BAETA NEVES. Conferência Os Soldados de Cristo

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Os Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios *

Luiz Felipe Baêta Neves**

Setembro

*
Conferência apresentada no dia 26/09 no Seminário Internacional — A Globalização e os Jesuítas:
origens, história e impactos. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos
**
Historiador, Antropólogo, pós-doutor em Sociologia pela Universidade de Paris - V. Professor na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O último de seus diversos livros é Transcendência
Poder e Cotidiano: as cartas de missionário do padre Antônio Vieira (Rio de Janeiro: Atlântica Editora;
EDUERJ, 2004)
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2006

Introdução

A história da Igreja no Brasil colonial, especialmente a que se confunde com


a história dos inacianos, pode ser vista como articulação complexa de um mundo escrito
a uma oralidade que deixa marcas menos evidentes de suas práticas.
Este mundo escrito dos jesuítas é o das cartas e de uma produção que,
genericamente, chamaríamos de ‘literária’. Mas a escrita jesuítica também se estende à
redação de documentos próprios (e o auxílio mais ou menos público ... a documentos
alheios) e aos sermões. Sermões que são, muitas vezes de classificação difícil, pois não
obedecem a fronteiras que possam ser rigidamente estabelecidas e que separassem o
escrito e o oral. A história mesma dos sermões de nosso maior pregador o demonstra;
Vieira, ao editar seus próprios sermões, deixa observar que alguns deles somente foram
escritos, outros escritos muito posteriormente à data de elocução, outros ainda
chegaram, mesmo, a ter duas versões escritas. Ou seja, não há porque confundir a forma
escrita, tal como nos chegou, com uma “verdade fática” oral. Os “sermões de Vieira”,
neste sentido, são um excelente exemplo de como nos habituamos a confundir registro
com “realidade histórica”, thesaurus escrito com o que “efetivamente aconteceu”, como
se pudéssemos “reviver” a colônia ao ler/ouvir “aquilo mesmo” que um certo século
XVII pôde ler/ouvir de corpo presente.
O universo missionário jesuítico se distingue por seus objetivos culturais ;
pretende a expansão e a reprodução do catolicismo pelo saber. Saber que será
confirmado, se os auditórios já forem tementes a Deus, ou anunciado e ensinado
àqueles que o desconhecem. No intenso esforço pedagógico jesuítico, a escola tem
posição singular dentre todos os diferentes meios utilizados no trabalho de confirmação
ou conversão que empreendem.
É notadamente nos colégios, mas também em práticas pedagógicas não-
institucionais que se pode analisar a convivência entre as diversas culturas indígenas, de
múltipla tradição oral, e a cultura portuguesa dos que têm a tarefa de transmitir a
verdadeira cultura. Tal cultura é normativa, porque suposta única e sagrada por seus
praticantes e, ao lado de música, teatro lança mão de livros e, mesmo de bibliotecas
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(então livrarias) como instrumento de convencimento, de persuasão, de saber. É,


contudo, mais significativo perceber que os livros estarão ‘fisicamente’ mais ou menos
presentes e disponíveis, mas de todo modo, trata-se de uma cultura cristã que se alicerça
em textos consagrados e consagradores, de autoridades, que podem estar presentes ou
não e que se referem à palavra divina que está consubstanciada em textos sagrados
reunidos em um Livro Santo – relato da origem e código de conduta – que é a Bíblia.
A história do Brasil colonial exprime, a seu modo, a forma pela qual a voz e
a escrita então se estabeleceram. Não cabe aqui nenhuma generalização que impeça o
reconhecimento de que aquilo que sabemos do período colonial é, principalmente, o que
conseguimos teoricamente construir a partir de raras fontes escritas que foram
preservadas segundo variados critérios históricos de preservação, constituição de
acervos etc. Outras fontes escritas foram eliminadas porque não foram consideradas,
para cada um dos diferentes momentos por que passaram, como dignas, exemplares ou
verdadeiras. Ou se perderam em 'acidentes naturais' (como incêndios etc.) ou pela
ausência de preservação ou de restauração. As tradições culturais essencialmente orais,
como as indígenas, não entram na corrente principal dos mananciais que alimentam a
(história) escrita dessa nossa história.
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O que vem de ser dito não se pode confundir com uma espécie de “história
institucional” do país, em que se reificasse a noção de “escola”. Ou se expandisse tanto
os aspectos formais de um “colégio” quanto a extensão que poderiam ter alcançado.
O involuntário ‘silêncio’ das tradições indígenas ilustra bem a distância que
existe entre a história por nós construída e a incontável dispersão de ‘situações reais’ –
imaginadas ou empíricas – que teceria um suposto perfeito continuum da história.
Paradoxalmente (?), podemos escrever sobre este silêncio – e sobre tantos outros de que
apenas supomos a existência — caladas que foram as formas de sua presença de modo
ainda mais radical, pelo extermínio físico e/ou cultural.
A história, a teoria da história que escrevemos agora, articula presenças e
ausências; sua racionalidade não deve fazer supor que tudo se sabe ou, mesmo, que ‘um
dia’ ‘futuro’ imaginado, tudo se vai saber. O texto que se segue procura mostrar alguns
momentos relevantes da história do Brasil colonial jesuítico. Não há, pois, qualquer
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pretensão de esgotamento das fontes mencionadas, nem qualquer intenção de imaginar


uma continuidade histórica ‘subjacente’ de que mostraríamos os píncaros.
Esta posição é coerente com a idéia de que as bibliotecas não só são histórica
e culturalmente constituídas como permitem articulações (históricas e culturais)
múltiplas. Em certo imaginário social, tende-se a confundir ‘biblioteca’ (nacional) com
‘memória’ (nacional) e a entender “nacional” como sinônimo de integração, unidade,
homogeneidade. Assim, opera-se a fusão de “registro histórico”, memória histórica e
história como prática teórica e desta com um passado que “efetivamente existiu”, que
seria comum a todos, sem diferenças, e que caberia “resgatar” em nome do Bem
Comum.

1 – A idéia de Missão e os Primeiros Tempos na Terra dos Papagaios

A história da Companhia de Jesus no Brasil colonial é a história de uma


missão. E para que exista “missão” é preciso que haja uma série de noções que
produzam, por sua conjunção mesma, uma significação peculiar ao termo no século
XVI – e no século XVI ibérico, especialmente.
A missão supõe uma série de continuidades, caso contrário, não poderia ser
cogitada. Supõe uma continuidade “geográfica”, outra “humana”, outra “temporal” e
assim sucessivamente. Tais continuidades não podem ser absolutas; se assim fosse não
haveria necessidade de um projeto missionário porque simplesmente não se parte de um
ponto de chegada. A missão supõe uma continuidade relativa ; requer alguns pontos de
segurança onde se possa apoiar para conquistar pontos esquivos, descontínuos. E o
projeto missionário é justamente este : unir os diversos pontos – que, até ali, ou não
formavam uma figura ou esta era disforme – de uma forma traduzível ao idioma de
quem maneja o instrumento que desenha. A missão não aceita descontínuos absolutos;
quando teme sua presença, ela os denuncia como inadequados (objetos não-pertinentes)
a seus objetivos e se afasta. Como nos movemos em categorias relativas, aquilo que
mais aflige o missionário é perceber – ou temer – que sua missão acabou ou que ela não
é realizável. A fronteira da pertinência, que muitas vezes aparece como a fronteira da
viabilidade, é difícil de ser estabelecida com clareza e pode levar a situações
conflituosas dentro e fora do grupo que a executa.
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No interior da cristandade, a expansão do missionarismo a partir do século


XV acentua algumas distinções e instaura outras. Ordens missionárias têm como seu
“inverso” ordens monacais. Se é evidente que ambas se identificam como pertencentes à
Igreja de Cristo, a relação de cada uma delas com o “mundo” é oposta. Os mosteiros
querem para si seus monges, e ordens religiosas não são, necessariamente, ordens
missionárias.
A palavra de Deus tem que atingir, falar, no monge distante do mundo
profano e não por meio dele para um auditório que quer ver sua doutrina reiterada ou a
ela é levada – de bom ou mau grado ... O contemplativo, o monge fechado em seu
convento é alguém que tem seu mundo próprio, delimitado, temporal, espacial e
geograficamente. Seu mundo é isolado dos demais, a partir da pessoa do religioso – sua
primeira e principal meta. As relações com o “exterior” são precisas, determinadas,
restritas, previamente estabelecidas.
Pressuposto básico da missão é o de que a cristandade tem dimensão social
que deve ser cumprida. A missão é um tipo de abertura significativa que representa a
confirmação de uma vontade de inserção da Igreja em laços diferentes, maiores,
profanos, sociais. Se não há abismos intransponíveis, por que não construir ou, pelo
menos, usar as pontes que unem o “sagrado” e o “profano”? A consciência moral cristã
passa a assumir o risco de se lançar fora de si, em um certo sentido de se dessacralisar,
em nome de uma ampliação – ou de uma reafirmação – do universo de Cristo. Um
cristianismo que considera que tem uma vocação universal e precisa exercê-la. A idéia
de universalidade implica outras idéias: integração e unidade. Expansão, universalidade,
integração, unidade são noções caras a um Ocidente que se lança à sua maior aventura
de conquista.
A expansão ocidental é, na realidade, bifronte. Supõe uma incorporação
territorial, além da incorporação espiritual. A antiga representação dos “dois gládios”
permanece viva; a cristandade tem um gume temporal – o Imperador – e um gume
espiritual – o Papa. De qualquer modo, houve, entre os dois “gumes”, certas diferenças,
que estabeleciam hierarquização. O império deveria ser imagem do Reino Celestial e o
Imperador recebia investidura de poder daquele que era o Rei dos Reis. Mas, antes de
qualquer imperador ou rei, deveria estar o herdeiro do trono do primeiro herdeiro
humano de Cristo (Pedro). Apesar da não-unanimidade ideológica quanto aos limites de
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poder e os papéis estritos de cada um dos Chefes, o que importa é acentuar a


interdependência – mais ou menos amigável, mas sempre existente – entre a Fé e o
Império quanto à necessidade de anunciar o Evangelho onde ele não era conhecido ou
de impô-lo onde Ele havia sido renegado. Onde quer que fosse.
A cristianização do mundo é a tentativa de imposição de uma
homogeneidade imaginária mas não implica em uma contigüidade territorial imediata
que seria uma espécie de gigantesca reificação de um território único espiritual.
A progressiva inserção em assuntos seculares por parte de amplos setores da
Igreja demanda outro remanejamento, agora de ordem filosófico-religiosa. A missão
pode ser visualizada como o ponto de interseção entre uma linha reta vertical vinda do
alto (efetivamente do Alto) e uma superfície plana. Este ponto de interseção não é
região de calmaria nem sinal que deixa de funcionar ao se inscrever na horizontalidade.
A missão quer alterar algumas das características centrais da superfície sobre a qual
quer deixar sua marca. O momento do encontro é um momento de choque, de violência
física e/ou simbólica, de alteração de uma situação até então vigente. O momento do
encontro, as formas em que se dá, o local escolhido não são fortuitos ; implicam, pelo
menos quanto aos inacianos, em um projeto racional e humanamente estabelecido. Este
projeto se instaura permanentemente : é um processo, um conjunto de políticas cuja
formulação e implantação seriam impossíveis para um pensamento voltado apenas para
si e para o alto. O mundo, apesar de tudo, é cristão: é uma realidade material, feita por
Deus e que os homens – e particularmente os sacerdotes – não tem o direito de ignorar.
Uma possível “ignorância” teria efeitos letais para uma cristandade que tem que encarar
um duplo desafio : o da perda de territórios tradicionais (pela Reforma) e o do
aparecimento de novos territórios (pelos “Descobrimentos”).
A descoberta de novas terras não seria o achamento de uma Alteridade Total,
de um Outro (uma série de Outros) e sim um reencontro com regiões de Si que se teriam
afastado física e espiritualmente. A “descoberta” é, sobretudo, um conhecimento das
partes até então dobradas, ocultas, de um mesmo mapa já há muito desenhado por uma
só Mão.
A imagem que se reforça, então, é de uma continuidade diferenciada,
relativa, do já conhecido com o novo. À medida que este novo mundo não é apenas
admitido intelectualmente, mas se expõe igualmente ao olhar, o horror à
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descontinuidade, ao incontrolado, à desintegração, ao desconhecido, enfim, tende a se


matizar.
O espaço terrestre não é mais uma sucessão de ruturas. Ou de esferas
concêntricas (como o Universo, segundo concepção medieval do cosmos) que se
espraiam em um disco que tem bordas finais. A rotundidade então demonstrada é a de
uma esfera; esfera cujos pontos podem ser percorridos, seguidas determinadas regras
religiosas, técnicas ou vindas da “experiência”. A terra é uma esfera, gira sobre si e em
torno do Sol (para os que nisto acreditam). Se é uma esfera, tem condições para ser
contínua; qual a figura geométrica mais homogênea, constante, sem clivagens, sem
faces desiguais, sem antagonismo de planos, sem arestas ou vértices? Se gira sobre si, é
sinal de que tem um eixo que se reconhece como centro; se gira sobre si, passa várias
vezes por um mesmo ponto (o mesmo ponto passa várias vezes por um outro ponto, por
si mesmo). Se aceito for que gira em torno do Sol – como os demais iguais (os planetas)
– tem um centro exterior, fora de si, ao qual está sujeito. Este sistema de continuidades
e dependências permite uma série de conjuntos no imaginário. Como o que admite
continuidades diferenciadas sem violentação da cosmologia religiosa, pois há um
Centro de subordinação exterior, ou de uma cosmologia social que incorpora a
possibilidade da existência de “semelhantes” – de “iguais relativos”. A rotundidade é
um continuum; a rotação é o ritmo e a permanência deste continuum; rotundidade e
rotação são assegurados por centros intrínsecos (o eixo) e, eventualmente, extrínsecos (o
Sol).
E tal esfera pode ser representada no plano! Não precisa ser plana para poder
ser representada plana. No momento em que o rigor do cálculo da longitude se soma ao
anteriormente conhecido cálculo da latitude, forma-se o ponto de cruzamento capaz de
dizer onde cada um está no mundo físico. E aprimora a projeção do corpo esferóide em
uma superfície chata como a da carta geográfica. A percepção visual se beneficia agora
da tridimensionalidade da perspectiva, marca da pintura do Renascimento. Perspectiva
que relativiza incrivelmente os objetos que representa porque distingue melhor suas
distâncias dos demais componentes do quadro. Relativiza o papel do tema central
porque o põe em contraponto (em confronto) com dimensões diferentes; e povoa tais
dimensões de temas secundários, para que haja o exercício visual de cada uma das
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dimensões. Não elimina a dominância do tema central, mas o contextualiza de uma


nova, diferente e multiplicada maneira.
Viagem no espaço, viagem no tempo, a do missionário. O tempo é uma linha
reta contínua : é o tempo divino. Mas se este tempo está fora de uma intervenção
humana, os homens têm uma história profana. A história profana tem limites
estabelecidos ; tem um início e um fim. Entre um e outro haveria uma sucessão de
ciclos até o ciclo final, ou uma curiosa segunda hipótese (que não rejeita necessária ou
totalmente a primeira) : o mundo tem “idades” semelhantes aos períodos vitais das
matérias vivas.
O mundo do século XVI é feito de similitudes. Uma sala cujas paredes são
espelhos deformados. Não são todos igualmente deformados nem apenas se trocam suas
próprias imagens. Há uma figura cuja presença é a poderosíssima presença de uma
‘ausência’. O mundo, a sala de espelhos, teve um Construtor. Contudo, Sua presença
não se esgota aí ; impôs, um “sentido” à sala de espelhos. O de sofrer a Sua ausência e
ter que refletir sua presença. Mas não há um único espelho perfeito na sala e o seu
sentido (da sala) é o de reproduzir uma imagem o mais possível perfeita de Alguém que
nunca se apresenta por inteiro nela, já que Seu lugar, por excelência, não é no mundo
profano.
Deus é o paradigma ausente. Mesmo que se desse inteiro ao reflexo
especular, este não saberia reproduzi-lo, porque é congenitamente deformado e hábil
apenas para reproduzir semelhanças e não igualdades. Igualdades que seriam exatas
reproduções de uma entidade de outra ordem: da ordem do Sagrado. O sentido do
mundo, sua tarefa é perseguir e não alcançar integralmente o sagrado, confundindo-se
com ele.
Se Deus não se oferece por inteiro ao olhar, Ele deixa suas marcas no
mundo. A tarefa do cristão, e particularmente do sacerdote cristão, é de tentar ler essas
marcas que inscrevem nos objetos sua distância e sua diferença do Paradigma. A tarefa
do sacerdote cristão missionário é maior. Ele não é apenas um leitor das marcas, deve
lê-las e modificá-las. Se a mudança não for possível deve abandoná-las à sua sorte ou –
melhor – eliminá-las. Ainda mais quando há o perigo do inimigo de Deus e do homem
ter se apoderado, temporariamente ou não, de certos objetos, roubando-os a seu legítimo
Senhor.
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O missionário não quer somente ler o Livro Sagrado enquanto tal. Ele quer
lê-lo (confrontá-lo enquanto Código Ideal) no Mundo secular. Quer decifrar este mundo
como linguagem, percorrer seus sinais e estabelecer uma leitura frutífera para uma
intervenção adequada quando o “texto” estiver truncado ou maculado. Não devemos,
por outro lado, supor um abandono da interpretação das Escrituras Sagradas por parte
das ordens missionárias. Elas as lêem e transmitem sua verdade para o século,
especialmente para os semelhantes menos semelhantes, mais afastados do Dogma.
Os ouvidos podem ser todos, mas não a língua nem aquele que a profere. A
Língua de Deus é uma só, e a multiplicidade de línguas é vista como uma maldição
perigosa. E maldição lançada por Deus e que aparece no mito bíblico da torre de Babel.
Esta se destruiu porque houve uma multiplicação de línguas; ninguém se entendia e a
empresa fracassou. Na origem – boa, já que divina – havia, portanto, uma única língua.
Esta língua, a partir de determinado momento da história do cristianismo, passou a ser o
latim que, de profana, passa a ser sagrada e se sacraliza à medida que se enfraquece
como idioma “vivo”, corrente, vulgar. Passa a ser ‘propriedade’ dos que continuam a
cultivá-lo no silêncio dos mosteiros ou no murmúrio das missas. Se o saber é sinônimo
de saber decifrar o código Divino, o latim é seu acesso privilegiado. Mas o latim é uma
língua “culta” e a missão não tem majoritariamente, uma platéia “culta”; a missão vai
justamente doar a “cultura”.
Para isto, entretanto, precisa ser ouvida. Alguns julgavam que bastava que a
Língua fosse proferida para que houvesse a conversão – reuniam-se centenas de pessoas
e a elas se falava. A missão se cumpriria, mesmo que estivéssemos entre mongóis ...
Outros, particularmente aqueles que, como a Companhia de Jesus (a partir do final do
século XVI), intentavam uma conversão permanente, institucionalizada, foram levados
a admitir que deveriam se comunicar também em línguas profanas, sob perigo de ver
fracassar a missão, já que perceberam a ineficácia da mera repetição da Língua Sagrada,
tal como se acreditava nos primeiros tempos da missão. Menosprezavam as línguas
profanas, qualificam-nas como pouco “humanas” mas tinham que conhecê-las ainda que
precariamente. É claro que tinham outra forte justificativa para tão impura convivência;
a convivência estaria sob controle, seria temporária, o latim era ensinado e louvado.
Se se afirma que há “línguas profanas” fora do Ocidente, afirma-se uma
continuidade relativa. Há sistemas que podem ser assim, ao menos aproximativamente,
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nominados e que podem ser conhecidos pelo Sistema. A ponte, podemos chamar de
“tradução” e se caracteriza pela possibilidade de haver trocas. Não são trocas
“perfeitas”, “igualitárias”, sonhadas por um tradutor de nossos dias. É uma troca
desigual porque não quer manter a dispersão de línguas. Quer estabelecer uma
determinada; quer passar sua sintaxe e sua semântica. Quer exacerbar diuturnamente a
desigualdade até os limites da substituição de um sistema (de sistemas múltiplos) por
Outro. É uma troca ilusória já que seu objetivo é o apagamento progressivo das
diferenças de linguagem entre os interlocutores em questão. Quer um eco, não uma
resposta ou, muito menos, uma réplica.
Afinal, sempre era preciso estar alerta contra o Demônio, que poderia ser
ardiloso a ponto de fazer entrar seus próprios elementos no seio da cristandade, fazendo
com que esta pensasse que os manipulava sabiamente para derrotá-lo, quando era bem o
inverso o que ocorria. O mundo é o espaço de uma luta.
Quanto mais afastada da “natureza” mais alguma coisa é cristã, “civilizada”.
A natureza é algo “bruto” à espera de ser “purificado”, lapidado pela ação dos súditos
de Cristo. As regiões conquistadas pelo colonialismo mercantilista são as regiões da
Natureza, a Metrópole é a sede da Civilização. E, apesar da heterogeneidade e da
distância, há possibilidade de relacionamento. E o melhor relacionamento é a troca. A
cristandade ‘dá’ a civilização e os gentios ‘dão’ a natureza. Entretanto, esta também não
é uma troca perfeita. Civilização não é igual a Natureza. Uma é o instrumento
abençoado do Senhor que pode modificar a outra; esta só pode se dar àquela. A
Natureza não pode, em princípio, modificar a Ordem das Coisas e – muito menos –
tentar alterar a Ordem da Civilização. Ela, a Natureza, é subordinada face ao Sujeito
Criador. A troca ainda aqui é desigual e os maniqueísmos são falsas enunciações. Esta
troca desigual é o centro emissor de toda história colonialista das dominações imperiais:
um centro exterior doa a cultura, salva núcleos periféricos que retribuem com seus
produtos – frutos diretos da natureza ou de uma ‘organização da natureza’ oferecida
pelo Norte.
O discurso mercantilista supõe um sistema internacional de trocas visando
uma acumulação de moeda progressiva em um dos pontos do circuito. O discurso
econômico se beneficia de um realismo: meios “racionalmente” estabelecidos visando
fins determinados; causa e efeito. A prática mercantilista supõe, significativamente, uma
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continuidade de relações sem interdições geográficas; é uma prática que requer


integração internacional. Mas, se o mercantilismo implica integração geográfica e
continuidades intercontinentais, ele também tem suas descontinuidades porque supõe
sedes coloniais e colônias ligadas e subordinadas a tais metrópoles; supõe impérios
(sedes + colônias) “fechados” e competitivos, porque quer exercer diferentes tipos de
trocas desiguais. São estas trocas desiguais que proporcionam a riqueza. Riqueza que é
produzida por um encadeamento de intercâmbios viciados, só possíveis por
intervenções que atingem e alteram não só a economia, mas todas as instâncias da vida
dos “selvagens”.
A Missão jesuítica está no centro do movimento militante da Contra-
Reforma, mas percebeu que sua luta religiosa não é apenas européia; está, também, nos
trópicos e a maior arma é o saber. O controle do saber se confunde com o controle do
poder; poder e saber – Fé e Império – se confundem e se alastram para fora dos centros
em que se engendram, e descem para o Sul. Mas, apesar da vida quinhentista ser
pensada cristãmente quanto à legitimação do poder político central, o imaginário cristão
não se reduz a um pensamento sobre o Político. O profundo, o verdadeiramente difícil
de ser percebido é o controle quotidiano, tentacular, intersticial de tudo que se faz na
vida profana. Nas formas de escansão do tempo, nos modos de saudação, nas regras
alimentares, nas maneiras de vestir, nas imputações morais, na arquitetura das casas e
dos castelos, na iconografia de naus e na temática das artes. Mas também no manto com
que recobre e acolhe saberes que dele se distinguem como os da ciência e do ocultismo;
e que, quando quis, soube confrontá-los e, mesmo recalcá-los, com vigor.
O discurso jesuítico quinhentista tem seus centros em noções como as de
Lei, Civilização e Ordem que se entre-referem e se entreolham em busca de um
Paradigma que não está entre eles, mas que cumpre imitar. Os objetivos da catequese
são os de fazer com que esta terra brasileira, amorfa como seus habitantes, tenha um
corpo e um espírito que sejam os mais próximos possíveis daqueles que são os mais
próximos de Deus: os cristãos europeus. Grande regra de conhecimento do século XVI,
a semelhança deve ser perseguida para que coisas, pessoas e lugares possam se
reconhecer (re)conhecendo aquele que não é semelhante, porque é a Origem. A
dessemelhança é própria do grande inimigo, Lúcifer, e os jesuítas querem derrotá-lo.
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No caso dos pagãos “brasis”, quer retirar-lhes a ignorância para que possam
ter meios de interpretar o mundo e lê-lo corretamente segundo as determinações
imutáveis do Código. Código que os próprios jesuítas usaram para poder compreender
as marcas deixadas por Deus no mundo. Mundo que será mudado não apenas pela
subjugação armada dos que tentam ficar de fora da cristandade – que é o espaço do
mundo justo – mas pelo trabalho de convencimento metódico e racional.
O saber não é, pois, atribuído excludentemente por revelações, intuições ou
visões. Ele pode ser transmitido, doado – e esta é uma grande tarefa cristã na terra –
talvez a mais cara aos olhos do Senhor. Tal transmissão não é dada apenas pela palavra
do padre no púlpito ou pelos escritos de monges insulados. Não, a transmissão é uma
tarefa adequada – por que não? – a padres que se lançaram fora de lugares sagrados ou
sacralizados e construíram um novo lugar na sociedade, ao erigirem uma instituição
pedagógica cristã para leigos pagãos. A pedagogia é uma disciplina cristã e ninguém
melhor que os preservadores do Saber para transmiti-la. Para imprimi-la no “papel em
branco” — ou para apagar os “traços emaranhados” — das culturas indígenas no Brasil.
Culturas que devem, então, conhecer interdições, que são os caminhos que levam para
fora da barbárie e fazem com que se possa estabelecer descontinuidades e, portanto,
conhecer a topologia do bem e do mal, da Ordem e da Desordem.
Uma das características do imaginário daqueles jesuítas é a prática de tudo
enumerar, contabilizar, cobrir com seqüências, pesos, hierarquias. Isso é importante
para não haver espaço para o demônio, mas igualmente introduz novos tipos de
planejamento e aumenta as possibilidades de previsões mais corretas, que é mais que
relevante para a prospectiva política da Companhia. Não é quantitativismo cego e
tonto ; procura nada deixar escapar ao entendimento racional e às diferentes formas de
supervisão da construção da razão na terra. A “contabilidade” jesuítica não é, assim,
uma simples tentativa extremada de tudo conhecer; é uma forma de em tudo se exercitar
em benefício do desenvolvimento individual-religioso e uma forma de estabelecer
disciplinas sociais que possam ser adequadamente implantadas e supervisionadas.
No caso das culturas indígenas no Brasil, esta contabilidade se liga a um
imaginário que tende a homogeneizar aquilo que lhe é diferente. Em desejar perceber
como unidade o que é múltiplo. Essa contabilidade articulada a tal homogeneização,
aliadas à inclinação prospectiva que as domina, permitirão um projeto de instalação de
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um espaço que seja próprio dos inacianos: as Aldeias. As Aldeias podem reunir
diferentes tradições indígenas como se fossem uma coisa só mas, dentro das Aldeias, a
contabilidade se introduz como regra de disciplina, supervisão, controle. Não é
contabilidade usada como uma tipologia interessada em estabelecer diferenças internas
do gentio, em reconhecer culturas índias espalhadas por pontos diferentes. Não, aqui a
contabilidade é voltada para um exercício de redução à homogeneidade.
Cabe, aqui, a advertência de que a “língua geral” não era uma língua tupi
‘exata’ e ‘universalmente’ empregada por “todos” os indígenas. A “língua geral” era
uma construção ‘ocidental’ de tradições locais, não se confundindo com nada de
“natural”.
As Aldeias são utopia concreta e necessária para evitar uma contaminação
originada no comportamento pecaminoso de colonos. Comportamento que estaria
minando, e mesmo, às vezes comprometendo seriamente, um projeto que o espírito
determinado de obediência e hierarquia dos missionários não permitiria que fosse
abandonado ou derrotado. Se uma das linhas-de-força do pensamento pedagógico
jesuítico é o “exemplo”, como suportar que os indígenas vissem tão costumeiros
desregramentos vindos de membros – como eles, jesuítas – do povo cristão? O olhar dos
indígenas só deveria ver aquilo que realmente o aproximasse da Verdade e não fossem
confundidos em seu processo de socialização. As Aldeias são a tentativa de correção de
um fracasso duplo: permitir um contato freqüente entre “índios” e cristãos e pregar onde
o “índio” habitava.
As Aldeias são um movimento brusco na política catequética. Com elas, se
pode vir a descaracterizar, em todos os níveis praticamente, a vida dos grupos indígenas
atingidos. Eles são, em muitos casos, afastados de seus loci e entram, com tantos outros
grupos diferentes, em um espaço radicalmente novo e construído para que ali vivessem.
Só a cultura do colonizador mantinha continuidade com seu passado; não sofrera ruturas
brutais e não fora compulsoriamente misturado com outras.
As Aldeias impõem ruturas às histórias daqueles a quem absorvem mas, são,
também, um primeiro distanciamento da Companhia face à sociedade colonial. É contra
setores dominantes dessa sociedade que ela se volta publicamente e tenta proteger por si
mesma os “índios” dos ataques ilegais dos colonos que, entre outras atitudes, exorbitam
no emprego da noção de “guerra justa”. As Aldeias procuram ter autonomia máxima
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quanto a suas determinações internas, e assumem um tom autárquico que as torna


menos vulneráveis ao jogo político geral da colônia. O progressivo caráter autárquico
das Aldeias aumenta a dependência dos indígenas em relação aos religiosos e faz com
que fiquem muito mais permeáveis e expostos ao trabalho de re-socialização gerido
pelos padres. A Aldeia não é apenas um lugar que foi escolhido para que se pudesse
converter determinados povos a uma determinada religião. Não ; a Aldeia ensina o saber
dos livros mas ensina também formas de comportamento, práticas econômicas, técnicas
corporais, interdições, penalidades etc. Enfim, é uma busca de re-socialização “total”,
quotidiana, observada em detalhe; é um projeto pedagógico abrangente.
As formas (hoje) corriqueiras de transmissão do saber também estão
presentes nos Colégios. Estes têm papel integrador diferente do precedente. Procuram
aceitar todos os “povos” (à exceção dos escravos) sem separações “raciais”. Sua rigidez,
de local socialmente determinado de se transmitir o saber, faz com que sejam bem mais
resistentes à mudança imposta em outras áreas pela realidade da terra, não se afastando
tanto do que se fazia nos centros europeus. O papel, certamente notável, de tais
Colégios vem sendo hipervalorado pelos que os vêem hoje como os modelos únicos, e
como local de fundação, de uma espécie de Gênese Institucional do país.
O discurso jesuítico quinhentista no Brasil, marcado pela disputa religiosa e
pela conquista de almas, é autocentrado; é um saber que escolheu centros, sujeitos e
objetos que se erigem a si mesmos como corretos e adequados e não admitem, com
facilidade, questionamentos. Seus centros se entrejustificam: tenho a Verdade porque
sou Europeu porque sou Cristão porque tenho a Verdade.
E o discurso e a ação jesuíticas ficaram ; não só porque são exemplos
perfeitamente válidos até hoje para tantos, mas porque conseguiram impor, mesmo a
seus críticos, uma constelação de objetos culturais.
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2 – A Imaginação Social Jesuítica – século XVII

O discurso do padre Antonio Vieira parece-nos especialmente útil para a


compreensão do período pela importância da Companhia de Jesus ao estabelecer
Aldeias numerosas em extensíssima área – como aquela do Maranhão e Grão-Pará – e
pela posição que ele teve na questão da escravidão, na catequese indígena, na ocupação
territorial, na vida política da Colônia, nas formas de articulação desta com a Metrópole.
A grande arma ideológica de Vieira, ao menos como exposição pública de seus
pontos de vista, foram os sermões. Que acabaram por revelar nem um místico com
preocupações etéreas, nem um beletrista, nem um político que usasse a instituição
religiosa para fins menores. Revelaram-se em Vieira feixes imaginários compósitos que
rejeitam etiquetas fáceis.
A começar pela importância que atribui à humana história dos homens. Que
passa pela conjuntura real dos auditórios, do pregador, do sermão, da missão, da Igreja
e, mesmo... de Deus. De um auditório com quem tem um originalíssimo diálogo – e
auditório que é personagem do próprio sermão. Tanto quanto o pregador. E o próprio
sermão não é alocução divina meramente transmitida por um eleito em momento
determinado. Não, o sermão é o resultado de uma articulação da transcendência com a
conjuntura ‘quotidiana’ daquele sermão. Apologia da missão em escala planetária que
não pode negar a destinação secular que o Evangelho teria determinado que a Igreja
tivesse. E de que teriam que se beneficiar todos os homens e não apenas os centros
produtores de caravelas e missionários. Sermão que tem que explicar suas razões porque
não é veículo para uma religião iniciática, mas porque o mundo é inteligível e o
auditório saberá compreende-lo desde que haja competência do orador. Que a exibirá
não apenas pela demonstração de seus conhecimentos bíblicos ou de sua santidade
pessoal; a exibirá pela correta leitura que puder fazer do universo.
O universo é uma ‘repetição’ na história profana de cenas bíblicas que o orador
terá de descobrir quais sejam – e anunciar. Ele é um tradutor ; verá na imensa cena do
mundo o que o desígnio divino aí colocou como enigma. Ainda aí o missionário é um
tradutor – e tradutor sofisticado – porque terá de ler, em terras e povos ignotos, a
palavra divina. Decifração que já lhe foi necessária para descobrir que a Missão é uma
determinação santa que terá que ser desenvolvida na terra por todos aqueles que
16

conheceram a palavra de Cristo. Religião católica militante, guerreira e universalista


que quer expulsar a ignorância – e não apenas as heresias. Como o saber – o conhecer a
existência do Senhor – é irrecorrível, o Evangelho deve ser de todos sabido e, em
contrapartida, todo aquele que não o divulgar incorrerá em pecado mortal.
Neste quadro, o púlpito é um lugar de mobilização social que pretende alterar
uma situação aberrante que atinge os gentios de toda parte. Operosa religião que prega a
expansão e esposa a ideologia do esforço e do empenho. E que é uma doutrina da
permanência ; julga que deve ficar junto das populações indígenas para expulsar o
vazio, o demônio, o herege. Noções de ocupação, permanência, convívio, expansão,
operosidade e razão que se articulam a idéias caras ao colonialismo econômico e
político mas que a ele não é necessário que se atribua a “fundação”. Sem as
peculiaridades da genealogia interna à história religiosa estaríamos impedidos de ver as
formas de articulação entre feixes imaginários (e institucionais) diferenciais e que
podem – ou não – levar a pontos comuns neste ou naquele momento histórico.
Ética jesuítica do trabalho, da permanência, do acompanhamento do longo
germinar das sementes que desemboca no que poderíamos chamar de uma peculiar
apologia da agricultura, da faina constante e observadora, da perseverança. Veja-se
como tal encadeamento temático é complementar aos que o colonialismo pôde
produzir ; ‘operaram’ juntos muitas vezes. Mas, se reduzirmos o religioso ao
econômico, não conseguiremos entender porque é que tal posição religiosa pôde ser
contrária a estes mesmos interesses econômicos e políticos quando julgou ameaçada a
posição da missão. E, quando julgou a missão ameaçada ‘fisicamente’, soube usar sua
ideologia guerreira em seu próprio benefício – em defesa de suas Reduções, por
exemplo – e contra aqueles de que tinha, em outros momentos, abençoado a imperial
espada. Da questão da escravidão, todos ouvimos falar do colonialismo como uma
‘empresa escravagista conjunta’ entre o poder político metropolitano central e a Igreja
Católica. Esta manipulação leviana teoricamente de macroconceitos não tem poder
heurístico algum se “aplicado” a apenas um século de história do Brasil-Colônia em
uma região que ia – na menor das hipóteses – do atual Piauí até o ‘meio’ do Amazonas,
para mantermos o exemplo da área do Maranhão-Grão-Pará.
No caso da ordem religiosa católica mais importante, incontestavelmente, para a
história desta região, senão de toda a Colônia, a missão foi a tentativa de
17

estabelecimento de uma topologia social – de resto perfeitamente coerente com sua


filosofia – à correta alocação de coisas bem definidas, de nomes claros, em lugares
ordenados. Os jesuítas acabaram por estabelecer regras de convívio entre diferentes. O
que isto quis dizer/fazer? Foram compelidos a se afastar porque – pragmáticos e
realistas, dentro de sua metafísica – concluíram que a mistura com os colonos brancos
era danosa a todos. Acreditavam especialmente que o mau exemplo dos ‘portugueses’
poria a perder o trabalho catequético com o gentio. E poria os próprios colonos
portugueses a perder – pela cobiça (trabalho escravo indígena) e luxúria (pelas licenças
que o contato com as populações indígenas permitiria).
Este afastamento era contrapontuado pela atenção presente que tinham quanto
ao papel da Metrópole na colônia e quanto ao comportamento dos leigos.
A Companhia queria, pois, que lhe fosse permitido viver com os índios – ou,
pelo menos, visitá-los com assiduidade – e com os ‘portugueses’, na colônia. Esta
topologia implicava no estabelecimento de códigos de comportamento claro entre as
partes, que agora não mais se confundiriam e passariam a ter relações reguladas pela
Igreja ‘abençoada’ pela copiosa legislação baixada pela Coroa. O papel da Companhia
era, portanto, múltiplo e implicava em percorrer espaços culturais e sociais, muitas
vezes geograficamente distintos. Os jesuítas criaram as Aldeias para autonomizar seu
trabalho em um movimento de ‘contração’ notável para uma Ordem que tinha como
escopo a viagem, forma de permanente expansão.
As Aldeias eram uma cunha em algo que se insiste em imaginar monolítico. Esta
constituição da sociedade colonial por sístoles e diástoles, mostra este século XVII não
como uma ‘filosófica’ busca de ‘alteridade’, mas como uma ‘geografia humana’ em que
a dispersão grupal tem articulação direta com uma prática espacial e com formas
progressivamente crescentes de ocupação. As Aldeias não são de modo algum reflexos
ou simulacros do poder político leigo ou do poder político da Igreja; do Estado ou de
Roma. São uma organização peculiar – e que conheceu ‘tipos’ diferenciados. As
Aldeias deveriam, pela norma vieiriana, conhecer uma peculiar situação de convívio
para uma companhia que procurava não uma simples contigüidade, mas um
mapeamento entre ‘campos’ distintos. Sua minuciosa ocupação do tempo e do espaço; a
previsibilidade dada pelas rotinas rígidas; a preocupação com uma socialização ‘para’ a
cristandade que guardasse elementos culturais ‘índios’; o poder quase absoluto dos
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padres; as regras pessoais de relacionamento com a cultura ‘portuguesa’; os modos


econômicos singulares – tudo isso aponta para a necessidade da constituição de
conceitos de médio e baixo alcance para que as macroteorias possam voltar ao leito de
onde não deveriam ter saído.
O estabelecimento desta topologia social não parece se interessar – na prática,
pelo menos – por polarizações ; há, na perspectiva jesuítica, múltiplos lugares em que
‘grupos’ e ‘relações’ devem/‘podem’ se dar. Assim, as posições antipodais sobre a
atuação dos jesuítas (fala-se sempre como se a Ordem fosse monolítica) – se eram
“contra” ou “a favor” da escravidão – rolam uma discussão que poderia mudar de ...
objeto desde que Vieira, porá exemplo, fosse lido. Talvez por essa ausência de cuidado
fatual – que nada tem de rendição a qualquer empiricismo – a Visita 1 ou o ‘plano’2 não
sejam analisados (a não ser rapidamente e, claro, por Serafim Leite, onipresente). Por
estes documentos, percebe-se que a escravidão é algo de moralmente intolerável para a
Companhia, mas que ela a admitirá porque, maior que a economia colonial ilegítima, é
a inarredável Missão. Missão que eles julgam só poder existir com este tipo de
exploração econômica, feita em princípio por outros, e em condições controladas pelo
rei e pela Igreja. Portanto, os jesuítas não são “contra” nem “a favor” d’A Escravidão;
aceitam certo tipo de escravidão para determinados contingentes populacionais sob
precisos controles legais e religiosos. E mais: Vieira faz propostas concretas de um
novo tipo de exploração econômica colonial.
As relações com o Poder também devem ser analisadas mais sofisticadamente
para evitar que se imaginem relações fixas entre atores que representaram vários papéis
em várias peças. Uma destas – tomada a título de ilustração – é a que separa jesuítas de
colonos e que fazia da busca da aliança com o Estado ibérico objetivo político central.
Mas podemos ver, também, os padres se aliarem a leigos para evitar a entrada em cena
de um quarto ator que, mascarado, fingia ser o rei, mas que sequer era ventríloquo, já
que tinha voz e desejo próprios. Antagônicos – porque antes deturpavam que
representavam o rei – aos de todos os cristãos que habitavam a Colônia.

1
Cf. História da Companhia de Jesus no Brasil, padre Serafim Leite, Rio de Janeiro, 1938-1950, 10
tomos, tomo IV, pág. 105-106.
2
Este ‘plano’ político-econômico-social do padre Antonio Vieira encontra-se no “Sermão da Primeira
Dominga da Quaresma” in Sermões, Erechim: EDELBRA, 1998, v.XI, pág. 9.
A Visita e o plano estão analisados em Vieira e a Imaginação Social Jesuítica (Rio, 1997) de Luiz Felipe
Baeta Neves, especialmente às págs.: 183-185 e 387-400.
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As bibliotecas de nossos jesuítas permitem, entre outras perspectivas, entrever


estudos menos pomposos e institucionais sobre a educação na Colônia. E sobre o que
efetivamente se lia – ou se podia ler, segundo quais critérios? – na Colônia. A análise
daquilo que é a população do imaginário de Vieira – pessoas, lugares, autores – com
certeza permitirá uma visão menos simplista da vida cultural da colônia e assim
estabelecer uma teoria substantiva da produção discursiva tal como seus materiais
efetivamente o permitiriam.
20

3 – Reduções Jesuíticas

Durante 150 anos, de 1609 a 1768, missionários da Companhia de Jesus,


administraram, na região do Rio da Prata, um complexo político-econômico entendido,
a partir de um certo ponto de vista, como “Estado Jesuítico do Paraguai”. Este “reino
teocrático” fundamentou-se na ocupação de territórios platinos através da construção de
aldeias fortificadas denominadas reduções. As “reduções”, em sua intenção final não se
distinguiam da Aldeia: ambas eram processos, diferenciados, de aculturação.
A referência feita às Reduções como a um Estado Teocrático, por um lado,
tem o mérito de demonstrar a importância destas enquanto pólos de expressão político-
econômica naquele contexto histórico-cultural. Entretanto, sua expressiva atividade
econômica – por exemplo, na criação de gado e no cultivo da erva-mate – não
representava autonomia política: “as reduções faziam parte do domínio colonial
espanhol, dependiam da coroa e dos que a representavam, viam-se obrigados ao serviço
de guerra e aos impostos sendo visitadas regularmente pelos governadores”3.
Estes aldeamentos representavam, principalmente, os anseios missionários
de conquista e conversão de povos pagãos pela Igreja católica; neste sentido, os
“soldados de Cristo” da ordem inaciana, tinham a missão de “ensinar os valores da
civilização européia”4 aos povos indígenas. Para a compreensão do sentido de
cristandade, como “projeto de evangelização” 5, deve-se destacar que,
concomitantemente ao aspecto religioso da conversão dos índios, considerava-se a
responsabilidade geopolítica de demarcação das fronteiras, ocupação e manutenção das
terras conquistadas pelos reinos.
Durante sua fase principal, de 1690 a 1750, o território das Reduções
jesuíticas contava com um total de 30 aldeamentos: 8 em território do atual Paraguai, 15
em território da atual Argentina e 7 no Rio Grande do Sul. Elas concretizavam, através
da organização do espaço geográfico e ‘disciplinarização’ do índio, o poder de expansão
do Estado Moderno mercantilista através do ideal missionário de “recondução” dos
pagãos à fé católica. Neste sentido, a Redução realiza a missão histórica de tornar
indissociável a ligação entre expansão da fé e alargamento/manutenção de fronteiras. O
3
De acordo com Wolfgang Hoffman Harnisch, na “Introdução” à obra do padre jesuíta, Antônio Sepp,
1943.
4
Santos, 1993.
5
Santos, 1997.
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povoado guarani-missioneiro materializava não apenas uma organização arquitetônica,


mas, sobretudo, um espaço de conquista, defesa e expansão da política espanhola e,
posteriormente, do expansionismo luso-brasileiro no sul.
Localizada na parte central do povoado, a Igreja ou paróquia exprimia o
poder onipresente do Deus cristão. A organização do espaço dentro do povoado deveria
fazer prevalecer a imagem da vitória do bem contra o mal ; da salvação daqueles que se
convertem à razão cristã. Neste “mundo” moldado pela racionalidade da fé católica as
coisas estavam civilizadamente ordenadas; a civilização se contrapõe ao caos, ao
selvagem e, ainda, ser civilizado é respeitar uma hierarquia que, naquele contexto, se
impõe pela ação da espada e se mantêm pelo símbolo da cruz que é solenemente erguida
pela autoridade do sacerdote em nome do rei e em nome do Cristo.
A simetria da aldeia deveria contrastar com toda a assimetria do “mundo”
externo, aquele preocupante mundo dos pagãos e infiéis. A igreja deveria ser segura e
abrigar o maior número possível de fiéis no seu interior, ali, em meio a “santos, anjos,
arcanjos e querubins”, deveriam ser reproduzidos de maneira dramática, portanto, com
alto teor emocional, os rituais da eterna luta cristã entre o bem e o mal. Este espaço
sagrado deveria atrair espiritualmente o nativo, seduzindo-lhe os sentidos e a
imaginação. Em relação à importância étnico-cultural da conquista Quevedo (1997)
destaca que: “nesse processo, cabe dizer que não atuou apenas a espada e o arcabuz,
pois foi igualmente importante a ação da Cruz – a piedosa cruz da igreja,
instrumentalizada como forma de dominação” (op. cit., p. 233).
As armas subjetivas da conquista étnico-cultural que reforçavam e
reproduziam o alargamento das fronteiras. Neste sentido, a manutenção e constante
alargamento dessas fronteiras dependia tanto do espaço aldeado – o limite que demarca
a conquista – como do aspecto incisivo de mudança que sua diferença fundamental
introduzia naquele espaço cultural, pois a aldeia abrigava o Bem, os cristãos. A própria
necessidade de ampliar os limites de atuação cultural das aldeias estava relacionado aos
símbolos que (res)guardavam o Bem e que estavam referidos ; apenas, a uma cultura, a
cultura cristã, ocidental.
Entre 1580-1640, os espanhóis e os portugueses estiveram unidos. No
entanto, na segunda metade do século XVIII, acirrou-se, entre guaranis-missioneiros,
selvagens, missionários e luso-brasileiros, a disputa pela ocupação das terras nas
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fronteiras do sul do continente. Por um lado, os missionários defendiam seus interesses


catequistas que estavam imbricados, irremediavelmente, aos ideais históricos da
colonização em nome do rei de Espanha; e neste sentido, todo um trabalho de catequese,
colonização e defesa do solo “espanhol” estava ameaçado pela invasão/expansão luso-
brasileira. O reino português, de outro lado, espalhava as raízes da cultura lusitana na
parte meridional do Brasil; este movimento pressionava, constantemente, as fronteiras
pretendidas pelas missões. Neste sentido, a ação da colonização portuguesa no impulso
dinâmico de definição das fronteiras do Rio Grande, se estabelece como “fronteiras
vivas”, pólos de tensão e confronto constantes entre guaranis-missioneiros, selvagens,
missionários e luso-brasileiros.
Pelo Tratado de Madri, datado de 1750, se pode constatar como as coroas
ibéricas se empenharam em redimensionar o poder sobre os territórios localizados na
porção meridional do continente sul-americano. Estas posses, até então, estavam
contratadas desde 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. Entretanto, a tentativa das coroas
ibéricas em equilibrar suas ações de expansão mercantilista pela reconfiguração do
poder sobre o território luso-espanhol, através do Tratado de Madri, acaba por
impossibilitar, definitivamente, a ação jesuítica na zona do Rio de Prata.
***
Em conseqüência de medidas legais que culminaram em lei do marques de
Pombal de 1759, os jesuítas são expulsos de Portugal. No Brasil, pouco tempo depois
desta promulgação, afastam-se os últimos inacianos aqui residentes e se encerra a
primeira etapa de sua presença.
23

Sugestões de leitura:

ANCHIETA, J. Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Coimbra


[Portugal], 1595.
BAÊTA NEVES, L.F. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios.
Forense-Universitária, Rio de Janeiro, 1978.
______________. Vieira e a Imaginação Social Jesuítica. Topbooks, Rio de Janeiro,
1997.
LEITE, S. história da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro, 1938, T.1.
LOZANO, P. História de la Companhia de Jesus em la Província Del Paraguay.
Madrid, 1754-1755, 2 T.
MONTOYO, A. R. Manuscritos guarani da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
sobre a primitiva catechese dos índios das missões. Rio de Janeiro, typ. G.
Leuzinger e Filhos, 1879, Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, v.
VI.
SANTOS, J. R. Q. Missões Jesuítico-Guaranis do Prata: Terra, Trabalho e Guerra.
Tese Doutorado, USP, São Paulo, 1997.
______________. As Missões, crise e redefinição. Ática, São Paulo, 1993.
SEPP, A. Viagem às Missões Jesuíticas. Livraria Martins, São Paulo, 1943.
VASCONCELOS, S. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. Rio de
Janeiro, Typografia de João Ignácio da Silva, 1864.
VIEIRA, A.S.J., 1608-1697. Sermões/Antônio Viera; revisão e adaptação de Frederico
Ozanam Pessoa de Barros; supervisão de Padre Antônio Charbel, S. D. B. e de
A.Della Nina; introdução e supervisão de Luiz Felipe Baeta Neves. – Erechim:
EDELBRA, 1998.

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