta base de granito no tem corpo. A grande rocha est suspensa no vcuo porque o mar p verde muito tnue e a costa p roxo a diluir-se. Do alto v-se o cabo Carvoeiro, e mais para o sul, a praia da Consolao, a Ericeira e a praia de Joo Salgado, e, para o norte, o Baleal, a Foz do Arelho, S. Martinho do Porto, e, at onde a vista chega, a ocidental praia lusitana. Mas isto num sonho fundido em azul, para l do mar com veios espelhados, desde o pedestal desta rocha imensa, onde vegeta o perrexil e o cardo, at ao infinito. Do outro lado, para alm dos recortes afiados dos Farilhes, das Estelas e de outras pedras escumantes, fica o mar eterno. So extraordinrias as manhs, com uma ponta de nvoa em que o mar se dissolve, e os fins de tarde, oiro e verde, a que se sobrepe o violeta com aquela voz magntica sempre a chamar-nos l em baixo, j escuro, do fundo das guas e o morro vermelho a emergir do oceano... No me canso, extasiado. Vou por outro carreiro, pelas escadas de palmo abertas na pedra. Dou com as runas dum convento. Nos restos arruinados da capela copio diferentes datas: fr. Lobato, 1622; outra: 1606; um corao com duas letras enlaadas L e R 1615. Fico a cismar... No fundo avisto uma praia solitria, um cncavo do 54
tamanho da mo, onde nunca entrou o sol. Fria e plida, entre grandes rochas negras e cenogrficas que emergem do mar e se recortam no azul, transe-me como um stio misterioso que o homem visse pela primeira vez. Olho-a com medo. No me atrevo a devass-la... isto mesmo... As ilhas desertas so habitadas. Tenho a sensao estranha de um contacto gelado: desconfio que anda por aqui uma alma virginal e pura e ao mesmo tempo cruel... Deso s cavernas misteriosas de que furado o ilhu. H-as cheias de fetos e um fio de gua escorrendo: todo o morro se concentra e espreme para deitar aquelas gotas frgidas. Outra: um entalhe nos paredes de granito, e a onda leva o barco pelo corredor estreito sobre algas com grandes pinceladas de branco nos cabelos. So enormes. So velhssimas. Sinto que nos adivinham e estendem os grandes braos esguios, procurando enlear-nos. Olho para baixo... Todo aquele verde, camada sob camada, remexe at s profundas como cobras agitadas pelo mesmo desejo. Esperam... Esperam a presa. Quase no h gua. gua do mar, s a que se mete entre interstcio e interstcio de folha. O que h uma vida escorregadia e verde, um sonho monstruoso, numa luz glauca e movedia, um verde lquido, com transparncias doiradas superfcie e que se vai carregando l para baixo at ao verde-negro, ao verde-desespero, que no fundo dos fundos espera, cego e imvel, a presa para a devorar. Anos atrs de anos passam na meia obscuridade da caverna, choque-choque... um rudo de passos ou a gua nas pedras? Choque apagado, mole, longnquo... Os filamentos verdes enrodilham-se, flutuam ao lume de gua, ou repousam como braos inertes. Toquem-lhes e logo a mesma nsia elctrica os sacode e se transmite at escurido concentrada que se alvoroa... Os remos pegam-se a esta carne movedia e sob as tbuas sinto o contacto da vegetaao que nos pressente. Cair aqui ser apanhado por braos piores que os do polvo, que nos sugam, ser estreitado e submergido em camadas escorregadias e tenazes ao mesmo tempo, envolto em milhares de cabelos vidos, e descer entranhado num pesadelo verde e mole. No h a que deitar as mos. a viscosidade, a vida obscura, inconsciente e verde, que, com a fora e a tenacidade da inrcia, acabam por nos afogar num poo sempre mais fundo; cada vez mais fundo, cada vez mais escorregadio e mais fundo... Mal se v: uma espuma e um fio azul estremecendo ao cimo da babugem. O corredor aperta-se e o barco desliza num tnel. Mais escuro e as algas espera da presa... Esperam anos. Meto a mo, retiro-a logo com medo das peles gelatinosas e frias. Nos penedos negros, chapadas mais escuras com estrias vermelhas e buracos que se afundam l para dentro, para a espessura incgnita. Na penumbra, a luz que vem de fora reflecte em ondas nas muralhas o movimento incessante das guas. Claridade ao longe, mais luz, e desemboco numa esmeralda engastada em vermelho, numa praia de areia intacta e fina, entre paredes temerosos cor de ferrugem. Em cima a nesga do cu. Dum lado o poo entreabre-se e v-se o mar num rasgo para l das rochas que lhe defendem a entrada. Um fio de areia dourada... Ilumina-o uma luz fria de fjord, uma luz morta de paisagem lunar uma luz que silncio ao mesmo tempo. Serena. Serena e indiferente como este esprito que habita a ilha, belo, feminino, solitrio e perverso e que deve ter aqui o seu antro... gua imvel e silncio transido. Na areia onde ningum desembarca descubro uma pegada intacta, o molde delicado de um p de mulher. Volto, subo ao planalto e espero a noite debruado sobre a praia misteriosa. A sombra corta o abismo em diagonal, deixando um paredo iluminado; mas, como a lua avana, a escurido desloca-se e abranjo um pedao indeciso do fundo. Luar, farrapos suspensos da muralha a pique, nichos com salincias onde a luz escorre tecendo fios como uma aranha nas paredes duma catedral desmantelada. Uma ave remexe no ninho e 55
torna o silncio mais pesado e maior. L em baixo fios estremecem no alto da ondulao. Reluzem, apagam-se e o recanto da sombra redobra de espessura, cosido com a parede como um malfeitor. Desenham-se arabescos fantsticos no abismo, que assume propores extraordinrias de profundidade e de mistrio: l em baixo, com a assistncia dos monstros nos nichos que olham e calam passa-se qualquer coisa que pertence antes ao sonho. Um pedao de luar, de repente, coalha na sombra; todos os fios brilham ao mesmo tempo como a baba dum caracol luz primeira da manh; figuras tnues, que vo desfazer-se num sopro, saem enlaadas do escuro, numa ronda silenciosa que se some no negrume e reaparece outra vez. Estou de muito alto e a luz muito fraca... Mas j no tenho dvidas: so as nereidas, filhas da incestuosa Dris, no seu ltimo domno... 25 de Agosto Mesmo junto ilhota armam os pescadores a valenciana, porque este um dos pontos mais piscosos da costa. Ainda hoje a sardinha, que salta ao lume da gua, acode em bandos compactos. Pesca-se o pargo mais saboroso de Portugal e a dourada com riscos na cabea, de oiro cor de fogo da loua Talavera, o atum, a muge, o godilho e a lagosta, que se apanha em covos. Fisgam-se nas misteriosas cavernas polvos velhssimos como os de Vtor Hugo, que vivem em buracos onde s chega uma luz amortecida e verde, atenuada pelas algas desconformes. Aqui tm tambm as aves martimas o seu ninho predilecto os airs, as galhetas e as gaivotas, que passam num grasnido quase humano e que criam os filhos nos paredes a pique, onde s se chega arriscando a vida. Neste fim de Agosto passam para o sul bandos de patos formados em ngulo agudo, com o guia no vrtice; pombos cinzentos que voltam de terra com os papos cheios de sementes; maaricos-reais que piam ao pousar no areal, levantando voo para piar mais longe; e o cisne negro que nos dias de temporal dana ao desafio na crista das vagas, furando-as como bom mergulhador. Se houvesse justia no planeta, eu j tinha sido nomeado governador deste castelo, onde vivem trs veteranos que de velhos criaram musgo ou pelo menos faroleiro. Como sou um contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser felizes diante deste espectculo sempre igual e sempre renovado. De Inverno nenhum barco atraca s Berlengas. S e Deus no mais belo stio da costa portuguesa! ... Atrevome a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que est metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me no v, a esfregar e a polir os metais reluzentes. Hem?... Hum!... Rosna e no diz palavra que se entenda. Ol! Olha-me com desprezo e continua a polir os metais j polidos, como se eu no existisse. Mas no desanimo facilmente e teimo: Que beleza, han?!... Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pano fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiana cheio de clera: Que beleza o qu? Que beleza?... Isto?! E ri-se. O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno no me deixa chegar porta, e o mar todo o dia, toda a noite a bramir! O mar 56
desesperado, o vento desesperado... Eu no sou um faroleiro sou um nufrago. Que beleza hem?... Nem posso dormir! Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaando submergir esta ilha do diabo! Julguei-me autorizado a interromp-lo: Mas no Vero esplndido... Nem olho. S me resta uma esperana fugir. Se no me mudam, endoideo. O amigo sabe quantos endoideceram j? Trs!... E atirando os braos para o ar: Uma calamidade! Aqui no se sabe nada, aqui no chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumnica aqui chegou. E no posso ter uma couve, no posso ter uma abbora... Os coelhos devoram tudo. uma praga! D-lhes tiros. Tiros?! E ri-se com dois dentes e desprezo. Quando quero um coelho, ato um anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero um peixe, ato um anzol a uma linha e deito a linha gua... Mas o que eu quero fugir! Fugir! Fugir para muito longe, para onde no oia o mar, para onde no veja o mar! Roncou... Percebi que repetia com escrnio: Que beleza, han! ... E voltando-se, outra vez com o pano na mo, continuou a esfregar e a polir com desespero os metais de costas viradas para o mar... Olho pela derradeira vez. para sempre que quero fixar a imagem, a ltima, a definitiva, a essencial, do morro vermelho a emergir do mar imvel, cheio de pedras espumantes a da Velha, a da Estela, a Pedra Redonda, a Pedra de Todo-o-Peixe, o Guilho... Duas manchas bastam-me para toda a vida, uma etrea, a outra sangrenta, com um castelo queimado e requeimado como um velho cachimbo ao p do vidro grosso da gua. Duas manchas e um pormenor: o fio de areia onde ficou impresso um p delicado de mulher... Regresso num fim de tarde toda de oiro, num mar todo verde. So outras trs horas a remo. Deito-me no fundo enxuto do barco e absorvo-me na luz que se transforma. roxa agora. Desvanece-se mais. Estou encerrado numa grande jia translcida e vivaviva! que pouco e pouco muda de cor. Violeta, toda violeta, e vai desmaiando como quem morre devagarinho com saudade...
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NAZAR O HOMEM Junho - 1923 Para aqum de Mira pesca-se sempre da mesma maneira e com idnticos aparelhos, na Tocha, na Costinha, em Quiaios e em Buarcos, onde h uma rede curiosa para o robalo e sargo a majoeira que flutua na crista da vaga ; pesca-se na Figueira, em Pedrgo e em muitas terrinhas perdidas pela beira-mar, como no areal perto da linda Coimbr, que me deixou preso ao seu pacifico encanto e s suas casinhas trreas alpendradas. uma terra de mulheres. So elas que a habitam e que cultivam a areia movedia, enquanto os homens, todos serradores, trabalham em Lisboa no ofcio. Mas a Nazar a terra mais importante de pescadores nesta parte da costa portuguesa. Do Valado Nazar so seis quilmetros, quase sempre atravs do montono pinheiral de El-Rei. um majestoso templo que no acaba e onde a solido se torna palpvel entre os troncos cerrados e sob as copas espessas. Por fim o caminho desce, passando a Pedreneira, e avista-se l em baixo a branca Nazar e o mar apertado num vasto semicrculo de montes verdes, que mergulham no azul os alicerces. Ao norte o panorama acaba de repente num paredo temeroso, que entra direito pelas guas e entaipa o cu. um morro avermelhado e riscado, com vegetao pegajosa de urzes e de cardos e um penedo destacado na ponta o bico do Guilhim. L em cima as paredes brancas duma aldeia rabe entre sebes de cactos hostis o Stio. Pedaos de rochas salientes ameaam desabar a toda a hora... 7 horas Ao pr do sol, e com a nvoa da baixa-mar, que o hlito puro das guas, este paredo compacto no direi que oscila seria um exagero mas empalidece e desmaia, desfeito em p cinzento e dourado... Deso praia ao fio de areia enconchado, cheio de mulheres que carregam peixe ou que o despejam ainda vivo nas grandes xalavaras, por entre barcos agrupados. Trs juntas de bois correm sem cessar de batei para batei que abica, entrando na gua e puxando-os para cima. Mais longe as netas arrastam sacos de carapau e de sardinha, e no mar que tremeluz em escamas sobrepostas, balouam-se junto ao morro, tona de gua, as grandes bias das armaes valenciana que os pescadores levantam de manh e ao pr do sol. Esparsos, mais barcos, chatas e lanchas de galees, alguns com lindos nomes: Formosa Ana, Luz do Sol, Senhora da Memria, Mar da Vida. At l ao fundo pelo areal todo o dia e toda a noite se arrastam artes. Abicam os batis das caadas, que levam oito, nove, dez espinis por cada homem, e este movimento aumenta pelo dia fora. Na capitania esto matriculados trinta batelinhos para a pesca da lagosta com cobos, quarenta chatas com redes de caranguejo, quarenta e cinco aparelhos de arrasto, doze cercos, que s trabalham no Vero, porque muita desta gente vai de Inverno pesca do bacalhau, seis armaes valencianas, duas redondas e trs traineiras a remo. um extermnio. H ocasies em que dia e noite se grita, leiloa e salga. Em nmeros redondos, a pesca rendeu o ano passado dois mil contos de ris. Se h peixe, a labuta aumenta e trabalha-se at de madrugada. S uma noite destas o 58
chicharro deu cinquenta contos. Est tudo preparado para a matana. Homens de vigia no mar em pequenos barcos, quando pressentem o cardume, do sinal a outros postados no Stio para que acudam os cercos. Vejo-os conduzindo as redes do arraial ou das cabanas para o barco; remendandoas ou secando-as estendidas no cho ou sobre as recoveiras. Vejo-os carregando dois a dois, num pau atravessado de ombro para ombro, os lavadeiros, gigo que leva cabaz e meio, fortes, denegridos, vestidos de escuro, camisola de l e cala segura pela faixa preta enrolada seis vezes volta da cinta, e na cabea o barrete de carapinha com uma borla feita de duas ou trs meadas de l o Joaquim Chita, o Carlos Petinga, o Cara M, o Manuel Panelo, o Joaquim da Poupada, o Ernesto Caneco, o Rebola, o Vale Nove, o Vila Mona, o Bexigas, o Mixrdias, o Chicharro, o Ganso, o Esgaio, o Peixe-Posta, o Beca, o Veca e o Meca, o Piro, o Antnio Petinga, o Pescadinha, o S Pau, o Antnio Rato Azeitona e outros. Ingnuos e supersticiosos. Um crime raro. No h polcia. Ns guardemos respeito uns aos outros. Tm um medo s bruxas que se pelam. Quando a Leonor com a fralda da camisa azanga o barco, j se sabe, no h peixe: correm ento Marinha consultar outra bruxa, ou trazem o padre noite para lhes benzer o barco e as redes luz de archotes. Vai longe o tempo em que a mulher ia casar de capa, leno de seda e um casaco chamado roupinha, e ele ao lado de calo, meia de seda e chapu alto. Esto pobres. Bebem tudo quanto ganham e deitam-se na areia. Se o primeiro lano da neta no d peixe, desanimam logo. No h sardinha... Se uma companha deixa ficar a rede no mar horas, no se ralam. Vocs hoje no pescam? Guardemos-lhe respeito. Houve neta que para fazer um lano aguardava sete dias e os outros esperavam todos a vez. As mulheres s levantam cabea depois de eles morrerem. Aqui h anos, num naufrgio, perderam-se no mar alguns pescadores da Nazar. Fez-se uma subscrio que deu para as vivas viverem algum tempo. E as outras com inveja l diziam: Foi pena o meu no ter morrido tambm... Os barcos das caadas largam de noite com uma pequena tripulao para o mar da cana do noroeste, que d o goraz, para o da cana rica, que d a pescada e o goraz, para o dos algarvios, que d safio e cherne, e para o do lageto, que d peixe-espada. Os homens vo em ceroulas e levam o tabaco, os lumes e a navalha no barrete, que lhes serve de algibeira. Exclamam ao entrar na maresia: Louvado seja o Santssimo Sacramento! Nos batis mais pequenos cada homem leva oito, nove, dez espinis; e nos maiores, com dezanove homens de companha, o arrais, quinze camaradas e trs moos, cada um pesca com sete linhas de aparelho, lanadas em crculo por uma lanchinha que vai no batel. O barco quase sempre de um pescador e de dois ou mais scios, e o produto da venda distribudo em tantos quinhes quantos os tripulantes. Os espinis ganham dois quinhes e o barco outros dois. Este que entrou agora, e cujos homens me rodeiam, vem alastrado de raias, de caes e de gorazes. Pescadas poucas e um anequim acinzentado com uma grande barbatana no dorso. O mar da Nazar, muito rico, d cherne, pargo, moreia, tamboril, abrtea, peixe-rei, peixe-anjo, serrajo, cachucho, xaputa, orega, toninhas, sardas, corvinas, peixe-agulha, peixe-galo, lagostas, lavagantes, santolas, e nas pedras perceves, mexilhes e lapas. Mas os pescadores queixam-se: Isto d para viver mal... Fito-os. o mesmo tipo que conheo de Aveiro, de Caparica e de Sesimbra. O patro Joaquim Lobo, de grandes barbas brancas, afirma que esta gente veio de lhavo. Alguns lembram-se de ouvir a mesma coisa aos velhos, e teimam: Somos de lhavo... Viemos de lhavo... Tambm tenho a ideia de que foram os cagarus que povoaram os 59
melhores e mais piscosos pontos da costa. Ontem como hoje, vinham por a abaixo, aos dois e trs barquinhos juntos, at ao Algarve. Aparecia-lhes toda a costa incgnita, os penedos nascidos no meio do mar, os fios de areia reluzindo e as baas entranhadas nos paredes. A aventura iam ter s guas do peixe. E eu sinto como eles a primeira impresso dum panorama nunca visto e duma frescura que ningum respirou. Descobriram os stios a que a sardinha se encosta, os fundes que do a pescada e o cherne, e os melhores abrigos para refgio do mau tempo. Sabiam a costa a palmos. Voltavam um dia com a mulher, os filhos, a rede e a panela da caldeirada. Fixavam-se no areal, construam os palheiros, cobrindo-os com rama, e fundavam uma nova povoao. O peixe era tanto como no princpio do mundo. Ai estou outra vez a ver e sentir a frescura matutina, o princpio do dia desfeito em poeira azul, a sardinha faiscando na gua, o panorama novo e o mundo inexplorado... A CHATA E A NETA Vou pela praia fora... A chata, com a proa em bico e a popa cortada, s meio barco a chata barriguda e forte, de grossos tabues, deve ser a embarcao primitiva desta terra, como o aparelho de arrasto a que chamam neta um engenho muito velho e que veio de mo em mo, empregado por geraes atrs de geraes, j desaparecidas, de pescadores. A primeira coisa que acode ao homem esfaimado que v o peixe em cardumes formidveis reluzir e saltar ao lume da gua, atirar-lhe um grande saco e pux-lo para a terra por duas cordas atadas s pontas... A neta tem um saco, duas mangas e duas cordas. Dividem-na aqui em trs peas saco, boca e mos; a boca com quatro muros, o saco com cinco, que vo alargando de malha at boca, e as mos com a arcanela, o cassarete, o regalo e o pano delgado. s cortias chamam-lhe panas, s chumbeiras rebias, e costura por onde se abre o saco, linhol. Andam sete na praia na faina do arrasto, e hoje vai dar peixe com certeza, porque quando a gua est agitada sobre os parcis e se pe negra, h chicharro e sardinha em abundncia. Cordes humanos puxam s cordas: deitam-nas s costas sobre os ombros, e de esguelha, com o brao esquerdo estendido e a mo direita agarrada corda junto ao pescoo, vo alando devagar o saco. J se vem os odres de p no mar. Acode ento mais gente rapazes, mulheres, homens de cala arregaada, para ganhar um quinho. Arriba! Arriba! Venha arriba, com o Corpo de Deus! Venha arriba, rapaziada! Os odres aproximam-se e os cordes cruzam-se para apertar a rede, alando-a lentamente, cados para a frente e enterrando-se na areia. Anda aqui um velho com a cara enrugada e a boca entreaberta. A vida encheu-o de dedadas de um relevo extraordinrio amargura, resignao, dor e humildade: um tipo este homem que no pode e h-de ir at ao fim curvado e exausto. Anda aqui um rapaz que mal chega corda, e uma mulher com os braos estendidos e o filho ao colo, seguro pelo xaile traado sobre o peito. E o pequeno de mama j sente na carne da me o esforo e a rudeza da vida trgica. Arriba desta banda agora! Do norte! Do norte! L em cima, um a um, largam a corda e tornam a baixo a correr. O velho resfolga e a criana de colo desata a chorar. V l a ver, gente! V l a ver, por Deus, homes! 60
Ao longe puxam-se outras netas. So seis ou sete que trabalham por dia. Mais para o fundo os montes todos roxos saem do mar esverdeado. Ao norte o paredo parece maior e mais escuro... Gritos. Palmas. Viu-se o saco boiar, sinal de que vem cheio. Arriba! Arriba! Fora! Dois, trs homens entram no mar, deitam-lhe as mos num grande arranco e a onda inunda-os dos ps cabea. Arriba, gente! Ah, rapazes! E a vem o saco pela areia acima por entre gritos e o derradeiro esforo das mulheres, dos homens, do pequeno que mal chega corda, j entregue s mos rudes que o ho-de afeioar, da rapariga com o filho seguro pelo xaile, e do velho desdentado, que j no pode mais e que enterra os ps na areia trs figuras para um grupo de trabalho, todas trs dobradas a arrastar a mesma cruz da vida. noite, mas toda a noite se pesca. O peixe, trinta xalavaras, vai ser leiloado e vendido... No tiro os olhos do quadro e vejo atrs destas figuras outras figuras e outras geraes. Foi sempre assim. Os mortos entregaram aos vivos este fardo para carregar. Era assim, com a nobre arte da xvega, que os nossos pais tiravam o ventre de misrias. Venha arriba, com o Corpo de Deus, homes! J se no distinguem os montes. Ficaram s aqueles fantasmas roxos e o paredo a pique que se recorta mais negro e mais compacto na ltima poalha esvada do sol. A MULHER Toda a noite ouo chamar de porta em porta. sr. Antnio, so duas horas. Vamos l ver abaixo, com Deus. Est marzinho. Adormeo. Levanto-me. Mas por mais cedo que me levante, j a praia est animada e viva. Fixo as mulheres arrostalhadas pelo cho, sentadas em grupos, ou voltando para casa com o dedo indicador metido na boca das raias escaladas e j prontas para a ceia. So a vida desta terra. Surpreendo-as na labuta de todos os dias: carregando peixe, salpicando-o de sal e estendendo na areia sobre palha o cao, o polvo, o carapau, para a seca; sentadas s portas discutindo ou praguejando umas com as outras no leilo: Mar te alimpe! Mar te afervente! Algumas so j velhas e deformadas pela vida, mas conservam um claro de energia no olhar. Onde vai? Vou ao estendar buscar peixe. Baixas quase todas, de ancas largas e peitos slidos. Grosseiras e fortes. Lngua de um poder expressivo inigualvel, colorida e pitoresca, quando se zangam, quando vo buscar os homens taberna, quando falam ao mesmo tempo e gesticulam, ou a chorar quando contam a sua vida de bestas de carga. Duas descompem-se, uma em frente da outra, com as mos na cinta: Olha c, Mar da Luz! Que queres tu, Mar Santana? O que quero eu? Quero saber em que contos me foste meter coa Lianor na borda-dgua. Eu! s se ests pardinal! (bbada) Estou sim, vem c tomar o bafo. Pensas que sou comati que vinhas noutro dia areada pelo caminho de fora (a estrada). Como sabes que o teu home s vai ao mar quando ele est de rojo (calmo), por isso que falas dessa maneira. Ento o meu home no tanto com teu?... Descompemse e engalfinham-se... um momento, um momento nico de balbrdia, cheio de exclamaes e de gestos imprevistos e duma vida de instinto que vem de repente tona. As outras formam roda. Vestem todas da mesma maneira, todas de preto. Leno de pontas cadas; por cima o cabeo da capa de l, que lhes chega um pouco abaixo dos 61
quadris e as resguarda do frio e da salmoura; e sobre a capa um chapu de feltro grosso com as abas altas reviradas e uma grande borla de seda ao lado. Isto numa mulher alta e airosa um dos mais lindos e discretos vesturios que conheo. A capa emoldura-lhe a fisionomia; do chapu, se loira, saem-lhe as mechas douradas que to bem ficam no preto. No h nada que corrigir nas linhas da capa, que encobre e reala as formas, e o tom escuro no d nas vistas e harmoniza-se com todos os tipos e todos os ambientes, aumentando a distino da figura e acabando por a pr em destaque sem exageros, chamando naturalmente para ela todas as atenes, sem que as reclame. So elas que alimentam toda esta regio de Leiria a Santarm, e que levam ao lavrador, ao paleco, como lhe chamam, e ao jornaleiro enfastiado de po seco o mantimento, o presigo saboroso. Com azeitonas, uma caneca de carrasco negro e espesso como tinta, e trs sardinhas, j a vida toma outro aspecto para o homem calcinado e farto de remover a terra. So elas que toda a noite, quando se pesca toda a noite, separam o peixe, o amanham, o secam no tendal e o levam para os armazns de salga. E pela manh pem-no a caminho para as Cadas (20 km) ou para Alcobaa (12 km) com o peso de duas ou trs arrobas cabea. Infatigveis. Em tempos chegavam a ir a Santarm, acompanhando o burro com a carga e trotando ao lado da alimria. Apregoam pelos casais dispersos e deitam a um canto os maiores e mais espertos negociantes desta terra. A noite dormem se no h peixe na praia. Se h, partem outra vez com a canastra cabea e um pedao de po no bolso para o caminho. E o tempo ainda lhes sobra para cuidar dos filhos e para trazer a casa limpa e esteirada. Nenhum pescador vive como o da Nazar: pode-se comer no cho. A velha que tenho diante de mim o tipo que esta vida foi transformando, amolgando, rugas por onde tm cado as lgrimas, mos deformadas e negras, que ganham o po de cada dia, cheiro a salmoura, e uma beleza extraordinria, a beleza da verdade e da vida trgica, dos que cumprem a existncia e s caem esfarrapados e exaustos: O estipor da vida que eu levo, sempre molhada at aos ossos! at ficar encarangada como estive sete meses! Juro pela rosa divina (o sol) que verdade o que digo! Por causa destes homes! pelos sete filhos que criei aos meus peitos, dia e noite naquela estrada! s vezes a minha vontade era deitar-me no cho e nunca mais me erguer. Se h inferno! se depois do que eu tenho chorado inda h inferno!... Assim Deus me livre daquele leo sagrado (o mar), ou eu seja como a Antnia da Joana (cega) se no falo verdade... Morrer? diz vossemec que melhor morrer? No! viver pelos netos, pelos homes, e trabalhar at ao fim dos meus dias! Tive sempre a ideia que quem manda em todo o pas a mulher. Na lavoura, s vezes o bruto bate-lhe, mas ela que o guia e lhe d os mais atilados conselhos. E ela em toda a parte que nos salva, parindo filhos sobre filhos para a emigrao, para a desgraa e para a dor. Creio que s assim parindo e gemendo, tecendo e lavrando, mas principalmente parindo, que se equilibra a nossa balana comercial, o que nos tem permitido viver como nao independente. Valem mais que o homem, sacrificam-se mais que o homem mas aqui o seu trabalho to palpvel que toda a gente afirma que a mulher da Nazar a alma desta terra. Os pescadores obedecem-lhes a bem ou a mal, dizem... No , como em toda a parte, insinuando-se, que a fmea, mais fina que o homem porque cria, o governa nesta terra. Aqui impe-se, aqui existe a verdadeira e autntica casa do Varunca e slida, apesar de edificada sobre areia... Da praia para cima s elas pem e dispem. Eles, saindo do barco, metem-se na taberna e bebem. Sbrios na comida, gastam quase tudo que ganham a beber: a percentagem e a rodada 62
ou o giro. S entregam em casa intacto o salrio. Se as mulheres lhes batem, como corre, na verdade acho bem feito. Eles merecem-no... O STIO Antes de me ir embora vou l acima ao Stio. uma aldeia branca e deserta, com o templo, a capela e o penedo onde se deu o milagre. Do alto deste grande morro descobre-se de aeroplano um largo panorama o mar infinito, a ampla baa formada pelos montes, a branca Nazar ao p da areia, a toalha lquida do riozinho que se espraia e detm ao chegar costa, e do lado da terra os eternos pinheirais, donde emerge o cone mais agudo de S. Bento, com a ermida e a guarida do vigia. Percorro as ruas e a praa. O silncio duma povoao abandonada. S encontro o padre, duas mulheres e uma criana. Os homens foram todos (mais de trezentos) para a longnqua pesca do bacalhau, que dura de Maio at Dezembro. Durante essa longa ausncia a mulher no muda de roupa nem de vestido e nunca mais se deita na cama onde dormia com o homem, que lhe leva a enxerga para bordo: fica no cho com os filhos sobre esteiras. Regresso na vspera de Santo Antnio. Todo o campo est iluminado e o cu cheio de estrelas. No h casal onde no arda uma fogueira, e parece que so as cintilas do lume c de baixo que se agarram e reluzem no escuro l de cima.
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LISBOA, SETUBAL, SESIMBRA E CAPARICA Agosto - 1922 Para o sul da Nazar pesca-se na Foz do Arelho, onde os homens ergueram palcios em frente do mar, o que me parece fora de todo o propsito: diante do mar s uma construo transitria, uma barraca, que fica bem; e junto Foz, na lagoa de bidos, jia azul encastoada em terras barrentas, onde se apanham magnficas tainhas. Pesca-se em S. Martinho, uma gota de gua entre montes avermelhados, e l no fundo, no gargalo da entrada, um fio branco de espuma. Pesca-se no Seixal, na Atalaia, em Ribamar, em Santa Cruz, no Assento, na Ericeira e em Cascais. Em toda a costa h buracos, angras, refgios em que a onda se espraia, fios de areia que parecem de oiro, guas adormecidas entre pedras recortadas, anfractuosidades, terra portuguesa que vem desde o monte da Gelfa estendendo os braos para o mar, e que aqui em Lisboa o aperta mais contra si. Estreita-o em Setbal, e depois em Sines, e por fim em todo o Algarve, nas bacias de S. Vicente e de Sagres, no espaoso Lagos, nas rochas decorativas, em que as despedidas se prolongam com saudade. E o mar, que quase sempre revolto e verde no norte, vai pouco e pouco mudando de cor... Conhece-se logo, passado o cabo, na Figueira; depois em Peniche; quando entra por Lisboa com majestade e beleza; e nas praias do Algarve, em que chega ao cobalto grosso como tinta. Mas onde ele atinge a perfeio em Setbal. Em Setbal imaterial. Sonha ao p da estrada que vai a Outo, e reflecte na gua cismtica a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrbida por pano de fundo. Ali sente-se que a gua anda presa baiazinha, a Outo e serra. Contemplam-se e no se podem deixar. O mar no tem consistncia: no o verde do norte, no e o caldo azul do Algarve poeira e luz. Para os lados do Sado a baa ilimitada... Um claro. E h uma poca do ano em que a serra se veste de roxo, e ento que v-la desdobrada nesta gua que sonho e adormecimento ao mesmo tempo. Alguns homens fisgam a lula, metidos na gua at cintura. Vapores carregam infatigavelmente barcos de sardinha. So montanhas que todos os dias se extraem do mar. A matana enorme e constante. Pesca-se em Lisboa, em Sesimbra, na costa da Arrbida, em Sines, Gal, Porto Covo, etc. S no distrito de Lisboa h doze portos de pesca martima e dentro e fora da grande baa de Lisboa trabalham os seguintes barcos: dezoito cercos, vinte e oito vapores de arrasto, sessenta e seis barcos com setecentos e sessenta e trs aparelhos de anzol; cento e oitenta barcos com mil cento e noventa redesarrastes, botires, banqueiras, camaroeiros, chinchas, chinchorros, corvineiras, covos, sabugagens, savaros, solheiras, tresmalhos e rascos. Vo e vm os galees a vapor, as canoas, os saveiros grandes com doze tripulantes e que levam uma tarrafa para pescar a sardinha fora da barra, os botes e chatas, os barcos que acompanham os galees e que se chamam buques, os saveiros pequenos com dois pescadores, que levam cinco savaras para peixe mido, nove sabugens, nove tresmalhos e nove branqueiras; cinco barcos com quatrocentos e onze aparelhos que pescam fora da baa. S os vapores fizeram, em 1922, vinte mil contos, nmeros redondos, em peixe grado, e os cercos cinco a seis mil contos de ris em sardinha. Em Setbal partem todos os dias os barcos para o mar. O movimento redobra. Setbal e Olho so os dois grandes portos de pesca. Sardinha sardinha sardinha... Esta pennsula da Outra 64
Banda, limitada por duas baas, devia ser um paraso, pelo seu excepcional clima e pela sua luz admirvel, e bastante, s ela, para, terra e mar, alimentar duas ou trs vezes a populao de Lisboa, se terra e mar fossem convenientemente cultivados. Mas ns s temos um sistema bem organizado o da destruio... CAPARICA Janeiro-1923 Da horrvel Trafaria Caparica gastam-se dezoito minutos num carrinho pela estrada atravs do pinheiral plantado h pouco. Os pinheiros so mansos, anainhos e inocentes: os pinheiros novos so como bichos novos e tm o mesmo encanto. Ao lado esquerdo desdobra-se o grande morro vermelho a esboroar, e ao outro lado o terreno extenso e plano rasgado de valas encharcadas. De repente uma curva, algumas casotas cobertas de colmo Caparica. Primitivamente isto foi um grupo de barracas que os pescadores aqui ergueram neste esplndido stio de pesca, boca da barra, a dois passos do grande consumidor. Tm um ar ainda mais humilde que os palheiros de Mira ou Costa Nova. Quatro tbuas e um tecto de colmo negro com remendos deitados cada ano: alguns reluzem e conservam ainda as espigas debulhadas do paino. No imenso areal o barco da duna, sempre o mesmo barco, maior ou mais pequeno, prprio para a arrebentao, de proa e popa erguidas para o cu. Trabalham seis companhas em catorze barcos. J trabalharam oito. Cada barco emprega vinte e um homens, contando dez que ficam em terra. Usam quatro remos: um grande de cada lado e dois pequenos, servindo os maiores para aguentar o barco quando as guas puxam e se vai ao mar a risco. A cada remo grande agarram-se trs homens e dois aos mais pequenos. O espadilheiro guia o barco com outro remo a espadilha. Quando h muito peixe fazem-se trs lanos cada dia, e trabalha-se todo o ano se o mar deixa. A rede a de arrasto para a terra. O barco sai ao mar deixando um cabo nas mos dos dez homens que ficam no areal, e vai-o largando pouco e pouco cinquenta e tantas cordas de dezoito braas cada uma. Quando o arrais acha que se deve largar a rede, diz: Em nome da Senhora da Conceio, rede ao mar! E larga-se o calo, em seguida o alar, depois o saco, e por fim o outro alar e o calo, trazendo-se a corda para a terra. Abica, salta a tripulao e com os homens de terra arrastam a rede. Apanha-se sardinha, carapau, e s vezes, em lanos de sorte, e quando menos se espera, a corvina, alguma raia, pargo e linguado. Uma grande extenso de areal, s areia e mar, barcos como crescentes encalhados e alguns pescadores remendando as redes. Nem um penedo. Areia e cu, mar e cu. Dum lado o formidvel paredo vermelho, a pique, desmaiando pouco e pouco, at entrar pelo mar dentro todo roxo, no cabo Espichel. Do outro o mar azul metendo-se, num jorro enorme, pela ampla barra de Lisboa, deslumbrante e majestosa. De onde isto esplndido acol do alto do convento dos Capuchos. Assombro de luz e cor. Amplido. As casotas da Caparica aos ps, o mar ilimitado em frente, ao fundo e direita a linha recortada da serra de Sintra com as casinhas de Cascais e Oeiras no primeiro plano esparsas num verde-amarelado... E luz? E o prodgio da luz?... A gente est to afeita luz que no repara nela e trata como uma coisa conhecida e velha este azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes sobre as guas verdes desmaiadas e sobre as terras amarelas e vermelhas at ao cabo Espichel... Mas fecho os olhos abro os olhos... Imensa vida azul jorros sobre jorros magnticos. Todo o azul estremece e vem at mim em constante vibrao. Quem sai da obscuridade para a luz 65
que repara e estaca de assombro diante deste ser, to vivo que estonteia... SESIMBRA Fevereiro - 1923 Da lazarenta Cacilhas piscosa Sesimbra so seis lguas por uma estrada atravessada de barrancos, que o trfego do peixe arruinou. Grupos de pinheiros mansos, ramilhetes de oliveira, e de quando em quando, por um rasgo imprevisto, o esplndido esturio do Tejo e ao longe Lisboa na moldura de terras a pique cor de barro. Dia de sol primeiras flores nas rvores. At prximo de Sesimbra a estrada segue por terras uniformes cor de giz. De quando em quando o panorama alarga-se e v-se at ao mar. Reluz num fundo a chapa de ao da Lagoa. Mais para alm um grande areal indistinto. A certa altura, porm, comea a aparecer a esquerda o dorso formidvel da Arrbida e algumas casinhas juntas com lindos nomes rsticos Quintinha, Santana, Cotovia. Estamos perto. A carripana vai descendo para Sesimbra pela estrada em torcicolos, entre dois montes que se abrem, um com moinhos velhos afadigados l no alto, outro com o castelo em runas como um queixal cariado. A vila em baixo fica aconchegada no regao dos montes que a amparam e desce-lhes at aos ps at ao grande areal exposto ao sul, que a ponta do forte Cavalo limita direita, e o morro do Aguincho, acabando em focinho desmedido e brutal, limita esquerda. A esta hora, seis da tarde, um est reduzido a sombra espessa, e o outro escorre ainda o vermelho do ltimo sol. Um grande forte de Lippe, raso com o mar, ao meio da praia cheia de barcos encalhados e de rebulio humano. Casas pobres, casas lacustres, armazns, redes a secar nos varais. Anoitece, mas a vida no cessa. O peixe das caadas arrematado noite, quando os barcos regressam da pesca. Pelo areal fora, em quatro ou cinco fiadas paralelas, cada caada expe o seu peixe, que reluz ao luar com um tom de prata antiga gorazes a um lado, e pescada, chernes a outro, todos em quatro, cinco filas alinhadas, e o grupo de regates roda a disput-los ao claro dos archotes. Usam-se em Sesimbra dois sistemas de pesca, a armao valenciana, que d a sardinha e o chicharro, e a pesca do anzol, que d a pescada, o goraz, o pargo, o cachucho, etc., alm de outras de menor importncia, como a sacada, a arte de arrasto para bordo e a arte de arrasto para terra. A lula pesca-se com alfinetes, a lagosta com covos e o polvo com cacos velhos. A armao emprega quatro barcos e quarenta homens, pouco mais ou menos, e a barca de caada dezoito a vinte pessoas e perto de trezentas talas com anzis. O proprietrio da armao d ao pescador dez tostes dirios, e vinte por cento sobre o produto da venda, incluindo o arrais e a rodada de cinco homens que conduzem o peixe lota, a quem distribudo mais quinze por cento. Do peixe tm todos dois caixotes para a alimentao. Na arte de arrasto, a quarta parte da venda para o proprietrio e o resto para a companha, que paga o imposto alfndega, o sebo, os archotes, o azeite, e, sendo o lano grande, a renda da loja. So mais de quinhentas as embarcaes varadas no areal barcas, botes e aialas, e alm destas o batel com uma trave saliente na proa, o gavete, que serve para levantar a testa da armao. O pescador de Sesimbra, que vai s vezes muito longe, no conhece a agulha de marear. Regula-se pelas estrelas e pela malha encarnada da serra. L fora, quando vem o cabo ao nvel de gua, dizem que esto no mar do cabo raso, e, quando o farol 66
desaparece, esto no mar do cabo feito. Conhecem a costa a palmo: o mar novo, que d o peixe-espada, o mar da regueira, que d a pescada, o mar da cornaca, que d o goraz e o cachucho, e o do rapapoitas, que d os grandes pargos, conhecidos por pargos de morro. Este homem de instinto comunista. Se um adoece, os outros ganham-lhe o po: recebe o seu quinho inteiro. Se morre, sustentam-lhe a viva e os filhos, entregandolhe o ganho que ele tinha em vida. Do ao hospital e ao asilo uma parte do pescado. Toda a gente tem direito a ir ao mar toda a gente tem direito vida. Vai quem aparece, desde que seja martimo. Acontece que o barco leva hoje quarenta homens e leva vinte amanh... O produto das artes dividido em quinhes iguais pela companha. A pesca do anzol uma espcie de cooperativa, e a barca quase sempre dos pescadores. Seis horas da manh. Noite de luar claro e frio. Deso a rua ainda tonto de sono. Ao longe o moo chama: tio Julio, vamos embora... pra-a loja!... Muitos homens dormem na barraca onde se guardam os apetrechos das artes. Entro. Uma luzinha fumega. Redes, remos, cabos, pedaos de velas, e sombras, tudo misturado. Remexem vultos no escuro. Sobre a tarimba mal distingo farrapos de homens deitados. V l! V l!... diz o arrais. Erguem-se, juntam-se e o grande barco comea a deslizar nos panais. Salto dentro e encolho-me ao p do moo, na caverna. noite, noite de lua redonda e gelada. Os homens remam em cadncia e o panorama vai saindo do escuro medida que o barco se afasta, todo em sombras empastadas e enormes, cortadas a pique, que se destacam pouco e pouco umas das outras em fantasmas de penedos, em morros salientes com buracos metidos l dentro... Ao cimo da gua, dum azul quase negro, escorre o luar em tremulina. So mil fios de luz que estremecem ao mesmo tempo... Sete horas. Lua ainda muito alta aspergindo a terra de p branco. O barco abrigase do noroeste junto costa, ao p dum grande penedo donde se levanta uma revoada de corvos assustados. Ao nascente, sob a estrela de alva, distingue-se uma ndoa rosa. O moo vai dizendo o nome de todas as pedras e explica: Aqui estamos abrigados da lapeirada do vento... Noto que a luz j no a mesma. No a claridade do dia, ainda o luar. Mas o p branco sensibilizou-se e estremece. Vamos l! Vamos l s artes! Os homens remam numa cantilena montona: Rema! Rema! Ceia agora!... Ergo-me e vejo o mar coberto de embarcaes iluminadas pelo fogaru dos archotes. So as artes, que esperam o nascer do sol para o lano; so as armaes que comeam a alar a rede: Rema! Rema!... Avermelha e alastra a mancha do nascente... Momento nico. Momento em que o branco desmaia e em que a luz do luar e a luz do sol se entranham e misturam. O grande manto branco escorre sobre as guas e j o nascente lhe ilumina a esteira mgica, que estremece toda. Olho para o cu: no cu, azul s enxurradas, lavando-o do luar. Aumenta e alastra a claridade. A lua teima, caem jorros brancos que no cessam, mas o nascente, num triunfo, enche tudo de luz. Os grandes morros emergem da tinta azul como colossos ensanguentados. Mais fragas alm toda a costa recortada. Cabos enormes e macios, e ao longe o Pombeiro entrando de rompante pela gua dentro. Panorama a vermelho. O sol escorre sobre as palhetas do grande manto branco, que vibram como se fossem levantar voo. E todo esse luar magntico e branco, ao mesmo tempo que estremece e reluz, doira. Doira um instante e morre... 67
quase dia. Sobre o nascente duas nuvenzinhas como vus. J distingo as silhuetas dos homens alando as artes contra a luz. Dois barcos puxam a rede e juntam-se medida que se aproximam do saco. Leva arriba! Leva arriba! Agora! Agora! O saco est borda. Vem-se as bolhas cobrindo a superfcie da gua: o gorgolhido. A sardinha no tarda a vir com a cabea ao de cima. C o que se chama coutejar. J os homens comeam a tir-la para dentro dos barcos com as xalavaras. pouca... uma teca diz o moo, designando a pequena poro de peixe. Sete e meia. dia claro. Ao p de mim mergulham dois patos pequenos de dorso escuro e peito branco, dois macorrilhes, e um roaz salta fora da rede. Os primeiros raios de sol batem em cheio em Sesimbra apinhada beira-mar. Vamos agora ao calhau. a armao valenciana, de que se vem as grandes bias de cortia ao lume de gua construo complicada que se compe de corpo, rabeira e legtima. O corpo compreende a cmara, o bucho e o copo, trapzios mais ou menos regulares, fechados por redes verticais que vo da superfcie at ao fundo. A rabeira vem da terra at boca da armao, de maneira que a sardinha, encontrando-a, caminha at boca do copo, onde se mete. Quando chego, j os homens, de avental de oleado, puxam o copo para a borda dos barcos, apertando pouco e pouco o cerco. Ou! Ou! Leva arriba! Leva arriba! O movimento dos braos acentua-se. Curvam-se, agarram a rede, erguem-na at si. O barco, cheio de gua, adorna. Ou! Ou! Vai! Vai!... Estamos quase testa do copo e a rede metida no meio dos barcos. A sardinha salta. Mergulham as grandes xalavaras encabadas num pau dentro do saco, tirando-as cheias de vida. Venha de l uma caldeirada! Vamos regressar. A vaga estoira na areia. O mar est corso. terra! terra! espia! grita a companha. Aproximamonos. Agarram-se a um cabo fixo no mar e vo-no puxando a si: o barco corre direito maresia. o momento dramtico: a onda apanha-o, impele-o, salpica-nos de espuma e atira-nos pela areia acima... SARDINHA! SARDINHA! O que se arranca ao mar s em sardinha prodigioso. Todas as manhs os vapores correm as armaes valencianas e trazem os barcos carregados para a fbrica. Todas as noites infatigavelmente o cerco americano apanha sardinha; todo o dia infatigavelmente a arte da xvega no Algarve, as netas e outros aparelhos por essa costa fora, puxam a rede para a terra. Pescam nas nossas guas os galees espanhis, os navios ingleses e franceses; e as criminosas traineiras, depois de exterminarem o peixe na costa da Galiza e na baa de Vigo, onde ele entrava em inesgotveis cardumes, espalhando-se pelos braos da ria, matam-no a dinamite e a carboneto, de Peniche at Leixes e mais para o norte ainda. De dia, de noite, rapam-na os pescadores do fundo do mar. Juntam-se os 68
poveiros, os matosinheiros, os cagarus, os do norte e os do sul, os algarvios, os dos grandes aparelhos aperfeioados e os dos aparelhos primitivos, e todos os dias alastram os areais de peixe vivo, que se vende fresco, salgado, em latas e barricas, que se consome no pas ou se exporta para o estrangeiro. Em alguns pontos, como em Olho, por exemplo, a sardinha um jogo apaixonado. Enriquece e arruina, compra-se a prazo, e vende-se s vezes mais barato do que custa, quando o fabricante se v obrigado a lan-la ao mercado. Nenhum peixe d mais dinheiro e poucos tm mais prstimo. Ocupa o terceiro lugar na escala da alimentao e est muitos furos acima do bacalhau, o fiel amigo. aos montes que a sardinha apanhada por essa costa para enriquecer meia dzia de felizes. Daqui a meio sculo no h uma escama nas nossas guas fertilssimas. O planalto que se estende at algumas milhas da costa, e que foi revolvido pelos vapores de arrasto, matando a criao e reduzindo pobreza os pescadores primitivos, agora explorado pela indstria por todos os processos e feitios. Sardinha sardinha sardinha... Carregada em barcos, a dorso de cavalgadura ou nos carros alentejanos de toldo e grandes rodas, acarretam-na para a fbrica. Levam-na os rapazes e as mulheres em gigos e redes para casa. Furtam-na os homens da companha que tm uma larga parte nesta matana. S um mestre dum barco do Fialho ganhou em 1922, em percentagem, afora o ordenado e o quinho, quinze contos de ris. o peixe que d mais dinheiro. Por isso a destruio enorme e sem folga, dura o ano todo, antes da desova e depois da desova, rede, a tiro, sem cessar e sem trguas uns barcos em terra, outros no mar, uns pescando-a e outros conduzindo-a, com a borda metida na gua. Cheira a sardinha. Como os antigos pescadores j no chegam para esta matana, chama-se em auxlio a gente da terra no Algarve o montanheiro, no norte o lavrador. Multiplicam-se as fbricas, procuram-se novos meios de destruio. O azeite corre como um rio: preciso import-lo, que no chega. O sal aumentou de preo, porque s este greiro branco permite que o peixe no se estrague. Ao sair do barco, at o peixe que se destina conserva logo salpicado. Organizam-se companhias a toda a pressa, e de norte a sul a explorao redobra. uma febre. So montanhas de prata que o mar produz to grandes e to inesgotveis que ainda hoje do alto da Arrbida sucede ver-se todo o mar reluzir com o cardume. Tenho a impresso de que o mar compacto, s sardinha sardinha e sardinha. Estou farto 2.
Todos os pescadores de norte a sul se queixam de que o peixe falha. Queixam-se de Caminha a Aveiro, queixam-se os da Nazar, os de Sesimbra e os de Olho, que emigram para a Amrica. Porqu? Porque, j o disse, ns s temos um sistema bem organizado o da destruio. Primeiro os vapores de arrasto revolveram o planalto matando a criao e destruindo os pastos. Vieram logo a seguir as criminosas traineiras, que matam a dinamite, e por ltimo os barcos estrangeiros, que empregam agora o carboneto. Se juntarmos a isto a falta de mtodo e de fiscalizao efectiva, os excessos cometidos por todos e as leis e os regulamentos que no se cumprem, fcil de ver porque falta o peixe, e de prever tambm que dentro de cinquenta anos no haver uma escama nas fertilssimas guas portuguesas. Fartem-se enquanto tempo. Que havia a fazer? Proteger eficazmente o planalto, que em geral tem uma profundidade pequena e poucas milhas de largura, e o fundo, a beirinha, como lhe chamam os pescadores. Regulamentos severos e executados a rigor. Proibir s traineiras e aos cercos a pesca da sardinha durante a desova. Ho-de ser obrigados a faz-lo dentro em breve. Vapores de arrasto poucos, ainda que hoje so menos nocivos, porque vo pescar para muito longe. Jlio de Vilhena chegou concluso, no seu relatrio, de que no se deviam permitir mais de quatro vapores em Lisboa e trs no Porto. E estes em vista das necessidades de peixe fino criadas pelas
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OLHO Agosto - 1922 Tenho de atravessar o Alentejo isolado concentrado, para chegar ao Algarve. uma provncia farta, mas a aparncia esqueltica, a rvore triste a que arrancam a pele em vida, o monte solitrio, meteram-me sempre medo. a terra do dio. Tudo em que a gente pe a vista duro e hostil. Ainda o Alto Alentejo quer sorrir mas o sorriso fica em meio, reservado e triste. Os pinheiros mansos agrupam-se e conversam baixinho uns com os outros para fugirem solido do deserto... No Baixo Alentejo, porm, os sobreiros, a cor da terra esfarrapada, o cu esbranquiado, as lascas de pedra que reluzem como vidros negros e polidos, enchem a alma de monotonia e pesadelo. Uma grande fumarada levanta-se no fundo do deserto. Os homens no se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietrio, que goza em Lisboa, e que lhe deixa de quando em quando uma rolha para desbravar. Desbravada, tira-lha. E esta solido redu-lo a atroz realidade. Fica s e o dio, sob a abbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que no passa, morte que no vem, secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o dio: com o dio enche o deserto e enche a prpria vida... De manh saio em Olho deslumbrado. Cu azul-cobalto por baixo chapadas de cal. Reverberao de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geomtricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraos um zimbrio redondo e tmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. uma terra levantina que descubro; s lhe faltam os esguios minaretes. Duas cores e cheiro: branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho suspeito a cemitrio. O fruto que chega a este estado est a dois dedos do apodrecimento, e talvez por isso que a ideia do sepulcro me no larga nas noites brancas e plidas em que me julgo perdido num vasto campo funerrio... O cu aproxima-se de mim. Da soteia chego s estrelas com a mo. A aragem do mar tpida e o cheiro persiste... Voluptuosidade e morte... Tenho a sensao criminosa de apertar nos braos uma mulher que se entrega, no momento em que entreabre a boca, sucumbida num vasto campo-santo, onde os espectros imveis e brancos, de sudrio,
populaes das duas cidades, que s os vapores podiam fornecer com anuodncia. Esta questo vem de longe e foi sempre complicada. Quando veio a Repblica, esperou-se uma soluo... e que se viu? viu-se os exploradores republicanos continuarem a obra dos exploradores monrquicos. O peixe em Lisboa e Porto caro, porque est nas mos de companhias poderosas, que o vendem pelo preo que entendem. Se a destruio era inevitvel, ao menos devia-se baratear um alimento necessrio a ricos e pobres. Resolvia a questo lucidamente o Dr. Carlos Fuzeta, entregando o monoplio da pesca a vapor aos Municpios de Lisboa e Porto. Aperfeioamentos tcnicos: barcos, aparelhos, estaes de pesca, cais, abrigos, etc., mas com cuidado, porque o pas pobre e os resultados seriam escassos. Agora fala-se para a muito em escolas de pesca, que serviriam apenas para anichar mais algumas dzias de vadios polticos. A grande escola de pesca o mar. Alguma coisa se conseguiria porm com exemplos, trabalho e meia dzia de pessoas dedicadas. Mas pouco porque afinal estou convencido de que os pescadores sabem mais com os olhos fechados de que os tcnicos com eles abertos.
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olham e esperam... O fruto vai completar o seu destino. Cheira que tresanda. H meio sculo, Olho, entranhado de salmoura e perdido no mundo, vivia s do mar. Todos se conheciam. Os que no eram martimos, eram filhos ou netos de martimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam cavala a Larache. A pesca costeira, a das caadas, fazia-se com groseiras, grandes espinis, para o cachucho, o goraz, o safio, a carocha, o ruivo, a abrtea e a pescada; e com a arte da xvega, em cales e botes, puxando a tripulao o aparelho para terra enquanto o arrais, numa pequena lancha, a calima, vigiava o lano e dirigia a manobra. Havia muito peixe e a vida era extraordinria. Toda a noite o chamador batia de porta em porta com um cacete: Arriba com Deus, mano Joo! Nesta arte ia ao mar quem queria os pequenos, os humildes e os fracos todos de varino e por baixo nus. Levas a bara? perguntava o arrais. Era o essencial. Dizia-se de um homem pobrssimo: Aquilo um homem sem bara nem lasca. O dinheiro arrecadava-o o dono num monte com uma esteira por cima, e distribua-o enfiando o brao por um buraco e tirando um punhado de cobre ao acaso: Toma l! Fazia as contas que entendia e os pobres diziam: O que ele tem enricado custa daquela esteira!... E as mes s filhas: filha, Deus queira que no olhes para home que ande na arte!... A pesca do alto fazia-se em caques cobertos, de vinte e cinco a trinta toneladas, com duas velas triangulares. Este barco voava. Ia a Setbal, a Lisboa, s Berlengas, ao Porto, e s voltava a casa no S. Joo, no Natal e nas festas grandes do ano. As mulheres esperavam pelos maridos com alvoroo dando outra mo de cal nas casas. Tripulavam-no vinte e cinco homens e dois ces, que ganhavam tanto como os homens. E mereciam-no. Era uma raa de bichos peludos, atentos um a cada bordo e ao lado dos pescadores. Fugia o peixe ao alar da linha, saltava o co no mar e ia agarr-lo ao meio da gua, trazendo-o na boca para bordo. O caque pescava e vendia pela costa fora. s vezes sucedia-lhes estarem em Lisboa, abrigados do temporal, longe da terra em dias de festa, no da procisso do Senhor dos Passos, por exemplo a que o martimo nunca falta vestindo o melhor fato e pondo a cartola na cabea: Compadre, vamos ns procisso? Ventania rija, vagalho de meter medo na barra... Por cima da gua ou por baixo da gua, vamos sempre. E iam. Martimos extraordinrios, no usaram nunca agulha de marear: sabiam onde estavam pelo cheiro. Outro barco, o do navego, comprava gneros em Almeria e Gibraltar, palma na Barberia (Marrocos), ou ia a S. Martinho buscar o pro que tem fama, levando do Algarve o figo, a alfarroba e o peixe seco para vender. Mas o grande negcio de Olho foi sempre o contrabando. No contrabandista quem quer: preciso inteligncia e astcia, arrojo, o alerta dum chefe selvagem e a imaginao dum poeta. Conheo um contrabandista famoso, o senhor Mendinho, que ainda hoje faz na sua goleta a carreira de Gibraltar. Tem setenta e dois anos, um grande engenho, e promete levar a Alccer Quibir todos os poetas portugueses. Agora que criou os filhos, repousa duma vida cheia de peripcias, num stio romntico entre figueiras, e comea a escrever as suas memrias. um mestre reputado. Duma vez um grande temporal assolou a costa algarvia: naufrgios, gritos, mulheres cercando o telgrafo dia e noite, toda a povoao em alvoroo. Que de fulano? No se sabe! No se sabe!... Pouco e pouco foram 71
aparecendo derreados, hoje um, amanh outro s do senhor Mendinho no havia notcias. Isso morreu... Passaram-se dois dias, mais trs dias negros. Morreu, com certeza. Mas uma tarde correu o grito em Olho: O barco do Mendinho est na barra!... Era a goleta, efectivamente mas em que estado! Os mastros partidos, uma amurada deitada abaixo e as velas em farrapos. Desceu tudo praia. Meteram-se em barcos e trouxeram-no para a terra abraado, festejado, aclamado. Quem em semelhante ocasio, depois de tantos perigos corridos, se lembraria de visitar a goleta? At a guarda-fiscal chorava. O Mendinho! O Mendinho!... Que milagre! Ora o mestre Mendinho imaginara aquele espectaculoso cenrio refugiado num abrigo de Marrocos: mandara quebrar os mastros, deitar as amuradas abaixo, rasgar as velas e trazia o poro atulhado de rico contrabando que descarregou nas barbas do fisco compungido. Tambm, diga-se a verdade: toda a gente em Olho, ricos e pobres, protegia os contrabandistas e entrava no negcio. Nunca em terra se apreendeu uma pea de fazenda. Passava-se de soteia para soteia para o que basta estender os braos e corria, se fosse preciso, a vila toda, porque nessas ocasies at inimigos rancorosos se julgavam no dever de esconder o contrabando, e todas as casas tinham uma guardadeira ou falso entre duas paredes. Em resumo: este homem um homem parte no Algarve. Se veio de lhavo, como dizem, no sei, mas o nico homem arrojado desta costa. D. Carlos estimava-os e eles ainda hoje se lembram do rei a quem falavam, no com a subservincia dos polticos, mas de igual para igual, como a um pescador de maior categoria. s vezes D. Carlos encontrava-os no mar alto. Ento que tal a pesca? Nada. Tambm, vocs esto aqui, e ali em baixo, a trs milhas, o peixe anda aos cardumes. Mas com este vento, como que a gente h-de l ir? Botem os cabos!... E, voltando atrs, levava-os a reboque do iate at ao stio da abundncia. O martimo de Olho tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mo a toda a gente. que no mar os homens correm os mesmos perigos. So tambm profundamente religiosos, porque esto a toda a hora na presena de Deus. Duas tbuas, a fragilidade e a incerteza, foram-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanh por mim. Homens simples porque a profisso simples e o meio, grande e eterno, no os corrompe. E como o mar abundante e prdigo no tem cancelas, so generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que no compreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, no entram em licitaes com os filhos: deixemlhe a eles o barco e as redes, e tomem conta do resto. Reparei que em todas as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves. Na Foz tambm era assim. Quando os via passar para o Monte com a chamariz, o alapo e o ramo, lembrava-me sempre de um velho martimo colrico e um pouco funambulesco da vasta galeria de Dickens. Voz de tempestade e rajadas desabridas. Passeava por toda a parte uma grande irritao e acompanhava-o por toda a parte um canrio domesticado, que no lhe tinha medo nenhum, porque sabia perfeitamente que sob aquele aspecto de ferocidade se escondia uma alma feminina. O rude pescador de Olho, que passa a existncia no mar, tambm tem necessidade de uma ave e no pode viver sem a sua companhia... Em todo o Algarve a mulher a prenda da casa. Tr-la muito bem tratada, muito bem fechada, restos da vida moura. A de Olho, trigueira, de olhos negros e um lindo sorriso reservado, passa por a mais bela da provncia, pela vivacidade, e pela fartura do cabelo. J em S. Brs de Alportel, ali perto, as cabeas tm reflexos doirados e os peitos so desenvolvidos. Sentadas nas esteiras sobre os calcanhares, nas casas forradas de junco ou de palma, fabricam as alcofas, a golpelha em que se transporta a alfarroba e o 72
figo, e as alcofinhas mais pequenas, chamadas alcoviteiras. Ainda h pouco tempo todas usavam cloques e bioco. O capote, muito amplo e atirado com elegncia sobre a cabea, tornava-as impenetrveis. um trajo misterioso e atraente. Quando saem, de negro, envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e no as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo no rebuo, tem outro realce... Desaparecem e deixam-nos cismticos. Ao longe, no lajedo da rua ouve-se ainda o cloque-cloque do calado e j o fantasma se esvaiu, deixando-nos uma impresso de mistrio e sonho. uma mulher esplndida que vai para uma aventura de amor? De quem so aqueles olhos que ferem lume?... Fitou-nos, sumiu-se, e ainda perdida para sempre a figura ainda o som chama por ns baixinho, muito ao longe cloque... Antes de casar a mulher enfeita-se muito. Depois no. J enganei quem tinha a enganar... dizem. Mesmo se continua a enfeitar-se, murmuram dela: alvanaira. ela quem dirige a casa e quem incute nimo ao homem timorato. De noite, quando ele tem medo s bruxas, acompanha-o ao barco. Nas ocasies graves, se preciso falar, quem fala ela. Sozinha pe e dispe. Quando o homem vai ao mdico, precede-o. Ele cala-se, ela explica. Ele que tem? Ela responde: Olhe, queixa-se disto e daquilo... Todos estes costumes vo desaparecer. Na populao, maior que a de Faro, os naturais esto em minoria e vo sendo pouco e pouco expulsos da sua prpria terra. J o povo canta: Adeus, terra de O/ho, Cercada de morraais, s a me dos forasteiros, Madrasta dos naturais. Sigo por um novelo de ruas pelos dois bairros tpicos, o da Barreta e o da banda do Levante. A boca negra dum arco e outra rua tortuosa onde a luz no penetra. Algumas tm nomes que as pintam: a Rua dos Abraos, a Rua dos Sete Cotovelos. Vive-se ao ar livre, come-se ao ar livre, dorme-se ao ar livre. A rua, fedorenta e animada, pertence aos pobres. Abancam no meio das vielas. Mulheres curvam-se sobre as serts frigindo peixe. O azeite respinga e fede. Risos. Reparo nas atitudes, no suor e na cor avermelhada das mulheres debruadas sobre as brasas, na familiaridade, no -vontade, e naquele velho stiro que avana para mim, com a caneca de vinho na mo a trasbordar. roda, encostados s paredes, os remos, os cabazes e as redes; ao lado o cano de esgoto que passa mostra pelo meio da rua num escorro ftido. Mas, se a rua suja, a casa limpa. A habitao primitiva um cubo com uma porta e uma janela. Em cima a soteia, para onde se sobe por degraus de tijolos, e muitas vezes sobre a soteia o mirante. Entro num e noutro destes buracos com as telhas assentes em canas. Todos eles reluzem de cal. Dois compartimentos: a chamin, que o nome da cozinha, e a casa de fora. Uma esteira no cho, uma cama com uma colcha de seda que s serve nos dias de festa, uma cmoda e um bancal de renda. A um canto um pote e o indispensvel pincel. Caia-se tudo. Caia-se o lar e os degraus. Caia-se sempre. um delrio de branco. Subo soteia a melhor parte da casa. O homem de Olho tem por ela uma paixo entranhada. Se um vizinho a ergue, ele nunca fica atrs levanta-a logo mais alto. que a soteia o seu encanto: stio esplndido para respirar, eira para a alfarroba e o figo, e quarto para dormir no Vero sob um pedao de vela. no cais, ao p da praia, a que chamam baixa-mar, no cais fedorento, entre os homens que andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para 73
embarque, que eu assisto todos os dias ao espectculo da chegada dos barcos e que vejo os peixes, as redes e o leilo. Para l da gua empoada ficam os areais, a ilha da Armona, a do Levante, a ilha da Culatra e o farol de Santa Maria. Perto de mim as velas dos barcos reflectem-se em manchas coloridas no azul retinto e ondulado. Desde o calo, tipo mais antigo, grego ou fencio, at ao caque, esto aqui representados a chalupa, o iate de pequena cabotagem, o bote, as lanchas de vela latina e as de Albufeira, com uma grande cabeleira na proa e dois olhos pintados no costado. Ao lado do cais ficam os armazns da salga, donde outrora saia a sardinha em barris para Oro e Marselha, a pescada descabeada para a Espanha e os almocreves com cargas para o Alentejo. Entro. No escuro pios metidos no cho, preparos para a salga do biqueiro, do charro (chicharro) e da sardinha, e ao lado a caldeira para extrair o leo do peixe de couro azeite de quelme cuja pele, chamada de lixa, se aproveita para vrios usos conforme as qualidades lixa de l, a pailona e os barrosos, fmeas dos quelmes. Em Agosto, quando a sardinha abunda, prensam-se em cascos, ou mulheres, enfiando-a aos quarteires em varetas, dispem-na em costais para embarque. no cais que se vende o peixe em lotas, quando chegam as pequenas canoas das caadas, com sessenta aparelhos de oitenta braas iscados a sardinha e as canoas maiores de duas velas, tripuladas por dez a dezoito homens, que vo pescar at S. Vicente com o espinel, cabo da grossura dum dedo, chamado manoio, com perto de dois mil anzis. E aqui tambm, na agitao da baixa-mar, que eu anoto os nomes das diferentes redes e dos diferentes peixes: a murjona, o tapa-esteiros, que apanha o peixe no rio maneira que a gua vai vazando, a toneira para os chocos e as lulas, a redinha e o tresmalho, e outras engenhocas do subtil pescador, que chega a agarrar o langueiro com um boto de ceroula e alguns alfinetes e o polvo com velhos alcatruzes de nora. Tudo vem ter ao cais peixes esplndidos de uma abundncia e de uma variedade extraordinria do rio o linguado, o pregado, o peixe-rei, o xarroco, os capites, os alcabrozes, os robalos, etc., uns pescados fisga, como a lia, a safata, o robalo, outros ao anzol e ao candeio; e do mar, despejados nas linguetas, montes de caes, de galhudos, que tm um pique no cerro, de monstruosas raias, de donzelas, de albufares pardacentos e enormes e de feios dentulhos. Atiram do fundo do barco para as pedras a abrtea, bandos de vermelhos e lindos cantarilhos, que parecem peixes de aqurio, xaputas dum negro prateado com o rabo aberto como as pontas da cauda da andorinha, esguias tintureiras, corvinas e cestos de polvos enrodilhados. uma magnificncia. Paro com assombro diante do monstruoso tamboril, s boca, com uma boca maior que um aafate, e que usa para atrair a presa duas linhas na cabea com uma isca na extremidade. J cheiro a peixe e a salmoura e no me canso. Outra canoa chega. Venham assistir lota! O pregoeiro no meio do grupo parte sempre costume que comea em Sesimbra de uma quantia alta para ir descendo at encontrar comprador. E tambm j se fica sabendo quando fala por exemplo em oitenta e seis mil ris, so trs mil ris a menos. Todos estes peixes juntos 86 mil ris. E rapidamente: 85, 84, 83... Trs peixes cada um por 5 mil ris... 4900... 4800... Chut! diz um dos do grupo. o sinal de que est arrematado. Mas a abundncia e a riqueza, a fartura, a sardinha. Foi inesgotvel, foi compacta, tanta que noites inteiras e seguidas ningum em Olho podia dormir. E diziase: Houve hoje grande matao de peixe. H aqui duas qualidades: a do sueste, que vem em Abril e arranca aos cardumes da costa de Marrocos; e o peixe do sudoeste, maior, mais gordo e menos saboroso, isto sem contar com a sardinha de passagem, que aparece em Janeiro quando desova. J l anda perdida... dizem os pescadores. Morde-lhe a ova. 74
Morde talvez, talvez a sardinha arraste a barriga na areia para tornar a pele mais fina, facilitando a sada da ova, porque chega nessa poca at trs braas de altura. Na Pscoa tambm certa. Vai correndo por esse mar o cardume da sardinha, e os barcos, as toninhas, os homens e os peixes vorazes, uns na cauda, outros na cabea daquele formidvel rolo prateado, cevam-se de dia e de noite, pescando sempre, apanhando sempre, destruindo sempre, sem o extinguirem. do cais que larga a sacada com que os pescadores h uns anos procuram desforrar-se dos grandes industriais da pesca. A sardinha atrada com engodo e fogachos e a rede puxada do fundo para cima. E ao fim da tarde daqui tambm que partem os vapores do cerco com as redes quarenta cabos de rede, com uma parte central, a copejada. Chamam-se cales os cabos extremos desta rede to fina que parece a que as mulheres usam para segurar o cabelo. A sardinha vem terra todas as tardes e retira pela manh. Se h luar, desaparece. Os vapores navegam com as luzes apagadas no silncio entorpecido destas noites de Vero, em que as estrelas se reflectem na gua como falhas de lume e a Via Lctea desdobrada ilumina ao mesmo tempo o cu e o mar duma vaga brancura. Um ou outro fantasma de vapor passa por ns e some-se. O mestre Fagadulha, concentrado, espera... A bordo no se respira, e dir-se-ia que os outros barcos andam tambm na ponta dos ps. Silncio e estrelas, cada vez mais estrelas. E sempre este movimento que sinto debaixo dos ps e este negrume que me envolve em crculos concntricos, medida que o barco se desloca, sob o cu que se aproxima e que sinto arfar. Toda a tripulao est atenta, desde os criados, os proeiros, at ao pedreiro e ao mestre, que so as pessoas importantes de bordo. O mestre no apenas um observador um bruxo. Para largar a rede preciso saber no s onde est o peixe e o mestre adivinha o cardume mas calcular de antemo a qualidade e a quantidade de sardinha que se vai tirar no lano porque no vale a pena fazer a manobra por uma pequena poro. Quantos barcos, mestre? E ele responde logo: Dois, quatro, cinco... H em Olho alguns mestres extraordinrios: o mestre Manuel Gomes, Jos Coelho, o Jos Farroba, etc., que afinaram a observao e os nervos at ao golpe de vista preciso e exacto, intuio rpida e infalvel. Mestre Fadagulha um velho curvado e seco, que conhece o mar como as suas mos. Tem j um filho para o substituir, mas diz: bom, mas as sardinhas ainda o no conhecem como a mim. Se o mestre sabe onde est o peixe, o pedreiro sabe onde esto as pedras. Com uma rede to cara e to fina, uma pedra inesperada a runa. A rede h-de ser lanada em stio limpo. Posso largar aqui? pergunta-lhe sempre o mestre antes do lano. Ele tem a sonda, mas pedreiro que se preze raro a usa. Muitos nem saem do poro: olham o cu pela escotilha e a posio das estrelas: Largue... Ou dizem: Mais ao norte... certo que o mar de Olho at s sete braas limpo, das sete s catorze sujo, e depois outra vez sem pedras. Mas h a contar com os calhaus isolados, que s quem foi criado na costa desde pequeno, como os pedreiros, e a conhece a palmos, tendo pescado toda a vida linha, sabe onde ficam. Noite cada vez mais escura, silncio cada vez maior. Fervilham as estrelas no cu, isoladas ou aos grupos, com buracos de escurido profunda no alto que fazem sobressair as jias mais puras. Uma coisa indistinta bia ali superfcie, que no sei se fosforescncia, se reflexo da Via Lctea... Escuro mais escuro, e depois outra vez ascendendo do mar uma claridade vaga como um bafo que se dissolve. E sempre este ar salgado, esta exalao das guas que me deitam a respirao cara. Comeo a perceber 75
no mestre, curvado e calado ao p de mim, uma grande excitao. Fala baixo: C est a brancura! C est a brancura da sardinha!... Bate l!... A seu lado um homem bate com um malho numa tbua, e este rudo faz estremecer e reluzir o cardume na profundidade das guas. O barco roda. O silncio aumenta. Aqui, acol, no negrume, ouve-se o mesmo bater compassado a bordo de outros vapores que deslizam na noite como sombras. Bate l! E no despega os olhos do mar em busca da ardentia. So dez horas. O mestre imobilizou-se, petrificado... Entre ele e o banco do peixe estabelece-se uma comunicao magntica: durante alguns momentos um adivinho, sob uma excitao nervosa extraordinria. Bate l!... Bate l!... Isto deve andar por perto. Pressente-a. Vai-lhe j no rasto. E comea a falar sozinho mais alto mais baixo ao acaso: Ela est aqui... ela no est longe. No, no e esta... Isto , quando muito, um barco... Bate l! Bate l!... O bruxo interroga a noite, o silncio e o mar. A excitao aumenta: Mais ao norte! berra , mais ao norte, estas so pequenas! Proa ao norte! Bate l... Aqui que elas esto! Pois no deviam de estar! So elas... Quantos barcos, mestre Fadagulha? Mas nesses momentos no gosta que o interrompam e responde com modo brusco: Quatro barcos, senhor; devem ser quatro barcos. C esto elas, eu no o dizia! C esto elas! E num grito de triunfo: Rede ao mar! Venha a chata! A rede lanada ao mar e fixa pela chata. Toda a excitao do mestre desapareceu de repente. Toma o leme e brada ao maquinista: Toda a fora mquina! Trata-se agora de envolver rapidamente o cardume da sardinha e ouve-se o vozeiro no escuro, repetir: Toda a fora! Toda a fora! E o vapor desliza, fechando o crculo. Aqui e ali, l para o fundo, sob o rodilho das estrelas, repete-se a mesma manobra; aqui e ali, mais perto, mais longe e apagado, ouve-se o bater compassado dos malhos que fazem vibrar e reluzir os cardumes no fundo da gua e os mesmos gritos de comando: Mais ao norte! Mais ao sul! Larga a chata! De novo interrogo o mestre: Quantos barcos? Quatro barcos, senhor, devem ser quatro barcos responde com a maior serenidade. Ele no s pressentiu a sardinha: soube tambm se era grande ou pequena e quantos barcos, mais xalavara, menos xalavara, estavam dentro da rede. A manobra executa-se rapidamente e a companha trata de apanhar o peixe, puxando as chumbadas e colhendo-as do fundo at se unirem no ponto onde o crculo se fechou. Resta meter o peixe para dentro das cavernas: so efectivamente quatro barcos de peixe. Pela manh, luz da madrugada, na frescura que se exala da primeira claridade e do hlito do mar misturados, faz-se o lano da sorte. o ltimo e ao acaso, mas sempre para o lado donde se conta que venha a sardinha. O mestre descobre-se e com ele toda a companha e diz, com solenidade: Em nome de Deus e do altar, esta rede ao mar! Antigamente o produto da pesca dividia-se em partes iguais por todos os homens das canoas, incluindo o arrais, e o Senhor dos Passos no era esquecido nos lucros, ganhando tambm o seu quinho. Com os aparelhos de pesca mais complicados, tira-se 76
do monte comum um certo nmero de partes para o barco, que representa uma personalidade, e outras para o aparelho, para a companha, para o Compromisso Martimo e para a gente nova no servio que vai a merecer. A parte do mestre chama-se a parte do corpo e a parte do governo. No cerco americano ou nas artes valencianas, os homens tm um salrio mnimo de oito tostes por dia e uma percentagem sobre a pesca, que no cerco vai at quinze por cento. Alm disto, distribuem-se duas xalavaras para cada trs homens, peixe do rancho, que lhes d para comer e para vender. E sobretudo h a furtana, que uma instituio. Ningum o ignora. Eles prprios o dizem. Sabem-no os patres: o peixe tanto e d tanto dinheiro que fecham os olhos. A tarrafia, isto , o logro, corrente e de todos os dias. A furtana geral. Roubam os homens, que escondem o peixe nos cestos, nos cantos do barco, onde podem. Roubam as mulheres e os rapazes. E at gente de certa categoria o furtava nas ruas. Era talvez por isso que o Tarrao, homem do campo, avarento, dizia: Esta gente do mar nasce roubando e morre pedindo. Tarde. Olho pela ltima vez a brancura imaculada dos terraos com o cu todo de oiro em cima e deixo com saudade esta luz e esta terra embruxada. ...Teria aqui uma casa numa das vielas fedorentas mais escusas. Para o exterior um muro sem uma janela, um muro velho, com um postigo mais velho ainda para entrar. Aberta a porta, seria um deslumbramento: no ptio caiado, s luz e folhas gordas, da variedade dos cactos que do flor vermelha, humedecidas de gua sempre a escorrer. Teria duas escravas para me servirem frutos translcidos acabados de apanhar. Teria um barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e de Marrocos, satisfazendo assim os meus velhos instintos de pirata. E de noite, a este luar que tem no sei o qu de mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher, dormiria na soteia sob as estrelas, grandes como fogachos. Era viver num meio adormecimento, seduzido pela luz, fora de todos os interesses e realidades, em Portugal e no Sonho...
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A PESCA DO ATUM TAVIRA Agosto - 1922 Muros muito brancos, de porta e janela, alguns com gelosias, que a velha e a melhor maneira de manter as casas sempre frescas. A rexa deixa passar o ar e conserva a meia luz: d intimidade aos interiores. Nas ruas no passa ningum. Casas apalaadas, tumulares. Telhados mouriscos, pontiagudos, de quatro guas, muito caiados, e as chamins do sul, que lembram redues de minaretes. H-as rendilhadas; h-as com filigranas e flores. Outras mais pobres e mais simples, mas sempre aspirando para o cu de Al. Entre elas e a Geralda a diferena apenas de tamanho. Brancas, esguias, delicadas, com um pouco de imaginao povoa-se Tavira de torres onde o rabe faz a orao da manh e da tarde. So recordao e saudade. A alma do moiro est viva. Subjugada, persiste e sonha. Aspira. Perseguida, obstina-se. E para viver faz-se pequenina e contenta-se em deitar fumo... Tavira uma terra fechada, concentrada, de gente rica que arrecada o dinheiro do figo, da amndoa e da alfarroba. Cada fruto destas rvores um pingo de oiro. Que saudades eu tenho nesta terra neurastnica, da fedorenta Olho! De Olho, at o mau cheiro me cheira agora bem... E como compreendo a mudana de fisionomia dos homens e das coisas... Tavira uma terra de montanheiros, Olho uma terra de pescadores. O pescador comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. No mar no h marcos... Todo o Algarve um pomar cultivado com esmero. A gente do Alentejo, quando v um bocado de terra bem tratada, diz: um pedacinho do Algarve. Mas no se lembra que o Algarve est retalhado, pulverizado, trs ps de oliveira, dois ps de amendoeira, e as almas rancorosas divididas como a terra. Um palmo de campo faz uma diferena extraordinria e um marco disputa-se a tiro entre irmos. Regime de salrio deficiente, um oramento estreito, tornaram o homem preocupado e subtil. De raa moiro, de condio eterno explorado. Foi ele que inventou ir ao advogado pedir-lhe um conselho s avessas, figurando a posio do adversrio. Depois do que, com o chapu na mo, que faz girar lentamente entre os dedos pelas abas, conclui: Ento est bem... Como est bem?! que eu no sou eu, sou o outro... D aos velhos rbulas as melhores lies de mariolice jurdica. Nos areais, pela costa fora, h vrias armaes de atum Medo das Cascas, Abbora, Barril, Livramento, etc. um facto sabido que do cabo de Santa Maria para nascente a abundncia de atum, e do cabo para o poente, de sardinha. Tavira um dos grandes centros da pesca de atum, se se pode chamar pesca maneira como se apanha este peixe. Para o atum basta saber matar. Ningum conhece nada do atum, que se pesca ao acaso e s cegas. Sabe-se que todos os anos desova no Mediterrneo, porque vai para l em Maio e Junho, gordo do direito, e volta de l magro, em Julho e Agosto do revs. bicho dos grandes fundos, que procura talvez as guas pouco agitadas do fundo que comea em Cdis e se prolonga at ao Mxico. Faz sempre o percurso em cardumes, levando adiante do bando os mais pequenos da famlia. Supe-se que o Gulf Stream exerce grande influncia nos seus hbitos, empurrando-o para a costa em procura de guas mais quietas e mais frias. to tmido que se deixa apanhar, podendo despedaar com facilidade as redes: mal 78
encontra meia dzia de fios a rabeira ou o quartel de fora, segue-os com o focinho at ao buraco, por onde entra no quadro da armao. O seu maior inimigo o homem, que o devora, em concorrncia com o roaz, incansvel em persegui-lo tambm, com a bandeira da barbatana fora da gua. Est, dizem, condenado a desaparecer muito breve, a no ser talvez nas armaes de revs de Tavira, porque a directriz que traz do estreito de Gibraltar o leva naturalmente a enfiar-se nessas redes. A armao, engenho muito antigo, cujo nome, almadrava, cheira a rabe, constituda pelo corpo dividido em trs compartimentos, cmara, bucho e copo pela rabeira, que se estende at a terra, para que o atum no passe, e pelo quartel de fora, destinado ao mesmo fim, e estendido para o mar, em ngulo obtuso com a rabeira. A armao tem s vezes a forma dum grande T, na temporada do direito, com duas bocas para a entrada do peixe servindo uma delas para a recuada da bacia de Monte Gordo. Para o atum de revs suprime-se parte da armao, ficando reduzida a um ngulo mais ou menos obtuso. A rede, de malha muito larga, mais apertada no copo, tecida de corda da grossura do dedo mindinho. Nas bocas, que deixam entrar o atum mas no o deixam sair, est o segredo da armao. Nesta poca o atum vem do estreito nas guas claras e com o levante. Mas as guas tm estado negras e vermelhas com fosforescncias nocturnas, e o atum desapareceu. O copejo vou v-lo a Sagres, armao da ponta da Baleeira. PONTA DA BALEEIRA 20 de Agosto O arraial, ao fundo duma concha de pedra, uma fiada de casotas muito brancas, com dois ou trs grandes armazns esparsos. Ali vivem durante o tempo da pesca, que vai de Maio at vinte e cinco de Agosto, a companha, o mestre que manda no mar, dois preguiceiros, dois interinos, e o escrivo do atum, velho autoritrio e seco que representa o dono. Um arraial emprega perto de cem homens, que, acabando a poca do atum, vo trabalhar nas armaes de sardinha. Tm dez por cento sobre o ganho, uma pequena jorna de 1200, e um atum de comedoria por cada cinquenta que apanham. um tempo certo de fadiga e proveito. E no s o homem sabe em que poca passa esta rica presa: sabe-o tambm o roaz, que a vem esperar ao cabo de S. Vicente... Hoje a gua est lmpida e a baiazinha, fechada por dois grandes penedos no meio do mar, acorda com tintas to vivas que apetece pint-la. O giro do mar iou o pendo para chamar os homens. Larga a canoa do mandador com o escrivo, que procede entrega dos peixes, e com ele vo os barcos da andaina. Aproveitemos o dia: em vindo a aguagem do levante, boa para Tavira, j esta armao no apanha mais peixe. Nvoa pouca. Uma nvoa que nunca vi e que empoeira de azul o mar azul, fundindo-se com a nvoa do alto. Os cales e as lanchas prolongam-se com a armao a duas milhas da costa. Na minha frente ergue-se a penedia a pique, o morro da Atalaia com chapadas de negro e de vermelho. O que vale a este torresmo a luz e o azul que se pega como tinta... Estou em frente de duas baas, a da Baleeira e a da Atalaia. Dum lado e do outro penedos compactos onde a gua se infiltra largando-os a custo. Uma rocha destacada parece um castelo em runas, com espumas esbranquiadas aderentes base. Para alm prolonga-se o deslumbramento de Lagos at ponta do Altar, confundida ao longe na tinta carregada das guas, destas guas gordurosas que penetram nos buracos das rochas e alastram nos fios de areia, apegando-se a todas as pedras da costa. A nvoa desfez-se e a ponta de Sagres um colosso duro e negro. A este panorama falta-lhe 79
talvez encanto. Est ali est ali para sempre a duas ou trs tintas cruas, azul, vermelho e negro. decorativo mas decorativo como um cenrio. As meias-tintas escusado procur-las. Nunca lhe chega a hora melanclica em que a paisagem do norte empalidece e desmaia como quem vai morrer. imenso vermelho e negro; duro vermelho e negro. Os barcos rodeiam as redes. Vai-se meter o atum no copo, vai-se coar, operao delicada, porque basta uma toninha, cabea de rato, ter-se metido no quadro, para o atum, que muito tmido saltar fora. A barca fechou a porta. Seis cales em roda puxam as bias do saco sobre a borda. Primeiro colhem a rede de malha mais larga, e depois a outra, conduzindo pouco e pouco, e a medo, o peixe para o copo. o momento... Uns homens tm na mo direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela ala, e outros, armados de um bicheiro mais comprido, s esperam que o atum comece a saltar para o chegarem aos barcos. Agita-se a gua... Vem-se os grandes dorsos reluzentes e os rabos que chapinham. Noventa negralhes meios nus, de calas arregaadas e camisolas azuis, esto prontos a matar. Gritam: Agora! Espetam o peixe. Para no carem gua, deitam a mo esquerda corda amarrada ao pau de entrevela, curvam-se e fisgamnos pela cabea. O peixe resiste e quer fugir: sentindo-se preso, ergue-se, apoiado na cauda, e esse movimento de recuo que ajuda o homem a met-lo para dentro da caverna, largando logo da mo o bicheiro, que lhe fica suspenso do pulso pela ala. Baixa-se o homem, ergue-se logo... Os barcos esto cheios de peles luzidias e de manchas gordurosas de sangue. So bichos enormes e escorregadios, de grossa pele azulada, que batem pancadas sobre pancadas com o rabo. A gritaria aumenta Eh! Eh!... uma mixrdia que me cansa. S vejo manchas sobre manchas, sobrepostas, a cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se debatem e morrem, e a agitao que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo isto um grito, um grito de triunfo, o grito da matana que explode numa alegria feroz, a alegria primitiva: Eh! Eh!... num quadro imutvel, todo vermelho e negro. Agora a vida atinge o auge. Alguns pescadores saltam para dentro do copo com gua pela cinta, e um, que arrastado e cai, monta num atum, como um velho deus marinho, e escancara a boca de riso... Cheira a aougue. A gua tinge-se de sangue, a gua pegajosa encharca os barcos. Misturam-se as cores e as peles escorregadias. Saem alguns atuarros mais pequenos, peixe-agulha e o pachorrento peixe-vaca, que acompanha sempre o bando. A carnificina enfarta e enjoa. H laivos de sangue na costa, h ndoas de sangue na tinta azul do mar. Acode a cavala babugem desta enorme sangueira. Imensa tela a tons violentos, com uma agitao frentica no primeiro plano: s pinceladas grossas que no admitem mincias, tinta atirada num gesto nervoso e a interveno do prprio dedo para dar o movimento frentico, enquanto a tela fresca escorre, poderiam exprimir a ebulio da vida sob este sol claro que rebrilha e ofusca. E o grito sobretudo o grito que se vai atenuando, mas que ainda ecoa, como ltimo sinal de triunfo de quem acabou a violncia e est farto de matar: Eh! Eh!... no panorama inteiramente vermelho e negro, porque at o mar agora uma ndoa gordurosa e sangrenta... Terminado o copejo, o peixe vai para Vila Real para ser arrematado s lotas. Entra em seguida nas fbricas. Do atum aproveita-se tudo. O melhor para os delicados, em latas mergulhadas em azeite de Castelo Branco a parte do lombo e da barriga; a carne escura comem-na com po negro os trabalhadores do Alentejo, e o bucho, as tripas e as orelhas tm amadores apaixonados. Ficam s as cartilagens e os restos, que depois de cozidos em grandes caldeiras se secam para guano. Este peixe, que s vezes pesa dez e quinze arrobas, afinal o porco do mar, e isto de se apanhar de uma vez, como j tem sucedido, uma vara de dois mil porcos no 80
brincadeira nenhuma, tanto mais que um atum vale hoje quinhentos mil ris, o antigo preo de uma quinta com casa apalaada... Mas o grito de carnificina no me sai dos ouvidos, e vejo sempre no panorama imutvel a mesma ndoa sangrenta...
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SAGRES Agosto - 1922 Pela portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que desfila. De um lado o cu doirado e violeta, do outro todo roxo. Os nomes das estaes tm um sabor a fruto maduro e extico Almancil-Nexe, Diogal, Marchil... De quando em quando fixo um pormenor: uma mulher passa na estrada branca, entre oliveiras pulverulentas e fantasmas esbranquiados de rvores, sentada no burrico, de guarda-sol aberto, e dando de mamar ao filho. Terras de barro vermelho. Grupos de figueiras anainhas estendem os braos pelo cho at ao mar, deixando cair na gua os ramos vergados de fruto, que s amadurece com as branduras. Uma ou outra casinha reluzindo de caiada: ao lado, e sempre, a nora de alcatruzes e um burrinho a mov-la entre as leves amendoeiras em fila, as oliveiras dum verde mais escuro e a alfarrobeira carregada de vagens negras pendentes. A mesa de Deus est posta. Estradas orladas de cactos imveis como bronze, e a deslumbrante Fuzeta, com o seu zimbrio entre rvores esguias. Ao longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hlito a esta luz vivssima. Atravesso Portimo de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho poeta sonha com O Fausto, e talvez como ele em recomear a vida. A luz cada vez mais viva. Um homem com dois cabazes apregoa na rua: um tipo seco e tisnado de mouro, de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e logo atrs outro burro com bilhas de gua fresca. extraordinrio o que este pobre jerico inocente e peludo, de olhos lmpidos, trabalha no Algarve. ele que leva a fruta ao mercado e tira a gua das noras. Lavra as terras calcinadas, transporta pelas estradas solheirentas, adornado com cordes vermelhos, quase uma famlia a dorso. Vai s Cadas buscar as grandes bilhas vermelhas que transpiram, mata a sede da gente e a sede da terra e no sei se embala os beros... Produz muito e contenta-se com pouco. Detenho-me um instante na cenogrfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao p da gua azul tudo pintado por Manini agora mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas guas; do outro, o esfumado Lagos mal se entrev ao longe... Duas impresses se fixam no meu esprito para sempre: a noite extraordinria, a luz maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta luz para se ser feliz. ela que encanta o Algarve. ela que produz os figos orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a estalar de sumo, e destilando um lquido perfumado, e o figo preto de enxaire que se mete na boca e sabe a mel e a luz perfeita. ela a criadora destas agonias doiradas que vo esmorecendo e passando por todos os tons at morrer a muito custo. E as noites mgicas e caladas, as noites sem lua, muito mais claras que as noites do norte, em que se distingue a brancura voluptuosa das casas e se vem as estrelas enormes reluzindo atravs das amendoeiras. Lagos, o deslumbramento da baia, e sigo logo de carrinha pela estrada branca, entre amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres com grandes chapeletas na cabea, a apanhar a amndoa varejada. s figueiras chega-se com a mo. H algumas que deitam braos, mergulham-nos na terra, criam novas razes e tornam a puxar outra figueira. H-as aninhadas, com um metro de altura e uma roda enorme. H-as muito velhas, retorcidas, com os ramos em novelo. Mas cruzo a estrada da Luz, e logo, de 82
Almadena para diante, a terra muda de aspecto. Estranho o Algarve. Deixa de ser risonho e torna-se rasteiro e pedregoso. Inquieta-me... a via sacra que comea. O monte desolado enegrece. At as casas so escuras. A terra d calhaus rodos, e de Budens para l, a desolao redobra. Nem uma figueira, nem uma amendoeira. Pedras cor de lousa, resteva e rosmano. E a esta uniformidade sucedem na estrada deserta as ondulaes de Vila do Bispo com alguns moinhos abandonados. Cinza, vegetao pegajosa, cujas folhas rebrilham como vidrilhos a folha do rosmano, que desta secura extrai a humidade das lgrimas. Mais alguns passos e, ao cair fnebre da tarde, isto atinge a opresso. No pelo que . nada. o vago acinzentado. Nem tojo, nem pedras. Uma terra indefinida e plana como um pensamento doloroso que se obstina e no consegue fixar-se. Bandos de gralhas levantam voo no deserto... O promontrio um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar a ponta de S. Vicente e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos parecem de ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a cem metros de altura. Ventanias speras descarnam o morro cortado a pique, e no Inverno as vagas varrem-no de lado a lado. Sagres o cabo do mundo. Levo os ps magoados de caminhar sobre pedregulhos azulados, num carreirinho, por entre lava atormentada. Do passado restam cacos, o presente uma coisa fora da realidade, grande extenso deserta, pardacenta e encapelada, com pedraria a aflorar entre tufos lutuosos; vasto ossrio abandonado onde as pedras so caveiras, as ervas cardos negros e os tojos s espinhos e algumas folhas de zinco. O mar verdade, esquecia-o mas o mar como imensidade e tragdia, e ao lado a gigantesca ponta de S. Vicente, s negrume e sombra. Mar e cu, cu e mar, terra reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado. Grande stio para ser devorado por uma ideia! Isto devia chamar-se Sagres ou a ideia fixa... S agora entrevejo o vulto do Infante. Cerca-o e aperta-o a solido de ferro. Pedra e mar torna-se de pedra. Est s no mundo e contrariado por todos. Obstina-se durante doze anos! Contra o clamor geral. Perdio! Perdio! agoura toda a gente, e Ele no ouve os gritos da plebe ou a murmurao das pessoas de mais qualidade (Barros). Aqui no se ouve nada... Nem um sinal de assentimento encontra. No importa. S e o sonho, na gigantesca penedia que com dois dedos inexorveis aponta o caminho martimo para as ndias pela direco da ponta de Sagres, e a descoberta do Brasil pela direco da ponta de S. Vicente. Lgrimas, orfandades, mortes... Mas o homem de pedra est diante deste infinito amargo e s v o sonho que o devora. Rodeiao a imensido. Os mais prncipes contentam-se com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitao dos homens. Este Prncipe no. Este Prncipe pertence a outra raa e a outra categoria de homens. No lhe basta um grande sonho h-de por fora realiz-lo e levar os Portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos de mar, de fome e de sede. No egosmo, mas s vive para O pensamento que se apoderou de todo o seu ser. Um pensamento e o ermo. E este ptimo para forjar uma alma luz do cu ou do inferno. Os dias neste stio magntico pesam como chumbo. Uma pobre mulher do povo dizia-me ontem: Isto aqui to nu e to s que a gente ou se agarra a um trabalho e no o larga, ou morre. a realidade que nos mata. Este panorama na verdade trgico. No cessa dia e noite o lamento eterno da ventania e das guas. E os cabos, que so de ferro e escorrem sangue, obstinam-se em apontar o seu destino de dor a esta terra de pescadores.
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**************************************************************** Obra digitalizada e revista por Ernestina de Sousa Coelho. Actualizou-se a grafia. Projecto Vercial, 2002 http://www.ipn.pt/literatura ****************************************************************
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