Fabrice Hadjadj - A Fé Dos Demônios (2017, Vide Editorial)

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a fé dos

demônios
Hadjadj
A fé dos demônios: ou a superação do ateísmo
Fabrice Hadjadj
1ª edição – outubro de 2017 – CEDET
Título original: La foi des démons : ou l’athéisme dépassé, Salvator, Paris, 2009

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET – Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua João Baptista de Queiroz Junior, 427
CEP: 13098-415 – Campinas – SP
Telefones: (19) 3249-0580 / 3327-2257
e-mail: [email protected]

Editor:
Thomaz Perroni
Tradução:
José Eduardo Câmara de Barros Carneiro
Preparação de texto:
Diogo Chiuso
Revisão:
Gustavo Nogy
Capa & Editoração:
J. Ontivero

Ficha Catalográfica

Hadjadj, Fabrice
A fé dos demômnios: ou a superação do ateísmo / Fabrice Hadjadj; tradução de José
Eduardo Câmara de Barros Carneiro – Campinas, SP: Vide Editorial, 2017.
ISBN: 978-85-9507-XXXXX

i. Fé – Cristianismo – Igreja Católica


i. Autor ii. Título
cdd – 234.2
índices para catálogo sistemático
1. Fé – Cristianismo – Igreja Católica – 234.2

Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
Thomaz Perroni

Vide Editorial – www.videeditorial.com.br


Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma,
seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de
reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário

Introdução ....................................................................9

primeira parte
Os demônios também creem .................................29
Ou como se pode ter uma fé inabalável
e mesmo assim cair no pior dos pecados ..............................11

primeira lição
As tentações no deserto ......................................................23
O tenebroso vitral ..................................................23
Satanás biblista ......................................................27
... e pedagogo ...........................................................31
Gênio das três tentações ..........................................33
Se tu és o Filho de Deus ...........................................36
O Sedutor entre os fiéis ............................................38
Falso diálogo ..........................................................39

Segunda lição
O evangelho do diabo segundo Marcos ..............................45
Uma resposta silenciosa ..........................................45
Milagre em Cafarnaum ...........................................47
Em Gérasa, adoração e partilha ...............................50
...e oração dos demônios .......................................52
Fé dos demônios e incredulidade dos discípulos ......53
Satanismo pontifical ..............................................55
terceira lição
A lucidez das trevas .............................................................59
Como de Anjo torna-se demônio (I)
A soberba e a inveja ................................................63

Como de Anjo torna-se demônio (II)


A parábola dos dois filhos ......................................66

Como de Anjo torna-se demônio (III)


Fazer o bem conforme seus próprios planos ...........68
Verdadeiro monólogo ............................................70
O diabo é amor... próprio ......................................71
Liturgia do pandemônio .......................................74
Jesus contra a apologética? ....................................77
Porque Deus se esconde .........................................80

segunda parte
pai nosso da mentira
Ou como a fé dos demônios
fecundam os erros dos homens ............................................87

primeira lição
Extensão do domínio da luta ...............................................91
A tentação no Jardim ..............................................91
Santa-do-pau-oco, proto-pecadora .........................94
A culpa de Adão ou a compaixão pervertida ..........99
Flores do mal e inferno do progresso ...................101
No alto, um exército combate por mim .................105
Que nada é diabólico em si, mas
que tudo deve ser reconquistado ..........................108
Entre a distração e o orgulho: o diabo partilhado ....113
Entre a tentação e a provação: o diabo exasperado .....115
segunda lição
Um orquestrador de debates .............................................121
Do tremor da terra ao tremor do Céu .....................121
Da besteira à Besta ...............................................124
O heresiarca dogmático .......................................127
O verdadeiro sob tensão ......................................129
Da primeira letra de Bíblia, ou os
dois entre o dueto e o duelo ..................................131
Como as virtudes se tornam loucas? .....................135
O princípio de Calcedônia,
sextuplicidade do erro e mais ...............................137
Porque os filhos deste mundo são mais espertos ...140

terceira lição
A grande maquinação: ateísmo ou farisaísmo ....................145
Origem e valor do ateísmo do ponto
de vista demoníaco ...............................................145
Se Satanás expulsa Satanás,
ou o pecado irremissível ........................................151
O clamor de Jó e a fé de seus amigos .........................156
A teodiceia pior que o ateísmo ..............................158
A ilusão da cristandade ..........................................162
O grande golpe duplo: pequena
Igreja e mundo ateu ...............................................168
Bem-aventuranças do inferno: a
misericórdia pirateada ..........................................171

terceira parte
Sol de satã e noite da fé
Ou aquilo que o demônio não tem:
fecundam os erros dos homensa carne, a morte, a graça ....177
primeira lição
O fruto do ventre ..............................................................121
Porei inimizade entre a mulher e ti ...................... 181
Demoníaco e filiação ............................................186
Israel, ou o combate com o anjo .........................189
Corpo e oferenda .................................................192
Meios pobres para mais alta riqueza ...................196
Se tu não amas a teu irmão a quem vês .................200
Elogio de uma puta (retorno à Carta de São Tiago) ...205

segunda lição
Aunque es de noche ...........................................................211
Este é o risco do enganador ..................................211
A graça da reconciliação ......................................214
Do primeiro mandamento ou
o ateísmo judeu-cristão .......................................217
Contra o anjo da luz ...........................................220
O amor na noite ..................................................224
Para além da fé que se sente
e o estudo que não se crê ........................................227
O lugar de Deus na minha alma
está vazio (Madre Teresa) .......................................232
Que o Credo se cante ...........................................236

terceira lição
A ser escrita pela graça, com seu próprio sangue ................241

Agradecimentos ......................................................243
“Simão, Simão, eis que Satanás vos recla-
mou para vos peneirar como o trigo; mas
eu roguei por ti, para que a tua confiança
não desfaleça; e tu, por tua vez, confirmas
os teus irmãos”.
Lc 22, 31-32

A Jean-Louis Chrétien,
Jacques Cazeaux
e Ir. Michel Cagin,
assim como a todos os meus demais
mestres rabinos, scientes quoniam maius
iudicium sumitis (Tg 3,1) [sabeis que se-
remos julgados mais severamente].
Introdução

A jovem – é minha alma – foi introduzida em meu quarto,


com os braços amarrados, pelos quatro demônios alados. Va-
mos lhe cortar os pulsos! Ela desmaia. Mas Nosso Senhor diz:
“Vinde por aqui, porque entre os santos há muitas crianças
que se assemelham a vós.”
— Max Jacob, La défense de Tartuffe
(A defesa de Tartufo)

1. Muitos não imaginam outra coisa: que todos professem a


fé cristã, e então o mundo será perfeito. A seus olhos a conversão
é mais um fim do que um começo. A partir desse ponto de vista,
como eu mesmo fui batizado já adulto, pareço estar livre de apuros.
Então, posso, aqui e ali, dar o meu “testemunho” sob as luzes que
brilham e os microfones que anunciam: “O judeu convertido”,
“De Nietzsche a Jesus”, “Como, de niilista, me fiz cristão”. Chego
quase a lamentar por não ter sido um ex viciado, um assassino
arrependido ou pelo menos um pitoresco ator de filmes pornôs
com uma perna de pau.
Já que a minha conversão não deve ser apenas um fim, tem de
ser ao menos muito interessante para que as pessoas não percam
uma tarde de cinema em vão. Por que eu daria um testemunho
tão monótono como a hóstia branca no ostensório? Preciso cati-
var melhor o meu público. Para isso será necessário adornar meu
relato com as peripécias mais espetaculares. Tudo pela audiência!
Diferente desses divertimentos aos quais recorremos com algum
escrúpulo, nossa consciência até aqui está tranquila, e nossa gentil
distração serve como edificação moral…

11
fabrice hadjadj

“Ingrato!”, me repreenderiam. Mas estou apenas exagerando.


Que ao menos entendam o quanto me constrange esse tipo de exi-
bição. Serviria para exaltar uma infinita misericórdia que veio a
transubstanciar minha obstinada imundice, o que ainda ocorre!
Depois, pobrezinhos, é para que nos sintamos confortáveis e aque-
cidos, no bom caminho, entre as paredes de nossa capela.

2. E se essas paredes forem, ao invés de um abrigo, uma arena?


E se tornar-se cristão abrisse a possibilidade para algo pior? Minha
situação é melhor, sem dúvida, mas isso significa que eu sou neces-
sariamente melhor? Minha alma pode ter se tornado uma noiva
riquíssima e, proporcionalmente, doar menos do que as moedas da
viúva. Ganhar um montão de dinheiro nada diz acerca do uso que
se vai fazer dele. Estar melhor de saúde pode, por exemplo, me dar
mais forças para estrangular um irmão.

Não há hostilidade mais excelente do que a cristã. Nosso zelo


faz maravilhas quando vai seguindo nossa inclinação ao ódio, à
crueldade, à ambição, à avareza, à maledicência, à rebelião.1

Enfim, não era Judas, primeiramente, um dos apóstolos, e dentre


eles, o que estava a cargo, se não das chaves, pelo menos do tesouro?
Portanto, pode ser que eu tenha me tornado pior do que an-
tes, e que o Marquês de Sade, o Comte-Sponville e outros pro-
motores do anticristianismo ou da transcendência laica não sejam
tão pecadores quanto eu. Aliás, os que pedem o meu testemunho
trabalham a favor deles. Porque vou tomando gosto de falar de
mim mesmo, de meu itinerário, mas com discrição, é claro: sou
inteligente demais para usar a trombeta que me anunciaria como
um tremendo vaidoso. Ao invés disso, emprego a lira e a flauta, e
minha frágil conversão se transforma, exatamente por ser narrada
em público, em uma inusitada tentativa de sedução. Em vez de
narrar uma vida de depravações satisfeitas, apenas constato que a
conversão permanece, até a morte, como uma provação. Ou ainda
invertendo os célebres versos de Hölderlin:

1 Michel de Montaigne, “Apologia de Raymond Sebond”, Ensaios, II, XII, Oeuvres


complètes, Gallimard, coll. “Biblioteque de la Pléiade”, 1962, p. 421.

12
Onde mora o que salva,
Cresce também o perigo.2

O Cristo não cansa de dizer aos seus discípulos:

Aquele servo que conheceu a vontade de seu senhor, mas não


se preparou e não agiu conforme a sua vontade, será açoitado
muitas vezes. Aquele, porém, que não a conheceu e tiver feito
coisas dignas de chicotadas, será açoitado poucas vezes. Àquele a
quem muito se deu, muito será exigido; e a quem muito se houver
confiado, mais será reclamado.3

Não há dúvida de que os catôs4 não querem mais ouvir esses


versículos. Para que eles se recordem, para que nós também nos
recordemos, como uma bandeirola no topo de nossas consciências,
gostaria de propor a leitura das próximas linhas. A quem nomeio
“catô”, com um apócope que frisa a apostasia? A um cristão tíbio.
A um testemunho que não vai até o final. Um catholique sem o hic,
e até mesmo três vezes sem o hic, ou seja, se furtando diante do hic
do problema, diante do hic do aqui e agora, diante do cálice com o
sangue: Hic est calix… Ou seja, um miserável como eu.

3. Enquanto nega a existência de Deus ou a divindade de


Jesus, o ateísmo não é a pior negação possível de Deus. Pascal
percebe que, quando esse ateísmo é uma inquietude e não um
contentamento, temos um estado em que é preciso mais piedade
do que condenação:

Apiedar-se dos ateus que buscam, pois não são eles muito
infelizes? Mas repelir àqueles que se envaidecem da sua
incredulidade.5

2 Friedrich Hölderlin (1770-1843): “Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende auch”
[Onde mora o perigo, também cresce o que salva].
3 Lc 12,47-48.
4 Nos círculos católicos franceses, costuma-se usar o termo abreviado “catho” para se
referir aos catholiques – NT.
5 Blaise Pascal, Pensées, §145, éd. Le Guern, Gallimard, 1977.

13
fabrice hadjadj

O ateu que busca não está satisfeito com seu ateísmo. Ele per-
cebe que, tornando-se confortável, esse ateísmo se transforma em
fetiche. Não é fácil ser ateu de uma vez por todas. Pode-se quebrar
um ídolo, mas apenas para se colocar outro no lugar: o dinheiro,
os prazeres, a arte, a ciência… Que não seja mais do que sacralizar
o ato de rompimento: há um integralismo da transgressão, e seus
sacerdotes são ainda mais ferozes quanto mais persuadidos de se-
rem os dispensadores da liberdade absoluta.
Não, o ateu que busca é às vezes o ateu verdadeiro, o ateu aca-
bado. Verdadeiro porque ele não faz de seu ateísmo um deus; aca-
bado porque, consequentemente, sofre de seguir sendo ateu, e teme
esse encerramento que ele denuncia naquele que crê. Esse para-
doxo pode mantê-lo muito tempo como uma cobaia correndo na
roda dentro da jaula. Falta-lhe uma graça para se libertar. Por isso
Pascal o admira e até se apieda do ateu. É também por isso que ele
acredita que o ateísmo, por instância própria, e não por qualquer
reivindicação externa, exige ser superado.

4. No fundo, só merece repreensão aquele que não busca. Sua


inteligência tem fome de verdade, seu coração aspira ao bem. No
entanto, porque se esconde quando está diante da agonia de uma
morte que parece deixar tudo fútil, acaba por sucumbir aos pres-
tígios do virtual, entrega-se às delícias da irracionalidade, ensaia
abolir em si mesmo a tensão propriamente humana entre a cons-
ciência de uma morte terrível e o desejo de uma perfeita alegria.
Hesita entre a crença e a dúvida, entre a blasfêmia e o louvor, o
ódio e o amor que nos leva além.
É, no entanto, difícil confessar que não se busca mais. A sermos
curiosos, o mundo nos exorta, e os motores de busca estão ao
alcance do mouse: cliquemos na página, surfemos de site a site,
sejamos net-explorers consagrados a este enciclopedismo cheio de
artigos “interessantes” sobre “competições animais” e até mesmo
sobre os “Legionários de Cristo”. Desta maneira, nunca podere-
mos participar do essencial. Nós descartamos com a consciência
limpa todo o saber que nos comprometa de corpo e alma. Porque,
evidentemente, uma tal busca é dispersão, não recolhimento. Ela
chama nossa atenção mais que nos ilumina. E para melhor ignorar
o sol, multiplica sua ciência das sombras. Sua procura é uma pose,
seu conhecimento é um espetáculo.
14
Também a injúria deve mais especialmente despertar aquele
que se “envaidece”, como diz Pascal, de ser um suposto “buscador
de sentido”. Se ainda busca, se corre sem parar, é para melhor se
esquivar do encontro com aquilo que o questionaria, para melhor
sufocar um apelo que inverteria os papéis e o faria descobrir que,
na verdade, é ele que desde sempre é buscado, e é dele, talvez, que
se espera uma resposta...

5. Quando detalha sua tipologia de atitudes para com Deus, Pas-


cal retoma sua distinção entre o ateu que busca e o ateu que não
busca mais, ao que acrescenta, evidentemente, a categoria do fiel:

Existem apenas três tipos de pessoas: umas que servem a


Deus, tendo-o encontrado; outras que se ocupam de buscá-lo,
não o tendo ainda encontrado; há outras que vivem sem nem o
buscar e nem o terem encontrado. As primeiras são sensatas e
felizes, as últimas são loucas e infelizes, e as do meio são infelizes
e sensatas .6

Nosso objetivo aqui não é compreender como um certo ateísmo


pode ser sensato, tese que não pode existir sem levantar graves
problemas (o único ateísmo sensato é um ateísmo que deveria sub-
trair-se de si mesmo sem cessar, para não afundar na sua própria
idolatria). O objetivo, portanto, é completar uma tipologia que se
quer exaustiva, e que, no entanto, omite o pior dos casos.
Além dos fiéis que têm buscado servir a Deus, dos ateus que não
o tendo encontrado, ainda o buscam, e aqueles que, sem o terem
encontrado, não o buscam mais, existem ainda os que encontra-
ram a Deus, mas não o servem. Eles se perdem na mesma medida
em que o encontraram. Eles servem a Deus muito mais do que se
servem dele. Não escrevem Tratados de ateologia porque são mui-
to espirituais para isso. A seus olhos, os artigos da fé católica não
geram dúvida alguma. Contudo, recusam Deus da maneira mais
radical: com conhecimento de causa! Isto ultrapassa o ateísmo e
nos apresenta um lugar muito mais tenebroso, no qual ele se serve
da luz para aumentar suas trevas; desvirtua a claridade feita para
iluminar, e assim aumenta sua escuridão.
6 Id. §149

15
fabrice hadjadj

Esse é o lugar do demoníaco. A princípio, diz respeito aos de-


mônios, não há dúvida. Mas um cristão não pode ignorá-lo porque
também indicar uma possibilidade tragicamente sua: uma falsida-
de onde alguém se afunda, estando no meio da própria verdade;
uma perdição que se abre no seio da cristandade.

6. Como uma fé pode ser ao mesmo tempo exata e inexata,


errante e inerrante? Isto significa que, ao contrário, uma certa falta
de fé, um desconhecimento intelectual de Deus poderia esconder
uma fidelidade mais verdadeira que esse protesto que chama a
atenção? O que seria a luta contra o ateísmo e pela defesa da fé?
A apologética se esforça para mostrar a verdade do cristianis-
mo, mas, conhecida essa verdade, nada impede que seja pior. É
certo que ela abre a possibilidade da conversão, mas também abre
a possibilidade para a completa recusa. O apologista, então, pode
influenciar para o mal. E se imagina que ele mesmo pode conver-
ter os outros através de seus discursos piedosos, levando alguém
ao arrependimento no final da exortação, acaba se tornando ele
mesmo demoníaco no exato momento em que se orgulha de comu-
nicar a fé. É um ardil do diabo, mesmo enquanto lutamos contra
o ateísmo, nos fazer cair no seu teísmo: uma fé cheia de si mesma,
ególatra, e não mais teologal.
Enfim, isso serve como advertência aos amantes da “espirituali-
dade”. Deveríamos achar que ela é o remédio, e que a humanidade
está perecendo por ser demasiado apegada à matéria? A espiritu-
alidade de nosso tempo invade as prateleiras: ela se compara, se
compra, está à venda no eBay. Ela nos remete tanto ao ashram
de Beaune-la-Rolande7 como à Escola de Psico-Antropologia de
Selim Abitbol.8 Mas é preciso ter cuidado, é preciso escolher bem
seu espírito. Um guia do consumidor parece necessário. Percebe-se
7 Ashram é um termo hindu utilizado para se referir a uma comunidade formada em
torno de um guru, com o intuito de promover a evolução espiritual dos seus membros.
Beaune-la-Rolande é uma cidade na região do Loire, na França, que na época da
invasão nazista, abrigou um campo de transição de prisioneiros de guerra. Era uma
escala para o campo de concentração de Auschwitz. O autor é muito sutil nessa
relação entre a espiritualidade gnóstica de um esoterismo que parece inofensivo, mas
que, ao se misturar com a política, pode ser destruidor – NE.
8 Nome pomposo de uma dessas escolas de esoterismo disfarçado de filosofia. Promete
aos discípulos o autoconhecimento e a verdade com V maiúsculo, sem as quais,
segundo o líder, no caso o guru, é impossível a realização do ser – NE.

16
rapidamente que só a ideia de que neste ambiente seria preciso
escolher suas luzes nas prateleiras, já nos aprisiona na espirituali-
dade do consumo. Para resumir a questão, o verdadeiro problema
é o seguinte: Satanás é muito espiritual. Sua natureza é mesmo a
de um espírito puro. Nenhum pingo de matéria nele. Nenhuma
inclinação pessoal pelo materialismo. Então, a espiritualidade, po-
demos crer, é seu truque. É mesmo de tal forma seu truque que,
evidentemente, o Espírito da Verdade nos impulsiona mais para o
carnal do que para esse espiritual.

7. Este livro saiu menos como um tratado de demonologia do


que como um ensaio sobre o combate da fé. Ele poderia começar
com esta observação de São João Crisóstomo: “Não nos agrada
certamente falar-vos do diabo, mas a doutrina de que me dá a
oportunidade, é para vós da maior utilidade”.9 Em que consiste
essa grande utilidade? O pecado do anjo, este pecado do espírito
contra o Espírito, é irremissível. Meditar sobre sua natureza (ou
sua contra-natureza) é meditar sobre o que nos ameaça radical-
mente. E se preparar ao mais interior pugilato.

Se o leitor fechar estas páginas sem levar consigo uma inquie-


tação crescente, elas terão falhado no seu propósito: Não temais
os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes
aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena.10 Trata-se, de
fato, deste temor ao qual a Verdade nos convida. E, noto imedia-
tamente, esse temor não deve ser somente pela alma, desprezando
o corpo, mas pela alma e pelo corpo, à sua maneira, desoladora e
indissoluvelmente unidos (o que mostra que não estamos aqui nem
no materialismo nem o espiritualismo).
No entanto, se o leitor fechasse estas páginas sem uma con-
fiança ainda mais profunda, isto é, com uma profundidade que se
meça ao ponto em que, sem se dobrar, tenha deixado a inquietação
aprofundar-se, então teríamos perdido a partida: Não se vendem
dois pardais por um asse?, pergunta a sequência da passagem ci-
tada mais acima: E, no entanto, nenhum deles cai em terra em o

9 De diablo tentatore, homil. II, 1, PG 49, 257-258.


10 Mt 10, 28.

17
fabrice hadjadj

consentimento de vosso Pai! Quanto a vós, até mesmo os vossos


cabelos foram contados. Não tenhais medo, pois valeis mais que
muitos pardais.11 Quem é como esse Deus que, contra as asas dos
anjos malvados, cuida do homem até em seus cabelos?

***

Numa primeira parte, estudaremos a fé dos demônios em si


mesma, como ela se mostra nas Escrituras e como a grande teolo-
gia se esforça em pensá-la. Essa reflexão nos levará, por contraste,
a reconhecer que o princípio radical da culpa não se encontra na
ignorância ateia nem na fraqueza da carne. Numa segunda parte,
tentaremos ver, a partir desta fonte árida, a maneira com que essa
fé se derrama sobre o mundo em infidelidades contrárias – no ta-
buleiro do erro, os demônios se divertem jogando nos dois lados:
então nos perguntaremos se eles têm maior interesse na propaga-
ção do ateísmo, assim como na incitação aos pecados da carne, ou
se esta tática, bem desenvolvida durante os séculos, não é apenas
uma peça no interior de uma máquina mais douta e astuta. Enfim,
numa última parte (digamos penúltima, porque a última não nos
pertence), consideraremos a fé dos fiéis, tanto na sua encarnação
viva como na sua noite escura. Após ter entrevisto o mal nos pu-
ros espíritos, nos aproximaremos bem dos seres de carne e osso;
após ter escutado Satanás discorrer como teólogo, escutaremos os
santos falarem quase como ateus. Em todos estes casos, o que será
tocado como que indiretamente é uma certa superação do ateísmo.
Do mesmo modo que, em Fédon, Platão distingue duas loucuras
contrárias, uma bestial e outra divina, essa superação do ateísmo
pode ser explicada pelo melhor e pelo pior, isto é, tanto do lado da
graça quanto do lado demoníaco.

8. Última advertência antes da leitura: há uma determinada am-


bivalência em dizer que se luta contra o diabo. Isso não seria, na
certeza de lutar como se deve, cair num orgulho diabólico? Afi-
nal, o demônio não está persuadido de combater o bom combate?
Não está mesmo convicto de servir os desígnios de Deus, apesar de

11 Mt 10, 29-30 (31).

18
tudo? Por outro lado, demonizar seu próximo, ver no outro, antes
que em si mesmo, o princípio de todo mal, não é, de fato, uma
grande tentação? “Satanás” não significa o Acusador, isto é, aquele
que faz pesar todas as faltas sobre os outros?
Para compreender esse problema, é importante, no limiar destas
páginas, citar uma pessoa que esteve segura e certa de combater o
Maligno. Inclusive, sua alta linguagem espiritual parece tomar as
entonações de um Padre do Deserto que se dirigiria aos homens
de seu tempo:

Tenho frequentemente a impressão de que é preciso passar


por todas as provações enviadas por Satanás, os demônios e o
inferno, antes de arrebatar finalmente a vitória definitiva... não
sou, sem dúvida, o que se chama um devoto, certamente não.
Mas no fundo de mim mesmo, sou um homem religioso. Isto
quer dizer que creio que alguém, sobre esta terra, que combate
valentemente, conforme as leis naturais que foram criadas por
um deus, aquele que jamais se rende, se recupera e segue sempre
adiante, eu creio que não será abandonado pelo autor dessas leis
naturais, pelo contrário, terá finalmente a benção da Providência.
E é assim que tem sido para todos os grandes espíritos desta terra.

Quem fala assim, sobre atravessar a prova demoníaca e receber


a benção da Providência? Adolf Hitler, evidentemente. Essas linhas
foram extraídas de seu discurso aos industriais de 26 de julho de
1944, logo após uma tripla derrota militar.12 A posteriori, percebe-se
o voluntarismo, a soberba, a obstinação que afloram por todas as
partes. Mas somente a posteriori...

12 Albert Speer, Au coeur do troiséme Reich, trad. Franc. M. Brottier, Fayard, 1971, p.
764.

19
PRIMEIRA PARTE
OS DEMÔNIOS TAMBÉM CREEM
Ou como se pode ter uma fé inabalável
e mesmo assim cair no pior dos pecados

Pode-se falar de uma “fé demoníaca”? Ou seria jogar aqui com


o oximoro e com a provocação? Apesar das aparências, não é a
excentricidade, mas a simplicidade evangélica que nos leva a isso.
A noção paradoxal parece essencial à pregação de Cristo. Suas pa-
lavras mais severas não são para os pagãos, mas para as ovelhas de
Israel. Ele não ataca primeiramente o infiel, mas o doutor da Lei.
Ele nunca denuncia o ateísmo, mas, principalmente, uma certa fé
farisaica, mais pura, mais exata que aquela dos publicanos ou dos
saduceus. O escriba diz a Jesus:

Muito bem, Mestre, tens razão de dizer que ele é o único e não
existe outro além dele, e amá-lo de todo coração, de toda inteli-
gência e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo é
mais do que todos os holocaustos e sacrifícios.

Mas Jesus lhe responde somente:

Tu não estás longe do Reino,1 isto é: “Tu não estás ainda”.

E mais tarde, continua advertindo:

Guardai-vos dos escribas.2

1 Mc 12, 33-34.
2 Mc 12, 38.

21
fabrice hadjadj

Como compreender que aquele que enuncia claramente os dois


preceitos da nova Lei possa ser ao mesmo tempo perigoso? E como
compreender sem tremer, porque se trata de compreender que a
compreensão, precisamente, não é suficiente? Ter para com essa
advertência apenas uma relação de escriba seria, com efeito, cair
na armadilha contra a qual a advertência nos queria proteger. Ora,
aqui, uma vez que isso é nada mais que um livro, ainda é um escri-
ba que vos fala. Daí, seu tremor: que ele não seja como aquele que,
com olhos presos no mapa, acaba caindo no abismo!
Mas o mais inquietante está em outro lugar: quando até o au-
tor destas linhas queria apenas fundir-se em ação de graças, ele
poderia ainda se perguntar se não é demoníaco. Lembremo-nos da
oração do fariseu:

De pé, orava interiormente deste modo: Ó Deus, eu te ofereço


a Eucaristia [tradução literal] porque não sou como o resto dos
homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano; je-
juo duas vezes por semana, pago o dízimo de todos os meus rendi-
mentos. O publicado, mantendo-se a distância, não ousava sequer
levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo: “Meu
Deus, tem piedade de mim pecador!” Eu vos digo que este último
desceu para a casa justificado, o outro não.3

Ai! Eis que a figura ainda me acerta em cheio! Pois não ser jus-
tificado, o que isso quer dizer, senão ser como o diabo? Seria, pois,
como o diabo mesmo aquele que oferece a Eucaristia! Eis aqui o
mais engraçado: o santo não é aquele que ocupa a primeira fila,
de pé, perto do altar, é o pobre que mantém a distância, e mesmo,
diz misteriosamente o texto, não ousava sequer levantar os olhos
para o céu...

3 Lc 18, 11-14

22
PRIMEIRA LIÇÃO
As tentações no deserto

Então Jesus foi levado pelo Espírito para o deserto, para ser
tentado pelo diabo. Por quarenta dias e quarenta noites esteve
jejuando. Depois teve fome. Então, aproximando-se o Tentador,
disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se
transformem em pães”. Mas Jesus respondeu: “Está escrito: Não
só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boda
de Deus”. Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou
sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus,
atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus
anjos a teu respeito, e eles te tomarão pela mão, para que não
tropeces em nenhuma pedra”. Respondeu-lhe Jesus: “Também
está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus”. Tornou o diabo
a levá-lo, agora para um monte muito alto. E mostrou-lhe todos
os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe: “Tudo isto
te darei, se, prostrado, me adorares”. Aí Jesus lhe disse: “Vai-te,
Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só
a ele prestarás culto”. Com isso, o diabo o deixou. E os anjos de
Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo.
— Mt 4, 1-11.

O tenebroso no vitral
A igreja de São Pedro, em Montfort-l’Amaury, se ilumina com
um vitral cuja própria claridade evoca a maior obscuridade. De
imediato, certamente, todo vitral traz em si a imagem da vida in-
terior. Visto do lado exterior ele é opaco e fosco; contemplado do
interior, recolhe o sol e se colore de centena de matizes. É desta
forma toda vida profunda: a superfície não reflete nada e até pare-
ce sem brilho, mas é porque ela é transparente à luz e a deixa pe-
netrar até o fundo. Por outro lado, os exteriores muito brilhantes
23
fabrice hadjadj

deixam prever uma falta de luz íntima: os raios são refletidos ao


invés de serem absorvidos, o que implica a opacidade de dentro.
Contudo, tratando-se do vitral de Montfort, seu próprio lado
luminoso representa uma realidade de dupla face. Se a obscurida-
de material do lado exterior remete à luminosidade material do in-
terior, a luminosidade material do interior reflete uma obscuridade
espiritual. O anônimo vidreiro pinta aqui uma tentação de Cristo
no deserto. E o Tentador se manifesta no primeiro plano sob a apa-
rência de um santo eremita. Ele veste um barrete doutoral. Ostenta
uma barba branca sob uma face enrugada. Ele leva um hábito com
capuz, de um azul celeste, parecido ao manto da Virgem. Giovanni
Papini fala do “diabo de hábito sacro”.4 Sua mão direita oferece
uma pedra ao sublime esfomeado, sugerindo que ele a transforme
em pão. Na sua mão esquerda, como num gesto de pudor, repousa
sobre seu abdômen inferior. Nenhum chifre nem cauda. Nenhuma
expressão de ódio sobre sua figura. Só um detalhe trai seu caráter
enganador: seus pés com esporas, palmados e vermelhos.
Esse retrato do demônio como monge nada tem de surpreen-
dente para o século XV. Nós o reencontramos na retórica protes-
tante. Aqui, no entanto, é a Igreja Católica que o expõe, não para
insultar a vida monástica, mas para sublinhar o ardil demoníaco.
É certo que o diabo não é da Igreja. No entanto, nada o impede
de se infiltrar. O livro de Jó o apresenta como alguém familiar na
corte divina:

No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar diante


do Eterno, entre eles veio também Satanás.5

A letra do texto põe, no entanto, uma nuance: os filhos se apre-


sentam, mas Satanás não se apresenta: ele vem no meio deles. A
primeira carta de São João marca essa ambiguidade por uma fór-
mula em quiasmo e, pareceria, contraditória. Acerca do “anticris-
to”, a carta observa: Eles saíram de entre nós, mas não eram dos
nossos.6 Portanto, eles estão entre nós, sem ser dos nossos. E essa
4 Giovanni Papini, Le Diable, Flammarion, 1954, p. 141.
5 Jo 1,6.
6 1Jo 2,19.

24
fabrice hadjadj

situação tem algo de extremo, já que o texto nos diz: é a da “a


última hora” (eschatè hora).7
Mas voltemos ao vitral de Montfort-l´Amaury. É interessante
que ele se encontre em Montfort-l´Amaury. O nome do vilarejo
desperta a curiosidade do ouvido um pouco historiador, que sem-
pre acaba ouvindo os nomes de Simão de Montfort e de Arnaldo
Amaury, lembrando imediatamente da cruzada contra os cáta-
ros. Ora, o cátaro se distinguia por sua doutrina sobre Satanás. A
Suma contra os heréticos, atribuída a Prepostino de Cremona, a
refere assim:

O Deus onipotente criou apenas os seres invisíveis e corpo-


rais. Quanto ao diabo, que é chamado deus das trevas, ele criou
os seres visíveis e corporais. Há, portanto, dois princípios das coi-
sas: o princípio do bem, a saber, Deus onipotente; o princípio do
mal, a saber, o diabo. Também existem duas naturezas, uma boa,
aquela dos incorpóreos, criados por Deus onipotente; a outra má,
aquela dos seres corpóreos, criada pelo diabo.8

A linha divisória é clara entre o bem e mal: de um lado, a carne,


do outro, o espírito. E necessariamente, ao considerar as coisas
de maneira tão bem definida, o diabo não pode mais ser tão es-
piritual. O título de demiurgo que lhe concedem é também uma
degradação da sua natureza. É preciso que a matéria o corroa e
pese, porque é mau.
Contra essa heresia coriácea, após o furor e a pregação, vieram
assassinar Pedro de Castelnau; então, o Papa Inocêncio III ordena
uma expedição armada.9 Para vos fazer compreender que o corpo
não é mau vale bem que alguns soldados vos ataque. O Abade de
Cister se põe à frente. É Arnaldo Amaury. Logo ele alista o barão
de Montfort, célebre pelas palavras que teria dito durante o saque

7 1Jo 2,18.
8 Summa contra haereticos, cap. 1, Ed. J. N. Garvin e J.A. Corbet, University of Notre
Dame, 1958, p.4.
9 Pedro de Castelnau foi um sacerdote cisterciense e inquisidor pontifício. Havia sido
designado pelo Papa Inocêncio III como interventor em Languedoc para impedir a
expansão da heresia dos cátaros. Foi assassinado em janeiro de 1208, desencadeando
a Cruzada Albigense – NE.

26
de Béziers. Palavras discutidas, porque o monge Cesário de Heis-
terbach, o único que as menciona, antes as colocou na boca do
próprio Amaury. Os soldados teriam perguntado ao grande abade
cisterciense como distinguir, na batalha, um herege de um católi-
co. O abade teria respondido: “Matai todos, Deus reconhecerá os
seus”. Episódio cuja veracidade é hoje questionada. Mas pouco
importa: o fato da violência está lá. O valor dessa ordem está real-
mente na réplica exata que podemos ter do dualismo cátaro. Aqui,
a linha que faz a divisão entre o bem e o mal está desfocada. Só
Deus, com efeito, pode conhecer os seus.
Mas onde está o diabo nesta história? Entre os cátaros que pro-
pagam o erro, ou entre os católicos que perpetram o massacre? Ele
sabe que o espiritual está em ambos os lados. Também sabe muito
bem que não criou o mundo visível, que a natureza do corpo é boa
e que a Igreja não mente. É aliado da heresia apenas por diversão.
E inflama os ortodoxos, uma vez que a heresia provoca o mais ter-
rível engano. Portanto, fica de um lado, sob a máscara do erro; e de
outro, com o traje da fidelidade. E deste lado, não no bode peludo,
mas no padre abade de Cister, que é mais assustador.

Satanás biblista...
Para quem lê os Evangelhos, a sabedoria dos demônios é mani-
festa. A tentação no deserto, precisamente, nos apresenta um Ad-
versário que cita as Escrituras como um autêntico biblista, e que
usa de uma sequência didática como um bom professor. Uma vez
que Cristo citou o Deuteronômio para repelir a primeira tentação,
Satanás cita um salmo para propor o seguinte: Se és o Filho de
Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: “Ele dará ordem a
seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que
não tropeces em nenhuma pedra”.10 Esses versículos do salmo 91
são aqueles que os monges cantam todas as noites no ofício das
Completas. Nada de mais pertinente, portanto, que pintar o diabo
em hábito monástico.
Sua astúcia é usar de nossas próprias defesas e voltá-las contra
nós. Toda arma que não é o próprio Onipotente, ele pode usar para
nos atacar. Assim ele usa a palavra de Deus para tentar Aquele que

10 Mt 4, 6.

27
fabrice hadjadj

é a Palavra de Deus em pessoa. Ele emprega a letra das Escrituras


para corromper o espírito. E é com uma pertinência, com uma
presença de espírito que, sem dúvida, desconcerta os protestantes
que conhecem de cor muitas passagens da Bíblia e as bombar-
deiam para desencorajar os católicos menos sábios. Sola scriptura,
esse lema agrada imensamente ao diabo, se significa as Escrituras
somente, e separadas de Deus.
Satanás é um biblista. Ele poderia discutir com professores de
seminário e, melhor que eles, aprofundar-se nos detalhes de um
problema de tradução ou de uma controvérsia de termos. É tam-
bém um incomparável mestre em exegese histórico-crítica, um
amigo de Reimarus e de Wolf,11 um irmão de Renan e Loisy,12 um
verdadeiro pai para Julius Wellhausen.13 Ele recorta de bom gra-
do a Torá em pedaços (Javista, Eloísta, Deuteronomista e compa-
nhia) desde que isso permita se proteger contra uma Inspiração
que incomoda; desde que se traga o texto para si, antes que nos
abra para o Outro; desde que a letra, sempre melhor dissecada,
permaneça letra morta. Não é que a exegese histórico-crítica seja
em si mesma demoníaca, mas ela segue facilmente o declive que se
perfila na tentação desértica: fixar-se ao verbo escrito para melhor
perder o Verbo vivo.
Poderíamos fazer a objeção de que o diabo aqui não parece
tanto a um modernista quanto a um literalista. Admitamos. Mas,
tanto num como noutro caso, trata-se de recusar a mediação das
Escrituras. Com efeito, pode-se recusar essa mediação de duas ma-
neiras: seja pela dissecação sem fim, seja pela fixação sem abertura.
De um lado, se desmantela; do outro, se petrifica. Ora, o diabo é
sempre duplo: inimigo da vida, bajula o ectoplasma tanto quanto o
fóssil. A segunda tentação pode ter, portanto, esses dois lados. Ela

11 Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e Christian Freiherr von Wolff (1679-1754).


Próceres do iluminismo alemão, foram os primeiros a propor a diferença entre o Jesus
histórico e o que conhecemos pelos Evangelhos – NE.
12 Ernest Renan (1823-1892) e Alfred Loisy (1857-1940). O primeiro continuou a busca
pelas diferenças entre o Cristo histórico e o dos Evangelhos; o segundo, foi sacerdote
católico, mas apostatou e foi excomungado. Defendia uma interpretação racionalista
e literária das Escrituras, pondo em dúvida a autoridade da Igreja e questionando os
dogmas. Terminou acreditando que o cristianismo era uma espécie de amálgama de
todos os misticismos antigos – NE.
13 Filólogo e estudioso bíblico alemão (1844-1918). Foi um dos criadores da Hipótese
Documentária, que questionava a autenticidade da autoria da Torá – NE.

28
nos mostra esses dois inimigos – o hipercriticismo e o fundamen-
talismo – como dois gêmeos miméticos, os quais ao mesmo tempo
se enfrentam e fazem acordo para recusar a função intermediária
da Bíblia. Religiosidade do indivíduo que rejeita a surpresa de uma
Revelação; religião do Livro que rejeita a prova da Palavra viva.
É como se, nestes poucos versículos, a crítica platônica da es-
crita fosse retomada e superestimada.14 No texto, algo fala, mas,
no entanto, ninguém fala. Quando se levanta uma questão, o texto
repete a mesma coisa. Ele não se adapta a nós, não se move do seu
vocabulário. Por se dirigir invariavelmente a todos, o texto parece
não se dirigir a ninguém em particular. Quando não há alguém para
defender seu sentido, ele pode ser puxado para qualquer lado, in-
terpretado falsamente, enfraquecido de sua força. Assim é possível
um puro saber livresco, desassociado da vida, que faz as pessoas es-
tranhas, tagarelas compulsivos e, por isso mesmo, impermeáveis ao
diálogo. Todos, enfim, muito sábios na superfície e muito ignoran-
tes na profundidade. São amantes do palavreado, por isso fogem do
Verbo incarnado. Por esse motivo, segundo Platão, os bons livros
jamais devem ser tomados seriamente, mas manejados com certa
ironia que permite brincar entre suas linhas, e exigindo do leitor o
esforço de encontrar sua própria resposta. É por isso que, segundo
Mateus e Lucas (ainda mais segundo Lucas, porque ele inverte a
ordem das tentações de modo que a citação diabólica do salmo se
torna a última), o uso da Bíblia, seja tal manuscrito hebraico ou
grego, é demoníaco, caso não seja feito na misericórdia divina (sen-
do também essa misericórdia da ordem da exclusão que apaga a
dívida inscrita no livro de contabilidade). Mas é preciso reconhecer
que os outros autores sagrados permitem sempre esse jogo de que
fala Platão, e que exige, no coração da letra, ir ao espírito.
A filologia logofóbica que aqui o diabo exibe, e que se dissimula
também nos escribas e outros doutores da Lei, Jean-Claude Milner
reconhece como um “momento decisivo do saber moderno”.15 A
modernidade se distingue sobretudo por uma relação crítica com
os textos fundadores (seja Homero ou Moisés). Assim ela opera
a passagem de um saber relacional ao saber absoluto. O saber
relacional está “engrenado” na existência: o texto é lido por sua
14 Ver Platão, Fedro, 274c-277a.
15 Jean-Claude Milner. Le Juif de savoir. Grasset, 2006, p.77.

29
fabrice hadjadj

relação com o real e para que leitor seja transformado. O saber


absoluto, ao contrário, visa apenas o “mais-saber”. A razão tor-
na-se fecunda, mas não se dá o mesmo com o coração. Escrever
apenas por escrever. A ciência não se torna sabedoria; ela não se
volta para a bondade. Henry du Buit, num sentido muito próximo
a Milner, dá a entender que o deslize totalitário da modernidade
não deveria ser procurado em primeiro lugar no lado das ciências
da natureza, mas no lado da predominância do escrito sobre a
palavra. De todas as técnicas, a escrita é a primeira (não na ordem
cronológica, mas na ordem lógica); portanto, a perversão da téc-
nica na tecnocracia deve ser buscada primeiro numa perversão da
escrita: “Não é a lógica das ideias, isto é, a ideologia, é o suporte
da transmissão das ideias que deve ser acusado: nós pensamos que
é a escritura como instrumento essencial da transmissão que gerou
e serviu de alavanca às ideologias mortíferas”.16 A segunda (ou
terceira) tentação no deserto nos convida a pensar nesta direção,
tanto a gênese do totalitarismo como a do individualismo.
Evidentemente, não há aqui “versos satânicos”, mas o uso satâ-
nico dos versos, quaisquer que eles sejam. Poder-se-ia muito bem
dizer: “Está escrito: ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo’, logo,
deita com esta moça que te deseja”. Ou ainda: “Insulta teu pai e
tua mãe porque está escrito: ‘Só a Deus renderás culto’”. Nenhum
versículo isolado está imune de um desvio. Mas também nenhum
versículo pode ser renegado por ter servido às trevas. Os monges,
como dissemos, não cessam de cantar à noite as palavras deturpa-
das pelo diabo para melhor as devolver ao seu verdadeiro sentido.
De resto, ao longo de toda a tentação, para calar sua boca, o judeu
Jesus cita, todas as vezes, a Torá (as únicas palavras não tiradas
do Deuteronômio são o mandamento irresistível: Vai-te, Satanás!).
Mas a citação conserva o aqui sua abertura original e remetem
ao que transcende infinitamente o escrito: os versículos escolhidos
se voltam para este Outro que ele chama O Senhor ou ainda Teu
Deus. Cada passagem se abre como uma passagem no meio do mar
das páginas. O citado se transforma em vivido. O saber não é mais
ter nem poder, mas ser e amor. Ao contrário e significativamente, a
única citação de Satanás não contém o nome de Deus (somente Ele),
16 Henri de Buit, “L´être et l´argent”, in Les Provinciales,, n. 81, segunda-feira, 2 de
junho de 2008, p.7. Ver também do mesmo autor, Ce que est écrit est écrit, Les Pro-
vinciales, Saint-Victor-de-Morestel, 2008.

30
mas o dos anjos. Essa referência trai sua maneira de ler. Ele mesmo
é anjo. E os anjos da guarda, seus inimigos conaturais, fazem parte
de suas obsessões. Assim, como há uma leitura antropocêntrica da
Bíblia que a reduz a pequenos princípios de uma moral terrestre,
ele demonstra aqui uma moral angelocêntrica que puxa também a
interpretação para si.

... e pedagogo
Nosso biblista alado mostra ainda um grande sentido peda-
gógico para induzir ao pecado. Na primeira tentação, a do pão,
ele não profere nenhum versículo, mas é para retomar uma outra
Lei de Deus, a não escrita, aquela da criação. Ele não cita as Es-
crituras, mas incita a natureza. Do mesmo modo que ele busca
opor a palavra à Palavra, ele quer insurgir a natureza contra seu
Criador. Que mal há em contentar sua fome depois de quarenta
dias de jejum? Vamos, trata-se apenas de operar um milagrezinho
discreto, sem brilho, no segredo das areias, enfim, transformar al-
gumas pedras em pães (enquanto Mateus fala de “pães” no plu-
ral, Lucas, instituindo na questão espiritual desta fome material,
escreve “pão” no singular, de modo que se imagina não sei qual
paródia de Eucaristia, onde não é o pão que se converte no Corpo
de Cristo, mas a pedra que é convertida no pão do demônio). Não
é o momento de inventar esta restauração rápida que nos agiliza o
trabalho apostólico? Abra-se então primeiro fast-food do deserto,
e o missionário poderá se ativar mais sem perder tempo na cozinha
nem no oratório! Onde está o mal em repor as forças para ir em
seguida começar sua pregação? O próprio realismo da Encarnação
parece convidar a isso.
Santo Tomás comenta:

A tentação que vem do inimigo se faz por modo de sugestão.


Ora, não se propõe a todos da mesma maneira uma sugestão: se
faz a partir daquilo que cada um é apegado. Eis porque o demô-
nio não tenta o homem espiritual imediatamente com pecados
graves, mas começa com coisas leves para conduzi-lo em seguida
a coisas graves.17

17 Suma Teológica, III, qu.41, art.4.

31
fabrice hadjadj

O Sedutor segue uma ordem. Ele começa por uma coisinha,


que não parece nem mesmo uma falta, para incitar em seguida a
cobiça – possuir todos os reinos da Terra – e a vanglória – ser Filho
de Deus passeando do riquixá dos anjos (a ordem destas duas últi-
mas não é a mesma em Lucas e em Mateus, mas esta permutação
possível é uma demonstração da flexibilidade diabólica). Ele faz
conosco como um bom educador: ele adapta sua pedagogia em
função de seus alunos, ele se esforça primeiro em conhecê-los e em
propor-lhes o crime de que são provavelmente capazes. Ele esfrega
onde está coçando. Ele atinge não tanto o defeito da couraça, mas
onde ela brilha mais, o ponto do qual estamos mais orgulhosos e,
por isso, menos prevenidos: ele tenta, diz Tomás, “a partir daquilo
que cada um é apegado”. Pode ser qualquer coisa, não importa,
mesmo a mais nobre: a oração do terço, por exemplo, do modo
que se detesta o importuno que reclama a nossa ajuda e nos impe-
de de meditar sobre a Visitação.
O sinal desta pedagogia que sabe rebater em seguida o que dis-
se o aluno, se manifesta em Mateus com cada retomada diabólica.
Jesus disse: “Está escrito”, o diabo retoma: “Está escrito”. Jesus
disse: “Ainda uma vez”, a nova ação do diabo é introduzida por
um “Ainda uma vez” (palin). A última réplica de Jesus começa por
um “Então”, o último ato do diabo começa por um “Então” (totè):
Então o diabo o deixou, retirada que salienta novamente a pira-
taria. Eu penso no final da Anunciação: Então o anjo a deixou.18
Assim encontramos no demônio não somente um conhecimen-
to, se não íntimo, ao menos integral das Sagradas Escrituras, mas
também um conhecimento, se não amante, ao menos lúcido do
próximo: todos os dois são necessários, se não para conduzir, ao
menos para seduzir as almas. Para levá-las para o mais alto,19 so-
bre o pináculo do Templo,20 para um monte muito alto,21 isto é,
sempre mais para a beira do abismo. Devemos observar que os três
lugares – aqui onde o demônio opera paternalmente – não são os
lugares perigosos ou os casebres sórdidos. São o deserto, o monte
e o Templo – os três lugares tradicionais da Revelação.

18 Lc 1,38.
19 Lc 4, 5.
20 Mt 4, 5.
21 Mt 4, 8.

32
Podem-se tirar dois ensinamentos. De um lado, Satanás deseja
dublar Deus até produzir, nos mesmos lugares, suas próprias epifa-
nias: Belém é o lugar do Natal, e de fato é o lugar do massacre dos
inocentes; Jerusalém é a Cidade Santa, ele a transforma no lugar
da morte do Santo. Por outro lado, onde o fiel recebeu mais, é pos-
sível perder mais. O Êxodo pode levar a uma escravidão pior que
aquela do Egito: a escravidão sutil do orgulho. O testamento de São
Luís, no seu segundo artigo, adverte ao príncipe Filipe desta ameaça
interior: “Se Deus te dá prosperidade, agradeça-lhe humildemente,
a fim de que não sejas pior, ou pelo orgulho ou de outros modos,
servindo-te dela como um explorador; porque não se deve combater
a Deus com seus dons”.22 Combater a Deus com seus dons, eis o que
Satanás pedagogo, displicentemente, nos incita a fazer, nos empur-
rando imperceptivelmente, a propósito da mesma coisa, da ação de
graças à arrogância do acionista. Ele o atesta com seu próprio exem-
plo: ele, o chefe dos anjos, a primeira das criaturas, tem o pretexto
de sua própria excelência para fazer um solo, como se diz, e Lúcifer,
o “portador da luz”, tornou-se o príncipe das trevas. Maior é o dom
de Deus, enquanto não se trate do próprio Deus, maior também o
risco de se orgulhar. No oráculo de Ezequiel a propósito do castigo,
o Senhor manda: Começai pelo meu santuário.23 É no próprio cen-
tro da benção que a condenação é possível.

Gênio das três tentações


Até aqui falamos apenas do modo da tentação. Convém agora
abordar o conteúdo, sempre nos lembrando de que, por mais longe
possamos chegar, não esgotaremos o mistério e permaneceremos
sempre no limiar. Como nossa pobre inteligência esgotaria aquele
que tenta: o “espírito-não-santo”? Ele a ultrapassa tanto por seu
blefe quanto por sua perspicácia. Ele sabe ler estas linhas na medi-
da em que as escrevo e, para neutralizá-las, inventa estratégias no-
vas. Dostoievski o reconhecia pela voz do seu Grande Inquisidor
se dirigindo a Cristo:

E nada se podia dizer de mais penetrante que o que te foi dito


nas três perguntas ou, para falar com as Escrituras, as tentações

22 Joinville, Vie de Saint Louis, §741, ed. J. Monfrin, Classiques Garnier, 1998, p. 367.
23 Ez 9, 5-6.

33
fabrice hadjadj

que repeliste? Se já houve na Terra um milagre autêntico e retum-


bante, foi o dia daquelas três tentações. O simples fato de terem
sido formuladas aquelas três perguntas constitui um milagre. Su-
ponhamos que tenham desaparecido das Escrituras e que seja
preciso reconstituí-las, imaginá-las de novo para substituí-las, e
que para tanto se reúnam todos os sábios da terra, homens de Es-
tado, prelados, sábios, filósofos, poetas, dizendo-lhes: ‘Imaginai,
redigi três perguntas que não somente correspondam à importân-
cia do acontecimento, mas ainda exprimam, em três frases, toda
a história da humanidade futura’ — seria possível acreditar que
esse areópago da sabedoria humana poderia imaginar algo tão
forte e tão profundo como as três questões que te propôs então
o poderoso espírito?24

Tal é a tese de Dostoievski: as três tentações resumem todo o


drama da humanidade futura. Apoia-se sobre os termos que, em
Lucas e somente nele, terminam o episódio: Tendo acabado toda
a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno.25 São todas as
tentações que se encontram “consumadas”. O verbo grego empre-
gado, suntélein, não deixa de recordar este outro verbo, télélein,
que marca a última palavra de Cristo na Cruz, segundo São João.
Ele pode se traduzir também por “terminar”, “completar”, “consu-
mar”: ele é utilizado no livro de Ben Sirac para qualificar o trabalho
do trabalhador cuidadoso: Dedica suas vigilas em trabalhá-lo com
perfeição.26 Satanás não é bagunceiro. Ele adora que se capriche no
seu ídolo. É o promotor do trabalho bem feito, de tarefa absorvente,
de obra que confisca até o ponto em que se esquece de todo o resto,
especialmente Deus e seu próximo. Também nas três tentações ele
forneceu substancialmente a obra-prima que na sucessão dos tem-
pos se contentará de rentabilizar sob diversas formas.
Segundo indício de que estamos em face de uma precipitação de
toda história humana: o número de dia e noites que Cristo jejua,
quarenta, cifra de completude.

24 Dostoievski, Os Irmãos Karamazov. Livro V, V, trad. Franc. Mangault, Gallimard,


col. “Folio”, 1952, p. 351-352. Trad. Brasil.: Natália Nunes e Oscar Mendes. Abril
Cultural, 1970
25 Lc 4, 13.
26 Eclo 38,28.

34
Os Padres consideraram a cifra ‘40’ como a cifra cósmica, a
cifra do mundo no seu conjunto: os quatro pontos cardeais deli-
mitam tudo, e dez é o número dos mandamentos. A cifra cósmica
multiplicada pelo número de mandamento [o todo físico pelo
todo moral] se torna expressão simbólica da história do mundo.
De certo modo, Jesus percorre de novo o Êxodo de Israel, depois
dos erros e das desordens de toda a história.27

Terceiro indício, enfim, de que essas três tentações resumem to-


dos os erros possíveis: elas coincidem com as três petições do Pai
Nosso. Quando o demônio propõe que Jesus transforme as pedras
em pães, a oração pede a nosso Pai dos Céus, nosso pão de cada
dia. Quando ele o leva ao pináculo do Templo para que Jesus force
um capricho da vontade divina, ela responde: Seja feita a vossa
vontade – a de Deus e não a minha. Quando ele oferece todos os
reinos da Terra se Jesus se prostrar diante dele, a oração diz sim-
plesmente: Venha a nós o vosso Reino, o da Verdade e do Amor,
e não o meu. Que dizer das outras quatro petições? A primeira se
refere à santificação do Nome, o Kiddoush Hachem, que designa
numa única expressão a essência da piedade judia: essa petição tem,
portanto, um lugar à parte: é a fonte e o coroamento de todas as
outras. A quinta supõe que o homem já caiu: Perdoai-nos as nossas
ofensas, e sem dúvida uma dupla tentação lhe corresponde: a re-
cusa da misericórdia, ou o desejo de um perdão privativo, só para
si e não para os outros, mas por ser pior, essa tentação nada tem
de inaugural. Quanto à sexta e sétima petições, elas nos colocam
exatamente na situação de Cristo no deserto: Não nos deixeis cair
em tentação, mas livrai-nos do mal. Pode-se, portanto, pensar que
essas três petições no coração do Pai Nosso estão conscientemen-
te colocadas ali como uma resposta às três tentações. Se algumas
estão classificadas como espelho das outras, é porque as tentações
vão do mais leve para o mais grave, enquanto que as petições,
ao contrário, querem nos preservar do pior e começam, portanto,
pelo mais importante. Que a operação “tentação-no-deserto” seja
o negativo da oração por excelência, e que esse negativo cronolo-
gicamente prevê o próprio positivo, isso nos deixa entrever a qual
grau se eleva a ciência satânica.

27 Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jésus de Nazareth, Flammarion, 2007, p. 49-50.

35
fabrice hadjadj

Se tu és o Filho de Deus...
Além de seu caráter exaustivo, a maior pertinência nessa pas-
sagem que Dostoievski interpretou foi a condicional pela qual co-
meça a sedução: Se tu és o Filho de Deus, então... Numa primeira
análise, essa condicional equivale a um problema para o próprio
demônio: a tentação é um teste. Após ter ouvido no momento do
batismo: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo,28 ele
trata de verificar em que sentido Jesus é Filho de Deus. Porque
se por um lado o demônio possui um saber natural infalível, por
outro, seu conhecimento sobrenatural é escasso: ele só conhece a
partir de certos sinais sensíveis e milagrosos. Assim, mal ele viu a
pomba descer, ouviu a voz vinda dos céus e não duvidou nem por
um só instante: Jesus é o Messias. Nada mais a dizer depois disso.
Nenhum dos contemporâneos estaria tão seguro disso.
Mas a maior parte dos teólogos recusa a ideia de que os demô-
nios soubessem, antes do evento da Ressurreição, que Jesus seja o
próprio Deus e, portanto, Filho eterno do Pai. Eles se baseiam nas
palavras de São Paulo:

Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que


Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para nossa glória.
Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tives-
sem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória.29

Para que tentar Deus em pessoa? Por que se esforçar para co-
locá-lo na Cruz? Se o demônio tivesse sabido antes, ele não teria
mordido a isca: como diria Davi, ele não teria engolido um anzol
com seu homem-verme, ao ponto de se fazer instrumento da Re-
denção e de ser ele mesmo a causa de ser vencido.
E por que não, depois de tudo? Não estamos aqui no plano de
demonstração, mas dos motivos de conveniência. Ora, um bom
diabo poderia muito bem objetar que, já que o Verbo se fez carne
e, portanto, é capaz de sofrer, o melhor a fazer agora é aproveitar,
meus camaradas! Contanto que ele sofra o máximo ao longo de
sua vida terrestre, pouco importa se é uma armadilha, mesmo se

28 Mt 3, 17.
29 1Cor 2, 7-8

36
isso sirva para fazer o bem!... No entanto, não queria me opor
a tradição tão antiga e razoável. O que ela permite ver, afinal, é
preciosíssimo. O demônio entende que é atribuída a nós uma dig-
nidade verdadeira, e por causa dessa dignidade que ele prepara
nossa queda. Se tu és o Filho de Deus, faça isso... Mas fazer isso,
na verdade, é não mais ser Filho de Deus. A condicional é uma
antífrase (é a retórica do Anticristo). A Verdade diria: “Se tu não
queres mais ser Filho de Deus...” Ele, segundo Mateus, esconde seu
jogo até a última tentação, quando abandona essa inversão e, sem
mais rodeios, lança: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares.30
Não vale mais a pena fingir. Essa última condicional desvela o ver-
dadeiro sentido das condicionais precedentes. O se tu és o Filho de
Deus esconde um se tu queres adorar o diabo.
Mas o essencial está em outro lugar, e é isso que Dostoievski
compreende. Atrás da mentira se oculta um projeto autêntico. O
se tu és o Filho de Deus visa preparar o caminho para outro mes-
sianismo. As três tentações conspiram para propor uma Salvação
substituta. Não há dúvida de que sua finalidade é barrar o Cami-
nho, mas é traçando o caminho de uma felicidade estritamente ter-
restre: o pão, a paz, a terra – não conhecer mais a fome, não mais
experimentar a inquietação de consciência, conquistar o mundo
e seus prestígios: eis o que deveria oferecer o verdadeiro messias,
aos olhos do inferno. Não era essa a grande visão do nacional-
-socialismo? Não propunham uma Europa mais unida, onde rei-
naria o homem regenerado? Não era esse o amanhã cantado pelo
socialismo soviético, o de uma sociedade sem classes onde todos os
proletários se dariam as mãos? Não é sempre este o projeto da tec-
nocracia: produzir o super-homem pacificado do grande hipermer-
cado mundial? Ou ainda o apelo dos jihadistas: estabelecer o Islã
em todo o planeta para ganharmos todas as bênçãos materiais de
Alá? Cada uma das vezes, o que se pretende é fabricar uma socie-
dade perfeita onde o pão, a paz e a terra oferecem ao homem uma
felicidade de um animal saciado. Mas para isso deve-se eliminar
tudo o que é impuro, frágil ou desonesto, e especialmente aqueles
que pregam uma mais universal e mais profunda alegria: o Partido
da Paz mundana não têm piores inimigos do que os apóstolos da
bem-aventurança.

30 Mt 4, 9.

37
fabrice hadjadj

“O inferno é acreditar-se no Paraíso por engano”, dizia Simone


Weil. Desse engano, o Partido não quer ser desiludido. A teologia
sustenta que o demônio quer nos precipitar nas chamas infernais.
Quem a poderia contradizer? Mas ela vai muito depressa.

A tentação não nos convida diretamente ao mal, seria muito


grosseiro. Ela pretende nos mostrar o que é melhor: abandonar
enfim as ilusões e empregar eficazmente nossas forças para me-
lhorar o mundo. Ela se apresenta também com a pretensão de um
verdadeiro realismo.31

Concedamos ao Aguilhão32 essa beneficência do qual se ador-


nam todas suas seduções: o que ele propõe hoje é um contra-Para-
íso, ou seja, um paraíso artificial, soberbo e oco.

O Sedutor entre os fiéis


Mas não nos esqueçamos de que o Grande Inquisidor é católico.
É um velho prelado espanhol, da mesma cidade que Don Juan: um
outro enganador de Sevilha, portanto bem maior, bem mais forte
que o mulherengo, visto que ele quer salvar a humanidade. Dos-
toievski acreditava neste conto: “O catolicismo romano vendou a
Cristo em troca do reino da terra”, escrevia no seu Diário de um
escritor.33 Ele acreditava que o Papa se tomava por César. Ele não
via que o pontificado supremo era a vanguarda da Encarnação,
o contrapeso de carne a toda ideologia que empurra os fiéis a se
reunirem não somente em torno de uma doutrina, mas também de
um homem com uma face e uma história, porque o amor de Deus
é indissociável do amor ao próximo, e que a voz de Cristo Mestre
deve ainda se ouvir na voz do próximo magistral: o Santo Padre.
Contudo, o que se deve conceder, ao mesmo tempo contra e a
favor de Dostoievski, é que as três tentações não pertencem so-
mente aos ateus. Comentá-las apenas para evocar os totalitarismos
31 Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jésus de Nazareth, Flammarion, 2007, p.48.

32 Le Grappin no original: era como São João Maria Vianney, o Cura D’Ars,
referia-se ao diabo que lhe atormentava – NE.
33 Diário de um escritor, citado por Henri de Lubac, Le Drame de l´humanisme athée,
Spes, 1945, p.344-345.

38
do século XX é miopia. O próprio diabo se aplaude no auditório.
Porque se olhamos com atenção, devemos confessar: estas três ten-
tações não são apenas exteriores à Igreja. Elas a atacam de dentro.
Elas anunciam três desvios internos, e tão internos que parecem
se confundir à reta doutrina. Então Jesus foi levado pelo Espírito
para o deserto, para ser tentado pelo diabo.34 É o Espírito Santo
que conduz Jesus ao deserto (Marcos diz mesmo que ele o expulsa,
ekballei, como Jesus expulsará o demônio). A provação do deserto
está, portanto, especialmente lá onde se encontra o Espírito.
Os nomes dessas três tentações interiores? Humanismo, quietis-
mo, evangelismo (ou ativismo missionário). Elas pervertem três as-
pectos essenciais da vida cristã: o amor aos pobres, o abandono à
providência, o anúncio da Boa Nova. Essa maneira de considerá-las
respeita seu caráter sucessivo – e mesmo dialético. Ela torna possí-
vel a concomitância que lhes outorga o sistema do Grande Inqui-
sidor: ali aonde o pão, a paz e a terra iam em uníssono, o huma-
nitarismo, o quietismo e o evangelismo se opõe. O humanitarismo
é contrário ao espiritualismo, e seu ativismo se opõe ao ativismo
missionário; do mesmo modo, quietismo e evangelismo são opos-
tos, porque o primeiro é inerte enquanto o segundo não para quie-
to. Eles tendem, portanto, a romper os cristãos entre si, e em si
mesmos, quebrando o tenso equilíbrio da natureza e da graça, da
ação e da contemplação.

Falso diálogo
– Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transfor-
mem em pães... A Igreja não prega a “opção preferencial pelos
pobres”? O grito dos famintos não deve penetrar em seu ouvido
e até na sua alma? Que o clero se organize, portanto, para enviar
sacos de arroz e de trigo a todas as nações! E pouco importa que
a hóstia seja consagrada, desde que seja substanciosa! Que ela se
torne um verdadeiro sanduíche que mate sua fome! A Ceia não
foi um jantar onde se servia verdadeiro cordeiro, de carne e osso?
Adeus, portanto, à transubstanciação! Que o bispo troque a mitra
pelo chapéu de cozinheiro! Que no lugar do Crucifixo, erga-se um
espeto de churrasco! Que uma geladeira cheia esteja no lugar do

34 Mt 4, 1.

39
fabrice hadjadj

Sacrário, e sobre o altar a mesa servida para treze ou mais pessoas:


bem-aventurados os pobres, convidados para a refeição do Chef!
Primeiro, encher a pança, depois o pensamento! Não é escandalo-
so oferecer pedras aos famintos? O que são as Tábuas da Lei ou
essa Pedra sobre o qual se edifica a Igreja, ao invés de lhes dar uma
boa baguete comestível?

– Este escândalo é aquele de Judas no momento da unção em


Betânia:35 Por que não se vendeu este perfume por trezentos dená-
rios para dá-los aos pobres? E por que não vender a Palavra por
trinta denários? Aliás, o pão não entrava, junto com o circo, na po-
lítica dos imperadores para debilitar toda a crítica? Podemos com-
preender que, antigamente, o diabo era chamado de “Padeiro”. Se
a Igreja se ocupasse apenas de pão, ela se identificaria com o poder
temporal e concorreria com o Estado, de modo que este aparente
rebaixamento significaria também sua extensão totalitária. Além
disso, com o pão se tornando mais importante que a razão e a
liberdade, o homem poderia ser tratado simplesmente como um
bicho. Seria forçado a trabalhar para produzir mais carne. Proi-
biriam todo shabat onde poderia encontrar descanso. Para que
celebrar bem a palavra, se a coisa é viver no nível da manjedou-
ra?... Mas a verdadeira manjedoura é aquela do Natal. O homem
não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.
Por isso ele sabe fazer greve de fome quando sente que a justiça é
ferida. Também sabe, quando não tem mais razão de viver, meter
uma bala na cabeça no meio da festa. É que, no seu próprio corpo,
ele é espírito. Ele é construído por palavras. Ele tem, portanto, ne-
cessidade desse alimento. Podemos muito bem multiplicar os pães,
mas será sempre para falar do Reino.36
– O espiritual, tens perfeita razão! Por que não pensei nisso
antes? Isso eu conheço bem: o espiritual! Não sou eu mesmo
um puro espírito? De espiritualismos então, sou fanático! Olhe,
tu me abriste os olhos: de agora em diante eu advogo por toda
uma vida aliviada do peso da carne: Ele dará ordem a seus anjos
a teu respeito, e eles te tomarão pela mão... Sim, abandona-te à
providência divina. Deus é bom, ele é bom para fazer tudo. Não

35 Jo 12,5.
36 Lc 9, 11.

40
escute o pobre que bate na tua porta, mas reza: um anjo ou um
corvo acabarão por alimentá-lo. Faças oração e não faças mais
mais. Seja Maria aos pés de Jesus, e despreze Marta que se dedica
ao serviço. Deixa aos imperfeitos a preocupação da matéria, a
alimentação das vacas, o pastoreio das ovelhas. Que balem ou
uivem, não importa, concentra tua atenção na vida interior. Ne-
gligencie todas essas pequenas obrigações cotidianas que são a
evidência das pessoas mesquinhas. Tu és feito para tarefas mais
elevadas. Tu és um filho de Deus: alise tuas plumas e deixe aos
outros o chumbo.

– Abandonar-se a Deus é abandonar-se à causa primeira de


todo agir. Isso não conduz à inércia, mas a uma atividade su-
perior, menos dispersa, mais recolhida, que sabe ir ao essencial.
Assim, quanto mais próxima da torrente, mais a barca se lança.
Quando Deus nos atrai a seu coração, é como as aletas da flecha,
a fim de nos enviar mais longe. Deixá-lo agir não é fazer nada.
Não tentarás o Senhor teu Deus. Tu não farás como se, sendo o
Criador, ele não devesse agir através de ti, por ser sua criatura.
Porque nele vivemos, nos movemos e existimos.37 Além do mais,
Deus não é tanto o criador da matéria como do espírito? Não
fala também através da louça por fazer, da lâmpada por trocar,
da criança por limpar, se tudo isso se faz com amor? Os verda-
deiros carolas não têm asas, mas não são imóveis.38 Sua contem-
plação superabunda em apostolado. Porque a caridade que faz
amar a Deus é a mesma que faz amar o próximo destinado a ser
um Deus por participação.
– O apostolado, decerto! Que se anuncie o Evangelho, que se
trombeteie nas praças, que se faça ressoar como um címbalo! Cor-
rei pelo muito inteiro a proclamar vosso gentil Reino. Mas não
vos esqueçais que eu sou o Príncipe deste mundo. Sou mestre em
marketing, doutor em propaganda, expert internacional em men-
sagem subliminar e em publicidade hipnotizante. Veja como con-
sigo fazer este pobre coitado comprar um carro acima das suas

37 At 17, 28.
38 No texto original o autor faz um jogo de palavras com as expressões culs-bénis,
usada de forma pejorativa para se referir a pessoas piedosas, beatas; e cul plombé,
semelhante ao nosso CDF – NT.

41
fabrice hadjadj

possibilidades financeiras como se fosse a carruagem de Elias! Ad-


mira como eu posso fazer eleger o mais medíocre político por um
só truque da maravilha midiática! Eu te darei todos os reinos do
mundo com sua glória, se prostrado, me renderes homenagem...
Nós faremos um reality show de canto gregoriano. Organizaremos
um Ilha da Sedução do sacerdócio. Faremos de modo que Doctor
House se converta e que as Desperate Housewives encontrem na
ficção a esperança teologal. Todos os Jornais da Noite, todos os
prime-times, todos os sites e o próprio Google estarão a serviço
da tua Igreja e apresentarão encantos que farão inveja aos canais
adultos e às melhores sérias americanas! O catolicismo estará na
moda. O jornal Le Monde será rebatizado L’Esprit. A vida espi-
ritual de Catherine M. será o best-seller universal! Dan Brown se
tornará numerário do Opus Dei!

– Vai-te, Satanás! Já não te disse que não somos uma empresa


de filantropia, seja ela espiritual, mas a aventura de um encontro
com o menor dos indivíduos, expondo nosso rosto ao seu punho,
abrindo nossas mãos, ainda se ele as quer transpassar. É na po-
breza que se anuncia o Reino de Deus. É na proximidade que se
ama o próximo. No risco de um abraço onde ele pode tanto se
abrir como nos estrangular. Um abraço, e não uma coerção. Sem
seduções psicológicas. Sem morde e assopra, mas com o pobre e
feio crucifixo... Por que é um encontro pessoal que deve acon-
tecer e diante de Alguém que devemos nos apagar. É ao Senhor
Deus que tu adorarás, tu, não um clone, e a Ele só renderás culto,
de modo que tu não serás escravo de nenhum poder da terra ou
do céu, mas livre nesta solidão com o Só, onde o Só é também
o Criador de todos os seres, tu poderás ter com cada ser uma
intimidade...
Mais uma vez, essa pequena explicação para sublinhar o savoir-
-faire, senão a sabedoria, das três tentações. Satanás se revela fino
conhecedor do que constitui a missão da Igreja. Insensivelmente,
ele se esforça para transformá-la em tagarelagem ou em renúncia.
E já entrevemos a lógica de suas mentiras (lógica que será o obje-
to de nossa segunda parte): separação ou confusão, que levam a
três erros contrários e se sustentam uns aos outros. Para dizer de

42
maneira breve, e por ora reduzida, trata-se da questão da carne e
do Espírito. Com o pão, é a carne sem o Espírito; com o abando-
no aos anjos, é o espírito sem a carne; com a proposta dos reinos
terrestres, é uma carne e um espírito unidos, mas diminuídos, di-
gamos uma carne virtualizada por um espírito mundano, a fim de
uma produzir essa contradição sedutora: o grande espetáculo da
oração, o grande divertimento da fé...

43
SEGUNDA LIÇÃO
O evangelho do diabo segundo Marcos

Na ocasião, estava na sinagoga deles um homem possuído


de um espírito impuro, que gritava dizendo: “Que queres de
nós, Jesus Nazareno? Viestes para arruinar-nos? Sei quem tu
és: o Santo de Deus.”
— Mc 1, 23-24

Uma resposta silenciosa


O Evangelho segundo Marcos não enumera as tentações como
os outros Sinóticos. Duas frases lhe bastam. A provação do deser-
to dura apenas um versículo. Esse Evangelho – a maior parte dos
exegetas concorda – seria o mais primitivo dos quatro, redigido
por volta dos anos 60 (os verdadeiros Sixties). Seria consequen-
temente o mais embrionário e mais seco, de modo que Mateus e
Lucas se esforçaram para desenvolvê-lo? O mais afiado, para ser
mais exato. Se fosse retirado do Novo Testamento com o pretexto
de que parece incluído nos outros dois, se o visse como uma trama
ou esboço cuja conservação seria redundância, se embotaria o fio
da Novidade. Como sempre em Marcos, a brevidade de sua pala-
vra é semelhante ao golpe rápido, a concisão de seu testemunho é
também sua circuncisão. O pequeno versículo de que nós falamos
(Mc 1, 13) por si só o provaria, semelhante à brecha por onde se
penetra o abismo. Para melhor fazer entender, eu o corto em seis
versos que o estendem e fazem ver seu paralelismo concentrado:

E ele esteve
no deserto quarenta dias,
sendo tentado por Satanás;
e vivia

45
fabrice hadjadj

entre as feras,
e os anjos o serviram.

Duas frases similares, portanto, balanceadas uma pela outra,


onde o deserto quadragesimal está em paralelo com as feras selva-
gens, onde a tentação por Satanás está equilibrada pelo serviço dos
anjos. E o que é mais belo: Jesus – a Verbo feito carne – nada diz.
Ele é, eis tudo. O texto o repete em anáfora. Se ele parece não agir
é porque se mantém no ato mais puro. Se ele parece não responder,
é porque dá à resposta mais metafísica: não falando, mas sendo a
Palavra, tão simplesmente. Sua atitude não é menos exemplar. Ele
indica o caminho do mandamento mais breve e mais completo:
Seja! Seja plenamente. Recorda-te, no entanto, que tu não és o
ser. Para ser plenamente, é preciso que tu te faças receptáculo. À
Catarina de Sena, Deus diz: “Eu sou Aquele que é, tu és aquela
que não é”, que não é nada por si mesma. E ele acrescenta: “Faz-te
capacidade, eu me farei torrente”. Assim teu ser te foi dado, tu
o recebes de Deus e de Deus através da história, igual a todas as
criaturas. De modo que teu ser é amor. “Seja plenamente” não sig-
nifica, portanto, “seja pleno de ti”, mas seja como o receptáculo da
existência que és com toda a Criação: seja sempre mais em Deus e
na comunhão com todos esses outros seres que como tu recebem
a si mesmos: esta violeta, este passarinho, esta tigela que reflete o
sol – teus irmãos...
Jesus é – tentado por Satanás. Discrição do evangelista. Mas
aquilo que ele silencia, evidencia-se muito melhor através de toda
trama de seu relato.1 Marcos não cessa de insistir sobre a fé dos
demônios, e de opô-los, paradoxalmente, à incredulidade dos dis-
cípulos. Isso chega a tal ponto que na hora da Paixão, o discípulo
foge completamente nu, as mulheres se mantêm à distância, os que
passam e mesmo os outros crucificados ultrajam o Verbo pendu-
rado na cruz, e não há ninguém para o reconhecer, a não ser um
centurião do exército romano. Aquele mesmo que transpassa o
lado do Senhor e completa assim o suplício, enfim confessa: Ver-
dadeiramente este homem era o filho de Deus.2

1 Sobre esse tema, ver o primeiro capítulo do primeiro de livro de J.L. Chértien, Lueur
du secret, L´Herne, 1985.
2 Mc 15, 39.

46
Milagre em Cafarnaum
Segundo Marcos, o começo de sua vida pública não é menos
perturbador que esse final. Onde, após o chamado dos primeiros
discípulos, Mateus evoca as numerosas curas e João apresenta
como primeiro sinal o milagre nas bodas de Canaã, Marcos relata
com precisão um shabat em Cafarnaum. O episódio é reencontra-
do em Lucas, mais ou menos no mesmo lugar, mas ele é precedido
de um primeiro conflito em Nazaré (Ninguém é profeta na sua
terra) e seguido somente pelo chamado aos discípulos. Em Marcos,
portanto, a passagem em Cafarnaum tem verdadeiramente algo de
inaugural e se desenvolve na sequência da primeira pregação da
fé: Arrependei-vos e crede no Evangelho.3 No teatro, poderia ser
uma cena de exposição (no boxe, um round de observação). Amar-
ra a intriga entre dois casais antagonistas que não cessaram de se
enfrentar daí em diante: fé teologal e fé dos demônios, autoridade
de Jesus e autoridade dos escribas. No meio deste enfrentamento,
os discípulos estão desorientados, ou melhor, perturbados como
uma bússola bem perto do polo. A Meta está lá, no meio deles, é
por isso que não sabem mais seu caminho.
Eis-nos em pleno Cafarnaum. Como este nome veio a desig-
nar de maneira comum um “lugar de desordem e devassidão” ou
ainda uma vasta “miscelânea de objetos diversos”? O Tesouro da
língua francesa explica recordando que, nesta cidade às margens
do lago de Tiberíades, “Jesus foi assaltado por uma multidão hete-
rogênea de enfermos implorando seu poder curador”. Cafarnaum
seria antes de tudo um sinônimo de uma corte de milagres. Mas
essa singularidade cômica esconde uma outra, mais temível. Lucas
e Mateus relatam, a propósito desta cidade, o que talvez seja a
maldição mais grave proferida por Cristo:

E tu, Cafarnaum, serás elevada até o Céu? Até o Hades tu


descerás! Porque se em Sodoma tivessem sido realizados milagres
que em vós se realizaram, ela teria permanecido até hoje. Mas eu
vos digo que no Dia do Julgamento haverá menos rigor para a
terra de Sodoma que para vós.4

3 Mc 1, 15.
4 Mt 11, 24-23 e Lc10,15.

47
fabrice hadjadj

O cafarnaita seria, portanto, pior que o sodomita. Mais ainda


contra a natureza. Mas de que se trata? Seria a própria fé que se
toma aqui ao contrário?
Eis uma singularidade que lhe precisa: no início desta citação
do Novo Testamento se encontra incrustrada uma citação do An-
tigo, portanto sempre nova. Jesus cita o profeta Isaías. Ele retoma
duas frases da sátira contra o rei da Babilônia. Ora, essa sátira,
os Padres da Igreja interpretaram geralmente como descrevendo a
queda de Satanás:

Como caístes do céu, ó estrela d´alva [em latim, Lúcifer], filho


da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! E,
no entanto, dizias no teu coração: “Hei de subir até o céu, acima
das estrelas de Deus colocarei o meu trono, estabelecer-me-ei na
montanha da Assembleia, nos confins do norte. Subirei acima das
nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo”. E, contudo, foste
precipitado ao Hades, nas profundezas do abismo.5

Assim será o destino de Satanás a qualificar o destino de Cafar-


naum. O cafarnaúnico se identifica com o satânico, mas, por assim
dizer, a um satânico com rosto humano. Ora, o relato de Marcos,
desde o início, tenta identificar esse mal radical. O encontro com
o espírito impuro não se realiza em Cafarnaum como no deserto.
Ele se faz no meio da assembleia. Atravessa um homem que esse
espírito possui.
Jesus ensinava, portanto, durante o shabat, e todos estavam es-
pantados com seu ensinamento, pois

ele ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas.


Na ocasião, estava na sinagoga deles um homem possuído de
um espírito impuro, que gritava dizendo: “Que queres de nós,
Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos? Sei quem tu és: o San-
to de Deus”. Jesus, porém, o conjurou severamente: “Cala-te e
sai dele”. Então o espírito impuro, sacudindo-o violentamente
e soltando grande grito, deixou-o. Todos então se admiraram,
perguntando uns aos outros: “Que é isto?”.6

5 Is 14, 12-15.
6 Mc 1 23-27.

48
Questionemos, então, sabendo que se não vamos além da sim-
ples questão: “Que é isto?”, não seremos melhores que o povo de
Cafarnaum. Primeiramente notemos este fato estranho que o es-
pírito impuro não impede o nosso homem de ir a sinagoga, isto é,
transpondo as coisas aos nossos dias, impede-o de ir à igreja, ou ao
menos ao grupo de oração. O demônio não é contra o fato de abrir
o livro na página 131 para cantar o canto 669; ele chega mesmo
a aplaudir a homilia de certos padres. Por que ele faria aquele que
atormenta se distanciar do lugar de culto pelo corpo? O essencial
é ele mesmo se distanciar do culto, mas pelo coração.
Em seguida, esse demônio reconhece imediatamente a identida-
de de Cristo. Ele afirma sem hesitar um instante: Sei quem tu és:
o Santo de Deus. Alguns traduzem por “Sei muito bem”, a fim de
que a expressão transpire uma segurança tal como se encontraria
nos doutores em teologia. Ninguém mais na sinagoga sabe tanto.
Nem mesmo os primeiros discípulos que lá entraram com Jesus. É
a primeira vez que uma criatura se faz eco da voz descida dos céus
durante o Batismo no Jordão: Tu és meu Filho amado, em ti me
comprazo.7 Como se o espírito impuro se fazia durante a descida
da pomba branca...
Além disso, o demônio obedece a Jesus. Quando ele lhe orde-
na: Cala-te (traduzido segundo a exata eloquência de nossos dias:
“Cala a boca!”) e sai dele, lhe obedece sem demora. Bem enten-
dido, ele a executa com um grande grito, constrangido e forçado
pelo soberano poder do Verbo: não é obediência propriamente fa-
lando, porque a obediência por natureza é livre, mas em todo caso,
assim lhe parece.
Enfim, e isso é o mais assombroso, se Jesus lhe ordena calar, não
é por causa da aspereza de seu tom, mas pelo conteúdo de suas
palavras. A sequência deixa bem claro para quem ainda duvidasse.
No entardecer do mesmo dia, após o pôr-do-sol, toda a cidade de
Cafarnaum se reúne na porta onde Jesus cura numerosos enfermos:
E expulsou muitos demônios, e não consentia, porém que falassem,
pois sabiam que era ele.8 Ora, não é a missão da Igreja anunciar
quem é Jesus? Por que então censurar tão persuasivas declarações?

7 Mc 1,11.
8 Mc 1, 34.

49
fabrice hadjadj

O bem e o mal parecem trocar seus papéis. O desejo nietzs-


chiano de inverter todos os valores foi atendido para além de seu
desejo. O Evangelho de Marcos nos dá por qualidade demoníacas:
a assiduidade a igreja, o conhecimento de Jesus, a submissão auto-
mática a seu mandamento... E nos aponta ainda, como uma verda-
deira imitação de Cristo, a maravilha de fazer calar uma certa afir-
mação do dogma. Seria possível não ficarmos também estupefatos,
como os habitantes de Cafarnaum? Estas qualidades demoníacas
não lembram àquelas dos fiéis? Quanto a ordem de Cristo de não
proclamar sua identidade, não evoca o decreto dos perseguidores?

Em Gérasa, adoração e partilha...


Os demônios vão ainda mais longe na sua aparente piedade.
Eles sabem aliar a prostração à profissão de fé. A célebre passagem
que serve de epigrafe em Os Demônios, de Dostoievski, nos ajuda
a descobrir este aspecto de sua vida espiritual, assim como dois
outros, não menos interessantes.
Jesus acaba de fazer calar uma tempestade e de dizer aos discí-
pulos que tinham medo: Ainda não tendes fé? Agora que o barco
navega sobre a onda acalmada, eis que desembarca na terra dos
gerasenos. O primeiro a vir ao seu encontro é um homem possuído
por um espírito impuro, que habitava no meio das tumbas e nin-
guém podia dominá-lo, nem mesmo com correntes:

Ao ver Jesus, de longe, correu e prostrou-se diante dele, cla-


mando em alta voz: “Que queres de mim, Jesus, filho do Deus
altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!”9

Com a aproximação de Cristo, o demônio teria de fugir. Pelo


menos é o que teria proposto um roteirista humano. Mas eis que
ele realiza um momento semelhante àquele do amor: o amante vê
seu bem-amado de longe, corre a seu reencontro, cai a seus pés.
Este verbo grego, proskunein, “se prostrar”, São Jerônimo não he-
sita em traduzir por adorare: literalmente o demônio “adora” o
Filho do Altíssimo. E lhe suplica instantemente – por Deus! Sim,

9 Mc 5, 6-7.

50
é por Deus que conjura a Cristo, como alguém que conhece sua
religião. E por este que é seu pedido: não me atormentes, que ele
trai, sem dúvida, o demoníaco, mas faz pensar também em Simão-
-Pedro após a primeira pesca milagrosa: Atirou-se aos pés de Jesus,
dizendo: Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!”10
A Cristo, que lhe pede seu nome, o espírito responde operando
uma estranha passagem do singular ao plural, do “eu” ao “nós”
(inverso aquele de Cafarnaum que passa do “nós” ao “eu”). Le-
gião é o meu nome, porque somos muitos.11 Uma legião, no tem-
po de Augusto, são 6.826 pessoas, divididas em 726 cavaleiros e
6.100 membros da infantaria. Que sublime senso de partilha! Que
paróquia, no curso da mais fervente quaresma, esperaria tais cifras
na distribuição de seus dons? Ou mesmo um clube de swing, no
curso da mais febril orgia. Tem só essa pobre alma de nosso pos-
suído, e os demônios a constrangem, repartindo-a coabitando-a
em massa, com uma solidariedade que encantaria o ministério da
coesão social. Sem dúvida, diríamos que essa partilha tem mais de
gang bang do que de comunhão: é uma festa de rapinadores antes
que uma mesa de amigos. Não é menos fascinante. Porque detrás
do deslizamento do singular ao plural, se perfila algo muito mais
profundo.
Esse deslizamento concerne um possuído que vive entre as tum-
bas, isto é, um homem a quem o nada lhe atrai. Ora, o mesmo des-
colamento gramatical se encontra duas vezes, em paralelo, quando
o homem é tirado do nada. É o primeiro capítulo do Genesis: Elo-
him disse [singular]: “Façamos [plural] o homem à nossa imagem,
como nossa semelhança, e que eles dominem [plural] sobre os pei-
xes do mar, as aves do céu, etc”.12 Deus é Um em Três Pessoas. E
o humano o manifesta corporalmente sua imagem através da viva
relação entre um homem e uma mulher. A Legião é um simula-
cro ao mesmo tempo da comunhão trinitária e da aliança sexual.
A possessão de nosso pobre rapaz por essa turba de demônios é
uma invejosa réplica da inhabitação da Trindade na alma fiel. Ela
é também um negativo de núpcias na sua fecundidade: um tipo de

10 Lc 5, 8.
11 Mc 5, 9.
12 Gn 1, 26.

51
fabrice hadjadj

copulação múltipla, uma grande orgia espiritual não para que seja
trazida ao mundo uma criança, mas para que o velho homem seja
posto no inferno.

... e oração dos demônios


Os demônios se põem então a suplicar a Jesus de não os enviar
para fora da região. “Suplicar” pode aqui se traduzir por “rezar”.
Mas qual o significado dessa oração? Lucas esclarece: trata-se não
ir para o abismo.13 A Legião quer permanecer na terra a qualquer
preço:14 como o Verbo desceu do céu, a Legião deseja subir do in-
ferno para habitar entre nós. Daí, essa oração que dirigem a Cris-
to e na qual não podemos não reconhecer a inclinação de alguns
de nossos pedidos: Manda-nos para os porcos, para que entremos
neles”.15 “Sim, ao invés de estarmos contigo e seguir-te no caminho
Calvário, manda-nos para estes porcos, está aí a santidade a nossa
medida, uma vida ao alcance do focinho rosa, redondo e enlamea-
do. Do mistério do Natal, nossa piedade não quer conhecer senão
o morno presépio. Está aí a meta da nossa viagem, ó companheiros
de Ulisses, pelo sortilégio de Circe mais que pela oração de Maria,
uma graça abundante... Então, Senhor, inútil nos fazer sangrar, nós
não somos kosher! Deixa-nos engordar tranquilos. E depois cobrir
nossas porcas em paz. Nós estaremos bem a cavar o chão para a
salvação de nosso toucinho. Encontraremos na lama um céu sufi-
ciente e acolhedor. Veja nossa modéstia, Filho do Deus Altíssimo.
À tua alegria que arrebata, preferimos o chiqueiro que nos prote-
ge. Sem necessidade de tua hóstia radiosa: nos contentaremos com
nossa pequena pocilga”.
E este pedido, de uma pseudo-encarnação suína, Jesus o rea-
liza. É inacreditável: o demônio reza a Deus e Deus o escuta sem
demora. Essa eficácia se esperaria da oração de um santo. Marcos
nos revela que ela pode pertencer à súplica do diabo. E os espíritos
impuros saíram, entraram nos porcos, e a manada – cerca de dois
mil – se arrojou ao mar, precipício abaixo, eles se afogaram no
13 Lc 8, 31.
14 Eu forço aqui duas vezes a gramática para melhor fazer sentir a monstruosidade da
coisa que tomou posse do homem. Não sem aludir ao 1984 de George Orwell, e a sua
“novilíngua”.
15 Mc 5, 12.

52
mar.16 Eles morreram por causa de Jesus. Dir-se-iam mártires da fé.
Porque morrendo assim eles parecem testemunhar sua força: olhai
que poderoso feiticeiro, vede aquele que pururuca os espíritos nos
porcos, admirai sua charcutaria mágica! Suicídio que caracteriza
o martírio, testemunho da vontade de poder, lá onde o Cristo quer
um testemunho por sua descida por amor.
Assim os demônios distorcem tudo o que é cristão e proclamam
seu evangelho aos suínos. As pobres pessoas que veem esses pro-
dígios, influenciadas por essa proclamação, ou bem comprimem o
grande curandeiro a risco de esmagá-lo17 ou suplicam ao afogador
de porcos que se afastasse do seu território.18 Os que estão à beira
do caminho onde a Palavra foi semeada são aqueles que ouvem,
mas logo vem Satanás e arrebata a Palavra neles semeada.19 Airô,
o verbo que eu traduzo aqui por “arrebatar”, também pode ser
traduzido por “levantar do solo”, ou ainda, “apropriar-se”. Sata-
nás não destrói, portanto, a pregação. Ele a assimila orgulhosa-
mente. Ele a eleva em artifício: que a semente não seja enterrada
no solo, que o grão de mostarda seja substituído por uma maçã
bem grande e bem visível, que o ritmo natural de seu crescimento
não seja respeitado, que não a permita agir como nessa parábola
encontrada apenas em Marcos, na qual o Reino é comparado com
uma semente que cresce sozinha, sem que ele saiba como, na graça
de Deus.20 Ele quer que se domine inteiramente o crescimento da
semente. Ele quer uma fé que suba à cabeça, ao invés de uma que
desça ao coração.

Fé dos demônios e incredulidade dos discípulos


Atendo-nos somente em Marcos, dever-se-ia dizer que os demô-
nios têm uma fé muito demonstrativa, ao contrário dos homens,
pobres diabos! Os parentes de Jesus o rejeitam: Enlouqueceu. Os
escribas vão ainda mais longe: Está possuído por Belzebu.21 Seus

16 Mc 5, 13.
17 Cf. Mc 3,9.
18 Cf. Mc 5, 17.
19 Mc 4, 15.
20 Cf. Mc 4, 26-29
21 Mc 3, 21-22.

53
fabrice hadjadj

compatriotas de Nazaré ficam chocados com suas palavras: Não é


este o carpinteiro, o filho de Maria? E Jesus se assombra, a Sabe-
doria eterna admirou-se da incredulidade deles.22
Quanto os discípulos, são incapazes, duplamente incrédulos.
Eles viram Cristo operar milagres, escutaram seus ensinamentos,
ainda receberam a explicação das parábolas, e no momento da
tempestade no lago, como já dissemos, entraram em pânico de tal
forma que o Mestre lhes pergunta: Por que tendes medo? Ainda
não tendes fé? E eles ficaram com muito medo e diziam uns aos
outros: “Quem é este a quem até o vento e o mar obedecem?”23
Lá onde o demônio de Cafarnaum dizia pomposamente: Sei quem
tu és, os discípulos timidamente se interrogam: Quem é este? Sem
dúvida, sua incerteza humana é infinitamente menos perversa que
a certeza demoníaca. Permanece esta sentença terrível e que sai da
boca da Verdade: Não tendes fé. Ainda mais incrível, o onisciente,
no seu excesso de amor por seus discípulos, parece esquecer que
ele sabe tudo e dolorosamente pergunta: Por quê?
Seus olhos não estão perto de se abrirem, nem seus ouvidos de
se destaparem. Após a primeira multiplicação dos pães, ainda que
retornem da missão e que tenham expulsado demônios em nome
de Jesus, ainda que tenham acabado de assistir a esta multiplica-
ção milagrosa, Marcos confessa mais uma vez: Eles, porém, no
seu íntimo estavam cheios de espanto, pois não tinham entendido
nada a respeito dos pães, mas o seu coração estava endurecido.24
Após a segunda multiplicação, mesmo quando se esperaria um pe-
queno progresso... Nada! E Cristo lhes diz: Ainda não entendeis e
nem compreendeis? Tendes o coração endurecido? Tendes olhos e
não vedes, ouvidos e não ouvis?25
Com a história deste epilético de quem não conseguem expul-
sar o demônio, o Senhor não contém mais seu lamento: Ó ge-
ração incrédula! Até quando estarei convosco? Até quando vos
suportarei?26 Mesmo após a Ressureição, os apóstolos não querem

22 Cf. Mc 6, 3-6.
23 Mc 4,40-41.
24 Mc 6, 51-52.
25 Mc 8, 17-19.
26 Mc 9, 19.

54
crer em Maria Madalena de quem havia expulsado sete demônios27
e uma vez mais, seis versículos antes do fim, Jesus, ressurgido dos
mortos, censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração.28

Satanismo pontifical
Porém, o mais forte se situa exatamente no centro desse Evan-
gelho. Sabe-se que mais frequentemente na composição bíblica,
como num candelabro de sete braços, o que está no meio é o que
suporta o restante: no meio do livro do Êxodo, por exemplo, o
Decálogo; no meio do segundo livro de Samuel, o arrependimento
de Davi; no meio do Sermão da Montanha, o Pai Nosso.29 Ora, o
que está no meio do Evangelho segundo Marcos? Essa passagem
onde Pedro professa a fé verdadeira e logo depois é chamado de
Satanás. É onde se situa o ponto de virada de todo o livro.

E, vós, perguntou ele, quem dizeis que eu sou? Pedro respon-


deu: “Tu és o Cristo”. Então, proibiu-os severamente de falar a
alguém a respeito. E começou a ensinar-lhes: “O Filho de Deus
deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos
sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de ter dias, res-
suscitar”. Dizia isso abertamente. Pedro, chamando-o de lado,
começou a recriminá-lo. Ele, porém, voltando-se e vendo seus
discípulos, recriminou a Pedro, dizendo: “Vai-te para trás de
mim,30 Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos
homens!”.31

Aquele que acabava de ser instituído príncipe dos Apóstolos


se vê, num só golpe, rebaixado à categoria de príncipe das Trevas.
Mas é preciso imediatamente distinguir esta diferença entre o Vade

27 Mc 16, 9-11.
28 Mc 16,14.
29 Sobre os princípios da estrutura bíblica, ler Jacques Cazeaux, Histoire, Utopie,
Mystique: Ouvrir la Bible comme un livre, Éd. du Cerf, 2003.
30 No original: “Va-t-en derrière moi”. As traduções francesas trazem essa expressão:
‘atrás de mim’, que aqui foi mantida para melhor compreensão da explicação
posterior – NT.
31 Mc 8, 29-33.

55
fabrice hadjadj

retro e a tentação do deserto, segundo Mateus: são as mesmas


palavras, com este acréscimo – atrás de mim­–, que modifica o
significado da ordem. Satanás deve se retirar e nada mais. Já Pedro
deve se retirar para passar para trás de Jesus. Esta acusação de ser
um Adversário é aqui uma admoestação do Amor. Longe de apar-
tar, o atrai e especifica o sentido de sua instituição como vigário de
Cristo. Porque a expressão retorna no versículo seguinte e fala de
“seguir”, explicando esse “atrás” ou “depois de mim”:

Chamando a multidão, juntamente com seus discípulos, disse-


-lhes: “Se alguém quiser vir depois de mim, negue-se a si mesmo,
tome a sua cruz e siga-me”.32

Comentando a interpelação a Pedro, Jacques Maritain escreveu:

Não acho que o que Evangelho quer nos dizer aqui faz referên-
cia à fragilidade humana, a qual Pedro estava exposto, pois a his-
tória das três negações é o suficiente para isso. Levando em conta
a diferenciação que, ao repreendê-lo, Jesus faz entre “as coisas dos
homens” e “as de Deus”, me parece primeiramente que o signi-
ficado tem relação aos perigos de toda soberania aqui de baixo,
com sua atmosfera de adulação, de autoritarismo e de amor ao
prestígio, além de intrigas e ambições pessoais criadas ao seu redor,
tanto no mundo eclesiástico quanto no mundo laico”.33

Mas seu paradoxo mais profundo está em outro lugar: esse


mundanismo que quer transformar a Cruz em espreguiçadeira, Je-
sus equipara isso ao próprio inferno. Aqui, segundo suas próprias
palavras, o que é dos homens é também de Satanás. Eis-nos diante
de um mistério inescrutável: o que é satânico, neste caso, não é
mais somente conduzir para a Cruz, mas impedir; não é mais so-
mente a crueldade do carrasco, é também a compaixão sentimen-
tal. E essa falsa compaixão pode corresponder a uma crueldade
ainda pior, porque com suas mil carícias, faz perder a verdadeira

32 Mc 8, 34 – o trecho em itálico conforme a tradução francesa.


33 Jacques Maritain, De l´Église du Christ, DDB, 1970, p.113-114.

56
Vida. Assim podemos tirar esta conclusão muito provável: em sua
dupla ciência, o demônio busca, ao mesmo tempo, fazer assassinar
a Cristo e fazer amá-lo de um modo ruim. Ao protegê-lo contra
essa atroz humilhação pela qual ele salvará os homens, poderia
fazer com que o proclamasse rei temporal de Israel. Ele reúne, por-
tanto, as multidões ao seu redor, faz que o aclamem como tau-
maturgo, que o sigam como zelotes vitorioso, o admirem como
o maior sábio deste mundo. Comentando a alegoria da caverna,
Heidegger nota que o modo contemporâneo de matar um filósofo
é torná-lo célebre. Nada é mais eficaz para apagar o sábio do que
fazê-lo uma personalidade, nada melhor para eclipsar sua estrela
do que torná-lo um popstar. Não há nada mais a temer depois
que sua palavra passa a ser debitada em slogans que se repetem de
boca em boca. Ela já não levanta questionamentos, apenas contri-
bui para bate-bocas. Quem sabe se essa fama baseada no equívoco
não é um dos objetivos principais do diabo? E quem sabe se certos
pseudoapóstolos de nossos dias não permanecem nesta fé?
Devemos, contudo, ter a seguinte evidência: por mais confu-
so que pareça, a incredulidade dos discípulos vale mais que a fé
dos demônios – do mesmo modo que a desobediência do leproso
purificado que, apesar da “severa advertência” para se calar, foi
difundindo a notícia de sua cura, vale mais que a obediência do
espírito impuro que se cala a partir do momento que Jesus lhe
ordena calar.34 Mas como um desconhecimento pode ser melhor
que esse saber angélico? Como um certo ateísmo, no fundo, pode
ser menos mal que conhecer Jesus? É preciso suspeitar da própria
fé? Até nova ordem, não podemos mais que clamar como o pai do
epilético endemoniado: Eu creio, ajuda a minha incredulidade!35

34 Cf. Mc 1, 40-45
35 Mc 9, 24.

57
TERCEIRA LIÇÃO
A lucidez das trevas

Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem
obras, de que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo?
Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes falta-
rem o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém den-
tre vós lhe disser: “Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos”, e não
lhes der o necessário para a sua manutenção, que proveito have-
rá nisso? Assim também é a fé, se não tiver obras, está morta em
seu isolamento. De fato, alguém poderá objetar-lhe: “Tu tens fé
e eu tenho obras. Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei
a fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus? Ótimo!
Lembra-te, porém, os demônios creem, mas estremecem”.1

A epístola de Tiago é o lugar onde a fé dos demônios é afirmada:


porém, os demônios creem, mas estremecem. O verbo usado pelo
apóstolo, pisteuein, é exatamente o mesmo que designa, quase em
todos os lugares, o ato de crer dos fiéis (por exemplo, quando Jesus
se dirige ao chefe da sinagoga, na ocasião da morte – e da ressu-
reição – de sua filha: Não temas; crê somente).2 Quanto ao outro
verbo que exprime o efeito desta fé, phrissin, em todo o Novo Tes-
tamento, ele só é encontrado nessa epístola, e significa ao mesmo
tempo medo, estremecimento e frio.
O costume é relacionar o contexto desta afirmação ao problema
da relação entre a fé e as obras, com o intuito de encontrar alguma
divergência entre Tiago e Paulo, já que na epístola aos Romanos,
Paulo escreveu que o homem é justificado pela fé, sem as obras
da Lei.3 Lutero classificava a epístola de Tiago como “epístola
de palha”, recusando-se a colocá-la no cânon de suas Escrituras,
1 Tg 2, 14-19.
2 Mc 5, 36.
3 Rm 3, 28.

59
fabrice hadjadj

afinal, ela lhe parece muito distante do sola fides, da fé que sozinha
justifica, segundo a sua própria leitura da epístola aos Romanos.4
Não se trata aqui de entrar nesse debate. Notemos somente que
esse Jacó do Novo Testamento,5 como aquele do Antigo, combate
com o Anjo. Ele não procura tanto opor a fé e as obras, quanto
opor uma fé com outra fé, o que é mais profundo e de consequên-
cia muito mais grave: nem nossas obras nem nossa própria fé são
suficientes para nos salvar. Como, com semelhante revelação, o
cristão não seria coxo? Impossível ficar bem de pé como o fariseu
da parábola; impossível se manter firme nas próprias pernas.
Mas de que fé estamos falando? Tu crês que há um só Deus,
diz São Tiago. Não se trata aqui de um movimento voluntário, de
um crer em algo ou alguém, que implica se colocar à disposição de
alguém, ou ao menos dar-lhe confiança. Trata-se, de fato, de uma
certeza especulativa, de crer que isso é verdadeiro, sem que esteja
em jogo entregar-se com total confiança à palavra do outro. Uma
fé sem confiança, desconfiada mesmo, isto é, uma fé que se borra
de medo, se a teologia pode se permitir um pouco de gíria.
Beda o Venerável, retoma essa distinção dizendo que uma coisa
é crer algo (credere illum), outra coisa é crer em algo (credere in
illum): “Crer que Deus é, crer que o que Ele disse é verdade, os
demônios também podem. Mas crer em Deus, isso só é possível
àqueles que amam a Deus, isto é, àqueles que não são cristãos só
pelo nome, mas também pela vida e pelos atos”.6 Crer em Deus
(acusativo) implica ir para Ele, e como é o amor que nos faz sair de
nós mesmos para tender ao outro, porque aquele que ama tem seu
coração e seu espírito intencionalmente no seu bem-amado mais
do que nele mesmo, só a caridade divina nos dá o crer verdadeira-
mente em Deus. Deste ponto de vista, os demônios não creem em,
mas fora de Deus, isto é, sem amor.
4 Um outro aspecto dessa Carta repugna especialmente a Lutero; é que nela se encontra
a menção e o fundamento escriturístico do sacramentos dos enfermos: “Eu lhe digo, ele
escreve, se alguma vez se delirou, foi principalmente aqui” (De captivitate Babylonis,
citada por Joseph Chaine, L´Épître de saint Jacques, Paris, 1927). Que Lutero veja aqui
o exemplo do delírio, interessa especialmente a nossa reflexão: os demônios, quando
creem, dificilmente deliram, enquanto que o fiel entra numa certa loucura (a môria tou
kérugmatos, loucura da proclamação, de que fala São Paulo – 1Cor 1, 21)
5 Ele faz uma relação entre o Patriarca Jacó e São Tiago por conta dos seus nomes em
latim, ambos Jacob – NT.
6 Patrologia Latine, Migne, XCIII, 22

60
Santo Agostinho sublinha que somente aí se encontra a diferen-
ça das idênticas afirmações: “Pedro diz: Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo. Os demônios dizem também: Nós sabemos que tu és o
Filho de Deus, o Santo de Deus. Isso que diz Pedro, os demônios
o dizem também: mesmas palavras, mas não no mesmo espírito.
E onde está a prova de que Pedro dizia as essas mesmas palavras
mais de outro modo? É que a fé do cristão é acompanhada do
amor piedoso, que falta ao demônio. Os demônios expressavam-
-se assim para que Cristo se afastasse deles, porque antes de dizer
“Nós sabemos que tu es, etc.”, tinham dito: O que há de comum
entre nós? Vieste nos destruir antes do tempo marcado? Portanto,
uma coisa é confessar o Cristo para ligar-se a Ele, outra coisa é
confessar o Cristo para o repelir para longe de ti”.7 Confissão
que não vai se confessar, portanto, acolhimento da hóstia na boca
para, meio-mastigada, melhor cuspi-la para o ar.
Tomás de Aquino é mais preciso na sua terminologia. A distin-
ção do credere in Deum (crer em/para Deus) e do credere Deum
(crer que tal é Deus), ele acrescenta aquela do credere Deo (crer
a Deus).8 No primeiro caso, trata-se do objeto da fé considerado
do ponto de vista do fim, como aquele que realiza a beatitude; no
segundo caso, o objeto da fé é considerado do ponto de vista ma-
terial, quer dizer, enquanto que tal ou tal artigo proposto se refere
a Deus; no terceiro caso, o objeto da fé é considerado do ponto de
vista formal, como aquele que a motiva, a saber, a autoridade de
Deus que se revela. Se no primeiro caso o objeto da fé, percebido
como soberano bem, põe em movimento a vontade (credere in
Deum) nos dois outros casos o objeto da fé concerne à inteligência
e se apresenta como aquilo no que creio (quod creditur), e aquilo
porque eu creio (quo creditor). Ora, é por esse do quo creditir que
o motivo da fé demoníaca não é a mesmo que a fé teologal. O
credere Deo (dativo) é mais que um ato de confiança. É um crer a
partir de Deus que se revela: o próprio Eterno que ilumina a inteli-
gência e a leva a acolher uma Revelação que ultrapassa suas forças
naturais. Ora, os demônios não querem principalmente nada que
os exceda, tanto do lado da vontade tanto do lado da inteligência.
Eles creem, e isso faz seu orgulho, a partir de sua penetração de

7 Sobre a primeira epístola de São João, Tratado X, cap.1


8 Suma Teológica, II-II, 2, 2.

61
fabrice hadjadj

espírito: os milagres que cercam Jesus e a verdade que sai de sua


boca bastam para lhes fazer deduzir sua identidade messiânica:
“Eles veem muitos indícios bastante claros [a seus olhos] pelos
quais percebem que o ensinamento da Igreja vem de Deus, ainda
que não queiram as coisas que a Igreja ensina...”
Como efeito, eles não têm a visão beatifica. Crer não é ver, mas
conhecer por mediação de sinais ou de testemunhos. O termo aqui
não é, portanto, usurpado, ainda que descreva uma certa usurpa-
ção. Ele é equivoco por relação ao caráter infuso (credere Deo) e
salvífico (credere in Deum) da fé teologal, porque designa uma fé
adquirida e danada: a seu respeito, se poderia falar mais de “sa-
ber”. Mas é adequado com relação a definição geral, natural, do
conhecimento concebido não como opinião provável mas como
conhecimento certo do que não se vê: do mesmo modo que eu
creio com certeza, assegurado por numerosos testemunhos, que
Ravaillac assassinou Henrique IV; assim o demônio crê que Jesus
é o Filho de Deus por causa dos prodígios que o rodeiam e falam
a seu espírito com suficiente eloquência: “A fé que há nos demô-
nios não é um dom da graça; eles são antes coagidos a crer pela
perspicácia de sua inteligência espiritual”.9 Sob essa coação, eles
tremem, sem dúvida, forçados a se aproximarem desta inocência
que denuncia sua escuridão. Mas eles experimentam também essa
grande satisfação: poder decifrar este hieróglifo, sobre o qual a
razão humana, por suas próprias forças, não pode senão quebrar
a cabeça. É o prazer de só saber por aquisição, de só conhecer por
possessão, de ser iluminado sem tornar-se vulnerável à uma luz
mais alta que deslumbra e transpassa. É o contentamento de um
saber totalitário. A esse propósito, o Padre Bonino observa muito
justamente: “A pretensão de encerrar a ciência sobre ela mesma
tem algo de diabólico”.10
Além do “crer-que” e do “crer-em”, São Marcos, desde o início,
propõe uma terceira possibilidade, que retoma o dativo da segun-
da e a preposição da terceira: credere in Deo, crer em Deus não
como indo para ele, mas como se encontrando no interior dele, no
seu seio. A fórmula aparece exatamente nas primeiras palavras de

9 Ibid., 5,2.
10 Serge-Thomas Bonino, o.p., Les anges et les démons, Parole et Silence, col. “Bibliothè-
que de la Revue thomiste”, 2007, p.154.

62
Cristo, que em Marcos inauguram sua pregação: Arrependei-vos e
crede no Evangelho.11 “A construção “crer no”, pisteiô + en + dati-
vo, comenta Jean Delorme, é excepcionalmente rara e só se encontra
aqui, em Marcos. Ela não está nem no grego clássico nem no grego
comum dos papiros. É atestada pela Septuaginta, e alguns outros
textos do Novo Testamento se aproximam dela. Explica-se ordina-
riamente como uma torção de tipo semítico ou ainda por confusão,
frequente no grego comum, entre as preposições en (com dativo,
“dentro de” sem movimento) e eis (com acusativo, “dentro de” ou
“em direção a” com movimento)”.12 Em suma: para crer na boa
nova é preciso que o grego da sabedoria natural seja como subverti-
do pelo hebreu da Revelação. O barbarismo é aqui uma delicadeza
divina. Ele diz à própria gramática o que se opera na verdadeira fé: a
infusão do Espírito Santo no coração do homem, semelhante a esta
intrusão da língua de Moisés na língua de Ésquilo.
Diante de tal possibilidade, o diabo não queria perder seu gre-
go. Ele parece a “estes homens que tem mais cuidado em observar
as leis dos Gramáticos que aquelas de Deus”.13 “Crer dentro de
Deus”, como quem habita dentro de suas entranhas, o que haveria
de mais nojento para ele? Essa torção é por demais retorcida. Ela
expressa com veemência do que ele se afasta. Marcos não podia
deixar de usá-lo – tal uma luz e um contrapeso – no umbral da
narrativa que não cessa de atestar a infalibilidade demoníaca. O
demônio sabe, sem dúvida, mas ele não está em Deus. Como diz
meu vizinho trombonista: “Quando se toca a música, uma coisa é
conhecer a partitura, outra é estar ‘dentro’.”

Como de Anjo torna-se demônio (I)


A soberba e a inveja
O demônio sabe o que faz muito melhor do que nós sabemos.
Considerando só no plano especulativo, ele é melhor teólogo. Não
tem o ponto fraco da carne: ele não conhece a fadiga, não é desgas-
tado pelo álcool, não se deleita com obscenidades genitais e não
11 Mc 1, 15.
12 Jean Delorme, L´heureuse annonce selon Marc, Éd. du Cerf, col. “Lectio divina”, no.
219, 2007, p.78
13 Santo Agostinho, Confissões, Liv, 1 cap. XVIII, trad. Franc. Arnaud d´Andilly,
Gallimard, col. “Folio”, 1993.

63
fabrice hadjadj

tem apetite imoderado pelos bens materiais.14 Pode-se dizer que


ele é, naturalmente, casto e pobre sem voto de pobreza. Tampouco
há nele a ignorância a ser mitigada pela sua inteligência natural:
não tem necessidade de aprender a falar, não vai à escola, nem
passeia, como nós, por raciocínios perigosos. Por natureza igual-
mente, ele é sábio sem esforço, mestre sem rabi – o maior motor
de busca diretamente integrado à sua substância. Qual o seu mal,
então? Exclusivamente espiritual. Santo Agostinho o declara: “Ele
é infinitamente soberbo e invejoso”.15 Dito isso, não se deve cair
na imaginação mais enganadora, do meio-bode ou do lobisomem
– esses últimos, apesar de fazerem perder de vista a essência espi-
ritual do anjo, não deixam de exprimir a duplicidade demoníaca.
Sua inveja é forte em sutilidade; sua soberba, cheia de requinte.
Mas, desses dois vícios, qual é o primeiro? Para alguns dos gran-
des Padres da Igreja, sobressai a inveja. Ela estaria no princípio do
pecado angélico. Alguns anjos teriam invejado Adão e Eva, estes
argilosos, por estarem também destinados como eles à beatitude
divina. São Bernardo tem sobre este ponto uma página admirável:

Lúcifer, ‘cheio de sabedoria e perfeito em beleza’, pôde co-


nhecer com antecedência que um dia haveria homens, e que eles
também alcançariam uma glória igual a sua. Mas se o conheceu
antecipadamente, sem dúvida o viu no Verbo de Deus; e na sua
ira, concebeu inveja. Foi assim que ele projetou ter súditos, recu-
sando com desdém ter companheiros. Os homens, ele disse, são
frágeis e inferiores por natureza: não lhes cabe ser meus concida-
dãos, nem meus iguais na glória.16

Algo significativo nessa tese é que o diabo se mostra puritano.


E nada melhor que o seu puritanismo para motivá-lo a empurrar
os homens à luxúria, para melhor rolá-los nesta lama odiosa e
pavonear-se na sua incorpórea superioridade (assim, alguns dentre
nós gozamos de um prazer maligno quando os outros rastejam na

14 Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 63, 2.


15 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Liv. XIV, III.
16 São Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico dos cânticos, XVIII, 5-6, “Sources
Chrétiennes” 431, p. 78-83.

64
obscenidade, enquanto nós permanecemos sem mancha do lado de
cá – mas apenas para carregar a corrupção no fundo de nossa alma).
Então, eis aqui o protesto: – O quê? Devemos tolerar esses cor-
pulentos no Céu? Isto é inconcebível! Eles mijam e cagam e ainda
serão chamados à mesma glória que os puros espíritos? E ainda
não contei o pior: eles copulam, eca!; eles fazem sexo e devemos
dizer amém a essa monstruosidade como uma imagem lambuzada
da Trindade!... Vamos impedir que ocorra este absurdo! Façamos
pensar que a carne é por si mesma má, ou ao menos que ela nada
tem a ver com o espírito!
Ninguém pode negar o valor especulativo desta tese da queda
invejosa. Mas ela permanece parcial e não remonta a tão longe. Se
o livro da Sabedoria diz que foi por inveja do diabo que a morte
entrou no mundo,17 não diz que foi também por meio dela que a
morte entrou no diabo. O libro de Ben Sirac lembra igualmente: o
princípio de todo pecado é o orgulho.18 No entanto, Santo Agos-
tinho observa que

alguns dizem que o demônio caiu das moradas celestes porque


invejou o homem criado a imagem de Deus. Mas a inveja segue
a soberba, ao invés de precedê-la: a inveja, com efeito, não é uma
razão de se orgulhar, mas a soberba é uma razão de invejar.

A inveja é uma questão que supõe antecipadamente a recusa


de respeitar o desígnio generoso de Deus. Quando os trabalhado-
res da primeira hora se irritam porque aqueles da última recebem
o mesmo salário, eles recusam, em primeiro lugar, a vontade do
mestre. Essa recusa declara a soberba: eu quero definir por mim
mesmo, o que nessa dada situação deve ser o bem.
Enfim, o primado da inveja permite pensar Satanás como um
dominador que despreza os homens, mas impede de apresentá-lo
como um pseudo-liberal. Ora, considerando somente as suas ini-
ciativas presentes, seria cegueira não o ver como professor de
dignidade, doutor em autonomia, por consequência, verdadeiro
Anticristo ou “contra-Messias”. Ele sugere a cada um salvar a si
17 Sb 2, 24.
18 Eclo 10, 15.

65
fabrice hadjadj

mesmo. Ele os encoraja a fabricar seu pequeno céu privado. Só o


primado da soberba sobre a inveja autoriza a pensar essa sedução
pródiga: Satanás, manager de suficiência e pai da utopia.

Como de Anjo torna-se demônio (II)


A parábola dos dois filhos
Eu prefiro o termo “soberba” ao termo “orgulho”, a fim de me-
lhor exprimir a inteligência, o brio a meia ciência ou “a verdade
menos um” do pecado demoníaco. Para falar disso sem o rebaixar
com uma soberba comparável, para explicitar um pouco como
ele o sente, seria preciso afirmar que o demônio é AQUELE QUE
DISSE SIM, ou ainda AQUELE QUE NÃO CESSA DE REPETIR: SENHOR!
SENHOR! Essa definição pode parecer provocadora. Eu não a ar-
riscaria se não se encontrasse na Palavra de Deus. Além disso, a
Carta de Judas nos adverte que é perigoso desprezar o demônio:
No entanto, o Arcanjo Miguel, quando disputava com o diabo,
não se atreveu a pronunciar uma sentença injuriosa contra ele, mas
limitou-se a dizer: “O Senhor te repreenda!” Devemos, portanto,
nos esforçar, para imitar São Miguel, em dar a Satanás nomes de
anjo ao invés de pássaro. Concedamos a ele todo crédito compatí-
vel com a sua danação.
Onde estão os versículos que permitem chamá-lo “aquele que
não cessa de repetir: Senhor! Senhor!”? Em Mateus, no final do
Sermão da Montanha: Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Se-
nhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que
expulsamos demônios e em teu nome que fizemos muitos mila-
gres? Então, eu lhes declararei: “Nunca vos conheci. Apartai-vos
de mim, vós que praticais a iniquidade!”19 Para quem são essas
últimas palavras se não para os condenados? Ora, se elas são para
os condenados, valem também para o diabo. Ele não é aquele que
cometeu a injustiça? Não é aquele que Cristo jamais conheceu?
Não chegou mesmo a expulsar um demônio para colocar um ou-
tro mais competente? Então é preciso deduzir que ele faz parte
daqueles que, no dia do juízo, repete: Senhor, Senhor, etc.
Onde estão os versículos que permitem chamá-lo “aquele que
disse sim”? Ainda em Mateus, no dia seguinte após ter expulsado
os mercadores do Templo: “Que vos parece? Um homem tinha dois
19 Mt 7, 22-23.

66
filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse: “Filho, vá trabalhar hoje na
vinha. Ele respondeu: “Não quero”; mas depois, reconsiderando
sua atitude, foi. Dirigindo-se ao segundo, disse a mesma coisa. Este
respondeu: “Eu irei, senhor”; mas não foi. Qual dos dois realizou
a vontade do Pai? Responderam-lhe: “O primeiro”. Então, Jesus
lhes disse: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas
estão vos procedendo no Reino de Deus!”20 Não fazer a vontade do
Pai, este é o próprio pecado. Mas o que o radicaliza é ter prometido
anteriormente que a realizaria. Como não pensar, se o pecado de-
moníaco é radical, que se trata de um sim sem consequência, uma
promessa não mantida, como ainda agora, de uma dupla invocação
(Senhor! Senhor!) sem ato de justiça? Mas também, como pensar
nisso? O santo é aquele que disse não, mas cujo não se tornou um
sim após se arrepender. O maligno é aquele que disse sim, mas cujo
sim dissimula um não sem nenhum remorso.
Para entender melhor, é necessário sublinhar as duas palavras
empregadas pelo segundo filho. Começando pela segunda: Senhor.
O outro filho tinha dito somente: Não quero. Ele não chama seu
pai de “Senhor”. Este uso no segundo manifesta uma relação me-
nos filial que servil, fundada mais sobre o temor do que sobre o
amor. Talvez por zombaria, como eu diria a minha esposa: “Sim,
chefe!” Mas eis a primeira expressão frequentemente traduzida
por “Entendido”, “Eu irei”, “Sim, Senhor”.21 Trata-se de um pro-
nome grego que não é preciso traduzir: Ego. No contexto, ele sig-
nifica: “Eis-me aqui! A vosso serviço!”. Mas este OK esconde seu
Goodbye. Este “Eis-me aqui” significa “Aqui estou EU”. É onde se
encontra a soberba. Não tanto pela recusa do serviço, como pelo
desejo de servir a seu critério, um pouco como o escravo da dialé-
tica hegeliana: ele serve de modo que o mestre se torne o seu ser-
viçal, e finalmente, o servo do servo (essa inversão constitui toda
a intriga do The Servant, de Harold Pinter: o mordomo da casa se
torna efetivamente patrão de seu patrão, por meio de um serviço
enganoso): “Sou eu, Senhor, que venho a teu socorro. Eu não sou
como meu irmão, eu. Eu, eu não digo não. Deixa-me, portanto, te
servir como eu quero”.

20 Mt 21, 28-31.
21 No francês “Entendu”, “J´y vais”, “Oui, Seigneur” – Respectivamente, da versão fran-
cesa da Bíblia de Jerusalém, da Traduction œcuménique de la Bible, e da Tradução
oficial litúrgica – NT.

67
fabrice hadjadj

Em contrapartida, isso nos permite aprofundar o próprio senti-


do desse “Não quero” do filho que se arrepende. Já não é um tipo
de confissão? Não poderíamos ler: “Está além das minhas forças,
além da minha vontade”? Mas eis que ele vai trabalhar na vinha.
De onde lhe vem a repentina capacidade de fazer o que ele não
queria, talvez o que não podia? Ele tem algo como uma secreta
violação de uma graça. Ele recebe de fora uma força nova que ele
não mereceu. Ele não tem do que se orgulhar: Isso não vem de vós,
é o dom de Deus.22 Ele aceita humildemente. Portanto, serve, não
segundo seus planos, mas segundo o desígnio de seu pai.

Como de Anjo torna-se demônio (III)


Fazer o bem conforme seus próprios planos
Tomás de Aquino faz notar, contra um erro comum, que se o
demônio desejou ser como Deus, não quis, contudo, igualá-lo: “Ele
sabia, por conhecimento natural, que isso era impossível”. Por ci-
ência certa, ele sabe que é uma criatura, e que existe um abismo
infinito que o separa do Altíssimo. Além disso, precisa o Aquinate,
“nenhuma realidade pertencente a um grau de natureza inferior
pode desejar um grau superior: um burro não deseja se tornar ca-
valo, porque ele cessaria de ser a si mesmo. Mas é verdade que
neste tipo de coisas a imaginação nos engana”. Mudar a natureza,
ainda que para uma natureza superior, equivale a uma destruição
de si. O burro não deseja se tornar cavalo, mas ele deseja eventu-
almente, permanecendo inteiramente um burro, adquirir as quali-
dades equinas, tais como a velocidade e a elegância. A imaginação
pode fazer nascer em nós estas vãs postulações: “Ah! Se eu fosse
um anjo” ou mais comumente: “Se eu fosse um cachorro!”. Ora,
o demônio não tem imaginação: ele é pura inteligência, sem outro
defeito na sua couraça. Ele sabe bem que não podemos querer
mudar de natureza.23 Seu pecado não é, portanto, cobiçar uma ab-
surda igualdade com Deus, mas querer uma certa similitude com
Ele de maneira desordenada.

22 Ef 2, 8.
23 Assim como o homem jamais se torna Deus, mas pode ser divinizado sem que nada de sua
personalidade seja alienada. Nem a graça nem a glória abolem a natureza humana para
transubstanciá-la na natureza divina. Pelo contrário, por ela a natureza humana é preser-
vada, restaurada e elevada, tornando o homem ainda mais humano porque participa mais
na divindade – ainda mais carnal porque mais espiritual, teria dito Péguy.

68
Mas ele ainda sabe outra coisa mais estranha e menos notada: é
que, sendo um anjo, por natureza ele é mensageiro e servo do Altís-
simo. Como o ignoraria? Ele cumpre sempre uma função na gran-
de sinfonia do universo. Suas dissonâncias fazem parte da partitu-
ra, seus ataques serão empregados, como para Jó, para manifestar
a fé do justo. Também não é menos absurdo a seus olhos pretender
escapar ao poder do Onipotente. O demônio não quereria escapar
dele enquanto seu Criador. Somente lhe recusa enquanto ele quer,
por complemento, ser seu Esposo, porque não haverá matrimônio
sem consentimento mútuo. Não lhe rende menos serviço. É mesmo
um servo útil (só existem senão santos que são servos inúteis – Lc
17,10 –, isto é, que saem da lógica utilitária e funcional para en-
trar na liberdade do amor). Seu pecado não é, portanto, o de não
servir, mas de estar num serviço sem amor; trabalhar a vinha, sem
dúvida, mas sem acolher a ordem sobrenatural, ou melhor, traba-
lha nela como Botrytis Cinerea, que se chama também “podridão
nobre”: um cogumelo que por si mesmo não tende senão a devas-
tar as colheitas, mas que, em certas condições de humidade e de
sol, bebendo a água das uvas, permite concentrar o açúcar e fazer
esses cachos d’ouro e de mel que obtemos no vinho de Sauternes.
Mas como melhor definir esta desordem no ímpeto de servir a
Deus e assemelhá-lo? Santo Tomás emprega palavras que tem um
quê de surpreendente. Ele chama isso de “possuir sua beatitude
última por suas próprias forças.”24 Não é a virtude primordial do
homem cheio de confiança em si? E, no entanto, querer fazer por si
mesmo sua felicidade e aquela dos outros é necessariamente trocar
a providência pelo planning, seguir uma rotina sem acontecimen-
tos, não encontrar a resistência de um outro, a fim de não acolher
Aquele que vem. O diabo é um fazedor. Ele sabe fazer a caridade
sem vivê-la. Ele a faz como se diz também “fazer amor”, ou seja,
mudando o lugar de uma desapropriação amorosa numa cadeia da
usinagem de prazeres.
Suas próprias forças, isto é, suas forças naturais, o anjo já as
recebeu, de fato, do Deus criador; mas, uma vez que ele foi criado,
suas forças lhe são dadas por Deus como uma justiça e algo devi-
do. Isso não igual para a graça: ela não é algo devido à criatura,
mas um dom de amor gratuito. Ela não exige absolutamente nada
24 Suma Teológica, I, 63, 3.

69
fabrice hadjadj

em troca, e isso é bem mais difícil para que se tome por alguma
coisa. Ela não exige o fazer, mas deixar Deus fazer em nós. E nós
lhe respondemos não colocando obstáculo a esse amor livre e di-
vino que a própria graça suscita em nós. Mas o demônio não quer
se abandonar. Ele prefere ser um self-made-man. E já posso vê-lo
abrir um curso de desenvolvimento pessoal – se tornar coach dos
winners, fornecer travesseiros àquele que não tem onde repousar a
cabeça, eutanasiar o homem das dores.

Verdadeiro monólogo
– Dá-me o que é devido à minha natureza e estamos quites. Não
quero esta graça que exige uma Aliança como resposta. Só quero
buscar a minha felicidade e encorajar os outros a buscarem a sua
por seus próprios meios. Ou pelo menos recusar essa felicidade en-
venenada que tu propões, esse dom que, por mais gratuito seja, nos
obriga, nos torna responsáveis ao infinito, impõe não sei qual morte
a nós mesmos na oferenda de nossa vida a Ti, como uma virgem
oferece suas coxas abertas a seu esposo. Quero ser a Virgem não
desposada, não redimida por ninguém. Quero ser o Filho sem pai,
que se separa de sua origem e só está bem no que ele inventa a par-
tir do nada. Quero ser o servo absoluto, que sabe ensinar a cada
um a não depender de ninguém. Quero ser o Verbo que não foi
proferido, a Palavra que ninguém escuta, o puro Monologos... E
depois esta ordem da graça incomoda demais a ordem da natureza:
nós, anjos, podemos nos encontrar em igualdade com os homens!
Nós, anjos, deveríamos adorar a humanidade de Cristo! Nós, anjos,
deveríamos venerar como nossa rainha essa judiazinha: a Virgem
Maria! Virgem de quê, já que ela se deixa incessantemente beijar
pelo Espírito do Pai e do Filho? Sou eu, repito, a Virgem verdadeira,
a criatura que tem menos contato com seu Criador... E queríeis que
essa injustiça manifesta nos deixasse sem reação? Queríeis que não
aplaudíssemos a amargura do filho mais velho diante do acolhimen-
to do filho pródigo? Estas núpcias obscenas da graça, essa orgulhosa
comunhão na divindade, nós a recusamos. Mas nós dizemos “Sim”
à pura natureza. Nós respondemos: “Eis-me aqui” a quem queira
fazer sua felicidade, não sem Deus-Causa-primeira, certamente por-
que nós saímos forçosamente dele, mas Deus-Esposo-último, por-
que podemos não voltar para ele. Cada um deve poder alcançá-lo

70
por si mesmo, como um adulto; sem ser forçado a acolher no seu
seio esta semente do Verbo, como está escrito naquela abjeta pará-
bola do semeador! Enfim, olhai para mim, eu sou o verdadeiro servo
sofredor de um sofrimento eterno! Apesar de tudo, eu trabalho duro
para o Altíssimo, sem ter o repouso do sábado nem do domingo. Eu
aceito os Jós mais ingratos. Por que quem é que esfrega, pole e faz
reluzir seus belos santos? Euzinho! Eu os tento com a aflição, tomo
suas propriedades, apodreço suas carnes, corroo seus ossos, como
o companheiro de Hus;25 ou os tento com o conforto, enriqueço
suas propriedades, acaricio suas carnes, endureço seus ossos, como
os consumidores de Felicidade; mas se eles não sucumbem, se não
guardam o gosto da benção, sua glória será muito maior. Acredita-
ríeis se dissesse que recebo o menor agradecimento? Eu faço tudo
isso como uma máquina, sem esperar recompensa. Humilde, humi-
líssimo é meu amor, porque não está interessado na sua beatitude!
Puro, puríssimo é meu amor: um álcool a 100 graus que causa uma
intoxicação da qual nunca mais se fica sóbrio! Compreendei-me
bem. O outro está doravante no Céu, no seu esplendor, com seus
anjos prostrados e suas chagas jorrando luz. E eu? Sou a autêntica
e pura vítima sem propiciação. O Verbo se incarnou? Eu caí como
relâmpago. Eu nunca me levantarei... Minha dor, assim como meu
prazer, são sem volta...
Esse discurso parecerá talvez cheio de orgulho e de inveja. O
demônio chama isso de humildade e justiça. Seu encadeamento
ao pecado, ele o considera como uma emancipação, enquanto que
a santidade lhe parece o cúmulo do orgulho. Ele vive seu ódio a
Deus com um retificador de erros: “Por que não limitou a natu-
reza? Por que esta super-rogação, esse dom sobrenatural que nos
coloca em igualdade com inferiores e nos engaja a agradecê-lo com
toda nossa existência, sem nada de sobra só para si?”

O diabo é amor... próprio


Eletrizante a transparência de sua inteligência, é também este
ódio do sobrenatural que dá ao demônio um certo instinto das coi-
sas divinas, uma clarividência comparável àquela dos santos. Esse
ódio ilumina como o amor. Sua iluminação é exterior e superficial,
mas não é menos penetrante e detalhada. Não é só a mãe que está

25 Cf. Jó 1, 1.

71
fabrice hadjadj

atenta aos menores males de seu filho, há também o assassino que


se delicia nos sofrimentos de sua vítima, e quer aproveitar cada um
deles, que por seu trabalho os manda ao outro mundo. Também
acontece como em Génetrix de Mauriac, que a mãe e o assassino
se tornem a mesma pessoa sufocante.26 É que todo ódio se enraíza
num amor. Se eu não amei nada, não poderia odiar nada. Se amo
alguma coisa, odiarei tudo o que é contrário a essa coisa. Assim o
santo ama a Deus e, por consequência, detesta o pecado. Satanás
também ama intensamente a si mesmo e seus próprios pontos de
vista. O amor a si mesmo não é mal, se serve para a comunhão que
Deus dá – ele é mesmo fundamento do amor ao próximo: eu amo a
vida, também a amo em mim e desejo comunicá-la aos outros. Mas
esse amor de si torna-se perverso na medida em que não se abre ao
que o transcende. Ele se transforma neste amor-próprio, que Santa
Brígida dizia que melhor seria se se chamasse “ódio-próprio”. A
vantagem desse nome habitual – e, por assim dizer, impróprio – é
que aponta a máscara sedutora sob a qual este vício avança: “Eu
sou propriamente o amor, e o outro, aquele que exige o êxtase e
o abandono nos braços de outro maior, é apenas desprezo de si”.
Sabemos que Deus é amor! O diabo também, mas amor-próprio.
Seu ódio só corresponde a este tipo amor e a seu desejo de o di-
fundir. Isso lhe confere uma espécie de vigilância materna para
este mal – que é o seu bem –, assim como o instinto desse sobre-
natural de que ele quer ser virgem. Basta a aproximação desse
sobrenatural para que ele o reconheça por todos os poros de sua
substância e, subitamente, questionar: O que há de comum entre
nós? Vieste nos destruir antes do tempo marcado?27 O que ele tem
medo aqui não é da reclusão no inferno, porque é o lugar que ele,
com todas as forças, escolheu como domicílio. O que o faz tremer,
o que o atormenta de fato, é a aproximação da alegria, essa alegria
que Jesus vem doar gratuitamente por sua cruz. A pressão sobre
ele deste bem gracioso para o qual se fechou eternamente provo-
ca seu medo e sua indignação. Porque a alegria em questão deve
nos transbordar num louvor sem fim. Horrível ferida no flanco do
26 No livro de Mauriac, uma mãe superprotetora passa a odiar sua nora Mathilde, que
acaba morrendo depois de sofrer um aborto espontâneo. A aflição da mãe aumenta
quando ela percebe que a lembrança da nora morta é uma rival muito maior na
disputa pela afeição do filho – NE.
27 Mc 5, 7; Lc 8, 28.

72
amor-próprio. Diante do grito de louvor que contém o nome do
arcanjo Miguel: Quis ut Deus, “Quem é como Deus?”, e lança so-
bre a turba seu grito de guerra: Quis ut ego, “Quem é como Eu?”.
Muitos fazem como se o anjo mau ignorasse que Deus é amor: o
pobre diabo, que ignorante! Eles se contentam em citar: Que queres
de nós, Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos?28 Que dispara-
te: tomar o Salvador por aquele que nos perde! Ora, Ele vem nos
salvar! É o bê-á-bá do catecismo! Portanto, é impossível que o de-
mônio não saiba. Ele sabe!, muito melhor do que os que creem,
que a Redenção é uma trivialidade. Seu Evangelho da Perdição é
mais verdadeiro que aquele do conforto. Eu não quero dizer que
ele sonhe com o geena prometido aos réprobos. Ele fala da carida-
de, do próprio verdadeiro amor, aquele que exige a noite nupcial e
oferenda dos corpos. Ele sabe que o amor de Deus nos perde. Cristo
dirá mais tarde: Aquele que perder a sua vida por causa de mim e
do Evangelho, irá salvá-la.29 É precisamente esta perda da criatura
transformada em hóstia viva que escandaliza o demônio e lhe faz
espontaneamente se insurgir com a sua aproximação. Ele quer lutar
contra esta perdição. E prefere se salvar... no inferno. Que cada um
possa subsistir, dar ao Senhor sua quitação, agradecê-lo no sentido
profissional, como quem demite um bom servo... Mas, pelo contrá-
rio! Esse servo quer permanecer no quarto, e dormir comigo, e me
arrancar este grito que me arranca lágrimas! Eis bem a depravação
divina. Por que não se contenta com um obrigado cordial? Por que
nos quer completamente entregues ao amor?
Aqueles que creem que o demônio desconhece a radicalidade
do amor divino cometem o mais grave erro a seu respeito, uma
vez que é essa radicalidade mesma que o revolta. Não apenas o
desculpam, mas tornam-se mais facilmente um brinquedo nas
suas mãos: nada é mais acessível a suas sugestões do que acredi-
tar que ele é mais burro que nós. E entre todas as besteiras que
se lhe imputa, aquela de fazê-lo ignorante das consequências da
caridade é a pior, porque supõe que não se compreendeu a subli-
me exigência. Com o diabo, não se trata de disputar quem é mais
forte, mas de se reconhecer falível. Nem de fingir superioridade,
mas de querer-se mais amável.
28 Mc 1, 24.
29 Mc 8, 35.

73
fabrice hadjadj

Liturgia do pandemônio
Para melhor nos fazer perceber o perigo que nos cerca e que se
torna mais terrível quando nos cremos protegidos, Tomás nos re-
corda que “o pecado do anjo não supõe a ignorância, mas somente
a ausência de consideração do que se deve, quer dizer, da ordem
requerida pela divina vontade”; e ele o compara a “alguém que
decide rezar e o faz sem observar as regras litúrgicas instituídas
pela Igreja”.30 Esse exemplo sempre me assustou. Ele nos con-
firma com rigor que o demoníaco não é tanto querer o mal, mas
querer fazer o bem sem obedecer a fonte de todo bem, de querer
fazer o bem conforme sua própria regra, num dom que nada pre-
tende receber, numa espécie de generosidade que coincide com o
mais fino orgulho. Há ali não uma ignorância especulativa, mas
uma ignorância prática, ativa, que se esforça em não considerar as
mediações queridas pelo Altíssimo, por nossa comunhão mútua,
nossa dependência de uns face aos outros. A ouvir falar de regra
litúrgica, de direito canônico, de magistério, o demônio se revolta:
ele o faz em nome de seu tradicionalismo mais velho que a tradi-
ção, ou de seu progressismo mais up to date que o mundo futuro.
Em todo caso, ele reza, nós vimos acima, com um o fervor ardente:
Conjuro-te POR DEUS que não me atormentes!”31 Desde que seja
com um missal confeccionado ad hoc, para seu uso pessoal ou
para sua seita do momento, numa espiritualidade oscilante entre o
masturbatório e o orgástico.
A liturgia do pandemônio não tem a unidade vivente como a da
Igreja. Quando se quer una, se faz bloqueio. Quando ela se quer
viva, faz tumulto. A fé dos demônios não tem sua fonte na visão
de Cristo, mas na inteligência natural de cada um, não há entre
eles propriamente uma só fé,32 dependente do único dom de Deus,
mas um conhecimento partilhado, que um pode reivindicar contra
o outro como fruto de seus próprios esforços. Individualista é a
sua crença. Mesmo sendo dividualista. Essa divisão mútua é real-
mente complicada por uma divisão individual: o pecado deprava o
primeiro ímpeto de sua natureza para com Deus, seu livre arbítrio

30 Suma Teológica, I, 63, 1.


31 Mc 5, 6-7.
32 Ef 4, 16.

74
se volta contra sua vocação essencial, sua vontade ut voluntas se
opõe a sua vontade ut natura, se bem que “a alma do perverso é
devastada pelas facções”.33 O demônio não pode se recolher. En-
tão, se explode.
Qual é o único princípio unificador deste reino em migalhas, o
ponto de encontro litúrgico no país da Legião? O ódio do mesmo
Inimigo. A filosofia política de Carl Schmitt se aplica muito bem
ao pandemônio. O acordo do demônio consigo mesmo, da mesma
forma que com os outros, só se realiza por razão deste ódio. Ele
não recobra seu ser de outra forma senão através de sua raiva,
tentando desfazer a obra do Altíssimo. Para isso, os diabos se en-
tendem como os ladrões de feira, em vista de um roubo que exi-
ge, apenas por uma questão de eficiência, uma operação conjunta.
Mas a associação de malfeitores termina quando se trata de dividir
o produto do roubo. A cumplicidade se torna desavença.
Jean-Joseph Surin relata que “o inferno está em contínua con-
fusão”: seu príncipe, como um CEO obcecado por produtivida-
de, tiraniza os demônios subalternos, especialmente “quanto não
conseguem fazer todo mal que ele quer”; e esses, que batem nos
seus próprios inferiores, “só obedecem a contragosto, apenas na-
quilo que é conforme a sua paixão, ou seja, o ódio de Deus”.34
O violento gênio de Teresinha prolonga a experiência do grande
exorcista (Surin fui quem lutou contra o exército demoníaco que
tinha tomado possessão das religiosas de Loudun). Numa “recre-
ação piedosa” – O triunfo da humildade –, ela expõe as quere-
las litúrgicas que despedaçam o pandemônio. Belzebu lança a seu
príncipe, Lúcifer:

Non serviam... foste tu que me deste essa divisa e creste que


te obedecerei depois de ter recusado me abaixar diante de Deus...
Não, nunca, nunca!... Cada um aqui é mestre; é por isso que nos-
sa união é tão grande, que nossas legiões são tão admiravelmente
policiadas, é por isso que nossos adoradores não cessam de dis-
putar sobre os pontos de nossos ritos sagrados... Tu sabes melhor

33 Aristóteles, Ética a Nicômaco, IX, 1166b, trad. Franc. Tricot, Vrin, 1990, p. 446.
34 Triomphe de l´amour divin sur les puissances de l´Enfer, seguido de Science expéri-
mentale des choses de l´autre vie (1653-1660), Jérôme Millon, Grenoble, 1990, p.360.

75
fabrice hadjadj

que ninguém, velha serpente ardilosa, a discórdia é a marca do


teu reino... Nosso único ponto de acordo é o ódio implacável que
devotamos aos mortais. É verdade que isso não nos impede de
chamá-los nossos mais queridos amigos...35

O exemplo de Lúcifer se volta contra ele próprio, porque se


funda na desobediência. Dizer, por sua vez: Eu não servirei, ser-
ve a ele tanto quanto a quem ele desserve. Cada um é bem mais
seu escravo quando se que crê o próprio mestre. Quando se de-
sobedece a Deus, se obedece ao diabo. Quando se desobedece
ao diabo, segue-se ainda seu exemplo, mesmo quando isso serve
literalmente “para sua condenação. Ele faz o mal a si mesmo,
mas ainda assim, se satisfaz contra Deus. De todo modo, o que
por um lado lhe dá prazer, por outro só pode lhe fazer sofrer. O
Padre Bonino também tem razão quando escreveu: “Ele preferiu
permanecer o primeiro numa ordem inferior, do que se tornar um
entre outros na ordem superior”.36 O homem que pecou, como
diz São Bernardo, se torna seu súdito: perdendo essa graça que o
eleva acima de sua natureza, ele cai abaixo da natureza angélica
que foi corrompida. Quer dizer que se perde de vista o que faz
a fascinação pelo mal, isto é, esse “bem negativo” que o pecado
fornece a quem o quiser. Porque se eu o escolho decididamente,
não é somente porque quero estar sujeito a Satanás. Por detrás
dessa sujeição, há uma outra coisa, uma espécie de democracia,
digamos, uma libertação, que será por si uma queda no nada:
“Cada um aqui é mestre”, diz Belzebu.
Para compreender essa situação, é necessário pensar o pecado
de maneira metafísica. Deus é a Causa primeira do ser. A ação boa,
quer dizer, florescendo na sua plenitude de ser, nós a realizamos
com ele, sob sua moção fundamental. Ao contrário, à ação má,
quer dizer, desviada por uma falta de ser, o Criador confere sua
parte de positividade, mas sua parte de negatividade, propriamen-
te pecaminosa, procede apenas de mim, criatura tirada do nada,
e capaz de aniquilar o influxo do ser em mim mesmo. Por exem-
plo, a força de meus braços se funda, ultimamente, na bondade do
35 Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Théâtre au Carmel, Cerf-DDB, 1985, p.
252.
36 Serge-Thomas Bonino, op.cit. p. 211.

76
Criador que quer que eu me sirva dela para ajudar o pobre; mas se
eu a emprego para matar, eu desvio o ímpeto desta força, eu arru-
íno seu florescimento em comunhão (tanto com Deus como com o
próximo), isto é, numa existência mais dilatada. E devo esse desvio
a mim mesmo. Eis o deleite que busca o mal: eu não posso ser a
causa primeira do ser, mas eu posso ser a causa primeira do nada.
Ao invés de ser filho neste universo, ao mesmo tempo mais trági-
co e mais alegre, eu prefiro reinar só, num mundo fictício. Assim,
quando eu me sinto lesado, acuso os outros e me recuso a me re-
conciliar: eu sofro e só consigo azedar ainda mais a minha ferida,
mas eu gozo por me encontrar no centro de um mundinho ilusório
onde me porto como o juiz supremo. Isso implica sem dúvida, por
minha natureza, uma certa subserviência ao diabo. Mas mesmo se
este último me tentou, eu sozinho sou formalmente responsável
pela falta, pois se ela não procedesse da minha vontade, eu não
seria culpável, e não se pode retirar de mim este mesquinho prazer
de reinar sob as minhas quimeras.
Assim, no inferno, cada um reza por si mesmo, com uma ora-
ção que pretende saber exatamente o que lhe falta. E quando se
reza pelos outros (porque não?) é porque tal os representa e por
lhes obter um bem que decidiram por si mesmos – por exemplo
– habitar os porcos... Mas chega também a rezar todos juntos, se
é para repelir uma defensiva do Santo. A liturgia demoníaca é às
vezes massiva, às vezes dispersada. Quando a questão é opor-se ao
Verbo feito Judeu, é uma assombrosa cerimônia de Nuremberg.
Quando se trata de cobiçar seu próprio bem, é uma formidável
cacofonia. Pulverização libertária no amor-próprio, solidificação
totalitária no ódio de Deus. Impessoal orgia em marcha, concor-
rência feroz de indivíduos. Tal é a pulsação infernal.

Jesus contra a apologética?


Essa fé dos demônios é uma possibilidade humana? Um ho-
mem, só com a sua inteligência em face aos milagres ou à doutrina
do Messias, pode adquirir a mesma certeza que os espíritos impu-
ros de Cafarnaum ou de Gérasa? Essa questão é decisiva. Poderia
relacionar-se ao conflito que opôs protestantes e jesuítas, mais pre-
cisamente Lutero e Molina.

77
fabrice hadjadj

O pessimismo de Lutero fez-lhe conceber a inteligência humana


como arruinada: a fé é puro dom da graça e corresponde, como
desenvolverá mais tarde um Kierkegaard, a um salto no absur-
do. Nenhum argumento racional, nenhum motivo de credibilidade
conseguiria apoiar o ato de fé. Mas o inverso acontece com o hu-
manismo de Molina: ele o leva a conceber a fé teologal como pura
continuidade da razão; é possível demonstrar a credibilidade do
cristianismo e produzir, como no fim de um curso magistral, um
razoável ato de fé natural, onde a graça poderá se tornar salvífica.
De um lado, o credo quia absurdum; do outro, credo quia rationa-
le. O que implica duas posturas contrárias no anúncio da fé: para
o luterano, os discursos da pregação e a Sola scriptura; para o mo-
linista, as demonstrações de apologética e a prima ratio.
Ora, nos dois casos, há um erro sobre as relações entre a natu-
reza e a graça. O primeiro declara uma violenta ruptura, já o se-
gundo supõe uma continuidade niveladora. Então, o diabo, como
sempre nas oposições estéreis, pode esfregar suas asas. Porque a
posição pessimista faz da fé um ato tão separado da ordem racio-
nal, que essa fé tende a se tornar cega, aparando pouco a pouco os
dogmas para adorar uma Igreja sem visibilidade, um Cristo sem
objetividade, um Deus sem face, moldável a critério dos caprichos
de cada um. A posição humanista é, contudo, ainda mais perigosa:
uma fé que quer produzir sua apologética não é nada mais que a
fé dos demônios. Adere-se à Revelação como a um fato exterior,
somente com a sua inteligência, e não com seu coração. Mas nem
uma nem outra correspondem à realidade do homem. A molinis-
ta usa sempre sua razão, mesmo no domínio da fé. Mas essa ra-
zão não basta para fazer crer em Jesus, ainda que diante dos reais
motivos de credibilidade. Dizendo de outro modo, os motivos de
credibilidade são suficientes para que a inteligência dê seu consen-
timento sem que isso seja absurdo, mas insuficientes para produzir
uma adesão forçada, como, por exemplo, diante do Teorema de
Pitágoras. Para que o consentimento tenha lugar, é necessário, sob
o impulso da graça, um ato livre e pessoal da vontade.
Assim, os próprios milagres, as próprias palavras bastam para
forçar a inteligência do anjo, mas são ineficazes para fazer o mes-
mo com a inteligência do homem. Mas por quê? Do lado do su-
jeito, é fácil explicar: a inteligência angélica é incomparavelmente

78
mais perspicaz que a nossa. Mas e do lado o objeto? Por que Deus
não quis produzir fortes sinais para nós? Por que no momento
da consagração eucarística, o Céu não se abre para fazer descer
visivelmente Jesus? Por que a palavra de cada pegador não é acom-
panhada de chamas que jorram de sua boca? E por que o nariz do
herético não se alonga como o de Pinóquio? As coisas não seriam
melhores assim? E isso não vale só para a ordem da Revelação,
mas também para a ordem da natureza. Sem dúvida que, a partir
das coisas aqui de baixo, a luz natural de nossa razão é capaz de
remontar até a necessidade de uma Causa primeira, e chegar a
uma prova da existência de Deus. Mas esta prova não é imediata.
Além disso, as preocupações desta vida, as fragilidades de nossa
reflexão e os meandros de nosso coração conseguem nos desviar
facilmente. Mas Deus não poderia ter implantado em nós uma es-
pécie de fone para que pudéssemos ouvir sua palavra diretamente,
de forma sonora e convincente? Não poderia ter assinado melhor
suas obras, como faz qualquer artista? Bastava uma palavrinha
escrita em cada flor (o que, aliás, implicaria que sua beleza não
basta). Ou ao menos um murmúrio de consolação a cada vez que
se sofre, que nos afirmasse a envolvente ternura do Eterno, não
pelas páginas de um livro, nem pela voz de um rabino e muito
menos pelo sacramento que administra um sacerdote, mas por vós,
Senhor, manifestamente por vós – e de forma tão evidente como
o fato da água molhar! Quantas guerras de religião poderiam ser
evitadas! Quantos erros se tornariam impossíveis! Nenhum anti-
cristianismo; nenhum ateísmo. Ao menos no plano especulativo,
porque no plano prático...
E aqui nós tocamos a condição de possibilidade objetiva da
incredulidade ateia ou anticristã. Ela constata esta insuficiência
intelectual dos sinais fornecidos por Deus. Eles não são absoluta-
mente obscuros, mas também não são bastante claros. Deveriam
ser mais? Há uma falta do lado de Deus? É esse tipo de sinal des-
lumbrante que queriam ainda os sumo-sacerdotes aos pés da Cruz.
Sua zombaria é uma exigência; sua incredulidade uma fé sob con-
dição do milagre último. Eu imagino a angústia que oprimia suas
almas naquele instante: “E se estivermos enganados? E se aquele
ali fosse o Messias de verdade?” Então, para fugir da vergonha, eles
contrabandeiam uma oração, sob o manto do escárnio: A outros

79
fabrice hadjadj

salvou, a si mesmo não pode salvar! Rei de Israel que é, que desça
agora da cruz e creremos nele! Confiou em Deus: pois que o livre
agora, se é que se interessa por ele! Já que ele disse: “Eu sou filho
de Deus!”37 Eu não posso escutar essas palavras sem sentir um
golpe no coração. É a queixa de todos aqueles que vacilam e pe-
dem a Deus mais visibilidade. Mas esse mais não seria um menos?
Se Jesus tivesse descido da Cruz para provar irrefutavelmente sua
divindade, que fé teríamos nós, com nossa baixeza, a não ser a do
demônio que adora?

Porque Deus se esconde


Durante todo o Evangelho de Marcos, como já entrevimos
acima, Cristo exige que se calem as afirmações revelando a sua
identidade, e também que se escondam os milagres que atestam
seu poder. Se ele reduz ao silêncio os demônios que lhe designam
como Filho de Deus, também adverte severamente o leproso que
curou com um toque: Atenção, não digas nada a ninguém; mas vai
mostrar-te ao sacerdote e ofereça por tua purificação o que Moisés
prescreveu na Lei. Não há dúvida de que, com isso, Jesus quer
dizer que a sua missão é um cumprimento, não uma superação da
religião hebraica. Mas este apelo à discrição permanece estranho.
O leproso não consegue conter a língua e difunde a notícia, de
modo que Jesus já não podia entrar publicamente numa cidade:
permanecia fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham pro-
curá-lo.38 Eis uma afirmação surpreendente: já não podia entrar
lá mesmo onde seria acolhido de forma espetacular! Do mesmo
modo, após a ressurreição da filha de Jairo, chefe da sinagoga, Je-
sus recomendou-lhes expressamente que ninguém viesse a saber.39
Isso não atrapalharia a sua própria revelação? E também ao pró-
prio povo eleito? Uma campanha de publicidade razoável, com
sinais mais palpáveis, não teria evitado essa divisão da história que
passa inclusive pela minha própria família? No entanto, depois de
cada multiplicação de pães, Jesus se retira: segue imediatamente
para uma barca, coloca uma barreira d’água entre eles. Noutra

37 Mt 27, 42-43.
38 Mc 1, 44-45.
39 Mc 5, 43.

80
ocasião, uma montanha: Vendo o sinal que ele fizera, aqueles ho-
mens exclamavam: “Esse é, verdadeiramente, o profeta que deve
vir ao mundo!” Jesus, porém, sabendo que vinham buscá-lo para
fazê-lo rei, refugiou-se sozinho na montanha.40
Mas que oportunidade perdida! Quantos católicos trabalham
duro para que se realize o reino social de Cristo, e eis que, no seu
tempo, Ele o recusa! Para quê, então, Ele está jogando esse jogo?
Pelo menos não podemos duvidar de sua inocência: em Deus,
não há uma perversa diversão, nem manipulação como “je-t´aime-
moi-non-plus”, tampouco um prazer roubado do suplício de Tân-
talo.41 Seu segredo não é culto secreto, do mesmo modo que seu
anúncio não é exibição. É necessário, portanto, manter o parado-
xo: o silêncio diz muito. Longe de sufocar a proclamação, essa reti-
cência desdobra em profundeza. Longe de rejeitar seu Reino (cada
Pai Nosso pede a sua vinda), ela o afirma, mas como um Reino de
amor, não de força; como um Reino para os miseráveis que neces-
sitam da Misericórdia, não como o de uma monarquia onde todos
estão fascinados pelo espetáculo de uma atuação.
De uma parte, do lado do objeto da fé, essa reticência acaba
impedindo o mal-entendido sobre a missão de Cristo, que é de hu-
mildade. Seus milagres poderiam fazer com que ele fosse tomado
por um taumaturgo, pois manifestando algo de seu poder divino,
correm o risco de ofuscar algo de seu divino amor. Ora, a fascina-
ção diante do Profeta tornaria ainda mais inadmissível o caminho
de sua Paixão. Uma prova é o ocorrido com Herodes: ele ouvira
falar dos prodígios e, quando trazem Jesus preso até ele, experi-
menta uma grande alegria ao vê-lo; espera que Jesus lhe mostre
uma coisa extraordinária. O curioso é que o pai havia ordenado
o massacre dos inocentes, enquanto o filho espera do Inocente um
milagre. No entanto, o Inocente se cala. Mantendo-se assim tão
desarmado como as crianças outrora assassinadas por seu pai, He-
rodes acaba na zombaria: veste Jesus com um manto cômico antes

40 Jo 6, 14-15.
41 Je t’aime Moi non plus é a célebre canção semierótica de Serge Gainsbourg, que com-
para o amor às ondas que vêm e vão, num trocadilho que diz: “Eu te amo, mas não te
amo”. Já Tântalo foi o rei da Frígia. Na mitologia grega, foi condenado pelos deuses
a viver num vale com muitos frutos e abundante água, porém, inacessíveis para que
pudesse saciar a fome e a sede. Sua súplica era estar tão perto daquilo que desejava,
ao mesmo tempo em que tudo lhe era inacessível – NE.

81
fabrice hadjadj

de reenviá-lo a Pilatos. Enfim, quanto mais reduzimos Cristo a um


fazedor de milagres, menos podemos reconhecê-lo como Salvador
na Cruz. Quanto mais o exaltamos como Rei temporal, como no
dia de Ramos, menos se pode suportá-lo como o cordeiro que vai
ao abatedouro, de modo que aqueles mesmos que o tinham acla-
mado no momento de sua entrada em Jerusalém, põem-se a vaiá-lo
na sua subida ao Gólgota. Afinal, quando Pedro pretende para
seu Mestre a coroa de ouro ao invés da de espinhos, é chamado
de Satanás. Porque o Mestre não é um Führer: Ele vai contra a
vontade de poder. Ele não quer ser um modelo de struggle for life,
e de sobrevivência do mais forte, mas de atenção ao pequeno e de
mercy for all.
Já por outra parte, do lado do sujeito da fé, essa reticência impede
que este Anúncio seja recebido mais como uma ciência do que como
uma vida. O objetivo da Revelação não é uma doutrina a transmitir,
mas de uma Aliança a se consumar. Acerca do que é da doutrina,
do sistema de valores que contém o cristianismo, os demônios são
inigualáveis; mas daquilo que é da Aliança, não se interessam em
saber nada. O seu passatempo é também eclipsar o mistério nupcial,
para reduzi-lo a um moralismo (ou um imoralismo, dependendo do
interesse), a uma dogmática inerte (ou a um pragmatismo puro),
desde que não se trate de um encontro. É por isso que Jesus se revela
através de um segredo: ele não vem propor uma teoria perfeita, mas
alheia aos nossos corações; ele não quer um saber tão brilhante que
nos cativaria como borboletas em volta da lâmpada. Ninguém deve
acolhê-lo como um sábio mais do que como um amigo – aí está a
sabedoria mais alta, inflamada pelo amor. Eis porque ele se deixa
procurar. A Aliança do Eterno com uma alma exige esse desejo e
essa intimidade pessoal da câmara nupcial. O dom da Revelação,
portanto, não se dá sem um certo recolhimento, sem um certo pu-
dor. Jesus poderia fazer descer exércitos de anjos mais eficazes que
nossos melhores especialistas em marketing operacional. Mas ele
não é precisamente o Sedutor. Pode-se forçar uma adesão intelectu-
al. Não se pode forçar um coração.
Os sinais que ele dá respeitam, portanto, nossa inteligência. Ele
a preserva da violação do absurdo, mas a protege também contra
a violência da glória. Se, para nós, ele não produz evidências tão
estonteantes que nos forçariam à submissão, como escravos, é por-

82
que ele nos quer libertar como irmãos. Portanto, a essa imprecisão
ele pede humildemente o acréscimo de um livre consentimento.
Seu poder teria certamente podido fazer com que a cada Eucaris-
tia uma coluna de fogo abrasasse o altar, mas o que sobraria da
imprecisão amorosa e do nosso livre consentimento? Porque as-
sim, explícita, a nossa adoração seria exterior, coagida, servil. Por
outro lado, vindo sob espécies extremamente humildes, permite
que possamos dar a ele a nossa confiança. Enfim, mendiga o amor
que ele mesmo nos infunde em segredo, nos preparando para que,
da nossa parte, possamos nos voltar aos pobres. Ele, embora fosse
rico, por causa de vós, se fez pobre, para vos enriquecer com a sua
pobreza.42
Pascal é o pensador desta pobreza que é, em verdade, a nossa
riqueza; desse retiro que é um dom, dessa obscuridade que permite
uma luz mais íntima. Ele sempre repete que esta obscuridade de
sinais e de profecias não tira a autoridade da Revelação. Contra
aqueles que lamentam “Ah! Se Miquéias ou Isaías nos tivessem
fornecido de antemão uma indubitável ficha descritiva do Mes-
sias”, Pascal observa que Isaías e Miquéias dizem precisamente
que, na vocação messiânica, consta sofrer o desprezo: “Que di-
zem os profetas? Que ele será evidentemente Deus? Não, mas que
ele é um Deus verdadeiramente escondido, que será desconhecido,
que não se pensará mesmo que seja ele, que será pedra de trope-
ço, na qual muitos se chocarão, etc. Que não nos censurem mais,
portanto, pela falta de clareza, porque dela fazemos profissão”.43
Embora não fale da fé dos demônios, Pascal deixa entender que a
razão última desta obscuridade é a de nos arrebatar de suas trevas:
“Deus quer dispor mais a vontade que o espírito; a claridade per-
feita serviria ao espírito e feriria à vontade. Abaixar a soberba”.44
Num outro fragmento, diz: “Se não houvesse ponto de obscuri-
dade, o homem não sentiria sua corrupção; e se não tivesse ponto
de luz, não esperaria o remédio. Assim, não é somente justo, mas
útil para nós, que Deus esteja em parte escondido, e em parte des-
coberto, porque é igualmente perigoso ao homem conhecer Deus
sem conhecer sua miséria, e conhecer sua miséria sem conhecer
42 2Cor 8, 9.
43 Pascal, Pensées, Le Guern, § 213.
44 Ibid. § 219.

83
fabrice hadjadj

Deus”.45 O Senhor mede para nós a claridade de seus sinais, a fim


de nos preservar da soberba mais escura. Dizer não na luz é mais
tenebroso que dizer não na penumbra; mas também dizer sim na
penumbra é mais meritório que fazer o mesmo na luz. Essa semio-
bscuridade de sua Revelação por nós, por um lado nos preserva
de uma fé absolutamente demoníaca, adquirida no orgulho; por
outro, nos faz experimentar nossa miséria – que nossa oração não
seja uma pose nem uma mostra de bravura, mas um abandono e
um grito; enfim, que nos torne participantes do Amor divino, onde
a esquerda ignora o que fez a direita – onde Deus dá sem se fazer
ver, e sua Criatura dá graças sem ser forçada.
Mas há um quarto motivo, decorrente dos outros três, que torna
bendita essa obscuridade: se cada um fosse um “vidente”, o Cristo
não teria Corpo, isto é, Corpo místico. Não teríamos que ir encon-
trá-lo uns nos outros. Não seriamos membros uns dos outros. Não
se revelando imediatamente, Deus deixa espaço à mediação de suas
criaturas. Trate-se de uma peônia ou de um tigre, de um vagabundo
ou de um arcebispo, cada um na sua ordem lhes concede a dignida-
de de ser seu porta-voz, a sua voz que grita no deserto. Assim, não
podemos ir até ele sem irmos aos outros, de modo que seu santo
pudor não é apenas para nossa aliança com ele separadamente, por-
que essa aliança nos obriga a nos acolher numa comunhão, cada um
sendo para o outro a testemunha do mistério.
Por esta disposição misericordiosa, o Eterno corre um risco: o
ateísmo, o anticristianismo ou a heresia se tornam possíveis. Mas
mesmo que essa incredulidade dos homens chegasse a fazer de-
les perseguidores, ainda seria menos grave que a fé sem falha dos
demônios. Porque há a desculpa da ignorância. Ela é devida ao
abatimento de nossa razão e a resistência de nossos corações. Mas
ao menos é questão de coração. Já a fé dos demônios é devida a
celeridade de sua inteligência; não há coração nela, nem jamais
haverá. Entre o desconhecimento daquele que guarda seu coração
aberto e a certeza daquele que o fechou para sempre, a secunda é
infinitamente pior.
Deus se esconde, portanto, muitas vezes para que o homem o
procure com desejo, e o busque através de seus irmãos, isto é, tanto

45 Ibid. § 416.

84
na sua sogra como no cantarolar do Pisco-de-peito-ruivo. Enfim,
para abrir sua atenção para as pequenas coisas, para lhe dar es-
paço para arriscar seu próprio passo. Para que com relação a sua
inteligência, sua vontade não esteja num atraso fatal. Esse pensa-
mento de que a discrição é, aqui, lugar de uma oferenda, não está
distante do tsimtsoum da mística hebraica: Deus criou o mundo
como o oceano faz aparecer a terra, retirando-se dela. Ela encon-
tra sua mais bela expressão nesta história de um neto e seu avô, o
Rabbi Baroukh, ele mesmo neto de Baal-Shem-Tov:

Yehiel, o neto do Rabbi Baroukh, brincava um dia de escon-


de-esconde com outro menino. Ele encontrou um ótimo escon-
derijo, entrou e esperou seu colega vir descobri-lo. Mas depois
de ter esperado longamente, terminou por sair e não viu o seu
coleguinha em nenhum lugar. Então percebeu que o outro não o
tinha procurado. Começou a chorar. Foram lágrimas e lágrimas.
Depois ele correu, ainda soluçando, para se queixar, com seu avô,
do malvado colega, daquele menino ruim que não se dignou a
procurá-lo quando ele estava escondido tão bem! Foi com grande
dificuldade que o Tsaddik conseguiu conter as lágrimas da crian-
ça, então, disse: – Deus fala exatamente a mesma coisa: ‘Eu me
escondo e ninguém quer me procurar’.46

Deus brinca de quê? De esconde-esconde. Talvez seja esse um


sentido essencial da palavra: Em verdade vos digo: aquele que não
receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele.47
Deus nos dá justamente o que é necessário de sinais para que nós
vejamos bem que ele é invisível. Assim podemos brincar com ele
desse esconde-esconde, ao mesmo tempo trágico e lúdico, assim
como na música hebraica: “seu espírito de infância nos preserva
do espírito impuro”.

46 Martin Buber, Récits hassidiques, trad. Franc. Armel Guerne, Éditions du Rocher,
1978, p. 157-158.
47 Mc 10, 15.

85
segunda PARTE
PAI NOSSO DA MENTIRA
ou como a fé dos demônios
fecunda os erros dos homens

Como tal, a fé dos demônios é inacessível para nós. A nossa razão


é muito débil e os nossos corações, efêmeros. Eles se esforçam,
portanto, para nos empurrar para equivalentes diversos. Já que
não podem se beneficiar de nossa vontade e de nossa inteligência,
se beneficiam de nossa ignorância e da nossa fraqueza. Angelismo
tolo, bestialidade em meias de seda, ateísmo cego e surdo, religião
dura e estridente, eles nos talham uma perversidade à nossa me-
dida. Eles buscam nos curar, benfeitores que são, das queimadu-
ras do Fogo devorador. Gregório Magno relata o encontro de São
Bento com um destes espirituais, Purgon: “Certo dia, o homem de
Deus se dirigia ao oratório de São João, situado no cume da mon-
tanha. O antigo inimigo veio a seu encontro sob o aspecto de um
veterinário, com o vaso de chifre e tripé. ‘Aonde vais?’, pergunta o
santo. O diabo responde: ‘Eu vou até teus irmãos, eu vou dar-lhes
o remédio’”.48 Bento, sendo o santo patrono da Europa, pôde in-
ferir quanto deste remédio se foi aplicado – e ainda se aplica – no
Velho Continente...
É a parte de verdade que contém as falsíssimas teorias da cons-
piração. Elas pretendem localizar o mal nas armações secretas,
provadas ou imaginárias, de alguma comunidade humana: Pro-
tocolo dos Sábios de Sião ou franco-maçonaria, Opus Dei ou
Al-Qaeda... Que candura! Esquecem de se voltar a uma conspi-
ração ainda mais secreta e mais tentacular: a angélica. Uma cons-
piração que sabe jogar com facções opostas, coordenar para des-
truir entidades das mais contrárias: progressismo e integrismo,
capitalismo e comunismo, satanismo bruto e irenismo doentio, tal
48 Vida e Regra de São Bento, trad. Franc. E. de Solms. Téqui, 1994, p.111.

87
fabrice hadjadj

armada democrática e tal organização islamizante, americanismo


belicoso e antiamericanismo pacifista, os pró-aborto militantes e
os pro-Life ferozes... Acordos passaram por cima da cabeça dos
homens que se odeiam. Guerras foram declaradas por debaixo dos
corações que se adulam. O essencial, por esta conspiração ao mes-
mo tempo mais alta e mais baixa, é cultivar tanto o ódio como a
complacência que contribuem à danação.
Isso não tira sua responsabilidade aos homens. Somente nos
impede de lhes imputar uma responsabilidade tão original e certa,
tão irrevogável, que não poderíamos mais nos sentir responsáveis
de seu arrependimento e do nosso. Pois isso é a propensão dos
tempos que não creem mais no diabo, diabolizar qualquer um sem
qualquer dificuldade, além de erguer novas fogueiras em nome da
humanidade. Nós imaginamos que ao colocarmos este canalha e
sua maldita ideologia fora do caminho do mal, teremos acabado
para sempre com o crime. No entanto, eis que descobrimos, à nos-
sa custa, que junto com o joio arrancamos o bom trigo, e por não
termos realizado uma jihad contra nossa própria malignidade, a
deixamos nos invadir. Ao invés de o justo equilíbrio da balança,
favorecemos a oscilação do pêndulo. E ao invés de o combate con-
tra o verdadeiro “império do mal”, promovemos pazes leoninas e
guerras injustas. No entanto, à menor atenção, deveria fazer saltar
aos olhos: nossos disparates que se opõem, se orquestram segundo
uma inteligência que nos ultrapassa; nossas baixezas que nos adu-
lam, contribuem para um horror que nos aniquila.
Compreender a harmonia infernal de nossos erros e de nossas
iras contrárias é tentar não mais impedir o excesso com a falha,
nem a separação pela confusão, nem a palha no olho do outro pela
trava no seu. É não deslizar numa prudência tão precavida que se
torna renúncia, mas se esforçar numa missão ao mesmo tempo
mais belicosa e mais misericordiosa. Mais belicosa porque, segun-
do Paulo, trata-se de praticar o pugilato, mas não como quem fere
o ar.49 Mais misericordiosa porque, como explica Santo Agosti-
nho, só os inimigos angélicos é que são segura e definitivamente
inimigos. Pelo que se refere aos homens, ele diz, “que [a família
resgatada por Deus] se lembre de que seus inimigos escondem nas
suas fileiras muitos de seus futuros cidadãos, para que não creiam
49 1Cor 9, 26.

88
estéreis com relação a eles a paciência de suportá-los como inimi-
gos, esperando a alegria de recebê-los como confessores! Que ela
se lembre também de que durante sua peregrinação neste mundo,
muitos que lhe são unidos pela comunhão dos sacramentos não
lhe serão associados na eterna felicidade dos santos”.50
É inútil dizer que estes últimos têm maior participação no com-
plô mais obscuro, porque eles manobram à luz do dia. A conspira-
ção mais oculta não é aquela que age longe, mas no meio de nós.
Quem sabe, portanto, se não somos seus mais insidiosos instru-
mentos? Eu mesmo, me coloco em suspeita. Consequentemente, o
Inimigo não poderia fazer melhor que me tomar pouco a pouco,
quase que à minha revelia, por seu agente secreto... Compreen-
de-se, portanto, o porquê de o último ofício monástico, antes do
grande silêncio de noite, repetir a exortação de Pedro: Sede sóbrios
e vigilantes! Eis que o vosso Adversário, o diabo, vos rodeia como
um leão rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé,
sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge vossos irmãos
espalhados pelo mundo.51 É uma pena que no breviário, a cita-
ção esteja truncada antes do final da frase (esse final foi devorado
pelo tal leão que ruge?). Porque diz admiravelmente: com relação
à instrumentalização diabólica, a oposição entre aqueles que estão
no mundo e aqueles que dele se retiraram, não têm mais papel al-
gum, de modo que através da luta contra esta instrumentalização,
emprega-se uma fraternidade muito maior.

50 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, L. I, c. XXXV, trad. Fran. L. Moreau, Éd. du


Seuil, col. “Points-Sagesses”, 1994, p. 74.
51 1Pe 5, 8-9.

89
PRIMEIRA LIÇÃO
Extensão do domínio da luta

Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na


verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere
“pseudo”, toma do seu próprio fundo, porque é mentiroso e
seu pai.
— Jo 8, 44

A tentação no Jardim
“Não fui eu quem começou!” É assim que, diante de seu censor,
a criança se justifica. E não faria melhor o velho terrorista. Sabemos
que, com esse argumento, uma boa consciência pode perpetrar ge-
nocídios. Afinal, quem poderia dizer que não tenha experimentado
anteriormente, que em nada foi ofendido, que não sofreu antes de
fazer sofrer? A agressão mais manifesta pode, portanto, alegar le-
gítima defesa. E os carrascos competem sob o pretexto de que eles
foram vítimas antes e muito mais do que os outros. A quem isso
beneficia mais? Àquele que, para o mal, começa pelo bem.
Bem antes das tentações do deserto, houve a tentação do Jar-
dim. No Éden, é a Serpente que começa (este começar é, na ver-
dade, uma maneira de acabar). Depois disso, começa então para
nós a má fé. O homem: “Não fui eu quem começou, Senhor, foi
a mulher que tu pusestes ao meu lado!” A mulher: “Não fui eu
quem começou, Senhor, foi a serpente que me seduziu!” Eva está
mais perto da verdade que Adão. Além disso, a resposta dele, mais
evasiva, denota de sua parte uma falta redobrada: após ter deso-
bedecido a Deus, ele projeta seu pecado sobre sua vizinha. Mas
a esposa também age como se a sedução não lhe tivesse deixado
nenhuma liberdade. Tais são nossas primeiras mentiras.
Como chegamos lá? Melhor reler a sempre incrível passagem
da primeira sedução. Original, ela deve ter algo de estrutural. Ver

91
fabrice hadjadj

como o ardiloso agiu com a mulher, é ver também como ele age
conosco, e como nos deixamos enredar estupidamente pela pre-
tensão de responder-lhe por nós mesmos. Recordemos a Carta de
Judas, citando o livro de Zacarias: O Anjo do Senhor disse a Satã:
“Que o Senhor te repreenda!”.1 A mulher não deveria ter res-
pondido assim para a serpente, enviando-a ao diabo, ou ainda,
recomendando-se a Deus? Mas ela quis tomar a iniciativa e, no lu-
gar de a uma resposta, ela deu-lhe uma réplica. Este foi o primeiro
passo em falso e a raiz do paradisíaco desenraizamento.
Uma palavra de Jesus nos adverte no Evangelho de João. Mas
esta palavra é raramente traduzida com sua ambivalência signifi-
cativa. Jesus refere-se explicitamente à falta original. Fala daquele
que foi homicida desde a origem e o qualifica desta estranha ma-
neira (traduzo o mais literalmente possível para deixar mais claro
o que vem a seguir): Quando diz a mentira, é a partir do que lhe é
próprio dizer, porque ele é mentiroso e o pai dele.2 Esse “dele” de
que é pai (pater autou), é a “mentira” que em geral os tradutores
se referem: o diabo é “mentiroso e pai da mentira”. Mas, surpre-
endentemente, o que o versículo nos diz é que esta mentira corres-
ponde à maior sinceridade. Ora, o que quer dizer “falar a partir de
seu próprio interior” (ek tôn idiôn), senão “ser sincero”? A sinceri-
dade consiste em dizer o que se pensa, isto é, o que há no interior
de cada um. Mas aqui, especificamente, dizer o que se pensa por
si mesmo. Assim o mentiroso por excelência pode ser sincero por
princípio. Ele não se contenta em dizer o falso porque ele é falso,
ainda que pretenda dizer alguma verdade. E qual é a essência desta
falsidade? Uma sinceridade absoluta que refere ultimamente a ver-
dade de si, antes que a própria Verdade. É neste sentido que se deve
ler a expressão “pai dele”. O genitivo não se refere à “mentira”,
mas ao “mentiroso”. O diabo é pai do mentiroso que ele mesmo é.
É isto que qualifica radicalmente o seu mal: a pretensão de ser pai
de si mesmo ao invés de filho de Deus; a pretensão de falar a partir
de seu próprio interior, ao invés de partir da Palavra.
Para dizer de outro modo: Satanás ama o dom de si. Tal é seu
orgulho mais sutil: o dom de si até querer dar sem ter recebido, até
falar sem ter escutado, mas a partir daquilo que vêm somente de
1 Zc 3, 2.
2 Jo 8,44.

92
si. Não importa se, por consequência, não tem nada a doar. Ora: a
mulher, escutando a serpente, cai diretamente nessa armadilha. Ela
quer apenas se defender – ek tôn idiôn – por si mesma, sozinha,
como uma adulta, sem Deus nem o seu próximo – por que ela não
chamou Adão? – e é assim que ela se deixa capturar.
Mas detalhemos o processo desta infração, retomando o duplo
monólogo (porque não pode se tratar de um verdadeiro diálogo)
que inicia solenemente todas as tragédias vindouras:

A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo,


que IHVH Elohim tinha feito. Ela disse à mulher: “Além disso,
Elohim falou: ‘Vós não podeis comer de todas as árvores do jar-
dim?’”. A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer
do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está
no meio do jardim, Elohim disse: ‘Dele não comereis, nele não
tocareis, sob pena de morte’. A serpente disse então à mulher:
“Não, não morrereis! Mas Elohim sabe que, no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Elohim, ver-
sados no bem e no mal”. A mulher viu que a árvore era boa ao
apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para ad-
quirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o tam-
bém a seu marido, que com ela estava, e ele comeu.3

A serpente é “o mais astuto”, um adjetivo que também pode ser


lido como “o mais desnudo”. Este duplo sentido cria uma imagem,
diria o poeta: neste único termo, vemos o réptil sinuoso e que fre-
quentemente troca de pele. Mas qual é essa astúcia que é também
desnudamento? A inteligência separada da graça, diria o teólogo;
ser capaz de fazer com virtuosidade os entrechats e os ronds de
jambe,4 enfim, se ela é flexível e contrátil, porque a serpente ja-
mais será graciosa. O fato mesmo de que seja elencada entre os
animais do “campo”, pode dar a confirmação: mesmo tendo sido
feita por “IHVH Elohim”, vem antes do “campo”, não da terra

3 Gn 3, 1-6.
4 Ambos passos de ballet – entrechat: movimento em que o bailarino salta e, no ar,
cruza rapidamente as pernas antes de chegar ao chão na posição original; ronds de
jambé: são semi-círculos que a bailarina traça no chão, com a perna, enquanto se
apoia na barra. Serve como exercícios para aprimorar os movimentos circulares – NE.

93
fabrice hadjadj

virgem, que graciosamente saiu das mãos de Deus, mas da terra


trabalhada, transformada por algum artifício. E a primeira palavra
da servente explicita esta obsessão industriosa: Além disso (af).
Com ela, nós estamos sempre do lado do artifício, do excedente,
deste mais que é na verdade um menos, porque não foi querido
por Aquele que é. O que seria, de fato, um suplemento que recusa
o dom originário? A miragem de um oásis pelo qual se recusa a
verdadeira fonte. Mas o prazer é que sou eu que fabrico esta mira-
gem com meu pequeno projetor.
Depois vêm a grande mentira: Elohim disse: ‘Vós não podeis
comer de todas as árvores do jardim. Essa é a isca. Sua própria
indelicadeza trai sua dupla sutilidade. Primeira sutilidade: não co-
mer de nenhuma árvore, de nenhuma comida material, é próprio
de um puro espírito como ela. Aqui já se atesta seu desprezo pela
carne e seu amor pela “espiritualidade”. Além disso, não comereis,
pode ser que estas palavras queiram dizer: “Basicamente, vós sereis
anjos como eu”. Elas transpiram a superioridade de um espiritua-
lismo puro, longe de toda dependência com relação a um pomar,
longe da bovinidade de toda manducação. Eis o que sugere desde
o início seu propósito, apesar de que a tentação parece tomar um
caminho inverso, o de um encorajamento ao comestível. Mas não
é normal para o demônio saber manejar frases de duplo sentido?
A primeira mulher, muito carnal, forçosamente não pôde en-
tender o que está implícito. Ela só compreende o sentido óbvio
da afirmação, isto é, “não tendes o direito de comer de nenhuma
árvore”. Como a serpente pode propor uma coisa tão estúpida?
Ela é cega além de surda? Será que não vê aqueles lábios ainda bri-
lhando pelo suco de um pêssego ou mesmo de uma maçã suculen-
ta? Aqui está a segunda sutilidade, que é deliberadamente rude: é
tão evidente que o animal racional deve comer para viver! Em face
disso, a senhora pode se achar inteligente; pode se sentir segura de
si mesma. A mulher prudente saberá se defender sozinha...

Santa-do-pau-oco, proto-pecadora
O autor do Gênese emprega a ironia com uma leveza espanto-
sa. A resposta que coloca na boca da mulher se parece ao manda-
mento divino, tem o gosto do mandamento divino, mas já não é

94
mais o mandamento divino. Contém uma subtração e uma adição
(um “além disso” já do diabo). A mulher enfrenta a serpente, sem
dúvida alguma, mas ela já se deixou levar a seu próprio terreno:
...nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fru-
to da árvore que está no meio do jardim, Elohim disse: “Dele não
comereis, etc.”. Após ter afirmado a permissão de comer de toda
as árvores, esquece de recordar a disponibilidade central da árvore
da vida, pois complementa a interdição que concerne à árvore do
conhecimento. O que nos havia dito o capítulo precedente?5 IHVH
Elohim planta a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do
conhecimento do bem e do mal.6 A árvore do conhecimento não
é situada exatamente. Pode-se supor que cresce ao lado da árvore
da vida. Mas, falando de forma absoluta, é a árvore da vida que
está no meio do jardim e não a árvore do conhecimento, como a
mulher o pretende. Ou ela só imagina que a defesa diz respeito à
árvore da vida? Aqui se produz seu primeiro desvio da palavra: de
maneira sub-reptícia – rastejante – o negativo se torna mais central
que o positivo, a proibição prevalece sobre o dom do Eterno.
Ela não deveria ter respondido à serpente exatamente o contrá-
rio, sem acrescentar mais nada? Por exemplo: “E podemos comer
mesmo o fruto da árvore que está no meio do jardim”. Assim,
dando mais prioridade ao conhecimento do que sobre a vida, ela
parece já se inclinar ao inchaço da serpente, cuja inteligência está
em atraso em relação ao amor. Referindo-se ao fruto defendido
no lugar do fruto oferecido, e a proibição no lugar do dom, ela
parece já decair da mística à moral. Porque ainda está a defender
essa proibição, e com muito zelo! Sem Adão, sem o Nome divi-
no (a invocação do Tetragrama não está na sua réplica), ela se
acredita demasiado forte para ser a defensora da defesa divina, a
advogada do Paráclito, a criança ingênua que se crê capaz de pro-
teger a Pomba que desce dos céus. E eis o segundo desvio: IHVH
Elohim tinha dito: Não comerás da árvore do conhecimento, mas
a mulher acrescenta: Elohim disse: “Dele não comereis, NELE NÃO
TOCAREIS...” Ela adiciona uma proibição e se faz literalmente de
santa-do-pau-oco!

5 Para exegese que segue, meu maior débito é devido ao belíssimo livro de Jacques
Cazeaux, Le Partage de minut: essai sur la Genèse, Éd. du Cerf, 2006.
6 Gn 2, 9.

95
fabrice hadjadj

Quem foi assim tão mau leitor, quem foi tão tolo para pensar
que o primeiro pecado tinha a ver com a luxúria? O nele-não-toca-
reis é suficiente para percebermos que este pecado denota apenas
um orgulho puritano. Se, para muitos cristãos, esta evidência passa
ainda despercebida, ela sempre foi lembrada entre os hebreus. Aos
olhos de Rabbi Hiyya, sábio do Talmud, este acréscimo é a primei-
ra mentira do homem, e seu verdadeiro ponto de inflexão. Assim
como Midrach Rabba: “Está escrito: Não acrescentes nada às suas
palavras, porque te responderá, e passarás por mentiroso.7 Rabbi
Hiyya ensinou: “Não faça a cerca mais importante que a cepa, e
evitarás que a primeira caia e arranque a planta. O Santo, bendito
seja ele, havia dito “porque o dia que comerdes dele, morrerás’,
ora, não é isso que repete a mulher, mas, sim, que ‘Elohim disse:
Dele não comereis e nele não tocareis’. Desde que a serpente viu
Eva passar diante de árvore, a tomou e empurrou contra esta últi-
ma. Vês, exclamou, não estás morta! Tu não morreste ao tocá-la,
tu não morrerás ao comê-la!”.8 É assim que a santa-do-pau-oco se
transforma em libertina. Mostrando-lhe que aquilo que a assusta
não é tão ruim como parece, todo seu pequeno sistema colapsa.
Fácil, depois disso, precipitá-la no vácuo. Porque a proibição por
ela inventada não tinha razão de ser, assim pôde crer que a proi-
bição divina não tem um valor muito maior. Não ficamos mais
surpresos de ver as mais recatadas caírem na libertinagem. No dia
em que percebem, com razão, que seu excesso moralizador é insu-
portável, se metem a julgar erroneamente que mesmo a verdadeira
moral vai contra a vida.
A serpente pode dar o golpe de desgraça. Seu primeiro argu-
mento era grosseiro, mas o segundo é de um refinamento extremo.
No primeiro relato da Criação, aquele dos sete dias, se fala do ho-
mem à imagem e semelhança de Elohim.9 Nada disso no segundo
relato, aquele do Éden. Exceto na boca bífida. Só a serpente fala
de ser imagem de Deus. Só ela propõe a semelhança atestada pelo
próprio Elohim no relato precedente: Vós sereis como Elohim, co-
nhecendo o bem e o mal. Enquanto que na primeira réplica, parece

7 Pr 30, 6
8 Midrach Rabba, t. I, Gènese Rabba, trad. B. Maruani e A. Cohen-Arazi, Vedier, La-
grasse, 1987, p. 215.
9 Gn 1, 26-27.

96
pretender que se cometa um erro enorme, na segunda se apoia em
uma verdade essencial. No princípio, dizia algo que não era; em se-
guida, convida a algo que já é. Primeiro, exagerava o mandamento
negativo; depois, usa o mandamento positivo. Porque Adão e sua
mulher já conhecem o bem e o mal, que justamente distinguiam
através do respeito ou do desprezo pela proibição sobre a árvore.
Eles já são como Elohim, por natureza e por graça, mesmo se eles
têm o dever de o ser ainda mais, até à glória.
É frequente admitir que a frase do Tentador implica uma inveja,
uma mentira de Yahvé: “Ele vos fez crer que morrereis, o avaro, é
que ele não quer vos comunicar seu bem. Vos mantendo também
numa cegueira de escravo. Comei, e vossos olhos se abrirão”. Mas
antes não é, como ocorreu com Jesus no deserto? Quando o diabo
toma a palavra divina do seu modo e joga somente sobre a inter-
pretação? Morrer, não morrereis, isto é: “vós morrereis” deve ser
interpretado como “vós não morrereis”. Com efeito, Deus é todo
bom, ele quer nosso bem: esta morte de que fala é uma passagem
para uma vida mais elevada. Mas ele quer também que tenhais
espírito de iniciativa. Ele sabe que no dia em que comerdes, vossos
olhos se abrirão, e vós sereis, enfim, como ele, com ele... A serpente
não pode empurrar a mulher a uma transgressão muito patente: a
consciência dela a surpreenderia em flagrante delito e reteria sua
mão. Então, vai bem docemente. Não nega a prova da árvore. Vai
em sentido inverso. E essa maneira é bem digna de uma inteligên-
cia tão desatada que decaiu. Trata-se claramente de uma sedução:
a mulher se refere sempre ao mandamento divino, mas não é mais
a partir da viva Palavra de Deus, é a partir dela e da autoridade
usurpada do primeiro glosador: Satanás. Ela deseja a beatitude
prometida por Deus (tornar-se como Elohim), mas doravante por
suas próprias forças, imaginado que Deus não disse tudo. Talvez
até mesmo imagine que seu “vós morrereis” significa “vós mor-
rereis a si mesmos e entrareis na minha Vida”, de tão hábil é o
orgulho de se falsificar com pretextos de humildade.
O que vem depois testemunha uma última série de inversões. A
mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que
essa árvore era desejável para adquirir entendimento. No capítulo
que evoca a criação do Jardim, as coisas estavam escritas numa
ordem inversa: IHVH Elohim fez crescer do solo toda espécie de

97
fabrice hadjadj

árvores formosas de ver e boas de comer.10 A contemplação prece-


dia a ação. Agora, é o mundo ao contrário (“de-mon” lida de trás
para frente),11 a ação precede a contemplação. Come-se primeiro,
vê-se em seguida. Comer não está mal em si, nem ver. O mal não
está na coisa, está no uso que se faz dela, na prioridade que inde-
vidamente se lhe concede. Ora, se a tomamos antes de acolhê-la, a
ação se transforma em depredação, e a contemplação não é mais
que um digestivo.
Chega o ápice: a palavra “árvore” é repetida para tornar claro
para nós o que a mulher procura na sua consumação, a saber, o
entendimento. O termo é aquele que empregará o salmista para
designar a virtude própria daquele que busca Elohim: Do céu, o
Senhor se inclina para ver se há alguém que entenda, alguém que
busque a Deus.12 Dai-me o entendimento, e eu observarei teus
mandamentos.13 A mulher deseja ainda, no instante mesmo de sua
falta, o entendimento que faz observar os mandamentos do Se-
nhor! Não há ironia mais trágica. Uma vez mais, não é a coisa vi-
sada que é má, mas a maneira de consegui-la. O verbo empregado
(laqakh) pode se traduzir como “tomar”, “adquirir”, “assumir”.
Ora, para o verdadeiro entendimento, proceda ele dos ouvidos de
uma fé amorosa, ou dos olhos de uma alma bem-aventurada, não
se trata de tomar ou mesmo de soltar. Trata-se de se deixar to-
mar pela graça. O mesmo verbo também se encontra nos lábios de
Abraão: O Eterno, o Deus do Céu, ME TOMOU da casa de meu pai
e da terra de minha família.14 Se escuta também através da sarça
ardente: TOMAR-VOS-EI por meu povo e serei vosso Deus, e vós
sabereis que sou eu, o Eterno, vosso Deus, que vos farei sair do far-
do dos Egípcios.15 Haverá uma graça do Senhor contra o fardo do
Faraó: é a Verdade que vem, por bondade, tomar-nos, e não somos
nós que a tomamos por força. Porque essa Verdade é aquela do en-
contro e da comunhão, não aquela do talento e da independência.

10 Gn 2, 9.
11 Em francês, a palavra ‘mon-de’ invertida fica ‘de-mon’ – NT.
12 Sl 13, 2.
13 Sl 118,73.
14 Gn 24, 7.
15 Ex 6, 7.

98
Além do mais, o fruto que conseguimos agarrar por nós mesmos
não é senão o da medida de nossas mãozinhas, enquanto que o
fruto dado por Deus é da medida de sua imensidade. É a diferença
que há entre um mero copo d´agua e a imensidão do mar.

A culpa de Adão ou a compaixão pervertida


A mulher pega, come, e dá a fruta para o homem. Não é surpre-
endente? Seu primeiro ato depois da falta é um dom. Não é avare-
za, mas uma generosidade. Dom da contaminação, generosidade
degenerativa, mas ainda uma partilha. Ela não havia sido criada
para ajudar ao homem? Ela veio, portanto, ajudar, ainda que como
um cego surdo ajudando uma criancinha a atravessar a rua. Por-
que há uma beleza no ato de dar, mais sempre devemos ter cuidado
para que não seja algo prejudicial e nem esteja envenenado.
O que nos é dito de Adão? Ele estava junto dela e comeu. Longo
foi o processo da mulher antes de sua queda. Aquele do homem é
imediato. A culpa de nosso primeiro pai, a culpa capital que reflete
sobre toda sua descendência, cabe nestas poucas palavras, não pre-
enche nem um versículo, é só uma meia frase. Ela deu também ao
homem, que com ela estava, e ele comeu. Por que tão pouco para
um tal desastre? O autor sagrado não deveria ter escrito mais? De-
vemos crer que disse o bastante. O pouco desenvolvimento marca
a gravidade do gesto: pecado sem sedução prévia e, portanto, sem
desculpa! Pior que aquele da mulher. A presença da preposição
“com” basta para especificar a culpa: concerne a “estar-com”, a
própria comunhão (haverá também uma outra comunhão onde se
tratará de comer para estar com).
Que quer dizer esta situação do homem junto ou com a mulher?
Há pouco, ela estava sozinha, e eis que agora Adão está com ela.
Não se trata de proximidade, mas de conjugalidade. A união do
homem e da mulher é o único sacramento do Éden. Seu casamento
é a imagem de Elohim, o sinal sensível e ativo da divina comunhão.
Não é São João que diz que o Verbo estava junto de Deus?16 Desta
forma, Adão está junto de sua esposa. É por aí que a Serpente irá
alcançá-lo. Porque não parecia factível ir direto a Adão, tentar o
homem que tinha ouvido a Deus diretamente. Portanto, ele sai de

16 Jo 1,1.

99
fabrice hadjadj

cena, mas é para melhor feri-lo através de seu próprio lado, a carne
de sua carne, os ossos de seus ossos, até chegar ao coração. Após
ter invertido o sentido da prova, inverte o sentido da comunhão.
O sacramentum Dei se torna instrumentum diaboli. A assistência
mútua se deforma em mútua adulação.
O homem, por fidelidade à mulher – uma súbita fidelidade, pior
que o adultério – come o que a mulher lhe dá. Não é somente a
relação com a Lei que é pervertida (não comerás – Gn 2, 17), é a
relação com o Amor (eles serão uma só carne – Gn 2, 24).
De modo mais preciso, depois que a mulher é desviada da rela-
ção com a Verdade, o homem desvia a relação com a Misericórdia.
Porque, no presente, é uma miserável que está diante dele. Sua co-
munhão com ela deve passar adiante, tornar-se comiseração: “Mi-
nha pobrezinha, estás sozinha, meu amorzinho, o que aconteceu
contigo? Mas não temas. Eu tomo sobre mim tua aflição e me afun-
do contigo!” Isso não nos lembra alguma coisa? Adão devia ter sido
aqui o Agnus Dei: que carrega o pecado do mundo, e o mundo para
ele era a mulher. Mas, ao invés de carregá-lo, ele mesmo cai, cede,
deixa-se levar por uma compaixão que parece cumplicidade.
Sua pseudo-misericórdia é uma caricatura da Redenção. Adão
está com ela, o Senhor está conosco. Mas enquanto o Verbo desce
na nossa carne pecadora para nos tirar de nosso pecado, Adão
desce até sua mulher pecadora para deleitar-se no pecado dela.
Comunhão sem o ser, ceia de casal, eucaristia de aflição. Toma o
fruto proibido como se celebrasse o dom de sua corrupção, como
se ele ordenasse a todos os que saíssem dele: Tomai e comei... Pecai
uns após os outros até estarem próximos. Como se o pecado não
os dobrasse sobre si. Mas a compaixão de Adão o faz olhar para
si mesmo; é uma descida narcisista, uma descida satisfeita de seu
abaixamento pelo outro, e que, nesse meio tempo, esquece que a
finalidade não é afundar com ele na lama, mas resgatá-lo.
Eis o duplo orgulho original – o grau supremo da paródia: crer
que se pode defender a Deus sem Deus, crer que se pode salvar o
homem sem a graça. E como não admirar a maestria com a qual
a serpente conduziu o seu negócio, por assim dizer, a um bom
termo? A sequência é como de uma peça só: o estratagema de um
erro grosseiro provoca uma reposta excessiva; a réplica, um dese-
quilíbrio a partir de seu excesso; o desequilíbrio, uma inversão na
100
ordem dos bens; a inversão, uma consumação ruinosa, uma com-
paixão falsa; a compaixão falsa, uma caricatura alcançada da ima-
gem de Deus. Pode-se dizer que logrou o seu golpe. Então, como
poderia errar conosco?

Flores do mal e inferno do progresso


Na tentação no deserto, Satanás oferece a Jesus todos os reinos
do mundo com seu esplendor,17 e o Senhor não contesta que ele
detém semelhante império. Aquele que é lançado fora,18 é aquele
que o próprio Verbo ousa nomear de príncipe deste mundo. E São
Paulo, seguindo o Mestre, pôde chamá-lo sem sacrilégio: o deus
deste mundo.19 Ora, é precisamente porque está vencido que ele
não cessa de se encolerizar. Ai da terra e do mar, porque o Diabo
desceu para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe
resta pouco tempo.20 Já está perdido, então não tem mais nada a
perder. Em verdade, não tem tempo a perder.
Aqueles que dizem, como uma objeção ao cristianismo, que a
Encarnação não tornou o mundo melhor, deveriam ao menos re-
conhecer que permitiu que o mundo se tornasse pior. A história
ganhou um ritmo mais acelerado, a Boa Notícia, para os que desde
então a reusam ou a confiscam, tornou possível as notícias mais
insidiosas e cada vez mais e mais odiosas, um crescimento colossal
do joio que aproveita a terra preparada para o trigo. O Apocalip-
se testemunha: é a própria vitória do Cordeiro que lança sobre a
terra o grande Dragão, sedutor do mundo inteiro, e seus anjos com
ele.21 Enfurecido por causa da Mulher, diz São João, o Dragão foi
guerrear contra o resto dos seus descendentes, os que observam os
mandamentos de Deus e mantêm o testemunho de Jesus.22 Atra-
vés da Besta, lhe é dado guerrear contra os santos e vencê-los; e
foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação,23
17 Mt 4, 8.
18 Jo 12, 31.
19 2Cor 4, 4.
20 Ap 12, 12.
21 Ap 12, 9.
22 Ap 12, 17.
23 Ap 13, 7.

101
fabrice hadjadj

isto é, tão extensa como a redenção operada pelo Cordeiro, que


resgatou para Deus, por seu sangue, homens de todas as tribos,
língua, povo e nação.24

Este artigo de fé não está mais na moda, nem mesmo na Igreja.


As luzes das indústrias o mandaram para o diabo. Baudelaire adi-
vinhou que isso aconteceria: um tal “agradecimento” não poderia
ter senão alicerces infernais. O satanismo não é sempre melhor
onde se faz mais visível, entre adolescentes usando couro preto
com amuletos e caveiras, por exemplo; sua sátira vermelha com
chifres é apenas um Papai Noel da revolta. Quando não se crê
mais num Deus de barba, é preciso esperar diabos sem rabo. O
poeta escreve no seu diário íntimo: “A maior astúcia do Diabo é
nos persuadir de que ele não existe”. Igualmente a possessão mais
diabólica não é aquela totalmente histérica, mas a sentimental:

Vede George Sand. Ela é especialmente, e mais que qualquer


outra coisa, uma enorme besta, mas está possuída. É o Diabo que
a persuadiu a confiar no seu bom coração e no seu bom senso, a
fim de que ela persuada os outros a confiar no bom coração e no
bom senso deles.25

Não se poderia interpretar melhor o pecado de Eva. Quanto


àquele de Adão, Baudelaire não deixa por menos: aqui, a mais
diabólica possessão não é medievalesca, mas a progressista: “O
que é se entregar a Satanás? O que pode ser mais absurdo do que
o progresso? Desde que o homem, como se prova pelos fatos di-
ários, é sempre parecido e igual ao homem, isto é, sempre em es-
tado selvagem. O que são os perigos da selva e dos campos perto
dos choques e conflitos cotidianos da civilização?”.26 Entregar-se
a Satanás, segundo Baudelaire, é crer que acabamos com ele e que
estaremos bem graças aos nossos bons sentimentos e nossas pode-
rosas máquinas:

24 Ap 5, 9.
25 Charles Baudelaire, Mon coeur mis à nu, XVI, Oeuvres complètes, Robert Laffont,
Col. “Bouquins”, 1980, p. 411.
26 Fusèes, XIV, op. cit., p. 397.

102
Nós perecemos naquilo que acreditamos viver. A mecânica
nos terá americanizado de tal forma, e o progresso nos terá atro-
fiado tanto em nossa parte espiritual, que nada entre os deva-
neios sanguinários, sacrílegos ou antinaturais dos utopistas po-
derá comparar-se a seus resultados positivos.27

É, em si, maléfica a ambição de extirpar todo o mal aqui na


terra com as próprias forças. Após ter negligenciado o diabo (o
que muito lhe interessa), despreza tanto a liberdade humana como
a divina, ignora tanto a realidade da concupiscência como a da
graça, enfim, rejeita a tragédia da nossa condição. Seus “resultados
positivos” implicam, portanto, um achatamento de nossa vocação
espiritual e também carnal. Procedem deste desejo que vimos ser
a essência do pecado demoníaco: fazer o bem por suas próprias
forças, planejar uma felicidade sem imprevistos. Em vez deste sa-
tanismo latente, Baudelaire lança a contra-operação em Flores do
Mal. Ele vem lembrar aos crentes da Democracia e do Progresso
que aquilo que eles não veem mais no exterior, esta ainda mais
presente no interior:

A França enfrenta uma fase de vulgaridade. Paris tornou-se


o centro de difusão da estupidez universal. Apesar de Molière e
Béranger, nunca se acreditaria que a França iria descer tão rapi-
damente pela via do Progresso. [...] O Diabo. O pecado original.
É mais difícil amar a Deus do que crer nele. E também, ao contrá-
rio, para as pessoas deste século, é mais difícil crer no Diabo do
que amá-lo. Todo o mundo o serve, ainda que ninguém o creia.28

Então, porquanto o mal que se conhece vale mais do que o mal


que se ignora, é oportuno entonar de um só golpe, como verdadei-
ro cristão, as “Litanias de Satã”.

27 Op. cit., XV, p. 399


28 “Projeto de Prefácio a Flores do Mal”, op. cit., p. 132. Nota-se que as duas frases
sobre a dificuldade de amar a Deus é maior que crer nele, e a dificuldade de crer
no Diabo maior do que o amar, situam-se plenamente na nossa problemática: a fé
demoníaca consiste em crer em Deus sem o amar, e assim, sem perceber, amar o Diabo
imitando a sua fé.

103
fabrice hadjadj

Tu, cuja larga mão oculta os precipícios


Ao sonâmbulo a errar no alto dos edifícios,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!

Tu que pões tua marca, ó cúmplice sutil,


Sobre a fronte do Creso implacável e vil,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!29

Como verdadeiro cristão, eu digo, porque ao menos isso nos


desperta. Nos tira de nossas canções de ninar, de nossos cantos
agradáveis, de nossas blasfêmias estreitas. Faz-nos sentir, por con-
traste, como o verdadeiro Miserere nos é necessário.
Como dizia Léon Bloy a propósito dos Chants de Maldoror, o
mundo da eficiência e do espetáculo tem necessidade desta “Boa
Nova da Condenação”. Se não a escutássemos, proclamar-se-ia
a si mesma. No século XX, que acreditou tão pouco no diabo,
os mais incrédulos confessam seu diabolismo agudo, mas não
conseguem fazer a relação, e permanecem numa visão grossei-
ra; lavam suas mãos. Porque tivemos Hitler e Stalin, certamente.
Mas tivemos também os Aliados, e esta data maravilhosa que
conviria perfeitamente para uma jornada mundial do Demônio
(sob o patrocínio da Unesco): o 8 de agosto de 1945. É o dia em
que o tribunal militar de Nuremberg juridicamente codificou a
noção de “crime contra a humanidade”. Dois dias depois de Hi-
roshima. Na vigília de Nagasaki. De modo que todos os que de-
nunciam o grande crime eram também aqueles que, tendo diante
dos olhos os efeitos da primeira, lançaram a segunda bomba...!
8 de agosto é também a festa de São Domingos. Um dia, um re-
ligioso perguntou-lhe: “Mestre Domingos, estas grandes aflições
não terminarão jamais?” Depois de um longo silêncio, ele lhe
respondeu: “Certamente esta maldade terminará... isso vi acabar,
mas o fim está distante. Muitos ainda derramarão seu sangue
neste intervalo”.

29 As Flores do Mal, tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Saraiva – Rio de


Janeiro. Nova Fronteira, 2012.

104
No alto, um exército combate por mim
Temos que desesperar dessa nossa condição? São Paulo toca o
alarme um pouco alto:

Pois o nosso combate não é contra o sangue nem a carne,


mas contra os Principados e as Potestades, contra as Autoridades,
contra os Dominadores dente mundo de trevas, contra o Espírito
do Mal, que povoam as regiões celestiais.30

De passagem, o Apóstolo desfaz um grande clichê: o combate


não é tanto contra a carne, mas contra os espíritos. A este respeito,
o cristianismo é um anti-espiritualismo. Mas o que podem os ho-
mens contra os anjos? Estes, tanto os maus como os bons, têm po-
der sobre tudo aquilo que lhe é inferior em natureza, ou seja, não
sobre nosso espírito, mas justamente sobre nossa carne; podem
trabalhar os corpos, até dobrá-los em contorções improváveis; po-
dem agir sobre a imaginação e compor imagens falaciosas e per-
turbadoras, próprias para parasitar a razão ou mover a vontade.
Assim como um inimigo que tivesse as inteligências no inte-
rior da cidade de que está sitiando, seus ataques são muito mais
capciosos porque vêm de nosso próprio interior. Às vezes até pa-
rece que pertencem ao nosso ser, quando se ignora a proveniência
estrangeira, a agulha que nos perfura passa-se por nossa própria
fibra. O espírito mal usa de nossa carne, boa por natureza, mas fe-
rida na origem, e por isso mesmo mais dócil a suas manipulações.
É por isso que os que entram no combate espiritual podem come-
ter este erro: lutar contra sua própria carne sem enxergar a mão
que segura o cabo; pensar que é ele próprio que está perdido, que
é malvado, irrecuperável, por conta das paixões que o invadem ou
das imagens que o acusam.
Máximo o Confessor insistia na dificuldade de tal luta:

Do mesmo modo que pecar em pensamento é mais fácil que


pecar em ato, o combate contra as recordações é mais duro que o
combate contra as coisas.31

30 Ef 6, 12.
31 Centúrias sobre a caridade¸ I, §63, trad. Fran. J. Touraille, Abadia de Bellefontaine,
1985, p. 26.

105
fabrice hadjadj

Os psicanalistas reconheceriam a pertinência clínica disso. Mas


a zona de combate se estende muito mais longe do inconsciente
psíquico:

Pelos pensamentos, são os demônios que nos fazem guerra, e


essa guerra é mais dura que aquela que nos fazem pelas realida-
des exteriores.32

Das coisas adversas, posso fugir usando minhas próprias per-


nas, ou fechar minhas pálpebras, entrar em mim e encontrar refú-
gio. Mas que posso contra as imagens interiores? Elas me perse-
guem em todos os lugares, e se fechasse meus olhos, por certo se
tornaria uma obsessão. O diabo é mais portátil que um telefone,
mais implantado que uma marca-passo. Além disso, ele também
sabe entrar pelas portas fechadas: os sectários que creem que a
corrupção só está no exterior, não fazem mais do que recebê-lo
melhor no seu círculo fechado.
Esse combate, portanto, é demasiado desproporcional. O pró-
prio São Tomás de Aquino se coloca esta questão:

Não é uma condição justa expor numa guerra o fraco contra


o forte, o ignorante contra o astuto. Ora, os homens são fracos
e ignorantes, enquanto que os demônios são poderosos e cheios
de astucia. Portanto, Deus que é o autor de toda justiça, não
deve permitir que os demônios ataquem os homens. De qualquer
modo, para exercitar a paciência destes, o combate que lhes faz a
carne e o mundo basta já amplamente.33

A Providência não seria muito severa? Já não temos que lutar


contra as preocupações do mundo e as fraquezas da carne? Por
que acrescentar este inimigo inexpugnável que maneja uns e ou-
tros como um hábil lançador de facas? Enfim, como nós, pensados
mamíferos, íamos estar acima de tão aéreas criaturas?
A eles os carros e os cavalos, diz o salmista, a nós o Nome do
Senhor nosso Deus. Esse Nome parece se suficiente para nos tornar

32 Ibid, §91, p. 30.


33 Suma Teológica, I, 114, 1, 2-3.

106
muito mais sábios e poderosos. Para manifestar isto a Madiã e
Amalec, fortalecidos com mais de cem mil soldados, Deus reduziu
o exército de Gedeão de vinte e dois mil para apenas trezentos sol-
dados, e lhe deu a vencer adversários tão numerosos como grilos
armado somente com... jarros! Bem, não temos um jarro conosco?
Não sou eu mesmo inútil como um jarro? Pelo menos posso as-
pirar ser um, mesmo porque um jarro para servir humildemente
um copo d´água pode ser mais poderoso que todas as coalisões
tenebrosas. São Tomás nos explica o porquê:

Para que a condição da luta não seja desigual, o homem rece-


beu em compensação, primeiramente, o socorro da graça divina
e, secundariamente, os anjos da guarda. É por isso que Eliseu
disse a seu servo: Não tenhas medo, pois são mais numerosos os
que estão conosco do que os que estão com eles.34

E Giezi, assustado pelas legiões arameias que cercavam a ci-


dade, vê subitamente, em torno de Eliseu, a montanha coberta de
cavalos e carros de fogo.
Cada alma é, portanto, uma aposta de um combate invisível en-
tre anjos e demônios. Se víssemos diante de nós o que se trama per-
manentemente no andar de cima, ficaríamos muito mais estarreci-
dos do podemos ficar diante da maior superprodução hollywoo-
diana, ou mesmo diante da quarta guerra mundial. O que é um
sujeito insignificante? Um cristo em potência, uma humanidade de
acréscimo para o Senhor. Incontáveis milícias angélicas também se
enfrentam, tal como outras o fazem por ouro ou petróleo; mas os
anjos sabem onde se encontra a verdadeira riqueza. E o anjo da
guarda, especialmente, vigia para que a tentação jamais ultrapasse
as forças de quem ele guarda, ou ao menos, como aquele de Doña
Prouhèze em O sapato de cetim,35 na qual nossos pecados ainda
têm alguma serventia. Porém, ainda mais profundamente, é a gra-
ça que nos protege enquanto nos expõe. A vida divina em nós, por
pouco que a acolhamos, ao mesmo tempo atrai e repele os assaltos

34 Suma Teológica, I, 114, 1, ad. 2.


35 Le soulier de Satin, peça de Paul Claudel, sobre o amor impossível entre uma mulher
nobre, Doña Prouhèze, e um jesuita, D. Rodrigo – NE.

107
fabrice hadjadj

demoníacos. Nos atrai e encoraja-os a redobrar a raiva, porque é


dessa vida que os demônios querem nos arrancar. Ela os repele,
deixando-os impotentes, porque o menor grau de graça é ainda
maior do que todo o bem da natureza, ainda que seja angélico.
Mas é preciso deixá-la agir em nós.
Teresa de Ávila afirma muitas vezes esta inversão que torna o
jarro mais ofensivo que uma bomba, e as mãos juntas mais fortes
do que aquelas que têm um canhão:

Quando em tempos de alvoroço, em uma cizânia que o demô-


nio semeou – ele parece levar todos atrás de si meio cegos, porque
pensam estarem debaixo do bom zelo –, Deus suscita que alguém
lhes abra os olhos e diga que vejam que lhes pôs uma névoa para
não verem o caminho. Que grandeza a de Deus, que mais pode
por vezes um só homem ou dois que digam a verdade, do que
muitos juntos!; tornam pouco a pouco a descobrir o caminho,
Deus dá-lhes ânimo”. 36

Uma só criatura terrena, mesmo uma criancinha, pode ser


temível a toda uma corja de espíritos maus, porque guarda, na
alma, a caridade divina. Esta é a razão pela qual não nos é pos-
sível invocar o poder desta corja como uma mera desculpa. Esse
“deixar-se levar muito fácil por um pretexto de alguma solicita-
ção demoníaca”37 não poderia encontrar qualquer justificativa nas
realidades que vimos até aqui. Mas essas realidades também nos
guardam de proferir uma acusação irrestrita contra qualquer um
aqui em baixo. Lembremos que o combate não é, em primeiro lu-
gar, contra a carne e o sangue. Acusador de nossos irmãos, este é
um nome do demônio.38

Que nada é diabólico em si, mas que tudo deve ser reconquistado
Nada é em si diabólico. Satanás é o príncipe deste mundo, mas
seria falso concluir que todas as coisas deste mundo são más. Ele
36 Santa Teresa de Ávila, Caminho de perfeição, capítulo XXI, 9.
37 “Foi chrétienne et démonologie”, L´Osservatore Romano (versão francesa), 4 de
julho de 1975.
38 Ap 12, 10.

108
mesmo gostaria de nos fazer crer nessa falsidade. Fazendo uma
confusão entre o mal e o ser, poderíamos odiar o universo saído
das mãos do Criador e nos refugiar em nossos pequenos além-
-mundos privados. O mal é uma privação, é o irreal, o virtual, o
fictício, o não-ser e o não-agir que são propriamente do domínio
privado do Maligno. Nenhuma realidade pertence de fato a essa
maleficência. Façamos, portanto, o inventário das coisas que se
associam a ele, e vejamos se cada uma pode ser recuperada a um
fim benéfico:
– Tomai a palavra: Vós sereis como deuses (Gn 3, 5). Não é a
frase satânica por excelência?
– Talvez, mas um salmo põe na boca do próprio Senhor: Eu de-
clarei: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo! (Sl 81,6)
– E o número 666? É o número da Besta, no Apocalipse (13,18).
– É também o número dos filhos de Adonicam, no livro de Es-
dras (2, 13). Aqueles que saíram do exílio na Babilônia e encontra-
ram a Terra prometida. Adonicam significa assim mesmo: “Meu
Senhor me levantou”.
– Mas e a serpente? Vós não podeis dizer que a serpente não é
um símbolo do diabo; é o diabo em pessoa no Genesis!
– É também um símbolo tradicional do Crucificado. No de-
serto, Moisés fabricou uma serpente de bronze, e os Hebreus que
o olhavam eram libertos das mordidas das serpentes abrasadoras
(Nm 21, 6-9). O próprio Jesus disse: Como Moisés levantou a ser-
pente no deserto, assim é necessário que seja levantado, o Filho do
Homem a fim de que todo aquele que crer tenha nele a vida terna
(Jo 3, 14-15)
– Mas os bodes, igualmente? Toda uma iconografia representa
o diabo sob forma de bode. Além disso, Jesus declara que no Julga-
mento o pastor separará as ovelhas dos bodes (Mt 25, 32)
– Perdoe-me se vos faço perder a calma, mas aqui também o
bode, o famoso bode expiatório, é uma figura de Cristo. Está es-
crito no livro dos Sacerdotes: Tomai um bode para sacrífico pelo
pecado (Lv 9,3). Enfim, antes que me faleis do grande lobo mal,
deixai-me dizer que também o lobo, emblema de Satanás, pode
ser símbolo de luz e de fecundidade, como a loba de Roma ou o

109
fabrice hadjadj

lobo branco de Apolo [este Apolo-Sol que “teve a honra de ser as-
semelhado alegoricamente a Jesus Cristo pela Igreja ocidental dos
primeiros séculos]”.39
– Não me deixareis nem mesmo o sapo? O sapo, por favor, por
favor... é símbolo de luxúria...
– O sapo é muito útil aos jardins. Ele devora os vermes parasi-
tas. No seu Dictionnaire d´archéologie chrètienne, Dom Leclercq
chega a sugerir que a rã foi um “símbolo da ressurreição”. A pas-
sagem do girino aquático ao grande animal anfíbio fornecia, com
efeito, um tipo de imagem. Mas disse que o sapo come seus ver-
mes: eu não gostaria que fizésseis uma má ideia destes últimos. O
Messias em pessoa se assimila a sua pobre espécie: Quanto a mim,
sou verme, e não homem (Sl 21, 7).
– Desta vez sim, não vai conseguir: a cruz invertida... ah!, é a
joia dos satanistas, da perversão pura!
– O próprio brasão do primeiro papa! O sinal do martírio de
São Pedro que, por humildade, não quis ser crucificado de pé como
seu Mestre!
– O pentagrama! A estrela de cinco pontas que se opõe a estrela
de Davi.
– Vemos pentagramas em certas igrejas. Cinco, de resto, é o nú-
mero de pães que Jesus multiplicou para fazer cinco mil (Mt 16, 9).
E é também aquele que corresponde a uma recompensa do povo
que segue os mandamentos de Deus: Perseguirei vossos inimigos,
que cairão a espada diante de vós. Cinco de vós perseguição cem...
(Lc 26, 7-8)
– Mas e os chifres? Por favor... os chifres!
– Aqueles do cordeiro enviado por Deus e que salva Isaac da
imolação (Gn 22, 13).
– Então a cauda que arrastava um terço das estrelas (Ap 12, 4)?
– Do cordeiro sacrificado, Moisés, ao Eterno, oferece também
a cauda (Lc 8, 25)?
– E o enxofre fedorento?
– O sopro do Senhor, como uma torrente de enxofre (Is 30,
33)...
39 Louis Charbonneau-Lassay. Le Bestiaire du Christi, Albin Michel, 2006, p. 307.

110
O teorema: nenhuma coisa pertence propriamente ao mal; o
que implica também este corolário: não importa quê, exceto Deus
e os seus santos, qualquer coisa pode ser desviada. A espada, o
aspersório,40 um ícone da Santíssima Virgem, um tabernáculo
transformado em cofre-forte, o retábulo do Cordeiro místico
transformado em propaganda de estadia turística... Príncipe deste
mundo, apesar de tudo. Que o ritual proponha um exorcismo até
sobre a alma, mostra que mesmo a matéria que lava pode servir-lhe
para sujar.
Mas tudo isso que foi desviado, deve ser restaurado pelo justo.
De novo, o mal moral não é uma coisa, malum non est aliquid,
como dizem os escolásticos, ele é só um certo uso desordenado de
algo. Nós o observamos no relato da queda: ali onde as coisas são
belas de ver e boas para comer; o olhar se borra e o fruto se torna
primeiro bom para comer (ele era somente, único entre todos, belo
para ver e, sem dúvida, agradável para tocar). A culpa não produz
nada de real, somente não segue a ordem requerida. Ela não per-
tence à criação, mas à descriação. Essa insistência é necessária: ela
evita que entremos neste lugar comum de diabolizar tal ou qual
realidade em si mesma.
Isso que o magistério chama de “cultura da morte” não é um
conjunto de objetos malignos. É um uso perverso dos mesmos
objetos que a “cultura da vida” faz de forma boa. Um dvd de
baixa pornografia pode ser útil para calçar uma cômoda (da mes-
ma forma que um filme gotejando sentimentalismo). Uma grande
Bíblia litúrgica pose ser empregada como uma arma contundente
para golpear mortalmente o próximo. Sem dúvida que um dvd
como tal faz uma caução medíocre, e que a Bíblia é bem melhor
como meio de sabedoria: ambos foram concebidos para um ou-
tro uso que lhes é próprio próprios, mas podemos pervertê-los
por conta de uma certa inclinação. Mas nada impede, uma vez
que existam, que possam ser distorcidos pela força ou recupera-
dos por uma ternura.
Tomemos outros dois exemplos, certamente mais neutros e
mais esclarecedores. O diagnóstico pré-natal foi inventado pelo

40 La sabre et le goupillon; refere-se à aliança entre o Exército e a Igreja – NT.

111
fabrice hadjadj

professor Lejeune41 com o intuito de tratar a criança deficiente o


mais cedo possível; mas serviram-se dele para eliminá-la in ute-
ro, porque somos demasiados sensíveis para sufocar uma criança
olhando-a nos olhos. O Em busca do tempo perdido, de Proust,
tornou-se um floreado dos gay and lesbian studies, mas eu posso
arrancá-lo desta redução segregativa em que o meteram, e reabrir
as páginas do livro à luz trágica de um tempo reencontrado, para
perdê-lo novamente. Mil autos-de-fé não fariam um só ato de fé.
Mais vale uma releitura crítica. Antes um fogo que purifica do que
um fogo que consome. Especialmente porque há obras sulfúricas
que escondem diamantes sob sua ganga, e outras que exalam in-
censo, mas só ostentam miudezas. Provai todas as coisas (panta),
retendo o que é bom.42 Considerando esta prova de fogo, O Anti-
cristo de Nietzsche é potencialmente mais cristão que tudo o que
jamais se poderá tirar de um catecismo nos anos 70.
Ser católico é ser universal. Ai daquele que tirar argumentos
deste título para destruir seja o que for: sua missão, como a luz que
expulsa as trevas, é dissipar a ilusão daquilo que não é. De usar
cada coisa, como diria o Eclesiastes, no seu lugar e no seu tempo.
O diabo triunfa cada vez que desprezamos uma parcela da criação,
porque assim, é ao Criador que insultamos. Portanto, podemos
revidar o ataque, até mesmo do próprio demônio, e reempregá-lo
como naquelas sátiras em que as nádegas ardentes de um diabinho
são utilizadas para fazer ferver a panela: “Certamente os tiranos
não tinham a intenção de, com suas perseguições, fazer brilhar a
paciência dos mártires”, mas a graça sempre sabe se servir, para
sua própria vida, daquilo mesmo que pretende matá-la – caso con-
trário não seria mais a graça soberana. Com ela, portanto, nada é
rejeitado a priori. Tudo aguarda para ser recolhido.

41 Dr. Jérôme Lejeune (1926-1994), médico geneticista mundialmente reconhecido por


suas pesquisas, nas quais descobriu a anomalia genética causadora da Síndrome de
Down. Empenhou-se para criar os exames pré-natais para que os bebês portadores
de doenças genéticas pudessem ser tratados o mais cedo possível. Mas sua ideia foi
pervertida pelos eugenistas, que usavam as informações dos exames pré-natais para
convencer os pais a praticarem aborto. Dr. Lejeune se posicionou totalmente contrário
a essa perversão e, como membro da Organização Mundial da Saúde, levou a causa
pró-vida para as Nações Unidas. Não foi laureado com o prêmio Nobel por conta da
sua luta contra o aborto. É, sem dúvida, o maior humanista do século XX – NE.
42 1Tel 5, 21.

112
Entre a distração e o orgulho: o diabo partilhado
O diabo é, por etimologia, aquele que se opõe. Ele rompe o vín-
culo, ergue o obstáculo, divide o que estava unido. Entrevimos qual
desordem reina no pandemônio e dissemos que não há unidade no
seu ódio comum. Mas em verdade é bastante provável que também
seja assim na sua estratégia de combate contra os homens. Duas
táticas concorrentes se apresentam a ele: a que nos empurra ao erro
e se serve de nossa fraqueza; e a que nos empurra ao orgulho e se
serve de nossa força. Porque seu ódio pelos homens o incita a rebai-
xá-los muito abaixo de si mesmo, e o ódio por Deus o impulsiona a
torná-los tão rebeldes como ele. Sua revolta nos exalta quando sua
inveja nos esmaga. Se, de um lado, ele nos joga na lama, de outro,
fomenta nossa mais alta soberba. Induzindo por aí ao erro, incitan-
do aqui à traição, o veremos às vezes desumano, mas por vezes um
humanista, outras, professor de angelismo, e ainda fomentador de
bestialidade. Ou ele faz do homem sua coisa pela possessão, ou, pela
adulação, faz dele seu imitador. Recordemos que Cristo o chama ao
mesmo tempo de mentiroso e pai do mentiroso:43 trata-se de uma
redundância ou da distinção de suas táticas diversas? De uma divi-
são interna do falso pretendida por ele, ou que tenhamos falsidade
ou sejamos falsos? O demônio quer nos manter enganados e, con-
tudo, não despreza que na espuma de sua passagem – e como jus-
tificando seus passos – sejamos também lucidamente enganadores.
Mentiroso como é, nos engana e exerce sobre nós a sua dominação,
mas também – e aqui se encontra sua contra-performance – nos for-
nece as circunstâncias atenuantes, porque a ignorância e a fraqueza
diminuem a gravidade do pecado. O pai dos mentirosos não apenas
mente para nós, mas nos convida a mentir como ele, nos convida a
sermos como ele: verdadeiramente falsos, o que é um plus no cami-
nho para a condenação. Então, eis aqui a audácia: ele espezinha o
homem para satisfazer a sua inveja, arranca-lhe o seu orgulho. Por
outro lado, eleva-o para, pelo orgulho, fazê-lo cair numa armadilha,
se dispensando, portanto, de satisfazer a sua inveja.
“Os demônios”, escreve Santo Agostinho, “induzem ao erro atra-
vés de um zelo enganador e também por uma intenção invejosa, se-
gundo a qual põe sua alegria no desvario dos homens”.44 O extremo
deste desvario parece se encontrar na possessão. O homem perde
43 Jo 8, 44.
44 Santo Agostinho, De divinatione daemonum, cp. VI, 10.

113
fabrice hadjadj

então o sentido e se torna uma espécie de parque de diversão de


demônios. Passa a falar línguas que nunca aprendeu, revelar coisas
distantes e ocultas, empina a sua coluna vertebral em proezas acro-
báticas, enfim, blasfema e gesticula em zombarias sacrílegas. Tudo
isso pode até se transformar num roteiro de um filme horripilante,
mas ainda não ilustra bem o espírito do demônio, pois revela certa
infantilidade. O pobre endemoniado não é mais que um fantoche.
Ele é dominado pelos malignos, que o deixam fora de si ao ponto
de sequer estar ciente das indecências que realizam com seu corpo.
É apenas a vítima de uma violência angélica.
Nesta perspectiva, a possessão é uma via menos ideal do que
certa filantropia. Dostoievski faz alguém dizer ao diabo que apa-
rece a Ivan Karamazov sob os traços de um gentleman “parasita”:
Satanas sum et nihil humani a me alienum puto.45 É a célebre di-
visa do humanismo que não deve se assombrar de reconhecê-la
assim travestida.
Mas Satanás se pretende generoso: ele não quer que todo ho-
mem seja possuído, mas que, a seu exemplo, todo homem seja
mestre de si, sem precisar render graças nem prestar contas a nin-
guém. Ele não propõe mais aquelas convulsões horríveis que ve-
mos em O Exorcista, mas algo muito mais terrível como cursos de
desenvolvimento pessoal, de auto-confiança, de escrita abreviada
de palavras, desde que não se apegue muito a ela. O maligno se
torna, portanto, menos possessor e mais defensor. Ele nos convida
a um pecado lúcido, ou seja, luciferino: ao invés de reinar sobre
o universo obedecendo a Deus, devemos obedecer somente a nós
mesmos, a servir-nos das coisas de Deus por conta própria, e sair
por aí a nos coroar os poderosos esquizofrênicos de um mundo de
strass e de stress, fantasmagórico e autônomo. Jules Michelet foi
um dos que sentiram bem esta verdade. Ele, nas trevas de sua Ida-
de Média, viu o príncipe das trevas como um precursor das Luzes:

Satanás é o grande proscrito, e ele dá aos seus a alegria das


liberdades da natureza, a alegria selvagem de ser um mundo que
se basta a si mesmo.46

45 Dostoievski, Irmãos Karamazov, Livro XI, IX: “Eu sou Satanás e estimo que nada
daquilo que é humano me é estranho”.
46 Jules Michelet, La Soucière, VIII, GF, 1966, p. 99. [Michelet (1798-1874) é historiador
francês – NE].

114
Ser um mundo que se basta a si mesmo: nenhuma expressão diz
melhor o que nos tenta, o que nos fascina no pecado. Para conse-
gui-lo é preciso ter toda sua cabeça, aliás, numa baita cabeçorra.
Assim, o demônio pode possuir melhor o homem não o pos-
suindo, mas estimulando esta suficiência planetária. De qualquer
forma, isto pode tomar formas graciosas e aparências benignas.
Era o que Baudelaire notava a propósito de George Sand,47 quan-
do o que ela pretendia, por “bom coração”, que “os verdadeiros
cristãos não acreditassem no Inferno”: “Eu não posso pensar nesta
estúpida criatura sem um certo estremecimento de horror. Se eu
a encontrasse, não poderia me impedir de jogar nela uma pia de
água benta na cabeça”.48

Entre a tentação e a provação: o diabo exasperado


Outra coisa despedaça o demônio. Ele aprendeu com a história
de Jó, assim como em todas suas desventuras com a luminosidade
dos santos. Não esqueçamos que ele poderia ler em Tomás, ou
agora mesmo nesta página (página que ele pôde ler antes de qual-
quer leitor, antes mesmo do próprio editor e quase antes de mim
– mas certamente não antes do Salvator em pessoa). E eis o que lhe
exaspera: aquilo que ele constituiu como tentação para perder, a
providência o recupera como uma provação para santificar.

Em relação aos ataques do demônio, devemos considerar duas


coisas: os próprios ataques e seu papel no plano divino. O pró-
prio ataque procede da malícia dos demônios que, por inveja, se
esforçam para impedir o progresso dos homens e que, por orgu-
lho, parodiam o poder divino: do mesmo modo que os anjos de
Deus são enviados como ministros para a salvação dos homens,
os demônios se enviam a si mesmos como ministros designados
para sua perdição. Mas estes ataques são finalmente submetidos
à ordem de Deus, que, segundo seus desígnios, sabe se servir do
mal, ordenando-o ao bem”.49

47 Pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), baronesa de Dudevant.


Foi uma importante romancista e memorialista francesa.
48 Charles Baudelaire, Mon coeur mis à nu, XVI, op.cit., p. 411.
49 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 1, 114,1.

115
fabrice hadjadj

Aquilo que o diabo perpetra por malignidade, Deus permite


por amor. De modo que o diabo, contra a sua própria vontade,
acaba sendo um instrumento de Deus. Por sua disputa, ele pune
o pecador, e portanto serve à justiça; ele também prova o santo,
assim, serve à misericórdia; o santo não tem senão mais mérito e
sua graça se torna mais brilhante. Assim como o rei Acab e Jó, o
justo. Na história do primeiro, o demônio serve, contra sua vonta-
de, para uma correção:

Miquéias retrucou: “Escuta a palavra do Eterno! Eu vi o


Eterno assentado sobre seu trono, todo o exército do Céu estava
diante dele, à sua direita e à sua esquerda. O Eterno perguntou:
“Quem seduzirá Acab, para que ele suba contra Ramot de Ga-
laad e lá pereça?” Este dizia uma coisa e aquele outra. Então um
espírito se aproximou e se colocou diante do Eterno e disse: “Sou
eu que o enganarei”, disse ele. O Eterno lhe perguntou: “E de que
modo?”. Respondeu: “Partirei e serei um espírito de mentira na
boca de todos os profetas”. O Eterno disse: “Tu o seduzirás, serás
bem-sucedido. Vai e faze assim!”.50

Na história do segundo, Satanás serve, contra sua vontade,


para uma provação:

O Eterno disse a Satanás: “Reparaste no meu servo Jó? Na


Terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a
Deus e se afasta do mal. Ele persevera em sua integridade e foi em
vão que me intrigaste contra ele para aniquilá-lo”.51

Nesta medida onde o aikido da providência emprega a força do


Adversário a despeito de suas intenções, o mal que faz aos outros
lhe faz apenas mal ao coração. Como ele não ficaria exasperado?
Isso nos dois sentidos do termo: porque sua tarefa se torna ainda
mais dolorosa e o seu rancor ainda mais amargo.

50 1Rs 22, 19-22.


51 Jo 2, 3.

116
No livro do Deuteronômio, o capítulo 13 (precisamente o nú-
mero azarado que muda para afortunado) começa com esta sur-
preendente passagem:

Quando surgir em teu meio um profeta ou um intérprete de


sonhos, e te apresentar um sinal ou um prodígio, se este sinal ou
prodígio que ele anunciou se realiza e ele te diz: “Vamos seguir e
servir outros deuses, que não conheceste”, não ouças as palavras
desse profeta ou intérprete de sonhos. Porque é o vosso Deus
Eterno que vos experimenta, para saber se de fato amais ao vosso
Deus Eterno com todo o vosso coração e com a vossa alma.52

A tentação do diabo é assim duplicada por uma tentação de


Deus: o espírito mal age para perder em pecado, o Espírito Santo
para recuperar em graça, e isso significa, deste ponto de vista, que
o falso profeta, que o próprio “contra-Messias” é uma benção. O
ateísmo nos tenta, a heresia busca nos seduzir, o conforto nos en-
casula, a perseguição nos desencoraja, tudo quer nos recrutar para
outros deuses: mas é também o meio pelo qual o Eterno se serve
para que sua criatura temporal possa ser talhada, como a face no
mármore que se afina aos talhos do cinzel.
Tertuliano começa sua Prescrição contra os hereges com ex-
pressões que inscrevem as heresias no salvífico ordenamento:

A condição do tempo presente me obriga ainda a recordar


que não se deve impressionar-se com essas heresias, nem com sua
existência – porque sua vinda foi predita –, e nem com o fato de
que elas pervertam a fé de alguns – porque elas não têm outra
finalidade a não ser provar a fé expondo-a a tentação. Não há,
portanto, razão alguma para que a maior parte se escandalize ao
ver as heresias terem uma semelhante influência.

Não é que não se devam combater as seduções, bem ao contrá-


rio. Mas o combate não deve ser tanto para a destruição do mal
quanto deve ser para o crescimento do bem. É através dele que

52 Dt 13, 2-4.

117
fabrice hadjadj

nossa fé superficial, talvez até mesmo um tanto demoníaca – fé de


cabeça e de tripas –, deve se aprofundar, descer à inteligência e ao
coração, tonar-se esta fé que a caridade abrase o bastante para que
possa atravessar as chamas.
Então, o diabo sem querer serve para expulsar o diabólico (ou
ainda para melhor ancorá-lo, porque se trata de uma provação).
Isso é a delicadeza de um Deus de ternura que assim dispõe as coi-
sas, e não uma mera diversão de um gênio dramaturgo. Porque se
poderia crer, à maneira de Sêneca, que o Senhor monta um espetá-
culo e se compraz em mover os peões. Isto seria apenas confundi-lo
com o Adversário. Deus não manipula as pessoas. Sua Providência
não é obscura senão pela força da luz. Nela, não há treva alguma.
Unicamente, por um dom sem arrependimento, ele quis criaturas
livres e capazes de mérito; se estas criaturas se dedicam volunta-
riamente ao mal, ele não tem muito a fazer, mas, ainda assim, faz
tudo para que os maus possam se corrigir uns aos outros (ao passo
que o Inimigo faz de tudo para que, uns aos outros, se excitem): os
diamantes opacos e ásperos que se agitam num saco, terminam por
se polirem uns aos outros, tornando-se brilhantes e lisos.
Portanto, Satanás nos joga na miséria, e essa é uma ocasião
para Deus derramar sua misericórdia. Felix culpa! A culpa é em
si satânica, mas o Altíssimo dela nos arranca por pura graça. Ela
nos serve para a sua glória, para nossa humildade, e contribui para
desatar o nó de nossas gargantas e nos permitir o louvor. O diabo,
então, se enfurece ainda mais. Dobra a astúcia. Muda de aparên-
cia e jamais desiste de nos enrolar. E sua exasperação aumenta de
forma desmedida, porque quanto mais nos empurra, mais nossa
recuperação se arrisca a ser gloriosa. Ele conhece bem a parábola:

Que vos parece? Se um homem possui cem ovelhas e uma


delas se extravia, não deixa ele as noventa e nove nos motes e vai
à procura daquela extraviada? Se consegue achá-la, em verdade
vos digo, terá maior alegria com ela do que com as noventa e
nove que não se extraviaram. Assim também, não é da vontade
de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se
perca.53

53 Mt 18, 12-14.

118
Quanto mais ele engana a ovelha, mais ela se deixa reencontrar
pelo Senhor, e mais ele coopera para a sua alegria. E não somente
a de Deus, mas também a de seus rivais diretos, porque Lucas fala
da alegria do Céu inteiro, e mais especialmente da alegria dos an-
jos.54 Por tudo isso podemos compreender sua amargura. Podemos
adivinhar todos os esforços da sua inteligência para que a ovelha
não possa ser encontrada. Para que ela se metamorfoseie em lobo.
Definitivamente.

54 Lc 15, 10.

119
SEGUNDA LIÇÃO
Um orquestrador de debates

Sua risada! Eis a arma do príncipe deste mundo. Ele se dis-


farça quando mente, toma todas as faces, até a nossa. Ele não
espera nunca, não se firma em parte alguma. Ele está no olhar
que o desafia, na boca que o nega. Está na angústia mística, na
segurança e na serenidade do tolo...
— George Bernanos, Sob o sol de Satã

Do tremor de terra ao tremor do Céu


1755, 1º de novembro. Os catoliquíssimos habitantes de Lisboa
festejam Todos os Santos quando um enorme tremor de terra sa-
code por três vezes a cidade: colapsa a Catedral de Santa Maria,
caem as Basílicas São Paulo, Santa Catarina e São Vicente de Fora,
sucumbe a Igreja da Misericórdia. Os fiéis são esmagados enquan-
to cantam Senhor, tende piedade de nós. Rachaduras de cinco
metros se abrem no solo, despreocupadas com o traçado das ruas
e dos edifícios. Mulheres e crianças primeiro! Os que escaparam
do abismo fogem para o mar, que retrocede: atrás deles, suas casas
desabam com seus familiares; diante deles, reaparecem os velhos
destroços marítimos. Mas as ondas que haviam fugido, retornam,
de uma só vez, juntas num grande tsunami que arrasta os sobrevi-
ventes. A terra havia engolido sua quota de homens e a água vinha
engolir a sua: como o fogo não haveria de reclamar a sua parte?
As quedas das chaminés domésticas espalham suas chamas que
depois, pouco a pouco, em todas as partes, uniram-se para formar
incêndios que, durante cinco dias, farão seus estragos. A Opera
Phoenix, flamejante, arde de verdade: jamais renascerá de suas
cinzas. O Palácio Real se abrasa com seus 70.000 volumes de sua
biblioteca; telas de Corregio, Tiziano, Rubens, servem de lenha.
O Hospital de Todos os Santos, o maior do mundo, é consumido
121
fabrice hadjadj

com milhares de seus pacientes. Mais de 60.000 pessoas morreram


no total, os grandes e os pequenos, os bons e os maus, divididos
em quatro categorias: os esmagados pelos escombros, os tragados
pela terra, os afogados pelas ondas e os carbonizados pelas cha-
mas... Há horrores que se encontram culpados. Mas, neste caso,
como fazer? A violência é tamanha que nem a justiça nem a injus-
tiça aparecem em um nível humano. E, ao mesmo tempo, a eclosão
do horror se encadeia com uma fúria tão refinada, uma tortura tão
sútil... A quem acusar, então? Deus? O destino? Que fado poderia
estar à altura do lamento? O sobressalto se propaga através do
pensamento europeu e sua sombria fratura vai se alojar no mais
profundo do pensamento Iluminista.
“O tremor de terra de Lisboa”, comenta Adorno, “bastou para
curar Voltaire da teodiceia de Leibniz”. O que acaba de fazer a ter-
ra tremer faz tremer sua visão do Céu. Seu Poema sobre o Desastre
testemunha (com alexandrinos que, contudo, em nada fazem tre-
mer o planíssimo fundamento):

Filósofos que clamam enganados: “Tudo está bem”;


Apressai-vos, contemplai estas horrendas ruínas,
Todos estes escombros, estes farrapos, estas infelizes cinzas,
Estas mulheres, estas crianças umas sobre as
outras empilhadas...1

Diante do cismo, a teologia racionalista conheceu o mesmo co-


lapso que os edifícios de Lisboa. O mal é de uma obscuridade ir-
reduzível à luz do espírito humano. E Voltaire, no prefácio a esses
versos, escreve estas assombrosas linhas: “Só a revelação pode des-
fazer esse grande nó que todos os filósofos emaranharam”. Mas já
deixa claro que suas críticas contra Leibniz e Pope não têm o mesmo
sentido daquelas dos teólogos que lhes opõe a doutrina do pecado
original: não, a natureza humana não foi tão ferida, a queda não é
o verdadeiro epicentro de todas as catástrofes. Neste ponto, o pessi-
mismo voltairiano se dobra num estranho otimismo. E eis que logo,

1 Philosophes trompés, qui criez : Tout est bien;


Accourez, contemplez ces ruines affreuses,
Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses,
Ces femmes, ces enfants, l’un sur l’autre entassés.

122
para resolver questões mais políticas, Voltaire endossa a postura das
filosofias que denuncia e, junto a seu poema sobre o desastre, um
outro poema muito menos vibrante sobre a Lei natural. Adeus Re-
velação! De agora em diante ele pretende “estabelecer a existência
de uma moral universal e independente não somente de toda reli-
gião revelada, mas de todo sistema particular sobre a natureza do
Ser supremo”. Ao qual se junta um Cândido que zomba neste ponto
da teodiceia que favorece uma ateodiceia igualmente presunçosa. As
lágrimas de 1755 são enxugadas com o sarcasmo.
Como compreender essa concessão? Em toda sua crítica, Vol-
taire não leva em conta o diabo. Ainda irá, cada vez mais, atri-
buir o mal à própria providência, não para o melhor dos mundos
possíveis, mas para o pior, no qual não resta mais nada, a não ser
cultivar seu jardim. Rousseau explica isso nas suas Confissões:

Voltaire, parecendo sempre crer em Deus, nunca acreditou re-


almente nele, porque seu Deus pretenso não é senão um malvado
que, segundo ele, tem prazer em causar dano.2

Esquecer-se do diabo quando se pensa sobre o mal é terminar,


sem saber, por crer apenas nele.
Se bem me lembro desse episódio e sua marca num pensamento
é porque ele manifesta uma sequência admirável onde se percebe a
garra do expert. O demônio está atrás do cataclismo. Mas estava
também atrás da teodiceia – e estará também atrás da sua negação.
Pois é ele que sugere uma justificação racionalista de Deus, a qual
não pede mais do que uma resignação intelectual e não se abre
mais para o mistério da Cruz. É ele, ainda, que coordena o furor
dos elementos e as pequenas negligências humanas para conduzir
ao desastre chamado “natural”, que vem contradizer a justificação
precedente. É ele, enfim, que, empurrando a descartar toda fé na
providência, engaja o homem a encarregar-se inteiramente de sua
salvação. Otimismo da teodiceia, pessimismo da anti-teodiceia,
progressismo ateu (ou ainda racionalismo deísta, fideísmo irracio-
nal, racionalismo incrédulo): o choque do horror e do erro lhe
permite jogar em todos esses tabuleiros.

2 Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, L. 9, Gallimard, col. “Folio”, 1973, p.182-183.

123
fabrice hadjadj

Nas próximas páginas tentaremos vislumbrar melhor como


essa grande maquinação se realiza. Não no plano estritamente
prático – como uma série de nossas responsabilidades comuns são
combinadas para produzirem uma catástrofe excepcional –, pois
a corrente que entrelaça as ações visíveis e invisíveis é feita de elos
muito singulares. Mas lá onde o encadeamento mais abstrato e
geral se torna mais captável, no plano especulativo ou ideológico:
como erros contrários são orquestrados para conservar ambos e
contribuir ainda mais para nossa confusão recíproca e nossa mú-
tua destruição.

Da besteira à Besta
As grandes guerras e os grandes desastres originam-se de fac-
ções que se levantam umas contra as outras e que, no entanto, se
entrelaçam entre si. Irmãos inimigos: o capitalista e o comunista, o
relativista e o dogmático, o puritano e o libertino, etc. Observamos
assim as besteiras adversárias que se rivalizam, se superam, che-
gam aos extremos, como diria Clausewitz,3 enfim, engrenam-se
umas às outras como as rodas de uma moenda gigantesca e supe-
riormente inteligente: enrola os infelizes e os mói de tal modo que,
sobrando algum pedaço depois da moagem, dá uma meia volta
para trás e reinicia o trabalho.
O magistério recente chama essa máquina de triturar homens
de “estrutura de pecado”. A expressão é frequentemente usada,
mas raramente compreendida nas suas implicações. A primeira é
que uma tal estrutura não é o fruto de uma só decisão, mesmo
comum. Ela não corresponde a uma simples instituição humana,
porque está além de seus atores. A isso se pode imputar a perda
de visibilidade e de responsabilidade que implica a divisão buro-
crática do trabalho.4 Mas isso vai ainda mais longe. A estrutura
do pecado se baseia num conjunto de instituições adversas, num
encaixe de intenções contrárias, de conflitos que se coordenam e

3 Carl von Clausewitz (180-1831). General prussiano, considerado um grande estrate-


gista militar por suas táticas e, sobretudo, por suas reflexões filosóficas sobre a guerra.
Escreveu um tratado que se tornou um clássico da estratégia militar: Da Guerra –
Vom Kriege, em alemão – NE.
4 Cf. João Paulo II, Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis (1987); Catecismo da Igreja
Católica, 1869; Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 332 – NE.

124
nos enredam para colocar a culpa no bravo zigoto. O efeito per-
verso que resulta disso ultrapassa a perversidade para a qual os
homens concorrem. Esses aparecem então como “inocentes cul-
pados”, nunca inteiramente inocentes, mas não mais inteiramente
culpados. Esse é talvez o maior sucesso de tal estrutura: favorecer
crimes massivos, mas com um ar natural, sem ódio, sem nada, de
forma higiênica e mecânica, de modo que as consciências nãos
fiquem muito perturbadas. Cada um pode se crer no seu direito.
Cada um pode ter o sentimento que combate o erro oposto. E cada
um poderá pleitear, mais tarde, não ter errado senão pela metade:
“Não é minha culpa, eu não sabia, eu fui enganado, etc”.
Eis, portanto, um complô cujos conspiradores não combina-
ram, e até mesmo se denunciam uns aos outros. Eis uma tolice
multiforme que se antecipa melhor que a mais fina estratégia, além
de saber preparar uma armadilha com um gênio que excede seus
protagonistas. Fábula de abelhas onde, numa semiconsciência, os
interesses individuais e divergentes convergem não para produzir
mel, mas para uma fantástica amargura. Como compreender esta
garra invisível? Segundo Bernanos, tal fenômeno pode fundar uma
demonstração pelo absurdo da existência de um Gênio Maligno
mais maligno que o cartesiano:

Ou a Injustiça não é somente o outro nome da Tolice – e não


ouso crer – pois ela não para de colocar armadilhas, mede seus
golpes, às vezes se ergue e às vezes se inclina, toma todas as faces,
mesmo aquela da caridade. Ou ela que é o que imagino, ela tem,
em alguma parte na Criação, sua vontade, sua consciência, sua
monstruosa memória. Se quereis refletir bem, convirão que não
pode ser de outro modo, que exprimo na minha linguagem uma
verdade de experiência [...] Assim a Injustiça pertence ao nos-
so mundo familiar, mas não pertence inteiramente. A face lívida
cujo rictos parecem aqueles da luxúria, congelados no hediondo
recolhimento de uma concupiscência impensável, está entre nós,
mas o coração do monstro bate em outra parte, fora de nosso
mundo, com uma lentidão solene, e nunca será dado a nenhum
homem penetrar seus desígnios.5

5 George Bernanos, Les Grands Cimitières sous la lune, I, III, em Essais et Écris de
combat, I, Gallimard, col. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1971, p. 405-406.

125
fabrice hadjadj

Não é à toa que estas linhas foram escritas sob o fogo da guerra
da Espanha. Os atos de violência cometidos pelos republicanos
contra os católicos empurraram inúmeros católicos a optar aber-
tamente pelo campo adversário, aquele dos fascistas. Para repelir
o diabo vermelho, abraçaram o diabo marrom. Mas para embara-
lhar ainda mais a situação, havia um branco súcubo do pacifismo
servindo aos outros dois de contrapeso? Como evitar uma armadi-
lha sem cair na outra? Como cruzar este estreito entre o turbilhão
de Caríbdis e os dentes de Cila, e também resistir ao doce despu-
dor de Calipso?6
Bernanos foi protegido por seu sentido do demoníaco. Evitou
cair nessa isca tripla (embora tenha sido manchado para sempre
por sua familiaridade com a Ação Francesa).7 Maritain também
adivinhava a manobra angélica. Ele queria ser franco sem tomar
partido por Franco: por isso perdeu a amizade do grande domi-
nicano Garrigou-Lagrange e, apesar de oblato da Abadia de São
Pedro, tornou-se persona non grata em Solesmes.
O raciocínio de Bernanos vai da estupidez humana à Besta do
Apocalipse. São a imagem e obra desta Besta que se encontram
atrás de toda nossa estupidez, que são concorrentes e cúmplices.
Mas esse raciocínio não fornece uma verdadeira demonstração.
Ele cai no que, em teologia, se chama argumento de conveniência.
Acrescenta-se a fé, porque, se nos atemos à razão natural, pode-
mos crer que o processo é imanente. Este também é o caminho que
toma a apologética de René Girard:

O Satanás dos Evangelhos sinóticos e o diabo do Evangelho


de João significam o mimetismo conflitual, mecanismo vitimário
compreendido.8
6 Na mitologia grega, Caríbdis e Cila eram criaturas marinhas que viviam nas duas
margens do estreito de Messina, entre a Itália e a Sicília. Representavam um caminho
inseguro e praticamente intransponível aos navegantes. Caríbdis lançava um turbilhão
de água e do outro lado estava Cila, a devoradora de homens. Na Odisseia, Homero
narra a luta de Ulisses com tais criaturas quando passou pelo estreito de Messina, depois
da Guerra de Tróia. Já Calipso era uma ninfa do mar que vivia numa gruta. Também na
Odisseia, Homero narra o naufrágio de Ulisses e a sua acolhida por Calipso. Apaixonada
pelo herói, a ninfa passou a seduzi-lo despudoradamente – NE.
7 Movimento político nacionalista francês da primeira metade do século XX – NE.
8 René Girard, Je vois Satanas tomber comme l´éclair, Grasset, 1999, Livre de Poche,
p.66.

126
A rivalidade mimética e a concorrência vitimária bastariam para
explicar esse mecanismo sem engenheiro – seria do mesmo modo
que o darwinismo bastaria para compreender uma seleção natural
sem selecionador? A grande orquestração da qual tentaremos apre-
ender os princípios pode, com efeito, ser compreendida sem locali-
zar o chefe de orquestra. Mas isso é entregar-se a um perigo duplo:
1º: de reduzir a um mero mecanismo aquilo que é sempre cheio de
invenção; 2º: de responder a esse mecanismo pelas sutilezas de uma
lógica, quando é preciso lhe desfazer pelo ardor de um amor.

O heresiarca dogmático
Já falamos sobre não haver um dogma de que o demônio não
saiba a verdade exata. Pois bem, é precisamente isso que o tor-
na hábil para sugerir uma infinidade de heresias. O conhecimento
de uma coisa também faz conhecer sua privação: um bom gra-
mático sabe como induzir a todo tipo de erros de ortografia; um
programador especialista em antivírus sabe como fabricar vírus
implacáveis. A fé do diabo lhe permite nos sugerir uma variedade
indefinida de impiedades. Como um frio dogmático, ele sabe bem
como se inspira, ou melhor, como se expira, por mudanças quase
imperceptíveis, por diferenças infinitesimais, um ou outro desvio
num homem persuadido de sua suprema retidão. Assim ele se tor-
na o heresiarca dos heresiarcas, o mais hostil dentre eles. Além
disso, aproveita-se do combate contra a heresia – e essa é sua espe-
cialidade – para atiçar uma outra ainda pior em sentido contrário.
Desta forma, ele prova a tenacidade de nossa ortodoxia e ainda lhe
resta sua melhor cartada: incitar-nos numa fidelidade tão estrita
como a sua, isto é, tão carente de caridade.
Percebe-se, então, o que São Paulo quer dizer quando afirma
que Satanás não é somente o príncipe deste mundo, mas o deus
deste mundo:9 tudo está misturado e confuso, os advogados da
fé são tão malvados que fazem a cama da infidelidade; os infiéis
mostram uma inteligência e muitas vezes uma humildade que os
tornam atrativos; e por trás disso tudo, como moderador imodera-
do, animador dos animadores, chefe de orquestra dessa algazarra
humana, o Adversário favorece todos os debates sem diálogo e ri
do espetáculo de nossas polêmicas.

9 2Cor 4, 4.

127
fabrice hadjadj

Thomas Browne, nesta grande suma do século XVII inglês, inti-


tulada Pseudoxia epidêmica, ou exame de numerosas ideias rece-
bidas e de verdades geralmente admitidas, consagra dois capítulos
do primeiro livro ao que ele chama o “último e comum promotor
das falsas opiniões”. Após ter evocado “as enfermidades de nature-
za humana”, sublinha que “Adão, abandonado aos próprios prin-
cípios, teria muito bem podido pecar completamente só”.10 Além
disso, Browne insiste no fato de que existe “também no exterior
um Agente invisível e promotor secreto cuja atividade permanece
despercebida e que joga conosco nas trevas: se trata do primeiro
urdidor do erro e do inimigo comprovado da Verdade, o diabo”.
E acrescenta modestamente: “Tentar estabelecer a lista de todas as
suas artimanhas é uma aritmética muito difícil para o homem”.
E pretender tê-las percebido com total claridade seria se tornar o
fantoche11 de sua atividade mais oculta: seria vão, se ignoraria que
este anjo fugitivo e hiperativo não cessa de inventar novas artima-
nhas e as prolifera mais rápido do que poderíamos enumerá-las.
O diabo não é um doutrinário. Ele não é apegado a uma mentira
ou a um sistema específico. Ele é de uma flexibilidade tal que ama
orquestrar erros contrários. Essa é a sua assinatura ilegível, tanto
no plano da afetividade como no plano da inteligência; ele joga em
todos os lados da mesa de poker. Browne fala assim do “estranho
modo com que ele nos enche de erros e nos incita pelo engano a
falsidades contraditórias”. E entre essas falsidades, nosso inglês
lista cinco que ele estima serem maiores e que divergem entre si:

Que não existe Deus; que há um grande número de deuses;


que ele mesmo é Deus; que ele é inferior aos Anjos e aos homens;
que ele não é absolutamente nada.12

10 Thomas Browne, Pseudoxia epidêmica, L.1, cap. X, Trad. B. Hoepffner. José Corti,
2004, p.79. A culpa moral implica formalmente à vontade, peca-se sempre completa-
mente só em último lugar, e é isso, o dissemos, que faz a fascinação solitária do mal.
11 Ludion no original, Ludião em português: um aparelho usado para demonstrar o
princípio de Pascal sobre a pressão hidrostática. Em suma, é uma espécie de garrafa
na qual é inserido um objeto flutuante. Quando a garrafa é comprimida, aumenta-se a
pressão e o objeto dentro dela é empurrado para o fundo. De fato, uma ótima imagem
para a manipulação demoníaca que nos nos pressiona e nos arrasta para baixo. Mas o
tradutor decidiu-se pelo termo fantoche devido ao entendimento mais imediato – NE.
12 Id., p.88.

128
Por que este jogo de cinco erros? Não poderiam ser sete ou oito,
como naquela parábola bíblica que os editores costumam intitu-
lar “retorno ofensivo do espírito impuro”?13 E por que não 666,
como no Apocalipse? Ou 6.826 como numa legião romana?14 Há
uma lógica para chegar a este número? Não deveríamos, classifi-
cando as questões e seguindo Aristóteles na sua Ética, reduzi-los
a dois? Porque, no final, sobram apenas três questões: uma sobre
a existência de Deus, outra sobre a do diabo e a terceira sobre a
sua natureza. Para cada uma, erros opostos: não existe Deus/exis-
tem vários deuses; o diabo não existe/o diabo é absoluto; o diabo
é menos que o homem/o diabo é mais que um anjo (o quarto e
sexto erros coincidem, chegamos, então, ao número de 5). Seja
qual for a proliferação do erro, seu princípio parece, em primeiro
lugar, a dualidade. Os dois fragmentos da verdade se dividem e se
tornam adversários e, em seguida, por conta da sua instabilidade,
fragmentam-se, e assim sucessivamente, em cadeia, como numa
fissão nuclear.

O verdadeiro sob tensão


O filósofo constata que para cada virtude se opõem dois vícios,
um por excesso, outro por defeito. O corajoso é aquele que não
é nem covarde nem temerário; o generoso, nem avaro nem pródi-
go; o casto, nem insensível nem luxurioso. Assim, os vícios vão em
dois, como os discípulos enviados em missão. Mas os discípulos são
duas testemunhas que se ofuscam, mas se fortalecem, já as virtudes
e os vícios, dois inimigos declarados que se excluem e se desafiam.
Porque um pode sempre tomar o outro como álibi: “Eu não sou
pródigo como o outro”, explica o avaro; e o luxurioso: “eu não sou
como estes pudicos”. Contra esta dupla descida, o justo meio da
virtude aparece como uma corda entre dois cumes, portanto, como
um ponto de equilíbrio e de tensão. Os dois discípulos, que trazem o
mesmo anúncio, equilibram-se porque devem sempre estar de acor-
do entre si e, sobretudo, com a própria Verdade. A unidade exige
mais energia do que toda divisão. Pois, sem dúvida, a divisão é agi-
tada, seu caos pode dar a aparência de uma animação mais forte: o
13 Cf. Mt 12, 43-45.
14 Nos tempos do imperador Augusto, uma legião romana continha 6.826 homens:
6.100 infantes e 726 cavaleiros – NE.

129
fabrice hadjadj

cadáver em decomposição se agita mais do que o homem vivo. Mas


é o homem vivo, sobretudo se está em oração, de joelhos e imóvel,
que está em tensão sob a mais alta energia.
Ocorre o mesmo com a Verdade, tal como é apreendida pela
nossa inteligência. Para nós, ela está sempre em tensão (quero di-
zer, ao mesmo tempo oferecida e reivindicante da nossa atenção,
tem uma certa tensão naquilo que expressa). Enquanto o anjo
conhece as coisas de maneira completa numa só intuição, nossa
inteligência deve laboriosamente ir se aproximando do verdadei-
ro, através dos caminhos tortuosos do julgamento e do raciocínio.
Diz-nos Santo Tomás:

O intelecto humano não obtém, desde a primeira apreensão, o


conhecimento perfeito de uma realidade; conhece primeiro algo,
por exemplo a quididade, que é o objeto primeiro e próprio do
intelecto. Depois as propriedades, os acidentes, as maneiras de
ser que rodeiam a essência desta realidade. E por causa disso é
necessário ao intelecto unir os elementos conhecidos [por afirma-
ção] ou de os separar [por negação] e, em seguida, desta compo-
sição ou divisão, passar à uma outra [por exemplo por dedução
ou indução]; é isso que é raciocinar.15

Essa marcha discursiva é de fôlego. A prova está nestas páginas


que, para definir uma única realidade, que é a fé dos demônios,
são obrigadas a se multiplicarem para que seja possível tirar as
consequências, estabelecer as nuances e contrabalancear certas
asserções muito distintas. Alcançar a verdade sobre um assunto
(e não falo apenas compreender confusamente) reclama tempo e
muito estudo, além de ser totalmente refratário à instantaneidade
do slogan.
Para nós, o enunciado de uma verdade simples, em si, é sempre
complexo. E é tanto mais complexo quanto mais simples é essa
verdade, porque ela não é formada por elementos diversos que
nossa inteligência poderia compor ou dividir segundo seu costu-
me. Essa complexidade corresponde a uma tensão entre extremos.
Por exemplo, quando dissemos que o homem é um animal racio-
nal, é preciso ter junto sua animalidade e sua racionalidade, sua
15 Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 85,5.

130
carne e seu espírito, e articular cada uma delas sem confundi-las
nem separá-las. Entretanto, essa tensão se torna mais forte à me-
dida que tocamos realidades mais simples. Os enunciados da fé
católica estão aqui para se fazer aderir à Verdade simplíssima de
Deus (como diversos traços existem para nos fazem conhecer o
único e indecomponível rosto de uma pessoa). Mas eles são em
si mesmos múltiplos e totalmente estendidos: Deus é uno e trino,
Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Maria é redimida
e imaculada, a Igreja é sem pecado, mas não sem pecadores, etc.
O heresiarca dogmático sabe muito bem disso. Seu prazer ma-
ligno é aproveitar de nossa fraqueza para tornar tudo mais bran-
do. E nos encoraja por uma dupla atração.
A primeira tem a ver com o angelismo: como seria bom alcançar
a verdade simples de maneira simples, ao modo dos anjos. Quanto
seríamos poupados de esforços, retificações e até mesmo de erros!
(Sim, porque, como o homem tomado pela vertigem num despenha-
deiro, existe um certo temor do erro que nos faz tremer). Esse modo
angélico, intuitivo de conhecer, não é humano. E a infelicidade aqui,
certamente, é que “quem se pretende anjo, torna-se besta”.16 Abran-
dando-se a tensão, diminui-se o mistério que nos escapa no momen-
to mesmo em que cremos prendê-lo nos nossos limites.
A segunda atração tem a ver com o autonomismo: escolher
uma parte da verdade que nos convém e ignorar a outra, e ter a
felicidade de construir, por si mesmo, um sisteminha. É o sentido
próprio da palavra “heresia”. O grego hairésis designa a ação de
tomar partido, de fazer uma escolha. Eu escolho tal aspecto do
dogma – Jesus é Deus –, mas rejeito algum outro – ele não é o Deus
do Antigo Testamento (caso do marcionismo). Tem-se a impressão
de ser mais livre. Na verdade, ainda não saiu do supermercado.

Da primeira letra de Bíblia, ou os dois entre o dueto e o duelo


O princípio da Bíblia está na palavra “princípio”. Em hebraico,
‫ – תיִׁשאֵרְּב‬Béréchit. Se bem que a primeira letra da Sagrada Escri-
tura é a letra ‫ – ְּב‬Beth (que em francês faz justamente homônimo
com Bête ­– Besta –, princesa da falsidade). Mas o caractere inicial
deste Beth é rico de numerosos significados. Os rabinos do Talmu-
de logo se puseram a questão: “Por que o mundo foi criado com a
16 Blaise Pascal, Pensées, §572, éd. Le Guern, Gallimard, 1977.

131
fabrice hadjadj

letra Beth?” É segunda letra do alfabeto hebraico, portanto, o prin-


cípio começa com aquela que é a segunda: não teria sido melhor
inspirado iniciar com a primeira, ‫ – א‬Aleph –, a qual, além disso,
está no início de ‫ – םיִהֹולֱא‬Elohim? Bastaria mudar as palavras do
primeiro versículo e escrever simplesmente: Elohim no princípio
criou o Céu e a Terra. Mas com esta ordem, conforme ao que é
primeiro para nós, e não ao que é primeiro em si, teríamos perdido
o sentido da transcendência. Os rabinos recordam isso tanto quan-
to Aristóteles: o que para nós é primeiro, é o que é segundo em si.
Não temos acesso direto a Deus, ao Ser primeiro absolutamente. É
preciso passar pela mediação das criaturas e da Torah. E a grafia
dessa letra nos dá o indício:

O Beth é fechado de todos os lados e não só se abre para


adiante, diz Rabbi Yona em nome do Rabbi Lévy [O próprio
Rabbi Yona, notemos, fala em segundo]. Tu não és autorizado a
perguntar: O que tem lá em cima, acima do mundo, diante e de-
pois dele? Tu te interrogarás unicamente sobre o que é posterior
ao dia da criação do mundo.

Mas ao falar somente do que é posterior, não haveria aqui um


risco de agnosticismo? Não se deveria dizer nada do Criador. A
sequência do Midrash17 repele essa interpretação:

Comentário de Bar Qappara: Interroga, pois, os tempos pas-


sados que o precederam, desde o dia que Elohim lhes criou.18

Trata-se de recordar que o Altíssimo nos ultrapassa e que nosso


conhecimento, que só se aproxima dele a partir de seus efeitos;
dirige-se a ele, mas não o compreende. E nossa posição é sempre
segunda. Portanto, desde o começo, essa primeira letra do Gênesis
nos convida à humildade.
Mas possui ainda dois outros sentidos que se respondem, e res-
pondem a essa nossa reflexão. Beth é o número dois. E Beth, em he-
braico, é também a casa. Só o Eterno é absolutamente Um. O dois é

17 Compilação dos primeiros estudos e interpretações rabínicas da Torá – NE.


18 Dt 4, 32; Midrach Rabba, op.cit. , p. 44.

132
a nossa morada. A criação está, portanto, do lado do que sai da Uni-
dade absoluta. Mas como compreender esse dois? O que significa
habitar a Casa de Deus? É o número do casal ou da dualidade? Da
duplicidade ou do diálogo? Encontraremos na Bíblia o que já per-
cebemos filosoficamente. O dois vem selar a tensão de uma prova.
O célebre capítulo terceiro do Eclesiastes concebe esse desdo-
bramento como aquele do tempo humano:

Há momento para tudo e tempo para todo propósito debaixo


do céu. Tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e
tempo de arrancar a planta; tempo de matar e tempo de curar...

Aqui a sabedoria consiste em tomar consciência de que nossa


condição não é a mesma segundo as idades da vida, que uma só
e mesma atitude, fosse ela das mais olímpicas, não bastaria para
a existência, e que o presente está sempre aberto a um futuro ra-
dical, onde pode acontecer a recaída impensável ou a remissão
inesperada. Isso remete ainda a esta outra interpretação talmúdica
do Beth inaugural: “Há o mundo presente e o mundo que virá”.19
O Gênesis começa pelo dois porque nossa habitação é dupla: a
passageira e a eterna. E o intervalo entre uma e outra é o tempo
da graça oferecida. Querer tudo agora ou adiar tudo, estar muito
certo de sua salvação ou certíssimo de sua perdição, é se pretender
uma unidade que não é nossa, e é – presunção ou desespero que
vêm congelar a fonte – recusar a surpresa d’Aquele que vem. Não
é o pecado do anjo? Depois de um momento de provação, antes
de receber a beatitude divina, preferiu dar-se a felicidade imediata-
mente acessível e forçosamente mais baixa.
O dois é, de outro modo, explicitado no livro de Bem Sirac. Ele
se mostra em duplo sentido. No capítulo 33, aquele da dualidade:

Diante do mal está o bem; diante da morte, a vida; diante do


piedoso, o pecador. Contempla, pois, todas as obras do Altíssimo,
duas a duas estão todas uma diante da outra.20

19 Ibid.
20 Eclo 33, 14-15.

133
fabrice hadjadj

Ora, este último versículo é retomado no capítulo 42, como um


refrão, mas, desta vez, é para afirmar a conjugalidade:

Todas as coisas formam dupla, uma diante da outra e ele não


fez nada de incompleto. Uma coisa consolida a excelência da ou-
tra: quem se fartará de contemplar a sua glória?21

No primeiro caso, trata-se de não confundir o que é realmente


contrário, por exemplo: a justiça e a injustiça; no segundo, não
separar o que é realmente conjunto, por exemplo: a justiça e a mi-
sericórdia. E no último caso, sublinha que uma coisa consolida a
excelência da outra, isto é, que uma não pode ir sem a outra.
A verdade consiste em ter esses dois juntos, ela é, portanto,
trinitária: há um, o outro, e sua relação. É o dois do dueto. Mas o
diabo chega para que a relação seja rompida e que um se levante
contra o outro. É o dois do duelo. Assim, o número dois é aquele
da prova: ou bem se vai para menos de dois, na separação e na
confusão (mas como o Um em si para nós é recusado, esse menos
que dois corresponde a uma divisão indefinida); ou bem se vai
para mais que dois, na abertura a um inacessível terceiro. Pois, o
que é essa relação que pode unir as coisas mais diversas, inclusive
reunir o piedoso e o pecador? Ou melhor: quem realiza essa rela-
ção? Ben Sirac fala de obras do Altíssimo ou ainda de sua glória.
Isso significa que o que realiza a união na diversidade em último
lugar é precisamente aquele que é o mistério em pessoa, o Espírito
criador e redentor do universo. Ora, esse mistério não permite que
fiquemos no simples conhecimento. Exige que passemos ao reco-
nhecimento, isto é, o que contém a reunião e a ação de graças. A
razão última das coisas não é uma razão, mas um amor. Os seres
têm sua existência e sua comunhão num dom absolutamente gra-
tuito, sem outro motivo a não ser ele mesmo.
Eis porque o diabo ataca essa relação. Ele a acha insuportável.
Pois tal relação lhe sugere que tudo é graça, tanto na ordem natu-
ral como na ordem sobrenatural (graça no sentido estrito). Ela lhe
intima a uma infinita gratidão. Mas, segundo sua própria lógica,
seria preciso que tudo fosse conquista. E lhe basta sentir-se quite.

21 Eclo 42, 24-15.

134
Como então não atacaria, como o abutre-barbudo sobre um cor-
deiro, o que faz a relação última entre as coisas? Não tanto para
rompê-la absolutamente, mas para falsificá-la, para capturar ao
invés de acolher, para fazer um objeto de conhecimento ao invés
de uma questão de reconhecimento.

Como as virtudes se tornam loucas?


Quando o reconhecimento do Terceiro se perde, e as virtudes se
dispersam e se tornam odiosas. O mal mais capcioso não se encon-
tra no vício reconhecido. O vício enquanto vício não tem a força
para nos seduzir. Nossa vontade não pode querer o mal pelo mal.
É necessário, para movê-la, certa aparência de bem. Tocamos aqui
no inverso do pessimismo de La Rochefoucauld.22 Suas máximas
têm sempre a forma restritiva: “A não é senão B”, onde B é um ví-
cio e A uma virtude. A epígrafe de suas “reflexões morais” anuncia
claramente esta estrutura genética de tudo que segue: “Nossas vir-
tudes são, muito frequentemente, apenas vícios disfarçados”. Ora,
a partir da mesma constatação, a penetração do metafísico torce
a suspeita moralista. No lugar da fórmula restritiva: “Isso não é
senão aquilo”, é preciso empregar a fórmula expansiva: “Isso é
mais que isso, e depende daquilo”. O mal não tem nada bom em si,
por isso, para nos atrair, deve sempre emprestar do bem sua facha-
da, de modo que La Rochefoucauld, desvelando o mecanismo de
nossa hipocrisia ou de nosso orgulho, denuncia a fragilidade onto-
lógica do vício: lhe é necessário, a fim de nos fascinar, adornar-se
com penas de pavão, de pretender-se superior, enfim, disfarçar-se
de virtude. E esse disfarce é muito mais fácil, pois não consiste em
fingir virtude, mas, para que fiquemos persuadidos da nossa bene-
volência, consiste em separar uma virtude de sua virtude conjunta,
em romper a atrelagem onde uma destaca a excelência da outra.
Foi o que Chesterton enxergou bem. Dele, em nosso meio, re-
pete-se frequentemente esta frase: “As ideias modernas são ideias
cristãs que enlouqueceram”, frase que, tirada de seu contexto, de-
formada no seu conteúdo, vira refrão e enlouquece a si mesma.
Esqueceu-se, no entanto, o princípio desta loucura ideal: o des-
membramento da estrutura trinitária do verdadeiro, a deslocação
22 François de La Rochefoucauld (1613-1680), moralista e memorialista francês,
conhecido sobretudo pelas suas Reflexões ou sentenças e máximas e morais – NE.

135
fabrice hadjadj

do organismo das virtudes conexas. Eis a passagem de Ortodoxia,


de onde nossa frase é extraída:

O mundo moderno não é mau; sob determinados aspectos, o


mundo moderno é até excessivamente bom. Ele está repleto das
mais selvagens e desperdiçadas virtudes. Quando um sistema reli-
gioso sofre qualquer abalo –­ como aconteceu com o Cristianismo
por ocasião da Reforma – , não são apenas os vícios que ficam em
liberdade. Os vícios ficam, sem dúvida, à solta, vagueiam livre-
mente e causam imensos danos. Mas as virtudes também andam
à solta, vagueiam de modo mais selvagem e causam danos ain-
da maiores. O mundo moderno está repleto de antigas virtudes
cristãs que enlouqueceram. Essas virtudes enlouqueceram porque
ficaram isoladas umas das outras e vagueiam por aí sozinhas.
Alguns cientistas se preocupam apenas com a verdade, mas a sua
verdade é desumana. Da mesma forma, certos humanitários se
preocupam unicamente com a compaixão, e a sua compaixão –
custa-me dizê-lo – é, muitas vezes, falsa.23

Essas linhas inspiram-se na profundidade dos últimos versícu-


los do Salmo 61:

Deus falou uma coisa,


Eu entendi duas:
Que a Deus pertence a força,
E a ti, Senhor, pertence a graça!
Pois tu devolves a cada homem
Conforme as suas obras.

A única palavra divina, nós a ouvimos sempre nesse casamen-


to, através de um par de enunciados que devem se manter juntos.
Aqui, é a misericórdia (a ti, Senhor, pertence a graça!) unida à justi-
ça (tu devolves a cada homem conforme as suas obras). Mas o que
há de errado com o mundo, segundo Chesterton, é a introdução do
divórcio nesta difícil aliança, e eis que cada virtude se tornou mais

23 G.K. Chesterton, Ortodoxia, trad. Franc. Anne Joba, Gallimard, Col. “Idées”, 1984,
p.43-44. Tradução: Ives Gandra da Silva Martins Filho, Ecclesiae, 2013, p. 54.

136
certa de si mesma quanto mais ela é adúltera. O dueto se transfor-
ma em duelo. A complementariedade se rompe em contrariedade.
O gênio diabólico, já o vimos, não está tanto em rejeitar o bem,
mas em monopolizá-lo por conta própria (rezar sem respeito à
ordem divina, dizia Tomás). Assim extravia nosso próprio desejo
de fazer o bem, separando essas bondades que a verdade une: a
justiça sem misericórdia, que vira crueldade face à misericórdia
sem justiça, que vira laxismo; a humildade sem magnanimidade,
que vira modéstia preguiçosa face à magnanimidade sem humilda-
de, que vira ativismo vaidoso... enfim, a verdade sem amor, que é
a fé dos demônios, face ao amor sem verdade, que é a filantropia
do diabo. Corremos atrás dessas virtudes parciais que são vícios
completos, e o mundo pode perecer por conta de nossa diligência.

O princípio de Calcedônia, sextuplicidade do erro e mais...


Mas não há somente o golpe de separação. Recordemos as ci-
tações do Eclesiastes e do Eclesiástico: há também o golpe da con-
fusão, mais perturbador, menos reparável, e que, além do mais,
corresponderia à terceira tentação no deserto, após a carne sem
espírito e o espírito sem carne, um espírito diminuído numa carne
mundana... O cristão que escuta que não deve nem separar nem
confundir, mas antes distinguir para unir, pode se recordar de Jac-
ques Maritain (“Distinguir para unir” é a primeira parte do título
de seu grande livro Os graus do saber)¸ mas deve se lembrar pri-
meiro do que poderia se chamar o princípio de Calcedônia, que é
como uma versão sobrenatural do princípio de contradição.
O 22 de outubro de 451 é para o pensamento uma data das
mais decisivas. Foi neste dia que o Concílio de Calcedônia pu-
blicou uma profissão de fé que explicita a de Nicéia e a de Cons-
tantinopla, especialmente sobre o mistério das duas naturezas de
Cristo. Seu preâmbulo fala de “fechar a porta a toda maquinação
(mékhanè) contra a verdade”. Ora, qual é a chave que desliga esse
maquinário de erros? Parece que se pode encontrá-la nesta segun-
da definição:

Confessamos um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, o úni-


co gerado, reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem

137
fabrice hadjadj

transformação, sem divisão, sem separação, a diferença das natu-


rezas não foram em nada suprimidas por causa da união, a pro-
priedade de uma e outra natureza foram muito bem guardadas
e concorrem à uma só hipóstase, um Cristo que não se fraciona
nem se divide em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho, único
gerado, Deus Verbo, Senhor Jesus Cristo, aquele que, desde há
muito tempo, os profetas ensinaram sobre ele, que o próprio Je-
sus Cristo nos ensinou, e que o Símbolo dos pais nos transmitiu.

A natureza humana e a natureza divina estão unidas na pes-


soa do Verbo, sem confusão nem separação. Não somente uma e
outra são intactas, sem diminuição nem desnaturalização de ne-
nhum tipo, mas uma contribui para a excelência da outra: o Verbo
se mantem igualmente divino quando se incarna; Jesus é igual-
mente humano, ainda que também seja Deus. Meu amigo Thierry
Paullard me fez notar o quanto esse princípio calcedoniano era um
princípio nupcial: a união das duas naturezas, humana e divina, na
única pessoa de Cristo, encontra seu primeiro símbolo no abraço
nupcial do homem e da mulher. É, além disso, o que diz São Paulo
quando fala do casamento:

Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe e se ligará à


sua mulher, e serão ambos uma só carne. É grande este mistério:
refiro-me à relação entre Cristo e a Igreja.24

As núpcias do homem e da mulher no leito comum significam


as núpcias da divindade e da humanidade de Cristo no Verbo feito
carne. E aqui também uma não absorve a outra, mas na relação,
realça suas identidades: a mulher é tanto mais feminina por estar
unida ao homem, e por estar unido à mulher, o homem é tanto
mais viril.
Retornando à definição das duas naturezas numa só pessoa di-
vina, já não são só dois erros genéricos, mas seis, que se degringo-
lam quando se tira o equilíbrio nupcial da verdade. Três derivam
da separação, conforme se escolha por uma ou outro dos separa-
dos, ou que se escolha sua justaposição sem junção verdadeira: o
24 Ef 5, 31-32.

138
Cristo é somente um homem, tinha apenas uma aparência divina;
o Cristo é somente Deus, tinha apenas uma aparência humana; o
Cristo é ao mesmo tempo Deus e homem, mas em duas pessoas
distintas sob uma carne esquizofrênica. Três derivam da confusão,
segundo a qual, na mistura, se diminui uma ou outra, ou ainda
as duas naturezas: o Cristo é Deus que se diminui para entrar na
natureza humana; o Cristo é um homem sem alma, mas cuja alma
é substituída pelo Espírito de Deus, ou cuja humanidade foi dis-
solvida como uma gota de mel no oceano da divindade; enfim, o
Cristo é semi-homem semideus, redução e mistura dos dois numa
só natureza inédita. Certamente, isto não é tudo. Sob esses erros
genéricos podem se agrupar múltiplas variantes.
Por exercício, e através dos ajustes necessários para um outro
tema, o leitor tente essa fórmula sobre a relação do homem e da
mulher, da alma e do corpo, da pessoa e do bem comum, da ação
e da contemplação, da natureza e da graça, da justiça e da paz, etc.
Poderá fabricar seu pequeno hexágono de erros contrários e perce-
ber como, tirando-se as núpcias do verdadeiro, eles se interpelam
uns aos outros tal como numa calçada onde se prostitua.
Esses erros, repitamos, estão numa relação de incitação recí-
proca. Opondo-se a um, corremos sempre o risco de cair no outro.
No prefácio de uma obra polêmica, Gustave Thibon distingue de
maneira oportuna:

A saúde biológica, moral ou social é apenas uma linha divi-


sória muito estreita entre dois extremos igualmente perigosos.
Nada seria, portanto, mais contrário ao nosso pensamento que
considerar como tomadas de posição absolutas e incondicionais
a maior parte dos ataques ou das advertências que se encontrará
nestas páginas. Quando atacamos um excesso, é para restabele-
cer a harmonia e não por amor ao acesso contrário. O médico
que luta com todas as forças contra a insônia ou a febre não é,
por isso, partidário da letargia ou da hipotermia.25

O que não impediu que sua obra – infelizmente! – fosse recupe-


rada pelos ideólogos de Vichy...

25 Gustave Thibon, Retour au réel, H. Lardanchet, Lyon, 1943, p. XII.

139
fabrice hadjadj

Mas a esse risco polêmico se junta um outro, pedagógico (já


não vimos como Satanás era pedagogo?): o desejo de simplificar a
verdade, de fazê-la mais humanamente acessível, ganhar melhor a
clientela dos buscadores de sentido, ajustar os dogmas aceitáveis
para a inteligência média dos homens. Facilitar uma adesão natu-
ral, como numa carta propaganda. Mas como a mensagem ainda
seria divina? Dessa maneira, o bom Sabélio26 acreditava servir a
seus paroquianos, explicar-lhes que a Trindade é só uma maneira
de dizer, que não há três pessoas cuja comunhão faz um só Deus-
-Amor, mas um só Deus que se chama Pai enquanto criou o mun-
do, Filho enquanto salvou o mundo, Espírito enquanto glorifica o
mundo redimido. Isso pode facilitar o catecismo, mas é nada mais
do que confundir o que é mais simples aos nossos olhos e o que é
simples em si mesmo. Além disso, todo esse esforço de resumir a
fé teologal a um efeito de uma apologética, não consegue mais do
que reduzi-la, a seu modo, à fé dos demônios.

Porque os filhos deste mundo são mais espertos


Numa parábola do Evangelho de Lucas, Jesus parece louvar
a fraude de um administrador esperto e infiel. Constatando que
o administrador dissipava seus bens, seu senhor lhe anuncia sua
destituição iminente. Como ele não se via nem a mendigar nem a
trabalhar a terra, aproveitou do tempo que lhe restava para per-
doar partes da dívida dos devedores da fazenda, a fim de se fazer
amigos para a hora que estivesse na rua:

– Quanto deves ao meu senhor?


– Cem barris de azeite!
– Toma teu recibo, senta-te e rapidamente escrevas cinquenta.
– E tu, quanto deves?
– Cem medidas de trigo!
– Toma teu recibo e escreve oitenta...
E o senhor louvou o administrador desonesto por ter agido
com prudência. Pois os filhos deste século são mais prudentes com
sua geração do que os filhos da luz, no trato com seus semelhantes.

26 Teólogo líbio ou egípcio que chegou a Roma no século III, com grande autoridade, e
se pôs a pregar uma doutrina que enfatizava a unidade de Deus, negando a Santíssima
Trindade. Sua doutrina foi condenada ainda no século III – NE.

140
E eu vos digo: fazei amigos com Dinheiro da iniquidade, a fim de
que, no dia que faltar, eles vos recebam nas tendas eternas.27

A interpretação dessa passagem é difícil e nos contentaremos


aqui em dar um sentido que prolonga nossa reflexão.
Por que será que os filhos deste século são mais espertos, mais
prudentes, e até mesmo mais sábios (diversas aproximações do
termo phronimos) do que os filhos da luz? O versículo não fala de
uma superioridade absoluta, mas relativa ao século, à geração a
qual esses filhos pertencem. Para isso podem-se dar três razões. A
primeira é que os filhos do século não propõem nada para além do
século, tomam somente as coisas naquilo que é mais imediato. Eles
jamais falam do eterno, o que pode até lhes poupar dos balbucios
e embaraços. Segunda razão: não reconhecem os limites morais
dos filhos amorosos do seu próximo. Vale tudo para convencê-los.
Nenhum remorso. Se eles têm algum escrúpulo, pois não lhes falta
experimentar inúmeros, é somente do ponto de vista pragmático,
com relação a uma falta de eficácia ou um fracasso comercial. Ter-
ceira razão, que nos reconduz a nossas observações antecedentes:
os filhos deste século se sentem bem ao romper a tensão da afir-
mação verdadeira. Por isso podem lançar slogans e palavras de or-
dem simplistas, com apelos tanto mais fortes quanto mais frouxos
no seu conteúdo, sem nuances nem profundidade. Se a intimidade
do mistério se dissipa na propaganda e na publicidade, os clichês
mundanos reluzem e os atalhos revolucionários se amplificam.
Então, tudo vai bem para eles, os filhos deste mundo, enquanto
que os filhos da luz são como Jacó ao sair de seu combate com o
Anjo: coxos. São Paulo compara sua condição a vasos de argila
que levam um tesouro. São homens como nós, pequenos, obscuros
e, no entanto, filhos da luz. São fabricantes de tendas, carpinteiros,
coletores de impostos, ex-prostitutas, enfim, diversos pecadores
que, todavia, nos anunciam a vida terna. Também têm algo de
equivoco, de desajeitado, de truanesco, diria até falso, por causa
da desproporção entre o que são e o que testemunham. Eles, como
em Platão, são sobreviventes da Caverna: por bondade, retornam
para livrar seus antigos companheiros. Mas seus olhos, já acostu-

27 Lc 16, 8-9.

141
fabrice hadjadj

mados ao pleno dia, já não sabem mais enxergar entre as sombras,


já não conseguem discerni-las, não partilham mais os negócios que
agitam o mundo inferior. Então, se parecem tolos ou hipócritas.
Ou então carrascos porque nos propõe uma verdade que nos ar-
ranca de nossas opiniões confortáveis. Querem nos expor ao sol,
mas para amigos da penumbra que somos, os raios fazem muito
mal, como se nos cegasse.
Mas o que o Verbo quer dizer, quando ordena: “Fazei amigos
com o Mamon da injustiça”? Porque mais à frente ele nos diz que
não se deve servir Mamon. Isso não significa que não se deve ser-
vir-se dele. Mas em vista de quê? Não do próprio Mamon, mas
da amizade. Eis como se pode interpretar esse preceito em relação
a nosso propósito: no combate da injustiça e do erro, podeis vos
servir de certos meios deste mundo, mas atenção: a finalidade não
é ser o mais eficaz, porque a eficácia desses meios só pode ser ab-
soluta para este mundo, ou dizendo de outro modo, para o pró-
prio Mamon. A finalidade está na passagem fazer-se amigos, isto
é, combatendo com as riquezas da injustiça, sem nunca abandonar
a caridade.
Porque uma falsidade é pior do que aqueles seis erros anterio-
res. Uma falsidade que é a sétima maravilha do demônio, o sabbath
das bruxas, o retorno massivo do maligno uma vez que limpou
bem sua inteligência:

Quando o espírito impuro sai do homem, perambula em lu-


gares áridos, procurando repouso; mas não o encontrando, diz:
“Voltarei para minha casa, de onde saí”. Chegando lá, encontra-
-a varrida e arrumada. Diante disso, vai e toma outros sete espí-
ritos impuros piores do que ele, os quais vêm habitar aí. E com
isso a condição final daquele homem torna-se pior do que antes.28

Qual é esse estado bem pior do que ser possuído e que supõe
que já previamente se expulsou seu primeiro diabo? Não devería-
mos admitir que é descrito como posterior à conversão? E não se
deve afirmar, ademais, que ele suscita por si mesmo os sete outros
diabos, que consolida os seis erros mais a falsidade idêntica à sua?

28 Lc 11, 24-16.

142
Essa falsidade, teremos compreendido, não está no conhecimen-
to, mas nos atos. Ela consiste em defender a verdade sem amor, ou
ainda, a verdade sem verdade, ilusão mais temível que todas: o
erro que se acha sem erro, a falência sem falha, que sinalizaria à
inteligência claramente. O conteúdo é verdadeiro, mas a maneira
é falsa. O conhecimento está lá, mas sem reconhecimento. De um
modo que ele excite, sem rodeios, todos os conteúdos falsos cuja
maneira pode ser um pouco mais verdadeira. É que a verdade se
declara nupcial e tensionada não somente no seu enunciado, mas
também no seu modo, na sua finalidade. Para dizê-lo numa forma
aristotélica, a comunhão não está somente do lado da causa mate-
rial (o enunciado verídico), mas também do lado da causa formal
e da causa final, porque ela é a causa eficiente. Aquele que é em si
mesmo é comunhão. Fonte da verdade, a comunhão deve aparecer
no enunciado verdadeiro, mas ela deve também propagar-se na
maneira de comunicá-lo, e como finalidade desta comunicação. O
anúncio da verdade se realiza no amor divino ao próximo, espe-
cialmente do pecador, não para ter razão, mas para estar com ele
– comungante. Trata-se menos de dar uma lição do que de acolher
um irmão. Remover este impulso de comunhão, por mais ortodo-
xa que seja vossa palavra, procede de um sopro impuro, possui
um fundo demoníaco. E tereis feitos inimigos com a Riqueza da
Justiça.
É contra essa falsidade sem erro que, na Carta aos Coríntios,
São Paulo canta um hino a caridade:

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos an-


jos, se eu não tivesse a caridade, seria como o bronze que
soa ou como o címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom
da profecia, o conhecimento de todos os mistérios, de toda
a ciência, AINDA QUE TIVESSE TODA A FÉ, A PONTO DE TRANS-
PORTAR MONTANHAS, SE NÃO TIVESSE CARIDADE, EU NADA
SERIA. E ainda que eu reparta por inteiro os meus haveres e
entregue meu corpo para ser queimado, se não tiver carida-
de, de nada me aproveita.29

29 1Cor 13, 1-3.

143
fabrice hadjadj

A palavra grega, oudeis, traduzida aqui por “nada”, decompõe-


-se etimologicamente em ou-de-heis, o que significa o não-um ao
invés de não-ser (ou nada). A ausência de caridade conduz a nega-
ção de união. E esse hino ao qual habitualmente se dá entonações
sublimes, de repente nos aparece terrível: eu posso falar a língua
dos anjos, ter uma fé “total”, repartir meus bens e dar meu corpo
às chamas, mas se não tenho caridade, tudo isso vem do Maligno.
O diabo não corresponde, traço a traço, às três situações descritas
por São Paulo? Ele fala a língua dos anjos; ele é bastante espiritual
para que as montanhas não sejam um empecilho para sua fé; não
possui nenhum bem material e não cessa de entregar-se às chamas
ou, melhor que um mártir, nelas até se sente em casa.

144
TERCEIRA LIÇÃO
A grande maquinação: ateísmo ou farisaísmo

Fifafuso, subsecretário do Estado satânico a seu “sobri-


nho” Vermebile, demônio subalterno: “Queremos que a Igreja
seja pequena, não apenas no sentido de cada vez menos ho-
mens conhecerem o Inimigo, mas também no sentido de fazer
com que aqueles que O conhecem adquiram uma intensidade
inquieta e o farisaísmo defensivo de uma sociedade secreta ou
de um grupo fechado”
— C.S. Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz1

Origem e valor do ateísmo do ponto de vista demoníaco


De Cristo, os ataques mais mordazes não são contra os ateus,
mas contra escribas e doutores da Lei. Forçosamente, se dirá, em
razão do contexto histórico: in illo tempore, havia hipócritas, mas
nenhum ateu à vista, ao menos não na maneira moderna, como
os que afirmam que Deus não existe. Seria, contudo, desprezar
o poder divino crer que o Verbo, se necessário, não teria podido
encarnar-se em outro tempo ou bem pregar em outro lugar. Nada
impedia ao Pai enviar seu Filho em missão visível junto a ateus
notórios. Não havia, aqui ou ali, alguns discípulos de Demócrito,
Protágoras ou Epicuro? Não poderia ter escolhido uma época na
qual sua vinda, conforme alguns clérigos, teria sido talvez mais
saudável ao maldizer ao vivo tal indígena do planeta Marx? Tal-
vez. Mas não foi assim que ocorreu.
Por que essa aparente resignação? Por que essa obstinação com
os que creem? Adiantarei dois motivos. O primeiro é que o ateísmo

1 C. S. Lewis. Cartas de um diabo a seu aprendiz, 2ª. ed. - São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009.

145
fabrice hadjadj

moderno é uma heresia cristã; seria preciso que o cristianismo fos-


se proclamado para que essa heresia viesse a acontecer. O segundo
é que o ateísmo especulativo não é o pior dos males. Os demônios
sabem que Deus existe, que os judeus formam o povo eleito, que
Jesus é o Messias, e não é por isso que são menos diabólicos, pelo
contrário...
Mas o primeiro motivo deriva do processo que nós observamos
ao longo de toda a lição precedente. Num ensaio que se intitula
O fim dos tempos modernos, Romano Guardini mostra como a
modernidade é desleal: tira seus princípios das noções cristãs, para
voltá-los contra o próprio cristianismo. A consistência do mundo
criado, a realidade do livre arbítrio, o sentido da história, a afirma-
ção de uma laicidade, a glória da carne, a dignidade do trabalho
manual... tudo isso não é senão uma sombra no paganismo e só
encontra sua consistência sob a luz judaico-cristã. Mas, do século
XVI ao XVII, passa-se do humanismo cristão ao humanismo ateu,
do otimismo cristão ao progressismo racionalista. A fé no Salva-
dor tornou o homem confiante; podia-se tentar crer no homem
simplesmente, buscar uma moral natural, sem referência à Reve-
lação, etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse), con-
forme a expressão do apologista Grócio. Especialmente porque
os excessos e crimes cometidos pelos que tem fé e outros clérigos,
tornaram difícil a fé nas virtudes imediatas do batismo.
Essa lógica de recuperação desleal não é, no entanto, própria
dos tempos modernos. Ela é de todas as épocas, pertence a todo ir
e vir. O demônio nos faz jogar um excesso contra o outro e lança
seus tentáculos a partir das partes da verdade fragmentada. Com
relação a isso, pode-se dizer que a Idade Média foi desleal, por
exemplo, não sabendo fazer lugar para a Israel da carne,2 en-
quanto herdava seu espírito. E que os tempos da Contrarreforma
foram desleais, por exemplo, tendendo, por reação ao protestan-
tismo, a colocar as grandezas do sacerdócio acima das grandezas
da santidade. Definitivamente, só será na eternidade que encontra-
remos uma época absolutamente leal... Por aquilo que é da nossa
história, o bom grão cresce com o joio, o pêndulo balança, os des-
vios se interpelam, de modo que a separação da Igreja e do Estado
foi precedida por seu estranho conluio, que o clericalismo suscitou
2 Cf. 1Cor 10, 14-20.

146
a reação do anticlericalismo, e que o molinismo,3 na medida em
que propunha uma apologética mais racional, provocou ao mes-
mo tempo, à sua direita, o fideísmo protestante, à sua esquerda, o
racionalismo ateu.
E quanto ao segundo motivo, ele pode ser elucidado pela ques-
tão seguinte: nosso ateísmo é o que satisfaz melhor os demônios?
Pierre Bayle pretendia o contrário afirmando que

os demônios amam mais a idolatria do que o ateísmo. A razão


desta conduta é, em minha opinião, esta: os ateus não dão honra
alguma ao demônio, nem diretamente, nem indiretamente, e até
mesmo negam sua existência; no lugar que ele tem grande parte
nas adorações que são dadas aos falsos deuses que a Sagrada Es-
critura declara, em diversos lugares, que os sacrifícios oferecidos
aos falsos deuses são sacrifícios oferecidos aos demônios.4

A tese é interessante, mas se funda sobre três suposições muito


discutíveis: por uma parte, que o ateísmo não é uma idolatria; por
outra, que os ateus não rendem, mesmo indiretamente, um culto ao
demônio. Ora, a idolatria consiste em render a uma criatura a honra
devida só a Deus (isto é, fazê-la o princípio primeiro de sua exis-
tência), e mais especificamente adorar a obra de suas mãos: quem
pode dizer que o ateísmo neste sentido não é idolatra? Graças a ele,
divinizamos o dinheiro, a técnica, a razão intolerante (bem pior que
casa de tolerância),5 a pose do desespero (não desesperada o bas-
tante para rasgar-se em oração). Quanto à homenagem rendida aos
demônios, o ateísmo promete, por assim dizer, um culto oculto. Já
lemos Baudelaire notando com mais perspicácia que Bayle:
3 A doutrina ensinada pelo jesuíta espanhol Luis de Molina (1535-1600), que retoma
as controvérsias de Pelágio e Santo Agostinho sobre a doutrina da graça: o primeiro,
em suma, defendia a possibilidade da salvação humana pelo esforço próprio; o
segundo, somente pela graça. Molina tentou harmonizar as duas posições com o
conceito de “ciência média”, que sustentava uma espécie de conhecimento a priori da
predestinação divina, no qual Deus poderia prever o uso que cada um faria da graça
recebida. Os dominicanos responderam criticando a impossibilidade, no sistema
molinista, de se conciliar essa presciência com a liberdade humana. Cf. R. Garrigou-
Lagrange, O.P., Dieu: son existence et sa nature, Paris, 1950, p. 703 ss. – NE.
4 Pierre Bayle, Pensées diverses sur la comète, § 113, GF Flammarion, 2007, p.255-256.
5 No original, Hadjadj faz um trocadilho com raison close (razão fechada) e maison
close (termo usado para se referir a prostíbulos) – NE.

147
fabrice hadjadj

É mais difícil amar a Deus do que crer nele. E também, ao


contrário, para as pessoas deste século, é mais difícil crer no Dia-
bo do que amá-lo. Todo o mundo o serve, ainda que ninguém o
creia. Sublime sutilidade do Diabo.6

Reivindicar sua autonomia absoluta, crer no progresso pela


indústria, querer onanisticamente fazer-se pela força do pulso, é
amar o diabo sem crer nele, porque é imitar sua forclusão.7 Por-
tanto, nada de missa negra, portanto, porque lavam-se as mãos.
Mas nosso coração será a hóstia profanada, e as fumaças de nos-
sas fábricas podem fornecer suficiente incenso.
Mas de que ateísmo falamos? Um ateísmo militante, que luta
contra a crença em Deus? Ou de um ateísmo mais suave, um tipo
de conforto agnóstico que se paira abaixo da fé e da anti-fé? Qual
do dois é melhor do ponto de vista demoníaco? Sobre essa questão,
em Os Demônios, o bispo Tikhone se pronuncia sorrindo diante
do maléfico Stavroguin. Lá onde Baudelaire fala de amar o diabo
sem crer nele, Dostoievski evoca a possibilidade de não crer até o
ponto de estar muito próximo da verdadeira fé:

O ateísmo total é mais respeitável que a indiferença mundana


[...] O ateu perfeito está no penúltimo degrau antes da fé perfeita
(suba ele esse degrau ou não), enquanto que o indiferente não
tem fé alguma, aparte de um maligno pavor.8

O ateu virulento é obcecado por Deus. Ele está na a-teologia,


que é uma teologia negativa. Em si, seu ateísmo se funda sobre um
sentido agudo do mal irrecuperável no mundo, na Igreja e no seu
próprio coração. Assim, ele não está longe do um retorno. Simone

6 Ver nota 25, pág. 102.


7 Ou foraclusão: termo introduzido por Jacques Lacan (1901-1981), baseado no
conceito de Verwerfung (rejeição ou repúdio) de Freud. Trata-se de um mecanismo de
defesa que está na origem do fato psicótico. Consiste numa rejeição primordial de um
significante que faz parte do universo simbólico do indivíduo. Tal rejeição desordena
as relações do real e do imaginário. Tem uma relação com o complexo de Édipo que,
em suma, é uma metáfora para uma rejeição primordial à figura paterna – NE.
8 F. Dostoievski, Os demônios (segunda parte), trad. franc. Markowick, Actes Sud,
Babel, 1995, p.499.

148
Weil fala até de “ateísmo purificador”. Mas aqui seria melhor falar
de purificação do ateísmo: a fim de ir até o fim no seu empreen-
dimento e ser mais puro possível, o ateu não deve fazer de seu
ateísmo uma nova religião, nem fazer do seu próprio julgamento
um deus. Desta forma se dispõe à verdadeira transcendência, ao
acolhimento do que está para além do bem e do mal, demasiado
humano... Os demônios não saberiam amar muito esse ateísmo. Se
o atiçam é para, muito rapidamente depois, moderar seu fogo, e o
levar de volta para aquela tibieza vomitada pelo Eterno, para essa
indiferença que crê na verdade da neutralidade, que se fabrica um
mundo onde Deus se torna uma opção ao invés de o segredo de
todas as coisas.
Para os demônios, essa indiferença é um incontestável êxito
mundano. Conduz a um mundo de ilusão ótica, onde o diverti-
mento toma o lugar da liturgia cósmica. Mas é realmente um êxito
infernal? É com isso que se aumenta a população dos condenados?
A oposição entre êxito mundano e êxito infernal corresponde, no
espírito diabólico, à partilha entre a inveja e o orgulho. Através
desta nossa indiferença, sua inveja triunfa porque nos degrada,
porque retira Deus do campo de nosso desejo assim como de nos-
sas preocupações. Mas seu orgulho não é satisfeito. Sua rebelião
faz escola apenas superficialmente. Ele não está seguro de que estes
corações que o ignoram detestam verdadeiramente a graça. Não,
se essa ignorância é involuntária, se ela vem de uma lavagem cere-
bral sofrida desde a infância, o diabo não ganha completamente.
Até mesmo pode ser que ele perda no fim: para ele é divertido
saber que o homem aqui na Terra passa ao largo da verdade e viva
sob um céu de teto baixo. Mas se esse homem é humilde, se põe
em prática o pouco que ele sabe sobre a justiça, se tem reconheci-
mento pelo bem recebido, mesmo quando não tivesse o conheci-
mento do Doador, então, a ele, torna-se uma desgraça! Porque este
homem estará salvo apesar de tudo. Talvez terá vivido um inferno
durante sua vida terrestre, mas isso não é melhor do que se estives-
se perdido para o inferno que não tem fim?
O ateísmo involuntário daquele que rejeita uma Igreja sobre
a qual ele se equivoca, e que a acolhe no seu coração sob outros
nomes, não é para os demônios senão uma vitória de aparência.
Permite-lhe apenas envolver a Terra em trevas, mas não povoar

149
fabrice hadjadj

o seu abismo. Parafraseando Cristo, Satanás poderia queixar-se:


“Não é dizendo: ‘Nem Deus nem mestre’, que descerás no meu
Principado das profundezas, mas fazendo sua própria vontade se-
parada, como eu, que gozo na Geena. Muitos me dirão naque-
le dia: ‘Satanás, Satanás, não foi em teu nome que fomos ateus?’
Não foi em teu nome que expulsamos os cristãos? Em teu nome
cometemos muitas perseguições e mais adulações ainda. Então eu
vos mostrarei meu traseiro dizendo: “Nunca vos possui inteira-
mente. Ai de mim! Afastai-vos de mim, vos que não praticastes a
justiça dos fariseus!” Os homens são cheios de incoerências: eles
podem pretender que Deus não exista e, no entanto, viver na fé
de uma certa bondade. É porque o ateísmo cego não pode satis-
fazer inteiramente o pobre diabo. Seria preciso que acrescentasse
o contentamento, uma recusa da Comunhão como tal, uma certa
participação à malvada fé demoníaca.
Ao condenado não faltou nenhum conhecimento, nenhuma
graça para poder dizer sim a Deus. É por escolha que ele se afasta
do Céu; aos seus olhos, o inferno possui algum charme para ter
sua predileção. Mesmo se, após a morte, ele recebesse os conhe-
cimentos que não possuía, persistiria na sua recusa. Do mesmo
modo que, para seguir o Messias, basta que seu coração, mesmo
que fosse no último momento, não recuse o pequeno esplendor
da verdade que se entrevê e que implicitamente contém a Verdade
inteira. É preciso que seu espírito se encha de orgulho contra isso
que entrevê da Misericórdia, e que esconde a Misericórdia inteira,
para se precipitar no seguimento de Satanás. O maior interesse do
maligno é que eu me glorifique a mim mesmo. Está aí sua libera-
lidade. Sua maior vitória é cooperar para que façamos a mesma
recusa lúcida feita por ele. Não se trata, portanto, de impedir todo
conhecimento de Deus, mas todo reconhecimento. O objetivo não
é minar toda a fé, mas a fé agindo pela caridade.9 Por isso ele vê
o ateísmo especulativo apenas como um bem relativo, no máximo
útil. Muito melhor é o ateísmo prático: uma gnose que incha, con-
tra a ágape que edifica.10

9 Gal 5, 6.
10 1Col 8,1.

150
Numa de suas Crônicas angélicas, Vladimir Volkoff 11 conta a
história de um sábio russo que teria descoberto uma prova simples
e acessível a todos da existência de Deus. Quando preso pela po-
lícia dos sovietes, esperava ser enviado para a Sibéria, mas curio-
samente o chefe da Tcheka o acolheu de braços abertos. Até havia
preparado uma conferência de imprensa para difundir sua prova:

As pessoas de bem farão peregrinações como se fosse ginásti-


ca, cantarão cânticos no lugar da Internacional, adorarão ícones
ao invés de ler os murais? O que isso nos molestaria? Nós nos
reconverteremos mais rápido que eles. Vladimir Ilitch, aqui pre-
sente, se fará eleger patriarca... Estamos aqui como com o Gran-
de Inquisidor dos Irmãos Karamazov: não se deve destruir a fé,
mas recuperá-la: “Não compreendeis que, se provamos que Deus
existe, recuperamos o órgão da fé, como se recupera uma fábrica
de máquinas pesadas, que se adapta para fabricar canhões?”.12

Recordamos do endemoniado de Cafarnaum e o seu Eu sei


quem tu és. Ele afirma Deus. Mas essa prova de sua existência
serve apenas para evitar a prova de seu amor.

Se Satanás expulsa Satanás, ou o pecado irremissível


Nossa questão: “O que em nós mais alegra o diabo?” Podemos
formular de outro modo: “Em que consiste o pecado irremissível,
que se chama também blasfêmia contra o Espírito Santo?” Pedro
Lombardo distingue seis espécies que serão retomadas pela Tradi-
ção: o desespero, a presunção, a luta contra verdade conhecida, a
inveja das graças concedidas a nossos irmãos, a resolução de não
fazer penitência e a obstinação complacente nos bens medíocres.13
Sem necessidade de chifres ou enxofre: basta passar numa destas
seis categorias para obter seu brevê de satanismo agudo. Elas têm
em comum designar faltas que resistem à misericórdia, sem mani-

11 Escritor francês de origem russa, autor de inúmeros romances e livros de espirituali-


dade. Também é conhecido por ensaios políticos sobre a inteligência e a desinforma-
ção dos serviços secretos soviéticos – NE.
12 Chroniques angéliques, “La preuve”, éditions de Fallois, 1997.
13 Ver Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II,14, 2.

151
fabrice hadjadj

festarem nem ignorância nem fraqueza, mas somente malícia em


estado puro: conhece-se a verdade, mas para não lhe dar reconhe-
cimento algum; dominam-se suas paixões, mas para ser o único
dono de si mesmo. A graça divina está sempre aqui se oferecendo
(Deus é tão simples de Espírito que não sabe fazer outra coisa),
mas prefere-se, no entanto, desejar a grama do vizinho, queixar-se
de não ter uma chance:

Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só de


seus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar
com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devotou teus
bens com prostitutas, e para ele matas o novilho cevado!14

O irmão mais velho inveja o pródigo que retorna, e se fecha


àquilo que estava destinado só para ele. Lamentar-se de não ter a
sorte dos outros, ou voluntariamente tomar o caminho contrário,
fazer-se excêntrico, é renunciar a tornar-se original: busca-se uma
singularidade por comparação aos outros, a partir de sua própria
medida, no lugar de ser único por comunhão com o Único, tendo
como régua sua origem absoluta.
Tudo isso corresponde ao pecado do anjo mau. Mas é tam-
bém aquele do bom escriba. Retornando à fonte evangélica, a es-
ses versículos que, imprescindíveis, enunciam as noções de pecado
imperdoável e de blasfêmia contra o Espírito Santo, descobrimos
algo terrível. O diabolismo ali apontado não remete àquele outro,
ignorante, fraco, mas a algo semelhante a nossa perfeita ortodoxia.
Nesta hora, iremos encontrá-la em cristãos que leem um livro so-
bre a fé dos demônios e que, por zelo, a denuncia nos outros (“Tu o
conheces, leitor, o monstro delicado,/ Hipócrita leitor – meu igual
– meu irmão!”).15 Observamos como o combate contra a heresia
para gerar a heresia contrária, como Satanás finge incessantemente
expulsar Satanás a fim de melhor confirmá-lo sob outras formas...
Assim, os guardiões da Lei declaram:

14 Lc 15, 29-30.
15 Baudelaire, “Ao leitor”, in: As Flores do Mal, ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1985, p. 99-101. Trad. de Ivan Junqueira.

152
“É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios”.
E [Jesus] chamando-os para junto de si, falou-lhes por parábolas:
“Como pode Satanás expulsar Satanás? Se um reino se dividir
contra si mesmo, tal reino não poderá subsistir. E se uma casa de
dividir contra si mesma, tal vasa não poderá manter-se. Ora, se
Satanás se atira contra si próprio e se divide, não poderá subsistir,
mas acabará. Ninguém pode entrar na casa de um home forte e
roubar os seus pertences, se primeiro não amarrar o homem for-
te; só então poderá roubar a sua casa. Na verdade, eu vos digo:
tudo será perdoado aos filhos do homem, os pecados e todas as
blasfêmias que tiverem proferido. Aquele, porém, que blasfemar
contra o Espírito Santo, não terá remissão para sempre. Pelo con-
trário, é culpado de um pecado eterno”. É porque eles diziam:
“Ele está possuído por um espírito impuro”.16

– Oh! Mas nós não somos como esses escribas. Se Jesus hoje
fizesse um milagre, nós o reconheceríamos imediatamente, o leva-
ríamos em triunfo, porque nós não somos como nossos pais, nós
não assassinamos os profetas, mas o celebramos, erguemos igrejas
para eles...

Vós dizeis: “Se estivéssemos vivos nos dias dos nossos pais, não
teríamos sido cumplices seus no derramar o sangue dos profetas.
Com isso testificais, contra vós, que sois filhos daqueles que ma-
taram os profetas. Completai, pois, a medida de vossos pais!”.17

Aquele que testemunha suficientemente, testemunha contra si,


qualquer que seja a veracidade de seu testemunho, porque o ver-
dadeiro testemunho da Verdade não pode ser suficiente: sinal puro,
ele deve ser transparente para Aquele para o qual testemunha e que
reconhece maior, diante do qual se humilha e desaparece para que o
outro possa ir ao seu encontro. Ora, o que dá essa transparência do
sinal é a própria opacidade do amor, desse amor que ama o Outro
em si mesmo, além do que se conhece dele, além da única transpa-
rência intelectual. Portanto, se a culpa eterna consiste em denunciar
o diabo lá onde Deus se encontra, seu erro não é tanto intelectual, do
16 Mc 3, 23-30.
17 Mt 23,30-32.

153
fabrice hadjadj

lado do objeto que se denuncia, quanto moral, do lado da maneira


de denunciar. Os escribas diziam: É pelo príncipe dos demônios que
ele expulsa os demônios, e nós vemos apenas o grande equívoco que
cometeram quanto à identidade de Jesus. O fundo da sua acusação
não está tanto nesse engano, do qual podemos sair com facilidade,
mas no projeto de um messianismo que dominavam inteiramente o
curso, de um cristianismo sem Cristo que viria desfazer seu plano:
que sua vinda não seja de um Nazareno vivo e livre, inexpugnável e
ativo, mas de um sócio cujo papel está escrito e não sai dos trilhos
previstos pela mise en scène dos especialistas...
A coisa é curiosa demais para ser ignorada: Jesus chama Sa-
tanás de “o forte” (ischyros), título que os impropérios da Sexta-
-feira Santa atribuem ao Senhor (Hagios Ischyros). Como o forte
pode estar amarrado, uma vez que é o forte? E como o crucificado
é forte, uma vez que é o crucificado? Seria preciso pensar que o
forte está amarrado por sua própria força. Acontece que essa graça
só é acolhida quando se despoja de seu poder, a fim de ser investi-
do por um poder maior, eis aqui impotente, presa na sua camisa de
força. Assim, esses doutores da Lei que julgam conhecer tão bem o
Messias por meio de suas profecias, são incapazes de reconhecê-lo
em carne e osso. Seu cristianismo centra-se numa verdade abstrata,
não na Verdade em pessoa. Ele se realiza apenas num saber, não
num encontro. Como consequência, a acusação substitui a hospi-
talidade, e a vontade de poder, o desejo de comunhão.
Lucas nos adverte por duas referências aos demônios que en-
quadra a missão dos setenta e dois discípulos. Antes desta missão,
João toma a palavra:

“Mestre, vimos alguém expulsar demônios em teu nome e


quisemos impedi-lo porque ele não te segue conosco” – “Não o
impeçais, pois quem não é contra vós está a vosso favor”.18

Na volta desta missão, os Setenta e Dois exclamam com alegria:

“Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome”.


Jesus lhes disse: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago!
Eis que eu vos dei o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o

18 Lc 9,40-50.

154
poder do Inimigo, e nada poderá vos causa dano. Contudo, não
vos alegreis porque os espíritos que se vos submetem; alegrai-vos,
antes, porque vossos nomes estão inscritos nos céus”.19

Satanás cai, mas nós podemos cair com ele, exatamente como
a primeira mulher sábia, demasiado segura de poder, sozinha, res-
ponder à Serpente. E se nós caímos é por alegrarmo-nos de nosso
poder enquanto poder (os demônios se nos submetem) e estimá-lo
enquanto exclusivo (quisemos impedi-lo porque ele não te segue
conosco). Ora, o que deve fazer a nossa alegria é uma graça que
não merecemos, e que se oferece também ao outro, ao estrangeiro,
o próprio endemoniado, pecador como nós, talvez até menos, já
que somos cristãos e também podemos pecar, apesar dos nossos
maiores dons. Mas os recém-convertidos podem se tornar os in-
quisidores mais virulentos. Consciente deste perigo superior, São
Paulo proíbe sua ordenação a um lugar muito elevado:

Que ele não seja um recém-convertido, a fim de que não se


ensoberbeça e incorra na condenação que cabe ao diabo.20

Nada melhor do que um cristão muito zeloso para entrar na


plenitude do demoníaco: não fora Satanás o primeiro dos serafins,
algo como “o irmão caçula de Cristo”, segundo Lactâncio, provi-
do da graça mais alta no instante da sua criação? Ele também, no
primeiro instante, esteve cheio de graça, mas, no instante seguinte,
esvaziou-se para se encher de si mesmo. É algo como uma prelazia
do mal, que se abre bem próximo, junto da outra, quase como uma
apropriação indébita.
Tiago o recorda após ter apontado a fé dos demônios. Não se
trata mais somente da perigosa altura do altar, mas daquela de
todo púlpito professional:

Meus irmãos, não queirais todos der mestres, pois sabeis que
estamos sujeitos a mais severo julgamento, porque todos nós tro-
peçamos frequentemente.21
19 Lc 10, 17-20.
20 1Tm 3, 6.
21 Tg 3,1.

155
fabrice hadjadj

Na medida em que cresce nosso conhecimento da verdade, con-


forme se emprega nosso esforço para transmiti-la, também aumen-
ta nossa capacidade de pecar mais gravemente. Não apenas do
lado formal, porque pecamos na vida real, mas também do lado
material, porque podemos travestir, ainda que fosse uma só letra,
o depósito da fé, então nosso pecado toca uma matéria gravíssima:

É, com efeito, muito mais grave corromper a fé que assegura


a vida da alma, que falsificar a moeda que permite sustentar a
vida temporal.22

O demoníaco, para nós, é precisamente colocar em circulação


essa falsa moeda, essas notas de grande valor que imitam em tudo
a verdadeira, exceto uma leve filigrana infalsificável, que é a Face
do Amor crucificado.
Os fariseus, perdão!... os cristãos de hoje, e não os publica-
nos e as prostitutas, são os únicos capazes de se aproximarem da
perfeição demoníaca, com fé orgulhosa e certa de sua salvação
que despreza os outros pecadores. Cristo nos envia como ovelhas
no meio de lobos. Para assumir esse papel mortal, sempre nessa
tensão trágica da verdade – não somente no seu enunciado, mas
também no seu testemunho –, devemos ser prudentes como as ser-
pentes e ingênuos como as pombas.23 Ao mesmo tempo pombas
e serpentes, mas sem ser duplos, porque a palavra aqui traduzida
como “ingênuo” significa literalmente “sem mescla”. O que fazer?
Quando se perde a Caridade orientada pela Verdade, se está como
pomba tola, que se deixa fazer o mal, ou como serpente, que nele
colabora de forma direta. E por ter querido guardar nosso con-
forto sendo ovelhas no meio de lobos nos tornamos, antes, lobos
disfarçados de ovelhas,24 mais vorazes por nos apresentarmos com
um focinho benévolo.

O clamor de Jó e a fé de seus amigos


Um auge do demoníaco se encontra entre os amigos de Jó. As
piores calamidades que o justo deve sofrer, não é o roubo de seus
22 Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, 11, 3
23 Cf. Mt 10, 16.
24 Cf. Mt 7, 15.

156
bens, a morte de seus filhos, a úlcera que devora o seu corpo, mas
os conselhos de sua mulher, depois o de seus amigos. A primeira
o convida a maldizer a Deus e morrer. Os outros, ao contrário,
empreendem uma defesa de Deus que tende a lhe fazer perder o
ânimo. E são esses últimos que são piores. A mulher, ao menos,
reconhece a obscuridade do mal e lhe pede para renegar a bondade
divina. Já seus amigos desprezam o mistério, declarando que tudo
é normal, que não há motivos para clamar contra o Céu. Elifaz
de Temã o reprova: “Tu que fortalecias aos outros, perdestes a
fé? Tu não tens o direito de enfraquecer”, como se a fé do santo
fosse similar à fé dos demônios, isto é, uma obstinada propriedade
intelectual. Baldad de Suás vai além e o acusa: “O que te passa, é
porque teus filhos ou tu, vós pecastes, e se tu pretendes o contrário,
não é essa a prova do teu orgulho, e portanto que tu és o peca-
dor?”, como se tudo se reduzisse a estrita justiça e não a prova da
mais radical misericórdia. Sofar de Naamat o rejeita: “Deus é ab-
solutamente transcendente, como poderias tu disputar com ele?”,
como se essa transcendência não devesse nos trabalhar, suscitar o
excesso do clamor, provocar aquela violenta situação, que é o sinal
de uma Aliança mais profunda do que todos os deleites.
Esses bons amigos querem, à qualquer preço, boas contas: é
preciso cobrir essa brecha no corpo da doutrina, amordaçar essa
boca do pobre que geme muito alto. Seus discursos não são falsos,
mas eles o pronunciam falsamente, tudo se encontra desviado. A
intenção deles está longe de ser má, mas no lugar de chorar com
aquele que chora, querem secar suas lágrimas com seus lencinhos –
e não há mais lugar para a espera do Salvador. Eles pretendem ser
do partido de Deus contra Jó sem ter o amor de Deus por Jó. São
João Crisóstomo comenta:

É evidente que aquele que está encarregado da palavra de con-


solação não necessita menos habilidade do que aquele que abre as
chagas. Portanto, é justo que tenham recebido de Jó o epíteto de
“médicos da infelicidade”, estes que irritam a chaga, e fazem por
malignidade [...] Suas palavras não somente estão desprovidas de
consolação, mas inspiram mesmo um profundo desencorajamen-
to, além de desenvolverem longos discursos acusadores.25

25 João Crisóstomo, Comentário sobre Jó, c. IV, 1, trad. Franc. H. Sorlin, “Sources
chrétiennes”, 1988.

157
fabrice hadjadj

Encarregados da palavra da consolação prodigalizam apenas


palavras desprovidas de consolação. João Crisóstomo diz exata-
mente o que são os amigos de Jó. Seu zelo é tão impaciente em
defender o Eterno que se esquecem de que o Eterno é o defensor
daquele pobre. Sua solicitude é tão impaciente em consolar Jó por
seus argumentos, que, ao invés de implorarem com ele, o proíbem
de buscar sua consolação em Deus.
A propósito de Elifaz, Tomás de Aquino observa:

Ele repreende Jó por sua impaciência, [...] mas ele mesmo ma-
nifesta o temperamento de um homem muito impaciente e irascí-
vel, que não suporta escutar até o fim o que lhe é dito e se excita
desde as primeiras palavras.26

Assim é frequentemente o “catô”, caindo em cima do infeliz


para desempacotar seu catecismo. Mas as coisas podem se passar
de outro modo. Nossa desoladora consolação pode fazer o cami-
nho inverso do que aquele dos amigos de Jó. Não suspeitamos
mais que o oprimido pode ser um pecador, apenas repetimos a ela
que “Deus é amor”, e que dificilmente se tem lugar para o desam-
paro. E se escutamos ao outro, é menos para escutá-lo que para
nos ver escutando, brincar de bom samaritano e pegar seu ticket
para os céus.

A teodiceia pior que o ateísmo


No seu notável opúsculo Sobre o insucesso de todos os ensaios
de teodiceia, Kant se detém também nos amigos de Jó. Ele faz mui-
to melhor, já que pode acusar-se a si mesmo de ter cedido a esta
benevolência maléfica, trinta e dois anos antes, quando, leibnizia-
no, e mais ainda wolfiano, escreveu suas Considerações sobre o
otimismo, e sustentava o racionalismo presunçoso do “melhor dos
mundos possíveis”. Agora, contra os ditadores da resignação ideal,
ele toma a defesa daquele que grita sobre seu monte de esterco:

26 Tomás de Aquino, Exposição literal sobre o livro de Jó, trad. Franc. J. Kreit, Téqui,
1998.

158
Jó fala como pensa, como sente, e como todo mundo sentiria
no seu lugar. Seus amigos falam, pelo contrário, como se o Oni-
potente, cuja conduta julgam, não fosse seu ouvinte, e como se
amassem mais atraindo para si suas boas graças, do que dizendo
a verdade. A perfídia que eles põem em afirmar de fachada, coi-
sas que deveriam convir que não verificaram, como para simular
uma convicção que na realidade não tinham, faz um violento
contraste com a retidão de Jó, tão distante de toda a adulação
mentirosa.

E Kant conclui indo mais longe:

Aquele que diz a si mesmo, ou o que retorna ao mesmo em


matéria de religião, o que diz a Deus: eu creio, sem ter talvez
lançado um só olhar sobre seu foro interno para ver se, verdadei-
ramente, ao menos em algum grau, tem a consciência desta con-
vicção, esse homem diz uma mentira não somente a mais inepta
ao olhar d’Aquele que sonda os corações, mas também a mais
criminal.27

A mais criminal das mentiras está nesta fé cujo zelo não é senão
exterior: aquele que a confessa com os lábios jamais desceu ao
fundo de seu coração para ver sua própria aflição para confessar
que as coisas não são tão claras.
Há sempre um perigo, no entanto, ao fazer a crítica dos amigos
de Jó: arrisca-se a se apresentar como mais um de seus amigos,
porém, melhor que os outros. Kant poderia ter se contentado em
dizer que nenhuma teologia esgota a experiência do mal, já que
exige uma resposta existencial e não uma solução teórica. Mas
ele acaba por julgar que a razão não poderia alcançar um conhe-
cimento certo sobre Deus. O retorno do pêndulo o faz passar de
Wolff à Hume – de uma teodiceia racional para um racionalismo
agnóstico, ao qual se justapõe – é a especificidade kantiana – um
tipo de fideísmo prático. O drama de Jó trabalha no fundo da Crí-
tica da razão pura. Quando Kant explica: “Tive, pois, de suprimir o

27 Emmanuel Kant. Considerátions sur l´optimisme e outres textes, Vrin, 1972, p. 207 e 213.

159
fabrice hadjadj

saber para encontrar lugar para a crença”,28 de um lado ele busca


subtrair a fé para fora do entendimento, num santuário privativo
onde o ceticismo não pode alcançá-la. Por outro lado, ele quer dar
lugar à aflição do justo contra o otimismo metafísico. Mas é ainda
crer que essa aflição se encontra no plano metafísico, embora a re-
duza a um problema especulativo. É também supor que o saber e a
fé são concorrentes, o que leva a inserir a fé na ordem da natureza.
Para Kant, a perfídia dos amigos não está tanto em ter falado sem
amor verdadeiro, mas sem sinceridade profunda. Sua exigência
torna-se aquela de uma fé consciente e não superficial. Ora, quem
negará que os demônios sejam sinceros quando proclamam: Tu és
o santo de Deus? O problema não está na grande franqueza da fé
maior ou menor, mas que essa fé não se encontre senão na linha
da natureza, que se trata de conhecimento ou de crença, de inteli-
gência ou de vontade, mas seja transportada na ordem da graça.
Não é contestando com as provas racionais da existência de Deus
que se evita a fé demoníaca. É sublinhando que elas não bastam
para a Salvação. Então se percebe que essas provas não suprimem,
mas reforçam a provação: ultrapassar a claridade da razão é uma
renúncia maior que ter que ultrapassar a penumbra.
A teodiceia é pior que o ateísmo naquilo que ambos têm em co-
mum: o projeto totalitário – a pretensão de, aqui na Terra – e atra-
vés da razão – se totalizar o real, ao invés de reconhecer essa parte
maldita ou esse coração bendito que nos escapa (o racionalismo
não é a verdadeira racionalidade, que sempre sabe confessar seus
limites). Quando se é ateu, é normal garantir ter a última palavra;
quando se crê em Deus transcendente, a coisa é mais perversa.
Deveria aceitar o “dois” de nossa condição, professar que o Um
pertence absolutamente a Deus, mais eis que se esforça em realizar,
desde agora, a unidade perfeita, do ponto de vista humano, primei-
ramente no plano da ciência, depois no plano da Cidade. Assim,
o servo útil demais busca justificar Deus aos olhos dos homens. O
mistério do mal não é mais que um problema que se pode encon-
trar a solução, tão teórica como prática. Mas essa justificação de
Deus se torna uma justificação do mal. O rabino Richard L. Ru-
benstein é um dos únicos que pensaram não somente a relação da
28 Id., Crítica da razão pura, prefácio a segunda edição, trad. Franc. J. Barni, Garnier-
Flammarion, 1987, p. 49. [Trad. Port. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão, 5ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, Lisboa].

160
Shoah com a racionalização da existência, mas, sobretudo, desta
racionalização com uma certa teodiceia cristã, onde os caminhos
do Senhor seriam para nós inteiramente sondáveis e penetráveis. A
figura de Malthus é um eixo desta boa intenção totalitária:

Seu Ensaio sobre o princípio de população é uma teodiceia,


isto é, uma tentativa de demonstrar a racionalidade inerente aos
caminhos do Criador onipotente. Malthus era um cristão crente
e um sacerdote da Igreja anglicana. Mas foi também o conceitua-
dor de uma das ideologias mais influentes para legitimar um sis-
tema sociopolítico no qual os valores morais herdados pela tra-
dição judaico-cristã preparam o caminho para simples cálculos
de perdas e ganhos, sempre mais exatos e moralmente neutros.
Considerando a penúria dos recursos, o excesso da fecundidade
humana e a luta universal para a vida como expressões da provi-
dência divina, Malthus argumenta de fato em favor da essencial
racionalidade de uma ordem social onde os valores do Mercado
substituem inexoravelmente os princípios da tradição.29

A questão, para esse pastor cristão, era a morte dos pobres sem-
pre mais numerosos: por que Deus o permitiria? Malthus poderia
ter, como Jó, se encerrado em seu grito. Mas como se contentar
com um grito que é precisamente a ruptura de todo contentamen-
to? Portanto, ele quis explicar, legitimar e mostrar que era, sob
qualquer ponto de vista, para o melhor. Alguns anos mais tarde,
Marx teria a mesma experiência. Dirá, talvez contra Malthus, que
a religião é o ópio do povo. Mas sua lógica será fundamentalmente
a mesma: ele se crê, segundo a expressão de Raymond Aron, “con-
fidente da providência”, ele possui as leis da História, sabe que o
mal tem seu princípio na propriedade privada e que o sofrimen-
to dos proletários conduz dialeticamente à sociedade sem classe.
Lá onde Malthus termina por justificar a violência do Mercado,
Marx justifica aquela da Revolução. Nós começamos a entrever:
de Malthus a Darwin, que aplica o princípio da população a toda
natureza, depois a Marx e Hitler, que, cada um à sua maneira, rea-
plicam-no na ordem política. O teísmo desaparece, mas a teodiceia

29 Richard L. Rubenstein, The Age of Triage, Beacon Press, Boston, 1983, p. 54-55.

161
fabrice hadjadj

permanece na sua essência, como autodicéia, com essa suficiência


que crê possuir a última palavra sobre origem e sobre o fim da
história humana.

A ilusão da cristandade
A possibilidade do demoníaco assombra toda a obra de Kierke-
gaard. É o que dá lugar à sua definição da verdade: “A verdade é
subjetividade ou a interioridade”, definição que, por sua vez, in-
fluenciará a de Heidegger. O sério em Kierkegaard é uma noção
que busca nos fazer sair do plano nocional para que em nós a ver-
dade se faça carne. Kierkegaard o sabe: a Verdade é uma pessoa,
não um texto, de modo que se o texto subsiste, é antes de tudo
para recordar a voz que o excede e o revela: Eu sou a verdade (Jo
14, 6 – Pode-se pensar que todo o existencialismo, mesmo aquele
de Sartre, deriva, via Kierkegaard, desta afirmação evangélica). A
pior das mentiras, portanto, não é mais não dizer a verdade, mas
dizê-la sem cessar apenas para não vivê-la. Nisso a palavra de sa-
bedoria corresponde a mais perversa das tagarelices, porque é uma
tagarelice que se ignora, ou que toma sua baba como orvalho do
céu: um meio de diferir a passagem para a existência, de fugir da
verdade do discípulo, abraçando a do professor.
Kierkegaard define o demoníaco como a angústia diante do
bem. Nem todo pecador é demoníaco. Aquele que está no mal e
que tem a angústia do mal, já está iluminado pela luz do arrepen-
dimento: visto do alto, ele já tem um pé no Reino. Mas para aquele
que permanece no mal e que tem a angústia do bem, nenhum bri-
lho nem iluminação para voltar: ele pertence à espécie dos demô-
nios. Ora, essa angústia do bem pode muito bem se esconder atrás
de uma defesa do bem: o importante é adiar, é retardar a elevação
de nosso ser na bondade.

A verdade tem sempre muitos apóstolos para manifestá-la,


mas a questão é saber se o homem quer plenamente reconhecê-la,
deixá-la penetrar todo seu ser, se ele quer aceitar todas as suas
consequências sem reservar uma escapatória diante do pior, nem
as trair num beijo de Judas.

162
E mais tarde Kierkegaard compara o demoníaco defensor da
ortodoxia mais dura com

esse filósofo moderno inventor de uma nova prova da imortali-


dade da alma, mas incapaz de prová-la no perigo de morte, por
não ter suas notas em mãos!30

Nesta perspectiva, aquele que tem fé não se opõe tanto ao in-


crédulo. O rígido ortodoxo se esquiva tão bem quanto o livre pen-
sador, e ainda resiste mesmo a essa Verdade que neles queria assu-
mir como uma carne nova.

Quando um ortodoxo rígido põe todo seu cuidado e sua eru-


dição para demonstrar que cada palavra do Novo Testamento
provém do apóstolo em questão, a interioridade desaparece pou-
co a pouco e ele termina por compreender uma coisa comple-
tamente diferente do que pretendia. Quando um livre pensador
emprega toda sua sagacidade para provar que o Novo Testamen-
to só foi escrito no século II, o que ele teme é a interioridade;
daí toda a sua necessidade de classificar o Novo Testamento no
mesmo plano que qualquer outro livro.31

Encontramos essa orquestração diabólica que se diverte sobre


dois tabuleiros. Dentre os dois adversários, o ateu com a extrapo-
lação duvidosa e o exegeta com suas mil notas de rodapé, o segun-
do que está mais perto do diabo: assemelha-se ao velhaco tagarela
da tentação no deserto. Sua fé não é mais ativa e sua própria boca
o condena.
Daí vem a crítica de Kierkegaard à cristandade. Ela não tem o
caráter acidental de uma indignação diante de um estado desola-
dor da Igreja dinamarquesa. Ela procede de seu senso do demoní-
aco e marca, ao mesmo tempo, a grande força e, sem dúvida al-
guma, o ponto fraco de seu pensamento. A cristandade lhe parece

30 S. Kierkegaard, O Conceito da angústia, trad. Franc. K. Ferlov e J.-J. Gateau, Galli-


mard, col. “Tel”, 1990, p. 309-310.
31 Id. P. 314.

163
fabrice hadjadj

como a mais radical subversão do cristianismo. Ela pode produzir


a ilusão que o cristianismo se declara num estado civil. Ela ganha
em extensão o que perde em intensidade.32 Sua fé tão fácil não é
mais que exterior e, consequentemente, demoníaca:

Que significa que, sem nenhuma dificuldade, milhares de pes-


soas se digam cristãs. Como podem tomar esse nome [...] esses
homens que fazem de uma certa integridade cívica o máximo de
seu ideal?33

Desde que o cristianismo se torna a lei de uma sociedade tem-


poral, seu triunfo se transforma num fracasso:

O cristianismo foi abolido por sua propagação, por esses mi-


lhões de cristãos de nome cujo número esconde a ausência de
cristãos e a irrealidade do cristianismo [...]. Toda cristandade
(isto é, o cristianismo histórico qual se impôs) não é outra coisa
que o esforço do gênero humano para regredir a andar sobre
patas, para se livrar do cristianismo, pretendendo que é sua rea-
lização.34

O ataque não se dirige tanto ao poder romano, quanto à re-


dução do cristianismo a uma moral. O seguimento de Cristo se
transforma em seguimento de um dever. O paradoxo é substituído
pelo desfile, o sofrimento pelo alívio. Em poucas palavras, o Crer
é expurgado de sua Cruz: “No cristianismo da cristandade, a cruz
se tornou algo como o cavalo mecânico ou a trombeta de uma
criança”. Seu escândalo se resolve na entonação de um belo coral.
O que não é deste mundo acaba absorvido nos reinos deste mundo
– e os cristãos sucumbem na terceira estação. Consequentemente,
numa tal sociedade, aquele que quer dissipar a miragem deve fazer
uma anti-profissao de fé:

32 Ver Kierkegaard, Vingt et um articles, Oeuvres Complètes, 19, trad. Tisseau, 1982, p. 44
33 Point de vue explicatif de mon oeuvre d´écrivain, Oeuvres Complètes, 16, trad.
Tisseau, éditions de l´Orante, 1971, p. 17.
34 L´Instant, Oeuvres Complètes, 19, trad. Tisseau, 1982, p. 145

164
Se todos estão na ilusão ao se dizerem cristãos, e se é preci-
so trabalhar contra, essa ação deve ser realizada indiretamente e
não por um homem que proclame bem alto que ele é um cristão
extraordinário, mas por um homem que, melhor informado, de-
clara que sequer é cristão.35

Começar a ser verdadeiramente cristão é reconhecer que ainda


não se é, ou pelo menos que não seja de tal modo que se possa ficar
se exibindo.
Na Subversão do cristianismo, Jacques Ellul retoma o pensa-
mento de Kierkegaard e conclui que a secularização não é senão
a continuação da cristandade pelos mesmos meios. O paradigma
mundano prossegue sua substituição da mística pela moral, do
drama pela norma, da graça pela natureza. Ele prossegue até se
voltar contra os cristãos “que não se conduzem de modo diverso
que qualquer pessoa”, porque é em nome da moral que se condena
as transgressões da cristandade... A sociedade secularizada parece,
legitimamente, mais honesta que a cristandade mundana: ela, ao
menos, depõe o Cristo abertamente. O verdadeiro cristão não tem,
portanto, porque queixar-se. Ali encontra ocasião para uma reno-
vação de um novo cristianismo, aquele da minoria humilhada, da
antimoral, da contracultura, do sal da terra, etc. Kierkegaard tende
a favor da “minoria” até essa posição limite:

Pode-se muito bem ser cristão completamente só. E se não se


tem uma grandíssima força de espírito, por medida de precaução
cristã, mais vale ser pouco numerosos! [...] Ser cristão é ser o sal
e consentir no sacrifício. Mais nem milhares, nem (ainda menos)
milhões, nem (e bem menos ainda) países, reinos, Estados, nem
(absolutamente não!) o mundo inteiro não são feitos para isso.
Em contrapartida, trata-se de lucro, da mediocridade, de tudo o
que é contrário a ser sal, as brandas asneiras, a possibilidade de
tudo isso começa com 100 mil e aumenta com cada milhão para
culminar no momento em que o mundo inteiro se tornou cristão.
É por isso que “o homem” se preocupa de tornar cristãos todos

35 Point de vue explicatif de mon oeuvre d´écrivain, op.cit., p.19

165
fabrice hadjadj

os povos, reinos, países, o mundo inteiro; ele tem interesse – por-


que ser cristão se torna completamente outra coisa do que está
em questão no Novo Testamento.36

A evangelização do mundo nunca é mais do que uma mundani-


zarão do Evangelho. Levar Cristo às multidões não é senão repelir
o instante de trazê-lo em si. O esforço da missão se volta para esse
objetivo covarde: fabricar-se um ambiente agradável, onde o mar-
tírio é impossível, onde o missionário é aplaudido.
Mas uma questão se levanta imediatamente: então por que
Kierkegaard publicava seus escritos? Por que, para irmos ao limite,
se publicaria a Bíblia? Sua difusão não põe ao alcance de todos o
seu uso perverso? Não ajudaria a fazer da Bíblia apenas um livro
entre outros? De resto, o próprio escrito aparece aqui como algo
duvidoso, porque ler e escrever ainda não significa colocar em prá-
tica. Enfim, se o cristianismo não é mais que uma Igreja que reúne,
ela se reduziria ao indivíduo que se acha incompreendido?
Kierkegaard tem razão em denunciar a ilusão da cristandade.
Mas ele está errado em negar como e ao recusar toda instituição
cristã. Suas publicações que falam de interioridade, testemunham
contra ele e provam a solidez de uma certa propagação. Quero
dizer que a instituição cristã possui, por natureza, o mesmo senti-
do que a obra de Kierkegaard: análoga ao texto que remete para
além da letra, ela está ali como sinal, e mesmo como sacramento,
recordando o que age no segredo da instituição aparente, fazendo
circular o Sangue do Corpo místico.
Sabemos que a ideologia do Bem que se realiza pela força da
instituição conduz ao totalitarismo. Sabemos que o essencial está
na “‘pequena bondade’ que vai de um homem ao seu próximo”,
mas seria contraditório prosseguir com Emmanuel Lévinas, dizen-
do que esse amor do próximo

se perde e se deforma quando se pretende doutrina, tratado de


política ou de teologia, Partido, Estado e mesmo Igreja.37

36 Vingt et un articles, Oeuvres Complètes, 19, trad. Tisseau, 1982, p. 44


37 Emmanuel Lévinas, Entre nous, Grasset, 1991, p. 242.

166
Porque aquele que diz isso também está enunciando uma dou-
trina, e essa doutrina, para se difundir, tem necessidade de certa
instituição que repita: O que fizestes ao mais pequeno, é a Deus
que fizestes... Desprezando as mediações, querendo ser cristão
completamente sozinho ou num pequeno comitê, não é possível
ver como a fé escaparia melhor do orgulho, do espírito de partido
– ao espírito impuro, portanto. O medo do demônio aqui parece
pertencer ao próprio demoníaco. Não é superado pela confiança
no Ressuscitado que ordena: Ide, portanto, e fazei que todas as
nações se tornem discípulos.38
A cristandade é sem dúvida um risco, o risco de uma hipocrisia
diabólica, do risco de uma tibieza a vomitar, de uma perversidade
plena sob a cobertura da caridade. Mas por que não seria um risco
a correr? Cristandade não consiste numa identificação entre Igreja
e Estado, que seria efetivamente um desastre. Ela permite um Es-
tado que não se feche em si mesmo, que conviva em um ambiente
livre para o anúncio do mistério divino, e uma Igreja que, quanto
menos mundana, muito mais tem a dar para o mundo. Acima de
tudo, contra um elitismo que degradaria o Evangelho numa gnose
exoterizante, a cristandade permite uma proposição da fé a todos,
sobretudo aos pobres, devorados definitivamente pelas seduções
do mercado. E o que estes pobres que olham por seus empregos
não teriam dado se a tendência geral tivesse sido olhar para a hós-
tia? Pois todos esses pequeninos que são feitos melhores que os
sábios – e muito melhores que eu – para resplandecer à santidade,
estão agonizando sob os pés da besta.
Proteger-se da cristandade por temor de uma falsidade, pro-
teger-se de toda apologética por temor do orgulho, é crer-se bom
demais para ter orgulho ou falsidade. Pois a apologética é uma
urgência, não para produzir a fé, mas para servir a ela, desbravar
o terreno de todo erro a fim de deixá-lo livre para a verdadeira
e íntima batalha. A extensão do cristianismo numa cristandade
não serve para buscar o sucesso mundano da Igreja, mas para a
santificação dos pobres que, de outra forma, são feitos reféns. A
cristandade certamente não é um fim. Ela não é o Reino dos céus.
Pelo contrário, numa sociedade onde a verdadeira caridade é co-
nhecida, o pecado é mais identificável e até nos parece bem pior. É
38 Mt 28, 19.

167
fabrice hadjadj

bem possível que existam mais pecadores numa cristandade lúcida


do que numa sociedade agnóstica por ignorância, simplesmente
porque a cristandade não é um objetivo absoluto. Mesmo se todo
o mundo se tornasse cristão, o Reino ainda não se encontraria se-
não naqueles que os profetas chamaram o pequeno Resto.39 Essa
noção do “resto de Israel”, não é, contudo, numérico. Não designa
o pequeno número dos eleitos. Significa que só é eleito aquele que
passa pela provação, isto é, aquele que resta após ter sido penei-
rado como o trigo.40 A cristandade é precisamente o lugar onde
não se cessa de recordar esse primado da crise espiritual (do grego
krinein, passar pelo crivo) sobre o conforto moral. Como socie-
dade onde o cristianismo é estruturalmente anunciado, também
é preciso anunciar que, com sua banalização, a Boa Nova corre o
risco de parecer uma ideia antiquada; por isso é preciso impedir
fortemente que seja reduzida a um manual de saber-viver, pois, em
primeiro lugar, é a graça de um saber-ressuscitar, além de ser, antes
e consequentemente, a graça de saber-morrer.

O grande golpe duplo: pequena Igreja e mundo ateu


O rei Salomão, quando da dedicação do Templo, termina sua
grande oração com palavras extremamente católicas:

Todos os povos da Terra reconhecerão que somente o Senhor


é Deus e que não há outro além dele, e o vosso coração pertence-
rá totalmente ao Senhor, nosso Deus, observando seus estatutos e
guardando seus mandamentos como o fazeis agora.41

Guardar, desde o presente, esses mandamentos, é estar em ten-


são para esse futuro onde todos os povos saberão que o Senhor é
Deus. Certamente, essa universalidade pode sempre virar idolatria,
como adverte o próprio autor sagrado: Salomão amou muito as
mulheres estrangeiras (o sábio chega ao número astronômico de
setecentas esposas e trezentas concubinas) e se pôs a seguir Astarte,

39 Cf. Is 10, 20-23; Rm 9, 27.


40 Cf. Lc 22, 31.
41 1Rs 6, 60-61.

168
Melcom e Camos e muitos outros falsos deuses.42 A intensão é
fazer com que todos os povos venham ao Eterno, mas no final o
Eterno é trocado por pequenos ídolos. O desejo da comunhão se
afoga na cobiça de comércio. O perigo é certo, como Kierkegaard
recorda. Mas isso não impede essa verdade: vosso coração perten-
cerá totalmente ao Senhor na medida em que o Senhor não seja
só para o seu povo, como se fosse sua pequena propriedade, mas
para todos os povos da Terra. Não se trata da conquista nem de
anexação, mas de humildade e oferenda.
Aqui começa a se desenhar o que pode ser a estratégia do de-
mônio em relação ao ateísmo. Uma sociedade inteiramente ateia
não o satisfaz suficientemente. Após uma cristandade cujo conluio
com o poder temporal soube fazer suas delícias, ele tende a pro-
mover, ao mesmo tempo, uma sociedade secular no meio da qual
a minoria dos cristãos se fecha num farisaísmo superior – de certo
modo, o farisaísmo do publicano – que consiste em se sentir me-
lhor posando de minoria perseguida. Foi o que notou C. S. Lewis
numa de suas obras-primas, The Screwtape Letters, título que se
convencionou traduzir como Cartas de um Diabo a seu Apren-
diz. Um diabo chefe divulga alguns sábios conselhos de tentação
a um demônio subalterno que ele chama de sobrinho, obviamente
porque não poderia chamá-lo de irmão. Sua intenção a propósito
desta minoria de cristãos é finalmente explicada:

Queremos que a Igreja seja pequena, não apenas no sentido


de cada vez menos homens conhecerem o Inimigo, mas também
no sentido de fazer com que aqueles que O conhecem adquiram
uma intensidade inquieta e o farisaísmo defensivo de uma socie-
dade secreta.43

Tal é a combinação de Satanás, que contenta ao mesmo tempo


sua inveja e seu orgulho, sua tirania invejosa e sua eficácia conde-
nadora: a propagação do ateísmo, de um lado, que submerge os ho-
mens numa ignorância às vezes bestial; a defesa de uma Igreja-seita,
de um outro lado, que fabrica cristãos quase tão malignos como ele.

42 Cf. 1Rs 11, 1-8.


43 C. S. Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz, trad. Franc. E. Huser, Ed. EBV, Bâle,
1980; trad. Bras. Juliana Lemos, 2ª. ed., WMF Martins Fontes, 2009, p.33

169
fabrice hadjadj

O demônio ainda desnorteia esses cristãos por uma dúplice tá-


tica. Empurra-os tanto para uma falsa interioridade quanto para
uma exterioridade polêmica. Fitafuso escreve primeiramente:

Faça-o prestar atenção apenas na sua vida interior [...] Man-


tenha-o distante dos deveres mais elementares voltando sua aten-
ção para os deveres espirituais mais avançados. Faça o possível
para piorar essa útil característica humana, o horror e a negligên-
cia em relação às coisas óbvias. Você deve mantê-lo num estado
tal que ele possa perscrutar a si mesmo durante uma hora sem
descobrir nenhum desses fatos sobre ele mesmo, fatos que são
perfeitamente visíveis para quem quer que viva com ele na mes-
ma casa ou trabalhe com ele no mesmo escritório.44

O espírito malvado é sempre a favor dos exercícios espirituais,


desde que não sejam aqueles de uma espiritualidade da Encarna-
ção. Mas é também é favorável a um apostolado muito ativo, des-
de que não seja aquele da caridade:

Ele será nosso, contanto que encontros, panfletos, politica-


gens, movimentos, causas e cruzadas sejam mais importantes
para ele do que preces, sacramentos e caridade – e quanto mais
“religiosos” (nesses termos) eles forem, mais controle teremos so-
bre eles [...] o que importa é fazer do cristianismo uma religião de
mistérios, na qual ele se sinta um dos iniciados.45

A aposta é de deixar-nos acreditar que somos melhores por ser-


mos cristãos, quando somos miseravelmente piores que os outros.
Assim nos estimula a produzir um cristianismo ao nosso gosto,
com um Cristo customizado, tradicionalista ou progressista, do-
lorista46 ou hedonista, conservador ou revolucionário; cristo de
Apolo ou cristo de Paulo ou cristo de Cefas, podemos até ser mais
católicos que o Papa ou mais papistas que a Igreja:

44 Id. p. 12
45 Id., p. 35 e124
46 Doutrina moral que faz a apologia da dor – NE.

170
O que nós desejamos, se não houver mesmo jeito e os homens
tiverem de tornar-se cristãos, é mantê-los num estado de espíri-
to que eu chamo de ‘Cristianismo e alguma outra coisa’. Você
sabe – Cristianismo e a Crise, Cristianismo e a Nova Psicologia,
Cristianismo e a Nova Ordem, Cristianismo e a Cura pela Fé,
Cristianismo e Pesquisa Psíquica, Cristianismo e Vegetarianis-
mo, Cristianismo e a Reforma Ortográfica. Se não houver saída
e eles se tornarem cristãos, deixe-os ao menos serem cristãos
com um diferencial. Substitua a fé em si por alguma Moda com
colorido cristão.47

Por alguma moda, isto é, por uma moda que se contenta em ser
do contra, desde que se coma uma hóstia com seu molho.
O essencial para esse “e alguma coisa” é desfalcar o cristianis-
mo de seu mistério de graça. Uma vez mais, a fé dos demônios
consiste, não em abolir, mas, se eu ouso dizer, realizar uma fé à me-
dida de seu tempo, de suas necessidades, de seus caprichos. Nada
melhor para isso do que formar, seja uma grande Igreja do mundo,
como se o Eterno tivesse absolutamente necessidade de estar na
moda; seja uma pequena Igreja de privilegiados, como se ela não
tivesse absolutamente necessidade de nós.

Bem-aventuranças do inferno: a misericórdia pirateada


Lembremo-nos dos demônios que se instalam na alma varrida e
arrumada. Sete mais um, oito; é o número das bem-aventuranças.
Sendo Satanás “macaco de Deus”, posso imaginar a paródia:

Bem-aventurados os ricos de seu próprio espírito, os principa-


dos deste mundo são deles.
Bem-aventurados os duros, eles possuíram a terra conquistada.
Bem-aventurados aqueles que choram, desde que digam que o
malvado é sempre o outro.
Bem-aventurados os que têm fome e sede sua própria justiça,
eles saberão sempre reivindicar.
Bem-aventurados os misericordiosos, eles praticarão a eutanásia.
47 Id. P. 126-227

171
fabrice hadjadj

Bem-aventurados os corações que se sentem puros, porque eles


verão o diabo.
Bem-aventurados os pacifistas, eles assinarão outros Acordos
de Munique.
Bem-aventurados aqueles que se gabam de serem perseguidos
e que se concedem o direto de perseguir os outros, os principados
deste mundo são deles.

É uma versão discutível. A sereia sabe modular mil variações, a


fim de que os nossos tímpanos sejam sensíveis aos seus sortilégios.
Se o mistério de Deus é um mistério de amor, o essencial é cari-
caturar o próprio amor. E o anjo macaqueador conseguiu isso de
tal modo que devemos sempre ter reserva ao empregar uma pala-
vra que recorde os folhetins mais açucarados, assim como as mais
mortais reivindicações. Aquele que quer ser cristão de verdade se
encontra quase obrigado, à la Bloy, de ir contra o “amor” e prefe-
rir a cólera. Afinal, o que se pode fazer diante das locuções como
“fazer o amor” ou “fazer caridade”, quando ambas profanam o
ato pretendendo consagrá-lo? A tentação é forte para rejeitar uma
retórica do Deus doce e humilde de coração, e de eleger no seu
lugar a ira do Deus terrível, segundo o início do salmo 35: É o pe-
cado que fala ao coração do ímpio: os olhos não veem senão que
Deus é terrível.
Mas para conter essa rejeição ao amor, que anda meio desmo-
ralizado, o diabo tenta sair do jogo cantando vitória (ou melhor,
pisando nos calos). Para Satanás, o verdadeiro Satanás, isto é, o
Adversário, é Deus. Então, lhe convém fazê-lo aparecer apenas sob
a luz do Dies irae, mas, da mesma forma, lhe agrada mostrá-lo
apenas sob a fórmula do Deus é amor. O importante mesmo é
separar os dois, trovão ou marshmallow...
O grande blefe na nossa cristandade descristianizada consiste
em recuperar a compaixão para voltá-la contra Cristo: a compai-
xão de estômago sensível contra aquela do coração ardente. Pro-
vavelmente teria consistido em fazer Maria abortar, para lhe evitar
o repúdio a esse filho destinado ao suplício monstruoso. Sendo
tarde demais para essa preocupação, ao menos dar a Jesus não o
vinagre no Gólgota, mas um cocktail no Getsêmani. Os cristãos

172
sociais temem passar por torturadores, portanto, terminam por
ceder à gentileza letal. Mas os “catô-trad”, do outro lado, também
se prestam a esse jogo da compaixão: que tudo se resuma à luta
contra o aborto e que se esqueça de anunciar a Graça que salva o
miserável (especialmente ao que aborta), eis que aqui se alegra in-
finitamente o inferno. Temos aqui o debate modelo, perfeitamente
orquestrado pelo pandemônio.
Para tocar a fundo da fé demoníaca, sem dúvida é necessário
afirmar que o diabo crê na sua própria misericórdia. Ele sabe que
faz o mal com relação a Deus, mas não pensa que, com relação a si
mesmo, isso seja mal, de outro modo não seria levado plenamente
a fazê-lo. Se não há nele erro especulativo, há, ao contrário, um
erro afetivo ou moral:

É manifesto que o diabo agiu mal, mas não julga que agiu
mal, porque ele não percebe sua culpa como um mal, mas nela
persevera com espírito obstinado. Isso manifesta falsidade do co-
nhecimento prático ou afetivo.48

Portanto, ele permanece persuadido que aquilo que Deus re-


prova é, por si mesmo, uma maravilha. Mas ele sabe perfeitamente
que a Verdade o reprova, por isso prefere a ficção, porque ela está
lá somente para ele, mais solitário que qualquer cartuxo ou qual-
quer trapista na Trapa. E toda tarde recita o seu Magnificat:

Minha alma se exalta a si mesma,


Exulta meu espírito em mim, meu próprio salvador,
Eu me ergui como meu próprio mestre,
Doravante todas as gerações me chamarão autônomo.

Tudo está aqui: ele não quer acolher a misericórdia d’Aquele


que é porque se satisfaz com a misericórdia do nada. Deus o criou
gratuitamente. Não seja por isso: ele agirá gratuitamente porque
também tem sua graça, não a do amor, mas a do absurdo. As duas
têm alguma semelhança, pois surgem ex nihilo, como um raio.

48 Tomás de Aquino, De Malo, 16, 6, 8.

173
fabrice hadjadj

Mas só a primeira é uma criação ex nihilo; a segunda é um nada


ex nihilo.
A partir do momento em que pretende governar a si própria, se
colocar fora de toda comunhão com Deus e da Igreja, à criatura
resta apenas inclinar-se sobre o seu nada. Consequentemente, a mi-
sericórdia diabólica consiste em procurar a paz não pelo ser, mas
pelo nada, não pela superabundância, mas pela supressão: “Estás
sofrendo na alma? Nega a existência da alma. Estás sofrendo por
Deus? Nega o mistério de Deus. Estás sofrendo pelo mal? Nega
que se trata de um mal. E a distinção entre o joio e o trigo que se
espera na colheita celeste, balela, bem melhor vivermos como se
existisse apenas trigo...”. Política do avestruz ou tática da terra
arrasada. É inegável que são apenas consolações ao alcance das
mãos, que trazem o prazer de ter tido a iniciativa da misericórdia.
Mas esta misericórdia negativa, imitação de Deus sem Deus,
é uma ótima razão para levar ao inferno. É um ato de indepen-
dência. No lugar de uma liberdade que recebo voluntariamente
ligando-me a uma aliança, escolho uma liberdade que eu mesmo
me concedo apartando-me, porque a ruptura também pode ser
indissolúvel e, de certa maneira, o nada pode parecer como algo
absoluto, para além das coisas, imutável, impassível, inacessível.
Deus me criou sem que eu quisesse, está bem, como vingança farei
algo que ele não quer. Com uma gratuidade análoga, com uma in-
tenção também toda desnudada de motivo, mesmo se o meu fazer
consiste apenas num desfazer, mesmo se o meu melhor prazer me
mergulhe numa profunda tristeza. A descriação possui, de forma
negativa, uma gratuidade semelhante àquela da criação. A miseri-
córdia que aniquila a miséria por negação imediata pode mesmo
fascinar mais que a misericórdia que transfigura a miséria através
de uma graça laboriosa. Comparando com a Cruz que conduz à
alegria, uma boa bala na cabeça, um agradável bálsamo no cora-
ção, parecem mais céleres. Eu não falo, certamente, destes pobres
suicidas a quem o desespero submerge, nem destes tristes senti-
mentalistas a quem um pirulito preenche, mas daqueles que, segu-
ros de si e em plena forma, se suicidaram espiritualmente, quase
se perceber.

174
terceira PARTE
SOL DE SATÃ E NOITE DA FÉ
Ou aquilo que o demônio não tem: a carne, a morte, a graça

Não se afirma a fé dos demônios sem pesadas consequências sobre


nossa aproximação do mal moral. Daqui para a frente está proibi-
do toda concepção gnóstica da redenção, assim como toda redução
carnal do pecado. Por concepção gnóstica da redenção, entendo a
ideia de que o conhecimento especulativo ou o autodomínio técnico
seriam suficientes para salvar-se, o que sempre levaria a reduzir o
pecado à ignorância ou à fraqueza, isto é, à nossa condição carnal
– a carne sendo ao mesmo tempo o que esconde e o que atrapalha.
Essa visão das coisas contamina o pensamento cristão através do
estoicismo, sem dúvida, ainda tão caro a Pascal dos Entretiens avec
M. de Sacy. Epíteto aqui enuncia: “Quando alguém te faz mal, é ele
que se engana”; e escreve noutro lugar: “Não há senão uma única
rota que conduz a ser um homem livre: é desprezar tudo o que não
depende de nós”.1 Ser dono de si e não se deixar submergir pelas
paixões da carne e as representações errôneas do espírito, tal seria
o único caminho da salvação. Ora, o demônio não tem nem paixão
que desviasse sua vontade nem representação que falsificasse sua
inteligência. Ele é perfeitamente dono de si. Ele não buscou algo
mais, só buscou aquilo que depende dele. Sua cidadela interior é tão
inexpugnável que o próprio Deus não poderia mais entrar nela. É
verdade que, no nosso caso, a maior parte dos erros procedem da
nossa ignorância e nossa fragilidade, e o demônio sabe aproveitar-se
delas para nos fazer cair no erro contrário de confiar absolutamente
em tudo o que é carnal. Mas ignorância e fragilidade não atingem
o demoníaco puro. Contrariamente à uma ideia muito difundida
(adivinhe por quem), o pior não corresponde nem à barbárie nem à
bestialidade, algo que hoje nos faz novamente seres tão permeáveis
ao nazismo. É que denunciamos o pior como se tratasse de uma

1 Manuel, XLII e XIX.

177
fabrice hadjadj

explosão selvagem trazendo os Untermenschen,2 enquanto isso


afetava apenas seres refinados que sabiam permanecer cinco horas
ouvindo Tristão e Isolda.
Talvez nem seja preciso dizer que “O espírito está pronto mas
a carne é fraca”.3 Mas essas palavras de Cristo podem ser toma-
das num sentido que acusam o perigo de um pecado puramente
espiritual. A prontidão do puro espírito lhe dá a possibilidade de
cometer faltas sem erro, de se lançar inteiramente num mal que ele
toma por seu bem, sem nenhuma circunstância atenuante. Reduzir
toda culpa à ignorância e à fragilidade é não ver a raiz da culpa
que mata; é cair com o desprezo da carne no desprezo da caridade.
Carne e caridade se assemelham por duas razões. Por uma par-
te, amar como ser carnal é ter um ponto fraco, experimentar cer-
ta dependência, e por isso ser vulnerável. Por outra parte, tanto
a carne como a caridade transbordam a simples clareza natural
na razão: carne por baixo, caridade pelo alto. Exigem uma moral
que não é somente a do domínio e, em todo caso, não tem nada a
ver com uma moral da performance. A carne e a caridade, ligadas
uma à morte física e a outra à morte mística, implicam um certo
sofrer. O fato de entregar-se ao outro, para o melhor e para o pior,
e, portanto, passar por uma provação na sua condição terrestre. A
tentação dos filósofos foi propor uma consolação por si mesma,
que nos faça esquivar dessa provação. Lá onde São Paulo fala de
gemer, as sabedorias pagãs propõem a ataraxia.4 Lá onde Cristo
ordena tomar a sua cruz para uma alegria devastadora, as espi-
ritualidades humanas ordenam apagar a angústia para um con-
tentamento perfeito. Flertam sempre com o pecado do anjo: não
de ter falhado na provação (Deus ainda o viria recuperar), mas
simplesmente de a ter recusado, pura e solitariamente, de lhe ter
negado toda pertinência, porque a autonomia lhe pareceu preferí-
vel à comunhão.
No livro XIV do A Cidade de Deus, Santo Agostinho desmas-
cara, nesta tentação, uma cumplicidade demoníaca. Em defesa da
carne, ele recorda:
2 Palavra alemã que significa sub-humanos. No período nazista foi usada para se referir
aos povos que não pertenciam à “raça ariana” – NE.
3 Mc 14, 38.
4 Em grego: ἀταραξία – “ausência de inquietude”, “traquilidade de ânimo” – NE.

178
Não pode acontecer que a idolatria ou a heresia constitua um
motivo para nos abstermos dos prazeres do corpo? [...] Embora
existam, procedentes da carne, certos impulsos para o vício e até
desejos viciosos, não devemos, apesar disso, atribuir à carne to-
dos os vícios de uma vida iníqua, não se deve limpar de todos eles
o Diabo, que não tem carne. Não há dúvida de que se não podem
atribuir ao Diabo a fornicação, a embriaguez e outros males se-
melhantes que tenham relação com os prazeres da carne, mesmo
quando é ele o conselheiro e o instigador oculto de tais pecados.
Todavia, é, no mais alto grau, orgulhoso e invejoso.5

Para a defesa do amor até naquilo que cega, ele acrescenta:

Às vezes uma emoção, apesar de não devida a um culpável


desejo mas a louvável caridade, faz-nos chorar mesmo que não
queiramos [...] Mas se é ao estado de alma sem afeto algum que
se chama apatia, quem não terá esta insensibilidade pelo pior dos
vícios? 6

Quem torna a carne responsável por todas as desordens “justifi-


ca o demônio”: ele estima que domar seus próprios desejos carnais
basta para torná-lo bom, e, portanto, esquece da desordem maior
que é o orgulho. Quem faz do autodomínio o nec plus ultra da
moral, cai no “pior dos vícios”: ele desconhece esse amor que nos
arranca de nós mesmos e nos faz chorar “apesar de nós” e, portan-
to, recusa a moral da misericórdia. Porque a verdadeira moral não
é uma moral do sucesso, mas uma moral do fracasso, do insucesso,
desta miséria que a misericórdia vem agarrar, desta concupiscência
que nos crava na terra para que conosco, e apesar de nós, a graça
venha nos erguer.
O bêbado resmungando com o invisível atrairá sempre a indul-
gência e a simpatia. O religioso imbuído de si mesmo produzirá
sempre o maior desgosto. No Triunfo da humildade, uma peça de

5 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, L. XVI, trad. Fran. L. Moreau, Éd. du Seuil,
col. “Points”, 1994. Trad. Portuguesa. J. Dias Pereira, 2ª. Edição Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000. p. 1237. 1241
6 Ibid., 1264 e 1265

179
fabrice hadjadj

teatro de Santa Teresinha, Lucífer se dirige a São Miguel à propó-


sito do mal que ameaça especialmente as carmelitas:

Eu zombo muito do teu exército virginal... não sabes que te-


nho direitos também sobre ele?... Eu sou o príncipe do orgulho;
ora se as virgens são castas e pobres, que têm a mais que eu?
Também sou virgem, e enquanto prodigalizando riquezas aos
homens, eu as desprezo para mim mesmo como fumaça... Tu re-
plicarás: e a obediência, tu a praticas?... Ah, Mikael, eu sou tão
esperto como tu... Não, eu não obedeço voluntariamente, mas
eu me submeto às ordens de Deus contra a minha vontade; as
virgens podem obedecer também enquanto guardando no fundo
do coração sua própria vontade, podem obedecer e desejar co-
mandar; que elas fazem mais do que eu?7

Elas fazem menos, na verdade, se são verdadeiramente religio-


sas: elas deixam o Esposo fazer.
Nestas últimas lições, invocaremos o que nos protege melhor
do mal virginal ou, se podemos falar assim, do pecado imaculado
dos demônios. Nos aproximaremos da verdadeira fé teologal na
sua dupla tensão carnal e caritativa. Em suma, as páginas que se-
guem são ainda mais balbuciantes que as outras. Sua claridade, de
todo modo, seria temível: para eclipsar o sol de Satã, não há senão
a Noite Escura.

7 Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Théâtre au Carmel, Cerf-DDB, 1985, p. 257.

180
PRIMEIRA LIÇÃO
O fruto do ventre

Meu Deus, eu quero ter a tua lei dentro das minhas entranhas
— Sl 39,9

Porei inimizade entre a mulher e ti


É um clássico do espiritualismo demonizar a carne, e através
dela, a mulher. Instrumentum diaboli se qualifica uma e outra. É
pela mulher que Adão caiu. Pela carne de sua carne, ele perdeu o
espírito e, desde então, sua descendência traz no corpo a mancha
e a atração de uma pegajosa concupiscência. De fato, o diabo sabe
nos apanhar pelas partes baixas, nos empurrando para a culpa,
através do caos sensual. Experimentando-se a exigência da pure-
za, só se poderia sentir, em consequência, a necessidade de morti-
ficar seus membros. Daí até ver no carnal um feudo pertencendo
ao mal, há muito pouco. E nós caímos uma vez mais no erro con-
trário. Porque o demônio, obviamente, está muito satisfeito com
essa visão das coisas: não há nada que puro espírito odeia mais do
que a Encarnação. E SUAS PRIMEIRAS PALAVRAS na Bíblia, “Além
disso, vós não podeis comer de todas as árvores do jardim”, tra-
zem a ambição de uma substância sem alimento, portanto, sem o
peso da carne.
Mas há outra coisa além dessas primeiras palavras da serpente;
as últimas palavras do Eterno contra ela:

Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e


a descendência dela, ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o
calcanhar.1

1 Gn 3, 15.

181
fabrice hadjadj

Segundo esse versículo, o que vai contra o demoníaco e termina


por esmagar seu orgulho, são estas duas coisas que os tratados
de teologia negligenciam frequentemente: o feminino e a filiação.
Mas como compreender isso? Em primeiro lugar, o feminino: o
que significa essa inimizade especial e mesmo exclusiva entre a
Mulher e a Serpente?
Santo Agostinho lia essa passagem num sentido muito figurado:

Deus não põe inimizade entre a serpente e o homem, ele a põe


somente entre ela e a mulher. É porque o demônio não engana
nem tenta os homens? É manifesto que ele os engana [...] Por
que portanto essas palavras senão para nos mostrar claramente
que não podemos ser tentados pelo diabo senão por meio desta
parte animal que se representa através da imagem e semelhança
da mulher?2

Se só há inimizade entre a serpente e a mulher, é porque a mu-


lher aqui é a alegoria de nossa parte sensível, e sensível às sugestões
do demônio. A parte intelectual escapa ao poder diabólico, mesmo
sendo princípio do pecado mortal, porque é preciso ter consentido
por si mesma para pecar formalmente, ela não sofre as inquieta-
ções e ataques diretos dos espíritos maus. Eu não posso, contudo,
deixar de pensar que essa interpretação se opõem ao sentido óbvio
do texto. Por que essa inimizade seria a marca de defeito ao invés
de uma força? Mas na continuação de seu comentário, Agostinho
muda subitamente de perspectiva e propõe uma leitura diferente
e mais justa:

Há também inimizades estabelecidas entre a semente do diabo


e aquela da mulher; a semente do diabo significa as sugestões per-
versas, e aquela da mulher, os frutos das boas obras pelas quais
se resiste à tentação do mal. O diabo observa a planta do pé da
mulher, a fim de metê-la sob seu jugo, se ela se deixar levar pelos
prazeres proibidos, e por sua parte, ela observa a cabeça da ser-
pente, a fim de repeli-la desde que se faz sentir a tentação do mal.

2 Sobre o Gênesis contra os Maniqueus, Livro II, cap. XVIII.

182
A mulher aqui não é mais a fraqueza maleável às influências
demoníacas. Ela é o lugar de uma resistência. Resistência das boas
obras, diz Agostinho. Muito bem! Mas porque essas boas obras
são vistas sob à luz do feminino?
Que se trate do feminino enquanto tal, e não de outra coisa,
um indício nos é dado no encerramento desta sequência. Quando
Adão acaba de escutar seu castigo, eis que nos é dito em contra-
peso: Adão chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os
viventes.3 É a primeira vez que aparece esse nome. Eva é a mesma
santa-da-pau-oco do jardim. Mas esse nome não lhe é dado senão
depois da nossa ruína. No momento de sua criação, Adão a no-
meia somente “mulher”, isha, à partir da palavra “homem”, ish.
Essa derivação nominal significa que ela foi tirada dele próprio.
Mas vem a queda, e a queda para a mulher: seria compreensível
que, de agora em diante, Adão a chamasse de a “Mortal” ou a
“Mortífera”. Mas ele a chama Havah, isto é, a “Vivente”. O mais
impressionante para nós é aqui a justaposição da morte no homem
e da vida na mulher. Releia-se os dois versículos concernentes,4
como seguem, sem nenhuma transição: “Com o suor do teu roso
comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele fostes tirado.
Pois tu és pó e ao pó retornarás”. Adão chamou sua mulher “Eva”,
por ser a mãe de todos os viventes... A mudança é tão violenta que
o editor se sente obrigado a sair do recuo do texto, na passagem do
versículos 19 para o 20. O anúncio da morte deveria ter arrancado
de Adão algum grito de pavor, impulsionando-o, por vingança, a
degolar sua mulher, ou ao menos insultá-la com escarros. Mas ao
invés disso ele a nomeia com o nome mesmo da Vida, sem qual-
quer tipo de julgamento. Por quê? Muito provavelmente ele escu-
tou a maldição da serpente: ele crê no caráter salvífico, vivificante,
desta inimizade entre o feminino e o demoníaco.
Para entrevê-lo, primeiro convém determinar o que é o femini-
no. Conhecemos a concretíssima definição de Aristóteles no seu De
generatione animalium: “Por macho, entendemos o ser que gera
num outro, e por fêmea o ser que gera em si”. O masculino corres-
ponde a uma operação transitiva e, por isso, visível: ele lança sua
semente fora de si; seu tempo sexual é curto, seu espaço é exterior;
3 Gn 3, 20.
4 Gn 3, 19-20.

183
fabrice hadjadj

é o espaço-tempo da ejaculação. Já o feminino corresponde a uma


operação imanente e por isso invisível: a mulher acolhe em si algo
que se faz independente dela; seu tempo sexual é longo, seu espaço
é o da interioridade; é o espaço-tempo da gestação. Levar um ou-
tro em si, deixar acontecer em seu ventre um crescimento obscuro,
não seriam essas qualidades do feminino exatamente àquelas da
alma com relação a seu Criador e Salvador? Porque a alma – e
o Cântico dos Cânticos bastaria para provar isso, quando retra-
ta o povo eleito na figura da esposa – deve estar metafisicamente
numa postura feminina com relação a Deus. Deve estar aberta à
receptividade da graça que opera em nós, apesar de nós, como na
parábola narrada pelo próprio evangelho de Marcos, comparando
o Reino ao grão que cresce sozinho.5
Essa postura feminina é precisamente aquela que renega o de-
moníaco. O diabo não tem entranhas. Ele não acolhe o outro em
seu coração, não é capaz de amar alguém mais do que amaria a si
mesmo. Sua vontade de poder se encontra de forma mais expressi-
va não no símbolo do masculino, mas do fálico, isto é, de um mas-
culino que queria se auto constituir na negação de um feminino
capaz de limitar o seu pode. É um símbolo da conquista exterior,
da posse do outro que lhe dá prazer, do domínio do visível, da
penetração que não quer receber nada além de si mesmo. Certa-
mente, essa divisão do feminino e do masculino não é exatamente
aquela da mulher e do homem, então, pode-se deixar seduzir pelo
demoníaco. Como o homem não é mais masculino, mas fálico,
ela não é mais feminina, mas histérica: “A eterna Vênus (capricho,
histeria, fantasia) é uma das formas sedutoras do diabo”.6 Essa
eterna Vênus é a mulher que renuncia a intimidade do útero, isto é,
renuncia a um acolhimento fecundo do invisível.
Pode-se pensar, portanto, que a intimidade entre a mulher e a
serpente significa, em geral, a receptividade da graça contra o en-
cerramento em sua pura natureza. Por isso remete em particular,
e de maneira supereminente, à Santíssima Virgem, cuja intimidade
do útero é abissal, jamais atingida pelo fálico. A Tradição a mostra
pisando a cabeça da serpente. Essa pisada mariana, um instinto
delicado e infalível, representada sempre sem luta, como se fosse
5 Cf. Mc 4, 26-34.
6 Charles Baudelaire, Mons coeur mis à nu, XXVII.

184
um nada. Maria não vence o diabo como o Arcanjo. São Miguel
lança o dragão por terra, é ativo, alveja o Inimigo, brande a lança e
a espada. Nossa Senhora, ao contrário, se mantém sobre a serpente
como se não se desse conta de que ela estivesse lá. Maria não está
preocupada, não olha o seu calcanhar. Todo seu ser, na sua femi-
nilidade, é somente acolhimento ao Altíssimo. Ela esmaga Satanás
por acréscimo, porque não cessa de ser receptáculo transbordante
da graça. Por isso Satanás é melhor esmagado por ela do que pelo
Arcanjo: Maria sequer lhe dá a chance de um combate.
Depois do século XVI, os grandes comentadores do Gênesis
reconheceram na nossa passagem o que se chama comumente o
“protoevangelho”, isto é – logo que consumada a queda, no cora-
ção mesmo da maldição divina – ocorre o feliz anúncio do Verbo
feito carne, nascido de uma mulher e que trará a vitória sobre o
demônio. A propósito disso, escreve Grignion de Montfort:

A antiga serpente teme mais a Maria, não só mais que a todos


os anjos e homens, mas, num certo sentido, mais do que ao pró-
prio Deus. Não é que [...] o poder de Deus não seja infinitamente
superior ao da Santíssima Virgem, visto as perfeições d’Ela serem
limitadas. Mas é que, em primeiro lugar, Satanás, sendo orgulho-
so, sofre infinitamente mais em ser vencido e castigado por uma
pequena e humilde serva de Deus, e a humildade dela humilha
muito mais que o poder divino.7

Essa página é admirável do ponto de vista antropológico: Ma-


ria põe mais medo a Satanás do que Deus, não somente porque ela
é humilde (o que um anjo pode ser também), mas ainda porque ela
é carnal, ou, referindo-se às duas de uma vez, porque ela acolhe,
no seu ventre, a plenitude do mistério divino. Que o Espírito San-
to triunfe sobre o espírito mal, não há nada de anormal. Que ele
triunfe através de um espírito bem-aventurado, como o Arcanjo
Miguel, é bastante tolerável. Mas que ele o esmague através de
uma pequenina mulher, de carne e ossos, é algo totalmente insu-
portável ao espírito maligno, eis o que o humilha verdadeiramente,
e ainda realiza a sabedoria de Deus.

7 Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Vir-


gem, SAEM, 2002, Anápolis.

185
fabrice hadjadj

As entranhas femininas (rahamim em hebraico significa ao mes-


mo tempo entranhas e misericórdia) são, portanto, o sinal de re-
ceptividade da graça, mas uma receptividade espiritual e carnal,
que envolve o ser humano por inteiro. Isto remete, sem dúvida,
à caridade fraterna, à ação litúrgica, ao martírio. Esse horizonte
intransponível se encontra, contudo, na fisiologia mariana, na fi-
siologia desta mulher cuja inteligência e vontade, e também todo
o organismo em torno do seu útero-santuário, mobiliza-se exata-
mente como o de qualquer mulher grávida, no entanto, desta vez
tudo acontece para nutrir o Verbo, o Filho de Deus – assim, esse
corpo feminino torna-se um templo mais vivo e mais vasto do que
o Templo de Jerusalém, esse ventre tabernáculo, mais sagrado que
os tabernáculos de nossas igrejas.

Demoníaco e filiação
A inimizade não é apenas entre a mulher e a serpente; é tam-
bém entre duas linhagens (ou “sementes”, literalmente). Mas aqui
a mesma palavra designa duas realidades muito diferentes. A des-
cendência da mulher é carnal; a da serpente, espiritual. A primeira
depende da filiação no abraço; a segunda da sugestão no orgulho.
Quem diz filiação diz, portanto, duas coisas que o orgulho recusa,
a saber, o espírito da infância e a piedade filial. No Salmo, pode-
mos entender:

Teu louvor é cantado pela boca das crianças e bebês, qual


fortaleza contra o teu adversário, para abater o inimigo na sua
revolta.8

A fortaleza onde o inimigo é abatido não está na força, mas na


fragilidade.
Diferente dos puros espíritos, o homem, antes de estar maduro,
conhece o “verde paraíso dos amores infantis”. Os anjos nascem
imediatamente adultos, livres e perfeitos. Nós passamos por uma
fase de vulnerabilidade e dependência extremas, por essa mesma
razão, também de uma imprudência e abandono licencioso. Essa

8 Sl 8, 2-3.

186
passagem pela infância, que marca para sempre o íntimo do nosso
ser, é a melhor forma que o Altíssimo encontrou para nos pre-
servar, tanto quanto possível, do mal definitivo. Bernanos talvez
tenha sido o que melhor percebeu isso. Toda a sua obra é tomada
por essas duas polaridades contrárias da infância e do demoníaco.
É o que aponta Albert Béguin sobre o seu biografado:

Dificilmente há um personagem, em toda a obra de Bernanos,


que um dia não se volte para sua infância e não guarde obscu-
ramente, mesmo no seio da pior degradação, a nostalgia de uma
aurora pura da vida.9

Citemos também as palavras de Simone Alfieri à Emmanuel


Ganse em Um sonho ruim:

Há talvez uma parte de vós que tenhas poupado até aqui.


Esquecido talvez. A infância tem vida dura! Só que, meu amigo,
tenha cuidado! Não é a primeira vez que um de vossos semelhan-
tes tenta tal coisa, e tão pressionados como estiveram em dar ao
público um delicado fragmento, penso que nenhum deles tenha
conseguido desenraizar completamente a criancinha que havia
sido outrora. Os mais espertos não dão senão vãos simulacros,
horríveis bonecos de cera. Em todo caso, se tal coisa existe ainda
em vós, guardai-a. É pouco crível que permaneça o bastante para
vos ajudar a viver, mas vos servirá seguramente para morrer.

Desenraizar de si a criancinha que se foi é tentar fazer-se anjo, e,


por isso, tornar-se demônio. Apresenta-se como uma espécie com-
pleta, sem vínculo de dependência com as outras criaturas, sem
uma origem para reconhecer, a não ser aquela que suas escolhas
fabricam, como um demiurgo de sua vida. A sentença de Bernanos
sobre Hitler é significativa: “M. Hitler não realizou senão os so-
nhos de sua idade madura”. Os sonhos da idade madura são aque-
les de domínio; as lembranças da infância são aquelas do maravi-
lhamento. Portanto, quando se espera tudo do crescimento de seu

9 Albert Béguin, Bernanos, Éd. du Seuil, col. “Écrivains de toujours”, 1954, p.5.

187
fabrice hadjadj

próprio poder, espera-se um dom que nos encante e que nos leve
para a eternidade. Por outro lado, a memória da infância torna-se,
o princípio dos retornos mais altos: a infância é em nós como uma
reserva, a lembrança dos possíveis, de uma certa inocência. Para o
velho homem que nela submerge, é o retorno a um frescor e a pos-
sibilidade de recomeçar. Mas por não ter infância, porque já nasce
adulto, o anjo não pode voltar atrás: suas escolhas são irrevogá-
veis, devem carregá-las para sempre, sem nenhuma possibilidade
de voltar atrás. Nós, ao contrário, temos o privilégio de sempre
poder recomeçar, até o limiar de nossas vidas podemos nos reabrir
ao mistério. A infância em nós é como uma fonte de renovação –
essa provisão de óleo que permite às virgens sábias estarem abertas
à imprevisível vinda. Se bem que o espírito da infância não é so-
mente docilidade a uma providência paternal, disposição à graça
– o que o anjo bom também possui – mas ponto de apoio para se
arrepender, possibilidade de voltar mesmo quando se tenha caído.
Porque as quedas, nos pequeninos, não machucam. E eles sabem
desarmar a cólera de seus pais, jogando-se nos braços deles.
A filiação também implica esta piedade que funda a comunida-
de fraterna. A grande tentação moderna, demo(no)crática, é tentar
constituir uma fraternidade sem pai, isto é, uma comunidade de
puros indivíduos, sem carga histórica, sem esse vínculo de carne
que escapa à escolha. Porque não escolhemos a família, nem a
língua materna, tampouco o próprio corpo. Portanto, a utopia li-
bertária seria enxergar-se um puro espírito, não tendo o dever de
assumir e purificar uma herança, ainda mais um demônio, que-
rendo reconhecer na autoridade do pai somente o poder e não a
ternura, é aquele que impõe ao invés de instruir.

“Filhos!” – exclama o subsecretário do Estado satânico –, “é


a palavra que ele [Deus] utiliza com seu gosto particular pela de-
gradação de todo o mundo espiritual através das ligações anor-
mais com os animais bípedes”.10

O Diabo quer reconhecer em Deus o Criador, mas reconhecê-lo


como Pai, jamais! Principalmente porque, depois que o Filho eter-

10 C. S. Lewis. Cartas de um diabo a seu aprendiz, op.cit., p.8-9.

188
no se fez carne, Deus se tornou o Pai destes animais desprezíveis e
pouco racionais, e seu Pai tanto no sentido espiritual como carnal:
como admitir essa fraternidade não escolhida, essa comunhão, não
com uma elite, mas com toda essa ralé de barro e sangue?
Assim, a fé teologal se enraíza nesta realidade carnal da filiação.
Ser um fiel, é ser um filho. Ora, ser filho, é assumir livremente uma
história que passa pelo corpo e que Deus atravessa fisicamente por
sua graça, apesar de nós e de nossos crimes, como nos revela Ma-
teus na genealogia de Cristo. Está dito no último livro da Torah:

O Senhor vos resgatou por amor a vós e para manter a pro-


messa que ele jurou a vossos pais.11

Não somente por amor a nós, como pretende o espiritualismo


gnóstico e a amnésia fundamentalista, desprezando a carne e a
terra, a cultura e a história; mas também por fidelidade à promes-
sa feita a nossos pais, através deste vínculo das entranhas que nos
obriga, contra toda tentação revolucionaria ou demiúrgica, a levar
a novidade dos frutos através da veneração das raízes (mas não
sem a poda dos ramos). Sem esse enraizamento filial, nossa fé só
pode desviar-se para o demoníaco.

Israel, ou o combate com o anjo


Essa fidelidade do Eterno à promessa feita a nossos pais nos
lembra que a fé, nos orientando para o Céu, nos situa melhor na
história. Ela não é uma sabedoria dedutível por si mesma, está,
antes de tudo, relacionada a um evento (aquele do Messias cruci-
ficado sob Pôncio Pilatos e ressuscitado ao terceiro dia, segunda
as Escrituras), portanto, supõe o reconhecimento de um passado
comum e essa dívida infinita para com uma imensa corrente de
testemunhas que, até mim, se sucederam. Ora, essa corrente está
provida de um forte elo, outro mistério carnal: a presença do povo
hebreu, herdeiro desta mesma promessa, a seus olhos ainda pro-
messa, mesmo quando havia chegado o tempo do seu cumprimen-
to. Eis, portanto, algo de estranho no meio das nações, assim como

11 Dt 7, 8.

189
fabrice hadjadj

às margens da Igreja. Eis um tipo de monstro que exatamente não


denota nem apego telúrico a um chão, a uns mortos, a um sangue,
nem pela entrada numa santidade oferecida a todos os homens. Os
Hebreus formam uma existência à parte, que não é aquela de uma
nação particular, nem aquela da Igreja universal. São irredutíveis
à história na sua dimensão natural, e também irredutíveis ao so-
brenatural, exatamente o se realizou de forma plena na hierarquia
apostólica. Desmancha-prazeres, opositores, consequentemente,
incitadores da crucificação. Compreende-se que toda tentativa to-
talitária se abata especialmente sobre eles: constituem um erro de
cálculo, uma operação estranha que não bate com o resultado, um
fenômeno paranormal, por assim dizer, sobre o qual tropeça a razão
que quisesse se fechar em sistema. Podemos agarrar a existência do
particular, podemos circunscrever seu movimento dialético ao uni-
versal, mas aqui estão eles, que toda vez se colocam atravessados,
às vezes arrancando os povos de seus particularismos estreitos, por
vezes impedindo o mundo de entrar num universalismo nivelador.
Eles são sinal de uma irrupção da eternidade no tempo. São o traço
desta graça que detém o beneplácito de Deus. É por isso que, até
o fim, eles serão escândalo para todo esforço de naturalização da
História. Que se inspire ela no hitlero-darwinismo, estimando que
o superior emerge de uma seleção natural; do puro liberalismo,
crendo que o melhor advém da livre concorrência do mercado; da
ideologia dos direitos humanos, remetendo tudo à igualdade dos
indivíduos sem pertença; do espírito revolucionário, querendo fa-
zer do passado tábula rasa, a política que recusa esse enigma da
história só pode tropeçar na presença dos Hebreus e se esforçar em
reduzi-los, ou bem por eliminação, ou bem por assimilação.
Como o demônio, aquele que recusa a provação que leva além
de si mesmo, não teria contra eles uma espécie de preocupação
eletiva? Sua singular presença está vinculada ao próprio mistério
da Encarnação. Tomás de Aquino o recorda:

Todas as nações deveriam ter acesso a salvação realizada por


Cristo, mas ele não poderia nascer que de um povo determinado,
de onde segue para esse povo prerrogativas exclusivas.12

12 Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, 98, 4, 1.

190
Tomar carne, para o Verbo, não supunha somente uma mu-
lher enquanto indivíduo fêmea, mas também uma filha enquanto
herdeira de uma cultura que ela transmite a seu Filho, dizendo de
outro modo, uma Hebreia. O Senhor, explica a grande teologia
católica, escolheu este pequeno povo, o formou à partir de Abraão,
Isaac e Jacó, deu-lhes leis para ser o berço do Verbo Encarnado.
Mas irradiando esse Verbo sobre as nações, a presença deste povo
se torna caduca? O homem adulto renegaria o ventre que o carre-
gou? O tempo das núpcias desprezaria aquele do noivado? Com a
casa nova construída, renegaremos o antigo lar? O demônio fre-
quentemente sugere aos cristãos que assim devem agir. Seu cami-
nho contra o mistério de Israel é multiforme: pode incitar os he-
breus ao orgulho da raça, como se sua eleição não tivesse sido dom
de Deus; ou lhes empurrar a se fundir no movimento da história
como um povo qualquer; ou incitar aos não-hebreus a fazê-los de-
saparecer como tais; ou ainda, mais especificamente, encorajar os
cristãos a crer que os hebreus são uma anomalia na epopeia da Sal-
vação, que todos deveriam tornar-se católicos, que sua resistência
atrapalha o triunfo da Igreja universal. Na verdade, esse mistério
de Israel, irredutível à Igreja visível, é interior à própria Igreja. É o
selo de sua secreta abertura. Porque coloca o externo no interno e
o singular no coração do católico, proíbe aos cristãos se fecharem
num universalismo da uniformidade e da mundialização. Há algo
que resiste. Há um dom de Deus sem arrependimento e que nos
recorda que, mesmo se ele se doa através de sua esposa, a Igreja, o
Eterno não é no entanto a propriedade dos cristãos.
Reconhecer o verdadeiro mistério de Israel é, portanto, necessá-
rio a quem não quer se perder na fé dos demônios. Assim se atesta
o amor da Encarnação. A esse propósito, São Paulo escreve na
Carta aos Romanos:

Não quero que ignoreis, irmãos, este mistério, para que não
vos tenhais na conta dos sábios.13

Ignorar o mistério de Israel é comprazer-se no próprio conhe-


cimento: essa não seria uma definição desta fé que se ensoberbece

13 Rm 11, 25.

191
fabrice hadjadj

ao dizer: Sei quem tu és: o Santo de Deus? Assim Tomás de Aquino


não teme em comentar a frase de Paulo: “Ignorantia huius mysterii
esset vobis damnosa – a ignorância deste mistério será para vós da-
nosa”. Os condenados ignoram a Israel, não por uma ignorância
teórica, porque assim não seriam culpáveis, mas por uma ignorân-
cia prática, ativa, orgulhosa, porque a eleição hebraica é um teste-
munho da humilhante gratuidade da graça e da vocação divina da
carne. Satanás, recordemos, quer ficar no toma-lá-dá-cá da pura
natureza, num tipo de fé monetária, e acha iníqua essa elevação da
carne humana à categoria dos puros espíritos: não pode denunciar
essa Eleição a não ser como uma injustiça maior.

Corpo e oferenda
O peso do corpo, na oração, ainda é o que coloca o homem aci-
ma do diabo. É o que podemos ver numa sequência do Evangelho
de Mateus, que se desdobra entre o primeiro e o segundo anúncio
da Paixão, ao redor da Transfiguração no Tabor.14 Esse breve con-
junto, intercalado entre dois capítulos, basta para implantar uma
espiritualidade da carne contra a espiritualidade do orgulho. Pedro
acabara de fazer sua profissão de fé: Tu és o Cristo, o filho de Deus
vivo, ao qual Jesus lhe responde: Bem-aventurado és tu, Simão, fi-
lho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso,
e sim o meu Pai que está nos céus. Nesse ponto, uma leitura apres-
sada poderia deixar crer que a carne e o sangue são maus, que não
participam na glória futura, e que Pedro se sente confiante num es-
piritualismo presunçoso. Mas eis que Jesus anuncia sua crucifixão,
a qual só pode ter lugar pelo ministério da carne.
Pedro protesta, como sabemos, contra a ignominia deste sofri-
mento corporal lançado ao coração do Deus vivo, e é então que
Jesus lhe ordena: Vai-te para trás de mim, Satanás. Depois ele
enuncia a seus discípulos a condição para segui-lo e não se deixar
enrolar pelo príncipe das trevas: Se alguém quiser vir atrás de mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Se a carne não
basta (nem toda a ordem natural) para confessar a fé teologal, ela
é ao menos necessária para que esta fé se testemunhe na oferenda.
Porque o que especifica o homem em relação aos anjos é poder

14 Mt 16, 21-17, 22.

192
oferecer seu corpo, o que Jesus chama “sua cruz”, com um pos-
sessivo de desapropriação. Neste mundo ferido, isto é, tão satura-
do de arrogância, se oferecer implica a se abrir, e se abrir implica
sofrer, de modo que essa oferenda, impossível a toda hierarquia
angélica, não tem outro sentido para o discípulo a não ser carregar
sua cruz. Charles de Foucauld descobriu isso desde muito cedo:
nossa grandeza com relação às criaturas celestes se encontra nesta
pequenez de nossa carne passível:

É preciso tirar a força da minha fraqueza, servir-se por Deus


desta própria fraqueza, agradecer-lhe por esta dor, oferecê-la a
ele... Neste triste mundo, temos um fundo de felicidade que não
tem nem os santos nem os anjos, aquela de sofrer com nosso
Bem-amado.15

Essa doutrina em si mesma é muito dura. Difícil de admitir, ou


melhor, admiti-la facilmente seria um grande perigo – o de cair
num dolorismo.16 É, portanto, necessário completá-la com aquilo
que é a fonte de júbilo. E eis aqui o evento do Tabor: seis dias após
essas palavras, o tempo que levou para a criação do mundo, a
Transfiguração nos faz retornar a essa recriação. Ela mostra fisica-
mente aos discípulos que o corpo é chamado à glória divina. Essa
antecipação passageira da ressureição é para lhes dar o sentido da
Paixão: não o sofrimento por si mesmo, mas para estar no paraíso
hoje.17 A passagem de um para o outro se opera através do ato
de oferenda. Sem este hedonismo cristão, o corpo não seria mais
que um bode expiatório para o deleite do demônio. É preciso sua
vocação à alegria para que esteja aberta à cruz sem uma compla-
cência mórbida.
Vem depois uma questão sobre Elias: no Tabor ele apareceu
com Moisés, cujo corpo morto foi subtraído aos Hebreus pelo Se-
nhor para evitar a idolatria. Já Elias teve o corpo vivo elevado num
carro de fogo, para incitar a esperança. Aqui estamos totalmente
na questão do corpo na salvação. A questão que se impõe, “Elias

15 Charles de Foucauld, Lettres et Carnets, Éd. du Seuil, 1966, p. 26.


16 Devoção ou apologia mistificante da dor – NE.
17 Cf. Lc 23, 43 – ao bom ladrão: “...hoje estarás no comigo no Paraíso”.

193
fabrice hadjadj

não deveria vir primeiro?”, pode ser entendida como, “o que acon-
teceu com aquele corpo que não conheceu a morte?”. Ora, Jesus
responde que Elias já veio, mas não o reconheceram, ao contrário,
fizeram com ele tudo quanto quiseram: assim também o Filho do
homem irá sofrer da parte deles. Os discípulos compreenderam
que ele fala de João Batista, certamente, e do caráter insubstituível
do corpo: Elias não devia reencarnar, sua vinda em João Batista
é a realização de sua missão por um outro. Mas Cristo aqui fala,
insistindo sobre o vínculo entre a carne e a glória, como que ar-
ticulando dois episódios precedentes do anúncio da Paixão e da
antecipação da Ressurreição: aquele que se espera para a instau-
ração do Reino irá sofrer como um malfeitor.
Sucede o pai do menino epilético que muitas vezes cai no fogo,
outras muitas na água, e que pede a Jesus que tenha piedade dele:
Eu trouxe a teus discípulos mas eles não foram capazes de curá-lo.
Subitamente Cristo exclama a seu encontro: Ó geração incrédula e
perversa, até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei?
Ele expulsa o demônio do menino e depois acontece esse diálogo:

Então os discípulos, procurando Jesus a só, disseram: “Por


que razão não pudemos expulsá-lo? – Por causa da fraqueza de
vossa fé, pois em verdade vos digo: se tiverdes fé como um grão
de mostarda, direis a esta montanha: transporta-te daqui para
lá, e ela se transportará, e nada vos será impossível. Quanto a
esta espécie [de demônio], só se pode expulsar à força de oração
e de jejum.”

Esse último versículo é omitido na Bíblia de Jerusalém, por-


que está ausente em certos manuscritos e parece uma importação
amplificada de Marcos 9, 29. É, contudo, decisivo no contexto
que identificamos. Não é surpreendente que a ausência de fé esteja
relacionada à ausência de oração e de jejum? Que relação há entre
pular uma refeição e mover uma montanha? Vemos que, com esse
versículo, pode-se concluir nossa sequência antes do aviso da Pai-
xão vindoura: insiste uma vez mais sobre a união da fé e da carne,
e tira da Transfiguração esse princípio prático: a oração e o corpo
devem se unir, no discípulo, para resistir ao demônio.

194
Que significa o jejum, de fato, senão a participação do corpo
na oração? Alguns padres nele veem uma imitação da vida angé-
lica. Isso não quer dizer que jejuar é fazer como se estivéssemos
sem corpo. Sucumbiríamos à influência de um certo dualismo.
Além disso, os anjos não jejuam: regalam-se intelectualmente
sem cessar. O jejum é um ato do corpo, e se imita os bem-aven-
turados serafins, não é tanto porque ele nos faz puro espíritos,
mas porque ele tende a fazer apresentar, na oferenda, o nosso
ser inteiro, da fina ponta da alma até ao meandro das entranhas.
Nenhum desprezo da carne nem espiritualismo ostensivo: exige,
ao contrário, que cuidemos da pele, que escondamos o esforço
sob uma bela e leve aparência:

Tu, porém quando jejuares, perfuma a tua cabeça e lava teu


rosto para que os homens não percebam que estás jejuando, mas
apenas o Pai que está lá no segredo.18

Aqui se encontra o fundamento teológico de uma santa ma-


quiagem: quem jejua deve se perfumar; quem faz penitência deve
usar cosméticos. A mortificação não deve ser mortal para si e para
os outros, mas como a poda das árvores, concentra a seiva vivi-
ficante e permite as flores abrirem em esplendidos botões. Tal é a
espantosa sabedoria do Verbo feito charme, muito distante de toda
anorexia suicida.
O jejum, mesmo que não se fizesse pela privação de alimentos,
está lá para marcar a exigência de uma oração encarnada. Porque
a oração não é evasão. Rezar por um amigo doente, é tomar se-
riamente sua doença e ter experimentado diante dela sua própria
impotência. Não é o refúgio da inação, mas como a fonte e o ápice
de uma ação ordenada, que orienta a saudade do corpo também
para a santidade da alma. Mas para isso é preciso implicar a carne
que se oferece e sofre pelos outros: “A encarnação é a garantia que
nós não somos no imaginário”.19

18 Mt 6, 17-18.
19 Joseph Ratzinger, O Espírito da Liturgia, trad. Franc. G. Català, Ad solem, Genebra,
2001, p. 175

195
fabrice hadjadj

Meios pobres para mais alta riqueza


Essa afirmação do corpo na oração e no jejum marca também
o poder de sua nudez. A fecundidade espiritual do corpo não vem
dos numerosos artefatos pelos quais poderia se prolongar. Gregó-
rio Magno observa que o diabo, puro espírito, não tem necessida-
de de riquezas materiais e que, de boa vontade, deixa-as para nós.
Mas essa liberalidade serve para lhe dar mais capturas: ele pode
nos possuir por nossas possessões; pode nos levar pela coleira por
conta das as coisas às quais estamos apegados. O despojamento é,
portanto, o melhor escudo espiritual. A nudez, nossa mais sólida
armadura. Como Jacó no quadro de Delacroix, é preciso tirar as
armas mais pesadas para lutar com as mãos nuas, como numa
dança, com o anjo do Senhor. Como o jovem Davi no vale de Elá, é
preciso rejeitar o pesado equipamento de Saul para desafiar Golias
num combate singular:

Os espíritos do mal não possuem nada de próprio neste mun-


do. É, portanto, nus que nós devemos lutar com seres nus. Porque
se um homem vestido luta com um homem nu, ele é rapidamente
lançado à terra, porque oferece possibilidade de ser agarrado. E
o que são, com efeito, todos os bens terrenos, senão tipos de ves-
timentas para o corpo? Aquele pois que se apressa em combater
o diabo, deve rejeitar suas roupas para não sucumbir.

Mas Gregório adverte imediatamente:

Não basta abandonar o que é nosso, se não abandonamos


também a nós mesmos.20

Se nos orgulhamos desta nudez, semelhantes àqueles campeões


de jejum que desprezam seus irmãos pouco dotados para a ascese,
tornamo-nos semelhantes àquela serpente da qual nos diz o Gê-
nesis que era o mais nu de todos os animais do campo. Estar nu
para lutar contra o demônio é, ao mesmo tempo, uma exigência e
uma provação: se colocando armas iguais, corre-se o risco de ser

20 Citado e traduzido por Jean-Louis Chrétien, La Voie nue, Ed. de minuit, 1990, p. 41

196
conduzido a seu terreno. A nudez deve chegar até a essa desapro-
priação que consiste, segundo Francisco de Sales, a

colocar todas as coisas nas mãos de Nosso Senhor para dispor


delas como for do seu agrado e servi-lo sem elas assim como com
elas.21

Jacques Maritain havia identificado bem o perigo de uma Nova


Evangelização que negligenciasse essa nudez para reduzir sua novi-
dade à velha tentação: se contentar em recorrer aos grandes meios
do mundo, bastando integrar as tecnologias novas. Ele recorda
que o apostolado de Jesus não se operou senão através da simples
presença do Corpo numa túnica inconsútil:

Quais foram os meios temporais da Sabedoria encarnada? Ele


pregou nos vilarejos. Ele não escreveu livros, é ainda um meio de
ação demasiado carregado de matéria, não fundou jornais nem
revistas. Ele não preparava discursos nem conferências; abria a
boca, e o clamor da sabedoria, o frescor do céu passava pelos co-
rações. Que liberdade! Se ele tivesse querido converter o mundo
pelos grandes meios de poder, pelos meios temporais ricos, pelos
métodos americanos, poderia ser mais fácil. Alguém não lhe ofe-
recera todos os reinos da Terra? Haec omnia tibi dabo. Que oca-
sião de apostolado! Não se encontrará jamais outra semelhante.
Ele a recusou.22

Mais do que nunca, nos graves tempos de uma digitalização do


anúncio e de uma comunhão banda larga, é preciso insistir na atu-
alidade, na permanente novidade da proximidade física na ordem
mais espiritual. O que não quer dizer que é preciso desprezar li-
vros, jornais, conferências, multimídias, superproduções, mas ape-
nas compreender que esses meios pesados, superiores quando se
trata de vender uma mercadoria, são inferiores quando se trata do

21 São Francisco de Sales, Conversações espirituais, in Oeuvres, La Pléiade, 1969, p.


1035.
22 Jacques Maritain, Religion et Culture, III, in Oeuvres complètes, vol. IV, Saint-Paul,
1983, p. 233.

197
fabrice hadjadj

testemunho da fé. Eu posso pregar o amor ao próximo com uma


ferramenta de propaganda em massa, com transmissão mundial
via satélite. Mas vale mais pregar esse amor numa proximidade
corporal, sem a mediação de alguma tela, porque, se a ferramenta
da propaganda em massa tem uma excelente eficácia para a pro-
moção de um slogan de ódio ou de um console de videogame, é
impotente para conhecer uma pessoa e inócua quando se está na
sua presença. Podemos até mesmo pensar que há tanta distância
entre o amor ao próximo e a Boa Nova virtualizada, quanto entre
o abraço conjugal e a pornografia. Esses meios, escreve Maritain,

são os meios próprios do mundo. Depois do pecado de Adão,


manifestam o domínio do príncipe deste mundo. Nosso ofício é
arrancá-los dele, pela virtude do sangue de Cristo. Seria absurdo
desprezá-los ou rejeitá-los, porque são necessários, fazem parte
do tecido natural da vida humana. A religião deve consentir em
receber sua ajuda. Mas convém a salvação do mundo que a hie-
rarquia dos meios seja salvaguardada, e suas justas proporções
relativas.23

O filósofo ainda explica que, no domínio da fé, a hierarquia é


inversa. Os meios temporais ricos e pesados do poder mundial es-
tão subordinados aos meios temporais pobres e leves do apóstolo:
Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias e a ninguém saudeis
pelo caminho.24 Essa pobreza é o meio mais rico contra aquele que
oferece todos os reinos da Terra.
De resto, devemos crer que para uma excelente comunicação o
Criador nos equipou com nosso corpo, nossos olhos, nossas mãos,
nossa boca, de tudo o que é preciso para ir ao essencial. Se a tele-
fonia móvel fosse o melhor meio neste caso, podíamos estar certos
que seríamos dotado do poder de telepatia. Mas este não é o caso.
Somente nossos braços abertos são próprios para abraçar um ir-
mão. Só as palmas das mãos têm o poder de acariciar uma face. É
preciso que nossas bocas deixem o megafone para serem capazes
de beijar. A nós foi dado um modelo de comunicação perfeita, que
se encontra nos sacramentos. É ali que se comunica o que há de
23 Idem.
24 Lc 10, 4.

198
grandioso, e essa comunicação sempre se opera na proximidade
corporal, no contato físico: eis que o sacerdote submerge o homem
na pia batismal, impõe suas mãos para lhe dar a força do Espíri-
to, faz Cristo entrar na mandíbula em que será mastigado, alivia
a alma do horror que a possui, deixando o penitente se ajoelhar
diante dele... Nos sacramentos, sempre haverá presença mútua dos
corpos: impossível se confessar por MSN ou comungar pela web-
cam. Os mais altos dons do Eterno exigem a mediação desta carne
perecível, e antes que se difundir à distância, sem face, sem encon-
tro do próximo, a graça se torna mais viva ao ser oferecida por um
pároco bem gordo.
E isso algo terrível ao demônio. Nós vimos que, segundo Grig-
nion de Montfort, o demônio, de certo modo, teme mais Maria
que o próprio Deus, porque foi muito mais humilhante ter sido
esmagado por uma jovem moça do que pelo próprio Onipotente.
O que dizer quando é derrotado não apenas por um ser de carne,
mas por alguém que nem mesmo é imaculado, por um pecador
ordinário, por um pobre sacerdote que recita sua fórmula e atra-
vés do qual Deus dá sua misericórdia? O diabo não aguenta mais.
É um osso que fica atravessado na sua goela: ele detesta o sacer-
dócio com todas as suas forças. Esse divino poder que o expulsa
através de um corpo com milhares de achaques, é uma atrocidade!
Ele, o anjo que não conhece o peso da carne, que não está sujeito
aos limites do tempo e espaço cósmicos, pode ser abatido por um
velhinho barrigudo na paróquia de Pruillé-le-Chétif, às 18h47. E
depois, ele não pode mais jogar nosso imaginário sobre uma graça
invisível e distante que se poderia arrogar diretamente. Ele não
pode mais nos fazer sonhar com uma mística soberba que despre-
zaria um futuro ordinário.
Aqui nós tocamos no mistério do papado. Muitos viram nele
uma instância diabólica pervertendo o espírito do Evangelho:
cesaropapismo denunciado pelos ortodoxos, papa-anticristo de-
signado por Lutero... Certamente, a primazia de Pedro afirmada
por Jesus é imediatamente seguida pelo “Vai-te para trás de mim,
Satanás!” Se o demônio é humilhado pelo sacerdócio, só lhe resta
atacar os sacerdotes, fazê-los alvos privilegiados de seu amor. E
cada um que se eleva na hierarquia apostólica, se abate voluptuo-
samente sobre ele: com que aspereza, desde então, não se lançará
sobre o Soberano Pontífice, a fim de lhe dar o gosto do poder

199
fabrice hadjadj

e do aparato! Mas considerar apenas este abuso possível é passar


ao largo da coisa querida por Deus. Pois a instituição pontifícia é
contraria radicalmente ao espiritualismo demoníaco, porque é uma
consequência extrema da Encarnação. Isso agradaria a este tão puro
espírito impuro, que o cristianismo seja apenas uma série de dogmas
ideais, um corpo de doutrina, mas sem nenhum corpo palpável. Não
há dúvida de que esse corpo lhe fornece um playground para suas
sugestões demoníacas, mas sendo o lugar da irradiação divina, nada
lhe podia ser mais desesperador. O que se passa com o papa é o mes-
mo que com o mártir: ele é vigário de Cristo, de modo que o cristia-
nismo não é uma ideologia, mas um magistério vivo. Seus fiéis não
se reúnem somente em torno da unidade de ideias generosas, mas
em torno da unicidade deste próximo em carne e osso, com seu jeito
expressivo particular, sua descendência e nacionalidade, assumindo
as dolorosas vicissitudes da história; talvez tenha seus tiques que o
tornem antipático ou tão facilmente caricaturável. Tudo isso impede
de pairarmos no espaço de uma abstração, obrigando que a relação
com o Evangelho se exerça por uma caridade concreta e filial para
com o velhinho de branco: um pobre coitado, no fundo, se o consi-
deramos com relação à Majestade divina, mas por isso mesmo um
exemplar destes pobres coitados que somos nós, um sinal sensível
do Verbo que se fez um de nós.

Se tu não amas a teu irmão a quem vês


É São João quem fala:

Nisto se revelam os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo o


que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele que não ama
o seu irmão. [...] Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia seu
irmão, é um mentiroso; pois quem não ama seu irmão, a quem vê,
a Deus, a quem não vê, não poderá amar. E este é o mandamento
que dele recebemos: aquele que ama a Deus, ame também seus
irmãos.25

A linha divisória entre os filhos de Deus e os filhos do diabo não


está, portanto, entre aqueles que dizem “Amo a Deus” e aqueles que
dizem “Não o amo”. A primeira carta de João faz o fiel ver essa

25 1Jo 3,10; 4, 20-21.

200
possibilidade para ele mais perigosa: declarar melosamente, “Amo a
Deus”, e não ser mais que um filhote do demônio. Portanto, a ver-
dadeira separação está entre àqueles que amam o irmão que veem,
ou seja, que amam seu próximo, e aqueles que são “misadelfos” (ou
como diríamos, misóginos) isto é, que o detestam ou, sendo mais
preciso, que o amam especialmente quando não o veem.
Essa palavra recorda que o amor de Deus e o amor do próximo
formam um só mandamento que, como a lua sob o sol, possui sua
face oculta e sua face visível. O problema é que podemos confun-
dir a escuridão da sombra – devido ao próprio poder da luz –, com
a escuridão das trevas – devida à sua ausência. Como saber que é o
Deus invisível que se ama, e não alguma outra devaneio produzido
para acalmar a nossa consciência?
Acaba se tornando tentador, para evitar a ambiguidade, incli-
nar-se a uma visibilidade sem sombra – o amor do homem, tão
evidente, tão acessível –, e não mais se preocupar do amor Deus,
tão obscuro, tão indeciso. Mas conhecemos a história de Peter
Schlemihl,26 que vendeu sua sombra por uma bolsa de onde tiraria
dinheiro sem-fim: a perda da sombra é a perda da alma. E a luz na
qual nos encontramos só pode ser uma luz falsa – um sol de Satã –
como essas luzes de led circulares de supermercados, que falseiam
um meio-dia para tirar as sombras.
Mas não há dúvida de que a ressonância do mandamento Ama
teu próximo através da história tornou possível o ateísmo mo-
derno. E reencontramos o príncipe deste mundo, como porta-es-
tandarte nos dois campos de batalha, e chocando com sua dupla
progenitura: aqueles que pretendem amar a Deus sem amar seu
irmão, e aqueles que pretendem amar seu irmão sem amar a Deus.
De um lado, a teocracia desumana; o do outro, o humanismo ateu.
Contra essa divisão indolente, é preciso insistir sobre dois pon-
tos. O primeiro, é que amar o próximo significa querer seu bem.
Não se trata de bons sentimentos, mas de objetividade da beatitu-
de: em que consiste esse bem capaz de encher esse próximo de ver-
dade? Qual é a felicidade verdadeiramente sua e não apenas um
projeto meu para ele? Qual é, além disso, a alegria capaz de resis-
tir à injustiça e a morte? E como darei isso a ele, eu que sou mor-

26 Cf. Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schelemihl.

201
fabrice hadjadj

tal e corroído pelo pecado? Neste momento descobrimos nossa


impotência radical para, por nossas próprias forças, buscar para o
próximo o bem pessoal e incorruptível que o amor exige. Então se
revela, apesar de nossos bons sentimentos, a nossa incapacidade
de amá-lo por nós mesmos efetivamente. Pois eu quero que minha
filha seja aluna da Escola politécnica, porque se essa não for sua
vocação, pode ser que ela vire puta (o que não significa que ela
não tenha passado no vestibular). Depois, de qualquer modo, em
breve será consumida pelos vermes – e contra isso, nada poderei
fazer. Como então não clamar ao Céu? Como, ao menos que seja
um amor banal e frio, não reclamar um Salvador? Mas, mesmo
não considerando o aspecto feliz de nossa condição, como não
reconhecer que toda alegria verdadeira passa ao largo de nosso
poder, e aparece sempre como uma graça? Assim a face visível
remete à face obscura, e o amor do outro não está assegurado se-
não no amor daquele Outro, o único que me permite não reduzir
o próximo às minhas ambições, mas dirigi-lo a si mesmo e ao seu
próprio caminho em direção à mais alta alegria.
O segundo ponto é que aqui se trata do amor ao próximo. Ora,
qual é a pessoa que responde a essa denominação? Aquela que eu
posso ver e nomear por seu nome próprio, que se encontra aqui
bem ao lado do meu caminho ou contra ele, e com quem, tal-
vez, não tenha afinidades especiais; resumindo, aquele com quem
eu cruzo e que se torna a minha cruz. A parábola na qual Jesus
responde a questão “Quem é o meu próximo?”, nos fala de um
sacerdote e de um Levita que caminham em direção a Jerusalém
e veem por terra um viajante ferido.27 O que esses dois crentes
sagrados vão fazer em Jerusalém? Pregar o amor ao próximo, na-
turalmente. Mas estão tão preocupados e absorvidos com sua pre-
gação que têm pouco tempo a perder com aquele pobre jogado
ao chão. É certo que são verdadeiros filantropos que, em nome de
Deus, amam o Homem. Mas esse amor ao Homem, que inspira as
mais líricas declamações, permite também negligenciar o amor ao
próximo. Têm o apostolo Judas como herói: quando, em Betânia,
Maria Madalena toma uma libra de nardo para ungir os pés de
Jesus (o pobre por excelência, porque Deus mesmo se lançou ao
mais baixo fundo de nossa miséria), Judas reclama o desperdício,

27 Lc 10, 31-32.

202
declara que com os trezentos denários que custa esse perfume, te-
ria se podido ajudar os pobres e tirar uma glória humanitária. O
stárets Zosima, no Os Irmãos Karamazov, relata a propósito de
seu amigo médico:

Eu amo a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto


mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pesso-
as em particular, como indivíduos. Muitas vezes tenho sonhado
apaixonadamente em servir à humanidade, e talvez tivesse verda-
deiramente subido ao calvário por meus semelhantes, se tivesse
sido preciso, muito embora não possa viver com ninguém dois
dias no mesmo quarto. Sei-o por experiência. Desde que alguém
está junto de mim, sua personalidade oprime meu amor próprio e
constrange minha liberdade. Em 24 horas, posso mesmo antipa-
tizar com as melhores pessoas: uma, porque fica muito tempo na
mesa, outra, porque está resfriada e só faz espirrar.28

E Ivã, o revoltado, declara mais adiante a seu irmão Aliocha:

Jamais pude compreender como se pode amar seu próxi-


mo. É precisamente, na minha ideia, o próximo que não se
pode amar, ou somente à distância.29

Quem não se reconhece nestas confissões? Com o amor ao


próximo, acabaram-se os ideais! Fora aos belos discursos! Morte
aos devaneios românticos! É preciso suportar esse glutão e seus
espirros. Mas onde encontrar força? O amor sem ilusão daquele
que está perto é para nós o há que de mais difícil, nossa vaidade
repugna isso e nossa autossatisfação se sente agredida. No amor,
temos bastante força para atravessar milhares de quilômetros com
pensamento, mas parece necessário uma graça divina para dar um
só passo. É preciso crer num positivíssima providência para pensar
que este indivíduo que atravessa o meu caminho, me fora enviado
por Deus em pessoa.

28 Dostoievski, Os Irmãos Karamazov, op.cit, p. 55


29 Ibid., op.cit, p. 250

203
fabrice hadjadj

O sentido da procedência divina desses indivíduos remete ao


que a tradição designa com um nome um tanto desolador, mas que
encobre a abertura mais concreta à providência: o dever de estado.
A Vida, por meio do meu corpo, me coloca num lugar e numa fun-
ção com uns próximos que me são dados, e obrigações que fazem
minha vocação própria. Não devo desertar deste posto avança-
do; é aqui que devo amar, porque é somente aqui que eu posso
amar realmente. São Francisco de Sales insiste nessa situação local
e particular do mandamento divino como sendo “a maior e menos
entendida palavra da conduta espiritual”:

E quem quer que não o cumpra, mesmo que ressuscitasse


os mortos, não deixa de estar em pecado e condenado, se assim
morrer. Como, por exemplo, é ordenado aos bispos visitar suas
ovelhas, ensiná-las, endireitá-las, consolá-las; ainda que eu fique
toda a semana em oração, que jejue toda minha vida, se não faço
aquilo que me é ordenado, eu me perco. Que uma pessoa faça um
milagre no estado do matrimônio, mas que não cumpra sua parte
no dever conjugal ou não se preocupe com seus filhos, é pior que
um infiel, diz São Paulo.30

De fato, é espiritualmente demoníaca. A falta do demônio não


é, como dizia Tomás de Aquino, “rezar sem observar a ordem re-
querida por Deus”? Assim também, se eu me consumo em oração
quando deveria socorrer meu irmão, se eu ressuscito um morto
quando deveria dormir com minha mulher (é o exemplo que usa
São Francisco de Sales) eu me afundo na fé dos demônios.
Aqui também há um certo espiritualismo que faz obstáculo.
Para não cair nele com Satanás, a caridade quer que a fé na En-
carnação se torne uma fé encarnada, e que o amor de Deus se
comprometa no amor de tal corpo vulnerável. Como escreve jus-
tamente Denis Vasse: “Só a referência ao corpo faz do homem um
próximo para um outro homem”.31 E é essa referência que faz mal

30 Citado pelo Cônego Vida, Aux sources de la joie avec Saint François de Sales,
Monastère de la Visitation, Annecy, 2006, p. 29. Existe uma tradução brasileira desta
obra publicada: As Fontes da Alegria Com São Francisco de Sales¸ Editora Loyola,
1974.
31 Denis Vasse, Le Temps du désir, Éd. du Seuil, col. “Points-Essais”, 1997, p. 41.

204
ao diabo, porque o homem espiritual é favorável a fé, desde que
seja desencarnada; e se faz voluntariamente promotor da caridade,
desde que seja apenas no discurso ou na distância.
Não esqueçamos que ele também é invisível. Frequentemente,
não sei por que, quando se fala de invisível, se sonha com coisas
boas e reveladas. Mas a palavra convém muito bem ao pande-
mônio. O que faz o fundo de sua raiva, a esse pandemônio, é que
pela Encarnação o Eterno se tornou visível numa criança, e que o
visível, daí em diante, seja o único caminho ao Deus invisível, que
o corpo, agora, esteja em contato direto com o Verbo infinito. Eis
porque ele promove tanto a idolatria como a iconoclastia, uma
imagem adorada por si mesma ou uma adoração odiosa a toda
imagem; eis porque ele encoraja o humanitarismo tanto como as
perseguições: um homem paparicado como um porco na engor-
da, ou um homem degolado como o gado que se abate. Artificio-
so, quer bem que se ame o seu próximo sem Deus. Semeador de
confusão, admite essa mística humanista, onde a caridade fraterna
reduz a nada a liturgia, ou ainda essa mística das rubricas, onde a
liturgia reduz a nada a caridade fraterna. Para ele, o essencial é se-
parar o raio do sol, é recusar esse mútuo envolvimento da carne e
do Espírito Santo – e do próximo com Deus – no verdadeiro amor.

Elogio de uma puta (retorno à Carta de São Tiago)


Tudo o precedente se encontra na Carta de São Tiago: fosse eu
exegeta, teria podido restringir meu propósito só a seu único co-
mentário. Em torno de sua afirmação central de que os demônios
são também crentes, ela não cessa, vinculando a fé às obras, de or-
denar seu desdobramento no corpo. Comparando essa Carta com
àquela de Paulo aos Romanos, o grande reformador declarava:

Esses dois textos são diametralmente opostos: é a fé que justi-


fica, e só a fé que justifica. Se alguém pode fazer concordar essas
duas passagens, colocarei meu barrete sobre sua cabeça e aceita-
ria que me tratasse de estúpido.32

32 M. Lutero. Propos de table, XLVI, trad. Franc. Louis Sauzin, Aubier, 1992, p. 348.

205
fabrice hadjadj

O subentendido, sem dúvida, é que a estupidez conviria antes


a quem se esforçasse para provar semelhante concordância. Mas
eu queria que aceitássemos até o fim seu desafio, e que a partir de
agora passemos a tratar Lutero respeitosamente como um estúpi-
do.
É necessário reconhecer que nosso Rabi Jacó leva um pouco
longe a inversão das perspectivas:

Com efeito, como o corpo sem o sopro da vida é morto, tam-


bém é morta a fé sem obras.33

Incrível paralelismo que inverte as relações: não seria mais lógi-


co ver a fé como o que dá vida às obras? A fé não está no lado do
espírito e as obras do lado do corpo? Ora, no texto de São Tiago
o que está do lado do corpo aparece como mais espiritual do que
o que está do lado do espírito. Compreende-se a perplexidade de
Lutero. Seríamos, por nossa vez, tentados a rejeitar a Carta de
Tiago como fora do cânon, como uma excrescência monstruosa.
Mas isso seria querer ligar a cada palavra um sentido tão unívoco
que se impediria a dinâmica desse jogo de palavras que liberta o
pensamento. Porque como já vimos, a fé, segundo São Tiago, não
é a fé teologal, não é a fides operans per caritas, de São Paulo. Ela é
uma fé sem confiança em Deus, puramente teórica. Externamente,
professa os mesmos artigos, permite até mesmo adorar, como o
endemoniado de Gérasa; interiormente, é de uma outra natureza.
Como distingui-las na substância? A árvore se reconhece por seus
frutos: embora sejam exteriores, só eles atestam o vigor da seiva.
As obras são sinais do sopro que anima uma fé viva.
Também a Carta de Tiago começa falando da provação da fé.34
Não nos enganemos sobre esse genitivo: é algo subjetivo, e não
objetivo. É menos a fé que é provada do que a fé que prova. A pro-
vação fundamental não é exterior: talvez não seja tão determinada
pelas perseguições do mundo ou pelas picadas do ateísmo, quanto
o seja pela concupiscência do próprio crente.

33 Tg 2, 26.
34 Tg 1, 3.

206
Cada qual é tentado pela própria concupiscência, que o ar-
rasta e seduz.35

Como se livrar desta ladeira?

Tornai-vos poetas da Palavra e não simples ouvintes, enga-


nando-vos a vós mesmos.36

Eu traduzi literalmente poïétaï por “poetas”, porque, melhor


que “realizadores” e “praticantes”, essa palavra sugere a inventi-
vidade da fé viva. Essa poesia se opõe a duas coisas sobre as quais
Tiago insiste por duas vezes, de uma e outra parte da menção prin-
cipal da fé dos demônios: o inchaço do discurso, a esquecimento
dos pobres.

Se alguém pensa ser religioso, mas não refreia sua língua, an-
tes se engana a si mesmo, saiba que a sua religião é vã.37

Aquele de que fala é, sem dúvida, apenas um ouvinte da Pala-


vra, ainda que seja o pregador. Mais precisamente, para ser ver-
dade é preciso que ele sangre. Se sua palavra é só um estratagema
para não entrar na poesia concreta da fé, se é apenas um discurso
moralizador, pondo nas costas dos outros fardos que ele mesmo
jamais carrega, sua pretensa evangelização, que visa o próximo,
coincide com a infestação demoníaca do próprio coração.
Além disso, a preocupação pelas riquezas é sinal de miséria te-
ologal:

Entesourastes como que um fogo nos tempos do fim! Lem-


brai-vos do salário, do qual privastes os trabalhadores que ceifa-
ram vossos campos, clama, e os gritos dos ceifeiros chegaram aos
ouvidos do Senhor dos exércitos. Vivestes faustosamente na terra

35 Tg 1, 14.
36 Tg 1, 22.
37 Tg 1, 26.

207
fabrice hadjadj

e vos regalastes; vós vos saciastes no dia da matança. Condenas-


tes o justo e o pusestes à morte: ele não vos resiste.38

Aquela fé morta é assassinada pela vontade de poder. Mas a ela


se opõe não uma vontade de poder contrária à que a sustentava no
seu princípio, mas a vulnerabilidade do justo (ele não vos resiste).
Pois se a fé é viva, é uma riqueza amplamente suficiente, não há
mais a preocupação de acumular outras, mas antes distribuir a sua
aos pobres, e até mesmo seu próprio sangue.
Eis-nos aqui diante da maravilha desta epístola, maravilha que
irrita tanto os moralizadores como os imoralistas, e todos os que
fazem a separação da carne e da verdade: entre aqueles de Abraão
e de Jó, o nome revelado no coração deste texto, como um brilhan-
te rubi da fé, é o de Raab, a prostituta de Jericó:

Da mesma maneira também Raab, a meretriz, não foi ela jus-


tificada pelas obras, quando acolheu os mensageiros e os fez vol-
tar por outro caminho?39

Estamos, no sentido literal do termo, em plena pornografia:


“prostituída” no grego de São Tiago, não se diz de outro modo a
não ser com a palavra pornè. Quanto aos dois espiões despacha-
dos por Josué/Jesus, eles são curiosamente designados pelo termo
aggélous, que significa “enviados”, mas que dá também “anjos”.
Anunciação à Puta, portanto, que prefigura à Anunciação à Ima-
culada. O confirma esse fio escarlate na sua janela pela qual ela
faz fugir os dois mensageiros, símbolo do sangue derramado que
resgatou os pecadores. Por esses dois detalhes, Santo Hilário de
Poitiers pode reconhecer em Raab uma figura de Igreja:

A meretriz recebe dois exploradores enviados por Josué para


reconhecer o país: a Igreja que congrega os pecadores recebe a
Lei e a Profecia enviadas por reconhecer a fé dos homens, e é por
elas que confessa que Deus é Deus no alto como aqui sobre a
terra. Porque após a geração espiritual do Senhor, seu nascimento

38 Tg 5, 4-6.
39 Tg 2, 25.

208
corporal é atestado por estas palavras: Depois disso ela apareceu
sobre a terra e no meio dos homens viveu (Br 3, 38). Destes mes-
mos exploradores, a Igreja recebe o sinal da salvação no escarla-
te, cor evidentemente simbólica, no plano das honras, da realeza,
e no plano físico, do sangue. Duas realidades que se aplicam à
Paixão, porque o Senhor foi revestido de um manto desta cor (Jo
19, 2) e que o sangue jorrou do seu lado (Jn 19, 34).40

Esse comentário acerca de Raab entrelaça a fé ao corpo, cen-


trando o episódio no mistério da Encarnação. Aparece-nos que
essa insistência sobre as obras não é um gosto pela ostentação:
Raab esconde os enviados. Não é tampouco uma declaração mo-
ralizante, como um aburguesamento da fé, valorizando a dama pa-
trona que distribui evidentes esmolas. Não, Raab é uma puta. Ela
manifesta simplesmente contra o espiritualismo demoníaco, que a
verdadeira fé irradia na carne, e que essa mesma que esteja afoga-
da no “pornô” pode frequentemente reflorir e entrar na linhagem
das matriarcas que fazem a genealogia de Cristo. Com efeito, Raab
desposa Salmon (“a paz”), um dos dois enviados provavelmente, e
se torna mãe de Booz, bisavó de Davi e célebre adormecido.41 Dan-
te se recordará. No seu Paraíso, ele coloca ambas no firmamento
do Céu de Vênus e na Rosa branca que se desprega ao redor de
Maria.42 Folquet de Marselha, o trovador que se tornou bispo, faz
esta surpreendente revelação: “Ela foi elevada antes de qualquer
outra alma no triunfo de Cristo”. Com Raab se cumpriria a pala-
vra de Jesus aos fariseus: As prostitutas estão vos procedendo no
Reino de Deus.43 Com Raab, em todo caso, se manifesta esta lei da
liberdade, essa magnificência da graça que escandaliza o demônio
e que salva o pecador:

O julgamento será sem misericórdia para aquele que não prati-


ca a misericórdia. A misericórdia, porém, desdenha o julgamento.44

40 Santo Hilários de Poitiers, Tratado dos mistérios, II, I, in Thèmes et Figures bibliques,
trad. franc. Carmelitas de Mazille, DDB, 1984, p. 50-60.
41 Mt 1, 5.
42 Respectivamente: Paraíso, IX, 114-120 e XXXII, 15
43 Mt 21, 31.
44 Tg 2, 13.

209
fabrice hadjadj

Está aqui uma zombaria insuportável ao Acusador: pressupõe


que ninguém salva a si mesmo, e que a verdadeira felicidade é um
dom. Tudo isso não é real, com efeito, se primeiro não reconheço
que todo dom precioso não vem de mim, mas vêm do alto e desce
do Pai das luzes no qual não há mudança nem sobra de variação.45
Daí procedem três consequências que exploramos com Tiago: 1ª.
O primado da escuta sobre o discurso; 2ª. O primado da caridade
fraterna sobre o enriquecimento mundano; 3ª. O primado das en-
tranhas da misericórdia sobre a lâmina do juízo (a possibilidade
da rameira se tornar uma santa). Fica evidente que a fé viva não
é nossa possessão, mas antes o que nos despossui, o que nos faz
entrar no ímpeto de uma doação que nos transpassa, da qual não
temos a iniciativa, e da qual não somos o fim. Na ordem teologal,
não temos fé; é a fé que nos tem. Sem que, desde que pretendo tê-
-la, eu posso me perguntar se não é antes o demônio que me tem.

45 Tg 1, 17.

210
SEGUNDA LIÇÃO
Aunque es de noche 1

Um demônio aparece a um ancião, dizendo: “Eu sou o Cris-


to”. Diante desta visão, o monge fecha os olhos. O demônio
lhe disse: “Eu sou o Cristo, porque fechas os olhos?” O ancião
respondeu: “Eu não quero ver o Cristo aqui em baixo, mas na
outra vida”. Diante dessas palavras, o diabo desapareceu.
— Apotegmas dos Padres do Deserto

Este é o risco do enganador...


Sobre a Tentação no deserto, nossa exegese não acabará nunca.
Nela se encontra, por exemplo, esse versículo exorbitante que po-
deria servir para séculos de meditação:

Então o diabo o levou à Cidade Santa, e o colocou sobre o


pináculo do Templo.2

Colocar Jesus no pináculo do local sagrado, não é o que deve


fazer o piedoso construtor de catedrais? Além disso, não está aqui
a primeira ascensão de Cristo, como uma paródia da Ascensão
futura? Mas há nestas poucas palavras um verbo ainda mais in-
quietante: paralambanein, tomar consigo. Esse verbo, Mateus já
o empregara anteriormente. E o colocou na boca de um arcanjo.
Quando José pensa em repudiar em segredo aquela de quem se
sente indigno, o Anjo Gabriel lhe aparece em sonhos: “José, filho
de Davi, não temas tomar contigo Maria, tua mulher”.3 Nosso

1 “Ainda que seja de noite”, refrão de um poema de São João da Cruz.


2 Mt 4, 5.
3 Mt 1, 20.

211
fabrice hadjadj

verbo aqui deixa a uma conotação nupcial. A passagem da Tenta-


ção que o emprega três capítulos depois, torna-se assustadora. O
diabo pode tomar consigo Jesus como José toma consigo Maria?
O grande escritor dominicano Louis Chardon confessa aqui seu
“horror”. Seu divino Mestre se deixa

abordar por Satanás no deserto, que estende suas mãos sacríle-


gas para abraçar sua majestade sagrada, apertá-la em seu seio e
enlaçá-la em seus braços, com o propósito de levá-lo sobre o pi-
náculo do templo e o cume da montanha. Jesus nas mãos de Sata-
nás! Quem o creria? Apertado contra o seu peito! Quem poderia
conceber algo tão terrível? Quem, estando entre esses abraços,
não desmaiaria de susto? Que ele faça o queira, não é coisa que
se pode facilmente persuadir. Que Jesus sofra com isso, que ele
permita acontecer, que tenha complacência e que precisamente
nisso acomode sua vontade àquela deste monstro infernal, seria
inacreditável se a impossibilidade pudesse encontrar lugar para
se alojar entre os objetos da fé.4

O fiel se assombra com esta permissão de Deus, deixando o


diabo ir até aquele abraço. É algo aterrorizante. Mas o cruzamento
desse terror é o caminho de uma paz insoldável. Porque o abraço
em questão nos faz ver que não há horror, mesmo o acoplamento
satânico, no qual o Salvador não tenha descido, de modo que, na
nossa noite mais escura, ainda se esconde uma luz inviolada.
Mas quer dizer também, inversamente, que na claridade mun-
dana, aquela da ascensão muito visível ao ápice do templo, pode
habitar o príncipe das trevas. Em Sob o Sol de Satã, as últimas
palavras do diabo disfarçado de mercador de gado adotam essa
sinceridade total que constitui o fundo de sua enganação:

Eu te tive sobre meu peito; eu te ninei sobre meus braços.


Quantas vezes ainda me deleitarás, acreditando apertar o outro
sobre o teu coração! Porque este é o tal sinal. Esse sobre ti é o
selo do meu ódio.5

4 Louis Chardon, La Croix de Jésus [1647], Éd. du Cerf, 1937, p.80


5 Georges Bernanos, Oeuvres romanesques, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1962, p. 184.

212
O selo do seu ódio é nos ninar em nosso amor próprio. Mas,
por mais fortemente que nos aperte, Cristo está sempre aí, ele que
se deixou apertar por todas as forças diabólicas até esgotá-las, e
espera nosso abandono. Porque Bernanos não teme fazer o santo
de Lumbres dizer que o falimento é definitivo, que já estamos ven-
cidos pelo demônio. Mas essa derrota não é nossa perda, é o co-
meço de nossa salvação. Tememos que um de vós não estime che-
gar tarde demais.6 O quê? Nós já caímos? Na hora certa! Ocorre
quando, depois de longo tempo, tarde demais para nossas forças,
nós começamos com a graça de Deus. Vencidos desde a origem,
não resta outra escapatória a não ser nos deixarmos vencer ainda
mais pelo Altíssimo:

Como ronda o diabo? Ele ronda como um leão rugir, procu-


rando a quem devorar (1Pe 5,8). Ó, quem não cairia nos dentes
deste leão, se um outro leão, o Leão da Tribo de Judá, não o tives-
se vencido? Eis, portanto o Leão contra leão, o Cordeiro contra
o lobo.7

No seu Science expérimentale des choses de l’autre vie, o Pa-


dre Jean-Joseph Surin afirma que, depois do advento de Cristo,
os demônios se esforçam mais para se unir aos homens, imprimir
na sua memória e imaginação similitudes com seus pensamentos,
enfim, macaquear a Encarnação. Isso não tanto porque o demônio
quer fazer-se carne, mas antes busca, fundindo-se com sua pre-
sa, desencarná-la, adormecê-la num sonho angélico ou bestial. Ele
não tem poder sobre nossa consciência, mas pode manipular nossa
imaginação e fazer pressão sobre nosso afeto: convidando-nos ao
orgulho, perturba nossa consciência ao ponto de nos fazer crer
que ela é muito melhor quanto mais nos tornamos maus, ou muito
piores à medida que a luz começa a atingi-la. “Tu me deleitarás,
acreditando apertar o outro sobre o teu coração!” A única maneira
de sair dela é evitar a vã introspecção e se confiar à inescrutável
misericórdia. São Paulo tem essa palavra:

6 Hb 4, 1.
7 Dom Anschaire Vonier, La Victoire du Christ, cap. 8, L´Oeuvre, 2009.

213
fabrice hadjadj

Verdade é que a minha consciência de nada me acusa, mas


nem por isto estou justificado; meu juiz é o Senhor.8

E São João tem essa outra palavra, similar:

Se nosso coração nos acusa, Deus é maior que o nosso coração.9

Em ambos os casos, trata-se de não se arvorar o juiz supremo,


embora seja um juiz compassivo, e não se fiar nas próprias luzes,
ainda que sejam brilhantes.

A graça da reconciliação
Vamos nos debruçar um instante sobre este fato: o demônio
posa como vítima. É a razão pela qual ele é chamado o Acusador.
Mas ele sabe também perdoar, na medida em que o perdão lhe
serve de instrumento de poder, e o autoriza a não ver sua própria
injustiça. Ele é mesmo “fanático de conciliação”.10
O que foram os grandes totalitarismos do século XX? Gran-
des tentativas de reconciliação definitiva, unicamente pelas forças
do homem (e quando se trata unicamente de nossas forças, cer-
tamente, o diabo dá uma mãozinha). O nazismo queria produzir,
através do Reich milenário, uma Europa enfim sã e unida. O co-
munismo queria nos tirar para sempre da luta de classes. Adal-
berto, assassino católico de Ruanda, explica assim o que motivou
o genocídio: “livrar-se de um perigo para sempre”, e Pio, outro
extremista, corrobora invocando “o desejo de ganhar a partida
definitivamente”.11
É, mais uma vez, a parábola do joio e do trigo. O Inimigo é
aquele que semeia a cizânia no meio do grão bom enquanto os ser-
vos dormem; mas também é ele quem sugere aos servos a intenção

8 1Cor 4, 4.
9 1Jo 3, 20.
10 Cf. Georges Bernanos, op.cit., p. 290.
11 Jean Hatzfeld, Une saison de machettes, Éd. du Seuil, col. “Points”, 2003, p. 254.
[Sobre o genocídio em Ruanda, entre abril e julho de 1994, o grupo extremista
étnico dos hutus massacrou a comunidade minoritária dos tutsis, chegando a 800 mil
assassinatos, muitos deles cometidos com enxadas, facões e machados – NE].

214
zelosa de eliminar toda erva daninha, e assim eliminar também o
trigo verde. Assim nossos grandes projetos reconciliadores se vol-
taram à destruição. Hoje ainda, com a maior compaixão possível,
o nobre projeto de fabricar um homem novo pacificado e aper-
feiçoado pela técnica, acabará por descartar o obsoleto sapiens
sapiens. E se consideramos o erro contrário, a fanática ambição de
submeter o mundo a Deus graças ao terror, não pode senão entre-
gar o mundo ao diabo.
O homem não deve ter a última palavra. Certamente, os agnósti-
cos poderiam dizer a mesma coisa: tanto o religioso como ideólogo
pretendem ter a última palavra, nós dizemos que Deus é incognos-
cível e assim somos bastante humildes. Evita-se o totalitarismo, sem
dúvida, mas não se evita a mutilação: uma vida de bruços, uma boca
metida no coxo. Porque, não havendo a última palavra efetiva, a
penúltima palavra se torna ipso facto a última palavra. O religio-
so fervoroso, longe de ser fanático, sabe que a última palavra é de
Deus, e que ele mesmo não a pode ter, nem para condenar nem para
absolver. Se condena por si mesmo, risca o erro e cai na superficia-
lidade; se absolve por si mesmo, corre o risco de laxismo e desliza
facilmente numa forma surda de chantagem: “Eu te perdoei, eu, o
inocente, a vítima, tu me deves portanto ainda mais!” Esse modo
de posar de vítima absoluta, reivindicando a justiça ou ostentando
seu perdão, está na origem de todas as revanches e essas extorsões
que se perpetram com muito mais crueldade, pois se creem justi-
ficados diante de sua consciência. Nesta justiça presunçosa, neste
perdão arrogante, encontra-se o demoníaco. Porque, pelo contrário,
a verdadeira reconciliação exige se deixar reconciliar primeiro com
o Pai das misericórdias, o único que pode transformar em irmãos os
fratricidas que somos, fratricidas desde a origem, fratricidas mesmo
quando pretendemos conceder um perdão do qual seríamos a fonte
pura. Assim São Paulo se apresenta aos Coríntios: não como mestre,
mas como débil embaixador de uma reconciliação da qual ele é o
primeiro beneficiário: Em nome de Cristo suplicamos-vos: reconci-
liai-vos com Deus.12 O que também quer dizer: “Sem Deus, não vos
deixeis reconciliar, pois isso seria uma diabólica ilusão”.
Para tentar se aproximar desta verdade, seria preciso reler a pa-
rábola do devedor implacável.13 Conhecemos essa história do servo
12 2Cor 5, 20.
13 Mt 18, 23-35.

215
fabrice hadjadj

insolvente que devia 100 mil talentos, o mesmo que dizer ‘uma
soma infinita’. Ele se lança aos pés de seu senhor para suplicar-lhe,
e o senhor, tocado pela piedade, lhe perdoa toda a dívida. Mas eis
que saindo leve por ter recebido essa graça, o servo torna-se mais
pesado para com um companheiro que lhe deve 200 denários, o
que, comparando com o que devia, representa um quase nada. O
texto diz que ele toma o seu credor pelo pescoço e, rejeitando sua
súplica, o faz cair na prisão. O que aconteceu? O servo, agora
sem dívida, posa de pura vítima inocente. Reclama para si toda a
justiça. Sem clemência, faz aplicar a lei, quando seria mais correto
ter exercido o perdão. No entanto, não teria sido a mesma coisa se
ele tivesse perdoado o companheiro, se tivesse remido sua dívida,
posando de pura vítima? Enfim, ele teria podido olhar seu deve-
dor do alto, como se fosse o princípio da misericórdia (querer ser
princípio do bem, já vimos, é onde está a origem do mal). O im-
placável piedoso lhe teria feito ouvir: “Olha só o que tu me deves,
porque eu te poupei da prisão. Veja! Eu esqueço até mesmo estes
100 denários, sim, eu os esqueço, e sempre te recordarei que eu
os esqueci...”. Por esse ângulo, ele insiste sobre uma outra dívida,
mais espiritual, e o encarcera numa outra prisão, psicológica, mo-
ral, mais aprisonante do que uma penitenciária.
Esta desigualdade da pura vítima face ao puro carrasco não
permite reconciliação verdadeira, mesmo quando advogasse uma
anistia geral. Ela não permite entrar numa fraternidade. Para per-
doar verdadeira e profundamente, sem usurpar uma posição divi-
na, seria preciso reconhecer que eu mesmo sou pecador, seja por-
que já pequei e depois recebi o perdão de Deus, seja porque, por
uma graça especial, fui preservado. Mas sei que sem essa graça do
alto seria apenas um carrasco mais infame que todos os outros
carrascos infames.
Só assim a verdadeira reconciliação se realiza. Não apenas pela
força do homem, mas antes pela sua fragilidade, por sua própria
miséria declarada que acolhe o outro miserável na Luz de uma
Misericórdia infinita. Estão sempre presentes as palavras de Paulo:
Pois quando sou fraco, então é que sou forte.14 Isso é crer que a
profecia de Zacarias se realizou: Contemplarão aquele que trans-
passaram. E avante! Todos deicidas! Eu o primeiro, o mais covarde,
14 2Cor 12, 10.

216
o mais frio sob a febre de um falso amor!... Só aí, portanto, que a
reconciliação pode ter lugar.
Aquele que carrega a fé teologal, essa fé que se diz tão conso-
ladora, deve primeiro aprender que é um assassino. Ele crê, fir-
memente, que levou o Filho à morte, e descobre que esse Filho se
juntou a ele no fundo de sua miséria para fazer-lhe misericórdia.
É assim, e somente assim, enquanto filho pródigo cujo retorno é
festejado pelo pai, e por derivação, que ele pode fazer misericór-
dia. Francisco de Assis, vendo um condenado à morte, reconhe-
ceu diante dele que, sem a Misericórdia divina, ele teria sido um
grande criminoso, e o condenado pode se arrepender. Catarina de
Sena bebe o sangue de um decapitado como se fosse para ela o do
Redentor. Como não seria o mesmo para Maria, a Virgem Imacu-
lada? Ela sabe, no seu coração, que sem essa graça antecipada vin-
da da Cruz de seu Filho ela seria, não mais a Filha de Sião, mas a
Grande Prostituta da Babilônia. E é por saber disso que a humilde
serva, na sua extrema pureza, pode ser considerada o “Refúgio dos
pecadores”. Se ela tivesse se acreditado imaculada por si mesma,
se tivesse se fiado de suas próprias luzes para ter a iniciativa da
misericórdia, enfim, se tivesse se pavoneado da sua plenitude de
graça como de algo que lhe era devido, teria sido filha de Satanás.
Mas ela é Mãe de Deus, e é por ter se entregue totalmente a Deus
como uma criancinha que não é nada sem seu Pai.

Do primeiro mandamento ou o ateísmo judeu-cristão


Não ter a última palavra, deixar-se tocar por uma transcendên-
cia, ser irradiado por suas claridades estreitas para entrar numa
luz cegante, este é o significado do primeiro mandamento. Certos
catecismos o enunciam sob uma forma positiva para melhor fa-
zer as rimas em “rás”: “Um só Deus tu adorarás” (“No Dia do
Senhor, repousarás”). “Teu pai e tua mãe, honrarás”, etc. Mas, na
Torá, ao menos no que se costuma chamar Decálogo, sua fórmula
é negativa: Não terás outros deuses diante de mim.15 Esse “mim”
faz do Decálogo não uma declaração de direitos humanos, mas
um diálogo amoroso, a relação de um Eu e um Tu; esse “mim” no
versículo precedente é referido ao Tetragrama, isto é, ao Nome im-
pronunciável: a parte positiva da fórmula nos lança num abismo.
15 Ex 20, 3.

217
fabrice hadjadj

Resta a negativa, ao nosso alcance: Tu não terás outros Elohim.


É teologia a marteladas. A alvorada de Deus começa com o cre-
púsculo dos ídolos. A fé reclama que não tenhamos mais outros
deuses: nesta perspectiva, sejamos perfeitamente ateus.
Os pagãos não se deixavam enganar. Como qualificariam as
pessoas que não faziam imolações ao Imperador, que negligencia-
vam Vênus e Mitra e faltavam a esse integrismo que desejava que
todos dormissem com as prostitutas sagradas? Aos seus olhos, não
parecia haver dúvida: os primeiros cristãos faziam profissão do
ateísmo. Eram culpados de um crime público. Por abandonar os
deuses à morte, deviam ser punidos com a pena capital, por isso,
Justino é obrigado a se defender:

Chamam-nos de ateus. Sim, certamente, somos ateus destes


pretensos deuses, mas nós cremos no Deus verdadeiríssimo, pai
da justiça, da sabedoria e das outras virtudes, no qual não se
mistura nada de mal.16

Tertuliano, por sua vez, invoca suas alegações:

Paramos de honrar vossos deuses desde o momento em que


reconhecemos que eles não são deuses. Portanto, o que vós deveis
exigir de nós é que provemos que eles não são deuses, e assim,
que não se deve render-lhes culto.17

Tal é a consequência do primeiro mandamento na sua formula-


ção negativa: provar que os deuses não são deuses. Assim, a fé im-
plica a razão; e a razão, crítica. O diálogo com o Deus vivo exige
que não nos enganemos de interlocutor e, portanto, que sejamos
ateus para todos os deuses mortos.
Nisso, o ateísmo moderno é uma heresia cristã. Deriva deste
ateísmo judeu e cristão. Pretende prolongar sua destruição dos
ídolos, mas faz do seu próprio martelo um ídolo. O gênio de Feu-
erbach está em situá-lo muito exatamente, não contra as religiões,
mas no seio de seu progresso histórico:

16 São Justino, Grande Apologia, em Oeuvres Complètes, Migne, 1994, p.25


17 Tertuliano, Apologética, X, L, Les Belles Lettres, 1929, p.25

218
A religião é o ser da humanidade na sua infância; mas a criança
vê sua essência fora de si, no homem: na infância, o homem é
o objeto para si mesmo sob o aspecto de um outro homem. É
por isso que o progresso histórico das religiões consiste no que
se considera agora como subjetivo, o que as religiões primitivas
tinham como objetivo, dito de outro modo, no que se conhece
agora como humano, o que antigamente era contemplado e ado-
rado sob as espécies de Deus. Para a que lhe sucede, toda religião
é idólatra.18

A confissão é estrondosa: é no ímpeto do combate mosaico con-


tra a idolatria que o ateísmo pretende se inscrever como última
etapa e também seu coroamento. Pelo próprio gesto de ruptura,
ele reconhece sua dependência com respeito à Revelação bíblica. E
sua dívida especial com respeito ao cristianismo. Pois neste proces-
so que consiste em “conhecer como humano que antigamente era
contemplado e adorado sob as espécies de Deus”, a fé cristã, com
seu Deus-Homem e sua Hóstia-Verbo, parece colocar um marco
decisivo.
O ateísmo moderno não é senão um descolamento do Deus
transcendente para o deus inexistente; é também um desvio de
uma devoção centrada sobra a humanidade de Cristo para sim-
plesmente uma religião da Humanidade. A erradicação demasiado
humana da idolatria resulta na fabricação do ídolo humanista –
como um retorno ao bezerro de ouro. De fato, quando se imagina
acabar com a falsa devoção por suas próprias forças, cai-se na de-
voção de si, isto é, no culto demoníaco por excelência, e os ídolos
recomeçam a pulular sob os intangíveis materiais: o Progresso, a
Razão, a Revolução, o Marcado, o Planeta, o Outro...
Esse último conceito é dos mais interessantes. Mais que qual-
quer outro, ele parece desafiar a idolatria e responder ao primeiro
mandamento com uma insuperável pureza. No nome do Outro, do
Totalmente-Outro, se quer admitir um Deus inacessível, mas é a fim
de rejeitar todo dogma, toda Igreja, religião instituída como sendo
uma fabricação humana porque misturam o Totalmente-Outro com
o Idêntico, para arrogar-se um suposto acesso para à inacessível
18 Ludwig Feuerbach, Manifestes philosphiques, trad. Franc. Althusser, 10/18, 1973, p.
96-97.

219
fabrice hadjadj

divindade. Mas o que esse Totalmente-Outro abstrato, sem face nem


palavra nem contato, senão uma forma vazia e negativa do eu? Ora,
se não trata senão de uma forma vazia, posso enchê-la do meu jeito,
segundo meu capricho? E se não se trata senão do não-eu, do não-
-humano, ainda é o humano e o eu que são os princípios positivos.
Uma vez mais, o ídolo só é rompido para melhor idolatrar o gesto
da ruptura. O demônio nos ajuda a ficar no chão, e sussurra no
nosso ouvido: “Não escutes, Israel, Deus é o Totalmente-Outro, está
acima de todas as sinagogas e todas as catedrais feitas pela mão do
homem. Esses mandamentos que mancham seus pergaminhos e res-
plandecem nas suas abóbadas, não os graveis no teu coração, não
os repitais aos teus filhos. Não são senão vozes humanas. A minha
é verdadeira e totalmente outra, sem timbre, sem face, sem Nome
próprio porque se chama Legião...”
A saída da idolatria supõe uma saída do orgulho, e por con-
sequência, uma ruptura da qual não temos a iniciativa: um golpe
de graça, um relâmpago de uma Revelação. Ela está na abertura
ao Totalmente-Outro, sem dúvida, mas esse Totalmente-Outro é
real. Ele se aproxima com sua face, que não escolhemos, nos dá
uma palavra mais profunda do que nosso silêncio, porque ela não
é a nossa nem sua negação, e ainda vem nos tocar de surpresa. Os
dogmas e os sacramentos não têm outro sentido. João XXIII dizia
que um concílio era um encontro com a Face do Ressuscitado.
Os dogmas são, portanto, os traços misteriosos da Face divina;
os sacramentos são seus toques mais íntimos; e os ambos te con-
duzirão aonde não queres.19 Um Deus Completamente-Outro que
não se revela, não é mais que um espírito vago e sem amor. Seria
o espírito do diabo, um espírito que, preferindo todas as máscaras
por ele inventadas, ao invés da face recebida por seu Criador; é a
renuncia da sua personalidade, optando pela alteridade informe: o
outro sempre outro, sem palavra sustentável, sem fidelidade possí-
vel, sem encarnação que se unisse a um corpo.

Contra o anjo da luz


Além disso, não experimentastes jamais este súbito torpor que
se apodera de vossos membros desde que começais a orar? Há nele
como um prodígio. Agora mesmo, estávamos cheios de vigor para
19 Cf. Jo 21, 18.

220
a fé dos demônios

discutir e nos indignar com os ímpios, e eis essa invisível viga que
desce do teto e nos esmaga na rede como a uma vespa industriosa
sob o mata-moscas. De onde vem essa súbita depressão? Somente
de si mesmo? Não é antes como a força de um outro que vos cerca
e vos impede de fazer algum mal? A vida de oração é aquela a que
o demônio renunciou. Ele a detesta mais que qualquer outra. Ele
não pode senão preservar os seus dela. É um hiperativo infatigável
e cheio de novos projetos urgentes. Ele queria que tudo dependesse
unicamente de seus esforços. Ele não ama irradiar senão por mé-
rito próprio. Impossível para ele ficar num lugar. E é seguindo a
ele, que, de maneira tão misteriosa, sofremos essa enfermidade de
“não saber permanecer em repouso num quarto”.
Mas admitamos ultrapassar esse obstáculo de principiantes e
que nos tornamos campeões da oração, o diabo está ainda aí para
nos ajudar. Ele pesa então sobre a memória do religioso, sobre sua
inclinação ao prazer, suscita nele uma impaciência da beatitude,
similar a sua.

Alguns, em razão de trazerem os bens espirituais tão mane-


jáveis ao sentido, caem em maiores inconvenientes e perigos do
que declaramos dos principiantes [...]. Aproveita-se aqui o de-
mônio para fazer muitas almas darem crédito a ilusórias visões
e falsas profecias [...]; costuma enchê-los também de presunção
e soberba, e atraídos pela vaidade e arrogância, mostram-se em
atos exteriores que parecem santidade, como são arroubamentos
e outras manifestações externas [...]. Estas falsidades e enganos
chegam a multiplicar-se tanto em algumas destas almas, e elas
tanto se endurecem com o tempo em tais coisas, que se torna
muito duvidosa a sua volta ao caminho puro da virtude e verda-
deiro espírito. Nestas misérias vêm a dar, por terem começado a
se entregar com demasiada segurança às apreensões e sentimen-
tos espirituais, quando principiavam a aproveitar no caminho.20

João da Cruz insiste sempre no perigo da segurança. Porque


nosso sentimento de segurança aqui na Terra só pode ser o cúmulo
20 João da Cruz, A Noite escura, 1.2, c.2, in Oeuvres completes, trad. Franc. Mère Marie
du Saint- Sacrament, Éd. du Cerf, 1990, p. 976-977. Trad. Bras. Carmelo de S. Teresa
do Rio de Janeiro, vol.1, Vozes, 1960, p. 334-334

221
fabrice hadjadj

da ameaça: nosso pequeno paraíso já é nosso inferno, o inferno da


presunção. Sentir-se perfeitamente protegido, é já ter sido abatido,
porque não nos rasgamos mais num clamor dirigido ao Salvador.
Teresa de Ávila recorda que, no conforto material e moral, estamos
muito mais em tempos de guerra:

Desapegando-nos do mundo e dos parentes, e encerradas aqui


com as condições que foram ditas, já parece termos tudo feito e
que não há que pelejar com nada. Ó minhas irmãs! Não ficais se-
guras nem descuideis, porque será como aquele que dorme muito
sossegado tendo trancado muito bem suas portas por medo dos
ladrões, quando eles já estão em casa. E já sabeis que não há pior
ladrão, pois trancamos a nós mesmas.21

A entrada na religião pode desembocar na geena. E todo pro-


gresso espiritual, dar a ocasião de um desastre maior: “Mais se
recebe, mais se corre o risco de sucumbir ao orgulho”.22
Também o demônio é hábil para “adocicar e deslumbrar” a
alma. E isso até um ponto que não imaginamos: “Como ele se
transfigura em anjo de luz”,23 a alma não vê em toda parte senão
luz”.24 Uma fé que nos faz muito seguros de nós mesmos, uma fé
sem noite, porque na medida de nossas próprias luzes, nos torna
piores que o ateu que experimenta a ausência de Deus. Esse ateu
estaria ainda na espera de um outro, enquanto que nosso orgulho-
so espiritual não espera mais nada, a não ser gozar dos clarões de
suas velas.
Dos nossos dois grandes carmelitas, essas páginas tão terríveis
são apenas para nos inspirar a maior confiança. Se não o enten-
demos é porque nós esquecemos que a noção de confiança é em
si mesma desoladora. Proíbe crer na fortaleza feita pelas nossas
mãos. Confessa nossa angústia e apela à uma outra. Felipe Néri

21 Santa Teresa de Ávila, Caminho de perfeição, capítulo X.


22 Ver o estudo do Padre Lucien-Marie de Saint-Joseph “Satan dans l´oeuvre de Saint Jean
de la Croix”, in Satan, DDB, 1978, (retomado do número dos Études carmelitaines de
1948).
23 2Cor 11, 14.
24 João da Cruz, Subida ao Monte Carmelo, 1.3, c.10, op. cit., No original espanhol:
“porque, como se transfigura em ángel de luz, parécele al alma luz”.

222
a fé dos demônios

pedia a Jesus: “Desconfies de Felipe”. E Vicente de Paulo confiava


nos seus Entretiens spirituels:

Eu, em toda minha vida, temi me encontrar no nascimento de


alguma heresia. Eu via a grande destruição que havia sido feita
por Lutero e Calvino, e quantas pessoas de todos os tipos e con-
dições tinham sugado o pernicioso veneno, querendo saborear
as falsas doçuras de sua pretensa reforma. Eu sempre tive medo
de me encontrar envolvido nos erros de alguma nova doutrina,
antes de o perceber.25

Essa confissão, não nos enganemos, é uma homenagem ao gê-


nio e a superioridade de Calvino e Lutero: se esses grandes caíram
no erro, pelas manobras pelo Maligno, como, eu que sou o menor,
não temeria por cair? Como, para me guardar de uma tal infelici-
dade, não me entregaria a uma obediência tão livre quanto inteira
ao Magistério da Igreja?
A verdadeira fé faz, portanto, entrar na dúvida, não de Deus,
mas de si: “Senhor meu Deus, a cujos olhos me tornei para mim
mesmo uma interrogação”.26 E essa dúvida destrói o ídolo de mi-
nha capacidade, e me obriga a me abandonar ao poder do Altíssi-
mo, numa confiança tanto mais inquebrantável quanto melhor o
ídolo foi destruído. À propósito do demônio, João da Cruz recorda:

Nenhum poder humano é comparável ao do demônio, logo,


só o poder divino basta para vencê-lo, e só a luz divina é capaz de
entender seus ardis. Donde, a alma que quiser vencer a fortaleza
de tal inimigo, não o poderá sem oração; jamais conseguirá en-
tender suas ciladas, sem mortificação e humildade.27

Face ao diabo, a humildade é a primeira “cautela”. Mas não


consiste em abaixar a si mesmo. Isso seria ainda inebriar-se de sua
própria caminhada, cair no que reconhecemos como o pecado de

25 Entretiens spirituels de saint Vincent de Paul, Éd. du Seuil, 1960, p. 902.


26 Santo Agostinho, Confissões, X, 33.
27 Cântico Espiritual, C. 3, 9.

223
fabrice hadjadj

Adão. João da Cruz é conciso: “Quem se fia de si próprio, é pior


que o demônio”,28 e isso também vale para quem se fiasse de si
para se lançar ao chão, se reduzir a nada, se entregar a não sei qual
desresponsabilizante escravidão bondage. A humildade verdadeira
não é rebaixar-se, mas deixar-se elevar por Deus. E aí está o mais
difícil. Ela é em seguida elevar os outros aos seus olhos. E aí está
o mais doloroso:

A terceira cautela é que no íntimo do coração procures sem-


pre humilhar-te em palavras e obras, alegrando-te com o bem dos
outros como se fosse o teu próprio...29

Nenhuma espinha curvada de maneira ostensiva, nenhuma fi-


gura triste composta, mas uma alegria muito mais constante por-
que supõe nossa nulidade e repouso em Deus.

O amor na noite
Abrir-se para a luz divina é como, numa noite de núpcias, a
esposa se entregar totalmente ao seu esposo. O fiel, de certo modo,
sabe cada vez menos, sabe menos que o próprio ateu. Quando os
outros creem saber e não sabem, a sabedoria de Sócrates é a de
saber que não sabe nada. Já a sabedoria do cristão é conhecer a
Deus como inefável, despindo-se de sua razão para adentrar nos
caminhos noturnos do amor:

A alma, apoiando-se em seu saber e habilidade para alcançar a


união com a sabedoria divina, jamais a alcançará, permanecendo
muito afastada, pois a ignorância não sabe o que seja a sabedoria.
[...] Só chegam a adquirir a sabedoria divina aqueles que, asse-
melhando-se aos pequeninos e ignorantes, renunciam ao próprio
saber para caminhar com amor no serviço de Deus. [...] A alma
se unirá à sabedoria divina antes pelo não saber que pelo saber.30

28 Dichos de luz y amor, 5, 8.


29 João da Cruz, As cautelas, op. cit., p. 304. [No original espanhol: “La tercera cautela,
derechamente contra el demonio, es que de corazón procures siempre humillarte en la
palabra y en la obra, holgándote del bien de los otros como del de ti mismo” – NT].
30 Id. A Subida ao Monte Carmelo, I, c.4, 5. op.cit.

224
a fé dos demônios

A fé teologal é assim: ao mesmo tempo certa e um tanto obscu-


ra. Por conta dessa sua obscuridade, alguns a tomam por incerta:
extraviam-se num caminho de uma ciência que se satisfaz com suas
sombras e reflexos no limite de nossos olhos atentos. Outros, em
razão de sua certeza, a tomam por bastante clara: protegem-se atrás
do baluarte de uma doutrina que teme a noite viva dos amantes. Se
os primeiros são seduzidos pelos demônios, esses últimos se asseme-
lham a eles. Para o demônio, certamente, o objeto da fé não é claro
em si mesmo: a visão beatifica é precisamente o que ele sempre recu-
sou. De uma maneira geral, aquele que crê em alguma coisa não vê
essa coisa, mas a confiabilidade do testemunho que a relata. Assim,
eu creio com certeza que Napoleão perdeu a batalha de Waterloo,
quando vejo os documentos inúmeros e convergentes que o atestam.
Eu creio, sem possibilidade de dúvida, na existência de câmara de
gás pelos testemunhos que os judeus manifestaram sem combinar
entre si – e essa ausência de combinação impede uma tal corrobora-
ção em que os testemunhos sejam convergentes em todos os pontos;
ora, são precisamente essas falhas que provam sua verdade, ainda
que nelas o negacionista pretende fundar suas suspeitas. Se ponho
em dúvida esses testemunhos evidentemente fiáveis, caio na para-
noia: devo forjar para mim uma teoria da Pérfida Albion;31 devo
maquinar uma tese da conspiração judaica; sim, os sobreviventes
teriam combinado para inventar esse horror e servir-se dele como
meio de pressão, assim como aqueles outros judeus, os Apóstolos,
teriam combinado para inventar a Ressurreição. Uma tal paranoia
é impossível para um anjo, mesmo caído. O testemunho de Cristo e
da Igreja, confirmados pelos milagres, se não bastam para inclinar
uma inteligência humana, bastam para convencer uma inteligência
angélica. Os demônios creem na Encarnação, na Trindade e em to-
dos os outros mistérios que não veem em si mesmos, porque eles são

constrangidos pela evidência dos sinais; e é por isso que o verbo


crer é empregado de maneira equivoca quando aplicado aos fiéis
e aos demônios, porque a fé neles não provém de uma luz infusa
da graça, como nos fiéis.32

31 Expressão de cunho pejorativo com que os franceses se referem à Inglaterra, sa-


lientando uma certa habilidade dos ingleses para a dissimulação e a hipocrisia. Albion
é o nome mais antigo dado à Ilha da Grã Bretanha – NE.
32 Tomás de Aquino, De Veritate, qu. 14, art.9, ad 4.

225
fabrice hadjadj

Por consequência, do lado de sua medida objetiva, a fé dos de-


mônios é menos clara que a fé teologal: não se beneficia da luz
infusa da graça. Se é mais clara, é do lado de sua medida subjeti-
va: não sofrem o abraço desta luz que os ultrapassa, estão numa
crença proporcionada à sua natureza, que não os conduz além de
si mesmos, que jamais se transforma em amor.
Portanto, a certeza da fé teologal tem algo de paradoxal: ali
onde a certeza científica toma seu apoio na claridade, a da fé rece-
be a sua nas trevas. É uma certeza que não tem seu apoio em nós
mesmos, mas em Deus. A fé é, portanto, mais objetiva e mais certa
do que toda a ciência, porque tem por princípio o Real absoluto
e a Verdade em pessoa, porém, é mais obscura que a ignorância e
a dúvida. O ignorante não é assim confrontado pela obscuridade,
e aquele que duvida não é, neste caso, ele mesmo questionado.
Nós não vemos nada, mas é como se sentíssemos que Deus nos vê,
atravessando esse nosso nada. Porque se a fé conduz a inteligência
para Aquele que tirou todas as coisas do nada, é, de certo modo,
fazendo-nos repassar pelo nada, que ela nos faz reunir e comungar
com todas as criaturas. Sua certeza é, enfim, nosso desequilíbrio, e
esse desequilíbrio torna-se o nosso impulso.
Seu dinamismo interno nos faz passar do conhecimento para
o amor. A ausência de visão de que sofre a fé, reclama o albergue
do amor que sabe unir, apesar da noite. Tomás de Aquino explica
assim a grandeza da caridade:

As outras virtudes teologais comportam na sua própria noção


uma certa distância com relação ao seu objeto: a fé diz respeito
ao que não se vê, a esperança ao que não se tem. Mas o amor de
caridade diz respeito ao que já se tem: de certo modo, com efeito,
o amado está naquele que ama, e por seu lado, o amante é, por
sua afeição, levado a fazer-se um só com o amado; eis porque
diz São João: Aquele que permanece na caridade permanece em
Deus e Deus nele (1Jo 4, 16).33

Enquanto que a fé é somente para o tempo, a caridade é a mes-


ma no tempo e na eternidade. O amor acolhe o outro, não somente

33 Id. Suma Teológica, I-II, 66,6.

226
a fé dos demônios

tal como nossa inteligência o representa e o acomoda, mas atraves-


sando todas suas representações, como por vários véus, que todos
ao mesmo tempo o distinguem e o subtraem, o acolhe tal qual é,
até na nudez de seu abismo.
Mas Tomás de Aquino acrescenta que, se alguém pode estar cer-
to de ter fé, não pode estar absolutamente certo de ter a carida-
de. A fé aperfeiçoa a inteligência, que pode apreender a si mesma,
enquanto que a caridade aperfeiçoa a vontade, o sentimento, que
guarda algo do ímpeto do qual não se percebe bem nem a origem
nem o fim: O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não
sabes de onde vem nem para aonde vai.34 A não ser por uma ex-
cepcional confirmação, em graça reservada a esses santos que Deus
fortalece somente para melhor pregá-los a sua Cruz, a fé formada
pela caridade, a fé verdadeiramente salvífica, ignora a si mesma
enquanto tal. Embora esteja certo de tê-la enquanto conhecimento
(e também desse ter que me excede), não estou certo de tê-la en-
quanto assentimento amoroso. Assim, minha salvação não é minha
enquanto peregrino sobre essa terra. A fé que justifica pode ser on-
tologicamente minha, mas psicologicamente, ela não me pertence.
Uma das grandes angústias para o fiel aqui na Terra é não estar
nunca certo de que ama a Deus. Essa angústia é, contudo, o prin-
cípio das mais ardentes declarações de amor. Nos últimos passos
de seu Caminho de perfeição, quando comenta o último pedido do
Pai Nosso, Teresa de Ávila pode gemer:

E assim suplico ao Senhor que me livre de todo mal para


sempre, pois não desconto do que devo, senão que pode ser por
ventura que cada dia me endivido mais. E o que não se pode so-
frer, Senhor, é não poder saber ao certo que vos amo, nem se são
aceitos meus desejos diante de Vós.35

Para além da fé que se sente e o estudo que não se crê


É da psicologia de quem ama verdadeiramente pensar que ain-
da não ama o bastante. Mas aqui é só uma questão de psicologia.
Se a fé tem alguma proporção com nosso tecido temporal, desde
34 Jo 3, 8.
35 Teresa de Ávila, Caminho de Perfeição, C. XLII, op.cit.

227
fabrice hadjadj

que ela seja somente para o tempo, a caridade, já dissemos, é para


a vida eterna. Maior que nós mesmos, ainda que esteja em nós, ela
escapa à nossa apreensão. É assim que se liga à humildade: nin-
guém está certo de ser humilde, e aquele que se crê o bastante, já
deixou de sê-lo. Ora, essa incerteza em relação à humildade, tanto
quanto ao amor, é o que nos faz escapar às contorções introspecti-
vas, e fundar a despreocupada liberdade dos filhos de Deus. O fiel
não é como quem mede a pulsação e a temperatura, sente que crê
muito pela manhã, um pouco menos de tarde e chega descrente à
noite, a não ser que, após a contabilidade do dia, ele não sinta, de
súbito, esta fé enorme que mede o seu volume de negócios.
Michel Houellebecq, quando evoca sua “tentação cristã”, mos-
tra que jamais ultrapassou esta concepção sentimental e egocêntri-
ca, digamos hipocondríaca da fé:

Oh! sim, essas palavras [as da missa] me penetram, eu as rece-


bi diretamente de pleno coração. E durante cinco ou dez minutos,
cada domingo, eu creio em Deus.36

A frase é cômica porque concede ao Eterno o crédito de apenas


alguns minutos. Mas prova que o objeto da crença houellebecqia-
na não era o Eterno, mas o tempo. Felizmente, ele não teimou em
se tornar cristão desta maneira: não queria a Deus, mas a sensação
de algo que nossa pequenez possa nos fazer estimar suficientemen-
te “divina”. Contudo, é preciso reconhecer que o Senhor não é
como um amante vaidoso, não nos pergunta: “Sentes isto?”. Mas
o diabo, provavelmente sim. Admitamos que, favorecido pelo anjo
da luz, Michel Houellebecq tivesse atingido o estado de constante
satisfação que ele desejava, com lágrimas de prazer e palpitações
fortes, ele se teria acreditado na Igreja de Cristo, mas haveria ape-
nas estado sozinho na sua própria concha. É, pois, uma graça de
Deus que por hora ele tenha novamente se tornado descrente. Essa
descrença pode estar mais próxima da verdadeira fé do que essa
crença centrada em si mesmo.
Para evitar essas intermitências do coração, essa oscilação entre

36 Michel Houellebecq e Bernard-Henri Lévy, Ennemis publics, Flammarion-Grasset,


2008, p. 147-148.

228
a fé dos demônios

a crença e a descrença segundo a impressão do momento, não de-


veríamos renunciar a crença como demasiado subjetiva e idólatra,
reduzindo Deus ao sentimento de Deus, e preferir antes o estudo e
o respeito objetivo da Lei? É isso que o hebraísmo rabínico de nos-
sos dias tem a tendência de pensar. Quando Alain Finkielkraut lhe
dizia que ele não podia ser praticante porque não tinha fé, Bernard-
-Henri Lévy respondia que ninguém havia lhe pedido para crer.
Deus ordena somente estudar sua Palavra, e colocá-la em prática:

O ponto de partida não é uma evidência interior, isso é o que


não se compreende nada. É completamente obscuro esse texto
– e, no entanto, ele vos chama. Eis aí é o ponto de partida. Não
se fala em termos de crença. Esses termos, deixemos aos outros,
não é coisa nossa, não é nossa linguagem, não é assim que isso
acontece.37

Benny Lévy deixa entender que é assim que acontece com os


cristãos. Se fosse assim, sem hesitar, melhor seria ser hebreu. Mas
essa crença que o rabino denuncia, toda psicológica, é antes uma
ilusão confortável: será levada pelo vento na primeira provação, a
menos que o diabo não a atice obstinadamente. Para dizer a verda-
de, a teologia católica define a fé teologal assim como Benny Lévy
define o estudo: não uma simples evidência interior, como a fé dos
demônios, mas o acolhimento de uma Palavra dada, a resposta a
um chamado objetivo que nos ultrapassa, que libera em nós res-
sonâncias inauditas, e que nos engaja a praticar os mandamentos:

Aquele que diz: “Eu o conheço”, mas não guarda os seus


mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele.38

Como escreveu, com muita retidão, Jean-Louis Chrétien:

Perguntar a mim mesmo como creio, é me interrogar sobre


mim mesmo, buscar algo em mim, de mim, para mim, voltar-se

37 Alain Finkielkraut e Benny Lévy, Le Livre et les livres, Verdier, Lagrasse, 2006, p. 94.
38 1Jo 2, 3.

229
fabrice hadjadj

para mim como um lobo numa jaula, e não deixar Deus fazer
sua obra, que é vir, falar e prometer, vir primeiro, falar primeiro
e prometer primeiro.39

Ao diabo, portanto a espiral da crença que se sente e esse um-


biguismo do “sentimento religioso”! É, a cada vez, a serpente que
morde o próprio rabo, enquanto que para a verdadeira fé, é antes
esse frade cego que abre a boca. É certo que a fé teologal pode
fazer brotar em nós suas florezinhas rosa, e nos fazer obter felizes
emoções; mas é como as flores da batata: podem ser pisadas, des-
botadas, mortas, e os frutos podem ser saqueados pelos corvos,
mas o essencial fica a salvo, o tubérculo comestível está sempre aí
escondido: cresce nas trevas.
A fé faz o fiel entrar numa obscuridade mais profunda que a
noite do ateísmo, que não é senão uma noite superficial, e num dia
mais ofuscante que as claridades de Satã, que são as claridades à
sua medida. Se vê melhor como a expressão “ter fé” pode ser defi-
ciente. Só os demônios têm fé como um objeto que tem na palma
da mão e manejam a vontade. Mas a fé formada pela caridade, o
fiel menos a possui, enquanto por ela é despossuído de si mesmo. É
um ter que lhe faz perder tudo, até a si mesmo, por Cristo. Portan-
to, ele não tem a fé, mas é a fé que o tem, que o desnuda e o deixa
abraçado no amor.
O modelo desta virtude o revela contra todas as expectativas.
Maria não está diante da Revelação como diante da clareza de
um teorema, nem desfruta a fé como do mais romântico dos sen-
timentos. Ela caminha na ignorância mais que no conhecimento.
E ela conhece mais as angústias que as delícias: E a ti, uma espada
de dor traspassará o coração,40 lhe profetiza o velho Simeão. O
mistério é para ela mais misterioso ainda, porque sua obscuridade
não procede de uma falta, mas de um excesso de luz. Sua fé é es-
pecialmente mais perfeita porque a lança melhor no incompreen-
sível. Sua noite é especialmente maior porque é mais uma noite de
núpcias. O episódio do reencontro no Templo lhe diz literalmente.

39 Jean-Louis Chrétien, “Figures bibliques de la joie”, em Sous le regard de la Bible,


Bayard, 2008, p. 79.
40 Lc 2, 35.

230
a fé dos demônios

Aquela cuja fé não falhou, não conteve o clamor que retoma e


ultrapassa aquele de Jó:

Meu filho, por que agistes assim conosco? Olha que teu pai e
eu, aflitos, te procurávamos.41

Como? Maria perguntar a Deus: Por que agistes assim conos-


co? Maria exprimir seu tormento por causa de Jesus? É costume
amortecer esta queixa a fim de não ferir as sensibilidades. No en-
tanto, a palavra que Lucas recolhe nos lábios da Santíssima Vir-
gem, odunômenos, “angústia”, “aflita”, “torturada”, é o mesmo
que ele põe na boca do rico que queima no Hades: Estou torturado
nesta chama.42 A fé de Maria é sem falta; ela não é, contudo, sem
fissura: ela sofre aqui na Terra algo que pode se comparar às penas
do inferno, e que é a espada deste amor fazendo um rasgo bastante
grande no seu coração, para que nela se recolha a plenitude deso-
ladora do mistério divino. À sua pergunta: Por que agistes assim
conosco? Deus responde com a sua voz de criança de doze anos. É
uma revelação direta e para Maria e José deveria ter ficado claro,
a partir de então. Mas o Evangelho declara:

Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera.43

Maria não compreende as palavras de seu filho. O que, então,


a distingue daqueles que o Filho dirá, citando Isaias, ouvem sem
entender?44 Simplesmente isto: Sua mãe, porém, guardava todas
suas palavras em seu coração.45 A Palavra é uma espada, seu co-
ração é a bainha.46 Lá onde os outros o fecham, o seu permanece
aberto para que o incompreensível habite completamente e com
sua lâmina afiada.

41 Lc 2, 48.
42 Lc 16, 24.
43 Lc 2, 50.
44 Lc 8, 10.
45 Lc 2, 50-51.
46 A imagem é do Padre Pierre-Thomas Dehau no seu pequeno livro admirável: Em
prière avec Marie.

231
fabrice hadjadj

O lugar de Deus na minha alma está vazio (Madre Teresa)


Quando publicadas, em inglês, as cartas privadas de Madre Te-
resa suscitaram estupor. O mundo a tinha promovido como um
modelo de entusiasmo humanitário, e eis que o modelo revelava
uma angústia mística irrecuperável para a imagem publicitária:

A situação física de meus pobres abandonados no meio da


rua, sem pessoa para achá-las úteis, para amá-las, para reclamá-
-las: eis a imagem exata de minha própria vida espiritual, o esta-
do do meu amor por Jesus...47

Assim vivia aquela que foi laureada com o Prêmio Nobel da


Paz: numa guerra das mais profundas. Aquela que se exteriormen-
te vivia sorrindo, interiormente estava desolada:

“O tempo todo sorrindo”: as irmãs e as pessoas fazem essa


observação – Eles pensam que minha fé, minha confiança, o
amor, enchem todo meu ser, que minha intimidade com Deus,
minha união à Sua Vontade devem absorvem meu coração – Se
soubessem – como minha alegria é uma máscara atrás da qual eu
oculto o vazio e a miséria.48

Diante dessa confissão, os muito crédulos ficam consternados,


os muitos cínicos se rejubilam. Uns e outros, seja com pesar ou com
arrogância, no fundo concordam ao repetir o provérbio: “Médico,
cura-te a ti mesmo”. Eles ignoram o coração do mistério cristão.
Não compreendem que essa máscara de que fala a santa não é
aquela da hipocrisia. É, ao contrário, a máscara da sinceridade
mais abissal, uma sinceridade que se funda, não sobre um estado
psicológico e passageiro, mas sobre essa alegria divina na qual ela
crê e que, neste mundo, passa pela Cruz.
De uma Teresa a outra, parece que a vida mística foi simplifica-
da, mas também que a “noite da fé” foi se tornando prosaicamente
47 Carta ao Padre Neuner de 12 de maio de 1969, in Mother Teresa, Come bem y light,
The private writings of the “Saint of Calcutta”, ed. B. Kolodiejchuk, Doubleday, New
York, 2007. Tradução ao francês do autor.
48 Carta ao Padre Picachy de 3 de julho de 1959.

232
a fé dos demônios

cada vez mais escura. Teresa de Ávila indica com traços fortes o
caminho que penetra as sete moradas. Teresa de Lisieux abre a “pe-
quena via”, mas mergulha também em apavorantes securas. Teresa-
-Benedita da Cruz, passando pela porta mais curta e ainda mais
comum, morre em Auschwitz: ela entra na câmara de gás como
Elias no Horeb, se prostrando diante do silêncio de Deus. Teresa de
Calcutá parece seguir um caminho ainda mais ordinário e, contudo,
entra profundamente nestas trevas que ela não compreende. Não é
tanto que lhe falte a ciência carmelita, mas é que essa ciência já não
é capaz de alcançá-la nesta noite que ela adentrou:

O lugar de Deus na minha alma é vazio. Em branco. Não há


Deus em mim... Minha alma não é senão um bloco de gelo – Não
tenho nada a dizer – Vós me escreveis: “Ele está tão perto de vós
que não podeis vê-Lo, nem escutá-Lo, e mesmo saborear Sua pre-
sença”. Eu não compreendo o que isso quer dizer, meu Padre, e,
contudo, eu queria bem poder compreender...49

Numa carta que dirige a Jesus, Teresa compara seu sofrimento


com aqueles dos condenados:

Dizem que as pessoas no inferno sofrem uma pena eterna por


causa da perda de Deus, e que, se tivessem a menor esperança
de possuir a Deus, passariam através de todo esse sofrimento.
Na minha alma, sinto exatamente essa terrível dor da perda – a
perda de Deus que não me quer – de Deus que não é Deus – de
Deus que, na realidade, não existe (Jesus, por favor, perdoe mi-
nhas blasfêmias! – me ordenaram escrever tudo). Essas trevas me
cercam de todas as partes. Eu não posso me elevar até Deus: ne-
nhuma luz, nenhuma inspiração penetra na minha alma. Eu falo
do amor das almas, de um terno amor por Deus – as palavras
atravessam meus lábios e eu desespero de crer nelas. Por que é
que eu trabalho? Se não há nenhum Deus, não pode haver nenhu-
ma alma. E se não há alma, então – Jesus – Tu não és mais, não
és verdade... o Céu, que vazio! Nem a menor ideia do Céu entra
no meu espírito. Porque não há esperança. Estou horrorizada por

49 Cartas ao Padre Neuner, do início de abril e de 8 de novembro de 1961.

233
fabrice hadjadj

notar todas essas coisas terríveis que me atravessam a alma. Elas


devem te ferir.50

Cito essa longa passagem porque mostra a “contradição” na


qual a santa é mantida. A broca da dúvida perfura nela sempre
mais profundo para descobrir a jazida de uma fé mais preciosa:
essa fé que dissemos que não se tem, mas que ela nos tem, e que
põe numa noite tal que não há mais socorro humano, que é preci-
so se abandonar ao abismo da misericórdia. Assim, duvidando de
Jesus, Madre Teresa se dirige ainda a Jesus. Falando do lugar de
Deus deixado vazio, ainda lhe reconhece um lugar. É isso que a faz
loucamente concluir:

Eu sou Tua. Aprofundai na minha alma, na minha vida, os


sofrimentos do Teu Coração. Não te preocupes com meus senti-
mentos. Não te preocupes mesmo da minha dor. Se minha separa-
ção de Ti conduz a Ti os outros, e no seu amor e sua companhia,
Tu encontras tua alegria e o teu prazer – meu Jesus, por quê? Eu
desejo com todo meu coração suportar tudo o que suporto – e
não somente agora, mas por toda a eternidade, se fosse possível.

Por que um tal aprofundamento da noite? A vida espiritual


seria tão somente uma ilusão se propusesse manter-se longe das
noites da História. Ao contrário: para ser verídica, para ser reden-
tora, essa vida deve desposá-las em profundidade, de modo que
a fumaça do mais puro incenso se humilhe diante destes fornos
crematórios. A noite deste século XX, genocida e ateu, aquela que
queria amar os mais pobres foi como que obrigada a nele se en-
terrar – para que o sopro da caridade pudesse entrar no próprio
lugar da asfixia.
Por isso, pela razão mesma de sua angústia, essas cartas são
da mais alta consolação. Elas testemunham a presença de Deus,
ali mesmo onde parece fugir de nós. Ele se junta a nós no lugar
de nossa própria noite. A teologia mística explica a noite da fé,
primeiro a partir da transcendência de Deus: se unir ao Altíssi-
mo exige da alma purificações que lhe retiram todos seus apoios
50 Carta ao Padre Picachy de 3 de setembro de 1959.

234
a fé dos demônios

mundanos e a limpam até a medula dos ossos. Com Madre Teresa,


essa noite toma também outro sentido. Não se trata somente de se
unir a Deus na sua obscuridade e na nudez das núpcias, trata-se
também de se unir ao próximo mais miserável. Está aqui o que
diferencia a obra teresiana de uma obra humanitária:

Minhas caras filhas, sem nosso sofrimento, nossa obra não


seria mais que uma obra social, muito boa e muito útil, sem dú-
vida, mas não seria a obra de Jesus Cristo – uma parte da Re-
denção. Jesus quis vir em nosso socorro compartilhando nossa
vida, nossa solidão, nossa agonia e nossa morte. Tudo isso, ele
tomou sobre Si e o carregou até a noite mais sombria. Se ele nos
resgatou, foi se tornando um de nós. Nossa missão é de fazer o
mesmo: toda a agonia dos pobres, não somente sua pobreza ma-
terial, mais também sua miséria espiritual, deve ser resgatada, e
nós devemos ter a nossa parte.51

Imitação do Verbo, que se aniquila para trazer de volta para ele


o homem fascinado pelo nada.52 Lição já seguida por Moisés e São
Paulo. Quando o Eterno fala de erradicar esses Hebreus de cerviz
dura: Ou perdoas o seu pecado, ou risca-me do livro da vida.53 E
São Paulo dizia: Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns
a todo custo54 e quando se trata da salvação dos hebreus, declara:
Quisera eu mesmo ser anátema, separado de Cristo, por amor de
meus irmãos.55 Esse desejo de ser separado de Cristo pelo amor do
próximo é a melhor maneira de estar inseparavelmente ligado a ele.
O próprio Cristo, sobre a Cruz com seu “Por que me abando-
nastes?”, embora talvez ainda mais no monte das Oliveiras, dá o
exemplo desta contradição. Sua oração segue o mesmo movimento
que as cartas de Teresa: Abba [é uma criancinha que fala, assusta-
da, que diz “Papai”, como nós chamamos “Mamãe”] Ó Pai! Tudo
é possível para ti, afaste de mim este cálice. Porém, não o que eu
51 Carta geral de julho de 1961.
52 Cf. Fl 2, 7.
53 Ex 32, 32.
54 1Cor 9, 22.
55 Rm 9, 3.

235
fabrice hadjadj

quero, mas o que tu queres...56 O que é o afastamento deste cálice?


Nada menos que a recusa da Redenção. Recordemos que após ter
esgotado toda tentação no deserto, o diabo se foi, espreitando o
momento favorável. Ora, eis que o momento chegou: é a hora das
trevas. Jesus tem alma triste até a morte; ele é tentado a abandonar
sua missão, a recusar a própria Misericórdia. Isso não é exatamen-
te assemelhar-se a Satanás? Eis, portanto que Deus desceu até a
recusa, de certa maneira a desposa, a fim de que mesmo aqueles
que rejeitam a sua Misericórdia ainda possam ser surpreendidos
pela graça. Não o que eu quero, mas o que tu queres.
Chegando a este ponto de nosso estudo, os clichês não podiam
ter ficado mais invertidos. Os demônios têm fé; os justos provam
de certo modo a pena dos condenados. Satanás adoça e deslumbra
a alma do religioso, a fim de que, neste prazer, não pense senão em
si mesmo e na sua bela oração. Deus conduz Teresa à angústia dos
ateus, a fim de que, nesta partilha, sua santidade irradie até eles:

Se um dia me tornar uma santa, serei sem dúvida uma santa


das “trevas”. Para sempre estarei ausente do Céu, a fim de ilumi-
nar a lâmpada daqueles que estão nas trevas sobre a Terra.57

Esta noite da fé se assemelha à noite do ateísmo, embora na


verdade ela toma essa última como uma mãe que carrega seu filho
no colo, para dar-lhe uma claridade que ele não compreende.

Que o Credo se cante


Quanto recitamos o Credo, não dizemos “Eu creio que Deus
é Uno”, nem mesmo “Eu creio para Deus”, mas Credo in Unum
Deum, “Creio em Deus...”, no sentido mais forte da preposição: é
uma tensão, um voo, um ímpeto para Deus como o de uma noiva
que vai a seu primeiro encontro. Quem cantaria a Crítica da Ra-
zão Prática? Quem faria melismas58 sobre a Declaração dos Direi-
tos do Homem?

56 Mc 14, 36.
57 Carta ao Padre Picachy de 06 de março de 1962.
58 Vocalização ornamental característica do canto gregoriano – NE.

236
a fé dos demônios

O Credo não compreende somente o desenrolar de uma série de


afirmações doutrinais, nem um encadeamento de artigos jurídicos,
mas dizer uma Revelação como uma declaração de amor que di-
lata o coração. Qui propter nos homines e propter mostram salu-
tem... Sim, por nós, por nossa salvação (o que supõe nossa miséria
irremediável para nossos remédios), o Verbo desceu do céu, como
um esposo penetrou nossa carne, se uniu ao homem! Ah! O Credo
é palavra, mas também nos emudece de admiração. É por isso que
ele se canta, segundo Ernest Hello:

O Credo pode se cantar porque ele não é somente a exposição


de uma doutrina; ele fala da causa da alegria.59

Esse canto não é a auto hipnose conquistadora de alguma Inter-


nacional: é a confissão de nossa fragilidade que clama uma Justiça
que não é a nossa. Esse canto não mais uma melodia dourada com
uma certeza especulativa, como um ornamento supérfluo: exprime
a essência desta certeza exorbitante e abrasadora que o Eterno nos
quer – corpo e alma. Como o enamorado não faria uma serenata
sob a varanda do Céu?
Mas não é só. Na sua exaltação tremula, o Credo utiliza uma
dimensão ao mesmo tempo humilde e coral. – Humilde, porque os
abismos professados aqui ultrapassam, juntos, as capacidades de
nossa inteligência e os méritos de nossa vida; ora, o canto, antes
que acrescentar uma maestria teológica, testemunha um excesso,
um transbordamento do que não se pode dizer com uma palavra
contida. – Coral, porque essa profissão de fé ressoa na comunhão
da Igreja; ora, o uníssono, fundindo a multidão de vozes num só
corpo sonoro, atesta a unidade na diversidade (o uníssono grego-
riano mais que a polifonia barroca, porque põe em relevo a diver-
sidade substancial dos timbres, enquanto que a polifonia põe em
valor a diversidade acidental das notas).
O Credo é mesmo um dos únicos cantos perfeitamente gratui-
tos. Por que o cantamos, senão por cantar? Felizes os que habitam
em tua casa, eles te louvam sem cessar.60 A doutrina e os aconte-
cimentos que testemunha são os que oferecem a vida eterna. Eles
59 Ernest Hello, Le Siècle, XXXII, “Hamlet em opéra”, Perrin, 1923, p. 224-225.
60 Sl 83, 5.

237
fabrice hadjadj

são, portanto, efetivamente o caminho de um canto sempre novo.


Se cantam para anunciar a possibilidade de cantar sem fim. Não
dizem nada além do amor que nos abriu essa possibilidade. Mo-
zart o faz sentir com o Et incarnatus est de sua Grande Missa em
Dó menor: as vocalizações da soprano, prolongando o mistério
do A de factus est, nos fazem esquecer o conteúdo deste artigo. De
que se trata aqui? Já não se sabe muito bem, mas sabe-se que vem
de um irrepreensível desejo. A perda da articulação tende a apagar
as palavras, mas a graça das modulações não fazem melhor per-
ceber o sentido: entrar na alegria d’Aquele que é amor, se juntar à
fonte do canto.
E, portanto, entre aqueles que cantam o Credo, alguns, talvez
nós mesmos, não tenham caridade, e os que a tem, não possuem
dela plena segurança. Como podemos nos impor um “Creio em
Deus”, que parece tão difícil dizer sem uma certa presunção? Sem
dúvida, quando a caridade nos falta individualmente, é a caridade
coletiva da Igreja que torna nossa profissão, apesar de tudo, verda-
deira, e assim é suprida nossa falsidade pessoal: cremos então em
Deus na medida em que cremos no seio do Corpo de Cristo. Não
olheis os nossos pecados, suplica o sacerdote, mas a fé que anima
a vossa Igreja. Ainda aqui, o Credo aparece como um coral, mas é
antes um coral em fuga: a fé do santo supre aquela do pecador, e
uns retomam o canto lá onde os outros se perderam. E quem sabe
se, neste instante, esse cujos lábios blasfemam, no íntimo do cora-
ção e para além de sua ignorância, caminha em direção a Deus?
Quem sabe se não é ele quem supre as faltas do meu coração, em-
bora sejam os meus lábios que exprimem essa Verdade que ele con-
fusamente segue? Credo in Deum, o acusativo latino pode se tra-
duzir como para, mas também como contra, e sabemos que alguns
se creem contra àqueles que estão próximos, e outros creem ir até
aqueles que estão longe. Os primeiros, então, carregam os segun-
dos, mesmos que sejam os segundos a pregarem a Salvação. É que
estes articulam com sua boca, aqueles a modulam com sua alma.
Mas o fato é que entonar “Creio em Deus” sem se entregar a
Deus pessoalmente, sem se oferecer inteiramente como o rouxinol
que põe todo seu pequenino ser a cantar seu trinado de noite, corre-
mos o risco da falsidade mais grave, mesmo quando sua voz tivesse
a retidão mais sonora. Cantar o Credo é também se engajar numa

238
a fé dos demônios

provação decisiva. Com o dom da graça, abre-se também a possibi-


lidade infernal de sua recusa, e essa recusa, agora já sabemos, pode,
apesar de tudo, professar publicamente: Sei quem tu és: o Santo de
Deus. Profissão de fé de um verdadeiro profissional, motivo de or-
gulho para ele e de desprezo com relação aos incrédulos.
E então, o que escolheremos? O sol de Satã ou as trevas do
Altíssimo? A claridade do credo demoníaco, que é natural e sem
abertura à graça, ou essa noite da fé amante, que é sobrenatural e
tanto mais forte quanto o ato de fé nasce da fragilidade e da obs-
curidade? Desde que queremos alterar, aqui na Terra, essa noite em
sol, e estar contentes de nós mesmos, passamos de Deus ao diabo;
caímos, certos de termos conseguido por nós mesmos nos levantar.
Uma queda tão terrível só é possível para aqueles que receberam
muito.
O inferno está, portanto, o povoado de pessoas de fé, porque
os demônios também creem. E se está povoado de homens, certa-
mente está menos de ateus que de católicos ou mesmo de apóstolos
como Judas (Dante se fez especialista em alojar nele os bispos).
Pode-se, contudo, dizer a mesma coisa do Paraíso... No entanto,
os bem-aventurados estão em plena Luz. Acabou o Credo: cantam
um Eu vejo em Deus. Sim, nosso futuro mais divino é perder a fé.
No Céu, todos enxergam. Portanto, só há incrédulos lá em cima.
Mas sua visão gloriosa conserva o que aqui em baixo foi a subs-
tância de sua noite mística e dolorosa: acolher Àquele, cujo poder,
agindo em nós, é capaz de fazer muito além, infinitamente além de
tudo o que nós podemos pedir e conceber.61

61 Ef 3, 20.

239
TERCEIRA LIÇÃO
A ser escrita pela graça, com seu próprio sangue

Vinde!
— Apocalipse, passim.

241
AGRADECIMENTOS

Primeiro, a Jean-Noël Dumont, que me convidou em 2005 ao Co-


légio Superior, em Lyon, para participar do seu ciclo de conferên-
cias: O ateísmo questionado. Foi aí que, já sob o título de “A fé
dos demônios”, fiz um esboço de meditação que pude ler. Sem esse
primeiro convite, essa obra não existiria.
Em seguida, à Gabriel Raphaël Veyret, que não precisou muito
de seu anjo da guarda e de seus dois arcanjos patronos para me
capturar e publicar este livro. Já fazia propaganda sem o ter lido,
por conta de meus atrasos, viveu uma noite escura editorial, além
de repetidos atos de abandono. A posteriori, percebi como era
oportuno que esse livro fosse publicado pela editora Salvator. Ao
menos uma vez, esse nome abaixo da capa é mais importante que
o título e que meu próprio nome, tanto é verdade que necessitamos
de um Salvador.
Depois ao Padre Serge-Thomas Bonino, o.p., que consultei por
seu rigor teológico, e que me deu seu nihil obstat amistoso. Inútil
dizer como recomendo seu livro Les Anges et les Démons, para
aqueles que querem aprofundar a angelologia subjacente destas
páginas.
Também à Céline Migeot, a bela helenista que esteve disposta
a reler meu manuscrito e me beneficiar com suas luzes da antigui-
dade. Por diversas vezes a incomodei com milhares de questões de
tradução, e ela sempre me respondeu com alegria.
Enfim, à minha mulher e meus filhos, a quem negligenciei para
escrever essas linhas decisivas sobre a noção de “dever de estado”.
Incessantemente, eles têm de me perdoar por essas falhas (poderia
dizer: demoníacas?). É para eles que sou um ser de carne e não
somente de papel. Eles são o ostensório de Deus na minha vida, e
infinitamente mais que meus livros, meu verdadeiro caminho de fé.

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