Reflexões Sobre Maquiavel de Leo Strauss, Por Douglas Zorzo
Reflexões Sobre Maquiavel de Leo Strauss, Por Douglas Zorzo
Reflexões Sobre Maquiavel de Leo Strauss, Por Douglas Zorzo
STRAUSS, Leo. Reflexões sobre Maquiavel. Tradução de Élcio Verçosa. São Paulo: É
Realizações, 2015, 363p.
Logo nas primeiras linhas da Introdução, nas quais o intuito do autor é apresentado de
forma sistemática, podemos notar o incisivo distanciamento operado por ele em relação às
demais tradições interpretativas que foram construídas em torno do pensamento de Maquiavel.
Sua premissa norteadora situa-se na contracorrente do esforço de inúmeros intérpretes: o
Secretário florentino não somente foi um professor do mal, mas, ele próprio, foi um homem
mau. O estudo normativo conduzido por Maquiavel acerca da sociedade teria sido fundado
tanto na imoralidade quanto na irreligiosidade. Nesse caso, o problema dos leitores
maquiavelianos seria justamente o fato de que os discípulos de Maquiavel foram corrompidos
pelo próprio Maquiavel. Todavia, afirma Strauss, consciente de seu movimento de insurgência,
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somente situando a feição malevolente do autor florentino como pano de fundo é que podemos
compreender a dimensão original de seus argumentos.
Todavia, podemos notar uma íntima relação entre a doutrina geral e a ocasião particular
à qual O Príncipe se dirige. Ora, a situação prática é a libertação da Itália. Embora haja uma
omissão acerca das dificuldades que obstruem essa ação, existe uma clara consciência que ela
implicaria o envolvimento de métodos brutais. Essa liberação implicaria uma verdadeira
revolução. Não somente em termos de ação política, mas os próprios italianos deveriam
reaprender a posicionar-se sobre a deliberação entre certo e errado diante das imposições
patrióticas.
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O libertador italiano deveria ser, consequentemente, um inventor de novos modos e
novas ordens. O principado novo, assunto nuclear de O Príncipe, implica em discutir as origens
e os fundamentos de todos os estados e de todas as ordens sociais. Nesse contexto, o propósito
central da obra é o de apresentar “uma doutrina absolutamente nova a respeito de novos
príncipes absolutamente novos em estados absolutamente novos, um ensinamento chocante
sobre os mais chocantes fenômenos” (STRAUSS, 2015, p. 101). Nesse sentido, ao introduzir o
elemento patriótico, manifesto no último capítulo do opúsculo, Maquiavel acabaria por trazer
a legitimação das políticas imorais apresentadas no decorrer do livro.
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estabelecidos e enraizados no berço da sociedade. Nesse cenário, Maquiavel inicia uma guerra
contra a ordem estabelecida. Strauss, enfim, revela-o como um capitão sem exército – um
soldado desarmado e solitário –, de modo que o único meio para recrutar suas tropas e seus
combatentes é através de seus próprios livros. Ainda que a descoberta desses novos modos e
novas ordens seja algo evidenciado pela razão, eles não poderiam ser evidenciados ao povo por
meio de uma única dose: desarmado, ele não pode compelir o povo a ter fé nele.
Por certo, a “república” na qual Maquiavel tenta imprimir a sua forma é a “república
cristã”. Essa organização política havia atingido um estágio avançado de corrupção. O
“rejuvenescimento” do Ocidente passaria pela destruição desses modos e ordens antigos,
cristãos, e a instauração de novos modos e ordens. De fato, um dos propósitos dos Discursos
seria a preparação para esse renascimento através do despertar da juventude letrada italiana.
Com isso posto, Strauss alcança o aparelho conceitual e argumentativo com o qual pode
lançar-se naquilo que julga ser uma interpretação adequada do pensamento de Maquiavel. Ou
seja, com a argumentação precedente, o teuto-americano acredita ter municiado, ainda que
minimamente, o leitor que adentra nas alamedas labirínticas do pensamento maquiaveliano:
agora, é possível preparar-se para entender a verdade – que não pode ser explicitamente dita –
subjacente naquilo que está sendo afirmado.
É com essa noção que adentramos no Capítulo 5, o estágio mais denso e tortuoso de
toda a teorização. Nessa oportunidade, o filósofo divide seu núcleo argumentativo em duas
seções: por um lado, dedica sua atenção para avaliar a relação entre Maquiavel e a religião; por
outro, desenvolve sua percepção sobre a “filosofia maquiaveliana”.
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necessidade, que modifica a inclinação natural desses indivíduos, pode ser impressa através
daquela virtude ou daquela prudência que os homens virtuosos possuem, pois, compelidos pelo
desejo da “glória do mundo”, agiriam de maneira “adequada”.
Em um tom conclusivo, alerta Strauss, devemos reconhecer que Maquiavel não traz à
luz um único fenômeno político de importância fundamental que já não fosse plenamente
conhecido pelos filósofos clássicos. Apesar disso, a filosofia passa por uma acentuada mudança
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de significado com seu pensamento. O propósito maquiaveliano é o de aliviar a condição
humana, portanto, de aumentar o poder do homem e de guiá-lo para a sociedade racional, cujo
fim é o interesse próprio esclarecido, ou a autopreservação de cada um de seus membros. Essa
filosofia incipiente do projeto do Secretário florentino nutre-se de uma esperança vindoura, ou,
equivale à certeza da conquista do futuro. Isto é, na antecipação de uma época na qual a verdade
irá reinar, ainda que não na mente dos homens, ao menos nas instituições que os moldam. Aqui,
seria novamente a propaganda que garantiria a coincidência entre a filosofia e o poder político.
A filosofia, em seu sentido nascente, deveria cumprir uma dupla função: não somente a de
filosofia, em si, mas também a de religião.
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Dessa maneira, a edição oferecida pela editora É Realizações das Reflexões sobre
Maquiavel é, em duplo sentido, interessante. Por um lado, apresenta uma cuidadosa tradução
para um trabalho genuíno, que caminha na contramão de diversas escolas de pensamento que
se dedicam ao esforço interpretativo da obra de Maquiavel. Isso significa que o multifacetado
debate que se debruça sobre as teses do Secretário florentino agora conta, acessível em língua
portuguesa, com argumentos com os quais, invariavelmente, é necessário dialogar – ainda que
como contraponto. Por outro lado, a obra monográfica sobre Maquiavel revela a importância
que este acabou desempenhando para o filósofo teuto-americano. Por isso, também, é um
elemento somatório para as pesquisas nacionais que dedicam sua atenção à intrigante e rica
teoria straussiana.
Recebido: 12-03-2019
Aceito: 29-07-2019
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