Alabasto
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2, 2013
Comisso Editorial
CORPO EDITORIAL / EDITORS: Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Arajo: Doutor em Cincias Sociais pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Rafael Balseiro Zin: Bacharel em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) EDITORES ASSISTENTES / ASSISTANT EDITORS: Alessandra Felix de Almeida: Graduanda em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Caterina de Castro Rino: Graduada em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Evandro Finardi Sabia: Graduando em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Lvia de Souza Lima: Graduanda em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Ricardo Vianna: Graduando em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Thiago Duarte de Oliveira: Graduando em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) Thiago Henrique Desenzi: Graduando em Sociologia e Poltica pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo ([email protected]) DIAGRAMAO / DIAGRAMMING: Alessandra Felix de Almeida ([email protected])
A Alabastro: revista eletrnica dos alunos da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo tem por escopo a publicao cientfica de artigos acadmicos. Os artigos so de responsabilidade dos respectivos autores, no refletindo necessariamente a opinio da Comisso Editorial acerca do contedo dos mesmos.
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Alabastro: revista eletrnica dos alunos da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo, So Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013.
Sumrio
Nota dos Editores
Rafael de Paula Aguiar Arajo e Rafael Balseiro Zin 4-5
Apresentao
Darcy Ribeiro Irene Maria Ferreira Barbosa 7 -8
Convidado Especial
O exlio interior ou onde cala o sabi Flvio Aguiar 9-18
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O Mal-Estar na Civilizao em Mara Evandro Arruda Carneiro da Silva Os rios profundos e Mara: a utopia de integrao harmoniosa a partir da proposta de ngel Rama Elise Aparecida de Souza e Anelito de Oliveira
50-58 59-73
Artigos
O Sol para Todos: uma reflexo a partir do III Plano Nacional de Direitos Humanos Larissa Rodrigues Vacari de Arruda A liberdade de informao e suas questes polmicas Maria Cristina Barboza Dilma e o subproletariado: uma anlise sobre a corrida presidencial de 2014 Camila Camargo Descrio do atendimento prestado por Instituies Socias de cuidados a sade do Idoso Juliana F. Cecato, Jos Maria Montiel, Daniel Bartholomeu e Jos Eduardo Martinelli Discusses no Conselho: da cultura de Estado cultura de Mercado Um estudo sobre a ao do Conselho Federal de Cultura (1974 - 1990) Renata Duarte Ocupar e Resistir Anderson Alves de Medeiros, Cludio Dias Bezerra, Luciana Nunes Rotondi e Steff Cordeiro de Oliveira Uma interpretao dos ritos fnebres da Assembleia de Deus Carlos Jose Jesus Freire de S 74- 83 84-93 94-101 102-109
110-123
124-136
137-152
Ensaios
Democracia ou ditadura na Europa? Uma contribuio discusso sobre democracia Christoph Hess Sartre: a conscincia de ser visto Rafael Trindade 153-156
157-168
Traduo
Por que a poltica da competio mais acirrada entre os super-ricos, George Monbiot Lvia de Souza Lima 169-171
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com satisfao que oferecemos a vocs, leitores, o segundo nmero da ALABASTRO Revista eletrnica dos alunos da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo. Dando continuidade s comemoraes dos 80 anos da FESPSP, nesta edio, preparamos um Dossi temtico com alguns trabalhos que versam sobre aspectos da vida e obra do antroplogo, escritor e poltico brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997), ex-aluno da Escola de Sociologia e Poltica, formado em 1946, e que ficou conhecido internacionalmente por sua militncia em relao s populaes indgenas e ao contexto da educao no Brasil. Os documentos que compem essa primeira parte tomam como arrancada para a reflexo a obra Mara, publicada, originalmente, em 1976. Os trabalhos contam, tambm, com um texto de apresentao de Irene Maria Ferreira Barbosa, docente de Antropologia no curso de Sociologia e Poltica da FESPSP, e com o ensaio de Flvio Wolf de Aguiar, pesquisador e docente de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. A segunda parte da Revista, por sua vez, composta por demais trabalhos, tais como artigos, ensaios e traduo de texto, que abordam variadas questes referentes ao eixo de pesquisas sobre Estado e desenvolvimento no Brasil. Alm disso, informamos que o processo editorial desta segunda edio traz algumas novidades, que julgamos por bem compartilhar. A principal delas a atribuio do registro ISSN (International Standard
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Serial Number) ALABASTRO, sigla em ingls para Nmero Internacional Normalizado para Publicaes Seriadas. Essa identificao de suma importncia para a visibilidade e o reconhecimento da Revista, pois torna o ttulo da publicao nico e definitivo. Ao mesmo tempo, o uso do ISSN confere vantagens ao processo editorial, uma vez que possibilita rapidez, produtividade, qualidade e preciso na identificao e controle da publicao seriada nas etapas da cadeia produtiva editorial. A outra novidade que esta edio fruto de uma renovao da Comisso Editorial, que dispe, agora, de novos integrantes. Vale frisar que a realizao de um projeto editorial como este, de cunho pedaggico, e que objetiva estimular e tornar pblica a produo de conhecimento feita por jovens pesquisadores, de diferentes instituies universitrias do pas, somente se torna possvel graas ao empenho e dedicao de todos os envolvidos no processo. Por esse motivo, registramos aqui os nossos agradecimentos e as boas vindas aos novos membros. Com vocs, leitores, dividimos a alegria desta experincia. Boa leitura! Rafael de Paula Aguiar Arajo Rafael Balseiro Zin
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Apresentao
Darcy Ribeiro
por Irene Maria Ferreira Barbosa
Docente de Antropologia, no curso de Sociologia e Poltica, da Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo
Escrever sobre Darcy Ribeiro no tarefa fcil, pois ele mesmo j escreveu quase tudo a seu prprio respeito. Sua personalidade trepidante, como diz Antonio Candido, declara que gosta muito de escrever e falar sobre si mesmo, como pode ser observado nas obras: Confisses (1997), Testemunho (1990), Dirios ndios (1996) e em alguns romances em que suas prprias experincias parecem fazer parte do cenrio, como em O Mulo (1981) e Utopia Selvagem (1982), obras com as quais nos deliciamos com as narrativas exuberantes de suas interessantes peripcias. A riqueza do personagem imensa! Para ns, hoje, na Escola de Sociologia e Poltica, temos algumas razes para nos lembrarmos de um dos mais brilhantes alunos desta casa, quer seja pela comemorao de seus 80 anos de fundao, ou pelas atividades decorrentes da leitura de uma de suas obras de literatura no cientfica mais preciosa: Mara (1976). Para mim, especialmente, trata-se de uma obra prima, carregada de conhecimentos antropolgicos magistralmente construdos num cenrio de fico muito verossmil, uma vez que as experincias cientficas do autor lhe permitiram uma certeza a respeito do pano de fundo de onde a obra foi construda. Os cuidados cientficos e polticos envolvidos nas relaes entre ndios e colonizadores e a grande tragdia da colonizao, ficam nitidamente aqui traados por Darcy Ribeiro. Esses aspectos foram muito explorados por vrias escolas literrias,
mas nenhuma produziu o impacto de despertar nos alunos deste atual primeiro ano, ainda com poucos conhecimentos tericos de Antropologia, tanto interesse na leitura e compreenso de uma obra considerada difcil, como um todo, rica de aspectos nem sempre to bvios em uma leitura apressada, mas que exigem grande empenho e interesse. A dedicao e a seriedade com que a leitura do livro foi feita pelos nossos alunos provocaram discusses e debates nos corredores e intervalos de aula. Com isso, um grande nmero de textos sobre etnologia indgena foi mobilizado como leitura complementar, para ajudar o aproveitamento da leitura da obra. Da o surpreendente resultado dos trabalhos que esto a publicados para serem conhecidos. Mara, como experincia literria, traz ao nosso conhecimento as enormes dificuldades impostas pelo processo colonizador e, de certa forma, a falta de perspectiva das populaes indgenas, a despeito das entidades que foram criadas para sua preservao. Darcy Ribeiro lida com um aspecto do sagrado e nos mostra como sua preservao indispensvel para a integridade indgena. A leitura de Mara, portanto, constituiu uma experincia nica para iniciar um curso de Antropologia. A outra grande razo para incluir o nome de Darcy Ribeiro neste momento est na importncia que a Escola, com seus 80 anos, representou para sua formao. Ele mesmo se
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APRESENTaO
orgulhava em dizer que teve a melhor formao possvel no seu tempo, pois teve em So Paulo o melhor ambiente e as orientaes mais competentes que se podia ter na rea de Cincias Humanas, at ento. Darcy Ribeiro sempre mostrou muito orgulho de ter estudado na ento Escola Livre de Sociologia e Poltica, considerando que, naquele momento, So Paulo contava com os melhores pensadores e cientistas sociais. Em suas Confisses, ele nos conta que conheceu Donald Pierson em Belo Horizonte, enquanto membro do movimento estudantil no Diretrio Central de Minas, e teve a oportunidade de convidar personalidades para dar conferncias aos estudantes. Assim, Pierson passou vrios dias com ele visitando de modo encantado as cidades histricas de Minas, que no encontravam nada parecido nos Estados Unidos. Dessa amizade, Pierson convida Darcy para conhecer So Paulo e recruta outro grande aluno para receb-lo e acompanh-lo: Oracy Nogueira, personalidade to diferente de Darcy, mas com quem manteve uma amizade slida e duradoura. Mais tarde Darcy conheceu nomes importantes da vida cultural paulistana, alguns comunistas ativos que influram muito em sua formao e nos rumos de sua trajetria poltica e acadmica. No entanto, entre todos eles, recorda com carinho especial de Donald Pierson, pois com o americano, alm de ter aprendido as tcnicas de pesquisa de campo, reconhecia-o como um professor sistemtico, disciplinado e que fazia tudo de maneira muito sria: (...) tinha encantamentos por estudos urbanos e estudos de comunidade e principalmente pela grande novidade da poca que era a ecologia. a Ainda na Escola Livre, Darcy reconhecia importncia dos excelentes professores
alemes, todos antinazistas, coisa rarssima! Entre eles estavam mille Willems, que dava aulas elegantssimas de Antropologia. O melhor professor que teve, porm, foi o poeta prussiano Herbert Baltus, apaixonado por ndios brasileiros, com quem frequentou seminrios de ps-graduao em etnologia brasileira por trs anos, oportunidade em que discutiu a monografia de Egon Schaden sobre a mitologia heroica dos Guarani e o ensaio fantstico de Florestan Fernandes sobre a organizao dos Tupinamb. Com Baltus aprendi muito, sobretudo a fazer meu seu ideal cientfico de estudar a natureza humana pela observao dos modos de ser, de viver e de pensar dos ndios do Brasil. , portanto, nada menos que admirvel a transfigurao do menino, que, destinado a boiadeiro em Montes Claros, abraou um ideal cientfico desse porte. H, ainda, muitas outras histrias interessantes que nos ajudam a compreender a grande paixo de Darcy por tudo o que fazia. Alm delas, suas obras esto a, a nos desafiar e nos deleitar, e a continuar a despertar nos jovens pesquisadores, que pouco sabem de sua trajetria, uma curiosidade saudvel, conveniente e apaixonante. , assim, um prazer muito grande apresentar os trabalhos temticos feitos pelos alunos de primeiro ano a partir da leitura de Mara de Darcy Ribeiro. Porque recupera a vitalidade literria e o conhecimento erudito de uma realidade que, como imaginava ele, ainda est a a desafiar ndios sobreviventes.
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Convidado Especial
Flvio Aguiar
Los dioses no mueren de repente. (Fernando Ortiz) Mara, de Darcy Ribeiro, o romance de um encontro fortuito e de muitas errncias trgicas. Narrado a partir de diferentes pontos de vista, ele se desdobra na construo de solilquios, monlogos, dilogos, pregaes, pensamentos, na recompilao de notas, relatrios, e at na interveno de uma terceira pessoa onisciente que no captulo Egosum se revela a mais precria das personas narradoras. O espao fundamental da narrativa o da vida tribal dos mairuns, uma tribo ficcionalmente criada pelo autor, onde se condensam, segundo seu prprio depoimento, crenas, mitologias e cosmogonias de diferentes culturas nativas do territrio brasileiro, s margens do rio Iparan, na floresta amaznica vista como ltima fronteira ou fronteira ltima do avano predador de uma civilizao desembestada, herdeira de todos os prejuzos do empreendimento colonial e promotora de todos os aspectos de barbrie do capitalismo. Os mairuns, entretanto, no comparecem ao romance como um tipo genrico de tribo; conforme se desvelam para o leitor sua
mitologia, suas crenas, a voz mesma de seus espritos, de seu criador, eles tornam-se uma tribo particular, um povo ameaado, embora ali estejam como personagens de um drama que no s o deles, mas de todos os povos da Amrica na mesma condio. O que quero dizer com isso de se tornarem uma tribo que o autor no os reduz condio genrica de tipos, mas ao contrrio, os individualiza e com eles dialoga de igual para igual, evitando os escolhos das diferenas de linguagem que caracterizaram muito do regionalismo brasileiro, ou da representao pitoresca, que tambm caracterizou, na literatura, muitos comparecimentos, s suas pginas, das classes populares ou de populaes remotas em relao aos centros urbanos. Mara, o personagem que d o ttulo ao romance, parte do mundo criado a partir de um deus velho, e na criao ele uma espcie de fora vital que anima os homens, chegando a coabitar com seus corpos, coraes e mentes. Os mairuns so o povo de Mara, e a presena desse deus-esprito num homem um momento nico para ambos, que assim se revelam mutuamente, se encaixam no mesmo plano da existncia. Esse momento separa a mitologia mairum da crist,
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CONViDaDO ESPEciaL
pois nesta, se o seu deus se encarna no plano da existncia humana, ele, supostamente, permanece com um p no cu. O homem corre o risco de destruio; o deus cristo no, pois eterno. Mas os deuses e os espritos mairuns desaparecero, se os mairuns desaparecerem, e estes so seres fadados essa desapario. Assim Mara atinge um plano mitolgico, narrando tambm uma histria de deuses, do ponto de vista de sua agonia. Essa narrao se situa na linha divisria de um confronto terminal de culturas e de religies, simbolizada na evocao litrgica da estrutura de Mara. O prprio Darcy Ribeiro declarou que o romance lembrava uma missa. Ora, a missa crist tem dois ncleos fundamentais: a liturgia da palavra e a da eucaristia. Na missa, a liturgia da palavra composta pela evocao do Verbo divino, pelo sermo, pela lembrana dos mortos e dos vivos. J no romance a liturgia da palavra a da narrativa, que combate a letargia da conscincia, num escritor que segue a tradio de empenho da literatura brasileira com os aspectos civilizados da civilizao e contra sua barbrie consentida e potenciada. A liturgia da eucaristia, na missa, centraliza a rememorao e revivescncia de um sacrifcio, que se imprime na conscincia, renovando-a pela memria. Mas na liturgia do romance o ser divino que morre o do outro; ou pelo menos ele agoniza, com a conscincia de sua provvel morte, como no captulo Maraee: Um mundo despovoado de mairummairuns no estar, coitado, de mim tambm despojado? Portanto, na conscincia mairum construda no romance h reciprocidade entre os planos humano e divino; um no existe sem o outro, e o desaparecimento de um acarreta o
desaparecimento do outro, quando ento a treva retornaria e os poderes infernais engolfariam a existncia. Interpretaes mais ousadas da cosmogonia crist tambm apontam uma reciprocidade entre Criador, Criao e Criatura, mas ela no pertence ao dogma cannico. De certo modo aquele processo agnico j comeou, mas tragicamente os mairuns no tm outra possibilidade a no ser a de estarem agora em oposio a um mundo terrvel que, entre outras barbaridades, disps a sua capital no altiplano (Braslia) que encerra a boca do inferno e da treva. A chegada da civilizao pe este povo - pelo menos na conscincia ilustrada de seu profeta, o Av/Isaas, beira da aniquilao absoluta, do fim da histria. Essa chegada da civilizao, com seus novos dominadores e dominados, a chegada do Brasil a seus confins. Se o Brasil a terra das palmeiras, onde canta o sabi, imagem que a contra-faco do prprio poeta que canta a sua terra, aqui, neste confim, ele ameaa perder a voz, porque se verdade que os destrudos sero os mairuns, isso significa que essa civilizaoBrasil perdeu a sua alma (nome, alis, de uma personagem que morre no romance) e est, portanto, mais que morta, reduzida condio de alma penada, fantasma de si mesma, corpo sem ee, ou seja, portadora de uma palavra destituda do seu esprito. O romance, portanto, morde a cauda, e o drama mairum o drama universal, de um ser humano que talvez tenha chegado ao limite de sua existncia. Para a conscincia mairum, com que dialoga o ponto de vista do romancista, a trajetria do protagonista humano (porque h o protagonista divino, Mara, acompanhado de seu irmo Micura, o gamb noturno) que esse Av/Isaas, tambm um sinal dessas enormes mudanas que devero ocorrer no plano universal. Os padres da misso enviaram Av a Gois e a
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Roma para ele fazer-se padre; depois de uma ausncia de uma dezena e meia de anos ele volta a seu lugar de mairum, movido pela dvida sobre sua vocao e sua identidade. Nesse meio tempo Braslia cresceu, sobreveio a ditadura, o mundoBrasil mudou inteiramente. Ele no mais Av, mas no inteiramente Isaas, seu nome de batismo; Av/Isaas, prisioneiro da passagem, condenado a uma espcie de exlio interior, alma errante de ambos os lados do espelho. Ele no um aculturado no entanto; um transculturado, destinado a ser algo alm das culturas cujo confronto desigual lhe deu origem, o smbolo da contradio entre os dois mundos em que viveu, mas onde no vive mais. Numa delas, o ex-tuxaua que no mais, e faz assim deslocar-se o eixo sucessrio no reino mairum, prenncio de desgraas tanto quanto a morte de Alma, no parto, e dos gmeos que dera luz, um smbolo vivo de que o mundo vai perdendo sua substncia. Do outro lado o ex-futuro-padre, smbolo de uma converso que no se completa, sinal de que o mundo j perdeu a sua substncia. Neste outro mundo, espao intermedirio que o seu, Av/Isaas o sinal da cruz: um mundo no pode subsistir sem o outro, embora o mais forte possa aniquilar o mais fraco. O da civilizao que avana parece indestrutvel perante o marum; mas a destruio deste o sinal de que o primeiro, como j disse, perdeu a alma, morreu antes de matar. Faamos uma pausa, para discutir o que esse smbolo transculturado. O termo vem do livro Cuntrapunteo cubano del tabaco y el azcar, publicado em 1940 pelo socilogo cubano Fernando Ortiz, e procura descrever o processo de construo de um novo perfil da sociedade ocidental, em Cuba, a partir da transposio da cultura do tabaco para o plano da produo mercantil, e da implantao na ilha da cultura do acar, trazida pelos europeus junto com a escravido. Diz o socilogo
ento que houve neste jogo uma transculturao do tabaco, que, alm de sair da ilha e da Amrica para o resto do mundo, deixou o plano religioso em que era preferencialmente consumido para tornar-se saboreado enquanto hbito refinado de consumo. Mas esta transculturao aponta para outra, pois a sociedade ocidental que operou a transculturao do tabaco j no mais a mesma que iniciou o processo; os europeus que ocuparam as Amricas tornaram-se outros, se desgarraram de sua cultura original. E neste processo complexo formou-se algo que no existia antes, no coincidente com os termos que lhe deram origem. Por isso Ortiz cria o termo transculturacin, que se ope ao de aculturation, ento muito em voga nos Estados Unidos, onde ele se encontrava. Para ele este ltimo termo est carregado de etnocentrismo, supondo uma cultura superior que absorve elementos de outra inferior, modificando-os sem se modificar. Transculturao supe, sem negar as desigualdades de condio, como a existncia de culturas dominantes e de outras dominadas, uma troca, e modificaes no interior mesmo da dominante. Algumas dcadas mais tarde o crtico uruguaio ngel Rama retomar o termo, ampliando o seu uso. Ao retom-lo, particularmente em seu livro Transculturacin narrativa en Amrica Latina, escrito a partir de meados da dcada de 70, Rama faz um reparo a seu emprego pelo socilogo, Diz o primeiro que este tem uma compreenso demasiadamente mecnica do processo, como se este fora o resultado apenas de transposies inevitveis e inconscientes. Rama acentua ento, ao situ-lo na literatura, os aspectos seletivos da transculturao, afirmando que esta se opera num processo complexo que envolve tanto a aceitao como a rejeio, e que, portanto, pode ser mais volitiva do
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que parece primeira vista. E estende o uso do conceito para caracterizar tambm os processos de modernizao que, em diferentes projetos econmicos, polticos, ideolgicos e culturais, caracterizam a vida das sociedades latinoamericanas a partir sobretudo da segunda metade do sculo XIX. Esses projetos, de que muitos escritores foram pontas-de-lana ou crticos, ou ambos, operariam seus aportes a partir da viso de duas civilizaes em confronto: a moderna e a atrasada. E procurariam desenhar uma outra via, pelo menos os mais criativos, trasnsculturando elementos de uma e outra, de modo a garantir a prevalncia da primeira sem perder de todo a identidade construda na segunda. Se observarmos a obra de Darcy Ribeiro de encontro a esta moldura, podemos pens-la como construda a partir da conscincia trgica de uma transculturao emperrada, pelo menos em seu plano humano. Como j repetiu em algumas de suas obras, inclusive em sua ltima, O povo brasileiro, Darcy Ribeiro v a constituio do Brasil, inicialmente, nos primeiros tempos coloniais, como fruto de uma intensa e extensa mestiagem, que deu origem ao mameluco (de que Juca, o regato, smbolo no romance, e este sim, um tanto quanto estereotipado, a meu ver, um pouco distante da vivacidade que caracteriza outros)1. Porm, passado este primeiro momento, que se distribuiu desigualmente, no tempo, ao longo do territrio do futuro Brasil (antes no litoral do que mais a dentro; antes mais ao norte do que mais ao sul, por exemplo) divises irremediveis voltaram a se implantar. O Brasil assim construdo, e depois de tornado mais complexo com a mestiagem do negro e dos demais imigrantes, no aceita mais o ndio; e o imenso cortejo de culturas diferenciadas, agora reduzidas condio de indgenas, no tm outro remdio seno nela permanecerem como uma espcie de fantasmas de si mesmas. Um
ndio, portanto, jamais deixar de s-lo: no se integra nem se entrega. Pode, eventualmente, se desagregar, pela bebida, prostituio, ou outra maldio qualquer que a civilizao lhe traga. Ao mesmo tempo o brasileiro, do outro lado, jamais chegar a virar ndio, alm de no quer-lo, quase sempre. Alma, a companheira fraternal de Isaas, que com ele vai ao territrio do Iparan, em busca de uma nova existncia, e que se torna uma espcie de fornicadora livre e sagrada para os mairuns, encontra ali a morte, e a de sua prole, por no saber nem poder ser ndia na hora do parto. Ningum a ajuda, ningum grita por ela, ningum segura seus cabelos, nem mesmo Av que, de certo modo, de fato responsvel por sua morte. De um lado e doutro das divisas culturais, para quem ouse atravess-las, s h, ao fim e ao cabo, o desamparo. Por que ento, mais acima, falei de Av/Isaas como um transculturado? Porque no estamos, aqui, falando sobre o plano da existncia. Tudo isto poder ser a expresso mais ldima da verdade para o personagem real, evocado no mesmo romance, o Av que era Bororo e se chamava Tiago, naquele captulo autobiogrfico Egosum, e que teria inspirado o personagem fictcio. Mas no plano da fabulao romanesca Av/Isaas de fato viaja entre os dois mundos, embora no plano da ao do romance ele permanea como um smbolo da impossibilidade. A sociedade brasileira empurrou os primitivos habitantes dessas terras para o exlio em sua prpria ptria: f-los ndios. Fantasmticamente, eles agora nos visitam na literatura, como smbolos constantes do nosso prprio desencontro conosco mesmos e mais ainda: frequentemente como smbolos aceitos da prpria sociedade nacional. A sociedade que aceita um ndio como smbolo de si mesma no mais a mesma do ponto de partida. Por um lado,
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mais perversa, pois aceita em efgie o que recusa em carne e osso; de outro, reconhece, graas sua prpria literatura, ainda que s vezes tenuamente, seu prprio malestar2. Digamos que descrevi at aqui a ao do romance vista pelo ngulo mairum. Poderamos v-la pelo outro lado, pelo lado brasileiro. Uma concluso a de que ela se torna bem mais prosaica, mas no menos interessante. Temos a um romance histrico e poltico, alm de uma histria de amor que no se completa, e por isso traz a morte para uma das personagens envolvidas. Do lado brasileiro, v-se a histria descrita por um escritor agnstico, da ocupao predatria dos espaos da floresta, com sua fauna, sua flora, suas guas, suas terras e seus povos. Essa ocupao se exprime numa polifonia exasperada (expresso j usada por Walnice Nogueira Galvo em relao a Os sertes) de vozes, tonalidades e modalidades desencontradas: a raivosa do regato, a exaltada do beato Xisto, o flautim das namoradas, a perplexa de Alma, a estranha de Isaas, a alegrica dos personagensdeuses, a fria dos relatrios, e sobre todas paira o silncio impune e criminoso do Senador Andorinha, artfice da ocupao predatria. No tempo da ditadura, sonhava-se em transformar a floresta em pastagem; ainda hoje este sonho nos persegue e nele somos ns, os brasileiros, o gado de corte. Enquanto o mito mairum construdo evoca a agonia dos deuses, o romance brasileiro que o enquadra denuncia a destruio criminosa das culturas para a implantao de um sistema mais eficaz de explorao do homem pelo homem. H, neste plano romanesco, uma viso irnica de um processo efetivo de transculturao: dos Epexs, povo irredutvel da regio, s ficar o nome, escolhido pelo Senador para batizar aquelas terras. De uma cultura para a outra gente vira lugar: ndio paisagem.
Nas muitas vezes em que os ndios vieram em socorro da literatura brasileira, predominaram por vezes as tonalidades da idealizao (entre os romnticos, por exemplo), ou da ironia (entre os modernistas, por exemplo). A idealizao promovida pelos romnticos vinha do ardor em construir uma imagem-smbolo da sociedade nacional. Redefiniam, eles, estimulados por seus pares europeus coevos, os passos dados por alguns rcades, como Baslio da Gama, nO Uraguay, que idealizaram o ndio, mantendo-o como estranho ao processo civilizatrio, s passvel de incorporar-se a este se vencido ou reduzido. Esto neste panteo nacional s avessas Cep e Cacambo, mais aquele do que este, entre os primeiros dos ndios levados condio de exilados em sua prpria terra. Cacambo de certo modo o sinal da contradio: ao parlamentar com Gomes Freire, no poema de Baslio, argumenta que a troca do Sacramento pelas Misses prejudicial aos portugueses, pois os ndios devero deixar as terras outrora ocupadas, e estas sem eles e o seu trabalho de nada vale. Ao contrrio de Cep, guarani detido em sua certeza da guerra, Cacambo ndio, mas d lio ilustrada de economia e argumenta como uma burguesa sensatez de esprito. Foi ele, assim, talvez, o nosso primeiro Isaas/Av bem acabado, agitando-se sem sada entre as duas culturas em confronto, pelo menos no plano da fabulao. H algo de rcade em Mara, vendo o ndio diante da civilizao; h o fato novo de que ao tempo de Baslio no havia nada parecido com uma nova sociedade nacional brasileira, a no ser talvez em embrio, nem o fato de que a literatura dessa sociedade emergente tomaria o ndio como smbolo de sua diferena. Nesse novo deslocamento do ndio para fora dos contornos da sociedade brasileira h tambm a retomada e a extenso de uma contribuio de raiz modernista,
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pois se Macunama permanece o smbolo lacre de uma sociedade sem carter definido, sua viagem o conduz, afinal, de volta para os confins e mesmo para o alm dessa sociedade. Do final da Segunda Guerra para c se acentua o trao desse sentimento de que o ndio, se no representa o Brasil, mas a ele confronta, o seu drama de excludo sim representa o conjunto de dramas da sociedade brasileira, cujo eixo construtivo foi a permanente excluso de suas benesses dos que so recrutados para a construo dessas mesmas benesses. Deste sentimento o conto Meu tio, o iauaret, de Guimares Rosa, publicado em 1961 na revista Senhor seria um dos primeiros frutos literrios. Retomando a linha do monlogo dialogante explorada em Grande Serto: veredas, o conto o situa num plano de exasperao onde no h espao para a carga de evocao lrica presente naquele romance. No h qualquer esperana para o narrador-personagem de Meu tio, que um caboclo mestio, sem lugar na sociedade tribal de sua me e de impossvel aceitao por parte da sociedade brasileira de seu pai. E a conscincia do antroplogo Darcy Ribeiro estaria tambm entre as que exprimem este malestar fundacional que medrou em nossa cultura. Estas ltimas linhas querem ressaltar que, se Mara se prende muito de perto conscincia militante do antroplogo e poltico Darcy Ribeiro, e a seu empreendimento de historiador da causa ndia no Brasil e alhures, este romance tambm est solidamente ancorado na experincia literria corrente no Brasil. E ressalte-se que no s quanto questo do tema indigenista; tambm quanto questo do ponto de vista. Em suas confisses sobre o romance. Darcy afirma que o escreveu em dois exlios e uma priso. Ou seja, os limites desse romance so o golpe de 64, pois Darcy diz que a primeira verso nasceu em seu primeiro exlio no Uruguai;
o exlio em seu prprio pas a que a populao se viu condenada pelo regime oriundo do golpe; o novo exlio provocado pelo prolongamento da ditadura, que leva o autor a Lima, no Peru, quando a verso definitiva teria encontrado sua forma; e o declnio da prpria ditadura, pois o romance publicado em 76, quando j medra a poltica da distenso lenta, segura e gradual do governo Geisel, e as oposies comeam a luta pela anistia. Entre os momentos das sucessivas gestaes do romance, pois Darcy diz que a cada exlio ou priso o reescreveu sem a posse das verses prvias, e sua publicao, se processa uma desiluso da intelectualidade brasileira e uma disfuno penetra suas narrativas, ou talvez um novo corpo de funes desagregadoras. Entre a gerao de 30 e essas lindes do golpe de 64, afirmou-se uma narrativa de grandes angulares no romance que tinha por estro medir-se com a histria brasileira, fosse numa viso nacional ou regional. So exemplos dessa inclinao romances to dspares como o j mencionado Grande Serto ou O tempo e o vento. A pluralidade de vozes, se existe, como o caso do ltimo, converge para uma permanente conscincia ou esforo de construo de um ponto de vista integrador que constantemente se afirma: O tempo e o vento um romance solidamente escrito a partir de um ponto de vista que afirma, apesar de tudo, o avano da histria humana ainda que numa viso ctica, irnica e desencantada. Grande Serto narrado por uma voz desdobrada que se detm sempre no avesso da dvida; mas dela emana, sempre, o grande poder evocativo da palavra humana que resgata, para um plano superior da memria, aquilo que se perdeu no labirinto da existncia. Celebra, assim, positivamente, o mistrio dessa e nessa mesma existncia. O ltimo rebento dessa grande angular de vocao integradora talvez tenha sido Quarup, onde as hesitaes do
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protagonista e a evocao do rito indgena, se j evidenciam as irremovveis distncias implantadas na sociedade brasileira e a crise das utopias que logo vo eclodir nos projetos ideolgicos, ainda desembocam numa espcie de esteira cujo destino resgatar o passado em direo ao futuro afirmativo. Este passo se consolida na viso final do Nando encourado, que parte para a luta armada como se fora armado cavaleiro, levando consigo a esperana do encoberto, em seu nome de guerra que evoca o companheiro desaparecido, amor mtico de Francisca que ele, Nando, substituiu no plano da existncia: o Levindo desaparecido, aquele que, parodiando Fernando Pessoa, no veio e por isso mesmo foi vindo nossa memria e nos criou, tambm espelho do recorrente sebastianismo de que somos herdeiros. Se tomarmos o caso de Callado, autor de Quarup, vemos que h um oceano de diferenas entre este caudal histrico que ainda comparece s pginas desse romance e a progressiva fragmentao do ponto de vista narrativo que vai se alastrando em seus outros romances, sobretudo em Reflexos do Baile, que do ano de 1973. No h apenas uma fragmentao tcnica da voz narrativa; mas h um dilaceramento da conscincia do narrador, que no d mais conta da profuso divergente de pontos de vista expressos nos documentos, notas, bilhetes e tantos outros meios expressivos que compem a colcha de retalhos em que se transformou o tecido da narrao. Muito da narrativa brasileira se fez tecendo-se com a histria, empenhando-se na construo de uma literatura e de uma sociedade nacional civilizada. A barbrie implantada no corao do Estado, e assim exposta sem pudores, levou este empenho s lindes do desespero. Construir a sociedade nacional era tambm construir uma possvel monstruosidade. Do casamento deste sentimento de ceticismo em relao tradio de nossas letras
com tcnicas de desconstruo do ponto de vista, tidas como caractersticas da narrativa polifnica moderna, nasceu um livro como Reflexos do Baile. E outro como Mara. Este nasceu, portanto, tambm como resultado de uma transculturao, como a via ou lia ngel Rama que, alis, dedicou seu livro aqui mencionado a dois antroplogos, sendo um deles Darcy Ribeiro, e nele analisa longamente o romance de um terceiro, Jos Maria Arguedas. Vendo a impossibilidade de dilogo eficiente entre os universos culturais em confronto, o que condena um dispario e o outro, o sobrevivente, contnua perverso, fazendo-o permanecer numa espcie de inferno anmico onde vale tudo, o narrador entrega, por assim dizer, esse dilogo sorte ou ao azar do confronto entre estruturas mticas antevistas desde a presena humana em ambas as culturas. Por isso a estrutura litrgica da missa ao mesmo tempo contm e dialoga com a evocao dos mitos mairuns reconstrudos, como se dessas estruturas que evocam tempos arcaicos e seus sacrifcios pudesse emanar, para alm das conscincias dos personagens e a do narrador, que navega entre as deles, alguma esperana de salvao e de porto ou, pelo menos, ncora, que pudesse servir de ponto de referncia. No j referido captulo Egosum, o antroplogo Darcy, transformado em personagem do narrador Darcy, pratica algo semelhante, que pode ilustrar o que quero dizer. Conta ele como, transgredindo todas as normas, as suas, de antroplogo, e as da comunidade que o hospedava, ficou na taba para ver o inharon, ou seja, o ndio furioso, pela perda de um ente querido, e que se torna uma ameaa para todos, pois tem o direito de destruir o que quiser. Darcy conta como, ao deparar-se ento, frente a frente, com o ndio enfurecido, ficaram ambos pasmos e cristalizados pelo espanto, naquele momento absolutamente no previsto
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de completa nudez de um diante do outro e de uma cultura diante da outra. Ao invs de agredilo, o inharon nada fez, at que ele, Darcy, voltasse ao mato e desaparecesse, quando retomou o seu papel de furioso. E ele, Darcy, por sua vez, retomasse o seu papel de antroplogo. O ato hertico do antroplogo e hspede espelha a dupla heresia do narrador agnstico, que toma da missa para elaborar sua narrativa; e mais, toma da missa crist para evocar a morte do outro deus. Quem sabe, assim, devolvendo a missa e o mito cristo a uma de suas razes, que a de absorver mitos e ritos criados a partir de uma adorao solar sacrificial, e de rel-los num contexto de substituio simblica. Mas o narrador Darcy impe uma operao transculturadora tambm na estrutura da missa evocada, pois aqui o emprego da liturgia religiosa no se destina a absorver a cultura do outro, mas sim a construir a voz do deus agonizante. Estamos longe, portanto, das operaes de incorporao de elementos da cultura indgena promovidos, por exemplo, pelos jesutas em seus servios e autos nos primeiros tempos da colonizao. Ou mesmo do casamento idealizado de mitos promovido por Alencar no alto da palmeira onde Peri e Ceci partejam o Brasil, conjugando o mito de Tamandar com o de No, embora a operao de Darcy esteja mais prxima desta do cearense do que daquela dos jesutas. Mas o que importa sublinhar que com toda esta tradio que Darcy dialoga, na tentativa de manter o empenho humanista da literatura de uma sociedade cujos agentes se compraziam na potenciao da barbrie no mago da mesma civilizao que construam. Todas estas tantas linhas do romance convergem para o personagem que, nele, espelha o romancista: o contraditrio Av, imagem de uma transculturao empreendida no plano da fbula e emperrada no plano da existncia. No
mais um mairum, mas um ndio; no mais um futuro chefe, mas um aprendiz de feiticeiro; no mais um seminarista, mas um fantasma de cristo, Av entrega-se, no final, a um empreendimento que espelha o do escritor, suas contradies, dificuldades e heresias. Est ele reescrevendo a Bblia em mairum, o que, de certo modo, lembra essa reescrio da liturgia sacrificial catlica pelo antroplogo-narrador. Sua companheira de empreendimento, esposa do pastor protestante que disputa com a misso catlica e o beato Xisto a safra local de almas, reclama que ele enxerta demasiadas contribuies mairuns no texto sagrado. Precariamente, como o escritor, Av planta com e nas palavras um novo tempo: o tempo da escrita para a lngua mairum; um tempo mairum para a palavra crist. Assim o livro termina, entre tantos outros dizeres de seu captulo final, escrito numa polifonia de conscincias narradoras em que estas se sucedem sem interrupo por pargrafos, por um encontro, no mais fortuito, mas precrio, entre lnguas, entre oralidade e escrita, que tenta resumir e reescrever, por assim dizer, a errncia trgica dos personagens. uma nota tnue de esperana, de uma espera: s que no se sabe muito bem do qu: a espera por uma esperana, no fim de contas e de contares. Nota pessoal Queria concluir este esboo com uma nota estritamente pessoal, uma heresia do ponto de vista acadmico, mas pertinente, do ponto de vista de um ensaio. As observaes sobre a liturgia da missa que aqui fao me foram inspiradas, alm de pelo romance, pela visita que fiz Catedral de Abidjan, na Costa do Marfim, em 1996. uma catedral extraordinria, cuja estrutura lembra, de fora, a imagem da virgem, de braos abertos sobre a cidade, com seu manto
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cadente por detrs, que so, respectivamente a torre e o corpo da igreja. Ao mesmo tempo, visto de certo ngulo, esta virgem de braos abertos aparece como a imagem de um elefante de corpo e tromba erguidos, numa atitude de solene desafio diante da civilizao que o extinguiu naqueles arredores - ou o confinou em reservas. Assisti ali a uma missa com casamento. O noivo e a noiva, em trajes ocidentais, desapareciam diante da profuso de cores das vestimentas tradicionais dos chefes e parentes das aldeias presentes; as damas de companhia da noiva eram adolescentes nuas e pintadas da cintura para cima. E o coro da igreja desencadeou uma chuva de cantocho, barroco, jazz e msicas tradicionais africanas, cada uma com seu espao e individualidade, naquele meio em que, reunindo-se trs africanos, tem-se um coral de Capela Sixtina. Essa visita coroou, de certo modo, a sensao que carreguei comigo das diferenas e semelhanas entre esses dois lados do Atlntico. Percebera vagamente a diferena na culinria, saboreando os cozidos de l, que misturam de tudo, peixe, camaro e lagostim com carne, charque, verduras e inhames daqui levados, mas onde cada ingrediente conserva sua mais absoluta individualidade para o paladar. Vira depois que as estruturas polticas e funcionais locais guardavam um modus vivendi com a estrutura das aldeias, l chamadas de villages, onde muitas coisas da macropoltica eram debatidas e at mesmo decididas. Com isso, contemplando um dos extensos quartis onde ficam permanentemente estacionadas duas divises do exrcito francs, dei-me conta de que ao contrrio daqui, onde houve essa miscigenao ao mesmo tempo absorvente e excludente, l houvera uma espcie de superposio, colocandose as estruturas de raiz ocidental sobre as estruturas familiares tradicionais, sem, no entanto, desmanch-las ou absorv-las completamente.
A muitos brasileiros foi dado redescobrir o Brasil, por contraste, do alto da Torre Eiffel, ou da solenidade de alguma runa europeia, ou de algum quadro outonal dos tempos primpressionistas. A mim foi dada a oportunidade - encontro fortuito nas errncias - de rel-lo desde dentro da Catedral de Abidjan. E pude ver ento que s poderamos mesmo nos tornar o pas do churrasco (hoje um prato nacional), que reuniu grelhada ibrica o hbito inditico de comer grandes nacos frescos, mal e mal passados na brasa, em meio s correrias de perseguio e fuga, com a gordura e o sangue suavizados pela farinha de mandioca; da feijoada, onde o restolho vira iguaria; e do futebol, onde pontap se d com sutileza.
Notas:
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Penso que o mundo brasileiro civilizado se retrata em Mara de modo bem mais esquemtico do que o indgena. Personagens como o regato, seu Elias da Funai, o Major Nonato, e outros so um tanto tipificados e caricaturais, no tm a mesma vivacidade e independncia de um Av, um Jaguar, Mara, Micura e outros. A exceo Alma, cujas complexidades e vai-vens so exuberantes. Este mesmo processo atingiu, por exemplo, o jaguno de Canudos. Vivo, era um inimigo; morto, mas entronizado na literatura expiatria, a prpria rocha viva da nacionalidade. Que se pense tambm nos gachos platinos, perseguidos na pampa, mas imortalizados na gauchesca como smbolo da literatura nacional. Quanto diferena entre plano da ao e plano da fabulao, estabeleo-a porque pode, de fato, haver diferena de sentido entre ambos os planos. Pelo primeiro entendo aquele do destino dos personagens enquanto fices que imitam seres vivos; pelo segundo, entendo o seu papel na construo do mito, ou seja, na construo do enredo vista como a construo de uma estrutura em que os elementos se relacionam uns aos outros e podem ser lidos em molduras ticas, metafsicas, simblicas. Nem sempre o destino do personagem num plano coincide com sua situao no outro. Por exemplo: nOs sertes, no plano da ao os jagunos morrem e o Exrcito vence. Mas no
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plano da fabulao acontece o contrrio: o que permanece a integridade do jaguno; o que se condena, e portanto se perde, se exclui, a violncia das Foras Armadas. Ningum falar do livro de Euclides como o construtor do mito do soldado, mas sim do mito do jaguno. No plano da ao, Peri e Ceci desaparecem na linha do horizonte, antes que suas almas compaream perante o Criador, como diz a jovem, mais realista do que o nativo; no plano da fabulao, do origem a toda uma nao: no morrem, mas mudam o sentido da histria. Nesse plano, quem tem razo Peri: Ceci viver. O que verdade, pois antes de Alencar no havia Cecis, havia s Ceclias; e hoje em dia quase toda famlia brasileira tem pelo menos uma tia ou v Ceci. (E talvez um co chamado Tupi). A literatura pode, assim, transculturar aquilo que na vida real no o , ou, ao criar a imagem de um impasse na vida do personagem, romper esse mesmo impasse no plano da fabulao. Isaas um ndio perdido fora e dentro de si mesmo. No ser ele, em sua diferena, um pouco a imagem de todos ns, e do prprio escritor? Como o espelho, a literatura se desdobra em avessos. Isso no a faz menos realista, mas sim a faz mais interessante.
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Mara sob a perspectiva estatal: a viso institucional e o tratamento legal dos ndios
Paulo Mendes de Carvalho Guedes Marcos Verssimo de Souza Junior
Estudantes de graduao no curso de Sociologia e Poltica, da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo
Introduo
Isaias: Este o nico mandado de Deus que me comove todo: o de que cada povo permanea ele mesmo, com a cara que Ele lhe deu, custe o que custar. Nosso dever, nossa sina, no sei, resistir, como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos mais. Todos inviveis, mas presentes. Cada um de ns, povos inviveis, uma face de Deus. Com sua lngua prpria que muda no tempo, mas que s muda dentro de uma pauta. Com seus costumes e modos peculiares, que tambm mudam, mas mudam por igual, dentro do seu prprio esprito. (RIBEIRO, 2007, p. 44).
O livro Mara de Darcy Ribeiro escrito em 1977 trata da questo indgena e da complexa relao com o dito homem branco ou do povo brasileiro. Mara termina a sua histria sem uma resposta contundente sobre a morte de uma de suas personagens principais, Alma, que, segundo o livro, foi encontrada morta na praia com dois fetos sobre o corpo. O livro de Darcy Ribeiro no trata profundamente de como o estado lida com estas questes jurdicas e institucionais do ndio, mas nos dias de hoje a questo latente e da mesma forma do livro um pouco longe de estar completamente fechada.
Durante a narrativa da histria o texto levanta diversas questes que no so respondidas. Boa parte delas direcionada a relao entre o Estado brasileiro e o povo indgena. Dentro destes questionamentos trs tpicos reais se destacam ao decorrer do romance. Seriam eles: a instituio FUNAI, o rgo Ministrio Pblico e o ordenamento jurdico brasileiro. Podemos extrair nos dilogos entre os personagens perguntas acerca da morte da personagem Alma e de como eles deveriam agir ou como o estado iria agir nesta situao, principalmente se o culpado fosse um ndio, estes dilogos passam por comentrios sobre estes trs tpicos, que no so claros no texto ou que, devido s atualizaes legislativas, mudaram no contexto atual. Considerando estas lacunas faz-se necessria uma investigao mais aprofundada do tema proposto neste trabalho. Esta investigao procura, nos tpicos a seguir, conceituar a atuao da instituio federal Funai (Fundao Nacional do ndio), do rgo Ministrio Pblico, que o responsvel por tratar das questes indgenas no mbito jurdico, e pelo o ordenamento jurdico brasileiro relacionado ao ndio e a sua atuao na sociedade, exemplificados na atuao das leis como Estatuto do ndio (lei federal n 6001/1973), Constituio Federal de
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1988, Cdigo Civil atual (2002) e antigo cdigo civil (1916), cdigo penal e as normas da OIT (organizao internacional do trabalho) da qual o estado brasileiro signatrio, que versam sobre povos e tribos indgenas. Considerando tambm, o projeto de lei que versa sobre o novo estatuto do ndio, que ainda no est em vigor, tramitando nas casas legislativas do congresso nacional desde 1991. A atuao do estado atravs destas trs esferas motivo de dvidas, crticas e elogios no contexto social, politico, antropolgico e jurdico, que em situaes dos dias atuais tem se resumido em noticias breves e superficiais, principalmente no meio miditico. Este trabalho prope, enfim, colaborar para o debate utilizando o controverso romance de Darcy Ribeiro, Mara, e as suas interrogaes. O Ministrio Pblico e os ndios
No futuro, depois de demarcas e registradas as glebas da faixa do Iparan, a partir do limite seco delas, o senador requerer outra faixa no interior e continuar assim, mata adentro, colonizando a mataria, at o fundo do Brasil. (RIBEIRO, 2007, p. 282) verdade que h poucos ndios, mas que diferena! Estes marcham para a civilizao, sem romantismos rondonianos: vestidos, calados, limpos. As meninas tm at certa graa, apesar das carinhas obtusas, silvestres. E se so poucos aqui, ainda menos so no Posto. Numerosos eles s so mesmo na aldeia, que se mantm to-s pela obstinao da Funai e pelo jogo de interesses recprocos quem sabe inconscientes, entre protegidos e protetores. Jogo no qual estes ltimos so os verdadeiros beneficirios. (RIBEIRO, 2007, p. 307)
como representante da lei e dos interesses coletivos e difusos (de terceira gerao), no est subordinado a nenhum dos rgos desse Poder, nem do Legislativo ou Executivo. Alm de rgo de defesa da sociedade, atua tambm na defesa de interesses estatais. o legtimo rgo promotor da justia e da defesa social, cuja funo precpua tornar efetivo o direito de punir os infratores da lei penal, apesar de subsidiariamente atuar em outras searas das mais diversas maneiras. Tais funes esto previstas nos artigos 127 e 130 da Constituio Federal de forma genrica, o legislador optou por versar mais detidamente em outros textos legislativos as especificidades dessas funes, textos aos quais faremos referncia neste trabalho. Dos inmeros excertos extrados do livro Mara que abordam a questo da proteo dos povos indgenas, dos quais transcrevemos apenas alguns, podemos observar que a proteo dos ndios no se trata de um problema de fcil soluo. Tal afirmao corroborada pelas recorrentes reportagens veiculadas pelas mdias que envolvem as questes indgenas, a exemplo do afamado caso da Reserva Raposa Serra do Sol, julgado pelo STF. importante ressaltar que o Ministrio Pblico no atua exclusivamente na proteo dos povos indgenas, tutela tambm interesses de outras populaes consideradas hipossuficientes, tais como as comunidades extrativistas, ribeirinhas, ciganas e quilombolas. No caso emblemtico da Reserva Raposa Serra do Sol, podemos observar a atuao de diversos rgos e entidades do governo. Primeiro, a reserva foi demarcada pelo Ministrio da Justia por meio da Portaria n 820/98 (reformada pela Portaria 543/2005), homologada pela Presidncia da Repblica. Muito se discute, em Mara, sobre o papel do Ministro da Justia, ao qual o investigador desejava enviar o caso, a fim de livrar-
O Ministrio Pblico, diferentemente do que muitos tm por certo, no um rgo do Poder Judicirio. Muito embora funcione junto a este, prestando-lhe colaboraes, atuando
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se da intrincada e trabalhosa apurao dos fatos. As terras da reserva so ocupadas pelos ndios Pemons e Capons, de origem brasileira, guianesa e venezuelana, e estende-se aos territrios dos trs pases, o que torna a celeuma concernente demarcao extremamente dificultosa. Ainda, produtores de arroz da regio disputam as terras com os ndios e invasores de propriedade. A desocupao da reserva, que tem base legal no Decreto n 1.775/96, foi determinada em 2007 pelo Supremo Tribunal Federal e, em 2008, a Polcia Federal perpetrou a Operao Upatakon II, efetiva retirada dos no indgenas da regio, qual se seguiram enfrentamentos que at hoje se estendem, sendo considerada a regio ainda instvel. O papel do Ministrio Pblico se destaca em casos como esses, j que o escopo do rgo assegurar aos referidos povos demarcao, titulao das terras, bem como sade e educao, registro civil, autossustentao, preservao cultural e a to cara autodeterminao, positivada no artigo 4, inciso III, da CF, cuja tutela feita com observncia das caractersticas antropolgicas e consuetudinrias dos povos. Ademais, atua o MP na promoo do desenvolvimento sustentvel. A atuao se d primordialmente por meio de aes civis pblicas, termos de ajustamento de conduta e recomendaes a rgos governamentais (FUNAI, FUNASA, INCRA). No mbito das polticas pblicas, o MP tem tambm autuao bastante intensa. o responsvel pela proposio de polticas de educao e sade (garantia do atendimento pelo SUS) para as comunidades, pela mediao de conflitos de posse de terras etc. Reveladas as caractersticas, reas e meios de atuao do MP, depreendemos uma viso ampla, porm acrtica e descontextualizada desse
rgo. Com efeito, o discurso oficial superestima a qualidade de sua atuao, o modo como vem exercendo suas atribuies, afinal, a despeito de no ser rgo vinculado a um dos trs poderes, componente do quadro oficial do Estado brasileiro. de grande interesse exibir sua atuao de forma romanceada, sob um prisma poltico e propagandstico. tambm conveniente aos partidos polticos governistas omitir seus gargalos, as falhas na atuao, o que prejudica grandemente o desenvolvimento desse rgo. A propsito, medidas atentatrias aos seus poderes vm sendo editadas, como observamos pela PEC 37, recm-vetada, que visava a desautorizar o rgo a investigar na condio de polcia judiciria, tolhendo suas atribuies. Como enunciado pelo socilogo Peter Berger, a viso estatal da realidade (oficial) apenas uma dentre as inmeras oriundas de diversos segmentos da sociedade, cada qual dotado de um sistema interpretativo prprio. Sendo assim, no sensato restringirmo-nos viso oficial, devemos buscar em outros segmentos sociais, mesmo nos submundos, como preconizavam os socilogos da Escola de Chicago, as muitas leituras sociais para desenvolver uma noo mais prxima da realidade. Esse processo de aquisio de conscincia sociolgica deve ento passar pelo crivo de trs dimenses: a desmitificao, a norespeitabilidade e a relativizao de valores. Com efeito, isso que devemos fazer apontar que a relao entre ndios e MP nunca foi pacfica. A morosidade dos rgos pblicos, problema inerente aos servios pblicos brasileiros, agrava conflitos entre ndios, posseiros e empreiteiras, por exemplo. Apenas quando se torna assunto de interesse eleitoreiro, ou seja, quando noticiadas pela grande mdia, so prestadas assistncias antropolgica, militar, judicial, social e sanitria aos povos em conflito, fato ilustrado pela questo
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da construo da Usina Belo Monte. Acresase a isso o meandroso jogo poltico brasileiro, assolado pela interferncia de interesses privados emanados de toda sorte de polticos e agentes investidos em cargos pblicos, os quais atentam contra a celeridade e a idoneidade das decises estatais, como observamos no trecho referente aos interesses de um senador na demarcao de terras indgenas. Enfim, feitas as devidas consideraes quanto s condies de atuao do MP, bem como a oposio limitao ao discurso oficial, revelemos a mais importante concernente ao livro Mara; trata-se da funo de tornar efetivo o direito de punir do Estado, porquanto o MP rgo de acusao dos violadores da lei penal. De acordo com os artigos 56 e 57 da Lei n 6.001, de 1973, que regula as normas penais atinentes aos povos indgenas, na hiptese de condenao de ndio por infrao penal, a pena dever ser atenuada e o Juiz aferir o grau de integrao do silvcola antes de comin-la, assunto que ser aprofundado em outro tpico deste trabalho. A atuao da Funai
Pelo que vejo a coisa est muito bem urdida e justificada para que os ndios fiquem na aldeia como ndios e os agentes nos Postos como seus remotos tutores. O resultado que eles jamais se integraro nos usos e costumes da civilizao. Mas tambm que os funcionrios da Funai no perdero seus empregos de burocratas-afazendados custa da Fazenda nacional. (RIBEIRO, 2007, p. 27) Agora as nicas presenas civilizadoras em toda esta imensa zona so, em primeirssimo lugar, o senhor Oliveira e os trabalhadores por ele contratados que tiram daqui anualmente e exportam uma produo avaliada em vrios milhes. Num segundo lugar muito medocre,
seu Elias, que aqui representa o governo federal atravs da Funai e cuja ao j apreciamos no seu justo valor. Em terceiro lugar, mas numa posio de honra, vem a misso Catlica de Nossa Senhora do , que labuta h quarenta anos para catequisar os mairuns e outros selvagens, e tem colhido bons frutos. (RIBEIRO, 2007, p. 176)
Outra entidade de proeminente vulto na intermediao entre sociedades civil e indgenas a Fundao Nacional do ndio (Funai), constituda pela Lei n 5.371, de 1967. A Funai um ente da administrao indireta, uma fundao, cujo regime jurdico feito pelo Decreto-lei 200/67. Neste texto legislativo, em seu art. 5, IV, encontramos a qualificao da FUNAI: trata-se de uma fundao pblica dotada de personalidade jurdica de direito privado, por meio de uma autorizao legislativa (Lei n 5.371), com o escopo de desenvolver atividades que no exijam execuo por rgos de direito pblico. Goza de autonomia administrativa e patrimonial, tem seu funcionamento custeado por recursos da Unio porquanto entidade vinculada tutela administrativa do poder federal e hierarquicamente organizada, contando com um quadro pessoal prprio. Essa entidade tem competncia para promover a educao bsica dos ndios, demarcar, assegurar e proteger suas terras, estimular o desenvolvimento de estudos e levantamentos dos povos. Alm disso, responsvel por defender as comunidades indgenas, como observamos no recente episdio da retirada dos ndios que ocuparam fazendas em Sidrolndia, a 70 km de Campo Grande; a Justia anulou a liminar que determinou a retirada da comunidade porque nem o Ministrio Pblico nem a Funai foram consultados. Apesar do nobre propsito a que se destina, qual seja, a proteo das terras, da
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populao e da cultura indgena, a Funai, bem como o MP, no est isenta de crticas. O comentrio da pgina 27 do livro (Mas tambm que os funcionrios da Funai no perdero seus empregos de burocratas-afazendados custa da Fazenda nacional) endossado por recorrentes e inmeros ataques instituio. Os mais pertinentes so os que versam sobre a falta de credibilidade da entidade e de seus funcionrios, tidos muitas vezes como parasitas do Estado brasileiro. H diversas denncias atinentes a improbidade administrativa, desvio de recursos e cooptao de lideranas indgenas, o que vem degradando paulatinamente a imagem dessa instituio. Sem embargo, a Funai ainda fundamental para a proteo das comunidades indgenas, seja atuando ao lado do MP no resguardo dos interesses dos ndios, seja participando dos julgamentos das cortes na qualidade de amicus curiae. Darcy Ribeiro aponta para a sobressalente importncia do papel da Funai em diversos momentos de Mara, como no excerto transcrito, do qual inferimos ser tal entidade muitas vezes a nica representao do governo brasileiro no territrio dos ndios, Num segundo lugar muito medocre, seu Elias, que aqui representa o governo federal atravs da Funai e cuja ao j apreciamos no seu justo valor. Ordenamento jurdico brasileiro e a questo indgena
Se algum matou essa mulher e se no foi o tal Isaas , seria um deles. E se for um deles, como se ela no tivesse morrido, porque, conforme fui advertido, os selvagens so irresponsveis perante a lei civil. Mas estar na mesma condio o tal Isaas, que resolveu regressar do estrangeiro quando estava a ponto de tomar ordem? O senhor Elias acha que a incapacidade jurdica dos ndios no total, mas relativa. Tanto que
podem ser julgados e castigados por seus crimes. Mas adverte que os juzes so sempre inspetores da Funai e que a punio se cumpre obrigatoriamente num Posto Indgena, mantido para isso. Ser verdade? No me parece razovel, nem crvel. Sobretudo aplicado esse cdigo esdrxulo ao tal Isaas. Ele se converteria, nesse caso, num brasileiro privilegiado. Com regalias de cometer quaisquer crimes ou atropelos sem que o brao e o rigor da lei se lhe aplicassem como devido. (RIBEIRO, 2007, p. 98)
O tratamento legal dado s comunidades indgenas no Brasil algo nebuloso e bastante segmentado. O romance, Mara, relata esta falta de clareza em diversos trechos. Um deles, reproduzido acima, traz consigo algumas dvidas sobre o aspecto legal do indgena, e suscita outras questes, alm das escritas, sobre o tema. A primeira questo a ser respondida sobre a capacidade civil do indgena. Ser realmente que os ndios so irresponsveis perante o cdigo civil brasileiro? Para responder esta questo, vale salientar que a poca em que a obra foi escrita o cdigo civil vigente era de 1916, que sofreu alteraes e atualizaes em 2002 (atual em vigncia no pas). A diferena que a redao do cdigo civil de 1916 tratava o chamado silvcola (povo que vive na floresta, selvagem ou ndio) como relativamente incapaz, ou seja, para determinados atos o ndio precisaria ser tutelado, esta tutela seria especificada em outras leis assim como os atos a serem tutelados. O atual cdigo no avanou muito sobre o assunto, porm retirou esta parte, da incapacidade do ndio, e acrescentou que uma lei especfica tratar sobre o assunto (Pargrafo nico do artigo 4 do cdigo civil atual). A resposta questo trazida pelo texto, sobre a responsabilidade civil do indgena, : depende. Depende de outras leis especificas, como estatuto
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do ndio, por exemplo. O estatuto do ndio uma lei federal, com 68 artigos, de 1973, que funciona para tratar das mais diversas questes correlacionadas com o povo indgena. Esta lei especifica, traz conceitos como as definies de ndio para o estado brasileiro, questo territorial, trabalhista, penal e outras conexas a esta realidade. importante salientar que para o legislador do estatuto, o ndio era uma espcie de homem em evoluo ou em progresso que precisava ser integrado a civilizao, como mostra o artigo primeiro do estatuto: Art. 1 Esta Lei regula a situao jurdica dos ndios ou silvcolas e das comunidades indgenas, com o propsito de preservar a sua cultura e integr-los, progressiva e harmoniosamente, comunho nacional. Partindo deste pressuposto fica mais fcil entender as demais questes do estatuto, como a diviso em fases da integrao do ndio. No estatuto o ndio dividido em trs momentos de integrao, o primeiro o isolado, ou seja, aquele que no tem nenhum ou apenas pouco contato com a dita comunho nacional, o segundo o chamado em vias de integrao, que, como o nome j diz, esto se integrando a cultura da civilizao e dependendo dela aos poucos e o terceiro o integrado, que, ainda conservando parte da cultura indgena, est totalmente integrado a cultura do pas podendo reconhecer todos os atos da vida civil. Considerando estas informaes, conseguimos responder com maior tranquilidade a duas questes trazidas no trecho, transcrito acima, do livro Mara. Podemos responder que o ndio no irresponsvel perante a lei civil, porm esta responsabilidade ser medida levando em considerao a fase de integrao em que o ndio se encontra, adaptando ou excluindo
uma possvel consequncia legal de um ato civil relacionado com indgenas. Conseguimos dar uma resposta indagao do major Nonato no trecho: - Mas estar na mesma condio o tal Isaas, que resolveu regressar do estrangeiro quando estava a ponto de tomar ordem? Segundo o entendimento do estatuto, a resposta no, pois Isaias, como mostra o enredo, est totalmente integrado civilizao, portanto capaz de exercitar e entender todos os atos da vida civil. Logicamente, esta questo na realidade dever ser avaliada por um Juiz competente caso a caso. Outro ponto importante com relao questo penal do ndio, ou seja, como ele ser tratado caso cometa algum ato que seja considerado ilcito. Em outra passagem do livro vemos um questionamento sobre isto:
Ramiro: Era s o que faltava... Que que eles tm a ver com isto? Ou voc pensa que os ndios mataram a gringa e depois caram naquele berreiro pago s para impressionar o suo? Nada disso! Vou mandar pro ministro da Justia, general Cipriano Catapreta. Fao um servio limpo e ponho a morta na mo de quem competente para apurar. Apurar, inclusive, se os ndios foram os culpados. S o general-ministro pode sair desta. O Cdigo Civil declara que os ndios so prdigos como os menores, os alienados e as mulheres casadas , quer dizer, irresponsveis perante a lei; quer dizer: inocentes. (RIBEIRO, 2007, p. 36)
Como dito anteriormente, este texto tem que ser analisado com base na mudana do cdigo civil, porm, como o assunto do trecho diz respeito a um crime, a aplicao ideal est disposta no cdigo penal brasileiro. Pelo menos deveria, pois o cdigo penal no trata da questo indgena especificamente. Uma passagem importante da lei penal esta no artigo 26 que diz que: caso o autor da ao seja inteiramente incapaz de entender o
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carter ilcito do fato ele ser isento de punio, esta passagem do cdigo penal, por vezes, utilizada para tratar da questo do ndio, mas no encerra o problema, fazendo com que a leitura de outras leis seja necessria, como, novamente, o estatuto do ndio e outras normas. Os artigos 56 e 57 do estatuto do ndio tratam da questo criminal do indgena. O texto da lei mostra que, caso se comprove que um indgena foi o autor de um ato ilegal (que tenha consequncias penais), um Juiz competente ir decidir a aplicao da punio, levando em considerao o grau de integrao (isolado, em vias de integrao ou integrado) do indgena. Portanto, voltando ao texto de Mara descrito acima, os ndios no so inocentes perante a lei, porm o Juiz, competente, quem vai determinar a capacidade de entendimento do carter ilegal do ato que um ndio, possivelmente, possa cometer, assim determinando a punio ou o isentando dela. Caso o indgena seja condenado o estatuto tambm prev que, na medida da possibilidade, a pena ser cumprida em regime de semiliberdade em local de funcionamento de um rgo federal de auxlio ao ndio, ou seja, a FUNAI (j conceituada em tpicos anteriores). O que responde a indagao do trecho trazido no inicio deste tpico: Mas adverte que os juzes so sempre inspetores da Funai e que a punio se cumpre obrigatoriamente num Posto Indgena, mantido para isso. Ser verdade?. Sim verdade, esclarecendo somente que o termo usado na lei no obrigatoriamente e sim se possvel e que o Juiz no ser um inspetor da FUNAI, como diz o trecho, e sim membro do poder judicirio constitudo e competente na ao. No artigo 57, porm, o legislador traz a possibilidade do Juiz considerar a punio dada pela tribo, ao ato ilcito, como suficiente, proibindo nestes casos penas
cruis ou de morte. Com relao ao aspecto criminal outras polmicas surgem, como a noticia que em algumas tribos do Brasil existe ainda a cultura de matar ou negar cuidados a crianas gmeas ou com alguma espcie de deficincia, chegando at a enterrar recm-nascidos vivos devido crena, destas tribos, que acreditam ser vitimas de maldio, portanto no devem conviver com a comunidade da tribo. A polmica se d justamente pelas questes acima apresentadas, ou seja, at que ponto um ndio ou uma tribo pode agir conforme o seu entendimento de ilicitude baseado em sua cultura local ou, ainda, temos direito de intervir em outra cultura e impor nossas leis? Na ltima parte do trecho transcrito, no inicio deste tpico, uma questo fica aberta: Ele se converteria, nesse caso, num brasileiro privilegiado. Com regalias de cometer quaisquer crimes ou atropelos sem que o brao e o rigor da lei se lhe aplicassem como devido? Para dar uma resposta, precisamos recorrer s normas da OIT (organizao internacional do trabalho), que uma conveno internacional que versa sobre direitos humanos cujo Brasil signatrio. A conveno da OIT de numero 169 trata sobre povos indgenas e foi aprovada no ordenamento jurdico brasileiro aps um decreto lei de 2004. Esta conveno traz no seu artigo oitavo que os povos indgenas tero direito de exercer a sua cultura, costumes e instituies prprias desde que nenhum destes atos afete os direitos fundamentais do pas ou os direitos humanos internacionais. Com esta redao respondemos o embate, juridicamente, esclarecendo que no h um privilgio com relao cultura indgena, existe uma limitao imposta pelos direitos fundamentais do pas e dos direitos humanos internacionais que precisam ser respeitados, pois so considerados maiores do que qualquer manifestao cultural de determinado
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povo. Assim, dando o direito ao estado de intervir caso abusos contra estes princpios forem cometidos, logicamente, levando em considerao todos os demais direitos dos indgenas e a busca da soluo legal da situao apurada. Com a inteno de atualizar o estatuto do ndio escrito em 1973 e dar conta destas questes apresentadas, vrios outros projetos de lei para o novo estatuto foram apresentados, principalmente aps a promulgao da constituio federal de 1988. Em 1991 o ento deputado Aloizio Mercadante, junto com outros dois parlamentares, entregou o projeto do novo estatuto do ndio, este projeto foi compilado em 1994 juntando outras propostas do novo estatuto, porm desde ento o congresso no discutiu mais sobre o assunto. No decorrer destes 22 anos apenas algumas emendas ao projeto e ao estatuto foram apresentadas, mas nada de carter definitivo. Dentro destas novas propostas temos sugestes que podem melhorar a situao jurdica do ndio. Como, por exemplo, a obrigao de relatrio antropolgico em processos que envolvam ndios, tanto no mbito civil quanto penal e outras relacionados com povos indgenas. E situaes controversas como a sugesto de impedimento de atuao do estado em tribos totalmente isoladas ou que no tiveram contato com a sociedade civilizada. Todas estas questes ainda esto em debate, portanto no servem de base para uma possvel atuao na realidade, mas que desde j interessa para um olhar mais aprofundado na questo e das suas melhorias. Esperamos, apenas, que estas melhorias e questes no levem mais 22 anos para serem discutidas por nossos parlamentares e nem pela sociedade de modo geral.
Concluso Conclumos que a atuao do estado perante o ndio tem sido at aqui uma relao distante e superficial. No existe por parte do governo um projeto contundente e determinado com relao aos povos indgenas, existe apenas o relacionamento atravs de braos dispersos. necessria uma organizao mais estruturada e competente para tratar do assunto indgena mais de perto. Esta organizao precisa conter leis ou lei especifica conclusiva, condies e autonomia para agir em conflitos e situaes cotidianas nas tribos e apoio governamental para funcionar. Assim, como abertura e transparncia nas aes realizadas. nesse contexto que urge a tomada de medidas polticas que criem novas entidades para intermediar as relaes entre Estado e ndio, ou que fortaleam os rgos j institudos para tal finalidade. De fato, imperioso o incentivo legal ao Ministrio Pblico, legtimo rgo promotor da justia e da defesa social, a fim de implementar com maior eficincia a demarcao e titulao das terras indgenas e a defesa desse segmento social em todos os mbitos, por meio, por exemplo, de polticas pblicas de sade, educao e preservao cultural. Da mesma forma, h de ser valorizada a atuao da Funai, entidade que, como j mencionado, atua nos mesmos segmentos do Ministrio Pblico, mas de forma mais prxima s comunidades indgenas, possibilitando um conhecimento de causa muito mais complexo. Contudo, antes da ampliao do papel dessa entidade, necessria sua reformulao, porquanto esto patentes a ineficincia e as brechas a corrupes internas nos moldes como desenvolve suas funes hodiernamente. Assim, a falta de credibilidade e de confiana da sociedade
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civil em relao a essa entidade tem de ser extirpadas a fim de que o Estado brasileiro tenha respaldo social para destinar-lhe maiores recursos. Vimos no livro de Darcy Ribeiro uma forma romanceada de suscitar debates com relao aos povos indgenas e o seu espao na sociedade. Personagens com problemas reais, diferentes dos criados por outros autores indianistas e situaes que versam com a temtica do dia a dia nas comunidades indgenas. Desta forma, este livro mostra, mesmo que de forma romanceada e, por vezes, idealizada com relao pureza dos atos culturais, que a sociedade precisa conhecer e respeitar os povos que aqui j existiam antes da colonizao, entender as suas peculiaridades sem um olhar de superioridade e por fim contribuir para uma relao harmnica e colaborativa com as populaes da floresta.
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/decreto/d5051.htm. Acesso em: 05 jun.2013. DECRETO-LEI No 28.48/1940. Cdigo Penal Brasileiro. Disponvel em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 05 jun.2013. LEI N 6001/1973. Estatuto do ndio. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l6001.htm. Acesso em: 05 jun.2013. LEI No 10.406/2002. Cdigo Civil Brasileiro. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 06 jun.2013. LEI No 3.071/1916. Antigo Cdigo Civil Brasileiro. Disponvel em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 06 jun.2013. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. PLANETA SUSTENTVEL. Novo Estatuto do ndio sai, mesmo?. Disponvel em: http:// planetasustentavel.abril.com.br/blog/blog-daredacao/161524/. Acesso em: 05 jun.2013. PROJETO DE LEI N 2.057/91. Novo Estatuto do ndio. Disponvel em: http://www.funai.gov. br/pptal/novoestatuto.htm. Acesso em: 11 jun.2013. RIBEIRO, Darcy. Mara. So Paulo: Record, 2007.
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Darcy Ribeiro, no foi somente um antroplogo brasileiro, mineiro, natural de Montes Claros, quis ser mdico, mas instigado a entender as coisas do mundo, virou antroplogo. Nasceu em 26 de outubro de 1922, e morreu no dia 17 de fevereiro de 1997, nestes 74 anos, viveu intensamente sua busca em entender o Brasil e os brasileiros. Antroplogo de formao e profisso foi tambm militante assumido, trazendo por vezes dificuldades para saber onde comea um ou termina o outro. Sendo assim, no mundo do antroplogo um militante e no universo da militncia um antroplogo. Sua carreira acadmica teve incio em So Paulo, quando se formou em antropologia, em 1946, com 24 anos, na Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo, na poca ainda denominada de Escola Livre de Sociologia e Poltica, e mudouse para o Rio de Janeiro onde passou a trabalhar como naturalista do Servio de Proteo ao ndio SPI, se dedicando a estudos indgenas, de 1947 a 1956. Nos anos seguintes, volta sua ateno educao primria e de ensino superior, encabeando diversos projetos, entre eles a Universidade de Braslia (UNB), na qual se tornou
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o primeiro reitor. Em seguida, entra na esfera poltica, tornando-se Ministro da Educao, deixando o cargo para ser Ministro da Casa Civil, ambos no governo de Joo Goulart, o que lhe rendeu seu primeiro exlio no Uruguai, com o golpe militar de 1964. Neste perodo alm de comear escrever seus primeiros romances Mara e O Mulato, termina sua primeira verso de O Povo Brasileiro: A formao e o sentido do Brasil. Em busca de revisar sua obra, escreve os cinco primeiros volumes de seus Estudos de Antropologia da Civilizao1, de acordo com o autor: A necessidade de uma teoria do Brasil, que nos situasse na histria humana, me levou ousadia de propor toda uma teoria da histria (RIBEIRO, 2010, p. 13). Em 1976 volta ao Brasil, dedicando-se a educao e a poltica nas quais tem diversas participaes com seu trabalho, dentro e fora do pas, sendo eleito em 1982, vice-governador do Rio de Janeiro. Em 1991, elege-se Senador da Repblica pelo estado do Rio de Janeiro, no qual elabora a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, (contudo esta s foi sancionada em 1996, pelo ento presidente da Repblica Fernando Henrique Cardoso). Com grande interesse pela
A primeira verso deste artigo foi apresentada no III Seminrio de Iniciao Cientfica da Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo, em 2011, sendo esta uma verso revisada.
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educao participou de diversos projetos, entre eles, a criao da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), concomitante a vrias publicaes de seus livros, como Utopia Selvagem; Migo; Aos Trancos e Barrancos; entre outros. Sendo que em 1993, eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Em 1995, j acometido por um cncer, termina a terceira e ltima verso de O Povo Brasileiro2, que segundo o autor (...) alm de um texto antropolgico explicativo, , e quer ser, um gesto meu para uma nova luta por um Brasil decente. (RIBEIRO, 2010, p. 16) Sua ltima grande obra foi a Fundao Darcy Ribeiro, instituda em 1996, que tem por objetivo manter sua produo e elaborar projetos nas reas educacional e cultural. Em 17 de fevereiro de 1997, Darcy Ribeiro morre, deixando seu legado, tanto na rea educacional, como na perspectiva de pensar o Brasil. Este artigo de carter ensastico tem por finalidade discutir um pouco mais sobre esse autor de importncia impar para analisar o Brasil, bem como seu povo, que trabalhou em diferentes reas, discutindo diversos assuntos. Antroplogo, educador, romancista, poltico, entre outros, Darcy Ribeiro foi um autor de seu tempo, fazendo com que sua obra tenha grande relevncia para o Brasil. Antropologia Quando se formou em antropologia, Darcy tinha vrios caminhos a seguir3, contudo escolheu trabalhar na Secretaria de Proteo ao ndio (SPI) com o Marechal Rondon, sendo que ele foi o primeiro no Brasil a ser contratado como etnlogo, passou dez anos de sua vida, que segundo o mesmo, foram os melhores desta, estudando e trabalhando com os ndios, o que lhe
Segundo Darcy Ribeiro, quando este foi para tribo que ele aprendeu a ser etnlogo, aprendeu a observ-los, e medida que os estudava ia se refazendo tambm:
(...). E comecei a perceber que os problemas da aculturao, da integrao eram muito mais importantes do que o parentesco, do que a arte, do que a mitologia. Ento comecei a alterar a minha antropologia. (Darcy Ribeiro entrevistado por Edilson Martins, 1979)
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Em 1952, Darcy criou, junto com o Marechal Rondon e o sertanista Orlando Vilas Boas, o projeto para o Parque Indgena do Xingu, lugar que concentra vrias tribos de diferentes linhagens, e que busca a preservao da cultura indgena. E em 1953 inaugura o Museu do ndio, no Rio de Janeiro, que passou a servir como centro de estudos sobre a questo indgena. Em 1955, com a ajuda de Eduardo Galvo e o patrocnio da CAPES, Darcy Ribeiro organizou o curso de Ps Graduao em Antropologia Cultural, sediado no Museu do ndio. Contudo em 1956, com a mudana do governo e concomitantemente a direo do SPI, Darcy, desvincula-se da mesma e ingressa como professor da cadeira de Etnologia e Lngua Tupi na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil.
(...) Darcy Ribeiro, na antropologia, extrapola o meio acadmico e inaugura outros espaos e ambientes de atuao profissional para o antroplogo. Atuou na pesquisa etnolgica, atuou na formao acadmica de novos antroplogos, mostrou que o conhecimento especializado era fundamental na orientao da poltica indigenista, apresentou o ndio sociedade nacional com dignidade e exigindo respeito. (MOREIRA, 2009, p. 136 /137)
(...) como antroplogo, no perdoa seus companheiros de gerao pela reverncia aos modelos tericos exgenos, de todo imprprios, a seu juzo, para interpretar o que no nos deixamos conhecer, o prprio pas. (BOMENY, 2001, p. 54). Dessa maneira, fora deixado de lado pela academia, sendo considerado um antroplogo tendencioso e enviesado, suas teorias foram postas de lado. No entanto, seu reconhecimento internacional como antroplogo se tornou maior que o nacional e seus livros traduzidos em vrios idiomas; so adotados como leitura obrigatria para aqueles que buscam entender minimamente os problemas da Amrica Latina e seus povos. Educao Darcy foi trabalhar com educao pelas mos de Ansio Teixeira (1900-1971), importante intelectual da rea de educao, que o fascinou com sua luta pela escola pblica de qualidade, se tornando assim seus discpulo e colaborador. (...) Ansio me ensinou a duvidar e a pensar. (RIBEIRO, 1997, p. 223). Convidado, em 1957, a codirigir o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CEPE), por Ansio Teixeira, Darcy foi ficou responsvel por um programa nacional de estudos sobre o rural e interiorano. E assim comeou sua carreira no campo da educao. Transferiu o programa de ps-graduao para a formao de pesquisadores que mantinha no Museu do ndio e comeou a ganhar notoriedade nesta rea. Essa notoriedade veio concomitante a elaborao do projeto da Universidade de Braslia (UNB), papel que desempenhou com prazer, junto com seu mentor Ansio Teixeira, a pedido do ento presidente Juscelino Kubitschek. A UNB foi concebida para ser um modelo de funcionamento para as universidades brasileiras:
Darcy trabalhava com a antropologia dialtica, influenciado pelo seu posicionamento marxista, tanto quanto por sua formao culturalista americana. (GOMES, 2000). Acreditava em uma antropologia de esquerda, interventora, disposta a transformar, de mudar, incomodar. Segundo Helena Bomeny, Darcy
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Repito: o Brasil no pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domnio do saber humano e que cultive no como um ato de fruio erudita ou de vaidade acadmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema. Esta a tarefa da Universidade de Braslia. Para isso ela foi concebida e criada. Este o desafio que hoje, agora e sempre ela enfrentar. (RIBEIRO, 1995, p. 274)
como professor em tempo integral, colaborou no planejamento e na realizao da Enciclopdia Cultural Uruguaia e dirigiu o Seminrio da reforma da Universidade do Uruguai. Nos doze anos seguintes, trabalhou na Venezuela, no Chile, Peru, na Arglia e na Costa Rica, dirigindo seminrios de reformas universitrias e elaborando planos de reestruturao. Voltando em 1976 para o Brasil. A obra educacional de que Darcy mais se orgulhava de ter concebido e concretizado, foram os CIEPs (Centro Integrados de Educao Pblica), programa iniciado em 1984, e inaugurado em 1985. Sua proposta era de escola em tempo integral, com refeies diurnas, banho e atividades pedaggicas normais e tuteladas. (GOMES, 2000, p. 44) Darcy criou diversos centros culturais; idealizou a Biblioteca Pblica Estadual do Rio de Janeiro, a Casa Frana - Brasil, Casa Laura Alvin, Centro Infantil de Cultura de Ipanema, Sambdromo, o Monumento a Zumbi dos Palmares, o Memorial da Amrica Latina, entre outros. Sua ltima grande obra foi a Fundao Darcy Ribeiro, instituda em 1996, que tem por objetivo manter sua obra e elaborar projetos nas reas educacional e cultural. Poltica O papel de Darcy como poltico sempre esteve entrelaado em seus outros papis. Apesar de ter sido um entusiasmado militante comunista, ingressou na vida poltica ao aceitar o cargo de Ministro da Educao (1962-1963) e depois Chefe da Casa Civil do governo de Joo Goulart (1963-1964).
Darcy entrou de corpo e alma no governo Goulart. Foi responsvel pela coordenao dos dois projetos que considerava os mais importantes daquele governo, e que no seu entender
Darcy se tornou o primeiro reitor da UNB, cargo que exerceu at ser convidado para ser Ministro da Educao do governo Joo Goulart. Foi na campanha por uma lei democrtica para educao e na luta para criar a Universidade de Braslia que comecei a me tornar visvel no Brasil como educador. (RIBEIRO, 1997, p. 225) Nesta poca, Darcy, em parceria com Ansio, tambm participou da elaborao da formulao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao, a LDB, que foi votado em 1963, quando Darcy j era Ministro da Educao. Contudo, o projeto original dessa lei se arrastara por anos pelo Congresso, flutuando merc da disputa poltica da poca. (GOMES, 2000, p. 39). Sendo de fato aprovada e sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996, reformulada por Darcy,
(...) sua inteno era estabelecer uma legislao enxuta e flexvel para regulamentar o processo educacional atravs da qual o governo federal, os estados e os municpios formulassem as linhas gerais e os estabelecimentos de ensino pudessem realizar os programas que melhor lhes aprouvessem. (GOMES, 2000, pg. 40)
Com o primeiro exlio poltico, Darcy foi trabalhar na Amrica Latina, com prestgio educacional que a UNB lhe proporcionou, e o destaque que obteve como Ministro da Educao e posteriormente Ministro da Casa Civil, foi convidado primeiramente a trabalhar no Uruguai,
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foram as causas fundamentais de sua derrubada pelo golpe militar de abril de 1964. Um desses projetos era o das Reformas de Base, que compreendiam a reforma agrria, a reforma educacional, uma reforma tributria e outra mais. O outro projeto era a regulamentao da lei que restringia a remessa de lucros de empresas estrangeiras. (GOMES, 2000. p. 13)
Peru, convidado a pensar a revoluo peruana, como assessor do presidente Velasco Alvarado. Neste perodo tambm contratado pela Organizao Internacional do Trabalho para implantar o Centro de Estudos de Participao Popular. Em 1974, descobre que tinha cncer de pulmo, conseguiu uma liberao para fazer a cirurgia e tratamento no Brasil, voltando semestralmente para suas consultas. Em 1976, Darcy voltou definitivamente para o Brasil. Colaborou com a formao de um novo partido poltico, com base na herana dos governos de Getlio Vargas e Joo Goulart, o Partido Democrtico Brasileiro (PDT). Em 1982 foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro, junto com Leonel Brizola, eleito governador. Foi nomeado Secretrio da Cultura e Educao, onde realizou vrias atividades j mencionadas. Em 1986 perdeu as eleies para o governo do Rio de Janeiro. E, em 1990, foi eleito senador da Repblica pelo estado do Rio de Janeiro, cargo que assumiu de 1991 a 1997. Durante esse mandato, exerceu pela segunda vez o cargo de Secretrio da Educao e Projetos Especiais, concluindo as obras dos CIEPs, que tinham sido abandonados na gesto anterior. Darcy Ribeiro Intelectual de seu tempo, Darcy viveu as grandes transformaes que o Brasil passou, desde a mudana do padro de vida do brasileiro, como o processo de industrializao, o fluxo migratrio do campo para cidade, os imigrantes, a influncia internacional, a misria, o descaso com a populao mais pobre, entre outras. Viveu e observou tudo como estudioso sedento de informao, conhecimento e melhorias. Lutou para transformar o Brasil em um pas
Segundo Darcy, o governo de Joo Goulart era reformista, mas que passou a ser percebido como revolucionrio (RIBEIRO, 1991, p. 136). Com o golpe de Estado de 1964, o presidente Joo Goulart, bem como sua equipe, incluindo Darcy Ribeiro, foram exilados. Darcy Ribeiro decidiu ficar na Amrica Latina, e seu primeiro destino foi o Uruguai, onde trabalhou como educador. (...) no exlio onde fui compelido a rever criticamente minhas experincias frente a evidencia de um desastre poltico do qual eu participara e ante o desafio de buscar os caminhos de uma ao poltica mais eficaz e mais consequente (RIBEIRO, 1978, p.10). Darcy estudou e escreveu freneticamente suas inquietaes, neste primeiro exlio. Prosseguiu com a militncia poltica, participando de governos latino-americanos, (...) que mais se esforavam para romper com a dependncia e com o atraso. (RIBEIRO, 1991, p. 137). Em 1968, voltou ao Brasil, foi preso e passou seis meses no Forte de Santa Cruz (Rio de Janeiro). Voltou ao exlio em 1969, desta vez para a Venezuela, contratado para dirigir um Seminrio Interdisciplinar de Cincias Humanas. Em 1971, muda para Santiago, no Chile, assumindo o cargo de professor pesquisador do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, se tornando tambm assessor do presidente Salvador Allende, cargo que exerceu at 1972, quando vai para Lima, no
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melhor, por educao de qualidade, igualdade e oportunidades, comida e terra para todos. Uma nova Roma, que, segundo ele, culturalmente plasmada pela fuso de trs raas matrizes, um povo novo, singular, com vocao mais humana, que aspiram fartura e alegria. (RIBEIRO, 1995) O conjunto de sua obra retratou a situao do Brasil e da Amrica Latina, buscou teorizar a histria, para entender nossas mazelas. Viveu em um processo continuo de compreender quem o povo brasileiro, que vive passivamente, esperando que a soluo para seus males venha de outro, surgindo e se desenvolvendo como um povo, segundo o autor, constrangido e deformado, mas com esperana de dias melhores. Darcy Ribeiro, um homem que foi admirado e questionado por muitos, um intelectual comprometido com o povo, um paradigma da ao poltica. Difcil separar o pensamento de Darcy de sua ao, j que ele se movia por uma convico de que os dois interagem dialeticamente. (GOMES, 2000, pg. 19). Ao longo de sua trajetria assumiu diversos papis, mas todos eles estavam entrelaados. Darcy foi um homem multifacetado, mas sempre comprometido com seus valores e ideais. Como antroplogo, teve um importante papel no trabalho com os ndios, tornando-se porta voz de suas culturas e necessidades. Como educador, seu trabalho no apenas terico como tambm prtico tem relevncia significativa para se repensar o atual contexto da educao brasileira. E, como poltico, conseguiu unir todos os seus papis, desenvolvendo projetos em diversas reas, sempre pensando no povo brasileiro, que segundo o mesmo, foi destinado a tornar o Brasil uma grande nao. E o prprio Darcy adverte: Portanto, no se iluda comigo, leitor. Alm de antroplogo, sou homem de f
e de partido. Fao poltica e fao cincia movido por razes ticas e por um fundo patriotismo. No procure, aqui, anlises isentas. (RIBEIRO, 2010, pg. 16).
Notas:
1
A saber: O Processo Civilizatrio (1968); As Amricas e a Civilizao (1969); Os Brasileiros: Teoria do Brasil (1969); Os ndios e a Civilizao (1970), e O Dilema da Amrica Latina (1971). Concluindo assim, sua srie de Estudos de Antropologia da Civilizao. Como: trabalhar na percia para a Justia do Trabalho; trabalhar como assessor de Roberto Simonsen, na Federao das Indstrias; integrar a equipe de Rodrigo de Melo Franco, do Patrimnio Histrico, no Rio de Janeiro. Porm, Darcy queria mesmo era trabalhar na direo do Jornal Hoje, do partido comunista, o que no conseguiu devido a seu comportamento agitado. (RIBEIRO, 1991, p. 38) Darcy Ribeiro - Depoimento, 1978 (CPDOC)
Referncias Bibliogrficas:
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Introduo Ao ler a obra Mara, de Darcy Ribeiro (1984), trs pontos so marcantes do incio ao fim da leitura: sexualidade, erotismo e proibio. Isso se d atravs da apresentao dos fatos narrados e vivenciados pelas personagens Isaas, Alma e povos indgenas. partir da leitura e da percepo dos trs elementos mencionados acima que o presente artigo se constri. A interpretao ser feita a partir de um recorte das aes e vivncias da personagem protagonista Isaas, como aquele que conhece os costumes e hbitos dos povos Mairum e dos homens brancos. Isaas tambm teve experincia como ex-seminarista, que estudou e viveu em Roma e retorna para sua tribo de origem, da qual fora tirado ainda menino. Agora, no mais ingnuo, ou menino, mas um homem com o desafio de resistir, s tentaes carnais e aos desejos sexuais pessoais, oprimidos pelo catolicismo e pela religio. Teve que resistir tambm s mulheres da sua tribo, e principalmente, Alma, personagem oposicionista, do sexo feminino, que passa a acompanh-lo como enfermeira dos povos indgenas, e como aquela que dividir inclusive o mesmo espao fsico que Isaas.
Sexualidade Para dar incio ao presente artigo, tomamse como base os conceitos apresentados pelos dicionrios de Psicanlise e de Cincia Sociais acerca da definio da palavra Sexualidade; j que esta a palavra que abre as primeiras reflexes sobre a obra Mara. Para o Dicionrio de Psicanlise (Laplanche e Pontalis, 1999), sexualidade, na experincia psicanaltica, no designa apenas as atividades e o prazer que depende do funcionamento do aparelho genital,
mas toda uma srie de excitaes e de atividades presentes desde a infncia que proporcionam um prazer e irredutvel satisfao de uma necessidade fisiolgica fundamental (respirao, fome, funo de excreo, etc.) e que se encontra a ttulo de componentes na chamada forma normal do amor sexual. (Laplanche e Pontalis, 1999.)
Para o Dicionrio de Cincias Sociais (FGV,1986, p.1113) sexualidade designa o complexo de impulsos, atitudes, hbitos, aes de um organismo, em torno do coito. As disciplinas das Cincias Sociais divergem quanto aos elementos que incluem nesse complexo e quanto ao destaque que do aos vrios elementos includos.
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Considerando ambas as definies apresentadas - tanto pelo dicionrio de psicanlise, quanto pelo de Cincias Sociais - e o contexto em que a obra Mara foi escrita, a mesma pode ser analisada como parte do universo da literatura brasileira, com uma viso da Cincia Antropolgica ou ainda como parte das Cincias Sociais. Partindo destes princpios, Mara permite interpretaes diversas. Na obra Mara, a personagem Alma, enquanto representante do sexo feminino, anuncia-se como oposicionista aos sonhos, aes, hbitos e costumes da personagem Isaas, sendo este representante dos povos indgenas, tanto feminino como masculino. Quando Isaas questiona a adaptao de Alma junto ao povo Mairum, Alma demonstra-se superior ao personagem Isaas, pois esta acredita estar mais adaptada cultura do povo Mairum, mesmo sendo uma mulher branca entre os povos indgenas. Em contrapartida a Isaas, descendente direto do povo Mairum, esta questiona e mostra que ele encontra-se em conflito social e cultural, e julga, frente s suas dvidas, a perda de identidade, seja branca ou indgena, e predestina que este jamais se encontrar como chefe de seu povo ou como professor no Rio de Janeiro nem mesmo como padre em Pindamonhangaba. Isso pode ser observado na passagem a seguir, extrada do captulo O Cuspe e a Pecnia:
Voc est contente aqui, no , Alma? - Nunca estive melhor, confesso. Acho que sou mesmo mairum. Sabe o que eu sinto hoje, o que me incomoda? essa minha pele branca, essa quantidade de cabelo e de plo louro que tenho por todo o corpo. A vontade mesmo que eu tinha era de ter uma cara mairum de verdade. E voc, Isaas? Isso que para mim bom, pra voc difcil, no ? Vejo que voc no acha jeito, n? No responda no. Deixe eu falar, para voc
ver como que eu sinto essas coisas. Olhe pra mim, rapaz: voc est ruim, aqui, t na cara. Mas voc no estaria ruim de qualquer jeito, em qualquer lugar? Eu no imagino voc bem em lugar nenhum. Nem como paj-sacaca dos quatis, se isto fosse possvel, voc estaria melhor. Tambm no vejo voc bem como professor no Rio ou como padre em Pindamonhangaba. Assim , Isaas. Meu conselho que voc relaxe e se acomode. Deixe essa mania to sua de parafusar e desparafusar o bestunto. Voc vai viver aqui a vida inteira, rapaz. Fique calmo, fique tranquilo, seno voc se atola. No leve as coisas to a peito. - Alma, vou me casar. - Casar, voc? Voc esta doido? Comigo no! - Com Inim. - A menina, aquela? Ah, j sei. So essas confuses de vocs, os cls, no ? Voc obrigado a casar com ela, no ? - Quem que sabe? (RIBEIRO,1984, p. 278)
Na anlise feita no recorte do captulo A Miraxor e o Serigu., pode-se observar que Isaas, enquanto personagem protagonista e condutor de Alma entre os Mairum, vai mostrar que os costumes e hbitos daquele povo presente em alguns detalhes da cultura so vistos somente por seus integrantes, sejam detalhes sexuais ou aes de gnero masculino ou feminino. Por exemplo, o ato sexual de Alma com Ter, at ento imperceptvel para uma mulher branca, que no conhecedora desses detalhes to singelos, presentes na cultura Mairum, pode denunciar que esta praticou o ato sexual com o chefe da tribo de forma detalhada para aqueles que j esto adaptados quela cultura. Isso demonstra que Alma no est de fato adaptada aos costumes e hbitos do povo Mairum como ela mencionara anteriormente. Os conflitos de identidade esto
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presentes tanto em Isaas, como mediador dos povos indgenas frente ao homem branco, quanto em Alma, mulher branca entre os povos indgenas e seus costumes. H na figura masculina de Isaas um olhar capaz de mostrar que a mulher branca naquele contexto jamais poder inserir-se totalmente como integrante da tribo Mairum, no sendo permitida para Alma a procriao. Mas, por outro lado, como Mirixor, Alma poderia considerarse superior at s demais mulheres comuns, pois como Mirixor, a personagem tem o papel social diferente frente ao cl e s mulheres Mairum, que durante o resguardo abrem mo dos seus maridos, para que estes possam satisfazer-se sexualmente com as mulheres que so escolhidas para esta funo. Diferente da viso de Alma, que como uma mulher branca encara esse papel social como prostituio, que deforma e denigre o papel da mulher na sociedade, demonstrando assim sua viso etnocntrica ao recusar a sexualidade como papel social. A personagem Isaas, como representante do povo Mairum e como aquele que tem conhecimento dos costumes e hbitos da tribo, tanto dos homens quanto das mulheres, chama a ateno da Personagem Alma para seus atos e seu papel naquele espao, partindo da viso masculina e em relao ao comportamento de Alma, mulher branca que habitava a tribo Mairum, mostrando a esta, como deveria ser seu comportamento sexual e social enquanto representante do sexo feminino junto s demais mulheres que l viviam e que as mulheres da tribo ocupavam papeis diferentes frente aos povos indgenas. Isto fica claro no trecho a seguir essa distino de papeis representados para sociedade branca e os povos indgenas:
- No, Alma as coisas aqui so mais
simples e mais complicadas. Todo mundo sabe. No precisa ningum contar - Que isto? Como que todos sabem? Se sabem porque ele contou - No, Alma as coisas aqui so mais simples e mais complicadas. Todo mundo sabe. No precisa ningum contar - Que isto? Como que todos sabem? Se sabem porque ele contou! Ento eu dou uma trepada no escuro do ptio e todo mundo j sabe que eu andei fodendo? - Que expresso chula, Alma. Vamos l, procure entender. Voc est com esse colar de caramujo. Esse colar, todos sabem, todos vem que dele. Nesse mundo nosso, as coisas feitas por cada pessoa so reconhecveis como as caligrafias de vocs. Se eu pegar uma flecha, ou um cesto, ou um colar, qualquer coisa, e mostrar a qualquer um, ele pode dizer ali na hora quem fez cada coisa. Esse seu colar da feitura de Ter. Est na cara. O mais tambm se sabe ou adivinha: Ele te deu o colar noite, ontem. Eu posso at te dizer como. - E como que foi? - Vocs se encontraram noite, no ptio. Ele bateu a mo no seu ombro... - . Bateu, e eu disse, boa noite, Ter, como que vai? - Voc no precisa dizer nada no. Voc s tinha que se agachar. Agachar e fornicar. - Que fornicar, que merda nenhuma, Isaas: trepar, foder. Que mania essa de pecado, de fornicao. Eu fornico com ningum no! Eu trepo, fodo. E que isso? Voc acha que ele no tinha que dar cantada nenhuma, no? Basta bater a mozinha e eu a vou me agachando! As mulheres daqui so assim? Eta mundo bom! Tenho uns amigos l no Rio que nunca papam mulher, vivem na secura, porque no tm bico nem peito para cantada. Aqui, basta dar uma palmadinha no ombro e ela vai
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se abaixando, agachando, arreganhando? - Alma, tenha decoro. Deixa que eu explico. Voc est aqui, vivendo conosco, no nosso mundo, segundo nossos costumes. Voc de certo modo uma Mirixor. - E que diabo Mirix... rana? - Mirixor uma categoria de mulheres que no se casam, nem tm filhos. Esto a disponveis, por assim dizer. - Ento, isso que eu sou? Mirixor, quer dizer: Puta, puta de ndio! A isso me reduzi. Isaas! Puta de ndio? No tem nada de puta, Alma. Uma Merixor uma pessoa muito apreciada. E at consagrada no cerimonial. Voc no uma verdadeira Mirixor. Elas so escolhidas e preparadas para esta funo que de certo modo at superior a da mulher comum. Tanto que as Mairunas nunca tm cimes das Mirixors, que podem fornicar vontade com seus maridos. O que ocorre que, sendo as Mirixors mulheres autnomas, livres, sem um cl a que se devam, sem marido que tenha que cuidar, so parecidas com voc. Da a confuso. muito provvel que minha irm Pinuarana, a mulher de Ter, tenha dito a ele: v ver canindejub; ela dar alegria a voc. Assim deve ter sido porque Pinu est amamentando h poucos meses e no pode fornicar com Ter. - Isaas, isto piora tudo para mim. A isso cheguei: puta de ndio. Custei muito a entender, mas no sou burra, entendi. Finalmente custei a entender a sua atitude comigo, quando chegamos e voc me levou para sua casa. Pensei que fosse um gesto bom, amigo. (RIBEIRO,1984, p. 278-284)
obra, inicialmente no momento em que Isaas, ao retornar de Roma, encontra-se com as quatro velhas ndias, que representam o povo Mairum sufocado com os costumes catlicos representados pelo padre Aquino e padre Cirilo, enquanto estes catequizam os meninos e meninas indgenas. As velhas ndias apelam a Isaas para que a identidade dos indgenas no seja destruda pelos costumes catlicos, a sexualidade fsica das mulheres mais velhas e das meninas entregue a Isaas, mesmo ele sendo um representante da figura masculina, como se observa na cena a seguir do captulo O Bucho:
Padre Aquino, controlado, olhos postos nas emoes do velho missionrio, afasta discretamente os escolhos. Sentados debaixo da latada de maracuj, tomam o ch com biscoitos da irm Canuta. Vem entrar na capela os meninos, com padre Cirilo a frente; e as meninas, com sua preceptora, a irm Ceci, para a reza da tarde. Assim foi at ontem. Hoje mal se sentam, olhando a fileira de meninas que avanam entre os canteiros para a capela, quando vem surgir quatro velhas ndias, maltrapilhas, que vivem na praia da Misso, gritando: - Av, Av Uruantremui E continuam berrando na sua lngua um discurso apopltico. Isaas desce os degraus, querendo abra-las, acalm-las. Uma se acocora, chorando. Mas as outras continuam apostrofando. Agarram os prprios seios, cados, secos e os balanam. Levantam as saias e manuseiam as prprias coxas, apalpando as pelancas muxibentas, xingando. A fileira de meninas se desfaz, quando as velhas atacam. Mas elas agarram duas delas, que se defendem, alucinadas, enquanto as velhas ndias lhes rasgam as roupas, mostrando seus corpos descarnados a Isaas, urrando furiosas, na berraria mais medonha. (RIBEIRO,1984, p. 201)
Por fim, nota-se na sexualidade da personagem Isaas uma dualidade que transita entre o universo feminino e masculino, com acesso a intimidade feminina de uma forma diferente dos demais homens da tribo Mairum. Isso pode ser percebido em vrias partes da
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tambm essa dualidade de Isaas quando ele testemunha o ritual de passagem da fase de menina moa recm-menstruadas para mulher da tribo Mairum, um ritual que deveria ser acompanhado somente por mulheres. No captulo O Sangue e o Leite, descreve-se o ritual sagrado da tribo, onde os olhos de Isaas se confundem com os de Alma e do prprio Av, unindo a sexualidade da personagem Isaas a de Alma oposicionista na trama, impossibilitando a identificao de gnero da personagem. Como se confere no trecho a seguir:
Alma vive ao compasso Mairum a estao dos longos dias azuis. Sente cada vez mais fortemente a beleza de viver, o gozo de existir, que aprende deles. De tudo participa, vendo com seus olhos e ouvindo com os ouvidos de Isaas. Assim assiste buscando entender, a grande festa de reapresentao das meninas-moas, recm-menstruadas. O Av admira, extasiado, com olhos de Isaas, as flechadas-da-lua, to bem nuinhas. Alma enche os olhos de jovens corpos encarnados pela mo de Deus. (RIBEIRO,1984, p. 250)
so diversas, mas selecionamos algumas que mostram isso fortemente nas aes e vivncias da personagem Alma quando tem que se despir diante do povo Mairum, despertando assim a curiosidade e o desejo que eles tinham de v-la nua. Como descrito na cena a seguir do captulo As Minhas guas:
No dia seguinte, pela manh, todas as atenes se concentram em Alma. Ningum sai da aldeia, todos querem vla. Tentam conversar com ela, dizendo alguma coisa com as poucas palavras que sabem. Os homens e as mulheres a convidam toda hora para tomar banho no rio. - Isaas, o que que vou fazer? Esse mundo de gente me azucrinando, querendo tomar banho comigo? Isso safadeza, n? - . Mas e melhor ir logo. Voc no vai ficar a vida inteira sem tomar banho. - Mas, Isaas, eu no trouxe maio e acho que seria indecente usar maio no meio dessa gente pelada, nua. - Eles no esto nus, no, Alma. Voc j sabe, as mulheres usam o uluri; os homens o b. - J vi, mas pra mim d no mesmo. to sumario. - Mas, L pelo meio-dia, ela decide: - Tenho que enfrentar isso. L vou eu! A aldeia em peso vai ao banho, atrs de Alma. Homens, jovens e velhos, mulheres de todas as idades e tambm crianas. Ela tira a roupa calmamente. Mas quando v todos os olhos postos nela, de fato postos no seu pbis peludo, ela se cobre com as mos e sai correndo, to desenvolta quanto pode, para mergulhar na gua. Minutos depois o Iparan regurgita gente. Alma, sempre rodeada, vai sendo ganha pela alegria das guas, pelas risadas sonoras de todos, pelas crianas que nadam para ela. Acaba ficando vontade. A certa altura, aproxima-se da praia e, permanecendo na gua da cintura para baixo, chega
A figura de linguagem, paradoxo, aqui comeando pelo bucho, com a parte representando o todo na juno da personagem em suas distintas caractersticas na obra sugere uma dualidade de gnero. O Erotismo O Dicionrio de Filosofia (Abbagnano, 2000, p. 340) define o termo ertico como: Algumas vezes utilizou-se esse termo para designar uma desejada (mas no realizada) cincia do amor, da felicidade ou da vida emocional em geral. Associando os conceitos apresentados no Dicionrio de Filosofia acerca do erotismo, as cenas de erotismo presentes em Mara
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perto de Isaas para gritar: - Vem Isaas, a gua esta uma delcia. - no posso, estou nu. - Nu? Como? - Estou nu debaixo da cala: sem o b. - Besteira, rapaz, Voc pensa que eu estou com uluri? (RIBEIRO,1984, p. 237).
Outra cena ertica presente em Mara pode ser apreciada no captulo O Sangue e o Leite, no qual mostra a passagem das meninas moas, recm-menstruadas, para mulher e na escolha de seus parceiros no ritual para o seu primeiro ato sexual. O leitor envolvido pelo ertico ritual de passagem visto na cena a seguir:
Elas estiveram em recluso durante meses em cabanas armadas dentro das casas, sem ver nem falar com ningum, e sem andar nem tomar sol. Saem agora, clarinhas, matinais, resplandescentes. Toda a aldeia tem os olhos postos nas suas graas. Trazem no peito, realando os brotos dos seios, o colar solar de plumas douradas que cada uma ela mesma comps, com rigor, sozinha para mostrar seu virtuosismo de cuant. Na cara, o sorriso mais claro. Em todo o corpo as alegrias raiadas de urucum e jenipapo. Na cabea, esvoaante, a enorme cabeleira negro-azulona, provocante. A franja cobrindo a boca. As pernas enfaixadas com embiras, abombadas, barrocas. Nas mos leva com orgulho a cabaa e as cuias de chib de polvilho de carim: - Bem, Voc quer do meu leite, bem? Durante toda a tarde a aldeia, sentada no crculo do sol se por, olha as meninasmoas que servem seu leite-chib aos homens com que ho de foder... As garotas andam, falam, riem, requebram amamentando sem parar seus futuros homens. Futuros? Quem garante? Vo s casas buscar mais chib e voltam para servir e se deixarem ver, exibidas. Sorriem, andam, rebolam, param e
Neste jogo de desejo e erotismo presentes nas cenas descritas acima, tanto na nudez da personagem Alma e a curiosidade dos indgenas em relao a seu corpo, quanto no ritual de escolha dos parceiros sexuais das meninas Mairum, percebe-se como aquilo que Bataille (1987) chama de erotismo, aspecto imediato da experincia interior, opondo-se a sexualidade animal. Mostrando como o erotismo um dos aspectos da vida interior do homem. E que nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objeto de desejo. Mas este objeto responde a interioridade do desejo. A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do individuo: mesmo se ela recai sobre a mulher que a maioria teria escolhido, o que entra em jogo frequentemente um aspecto indizvel, no uma qualidade objetiva dessa mulher, que talvez no tivesse, se ela no nos tocasse o ser interior, nada que nos forasse a escolhe-la. Em resumo mesmo estando de acordo coma maioria, a escolha humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior, infinitamente complexa, que tpica do homem. O prprio animal tem uma vida subjetiva, mas essa vida, parece, lhe dada, como acontece com os objetos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele pe a vida interior em questo. O erotismo na conscincia do homem aquilo que pe nele o ser em questo. Foi com base no nosso olhar sobre o erotismo em Mara mais a juno da teoria discutida que se firmou este pensamento. A proibio Para mostrar a proibio presente na
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obra foram selecionadas duas cenas que sugerem a proibio do desejo sexual, a primeira pela religio catlica, na forma como a personagem Isaas retinha seus desejos sexuais, sem se masturbar, apelando para o sagrado, presente no captulo Retorno da obra de Darcy Ribeiro (1984), nesse trecho percebemos o conflito de Isaas ao tentar conter seus desejos sexuais, se valendo da virgem santssima como a nica capaz de conter seu desejo, visto por ele como proibido sendo considerado pecado pela religio catlica, ao se recordar das mulheres indgenas e nas suas tentaes sexuais. Como visto no trecho a seguir:
Basta lembrar minhas longas noites de angustia no catre do convento com o pau duro de doer e a conscincia ardendo de sentimento de culpa. As rezas Virgem Santssima para que me ajudasse, para que me socorresse, me amolecesse. Estou de pau duro aqui agora, nesta cama de penso, querendo minha mirixor. Por que no saio, por ai, atrs de alguma carioca? No, no quero outra vez esporrar na mo ou no lenol. No, no quero nenhuma mulher estranha. Eu me guardo para minha gavi mairuna. (RIBEIRO,1984, p. 92)
A segunda situao de proibio se faz presente quando a personagem Alma busca reprimir seu passado sexual e promscuo, reencontrando na misso catlica e buscando a possibilidade do perdo e o encontro consigo mesma em outra dimenso fora do pecado presente na cidade, nas favelas e nos morros do Rio de Janeiro. Recorrendo a madre Petrina a incluso na misso do Iparan, j que fora encaminhara at ali por um padre que era seu confessor e sabia de seus atos promscuos vistos como pecaminosos pela prpria Alma. Isto pode ser observado no captulo Alma na seguinte passagem:
Agora quero me recuperar. Quero cumprir por atos, no servio de Deus, todos os conselhos dele que no escutei. Ele morreu, a senhora sabe. (Deus o guarde!) Morreu, confiando em que eu me reencontraria, que voltaria a f. Na verdade, eu nunca a perdi de todo, irm Petrina. Estive foi muito confusa, num redemoinho. Agora me encontrei. No aspiro muito, irm Petrina. S quero dar nas misses o testemunho do meu amor a Deus. (Tanta gente aqui...) Eu sei. Sei o que a senhora est pensando. Mas considere, irm Petrina. No posso com as favelas. Deus no cabe no meio de tanta fome, sexo e maconha. Faz pouco que a f reacendeu em mim. E meu refgio, minha esperana. Mas no quero apenas fruir o estado de graa. No quero s reabilitar-me aos olhos de meu pai morto. (De Deus, minha filha.) Sim, claro, aos olhos de Deus. Quero uma militncia ao servio do Senhor. (Virgem!) Quero e preciso dar a minha vida um sentido de misso, que me redima. Depois de anos de confuso e vergonha compreendi com a anlise. (Psico-anlisis) Sim, irm Petrina, psicanlise. A senhora no acredita, eu sei. Repele. Mas eu digo com humildade a senhora: aprendi muito, muito. O que eu quero o servio de Deus, cada um tem seu caminho. Este o meu, agora. Preciso de sua ajuda, compreenso, caridade. (RIBEIRO,1984, p. 38)
Como apresentado acima nos recortes que sugerem na proibio ou na tentativa de morte do desejo sexual por meio da religio, presente nas personagens analisadas desde o incio deste artigo, vo ao encontro com o pensamento desenvolvido por Bataille (1987), na obra O Erotismo, quando referencia duas formas de atrao que nos leva a Deus: a sexual, que vem da natureza, e a mstica, de Cristo que tem o sentindo do elemento fulgurante que eleva acima da preocupao de preservar ou de aumentar o tempo e a riqueza possuda na f de cada uma
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das personagens mencionadas acima e nos seus conflitos com o sagrado, para Bataille
no h uma tentao se no um objeto de ordem sexual; o elemento mstico que os freiam, o religioso tentado, no tem mais em se fora atual, agindo na medida em que o religioso, fiel a se mesmo prefere a salvaguarda do equilbrio conquistado na vida mstica ao delrio em que a tentao os faz cair. (Bataille, 1987, p. 20)
e cultural de nossa nao. Assim como o prprio Darcy Ribeiro (1984) menciona na introduo da obra:
Comecei este texto dizendo que o romance interpretvel, como os poemas e os sonhos, porque verte espontneo do autor. Nessa altura, confesso que ponho em dvida esse juzo. No posso pensar Rosa golfando seus jagunos cheios de espiritualidade e de saber. Sou mesmo escritor, cobaia a ser escrutinado. O que posso dar so testemunhos como este. Duvidosos. (RIBEIRO, 1984, p. 6)
Concluso Conclui-se que a obra Mara de Darcy Ribeiro (1984) pode ser pensada a partir de diversos olhares e campos distintos do conhecimento, tanto das cincias literrias, antropolgicas ou ainda pelo campo das cincias sociais. Partindo do pressuposto que a obra apresenta marcas literrias, tendo em vista que uma obra de fico, mas que, por outro lado, no descarta a grande presena do antroplogo Darcy Ribeiro, ao fazer uso de seu conhecimento como tal, no processo de construo de Mara como uma obra que representa um patrimnio histrico indgena nos seus hbitos, costumes, tradies e mitos frente ao homem branco avassalador e na mescla destas duas raas to distintas e to prximas, como se observou ao longo da presente leitura. O que este artigo buscou mostrar foi que, a partir da sexualidade, do erotismo e da proibio em Mara, existe uma amostra da identidade do povo brasileiro e das transformaes sociais e culturais vivenciadas durante o processo de formao da sociedade como um todo diante da diversidade cultural presente na polifonia do romance e nas diversas vozes e povos que compem obra Mara como um patrimnio social
Referncias Bibliogrficas:
ABBAGNAN, Nicola. Dicionrio de filosofia. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000. 1014 p. ISBN 85-336-1322-9. BATAILLE, Georges. O Erotismo. Traduo de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre L&PM, 1987. DICIONRIO de cincias sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986. 1422 p. LAPALANCHE, Jean; PONTALIS, JeanBaptiste. Vocabulrio da psicanlise. 3. ed. Lisboa: Moraes Editores, 1976. 707 p. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Baptiste. Vocabulrio da psicanlise. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999. 707 p. ISBN 85-3360965-5 PIRON, Henri. Dicionrio de psicologia. Porto Alegre: Globo, 1969. 533 p. RIBEIRO, Darcy. Mara. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1984. 403 p.
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Resumo
Este trabalho objetiva analisar a obra Mara do autor Darcy Ribeiro, tendo como base o estudo da estrutura do romance, ou seja, a forma como tal obra foi dividida, sendo ela em Antfona, Homilia, Canon e Corpus. Levando-se em conta que tal diviso constitui tambm as partes de uma liturgia catlica, a inteno de tal estudo se baseia na comparao e na argumentao da causa pela qual o autor fez tal diviso. Para isso baseamos nossa anlise na conceituao de cada etapa identificada e relacionando com os acontecimentos dos captulos que formam cada etapa, utilizando citaes da prpria obra.
Palavras -Chave
Darcy Ribeiro; Mara; Romance; Antropologia; Liturgia.
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A obra e o autor Mara no uma obra de leitura simples e fcil. O prprio Darcy Ribeiro afirma que foi elaborada de uma forma complexa. Darcy a escrevera trs vezes, sendo apenas a terceira verso publicada em 1981 aps seu retorno do exlio. Nesta obra Darcy Ribeiro utiliza-se de uma forma no linear para escrever, de forma literria, a etnologia indgena da tribo mairum, uma tribo inventada, mas que representa bem as relaes sociais, e mesmo as questes religiosas existentes em uma tribo. Isso s foi possvel devido ao conhecimento antropolgico do autor. Darcy Ribeiro, na introduo da edio comemorativa de vinte anos da publicao da obra, salienta que no se preocupou em no misturar fico com realidade, e que se permitiu extrapolar em todos os sentidos na elaborao do texto. Observa-se isso na seguinte citao:
No tive nenhum escrpulo em misturar mitos, lendas e contos de tantos povos, mesmo porque conheo bem meus ndios. Sei que eles no tm nenhum fanatismo da verdade nica. So perfeitamente capazes de aceitar mltiplas verses de um mesmo evento, tomando todas como verdadeiras. Estou certo de que qualquer ndio brasileiro, lendo a mitologia inscrita em Mara, a achar perfeitamente verossmil. (RIBEIRO, 2001, p.22)
Este pequeno trecho da carta de Pero Vaz de Caminha, conhecida como a certido de nascimento do Brasil, j demonstra bem a inteno dos portugueses ao abarcar na terra indgena brasileira. A expropriao de ouro e prata e, principalmente, a ideia etnocentrista de que deveriam salvar esta gente. Mara tem o objetivo de ser um manifesto literrio contra essa expropriao que o ndio brasileiro sofreu, e que j foi identificada na carta de Pero Vaz. No se trata apenas da expropriao da terra, mas da expropriao da identidade e da cultura indgena. O livro um grito contra a opresso sofrida pelo ndio, contra a imposio de proibies dos ritos, mitos e costumes indgenas e pela castrao psicolgica do ndio efetuada pelos jesutas, atravs da concepo de pecado instaurada pela religio. Alfredo Bosi, crtico e historiador de literatura brasileira, escreveu um artigo chamado Morte, onde est tua vitria? que foi publicado na edio comemorativa de vinte anos, onde analisa a obra Mara e relata o seguinte:
Outro ponto a ser salientado no trecho citado acima a questo da cumplicidade que Darcy tem com os povos indgenas brasileiros. Por ser antroplogo e ter se tornado um indigenista, Darcy trata o povo indgena como o seu povo e o defende com a arma que melhor possui, o conhecimento. De forma que a obra Mara um manifesto.
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De todas as extorses sofridas pelo ndio (e Mara nos conta que foram muitas), talvez a mais atroz tenha sido precisamente esta: o civilizado roubou violentamente do ndio o gozo daquele tempo-sem-tempo que a vida alheia ao trabalho forado, a vida que se passa magicamente no rito e se prolonga no convvio dos mortos. (BOSI apud RIBEIRO, 2001, p.388)
Em Mara, como salientado na citao do Alfredo Bosi, a expropriao da cultura e, principalmente, da identidade indgena colocada como ponto principal e linha condutora. E isso pode ser observado de forma clara na personagem do Isaias/Av, o ndio que foi retirado de sua tribo para viver em Roma e estudar a teologia a fim de se tornar um padre, mas que no final tem sua identidade violentada, no sendo nem padre e nem ndio, acabando em um vazio existencial. Mas Darcy Ribeiro alm de um grande antroplogo demonstra ter um belo senso de ironia, ao utilizar a diviso da liturgia catlica para dividir os captulos da obra.
Descobrira que a estrutura de Mara era da missa catlica, e tudo reescrevi com essa intencionalidade. Vira bem que o tema verdadeiro de Mara era a morte de Deus, que morria porque o mundo mairum estava condenado, no tinha salvao. Isso me permitiu escrever um captulo potico e que o prprio Deus, perplexo, se lamenta e se pergunta que Deus ele, e qual ser seu destino, com o desparecimento do seu povo. Ele era j rfo de seus filhos. (RIBEIRO, 2001, p.22)
Enquanto estivemos missa e pregao, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados ns pregao, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e comearam a saltar e danar um pedao. (Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha)
Mas o que a liturgia seno um ritual? No uma conveno ritualstica como qualquer outro ritual indgena? No dicionrio encontramos a seguinte definio para liturgia: culto pblico e oficial institudo por uma igreja; ritual (Mini Aurlio, 2012). Para a religio catlica apostlica romana a liturgia a celebrao que comemora a ceia de Cristo e seu sacrifcio pela humanidade, ou seja, representa a celebrao do sacrifcio de Jesus, que tem o seu corpo imolado e comungado, e que ressuscita redimindo os pecados de todos os seus seguidores, crentes na religio catlica. Darcy Ribeiro dividiu o romance Mara em quatro partes: Antfona, Homilia, Cnon e Corpus. Partiu do modelo litrgico da missa (e dos cultos evanglicos) e fez deslocamento e inverses do sentido original, exigindo nova interpretao para o sacrifcio. O autor subverteu textos bblicos e latinos do ritual antigo, dessacralizou e ridicularizou o mistrio para evidenci-lo na pessoa do ndio, eucaristiado pela catequese e pela ganncia dos poderosos. Aqui o autor utiliza seu lado irnico, pois em Mara, Darcy prescreve uma missa, um ritual, uma celebrao (como a catlica) onde quem morre no o Cristo, mas um povo, o povo mairum. Na verdade, no apenas o povo mairum, mas o povo indgena brasileiro. Mara a liturgia da celebrao da trgica extino do ndio brasileiro. Extino que comea atravs da
Pero Vaz de Caminha j falava que ao chegar em terras tupiniquins, os portugueses fizeram uma missa e que essa missa foi uma das formas de comunicao e criao de relaes com os indgenas.
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imposio da catequese catlica. O colonizador que dissera que deveria salvar esta gente acabou matando-os. A liturgia Neste contexto de diviso da obra em partes da liturgia, encontramos: Antfona, Homilia, Canon e Corpus. No dicionrio conceitua-se antfona como: versculo cantado pelo celebrante, antes e depois de um salmo (Mini Aurlio, 2012). Na liturgia catlica, a antfona o momento inicial da celebrao em que se tem o canto de entrada do padre e so apresentadas as intenes da missa. A Antfona a primeira parte em Mara, parte em que so apresentadas as personagens principais do livro, Alma e Isaias. Nesta parte tambm relatada a morte da Alma. Esta morte no se trata apenas da personagem Alma, mas a morte da alma indgena, que ser mostrada com o desenvolvimento da histria. Nessa parte tambm relata a morte de Anac, chefe guerreiro da tribo, que morre para dar lugar ao prximo novo chefe, que ser Isaias, o ndio que foi tirado da tribo pela igreja, quando era ainda novo e que agora no mais ndio e no padre. Assim a tribo mairum ficar sem chefe, sem guerreiro, devido interveno catlica. Ainda na antfona encontramos trs captulos que mostram a experincia de aculturao sofrida pelo Isaas atravs da educao teolgica em Roma. Isso pode ser observado na seguinte citao:
Todos os homens nascem em Jerusalm. Eu tambm? Padre serei, ministro de Deus na Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas gente eu sou? No, no sou ningum. Melhor que seja padre, assim poderei viver quieto e talvez at ajudar o prximo. Isto , se o prximo deixar que um ndio de merda o abenoe, o confesse, o perdoe.
Reconheo que estou com complexo, obsessivo: paranoico ou esquizofrnico? Sei l. (RIBEIRO, 1981, p. 29)
Assim como na liturgia catlica, em Mara, a antfona o canto inicial, a apresentao do sacrifcio que ser celebrado, no caso de Mara o sacrifcio dos ndios e no do Cristo. A segunda parte da obra a Homilia. A homilia conceituada como: exortao religiosa fundada num ponto do Evangelho; discurso sobre coisas religiosas; discurso cansativo sobre moral. Na liturgia catlica a homilia a segunda parte mais importante da celebrao, tendo a frente apenas a eucaristia, neste momento da missa o padre discursa para seus fiis sobre o evangelho, uma aluso s pregaes do Cristo que ensinava aos seus seguidores atravs de metforas, parbolas e alegorias. Neste momento da missa o padre utiliza toda retrica para passar sua audincia os conceitos e interpretaes da religio catlica referentes aos textos da bblia. Em Mara esta parte possui alguns captulos cujos nomes se referem ao ato da fala, como A Boca, A Lngua e Verbo. Este ltimo captulo Verbo uma representao da retrica que os padres utilizam em suas celebraes. Neste captulo se v a retrica da personagem Xisto, que um beato, um ndio que l a bblia e faz a interpretao das passagens do livro discursando para os ndios que se juntam para ouvi-lo.
Assim est escrito, est aqui! a verdade inteira. Assim . Ningum sabe porque, ningum explica. Mas assim que aconteceu aqui, agora, todo dia toda hora. O rico enricando e o pobre penando. Pra mim, nisto est a mo do Demo, trapaceira, a parte dele. a mo do maligno, o dedo do Demo, o sinal do furtivo. O mundo a fazenda de Deus, mas o zelador, quem ? o
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Diabo! Que o que este livro ensina? Ensina tudo. Mas o que este livro mostra a quem quer ver a guerra de Deus contra o Diabo e do Diabo contra ns. Contra os homens e contra as mulheres. (RIBEIRO, 1981, p. 193)
sem males, isto , terra sem brancos. A terceira parte do livro chamada de Canon, a parte central da missa catlica, tambm conceituada como forma de imitao polifnica. Essa intepretao da polifonia bem observada nesta parte, pois aqui Darcy Ribeiro deu voz s suas personagens atravs da incorporao dos deuses Mara e Micura. Nos captulos Mara: Remui, Mara: Teidju, Mara: Jaguar, Mara: Av e Micura: Canindejub os deuses Mara e Micura se incorporam em cada personagem e a narrativa passa a ser feita atravs da voz da prpria personagem, como a forma da polifonia. Na liturgia catlica o canon a parte que precede a eucaristia, o momento da comunho com o corpo de Jesus imolado. Esta parte se trata de uma preparao para o momento principal da missa. Assim como na liturgia catlica, o canon em Mara (a liturgia mairum) uma preparao para o sacrifcio do povo mairum. Essa preparao j comea com a chegada do aguardado Isaias/Ava que deve tomar o lugar do guerreiro da tribo, mas o Isaias que chega no o guerreiro esperado. Isaias retorna e questionado pelos homens da tribo acerca dos conhecimentos adquiridos no mundo civilizado, mas no consegue assumir sua condio de reintegrado cultura, devido castrao de sua identidade, resultante da catequizao sofrida. Ele no atende s expectativas dos mairuns e se isola na tribo.
O Av veio e no veio. Este que veio e no o verdadeiro Av. O que eu esperava, e que vi vindo dia-a-dia por terras e guas, no chegou. Aquele sim, era o Av mesmo, inteiro. Este o que restou de meu filho Av, depois que os pajs-sacacas mais poderosos dos carabas roubaram sua alma. (RIBEIRO, 1981, p.270)
O discurso da personagem Xisto uma mistura dos ensinamentos religiosos com os mitos indgenas. A retrica utilizada pelo beato igual a dos padres catlicos ao interpretarem a bblia. Alm do captulo Verbo, outro que chama a ateno nesta parte da homilia o denominado Missa, onde Darcy relata o comportamento das pessoas que trabalham como missionrios da misso Nossa Senhora Grvida de Deus, uma misso catlica que auxilia na catequizao dos ndios da regio. No captulo so apresentadas as dificuldades, os conflitos dos missionrios em reprimir suas vontades sexuais e seus comportamentos condenados como pecaminosos. No fim do captulo, o autor deixa uma questo irnica.
Rezas confluentes, guas reluzentes, navalhas, tesouras, penitncias. Cal e silcio. Arrependimentos. Cada um em seu mister, reconsagra almas ressacraliza corpos a Deus doados. Ele a tudo assiste, do alto. Talvez aprove, comovido, quem sabe? (RIBEIRO, 1981, p. 166)
Nessa parte temos a liturgia da palavra, a partir do texto sagrado Mairahu, o Gnesis da tribo mairum, tudo criado pelo Sem-Nome que sabia ser o mundo muito ruim, mas dava risadas e maltratava suas criaturas com um aguaceiro medonho. H tambm o salmo do messias sofredor (Isaas) e o Apocalipse na segunda leitura, onde Joo de Deus, na boca de Xisto, prega sobre o Armagedom, com anjos-sargentos, urubus-rei, juzo final, besta-fera, Cristo-cordeiro, enxofre e trono branco. E os ndios atrs da terra
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Na liturgia catlica o canon finalizado com um louvor de glorificao ao Cristo que ser sacrificado. Na obra Mara, o canon finalizado com o captulo denominado Armagedom, uma aluso ao Apocalipse catlico. Neste captulo, o beato Xisto volta a discursar sobre os textos da bblia, neste caso, sobre o h-de-vir, sobre o que ser, e assim o beato relata o apocalipse bblico, salientando a condenao dos pecadores.
Deus grande. Talvez at demais. Ser que a Ele importam nossas louvaes, nossas lamentaes, nossas rezas e hinos? Pode que no. Ignoramos. S sabemos com certeza certa que Ele abomina os nossos pecados. E isso sabemos, por que est escrito no livro do sopro de Deus. (RIBEIRO, 1981, p. 339)
mairum-mairuns no estar contado, de mim tambm despojado? (...) Como evitar o desastre inevitvel que eles e talvez a mim, a ns tambm, soobrar? Que Deus sou eu? Um Deus mortal? (RIBEIRO, 1981, p. 354-355)
E a parte corpus finalizada, e tambm o livro, com o captulo Indez. Indez um termo que designa um ovo que deixado no ninho de uma ave, para que ela volte a pr ovos naquele lugar. Indez um ovo que no dar uma nova vida. Por isso o fim, no h nova vida, no h ressureio nessa liturgia mairum, a extino da identidade mairum, da identidade indgena. Tratase de uma liturgia onde o sacrifcio no se d com o Cristo, mas com o povo mairum. Consideraes Finais A partir da anlise feita atravs da diviso das partes da liturgia e da constituio dos captulos de cada parte da obra Mara, verificase que se trata de uma obra crtica, sem deixar de ser literria. Um verdadeiro manifesto contra a violao e expropriao da identidade e da cultura indgena. o relato da morte da Alma e tambm da alma indgena. Darcy Ribeiro chama a tribo de Mairum, mas poderia ser Bororo, Kinja, Xet e muitas outras tribos brasileiras que foram extintas, devido integrao impositiva do homem branco, da religio catlica e de seus costumes. A integrao, da forma forada como foi feita, extinguiu a identidade indgena. E foi para criticar esta integrao forada, que Darcy Ribeiro escreveu Mara.
A quarta e ltima parte do livro o Corpus, na liturgia catlica o auge da celebrao, o momento em que o corpo de Cristo imolado e comungado. Apresenta a comunho, a Eucaristia, quando se bebe do sangue e se come do corpo daquele que foi imolado. Sendo que no fim desta parte se tem a ressureio de Jesus, que morreu pela remisso dos pecados dos homens. Em Mara, esta parte demonstra que o fim inevitvel. Alma descobre que est grvida de gmeos, mas a gravidez no finda, o sacrifcio estril, no renovador. Nessa parte acontecem vrias mortes, Juca, Boca, o Oxum e a ndia Cori. Isaias/Av se isola cada vez mais. No captulo chamado Mairaee, Darcy Ribeiro d voz ao prprio Deus, que j no sabe se haver ressureio nessa liturgia, e questiona a sua imortalidade.
Sobe a mim o murmrio sem fim. o meu povo l embaixo pedindo o milagre: a exceo. Quer ficar (...) Sem eles quem me h de lembrar, louvar? Povo meu que refiz quebrando molde de DeusPai (...) Um mundo despovoado de
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Referncias Bibliogrficas:
BUARQUE, Aurlio. Mini Aurlio O Dicionrio da Lngua Portuguesa. 8 ed. (revista, atualizada e ampliada). So Paulo: Editora Positivo, 2012. CAMINHA, Pero Vaz. Carta de Pero Vaz de Caminha. Em acervo digital da Biblioteca Nacional: http://objdigital.bn.br/Acervo_ Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf. Acesso em: 06 de Junho de 2013. RIBEIRO, Darcy. Mara. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1981. ______. Mara. 21 ed. (Edio comemorativa de 20 anos da obra). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. SANTOS, Luiza Aparecida, O percurso da indianidade na literatura brasileira: Matizes da Figurao. So Paulo: Cultura Acadmica Editora; Unesp, 2009.
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Resumo
Atravs deste trabalho, sero analisadas as personalidades das personagens Isaas e Alma, do romance Mara de Darcy Ribeiro, focando em como a influncia da moral imposta pela sociedade civilizada e pelas religies interfere nos indivduos que entram em contato com estas e nos que fazem parte deste meio. Utilizando principalmente, os livros O Mal-Estar na Civilizao de Sigmund Freud, Os ndios e a Civilizao e O Povo brasileiro de Darcy Ribeiro.
Alabastro: revista eletrnica dos alunos da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo, So Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 50-58.
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Vocs nos trazem existncia, Deixando que o pobre se torne culpado, Depois o abandonam ao sofrimento, Pois toda culpa na terra se paga. Goethe, Canes do Harpista
O Mal-Estar na Civilizao em Mara Em 1976, Darcy Ribeiro escreveu o romance intitulado Mara, enriquecido por uma enorme bagagem cientfica possuda pelo antroplogo. O autor inclui em sua obra um conhecimento etnolgico muito denso em virtude do convvio e estudos realizados entre tribos indgenas e que devido presena de fatos mitolgicos gera-se uma dificuldade de se fazer uma leitura superficial. Em Mara, Darcy Ribeiro aborda a histria da pequena tribo dos ndios mairuns e da investigao sobre a morte de Alma. O enredo foca-se dentre outros personagens, em Av, rebatizado posteriormente como Isaas, um ndio que futuramente seria o lder (tuxauar) mairum, mas que ainda jovem foi retirado de sua aldeia e de sua vida simples, e foi levado para ser convertido, educado e catequizado entre a civilizao, mais especificamente em Roma, para se tornar um sacerdote cristo. Aps um longo perodo distante de suas origens e de diversos conflitos psicolgicos internos, Isaas resolve retornar sua aldeia. Em seu trajeto de volta conhece Alma, uma psicloga que decide servir em nome de Deus, por arrependimento da vida que levava anteriormente, e para que com isso pudesse redimir seus pecados. Como os dois possuem como mesmo destino Naruai, decidem seguir seus caminhos unidos. Ao entrar em contato com a cultura indgena dos mairuns atravs de Isaas, Alma desiste de seus propsitos religiosos e aps isso passa a conviver entre os ndios, fazendo parte
do estilo de vida existente na tribo, o que a leva a ter relaes sexuais com vrios ndios. Em consequncia dessas diversas relaes, Alma engravida de gmeos, porm no possui certeza sobre a paternidade das futuras crianas. Por se considerar integrante da tribo, Alma decide ter seus filhos da mesma maneira que as ndias mairuns, o que pode ter sido a causa de sua morte. O romance possui vrias vozes narrativas, criando um caminho de personagens conturbados pela influncia da civilizao. Uma delas e a mais ressonante do enredo a de Isaas. Para Antnio Candido existe algum motivo para Darcy Ribeiro ter composto o romance desta maneira, causando uma existncia incompleta das personagens:
[...] porque no se concentrou no universo tribal e preferiu, com plena conscincia da situao presente, estabelecer o relacionamento deste com o mundo civilizado, que o cerca e destri. Mais ainda: porque figurou o encontro de culturas na prpria personalidade de um ndio, iniciado nos saberes do branco, mas preso de tal maneira s origens que voltou sua aldeia, na sua selva, para viver uma existncia incompleta, diminuda, puxada para os dois lados. (CANDIDO, 2003, p. 384)
Freud em seu livro O Mal-Estar na Civilizao, faz uma anlise dos fatores causadores da instabilidade psicolgica dos seres humanos em contato com a civilizao, e a angstia causada pelas limitaes exigidas pela convivncia em sociedade dos instintos e das restries dos sentimentos de felicidade e prazer. Na obra de Darcy Ribeiro, podemos reparar principalmente em Isaas e Alma, como os conflitos que essa imposio de valores sociais atua nas personalidades dos indivduos. Freud em Novas Conferncias Introdutrias nos diz o seguinte sobre o que essa angstia sentida pelos homens:
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[...] angstia um estado afetivo, ou seja, uma unio de determinas sensaes da srie prazer-desprazer com as inervaes de descarga a elas correspondentes e a percepo, mas provavelmente tambm o precipitado de um certo evento significativo, incorporado por hereditariedade, algo comparado ao surto histrico adquirido individualmente. (FREUD, 2011, p.224)
transtornos apresentados por estes ndios que so levados para serem educados como homens civilizados. A presena do conflito entre o mundo tribal do qual Av foi retirado ainda criana e do civilizado e religioso, no qual este se tornou Isaas e passou a viver em Roma, seria o motivo de sua perturbao e tambm de sua falta de identificao com qualquer uma das duas culturas as quais ele entrou em contato.
Eu sou dois. Dois esto em mim. Eu no sou eu, dentro de mim est ele. Ele sou eu. Eu sou ele, sou ns, e assim havemos de viver. O velho confessor no estar jamais no futuro, esperando por mim, antes da missa para me esvaziar outra vez de mim. Eu tambm no estarei jamais tremendo de medo dessa hora da verdade, da antiga verdade, da verdade dos outros. Agora viverei com a minha verdade, a minha verdade entreverada. Deus do cu, meu pai e meu tio. Deus Deus e Mara. Mara Deus. (RIBEIRO, 2003, p.109)
Freud demonstra que o ser humano busca em sua vida, formas de se alcanar um sentimento de felicidade, porm a vida em sociedade nos traz diversas frustraes e que alguns encontram na religio uma maneira de diminuir essa frustrao.
A vida, tal como nos coube, muito difcil para ns, traz demasiadas dores, decepes, tarefas insolveis. Para suport-la, no podemos dispensar paliativos. (FREUD, 2011, p.28)
Tanto em Isaas quanto em Alma, identificamos atravs da religio, uma busca desse paliativo, essa busca, Freud nos descreve da seguinte maneira:
de particular importncia o caso em que grande nmero de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento atravs de uma delirante modificao da realidade. Devemos caracterizar como tal delrio de massa tambm as religies da humanidade. Naturalmente, quem partilha o delrio jamais o percebe. (FREUD, 2011, p.38)
Em seu livro, Freud expe o que seria a fonte de energia a qual os diferentes sistemas religiosos utilizam para exercer um controle de seus seguidores, um sentimento que causa a sensao de eternidade. A construo desse sentimento de necessidade religiosa, para Freud, encontrada desde a infncia:
Um sentimento pode ser fonte de energia apenas quando ele mesmo uma expresso de uma forte necessidade. Quanto s necessidades religiosas, parece-me irrefutvel a sua derivao do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por ele, tanto mais que esse sentimento no se prolonga simplesmente desde a poca infantil, mas duradouramente conservado pelo medo ante o superior poder do destino. (FREUD, 2011, p.25)
Em Isaas podemos visualizar claramente, o sofrimento que os ndios passavam ao entrarem em contato com culturas e religies distintas das quais haviam sido criados. As grandes religies, principalmente a catlica, com seus ideais de catequizar e converter os descrentes atravs da imposio como verdade de seus conceitos, geralmente so as grandes responsveis pelos
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No decorrer de Mara podemos encontrar diversos fragmentos que demonstram as influncias desses diversos fatores na construo da personalidade de Isaas.
[...] Todo o dia e toda noite j longa deste vo revivi meus idos. Os de menino na aldeia, os de rapaz no convento de Gois, os de homem feito e desfeito em Roma. Eles me marcaram duramente. como se eu tivesse perdido minha alma, roubada pelos curupiras, e vivido por anos a fio como bicho entre bichos. Volto, agora que volto de verdade, me perguntando quem o ser que levo a meu povo. Sei bem que no sou o anjo sem mcula que um dia quis ser, a ingenuidade mairuna submetida a todas as provaes, mas intocada. No sou inocente. No sou culpado. Sou um equvoco. Quem volta no a forma adulta do menino ignorante que os mairuns, na sua inocncia, mandaram, um dia, com os padres aprender a sabedoria dos carabas. Quem volta no tambm o catecmeno esforado de quem os missionrios quiseram fazer a glria da Ordem. Quem volta sou apenas eu. Fui a ovelha do Senhor. Volto tosquiado: sem glria sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada. Tudo que tenho so duas mos inbeis e uma cabea cheia de ladainhas. E este corao aflito que me sai pela boca. (RIBEIRO, 2003, p.76)
Sobre esses ndios assombrados com o que lhes sucedia que caiu a pregao missionria, como um flagelo. Com ela, os ndios souberam que era por culpa sua, de sua iniquidade, de seus pecados, que o bom deus do cu cara sobre eles, como um co selvagem, ameaando lan-los para sempre nos infernos. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o valor e a covardia, tudo se confundia, transtrocando o belo com o feio, o ruim com o bom. Nada valia, agora e doravante, o que para eles mais valia: a bravura gratuita, a vontade de beleza, a criatividade, a solidariedade. A cristandade surgia a seus olhos como o mundo do pecado, das enfermidades dolorosas e mortais, da covardia, que se adornava do mundo ndio, tudo conspurcando, tudo apodrecendo. (RIBEIRO, 1995, p.45)
A maior causa da angstia sentida por Isaas pode ter sido originada da coero ao abandono de seus instintos sexuais pelas doutrinas religiosas, com relao no contraste observado por este durante sua criao infantil, de como era a vida sexual existente em sua aldeia. A forte represso sexual existente em Isaas pode ser observada aps Isaas retornar a aldeia mairum e se casar com uma ndia, e mesmo a desejando, no consegue estabelecer relaes sexuais com sua esposa e passa a sofrer por am-la.
Senhor, meu Deus, castigador. Senhor, meu Deus, salvador. Ela minha cruz, que tenho merecida, d-me seu amor, por minha perdio eterna, d-me. Seu amor, Senhor, o paraso nico a que aspiro. Se com ela hei de perderme, sem ela no quero salvar-me. D-me, Senhor, o meu amor desventurado. Ainda que ele venha eriado de todos os escorpies do cime. Ainda que custe a condenao eterna de minha alma apaixonada. O seu amor, Senhor, ou minha morte, d-me. (RIBEIRO, 2003, p. 352)
Em seu livro O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro diz o seguinte sobre esse assunto referente a os ndios que eram retirados de suas aldeias para serem educados e o impacto disto:
[...] com a destruio das bases da vida social indgena, a negao de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitssimos ndios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como s eles tm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possvel seria a negao mais horrvel do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira.
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Alma aps a morte do pai, por arrependimento da vida que levava, a qual no era considerada digna por este, decidiu tentar atravs da religio honrar sua memria, mas para isso, acreditava que era necessria a ausncia do contato com o mundo civilizado, que de acordo com Alma era repleto de fome, sexo e maconha, e da fuga para um lugar distante, para poder prestar seus servios em nome de Deus. Alma nos conta que ao aceitar a vida religiosa como ideal, tenta fugir da conturbada vida sexual a qual ela supe que se iniciou atravs de um amor edpico ao pai.
L na Misso, com as irmzinhas, terei por fim a paz que nunca tive, afundada na paixo carnal, debaixo do peso do amor daquele meu pai sacrossanto. Ele s via em mim carinho e pureza. Oh! Meu pobre pai que est no cu e que de l, talvez, me veja! Jamais, meu pai, jamais voltarei a buscar seu cheiro em algum, como tantas vezes fiz sem saber: minha culpa, minha mxima culpa. No tendo me que gastasse meu carinho, nem irmo que me ensinasse a ser mulher, nem amigos, por anos e anos s tive meu pai. Nele me concentrei totalmente. Vivemos do carinho e da dao por parte dele e dessa sofreguido e angstia da minha parte. Nem sua morte me livrou. (RIBEIRO, 2003, p. 91)
felicidade atravs da vida sexual, pode nos causar angstias e neuroses, pois mesmo seguindo os instintos humanos, o amar nos deixa mais desprotegidos ante o sofrimento, e por isso buscamos caminhos diferentes para buscar a felicidade, esse pode ser descrito como o motivo para Alma decidir mudar de vida.
Afirmamos que a descoberta de que o amor sexual (genital) proporciona ao indivduo as mais fortes vivncias de satisfao, d-lhe realmente o prottipo de toda felicidade, deve tlo feito continuar a busca da satisfao vital no terreno das relaes sexuais, colocando o erotismo genital no centro da vida. Prosseguimos dizendo que assim ele se torna dependente de maneira preocupante, de uma parte do mundo exterior, ou seja, do objeto amoroso escolhido, e fique exposto ao sofrimento mximo, quando por este desprezado ou o perde graas morte ou infidelidade. (FREUD, 2011, p. 64)
Alma busca atravs de suas relaes sexuais ser reconhecida como algum, porm essa vida apenas a levou para uma triste solido e que por influncia disso acabou se perdendo no mundo das drogas e sendo internada. Aps a internao Alma encontra atravs da f sua salvao. Por um desejo estranho e repentino ela decide que deve passar a viver na misso do Iparan, mas tambm comea a demonstrar confuses sobre o que espera de sua vida, mas independente do que seja, deseja apenas ser aceita. Freud nos fala sobre como a busca da
O dipo sentido pelo pai, pode ter sido outro fator importante tanto para a tomada da vida sexual quanto para a deixada dessa vida, pois um sentimento de culpa se manifesta em quem possui o complexo de dipo, o que impede os filhos de possurem relaes sexuais com os pais e os fazem buscar a satisfao amorosa em outras pessoas. Freud no mal-estar da civilizao, discorre sobre o conflito de Eros e o instinto da destruio ou da morte:
Esse conflito atiado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos; quando essa comunidade assume apenas a forma da famlia, ele tem de se manifestar no complexo de dipo, instituir a conscincia, criar o sentimento de culpa. Ao se procurar uma ampliao dessa comunidade, o mesmo conflito prossegue em formas dependentes do passado, fortalecido e resulta uma intensificao do sentimento de culpa. (FREUD, 2011, p.104)
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Aps a morte do pai de Alma, o sentimento de amor sentido por ele, reprime a busca da representao do pai em outros homens, o que faz Alma buscar sua satisfao atravs da realizao dos ideais do pai amado.
Veja o nome que me deu, irm Petrina: Alma. D uma medida da sua espiritualidade. Espiritualidade de que eu no fui digna at a sua morte. Agora quero me recuperar. Quero cumprir por atos, no servio de Deus, todos os conselhos dele que no escutei. Ele morreu, a senhora sabe. (RIBEIRO, 2003, p.61)
no decorrer da obra uma ideia de retorno ao primitivo, Isaas com seu desejo de voltar a ser Mairum e reestabelecer seus contatos com a natureza, e Alma ao se reconhecer com a cultura indgena sexual dessa tribo. Freud nos descreve essa necessidade de retorno do homem ao primitivo como fuga da infelicidade causada pela civilizao e hostilizao gerada pelo estado civilizacional:
[...] boa parte da culpa por nossa misria vem do que chamado de nossa civilizao; seramos bem mais felizes se a abandonssemos e retrocedssemos a condies primitivas. A assero me parece espantosa porque fato estabelecido como quer que se defina o conceito de civilizao que tudo aquilo que nos protegemos da ameaa das fontes do sofrer parte da civilizao. (FREUD, 2011, p.44)
Esse sentimento de culpa o qual Alma sentia por no corresponder as expectativas do pai, pode ter sido tambm a causa do envolvimento de Alma com as drogas, Freud escreve que as pessoas recorrem as drogas para alcanarem um prazer imediato e assim escaparem da sensao de sofrimento. Para Freud:
[...] mas os mtodos mais interessantes para prevenir o sofrimento so aqueles que tentam influir no prprio organismo. Pois todo sofrimento apenas sensao, existe somente na medida que o sentimos, e ns os sentimos em virtude de certos arranjos de nosso organismo [...] fato que h substncias de fora do corpo que uma vez presente no sangue e nos tecidos, produzem em ns sensaes imediatas de prazer, e tambm mudam de tal forma as condies de nossa sensibilidade, que nos tornarmos incapazes de acolher impulsos desprazerosos. (FREUD, 2011, p.32)
No livro Mara, podemos encontrar vrios pontos onde Isaas e Alma apresentam um sentimento de hostilizao a civilizao. Isaas nos mostra como o nosso mundo pode ser duro para um ndio:
Do lado oposto, no nascente, est o mundo devassado de onde nos vm a invaso, a doena, a brancura. o lado onde estou agora, o lado de onde vou indo para l, voltando. (RIBEIRO, 2003, p.75) Minha ambio voltar ao convvio da minha gente e com a ajuda deles me lavar deste leo de civilizao e cristandade que me impregnou at o fundo. (RIBEIRO, 2003, p.168)
Porm as drogas tambm nos afastam da realidade do mundo externo, o que seria a causa de Alma, aps a sua reabilitao, desejar apenas ser reconhecida como algum por este mesmo mundo exterior atravs de seus atos religiosos em memria do pai. Tanto Isaas quanto Alma demonstram
Darcy Ribeiro em seu livro Os ndios e a Civilizao, nos conta sobre como aps o impacto cultural da educao civilizada nos ndios, estes tentavam retornar para suas vidas nas aldeias, mas no conseguiam mais no sofrerem, como era antes de suas partidas:
Sumariando nosso estudo das
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vicissitudes da conscincia indgena diante do impacto da civilizao, podemos recapitular, agora, algumas das contingncias de sua integrao compulsria na sociedade nacional. Conforme vimos, numa primeira instncia a tribo indgena posta em contato com a sociedade nacional procura defender e preservar o ethos que lhe prov a imagem orgulhosa de si prpria como um povo entre os demais e at mesmo como um povo melhor que os demais. Depois de sucessivos embates que fazem ruir quase todo o orgulho tribal, sobrevm, via de regra, esforos desesperados de retorno, de isolamento. (RIBEIRO, 1996, p.474)
um processo de reconhecimento com sua cultura, talvez pelas imposies sexuais criadas pela sua conscincia de homem civilizado, o que o levou a continuar a sofrer e tentar a encontrar outro caminho atravs do sentimento de amor no correspondido com sua esposa mairum. Freud em o Mal-Estar na Civilizao nos descreve sobre o perigo de sofrer por amar algum:
Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor. (FREUD, 2011, p.39)
A relao entre Alma e o retorno ao primitivo, foi mais simples que a de Isaas, pois esta encontrou na aldeia mairum, uma identificao com sua vida sexual anterior a morte de seu pai, e com isso acabou chegando ao ponto de desejar a ser uma das ndias e recriminar fortemente sua origem civilizada, o que a levou a engravidar de um dos ndios e a desejar ter seu filho como uma tribal, o que poderia ter acarretado sua morte. Freud em seu texto Moral Sexual Civilizada e Doena Nervosa Moderna nos diz sobre a falsidade da supresso sexual instintual, o que pode explicar a fcil desistncia de Alma de sua sublimao sexual:
Quando o instinto sexual muito intenso, mas pervertido, existem dois desfechos possveis. No primeiro, que no examinaremos, o indivduo afetado permanece pervertido e sofre as consequncias do seu desvio dos padres de civilizao. No segundo, muito mais interessante, o sujeito consegue realmente, sob a influncia da educao e das exigncias sociais, suprimir seus instintos pervertidos, mas essa supresso falsa, ou melhor, frustrada. (FREUD, 1976, p.35)
Isaas demonstra um comportamento de distanciamento com seu prprio povo, e tenta atravs de atividades intelectuais, minimizar seu sofrimento por no ser o ndio que esperavam que ele fosse e por no conseguir o amor de sua mulher:
Aqui estou na minha aldeia, devolvido a ela, mas no devolvido a mim mesmo. Comea a ser cada vez mais difcil sentir-me mairum dentro de minha pele. Passo a mo pelos cabelos que esto ficando ralos, como acontece com os brancos. Lavo os olhos do esprito com oraes, como fazia antigamente, na esperana de que, limpos, vejam melhor. Mas no, estou cada vez menos a jeito dentro de mim e os outros tambm esto se cansando. Muitos passam e no me olham; se olham, no me vem. (RIBEIRO, 2003, p.303) Somente a vida intelectual me alimenta aqui. Ainda que reduzida aridez de Gertrudez, com a sua geometria gramatical, e exuberncia demonaca de Teidju, s dela que eu vivo. (RIBEIRO, 2003, p.305)
Freud expe como uma maneira eficaz de se chegar ao prazer ou a ausncia de desprazer, mesmo que no to potente quanto a realizao
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Enquanto Darcy Ribeiro tenta atravs de sua obra nos passar a extino da bela cultura indgena e sua substituio pelo homem triste e depressivo civilizado, Freud nos faz o seguinte comentrio sobre os sentimentos desse homem:
[...] h diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao contedo positivo da meta, a obteno de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos podemos alcanas tudo o que desejamos. (FREUD, 2011, p.40)
Concluso No de hoje que vemos a doena espalhada pelo mundo, devastando civilizaes e seus indivduos, independente de credos, culturas, classes sociais, ou dos diversos outros modos que existem ou foram criados para nos distanciarmos de nossos iguais. Infelizmente est doena a qual venho aqui expor minha opinio no de uma simples forma de tratamento, estou falando de um forte transtorno psicolgico causado principalmente pelo meio conturbado no qual vivemos. Uma doena de vcio e de um ideal de comodismo. Uma doena de falta de compreenso e de desrespeito ao prximo. Onde leis so criadas para nos diferenciarem. Onde se decidido se algum deve ou no viver e de que maneira as pessoas devem viver. Uma doena de se instituir que no devemos nos importar com os sentimentos alheios.
A ideia de como nossa vida deveria ser encravada em nossas mentes de uma forma to impositiva, que se no for alcanado tal ponto pr-definido, ficamos frustrados e nos sentimos fracassados, angustiados. Regras e leis so criadas, para poder nos manter acorrentados ao mtodo estipulado de estilo de vida ideal, negando assim nosso direito a liberdade dentro da grande priso a qual chamamos de civilizao. Mesmo para ns que j nascemos e somos colocados nesse mundo civilizado j difcil sobreviver desta maneira, e assim como Alma, sofremos intensamente. Podemos tentar imaginar ento, o quanto de dor, tristeza e depresso um ndio, que assim como Isaas, foi inserido na nossa sociedade pode sentir. Podemos refletir sobre o choque cultural que este ndio pode sentir ao ser retirado ainda pequeno de sua tribo, acostumado ao comunitarismo de sua aldeia, onde era criado com a bela natureza ao seu redor e possuidor de um simples estilo de vida, ao ser colocado para viver no nosso mundo individualista, cheio de regras, dogmas, disciplina e opresses. Creio que Darcy Ribeiro, ao querer expor o drama sentimental dos ndios civilizados, estava tentando nos mostrar de que maneira seria o fim do esprito indgena, no s atravs da devastao de suas terras, destruio de suas florestas e do desaparecimento de seus animais, mas que o fim do indgena estaria tambm, e talvez principalmente, na transformao destes em seres doentes, neurticos, conturbados, ou melhor dizendo, em um de ns.
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Referncias Bibliogrficas:
CANDIDO, A. In RIBEIRO, D. Mara. Mundos cruzados. Editora Record, Rio de Janeiro, 2003, p.382 FREUD, S. O Mal-Estar na Civilizao. In: Obras completas v. 18. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. FREUD, S. Novas Conferncias Introdutrias Psicanlise. In; Obras completas v. 18. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. FREUD, S. Moral sexual civilizada e doena nervosa moderna. In: Pequena coleo das obras de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. RIBEIRO, D. Mara. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003 RIBEIRO, D. Os ndios e a civilizao. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. RIBEIRO, D. O povo brasileiro. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Os rios profundos e Mara: a utopia de integrao harmoniosa a partir da proposta de ngel Rama
Elise Aparecida de Souza
Mestre em Literatura Brasileira pela Unimontes e Professora de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes
Anelito de Oliveira
Ps-Doutorando em Teoria Literria pela Unicamp, Doutor em Literatura Brasileira pela USP, autor de, entre outros, "A aurora das dobras: introduo barroquidade potica de Affonso vila" (Inmensa, 2013).
Resumo
ngel Rama (2001) afirma que o trabalho dos transculturadores contribui para a identidade e o resgate de vastas regies e culturas (RAMA, 2001, p. 200). Para o crtico, as obras transculturadoras possibilitam estabelecer o vnculo entre as diversas partes do continente, contribuindo, de forma decisiva, para o conceito moderno de Amrica Latina. Sob essa perspectiva, traaremos contrapontos entre os romances Os rios profundos e Mara para averiguar similitudes e diferenas entre as duas obras literrias, a fim de verificar como se inscreve o dilogo entre os dois escritores, a partir do pensamento utpico de ngel Rama. Os resultados sero feitos a partir desse recorte nas obras em questo.
Palavras -Chave
Darcy Ribeiro; Mara; Os rios profundos; Utopia; ngel Rama.
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As numerosas pegadas formam um caminho na mata; muito mais se j no se trata de rastros, mas de criaes artsticas que se encandeiam e se sucedem. Porm, para que esse encadeamento, que frutfero, se produza, devemos ratificar que o dilogo mais autenticamente fecundo para um romancista o que ele trava com outro romancista de sua prpria terra ou comarca. ngel Rama
partes do continente que sempre foi desejoso de unidade (RAMA, 2001, p. 200), contribuindo, de forma decisiva, para o conceito moderno de Amrica Latina. Sob essa perspectiva, desejamos traar contrapontos entre os romances Os rios profundos e Mara para averiguar similitudes e diferenas entre as duas obras literrias, a fim de verificar como se inscreve o dilogo entre os dois escritores latinoamericanos, a partir do pensamento utpico de ngel Rama. Nessa direo, nos reportamos ao romance Os rios profundos para demonstrarmos como os espaos inscritos, na urdidura ficcional de Arguedas, servem para engendrar a identidade cultural e social dos povos andinos, alm de instigar a reflexo sobre os aspectos polticos e econmicos que dividem a regio em classes: terratenentes (latifundirios) e colonos, apresentando, ainda, a presena dos pongos1, dos mestios, das chicheras2, dentre outros estratos socioculturais que compem a regio do Andes Peruano; em seguida, retornaremos ao romance Mara. Os Rios Profundos em Mara: interfaces e contrapontos Para Maria Claudia Galera, os espaos nas obras transculturadoras no se limitam a um mero cenrio, eles funcionam, sobretudo, como a chave para a entrada em suas temticas [...] (GALERA, 2004, p. 117). Nesse sentido, As efabulaes se definem em funo da definio da identidade das personagens associada a um espao que fsico, mas tambm simblico [...] (GALERA, 2004, p. 105). O romance Os rios profundos narra a trajetria do menino Ernesto, que viaja com seu pai, um advogado [...] acostumado a viver em casas com grandes ptios, a conversar quchua
Introduo Para ngel Rama (2001), as diferenas entre os diversos casos que se registram na Amrica Latina assinalam trs graus distintos da problemtica da aculturao: o primeiro faz referncia [...] j velha e esclerosada compartimentao entre as culturas indgenas e as culturas de dominao provenientes do conquistador (RAMA, 2001, p. 192); o segundo grau associa-se aos casos intermedirios que [...] so aqueles representados pela vinculao das regies esquecidas que conservam com muito zelo as marcas do passado com as novas cidades nascentes (RAMA, 2001, p. 192); e o terceiro grau corresponde aos casos que
[...] respondem a um distanciamento menor entre os plos opostos, naquelas regies que dentro do pas ou do continente, ainda que pertencendo mesma conformao cultural das metrpoles latino-americanas, vivem em estado de submisso, obedecendo a valores alheios, sem poder aderir ao florescimento dos prprios (RAMA, 2001, p. 192).
Com base nessas inferncias, Rama afirma que o trabalho dos transculturadores no s provam a singularidade latino-americana, mas tambm contribui para a identidade e o resgate de vastas regies e culturas (RAMA, 2001, p. 200). Para o crtico, as obras transculturadoras possibilitam estabelecer o vnculo entre as diversas
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com dezenas de clientes ndios e mestios (ARGUEDAS, 2005, p. 49), mas, que vive como um [...] Judeu Errante... (ARGUEDAS, 2005, p. 53), por no se estabelecer em lugar algum, nem na aldeia, nem na cidade. Durante a viagem dos dois, o pai de Ernesto [...] falara de sua cidade natal, dos palcios e templos, e das praas, [...], cruzando o Peru dos Andes, de leste a oeste e de sul a norte (ARGUEDAS, 2005, p. 12). Na passagem por Cusco, em direo ao vilarejo de Abancay, Ernesto estranha a imagem que v, pois, o lugar era muito diferente daquele que seu pai descrevera, nas histrias narradas, durante a travessia:
Era noite quando entramos em Cusco. Fiquei surpreso com a estao de trem e a avenida larga pela qual, lentamente, avanvamos. A luz eltrica era mais fraca que a de alguns lugarejos que eu conhecia. Grades de madeira ou de ao defendiam jardins e casas modernas. A Cusco de meu pai, aquela que ele me descrevera umas mil vezes, no podia ser essa (ARGUEDAS, 2005, p. 8).
contemplava-o e voltava a me aproximar. Toquei as pedras com as mos; segui a linha ondulante, imprevisvel, como a dos rios, em que se juntam os blocos da rocha. Na rua escura, no silncio, o muro parecia vivo; sobre a palma de minhas mos flamejava a juntura das pedras que eu tocara (ARGUEDAS, 2005, p. 11).
Mas no apenas a cidade de Cusco que chama a ateno de Ernesto; as pessoas daquela regio despertam-lhe, da mesma maneira, a curiosidade, como podemos notar nas descries que ele faz do Velho, um fazendeiro parente de seu pai que, no obstante sua aparncia rstica e descuidada, Infundia respeito, apesar de sua aparncia antiquada e suja. Os notveis de Cusco cumprimentavam-no, circunspectos. Portava sempre uma bengala com empunhadura de ouro; seu chapu, de aba estreita, sombreava-lhe um pouco a testa (ARGUEDAS, 2005, p. 7). O narrador mostra que o Velho, ainda que, extremamente, religioso, pois [...] se ajoelhava diante de todas as igrejas e capelas [...] (ARGUEDAS, 2005, p. 7), era, tambm, imensamente, avarento, porquanto ele: Armazena os frutos dos pomares, e deixa que apodream; acha que valem pouco para traz-los para vender em Cusco ou para lev-los at Abancay, e que valem muito para entreg-los para os colonos (ARGUEDAS, 2005, p. 7). Nessa abordagem, o narrador no s desmascara a hipocrisia religiosa do fazendeiro, como, ainda, acentua o comportamento materialista da elite latifundiria, a partir da descrio da personagem, assinalando o predomnio do pensamento retrgrado da classe dominante. Por outro lado, o narrador revela, do mesmo modo, o grau de superioridade de uma classe sobre outra, pois o patro no permite que os frutos sejam distribudos entre os ndios, no caso, os colonos que habitavam suas terras, porque os enxergava como inferiores.
A voz de Ernesto anuncia os indcios de modernizao na cidade sagrada dos ndios, a partir da presena da estao de trem, da luz eltrica, das grades de ao e das construes modernas. Ernesto tenta resgatar, nas paisagens, os vestgios da civilizao passada, os smbolos do imprio inca, que continuam presentes em suas lembranas: Eu esquadrinhava as ruas procurando muros incas (ARGUEDAS, 2005, p. 8). J diante de um muro inca, o garoto no se conforma s com a mera contemplao, mas busca estabelecer comunicao com as pedras, que se parecem vivas, pois, correspondem-lhe ao toque:
Caminhei diante do muro, pedra aps pedra. Afastava-me alguns passos,
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O protagonista descreve, tambm, o pongo, um encarregado da fazenda, cujas [...] calas, muito justas, s o abrigavam at os joelhos. Estava descalo; suas pernas nuas mostravam os msculos em feixes duros que brilhavam [...]. Sua figura parecia frgil; era espigado, no alto (ARGUEDAS, 2005, p. 9). O menino revela, alm disso, a imagem humilhada do pongo, seus olhos fundos, [...]; a cabea descoberta, em que os cabelos pareciam premeditadamente embaraados, cobertos de sujeira. No tem pai nem me, apenas sua sombra [...] (ARGUEDAS, 2005, p. 27). O excerto mencionado denuncia que a situao do pongo advm de sua orfandade, tanto do sistema poltico quanto do econmico, que o coloca em uma posio desfavorvel na sociedade, quase invisvel, apenas sombra, possibilitando que ele permanea em regime de escravido, na fazenda. O pongo ainda visto pelo menino como a prpria imagem de Cristo, por causa de seu sofrimento incessante:
O rosto do Crucificado era quase negro, desengonado, como o do pongo. Durante as procisses, com seus braos estendidos, os ferimentos profundos, e os cabelos cados para um lado, como uma ndoa preta, luz da praa com a catedral, as montanhas, ou as ruas ondulantes atrs, avanaria aprofundando as aflies dos sofredores, mostrando-se como o que mais padece, incessantemente. (ARGUEDAS, 2005, p. 28)
colgio religioso, espao onde os conflitos tnicoculturais e, de igual modo, os econmicos, so mais visveis. Nesse vis, nota-se que o internato funciona, no romance, como um microcosmo daquela sociedade, proporo que a relao entre os estudantes estabelece analogia com os grupos socioculturais que compem aquele contexto. A propsito disso, selecionamos algumas personagens que possibilitam demonstrar essa relao na tessitura ficcional de Arguedas. Iniciamos com a figura feminina que compartilha o mesmo espao do colgio, Marcelina, uma moa branca de cabelos claros que foi recolhida num povoado por um dos padres. Ela ajudava nos afazeres da cozinha e, apesar de sofrer problemas mentais, por isso a alcunha de opa, era vtima de abusos sexuais sucessivos, cometidos por alguns internos, durante as noites, no ptio do colgio,
Mas o anoitecer, com o vento, despertava essa ave atroz que agitava sua asa no ptio interno. [...]. Alguns, uns poucos de ns, iam, seguindo os mais velhos. E voltavam envergonhados, como se tivessem se banhado em gua contaminada; olhavam-nos com temor; um arrependimento irrefrevel os afligia. (ARGUEDAS, 2005, p. 82)
Por meio das imagens focalizadas, Ernesto, aos poucos, delineia a estratificao social, a ambiguidade do sistema vigente, revelando, tanto quanto possvel, a condio de subalternidade que se encontravam os ndios e os colonos, camada social vulnervel, que forma a massa marginalizada na narrativa. J em Abancay, Ernesto se fixa em um
Contraditoriamente, a opresso feminina intensifica-se no educandrio religioso medida que no s os internos abusavam da jovem, mas o narrador insinua que ela sofria abusos, inclusive, do padre: Foi vista saindo, certas manhs, da alcova do padre que a trouxe ao Colgio (ARGUEDAS, 2005, p. 72). Nessa vertente, o narrador filtra a condio miservel da mulher, que oprimida pelos sistemas cultural e social, denunciando o pensamento patriarcal instalado nessa instituio. No que se refere aos estudantes do
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internato, nota-se que eles esto subdivididos em grupos que assinalam a oposio entre as classes: em meninos maiores, Lleras, Auco, Peluca, sendo estes os mais fortes; e menores, Ernesto, Palacios e Romero, que formam o grupo dos fracos. H, tambm, a diviso tnica com a presena de cholos3, ndios, peruanos e chilenos que revelada durante os jogos e as lutas; momento em que o conflito apresenta-se acirrado, como testifica o relato do narrador:
Os sermes patriticos do padre diretor se realizavam na prtica; divididos em bandos de alunos peruanos e chilenos, ns lutvamos ali; com estilingues de borracha, atirvamos os frutos da figueirilha uns nos outros e depois nos lanvamos ao assalto, lutando aos socos e pontaps. Os peruanos deviam ganhar sempre. Nesse bando se alistavam os preferidos dos campees do Colgio, porque obedecamos s ordens que eles davam e tnhamos que aceitar a classificao que faziam. (ARGUEDAS, 2005, p. 66. Grifos do autor)
Nessa linha, Auco destaca-se por sua postura impositiva sobre os meninos mais fracos, no caso, os meninos menores que compartilham do mesmo espao do colgio e sofrem com a violncia do garoto, como demonstra este fragmento: Se fosse um menino mais velho, insultava-o com os palavres mais imundos, at ser atacado, para que Lleras interviesse; mas, se brigava com algum pequeno, batia nele encarniadamente (ARGUEDAS, 2005, p. 6768). J Lleras, protetor de Auco, o estudante mais atrasado do colgio, que, entretanto, adquire destaque no internato no apenas pelo seu bom desempenho no time de futebol da escola, mas, especialmente, por sua violncia, que instiga medo no somente nos colegas, mas tambm em todos do povoado:
Ficava feliz quando algum era derrubado numa luta em grupo, porque ento se acomodava habilmente para pisotear o rosto do cado ou para darlhe pontaps curtos, como se tudo fosse casual, e s porque estava ofuscado pelo jogo. (ARGUEDAS, 2005, p. 70)
Entre estes, destacamos Auco, nico interno do colgio que descendente de terratenentes. Filho de um fazendeiro falido, que hipotecou sua fazenda por causa dos vcios O pai do Auco recebeu a herana jovem e dedicou sua vida, como o av, ao jogo (ARGUEDAS, 2005, p. 67) o menino foi acolhido pelos padres, aos nove anos de idade, pouco tempo antes da morte do ex-fazendeiro. Apesar da pobreza, o menino chileno era respeitado no colgio, no s pelas visitas dos fazendeiros que deixavam dinheiro para a sua matrcula e para as despesas com os livros, mas, tambm, pela fora que o fazia temido pelos colegas: Sua pele era delicada, de uma brancura desagradvel, que lhe dava uma aparncia doentia; mas os braos magros e duros se transformavam, na hora da luta, em ferozes armas de combate (ARGUEDAS, 2005, p. 69).
Apesar de rude, o garoto protegido pelos padres, fato que assinala a hipocrisia do clero, porquanto a ordem eclesistica condescendente com a m conduta de Lleras, que alm de no obter resultado satisfatrio nos estudos, fere os princpios cristos, uma vez que ele violento com os colegas. Dessa maneira, a atitude dos clrigos em relao a Lleras revela que eles so desvirtuados dos valores espirituais propagados pela igreja. Alm de Auco e Lleras, h outros garotos que formam esse quadro no romance, como o caso de Peluca, filho de um barbeiro. Ele tinha dezenove ou vinte anos. Seu pescoo era largo, a nuca, forte como a de um touro; as mos eram
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grandes. Tinha pernas musculosas; durante as frias trabalhava no campo (ARGUEDAS, 2005, p. 79). Ao contrrio dos dois colegas anteriormente citados, o rapaz, apesar de robusto, no apresenta um comportamento agressivo exceto quando v a opa por isso nega-se a lutar boxe, contrariando a vontade do padre Crpena. Em consequncia disso, Peluca punido, humilhado e agredido pelos prprios sacerdotes, conforme apresenta o recorte:
Mas quando recebeu o primeiro soco na cara, Peluca se virou de costas, encolheuse e no quis continuar lutando. Foi insultado; os prprios padres lhe exigiram isso, envergonharam-no, com as palavras mais ferinas; [...]. O padre Crpena, que era aficionado ao esporte, no conseguiu se conter, deulhe um pontap e o derrubou de bruos. (ARGUEDAS, 2005, p. 79)
pois, de qualquer modo, tinha uma posio privilegiada entre os alunos; sabia que as colegiais murmuravam sobre ele, dedicavam-lhe ateno, contemplavam-no (ARGUEDAS, 2005, p. 107). Refletindo sobre sua postura, ainda que o rapaz tivesse xito nos estudos e fosse adequado, parcialmente, cultura dominante, no plano religioso no era aculturado, pois se revelava insubmisso aos dogmas religiosos, como podemos notar em sua expresso: Deus no existe, dizia ao entrar na capela. Meu Deus sou eu (ARGUEDAS, 2005, p. 106. Grifos do autor), o que condicionou sua excluso do mbito social. Alm disso, Valle era o nico aluno do internato que embora conseguisse compreender, de maneira satisfatria, o quchua, ele no falava o dialeto ndio, no por se recusar a falar em lngua indgena, mas pela ausncia de ensinamento quando criana, o que demonstra a rigidez cultural que lhe foi imposta. Palacios, outro interno, filho de um mestio, proveniente de uma aldeia da cordilheira. O menino encontra dificuldades nos estudos porque s fala quchua, no entendendo bem o castelhano:
Lia com dificuldade e no entendia bem o castelhano. Era o nico aluno do Colgio que procedia de um ayllu de ndios. Sua humildade se devia a sua origem e a sua rusticidade. Vrios de ns quisemos ajud-lo nos estudos, inutilmente; no conseguia compreender e permanecia alheio, irremediavelmente afastado do ambiente do Colgio, de tudo o que os professores explicavam e do contedo dos livros. Estava condenado tortura do internato e das aulas. No entanto, seu pai insistia em mant-lo no Colgio, com uma tenacidade invencvel. (ARGUEDAS, 2005, p. 73-74)
Nesse caso, Peluca sofre no apenas com a marginalizao social, mas, em parte, cultural, porque no se adqua s normas rgidas aplicadas no colgio, sendo ridicularizado pelo sistema dominante, por ser visto como um fraco: Estava sempre com uma expresso lacrimosa, semelhante das crianas que seguram o choro (ARGUEDAS, 2005, p. 78). Destarte, o excerto demonstra a hipocrisia do clero, cuja atitude influencia no apenas o jogo, mas tambm a agressividade entre os estudantes. Por outro lado, o estudante Valle tem uma condio superior aos colegiais, por causa de sua erudio; o nico leitor do colgio. Contudo, vigiado pelos padres, porque, alm de emprestar livros aos internos, declarou-se ateu. Em virtude de sua fama, Apesar de se parecer um jovem galante, com seus direitos j decretados, no era admitido na sociedade (ARGUEDAS, 2005, p. 107), sendo nunca convidado para as festas. Quanto sua condio, Ele se conformava,
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caracterizado na narrativa pelo espao escolar recusando-se a aprender a lngua do colonizador, o espanhol, apesar dos esforos dos colegas e do trabalho dos professores. Contudo, fica implcito, atravs de uma conversa entre Ernesto e o padre diretor, que Palacios, ao deixar o internato, mesmo que no tivesse realizado os exames, tinha sido aprovado, pois, ao lado do sacerdote [...] falou de histria ao pai, de cincias naturais, de geometria. [...] parecia respeitvel (ARGUEDAS, 2005, p. 301). Tal fato revela que o menino cede cultura do colonizador, porque ele apresenta, mesmo que somente de forma oral, vestgios de apropriao da cultura dominante, passando da condio de excludo, a partir de uma perspectiva hegemnica, de includo, como indica a expresso respeitvel. Em consonncia com o exposto, o colgio espelha as singularidades da regio, no somente pela pluralidade de identidades que so inscritas no internato, mas tambm pelos conflitos, ambiguidades, e nveis de aculturao implicados a cada grupo representado. Percorrendo o vilarejo, Ernesto chega ao bairro de Huanupata, cujo nome significa monte de lixo. O bairro recebeu este nome porque, no passado, era o monturo dos ayllus, nome que se referia comunidade de ndios. Nesse espao, o narrador expe as pluralidades socioculturais do bairro que so representadas, principalmente, pela classe de trabalhadores:
Nesse bairro viviam as vendedoras da praa do mercado, os pees e carregadores que trabalhavam em ofcios citadinos, os guardas, os empregados das raras casas do comrcio; l estavam as hospedarias onde se alojavam os litigantes dos distritos, os arrieiros e os viajantes mestios (ARGUEDAS, 2005, p. 62, Grifos nossos)
fermentada, geralmente, feita de milho; marineras, bailes populares da regio dos Andes e onde cantavam huaynos, canes e danas populares de origem inca. Ainda que as chicheras imprimiam alegria, o ambiente, por sua vez, lgubre, haja vista que, alm de muitas moscas nas portas, Tudo estava preto de fuligem e fumaa (ARGUEDAS, 2005, p. 63). Atentando para as imagens, nota-se que elas se relacionam com o obscurantismo no qual as classes menos favorecidas se encontravam na cidade de Abancay, situao que sugerida, at mesmo, na significao do nome do bairro mencionada acima. No enredo, esses estabelecimentos funcionam como o lugar de encontro de ndios e cholos, habitantes das comunidades de Huaraz, Cajamarca, Huancavelica e das provncias de Collao, que se renem, nos fins de semana, para tocar harpa e violino, alm de cantar e danar, formando uma grande confraternizao cultural, mais claramente perceptvel durante a entoao do huayno quando os forasteiros e os harpistas formam um nico coro musical. Nesse momento, a cano, mesmo completamente desconhecida, aprendida e cantada por todos, incorporando um tom diferente, ainda que a temtica permanea semelhante, como apresenta o narrador:
Ento os olhos dos harpistas brilhavam de alegria; chamava o forasteiro e lhe pedia que cantasse em voz baixa. Uma s vez era suficiente. O violinista aprendia e tocava; a harpa acompanhava. Quase sempre o forasteiro corrigia vrias vezes: No; no assim! No desse jeito!. E cantava em voz alta, tentando impor a verdadeira melodia. Era impossvel. O tema era idntico, mas os msicos transformavam o canto num huayno do Apurmac, de ritmo vivo e terno. (ARGUEDAS, 2005, p. 63-64)
Esse bairro era o nico em que havia chicheras, bares onde se bebia chicha, bebida
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transforma e reelaborado a cada cano entoada pelos homens. J na voz das chicheras, averguase que o huayno transfigura a paisagem, como apresenta o excerto:
Quando cantavam com suas vozes fininhas, pressentamos outra paisagem; o rudo das folhas grandes, o brilho das cascatas que saltam entre arbustos e flores brancas de cactos, a chuva pesada e calma que pinga sobre os canaviais [...]. (ARGUEDAS, 2005, p. 64. Grifos nossos)
2005, p. 66). O abandono e a misria, por sua vez, revelam-se na descrio da paisagem: Muitos pomares estavam descuidados, abandonados; seus muros arruinados, em certos lugares quase at os alicerces (ARGUEDAS, 2005, p. 66). Importa assinalar que a natureza recebe uma ateno especial, na narrativa, pois, assim como o ser humano que se adapta e sobrevive nova estrutura da sociedade, apesar da hostilidade do ambiente, ela tambm se modifica e permanece viva. Tal caracterstica verifica-se em inmeras passagens no romance, mas elegemos duas, uma onde o protagonista descreve a rvore conhecida por verbena-cidrada e a outra na qual ele menciona o limoeiro-real. A passagem que faz referncia verbenacidrada relata que essa pequena rvore de perfume adocicado fora plantada no centro do ptio, sobre a terra mais seca e endurecida. Tinha algumas flores nos galhos altos. Seu caule estava quase todo descascado, em sua parte reta, at onde comeava a ramificarse (ARGUEDAS, 2005, p. 24. Grifos nossos). Dessa maneira, mesmo que a rvore tivesse sido deslocada de seu espao natural e plantada em um ambiente inspito e apesar dos maus tratos, permanece viva, pois ainda produz flores e se ramifica, o que sugere indcios de continuidade. De igual modo, o fenmeno ocorre no limoeiroreal, pois embora o lugar em que est plantado no favorea vida, o limoeiro produz frutos, como apresenta a descrio de Ernesto:
As moscas ferviam, felizes, perseguindose, zumbindo sobre a cabea dos transeuntes. Os charcos de gua apodreciam com o calor, iam adquirindo cores diferentes, ainda que sempre densas. Mas sobre algumas cercas muito altas, bordejando Huanupata, penduravam seus galhos alguns ps de limoeiro-real; mostravam seus frutos maduros ou verdes, no alto [...]. O limo
Assim, as canes entoadas pelas mestias funcionam como elemento mgico, porquanto anulam a paisagem decadente, transportando-lhes para outro espao e tempo, como se observa, com maior clareza, nas reminiscncias de Ernesto: Acompanhando em voz baixa a melodia das canes, recordava os campos e as pedras, as praas, os templos, os pequenos rios onde fui feliz (ARGUEDAS, 2005, p. 68). Percebe-se que a cano o leva de volta infncia, afastando-o da solido e do tempo presente: [...] podia permanecer muitas horas ao lado do harpista ou na porta da rua das chicheras, escutando. Porque o vale quente, o ar ardente e as runas cobertas de mato dos outros bairros eram-me hostis (ARGUEDAS, 2005, p. 66). Esse sentimento, misto de nostalgia e mgica, inscrito no romance de Arguedas, assim analisado por Maria Claudia Galera: Em LRP, [...], o mgico atua como coadjuvante ou mesmo como desencadeador de transformaes, no enredo, cujo sentido o de devolver s personagens, a condio de sujeito, que lhes havia sido usurpada (GALERA, 2004, p. 142). Nos demais bairros de Abancay, a desigualdade social manifesta na constituio de seus moradores: As autoridades municipais, os comerciantes, alguns terratenentes e um par de famlias antigas empobrecidas [...] (ARGUEDAS,
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de Abancay, grande, de casca grossa e polpa comestvel, fcil de descascar, contm um suco que misturado com a chancaca forma a iguaria mais delicada e poderosa do mundo. Arde e adoa. Alegra. (ARGUEDAS, 2005, p. 261-262)
subjugadas aos sistemas, poltico e religioso. O clero, aliado aos fazendeiros, atua no controle da camada subalterna que , na maioria, convertida ao catolicismo. Insistindo na resignao dos fiis, os padres impossibilitam a insurgncia desses grupos contra as elites, fato que podemos examinar atravs da narrao de Antero:
Nas fazendas grandes eles so amarrados nos pisonayes dos ptios e pendurados num galho pelas mos, e depois surrados. [...]. Choram com suas mulheres e crianas. Choram no como se os castigassem, mas como se fossem rfos. triste. [...]. Todos os anos os padres franciscanos vo pregar nessas fazendas. Se voc visse, Ernesto! Falam em quchua, aliviam os ndios; fazem com que eles cantem hinos tristes. Os colonos andam de joelhos na capela das fazendas; gemendo, gemendo, pem a boca no cho e choram dia e noite. E quando os padrecitos vo embora, se voc visse! Os ndios vo atrs deles. (ARGUEDAS, 2005, p. 197-198)
Percebe-se que a natureza no romance, em certa medida, inspira esperana, pois ela no sucumbe s adversidades instaladas nesses espaos, mas floresce e se reproduz, apesar das oposies. No que tange anlise, ngel Rama esclarece que os elementos naturais, o rio, a montanha, as plantas e os animais, na narrativa de Arguedas, cumprem uma tarefa conjunta com o homem: Todos estes elementos no se apresentam separados da espcie humana, mas relacionados com ela, acompanhando-o de alguma maneira na edificao da cultura4 (RAMA, 1982, p. 164). No que diz respeito s transformaes sociais inscritas em Os rios profundos, percebemos que, no enredo, as chicheras prenunciam o movimento revolucionrio socialista, no captulo intitulado O motim, quando as mestias se armam e, desafiando o poder institudo, invadem o ptio da salineira e retiram os sacos de sal, distribuindo-os entre as classes mais pobres: Com facas, as chicheras encarregadas abriam os sacos e enchiam as mantas das mulheres. [...] dedicaram-se alegremente a preparar as cargas para os colonos de Patimbamba (ARGUEDAS, 2005, p. 128-129. Grifo do autor). Porm, a revoluo malograda, medida que a classe menos favorecida forada a devolver o sal, conforme diz o narrador: Tiraram o sal dos pobres enquanto estalavam as chicotadas (ARGUEDAS, 2005, p. 149). Tal desfecho condicionado porque as mestias no receberam apoio das demais classes, mesmo a dos colonos e a dos ndios, que tambm se encontravam
O romance retrata a opresso pelas classes governantes que tem sido legitimada pela Igreja atravs dos sculos e, nessa ptica, denuncia a ordem sacerdotal conivente com as violncias fsica e psicolgica sofridas pelas camadas sociais exploradas. Embora a revoluo empreendida pelas chicheras no conseguisse promover a reao dos colonos, dos mestios e a dos ndios para desencadear a luta contra o sistema opressor, um acontecimento de ordem natural a peste muda o comportamento dessas classes, como podemos examinar a partir do dilogo de Ernesto e um retirante:
No est sabendo, menino? Ontem noite, um guarda morreu. Cortou uma oroya com seu sabre, dizem que a golpes, quando os colonos estavam
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passando. J no faltavam muitos. Oito, dizem, caram no Pachachaca; o guarda tambm. Quiseram encurralar os pobres colonos na beira do rio; no conseguiram. Desceram os ndios desta banda, e, como formigas, apertaram os guardas. Coitadinhos! Eram apenas trs. No dispararam, eles tambm no fizeram nada aos guardas. Os civis j chegaram, agora. Esto contando. Dizem que todos os guardas vo agora com metralhadora para cortar o caminho aos colonos. Mentira, menino! No vo conseguir. Eles vo subir todos os morros. (ARGUEDAS, 2005, p. 305. Grifos do autor)
padre grande de Abancay. Depois iro sentar, tranqilos; morrero tiritando, tranqilos. [...]. Talvez ouvindo missa os ndios se salvem. [...]. Viro com as mulheres. Vo se salvar! Mas deixaro seus piolhos na praa, na igreja, na rua, diante das portas. Dali os piolhos vo se levantar, como maldio da maldio. (ARGUEDAS, 2005, p. 306. Grifos do autor)
Dessa forma, a epidemia instalada na regio, condiciona a classe marginalizada a se unir para combater a peste; o que implica a sada da passividade em que outrora se encontrava e, consequentemente, a movimentao em direo resoluo de seus problemas. Nessa abordagem, aponta Galera que,
h, no texto de Arguedas, uma sorte de gradao progressiva que parte do motim das chicheras, que representa um levante parcial, uma vez que inclui apenas a parcela mestia da sociedade e passa, na sequncia, ao triunfo do levante popular que rene a diversidade de estratos sociais oprimidos, os mestios, mas tambm os ndios colonos, parcela mais oprimida e numerosa desta sociedade. (GALERA, 2004, p. 138)
Nesses termos, a igreja apresenta um papel ambguo: tanto propicia a misria, com a manuteno das oligarquias polticas, por isso a maldio; como condiciona a procura por uma sociedade mais justa, atravs da rebelio, porquanto esses mesmos grupos enxergam na missa grande, ou seja, na unio de todas as classes, a soluo para combater a peste. Dessa maneira, A peste que ataca aos colonos adquire o simbolismo de um Poder contra o qual lutam os deserdados, do mesmo modo que Ernesto e os menores tm lutado contra o poder dos malditos5 (RAMA, 1982, p. 304. Grifos do autor). A unio das diferentes classes para destruir a epidemia, em certo sentido, sugere a reorganizao social, por conseguinte, a busca pelo estabelecimento da ordem, uma vez que tal acontecimento prediz o fim das estruturas oligrquicas tradicionais e a consequente recriao da sociedade. Nessa inferncia, a morte de Lleras demarca o incio do aniquilamento dos malditos,
de Lleras, sabia que seus ossos, agora transformados em matria ftida, e sua carne teriam sido encurralados pela gua do grande rio (Deus que fala seu nome), numa dessas margens barrentas onde minhocas endemoniadas, coloridas, pululariam devorando-o. (ARGUEDAS, 2005, p. 258. Grifos do autor)
Salientamos que a peste simboliza, no romance de Arguedas, o despotismo e os consequentes desequilbrios econmicos e sociais alastrados na regio, advindos da barbrie poltica das elites oligrquicas, por ora, apoiadas pela igreja, como sugere o narrador,
mas a peste maldio. Quem manda a peste? maldio! Ingreja, ingreja; missa, padrecito!, esto gritando, dizem, os colonos. No h mais salvao, pois, missa grande dizem que querem, do
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A propsito disso, verificamos que a chegada da febre, no internato, fez com que a morte da opa desencadeasse a loucura de Peluca, de quem a moa havia, tambm, sido vtima O Peluca foi expulso do internato, porque uivava como um co no ptio da terra, junto dos banheiros (ARGUEDAS, 2005, p. 293); a morte do porteiro, que havia se aproveitado da opa, j doente de febre tifo Deus! Dormi com uma doente. Ela no queria. Ela no queria, menino! (ARGUEDAS, 2005, p. 292); e a morte da cozinheira, possivelmente, porque no evitou o sofrimento da opa, porquanto acreditava que essa mulher Veio para sofrer. (ARGUEDAS, 2005, p. 255). Por sua vez, Ernesto, mesmo tendo presenciado a morte de Marcelina A opa empalideceu por completo. Seus traos se realaram. Pedi-lhe perdo em nome de todos os alunos (ARGUEDAS, 2005, p. 285) salvo Eu no estou com a febre! Vou escapar. O padre me salvou. Tem sujeira, como os outros, em sua alma, mas me defendeu (ARGUEDAS, 2005, p. 292). Salientamos que a morte da opa sugere a ideia de liberdade, como podemos verificar na voz do narrador: Agora poders iluminar sua mente, fazer dela um anjo, e faz-la cantar em tua glria, Grande Senhor...! (ARGUEDAS, 2005, p. 284). Por outro lado, a morte dos demais denota a ideia de castigo, necessrio para a expurgao da sociedade arruinada pela corrupo moral, espiritual e social. O autor se vale de um telegrama para mudar o eixo do enredo. No telegrama, o pai de Ernesto recomenda ao padre diretor a deixar que o menino prossiga para Huayhuay, rumo fazenda de seu tio, Dom Manuel Jess, o Velho. Inicialmente, o menino no quer ir para a fazenda, porque se lembrara de que o homem era severo e mesquinho. Contudo, quando o
proco falou-lhe das misses de franciscanos que o seu tio levava s fazendas, Ernesto muda de deciso, prontificando-se, imediatamente, a seguir para o referido destino, conforme apresenta o dilogo estabelecido entre ele e o padre: Misses de franciscanos...? Ento tem muitos colonos, padre? Quinhentos em Huayhuay, cento e cinquenta em Parhuasi, em Sijllabamba... Eu vou, padre! disse-lhe. Solte-me agora mesmo! (ARGUEDAS, 2005, p. 298). Nessa linha, as indagaes do menino, do mesmo modo, sua mudana de comportamento, levam-nos a inferir que Ernesto conservara na memria o relato de Antero, a respeito dos castigos aplicados aos ndios e aos colonos, nas fazendas dos latifundirios, como evidenciamos anteriormente. Antes da viagem de Ernesto, o padre o adverte a respeito das normas da fazenda de Dom Manuel Jess, para onde o menino seguir:
Dom Manuel Jess severo e magnnimo; um grande cristo. Em sua fazenda os ndios no se embebedam, no tocam aquelas flautas e tambores endemoninhados; rezam ao amanhecer e na hora do Angelus; depois se deitam no casario. Reina a paz e o silncio de Deus em suas fazendas. (ARGUEDAS, 2005, p. 298)
Atravs da descrio do narrador, fica evidente que a fazenda do Velho reproduz o sistema rgido e hegemnico do colonizador. Nessa abordagem, o silncio de Deus no instiga a ideia de paz, insinua que aquelas classes no eram ouvidas, portanto, eram silenciadas pelo poder institudo, atravs do controle no s fsico, mas tambm sociocultural. Dessa maneira, Trabalho, silncio, devoo (ARGUEDAS, 2005, p. 298) eram as regras do fazendeiro. Sob tal ponto de vista, Ernesto salvo da epidemia para cumprir com a misso de libertar as classes oprimidas pela tirania poltica e econmica
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de Dom Manuel Jess. Concernente anlise, Ernesto ir agora ocupar o posto de animador da rebeldia ante os Colonos e, portanto, iniciar um combate que quase parece csmico, com o Velho, com o Poder que subjuga, tortura e mata6 (RAMA, 1982, p. 304-305). No desenlace do romance, enquanto Ernesto prepara-se para deixar Abancay, ele imagina o futuro dos colonos e dos ndios que seguem em procisso com o padre Linares, rumo ao bairro de Huanupata, com o objetivo de extinguirem a peste:
Iam chegar a Huanupata, e l, juntos, cantariam ou lanariam um grito final de harahui, dirigindo a mundos e matrias desconhecidas que precipitam a reproduo dos piolhos, o movimento mido, e to lento, da morte. Talvez o grito alcanasse a me da febre e a penetrasse, fazendo-a estourar, transformando-a em p inofensivo que se esfumasse atrs das rvores. Talvez. (ARGUEDAS, 2005, p. 314. Grifos do autor)
promoverem a revoluo social. Por sua vez, em Mara, no captulo intitulado Armagedom, a bomba do fim do mundo, que a princpio contm a ideia de destruio, no vem para finalizar o sistema de poder implantado, mas para assegur-lo, como prenuncia o beato Xisto:
[...] a bomba-do-fim-do-mundo, que apagar o sol e as estrelas. [...] destapar o abismo dos infernos e se espalhar sobre o mundo a grande nuvem de fumaa. De dentro dela sair a praga de gafanhotos sugadores de suco de gente. Ser o fim de toda a vida. O que restou de vivente no escapar da asfixia nos gases e dos gafanhotos-robs. Mas no pensem que isto seja o fecho do fim. No, meus irmos, isto s o comeo da Nova Era, a porta da Nova Jerusalm das almas viventes, que ser inaugurada com grandes festas pelas almas elegidas que l vivero eternamente, por mil anos, o primeiro ano do futuro milnio. (RIBEIRO, 2007, p. 320-321. Grifos nossos)
Aqui, vemos, pela idealizao de Ernesto, que os ndios, atravs de sua cano, talvez alcancem os lugares mais acometidos pela febre e consigam destruir as origens da peste, promovendo, destarte, a restaurao da justia e da liberdade, na regio. Todavia, importante frisarmos que o narrador no resolve totalmente a questo, medida que no fica claro o resultado do confronto, no desfecho da narrativa, aspecto que caracterizado atravs do tempo verbal, no caso, o uso do futuro do pretrito em cantariam, lanariam, e do advrbio talvez, que constituem, juntos, a linha da possibilidade. A passagem evoca, tambm, a utopia de integrao cultural, proporo que a voz dos ndios se une voz de outras classes, de mesma constituio tnico-cultural, para combaterem, juntas, a poltica imperialista vigente, nesses espaos, e
As imagens enumeradas, na citao acima, sugerem a invaso estrangeira e a consequente consolidao da poltica imperialista, no s nacional, mas tambm mundial, em que sobrevivero, apenas, os grupos que se adequarem ao novo sistema poltico e econmico e, do mesmo modo, s novas tecnologias. Nessa reflexo, enquanto a peste vencida em Os rios profundos, com a derrocada do poder poltico e econmico, no romance Mara, a bomba do fim do mundo gira em torno da ascenso desses sistemas. Nessa mesma abordagem, podemos averiguar que, no romance darcyano, a Misso catlica no sucumbe, mesmo com a morte dos velhos sacerdotes:
O convento est se renovando, irm. A Misso est ressurgindo. Deus nos tirou os obreiros mais velhinhos. Deus
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os tenha: padre Vecchio, padre Aquino, irm Canuta, irm Ignez, frei Ciano. Mas Deus nos d alegria de ver que estamos mais jovens agora (RIBEIRO, 2007, p. 375)
Com efeito, em Mara, a morte dos sacerdotes no determina a runa das velhas estruturas polticas, ao contrrio, estas so renovadas com a chegada de padres e freiras jovens para constiturem o restabelecimento do poder, que reforado pela nova aliana do clero com a elite poltica:
Alm de terras para a Misso Nova, teremos o privilgio de sermos encarregados, oficialmente pelo governo, da pacificao dos xaeps. Ns e s ns teremos o honroso encargo e a dura tarefa de cham-los ao convvio dos brasileiros e de conduzi-los ao corao da cristandade. S uma coisa me d tristeza, padre Ludgero. [...]. Temos recebido muitas visitas ultimamente: o senador vem sempre, com ele muitos polticos e empresrios que temos de hospedar na Misso. No se poderia dar um jeito nesse rancho horrvel das velhas, ali na praia? No se podia mand-las de volta para a aldeia? Este um problema que exige muita pacincia, muita sabedoria, irm Petrina. [...]. Mais tarde vamos encontrar um quarto discreto para elas, aqui dentro. Ento, poderemos tirar aquela rancharia da nossa praia que tambm a mim me envergonha muito. (RIBEIRO, 2007, p. 375)
dois eclesisticos de se livrarem das ndias que j esto velhas e, em parte, atrapalham os interesses deles. Essa questo remete outra: na expresso nossa praia, usada pelo padre, subjaz a ideia de apropriao do espao que era dos ndios pelo homem branco. Refletindo sobre essa questo em Mara, consideramos que a passagem reafirma a ascendncia do imperialismo, pois, de acordo com Edward Said, em Cultura e imperialismo,
O imperialismo, afinal, um gesto de violncia geogrfica por meio do qual praticamente todo o espao do mundo explorado, mapeado e, por fim, submetido a controle. Para o nativo, a histria de servido colonial inaugurada pela perda do lugar para o estrangeiro. (SAID, 2011, p. 351)
Atentando para esse fato, em Os rios profundos acontece o reverso, tendo em vista que os ndios invadem o espao do homem branco, movimentando-se para as cidades. Nesse particular, a passagem correlaciona-se com a reconquista do ndio de sua terra, libertando-a da poltica imperialista. No que tange aculturao nos dois romances, observamos que Arguedas resolve o conflito a partir da unio das diferentes classes, que comungam de objetivos semelhantes para desestruturar as elites oligrquicas e, por conseguinte, conquistarem o poder; ao passo que, em Mara, Darcy Ribeiro resolve o conflito, parcialmente, proporo que, embora a unio das diferentes classes para a transformao social no acontea, mediante os interesses desencontrados, h uma possvel integrao do ndio na sociedade, atravs de sua transculturao. Sob esse ponto de vista, o aspecto que singulariza os dois romances o tipo de conflito implicado em cada obra: em Os rios profundos, observa-se que o conflito se estabelece a partir do pensamento social revolucionrio versus o
Em face disso, o clero, no romance de Darcy Ribeiro, continua a servio da elite poltica, favorecendo a preservao do controle das classes menos favorecidas, com o projeto de pacificao dos ndios xaeps. O excerto deixa transparecer, ainda, a partir do dilogo da irm Petrina com o padre Ludgero, que a Misso no est interessada em resolver o problema social do ndio, mas com a misso civilizadora do governo, questo que perceptvel no desejo dos
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pensamento oligrquico enquanto que, em Mara, o conflito se constitui a partir da modernizao versus o tradicionalismo poltico. Importa assinalar que, em Mara, no plano da forma, o etnlogo-romancista promove a harmonizao dos discursos opostos, na superfcie do texto; entretanto, no nvel dos assuntos, salientamos que o narrador no estabelece a integrao harmnica entre as diferentes culturas, porque mesmo que os ndios mairuns estejam em processo de integrao nacional, os ndios epexs so expulsos de suas terras pelo senador, isolam-se no interior da floresta, permanecendo excludos da sociedade brasileira. De igual modo, a ndia Tereza, que vai ser bab na cidade, ao ser vista beijando o pezinho do nenm, espancada pela mulher do deputado e devolvida Misso: S que esposa deputado vendo ndia beijando pezinho do nenm dela teve medo reverso antigos costumes gentios falada antropofagia (RIBEIRO, 2007, p. 373). Como se observa, no ocorre, no romance darcyano, a integrao feliz do ndio, no plano cultural, como o fez Arguedas, porque, em parte, o indgena continua sendo visto como selvagem; nem no social, porque a interveno poltica favoreceu apenas os interesses das classes dominantes, a dos polticos e empresrios, fazendo com que o ndio permanecesse marginalizado. Essas caractersticas distanciam o romance Mara da utopia de exaltao literria, almejado por Rama, uma vez que Darcy Ribeiro, em sua urdidura ficcional, no promove um sistema crtico de valorizao literria, capaz de manter a utopia de um processo de modernizao compartilhado e construdo de forma coletiva, livre da barbrie poltica das elites dirigentes. importante frisarmos que o narrador no resolve o destino da aldeia Mairum, na
narrativa, medida que Inim, responsvel em gerar o futuro aroe, no concretiza esse evento. Porm, o narrador no fecha essa possibilidade, proporo que, no desfecho do romance, h a sugesto de um convite de Jaguar a Inim para sururucao, o que autoriza-nos depreender que, em certo sentido, subjaz uma perspectiva futura da tribo. Concluso Em certa medida, entendemos que as duas obras, Mara, de Darcy Ribeiro e Os rios profundos, de Jos Mara Arguedas, mantm pontos de contato ocasionais, proporo que os dois etnlogos inscrevem em seus romances a histria a partir do ponto de vista do povo colonizado. Sob esse ngulo, ambos recuperam a cultura dos povos autctones, revigoram as peculiaridades regionais e, do mesmo modo, revelam a estratificao social, a luta de classes, a presena das oligarquias polticas, assim como as ambivalncias e contradies que compem o mapa da Amrica Latina. Do mesmo modo, ambos problematizam, em seus romances, no s a questo do ndio, mas tambm provocam a reflexo sobre os povos de origem mestia. Nessa conjectura, se no possvel, em Mara, a promoo da utopia de um sistema modernizado e compartilhado, como o quis ngel Rama, inferimos que o ficcionista brasileiro, em sua narrativa, tenciona, ao menos, a utopia de unidade harmnica latino-americana, tendo em vista o sistema literrio latino-americano, proposto pelo crtico uruguaio, engendrando o estreitamento dessas comarcas culturais, na produo literria, a partir das semelhanas histricas e polticas, as quais implicam na reintegrao cultural da Amrica Latina.
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Notas:
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ndio que serve gratuitamente, em turnos, na casa do patro. Cf. ARGUEDAS, 2005. Mestias que trabalham nas chicheras e usam mantas de Castela e chapus de palha branqueados com fitas largas de cores vivas. Cf. ARGUEDAS, 2005. Refere-se aos mestios de sangue espanhol e amerndio. Cf. ARGUEDAS, 2005. Todos estos elementos no se presentan escindidos de la especie humana, sino relacionados con ella, acompandolo de alguna manera en la edificacin de la cultura. (Traduo nossa). La peste que ataca a los colonos adquiere el simbolismo de um Poder contra el cual luchan los desheredados, del mismo modo que Ernesto y los menores han luchado contra el poder de los malditos.(Traduo nossa). Ernesto ir ahora a ocupar el puesto de animador de la rebeldia ante los Colonos y, por lo tanto, ir a entablar un combate que casi parece csmico, con el Viejo, con el Poder que sojuzga, tortura y mata. (Traduo nossa).
RIBEIRO, Darcy. Mara: um romance dos ndios e da Amaznia. 21 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. So Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Referncias Bibliogrficas:
ARGUEDAS, Jos Mara. Os rios profundos. Trad. Josely Vianna Baptista. So Paulo: Companhia das Letras, 2005. GALERA, Maria Claudia. Amricas Literrias e transculturao. So Paulo: FFLCH, 2004. (Tese). RAMA, ngel. Literatura e Cultura na Amrica Latina. AGUIAR, Flvio; GUARDINI, Sandra (Orgs.). So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001. RAMA, ngel. Transculturacin narrativa en Amrica Latina. Mxico: Siglo Veintiuno editores, 1982.
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O Sol para Todos: uma reflexo a partir do III Plano Nacional de Direitos Humanos
Bacharel em Sociologia e Poltica pela FESPSP. Mestranda no Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica na UFSCAR. Bolsista da Fapesp. Email: [email protected]. Artigo apresentado originalmente na ACIEPE (Atividade Curricular de Integrao Ensino, Pesquisa e Extenso) Direitos Humanos pelo Cinema (2011), realizada na UFSCar pelo Departamento de Sociologia.
Resumo
Os Direitos Humanos so uma tentativa de impedir que diversos abusos, recorrentes historicamente, ocorram ferindo a dignidade da pessoa humana. Com objetivo de explicitar a questo foi acionado o filme O Sol Para Todos, dirigido por Robert Mulligan. O presente artigo analisa os Direitos Humanos atravs do filme o Sol Para Todos, essa produo cinematogrfica baseia-se no romance To Kill a Mockingbird, publicado em 1960 pela escritora Happer Lee. O Sol Para Todos se passa no incio do sculo XX e narra o julgamento de um homem negro que na tentativa de ajudar uma jovem branca foi flagrado no momento em que essa tentava lhe beijar, Tom Robinson, o homem negro em questo, ento, acusado de estupro. Mesmo sendo deficiente em um brao, o que lhe impossibilitaria de cometer o crime, condenado. Aps tentativa de assassinato pelos homens brancos da cidade, Tom Robinson morto quando tentou fugir. A simples ideia da unio entre branco e negro era inadmissvel. O presente trabalho objetiva analisar o filme no que se refere temtica dos Direitos Humanos, para isso ser utilizado o III Plano Nacional de Direitos Humanos elaborado em dezembro de 2009, durante o governo Lula.
Palavras -Chave
Direitos Humanos, Negros, Brancos, III Plano Nacional de Direitos Humanos.
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O sol para todos, mas os homens no nascem iguais. Happer Lee, To Kill a Mockingbird. Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos Artigo I da Declarao Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Naes Unidas em 1948. Introduo O Sol para Todos uma excelente produo a respeito da temtica dos Direitos Humanos. O filme de 1962 tratou do julgamento de Tom Robinson, um homem negro acusado de ter estuprado uma mulher branca. Essa aluso a um negro estuprando uma mulher branca incutiu uma terrvel ideia na pequena cidade Maycomb, no Alabama: a ousadia de um negro cogitar possuir uma branca, j que estas estavam restritas aos homens brancos. O filme originalmente baseia-se no romance To Kill a Mockingbird, publicado em 1960 pela escritora Happer Lee. To Kill a Mockingbird recebeu em 1961 o prmio Pulitzer, e vendeu mais de 30 milhes de cpias, traduzido em 40 idiomas. Em 1962 foi lanado o filme O Sol Para Todos, dirigido por Robert Mulligan e teve grande sucesso. Gregory Peck, ator que interpreta Atticus - um dos personagens centrais da histria - ganhou o Oscar, tendo o filme recebido vrias indicaes ao prmio. A histria narrada pela jovem Scout numa pequena cidade do Sul conservador dos Estados Unidos. Sergio Vaz (2010) considera um ambiente muito semelhante ao vivido pela escritora, embora ela negue que o livro seja autobiogrfico. Happer Lee nasceu em
Monroeville, no Alabama, em 2000 essa cidade possua pouco mais de 6 mil habitantes. O pai da escritora era advogado e membro da Assembleia Legislativa, assim como o de Scout. Na trama Scout tem um amigo chamado Dill, que foi inspirado no amigo de infncia de Happer Lee, Trumam Capote. A jovem sulista tambm foi uma leitora precoce como Scout. Diante da reflexo sobre os Direitos Humanos abordado pelo filme, esse trabalho pretende analis-lo no que se refere temtica dos Direitos Humanos. Para tal ser utilizado o III Plano Nacional de Direitos Humanos elaborado em dezembro de 2009, durante o governo Lula. Para isso a prxima seo tem como foco O Sol para Todos. Ser tratada a histria do homem que perdeu a vida pela inadmissvel ideia de um negro ter um relacionamento com uma branca. Na seo a seguir sero feitas breves consideraes a respeito dos Direitos Humanos, o porqu da sua existncia e como surgiram. Em seguida ser analisado o filme sob a perspectiva do Plano de Direitos Humanos vigente no pas. O Sol Para Todos A temtica da injustia imposta aos negros abordada na obra lanada em um contexto de intensa efervescncia cultural, quando estavam ocorrendo inmeros protestos em que se exigiam os direitos dos segmentos marginalizados pela sociedade. Desde os anos 50 j havia nos Estados Unidos reivindicaes pelos direitos civis dos negros. Em fevereiro de 1960 aconteceram movimentaes por parte da populao negra contra discriminao racial, tais protestos espalharam-se pelo sul do pas provocando conflitos e prises em vrias cidades. Em 1963 ocorreu a Marcha pelos Direitos Civis, a qual Martin Luter King participou. Em 1964
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o chamado Vero da Liberdade se d quando o movimento de estudantes universitrios do norte vo para o sul lutar por direitos polticos. Nesse contexto, livro e filme, fazem parte do processo de luta pelos direitos dos negros. O Sol para Todos gira em torno do julgamento de Tom Robinson, um homem negro acusado de estuprar a jovem branca, Mayella. A histria narrada pela garotinha Scout e desenrola-se no incio do sculo XX na cidade fictcia Maycomb no interior do Alabama, sul dos Estados Unidos. Atticus Finch, pai de Scout, enfrenta a misso de defender Tom Robinson da acusao, mesmo sofrendo retaliaes diversas, inclusive contra seus filhos. Tom Robinson tinha uma posio econmica melhor do que a famlia de Mayella. Ele tinha pena da jovem, pois seu pai era alcolatra, e a ajudava nos trabalhos de sua casa, em uma dessas vezes Mayella tentou beij-lo, Tom Robinson assustado saiu correndo, e assim foi acusado de estupro pelo pai de Mayella. O filme mostra a determinao dos habitantes da cidade em fazer justia com as prprias mos. Os homens brancos armados tentaram assassinar o ru antes do veredito final, foram interrompidos por Scout e seu irmo Jem, que seguiram o pai e dialogaram com o grupo de homens brancos, fazendo com que eles desistissem do intento. Tom Robinson foi julgado por um jri de brancos. Durante o julgamento Mayella testemunhou de forma confusa e contraditria. Tom Robinson tinha paralisia em um dos braos, ou seja, era impossvel devido a sua condio fsica deixar a marca de agresso que se encontrava no rosto da jovem, muito menos domin-la com apenas um brao para assim cometer o crime. Mesmo diante desse fato foi condenado.
Interessante notar a relao entre a comunidade negra e o advogado Atticus. O ilustre advogado branco defensor dos negros foi tratado por estes com respeito e admirao, assim como seus filhos tambm foram. As crianas assistiram ao julgamento na parte circunscrita aos negros, j que o tribunal tinha ntidas divises espaciais para brancos e negros. O resultado do julgamento seguiu-se ao fim trgico de Tom Robinson. Condenado injustamente, Robinson tentou fugir e foi assassinado pelos policiais. Direitos Humanos Diante de frequentes atos brbaros cometidos entre os homens, tais como escravido, assassinatos, tortura, etc., foi pensada uma forma de assegurar a dignidade da pessoa humana. No sendo somente uma garantia contra atrocidades, mas um direito merecido por todo ser humano. A condio nica para usufruir dos Direitos Humanos estar vivo, eles so estendidos a todos, e podem ser vistos como um guia de conduta para todos. Assim, todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Ningum ser mantido escravo, submetido tortura, nem a tratamento ou castigo cruel. Ningum ser arbitrariamente preso, degradado, exilado. latente o abismo existente entre o que est na lei e a prtica, mesmo que tais direitos tenham sido pensados para evitar situaes degradantes aos seres humanos, ainda so freqentes os casos de assassinatos, tortura, estupro, trfico de pessoas, etc. Os Direitos Humanos foram pensados durante a Revoluo Francesa, a partir da os direitos do homem foram includos nas cartas polticas. Porm, esse direito restringia-se apenas
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aos seres do sexo masculino. Olympe Gouges escreve a Carta de Direitos da Mulher e foi guilhotinada, mesmo que as mulheres tenham participado ativamente da Revoluo.
Apesar da participao das mulheres na Revoluo, sua organizao em clubes e sua reivindicao de igualdade particularmente manifesta na Declarao dos Direitos da Mulher e da Cidad de Olympe de Gouges (1791), as mulheres so excludas da cidadania poltica, os clubes femininos so fechados e Olympe guilhotinada (Thbaud, 2005, p.4).
Direitos Sociais referem-se participao na riqueza coletiva, o direito educao, sade, aposentadoria. Carvalho (2009) aponta que a ordem dos direitos de Marshall, sobre o caso da Inglaterra, ocorreu aqui de forma inversa. No Brasil primeiro vieram os Direitos Sociais, depois os Direitos Polticos e os Direitos Civis, com grande nfase nos Direitos Sociais. Enquanto que na Inglaterra primeiro instituiu-se os Direitos Civis, os Polticos, e por ltimo, os Direitos Sociais. Embora os esses direitos fossem previstos pela Constituio de 1891, foi a partir de 1930 que Vargas institucionalizou as reivindicaes que ocorriam em torno da efetivao de direitos. Os Direitos Sociais so, assim, institucionalizados antes dos Direitos Civis! Essa inverso d um carter de privilgio poltica social, no se tem conotao de direito. O direito assume um carter de ddiva, de favor que necessita de uma contraprestao. Soma-se a isso tambm o fato dos Direitos Sociais abrangerem as pessoas que trabalham com carteira assinada, excluindo os trabalhadores rurais. A cidadania brasileira vincula-se ao trabalho legal, portanto no so todos que tem direito a participar da riqueza coletiva, s os que tm carteira assinada. Carvalho (2009, p.126) analisando o contexto brasileiro afirma que a era Vargas foi um avano se for considerado que trouxe as massas para a poltica e um atraso porque o cidado estava em posio de dependncia perante lderes. Quanto aos Direitos Polticos, eles so efetivados de fato a partir dos anos de 1946 a 1964 em diante, tendo pice na Democratizao dos anos 1985 a 1990. Em 1946 o presidente da Repblica volta a ser eleito de forma direta, a despeito de na Repblica Velha (1889-1930)
Em 1948 foi divulgada a Declarao Universal dos Direitos do Homem, no contexto do ps Segunda Guerra Mundial, quando 6 milhes de judeus foram exterminados. Preservava o direito vida, liberdade, educao, ao trabalho, organizao poltica e social. Os Direitos Humanos englobam os Direitos Civis, Polticos, Sociais, e tambm os Direitos Difusos, que tratam de questes tais como: os animais, natureza e os embries, por exemplo, direito paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente protegido (RABENHORST, 1996). Segundo a clssica definio de Marshall (1967) a cidadania dividida em: Direitos Civis, Polticos e Sociais. Os direitos se consolidaram na Inglaterra na seguinte ordem: primeiro os Direitos Civis no sculo XVIII, depois os Direitos Polticos no sculo XIX, e em seguida os Sociais no sculo XX, no contexto ps- Segunda Guerra Mundial. Os direitos Civis fundam a prpria ordem burguesa e se assentam na liberdade individual. Por exemplo, no direito de ir e vir, direito propriedade privada, direito vida, etc. J os direitos Polticos so aqueles que concernem ao direito de votar e ser votado. Por ltimo, os
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existirem fraudes e manipulao de votos, e na Era Vargas existir um perodo em que no houve eleies durante o Estado Novo (19371945). Na Ditadura Militar algumas cidades no tiveram eleies, eram eleitos de forma indireta os presidentes da Repblica e governadores. Carvalho (2009) ressalta que os Direitos Civis so deficientes at hoje, principalmente no que diz respeito ao direito vida, segurana e ao direito justia. Novamente quero destacar a contradio entre o que est na lei e o que realmente acontece. Essa contradio to abordada por diversos autores, mas ainda no resolvida no mundo concreto. Carvalho (2009) aborda ao longo de sua obra o difcil caminho da construo da cidadania no Brasil, um caminho ainda em construo devido fraca noo de igualdade de direitos que historicamente existe no pas. Um dos principais fatores que dificultam a construo da cidadania no Brasil seria o embaralhamento entre o pblico e o privado, ou seja, uma fraca noo de ordem pblica. A ordem pblica ainda est afastada de alguns segmentos sociais, de modo que toda a vida desses segmentos mediada pela ordem privada, tornase difcil participar do processo estando aqum dele. Tambm existe uma fraca noo de direitos igualitrios e mesmo que todos soubessem das leis, elas no esto no cotidiano das instituies. Ainda existem pessoas que possuem mais direitos que outras, a igualdade de direitos no inteiramente vivenciada. Portanto, no Brasil e no mundo, h muito a ser desenvolvido no que diz respeito aos direitos humanos, pois eles devem ser um referencial de luta para que a vida humana seja respeitada. Todos iguais, mas uns mais iguais que os outros
A afirmao de Happer Lee O sol para todos, mas os homens no nascem iguais, se encarada perante a crua realidade das sociedades a mais simples constatao dos fatos. Foi achado indcios de que na ilha de Creta na Grcia, antes da invaso dos Drios existiu uma civilizao onde reinava o que mais se aproxima da igualdade. Nas escavaes feitas no local as casas no divergiam em sua estrutura, homens e mulheres ocupavam altos postos religiosos (EISLER, 1989). Mesmo que exista essa possibilidade, de ter existido uma sociedade em que um grupo no subjugou um outro grupo, s conhecemos de fato o contrrio. Nobert Elias (2000) se atenta a constante de que nas civilizaes que conhecemos sempre existiu um grupo que se sobreps a outro. O autor investiga uma pequena cidade de nome fictcio Winston Parva. Nessa comunidade mesmo que os moradores fossem da mesma cor, status e classe havia um grupo de estabelecidos que menosprezava os outsiders pelo simples fato dos estabelecidos terem chegado primeiro ao local. Assim, os estabelecidos evitavam contato com os outsiders e dominavam os melhores postos da comunidade, se autodenominando como um grupo diferenciado. No posfcio da edio alem de Os Estabelecidos e os Outsiders o autor se atm ao modelo de Maycomb criado por Happer Lee. Enquanto que em Wiston Parva o direito era imparcial, ou seja, era o mesmo tratamento para todos e todos sofreriam as mesmas sanes legais; em Maycomb no h nenhuma igualdade simblica, o tratamento nitidamente diferenciado. Outro filme que pode exemplificar o modelo de Maycomb o filme Mississipi em Chamas (Mississippi Burning, 1988). O filme narra
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a histria de jovens brancos que vo ao estado do Mississipi promover os Direitos Humanos dos negros e so assassinados. Quando as pessoas so indagadas sobre o que teria acontecido aos mesmos, nota-se que no havia nenhuma sombra de dvida quanto morte dos defensores dos negros. Ressalto o carter de legitimidade atribudo pela populao na defesa de atos que mantenham a ordem. Elias nota o papel insignificante que a riqueza tinha tanto em Winston Parva quanto em Maycomb. A famlia de Tom Robsinson pertencia ao mais elevado estrato da comunidade negra, enquanto a famlia de Mayella era pobre, mesmo assim os homens brancos se incomodaram com a possibilidade de uma moa pobre, mas branca ter tido relaes sexuais com um negro. O que realmente incomodava os homens brancos quanto ao caso de Tom Robinson no era o estupro, tampouco a concretude ou no dos fatos. O que os mobilizava era a simples hiptese de que um homem negro tinha se unido a uma mulher branca e este fato quebraria a estrutura de privilgios que cabiam somente aos homens brancos.
Era intolervel viver em um local onde se podia encontrar a qualquer momento um homem negro que era suspeito de ter dormido com uma mulher branca. Dormir com mulheres brancas constitua um dos mais importantes privilgios dos homens brancos. Se comeassem a aceitar retalhos nesses privilgios, logo toda estrutura de privilgios estaria esmigalhada e destruda (ELIAS, 2000, p.203).
privilgios que somente os brancos poderiam desfrutar. O filme retrata a excluso de um grupo pelo outro, o motivo construdo socialmente de forma que seja percebido como algo natural, como algo que sempre foi assim e sempre ser. No caso de Winston Parva salta aos olhos que qualquer motivo possa ser usado para justificar que um grupo subjugue o outro, estabelecendo um sistema de privilgios para si e que um simples motivo se torna plausvel para discriminar um grupo. Poderia ser os negros dominando os brancos, poderia ser as mulheres subjugando os homens, mas no caso em questo eram os moradores antigos discriminando os novos. Infelizmente essa situao gera vrias consequncias, inclusive quanto ao acesso de oportunidades acarretando consequncias econmicas. Por exemplo, os homens brancos ganham mais que os demais. Para reverter discriminao, a segregao, a diferena de acesso aos aparatos educacionais e etc., tanto a Constituio de 1988 e o atual III Plano Nacional dos Direitos Humanos prevem um srie de medidas. O III Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) tem seis eixos orientadores: 1. Interao Democrtica entre Estado e sociedade civil. 2. Desenvolvimento e Direitos Humanos 3. Universalizar Direitos em um contexto de Desigualdade 4. Segurana Pblica, Acesso Justia e Segurana Pblica 5. Educao e Cultura em Direitos Humanos 6. Direito Memria e a Verdade
Somente os homens brancos poderiam possuir mulheres brancas. Cabia tambm aos homens brancos o monoplio da violncia, apenas eles poderiam ter armas. Portanto, armas e mulheres brancas faziam parte do sistema de
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Guardadas as devidas propores podese considerar que existam semelhanas entre Maycomb e o Brasil. claro que os dois pases possuem contexto histrico diferenciado, quero apenas ressaltar a tenso que existe nos dois casos entre a legalidade e a realidade, explcita na latente diferenciao social que existia na Maycomb narrada por Happer Lee e a gritante diferena entre negros e brancos no Brasil. Essa disparidade liga-se ao primeiro eixo orientador do PNDH-3. A interao democrtica entre Sociedade Civil e Estado exige garantia de participao e controle social por parte de todos os cidados. Assim, de acordo com Dahl o pressuposto chave de uma Democracia a contnua responsividade do governo s preferncias de seus cidados, considerados como politicamente iguais (DAHL,1997, p.25). Portanto, esse princpio orientador tem trs pontos chave: o primeiro ponto chave que essa interao fortalece a democracia participativa, no segundo os direitos humanos devem orientar as polticas pblicas e por fim, deve integrar sistemas de informao e direitos humanos, com o objetivo de controlar as polticas pbicas de direitos humanos e monitorar o Estado brasileiro quanto ao cumprimento de tratados internacionais. As conseqncias dessa relao de estabelecidos e outsiders geram inmeras assimetrias. No fundo sempre se trata do fato de que um grupo exclui o outro das chances de poder e de status, conseguindo monopolizar essas chances (ELIAS, 2000, p.208). Isso era ntido em Winston Parva, em Maycomb e qualquer outra sociedade que o esforo analtico se volte. O Brasil no escapa a essa regra, que tenta ser remediada no PHDH-3 atravs do segundo e terceiro eixo orientador.
O segundo eixo objetiva sanar a desigualdade gerada por essa dominao de um grupo sobre outro, descrita por Elias, promovendo incluso social e econmica, valorizao da pessoa humana no processo de desenvolvimento. Tambm aqui o plano trata dos direitos ambientais como sendo direitos humanos. O terceiro eixo trata de medidas mais efetivas, tais como acesso a moradia, alimentao, trabalho decente, sade e educao de qualidade, preveno do trabalho escravo, direito ao lazer e a participao poltica. Historicamente os aspectos abordados pelo terceiro eixo foram problemticos em boa parte dos pases. Nos Estados Unidos e no Brasil, alm dos anos de escravido, podemos destacar a intensa luta pelo voto. Os Estados Unidos, exaltado por seu aspecto democrtico por Tocqueville (1987), s permitiram o voto dos negros em 1965, e o voto feminino em 1920. No Brasil os negros no foram excludos legalmente, mas foram tambm impedidos atravs de leis que exigiam renda mnima, proibiam o voto aos analfabetos e nos recorrentes perodos ditatoriais. No Brasil Colnia votavam apenas os chamados homens bons, aqueles pertencentes s oligarquias. Durante o Imprio havia uma srie de restries ao voto, critrios quanto renda, mas os analfabetos votavam. Em 1881 a Lei Saraiva restringe o voto dos analfabetos e o voto de quem no comprovasse um valor anual mnimo de renda. A Repblica em nada altera essa situao, apenas abaixa o critrio de renda. A renda no era impedimento, o real empecilho era a excluso dos analfabetos. Dessa forma votava uma parte muito pequena da populao, sendo que a maioria era analfabeta e tambm eram excludas as mulheres.
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As mulheres passam a votar em 1934, e aos analfabetos s foi permitido votar novamente depois da Constituinte de 1988. Acrescente-se a essa conjuntura os anos de ditadura civil e militar que o pas vivenciou. tambm uma forma de combater as conseqncias da desigualdade o quarto eixo orientador do PNDH-3. O quarto eixo foca o acesso justia, segurana e o combate violncia, e como j foi apontado por Jos Murilo de Carvalho este tema tem muito a se desenvolver no que concerne os Direitos Civis. Em Maycomb pouco importava se um homem do estrato subjugado era inocente ou no, porque ele j estava condenado morte.
Os homens que pretendiam matar Tom Robinson, conden-lo morte e depois atirar nele, no fizeram tudo isso por saberem, no fundo de seus coraes, que ele era inocente, fizeram porque estavam profundamente convencidos de que ele era culpado (ELIAS, 2000, p.203).
Robinson declara que sentia pena da jovem, pois seu pai era alcolatra e frequentemente a agredia. A platia se choca considerando inadmissvel um negro sentir pena de uma branca, mesmo que a vida do acusado tivesse melhor estabilidade econmica que a de Mayella. Outra questo relevante no que se refere ao acesso justia, e que no considerado, a reparao da subordinao histria aos negros imposta. Os sistemas de cotas entram nessa lgica, mas o que deveria haver uma conscientizao dos erros histricos e da dvida para com os negros. O PNDH-3 tem no quinto eixo importantes medidas para promover a dignidade da pessoa humana, diz respeito educao e cultura em Direitos Humanos. O primeiro passo, creio que seja maior conhecimento dos Direitos Humanos por parte da polcia, professores, funcionrios pblicos, populao em geral, etc. Entretanto, frequente que atos que ferem aos Direitos Humanos sejam justificados pelo (mau) comportamento de determinado indivduo, assim tornam-se justificveis e aplicveis a uns e a outros no. E o ltimo eixo aborda o Direito Memria e Verdade. Esses direitos tratam das histrias oficiais que foram contadas, ou seja, o governo no foi transparente na divulgao de suas aes para com cidados, principalmente no perodo da Ditadura Militar. Um filme que exemplifica essa situao A Histria Oficial (La historia oficial, 1985). Na produo cinematogrfica uma professora adota uma criana sem saber que ela era filha de pessoas que se posicionaram contrariamente ao regime. Devido a esse posicionamento foram sequestrados, torturados, mortos e os bebs foram entregues a outras famlias. Na Ditadura
Foi negado a Tom Robinson julgamento justo, ele foi julgado por homens brancos que temiam a perda dos seus prprios privilgios, portanto diretamente interessados em sua condenao. Esse sistema limitava a ao do demais envolvidos. Durante o julgamento Tom Robinson afirma que Mayella tentou beij-lo, seu pai os surpreendeu nessa cena e ele ento no viu outra soluo a no ser sair correndo. Se Mayella quisesse ter alguma relao com Tom Robinson isso seria impedido. Da mesma forma que um homem negro se encontrava em delicada situao quando uma mulher branca manifesta a inteno ter relaes com ele, pois seria iminente sua morte. Um momento de choque por parte dos ouvintes do julgamento foi quando Tom
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brasileira o governo tambm tinha um discurso oficial, porm a prtica era plenamente diferente da realidade. O III Plano Nacional dos Direitos Humanos visa combater tanto a continua capacidade dos homens infligirem mal aos seus semelhantes, quanto s consequncias da subordinao de um grupo ao outro. Elias (2000) procurou entender o porqu dessa constante de dominao nas sociedades humanas. Ao que parece, quase todos os grupos humanos tendem a perceber determinados grupos como pessoas de menor valor do que eles mesmos (ELIAS, 2000, p.199). O autor aponta para a necessidade humana de sempre querer melhorar o valor de sua prpria pessoa e de seu grupo, a ... autovalorizao s possvel desvalorizando outra pessoa (ELIAS, 2000, p.209). O ato de promover a autoestima coletiva fortalece e une ainda mais o grupo. Um grupo coeso apresenta maiores chances de sobrevivncia. Da excluso de um grupo o outro grupo ganha prstimos considerveis. Para Elias a sociedade repleta de conflitos internos porque os grupos se temem mutuamente, ou seja, vivem (...) nesse temor que os diversos grupos despertam uns nos outros permanentemente. Eles temem ser escravizados, espoliados, despojados ou destrudos pelos outros (ELIAS, 2000, p. 212-213). Consideraes Finais O Sol para Todos deixa inmeras lies sobre os Direitos Humanos. Quando um grupo se autointitula melhor, ele necessariamente est denominando outro grupo como pior. Em todas as sociedades humanas podemos encontrar resqucios de etnocentrismo, ou seja, quando uma pessoa ou um grupo se julga
superior ao outro, de modo que ela no pode compreender tudo que est fora de sua cultura. Elias tambm afirma que essas diferenciaes entre grupos no passa de uma forma do grupo dominante legitimar e se perpetuar no poder. No filme os indivduos no so sujeitos do direito civil, no podem livremente escolher seus parceiros devem respeitar um sistema prximo a um sistema de castas. Por isso foi to grave a hiptese de unio entre duas pessoas de cor diferente, hoje sabido que a diferenciao entre raas no existe, a humanidade uma s. Outra falta grave aos direitos humanos foi quanto ao acesso justia, Tom Robinson no teve o devido julgamento, seu jri tinha interesse em sua condenao. O sistema de privilgios que o jri usufrua deixaria de existir com a brecha da no condenao de Tom Robinson. O filme tambm mostra as sanes graves impostas queles que ousam afrontar o sistema pr-estabelecido. Atticus quase perdeu sua filha, se no fosse o personagem Boo, tambm marginalizado, salv-la. Os Direitos Humanos devem ser encarados como meta a ser cumprida, eles foram estabelecidos para que as atrocidades contnuas que os homens cometem fossem impedidas. Porm tambm de praxe os contnuos desrespeitos aos Direitos Humanos, no Brasil e em qualquer lugar. Ainda so mutiladas meninas na frica, assim como no ocidente em nome da normalidade, tambm se submete recm-nascidos cirurgia para que sejam claramente definidos como homem ou mulher. No interior do Egito existem cidades em que as mulheres so proibidas de sair de casa, nem para fazer compras ou ir ao hospital. No Brasil tambm freqente, continuo e corriqueiro o crcere privado de mulheres,
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algo absolutamente legitimado como direito do homem sobre a mulher. Portanto, ainda h muito a ser feito para que todos os seres humanos sejam respeitados na plenitude de seus direitos.
www.redhbrasil.net/documentos/bilbioteca_ on_line/ modulo1/1.o_q_sao_dh_eduardo. pdf> Acesso em 26.03.2011. SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA. Programa Nacional de Direitos Humanos. Braslia, 2009. THBAUD, Franoise. Mulheres, cidadania e Estado na Frana do sculo XX. Tempo, Rio de Janeiro, n 10, 2000. pp. 119-135. TOCQUEVILLE, Alex. A Democracia na Amrica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. 4.ed. VAZ, Srgio. No se mata um pssaro que s faz o bem. 2010. Disponvel em: <http://50anosdetextos.com.br/2010/naose-mata-um-passaro-que-so-faz-o-bem/> Acesso em 09.09.2011
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Resumo
A liberdade de informao engloba os direitos opinio, expresso, comunicao, informao e informao jornalstica. Com a expanso dos meios de comunicao, a liberdade de informao passou a enfrentar alguns desafios. Este artigo tem por objetivo, portanto, discutir questes polmicas que envolvem a liberdade de informao, como o controle e os limites da liberdade de expresso, liberdade de informao e o discurso do dio, a publicidade comercial como forma de manifestao do pensamento, e a liberdade de informao e o sigilo da fonte.
Abstract
The freedom of information includes the rights to opinion, expression, communication, information, and press information. With the expansion of the media, the freedom of information began to face some challenges. This article aims, therefore, to discuss controversial issues involving it, such as control and limits of expression freedom, information freedom, hate speech, commecial advertising as a form of expression of thought, freedom of information and confidentiality of the source.
Key words
Freedom of Information, right to opinion, right to expression, right to press information.
Palavras -Chave
Liberdade de informao, direito de opinio, direito de expresso, direito informao jornalstica1.
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1. A liberdade de informao A liberdade de informao engloba vrios direitos fundamentais previstos na Constituio Brasileira, entre eles: (1) Direito de opinio, que garante a manifestao do pensamento atravs da verbalizao e da escrita. Este direito est previsto no inciso IV do art. 5 da Constituio Brasileira: livre a manifestao do pensamento, sendo vedado o anonimato. (2) Direito de expresso, que garante a manifestao do pensamento por meio de diferentes formas, como a msica, a pintura, o teatro e a fotografia, por exemplo. O direito de expresso tambm se fundamenta no inciso IV do art. 5 da Constituio Brasileira. Para Samantha Ribeiro Meyer-Pflug da liberdade de expresso do pensamento derivam a liberdade religiosa, a liberdade de informao, a liberdade de imprensa e a prpria inviolabilidade de correspondncia, posto que a liberdade de expresso do pensamento pode dar-se por meio da escrita, ou de uso de imagens e no necessariamente pessoalmente (MEYER-PFLUG, 2009, p. 70). Cabe destacar que o direito de opinio e o direito de expresso, conforme previsto no art. 220 da Constituio Brasileira, no podem sofrer qualquer tipo de restrio: A manifestao do pensamento, a criao, a expresso e a informao, sob qualquer forma, processo ou veculo no sofrero qualquer restrio, observado o disposto nesta Constituio, e tambm no podem ser objetos de censura prvia, nos termos do 2 do mencionado artigo: vedada toda e qualquer censura de natureza poltica, ideolgica e artstica. A respeito da censura, Vidal Serrano Nunes Jr. observa que o direito de expresso no fica livre de eventual sano judicial, o que abre caminho para a afirmao de que nosso ordenamento admite uma
espcie de censura: a judicial (NUNES JNIOR, 2011, p. 42). (3) Direito de Comunicao, que garante a livre movimentao e troca de informaes atravs de meios de comunicao de massa. E como informaes entendem-se todo fato relatado (informao jornalstica), assim como toda manifestao do pensamento (direito de opinio e de expresso). Pode-se pensar inicialmente que os direitos relacionadas a manifestao do pensamento (opinio e expresso) prescindem do direito de comunicao. Ocorre que, nos dias de hoje, a manifestao do pensamento no veiculada atravs dos meios de comunicao possui quase ou nenhuma fora ou influencia. Deste modo, assim como os meios de comunicao se alimentam das manifestaes de pensamento, estas manifestaes usam os meios de comunicao para se tornarem pblicas e relevantes, tornando os mencionados direitos intrinsecamente ligados. Vidal Serrano Nunes Jr. observa que o direito de comunicao comporta vrios elementos, assim como a manifestao e a recepo do pensamento, a difuso de informaes, a manifestao artstica ou a composio audiovisual, quando veiculadas atravs de um meio de comunicao de massa (NUNES JNIOR, 2011, p. 43). Os dispositivos constitucionais que disciplinam o direito de comunicao so os seguintes: art. 220 (que probe restries ao direito de opinio, expresso e comunicao), 1 (proibio de leis que criem embaraos ao direito de opinio, expresso e comunicao), 2 (vedao da censura prvia), 3 (poderes conferidos lei federal para regular as diverses e os espetculos pblicos, assim como para estabelecer meios para a defesa contra programas
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e propagandas abusivas) e 4 (restries a propagandas de determinados produtos: tabaco, bebidas alcolicas etc.), e artigo 221 (princpios que a programao dos meios de comunicao devem seguir). Com relao aos rgos de comunicao, os dispositivos constitucionais reguladores so os seguintes: art. 220, 5 (proibio de monoplio ou oligoplio) e 6 (veculos impressos no necessitam de licena de autorizao), 222 (regras para participao de estrangeiros nos meios de comunicao), 223 (regras para a concesso, permisso e autorizao) e 224 (criao do Conselho de Comunicao Social). (4) Direito de informao: garante a divulgao de um fato relevante para a sociedade. Este direito possui trs facetas: direito de informar, direito de se informar e direito de ser informado. O direito de informar tem em geral carter negativo, pois qualquer pessoa pode exercer este direito sem sofrer restries do Estado (art. 220, caput da Constituio Brasileira). Uma exceo a esta regra o direito de resposta (inciso V do art. 5 da Constituio Brasileira), o qual impe um carter positivo ao direito de informao. O direito de se informar est previsto no inciso XIV do art. 5 da Constituio Brasileira: assegurado a todos o acesso informao e resguardado o sigilo da fonte, quando necessrio ao exerccio profissional. A respeito de informaes contidas em banco de dados pblicos, a Constituio prev o habeas data, no inciso LXXII do art. 5 da Constituio Brasileira, um instituto (ao constitucional) que garante o conhecimento de determinada informao e permite ao interessado sua eventual correo. Sobre o direito de ser informado, de acordo com Vidal Serrano Nunes Jr., a
Constituio Federal no atribuiu a nenhum organismo privado, de carter informativo ou no, o dever de prestar informao (NUNES JNIOR, 2011, p. 47). No entanto, os rgos pblicos tm a obrigao de fornecer informaes aos indivduos, ou seja, todos possuem o direito de receber informaes do poder pblico, conforme art. 5, inciso XXXIII (todos tm direito a receber dos rgos pblicos informaes de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que sero prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindvel segurana da sociedade e do Estado) e art. 37 caput (A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte) e 1 (A publicidade dos atos, programas, obras, servios e campanhas dos rgos pblicos dever ter carter educativo, informativo ou de orientao social, dela no podendo constar nomes, smbolos ou imagens que caracterizem promoo pessoal de autoridades ou servidores pblicos). (5) Direito informao jornalstica , que garante a publicao de notcias e crticas nos meios de comunicao de massa. O direito informao jornalstica se fundamenta no direito de informar, pois este ltimo, segundo Vidal Serrano Nunes Jr. comporta, em sua essncia, direitos distintos: de um lado, o direito de transmitir idias, conceitos ou opinies; de outro lado, o de veicular notcias e os respectivos comentrios ou crticas (NUNES JNIOR, 2011, p. 49). A partir do exposto, conclui-se que a liberdade de informao engloba vrios direitos fundamentais, entre eles: o direito de opinio, de expresso, de comunicao, de informao e de informao jornalstica.
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Cabe, a partir de ento, analisar algumas questes polmicas que surgem no exerccio de tais direitos, em especial quando estes colidem com os demais direitos fundamentais. 2. Formas de limitao do poder dos meios de comunicao de massa Os meios de comunicao de massa passaram a influenciar de maneira contundente a opinio pblica. Com isso, nos sistemas democrticos, os meios de comunicao tornaram-se muito poderosos. Por exemplo: seis ministros da Presidente Dilma foram afastados por suspeitas de corrupo em 2011, aps matrias divulgadas em meios de comunicao de massa (O ESTADO DE SO PAULO, 14/09/2011 e 17/08/2011): Antonio Palocci: Sua sada comeou a se desenhar quando o jornal Folha de S. Paulo denunciou, no dia 15 de maio, que seu patrimnio aumentou 20 vezes entre 2006 e 2010. Alfredo Nascimento pede demisso: Comeou a perder o cargo quando a revista Veja denunciou, no dia 2 de julho, um esquema para cobrana de propina na pasta e em rgos ligados pasta. Wagner Rossi: O empurro final para que o ministro da Agricultura entregasse o cargo foi dado nos ltimos dois dias, com a notcia, publicada no Correio Braziliense segundo a qual ele e familiares utilizavam um jatinho da empresa Ourofino, que tem negcios com o Ministrio da Agricultura. Pedro Novais: Entregou o cargo aps denuncia do jornal Folha de S. Paulo de que teria usado dinheiro da Cmara para pagar o salrio da governanta de seu apartamento em Braslia.
Orlando Silva: O ministro do Esporte Orlando Silva deixou o cargo aps sucessivas denncias de fraudes em convnio do ministrio. (...) Diante da repercusso negativa para o ministrio (...) a presidente Dilma decidiu no mant-lo na pasta. Carlos Lupi: Tendo em vista a perseguio poltica e pessoal da mdia, que venho sofrendo h dois meses sem direito de defesa e sem provas; (...) decidi pedir demisso do cargo que ocupo. Como se pode observar, todos os processos de acusao se iniciaram na mdia. Assim, os meios de comunicao tornaram-se verdadeiros poderes nas mos de seus detentores. Ora, os ministros que caram tinham motivos para serem afastados, mas e os demais, ser que tambm no possuem desvios de conduta? A grande questo : so todas as notcias ou suspeitas de corrupo divulgadas, ou h certa ordem de convenincia e interesse nestas publicaes? Por que as notcias de corrupo de ministros so divulgadas uma de cada vez, at a demisso ou sada do mesmo, e no todas de uma s vez? De acordo com Cludio Luiz Bueno de Godoy no h como negar o decisivo papel dos meios de comunicao no desdobramento de acontecimentos recentes, de depurao poltica e moral (GODOY, 2008, p. 2). lvaro Rodrigo Jr. destaca ainda a importncia da imprensa e da liberdade de expresso, e do perigo que h no distanciamento da imprensa de sua funo social, em virtude da busca fcil por audincia: usufruindo a ampla e irrevogvel liberdade de expresso e de informao asseguradas constitucionalmente, os meios de comunicao social distanciam-se cada vez mais de sua funo essencial em um regime democrtico, qual seja, a de trazer ao pblico a vigorosa discusso de temas polticos e permitir s pessoas
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influir diretamente na esfera pblica (RODRIGUES JNIOR, 2009, p. 18). Continua o autor dizendo que os interesses comerciais e a busca desenfreada pelo lucro dificultam (ou at mesmo impedem) que os meios de comunicao social desfrutem de sua liberdade de expresso para informar a opinio pblica e disseminar ideias e opinies de verdadeiro interesse pblico. Em vez disso, mergulham o homem num mar de informaes inteis e de fcil absoro (RODRIGUES JNIOR, 2009, p. 18). Assim, a comunicao transformou-se em um objeto muito importante para o estudo do direito, tendo em vista, como menciona Vidal Serrano Nunes Jr. que ela vai se tornando um autntico poder social que pode se constituir no mais eficaz meio de transmisso da informao, fazendo chegar s residncias e reparties tudo o que acontece no mundo e, ao mesmo tempo, pode se transformar num perigoso veculo de ociso dos direitos da personalidade, tolhendo as faculdades minimamente necessrias para o desenvolvimento do indivduo (NUNES JNIOR, 2011, p. 9). Neste contexto, para que os meios de comunicao no sejam utilizados to somente como um meio de poder e influencia para os grandes grupos polticos ou empresariais, discutem-se formas de limitar e controlar seus contedos e sua posio ideolgica. A Constituio Espanhola, por exemplo, adotou a clusula de conscincia e o direito de acesso aos meios de informao aos grupos sociais e polticos significativos. A clusula de conscincia, segundo Vidal Serrano Nunes Jr., uma estipulao tcita que se considera integrada em qualquer contrato de trabalho ou de prestao de servios de um profissional da informao, que lhe atribui a faculdade de romper seu vnculo com a respectiva empresa de comunicao, com o recebimento de todos os direitos como se houvesse sido despedido sem justa causa, desde que a razo da
resciso tenha como fundamento uma mudana notvel no carter ou na orientao do jornal, ou do peridico; e esta mudana pudesse, de algum modo, afetar a dignidade, a honra, a reputao, as convices, em suma, as opinies do profissional da informao (NUNES JNIOR, 2009, p. 59). Com relao Constituio Portuguesa, suas especificidades relacionadas ao controle / limite dos meios de comunicao so: (1) toda pessoa tem o direito de receber informao na ntegra, (2) interveno do jornalista na orientao ideolgica dos meios de comunicao, (3) instituio de conselhos de redao com a participao dos jornalistas, de modo a garantir a interveno ideolgica por parte destes, (4) obrigao de divulgao do nome do proprietrio e dos meios de financiamento, (5) estabelecimento da propriedade estatal da televiso. No caso brasileiro, sete so os elementos importantes de controle / limite dos meios de comunicao: (1) direito de resposta, previsto no inciso V do art. 5 da Constituio Brasileira ( assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alm da indenizao por dano material, moral ou imagem); (2) o controle dos meios de comunicao por parte de brasileiros natos ou naturalizados (Art. 222 da Constituio Brasileira); (3) obrigatoriedade de transmisso de canais comunitrios e estatais para as televises a cabo; (4) proibio do anonimato; (5) proteo imagem, honra, intimidade e privacidade; (6) imposio da classificao indicativa dos programas de televiso (art. 21, XVI da Constituio Brasileira; e (7) tutela preventiva e reparatria, quando h abuso na utilizao dos meios de comunicao. H tambm restries, previstas na Constituio Brasileira, que dizem respeito aos estados de stio e de defesa, situaes em que a
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liberdade de informao pode ser restringida por conta do interesse pblico e da segurana nacional. Cabe destacar que na ocorrncia de conflitos entre a liberdade de informao e os mencionados direitos, pode-se adotar uma das trs vertentes citadas pelo professor Vidal Serrano Nunes Jr.: (1) o regime de excluso, no qual os direitos da personalidade so tidos como mais importantes que o direito liberdade jornalstica; (2) o regime da necessria ponderao, no qual o conflito deve ser analisado de modo a ponderar os interesses em jogo; (3) e o regime da concorrncia normativa, que determina que o direito de crtica tem preferncia face aos demais direitos, tendo como fundamento a defesa e manuteno da opinio pblica. Esta ltima corrente a dominante atualmente, mas diz respeito crtica de interesse pblico, desde que fundada na verdade e na boa-f. 3. A liberdade de expresso e o discurso do dio De acordo com Samantha Ribeiro, o discurso do dio consiste na manifestao de ideias que incitam discriminao racial, social ou religiosa em relao a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias (MEYER-PFLUG, 2009, p. 97). Para combater o discurso do dio, alguns pases adotaram aes afirmativas, outros proibiram drasticamente a defesa pblica de posturas preconceituosas. Na Amrica, por exemplo, as manifestaes a favor da violncia no podem ser proibidas, exceto se a manifestao tenha o poder de gerar aes concretas de violncia. Neste sentido, a restrio liberdade de expresso s justificvel quando se verifica a existncia de um perigo claro e iminente de causar um ato ilegal, do contrrio prevalece o principio da neutralidade do Estado
em face do contedo do discurso. (MEYER-PFLUG, 2009, pp. 141-142). Neste sentido, a soluo adotada pelo sistema americano no combate ao discurso do dio tem sido conferir mais liberdade de expresso para a parte atingida para que, por meio do debate aberto e livre, possa evitar manifestaes desse jaez. No entanto, h que se considerar que essa soluo resta incua em determinadas circunstncias, posto que devido ao efeito silenciador do discurso do dio, suas vtimas no tm chances de participar do debate pblico e contra-argumentar em p de igualdade com os seus agressores (MEYER-PFLUG, 2009, p. 148). Os pases europeus, por sua vez, so mais restritivos quanto liberdade de expresso. H muitos pases que consideram crimes a banalizao do Holocausto, a teoria revisionista, assim como a prtica de racismo e de antissemitismo. Importante ressaltar que esse padro europeu verifica-se bastante influente no direito internacional. De acordo com Samantha Ribeiro verifica-se no direito internacional e no modelo europeu uma maior nfase na proteo dos direitos honra e a dignidade das vtimas do discurso do dio, em comparao com o sistema americano. O prprio Tribunal Europeu de Direitos Humanos a despeito da existncia da jurisprudncia flutuante tem demonstrado uma inclinao maior no sentido de adotar o sistema europeu (MEYERPFLUG, 2009, p. 197). Com relao ao combate do discurso do dio no Brasil, no h norma especfica para proibir ou regular esse tipo de manifestao do pensamento. No entanto, Samantha Ribeiro ensina que o sistema constitucional ptrio erigiu como um de seus valores a proibio ao racismo, bem como a qualquer tipo de discriminao. (...) tendo em vista o discurso do dio constata-se que o seu contedo, em certas situaes, dotado de carter discriminatrio e racista o que poderia levar a sua proibio no sistema brasileiro
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(MEYER-PFLUG, 2009, p. 125). Deste modo, no sistema jurdico brasileiro a prtica do racismo, aps a descoberta do genoma humano e a recente deciso do STF, envolve a perseguio a qualquer grupo tnico, religioso, cultural, social ou de gnero (MEYER-PFLUG, 2009, p. 204). A partir do exposto, a questo que se coloca : como combater o discurso do dio de maneira mais eficaz? Deve-se proibir radicalmente as manifestaes de dio, segundo o modelo europeu, ou o melhor combater esses discursos garantindo mais liberdade de manifestao do pensamento, tanto para os grupos radicais, quanto para aqueles que combatem as manifestaes odiosas, como fazem os americanos? Samantha Ribeiro adota a seguinte postura: a simples proibio do discurso do dio no parece se coadunar com os valores vigentes no sistema jurdico brasileiro, nem tem se mostrado uma soluo eficaz ao problema, de igual modo resolver a questo com a mera permisso desse discurso tambm no se mostra, a princpio, compatvel (MEYER-PFLUG, 2009, p. 221). Neste sentido, defende a autora que devese, portanto, assegurar a manifestao do discurso do dio, mas desde que se assegure igualmente e que se propicie as condies necessrias para as minorias, as vtimas desse discurso possam, rebater os seus argumentos de forma incisiva e eficiente. De igual modo a sua permisso tem de vir acompanhada de polticas pblicas na rea da educao que promovam o multiculturalismo, a valorizao da diferena e evitem o surgimento do preconceito. No se pode combater atos de intolerncia, com intolerncia e nem privar o indivduo do seu direito de libertada e de escolha (MEYER-PFLUG, 2009, p. 264). A jurisprudncia no Brasil ainda no tomou uma posio definitiva frente ao discurso do dio, muito embora tenda a proibi-lo. Recentemente o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) fez comentrios
pblicos que mexeram com a opinio pblica e com a mdia. O parlamentar defende a ditadura militar e declara-se preconceituoso com relao homossexuais e negros, com muito orgulho. Como possui imunidade parlamentar, o deputado em questo no sofrer nenhuma punio. Mas e se ele fosse uma pessoa comum? Possivelmente seria processado e condenado por racismo. Mas sua condenao no mudaria alguma coisa? Todos sabem que o preconceito ainda existe. O problema : como combater este preconceito? Proibi-lo e deix-lo cada vez mais privado a declaraes familiares, ou deixar que a sociedade manifeste livremente sua opinio contra ou a favor do preconceito? A questo deve ser debatida e amadurecida pela sociedade. No existe uma forma nica e correta para se combater o dio. Cabe ao judicirio e ao legislativo discutirem e encontrarem formas de combater o crescimento dessas manifestaes, sem que com isso a liberdade de informao, expresso e opinio sejam limitadas. 4. A publicidade comercial como forma de manifestao do pensamento A publicidade comercial tem por objetivo incentivar o consumo de determinados bens e servios. Para Vidal Serrano Nunes Jr. a publicidade comercial, obedece lgica da economia de mercado, identifica sua proteo nos princpios bsicos da ordem constitucional da economia, a livre iniciativa e a livre concorrncia (NUNES JNIOR, 2001, p. 3). Importante notar que a publicidade comercial passou, ao longo do tempo, a ser to importante quanto o prprio produto ou servio, pois capaz de transformar um bem em um smbolo de posio social. Tendo a publicidade os objetivos de divulgao, comercializao, promoo de
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produtos e servios, evidente que se trata de uma atividade puramente econmica. No entanto, h autores que defendem que a publicidade comercial fundamenta-se, no nos princpios econmicos, mas sim na liberdade de informao. Neste sentido, seria a publicidade comercial um direito fundamental, assim como os direitos de opinio e expresso. Essa diferena substancial e importantssima, pois entendida a publicidade comercial como um direito fundamental, ela seria privilegiada por vrios dispositivos constitucionais, como a proibio da censura, por exemplo. No entanto, a posio de Vidal Serrano Nunes Jr. & Daniela Batalha Trettel parece a mais correta: qualquer elemento de liberdade de expresso que se pretenda destacar nas publicidades comerciais suprimido pela finalidade mxima desse mecanismo de difuso de produtos e servios: estimular o consumidor ao ato de compra (NUNES JNIOR & TRETTEL, 2008, p. 5). Sendo a publicidade comercial uma atividade econmica, ela pode sofrer limitaes em respeito a outros direitos constitucionalmente tutelados. Tais limitaes podem ter como objetivo proteger relaes de mercado - seja a livre concorrncia, seja o consumidor - ou toda a sociedade, alcanada pelo informes publicitrios em decorrncia do longo alcance de seus meios de propagao. No segundo ponto temos a vedao a publicidades discriminatrias e a proteo ao patrimnio cultural, privacidade e intimidade, ao meio ambiente, infncia e juventude, segurana, famlia e aos idosos (NUNES JNIOR & TRETTEL, 2008, p. 6). 5. A liberdade de informao e o sigilo da fonte A Constituio Brasileira estabelece, no art. 5, inciso XIV, o sigilo da fonte. Deste modo,
o jornalista tem o direito de manter a sua fonte em segredo, no a revelando a ningum, em hiptese alguma. Entende-se que este um dos pressupostos fundamentais para o pleno exerccio da profisso de jornalista. Diferentemente deste sigilo, existe o segredo profissional. Neste caso, o profissional que tem conhecimento sobre um segredo, que lhe foi confidenciado profissionalmente, mas no pode divulg-lo, sob pena de cometer um crime. Neste caso encontram-se o advogado, o psiclogo, etc. Importante destacar que o segredo profissional e o sigilo da fonte so coisas completamente diferentes. Enquanto o primeiro um dever do profissional, o segundo uma faculdade. Outra distino importante que o segredo profissional, diferentemente do sigilo da fonte, no absoluto. H situaes em que o poder judicirio pode decretar a quebra do segredo. Ademais, a pessoa que divulgar um segredo profissional somente poder ser responsabilizada se houver dolo, no houver justa causa, e em casos que causem dano a algum. De acordo com Benedito Luiz Franco o sigilo da fonte assegurado ao jornalista , inquestionavelmente, absoluto, inexistindo leis que lhe estabeleam quaisquer limites ou excees no direito ptrio. (...) Os jornalistas (...) no estabelecem com seus informadores o mesmo tipo de relacionamento mantido pelos demais profissionais com seus clientes (FRANCO, 1999, p. 124). Importante ressaltar que o sigilo da fonte no encontra a mesma guarida nos demais pases. Por exemplo: nos Estados Unidos da Amrica, o sigilo da fonte jornalstica no absoluto (...) Newspersons privilidge examinado caso a caso pela Suprema Corte. A no revelao da fonte de informao perante a um
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tribunal, pode ser considerado como crime de desacato justia (FRANCO, 1999, p. 127). 6. Concluso Muitas so as polmicas que envolvem a liberdade de informao. Alm daquelas apresentadas neste artigo, muitas outras surgem diariamente nos tribunais por todo o mundo. Cada pas adota sua posio com relao liberdade e aos limites e controles dos meios de comunicao. Estas questes variam em razo da legislao e da cultura de cada sociedade. No Brasil, embora no haja uma lei especfica para regular os meios de comunicao, a Constituio Brasileira contempla dispositivos que do conta das polmicas surgidas nos ltimos anos. Cabe jurisprudncia, no entanto, punir os meios de comunicao que abusam do seu direito de informar, assim como s publicidades que ofendem os princpios constitucionais e os direitos fundamentais. Atualmente h uma sensao de impunidade com relao aos meios de comunicao, que deve ser definitivamente resolvida pelo judicirio brasileiro. de conhecimento de todos que os meios de comunicao servem como verdadeiros poderes polticos, alm de induzirem formao da opinio pblica conforme os interesses de seus dirigentes. Estas condutas devem ser enfrentadas e solucionadas pelo judicirio, de forma a garantir a moralizao os meios de comunicao e o exerccio do direito fundamental de informar e ser informado.
Nota:
1
Nota-se que o termo direito de imprensa foi substitudo pelo termo direito informao jornalstica, pois a imprensa sempre esteve relacionada aos meios de comunicao impressos.
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Resumo
O presente artigo tem por finalidade analisar o contexto poltico atual, tentando compreender como a relao do governo de Dilma Rousseff com os eleitores de baixssima renda se estabeleceu no tempo e como essa relao se coloca diante de acontecimentos atuais. A anlise foi feita tendo como base o artigo Razes Sociais e Ideolgicas do Lulismo de Andr Singer, publicada na edio 85 da revista Novos Estudos, em dezembro de 2009. Contribuindo para o desenvolvimento do trabalho, foram utilizados dados levantados pelo instituto de pesquisas IBOPE, exemplificando nos diversos cenrios de avaliao do governo de Dilma Rousseff, o posicionamento de parte da populao. O artigo tem como objetivo estabelecer um panorama (ainda que incerto) das eleies presidenciais de 2014, apresentando um crescimento dos percentuais de rejeio candidata do PT e o surgimento de Marina Silva como opositora.
Abstract
The present article has the finality to analyze the current political context, trying to understand how the relationship between Dilma Rousseff and her very low income voters got established, and how is this relation after the recently developed events. The analysis was made based on the article Razes Sociais e Ideolgicas do Lulismo by Andr Singer, published in the 85th edition of the magazine Novos Estudos, in December of 2009. Contributing to the development of this work were used data collected by the Research Institute IBOPE, exemplifying the different scenarios of rating of Dilmas Rousseff government from part of the population. The article aims to establish an overview of the 2014 election, showing a growth rate of rejection of the PT candidate and the emergence of Marina Silva as opposition.
Key words
Lulismo; Dilma Rousseff; subproletariat; Presidential Election of 2014; Marina Silva.
Palavras -Chave
Lulismo; Dilma Rousseff; subproletariado; Eleies Presidenciais de 2014; Marina Silva.
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Contexto poltico Para a compreenso do cenrio poltico que se apresenta nesse momento, necessrio o entendimento do contexto poltico posto desde 1989. Neste ano, de acordo com Andr Singer em seu artigo Razes Sociais e Ideolgicas do Lulismo, pela primeira vez o Brasil apresentou uma polarizao por renda em acordo com os dois principais candidatos a presidente, no caso Fernando Collor de Mello e Luiz Incio Lula da Silva. A questo que em 1989, era Collor que obtinha o apoio das classes mais baixas. A pesquisa IBOPE realizada em dezembro de 1989, na anlise por renda da inteno de voto, mostrava uma vantagem de Collor de 10 pontos percentuais em relao Lula (Collor com 51% e Lula com 41%) entre aqueles com renda familiar de at dois salrios mnimos. E Lula aparecia na frente em todos os outros estratos: os percentuais de inteno de voto ao candidato do PT aumentavam em acordo com o aumento da renda familiar. Contudo, a observao da eleio de 2002, na qual Luiz Incio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil, permite afirmar que nesse ano, o voto em Lula no estava especialmente atrelado estratos sociais, enquanto que, da mesma forma possvel afirmar que em 2006, a disputa se dividiu entre ricos e pobres. A aposta de Andr Singer que o resultado da eleio presidencial de 2006 no uma mera repetio dos resultados da eleio presidencial de 2002. A diferena mdia de uma eleio e de outra, da vitria de Lula sobre seus opositores, ficou em torno dos vinte milhes de votos, porm no foram os mesmos eleitores que o colocaram no poder em um ano e no outro. Para o autor, o resultado de 2006 foi o reflexo de um realinhamento poltico de estratos decisivos
do eleitorado. Pela primeira vez, os muito pobres elegeram um candidato da esquerda. O movimento ocorrido durante o perodo do primeiro mandato do presidente Lula, ou seja o deslocamento subterrneo dos eleitores de baixssima renda, passou despercebido e s foi concretamente observado no resultado das eleies presidenciais de 2006, tanto que havia uma percepo que o cunho assistencialista do primeiro mandato no estava sendo suficiente para segurar o eleitor. Esse movimento ocorreu concomitantemente ao incio das denncias do mensalo, e no se fez notar em parte pelo fato do mensalo ter obtido, por meses, todo o foco miditico. Esse movimento observado em 2006 exatamente o inverso do movimento observado em 1989, tomando como referncia a participao de Lula nos dois pleitos. Obtendo o apoio das classes mais altas e consequentemente, os mais escolarizados em 1989, Lula percebia a emergncia em atingir os estratos mais pobres, aqueles que ganhavam at 1 salrio mnimo, pois era consciente do peso eleitoral que estes representavam. Em suma, de acordo com Singer, possvel afirmar acerca de um conjunto de fatores como responsvel pela reeleio de Lula em 2006: o controle de preos, o aumento do salrio mnimo, a reduo do desemprego, a expanso de crdito s classes mais pobres, os programas sociais como o Bolsa Famlia. Essas medidas associadas contriburam para a reduo significativa da pobreza, a partir de 2004. Assim, Dilma Rousseff foi eleita em 2010 dando continuidade e ampliando os projetos sociais implantados nos dois mandatos do presidente Lula. A pesquisa IBOPE divulgada em 30 de outubro de 20101 revelou que 52%
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dos entrevistados declararam a inteno de votar na candidata do PT, enquanto 40% declararam inteno de votar no candidato do PSDB, Jos Serra. O percentual de Dilma entre os entrevistados com at 1 salrio mnimo chegou a 57%, em oposio aos 35% com essa renda familiar que afirmaram a inteno de votar em Jos Serra: uma diferena de 22 pontos percentuais entre aqueles com renda mais baixa. J entre aqueles com mais de 1 e at 2 salrios mnimos, Dilma apresentou ndice de 55% e Jos Serra, 37%. Entre aqueles com renda familiar de mais de 2 at 5 salrios mnimos, 50% declararam inteno de voto na candidata petista, enquanto 43% declararam inteno em votar no candidato peessedebista. J entre os entrevistados com renda familiar superior a 5 salrios mnimos, o percentual de 45% para Dilma e 48% para Serra. Atravs da observao desses dados, possvel afirmar que a pesquisa realizada em 2010 no indicava uma tendncia de polarizao por renda na eleio presidencial, j que o percentual de Dilma foi prximo ao alcanado por Jos Serra entre aqueles com renda mais alta. Entretanto, a petista seria eleita por contemplar majoritariamente o voto do subproletariado, conforme termo usado por Andr Singer. Avaliao do governo: antes e depois das manifestaes A pesquisa IBOPE realizada entre os dias 08 e 11 de maro de 20132 revelou que 63% dos brasileiros entrevistados avaliavam o governo da presidente Dilma como timo/ bom. Entre aqueles com menor renda familiar (at 1 salrio mnimo), 70% fizeram essa afirmao e entre aqueles com mais de 1 a 2 salrios mnimos o percentual foi de 65%. J o levantamento realizado pelo IBOPE entre os dias 08 e 11 de junho de 20133 apontou que 55% dos
entrevistados consideravam, na ocasio, a gesto da presidente Dilma Rousseff como tima/boa, uma oscilao negativa de 8 pontos percentuais em relao pesquisa realizada em maro. Entre aqueles com renda mais baixa o percentual foi de 65% (oscilao negativa de 5 pontos percentuais), e entre os entrevistados com mais de 1 e at 2 salrios mnimos, o ndice foi de 59% (oscilao negativa de 6 pontos percentuais). O grfico abaixo revela que entre maro e junho de 2013, a avaliao do governo Dilma apresentou uma queda relevante entre os entrevistados com renda mais alta. J entre os respondentes com renda familiar mais baixa, no houve uma queda, mas uma oscilao negativa, considerando a margem de erro da pesquisa realizada em junho que de 2 pontos percentuais. Um ponto a ser considerado que os dados levantados em junho foram coletados durante as primeiras manifestaes ocorridas em So Paulo (protestos ocorridos nos dias 6, 7 e 11 de junho de 2013), porm antes das que ocorreram em todo o pas pela revogao do aumento das tarifas do transporte pblico, que se tornaram mais intensas aps os excessos policiais em So Paulo, no dia 13 de junho. Assim, conclui-se que a avaliao do governo de Dilma Rousseff, considerando os percentuais de timo/ bom, estava apresentando um recuo antes do perodo de efervescncia que tomou as ruas do pas.
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As manifestaes que se tornaram frequentes em todo o pas, com o Movimento Passe Livre frente e grande cobertura miditica, colocava em pauta, inicialmente, a revogao do aumento das tarifas do transporte pblico. Nas redes sociais, onde os movimentos foram fomentados, logo surgiram outras pautas para os protestos, e o slogan No s pelos 0,20 centavos (uma referncia ao aumento da passagem do transporte pblico de So Paulo, que sofreu reajuste de R$ 3,00 R$ 3,20, no dia 02 de junho), se tornou uma constante. Corrupo, gastos com estdios para a Copa do Mundo de Futebol e precariedade de servios pblicos, tambm foram temas levantados nas manifestaes. Aps o clamor das ruas, o valor das passagens foi revogado em diversas cidades, como Florianpolis, Porto Alegre, Vitria, Teresina, Natal, entre outras. Em So Paulo e no Rio de Janeiro, no dia 16 de junho, o aumento tambm foi revogado. Nas ruas, se as manifestaes iniciais foram marcadas pela presena de estudantes, devido a proporo dos acontecimentos outros grupos tambm tomaram partido nas reivindicaes. No dia 19 de junho, houve manifestaes na periferia da cidade de So Paulo (na regio da Avenida MBoi Mirim e Largo da Piraporinha), reivindicando melhorias nos servios pblicos. Por fim, no dia 20 de junho, cerca de 1 milho de pessoas tomaram as ruas de todo o Brasil. Todos esses acontecimentos motivaram uma srie de medidas que foram alm da revogao das passagens do transporte pblico: o discurso da presidente Dilma Rousseff, ocorrido em 21 de junho; discurso do presidente do Senado, Renan Calheiros, em 25 de junho; a
votao da PEC 37, ocorrida em 25 de junho; a votao dos royalties do petrleo, ocorrida na madrugada de 26 de junho; a suspenso da licitao para o transporte pblico em So Paulo, em 26 de junho; aprovao pela CCJ de uma emenda constitucional que acabou com o voto secreto para cassaes, tambm em 26 de junho, entre outras. Em seu discurso, feito em rede nacional no dia 21 de junho, Dilma Rousseff props a construo de uma ampla e profunda reforma poltica, para ampliao da participao popular, e consequente mecanismos de controle pelos cidados, sobre seus representantes. No discurso realizado durante a reunio com governadores e prefeitos de capitais, em 24 de junho, Dilma Rousseff fez a seguinte afirmao:
[...] O segundo pacto em torno da construo de uma ampla e profunda reforma poltica, que amplie a participao popular e amplie os horizontes da cidadania. Esse tema, todos ns sabemos, j entrou e saiu da pauta do pas por vrias vezes, e necessrio que ns, ao percebermos que, nas ltimas dcadas, ele entrou e saiu vrias vezes, tenhamos a iniciativa de romper o impacto. Quero, nesse momento, propor o debate sobre a convocao de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte especfico para fazer a reforma poltica que o pas tanto necessita. O Brasil est maduro para avanar e j deixou claro que no quer ficar parado onde est [...]4
A proposta da presidente Dilma de estabelecer um plebiscito em que a reforma poltica fosse vlida para as eleies de 2014 foi enterrada pelos lderes de partidos da base aliada e da oposio, em 09 de julho. Assim, o PT ficou isolado na defesa de um plebiscito imediato. Em verdade, de acordo com a matria publicada
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no jornal O Estado de S. Paulo5, a proposta do plebiscito pela presidente Dilma, dividiu at mesmo o Partido dos Trabalhadores. No houve unanimidade em relao a consulta popular e o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), afirmou que o que faltava no governo Dilma era gesto, e no plebiscito, e que tambm estava na hora do expresidente Lula voltar. Alm da derrota do plebiscito e da polmica envolvendo a vinda de mdicos estrangeiros para atuarem na sade pblica, o governo ainda sofreu um revs na Cmara dos Deputados. De acordo com matria do O Estado de S. Paulo6, de 10 de julho, o prprio PT e PMDB articularam uma manobra para priorizar a anlise do texto que destina os royalties do petrleo para a educao e para a sade. Em rede nacional, no seu discurso realizado no dia 21 de junho, a presidente Dilma Rousseff havia mencionado que 100% dos royalties do petrleo seriam destinados para a educao. Esses acontecimentos levaram o presidente nacional do PT, Ruy Falco afirmar no dia 11 de julho, que ningum sabe hoje quem apoiar Dilma em 20147. Essa declarao foi corroborada pela matria do O Estado de S. Paulo8, de 14 de julho, a qual afirma que o principal aliado da base de Dilma, o PMDB, criou uma banca de popularidade para decidir se apoiar Dilma nas eleies de 2014, e estabeleceu um prazo de trs meses para a presidente se recuperar do desgaste sofrido e alcanar patamar de 33% de inteno de voto nas pesquisas. Diante desse cenrio, a pesquisa realizada pelo IBOPE9 entre os dias 09 e 12 de julho, apontou que a avaliao de timo/ bom do governo Dilma sofreu uma queda de 24 pontos percentuais em relao pesquisa realizada no ms de junho (de 55% para 31%). Se, no perodo
anterior, na anlise por renda, a queda mais relevante havia sido entre os mais ricos, agora a avaliao da gesto da presidente apresentou queda significativa entre todas as faixas de renda, com destaque entre aqueles com renda familiar de mais de 5 a 10 salrios mnimos: de 51% em junho para 23% em julho.
Entretanto, observa-se que o percentual entre aqueles que declararam renda de at 1 salrio mnimo o mais alto (47%) quando comparado s outras faixas de renda, mesmo com uma queda de 18 pontos percentuais, em relao pesquisa realizada em junho. O destaque entre aqueles com renda superior: 30% consideraram o governo de Dilma como timo/bom, 7 pontos percentuais a menos que os de mesma renda, no perodo anterior. Essa queda a menor dentre todas as faixas. O cientista poltico Andr Singer, em entrevista concedida revista poca10, em 23 de junho de 2013, afirma que, em sua opinio, as manifestaes ocorridas em todo o pas foram compostas por duas camadas sociais, os filhos da classe mdia tradicional e o novo proletariado, este ltimo com empregos precrios e ms condies de trabalho. Singer afirma que, o que ele denomina por subproletariados (que forma a base do lulismo, e consequentemente, do governo Dilma) no estava nas ruas. Porm, com a queda da avaliao da presidente entre os muito pobres,
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constata-se que ainda que esses no tenham ido s ruas (salvo algumas excees), foram amplamente impactados pelas manifestaes. O percentual apontado pela pesquisa realizada em julho confirma que, de fato, os de renda baixssima ainda do, em parte, sustentao ao governo de Dilma. Porm a queda no percentual indica que uma parcela da populao que, ainda que tenha sido alvo de polticas sociais ao longo dos ltimos anos, acompanha os acontecimentos do pas e reflete sobre eles. Marina Silva Nesse contexto, Marina Silva (ainda que no tenha partido definido) surge nesse perodo como a principal opositora de Dilma Rousseff para as eleies de 2014. Vale ressaltar que em 2010, ento candidata do PV, Marina disputou o pleito presidencial e no primeiro turno obteve a terceira colocao, recebendo cerca de 20 milhes de votos. A pesquisa realizada pelo IBOPE11 entre os dias 11 e 14 de julho de 2013, aponta que entre os mais pobres, 11% declararam que com certeza votariam em Marina Silva, percentual relativamente baixo. Porm, 25% declararam que poderiam votar. Assim, observa-se que essa prcandidata aparece como uma opo at mesmo entre aqueles de baixssima renda. O grfico a seguir apresenta a comparao entre as duas candidatas mais mencionadas:
Assim, constata-se que a maioria dentre aqueles com renda mais baixa declararam que com certeza votariam em Dilma (39%) e cerca de (24%) afirmaram que poderiam votar. Contudo, ainda que apenas 11% tenham declarado inteno em votar em Marina, o percentual daqueles que afirmam que poderiam votar nessa candidata bastante significativo (25%). Vale ressaltar o percentual elevado daqueles que no conhecem Marina suficientemente (22%). A rejeio s candidatas aparece em patamares relativamente prximos: 26% afirmaram que no votariam de jeito nenhum em Dilma Rousseff e 31% fizeram tal afirmao em relao Marina Silva. O grfico a seguir mostra o desempenho de Dilma Rousseff nessa pesquisa em comparao a outra pesquisa realizada pelo IBOPE12 entre os dias 14 e 18 de maro de 2013:
Entre aqueles com renda familiar de at 1 salrio mnimo, o percentual caiu de 63% em maro para 39% em julho, dentre aqueles que afirmaram que com certeza votariam na candidata petista, uma diferena de 24 pontos percentuais. J entre aqueles que declararam que poderiam votar, houve um aumento de 18% para 24%. A rejeio candidata foi de 17% para 26%, uma diferena de 9 pontos percentuais. Vale ressaltar que Dilma Rousseff conhecida por todos os eleitores entrevistados. Em relao Marina Silva, considerando a mesma faixa de renda, h uma oscilao positiva
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de 3 pontos percentuais de maro a julho, entre aqueles que afirmaram que com certeza votariam nela. J a rejeio a essa candidata diminuiu 10 pontos percentuais em relao ao mesmo perodo. possvel afirmar que a candidata Marina ainda pouco conhecida entre uma parcela considervel daqueles de baixssima renda (22%), porm o fato de 25% dos entrevistados declarar que poderia votar nela, indica uma certa propenso dessa parte do eleitorado essa candidata, dentre aqueles que a conhecem. Os dados so apresentados no grfico a seguir:
venceria no primeiro turno13. Porm, depois de um ms, o cenrio para a corrida presidencial era outro. As pesquisas aqui apresentadas realizadas aps o perodo das manifestaes demonstram que o cenrio ainda incerto, considerando a incerteza dos futuros acontecimentos. O prprio carter das manifestaes e o real impacto dessas a longo prazo ainda incerto. Houve uma presso inicial no Congresso Nacional, com acelerao na tramitao de uma srie de propostas. Contudo, resultados concretos no foram vistos: os projetos principais, que relacionam-se diretamente com as reinvindicaes mencionadas nas manifestaes ainda esto em tramitao, com promessas de serem votados no segundo semestre de 2013. Uma manobra at cessar o clamor das ruas? De fato, alm das manifestaes, outros aspectos devem ser considerados, que talvez justifiquem a queda na inteno de voto de Dilma Rousseff e na avaliao positiva de seu governo: a alta do dlar e o impacto desse aumento nos preos; o fantasma da inflao; queda dos empregos na indstria; situao dos portos. Em 2014 (alm de ser um ano eleitoral), o Brasil ser sede da Copa de Mundo da FIFA. H incertezas quanto a percepo da massa da populao frente a esse evento e at 2014 isso provavelmente ficar latente. Os protestos que ocorreram em diversas cidades durante a Copa das Confederaes (que antecede o evento principal), denunciaram os altos gastos com estdios de futebol, em oposio a realidade dos servios pblicos. Para alm disso, pode-se afirmar que h uma percepo, ainda que inconsciente, que os reais beneficiados pelo fato do Brasil sediar uma Copa do Mundo, sero os grandes empresrios, comerciantes, as pessoas com renda mais alta que frequentam aeroportos, e que a grande massa da populao no ser de fato, beneficiada.
Assim, coloca-se a seguinte situao: Marina Silva precisa se tornar mais conhecida entre o subproletariado (ela conhecida entre os eleitores com renda familiar mais alta, e de certa forma aparece a esses como uma opo: na pesquisa IBOPE j mencionada, realizada entre os dias 11 e 14 de julho, 11% dos eleitores com renda superior a 10 salrios mnimos afirmaram que votariam nela com certeza, porm 46% afirmaram que poderiam votar. Em relao a pblico, Marina conhecida por todos) e Dilma Rousseff precisa novamente ganhar a confiana daqueles de baixssima renda, alm de melhorar seus ndices, ao menos, entre aqueles com renda familiar intermediria. Consideraes finais Durante o perodo das primeiras manifestaes, de acordo com as pesquisas eleitorais, noticiou-se que Dilma Rousseff
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A postura de Dilma Rousseff frente tantos acontecimentos presentes e futuros, as decises a serem tomadas, e to importante quanto esses aspectos a necessidade de alianas para sua candidatura, sero decisivos para uma possvel reeleio. A seguinte citao exemplifica a necessidade de conciliao: Uma constante na poltica nacional a conciliao. Para a defesa de seus interesses, os grupos dominantes entram sempre em acordo, evitam rupturas e se compem, de modo a se perpetuarem. (IGLESIAS, 1995. p. 206). Essa citao se refere ao Brasil do sculo XIX e incio do sculo XX, porm mostra-se extremamente atual. As medidas propostas por Dilma Rousseff precisam estar alinhadas com os interesses de sua base aliada. Apresentar propostas colocando a responsabilidade sobre o Congresso Nacional pode ser algo perigoso, apresentando efeito inverso do que o previsto.
Disponvel em http://www.estadao.com.br/noticias/ impresso,ninguem-sabe-hoje-quem-apoiara-dilmaem-2014-diz-rui-falcao,1052290,0.htm, Acesso em 15/07/2013. 8 Disponvel em http://www.estadao.com.br/noticias/ impresso,pmdb-cria-banda-de-popularidade-paradecidir-se-fica-com-dilma-,1053324,0.htm, Acesso em 15/07/2013.
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Disponvel em http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/ Documents/CNI_IBOPE_edicao%20especial_jul2013_ web.pdf, Acesso em 26/07/2013. Disponvel em http://revistaepoca.globo.com/tempo/ noticia/2013/06/andre-singer-energia-social-naovoltara-atras.html, Acesso em 15/07/2013. Disponvel em http://www.ibope.com.br/ pt-br/noticias/Documents/JOB_1036_ ELEI%C3%87%C3%95ES%202014%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas.pdf, Acesso em 19/07/2013. Disponvel em http://www.ibope.com.br/ pt-br/noticias/Documents/JOB_0356_ ELEI%C3%87%C3%95ES%202014%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas.pdf, Acesso em 19/07/2013. Disponvel em http://exame.abril.com.br/brasil/ politica/noticias/se-eleicoes-fossem-hoje-dilma-venceriano-primeiro-turno, Acesso em 19/07/2013.
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Notas:
1
Disponvel em http://www.ibope.com.br/ptbr/conhecimento/historicopesquisaeleitoral/ Documents/30_10_Tabelas.pdf. Acesso em: 26/06/2013 Disponvel em http://www.ibope.com.br/pt-br/ noticias/Documents/JOB_2726-3_BRASIL%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas%20(imprensa).pdf, Acesso em 26/06/2013. Disponvel em http://www.ibope.com.br/pt-br/ noticias/Documents/JOB_2726-6_CNI%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas%20(imprensa).pdf, Acesso em 26/06/2013. Disponvel em http://www2.planalto.gov.br/imprensa/ discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilmarousseff-durante-reuniao-com-governadores-e-prefeitosde-capitais. Acesso em 15/07/2013. Disponvel em http://www.estadao.com.br/noticias/ nacional,quem-pediu-plebiscito-falta-gestao-dizpetista,1049875,0.htm. Acesso em 15/07/2013.
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Referncias Bibliogrficas:
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Juliana F. Cecato Jos Maria Montiel Daniel Bartholomeu Jos Eduardo Martinelli
Resumo
Este estudo aborda a situao atual de atendimento aos idosos em municpios do Estado de So Paulo. O objetivo foi verificar o trabalho realizado nestas instituies, as principais dificuldades encontradas pelos profissionais que atuam na rea, e tambm verificar a demanda de atendimento. Com base nos dados e em estudos publicados sobre o assunto constata-se que muitas instituies no esto funcionando da maneira prevista pela tica da Lei de proteo ao idoso. indispensvel que as polticas pblicas sejam postas em prtica efetivamente atravs de mais fiscalizao. Outro fator relevante o fato de no ter sido encontrada nenhuma instituio pblica (gratuita) para atendimento de pessoas com quadros de comprometimento cognitivo grave, como por exemplo a Doena de Alzheimer. Este perfil de paciente recebe atendimento em clnicas particulares em algumas vagas que so cedidas sistema de sade. A temtica deste estudo visa alertar os profissionais da sade e o setor pblico, especialmente na rea de Assistncia e Proteo Social, para a situao de atendimento aos idosos em municpios do Estado Brasileiro.
Abstract
This study addresses the current status of elder care in the municipalities of So Paulo. The objective was to verify the work of these institutions, the main difficulties encountered by professionals working in the area, and also check the demand for treatment. Based on data and studies published on the subject notes that many institutions are not functioning as expected from the perspective of the elderly Protection Act. It is essential that public policies are implemented effectively through more supervision. Another relevant factor is the fact that there have been found no public institution (free) to care for people with severe cognitive impairment frameworks, such as Alzheimer's disease. This profile of patients receiving care in private clinics in some places that are transferred to the health system. The theme of this study is an alert to health professionals and the public sector, especially in the area of Social Assistance and Protection to the situation of elder care in municipalities of the Brazilian State.
Key words
Aging health, health services, Health care; Interdisciplinarity.
Palavras -Chave
Sade do idoso; Servios de sade; Assistncia sade; Interdisciplinaridade.
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Introduo A Gerontologia uma cincia que se propem esclarecer os aspectos do envelhecimento humano. Apesar de ser uma rea relativamente nova, conta com um interesse crescente de vrios profissionais da rea da sade, e vem oferecendo subsdios para o entendimento das questes da longevidade e do processo de envelhecimento atravs de interpretao cientfica dos fatos (NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). luz desta cincia procuramos analisar os aspectos relativos aos cuidados oferecidos a esta populao, buscando apoio em trabalhos cientficos e conhecendo como esto sendo aplicadas na prtica as aes de suporte aos idosos, tendo como objetivo contribuir para uma melhoria no funcionamento dos programas existentes e despertar interesse de outros profissionais da rea para esta realidade (NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). O panorama atual em relao ao comportamento do idoso na sociedade moderna, os autores acima descritos apontam que se vive num mundo voltado ao material, onde ser jovem e bonito um apelo constante em todos os meios de comunicao. Muitas vezes nos preocupase em atingir padres de beleza inatingveis, esquecendo-se da nossa verdadeira essncia e a qual nos orienta para a busca da felicidade. Estamos acostumados a nos preocupar somente com nossos interesses e com as pessoas que esto muito prximas, e esquecemos que fomos feitos para viver em sociedade (NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). Esta sociedade representada por um contexto mais amplo, que constituida por amigos, familiares e/ou pessoas na mesma linha de experincia de vida, e que se necessita desta sociedade para poder viver bem e ser felizes (FERREIRA et. al., 2009). A definio de SADE divulgada pela
Organizao Mundial de Sade (OMS) bem estar fsico, mental e social, sendo o social um fator primordial para a conquista do equilbrio fsico e mental (NERI, 2010). Atualmente nota-se um aumento nos casos de depresso e insatisfao, e esta infelicidade muitas vezes esta sendo resolvida com medicamentos, atravs da chamada Felicidade artificial (DWORKIN, 1995). O autor alerta para a crescente prescrio de antidepressivos e calmantes que esto sendo usados por um grande nmero de pessoas, e que vem atingindo um pblico cada vez mais jovem. O panorama dos idosos em nosso pas retrata esta triste realidade. A nossa sociedade levada a no valorizar o idoso como sendo a pessoa mais experiente e que tem muitos ensinamentos a passar (CAMARANO, 2002; CHAIMOWICZ, 1998; MOREIRA et. al., 2010). Alm disto, deve-se levar em considerao que o idoso dispe de mais tempo para se dedicar s novas geraes, passando sua histria de vida e seus conhecimentos, ajudando-os na sua formao (CHAIMOWICZ, 1998; RODRIGUES et. al., 2002). Nos pases orientais estes valores so preservados, depositando no idoso o respeito e a valorizao, conferindo-lhes o papel de zelar pela comunidade e o poder e direito de aconselhar os mais jovens. Sendo assim, constata-se que a expectativa de vida mais alta e os problemas de sade comuns aos idosos aparecem bem mais tarde (SANTOS, 2001). Atualmente as funes de aconselhar e lembrar no so valorizados, sendo negado ao idoso seu papel social e em conseqncia a velhice oprimida, sendo visvel a deficincia nas relaes interpessoais (CHAIMOWICZ, 1998; CAMARANO, 2002; MOREIRA et. al., 2010). A velhice um processo biolgico natural para todos os seres vivos, e no deve ser encarado como um fator incapacitante para o indivduo
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(NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). Tem-se que evitar relacionar esta fase da vida com as doenas, pois a maioria delas j so diagnosticveis e tratveis, no sendo um fator de impedimento para se ter uma boa qualidade de vida neste perodo da existncia (NERI, 2007). Nunca antes se teve tanta chance do homem chegar 3 idade com mais sade. Isto se deve a vrios fatores, como as melhorias em saneamento bsico, os avanos da medicina, remdios mais acessveis populao entre outros (CAMARANO, 2002; MOREIRA et. al., 2010). Entretanto, tambm se devem considerar as consequncias que este aumento vem acarretando para a sociedade e, especialmente para os prprios idosos. Por isto necessrio colocar, urgentemente, em prtica aes para uma real proteo da velhice (CAMARANO, 2002; MOREIRA et. al., 2010). bem verdade que a Poltica Nacional do Idoso e mais especificamente o Estatuto do Idoso, so instrumentos que pretendem garantir perante o Estado e a sociedade os direitos da pessoa idosa. Contudo sabemos que para conseguirmos efetivar esta poltica, ser necessria a unio do estado, o engajamento da sociedade, e dos profissionais da rea da sade, visto que somos todos corresponsveis neste processo (CHAIMOWICZ, 1998; Rodrigues et. al., 2002). Os meios e veculos de atendimento e proteo como mencionado acima sobre as leis de proteo ao idoso, atualmente tambm j foi ampliado o nmero de instituies de amparo a esta populao. O Decreto n 1.948, de 3 de julho de 1996, artigo 3, especifica as formas distintas de atendimento ao idoso (ESTATUTO DO IDOSO, 2007), tais como: modalidade asilar e modalidade no asilar. importante que o idoso permanea, ao mximo junto famlia, sendo, portanto, prioritrio o atendimento no asilar. Contudo, por fatores diversos como os demogrficos, sociais,
de sade, de informao, de apoio as famlias, so crescentes a demandas pela institucionalizao do idoso. E, quando a internao inevitvel, seja por falta de recurso da famlia ou por questes mdicas, nos deparamos com dificuldades em localizar uma instituio asilar que se adqe ao perfil das necessidades daquele idoso e as necessidades da famlia (CAMARANO et. al., 2010). Na Portaria 810 do Ministrio da Sade de 22 de setembro de l989, do Ministrio da Sade, esto descritas as normas para o funcionamento das clnicas e casas de repouso destinadas a atender os idosos, quanto a sua definio, organizao, rea fsica e recursos humanos. Mas, infelizmente muitas instituies esto inadequadas para este atendimento e falta fiscalizao para que os padres exigidos sejam seguidos (ESTATUTO DO IDOSO, 2007). Seguindo os apontamentos anteriormente descritos, este estudo teve como objetivo verificar e descrever de acordo com visitas realizadas em Instituies de acolhimento de idoso, quais as caractersticas e peculiaridades em relao aos cuidados com a sade do Idoso nestas instituies especialmente em relao a abordagem interdisciplinar para esta populao. Mtodos Para o cumprimento dos objetivos do estudo e a verificao desta situao de atendimento foram visitadas algumas Instituies no interior do Estado de So Paulo, especificamente a regio de Metropolitana de So Paulo. Nestas visitas, buscava-se conhecer o funcionamento dos servios de atendimento e habilitao para as atividades de zelo e cuidados com idosos em situao de internao. As instituies no sero identificadas prezando os preceitos ticos, bem como pelo respeito s atividades que so desenvolvidas em cada uma delas, desta maneira, sero descritas meramente
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como Instituio 1, Instituio 2, Instituio 3 e assim respectivamente. Resultados Instituio n 1 A Instituio atende idosos de ambos os sexos, contando atualmente com 40 internos. A maioria com morbidades relativas ao processo de envelhecimento, e poucos casos de doenas neurolgicas degenerativas. O atendimento feito em regime integral (atendimento 24 horas), ou seja, todos os idosos residem no local. O local contam com uma equipe multidisciplinar composta por 01 mdico geriatra, 01 psiclogo, 01 fisioterapeuta, 01 assistente social, 01 terapeuta ocupacional, 01 enfermeiro, e 01 nutricionista. Alm de alguns cuidadores de idosos que esto em formao especfica para esta funo e os profissionais dos servios gerais. A instituio particular, porm recebe ajuda da Prefeitura a ttulo de subveno, e complementa sua receita atravs de ajuda da comunidade. Alguns dos internos que possuem renda contribuem com parte da aposentadoria, e as famlias que tm melhores condies ajudam financeiramente. A Instituio enfrenta as dificuldades comuns maioria, tendo um oramento restrito. Entretanto, pareceu funcionar normalmente, ofertando um atendimento de qualidade, o local era muito organizado e em timas condies de abrigo s pessoas que l residem. Em anlise, constata-se que deveriam ter mais profissionais para atendimento dos internos, pois embora exista a equipe multidisciplinar os mesmos permanecem poucas horas do dia na instituio. Inevitavelmente, os prestadores de servios executam apenas as suas funes, e no h nenhuma dedicao adicional para um contato mais afetivo a fim de criar um clima ou ambiente
de convvio menos frio, tentando se aproximar, minimamente do que chamamos de um LAR, j que l onde residem. Excetuando-se os cuidados mdicos, fisioteraputicos e assistenciais j programados, a rotina se assemelha a de uma casa (no um Lar, como dissemos), porm sem uma programao motivacional. No se desenvolvem expectativas nos idosos para uma atividade em que eles prprios descubram ou se sintam complementados por realizar atos que os faam sentir de alguma forma mais produtivos e realmente saudveis. A infraestrutura do local no contempla introduzir quaisquer atividades, que trariam grandes benefcios para a sade fsica, como, por exemplo, a hidroterapia. E tambm no oferece atividades como artesanato, leitura (individual ou para grupos), jogos de estimulao cerebral (domin ou palavras cruzadas), que permitissem algum senso de competitividade, ou demonstrao de habilidades individuais, como sendo elementos de motivao ou de admirao entre os integrantes do sistema. As atividades se fixam s rotinas limitantes como assistir televiso ou deslocamentos livres nas reas externas. Uma rotina de preenchimento de carga-horria ressalta a falta de criatividade ou de maior interesse, visando exclusivamente o oramento financeiro. Se for considerada a qualidade dos materiais e acessrios, o zelo na alimentao, o fiel cumprimento da administrao de medicamentos, e aspectos importantes como limpeza e higiene, com certeza esta instituio se encontra frente da maioria dos ambientes existentes para esta finalidade. Mas, a falta de dedicao de profissionais na busca de solues e progresso nas atividades dos idosos, que desenvolvem um quadro de estagnao e baixa produtividade (no que concerne ao contnuo e possvel desenvolvimento fsico e intelectual).
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Instituio n 2 Outra modalidade assistencial, denominada como sendo escola para idoso. Este um termo que deprecia o idoso, pois depois de viver toda uma vida, criar uma famlia e contribuir para a sociedade trazendo toda suas experincias e valores, ser remetido ao status de criana certamente um desrespeito e no favorece em nada sua autoestima. Este tipo de instituio o que poderamos chamar de ideal para o atendimento a populao idosa que tem sua capacidade fsica e mental preservada, pois proporciona atividades de lazer, alimentao para preencher seu dia a dia evitando que tenham que ficar em casa, muitas vezes, sozinhos. Nestas instituies, percebemos que o ambiente mais alegre, com muitas atividades de lazer, como msica, artesanato, grupos de conversa, etc. Tambm contam com aulas de ginstica, acompanhada por um professor de educao fsica, sendo sempre respeitado o limite de cada um. Como salientado anteriormente, esta modalidade de atendimento tem vrias vantagens para o idoso, pois no tira o convvio com a famlia. Outro lado importante a ser ressaltado, o social e econmico, pois este idoso possivelmente se manter independente por muito mais tempo e com certeza com sade melhor, evitando gastos mdicos e internaes, sendo um fator de economia para o Estado, e de amparo efetivo a sade mental. Instituio n 3 Outra Instituio denominada neste estudo como de Referncia para Idosos pois custeada por uma Prefeitura, oferece atendimento nas reas da sade, atividades fsicas, lazer, orientao jurdica, entre outras. Esta unidade visitada ocupa uma rea de quase 1.000 m2, com vrias salas destinadas s diversas atividades.
A nica exigncia para cadastramento ter 60 anos completos. Atualmente contam com 2.200 idosos cadastrados. Como recorrente, a equipe multidisciplinar no est completa, e por fatores burocrticos e administrativos no h previso de contratao dos profissionais necessrios. Outro aspecto visvel que alguns profissionais no tm preparo especfico para este atendimento. Esta modalidade um exemplo de trabalho social muito interessante para a populao idosa, pois tambm preserva o convvio com a famlia. Instituio n 4 Os Centros de atendimento a 3 Idade oferecem atividades sociais, de lazer e fsicas entre outras. Existem na maioria dos municpios e so destinados aos idosos que preservam sua capacidade fsica e funcional. So muito procurados pelos idosos, e tem capacidade de atender um grande nmero de pessoas em vrias atividades diferentes ao mesmo tempo. Este programa tambm custeado pelas prefeituras e conta com uma equipe multidisciplinar. Em algumas unidades oferecem natao ou hidroginstica. O fator que percebemos relevante a falta de pessoal para atendimento em tempo integral, uma vez que os profissionais prestam algumas horas de trabalho e no todos os dias. Instituio n 5 As Faculdades para a terceira idade oferecem tambm vrios cursos para idosos interessados em continuar exercitando sua capacidade intelectual, e tambm favorecem o entrosamento social. Os cursos so subsidiados e oferecidos por um pequeno custo. Os objetivos do programa so: Proporcionar s pessoas da 3 idade a possibilidade de acesso a novos conhecimentos, estimulando-os a participarem de atividades educativas e recreativas; Auxiliar
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no processo de reinsero social dos seus alunos, qua atravs dos conhecimentos adquiridos e das atividades desenvolvidas podero atuar na sua comunidade, com maior eficincia; - Conscientizar os alunos de seus direitos e deveres, estimulandoos a exercer plenamente sua cidadania. Para os que conseguem se engajar nestas atividades, o ganho em estimulo social, intelectual e autoestima valorizada contribuem muito para uma vida mais longa e mais plena. Instituio n 6 As Clinicas de Geriatria para atendimento de idosos com comprometimento cognitivo so, geralmente, de carter particular. Entretanto, algumas reservam poucos leitos para atendimento de pacientes encaminhados pelas Prefeituras. Uma especifica, conta com equipe de mdicos, enfermeiras e auxiliares. O foco atendimento sade, pois a maioria dos pacientes tem doenas degenerativas, como Alzheimer, Parkinson, Depresso e outras. O atendimento de muito zelo aos idosos, tendo cuidados especiais na administrao da medicao a cada paciente. Nesta instituio tambm no existe equipe multidisciplinar completa que possa realizar atividades de lazer e estimulo intelectual para aqueles internos que poderiam se beneficiar com os mesmos. Consideraes finais Seguindo os objetivos deste estudo que foi caracterizar e analisar a estruturas de Instituio de cuidados ao idoso, podese obervar conforme descrito acima, diversas peculiaridades de tais Instituies, sendo muitas relacionadas a estruturas fsicas, estruturais, entre outros aspectos. Porm o que realmente teve-se como objetivo que foi avaliar as condies de cuidados gerais e especficos de tais Instituies
para esta populao, pode-se observar que estas no apresentam condies de proporcionarem cuidados especficos diante da demanda para a populao idosa, especialmente no que se refere a equipes multidisciplinares, ou seja, as Instituies no apresentam um corpo de profissionais tcnico e especializados neste tipo de atendimento, o que pode estar ocasionando comprometimento no desenvolvimento e manuteno dos internos. Varias pesquisas esto sendo realizadas no sentido de determinar quais os fatores que favorecem o envelhecimento saudvel ou aparecimento de doenas durante este processo. Com isto, pode se perceber que manter os idosos ativos, dentro do contexto social e familiar, a melhor maneira de conseguir uma longevidade plena e saudvel (NERI, 2007; Neri, 2010; RIBEIRO et. al., 2007). Verifica-se que o mais comum as pessoas procurarem o mdico quando j esto doentes, por isso o tratamento torna-se mais difcil. A previso de agravamento do quadro atual a partir de 2025, quando haver aumento sensvel da populao idosa no Brasil e no mundo. Por essa razo, defende-se a criao de polticas estratgicas de sade para melhorar a qualidade de vida dessa faixa da populao (WONG et. al., 2006). Os servios de sade, da forma como esto estruturados, no esto preparados para atender sequer a demanda atual. necessrio tambm melhorar a qualificao mdica, alm de promover um processo de entrosamento entre as diversas especialidades com vista a melhorar a sade do idoso. Isto s confirma a realidade encontrada nas instituies analisadas neste estudo, que a despeito de serem necessrias e na maioria das vezes realizarem o melhor trabalho dentro das suas limitaes esto longe de atender a real necessidade desta populao. Um estudo que descreve a idade com a qual a pessoa se
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identifica, afeta seu desenvolvimento cognitivo, e consequentemente a memria. Os resultados apontam que as pessoas que se sentem mais velhas do que realmente so, tem maior disposio a serem pessimistas (RAMOS, 2002). A ideia da identidade vem da psicologia, que a define como conjunto de significados que as pessoas tm delas mesmas, e definem o que significa ser quem elas so. Para dar suporte ao estudo, os pesquisadores abordaram diversas outras pesquisas recentes que apontam os benefcios de sentirem-se jovens. So efeitos qualitativos como facilidade de lidar com doenas e uma satisfao geral da vida, assim como vantagens mais concretas, como reduo do risco de deficincia, hipertenso e mortalidade descreve. De acordo com a pesquisa, disposies negativas sobre habilidades mentais, de fato comprometem a performance da memria, particularmente nos idosos (POLLAK, 1992). Desta maneira, cabe aos profissionais da sade e ao governo em particular, por em prtica programas de preveno e orientao para poder minimizar as consequncias negativas de um crescimento rpido da populao idosa. imprescindvel investir em programas de suporte aos idosos, criar mais cursos para cuidadores de idosos, desenvolver servios de orientao e atividades culturais. Atividades preventivas e de reabilitao realizadas nas unidades de sade so imprescindveis para manter ou para resgatar a autonomia de idosos e podero ter grande impacto na sade dessa populao.
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Discusses no Conselho: da cultura de Estado cultura de Mercado Um estudo sobre a ao do Conselho Federal de Cultura (1974 - 1990)
Renata Duarte
Resumo
O presente artigo visa analisar a atuao poltica do Conselho Federal de Cultura - um rgo criado no perodo da Ditadura civil-militar brasileira que existiu at 1990, atravessando um importante perodo da Histria do Brasil, possibilitando desta forma diversos questionamentos a respeito da concepo de Cultura. O artigo ter seu enfoque no perodo compreendido entre 1974 e 1990, com maior nfase na dcada de oitenta.
Palavras -Chave
Conselho Federal de Cultura; Lei Sarney; Polticas Culturais.
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Criado em 1966 no mbito da ditadura militar, o Conselho Federal de Cultura tinha por misso atender a uma demanda do regime recminstaurado: Formular uma poltica cultural para o pas. Esse empenho governamental tinha por objetivo suprir um campo que sofrera deveras com a limpeza ideolgica promovida pelo novo Regime, que extinguiu a Comisso de Cultura Popular, o Programa Nacional de Alfabetizao, o Conselho Consultivo do Servio de Teatro Nacional, entre outros. Uma vez calados os focos difusores de cultura subversiva, se fazia mister propor uma outra poltica cultural, que estivesse alinhada com a nova ideologia vigente. Tal preocupao pode ser vista j em 1965, quando - por meio de portaria ministerial1 - composta uma comisso com a finalidade de formular uma poltica cultural. O presidente desta comisso: Josu Montello, idealizador do CFC e seu primeiro presidente. O Conselho Federal de Cultura nasce requisitando para suas cadeiras personalidades eminentes da cultura brasileira e de reconhecida idoneidade.2 Esses intelectuais eram nomeados pelo prprio Presidente da Repblica para os cargos de conselheiros e vinham de outras instituies culturais, sobretudo as tradicionais, como o Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras. A admisso ao grupo era pautada pelo requisito formal do reconhecimento, o que tornava a avaliao baseada no mrito, na eminncia, logo na subjetividade. Dessa forma, os mais aptos para julgar o mrito de um intelectual so seus prprios pares, que possuem a expertise necessria avaliao. Essa lgica, j presente na ABL e no IGHB, foi incorporada prtica do Conselho Federal de Cultura que, apesar de formalmente ser escolhido e nomeado pelo Presidente da Repblica, possua o poder de
indicar aqueles considerados aptos a assumirem o cargo. Durante seu perodo de maior atuao (1967-1974) e consequentemente, de maior hermeticidade, apenas o nome de Raquel de Queiroz surge como sugesto do Presidente Castelo Branco, de quem era muito amiga. O CFC funcionava como um grupo restrito, no qual seus integrantes pertencentes a uma elite intelectual que atuava em diversas instituies, obtinham - com a titulao de Conselheiro - uma espcie de legitimao do seu poder simblico no campo erudito da alta cultura, uma vez que seu assessoramento era direto ao Ministro da Educao e Cultura. A coeso do grupo era mantida primeiramente pela prpria forma de seleo. Alm dos atributos formais j descritos, Maria Quintela, em seu estudo sobre as elites culturais brasileiras (QUINTELA, 1984), atentar para o que ela nomeia de quadro ideolgico consensual, que funcionaria como um requisito implcito para a convocao. Essa prtica, institucionalizada na ABL e no IHGB, ir ser transplantada para o Conselho e ser reforada pela prpria essncia do Regime.
O inventrio dos espaos de sociabilidade frequentados pelos intelectuais que integraram o CFC indica a proximidade dessas personagens com os movimentos intelectuais surgidos a partir da dcada de 1920, especialmente o modernismo nas suas diferentes fases, o regionalismo, a reao catlica e o integralismo. (MAIA, 2012, p.133)
O movimento modernista surgido na dcada de 20 no foi unssono, ao contrrio, teve diversas formas de expresso. Se avaliarmos a trajetria dos componentes do CFC, veremos uma forte ligao com o Movimento Verde e Amarelo e o Grupo Anta3. Preocupados em definir os
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contornos da brasilidade, esses grupos acabaram divulgando ideias ufanistas, que buscavam em elementos considerados representantes da essncia nacional a representao da brasilidade4. Muitos desses intelectuais foram cooptados para dentro do aparelho estatal, principalmente durante o perodo do Estado Novo. Sua preocupao em definir o ethos nacional foi apropriada durante o perodo e culminou em dois pontos principais: a forte ligao entre cultura nacional e consolidao do Estado e a legitimao do intelectual como homem de pensamento e ao5. Uma vez que essa cultura do intelectual - para alm de um produtor de cultura - como um homem de atuao poltica consolidada no interior do Estado, inmeros personagens passam a fazer parte dessa organicidade. Suas prticas polticas os levam a manter-se na presidncia de instituies, na reitoria de universidades, em mandados no legislativo, em cargos polticos no interior de ministrios, em suma, no interior da mquina estatal. Instaurado o Regime Ditatorial iniciado com o Golpe de 1964, esses intelectuais j reconhecidos no interior da sociedade, os chamados intelectuais tradicionais na perspectiva gramsciana, so recrutados para elaborar a poltica cultural brasileira. Esse recrutamento buscou os elementos tradicionais e conservadores desses indivduos. Sua funo, mais do que produzir uma diretriz cultural, era legitimar a existncia do prprio regime, uma vez que sua presena tradicional indicava continuidade, e no ruptura. O Estado concretizaria dessa maneira uma associao com as origens do pensamento sobre cultura brasileira (ORTIZ, 2012). Os principais iderios que norteavam
as aes do CFC eram o civismo e a tradio. Os esforos para a criao de um sentimento cvico no Brasil datam do final do sculo XIX. Com a instaurao da Repblica (1889) era necessrio criar a Histria da Ptria, mais que isso, era necessrio gestar uma cultura nacional que funcionasse como um amlgama da nao. O Estado Novo, notadamente, teve um importante papel nesse processo de construo do sentimento de pertencimento. Com o Golpe Militar de 64, esse ideal retomado para compor as bases de sustentao do regime. Para poder analisar a importncia do civismo no interior de uma sociedade autoritria importante contrap-lo ao conceito de cidadania. O iderio cvico na ditadura civil-militar foi gestado dentro dos padres estabelecidos pelo fenmeno da cidadania; contudo, radicalizado pelo pensamento conservador e nacionalista, sobreps-se ao fenmeno originrio (MAIA, 2012). Na lgica adotada como sustentculo do regime, os deveres cvicos do cidado eram postos antes de seus direitos, e o Estado, para cumprir o seu dever maior de defesa da ptria, estava autorizado a retirar do cidado esses direitos. Os direitos dos cidados civis, polticos ou socais poderiam ser restritos em nome do bem maior, uma vez que um ideal de preservao da coletividade se sobrepunha ao direito do indivduo. O CFC incorporou o conceito de civismo aos seus discursos, associando-o a noo de cultura, que teria por finalidade realar os elementos que compe a nao, fortalecendo o sentimento de pertencimento a uma coletividade. A viso conservadora e otimista trazida pelos integrantes do Conselho em relao cultura brasileira tornava-se assim um dos pilares de legitimao do regime. Em termos concretos isso
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se caracterizou no interior do CFC pela produo de obras dedicadas ao tema, pela comemorao de efemeridades, pela preservao de monumentos, pela defesa e valorizao de manifestaes folclricas, ou pelo reconhecimento dos feitos dos grandes homens que compuseram a nao. O Estado era compreendido como um defensor dessa cultura nacional. Sua funo consistia em proteg-la das influncias aliengenas6 que concorriam para descaracteriz-la. Sob tal viso o intervencionismo era visto como uma ao defensiva e no como uma atuao poltica, e suas aes ganhavam a aparncia de neutralidade. Vale frisar que os debates ocorridos em torno da censura nunca foram consensuais entre os conselheiros, e que a posio destes sempre convergia em torno de um pedido por maior liberdade de criao artstica, e por uma censura efetivada no interior do MEC. Porm o papel do Estado como defensor da verdadeira cultura brasileira frente cultura sovitica, por exemplo - entendida pelos conselheiros como cultura para todos em contraposio a cultura democrtica nomeada de cultura para cada um era sempre referendado pelo Conselho7. Dentro desta perspectiva, o aspecto preservacionistapatrimonialista era de suma importncia, uma vez que a conservao desses lugares de memria era vital para a perpetuao da verdadeira cultura brasileira. O perodo de maior atuao do CFC compreende os anos de 1967 a 1974, perodo no qual desempenha um importante papel que envolvia desde a distribuio de verbas para instituies culturais, firmamento e fiscalizao de convnios, definio das reas de atuao do Estado, organizao de campanhas para promover a cultura nacional at financiamento para publicao de diversas obras, e ainda sob sua orientao foram implantados vinte Conselhos
Estaduais de Cultura em apenas trs anos. Esses Conselhos Estaduais eram similares ao Conselho Federal, e sua instruo era para que todas as aes de cultura locais estaduais e municipais - passassem por seus respectivos Conselhos, e que esses, em conexo com seu representante na esfera federal, estabelecessem a integrao da nao, sempre orientados por essa instncia superior. Em termos gerais, o CFC consolidou o incio de uma rotina burocrtica para a Cultura no interior do Estado civil-militar. Por mais que os Conselhos Estaduais e Municipais carecessem, em sua esmagadora maioria, de recursos para efetivar o funcionamento pleno de suas atividades, inegvel a importncia da implementao dessa organicidade. Conscientes desse importante papel, os Conselheiros relembraram que o CFC foi o germe do posterior Ministrio da Cultura. Aps 1975, os limites da insero de um pensamento tradicional no interior de um Estado tecnicista-progressista comearam a se revelar com cada vez mais intensidade. Esse marco temporal dialoga com a periodizao proposta por Gabriel Cohen (COHEN, 1984), e adotada tambm por Renato Ortiz (ORTIZ, 2012), entre outros pesquisadores do campo da cultura. Em sua anlise ele pode identificar dois movimentos distintos na posio do Estado em relao cultura: o primeiro compreende os anos de 1966 at 1974, marcados pela entrada do Estado na cena cultural; o segundo partindo de 1975, quando se pode observar a centralizao das polticas pela cpula do executivo, esvaziando grupos no interior do MEC (Ministrio da Educao e Cultura) entre eles, o Conselho, que comea a perder suas funes executivas para rgos como a DAC - Diretoria de Ao Cultural, a Funarte - Fundao Nacional de Arte e a Fundao PrMemria.
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O ano de 1974 significou uma mudana na concepo de Cultura, posta em ao pelo novo Ministro da Educao e Cultura, Ney Braga. Neste ano o Conselho sofreu o primeiro impacto resultante de sua perda de poder de ao. No seu decreto de criao, entre suas atribuies, estava a elaborao de um Plano Nacional de Cultura. Apenas seis meses aps sua criao o CFC apresentou seu primeiro anteprojeto de estruturao do plano. Basicamente consistia na instituio de uma rede de auxlios s instituies clssicas ligadas ao setor cultural, a saber, Biblioteca Nacional, Museu Histrico-Nacional, Museu de Belas Artes, Instituto Nacional do Livro, Instituto Nacional do Cinema, Servio Nacional de Teatro, Servio de Radiodifuso, Diretoria do Patrimnio Artstico Nacional, e as demais instituies subordinadas ao MEC. O foco do Plano era a formao de uma infraestrutura nas instituies culturais e, com isso, a preservao do patrimnio. As instituies deveriam apresentar um plano quadrianual para estarem aptas a receber os recursos, que por sua vez eram distribudos pelo CFC. Apesar dos discursos de valorizao da cultura regional, as instituies nacionais quem seriam mais bem assistidas, pois as mesmas deveriam servir de modelo para as instituies estaduais e municipais, demonstrando um trao centralizador do plano8. As dificuldades de aprovar o Plano junto ao governo levaram o Conselho a modificar mais duas, ou trs vezes o projeto - como nos relata Isaura Botelho em seu livro-depoimento (BOTELHO, 2001) - mesmo assim sem sucesso. Em seu lugar, fora aprovada a Poltica Nacional de Cultura, elaborada por uma comisso tcnica ligada a DAC. O carter do PNC aprovado9 demonstrava a mudana de orientao que a cultura estava passando. A posio desses intelectuais tradicionais
em relao ao desenvolvimento efetivado pelo Milagre Brasileiro era sempre indicadora de tenso. Seu posicionamento nas plenrias era revelador de uma concepo que opunha, sempre de maneira subjetiva, a tcnica e a cultura. Para exemplificar esse pensamento, Renato Ortiz, realiza uma analise desses conceitos na obra de Gilberto Freyre. Segundo o autor:
(...) uma dimenso do universo do pensamento tradicional, que associa intimamente o conceito [cultura] a valores como tradio, religio e humanismo. A polaridade cultura/ tcnica no de natureza conceitual, mas ideolgica, e tende a vincular o ltimo termo a todo um mundo de valores que corresponde ao progresso tcnico material e economia (ORTIZ, 2012, p.102).
No interior do discurso do conselho essa tenso aparecer representada no conceito de humanismo. A noo de humanismo trabalhada abarcando toda uma concepo tradicional de cultura brasileira. Segundo os Conselheiros, a verdadeira essncia, o estrato cultural natural do brasileiro, seria a vocao para o Humanismo, que nos dias atuais, por desorientao da sociedade, estava sendo substitudo por uma noo tecnicista e economicista, corrompendo a intelectualidade da nao. Em contraposio, o intelectual humanista, era o intelectual tradicional, com uma formao bacharelesca, complementada com o refinamento da cultura erudita. Um dos conselheiros em sua anlise sobre a mudana na caracterstica dos intelectuais modernos, utilizou a expresso asfixia do humanismo, causada por um movimento que, posterior Revoluo de 1930, teria supervalorizado essa nova concepo de pensamento: a tecnocracia. Esse novo intelectual tecnicista, que segundo o CFC,
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seria carente de cultura geral e conscincia do progresso, era o resultado de um processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, que durante os anos do Milagre Brasileiro alcanava um pico. No que consistia a cultura a crtica era a mesma, o popular era representante da verdadeira brasilidade, enquanto que a cultura de massa era associada tcnica, a quantidade e a consequente falta de qualidade. A nova dinmica capitalistainternacionalista que estava sendo rapidamente incorporada ao cotidiano do brasileiro impunha novas demandas ao Estado. O crescimento econmico forou uma mudana de vida drstica para a populao. A onda de migrao gerou um rpido processo de urbanizao, que consequentemente criou novos espaos possveis de fruio cultural; surgia uma incipiente classe mdia, mas tambm aumentavam as desigualdades sociais. A lgica do capital trouxe consigo um mercado consumidor de bens materiais, que demandava toda uma elaborao de bens simblicos para legitim-lo. Para tal so criadas nessa poca a Telebrs, a Embrafilme, a Funarte, a Radiobrs, a insero da TV em cores, os grandes conglomerados de mass mdia, como a Globo e o Grupo Abril, entre outros, que eram incentivados por um Governo que se valia do amplo alcance miditico que os conglomerados passavam a ter para divulgar as ideias chave do Regime, como o Brasil Grande e O pas do futuro. Pouco a pouco, a lgica do mercado era incorporada a cultura nacional. Em resposta a essas demandas, e se contrapondo ao projeto tradicionalista do CFC, o DAC, e os novos rgos de cultura da estrutura do MEC, comeam a tomar como diretriz a distribuio de bens culturais e o incentivo ao seu consumo. A vertente preservacionista no desaparece, mas deixa de se configurar como
prioritria. O discurso oficial, de incentivo ao consumo de bens culturais, ganha uma significao que merece ateno. Se buscarmos a introduo do Ministro Ney Braga, intitulada Cultura para o Povo, publicada em 1976 na primeira Revista Cultura editada pelo MEC, e no mais pelo CFC, veremos o seguinte discurso:
O Ministrio rejeita a tese de que a atividade criadora e a funo de seus benefcios privilgio das elites. Essa concepo corresponde a regimes sociais estratificados, aristocrticos ou oligrquicos. (REVISTA CULTURA, n20, 1976)
O discurso proferido pelo prprio Ministro da Educao e Cultura demonstra um importante processo que estava em curso: Ao contrapor o acesso aos bens culturais a um iderio de sociedade oligrquica, a resultante que se tem a associao entre fruio cultural e democracia. Um governo que propicia a sua populao o acesso cultura um governo que promove a democracia, em contraste com a desigualdade de uma sociedade estamental. A cultura popular passa a aparecer nos documentos estatais como a real cultura brasileira, compartilhada pela massa, em oposio cultura elitista, aristocrtica, de acesso restrito apenas a alguns, que no poderia representar o povo brasileiro. Os desdobramentos dessa leitura so expostos por Ortiz:
O mercado, enquanto espao social onde se realizam as trocas e o consumo, tornase o local por excelncia, no qual se exerceriam as aspiraes democrticas. (ORTIZ, 2012, p.116)
Era o princpio de um processo de realocao do espao destinado a realizao da cidadania. Retido seu campo poltico de atuao, a cidadania comea a ser percebida no campo
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do mercado, ligada ao consumo. Desta maneira, o Estado brasileiro atendia a duas importantes demandas: explorava a potencialidade do mercado consumidor de bens culturais, e sustentava uma ideologia que identificava a sociedade brasileira como cada vez mais democratizada. A abertura no regime trazia consigo um vasto investimento no campo cultural. O Regime Militar compreendeu dois fenmenos que a priori poderiam parecer contraditrios: Foi a poca em que mais se produziu e se difundiu cultura, ao mesmo tempo foi o perodo de maior perseguio poltica e controle ideolgico. A censura no bloqueava toda a forma de expresso cultural; ela apenas impedia a divulgao de um tipo de cultura, a cultura politizante, cujo objetivo pedaggico visava conscientizar politicamente as massas. Em meio a esta conjuntura, o CFC foi esvaziado de seu poder poltico, se tornando um rgo pouco expressivo, com baixas dotaes oramentrias, mas que continuava a existir no organograma do MEC. Essa situao se manteve praticamente imutvel, mas um acontecimento trazia consigo novos ares: A redemocratizao. Celso Furtado, que assumia em 1986 j como terceiro Ministro de uma pasta criada h apenas um ano, a da Cultura, faz uma leitura da situao que merece citao:
Vivemos um momento histrico muito particular. No necessita ser nenhuma guia, como se diz, nenhum pensador extraordinrio, para sentir que vivemos uma fase muito especial de nosso pas, de nossa Histria em geral. Como a cultura , de alguma maneira, o segmento mais sensvel da vida social, a a coisa se apresenta com maior fora: este momento de tenso em que vivemos. Pode-se chamar de transio, de crise ou de tudo o que se queira; mas, na verdade, no se pode negar que estamos atravessando uma fase muito
particular de nossa Histria, como se o pas estivesse mudando alguma coisa; mudando no digo de fisionomia ou de face, mas em alguns de seus elementos. A Histria, evidentemente, no obedece a leis que o homem haja descoberto ou inventado. Ela sempre nos surpreender. Sempre ser alguma coisa que, num momento, vir para nos enriquecer, ainda que seja para nos esmagar.10
A fala do ento ministro da cultura Celso Furtado no poderia ser mais precisa. Nos anos que compreenderam o processo de redemocratizao do pas, a sensao era de transformao. A sociedade clamava por reformas e temia retrocessos. Uma vez livre do julgo autoritrio, era chegada a hora de se repensar o Brasil. E repensar o pas inclua repensar principalmente suas instituies governamentais. Estava aberto um perodo de disputas e resignificaes de poderes. No campo da cultura a principal mudana consistia na separao, em dois ministrios, das pastas da Cultura e da Educao. O projeto de criao do novo Ministrio pertencia a Tancredo Neves, o primeiro presidente da Nova Repblica que surgia aps vinte anos de ditadura civil-militar, eleito por voto indireto atravs do Congresso Nacional. Porm, quem levou a frente a iniciativa foi o Vice-Presidente, Jos Sarney. Tancredo Neves fora internado um dia antes de sua posse, vindo a falecer cerca de um ms depois. A proposta de criao de um novo Ministrio gerava controvrsias. Pessoas ligadas aos rgos de Cultura temiam que se estivesse trocado uma Secretaria forte por um Ministrio fraco, no apenas do ponto de vista oramentrio, como tambm poltico. Na sociedade civil, alguns setores lanavam crticas, nem sempre bem fundamentadas, a respeito da necessidade de se criar um Ministrio da Cultura
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em um pas subdesenvolvido como o Brasil. No desprezando tambm o receio que existia de que o Ministrio adotasse uma postura intervencionista para a Cultura. Em 1986, apenas um ano aps a criao do Ministrio, um importante marco para a cultura ocorreu: aps sua aprovao no congresso, a Lei 7.505/86, que ficou conhecida como Lei Sarney, fora anunciada. Defendendo a lei originria do projeto que havia auxiliado reformular, estava o Ministro Celso Furtado. A concepo de funcionamento da lei era simples: qualquer cidado poderia abrir mo de parte do valor devido ao governo em seu imposto de renda, para incentivar uma atividade cultural. Um exemplo do funcionamento do mecanismo dado pelo prprio Ministro em um programa de TV da poca:
Bem, para participar da Lei Sarney necessrio que a pessoa seja contribuinte do imposto de renda. Digamos que esse seu quitandeiro seja contribuinte do imposto de renda. Ele precisa, portanto, ser educado nessa direo, necessrio que ele compreenda que uma iniciativa cultural que diz respeito a sua prpria vida tambm passa a depender dele. Se ele est numa cidade pequena, por exemplo, e necessita de um espao cultural que no existe - de uma biblioteca, de um setor, um lugar onde, por exemplo, se possa ter cinema amador, apoiar grupos de teatro local, qualquer atividade cultural -, ele pode tomar a iniciativa e se reunir com um grupo de pessoas e contribuir com seus prprios recursos para a efetivao desse projeto. () Ns queremos que na cidade onde est esse quitandeiro, as pessoas que fazem teatro, as que se interessam por cinema amador, as que se interessam por qualquer forma de vida cultural, que essas pessoas se organizem, apresentem seus projetos e faam uma campanha dentro de sua prpria
comunidade - como se diz, passem um pires - e digam: Olha, voc que vive aqui, no quer melhorar as condies de vida dessa comunidade? Pois nos organizemos11.
A fala do Ministro deixa implcita parte da ideologia contida na iniciativa. Em seu discurso no so as empresas as convocadas para utilizar a Lei, mas os grupos locais, os que residem na comunidade. Ao disponibilizar o incentivo fiscal como forma de financiar as atividades culturais elegidas pelas associaes comunitrias, se transfere a essas associaes, o poder de escolha desta seleo. Ao conclamar a sociedade a se organizar para acessar a Lei, Celso Furtado realiza um discurso de empoderamento:
E a Lei Sarney veio para, no propriamente para canalizar recursos para a cultura, mas para incitar a sociedade a assumir a iniciativa no plano da cultura. Porque a tendncia deste pas tudo esperar do governo, inclusive na cultura, e a Lei Sarney, diz o seguinte: Vocs, instituies culturais da sociedade civil, grupos, etc., tomem a iniciativa, busquem recursos, controlem os recursos. E o Estado est a para apoiar essas iniciativas, mas no para substituir a sociedade. (RODA VIVA, TV CULTURA)
O posicionamento adotado por Furtado estava em consonncia com diversos apontamentos internacionais relacionados cultura, como as questes colocadas na Conferncia Mundial de Polticas Culturais que ocorrera quatro anos antes de sua posse no Mxico, e cujo documento final no apenas entendia cultura em seu sentido amplo, como sendo o conjunto dos traos distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade e um grupo social, como tambm, no que concerne democracia
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cultural, no pode ser privilgio das elites nem quanto produo, nem quanto aos benefcios. Pois democracia cultural supe a mais ampla participao dos indivduos e da sociedade no processo de criao dos bens culturais, na tomada de decises que concernem vida cultural na sua difuso e fruio (DECLARAO DO MXICO)12. Observando estas mudanas sociais em curso, estava o Conselho Federal de Cultura. Conscientes do processo de realocao de foras que estava ocorrendo no perodo de redemocratizao, os Conselheiros alertavam uns aos outros sob a possibilidade de ganho de poder poltico, uma vez que o CFC depois de relegado a esfera apenas normativa, havia sido esvaziado de seu poder de ao. As dotaes oramentrias destinadas ao Conselho eram sempre motivo de reclamaes em plenrias, e at suas publicaes peridicas, ou passaram para controle do Ministrio, como no caso da Revista Cultura, ou tiveram vrias vezes sua publicao interrompida como no caso do Boletim do Conselho Federal de Cultura - consistia no espelho fiel de suas plenrias, para conhecimento do pblico13 - que chegou a ficar trs anos sem publicar um nico nmero e que ainda hoje possui nmeros inditos guardados em arquivo.
(...) gostaria de lembrar que, muito em breve, haver uma nova administrao no Pas. De toda parte, est havendo sugestes para modificao de rgos pblicos. (...) Creio que seria oportuno que o Conselho, nesse momento, se repensasse um pouco. (BOLETIM DO CONSELHO FEDERAL DE CULTURA, N 58-59, 1985)
tomadas. O projeto de Lei n 7.793 era de suma importncia para o cenrio cultural brasileiro, e sua passagem pelo Congresso Nacional mobilizou os Conselheiros, que se utilizou de seu prestgio nos meios polticos para propor uma emenda ao PL 7.793, que originaria a Lei Sarney. Por um posicionamento poltico, Celso Furtado fez questo de que o Projeto de Lei tramitasse normalmente pela Cmara dos Deputados e pelo Senado, ou ao invs de se valer das medidas-provisrias, como relata Fbio Magalhes, presidente da Funarte no perodo (MAGALHES, 2012)14. Seu intuito era darlhe fora poltica, e coerncia, uma vez que o principal objetivo da lei, segundo o Ministrio, era redemocratizar a cultura. Durante a tramitao na Cmara dos Deputados so propostas nove emendas parlamentares, das quais so aprovadas pelo Congresso apenas duas. Uma delas, a proposta nove, apresentada por Bonifcio de Andrada, vicelder do PDS (Sucessor do ARENA), consistia em uma modificao na forma de controle da Lei:
EMENDA DE PLENRIO AO PROJETO DE LEI N 7.793, DE 1986, DO PODER EXECUTIVO: Inclua-se, onde couber, o seguinte artigo: Art As doaes, patrocnios e investimentos, de natureza cultural, mencionados nesta lei, sero comunicados ao Conselho Federal de Cultura, para que possa acompanhar e supervisionar as respectivas aplicaes, podendo, em caso de desvios ou irregularidades, serem por ele suspensos. 1 O Conselho Federal de Cultura, nas hipteses deste artigo, ser auxiliado, repectivamente, pelos Conselhos Estaduais de Cultura e pelos Conselhos de Incentivos Culturais, a serem instalados nos Municpios, segundo Resoluo daquele. 2 Os Conselhos de Incentivo Cultural sero compostos de membros
A proposio feita por Sbato Magaldi demonstra essa preocupao, revelada em inmeras outras falas. Os Conselhos sentiam sua impotncia junto s decises que estavam sendo
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designados pelo Conselho Federal de Cultura, pelos Conselhos Estaduais de Cultura, pela Municipalidade respectiva e por fundao com representatividade expressiva, existente na localidade.
artigo 12 restringiu as possibilidades ofertadas ao CFC. Subsequente aprovao da Lei, o que se assiste uma disputa de projetos polticos para o campo da cultura, encarnadas nas posies do Ministro Celso Furtado e do CFC. Para os Conselheiros, que se utilizavam da fora do artigo contido na Lei, que fora democraticamente votada, os investimentos culturais feitos com recursos provindos da iseno fiscal deveriam passar por um crivo tcnico, que debateria o valor daquele projeto. Consonantes com seu entendimento de que o desenvolvimento cultural nacional que se almejava estava intimamente ligado valorizao e difuso da chamada cultura erudita, o CFC se propunha como um corpo tcnico apto a elaborar esse julgamento, uma vez que ali se encontravam personalidades eminentes da cultura brasileira, ligados s diversas formas de manifestao artstica. A concepo de empoderamento da sociedade defendida por Furtado entrava em franca contradio com a proposta do Conselho, uma vez que para ele, deveria caber somente sociedade o poder de escolha dos bens culturais a serem incentivados. No era admissvel, se analisarmos os discursos de defesa da Lei proferidos pelo Ministrio, que um grupo de intelectuais, pertencentes a esferas governamentais, tivesse um poder de veto sob uma escolha realizada pelo corpo social. Os constantes embates polticos ocorriam no apenas nas plenrias do CFC durante as visitas do Ministro, mas por diversas vezes tomaram os jornais do pas, onde os conselheiros realizavam frequentes contribuies. Vasco Mariz, por exemplo, escreve um editorial no Estado de So Paulo, onde explicita a concepo defendida pelos conselheiros:
Para justificar a proposio de sua emenda ao Congresso, o Deputado Bonifcio de Andrada no poderia ser mais assertivo:
A emenda visa prestigiar o Conselho Federal de Cultura que o rgo competente para tanto, permitindo que seja auxiliado pelos Conselhos Estaduais de Cultura e pelos Conselhos de Incentivo Cultural dos municpios, os quais so institudos nesta lei. As entidades municipais, estaduais e a federal, assim envolvidas no sistema, iro permitir que a comunidade possa fiscalizar diretamente a aplicao dos benefcios fiscais, obtidos por esse projeto. Sala das Sesses, 19 junho de 1986 Bonifcio de Andrada, Vice-Lder do PDS. (Grifo meu) ( D.O p. 6.281 a 6.285)15
A emenda aprovada, porm, encontraria dois vetos presidenciais. Os Conselhos de Incentivo Cultural, por terem sua criao determinada por Lei Federal, atentavam contra o princpio de autonomia dos entes da federao, fugindo s prerrogativas da Unio determinar a criao de um rgo municipal. Desta forma foram suprimidos os captulos um e dois, sendo incorporado lei somente o corpo do Artigo, que na Lei se tornou o de nmero doze. A Lei inicialmente buscava criar uma organicidade entre os Conselhos, reavivando um antigo projeto do CFC, na medida em que delegava aes no apenas para ele, como tambm para os Conselhos Estaduais, que se encontravam em uma situao pior que a enfrentada pelo Conselho Federal, no que concernia participao poltica e oramento. A restrio jurdica s designaes subsequentes ao
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Parece-me que o grande problema do Minc identificar a real filosofia da Lei Sarney, ou melhor ainda, como definir o tipo de cultura que merece ser assistida. (...) Numa poca de enorme aperto econmico, o fisco no pode, nem deve abrir mo dos descontos sobre os impostos das empresas que no sejam efetivamente imprescindveis concretizao de um valioso ato cultural. Creio que, se o Minc e o Conselho Federal de Cultura aceitarem esse requisito, estaro dando um passo importante para salvar a Lei Sarney. (...) preciso apoiar a cultura de alto nvel e no ajudar a nivelar por baixo, como se vem fazendo lamentavelmente. necessrio educar o povo, e no descer at o baixo nvel cultural das massas16.
A primeira resposta do Ministro Furtado a essa questo foi propor uma srie de reformas na composio do Conselho Federal de Cultura, todas barradas graas fora poltica dos membros do Conselho. A resposta do Ministrio a essa problemtica, mesmo aps a sada do Ministro Celso Furtado, foi a extino tcita do rgo. Foi reconhecida publicamente a necessidade dos projetos serem aprovados pelo Conselho, mas no foi dado a esse, meios de efetivar sua fiscalizao. As dotaes permaneceram baixas, o quadro de funcionrios subordinados ao rgo pequeno e os projetos, com volume cada vez maior, no eram repassados ao CFC. A disputa ideolgica em torno da Lei 7.505/86 perdurou at a data de extino de todos os agentes em questo: O Ministrio da Cultura, o Conselho Federal de Cultura e a prpria Lei Sarney, todos afetados por designaes do Presidente Fernando Collor de Melo, que no ano de 1990, extinguiu por decreto o Minc e diversos rgos a ele subordinados, includo o CFC; revogando a Lei Sarney, e modificando toda cena cultural brasileira.
O projeto defendido pelo Conselho Federal de Cultura no encontrou espao para se efetivar, no pelo embate ideolgico com o Ministro, ou com o Ministrio da Cultura, mas por causa de um motivo mais profundo, conjuntural. O cenrio cultural nos pases ocidentais havia mudado, os conceitos internacionalmente defendidos eram outros. A apropriao de uma lgica capitalista para produo dos bens simblicos modificar todo aquele contexto que fora conhecido pelos Conselheiros, dcadas antes. A ciso de iderio ocorrida ainda no perodo ditatorial demonstra esse fato. Por mais que houvesse similaridade nas concepes polticas do CFC e do Regime, a adeso ao projeto governamental tambm possua uma vertente econmico-progressista, que inseria no Brasil toda uma lgica capitalista que modificava as bases socais do pas, alterando consequentemente a Cultura produzida, uma vez que essa existe enquanto suporte simblico relacionado realidade social vivida. Ortiz, citando Gramsci, falar em ideias que no movem mais pessoas, Roberto Schwarz utilizar o conceito de ideias fora do lugar. O pensamento tradicional defendido pelo CFC fora preservado durante os anos de existncia do rgo graas a sua forma de seleo, formal e informal. Sua existncia no interior da esfera governamental no demonstrava uma contradio entre dois discursos governamentais distintos: um tradicional e um administrativo. O que existia era um nico discurso, que buscava reinterpretar a sociedade brasileira, s que sua existncia se dava em um contexto conjuntural determinado, que no permitia mais a propagao do discurso tradicionalista, por isso que suas pretenses no se convertiam mais em aes. Acima dos projetos defendidos pelo CFC e pelo Minc, estava a conjuntura da Cultura Brasileira na dcada de
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80, e se analisarmos em termos prticos, a rpida apropriao da Lei Sarney efetivada pelo mercado demonstra que tambm o projeto defendido por Celso Furtado no encontrou um campo favorvel sua recepo, mas isso j assunto para outro artigo.
11 12
Idem. Disponvel em <http://portal.iphan.gov.br/portal/ baixaFcdAnexo.do?id=255> Acesso em: 13/07/2013. Para um estudo detalhado das publicaes do CFC ver Maia (2012, p. 106). In Arquivos Celso Furtado: Ensaios sobre cultura e o Ministrio da Cultura. Emendas e discusses do Projeto-Lei n 7.793 de junho de 1986 ( D.O p. 6.281 a 6.285) Jornal O Estado de So Paulo, 09 de abril de 1988. (Grifo meu)
13
14
Notas:
1
15
Portaria ministerial de 20.05.1965 (D.O. 27.07.1965 p. 7.256) Decreto-lei n 74 de 21.11.1966 Para um debate aprofundado sobre as vertentes do movimento modernista, ver Graziela Forte O projeto Nacional dos Modernistas. Revista Ponta de Lana, So Cristvo, v2, n4, abr.-out 2009. No irei me deter em uma anlise pormenorizada do movimento por fugir dos objetivos desse trabalho. Para uma analise do Movimento Modernista Carioca ver de ngela de Castro Gomes Essa gente do Rio... os intelectuais cariocas e o modernismo. In Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v 6, n 11, 1993 p. 62-77 Expresso utilizada diversas vezes durante as plenrias do Conselho para definir o verdadeiro intelectual. Termo utilizado pelo CFC para designar as influncias culturais nocivas vindas do exterior. Para detalhes dos conceitos de cultura democrtica e cultura sovitica vide Boletim do Conselho Federal de Cultura, n69, 1987. Para um debate aprofundado sobre o Plano Nacional de Cultura e as posteriores Diretrizes para uma Poltica Nacional promovida pelo CFC ver Cardeais da Cultura Nacional, Tatyana Maia, p.213. Para um aprofundamento no estudo do PNC aprovado em 1975 ver Paula Reis Polticas Nacionais de Cultura: O documento de 1975 e a proposta do Governo Lula/Gil.. Anais do V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2009. Discurso de Celso Furtado no Conselho Federal de Cultura. Sesso plenria de 09 de novembro de 1987. No publicada.
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2 3
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Ocupar e Resistir
Anderson Alves de Medeiros Cludio Dias Bezerra Luciana Nunes Rotondi Steff Cordeiro de Oliveira
Estudantes de graduao no curso de Sociologia e Poltica, da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo
1. Introduo Partindo do tema: Cidade e Poder, lembramos oportunamente de um debate que atualmente tem sido pauta entre os pesquisadores, em virtude de Projetos como o da Nova Luz1, trata-se do fenmeno da gentrificao. A palavra gentrificao foi introduzida pela sociloga Ruth Glass (apud OLIVEIRA, 2012), que utilizou o termo gentrification no incio dos anos sessenta para descrever o fenmeno que observou em Londres como:
[] a transformao da composio social dos residentes de antigos bairros operrios londrinos, onde ocorreu a substituio de camadas populares por camadas mdias assalariadas que no tinham receio de encostar nas massas populares e que antes se instalavam nos subrbios. (apud OLIVEIRA, 2012, p. 2)
os ocupantes do antigo prdio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), localizado na rua Martins Fontes n180 no centro de So Paulo, promovida e organizada pelos seguintes movimentos: MMC (Movimento de Moradia do Centro), AMPJ (Associao de Moradia Popular Junior), Conde So Joaquim (Associao Conde de So Joaquim), ILS (Instituto de Lutas Sociais), AUAP (Associao Unificadora de Aes Populares) e MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). Trataremos da questo com o objetivo de verificar se a ocupao pesquisada pode ser caracterizada como uma forma de resistncia ao processo de gentrificao do centro de So Paulo. Em virtude de nosso objetivo, nos ateremos apenas resistncia propiciada pela ocupao, deixando de abordar aspectos ligados sua organizao cotidiana. 1.1. Apresentao do Problema Para alcanarmos o objetivo de verificar se a ocupao pesquisada pode ser caracterizada como uma forma de resistncia ao processo de gentrificao do centro de So Paulo, analisaremos nosso objeto a partir dos conceitos de polticas pblicas, gentrificao, revitalizao, requalificao, biopoltica e resistncia. Entendemos que as polticas pblicas3 [] so a totalidade de aes, metas e planos que
Para Smith, o processo urbano identificado inicialmente por Ruth Glass, evoluiu rapidamente chegando ao sculo XXI como uma dimenso marcante do urbanismo contemporneo. (apud OLIVEIRA, 2012) O processo de gentrificao j ocorreu em vrios centros urbanos no mundo e foi viabilizado por polticas pblicas de revitalizao e requalificao. Analisaremos uma ocupao2 na regio central de So Paulo, para tanto entrevistaremos
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os governos (nacionais, estaduais ou municipais) traam para alcanar o bem-estar da sociedade e o interesse pblico. Vale ressaltar que as aes selecionadas pelos agentes do poder pblico, [] so aquelas que eles entendem serem as demandas ou expectativas da sociedade. Ou seja, o bem-estar da sociedade sempre definido pelo governo e no pela sociedade4. Em seu estudo sobre gentrificao, a autora Catherine Bidou-Zachariasen (2006), revela que a gentrificao um conjunto de transformaes do espao urbano que tendem a valorizar a regio afetada. Estas transformaes acontecem nas grandes capitais e podem ou no conter polticas pblicas que as viabilizem. No decorrer do fenmeno, normalmente, h a expulso dos moradores tradicionais, que geralmente pertencem a classes sociais menos favorecidas e sofrem com a valorizao imobiliria decorrente da interveno. Revitalizao a ao orientada por estratgias de desenvolvimento urbano, em que as aes de natureza material so concebidas de forma integrada e ativamente combinadas na sua execuo com intervenes de natureza social, econmica ou cultural, normalmente voltada dinamizao e capacitao do tecido social e econmico. J a requalificao a interveno urbanstica localizada de renovao que tem como escopo a valorizao ambiental e a melhoria da qualidade do espao urbano, normalmente promove a construo e recuperao de equipamentos e infraestruturas, alm da valorizao do espao pblico com medidas de dinamizao social e econmica. A biopoltica a tecnologia de poder exercida sobre a populao, que visa regulamentao da vida. Nas sociedades de
controle, segundo Michel Foucault, o poder central representado pelo Estado, passa a regular a vida cotidiana da populao, a fim de fazer viver e deixar morrer.(FOUCAULT, 1979) Essa regulao da vida passa a ser exercida com base em previses, estimativas e estatsticas a fim de implementar polticas pblicas sobre fenmenos especficos. Essa perspectiva poltica caracterizada por fazer viver e deixar morrer se aplica discusso apresentada, uma vez que no processo de gentrificao tal lgica est inserida, pois o poder pblico privilegia alguns em detrimento de outros. Utilizaremos o conceito de resistncia formulado por Foucault, no qual toda forma de poder sempre encontra uma forma de resistncia, esta reao pode se apresentar das mais variadas formas. (FOUCAULT, 1979). Para compreender o conceito de resistncia em Foucault necessrio entender que para o autor no existe poder, mas relaes de poder e estas no so reduzidas simplesmente a uma relao de dominao ou opresso. O poder no um objeto e no fixo, funciona em rede como uma teia, no se sustenta somente como dominao e utiliza outros mecanismos para sua realizao. Nesse sentido, o poder no somente repressivo, pode ser ao mesmo tempo produtivo e constitutivo. (FOUCAULT, 1979) Foucault entende que existindo poder haver resistncia. Tal resistncia no exterior, mas concomitante ao poder. As prprias relaes de poder trazem consigo o espao da resistncia. Segundo Foucault (1979), onde no existe possibilidade de resistncia, no existem relaes de poder, mas sim a pura dominao. Portanto, Foucault (1979) argumenta que os indivduos no so meros sujeitos passivos ou
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1.2. Relevncia As polticas pblicas de revitalizao e requalificao unidas especulao imobiliria so ferramentas que promovem a gentrificao, uma vez que quando os centros urbanos so revitalizados ou requalificados, uma parte da populao residente se muda para periferia devido s dificuldades econmicas que encontram para se manter no local aps o processo de valorizao. Nas reas perifricas h pouca ou nenhuma infraestrutura e ao fazerem isso se rompem no apenas os laos j preestabelecidos uns com os outros como tambm h uma perda dos modos de organizao, construdos ao longo de anos durante a permanncia na localidade. Morar no centro uma reivindicao feita pelos movimentos de moradia que atuam no centro. A justificativa para essa importncia que as pessoas que participam dos movimentos tm sua fonte de renda no centro e seus filhos estudam nas proximidades, o que consequentemente diminui custos com o transporte e a alimentao, alm disso, os moradores se consideram participantes na construo desse espao.
Uma das alternativas possveis populao a resistncia por meio da ocupao de prdios vazios, dessa forma possvel permanecer no centro. As ocupaes so organizadas por movimentos de moradia, no presente estudo os movimentos organizadores so: MMC (Movimento de Moradia do Centro), AMPJ (Associao de Moradia Popular Junior), Conde So Joaquim (Associao Conde de So Joaquim), ILS (Instituto de Lutas Sociais), AUAP (Associao Unificadora de Aes Populares) e MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). Tais ocupaes, na opinio do arquiteto e urbanista Kazuo Nakano (2007), so legtimas em virtude do preceito constitucional de funo social da propriedade:
Esses tipos de aes, quando ocorrem, sempre ganham visibilidade nos diferentes veculos de comunicao, pois so atos polticos que afetam a propriedade e os interesses privados. Muitas vezes, tais atos so criminalizados e classificados como "fora-da-lei". Apesar de reconhecer a existncia de problemas em certas ocupaes, penso que, em muitos casos, so atos polticos legtimos que exigem o cumprimento do princpio constitucional da "funo social da propriedade urbana". Esse o caso das ocupaes, pelos movimentos de luta pela moradia, de alguns prdios ociosos, pblicos e privados, localizados nos centros das grandes cidades, regies acessveis e com boa oferta de empregos, comrcio, servios, equipamentos e infra-estruturas urbanas. (NAKANO, 2007, p. 1)
O problema que nos colocamos se a ocupao do prdio configura uma forma de resistncia gentrificao? Nossa hiptese que a ocupao do prdio citado uma forma de resistncia ao processo de gentrificao. Uma vez que os
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processos de gentrificao so identificados em casos de recuperao do valor imobilirio em regies de grandes cidades que passaram por um perodo de degradao. No decorrer deste processo, a populao que reside nestes locais e que pertence s camadas sociais de menor poder aquisitivo so sutilmente expulsas para atrair residentes de renda mais alta. Para possibilitar tal ao, o mercado imobilirio, muitas vezes, aliado a polticas pblicas de revitalizao ou requalificao dos centros urbanos, busca recuperar o carter glamouroso da regio em questo. Visando permanecer em reas centrais, a populao de baixa renda procura resistir expulso que normalmente proporcionada pela gentrificao. Acreditamos que as ocupaes dos prdios vazios, localizados no centro de So Paulo, configuram uma forma de resistir e permanecer nessas reas. 1.3. Justificativa O presente trabalho deseja levar a debate a existncia de resistncia ao processo de gentrificao do centro de So Paulo. A escolha da ocupao mencionada ocorreu por estar localizada no centro e por ser organizada por movimentos sociais de moradia que atuam nas zonas centrais. As entrevistas sero individuais. O local de realizao das entrevistas para coleta de dados ser o antigo prdio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), localizado na Rua Martins Fontes n180. Realizaremos 10 (dez) entrevistas, dentre estas, entrevistaremos as lideranas que vivem na ocupao (coordenadores de base) e os ocupantes, conforme for possvel tambm entrevistaremos os lderes que no vivem na ocupao. Dividiremos a quantidade de
entrevistas em 5 (cinco) lderes e 5 (ocupantes). A faixa etria mnima ser de 20 (vinte) anos e a mxima de 70 (setenta) anos. Salientamos que a quantidade de entrevistas aqui estipulada pode ou no ser ampliada para melhor atender os objetivos propostos. 2. Metodologia A pesquisa do projeto apresentado ser realizada por meio de mtodos qualitativos, utilizaremos trs tipos de tcnica: entrevistas semiestruturadas, observao participante e histria oral. Para realizao da coleta de dados em campo utilizaremos o mtodo de entrevista semiestruturada. Essa tcnica composta por perguntas abertas e fechadas, e possibilita que alguns tpicos pr-determinados no roteiro de entrevistas sejam aprofundados sem que o objetivo da pesquisa se perca. A escolha da tcnica de entrevista semiestruturada se deu porque ela permite uma maior interao com os entrevistados, alm disso, a entrevista semiestruturada possibilita que as questes sejam reformuladas, para melhor entendimento dos entrevistados, desde que no se mude o sentido da questo. A observao participante possui trs caractersticas indispensveis pesquisa, a saber: olhar, ouvir e escrever. Essas caractersticas se complementam entre si, mas cada uma possui uma especificidade. O olhar deve estar atento aos detalhes mais corriqueiros da vida cotidiana, sendo necessrio anotar no caderno de campo o que foi observado para evitar que o olhar se adapte ao ambiente estudado e perca detalhes importantes. Ouvir as pessoas fundamental no uso desta tcnica, mas importante tambm saber perguntar. Por fim, temos que escrever nossas
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experincias em campo. nesse momento que contextualizamos os acontecimentos vividos no momento da observao participante. A tcnica de observao participante deve ser utilizada em todas as visitas ao local da coleta de dados. Em uma dessas ocasies, visitamos todos os andares do prdio na companhia da coordenadora Geralda. A descrio da observao participante da visita mencionada ser apresentada por cada integrante do grupo de maneira individual no item 2.2. A histria oral uma tcnica que utiliza a entrevista aberta para captao de dados. As reflexes e opinies do entrevistado que so apresentadas em seu depoimento pessoal so baseadas em sua memria. A histria oral utilizada com pessoas que ainda esto comprometidas com as atividades pblicas, essas pessoas so consideradas como especialistas no assunto. Os dados obtidos pela tcnica da histria oral devem ser checados de maneira interna (confrontar com os demais depoimentos) e se necessrio de maneira externa (disponveis em outras fontes). A partir das circunstncias que se apresentaram em uma de nossas visitas ao local para coleta de dados, a histria oral teve que ser includa em nossa metodologia. Nesta ocasio, o Sr. Geg (lder geral do MMC Movimento de Moradia do Centro) fez questo de dar seu depoimento sobre coisas que ele considerava importantes e que segundo o mesmo, deveriam servir como prembulo de nossa pesquisa. O Sr. Geg abordou diversos temas que compem sua biografia, desde sua vinda para So Paulo at os dias de hoje. Vale ressaltar que durante o depoimento, o Sr. Geg abordou questes essenciais para o desenvolvimento da pesquisa e que tais informaes estaro presentes nos resultados do projeto.
2.1. Questionrios Visto que entrevistaremos lderes (que vivem na ocupao e se possvel, os que no vivem) e ocupantes, foram elaborados dois roteiros de entrevista. Esses roteiros de entrevista contm os mesmos tpicos e em alguns casos as mesmas questes, no entanto, foram elaboradas algumas questes especificas que sero direcionadas de acordo com cada tipo de perfil, a saber, lderes e ocupantes. Os tpicos que sero abordados para obteno dos dados so: Identificao; Movimento de Moradia; Ocupao no Centro e Resistncia; 2.2. Observao Participante Foram realizadas 6 (seis) visitas ao local da coleta de dados. A primeira visita foi realizada em 15/04/2012 das 10h24min s 10h33min, nesta ocasio no foi possvel entrar no prdio, mas conseguimos fazer contato com a lder Alcione, representante do MMC (Movimento de Moradia do Centro) e ocupante do prdio. Alcione nos explicou que era a nica lder presente no local naquele momento e que para autorizar nossa entrada no prdio precisaria conversar com os demais lderes. A segunda visita foi realizada no dia 05/05/2012 das 09h30min s 10h42min, como j havia sido combinado com a lder Alcione dessa vez foi possvel entrar no prdio da ocupao, onde foram colhidos os dados necessrios para elaborao do perfil de pessoas que entrevistaremos. A terceira visita foi realizada em 23/09/12 das 10h00min s 11h10min, na ocasio realizamos a observao participante. A quarta visita foi realizada no dia 21/10/2012 das 14h05min s 16h35min, foram realizadas algumas das entrevistas, alm disso, conhecemos e conversamos com o lder geral da
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ocupao, o Sr. Geg do MMC (Movimento de Moradia do Centro). A quinta visita foi realizada no dia 01/11/2012 das 16h00min s 16h45min para realizao de mais uma das entrevistas e a sexta visita foi realizada no dia 04/11/2012 das 14h08min s 15h05min para realizao das ltimas entrevistas. 3. Resultados Os resultados sero apresentados por tpicos, assim como foram abordados nos roteiros de entrevista, a saber: Identificao; Movimento de Moradia; Ocupao no Centro e Resistncia. Entrevistamos 10 (dez) pessoas, 5 (cinco) ocupantes e 5 (cinco) lderes, cada grupo foi entrevistado conforme o roteiro destinado a cada tipo de perfil, alm disso, escutamos a explanao do lder geral de um dos movimentos e captamos os dados pela tcnica da histria oral. Ainda, obtivemos importantes dados adicionais no decorrer das entrevistas, os quais sero apresentados no tpico: Outros Resultados. Identificao: Entrevistamos 7 (sete) mulheres e 4 (quatro) homens. Destes, 8 (oito) nasceram na regio nordeste, sendo 2 (dois) na Bahia, 2 (dois) no Maranho, 2 (dois) no Cear, 1 (um) em Pernambuco e 1 (um) na Paraba; 1 (um) na regio Centro-oeste, em Braslia, 2 (dois) na regio sudeste, em So Paulo, 1 (um) de So Bernardo do Campo e 1 (um) da zona leste da capital. 5 (cinco) so casados, 2 (dois) separados, 3 (trs) solteiros e um vivo. Quanto escolaridade 1 (um) possui superior completo, 2 (dois) superior incompleto, 1 (um) ensino mdio completo, 2 (dois) ensino fundamental completo, 4 (quatro) ensino fundamental incompleto. Dos entrevistados h: diarista, vendedor ambulante, auxiliar de produo, operador de telemarketing,
auxiliar contbil, trabalhador da construo civil, cuidadora de idosos e aposentados. Importante, no depoimento no ficou claro a escolaridade e profisso do depoente. Os seguintes aspectos do roteiro de entrevistas foram considerados somente para entrevistados que residem atualmente na ocupao, a saber: filiao, regio onde estudam os filhos que residem com eles, regio onde trabalham, pessoas com quem dividem o espao dentro da ocupao, andar que ocupam e regio anterior de moradia. Assim, dos 6 (seis) que residem atualmente na ocupao, 4 (quatro) possuem filhos, porm somente 2 (dois) tem os filhos morando com eles, destes os filhos de 1 (um) estudam no centro e de outro no Brs; 4 (quatro) trabalham no centro e 1 (um) no Brs e 1 (um) est desempregado; 1 (um) mora com mulher e 4 (quatro) filhos, 1 (um) mora somente com os 3 (trs) filhos, 1 (um) mora com uma amiga, 1 (um) mora sozinho, 1 (um) com o companheiro e 1 (um) com o noivo. 3 (trs) ocupam o primeiro andar, 1 (um) o segundo andar e 2 (dois) o quarto andar; 3 (trs) deles moravam anteriormente no centro, 1 (um) na zona sul da capital, bairro Real Parque, 1 (um) em Suzano e 1 (um) em Diadema. Movimento de Moradia: Das 11 (onze) pessoas ouvidas, 9 (nove) so do MMC (Movimento de Moradia do Centro), 1(um) da AUAP (Associao Unificadora de Aes Populares) e 1 (um) do MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). O perodo mximo de atuao nos movimentos de moradia relatado foi o mximo de 26 (vinte e seis) anos e o mnimo de 10 (dez) meses. A princpio, a entrada da maioria dos entrevistados nos movimentos de moradia deu-se por algum tipo de contato prvio com integrantes destes movimentos. A situao financeira perpassa todos os contextos
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com nfases explcitas ou no. Porm, em alguns relatos a dificuldade financeira preponderante ou mesmo nica, enquanto em outros casos, existem interesses pelos projetos de moradia que culminam em luta poltica. Ocupao no Centro: Com relao importncia das ocupaes que ocorrerem na regio central da cidade, encontramos dois tipos de posicionamentos que no se excluem, por um lado alguns ressaltam a quantidade de prdios vazios no centro como uma oportunidade que no se encontra nas demais regies. Por outro lado, outros ressaltam interesse na infraestrutura proporcionada pela regio. Dos entrevistados 7 (sete) participaram no dia da ocupao do prdio, 3 (trs) no e no depoimento, o lder Geg no abordou o assunto. Dos 6 (seis) entrevistados que residem no prdio, 3 (trs) esto desde do dia da ocupao e outros 3 (trs) chegaram posteriormente. Quando perguntados acerca das formas de ocupao do prdio, obtivemos dois tipos de respostas: os relatos dos ocupantes comuns do conta da parte operacional e dos lderes, tanto ocupantes quanto no, relatam todo o processo de planejamento e organizao. A distribuio das pessoas por andares no prdio no realizada de imediato, segundo os relatos obtidos. Aps o perodo de limpeza do local e estabilizao da ocupao, a distribuio dos espaos realizada conforme tamanho de cada famlia ou grupo. Com relao aos andares, a organizao dispe os idosos e crianas nos andares mais prximos ao trreo para facilitar a mobilidade. No foi possvel estabelecer uma quantidade mnima ou mxima de ocupantes pelos andares devido rotatividade das pessoas
residentes na ocupao. Constatamos pelas entrevistas que os lderes no residem na ocupao, apenas os coordenadores de base (lderes que moram na ocupao): Ana Alcione e o Manoel (coordenador no entrevistado), ambos do MMC (Movimento de Moradia do Centro). Seguindo o roteiro de entrevistas direcionado aos ocupantes, questionamos como so resolvidas as questes entre eles e qual o tipo de relao existe entre eles e os lderes. Obtivemos como resposta que os problemas mais srios so levados aos lderes de cada movimento, sendo posteriormente discutidos em assemblia geral. A relao dos ocupantes com os lideres de todos os movimentos foi relatada como satisfatria em todas as 5 (cinco) entrevistas. Utilizando o roteiro de entrevista direcionado somente aos lderes, indagamos se h diferena na atuao de um lder que vive na ocupao (coordenador de base) e um que no vive, se naquele momento existiam outras ocupaes no centro organizadas pelo mesmo movimento, se existiam outras ocupaes na periferia e como feita a escolha dos prdios. Os relatos indicam que os lderes e/ou coordenadores que vivem na ocupao atuam nas funes de organizao diria interna, j os lderes que no residem cuidam de aspectos mais burocrticos. Foi verificada a existncia de ocupaes tanto no centro como na periferia, sendo que as realizadas nas zonas perifricas so mantidas por movimentos que atuam nessas regies. Com relao escolha dos prdios foi constatado que, aps estudo prvio da infraestrutura, as ocupaes so feitas preferencialmente em prdios vagos e de propriedade de rgos pblicos. A maioria dos entrevistados no relatou diferena entre os movimentos devido ao
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nmero de integrantes em cada um deles. Porm, cada movimento tem sua forma especifica de organizao. O depoente no abordou o assunto. Resistncia: Perguntamos aos 10 (dez) entrevistados acerca da opinio sobre projetos urbanos existentes no centro da cidade como, por exemplo, o Nova Luz. A maioria dos entrevistados, bem como o lder geral, abordou a especulao imobiliria como razo implcita para os projetos urbanos no centro de So Paulo, em especial o Nova Luz. Ressaltamos que alguns dos entrevistados mencionam a Operao Integrada Centro Legal5, realizada pelos governos estadual e municipal na regio conhecida como Cracolndia6 como uma ao relacionada ao projeto Nova Luz. Percebemos que alguns simplesmente remetem ao policial implementada contra os usurios de droga da regio da Luz. Porm, independentemente dos motivos apontados todos demonstraram contrariedade ao projeto. Com relao aos objetivos se ocupar prdios encontramos duas vertentes complementares, a primeira trata de denunciar sociedade e cobrar do governo o no cumprimento da funo social da propriedade, prevista na Constituio Federal. A segunda diz respeito moradia em si, segundo a qual a ocupao visa transformar os prdios em moradia popular, o que se d aps vasta negociao com o poder pblico. A infraestrutura do prdio condiciona os objetivos iniciais da ocupao. No que tange reintegrao de posse, 7 (sete) dos entrevistados j participaram, 3 (trs) no, e o depoente no abordou o assunto. Entre os 10 (dez) entrevistados todos relatam as orientaes a serem seguidas. No caso dos lderes
a ao voltada para as negociaes com os entes do poder pblico no momento da reintegrao. Os relatos dos ocupantes dizem respeito s aes a serem seguidas conforme determinao prvia dos lderes dos movimentos. Todos relatam que existem tipos diversos de reintegrao, sendo algumas mais pacficas. Quando perguntados sobre participao em ocupaes anteriores, somente 2 (dois) dos 11 (onze) entrevistados responderam que no participaram. Os entrevistados foram unnimes ao relatar a completa ausncia de qualquer tipo de auxlio governamental, tais como: aluguel social e oferta de moradia, entre outros. Alguns relataram que em reintegraes das quais participaram foram realizados cadastramentos de moradia por intermdio de assistente social da Prefeitura, que at o momento da entrevista no havia resultado em atendimento. Na ocupao estudada, no houve qualquer relato de acompanhamento governamental. Entre os articuladores que contribuem com os movimentos ou com a prpria ocupao, foram relatados vrios tipos de contribuies, desde doaes efetuadas por vizinhos at atuao de advogados, do ministrio pblico, de padres e de organizaes de direitos humanos. Questionados sobre quais seriam as aes a serem efetivadas pelo poder pblico acerca dos movimentos de moradia e ao direito de moradia em geral. Todos os 11 (onze) entrevistados gostariam que o poder pblico atendesse a demanda dos movimentos de moradia, negociando a aquisio dos prdios e transformando-os em moradia para pessoas de baixa renda. Alguns, ainda, ressaltam que existem vrios prdios no centro de So Paulo que no atendem a funo social da propriedade por
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estarem vagos e abandonados h anos. Quanto ocupao do prdio estudado, percebemos uma divergncia entre o discurso dos ocupantes e dos lderes entrevistados quanto destinao do prdio em questo. Enquanto os ocupantes pretendem ver o espao reformado para moradia, os lderes utilizam-no como meio de reivindicao para negociao com as diversas esferas do poder pblico. Assim sendo, os lderes preocupam-se primordialmente com a visibilidade das ocupaes com intuito de promover sua luta poltica. Seguindo o roteiro de entrevistas direcionado somente aos ocupantes, indagamos se conheciam algum pertencente outra ocupao na cidade naquele momento. Todos responderam de forma afirmativa, relatando que seus conhecidos ocupavam prdios localizados no centro da cidade e faziam parte do seu crculo de amizade. Ao questionarmos os lderes conforme o roteiro de entrevistas, quanto existncia de alguma relao entre as ocupaes realizadas no centro no momento da pesquisa, todos afirmaram que os movimentos possuem os mesmos objetivos ao realizar ocupaes, a saber: necessidade de moradia e preferncia pelo o centro da cidade. Outros Resultados: Notamos que os entrevistados que participaram de outras ocupaes e/ou reintegraes, recordam com facilidade quando e onde ocorreram os eventos. As datas foram relatadas de forma precisa, contendo o dia, o ms e o ano. A maneira como tais acontecimentos foram descritos, denota a sua importncia na vida dos entrevistados, bem como do depoente. Comparando os relatos obtidos, ficou
evidenciado que existe uma diferena entre os discursos dos lderes e ocupantes, enquanto os ltimos mostram-se centrados nos problemas cotidianos devido s necessidades mais prementes, os primeiros pretendem uma maior conscientizao da luta poltica. A preferncia dos entrevistados pelo centro deu-se por mltiplos motivos, desde costumes enraizados, passando pela prpria infraestrutura propiciada, at, em alguns casos, pela falta de opo. Na maioria dos relatos a importncia de morar no centro estava presente, com exceo de 2 (dois) casos de ocupantes em extrema dificuldade financeira e que, exclusivamente por esse motivo, recentemente ingressaram nos movimentos de moradia. Nesses ltimos casos, morar no centro no se mostrou essencial, pois almejam apenas um teto. Ainda, na ocupao estudada, existem 3 (trs) movimentos, AUAP (Associao Unificadora de Aes Populares), MMPT (Associao de Moradia Popular Junior) e ILS (Instituto de Lutas Sociais), que atuam tanto no centro como em outras regies da cidades. Os integrantes do MMC (Movimento de Moradia do Centro), em especial os lderes, inclusive o lder geral, Sr. Geg, narraram que a origem do movimento se deu pelas reivindicaes oriundas de pessoas que residiram em cortios, devido s precrias condies daqueles espaos. Segundo o lder geral, e confirmado por meio de outras entrevistas, a ocupao do prdio da Rua Martins Fontes, inicialmente ocorreu para dar visibilidade s causas defendidas pelos 6 (seis) movimentos. Assim, no era, a princpio, destinada moradia, serviria como protesto. Porm, em virtude de reintegraes de posse em outros prdios prximos, foi necessrio utilizar tal ocupao como abrigo para pessoas despejadas de
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outros locais. Com isso, a destinao da ocupao foi modificada devido s necessidades dos movimentos e seus membros. Alis, esse tipo de readequao parece no ser incomum, pois apesar do planejamento realizado pelos movimentos de moradia, o impondervel faz parte de suas rotinas. H um importante aspecto realado em algumas entrevistas e no depoimento do lder geral, nem todos os prdios so ocupados com o objetivo de serem transformados em moradia. Existem imveis em que a ocupao se d com objetivo exclusivo de protesto, nesses casos aps a efetivao da ocupao so realizados atos, sendo normalmente estendidas faixas e bandeiras contendo os nomes dos movimentos e suas reivindicaes, para, em seguida, serem completamente desocupados. Os dados foram coletados durante a campanha eleitoral para Prefeitura de So Paulo, visitamos o local antes do primeiro turno, entre o primeiro e segundo turnos e aps o trmino da eleio, na qual foi eleito o candidato Fernando Haddad pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Percebemos mudanas no comportamento dos ocupantes, antes do primeiro turno havia somente uma pequena propaganda do candidato do PT no interior do prdio e a eleio no era abordada; j entre um turno e outro, o discurso eleitoral estava presente e era motivo de preocupao e campanha, as propagandas se avolumaram; finda a eleio, as preocupaes deram lugar a uma expectativa mais positiva. Os relatos demonstram, ainda, ligao de alguns integrantes dos movimentos com o Partido dos Trabalhadores (PT). A maioria dos entrevistados caracterizou a sua luta poltica por reivindicaes e protestos pacficos, alegaram que desejariam morar no centro e enfatizaram que pretenderiam pagar para
tanto. Porm, est presente nesse discurso que tal pagamento deve estar de acordo com sua renda, pois os imveis localizados na regio central da cidade possuem custo elevado e, portanto, esto fora de seu alcance financeiro. Diante disso, tais entrevistados entendem que a interveno do Estado, por meio de polticas pblicas de habitao, necessria para que possam morar com dignidade e pagar conforme suas capacidades econmicas, fundamentando suas pretenses no direito moradia consagrado na Constituio. Ainda, a maioria dos entrevistados abordou a especulao imobiliria como fator de valorizao das reas centrais. Na data da ltima visita a campo, dia 04/11/2012, fomos informados que o INSS Instituto Nacional do Seguro Social havia entrado com o pedido de reintegrao de posse do prdio, sendo o pedido deferido pela Justia. Assim, tal reintegrao pode ocorrer a qualquer momento, porm, at a presente data, no tivemos noticia de sua efetivao. 4. Consideraes Finais Ao iniciar este trabalho tivemos em mente o to discutido projeto urbanstico denominado Nova Luz. Buscvamos entender se nas ocupaes de prdios vazios no centro da cidade existiria uma intencionalidade em fixar moradia no centro, resistindo, assim, ao processo de valorizao das reas centrais, caracterizado como gentrificao. Escolhemos uma ocupao no corao do centro, porm um pouco distante da regio da Luz. A ocupao escolhida foi emblemtica, pois nela atuam 6 (seis) movimentos de moradia, sendo 3 (trs) com atuao exclusiva na rea central e 3 (trs) que participam tambm de ocupaes nas reas perifricas da cidade. Assim,
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apesar de no ter sido possvel entrevistar um membro de cada um dos 6 (seis) movimentos que atuam na ocupao pesquisada, foi enriquecedor perceber que tal ocupao faz parte de uma luta poltica mais abrangente por moradia digna, tanto no centro, propriamente dito, como em regies mais afastadas. O problema que nos colocamos inicialmente foi formulado a partir da perspectiva de que a ocupao do prdio configuraria uma forma de resistncia gentrificao e nossa hiptese era de que a ocupao do prdio estudado seria uma forma de resistncia ao processo de gentrificao. Dentro das limitaes dadas ao recorte da pesquisa, a anlise dos dados obtidos sugere que nossa hiptese ratificada, pois h resistncia sendo promovida por movimentos de moradia no Centro e mesmo que o objetivo geral destes movimentos no seja com fins a resistir especificamente gentrificao, mas sim reivindicar moradia digna e com valor acessvel sua faixa de renda, a resistncia que os movimentos de moradia e seus integrantes promovem por meio de protestos e ocupaes em busca de polticas pblicas que os auxiliem, de certa maneira, retarda o processo de gentrificao. Portanto, possvel perceber intencionalidade da luta poltica empreendida pelos movimentos de moradia e seus membros, a qual pode ser caracterizada como uma forma de resistncia s imposies tanto do poder pblico como do poder econmico. Acreditamos ter atingido o objetivo proposto nesta pesquisa, uma vez que, apesar do nmero reduzido de entrevistados, foi possvel perceber de forma clara (tanto nas entrevistas dos lideres como dos ocupantes, em especial, os mais antigos), que as pessoas que tm sua
vida estruturada no centro da cidade, tm uma maior preocupao em no se afastar da zona central, rea onde trabalham, estudam ou que simplesmente esto habituados. Acrescentamos que pesquisar os movimentos de moradia que atuam em outras regies da cidade pode ajudar a esclarecer algumas questes que no foram exploradas neste projeto.
Notas:
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Conforme dados retirados do site oficial <http://www. novaluzsp.com.br/projeto.asp?item=projeto>, tratase de um projeto de requalificao urbana que prev, a valorizao dos prdios histricos, reforma das reas livres pblicas, criao de espaos verdes e de lazer e a melhoria do ambiente urbano da regio. O edifcio da rua Martins Fontes pertence ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e deixou de ser utilizado em 2006. Aps o abandono, o prdio foi ocupado por usurios de drogas e moradores de rua, na ocasio da reintegrao de posse em 06/09/2011, os movimentos de moradia realizaram uma nova ocupao em 02/10/2011. Segundo Mnica Cristina Pereira uma das coordenadoras da AUAP (Associao Unificadora de Aes Populares), a ocupao do prdio da Martins Fontes foi feita pelos seis movimentos de uma nica vez. As estratgias de ocupao so traadas pelos coordenadores, somente eles sabem quando e onde ser realizada a ocupao. A ocupao feita de forma rpida, antes da chegada da polcia. (Polticas Pblicas: conceitos e prticas. SEBRAE/MG, 2008, p. 5) (Polticas Pblicas: conceitos e prticas. SEBRAE/MG, 2008, p. 5) A operao integrada Centro Legal constituda de atividades que envolvem as polcias e os rgos estaduais e municipais ligados segurana, sade e assistncia social. Seus objetivos so o resgate da cidadania, a elevao da dignidade humana por meio da reinsero social, a recuperao de reas degradadas e o combate do trfico de drogas. Aps estudos e reunies preparatrias, as novas aes comearam no dia 3 de janeiro de 2012 e iro ser desenvolvidas de maneira permanente, no havendo
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Cracolndia (por derivao de crack) uma denominao popular para uma regio no centro da cidade de So Paulo, nas imediaes das avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Csper Lbero e a rua Mau, onde historicamente se desenvolveu intenso trfico de drogas e meretrcio. Fonte:< http://pt.wikipedia.org/wiki/ Cracol%C3%A2ndia>.
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Este artigo, meu Trabalho de Concluso de Curso do Curso de Sociologia e Poltica da Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So PauloFESPSP, foi orientado pela Profa. Dra. Sonia Nussenzweig Hotimsky.
Resumo
A morte um fenmeno, que como qualquer outro da vida social, desperta a imaginao do homem, em busca de sua compreenso. Assim, os grupos humanos buscam explicaes que os ajudem se no a super-la, ao menos a diminuir os efeitos dolorosos de sua existncia. O que nos propomos a fazer nesse artigo analisar, por meio da descrio das prticas e crenas ligadas ao funeral, maneira pela qual os fiis da Assembleia de Deus Ministrio de Madureira em Osasco, constroem sua relao com a morte, e reproduzem por meio dos ritos, a estrutura hierrquica de sua instituio religiosa, mesmo em momentos em que a instabilidade da separao, resultante do falecimento de um membro da comunidade religiosa se torna uma realidade.
Palavras -Chave
Assembleia de Deus, morte, funeral, ritos e hierarquia.
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Para o homem religioso, a Natureza nunca exclusivamente natural: est sempre carregada de um valor religioso (ELIAS, 2001, p. 99). 1. Noo de morte: ritos e suas vrias interpretaes Ao longo do tempo, a morte tem sido objeto de vrios estudos, em vrias reas do conhecimento esse fenmeno tem sido analisado e interpretado de acordo com as ferramentas disponveis no arcabouo metodolgico de cada disciplina. Aris (1981) fez uma anlise importante das mudanas comportamentais dos povos do Ocidente em relao realidade da morte. Como historiador, apresentou essas mudanas em uma linha do tempo. Linha do tempo que privilegiou o passado em relao ao presente, isso no que se refere morte e o como morrer. Em sua obra, Aris (1981) faz varias menes sobre o modo calmo com que as pessoas morriam na Idade Mdia. Embora no se possa negar a contribuio de sua obra para o entendimento, e aprofundamento dos estudos sobre a morte, ela acabou sendo alvo de muitas crticas. Norbert Elias o criticou, por exemplo, pela sua viso romantizada da morte em tempos passados. O que Elias salienta que morrer pode significar tormento e dor [e] antigamente as pessoas tinham menos possibilidades de aliviar o tormento (ELIAS, 2001, p. 20). Na observao de Elias, o problema da obra de Aris, estaria no modo parcial como esse ltimo interpretava as literaturas usadas para constru-la. No que tange a antropologia, em trabalho recente, Lihahe (2010) destaca a influencia da tradio durkheimiana, e particularmente de Hertz (1970), nos estudos contemporneos sobre a morte. Ele tambm faz meno aos estudos do
antroplogo Cabral (1984) sobre os caminhos percorridos pela disciplina na investigao desse fenmeno. Segundo Cabral (1984), no sculo XIX, os estudos de James Frazer propunham que, tanto a noo de alma, como o surgimento da religio, teriam seus nexos causais nos estados contemplativos provocados pela morte em nossos antepassados (LIHAHE, 2010). Ainda, de acordo com o mesmo autor, no sculo seguinte, as teorias evolucionistas de Frazer foram substitudas pelo nascimento do estrutural funcionalismo, funcionalismo no qual a preocupao com a natureza simblica dos rituais d lugar a uma procura da funo social dos ritos funerrios como processos de restabelecimento da ordem social, posta em perigo pela ocorrncia da morte (CABRAL, 1984, p. 349-350 in LIHAHE, 2010, p.21). Enquanto os grupos sociais, religiosos ou no, desenvolviam dentro de seu campo simblico, mecanismos capazes de equilibrar seu corpo social, de maneira que o contato com a morte fosse enquadrado dentro do campo especfico de suas possibilidades interpretativas, a antropologia, dentre outros aspectos do seu campo de estudos, tambm esteve preocupada em entender o modo no qual esses mecanismos acionados nos ritos funerrios neutralizavam, ao menos em parte, os efeitos desoladores provocados pela experincia da morte. A capacidade criadora da imaginao do ser humano permitiu que esse elaborasse ideias e conceitos, que amenizaram a realidade de sua finitude. De acordo com Norbert Elias (2001), a partir do momento em que o homem adquiriu conscincia de sua limitao existencial, formulou fantasias na tentativa de suprimir esse conhecimento indesejado e encobri-lo com noes mais satisfatrias (ELIAS, 2001, p. 43).
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Supomos que como fruto da dinmica interacional entre o homem e a morte, a criao de mitologias, crenas e ritos, alm de ajudar a enfrentar o prprio fim, acabaram se transformando em elos entre os membros de cada sociedade, cultura e/ ou instituio religiosa. O que a literatura referente noo de morte nos mostra que as ocorrncias de morte nos seio dos agrupamentos humanos, orientaram-nos a construo de mecanismos ritualsticos, voltados a diminuir os efeitos de tristeza e horror provocados por ela. Em certa medida os ritos foram acompanhando o processo de desenvolvimento psquico e tecnolgico da humanidade. De acordo com Mauss (1999), a razo de ser de um rito s achada quando se lhe descobre o sentido, isto , as noes que esto e estiveram na sua base, as crenas s quais corresponde. Os sofrimentos experimentados na perda de seus entes queridos, juntamente com formulaes de crenas sobrenaturais, que indicavam uma vida alm-tmulo, estiveram presentes na criao desses ritos. Estudos recentes, envolvendo a noo de morte dentro do campo especfico da religio, trataram diretamente o rito funerrio e sua operacionalidade no luto. Demonstrando a forma como no velrio as relaes ritualsticas da comunidade so postas em funcionamento em funo do falecido. As anlises de Mapril (2009), referentes morte em uma comunidade islmica em Portugal, estiveram voltadas para a compreenso do modo como a gesto da morte e do morrer revelam as dimenses rituais da produo de lugares em contextos transnacional (MAPRIL, 2009, p. 219). A questo da morte foi tomada por Mapril (2009) como elemento acionador de contextos ritualsticos presentes no islamismo, que exigem o
traslado do corpo ao seu lugar de origem. Discorrendo sobre a noo de morte no judasmo, Zuchiwschi (2010) fez uma anlise dos ritos funerrios, discutindo o valor das preces [...] e, sobretudo, como as palavras sagradas podem ser transformadas, para alm do sentido primrio que possuem, em importantes instrumentos no processo ritual post mortem (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 187). Embora tenha colocada a prece como ponto central do seu estudo, s em funo do falecido que a prece toma sentido e forma. Outra pesquisa inserida nas anlises antropolgicas sobre a morte foi feita por Silva (2011). A autora analisou o ritual de enterro evanglico, com a finalidade de mostrar que mais que um protocolo rgido de comportamentos pr-estabelecidos [...] o rito evanglico [...] levaria em conta principalmente interaes e compartilhamentos de emoes que se expressam e se concretizam numa relao intima e complexa com a estrutura social maior (SILVA, 2011, p. 3). A proposta desse artigo o de contribuir para a compreenso do rito funerrio evanglico, mostrando como as prticas e crenas so acionadas nas igrejas Assembleias de Deus ministrio de Madureira em Osasco (ADMMO) como instrumento de conforto, bem como de reforo da f e da estrutura hierrquica dessa instituio. Cabe salientar que os hinos de conotao fnebre ritos orais - so entoados no s no velrio, mas tambm em outros cultos realizados no interior da igreja. Assim, os vrios sentidos, presentes nos cnticos direcionados a situaes de separao, no se restringem aos perodos do velrio, e transitam em diversos momentos onde a religiosidade dessa comunidade se expressa, funcionado como agentes tanto de conforto e unidade, como tambm de fortalecimento
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da estrutura hierrquica da igreja em outros contextos. Nesse sentido adotamos a noo de religiosidade formulada por Zuchiwschi. O conceito de religiosidade e no simplesmente de religio [que] deve ser entendido como um complexo pragmtico-relacional entre as mltiplas partes constitutivas dos preceitos religiosos (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 165). Juntamente com as ferramentas tericas que a antropologia me fornece, nesse trabalho tambm me valho de minha experincia acumulada como membro da ADMMO, e em algumas ocasies como pastor, em exerccio, dessa instituio religiosa que me forneceu o conhecimento referente aos seus mecanismos simblicos e ritualsticos. 2. ADMMO: contextualizando um processo Com a finalidade de contextualizar o leitor com o nosso objeto de pesquisa, ser feita nos pargrafos que se seguem uma descrio dos agentes e atores presentes nesse campo de atuao. No entanto, antes de nos voltarmos propriamente para os indivduos que vivenciam essas experincias, entendemos que necessrio fazer, uma breve descrio do surgimento da igreja Assembleia de Deus Ministrio de Madureira (ADMM), no Brasil. A igreja evanglica Assembleia de Deus Ministrio de Madureira, fruto da difuso do pentecostalismo norte-americano, ocorrido no incio do sculo XX. De acordo com Campos (2012),
[...] nesse perodo o campo religioso norte-americano estava carregado de foras centrfugas, e num curto perodo de trs anos centenas de fiis se transformaram em missionrios pentecostais, que influenciados por Los Angeles se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, depois para a
O movimento pentecostal que chegou ao Brasil, como fruto dessa difuso, descrito por Pinezi (2009), como sendo fruto da quarta corrente evanglica ocorrida na Amrica Latina. A primeira ocorreu, na primeira metade do sculo XIX, a segunda, nos anos de 1850 com o objetivo de implementar um campo missionrio que levasse [a populao] nativa converso (PINEZI, 2009, p. 201) e a terceira veio como fruto do descontentamento cristo com o proselitismo missionrio das igrejas protestantes histricas. Segundo Pinezi (2009), o incio do pentecostalismo ocorreu em uma Escola Bblica de Topeka, nos Estados unidos. O pastor Charles Parhan, com base nos trechos bblicos sobre o Dia de Pentecoste, concluiu que o batismo com o Esprito Santo, pessoa da Trindade capaz de realizar o processo de santificao e ratificar a converso, era evidenciado atravs da glossolalia ou do falar em lnguas estranhas (MENDONA, 1995 in PINEZE, 2009, p. 2001). Absorvido nas experincias de Parham e seus discpulos, aos 36 anos de idade William Seymour iniciou um trabalho religioso, no ano de 1906, em Los Angeles, especificamente na Azuza Street, que, em uma analogia feita por Campos (2012), era uma caixa preta da qual comearam a sair gritos, convulses, profecias, glossolalias, curas, milagres, prodgios e toda sorte de coisas. Se nesse perodo o movimento pentecostal tomou expresso, por meio do evangelho apaixonado de Seymour, de forma concomitante outro movimento foi tomando expresso. As dissidncias por questes teolgicas comearam a fazer parte do ciclo do pentecostalismo norteamericano. Dentre esses dissidentes, William
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Durham (1873-1912), que por conflitos causados por divergncias teolgicas, entre ele e Seymour, organizou a North Avenue Mission na cidade de Chicago em 1907. Entre os seguidores de Durham se encontravam Louis Francescon, fundador da igreja Congregao Crist no Brasil em 1910, assim como os suecos Daniel Berger e Gunar Vingren que fundaram no Belm do Par a igreja Misso da F Apostlica em 1911. Esta ltima teve seu nome alterado para Igreja Assembleia de Deus em 1918. Campos (2012) traz alguns dados importantes sobre o divisionismo1 iniciado na Assembleia de Deus em 1930, esse divisionismo fez nascer no Nordeste a Igreja de Cristo e, dois anos depois, tambm no Nordeste, a Igreja Adventista da Promessa. Os vrios ministrios das Assembleias de Deus, no Brasil: Belm, Madureira, Santos, Ipiranga etc., - podem ser vistos como continuidades do mesmo processo divisionista apontado nesse estudo feito por ele. Sendo uma filial das ADMM, a ADMMO foi fundada, no ano de 1948, no bairro de Presidente Altino (Osasco), como uma congregao da Assembleia de Deus Madureira do Brs (ADMMB). Em 1958, aps uma dcada funcionando em imveis alugados, construiu seu primeiro templo. Porm, s depois de oito anos (1964), conquistou a prerrogativa de um campo, deixando de ser mais uma congregao da ADMMB2. 3. Construo hierrquica de uma Igreja assembleiana A hierarquia da ADMMO construda em torno de princpios, que no arcabouo de crenas de seus fieis so derivados da vontade divina. A ideia de subordinao figura de um
lder entendida como um mecanismo divino que garante a segurana do grupo. Alguns trechos extrados da bblia so utilizados como elementos que fortalecem e cristalizam essas crenas. O princpio de hierarquizao entendido como reprodues modelares da dinmica existente entre os crentes e os seres divinos, como nos revela o verso bblico: Quero porm, que saibais que Cristo a cabea de todo homem, o homem a cabea da mulher, e Deus a cabea de Cristo (I Corntios, cap, 11, v. 3). Para os assembleianos3, o princpio de hierarquia um componente fundamental, tanto para a harmonia e equilbrio da vida, como tambm do cosmos. A quebra dessa hierarquia pode causar danos irreparveis para a vida da comunidade. Outros textos como: Obedecei a vossos guias, sendo lhe submissos; porque velam por vossas almas como quem h de prestar contas dela (Hebreus, cap, 13, v17) e No toqueis nos meus ungidos e no maltrateis os meus profetas (Salmos, 105, v. 15), so utilizados nos cultos, como sinalizadores do status sobrenatural, em que se encontram as lideranas constitudas na ADMMO. Em ordem decrescente encontram-se: pastores, evangelistas, presbteros, diconos, diaconisas e cooperadores. Todos esses so ttulos de diferenciaes hierrquicas do conjunto oficial de obreiros da ADMMO. Como em toda instituio hierarquizada, a regra o membro de status inferior obedecer aquele de status superior. Porm, nesse caso, essas regras se tornam mais rgidas, pois na concepo assembleiana a igreja uma instituio divina ela o corpo de cristo na terra, e sendo assim no pode estar desordenada. As regras so validadas e acionadas, no apenas nos permetro sagrados do templo, como em outros ambientes no qual a comunidade, por ventura possa se reunir esse padro de
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hierarquia tambm reiterado e reforado. A distribuio sexual das funes sagradas coloca as irms em um estado de submisso constante a figura dos fieis do sexo masculino, reproduzindo relaes tradicionais de gnero cuja anlise caberia ser aprofundada. Na ADMMO, alguns departamentos funcionam com base nessa distribuio. Porm o que prevalece a posio em que o fiel se encontra dentro do quadro de ttulos hierrquicos da igreja. O dirigente local de uma igreja da ADMMO, que tanto pode ser um pastor, evangelista, missionrio, dicono ou cooperador, sempre um crente do sexo masculino, e embora algumas irms possam receber o ttulo de pastor, esse ttulo sempre de carter simblico e nunca funcional. O centro das decises e orientaes, espirituais e materiais, gravitam em torno da figura do pastor. Para os assembleianos, ele o ungido de Deus. 4. Culto: Liturgia e ritualizao da f Os cultos da ADMMO se caracterizam por meio de um ritual litrgico, composto por diversas etapas, que servem tanto para organizar, como padronizar as aes dos fieis nos permetros do templo.
Oraes, cnticos (hinos evanglicos clssicos e avulsos), testemunhos, entregas de contribuies e pregaes, onde muitas vezes ocorrem manifestaes dos dons espirituais e atravs de cristos diferentes em cada manifestao (JUNIOR e MACDO, 2011, p. 157).
divinos. Na ordem do culto, ela a primeira. Por meio dela acredita-se mover a mo de Deus em sentido positivo aos membros da comunidade. Para o crente da ADMMO, o momento da orao tem um duplo carter, pois ela mecanismo de splica e de devoo. Por meio dela confessam-se os pecados espera do perdo, como tambm se agradece pelas benes passadas, presentes e futuras. Como sugere Mauss (1999), a prece antes de tudo um meio de agir sobre os seres sagrados; estes so influenciados por ela, nestes que ela suscita modificaes. A orao marca trs momentos do culto da ADMMO, ela feita no incio do culto, antes da pregao da palavra e no trmino do mesmo. A forma que assume esses perodos de orao deriva de movimentos crescentes na aproximao do fiel pessoa de Deus. Nas ADMMO elas so fruto da improvisao, e podem ser realizadas por qualquer membro da comunidade, seja ele do sexo masculino e/ou feminino, desde que seja chamado pelo dirigente da igreja. Ao comando do oficiante, toda igreja convocada a ficar de p, e aps o convite do mesmo, que em geral usa a expresso: igreja vamos orar e/ou oremos, a igreja levanta suas mos aos cus em sinal de splica e acompanha o oficiante, que em geral faz uso de um microfone, na realizao da mesma. Do modo que iniciada, ela tambm se encerra, ou seja, ao dizer o amm, o oficiante sinaliza o termino da mesma. A orao inicial feita com a inteno de agradar a Deus, pois Ele precisa aceitar o sacrifcio feito pelos fieis sua pessoa. De acordo com Mauss o sacrifcio um ato religioso que s pode ser realizado num ambiente religioso e por intermdio de agentes religiosos (MAUSS, 1999, p. 156). Para os fieis da ADMMO, que so conhecidos e fazem referncias a si mesmos como crentes assembleianos, o templo um
A sacralidade do templo coloca os fieis em um constante estado de temor e reverncia, impensvel para esses crentes iniciar o perodo de adorao sem que as atitudes divinas se lhes torne favorveis. Nesse sentido, a orao se torna o canal por meio do qual o adorador invoca os favores
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lugar sagrado, pois foi consagrado para Deus no momento de sua construo. Para o cristo assembleiano, essa forma de sacrifcio no feito por intermdio de objetos ou animais, e sim uma entrega total de sua pessoa aos servios divinos, pelo qual ele se torna sacrificante e sacrifcio, as duas funes se unem em um nico ser. Seus pensamentos e atos se movimentam em um nico sentido, a passagem da esfera profana a sagrada foi realizada, agora ele tambm sagrado. A referncia a textos bblicos que indicam esse tipo diferenciado de sacrifcio feita de forma constante e exaustiva nos cultos da ADMMO. Um dos textos mais lidos um do Apostolo Paulo que diz: Rogo-vos, pois, irmos, pela compaixo de Deus, que apresenteis os vossos corpos como sacrifcio vivo, santo e agradvel a Deus, que o vosso culto racional (ROMANOS, Cap, 12, v. 1). A diferena no entendimento entre a noo de sacrifico formulada por Mauss e a noo paulina4, encontra-se no carter da vtima a ser oferecida aos deuses. Se para Mauss o sacrifcio um ato religioso que, pela consagrao de uma vtima, modifica o estado moral da pessoa que o realiza ou de certos objetos, pelos quais se interessa (MAUSS, 1999, p.151), para os assembleianos esse estado moral modificado que oferecido em sacrifcio no momento do culto. Aps esse preldio intermediado pela orao, o culto segue em sua liturgia. So cantados hinos, que evocam, agradecem e suplicam a presena e aprovao divina dentro do ambiente onde o culto realizado. Aps o perodo devocional, facultado aos fieis assembleianos o direito de testemunhar e agradecer as bnos recebidas. Dentro de uma sequncia pr-estabelecida, o culto segue em sua dinmica. Embora obedea
a um padro litrgico linear orao, cnticos, testemunhos, pregao , esse formalismo no impede que ocorra manifestaes espontneas de fenmenos, que, dentro do campo simblico das crenas pentecostais, so entendidas como um sinal da presena de Deus. A ocorrncia de manifestaes, como as ocorridas em Azuza Street no inicio do sculo XX e citadas por Campos (2012) profecias, glossolalias, curas, milagres, prodgios , so recorrentes na dinmica do culto da ADMMO. Na tica dos assembleianos so interpretadas como manifestaes genunas do poder de Deus. Em certa medida, essas manifestaes funcionam como um movimento centrpeto, que tambm une e fortalece a crena do grupo. Como indicado anteriormente, a orao marcada por trs momentos distintos. Assim como o primeiro, que j foi descrito, os outros perodos, no qual a orao realizada, tambm contem suas especificidades. Talvez elas possam servir como objeto de estudos em outro momento. O que nos propomos a partir de agora analisar os hinos de conotao fnebre, contidos na ADMMO, por meio do rito funerrio. Para isso faremos uma descrio do velrio evanglico dentro da dinmica ritualstica da prpria instituio. Tentaremos, como foi proposto, apreender como os mecanismos de conforto e reforo das crenas, da organizao e da estrutura hierrquica da ADMMO, so acionados, dentro do crculo religioso assembeliano, por meio dos hinos fnebres postos em ao no velrio. Como parte constitutiva dos servios religiosos, os hinos desempenham a funo de ritos. Tomando de emprstimo, a anlise da prece como rito, formulada por Mauss (1999), os louvores e cnticos podem ser entendidos como ritos orais. Pois assim como a prece, eles tambm
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so atitudes e atos, assumidos e realizados em vista das coisas sagradas. So preces que, se dirigem a uma divindade e a influencia; consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados (MAUSS, 1999, p. 230). 4.1 Assembleia de Deus: Hinos funerrios e sua contextualizao no velrio Com relao ao velrio evanglico na ADMMO, alguns pontos de diferenciao no que tange a causa-morte de seus fiis devem ser levados em considerao. A sinalizao das diferentes circunstncias em que a morte ocorre serve para orientar a imaginao dos vivos em relao ao destino do falecido. Em circunstncias especficas a morte pode ser interpretada como um ato punitivo de Deus contra a pessoa do crente rebelde. Para os assembleianos a noo de rebeldia um indicativo da situao de marginalidade em que se encontra o fiel, dentro do contexto maior da ADMMO. A posio em que o crente se coloca em relao s prescries dogmatizadas pela religio possibilita a identificao do seu destino postmortem, assim, estar rebelde, significa viver na contramo do arcabouo de crenas prticas e ritos aceitos pela coletividade religiosa. Segundo Durkheim, uma religio um sistema solidrio de crenas e de prticas relativas a coisas sagradas, isto , separadas, proibidas, crenas e prticas que renem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem. (DURKHEIM, 2000, p. 32). Durkheim mostra, que a ideia de religio est amalgamada com a ideia de igreja, o que revela o carter coletivo dessa ltima. No caso do cristo que falece em estado de rebeldia, ser a coletividade e no ele, a descrever a sua situao no outro lado. O espao de crena desses fiis marcado
pela ambiguidade, na qual a ideia de salvao construda. Nesse sentido a salvao, nunca uma certeza, est sempre envolta por uma urea de dvidas. As relaes que so construdas e orientadas pela rigidez dessas prescries, requerem uma atitude de vigilncia permanente por parte dos assembleianos. Essa atitude provocada pelo temor constante de quebrar essas regras. Para eles, a obedincia acaba se tornando a melhor soluo. 4.2 Circunstncias da Morte Caso o fator causador da morte seja uma enfermidade, na maioria dos casos de conhecimento do grupo. A expectativa da passagem, morte, algo explcito para os membros da igreja local. Em situaes como esta, em que a morte ocorre, existe uma preparao psicolgica prvia das reponsabilidades e papis que sero desempenhados no rito fnebre. Os membros que compe a comunidade religiosa sabem das implicncias e responsabilidades da morte de um irmo (a). Tanto que, no processo de enfermidade a igreja procura, por meio de visitas e de oraes confortar o enfermo. Embora toda a congregao seja livre para fazer essas visitas, para o pastor ela se constitui em uma obrigao, pois o mesmo visto como uma espcie de sacerdote, investido de legitimidade e poderes msticos que podem ser usados como instrumento de cura e de restaurao do enfermo. De acordo com Mauss (1999), o sacerdote:
[...] est marcado com um selo divino. Traz o nome, o ttulo ou o trajo do seu deus; seu ministro, sua encarnao mesma, ou ao menos o depositrio de seu poder [...] est no limiar do mundo sagrado e do profano e os representa simultaneamente. Eles se unem nele (MAUSS, 1999, p. 160).
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O valor simblico atribudo, por Mauss (1999), a figura do sacerdote tambm pode ser entendido como uma atribuio do fiel ao pastor de sua igreja. Nesse sentido ser visitado por ele ser colocado em contato direto com o Ser divino que nele est representado. Nessas visitas, so cantados hinos e feitas oraes na tentativa de restabelecer a sade do doente. Dentro desse contexto, a aplicao de ritos orais funciona como agentes de conforto, no s do enfermo, mas de todos os membros da comunidade presentes. Os hinos que so cantados nessas ocasies evocam ao doente os benefcios da fidelidade aos preceitos religiosos em vida, como nos mostra a estrofe desse hino:
Embora s vezes o crente As dores sofra da cruz, Gozo ter permanente, Quando no cu vir Jesus De glria coroado No trono divinal, Por anjos sempre louvado, Num coro celestial. (CPAD, Hino 204, 3 estrofe).
palavras, alm da morte biolgica encerrar as interaes interpessoais do falecido, as crenas religiosas dos assembleianos probe qualquer tipo de comunicao com o morto. Sendo assim, o sentido das visitas vai alm do conforto concedido ao doente, elas tambm so uma forma de antecipar a despedida entre eles e sua comunidade. Quando o fator causador da morte um acidente, a nica coisa que muda a ausncia de um conhecimento prvio sobre fatores, como doenas, responsveis pela partida do fiel. Quando a morte inesperada, priva a comunidade desses momentos de despedida. 4.3 Como a morte interpretada Existem dois modos de se interpretar a morte na igreja ADMMO, uma atravs da vontade de Deus. Aqui a partida interpretada como uma passagem harmoniosa, mesmo que o sofrimento da enfermidade tenha estado presente. A morte entendida como um estado no qual se cruzam o momento de passagem do crente e a vontade de Deus. Em outras palavras o fiel j estava preparado para entrar no Cu, da a expresso entre eles: Deus preparou e levou. Porm, cabe a ns entendermos como essa preparao ocorre. A noo de morte, como dito anteriormente, no lanada para longe dos bastidores da vida do fiel, a todo o momento ele lembrado de que um dia tambm ir morrer. Paulatinamente, a noo de morte introduzida dentro do campo interpretativo do fiel. Por meio da transmisso dos contedos orais pregaes, estudos, hinos e escritos ele introduzido na mstica morturia contida nas crenas da ADMMO. Este outro fragmento de um hino, nos ajuda a exemplificar nossas proposies. Ele nos permite olhar mais de perto, o modo como os cnticos influenciam a forma pela qual o assembleiano concebe a vida e a morte,
Como citado no comeo desse trabalho, os hinos de conotao fnebre transitam para alm da esfera do velrio. Na estrofe acima citada, o dualismo entre o sofrimento e a noo de gozo, constri e refora as crenas do fiel em seus ltimos momentos, junto a sua comunidade de pertencimento. Por outro lado reforado naqueles que visitam a cincia de que um dia se encontrar em situao semelhante a do doente. As referncias ao cu, anjos e outras coisas relacionadas a um mundo sagrado, so sempre reiteradas nessas ocasies. Como bem salientou Silva (2010), o sistema cosmolgico evanglico apresenta a morte como uma dupla quebra de comunicao com o defunto (SILVA, 2010, p. 7), em outras
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como tambm a maneira que suas emoes so condicionadas por esta experincia.
Nada aqui permanente, Tudo tem que terminar, Mas olhamos para frente, Para o nosso eterno lar. Os remidos c enterram Seus amados ao morrer, Mas um dia, sim, esperam Que no cu os ho de ver. (CPAD, Hino 251, 2 e 3 estrofe).
divinas e suas consequncias materiais no corpo, na situao do culpvel, em seu futuro no outro mundo (MAUSS, 1999, p. 190). 4.4 O momento em que a morte ocorre: Em ambos os casos, quando ocorre morte prevista ou acidental uma rede de transmisso de noticia mobilizada. Depois dos familiares; o pastor passa a ser a pessoa mais procurada. Em geral ele recebe varias ligaes informando a morte do fiel. Nessa rede est includa: famlia do falecido, obreiros que auxiliam o pastor, juntamente com os fieis que mantm uma relao de maior proximidade com este ultimo. Em suma, o ato de avisar o pastor, ao mesmo tempo em que necessrio para a organizao do culto fnebre, tambm serve para demonstrar o apoio e/ou apreo que essas pessoas tinham pelo falecido, como tambm uma forma de se colocar a disposio do pastor e da igreja para eventuais servios que envolvam o funeral. 4.5 O velrio e suas implicaes Aps a famlia, o pastor e seus obreiros (auxiliares) devem ser os primeiros a chegar ao local no qual o corpo ser velado. Nota-se que, nesse caso, o termo velado, refere-se apenas ao local e a alguns ritos que so especficos no funeral do evanglico que pertencia a Igreja Assembleia de Deus. O uso de Velas, libaes ou outros objetos, como cruz ou rosrios no esto presentes nesse ritual. Basicamente os ritos orais acionados no velrio incluem cnticos hinos oraes e a pregao e/ou discurso bblico. Geralmente, a dinmica do culto que ali ser realizado organizada em funo do horrio em que o corpo ser enterrado, um espao de tempo de mais ou menos meia hora suficiente para que o culto cnticos, pequenos discursos e a
Aqui a dualidade entre transitoriedade e permanncia colocada frente a frente, o carter mrbido da morte absorvido no momento de passagem. Dois espaos sobrepostos ficam ntidos nesse cntico, o aqui e o l, que podem ser entendidos como trmino ou descontinuidade biolgica e continuidade espiritual. Como sugere Silva (2010), existe a defesa constante de uma cosmologia que prev espaos separados de atuao para vivos e para os mortos (SILVA, 2010, p. 7), que explicitada neste e em outros hinos. A outra maneira, na qual os assembleianos interpretam a morte de um de seus irmos de f, v-la como um castigo pela desobedincia s prescries impostas por Deus ao crente. Essas prescries podem estar contidas na prpria bblia, como tambm podem ser transmitidas de forma sobrenatural profecias, revelaes, sonhos. Aqui o pecado no confessado, ou a teimosia em no se submeter a um chamado divino para um papel especfico ser um missionrio, pregador, pastor etc. que leva morte. Nota-se que um forte sentimento de temor permeia as relaes desses fiis em seu contato, com Deus, o mundo e as coisas. Como afirma Mauss (1999), esse temor intrnseco religiosidade, pois a conscincia religiosa, mesmo a de nossos contemporneos, nunca separou exatamente a infrao das regras
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pregao da bblia seja executado. Na maior parte dos casos, a igreja j sabe com certa antecedncia o horrio em que o corpo chegar ao cemitrio. Em decorrncia disso a postura dos crentes, que para ali se dirigiro, deve ser coerente com essa ocasio. Existem regras que no so declaradas s pessoas que no fazem parte do grupo, mas que, no entanto esto claras para os fieis de uma mesma igreja. Essa postura envolve os hinos que sero cantados, a palavra que ser pregada, enfim uma sequncia de elementos ritualsticos que esto presentes nesse momento importante, no s para a famlia, mas tambm para a comunidade como um todo. Em geral o pastor comparece a esses eventos usando terno e gravata, no entanto essa no uma regra rgida. Isso tambm se aplica para o restante da comunidade. A mensagem contida nos hinos carregada de um profundo simbolismo, que pontua para a comunidade, a proximidade do fiel a pessoa Divina, como tambm refora, nela, a crena em um mundo ideal, onde haver a possibilidade de fruio de uma existncia melhor. O hino abaixo contm em seus versos elementos que mistificam positivamente a morte.
1 Junto ao trono de Deus preparado H, cristo, um lugar para ti; H perfumes, h gozo exaltado, H delcias profusas ali; Sim, ali; sim, ali, De Seus anjos fiis rodeado, Numa esfera de glria e de luz, Junto a Deus nos espera Jesus. 2 Os encantos da terra no podem Dar idia do gozo dali; Se na terra os prazeres acodem, So prazeres que acabam-se aqui; Mas ali, mas ali As venturas eterna concorrem Co'a existncia perptua da luz, A tornar-nos felizes com Jesus.
3 Conservemos em nossa lembrana, As riquezas do lindo pas, E guardemos conosco a esperana, De uma vida melhor, mais feliz; Pois dali, pois dali Uma voz verdadeira no cansa De oferecer-nos do reino da luz, O amor protetor de Jesus. 4 Se quisermos gozar da ventura Que no belo pas haver, somente pedir de alma pura, Que de graa Jesus nos dar. Pois dali, pois dali Todo cheio de amor, de ternura, Desse amor que mostrou-nos na cruz, Nos escuta, nos ouve Jesus. (CPAD, Hino 202).
medida que membros da comunidade vo chegando ao local em que o corpo est sendo velado, o primeiro ato o de compartilhar da dor dos parentes enlutados. So dirigidas palavras de condolncias famlia do falecido, e na sequencia aproximam-se do corpo. Nesse sentido o valor das condolncias no pode ser buscado apenas nas palavras que so dirigidas aos familiares, e sim pelo simbolismo dos gestos nela contido. Como parte dos ritos presentes no velrio esse ato de compartilhar da dor dos parentes enlutados libera o acesso ao corpo do falecido. por meio dele que o fiel se sente autorizado a compartilhar do processo de ruptura e integrao provocado pela morte. Ruptura em relao ao falecido, integrao no sentido das foras que evocam e renem toda a comunidade em um mesmo evento. Essa sequencia de atos se d quase de forma automtica, isso pelo fato da famlia ficar a maior parte do tempo ao lado do ente que partiu. Nesse sentido o processo ritual de compartilhar da tristeza do enlutado por meio das condolncias cumpre o seu papel. Existe uma espcie de uniformidade nesse ato, pois todos que para ali se dirigem se vem numa espcie de dever
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em realiz-lo. Para Elias (2001), os rituais de morte podem provocar nos crentes sentimentos de que as pessoas esto pessoalmente preocupadas com eles, o que sem dvida a funo real desses rituais (ELIAS, 2001, p. 36). Antes do culto as pessoas ali presentes, apos olhar a face do falecido se renem em grupos de afinidade a fim de fazer pequenas reflexes e comentrios a respeito do morto e outros assunto, que nem sempre se relacionam com a finitude da vida. De acordo com Silva (2011):
O hbito de avaliar a face do morto imprime ao momento de chegada do corpo uma dose maior de ansiedade. Refora ainda mais sua emocionalidade. Afinal, a face do morto pode revelar dados morais da trajetria crist daquela pessoa e confirmar seu destino pstumo. Ao encontrar a face feliz, imediatamente, certa tranquilidade toma conta dos enlutados. a confirmao da abrangncia dos estatutos cosmolgicos que preveem a vida eterna no paraso. (SILVA, 2011, p. 6)
pessoas no local. A morte nesse caso se torna um evento social de maior envergadura. O pastor s comea o culto quando o nmero de pessoas suficiente. No que exista um numero prescrito de fiis para que o culto seja iniciado. A questo aqui se refere ao vinculo de irmandade existente no grupo. As informaes referentes aos motivos trabalho, viagens, enfermidades etc. que impedem a ida de alguns irmos ao velrio so quase sempre repassadas aos presentes no ir ao velrio sem motivo justo, pode ser interpretado como descaso pelo falecido e sua famlia. A cabeceira do caixo fica reservada para o pastor e seus auxiliares (obreiros), enquanto que a famlia fica ao redor, literalmente do lado do caixo, as outras pessoas presentes se esforam para ficar mais prximo do mesmo. Caso o nmero de obreiros auxiliares do pastor seja muito grande, ao seu lado permanecem somente aqueles mais prximos de sua posio hierrquica. Esse fato refora e reitera a estrutura hierrquica da ADMMO. Na realidade a estrutura acaba sendo deslocada para as dependncias do cemitrio. A dinmica ritualstica que norteia o culto fnebre pode ser encarada como uma reproduo e ao mesmo tempo extenso do culto na igreja propriamente dita porm a conotao do culto no velrio diferente em essncia daquele realizado na casa de Deus. Na igreja, a alegria, o agradecimento e a esperana das preces ouvidas por Deus e pela sua presena a motivao central. J no velrio o inverso que o verdadeiro, pois a tristeza, a reflexo e a certeza da finitude o que marca a dinmica ritual do culto. Embora a inteno na escolha dos hinos a serem cantados seja a de promover o conforto; o contedo de carga emocional negativa que
Um dado importante se encontra no nmero de pessoas que se dirigem ao funeral. Ele um indcio do prestgio social do falecido no interior da comunidade religiosa a qual pertence. quase certo que o velrio de um fiel carismtico rena mais assembleianos, que uma pessoa que no seja portadora dessa espcie de prestgio. A posio e/ou papel social do fiel em vida, dentro do seu circulo religioso, tambm influenciar nessa contabilidade. No caso do falecimento de um pastor, um pregador renomado, um cantor, um profeta etc. a circulao de pessoas no local sempre expressiva. Nesses casos, podem ocorrer divergncias em relao ao local no qual o corpo ser velado. Se o falecido for o pastor presidente da igreja, seu corpo velado na igreja matriz, fator que promove a exacerbao da circulao de
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quem vai louvar. Os hinos, quase sempre, falam da passagem, ou seja, fazem meno da finitude humana, como tambm das exigncias impostas por Deus queles que pretendem morar no Cu.
1 No cu no entra pecado Fadiga, tristeza, nem dor; No h corao quebrantado, Pois todos so cheios de amor, As nuvens da vida terrestre No podem a glria ofuscar Do reino de gozo celeste, Que Deus quis pra mim preparar! Coro Irei eu p'ra linda cidade, Jesus me dar um lugar, Co'os crentes de todas Idades, A Deus hei de sempre louvar. Do cu tenho muitas saudades, Das glrias que l hei de ver; Oh! Que gozo vou ter, Quando eu vir meu Senhor, Rodeado de grande esplendor. (CPAD, Hino 422, 1 estrofe e coro).
semelhana do culto na igreja, no velrio ele sempre iniciado por uma orao que o precede. A orao sempre realizada por um fiel escolhido diretamente pelo pastor. Em geral o oficiante da orao um dos obreiros que o ladeiam, e so sempre do sexo masculino. Em certo sentido ele no escolhido pelo mecanismo da improvisao, pois o pastor tem no exerccio de suas funes realizadas nos cultos feitos na igreja, o conhecimento dos obreiros que tem maior conhecimento da bblia, eloquncia e comedimento nos momentos de se expressarem diante da congregao religiosa. Se o obreiro que est ao seu lado no tem esse requisito, certamente ser ele quem far a orao. Nesse sentido existe uma gradao do prestgio entre obreiros do mesmo cargo, pois embora seja pontuado para a igreja no momento das escolhas para a oficializao de certos ritos como orar, cantar e pregar o lugar que se ocupa dentro da estrutura geral, a escolha daquele e no desse obreiro pelo pastor, um sinal indicativo de sua relevncia, perante no s o pastor, mas tambm do grupo. Aps a orao, o pastor, que o ministrante oficial, abre espao para o cntico de alguns hinos, geralmente trs. A escolha do cantor sempre orientada por um conhecimento prvio do pastor, no que diz respeito, a posio dentro da estrutura da igreja, como as aptides musicais de
As regras da f se encontram implcitas logo na primeira linha do hino. O pecado, que na cosmologia assembleiana, qualquer ato de desobedincia vontade divina, materializado nas palavras, atitudes e aes, que vo na contramo dessa vontade. Nesse sentido o hino refora ainda mais o conjunto de crenas dessa comunidade, pois a no observao dessas normas significa incompletude da promessa, ou seja, se torna impossvel ver as glorias do cu. Algumas vezes o pastor envia um auxiliar para represent-lo, caso algum imprevisto o impea de realizar o culto fnebre. Nesse caso no qualquer auxiliar. Em geral o segundo dirigente, o obreiro designado a realizar essa tarefa. Caso esse tambm no possa comparecer, segue-se uma escala, de escolha, decrescente na ordem dos obreiros oficializados para substituir a funo pastoral dentro da igreja local.
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Aps os cnticos, aberta a oportunidade para que pequenas mensagens (saudaes) sejam dirigidas aos presentes O culto sempre realizado para os presentes, para os vivos, e nunca para o morto, pois ele no est mais l. Est em outro lugar, geralmente no Cu. Nesse sentido as chaves interpretativas no que se refere idealizao da posio do morto em relao comunidade difere, se comparado entre as noes islmicas e judaicas do mesmo. De acordo com Jos Zuchiwschi (2010):
O costume judaico de reverenciar os mortos por meio de preces, oraes alm do cumprimento de outros comandos divinos [...] tm como objetivo proporcionar alma do falecido mritos que a faam ascender nos degraus da santidade espiritual. (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 170)
Algo parecido ocorre no funeral islmico. Segundo Jos Mapril, (2009), dentro da cosmologia islmica, as oraes e invocaes que tragam benefcios ps mortem ao falecido algo recorrente nessa religio. A ideia de alterar o destino do falecido uma possibilidade no campo simblico da comunidade islmica e judaica. Para os judeus e muulmanos essa realidade um devir, uma construo em movimento, que pode ser alterada em decorrncia das splicas e preces da comunidade. Assim, parte do sentido de comunho entre os fiis destas religies, que se d por ocasio dos seus respectivos ritos funerrios, advm da cooperao da coletividade em torno deste objetivo de auxiliar na ascenso da alma do falecido. Para os evanglicos, por outro lado, essa possibilidade se exaure com a chegada da morte. Momentos antes de encerrar o culto, o pastor faz a pregao oficial e/ou convida um de seus obreiros (auxiliares) a faz-la. Em geral
esses obreiros so escolhidos pelo mesmo critrio citado no momento da orao inicial, ou seja, so do sexo masculino e em ordem decrescente na hierarquia, esto mais prximos ao pastor. No velrio, a pregao tem vrias conotaes. Em geral os versculos bblicos utilizados na pregao so selecionados a priori. E quando a pessoa escolhida para pregar inicia sua mensagem, aparecem, na maior parte das vezes, conotaes e ou intenses que podem ser divididas em trs: mensagens de conforto, exortativa e/ou evangelstica. A mensagem de conforto ressalta as qualidades espirituais positivas, observadas no histrico da vida do falecido. Esta tem por funo diminuir o sofrimento da famlia e dos fiis, j que o morto foi para um bom lugar. A mensagem exortativa consiste em um alerta direto referente aos perigos do no cumprimento dos mandamentos divinos, pois a finitude e brevidade da vida esto evidenciadas por meio do corpo que repousa inerte no caixo. A mensagem evangelstica busca convencer o pecador (no evanglico), a aceitar a f crist, e como consequncia dessa converso ter garantida a salvao da alma e um lugar no cu. Ao final da pregao, outra orao feita. As oraes tem, quase sempre, um carter confortante. Ao final desse cerimonial o morto liberado por alguns minutos, pelo pastor, afim de que parentes e amigos o contemplem mais uma vez. Digo mais uma vez, pois em alguns casos a tampa do caixo retirada a pedido da famlia antes que seja depositado na sepultura e recoberto com terra pelos coveiros. 4.6 ltimo adeus: o sepultamento encerramento de um ciclo ritual e
Aps o culto, o caixo levado em direo ltima morada terrestre do fiel que partiu. O pastor, familiares e obreiros so os primeiros
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a pegarem nas alas do caixo, assim auxiliando o transporte do falecido cova. Nem sempre o caixo carregado pela comunidade religiosa local, em alguns casos o coveiro transporta o mesmo em uma espcie de carrinho feito para esse fim. A caminhada se d, de forma silenciosa, pois tratar de assunto do cotidiano pode ser interpretado com um desrespeito. Tambm, silenciosa, a forma na qual a figura do pastor solicitada nesse momento. Ele precisa chegar, mesmo que no seja antes, ao menos ao mesmo tempo em que o corpo ao local da sepultura. A comunidade o enxerga, como um guia, seu lder espiritual terreno. Esse fato revela o sentido da organizao hierrquica que se expressa nas prticas e nos ritos da ADMMO, a referncia representatividade divina, na pessoa do dirigente da congregao algo que se amalgama s noes de crena desses fiis. Ao chegarem ao endereo no qual o corpo ser depositado a cova j se encontra aberta, e quando a maioria dos familiares est presente, o pastor novamente convoca os fiis a cantarem mais alguns hinos, e, caso seja o desejo dos familiares, o caixo reaberto mais uma vez, para que o rito da despedida seja enfim terminado. Aps os cnticos, o caixo baixado, e enquanto ele vai sendo coberto por ps de terra; o pastor e/ou obreiro escalado para oficializar o culto fnebre recita alguns versculos bblicos e assim o velrio encerrado. 5. Consideraes finais Ao descrever os ritos funerrios acionados no velrio da Igreja evanglica Assembleia de Deus Ministrio de Madureira em Osasco (ADMMO), procuramos analisar o simbolismo contido no culto fnebre.
Vimos que o fenmeno da morte, ao invs de ser superado pelo seu esquecimento reiterado a todo o momento no campo de crenas e valores desses fiis. medida que a morte interpretada como passagem para a vida eterna, a antecipao da passagem sinalizada em diversos espaos litrgicos, contribuindo para a consolidao da religiosidade dos fiis. O que no significa que os seus efeitos temerosos e entristecedores no sejam sentidos, mas sim diminudos em sua intensidade. Demonstramos como ritos orais oraes, pregao e cnticos - so elementos que transitam dentro e fora do contexto do ritual funerrio, ajudando no s a fortalecer e confortar a comunidade no momento do velrio, mas tambm transportam todo um conjunto de normas e regras que compe a estrutura hierrquica das ADMMO para alm da sacralidade do templo. Assim, mesmo em um contexto que provoca a exacerbao das emoes, essa estrutura se conserva e se reproduz. Esperamos que essa singela reflexo, sirva de ponto de partida para outros questionamentos referentes morte e suas implicaes no contexto religioso de outros grupos.
Notas:
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Divisionismo um termo cunhado por Campos (2012), para explicar as situaes de ruptura e criaes de igrejas independentes a partir de uma matriz anterior. Vide http://www.adosasco.org.br Assembleiano uma expresso cunhada pelos cristos protestantes evanglicos brasileiros, como forma de identificar os fies pertencentes ao circulo das igrejas Assembleias de Deus. Aqui a noo paulina uma referencia, ao modo como
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o apostolo Paulo diferenciava as formas de sacrficos no judasmo e no cristianismo de seu perodo. Na poca de Paulo, era comum aos sacerdotes judeus oferecerem sacrifcios de animais como forma de culto a Deus, a proposta de Paulo para os cristos era: ao invs deles sacrificarem animais, seria mais recomendvel viver de forma condizente aos preceitos impostos pelo cristianismo.
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Democracia ou ditadura na Europa? Uma contribuio discusso sobre democracia CHRiSTOPH HESS
ameaam as maiorias parlamentares de maneira parecida. A Itlia entrou numa crise poltica depois das ltimas eleies, incapaz de formar um governo para mais de trs meses. At na Alemanha, polo e centro estvel na UE, as maiorias parlamentares nas eleies de setembro de 2013 esto em perigo. Diante dessa situao, as elites e a imprensa na Europa esto preocupadas com a legitimidade da democracia. O jornal espanhol El Pais escreveu sobre um choque de democracias. Polticos em todos os pases se mostram preocupados diante do aumento de extremismo e populismo. Os funcionrios europeus em Bruxelas falam que seria necessrio explicar melhor as polticas de reformas, para que, dessa forma, os cidados no perdessem a confiana nas instituies e pudessem entender os cortes que esto sofrendo. Todo este discurso mostra a necessidade de uma ampla discusso sobre o que realmente significa o conceito de democracia. Isso porque, se analisarmos com mais cuidado, o que se percebe que a Unio Europeia exerce uma poltica extremamente antidemocrtica, argumentando, ironicamente, respaldada pelos valores democrticos. Na atual conjuntura, todos os pases da Europa esto passando por polticas de cortes nos servios pblicos e de uma massiva precarizao das condies de trabalho. Se gasta quantidades de dinheiro incrivelmente altas para o resgate de bancos e fora, ao mesmo tempo, os governos nacionais a exercer cortes brutais contra a classe trabalhadora. Toda a poltica da Unio Europeia est dirigida com o paradigma de que se deve acalmar os mercados financeiros. Em benefcio desses mercados, nenhum esforo medido sendo que cada resgate de um pas ou de um banco tem este objetivo. Diante disso, os pases europeus caem
de joelhos em prol de um mercado financeiro que leva os estados abordo de um colapso. Ou seja, se a poltica dos pases no contribui de modo suficiente para este paradigma, no se teme a estratgia de suspender governos e instalar governos tcnicos, como j foi feito na Grcia e na Itlia. Governos esses que eram sempre defendidos com o argumento de terem sido democraticamente eleitos. Estes acontecimentos deveriam chamar a ateno e colocar em voga algumas questes, muito alm da Unio Europeia. Se so governos democrticos, governos que deveriam representar o desejo do povo, como pode ser que todos estes governos no importa se formado de partidos chamados de direita ou de esquerda aplicam uma poltica de cortes contra a prpria populao, sempre em busca de agradar os mercados financeiros? So os mercados financeiros que elegeram estes governos? So os mercados financeiros que representam a maioria do chamado povo? Como possvel que em um mundo cada vez mais rico, economicamente mais potente, os polticos autointitulados democrticos no deixam de argumentar que seria necessrio apertar o cinto para poder dar bilhes de Euros a bancos e outras entidades financeiras? No verdade que hoje na Europa a democracia est em perigo ou em questo. O que se est sendo questionado e isso muito necessrio e positivo o atual modelo de democracia, o contedo da democracia. exatamente isso que reclamam los indignados na Espanha quando reivindicam uma democracia real. O sentido como est sendo usada a noo de democracia altamente ideolgico. Termos mais adequados seriam democracia
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parlamentria ou democracia burguesa. O primeiro indica que se trata de um modelo institucional muito concreto, uma forma particular de organizao da chamada democracia. O segundo indica que se trata tambm de um sistema econmico, de uma relao de poder de classe. Esse sistema o capitalismo. Se uma crise econmica leva a ataques a classe trabalhadora e outras classes oprimidas, tradicionalmente organizados fortemente na maioria dos pases europeus, elas reagem na sua conscincia poltica. Desse modo, as elites dizem que a democracia que est em perigo, sendo que, na verdade, o que est em perigo o poder institucional estabelecido nas ltimas dcadas. E assim a discusso sobre a democracia. No se discute mais o que o contedo da democracia, ou sobre o que seria a forma adequada de estabelec-la. Nem mesmo se problematiza como tem se dado o vnculo entre economia e democracia, quais so as formas histricas de democracia etc., que so questes centrais para a busca de uma democracia real. Hoje apenas se discute como seria possvel melhorar as instituies do estado democrtico, como se poderia ampliar a participao nesse mbito, se as instituies trabalham numa forma eficaz etc. Ou seja, o paradigma da democracia parlamentria burguesa no est sendo mais questionado, mas est dado, nos deixando sem alternativa possvel. A democracia a democracia parlamentria burguesa, no existe outra forma. Assim a discusso poltica sobre a democracia est sendo separada da discusso econmica. O socilogo Florestan Fernandes, refletindo sobre a redemocratizao do Brasil nos finais dos anos 80, escreveu que: A democracia , sem dvida, um valor; mas ela no escapa s determinaes da sociedade civil. Por isso, no
pode ser representada como um valor em si e, muito menos, como um valor abstrato. (citado em Leandro Konder, Histria das ideias socialistas no Brasil). As determinaes da sociedade civil marcam as possibilidades de uma democracia, o que significa, por conseguinte, que a democracia pura no existe. Nesse sentido, portanto, a democracia significa exatamente o que Fernandes chama de um valor abstrato. O sistema poltico, que poderia ser tanto uma ditadura aberta como um sistema democrtico, so expresses institucionalizadas de foras de classe na sociedade. Uma contribuio mais aprofundada sobre o carter da democracia, por sua vez, pode ser encontrada em Lenin, quando argumenta que:
natural para um liberal falar de democracia em geral. Um marxista nunca se esquecer de colocar a questo: para que classe? Toda a gente sabe, por exemplo [...], que as insurreies e mesmo as fortes agitaes dos escravos na antiguidade revelavam imediatamente a essncia do Estado antigo como ditadura dos escravistas. Essa ditadura suprimia a democracia entre os escravistas, para eles? Toda a gente sabe que no.
E mais:
A no ser para troar do senso comum e da histria, claro que no se pode falar de democracia pura enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe. [...] A democracia pura uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os operrios. A histria conhece a democracia burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletria, que vem substituir burguesa. (Lenin, A revoluo democrtica e o renegado Kautsky, Novembro de 1918).
Aqui Lenin deixa muito claro como a sua interpretao de democracia. Ao mesmo
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tempo em que o parlamentarismo uma forma de democracia de classe, ele uma forma de ditadura de classe. Democracia e ditadura nesse sentido no se excluem, no so opostos, mas se completam numa forma dialtica. Voltando s palavras de Florestan Fernandes, por esse motivo que a democracia no escapa s determinaes da sociedade civil. Nesse sentido, a democracia parlamentar tambm no pode mudar o sistema econmico em que se funda: o capitalismo. Antes que um governo tente fazer isso, a burguesia toma conta da situao com uma ditadura aberta e dissolve a democracia, como pode ser observado em inmeros exemplos ao longo da histria do sculo XIX e XX. Para a classe dominante, a burguesia, extremamente importante que a noo de democracia seja utilizada num sentido mais abstrato, o que evidencia o fato de que a democracia, por si, somente pode existir numa economia capitalista. Diante disso, possvel afirmar, inclusive, que a atual situao da Unio Europeia pode ser interpretada tambm dessa maneira. Como a sua economia entrou em crise por razes que no cabem ser discutidas aqui as suas instituies de poder de classe tambm entraram em crise, fazendo com que se perdesse a capacidade de manejar as diversas tenses sociais e polticas em vrios pases. Analisando essa experincia na Europa e discutindo o sentido e contedo da democracia, tambm preciso interpretar e discutir as iniciativas para fortalecer a democracia, como por exemplo, a chamada participao ou democracia participativa. Na maioria dos pases europeus existem mecanismos mais ou menos funcionveis de participao da sociedade civil. Mas isso no evita ou muda o fato de que hoje a poltica na UE est sendo ditada pelo capital.
Elementos de participao podem funcionar como uma forma contrria ao poder das instituies de classe. Mas eles tambm podem funcionar para fortalecer o sistema parlamentar existente e, assim, o poder dos capitalistas. No contexto hegemnico burgus, sem uma teoria nem uma organizao contrrias, eles acabam funcionando nesse ltimo sentido. As experincias com participao na Europa e mais ainda na Amrica Latina (Brasil, Venezuela) demonstram isso. Para concluir, Slavoj iek argumenta que a democracia parlamentar vive um momento muito totalitrio. Valeria a pena, portanto, discutir a chamada democracia participativa nesse contexto. At porque, nenhum sistema mais totalitrio do que este que produz uma sociedade oprimida, exercendo uma ditadura de classe sobre seu povo, ainda que esteja revestido pelos ideias de participao.
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Rafael Trindade
Resumo
Este estudo pretende investigar a teoria sartreana sobre o Outro para melhor compreender as relaes humanas. Sartre desenvolve em seu livro, O Ser e o Nada, a teoria sobre o Outro, e tambm o conceito da conscincia de ser visto. Nela, os conceitos de Em-si e Para-si entram em uma relao estreita ante o olhar do outro, dando origem a uma nova forma de manifestao do ser: Para-outro. O conceito de Ser-Para-outro implica, primeiramente, em reconhecer sua existncia, mas alm de existir como objetidade e poder ser visto, o outro pode tambm me olhar, se utilizando, assim, de sua transcendncia para me transcender. Deste modo, tenho que admitir a possibilidade de ser transformado em um objeto para o Outro. Atravs da conscincia de ser visto, passo a ter a conscincia de existir, assim, atravs do olhar, constituo minha prpria essncia.
Abstract
This study intends to investigate Satres theory about the Other for a better understanding of human relationships. Sartre develops in his book Being and Nothingness the theory about the other, and also the concept of the awareness of being seen. In his ontology the concepts For-Itself and In-Itself engage an intrinsic interconnection in relation to the Others eyes originating a new way to reveal oneself: For-The-Other. This BeingFor-The-Other concept implies first of all in the recognition of the existence of the Other who besides existing as subject and able to be seen, can also look at me, using his transcendence to transcend me. In that way, I have to admit the possibility of being transformed into a subject for the Other. It is through the consciousness of being seen that I develop the consciousness of existing therefore through the Other's eyes I compose my own essence.
Palavras -Chave
Sartre; Outro; Olhar.
Key words
Sartre; Other; to look.
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Introduo Quando Sartre, ainda estudando filosofia na cole Normale Suprieure, foi introduzido ao mtodo fenomenolgico, Raymond Aron, apontando para seu copo, lhe disse "estas vendo, meu amigo: se tu s fenomenologista, podes falar deste coquetel, e filosofia". Simone de Beavoir nos conta que Sartre empalideceu de emoo, era isso que ele ambicionava h anos, falar do concreto, do real, e foi assim que, se utilizando do mtodo fenomenolgico, desenvolveu o Existencialismo, conhecida corrente filosfica do sc. XX. Sartre publicou sua obra principal, O Ser e o Nada - ensaio de ontologia fenomenolgica, no fim da segunda guerra mundial, e nele procurava falar do mundo de uma forma mais clara, realista, evidenciando suas contradies e descartando as abstraes metafsicas que prevaleciam na tradio filosfica at ento. Neste livro, Sartre examina a relao do Eu com o Outro e, mais especificamente, sobre a conscincia de ser visto. nosso propsito, aqui nesse artigo, expla e caracteriz-la de maneira clara, usando, assim como Sartre, exemplos do cotidiano e evidenciando o carter existencialista das relaes. Esta pesquisa pretende contribuir, com temas desenvolvidos por Sartre, para as discusses sobre o olhar, vergonha, orgulho, medo, amor, dio, temas esses amplamente estudados pela psicologia. Entendemos que a filosofia de Sartre, por ser profundamente focada no indivduo e no mundo que o cerca, tem condies de contribuir nas discusses que tratam das relaes humanas. Antes de desenvolvermos a teoria sobre a conscincia de ser visto necessrio enfatizar o carter acumulativo com que so apresentados os conceitos em sua obra, concatenados e desenvolvidos extensamente ao longo da mesma. Portanto, antes de entendermos como Sartre v a
relao com o Outro, necessrio apresentar uma anlise de dois conceitos bsicos de sua filosofia, o Em-Si e o Para-si, e depois, com esses conceitos definidos, daremos prosseguimento teoria sartreana do Outro e finalmente conscincia de ser visto. Referencial Terico O referencial terico enfocou obras que tratam dos conceitos especficos que procuramos abordar como, o outro, a conscincia e a conscincia de ser visto. A principal referncia para o trabalho foi a obra de Sartre, O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenolgica. Existe uma grande quantidade de autores que tratam da obra de Sartre e do existencialismo, mas demos preferncia para Gerd Bornheim, Sartre: metafsica e existencialismo, e Paulo Perdigo, Existncia e liberdade: uma introduo filosofia de Sartre, este, o principal tradutor da obra de Sartre para o portugus. Nos dois ltimos autores buscamos embasar conceitos gerais e essenciais para a composio do texto e em Sartre, buscamos especificamente responder s perguntas deste trabalho sobre o olhar, o outro e a conscincia de ser visto. Tambm usamos a obra teatral Entre Quatro Paredes e Jean Genet, Ator e Mrtir, de Sartre e Primeiro Fausto de Fernando Pessoa para dar exemplificar os conceitos expostos. Mtodo Esse trabalho foi composto por uma pesquisa terica com foco na obra O Ser e o Nada de Sartre e como bibliografia complementar: Sartre: metafsica e existencialismo de Gerd Bornheim, Existncia e liberdade: uma introduo filosofia de Sartre de Paulo Perdigo.
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Coleta e anlise dos conceitos: primeiro definimos sistematicamente os conceitos chaves que se integram s idias gerais e ajudaram na exposio de nosso projeto central. Depois, elaboramos a interpretao dos conceitos adquiridos. O trabalho foi dividido em duas partes: Na primeira parte, desenvolvemos a ideia da conscincia. Na segunda parte, definimos O Outro, O Olhar e a conscincia de ser visto. Neste segundo momento, vrios conceitos essenciais para desenvolvimento do tema j foram esclarecidos e tivemos condies de explorar mais a fundo o tema do trabalho. A obra principal de Sartre, O Ser e o Nada, foi utilizada durante todo o processo como ferramenta principal. Algumas obras literrias tambm foram utilizadas para exemplificar suas teorias, como, por exemplo, Entre Quatro Paredes, Jean Genet: Ator e Mrtir, as duas de Sartre e Primeiro Fausto de Fernando Pessoa. Resultado e Discusso A conscincia Para Sartre, Toda conscincia conscincia de alguma coisa, logo, sem mundo, no seria possvel haver conscincia. Ela esse deslizar contnuo para a realidade, esse mergulho na existncia. Portanto, a conscincia faz contraponto com o mundo, gerando assim, segundo Sartre, duas manifestaes de ser, a saber: Ser-Em-Si e Ser-Para-Si. O ser existe por si s, no mundo, e apreendido por ns. J o ser humano existe, mas pode ser entendido como uma manifestao dupla do ser, um ser cindido. Sartre econmico em sua definio do Em-si: o Em-si o que . o ser , o ser em si, o ser o que ele (Sartre, 1999). No h distncia do Em-si para com ele mesmo, ele o que , um ser acabado e fechado em si mesmo. O Em-si
no permite filosofia, no permite nada mais do que (pois qualific-lo seria dizer que mais do que ). Ele positivo em si mesmo e nada mais. Por isso difcil falar do Em-si, porque no h o que ser dito. O Em-si o mundo, o mundo material, com seus objetos e seus corpos. Toda cincia ntica e estuda o Em-si, estuda as coisas como so e como se manifestam em seu existir. Quando estudamos o movimento de uma pedra, usamos frmulas e temos como resultado nada alm daquela positividade que ela ; por isso seu movimento ser sempre o mesmo, ela puro existir apreendido.
O Em-si no tem segredo: macio. Em certo sentido, podemos design-lo como sntese. Mas a mais indiscutvel de todas: sntese de si consigo mesmo. Resulta, evidentemente, que o ser est isolado em seu ser e no mantm relao alguma com o que no . (Sartre, 1999).
Nada se esconde atrs do Em-si, e no h nada a ser apreendido alm dele mesmo. Por isso: o que . Apenas uma coisa se diferencia do Em-si: a conscincia. A conscincia Para-si. Se o Em-si pura positividade e deve ser apreendido pelo que , a conscincia, ou Para-si, pura negatividade e deve ser apreendido pelo que no . se o Em-si o ser, ento o Para-si, sendo fundamentalmente outro que no o Em-si, s pode ser nada (Bornheim, 2003). O Para-si surge do Em-si, depende dele, negao direta dele. Como o Emsi no se relaciona com nada alm dele mesmo e no depende de nada, sua existncia completa, pura positividade; mas no podemos dizer o mesmo do Para-si, porque ele s pode ser definido em relao ao Em-si, no sendo Em-si. O Parasi surge atravs de um distanciamento do Em-si, uma distncia separada por Nada (Perdigo, 1995), e atravs dessa negao que descobrimos
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o mundo, olhando-o a distncia. O Para-si, nossa conscincia, descobre o mundo negando-o, ele nega a positividade do mundo para descobri-lo, ele se separa do Em-si para existir como sendo nada. nas coisas no h distncia de si para si: no h si, a conscincia essencialmente essa distncia. As coisas no tm interioridade, e justamente pela interioridade que o homem se faz um ser-Para-si.(Bornheim, 2003). exatamente esse desprender-se do ser que nos faz surgir como interioridade, essa distncia de ns mesmos que nos revela o mundo, pois somente se nos descolarmos do ser que poderemos olh-lo a uma distncia segura para que esse se revele a ns. por isso que Sartre define nossa existncia como ntico-ontolgica, temos esse carter duplo, ao mesmo tempo que somos, tambm no somos. Somos nosso corpo, somos nossas reaes qumicas, somos nossa contingncia no sentido em que temos exatamente esta estatura, este tom de pele, esta nacionalidade, mas ao mesmo tempo no somos, porque a conscincia nega o que para poder existir; quando me percebo como brasileiro porque nego as outras possibilidades (americano, francs, chins), quando descubro minha altura, porque me desprendo de mim e me vejo a distncia para chegar concluso que no tenho nem mais e nem menos altura do que a que realmente possuo. S podemos conhecer o mundo negando-o, o ser no se relaciona com o mundo porque o ser-em-si simplesmente existe no mundo. Perdigo esclarece citando Sartre: atravs do nada que o ser vem ao mundo. Atravs do nada que o ser se percebe como sendo o que no . E por isso que o Para-si depende do Em-si, porque o Para-si nega o Em-si para estar em presena do mundo, separado por nada; essa negao deve provir de uma possibilidade absoluta; o contrrio, uma afirmao da negao,
impossvel; o Em-si pode existir sem o Para-si, mas o Para-si no pode existir sem o Em-si. Essa negao do Para-si que d o seu carter de indeterminao, de ser-que-ainda-no-completo. Estamos em presena do mundo, e s constatamos sua existncia porque nos colocamos a uma distncia suficiente para v-lo (como o leitor se pe distncia do livro para l-lo). E se negamos o mundo para existir nele, significa que somos incompletos, essa a essncia do Para-si, ele no o que . A conscincia no pode existir por conta prpria, ela est presa ao ser, mas ao mesmo tempo, ela nega o ser que e se lana no mundo para ser o que ela no . Essa a definio definitiva do para-si: ele no o que e o que no . Mas como entender completamente essa definio? Como saber exatamente os limites entre o em-si e o para-si? J vimos que o Para-si depende do Em-si para ser, mas um nunca entra em contato com o outro. Por exemplo, quando sinto dor, no meu corpo que sente dor, minha conscincia que se transforma em conscincia (de) dor, o meu corpo o ser-em-si que existe, com suas terminaes nervosas que realizam reaes qumicas e eltricas para alterar meu estado cerebral. Tudo isso emsi, tudo isso o que e nada mais. De onde vem a dor? A dor meu para-si que toma distncia daquilo que corpo que sente dor para ser aquilo que no corpo saudvel, corpo na ausncia de dor. O Para-si nega o presente e se lana no futuro constantemente, ele nunca se torna o que , sempre descolado do ser por nada e jogado naquilo que no . Essa nadificao do ser que traz o conceito de temporalidade conscincia. As coisas no tm temporalidade, por meio da conscincia que o tempo existe porque o ser-Emsi s pode relacionar-se com ele mesmo. Tempo
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e conscincia so uma e a mesma coisa, por causa do carter de negatividade do Para-si, ele se lana no mundo buscando ser alguma coisa; ele se projeta no futuro para se tornar algo, fugindo constantemente do passado. Essas seriam as trs dimenses do tempo que foram desenvolvidas por Heidegger e ampliadas posteriormente por Sartre: o passado, que o que , definitivo e pleno; nesse sentido, assemelhando-se ao Emsi. O passado o Para-si convertido em Emsi, porque fixo e no pode ser mudado, nem negado de forma alguma. O passado um Em-si que carrego atrs de mim [...] converso total do Para-si em Em-si (Perdigo, 1995). O presente, que nada, separado pelo futuro e pelo passado por um instante inapreensvel, onde supostamente encontraramos o Para-si, se buscando constantemente; mas o para-si se lana no futuro, mesmo estando preso ao presente; o Para-si est separado do presente por um nada de distncia, porque se nega e se nadifica para ser o que ainda no : o futuro. O futuro apenas uma possibilidade para o Para-si, o para-si busca o futuro, as possibilidades, o que ainda no . Essa relao se d perpetuamente, o futuro existe como possibilidade como vir-a-ser, e , logo aps acontecer, se torna imediatamente passado, Emsi. O corpo, como vimos, faz parte do Emsi, e portanto, contm todas as marcas do futuro que tornou-se passado. impossvel negar o corpo, ele est ai, inegavelmente faz parte de nossa contingncia e representa tudo aquilo que somos, mas no estou fechado em meu corpo, meu para-si se desprende dele e procura ser algo (porque no nada). Sartre define isso como o perseguidor perseguido porque nosso em-si est constantemente correndo atrs do Para-si, est transformando tudo em Em-si, em passado. Fugimos constantemente de ns mesmos em
busca daquilo que no somos. assim somos ns: vamos correndo em direo a ns mesmos, o nosso Ser acabado que se encontra no futuro, o nosso Si mesmo, e somos aquele que no pode jamais alcanar-se (Perdigo, 1995). Por que o Para-si no pode jamais alcanar-se? Porque seno j no seria a nadificao de algo, mas se converteria num Em-si, sendo que sua prpria definio ser-o-que-no-. Nesse sentido, s h uma maneira do Para-si transformar-se em Emsi: na morte. Quando morremos, somos puro em-si para os outros, no mais nos lanamos no futuro para sermos o que no somos, somos pura facticidade, corpo inerte; nesse momento, o Emsi alcana o Para-si em sua busca incansvel. Mas enquanto somos vivos, vivemos da falta, vivemos para nos completarmos. Esse o projeto fundamental do Para-si, completar-se, ser Parasi-em-si. Para isso, fazemos o que Sartre define como: circuito da ipseidade (do latim ipse: si prprio, a pessoa). No circuito de ipseidade, nos lanamos para o futuro (aquilo que no somos) para constatar a falta daquilo que somos no presente, e, assim, podermos negar o presente para suprir essa falta. Tudo parece muito paradoxal, mas pode ficar claro com um exemplo: Quando me sento em frente a uma partitura em branco, e penso em compor uma msica, me nego no presente (partitura inacabada, inspirao que ser usada, msica a ser feita) para me afirmar no futuro (msica terminada, notas no papel). O circuito de ipseidade esse processo do Para-si de fazer-se projeo no futuro para dar sentido s suas aes no presente. O presente por si s, sem relao alguma no futuro, no traz sentido algum, somente quando quero fazer uma msica, tenho vontade de escrever uma msica, que posso dar sentido s minhas aes . Mas a msica em si no existe, ela o que busco ser (o ser que no sou).
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E sou eu que dou sentido a ela; a partitura em branco na minha frente seria indiferente se eu no tivesse as noes de harmonia para compor uma msica, ou se no tivesse inspirao e vontade de comp-la. O mundo indiferente em si mesmo, minha conscincia, que se desprende de mim e se joga no mundo, que da essncia s coisas. At mesmo o ato de compor pode ter um sentido diferente dado por minha conscincia. Se for um msico contratado para compor uma sinfonia, mas estiver sem inspirao, meu trabalho ser uma obrigao, algo que devo fazer; mas se, ao contrrio, fao isso por algum que estou apaixonado, ento farei uma msica por amor, para conquistar minha amada. Em todos os meus gestos, minha conscincia projetiva serve de mediadora entre duas situaes objetivas (Perdigo, 1995). Estas constituem as principais diferenas do Em-si e do Para-si. O Em-si o que , o corpo, o passado, o definitivo. O Para-si a conscincia, aquilo pelo qual o nada vem ao mundo, o futuro, o vir a ser, ou, em uma frase: aquilo que no o que e o que no . Por meio destes conceitos, agora esclarecidos, temos ferramentas para entender o que acontece quando nos encontramos com o outro, quais so as implicaes desse encontro, quais as transformaes que se do nessas duas formas de manifestao do Ser. A Conscincia de ser visto Para melhor entendermos os processos que ocorrem quando h a conscincia de ser visto, vamos analisar o olhar. Para termos a conscincia de ser visto precisamos, antes, ter conscincia de um olhar sobre ns. Sartre no procura provar a existncia do outro, para ele, esse fato um fato concreto, uma certeza, do contrrio cairamos num solipsismo
do qual no poderamos escapar. No sei da existncia do Outro atravs da objetividade, conheo-o atravs da intuio. Sei que ele existe, sei que por trs daquele que vejo existe, assim como eu, outro Para-si, outro ego, mesmo que no possa v-lo ou prov-lo eu o afirmo. Tenho certeza que no estou sozinho no mundo por meio da intuio.
(...) se devo duvidar da existncia de Pedro, meu amigo um dos outros em geral -, na medida em que esta existncia est, por princpio, fora de minha experincia, preciso duvidar tambm de meu ser concreto, de minha realidade emprica de professor dotado de tais ou quais inclinaes, hbito e carter. No h privilgio para meu eu: meu Ego emprico e o Ego emprico do outro aparecem ao mesmo tempo no mundo; e a significao geral de Outro necessria constituio de cada um desses egos (Sartre, 1999)
Deste modo, pulo as provas da existncia do outro, porque neg-lo seria o risco de negar a mim mesmo, para compreender o que o outro e como interagimos com ele. O outro aquele que me exclui sendo si mesmo, aquele que excluo sendo eu mesmo. (Sartre, p. 306), s posso conhecer o outro como no sendo eu mesmo, como sendo aquele que no sou. Meu Parasi conhece o outro como no-sendo-eu, como sendo outro Para-si (do qual no tenho acesso) separado de mim. Portanto, assim como eu, ele tambm est a, no mundo, se construindo, ele tambm possui sua prpria contingncia, mas, ainda assim, num primeiro momento, apreendo o outro como sendo um objeto, um Em-si. Vejamos esse exemplo: digamos que um pianista toque toda tera-feira num restaurante, quando ele chega l, abre suas partituras e comea a tocar. Como mencionamos anteriormente, seu circuito de ipseidade, o Para-si que se joga no
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futuro, est fechado em si mesmo no sentido de terminar-a-msica-sem-errar, lembrar-daquelapassagem-complicada. Ele est ciente dos clientes que esto jantando, est ciente de que so pessoas comuns, como ele, que esto procura de um jantar agradvel, mas ele os ultrapassa, os transcende definindo-os como ouvintes, como aquelesdos-quais-depende-meu-couvert. O que isso significa? Nosso msico nega a eles a existncia como seres reais? Ele os v como marionetes, como robs? Num primeiro momento, sim. Apesar de saber que existem pessoas por detrs, ou por debaixo, de suas peles e roupas, ele no os v como tais. Tudo gira ao seu redor, ele quem d as regras do jogo, todas as distncias so suas distncias no sentido de que este piano o piano que ele toca, a msica a msica que ele proporciona, os ouvintes so seus ouvintes. Mas, se posso observar o outro, e sei que o outro um ser como eu, isso significa que o outro tambm pode observar-me. Nesse momento toda minha maneira de ser se transforma, se h em verdade um Eu para o qual o outro objeto, porque h um Outro para quem o Eu objeto (Sartre, 1999). nesse momento que o ser-Para-outro se manifesta, atravs do olhar do Outro. Porque da mesma maneira que posso olhar o outro e defini-lo atravs de minha subjetividade, sei que o outro pode olhar-me e definir-me atravs de sua subjetividade. Nesse momento, sou um serPara-outro, sou objeto do olhar de outra pessoa, ele me v como objeto no mundo, ele d suas distncias para mim, o jogo inverte e ele passa a dar as cartas do jogo. Sartre define isso como uma forma de escoamento de meu mundo para fora de mim, uma hemorragia interna; o sujeito que a mim se revela nesta fuga de mim mesmo rumo objetivao (Sartre, 1999). Mas o outro que me olha no seus olhos, seus olhos fazem parte do Em-si, assim
como seus braos e suas pernas, o outro que me olha no se define por sua retina, ou seu nervo ptico, isso apenas d suporte para seu olhar. O olhar muito mais que isso, est alm disso. Captar um olhar mais que captar um objetoolhar, transcender o olho para ter conscincia de ser visto. O olhar me remete a mim mesmo, no no sentido de Para-si, no no sentido daquele que o que no e no o que , mas no sentido de ser-no-mundo, ter-de-ser-algum. O outro faz essa mediao entre mim e eu mesmo; de certa forma, atravs do outro que passo a existir no mundo no modo de ter-de-ser. Por isso a analogia com a hemorragia, porque o outro me transforma em objeto, passo a ser algo, no mais sou aquilo que no sou, definio primordial de Para-si, no mais me lano no futuro; o outro me capta com seu olhar e me prende em mim. Corro constantemente esse perigo, sou escravo do olhar do outro, e atravs de seu olhar passo ao mesmo nvel dos objetos do mundo1. Ser visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que no a minha. mais como uma solidificao, uma estratificao; fico congelado perante um olhar. Se me olham, tenho conscincia de ser objeto (Sartre, 1999), e apenas o outro que me permite captar-me como tal. Atravs de meu Para-si no posso deixar de me lanar no futuro e me negar no presente, fujo constantemente de meu Em-si, mas atravs do olhar do outro, quando tenho conscincia de ser visto, meu ser-Para-si escorrega para o mundo, meu Para-si cai no mundo e eu no sinto isso, eu sou isso. E no importa o que o outro me diga que sou algo, no posso ver-me como tal, no posso ver-me como Em-si, mas sei que o outro me capta assim. Portanto, atravs do Outro capto a ltima estrutura de meu ser. Meu ser-Paraoutro uma queda atravs do vazio absoluto em direo objetividade (Sartre, 1999).
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preciso deixar claro que o ser-Paraoutro no deriva do Para-si. Existe trs maneira de existncia do ser: Em-si, Para-si e ser-Paraoutro. Elas so independentes, e no caso das duas primeiras, independentes da existncia de um terceiro para existir. Mas o ser-Para-outro necessita de Outro para existir, no do Para-si. Prova disso que somo Para-outro antes mesmo de sermos Para-si. Quando nascemos j ramos Em-si e Para-outro, j no tero de nossa me ramos Para-outro: ganhamos um nome e fomos vistos no ultra-som. nesse sentido que sou Paraoutro, existo no mundo, o outro me olha e me faz existir no mundo. A partir de ento, constitumonos e interiorizamos o outro em ns de modo que, num dado momento, o olhar do outro cai sobre ns sem que necessariamente esteja l. Ento, ao ouvir um barulho atrs de mim, sentirei que estou sendo olhado, e me darei conta de meu ser-Paraoutro. Posso me virar e descobrir que no havia ningum, nesse caso, o meu ser-Para-outro era menos real do que se houvesse algum? No, diria Sartre, atravs da conscincia de ser visto, tenho conscincia de mim no mundo, atravs dela passo a existir como facticidade, mesmo que o outro no esteja l de fato, essa terceira maneira de ser (Para-outro) j se realizou. Num sentido mais amplo, podemos dizer que, para os religiosos, o conceito de Deus um Outro constantemente presente, que nos observa e no julga. Posso sentir-me constantemente observado por Deus e sentir minhas possibilidades e referncias todas a partir de um ser superior. Sartre expe trs modos de captar meu ser-Para-outro: a vergonha, o orgulho e o medo. Para expor esses sentimentos, voltaremos ao exemplo do msico: ele abre uma nova partitura e se d conta de que est em face de uma msica muito difcil. Ento, comea a toc-la ao modo de tocar-sem-errar, ele transcende as notas e o
movimento dos dedos nas teclas do piano para ser (ao modo de no ser o que e ser o que no ) aquele-que-no-erra-a-msica. Nesse momento ele se utiliza do circuito de ipseidade, seus movimentos presentes s tm sentido porque ele se lanou no futuro; aquilo que no o que d sentido ao seu presente. Mas ele erra. Ento, imediatamente, algum na plateia olha para ele. Subitamente seu ser se esvazia e cai na realidade, o outro o temporaliza, o joga no presente (que ele negava) fazendo-o ser. O outro nega sua transcendncia para jog-lo no real, transforma todas as suas possibilidades, para ele, o msico simplesmente aquele-que-errou. Para o Outro, no h diferena entre o msico que erra e um disco riscado, os dois so apenas objetos, sem transcendncia alguma. Ento, se d a vergonha. A vergonha esse apreender-se no mundo, deriva, para que o vejam. Ter vergonha , com efeito, ter vergonha de si para algum, escorregar para fora de mim para ser apreendido. Com a vergonha passo a viver, e no conhecer, a situao de ser-visto, perco-me de mim. O outro, quando me olha, passa a dar suas distncias, seus valores, sua transcendncia; por isso me constituo como objeto, sou objeto sobre fundo do mundo de outrem. Minha transcendncia transcendida, fico alienado. O outro um lugar inacessvel onde no posso entrar, como um buraco negro onde tudo entra e nada sai. Sartre nos trs a ideia de escoamento porque no posso reaver o que me foi tirado com o olhar do outro, est perdido dentro dele. Mas ao mesmo tempo, esse olhar que me remete a mim como aquele-que-errou, necessrio esse olhar para poder constituir-se essa essncia, porque o Para-si no pode definirse. Com efeito, o Para-si nem se via tocando, ele estava se jogando constantemente no futuro, ele negava o presente para ser aquele que acertava a msica inteira at o ltimo acorde. Mas de
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alguma forma, o Para-si no pode constituirse, a msica era muito difcil, os acordes eram muito complicados, seus dedos (Em-si) no acompanharam a velocidade do andamento da msica. Ele errou, e nesse momento, toda sua transcendncia se desvaneceu e ele caiu como chumbo na realidade ao ser olhado pelo Outro.
A vergonha apenas o sentimento original de ter meu ser do lado de fora, comprometido em outro ser e, como tal, sem qualquer defesa, iluminado pela luz absoluta que emana de um puro sujeito; a conscincia de ser irremediavelmente aquilo que sempre fui. (Sartre, 1999).
ele nada. Tambm no poderia conhecer-me atravs do Em-si, ele fechado nele mesmo, no se relaciona com nada alm dele mesmo. O orgulho segundo modo de reconhecer meu ser-Para-outro. Ele deriva da vergonha, no sentido em que me sei visto pelo Outro e que me encontro no mundo como objeto para ser visto; mas, nesse caso, o orgulho assume a postura oposta: suponhamos que nosso j citado msico agora toque de maneira sublime e maravilhosa aquela msica difcil que dissemos anteriormente e no fim receba uma salva de palmas esfuziante. Como no se sentir orgulhoso numa situao dessas? Ele se levanta e faz uma reverncia, agradecendo o reconhecimento. Ele se sente orgulhoso, mais do que isso, ele orgulho. De que modo isso difere da vergonha? Num sentido original, nada. Ele vive a mesma situao, mas de maneira oposta. Ao se sentir orgulhoso, ele tambm apreendido no mundo, ele tambm olhado, tambm alienado de seu Para-si, mas ao modo de msico-talentoso, de grande-pianista. A diferena essencial que, nesse caso, ele quer ser aquilo que dizem que ele , resigna-se com sua condio. Tem orgulho de ser o que , mesmo que seja Para-outro; nega sua transcendncia, que nada, para afirmar-se como aquilo que Para-outro. Veste a carapua que lhe do, mas pe essa carapua sobre nada, porque nunca ser o que quer ser. Nega seu vir-a-ser para perder-se nesse Em-si que lhe foi dado. Mas essa situao no pode sustentar-se, o Para-si se joga constantemente no futuro, se desprende e foge do Em-si o tempo todo. S podemos ser aquilo que somos na morte, quando o Para-si finalmente alcanado pelo Em-si e, somente nesse caso, somos plenamente objeto, mas deste modo j no podemos nos revelar como sujeito. Por meio do conceito do orgulho, Sartre tem condies de desenvolver um importante
A vergonha a porta pela qual temos condies de formular um juzo sobre ns mesmos no mesmo sentido que formulamos juzos sobre objetos, porque, atravs do Outro, tenho condies de aparecer como objeto a mim mesmo. o conhecimento que vem do outro, na forma de juzos, que possibilita-me conhecerme. O saber que vem do outro o fator principal para formar o conceito de mim mesmo, na forma de Em-si. Na obra Saint Genet: ator e mrtir, Sartre descreve a metamorfose que se d com a palavra vertiginosa: ladro. A vergonha do pequeno Genet descobre para ele a eternidade: ladro de nascena, ser assim at a morte. [...] Genet um ladro: essa a sua verdade, a sua essncia eterna (Sartre, 2002). A vergonha provm do contato com o outro, o contato com o olhar, e o olhar sobre Genet o condenou a ser algo, no sentido de ter-de-ser. Genet no podia ser mais nada alm de ladro, ele se tornou a essncia dessa palavra. A vergonha o jogou no mundo e ele foi engolido pela essncia que lhe deram.Se existisse apenas eu no mundo, todas as distncias partiriam de mim, todas as essncias viriam de mim, mas eu no saberia quem sou, porque o Para-si no pode voltar-se para si mesmo, afinal,
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estudo sobre a vaidade, a seduo e o amor. Nos dois primeiros casos me mostro como objeto positivo, me construo e me apresento como Em-si, e utilizo isso como moeda de troca para ganhar a admirao do Outro, para tentar seduzi-lo ou faz-lo me admirar. Seguindo esse raciocnio, poderamos dizer que pela seduo, busco constituir-me como uma plenitude de ser e faz-lo reconhecido como tal. (Sartre, 1999). Reduzo-me simples facticidade, mesmo sabendo que no sou isso, para me mostrar melhor do que sou realmente e assim conquistar o Outro. Procuro me afirmar e me limitar ao meu ser-Para-outro. O mesmo acontece com o amor, porque este o projeto de fazer-se amar (Sartre, 1999); quando amo algum, busco o amor dessa pessoa, busco transformar-me numa totalidade objeto; quero, aos olhos do Outro, ser melhor do que sou. Mas no podemos nos manter como ser-Para-outro indefinidamente, esta postura fatalmente acarretar num fracasso. O orgulho e seus derivados (amor, seduo) esto fadados ao fracasso porque no somos Em-si.
o conflito o sentido originrio do serPara-outro [...] se partir-mos da revelao inicial do outro como olhar, devemos reconhecer que experimentamos nosso inapreensvel ser-Para-outro na forma de uma posse. Sou possudo pelo outro; o olhar do outro modela meu corpo em sua nudez, causa seu nascer, o esculpe, o produz como , e v como jamais o verei. O outro detm um segredo: o segredo do que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e essa possesso nada mais que a conscincia de me possuir. E eu, no reconhecimento de minha objetidade, tenho a experincia de que ele detm essa conscincia. Atitude conscincia, o outro para mim aquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo, aquele que faz com que haja um ser que o meu. (Sartre, 1999)
Outra vez, vemos que o olhar do Outro tambm pode cair sobre ns sem que o queiramos, dando a ns uma essncia, contrria a que queremos. Sartre tambm mostra bem isso em sua obra Entre Quatro Paredes onde Ins afirma:
Voc um covarde, Garcin, porque eu quero que voc seja um covarde. Eu quero, compreende? Eu quero! No entanto, veja que fraquinha eu sou: um sopro. Sou apenas o olhar que est vendo voc, o pensamento incolor que est pensando em voc (Sartre, 2005)
Ins procura dar uma essncia a Garcin, transform-lo em Em-si, tudo isso com o olhar, que mostra o ser-Para-outro. Logo em seguida Ins afirma Eu estou vendo vocs, vendo vocs! Eu sozinha sou toda uma multido! (Sartre, 2005), Ins sabe da fora que seu olhar tem sobre Garcin, e isso que o faz dizer a frase mais importante da pea: O inferno so os outros! (Sartre, 2005) O medo o terceiro modo de captar meu ser-Para-outro. Consideremos agora que aps mais uma noite tocando no bar, nosso msico se dirija para sua casa. Ele passa por uma rua escura pelo caminho e ento escuta um barulho no beco ao lado. Ele sente medo, seu corpo se enrijece, suas pupilas se dilatam e sua freqncia cardaca aumenta. O medo mais que as reaes fisiolgicas proporcionadas pela adrenalina que liberada pela supra-renal. Tudo isso est no nvel do Em-si: o que . Tudo isso so reaes que no dizem respeito a nada alm delas mesmas; o seu corpo no se importa se a adrenalina foi liberada por medo ou por uma injeo aplicada por um mdico porque as condies qumicas s se relacionam com elas mesmas. Tambm podemos dizer que o seu ser-assaltado, seu Parasi, que nega a realidade para se jogar num futuro
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sendo assaltado, no seu medo. O que constitui o medo o fato de saber que se possui um corpo que pode ser ferido, saber que se corre um perigo real de ser assaltado porque se est no mundo; seu ser-Para-outro que se manifesta atravs do olhar-do-ladro e que se percebe como vtima. Saber da existncia do Outro, e saber que se existe para esse outro, isso que d medo, o fato de se descobrir no mundo, um mundo onde um possvel agressor transcende sua transcendncia. E este possvel ladro no est mais distncia, ele est a. Ao ouvir o barulho no beco ao lado, possvel sentir o olhar do ladro sobre si, possvel sentir sua transcendncia transcendendo nossa transcendncia e nos dando a essncia de homemcom-dinheiro ou como homem-indefeso; somos objeto para este outro que nos d suas utilidades. O mundo nos supera e nos encontramos no meio dele, indefesos. Atravs do medo, nos damos conta de nossa fragilidade e nossas limitaes e o olhar do outro no faz nada alm disso: limitar nossa liberdade frente aos nossos possveis. Uma possvel derivao do medo o dio. Em face de um mundo que nos ultrapassa e nos ameaa, podemos neg-lo odiando-o. O dio a tentativa de negao do mundo, ou melhor, a tentativa de negao do Outro. Se o Outro que me traz o conhecimento de mim, na forma de Em-si, negar o outro , com efeito, negar meu Em-si, uma tentativa de constituir-me apenas como Para-si. Quando tenho medo de ser assaltado, vejo meu corpo como objeto em perigo; se, com efeito, for assaltado, verei meu corpo como objeto transcendido pela transcendncia do Outro; dessa situao que pode vir o dio, dio daquele que me transcendeu. O dio busca negar minha objetidade tentando negar o Outro. So essas as situaes em que se revelam o Outro, o olhar e o ser-Para-outro. Mas ainda vale lembrar que minha certeza da existncia do
outro independe dessas experincias, e ela, ao contrrio que as torna possveis (Sartre, 1999). Sei que o outro existe, no posso duvidar disso; sei tambm que assim como posso apreender o outro como objeto sobre fundo do mundo, tambm posso ser apreendido por ele atravs do olhar e isso o torna o mediador indispensvel entre mim e mim mesmo (Sartre, 1999). Ante o olhar do outro, o Para-si corre o risco de perderse de sua liberdade essencial, esse lanar-se ao futuro. Mas parte dele ser essa incgnita, o que o define , precisamente, no ter definio, no-ser-o-que--e-ser-o-que-no-. O homem deve superar sua transformao em objeto para apropriar-se de seu projeto fundamental. O Parasi no pode ser determinado pelo exterior, j vimos como sua tentativa de transformar-se em Em-si impossvel, e, portanto, deve prosseguir com sua busca, responsabilizando-se por ela. Concluso Se na filosofia de Sartre o Para-si esse constante se lanar no futuro, essa fuga do que se , Em-si, para o que se no , ento s podemos entender o ser-Para-outro como o fracasso do Para-si, que se torna algo, passa a ter a definio que o Outro lhe d. O perseguidor-perseguido paralisado pelo olhar. Atravs da conscincia de ser visto, eu experiencio meu ser-Para-Outro, sou transformado em objeto, ele transcende minha transcendncia. Quando o Outro me olha, ele no mais se mostra como objeto para mim, no posso mais trat-lo como uma mquina, ele se torna seu olhar, que faz o mundo escoar para fora de mim em direo a ele, uma hemorragia. Deste modo, minha relao como o Outro e sempre ser cindida: ou eu o apreendo como objeto - sem que, nesse caso, possa apreender seu ser - dando-lhe minhas significaes e situando-o em relao a mim; ou o apreendo como olhar,
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me transcendendo e me limitando, situando-me em relao a ele. No h sntese possvel entre essas duas posies e me relacionarei com o Outro como num jogo sem fim onde estarei ora nesta ou naquela posio, saindo de uma para inevitavelmente cair na outra. A conscincia de ser visto esta primeira relao, na qual me encontro com o outro e me torno objeto para ele. O outro aquele que me possibilita conhecer-me, aquele que traz meu conhecimento de mim para mim. Ele me traz ao mundo, ou melhor, ele me joga no mundo, me prende a ele. Com o outro passo a ser limitado, sou um ser acabado por ter minha transcendncia transcendida. Sou o que sou, ao modo de ter-de-ser. Posso ter vergonha do conhecimento que o outro me traz ou posso orgulhar-me dele, ou ainda, posso ter medo, e odi-lo. Essa relao de conflito no tem fim, um jogo eterno, cheio de jogadas e viradas. A conscincia de ser visto, o instante que avisto o olhar, apenas o comeo, o movimento inicial.
Referncias Bibliogrficas:
BORNHEIM, Gerd A. Sartre: Metafsica e Existencialismo. 3 ed. So Paulo: Perspectiva, 2003. HBNER, Maria Martha. Guia para elaborao de monografias e projetos de dissertao de mestrado e doutorado. So Paulo: Pioneira, Ed. Mackenzie, 1998. MACIEL, Luiz Carlos Junqueira. Sartre: Vida e Obra. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia cientfica. 5 ed. So Paulo: Atlas, 2008. PERDIGO, Paulo. Existncia e Liberdade: Uma Introduo Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1995. PESSOA, Fernando. Obra Potica. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
Nota:
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importante notar como muitas vezes a literatura aborda a ideia do Outro de forma semelhante a Sartre. Fernando Pessoa em seu poema Primeiro Fausto afirma: O horror metafsico de Outrem!/ O pavor de uma conscincia alheia/ Como um deus a espreitar-me/ Quem me dera/ Ser a nica [cousa ou] animal/ Para no ter olhares sobre mim! [...] Sinto horror/ significao que olhos humanos/ Contm. Atravs de meios poticos, Fernando Pessoas expressa o horror que ser visto por outro, ter todas as suas possibilidades transformadas em mortipossibilidades. Esse trecho mostra muito bem como podemos chegar s concluses de Sartre no s atravs dos meios filosficos, mas artsticos tambm.
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenolgica. 7 ed. Petrpolis: Vozes, 1999. ______. Saint Genet: ator e mrtir. Petrpolis: Vozes, 2002. ______. Entre Quatro Paredes. So Paulo: Civilizao Brasileira, 2005.
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Traduo
Traduo de
Graduanda em Sociologia e Poltica pela Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo e colaboradora do Dirio da Liberdade.
Eu nunca fiz nada por dinheiro. O dinheiro nunca foi colocado como objetivo final. Foi um resultado. Assim afirmou Bob Diamond, antigo presidente executivo do Banco Barclays. Ao fazer essa afirmao, Diamond coloca em xeque a justificativa que o seu e outros bancos (e seus inmeros apologistas no governo e na mdia) desenvolveram para praticar nveis surreais de remunerao incentivar o talento e o trabalho duro. Prestgio, poder, senso de propsito: para eles, estes so incentivos suficientes. Outros de sua classe Bernie Ecclestone e Jeroen van der Veer (o antigo presidente executivo da Shell), por exemplo, trabalham com a mesma dialtica. A concentrao de tanta riqueza nas mos de ocupantes de altos cargos executivos no possuem nenhuma funo til. O que os muito ricos aparentemente valorizam a remunerao relativa. Se os executivos fossem todos remunerados em apenas 5% de seus nveis atuais, a competio entre eles (de todos
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os modos uma virtude questionvel) no seria menos acirrada. Ou ainda, como comentou h algumas dcadas o imensamente rico HL Hunt: Dinheiro somente uma maneira de controlar a pontuao. O desejo de avanar nessa escala parece ser simplesmente insacivel. Em maro de 2013, a revista Forbes publicou um artigo sobre o Prncipe Alwaleed, que, dentre outros prncipes sauditas, dificilmente deve sua fortuna ao trabalho duro e s suas capacidades empreendedoras. De acordo com um dos antigos funcionrios do prncipe, a lista dos mais ricos do mundo, produzida pela revista Forbes, a maneira pela qual ele deseja que o mundo julgue seu sucesso ou sua alteza. O resultado um quarto de sculo de lobby, bajulaes e ameaas, quando se trata dessa lista de patrimnio liquido. Em 2006, o pesquisador responsvel por calcular sua riqueza declara que quando a Forbes estimou que a
Jornalista, escritor, acadmico e ambientalista do Reino Unido. Seu artigo foi publicado no The Guardian, em 06.05.2013, e est disponvel no seguinte endereo eletrnico: http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/may/06/politics-envykeenest-rich.
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Por que a poltica da competio mais acirrada entre os super-ricos, George Monbiot LVia DE SOUZa Lima
riqueza do prncipe era na realidade 7 bilhes a menos do que ele afirmou ter, recebi em casa uma ligao dele, praticamente em prantos, um dia depois que a lista foi publicada. O que voc quer?, ele dizia, me oferecendo seu banqueiro pessoal na Sua. Me diga o que voc precisa. Nada importa que ele possua seu prprio 747, no qual ele se senta em um trono durante os voos. Nada importa que o seu palcio principal tenha 420 quartos. Nada importa que ele possua o seu prprio parque de diverses e zoolgico e, ele afirma, $700 milhes em joias. No importa que ele seja o homem mais rico da Arbia Saudita, avaliado pela Forbes em $20 bilhes, e que ele tenha assistido sua riqueza aumentar em $2 bilhes no ano passado. Nada disso suficiente. No h nenhuma linha de chegada, nenhuma aterrisagem tranquila, mesmo em um jato particular. A poltica da competio mais acirrada entre os super-ricos. Essa disputa pode sugar a vida de seus aderentes. No maravilhoso documentrio The Queen of Versailles (A Rainha de Versailles), de Lauren Greenfields, David Siegel o Rei do timeshare dos Estados Unidos da Amrica parece abandonar todo seu interesse pela vida ao enfrentar a perda de sua coroa. Ele ainda vale milhes de dlares. Ele ainda tem uma esposa e crianas adorveis. Ele ainda est construindo a maior habitao familiar dos Estados Unidos da Amrica. Porm, medida que a venda do arranha-cu que leva o seu nome e simboliza sua preeminncia comea a se tornar inevitvel, ele se afunda em uma impenetrvel depresso. Cabisbaixo, ele se senta sozinho em seu cinema privado, vasculhando obsessivamente os mesmos papis, como se entre eles pudesse ser encontrada a chave para a sua restaurao, se recusando a
passar tempo com sua famlia, aparentemente preparado para arruinar a si mesmo ao invs de simplesmente perder uma estpida torre. A fim de garantir aos ricos esses prazeres, o contrato social reconfigurado. O sistema de bem estar social desmantelado. Servios pblicos essenciais so cortados para que os ricos possam pagar menos impostos. A esfera publica privatizada, so abandonadas as regulaes que restringem os ultrarricos e as empresas que eles controlam, e nveis eduardianos de desigualdade so quase que fetichizados. Os polticos justificam essas mudanas, quando no recitando argumentos de araque sobre o dficit, com os incentivos hipoteticamente criados por elas. Por trs disso se encontra a promessa ou a impresso de que todos seremos mais felizes e satisfeitos como resultado final. Mas essa acumulao insensvel e sem sentido no pode satisfazer nem mesmo seus beneficirios, exceto talvez e temporariamente o homem oscilando bem no topo da pirmide. O mesmo se aplica ao crescimento coletivo. Os governos de hoje em dia no enxergam nada alm do crescimento econmico. Eles no so julgados pelo nmero de pessoas empregadas muito menos pelo nmero de pessoas em empregos prazerosos e satisfatrios e pela felicidade da populao ou pela proteo da natureza. Um mundo sem emprego e destrutivo aceito, desde que haja crescimento. Os fins no existem mais, h somente meios. Em seu livro interessante, porm curiosamente incompleto, How much is enough? (Quanto suficiente?), Robert e Edward Skidelsky notam que o capitalismo se baseia justamente nessa infindvel expanso de desejos. Essa a razo pela qual, por todo seu sucesso, ele permanece to estimado. O capitalismo nos
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Por que a poltica da competio mais acirrada entre os super-ricos, George Monbiot LVia DE SOUZa Lima
deu riqueza alm da medida, mas nos tirou o maior benefcio da riqueza: a conscincia de ter o bastante... o sumio de todos os fins intrnsecos nos deixa com apenas duas opes: estar frente ou atrs. A nossa sina a luta por posies. Eles demonstram que as naes com as mais longas horas de trabalho os Estados Unidos da Amrica, o Reino Unido e a Itlia, no grfico das naes pertencentes OECD (Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico) que publicado no livro so as naes com maiores nveis de desigualdade. Eles poderiam ter tambm adicionado o fato de que essas naes so tambm as trs com os menores nveis de mobilidade social. Diante desse quadro, podem-se tirar quatro possveis concluses. A primeira de que a desigualdade realmente encoraja as pessoas a trabalharem com mais afinco, como os Skidelskys (e muitos outros neoliberais) afirmam: quanto maior a lacuna, mais as pessoas iro se esforar para fech-la. Ou talvez, pode ser simplesmente que as pessoas estejam desesperadas uma vez pressionadas pela pobreza e pelo dbito. Uma explicao alternativa o fato de que as desigualdades polticas e econmicas andam lado a lado: nas naes mais igualitrias, os patres so capazes de direcionar seus trabalhadores mais rigidamente. A quarta observao possvel de que a desigualdade no trabalho possa estimular as pessoas, no auxilia no preenchimento das lacunas e no crescimento da mobilidade social. Parece tambm que no nos deixa coletivamente mais ricos. Os holandeses ganham uma mdia de $42,000 per capita sobre 1400 horas de trabalho por ano, ao passo que os britnicos ganham $36,000 por 1650 horas. Desigualdade, competio e a obsesso por riqueza e posicionamento social parecem ser
elementos que se autoperpetuam e destinados a fomentar o desespero. Ser que seremos capazes de superar essa questo? Ser que seremos capazes de buscar satisfaes que no nos custem o planeta Terra e paream alcanveis? O principal objetivo de qualquer nao rica deveria ser: j temos o suficiente.
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