Lis Yana de Lima Martinez

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LIS YANA DE LIMA MARTINEZ

A INTERTEXTUALIDADE DE HÉRCULES E SEUS MITOS

PORTO ALEGRE

2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

A INTERTEXTUALIDADE DE HÉRCULES E SEUS MITOS

LIS YANA DE LIMA MARTINEZ

ORIENTADORA: PROF. DR. LÚCIA SÁ REBELLO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Instituto de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obtenção do
título de Licenciada em Letras.

PORTO ALEGRE

2014
LIS YANA DE LIMA MARTINEZ

A INTERTEXTUALIDADE DE HÉRCULES E SEUS MITOS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Instituto de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obtenção do
título de Licenciada em Letras.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Lúcia Sá Rebello


Orientadora

Prof. Dr. Sandra Sirangelo Maggio

Prof. Mr. Claudiberto Fagundes

PORTO ALEGRE

2014
A mi padre, Dennis Irura Martinez Reuter,
y mi madre, María Christina de Lima Martinez.
AGRADECIMENTOS

Às minhas queridas professoras Laura Quednau, Márcia Ivana de Lima e Silva, Márcia
Montenegro Velho e Sandra Sirangelo Maggio por terem abrilhantado a minha jornada
com suas gentis presenças e, principalmente, por sempre terem uma palavra amiga.

À minha orientadora, Prof. Dr. Lúcia Rebello, por ter estado comigo desde o começo de
minha jornada, sempre a me ensinar, instruir e possibilitar meu crescimento como
pesquisadora. Por sempre ter depositado sua confiança em mim e ser a melhor e a mais
gentil orientadora.
No thief, however skillful, can rob one of knowledge,
and that is why knowledge is the best and safest
treasure to acquire.

Lyman Frank Baum


RESUMO

Mitos que passam a existir em determinada ocasião e são retomados em outra época, e
até por outra nação, são um fido na literatura e, porque não dizer, na história humana ao
longo de todos os tempos. Os mitos perpassam os mais diversos gêneros literários não
se restringindo apenas aos moldes clássicos (epopeia, comédia e tragédia). Este trabalho
reflete as aparições do mito de Hércules em diversas literaturas buscando analisá-las e
contrastá-las a partir do referencial do mito e da intertextualidade. Pretende-se também,
abordar questões de fundamental importância acerca da caracterização da mitologia,
demonstrando sua relevância e o modo como o mito dialoga com a literatura.

Palavras-chave: Literatura comparada, mitologia, intertextualidade, Hércules.


ABSTRACT

Myths that start to exist at a particular time and are taken into another era, and even by
other nation, are part of a field in literature and, why not say, in human history
throughout the time. They permeate diverse literary genres, and are not restricted to the
classical patterns (epic, comedy and tragedy). This work reflects the occurrences of the
myth of Hercules in different texts to analyze and contrast them from the framework of
myth and intertextuality. It is intended also to address issues of fundamental importance
concerning the characterization of mythology, demonstrating its relevance and how the
myth “speaks” to the literature.

Keywords: Comparative Literature, mythology, intertextuality, Hercules.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................10

1 MITO E LITERATURA COMPARADA ................................................13


1.1 O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE ...................................................15

1.2 MITO E INTERTEXUALIDADE........................................................................17

1.3 HÉRCULES E SEUS MITOS ..............................................................................19

2 AS METAMORFOSES DE OVÍDIO .............................................................22

3 ANFITRIÃO E AULULÁRIA DE PLAUTO ...............................................26

3.1 HÉRCULES POR PLAUTO: O ANFITRIÃO ....................................................27

3.2 A NÃO INTENCIONALIDADE DE PLAUTO: AULULÁRIA .........................28

4 OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES DE LOBATO ......................32

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................36

REFERÊNCIAS ........................................................................................................40
INTRODUÇÃO

Hércules, como se sabe, é uma figura mitológica que tem origem como Héracles
na mitologia grega e, com o passar dos tempos, foi incorporado à mitologia romana por
intermédio dos etruscos. Com efeito, para que bem se possa avaliar o trabalho que
segue, achamos pertinente delimitar o que trataremos como mito, uma vez que
mitologia é dicionarizada como “O conjunto de mitos próprios de um povo, de uma
civilização, de uma religião” em (AURÉLIO, 1981).

Em nosso estudo partiremos da definição de mito proposta por Karen Armstrong


no primeiro capítulo de seu livro Breve história do mito (2005). Armstrong descreve
mito como sendo histórias universais atemporais que exploram a condição humana ao
espelhar os medos, os desejos e as esperanças. Com isso, apontaremos a condição
peculiar de “desordem” do mito, a qual chamaremos de condição acronológica, expressa
segundo Claude Lévi-Strauss em Mito e Significado:

As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem


significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco
por toda a parte. Uma criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar
seria obrigatoriamente única – não se esperaria encontrar a mesma criação
num lugar completamente diferente. O meu problema era tentar descobrir se
havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente – e era tudo.
1
Não afirmo que haja conclusões a tirar de todo esse material.

Propomo-nos a relatar as aparições de Hércules, bem como analisá-las,


contrastá-las e, ao final, apresentaremos um quadro que resumirá essas aparições. Para
tanto, seguiremos o mito pelo poema épico As Metamorfoses de Ovídio, pela comédia
Aululária e pela tragicomédia O Anfitrião de Plauto e, finalmente, pelo vigésimo

1
LÉVI-STRAUSS, 1978, p.20.
11

segundo livro da série infanto-juvenil brasileira O Sítio do Picapau Amarelo, de


Monteiro Lobato. A escolha das obras não é aleatória, elencamos aquelas que fossem de
diferentes gêneros literários e de diferentes épocas da história humana a fim de
percorrer uma maior variável do mito de Hércules. Outro critério de inserção dessas
obras foi a continuidade linguística, visto que compreendemos o português como uma
língua derivada do latim, que, por sua vez, constituiu por anos uma relação de
empréstimo linguístico com a língua grega.

Dividimos este estudo em quatro capítulos que abordam as questões que cingem
o universo do mito de Hércules. A cada capítulo buscamos transportar o leitor pelo
diálogo existente entre mito e literatura e entre as obras analisadas. A ordem de aparição
das obras não busca obedecer a uma cronologia histórica, ou seja, à ordem de suas
criações ou da vivência de seus autores, mas à ordem de sequência temática ditada
sempre pela obra anterior, a partir de Peisândro de Rodes, até sua retomada por
Monteiro Lobato.

Mito e Literatura Comparada e suas subdivisões procuram expor os conceitos


fundamentais para que o leitor possa compreender o diálogo estabelecido entre mito e
literatura e as premissas teóricas as quais este trabalho se baseia. Tratamos de
contextualizar a Literatura Comparada enquanto disciplina que “propõe uma
aproximação da literatura àqueles fenômenos especificamente literários de maneira
geral, independentemente da tradição literária a qual se situam”, pois “possibilita, a
partir de uma postura crítica, evidenciar a atividade criativa por meio da relação que os
escritores estabelecem” e, dessa forma, permite distintos caminhos para o
posicionamento crítico2. Neste sentido, damos especial enfoque à definição de
intertextualidade para que o leitor compreenda os efeitos de convergência entre as obras
e a coletividade da cultura que as sustenta, neste caso o mito. Também tivemos o intuito
de estabelecer a relação do mito de Hércules em sua existência tanto fora como dentro
do texto literário.

No capítulo dois, As Metamorfoses de Ovídio, procuramos mostrar o Hércules


trazido por Ovídio em uma das mais relevantes obras da literatura romana: As
Metamorfoses, cuja estrutura comporta mais de doze mil versos e a narração de mais de

2
REBELLO, 2004, p. 391.
12

quarenta e sete mitos selecionados dentro da tradição clássica, entre eles Hércules, que
findam no destino de Júlio César divinizado. Tratamos de introduzir o leitor à trama a
fim de evidenciar a representação ovidiana do mito analisado que, como se poderá
compreender ao ler o capítulo, é um dos mais relevantes da obra. Segundo a opinião de
Laffont-Bompiani, “a variedade da composição não permite tentar uma síntese de
conjunto deste acervo confuso de fábulas e de personagens” onde “se destacam as
figuras expressivas e, com justa razão, imortalizadas”3.

Em Anfitrião e Aululária de Plauto, terceiro capítulo, procuramos mostrar o mito


de Hércules trazido por Titus Maccius Plautus (Plauto) em suas peças teatrais O
Anfitrião e Aululária, escritas durante a próspera república romana que atravessa um
período de inúmeras mutações culturais em consequência da anexação de novos
territórios conquistados. Neste capítulo, pretende-se fazer notar o mito como parte
integrante de uma religião que repousa na recíproca fidúcia e no diálogo entre os
romanos e seus deuses.

No quarto e último capítulo, Os Doze Trabalhos de Hércules de Lobato,


procuramos, através da exposição de trechos do livro, mostrar os traços peculiares com
os quais o escritor brasileiro Monteiro Lobato os projeta no mito de Hércules em um
dos livros da série O Sítio do Picapau Amarelo. Tratamos de introduzir o leitor à trama
a fim de evidenciar detalhadamente a representação de Lobato sobre o mito, a que mais
se diferencia entre as obras analisadas neste estudo, por se constituir a partir do mundo
fantástico da imaginação infantil.

3
LAFFONT-BOMPIANI. Dictionnaire des Ceeuvres. IN: OVIDIO. As Metamorfoses. Editora
Tecnoprint, 1983.
1 MITO E LITERATURA COMPARADA

Mythology is not a lie, mythology is poetry, it is metaphorical.


― Joseph Campbell, The Power of Myth

Neste capítulo, abordaremos a Literatura Comparada, em especial o estudo


intertextual, bem como as conexões que se estabelecem entre mito e literatura (uma
linguagem) desde a Antiguidade. Ao se tentar compreender esta relação primordial entre
mito e a literatura deve-se utilizar a linguagem como ponto de partida, pois, segundo
Claude Lévi-Strauss, em Mito e Significado, a mitologia, assim como a música, tem
origem na linguagem. Lévi-Strauss explica:

A música, por um lado, e a mitologia, por outro, têm origem na linguagem,


mas ambas as formas se desenvolveram separadamente e em diferentes
direcções: a música destaca os aspectos do som já presentes na linguagem,
enquanto a mitologia sublinha o aspecto do sentido, o aspecto do significado,
que também está profundamente presente na linguagem. Foi Ferdinand de
Saussure quem nos mostrou que a linguagem é feita de elementos
indissociáveis, que são, por um lado, o som, e, por outro, o significado. E o
meu amigo Roman Jakobson acaba de publicar um pequeno livro intitulado
Le Son et le Sens, como as duas inseparáveis faces da linguagem. Temos o
som, e o som tem um significado, e não há significado sem som para o
veicular.4

Logo, fora necessário não apenas o som, mas também as letras e os poemas, e
histórias da tradição oral de um povo passaram a ser escritas. Não velozmente o fazer
literário do homem ocidental chegou à Ilíada, os próprios gregos passaram

4
LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 77.
14

primeiramente pelas Scriptura Linearis A e Scriptura Linearis B5 antes de configurarem


o grego clássico como sua língua oficial. Todavia, pouco tempo se passou entre a
criação da Ilíada e a criação da Odisseia e rapidamente:

(...) Homero indicou em que métrica podem ser escritas as ações de reis e
militares e tristes guerras. Em versos unidos irregularmente, primeiro foi
incluída a queixa, após também a manifestação de desejo possuído. Que
inventor, porém, teria cunhado os curtos poemas elegíacos, controvertem os
eruditos, e o pleito está até agora sob julgamento. A fúria proveu a
Arquíloquo de seu próprio iambo: as comédias e as tragédias adotaram este
pé, apropriado para diálogos e para sobrepujar estrépitos populares e nascido
para cometimentos de ação. A Musa consentiu à lira decantar divos e filhos
de deuses, o lutador vencedor e o primeiro cavalo no combate, aflições de
6
jovens e libidinosos vinhos. (N.T.) .

A multiplicidade da composição literária possibilitou ao homem tentar sintetizar


e catalogar seu repertório de crenças, tradições, fábulas e mitos que, por terem sido
representados com liberdade, recebem de cada autor um acorde diferente se perpetuando
pela literatura. Poetas como Virgilio e Ovídio em seguida passaram a influenciar autores
renascentistas e poetas ingleses como Geoffrey Chaucer. Desse modo, o mito vem a se
tornar efeito e representação de que a invenção não está vinculada à ideia do novo uma
vez que,

toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar


continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com
relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece,
sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizer) o
7
re-inventa .

Por não expor seu significado primordial, o mito, segundo as conclusões de


Everardo Rocha em sua leitura de Lévi-Strauss, estaria vinculado a grupos de
acontecimentos que nem sempre se encontram no próprio mito, mas externos a ele.

5
O nome em latim se refere às línguas escritas utilizadas pelos gregos antes da configuração e
formalização do grego clássico.
6
Horacio. De Arte Poetica. In: Whetham, Joseph. The Works of Horace. C. Smart. Philadelphia,1836.
Res gestae regumque ducumque et tristia bella quo scribi possent numero, monstravit Homerus; versibus
impariter iunctis querimonia primum, post etiam inclusa est voti sententia compos; quis tamen exiguos
elegos emiserit auctor, grammatici certant et adhuc sub iudice lis est; Archilochum proprio rabies armavit
iambo; hunc socci cepere pedem grandesque cothurni, alternis aptum sermonibus et popularis vincentem
strepitus et natum rebus agendis; musa dedit fidibus Divos puerosque Deorum et pugilem victorem et
equum certamine primum et iuvenum curas et libera vina referre.
7
CARVALHAL, 1992, p.53.
15

Rocha, valendo-se da relação entre música e mitologia com a linguagem proposta pelo
antropólogo alemão, explica que o mito se assemelharia a uma partitura musical e,
como tal, seria uma estrutura complexa que ganharia significado de acordo com o uso,
ou ainda a forma, que o maestro lhe der8.

Desse modo, evoca-se aqui a natureza mediadora da literatura comparada, por


seu caráter de intermédio, para se tratar com o mito na literatura e busca-se
compreender a efetiva presença de um mesmo mito em diferentes textos, a derivação de
um mito em outro e a relação que o mito pode exercer como catalisador do processo de
derivação de um texto em outro. A literatura comparada, por meio dos estudos de
intertextualidade, permite um novo olhar sobre o texto, assentado, portanto, em uma
dupla aparência:

relacional (intercâmbios entre textos) e transfuncional (modificação recíproca


dos textos que se encontram nesta relação de troca). Esta concepção
compactua com a “noção de bricolagem (colocada em evidencia por Claude
Lévi-Strauss para caracterizar o funcionamento do pensamento mítico, por
associação de termos heteróclitos e por analogia) parece convir bem para
estas operações de reciclagem de materiais, de colagem e de combinação. 9

Seria o mito, enfim, mais do que o passageiro das águas médias literárias, seria o
próprio Χάρων (Caronte). Isso denota que, primeiramente, o mito não pertence a
alguém de modo geral ou específico, pois circula de acordo com a maré, como discursos
enunciados em dados momentos históricos, vinculados a determinadas práticas. Por
conseguinte, são às marés que se devem medir, distinguir e comparar.

1.1 O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE

O entendimento de que textos literários compartilham subsídios vem esteando a lide


da literatura comparada como disciplina, uma vez que esse perpassa a noção de
continuidade. Tal noção remete à compreensão da existência abstrata de uma fonte de
pesquisa comum, aberta e disponível a todos os escritores, a qual será consultada, nem

8
ROCHA, 1996, p. 36.
9
SAMOYAULT, 2008, p. 67.
16

sempre conscientemente, durante o fazer literário e terá seus temas resignificados. O


conceito de intertextualidade constrói-se e torna-se assaz significante para a Literatura
Comparada neste contexto. O termo cunhado por Júlia Kristeva no ensaio Le mot, Le
dialogue et Le Roman é traduzido por Tânia Carvalhal em seu livro O Próprio e o
Alheio como “uma propriedade do texto literário, que ‘se constrói como um mosaico de
citações, como absorção e transformação de outro texto’”. A fim de formatar sua teoria,
Kristeva fundamentou-se na natureza dialógica da língua compreendendo, portanto, a
“palavra literária” como um “um cruzamento de superfícies textuais”10, como postulado
por Mikhail Bakhtin.

Os estudos de Literatura Comparada levaram a uma leitura que permite que em


um texto sejam lidos os intertextos e que procura decifrar como o universo literário é
tecido. Julia Kristeva destaca também que, conforme o filósofo russo, o ato de escrita se
representaria como a literatura de um corpus literário precedente. Como expresso por
Bakhtin:

A obra é um elo na cadeia de comunicação verbal; do mesmo modo que a


réplica do diálogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: com
aquelas a que ela responde e com aquelas que lhe respondem, e, ao mesmo
tempo, nisso semelhante à réplica do diálogo, a obra está separada das outras
pela fronteira absoluta da alternância dos sujeitos falantes 11.

Assim sendo, passa-se a compreender o texto como mosaico de múltiplos outros


textos escritos antes dele, e os estudos literários permitem, então, buscar estabelecer os
nexos entre estes textos de modo a tornar coletiva a obra e grifar o caráter criativo do
processo de produção textual. Dessa forma, a intertextualidade assumiu distinções
funcionais e perceptuais que resultaram em proveitos críticos para literatura comparada
como teoria e disciplina.

10
KRISTEVA, 1974, p. 62.
11
BAKHTIN, 1997, p. 298.
17

1.2 MITO E INTERTEXUALIDADE

Desde quando compunham o alicerce místico e cultural de uma nação, os mitos,


que para os povos antigos eram não menos que parte integrante de sua religião e o modo
de passar valiosos ensinamentos às futuras gerações, tem sido base para incontáveis
textos literários no decurso da história. Na verdade, o diálogo travado entre mito e
literatura é intrínseco à existência de ambos, uma vez que a oralidade não abrange a
conservação temporal do mito, sua manutenção se deu, até os dias de hoje, graças aos
registros grafos sobreviventes. Sobre isso e sobre a própria definição de mito, Evandro
Rocha argumenta que mito se define por sua peculiaridade de não ser como as outras
narrativas, pois,

(...) se assim o fosse ele se descaracterizaria, perderia sua especificidade.


Seria tragado, submerso pelo oceano de narrativas, falas e discursos
humanos. O que marca o ser humano é justamente sua particularidade de
possuir e organizar símbolos que se tornam linguagens articuladas, aptas a
produzir qualquer tipo de narrativa. O ser humano fala e muito. Se o mito
fosse uma narrativa ou uma fala qualquer, estaria diluído completamente. 12

Durante séculos, retomamos, por meio da literatura, apenas um pequeno


conjunto de heróis. Em sua maioria, esses heróis são de origem grega, pois, como
podemos perceber ao ler O Livro de Ouro da Literatura, de Thomas Bulfinch, em
outros territórios do mundo antigo, como a Mesopotâmia e a Ásia Meridional, a figura
do herói não possuía tamanha acuidade como na região mediterrânea, para enfronhar e
orientar suas gentes. Ao atentarmos para o comportamento do homem arcaico,
conferimos que, como pondera Mircea Eliade, em O Mito do Eterno Retorno, aos seus
olhos era comum um objeto ou uma ação contraírem para si “valor” de modo a se
personificarem e se tornarem “reais”, uma vez que compartilhavam de uma realidade
que os transcendia. Ou seja, porque comemora e inicia um ato que se configuraria
mítico “o objeto surge como um receptáculo de uma força exterior que o diferencia do
seu meio e lhe confere significado e valor”. Para o homem arcaico, tudo que existia,
acontecia e agia só era como era em suas vidas, pois já fora vivenciado por um “outro”

12
ROCHA, 1996, p.3.
18

que não era um homem, mas um deus ou herói; portanto, esses povos se valiam do
atributo da representação da repetição de um ato exemplar mítico.

Nas palavras de Chadwick, “Myth is the last – not the first – stage in the
development of a hero”13, uma vez que se observa a evolução de uma pessoa ou do que
ela representa em herói mítico. Quer-se expressar aqui que a historicidade não perdura
por muito tempo à ação da mitificação, adjetivada por Eliade como “corrosiva”14. Isto é,

seja qual for a sua importância, o acontecimento histórico em si só perdura na


memória popular e a sua recordação só inspira a imaginação poética na
medida em que esse acontecimento histórico se aproxima de um modelo
mítico. A memória popular tem dificuldade em reter acontecimentos
individuais e figuras autênticas, portanto a personagem histórica é assimilada
ao modelo mítico bem como o acontecimento. 15

Sendo assim, o processo de apropriação de temas referentes à trajetória desse


seleto grupo, os heróis, é intrínseco ao processo que impulsionou o curso criativo da
literatura que, seguindo o mesmo princípio, também passou pela concepção de que se
espelhar a um modelo era sinônimo de qualidade16. Os processos de (re)escritura do
mito, no entanto, não são simplesmente repetições de sua história ou do modelo com o
qual ela fora formatada; segundo exprime Samoyault, ao primeiro capítulo da terceira
segmentação de A Intertextualidade, a reescrita conta também “a história de sua
história,” o que seria a própria função da intertextualidade: “levar, para além da
atualização de uma referência, o movimento de sua continuação na memória humana” 17,
assim assegurando a sobrevida do mito e o seu continuo prosseguimento. Na sequência,
a autora completa que a análise do mito tem o potencial de tornar-se estudo intertextual
completo, uma vez que o interesse versa em estabelecer circulações de sentido,
transporte de temas e de figuras. Não bastando, então, se adaptar uma história a um
novo contexto, mas sim encarregar-se das significações anteriores ao mesmo tempo que
da significação presente.

13
CHADWICK, 1940 vol. III, p. 762. “Mito é o ultimo – não o primeiro – estágio no desenvolvimento de
um herói” (N.T.).
14
ELIADE, 1969, p. 57.
15
IDEM.
16
ELIADE, 1969, p. 19.
17
SAMOYAULT, 2008, p. 102.
19

Ao longo deste estudo, como já foi referido, trataremos da intertextualidade do


mito de Hércules perpassando a obra do poeta grego Peisândro de Rodes, os romanos
Ovídio e Plauto e, por fim, a série infantil do brasileiro Monteiro Lobato.

1.3 HÉRCULES E SEUS MITOS

Um dos heróis que se enquadram naquele seleto grupo e que vem tendo seus
mitos resignificados ao longo da história é Hércules que, como bom herói clássico, é
considerado, dentro das premissas de Aristóteles, um herói “alto”, classificação
explicada por Brandão como,

(...) o homem que, se caiu em infortúnio, não foi por ser perverso e vil, mas
por força de ἁμαρτίαν à toa (de algum “erro”). No mito bem estruturado,
pois, o herói não deve passar da infelicidade para a felicidade, mas ao revés,
da fortuna para a desdita e isto, não porque seja mau, mas por causa de
alguma falta cometida18.

Hércules não apenas iria cometer diversos “erros à toa”, como diz Brandão, mas
era ele próprio fruto de um erro de seu pai. Hércules, como outros semideuses, é nascido
filho de Júpiter, o senhor dos deuses, e de uma mortal, Alcmena, mas é incontestável,
pelo menos no que nos foi possível herdar da mitologia greco-romana, que Juno dirigia
a ele uma hostilidade declaradamente maior do que dirigia aos outros filhos bastardos
de seu marido.
Desde antes de seu nascimento até pouco antes de sua morte, o herói sofre
continuas e incansáveis investidas de Juno. A passagem mais conhecida ocorre quando
Juno coloca o enteado em um “estado de delírio” e, durante isso, Hércules acaba por
assassinar os dois filhos do senhor Eristeus. Como forma de punição, o filho de Júpiter
foi sujeitado a obedecer às ordens deste senhor por três anos. Foi Euristeus o
responsável por veicular, durantes estes anos de penalidade, os famosos “Doze
Trabalhos de Hércules”, elaborados por Juno e que são trazidos no poema épico,

18
BRANDÃO, 1980, p. 50-51
20

atribuído pelo filósofo grego Strábōn a Peisândro de Rodes, Heracleia19, o qual será
relembrado brevemente na tabela abaixo segundo postulado por Bulfinch (2002):

Os Doze Trabalhos de Hércules


Derrotar o leão de Neméia e trazer sua pele. Hércules estrangulou-o com as mãos.
Voltou levando nos ombros não só a pele do
animal, mas o próprio leão morto.
Derrotar a Hidra de Lerna Auxiliado por Iolaus, o Herói queimou as
cabeças da hidra e enterrou a nona, a
imortal, embaixo de uma pedra enorme.
Limpar as cavalariças de Augias, que não Hércules alterou os cursos dos rios Alfeu e
eram limpos há trinta anos e abrigavam Peneu. Com suas águas fez limpeza em
rebanho de três mil bois. apenas um dia.
Buscar o cinto da Rainha das amazonas, que Matou Hipólita e levou consigo o cinto.
Admeta desejava possuir.
Levar a Euristeus os bois de Gerião. Matou o gigante Eurítion, guardião dos bois,
e seu cão de duas cabeças.
Colher os pomos de ouro das Hespérides. Hércules pediu ajuda para Atlas e, enquanto
Atlas procurava as maçãs, substituiu o titã
na função de sustentar o firmamento nos
ombros. Atlas encontrou as maçãs e, apesar
de relutar, acabou reassumindo seu posto e
Hércules as levou para Euristeus.
Capturar Corça de Cerínia. Capturada por uma rede.
Capturar o Javali de Erimanto. Depois de horas de perseguição, o Javali foi
vencido pelo cansaço.
Matar os monstros do lago Estínfalo. Derrotados por flechas envenenadas.
Levar o touro do Rei Minos de Creta para Hércules agarrou o touro pelos chifres e o
Euristeus. venceu em uma luta.
Domar as éguas Diomedes. Com ajuda de um grupo de voluntários,
conseguiu derrotar as éguas e seu dono.
Derrotar Cérbero sem o auxílio de armas e Com apenas o uso de sua força em uma luta
trazê-lo do mundo dos mortos corpo-a-corpo, Hércules conseguiu subjugar
o guardião.

Joseph Campbell, em The Hero With a Thousand Faces, ajuda a verificar que
muito mais há em comum entre líderes espirituais, como Siddhartha Gautama (Buddah),
e heróis clássicos, como Hércules, do que se supõe, pois ambos são mitos, mesmo que
suas origens possam ou não ter um personagem histórico e, portanto, nas próprias
palavras de Campbell, tem o seu poder formador:

19
Heracleia é um poema perdido cujo conteúdo ficamos sabendo por meio de outros poetas, é Στράϐων,
Estrabo em português, quem atribui o poema a Peisândro ao falar da ilha de Rodhes no décimo quarto
livro de sua obra Geographia.
21

(...)When the story is in your mind, then you see its relevance to something
happening to you. With the loss of that, we’ve really lost something because
we don’t have a comparable literature to take its place. These bits of
information from ancient times, which have to do with the themes that have
supported human life, built civilizations, and informed religions over the
millennia, have to do with deep inner problems, inner mysteries, inner
threshold of passage, and if you don’t know what the guide-signs are along
the way, you have to work it out yourself. Bur once this subject catches you,
there is such a feeling, from one or another of these traditions, of information
of a deep, rich, life-vivifying sort that you don’t want to give it up. 20

O caráter de formação que o mito de Hércules carrega fez com que ele se
perpetuasse ao longo da história por meio de diferentes autores, em diferentes gêneros
textuais e diferentes épocas. A seguir, trazemos as diferentes perspectivas do mito em
Ovídio, Plauto e Monteiro Lobato.

20
CAMPBELL, 1991, p. 2. (...) Quando a história está em tua mente, então tu vês a sua relevância para
algo que aconteça contigo. Com a perda disso, nós realmente perdemos alguma coisa, porque não temos
uma literatura comparável para tomar o seu lugar. Estes compassos de informação desde os tempos
antigos, que têm a ver com os temas que têm apoiado a vida humana, civilizações construídas, e as
religiões informadas ao longo dos milênios, têm a ver com profundos problemas interiores, mistérios
interiores, limite interno de passagem, e se tu não sabes que os sinais-guias estão ao longo do caminho,
tens que trabalhar com isso tu mesmo. Mas uma vez que este assunto te pega, existe um sentimento, de
uma ou outra dessas tradições, de informações de uma, rica, e vivaz vida que você não quer desistir.
(N.T.)
22

2. AS METAMORFOSES DE OVÍDIO

Ercole fanciullo che strozza il serpente mandato da Giunone per ucciderlo21

A história que se estende anos após os doze trabalhos até a sua morte é contada
pelo poeta romano do início do império, época de Augusto, Publius Ovidius Naso
(Ovídio) no nono livro de As Metamorfoses. A figura mitológica de Hércules, narrada
por Ovídio no livro IX, é a de um herói já consolidado. Pela voz de Aquelou, filho de
Netuno, na primeira subdivisão do livro, descobre-se a altivez do caráter do filho de
Júpiter e como ele se relaciona com os demais. Todas as qualidades e as características
que contribuem para Hércules ser vinculado à figura de herói são, no entanto,

21
Obra de autor desconhecido . Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Herakles_snake_Musei_Capitolini_MC247.jpg
23

apresentadas por aquele que, em uma situação recente à narrativa, havia sido seu
inimigo e havia sido derrotado por ele.

Segundo Aquelou, alguns homens, incluindo ele e Hércules, acabaram se


encantando pela beleza de Dejanira, filha do Rei Eneu de Calidão, e se candidataram a
desposá-la. Para tal, Aquelou e Hércules entram em uma áspera discussão sobre quem
seria o melhor candidato, mas a discussão findou em uma árdua luta entre os dois.
Logo ao começo, Aquelou justifica sua narrativa dizendo “Que derrotado, em verdade,
desejaria recordar a sua derrota? Contarei, no entanto, a minha corretamente. E não foi
tão vergonhoso ser vencido quanto foi honroso ter lutado; e consolo-me pelo fato de tão
insigne ser o meu vencedor22”. Durante a luta, o filho de Netuno se metamorfoseia em
dois seres. Sua última tentativa foi a de um touro bravo, no entanto Hércules o agarrou
pelos chifres e arrancou um deles de sua face. Mutilado, Aquelou perde a mão de
Dejanira que se casa com Hércules.

Eis que, regressando, com a nova esposa às muralhas da pátria, o filho de Júpiter
chegou à rápida correnteza do Eueno. Mais volumoso do que de costume, aumentado
pelas chuvas do inverno, o rio tinha mais redemoinhos do que habitualmente e estava
intransponível. Ovídio introduz o próximo mito em sequência ao anterior, mas sem
nenhuma indicação de quanto tempo se passou entre uma história e outra. Podemos
depreender, no entanto, que, para Ovídio, é provável que não tenha se passado muito
tempo entre uma ocasião e outra já que ele intitula Dejanira com “a nova esposa”. Ao
contrário do tempo, o local é bem específico: O rio Eueno perto das muralhas de
Calidão. O que se segue a esse trecho reitera o bom caráter de Hércules que “intrépido
quando se tratava de si mesmo, ficou preocupado, por causa da esposa”23.

Ovídio evidencia os diferentes posicionamentos que se pode ter em uma mesma


situação: Hércules por ser um herói deve se preocupar mais com os outros do que com
si mesmo. No entanto, essa característica é inerente apenas aos heróis, e logo somos
apresentados ao centauro Néssus. O centauro se aproxima do casal e se oferece para
carregar Dejanira ao outro lado enquanto Hércules transpõe o rio com suas próprias
forças. Hércules confia a travessia de sua esposa ao centauro, mas ao chegar do outro
lado escuta a voz de Dejanira, “Néssus se disponha a trair a confiança nele

22
OVIDIO, 1983, p. 225.
23
Idem, ibidem.
24

depositada24” e tentava levar consigo a mulher. Contudo, a mira do enteado de Juno era
certeira e sua flecha mais rápida que as quatro patas do ser. A flecha que continha o
veneno da Hidra de Lerna atingiu Néssus que antes de morrer recolhe seu sangue
misturado ao veneno da flecha em uma túnica enquanto disse consigo que se vingaria e
oferece-a a Dejanira, prometendo que funcionaria como feitiço para estimular o amor do
marido.

Segundo As Metamorfoses, Dejanira foi vítima da Fama, que levou aos seus
ouvidos rumores sobre a paixão que Hércules estaria sentindo por Iole. Então, a esposa,
considerando se fazer necessário o recurso amoroso entregue por Néssus, quando seu
marido foi oferecer sacrifícios aos deuses, mandou a ele através de Lica a túnica branca
para ser usada na cerimônia. Então “o herói, inconsciente do perigo, recebe e põe sobre
os ombros o veneno da hidra de Lerna25” que logo penetrou em seu corpo, provocando-
lhe terríveis dores. E ele, como herói que é, tenta conter seus gritos de dor e arrancar a
túnica, mas “onde a arranca, arranca a pele – coisa dolorosa de se contar – que, ou fica
agarrada ao corpo, resistindo às tentativas para tirá-la, ou põe a nu as carnes
estraçalhadas e os ossos enormes26”. Frenético, Hércules se dirige a Juno e exclama que
para ele a morte seria uma dádiva depois de tantas provações que ela o fizera passar. Ao
baixar os olhos vê Lica, que ignorava o que levara, e achando que ele era o culpado do
que estava acontecendo agarrou-o e atirou-o ao mar. Tendo feito isso, Hércules estende
a pele do leão de Neméia sobre a fogueira, acesa no monte Eta para a cerimônia, e se
deita nela. A serenidade da face do filho de Júpiter enquanto seu corpo é tomado pelas
chamas confirmam mais um dos elementos que o fazem digno de ser chamado de herói
pelo povo que ditava seus mitos.

Ao notar o que estava ocorrendo com seu filho, Júpiter, o filho de Saturno, se
dirige aos outros deuses e exclama:

Não mal digais essas chamas! Quem tudo venceu, vencerá este fogo que
vedes e não sentirá o poder de Vulcano senão por sua parte humana, herdada
da mãe. O que recebeu de mim é eterno e imune à morte, e nenhuma chama
poderá vencê-lo27.

24
OVIDIO, 1983, p. 229.
25
OVIDIO, 1983, p. 232.
26
Idem, ibidem.
27
OVIDIO, 1983, p. 234.
25

Júpiter, com o consentimento dos deuses, envolveu a parte divina do filho, que
após ser liberta da parte que herdara de Alcmena se tornou mais vigorosa, em uma
nuvem e levou-o em um carro puxado por quatro cavalos para residir entre as estrelas. E
ao tomar seu lugar no céu, a magnitude de Hércules era tanta que aumentou o peso do
firmamento.

Fazendo uso da característica dos mitos não serem ligados aos outros
sequencialmente para que sustentem seu significado fundamental28, Ovídio usa como
artifício a memória de Alcmena que, aflita com as perseguições de Euristeus a seu neto
Hilo desde a morte de seu filho, conta como deu à luz a Hércules. Segundo Alcmena,
Lucina e os deuses Nixus a mando de Juno se puseram à porta dela em trabalho de
parto, com seus braços e pernas cruzados, impedindo o nascimento da criança. Por sorte
da futura mãe, sua serva Galantide estava a entrar e sair do aposento e percebeu a
interferência de Juno. Tendo visto o que se passava, correu até as deusas anunciando
que, com o auxílio de Júpiter, a criança já havia nascido. Com isso, as deusas se
desdobraram e foi o que bastou para que Alcmena completasse seu trabalho de parto.
Hércules era filho bastardo de Júpiter, por isso foi castigado a vida toda por sua
madrasta, que só se reconcilia com ele após o marido divinizá-lo.

Ovídio perpassa por esse acontecimento quando, ainda no livro IX, que trata de
Iolau, comenta sobre Hebe e seu marido. Ocorre que, com a reconciliação, Juno oferece
a Hércules sua filha Hebe em casamento. Ovídio não apresenta nenhum defeito em
Hércules; ele é um herói completo, divino. Tão divina é a construção de Alcides em As
Metamorfoses que não fará surpresa ao leitor desavisado quando o herói vier a se tornar
um deus, uma vez que o único aspecto humano que o autor apresenta sobre ele é a
matéria que o constitui e que fora herdada de Alcmena. No entanto, existem outros
mitos que demonstram a instabilidade de humor que Hércules carregava consigo, como
quando matou Eunomos e quando matou Lino. O primeiro era um serviçal da corte de
Calidão e como tal foi enviado para lavar as mãos de Hércules, mas descuidado deixou
que um pouco de água caísse nos pés do filho de Júpiter que, agastado, esbofeteou-o
com tamanha força que acabou o matando. O outro, Lino, era professor de música do
herói e por ter repreendido-o, provocou sua revolta e acabou sendo abatido com sua lira.

28 28
LÉVI-STRAUSS, 1978, p.20.
26

3 ANFITRIÃO E AULULÁRIA DE PLAUTO

Birth of Heracles – de Jean Jacques Francois Le Barbier 29

Como descreve Carlina Nunez, em um dos capítulos de Mito Ontem e Hoje30,


Plauto é um dos escritores romanos que escreve dentro da comédia nova, que, segundo
ela, é uma reapropriação dos modelos gregos. Uma reapropriação com relação a
argumentos e estrutura, mas não quanto ao personagem, pois fica claro que os
personagens são tipicamente romanos e atuam como tais apesar de se deslocarem em
um cenário grego, muitas vezes a cidade de Atenas. Mas o que Plauto, autor de
comédias que falam essencialmente da vida social de seus personagens, tem a ver com
Hércules, figura essencialmente mitológica?

29
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Birth_of_heracles.jpg
30
NUÑEZ, 1990, p. 109.
27

Tudo; basta compreendermos que aquilo que tratamos hoje como mitologia era
na época religião e, de certa forma, os costumes do povo. Plauto era muito popular e
fazia rir com os costumes e as atitudes dos tipos mais comuns romanos, ao contrário de
Terêncio que possuía maior cuidado em sua escrita e maior complexidade em suas
comédias. Dos vinte e um títulos criados por Plauto, dois deles se destacam, O Anfitrião
e Aululária, por influenciarem o teatro que se cria a seguir com Moliére e, após, com
Ariano Suassuna e Guilherme Figueiredo.

Todavia, O Anfitrião e Aululária não serão tema dessa análise por tal motivo e
sim pelo que parece no momento muito mais pertinente e, por que não dizer, nobre, que
é Hércules. Ao lermos as duas comédias é provável que passe despercebido, talvez não
tanto na primeira quanto na segunda, a figura e o mito de Hércules, mas ela se encontra
lá de forma mais direta, na primeira, ou permeando os costumes dos personagens, na
segunda.

3.1 HÉRCULES POR PLAUTO: O ANFITRIÃO

Como base da trama de O Anfitrião, Plauto retoma o mito da concepção e do


nascimento de Hércules. E, desta maneira, apropria-se da figura mitológica como
apenas o resultado dos atos de Júpiter, evidenciando a relação triangular entre o deus,
Alcmena e Anfitrião. Na verdade, o Rei dos Deuses, com a ajuda de seu filho Mercúrio,
é quem controla a trama transformando-a em um triângulo que não podemos chamar de
amoroso, uma vez que, na tragicomédia, Alcmena não está apaixonada pelo deus, mas é
enganada por ele ao se fazer passar por Anfitrião. Vemos em ação, nesta obra, o que é
contado pela voz de Alcmena em As Metamorfoses de Ovídio na perspectiva lírica, o
parto da esposa de Anfitrião.

Júpiter desce à casa de Alcmena enquanto Anfitrião, seu marido, e Sósia,


escravo de Anfitrião, estão afastados de Tebas por virtude de uma guerra. Para poder
amar a mortal, o deus se metamorfoseia na figura de seu marido e, para que não haja
nenhuma perturbação, pede que seu filho Mercúrio se metamorfoseasse em Sósia,
28

tornando a noite mais longa para que pudesse passar mais tempo ao lado da mulher.
Com isso, e a volta dos verdadeiros Anfitrião e Sósia, surgem diversos quiproquós que
dão ritmo cômico à obra.

Ao final da peça, Alcmena, que já estava grávida de Anfitrião antes de ele partir
para a guerra, entra em trabalho de parto para dar a luz a duas crianças, pois Júpiter
também a engravidara. Nesse momento, Anfitrião tenta entrar no aposento e é impedido
pelos relâmpagos de Júpiter e cai desfalecido. Mas apesar do susto, o homem sobrevive
e no ato seguinte, o último, pondera que não houve mal ter feito “sociedade” com o
deus. A tragicomédia termina com a fala de Anfitrião que diz: “E agora, espectadores, é
aplaudir com toda força em honra do Supremo Júpiter!”31. Nesta obra, temos uma visão
que Ovídio não nos proporciona, a ação do marido de Alcmena durante o processo de
concepção, o parto e após o nascimento de seu filho e Hércules.

3.2 A NÃO INTENCIONALIDADE DE PLAUTO: AULULÁRIA

Muito mais interessante do que a forma como Hércules aparece em O Anfitrião,


apesar de mais explícita, é a forma implícita como ele aparece em Aululária. Em
verdade, é provável que esta aparição não fosse tão implícita na época de Plauto, por se
tratar de uma aparição por costume popular e crença. Lembramos aqui que o que nós
chamamos hoje de “mitologia” é de fato a religião dos povos antigos.

Aululária ou Comédia da Panela se passa na cidade de Atenas e inicia pelo


prólogo do deus lar da família do avarento Euclião, Júpiter. A trama conta a história de
Euclião, um homem que, tomado pela avareza e pela paranoia, há tempos esconde uma
panela cheia de ouro com medo de que alguém roube sua riqueza. Consequentemente, o
homem se distancia de sua filha, Fedra, e não percebe que a moça está grávida de
Licônidas, por quem está apaixonada, mesmo tendo sido prometida pelo pai para casar-
se com o velho e rico Megadoro. A comédia ganha ritmo quando a panela de Euclião

31
PLAUTO, 1983, p. 120.
29

some e Licônidas o encontra e admite ter cometido “o crime” sem explicar qual
exatamente era, fazendo Euclião acreditar que havia sido o jovem o usurpador de sua
panela. Todavia, ao final, tudo acaba sendo resolvido, Megadoro desiste do casamento,
Licônidas e Fedra ficam juntos e a panela é devolvida ao dono que resolve transformar-
se em magnânimo e decide entregar a panela ao futuro genro.

Das falas das personagens podemos extrair, além da trama da comédia, a


representação dos objetos como tipos sociais e de costumes marcados. O objeto que
mais se destaca como figura agente na peça é Euclião, cujas falas são mais relevantes
para a nossa análise. O avarento Euclião recorre à figura de Hércules quatorze vezes em
suas falas durante Aululária, em todas às vezes fica clara a divinização do filho de
Júpiter, deus lar da família, e sua ligação com a força humana. Hércules é invocado
como um herói, um protetor, alguém cuja índole é inquestionável. Em nossa leitura,
podemos analisar pelo menos três situações temáticas em que Euclião invoca Hércules,
todas estão citadas abaixo junto com uma de suas respectivas passagens.

Na primeira, quando, em momento de paranoia, teme pela segurança do dinheiro


e ameaça quem ele considera potencialmente interessado em roubá-lo:

Euclião: Já lá para fora, vamos! Lá para fora, já disse! Tens que ir mesmo lá
para fora, minha espia, sempre de olho esbugalhado! (...)
Estáfila: Mas por que é que me puseste assim fora de casa?
Euclião: Terei eu que te dar alguma explicação, minha arca de pancada? Sai
para longe da porta. Para ali, se quiseres. (Mostra-lhe o lado oposto à casa.)
Ora vejam, como ela anda! E agora, sabes tu o que há? Por Hércules! Se hoje
pego num pau ou num chicote, acho que te vou alargar esse passo de
tartaruga!32

Esta é uma passagem das primeiras falas de Euclião no primeiro ato da comédia.
Apesar de a velha escrava nada saber, o avarento vigia constantemente sua panela para
ter certeza de que ninguém a havia roubado. É indispensável notar que especialmente
nesta fala o homem não apenas chama Hércules por estar se sentindo inseguro, mas,
principalmente, por ameaçar a escrava com um castigo físico. Assim, faz uma ligação
entre o herói e a força humana, o castigo seria mais severo, pois Euclião empenharia
maior força.

32
PLAUTO, 1983, p. 127.
30

Na segunda, quando, em momento de desconfiança, acredita que descobriram e


estão a falar de seu dinheiro, critica a má-índole dos outros:

Megadoro: E eu vou ter com Euclião. Talvez esteja em casa. Mas olha!
Euclião: Que os deuses te salvem, Megadoro.
Megadoro: E então? Saudezonha à vontade?
Euclião (à parte): Deve haver um motivo qualquer para esse homem rico se
dirigir assim a um pobre tão delicadamente. Com certeza que este homem já
sabe que eu tenho dinheiro; é por isso que me saúda com tanta delicadeza.
Megadoro: Então, de saúde mesmo?
Euclião: Por Pólux, fora o dinheiro, tudo vai bem.
Megadoro: Ora, se tivesse sossego, tens tudo quanto precisas para passar bem
a vida.
Euclião (à parte): Por Hércules! A velha já andou a falar do dinheiro! É tudo
quanto há de mais evidente. Quando chegar a casa vou-te cortar a língua e
arranca-lhe os olhos33.

Aqui, ao exclamar por Hércules, ele enfatiza o oposto entre o caráter do herói e a
falta de caráter de sua escrava, Estáfila, quem, provavelmente, descobriu e deve ter
espalhado um boato sobre o seu dinheiro.

Por fim, na terceira, quando utiliza Hércules como fonte de testemunho


irrefutável às suas afirmações:

Megadoro: Eu hoje, Euclião, quero beber contigo.


Euclião: Mas hoje não bebo, por Hércules!
Megadoro: Vou mandar buscar a casa um pote de vinho velho.
Euclião: Pois não quero. Resolvi só beber água.34

Neste momento da trama, Euclião acredita que Megadoro quer envenená-lo para
poder tomar-lhe a panela com o tesouro e se apoia em Hércules para que sua resposta ao
convite de Megadoro seja irretorquível. Em meio ao quiproquó com Licônidas, Euclião
sente-se sem poder por ter sido privado de seu ouro e, uma vez privado daquilo que lhe
concedida influxo de superioridade dentre os demais, não chama nenhuma vez por
Hércules. Apenas ao final da comédia, Euclião passa a invocar Hércules com a força de
antes. Porém, com a mudança do personagem, que de avarento torna-se generoso, muda
também à maneira dele de se dirigir ao herói e de invocá-lo. Agora, o herói é chamado
de Alcides e invocado por uma benfeitoria:

33
PLAUTO, 1983, p. 139.
34
PLAUTO, 1983, p. 154.
31

Megadoro: Euclião! Euclião!


Euclião: Que há?
Licônidas: Vem cá baixo. Os deuses querem-te bem. Cá temos a panela.
Euclião: Tendes realmente, ou estais a enganar-me?
Licônidas: Temos, já te disse. Se podes vem voando.
Euclião: Ó grande Júpiter! Ó deus Lar da família! Ó rainha Juno! Ó meu
Alcides dos tesouros! Finalmente tivestes dó do pobre velho! Ó panela, que
abraços alegres não te dá o teu velho amigo! Como eu te beijo! Nem posso
fartar-me de te abraçar. Ó esperança! Ó coração! Lá se vai a minha tristeza. 35

Após esta fala, vem a de Licônidas que nos indica a moral da história, e, em
seguida, a outra fala de Euclião, quando ele agradece e entrega a panela e sua filha a
Licônidas. Em Plauto, percebemos claramente o discurso da existência humana, neste
caso marcada pela fé. Euclião e Anfitrião são personagens que são homens e, portanto,
objetos criados pelo poeta romano que se incorporaram em homens36.

35
PLAUTO, 1983, p. 176-177.
36
BACCEGA, 2007, p. 89. “o homem é personagem, que é homem. E o escritor é o criador de
personagens que se incorporarão em homens”.
4 OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES DE LOBATO

Hercules Slaying the Hydra – de Sebald Beham 37

Se nas peças de Plauto não há espaço para que tenhamos maiores informações
sobre o mito do herói depois de divino, em Monteiro Lobato, temos uma grandiosa e
detalhada retomada da figura mitológica e de um dos seus mais grandiosos feitos. Os
Doze Trabalhos de Hércules recebem espaço de um livro na série infantil O Sítio do
Picapau Amarelo. De uma forma lúdica e suave, Monteiro Lobato consegue apresentar
o herói sem deixar de descrever sua instabilidade emocional e a violência resultante
dela. O autor retoma o mito desde a Grécia, mas prefere chamá-lo como os romanos o
faziam. Logo no começo do livro, somos conduzidos ao Sítio pela conversa de Dona
Benta e de seu neto, Pedrinho.

Na Grécia Antiga o grande herói nacional foi Héracles, ou Hércules, como se


chamou depois. Era o maior de todos - e ser o maior de todos na Grécia
daquele tempo equivale a ser o maior do mundo. Por isso até hoje vive
Hércules em nossa imaginação. A cada momento, na conversa comum a ele

37
Fonte: http://0.tqn.com/d/ancienthistory/1/0/2/c/2/HerculesSlayingHydra.jpg
33

nos referimos, à sua imensa força ou às suas façanhas lendárias. Dele nasceu
uma palavra muito popular em todas as línguas, o adjetivo "hercúleo", com a
significação de extraordinariamente forte. 38

Notemos que o autor faz referência à outra palavra, neste caso um adjetivo e não
uma interjeição como em Plauto, que também deriva da existência do mito de Hércules.
Proveniente do latim herculeus,-a,-um, o adjetivo hercúleo significa, segundo Houaiss
(2011) “1. Relativo a Hércules; 2. muito forte, muito vigoroso; 3. que exige muito
esforço ‹trabalho›”39. A notação do herói como força e trabalho, como vimos na entrada
do dicionário de língua portuguesa, é intrínseca e, portanto, Lobato não tarda a
contextualizar que Alcides tem em mente para seu enredo:

A principal característica de Hércules estava em ser extremamente forte,


extremamente bruto, mas dotado de um grande coração. No calor das
façanhas muitas vezes matava culpados e inocentes - e depois chorava
arrependido. Disse Anatole France: "Havia em Hércules uma doçura singular.
Depois de em seus acessos de cólera golpear culpados e inocentes, fortes e
fracos, Hércules caía em si e chorava. E talvez até tivesse dó dos monstros
que andou destruindo por amor aos homens: a pobre Hidra de Lerna, o pobre
Minotauro, o famoso leão do qual tirou a pele para transformá-la em peliça.
Mais de uma vez, ao fim dum daqueles feitos, olhou horrorizado para a dava
suja de sangue... Era robustíssimo de corpo e mole de coração."
- Coitado! Tinha coração de banana...
Esta conversa ocorria no Sítio do Picapau Amarelo, entre a boa Dona Benta e
seu neto Pedrinho. E o assunto recaíra em Hércules porque o garoto estivera a
recordar passagens das suas aventuras na Grécia Heroica, como vem contado
no O Minotauro.40

Vemos durante todo o livro que o autor amalgama os mitos de Hércules com o
de outros personagens mitológicos. Na citação a cima, por exemplo, acaba de atribuir a
derrota do Minotauro a Hércules e não a Teseu, como nos é contado por Ovídio no
poema Ariadne a Theseo de sua obra Heroides e é descrito por Thomas Bulfich em O
Livro de Ouro da Mitologia41. Também cria uma amalgama entre a mitologia grega e a
mitologia romana ao alternar constantemente entre nomes gregos e latinos de deuses e
criaturas. Em seguida, Monteiro Lobato, pelo artifício de uma conversa entre a avó e a
neta, resume linearmente os mitos de Hércules:

38
LOBATO, 2005, p. 7.
39
HOUAISS, 2011, p. 496.
40
LOBATO, 2005, p. 7.
41
BULFICH, 2002, p. 189.
34

Narizinho veio pedir à vovó que falasse de Hércules. Dona Benta falou.- Ah,
minha filha, que maravilhoso herói foi esse massa bruta! Era filho de Zeus, o
grande deus lá dos gregos, e de Alcmena, a mulher mais bela da época,
grande como uma estátua, forte, imponente. Mas Zeus era casado com a
deusa Hera, a qual, enciumadíssima com aquele filho de seu esposo na terra,
jurou persegui-lo sem cessar. E assim foi. A vida do pobre Hércules tornou-
se um puro tormento, tais e tais armadilhas lhe armava a deusa. Mas era
defendido por Zeus. Hera armava as armadilhas e Zeus as desarmava - e
assim foi até o fim.42

Dona Benta deixa Narizinho curiosa sobre o fim do herói, e esta pede à avó que
narre suas aventuras até o fim. Nesse momento, a senhora narra a morte de Hércules tal
qual os escritos de Ovídio, mas, de forma mais pedagógica, transforma alguns dos
acontecimentos e traz uma cronologia marcada:

D. Benta contou que depois duma infinidade de aventuras, entre as quais os


famosos Doze Trabalhos, Hércules casou-se com Dejanira, a quem amava
muito. Mas um dia, numa das suas expedições, foi dar nas terras do centauro
Nesso. (...) Parece que Hércules não reconheceu nessa ocasião o seu velho
inimigo, pois tendo de atravessar um rio a nado, pediu a Nesso que passasse
Dejanira. Daí lhe veio a desgraça. Nesso, no meio do rio com a esposa de
Hércules ao ombro, teve a ideia de dar-lhe um beijo à força. Lá da margem
Hércules viu tudo e, tomando uma flecha, zas, espetou-a no coração do
centauro. (...) Nesso ia morrer, mas antes disso teve tempo de dar a Dejanira
um filtro potentíssimo. Quem pusesse no corpo uma peça qualquer do
vestuário respingada com esse filtro envenenar-se-ia e morreria a pior das
mortes. Dejanira guardou o filtro e alcançou a nado a margem onde Hércules
a esperava. (...) Tempos depois Hércules se meteu em nova aventura, na qual
salvou uma linda moça de nome Iole, levando-a consigo à Ilha de Eubéia,
onde havia um altar a Zeus. Lá, querendo oferecer um sacrifício a Zeus,
mandou um mensageiro à sua casa em Traquis, buscar uma túnica. Chamava-
se Licas, esse mensageiro. Era um abelhudo. Em vez de limitar-se a cumprir
a missão, contou a Dejanira toda a aventura e falou da maravilhosa beleza de
Iole, que Hércules salvara e levara para Eubeia. Uma feroz onda de ciúme
encheu o coração de Dejanira, fazendo-a lembrar-se do venenoso filtro de
Nesso. E sabe o que fez? Entregou ao mensageiro a túnica que Hércules
mandara buscar, mas toda borrifada com o tal filtro... (...) Ao receber a
túnica, o pobre Hércules vestiu-a descuidosamente e foi ao altar fazer o
sacrifício a Zeus. Lá chegando, começou a sentir no corpo uma dor horrenda
como se tivesse vestido uma túnica feita de chamas implacáveis. E morreu
torrado. 43

A história contada por Dona Benta fez com que as crianças quisessem ver de
perto as conquistas de Hércules. Para tal, Pedrinho fez uso do pó de pirlimpimpim sobre

42
LOBATO, 2005, p. 10.
43
LOBATO, 2005, p. 11.
35

Emilia, Visconde, Narizinho e ele mesmo, e, em um instante, todos já estavam a avistar


a Grécia antiga. A partir daí, as crianças passam a acompanhar as aventuras de Hércules
e seus Doze Trabalhos impostos pela madrasta. Ao se despedir do herói depois de todas
as aventuras, Pedrinho e Emilia se comovem: “Conheci lá no sítio inúmeros heróis da
Fábula (...). Nenhum se compara a você, Lelé, porque além da maior força você tem o
maior dos corações.”44

Lobato dá a Hércules um ar infantil, quase inapropriado para um herói greco-


romano, se pensarmos aos moldes clássicos. O autor também atribui a ele feitos que não
lhes foram aclamados pela mitologia, como a morte de Minotauro. Claramente, ele se
mune mais da fantasia do que da mitologia clássica para escrever esta obra.

44
LOBATO, 2005, P. 357- 358.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura se revela ao mobilizar sua memória e registrá-la nas obras através do


artifício de constantes retomadas e reescrituras, produzindo, com isso, o intertexto.
Assim sendo, ela manifesta sua habilidade de aludir ao seu acervo interno45. O mito é a
maior comprovação literária de que a “invenção não está vinculada ideia do ‘novo’”46. E
mais, que as ideias e as formas não são elementos fixos e invariáveis. Ao contrário, elas
se cruzam continuamente. Ou seja, tanto Ovídio quanto Plauto e Monteiro Lobato foram
inovadores em sua época e, por isso, acabam por serem lembrados justamente pelas
obras aqui analisadas, mesmo que, em todas elas, haja a retomada de um mito que já na
época de Ovídio era tido como antigo por ter sido importado, por via dos Etruscos, da
mitologia grega.

Ao compararmos As Metamorfoses, Aululária, O Anfitrião e O Sítio do Picapau


Amarelo não passamos a desconsiderar seus períodos históricos e sociais, pois cabia-nos
interpretar a questão mais geral da qual as obras são manifestações concretas: o mito. O
mito de Hércules é o meio que une as obras, mesmo quando elas divergem ou se
confrontam sobre ele. Como vimos ao longo deste estudo, cada autor utiliza a figura de
Hércules com princípios e finalidades distintas. Para melhor exprimirmos os intentos de
cada autor, elaboramos um quadro comparativo que trazemos abaixo.

45
SAMOYAULT, 2008, p. 47.
46
CARVALHAL,1992, p. 54
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Gênero
Obra e autor literário Motivo da obra A figura mitológica

Ressaltar o
As Metamorfoses Poema épico período político Hércules como um herói.
Ovídio em que vivia.

O Anfitrião Tragicomédia Hércules como uma promessa.


Plauto
Não específico.

Aululária Comédia Hércules como divindade.


Plauto

O Sítio do Narrativa Criar uma Hércules como um “grandão de bom coração”.


Picapau Amarelo literatura que
Monteiro Lobato pudesse ensinar.

Apesar de termos iniciado fazendo menção ao poema grego Heracleia, não o


trazemos a nosso quadro bem como a nossos pareceres finais, pois se trata de uma obra
perdida cuja autoria fora atribuída a Peisândro de Rodes, mas cujo texto não pode ser
analisado. Iniciamos, portanto, com Ovídio e seu extenso poema épico As
metamorfoses. Durante toda a obra, fica claro o intento do poeta de retomar as lendas
antigas e, assim como Virgílio, ressaltar o principado de Augusto. Trata-se de uma obra
sobre heróis cujos feitos devem ser rememorados pelo povo romano, como Júlio César,
que se torna divino ao final de sua passagem tal qual Hércules. Por esse motivo, Ovídio
não abrange o lado negativo do semideus, apenas suas façanhas grandiosas e seu caráter
altivo.

Plauto, que vivera muitos anos antes de Ovídio, escreve suas obras aos moldes
dos gregos, mas deixa-se permear por sua cultura e seu povo. Tanto na tragicomédia O
Anfitrião quanto na comédia Aululária a presença de Hércules se dá de forma mais
amena, mais ligada ao místico e à essência humana do homem de sua época. Assim
como suas obras não possuem um pretexto peremptório para sua criação como a do
poeta augustano, também não há para as aparições do semideus. Em O Anfitrião, o filho
de Júpiter torna-se a promessa de novos enredos e tramas. Plauto não fornece muitas
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informações sobre o que o bebê recém-nascido virá a se tornar, isso porque o


dramaturgo se encarrega de comédias e essas só continham personagens comuns e não
heróis. Em Aululária, Hércules já transcende sua figura de herói a da de divindade, ele é
a representação de uma força inumana, um homem de índole irrefutável, o filho do
grande júpiter, o herói dos heróis.

Monteiro Lobato, tal qual os demais, se encontrava em uma situação ímpar em


sua época: não pretendia exaltar os feitos de um povo por seus heróis, nem buscava
entreter seu público aos moldes gregos clássicos, mas procurava criar uma literatura
infanto-juvenil que também fosse pedagógica, que pudesse ensinar. Nestas
circunstâncias, a figura de Hércules teria que ser despojada de todas as características de
caráter que não fossem humanas. Lobato fez mais do que isso na narrativa de Os Doze
Trabalhos de Hércules de O Sítio do Picapau Amarelo, transformando o herói em um
“grandão de bom coração”. O autor justifica Alcides como um homem que não sabe a
força que tem e que possuiu um coração maior do que sua própria representação, uma
vez que aqui Hércules é representado quase como um gigante.

O mito por sua característica de acronologia, não necessidade de ser contado em


ordem cronológica, e por sua característica atemporal é elemento que se envolve com a
natureza humana em suas bases mais primordiais; a figura mitológica,
independentemente da época da obra em que for acolhida, poderá ser eternamente
reutilizada, uma vez que possui o privilégio da flexibilidade. Dentro do texto, o mito
está exposto à relação que a literatura exerce com ela mesma, suas origens e, desse
modo,

se cada texto constrói sua própria origem (sua originalidade),inscreve-se ao


mesmo tempo numa genealogia que ele pode mais ou menos explicitar. Esta
compõe uma arvore com galhos numerosos, co um rizoma mais do que com
uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto
horizontais quanto verticais47.

Mas os mitos também transpõem o âmbito literário, de onde foram formatados


depois de criados pela tradição oral, baseada ou não em personagens históricos,
passando a ter vida própria dentro da memória cultural, sendo empregados nos mais

47
SAMOYAULT, 2008, p. 9.
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variados tipos de discurso. O mito de Hércules faz parte dessa memória mais ampla
dentro da literatura: a mitologia literária. Não a mitologia que costumamos atribuir a um
povo ou a etnias, não a mitologia grego-romana, por exemplo, mas a mitologia literária
que não pertence apenas a sua cultura de origem e sim a todas aquelas que retomem um
mesmo mito.
REFERÊNCIAS

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