M T, B C R M: Maria Paula G. Meneses Depto de Arqueologia e Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique

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1

Maria Paula G. Meneses


Depto de Arqueologia e Antropologia,
Universidade Eduardo Mondlane – Moçambique

MEDICINA TRADICIONAL, BIODIVERSIDADE


1
E CONHECIMENTOS RIVAIS EM MOÇAMBIQUE

Este texto constitui um primeiro ensaio sobre a temática da medicina tradicional,


da biodiversidade, e dos conhecimentos rivais, cuja pesquisa tem vindo a ser
desenvolvida em Moçambique no âmbito do projecto CES/MacArthur “Reinventar a
Emancipação Social”.2

I. Introdução

A flora moçambicana, tal como acontece na maioria dos países de tropicais, é


imensamente rica em plantas medicinais uma parte das quais é conhecida desde há
muito e das quais os princípios activos foram já isolados ou sintetizados, fazendo parte
da farmacopeia dos países industrializados onde são vendidas a altos preços (ex.:
Silva, 1810; Gomes de Almeida, 1930; Watt e Breyer-Brandwijk, 1962; Secção de
Nutrição, 1981; Jansen e Mendes, 1983-94; Sumbe, 1991).
Todavia, a medicina tradicional não pode ser avaliada apenas enquanto plantas
tradicionais; várias outras componentes sociais, emocionais, simbólicas estão
presentes, o que faz com que na actualidade, os médicos ditos “tradicionais” continuem
a ser procurados, não só nos meios rurais onde o alcance do Serviço Nacional de

1
Esta parte final do texto beneficiou enormemente das discussões havidas com Boaventura de Sousa
Santos, durante a elaboração do texto, bem como durante a apresentação do mesmo em Coimbra.
Gostaria ainda de agradecer a discussão havida com os estudantes do curso de Mestrado de Sociologia
da Faculdade de Economia da U. Coimbra, que me chamaram a atenção para vários aspectos que
enriqueceram o texto. A Teresa Cruz e Silva o meu obrigada pela apresentação a vários terapeutas
“tradicionais”; a Nanette Barkey, o meu obrigada pelas discussões iniciais sobre o tema.
2
Sob coordenação de Boaventura de Sousa Santos. Para mais informações sobre o projecto, veja-se a
página do mesmo, no seguinte endereço http://www.ces.fe.uc.pt/emancipa/
2

Saúde (SNS) é mais reduzido, mas também nos contextos urbanos.3 Isto obrigará a um
desvio pelo campo interpretativo do próprio conceito de saúde, da evolução da própria
“medicina tradicional” face a outras formas alternativas de tratamento e cura que foram
surgindo (veja-se também os trabalhos de Pina, 1940; Swalbach e Swalbach, 1970;
Augé & Herzlich, 1984; Schoffeleersw, 1991; Janzen, 1992; Honwana, 1996).
Os resultados que aqui apresento são fruto da pesquisa a decorrer na região sul
de Moçambique, na zona da cidade e província de Maputo, conforme a Fig. 1.

.
Área do estudo
mencionado no texto

O questionar da relação dicotómica entre saberes locais e globais, vistos


através do prisma da evolução da medicina “tradicional” é o foco principal de análise
da pesquisa em curso.
O ponto de partida das análises realizadas sobre biodiversidade apresenta os
sistemas de conhecimentos modernos, como o caso da biomedicina, como formas

3
Questões de ordem financeira também não explicam totalmente esta situação, na medida em que as
consultas a muitos dos terapeutas praticantes da bio e da etnomedicina são cobradas.
3

globalizadas de imposição de saberes e apropriação dos saberes do “Outro” (ex.: Pratt,


1992; Wynne, 1994; Nathan & Stengers, 1995). Assim, e para evitar o que alguns
autores têm vindo a apelidar de epistemicídio (Santos, 1998a:208), a morte deste
conhecimento local perpetrada por uma ciência alienígena, cada vez mais se chama a
atenção para a necessidade de conceder a esta forma de conhecimento a consciência
de poder. Todavia, uma questão se nos coloca: O que é conhecimento legítimo e na
óptica de quem?

II. A “medicina tradicional” em Moçambique


• Porquê tradicional?

Em Moçambique, na maioria dos trabalhos abordando a temática da


biodiversidade e o papel da “medicina tradicional”, o discurso predominante confere à
ciência moderna um estatuto hegemónico de conhecimento, reforçado com o estatuto
de “saber oficial”, reproduzido e transmitido através de vários instrumentos.4 Pelo
contrário, às formas de conhecimento nativas, locais, é atribuído um carácter
secundariamente situacional (ex.: Swalbach & Swalbach, 1970; Tsenane, 1999;
Instituto Nacional de Estatística, 1999; Frelimo, 1999; Martins, 19995).

A hipótese alternativa que gostaria de apresentar está centrada no argumento


de que as formas e as práticas de saber ditas “tradicionais” são quem realmente detêm
o estatuto de saber legítimo, e por isso é questionável a tentativa actual de promover a
sua emancipação em relação a outras formas de saber, especialmente em relação à
ciência moderna.
As rivalidades de saber, com um valor activo, reflectem a presença de distintas
formas de poder (Santos, 1995), contribuindo para o questionar constante de uma
realidade afinal composta de tantas realidades paralelas (Nathan & Stengers, 1995),
que frequentemente se cruzam e interpenetram.

4
Distintas Faculdades nas Universidades, através de organismos estatais, etc.
4

O que se observa é que a construção de um projecto de modernidade exigiu a


“recriação”, através de mecanismos vários, do nativo tradicional, i.e., recorrendo ao
“tradicional” pela diferença e pela fixação “local” destes saberes. O confronto em torno
da apropriação de espaços de poder político pelo Estado colonial exigiu a recriação da
tribo como forma de conhecimento colonização, onde o saber passa a estar
territorializado, sem circulação permeável (ex.: Lienome, 1844-1894; McLeod, 1860;
Junod, 1952; Santos Reis, 1952; Polanah, 1967-68; Muthemba, 1970; Batalha, 1985). A
sabedoria local, identificada a uma tribo, etnia, comunidade passa pois a deter um
estatuto epistemológico especial, local e não emancipatório, porque para o ser, precisa
de ser reconhecido sob a forma de descoberta, i.e., implica que se redescubra o “nobre
selvagem” (veja-se as discussões sobre o tema, como por exemplo em Alcorn, 1994;
Harries, 1994; Barth, 1995; Li, 1996; Béteille, 1998; Mappa, 1998; Santos, 1999).
De facto, historicamente o que se observa é que a concepção e a produção do
indígena, no discurso colonial6 resultou na criação de uma paisagem onde o “Outro”
deixa de deter o sentido do “Mesmo” - apreciado pelas sua especificidade, para ser
inscrito, localizado na paisagem, detendo o mesmo valor que um árvore, um animal
(Pratt, 1992). As imagens reproduzidas na Fig. 2 ilustram claramente a viragem na
percepção do “Outro”, porque importava construir uma paisagem para ocupação,
assumindo o princípio de “tabula rasa” em relação aos saberes e interpretações locais.
Em simultâneo com a despersonalização da paisagem, com a criação de paisagens
vazias, o actor local transforma-se num indígena, em alguém sem “cultura”, “entregues
ao puro primitivismo”, sem valores civilizacionais ocidentais, alguém a quem importa

5
Entrevista realizada a Hélder Martins (15/03/00), o primeiro Ministro da Saúde em Moçambique.
6
Em Moçambique, esta situação surgiria mesmo no início do séc. XX, com a fixação do indígena, do
negro, ao seu local de origem, exigindo-se para a sua movimentação e controle a posse de
documentação emitida pela Curadoria dos Negócios Indígenas. A posse da caderneta indígena que
surgiria praticamente na mesma altura, só seria extinta como elemento desqualificador, já nos anos 60.
Ser-se "indígena" significava ser-se “não civilizado”, sem direito, até inícios da década de 60, aos
benefícios inerentes à categoria de “assimilado” (ex.: Honwana, 1985), ou seja, aquele que tinha
interiorizado os valores civilizacionais trazidos pelo sistema colonial. Daqui o extraordinário sentido
pejorativo do termo em Moçambique, bem como do termo “nativo”, que, embora com conotações mais
suaves, remete ainda para um passado muito próximo, de forte intensidade conflitual no que refere ao
desenvolvimento do sentimento de pertença a uma nova unidade, fortemente desenvolvida pelo sistema
colonial – a tribo. Todos os membros das tribos – i.e., povos nativos, poderiam ascender à categoria de
assimilados, desde que conseguissem demonstrar que tinham absorvido o sistema normativo colonial,
assumido como o único civilizado.
5
6

“ensinar”, abrir as portas ao saber científico, à civilização (ex.: Noronha, 1894; Pina,
1940; Santos Reis, 1952; Polanah, 1967; Rita-Ferreira, 1967-68).

Seria assim, ao se produzirem os indígenas como elementos de fundo da


paisagem que se realiza a fundamentação ideológica da acção da descoberta,
produzindo-se os elementos legitimizadores da subordinação. Ao ser desqualificado
como o Outro, como local, parte dos recursos, o indígena passa a ser diferente, porque
é inferior. Os documentos apresentados nas Fig. 3 e 4 são ilustrativos da tentativa do
Estado colonial de desqualificar o conhecimento do “Outro”. Em simultâneo, ao ser
construído como Outro, como “selvagem”, como indígena sem civilização, com saberes
secundariamente situacionais, os conhecimentos sobre as práticas de tratamento são
reduzidos a distintos componentes, ganhando especial realce o seu carácter exótico, a
componente artística (Silva Tavares, 1948; Santos Reis, 1952), onde apenas o
sagrado, o simbólico têm interesse (ex.: Junod, 1952; Polanah, 1967, 1967-68).
A compartimentalização de saberes e da reconstrução da paisagem vão permitir
a apropriação por parte do sistema colonial, dos princípios farmacológicos de vários
produtos, omitindo-se os actores intervenientes nesse processo, como se nunca
tivessem existido. Com efeito, vários são os exemplos que atestam o reconhecimento
do valor dos terapeutas locais, quer das capacidades curativas da farmacopeia
desenvolvidas em Moçambique (ex.: Silva, 1810; Gomes de Almeida, 1930; Pina, 1940;
Santos Reis, 1952; Miranda, 1954; Xavier, 1954; Xavier, 1954; Montaury, 1955).

“entre as raizes que esta Affrica tem com medicinal virtude... porém são tão
avarentos, e faltos de piedade os Nacionaes que he impossivel, nem com dadivas,
ou ameaços, declararem as raizes, os seus segredos, com tudo não tem duvida para
qualquer enteresse aplicalos aos necessitados, porem com humas ceremonias tao
rediculas e dignas de rizo, que fazem perder a fee aquem delas podia esperar seu
ultimo remédio” (Miranda, 1766 (editado em 1954)),

ou ainda a resposta do Conselho Ultramarino a propósito da falta de médico para o


Hospital da Vila de Massangano – Tete (Lisboa, 21 de maio de 1703, citado em Pina,
1940):
7
8
9

“que se deue ordenar que se repare, e ponha em estado de que se posão curar
nelle [hospital] os soldados que vão a ele e que estes se curem com remedios da
terra por que muitas vezes mostra a experiencia que assim livrão melhor dos
perigos, do que se fossem curados com a arte q se reconhece que he impossivel
hauver Cirurgioes nem Medicos que possão mandar para aquellas Conquista
volutariamente”.

Ao se localizar o saber, e posteriormente restringir o conhecimento apenas ao


seu conteúdo simbólico, as comunidades ganham uma aura de exotismo, possuindo
interesse como mercadoria para o turismo étnico, para estudo antropológico desta
diferença (veja-se a Fig. 5). Ao identificar o saber local com o “sagrado” desvia-se o
foco da acção para longe dos autores, ao mesmo tempo que se reinscrevem
continuamente as barreiras entre o Mesmo e o Outro, barreiras estas que sustentam o
conhecimento como colonização (Santos, 1995; 1999).

Quer como investigadores, quer como pessoas, não é possível escapar à


dialéctica da similaridade e da diferença (Narayan, 1993), o que resulta num problema
epistemológico – o que é que se representa e para quê? A antropologia é o estudo do
outro, da diferença. Mas será que esse outro existe ou somos nós que o criamos
através dos nossos estudos, que o construímos? Independentemente do aumento de
um conhecimento positivo sobre o outro, o que se verifica frequentemente é a
emergência de uma dicotomia quase que hostil, onde a oposição entre medicina e
magia (ex.: Rita-Ferreira, 1967-68; Swalbach & Swalbach, 1970), é reinscrita através da
divisão entre biomedicina e etnomedicina, também chamada de medicina tradicional
(ex.: Batalha, 1985). O que é penoso, é que esta dicotomia se reinscreve na oposição
nós/outros, oposição esta binária e etnocêntrica (Goody, 1979:35; Barth, 1995).

Esta questão é reflexo e reforça igualmente o reconhecimento do carácter


hermenêutico do próprio conhecimento (Santos, 1995). As nossas perspectivas sobre o
conhecimento e o seu significado são induzidas pelos modelos racionais de decisão do
social, obrigando-nos constantemente a um exercício de reflexão sobre a natureza
10
11

cultural da ciência, especialmente as indefinições do conhecimento que as perspectivas


culturais devem ser capazes de apreender (Copans, 1990; Wynne, 1994; Gentili, 1999).

A reflexão que aqui se desenvolve procura perceber as razões pelas quais a


medicina em Moçambique cujas raízes se podem encontrar no período pré século XX,
é hoje definida como “medicina tradicional”, com os seus fitoterapeutas, adivinhos,
curandeiros, sendo-lhe por isso mesmo atribuído um espaço secundário, não só pelas
autoridades coloniais, mas também pelas autoridades nacionais, no período pós-
independência (Castanheira, 1979; Secção de Nutrição, 1981 – veja-se a Fig. 6). Mas
desde há algum tempo que assistimos a um processo de reconhecimento oficial e
mesmo de avaliação científica destas práticas de cura e tratamento, i.e., a uma
revalorização da “medicina tradicional” (Frelimo, 1999; Tsenane, 1999).

Assim, a procura de uma definição de “medicina tradicional”, para além da


diversidade e da heterogeneidade das práticas terapêuticas está inscrita na ordem
social resultante do processo de colonização do próprio saber – o que constitui estas
práticas em objecto, é simplesmente a negação do reconhecimento pelo Estado e seus
organismos;7 neste sentido, a “medicina tradicional” constitui um conjunto heteróclito de
práticas e saberes negativamente delimitados.

A partir de finais do séc. XIX, i.e., durante o período colonial, a medicina


tradicionalizada e a farmacopeia passaram a ser consideradas essencialmente como
não saberes, ou como saberes superficiais e supersticiosos e de índole folclórica.
Assim, a “medicina tradicional” foi reduzida, às práticas ditas:
a) obscurantistas i.e., à capacidade de influenciar a sorte de outras pessoas,
inclusivamente de provocar o mal, o que iria conduzir a uma desqualificação
através de vários mecanismos deste terapeuta (Junod, 1952; Rita-Ferreira,

7
Ministérios, Faculdades de Medicina, etc.
12
13

1967-68; Castanheira, 1979), quase ou mesmo por vezes identificando a


personagem do curandeiro à do feiticeiro (ex.: Cruz, 1910; Pina, 1940).

"O feiticeiro não oferece nada de extraordinário. É um preto como os outros, da


mesma categoria social, e tão sabido como eles, tendo apenas a esperteza bastante
para se impôr à sua consideração, incutindo-lhes um respeito misterioso por seus
processos clínicos, faculdades divinatórias e recursos para resolver várias
dificuldades da vida [mas] segundo parece,ele possui o segredo de algumas plantas
medicinais e de outras específicas e uma longa prática que lhe dá às vezes bom
sucesso na cura de certas enfermidades, mas em geral não passa de um intrujão."
(Cruz, 1910:140)

Este facto, seria parte do processo de conhecimento colonização, quando


importava demonstrar o carácter inferior do Outro, do africano que deveria ser
colonizado.

Todavia, para este período agora sob análise – primeira metade do século XX - a
situação não difere significativamente da reportada alguns anos antes em Portugal,
onde um trabalho sobre as práticas e praticantes curativos em Portugal (Pina, 1929)
afirmava:

“Para o [povo português] a doença é um demónio negro que lhe aparece (…)
As doenças chegam-se à gente de todas as formas, por todos os feitios: - aqui, um
tuberculoso pulmonar com o diagnóstico de «chupado das bruxas»; ali, uma
desgraçada histérica cujo mal deriva única e indiscutivelmente dum demónio, dois
demónios, até uma legião de demónios que do seu malfadado corpo fizeram ninho;
acolá, um sifilítico terciário, um coreico, um paraplégico, um hemiplégico, um
paralítico geral a quem o Tranglo-Mango, nem mais nem menos, escadraçou os
ossos, roeu os nervos, devorou as carnes; ou, então, um mal de Pott, um torcicolo,
uma cefalgia que foram – deixem lá falar os doutores das Escolas – o efeito dum
arejo, dum mau ar, dum mau olhado. E por aí fora, um nunca acabar de diagnósticos
certeiros, lista sem fim de estranhas etiologias, e, quanta vez, de criminosos
prognósticos! O Diabo, as Bruxas, as Mouras, os Bichos peçonhentos imaginários,
as Almas Penadas, o ar das Trindades, os Lobisomens, os feiticeiros, os Corpos-
abertos, o mau olhado, o Quebranto, o Enguiço, as beberagens, e mais, e mais (…)
imaginação popular, no que respeita à perda da sua saúde, ou à cura das suas
moléstias”.
14

b) e ao seus aspectos folclóricos, ao objectos simbólicos que identificavam os


curandeiros (Polanah, 1967; 1967-68) esquecendo-se ou oprimindo-se, o seu
valor como forma de saber (Guénais & Mayala, 1988).

De referir contudo que em várias zonas de Moçambique, e mesmo durante a


época colonial, não raro era ver os próprios colonos a consultar um terapeuta local,
quer para resolver certos problemas de saúde, quer para alcançar soluções para
problemas ligados à vida quotidiana ("pouca sorte", mortes súbitas, problemas com a
família, no trabalho, sorte nos negócios, etc.), ou ainda para obter remédios.

Hoje, Moçambique, tal como vários outros países do continente africano,


preconiza na política do seu governo (2000-2004) a valorização da “medicina
tradicional” associada à medicina moderna. Com efeito, o plano do actual governo
defende (Frelimo, 1999:16), em termos de objectivos e campos de actuação, na área
da saúde e acção social.
“promover atitudes, princípios e práticas preventivas contra as doenças, melhorando
e aumentando o acesso à assistência médica, através da melhoria da qualidade e
aumento da disponibilidade dos serviços de saúde O governo da Frelimo,
reconhecendo o papel importante que é desenvolvido pela medicina tradicional,
principalmente nas zonas rurais, irá desenvolvendo mecanismos adequados de
colaboração com os seus praticantes, tendo em vista a sua utilização de forma mais
segura pela população”.

No prática, isto significa que o controle da actuação é realizado pelo governo,


que se outorga legitimidade para utilizar esse conhecimento como complemento
secundário às suas actividades, e não como elemento simétrico, paralelo a outros
saberes, como o caso do conhecimento científico.

Trata-se de uma novidade, pois que em Moçambique, quer durante o período


colonial, quer durante as primeiras décadas pós-independência, as autoridades
políticas e médicas estiveram engajadas em políticas de saúde que visavam prevenir e
curar doenças, sem grande preocupação pela “medicina tradicional”, salvo na medida
em que esta poderia constituir uma fonte de exploração de substâncias naturais
15

(Serviço de Nutrição, 1981; Ferraz, 20008). Com efeito, na segunda metade da década
de 70 seria criado o gabinete de Estudos de Medicina Tradicional, junto ao Ministério da
Saúde, o qual definia a “medicina tradicional” como "o conjunto de conhecimentos
empíricos, desorganizados, deturpados do seu conteúdo pelo processo da transmissão
oral, e muitas vezes revestidos de práticas obscurantistas, tais como ritos, etc." (Serviço
de Nutrição, 1981:3). Assim, este gabinete assumia como sua tarefa não a utilização
dos terapeutas como tal, mas como objectos detentores de informação, ao afirmar que
era necessário “depurar os conhecimentos existentes de todas as ideias obscurantistas
de que geralmente se encontram impregnados e assim promovê-las a conhecimentos
científicos, a fim de os utilizar em benefício de todo o Povo" (ibidem, 1981:5). Tal como
Martins9 refere, o projecto do Ministério da Saúde pretendia recuperar o conhecimento,
mas não o homem, o detentor de um saber descrito como “obscurantista” (veja-se
igualmente Castanheira, 1979 e a Fig. 6).
Novidade ou ruptura, do discurso político actual transparece a ideia de que urge
melhorar a saúde do povo através de processos endógenos de desenvolvimento, o que
requer a mobilização dos saberes e competências disponíveis, especialmente num país
onde a população médica “oficial”, diplomada no sentido biomédico é
extraordinariamente baixa

Número de Curandeiros População da cidade

Anos exercendo em Maputo (africana)

1967-6810 ± 1000 (60% mulheres) ≈178.000

1988-9111 < 2000 ≈ 1,5-2.000.000

A assistência hospitalar da medicina moderna está à razão de cerca de 1


médico para cada 52.000 habitantes (dados estatísticos referentes a 1990-94).

8
Comentário de Bernardo Ferraz durante o encontro organizado pela WWF sobre jornalismo e meio
ambiente, realizado em Maputo em Março de 2000.
9
Veja-se a referência anterior a esta entrevista realizada a 15 de Março de 2000.
10
Dados recolhidos de Rita-Ferreira, 1967-68.
16

Assim, embora seja este a explicação utilizada pelo Estado para legitimar o
seu interesse pela medicina dita tradicional, ela não é suficiente para explicar as
ambiguidades subjacentes que pesam quer sobre a noção de valorização da
“medicina tradicional”, quer sobre as experiências práticas que são recomendadas.

• O que significa estar de boa saúde?

As práticas de tratamento presentes em Moçambique e que hoje se


designam de “medicina tradicional” assentam no pressuposto de que estar de boa
saúde significa realizar em si mesmo um equilíbrio necessário, estar em paz com os
antepassados, com os vizinhos, com o próprio corpo (incluindo a higiene); estar
convenientemente alimentado (o que na actualidade inclui ter emprego que garante
o sustento) e protegido de males, sejam estes naturais ou “enviados”.
Se esta situação se altera, quer devido a um jogo de forças mais forte que o
indivíduo, quer por não ter cumprido os rituais necessários, o indivíduo e/ou o seu
grupo cai doente e deve fazer tudo para se identificarem não só os sintomas
somáticos da desordem social, mas procurar as causas do mal, da poluição que
está acontecendo. O processo de cura (e aqui há que distinguir tratamento – meios
de resolver o problema, e a cura em si, i.e., a resolução do problema) é duplo, quer
pela ajuda para voltar a restabelecer o equilíbrio físico, quer no lado psicológico e
emocional, visando ultrapassar as sanções que caíram sobre o indivíduo, fruto da
não observância das normas estabelecidas. Neste caso, o doente ou a família
chama o médico, o terapeuta em quem confia, o qual, com o seu saber,
diagnosticará o mal e prescreverá um tratamento quer fitoterapêutico, quer outro, ou
ainda, em muitos casos, o envia aos serviços de saúde oficiais, i.e., aos médicos
comuns.

11
Dados do Jornal Domingo, de 13/01/91.
17

Isto significa que não se pode estudar a medicina moderna sem a tradicional
e vice versa, i.e., sem uma análise da relação entre as duas não é possível
reconstituir esta separação.

Na prática, o quadro da saúde pública desenvolvido pelo Estado


essencialmente após a independência, coloca um ênfase especial no sector
preventivo, tentando, através dos chamados “cuidados de saúde primários”
trabalhar em profundidade com a maioria da população do país, rural ou peri-
urbana, através do estabelecimento de uma vasta rede de unidades e de agentes
sanitários de base capazes de prestar cuidados de saúde elementares, bem como
de promover a saúde pela educação e pela melhoria das condições de higiene. O
resultado de tais políticas depende em primeiro lugar da participação das
populações a quem se destina tal política. É por isso que a OMS (1978) tem vindo a
recomendar desde inícios dos anos 80 a inclusão dos “praticantes tradicionais de
saúde”. Com efeito, uma vez que esta política concebe as populações como
parceiros desta campanha, e não apenas como elementos passivos de recepção,
torna-se necessária a recuperação dos elementos que desde há muito se
encontram directamente ligados a tais práticas dentro das comunidades – os
terapeutas locais, o que no sul de Moçambique equivale a referir:
a) os vanyamusoro (curandeiros com espíritos)12
b) os tynhyangarhume (fitoterapeutas)
c) as parteiras tradicionais
por forma a criar um clima de confiança que viabilizasse a boa consecução destas
políticas.
Esta estratégia inscreve-se igualmente na procura de alternativas locais de
desenvolvimento, visando alterar a exportação unilateral (Norte- Sul) de tecnologias e
saberes, de modelos impostos sem se ter em linha de conta as realidades locais, ao

12
De referir que o nyamusoro não escolhe ser terapeuta – ele é escolhido pelos espíritos para ser o
veículo do conhecimento que estes espíritos detêm, conhecimento este que precisa ser "aberto",
explicado, depois de um processo de aprendizagem (normalmente 1 a 3 anos) junto de um mestre de
mérito reconhecido pelos próprios espíritos. São os próprios espíritos - psikwembo - quem se encarrega
de conduzir o futuro aluno - twasana - até ao mestre seleccionado.
18

mesmo tempo que se mobilizam os recursos locais para a procura de soluções mais
apropriadas, muitas vezes mesmo reivindicando-se os valores africanos (ex.: Comaroff,
1988; Janzen, 1992; Mappa, 1998) para os pôr ao serviço da construção de uma nova
sociedade, i.e., conforme foi palavra de ordem durante longo tempo “contando com as
próprias forças”.

• As parteiras tradicionais

Um dos exemplos da tentativa de combinação da biomedicina com as práticas


locais é o caso das “parteiras tradicionais”. Tratou-se da utilização vantajosa de
controlar uma situação normal – a parteira é normalmente uma senhora idosa, querida
na aldeia, com filhos e experiência em cuidados pré e pós parto - a quem é dada uma
formação para melhorar as condições de higiene durante o parto e diminuir a
mortalidade, mais do que a própria valorização da “medicina tradicional”. Elas ajudam,
mas, não sendo parte do Sistema Nacional de Saúde, não possuem ordenado, nem
estatuto; mais ainda, ao serem identificadas pelo SNS como tal, este passa a controlar
as suas actividades, comprometendo mesmo a sua identidade como parteira, pois que
a partir de então ela não é mais a dona do jogo, mas parte de um sistema a quem se
subordina.
Apesar do Estado e organizações internacionais como a OMS apelidarem estas
estratégias de valorização da “medicina tradicional”, estas políticas significam apenas
uma valorização na medida em que estas representam dinamismos e pontos de apoio
ao poder deste Estado. Apelidar esta atitude de valorização do saber local é bastante
questionável….
19

• Sobre a medicina tradicional em si – diagnósticos, cura, etc.

Antes de iniciar a discussão sobre a adaptação “antropofágica” da “medicina


tradicional” em relação a outras práticas terapêuticas, necessário se torna caracterizar
em traços muito gerais a estrutura de diagnóstico e tratamento presente no sul de
Moçambique.

Em relação ao diagnóstico, o médico tradicional inicia a sessão ganhando a


confiança do doente com conversa sobre a sua saúde, interrogando-o a si e à família,
sobre a vida, sobre os negócios, a família, antes de ir aos problemas e aos distúrbios
físicos. Depois examina-o fisicamente, apalpando-o, observando os movimentos,
vendo-lhe os olhos, as mãos, etc.
Mas o diagnóstico nem sempre é fácil, e para isso existem dois processos
etológicos: através da adivinhação e do “cheiro”. Isto porque as doenças, as
enfermidades podem ser simples, i.e., aquelas que passam logo, como uma
constipação, uma dor de barriga por a comida não estar boa, e as complicadas,
complexas, que requerem um tratamento muito mais meticuloso e por vezes
envolvendo toda a família e mesmo a comunidade - o meio onde o doente está
integrado - pois que as dimensões físicas e psicológicas das doenças estão ligadas.
Aqui, é necessário procurar saber as raízes da dor, as causas dos problemas,
do mal total.

Especialmente a partir do séc. XVIII a medicina ocidental sofre uma mudança


radical. Pela primeira vez, o conhecimento médico adquire uma precisão que o
aproxima da “mecânica” de outras ciências, como a física e a matemática. A partir de
então o corpo humano tornou-se algo que era possível ser mapeado e a medicina
tornou-se uma ciência racionalista, sujeita a leis gerais de funcionamento do corpo
humano, promovendo ao mesmo tempo a separação da componente psíquica da
componente corporal (ex.: Augé & Herzlich, 1984; Foucault, 1994; Nathan & Stengers,
1995). Em relação às doenças, a sua taxonomia passa a estar sujeita a novos critérios
20

de classificação, cuja base ainda hoje é utilizada, i.e., assenta na definição das
diferenças que separam as várias doenças, i.e.,
a) a identificação das patologias características de cada uma
b) e o que distingue uma doença das outras (i.e., a construção de categorias gerais
desta diferença).
Isto significa, em termos de diagnóstico, que o corpo do paciente passa a estar
reduzido a uma série de elementos identificáveis a vários níveis que são feitos coincidir
com o “cardápio das doenças”, semelhantes nos vários pacientes.

Com a “medicina tradicional”, o sistema é distinto. O médico é apenas o


medianeiro de uma crise resultante da não observância de determinadas normas, o
intermediário entre o indivíduo com problemas e as causas desse problema (ver
igualmente Bayart, 1989; Schoffeleersw, 1991; Janzen, 1992; Honwana, 1996). Daqui a
premência em recorrer à adivinhação e à procura, à “visualização” por formas não
habituais no mundo moderno, da fonte do problema.
a) A adivinha - kutlatuwa - é o auxiliar principal de diagnóstico (com o auxílio dos
tilholo13, aos quis se fazem perguntas, e onde os movimentos e posições
correspondem às respostas), pela influência que esta forma tem sobre o doente
ou a família.
b) Uma outra forma de procura do problema é realizada pelo cheiro - "kufemba",
quando os espíritos tomam posse do corpo do curandeiro (identificando pelo
faro/cheiro a causa do mal), e "falam" usando o seu corpo, sendo traduzidos com
o auxílio do nyawhuti - o ajudante, o intérprete das palavras dos espíritos
possuindo momentaneamente o corpo do nyamusoro.14

Nzo ku nuwetela (“estou a cheirar”), resulta em kutsumula, i.e., em espirrar, o


que significa que foi identificado o espírito mau que está a prejudicar o paciente, e que
é preciso expulsar.

13
Ossículos divinatórios.
14
São também tarefas do nyawhuti auxiliar na procura de plantas e outros produtos medicinais (minerais,
animais - gordura, pele, etc.), apoiar nas cerimónias de tratamento, etc.
21

O “médico tradicional” joga com o comportamento dos pacientes e dos presentes


estabelecendo-lhes tal ligação e confiança psíquica que terminam por informar sobre as
causas profundas dos males que afligem o paciente15. Como estas doenças são
fenómenos sociais, as curas exigem a descoberta das causas reais que estão por
detrás dos sintomas físicos, prescrevendo o tratamento para solucionar o problema. A
partir do momento em que a fonte do problema e a sua potencial solução foram
identificados, as manifestações corporais têm também de ser tratadas. Por isso os
vanyamusoro são adivinhos e médicos, incluindo constantemente na sua prática uma
função dupla: a social e a física do problema, para alcançar a cura. Isto significa que
aliviar os sintomas implica a eliminação da fonte do problema, algo que o hospital
moderno não consegue alcançar.
Aqui, o médico tradicional transforma-se no medianeiro da crise, crises estas que
podem ser fruto de:
a) uma manipulação errada da relação com o meio.
A estrutura destas comunidades é reflexo de um sistema hierarquizado e
complementar do universo complexo de ligações, onde os espíritos, os
antepassados, surgem como parte integrante do quotidiano da comunidade,
assegurando a manutenção das afinidades no seio do grupo, em suma, mantendo
o seu papel de actor social. Estes "actores não físicos" desempenham um duplo
papel, ao actuarem simultaneamente como forças tutelares do grupo e como
guardiães das tradições, como "juizes" na observância das possíveis infracções
às normas locais. Esta estrutura constitui o núcleo do sistema em torno do qual se
desenvolve a interacção do ser humano com o meio em que está integrado. A não
observância de certas normas durante o plantio, a poluição pela práticas de actos
sexuais em locais não autorizados, bem como, por exemplo, a poluição do meio
através de corpos não enterrados segundos os preceitos, pois que as suas almas
continuam errantes, provocando acidentes, doenças, etc. neste sentido, rituais
têm de ser feitos para que os mortos descansem e fiquem parte do universo mas

15
Com efeito, a identificação do problema por parte do paciente - com a ajuda do terapeuta tradicional - é
condição sine qua non para o sucesso do processo de cura.
22

sob a forma de espíritos apaziguados, em paz com a comunidade de onde são


originários;16
b) resultado da acção dos antepassados - estes espíritos asseguram a protecção
dos maus olhados, das doenças, das feitiçarias, mas podem trazer problemas se
não forem tratados de acordo com as regras, mostrando assim o seu desagravo.
Uma delas resulta da falta de realização de tinhamba, das “missas tradicionais”;17
c) provocado por feitiçaria - xipoko, nyamukwasane, os valoy – espíritos que
manipulam intencionalmente os médicos e os remédios para provocar o mal. São
normalmente elementos considerados anti-sociais, pois mostram categorias
negativas, como inveja, ciúme, vingança, e intenções más. Os tinyanga e
especialmente o nyangarhume actuam contra estes, embora por vezes seja difícil
identificar e distinguir quem é curandeiro e quem é um feiticeiro (ver também
Geschiere, 1996; Honwana, 1996; Englund, 1996; Mappa, 1998). 18 Com efeito, o
discurso sobre a feitiçaria é extraordinariamente ambíguo (situação esta não
exclusiva a África - Geschiere, 1995), embora neste continente a feitiçaria seja um
espelho privilegiado para avaliação da manipulação do “tradicional” no jogo de
inserção na modernidade.

Seria esta característica de actuar como medianeiro na resolução de problemas


que levou, em grande medida, o Estado a tentar controlar estes terapeutas através da
criação de associações.

16
Sendo exemplo destas situações a guerra civil que Moçambique atravessou durante os anos 1980-90,
bem como a crise resultante das cheias dos grandes rios em Moçambique, como o Limpopo e o Save,
factos estes que resultaram em inúmeras mortes “por enterrar”, por colocar junto aos seus,
restabelecendo o ciclo das ligações.
17
As quais asseguram a manutenção dos ancestrais entre a comunidade, o renovar do respeito que se
lhes deve.
18
Não só porque esta avaliação dependerá da perspectiva de quem está envolvido na situação (se
causador/provocador ou alvo/vítima da situação); mais ainda, os únicos juizes isentos são os espíritos,
que poderão “castigar” até com a morte os feiticeiros. Assim, quando um mal ocorre repetidamente numa
comunidade, é frequente recorrer-se a um nyamusoro trabalhando com espíritos fortes, para que consiga
não só identificar o “feiticeiro”, como também para neutralizar a sua acção, se necessário aniquilando-o.
Este assunto será de novo tratado mais adiante.
23

• A AMETRAMO19

A AMETRAMO20 é a primeira associação de “terapeutas tradicionais”, fundada


em 1991. De imediato se nota que a “medicina moderna” não está representada
nesta associação, embora seja sobre patrocínio do Ministério da Saúde (através do
Gabinete de Estudos da Medicina Tradicional) que se opera este sincretismo, o qual
tem por objectivo colocar sob seu controle e garantia estes terapeutas.
Um dos objectivos desta Associação é a verificação da capacidade “científica”
dos seus futuros membros, pois que “é necessário encontrar critérios que tornem
possível reconhecer os verdadeiros curandeiros de entre os inúmeros charlatães”.21
A partir do momento em que o candidato a membro satisfaz os requisitos (i.e.,
demonstra ser capaz de curar com exemplos) passa a poder afirmar que é membro
desta Associação e a utilizar o símbolo da mesma no seu receituário, etc.
Na altura da sua criação, reclamar o reconhecimento da “medicina tradicional”
significava reforçar a sua legitimidade, a sua força de existência, apelidada pelo
Estado de práticas obscurantistas. O que se verifica aqui é uma situação paradoxal:
a réplica do papel duplo jogado pelas Faculdades de Medicina e pelo Estado,
imitando o trabalho experimental da ciência e o trabalho jurídico do poder. À medida
que a legitimidade tradicional estava cada vez mais ameaçada pelos projectos de
modernidade do governo, maior era o sentido de necessidade de reconhecimento
oficial por parte dos praticantes da “medicina tradicional”. Hoje, com a liberalização
da medicina sob as sua várias formas,22 diminuiu consideravelmente o número de
pessoas que procura afiliar-se nesta associação.
Assim, a legalização destes praticantes da saúde ultrapassa largamente uma
estratégia sanitária. Tal como para o caso dos movimentos religiosos sincréticos23, o
Estado está interessado na sua organização e existência legal para os controlar. Mas
numa situação específica como a de Moçambique, onde a prática de curandeirismo

19
Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique.
20
O seu emblema mostra um ramo de uma planta enroscado numa cruz, i.e., um localismo adaptativo ao
símbolo da medicina moderna.
21
Estatutos da AMETRAMO (1991).
22
A liberalização da medicina privada (i.e., quer da biomedicina, quer da etnomedicina) ocorre em 1991.
24

foi apenas extremamente reprimida, tal como já anteriormente referido, apenas


durante um curto período no início do séc. XX, ela sempre coexistiu como parte do
sistema híbrido de interacção estabelecido, embora sujeita a forte limitações aos
seus campos de actuação. Os dados das Fig. 7 e 8 são explícitos a este respeito.

O surgimento, a força e o poder da AMETRAMO na época pós-independência


justificam-se por se tratar de uma afirmação como ideologia de combate a uma
modernidade exógena e sem raízes locais. Quando a “medicina tradicional” deixou
de ser, mais uma vez, reprimida, e quando os próprios dirigentes do Estado e de
partidos vários passaram a consultar frequentemente curandeiros, a AMETRAMO
perdeu parte da sua força, da sua inserção. Hoje ela continua sendo um mecanismo,
aparentemente pouco eficaz, de controle ideológico por parte do Estado, para fazer
passar as mensagens políticas e sondar as pressões sociais.

Todavia, para alguns dos “médicos tradicionais”24 praticando na cidade de


Maputo, a pertença à AMETRAMO justifica-se tanto ao nível de estratégia de
actuação e reforço do seu papel na comunidade onde praticam, como parte da sua
capacidade de pesquisa, onde fazem valer quer os aspectos modernistas da sua
actuação (aproveitamento de aspectos da biomedicina, como seja o receitar de
aspirinas, cloroquinas, etc.) ou ainda a sua capacidade de responder às
necessidades das populações urbanas e peri-urbanas.

III. Que medicina é legítima?

Este último aspecto remete para a parte final deste trabalho. Porque será que
paradoxalmente, na actualidade, as temáticas relacionadas com a valorização e
mesmo a legitimação da “medicina tradicional” estão a ocorrer em países onde as

23
Cuja legalização ocorreria ainda durante a década de 80.
24
De notar que os terapeutas das igrejas sincréticas africanas não se encontram filiados na AMETRAMO.
25
26
27

medicinas tradicionais ou neo-tradicionais (caso das igrejas sincréticas25) não têm de


facto necessidade de ser valorizadas, porque são a medicina legítima, à qual a grande
maioria senão a maioria da população recorre?

Na realidade, um dos principais fenómenos sociológicos observável em


Moçambique, tal como em vários outros países do continente (quer onde se valorize ou
não a “medicina tradicional”), é a enorme vitalidade destas medicinas.
Mais do que as perspectivas de criar associações, de tentar chegar a uma
síntese com a biomedicina, a sua valorização não será no fundo o reconhecimento, de
facto, da sua necessidade e componente intrínseca às culturas sociais presentes?
Este aspecto é crucial pois que obrigam a uma reflexão sobre o lugar e o papel
efectivo da medicinas tradicionais no actual processo histórico.

O facto do itinerário de vários pacientes demonstrar a recorrência em


simultâneo, no caso de várias doenças (como a tuberculose, as doenças de
transmissão sexual (DTS), a epilepsia, a asma) a diversas práticas médicas
alternativas, significa que todas são necessárias, pois que o seu denominador comum é
proporem remédios e oferecer perspectivas de cura e/ou prevenção futura.
Isto significa que algo como uma hibridização médica se está a desenvolver em
Moçambique desde há muito26 – hibridização esta que aceita inclusivamente o modelo
médico ocidental, moderno (que surgiria muito mais tarde, contemporâneo do século
XX), criando mesmo espaço para a sua actuação. Visto desta perspectiva, a vitalidade

25
As várias religiões “importadas” (essencialmente cristãs e muçulmanas) têm vindo a gerar movimentos
sincréticos cuja especificidade reside no facto de o seu trabalho religioso incluir funções terapêuticas (ex.:
conversão de pessoas para se “curarem de asma”), o que contribui ainda mais para aumentar a gama de
recursos terapêuticos disponíveis. Através das preces, da água benta, ou ainda da confissão pública,
estes sincretismos permitem identificar vários pontos comuns aos da medicina tradicional; os tratamentos
através de um forte suporte ideológico (casos de asma de origem nervosa), bem como, por exemplo
ainda, as crenças em feitiçarias, em possessão por espíritos o que se torna, por seu lado, na única
maneira de explicar que as infelicidades dos indivíduos como males que afectam toda a sociedade. Entre
as etnomedicinas e estes movimentos sincréticos não há uma resolução de continuidade mas sim o
exemplo de uma enorme diversidade de recursos terapêuticos que na actualidade se mostram eficazes
na manutenção das ordens e na resolução das crises.
26
Embora documentada apenas para o período a partir dos séculos XVI-XVII, se bem que, por exemplo,
a presença muçulmana seja anterior a este período.
28

das medicinas tradicionais é um espelho das dificuldades de uma biomedicina que


parece não conseguir alcançar os seus objectivos.

A questão primordial que se coloca, conforme já referido anteriormente, é


compreender como evoluíram as dinâmicas de hibridização destas medicinas. O facto
de este universo traduzir a coexistência, no campo social, entre as instituições
terapêuticas que tratam a doença, o mal em geral, quando em simultâneo tratam a
sociedade, sejam estes tratamentos para garantir a reprodução e a manutenção da
ordem - normas e representações, como a sua perturbação (tensões, conflitos,
infelicidades colectivas). Neste processo reside o cerne da autovalorização das
medicinas tradicionais em Moçambique.
A título de exemplo, o sul do país é apresentado desde a época colonial (ex.:
Liesegang, 1986; Honwana, 1988; Harries, 1994; Feliciano, 1998; First, 1998; Gentili,
1999) como um teatro de importantes transformações, as quais afectaram
profundamente o meio rural tradicional, tendo gerado novos modos de diferenciação e
estruturação social. As economias capitalistas implantaram-se, criaram-se mecanismos
económicos de forte cariz individual, surgiram as migrações para as minas da África do
Sul, a escola, a urbanização, os salários, os cargos políticos e governamentais.
Trata-se de figuras da modernidade que são impostas num jogo de
compromisso com as ordens anteriores, mas estando elas próprias atravessadas de
tensões, contradições, de infelicidades, devido às desigualdades criadas, ao
desemprego, à ausência de democracia, etc. (ex.: Bayart, 1989; Copans, 1990; Mappa,
1998). Assim, o significado destas figuras da modernidade não é o da ruptura, mas da
cristalização de compromissos necessários com os quadros de referência e de
pertença tradicionais. Esta relação dialéctica subtil entre a tradição e a modernidade é o
que anima as medicinas tradicionais e as faz desenvolver. Longe de incarnar o
imobilismo de um passado imaginado reescrito no presente, as medicinas, como já
referido anteriormente, “alimentam-se” desta modernidade eminentemente
problemática, apropriam-se das suas múltiplas características e metamorfoses para
lhes atribuir o valor de signos: signos onde o eixo principal de interpretação consiste em
fazer compreender que a modernidade não aconteceu e terminou, que ela não cessa
29

de empurrar e amplificar os registos tradicionais. Se o tratamento das doenças no


sentido mais restrito do termo passa em geral por este eixo, submetendo a eficácia
terapêutica a procedimentos simbólicos e de interpretação (onde a confrontação entre o
tradicional e o moderno é explicada como uma parada alta social e sobretudo familiar),
outras formas de intervenção e de actividade conhecem também amplitude.
No caso do tratamento de diversas manifestações de infortúnio (escolar,
profissional, familiar, conjugal) verifica-se que os “médicos tradicionais” operam
igualmente num plano semelhante, quer os nível da protecção (ex.: fazendo as missas
aos antepassados, identificando os espíritos sem rumo - mortos e sem terem sido
enterrados), fornecendo ao mesmo tempo aos seus clientes os meios de se prevenirem
contra as diversas fontes/causas de infelicidade (ex.: agressão e rancor a outrém).
Nesta perspectiva, estes terapeutas trabalham também para o bom sucesso e para a
felicidade da modernidade, para que as aspirações e estratégias individuais se
concretizem, evitando os males causados com as rupturas com as lógicas anteriores. É
por isto que os médicos tradicionais não são apenas consultados na actualidade por
pacientes provenientes de meios rurais distantes, reputados de atrasados ou não
alcançados ainda pelo processo de desenvolvimento. Com efeito, o número de
pacientes e de problemas das camadas sociais mais diversas estão presentes nestas
consultas nos meios urbanos, onde os pacientes procuram tratamento - i.e., protecção
e resolução do que não vai bem, do desequilíbrio entre o antes e o depois - tentando
alcançar o real praticável e pensável. Isto explica a extrema vitalidade dos médicos
tradicionais no meio urbano, onde se multiplicam as vocações terapêuticas, resultantes
destas estratégias de reconhecimento já referidas.
Esta “medicina tradicional”, ela sim, demonstra possuir um carácter
extremamente plástico, diversificado e diferenciado, pois que a apropriação da
modernidade evocada exige toda uma série de metamorfoses agora adaptadas a
novas tarefas.

Depois desta análise o que ressalva é que é a “medicina tradicional” de facto,


sem que o Estado pareça perceber bem o que esta faz, quem detém a capacidade de
se ajustar aos novos sistemas terapêuticos alternativos (incluindo as igrejas sincréticas
30

de tradição africana, rapidamente referidas já em nota de rodapé), ganhando neste


movimento quase imperceptível reconhecimento, valorização, enquanto a biomedicina
procura ainda vias e meios para demonstrar as suas competências e se implantar com
segurança (ex.: programas nacionais de vacinação contra a pólio, etc.).

• A biodiversidade e os produtos farmacológicos

Finalmente, gostaria ainda de referir um novo dado emergente no panorama da


“medicina tradicional”. Moçambique, tal como muitos países do hemisfério sul, possui
um reservatório de produtos farmacológicos ainda bastante mal conhecido do mundo
científico moderno.27
Na actualidade, e agindo de uma forma imperialmente subtil, as forças
hegemónicas globalizantes – neste caso grandes companhias farmacêuticas -
apropriam-se da luta pela legitimação do saber, esvaziando-o da sua conotação
emancipatória. A coberto da luta pelo reconhecimento dos saberes locais como forma
de protecção da biodiversidade, este conceito depois de redefinido, é de novo utilizado
com fins hegemónicos. Ao se localizar o conhecimento particular e se generalizar a
ciência (como forma de saber), os saberes sobre a biodiversidade, transformam-se em
recursos, extraídos e manipulados por elementos globalizadores. Isto está patente em
situações em que os próprios “indígenas” adoptam e transmitem a retórica
transnacionalista ambientalista, como é o caso da passagem de saberes sobre plantas
medicinais, que contam como o apoio do Estado e encontram reflexo na política do
Governo, a chamada “Medicina Verde” (ex.: Sumbe, 1991; Frelimo, 1999).
Como resultado, as plantas têm vindo a desaparecer a velocidade relâmpago
devido a uma procura excessiva28. Um outro problema prende-se com o facto de
cada vez mais estas plantas serem identificadas nas suas componentes e processos

27
Com efeito, e contrariamente ao que ocorreu em muitos outros países da cintura tropical, o inventário e
o estudo da flora moçambicana foi feito sob forte pressão do sentido comercial, incidindo especialmente
nas madeiras e nas (mono)culturas de exportação, como por exemplo, o algodão, o caju, a cana do
açúcar, etc.
31

de extracção dos componentes importantes activos; esta apropriação nada traz aos
detentores do saber local, pois que estes em nada beneficiam dos potenciais
benefícios materiais destas descobertas (ex.: Brush & Stabinsky, 1995; Orlove &
Brush, 1996; Myer, 1998). De facto, em muitos casos, a retórica ambientalista, ao
promover a identidade local do indígena e do seu conhecimento como valor
localizado, possibilita igualmente o acesso, de forma mais camuflada, às práticas de
conhecimento retidas e acumuladas nestas comunidades ao longo de gerações (ex.:
Pollett et al., 1995). Isto explica a forte reticência de muitos terapeutas locais em não
querer fornecer informação sobre os produtos que utilizam.
Contrariamente aos que defendem a valorização da “medicina tradicional”, o
paradigma em questão não assenta apenas num conjunto de conhecimentos empíricos
(plantas medicinais, farmacopeias) e savoir-faires (técnicas corporais, epidemiologias).
Sem negar a sua importância nestes domínios, o denominador comum reside na
vantagem que estas medicinas, paradoxalmente, possuem, devido ao facto de não
formarem parte de um universo médico, i.e., de não serem um domínio autónomo,
fechado num corpo de regras, saberes, praticas e especialistas. De facto, as chamadas
“medicinas tradicionais” estão imbricadas em muitos outros sectores da vida social –
neste sentido, elas obrigam a um redimensionar do conceito de “doença”, de “mal”, que
ultrapassa a categoria de infelicidade, se traduz em aspectos de ordem cognitiva,
simbólica, institucional próprios a esta sociedade.
Se, como em todo o lado, a doença exige ser explicada, os esquemas de causa
- as etologias – são a expressão directa das normas e representações que sustentam
as estruturas socio-culturais (ex.: as transgressões de interdições, manifestações de
espíritos ancestrais, agressões de feiticeiros, etc.). É por este motivo que as instituições
que estão encarregues de “curar” (e isto porque não é só tratar a parte física, mas
também resolver o problema…) são em simultâneo instituições religiosas, políticas e
terapêuticas. Elas cobrem um campo de competências e funções (adivinhação,
protecção/prevenção, cura, executor de culto, de cerimónias) que subordinam a eficácia

28
Informação obtida em 1996 (3/04) durante entrevista realizada ao Sr. Amosse Tembe, nyanga em
Tanga, distrito de Matutuíne (sul de Maputo).
32

terapêutica a uma eficácia mais larga, trazendo para o terreno os poderes tutelares, as
estruturas normativas e simbólicas, as relações de força e de poder.
Trata-se talvez de uma eficácia ambivalente, pois aqueles que detêm o saber e
que participam, segundo as suas competências nos processos terapêuticos – têm uma
ligação ou conivências com as instâncias que regem as relações sociais. Assim,
interpretar e curar uma “doença” pode significar exactamente o seu oposto (caso dos
roubos e seu encobrimento, influências em casos de decisão em tribunal, etc.29), pois
significa que o terapeuta pode também causar problemas a outrém, e que é necessária
força e protecção para não se ser vítima de instâncias ancestrais que conduziram ao
mal. É certo que existem personagens que apenas curam –os tinyangarhume – com
plantas; mas mesmo estes não estão separados dos poderes tutelares, das relações de
forças evocadas superiormente. Detendo um poder adquirido por “herança espiritual”
e/ou por aprendizagem, este poder saber depende, para ser eficaz, de um poder ou
das marcas simbólicas ligadas a estes forças.
Tudo isto traz à luz do dia os paradoxos da chamada “medicina tradicional”. A
valorização que era advogada até há pouco, exigia a rejeição das configurações
obscurantistas, mágico-religiosas desta medicina, i.e., dos aspectos simbólicos a que

29
Apesar de não ser o assunto central deste texto, importa mencionar a importância, na actualidade do
jogo dos terapeutas tradicionais (curandeirismo/feitiçaria) na acumulação de poder e de riqueza, realizado
sob formas modernas i.e., através do apoio/suporte a promoções no aparelho burocrático, conforme
transparece em várias entrevistas realizadas; isto inclui igualmente situações “negativas”, sendo disso
exemplo os esforços para retirar elementos da cena política. Sendo esta situação sociologicamente
explicada como espelho das fortes lutas pelo poder, a explicação popular prefere esta ultima explicação,
pois que é pratica regular consultar o nyamusoro e tentar alcançar apoios dos antepassados para as
manobras políticas. E como condenar um feiticeiro, se não existem provas materiais de sua influência na
protecção a uma parte gravosa? Apenas um "curandeiro", encarregue de tentar verificar a razão de ser de
um dado problema, poderá afirmar que se trata de "espíritos maus". Isto significa a co-optação de um
aparato moderno - o poder judicial, pelas forças tradicionais. O tribunal, como parte do conceito lato de
administração da justiça, implica a presença das provas factuais, como princípio da racionalidade
moderna. Ao partir do pressuposto de que influências espirituais não podem ocorrer, a tomada de
atitudes, de decisões, é conscientemente realizada no pleno uso das faculdades "mentais", não podendo
ser fruto da acção, influência de outrém. Como explicar algo realizado por intermédio do espírito de
alguém ou sob influência/controle de alguém? Esta característica "moderna" da feitiçaria, as suas
alterações e adaptações, as constantes recreações reflectem um esforço consciente para dar às
mudanças um sentido, uma explicação. Esta questão da influência de espíritos sobre os representantes
da "modernidade" é extremamente interessante, pois nalgumas das entrevistas realizadas verifica-se que
os vanyamussoro podem influenciar processos de tomada de decisão, e esta informação, sob a forma
simbólica dos "feitiços", é apresentada indirectamente a juizes, que frequentemente recuam
estrategicamente, não muito certos sob o seu papel identitário - se representantes da "modernidade
33

os saberes e as práticas estão intimamente ligados. Trata-se sim de uma operação de


redução, de desvalorização, pois que os valores, os status, os poderes são ignorados,
e com eles a força que os terapeutas detêm para curar.

IV. Algumas reflexões finais

Ao concluir, e percorrendo de novo o círculo da discussão inciada, gostaria de


voltar a colocar algumas das questões mencionadas:

1. Será que a “medicina tradicional” tem realmente necessidade de ser valorizada,


legitimada? A sua capacidade “antropofágica” de se alimentar da modernidade é o
que protege esta medicina da perda de vitalidade que por vezes se anuncia. Com
efeito, não é possível ver na diversidade de práticas terapêuticas uma simples
justaposição de sistemas paralelos e simultâneos, sem reconhecer as interferências
que cada um pode trazer ao(s) outro(s). Estas medicinas, que a classificação
separa e opõe, coexistem no quotidiano, sofrendo interpenetrações que importa ter
em atenção30.

2. Será que o pedido de reconhecimento oficial por parte de alguns praticantes não
traduz uma contestação ou mesmo um enfraquecimento da legitimidade tradicional?
Na altura da formação da AMETRAMO, esta era a situação, que aparentemente se
alterou bastante nos dias que correm. Se bem que os membros das Universidades
– centro do conhecimento científico – parecem, através de várias afirmações,
denegrir o papel dos curandeiros, muitos destes não hesitam em consultar estes
mesmos médicos tradicionais, para si mesmos ou para resolver problemas dos seus
familiares. Esta situação é apenas aparentemente paradoxal – a procura da cura, da
solução para um problema implica que todos os meios são bons, desde que

jurídica", se elementos parte de um universo onde esses valores existem, são respeitados, mas que
devido ao seu corte de relações com ele, os próprios juizes já não conhecem tão bem e receiam.
34

funcionem.31 Quer se trate de uma reabilitação da tradição face às insuficiências de


um serviço médico32 de base moderna, quer o assumir de um sistema que sempre
existiu, a questão é a mesma. O universitário, o membro do governo, quando vai
consultar um nyamusoro para alcançar uma cura, procura um ponto de força, e não
a legitimação da modernidade. Isto demonstra como é falsa a divisão da sociedade
em “moderno” e “tradicional”, pois que estes conceitos são eles mesmo construções
ideológicas que encontram a sua realidade como argumentos em debates sociais.

3. Em contrapartida, no que refere aos poderes públicos, nacionais ou internacionais,


os jogos de interesse surgem bem melhor delineados: a revalorização da “medicina
tradicional” permite em simultâneo negar a dimensão social das medicinas locais ao
reduzi-las à sua farmacopeia, ao mesmo tempo que se torna possível o controle
político das práticas terapêuticas, nas suas várias dimensões, através da sua
legalização.

O trabalho de pesquisa ora em curso permitiu vislumbrar a emergência inovativa


de uma nova sensibilidade para o conceito de saúde e doença, bem como aos métodos
de cura praticados por vários sistemas localizadas para além dos limites do mundo
moderno da biomedicina, o qual era até há bem pouco tempo considerado o único
possuindo os atributos de presente e de passado, i.e., de história e credibilidade. A
reflexão histórica em curso, o estudo do "anterior", do passado, tem revelado a
presença de elaborados esquemas que consolidam e aumenta o número de questões
colocadas ao nosso entendimento. A cada passo, os sistemas de cura do sistema
biomédico, e que são de base explicativa, surgem como incompletos se não são tidas

30
Nos dois sentidos, entre a biomedicina e as distintas formas de etnomedicinas, como, por exemplo,
quando o médico permite a presença de um curandeiro junto a um doente como fonte de segurança
emocional, ou quando um curandeiro envia um doente ao hospital.
31
Com efeito, e conforme alguns dos entrevistados afirmaram, não ter confiança nos espíritos não
significa necessariamente que não acreditem na presença e poder destas forças espirituais ancestrais.
Conforme afirmou um dos entrevistados, pedir ajuda aos espíritos é como jogar no totobola, o espírito
pode dar o apoio necessário ou não, mas em qualquer dos casos o resultado está para além do controle
humano.
32
E não só, pois que como transparece no texto, a função do terapeuta tradicional ultrapassa o domínio
restrito da medicina, tal como esta é apresentada no mundo científico moderno.
35

em atenção outras práticas de cura que usam a narração, e o poder da sugestão como
componentes fundamentais (veja-se também Last, 1981). Os factos vão adquirindo
novos significados à medida que a história se desdobra irreversivelmente, emergindo
como pontos focais para novas coerências.
Neste sentido, torna-se necessário separar a hibridização inovativa da
imitação, evitando cair no risco de se confirmar a visão colonialista, i.e., de se
perpetuar a dominação colonial sob a forma de ignorância, i.e., a exportação e
enxerto de conhecimentos já definidos, sem ter em linha de conta, ou apenas muito
minimamente, elementos da embraiagem e marcadores indígenas, nativos (ver
também Santos, 1995; 1998a; 1998b).
Mas se o discurso científico continua a ser principalmente de origem
estrangeira (exógena), paralelamente o questionamento da alteridade retorna ao seu
ponto de partida, ao próprio investigador, onde se assiste cada vez mais à
emergência da alteridade agora como uma espécie de bluff, de chantagem nativista.
Esta alteridade é importante na medida em que ela surge à superfície como questão
central apenas quando o titular do conhecimento já é suficientemente auto-reflexivo
para saber que possui um conhecimento alternativo.33 Assim, e tal como já
mencionado anteriormente, o nativismo é a reacção ao epistemicídio perpetrado por
uma ciência alienígena, uma reacção que, para ser formulada, implica ela própria a
sobreposição ao conhecimento local de um tipo de conhecimento que não é nem
local nem alienígeno. Todo o conhecimento que tem consciência de si implica um
prática de separação em relação às práticas sociais onde ele circula ingenuamente.
A alternativa reside pois no desenvolver da pesquisa autoreflexiva, incorporando
a solidariedade como forma de conhecimento experimentado e legitimado. Neste
percurso sinuoso, algumas possibilidades transformam-se em factos, fixam-se,
eliminando algumas alternativas e dando lugar a novas. A história destas raízes e
opções (Santos, 1998b) estão intimamente ligadas, co-evoluindo.

33
Normalmente tratando-se de elites locais cuja ligação às sociedade de que são oriundos, nativos, é
problemática.
36

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