Discurso e Ensino PDF

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Discurso e Ensino

Conselho Editorial:
Alexandre Franca Barreto (UNIVASF – Petrolina/PE, Brasil)
Aline Lima da Silveira Lage (INES – Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
Bernadete de Lourdes Ramos Beserra (UFC – Fortaleza/CE, Brasil)
Carlos Alberto Batista Santos (UNEB – Juazeiro/BA, Brasil)
Carlos César Leal Xavier (ENSP/Fiocruz – Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
Carlos Eduardo Panosso (IFTO – Palmas/TO, Brasil)
Caroline Farias Leal Mendonça (UNILAB - Redenção/CE, Brasil)
Dilsilene Maria Ayres de Santana (UFT – Palmas/TO, Brasil)
Edivânia Granja da Silva Oliveira (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Edson Hely Silva (UFPE – Recife/PE, Brasil)
Eliana de Barros Monteiro (UNIVASF – Juazeiro/BA, Brasil)
Francisco Gilson Rebouças Porto Júnior (UFT – Palmas/TO, Brasil)
Juliano Varela de Oliveira (IF Sertão PE – Ouricuri/PE, Brasil)
Juracy Marques (UNEB – Paulo Afonso/BA, Brasil)
Léo Barbosa Nepomuceno (UFC – Fortaleza/CE, Brasil)
Marcelo Silva de Souza Ribeiro (UNIVASF – Petrolina/PE, Brasil)
Mariana Tavares Cavalcanti Liberato (UFC – Fortaleza/CE, Brasil)
Pablo Dias Fortes (CRPHF/ENSP/Fiocruz – Rio de Janeiro/RJ, Brasil)

Comitê Editorial:
Ana Carmen de Souza Santana (UFT – Arraias/TO, Brasil)
Ana Célia Santos dos Anjos (IF Sertão PE – Serra Talhada/PE, Brasil)
Ana Patrícia Frederico Silveira (IF Sertão PE – Ouricuri/PE, Brasil)
Ana Patrícia Vargas Borges (IF Sertão PE – Floresta, PE, Brasil)
André Ricardo Dias Santos (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Antônio Marcos da Conceição Uchôa (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Bartolomeu Lins de Barros Júnior (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Clécia Simone Gonçalves Rosa Pacheco (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Cristiano Dias da Silva (IF Sertão PE – Ouricuri/PE, Brasil)
Danielle Juliana Silva Martins (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Eduardo Barbosa Vergolino (IF Sertão PE – Floresta/PE, Brasil)
Francisco Kelsen de Oliveira (IF Sertão PE – Salgueiro/PE, Brasil)
Gabriel Kafure da Rocha (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Kélvya Freitas Abreu (IF Sertão PE – Salgueiro/PE, Brasil)
Luis Osete Ribeiro Carvalho (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Márcia Farias de Oliveira Sá (IF Sertão PE – Salgueiro/PE, Brasil)
Maria Alcione Gonçalves da Costa (IF Sertão PE – Serra Talhada/PE, Brasil)
Matheus Henrique da Fonseca Barros (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Pedro Augusto de Castro Buarque Silva (IF Sertão PE – Salgueiro/PE, Brasil)
Rodolfo Rodrigo Santos Feitosa (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Sebastião Francisco de Almeida Filho (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Tito Eugênio Santos Souza (IF Sertão PE – Petrolina/PE, Brasil)
Valter Cezar Andrade Júnior (IF Sertão PE – Ouricuri/PE, Brasil)
Discurso e Ensino
olhares interdisciplinares
Ivanaldo Santos (Org.)

φ
Direção editorial: Herlon Alves Bezerra
Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni
Arte de capa: Horizon - Ninhol

A regra ortográfica usada foi prerrogativa de cada autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

http://www.abecbrasil.org.br

Série Diálogos Transdisciplinares em Educação - 2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


SANTOS, Ivanaldo (Org.).

Discurso e ensino: olhares interdisciplinares. [recurso eletrônico] / Ivanaldo Santos (Org.) -


- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017.

253 p.
ISBN - 978-85-5696-145-7
Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Identidade, 2. cidadania, 3. cultura, 4. discurso, 5. ensino. I. Título. II. Série.

CDD-177
Índices para catálogo sistemático:
1. Ética e sociedade 177
Prefácio
O livro Discurso e ensino: olhares interdisciplinares visa refletir
e repensar a relação complexa e interdisciplinar entre o ser
humano, a sociedade, a linguagem e o ensino; conforme deixa
claro na Introdução o Organizador – Ivanaldo Santos.
O livro faz incursões sobre várias áreas do
conhecimento. Apresenta vários pontos de confluência entre a
Análise de Discurso e o Ensino. As reflexões aqui contidas
ultrapassam a compreensão da língua como um sistema abstrato e
formal pois, englobam teorias, contextos, lugares, sentidos e a
própria palavra em movimento.
Merece destacar que diversos conteúdos desenvolvidos
neste livro foram objeto de estudo, análise e investigação
realizada no âmbito da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN) no Campus de Pau dos Ferros, notadamente,
no Grupo de Estudos do Discurso (GRED), no Programa de
Pós-Graduação em Letras (PPGL) e no Programa de Pós-
Graduação em Ensino (PPGE), que desenvolvem estudos e uma
investigação interdisciplinar sócio-discursiva com saberes e
estruturas sociais diferentes.
A originalidade e a forma que os autores abordam os
conteúdos torna o livro instigante e a leitura muito agradável. As
reflexões sobre a leitura do cordel na escola; da indústria cultural
e o rock brasileiro; da identidade da mulher nordestina na letra da
música Galera da Rodinha da banda Aviões do Forró nos oferecem
reflexões sobre a construção de imagens elaboradas pela nossa
sociedade bem como conhecimentos sociológicos, filosóficos e
pedagógicos que são relevantes não só para o profissional da
educação mas, para o público em geral pois, tratam de questões
cruciais para a nossa sociedade, portanto, são questões que, de
forma direta ou indireta, diz respeito a a vida do cidadão.
O livro traz também reflexões epistemológicas,
filosóficas, sobre os direitos humanos; a natureza
fenomenológica; na ética e na bioética, portanto, reflexões
extremamente relevantes para a produção do conhecimento e o
agir do profissional da educação. Nos convida a pensar sobre o
ethos da figura de Padre Cícero e o paradoxo ético em Paul
Ricoeur; construção dos sentidos nas charges a partir de um olhar
bakhtiniano. Contempla análises discursivas em Maingueneau e
também sobre a imagem do Nordeste presente na literatura de
cordel.
Os autores dos artigos que desfilam no livro – Letícia da
Silva Gonzaga; Francisca Aline Micaelly da Silva Dias; José
Francisco das Chagas Souza; Julio Neto dos Santos, John de
Oliveira Magalhães; Nilo Agostini; Marcio de Lima Pacheco;
Rummening Marinho dos Santos; Sergio Rubens Alves
Cavalcante; Francisco Roberto Diniz Araújo, Wambert Gomes
Di Lorenzo; Martha A. Sossai, Úrsula D. Sossai; Ricardo Piragini;
Ivanaldo Santos, que além de autor, é o Organizador do livro –
nos oferecem um valioso material com conteúdo linguístico,
sociológico, filosófico, pedagógico e que, por isto, certamente
será de grande proveito para professores e educadores, pois
envolve diretamente a prática educacional.

Dra. Áurea Soares Barroso (Bolsista PNPD-Capes).


Sumário

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11

CAPÍTULO I ........................................................................................................................ 15
O INTERDISCURSO NA PUBLICIDADE DULOREN: UMA ANÁLISE DISCURSIVA EM MAINGUENEAU
JARBAS VARGAS NASCIMENTO
SUEGNA SAYONARA DE ALMEIDA

CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 27
A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NAS CHARGES SOB UM OLHAR BAKHTINIANO
MARIA DO SOCORRO MAIA FERNANDES BARBOSA
LETÍCIA DA SILVA GONZAGA

CAPÍTULO III ...................................................................................................................... 45


O ETHOS DA FIGURA DE PADRE CÍCERO NA LITERATURA DE CORDEL
IVANALDO SANTOS
FRANCISCA ALINE MICAELLY DA SILVA DIAS

CAPÍTULO IV ...................................................................................................................... 65
A CONSTRUÇÃO FENOMENOLÓGICA DO DISCURSO DE RIOBALDO NO EPISÓDIO DO JÚRI EM
GRANDE SERTÃO: VEREDAS
JOSÉ FRANCISCO DAS CHAGAS SOUZA

CAPÍTULO V ....................................................................................................................... 85
A INDÚSTRIA CULTURAL E O ROCK BRASILEIRO: A CRIAÇÃO DE UM PÚBLICO CONSUMIDOR
JULIO NETO DOS SANTOS

CAPÍTULO VI .................................................................................................................... 113


A IDENTIDADE DA MULHER NORDESTINA NA LETRA DA MÚSICA GALERA DA RODINHA DA BANDA
AVIÕES DO FORRÓ
JOHN DE OLIVEIRA MAGALHÃES
CAPÍTULO VII ................................................................................................................... 129
A ÉTICA COMO TAREFA FUNDAMENTAL DA EDUCAÇÃO
NILO AGOSTINI

CAPÍTULO VIII .................................................................................................................. 149


O MAL E O PARADOXO ÉTICO EM PAUL RICOEUR
MARCIO DE LIMA PACHECO

CAPÍTULO IX..................................................................................................................... 175


A LEITURA DO CORDEL NA ESCOLA
RUMMENING MARINHO DOS SANTOS

CAPÍTULO X...................................................................................................................... 185


O NORDESTE NO CORDEL.
NORDESTINO, SIM, NORDESTINADO, NÃO: UMA ANÁLISE INTERDISCURSIVA
SERGIO RUBENS ALVES CAVALCANTE

CAPÍTULO XI..................................................................................................................... 203


QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DO SÉCULO XX
FRANCISCO ROBERTO DINIZ ARAÚJO

CAPÍTULO XII ................................................................................................................... 213


ÉTICA PERSONALISTA, ÉTICA AMBIENTAL E OS NOVOS APORTES DA LAUDATO SI
WAMBERT GOMES DI LORENZO

CAPÍTULO XIII .................................................................................................................. 233


O DIREITO DE NASCER: ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E A BIOÉTICA
MARTHA A. SOSSAI
ÚRSULA D. SOSSAI
RICARDO PIRAGINI
Introdução
Oficialmente a Análise do Discurso (AD) surge no final
da década de 1960. Ela surge tanto como consequência, mas
também como causa de uma séria de mudanças, rupturas,
questionamentos e inovações teóricas e metodológicas. Dentro
deste complexo momento histórico citam-se, como planos
profundos que darão sustentação ao surgimento da Análise do
Discurso, a contracultura, a crítica a sociedade de consumo, a
insurreição juvenil de maio de 1968, a crítica e, em certo sentido,
o abandono do estruturalismo e do marxismo ortodoxo, a crítica
aos modelos tradicionais de ensino e, por conseguinte, a reforma
do sistema universitário na França.
Neste contexto, a Análise do Discurso nasce e, em
muitos aspectos, se desenvolve, nas décadas de 1980 e 1990,
como uma análise, uma tentativa de compreender, interpretar e
criticar tanto as grandes correntes do pensamento do final do
século XIX e da primeira metade do século XX, principalmente o
estruturalismo e o marxismo, mas também de experimentar novas
teorias, novos métodos, novas misturas no campo da linguagem e
da análise cultural. Dentro deste processo, um ponto de destaque
é que a Análise do Discurso, já nas suas origens, busca construir
novos espaços, novos diálogos, métodos e perspectivas para o
ensino, principalmente o ensino universitário. Neste sentido, a
Análise do Discurso apresenta-se como uma teoria
interdisciplinar que busca estabelecer novos métodos e diálogos
com saberes diferentes.
Contemporaneamente a Análise do Discurso busca
aprofundar o campo da análise, da crítica e da interpretação
dentro do conturbado e, muitas vezes, autoritário e alienado
século XXI. No entanto, neste mesmo século a Análise do
Discurso busca voltar as suas origens e, com isto, ser um espaço
de análise da produção discursiva das estruturas sociais e da
literatura, mas também deseja repensar o fazer educacional, o
processo e as consequências do ato de ensinar.
Dentro da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN), especialmente no Grupo de Estudos do Discurso
(GRED), do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) e
do Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE), busca-se
12 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

uma investigação interdisciplinar sócio-discursiva com saberes e


estruturas sociais diferentes. Trata-se de ume espaço universitário,
tal qual foi estabelecido nas origens da Análise do Discurso, para
se refletir e repensar a relação complexa e interdisciplinar entre o
ser humano, a sociedade, a linguagem e o ensino.
O presente livro é fruto das pesquisas desenvolvidas no
GRED, no PPGL e no PPGE, tendo por eixo central os desafios
teóricos e metodológicos da Análise do Discurso. Trata-se de
uma pequena, mas promissora visão tanto das pesquisas
desenvolvidas na UERN como no Brasil no campo da Análise do
Discurso e das interfases interdisciplinares entre comunicação,
estudos da linguagem, o debate no campo da ética, da educação e
do ensino.
O primeiro capítulo, de Jarbas Vargas Nascimento e
Suegna Sayonara de Almeida, faz uma análise discursiva de uma
publicidade da marca Duloren. O segundo capítulo, de Maria do
Socorro Maia Fernandes Barbosa e Letícia da Silva Gonzaga,
análise a construção dos sentidos em charges. O terceiro capítulo,
de Ivanaldo Santos e Francisca Aline Micaelly da Silva Dias,
analisa a figura do padre Cícero na literatura de cordel.
Já o quarto capítulo, de José Francisco das Chagas
Souza, realiza uma análise fenomenológica do discurso de
Riobaldo no episódio do júri em Grande Sertão: Veredas. No quinto
capítulo, de Julio Neto dos Santos, analisa a questão da criação de
um público consumidor no rock brasileiro. O sexto capítulo, de
John de Oliveira Magalhães, analisa a problemática da identidade
da mulher nordestina na letra da música Galera da Rodinha da
banda Aviões do Forró. O sétimo capítulo, de Nilo Agostini, traz
uma importante análise ética sobre a tarefa fundamental da
educação.
O oitavo capítulo, de Marcio de Lima Pacheco,
apresenta uma análise ética do paradoxo ético em Paul Ricoeur.
O nono capítulo, de Rummening Marinho dos Santos, apresenta
uma importante reflexão sobre leitura do cordel na escola. O
décimo capítulo, de Sergio Rubens Alves Cavalcante, apresenta
uma análise interdiscursiva do Nordeste na literatura de cordel. O
décimo primeiro capítulo, de Francisco Roberto Diniz Araújo,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 13

apresenta uma síntese dos problemas epistemológicos e


educacionais do século XX.
Já o décimo segundo capítulo, de Wambert Gomes Di
Lorenzo, apresenta uma fundamental interrelação entre a ética
personalista e os problemas ambientais. No décimo terceiro e
último capítulo, de Martha A. Sossai, Úrsula D. Sossai e Ricardo
Piragini, realiza-se uma análise entre as relações dos direitos
humanos com a bioética.
Por fim, é realizado um agradecimento especial a todos
do GRED, do PPGL, do PPGE, da UERN e de outras
Instituições de Ensino Superior (IES) que tornaram possível a
publicação deste livro. Trata-se de um livro interdisciplinar e
interinstitucional.

Ivanaldo Santos
O organizador
Capítulo I
O interdiscurso na publicidade Duloren:
uma análise discursiva em Maingueneau
Jarbas Vargas Nascimento1
Suegna Sayonara de Almeida2

1. Introdução

Ao tomarmos como base a Análise do Discurso de


tendência francesa, mais especificamente às contribuições do
filósofo e linguista Dominique Maingueneau aos estudos do
discurso, objetivamos por analisar como o Interdiscurso é
construído pela Cenografia da publicidade Duloren. Assim,
utilizaremos como corpus de análise para esse trabalho um
discurso publicitário promovido pela campanha Duloren e as mulheres
reais no ano de 2012.
Ao entendermos que o interdiscurso é compreendido por
Maingueneau a partir do reconhecimento de uma tríade composta
por universo, campo e espaço discursivo. Tentaremos observar como a
publicidade Duloren, situado no universo publicitário, pertencente
ao campo discursivo propaganda, consegue revelar em seu espaço
discursivo, discurso da marca, posicionamentos discursivos
confrontados dentro dessa materialidade.
Dessa forma tentaremos mostrar como a publicidade
Duloren constrói o seu discurso acerca do feminino para tentar
persuadir o seu consumidor, utilizando outros discursos presentes
na história para significar no discurso do agora. Assim, a
publicidade Duloren busca vender o seu produto, vendendo
também maneiras de se portar em sociedade presente no referido

1Doutor em Letras, professor do Departamento de Língua Portuguesa e do Programa


de Estudos Pós-Graduandos em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected].
2Graduada em Letras Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da
UERN. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].
16 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

discurso, sugerindo a outras mulheres o direito de também


ocuparem um lugar de poder assim como a mulher que encena
essa publicidade.

2. O discurso em Maingueneau

O interesse que governa a análise do discurso seria o de


apreender o discurso como intricação de um texto e de
um lugar social, o que significa dizer que seu objeto não é
nem a organização textual, nem a situação de
comunicação, mas aquilo que as une por intermédio de
um dispositivo de enunciação específico.
(MAINGUENEAU, 2007, p. 19).

Para Maingueneau, o que podemos denominar como


discurso é a relação estabelecida entre o texto (materialidade) e as
diferentes formas de se enunciar sob essa materialidade. É a
enunciação de um sujeito que fala de um lugar (formação
discursiva) que junto ao texto proferem certo momento histórico
e social.
Quando falamos de “discurso” a primeira coisa que nos
vem à cabeça são os discursos políticos, por ser algo mais
conhecido pela sociedade, e que se denomina pelo ato de
discursar exercido pelos políticos em eventos destinados às
eleições. Mas o que a AD enquanto disciplina nos mostra, é que
qualquer situação comunicacional, onde aja um enunciador e um
co-enunciador interagindo a partir da linguagem, essa situação de
comunicação entre ambos pode ser denominado discurso.

O discurso não é nem um sistema de “ideias”, nem uma


totalidade estratificada que poderíamos decompor
mecanicamente, nem uma dispersão de ruínas passível de
levantamentos topográficos, mas um sistema de regras que
define a especificidade de uma enunciação.
(MAINGUENEAU, 2008b, p.19).

O discurso não é algo pronto e acabado, objeto existente


fora da conjuntura histórica-social que o faz significar. Ele
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 17

também não apresenta em sua totalidade uma significação que


poderíamos identificá-las sobrepostas uma a uma para reconhecer
seus diferentes significados, ao tentar dessa forma um garimpar
de enunciados já proferidos em sua totalidade. Mas, o que se têm,
são enunciados que se unem discursivamente sob uma ótica que
adota regras segundo o campo discursivo que está inserido.
É preciso também levar em consideração que todo e
qualquer discurso é regido por leis, o que Maingueneau (2008a,
p.31) coloca como “respeitar certas ‘regras do jogo’”. Dessa
maneira, o enunciador precisa diante de seu co-enunciador,
enunciar seguindo certas regras que os possibilitará a
comunicação entre ambos. A seriedade com a qual se profere o
enunciado é uma das condições necessárias para que aja uma
interpretação correta do que se enuncia. Essas regras não são
obrigatórias, mas seguem um padrão de conhecimento mútuo
entre os co-enunciadores.
Essas leis permitem o uso de conteúdos implícitos que
seguem o princípio de cooperação. Como as leis do discurso
precisam ser respeitadas, o autor de um determinado enunciado
ao saber que o seu leitor precisa ter em mente alguns
conhecimentos acerca do seu discurso, levá-lo-á a inferir um
sentido que não está explícito no texto, respeitando de tal modo
suas leis discursivas de maneira indireta. (PAUL GRICE Apud
MAINGUENEAU, 2008a)
As principais leis do discurso são segundo Maingueneau
(2008a):

1) A lei da pertinência; fornece informações que podem vir a


modificar uma situação, o leitor vê no enunciado algo que
lhe diz respeito, repassando uma mensagem que o faça
modificar uma determinada situação.
2) A lei da sinceridade; diz respeito à relação do enunciador
com o ato de fala que realiza (prometer, afirmar, ordenar
etc.) deve-se garantir a verdade do que está sendo dito. A
lei da sinceridade só é respeitada se o enunciador enunciar
um desejo que queira ver realizado.
3) A lei da informatividade; incide sobre o conteúdo do que
está sendo dito, os enunciados devem ser pronunciados
18 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

fornecendo informações novas aos seus destinatários.


Quando um enunciado não apresenta nada de novo, é
preciso que o destinatário infira que uma nova informação
está sendo dita.
4) A lei da exaustividade; estipula que o enunciador deve dar a
informação máxima. Não é uma repetição de informação
como na lei da informatividade. Mas devem-se fornecer
todas as informações práticas e importantes sobre o
determinado assunto.
5) As leis da modalidade; prescreve a clareza e a economia dos
enunciados. Essas escolhas dependem muito do gênero de
discurso que se utiliza. A pronúncia, a escolha das palavras
e a maneira de formular um enunciado mais direto,
acontecem de acordo com o gênero escolhido, e a razão
de clareza será dada de acordo com a complexidade de
cada um.

Nas comunicações verbais, temos também a preservação


das faces que pode ser positiva ou negativa. Com isso, ao
considerar que todo indivíduo possui duas faces, a face negativa
corresponde ao “território” de cada um (seu corpo etc.) e a face
positiva corresponde à “fachada” social, a nossa própria imagem
que tentamos apresentar aos outros. Pensando nisso, em uma
comunicação verbal podemos presumir que existam quatro faces
envolvidas, levando em consideração a presença mínima de dois
interlocutores. (MAINGUENEAU, 2008a)

3. Interdiscurso

O interdiscurso para a AD funciona como categoria de


análise que também recebe os nomes de polifonia, dialogismo,
heterogeneidade e intertextualidade de acordo com a corrente
teórica que pertence a cada especificidade que propõe a
elaboração do discurso e do texto. Desta forma, utilizar o
interdiscurso como procedimento de escrita não deveria ser
tratado como um procedimento que tenha como função resolver
um problema acerca de sua formação, mas entende-lo como uma
forma de juntar e descrever os aspectos que envolvem tais
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 19

discursos e os transformam em marco teórico de uma ciência.


(POSSENTI, 2003)
Na proposta formulada por Maingueneau (2008b), para se
referir a interdiscurso, prefere substituí-lo por uma trilogia
composta por universo discursivo, campo discursivo e espaço
discursivo. Dessa maneira, o autor apresenta a noção de universo
discursivo da seguinte forma:

Chamaremos de “universo discursivo” o conjunto de


formações discursivas de todos os tipos que interagem
numa conjuntura dada. Esse universo discursivo
representa necessariamente um conjunto finito, mesmo
que ele não possa ser apreendido em sua globalidade.
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 33).

Desse modo, o “universo discursivo” comporta todas as


formações discursivas existentes nas diferentes sociedades, e por
serem universais representam um número finito dessas formações
discursivas, embora não possamos alcançar sua totalidade. A sua
globalidade permitirá a construção de domínios discursivos
menores denominados “campo discursivo” entendido por
Maingueneau (2008b), como:

Um conjunto de formações discursivas que se encontram


em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma
região determinada do universo discursivo.
“Concorrência” deve ser entendida da maneira mais
ampla; ela inclui tanto o confronto aberto quanto a
aliança, a neutralidade aparente etc.... entre discursos que
possuem a mesma função social e divergem sobre o
modelo pelo qual ela deve ser preenchida.
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 34).

É no “campo discursivo” que as formações discursivas


presentes nesse mesmo campo, sejam ele político, religioso,
econômico, dentre outros, podem se confrontar, entrar em atrito ou
estabelecer parcerias no interior das formações discursivas de cada
campo, onde são construídos os discursos. É do interior de um
campo discursivo que um determinado discurso pode, ou não,
20 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

estabelecer relações com outras construções que já existiam em outras


formações discursivas. Não sendo possível determinar relações entre
formações discursivas em um mesmo campo, cria-se um isolamento
discursivo determinado como “espaços discursivos” caracterizados
por Maingueneau (2008b) como:

Subconjuntos de formações discursivas que o analista, diante


de seu propósito, julga relevante pôr em relação. Tais
restrições são resultados diretos de hipóteses fundadas sobre
um conhecimento dos textos e um saber histórico, que serão
em seguida confirmados ou infirmados quando a pesquisa
progredir. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 35)

O privilégio que se tem sobre as escolhas interdiscursivas tem


a ver com a formação discursiva do sujeito que analisa tais discursos;
suas escolhas implicam nos sentidos dos discursos que lhes são
remetidos pelos atravessamentos discursivos, que podem vir a ser
semelhantes ou não, dependendo da visão e formação do analista, ao
olhar sobre a cena enunciativa, categoria que veremos mais a frente.

4. Interdiscurso na publicidade Duloren: uma análise


discursiva em Maingueneau

Discurso: Passar o rodo.

Fonte: Duloren - 2012


IVANALDO SANTOS (ORG.) | 21

No que diz respeito aos elementos interdiscursivos


presentes no discurso “passar o rodo” podemos perceber a partir
do discurso proposto pela marca Duloren, a mulher na terceira
idade, vestida por uma Lingerie sensual, que seu corpo apesar da
idade apresenta jovialidade. O corpo magro e bem cuidado
comporta características que muitas das vezes só encontramos
presentes no corpo de mulheres mais jovens, cronologicamente
falando. A senhora está próxima a um rapaz aparentemente
jovem que está desacordado, posicionada com um dos joelhos
sobre o rapaz, ela parece estar satisfeita com sua posição em
relação a ele. A expressão de seu rosto revela que sua atitude sob
o rapaz lhe causa bem estar. O discurso em questão é composto
também pela presença do enunciado linguístico A única tarefa
doméstica que eu faço com prazer é passar o rodo.
Com base na descrição que acabamos de fazer, o discurso
fornecido pela marca nos faz procurar na história sua relação com
esse mesmo que agora a marca Duloren passa a nos apresentar.
Desta forma, esse discurso nos remete ao discurso da guerreira
Atenas na Mitologia Grega. Para Maingueneau (2008a, p. 37) o
interdiscurso passa assim a “[...] revelar a relação com o Outro
independentemente de qualquer forma de alteridade marcada”. O
discurso por si só nos fornece sua relação com outro discurso,
agora o mitológico. O interdito presente aqui, antes de juntarmos
ao seu enunciado pelas maneiras como estão colocados no
presente discurso, já nos é possível de fazermos essa outra leitura.
A deusa Atenas, é conhecida como deusa da sabedoria e
das artes, uma majestosa deusa guerreira, conhecida por proteger
seus heróis escolhidos. Assim como representado no discurso,
onde a mulher mais velha está com um de seus joelhos em cima
do rapaz. A deusa Atenas quando retratada, era sempre mostrada
ao lado de uma figura masculina, vista perto de Zeus como figura
de guerreiro para seu rei, ou ao lado de Aquiles ou de Odisseu,
principais heróis gregos assim como na Mitologia Grega a mulher
do discurso também é colocada junto a imagem de um homem,
só que nesse outro discurso o homem não é apresentado como
herói, sua presença aqui é inferior a da mulher (BOLEN, 1990, p.
69). Ela no papel de guerreira, ao invés de aparecer ao lado de
22 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

outro guerreiro como no discurso mitológico, aparece agora


perto de um homem fracassado, supostamente por tentar ser
mais poderoso que ela. O discurso do agora utiliza os sentidos do
outro já existente e modifica seus sentidos para mostrar que a
deusa, mulher do século XXI é um sujeito que também apresenta
poder, e esse poder pode estar igual ou superior aos homens em
muitos casos. Portanto, essa interdiscursividade nos permite fazer
relação entre os discursos, visando que os mesmos em algum
momento da história foram um só e agora passa a apresentar
outro sentido. Para Maingueneau (2008c, p. 140) “A unidade
pertinente de análise não é, portanto, o discurso em si mesmo,
mas o sistema de relações entre ele e os outros discursos, o
interdiscurso, por meio do qual ele se constitui e se mantém”.
O arquétipo da mulher de Atenas é respaldado pelas suas
habilidades e pensamento estratégicos que utiliza para resolver
seus próprios projetos de vida. Dessa maneira, a mulher de
Atenas tem uma forte tendência a se relacionar com homens
poderosos pertencentes ao mundo dos negócios. Ela, procura
pelo poder e quando acompanhada pode se tornar indispensável
ao homem que está do seu lado. Mulheres estudiosas, bem
sucedidas, elas podem ser suas esposas ou secretárias executivas
(BOLEN, 1990). Esse discurso que envolve o perfil da mulher de
Atenas em nossa sociedade revela o seu outro também nesse
discurso. O nome e a profissão da modelo estampados na
publicidade Duloren mostra que esse sujeito é uma mulher que
estudou e se realizou profissionalmente, secretária executiva
aposentada, bem sucedida uma vez que, pela cabeceira da cama, o
seu roupão arrumado no manequim, as joias que está usando
sinalizam objetos pertencentes a alguém de excelentes condições
financeiras. Essa relação interdiscursiva aqui presente e colocado
pela Duloren, é um discurso que permanece intacto ao longo do
tempo sobre as qualidades das habilidades e estratégias da mulher
desde a Grécia Antiga, indo de encontro ao que Maingueneau
(2008c, p. 141) coloca por “Situar-se como enunciador de um
texto constituinte não é falar em seu próprio nome, mas seguir o
traço de um Outro, no qual se personificam a Tradição, a
Verdade, a Beleza...”. É seguindo o traço deixado por Atenas que
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 23

o discurso sobre a mulher e o seu poder em conquistar espaços e


homens por méritos próprios foi colocado pela Duloren para
promover em suas consumidoras as qualidades de uma mulher
que lutou em busca de seus ideais e que hoje os desfruta sem se
importar com a idade.
Outra característica da mulher de Atenas é que na velhice
ainda apresenta uma vida ativa, prática, ela trabalha no lar e fora
dele. Com 77 anos, mulheres como a modelo do discurso já são
viúvas, pois sempre se casam com homens mais velhos, ou ainda
se mantêm solteiras. Dessa forma, frequentemente moram
sozinhas mesmo mantendo suas vidas ativas e ocupadas. Nessa
idade, essas mulheres se julgam auto- suficientes assim como
eram na juventude (BOLEN, 1990). Quando esse discurso sobre
as características da mulher Atenas são relacionados ao discurso
da Duloren presente nesse discurso, percebemos que os dois
discursos pertencem ao mesmo posicionamento discursivo. A
senhora que aparece na imagem também é uma mulher que
compartilha das mesmas qualidades atenienses, ela, na terceira
idade também tem sua vida ativa, cuida do lar, mas também cuida
do seu corpo e sente-se auto-suficiente ao relacionar-se
intimamente também com homens bem mais jovens. É dessa
maneira, que segundo Maingueneau (2008c, p.140) “[...] cada
discurso constituinte está indissociavelmente ligado a outro na
gestão dessa coexistência impossível [...]”.
Assim, o enunciado linguístico A única tarefa doméstica que
eu faço com prazer é passar o rodo. Revela também que as qualidades
desempenhadas por uma mulher da terceira idade não está
centrada apenas aos afazeres domésticos e cuidados com o lar. O
termo “passar o rodo” que o enunciado trás não é só enfatizando
a relação que essa mulher tem com o objeto rodo utilizado para
limpar a casa. O termo ambíguo “passar o rodo” configura-se
também em uma gíria utilizada pelos adolescentes, em especial,
para significar que uma pessoa namora muito. Esse discurso que
usa a metáfora do rodo para dizer que a mulher mais velha realiza
outras tarefas que não sejam as domésticas transforma o discurso
e passa a significa-lo no plano do empoderamento feminino. Nas
palavras de Maingueneau (2008b, p.39) “[...] essa transformação é
24 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

um processo que diz respeito ao conjunto de condições de


possibilidades semânticas do discurso primeiro e cujo produto é
um discurso concorrente [...]”. A mesma possibilidade linguística
que permite o sentido do discurso apenas como função
doméstica por parte da senhora é o mesmo que permite entendê-
lo como atitude de mulher namoradeira, ao levar homens jovens
para a cama como a senhora do discurso faz. Esse jogo de
sentidos é uma intenção que a marca tem em fazer outras
mulheres da mesma idade a também se sentirem poderosas e
sensuais como a que usa Duloren. Essa mulher que se apresenta
agora é uma mulher que ocupa o seu lugar de poder e sexualidade
com uma competência que acumula como sinal de positividade
no que se refere à idade.

5. Conclusão

Podemos concluir que os discursos encontrados aqui fazem


parte de uma rede de discursos que se gladiam no interior de um
campo discursivo onde emanam diferentes posicionamentos dos
quais a Duloren pertence, e dessa maneira conseguimos encontrá-
los sob a materialidade dos discursos seus diversos sentidos.
Desta maneira, observamos que os Outros discursos encontrados
têm uma relação intradiscursiva que teve origem na Mitologia
Grega.
A publicidade Duloren ao fazer uso desses discursos que
empodera todos os tipos de mulheres consegue imprimir em suas
consumidoras um novo modo de viver sem deixar que os
preconceitos que culturalmente são remetidos à sua maneira de se
portar em sociedade a façam perder o seu lugar já conquistado.
Quando a Duloren evidencia positivamente esses discursos,
promove em outras mulheres o direito e o dever de também se
posicionarem como a mulher encenada pela marca de Lingerie.
Portanto, o discurso do empoderamento é abordado pelos
discursos como um discurso constituinte que segundo Maingueneau
(2008c, p. 44) “[...] não mobiliza apenas autores, mas uma variedade
de papéis sociodiscursivos”. Que fazem com que outras práticas
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 25

sociais exercidas por mulheres, sejam hoje em dia reconhecidas


como maneiras positivas de se portar em sociedade.

Referências

BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulher. Nova psicologia das


mulheres. Tradução Maria Lydia Remédios. Revisão Ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, 1990.

CHARAUDEAU, Patrick. MAINGUENEAU, Dominique.


Dicionário de análise do discurso. 3. ed. Tradução de Fabiana
Komesu. São Paulo: Contexto, 2014.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação.


5 ed. Tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São
Paulo: Cortez, 2008a.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Tradução de


Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b.

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. Sírio


Possenti, Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva (Org.). São Paulo:
Parábola editorial, 2008c.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso.


Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola editorial, 2015.

POSSENTI, Sírio. Observações sobre interdiscurso. In: Revista


Letras, n. 61, Edição Especial, Curitiba, 2003, p. 253-269.
Capítulo II
A construção dos sentidos nas
charges sob um olhar bakhtiniano
Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa1
Letícia da Silva Gonzaga2
1. Considerações iniciais

Este trabalho busca refletir sobre a linguagem como uma


prática social, tendo em vista que esta é um meio de interação
comunicativa e que produz sentidos entre os falantes em um
determinado contexto social, esta por sua vez é de natureza
dialógica, mas isso não se resume apenas ao diálogo face a face,
pois todos os enunciados no processo de comunicação
independente de sua dimensão são dialógicos e que o enunciador
ao construir sua fala leva em consideração a fala do outro. Nesse
sentido, todo discurso é inevitavelmente atravessado por vozes
alheias, as quais se relacionam entre si para estabelecer os
sentidos. Partindo desse pressuposto, buscaremos através do
gênero charge mostrar como os sujeitos criam os efeitos de
sentidos desejados levando em consideração a mensagem do
texto e o conhecimento de mundo que possui, uma vez que nos
discursos são agregados vários outros discursos.
Assim, buscaremos investigar as possibilidades de
sentidos presentes no discurso chárgico; observar como ocorre a
relação dialógica entre as personagens e analisar os efeitos de
sentidos a partir da relação entre o implícito e o explícito. Para
tanto, é necessário levar em consideração o conhecimento que
cada leitor possui, e também que sua experiência de vida, pode
influenciar nos sentidos que esses dão às suas leituras. Tendo em

1Doutora em Letras, docente do Departemrento de letras Estrangeiras (DLE) e do


Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN), [email protected].
2 Graduada em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e
mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da UERN. E-mail:
[email protected].
28 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

vista que, as personagens presentes na charge geralmente são


famosos, políticos, artistas, jogadores de futebol, entre outros
temas motivadores e atuais do nosso século. No entanto,
sabemos que a compreensão desse gênero, na maioria das vezes é
desafiadora, pois para captar a mensagem implícita nas
entrelinhas é necessário mover alguns conhecimentos como o
linguístico e o enciclopédico para que ocorra a interpretação.
Nesse contexto, é indispensável que o leitor traga para suas
leituras, conhecimentos de mundo e de fatos atuais ocorridos no
meio social.
É pertinente destacar que nosso interesse é compreender
o que está subjacente às charges, ou seja, a relação dialógica do
texto chárgico com outros textos. Sendo assim, este trabalho será
desenvolvido da seguinte forma: inicialmente apresentamos a
introdução, com uma breve apresentação da temática a ser
tratada, bem como seus objetivos e a importância de se trabalhar
o gênero charge sob um olhar bakhtiniano. Em seguida,
abordaremos a questão do dialogismo e a interação verbal, o
signo linguístico como fenômeno ideológico, os gêneros dos
discursos, especificando especialmente a charge e por fim,
faremos a análise de duas charges retiradas da internet, em que
iremos mostrar a presença das vozes ideológicas que se cruzam e
são responsáveis pela construção de sentido.
Portanto, estamos conscientes de que o trabalho com a
charge dará uma grande contribuição para a construção da
consciência crítica e reflexiva do leitor, já que no referido gênero
discursivo há a possibilidade de associarmos linguagem verbal e
não verbal simultaneamente, cabendo ao leitor criar estratégias de
leitura eficientes para compreender o texto. Vale ressalta que
nesse contexto, o falante apresenta-se em constante interação
com discursos alheios por meio do contato ativo, do intercâmbio
de ideias, em que a linguagem se manifesta como um processo
contínuo a partir da interação verbal e os mecanismos pelos quais
os sujeitos interagem socialmente são analisados numa dimensão
dialógica da linguagem.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 29

2. Dialogismo e interação verbal

Quando falamos em interação verbal as relações


dialógicas apresentam-se como princípio fundamental sobre a
qual se apoia a concepção da linguagem e isso advém das
reflexões de Bakhtin e o círculo. Fator esse essencial para a
linguagem como fenômeno ideológico e que expressa a
permanente interação no contexto linguístico, em que a
linguagem se apresenta como heterogênea e passível de mudanças
históricas, sociais e culturais, as quais são manifestadas através da
fala no contexto social e que língua e ideologia não podem ser
concebidas separadamente. Partindo da noção de que o
dialogismo ocupa uma posição central na obra bakhtiniana, Stam
(1992, p. 72) complementa que o próprio Bakhtin deixa isso
muito evidente ao postular que “Por toda parte ouço vozes e as
relações dialógicas entre elas”, ou seja, a linguagem é de natureza
concreta, viva, é constitutivamente dialógica, que vem de outros
diálogos e contextos, a qual ganha historicidade, eventicidade e
singularidade quando é transmitida nos enunciados.
Desse modo, a realidade essencial da língua é a interação
verbal concretizada por meio da enunciação entre os sujeitos,
processo esse em que os enunciados se apresentam como únicos
e irrepetíveis, os quais manifestam um valor ideológico, carregam
consigo visões de mundo, juízos de valor e opiniões que são
importantes na construção de sentidos. Nesse contexto, Stam
(1992, p. 73) atesta que “Os enunciados não são indiferentes uns
aos outros, nem auto-suficientes; são mutuamente conscientes e
refletem um ao outro”. Sendo assim, os enunciados se relacionam
pela comunhão da comunicação verbal, ou seja, depende de
outros enunciados. Essa relação de natureza dialógica não deve
ser reduzida ao dialogo no sentido verbal, pois qualquer
enunciado, inclusive os monólogos possuem outras vozes,
estabelecem relação com outros contextos e enunciados.
Partindo desse pressuposto, Bakhtin/Volochínov (2014)
destaca que nesse processo dialógico as palavras possuem duas
faces, em que interagem locutor e interlocutor, ou seja, as
palavras provêm de alguém e se destinam a alguém formando
30 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

assim o produto da interação entre sujeitos socialmente


organizados que colocam a linguagem em funcionamento,
entendendo que não existe discurso neutro, nossas falas estão
sempre firmadas em vozes alheias e carregadas de ideologias.
Desse modo, Bakhtin (2011) defende que:

Não existe primeira nem a última palavra, e não há limites


para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem
limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do
passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados,
podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma
vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no
processo de desenvolvimento subsequente, futuro do
diálogo. (BAKHTIN, 2011, p. 410).

O autor aponta que, no processo dialógico existe uma


infinidade de sentidos imersos esquecidos que em determinado
momento do diálogo estes são retomados e renovados a partir do
contexto no qual se apresentem, pois não existe no discurso nada
morto, tudo é retomado, mudando apenas as situações, tendo em
vista que o dialogismo opera em todos os discursos seja ele verbal
ou não verbal, cotidiano ou literário, elitista ou popular.
Nesse contexto dialógico é pertinente destacar ainda a
responsividade como elemento fundamental constitutivo da
linguagem proposto por Bakhtin (2011), em que o receptor na
enunciação se coloca de forma ativa e responsiva concordando
ou discordando do conteúdo exposto no enunciado. Sendo assim,
Bakhtin (2011, p. 297) destaca que:

Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma


resposta aos enunciados precedentes de um determinado
campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido
mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se
neles, subtende-os como conhecidos, de certo modo os
leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição
definida em uma dada esfera da comunicação, em uma
dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível
alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras
posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 31

atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da


comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2011, p. 297).

Desse modo, o ouvinte ao compreender o sentido


linguístico do discurso, configura uma posição, pois toda
compreensão requer uma resposta, ou seja, é um momento de
posição responsiva em voz alta ou silenciosa dependendo da
situação e assim o ouvinte se torna falante como atesta Bakhtin
(2011). Assim, não podemos imaginar o homem fora de contato
com o outro, haja vista que é nesse contexto que ele se constitui e
realiza as transformações sociais. Ou seja, quando nós
entendemos uma palavra ou uma sequência organizada de
palavras do discurso externo trazemos essas palavras para o
nosso discurso e, consequentemente, as reproduzimos em outro
contexto, influenciadas por outra situação.
Isso demonstra que nossa compreensão contém um
caráter avaliativo, de réplica. Nesta perspectiva discutiremos em
seguida sobre o funcionamento do signo ideológico que segundo
Bakhtin (2011) é produto da história humana que não só reflete,
mas consequentemente refrata os fenômenos da vida. Assim, um
signo reflete e acompanha diversas relações de classes, ou seja, a
palavra torna-se palavra no intercâmbio comunicativo social, na
enunciação realizada por locutor e interlocutor. Portanto,
compreendemos que o fenômeno de interação social que liga
falante e ouvinte ocorre de forma dialógica em que os signos vão
se deslocando e transformando-se em outros a partir de uma
cadeia criativa e de compreensão ideológica que acontece de
forma única e contínua.

3. O signo é ideológico

O funcionamento do signo ideológico é explicado por


Bakhtin ∕ Volochínov (2014) através da relação entre consciência,
ideologia e linguagem. Os pressupostos bakhtinianos dão conta
de que tudo que ideológico remete a uma realidade do mundo
exterior, um contexto heterogêneo de discursos que são
construídos por uma rede vozes que se entrecruzam, as quais são
interpretadas de acordo com as situações de produção. Desse
32 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

modo, a língua e o pensamento são influenciados pela ideologia,


modelados por ela, e condicionados pela linguagem, isso acontece
através de inter-relações reciprocas, guiadas que exigem uma
resposta ativa. Bakhtin ∕ Volochínov (2014) sintetiza isso ao dizer
que:

Um produto ideológico faz parte de uma realidade


(natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de
produção ou produto de consumo; mas, ao contrário
destes ele também reflete e refrata uma outra realidade,
que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos
não existe ideologia. (BAKHTIN ∕ VOLOCHÍNOV, 2014, p.
31)

Qualquer corpo físico pode ser concebido como símbolo,


o qual não deixa de fazer parte da realidade social, apresentando-
se como um instrumento de produção de sentido dependendo da
realidade em se encontra inserido e de sua função no conjunto da
vida social. Salientamos ainda que, os possíveis efeitos de sentidos
causados pelos signos são decorrentes das experiências exteriores,
com o mundo, se inscrevem em outra ordem histórica, cultural e
sua compreensão consiste em associá-lo a outros contextos e a
outros signos já vistos e isso acontece por meio de uma cadeia
dinâmica, criativa e contínua. Sendo assim, Zandwais (2009)
destaca que é por meio da relação entre consciência, ideologia e
linguagem que se constituem e funcionam os signos, os quais
carregam valores, determinam diferentes épocas, espaços sociais,
culturas, histórias e realidades heterogêneas determinadas pela
exterioridade linguística. Assim, Zandwais (2009, p. 109) sintetiza
dizendo que “Um signo é um fenômeno do mundo exterior”.
Assim, o signo ideológico é materializado no processo de
comunicação através da linguagem.
Nesse sentido Bakhtin∕ Volochínov (2014, p. 36)
considera a palavra como “fenômeno ideológico por excelência”,
bem como é a forma mais sensível de interação, esta por sua vez
é privilegiada na comunicação, isto é, nos discursos situados na
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 33

vida cotidiana. O signo ideológico não é substituído pela palavra,


porém apoia-se nela para ser compreendido no contexto social.
Diante disso, Bakhtin∕ Volochínov (2014) postula que:

[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações


entre os indivíduos, nas relações de colaboração, nas de
base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana,
nas relações de caráter político, etc. As palavras são
tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios. (BAKHTIN ∕ VOLOCHÍNOV, 2014, p. 42).

Desse modo, quando falamos em linguagem e sua base


social, logo vem a nossa mente a enunciação como um todo, mas
é necessário evidenciarmos a palavra como uma unidade verbal
que possui seu valor semântico, esta por sua vez é por natureza
um fenômeno ideológico, a qual apresenta-se como parte da
realidade material.
É por meio da dialética entre aspectos históricos e
culturais que os significados são estabelecidos e que nos
possibilita uma reflexão sobre as condições em que os signos são
ideologizados, Assim, Zandwais (2009, p. 113) confirma isso ao
dizer que “[...] as ideologias do cotidiano encontram sua seiva
para sobreviver, instituir-se e engendrar-se no seio das sociedades
organizadas [...]”. Sendo assim, todos os campos da atividade
humana estão intimamente ligados ao uso da linguagem, seja por
meio de enunciados falados ou escritos proferidos por sujeitos
socialmente organizados, os quais selecionam recursos lexicais e
gramaticais da língua para construir seus enunciados, estes por
sua vez refletem condições e finalidades específicas de cada esfera
social a partir de uma temática e um estilo de linguagem.
Assim, cada enunciado pertence um determinado campo
de utilização da língua, em que se elaboram vários tipos de
discursos, os quais são classificados como os gêneros do discurso.
Desse modo, constatamos que há uma grande diversidade de
gêneros do discurso pelo fato de serem inesgotáveis as
possibilidades de comunicação da atividade humana e que cada
contexto social elabora um repertório específico de gêneros, os
34 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

quais se diferenciam à medida vão se desenvolvendo e se


tornando mais complexos.

4. Os gêneros do discurso

Os gêneros do discurso são fenômenos linguísticos


vinculados à vida social e cultural das pessoas e utilizados pelos
falantes para efetuar a comunicação, os quais ampliam as
possibilidades de uso da linguagem e exigem do falante
competência para adequar-se à sua situação comunicativa e ao
contexto de uso a partir de sua intenção. Sendo assim, é
impossível nos comunicarmos verbalmente se não usarmos os
gêneros, hipótese essa defendida por Bakhtin (2011), pois a língua
deve ser estudada a partir dos seus aspectos discursivos e
interativos e não apenas por suas peculiaridades formais.
Dessa forma, os gêneros refletem o uso da língua
cotidianamente, pois quando falamos ou escrevemos estamos de
forma inconsciente nos manifestando em forma de texto, e isso é
caracterizado pelos tipos de atuações do homem na sociedade.
Partindo desse pressuposto, Cavalcante (2016) postula que:

[...] cada vez que interagimos por meio de gêneros


socialmente convencionados, recorremos a um padrão ao
qual devemos adequar nossa mensagem, ainda que não se
trate de uma mera reprodução de um modelo. O
reconhecimento do gênero por parte do interlocutor, por
sua vez, facilitará a compreensão do propósito
comunicativo no momento em que ele identificar o
gênero a que a mensagem pertence (CAVALCANTE,
2016, p. 51).

Nesta ótica, os gêneros são fundamentais para a


organização linguística e cada um possui seu estilo e
peculiaridades próprias que os distinguem ou os assemelham a
outros, são flexíveis e se adequam às situações socioculturais.
Existe, pois uma diversidade de gêneros do discurso, sendo
impossível saber ao certo sua quantidade, e com o advento da
internet esse número cresceu ainda mais. Partindo desse
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 35

pressuposto Bakhtin (2011, p. 262) evidencia que “A riqueza e a


diversidade dos gêneros do discurso são infinitas por que são
inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana
[...]”.
Portanto, o emprego da língua se efetua em forma de
enunciados, os quais são manifestados através dos gêneros que
são de natureza concreta e única proferidos pelos integrantes da
atividade humana. Sendo assim, Bakhtin (2011, p. 293)
complementa que os gêneros “correspondem a situações típicas
da comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a
alguns contatos típicos dos significados das palavras com a
realidade concreta em circunstâncias típicas”. Isso não se refere à
palavra como unidade mínima da língua, mas o uso desta em
relação a um contexto significativo que produz sentidos
específicos no enunciado. Sendo assim, amparados pelos
pressupostos bakhtinianos sobre os gêneros do discurso
abordaremos o gênero charge apontando suas peculiaridades, e
ainda como se dá a relação dialógica no referido gênero.

4.1 O gênero discursivo charge

Nos seus aspectos históricos e evolutivos a charge


apresenta-se como um gênero do discurso de origem francesa,
como atesta Costa (2009), o qual surgiu no século XIX na
Europa. Etimologicamente significa carga, exagero que ataca
violentamente por meio do humor grotesco, fatos políticos e de
conhecimento público ocorridos na esfera social. Ressaltamos
ainda que o texto chárgico aborda mensagens concisas e de
pequena extensão, no entanto, tem presente em seu bojo um
discurso complexo, crítico e humorístico apresentado a partir de
caricaturas exageradas, as quais definem o teor cômico do gênero.
Partindo dessa premissa Romualdo (2000, p. 20) acrescenta que a
caricatura “[...] é a representação da fisionomia humana com
características humorísticas”. Desse modo, o humor é um campo
de destaque atualmente, pois além de abordar uma infinidade de
assuntos, foge do que é considerado politicamente correto na
esfera social.
36 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Na charge contamos com a presença da intertextualidade,


a qual apresenta-se como “[...] um processo de incorporação de
um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado
seja para transformá-lo” como atesta Guimarães (2009, p. 134). E
isso se dá devido à heterogeneidade do texto em que
encontramos temáticas entrelaçadas exigindo do falante a
mobilização de conhecimentos prévios na produção de sentidos
Perante o que foi dito, faz-se necessário destacar ainda
que a charge é muito mais do que uma simples piada gráfica que
provoca riso em seus leitores, este é um instrumento de ensino
muito produtivo, de formação moral, crítico e reflexivo que
registra fatos sérios de forma divertida e protesta por meio do
lúdico. Nesse contexto é necessário que o leitor decifre não
apenas o conteúdo verbal, mas seja consciente da importância da
interação dialógica entre autor-texto-leitor, tendo em vista que a
leitura da charge é uma atividade interativa de muita
complexidade no que tange à construção de seus sentidos. Desse
modo, o leitor deve dialogar com as intenções do chargista para
que possa compreender sua mensagem. Diante disso, Koch e
Elias (2014) acrescentam que:

[...] o sentido de um texto é construído na interação


textos-sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A
leitura é, pois uma atividade interativa altamente complexa
de produção de sentidos, que se realiza evidentemente
com base nos elementos linguísticos presentes na
superfície textual e na sua forma de organização, mas
requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no
interior do evento comunicativo (KOCH e ELIAS, 2014,
p. 11).

Nesse contexto sociointerativo os sujeitos são


considerados produtores de sentidos, os quais são constituídos a
partir das sinalizações oferecidas pelo autor e do reconhecimento
destas por parte dos interlocutores, isto é, os conhecimentos e
experiências que ele possui enquanto agentes produtores de
sentidos. No entanto, o processo interpretativo da charge requer
um olhar aguçado por parte do leitor, seu conhecimento é
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 37

fundamental para compreender o sentido do texto, pois como


atesta Guimarães (2009, p. 128) “O sentido do texto não é único;
ele admite uma pluralidade de leituras, mas não toda e qualquer
interpretação evidentemente. É preciso captar e analisar os
indícios para perceber as interpretações que são válidas no
discurso”.
Portanto, ao produzir uma charge seu autor não busca
apenas a distração humorística, pois o sentido extraído dela
constitui uma tentativa de alertar, persuadir o outro e torná-lo
consciente sobre ações e situações sociais, culturais, históricas e,
sobretudo política de um povo, bem como levar graça e riso ao
público leitor através de personagens que produzem humor.

5. Metodologia

Trata-se de um de estudo de natureza bibliográfica e de


caráter interpretativo, pois o corpus da pesquisa parte da seleção de
duas charges, retiradas da internet, as quais visam apresentar o
diálogo entre os elementos visuais e textuais para a construção
dos sentidos. Nesse processo atentamos para a riqueza de
sentidos presente nas imagens e nos elementos textuais presentes
nesse gênero discursivo, bem como a contribuição que os
pressupostos bakhtinianos dão para a construção dos sentidos
por meio do dialogo entre os vários discursos e de sua natureza
ideológica, tendo em vista que a charge é instrumento que
possibilita a ativação dos conhecimentos linguísticos, textuais,
cognitivos, fatores esses fundamentais para a construção da
consciência crítica e reflexiva do leitor.

6. Análises

Fundamentados teoricamente e a partir das discussões realizadas


até o momento, selecionamos duas charges retiradas da internet
para serem exploradas sob a ótica dos pressupostos
bakhtianianos. Nesse contexto, levaremos em consideração, a
riqueza de sentidos presente nas imagens e nos elementos textuais
encontrados na charge, bem como atentamos para a contribuição
38 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

que as relações dialógicas entre os discursos dão para o processo


de construção de sentidos, fator esse de grande relevância para a
formação da consciência crítica e reflexiva dos leitores, tornando-
os seres capazes de interagir em diversos contextos
comunicativos.

CHARGE 1

´
Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=401700143284847&set=a.13085
4450369419.24128.100003345958460&type=3&theater. Acesso em: 30 de Set.
de 2016.

Ao analisarmos esta charge, evidenciamos que ela faz um


resgate do discurso religioso em seu contexto semântico por meio
da imagem do homem pregado na cruz, esta por sua vez faz
menção à história de Cristo crucificado presente em algumas
passagens bíblicas, bem como os três homens que representam as
empresas brasileiras Energisa, Cagepa e Telefonia representadas
na figura dos soldados romanos, representando as cobranças que
são feitas ao povo. Nesse contexto, compreendemos um sentido
construído que comunga de outro discurso demonstrado através
do conteúdo linguístico e pelas imagens.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 39

Para tanto, para que ocorra a construção de sentidos e nós


possamos perceber o contraste entre o trecho presente no livro
sagrado “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” e o conteúdo
chárgico “Senhor, não perdoe eles sabem o que estão fazendo” é
indispensável que aconteça a organização do material linguístico
associados ao conhecimento de mundo, que como atesta Koch e
Elias (2014. p, 42) são os “[...] conhecimentos alusivos a vivências
pessoais e eventos espácio-temporalmente situados, permitindo a
produção de sentidos”. Fator esse essencial no processo
interpretativo da charge.
Sendo assim, o sentido é construído quando invocamos
nossa memória discursiva, a qual é retomada por meio das
imagens, caricaturas e falas dos personagens. Neste contexto, a
interdiscursividade entre os discursos heterogêneos, bem como
vozes sociais que se entrecruzam para formar um novo discurso,
associam-se aos conhecimentos prévios do leitor e são
responsáveis pela produção de sentidos, representado pelo o
humor gráfico que atrai o leitor.
Nas charges acima o chargista buscou alertar de forma
humorística sobre a problemática dos altos custos que afetam de
forma direta a população de forma geral. Desse modo,
respaldados nos pressupostos de Bakhtin e o circulo
evidenciamos a presença do dialogismo como elemento
importante, constitutivo da produção de sentidos no gênero
discursivo charge, o qual apresenta-se como responsável pela
atribuição de significados. Tendo em vista que as charges são
resultados da retomada de diálogos, os quais interagem com
outros entre si e criam sentido em um novo contexto da
comunicação social. Ou seja, cada texto traz em seu interior
marcas de diálogos exteriores e desse modo o dialogismo é a
maneira mais concreta pela qual o enunciado é constituído.
Diante disso, Bakhtin (2010) ressalta que:

A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles


que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica
que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem.
Toda a vida da linguagem, seja qual for seu campo e
emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a cientifica, a
40 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

artística etc.), está impregnada de relações dialógicas. [...]


Essas relações dialógicas se situam no campo do discurso,
pois este é, por natureza, dialógico [...]. (BAKHTIN, 2010,
p. 209).

Assim, a concepção de linguagem apresentada aqui parte


do principio da interação entre as várias vozes e os vários
discursos que se entrecruzam formando o sentido do texto, ou
seja, a partir de relações dialógicas que representam uma
abordagem histórica viva da língua, tendo em vista que o locutor
não se serve da linguagem como um sistema de formas
normativas, mas visa à flexibilidade das formas linguísticas
orientadas pelo contexto para compreender seu significado
através de suas marcas linguísticas, cognitivas e pragmáticas.
Portanto, o diálogo entre tais aspectos é fundamental para que
haja entendimento de forma eficaz e para que o interlocutor
possa fazer suas réplicas no discurso. Assim, Bakhtin (2015, p.
52) complementa que “O discurso surge no diálogo como sua
réplica viva, forma-se na interação dinâmica com o discurso do
outro no objeto”.
Partindo dessa noção, a seguir iremos analisar a segunda
charge, em que observaremos marcas do dialogismo evidenciadas
a partir de um discurso bastante polêmico, a política brasileira.
Desse modo, iremos investigar o discurso verbal e não verbal
identificando as relações dialógicas marcadas no referido gênero,
atentando para o que está subjacente a charge, ou seja, a crítica
implícita, a intenção do chargista para entender a relação do texto
chárgico com outros textos vinculados ao contexto social.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 41

CHARGE 2

Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=401700143284847&set=a.13085
4450369419.24128.100003345958460&type=3&theater. Acesso em: 30 de Set.
de 2016.

A charge acima aborda uma mensagem concisa e de


pequena extensão, característica essa peculiar ao gênero, no
entanto, tem presente em seu bojo um discurso complexo e
crítico, o qual apresenta um conteúdo humorístico que desperta
nos leitores o interesse e o gosto pela leitura. Aqui há um diálogo
entre dois discursos aparentemente parecidos, porém que
remetem a dois contextos distintos, pois o discurso político
representado pelas cobranças do povo por melhorias na saúde,
educação e segurança à presidente do Brasil Dilma Rousseff,
dialoga com o discurso da propaganda do posto Ipiranga, ou seja,
dois diálogos distintos que estabelecem relação entre si por meio
das linguagens verbal e não verbal como é o caso das caricaturas,
expressões faciais, imagens de uma forma geral. Desse modo, o
dialogismo apresenta-se como forma de funcionamento da
linguagem, o qual é constitutivo do enunciado ocorrendo relações
de sentidos entre os enunciados.
Neste contexto, o interdiscurso apresenta-se como
principal elemento constitutivo da charge, pois é evidente a
presença de discursos semelhantes em contextos distintos, em
que um se serve das palavras do outro, ou seja, se inter-
relacionam formando um novo sentido por meio do humor. E as
relações dialógicas acontecem entre as vozes sociais, isto é, entre
os discursos dispersos que estão presentes na sociedade,
atravessando outros discursos para a construção de sentidos de
42 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

textos. Sendo assim, Fiorin, (2010, p. 166) complementa que “o


interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de
dois discursos: o locutor e o do interlocutor, o que significa que o
dialogismo se dá sempre entre discursos”.
Sendo assim, os discursos nas charges são recuperados
pelo leitor com o intuito de provocar riso mediante o diálogo
entre conteúdo linguístico e imagético e o chargista insere em seu
discurso palavras e expressões cotidianas para a construção de
sentidos no enunciado irônico e humorístico. Seguindo essa ideia,
é pertinente dizer que quando o autor produz um texto recorre
de forma implícita a outros textos e espera que o interlocutor
reconheça o texto original, bem como os efeitos de sentidos
produzidos por essa transformação de um texto velho e o
propósito comunicacional dos novos textos que são constituídos
como afirma Koch (2014).
Ressaltamos então que, não existem textos homogêneos,
principalmente na charge, em que os assuntos estão atrelados a
fatos do contexto social, exigindo do falante a mobilização de
seus conhecimentos para chegar ao verdadeiro significado. Para
enfatizar o que foi dito, Koch e Elias (2014) corroboram ao dizer
que:

[...] a intertextualidade é um elemento constituinte e


constitutivo do processo de escrita / leitura e compreende
as diversas maneiras pelas quais a produção / recepção de
um dado texto depende de conhecimentos de outros
textos por parte dos interlocutores, ou seja, dos diversos
tipos de relações que um texto mantém com outros textos
(KOCH e ELIAS, 2014, p. 86).

Portanto, diante o exposto constatamos que nesse


processo intertextual do gênero charge seu produtor busca
informações em outras fontes para a constituição do mesmo, ou
seja, uma inter-relação com outros discursos dispersos na
sociedade, fator esse importante na sua composição. Sendo assim,
humor, crítica, ironia, linguagem verbal e não verbal e
intertextualidade são alguns dos elementos que se não utilizados
podem comprometer o sentido do texto.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 43

7. Considerações finais

Este trabalho nos possibilitou discutir sobre o uso do


gênero discursivo charge, à luz dos pressupostos bakhtinianos,
tendo em vista que a charge apresenta marcas linguísticas em seu
discurso que evidenciam o dialogismo como principal
componente na produção de sentidos, uma vez que o discurso
chárgico se constitui a partir de um discurso já existente, os quais
estão presentes no contexto social. Sendo assim, o leitor da
charge desperta sua criticidade de forma divertida, compreende a
realidade social, bem como amplia seu universo textual e
cognitivo, além de contribuir para a criação de um diálogo entre
diferentes gêneros e linguagens.
Assim, esse estudo foi de grande relevância por abordar
aspectos linguísticos e imagens, bem como aspectos sociais,
históricos e culturais com elementos formadores de sentidos no
texto. Nesta perspectiva, esta pesquisa apresentou uma discussão
sobre a relação dialógica entre discursos a partir das linguagens
verbal e não verbal e conhecimentos prévios presente no gênero
discursivo charge com a intenção de ampliar os conhecimentos
dos leitores. Portanto, a inter-relação entre as temáticas abordadas
nas charges exige do leitor uma atitude responsiva ativa, em que
ele concorda ou discorda da crítica humorística presente no
referido gênero. Nesse processo, o leitor associa a linguagem
verbal e não verbal ao conteúdo histórico e social, bem como
resgata alguns acontecimentos discursivos para entender o texto
chárgico, em virtude deste ser criado a partir da interação com
outros textos.

Referencias

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski.


Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra,
UFF-USP. 5. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
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Editora 34, 2015.

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Paulo: Contexto, 2016.

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KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS Vanda Maria. Ler e compreender:


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ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e


polifonia: um estudo de charges da folha de S. Paulo. Maringá:
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ZANDWAIS. Ana. Bakhtin/Voloshínov: condições de produção de


Marxismo e filosofia da linguagem. In: BRAIT, Beth (Org.).
Bakhtin e o círculo. São Paulo: Contexto, 2009.
Capítulo III
O ethos da figura de Padre Cícero
na literatura de cordel
Ivanaldo Santos1
Francisca Aline Micaelly da Silva Dias2

“Cordel quer dizer barbante


Ou senão mesmo cordão,
Mas cordel - literatura
É a real expressão
Como fonte de cultura
Ou melhor poesia pura
Dos poetas do sertão”
Rodolfo Coelho Cavalcante

Neste estudo abordaremos algumas noções de ethos


desenvolvidas por Dominique Maingeuneau, pelo viés dos
estudos da análise do discurso de vertente francesa. Objetivamos,
nesse estudo, analisar como o ethos da figura de Padre Cícero e
construída nos folhetos de cordel, para tanto faremos uma análise
de dois folhetos de cordel, que tem por título, Milagre do Padre
Cícero, Homenagem ao 1º Cinquentenário escrito por Severino José da
Silva (1984), e A opinião dos romeiros sobre a canonização do Pe. Cícero
pela igreja brasileira, do poeta popular Expedito Sebastião da Silva
(1973).

1 Filósofo, pós-doutorado em estudos da linguagem pela USP, pós-doutorado em


linguística pela PUC-SP, doutor em estudos da linguagem pela UFRN, professor do
Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: [email protected].
2Graduada em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
Especialista em Educação Pobreza e Desigualdade Social pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN) e atualmente realiza o mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Letras (PPGL) da UERN. Atua, principalmente na área da Análise do
Discurso de vertente francesa. E-mail: [email protected].
46 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

1. A categoria ethos

O ethos é uma categoria de análise extremamente


importante para a análise do discurso de vertente francesa,
sobretudo, para os estudos desenvolvidos por Dominique
Maingueneau. No entanto, o termo “ethos” não tem sua gênese
com os estudos de Dominique Maingueneau, muito pelo
contrário, o ethos tem suas origens fincadas nos estudos
filosóficos de Aristóteles na Grécia antiga. O ethos aristotélico
estava, essencialmente, ligado à oralidade, a persuasão, que por
sua vez estava interligado com o pathos, “conduta do orador” e
com o logos, “o próprio discurso”. Segundo Maingueneau o
ethos aristotélico “não age no primeiro plano, mas de maneira
lateral; ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza
a afetividade do destinatário” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 13-
14).
Maingueneau (2008b), a respeito do uso do ethos
aristotélico, afirma que há um limite no uso do ethos aristotélico
na sociedade contemporânea, haja vista que uma serie de
mudanças e fatores sociais limitam ou até mesmo ampliam o
ethos aristotélico. Sobre isso Maingueneua (2008b, p.15-16)
afirma que:

O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas


não se pode ignorar que o público constrói também
representações do ethos do enunciador antes mesmo que
ele fale. Parece necessário, então, estabelecer uma
distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo. [...]. Uma
outra série de problemas advém do fato de que, na
elaboração do ethos, interagem fenômenos de ordens
muito diversas: os índices sobre os quais se apoia o
interprete vão desde a escolha do registro da língua e das
palavras até o planejamento textual, passando pelo ritmo e
a modalidade. O ethos se elabora, assim, por meio de uma
percepção complexa, mobilizadora da afetividade do
interprete, que tira suas informações do material
linguístico e do ambiente.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 47

Todavia, o conceito de ethos é recuperado e ampliado pelo


linguista Dominique Maingueneau, sobretudo nos estudos da
análise do discurso de vertente francesa. Segundo Maingueneau
(2015, p.15) o ethos está ligado, essencialmente, aos atos da
enunciação e este por sua vez se caracteriza da seguinte forma:

[...] o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através


do discurso, não é uma imagem do locutor exterior a sua
fala; o ethos é fundamentalmente um processo interativo
de influência sobre o outro; é uma noção
fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um
comportamento socialmente avaliado, que não pode ser
apreendido fora de uma situação de comunicação precisa,
integrada ela mesma numa determinada conjuntura
sóciohistórica. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17).

Deste modo, o ethos que se formulou pelos gregos


apresenta limites de conteúdo de enunciado, bem como não
observa as construções e representações do enunciado na
sociedade. Já o ethos proposto pela análise do discurso de
vertente francesa, de acordo com Amossy (2016, p. 221), se
configura da seguinte forma:

O ethos discursivo mantém relação estreita com a imagem


prévia que o auditório pode ter do orador ou, pelo menos,
com a ideia que este faz do modo como seus alocutários o
percebem. A representação da pessoa do locutor anterior
a sua tomada de turno – às vezes demonizada de ethos
prévio ou pré-discursivo – está frequentemente no
fundamento da imagem que ele constrói em seu discurso:
com efeito, ele tenta consolidá-la, retificá-la, retrabalhá-la
ou atenuá-la.

Portanto, para Amossy (2016) o ethos proposto por


Maingueneau, por um lado, reassume e recupera o ethos
aristotélico, e por outro lado, o ethos mainguenoniano tenta a
investigar novos aspectos da sociedade, na qual a imagem previa
do auditório seja um fator preponderante para essa análise.
48 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Como se vê, Amossy (2016) observa que o ethos embora


não seja o mesmo proposto por Aristóteles apresenta algumas
particularidades, como, por exemplo, o fato do auditório ter uma
imagem de si mesmo. Embora seja bem verdade que hoje a
análise do discurso de vertente francesa nos permita tanto uma
nova visão sobre o ethos como também sobre o auditório, e,
principalmente, como esse auditório irá construir uma imagem
sócio discursiva de um determinado locutor. Em razão desse fato,
Maingueneau (2006, p.17) declara que a noção de ethos proposta
por ele no quadro da análise do discurso de vertente francesa,
mesmo que seja bem diferente do da retórica antiga, parece que
não chega a ser, essencialmente, infiel às linhas de força de
concepção aristotélica.
A partir dessa concepção de ethos, Maingueneau (2005)
ainda conceitua o ethos como: ethos pré-discursivo, ethos dito e ethos
mostrado. Como corrobora o próprio Maingueneau (2006):

O ethos de um enunciador resulta da interação de


diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos discursivo
(ethos mostrado), mas também dos fragmentos do texto
nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação
(ethos dito) – diretamente ou indiretamente, por meio de
metáforas ou de alusões a outras cenas da fala, por
exemplo. A distinção entre ethos dito e mostrado se
inscreve nos termos de uma linha continua, uma vez que é
impossível definir uma fronteira nítida entre o “dito”
sugerido e o puramente “mostrado”. (MAINGUENEAU
2006, p. 180).

Deste modo, tanto o ethos dito como o mostrado se


inserem em uma conjuntura ampla e variada, seja ela de caráter
oral ou escrito, por isso todo o texto seja ele escrito ou não,
emana uma vocalidade que mostra uma multiplicidade de tons, e
esses, por sua vez, estarão associados a um fiador, “que por meio
da fala, confere a si mesmo uma unidade compatível com o
mundo que ele deverá construir em seu enunciado”
(MAINGUENEAU, 2013, p. 108).
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 49

2. A gênese da literatura de cordel

A literatura de cordel é de origem europeia, e sua gênese se


dá a partir das cantigas trovadorescas que comentavam as noticias
da época. Para Haurélio (2010) o cordel chegou aqui no Brasil
junto com os portugueses abordo das primeiras caravelas.
Sobre a origem do cordel, o poeta popular José João dos
Santos, popularmente chamado de mestre azulão, versa da
seguinte maneira: “A região nordestina / de poeta é toda cheia / desde a
grande cidade / a roça e a pequena aldeia / ninguém foge da estética / quem
não tem veia poética / tem poesia na veia / São heranças europeias / de
Espanha e Portugal / e toda Península Ibérica / que tem de um modo geral
/ os europeus imigrantes / vindo das terras distantes / ao Brasil colonial /
Em Portugal e Espanha / seus poetas menestréis / publicavam seus poemas
/ com versos de quatro e dez / por folhas soltas chamadas / e expunham
penduradas / em cordinhas e cordéis / Depois de bastante estudo / e uma
análise fiel / observando o formato / em estilo de painel / chamavam esta
cultura / de nome Literatura / Popular e de Cordel.3”
Percebe-se, portanto que o ambiente nordestino foi um
lugar propicio para a disseminação da literatura de cordel. No
entanto, na sua gênese não é tido como expressão literária, mas
como forma de divulgação de notícias, já que este era a única
fonte de informação da época. Como corrobora Diegues Jr (1977,
p. 77):

Instrumento de comunicação, alargou-se depois à


divulgação dos fatos acontecidos, coisas de que a
população não podia ter conhecimento senão por essa
forma. Rádio não existia; jornal era raro. Quando este
chegava, levado dos grandes centros – Recife ou
Fortaleza, por exemplo – com o atraso normal dos meios
de transporte de então, já o folheto se antecipava na
divulgação do fato. Tornava-se o folheto o elemento mais
expressivo para que os acontecimentos chegassem ao
conhecimento de todos, lidos nos mercados, nas feiras,
nos serões familiares.

3 Verso de cordel retirado do folheto “O que é literatura de cordel” (2012, p. 05).


50 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Portanto, o cordel não era uma simples forma de expressão


literária, mas sim, fonte de informação e divulgação das notícias,
que, justamente quando o jornal começa a se difundir a literatura
de cordel decai. (PROENÇA,1977).
O folheto era construído de papel jornal e eram intitulados
de acordo com o número de páginas. Até oito páginas chamava-
se folheto, a partir de dezesseis páginas eram chamados de
romances, e os de trinta e duas páginas eram chamados de
história. Entretanto, era a metrificação e a rima que determinava
se o poema era considerado ou não cordel.
Apesar de não ter origem brasileira, o cordel faz parte da
nossa cultura, principalmente, quando se fala em cultura
nordestina, já que, na verdade, o que existe é uma aproximação
do real com o imaginário, o que torna o cordel fonte de cultura
popular.

[...] a poesia natural e puramente natural possui


ingenuidade e graça, por onde ela se compara à principal
beleza da poesia perfeita segundo a arte: como se vê em
vilarejos da Gasconha e nas canções que se nos relatam
sobre nações que não possuem conhecimento de ciência
alguma, tampouco de escrita (DEBS, 2000, p. 12).

De acordo com Debs (2000) a literatura popular, aqui


representada pela literatura de cordel, é repleta de beleza e
naturalidade, uma literatura que pode ser feita pelo homem
simples da roça, que, necessariamente, não precisa saber ler ou
escrever, já que o cordel na maioria das vezes é uma poesia
improvisada de forma oral, para Proença (1977, p. 15) “é um
mundo mítico; suas narrativas não podem ser entendidas,
segundo a ordem temporal dos acontecimentos, na superfície do
seu discurso”.
Na materialidade do cordel pairam diversos temas, como,
por exemplo, as histórias do surgimento do mundo, as histórias
de princesa, os feitos heroicos, e até mesmo a religiosidade, já que
está se configura como elemento de extrema importância para a
cultura nordestina, nesse intento, o cordel é a autentica teologia
popular.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 51

3. A figura de Padre Cícero Romão Batista

Recriar os caminhos percorridos por Padre Cícero Romão


Batista é buscar junto à história vestígios que o tempo, por mais
remoto, não apagou. Dentro desse sustentáculo, Padre Cícero
Romão Batista, popularmente conhecido pelos cristãos como
Padre Cícero, nasceu em 24 de março de 1844, na cidade do
Crato-CE. É bem verdade, que desde pequeno Padre Cícero já se
interessava por assuntos ligados a religiosidade, talvez pelo fato
da mãe, Dona Quinô, seguir os preceitos divinos, como
corrobora Lira Neto (2009, p.28):

Mas, segundo o próprio Cícero dizia, a vocação religiosa


revelara-se para ele bem antes. Um livro que lhe caíra nas
mãos aos doze anos de idade teria mudado, desde de
então, os rumos de sua vida. Foi o momento de sua
hierofania, o instante em que o sagrado se manifestou a
ele pela primeira vez.

Como se observa, a trajetória religiosa de Padre Cícero é


fruto do grande fascínio que tinha pelas pregações do Padre José
Antonio Pereira, fundador da ordem sertaneja dos beatos e beatas
do sertão. É possível identificar tamanho fascínio, ao
compararmos às vestes que Padre Cícero passará a usar depois de
ordenado, praticamente, idênticas as vestes usadas pelo Padre
Antonio Pereira em suas pregações, “uma túnica escura e
comprida até o chão” (LIRA NETO, 2009, p.28).
Nessa perspectiva, quando observamos as histórias que
envolvem Padre Cícero, durante a sua infância e adolescência,
percebemos que, o jovem garoto, apesar do enorme fascínio pelas
questões religiosas enfrentou vários percalços até se ordenar.
Primeiro, teve que sair do seminário na cidade de Cajazeiras - PB
devido morte de seu pai, em seguida enfrentar a tempestuosa
índole do Padre Chevalier, responsável pelo seminário de Prainha
na cidade de Fortaleza – CE. No entanto, em meio aos percalços,
e algumas desobediências, Padre Cícero é ordenado, no dia 30 de
novembro de mil oitocentos e setenta.
52 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Embora não seja por meio desse escopo teórico que gira
em torno da ordenação de Padre Cícero que surgem os grandes
feitos de sua história, já que isso de dá a partir do momento que o
mesmo, volta para a cidade do Crato-CE, e conforme relara Della
Cava (1976, p.26):

Um sonho, entretanto, veio alterar, de súbito, os seus


planos (...) Ao anoitecer de um dia exaustivo, após ter
passado horas a fio a confessar os homens do arraial [...]
Aí no quarto contíguo à sala de aulas, caiu no sono e a
visão fatal se revelou. 13 homens em vestes bíblicas
entraram na escola e sentaram-se em volta da mesa do
professor, numa disposição que lembrava a última ceia, de
Leonardo Da Vinci. O padre sonhou, então, que acordava
e levantava-se para espiar os visitantes sagrados, sem que
estes o vissem. Nesse momento, os 12 apóstolos viram-se
para olhar o Mestre [...] Cristo apareceu na escola tal como
no retrato litúrgico popular do século XIX, e que se
encontrava em quase todos os lares piedosos da época.
Conhecido como Sagrado Coração de Jesus. Nesse
quadro, o coração Nazareno está visivelmente exposto e,
simbolicamente, representado como que inundado de
amor pelos homens e, também, despedaçado e sangrando
das feridas infligidas pelos pecados da humanidade e pela
indiferença à fé [...] Cristo, então, virou-se para eles e
falou, lamentando a ruindade do mundo e as inúmeras
ofensas da humanidade ao Sacratíssimo Coração [...]
Naquele momento apontou para os pobres e voltando-se,
inesperadamente, para o jovem sacerdote, ordenou: “E
você, Padre Cícero, tome conta deles”.

São trechos históricos, como este, que elaboram a áurea


mística de Padre Cícero e o torna ícone do sertão nordestino, e é
em torno dessa áurea mística que as histórias dos possíveis
milagres de Padre Cícero começam a ser narrados, como, por
exemplo, o provável milagre da transmutação da hóstia em
sangue, ocorrido com a beata Maria de Araújo em primeiro de
março de mil oitocentos e oitenta e nove:
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 53

Com o véu escuro sobre a cabeça e o alvo rosário


entrelaçado nas mãos magras e morenas, as beatas
atenderam o chamado e se aproximaram em fila indiana,
uma a uma. À frente delas, ia Maria de Araújo. Com os
olhos fechados, ela foi a primeira a se postar diante do
padre e entreabri a boca, contrita. Contudo, quando a
hóstia lhe tocou a língua, a beata abriu e revirou os olhos
espantados. Parecia ter entrado em estranho transe. E foi
então que se deu o fenômeno: segundo chegariam a jurar
sobre a Bíblia as testemunhas ali presentes, a hóstia na
boca de Maria de Araújo mudou de forma e de cor.
Transformou-se, inesperadamente em sangue e vinho.
(NETO 2009, p. 65).

Nesse recorte, notam-se as conjunturas históricas que


serviram de base para elaborar junto ao povo nordestino a
possível santidade de Padre Cícero, já que o possível feito seria
considerado pela população como um milagre que seria
propagado rapidamente.
Para Potier (2013, p. 174) o cordel tem grande
responsabilidade pela gradual ressignificação e propagação da
figura desse homem religioso e político poderoso, contribuindo
com a “deformação” e com a atualização das histórias sobre seus
feitos. Nessa perspectiva, a figura de Padre Cícero se reconstrói
mediante as várias publicações de cordel, uma vez que esse
gênero literário trás em muitas das suas publicações relatos de
milagres e premonições.
Nesse cenário, que baliza a Literatura de Cordel, João
Martins de Athayde é líder por escrever e editar inúmeros cordéis
acerca de Padre Cícero. Segundo Potier (2013, p. 171) Athayde
contribuiu não apenas para afirmar e cristalizar a áurea de
santidade que pairava sobre o Padre Cícero, como, também,
ajudou a fazer com que este se consolidasse com personagem
mais recorrente da Literatura de Cordel. Isso pelo fato do cordel
ser “porta-voz do povo que se apega aos protetores, guardiães,
como Padre Cícero Romão, conselheiro de todas as horas e na
distribuição de riquezas, e, como protetor dos humildes e pobres”
(PROENÇA, 1977, p. 64-65).
54 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Como se vê a figura de Padre Cícero se reconstrói mediante


as várias publicações de cordel, uma vez que esse gênero literário
trás em muitas das suas publicações relatos de milagres,
premonições, bem como narram a sua infância e o seu
nascimento, como nos mostra os versos do poeta popular Abrão
Batista (1978):

Eu peço a Jesus Cristo


A sua licença
Para escrever essa história
Com força, luz e presença
Pois acontecimento desse
Comprovação se dispensa

É neste século presente


Em Juazeiro do Norte
Surgiu um caso estranho
Desafiando até a morte
Eu não estava presente
Mas, me contaram com sorte.
[...]
O Pai Eterno pra ver
Se da o home a salvação
Escolhe as criaturas
Numa transfiguração
Dando luz a quem não tem
Distribuindo sua benção
[...]
A meia noite do dia
23 daquele ano
Nas últimas horas da noite
Neste mundo tão profano
No meio de um clarão
Apareceu um arcano
Do céu descia uma luz
Com enorme claridade
E desse feixe de luz
Vinha uma claridade

Do telhado para o chão


IVANALDO SANTOS (ORG.) | 55

Riscava uma luz suprema


Envolvendo um arcano
Com dourado diadema
E uma criança no braço
A causa do nosso tema

Sem dizer uma palavra


O anjo se aproximou
Da rede que agasalhava
A filha da dona Quinou
E dona Quinou olhava
O que ele não esperou

O anjo chegou na rede


E com uma só mão
Trocou a filha menina
Por Pe. Cícero Romão
E com ele no braço
Ele se levantou no chão
[...]

Deste modo, há uma diversidade de folhetos de cordel que


retratão a vida de Padre Cícero, e de acordo com Lira Neto
(2009) adornam as inúmeras feiras livres espalhadas por todo o
sertão nordestino.
Os inúmeros folhetos de cordel sobre Padre Cícero,
também, narram episódios sangrentos ocorridos na cidade do
Juazeiro/CE, que por sua vez mistificam a figura de Padre
Cícero, considerado herói pela população de Juazeiro/CE. Como
nos mostra os versos do cordel “Padre Cícero o cearense do
século”, do autor Abrão Batista.

Insurgiu-se em Fortaleza
O coronel Franco Rabelo
Para depor Acyole
Que quase perdeu o pelo;
Tomou conta do estado
Metendo o seu martelo.

Ao depor Padre Cícero


56 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Confirmou sua sedição


Contra a ordem pública
Fazendo enganação
Porque o Padre Cícero
Era o herói do sertão

Quase dois meses passados


Como poude acontecer
Botaram o interventor
Do coronel para correr
E o Padre na prefeitura
Onde era de merecer.

O coronel Franco Rabelo


Um maldoso policial
Armou forte, um batalhão
Com fuzim, boma e punhal
Pra destruir Juazeiro
Transformando num matagal.

Mais de 800 homens


Com dinamite e canhão
Tinham as ordens de levar
do Padre Cícero Romão
a cabeça enfiado
num enorme estação.

Padre Cícero fez valer


Toda a cidadania
Pois o patife coronel
A todo custo queria
Destruir Juazeiro
Com maldosa covardia.

Compreende-se, portanto que os folhetos de cordel são


responsáveis pela propagação da figura de Padre Cícero, figura
emblemática não somente para a cidade de Juazeiro-CE, mas para
o sertão nordestino, ambiente de muita religiosidade.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 57

4. O ethos da figura de Padre Cícero na literatura de


cordel

Maingueneau (2008b) argumenta que o ethos pode se


revelar tanto por meio do sujeito que enuncia como por meio do
auditório. Com isso, o ethos proposto por Maingueneau não está
estritamente ligado às paixões do auditório, “pathos”, nem ao
próprio discurso, “logos”, mas sim uma relação entre enunciador,
auditório e realidade, e que este por sua vez está ligado às
diversidades textuais, sejam eles escritas ou orais. Entre as formas
de texto, podemos citar a literatura de cordel, fonte de
informação e transmissão de cultura.
Nesse sentido, Maingueneau (2008b, p. 19) assume que o
texto e a história têm uma função, excepcionalmente importante,
para o ethos:

Quando vemos as coplas da Canção de Rolando dispostos


sobre uma folha de papel, fica muito difícil restituir o ethos
da oralidade épica que as sustentava. Sem ir tão longe, a
prosa política do século XIX é indissociável de ethe ligados
a práticas discursivas, a situações de comunicação que
desapareceram. Além disso, de uma época a outra ou de
um lugar a outro, não são as mesmas zonas de produção
semiótica que propõem modelos para as maneiras de ser e
falar.

Portanto, para Maingueneau (2008b) é possível identificar


no texto convenções discursivas que conduzem a uma análise do
ethos, entretanto, essa análise dependerá ainda da interação de
diversos elementos como o ethos dito e o ethos mostrado. “A
distinção entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos de
uma linha contínua, uma vez que é impossível definir uma
fronteira rígida entre o “dito” sugerido e o puramente
“mostrado” pela enunciação” (MAINGUENEAU, 2008b, p.18).
No âmbito das colocações mainguenonianas é possível
construir inúmeras análises em torno do ethos aplicado a
literatura de cordel, no entanto, é preciso deixar claro, que para o
presente estudo serão desenvolvidas quatro análises em torno do
58 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

corpus, que se constitui de dois cordéis, a saber: Milagre do Padre


Cícero, Homenagem ao 1º Cinquentenário escrito por Severino José da
Silva em (1984) e A opinião dos romeiros sobre a canonização do Pe.
Cícero pela Igreja brasileira, do poeta popular Expedito Sebastião da
Silva (1973). A escolha desses folhetos se deu pelo fato de se
tratarem de cordéis clássicos, que tratam da figura de Padre
Cícero, isto é, folhetos de cordel que ultrapassam seu tempo e
não perde seu valor histórico e literário. Os folhetos foram
retirados do acervo do Museu de Cultura Sertaneja, situado no
Campus Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia, da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos
Ferros –RN.
A primeira análise será do ethos discursivo, também
conhecido como o ethos pré discursivo. Para Maingueneau (2006,
p.270), o ethos de um discurso é resultado de diversos elementos,
dentre ele, “o ethos pré - discursivo, o ethos discursivo (ethos
mostrado) evoca sua própria enunciação (ethos dito), diretamente
ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou alusões
de cenas de fala”.
A noção de ethos trazida por Maingueneau para os estudos
da análise do discurso de vertente francesa se fazem presente nos
versos que seguem:

O Padre Cícero nasceu


No Crato ali bem vizinho
Cresceu, estudou, foi padre
não se afastou do caminho
quando veio a juazeiro
começou a chegar romeiro
lhe chamando meu padrinho (JOSÉ DA SILVA, 1984, p.63)

Nesse fragmento do cordel, observamos que o ethos da


figura de Padre Cícero se configura como um ethos pré-
discursivo fruto dos discursos produzidos pelos cristãos que
acreditam na divindade de Padre Cícero, então, um ethos no qual
Padre Cícero se configura como personagem emblemático e
ícone do sertão nordestino, particularmente, para a população da
cidade de Juazeiro-CE, cidade na qual Padre Cícero residia. O
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 59

fato é que Padre Cícero, no imaginário popular, é um santo


singular, capaz de interceder junto a Deus pelo povo, pois
enquanto homem sertanejo era conhecedor de todas as mazelas
do nordeste.
Os versos do folheto de cordel de José da Silva (1984)
traçam o perfil de Padre Cícero como sendo um homem bom,
caridoso, que desde a sua infância segue os preceitos divinos, e
que, portanto, é um sacerdote desinteressado, um homem
exemplar, quase a cópia de Jesus Cristo. Ou seja, os versos do
cordel apresentam um ethos pré-discursivo, uma vez que o poeta
popular José da Silva (1984) se espelha em estereótipos para
enobrecer a figura de Padre Cícero. Para Amossy (2008) esse
processo de criação de estereotipagem coopera para a construção
de um ethos prévio.4
A segunda análise é o ethos enquanto um espaço de
construção identitária. De acordo com Maingueneau (2006, p.
116) a “identidade discursiva e social funcionam-se no ethos”.
Nesse sentido, o ethos também se caracteriza como uma
construção identitária. Observemos essa construção identitaria
nos versos a seguir:

O Padre Cícero Romão


é mais que ouro maciço
ensinou a rezar o rosario
e acabar com o vicio
nossa senhora mandando
e os romeiros chegando
para ouvir padrinho Cícero (JOSÉ DA SILVA, 1984,
p.63)

Nesses fragmentos do cordel, observamos que a identidade


do ponto de vista do ethos de Padre Cícero é construída a partir
dos movimentos religiosos da cidade de juazeiro – CE, já que
para os devotos de Padre Cícero a cidade é um espaço religioso, e
fonte de penitências para os que acreditam nos feitos

4O ethos prévio é o que corresponde para Maingueneau (2008b) o mesmo que ethos
pré-discursivo.
60 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

sobrenaturais de Padre Cícero. E isso se deve ao fato de que a


identidade de um individuo pode ser construída ou reconstruída
pela sociedade em que este vive. E se tratando de Padre Cícero, o
que se observa é que a sua identidade é reconstruída nos versos
de cordel, há uma manutenção da identidade de Padre Cícero nos
folhetos, diga-se de passagem, uma identidade vital para a
manutenção do estereotipo de homem bom, honesto, que se
preocupava com os problemas sócias dos que habitavam
Juazeiro-CE. No entanto, isso só é possível pelo fato do co-
enunciador, neste caso, o poeta popular, participar do mundo
configurado pela enunciação, no qual “ele acede uma identidade
de algum modo encarnada, permitindo ele próprio que um fiador
encarne”. Maingueneau (2008b, p. 29).
A terceira análise é a relação entre ethos e história.
Maingueneau (2008b) defende que o ethos discursivo também se
mostra nas manifestações históricas, e que essa relação com a
história oportuniza uma análise com os discursos que já foram
produzidos, resgatando uma memória discursiva. É possível
observar isso nos versos a seguir:

No dia 08 de julho
Do ano 73
A Igreja brasileira
Decidiu por sua vez
Aqui em nossa nação
Do Padre Cícero Romão
A canonização fez

Realizou-se em Brasília
Essa canonização
Sendo que do Santo Papa
Não houve autorização
Por ai o leitor veja
Foi a nossa santa igreja
A maior profanação

511 padres
No momento se acharam
Também 34 bispos
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 61

Ali se apresentaram
E de jornais e revistas
Centenas de jornalistas
O ato presenciaram. (EXPEDITO SEBASTIÃO DA
SILVA, 1973, p. 01).

O fragmento de cordel em apreciação põe em evidencia a


canonização operada no plano imaginário pelos cristãos que
tinham Padre Cícero como um homem milagreiro. O fato é que a
canonização executada pela população de Juazeiro-CE é um fato
que perpassa a história, portanto, um há uma manifestação de um
ethos discursivo que neste caso parte do sujeito enunciante, ou
seja, o poeta popular Sebastião da Silva (1973).
A quarta análise é a dimensão coerciva do ethos. Para
Maingueneau (2005b) os elementos coercitivos devem está
sequenciados de uma semântica global, isso porque, para
Maingueneau (2005b) a noção de ethos está atrelada a uma
semântica global que por sua vez é uma dimensão do discurso.
Podemos observar isso nos versos que seguem:

Mesmo o nosso Padre Cícero


A luz brilhante do Norte
Como um fiel e pastor
Foi um baluarte forte
Da santa Mãe Soberana
E a Igreja romana
Defendeu até a morte. (EXPEDITO SEBASTIÃO DA
SILVA, 1973, p. 02).

No fragmento em apreciação há uma construção semântica


capaz de produzir efeitos denotativos e conotativos em torno da
figura de Padre Cícero, e isso se dá pelo do poeta popular tentar
passar objetividade nos versos e usar termos como, pastor,
brilhante, fiel, ou seja, as palavras são semanticamente bem
elaboradas, o que possibilita a construção de um ethos discursivo.
62 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

5. Conclusão

Nesse estudo tivemos a pretensão de apresentar, mesmo


que de forma breve, como se caracteriza o ethos de Padre Cícero
na literatura de cordel, em uma perspectiva da análise do discurso
de vertente francesa, conforme postulados de Dominique
Maingueneau.
Diante do estudo é possível apresentar as seguintes
conclusões: i) a existência de um ethos pré discursivo nos corpora
desse estudo, uma vez que a figura de Padre Cícero é idealizada
pelos romeiros de Juazeiro-CE; ii) os folhetos de cordel se
configuram como espaço de mitificação, no qual a presença da
figura de Padre Cícero é marcada como herói do povo sertanejo.
Por fim, acreditamos ter alcançado o objetivo proposto
nesse estudo, entretanto, convém esclarecer que as breves
considerações empreendidas não se esgotam aqui, pois a teoria
apresentada por nós apresenta diversos pontos que não foram
mencionados aqui.

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IVANALDO SANTOS (ORG.) | 63

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Cícero pela Igreja brasileira. Juazeiro do Norte: São Francisco,
1973.
Capítulo IV
A construção fenomenológica do discurso
de Riobaldo no episódio do júri em
Grande Sertão: Veredas
José Francisco das Chagas Souza1
1. Introdução

Este ensaio tem por objetivo apresentar aspectos do


discurso de Riobaldo, narrador-personagem da obra de
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas2, escolhido como corpus de
análise o episódio da fala de Riobaldo no julgamento de Zé
Bebelo. Para tanto, delimitamos na referida obra, o momento em
que a palavra será usada por Riobaldo e que, em sua fala,
argumentará perante os demais sobre sua posição, embora,
ressalte também as qualidades inerentes ao julgado pelo grupo de
Joca Ramiro. A fala de Riobaldo carece ser ouvida, não só porque
o chefe Joca Ramiro quis consultar cada um de seus comandados,
mas porque os dois, ele e Zé Bebelo se conhecem bem.
Na obra de Guimarães Rosa é notável as várias
possibilidades que temos de analisar os quadros, como se
apresentam ao longo da narrativa de seu personagem principal,
Riobaldo, e como seu discurso se desenvolve na tentativa de
propor uma saída. Aqui nos interessa perceber como está
estruturado esta parte do discurso onde trata do julgamento de
Zé Bebelo, personagem com natureza dúbia, pois sendo chefe de
jagunços, coronel ligado ao governo, faz também o discurso de
defensor da gente do sertão. Nesse ato se encontra aprisionado
nas mãos de seus adversários, depois de ser derrotado na guerra

1 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande


do Norte (UERN), Membro do Grupo de Estudos do Discurso (GRED) da UERN e
do Grupo Filosofia da Percepção da Univeriosdade Federal da Paraíba (UFPB).
Atualmente está realizando o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL) da UERN. E-mail: [email protected].
2 Foi utilizada a 21ª edição de 2015 e quando referida, ao longo do texto, será através da
sigla: GSV.
66 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

para o protagonista Riobaldo, que outrora fora professor dele,


nesse momento, integrante do grupo liderado por Joca Ramiro.
Em sua narrativa, Riobaldo propõe um discurso
envolvente e carregado de criações, seja de palavras fundidas com
outras, seja numa construção poética ou mesmo com a utilização
de termos regionais de uso corriqueiro no sertão, ao mesmo
tempo em que universaliza o que a língua tem de maior. Assim
como o autor que percorreu o sertão anotando tudo que ouvia, o
interlocutor de Riobaldo, o “Senhor”, o “Doutor”, pode ser o
mesmo Guimarães Rosa que escuta e anota tudo em seu caderno,
prática conhecida do autor. Desse modo, esse interlocutor pode
ser também o leitor, ou seja, de maneira peculiar e de propósito
há um imbrincamento entre autor, narrador-personagem e leitor
na concepção da narrativa e sua hermenêutica.
O sertão desvela-se em sua fala, logo não tem como
separar, da linguagem de Riobaldo, o sertão e seu jeito de falar.
Portanto, ao mencioná-lo, o sertão estará presente.
Nos recortes extraídos do Grande Sertão: Veredas,
procuraremos trabalhar a descrição e análise seguindo uma
proposta fenomenológica de viés merleau-pontyano, o que
significa dizer que adotaremos uma análise em que a existência
humana terá predominância na essência do ser concreto, no
homem sertanejo. Daí, o caminho que se constrói, tanto em
Guimarães Rosa como em Merleau-Ponty direcionam para o
aspecto vivo e criador presentes nos signos da linguagem. Da
oralidade do discurso de Riobaldo à escrita do pesquisador, o
“Senhor”, da fala falada à fala falante de Merleau-Ponty na obra
Fenomenologia da Percepção3. Portanto, eis o caminho da linguagem
que trataremos entre os dois autores neste trabalho.
Por fim, veremos a linguagem, assim como destacam os
dois autores, como aquela que existe no ato em que é exercida,
trabalhada, como diz Guimarães Rosa, por isso, viva e

3 Tese de Merleau-Ponty publicada pela primeira vez no ano de 1945. Aqui utilizarei a
tradução direta do Francês de 2011. Esta será citada ao longo do texto com a sigla: FP
(Fenomenologia da Percepção), Outras obras em que utilizaremos siglas: PM (Prosa do
Mundo), S (Signos) e GSV (Grande Sertão: Veredas).
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 67

transformadora, atravessando o sertão rosiano que é o mundo


vivido4 merleau-pontyano.

2. A Fenomenologia em Merleau-Ponty

A princípio, situemos o que é fenomenologia. Phainesthai é


o fenômeno que se mostra do jeito que é sem interferência de
nada. O termo no sentido em que abordaremos é mais recente,
porém, o fenômeno enquanto aquilo que se mostra ou se
apresenta, está presente desde a filosofia grega, mesmo com certa
ambiguidade quando trata do “aparecer” ou simplesmente,
“parecer”. O certo é que concebido de maneira genérica se
caracteriza por tudo que é percebido ou aparece através dos
nossos sentidos ou em nossa consciência. Como estudo ou
ciência do fenômeno, é bom deixar claro que o termo
fenomenologia tem sentido ilimitado e não pode ser direcionada a
uma ciência particular. Assim, evidencia-se como fenômeno,
embora tenha sido bastante utilizado pelas ciências experimentais,
pela filosofia da tradição, sem possuir caráter estático, mas, de
movimento.
A fenomenologia merleau-pontyana tem sua base no
pensamento do último Husserl, já no prefácio da Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty (2011, p. 2), afirma que “[...] a
fenomenologia se deixa praticar e reconhecer como maneira ou
estilo; ela existe como movimento antes de ter chegado a uma
inteira consciência filosófica.”. Portanto, Merleau-Ponty (2011, p.
3) “Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar”.
Assim, a fenomenologia tem papel primordial no pensamento do
filósofo por propor que a filosofia se inicie pela não-filosofia, isto
é, que mesmo antes da reflexão sistemática a que se apega, há um
pré-reflexivo que objetiva retornar às origens para somente depois
adentrar na segunda parte que é a reflexão propriamente dita.

4 Merleau-Ponty irá denominar o mundo para diferenciar da concepção da ciência que


fala de universo como totalidade “acabada”. Para ele, o “mundo da vida” ou mundo
vivo (Lebenswelt) como apontava Edmund Husserl é o mundo que se faz a partir de
nossa ação, da participação humana que está imbrincada na existência dele, por isso, ele
é Ser no mundo, conforme Heidegger e Mundo vivido em Merleau-Ponty.
68 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Entendemos que a descrição como volta às origens é a defesa de


que o conhecimento necessita fugir das pré-noções do saber já
postas de maneira pronta. Por outro lado, feito este primeiro
contato “ingênuo” com o mundo, o passo seguinte será para dar-
lhe “um estatuto filosófico”, defenderá Merleau-Ponty. Percebe-
se com isto que Merleau-Ponty não foge a uma análise apurada da
reflexão nem tão pouco do princípio em que coloca a filosofia
numa instância de ciência rigorosa. Então, ele não abdica da
reflexão filosófica, porém, a volta às coisas mesmas, quebra uma
visão dicotômica que teria mergulhado a investigação do
conhecimento até bem pouco tempo. Por isso, Merleau-Ponty
(2011, p. 5), embasado na fenomenologia, buscará superar esta
visão que separa a experiência da razão e aponta o fenômeno
como aquele que se apresenta em um mundo anterior ao
conhecimento como investigativo e, ao mesmo tempo, além de
retorno ao pré-reflexivo, um retorno ao mundo que se encontra
ali antes mesmo que eu faça qualquer análise dele. Na verdade, a
descrição é descrição do real, em sua forma como se apresenta à
experiência perceptiva que temos dele. E a percepção que o
filósofo lhe confere como a experiência que se faz fenômeno, é
também a forma que se despe de qualquer prenoção que
possamos ter no contato com o mundo vivido. Perceber, agora
torna-se primazia que se antecipa a uma ou outra corrente de
pensamento que prevalecia desde a chamada tradição moderna
iniciada com Descartes. Ela é tão evidente, por si, assim, Merleau-
Ponty, (2011, p. 6) diz que: “A percepção não é uma ciência do
mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição
deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e
ela é pressuposta por eles.”
Será esta fenomenologia, merleau-pontyana, que retrata o
mundo real, o mundo vivido, o mesmo mundo de Riobaldo em
Grande Sertão: Veredas. E será este caminho pelo qual trilharemos
na análise de seu discurso na última parte de nosso texto.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 69

3. Os caminhos da linguagem em Merleau-Ponty e


Guimarães Rosa

Veremos agora como Merleau-Ponty trata a linguagem e


como esta servirá de base em nossa análise do discurso de
Riobaldo que exporemos a seguir.
Para a tradição, a linguagem sempre esteve dissociada da
consciência e, apenas, servia-lhes de roupagem ou revestimento
do pensamento. Era, portanto, estática e não tinha o poder da
comunicação, da construção efetiva do diálogo. Merleau-Ponty,
discordando dessa ideia, afirma que a linguagem é movente e
capaz da criação no ato próprio em que ela está se fazendo. Nesse
mesmo sentido, veremos que Guimarães Rosa aponta para esta
dinamicidade viva da língua e, consequentemente da linguagem.
Para ambos, a língua não pode ser algo fixo e sem o devir que lhe
é inerente. E isto a faz estar aberta como fenômeno inovador a
permitir ao ser humano se reinventar num processo constituído
no exercício desta.
O problema da linguagem foi uma das maiores
preocupações nos escritos de Merleau-Ponty, tendo ele dedicado
grande parte de suas obras. Também, ela recebe dele a atenção
necessária a partir da fenomenologia. Isto quer dizer que a língua
é algo vivo diferente da concepção de uma linguagem estática
sem abertura à criação.

Do ponto de vista fenomenológico, ou seja, para o sujeito


falante que utiliza sua língua como um meio de
comunicação com uma comunidade viva, a língua
reencontra a sua unidade: já não é o resultado de um
passado caótico de fatos linguísticos independentes, existe
um sistema cujos elementos concorrem todos para um
esforço de expressão único voltado para o presente ou
para o futuro, e assim governado por uma lógica atual. (S,
1991, p. 91).

O sujeito falante situa-se no mundo e tanto ele quanto


este estão unidos na elaboração constante de uma linguagem de
ação. A linguagem poderá vir e se fazer como coisa viva e
70 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

movente capaz de produzir no ato próprio da fala, o discurso


sempre acompanhado do discurso do outro, mesmo que este, por
um momento, seja apenas ouvinte. Porém, o outro sempre
constituirá objeto da linguagem que se comunica sem barreiras e
vai se fazendo no diálogo. É sempre importante entender que a
linguagem para Merleau-Ponty é algo vivo.

[...] existe um objeto cultural que vai desempenhar um


papel essencial na percepção de outrem: é a linguagem. Na
experiência do diálogo, constitui-se um terreno comum
entre outrem e mim, meu pensamento e o seu formam um
só tecido, meus ditos e aqueles do interlocutor são
reclamados pelo estado de discussão, eles se inserem em
uma operação comum da qual nenhum de nós é o criador.
(FP, 2011, p. 474-5).

Para isto, ele defende haver duas linguagens. A fala falada


(parole parlée) e fala falante: (parole parlante) – Este é um termo usado
por Merleau-Ponty na obra de 45, a Fenomenologia da Percepção, e
que, em seus trabalhos finais, ele passa a denominá-la de linguagem
falada e linguagem falante em A Prosa do Mundo. A primeira, fala
falada, trata de uma linguagem “sedimentada”, aquela que domina
o terreno comum de uma comunidade de falantes. Por si só, a
sutil mudança de termo não propõe um significado novo, mas
sim, a mesma ideia de uma linguagem falada efetiva e fixa em sua
maneira vocabular de conhecimento geral de todos. Já a segunda,
fala falante é a fala “conquistadora”, busca a intenção significativa
das coisas em seu princípio original, construída com palavras,
porém, envolvida e precedida de um certo silêncio. Ou seja, a
significação dá vida à fala, a torna viva a partir de um devir que a
faz ser inovadora e criativa. E, assim, acontece o que chamamos
de comunicação.
Tem a linguagem falante como sendo criadora e inédita que
vai sendo produzida no ato mesmo da fala. As duas são
importantes no momento da elaboração do discurso que está
sendo feito. Na narrativa de Riobaldo é possível percebermos que
as duas estão presentes, mas há de se notar um vocabulário
peculiar no decorrer de toda obra. São termos e expressões que
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 71

tornam sua maneira de falar a partir da cultura sertaneja, bem


regionalista e sem deixar de ser universal.
Aquele que escuta, compreende, anota, concorda, é o
“Senhor”, principal interlocutor de Riobaldo, porém, só há a
comunicação devido ao terreno comum existente entre ambos: a
linguagem constituída que os une e os fazem partes uníssonas da
invenção comum de significados que compõem a comunicação.
E nela aparecem certas lacunas do discurso, que compreendo
porque estes de vazios que preenchem minha vida. O silêncio é
parte da linguagem, o não dito compõe-se com o proferido. Com
Merleau-Ponty não há um pensamento que preexiste à fala, mas
coexistem e estas zonas de vazios é que promovem a fala em nós.
Enquanto a fala falada (parole parlée) é sedimentada, faz parte do
universo cultural existente disponível aos falantes, a fala falante
(parole parlante) está presente na construção de sua narrativa, no
diálogo constante com os companheiros jagunços, fazendeiros,
além das amantes e em maior vivência com Diadorim, seu amor
proibido. Portanto, o que já está dito completa-se com uma fala
operante que está sendo elaborada no ato do diálogo.

[...] poderíamos distinguir entre uma fala falante e uma fala


falada. A primeira é aquela em que a intenção significativa
se encontra em estado nascente. [...]. Daí a fala falada que
desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna
obtida. (FP, 2011, p. 266-7).

Eis aqui, portanto, o propósito das duas linguagens


apresentadas na Fenomenologia da Percepção, embora possuam uma
interdependência com o intuito de fazer dela uma linguagem viva.
Nas obras finais, Merleau-Ponty sustenta as duas formas de
linguagem, o mesmo sentido, embora não trate de fala, mas de
linguagem.

Digamos que haja duas linguagens: a linguagem de depois,


a que é adquirida e que desaparece diante do sentido do
qual se tornou portadora, e a que se faz no momento da
expressão, que vai justamente fazer-me passar dos signos
72 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

ao sentido – a linguagem falada e a linguagem falante.


(PM, 2012, p. 39).

Assim, encontraremos em sua narrativa os elementos que


deverão ser percebidos levando-se em conta essa “mistura” que
estruturam as falas no romance. Daí, entendermos que não é
possível ler apenas como uma leitura parcial. Ela é envolvente
pelo teor carregado de sentimentos, de poesias, mitos e de jogo
linguístico que une o regionalismo ao universal que a linguagem
proporciona, levando-se em conta a presença do ser numa
cultura.

4. Narração/Discurso em Grande Sertão: Veredas

Um dos pontos mais marcantes em Grande Sertão: Veredas é,


sem dúvida a maneira como a linguagem é apresentada por
Guimarães Rosa ao longo da obra. Para muitos, uma aventura
quase que intransponível a se perceber desde o primeiro
parágrafo. De antemão, parece uma linguagem inventada e sem
sentido já que nos dicionários comuns não é possível decifrar
algumas palavras. É tanto que existem léxicos, como um Universo
e Vocabulário do Grande Sertão, do potiguar Nei Leandro de Castro
e de outra pesquisa mais abrangente da professora Nilce
Sant’Anna Martins, que em obra mais recente criou O Léxico de
Guimarães Rosa. Porém, é intenção do próprio autor provocar o
leitor para que este possa se questionar dentro desta linguagem.
Para que perceba o quanto ela é viva, capaz das várias
possibilidades. É o próprio Guimarães que diz ser uma linguagem
“trabalhada”, e isto requer a arte e a perspicácia de perceber que
nossa fala não pode ser algo inflexível. Merleau-Ponty concorda
nesse ponto, pois, mesmo sendo a fala que nos faz compreender-
se uns aos outros, por estar pautada por um vocabulário comum
já conhecido por ambos num diálogo, ela é uma construção
permanente que funciona como um devir que não para, como uma
improvisação que só o ato é capaz. Mas, como entender àquelas
palavras que não são do conhecimento de todos que estão
envolvidos num diálogo? Será necessário que se conheça para,
enfim, acontecer a compreensão. É isto que impacta aos leitores
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 73

de primeiro contato com o autor. Terão que sair de seu mundo já


estável para buscar preparar este terreno para que se torne
compreensível a todos. Veremos pois, que a tarefa requer um
esforço de uma leitura reflexiva, mas se deixando penetrar por
esta construção ímpar de uma língua viva capaz de ser moldada
em sua criação, na cultura...
Na estrutura da obra de Guimarães Rosa, Riobaldo é
narrador-personagem central. Seu discurso está pautado no
sentimento do sertanejo que no alto de sua velhice, perfaz a
trajetória rebuscada nas memórias de sua vida fazendo-as vivas
no presente quando decide narrá-la a um “Senhor” que está em
sua fazenda. No caso específico desse “júri” constituído entre os
jagunços, fugindo às regras que costumeiramente pautava
situação desse gênero, onde o preso por outro grupo,
normalmente tinha condenação à morte decretada.

5. Discurso de Riobaldo no julgamento de Zé Bebelo

A fim de que conheçamos como se deu o discurso de


Riobaldo, utilizaremos um recorte de Grande Sertão: Veredas,
exatamente o momento em que ele pede a palavra e profere sua
fala expondo, assim, seu argumento em relação ao preso, Zé
Bebelo, que agora estava sob as ordens do grupo chefiado por
Joca Ramiro do qual Riobaldo faz parte.
Dividimos o discurso de Riobaldo em sete cenas para
melhor aplicarmos a descrição e análise fenomenológica de sua
fala. Estarão postas, primeiro a narração de Riobaldo, segundo, a
sua própria fala em destaque na tabela. Logo após cada parte,
faremos nossa análise a partir do embasamento no pensamento
merleau-pontyano, ou seja atentando para a fenomenologia da
linguagem, isto é, nossa fala destacará aspectos fenomenológicos
presentes no discurso de Riobaldo. Conforme já apresentamos, a
fenomenologia como fenômeno que se mostra antes de qualquer
análise, o discurso riobaldiano é ele próprio que se apresenta por
si só num primeiro instante: é descrição da percepção das
memórias do narrador. É o que Merleau-Ponty chama de pré-
reflexivo. O momento seguinte, será a reflexão elaborada a partir
74 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

dessa primeira experiência perceptiva. Nesses dois momentos,


que caracteriza o fenomenológico, em que a linguagem viva vai
construindo o discurso da oralidade à escrita, da fala falada à fala
falante. Nessa dinâmica é podemos falar de fenomenologia e de
linguagem.

Cena I:
Dei como um passo adiante, levantei mão e estalei dedo, feito menino
em escola. Comecei a falar. Diadorim ainda experimentou de me reter,
decerto assustado: – “Espera, Riobaldo...” – tive o siso da voz dele no
ouvido. Aí eu já tinha principiado. O que eu acho, disse, supri neste
mais menos fraseado:
– “Dê licença, grande chefe nosso, Joca Ramiro, que licença eu peço! O
que tenho é uma verdade forte para dizer, que calado não posso
ficar...” (GSV, 2015, p. 228).

Este prólogo do discurso demonstra os dois aspectos que


percorre o texto de Grande Sertão: Veredas: a narrativa e o
protagonismo de Riobaldo que ao fazer uso da oralidade, conta
ao “Senhor” recém-chegado à sua fazenda, que se porta como
ouvinte e com atenção registra (escrita) aquilo que ouve do ex-
jagunço. Aqui, fica evidente alguns aspectos da obra que vale
ressaltar: 1) Riobaldo narrador-protagonista é ele próprio
representação maior da obra; 2) O “Senhor”, “Doutor” que
escuta a narrativa, participa de forma tácita, porém, com a
atenção de pesquisador é o próprio autor de Grande Sertão,
Guimarães Rosa; e por fim, 3) O leitor convidado a embarcar
nessa travessia do Grande Sertão. Há um imbrincamento que
funde o aspecto narrativo e sua oralidade com as anotações
através da escrita do interlocutor. Então, o discurso de Riobaldo
se encontra nessa perspectiva que vai perpassando toda a
linguagem em sua dinâmica oral ou escrita. Nesse viés é que a
fenomenologia da linguagem em Merleau-Ponty, enquanto
linguagem viva capaz do movimento criador, fará sintonia da
oralidade do discurso de Riobaldo com a escrita do “Senhor”.
Segundo, o pensador francês, é nesse movimento da linguagem
que a torna presença inovadora a partir da fala já sedimentada
entre os povos e suas culturas, representada aqui pela fala falada,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 75

aquela que é o terreno comum como um vocabulário já


conhecido por todos. Ligado a esta, temos a fala falante, dinâmica,
surpreendente, utilizando desse vocabulário como espaço
conhecido por todos, poder ir se construindo e elaborando a
compreensão entre os seres. No principiar de seu discurso,
Riobaldo tem o tom de quem sabe das coisas, porém, evidente
sua representação enquanto membro do grupo. Na linguagem,
bom perceber alguns aspectos do orador: postura, solicitação de
vênia da palavra em obediência ao “grande chefe nosso” e
linguagem por gestos.

Cena II:
Digo ao senhor: que eu mesmo notei que estava falando alto demais,
mas de me abrandar não tinha prazo nem jeito – eu já tinha começado.
Coração bruto batente, por debaixo de tudo. Senti outro fogo no meu
rosto, o salteio de que todos a finque me olhavam. Então, eu não
aceitei ninguém, o que eu não queria era ver o Hermógenes. Não pôr
as capas dos olhos nem a ideia no Hermógenes – que Hermógenes
nenhum neste mundo não tivesse, nenhum para mim, nenhum de si!
Por isso, prendi minhas vistas só num homem, um que foi o qualquer,
sem nem escôlha minha, e porque estava bem por minha frente, um
pardo. Pobre, esse, notando que recebia tanto olhar, abaixou a cara
amassado de não poder outra coisa. No eu falando:
– “...Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele,
nunca menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido.
Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com as ordens destes famosos
chefes, vós... Da banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal, com meu
cano e meu gatilho... Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem
valente de bem, e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. E é
chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem
matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar...
Isto, afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um
absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... E
isto digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e cumprindo a
licença dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e por meu
cabo-chefe Titão Passos!...” (GSV, 2015, p. 228).

Aqui, Riobaldo retoma a postura de quem fala com poder


e domínio diante dos presentes ao mesmo tempo em que se
76 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

mescla em seu ser o senso de justiça em defesa de Zé Bebelo,


velho conhecido de outrora e a demonstração de coerência diante
dos seus. Por isso, fala alto como quem se impõe e quer ser
ouvido. As palavras que irá pronunciar estão cheias das verdades
que acredita partilhar neste momento por conhecer a índole do
julgado. O discurso de Riobaldo, portanto, busca a compreensão
ao mesmo tempo o convencimento de todos, em especial do
chefe, Joca Ramiro, ao qual sua fala pretende ajudar na escolha
da sentença. Um momento determinante em que a palavra possui
um poder capaz do convencimento, e isto muito se aproxima da
solenidade de um júri, só que este é um julgamento com leis
próprias do “sistema jagunço”.

Cena III:
Tirei fôlego de fôlego, latejei. Sei que me desconheci. Suspendi do que
estava:
– “... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este
sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas
e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer
cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois então, xente, hão de se
dizer que aqui na Sempre-verde vieram se reunir os chefes todos de
bandos com seus cabras valentes, montoeira completa, e com o
sobregovêrno de Joca Ramiro – só para, no fim, fim, se acabar com
um homenzinho sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto
fosse um boi de corte? Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...”
(GSV, 2015, p. 229).

A questão levantada se prende ao que ficará depois do


episódio de uma condenação por morte. É honra ou vergonha?
Suscita, pois, uma posição que não lhes permitam aparecer na
história como uma sentença injusta, covarde vindo a denegrir a
imagem do bando e seu chefe. Questão própria das defesas nos
grandes tribunais de júri, o presente tribunal do sertão se rege por
leis próprias e sem recorrência. No sertão o fato de alguém estar
sob júdice de um chefe de jagunço e para manter-se respeitado
no presente e para além num legado a ser deixado, necessita que
se use as prerrogativas da lei do “sistema jagunço”. Matar sim, era
normal nesse contexto, porém, mais honra seria a luta onde o
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 77

mais forte sempre vence, isto permite que o vencedor exerça o


direito sobre o destino do adversário. Mas, não fica bem,
argumenta Riobaldo e aparteado por outros, dar a pena maior ao
prisioneiro Zé Bebelo por estar só e sem forças iguais a serem
medidas numa guerra. Os argumentos vão se direcionando ao
objetivo maior da fala de Riobaldo: não condenação por morte
de Zé Bebelo.

Cena IV:
– “Para mim, é vergonha...” – o que em brilhos ouvi: e quem falou
assim foi Titão Passos.
– “Vergonha! Raios diabos que vergonha é! Estrumes! A
vergonha danada, raios danados que seja!...” – assim; e quem gritou,
isto a mais, foi Sô Candelário.
Tudo tão aos traques de-repente, não sei, eu nem acabei o
relance que me arrepiou minha ideia: que eu tinha feito grande toleima,
que decerto ia ser para piorar – o que foi no eu dizer que Zé Bebelo
não matava os presos; porque, se do nosso lado se matava, então não
iam gostar de escutar aquilo de mim, que podia aparecer forte
reprovação. Aos brados bramados de Sô Candelário, temi perder a vez
de tudo falar. Aí, nem olhei para Joca Ramiro – eu achasse, ligeiro
demais, que Joca Ramiro não estava aprovando meu saimento. Aí,
porque nem não tive tempo – porque imediato senti que tinha que
completar o meu, assim:
– “... A ver. Mas, se a gente der condena de absolvido: soltar
este homem Zé Bebelo, a mãvazias, punido só pela derrota que levou –
então, eu acho, é fama grande. Fama de glória: que primeiro vencemos,
e depois soltamos...” –; em tanto terminei de pensar: que meu receio
era tôlo: que jagunço, pelo que é, quase que nunca pensa em reto: eles
podiam achar normal que da banda de cá os inimigos presos a gente
matasse, mas apreciavam também que Zé Bebelo, como contrário,
tivesse deixado em vida os companheiros nossos presos. Gente
airada... (GSV, 2015, p. 229).

A liberdade de Zé Bebelo se dar perante argumentos de


sua prática, vantagem e honra por já ter sido pego e preso, soltá-
lo, mesmo sem nenhum outro castigo a ele imposto, terá sido
vantagem pelo simples fato de ter sido aprisionado, mostrando
78 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

assim, o poder exercido que poderia tanto ser morto quanto


posto em liberdade.
“Mãvazias” – Nesse trecho do discurso um exemplo de
palavra fundida a formar numa só a correspondente “Mãos
vazias” (CASTRO, 1970, p. 103), quer dizer, sem nada.
“Aglutinação dos termos, por analogia a mancheias”.
(MARTINS, 2008, p. 326).
Gente “airada”: segundo Castro (1971, p. 30), airar
significa para Guimarães Rosa “Embevecer, pasmar”, isto é, estar
pasmado, bôbo com alguma coisa.

Cena V:
Aí eu pensei, eu achei? Não. Eu disse. Disse o verdadeiro, o ligeiro, o
de não se esperar para dizer: – “... E, que perigo que tem? Se ele der a
palavra de nunca mais tornar a vir guerrear com a gente, decerto
cumpre. Ele mesmo não há de querer tornar a vir. É o justo. Melhor é
se ele der a palavra de que vais-s’ embora do Estado, para bem longe,
em desde que não fique em terras daqui nem da Bahia...” – eu disse;
disse mansinho mãe, mansice, caminhos de cobra.

Esta é a sugestão de pena a ser cumprida por Zé Bebelo


apontada por Riobaldo. Eis aqui a saída para o impasse à questão
e que resolve da melhor forma com a punição de ir para longe
com compromisso de não voltar. Está o ponto mais alto e central
do argumento de Riobaldo.
“Mansice”: Segundo Castro (1970, p. 102) significa
“mansidão”.

Cena VI:
– “Tenho uns parentes meus em Goiás...” – Zé Bebelo falou, avindado
de repente. Tomei uma respiração, e aí vi que eu tinha terminado. Isto
é, que comecei a temer. Num esfrio, num átimo, me vesti de pavor. O
que olhei – Joca Ramiro teria estado a gestos? – Joca Ramiro fazendo
um gesto, então queria que eu calasse absolutamente a boca; eu não
possuía vênia para discorrer no que para mim não era de minha alta
conta.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 79

O discurso nesse momento é quase que interrompida por


linguagem de gestos do chefe, Joca Ramiro. De fato, a ideia será a
mais plausível e acatada até mesmo pelo chefe maior, porém, não
cabe aqui a Riobaldo, mesmo sendo dono do discurso, dar a sentença
por final, como vimos, há uma hierarquia a ser obedecida. Antes que
isto represente um atropelo no processo, o chefe o faz entender na
linguagem gestual que ele não possui vênia para condução do
processo. O discurso de Riobaldo deixado de lado, o reconhecimento
enfático do qual o orador esperava foi interrompido para decepção
dele. Embora sua proposta de que Zé Bebelo cumprisse uma
sentença de ir para Goiás com o compromisso de não voltar a
guerrear, tinha sido bem acolhida pela maioria. Mas sua ideia já tinha
sido argumentada.

Cena VII:
... Só Diadorim, que quase me abraçava: – “Riobaldo, tu disse bem! Tu é
homem de todas as valentias...” Mas, os outros, perto de mim, por que era
que não me davam louvor, com as palavras: – Gostei de ver! Tatarana!
Assim é que é assim! –? Só, que eu tinha pronunciado bem, Diadorim mais
me disse: e que tinha sido menos por minhas tantas palavras, do que pelo
rompante brabo com que falei, acendido, exportando uma espécie de
autoridade que em mim veio. E para Zé Bebelo eu não tinha olhado. Que
era que ele de mim devia de estar pensando? E Joca Ramiro? Esses se
fronteavam: um ao outro, e o em meio, me mediam. (GSV, 2015, p. 228-9).

Neste fechamento, duas observações a serem ditas: 1) A única


pessoa a exultar com o discurso de Riobaldo é Diadorim. Não é por
menos, o amor dissimulado entre eles permite com que Diadorim
exulte e exalte as palavras proferidas por Riobaldo numa verdadeira
euforia se sentia orgulhosa. E nem tanto pelas palavras em si, porém,
a forma enfática com que Riobaldo usa o verbo com o tom de quem
fala com convicção numa defesa. É preciso convencer perante aquela
assembleia de juízo, e seu discurso é muito mais uma junção de
emoção e razão o que faria com que a maioria viesse a tomar uma
posição que favorecesse a liberdade com vida do prisioneiro. 2) A fala
de alguém provoca as mais diversas reações, isto se deve ao fato de
como o outro percebe e recepciona o que se disse. Assim
80 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

entendemos que a linguagem tem esta capacidade de criar um


entendimento entre os seres.
Percepção: pré-reflexivo. A fenomenologia se abre a partir da
percepção do mundo, percepção não somente de coisas, mas, a
capacidade de sentimentos, da forma como compreendemos o
mundo.
Reflexivo: Para Merleau-Ponty não é o ato primeiro, de acordo com
a sua fenomenologia, é necessário um retorno à origem do
conhecimento, esse contato originário com o mundo encontra-se no
pré-reflexivo.
Linguagem: está presente o movimento do discurso onde se destaca
o uso de um vocabulário já conhecido por todos naquela reunião – é
o terreno comum da fala sedimentada, a fala falada culturalmente. E
está presente nesse discurso a elaboração criadora da fala falante, que
mesmo pautada a partir desse terreno comum a todos, esta vai se
constituindo no ato mesmo da construção do discurso. De forma
viva e dinâmica o ato oral é ato criador e novo. Além do que é o
terreno comum entre o pensador francês e o romancista brasileiro.

6 Considerações Finais

O propósito deste texto foi o de tratar de uma parte do


discurso de Riobaldo, narrador-personagem de GSV à luz da
fenomenologia da linguagem no filósofo Merleau-Ponty. Sentimos
ainda ser necessário se fazer mais abordagens do problema da
linguagem como elemento vivo da maneira, como estão presentes em
Guimarães Rosa e Merleau-Ponty. Nessa redescoberta vimos mais
pontos de encontro, especialmente porque a linguagem é um
elemento constante nas abordagens de ambos, daí, tivemos na
fenomenologia o canal que uniu nossas análises no discurso de
Riobaldo.
Quando Riobaldo narra suas memórias, não só está
descrevendo o que viu e viveu, mas vai além quando sua fala é algo
vivo e que está situada numa cultura que é a sertaneja. Só aqui
dizemos que há um exercício fenomenológico no ato próprio da
linguagem. Descreve aquilo que percebeu na jagunçagem sertão a
fora. E, para isto, a linguagem regionalista é a ponte que torna nossa
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 81

compreensão unida àquilo que expressa numa linguagem universal.


Assim, mesmo rebuscando num longínquo passado, a linguagem
torna presente todos os atos que são revividos no pensamento de
quem fala e de quem ouve.
Merleau-Ponty fala da força que a linguagem possui ao ser
capaz de criar no ato do diálogo aquilo que materializamos ao falar.
Como num movimento inovador, ela vai elaborando o dizer sem
necessidade de planejar cada palavra. E Guimarães Rosa comunga
muito bem desse pensamento, pois cria uma linguagem “trabalhada”
que não se demora apenas na sedimentação da palavra. Ela é livre e
movente, por isso, criadora e capaz de comunicar de forma evidente.
E isto ficou claro nas cenas escolhidas da fala de Riobaldo, como a
palavra viaja e provoca as reações por ela ser viva.

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Capítulo V
A indústria cultural e o rock brasileiro: a
criação de um público consumidor
Julio Neto dos Santos1
1. Introdução

Uma das grandes ironias do marxismo foi passar de uma


ideologia ampla, como uma nebulosa que abarcava todas as
teorias sobre a política e economia para vir enlatado sob a forma
de um produto de consumo. Ora, nada mais catastrófico do que
passar de uma modalidade universal para um conceito individual
e com um alcance social mais restrito, porém com o mesmo e,
talvez maior poder de convencimento e alienação do homem em
sua labuta social.
A indústria cultural não só se reveste deste conceito
marxista, como também se mostra muito eficaz no processo de
condução de um modo de viver modus vivendi de uma sociedade
dominada cegamente pela técnica. Esta que apareceu com um
conceito de elevar o espírito do homem e amenizar lhe os
sofrimentos ocasionados pelos bens manufatureiros, limitados e
pouco atrativos, chega ao ápice de lhe ditar o próprio conceito de
vida, trabalho, vivência e sociedade.
O conceito de enlatado vem da própria criação industrial.
Todos os produtos criados pela técnica tem uma forma, um
recipiente, uma forma de lata. Isso é a revolução: todo o prazer
que o mundo pode dar vem em um recipiente individual que se
pode levar até sua casa e desfrutar dele. Não é preciso nenhuma
censura e nem mecanismo para tentar ler ou decifrar seu código,
só precisa apertar o play que tudo começa no tempo e na hora que
você desejar. Isso pode ser feito uma, duas, três, ou quantas vezes
você quiser, o prazer enlatado sempre estará a sua espera.

1Graduado e Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Campina


Grande, mestra em letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). Atualmente realiza o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL) da UERN. E-mail: [email protected].
86 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Não obstante, a sociedade é vista sob o prisma da técnica.


Tudo é posto como os mecanismos e as ferramentas que criamos
para facilitar nossa vida e torná-la menos enfadonha e difícil. A
técnica não só facilita, ela faz sozinha aquilo que precisaria de
muitos para resolver o mesmo problema. A supremacia desta
forma de viver tornou os homens dependentes de instrumentos e
mecanismos para controlar o mundo em que se vive. A
experimentação e o improviso não servem mais a esse mundo
“científico”, onde todos dizem estarem dentro de padrões
altamente criteriosos, frutos de pesquisas de ponta.
A questão se torna mais complicada quando entra o
conceito de liberalismo e democracia. A falsa sensação de poder
sentir-se à vontade com o mundo traz consigo o perigo
ideológico de acreditar em uma liberdade plena. O consumismo
desregrado de produtos ditos “de qualidade” faz o sujeito
acreditar que está participando de um mundo no qual todos tem
acesso a bens e serviços da mesma forma que os demais. Essa
sensação é sentida na televisão nova de cinquenta polegadas bem
no meio da sala, com uma estante de linha com fotografias
instantâneas dos parentes, com uma programação já conhecida
desde a criação da TV.

2. A cultura industrial e a indústria cultural

A sociedade dita industrial nem sempre foi assim. A


indústria é algo novo, ao passo que a cultura nasce com o próprio
homem. O homo faber nasce de um conceito filosófico do saber
fazer, ou seja, havia nas aldeias, cidades e povoados homens que
tinham como sua especificidade a de fabricar produtos para as
mais diversas atividades do dia a dia. Esses produtos, por sua vez
melhoravam e agilizavam a vida cotidiana ao facilitar a realização
de tarefas, por meio de algum aparato que facilitasse aquelas
atividades.
Segundo Hannah Arendt,

Nesse contexto, no entanto, é importante estar consciente


de quão decisivamente difere o mundo tecnológico em
que vivemos, ou talvez em que começamos a viver, do
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 87

mundo mecanizado surgido com a Revolução Industrial.


A industrialização ainda consistia basicamente na
mecanização de processos de trabalho, e no
melhoramento na elaboração de objetos. O mundo no
qual viemos a viver hoje, entretanto, é muito mais
determinado pela ação do homem sobre a natureza,
criando processos naturais e dirigindo-os para as obras
humanas e para a esfera dos negócios humanos, do que
pela construção e preservação da obra humana como uma
entidade relativamente permanente (ARENDT, 2011, p.
90).

O trabalho do homem na tentativa de dominar a natureza


através de processos fabris, inicialmente se configurava como a
simples criação de determinados objetos manufaturados, para
facilitar a vida do homem. Esse contexto de fabricação foi o
início de processo de industrialização que irá mudar não apenas
os processos de produção, mas sua relação de produção com
quem produz e com quem manda fabricar.
No início do processo de organização da vida social, a
fabricação de objetos para o dia a dia e da melhoria da relação do
homem com a natureza, por meio de instrumentos que
facilitassem e agilizassem a vida social, tinha como objetivo
central melhorar o homem. A técnica tinha como escopo
melhorar o homem como pessoa e sua relação harmoniosa com a
natureza, sem a pretensão de usar essa mesma técnica como
elementos que gerasse a desigualdade social, a destruição
desenfreados dos recursos naturais, a poluição dos ambientes
reservados ao sossego do homem e, a relação do homem com a
natureza como elemento de catalisação do sofrimento e
amenização dos esforços provocados pelo trabalho exaustivo.
A fabricação de objetos no interior da vida social tinha
como objetivo tornar a sociedade mais evoluída do ponto de vista
da adequação das técnicas conquistadas, fazendo cada vez mais
descobertas que pudessem manipular o maior número de coisas
possíveis. Por exemplo, inicialmente, o telescópio vai ser uma
revolução no mundo da física, a manipulação da pólvora e a
88 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

invenção da bússola, são coisas que farão o mundo moderno


mudar drasticamente.
O homem se aproveitará das coisas que dispõe a natureza
para fabricar aquelas que podem ser usadas e diferentes daquelas
que são consumíveis, ou seja, dispor de um conjunto de
instrumentos e ferramentas que são usadas para manipular a
natureza e produzir coisas para o consumo que não são dadas
pela natureza, mas sim que é dada a matéria-prima para sua
fabricação. Diante dessa constatação, o homo faber irá aperfeiçoar
cada vez mais os elementos de intervenção natural para modificar
o meio e adequá-lo às suas exigências baseadas na segurança e no
conforto.
A instrumentalização do homem por meio das técnicas
inventadas por ele nos levará ao conceito de indústria e o advento
das máquinas que substituíam o trabalho do homem em contato
com elementos que prejudicavam a saúde do homem. O vapor
como propulsor inicial, que substitui os moinhos de vento;
movido pela queima do carvão, antes do petróleo e da energia
atômica, será o início da industrialização que movimentará desde
as máquinas do setor têxtil até o trem das ferrovias e, com isso,
aliviará o trabalho pesado do homem, ao passo em que diminui as
distâncias e acelera a produção.
Para Arendt (2010),

A discussão de todo o problema da tecnologia, isto é, da


transformação da vida e do mundo pela introdução da
máquina, vem sendo estranhamente desencaminhada por
uma concentração demasiada exclusiva no serviço ou
desserviço que as máquinas prestam ao homem. A
premissa é de que toda ferramenta e todo utensílio
destinam-se basicamente a tornar mais fácil a vida do
homem e menos doloroso o trabalho humano
(ARENDT, 2010, p. 188).

Nessa perspectiva, a tecnologia, uso da técnica como


processo de exploração da vida natural para o beneficio da vida
social, presta um tipo de serviço em que introduz a máquina
como prestadora de serviços ao homem, enquanto produz um
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 89

desserviço ao concentrar as atividades nas mesmas para diminuir


a o trabalho doloroso do homem. Esse processo conduzirá à
mudanças radicais na produção de produtos, outrora fabricados
de modo artesanal, para um modo em série, retirando do
produtor a patente do produto, tornando esse mesmo produto,
algo das mãos de todos e não apenas do artista que a projetava e
fabricava.
O processo de industrialização que se iniciou após a
Revolução Industrial não só aprimorou as técnicas até então
desenvolvidas, mas também as colocou em séries para padronizar
os produtos por ela fabricados. Essa forma de produção vai dar
origem ao conceito inicial de produtos acabado e padronizados.
O conceito de indústria cultural surge após a Revolução
Francesa e mais recentemente a Revolução Industrial, ambas
ligadas ao conceito de técnica, tecnologia e maquinização da
sociedade. Com tudo isso, também surge à classe operaria que, ao
mesmo tempo é trabalhadora e consumidora dos produtos que
ela mesma produz. A industrialização e a fabricação em série dá
início a um novo conceito de sociedade.
Ligados, porém a ideia de trabalho está o descanso do
trabalhador e o que ele deve fazer nos momentos em que estiver
livre, daí o conceito de indústria cultural ligada à diversão e ao
entretenimento, justamente para manter esse trabalhador
conectado com a ideia do sistema de capital, para não poder
pensar em ideias que contrariem essa suposta vida de trabalhar
uma parte do dia ou da semana, dedicar parte desse tempo ocioso
a família, a igreja, ao sindicato e, por que não ao entretenimento
por encomenda, prontinho na televisão, no cinema e no conteúdo
das músicas que veiculam nas rádios.
Antes da invenção do produto cultural, as músicas, por
exemplo, quem quisesse ouvir o seu cantor favorito deveria
esperar o mesmo cantar em algum local onde se pudesse ter
acesso, prioritariamente, a execução era instantânea, não havia
gravações, esse invento de colocar as músicas em um aparato que
pudesse ser reproduzido em outro local que não fosse o palco,
era um produto industrial. Ao lado do disco que carregava a
produção de um cantor, se vendia o parelho que servia para
90 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

executar aquelas músicas daquele disco. Parece algo óbvio hoje, já


que tudo é automático: as músicas podem ser baixadas e executas
em vários formatos técnicos industriais como mp3, mp4, CDs, etc.
Porém, na época o disco foi uma revolução junto com a vitrola
que executava essas canções. Com a necessidade congênita de
vender seus produtos, a indústria também começou a fabricar os
elementos relativos à música em séries que pudessem ser obtidas
por todos. De igual forma, aqueles que produziam as letras e as
melodias precisavam desse invento.
Para Adorno,

O entretenimento e os elementos da indústria cultural já


existiam muito tempo antes dela. Agora, são tirados do
alto e nivelados à altura dos tempos atuais. A indústria
cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e
de ter erigido em princípio a transferência muitas vezes
desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter
despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de
ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias. (ADORNO,
1969, p. 110).

A cultura sempre foi tida como um processo de


aprimoramento do homem em sociedade, ou seja, além de servir
ao entretenimento, a cultura e seus artícies eram um tipo de
experiência social que era levada aos povos, que embora, de
forma rudimentar e precária, prestavam grande serviço às
tradições, à literatura, à música e aos mais diversos meio de
aculturação do cidadão. Porém, isso não era visto como trabalho
ou, algo que se pudesse ser levado a sério2, no sentido mais
restritamente do conceito de trabalho assalariado, mas do ócio.
O que a indústria cultural faz é transferir essa experiência da
cultura através da técnica para a esfera do consumo, isto é
transformar qualquer tipo de manifestação do ócio em

2 Esse ponto sobre a seriedade ou não do artista do entretenimento já foi alvo de


muitas críticas, já que a arte não era entendida como trabalho, mas sim como lazer. Em
consequência disso, aqueles que trabalhavam com arte não eram percebidos como
trabalhadores, devido ao tipo de atividade a que se dedicavam. Nos tempos da indústria
cultural, esse tipo de atividade será muito valorizada.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 91

mercadoria para ser vendida diretamente ao cidadão, sem a


necessidade de intermediários, eliminando assim, a intervenção de
terceiros no processo de transformação de tudo/qualquer coisa
em bens de consumo atirado às massas como obra de arte.
Não obstante, a indústria cultural ainda faz um processo
de triagem da arte, retirando dela, as propriedades que causem
discordância e contradições, para que esse produto
mercantilizado chegue aos sentidos do consumidor/sujeito como
algo pronto para ser consumido sem nenhum tipo de
questionamento, ou seja, tornar passivo um consumidor ativo de
produtos produzidos para fins comerciais e alienatórios.
Adorno ainda deixa claro que,

[...] o que o explica é o círculo da manipulação e da


necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se
torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o
terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a
sociedade é o poder que os economicamente mais fortes
exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é
a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter
compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os
automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo
e chega o momento em que seu elemento nivelador
mostra sua força na própria injustiça à qual servia.
(ADORNO, 1969, p. 100).

Nessa perspectiva, o processo de manipulação das massas


para o consumo consciente/inconsciente de produtos culturais
enlatados ideologicamente para esse fim, é um imperativo da
indústria cultural que sobrepõe seu poder econômico na
sociedade moderna, tornando a técnica, não a libertação e a
felicidade do homem, mas a afirmação de sua dominação por
meio da alienação dos produtos culturais. A técnica não está a
serviço do cidadão, muito pelo contrário, ela é instrumento a
serviço do sistema burguês que, justificando seus fins pelos
meios, torna a sociedade niveladamente justa, ao mesmo tempo
em que aumenta suas injustiças, manipulando-a segundo seus
92 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

critérios e seus processos de obtenção de lucro através da


alienação dos consumidores/sujeitos/cidadãos.
Para Coelho,

A "indústria cultural" é um daqueles objetos de estudo


que se dão a conhecer para as ciências humanas antes por
suas qualidades indicativas, ou aspectos exteriores, do que
por sua constituição interior, estrutural. E um desses
traços indicativos é exatamente o da ética posta em prática
por essa indústria. Este será, portanto, o ângulo de
abordagem, a linha de investigação que orientará este
trabalho de exposição dos aspectos centrais da indústria
cultural. A questão que no fundo se coloca a respeito
dessa indústria é "o que fazer" com ela — questão
essencialmente ética. E é para uma resposta a essa questão
que se procurará apontar aqui. (COELHO, 1980, p. 5)

A indústria cultural vai surgir como uma necessidade


imperativa no interior da sociedade, seu aparecimento é produto
do campo da aplicação do uso de técnicas desenvolvidas para
criar objetos de consumo. Nesse ínterim, não se discute a questão
da ética. Ela não será o norte da indústria cultural, porque esta
não precisará dela, e quando precisasse criaria sua própria ética,
aquela ligada à venda e consumo de produtos industrializados
feitos únicos e exclusivamente para serem comercializados “a
técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à
produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a
lógica da obra e a do sistema social”. (ADORNO, 1947, p. 57).
Para Reali e Antiseri,

A indústria cultural perfidamente realizou o homem como


ser genérico. Cada qual é cada vez mais somente aquilo
pelo qual pode substituir qualquer outro: ser consumível,
apenas exemplar. Ele próprio, como indivíduo, é o
absolutamente substituível, o puro nada (REALI &
ANTISERI, 2006, p. 474).

Segundo esses autores, o sujeito da indústria cultural


também se torna uma espécie de objeto, idêntico, genérico, que
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 93

pode ser substituído por outro sem prejuízo dos demais. É e


despersonalização do sujeito, ao tratá-lo como um mero produto
social, um exemplar substituível das prateleiras da indústria
cultural.
Para Foucault,

Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de


investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes
muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições
ou obrigações. Muitas coisas, entretanto são novas nessas
técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se
trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se
fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo
detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem
folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica —
movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal
sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle:
não, ou não mais, os elementos significativos do
comportamento ou a linguagem do corpo, mas a
economia, a eficácia dos movimentos, sua organização
interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os
sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do
exercício. (FOUCAULT, 1987, p.163-164).

Segundo Foucault, essa ideia de direcionar o corpo para


algo previamente estabelecido não é nova. Assim como se
fabricava um soldado para guerra, potencializando suas energias
para aquilo que se desejava, o corpo e as vontades do sujeito são
planejados pela indústria cultural para o consumo de seus
produtos. Tal assertiva é, em parte, consciente e inconsciente.
Consciente no sentido de que o planejamento do sujeito é feito
por ele e não pela indústria cultural, a questão que se põe é que a
indústria coloca tudo ao dispor desse sujeito, ele não tem a
liberdade de escolher outro produto, e mesmo que o faça, esse
produto pertence à indústria cultural, ou seja, essa organização da
indústria cultural é um tipo de armadilha conceitual, um
emaranhamento de estados de coisas que não permite a liberdade
social do indivíduo. Inconsciente porque o sujeito não tem
94 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

consciência da sua escolha porque ela é manipulada pela indústria.


Nessa questão, os homens seriam meras marionetes nas mãos da
indústria cultural.
Michel Foucault insiste que,

Esses métodos que permitem o controle minucioso das


operações do corpo, que realizam a sujeição constante de
suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-
utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”.
Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo:
nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as
disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e
XVIII fórmulas gerais de dominação. (FOUCAULT,
1987, p.164)

As técnicas e os métodos utilizados pela indústria cultural


tem a função de docilização-utilidade, ou seja, tudo aquilo que se
produz é feito através da docilização do corpo para consumir
seus produtos sem questionar, obediente ao que lhe é posto. As
propagandas, os slogans e todas as estratégias do marketing visam
criar esse indivíduo consumidor, sem que ele mesmo perceba
aquilo que foi posto como mercadoria, quando o mesmo sujeito,
muitas vezes é um tipo de objeto mercatório.
Além das técnicas de adestramento para o consumo de
produtos típicos da indústria cultural, ela cria objetos de desejos e
vontades para que gere nos sujeitos consumidores uma
necessidade, isto é, muitos dos produtos que a indústria cultural
põe a serviço dos sujeitos sociais não são necessários a sua
sobrevivência, fazem parte de um leque de opções supérfluas,
mas que o sujeito deseja ter e experimentar.
De acordo com Adorno,

A fusão atual da cultura e do entretenimento não se realiza


apenas como depravação da cultura, mas igualmente
como espiritualização forçada da diversão. [...] A diversão
se alinha ela própria entre os ideais, ela toma o lugar dos
bens superiores, que ela expulsa inteiramente das massas,
repetindo-os de uma maneira ainda mais estereotipada que
os reclames publicitários pagos por firmas privadas. A
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 95

inferioridade, forma subjetivamente limitada da verdade,


foi sempre mais submissa aos senhores externos do que
ela desconfiava. A indústria cultural transforma-a numa
mentira patente. A única impressão que ela ainda produz é
a de uma lengalenga que as pessoas toleram nos best-sellers
religiosos, nos filmes psicológicos e nos women’s serialst,
como um ingrediente ao mesmo tempo penoso e
agradável, para que possam dominar com maior segurança
na vida real seus próprios impulsos humanos.
(ADORNO, 1969, p. 117).

Para o autor que cunhou o termo “indústria cultural” na


literatura ocidental, a indústria cultural transforma aquilo que é
sério, como a própria cultura dos povos, em um tipo de
mercadoria feita para a depravação. A diversão é um tipo de
entretenimento pago, que os donos da indústria cultural utilizam
para fazer fortuna e vender sonhos perdidos à população. Não
obstante, esse sonho é um tipo de ilusão mercadológica, que faz
com que se pense que aquilo que a indústria vende é real, quando
na verdade é cópia mal feita do produto original.
Acrescente-se a esse tipo de mercado que lucra muito
com a diversão e o entretenimento dos povos, o fato de que tudo
não passa de uma grande mentira, a indústria cultural é essa
mentira que é posta e vendida como verdade, que usando de um
psicologismo social barato, com base nas tragédias e milagres da
população, socializada sob a forma de uma pedagogia barata,
buscando o mais próximo de uma realidade cruel, para a catarse
da vida dos sujeitos sociais. A salvação pela informação mentirosa
e inventada com o objetivo de vender mais, ampliar as margens
de lucros e enriquecer os donos das grandes corporações do
cinema, da música e da televisão, como a Warner Bros, a Som
Livre e a Globo.
De acordo com Reali e Antiseri, a indústria cultural,

[...] é constituída essencialmente pela mídia (cinema,


televisão, rádio, discos, publicidade etc.). É com a mídia
que o poder impõe valores e modelos de comportamento,
cria necessidades e estabelece a linguagem. E esses
valores, necessidades, comportamentos e linguagem são
96 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

uniformes porque devem alcançar a todos; são amorfos,


assépticos; não emancipam, nem estimulam a criatividade;
pelo contrário, bloqueiam-na, porque habituam a receber
passivamente as mensagens. (REALI & ANTISERI, 2006,
p. 474).

Os veículos utilizados pela mídia como a televisão, o


cinema, o rádio, os discos, etc, constituem uma estratégia para
produzir discursos sobre a sociedade, quebrando tabus para ditar
comportamentos, valores e necessidades às quais a sociedade
ainda não precisava, mas que se torna imperativo graças a ação
repetitiva e efetiva dos meios que utilizam. Esses ditos meios,
normalmente são de únicos donos ou grandes corporações
controladas por pequenos grupos que, se uniformizam suas
estratégias mercadológicas para bloquear o processo de crítica e
criatividade do consumidor/sujeito, para que seus produtos
entrem na linha de mercado e sejam comprados e consumidos
sem qualquer tipo de questionamento, ou seja, torna a sociedade
passivamente consumidora do “lixo” que produzem.
De acordo com Coelho,

As formas culturais atravessam as classes sociais com uma


intensidade e uma frequência maiores do que se costuma
pensar. Maiakovski sempre acreditou que o povo podia
ser um consumidor da arte de experimentação
vulgarmente chamada de elite — e acreditou nisso até que
a burocracia stalinista levou-o à morte. (COELHO, 1980,
p. 9).

Para o autor acima, essas formas culturais que estão ao


dispor dos sujeitos, a maneira como elas chegam, seu formato,
suas características peculiares são de uma intensidade
avassaladora para os consumidores do mundo globalizado, haja
vista que os sujeitos têm ou não tem uma relativa consciência
disso, tudo se torna mais fácil para que a indústria cultural
continue a vender e inventar produtos para entreter a vida social.
Para Baudrillard,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 97

O processo acelera e atinge sua extensão máxima com os


meios de comunicação de massa e com a informação. Os
mídia, todos os mídia, e a informação, qualquer informação,
funcionam nos dois sentidos: aparentemente produzem
mais social e neutralizam profundamente as relações
sociais e o próprio social. (BAUDRILLARD, 1985, p. 33).

Para Baudrillard a noção de estado social do homem é


uma ilusão grotesca, porque ao produzir o estado social do
indivíduo, a mídia destrói a própria sociedade, uma vez que ela
faz do social do sujeito o social do mundo geral, criando uma
espécie de pseudo-social da qual o indivíduo pressupõe participar,
pensando este que o consumo e a participação em determinadas
esferas da sociedade o faz um indivíduo socialmente engajado.
Essa sensação de socializado pelos veículos da indústria cultural
neutraliza a própria noção de sociedade e do regime de todos
pelo comum, pois ao propor o indivíduo como social neutraliza a
própria ideia de sociedade.
Segundo, ainda Baudrillard,

As coisas, profundamente, jamais funcionaram de modo


social, mas sim simbolicamente, magicamente,
irracionalmente, etc. O que subentende a fórmula: o
capital é um desafio à sociedade. O que quer dizer que
essa máquina perspectiva, panótica, que esta máquina de
verdade, de nacionalidade, de produtividade que é o
capital, não tem finalidade objetiva, não tem razão: ela é
antes de mais nada uma violência, e esta violência se
exerce pelo social sobre o social, mas na realidade ela não
é uma máquina social, ela despreza o capital e o social em
sua definição ao mesmo tempo solidária e antagônica.
(BAUDRILLARD, 1985, p. 34).

Para este autor, o simbolismo que rege a máquina social, o


exerce de forma coercitiva, ou seja, o indivíduo, na maioria das
vezes age irracionalmente, porque a finalidade principal da
sociedade de consumo não é o indivíduo e sim o capital. A
própria noção de social e sociedade é uma violência contra o
indivíduo, já que a mesma atua de forma antagônica e ao mesmo
98 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

tempo solidária, ou seja, a mesma se apresenta de forma violenta


colocando o sujeito sob a perspectiva do capital, ao passo que ela
é a realidade do sujeito, integrando-o ao seu seio e, tornando-o
parte do corpo social.
Para Adorno,

Quanto mais firmes se tornam as posições da indústria


cultural, mais sumariamente ela pode proceder com as
necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-
as, disciplinando-as e, inclusive suspendendo a diversão:
nenhuma barreira se eleva contra o progresso cultural.
(ADORNO, 1969, p. 118).

Para o autor da Escola de Frankfurt, a indústria cultural


quanto mais ela se adentra ao meio social, como aquela que é
necessária para sanar o que se propõe como necessário e
essencial, ela pode dirigir e disciplinar as necessidades dos
indivíduos ao ditar aquilo que ele deve ou não consumir, bem
como suspender e trocar por outro bem que a mesma indústria
considere boa e oportuna a seus membros, ela é quem dita o que
se deve ou o que não se deve usar, já que sua estrutura e sua
organização social permite que isto seja feito mesmo sem a
permissão do sujeito consumidor.
Na base da indústria cultural encontra-se o ócio. Não
aquele grego ou romano, direito reservado a poucos como uma
dádiva de Deus aos homens abastados. O tempo livre do
trabalhador, que a cultura industrial deixa para que o mesmo
recupere suas energias, fique em casa com a família ou vá à igreja,
deve ser preenchido com atividades de lazer oferecido sob a
forma de “cultura”3, lógico sem aqui querer se discutir a
brevidade ou longevidade do conceito da mesma e sua
abrangência, talvez num próximo texto isso se faça mais útil e
plausível.

3 A palavra cultura aqui citada não será discutida a fundo, visto que não é o principal
objetivo do texto, porém numa oportunidade em que se discutirá a questão da obra de
arte e sua produção em série, a discussão se torne mais plausível.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 99

A visão pessimista de Adorno vem do fato de que, para


ele, diversão e entretenimento são duas formas estropiadas de
alienação da cultura, ou seja, se vende algo inferior como sendo
superior, porque a indústria cultural é uma farsa, uma mentira que
transforma tudo em mercadoria com preço fixado, que se diz de
boa qualidade, quando na verdade se vende o falsificado e a cópia
do original. Tudo que a indústria cultural prega é uma mentira
que causa no sujeito a falsa sensação de verdade sublime, ou seja,
o sujeito consome algo que acredita ser genuinamente original e
de excelente qualidade, quando na verdade é o contrário.
Se tudo que a indústria cultural produz é uma farsa, então
por que isso acontece e ninguém reclama ou pelo menos deixam
de comprar esses produtos? Primeiro que a indústria cultural cria
objetos que representam os desejos de todos os sujeitos; segundo
que esses desejos são planificados, padronizados, fazendo com
que aquilo que eu desejo seja o desejo do seu próximo, tornando
esse objeto de desejo não apenas semelhante, mas também
possível de ser obtido, já que a escala de produção permite o
barateamento dos preços e sua forma de aquisição.
Para Adorno,

O facto de que milhões de pessoas participam dessa


indústria imporia métodos de reprodução que, por sua
vez, tornam inevitável a disseminação de bens
padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O
contraste técnico entre poucos centros de produção e uma
recepção dispersa condicionaria a organização e o
planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado
originariamente das necessidades dos consumidores: eis
por que são aceitos sem resistência. (ADORNO, 1947, p.
57).

A direção da indústria cultural se aproveita do fato de


muitas pessoas desejarem produtos semelhantes e tornar isso uma
imposição aceitável, já que da forma como é posto ninguém
resiste à tentação de participar desse largo e frutífero mercado de
produtos e bens para a diversão. Os centros de controle da
produção participam de uma mesma assembleia, uma vez que a
100 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

padronização desses produtos e bens não difere muito no


formato, tamanho e peso, todos possuem características que lhe
são ao mesmo tempo peculiares e semelhantes aos olhos do
comprador e do freguês, embora todos sejam a mesma coisa,
inclusive do mesmo produtor e fabricante, mudando, muitas
vezes, apenas o endereço.
De acordo com Adorno,

A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo


demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a
falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder
do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu
esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele,
começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer
muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece
quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O
cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como
arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a
utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo
que propositalmente produzem. Eles se definem a si
mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos
rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda
dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.
(ADORNO, 1947, p. 56).

Segundo as ponderações desse autor, a indústria cultural


tende a uniformizar as coisas, tornando-as todas idênticas. Esse
fato, embora óbvio, porque é isso que a indústria deseja que seja,
é uma tática para encobrir a verdadeira verdade sobre o que se
produz dentro das estratégias da indústria cultural. Acredita-se
que há dentro das características de qualquer obra-de-arte algo
dela que seja universal e, portanto podendo ser apreciada por
todo o mundo e, algo particular, local que a faz singular em
relação a sua origem e procedência. A indústria cultural elimina
essa particularidade perigosíssima para sua manutenção, já que a
padronização busca justamente por ao grande público global,
local, universal e particular, com se as coisas fossem sempre as
mesmas e em todo lugar, fato esse que desconsidera in facto, a
eliminação das culturas.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 101

Essa estratégia ideológica trazida pela indústria cultural


busca legitimar aquilo que produzem como sendo mercadoria
autêntica, afastando do consumidor/sujeito a possibilidade crítica
de pensar sobre aquele produto adquirido, fazendo com que a
indústria se perpetue em sua empreitada de continuar a vender
seu lixo social e a criar novas formas e empacotar sua mercadoria
para todas as demandas sociais.

3. O rock nacional de 1980: do punk rock ao new wave


para o rock brasileiro

Definir o que é rock não é coisa fácil. Podemos elaborar


uma série de diferentes perspectivas para descrever o fenômeno
e, no entanto não o entendê-lo assim mesmo. Será um tipo de
música estrangeira que se adaptou a nacionalidade brasileira? Ou
será algum tipo de moda de jovens ociosos que, em um momento
de crise buscaram em um estilo mais agressivo a satisfação e um
norte para suas vidas?
Podemos dizer que o rock nacional que nasce na década
de 1980 não é o fruto direto apenas dessa época, mas o resultado
de uma longa sucessão de fatos que ocorreram desde a exibição
do filme “Semente da violência”, que retratava o rock e toda sua
forma de se manifestar entre os jovens e que iniciou um longo,
dolorosos e difícil caminho para aqueles que adotaram o rock seja
como estilo de vida, seja como a busca de um sonho nos palcos
da vida.
Na década de 1980 é que o rock de fato pode ser
considerado como música nacional. Já se tinha passado um longo
período de experimentação com o rock americano, o progressivo
inglês, o punk rock da década de 1970 por influência do punk
inglês do Sex Pistols e, finalmente, a nova onda, o new wave. Esta
última foi a mais aceita entre os jovens brasileiros e os que não
aceitaram tiveram que se adaptar a ela e/ou adaptar seu estilo a
indústria fonográfica brasileira. Explicamos melhor: depois de
todas as experimentações a partir do final da década de 1970 e
início da década de 1980, restou apenas duas vertentes do rock
que lutavam entre si. Estas duas vertentes se resumem nos
102 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

circuitos de São Paulo e Brasília com a vertente do punk rock e o


Rio de janeiro com a onda new wave.

3.1. O Punk rock, o movimento underground e o new


wave

Impulsionados de um lado pela abertura política iniciada


na década de 1970 e de outro pela falta de mercado onde pudesse
expor sua mercadoria, o punk precisou criar sua própria estrutura
para continuar no país.
Para Mesquita,

A despeito do cenário econômico desfavorável para a


indústria fonográfica e para o circuito mainstream, o
movimento alternativo crescia a todo vapor, com bandas
que surgiam da mutação pós-tropicália e do crescimento
mundial do rock progressivo na década anterior. Além
disso, o cenário político do país encontrava-se em um
estágio de aproximação do fim da ditadura militar – com a
abertura dos portos e aeroportos para produtos
estrangeiros – e a amenização do regime promoveu a
possibilidade de se repaginar a formação cultural musical
na época. (MESQUITA, 1914, p. 14).

Os jovens dessa época, especialmente o eixo São


Paulo/Brasília, experimentavam algo diferente do que ocorria no
Rio de Janeiro. O contexto da época os colocou em contato com
o subgênero do punk rock inglês do Sex Pistols e de outras bandas
que já eram consagradas internacionalmente como Ramones, The
Clash, etc. A influência dessas bandas, direta ou indiretamente foi
bastante grande para criação de um rock nacional, já que o som e a
ideologia dessas novas bandas estavam de acordo com o que se
passava aqui no Brasil relativo à música, a cultura e a política.
O estilo agressivo, o espírito niilista, o anarquismo e a
revolução era a ideologia que movimentava a cena do punk rock
da época. Em seus temas abordavam a guerra, o desemprego, a
violência, o sexo, drogas e diversão. Essa juventude se
autointitulada “geração de consciência”, já que discordavam do
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 103

movimento do rock progressivo que era, segundo a juventude da


época muito elitizado. De fato, o punk rock em sua grande maioria
sairia da periferia e dos bairros mais afastados dos grandes
centros comerciais e industriais, das boas escolas e do lazer
comprado e elitizado.
O “faça você mesmo” “Do it youself”, simbolizou uma
página do movimento punk em que todos faziam as coisas, desde
as roupas até o modo de se comportar, como anarquista, cada um
se vestia ou se comportava de acordo com aquilo que acreditava,
porém possuíam algo em comum, eram contra, ou se
consideravam um antídoto ao rock progressivo. Essa atitude
destruidora de tudo que havia de organizado e sedimentado na
sociedade serviu de base para reelaboração de conceitos, atitudes,
comportamento e grandes mudanças dentro da cultura, da arte e
da música mundial.
No Brasil o punk entrou por São Paulo e Brasília. Foi
influência direta para a formação das primeiras bandas de punk no
país como Aborto Elétrico, Ratos de Porão e Inocentes. Essas
bandas divergiam diretamente do que acontecia no Rio de
Janeiro, uma vez que a indústria fonográfica estava daquele lado
do planeta e estava muito bem com sua Blitz e todas as bandas do
circuito que se apresentavam no Circo Voador.
O que os punks desejavam era um mercado consumidor
onde pudessem vender, tocar e divulgar sua ideologia, algo que já
estava bem avançado como as bandas do Rio de Janeiro. Ora,
algo muito contraditório a ideologia, porém há de se reconhecer
que ninguém vive sem a indústria cultural, desde os mais radicais
até os mais domesticados, todos desejam fazer sucesso, ganhar
dinheiro e “de tabela” dizer o que pensa.
Entretanto, nesse momento do Brasil, o punk criou o
circuito de música, que eram festas alternativas onde a maioria
dos jovens (na sua grande maioria de classe média alta), que
desejavam algo diferente daquilo que estavam habituados a ouvir
e viver. Isso tudo contribui para a identidade nacional do rock e
foi o grande propulsor do movimento underground no Brasil.
Para Rochedo,
104 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Neste período, os grupos punks existentes já tinham


conquistado um público fiel, códigos próprios, letras e
roupas. Nessa época, existiam mais de 20 bandas na
periferia de São Paulo. É a partir desse período que alguns
grupos, como “Inocentes”, “Cólera”, “Ratos de Porão”,
dentre outros, conseguem gravar seus primeiros discos
(ROCHEDO, 2011, p. 29).

Já estava por volta de 1982, muitas bandas como as


citadas acima começam a gravar suas músicas, é o início do som
do rock nacional nas gravadoras, nas rádios e nos palcos
alternativos. É interessante destacar que, os líderes e jovens que
compunham essas bandas eram filhos de militares ou militares
aposentados e, paradoxalmente, por falta de espaço na indústria
cultural do início, essas bandas se apresentam em espaços do
governo, com a “ajudinha” dos pais. Esse momento é de suma
importância porque o punk passou a ser ouvido e divulgado pela
“galera” local e os discos começaram a circular em larga escala.
Segundo Mesquita,

Em paralelo, outro panorama do rock nacional começou a


crescer no berço da MPB. No cenário do Rio de Janeiro, a
corrente da música popular brasileira era ainda o que
dominava a indústria cultural, o que dificultou a
popularização do movimento punk que crescia na capital
paulista. Porém, outra subvertente do rock – a new wave–
ganhou espaço na cidade carioca. Para Rochedo, este
movimento, juntamente com o punk rock, influenciou o
surgimento de bandas brasileiras da nova fase do rock
nacional, denominado “Brock”. (MESQUITA, 1914, p.
15).

Essa cena underground do punk rock do circuito São


Paulo/Brasília de um lado e o movimento do new wave do Rio de
janeiro do outro, que acaba incomodando e diminuindo
consequentemente a grande influência da MPB principalmente no
Rio de Janeiro, onde algumas bandas já estavam bem destacadas
como a Blitz, o Barão Vermelho dentre outros que se
apresentavam constantemente no Disco Voador. A junção disso
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 105

tudo contribuirá para a formação de um rock legitimamente


nacional.
Com o enfraquecimento do regime militar e sua crescente
insuficiência política, e a diminuição da censura, as bandas
podiam deixar de usar metáforas para se comunicar com seu
público para, não apenas falar, mas gritar naquele momento o quê
o país inteiro estava vivendo. O período estava propício. “Era
época de uma liberação política, e a arte que florescia só poderia
ser mais livre, mais forte, mais crítica e audaciosa” (MOTTA,
2001, p. 110). Finalmente o rock já começava a se apresentar
como música brasileira. Seus adeptos: inicialmente jovens da
classe média alta e, posteriormente, o rock vai às massas.
Entretanto isto foi só o bum inicial, faltava agora à sedimentação
do estilo. Agora mais forte do que nunca surgem as grandes
gravadoras e produtoras de cultura, a chamada indústria cultural.
Elas já atuavam no cenário da MPB há anos, mas desde a
implementação do rock que esta se mantinha em alerta sobre o
movimento no país. A indústria cultural busca dinheiro, lucro, o
que não poderia acontecer com o rock antes de se firmar como
música nacional, só agora é que isso era possível, graças aos
esforços das bandas que surgiram na época, que depois de
enfrentarem todo o país conseguiram finalmente um espaço na
mídia.

O rock nacional (brasileiro) e a indústria cultural: a criação


de um público consumidor e o caso da Blitz “Você não
soube me amar”

O rock brasileiro da década de 1980 é também chamado


de rock psicodélico ou como nas palavras de Arthur Dapieve,
“Brock”. O que proporcionou seu surgimento foi um jogo de
forças que operavam no centro da cultura brasileira, com o
surgimento de dois grandes movimentos ligados à música como o
punk rock e o new wave que é uma variação do punk rock, uma
espécie de rock mais afeito às mudanças sociais e a indústria
cultural.
106 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Das muitas teses ligadas ao fenômeno rock and roll, como


música revolucionária que surgiu como uma proposta
reestruturante da sociedade, para tentar modificar
comportamentos e antigos tabus sociais, “o rock and roll como
produtor de significados que desafiam a lógica tradicional de
entendimento do mundo” (BERAS & FEIL, 2015, p. 13); Ou
como um tipo de música comercial voltada para o consumismo
pela juventude de uma época, no caso o rock brasileiro da década
de 1980, a criação de um público consumidor.
A nossa tese defendida aqui está inclinada mais para o rock
como música comercial, destinada a um público específico em
uma dada época da história do rock e da sociedade brasileira.
Iremos adentrar apenas a onda new wave do Rio de Janeiro na
banda brasileira Blitz e uma música dela chamada “Você não
soube me amar”. O que se fará aqui é uma breve análise do
conteúdo da música, sua inserção no mundo da indústria cultural
e sua relação com os elementos característicos da época. Isso,
porém não descarta a possiblidade de outras interpretações.
A Blitz lança “Você não soube me amar” em 1982. É um
compacto com apenas essa música, vendeu mais de cem mil
cópias e, posteriormente lançada vendeu mais de um milhão. Foi
basicamente a canção de colocou muitas bandas de garagem na
mira das gravadoras. O ritmo era simples e a letra bem coloquial.
Essa música foi feita por quatro autores: Zeca Proença
criou o refrão que é o título da música, Evandro Mesquita e o
guitarrista Ricardo Barreto terminaram a letra e Guto Barros
pensou nos riffs de guitarra, a harmonia e os arranjos; estava
pronta a música para gravação.
A letra mostra uma história de amor típica da cena carioca
com surf, praia, etc, de um casal que se conhecem e passam a
viver juntos. A letra mostra uma narrativa com começo, meio e
fim da vida a dois: “No começo tudo era lindo /Era tudo divino
era maravilhoso”. O conectivo “mas” em “Mas de repente a
gente enlouqueceu /Ai eu dizia que era ela /Ela dizia que era eu”,
mostra já o casal em crise apontando para uma possível ruptura
do “casamento”. Tudo isso é intercalado pelo refrão “Você não
soube me amar”, repetido quatro vezes, a cada vez que aparecia.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 107

Como toda música comercial da época, essa música da


Blitz não pecava em nada. A melodia foi feita para ser
rapidamente memorizada, assim a letra e o refrão. Existia
também a forma comportamental irreverente do vocalista
Evandro Mesquita ao cantar com as back vocals que faziam uma
espécie de eco por traz da letra da música dando um ar de
orquestra sinfônica, tornando a música não um ato apenas visto
como atitude, mas como algo planejado.
De acordo com Adorno, a indústria cultural está presente
em todo e qualquer produto cultural e para fazer parte dela, é
necessário se adequar a determinados padrões para ser aceito por
todos e sem muita resistência. A música da Blitz demorou a ser
entendida como música nacional, principalmente porque as
gravadoras não acreditavam muito no rock daquele início, porém
quando esta sentiu que esse tipo de música vendia, a banda Blitz e
muitas outras que produziam esse tipo de música na época,
começaram a ganhar as gravadoras e os programas de auditório
como é o caso da Discoteca do Chacrinha, que já havia lançado
outros nomes do rock como Raul Seixas, por exemplo, o Clube
do Bolinha, outro programa de auditório e a maioria das rádios
do país que começaram a tocar o novo estilo de música feita
comercialmente pra esse fim.
Os programas eram equipados com toda uma parafernália
de coisas para atrair o consumidor/sujeito: mulheres seminuas,
prêmios, brindes, participações de atores, outros estilos de música
como o pessoal da MPB e tudo que fosse preciso para manter
todos conectados com a televisão. Nessa época, surgem os
horários nobres da “telinha”, feitos justamente para colocar
aquilo que estava vendendo mais em momento em que a maioria
dos brasileiros pudesse assistir.
Até o lançamento da Blitz, o rock ainda não era bem visto
no Brasil. As primeiras manifestações desde a Jovem Guarda,
passando por Raul Seixas, Rita Lee e os Mutantes, até o
surgimento do punk rock e o new wave, o público ficava dividido
entre a MPB, a Bossa Nova, e a música de protesto, de resto
ouviam os ícones do rock. O new wave que teve maior aceitação no
Rio de Janeiro e se adaptou muito bem ao clima dos jovens das
108 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

praias de Copacabana tinha um apelo mais comercial, porque era


mais leve que o punk, menos barulhento e mais harmonioso com
muita ênfase nos vocais, algo que era quase impossível com o
punk.
Essa ascensão também só foi permitida porque a ditadura
militar já dava sinais de enfraquecimento, fazendo com que as
censuras sobre as letras das músicas diminuíssem cada vez mais.
Embora a inflação da época fosse muito alta, as gravadoras
investiram muito nesse novo estilo, tornando-o cada vez mais
comercial, acrítico e padronizado, tanto é que a maioria das
bandas da época mudava apenas o nome, mas a temática jovem
da batida dançante era a mesma. Uns poucos se sobressaiam com
algo mais sério, mas sua grande maioria cultivava essa nova onda
do rock embalado ao gosto da televisão, da rádio e do público
jovem.

5. Considerações finais

Diante do que foi exposto até agora, podemos concluir


que, a indústria cultural hoje ainda é mais ativa do que foi
qualquer outro movimento no Brasil e no mundo. Sua forma de
atuar e seus produtos continuam fazendo a cabeça de todos. A
técnica que, nos primórdios de sua invenção se propunha a tornar
o mundo um lugar que todos pudessem ser livres e vivendo a
vida em sua plenitude, ao sair do mundo das trevas do trabalho
manufatureiro, inventando técnicas que facilitassem a vida e
diminuísse o esforço para manipular certas coisas do mundo, na
verdade foi uma grande mentira, pois ao facilitar a vida do
homem, ao diminuir o tempo de esforço e o próprio esforço para
realizar certas atividades, trouxe consigo o adestramento social e a
alienação em massa.
Segundo Adorno, a indústria cultural tende a se
uniformizar e a padronizar tudo que é produzido para a diversão
e o entretenimento, tornando todos que estão a sua volta como
consumidores que não questionam, apenas consomem. Isso é
feito por meio da manipulação dos veículos de comunicação de
massa como o cinema, o rádio e a televisão, que de posse de
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 109

certos tipos produtos culturais, desde o chiclete, passando pelos


filmes até música, todos eles são feitos para o consumo e nada
foge a essa dominação técnica.
Segundo o referido autor citado acima, essa tendência da
indústria cultural é um meio de manter os trabalhadores com suas
mentes ocupadas e conectadas com as atividades da vida do
trabalho e da ideologia dominante, que o fisga até mesmo quando
ele acha que é dono de si e está fazendo aquilo que deseja,
quando na verdade, tudo o que ele faz em termos de
entretenimento já foi planejado para esse fim, ele apenas executa
consumindo aquilo que é para seu ócio. O sujeito simplesmente
não tem saída. Tudo que ele faz ou pensa em fazer, a indústria
cultural tem uma opção para ele. A única liberdade que ele tem é
a de escolha: escolher aquilo que lhe é oferecido, sem o
questionamento de querer outra coisa, senão aquelas que já estão
no leque de produtos culturais ofertados.
O rock nacional (brasileiro) que se produziu na década de
1980, embora seja pertencente a um movimento de ruptura e
protesto (não podemos descartar essa hipótese), a forma
estruturante na qual ele se configurou no Brasil, o tornou um
produto cultural direcionado a um público jovem de classe média
alta que, na ausência de alguma coisa importante para fazer,
montava bandas para passar o tempo. Lógico, não podemos
descartar a grande contribuição do rock para a música brasileira,
porém não podemos esquecer que foi um movimento que só
ganhou força e se tornou robusto e que sobrevive até hoje,
devido à indústria fonográfica brasileira, que viu nesse
movimento uma oportunidade a mais para ganhar dinheiro, ter
lucro e oferecer as massas (isso bem depois!), uma forma menor
de música, que se comparada ao rock americano onde o estilo
nasceu se desenvolveu e foi uma verdadeira revolução.
Por fim, precisamos compreender que, na modernidade a
qual nasce tanto à indústria cultural quanto o rock and roll, ambos
são filhos dos processos de industrialização e dos avanços
tecnológicos da sociedade e, por isso são tão conectados. A
indústria cultural nasce com a industrialização e a produção em
série, o rock nasce com ao aperfeiçoamento da indústria do
110 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

cinema, do disco e dos instrumentos eletrônicos, da guitarra


elétrica, do baixo elétrico e da organização de eventos na cidade,
que é fruto do processo de urbanização. Entretanto, não
podemos desconsiderar a hipótese de que o rock causou muitas
mudanças na mentalidade jovem brasileira ao juntar um som
diferente, distorcido, arranhado, desconcertante com a cultura
brasileira de uma época de repressão, desengano, ausência de
políticas públicas para a maioria da população, em um país
dominado pela falta de perspectivas na área econômica e política,
onde imperava ainda os investimentos das grandes corporações.
Nesse contexto, o rock foi o novo e o revolucionário. Após sua
entrada nos estúdios de gravação, nos palcos da vida e nas turnês
Brasil afora, o rock é um produto cultural como qualquer outro
exposto nas prateleiras de qualquer estabelecimento comercial.

Referências

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Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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de Almeida. Petrópolis: Zahar, 1969.

ADORNO Theodor W. Indústria cultural e sociedade. Petrópolis:


Zahar, 1947.

COELHO, TEIXEIRA. O que é indústria cultural. São Paulo:


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COSTA, Nelson Barros da. A produção do discurso lítero-musical


brasileiro. São Paulo: 2001.

BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim


do social e o surgimento das massas. 4. ed. Trad. Suely Bastos.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
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Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p. 11-35.

DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. 2. ed. Rio de
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de


Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 162-194.

MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias


musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

REALE. G. D. ANTISERI: História da filosofia: de Nietzsche a


Escola de Frankfurt. Vol. 6 Trad. Ivo Storniolo. São Paulo:
Paulus, 2006. (Coleção história da filosofia: 6).

Sites:

https://www.vagalume.com.br/blitz/voce-nao-soube-me-amar.html

Acesso em 30.04.2017

https://www.vagalume.com.br/blitz/voce-nao-soube-me-amar.html

Acesso em 30.04.2017
Capítulo VI
A identidade da mulher nordestina na
letra da música Galera da Rodinha da
banda Aviões do Forró
John de Oliveira Magalhães1
1. Introdução

Se pararmos um instante e observarmos silenciosamente


os sons ao nosso redor, concluiremos que a música é uma parte
importante que integra nosso cotidiano. Quer por nosso som
ligado enquanto alguém lava a casa, ou vizinho que costuma
escutar no volume máximo, alguém que passa de carro com os
vidros fechados e ainda assim sentimos a vibração do som ligado,
ou aquela música que escutamos ao longe que nos faz, sem nem
percebermos, bater o pé ou a mão. Dessa forma, a música é uma
linguagem de comunicação universal, que nos sensibiliza e causa-
nos entretenimento e prazer.
A história da música se entrelaça e se confunde com o
desenvolvimento tecnológico e o surgimento da própria
humanidade. Até nas civilizações mais antigas, temos registro de
vestígios de instrumentos musicais e de danças acompanhadas
por música. Na arte rupestre encontrada em cavernas,
apresentam-se figuras que transmitem a ideia de canto, dança ou
execução de instrumentos musicais. Daí por diante, durante
milhares de anos, a música foi utilizada para rituais religiosos,
rituais fúnebres, cantos heroicos e diversão, quase sempre
executada com a realização de danças com os mais diversos
objetivos, como cultuar deuses ou espantar espíritos.
Contudo, no século XX a música ganha novas formas e
objetivos em todas as partes do mundo. Em especial, por ter

1 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),


especialista em Língua, Linguística e Literatura pela Faculdade Integrada de Patos (FIP),
mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte (UERN). Atualmente, atua como professor de Língua Portuguesa
de Educação Básica III do estado da Paraíba. E-mail: [email protected].
114 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

influência direta na nossa cultura musical, nos Estados Unidos


essa nova forma musical chama mais a nossa atenção. De uma
forma simples e real, da lama do delta do Mississipi, surge o Blues
como um canto pela liberdade, contendo algo de tristeza milenar,
que dará novos contornos a música. Com o passar das décadas,
sua forma triste ganhou novos contornos e passou a receber
outras nomenclaturas como Rock n’ Roll e Country, entre outros,
que chacoalhariam o planeta.
Entretanto, a música no Brasil da década de 1950 a 1970
sofrerá influência desses novos ritmos e seus novos contornos da
música norte americana. Por exemplo, Luiz Gonzaga e seus
companheiros criaram o baião e tiveram como resultado a criação
de uma identidade nordestina e música para o povo nordestino
cantar e dançar, como um canto a saudade da terra nordestina e
amor impossível pela mulher amada. Ao longo das décadas,
foram criados o Forró “Eletrônico” e o “Universitário”, uma
forma muito mais sensual do que a da geração de 1990 poderia
supor. Mais ainda, quanto à mulher, mesmo que amada, sua
identidade assume uma forma muito mais sensual e, por que não
dizermos, erótica. A mulher, que sempre foi um dos principais
inspirações de criação artística. No Forró, não é diferente, ela é
um dos principais motivos e temas impulsionadores de sua
criação.

2. Fundamentação teórica

O termo Análise do Discurso (AD) aparece pela primeira


vez na década de 50 no trabalho de Harris (Discourse Analysis,
1952) sobre a distribuição dos constituintes frasais no texto. O
trabalho de Harris ainda é muito centrado na frase e busca-se,
normalmente, as relações parafrásticas no interior do texto.
A AD que utilizaremos nesse trabalho será a de linha
francesa que conjuga o linguístico e o social, buscando na
linguagem e nas relações sociais os sentidos dos usos da
linguagem em situações reais e concretas. Um dos teóricos iniciais
dessa nova fase é Pêcheux em Para uma análise automática do
discurso, doravante AAD, que é basicamente o estudo das
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 115

condições de produção dos enunciados apoiados em teorias


linguísticas. Mais que um estudo a AAD mostra-se como um
método de análise nas ciências sociais e humanas que pretende
distinguir a AD de outras disciplinas com as quais faz fronteira
com a história, a psicologia, a sociologia, etc.
No entanto, é a partir dos estudos de Foucault que os
estudiosos da AD se apropriam de suas idéias e dispositivos
teóricos, com uma análise mais sistemática da história, do sujeito
e da sociedade, traçando assim novos rumos para a AD.
Para Foucault o discurso é uma prática social que
determina o lugar social dos falantes e das instituições. Cada
falante usa o discurso a partir de um dado lugar social e dele
enuncia formando sua identidade2. Nesse sentido não é o sujeito
dono de seu discurso, este o precede e o determina e ao mesmo
tempo o constitui como sujeito social.
Outra categoria da AD presente nas discussões de
Foucault e outros teóricos dessa disciplina é o enunciado. Este se
configura como um dispositivo que pode ser linguístico ou outro
código de expressão do pensamento capaz de formar objetos.
Difere da frase e da proposição por não ser um elemento preso
ao sistema simbólico linguístico, podendo se estender a imagens,
formas e movimentos3. O enunciado não é frase, pois não
pertence ao sistema lingüístico com suas relações paradigmáticas
e sintagmáticas e seu significado linguístico. Também não é uma
proposição porque não se submete, prioritariamente, aos
conceitos de verdadeiro e falso.
Uma das particularidades fundamentais do enunciado é
ser irrepetível, ou seja, cada enunciado tem apenas um sentido
quando pronunciado e mesmo que se repita a mesma forma, o
sentido não é o mesmo.
Portanto, afirma Foucault:

2O termo identidade aqui se refere ao fato de cada enunciação do sujeito ele se alternar
em identidades diferentes: o pai de família, o empregado, o subordinado político ou
não, o religioso, o ateu, etc.
3Embora isso não tenho sido bem discorridos pelos comentadores da AD, infere-se
que o enunciado possa de estender a outras formas de conhecimento dentro da
medicina, da patologia, do Direito, etc.
116 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

O enunciado aparece como um elemento último,


indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e
capaz de entrar em um jogo de relações com outros
elementos semelhantes a ele; como um ponto sem
superfície mas que pode ser demarcado em planos de
repartição e em formas específicas de grupamentos; como
um grão que aparece na superfície de um tecido de que é
o elemento constituinte; como um átomo do discurso.
(FOUCAULT, 2008, p. 61).

Como “átomo do discurso” o enunciado é uma forma


única de constituir os discursos através de suas superfícies
enunciativas, como elementos semelhantes que se interligam
dentro de um mesmo discurso para a constituição de novos
efeitos de sentido. Nesse sentido o enunciado é um elemento do
discurso que se direciona a um mesmo tipo de discurso para
constituir os objetos. Os objetos são constituídos por feixes de
discursos semelhantes.
Cada objeto se configura em um campo específico do
discurso. Esses campos específicos de aglomeração de
enunciados são as formações discursivas, que são grandes blocos
heterogêneos de discursos que compartilham semelhanças e
diferenças e que constituem um objeto ou mais de uma formação
discursiva. Por exemplo, todos os enunciados que formam a
psicopatologia devem ser referendados dentro desse campo e
pertinente a ele.
A formação discursiva é dos categoria da AD que mais
especifica a questão do discurso e da identidade. Cada campo da
atividade humana se organiza em torno de algum tipo de
discurso, seja ele político, religioso e/ou do direito. Nesse
sentido, cada enunciado possui uma identidade discursiva dentro
do campo enunciativo, ou seja, a identidade de um discurso, seja
ele qual for, será a organização desse discurso em torno de um
dado objeto simbólico.
A AD por se preocupar com o discurso como prática
social dá a história novas formas de explicar os fenômenos que
aconteceram e ainda acontecem. É que a AD vê a história não
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 117

como documento morto e inerte, empoeirado, mas como um


monumento vivo e sempre pronto a novos efeitos de sentido.
Nessa perspectiva, não importa de quando é o arquivo que se
pretende trabalhar, importa saber que esse arquivo guarda um
conjunto de saberes que podem ser observados, descritos e
analisados em diferentes formas, sem que isso comprometa
algum estágio da história.
Nessa conjectura de abordagem da AD vê-se um sujeito
constituído pela linguagem e construtor desta, uma história que
sempre pode ser revista através de outros olhares que não sejam
somente as continuidades históricas, mas que se possa através de
dispositivos temáticos e suas descontinuidades, constituir novos
campos de construção de sentidos e novos objetos a serem
investigados. Assim, no próximo tópico será considerado a
questão da identidade da mulher.

3. A questão da identidade da mulher

Segundo Zigmunt Bauman (BAUMAN, 2005), a


identidade, ou melhor, as identidades elas não são fixas e nem
pretendem ser um mosaico de estereótipos típicos para cada
região ou país. As identidades são móveis e ao mesmo tempo
constitutivas, ou seja, elas são construídas e reconstruídas
constantemente de acordo com movimentos sociais dos sujeitos
em interação pela linguagem e pelo social (se é que se pode
separar o sujeito e o social).
Dessa forma a identidade nordestina tal qual era
defendida por Luis Gonzaga em suas músicas, homem valente,
mulher obediente. Luiz Gonzaga apresentou ao Brasil uma
musicalidade que cantava os costumes da sua terra e assumiu um
papel de destaque no regionalismo brasileiro, ajudando a criar e
difundir estereótipos do Nordeste e seu povo. Suas músicas
traziam imagens arraigadas, representações sobre os papéis
masculinos e femininos, tanto na esfera da família quanto da
sociedade. Dessa forma, o Forró ajudou (e ajuda) a instituir
modelos de masculinidades e feminilidades.
118 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Sobre essas “feminilidades”, ou a identidade da mulher


nas músicas de Luiz Gonzaga (1950-1970) representam a figura
passiva que convive com o homem dominador, sendo
“constantemente mostrada como pacata, recatada, submissa, de
desejos contidos ou reprimidos” (FARIA, 2002, p. 19). Nas letras,
inclusive, nota-se uma diferenciação entre as mulheres de
comportamento tido como socialmente aceitável, vistas como
mulheres “para casar” e “aquelas transgressoras desses valores,
aquelas expostas e disputadas pelos homens, que logo são
identificadas, taxadas de ‘doidas’” (FARIA, 2002, p. 19). Há na
música de Gonzaga uma forte influência da ideologia patriarcal,
na qual, cabe à mulher tão somente dedicar-se ao casamento,
zelando pelo bem-estar do marido, cuidando dos filhos e da casa.
De maneira contrária ao que ocorria no Forró
Tradicional, cujas letras tratavam quase que exclusivamente de
relatos masculinos, as músicas criadas na segunda metade da
década de 1990 são marcadas por um discurso feminino que trata
livremente da sua sexualidade, exprimindo desejos e fantasias.
Esse Forró, o chamado de Forró Eletrônico, retrata um constante
conflito entre homem e mulher, num quadro que fica cada vez
mais nítido a partir dos anos 2000. Criada no ano de 2002 na
cidade de Fortaleza (CE), a banda Aviões do Forró aparece como
uma das que mais se destacam por apresentar letras em que a
figura feminina passa a por em xeque as ideias de passividade e
submissão da mulher, questionando a identidade e a memória
discursiva que foi construída e fortalecida nas décadas anteriores.
Letras de músicas como Galera da rodinha (2015), que será
analisada no próximo tópico, contestam certos comportamentos
historicamente atribuídos à figura feminina. Por meio da
observação de seu discurso, nota-se que, além de estabelecer
relações diretas com o contexto em que foi produzido, esse
discurso faz alusões a outros enunciados pertencentes à mesma
formação discursiva, num nítido exemplo de interdiscursividade,
mostrando a auto-afirmação da mulher na sociedade.
Nesses enunciados em que mulheres falam de maneira a
construir uma imagem de si, pode-se observar que nos discursos
mais recentes do forró chama atenção para a mulher que procura
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 119

se mostrar como independente e segura de si, contrapondo-se ao


homem que erra e assume diversas posturas diante desses erros:
há os que se orgulham de serem “desmantelados” e há os que
tentam se mostrar como arrependidos para obter perdão e
conservar o relacionamento amoroso. Isso leva a mulher que
antes era submissa, dando lugar à outra que já não se conforma
com as atitudes do homem e procura se valorizar, cuidando mais
do corpo e do visual. A identidade da mulher passa a ser
construída com base nos novos moldes, ou valores, apresentado
nas letras das músicas de Forró da atualidade.

4. Análise da música Galera da Rodinha

A música é um gênero discursivo da esfera midiática de


grande divulgação e circulação na internet, na TV e no rádio.
Nesse trabalho, analisa-se a letra ou o texto poético que tem
circulação no campo midiático. Como gênero discursivo, a letra
da música possui uma materialidade em textos poéticos, já que
elas são escritas em versos para uma facilitação do canto. Além
disso, elas são rimadas e a quantidade de sílabas é contada, em
boa parte das músicas. Contudo, nas letras das músicas de Forró,
embora tenha essa materialidade, os versos constituídos de
estrutura rimada, mas, sem nenhuma preocupação rigorosa
teórica e com, na maior parte das letras das músicas, o uso
exageradamente repetitivo tanto no uso de vocábulos como na
batida rítmica para que a música “grude” em nossa cabeça como
um chiclete, sem esquecermo-nos dessa batida e da letra por um
bom tempo. Assim, as letras das músicas são curtas e repetitivas
propositalmente.
A formação discursiva da banda Aviões do Forró é
advinda da resultante mutação do Forró ao longo do tempo. De
acordo com Silva (2003), em meados da década de 1940, o forró
tradicional trazia simbolicamente representado a geografia do
campo, a cultura e o universo rural do homem sertanejo. Já a
partir de 1975 e consolidando-se na década de 1990, o Forró
Universitário é o fruto da junção do Forró Tradicional com os
ritmos do pop e rock, porém, respeitando a tradição, mesmo
120 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

apelando para um público mais jovem, o universitário. Com uma


proposta mais inovadora, a partir do início da década de 1990, o
Forró passou por uma maior transformação por incorporar mais
instrumentos, bailarinas, roupagem mais colorida e elementos de
músicas sertaneja, romântica, brega e até do axé para criar o
Forró Eletrônico.
Nesse ínterim, a banda Aviões do Forró surgiu com uma
proposta inovadora, incorporavam conceitos de outros gêneros
musicais como axé music, música sertaneja e pagode.
Podemos citar como exemplo de uma banda de axé music
É o Tchan! que surgiu na década de 1990, que tinha no seu
repertório diversas letras de músicas de teor erótico e duplo
sentido. O grupo era formado por dois cantores, um dançarino e
duas dançarinas, que costumavam usar roupas muito coloridas,
muito coladas e curtas, que expunham propositalmente o corpo.
Com uma proposta que incorporava todos esses
conceitos de uma banda de axé music, a banda Aviões do Forró foi
formada em 2002, na cidade de Fortaleza CE, sendo notória a
gigantesca influência, desde o ritmo das músicas, a roupa dos
cantores e das dançarinas das bandas, até as letras das músicas,
das bandas do axé music (em especial a banda É o Tchan!) para
com a banda Aviões do Forró.
Na formação discursiva da banda Aviões do Forró, que
chamaremos de Forró Moderno, percebemos a tentativa de
aglutinação do ritmo e valores empregados pelas bandas de axé
music que fizeram sucesso na década de 1990, com o objetivo de
atrair cada vez mais o público jovem, com letras dançantes, com
músicas alegres, um som cheio de arranjos envolventes e
coreografias sensuais insinuantes, porém, extremamente
apelativas com forte teor sexual e duplo sentido, tendo “o intuito
de se desprender de quase todo conservadorismo e
tradicionalismo presente nos meandros do estilo” (OLIVEIRA,
2012).
Diante dessa nova estética do Forró Moderno criado por
bandas como Aviões do Forró, os jovens da região passaram a
rejeitar os modelos regionais de identidade, de seus pais e avós,
de um sentimento de nordestinidade que é associado a um sertão
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 121

rural e sofrido por causa da seca. Segundo Oliveira (2012), “a


música de uma forma geral, consequentemente a popular, tem o
poder de através de seus ouvintes renegociar socialmente o que é
ou não permitido”. Logo, as músicas de Forró da banda Aviões
do Forró têm como temática, bastante forte, a apologia (ao sexo e
ao álcool) e ao machismo de forma preponderante, uma geração
aberta ao novo e ao experimento de prazeres e à banalização
(FARIA, 2002). A mulher é um tema recorrente, mas, de forma
“coisificada” ou é tratada como um objeto ou como uma mulher
que mostra auto-afirmação na sociedade e o homem como
másculo, viril e dominante diante da figura da mulher e/ou
“raparigueiro”, o homem que saí e consegue ficar com todas as
mulheres que quiser.
Porém, o objetivo desse artigo não é fazer uma extensa
análise das várias letras das músicas do Forró Moderno de suas
várias bandas, mas, sim, de uma letra de música da banda Aviões
do Forró: Galera da rodinha.
Galera da rodinha é uma letra de música dançante da banda
Aviões do Forró. Apesar de ser uma faixa do álbum Aviões do
Forró – Promocional de Maio – 2015 lançado em 2015, fez bastante
sucesso no decorrer do mesmo ano, sendo colocada já como uma
música clássica dos 13 anos de sucesso da banda. Apesar de que,
inicialmente a banda prezasse por letras de músicas consideradas
pela crítica musical como de qualidade e com letras interessantes,
porém, depois de anos na estrada, decidiu transitar num campo
das letras de músicas com muito mais duplo sentido e apelo
sexual, como a música Galera da rodinha.
A letra da música Galera da rodinha é dividida em três
estrofes com versos curtos e rimados. Observando-se o arquivo
do Forró Moderno e o projeto da renovação proposto por tal
segmento musical, percebe-se o alto apelo sexual e duplo sentido
presentes, que condensa em si mesma as várias manifestações
musicais, que através de uma síntese que retoma por meio da
interdiscursividade e pela memória discursiva a evolução da letra
da música da década de 1990 e início do século XXI, que
chamamos de Forró Moderno.
122 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Galera da rodinha se inicia com uma locução do vocalista


que diz:

Atenção mulherada!
se seu namorado não ti dá o valor que você merece,
chame sua amiga, vá pra sua casa,
ligue o som do Avião bem alto na caixinha da Bose,
ajeita a maquiagem, ajeita o cabelo,
bota aquela saia, AQUELA SAIA!
E venha mostrar pra que veio,
e vai pra lá que nós vamos ti valorizar no show do Aviões,
vem comigo assim oh!
(AVIÕES DO FORRÓ, 2015, faixa 8).

Nesse enunciado inicial, observa-se que o sujeito autor faz


uma chamada a todas as mulheres que o namorado não dá valor
que ela merece e passa a exprimir algumas sugestões de como dar
o troco a essa falta de valorização. Observamos os primeiros
resquícios da “coisificação” da mulher, pois ela passa a ser
realmente valorizada por colocar em prática algo como que uma
receita que descrita acima. Entre outros elementos descritos nesta
receita, temos “bota aquela saia” que é repetida de forma
imperativa e enfática: “Aquela Saia!”. Não se trata de qualquer
saia, mas uma saia comum as mulheres que costumam frequentar
esse tipo de show, pois ele diz “venha mostrar” e “vai pra lá que
nós vamos ti valorizar no show do Aviões”, como sendo a real
formula ao qual a mulher pode e deve ser valorizada: roupa curta
e “mostrar pra que veio” ou se insinuar com as colegas por meio
de danças provocativas e, de certa forma, eróticas para vários
homens.
A primeira estrofe da letra da música repete os versos, que
é a forma chiclete para que os ouvintes não se esqueçam da letra,
junto com um swing extremamente dançante. Isso descreve algo
comum nos shows do Forró Moderno e remetem à década de
1990 as bandas de axé: rodas de homens observando mulheres
jovens dançando de forma insinuante e provocativa. A primeira
estrofe diz:
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 123

A galera da rodinha
Batendo palminha
Te valorizando
E você indo até o chão.
(AVIÕES DO FORRÓ, 2015, faixa 8).

Grande Sucesso na década de 1990, a banda É o Tchan! já


tinha esse duplo sentido nas letras de suas músicas, sendo suas
músicas executadas de forma que fiquem mulheres no centro,
dentro de uma roda de pessoas, dançando de forma insinuante,
provocativa e até erótica. Uma música de bastante sucesso nesse
período foi a música A dança do bumbum do álbum “Na cabeça e
na cintura” de 1996 da banda É o Tchan!. Em parte, a letra diz:

Conheci uma menina que veio do sul


Pra dançar o tchan e a dança do tchu tchu
Deu em cima, deu em baixo,
na dança do tchaco
E na garrafinha deu uma raladinha
Agora o Gera Samba mostra pra vocês
A dança do bumbum que pegou de uma vez
Bota a mão no joelho
E da uma baixadinha
Vai mexendo gostoso,
Balancando a bundinha
(É O TCHAN!, 1996, faixa 1).

Percebe-se assim um conjunto de regularidades que


determinam uma homogeneidade e fechamento de ideologias
presentes nas músicas acima citadas.
Continuando a análise da primeira estrofe da letra da
música Galera da rodinha, observamos a “coisificação” da mulher,
pois ela passa a ser valorizada por estar “indo até o chão”, ou
seja, uma forma implícita de dizer que a mulher ideal, e que deve
ser valorizada, será aquela que dança e requebra e se insinua para
os homens, no plural com indicativo de que são vários homens
pra quem essa mulher valorizada/ideal deve se expuser,
reforçando algo já dito na locução inicial da letra da música.
A segunda estrofe diz:
124 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Não chora
Ele não merece
Já já tu esquece
Ele é quem vai ficar na pior
Não chora
Ele não é nada
Simplesmente nada
Você é uma linda e bem melhor
(AVIÕES DO FORRÓ, 2015, faixa 8).

Nessa estrofe, por meio da observação de seu discurso,


nota-se uma a tentativa de mostrar uma auto-afirmação da mulher
na sociedade moderna, que já tem inúmeros movimentos com o
objetivo de mostrar que a mulher não pode ser frágil nem aceitar
de forma submissa a dominação masculina. Porém, essa auto-
afirmação descrita nessa segunda estrofe vem atravessando os
discursos de que a mulher é frágil e “chora por qualquer coisa”,
pois ela não deve chorar, mostrando o ponto de vista que a
mulher deve ter da pessoa amada: “ele não é nada, simplesmente
nada”. Enquanto isso, essa mulher moderna é descrita como
“uma” linda e “bem melhor”, ou seja, bem melhor sozinha e não
muito linda para estar sofrendo por quem não merece.
Na terceira estrofe temos:

Vai na frente do espelho


E dar um grau no cabelo
Passa uma maquiagem
Veste a saia curtinha
Simbora hoje a noite é nossa
Bora descer na balada
Fazer uma rodinha
Bora tomar uma rodada
E ficar piradinha
E dança que a noite é uma criança
(AVIÕES DO FORRÓ, 2015, faixa 8).

Na terceira estrofe, podemos observar o retrato da cultura


aberta ao novo, ao experimento dos prazeres e à banalização, que
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 125

deixa de lado o homem (e a mulher) trabalhador e conservador. A


representação da mulher de verdade passa a ser associada a
mulher que gosta de festa e, não somente isso, vai se arruma toda
e “veste a saia curtinha” indicando o objetiva que a mulher deve
ter na noite: ir pra festa “tomar uma rodada e ficar piradinha”.
Temos a presença do consumo excessivo de álcool (“uma
rodada” e “ficar piradinha”) e o envolvimento sexual.
Essa mulher descrita nessa letra deve deixar os valores
conservadores de lado e se debruçar na nova mulher moderna,
aquela que não é feita de boba pelo homem, nem se apaixona,
mas, vive uma vida desregrada e sem compromissos, inclusive os
amorosos.
Em linhas gerais, uma análise da identidade presente no
discurso na letra da música Galera da rodinha da banda Aviões do
Forró chama atenção para a mulher que procura se mostrar como
independente e segura de si, contrapondo-se com a mulher da
tradição anterior (uma mulher dona de casa, responsável, que
cuida de seu marido e filhos) que não querem conservar nem um
relacionamento amoroso.
Em suma, o exposto acima leva ao pensamento que a
mulher que antes era submissa, dando lugar à outra que já não se
conforma com as atitudes do homem e procura se valorizar,
cuidando mais do corpo e do visual. A identidade da mulher
passa a ser construída com base nos novos moldes, ou valores,
apresentado nas letras das músicas do Forró Moderno, como na
música Galera da Rodinha de Aviões do Forró.

5. Considerações finais

Essa pesquisa objetivou a estudar a mulher nas músicas


de forró, e, em especial, a letra da música Galera da Rodinha da
banda Aviões do Forró e como a identidade da mulher
nordestina na letra desta música. Assim, chegamos à conclusão
que essa é uma pesquisa extremamente interessante e relevante,
que pode ser estudado sob várias perspectivas e ainda tem muito
a ser considerado e explorado.
126 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Em nosso estudo, analisamos as “feminilidades” ou a


identidade da mulher na música de Aviões de Forró (Galera da
Rodinha). Com base na letra dessa música, observamos a
identidade de uma mulher vista como objeto, ou a “coisificação”
da mulher, pois a música é composta por uma multiplicidade de
discursos que influenciam diversos grupos e produzem variados
sentidos.
Evidenciando o comportamento da mulher e do homem,
buscamos interpretar a linguagem utilizada na música e das
representações sociais em sua letra, para não ficarmos no campo
das especulações ou “achismos” acerca de sua interpretação. Para
tanto, a metodologia utilizada foi a Análise do Discurso como
técnica, pois:
Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto
um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras
de significar, com homens falando, considerando a produção de
sentidos enquanto parte de suas idas, seja enquanto sujeitos, seja
enquanto membros de uma determinada forma de sociedade
(ORLANDI, 2005, p. 15-16).
Com base nesse pensamento, analisamos na letra da
música assuntos como o uso de bebidas alcoólicas, culto da
forma beleza por parte da mulher, a mulher sendo valoriza só se
ela tiver uma atitude liberal e com auto-afirmação, mulher traída
que são instigadas a trair e ficando subentendido a promiscuidade
sexual.
Assim sendo, concluímos que a identidade da figura
feminina, construída a partir dessa música que é um meio
midiático, tem um processo de legitimação que lhe é conferido,
aos poucos, por todas as classes sócias, gerando uma interação
cultural, onde os sentidos são produzidos. Entre os vários
sentidos, temos essa da figura feminina, pois “as palavras simples
do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que
não sabemos como se constituíram e que, no entanto, significam
em nós e para nós” (ORLANDI, 2005, p. 20).
Sendo a música uma forma de arte que é construída e
modifica com o passar do tempo, entre outros fatores, é inegável
que aconteçam mudanças a condição da identidade da mulher nas
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 127

letras das músicas do Forró Moderno. Portanto, julgamos haver a


necessidade de continuidade da pesquisa e discussões acerca
dessa temática, levando-se em conta outras músicas desse gênero
e as condições sócio-culturais que as contextualizam, pois
analisamos um processo em movimento que produzem inúmeros
sentidos e significações sócias possíveis.

Referências

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Trad. Carlos Albert Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005

MARCONDES, Marcos Antônio. Enciclopédia da Música


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Editora/Itaú Cultural, 1998.

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Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2008.

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MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do


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na era do Forró eletrônico. Universidade do Estado do Rio
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ARAÚJO, Alessandra Oliveira ARAÚJO. Uma análise do
retrato da mulher dentro do forró. Universidade de Fortaleza -
UNIFOR, Fortaleza, CE. 2010.

SITES:

Músicas da banda Aviões do Forró. Música Galera da rodinha.


Disponível em: http://www.vagalume.com.br/avioes-do-
forro/a-galera-da-rodinha.html. Acesso em 28/12/2015 às
23h18min.

Biografa da banda Aviões do Forró. Acessado no dia 28/12/2015 -


http://www.avioesdoforro.com.br/go/#biografia

Músicas da banda É o Tchan. Acessado no dia 06/01/2016


https://letras.mus.br/e-o-tchan/70/.
Capítulo VII
A ética como tarefa
fundamental da educação
Nilo Agostini1
1. Introdução

A formação cultural na contemporaneidade encontra-se


em processo de mudança, acompanhada por um “pensamento
ainda em construção”2. Nesta construção, há quem questione a
ética como referência básica da educação3. Outros, no entanto,
apontam para “um déficit de ética na proporção inversa ao
enfoque cognoscitivo-epistemológico de produção de
conhecimento e habilitação de profissionais especialistas para
atender o mercado”.4 Por isso, não falta quem questione uma
educação apenas voltada para o desenvolvimento de habilidades e
competências para resolver os problemas, mesmo que científicos.
Ademais, são comuns questões como estas: Qual o espaço ou
mesmo a necessidade de se falar de valores? Qual a visão de
mundo que estes supõem? Como pensar educação e ciência numa
sociedade em constante transformação?
Estas primeiras questões nos levam a refletir sobre a
educação como processo de formação humana, buscando
identificar o grau de participação da dimensão ética na natureza
da educação. Apresenta-se um desafio de grande porte quando a
educação chama a si “a responsabilidade por uma formação
eticamente constituída e epistemologicamente em

1 Doutor em Teologia e professor da Universidade São Francisco (USF). E-mail:


[email protected].
2 SEVERINO, Antônio Joaquim. A busca de sentido da formação humana: tarefa da
filosofia da Educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 629, 2006.
3 Cf. ibid., p. 628-629.
4 SANGALLI, Idalgo José. Considerações sobre a ética na educação. In: KUIAVA,
Evaldo A.; PAVIANI, Jayme. Educação, ética e epistemologia. I Congresso
Internacional: Filosofia, Educação e Cultura – 2004. Caxias do Sul: Educs, 2005, p. 191.
130 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

desenvolvimento”5, o que requer uma compreensão de educação


para “além de qualquer processo de qualificação técnica”,
remetendo para a “formação de uma personalidade integral”.6 A
educação ética parece ocupar um lugar central, pois leva à
formação do sujeito ético. Segundo Rodrigues, nisto reside “o
objetivo fundamental da educação”.7
No limiar de uma mudança de época, da modernidade
para a pós-modernidade, tende a se impor o sistema da
racionalidade econômica, sustentador de um modelo de exclusão,
fruto de uma sociedade industrial capitalista. Neste contexto,
ressurge a discussão ética sobre o lugar do ser humano, o uso das
biotecnologias, a ambiguidade da globalização e especialmente o
lugar da educação. Vivemos uma realidade contraditória e em
permanente transformação que, segundo a UNESCO, requer que
se faça do século XXI o século da educação8; porém, uma
educação ética, o que “obriga a escola a passar pelo caminho da
ética”.9
Este texto busca discutir o lugar da ética na educação, sua
abrangência no processo de formação do ser humano, resgatando
a experiência da alteridade, no atual processo civilizatório.
Identifica o sujeito ético, enquanto sujeito na práxis, ou seja, na
ação e reflexão sobre o mundo, capaz de decisão e ruptura,
porque fundado numa liberdade responsável. A mutação cultural
e civilizacional de nossos dias requer uma educação capaz de
formar sujeitos éticos, capazes de uma autorreflexão crítica, no
respeito do outro. Identificamos uma transversalidade ética na
educação, processo que perpassa o currículo e todo o ensino-
aprendizagem, bem como o ser humano na sua integralidade.

5 CARBONARA. Vanderlei. Educação e ciência: sobre a formação científica numa


perspectiva ética. In: KUIAVA, Evaldo A.; PAVIANI, Jayme. Op. cit., p. 173.
6 SEVERINO, Antônio Joaquim. Op. cit., p. 621.
7 RODRIGUES, Neidson. Educação: Da formação humana à construção do sujeito
ético. Educação & Sociedade. Campinas, n. 76, v. 22, p. 232, 2001.
8Cf. AHLERT, Alvori. Reflexões éticas e filosóficas sobre a educação escolar. Revista
Iberoamericana de Educación. Madrid/Buenos Aires, n. 42/6, p. 2, 2007.
Disponível em: http://www.rieoei.org/jano/1950Ahlert.pdf. Acesso em: 08 fev. 2015.
9 Ibid., p. 4.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 131

Informo aos leitores que o presente texto é uma versão,


com algumas modificações, de uma pesquisa discutida e
apresentada nos Anais do III Encuentro de las Ciencias Humanas y
Tecnológicas para la integración en la América Latina y Caribe –
Internacional de Conocimiento: Diálogos em nuestra América, que se
realizou em Goiânia, nos dias 7, 8 e 9 de maio de 2015.

2. A mudança de época

Atualmente, “há consenso quase unânime hoje entre os


analistas da sociedade mundial de que estamos passando por uma
grande mutação cultural e civilizacional”.10 Vivemos uma
mudança de época que carrega consigo uma mudança de
paradigmas, decorrente “de uma nova compreensão da realidade
e significa nova rota ou novo rumo, que orienta a definição de
políticas, que passam a ser perseguidas por métodos, estratégias e
instrumentos”.11 Esta mudança de época repercute na cultura,
afeta as relações humanas, invade campos os mais diversos e
ressoa muito forte no campo da educação. Indecifrável ainda no
seu todo, apresenta-se como um enigma.12 Impulsionados pela
velocidade com que nos movemos e nos comunicamos e pelo
número de informações disponíveis e de domínio público,
participamos de uma nova era, empurrados por novas tecnologias
que avançam de maneira muito rápida. “A pressão para um modo
global de vida faz com que os paradigmas existentes deixem de
responder às demandas da sociedade, exigindo a elaboração de
novos conceitos”.13
Somos herdeiros de uma tradição que nos vem dos gregos
e perpassa o discurso filosófico da Antiguidade e da
10 BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 1994,
p. 11.
11XAVER, Odila Silva. A educação no contexto de mudanças. Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 78, n. 188/189, p. 293, jan./dez., 1997.
12 Cf. NEUTZLING, Inácio. Uma época de mudanças. Uma mudança de época.
Algumas observações. Convergência. n. 409, março, p. 107, 2008.
13ALVES, Antônio Heliton. Pessoa e trabalho num contexto de mudança de
época, à luz da Doutrina Social da Igreja. Dissertação de mestrado. Porto Alegre:
PUCRS, 2009, p. 29.
132 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Medievalidade, ancorada numa educação pensada como formação


ética.14 Trata-se de um empreendimento ético-formativo, sensível
aos valores, com forte sensibilidade axiológica, apostando na
qualidade do humano como pessoa ética. Como nos afirma
Severino, não faltam “alusões às dimensões social, política,
comunitária da existência histórica dos seres humanos”.15 No
entanto, no quadro da cultura greco-latina, a própria política fica
condicionada à ética, que se expressa na prática da virtude que
funda a justiça e lastreia a vida digna da comunidade. O
Cristianismo antigo e medieval, impregnado pela cultura grega,
reforçou esta concepção de educação como formação ética.
Um novo ponto de partida, no entanto, toma corpo com
a emergência da modernidade, a começar pelo humanismo
renascentista (séculos XIV, XV e XVI), através do qual abre-se,
no seio da cultura ocidental, um “processo que se notabilizou por
buscar, sublinhar e favorecer tudo o que aperfeiçoasse o homem
intelectualmente e praticamente. Nele, o indivíduo é visto como
‘valor absoluto’, a natureza como seu ‘reino’, a história como sua
‘criação’ e a arte como expressão de sua ‘superioridade’ sobre os
demais seres da criação”.16 Nos séculos XVI, XVII e XVIII,
vemos tomar forma o espírito da modernidade em suas diferentes
escolas, tais como o empirismo, o iluminismo e o criticismo.
Cria-se um forte movimento que se afasta progressivamente da
concepção greco-latina, para enfatizar o processo histórico, com a
primazia do social, enquanto “elemento explicativo do modo de
existir humano”.17 Na esteira deste novo tempo, a educação
assume as mesmas referências sob uma justificativa política, de
ordenação do social. O intuito passa a ser de formar o cidadão,
criando as condições para a construção de uma cidadania, na qual
ele se integre na cidade dos homens e vá se constituindo o sujeito
pessoal.

14 SEVERINO, Antônio Joaquim. Op. cit., p. 623.


15 Ibid., loc. cit.
16REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. I. São Paulo:
Paulinas, 1990, p 349.
17 SEVERINO, Antônio Joaquim. Op. cit., p. 627.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 133

Na formação cultural da contemporaneidade, instaura-se,


por sua vez, um processo de mudança profundo, num
movimento já de pós-modernidade. Numa crítica à modernidade,
sobretudo pelos “comprometimentos da razão com o poder
opressivo sobre o homem, da hostilidade da razão à vida”18, a
pós-modernidade funda-se numa atitude crítica radical, assim
observada por Rouanet:

Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a ideia


de uma razão soberana, livre de condicionamentos
materiais e psíquicos. Depois de Weber, não há como
ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de
pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja
competência se esgota no ajustamento de meios e fins.
Depois de Adorno, não é possível escamotear o lado
repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial,
de um projeto imemorial de dominação da natureza e
sobre os homens. Depois de Foucault, não é lícito fechar
os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder.
Precisamos de um racionalismo novo, fundado numa
nova razão.19

Tributária da Escola de Frankfurt, identificamos a teoria


crítica, segundo a qual a razão moderna perde a sua legitimidade
por ter se transformado numa razão instrumental, a serviço da
ciência e da tecnologia, numa “hipertrofia do racional puro, que
exorcizou o corpo e desencantou o mundo”.20 Na esteira de
Nietzsche, a teoria crítica, com Adorno à sua frente, resgata a
experiência estética, numa revalozização da corporeidade, agora
como vivência subjetiva.
A educação assume o desafio da pós-modernidade que é
o de garantir a autonomia do sujeito, numa recusa das
metanarrativas, dos dogmas e discursos da racionalidade,
propensos a ceder à tentação da universalidade e da totalidade.

18 Ibid., p. 629.
19ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 12.
20 SEVERINO, Antônio Joaquim. Op. cit., p. 630.
134 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Para isso, requer-se uma “educação dirigida a uma autorreflexão


crítica”.21 Para Adorno, mesmo que o conhecimento guarde seu
papel fundamental na educação, ele não se reduz ao lógico-
formal, mas “corresponde literalmente à capacidade de fazer
experiências”, numa “educação para a experiência”.22 Esta
educação, segundo Severino, terá que assumir um compromisso:

O compromisso da educação é com a desbarbarização, é


transformar-se num processo emancipatório, no qual
ocorra uma luta sistemática pela autonomia, pela
emancipação. E sua única ferramenta é o esclarecimento
que se constitui como a passagem do inconsciente para o
consciente, do não ciente para o ciente, do pseudociente
para o ciente. O esclarecimento ilumina e elimina [...].
Cabe aos processos educativos investir na transformação
da razão instrumental em razão emancipatória.23

3. A formação do sujeito ético e o respeito do outro

Ante os desafios colocados pela pós-modernidade, a


educação tem um lugar central à medida que assume o
compromisso de “encontrar alternativas históricas capazes de
assegurar a emancipação de todos, tornando-os sujeitos da
história”24, capazes de uma autorreflexão crítica e de uma
“autonomia para organizar os modos de existência e a
responsabilidade pela direção de suas ações”.25 Rodrigues
complementa afirmando:

21 MAAR, Wolfang Leo. Educação, sujeição e crítica na perspectiva de Adorno. In:


DALBOSCO, Cláudio. et al. Sobre filosofia e educação: subjetividade-
intersubjetividade na fundamentação da práxis pedagógica. Passo Fundo: UPF, 2004, p.
121.
22ADORNO, Theodor. W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995, p. 151.
23 SEVERINO, Antônio Joaquim. Op. cit., p. 632.
24 Ibid., loc.cit.
25 RODRIGUES, Neidson. Op. cit., p. 232.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 135

Essa característica do ser humano constitui o fundamento


da formação do sujeito ético. Este deve ser o objetivo
fundamental da Educação, ao qual devem ser submetidas
toda e qualquer prática educativa, aí incluídas as
escolares.26

Toda e qualquer prática educativa necessita fundar-se na


ética. O foco é a formação do sujeito ético, no atual momento
histórico. A finalidade é habilitá-lo a circular e atuar “no conjunto
da vida social de forma independente e participativa”27, como
sujeito social autônomo. Para Rodrigues, “a formação ética é uma
necessidade do processo formativo humano, que não pode ser
reduzida a uma simples tarefa de produção, organização e
distribuição de conhecimentos e de habilidades”.28
No entanto, temos que ser perspicazes ante as éticas que,
segundo Almeida, se apresentam apenas como “um jogo de
palavras, de retóricas argumentativas para legitimar o mesmo
poder que oprime, que aliena, que exclui, que mata”29; estas são
éticas omissas, silenciosas e silenciadoras. Lévinas nos lembra de
que a ética, quando aliada ao poder, é uma ética da tirania, do
totalitarismo e da injustiça30. Por isso, no atual pensamento pós-
moderno em construção, “tanto a ética como a política estão
sendo questionadas como referências básicas da educação”.31 É
no interior desta crise que, alicerçados na tese de Freire32,
afirmamos que a tarefa da pedagogia crítica e libertadora passa
pelo resgate da legitimidade do sonho ético-político ante a

26 Ibid., loc.cit.
27 Ibid., p. 251.
28 Ibid., p. 252.
29ALMEIDA, Jorge Miranda de. A educação como ética e a ética como educação em
Kierkegaard e Paulo Freire. Revista da FAEEBA – Educação e
Contemporaneidade. Salvador, v. 22, n. 39, 106, jan./jun., 2013.
30Cf. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade.
Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Ediciones 70, 2000.
31 SEVERINO, Antônio Joaquim. Op. cit., p. 625.
32 Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. Cartas pedagógicas e outros
escritos. São Paulo: UNESP, 2000.
136 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

realidade injusta, na afirmação da dignidade humana. Trombeta,


no verbete alteridade, do Dicionário Paulo Freire, demonstra que

[...] a educação é, em sua essência, um processo ético antes


de ser consciência crítica, engajamento político e ação
transformadora. Ou a educação é ética e respeitosa com a
alteridade do outro em sua singularidade, ou não é
educação. É este respeito à alteridade do outro a exigência
ética de todo o pensamento de Freire. Toda a eticidade da
existência humana se dá no reconhecimento da alteridade,
da sua dignidade de pessoa e na luta por justiça social.
Sem este respeito e reconhecimento do outro não
podemos entrar no diálogo libertador. Seguindo o legado
ético-pedagógico de Freire, podemos concluir dizendo
que o resgate da dignidade do outro, da sua alteridade é
condição primeira para a edificação de um projeto
mundo/sociedade ‘em que seja menos difícil de amar’.33

O processo de humanização implica na relação com o


outro e na responsabilidade pelo outro, mesmo no interior de
situações-limite, como nos afirma Freire.34 Cabe ao ser humano,
ser inacabado e inconcluso, instaurar um diálogo ético e
perseverar na sua consecução. Mergulhado na temporalidade,
como condição humana, toma consciência de que é neste real que
começam todas as possibilidades. É então que ele se abre para um
constante devir. Assume-se como ser livre e responsável, capaz
de decidir, de escolher, de romper, como atos do sujeito que
intervém no mundo. Freire afirma:

Só na história como possibilidade e não como


determinação se percebe e se vive a subjetividade em sua
dialética relação com a objetividade. É percebendo e
vivendo a história como possibilidade que experimento
plenamente a capacidade de comparar, de ajuizar, de
escolher, de decidir, de romper. E é assim que mulheres e

33REDIN, Euclides; STRECK, Danilo; ZITKOSKI, Jaime Jose. Dicionário Paulo


Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 35.
34 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 45ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 137

homens eticizam o mundo, podendo, por outro lado,


tornar-se transgressores da própria ética.35
Enquanto ser histórico, neste tempo de possibilidade, o
ser humano tem na educação um processo importante. Freire
sublinha esta importância, mas adverte de que a educação “tanto
pode estar a serviço da decisão, da transformação do mundo, da
inserção crítica nele, quanto a serviço da imobilização, da
permanência possível das estruturas injustas, da acomodação dos
seres humanos à realidade tida como intocável”.36 Longe das
posturas fatalistas ou de um puro treinamento, a educação
estimula a curiosidade crítica, garante o direito de decidir e
assegura o que Freire nomeia de assunção ética.37 Abre-se, assim,
o caminho para a “façanha da liberdade” que se concretiza na luta
pela “feitura da história”, na “marcha esperançosa dos que sabem
que mudar é possível”.38
Estamos no coração do processo de conscientização. Esta
supõe uma inserção crítica na história e “implica que os homens
assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo”.39
Ou seja, não são meros expectadores da realidade, mas nela
intervêm, atuam, operam, transformam a realidade e a si mesmos,
sendo esta a maneira de existirem. Inserem-se criticamente no
processo histórico. Estes emergem como “seres da práxis”40,
enquanto ela marca “a unidade indissolúvel entre a ação e a
reflexão sobre o mundo”.41

35 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. Op. cit., p. 57


36 Ibid. p. 58.
37 Cf. ibid. p. 59.
38 Ibid. p. 60-61.
39FREIRE, Paulo. Conscientização. Teoria e prática da libertação. Uma introdução
ao pensamento de Paulo Freire. 3ª ed. São Paulo: Centauro, 2008, p. 30.
40 IDEM. Educação e mudança. 30ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 17.
41 IDEM. Conscientização. Op. cit., p. 30.
138 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

4. A transversalidade da ética na educação

Segundo a matriz de pensamento de Freire42, a ética


perpassa a educação, incluindo o currículo e o ensino-
aprendizagem. Existe aí um mesmo campo de forças, numa
relação de pertinências inclusivas, como que por elipses
concêntricas.43 Educação, currículo e ensino “não podem estar
dissociados e são balizados pelos preceitos da ética universal do
ser humano, [...] compreendida no contexto da educação crítico-
libertadora”.44 Por meio de estudos realizados no início da década
de 80 do século XX, Bicudo já afirmava que “a reflexão sobre as
questões éticas que o currículo a ser desenvolvido abrange torna-
se um núcleo vital para a escola”.45
A ética carrega em si uma perspectiva educacional
humanizadora e não condiz com movimentos fragmentados, nem
com práticas individuais e isoladas. Ela está implicada em toda
prática cultural, especialmente no contexto educacional. Trata-se
de uma relação intrínseca, estando presente e fazendo convergir
por imbricação as intenções políticas, as perspectivas estéticas e
as implicações éticas. Tanto as concepções de educação como
aquelas relativas ao currículo e ao ensino-aprendizagem “se
relacionam de forma imbricada e [...] transversalizadas pela ética
crítica”.46
A construção ético-crítica do currículo considera a
dimensão axiológica, valorizando a práxis curricular. Propicia, por
isso, a conscientização que, na compreensão de Freire, desdobra a
capacidade de “agir conscientemente sobre a realidade

42 Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. 45ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
43Cf. SAUL, Ana Maria; SILVA, Antônio Fernando Gouvêa da. Uma leitura a partir da
epistemologia de Paulo Freire: a transversalidade da ética na educação, currículo e
ensino. Revista Cocar. Belém, v. 6, n. 11, p. 8, jan./jul., 2012.
44 Ibid., p. 7.
45BICUDO, M. A. V. Fundamentos éticos da educação. São Paulo: Cortez, 1982, p.
13.
46 SAUL, Ana Maria; SILVA, Antônio Fernando Gouvêa da. Op. cit., p. 8.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 139

objetivada”47, ato que funda a práxis humana, ou seja, “a unidade


indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo”.48
Esta práxis supõe propostas curriculares comprometidas com a
humanização, superando “a dicotomização entre a ética na esfera
individual e a dimensão ético-política da vida social”.49 É um
processo no qual está inserida toda a comunidade escolar. Aqui
está “o ponto de partida para a reflexão e a construção coletiva de
uma consciência crítica capaz de subsidiar os sujeitos na
transformação da realidade que os espolia do direito à vida
digna”.50
Freire tem palavras claras sobre a ética na tarefa docente.
Vejamos o que ele afirma:

Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmos,


professores e professoras, a nossa responsabilidade ética
no exercício de nossa tarefa docente. [...] Educadores e
educandos não podemos, na verdade, escapar à
rigorosidade ética. Mas, é preciso deixar claro que a ética
de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que
se curva obediente aos interesses do lucro. [...] Não falo,
obviamente, desta ética. Falo, pelo contrário, da ética
universal do ser humano. Da ética que condena [...] a
exploração da força de trabalho do ser humano, [...] falsear
a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso,
soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não
cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente. [...]. A
ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação
discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta
ética inseparável da prática educativa, não importa se
trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que
devemos lutar.51

47 FREIRE, Paulo. Conscientização. Op. cit., p. 29.


48 Ibid. p. 30.
49 SAUL, Ana Maria; SILVA, Antônio Fernando Gouvêa da. Op. cit., p. 9.
50 Ibid., loc. cit.
51 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Op. cit., p. 17-18.
140 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Este educador realiza um saber-fazer humanizador e


anuncia práticas educativas alternativas. “A prática é o
acontecimento político por excelência. [...] A prática deve ser o
acontecimento revelador do discurso ético-político, do
compromisso, das intencionalidades”.52 E da prática vai-se ao
discurso e não o contrário. A prática pedagógica não pode parar
em discursos, mesmo que contundentes. Na explanação de Saul
& Silva, “a prática pedagógica, como prática política, pressupõe
um ‘por quê’ se ensina, consubstanciado no ‘para quem’ e ‘para
quê’; tais pressupostos se revelam nas concretudes do sobre ‘o
quê’, do ‘como’ e do ‘com quem’ se faz o processo de ensino-
aprendizagem”.53

5. Ética e formação humana integral

A ética remete sempre para o ser humano. A educação,


por sua vez, nunca se dá fora das sociedades humanas. Ao falar
de ética, Freire é enfático:

Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da


ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da
ética, entre nós, mulheres e homens é uma transgressão. É
por isso que transformar a experiência em puro
treinamento técnico é amesquinhar o que há de
fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu
caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano,
o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à
formação moral do educando. Educar é substantivamente
formar.54

Teixeira, buscando reforçar a instituição escolar pública,


propõe:

52 SAUL, Ana Maria; SILVA, Antônio Fernando Gouvêa da. Op. cit., p. 12.
53 Ibid., loc. cit.
54 FREIRE, Paulo. Op. cit., p. 34-35.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 141

[...] que a escola eduque, forme hábitos, forme atitudes,


cultive aspirações, prepare, realmente, a criança para a sua
civilização – esta civilização tão difícil por ser uma
civilização técnica e industrial e ainda mais difícil e
complexa por estar em mutação permanente.55

Para o educador Anísio Teixeira dever-se-ia dispensar


uma “educação completa”; ele, em sua época, a situava no quadro
desenvolvimentista dos anos 50 do século XX. Segundo estudos
de Coelho, essa formação era “calcada em atividades intelectuais,
artísticas, profissionais, físicas e de saúde, além daquelas de cunho
ético-filosófico (formação de hábitos e atitudes, cultivo de
aspirações)”.56
Para Freire, o ser humano distingue-se por uma
pluralidade de relações, como modo próprio de seu “estar com o
mundo”57; estas são pessoais, impessoais, corpóreas e
incorpóreas, a partir das quais se tece um feixe de relações
homem-mundo-outro-Criador. Se, por um lado, o ser humano
descobre-se inacabado, inconcluso e finito, por outro lado,
somente ele é “capaz de transcender”.58 Tem consciência desta
finitude, “cuja plenitude se acha na ligação com o seu Criador.
Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou
de domesticação, mas sempre de libertação”.59
Formar integralmente o ser humano é, por isso, uma
estratégia fundamental, núcleo irradiador de uma educação
integral. Eis o desafio da atualidade, assim descrito por Tavares:

A educação integral tem que ser compreendida como uma


estratégia de formação integral do ser humano, que coloca
em destaque o papel que tem a educação no seu

55TEIXEIRA, Anísio. Centro Educacional Carneiro Ribeiro. Revista Brasileira de


Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v. 31, n. 73, p. 79, jan./mar., 1959.
56COELHO, Lígia Martha C. da Costa. História(s) da educação integral. Em Aberto,
Brasília, v. 22, n. 80, p. 89, abr., 2009.
57 FREIRE, Paulo. Op. cit., p. 55.
58 Ibid., p. 56.
59 Ibid., loc. cit.
142 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

desenvolvimento integral. Isto é, a educação integral


considera o sujeito em sua condição multidimensional e se
desenvolve a partir desta compreensão. Seu objetivo,
portanto, é o de formar e desenvolver o ser humano de
maneira integral e não apenas propiciar-lhe o acúmulo
informacional.60

Até pouco tempo, era comum captar o ser humano em


partes, separadas, dissociadas. Era como exigir de um trabalhador
que se apresentasse unicamente como profissional e deixasse em
casa seus sentimentos, suas emoções, suas crenças. Esta visão
mecanicista insiste em perdurar nos vários campos da atuação
humana. Hoje, porém, sabemos que esta visão é parcial, incapaz
de captar toda a riqueza do ser humano. O próprio avanço atual
da ciência, segundo Catanante, sinaliza para outra direção:

A ciência mais avançada, a física, mãe da ciência


tradicional, reconhece que a realidade é holográfica. Em
cada parte, na essência, existe o todo e o todo contém
uma fração completa de cada uma das partes. Portanto,
quando uma parte é afetada o todo também é. Se uma
parte está afetada, isso é consequência do desequilíbrio do
todo. Para curar uma parte, portanto – no caso do ser
humano –, é importante analisar a causa, o desequilíbrio
do todo.61

Cultiva-se o ser integral quando a pessoa sabe integrar e


sintetizar seu ser social, emocional, espiritual e racional. Atuar
com todos estes aspectos em equilíbrio significa, para Catanante,
“que agimos com a alma, o coração e a razão totalmente
integrados em nossa vida pessoal, profissional e comunitária”.62

60 TAVARES, Celma. Educação integral, educação contextualizada e educação em


direitos humanos: reflexões sobre seus pontos de intersecção e seus desafios. Acta
Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 31, n. 2, p. 142, 2009.
61CATANANTE, Bene. Gestão do ser integral. Como integrar alma, coração e razão
no trabalho e na vida. 3ª ed. São Paulo: Infinito, 2000, p. 43.
62 Ibid., p. 45.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 143

O ser humano é uno, diz a própria teologia. É “uno em


corpo e alma”, o que aponta para uma “integridade corpóreo-
espiritual”.63 Trata-se de um sentir unitário, no sentido de um
espírito corpóreo ou de um corpo espiritual. Não há dicotomias
ou dualismos, como em vários períodos da história se pôde
verificar. Consequentemente, só pode haver “uma educação que
leve em conta a totalidade da pessoa”64, o que requer uma
formação integradora das dimensões biológicas, psicoafetivas,
sociais e espirituais.
A educação abarca, portanto, o ser humano em todas as
suas dimensões, constituindo-se, segundo Rodrigues, “num
processo integral de formação humana”, incluindo “a formação
do sujeito ético [...], objetivo fundamental da educação”.65

6. Conclusão

Tendemos hoje a retomar a construção da ética que,


segundo Valadier66, integra uma nova disposição social por
valores morais. Esta é, inclusive, uma questão vital, o que faz
Lipovetsky (1994) afirmar que “o século XXI será ético ou não
existirá”.67 Para Morais (1992), temos um desafio na atualidade
que é o de “repor a ética como referência à capacidade humana
de ordenar as relações a favor de uma vida digna”68 (p. 5).
Segundo Agostini, vivemos, em nossos dias, uma revitalização da
exigência ética, assim descrita:

63 DE LA PEÑA. Juan Luis Ruiz. Criação, graça, salvação. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 40.
64AGOSTINI, Nilo. Teologia Moral: O que você precisa viver e saber. 10ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 183.
65 RODRIGUES, Neidson. Op. cit., p. 232.
66VALADIER, Paul. L’anarchie des valeurs. Le relativisme est-il fatal? Paris: Albin
Michel, 1997.
67LIPOVETSKY, Gille. O crepúsculo do dever. A ética indolor dos novos tempos
democráticos. Lisboa: Dom Quixote, 1994, p. 234.
68MORAIS, Regis de. Ética e vida social contemporânea. Tempo e Presença, Rio de
Janeiro, ano 14, n° 263, p. 5, mai./jun. 1992.
144 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Ela está nas primeiras páginas quando a questão é a luta


contra a corrupção, nas comissões de bioética, na gerência
dos negócios em empresas, na presença da mídia, na
gestão da filantropia etc. Verificamos uma real
reivindicação social de mais ética, de parâmetros morais,
de balizas norteadoras fruto de um consenso comum em
termos de valores. Ou seja, é notória a revitalização da
ética. Porém, esta revitalização ocorre sob uma nova
disposição social, numa nova regulamentação social da
ética.69

Na educação, o “déficit de ética”70, já apontado acima, nos


faz constatar que formar bem não se reduz à aquisição de
habilidades e competências, nem na garantia do conhecimento
puramente científico, mesmo importante. O existir humano se
tece por meio de relações interpessoais, de uma aspiração por
viver bem, da busca incansável de um sentido na vida, nos
fazendo entrar num campo da vida “não lógico”. Precisamos
“responder pelo sentido do humano”.71 Nas instituições
educativas, a explicitação dos fins éticos deve perpassar seus fins
prioritários. Consequentemente, a ética é tarefa fundamental da
educação.
Poderíamos nos acomodar e, num processo de
ajustamento, nos contentar em “formar profissionais para o
mercado” e “cidadãos consumidores”.72 No entanto, educar é
formar pessoas conscientes das implicações ético-morais no seu
existir, desenvolvendo sua capacidade de “agir conscientemente
sobre a realidade objetivada”73, numa práxis humana que une ação
e reflexão sobre o mundo, num processo de conscientização. A
educação, toda perpassada pelo processo de conscientização,
liberta a mulher e o homem e promove sua capacidade crítica,

69 AGOSTINI, Nilo. Etica: diálogo e compromisso. São Paulo: FTD, 2010, p. 21.
70 SANGALLI, Idalgo José. Op. cit., p. 191.
71 Ibid., loc. cit.
72 Ibid., p. 194.
73 FREIRE, Paulo. Conscientização. Op. cit., p. 29.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 145

possibilitando a sua humanização como seres que criam, optam e


decidem.

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Capítulo VIII
O mal e o paradoxo ético em Paul Ricoeur
Marcio de Lima Pacheco1
1. Introdução

Versaremos nesse pequeno artigo sobre o mal, mais


precisamente sobre o mal e o paradoxo ético em Paul Ricoeur.
Para tanto, utilizaremos como base a Philosophie de la volonté: 1)
Finitude et Culpabilité 2) La Symbolique du Mal (1960) e o O Conflito
das Interpretações (1969). Um dos temas de que essa obra trata e que
nos servirá imensamente é o problema do mal, não a partir da
investigação clássica da teodiceia, mas a partir do drama humano.
A proposta do autor é fazer um caminho através da liberdade do
homem, apesar do absurdo do mal, indo às raízes mais profundas
através dos símbolos mais primitivos. Ricœur, em suas obras,
conduz sua pesquisa no confronto de perspectivas opostas, para
daí extrair uma gradação racional que é, por assim dizer,
plataforma de desenvolvimento racional que permite o
recolhimento dos elementos de ambas perspectivas para fazer
uma arbitragem entre as múltiplas vias. Em suma, Ricœur vai aos
lugares de interseção e no lugar onde esses não existem, ele
constrói pontes entre os domínios das diversas intepretações2.

1 Doutor em Filosofia/Metafísica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


(PUC-SP), mestre em Filosofia/Metafísica pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR. E-mail:
[email protected].
2“Gostaria de deter-me e examinar a questão inicial posta nas primeiras linhas do ensaio
sobre o lugar – periférico ou central – da intepretação da linguagem religiosa em minha
filosofia [...] Não há dúvida de que a experiência religiosa expressa em histórias,
símbolos e figuras é uma fonte de grande importância de meu gosto pela filosofia.
Reconhecer isso não é para mim uma fonte de embaraço – tanto mais que não creio
que um filósofo possa estar isento de pressupostos. Sempre se filosofa a partir de
alguma parte. Essa afirmação não concerne só ao fato de pertencer a uma tradição
religiosa, mas engloba toda uma rede de referências culturais de um pensador, inclusive
as condições econômicas, sociais e políticas do seu engajamento intelectual [...] o ponto
de partida consiste em pôr uma questão, tida como expressão de um espanto, que
determina uma espécie de campo de gravitação para todas as questões ulteriores [...]. A
escolha da questão, certamente, não é arbitrária. Mas é difícil separar o que a filosofia
deve ao estado do problema quando começa a filosofar e a iniciativa que toma
150 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Em Ricœur, a história do bem é fonte do mistério do


mal. O problema dos grandes mitos é saber dar voz ao ato de
confiança original, pois por mais radical que seja o mal, o mito do
Gênese no diz que, a bondade é ainda mais radical, ou seja, se o
mal é radical, a bondade é original. Quanto à prevalência, na
reflexão, da destinação fundamental à bondade e à justiça, ela
preside o projeto de aperfeiçoamento da espécie humana
(RICOEUR, 2018, p. 18).

2. A problemática do mal

O tema do mal, em Ricœur, é um dos mais relevantes,


pois é através dele que o filósofo francês visa constituir um
acesso concreto à Transcendência e, principalmente, à questão da
esperança (RICOEUR, 2006, p. 93-94). Ao mesmo tempo que
está na origem da sua fenomenologia-hermenêutica (RICOEUR,
1948), o mal faz parte da ontologia humana, ao contrário da
questão do esperar ou desesperar. A meditação sobre o mal em
Philosophie de la Volonté: Finitude et Culpabilité e La Symbolique du
Mal não é somente para desembaraçar duas noções, finitude e
culpabilidade, antes se propõe indicar a problemática concreta
que une a existência humana e a Transcendência em uma
experiência única. Isso se dá pela tentativa que Ricœur faz de
articular o mal e a liberdade em uma relação de reciprocidade que
manifesta a desesperança ética cuja afirmação permanece
inteiramente aberta à Transcendência, graças ao desejo de
justificação, principalmente diante da injustificabilidade do mal.
Antes dessas duas obras, Ricœur em Karl Jaspers et la
Philosophie du Mystère de l´existence (1947) já comentava que o
quadro em que se situa uma filosofia da existência dentro da
filosofia do sujeito a qual ao descrever esse sujeito, recupera o
direito de pleitear as ideias socráticas contra uma ontologia
dramática, a de Pascal contra a de Descartes e a de Kierkegaard
contra Hegel (RICOEUR, 1947, p. 120).

reorganizando o conjunto da problemática em relação a um novo centro” (Resposta a


David Stewart in A Hermenêutica Bíblica, 2006, p. 93-94).
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 151

É interessante notar que em Karl Jaspers mostra que a


filosofia existencial parte da intuição cartesiana do sujeito que
superar o erro de assimilar o sujeito ao objeto, em quanto coisa
(res) perdendo a sua especificidade. Diferente de Jaspers em Kant,
o pensamento não é um objeto, mas uma consciência geral
(KANT, 2001, p. 366).
Depois de Kant, Hegel é o fim da filosofia ocidental
concebida como saber universal, total e sistemático. Uma
construção esplêndida, de um imponente palácio que é
construído, mas não é habitado (RICOEUR, 1947, p. 170).
Ricœur mostra que a filosofia de Jaspers coloca uma
abertura da problemática existência para uma metafisica. Sendo
que o peso principal da metafisica não porta o drama interior da
liberdade que outros, antes de Jaspers, chamaram graça a
predestinação: o esforço principal de Jaspers leva a descoberta de
uma dimensão propriamente metafisica do mundo (RICOEUR,
1947, p. 234-241).
Antes de prosseguimos, é necessário vermos dois
conceitos chaves que Ricœur toma de Jaspers, existência e
transcendência. Existência empírica é configurada para Jaspers,
como Existenz e Dasein. O primeiro termo se refere como ser
possível, o segundo como existência empírica, ou seja, diz
respeito ao homem, ao mundo, aos objetos. Já o termo
transcender está relacionado a ultrapassar o Dasein, isto é,
exceder a orientação do mundo. Em outras palavras, o ato de
estar além dos limites humanos e os transcendem (RICOEUR,
1947, p. 17).
O acesso à Transcendência é fornecido por aquilo que se
pode chamar de “abordagens da justificação” (NABERT, 1970, p.
150), que se refere às condições indispensáveis à cessação do mal.
Conforme Ricœur, pensar corretamente o fim do mal somente é
possível se o mal contingente for pensando em uma totalidade
significante que lhe confira certa necessidade. A esperança, para
Ricœur, é capaz de realizar essa condição. Ela reconcilia duas
interpretações irredutíveis e antagônicas da vida: a visão moral e a
visão trágica do mundo em uma história coerente e não mais em
uma história trágico-lógica do ser, que vai da queda à redenção.
152 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

É interessante notar que para Ricœur, não poderíamos


nos acercar a uma noção de mal apropriada somente por uma
antropologia de caráter filosófico, pois haveria tantas noções do
mal que nos perderíamos entre elas. Nosso filósofo, descrevendo
as estruturas puras do Voluntário e do Involuntário, funda uma
base que permite escapar à ontologização gnóstica do mal,
relacionando a falta como acontecimento, queda, acidente. Ele
mostra as estruturas finitas do homem que permitem se opor ao
peso que o Ocidente teve na concepção de homem e do mal
(RICOEUR, 1950, p. 50).
Examinaremos alguns pontos que consideramos
pertinentes a uma esperança na filosofia de Paul Ricœur. Ele
parte do estudo dos textos bíblicos de feição narrativa, proféticos,
apocalípticos e míticos em que o homem é colocado desnudo
perante a sua finitude. Essa finitude choca-se com o mistério do
mal, encontra a Transcendência e, por fim, gera a esperança.
O primeiro ponto que teremos de abordar é a
problemática do mal, na qual o homem é o espaço da
manifestação do mal. Assim, abordaremos a relação
mal/liberdade (RICOEUR, 1960, p. 15) no esforço de
compreender um pelo outro (RICOEUR, 1960, p. 16).
Partiremos em seguida para o segundo ponto, que é o
paradoxo ético no qual a experiência do pecado remete ao
“retorno” a um arrependimento. Nisso existe uma transição
fenomenológica da mancha para o pecado. Também nesse
momento abordaremos a confissão que oferece uma saída à
emoção e se projeta na culpabilidade, nas noções perante mim e do
perante Deus.
A reflexão anterior nos conduzirá ao um terceiro
momento, no qual abordaremos o desejo de justificação do
homem que procede da experiência do homem de servidão.
Em um quarto momento, tentaremos mostrar como
Ricœur aponta o mal dentro de uma totalidade de sentido.
Teremos de explorar o mito adâmico no sentido que a confissão
dos pecados nos conduz a uma convergência do mito adâmico
com a cristologia.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 153

No quinto momento abordaremos como o mito adâmico


explora o ponto de ruptura entre a ontologia e a história. Ao
homem é atribuída a responsabilidade do mal que ele “começa”
no sentido de uma criação. E no sexto buscaremos mostrar se
existe um deus mau dentro de uma visão trágica da existência.
Através desses momentos encontraremos a esperança a
que Ricœur se refere em seus textos.

2.1. O mal e a liberdade


Ao falarmos sobre o mal, poderíamos supor que Ricœur
faça uma teologia ou algo dogmático em relação a esse tema, mas
o que ele faz é uma fenomenologia-hermenêutica.
A fenomenologia é, por assim dizer, o primeiro segmento
da compreensão filosófica, pois a fenomenologia não pode
realizar o seu programa de constituição sem constitui-se em uma
interpretação da vida do eu. A fenomenologia, não ascende ao
plano da realidade em sua plenitude, não ascende ao mundo da
vida, ao qual a compreensão é o seu objetivo e a sua posição a sua
pressuposição (RICOEUR, 1980, p.59-87).
Entre uma fenomenologia e a hermenêutica existe uma
diferença entre a realidade e a possibilidade. A questão do mal
representa, para a filosofia, um campo injustificável, da
injustificabilidade do mal é a pedra de tropeço, a qual não pode
ser afrontada diretamente, se não se destrói a mesma como um
pseudoconhecimento ou o mal como mal. O único caminho
praticável é o da fenomenologia dos mitos do mal ou uma mítica
do mal, na qual a culpa e o sofrimento venham reconhecidos e
não redutíveis como finitude e negação.
O problema do mal suscita em Ricœur uma questão mais
vasta, uma interpretação filosófica do mito e do símbolo, ou seja,
uma relação entre simbólica do mal e fenomenologia da vontade;
entre eidética e empírica; entre reflexão e mundo. A filosofia não
é um início absoluto, mas uma dúvida, uma interrogação sobre
um saber no qual e a partir do qual essa se interroga e da qual
duvida. Por isso, a filosofia é reflexão. A filosofia de Ricœur, em
especial na Simbólica do Mal, provoca um progresso no
pensamento, fundando uma relação circular que se instaura entre
154 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

fenomenologia e simbólica. De um lado, a criticidade da reflexão


fornece o espaço para o realismo da experiência, pois realça a
possibilidade de aparecer e evidenciar que existe um caráter
simbólico, de ambiguidade irredutível, que pode ser recuperada
pela reflexão. Com a devida análise a reflexão procura justificar o
conhecimento prático, sem ser capaz de se adequar, mas
recuperando o verdadeiro sentido.
De outra maneira, o realismo da experiência enriquece a
reflexão, pois a realidade, em seu mostrar-se, demanda outra
reflexão, ou seja, o mal faz parte de uma evidência não
recuperável e não alcançável da reflexão.
Podemos mesmo dizer que o tema do mal é introduzido
dentro de um plano hermenêutico, através da linguagem escrita
(os textos) que amplificam a sua plenificação. Por um lado, os
símbolos têm sua plurivocidade em contextos amplos, a escala de
um texto; por outro, o conflito das interpretações se mostram de
maneira análoga em textos, e, ao passo que vai do símbolo ao
texto, se restringe a extensão e não tem a mesma intensidade.
Uma dialética desse conflito se desenvolve entre o explicar e o
compreender. A interpretação é a mescla de uma fase de
explicação e outra de compreensão. Explicar é compreender
melhor. A compreensão precede, acompanha e envolve a
compreensão; a explicação desenvolve a compreensão
analiticamente, ou seja, a hermenêutica dos textos sobre o mal
conduz a uma interpretação do sujeito que interpreta e sua
vinculação ao ser, ao fundo ontológico em que se escreve e
daquilo que espera de um ponto de vista escatológico. A
constatação de minha finitude me conduz a notar que a esperança
é o único meio de superar essa finitude. A esperança é a raiz do
consentimento. Mas esse consentimento se faz à luz de uma
liberdade de minha pessoa.
Ricœur nos oferece uma advertência ao nos acercarmos
do problema do mal à luz da liberdade, pois,

[...] tentar compreender o mal à luz da liberdade é uma


decisão arriscada e importante: é decidir-se a entrar no
problema do mal pela porta estreita, considerando o mal
desde o princípio como algo “humano, demasiado
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 155

humano” [...]. Essa decisão não afeta de modo algum a


origem radical do mal, senão a descrição e localização do
ponto em que se manifesta o mal. Ainda no caso de que o
mal estivesse já incrustado na gênese radical das coisas,
sempre será certo que unicamente se nos manifesta pelo
modo como afeta a existência humana (RICOEUR, 1960,
p.14).

Refletir sobre a liberdade é voltar o pensamento para as


condições em que essa se realiza. O ser livre do homem segue o
seu livre agir, ou seja, a liberdade vem ao homem exercida em
todas as expressões de sua vida.
Falar da liberdade significa, assim, abordar o agir
humano, pois uma ação é reconhecida como livre quando ela
pode ser responsável perante outros e diante de si mesmo
(RICOEUR, 1971, p.980). O senso de responsabilidade, que o
homem tem diante de sua ação, revela a liberdade humana, pois
não seria uma ação de que o homem se sente responsável se ele
não fosse livre. A capacidade física e psicológica de que o homem
é dotado é o suporte essencial para a posição dos atos que são
significativos. O homem deve assumir a responsabilidade moral
pelos atos cometidos, que é proporcional ao grau de liberdade
que desfrutava quando os cometeu.
Uma visão ética do mundo, ou seja, “o esforço por
compreender cada vez mais intimamente a liberdade e o mal à luz
recíproca com que se esclarecem mutuamente” (RICOEUR,
1960, p. 14), que pretenda dar conta da presença do mal no
mundo se cruza com a liberdade. Pois, “ uma liberdade que se
faça a cargo do mal tem uma via aberta a uma compreensão de si
mesma excepcionalmente plena de sentido” (RICOEUR, 1988,
p.25). É pela liberdade que o homem é capaz de projetar o futuro
das ações que pretende cumprir. É também pela liberdade que o
homem é capaz de examinar seu passado e rever as ações, mesmo
aquelas que não desejaria colocar, pois denunciam o mau uso que
fez da liberdade. Essa visão ética do mundo encontra limite na
liberdade humana pelo fato de não ser absoluta.
156 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

[Essa] visão ética não somente é certo que a razão do mal


radica na liberdade, senão que, ademais, a confissão do
mal é a condição da consciência da liberdade, já que é
nessa confissão que podemos surpreender a sutil
articulação do passado com o futuro, do si com seus atos,
do não-ser com a ação pura no coração mesmo da
liberdade (RICOEUR, 1960, p. 25).

Nessa liberdade limitada, o homem não é, absolutamente,


responsável pelo mal cometido. Com efeito, o mal entra no
mundo quando o homem o põe, mas o homem somente o põe
na medida que cede ao assédio do Adversário.

Por um lado, o mal entra no mundo tanto quanto o ser


humano o põe, o ser humano só o põe enquanto cede ao
assédio do adversário. Tal estrutura ambivalente do mito
da queda assinala já de per si os limites da visão ética do
mal e do mundo: ao pôr o mal, a liberdade é vítima de
outro” (RICOEUR, 1988, p. 25).

Aí está a limitação da visão ética e do mundo: no colocar


o mal no mundo, a liberdade se torna vítima de outro
(RICOEUR, 1999, p.286). O espaço da manifestação do mal
surge quando há o reconhecimento do mal, quando o aceitamos
livremente. O mal que cometo, dentro de uma análise narrativa
dos textos Bíblicos, provoca um sofrimento, um mal sofrido, uma
punição. Esse mal sofrido pode ter sido praticado consciente,
inconscientemente ou mesmo pelos antepassados. Ou seja, o mal
que comento é uma replicação de outro ou em outro, pode ser
sofrido por outro, de maneira que o homem se torna vítima do
próprio homem.
A visão ética do mundo é limitada, pois não é possível
atribuir todo mal, como raiz, ao homem. Ele ao pôr o mal, a
liberdade se torna vítima de um Outro (RICOEUR, 1960, p.14). O
mal, assim, é um desafio, porque é sempre escandaloso, mostra-se
sempre com uma lógica mais complexa que a que estamos
habituados. Ao mesmo tempo que ele resiste a uma
harmonização conceitual, estimula o pensamento sobre o agir
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 157

humano perante o mal e o sentindo dessa realidade. Por isso é


que o mal é injustificável.
A partir de uma visão ética do mundo que reconhece seu
limite, é possível pensar em uma inteligência da liberdade. Essa
visão ética, mesmo em seu limite, sublinha a estreita relação entre
o mal e a liberdade. O homem tomando sobre si a carga do mal,
por sua responsabilidade, faz com que a liberdade se eleve a uma
compreensão de si cheia de significado.

Desta forma, em uma visão ética, não somente verdadeiro


afirmar que a liberdade seja a razão do mal, mas que a
confissão do mal é a condição da consciência da liberdade,
pois é nessa confissão que podemos entrever a sútil
articulação do passado e do futuro, do eu e dos atos, do
não-ser e da ação pura no coração mesmo da liberdade.
Essa é a grandeza que representa a visão ética do mundo
(RICOEUR, 1960, p.16).

Existe, assim, uma contraposição entre a ética e a


antropologia que somente pode ser resolvida através do problema
do mal.
A visão ética do mal faz da existência da culpa o seu
ponto de partida. Um exemplo clássico é a análise kantiana que
parte da visão de um mundo decaído e do homem dividido em si
mesmo. Ela radicaliza e transfere tal visão a uma antropologia que
falha em encontrar o espaço para colocar-se como diferença.
Segundo Ricœur, a análise kantiana “procede de uma
antropologia pessimista dominada pela teoria do mal radical”
(RICOEUR, 1960, p. 92). Assim, o mal no homem vem radicado
na sensibilidade, separada da razão. Ricœur mostra que Kant não
explora todas as possibilidades originárias do mal, mas dá uma
descrição do homem na perspectiva da paixão e no dualismo
ético (RICOEUR, 1960, p. 86).
No artigo, A liberdade segundo a esperança (1999)¸ Ricœur
faz uma aproximação filosófica da liberdade segundo a esperança.
Ele explora esse tema a partir de Kant e Hegel. A filosofia da
vontade hegeliana tem a capacidade de atravessar todos os níveis
de objetivação, de realização, quando mostra que o movimento
158 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

da moral kantiana é somente um momento reflexivo infinito, um


momento da interioridade na qual surge a subjetividade ética
(RICOEUR, 1999, p.356). Contudo, a grandeza da filosofia
kantiana supera a filosofia hegeliana pela dinâmica dialética. Para
Ricœur, em Kant é que se completa uma aproximação filosófica
da esperança. Na pergunta: que posso esperar? Coloca os postulados
kantianos (RICOEUR, 1999, p.407) de liberdade, imortalidade e
da existência de Deus como momentos de instituição da
totalidade não atuante, mas esperada.

[...] com a questão: “que posso esperar?”. O próprio


“postulado” de Deus não constitui ainda uma religião real;
a religião nasce com a “ representação” do “bom
princípio' num "arquétipo”. E aqui que a cristologia, que o
teólogo considera um espaço próprio de inteligibilidade,
está relacionada, na filosofia da religião, com a vontade. A
questão central da filosofia da religião e está: como e que
uma vontade e afetada, no seu desejo mais íntimo, pela
representação desse modelo, desse arquétipo de
humanidade agradável a Deus, a que o crente chama Filho
de Deus? A questão da religião - e Kant prefigura aqui
Hegel - desenrola-se ao nível de um esquematismo do
desejo da totalidade; ela é, quanto ao essencial, uma
problemática da representação, na sua relação com a
dialética da Razão prática; ela diz respeito a
esquematização do bom princípio num arquétipo
(RICOEUR, 1999, p. 339).

A abertura à esperança se dá a partir do postulado da


liberdade enquanto verdadeiro ponto da doutrina dos postulados.
A liberdade é fundamentalmente, postulada, liberdade afetiva,
uma liberdade que pode ser boa e objetiva. Nesse sentido a
liberdade é pertencida a cada membro da comunidade de modo
que cada um participa. Essa liberdade que é postulada é conforme
a liberdade segunda a esperança que se baseia nos dois outros
postulados: o da imortalidade e o Deus.
O postulado da imortalidade diz respeito a existência
temporal do postulado da liberdade nos termos de uma espera.
Em faça da esperança a liberdade é um equivalente filosófico da
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 159

esperança de ressureição como uma persistência indefinida da


existência. É uma esperança em participar do soberano bem.
O postulado da existência de Deus é resolvido,
escatologicamente, na totalidade do sumo-bem, pois ela é

[...] pertence à ordem dos fins [...] manifesta a liberdade


existencial como o equivalente filosófico do som. Kant
não tem lugar para um conceito de Dom, que é uma
categoria do Sagrado. Mas tem um conceito para a origem
de uma síntese que não está no nosso poder (RICOEUR,
1999, p.411).

Kant, enquanto se move em direção a um horizonte


novo, como um “cristão”, que espera em outro, em Deus. Pois,
“o Deus que se atesta não é, o Deus que é, mas o Deus que vem”
(RICOEUR, 1999, p.395). A palavra Deus,

[...] chama o homem e retira-o da idolatria dele próprio;


ela chama o homem ao seu Eu verdadeiro. Em resumo, o
agir de Deus, mais precisamente o seu agir para nós, no
acontecimento do chamamento e da decisão, é o elemento
não mitológico, a significação não mitológica da
mitologian (RICOEUR, 1999, p. 493).

Esse nosso poder e essa significação não mitológica da


mitologia, nada mais é que a reflexão sobre o mal radical. Ricœur
está convicto de que, ao se acercar do problema do mal pela
liberdade, não faz algo arbitrário, pois parece a via mais ajustada e
apropriada à natureza do problema. De fato, “o espaço da
manifestação do mal só aparece quando ele é reconhecido, e ele
somente é reconhecido à medida que é aceito por uma escolha
deliberada” (RICOEUR, 1960, pp.14-15).
Tanto na Simbólica do Mal e como no Conflito das Interpretações,
Ricœur mostra que não é na introspecção psicológica do sentimento
da falta, mas símbolos e nos textos sacros que nos é oferecido o
ponto de partida a respeito do mal. Esses textos “são os da literatura
penitencial nos quais as comunidades de crentes exprimiram a
declaração do mal” (RICOEUR, 1999, p.415). Eles contêm a
experiência do mal em sua linguagem e, como tal, documentam e
160 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

miram a consciência confessante. Na linguagem simbólica da


confissão, a consciência religiosa aborda uma compreensão de si,
correspondente à compreensão de seus atos dos quais ela se acusa e
que são objetivados nos textos bíblicos. Ricœur se limita àqueles
símbolos e textos que fazem parte da nossa memória cultural.
Os textos têm a capacidade de mediar a consciência de si e o
conhecimento de si, provendo uma apropriação de sentidos. Na
filosofia ricœuriana, têm por função “vencer uma distância, um
afastamento cultural, de tornar o leitor igual a um texto tornado
estranho, e, assim, de incorporar o seu sentido à compreensão
presente que um homem pode ter de si mesmo” (RICOEUR, 1999,
p.06). Dito isso, Ricœur propõe religar a linguagem simbólica à
compreensão de si, pois:

Toda interpretação se propõe a vencer um afastamento, uma


distância, entre a época cultural passada à qual pertence o
texto e o próprio interprete. Ao superar essa distância, ao
tornar-se contemporâneo do texto, o exegeta pode apropriar-
se do sentido: de estranho ele quer torná-lo próprio, isto é,
fazê-lo seu; é o engrandecimento da própria compreensão de
si mesmo que ele persegue através da compreensão do outro
(RICOEUR, 1999, p. 18).

Ricœur assinala que as explicações dadas não lançam o


homem para fora de si e, muito menos satisfazem. A linguagem da
razão é limitada e derivada, por isso, defende que as linguagens mais
arcaicas possam nos dar uma resposta à questão do mal e da
liberdade. Por isso, a filosofia deve seguir o caminho pelas
expressões menos elaboradas, mais balbuciantes da confissão do
mal. “Uma fenomenologia da confissão é, pois, a descrição das
significações, e das intenções significadas, presente numa certa atividade
de linguagem: a confissão” (RICOEUR, 1999, p. 416).
Confessar o mal é ligar o homem, não somente com seu
lugar de manifestação, mas também como seu autor. A confissão da
falta é, ao mesmo tempo, descoberta da liberdade. Assim, a
confissão implica, fundamentalmente, uma visão ética de mundo
pela qual se compreende um pelo outro, a liberdade e o mal
(RICOEUR, 1999, p. 17).
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 161

2.2. O despertar ético a partir do símbolo da mancha

A mancha é o símbolo mais primitivo e obscuro, pois


marca a concepção mágica da entrada do mal no mundo. Nela
predomina a dimensão objetiva do impuro. É, também, o mais
elementar e rico símbolo na linguagem da confissão já que diz
tudo em enigma o que a filosofia jamais poderia dizer em razão, à
luz natural. A mancha não só tem início com um significado
físico. Ela pode ter um significado simbólico, ou seja, ela é a
valência ética do temor e da justa punição, concebida como
reconstrução e a capacidade de elevar-se ulteriormente a uma
ordem hiper-ética, na qual o temor se identifica com o amor
(RICOEUR, 2013, p. 61). Essa equivalência simbólica da mancha
não é uma imputação de um agente pessoal, mas uma violação
objetiva de um interdito que mistura falta e mancha (RICOEUR,
2013, p. 41-61). Assim, a mancha é o esquema primeiro do mal
(RICOEUR, 2013, p. 61-62).
A consciência da mancha é indireta. A mancha é um mal
diagnosticado. Esse mal é reconhecido a partir da desgraça pela
qual o homem é afligido e que, no sistema de puro e impuro,
recebe uma punição por causa da ofensa a um deus, infração à
justiça que devemos às outras pessoas. Ser punido é sofrer, sofrer
uma pena proporcional à falta. A punição suscita “uma esperança
de que o próprio temor desapareça da vida da
consciência"(RICOEUR, 2013, p. 205). A abolição do temor da
punição somente é compreendida com o alcance de uma
consciência ética que vai do medo à esperança da salvação. A
esperança pela salvação não é uma ilusão, mas um anseio que
desemboca na confissão do mal.
A transgressão de uma “lei divina” dispara
automaticamente um gatilho: o homem se declara culpável
independente da consciência de seus atos e de suas intenções. É
culpável objetivamente em razão de uma violação involuntária
(RICOEUR, 1999, p.281), que sobrevém de um lugar puramente
hipotético. O mal sofrido é suficiente para estabelecer a culpa da
pessoa pelo qual é afligido. Entre o mal e a desgraça existe uma
relação de causalidade, equivalente. O mal psíquico é sintoma do
162 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

mal moral. A ordem psíquica constitui a medida da ordem moral,


pois a ética determina e condiciona o nosso ser psíquico.
A relação de equivalência é um estado da consciência no
qual o mal e a desgraça “não aparecem dissociados, em que a
ordem ética do fazer mal [mal-faire] não se discerne da ordem
cósmica e biológica do mal-estar [mal-être]: sofrimento, doença
morte, insucesso” (RICOEUR, 2013, p. 43). Desta forma, o ser
moral desenvolve psiquicamente seus efeitos.
A mancha é “uma coisa qualquer que infecta por
contato” (RICOEUR, 2013, p. 43), independentemente de toda
intenção subjetiva e que “opera como uma força no campo de
nossa existência, que é inextricavelmente psíquica e corporal”
(RICOEUR, 2013, p. 42). Ela é uma “substância”, algo que
infecta nosso ser psíquico e corporal. Assim, o mal da mancha, que
provém da mancha, tem uma positividade que não resulta do
querer humano, pois existe independentemente de todo ato do
sujeito. O homem descobre sua existência através das penas a que
é submetido. O mal sofrido conduz o homem a se acusar de um
mal cometido, que muitas vezes é inconsciente. Ao acusar-se
desse mal cometido, o homem confessa, expressa, por suas
emoções, o que está em seu interior, esperando de alguma
maneira que seja perdoado. Esperando, por assim dizer, um
evento futuro que o possa remir. O homem, ao confessar o mal
cometido, mostra que a sua “linguagem é a luz da emoção,
através da confissão a consciência de culpa é trazida à luz da
palavra; através da confissão o homem continua a ser palavra
mesmo na experiência do seu absurdo, do seu sofrimento, da sua
angústia” (RICOEUR, 2013, p. 24). Isso mostra que o mal afeta,
seja ele sofrido ou cometido, a existência humana.
O mal da mancha sinaliza o despertar da consciência e a
responsabilidade pessoal que inaugura o momento da confissão
de uma falta pessoal, causa presumida de toda desgraça sofrida.
É pelo sofrimento que a mancha educa a consciência para
liberdade. A consciência da mancha é uma “consciência
terrorista”, que causa uma violência psicológica no indivíduo. Ela
vive com medo do castigo do interdito. O transgressor é
submetido a uma punição automática e inescrutável destinada a
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 163

“satisfazer” a ordem violada. Desencadeada pela cólera, pelo


extrapolamento da interdição, a mancha vinga a ordem rompida e
expia a ofensa.
Para Ricœur, o mal pelo sofrimento, considerado como
uma expiação, enche-se de uma significação ética: “Este mal de
sofrimento [mal-pâtir] relaciona-se com o mal da ação [mal-agir] tal
como a punição procede inevitavelmente da mancha”
(RICOEUR, 2013, p. 47). O sofrimento convida o homem a
buscar, na sua conduta “moral”, a razão de seu mal-estar. Sob o
regime da mancha, o homem é acusado e responsável pela sua
desgraça no mundo (RICOEUR, 2013, p. 47).
Para Ricœur, essa acusação desperta a consciência para a
responsabilidade. Ela está em relação a uma palavra definida e
dentro de um ambiente humano, que determina o que sejam
ações puras e impuras. Essa palavra serve de instrumento para
sair de uma consciência suja. A consciência, esmagada pelo
interdito e pelo sofrimento, se interroga sobre a falta-culpável em
referência ao repertório de ações socialmente classificadas como
impuras (RICOEUR, 1977, p. 207-236).
A punição justa não abarca tudo o que possa estar
implícito na angústia do manchado. Ao existir, a exigência de que
o homem sofra de forma justa, para Ricœur, “nós esperamos que
essa tristeza tenha não só uma medida, mas um sentido, isto é,
um fim” (RICOEUR, 2013, p. 59). Nota-se que a vingança contra
a violação de certa ordem não é destinada a destruir a culpa, mas
a reabilitar a ordem violada. Dentro do regime da mancha, o
impuro e o puro recuperam a divisão entre o sagrado e o
profano. O sagrado revela o castigo, não somente como negação,
mas como afirmação da integridade original através do emendar-
se do culpado.
Aquele que crê nesse regime da mancha vive sob a
ameaça do castigo, passa, dessa forma, de uma consciência da
mancha a uma moralidade. O homem antecipa a punição
tomando consciência das consequências de seus atos e se prepara
para assumir o castigo como justa punição de uma violação. Esse
assumir a punição reduz a culpa e obtém a restauração da ordem
do mundo e de si mesmo.
164 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

No processo da mancha, o homem ignora a distinção


entre o voluntário e o involuntário. O homem não está diante de
uma figura pessoal que responde a suas violações, mas diante de
um fundo obscuro e sem face que constitui a ameaça perpétua de
sua existência e que assume a salvaguarda da ordem do mundo.
Através dos interditos, o indivíduo é convidado a
reencontrar a existência de uma ordem que não quer e que
procede de um lugar que já está reservado para seu destino. Esta
ordem define cada um dos limites que não podem ser transpostos
impunemente.
A observância de tabus requer mais que observância. Ela
requer que se mantenha o espírito em um estado de vigilância
constante, mas também de terror, pois a possiblidade de que a
falta não seja eliminada é algo potencial, não por causa das somas
dos pecados, mas porque a consciência está “vergada diante da
fatalidade do sofrimento vingador” (RICOEUR, 2013, p. 59).
Na confissão se manifesta uma liberdade que ascende à
consciência de imputabilidade de seus atos. Essa imputabilidade é
uma pura objetividade, pois, não se refere à qualificação moral
dos atos, nem à intenção subjetiva do autor. Pode-se dizer que ela
somente constata a transgressão do interdito e o que a constitui é
simplesmente a objetividade da transgressão. O sujeito que se
imputa é mais um portador de uma sanção do que o autor do
mal.
O homem, quando se atribui autor do mal, reconhece e
assume as consequências de seus atos. A lei da retribuição
desenvolve uma justiça punitiva que estabelece uma relação entre
o crime e o castigo. É interessante notar que, para a justiça a
consciência do castigo precede a do crime. A consciência de ser
autor do ato mal segue a consciência de ser sujeito da sanção. Ao
aceitar o sofrimento, como uma pena que já o expia dos atos
praticados, o homem se confessa culpado e responsável pelo mal.
Essa responsabilidade mostra que o homem adere
completamente à lei da retribuição sem perguntar se sua aplicação
é justa, ou seja, se ele rigorosamente é punido e se corretamente
se acusa. Se à imputação da sanção revela a responsabilidade
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 165

humana, o resto é a consciência da mancha que estabelece a


medida desta responsabilidade no mal sofrido ou praticado.
A composição indissociável entre o mal do sofrimento e o
mal da ação esboça a distinção física e ética em relação ao
sofrimento e a imputação da falta, que não tem o poder da
violência punitiva. O mal físico não emana organicamente do mal
moral, mas precede o núcleo que ultrapassa a consciência em sua
qualidade de garantir a ordem do universo.
Nessa situação, cabem algumas interrogações: o homem é
punido justamente? O sofrimento é equivalente aos atos
cometidos? Em razão dessas dúvidas, a instância da mancha dá
início à existência ética. Ela suscita, por assim dizer, um
pensamento interrogativo em relação aos atos praticados e, ainda,
conserva a possibilidade de alcançar o movimento de reportar os
atos aos motivos desses atos entrando, assim em uma existência
verdadeiramente moral.

3. O paradoxo ético
Enquanto a mancha é ligada a algo que infecta, que afeta
direta ou indiretamente o corpo, o pecado é associado a uma
atitude contra Deus, assim, a consciência atinge o nível ético da
falta. A palavra pecado no Antigo Testamento se organiza ao
redor da imagem central do desvio de conduta. É o inverso do
simbolismo da mancha que contamina por contato.
A transição fenomenológica da mancha para o pecado se
realiza graças à personalização do Sagrado pela qual o pecado é
nos dada quando o símbolo da mancha é dominado pelo de
‘amarra’ que ainda é um símbolo de exterioridade, mas que
exprime mais a ocupação, a possessão e a escravidão que o
contágio e a contaminação: Que o mal e o mal que está no meu
corpo, que está nos meus músculos e nos meus tendões
desapareça hoje, suplica o penitente; no entanto, ao mesmo em
que o esquema da mancha se incorpora no da possessão, as
noções de transgressão e de iniquidade são acrescentadas.

É já na relação pessoal com um deus que determina o


espaço espiritual no qual o pecado se distingue da
166 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

mancha; o penitente experimenta o ataque dos demônios


como sendo a contrapartida do afastamento do deus o
penitente toma consciência do seu pecado enquanto
dimensão da sua existência e já não como uma simples
realidade que o assombra” (RICOEUR, 2013, p. 64).

Essa transição também se dá na relação “pessoal com um


deus que determina o espaço espiritual no qual o pecado se
distingue da mancha” (RICOEUR, 2013, p. 64). O homem toma
consciência do mal como uma dimensão e de sua existência e não
mais como uma realidade exterior que o assalta. O pecado é uma
grandeza religiosa determinada pela categoria do perante Deus
(RICOEUR, 2013, p. 66).
Essa categoria do perante Deus tem presente a relação entre
um Deus e seu povo: de um lado, encontra-se o amor de Deus,
que se comunica, chama, doa-se totalmente, escolhe e faz aliança;
de outro lado, encontra-se o afastamento do ser humano, que
foge, desconfia, revolta-se, rompe e despreza, estabelecendo-se
como rival (RICOEUR, 2013, p. 65).
Entre o homem e Deus, a aliança suscita uma relação de
apetecimento mútuo. O homem está implicado na iniciativa de
Deus. Iniciativa essa que é um prévio de um encontro e diálogo,
mas que parece um silêncio de Deus ao homem. Esse encontro e
diálogo possui uma característica ontológica e existencial prévia à
compreensão moral e especulativa da aliança: “é no seio dessa
interação entre vocação e invocação que se desenrola toda a
experiência do pecado” (RICOEUR, 2013, p. 68).
Ricœur reconhece que é na experiência judaica do pecado
que se conhece a tensão constitutiva da ética da aliança. De um
lado está o amor de Deus que chama seu povo para santidade e
faz uma aliança; de outro o afastamento do ser humano que
rompe com Deus e estabelece-se como rival. Em um sentido
escatológico esse afastamento condena o homem à morte. Sob o
impulso profético, a aliança produz uma ética essencialmente
caracterizada pela dialética da exigência ilimitada e de um
imperativo limitado (ELLUL, 1946, p. 79). O chamado e o
pedido interminável à santidade, que o Santo por excelência
endereça ao homem, constituem os termos do agir moral,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 167

suscitando no homem uma exigência infinita de perfeição e de


justiça que a transforma em prescrição detalhada da lei e confere
um dinamismo desconhecido à ética da simples observância da
lei.
O magistério profético propõe um ideal de perfeição e de
justiça que visa à realização da pessoa humana em sua totalidade,
além dos atos isolados prescritos pela lei.

A consciência do pecado reflete essa tensão: por um lado,


ela aprofunda-se, para lá das faltas, num mal radical que
afeta a disposição indivisível do ‘coração’; por outro, ela se
dispersa em múltiplas infrações denunciadas por um
determinado mandamento (RICOEUR, 2013, p. 75).

Compreender a experiência do pecado é compreender esse ritmo


do profetismo e do legalismo (simples observância da lei) no
íntimo da aliança e manter viva a sua unidade.
Para manter viva sua unidade existe, assim, uma tensão
entre a consciência absoluta, mas informe, e, por outro lado, a lei
finita que esfarela a exigência, pois para o homem não se é justo,
nem se é culpado completamente. Ele é justo ou culpado
conforme determinações concretas. Ricœur nos mostra que “a lei
é um ‘pedagogo’ que ajuda o penitente a determinar o seu modo
de ser pecador” (RICOEUR, 2013, p. 76). Assim, ideal de
perfeição e de justiça vai além dos atos singulares, o pecado deve
ser remetido para muito além de enumeração de faltas, pois o
ritmo da exigência indeterminada e dos mandamentos
determinam a revelação interiormente radical do pecado como
seu contrário, a obediência do seu coração.
Enquanto a mancha é ligada a um contágio, o pecado é
associado a uma aversão a Deus ou a um ir contra Deus. Essa
concepção de pecado à categoria do perante Deus na qual existe
uma ideia de relação destruída mantém-se implícita, de um
afastamento de Deus (RICOEUR, 2013, p. 86-100).
O pecado se opõe à fé. Essa oposição é marcada nos
textos bíblicos por uma relação ferida do pecador para com Deus
(FAUS GONZÁLEZ, J. I., 1987; ALSZEGHY, Z. e FLICK, M.,
1972; GUILLUY, J., 1975). O simbolismo do pecado exprime,
168 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

fundamentalmente, a ruptura de uma relação, “a perda de um


vínculo, de uma raiz, de um solo ontológico” (RICOEUR, 203, p.
87). A imagem principal do desvio em relação à linha reta, o
extravio da viagem, ao não transpor, constantemente, concorre
para uma ação anormal. Mas essa ação é interpretada com uma
desobediência, ela é colocada como uma intenção malvada do
homem que toma a iniciativa de opor-se a Deus. A oposição do
querer humano à vontade divina situa a origem da ruptura do
diálogo e da situação consequente do desvio e da perdição na
qual o homem se encontra depois da queda. Assim Ricœur nota
que “a ruptura do diálogo, transformada numa situação, faz do
homem um ser estrangeiro ao seu lugar ontológico” (RICOEUR,
2013, p. 89).
O homem é responsável pelo pecado. Ele se rebela e
rompe a sua relação com Deus. Essa iniciativa cria uma existência
que se afasta de Deus e é alienante. O pecado quebra o pacto
entre Deus e o homem, ele não é uma substância, mas um nada,
uma negação do que deveria ser: “é certo que a cultura que não
criou a ideia de ser também não tem um conceito de nada; mas
pode ter um simbolismo da negatividade: através da falha, do
desvio, da rebelião, do extravio” (RICOEUR, 2013, p. 90).
A negatividade do pecado é marcada, na Bíblia, pelas
imagens do sopro e do ídolo (RICOEUR, 2013, p. 93). A
existência pecadora é como o sopro passageiro; ela é vã, pois é
incapaz de salvar aqueles que recorrem aos seus ídolos: “A
imagem existencial do ‘vão’ vem fundir-se com a imagem do
‘ídolo’ que precede uma reflexão teológica mais elaborada sobre
os falsos deuses [...] ‘os deuses pagãos não valem nada’”
(RICOEUR, 2013, p. 91). Nada é a definição do homem que se
fia nos ídolos. Essa vaidade dos ídolos descobre o vazio e o não-
sentido dessa existência livre pelo absurdo que se revela no
abandono do homem por Deus.

O esquema do ‘nada’ do ídolo e do idólatra é a réplica, do


lado do homem, do esquema da ‘Cólera de Deus’ (...) o
homem abandonado é a manifestação de Deus na
qualidade de Aquele que abandona. O esquecimento de
Deus pelo homem reflete-se no esquecimento do homem
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 169

por Deus; assim Deus já não é o ‘Sim’ da palavra que


disse, e assim aconteceu; ele é o ’Não’ que suprime o
malvado, os seus ídolos e toda a sua vaidade [...] talvez o
próprio ‘ Não’ da interdição, no mito da queda seja uma
projeção na esfera da inocência de uma negação emanada
do próprio pecado; talvez que toda a ordem da criação [...]
seja suportada pela afirmação das oposições e de uma
desproporção original: ‘Que assim seja’”
(RICOEUR,2013, p. 93).

A experiência do ser abandonado a si mesmo pode


conduzir o pecador a negar Deus ou a aderir ao seu plano de
salvação. O profeta prega o retorno a Deus. Esse retornar está
presente em forma de arrependimento. Na dureza da sua
disposição, o homem pode retornar de sua vida malvada e
reintegrar-se na relação primitiva de Aliança com Deus. O profeta
parece lembrar que o homem tem a capacidade de operar
inteiramente e, por si mesmo, esse retorno que reconcilia com
Deus. Da mesma forma que tem a iniciativa de quebrar a Aliança,
tem a iniciativa de restaurá-la. A liberdade que o pecado conserva
em seu poder não é somente de fazer o mal, mas de desfazer o
seu voto a Deus.
Uma visão ética do mal permite confirmar a
responsabilidade total do homem pela existência do mal. Ela
orienta em direção que a concepção do mal é uma realidade que
depende inteiramente da liberdade, tanto para sua entrada, como
pelo seu desaparecimento do mundo. Mas ela não dá conta
inteiramente da experiência judaica do pecado.
O fiel, que é exortado pelo profeta a retornar, implora o
retorno pedindo perdão, pois, é na totalidade do perdão-retorno
que temos a restauração da Aliança e do sentido total do pecado
graças ao paradoxo que ele contém, visto que, “o profeta não
hesita em exortar ao ‘retorno’, como se este dependesse
inteiramente do homem, e a implorar pelo ‘retorno’ como se ele
dependesse totalmente de Deus” (RICOEUR, 2013, p. 97).
Em vista disso, o aspecto da experiência do pecado nos
remete ao paradoxo do “retorno”, pois “a Aliança é o símbolo de
uma relação quase personalista, o símbolo fundamental do
170 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

pecado exprime a perda de um vínculo, de uma raiz, de um solo


ontológico: a isso corresponde, do lado da redenção, o
simbolismo do retorno” (RICOEUR, 2013, p. 96-98), e que inclui
a fé como “fruto de uma escolha livre da majestade escondida”
(RICOEUR, 2013, p. 97) é o arrependimento. Contudo, se
arrependimento humano não é capaz de reatar a Aliança e se a
consciência do pecador examina a necessidade da intervenção
divina, é porque o pecado não se mede pela consciência subjetiva
que o homem toma de sua responsabilidade, mas por uma
realidade interior, mais objetiva, na qual a medida não é a
consciência, mas a vigilância absoluta e Deus.
Para Ricœur, o realismo do pecado é marca de uma
acusação profética. O profeta denuncia o pecado pela advertência
que profere contra o povo e contra seu destino político. Essa
acusação suscita no homem um exame de consciência que
desabrocha pela confissão dos pecados pessoais e comunitários,
pois cada um se descobre pecador, à medida que é membro de
um povo que peca.
A imputação pessoal, dentro de uma teologia da história,
carrega o peso de uma hipoteca comunitária. O indivíduo é
solidário de uma comunidade de pecadores que afeta e ultrapassa
a sua responsabilidade pessoal. Essa relação comunitária cria uma
situação na qual o pecador se encontra implicado, não somente
pelas causas de suas faltas, mas pelas consequências das faltas de
outros. Desta forma, o pecado é tanto individual como
comunitário. Ele não pode ser reduzido pela responsabilidade
individual, nem medido pela consciência reflexiva; ela resulta da
denúncia profética que revela o pecado do povo. Tomando
consciência do pecado do povo, o penitente percebe, ao mesmo
tempo, seu próprio pecado e a solidariedade que o liga a outros
no mal. Essa tomada de consciência vem graças ao ministério
profético que situa o pecado diante da guarda absoluta de Deus.
O realismo do pecado reside no fato que a medida e o
critério da falta não são constituídos pela consciência do pecado.
Deus, e não o homem, mensura o pecado. Isso porque o pecado
é revelado pelo oráculo profético que suscita no homem a
tomada de consciência de sua situação objetiva do desvio. O
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 171

pecado é uma situação real, insistente, na qual o homem se


descobre como pecador coletivo. Desta forma, o pecado
extravasa a subjetividade do indivíduo que está assentada dentro
de uma subjetividade coletiva que nenhuma consciência
individual consegue assumir totalmente. A imputação coletiva,
além de mostrar a solidariedade de todos no mal, produz a
confissão simultânea da responsabilidade e da irresponsabilidade
individuais pelo mal do qual se acusam e são punidos. A
consciência do penitente assume o pecado até certo ponto.
É importante ressaltar que esse é o típico pensamento
que o profetismo e os primeiros padres tentaram fazer chegar até
nós a concepção de um pecado comunitário no qual o mito
adâmico exprime uma unidade hiper-biológica e hiper-histórica
do povo no qual o pseudoconceito de pecado hereditário reenvia
intencionalmente para um vínculo comunitário admitido na
confissão dos pecados.
Conforme Ricoeur,

O conceito de pecado original é um falso saber e deve ser


suprimido como saber, saber jurídico da culpabilidade dos
recém-nascidos, saber quase biológico da transmissão de
uma tara hereditária, falso saber que bloqueia numa noção
inconsistente uma categoria jurídica de dívida e uma
categoria biológica de herança [...] o falso saber é ao
mesmo tempo verdadeiro símbolo, verdadeiro símbolo de
alguma coisa que só ele pode transmitir. A crítica não é,
portanto, simplesmente negativa: o fracasso do saber é o
inverso de um trabalho de recuperação do sentido, pelo
qual são encontrados a intenção ‘ortodoxa, o sentido reto, o
sentido eclesial do pecado original [...] mas símbolo racional”
(RICOEUR, 1999, p. 265).

Esse é o limite da responsabilidade individual que é posto


por um aspecto da experiência do mal por aquele mal aparente,
não mais como um não-ser redutível ao poder do desvio, da
queda que possui a liberdade, mas como uma “natureza”, uma
“substância’” que se apodera da liberdade e a tem cativa. Essa
imagem do mal, a Bíblia exprime pela imagem de possessão. O
pecado domina a liberdade, ou ainda, a liberdade é possuída,
172 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

enfeitiçada pelo pecado. Essa é a visão ética que caracteriza a


Bíblia, o mal não é uma substância difusa e exterior, nem uma
figura demoníaca personificada. Ele é, certamente, uma natureza
que a liberdade contrai e que forma a unidade da espécie humana
no pecado. Sendo interior e objetivo, o pecado é uma força que
se apodera do homem e o liga ao seu poder.
O pecador vive sob a posse do mal que o aliena e altera a
origem do seu querer e do seu agir. Seu poder de fazer o mal é
cercado de uma impotência, uma paralisia pelo poder do mal
radical que envolve a liberdade na origem de sua difusão e a torna
indisponível. O simbolismo do pecado aponta uma relação entre
o mal radical e o próprio homem, entre uma destinação originária
do homem. Esse simbolismo do pecado nos diz que por mais
positivo e sedutor que seja, ele nunca poderia fazer do homem
um nada, não poderia mudar a disposição e as funções da
humanidade do homem.

4. Conclusão

O mal radical reduz o homem à sua impotência e à


servidão do pecado (Gn 15,13-16). Pelo pecado, a liberdade é
reduzida à escravidão. Assim, para Ricœur, “a problemática
fundamental da existência não será tanto a da liberdade,
entendida no sentido de uma escolha a tomar em face de uma
alternativa radical, como a da libertação; o homem cativo do
pecado é um homem a libertar, todas as nossas ideias de salvação,
de redenção, procedem dessa cifra inicial” (RICOEUR, 2013, P
110). Esta experiência do cativeiro compreende uma experiência
da própria impotência do homem perante a sua liberdade de
escolha.
O chamado ao retorno a Deus é iniciado no interior de
uma súplica pelo perdão divino. Esse perdão é que opera o
retorno do homem para Deus. Porém, resta que o homem guarda
um poder suspensivo de sua escolha (RICOEUR, 2013, p. 98). O
perdão é o “arrepender-se” de Deus que toma a iniciativa, não
mais de uma condenação do homem, mas de uma nova relação
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 173

de Aliança. O homem, pois, vive dentro de um cativeiro, o


perdão é um resgate, uma libertação.
A liberdade, educada pelo interpelar profético,
compreende-se, na instância do pecado, responsável pela
existência do mal. O mal, obra da liberdade, é um não-ser. Ele é
posto para a liberdade, essa rompe com Deus e rejeita seu destino
original. Esse mal cria uma situação pessoal e comunitária na qual
a liberdade vive prisioneira de sua obra.
Para lá das transgressões isoladas, existe um mal
fundamental, há uma raiz do poder da liberdade, que constitui
uma espécie de natureza má contraída pela liberdade, em
consequência de sua escolha má que afeta a liberdade e torna
ineficaz todo desejo de emendar-se. O pecado, uma vez
cometido, altera o poder da liberdade e exerce sobre o homem
uma aderência, que o torna incapaz de afastar-se dele. A
consciência da impotência apaga o mal e suscita no homem o
desejo de justificação.
Essa nova instância da experiência da falta, a
culpabilidade (RICOEUR, 2013, p. 98), apontará para uma
resposta sobre: Por que o perdão ultrapassa o círculo ético do
esforço humano de conversão? É realmente impossível ao
homem desligar sua existência pessoal e comunitária dos grilhões
do pecado pelo qual está cercado? Além disso, essa instância
permitirá compreender o paradoxo ético, ou seja, a afirmação
simultânea da responsabilidade total e da impotência radical do
homem em relação ao mal (RICOEUR, 2013, p. 118). Contudo,
quando o símbolo do cativeiro se torna símbolo do indivíduo
culpado, “o cativeiro desliga-se da reminiscência histórica e
adquire uma qualidade de símbolo puro: a cifra designa um
acontecimento de liberdade” e esse acontecimento é o da
esperança, que se movimenta rumo a um evento futuro, a
Ressurreição.

Referências

ELLUL, J. Le fondement théologique du droit. Paris: Delachaux &


Niestlé, 1946. NARBERT, Jean. Essai sur le mal. PUF, 1955, 2ª
ed., Prefácio de Paule Levert, Paris: Aubier, 1970.
174 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

RICOEUR PAUL. O conflito das interpretações. Ensaios de


Hermenêutica I. Porto: RES, 1999.

_________________. A hermenêutica bíblica. Trad. Paulo Meneses,


São Paulo: Loyola, 2006.

_________________. Hermenêutica da Ideia de Revelação. In:


Escritos e Conferências 2: hermenêutica. Trad. Lúcia Pereira
de Souza. São Paulo: Loyola, 2011, p.145-195.

_________________. Grabriel Marcel et Karl Jaspers: Philosophie


du mystère et philosophie du paradoxe. Paris: Temps présent,
1948.

_________________. Karl Jaspers et la philosophie de l’ existence


(em colaboração com M. Dufrenne) com Prefácio de K, Jaspers,
Paris: Éditions du Seuil, 1947.

________________. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Trad.


de Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas: Papirus, 1988.

_________________. La natura e la Regola: alla radici del pensiero


(em colaboração com CHAGEUX, Jean- Pierre) Milano:
Raffaelllo Cortina Editore, 2010.

__________________. Philosophie de la volonté: Finitude et


culpabilité 2- La symbolique du mal. Paris: Aubier, 1960.

_________________. A Simbólica do Mal. Trad. Hugo Barros e


Gonçalves Marcelo, Lisboa: Edições 70, 2013.
Capítulo IX
A leitura do cordel na escola
Rummening Marinho dos Santos1
1. Introdução

O cordel também conhecido como poesia popular em


verso, é uma ferramenta excepcional para desenvolver no aluno o
comportamento leito, por abordar no conjunto de narrativas em
versos “literatura de cordel”, as temáticas sociais, a presença do
humor, as espertezas e malandragens e os personagens históricos.
Oportunizando ao aluno o acúmulo de conhecimentos culturais
que irão dar suporte para a construção do seu conhecimento
crítico, participativo e autônomo.
Propomos com este artigo refletir sobre a literatura de
cordel como fonte de incentivo no ensino da leitura. Tendo em
visto que a poesia do cordel é um instrumento capaz de estimular
o hábito de leitura, ao utilizar no contexto escolar uma linguagem
simples, engraçadas, divertidas e prazerosa com os diversos temas
favorecendo para a aproximação do aluno ao cotidiano.
Julgamos, pois, necessário e relevante problematizar a
leitura do cordel na escola por acreditarmos na cultura popular e
no cordel como manifestação dessa cultura. A partir da leitura de
folhetos, o aluno poderá buscar novas vivências e conhecimentos,
pois a intenção de levar o cordel para esse contexto não é de
formar poetas e sim leitores.
No entanto, fizemos uma revisão de literatura e analisamos
de forma qualitativa, dialogando com os autores revisados, como:
Haurélio (2013), Marinho e Pinheiro (2012), Arantes (2012),
Oliveira (2010), Pinheiro e Lúcio (2001), entre outros, que
serviram para uma de reflexão crítica do tema em questão “a
leitura do cordel na escola”, com ênfase na formação do leitor”.
Essa pesquisa justifica-se em função das discussões do
Mestrado Acadêmico em Ensino na Universidade do Estado do

1 Graduado em Geografia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte


(UERN), atualmente está cursando mestrado no Programa de Pós-Graduação em
ensino (PPGE) da UERN. E-mail: [email protected].
176 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Rio Grande do Norte - UERN, na disciplina de Ensino e


Aprendizagem da Leitura e Escrita.
Este artigo foi produzido em dois momentos. Num
primeiro momento, fizemos uma revisão de literatura em livros,
revistas científicas, artigos, dissertações e teses, como também,
em sites especializados na temática em questão, para dar suporte
teórico às discussões. Em outro momento, analisamos de forma
qualitativa, dialogando com os autores revisados, como: Haurélio
(2013), Marinho e Pinheiro (2012), Arantes (2012), Oliveira
(2010), Pinheiro e Lúcio (2001) entre outros, que serviram para
uma de reflexão crítica do tema.

2. Análise e discussão dos dados

Aqui, procuramos em um primeiro momento, pensar o


cordel como manifestação da cultura popular, mas para isso
buscamos discutir de forma ampla a cultura popular e em seguida
o cordel, fazendo uma breve contextualização histórica do cordel
no Brasil e, consequentemente, sua inclusão no contexto
educativo. Em um segundo momento, procuramos refletir sobre
a importância do cordel no ambiente escolar e o educador como
mediador da leitura para a formação humanizada do leitor.
No nosso cotidiano é muito comum ouvir falar que “essa
ou aquela pessoa não tem cultura”, fazendo uma relação direta
com ser culto, o saber, estar informado ou ter grande
conhecimento do assunto. Para tanto, seja qual for a sociedade na
qual o indivíduo está inserido, todos possuem sua forma de
expressar, pensar, agir e sentir, portanto, todas têm sua própria
cultura (culturas diferentes), o seu modo de vida.
Para Arante (2012) pensar a cultura na ideia de uma vida
refinada, civilizada e eficiente - ser culto - não consegui evitar que
muitos objetos e práticas que qualificamos como “populares”
pontilhem nosso cotidiano, como: o folheto de cordel, o repente,
a seresta entre outros, algumas numas regiões, outros noutra, com
sotaques mais diversos possíveis.
Pensamos a cultura não apenas como
“saber/conhecimento” ou “tradição” mas
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 177

[...] como um processo dinâmico, onde as transformações


ocorrem, mesmo quando se visa congelar o tradicional
para impedir sua “deterioração”. É possível preservar os
objetos, os gestos, as palavras, os movimentos, as
características plásticas exteriores, mas não conseguimos
mudar de significados que ocorre no momento em que se
altera o contexto em que os eventos culturais são
produzidos. (ARANTE, 2012, p. 21).

A cultura sofre mudanças com o tempo, ela é dinâmica e


está em constante transformação, traços se perdem, outros se
adicionam, se adaptam em velocidades distintas nas diferentes
sociedades. É bom lembrar que toda mudança cultural
(introdução de novos conceitos, saberes, conhecimentos, a
difusão de conceitos a partir de outras culturas, como também a
descoberta, de algo desconhecido pela própria sociedade e que ela
decide adotar) normalmente acarreta em resistência.
Haurélio (2013) acredita na cultura popular como sinônimo
de resistência e na literatura de cordel como manifestação dessa
cultura,

[...] acreditamos na cultura popular como sinônimo de


resistência, e no cordel como manifesto dessa cultura que
não entrega os pontos, vou espargindo versos sobre o
papel com o mesmo respeito e cuidado do agricultor que
lança a semente e, com ela, a esperança, no ventre da
terra. (HAURÉLIO, 2013, p. 9).

Percebemos a cultura popular, caracterizada por diferentes


categorias culturais, causadas pelo regionalismo, ou seja, “o
popular pontilhando o cotidiano refinado” (HAURÉLIO, 2013,
p. 11)
Dentre tantas práticas populares, chamo a atenção para a
literatura de cordel, que passaremos a discutir seu contexto
histórico, para compreender o surgimento da modalidade
chamado “Cordel”. Além disso, perceber que as atividades no
campo com esse tipo de literatura estabelece um envolvimento
178 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

afetivo com a cultura popular, tanto na realidade escolar quanto


na realidade sociocultural.
A literatura de cordel surgiu primeiramente na forma de
cantigas trovadorescas2 que eram acompanhadas por
instrumentos musicais, versos criados para cantar e dançar o que
facilitava o entendimento e a memorização dos ouvintes acerca
dos temas apresentados (ACOPIARA, 2004).
Como toda produção cultural, as cantigas viveu períodos de
fartura e de escassez. No entanto, de alguma forma, essas cantigas
resistiram e chegaram ao Brasil trazido pelos colonizadores e
foram adaptadas. Com isso surgiu à modalidade chamada Cordel.
Diante de seu contexto histórico, a literatura de folhetos do
Nordeste, rebatizada como literatura de cordel pelos
pesquisadores que enxergavam similaridades com a poesia
popular de Portugal, cujo termo importaram como uma literatura
de menor importância ou subproduto do folclore3. Além disso,
por um longo período trataram a criação dos poetas de cordel
como um produto coletivo, que despreza sua criação, ou seja,
valorizava o produto e não o sujeito (HAURÉLIO, 2013)
O cordel ganhou força no nordeste devido sua
versatilidade. Ela servia como instrumento de entretenimento ao
final do dia para as famílias da época e, também, como
instrumento de alfabetização. O cordel ganhou esse nome, pois
os textos eram pendurados em “barbantes” – cordões – nas ruas,
com o objetivo de fazer secar, principalmente, as xilogravuras –
pinturas utilizadas para confeccionar as capas dos cordéis para
simples exposição (MAGI, s.d).
De acordo com Marinho e Pinheiro (2012) o folheto de
cordel é muito versátil e sempre bem humorados, suporta
diversos temas como os de críticas sociais, com vista a denúncia
de injustiça social.

2Trovadorismo, também conhecido como Primeira Época Medieval, é o primeiro


movimento literário da língua portuguesa.
3 Folclore como um conjunto de objetos, práticas e concepções (sobretudo religiosas e
estéticas) consideradas “tradicionais”.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 179

[...] a literatura de cordel, o longo da sua história, tem sido


instrumento de lazer, de informação, de reivindicação de
cunho social, realizada muitas vezes sem uma
intencionalidade clara. Podemos apontar no cordel uma
acentuação do caráter de denúncia de injustiças sociais que
há séculos estão presentes em nossa sociedade.
(MARINHO e PINHEIRO, 2012, p. 88).

Isso pode ser visto em diversos folhetos de diferentes


autores4, na busca de uma formação de um leitor humanizado,
crítico e reflexivo, para uma sociedade cada vez mais dinâmica.
MILLER (2003) dialoga dentro desse cenário de formação
de leitor na escola em uma sociedade contemporânea, que exige
cada vez mais a formação de pessoas críticas, participativas e
autônomas. E, consequentemente, a escola deve objetivar a
formação do aluno leitor inserida no contexto de uma educação
que vise ao desenvolvimento da autonomia e do espírito crítico
do aprendiz.
Desse modo, o cordel nessa sociedade atual, tem uma
função social interessante, na medida em que ele se torna um
espaço para o olhar questionador e crítico do ser humano, em
relação ao mundo em sua volta (HAURÉLIO, 2013). Como dito
acima, a temática explorada em cada cordel pode variar de acordo
com o contexto no qual ele se inscreve, bem como de acordo
com as experiências e vivências de seu autor.
A reflexão que este artigo traz, coloca a literatura em um
plano de destaque, uma vez que ela, além de meio de aquisição de
conhecimento (meio de ensino), contribui claramente para a
humanização do leitor defendida por Candido (2004) e que
também compartilhamos dessa visão. O autor citado neste
parágrafo também advogam o fato de que não é possível negar
que a literatura dialoga, em cada época, com sua realidade cultural
e, portanto, social. Nesse sentido, a “literatura de cordel” insere-
se como importante instrumento de humanização do seu leitor5.
4Leandro Gomes de Barros “A seca no Ceará”, e Patativa do Assaré “A morte de
Nanã”
5A concepção de literatura como forma de humanização é defendida por Antônio
Candido em “O direito à literatura” (2004).
180 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Percebemos, então, que as atividades no campo com a


literatura de cordel estabelece um envolvimento afetivo com a
cultura popular. Assim, as estratégias metodologias tem que
considerar não só a realidade da escola, mas também a realidade
sociocultural em que está inserida. Reconhecendo como uma
prática educativa que lança mão da literatura de cordel apenas
como fonte de informação ou que retoma esta produção cultural
como objeto de observação. Assim, as propostas estratégicas para
serem trabalhadas na realidade escolar devem ser compreendidas
não como um receituário, mas como pistas para fazer com que a
literatura de cordel possa ser vivenciada pelos leitores e não
apenas observada como algo exótico para alguns (PINHEIRO e
LÚCIO, 2001).
Na escola, compreendemos a figura do professor uma peça
fundamental no processo educativo6, não como instrutor7, mas
como mediador do processo de ensino e aprendizagem na escola.
Oliveira (2010) compreende a contribuição significativa que
o professor possui como mediador no ensino da leitura,

[...] a função mediadora que o professor possui no


desenvolvimento da competência de leitura dos estudantes
é muito importante. Como medidor, cabe ao professor a
tarefa de ajudar seus alunos a dominarem estratégias de
leitura que lhe sejam úteis. (OLIVEIRA, 2010, p. 71).

Existem diversas formas de ler um texto, dentre elas,


chamo a atenção para a leitura em voz alta em sala de aula.
Segundo Oliveira (2010), essa prática de leitura recebeu e recebe
críticas de pesquisadores por ser tradicionalista, mas o mesmo
legitima sua utilização ao fazer relação com o mundo vivido em
seu contexto cotidiano, tanto na vida social quanto escolar. De
acordo com o autor citado, a questão é o tipo de texto a ser lido,
um texto escrito para ser lido silenciosamente tem suas estruturas
6Chamo a atenção para a palavra “fundamental”, que se refere como importante e não
como único no processo educativo
7 Professor instrutor, marcada pela concepção pedagógica tradicional, cuja função é a
transmissão do conhecimento. Além disso, tem uma visão de detentor do saber e existe
uma presença forte de autoritarismo sobre o aluno.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 181

discursivas diferente daquele para ser lido em voz alta, marcado


por característica de fala.
Marinho e Pinheiro (2012) defende a ideia da leitura do
cordel em voz alta na sala de aula, apresentando como: primeira e
indispensável para o ensino.

A leitura oral dos folhetos de cordel é indispensável.


Portanto, a primeira e fundamental atividade deve ser a de
ler em voz alta. E, se possível, realizar mais de uma leitura.
Esta repetição ajudará a perceber o ritmo e encontrar os
diferentes andamentos que o folheto possa comportar e
trabalhar as entonações de modo adequado. Trata-se de
dar expressividade à leitura - encontrar o seu páthos, o
núcleo efetivo da narrativa. Por exemplo, se a narrativa
tem um tom humorístico a leitura deverá realçar esse
traço; se apresenta um tom dramático, como A morte de
Nanã, de patativa do Assaré, a leitura pedirá uma
realização diversa, que valorizará os momentos forte de
dor, de desalento e até de revolta. Portanto, diferentes e
repetidas leituras em voz alta é que vão tornando o
folheto uma experiência para o leitor. (MARINHO e
PINHEIRO, 2012, p. 129).

Essa atividade visa preparar os discentes ao recital do


cordel em público, porque “a leitura deverá sempre ser treinada
antes de vir a público” (MARINHO e PINHEIRO, 2012, p.
129). Treinada, não no sentido de decorar, mas para valorizar
toda expressividade contido no texto literário, atribuindo um
sentido e significado.
Acredito que na escola, o professor enquanto facilitador do
ensino, deve buscar e oferecer a seus alunos a leitura de textos
agradáveis e com sentido para sua vida, despertando para o
interesse, o gosto e o prazer em ler. Não estou descartando a
leitura de outros texto, ou seja, aqueles que por algum motivo do
leitor não dá satisfação em ler. Visto que, estamos em uma
sociedade contemporânea em que o ato de ler é praticamente
indispensável e precisamos ler até aquilo que não gostamos,
como: contratos, bulas ou manual de instruções.
182 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

3. Algumas considerações

Diante das reflexões feitas sobre a literatura de cordel,


procuramos expor ao leitor que o maravilhoso cordel surge como
manifestação da cultura popular e, é a expressão pura dessa
cultura, que faz uma aproximação direta do leitor ao seu
cotidiano com diferentes temas e categorias culturais. Por ser
versátil, possibilita um desenvolvimento diferenciado na escola,
longe dos que os alunos estão habituados em sua vida escolar –
cujos contextos são, em geral, muito distantes de suas realidades.
Então, pensamos e conseguimos refletir o cordel como
meio (estratégias) de ensino da leitura na escola. Como um
instrumento capaz de estimular o hábito de ler, pois este tipo de
texto utiliza uma linguagem simples, engraçadas, divertidas,
prazerosa, com a presença do humor, das espertezas e
malandragens, como também os personagens históricos e as
temáticas sociais, favorecendo para a aproximação do aluno ao
cotidiano.
Não estou descartando a leitura de outros textos, mas,
convenhamos “é bem melhor ler o que gostamos” e para quem
está sendo motivado para ser mobilizado no ato de ler, o cordel
favorece para essa nossa perspectiva pela sua simplicidade, alegria
e o prazer com os diversos temas sociais contemporâneos.
Quanto as temáticas sociais, presentes em diversos folhetos
de diferentes autores, possibilitará ao professor enquanto
mediador do processo de ensino e aprendizagem da leitura, a
busca pela formação de um leitor humanizado, crítico e reflexivo,
para uma sociedade cada vez mais dinâmica. Oportunidade que
todos os aluno devem ter, que é o acúmulo de conhecimentos
culturais que irão dar suporte para a construção do seu
conhecimento crítico, participativo e autônomo.
Diante de tudo que foi exposto e discutido, deixamos a
seguinte indagação para dar prosseguimento ao estudo do cordel.
Então, é possível “na prática” utilizar o cordel como meio de
ensino da leitura na escola?
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 183

Referências

ACOPIARA, Moreira. O beabá do cordel. Ed. do Autor: São Paulo,


2014.

ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular? São Paulo:


Brasiliense, 2012. (Coleção Primeiros Passos; 36).

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed.


São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul,
2004, p. 169-191.

MAGI, Luzdalva S. Das cantigas trovadoresca ao cordel. In: Revista


conhecimento prático literatura. São Paulo, Ed. 54, Editora
Escola. s.d. p. 44-49.

MARINHO, Ana Cristina; PINHEIRO, Hélder. O cordel no


cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2012. (Coleção
Trabalhando com... na escola).

MILLER, Stela. A leitura na escola hoje. In: Formação de


educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: EUNESP,
2003.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. O ensino pragmático da leitura. In:


Coisas que todo professor de português precisa saber: a
teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p. 59-108.

PINHEIRO, Hélder; LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala


de aula. São Paulo: Duas cidades, 2001. (Coleção Literatura e
ensino; v 2).
Capítulo X
O Nordeste no cordel.
Nordestino, sim, nordestinado, não:
uma análise interdiscursiva
Sergio Rubens Alves Cavalcante1
1. Introdução

O presente estudo tem por objetivo analisar o Interdiscurso


na Literatura de Cordel, analisando como se faz presente a
interdiscursividade e a sua importância para a construção de
sentido do discurso analisado. Com o intuito de alcançar o
objetivo anteriormente citado, esse estudo apresenta a seguinte
ordem: 1) Literatura de Cordel: uma síntese histórica; 2) Análise
do Discurso: doravante AD e AD2 em Maingueneau; 3)
Interdiscurso; 4) Nordestino, sim, nordestinado, não: Uma análise
interdiscursiva; e, por fim, nossas considerações finais, mostrando
os resultados da nossa pesquisa.
No que se refere a constituição do corpus, escolhemos o
cordel Nordestino, sim, nordestinado, não de Patativa do Assaré,
produzido na década de 80 e extraído do livro Ispinho e Fulô (2005,
p. 38), uma das obras mais renomadas do referido autor. O cordel
em questão tem com temática central a região Nordeste do Brasil.
Tema que escolhemos para tratar nesse trabalho.
Antônio Gonçalves da Silva – Patativa do Assaré - é um
dos mais clássicos e renomados cordelistas brasileiros. Cearense,
nascido no município de Assaré, é autor de obras como “cante lá
que eu canto cá”, “inspiração nordestina”, “Ispinho e fulô”,

1 Graduado em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade do


Estado do Rio Grande do Norte (UERN), atualmente está crusando mestrado pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da UERN. E-mail:
[email protected].
2 Abreviação de Análise do Discurso. Essa abreviação no trabalho é utilizada para
facilitar a leitura e evitar a repetição do termo “Análise do Discurso”, o que vai
diferenciar se é a AD tradicional da França ou a AD na concepção de Maingueneau será
o contexto e/ou as explicações posteriores ao termo.
186 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

dentre outras. Trata-se do cordelista mais conhecido e cantado no


território brasileiro que recebeu diversas homenagens e
premiações e que tem seu nome na 15ª cadeira da Academia
Brasileira de Literatura de Cordel, cadeira essa que hoje é ocupada
pelo poeta mossoroense Antônio Francisco.

2. Literatura de cordel: uma síntese histórica

A literatura de Cordel origina-se na Península Ibérica,


principalmente através das cantigas trovadorescas onde era
utilizada até mesmo como folhetos informativos, em que os
poetas transcreviam em versos os principais acontecimentos e a
população ficava informada através dos folhetos.
No que se refere à Literatura de Cordel que possuímos no
Brasil, a entrada das caravelas em terras brasileiras trouxe junto o
cordel que conhecemos hoje. De toda forma, mesmo enquanto
uma herança cultural de Portugal, a Literatura de Cordel brasileira
possui características e influências marcantes do território
nacional, principalmente do Nordeste brasileiro.
Segundo Potier (2013), é no século XIX que se têm os
primeiros registros dessa Literatura no Brasil, de forma
majoritária nos sertões dos estados da Paraíba, Pernambuco, Rio
Grande do Norte e Ceará. Além disso, os autores Silvino Pirauá
de Lima, Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e
Francisco das Chagas Batistas são reconhecidos como os
percursores da Literatura de Cordel no Brasil.
Esse fazer literário tem forte relação com a literatura oral
das cantigas de viola, segundo Gurgel (2008, p.79), “o cordel
brasileiro é filho da viola”. Além dessa característica, o nome
“cordel” – popularmente conhecido – deu-se através da forma
pela qual os folhetos eram vendidos: pendurados em cordões.
No Brasil, principalmente no Nordeste brasileiro, o cordel
populariza-se apesar de, em alguns países, ter havido uma
decadência considerável. Ele passa a ser comercializado em feiras
livres, carregando uma forte marca da identidade nordestina,
tornando-se parte da cultura e da vida dos nordestinos. Com
relação aos cordéis, Maxado (2012, p. 41) afirma que “no sertão
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 187

nordestino isolado, os poetas e folheteiros corriam de feira em


feira declamando e vendendo composições impressas. Eram até
jornalistas dando notícias do litoral ou de onde se davam os
acontecimentos importantes”. Então, o cordel é comercializado,
popularizado, percorrendo as diversas classes sociais, adentrando
de vez nas casas dos mais variados tipos de pessoas. Segundo
Pinheiro,

O folheto vai para as ruas e praças e é vendido por


homens que ora declamam os versos, ora cantam em
toadas semelhantes às tocadas pelos repentistas. São
nordestinos pobres e semialfabetizados que entram no
mundo da escrita, das tipografias, da transmissão escrita e
não apenas oral. A poesia popular antes restrita ao
universo familiar e a grupos sociais colocados à margem
da sociedade (moradores pobres de vilas e fazendas, ex-
escravos, pequenos comerciantes etc.), ultrapassa
fronteiras, ocupa espaços outrora reservado aos escritores
e homens de letras do país. (PINHEIRO, 2001, p. 12-13).

A comercialização do cordel deu-se através das primeiras


tipografias e, inicialmente, eram encontradas em Recife/PE. A
partir do surgimento dessas tipografias e do crescimento da
comercialização do folheto de cordel surge a xilogravura – uma
arte esculpida em madeira e que servia para ilustrar as capas dos
cordéis. Sobre a xilogravura,

Os editores notaram que, com figuras, poderiam os


folhetos chamar mais atenção e, consequentemente,
vender mais. Assim, começaram a encomendar gravações
em madeira, retratando os personagens ou passagens mais
marcantes da estória. A prática veio da Europa.
(MAXADO, 2012, p. 61).

As capas dos cordéis eram ilustradas com xilogravuras de


personagens, imagens ou qualquer ilustração que representasse a
história transcrita no cordel. Dessa forma, elas despertavam uma
atenção maior dos leitores e valorizavam mais a obra.
188 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Os folhetos tratavam dos mais variados temas, contavam


histórias, causos e notícias com temáticas variadas. Eles são
classificados em:

[...] de época ou de ocasião; históricos; didáticos ou


educativos; biográficos; de propaganda política ou
comercial; de louvor ou homenagem; de safadeza ou
putaria; maliciosos ou de cachorrada; cômicos ou de
gracejos; de bichos ou infantis; religiosos ou místicos; de
profecias ou eras; de filosofia; de conselhos ou de
exemplos; de fenômenos ou de casos; maravilhosos ou
mágicos; de bravura ou heroicos; vaquejadas; de
presepadas ou dos anti-heróis; de pelejas ou de desafios;
de discussão ou de encontro; de lendas ou mitos; pasquim
ou de intriga; etc. (MAXADO, 2012, p. 66).

Dentre essa variedade de classificação temática, a estrutura


do folheto também se diversifica, normalmente eram do tamanho
de ¼ de uma folha de papel ofício e possuíam, quase sempre, 8
páginas. Outras estruturas diferenciadas também existiam para os
folhetos, pois, Maxado (2012, p. 53) acrescenta que “os folhetos
são geralmente livretos de oito até dezesseis páginas e que tratam
de fatos circunstanciais. Já os romances possuem 32 páginas e
tratam de enredos de bravuras, de amor, etc”. Além dessas
estruturas citadas, ainda havia o romance com 62 páginas.
Essa materialidade que é a Literatura de Cordel tem uma
forte ligação com o Nordeste brasileiro. Em seu discurso, traz
diversas imagens dessa região, sempre mostrando e enaltecendo
as principais características desse lugar, como a cultura, a história,
a sociedade e a diversidade dessa região brasileira. É justamente
sobre a temática nordestina na Literatura de Cordel que se detêm
este trabalho, visto que a própria literatura de Cordel se tornou
uma característica da vida e do cotidiano dessa região, fazendo
parte da cultura nordestina.
Na primeira metade do século XIX, o cordel começou a
tratar, de forma mais constante, acerca do sertão nordestino. A
Literatura de Cordel acompanhou as mudanças do sertão, do
Nordeste e da sociedade e, dessa forma, veio modificando
também seus temas e acompanhando as transformações daquilo
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 189

que tratava. Afinal, “O sertão e a roça não são mais aqueles.


Palavras como poluição, computador, tecnologia, e ecologia,
entre outras, já lhe são bem conhecidas. Começam a serem
cantadas e escritas na literatura de cordel” (MAXADO, 2012, p.
140).
Acerca dessas transformações, vale destacar que essa
Literatura teve mudanças na estrutura e na essência ao longo dos
anos. Assim, antigamente,

[...] era portadora de anseios de paz, de tradição, e veículo


único de lazer e informação. Hoje, é portadora, entre
outras coisas, de reivindicações de cunho social e político.
Não somente para os nordestinos e descendentes, mas
para todos os habitantes do Brasil. Por isso, ela continua
importante, pois os poetas populares, por meio dela,
mostram a verdadeira situação do homem do povo.
(LUYTEN, 2005, p. 70).

Dessa maneira, esse fazer literário é de suma importância


para o fortalecimento da identidade cultural nordestina. A
Literatura de Cordel é uma arte completa, pois, segundo Maxado
(2012, p. 143), é uma espécie de arte total: é poesia; é gráfica; é
canto; é artes plásticas; é música; é teatro; é jornalismo; e é
comércio”. Além de estar presente em todo o solo brasileiro, essa
Literatura é, antes de mais nada, uma literatura completa que trata
de temáticas diversas e que promove diversas manifestações
artísticas-culturais dentro de uma só.

3. Análise do discurso: vertente francesa, AD em


Maingueneau e interdiscuso

A Análise do Discurso é uma disciplina relativamente nova


que se relaciona diretamente com as ciências humanas, com as
ciências sociais e com os estudos linguísticos. Nascida na França
no decorrer dos anos de 1960 e a partir dos estudos de Jean
Dubois e Michel Pêcheux, foi influenciada pelo neomarxismo de
Luis Athusser e pelo o avanço crescente da linguística. Sendo
assim, “o projeto da AD se inscreve num objetivo político e a
190 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Linguística oferece meios para abordar a política. (MUSSALIM,


2012, p. 114).
A Análise do Discurso de vertente francesa percorre vários
campos do conhecimento: a psicologia, a política, a linguística, a
filosofia e a história. Ela é estudada de maneiras diversas em
lugares distintos e serve de subsídio para outras áreas, sendo que
cada uma dessas áreas a utiliza da maneira mais conveniente.
A Análise do Discurso que iremos estudar nesse artigo não
se baseia nos estudos da tradicional AD reconhecida e trabalhada
na França na década de 60, embora não se renegue sua
importância para os estudos do discurso. Nossa concepção de
Análise do Discurso inscreve-se na de Dominique Maingueneau.
Ele reconhece que o surgimento da AD se deu em diversos
momentos e em lugares distintos, pois ela é um espaço
fervilhante e que não se pode direcioná-la a um único momento
de criação, mas sim, a diversos lugares distintos que contribuíram
para a sua criação. (MAINGUENEAU, 2015).
A Análise do Discurso da década de 60 é reconhecida por
muitos a partir de três fases de evolução e estudo. Nesse viés,

A Primeira Fase da Análise do Discurso (AD-1), marcada


pela investigação sobre o discurso político, Segunda Fase
da Análise do Discurso (AD-2), marcada pela pesquisa
sobre as múltiplas formas de discursivização do e sobre o
texto, nessa fase emerge a preocupação com o sujeito e
com a problemática sociocultural, e a Terceira Fase da
Análise do Discurso (AD-3), marcada pela investigação
sobre o universo sócio-político-comunicacional-midiático,
um universo que compõe e ajuda a construir o discurso na
sociedade contemporânea. (SANTOS, 2016, p. 15).

Em outras palavras, as três fases da AD, que muitos


estudiosos da Análise do Discurso – doravante AD – que
emergiu na França na década de 60, correspondem a uma
evolução da disciplina até chegar ao que conhecemos hoje.
Porém, para Maingueneau, não é possível delimitar um momento
histórico único de surgimento da AD, pois todos os momentos e
lugares diferentes contribuíram para a criação dessa disciplina.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 191

Indubitavelmente, devemos considerar que a Análise do


Discurso não é apenas uma disciplina que analisa o texto e seu
contexto, mas também, como um espaço que proporciona
análises de situações comunicativas que consideram as relações
existentes entre os gêneros discursivos mais variados. Afinal, a
AD compreende o discurso nas suas relações sociais, conforme
diz Maingueneau (2000, p. 3). Para ele,

O interesse específico da análise do discurso é apreender o


discurso enquanto articulação entre texto e lugares sociais.
Consequentemente, seu objeto não é a organização textual
nem a situação comunicativa, mas o que os articula através
de um gênero de discurso. A noção de “lugar social” não
deve ser considerada de um ponto de vista literal: esse
“lugar” pode ser uma posição em um campo simbólico
(político, religioso, etc.). (MAINGUENEAU, 2000, p. 3).

De toda forma, a AD, vista na perspectiva mainguenoniana,


compreende a relação do texto e os lugares sociais, ou seja, o que
está externo ao texto, aquilo que se encontra fora do texto, mas
que influencia diretamente na construção do discurso. Ao se
tratar de lugares sociais, é preciso que compreendamos que eles
podem ser de campos diversos.
O objeto central de estudo da Análise do Discurso – o
discurso – é abordado de maneiras diferentes por várias
disciplinas e áreas do conhecimento. No que se refere a
concepção de Maingueneau sobre a AD, é necessário a
compreensão de que ele a vê como “um espaço de pleno direito
das ciências humanas e sociais, um conjunto de abordagens que
pretende elaborar os conceitos e os métodos fundados sobre as
propriedades empíricas das atividades discursivas”.
(MAINGUENEAU, 2006, p. 1). Isso quer dizer que é a partir das
ciências humanas que os estudos da Análise do Discurso devem
estar norteados e que, embora ela não seja uma disciplina
empírica, de fato, deve manter sua organização em torno das
pesquisas empíricas.
Dentre as concepções mainguenonianas sobre a Análise do
Discurso, encontramos o interdiscurso que, mesmo sem negar as
192 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

concepções de outros autores estudados na AD sobre essa


categoria, diferencia-se em alguns conceitos e teorias que são
estudados por outros autores. É sobre essa categoria que iremos
tratar a seguir.
No que se refere a categoria interdiscurso, nesse trabalho,
deter-nos-emos à concepção de Dominique Maingueneau,
reconhecendo suas teorias e seus estudos a respeito da
interdiscursividade.
O interdiscurso, na compreensão de Dominique
Maingueneau, pode ser apreendido em um discurso através da
heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva, isto
é, a presença do outro é perceptível a partir dessas duas maneiras.
A primeira é perceptível de maneira mais clara, pois é acessível
aos aparelhos linguísticos, conforme torna-se possível identificar
“marcas” do outro no discurso (MAINGUENEAU, 2008a). A
segunda, já se trata de uma percepção mais detalhada, visto que
ela não é acessível aos aparelhos linguísticos, logo, sua relação
com o texto se dá de maneira mais complexa, através dos
elementos que circundam o discurso e que não aparecem de
maneira explícita no texto.
A heterogeneidade constitutiva não deixa marcas visíveis
no texto, os enunciados e as palavras do outro estão ligadas de
maneira íntima, não sendo possíveis separá-los.
(MAINGUENEAU, 2008a). Com isso, a hipótese do primado do
interdiscurso, ou seja, o interdiscurso como anterior ao discurso,
inscreve-se na percepção da heterogeneidade constitutiva.
Maingueneau (2000, p. 5) afirma que o interdiscurso é o
“princípio central da análise do discurso”. Para ele, o discurso é
compreendido somente quando faz referência ao interdiscurso.
Ele mostra que “identidade de um discurso se constitui e se
alimenta através de outros discursos; falar é sempre falar com,
contra ou por meio de outros discursos, outras vozes”
(MAINGUENEAU, 2000, p.5). São as vozes do(s) outro(s) que
constitui um discurso. Assim, é através de dizeres ditos
anteriormente que o discurso se constrói. Logo, não há discurso
sem interdiscurso, todo discurso utiliza-se de outros enunciados
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 193

advindos de outros lugares, ditos por outros sujeitos, para se


constituir e isso não pode ser dissociado.

O discurso só adquire sentido no interior de um imenso


interdiscurso. Para interpretar o menos enunciado, é
necessário relacioná-lo, conscientemente ou não, a todos
os tipos de outros enunciados sobre os quais ele se apoia
de múltiplas maneiras. O simples fato de organizar um
texto em um gênero (a conferência, o jornal, televisivo...)
implica que o relacionemos com os outros textos do
mesmo gênero; a menor intervenção política só pode ser
compreendida se se ignorarem os discursos concorrentes,
os discursos, anteriores e os enunciados que então
circulam nas mídias. (MAINGUENEAU, 2015, p. 28).

Não se pode compreender, interpretar e/ou analisar um


discurso sem considerar, inicialmente, o interdiscurso. A relação
de um discurso com outro é o que atribui sentido ao texto. No
instante em que se dá essa relação, o texto adquire sentido e é
passível de análise.
Além dessas considerações sobre o interdiscurso,
Maingueneau amplia o conceito dessa categoria dividindo-a numa
tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.
O universo discursivo é “o conjunto de formações
discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura
dada. Esse universo discursivo representa necessariamente um
conjunto finito, mesmo que ele não possa ser apreendido em sua
globalidade”. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 33). Aqui, para
Maingueneau, o universo discursivo comporta todas as formações
discursivas existentes. Essas inúmeras e finitas formações
discursivas relacionam-se entre si dentro desse universo,
comprovando a heterogeneidade do discurso.
Dentro desse universo discursivo coexistem os campos
discursivos que se tratam de “um conjunto de formações
discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se
reciprocamente em uma região determinada do universo
discursivo.” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 34). É dentro do
campo discursivo que o discurso se constitui como tal. Nesse
194 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

sentido, o campo discursivo comporta diversas e distintas


formações discursivas, sendo que estas se relacionam
intimamente dentro do universo discursivo. Assim, o campo
discursivo é uma subdivisão do universo discursivo.
Segundo Santos (2016), o campo discursivo une formações
discursivas que podem ser analisadas ao mesmo tempo por
motivos diferentes: por causa de uma relação de apoio, porque
estão voltadas para o mesmo objeto ou, até mesmo, por
possuírem a mesma estrutura social. Santos (2016, p. 36) afirma
ainda que “se um campo discursivo é tomado como zona
determinada dentro do universo discursivo, não significa que essa
zona esteja fechada em si mesma, constituindo-se como uma ilha
isolada de outras esferas do discurso”.
Na perspectiva mainguenoniana, um campo discursivo
sofre influência de outros campos e os discursos provenientes de
campos distintos também possuem uma relação de troca. Ele
defende que os campos discursivos não são estruturas fechadas e
que isso se dá por causa da heterogeneidade dos discursos.
Considerando a noção de campo discursivo, é necessário
isolá-los e dividi-los em espaços discursivos. Dessa forma, além
de uma divisão do campo discursivo, o espaço discursivo, enfim,

[...] delimita um subconjunto do campo discursivo,


ligando pelo menos duas formações discursivas que,
supõe-se, mantém relações privilegiadas, cruciais para a
compreensão dos discursos considerados. Este é, pois,
definido a partir de uma decisão do analista, em função de
seus objetivos de pesquisa. Não é por simples comodidade
que determinados subconjuntos são recortados (porque
seria difícil apreender um campo discursivo em sua
totalidade), mas também e sobretudo porque uma formação
discursiva dada não se opõe de forma semelhante a todas as outras
que partilham seu campo: certas oposições são fundamentais,
outras não desempenham diretamente um papel essencial
na constituição e preservação da formação discursiva
considerada. (MAINGUENEAU, 1997, p. 117).

Dessa maneira, compreendemos que o espaço discursivo é


um subconjunto do campo discursivo e que ele possui duas
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 195

formações discursivas, no mínimo, que se relacionam, seja porque


são semelhantes, seja porque são contrárias. Em um mesmo
espaço discursivo, o sujeito encontra elementos (palavras,
enunciados) que pertencem a diferentes campos, vindos de
formações discursivas distintas do discurso do outro que estão
presentes no texto e estão inseridos em um mesmo espaço
discursivo.
Essa concepção mainguenoniana que compreende o
interdiscurso a partir da divisão em: universo discursivo, campo
discursivo e espaço discursivo, explica de maneira mais didática o
primado do interdiscurso sobre o discurso. Afinal, a
interdiscursividade perpassa por uma instância maior (universo
discursivo) que reúne, de maneira finita, todas as formações
discursivas, passa também por uma divisão do universo
discursivo – campo discursivo – que comporta um conjunto de
formações discursivas que se relacionam dentro de uma região do
universo discursivo e, ainda, localiza-se dentro de um espaço
discursivo que comporta no mínimo duas posições diferentes,
duas formações discursivas distintas.
Com isso, podemos mostrar que em nosso trabalho a
interdiscursividade ocorrerá partindo de um universo discursivo
(o gênero Literatura de Cordel) – perpassando por um campo
discursivo que trata sobre a temática do Nordeste, dentro do
cordel Nordestino sim, nordestinado, não de Patativa do Assaré,
considerando este como espaço discursivo. A partir daí,
encontraremos o discurso do outro, ou seja, uma heterogeneidade
constitutiva que não se encontra na propriedade linguística, mas
sim, através de fatores externos encontrados fora do texto.

4. Nordestino, sim, nordestinado, não: uma análise


interdiscursiva

A análise fundamenta-se pelo interdiscurso, como ele está


presente no corpus analisado – retirado da obra Ispinho e fulô –
mostrando como se dá a interdiscursividade no discurso de
Patativa do Assaré no cordel “Nordestino, sim, nordestinado, não”.
196 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Considerando que os discursos perpassam pela história e


estão sempre se reestruturando e reaparecendo dentro de um
novo contexto através de novos sujeitos, os discursos passam a
adquirir sentido na coletividade, visto que são os contextos que
atribuem diferentes sentidos aos discursos.
Na Literatura de Cordel, os discursos não fogem a essa
realidade. Estão, a todo modo, sempre retratando a história e a
sociedade. Em nosso caso particular, principalmente, estão
percorrendo a história, a cultura, a sociedade e a identidade da
região Nordeste do Brasil, tema constante nessa materialidade.
Em se tratando do interdiscurso, Maingueneau (2008a, p.
31) concebe o primado do interdiscurso. Para ele “as palavras, os
enunciados de outrem estão intimamente ligados ao texto”. No
poema estudado, será possível, a partir de uma análise minuciosa,
perceber a presença do interdiscurso, visto que o interdiscurso
corresponde a uma divisão que resulta em um universo
discursivo, um campo discursivo e um espaço discursivo.
Nesse trabalho, quando se trata dessa divisão do
interdiscurso na perspectiva mainguenoniana, reconhecemos o
gênero Literatura de Cordel como sendo o universo discursivo,
que comporta diversos campos, dentre eles o campo discursivo
do Nordeste e que este é tratado no espaço discursivo que
reconhecemos como sendo o cordel “Nordestino, sim,
nordestinado, não”. Neste espaço, podemos encontrar e
reconhecer o interdiscurso, conforme o recorte abaixo:

Nunca diga nordestino


Que Deus lhe deu um destino
Causador do padecer
Nunca diga que é o pecado
Que lhe deixa fracassado
Sem condições de viver
(ASSARÉ, 2005).

Podemos reconhecer aqui a presença do interdiscurso


vindo de uma formação discursiva religiosa, em que se acredita
que tudo que ocorre na vida é por “providência divina” e se o
sofrimento existe é porque Deus permite que haja. Assim,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 197

percebemos um discurso que não é de Patativa, mas sim, de um


grupo que é influenciado por uma doutrina religiosa. E esse
discurso é trazido de volta por Patativa para compor o seu dizer,
isto é, há uma interdiscursividade, a presença de outras vozes que
se relacionam entre si, pois “falar é sempre falar com, contra ou
por meio de outros discursos, outras vozes” (MAINGUENEAU,
2000, p. 05).
Dessa maneira, ao se reportar ao discurso histórico advindo
de uma cultura religiosa, o enunciador perpassa pela história
reconstruindo um dizer anteriormente citado, mantendo a relação
do discurso e o Outro. Sendo que, conforme Maingueneau
(2005), a relação entre um texto e seu Outro não se separa.
No segundo recorte que mostraremos a seguir, será
possível perceber a presença do interdiscurso mais uma vez. Este
espaço discursivo comporta, no mínimo, duas formações
discursivas distintas. Vejamos:

Não é Deus Quem nos castiga,


Nem é a seca que obriga
Sofrermos dura sentença!
Não somos nordestinados
Nós somos injustiçados
Tratados com indiferença! [...]

[...]Mas não é o Pai Celeste


Que faz sair do Nordeste
Legiões de retirantes!
Os grandes martírios seus
Não é permissão de Deus:
É culpa dos governantes!
(ASSARÉ, 2005).

Na primeira estrofe do recorte acima, podemos perceber,


mais uma vez, os dizeres vindos de um discurso religioso, pois
quando diz “não é Deus quem nos castiga” está refutando uma
crença religiosa que considera que nós, humanos, quando
pecamos, somos “castigados” por Deus. Além disso, na mesma
estrofe, há a presença de dizeres advindos de um discurso voltado
para a questão da militância política, ou seja, o cidadão que luta
198 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

por seus direitos e reclama das injustiças sociais. Portanto, na


primeira estrofe do referido recorte, temos a presença, dentro de
um mesmo espaço discursivo, de duas formações discursivas
distintas: uma voltada ao discurso religioso e outra ao discurso
político. Dessa maneira, comprova-se, a partir de Maingueneau
(1997), que o espaço discursivo liga pelo menos duas formações
discursivas distintas que se relacionam entre si.
Ainda na segunda estrofe do mesmo recorte, mais
especificamente no trecho “Mas não é o Pai Celeste/ que faz sair
do Nordeste/ legiões de retirantes”, o enunciador utiliza-se de
um discurso religioso, em seguida, faz um resgate histórico
através da memória, enunciando sobre os momentos históricos
marcantes que os nordestinos imigram para as regiões Sul e
Sudeste do Brasil. Assim, esse trecho em questão, promove, em
um mesmo espaço discursivo, discursos advindos de campos
distintos.
Já quando o enunciador diz “não é permissão de Deus/ é
culpa dos governantes, ele se utiliza, mais uma vez, de um
discurso vindo do campo religioso e, em seguida, um dizer que é
próprio do campo político-social, para responsabilizar os
governantes pelas mazelas e misérias que os nordestinos sofrem.
Dessa forma, há uma relação interdiscursiva, dizeres que circulam
socialmente, pertencentes a diferentes contextos, mas que se
relacionam construindo sentido. Notamos, que “O discurso só
adquire sentido no interior de um imenso interdiscurso. Para
interpretar o menor enunciado, é necessário relacioná-lo,
conscientemente ou não, a todos os tipos de outros enunciados
sobre os quais ele se apoia de múltiplas maneiras.”
(MAINGUENEAU, 2015, p. 28). Afinal, foi na relação entre as
diferentes origens dos discursos, ou seja, nos diferentes lugares e
contextos sociais que os discursos existiam anteriormente que foi
possível o discurso adquirir sentido.
Dentro do recorte logo abaixo, também iremos notar uma
interdiscursividade.

Por isso vamos lutar,


Nós vamos reivindicar
O direito à liberdade,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 199

Procurando, em cada irmão,


Justiça, paz e união,
Amor e fraternidade!
(ASSARÉ, 2005).

Logo no início do trecho acima, quando o enunciador diz


“por isso vamos lutar/ nós vamos reivindicar/ o direito à
liberdade”, é possível perceber um discurso que pertence à uma
comunidade de militância política, ou seja, cidadão que quer lutar
por seus direitos, que não se submete as injustiças políticas e
sociais e que busca sempre a melhoria de vida através dos direitos
de cada cidadão. Com isso, a interdiscursividade aqui ocorre
novamente, visto que esse discurso é retomado, é algo que não
pertence ao enunciador. É um discurso de lutas sociais, que
perpassa pela história e é trazido de novo através de Patativa do
Assaré.
A interdiscurso, conforme Santos (2016, p. 35), “é a
negação da divisão clássica entre tipos diferentes de discursos e,
ao mesmo tempo, a aceitação que dentro do mesmo espaço
discursivo coexistem discursos complementares, diferentes e até
mesmo antagônicos”. Assim, compreendemos que no espaço
discursivo do cordel “Nordestino, sim, nordestinado, não” de
Patativa do Assaré, a interdiscursividade ocorreu a partir da
coexistência de discursos que são retomados de lugares sociais
diferentes e que estes se relacionam, seja por semelhanças,
diferenças ou contrariedades.

5. Conclusão

Nosso estudo foi predominantemente norteado pelas


teorias de Dominique Maingueneau, mais especificamente, pela
categoria do interdiscurso – analisando como se apresenta a
interdiscursividade no discurso da Literatura de Cordel de
Patativa do Assaré, considerando os dizeres advindos de outros
lugares sociais – no que se refere ao cordel “Nordestino, sim,
nordestinado, não”.
Com isso, foi possível chegarmos as seguintes conclusões:
i) o interdiscurso se faz presente no cordel analisado, visto que
200 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

outras vozes que pertencem a formações discursivas distintas


(religiosa, política, etc) estão no discurso de Patativa e
relacionam-se intimamente, contribuindo para a construção do
sentido no discurso. ii) há presença de, no mínimo, duas
formações discursivas distintas em um mesmo espaço discursivo,
fortalecendo o pensamento de Maingueneau (1997) quando
afirma que no espaço discursivo há duas formações discursivas
que se relacionam, seja por semelhança ou contrariedade.
Portanto, acreditamos que esse estudo possa servir de
referência para o crescimento de trabalhos na área da Análise do
Discurso, bem como contribua para os estudos acerca da
Literatura de Cordel, afim de desmistificar a tradição popular que
vê essa Literatura com o prestígio menor com relação as demais.
Contudo, deixamos claro que esse estudo não se encerra aqui,
pois outras análises e aprofundamentos podem e devem serem
feitos afim de ampliar as pesquisas na área.

Referências

ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô. São Paulo: Hedra, 2005.

CHARADEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário


de análise do discurso. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016.

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Paulo: Claridade, 2010.

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PINHEIRO, Hélder. Cordel na sala de Aula. São Paulo: Duas


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POTIER ROBSON, William. O Sertão virou verso, o verso virou


sertão. Natal: Sol, 2013.

SANTOS, Ivanaldo. Análise do discurso pedagógico sobre a


religião: o interdiscurso e o ethos. Estágio Pós-Doutoral Sênior.
Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa.
São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
Capítulo XI
Questões epistemológicas do século XX
Francisco Roberto Diniz Araújo1
1. Introdução

O presente trabalho que aqui se inicia, tem o objetivo de


discorrer acerca das principais questões epistemológicas que
perpassaram os meados do século XX, por meio deumolhar
crítico e reflexivo mediante importantes teóricos da área, na
medida em que trazemos quatro posições acerca dessas questões.
A primeira posição diz respeito a uma breve introdução histórico-
filosófica mediante o positivismo lógico; o empirismo lógico e o
racionalismo crítico sob um olhar de Karl Popper (1967);
Thomas Kuhn (1971); Alan Chalmers (1971), dentre outros
teóricos de grande relevância para as finalidades do presente
estudo.
A segunda posição trata-se do processo da ciência, pelo
qual focamos um olhar nas categorias de Observação-Hipóteses-
Observação; Problema-Hipóteses-Dedução; Ciência Normal-
Crises-Novo Paradigma; Exploração-Encontro-Transformação.
A terceira posição diz respeito ao processo da verdade, se
compondo da verificação e comprovação; corroboração; êxito
descritivo-prescritivo e fulguração. A quarta e última trata-se do
método de descobrimos, pelo qual encontramos o método
indutivo; o salto criativo; a analogia e a participação. Todas essas
posições fazem partes dos processos que perpassam a construção
do conhecimento científico que aqui discutiremos embasados por
diferentes teóricos e conhecimentos.
Neste trabalho objetivamos a partir dos estudos e
pesquisas em torno da temática, discutir as estruturas, processos e
componentes do saber científico moderno; identificar temas e

1 Graduação em pedagogia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),


doutorando em Humanidades e Artes com menção em Educação pela Universidade
Nacional de Rosário (UNR), na Argentina. Atualmente é Professo do Plano Nacional
de Formação de Professores (PARFOR) na Universidade Estadual do Rio Grande do
Norte (UERN). E-mail: [email protected].
204 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

questões epistemológicas atuais, e as realidades que estas


implicam, bem como reconhecer e transmitir alguns modos de
saberes e procedimentos diversos mediante o conhecimento
científico moderno.
A epistemologia diz respeito aos estudos da Filosofia
mediante a origem, os métodos, a estrutura e a validade do
conhecimento, na medida em que tal realidade justifica que seja
chamada, muitas vezes, por filosofia do conhecimento. Dentre
um grande número de questões que a epistemologia procura
responder, podemos citar algumas bastante antigas, aquelas que
indagam acerca das diversas realidades que conhecemos e os
modos como às conhecemos, sem nos esquecermos das
indagações mediante a finalidade da ciência na nossa sociedade.
Com o passar dos anos, ao associar-se com a emergência de uma
ciência moderna, a epistemologia conquistou lugar de destaque
em meio aos estudos filosóficos.
Para compreendermos a epistemologia sob um olhar mais
simples e de fácil entendimento, podemos refletir que a
epistemologia refere-se ao estudo da produção do conhecimento
científico – podendo ser chamada, também, de Filosofia da
Ciência. No que compete aos epistemólogos, os profissionais que
trabalham com a epistemologia, estes durante o século XX,
tiveram como principal interesse e preocupação, investigar a
ciência e os elementos que a perpassavam, mais precisamente as
origens e os mistérios que a compusera.
Segundo Abdalla (2003):

Quando nos tornamos conscientes de nossa existência, a


beleza do cosmo abalou profundamente nossa mente. E
desde então a preocupação humana com o problema de
nossas origens é fonte de inspiração. [...] O início do
século passado marcou a história da humanidade pelo
surgimento de dois pilares do conhecimento moderno. A
relatividade de Einstein e a mecânica quântica
revolucionaram a maneira como percebemos o universo e
nosso papel na teia da vida da criação (ABDALLA, 2003.
p. 30).
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 205

Se pensarmos na história da epistemologia, perceberemos


que esta foi composta de duas escolas principais de pensamento
que a constituiu enquanto campo do saber, na medida em quese
referemàescola Racionalista e a escola Empirista. A escola
Racionalista detém de uma concepção pela qual acredita ser a
razão a principal responsável pela produção do conhecimento na
nossa sociedade, enquanto a escola Empirista defende a
experiência como principal elemento responsável por esse papel
no contexto vivido.
Para ambas as escolas no que diz respeito à discussão
epistemológica, o interesse principal encontra-se centrado na
compreensão do que cada escola defende, de modo a identificar
se tais os meios são condizentes com os fins. As discussões mais
céticas acreditam que devemos agir de como a não confiar
plenamente e cegamente em cada escola, mas que necessitamos
analisar as características principais destas, bem como a finalidade
social e científica de cada uma.
Desse modo, o presente trabalho nos possibilita obter um
olhar panorâmico mediante os principais teóricos e as principais
discussões epistemológicas decorrentes do século XX, na medida
em que o respectivo século foi marcado por uma série de
questões que se consolidaram nas diferentes instâncias da época,
o que resultouno surgimento de um grande número de teorias e
correntes em relação a produção e a evolução do conhecimento
científico daquela época – os quais veremos de forma mais
aprofundada nos tópicos que se seguem ao longo do trabalho.

2. Discussões e análises

Em relação às principais discussões que perpassavam os


estudos epistemológicos, damos ênfase inicial a Karl Popper
(1967), que em meados do século XX aparecia com suas ideias
ligadas ao racionalismo crítico, ao ponto que havia a
compreensão de que cabia ao homem deter de habilidades para
construir por si só o conhecimento científico.
O discurso que circulava na época em relação à ciência,
era o de que esta se distinguia da pseudociência por fazer uso do
206 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

método empírico, pelo qual configurava-se enquanto um método


indutivo e sendo necessária a utilização da verificabilidade em
diferentes casos.
Em relação a essa discussão, Popper (1967) critica a
verificabilidade, de modo que nos ressalta:

[...] o conceito positivista de «significado» ou «sentido» (ou


de verificabilidade, confirmabilidade indutiva, etc) não é
apropriado para realizar a demarcação entre ciência e
metafísica, simplesmente porque a metafísica não é
necessariamente carente de sentido, embora não seja uma
ciência (POPPER, 1967. p. 281).

A crítica adivinha pelo fato de que os estudiosos


indutivistas acreditavam na possibilidade de que poderiam
deduzir qualquer teoria científica por meio da observação, ao
ponto que defendiam este como principal elemento para
descrever o real estado das coisas, ou seja, viam a observação
como possibilitadorade processos que viessem a subsidiar a
construção do conhecimento científico.
Popper (1967) ao ir de encontro a tais postulados,
defende que qualquer afirmação teórica deve estar intimamente
ligada a prognósticos arriscados, na medida em que defende a
ideia de refutabilidade, compreendendo que toda teoria irrefutável
não faz parte do que se considera ser conhecimento científico, ao
ponto que toda teoria ciência está apta a ser refutada a qualquer
momento. Ainda segundo o teórico, “pode-se dizer,
resumidamente, que o critério que define o ‘status’ científicode
uma teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada”
(POPPER, 1967p. 66).
Se pensarmos em um exemplo claro e objetivo para
compreendermos o que seria uma teoria irrefutável, podemos
citar o caso da astrologia, que apresenta uma série de profecias
que podem explicar quaisquer coisas que venha a querer refutá-la,
ao ponto que suas teorias dificilmente vêm a falhar, o que a
caracteriza enquanto teoria irrefutável. Isso é o que Popper
(1967) considera ser a pseudociência citada na discussão inicial
desse texto.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 207

O que Popper (1967) propõe por meio da refutabilidade,


é a possibilidade de se estabelecer uma linha divisória mediante as
ciências empíricas e as demais existentes de caráter diversos. O
teórico acredita que a refutabilidade resolveria o problema
“demarcação” apontado pelas teorias indutivas.
Nessa perspectiva, as teorias indutivas encontravam-se
diretamente ligadas ao problema da demarcação segundo o
teórico, ao ponto que este ponto é algo exaustivamente discutido
por Popper (1967), na medida em que a lógica indutiva acredita
que pode-se justificar o fato de que certas teorias científicas
venham ser obtidas por meio de métodos indutivos, ou seja, pela
observação como aspecto anterior a consolidação das próprias
teorias.
Para Popper (1967), se pensarmos em explicar as
diferentes situações que perpassam o mundo como um todo,
devemos nos fazer-se utilizar de um procedimento de tentativas
diversas em busca de tais resultados, pois, o método das
tentativas nos auxilia na elaboração de conjecturas e refutações
para chegar a um determinado fim. Nas palavras do teórico:
“Precisamos propor teorias, ousadamente; tentar refutá-las;
aceitá-las tentativamente, se fracassarmos. Desse ponto de vista,
todas as leis e teorias são essencialmente tentativas, conjeturais,
hipotéticas – mesmo quando não é mais possível duvidar delas”
(POPPER, 1967. p. 81). Isso resultaria em um progresso
contínuo, que para Popper (1967) é uma característica peculiar
tanto das teorias racionais quanto das empíricas em relação à
construção do conhecimento científico, na medida em que com
esse caráter progressista distinguem-se da pseudociência, porém,
quando refere-se a esse processo de expansão, o teórico deixa
claro o fato de que não está referindo-se a mera acumulação, mas
sim a uma espécie de substituição das teorias que não causam
mais êxito, para outras de caráter mais satisfatória.
Em relação a essa discussão, conta-nos que

A história da ciência, como a história de todas as ideias


humanas, é feita de sonhos irresponsáveis, de erros e de
obstinação. Mas a ciência é uma das poucas atividades
humanas – talvez a única – em que os erros são criticados
208 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

sistematicamente (e com frequência corrigidos). Por isso


podemos dizer que, no campo da ciência, aprendemos
muitas vezes com nossos erros (POPPER, 1967, p. 242).

O que o teórico quer nos dizer, é que o erro está ligadoà


ideia de refutação, na medida em que toda e qualquer tentativa
está suscetívelao erro, pois, se faz uso de menos probabilidades,
enquanto aos estudiosos do indutivismo fazem uso de maiores
probabilidades a fim de verificarem a existência de certas
verdades teóricas.
Para Popper (1967), os critérios que perpassam a
construção do conhecimento científico, referem-se a ideia de que:

1. Toda e qualquer teoria que não está suscetível a ser


refutada, não deve ser considerada enquanto científica;
2. Todo e qualquer teste diz respeito a elaboração de
tentativas para refutar uma determinada teoria existente;
3. Descobrir novos fatos ligados a uma determinada teoria,
não quer dizer por si só que esta encontra-se comprovada,
mas sim que tende a ser corroborada por tais descobertas,
o que acaba por fortalecê-la, porém sem confirmar.

Concordando com o que é dito pelo teórico, Chalmers


(1988) ressalta que

A ciência começa com problemas, problemas estes


associados à explicação do comportamento de alguns
aspectos do mundo ou universo. Hipóteses falsificáveis
são propostas pelos cientistas como soluções para o
problema. As hipóteses conjeturadas são então criticadas e
testadas. Algumas serão rapidamente eliminadas. Outras
podem se revelar mais bem-sucedidas. Estas devem ser
submetidas a críticas e testes ainda mais rigorosos.
Quando uma hipótese que passou por uma ampla gama
de testes rigorosos com sucesso é eventualmente
falsificada, um novo problema, auspiciosamente bem
distante do problema original resolvido, emergiu. Este
novo problema pede a invenção de novas hipóteses,
seguindo-se a crítica e testes renovados. E, assim, o
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 209

processo continua indefinidamente (CHALMERS,1988. p.


73).

Nessa discussão, o teórico nos chama a atenção para a


ideia de que as hipóteses ou expectativas colocadas mediante um
determinado objeto, são precedentes aos problemas existentes, ao
ponto que tais problemas tendem aaparecer tão somente quando
surgem as dificuldades oriundas das próprias teorias.
O que os autores deixam claro, é a ideia de que a
observação não se constitui enquanto fonte do conhecimento, na
medida em que se caracteriza sempre de forma seletiva e não indo
ao encontro do estabelecimento, apenas, de uma percepção clara
de quem observa, pois, sempre há mais do que se imagina existir.
Toda e qualquer observação deve está imersa em expectativas e
hipóteses a serem testadas (POPPER, 1967; CHALMERS, 1988).
Outro grande teórico da área epistemológica do século
XX, é Thomas Kuhn (1971) que trata de conceitos como os de
ciência normal, paradigma, revoluções científicas, dentre outros
de grande relevância para a ciência como um todo. O teórico
chama atenção para a necessidade de um paradigma mediante o
desenvolvimento de determinada ciência, ao ponto que a ausência
pode acarretar numa espécie de atividade científica ao acaso. Aqui
ele constitui o seu caráter de demarcação, se pensarmos em
paralelo ao que é apontado por Popper (1967).
Kuhn (1971) ressalta que a ciência normal apresenta-se de
modo a caracterizar-se a partir de longos espaços de tempo de
pesquisa, na medida em que o objetivo principal passa a ser não
mais a busca pela novidade de teorias e fatos, mas para a junção
de diferentes teorias e fenômenos advindos pelo paradigma. Tal
articulação paradigmática apresenta-se em três perspectivas
distintas segundo o teórico:

1. Processo para investigar os principais fatos que subsidiam na


revelação da natureza das coisas;
2. Processo para investigar os principais fenômenos que
encontram-se integrados às profecias do paradigma;
210 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

3. Processo para desenvolver um intenso trabalho empírico para


integrar a teoria paradigmática com os determinantes universais
que estão em vigor na nossa sociedade.

A ciência normal para Kuhn (1971) apresenta alguns


problemas teóricos que consistem em fazer uso das teorias
existentes para predizer determinadas informações factuais, com
a finalidade de alcançar diferentes aproveitamentos para o
paradigma em ação, ao ponto que isso recai numa espécie de crise
paradigmática, havendo a necessidade de uma mudança de
paradigma.
Os três focos apresentados pelo teórico nos faz refletir
acerca da existência de uma série de problemas que limitam
segundo Kuhn (1971) as teorias da ciência normal, na medida em
que defende a não necessidade de novidades, mas sim de um
aumento significativo da precisão paradigmática. Nas palavras do
teórico: “issorequer a solução de todo tipo de complexos quebra-
cabeças instrumentais,conceituais e matemáticos. O indivíduo que
é bem sucedido nessa tarefa prova queé um perito na resolução
de quebra-cabeças (KUHN (1971. p. 59). Tais problemas
requerem, assim, o surgimento de teorias e paradigmas novos
medianteuma espécie de transição paradigmática, pelo qual se dá
início a uma revolução científica. Essa crise de paradigmas
existente na nossa sociedade, faz-nos perceber que todo e
qualquer ponto de mutação requer um estado de mudança de
uma coisa para outra, ou seja, de algo velho para algo novo que
atenda as demandas atuais da sociedade, porém, isto não é algo
fácil nem tampouco instantâneo de acontecer, pois, requer
primeiramente, uma mudança de percepção do sujeito mediante
sua visão de mundo.
Segundo Kuhn (1971):

A transição de um paradigma em crise para um novo, do


qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está
longe de ser um processo cumulativo obtido através de
uma articulação do velho paradigma. É antes uma
reconstrução de área de estudos a partir de novos
princípios, reconstrução que altera algumas das
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 211

generalizações teóricas mais elementares do paradigma,


bem como muitos de seus métodos e aplicações (KUHN,
1971. p. 12).

O que o teórico quer nos dizer com essa discussão, é que


com a emergência da existência de tantas novas teorias, um grande
número de práticas científicas são rompidas, ao ponto que surge,
assim, a introdução de outra tradição distinta da até então existente e
em vigor. É a revolução científica segundo Kuhn (1971).
Tal revolução científica diz respeito, assim, a um intenso
processo de mudanças de cunho conceitual e prático, ao ponto que
tende a transformar o modo como os cientistas vêem o mundo nas
suas mais diferentes dimensões. Essa existência de um novo
paradigma leva-nos a refletir que o paradigma que emerge já há
algum tempo, requer que saibamos que a necessidade de uma nova
compreensão da organização das relações existentes no mundo e
seus efeitos para com este, é condição do ser humano, ao ponto que
somos resultado das interações decorrentes do espaço em que
vivemos, e, portanto indissociável ao funcionamento deste.
Desse modo, assim como Popper (1967) e Chalmers (1988),
Kuhn (1971) acredita e defende que a mera observação não leva a
construção do conhecimento científico em si e das teorias, pois
apresenta-se enquanto não-neutra e precedida de diferentes
pressupostos. Compreendendo, assim, o paradigma enquanto um
anexo de crenças e conceitos, o teórico concorda com os demais
aqui apresentados ao longo do texto. Ambos defendem a ideia de
que o indutivismo por si só não se sustenta na nossa sociedade
mediante as diferentes demandas e contextos que esta apresenta.

3 Considerações Finais

Ao fim desse texto, compreendemos que refletir acerca das


principais questões epistemológicas de determinado século não é
tarefa fácil nem tampouco simplória, pois, na medida em que se faz
um levantamento dos principais teóricos que discutem a temática,
percebe-se a imensidade de discussões e pontos de vistas que estes
apresentam a partir de suas diferentes experiências e opiniões
diversas.
212 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Acreditamos que por mais que os teóricos aqui discutidos –


bem como outros presentes nas diferentes discussões da área –,
tenham pontos de convergência e divergência em determinadas
situações, que estes detêm de um ponto de interesse em comum que
os levam a exercer diferentes papéis e elaborar diversas teorias acerca
de fenômenos da nossa sociedade – tal ponto trata-se do interesse
comum pela origem do conhecimento científico.
A ciência perpassa os seus interesses de ambos os teóricos
aqui discutidos, na medida em que cada um apresenta as suas
particularidades de modo a constituir um campo peculiar e relevante
para o desenvolvimento das compreensões em torno da origem do
conhecimento científico nas mais diferentes instâncias da sociedade.
Portanto, é preciso estabelecer uma relação de proximidade
significativa e constante entre os estudantes das diversas áreas com a
construção do conhecimento científico, pois, na medida em que
determinados sujeitos colocam-se a pesquisar situações e objetos
diversos do nosso cotidiano, estes estão praticando ciência, estão
buscando a origem do conhecimento científico caracterizado em
diversas áreas da sociedade. O que faz a educação ser uma tarefa de
íntima relação com a investigação científica e formação do
investigador nas mais diversas áreas do conhecimento – como os
teóricos apontados nesse estudo.

Referências

ABDALLA, Élcio e CASALI, Adenauer Girardi. Cordas, dimensões


e teorias M. Edição Brasileira da Scientific American, Ano 1, n.
10, março 2003.

CHALMERS, Alan. Qué es essa cosa llamada ciência?, Ed. Siglo


XXI, Buenos Aires, 1978.

KUHN, Thomas. La estrutura de las revoluciones científicas.


Primera edición en español (FCE, México), 1971.

POPPER, Karl. Conjeturas y refutaciones. La lógica de la


investigación científica. Buenos Aires: Paidós, 1967.
Capítulo XII
Ética personalista, ética ambiental e os
novos aportes da Laudato Si
Wambert Gomes Di Lorenzo1
1. Introdução

Este ensaio tem como objeto a fundamentação da ética


ambiental a partir da antropologia personalista, daquela que
quebra o paradigma individualista e antropocêntrico e afirma da
dignidade da pessoa e a dignidade decorrente de todas as coisas.
Também apresenta, ainda que de forma sucinta a contribuição da
Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, o mais atual e talvez mais
completo texto de ética ambiental produzido.
Para tal, está dividido em duas partes, na primeira
comenta o antropocentrismo como cerne de uma crise do
homem e do mundo e as consequências desse modelo
antropológico na produção da crise ambiental atual. Apresenta o
conceito de pessoa humana, sua definição, descrição e natureza,
partindo desde a antropologia cosmológica de Aristóteles. Ainda,
apresenta o conceito de ecologia integral, como dedução do
humanismo integral de Jacques Maritain e aplicação concreta da ética
personalista. Visita também a condição humana de Hannah Arendt
para demonstrar o meio ambiente como síntese da dialética entre
a natureza e a cultura.
Na segunda parte, apresenta princípios extraídos da
Encíclica Laudato Si’, alguns revelados por ela como novos
pontos de referência para o debate, tais como: princípio da dignidade
das todas as coisas, princípio da destinação universal dos bens, princípio de
Pirro, princípio de responsabilidade e princípio de implicação; e, o princípio
da solidariedade entre gerações que, ainda que tenha sido positivado na
Declaração de Estocolmo, é aprofundado e fundamentado em

1 Doutor em direito, professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade


Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e do Programa de Pós-graduação em Direito
da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Atualmente exerce o cargo de vereador na
cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected],
[email protected], [email protected].
214 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

conexão com o princípio de justiça intergeracional o qual, devido à


necessidade de maior espaço expositivo e argumentativo, ficará
fora do presente ensaio.

2. Antropocentrismo e a crise do homem e do mundo

Toda ética pressupõe uma antropologia. Em particular,


quando se trata de ética ambiental, o ponto de partida de todo
ordenamento é o lugar do homem no cosmos e os parâmetros
normativos das suas relações com a natureza que dele decorrem.
Mas homem, é um substantivo genérico que designa um animal,
enquanto pessoa é, na expressão de Robert Spaemann, um nomen
dignitatis que expressa um ser único, singular, infinito em si que
concretiza o ser humano. A pessoa é a humanidade
individualizada. Mas, não obstante distintos, homem pessoa são
termos que se completam. Distinguir para unir, como propõe
Jacques Maritain, é o propósito desta primeira parte.

2.1. O que é o homem?

Homem deriva do latim homo, que tem raiz em humus –


terra – e no ablativo humo – da terra. Há uma clara coincidência
com a tradição judaica pois Adão,2 é aquele que foi feito argila.3 E
que como todo homem, vem do pó (ou da terra) e ao pó voltará,
como afirma o Gênesis: pois tu és pó e ao pó tornarás4; também
Kohelet: tudo vem do pó e tudo volta ao pó;5 Jó: o homem voltaria a ser pó;6
e o salmista: voltando ao seu pó.7

2 Do hebraico, o homem: adam, que vem do solo: adamah. Substantivo comum que se
tornou o nome próprio do primeiro homem (Cf. nota t de Gn 2, 27. de A Bíblia de
Jerusalém.). Adão ainda ligado aos vocábulos hebraicos adamá: solo vermelho; adom:
vermelho; e, dam: sangue. Todos os textos bíblicos aqui referidos são da tradução direta
do grego, hebraico e aramaico de: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.
3 Cf. Gn 2,7.
4 Gn 3,19.
5 Ecl 3, 20b.
6 Jó 34, 15.
7 Sl 104, 29b.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 215

Homem é, portanto, uma espécie biológica incluída no


gênero animal.8 Homo é também gênero da espécie homo sapiens,
pertencente à ordem primates e ao reino animalia. No grego, o
termo correspondente é άνθρωπος – anthropos. Aristóteles também
classifica anthropos como ζῷον – zôon, animal – identificando-o
com seu gênero próximo – animal –, mas distinguindo-o a partir
de sua diferença específica: ζῷον λογικόν – zôon logikón, animal
racional. Tomás de Aquino, também afirmou que o termo animal
se aplica propriamente ao homem.9 Edith Stein define animal
como um ser capaz de sentir e de se locomover livremente no
espaço.10
Karol Wojtyła denominou de antropologia cosmológica a
grande contribuição de Aristóteles para a antropologia
personalista que, aproximando o ser humano do seu gênero
próximo descreveu, ainda que de forma exordial, o seu lugar no
cosmos e sua relação com a φύσις – physis, a natureza.

2.2. A antropologia cosmológica

Entretanto, essa antropologia aristotélica, que em outro


lugar denominei antropologia animalista,11 e que é definida por Karol
Wojtyła como cosmológica teve o mérito de separar a espécie –
anthropos – do gênero mais próximo – zôon, mas permanece
incompleta por não determinar o que é irredutível ao homem,
ainda que tenha o mérito de analisar o homem a partir do
cosmos.12
É apenas na clássica definição de pessoa de Boécio, que
veremos mais adiante, que se encontra o primeiro esboço do que

8 Cf. SPAEMANN, Robert. Personas: acerca de la distinción entre “algo” y


“alguien”. Pamplona: EUNSA, 2000. p. 30.
9 Cf. AQUINO, Tomás de. Summa Theologiae. I, q. 76, a. 3, resp.

10 STEIN, Edith. La estructura de la persona humana. Madrid: BAC, 2003. p. 53.

11 Cf. Di LORENZO, Wambert Gomes. Teoría del Estado de Solidaridad. De la

dignidad de la persona humana a sus corolarios. Buenos Aires: Club de Lectores,


2013. p. 50.
12 Cf. WOJTYŁA, Karol. El hombre y su destino. Madrid: Palabra, 2005. p. 27.
216 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

é irredutível ao ser humano13 e a primeira distinção entre a


antropologia cosmológica e a antropologia personalista, pois, se a
antropologia cosmológica pretende compreender o ser humano
no mundo, a antropologia personalista pretende compreender o
ser humano em si mesmo.14
Não obstante a contribuição aristotélica, uma ética
decorrente apenas de sua antropologia animalista é insuficiente
para responder as questões do nosso tempo. Em particular, ao
reduzir a compreensão do ser humano a sua animalidade, ainda
que o localize no cosmos, é incapaz de compreender o que lhe é
irredutível: que é sua natureza, tendente a uma plenitude anímica
e corpórea, e que tem a necessidade de construir seu mundo a
partir de si mesma.
É essa condição humana que leva Hannah Arendt a
distinguir homo faber – aquele que trabalha – de animal laborans –
aquele que vive. O homo faber é, portanto, aquele que faz, que
trabalha sobre, e constrói o conjunto de objetos que forma o artifício
humano.15 Para entender melhor, importa descrever que Hannah
Arendt afirma labor, trabalho e ação como as condições básicas
mediantes as quais foi dada do homem a vida sobre na terra.16 Sendo,
assim, a condição humana do labor a própria vida, a condição
humana do trabalho a mundidade e, a condição humana da ação, a
pluralidade.17 Estas três atividades – labor, trabalho e ação – e as suas
condições – vida, mundanidade e pluralidade – implicam as
condições mais gerais da existência humana: a natalidade e a

13 Cf. Id. Ibid. p. 30.


14 Cf. Id. Ibid. p. 34.
15Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 149
16 ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 15.
17 Para Hannah a vida como condição humana do labor corresponde ao processo
biológico do corpo humano e diz respeito às necessidades vitais produzidas e
introduzidas no processo da vida; a mundanidade como condição humana do trabalho
corresponde ao artificialismo da existência humana, ao mundo artificial claramente
distinto de qualquer ambiente natural onde habita cada vida individual; e, a pluralidade,
enquanto condição humana da ação, diz respeito à atividade exercida diretamente entre
as pessoas, sem a mediação de coisas ou da matéria, e ao fato de que pessoas, e não o
homem, vivem sobre a terra. (Cf. Id. Ibid.)
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 217

mortalidade.18 O labor garante a vida do indivíduo e a


sobrevivência da espécie; o trabalho enfrenta o problema da
futilidade da vida humana e da efemeridade da sua duração; e a
ação opera nas relações sociais e é a atividade política por
excelência.19
Entretanto, essa condição humana vai além do dado e das
circunstâncias necessárias à vida, pois o ser humano é um ser
necessariamente condicionado, e tudo aquilo que ele toca torna-se
imediatamente uma condição de sua existência.20 Assim, o mundo
propriamente humano é constituído do artefato humano, daquilo
que é produzido pelo próprio homem a partir das mesmas
condições naturais que a ele são dadas pela terra e que tem a
mesma força de condicionar sua existência.21 O mundo objetivo e
a complementaridade entre objetos naturais e objetos culturais
impactam diretamente a vida humana, condicionando sua
existência.
Dessa maneira, a condição humana é, portanto, uma
síntese entre a natureza e a cultura. Daquilo que foi dado pela
terra e daquilo que foi construído a partir dela. É uma relação de
complementaridade em que o mundo objetivo é constituído de
coisas essenciais à existência humana, mas que, sem essa mesma
existência, tais coisas não teriam sentido em si mesmas.
O consumo é, portanto, circunstância da mundanidade, já
que o homo faber não fabrica sem a matéria, mas trabalha sobre. Para
ele, tudo é meio e está nessa sua relação com mundo objetivo a
causa do utilitarismo antropocêntrico22 e do relativismo prático
que o papa Francisco denuncia como mais perigoso para a
humanidade que o relativismo teórico. 23

18 Cf. ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 16.


19 Cf. Id. Ibid.
20 Id. Ibid.
21 Cf. Id. Ibid.
22Segundo Hannah Arendt o utilitarismo antropocêntrico do homo faber encontrou sua mais alta
expressão na fórmula de Kant: nenhum ser humano deve ser tornar meio para um fim; todo ser
humano é um fim em si mesmo. Id. Ibid. p. 168.
23 Francisco. Laudato Si’. § 122,
218 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Para o homo faber tudo se torna instrumento para o


trabalho e meio para a fabricação. Nesse sentido, os fins não
apenas justificam, mas produzem e organizam os meios.24
Justificam, produzem e organizam toda violência contra a
natureza para a obtenção da matéria necessária. Tudo é ordenado
a partir da finalidade, do produto final.
Há quem aceite como suficiente uma animalização do
homem e compreenda como completa uma teoria antropológica
que o reduza ao seu gênero biológico. Ainda, quem deduza desta
antropologia dita animalista padrões e sistemas éticos.
A palavra ser tem um significado diferente para pessoas e
animais.25 O ser para a pessoa significa plenitude, para o animal
significa existência. Portanto, o ser da pessoa é viver, enquanto o
ser do animal é existir. O animal permanece indiferente ao
sentido de plenitude do homem e também não relativiza ou
absolutiza a si mesmo.26 Por isso, não existe a morte para o
animal. Só as pessoas morrem.27 Os animais, ao contrário, são
imortais. Para Hannah Arendt, imortalidade significa
continuidade no tempo.28 As pessoas são os únicos seres
verdadeiramente mortais em virtude de que a sua existência, ao
contrário da dos animais, não se dá apenas como parte de uma
espécie cuja imortalidade se dá pela procriação.29 A exclusividade
de cada pessoa faz dela o ser mortal que é. Já a generalidade de
um animal e sua individualidade vazia, meramente material, torna-
o imortal no tempo.
A antropologia cosmológica, com seus contributos e suas
limitações, oferece os fundamentos da antropologia personalista.
Pois, como dito, enquanto a primeira busca a compreensão do

24 Id. Ibid. p. 166.


25 Cf. SPAEMANN, Robert. Personas: acerca de la distinción entre “algo” y
“alguien”. Pamplona: EUNSA, 2000. p. 79.
26Cf. SPAEMANN, Robert. Felicidade e Benevolência: Ensaio sobre ética. São Paulo:
Loyola, 1996. p. 142.
27 Cf. SPAEMANN, Robert. Personas... cit. p. 121.
28 Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 26.
29 Cf. Id. Ibid. p. 27.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 219

homem no mundo, a segunda busca a compreensão do homem


em si mesmo,30 sendo a compreensão personalista do ser humano
uma interpretação da sua dimensão cosmológica.31
O personalismo propõe uma compreensão do homem
baseado na experiência, afirmando-o como um eu concreto, um
sujeito que tem a experiência de si mesmo.32 Trata-se de uma
teoria prática sobre o homem que se baseia em uma dupla visão:
uma teoria que indaga e uma prática que muda.33 Enquanto teoria
antropológica, afirma que todo homem é pessoa;34 enquanto ética,
determina uma não-indiferença em face do outro; e, enquanto teoria do
Estado, pratica um humanismo político.35

2.3. O que é a pessoa humana?

O termo pessoa vem do latim persona, quer por sua vez é


a tradução da palavra grega πρόσωπον – prosopón, máscara, mas que
também pode ser relacionada à natureza – ὑπόστᾰσις, hypostase.
Prosopon e persona eram as mascaras que os atores do
mundo clássico utilizavam no teatro, também eram expressões
utilizadas desde o estoicismo para designar os papéis que os
homens desempenhavam na vida, isto é, um conjunto de relações
que unem um homem a uma situação qualquer e o definem a
partir dela. Não obstante, os filósofos latinos priorizaram o
sentido de substância em detrimento ao sentido de relação – papel.
Para evitar a associação de pessoa com máscara, os próprios
filósofos gregos passaram a utilizar hypostase, o que fortalece a
ideia de substancialidade, interpretação que terá como grandes

30 Cf. WOJTYŁA, Karol. Cit. p. 35.


31 Cf. Id. Ibid. p. 34.
32 Cf. Id. Ibid. p. 32.
33 Cf. Del BARCO, José Luis. Teoría Práctica de la Persona. In: SPAEMANN, Robert.
Personas: acerca de la distinción entre “algo” y “alguien”. Pamplona: EUNSA,
2000. p. 14.
34 Cf. Id. Ibid. 16.
35Expressão original de Maritain. Cf. Os Direitos do Homem e a Lei Natural. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1967. p. 51.
220 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

expoentes Agostinho de Hipona36 (354-430) e Severino Boécio


(475-524).
Tomás de Aquino, entretanto, afirmará que o próprio
Boécio consentia que tudo atinente à pessoa significasse relação.37
No mesmo sentido, Maritain afirma que mascara é a primeira
acepção do vocábulo persona em Boécio, no qual pretende
designar a pluralidade humana expressa na multiplicidade de
indivíduos.38
Não obstante, Spaemann, reconhece a relação com parte
do triplex natura personarum e o demonstra a partir da gramática
grega e da latina nas quais a condição relacional da natureza
humana se expressa ao classificar o pronome pessoal em três
pessoas, que nada mais são que os três papéis da pessoa.39 Pessoa
é relação e, sendo assim, o eu, esta individualidade metafísica da
pessoa, é consequência direta do outro. É a partir do que a pessoa
não é – o outro – que lhe é revelado o que é – uma substância
individual. Daí, a célebre fórmula de Tertuliano sintetizar o
necessário conteúdo relacional do conceito de pessoa: Quis
loquitur? De quo loquitur? Ad quem loquitur?40
Além de relação, o termo pessoa revela também uma
natureza muito bem expressa na síntese elaborada por Boécio:
Persona est rationalis naturae individua substantia.41 Para Boécio, há
quatro conceitos de natureza: realidades inteligíveis, substâncias
materiais, substâncias imateriais e corpos artificiais – as
essências.42 É no último sentido que ele aplica o conceito de
natureza ao de pessoa. Ao defini-la, Boécio afirma a sua essência.
Segundo Wojtyła, a clássica definição de Boécio expressa,
sobretudo, a individualidade do homem enquanto ser substancial

36Agostinho afirma que pessoa significa simplesmente substância. Cf. A Trindade,


VII, 6.
37 Cf. S. T. I, q. 29, a. 4, c. s.
38Cf. MARITAIN, Jacques. Por una filosofía de la persona humana. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1967. Buenos Aires: Club de Lectores, 1981. p. 160.
39 Cf. SPAEMANN, Robert. Personas... cit. p. 42.
40 Quem fala? De quem se fala? A quem se fala? Ad Praxean 1,4. Apud: Id. Ibid. p. 45.
41 Pessoa é uma substância individual de natureza racional.
42 Cf. SPAEMANN, Robert. Personas… Cit. p. 47.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 221

que possui uma natureza racional, e não um todo específico da


sua subjetividade.43 Ressalta a importância da diferença
fundamental da definição aristotélica de homem enquanto animal
racional e da definição boeciana de pessoa. Em Aristóteles, a
redução do homem ao mundo é obtida definindo-o a partir do
gênero mais próximo: animal. Tal definição está ausente em
Boécio.44

2.4. Antropocentrismo e personalismo

Há consenso de que a questão ambiental tem raízes


antropológicas e que é consequência direta do antropocentrismo
moderno ao qual Jacques Maritain chamou de humanismo
inumano.45 Entretanto, ao desafio do antropocentrismo não se
apresentou qualquer ordenamento ético que de forma integral
ofereça resposta razoável ao problema ético ambiental. Há todo
tipo de proposições: alguns seguem apegados ao atomismo
individualista liberal e a uma visão securitária de prevenção
ambiental; há quem dê respostas panteístas e proponha uma
divinação da natureza como fundamento ético de uma sacralidade
de todas as coisas a partir de uma divindade imanente no cosmos;
há quem defenda uma igualdade entre a dignidade humana e a
dos demais seres da natureza, quando não uma inferioridade da
própria dignidade humana em face das demais; e, ainda, quem
defenda a extinção do homem como única solução para salvar o
planeta. É em tal contexto que a ética personalista vem propor a
centralidade da pessoa em oposição à centralidade do indivíduo e
a consequente dignidade de todas as coisas em oposição ao
antropocentrismo utilitarista.
A relação principal do antropocentrismo e seu atomismo
individualista com a questão ambiental é o relativismo prático que,
como dito acima, o Papa Francisco afirma ser mais perigoso que
o doutrinal, pois

43 Cf. WOJTYŁA, Karol. Cit. p. 30.


44 Cf. Id. Ibi. p. 30, nota 4.
45 MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral. São Paulo: Dominus, 1936.
222 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

[...] quando o ser humano se coloca a si mesmo no centro,


termina dando prioridade absoluta as suas conveniências
circunstanciais, e todo o demais se torna relativo [...] onde
tudo se torna irrelevante se não serve aos próprios
interesses imediatos. [...] uma lógica que permite
compreender como se alimentam mutuamente diversas
atitudes que provocam ao mesmo tempo degradação
ambiental e degradação social.46

A ética personalista coloca o ser humano para exercer


seu papel na ordem natural, revelando para ele que seu domínio
sobre a natureza não se dá como senhor absoluto da criação ou
um ser dominante e destrutivo, mas como alguém que é chamado
a lavrar e cuidar do jardim do mundo. 47 O fato de que lavrar significa
cultivar, arar ou trabalhar e, que, cuidar significa proteger, custodiar,
preservar, guardar e vigiar, implica a relação de reciprocidade
responsável entre a pessoa e a natureza.48 O zôon logikón, o único
ser dotado de inteligência tem o dever de respeitar as leis da
natureza e os delicados equilíbrios entre os seres da Terra. O
personalismo não dá lugar a um antropocentrismo despótico que se
desinteressa das demais criaturas. 49
Francisco recorda que um antropocentrismo
desordenado plasma um estilo de vida desordenado, gera aquele
relativismo prático50 que Maritain descreve como um processo de
despersonalização, como um declive do centro de gravidade do
ser humano até o submundo dos instintos e dos desejos,51 pois,
quando o homem crê que ele próprio é o centro do homem, e
assim, de todas as coisas, submerge em uma concepção
naturalista de si mesmo e da liberdade. 52

46 Francisco. Laudato Si’. § 122


47 Cf. Gn 2, 15.
48 Francisco. Laudato Si’. § 67
49 Cf. Id. Ibd. § 68
50 Id. Ibid. § 122
51 MARITAIN, Jacques. Op. Cit. p. 24.
52 Id. Ibid. p. 23.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 223

2.5. Humanismo integral e ecologia integral

Ecologia integral é ética personalista por metonímia e procede


do humanismo integral que, por sua vez, é antropologia personalista
também por metonímia. Portanto, assim como o personalismo é
um humanismo integral, a ética personalista aplicada é uma ecologia
integral.
Não existe uma questão meramente ambiental, porquanto
há uma questão socioambiental, mas uma crise que atinge o ser
humano de maneira integral e que exige, como propõe Francisco,
uma ecologia integral que incorpore claramente as dimensões humanas de
sociais53 da crise ambiental. Uma ecologia que é, ao mesmo tempo,
ecológica, ambiental, econômica, social, cultural e cotidiana. Uma
ecologia que reconheça a pessoa como parte integrante da ordem
natural que constitui a natureza em si e que nada existe
isoladamente ou que exista qualquer coisa desconectada dos
demais seres do planeta:

O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem


os próprios átomos ou as partículas subatômicas se
podem considerar separadamente. Assim como os vários
componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos –
estão relacionados entre si, assim também as espécies
vivas formam uma trama que nunca acabaremos de
individuar e compreender. 54

Destarte, como afirmei em outro lugar, o meio ambiente


é uma síntese dialética entre a natureza e a cultura,55 o que impede-
nos de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera
moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e
compenetramo-nos. 56
Tal ecologia integral afirma a importância da saúde das
instituições e seus impactos no bem estar da pessoa. Como

53 Francisco. Laudato Si’. § 137


54 Id. Ibid. § 138
55 Di LORENZO, Wambert….
56 Francisco. Laudato Si’. § 139
224 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

afirma Bento XVI, toda lesão da solidariedade e da amizade cívica


provoca danos ambientais.57
Desde a perspectiva do princípio de subsidiariedade, uma
ecologia integral e social é necessariamente institucional e alcança
progressivamente as distintas dimensões que vão desde o grupo social
primário, a família, passando pela comunidade local e a nação, até a vida
internacional. 58
Uma ecologia integral também considera a importância do
patrimônio cultural da humanidade e, por isso, a ecologia envolve
também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido
mais amplo (...) não só como os monumentos do passado, mas especialmente
no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na
hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente. 59
Considera também a qualidade de vida humana nos espaços onde
transcorre a existência das pessoas: a habitação, a casa, o lugar do
trabalho, os bairros e todos os ambientes que expressam sua
identidade.60

3. Princípios personalistas de ética ambiental

É do principio fundamental da dignidade da pessoa


humana que se deduzem os princípios corolários de ética
ambiental alguns deles revelados ou outros já consagrados que
tiveram seus fundamentos aprofundados na Encíclica Laudato Si’,
a saber: principio da dignidade de todos os seres, princípio do bem comum,
princípio de subsidiariedade, princípio de solidariedade entre as gerações,
princípio de justiça entre as gerações, princípio da destinação universal dos
bens, princípio da ecologia integral, princípio da igualdade, princípio de
implicação, princípio de Pirro e princípio da responsabilidade. Desses,
devido ao limite do espaço, vamos apresentar suscintamente
alguns dos que são revelados na Laudato Si’: princípio da dignidade
das todas as coisas, princípio da destinação universal dos bens, princípio de

57 Bento XVI. Caritas in veritate. § 51.


58 Francisco. Laudato Si’. § 142
59 Id. Ibid. § 143
60 Id. Ibid. § 147
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 225

Pirro, princípio de responsabilidade e princípio de implicação. O princípio da


solidariedade entre gerações, que tem seus fundamentos aprofundados
pela encíclica, em conexão com o princípio de justiça intergeracional,
requer um ônus expositivo que o presente espaço não permite.

3.1. A dignidade de todas as coisas

Decorre da própria dignidade da pessoa humana a


dignidade de todas as coisas que impedem de pensar nas distintas
espécies só como eventuais ‘recursos exploráveis’ esquecendo que elas têm valor
em si mesmas.61 A terra e a natureza precedem a humanidade e a
relação do ser humano com elas não é de propriedade, mas de
pertença a elas que, amavelmente, permitem ao ser humano retirar o
que necessita para a sua sobrevivência, mas também exige o dever
de protegê-la e de garantir a continuidade de sua fertilidade para
as gerações futuras. 62 A humanidade não é proprietária absoluta
da terra, mas hóspede, e cada pessoa deve viver como inquilino e
não como dono. Afirma o Papa Francisco: isso provoca a convicção de
que, sendo criados pelo mesmo Pai, todos os seres do universos estamos unidos
por razões invisíveis e conformamos uma espécie de família universal, uma
sublime comunhão que nos move a um respeito sagrado, carinhoso e humilde.
63

3.2. A destinação universal dos bens

É consenso que a terra é essencialmente uma herança comum,


cujos frutos devem beneficiar a todos, 64 o que implica que todo o anseio
ecológico deve incorporar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos
fundamentais dos mais relegados.65

61 Id. Ibid. § 33.


62 Id. Ibid. § 67.
63 Id. Ibid § 89.
64 Id. Ibid. §93.
65 Id. Ibid.
226 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

O princípio da destinação universal dos bens expressa-se


também pelo princípio da subordinação da propriedade privada ao destino
universal dos bens, sendo o direito universal ao uso desses bens uma
regra de ouro da vida social ou, como afirma São João Paulo II, o
primeiro princípio de todo o ordenamento ético-social;66 por outro lado, a
ética personalista jamais reconheceu como absoluto ou intocável
a propriedade privada. Ainda, nas palavras de São João Paulo II,
não seria verdadeiramente digno do homem um tipo de
desenvolvimento que não respeite ou promova os direitos
humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluídos os
direitos das nações e dos povos.67
O princípio da destinação universal dos bens não derroga
o legítimo direito à propriedade privada, mas ensina, não com menor clareza,
que sobre toda propriedade privada pesa sempre uma hipoteca social. 68
Outrossim, a propriedade privada é conteúdo da liberdade e
instrumento importantíssimo da dignidade da pessoa e sua grande
importância está na complementaridade com sua função social. A
função social não se opõe ao direito de propriedade, mas é constitutivo
do próprio conceito de propriedade.

3.3. A solidariedade entre as gerações

O princípio que veda que o custo da vida presente seja


descarregado nas gerações futuras e nos obriga a assumir a
responsabilidade de seu bem-estar é o princípio da solidariedade
entre as gerações. Tal princípio manifesta-se em muitas dimensões
do existir humano, mas aqui se aplica a questão ambiental de
forma muito particular e é legislado na Declaração de Estocolmo
em seu princípio 3.
De forma muito peculiar, laços de solidariedade vinculam
pessoas de gerações diferentes. É também um fato natural que
neles têm na família sua manifestação mais primitiva e elementar.

66 João Paulo II. Laborem Exersens, §19.


67 João Paulo II. Sollicitudo Rei Socialis, §33.
68João Paulo II. Discurso aos indígenas e agricultores do México, em Cuilapán (29 de Janeiro
de 1979).
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 227

A primeira manifestação está na procriação que é um fato natural


que na pessoa humana assume dimensões morais.
Diferentemente de outras espécies, a procriação cria laços
indissolúveis entre os seres humanos de gerações distintas. São
vínculos de responsabilidade que geram deveres objetivos para
com o bem comum futuro e com a dignidade de pessoas que
sequer existem.
Este dever objetivo com as gerações futuras se expressa
no esforço da educação, da formação, pelo acúmulo de bens, pelo
nome, a honra e o pudonor genético que passam as ser
patrimônio comum de gerações distintas.

3.4. O princípio de Pirro

O nome deste princípio é uma referência a expressão


vitória de Pirro que adjetiva aquelas vitórias com sabor de derrota
que, devido ao seu altíssimo custo, resultam em grande perda
para o vencedor. Pirro era rei de Epiro e havia vencido duas
sangrentas batalhas, em 280 e 279 a.C. (Heraclea e Asculo) contra
os romanos, nas quais morreram todos seus amigos e há
praticamente perdido seu exército, sendo parabenizado pela
vitória, segundo a tradição ele teria respondido: outra vitória como
essa e eu voltarei só para casa.
Em ética ambiental, o princípio de Pirro sugere uma postura
mais crítica em relação ao progresso que não é, em si, um valor
absoluto, mesmo porque, como se lê em Laudato Si', a ciência e a
tecnologia não são neutras, senão que podem implicar desde o começo até o
final de um processo diversas intenções ou possibilidades, e podem configurar-
se de distintas maneiras. Ninguém pretende voltar à época das cavernas, mas
se é indispensável mitigar a marcha para olhar realidade de outra maneira,
recolher os avanços positivos e sustentáveis, e por sua vez recuperar os valores
e os grandes fins arrasados por um desenfreio megalómano. 69

69 Francisco. Laudato Si’. § 114.


228 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

3.5. O princípio de implicação

São João Paulo II, ressaltava os benefício dos avanços


científicos e tecnológicos, que manifestam quão nobre é a vocação do
homem de participara da ação criadora de Deus, mas ao mesmo tempo
recordava que toda intervenção em uma área do ecossistema deve considerar
suas consequências em outras áreas. 70 Não se nega, afirmava, a
importância do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada
com outras disciplinas, como a genética, e sua aplicação tecnológica na
agricultura e na indústria. 71 Não se trata de frear a criatividade
humana, mas não se pode deixar de repensar os objetivos, os
efeitos, o contexto e os limites éticos desta atividade humana que
é uma forma de poder com altos riscos. 72
Um exemplo concreto são os arquipélagos-nações que
não poluem, mas correm o risco de desaparecer submersos pelos
oceanos, se comprovada a tese do aquecimento global e suas
consequências. Outro, a catástrofe ambiental do rompimento das
barragens de resíduos de mineração em Mariana que, além da
bacia hidrográfica do Rio Doce, comprometeu todo o
ecossistema da margens do Atlântico no litoral do Espírito Santo.
Não há dano ambiental isolado. Qualquer dano ambiental é dano
a casa comum e, portanto, de todos, implica todos que vivem nela.

3.6. O princípio de responsabilidade

O princípio de responsabilidade implica os deveres do


autor de uma conduta em razão dos efeitos decorrentes desta, na
obrigação de reparar os danos quando não é possível evita-los.
Não é o que se percebe, por exemplo, em algumas estratégias de
baixa emissão de gases contaminantes que buscam a
internacionalização dos custos ambientais e que comumente
impõem aos países menos desenvolvidos metas extravagantes de

70 Id. Ibid. § 131


71João Paulo II. Discurso à Pontifícia Academia das Ciências. (3 de Outubro de
1981).
72 Laudato Si’. § 131
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 229

redução, comprometendo ainda mais seu desenvolvimento.73 É o


que ocorre com a Redução Certificada de Emissões (RCE), mais
conhecida como crédito de carbono, que hoje, além de gerar uma
nova forma de especulação, em muitos casos, não contribui para
reduzir a emissão global de gases contaminantes. Outra dimensão
do princípio e a responsabilização dos países poluentes em face
do dano causado aos demais.
O princípio da responsabilidade implica reparar o dano
causado, não importando a distância geográfica do fato.
Evidentemente que não descarta a responsabilidade penal,
também. Retomando os exemplos do princípio anterior, quem
assumirá as consequências humanitárias da submersão de um país
inteiro? E, qual a intensidade da resposta da mineradora
responsável pela catástrofe na bacia do Rio Doce e nos estuários
do litoral do Espírito Santo? Haverá alguma punição para os
responsáveis? Não deveria o Direito Penal Internacional assumir
categorias de crimes ambientais como crimes contra a
humanidade?

4. Conclusões

Há um consenso que a crise ambiental decorre da crise


antropológica do homem moderno e de seu paradigma
antropocêntrico. Toda visão de mundo requer primeiro uma
visão do ser humano, e toda ética pressupõe uma antropologia. A
ética personalista é o único fundamento que permite um
arcabouço que preencha o vazio posterior à quebra do paradigma
antropocêntrico. Afirmando a centralidade da pessoa – e não do
indivíduo – o personalismo, que tem raiz na antropologia
cosmológica de Aristóteles, coloca o ser humano no seu lugar no
cosmos, afirma a sua dignidade e a dignidade de todas as coisas
como decorrência da própria dignidade da pessoa.
A Carta Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, sintetiza
tais pressupostos éticos universais no princípio da ecologia integral
que aplica os fundamentos de ética personalista à ética ambiental

73 Cf. Id. Ibid. § 170.


230 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

e propõe uma ecologia que incorpore todas as dimensões


humanas e sociais da crise ambiental. Ela propõe, também, novos
princípios norteadores da ação humana que muito contribuirão
para o debate e para fundamentar uma ética ambiental de cunho
universal que constranja a todos a cuidar da casa de todos,
daquela que é a nossa casa comum.

Referências

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ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2001.

Di LORENZO, Wambert Gomes. Teoría del Estado de


Solidaridad. De la dignidad de la persona humana a sus
corolarios. Buenos Aires: Club de Lectores, 2013.

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MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral. São Paulo: Dominus,


1936.

_______. Por una filosofía de la persona humana. Buenos Aires:


Club de Lectores, 1981.

_______. Os Direitos do Homem e a Lei Natural. Rio de Janeiro:


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SANTO AGOSTINHO. A Trindade, VII, 6.

SANTO TOMÁ DE AQUINO. Summa Theologiae.

SÃO JOÃO PAULO II. Laborem Exersens, §19.

_______. Sollicitudo Rei Socialis, §33.

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“algo” y “alguien”. Pamplona: EUNSA, 2000.

STEIN, Edith. La estructura de la persona humana. Madrid: BAC,


2003.

WOJTYŁA, Karol. El hombre y su destino. Madrid: Palabra, 2005.

SPAEMANN, Robert. Felicidade e Benevolência: Ensaio sobre ética. São


Paulo: Loyola, 1996.
Capítulo XIII
O direito de nascer: entre os direitos
humanos e a bioética
Martha A. Sossai 1
Úrsula D. Sossai2
Ricardo Piragini 3
1. Introdução

O presente estudo tem o objetivo de investigar


rapidamente o direito de nascer. Essa investigação tem como
alicerce os direitos humanos e a bioética. Trata-se de uma
discussão não exaustiva sobre o tema do direito de nascer, mas
que contém os principais elementos jusfilosóficos do tema.
O estudo encontra-se dividido em quatro partes, sendo
elas: Sobre os direitos humanos; Dignidade da pessoa humana; O
direito humano à vida; O direito de nascer: entre os direitos
humanos e a bioética.
Por fim, afirma-se que, ao longo da história da humanidade
e na sociedade contemporânea, o direito a nascer é fortemente
atacado e desrespeitado. As várias faces da cultura da morte
presentes na sociedade – faces que vão desde as altas esferas do
poder político, passando pelo cotidiano das cidades até culminar
nas redes sociais – demonstram que o nascer e o viver são
direitos pouco respeitados contemporaneamente. Dentro desse
preocupante quadro é necessário que os direitos humanos e a
bioética, num trabalho conjunto, possam garantir um avanço no
campo das discussões e da efetivação de espaços aonde seja
garantida a dignidade e o respeito à vida humana.

1Mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito pela Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: [email protected].
2 Especialista em Educação Ambiental, Bióloga e Pedagoga.
3Mestrando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
234 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

2. Sobre os direitos humanos

Todo direito se traduz numa faculdade de exigir de um


terceiro, seja o Estado ou o particular, de cumprir determinada
obrigação. Os direitos humanos se baseiam num conjunto de
direitos essenciais para que o indivíduo goze de uma vida digna.
Esses direitos são, assim, valores essenciais que estão protegidos
em diversos documentos como constituições, tratados e
convenções nacionais e internacionais.
De acordo com Ramos (2014) os direitos humanos
apresentam quatro características essenciais. A primeira delas é a
universalidade ao se reconhecer que esses direitos são direitos de
todos e que não existe uma classe de pessoas superior à outra. A
segunda é a essencialidade, a qual se traduz na indispensabilidade
desses direitos, não é possível abrir mão deles. A terceira é a
superioridade, pois esses direitos estão acima de qualquer outra
norma, não sendo possível sacrificar um direito humano em
obediência a qualquer legislação que seja, sempre que direitos
humanos estiverem envolvidos na questão eles devem prevalecer.
A quarta e última é a reciprocidade desses direitos, pois todos são
titulares desses direitos e ao mesmo tempo têm o dever de
respeitar os direitos dos demais.
Ainda de acordo com Ramos (2014), o primeiro direito
basilar é o direito a ter direitos.

Arendt e, no Brasil, Lafer sustentam que o primeiro


direito humano, do qual derivam todos os demais, é o
direito a ter direitos. No Brasil, o STF adotou essa linha
ao decidir que “direito a ter direitos: uma prerrogativa
básica, que se qualifica como fator de viabilização dos
demais direitos e liberdades” (ADI 2.903, Rel. Min. Celso
de Mello, julgamento em 1º-12-2005, Plenário, DJE de 19-
9-2008). (RAMOS, 2014, p. 24).

Todo Indivíduo tem direitos e deve conviver com os


direitos dos outros, os quais estão alicerçados no princípio da
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 235

dignidade da pessoa humana, pelo qual todos os seres humanos


têm o direito de serem respeitados, independente de quaisquer
condições.
Desde a Bíblia é possível identificar no Antigo e no Novo
testamento passagens que recomendam o amor e o cuidado com
o próximo, a exemplo da passagem do livro de Deuteronômio 24,
17 “Não perverterás o direito do estrangeiro nem do órfão; nem
tomarás em penhor o vestido da viúva”. Com isso, é possível se
afirmar que a religião judaico-cristã é uma das fortes influências
na origem e no estabelecimento do regime de proteção dos
direitos humanos.
Na Idade Média surgem as primeiras reivindicações por
liberdade e protestos contra o poder absoluto dos reis como a
Carta Magna de 1215 que estabelecia direitos e garantias contra os
desmandos do monarca inglês João Sem Terra. Ressaltando-se
que esses direitos eram garantidos apenas para a elite política
inglesa, mas foi um passo importante para a história dos direitos
humanos.

Apesar de seu foco nos direitos da elite fundiária da


Inglaterra, a Magna Carta traz em seu bojo a ideia de
governo representativo e ainda direitos que, séculos
depois, seriam universalizados, atingindo todos os
indivíduos, entre eles o direito de ir e vir em situação de
paz, direito de ser julgado pelos seus pares [...] acesso à
justiça e proporcionalidade entre o crime e a pena
(RAMOS, 2014, p. 32).

Posteriormente, com o declínio da Idade Média e o


surgimento do renascimento deu origem ao poder fortemente
centralizado na figura do rei nos Estados absolutistas. Passa-se do
domínio da Igreja e dos senhores feudais para o domínio dos reis,
fato este que não garantiu a observância dos direitos dos
indivíduos. Por exemplo, na Inglaterra, no século XVII, começa-
se a questionar esse poder absoluto através da Petition of Rights de
1628, a qual estabelecia a proibição do rei de criar impostos sem
autorização do parlamento inglês. Com isso, percebe-se a
intenção de se proteger os interesses de uma classe em especial.
236 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Outro exemplo é a expedição do Habeas Corpus Act no ano de


1679, um documento que garantia direitos aos que fossem
injustamente presos. Após dez anos da promulgação do Habeas
Corpus Act, ou seja, em 1689 é criada a Bill of Rights, uma
declaração de direitos que restringiu o poder absoluto do
monarca inglês, preconizando a supremacia da vontade da lei
sobre a vontade do rei.
Pouco mais de um século depois houve a criação da
primeira constituição do mundo moderno, a constituição norte-
americana em 1787, expedida na Convenção de Filadélfia, após a
independência das colônias do domínio britânico. Dois anos após
este fato, em 1789, é criado o documento considerado um marco
para a proteção dos direitos humanos. Trata-se da Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, como consequência da
Revolução Francesa, a qual propagou a liberdade e a igualdade
como direitos inerentes de todo e qualquer indivíduo.

A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do


Cidadão proclamou os direitos humanos a partir de uma
premissa que permeará os diplomas futuros: todos os homens
nascem livres e com direitos iguais. Há uma clara influência
jusnaturalista, pois, já no seu início, a Declaração menciona
“os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”.
(RAMOS, 2014, p. 38).

É importante ressaltar que esta declaração defendia os


direitos dos indivíduos considerados isoladamente, sem observar
que o homem vive em sociedade e não pode ser dissociado dela.
A partir dessa declaração, passou-se a reivindicar a inclusão dos
direitos sociais, tais como: a educação, a saúde e a assistência
social. Essa reivindicação influenciou a edição de constituições,
reconhecendo tais direitos, em vários países.
A preocupação com a defesa dos direitos humanos se
intensificou após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
culminando com a criação da Organização das Nações Unidas
(ONU), cuja carta de criação assim determina no Artigo 55: “O
respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 237

religião”. Nesse recorte, percebe-se a questão da universalização


desses direitos a ser tratada mais a frente neste trabalho.
Essa carta da ONU foi de grande expressividade, contudo
não elencou quais os direitos humanos que seriam considerados
essenciais. Isso só veio ocorrer com a expedição da Declaração
Universal de Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1948, na
cidade de Paris, a qual enumera os direitos humanos
reconhecidos no âmbito internacional.

A Declaração Universal reconhece direitos civis, culturais,


econômicos, políticos e sociais e, embora não se trate de
um documento legalmente vinculatório per se, uma vez que
o mesmo foi adotado por meio de uma deliberação da
Assembléia Geral, os princípios nela contidos são
atualmente considerados como sendo legalmente
vinculatórios para os Estados, tanto como direito
internacional consuetudinário, ou como princípios gerais
de direito, ou como princípios fundamentais de
humanidade. (INTERNATIONAL, 2010, p.35).

Dessa forma, fica evidenciada a grande influência dessa


declaração nos ordenamentos jurídicos de várias nações que a
tomam como parâmetro em suas decisões. A Declaração Universal
de Direitos Humanos estabelece em seu Artigo 1º que “Todos os
seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos”,
enfatizando a necessidade de proteger a dignidade da pessoa
humana para que possa exercer os direitos garantidos num
Estado Democrático.
Os direitos fundamentais são direitos que visam à
manutenção da vida humana de forma livre e digna. Pode-se
afirmar que são um conjunto institucionalizado de direitos e
garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito
à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do
poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e
desenvolvimento da personalidade humana.
Tais prerrogativas são tuteladas pelas constituições de
diversos países, as quais têm como suporte a Declaração Universal
de Direitos Humanos de 1948. Tais direitos, que garantem a
238 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

dignidade da pessoa humana, não ficaram inertes ao longo do


tempo e foram se transformando de acordo com os anseios da
sociedade. São os mesmos classificados em quatro gerações, ou
dimensões, de acordo com o bem tutelado.

Cada geração foi associada, na Conferência proferida por


Vasak, a um dos componentes do dístico da Revolução
Francesa: “liberté, egalité et fraternité” (liberdade, igualdade e
fraternidade). Assim, a primeira geração seria composta
por direitos referentes à “liberdade”; a segunda geração
retrataria os direitos que apontam para a “igualdade”;
finalmente, a terceira geração seria composta por direitos
atinentes à solidariedade social (“fraternidade”). (RAMOS,
2014, p. 49).

Assim, os denominados direitos de primeira geração (direitos


civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas,
negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade,
protegendo o indivíduo contra a atuação abusiva do Estado. Os
direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e
culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais,
concretas – acentuam o princípio da igualdade, ao contrário da
primeira geração, começou-se a exigir um papel ativo do Estado
na concretização de condições mínimas de sobrevivência aos
indivíduos, como o direito à saúde, à educação, à habitação, à
previdência social etc.
Os direitos de terceira geração, que materializam poderes
de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as
formações sociais, a exemplo do direito à paz, à
autodeterminação dos povos, ao meio ambiente equilibrado
dentre outros. São direitos que consagram o princípio da
solidariedade e constituem um momento importante no processo
de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos
humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais
indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

O Supremo Tribunal Federal utiliza a teoria geracional,


com a seguinte síntese: “os direitos de primeira geração
(direitos civis e políticos) – que compreendem as
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 239

liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o


princípio da liberdade e os direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais) – que se
identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas –
acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira
geração, que materializam poderes de titularidade coletiva
atribuídos genericamente a todas as formações sociais,
consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento,
expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados, enquanto valores fundamentais
indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade”. (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 30-10-1995). (RAMOS, 2014, p. 50).

Ao final do século XX, alguns estudiosos, a exemplo de


Paulo Bonavides, defendem uma quarta geração de direitos
humanos, resultantes da globalização desses direitos e se
traduziriam no direito à participação democrática, direito ao
pluralismo, limitação às manipulações de material genético e
outros direitos.
Na verdade, atualmente entende-se que o correto não é
classificá-los em gerações, o que dá uma ideia de algo
ultrapassado e que posteriormente fora substituído, mas sim, em
dimensões, pois os direitos não se esgotam, são dinâmicos e estão
presentes na vida dos indivíduos, nas relações destes com os
demais e com o Estado. Pelo acima exposto, essas dimensões de
direitos tutelaram os ideais da Revolução Francesa: Liberdade,
Igualdade e Fraternidade.

3. Dignidade da pessoa humana

Os seres humanos se diferem, entre si, por diversos e


múltiplos fatores. Entre eles é possível citar, por exemplo, a cor
da pele, a classe social, as diferenças sexuais e as diferenças
socioculturais. No entanto, existe um elo, um ponto comum
entre os seres humanos. Esse elo é a dignidade da pessoa humana.
Sobre a dignidade como sendo o elo comum entre os seres
humanos, afirma-se:
240 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

O que a igualdade de reconhecimento implica é que,


quando despimos uma pessoa de todas as suas
características contingentes e acidentais, resta sob isso
uma qualidade humana essencial que é merecedora de
certo nível mínimo de respeito – chama-se Fator X. A cor
da pele, a aparência [física], a classe social e a fortuna, o
gênero [sexual], a bagagem cultural e até os talentos
naturais de uma pessoa são todos acidentes de nascimento
relegados à classe de características não essenciais.
(FUKUYAMA, 2003, p. 158).

Apesar do ser humano possuir um número gigantesco de


diferenças, nenhum desses fatores representa o que existe de mais
essencial e característico do gênero humano. O que realmente
representa a espécie humana é o fato de que “todos os seres
humanos são, de fato, iguais em dignidade” (FUKUYAMA, 2003,
p. 159).
A dignidade é o amplo conjunto de coisas, materiais e
imateriais, que tornam o ser humano mais nobre, excelente,
honrado e desejoso de melhorar a si mesmo, o outro, o seu
próximo, a sociedade e a natureza. Por causa disso, a dignidade,
em si mesma, “não pode ser demonstrada” (BRAKEMEIER,
2002, p. 16). Ela é essencialmente um valor e um princípio ético
que orienta o ser humano a experimentar novas e mais humanas
condições existenciais. É por causa disso que a “vida humana não
perde sua dignidade quando afetada pela demência [pela doença]
ou quando dormimos, pois a autonomia não é o único
fundamento de sua dignidade” (ZILLES, 2012, p. 53).
Como bem observa Agostini (cf. 2015, p. 42), é preciso, de
alguma forma, ter consciência do valor incomparável da vida
humana, o que torna o ser humano o primeiro e fundamental
caminho que se deve, de alguma forma, encontrar. Por isso, deve-
se afirmar que a vida humana tem um valor incomparável, sendo,
por isso, inviolável.
O preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos faz
referência à dignidade atestando a sua indispensabilidade. A
Constituição Federal brasileira, por sua vez, fazendo eco a
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 241

Declaração Universal de Direitos Humanos, alçou a dignidade da


pessoa humana ao patamar de princípio fundamental no Artigo
1º, III, reafirmando o valor da pessoa humana e a sua dignidade.
Na verdade, este princípio é o sustentáculo de todos os demais
direitos humanos a serem exercidos pelos indivíduos dentro do
Estado democrático de direito. Um país que não assegure a
dignidade da pessoa humana não pode pretender fundar um
ordenamento jurídico.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela


união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em estado democrático de Direito e
tem como fundamentos.
[...]
III - a dignidade da pessoa humana.

Tem-se, pois, por Princípio da Dignidade da Pessoa


Humana um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se
manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas. Com isso, constituindo-se
um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve
assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser
feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas
sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todos
os indivíduos enquanto seres humanos.

Com São Tomás de Aquino, há o reconhecimento da


dignidade humana, qualidade inerente a todos os seres
humanos, que nos separa dos demais seres e objetos. São
Tomás de Aquino defende o conceito de que a pessoa é
uma substância individual de natureza racional, centro da
criação pelo fato de ser imagem e semelhança de Deus.
Logo, o intelecto e a semelhança com Deus geram a
dignidade que é inerente ao homem, como espécie.
(RAMOS, 2014, p. 65).

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é uma


característica inerente ao indivíduo e que o diferencia dos demais,
242 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

protegendo-o de todo e qualquer tratamento discriminatório ou


degradante. Um princípio que vem sendo refletido, por místicos e
pensadores, desde a antiguidade (cf. RAMPAZZO, 2009). O
referido princípio apresenta duas concepções: a primeira prevê
como um direito individual protetivo, em relação ao Estado e em
relação aos demais indivíduos. A segunda estabelece um dever
fundamental de tratamento igualitário aos próprios semelhantes,
ou seja, respeitar a dignidade do seu semelhante como é exigido
pelo texto constitucional.
Diante da dignidade da pessoa humana, o Estado possui
dois deveres, o primeiro é o dever de impor limites à atuação dos
poderes públicos para que não venham a ferir a dignidade dos
indivíduos através de atos abusivos. O segundo dever é o de
garantia dessa dignidade, promovendo as condições necessárias
para a sua concretização.

4. O direito humano à vida

A Declaração Universal de Direitos Humanos assegura em seu


Artigo 3º que todo o homem tem direito à vida. Esse é um direito
humano a ser assegurado por todas as nações membros da ONU,
de acordo com o que consta no preâmbulo: “Que os Estados
Membros se comprometeram a promover, em cooperação com
as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades
fundamentais do homem e a observância desses direitos e
liberdades”.
Sobre o princípio do direito à vida, Taureck (2007) afirma
que se trata do princípio básico e norteador de toda ação humana.
Sem esse princípio, as ações e a cultura humana correrão risco de
serem violadas e até mesmo de desaparecer.
No âmbito nacional, o que se observa é que a Constituição
Federal brasileira, nos Títulos: I – Dos Princípios Fundamentais –
e II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, que vão do Artigo
1º ao Artigo 16 º adotou amplamente as disposições da Declaração
Universal de Direitos Humanos. Em relação ao direito à vida, assim
dispõe no Artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 243

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida”.


Assegurando que esse é um direito inviolável, alçado ao patamar
de garantia fundamental. De acordo com Ramos (2014), o direito
à vida engloba vários aspectos como a seguir mencionado:

O direito à vida engloba diferentes facetas, que vão desde


o direito de nascer, de permanecer vivo e de defender a
própria vida e, com discussões cada vez mais agudas em
virtude do avanço da medicina, sobre o ato de obstar o
nascimento do feto, decidir sobre embriões congelados e
ainda optar sobre a própria morte. Tais discussões
envolvem aborto, pesquisas científicas, suicídio assistido e
eutanásia, suscitando a necessidade de dividir a proteção à
vida em dois planos: a dimensão vertical e a dimensão
horizontal. (RAMOS, 2014, p. 423; itálicos no original).

No plano vertical à proteção do direito à vida consiste em


defender este direito nos vários estágios do desenvolvimento
humano, da fecundação até a morte, protegendo este direito da
intervenção de terceiros, como, por exemplo, de abusos por parte
do poder estatal. No plano horizontal, por sua vez, se refere à
qualidade de vida usufruída pelo ser humano. Um direito
deesfrutado através do direito à saúde, à educação, à assistência
social, ao meio ambiente equilibrado, enfim, todas as garantias
para uma condição de vida digna. Este plano, inclusive, também
pode ser observado na Declaração Universal de Direitos Humanos no
Artigo 25:

I) Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz


de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à
segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e
assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro
ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção
social. (UNESCO, 1998).
244 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

Ainda com base em Ramos (2014), o direito à vida se


traduz em obrigações a serem assumidas pelo Estado, quais
sejam: a) A obrigação de respeito – traduzindo-se no imperativo
das autoridades estatais não violarem a vida de outrem; b) A
obrigação de garantia – proteger a vida do indivíduo contra atos
de terceiros e a consequente punição dos seus violadores e c) A
obrigação de tutela – que é a obrigação de oferecer uma vida
digna, assegurando-se as condições mínimas de existência do
indivíduo.
É preciso ter consciência, como observa Santos (cf. 2014,
p. 58), que o direito à vida não pode ser um projeto passageiro,
um modismo intelectual ou uma proposta efêmera e até mesmo
populista de política do Estado. Esse é o direito fundamental,
sem o qual qualquer outro direito não pode ser pensado,
questionado e conquistado pelo cidadão.
É necessário que seja enfatizado, como realiza Taureck (cf.
2007, p. 57), o fato do direito à vida envolver todos os grupos
sociais, estruturas culturais e modalidades de indivíduos. Nenhum
indivíduo está fora do direito à vida. Pelo contrário, da concepção
até o envelhecimento e a morte, todos os indivíduos estão
envolvidos e protegidos pelo direito à vida.
A Constituição Federal brasileira não determina a partir de
quando o direito à vida passa a ser tutelado, mas de acordo com a
Convenção Americana de Direitos Humanos, Artigo 4.1, esse direito
deve ser protegido desde a concepção. No Brasil, o Superior
Tribunal Federal (STF) dispõe da seguinte forma sobre este
ponto:

A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já


é meritória o bastante para acobertá-la,
infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou
frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica [...].
O Direito infraconstitucional protege por modo variado
cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano.
Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento
devem ser objeto de proteção pelo direito comum (Voto
do Min. Ayres Britto, ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto,
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 245

julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010).


(RAMOS, 2014, p. 424).

Dessa forma, o direito à vida deve ser protegido desde a


fase uterina. O Artigo 2º do Código Civil brasileiro se preocupou
com tal questão da proteção à vida desde a fase uteriana. Por isso,
determina: “A personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção,
os direitos do nascituro”. Por isso, se apreende que para se
exercer plenamente os atos civis, primeiramente é necessário
nascer com vida. Entretanto o nascituro, ou seja, aquele que ainda
vai nascer tem seus direitos reconhecidos e assegurados, dentre os
quais é possível mencionar o direito à herança.
A Carta Magna brasileira também não estabelece nada
acerca do término da vida, ou seja, da morte do indivíduo. Tal
tema só foi explicitado no Código Civil, o qual prevê em seu
Artigo 6º que a existência da pessoa natural tem fim com a morte.
Por sua vez, a morte deve ser a morte encefálica. Trata-se de um
critério adotado na Lei de Transplantes - Lei nº: 9.434/97 (cf.
BRASIL, 1997). Por isso, é a condição necessária para que se
autorize, no caso do Brasil, a retirada de órgãos e tecidos para fins
de transplante ou tratamento.
Além disso, ressalte-se que o Brasil proíbe penas capitais,
ou seja, punições que retirem totalmente o direito à vida do
indivíduo. Isso pode ser verificado, por exemplo, no que dispõe o
Artigo 5º, XLVII da Constituição Federal, como a pena de morte,
salvo em caso de guerra declarada, e neste caso cabe ao Código
Penal Militar estabelecer sobre esta pena, bem como a prisão
perpétua, os trabalhos forçados, o banimento e as penas cruéis.
Logo, tal proibição é um desdobramento da proteção ao direito à
vida e que coaduna também com o Artigo 5º da Declaração
Universal de Direitos Humanos, a qual determina que: “Ninguém será
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante”. Apesar de tal tutela, sabe-se que
alguns países adotam a prisão perpétua e a pena de morte, como,
por exemplo, os Estados Unidos e a China. Esse fato demonstra
que ainda existe um longo caminho a ser trilhado na busca pela
246 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

proteção do direito à vida e, por conseguinte, dos direitos


humanos.

5. O direito de nascer: entre os direitos humanos e a


bioética

Como visto ao longo da discussão, existe um profundo


respaldo, que remonta ao mundo antigo, sobre o direito a vida e,
por conseguinte, sobre a dignidade da pessoa humana. Um direito
que é apresentado, defendido e regulamentado por místicos,
pensadores, pela Declaração Universal de Direitos Humanos até chegar
ao nível nacional com a Constituição Federal.
Apesar de a sociedade contemporânea experimentar a
chamada Era dos Direitos (cf. BOBBIO, 1992), um momento
histórico marcado por um crescimento na vivência da cidadania e,
por causa disso, a ampliação dos direitos civis e sociais, vivemos
o aumento da “cultura da morte” (JOÃO PAULO II, 1995, n.
21), ou seja, uma manifestação cultural, cujo objetivo central é a
promoção e difusão da morte e, com isso, a desvalorização e a
eliminação da vida e da dignidade da pessoa humana. A cultura da
morte pode ser visualizada, por exemplo, nas duas grandes
guerras mundiais (1914-1945), no uso da bomba atômica, em
1945, no uso de armas químicas, nas guerras tribais, na fome, na
pobreza, na eutanásia, na pena de morte. Contemporaneamente a
cultura de morte se manifesta, por exemplo, na venda
indiscriminada de armas de fogo, inclusive na venda de armas de
fogo para crianças, na violência urbana, na violência no transito,
na morte que é apresentada de forma banal nos videogames e na
internet e no aumento do terrorismo, causado, em grande
medida, pelo processo de remapemanto do mundo (cf. SANTOS,
2015).
No entanto, uma forma visível e perigosa de manifestação
da cultura da morte é o aborto. Por aborto deve-se entender a
“cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte
do feto” (NUCCI, 2006, p. 544).
Atualmente tem-se discutido se o termo correto a ser
mencionado seria aborto ou abortamento. Sobre essa discussão
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 247

afirma-se que o conceito de aborto não é um consenso entre os


juristas e médicos. Muitos concordam com o termo abortamento
(cf. NORONHA, 2001, p. 54).
Apesar da existência da discussão em torno do uso correto
do vocábulo aborto ou abortamento, o fato é que a morte do feto
dentro do ventre da mãe por razões artificiais e puramente
determinadas pelo ser humano traz uma série de consequências
negativas para a garantia da dignidade da pessoa humana (cf.
SILVA, 2007).
No tocante a relação entre o nascituro, ou seja, o indivíduo
vivo, mas não nascido, e a dignidade da pessoa humana e, por
conseguinte, a garantia dos direitos humanos, enfatiza-se que o
“ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa
desde a sua concepção e, por isso, desde esse momento devem-
lhe ser reconhecidos direitos da pessoa, entre os quais e primeiro
de todos, o direito inviolável de cada ser inocente à Vida” (JOÃO
PAULO II, 1995, n. 60).
Dentro do contexto da Era dos Direitos, o direito de nascer
ganha destaque especial. Isso acontece porque:

O direito de nascer é o mais fundamental e inalienável de


todos os direitos. Só é possível se pensar em qualquer
outro direito (direito a educação, direito a saúde, direito a
identidade, etc) se houver primeiramente o nascimento. Se
o indivíduo não nascer, não é possível o exercício de
qualquer direito. Por isso é dever do Estado e da
sociedade garantir o direito de nascer. (SANTOS, 2013, p.
9).

O direito de nascer está intimamente ligado aos direitos


humanos e a bioética. De um lado, não se trata de haver algum
modelo ou proposta de abrandamento da legislação que, em
linhas gerais, pune o aborto e outros crimes ligados a cultura da
morte, como, por exemplo, o assassinato e a violência física
contra crianças e mulheres. Do outro lado, num processo de
aprimoramento da cidadania e da promoção da dignidade da pessoa
humana (cf. SILVA, 1996) e, ao mesmo tempo, num processo de
repensar a atuação econômica do direito a partir da dignidade da pessoa
248 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

humana (cf. SANTOS, 2016), é necessário ampliar a discussão em


torno da relação entre o direito de nascer, os direitos humanos e a
bioética.
A proposta de ampliação da discussão entre o direito de
nascer, os direitos humanos e a bioética, será apresentada por
meio de três questões.
A primeira questão é a necessidade de ampliar a dimensão
ética e humanística do Estado. Na modernidade, desde o final do
século XVIII, o Estado é percebido como uma estrutura social
que deve promover, entre outros fatores, a soberania e a defesa
do território nacional, a manutenção da ordem social e políticas
de bem-estar social (saúde, educação, etc). Ressalta-se que, dentro
do contexto histórico da modernidade, houve uma desvalorização
da dignidade da pessoa humana, do sujeito, enquanto portador de
valores éticos e de expressões culturais. O Estado moderno é
provedor de segurança e de certo grau de assistência social. No
entanto, esse mesmo Estado é o promotor de guerras e de
diversas formas de violência.
É preciso rever e ampliar as funções do Estado moderno.
Um dos princípios que devem ser acrescentados a esse modelo de
Estado é a solidariedade (cf. Di LORENZO, 2010). O Estado
precisa ser um espeço de promoção e de valorização da
solidariedade entre os povos e entre os indivíduos e estruturas
sociais. Uma das formas de valorização da solidariedade, dentre
outras, é a garantia do direito de nascer.
Dentro do princípio de solidariedade é necessário
compreender que a vida humana não começa com o nascimento,
mas sim com a concepção. O nascimento é um evento
importante dentro da grande aventura que é o viver. No entanto,
nascer é um dentro de vários eventos que ocorrem dentro da vida
humana. Neste contexto, muito mais do que ser uma instituição
promotora da guerra e da aplicação de penas limitadoras da
liberdade, o Estado deve ser um espaço promotor da vida, do
direito de viver e de uma política de solidariedade que possa
conduzir os indivíduos e as diversas estruturas sociais – muitas
dessas estruturas vivem num ambiente de tensão e guerra – a
desenvolverem situações de diálogo e, com isso, conseguirem
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 249

superar os impasses históricos e sociais por meio do uso da não-


violência e da promoção da vida e da dignidade da pessoa
humana.
A segunda questão está relacionada com a eficácia dos direitos
fundamentais (cf. SARLET, 2003). Entre os direitos fundamentais,
encontra-se o direito a vida. Não é possível se pensar na
implantação, prática e promoção dos direitos fundamentais, uma
constante preocupação do Estado moderno, se garantir o direito de
nascer e de viver. É pura ilusão se falar, de forma abstrata, em
direitos fundamentais e de cidadania, se, por diversos meios e
mecanismos, é negado o direito de nascer. Os direitos fundamentais
e a cidadania só serão plenamente assegurados quando o direito de
nascer for resguardado.
É preciso ter em mente que a Era dos Direitos – descrita por
pensador Norberto Bobbio – só será plenamente experimentada, ou
seja, um cidadão pleno de direitos socioculturais, quando o direito de
nascer for resguardado. Somente com o nascimento sendo um
direito garantido será possível criar políticas e ações, no âmbito do
Estado, do judiciário e da sociedade civil, capaz de tornar real a
plenitude dos direitos civis, políticos e culturais para os diversos
grupos sociais que constituem a sociedade.
A terceira e última questão são os desafios da bioética. Dedes
o final do século XIX, com as pesquisas realizadas, por alguns
cientistas, sobre a eugenia e principalmente com as experiências
eugenistas dos nazistas nas décadas de 1930 e 1940, que a bioética
vive em volta de uma série de desafios e conflitos que envolvem os
limites e dilemas da vida humana.
A bioética não tem a missão de ser a última palavra sobre os
problemas do ser humano. No entanto, ela deve ser um espaço
democrático para que pensadores e juristas possam debater sobre as
pesquisas que envolvem seres humanos e, ao mesmo tempo, como
poderá ser o futuro da natureza humana (cf. HABERMAS, 2004).
Dentro desse contexto, emerge o direito de nascer. Como
demonstra Taureck (2007), não se pode criar mecanismo (jurídicos,
filosóficos, religiosos, etc) aonde seja possível matar uma parcela ou
grupo social humano. Vale recordar que, dentre seus vários crimes,
uma coisa que choca nas barbaridades cometidas pelos nazistas foi o
250 | DISCURSO E ENSINO: OLHARES INTERDISCIPLINARES

fato deles desejarem eliminar totalmente grupos sociais que, eles


próprios, consideravam como impuros e indesejados, como, por
exemplo, os judeus, os ciganos, os homossexuais e os deficientes
físicos. O que aconteceu durante as décadas de 1930 e 1940, é que o
regime nazista, com apoio de setores ligados a ciência, ao judiciário,
a arte e a cultura, rompeu com o direito de viver e, com isso,
estabeleceu que o fim de alguns grupos sociais fosse à morte.
É por isso que Taureck (2007) afirma que, no século XX,
apesar do avanço teórico no campo dos direitos humanos,
experimentou uma época de supressão da dignidade humana. Uma
época marcada pelo terror, onde está vivo representava muito
pouco.
Nas primeiras décadas do século XXI, experimenta-se
novamente a situação de terror descrita por Taureck (2007). O
avanço do terrorismo, o avanço dos conflitos sectários e da violência
urbana, o avanço de uma ciência um tanto quando enlouquecida,
pouco preocupada com o ser humano, tornam a sociedade
contemporânea muito parecida com a Europa das décadas de 11930
e 1940.
Neste contexto, os direitos humanos e a bioética tem o dever
ético de ficar ao lado da vida humana. Não se pode permitir que aa
sociedade ocidental volte a experimentar o horror da tentativa de
extermínio de grupos humanos inteiros. Para isso, dentre outros
fatores, é necessário resguardar e proteger o direito de nascer e o
direito de viver. Por mais básico que possa parecer, nascer e deixar
viver são direitos que, ao longo dos séculos e principalmente na
história recente da humanidade, são desfrutados por alguns grupos
humanos e não por toda a humanidade. Por isso, o desafio da
bioética, alicerçada pelos direitos humanos, é lutar para que o direito
de nascer e o direito de viver sejam garantidos a todos os indivíduos.

6. Conclusão

O direito de nascer é um direito fundante e fundamental para


o ser humano. Um direito que é resguardado pela Declaração Universal
de Direitos Humanos. Trata-se do mais básico e um dos mais
importantes direitos que compõem os chamados direitos fundamentais.
IVANALDO SANTOS (ORG.) | 251

Não existe dignidade da pessoa humana sem a garantia do direito de


nascer. Se a vida é ameaçada desde o nascimento, então a vida
humana, em seu conjunto, encontra-se ameaçada e, muitas vezes,
colocada num ambiente de dor, sofrimento, falta de ética e falta de
dignidade. Num ambiente como esse dificilmente haverá espaços
que possam fluir a cultura que dê sustentação a cidadania.
Por fim, afirma-se que, ao longo da história da humanidade e
na sociedade contemporânea, o direito a nascer é fortemente
atacado e desrespeitado. As várias faces da cultura da morte
presentes na sociedade – faces que vão desde as altas esferas do
poder político, passando pelo cotidiano das cidades até culminar nas
redes sociais – demonstram que o nascer e o viver são direitos
pouco respeitados contemporaneamente. Dentro desse preocupante
quadro é necessário que os direitos humanos e a bioética, num
trabalho conjunto, possam garantir um avanço no campo das
discussões e da efetivação de espaços aonde seja garantida a
dignidade e o respeito à vida humana.

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