Lis Yana de Lima Martinez
Lis Yana de Lima Martinez
Lis Yana de Lima Martinez
PORTO ALEGRE
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PORTO ALEGRE
2014
LIS YANA DE LIMA MARTINEZ
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
PORTO ALEGRE
2014
A mi padre, Dennis Irura Martinez Reuter,
y mi madre, María Christina de Lima Martinez.
AGRADECIMENTOS
Às minhas queridas professoras Laura Quednau, Márcia Ivana de Lima e Silva, Márcia
Montenegro Velho e Sandra Sirangelo Maggio por terem abrilhantado a minha jornada
com suas gentis presenças e, principalmente, por sempre terem uma palavra amiga.
À minha orientadora, Prof. Dr. Lúcia Rebello, por ter estado comigo desde o começo de
minha jornada, sempre a me ensinar, instruir e possibilitar meu crescimento como
pesquisadora. Por sempre ter depositado sua confiança em mim e ser a melhor e a mais
gentil orientadora.
No thief, however skillful, can rob one of knowledge,
and that is why knowledge is the best and safest
treasure to acquire.
Mitos que passam a existir em determinada ocasião e são retomados em outra época, e
até por outra nação, são um fido na literatura e, porque não dizer, na história humana ao
longo de todos os tempos. Os mitos perpassam os mais diversos gêneros literários não
se restringindo apenas aos moldes clássicos (epopeia, comédia e tragédia). Este trabalho
reflete as aparições do mito de Hércules em diversas literaturas buscando analisá-las e
contrastá-las a partir do referencial do mito e da intertextualidade. Pretende-se também,
abordar questões de fundamental importância acerca da caracterização da mitologia,
demonstrando sua relevância e o modo como o mito dialoga com a literatura.
Myths that start to exist at a particular time and are taken into another era, and even by
other nation, are part of a field in literature and, why not say, in human history
throughout the time. They permeate diverse literary genres, and are not restricted to the
classical patterns (epic, comedy and tragedy). This work reflects the occurrences of the
myth of Hercules in different texts to analyze and contrast them from the framework of
myth and intertextuality. It is intended also to address issues of fundamental importance
concerning the characterization of mythology, demonstrating its relevance and how the
myth “speaks” to the literature.
INTRODUÇÃO .........................................................................................................10
REFERÊNCIAS ........................................................................................................40
INTRODUÇÃO
Hércules, como se sabe, é uma figura mitológica que tem origem como Héracles
na mitologia grega e, com o passar dos tempos, foi incorporado à mitologia romana por
intermédio dos etruscos. Com efeito, para que bem se possa avaliar o trabalho que
segue, achamos pertinente delimitar o que trataremos como mito, uma vez que
mitologia é dicionarizada como “O conjunto de mitos próprios de um povo, de uma
civilização, de uma religião” em (AURÉLIO, 1981).
1
LÉVI-STRAUSS, 1978, p.20.
11
Dividimos este estudo em quatro capítulos que abordam as questões que cingem
o universo do mito de Hércules. A cada capítulo buscamos transportar o leitor pelo
diálogo existente entre mito e literatura e entre as obras analisadas. A ordem de aparição
das obras não busca obedecer a uma cronologia histórica, ou seja, à ordem de suas
criações ou da vivência de seus autores, mas à ordem de sequência temática ditada
sempre pela obra anterior, a partir de Peisândro de Rodes, até sua retomada por
Monteiro Lobato.
2
REBELLO, 2004, p. 391.
12
quarenta e sete mitos selecionados dentro da tradição clássica, entre eles Hércules, que
findam no destino de Júlio César divinizado. Tratamos de introduzir o leitor à trama a
fim de evidenciar a representação ovidiana do mito analisado que, como se poderá
compreender ao ler o capítulo, é um dos mais relevantes da obra. Segundo a opinião de
Laffont-Bompiani, “a variedade da composição não permite tentar uma síntese de
conjunto deste acervo confuso de fábulas e de personagens” onde “se destacam as
figuras expressivas e, com justa razão, imortalizadas”3.
3
LAFFONT-BOMPIANI. Dictionnaire des Ceeuvres. IN: OVIDIO. As Metamorfoses. Editora
Tecnoprint, 1983.
1 MITO E LITERATURA COMPARADA
Logo, fora necessário não apenas o som, mas também as letras e os poemas, e
histórias da tradição oral de um povo passaram a ser escritas. Não velozmente o fazer
literário do homem ocidental chegou à Ilíada, os próprios gregos passaram
4
LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 77.
14
(...) Homero indicou em que métrica podem ser escritas as ações de reis e
militares e tristes guerras. Em versos unidos irregularmente, primeiro foi
incluída a queixa, após também a manifestação de desejo possuído. Que
inventor, porém, teria cunhado os curtos poemas elegíacos, controvertem os
eruditos, e o pleito está até agora sob julgamento. A fúria proveu a
Arquíloquo de seu próprio iambo: as comédias e as tragédias adotaram este
pé, apropriado para diálogos e para sobrepujar estrépitos populares e nascido
para cometimentos de ação. A Musa consentiu à lira decantar divos e filhos
de deuses, o lutador vencedor e o primeiro cavalo no combate, aflições de
6
jovens e libidinosos vinhos. (N.T.) .
5
O nome em latim se refere às línguas escritas utilizadas pelos gregos antes da configuração e
formalização do grego clássico.
6
Horacio. De Arte Poetica. In: Whetham, Joseph. The Works of Horace. C. Smart. Philadelphia,1836.
Res gestae regumque ducumque et tristia bella quo scribi possent numero, monstravit Homerus; versibus
impariter iunctis querimonia primum, post etiam inclusa est voti sententia compos; quis tamen exiguos
elegos emiserit auctor, grammatici certant et adhuc sub iudice lis est; Archilochum proprio rabies armavit
iambo; hunc socci cepere pedem grandesque cothurni, alternis aptum sermonibus et popularis vincentem
strepitus et natum rebus agendis; musa dedit fidibus Divos puerosque Deorum et pugilem victorem et
equum certamine primum et iuvenum curas et libera vina referre.
7
CARVALHAL, 1992, p.53.
15
Rocha, valendo-se da relação entre música e mitologia com a linguagem proposta pelo
antropólogo alemão, explica que o mito se assemelharia a uma partitura musical e,
como tal, seria uma estrutura complexa que ganharia significado de acordo com o uso,
ou ainda a forma, que o maestro lhe der8.
Seria o mito, enfim, mais do que o passageiro das águas médias literárias, seria o
próprio Χάρων (Caronte). Isso denota que, primeiramente, o mito não pertence a
alguém de modo geral ou específico, pois circula de acordo com a maré, como discursos
enunciados em dados momentos históricos, vinculados a determinadas práticas. Por
conseguinte, são às marés que se devem medir, distinguir e comparar.
8
ROCHA, 1996, p. 36.
9
SAMOYAULT, 2008, p. 67.
16
10
KRISTEVA, 1974, p. 62.
11
BAKHTIN, 1997, p. 298.
17
12
ROCHA, 1996, p.3.
18
que não era um homem, mas um deus ou herói; portanto, esses povos se valiam do
atributo da representação da repetição de um ato exemplar mítico.
Nas palavras de Chadwick, “Myth is the last – not the first – stage in the
development of a hero”13, uma vez que se observa a evolução de uma pessoa ou do que
ela representa em herói mítico. Quer-se expressar aqui que a historicidade não perdura
por muito tempo à ação da mitificação, adjetivada por Eliade como “corrosiva”14. Isto é,
13
CHADWICK, 1940 vol. III, p. 762. “Mito é o ultimo – não o primeiro – estágio no desenvolvimento de
um herói” (N.T.).
14
ELIADE, 1969, p. 57.
15
IDEM.
16
ELIADE, 1969, p. 19.
17
SAMOYAULT, 2008, p. 102.
19
Um dos heróis que se enquadram naquele seleto grupo e que vem tendo seus
mitos resignificados ao longo da história é Hércules que, como bom herói clássico, é
considerado, dentro das premissas de Aristóteles, um herói “alto”, classificação
explicada por Brandão como,
(...) o homem que, se caiu em infortúnio, não foi por ser perverso e vil, mas
por força de ἁμαρτίαν à toa (de algum “erro”). No mito bem estruturado,
pois, o herói não deve passar da infelicidade para a felicidade, mas ao revés,
da fortuna para a desdita e isto, não porque seja mau, mas por causa de
alguma falta cometida18.
Hércules não apenas iria cometer diversos “erros à toa”, como diz Brandão, mas
era ele próprio fruto de um erro de seu pai. Hércules, como outros semideuses, é nascido
filho de Júpiter, o senhor dos deuses, e de uma mortal, Alcmena, mas é incontestável,
pelo menos no que nos foi possível herdar da mitologia greco-romana, que Juno dirigia
a ele uma hostilidade declaradamente maior do que dirigia aos outros filhos bastardos
de seu marido.
Desde antes de seu nascimento até pouco antes de sua morte, o herói sofre
continuas e incansáveis investidas de Juno. A passagem mais conhecida ocorre quando
Juno coloca o enteado em um “estado de delírio” e, durante isso, Hércules acaba por
assassinar os dois filhos do senhor Eristeus. Como forma de punição, o filho de Júpiter
foi sujeitado a obedecer às ordens deste senhor por três anos. Foi Euristeus o
responsável por veicular, durantes estes anos de penalidade, os famosos “Doze
Trabalhos de Hércules”, elaborados por Juno e que são trazidos no poema épico,
18
BRANDÃO, 1980, p. 50-51
20
atribuído pelo filósofo grego Strábōn a Peisândro de Rodes, Heracleia19, o qual será
relembrado brevemente na tabela abaixo segundo postulado por Bulfinch (2002):
Joseph Campbell, em The Hero With a Thousand Faces, ajuda a verificar que
muito mais há em comum entre líderes espirituais, como Siddhartha Gautama (Buddah),
e heróis clássicos, como Hércules, do que se supõe, pois ambos são mitos, mesmo que
suas origens possam ou não ter um personagem histórico e, portanto, nas próprias
palavras de Campbell, tem o seu poder formador:
19
Heracleia é um poema perdido cujo conteúdo ficamos sabendo por meio de outros poetas, é Στράϐων,
Estrabo em português, quem atribui o poema a Peisândro ao falar da ilha de Rodhes no décimo quarto
livro de sua obra Geographia.
21
(...)When the story is in your mind, then you see its relevance to something
happening to you. With the loss of that, we’ve really lost something because
we don’t have a comparable literature to take its place. These bits of
information from ancient times, which have to do with the themes that have
supported human life, built civilizations, and informed religions over the
millennia, have to do with deep inner problems, inner mysteries, inner
threshold of passage, and if you don’t know what the guide-signs are along
the way, you have to work it out yourself. Bur once this subject catches you,
there is such a feeling, from one or another of these traditions, of information
of a deep, rich, life-vivifying sort that you don’t want to give it up. 20
O caráter de formação que o mito de Hércules carrega fez com que ele se
perpetuasse ao longo da história por meio de diferentes autores, em diferentes gêneros
textuais e diferentes épocas. A seguir, trazemos as diferentes perspectivas do mito em
Ovídio, Plauto e Monteiro Lobato.
20
CAMPBELL, 1991, p. 2. (...) Quando a história está em tua mente, então tu vês a sua relevância para
algo que aconteça contigo. Com a perda disso, nós realmente perdemos alguma coisa, porque não temos
uma literatura comparável para tomar o seu lugar. Estes compassos de informação desde os tempos
antigos, que têm a ver com os temas que têm apoiado a vida humana, civilizações construídas, e as
religiões informadas ao longo dos milênios, têm a ver com profundos problemas interiores, mistérios
interiores, limite interno de passagem, e se tu não sabes que os sinais-guias estão ao longo do caminho,
tens que trabalhar com isso tu mesmo. Mas uma vez que este assunto te pega, existe um sentimento, de
uma ou outra dessas tradições, de informações de uma, rica, e vivaz vida que você não quer desistir.
(N.T.)
22
2. AS METAMORFOSES DE OVÍDIO
A história que se estende anos após os doze trabalhos até a sua morte é contada
pelo poeta romano do início do império, época de Augusto, Publius Ovidius Naso
(Ovídio) no nono livro de As Metamorfoses. A figura mitológica de Hércules, narrada
por Ovídio no livro IX, é a de um herói já consolidado. Pela voz de Aquelou, filho de
Netuno, na primeira subdivisão do livro, descobre-se a altivez do caráter do filho de
Júpiter e como ele se relaciona com os demais. Todas as qualidades e as características
que contribuem para Hércules ser vinculado à figura de herói são, no entanto,
21
Obra de autor desconhecido . Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Herakles_snake_Musei_Capitolini_MC247.jpg
23
apresentadas por aquele que, em uma situação recente à narrativa, havia sido seu
inimigo e havia sido derrotado por ele.
Eis que, regressando, com a nova esposa às muralhas da pátria, o filho de Júpiter
chegou à rápida correnteza do Eueno. Mais volumoso do que de costume, aumentado
pelas chuvas do inverno, o rio tinha mais redemoinhos do que habitualmente e estava
intransponível. Ovídio introduz o próximo mito em sequência ao anterior, mas sem
nenhuma indicação de quanto tempo se passou entre uma história e outra. Podemos
depreender, no entanto, que, para Ovídio, é provável que não tenha se passado muito
tempo entre uma ocasião e outra já que ele intitula Dejanira com “a nova esposa”. Ao
contrário do tempo, o local é bem específico: O rio Eueno perto das muralhas de
Calidão. O que se segue a esse trecho reitera o bom caráter de Hércules que “intrépido
quando se tratava de si mesmo, ficou preocupado, por causa da esposa”23.
22
OVIDIO, 1983, p. 225.
23
Idem, ibidem.
24
depositada24” e tentava levar consigo a mulher. Contudo, a mira do enteado de Juno era
certeira e sua flecha mais rápida que as quatro patas do ser. A flecha que continha o
veneno da Hidra de Lerna atingiu Néssus que antes de morrer recolhe seu sangue
misturado ao veneno da flecha em uma túnica enquanto disse consigo que se vingaria e
oferece-a a Dejanira, prometendo que funcionaria como feitiço para estimular o amor do
marido.
Segundo As Metamorfoses, Dejanira foi vítima da Fama, que levou aos seus
ouvidos rumores sobre a paixão que Hércules estaria sentindo por Iole. Então, a esposa,
considerando se fazer necessário o recurso amoroso entregue por Néssus, quando seu
marido foi oferecer sacrifícios aos deuses, mandou a ele através de Lica a túnica branca
para ser usada na cerimônia. Então “o herói, inconsciente do perigo, recebe e põe sobre
os ombros o veneno da hidra de Lerna25” que logo penetrou em seu corpo, provocando-
lhe terríveis dores. E ele, como herói que é, tenta conter seus gritos de dor e arrancar a
túnica, mas “onde a arranca, arranca a pele – coisa dolorosa de se contar – que, ou fica
agarrada ao corpo, resistindo às tentativas para tirá-la, ou põe a nu as carnes
estraçalhadas e os ossos enormes26”. Frenético, Hércules se dirige a Juno e exclama que
para ele a morte seria uma dádiva depois de tantas provações que ela o fizera passar. Ao
baixar os olhos vê Lica, que ignorava o que levara, e achando que ele era o culpado do
que estava acontecendo agarrou-o e atirou-o ao mar. Tendo feito isso, Hércules estende
a pele do leão de Neméia sobre a fogueira, acesa no monte Eta para a cerimônia, e se
deita nela. A serenidade da face do filho de Júpiter enquanto seu corpo é tomado pelas
chamas confirmam mais um dos elementos que o fazem digno de ser chamado de herói
pelo povo que ditava seus mitos.
Ao notar o que estava ocorrendo com seu filho, Júpiter, o filho de Saturno, se
dirige aos outros deuses e exclama:
Não mal digais essas chamas! Quem tudo venceu, vencerá este fogo que
vedes e não sentirá o poder de Vulcano senão por sua parte humana, herdada
da mãe. O que recebeu de mim é eterno e imune à morte, e nenhuma chama
poderá vencê-lo27.
24
OVIDIO, 1983, p. 229.
25
OVIDIO, 1983, p. 232.
26
Idem, ibidem.
27
OVIDIO, 1983, p. 234.
25
Júpiter, com o consentimento dos deuses, envolveu a parte divina do filho, que
após ser liberta da parte que herdara de Alcmena se tornou mais vigorosa, em uma
nuvem e levou-o em um carro puxado por quatro cavalos para residir entre as estrelas. E
ao tomar seu lugar no céu, a magnitude de Hércules era tanta que aumentou o peso do
firmamento.
Fazendo uso da característica dos mitos não serem ligados aos outros
sequencialmente para que sustentem seu significado fundamental28, Ovídio usa como
artifício a memória de Alcmena que, aflita com as perseguições de Euristeus a seu neto
Hilo desde a morte de seu filho, conta como deu à luz a Hércules. Segundo Alcmena,
Lucina e os deuses Nixus a mando de Juno se puseram à porta dela em trabalho de
parto, com seus braços e pernas cruzados, impedindo o nascimento da criança. Por sorte
da futura mãe, sua serva Galantide estava a entrar e sair do aposento e percebeu a
interferência de Juno. Tendo visto o que se passava, correu até as deusas anunciando
que, com o auxílio de Júpiter, a criança já havia nascido. Com isso, as deusas se
desdobraram e foi o que bastou para que Alcmena completasse seu trabalho de parto.
Hércules era filho bastardo de Júpiter, por isso foi castigado a vida toda por sua
madrasta, que só se reconcilia com ele após o marido divinizá-lo.
Ovídio perpassa por esse acontecimento quando, ainda no livro IX, que trata de
Iolau, comenta sobre Hebe e seu marido. Ocorre que, com a reconciliação, Juno oferece
a Hércules sua filha Hebe em casamento. Ovídio não apresenta nenhum defeito em
Hércules; ele é um herói completo, divino. Tão divina é a construção de Alcides em As
Metamorfoses que não fará surpresa ao leitor desavisado quando o herói vier a se tornar
um deus, uma vez que o único aspecto humano que o autor apresenta sobre ele é a
matéria que o constitui e que fora herdada de Alcmena. No entanto, existem outros
mitos que demonstram a instabilidade de humor que Hércules carregava consigo, como
quando matou Eunomos e quando matou Lino. O primeiro era um serviçal da corte de
Calidão e como tal foi enviado para lavar as mãos de Hércules, mas descuidado deixou
que um pouco de água caísse nos pés do filho de Júpiter que, agastado, esbofeteou-o
com tamanha força que acabou o matando. O outro, Lino, era professor de música do
herói e por ter repreendido-o, provocou sua revolta e acabou sendo abatido com sua lira.
28 28
LÉVI-STRAUSS, 1978, p.20.
26
29
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Birth_of_heracles.jpg
30
NUÑEZ, 1990, p. 109.
27
Tudo; basta compreendermos que aquilo que tratamos hoje como mitologia era
na época religião e, de certa forma, os costumes do povo. Plauto era muito popular e
fazia rir com os costumes e as atitudes dos tipos mais comuns romanos, ao contrário de
Terêncio que possuía maior cuidado em sua escrita e maior complexidade em suas
comédias. Dos vinte e um títulos criados por Plauto, dois deles se destacam, O Anfitrião
e Aululária, por influenciarem o teatro que se cria a seguir com Moliére e, após, com
Ariano Suassuna e Guilherme Figueiredo.
Todavia, O Anfitrião e Aululária não serão tema dessa análise por tal motivo e
sim pelo que parece no momento muito mais pertinente e, por que não dizer, nobre, que
é Hércules. Ao lermos as duas comédias é provável que passe despercebido, talvez não
tanto na primeira quanto na segunda, a figura e o mito de Hércules, mas ela se encontra
lá de forma mais direta, na primeira, ou permeando os costumes dos personagens, na
segunda.
tornando a noite mais longa para que pudesse passar mais tempo ao lado da mulher.
Com isso, e a volta dos verdadeiros Anfitrião e Sósia, surgem diversos quiproquós que
dão ritmo cômico à obra.
Ao final da peça, Alcmena, que já estava grávida de Anfitrião antes de ele partir
para a guerra, entra em trabalho de parto para dar a luz a duas crianças, pois Júpiter
também a engravidara. Nesse momento, Anfitrião tenta entrar no aposento e é impedido
pelos relâmpagos de Júpiter e cai desfalecido. Mas apesar do susto, o homem sobrevive
e no ato seguinte, o último, pondera que não houve mal ter feito “sociedade” com o
deus. A tragicomédia termina com a fala de Anfitrião que diz: “E agora, espectadores, é
aplaudir com toda força em honra do Supremo Júpiter!”31. Nesta obra, temos uma visão
que Ovídio não nos proporciona, a ação do marido de Alcmena durante o processo de
concepção, o parto e após o nascimento de seu filho e Hércules.
31
PLAUTO, 1983, p. 120.
29
some e Licônidas o encontra e admite ter cometido “o crime” sem explicar qual
exatamente era, fazendo Euclião acreditar que havia sido o jovem o usurpador de sua
panela. Todavia, ao final, tudo acaba sendo resolvido, Megadoro desiste do casamento,
Licônidas e Fedra ficam juntos e a panela é devolvida ao dono que resolve transformar-
se em magnânimo e decide entregar a panela ao futuro genro.
Euclião: Já lá para fora, vamos! Lá para fora, já disse! Tens que ir mesmo lá
para fora, minha espia, sempre de olho esbugalhado! (...)
Estáfila: Mas por que é que me puseste assim fora de casa?
Euclião: Terei eu que te dar alguma explicação, minha arca de pancada? Sai
para longe da porta. Para ali, se quiseres. (Mostra-lhe o lado oposto à casa.)
Ora vejam, como ela anda! E agora, sabes tu o que há? Por Hércules! Se hoje
pego num pau ou num chicote, acho que te vou alargar esse passo de
tartaruga!32
Esta é uma passagem das primeiras falas de Euclião no primeiro ato da comédia.
Apesar de a velha escrava nada saber, o avarento vigia constantemente sua panela para
ter certeza de que ninguém a havia roubado. É indispensável notar que especialmente
nesta fala o homem não apenas chama Hércules por estar se sentindo inseguro, mas,
principalmente, por ameaçar a escrava com um castigo físico. Assim, faz uma ligação
entre o herói e a força humana, o castigo seria mais severo, pois Euclião empenharia
maior força.
32
PLAUTO, 1983, p. 127.
30
Megadoro: E eu vou ter com Euclião. Talvez esteja em casa. Mas olha!
Euclião: Que os deuses te salvem, Megadoro.
Megadoro: E então? Saudezonha à vontade?
Euclião (à parte): Deve haver um motivo qualquer para esse homem rico se
dirigir assim a um pobre tão delicadamente. Com certeza que este homem já
sabe que eu tenho dinheiro; é por isso que me saúda com tanta delicadeza.
Megadoro: Então, de saúde mesmo?
Euclião: Por Pólux, fora o dinheiro, tudo vai bem.
Megadoro: Ora, se tivesse sossego, tens tudo quanto precisas para passar bem
a vida.
Euclião (à parte): Por Hércules! A velha já andou a falar do dinheiro! É tudo
quanto há de mais evidente. Quando chegar a casa vou-te cortar a língua e
arranca-lhe os olhos33.
Aqui, ao exclamar por Hércules, ele enfatiza o oposto entre o caráter do herói e a
falta de caráter de sua escrava, Estáfila, quem, provavelmente, descobriu e deve ter
espalhado um boato sobre o seu dinheiro.
Neste momento da trama, Euclião acredita que Megadoro quer envenená-lo para
poder tomar-lhe a panela com o tesouro e se apoia em Hércules para que sua resposta ao
convite de Megadoro seja irretorquível. Em meio ao quiproquó com Licônidas, Euclião
sente-se sem poder por ter sido privado de seu ouro e, uma vez privado daquilo que lhe
concedida influxo de superioridade dentre os demais, não chama nenhuma vez por
Hércules. Apenas ao final da comédia, Euclião passa a invocar Hércules com a força de
antes. Porém, com a mudança do personagem, que de avarento torna-se generoso, muda
também à maneira dele de se dirigir ao herói e de invocá-lo. Agora, o herói é chamado
de Alcides e invocado por uma benfeitoria:
33
PLAUTO, 1983, p. 139.
34
PLAUTO, 1983, p. 154.
31
Após esta fala, vem a de Licônidas que nos indica a moral da história, e, em
seguida, a outra fala de Euclião, quando ele agradece e entrega a panela e sua filha a
Licônidas. Em Plauto, percebemos claramente o discurso da existência humana, neste
caso marcada pela fé. Euclião e Anfitrião são personagens que são homens e, portanto,
objetos criados pelo poeta romano que se incorporaram em homens36.
35
PLAUTO, 1983, p. 176-177.
36
BACCEGA, 2007, p. 89. “o homem é personagem, que é homem. E o escritor é o criador de
personagens que se incorporarão em homens”.
4 OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES DE LOBATO
Se nas peças de Plauto não há espaço para que tenhamos maiores informações
sobre o mito do herói depois de divino, em Monteiro Lobato, temos uma grandiosa e
detalhada retomada da figura mitológica e de um dos seus mais grandiosos feitos. Os
Doze Trabalhos de Hércules recebem espaço de um livro na série infantil O Sítio do
Picapau Amarelo. De uma forma lúdica e suave, Monteiro Lobato consegue apresentar
o herói sem deixar de descrever sua instabilidade emocional e a violência resultante
dela. O autor retoma o mito desde a Grécia, mas prefere chamá-lo como os romanos o
faziam. Logo no começo do livro, somos conduzidos ao Sítio pela conversa de Dona
Benta e de seu neto, Pedrinho.
37
Fonte: http://0.tqn.com/d/ancienthistory/1/0/2/c/2/HerculesSlayingHydra.jpg
33
nos referimos, à sua imensa força ou às suas façanhas lendárias. Dele nasceu
uma palavra muito popular em todas as línguas, o adjetivo "hercúleo", com a
significação de extraordinariamente forte. 38
Notemos que o autor faz referência à outra palavra, neste caso um adjetivo e não
uma interjeição como em Plauto, que também deriva da existência do mito de Hércules.
Proveniente do latim herculeus,-a,-um, o adjetivo hercúleo significa, segundo Houaiss
(2011) “1. Relativo a Hércules; 2. muito forte, muito vigoroso; 3. que exige muito
esforço ‹trabalho›”39. A notação do herói como força e trabalho, como vimos na entrada
do dicionário de língua portuguesa, é intrínseca e, portanto, Lobato não tarda a
contextualizar que Alcides tem em mente para seu enredo:
Vemos durante todo o livro que o autor amalgama os mitos de Hércules com o
de outros personagens mitológicos. Na citação a cima, por exemplo, acaba de atribuir a
derrota do Minotauro a Hércules e não a Teseu, como nos é contado por Ovídio no
poema Ariadne a Theseo de sua obra Heroides e é descrito por Thomas Bulfich em O
Livro de Ouro da Mitologia41. Também cria uma amalgama entre a mitologia grega e a
mitologia romana ao alternar constantemente entre nomes gregos e latinos de deuses e
criaturas. Em seguida, Monteiro Lobato, pelo artifício de uma conversa entre a avó e a
neta, resume linearmente os mitos de Hércules:
38
LOBATO, 2005, p. 7.
39
HOUAISS, 2011, p. 496.
40
LOBATO, 2005, p. 7.
41
BULFICH, 2002, p. 189.
34
Narizinho veio pedir à vovó que falasse de Hércules. Dona Benta falou.- Ah,
minha filha, que maravilhoso herói foi esse massa bruta! Era filho de Zeus, o
grande deus lá dos gregos, e de Alcmena, a mulher mais bela da época,
grande como uma estátua, forte, imponente. Mas Zeus era casado com a
deusa Hera, a qual, enciumadíssima com aquele filho de seu esposo na terra,
jurou persegui-lo sem cessar. E assim foi. A vida do pobre Hércules tornou-
se um puro tormento, tais e tais armadilhas lhe armava a deusa. Mas era
defendido por Zeus. Hera armava as armadilhas e Zeus as desarmava - e
assim foi até o fim.42
Dona Benta deixa Narizinho curiosa sobre o fim do herói, e esta pede à avó que
narre suas aventuras até o fim. Nesse momento, a senhora narra a morte de Hércules tal
qual os escritos de Ovídio, mas, de forma mais pedagógica, transforma alguns dos
acontecimentos e traz uma cronologia marcada:
A história contada por Dona Benta fez com que as crianças quisessem ver de
perto as conquistas de Hércules. Para tal, Pedrinho fez uso do pó de pirlimpimpim sobre
42
LOBATO, 2005, p. 10.
43
LOBATO, 2005, p. 11.
35
44
LOBATO, 2005, P. 357- 358.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
45
SAMOYAULT, 2008, p. 47.
46
CARVALHAL,1992, p. 54
37
Gênero
Obra e autor literário Motivo da obra A figura mitológica
Ressaltar o
As Metamorfoses Poema épico período político Hércules como um herói.
Ovídio em que vivia.
Plauto, que vivera muitos anos antes de Ovídio, escreve suas obras aos moldes
dos gregos, mas deixa-se permear por sua cultura e seu povo. Tanto na tragicomédia O
Anfitrião quanto na comédia Aululária a presença de Hércules se dá de forma mais
amena, mais ligada ao místico e à essência humana do homem de sua época. Assim
como suas obras não possuem um pretexto peremptório para sua criação como a do
poeta augustano, também não há para as aparições do semideus. Em O Anfitrião, o filho
de Júpiter torna-se a promessa de novos enredos e tramas. Plauto não fornece muitas
38
47
SAMOYAULT, 2008, p. 9.
39
variados tipos de discurso. O mito de Hércules faz parte dessa memória mais ampla
dentro da literatura: a mitologia literária. Não a mitologia que costumamos atribuir a um
povo ou a etnias, não a mitologia grego-romana, por exemplo, mas a mitologia literária
que não pertence apenas a sua cultura de origem e sim a todas aquelas que retomem um
mesmo mito.
REFERÊNCIAS