BAETA NEVES. Conferência Os Soldados de Cristo
BAETA NEVES. Conferência Os Soldados de Cristo
BAETA NEVES. Conferência Os Soldados de Cristo
Setembro
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Conferência apresentada no dia 26/09 no Seminário Internacional — A Globalização e os Jesuítas:
origens, história e impactos. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos
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Historiador, Antropólogo, pós-doutor em Sociologia pela Universidade de Paris - V. Professor na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O último de seus diversos livros é Transcendência
Poder e Cotidiano: as cartas de missionário do padre Antônio Vieira (Rio de Janeiro: Atlântica Editora;
EDUERJ, 2004)
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2006
Introdução
O missionário não quer somente ler o Livro Sagrado enquanto tal. Ele quer
lê-lo (confrontá-lo enquanto Código Ideal) no Mundo secular. Quer decifrar este mundo
como linguagem, percorrer seus sinais e estabelecer uma leitura frutífera para uma
intervenção adequada quando o “texto” estiver truncado ou maculado. Não devemos,
por outro lado, supor um abandono da interpretação das Escrituras Sagradas por parte
das ordens missionárias. Elas as lêem e transmitem sua verdade para o século,
especialmente para os semelhantes menos semelhantes, mais afastados do Dogma.
Os ouvidos podem ser todos, mas não a língua nem aquele que a profere. A
Língua de Deus é uma só, e a multiplicidade de línguas é vista como uma maldição
perigosa. E maldição lançada por Deus e que aparece no mito bíblico da torre de Babel.
Esta se destruiu porque houve uma multiplicação de línguas; ninguém se entendia e a
empresa fracassou. Na origem – boa, já que divina – havia, portanto, uma única língua.
Esta língua, a partir de determinado momento da história do cristianismo, passou a ser o
latim que, de profana, passa a ser sagrada e se sacraliza à medida que se enfraquece
como idioma “vivo”, corrente, vulgar. Passa a ser ‘propriedade’ dos que continuam a
cultivá-lo no silêncio dos mosteiros ou no murmúrio das missas. Se o saber é sinônimo
de saber decifrar o código Divino, o latim é seu acesso privilegiado. Mas o latim é uma
língua “culta” e a missão não tem majoritariamente, uma platéia “culta”; a missão vai
justamente doar a “cultura”.
Para isto, entretanto, precisa ser ouvida. Alguns julgavam que bastava que a
Língua fosse proferida para que houvesse a conversão – reuniam-se centenas de pessoas
e a elas se falava. A missão se cumpriria, mesmo que estivéssemos entre mongóis ...
Outros, particularmente aqueles que, como a Companhia de Jesus (a partir do final do
século XVI), intentavam uma conversão permanente, institucionalizada, foram levados
a admitir que deveriam se comunicar também em línguas profanas, sob perigo de ver
fracassar a missão, já que perceberam a ineficácia da mera repetição da Língua Sagrada,
tal como se acreditava nos primeiros tempos da missão. Menosprezavam as línguas
profanas, qualificam-nas como pouco “humanas” mas tinham que conhecê-las ainda que
precariamente. É claro que tinham outra forte justificativa para tão impura convivência;
a convivência estaria sob controle, seria temporária, o latim era ensinado e louvado.
Se se afirma que há “línguas profanas” fora do Ocidente, afirma-se uma
continuidade relativa. Há sistemas que podem ser assim, ao menos aproximativamente,
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nominados e que podem ser conhecidos pelo Sistema. A ponte, podemos chamar de
“tradução” e se caracteriza pela possibilidade de haver trocas. Não são trocas
“perfeitas”, “igualitárias”, sonhadas por um tradutor de nossos dias. É uma troca
desigual porque não quer manter a dispersão de línguas. Quer estabelecer uma
determinada; quer passar sua sintaxe e sua semântica. Quer exacerbar diuturnamente a
desigualdade até os limites da substituição de um sistema (de sistemas múltiplos) por
Outro. É uma troca ilusória já que seu objetivo é o apagamento progressivo das
diferenças de linguagem entre os interlocutores em questão. Quer um eco, não uma
resposta ou, muito menos, uma réplica.
Afinal, sempre era preciso estar alerta contra o Demônio, que poderia ser
ardiloso a ponto de fazer entrar seus próprios elementos no seio da cristandade, fazendo
com que esta pensasse que os manipulava sabiamente para derrotá-lo, quando era bem o
inverso o que ocorria. O mundo é o espaço de uma luta.
Quanto mais afastada da “natureza” mais alguma coisa é cristã, “civilizada”.
A natureza é algo “bruto” à espera de ser “purificado”, lapidado pela ação dos súditos
de Cristo. As regiões conquistadas pelo colonialismo mercantilista são as regiões da
Natureza, a Metrópole é a sede da Civilização. E, apesar da heterogeneidade e da
distância, há possibilidade de relacionamento. E o melhor relacionamento é a troca. A
cristandade ‘dá’ a civilização e os gentios ‘dão’ a natureza. Entretanto, esta também não
é uma troca perfeita. Civilização não é igual a Natureza. Uma é o instrumento
abençoado do Senhor que pode modificar a outra; esta só pode se dar àquela. A
Natureza não pode, em princípio, modificar a Ordem das Coisas e – muito menos –
tentar alterar a Ordem da Civilização. Ela, a Natureza, é subordinada face ao Sujeito
Criador. A troca ainda aqui é desigual e os maniqueísmos são falsas enunciações. Esta
troca desigual é o centro emissor de toda história colonialista das dominações imperiais:
um centro exterior doa a cultura, salva núcleos periféricos que retribuem com seus
produtos – frutos diretos da natureza ou de uma ‘organização da natureza’ oferecida
pelo Norte.
O discurso mercantilista supõe um sistema internacional de trocas visando
uma acumulação de moeda progressiva em um dos pontos do circuito. O discurso
econômico se beneficia de um realismo: meios “racionalmente” estabelecidos visando
fins determinados; causa e efeito. A prática mercantilista supõe, significativamente, uma
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No caso dos pagãos “brasis”, quer retirar-lhes a ignorância para que possam
ter meios de interpretar o mundo e lê-lo corretamente segundo as determinações
imutáveis do Código. Código que os próprios jesuítas usaram para poder compreender
as marcas deixadas por Deus no mundo. Mundo que será mudado não apenas pela
subjugação armada dos que tentam ficar de fora da cristandade – que é o espaço do
mundo justo – mas pelo trabalho de convencimento metódico e racional.
O saber não é, pois, atribuído excludentemente por revelações, intuições ou
visões. Ele pode ser transmitido, doado – e esta é uma grande tarefa cristã na terra –
talvez a mais cara aos olhos do Senhor. Tal transmissão não é dada apenas pela palavra
do padre no púlpito ou pelos escritos de monges insulados. Não, a transmissão é uma
tarefa adequada – por que não? – a padres que se lançaram fora de lugares sagrados ou
sacralizados e construíram um novo lugar na sociedade, ao erigirem uma instituição
pedagógica cristã para leigos pagãos. A pedagogia é uma disciplina cristã e ninguém
melhor que os preservadores do Saber para transmiti-la. Para imprimi-la no “papel em
branco” — ou para apagar os “traços emaranhados” — das culturas indígenas no Brasil.
Culturas que devem, então, conhecer interdições, que são os caminhos que levam para
fora da barbárie e fazem com que se possa estabelecer descontinuidades e, portanto,
conhecer a topologia do bem e do mal, da Ordem e da Desordem.
Uma das características do imaginário daqueles jesuítas é a prática de tudo
enumerar, contabilizar, cobrir com seqüências, pesos, hierarquias. Isso é importante
para não haver espaço para o demônio, mas igualmente introduz novos tipos de
planejamento e aumenta as possibilidades de previsões mais corretas, que é mais que
relevante para a prospectiva política da Companhia. Não é quantitativismo cego e
tonto ; procura nada deixar escapar ao entendimento racional e às diferentes formas de
supervisão da construção da razão na terra. A “contabilidade” jesuítica não é, assim,
uma simples tentativa extremada de tudo conhecer; é uma forma de em tudo se exercitar
em benefício do desenvolvimento individual-religioso e uma forma de estabelecer
disciplinas sociais que possam ser adequadamente implantadas e supervisionadas.
No caso das culturas indígenas no Brasil, esta contabilidade se liga a um
imaginário que tende a homogeneizar aquilo que lhe é diferente. Em desejar perceber
como unidade o que é múltiplo. Essa contabilidade articulada a tal homogeneização,
aliadas à inclinação prospectiva que as domina, permitirão um projeto de instalação de
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um espaço que seja próprio dos inacianos: as Aldeias. As Aldeias podem reunir
diferentes tradições indígenas como se fossem uma coisa só mas, dentro das Aldeias, a
contabilidade se introduz como regra de disciplina, supervisão, controle. Não é
contabilidade usada como uma tipologia interessada em estabelecer diferenças internas
do gentio, em reconhecer culturas índias espalhadas por pontos diferentes. Não, aqui a
contabilidade é voltada para um exercício de redução à homogeneidade.
Cabe, aqui, a advertência de que a “língua geral” não era uma língua tupi
‘exata’ e ‘universalmente’ empregada por “todos” os indígenas. A “língua geral” era
uma construção ‘ocidental’ de tradições locais, não se confundindo com nada de
“natural”.
As Aldeias são utopia concreta e necessária para evitar uma contaminação
originada no comportamento pecaminoso de colonos. Comportamento que estaria
minando, e mesmo, às vezes comprometendo seriamente, um projeto que o espírito
determinado de obediência e hierarquia dos missionários não permitiria que fosse
abandonado ou derrotado. Se uma das linhas-de-força do pensamento pedagógico
jesuítico é o “exemplo”, como suportar que os indígenas vissem tão costumeiros
desregramentos vindos de membros – como eles, jesuítas – do povo cristão? O olhar dos
indígenas só deveria ver aquilo que realmente o aproximasse da Verdade e não fossem
confundidos em seu processo de socialização. As Aldeias são a tentativa de correção de
um fracasso duplo: permitir um contato freqüente entre “índios” e cristãos e pregar onde
o “índio” habitava.
As Aldeias são um movimento brusco na política catequética. Com elas, se
pode vir a descaracterizar, em todos os níveis praticamente, a vida dos grupos indígenas
atingidos. Eles são, em muitos casos, afastados de seus loci e entram, com tantos outros
grupos diferentes, em um espaço radicalmente novo e construído para que ali vivessem.
Só a cultura do colonizador mantinha continuidade com seu passado; não sofrera ruturas
brutais e não fora compulsoriamente misturado com outras.
As Aldeias impõem ruturas às histórias daqueles a quem absorvem mas, são,
também, um primeiro distanciamento da Companhia face à sociedade colonial. É contra
setores dominantes dessa sociedade que ela se volta publicamente e tenta proteger por si
mesma os “índios” dos ataques ilegais dos colonos que, entre outras atitudes, exorbitam
no emprego da noção de “guerra justa”. As Aldeias procuram ter autonomia máxima
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1
Cf. História da Companhia de Jesus no Brasil, padre Serafim Leite, Rio de Janeiro, 1938-1950, 10
tomos, tomo IV, pág. 105-106.
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Este ‘plano’ político-econômico-social do padre Antonio Vieira encontra-se no “Sermão da Primeira
Dominga da Quaresma” in Sermões, Erechim: EDELBRA, 1998, v.XI, pág. 9.
A Visita e o plano estão analisados em Vieira e a Imaginação Social Jesuítica (Rio, 1997) de Luiz Felipe
Baeta Neves, especialmente às págs.: 183-185 e 387-400.
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3 – Reduções Jesuíticas
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