Antropologia PDF
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“aventura antropológica”
Juarez Tadeu de Paula Xavier*
Introdução
A Antropologia é a ciência que estuda o homem, no sentido lato da expressão (gênero humano).
Em sua feição científica, ela surge na segunda metade do século XIX, na esteira do desenvolvimento das
Ciências Sociais. Desde então, constituiu um amplo leque de paradigmas – metodologias de aborda-
gem, de pesquisa e de interpretação – que formam as chamadas Teorias Antropológicas Clássicas – as
pioneiras – e as Contemporâneas (ou Modernas), que estudam e interpretam as dimensões biológicas,
culturais e sociais do ser humano.
A Antropologia (anthropos, pessoa/homem; logos, razão) é a ciência centrada no ser humano e
em suas realizações tangíveis e intangíveis – material e imaterial –, no espaço histórico e no eixo do
tempo, focada no estudo do homem e nos seus feitos sociais e culturais.
O estudo do multiverso – universo material e universo imaterial – do homem atribuiu à Antropo-
logia três aspectos fundamentais para o seu campo de pesquisa e estudo: o estudo do homem na qua-
lidade de elemento integrante de grupos organizados, organizações e formas coletivas de ação social; o
estudo da totalidade do homem como um ser histórico, com suas crenças, usos e costumes, filosofia, lin-
guagem e representações; e o estudo do conhecimento psicossomático do homem e de sua evolução.
Segundo Laplantine, “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa
que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (1988, p. 16).
A Antropologia é o estudo do homem por inteiro, em todas as sociedades, em todas as suas dimensões
e épocas.
* Doutor e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação e Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP) – linha
de pesquisa Comunicação e Cultura. Líder do grupo de pesquisa “Laboratório de Observação de Mídias Radicais”, credenciado no CNPq.
Pesquisador do universo cultural afro-descendente. Jornalista e professor universitário.
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1 Paleolítico (Idade da Pedra Lascada – antiga); Mesolítico (Idade da Pedra “Média” – período intermediário); Neolítico (Idade da Pedra Polida
nova).
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::: Folclore – ramo que estuda as manifestações espontâneas da cultura de grupos urbanos e
rurais, conjunto das tradições, conhecimentos, crenças, lendas de um povo, expressos em seus
hábitos e costumes cotidianos.
::: Antropologia Social – ramo que estuda os processos culturais e sociais de uma sociedade ou
instituição.
::: Cultura e Personalidade – ramo que estuda as inter-relações entre a cultura e as personali-
dades.
::: Antropologia Pré-Histórica – é o estudo do homem através dos vestígios materiais enterra-
dos no solo (ossos e marcas humanas). “O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente,
objetos do solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na Antropologia Social na
qual se beneficia de depoimentos vivos” (LAPLANTINE, 1988, p. 18).
::: Antropologia Lingüística – é o estudo da diversidade das línguas humanas em três aspectos:
::: etnolingüísticas (como os homens pensam e vivem) – estudo dos textos escritos e orais;
::: etnociência (como os homens interpretam seu próprio saber e saber-fazer).
::: Antropologia Psicológica – é o estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo hu-
mano; estuda a mente e os processos mentais e sociais do ser humano em sociedade.
::: Antropologia Social e Cultural (ou Etnografia) – é o estudo do modo de produção econômi-
ca, das formas de produção técnica, da organização social e da cultura, dos sistemas de conhe-
cimento de sua difusão, do sistema de parentesco, da língua, das formas de produção artística,
da psicologia social, das crenças e da religião.
Teorias Antropológicas
As Teorias Antropológicas – Clássicas e Contemporâneas (Modernas) – construíram seus legados
científicos a partir da segunda metade do século XIX. Elas sucederam-se na linha do tempo, ampliaram
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As cartas, crônicas e relatos comerciais dos viajantes pintam painéis da diversidade humana em vá-
rios pontos do mundo. Missionários, militares e, acima de tudo, os administradores descrevem os povos
e suas produções, com variados graus de precisão. Registram-se as qualidades da terra, sua fauna e flora;
a topografia (descrição minuciosa de uma localidade) das costas e do interior; o sistema de parentesco e
as formas de organização política, econômica, cultural e religiosa dos “povos do novo mundo”.
A Carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) – escritor português que exerceu a função de escri-
vão da armada do navegador Pedro Álvares Cabral (1467 [1468]- 1520 [1526]) –, que narra a chegada
dos portugueses ao Brasil, é um modelo típico desses rudimentos do discurso etnográfico.
Datada de 1500, do Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz, sexta-feira, “primeiro dia de maio”, a carta
descreve o impacto que a nova paisagem humana causou aos navegadores portugueses, quando eles
fizeram o primeiro contato com os habitantes locais:
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem
nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em
mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de com-
primento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela
parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado
de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. (CAMINHA, 1500)
Pero Vaz de Caminha descreve a topografia da costa brasileira, a fauna e as riquezas da natureza,
os modos e costumes dos habitantes locais, suas formas de organização social, cultural e religiosa e suas
relações com os navegadores. A riqueza de detalhes, a precisão das descrições, o esquadrinhamento da
localidade conferem ao relato status etnográfico que permitiu, mais tarde, a ocupação de amplas faixas
de terra no novo território.
2 Movimento surgido na França do século XVII que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica, religiosa, que dominava a Europa.
Segundo os filósofos iluministas, essa forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade.
3 Morgan, Lewis H. La Société Archaïque. Paris: Anthropos, 1971.
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logos do final do século 19, bem como na lei de Haeckel . [...] a ontogênese reproduz a filogênese: ou seja, o indivíduo
atravessa as mesmas fases que a história das espécies. [...] Disso decorre a identificação [...] dos povos primitivos aos
vestígios da infância da humanidade. (LAPLANTINE, 1988, p. 65-66)
Antropologia Difusionista
A Teoria da Antropologia Difusionista reage ao etnocentrismo da Teoria da Antropologia Evolucio-
nista Social. Ela procura compreender a natureza das culturas de cada povo, da origem a sua extensão,
de um grupo humano para outro. A corrente explica o desenvolvimento cultural pelo processo de difu-
são de aspectos culturais, formas culturais, de uma cultura para outra.
Os diversos povos tomam de empréstimo aspectos culturais fundamentais de outros e os adap-
tam às suas particularidades, o que provoca a evolução da cultura e explica a diversidade das manifes-
tações culturais. Os grupos humanos distintos absorvem “aspectos culturais” de um outro grupo, como
uma tendência humana.
Os antropólogos difusionistas substituem o termo raça pelo cultural e se dividem em três escolas
teóricas: a inglesa, a alemão-austríaca e a norte-americana.
Na escola alemã destacaram-se os antropólogos Fritz Graebner, Friedrich Ratzel, Léo Frobénius,
Wilhelm Schmidt; na escola inglesa, Elliot Smith, J. Perry e W. R. R. Rivers. A escola inglesa ficou conhe-
cida pelo nome de hiperdifusionista pelo fato de alguns dos seus teóricos levantarem a hipótese de
que todas as invenções do homem têm origem na civilização egípcia. Na escola norte-americana o
destaque é o antropólogo Franz Boas (1848-1942)
Seus elementos básicos são a reconstituição histórica – do passado e do presente –, e o intenso
trabalho de campo, com a coleta sistemática de dados primários, de dados colhidos em primeira mão.
Um dos principais teóricos do Difusionismo foi o geógrafo e etnólogo alemão Friedrich Ratzel
(1844-1904), “pai do conceito espaço vital”.
tico”, a grande contribuição, a definição das regras do método sociológico de investigação. As obras de
Durkheim6 e , mais tarde, as obras de Marcel Mauss7 são decisivas para a elaboração dessas característi-
cas conceituais.
No campo da Escola Sociológica Francesa, em relação ao aspecto metódico, diz Laplantine:
É preciso apreendê-lo totalmente [o fenômeno social], isto é, de fora como uma “coisa”, mas também de dentro como
uma realidade vivida. É preciso compreendê-lo alternadamente tal como o percebe o observador estrangeiro (o etnó-
logo), mas também tal como os atores sociais vivem. [...] o que caracteriza o modo de conhecimento próprio das ciên-
cias do homem é que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esforça-se para viver nele mesmo a experi-
ência deste, o que só é possível porque esse objeto é, tanto quanto ele, sujeito. (LAPLANTINE,1988, p. 91)
Antropologia Funcionalista
Com os dois pés fincados no século XX, a Antropologia Funcionalista inaugura uma nova fase de
observação do olhar antropológico (intenso trabalho de campo), com a adoção da observação partici-
pante, quando o pesquisador submerge no oceano cultural da população estudada; desenvolve o mo-
delo etnográfico clássico, a monografia, e estuda, de forma sistematizada e global, os conhecimentos
de uma dada cultura. Há assim uma ruptura epistemológica, uma ruptura na forma de construir o co-
nhecimento, no campo da ciência antropológica, quando o pesquisador procura conhecer as sutilezas
e particularidades da cultura que ele se propõe a compreender, a estudar.
Essa escola dá ênfase ao estudo das instituições, formas de organizações sociais e culturais e das
suas funções para a manutenção do conjunto cultural, da totalidade da cultura de um determinado
povo.
Polonês radicado na Inglaterra, Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi um dos principais protago-
nistas da Escola Funcionalista. Malinowski encontra-se entre os precursores do trabalho de campo, fora
dos gabinetes, no fazer antropológico. Ele radicalizou no conceito de compreensão por dentro de uma
cultura observada; rompeu com a especulação distante e instaurou a observação participante – quando
o antropólogo olha de perto a cultura estudada –; ele tira seu modelo de estudo (o funcionalismo) das
ciências naturais, como a Biologia, e estuda o homem nas dimensões social, psicológica e biológica. Sua
obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, é considerada o primeiro grande estudo etnográfico
de peso.
6 Émile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da Sociologia moderna. Durkheim, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo:
Martin Claret, 2001.
7 Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo e antropólogo francês. Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.
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Essa escola defende que as culturas, de maneira geral, são diversas, mas têm características co-
muns, padrões culturais. Esses padrões são resultados do agrupamento de complexos culturais. O pa-
drão é uma norma regularizadora que estabelece os valores de aceitação e rejeição, dentro de uma
determinada cultura. Diz Ruth Benedict (1989, p. 60), uma das principais expoentes dessa escola, que:
esta elaboração da cultura num padrão coerente não se pode ignorar como se fosse um pormenor sem importância. O
conjunto, como a ciência está a afirmar insistentemente em muitos campos, não é apenas a soma de todas as suas par-
tes, mas o resultado de um único arranjo e única inter-relação das partes, de que resultou uma nova identidade [...].
O Culturalismo Norte-Americano exerceu influência no campo das Ciências Sociais do Brasil. Gil-
berto Freire (1990-1987), autor de Casa Grande e Senzala, foi discípulo de Franz Boas e parte considerável
de sua abordagem da cultura brasileira teve como inspiração as teorias desenvolvidas pelo pesquisador
alemão, radicado nos Estados Unidos.
Antropologia Estruturalista
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi um dos principais articuladores da Escola Atropo-
lógica Estruturalista. Na década de 1940, Lévi-Strauss pesquisou os princípios da organização da mente
humana. Seu objetivo foi estudar as regras estruturantes das culturas presentes na mente humana.
Nessa linha de pesquisa, o antropólogo francês percorreu os caminhos das teorias do parentesco,
da lógica do mito, das chamadas classificações primitivas e da relação natureza versus cultura.
Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo concebe a existência de um certo número de materiais cul-
turais sempre idênticos, como as “cartas de baralho” e o “caleidoscópio” – duas de suas metáforas pre-
feridas – que podem ser classificadas como invariantes. As diferentes possibilidades de combinações
dessas invariantes são ilimitadas. Elas constituem “leis universais que regem as atividades inconscientes
do espírito” (LÉVI-STRAUSS in LAPLANTINE, 1988, p. 138).
Em um caleidoscópio, a combinação de elementos idênticos sempre dá novos resultados. Mas é porque a história
dos historiadores está presente nele – nem que seja na sucessão de chocalhadas que provocam as reorganizações da
estrutura – e as chances para que reapareça duas vezes o mesmo arranjo são praticamente nulas. (LÉVI-STRAUSS apud
LAPLANTINE, 1988, p. 138)
Antropologia Interpretativa
No meado da década de 1960, o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006) de-
senvolveu a Teoria da Antropologia Interpretativa. Geertz problematiza o estudo antropológico ao pro-
por uma “leitura da leitura que os ‘nativos’ fazem de suas próprias culturas”. Ele passa a discutir o papel
político e ideológico da Antropologia e de sua escrita sobre os diversos povos.
O autor passa a estudar a cultura como hierarquia de significados (rede de significados tecida
pelos antropólogos) e a busca por uma descrição densa, intensa, do universo cultural dos povos.
Em Chicago [anos 1960] – àquela altura eu começara a lecionar e agitar – teve início e começou a se difundir um mo-
vimento mais geral [...]. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao mesmo tempo teórico e
metodológico, de “antropologia simbólica”. Mas eu, encarando tudo isso como empreendimento essencialmente her-
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 17
menêutico, um esclarecimento e definição, e não como uma metáfrase ou decodificação, e pouco à vontade com as
misteriosas e cabalísticas implicações de “símbolo”, preferi ”antropologia interpretativa”. (GEERTZ, 2001, p. 27)
Antropologias
Na atualidade, as narrativas antropológicas focam suas observações em aspectos centrais das
sociedades contemporâneas, nos feitos e representações da vida moderna: Antropologia Urbana, An-
tropologia Política, Antropologia Visual, Antropologia Multirracial, entre outras abordagens possíveis.
Antropologia Urbana
A Antropologia Urbana estuda a dinâmica urbana da sociedade atual:
::: sua forma de organização, a distribuição populacional, formas de organização da ocupação
urbana, a cidade, as práticas culturais na cidade, a cidade e sua história – a vida cotidiana, mo-
radia e a vizinhança;
::: práticas de lazer – o tempo sagrado;
::: apropriação do espaço por grupos diferenciados – os cenários, os atores;
::: imagens da cidade – representações do espaço urbano.
Antropologia Política
A Antropologia Política estuda a natureza e as formas das organizações políticas, desde as socie-
dades antigas até as atuais; os processos de formação dos sistemas políticos; as formas de ritualização
18 | Teorias Antropológicas
do poder político; a história e perspectivas dos sistemas políticos (realeza, poder divino, o colonialismo);
as relações do poder com o sistema simbólico (poder, cultura, sistema de comunicação social).
Antropologia Visual
A Antropologia Visual visa ao estudo da produção de imagens e de suas implicações culturais na
sociedade contemporânea: linguagens, meios de comunicação visual (fotografia, vídeo, televisão, cine-
ma), informação visual urbana (outdoor, pichação, muralismo) e as mídias radicais urbanas.
Considerações finais
As Teorias Antropológicas sucederam-se na linha do tempo, desde meados do século XIX, e multi-
plicaram as possibilidades de compreensão integral do homem, e suas produções materiais e culturais.
Elas se constituíram em paradigmas – formas de abordagem metodológicas e epistemológicas
– e em um movimento contínuo formularam teses, antíteses e sínteses teóricas e conceituais para a
compreensão da natureza do ser humano.
Esse movimento global deu-se em razão da complexidade da natureza humana e permite ao an-
tropólogo contemporâneo compreender o passado, estudar o presente e imaginar o futuro.
Texto complementar
Relaxe. Somos todos mestiços
E isso só traz vantagens, afirma o cientista que é o maior estudioso das diásporas humanas
(DORIA, 2007)
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O antropólogo Darcy Ribeiro não viveu para saber, mas a premiada ginasta Daiane dos Santos
parece personagem saída de seus livros: mestiça, uma brasileira ideal daquelas definidas antes de
Darcy por Gilberto Freyre, por Sérgio Buarque de Holanda, é caso de estudo. Nos números coletados
de seu DNA pelo professor mineiro Sérgio Danilo Pena a pedido da BBC Brasil, deu que Daiane é
40,8% européia, 39,7% africana, 19,6% ameríndia.
A antropologia brasileira estudou por muitos anos esta mistura de povos até chegar à famosa
conclusão de Darcy – “ser mestiço é que é bom” – mas é só de pouco tempo para cá que as ciências
biológicas vêm dizer em detalhes exatamente como ela se dá. O estudo da origem genética dos
povos começou nos anos 1950, na Europa, realizado por um jovem médico italiano criado nos anos
do fascismo. Luigi Luca Cavalli-Sforza, entrevistado pelo Aliás, não apenas inventou uma disciplina
científica. Aos 85 anos, ele é um dos mais importantes e prolíficos cientistas vivos.
Um estudioso nos moldes renascentistas, no sentido de que busca informação aproximando
áreas de conhecimento que não costumam se encontrar. Por exemplo: antropologia, genética e
matemática. Com amplo domínio das três disciplinas, após um estudo coletando amostras genéti-
cas de povos em todo o mundo, Cavalli-Sforza pôde traçar a história daquilo que batizou “a grande
diáspora humana”.
Nascemos, o Homo sapiens, na África Oriental. Por mais de metade da existência humana, per-
manecemos lá – e aí nos aventuramos para longe. Do Oriente Médio fomos para a Rússia; de lá,
uma parte foi para a Ásia e outro grupo, mais tarde, para a Europa. Da Ásia, outro ramo seguiu para
a América. Assim, em algumas dezenas de milhares de anos, fomos lentamente ganhando novos
traços. Olhos puxados aqui, pele esbranquiçada ali, pernas mais longas, torsos mais fortes. O próprio
europeu já é mestiço – dois terços asiático, um terço africano.
As técnicas do professor Cavalli-Sforza, aplicadas no Brasil, revelam aquilo que ainda nos causa
surpresa: mestiço não tem cara. Se parecemos brancos ou negros ou mulatos, índios ou não, esta
aparência não diz o que somos. “O Brasil teve a boa sorte de não ver o racismo”, diz o velho cientista
genovês. “Esta é uma herança dos portugueses”, completa, ecoando Darcy. Sim, ser mestiço é bom.
A mistura melhora o povo – dá aquilo que os geneticistas chamam de “vigor híbrido”.
1. Ser mestiço é que é bom, como dizia Darcy Ribeiro? Talvez seja surpreendente para algu-
mas pessoas que a aparência física, como cor da pele, não sejam bons indícios da herança genética.
Os brasileiros estão certamente entre os povos mais misturados do planeta, embora não sejam os
únicos. A diferença é que nenhum dos outros grupos mestiços forma um povo tão vasto. O Brasil
teve a boa sorte de não ver o racismo prosperando, como costuma acontecer noutros cantos. Isso
provavelmente vem de uma herança portuguesa, povo que já demonstrava predisposição pela mistu-
ra racial desde os tempos de suas primeiras colônias, na África. O estudo de nossas origens genéticas
apenas confirma o que já estava claro para bons observadores: a mistura entre povos e a produção
daquilo que nós geneticistas chamamos de híbridos não traz qualquer desvantagem do ponto de
vista genético. Até melhora, traz uma vantagem naquilo que chamamos de “vigor híbrido”.
2. Ainda é possível dizer que existem raças humanas? As diferenças entre povos de locais
geográficos distintos são claramente visíveis, caso de cor da pele e tamanho e formato das partes do
corpo. Estas características refletem adaptações ao clima local que surgiram após a espécie humana
se originar na África Oriental, há relativamente pouco tempo (não mais que 100 ou 150 mil anos, pe-
ríodo bastante curto na escala evolutiva) e, naturalmente, após deixar a África, há coisa de 50 ou 60
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mil anos. De qualquer forma, essas diferenças são triviais em todos os aspectos essenciais. A grande
maioria das diferenças genéticas se encontram entre um indivíduo e outro, jamais entre um povo e
outro. Falando em números, mais de 90% das diferenças genéticas se dão entre duas pessoas de um
mesmo povo. Apenas 10% da variação se dá entre, digamos, europeus e asiáticos, entre africanos
e americanos nativos. Isso acontece porque a nossa é uma espécie muito jovem e ainda não houve
tempo evolutivo para nos diferenciarmos. Quer dizer: não existem raças distintas entre os homens.
3. A idéia de etnia ainda serve para explicar algo a nosso respeito? A utilidade do conceito
de “etnia” depende de sua definição. Para mim, diferenças étnicas são as diferenças entre os po-
vos, tanto genéticas quanto culturais. As distinções culturais são compostas pelo que aprendemos
na sociedade em que somos criados. É natural que tenhamos dificuldades na hora de entender se
um comportamento particular é determinado genética ou culturalmente. Por exemplo: o compor-
tamento criminoso é determinado pelos nossos genes ou pela nossa cultura? Está claro que em
grande parte o que determina é a cultura. Mas é difícil excluir de todo a tendência inata em alguns
casos raros. É aí que o conceito de “etnia” nos ajuda. Ele nos permite deixar para lá a questão de se
algo é cultural ou genético, principalmente nos casos em que a ciência não tem ainda a capacidade
de definir.
4. Que outras pistas a genética pode oferecer a respeito de nossa história humana? Em
geral, os lingüistas têm uma profunda dificuldade de alcançar um consenso em uma das questões
mais importantes de sua disciplina, que é a de se a linguagem surgiu uma única vez, ou se teve
múltiplas origens. Isso acontece porque a maioria desses especialistas não tem interesse em estudar
línguas de forma comparada. Como geneticista, estou convencido de que houve uma única origem
para todas as línguas faladas atualmente. Todos os humanos vivos descendem daquele grupo rela-
tivamente pequeno que viveu na África Oriental há 100 mil anos. Esta tribo cresceu numericamente
e se expandiu pelo resto do mundo, da África para o Oriente Médio, então para a Ásia e Europa.
Por definição, tribos falam a mesma língua, e a linguagem, por conta de seu gigantesco potencial
de comunicação, há de ter sido uma força importante sem a qual a grande migração que levou o
homem a todos os cantos do planeta não teria sido possível. Todos temos a mesma capacidade
intelectual de adquirir esta técnica de comunicação que é a língua. Ela, junto com nossa capacidade
de inventar novas máquinas, são as características que nos diferenciam dos outros animais. Embora,
sempre é bom lembrar, esta é uma questão de graus. Animais também se comunicam e inventam
ferramentas. A diferença na habilidade é que é tremenda.
5. O estudo das origens dos povos pode auxiliar na resolução de conflitos políticos? Nas
questões de terra, como os embates entre judeus e palestinos, não adianta saber quem estava lá pri-
meiro. A propriedade de terras tem origem histórica, a maior parte das propriedades foi adquirida
de forma violenta em guerras e, mesmo em tempos de paz, não é raro que propriedades sejam con-
quistadas por meios desonestos. No caso dos bascos, o problema sequer é de quem chegou primei-
ro. Eles são um povo muito, muito antigo. Sua língua pertence à família de línguas que se espalhou
por todo o mundo antes das ondas migratórias que trouxeram as línguas faladas atualmente na
Europa. Ainda há idiomas “primos” do basco que sobrevivem em muitos lugares, como no Cáucaso,
na China e até mesmo entre grupos de índios americanos. Em geral, as sociedades humanas tentam
desenvolver meios para minimizar os conflitos, mas ainda temos muito a caminhar até chegarmos a
um acordo que leve à paz e à justiça social que desejamos.
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Atividades
1. Na Antropologia, o treinamento do olhar é um dos exercícios mais importantes da observação
participante – trabalho de campo. Saber olhar e discernir a anatomia, as formas e as cores dos
objetos e sujeitos é a ante-sala da etnografia. Desenvolva uma pesquisa bibliográfica tendo como
foco principal o conceito de etnografia e de observação participante. Após a pesquisa procure
identificar os principais elementos culturais da sua cidade. Faça um pequeno relatório com as
seguintes observações:
a) Os pioneiros da cidade.
3. Que teoria inaugura a Antropologia como ciência, em que época isso ocorre, qual sua principal
característica e que conceito de homem foi formulado por ela?