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A epidemia de gripe espanhola de 1918 na

“Metrópole do Café”: a partir do diálogo entre


Washington Luís e Altino Arantes
The Spanish flu epidemic of 1918 at the “Metrópole do Café”:
from the dialogue between Washington Luís and Altino
Arantes
Leandro Carvalho Damacena Neto
Doutorando em História Cultural
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

Lara Alexandra Tavares da Costa


Especializando em História
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

“A doença não era um simples problema patológico


era muito mais um problema social”.
(Dr. Victor Godinho1)

Recebido em: 30/06/2014


Aceito em: 20/06/2015

RESUMO: Neste artigo iremos apresentar o possível diálogo entre o Diário Íntimo de
Altino Arantes – então Presidente do Estado de São Paulo – e o Relatório Oficial sobre a
epidemia de gripe espanhola de 1918 no município de São Paulo, o ofício nº 477, expedido
pelo Prefeito da Capital Paulista Washington Luís Pereira de Souza, ressaltaremos também
algumas obras historiográficas produzidas a respeito da Historiografia das doenças.
PALAVRAS-CHAVE: Gripe Espanhola, Washington Luís, Altino Arantes.

ABSTRACT: In this article we present the possible dialogue between the Intimate Diary of
Altino Arantes - then President of the State of Sao Paulo - and the Official Report of the
Spanish flu epidemic of 1918 in São Paulo, the official letter No. 477, issued by Mayor Capital
Paulista Washington Luís Pereira de Souza, also will outline some historical works produced
about pandemic flu.
KEYWORDS: Spanish flu epidemic, Washington Luís, Altino Arantes.

1RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim... inventário da saúde pública. São Paulo – 1880-1930. São Paulo:
Editora da UNESP, 1993, p. 128.
Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG.
v. 7 n. 2 (mai./ago. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015.
ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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A epidemia de gripe espanhola2 e ascensão da Historiografia das doenças

A Epidemia de Gripe Espanhola no ano de 1918 atacou em quase todas as localidades


no mundo, com exceção de algumas ilhas no Oceano Pacifico, segundo consenso entre os
pesquisadores da epidemia, a espanhola no ano de 1918 vitimou cerca de 20 milhões de
pessoas em todo o mundo. A epidemia de gripe chegou ao Brasil através de um vapor de
bandeira Inglesa, o Demeara. Este navio atracou sucessivamente nos portos de Recife, em
Salvador e no do Rio de Janeiro, então capital federal.

A denominação da epidemia de gripe com a acunha Gripe Espanhola surge após o


ano de 1918 em consequência, que a gripe grassava na Espanha até então, país neutro durante
a 1ª Guerra Mundial, a imprensa local não censurava e não era censurada sobre as notícias
da existência da gripe em seu território. Por motivos políticos e bélicos, os países que estavam
envolvidos no conflito não informavam da existência da epidemia de gripe em seus
territórios, ocultavam a presença da gripe. Então naquele primeiro momento, somente a
Espanha não ocultava as notícias da epidemia que grassava em todo mundo, ficando explícito
que a epidemia havia iniciado na Espanha – o que é um equívoco.

Kolata3 que faz uma contextualização global do flagelo ocasionado pela epidemia de
Influenza espanhola. As cidades atacadas pela moléstia estavam completamente
“despreparadas”, o que fazer com os mortos tornou-se um problema, pois eram necessários
transportes especiais para os cadáveres, não existiam caixões suficientes, os agentes
funerários se encontravam sobrecarregados em todas as localidades acometidas pelo vírus da
gripe.

A moléstia de gripe que ocorreu no ano de 1918, mas especificamente o 2º ciclo


mundial da epidemia alcançou um alto grau de mortalidade chegando a vitimar mais pessoas

2 Existem outros estudos sobre a epidemia de gripe espanhola no Brasil. São eles: BERTOLLI FILHO, Cláudio.
Epidemia e Sociedade: a gripe espanhola no município de São Paulo. 482f. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986;
BERTUCCI, Liane Maria. “Conselhos ao Povo”: Educação contra a Influenza de 1918. Caderno Cedes, Campinas,
v. 23, n. 59, p. 103-117, abr. 2003; KOLATA, Gina Bari. Gripe: a história da pandemia de 1918. Trad. Carlos
Humberto Pimentel Duarte da Fonseca. Rio de Janeiro: Record, 2002; SOUZA, Christiane Maria Cruz de
Souza. A gripe espanhola em Salvador, 1918: Cidade de becos e cortiços. História, Ciência, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 71-99, jan./abr. 2005, p. 81-82.
3 KOLATA. Gripe.

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que a Primeira Guerra –, sem uma explicação de como teria atingido tal gravidade deixando
todos ainda mais perplexos de como começou, a gripe espanhola acabou.

A história das doenças se constitui um campo de estudos de fundamental importância


para a historiografia, principalmente para a chamada História Cultural, vindo a substituir,
metodologicamente, os estudos sobre enfermidades e epidemias, que em geral baseavam-se
nos trabalhos realizados pelos próprios médicos, enfatizando estudos biográficos,
institucionais e acerca do saber médico e sua prática. Para os historiadores que se
“arriscaram” na realização de uma história da medicina e da saúde restou, por muito tempo,
a descrição dos fatos sob um enfoque político tradicional.

Nos anos 1940, com a afirmação da historiografia dos Annales, se inicia um debate
ainda tímido entre história, medicina e saúde. A partir da década de 1970, há um crescente
interesse dos historiadores pela produção de uma história social da medicina. Essa nova
abordagem se pauta não somente por características biológicas, mas também pelos aspectos
sociais e culturais, ressaltando a heterogeneidade de cada grupo social em diversas realidades.
A inclusão da doença entre os novos objetos da história pôde fornecer numerosos
esclarecimentos sobre as articulações e as mudanças das sociedades. E como a doença é
quase sempre um elemento de desorganização e reorganização social suas causas passam a
ser compreendidas a partir de novos olhares, ampliando também a percepção da comunidade
médica, ao estabelecer um diálogo interdisciplinar.

A pesquisa histórica das doenças, segundo Silveira e Nascimento, se concentra no


estudo das doenças crônicas, endêmicas e epidêmicas, revelando suas implicações sociais,
políticas e ideológicas, e ressaltando a diversidade dos contextos sociais analisados. Para
Rosenberg4, a doença se constitui, simultaneamente, como problema substantivo e
instrumento analítico: não é percebida somente como entidade biológica e material, mas
como um complexo que envolve sua forma biológica assim como os significados que lhe são
atribuídos pelas diferentes sociedades que assola.

Neste trabalho, a gripe espanhola será analisada a partir de suas representações


sociais, pois a doença constitui-se um problema a ser explicado pela sociedade atacada; é

4NASCIMENTO, Dilene R.; CARVALHO, Diana M. (orgs.). Uma história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo
15, 2004.
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imperativo que tenha sentido social e cultural, para tanto iremos analisar dois principais
documentos produzidos no contexto social assolado pela epidemia, são eles, o Relatório nº
477 expedido pela Intendente municipal da cidade de São Paulo em 1918, Washington Luís
e o Diário Íntimo do então Presidente do Estado de São Paulo, Altino Arantes.

Poder Público Municipal e Estadual: medidas profiláticas contra a epidemia


de gripe espanhola

O Prefeito Washington Luís no ofício nº 477 informa, que é muito grato à confiança
que a Câmara Municipal lhe concedeu durante a moléstia de gripe na cidade de São Paulo:

Correspondendo à nobre confiança da Câmara Municipal, vendo


desempenhar-me do dever de honra de dizer-lhe o que a Prefeitura em
virtude dos poderes extraordinários e excepcionais que lhe foram
outorgados pela Resolução nº 131, de 26 de outubro de 1918, fez durante
os calamitosos dias em que fomos flagelados pela peste5.

Por este ato insólito a edilidade paulista recebe severas críticas da sociedade e,
especialmente da Imprensa:

O dever da Câmara Municipal não era esse. A Câmara Municipal de São


Paulo, vendo a cidade invadida por um mal terrível, e tendo a vista o
exemplo assustador do Rio de Janeiro, occorria-lhe mais era o dever de se
reunir em sessão permanente, de prever aquillo que se ia passar na cidade,
aquillo que todos prevíamos, e chamar a si, espontaneamente, uma parte
da tarefa, que está recahindo desigual e tumultariamente sobre os hombros
de todos nós.6

A sociedade e a imprensa paulista demonstravam duras críticas a Câmara Municipal.


A resolução nº 131, expedida pelos vereadores paulistas era uma medida provisória que dava
plenos direitos para a edilidade se evadir da cidade, alegando ter que cuidar de parentes
enfermos em outros locais. Desde os primeiros rumores até o momento em que Arthur
Neiva, diretor do Serviço Sanitário Estadual (S.S.E.)7 declarou estado epidêmico no Estado
de São Paulo a 15 de outubro de 1918, a edilidade não tomou sequer uma medida no sentido
de debelar a gripe. Após dez dias da declaração de Arthur Neiva, nenhum vereador se
encontrava na capital. O prefeito Washington Luís teve de enfrentar o flagelo epidêmico sem

5 Relatório Ofício nº 477. AESP – Arquivo do Estado de São Paulo.


6 BERTOLLI FILHO, Cláudio. Epidemia e Sociedade, p. 181.
7 Serviço Sanitário Estadual, doravante S.S.E.

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o apoio do legislativo municipal. Digno de nota o fato de que o prefeito ter ocultado no
Ofício nº 477, o conteúdo da resolução nº 131, certamente para aumentar seu prestígio no
momento que lhe foi delegado amplos poderes.

Na Bahia, a pesquisadora Christiane Souza8 ressaltou também o atraso no


reconhecimento da chegada da epidemia pelas autoridades públicas, o presidente do estado
informou que a epidemia se iniciou “oficialmente” por volta de 27 de setembro de 1918; já
o jornal A Tarde informava que a epidemia teria se iniciado um pouco antes, a partir do dia
24. Se considerarmos o período de transmissibilidade da doença e o intervalo de tempo
necessário para que os primeiros sinais se manifestassem, percebe-se que a moléstia se
difundia em Salvador muito antes destas datas.

Segundo Adriana Goulart9, na cidade do Rio de Janeiro, notícias sobre a gripe


espanhola estavam presentes em jornais e demais periódicos, sem, contudo, despertar a
atenção das autoridades públicas e da população. Predominavam a desinformação e o medo
de medidas sanitárias coercitivas – é preciso lembrar que a população do Rio de Janeiro
sofreu com as medidas profiláticas das autoridades sanitárias no final do Segundo Império e
início do período republicano: a higienização da cidade realizada pelo prefeito Barata Ribeiro;
a demolição de cortiços; e a vacinação obrigatória que desencadeou a Revolta da Vacina em
1904, no esteio das reformas modernizadoras empreendidas pelo governo de Rodrigues
Alves (1902-1906).

No início de seu Relatório sobre as medidas tomadas pelo poder municipal durante
a pandemia gripal (ofício nº 477), o prefeito faz uma analogia entre a situação vivida pela
população da capital com a Idade Média durante a qual a perspectiva da morte assombrava
a todos diante das guerras e pestilências que se seguiam anos a fio. No entanto, ressalta que
com o progresso da ciência e os ensinamentos da higiene as epidemias teriam se afastado dos
homens. Washington Luís faz ainda uma breve alusão à bacteriologia que naquele contexto
histórico da Primeira República era bastante propalada na perspectiva de uma nova era na
qual o homem venceria os males epidêmicos. Nessa perspectiva a gripe espanhola era

8SOUZA. A gripe espanhola em Salvador, 1918, p. 81-82.


9GOULART, Adriana da Costa. Um cenário mefistofélico: a gripe espanhola no Rio de Janeiro. 253f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, Niterói,
2003.
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considerada como apenas uma batalha perdida que atingia a todos em qualquer parte do
mundo:

A invasão insólita da epidemia, a violência de seu ataque, a inutilização


completa, si bem que periódica, da grande maioria da população vitimada,
o coeficiente altíssimo de mortalidade em toda a peste, nos climas quentes,
como nos frios, nas estações hibernais como nas estivais, terras de sábias
organizações como naquelas mal aparelhadas, vieram, trazendo o pânico
e deixando o luto e a desolação, mostra mais uma vez a contingência das
coisas humanas.10

É perceptível que a intenção de Washington Luís seja a atribuir as mortalidades e o


flagelo que abateram a cidade de São Paulo a algo acidental, portanto imprevisível, não
havendo como atribuir a responsabilidade a alguma autoridade pela mortalidade gripal visto
que se tratava de um fato fortuito. Se a peste era mortal em todos os locais
independentemente das melhorias urbanas ou não e do clima atmosférico seria difícil
estabelecer medidas preventivas. O prefeito tenta dar um sentido metafísico ao flagelo
quando se refere a “contingência das coisas humanas”, tentando enfatizar a ocorrência desses
acontecimentos que são inerentes ao homem e, sem explicações.

Na esfera do Poder Público Estadual, o Presidente do Estado de São Paulo, Altino


Arantes, já estava ciente da epidemia de gripe desde o dia 23 de setembro de 1918, antes da
virulência gripal chegar em São Paulo conforme registra em seu diário íntimo: “(...)
telegraphei ao Dr. Nilo Peçanha, solicitando notícias da Missão Médica Brasileira, por constar
esta sendo ella dizimada, a bordo do ‘La Plata’, pela terrível ‘influenza hespanhola’.”11.

Altino Arantes e Arthur Neiva, diretor do S.S.E., já estavam cientes que a epidemia
de gripe estava rondando a capital, entretanto, as medidas preventivas contra o flagelo
somente foram tomadas quando a moléstia já atingia proporções alarmantes. Como vimos
anteriormente a diretoria do S.S.E. demorou a reconhecer oficialmente o estado epidêmico
(decretado em 15/10/1918). Altino Arantes relata algumas das medidas tomadas pelo
governo estadual, especialmente na capital:

O commandante Nunes – chefe da nossa divisão naval ancorada em


Santos-, fallando commigo pelo telephone, pediu-me que lhe facultasse
[remeter] a guarnição de seus navios ao Hospital de Isolamento, enquanto

10Relatório Ofício nº 477. AESP – Arquivo do Estado de São Paulo.


11Diário Íntimo Altino Arantes: AESP. APAA. – Arquivo Privado Altino Arantes. Lócus: AP91.01.001, vol.8.
(23/09/1918).
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se fizesse o expurgo dos barcos contaminados de ‘influenza hespanhola’.
Accedi promptamente, dando eu, em pessoa, ao Dr. Neiva as instrucções
nesse sentido. Com este combinei também o fechamento dos Grupos
Escolares da Capital, podendo os respectivos edifícios ser convertidos em
enfermarias para os indigentes atacados de grippe.12

Se as medidas preventivas de isolamento e desinfecção nos portos do Estado de São


Paulo e nas regiões fronteiriças tivessem iniciado no dia 23 de setembro e também a
preparação de hospitais provisórios acontecesse naquele período, poderia ser que muitas
mortes fossem evitadas. Parece ter prevalecido a lógica de se manter intacta a imagem do
estado de São Paulo como guarnecido contra epidemias para evitar o consequente desgaste
político do governo estadual. Que há muito tempo vinha sendo intensamente criticado pela
imprensa, pela inação diante da crise econômica, a carestia generalizada e o aumento do
desemprego que afetava singularmente a população da capital que havia alcançado a
quantidade populacional de quase 500 mil habitantes. A Greve Geral que estourou em
setembro de 1917 expôs de forma escancarada esse quadro de efervescência social.

Conjugação entre as ações da esfera pública estadual e municipal no


combate à epidemia de gripe espanhola na “Metrópole do Café”

Em outro trecho do ofício nº 477, o prefeito Washington Luís se refere à necessidade


de um esforço conjugado entre a esfera pública estadual e municipal para distribuir tarefas e
responsabilidades durante a crise epidêmica na capital:

Não obstante a Municipalidade de São Paulo, não obstante eletiva o seu


órgão executivo, entendi, para evitar dispersão de esforços e de energias,
e para afastar embaraços e atritos que, porventura, pudessem surgir – que
a ação municipal deveria se conjugar com a estadual, com a qual está
intimamente ligada, pois que muitos serviços locais se encontram
distribuídos pelas secretarias de Estado, para atingirmos o almejado fim
comum. Se, nos tempos normais, essa tem sido a regra do proceder
administrativo, com mais forte razão deveria ela prevalecer no momento
angustioso e aflitivo que íamos atravessar.13

O prefeito comenta sobre as boas relações que o mesmo mantinha com o Presidente
de Estado. Embora as relações entre essas duas autoridades parecessem amistosas é certo

12 ______, vol.9 (17/10/1918).


13 Relatório Ofício nº 477.
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que Altino Arantes, conforme registra em seu diário, aparecia sempre contornando algum
atrito que o prefeito provocava ou se envolvia:

[...] Num dos intervalos, o nosso amigo Washington dissertou, pela


centéssima vez, com os mesmos argumentos e as mesmas palavras, sobre
a sua thése predilecta na actual phase: ? ‘Da influência perniciosa que o
Comissariado da Alimentação Pública exerce na propagação da
ankylostomóse e a moléstia de Chagas.Parece phantasia, mas não é...14

No momento que Altino Arantes se reunia com seus secretários e com o prefeito da
capital para discutir sobre a epidemia de gripe que atacava em São Paulo, impiedosamente,
Washington Luís discursava novamente sobre um problema que não estava em pauta. Em
outro trecho do diário íntimo percebemos o desfecho dessa discussão e os “assomos” do
prefeito à crítica de Altino Arantes:

Este Washington, num de seus conhecidos assomos, contrariado com uma


observação minha a propósito de sua ação ou, melhor, de sua abstenção
no caso flagrante da alimentação pública nesta capital, achou que nessa
observação se envolvia uma perfídia minha contra ao Prefeito [...].
Protestei vehementemente e contra a expressão e contra a injustiça que
ella me arrogava gratuitamente.
Vieram dahi as explicações: o nenhum propósito de offensa a minha
pessoa e sim uma amistosa allusão á minha ‘habitual malícia’, firme e
constante desejo de auxiliar leal e desinteressadamente o meu governo, a
ausência completa de ambição política – para o Ministério ou para a
Presidência do Estado; e, finalmente, a renúncia immediata do cargo de
Prefeito, caso, do incidente, restasse o mais leve resentimento de minha
parte.
E tudo terminou estendendo-me as mãos para uma ‘despedida senza
rancore’, a que eu correspondi sinceramente, convencido embora de que
os nossos melhores amigos são, não raro, aquelles que menos reespeitam
os nossos melindres... Paciência! Cosi/va il mondo, e inútil seria querer
corrigi-lo...
Em todo caso, tomei a minha pequena vingança numa grande perfídia para
com o meu interlocutor: deixei perversamente de communicar-lhe a bôa
nova que, hoje mesmo, recebera do Oscar scientificando-me de que
‘conforme’ os meus desejos insitentemente manifestados, o Washington
seria, quasi certamente o Ministro do Interior do Conselheiro Rodrigues
Alves... Que desforra presidencial!...15

Neste longo trecho citado, se evidenciam as divergências entre as esferas de poder,


no qual o prefeito afirma não ter ambições para nenhum Ministério supostamente oferecido

14 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9 (21/10/1918).


15 Diário Íntimo Altino Arantes, (23/10/1918)
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a ele no governo de Rodrigues Alves, presidente da República eleito. Mesmo sabendo da
informação positiva sobre a indicação do prefeito a ministro, Altino Arantes não a revela a
seu interlocutor. Portanto, a referência às boas relações entre poderes estadual e municipal,
contida em trecho do ofício nº477, constituía uma espécie de “cortina de fumaça” para
esconder divergências que vinham de muito antes. É significativo que Washington Luís após
ser empossado como presidente do Estado em 1920 acabou por isolar politicamente Altino
Arantes e o grupo ligado ao Conselheiro Rodrigues Alves – que havia falecido em 1920 em
consequências da gripe espanhola.

Ações do poder público municipal e estadual durante a epidemia de gripe


espanhola de 1918 e o novo código sanitário de 1917.

A divisão de tarefas a que se refere o Prefeito efetuou-se no transcorrer do flagelo


epidêmico, sendo separadas as áreas de atuação de cada autoridade pública para evitar
conflitos:

No começo da primeira quinzena de outubro entendi-me com o Senhor


Presidente do Estado para combinar qual deveria ser a nossa atitude na
defesa da cidade. Vossa Senhoria Excelência me fez saber estar assentada
que toda a ação defensiva e agressiva em prol da saúde da cidade, na parte
relativa a médicos, medicamentos, tratamentos, hospitais e enfermarias,
ficava a cargo da Secretaria do Interior por intermédio da Diretoria do
Serviço Sanitário; que a assistência à população – e nesta parte ficaria
compreendida não só a prestação de recursos, como a prestação de
serviços –, porque tão necessitado é aquele que não tem dinheiro para
comprar gêneros, como aquele que não tem quem vá comprar esses
gêneros, ou os transformar em comida que a assistência assim
compreendia ficava entregue a Senhoria Excelência, o Senhor Arcebispo
Metropolitano, que a teria por intermédio das Conferências Vicentinas,
que são aproximadamente oitenta, socorrendo assim as pessoas sem
distinção de credo religioso e fornecendo o Governo do Estado, os
recursos [?] necessários.16

Mesmo com a separação das áreas de atuação de cada poder público e por entidades
privadas, não constituiu uma garantia que os conflitos seriam evitados. Em seguida, assinala
os encargos direcionados ao município durante o flagelo:

[...] de ficar naturalmente com os serviços municipais, neste momento


imprescindíveis, feitos pela cidade, e que são: os serviços de comunicação

16 Relatório Ofício nº 477.


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a cargo da Companhia Telefônica; os de transporte, Luz e Força,
executados pela “The São Paulo, Light na Power Co”.; o serviço funerário,
concedido à Santa Casa de Misericórdia Municipal e que tem sido feito
por intermédio da Casa Rodovalho; os serviços dos dez cemitérios
municipais e os serviços da limpeza pública, tendo a Prefeitura ainda de
prover ao abastecimento da cidade.17

A partir deste momento percebemos a autonomia do Município e do Estado no


período da epidemia de gripe, mas adiante analisaremos as medidas que cada Poder Público
exerceu. Ressaltamos que essas medidas fizeram parte do novo Código Sanitário de 1917,
segundo o qual o Estado deveria exercer o papel principal no combate as doenças e
epidemias, e que a autonomia municipal perdia força naquele momento. A capital paulista se
configura como foco central de atenção do S.S.E., deixando as demais cidades praticamente
a cargo dos municípios durante a pandemia gripal.

Altino Arantes, católico praticante, e seguro das responsabilidades do Arcebispo


Metropolitano da Igreja Católica D. Duarte, incumbiu-lhe de prestar socorros à população
carente:

De caminho para a cidade, estive no Palácio de S. Luís, onde combinei


com o Sr. Arcebispo a distribuição de viveres e remédios às classes pobres,
attingidas pela grippe, por intermédio dos Vigários e das Conferências de
S. Vicente. A Secretaria da Fazenda pagasse as notas visadas por essas
entidades.18

O Arcebispo D. Duarte se prontificou a ajudar a população carente junto com a


Igreja Católica organizando hospitais provisórios, distribuindo alimentos e gêneros de
primeira necessidade à população. Sobre a questão financeira referida por Arantes, a
Secretaria da Agricultura privilegiou a Igreja na distribuição dos montantes destinados aos
serviços de combate à gripe, conforme assinala Bertolli Filho:

[...] Acentua-se que esta resolução tornou-se praticável graças às vultosas


doações feitas à Igreja, podendo D. Duarte contar com a maior verba
posta à disposição de uma instituição não dirigida pelo Estado durante a
epidemia, tendo recebido cerca de 253:500$000 do próprio governo
estadual e ainda outras significativas doações.19

17 Relatório Ofício nº 477.


18 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9 (25/10/1918).
19 BERTOLLI FILHO. Epidemia e Sociedade, p. 286.

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A sociedade paulista teve que se solidarizar durante a moléstia que atacava a cidade
de São Paulo. Posteriormente analisaremos outras instituições filantrópicas, privadas e
religiosas que angariaram fundos para ajudar a população carente, já que o Estado e o
Município sozinhos não pareciam ter condições de salvaguardar a sociedade.

O historiador Nicolau Sevcenko expressou às agruras que assolavam à cidade de São


Paulo naquela primeiras décadas do século XX, “logo, se falava da felicidade de um novo
ano que anunciava o fim dos três flagelos que atingiram a cidade, os chamados “três Gês”: a
Gripe (Espanhola), a Geada e os Gafanhotos ou os “cinco Gês”, acrescentando a Guerra
Mundial e as Greves”20.

A influenza espanhola, a geada, os gafanhotos, a Guerra Mundial e as greves


explicitaram problemas econômicos e sociais que faziam parte do cotidiano dos
trabalhadores e pobres da capital paulista. Questões como a carestia gerada pela Guerra
Mundial, a falta de alimentos, de habitações, de melhorias urbanas, dos salários baixos, que
formaram à pauta das reivindicações dos trabalhadores durante a greve geral de 1917 em São
Paulo com a ocorrência do flagelo de gripe, se tornaram mais visíveis.

No mês de setembro de 1918, a capital sofria com a ameaça de greves por parte de
várias categorias. Posteriormente estourou a greve dos padeiros e dos açougueiros que
reivindicavam a elevação dos preços de seus produtos que haviam sido tabelados pela
prefeitura, medida que evidentemente provocou ascensão dos problemas sociais e
econômicos. Enquanto os padeiros e açougueiros informavam que estavam sendo
prejudicados, a população reclamava dos valores praticados por estes e dos atravessadores.
Altino Arantes se certifica da questão:

O Sr. Eugenio Ferreira apresentou-me o memorial e projecto, que


organizou contra os açambarcadores de gêneros; e eu prometi-lhe
encaminhar um e outro do Comissariado da Alimentação Pública.
Sobrevindo o Cel. Luiz Ferraz, membro da Junta de Alimentação Pública
deste Estado, expoz-nos elle largamente as suas impressões sobre as
projetadas greves dos carniceiros e dos padeiros, parecendo-lhe
absolutamente desrazoável a destes e até curto ponto justificável a
daquelles.21

20 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole. São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 24.
21 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9 (30/09/1918 e 01/10/1918).

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A população de São Paulo, como os trabalhadores, os pobres e os indigentes além de
não terem condições de comprar alguns gêneros de alimentos por motivos dos preços altos,
ainda tiveram que contornar a falta de alguns desses alimentos, como a carne e o pão que
estavam em falta por motivo da greve. Washington Luís manifestou-se sobre a questão da
greve convocando uma reunião entre a esfera municipal e estadual para discutir o dispêndio
que ela causava:

O Dr. Washington tratou do caso dos padeiros e dos carniceiros, em face


da tabella de preços apresentada pelo Comissariado da Alimentação
Pública; e fez-me ver a conveniência de ser esse assumpto tratado
directamente pela Junta desta Capital, com a indispensável audiência dos
poderes estadoal e municipal, a fim de se evitarem delongas e
difficuldades, capazes de pertubar a vida desta Capital.22

As discussões da Junta de Alimentação (municipal) sobre a tabela de preços marcada


pelo Comissariado Central que era um órgão federal e se encontrava no Rio de Janeiro
ocasionaram mais inconvenientes, pois no trâmite burocrático a Junta de Alimentação
acabava tendo de se entender ou levar suas reclamações diretamente ao prefeito da capital
pela necessidade de resolução da questão como acabava acontecendo gerando conflitos de
poder:

Dei audiência pública na cidade; e, em seguida, conversei com o Dr.


Candido Motta sobre dois casos por elle trazidos a meu conhecimento: a
resolução, em que se achavam dois membros da Junta de Alimentação
Pública (os Srs. Antônio Assumpção e Luiz de Ferraz), de solicitarem
exoneração de seus cargos, por terem recebido ordem do Commissariado
Geral, do Rio, de se entenderem ellas aqui, sempre com o Prefeito
Municipal.23

Após a exoneração dos funcionários da Junta de Alimentação, Washington Luís


reportou-se a Altino Arantes para que o mesmo verificasse junto ao Comissariado Central a
questão do valor dos gêneros alimentícios marcados na tabela de preços. Altino Arantes entra
em contato com o Presidente da República Wenceslau Brás e com ele trata sobre a questão
dos valores dos alimentos:

Sob representação verbal do Dr. Antônio Assumpção, telegraphei ao Dr.


Wenceslau, Presidente da República, pedindo-lhe que concedesse
autonomia á Junta de Alimentação desta Capital, para fixar ella própria os

22 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9 (03/10/1918).


23 ______, vol.9, (05/10/1918).
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preços a vigorarem neste Estado, numa tabella, que – para segurança das
transações commerciaes – seria sempre mantida, nos seus máximos, por
um espaço de 90 dias.
Pedi-lhe também que o preço da carne verde desde já elevado a 1400$ por
kilo – valor pelo qual/ poderiam os açougueiros [recucetar], sem prejuízo,
o fornecimento de carne a população paulistana, privada della, há quatro
dias... O Dr. Wenceslau, à noite, telegraphou ao Álvaro, attendendo as
duas primeiras partes de meu pedido, mas recusando a terceira (preço da
carne), ‘para não alterar a situação da Capital Federal, onde a carne se
vende a 1300 por kilo, sem reclamação dos interessados.24

Nesse trecho do diário percebe-se a gravidade da situação do abastecimento da


capital. Somava-se a elevação brusca dos preços dos gêneros de primeira necessidade, desde
antes da decretação da epidemia, a questão da própria escassez dos alimentos agravada pela
greve dos padeiros e açougueiros, e a ação dos atravessadores. A vitória parcial de Altino
Arantes, visto que conseguiu apenas uma relativa autonomia da Junta de Alimentação da
capital em relação ao preço dos produtos praticados no distrito federal, sem rebaixamento
do preço da carne:

Logo após o almoço, conferenciei com a Junta de Alimentação Pública,


communicando-lhe as deliberações tomadas pelo governo federal, a meu
pedido para autonomia de sua acçao dentro do Estado, sendo meu desejo
que essa acção se exercesse sempre de accordo com o Prefeito Municipal.25

Altino Arantes atendeu à solicitação de Wenceslau Brás relativo aos víveres que
seriam remetidos a capital federal:

Incumbi ao Dr. Malta de providenciar sobre a favorável acquisição dos


gêneros – a serem enviados para o Rio [de Janeiro]; e ao Dr. Washington,
encarreguei de velar pelo abastecimento desta Capital, de sorte a não faltar
aqui os viveres indispensáveis à alimentação pública. As despezas, que esse
serviço fizesse a Prefeitura, seriam indenizadas pelo Estado.26

Percebemos esse ato de Altino Arantes como uma aliança política que estava
firmando com Wenceslau Brás para a candidatura de Rodrigues Alves à presidência da
República. Essa situação demonstra o elitismo no tratamento da questão por parte do
governo paulista, pois, mesmo com a situação de desabastecimento vivido pela população
paulistana e do interior resolveu remeter gêneros alimentícios para fora do estado a fim de

24 ______, vol.9, (21/10/1918).


25 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9, (23/10/1918).
26 ______, vol.9, (23/10/1918).

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atender interesses de ordem política. Esse mesmo governo preocupava-se em atender os
interesses dos grupos de industriais que aproveitaram a situação de emergência para obter
maiores vantagens no jogo de barganha que praticavam.

O Prefeito municipal, responsável direto pelo abastecimento durante o período


epidêmico, informa no seu relatório uma situação completamente diferente da vivida pela
maioria dos habitantes da capital:

Os três mil negociantes de gêneros estabelecidos em São Paulo e a grande


quantidade de víveres deixavam a prefeitura perfeitamente tranqüila sobre
o abastecimento da cidade, que se fez normalmente, sem a intervenção
sempre prejudicial e nociva do poder público.27

Washington Luís discursa sobre a tranquilidade da prefeitura no abastecimento de


alimentos para a sociedade paulista, sem a suposta “intervenção prejudicial e nociva do poder
público”. Apesar disso, mesmo as camadas abastadas, que possuíam condições de adquirir
os alimentos, passou por dificuldades durante a greve. Os trabalhadores e os pobres mesmo
quando tinham dinheiro, não se encontravam em condições de adquiri-lo pelo preço
elevadíssimo da carne negociada, assim como outros produtos que começaram a faltar. O
argumento liberal sobre a intervenção “nociva” do poder público não se justificou, muito
menos a ingênua noção de auto regulação do mercado no qual o prefeito parecia acreditar.

Entidades privadas, filantrópicas e poder público: todos e mais todos contra


a epidemia de gripe espanhola!

Sobre a participação de inúmeras entidades filantrópicas e privadas o prefeito


informou ao Governo do Estado que:

[...] encarregou a Associação das Igrejas Evangélicas, à Associação Cristã


de [?], aos Senhores Pastores Protestantes, ao Grande Oriente Autônomo,
à Cruz Vermelha, à Liga Nacionalista, ao “Estado-Fanfulla” e a outras
associações de iniciativa privada que, com tanta dedicação, têm trabalhado
neste [argoso] momento, de [assessorar] na distribuição de recurso
[pecuniários], [médicos], hospitais para os necessitados em São Paulo.28

27 Relatório Ofício nº 477.


28 Relatório Ofício nº 477.
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As instituições privadas, religiosas e filantrópicas iniciaram medidas profiláticas, e de
assistência aos enfermos, no momento que Artur Neiva informava a sociedade sobre a
ineficácia do S.S.E., para debelar a epidemia. Grande parte dessas instituições angariou
fundos com a própria doação da sociedade civil, salvo a Igreja Católica que recebeu gordas
verbas estaduais, assim como doações de fiéis e, também, da sociedade. Os gastos da
prefeitura de São Paulo durante a pandemia gripal foi baixo, segundo Bertolli Filho (Ano): a
verba destinada à crise sanitária não ultrapassou a casa dos 10% de todas as despesas extras
daquele ano, lideradas pelos gastos referentes à amortização e juros de empréstimos.29

A respeito dos estoques de leite na capital Washington informa em seu ofício nº 477
que era encontrado no município aproximadamente 35 mil litros, sendo que mais 11 mil
litros eram importados de localidades próximas, totalizando 46 mil litros por dia para uma
população estimada em 523.196 mil habitantes. Segundo o cálculo do prefeito a média de
consumo do produto girava em torno de 11,36 pessoas para cada litro de leite por dia
(consumo médio de 91 ml por indivíduo). Esses dados que propõem um levantamento per
capita, considerava que todos consumiam leite, embora milhares de paulistanos não tivessem
condições de adquirir o leite, assim como outros alimentos.

Higienização das vias públicas durante a gripe espanhola

A limpeza pública em São Paulo se tornou um grande problema, mas não podemos
generalizar esse agravante para toda a cidade, a região central da cidade não passou por
transtornos na coleta e no destino do lixo durante a fase epidêmica. Os bairros operários e
industriais como o Brás sofriam constantemente com a coleta de lixo na maioria das vezes
demorada, gerando um ambiente propício para proliferação de insetos e ratos. A maior parte
dos dejetos eram depositados as margens do rio Tietê, contaminando mananciais.

O prefeito relatava as providências tomadas nesse âmbito: aumento do salário e do


número de contratações de pessoal para a limpeza pública e a aquisição de um irrigador
automóvel para substituir o existente com seis anos de uso para a constante desinfecção das
ruas durante a pandemia de gripe. Essa prática de desinfecção era pautada na teoria do
miasma ou no infeccionismo, suas práticas profiláticas baseavam-se que as doenças surgiam

29 BERTOLLI FILHO. Epidemia e Sociedade, p. 184.


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pelas emanações do ar, da insalubridade da atmosfera, se constituía prática recorrente do
S.S.E., no ano de 1918.

Os serviços concedidos por contratos a empresas ou instituições a pedido do prefeito


da “Metrópole do Café” tiveram algumas mudanças em sua rotina durante a epidemia de
gripe, como a Companhia Telefônica que tinha como Presidente o Sr. Antônio Lacerda
Franco. Houve o pedido da suspensão do serviço de telefonia das casas comerciais devido à
diminuição do pessoal enfermado pela gripe. As preferências das chamadas telefônicas
seriam dadas às residências de médicos, às farmácias, às repartições do S.S.E., e à Assistência
Pública.

O governo estadual determinou a desinfecção diária dos bondes pela Companhia


concessionária do serviço a The São Paulo Tremway, Light & Power Co.

Serviço Funerário e o enterramento dos mortos durante a gripe espanhola: o


caos alarmante estava por vir!

A empresa que mantinha concessão do Serviço Funerário era a Santa Casa de


Misericórdia junto com a Casa Rodovalho Júnior, Horta & Cia, gerando grandes gastos para
a manutenção dos serviços de enterramentos e cortejos fúnebres:

Em São Paulo, desde 28 de março de 1901, está contratado exclusivamente


com a Santa Casa de Misericórdia da Capital nos termos da Lei Municipal
nº 461, de 17 de abril de 1900, transferido a Rodovalho Júnior, Horta &
Cia., com aprovação da Prefeitura em 2 de Agosto de 1901. Em virtude
da Lei Municipal nº 1401, de 5 de abril de 1911, foi esse contrato
prorrogado por mais dez anos. Acercava-se a Prefeitura atualmente do
monopólio de um serviço, com todas as suas características, devendo
vigorar até 5 de abril de 1921.30

O Serviço Funerário da Capital paulista era realizado pela Santa Casa de Misericórdia
enquanto a empresa Casa Rodovalho Júnior, Horta & Cia, cuidava da fabricação e transporte
fúnebre dos mortos. No decorrer da crise epidêmica a situação se agravou ainda mais no
município de São Paulo, a cada dia aumentava geometricamente o número de pessoas
enfermas e de óbitos da gripe. No dia 21 de outubro de 1918 o número de enfermos chegava

30 Relatório Ofício nº 477.


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a 918 casos, no dia 22 aumenta para 1.023 casos de influenza e no dia 23 de outubro elevou-
se para 1.500 casos novos de enfermos de gripe ao dia. A doença estava cada vez mais
virulenta e mortal sendo que no dia 24 de outubro fez mais 1.900 casos novos. O número de
óbitos na capital chegou a quintuplicar se levarmos em conta a informação fornecida pelo
prefeito a Altino “attingiram ao número de 112, quando a média diária, normal, é de 22 óbitos
apenas”.31

Com o crescente número de óbitos o serviço funerário entrou em crise, agravando o


seu quadro dia após dia. No dia 29 de outubro o número de enterramentos chegou a 100
sendo que a média diária em dias normais era de 27 sepultamentos. A Casa Rodovalho
informou ao prefeito que o número máximo como limite marcado de sua capacidade era de
87 enterramentos diários, depois de ultrapassado o número de mortos colocados como limite
pela empresa, a própria declarava sobre a sua impotência para execução do contrato. Naquele
momento não se tinha atingido o ápice da virulência da doença, a média de mortes durante
a epidemia foi de 178,6 mortos por dia, chegando dias que ocorreram até 300 óbitos.

Washington Luís com a situação de inoperância da empresa funerária teria que tomar
providências imediatas que poderiam incorrer na anulação da concessão da empresa, ou seja,
a quebra do contrato antes do período estipulado. O próprio dono da empresa no momento
não colocou nenhuma objeção à imposição do prefeito, mas este, referindo-se aos grandes
custos que essa quebra de contrato poderia levar a Prefeitura futuramente não o fez, levando
o Prefeito a manter a Casa Rodovalho como concessionária do serviço funerário:

Mas, o problema não se resolveria, porque não seria com a decretação no


papel da livre concorrência que o serviço se organizaria. (...) Si a própria
Casa Rodovalho, com organização anterior, com pessoal próprio e com
material adequado, via-se prestes a [?], outra qualquer empresa ainda a
instalar-se correria maiores riscos. O material [rodante] especial para tal
fim, as oficinas para fabricação e forração de caixões, as fazendas [usadas]
em tal mister, não se improvisam em horas, porque em horas deveriam
estar esses serviços em funcionamento, e em horas [regras] da peste, em
que principalmente falta o homem, afastado do trabalho pela moléstia.
Nenhum comerciante arriscaria capitais avultados em empresas destinadas
a [?] poucas semanas, nisto que teriam que encontrar com monopólios,
prontos a fazer valer os seus direitos, apenas se estabelecesse a
normalidade da vida.32

31 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9 (30/10/1918).


32 Relatório Ofício nº 477.
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Segundo o pensamento de Washington Luís desfazer da Casa Rodovalho naquele
momento da epidemia, seria ainda mais difícil para a Prefeitura teria que contratar outra
empresa no meio do caos social que se encontrava a cidade. Seguindo o caminho escolhido,
o Prefeito dispôs de custos para ajudar no serviço funerário.

A Prefeitura contratou diversas serrarias e carpinteiros para a fabricação de caixões e


contratou também tapeceiros para forração dos mesmos, designou pessoal capaz para
instalação e colocar em funcionamento uma garagem para o transporte de cadáveres.

Washington Luís designou o seu Inspetor Geral de Fiscalização o Sr. José Steidel de
contratar firmas para fabricação de caixões mortuários:

Gaspar Villa, Rua Miller, nº 47, a fabricação diária de 100 caixões, com De
Devitis, a de 50, com Vicente Pironti, a de 30, ambos na Rua Sebastião
Pereira, ns. 52 e 38, com Carlos Remedi, na Rua Ponte Grande, a de 100,
no total de 280 diariamente. (...) ao Secretário de Justiça o ilustre Dr. Eloy
Chaves, a quem estão subordinadas as Oficinas da Penitenciária e do
Instituto Disciplinar, ao Sr. Owem, superintendente da São Paulo Railway,
ao Sr. Ramos de Azevedo, Diretor do Lyceu de Artes e Ofícios, ao Sr. Dr.
Jorge Street, Presidente da Companhia Nacional de Juta, ao Sr. Eduardo
Lobo, do “The São Paulo Tremway, Light and Power Co”, mais tardes às
Indústrias F. Matarazzo, apelando para o sentimento de solidariedade
humana e, em nome da cidade de São Paulo e no meu desvalioso, solicitei-
lhes a fabricação de caixões fúnebres para enterramentos.33

Essa solicitação feita para fabricações de caixões resultou em 5.941 caixões, foi
oferecido pelo Coronel Alberto de Andrade, o seu estabelecimento da Avenida Brigadeiro
Luiz Antônio, nº 69 A, onde funcionou o Palace Theatre, neste local funcionou a garagem
de transportes de cadáveres e o depósito de caixões fúnebres.

O cotidiano epidêmico na Metrópole do Café

Durante o período epidêmico foi constante a falta de funcionários em determinados


órgãos, tanto pelo fato de muitos terem contraído a doença e outros por abandonarem seus
cargos, assim, foram solicitadas contratações diversas em vários órgãos públicos:

33 Relatório Ofício nº 477.


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O Dr. Pinheiro Lima, o Braz, veio communicar-me, nos Campos Elyseos,
que os colegas contractados para auxiliá-lo – a razão de dois contos e
quinhentos por mez! – abandonaram o serviço, por encontrarem na clínica
civil, melhor remuneração...34

O cargo que mais faltou trabalhadores durante a epidemia foi o de coveiro, pois a
pessoa ficava propícia a se contaminar com os mortos, que muitas vezes já estavam em estado
avançado de decomposição. Consequência da demora nos enterramentos, naquele momento
a média de mortos chegou a um total de 178 por dia, enquanto nos dias normais a média de
mortos era de 30 por dia. O serviço de coveiro era essencial no momento epidêmico e não
podia parar, houve várias contratações de coveiros do interior, pois ocorreu um aumento
significativo nos salários. No dia 23 de outubro os salários dos coveiros foram aumentados
para 4$50035, depois para 6$000 e chegando a 10$000 diários, tudo para atrair mão-de-obra
vital para os sepultamentos.

Foram contratados também 25 motoristas, a 250$000 e 50 ajudantes de motoristas,


a 180$000, além de mecânicos e coveiros que somaram um total de 93 contratações. O
dispêndio para contratação de pessoal foi grande no auge da epidemia cerca de 6.000 a 8.000
pessoas foram utilizadas para o serviço.36

O Prefeito no momento epidêmico recebeu alguns automóveis emprestados por


industriais para auxiliar no transporte funerário:

[...] esteve 13 automóveis de transportes concessão gratuita (um do


“Correio Paulistano”, um do “Estado de São Paulo”, dois do Sr. Jorge
Street, dois da Firma Rinotti Gambá & Cia., dois da Companhia
Antarctica, um do Sr. Leopoldo Plaut (Continental Osasco), um do Sr.
Jorge Vancocr, um da Cia., Mecânica, um do Dr. Rudge Ramos, um da
Cia. Refinadora de Açúcar.37

A Influenza espanhola de 1918 alterou profundamente a rotina dos funerais na cidade


de São Paulo em virtude de enterros e de pedidos de honras fúnebres feitas pela camada
abastada da cidade, que naquele momento se tornavam dispendiosos e perigosos, devido à
preocupação com a difusão de germes e o número elevado de enterramento.

34 Diário Íntimo Altino Arantes, vol.9 (30/10/1918).


35As cifras no período eram os réis. Por exemplo: 4$500 = Quatro mil e quinhentos réis.
36 Relatório Ofício nº 477.
37 Relatório Ofício nº 477.

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A prefeitura elaborou uma nova tabela de enterramentos com o alvará da Casa
Rodovalho para facilitar os serviços:

[...] reduzindo-os a três classes apenas, simplificando os caixões ao


extremo limite, distribuindo todos os carros fúnebres pelas duas primeiras
classes e mandando adaptar, com improvisada ornamentação fúnebre
externa, para a terceira classe, caminhões automóveis e caminhões a tração
por ordem e conta da Prefeitura na Casa A. Zutto & Cia., os quais também
deveriam suprir as deficiências que forçosamente se iam verificar nas duas
primeiras, a fim de que os enterramentos se fizessem a tempo e a hora.38

Nos dados sobre os enterramentos vemos a nítida distinção das camadas sociais,
foram estipulados três tipos de funerais dois das camadas abastadas e um da camada pobre.
A camada abastada tinha o direito de utilizar os melhores caixões e os melhores transportes,
as famílias das camadas pobres ficavam com caixões mais simples e os transportes eram
coletivos feitos em caminhões, sendo basicamente tratados como indigentes.

Os serviços nos cemitérios foram constantes durante toda a epidemia, nos cemitérios
do Brás e do Araçá diversos foram os dias em que “os enterramentos foram superiores a 150
em cada um deles. Devido o grande número de sepultamentos foram feitas instalações de
luz elétrica nos cemitérios do Araçá, da Consolação, do Brás e da Penha”.39

Washington assinala a disposição de industriais e empresas em oferecer matérias e


mesmo a fabricação de caixões, fornecendo igualmente funcionários seus para auxiliar nos
serviços públicos. A maioria destes caixões era construída para os enterramentos de
trabalhadores pobres e indigentes, ressaltando que começaram a ser fabricados no dia 1º de
novembro, momento no qual a epidemia já vitimava mais de 100 pessoas por dia. A camada
abastada da sociedade tendo recursos não necessitaria dos caixões limitados encomendados
pelo Prefeito.

Os enterramentos eram realizados nos dias normais da seguinte forma: caixões


produzidos pela firma Rodovalho Júnior, Horta & Cia., o contrato especificava seis
categorias de preços, o de primeira classe era descrito como:

Caixão de madeira coberto de seda de cor, bordado a ouro e forrado de


cetim, guarnecido de galão de ouro fino e flor de 18 a 21 linhas de largura,

38 Relatório Ofício nº 477.


39 Relatório Ofício nº 477.
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com quatro argolas e florões dourados, pés e cadeados também dourados,
travesseiro da mesma seda do caixão, bordado a ouro: 80$000.40

Já os caixões da sexta classe, dentro da classificação da empresa funerária, eram bem


mais simples:

Caixão coberto de metim de cor, guarnecido com seis tiras de galão do


Porto número três, com quatro argolas e cadeado, forrado de morim e
com travesseiro da mesma fazenda: 11$800.41

A diferença entre os caixões destinados à primeira classe e o da sexta classe e a


disparidade de valores eram exorbitantes, enquanto o primeiro custava 80$000 réis, o
segundo era de 11$800, quantia um pouco elevada para os parcos recursos de um jornaleiro.
Segundo Ribeiro o valor do caixão da sexta classe era igual ao salário mensal de um inspetor
sanitário, nesse valor do caixão não estava incluso o transporte fúnebre. Mesmo a sexta classe
de caixões não estava ao alcance dos pobres do município de São Paulo, possivelmente eram
destinados para esses os caixões gratuitos, que não foram especificados.42

As diferenças sociais se evidenciavam mesmo no momento da morte onde todos,


ricos ou pobres não escapavam. O rico tinha pompa até na hora da morte e o pobre era
desforrado até no momento desta, as pessoas abastadas tinham anúncios em jornais
informando do seu óbito já o pobre muitas vezes era enterrado como indigente.

Durante a pandemia de gripe no município de São Paulo, a quantidade de óbitos foi


muito elevada como se viu, contando os óbitos da epidemia e os óbitos normais que ocorriam
na capital. Com esse aumento de sepultamentos as áreas dos cemitérios municipais tiveram
que ser ampliadas e até um novo foi criado.

A quantidade de óbitos aumentados durante o período epidêmico trouxe mudanças


nas formas de enterramentos nos cemitérios paulistas, esses passaram por intensas
modificações no tamanho de sua área na quantidade de pessoas disponíveis trabalhando e o
incremento da iluminação elétrica para os sepultamentos continuarem acontecendo no
horário noturno, mesmo debaixo da chuva que caía bastante naquele período.

40 RIBEIRO. História sem fim..., p. 115.


41 ______. História sem fim..., p. 116.
42 ______. História sem fim..., p. 116.

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Algumas denúncias foram feitas contra os serviços de sepultamento nos cemitérios
municipais. Havia acusações de que os mortos estariam sendo enterrados sem caixão e em
valas comuns. A esse respeito o prefeito se manifestou discordando veementemente
afirmando que todos os mortos haviam recebido tratamento cristão idêntico, ou seja, os
sepultamentos estavam sendo realizados em caixões e em covas individuais. Para reforçar
seu argumento respaldava-se nos relatórios dos superintendentes dos dez cemitérios.

A desconfiança aumentou quando o S.S.E., proibiu aos amigos e parentes o


acompanhamento dos funerais, bem como a visita aos cemitérios. Segundo Bertolli Filho o
administrador do cemitério do Araçá abordou essa questão dos enterramentos por ter sido
essa necrópole uma das poucas que não lançou mão da medida de conformidade com o
Ofício nº 477:

A consulta aos Livros de Cemitérios desmentem algumas das informações


prestadas pelo prefeito (...) os volumes referentes à necrópole do Brás
informam sobre a utilização de 5 valas comuns, nas quais foram
efetivamente sepultados, sem caixões, um total de 337 cadáveres, sendo
que uma única destas valas recebeu, entre 7 e 9 de novembro, 91 corpos,
sendo que nem todos tinham sidos vitimados pela influenza. Estes
cadáveres tinham a pobreza como característica comum provinham do
hospital provisório montado na Hospedaria dos Imigrantes ou trazidos
por membros da Conferência de São Francisco de Paula. Alguns desses
mortos vinham com anotações ao lado da ficha de sepultamento
informando que os corpos foram simplesmente encontrados
abandonados, junto aos muros do cemitério.43

Outro registro que vem a desconstruir o discurso ideológico minimizador do


Relatório Ofício nº 477 durante a pandemia de gripe em São Paulo tem a ver com o
subterfúgio do encarregado do cemitério para evitar problemas:

Já no cemitério da Vila Mariana, a estratégia utilizada pelo administrador


no sepultamento dos cadáveres foi outra. O que aí ocorria com frequência
eram sepultamentos sobrepostos, isto é, em uma única cova se
depositavam 2 ou até 3 urnas funerárias, sem aparentemente haver
permissão das famílias enlutadas.44

O historiador Nicolau Sevcenko, referiu-se ao mesmo assunto ao comentar sobre a


ocorrência de enterramentos coletivos nos cemitérios paulistanos em 1918:

43 BERTOLLI FILHO. Epidemia e Sociedade, p. 191.


44 ______. Epidemia e Sociedade, p. 191.
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v. 7 n. 2 (mai./ago. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015.
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A epidemia da gripe espanhola, difundida pelo mundo todo a partir do
foco dos campos de batalha da Europa, caíra sobre a cidade com uma
voracidade que evocava a peste negra medieval: em alguns meses
prodigalizou São Paulo de valas coletivas lotadas de cadáveres, com não
poucos moribundos atirados às fossas ainda vivos de permeio, nas
correrias desencontradas do pânico.45

O descrédito do discurso de Washington Luís neste momento se torna visível.


Durante a pandemia de gripe espanhola que era considerada mais que uma doença
patológica, ela se tornava um problema social, em que os destituídos das melhorias públicas,
os pobres, os trabalhadores e os indigentes eram sepultados em valas comuns, sem urnas
funerárias. Para a sociedade contemporânea esse fato, mais que uma lenda urbana, agravou
ainda mais o medo presente na sociedade.

Como a gripe chegou!... ela se foi! Conclusão.

Foram adotadas pelo S.S.E., medidas preventivas pautadas no isolamento da


população baseada na teoria do contágio e do miasma realizando várias medidas preventivas
na sociedade, como as proibições das aglomerações públicas e fechamento de
estabelecimentos públicos. Percebemos que nos cinemas e teatros que o público
frequentador era as camadas abastadas, esses recintos foram privados de funcionar,
posteriormente, no ápice da epidemia.

Os locais como bares, botequins que onde se encontravam os trabalhadores ou as


classes pobres foram fechados de imediato, pois eram considerados locais de prostituição e
de práticas de vícios disseminadores de doenças. A maneira pejorativa como eram tratados
os pobres pelas autoridades públicas, vinha para legitimar as medidas coercitivas que
exerciam sobre os trabalhadores, as “classes perigosas” como eram chamados os pobres:

O conceito de classes perigosas amplia-se vendo uma relação entre


pobreza e vícios: todos os pobres seriam viciosos, e a principal virtude do
bom cidadão seria o gosto pelo trabalho, hábito da poupança que reverte
em seu bem-estar. Daí o fato de que a pobreza indica suspeita de que o
indivíduo ser um bom trabalhador – aos pobres, portanto faltaria a virtude
social mais essencial, grassando, portanto os vícios – construção abstrata
que não tem base na realidade: “pobres carregam vícios, os vícios

45 SEVCENKO. Orfeu Extático na metrópole, p. 24.


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produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à sociedade; ...
pobres são por definição perigosos.”46

O entendimento do conceito de “classes perigosas” se torna essencial para


compreendermos as medidas de polícia sanitária praticada pelo S.S.E., durante a Primeira
República, o discurso ideológico da higienização praticado pelas autoridades públicas que se
desencadearam nas higienizações das regiões centrais das principais cidades brasileiras do
início do século XX.

A epidemia de gripe espanhola de 1918 no município de São Paulo veio explicitar


todos os problemas sociais que ocorriam na capital paulista naquele momento. Problemas
urbanos: crescimento demográfico desenfreado, problemas de moradia para as populações
trabalhadoras, falta de alimentos e melhorias na infraestrutura urbana dos bairros operários
como rede de esgoto, água tratada, pavimentação das ruas, limpeza urbana: recolhimento do
lixo e local de destino adequado.

A “Metrópole do Café” como era dita pelas autoridades públicas e pela elite cafeeira,
era a cidade moderna e salubre, não se pode negar esta referência para a região central da
cidade onde estava o poder executivo estadual, e a elite financeira cafeeira e industrial. Na Sé
e na Consolação, distritos centrais da capital não faltavam melhorias urbanas como boas
moradias, ruas pavimentadas, transportes de bonde, água tratada e esgoto, coleta de lixo
constante, iluminação pública, cinemas, teatros e diversos serviços.

A cidade de São Paulo com o crescimento urbano passou por segmentações de seus
espaços, foram criadas as zonas comerciais, zonas bancárias, zonas industriais e zonas
residenciais, a cidade estendeu-se pelas planícies, as estradas de ferro passavam pelos terrenos
mais baixos, pois se constituíam nos melhores locais para os assentamentos dos trilhos.
Nessas regiões seguindo os trilhos instalaram-se muitas fábricas e desenvolveram-se diversos
bairros operários. Na região central, onde se concentrava o comércio e bancos, o preço dos
terrenos aumentou progressivamente, propiciando constante especulação imobiliária. Foi
criado o bairro de Higienópolis onde residia à burguesia cafeeira e industrial da cidade. Na
área central e nos bairros residenciais onde morava a elite paulistana percebemos o esplendor
da arquitetura, baseada em estilos europeus.

46 BERTOLLI FILHO. Epidemia e Sociedade, p. 16.


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Nos bairros industriais e operários percebeu-se poucas mudanças nas melhorias
urbanas, na maioria desses bairros não existia esgoto, água tratada, habitação adequada para
a população trabalhadora que vivia em cortiços ou casas coletivas em meio a péssimas
condições higiênicas e de salubridade. Na periferia era frequentes a falta de alimentos, de
medicamentos e muitos outros produtos necessários para a sobrevivência.

É interessante ressaltar que as características da urbanização da cidade de São Paulo


tiveram um cunho elitista, as melhorias urbanas na capital paulista se deram basicamente nas
regiões centrais no sentido de manter o discurso modernizador da “Metrópole do Café”.
Segundo, relatos de viajantes estrangeiros que visitavam a região central da cidade, não
sabiam se estavam em São Paulo ou na própria Europa47, tudo isto pela diversidade da
arquitetura, pelos projetos de urbanização apoiada no projeto do Barão Haussmann de Paris.
Esses projetos urbanísticos iniciados por administradores do final do Segundo Império e
crescente durante a Primeira República, que pautaram na europeização da arquitetura e da
cultura das elites paulistanas.

Os trabalhadores operários e os pobres da urbe se encontravam no descaso do Poder


Público, frente aos problemas sociais: de moradia, de alimentação, de falta de melhorias
urbanas como: rede de esgotos, água tratada, falta de trabalho, presença de baixos salários,
ausência de um código sanitário que primava à educação sanitária da população, a assistência
médica individual permanente. A pandemia de gripe espanhola de 1918 se tornou
paradigmática no momento que levou em “xeque” o modelo sanitário vigente (modelo
tecnológico campanhista policial), pautado na polícia sanitária, medidas coercitivas, baseado
em campanhas/focos para combater doenças e epidemias, após o final da moléstia iniciou-
se as discussões para a reforma do serviço sanitário baseada na assistência médica
permanente.

A influenza espanhola evidenciou muitas das mazelas que assolavam a população


paulista desde o início do processo de urbanização e industrialização da “Metrópole do
Café”, temos que compreender que a pandemia de gripe mais que um problema patológico,
deste modo, a gripe espanhola foi a partir de suas representações sociais, um problema a ser

47 SEVCENKO. Orfeu Extático na metrópole, p. 24.


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explicado pela sociedade atacada; é imperativo que tenha sentido social e cultural.
Historicizar as doenças é um dos caminhos para se compreender uma sociedade.

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