M T, B C R M: Maria Paula G. Meneses Depto de Arqueologia e Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique
M T, B C R M: Maria Paula G. Meneses Depto de Arqueologia e Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique
M T, B C R M: Maria Paula G. Meneses Depto de Arqueologia e Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique
I. Introdução
1
Esta parte final do texto beneficiou enormemente das discussões havidas com Boaventura de Sousa
Santos, durante a elaboração do texto, bem como durante a apresentação do mesmo em Coimbra.
Gostaria ainda de agradecer a discussão havida com os estudantes do curso de Mestrado de Sociologia
da Faculdade de Economia da U. Coimbra, que me chamaram a atenção para vários aspectos que
enriqueceram o texto. A Teresa Cruz e Silva o meu obrigada pela apresentação a vários terapeutas
“tradicionais”; a Nanette Barkey, o meu obrigada pelas discussões iniciais sobre o tema.
2
Sob coordenação de Boaventura de Sousa Santos. Para mais informações sobre o projecto, veja-se a
página do mesmo, no seguinte endereço http://www.ces.fe.uc.pt/emancipa/
2
Saúde (SNS) é mais reduzido, mas também nos contextos urbanos.3 Isto obrigará a um
desvio pelo campo interpretativo do próprio conceito de saúde, da evolução da própria
“medicina tradicional” face a outras formas alternativas de tratamento e cura que foram
surgindo (veja-se também os trabalhos de Pina, 1940; Swalbach e Swalbach, 1970;
Augé & Herzlich, 1984; Schoffeleersw, 1991; Janzen, 1992; Honwana, 1996).
Os resultados que aqui apresento são fruto da pesquisa a decorrer na região sul
de Moçambique, na zona da cidade e província de Maputo, conforme a Fig. 1.
.
Área do estudo
mencionado no texto
3
Questões de ordem financeira também não explicam totalmente esta situação, na medida em que as
consultas a muitos dos terapeutas praticantes da bio e da etnomedicina são cobradas.
3
4
Distintas Faculdades nas Universidades, através de organismos estatais, etc.
4
5
Entrevista realizada a Hélder Martins (15/03/00), o primeiro Ministro da Saúde em Moçambique.
6
Em Moçambique, esta situação surgiria mesmo no início do séc. XX, com a fixação do indígena, do
negro, ao seu local de origem, exigindo-se para a sua movimentação e controle a posse de
documentação emitida pela Curadoria dos Negócios Indígenas. A posse da caderneta indígena que
surgiria praticamente na mesma altura, só seria extinta como elemento desqualificador, já nos anos 60.
Ser-se "indígena" significava ser-se “não civilizado”, sem direito, até inícios da década de 60, aos
benefícios inerentes à categoria de “assimilado” (ex.: Honwana, 1985), ou seja, aquele que tinha
interiorizado os valores civilizacionais trazidos pelo sistema colonial. Daqui o extraordinário sentido
pejorativo do termo em Moçambique, bem como do termo “nativo”, que, embora com conotações mais
suaves, remete ainda para um passado muito próximo, de forte intensidade conflitual no que refere ao
desenvolvimento do sentimento de pertença a uma nova unidade, fortemente desenvolvida pelo sistema
colonial – a tribo. Todos os membros das tribos – i.e., povos nativos, poderiam ascender à categoria de
assimilados, desde que conseguissem demonstrar que tinham absorvido o sistema normativo colonial,
assumido como o único civilizado.
5
6
“ensinar”, abrir as portas ao saber científico, à civilização (ex.: Noronha, 1894; Pina,
1940; Santos Reis, 1952; Polanah, 1967; Rita-Ferreira, 1967-68).
“entre as raizes que esta Affrica tem com medicinal virtude... porém são tão
avarentos, e faltos de piedade os Nacionaes que he impossivel, nem com dadivas,
ou ameaços, declararem as raizes, os seus segredos, com tudo não tem duvida para
qualquer enteresse aplicalos aos necessitados, porem com humas ceremonias tao
rediculas e dignas de rizo, que fazem perder a fee aquem delas podia esperar seu
ultimo remédio” (Miranda, 1766 (editado em 1954)),
“que se deue ordenar que se repare, e ponha em estado de que se posão curar
nelle [hospital] os soldados que vão a ele e que estes se curem com remedios da
terra por que muitas vezes mostra a experiencia que assim livrão melhor dos
perigos, do que se fossem curados com a arte q se reconhece que he impossivel
hauver Cirurgioes nem Medicos que possão mandar para aquellas Conquista
volutariamente”.
7
Ministérios, Faculdades de Medicina, etc.
12
13
Todavia, para este período agora sob análise – primeira metade do século XX - a
situação não difere significativamente da reportada alguns anos antes em Portugal,
onde um trabalho sobre as práticas e praticantes curativos em Portugal (Pina, 1929)
afirmava:
“Para o [povo português] a doença é um demónio negro que lhe aparece (…)
As doenças chegam-se à gente de todas as formas, por todos os feitios: - aqui, um
tuberculoso pulmonar com o diagnóstico de «chupado das bruxas»; ali, uma
desgraçada histérica cujo mal deriva única e indiscutivelmente dum demónio, dois
demónios, até uma legião de demónios que do seu malfadado corpo fizeram ninho;
acolá, um sifilítico terciário, um coreico, um paraplégico, um hemiplégico, um
paralítico geral a quem o Tranglo-Mango, nem mais nem menos, escadraçou os
ossos, roeu os nervos, devorou as carnes; ou, então, um mal de Pott, um torcicolo,
uma cefalgia que foram – deixem lá falar os doutores das Escolas – o efeito dum
arejo, dum mau ar, dum mau olhado. E por aí fora, um nunca acabar de diagnósticos
certeiros, lista sem fim de estranhas etiologias, e, quanta vez, de criminosos
prognósticos! O Diabo, as Bruxas, as Mouras, os Bichos peçonhentos imaginários,
as Almas Penadas, o ar das Trindades, os Lobisomens, os feiticeiros, os Corpos-
abertos, o mau olhado, o Quebranto, o Enguiço, as beberagens, e mais, e mais (…)
imaginação popular, no que respeita à perda da sua saúde, ou à cura das suas
moléstias”.
14
(Serviço de Nutrição, 1981; Ferraz, 20008). Com efeito, na segunda metade da década
de 70 seria criado o gabinete de Estudos de Medicina Tradicional, junto ao Ministério da
Saúde, o qual definia a “medicina tradicional” como "o conjunto de conhecimentos
empíricos, desorganizados, deturpados do seu conteúdo pelo processo da transmissão
oral, e muitas vezes revestidos de práticas obscurantistas, tais como ritos, etc." (Serviço
de Nutrição, 1981:3). Assim, este gabinete assumia como sua tarefa não a utilização
dos terapeutas como tal, mas como objectos detentores de informação, ao afirmar que
era necessário “depurar os conhecimentos existentes de todas as ideias obscurantistas
de que geralmente se encontram impregnados e assim promovê-las a conhecimentos
científicos, a fim de os utilizar em benefício de todo o Povo" (ibidem, 1981:5). Tal como
Martins9 refere, o projecto do Ministério da Saúde pretendia recuperar o conhecimento,
mas não o homem, o detentor de um saber descrito como “obscurantista” (veja-se
igualmente Castanheira, 1979 e a Fig. 6).
Novidade ou ruptura, do discurso político actual transparece a ideia de que urge
melhorar a saúde do povo através de processos endógenos de desenvolvimento, o que
requer a mobilização dos saberes e competências disponíveis, especialmente num país
onde a população médica “oficial”, diplomada no sentido biomédico é
extraordinariamente baixa
8
Comentário de Bernardo Ferraz durante o encontro organizado pela WWF sobre jornalismo e meio
ambiente, realizado em Maputo em Março de 2000.
9
Veja-se a referência anterior a esta entrevista realizada a 15 de Março de 2000.
10
Dados recolhidos de Rita-Ferreira, 1967-68.
16
Assim, embora seja este a explicação utilizada pelo Estado para legitimar o
seu interesse pela medicina dita tradicional, ela não é suficiente para explicar as
ambiguidades subjacentes que pesam quer sobre a noção de valorização da
“medicina tradicional”, quer sobre as experiências práticas que são recomendadas.
11
Dados do Jornal Domingo, de 13/01/91.
17
Isto significa que não se pode estudar a medicina moderna sem a tradicional
e vice versa, i.e., sem uma análise da relação entre as duas não é possível
reconstituir esta separação.
12
De referir que o nyamusoro não escolhe ser terapeuta – ele é escolhido pelos espíritos para ser o
veículo do conhecimento que estes espíritos detêm, conhecimento este que precisa ser "aberto",
explicado, depois de um processo de aprendizagem (normalmente 1 a 3 anos) junto de um mestre de
mérito reconhecido pelos próprios espíritos. São os próprios espíritos - psikwembo - quem se encarrega
de conduzir o futuro aluno - twasana - até ao mestre seleccionado.
18
mesmo tempo que se mobilizam os recursos locais para a procura de soluções mais
apropriadas, muitas vezes mesmo reivindicando-se os valores africanos (ex.: Comaroff,
1988; Janzen, 1992; Mappa, 1998) para os pôr ao serviço da construção de uma nova
sociedade, i.e., conforme foi palavra de ordem durante longo tempo “contando com as
próprias forças”.
• As parteiras tradicionais
de classificação, cuja base ainda hoje é utilizada, i.e., assenta na definição das
diferenças que separam as várias doenças, i.e.,
a) a identificação das patologias características de cada uma
b) e o que distingue uma doença das outras (i.e., a construção de categorias gerais
desta diferença).
Isto significa, em termos de diagnóstico, que o corpo do paciente passa a estar
reduzido a uma série de elementos identificáveis a vários níveis que são feitos coincidir
com o “cardápio das doenças”, semelhantes nos vários pacientes.
13
Ossículos divinatórios.
14
São também tarefas do nyawhuti auxiliar na procura de plantas e outros produtos medicinais (minerais,
animais - gordura, pele, etc.), apoiar nas cerimónias de tratamento, etc.
21
15
Com efeito, a identificação do problema por parte do paciente - com a ajuda do terapeuta tradicional - é
condição sine qua non para o sucesso do processo de cura.
22
16
Sendo exemplo destas situações a guerra civil que Moçambique atravessou durante os anos 1980-90,
bem como a crise resultante das cheias dos grandes rios em Moçambique, como o Limpopo e o Save,
factos estes que resultaram em inúmeras mortes “por enterrar”, por colocar junto aos seus,
restabelecendo o ciclo das ligações.
17
As quais asseguram a manutenção dos ancestrais entre a comunidade, o renovar do respeito que se
lhes deve.
18
Não só porque esta avaliação dependerá da perspectiva de quem está envolvido na situação (se
causador/provocador ou alvo/vítima da situação); mais ainda, os únicos juizes isentos são os espíritos,
que poderão “castigar” até com a morte os feiticeiros. Assim, quando um mal ocorre repetidamente numa
comunidade, é frequente recorrer-se a um nyamusoro trabalhando com espíritos fortes, para que consiga
não só identificar o “feiticeiro”, como também para neutralizar a sua acção, se necessário aniquilando-o.
Este assunto será de novo tratado mais adiante.
23
• A AMETRAMO19
19
Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique.
20
O seu emblema mostra um ramo de uma planta enroscado numa cruz, i.e., um localismo adaptativo ao
símbolo da medicina moderna.
21
Estatutos da AMETRAMO (1991).
22
A liberalização da medicina privada (i.e., quer da biomedicina, quer da etnomedicina) ocorre em 1991.
24
Este último aspecto remete para a parte final deste trabalho. Porque será que
paradoxalmente, na actualidade, as temáticas relacionadas com a valorização e
mesmo a legitimação da “medicina tradicional” estão a ocorrer em países onde as
23
Cuja legalização ocorreria ainda durante a década de 80.
24
De notar que os terapeutas das igrejas sincréticas africanas não se encontram filiados na AMETRAMO.
25
26
27
25
As várias religiões “importadas” (essencialmente cristãs e muçulmanas) têm vindo a gerar movimentos
sincréticos cuja especificidade reside no facto de o seu trabalho religioso incluir funções terapêuticas (ex.:
conversão de pessoas para se “curarem de asma”), o que contribui ainda mais para aumentar a gama de
recursos terapêuticos disponíveis. Através das preces, da água benta, ou ainda da confissão pública,
estes sincretismos permitem identificar vários pontos comuns aos da medicina tradicional; os tratamentos
através de um forte suporte ideológico (casos de asma de origem nervosa), bem como, por exemplo
ainda, as crenças em feitiçarias, em possessão por espíritos o que se torna, por seu lado, na única
maneira de explicar que as infelicidades dos indivíduos como males que afectam toda a sociedade. Entre
as etnomedicinas e estes movimentos sincréticos não há uma resolução de continuidade mas sim o
exemplo de uma enorme diversidade de recursos terapêuticos que na actualidade se mostram eficazes
na manutenção das ordens e na resolução das crises.
26
Embora documentada apenas para o período a partir dos séculos XVI-XVII, se bem que, por exemplo,
a presença muçulmana seja anterior a este período.
28
27
Com efeito, e contrariamente ao que ocorreu em muitos outros países da cintura tropical, o inventário e
o estudo da flora moçambicana foi feito sob forte pressão do sentido comercial, incidindo especialmente
nas madeiras e nas (mono)culturas de exportação, como por exemplo, o algodão, o caju, a cana do
açúcar, etc.
31
de extracção dos componentes importantes activos; esta apropriação nada traz aos
detentores do saber local, pois que estes em nada beneficiam dos potenciais
benefícios materiais destas descobertas (ex.: Brush & Stabinsky, 1995; Orlove &
Brush, 1996; Myer, 1998). De facto, em muitos casos, a retórica ambientalista, ao
promover a identidade local do indígena e do seu conhecimento como valor
localizado, possibilita igualmente o acesso, de forma mais camuflada, às práticas de
conhecimento retidas e acumuladas nestas comunidades ao longo de gerações (ex.:
Pollett et al., 1995). Isto explica a forte reticência de muitos terapeutas locais em não
querer fornecer informação sobre os produtos que utilizam.
Contrariamente aos que defendem a valorização da “medicina tradicional”, o
paradigma em questão não assenta apenas num conjunto de conhecimentos empíricos
(plantas medicinais, farmacopeias) e savoir-faires (técnicas corporais, epidemiologias).
Sem negar a sua importância nestes domínios, o denominador comum reside na
vantagem que estas medicinas, paradoxalmente, possuem, devido ao facto de não
formarem parte de um universo médico, i.e., de não serem um domínio autónomo,
fechado num corpo de regras, saberes, praticas e especialistas. De facto, as chamadas
“medicinas tradicionais” estão imbricadas em muitos outros sectores da vida social –
neste sentido, elas obrigam a um redimensionar do conceito de “doença”, de “mal”, que
ultrapassa a categoria de infelicidade, se traduz em aspectos de ordem cognitiva,
simbólica, institucional próprios a esta sociedade.
Se, como em todo o lado, a doença exige ser explicada, os esquemas de causa
- as etologias – são a expressão directa das normas e representações que sustentam
as estruturas socio-culturais (ex.: as transgressões de interdições, manifestações de
espíritos ancestrais, agressões de feiticeiros, etc.). É por este motivo que as instituições
que estão encarregues de “curar” (e isto porque não é só tratar a parte física, mas
também resolver o problema…) são em simultâneo instituições religiosas, políticas e
terapêuticas. Elas cobrem um campo de competências e funções (adivinhação,
protecção/prevenção, cura, executor de culto, de cerimónias) que subordinam a eficácia
28
Informação obtida em 1996 (3/04) durante entrevista realizada ao Sr. Amosse Tembe, nyanga em
Tanga, distrito de Matutuíne (sul de Maputo).
32
terapêutica a uma eficácia mais larga, trazendo para o terreno os poderes tutelares, as
estruturas normativas e simbólicas, as relações de força e de poder.
Trata-se talvez de uma eficácia ambivalente, pois aqueles que detêm o saber e
que participam, segundo as suas competências nos processos terapêuticos – têm uma
ligação ou conivências com as instâncias que regem as relações sociais. Assim,
interpretar e curar uma “doença” pode significar exactamente o seu oposto (caso dos
roubos e seu encobrimento, influências em casos de decisão em tribunal, etc.29), pois
significa que o terapeuta pode também causar problemas a outrém, e que é necessária
força e protecção para não se ser vítima de instâncias ancestrais que conduziram ao
mal. É certo que existem personagens que apenas curam –os tinyangarhume – com
plantas; mas mesmo estes não estão separados dos poderes tutelares, das relações de
forças evocadas superiormente. Detendo um poder adquirido por “herança espiritual”
e/ou por aprendizagem, este poder saber depende, para ser eficaz, de um poder ou
das marcas simbólicas ligadas a estes forças.
Tudo isto traz à luz do dia os paradoxos da chamada “medicina tradicional”. A
valorização que era advogada até há pouco, exigia a rejeição das configurações
obscurantistas, mágico-religiosas desta medicina, i.e., dos aspectos simbólicos a que
29
Apesar de não ser o assunto central deste texto, importa mencionar a importância, na actualidade do
jogo dos terapeutas tradicionais (curandeirismo/feitiçaria) na acumulação de poder e de riqueza, realizado
sob formas modernas i.e., através do apoio/suporte a promoções no aparelho burocrático, conforme
transparece em várias entrevistas realizadas; isto inclui igualmente situações “negativas”, sendo disso
exemplo os esforços para retirar elementos da cena política. Sendo esta situação sociologicamente
explicada como espelho das fortes lutas pelo poder, a explicação popular prefere esta ultima explicação,
pois que é pratica regular consultar o nyamusoro e tentar alcançar apoios dos antepassados para as
manobras políticas. E como condenar um feiticeiro, se não existem provas materiais de sua influência na
protecção a uma parte gravosa? Apenas um "curandeiro", encarregue de tentar verificar a razão de ser de
um dado problema, poderá afirmar que se trata de "espíritos maus". Isto significa a co-optação de um
aparato moderno - o poder judicial, pelas forças tradicionais. O tribunal, como parte do conceito lato de
administração da justiça, implica a presença das provas factuais, como princípio da racionalidade
moderna. Ao partir do pressuposto de que influências espirituais não podem ocorrer, a tomada de
atitudes, de decisões, é conscientemente realizada no pleno uso das faculdades "mentais", não podendo
ser fruto da acção, influência de outrém. Como explicar algo realizado por intermédio do espírito de
alguém ou sob influência/controle de alguém? Esta característica "moderna" da feitiçaria, as suas
alterações e adaptações, as constantes recreações reflectem um esforço consciente para dar às
mudanças um sentido, uma explicação. Esta questão da influência de espíritos sobre os representantes
da "modernidade" é extremamente interessante, pois nalgumas das entrevistas realizadas verifica-se que
os vanyamussoro podem influenciar processos de tomada de decisão, e esta informação, sob a forma
simbólica dos "feitiços", é apresentada indirectamente a juizes, que frequentemente recuam
estrategicamente, não muito certos sob o seu papel identitário - se representantes da "modernidade
33
2. Será que o pedido de reconhecimento oficial por parte de alguns praticantes não
traduz uma contestação ou mesmo um enfraquecimento da legitimidade tradicional?
Na altura da formação da AMETRAMO, esta era a situação, que aparentemente se
alterou bastante nos dias que correm. Se bem que os membros das Universidades
– centro do conhecimento científico – parecem, através de várias afirmações,
denegrir o papel dos curandeiros, muitos destes não hesitam em consultar estes
mesmos médicos tradicionais, para si mesmos ou para resolver problemas dos seus
familiares. Esta situação é apenas aparentemente paradoxal – a procura da cura, da
solução para um problema implica que todos os meios são bons, desde que
jurídica", se elementos parte de um universo onde esses valores existem, são respeitados, mas que
devido ao seu corte de relações com ele, os próprios juizes já não conhecem tão bem e receiam.
34
30
Nos dois sentidos, entre a biomedicina e as distintas formas de etnomedicinas, como, por exemplo,
quando o médico permite a presença de um curandeiro junto a um doente como fonte de segurança
emocional, ou quando um curandeiro envia um doente ao hospital.
31
Com efeito, e conforme alguns dos entrevistados afirmaram, não ter confiança nos espíritos não
significa necessariamente que não acreditem na presença e poder destas forças espirituais ancestrais.
Conforme afirmou um dos entrevistados, pedir ajuda aos espíritos é como jogar no totobola, o espírito
pode dar o apoio necessário ou não, mas em qualquer dos casos o resultado está para além do controle
humano.
32
E não só, pois que como transparece no texto, a função do terapeuta tradicional ultrapassa o domínio
restrito da medicina, tal como esta é apresentada no mundo científico moderno.
35
em atenção outras práticas de cura que usam a narração, e o poder da sugestão como
componentes fundamentais (veja-se também Last, 1981). Os factos vão adquirindo
novos significados à medida que a história se desdobra irreversivelmente, emergindo
como pontos focais para novas coerências.
Neste sentido, torna-se necessário separar a hibridização inovativa da
imitação, evitando cair no risco de se confirmar a visão colonialista, i.e., de se
perpetuar a dominação colonial sob a forma de ignorância, i.e., a exportação e
enxerto de conhecimentos já definidos, sem ter em linha de conta, ou apenas muito
minimamente, elementos da embraiagem e marcadores indígenas, nativos (ver
também Santos, 1995; 1998a; 1998b).
Mas se o discurso científico continua a ser principalmente de origem
estrangeira (exógena), paralelamente o questionamento da alteridade retorna ao seu
ponto de partida, ao próprio investigador, onde se assiste cada vez mais à
emergência da alteridade agora como uma espécie de bluff, de chantagem nativista.
Esta alteridade é importante na medida em que ela surge à superfície como questão
central apenas quando o titular do conhecimento já é suficientemente auto-reflexivo
para saber que possui um conhecimento alternativo.33 Assim, e tal como já
mencionado anteriormente, o nativismo é a reacção ao epistemicídio perpetrado por
uma ciência alienígena, uma reacção que, para ser formulada, implica ela própria a
sobreposição ao conhecimento local de um tipo de conhecimento que não é nem
local nem alienígeno. Todo o conhecimento que tem consciência de si implica um
prática de separação em relação às práticas sociais onde ele circula ingenuamente.
A alternativa reside pois no desenvolver da pesquisa autoreflexiva, incorporando
a solidariedade como forma de conhecimento experimentado e legitimado. Neste
percurso sinuoso, algumas possibilidades transformam-se em factos, fixam-se,
eliminando algumas alternativas e dando lugar a novas. A história destas raízes e
opções (Santos, 1998b) estão intimamente ligadas, co-evoluindo.
33
Normalmente tratando-se de elites locais cuja ligação às sociedade de que são oriundos, nativos, é
problemática.
36
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