Fabrice Hadjadj - A Fé Dos Demônios (2017, Vide Editorial)
Fabrice Hadjadj - A Fé Dos Demônios (2017, Vide Editorial)
Fabrice Hadjadj - A Fé Dos Demônios (2017, Vide Editorial)
demônios
Hadjadj
A fé dos demônios: ou a superação do ateísmo
Fabrice Hadjadj
1ª edição – outubro de 2017 – CEDET
Título original: La foi des démons : ou l’athéisme dépassé, Salvator, Paris, 2009
Editor:
Thomaz Perroni
Tradução:
José Eduardo Câmara de Barros Carneiro
Preparação de texto:
Diogo Chiuso
Revisão:
Gustavo Nogy
Capa & Editoração:
J. Ontivero
Ficha Catalográfica
Hadjadj, Fabrice
A fé dos demômnios: ou a superação do ateísmo / Fabrice Hadjadj; tradução de José
Eduardo Câmara de Barros Carneiro – Campinas, SP: Vide Editorial, 2017.
ISBN: 978-85-9507-XXXXX
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
Thomaz Perroni
Introdução ....................................................................9
primeira parte
Os demônios também creem .................................29
Ou como se pode ter uma fé inabalável
e mesmo assim cair no pior dos pecados ..............................11
primeira lição
As tentações no deserto ......................................................23
O tenebroso vitral ..................................................23
Satanás biblista ......................................................27
... e pedagogo ...........................................................31
Gênio das três tentações ..........................................33
Se tu és o Filho de Deus ...........................................36
O Sedutor entre os fiéis ............................................38
Falso diálogo ..........................................................39
Segunda lição
O evangelho do diabo segundo Marcos ..............................45
Uma resposta silenciosa ..........................................45
Milagre em Cafarnaum ...........................................47
Em Gérasa, adoração e partilha ...............................50
...e oração dos demônios .......................................52
Fé dos demônios e incredulidade dos discípulos ......53
Satanismo pontifical ..............................................55
terceira lição
A lucidez das trevas .............................................................59
Como de Anjo torna-se demônio (I)
A soberba e a inveja ................................................63
segunda parte
pai nosso da mentira
Ou como a fé dos demônios
fecundam os erros dos homens ............................................87
primeira lição
Extensão do domínio da luta ...............................................91
A tentação no Jardim ..............................................91
Santa-do-pau-oco, proto-pecadora .........................94
A culpa de Adão ou a compaixão pervertida ..........99
Flores do mal e inferno do progresso ...................101
No alto, um exército combate por mim .................105
Que nada é diabólico em si, mas
que tudo deve ser reconquistado ..........................108
Entre a distração e o orgulho: o diabo partilhado ....113
Entre a tentação e a provação: o diabo exasperado .....115
segunda lição
Um orquestrador de debates .............................................121
Do tremor da terra ao tremor do Céu .....................121
Da besteira à Besta ...............................................124
O heresiarca dogmático .......................................127
O verdadeiro sob tensão ......................................129
Da primeira letra de Bíblia, ou os
dois entre o dueto e o duelo ..................................131
Como as virtudes se tornam loucas? .....................135
O princípio de Calcedônia,
sextuplicidade do erro e mais ...............................137
Porque os filhos deste mundo são mais espertos ...140
terceira lição
A grande maquinação: ateísmo ou farisaísmo ....................145
Origem e valor do ateísmo do ponto
de vista demoníaco ...............................................145
Se Satanás expulsa Satanás,
ou o pecado irremissível ........................................151
O clamor de Jó e a fé de seus amigos .........................156
A teodiceia pior que o ateísmo ..............................158
A ilusão da cristandade ..........................................162
O grande golpe duplo: pequena
Igreja e mundo ateu ...............................................168
Bem-aventuranças do inferno: a
misericórdia pirateada ..........................................171
terceira parte
Sol de satã e noite da fé
Ou aquilo que o demônio não tem:
fecundam os erros dos homensa carne, a morte, a graça ....177
primeira lição
O fruto do ventre ..............................................................121
Porei inimizade entre a mulher e ti ...................... 181
Demoníaco e filiação ............................................186
Israel, ou o combate com o anjo .........................189
Corpo e oferenda .................................................192
Meios pobres para mais alta riqueza ...................196
Se tu não amas a teu irmão a quem vês .................200
Elogio de uma puta (retorno à Carta de São Tiago) ...205
segunda lição
Aunque es de noche ...........................................................211
Este é o risco do enganador ..................................211
A graça da reconciliação ......................................214
Do primeiro mandamento ou
o ateísmo judeu-cristão .......................................217
Contra o anjo da luz ...........................................220
O amor na noite ..................................................224
Para além da fé que se sente
e o estudo que não se crê ........................................227
O lugar de Deus na minha alma
está vazio (Madre Teresa) .......................................232
Que o Credo se cante ...........................................236
terceira lição
A ser escrita pela graça, com seu próprio sangue ................241
Agradecimentos ......................................................243
“Simão, Simão, eis que Satanás vos recla-
mou para vos peneirar como o trigo; mas
eu roguei por ti, para que a tua confiança
não desfaleça; e tu, por tua vez, confirmas
os teus irmãos”.
Lc 22, 31-32
A Jean-Louis Chrétien,
Jacques Cazeaux
e Ir. Michel Cagin,
assim como a todos os meus demais
mestres rabinos, scientes quoniam maius
iudicium sumitis (Tg 3,1) [sabeis que se-
remos julgados mais severamente].
Introdução
11
fabrice hadjadj
12
Onde mora o que salva,
Cresce também o perigo.2
Apiedar-se dos ateus que buscam, pois não são eles muito
infelizes? Mas repelir àqueles que se envaidecem da sua
incredulidade.5
2 Friedrich Hölderlin (1770-1843): “Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende auch”
[Onde mora o perigo, também cresce o que salva].
3 Lc 12,47-48.
4 Nos círculos católicos franceses, costuma-se usar o termo abreviado “catho” para se
referir aos catholiques – NT.
5 Blaise Pascal, Pensées, §145, éd. Le Guern, Gallimard, 1977.
13
fabrice hadjadj
O ateu que busca não está satisfeito com seu ateísmo. Ele per-
cebe que, tornando-se confortável, esse ateísmo se transforma em
fetiche. Não é fácil ser ateu de uma vez por todas. Pode-se quebrar
um ídolo, mas apenas para se colocar outro no lugar: o dinheiro,
os prazeres, a arte, a ciência… Que não seja mais do que sacralizar
o ato de rompimento: há um integralismo da transgressão, e seus
sacerdotes são ainda mais ferozes quanto mais persuadidos de se-
rem os dispensadores da liberdade absoluta.
Não, o ateu que busca é às vezes o ateu verdadeiro, o ateu aca-
bado. Verdadeiro porque ele não faz de seu ateísmo um deus; aca-
bado porque, consequentemente, sofre de seguir sendo ateu, e teme
esse encerramento que ele denuncia naquele que crê. Esse para-
doxo pode mantê-lo muito tempo como uma cobaia correndo na
roda dentro da jaula. Falta-lhe uma graça para se libertar. Por isso
Pascal o admira e até se apieda do ateu. É também por isso que ele
acredita que o ateísmo, por instância própria, e não por qualquer
reivindicação externa, exige ser superado.
15
fabrice hadjadj
16
rapidamente que só a ideia de que neste ambiente seria preciso
escolher suas luzes nas prateleiras, já nos aprisiona na espirituali-
dade do consumo. Para resumir a questão, o verdadeiro problema
é o seguinte: Satanás é muito espiritual. Sua natureza é mesmo a
de um espírito puro. Nenhum pingo de matéria nele. Nenhuma
inclinação pessoal pelo materialismo. Então, a espiritualidade, po-
demos crer, é seu truque. É mesmo de tal forma seu truque que,
evidentemente, o Espírito da Verdade nos impulsiona mais para o
carnal do que para esse espiritual.
17
fabrice hadjadj
***
18
tudo? Por outro lado, demonizar seu próximo, ver no outro, antes
que em si mesmo, o princípio de todo mal, não é, de fato, uma
grande tentação? “Satanás” não significa o Acusador, isto é, aquele
que faz pesar todas as faltas sobre os outros?
Para compreender esse problema, é importante, no limiar destas
páginas, citar uma pessoa que esteve segura e certa de combater o
Maligno. Inclusive, sua alta linguagem espiritual parece tomar as
entonações de um Padre do Deserto que se dirigiria aos homens
de seu tempo:
12 Albert Speer, Au coeur do troiséme Reich, trad. Franc. M. Brottier, Fayard, 1971, p.
764.
19
PRIMEIRA PARTE
OS DEMÔNIOS TAMBÉM CREEM
Ou como se pode ter uma fé inabalável
e mesmo assim cair no pior dos pecados
Muito bem, Mestre, tens razão de dizer que ele é o único e não
existe outro além dele, e amá-lo de todo coração, de toda inteli-
gência e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo é
mais do que todos os holocaustos e sacrifícios.
1 Mc 12, 33-34.
2 Mc 12, 38.
21
fabrice hadjadj
Ai! Eis que a figura ainda me acerta em cheio! Pois não ser jus-
tificado, o que isso quer dizer, senão ser como o diabo? Seria, pois,
como o diabo mesmo aquele que oferece a Eucaristia! Eis aqui o
mais engraçado: o santo não é aquele que ocupa a primeira fila,
de pé, perto do altar, é o pobre que mantém a distância, e mesmo,
diz misteriosamente o texto, não ousava sequer levantar os olhos
para o céu...
3 Lc 18, 11-14
22
PRIMEIRA LIÇÃO
As tentações no deserto
Então Jesus foi levado pelo Espírito para o deserto, para ser
tentado pelo diabo. Por quarenta dias e quarenta noites esteve
jejuando. Depois teve fome. Então, aproximando-se o Tentador,
disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se
transformem em pães”. Mas Jesus respondeu: “Está escrito: Não
só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boda
de Deus”. Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou
sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus,
atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus
anjos a teu respeito, e eles te tomarão pela mão, para que não
tropeces em nenhuma pedra”. Respondeu-lhe Jesus: “Também
está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus”. Tornou o diabo
a levá-lo, agora para um monte muito alto. E mostrou-lhe todos
os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe: “Tudo isto
te darei, se, prostrado, me adorares”. Aí Jesus lhe disse: “Vai-te,
Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só
a ele prestarás culto”. Com isso, o diabo o deixou. E os anjos de
Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo.
— Mt 4, 1-11.
O tenebroso no vitral
A igreja de São Pedro, em Montfort-l’Amaury, se ilumina com
um vitral cuja própria claridade evoca a maior obscuridade. De
imediato, certamente, todo vitral traz em si a imagem da vida in-
terior. Visto do lado exterior ele é opaco e fosco; contemplado do
interior, recolhe o sol e se colore de centena de matizes. É desta
forma toda vida profunda: a superfície não reflete nada e até pare-
ce sem brilho, mas é porque ela é transparente à luz e a deixa pe-
netrar até o fundo. Por outro lado, os exteriores muito brilhantes
23
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24
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7 1Jo 2,18.
8 Summa contra haereticos, cap. 1, Ed. J. N. Garvin e J.A. Corbet, University of Notre
Dame, 1958, p.4.
9 Pedro de Castelnau foi um sacerdote cisterciense e inquisidor pontifício. Havia sido
designado pelo Papa Inocêncio III como interventor em Languedoc para impedir a
expansão da heresia dos cátaros. Foi assassinado em janeiro de 1208, desencadeando
a Cruzada Albigense – NE.
26
de Béziers. Palavras discutidas, porque o monge Cesário de Heis-
terbach, o único que as menciona, antes as colocou na boca do
próprio Amaury. Os soldados teriam perguntado ao grande abade
cisterciense como distinguir, na batalha, um herege de um católi-
co. O abade teria respondido: “Matai todos, Deus reconhecerá os
seus”. Episódio cuja veracidade é hoje questionada. Mas pouco
importa: o fato da violência está lá. O valor dessa ordem está real-
mente na réplica exata que podemos ter do dualismo cátaro. Aqui,
a linha que faz a divisão entre o bem e o mal está desfocada. Só
Deus, com efeito, pode conhecer os seus.
Mas onde está o diabo nesta história? Entre os cátaros que pro-
pagam o erro, ou entre os católicos que perpetram o massacre? Ele
sabe que o espiritual está em ambos os lados. Também sabe muito
bem que não criou o mundo visível, que a natureza do corpo é boa
e que a Igreja não mente. É aliado da heresia apenas por diversão.
E inflama os ortodoxos, uma vez que a heresia provoca o mais ter-
rível engano. Portanto, fica de um lado, sob a máscara do erro; e de
outro, com o traje da fidelidade. E deste lado, não no bode peludo,
mas no padre abade de Cister, que é mais assustador.
Satanás biblista...
Para quem lê os Evangelhos, a sabedoria dos demônios é mani-
festa. A tentação no deserto, precisamente, nos apresenta um Ad-
versário que cita as Escrituras como um autêntico biblista, e que
usa de uma sequência didática como um bom professor. Uma vez
que Cristo citou o Deuteronômio para repelir a primeira tentação,
Satanás cita um salmo para propor o seguinte: Se és o Filho de
Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: “Ele dará ordem a
seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que
não tropeces em nenhuma pedra”.10 Esses versículos do salmo 91
são aqueles que os monges cantam todas as noites no ofício das
Completas. Nada de mais pertinente, portanto, que pintar o diabo
em hábito monástico.
Sua astúcia é usar de nossas próprias defesas e voltá-las contra
nós. Toda arma que não é o próprio Onipotente, ele pode usar para
nos atacar. Assim ele usa a palavra de Deus para tentar Aquele que
10 Mt 4, 6.
27
fabrice hadjadj
28
nos mostra esses dois inimigos – o hipercriticismo e o fundamen-
talismo – como dois gêmeos miméticos, os quais ao mesmo tempo
se enfrentam e fazem acordo para recusar a função intermediária
da Bíblia. Religiosidade do indivíduo que rejeita a surpresa de uma
Revelação; religião do Livro que rejeita a prova da Palavra viva.
É como se, nestes poucos versículos, a crítica platônica da es-
crita fosse retomada e superestimada.14 No texto, algo fala, mas,
no entanto, ninguém fala. Quando se levanta uma questão, o texto
repete a mesma coisa. Ele não se adapta a nós, não se move do seu
vocabulário. Por se dirigir invariavelmente a todos, o texto parece
não se dirigir a ninguém em particular. Quando não há alguém para
defender seu sentido, ele pode ser puxado para qualquer lado, in-
terpretado falsamente, enfraquecido de sua força. Assim é possível
um puro saber livresco, desassociado da vida, que faz as pessoas es-
tranhas, tagarelas compulsivos e, por isso mesmo, impermeáveis ao
diálogo. Todos, enfim, muito sábios na superfície e muito ignoran-
tes na profundidade. São amantes do palavreado, por isso fogem do
Verbo incarnado. Por esse motivo, segundo Platão, os bons livros
jamais devem ser tomados seriamente, mas manejados com certa
ironia que permite brincar entre suas linhas, e exigindo do leitor o
esforço de encontrar sua própria resposta. É por isso que, segundo
Mateus e Lucas (ainda mais segundo Lucas, porque ele inverte a
ordem das tentações de modo que a citação diabólica do salmo se
torna a última), o uso da Bíblia, seja tal manuscrito hebraico ou
grego, é demoníaco, caso não seja feito na misericórdia divina (sen-
do também essa misericórdia da ordem da exclusão que apaga a
dívida inscrita no livro de contabilidade). Mas é preciso reconhecer
que os outros autores sagrados permitem sempre esse jogo de que
fala Platão, e que exige, no coração da letra, ir ao espírito.
A filologia logofóbica que aqui o diabo exibe, e que se dissimula
também nos escribas e outros doutores da Lei, Jean-Claude Milner
reconhece como um “momento decisivo do saber moderno”.15 A
modernidade se distingue sobretudo por uma relação crítica com
os textos fundadores (seja Homero ou Moisés). Assim ela opera
a passagem de um saber relacional ao saber absoluto. O saber
relacional está “engrenado” na existência: o texto é lido por sua
14 Ver Platão, Fedro, 274c-277a.
15 Jean-Claude Milner. Le Juif de savoir. Grasset, 2006, p.77.
29
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30
mas o dos anjos. Essa referência trai sua maneira de ler. Ele mesmo
é anjo. E os anjos da guarda, seus inimigos conaturais, fazem parte
de suas obsessões. Assim, como há uma leitura antropocêntrica da
Bíblia que a reduz a pequenos princípios de uma moral terrestre,
ele demonstra aqui uma moral angelocêntrica que puxa também a
interpretação para si.
... e pedagogo
Nosso biblista alado mostra ainda um grande sentido peda-
gógico para induzir ao pecado. Na primeira tentação, a do pão,
ele não profere nenhum versículo, mas é para retomar uma outra
Lei de Deus, a não escrita, aquela da criação. Ele não cita as Es-
crituras, mas incita a natureza. Do mesmo modo que ele busca
opor a palavra à Palavra, ele quer insurgir a natureza contra seu
Criador. Que mal há em contentar sua fome depois de quarenta
dias de jejum? Vamos, trata-se apenas de operar um milagrezinho
discreto, sem brilho, no segredo das areias, enfim, transformar al-
gumas pedras em pães (enquanto Mateus fala de “pães” no plu-
ral, Lucas, instituindo na questão espiritual desta fome material,
escreve “pão” no singular, de modo que se imagina não sei qual
paródia de Eucaristia, onde não é o pão que se converte no Corpo
de Cristo, mas a pedra que é convertida no pão do demônio). Não
é o momento de inventar esta restauração rápida que nos agiliza o
trabalho apostólico? Abra-se então primeiro fast-food do deserto,
e o missionário poderá se ativar mais sem perder tempo na cozinha
nem no oratório! Onde está o mal em repor as forças para ir em
seguida começar sua pregação? O próprio realismo da Encarnação
parece convidar a isso.
Santo Tomás comenta:
31
fabrice hadjadj
18 Lc 1,38.
19 Lc 4, 5.
20 Mt 4, 5.
21 Mt 4, 8.
32
Podem-se tirar dois ensinamentos. De um lado, Satanás deseja
dublar Deus até produzir, nos mesmos lugares, suas próprias epifa-
nias: Belém é o lugar do Natal, e de fato é o lugar do massacre dos
inocentes; Jerusalém é a Cidade Santa, ele a transforma no lugar
da morte do Santo. Por outro lado, onde o fiel recebeu mais, é pos-
sível perder mais. O Êxodo pode levar a uma escravidão pior que
aquela do Egito: a escravidão sutil do orgulho. O testamento de São
Luís, no seu segundo artigo, adverte ao príncipe Filipe desta ameaça
interior: “Se Deus te dá prosperidade, agradeça-lhe humildemente,
a fim de que não sejas pior, ou pelo orgulho ou de outros modos,
servindo-te dela como um explorador; porque não se deve combater
a Deus com seus dons”.22 Combater a Deus com seus dons, eis o que
Satanás pedagogo, displicentemente, nos incita a fazer, nos empur-
rando imperceptivelmente, a propósito da mesma coisa, da ação de
graças à arrogância do acionista. Ele o atesta com seu próprio exem-
plo: ele, o chefe dos anjos, a primeira das criaturas, tem o pretexto
de sua própria excelência para fazer um solo, como se diz, e Lúcifer,
o “portador da luz”, tornou-se o príncipe das trevas. Maior é o dom
de Deus, enquanto não se trate do próprio Deus, maior também o
risco de se orgulhar. No oráculo de Ezequiel a propósito do castigo,
o Senhor manda: Começai pelo meu santuário.23 É no próprio cen-
tro da benção que a condenação é possível.
22 Joinville, Vie de Saint Louis, §741, ed. J. Monfrin, Classiques Garnier, 1998, p. 367.
23 Ez 9, 5-6.
33
fabrice hadjadj
34
Os Padres consideraram a cifra ‘40’ como a cifra cósmica, a
cifra do mundo no seu conjunto: os quatro pontos cardeais deli-
mitam tudo, e dez é o número dos mandamentos. A cifra cósmica
multiplicada pelo número de mandamento [o todo físico pelo
todo moral] se torna expressão simbólica da história do mundo.
De certo modo, Jesus percorre de novo o Êxodo de Israel, depois
dos erros e das desordens de toda a história.27
35
fabrice hadjadj
Se tu és o Filho de Deus...
Além de seu caráter exaustivo, a maior pertinência nessa pas-
sagem que Dostoievski interpretou foi a condicional pela qual co-
meça a sedução: Se tu és o Filho de Deus, então... Numa primeira
análise, essa condicional equivale a um problema para o próprio
demônio: a tentação é um teste. Após ter ouvido no momento do
batismo: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo,28 ele
trata de verificar em que sentido Jesus é Filho de Deus. Porque
se por um lado o demônio possui um saber natural infalível, por
outro, seu conhecimento sobrenatural é escasso: ele só conhece a
partir de certos sinais sensíveis e milagrosos. Assim, mal ele viu a
pomba descer, ouviu a voz vinda dos céus e não duvidou nem por
um só instante: Jesus é o Messias. Nada mais a dizer depois disso.
Nenhum dos contemporâneos estaria tão seguro disso.
Mas a maior parte dos teólogos recusa a ideia de que os demô-
nios soubessem, antes do evento da Ressurreição, que Jesus seja o
próprio Deus e, portanto, Filho eterno do Pai. Eles se baseiam nas
palavras de São Paulo:
Para que tentar Deus em pessoa? Por que se esforçar para co-
locá-lo na Cruz? Se o demônio tivesse sabido antes, ele não teria
mordido a isca: como diria Davi, ele não teria engolido um anzol
com seu homem-verme, ao ponto de se fazer instrumento da Re-
denção e de ser ele mesmo a causa de ser vencido.
E por que não, depois de tudo? Não estamos aqui no plano de
demonstração, mas dos motivos de conveniência. Ora, um bom
diabo poderia muito bem objetar que, já que o Verbo se fez carne
e, portanto, é capaz de sofrer, o melhor a fazer agora é aproveitar,
meus camaradas! Contanto que ele sofra o máximo ao longo de
sua vida terrestre, pouco importa se é uma armadilha, mesmo se
28 Mt 3, 17.
29 1Cor 2, 7-8
36
isso sirva para fazer o bem!... No entanto, não queria me opor
a tradição tão antiga e razoável. O que ela permite ver, afinal, é
preciosíssimo. O demônio entende que é atribuída a nós uma dig-
nidade verdadeira, e por causa dessa dignidade que ele prepara
nossa queda. Se tu és o Filho de Deus, faça isso... Mas fazer isso,
na verdade, é não mais ser Filho de Deus. A condicional é uma
antífrase (é a retórica do Anticristo). A Verdade diria: “Se tu não
queres mais ser Filho de Deus...” Ele, segundo Mateus, esconde seu
jogo até a última tentação, quando abandona essa inversão e, sem
mais rodeios, lança: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares.30
Não vale mais a pena fingir. Essa última condicional desvela o ver-
dadeiro sentido das condicionais precedentes. O se tu és o Filho de
Deus esconde um se tu queres adorar o diabo.
Mas o essencial está em outro lugar, e é isso que Dostoievski
compreende. Atrás da mentira se oculta um projeto autêntico. O
se tu és o Filho de Deus visa preparar o caminho para outro mes-
sianismo. As três tentações conspiram para propor uma Salvação
substituta. Não há dúvida de que sua finalidade é barrar o Cami-
nho, mas é traçando o caminho de uma felicidade estritamente ter-
restre: o pão, a paz, a terra – não conhecer mais a fome, não mais
experimentar a inquietação de consciência, conquistar o mundo
e seus prestígios: eis o que deveria oferecer o verdadeiro messias,
aos olhos do inferno. Não era essa a grande visão do nacional-
-socialismo? Não propunham uma Europa mais unida, onde rei-
naria o homem regenerado? Não era esse o amanhã cantado pelo
socialismo soviético, o de uma sociedade sem classes onde todos os
proletários se dariam as mãos? Não é sempre este o projeto da tec-
nocracia: produzir o super-homem pacificado do grande hipermer-
cado mundial? Ou ainda o apelo dos jihadistas: estabelecer o Islã
em todo o planeta para ganharmos todas as bênçãos materiais de
Alá? Cada uma das vezes, o que se pretende é fabricar uma socie-
dade perfeita onde o pão, a paz e a terra oferecem ao homem uma
felicidade de um animal saciado. Mas para isso deve-se eliminar
tudo o que é impuro, frágil ou desonesto, e especialmente aqueles
que pregam uma mais universal e mais profunda alegria: o Partido
da Paz mundana não têm piores inimigos do que os apóstolos da
bem-aventurança.
30 Mt 4, 9.
37
fabrice hadjadj
32 Le Grappin no original: era como São João Maria Vianney, o Cura D’Ars,
referia-se ao diabo que lhe atormentava – NE.
33 Diário de um escritor, citado por Henri de Lubac, Le Drame de l´humanisme athée,
Spes, 1945, p.344-345.
38
do século XX é miopia. O próprio diabo se aplaude no auditório.
Porque se olhamos com atenção, devemos confessar: estas três ten-
tações não são apenas exteriores à Igreja. Elas a atacam de dentro.
Elas anunciam três desvios internos, e tão internos que parecem
se confundir à reta doutrina. Então Jesus foi levado pelo Espírito
para o deserto, para ser tentado pelo diabo.34 É o Espírito Santo
que conduz Jesus ao deserto (Marcos diz mesmo que ele o expulsa,
ekballei, como Jesus expulsará o demônio). A provação do deserto
está, portanto, especialmente lá onde se encontra o Espírito.
Os nomes dessas três tentações interiores? Humanismo, quietis-
mo, evangelismo (ou ativismo missionário). Elas pervertem três as-
pectos essenciais da vida cristã: o amor aos pobres, o abandono à
providência, o anúncio da Boa Nova. Essa maneira de considerá-las
respeita seu caráter sucessivo – e mesmo dialético. Ela torna possí-
vel a concomitância que lhes outorga o sistema do Grande Inqui-
sidor: ali aonde o pão, a paz e a terra iam em uníssono, o huma-
nitarismo, o quietismo e o evangelismo se opõe. O humanitarismo
é contrário ao espiritualismo, e seu ativismo se opõe ao ativismo
missionário; do mesmo modo, quietismo e evangelismo são opos-
tos, porque o primeiro é inerte enquanto o segundo não para quie-
to. Eles tendem, portanto, a romper os cristãos entre si, e em si
mesmos, quebrando o tenso equilíbrio da natureza e da graça, da
ação e da contemplação.
Falso diálogo
– Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transfor-
mem em pães... A Igreja não prega a “opção preferencial pelos
pobres”? O grito dos famintos não deve penetrar em seu ouvido
e até na sua alma? Que o clero se organize, portanto, para enviar
sacos de arroz e de trigo a todas as nações! E pouco importa que
a hóstia seja consagrada, desde que seja substanciosa! Que ela se
torne um verdadeiro sanduíche que mate sua fome! A Ceia não
foi um jantar onde se servia verdadeiro cordeiro, de carne e osso?
Adeus, portanto, à transubstanciação! Que o bispo troque a mitra
pelo chapéu de cozinheiro! Que no lugar do Crucifixo, erga-se um
espeto de churrasco! Que uma geladeira cheia esteja no lugar do
34 Mt 4, 1.
39
fabrice hadjadj
35 Jo 12,5.
36 Lc 9, 11.
40
escute o pobre que bate na tua porta, mas reza: um anjo ou um
corvo acabarão por alimentá-lo. Faças oração e não faças mais
mais. Seja Maria aos pés de Jesus, e despreze Marta que se dedica
ao serviço. Deixa aos imperfeitos a preocupação da matéria, a
alimentação das vacas, o pastoreio das ovelhas. Que balem ou
uivem, não importa, concentra tua atenção na vida interior. Ne-
gligencie todas essas pequenas obrigações cotidianas que são a
evidência das pessoas mesquinhas. Tu és feito para tarefas mais
elevadas. Tu és um filho de Deus: alise tuas plumas e deixe aos
outros o chumbo.
37 At 17, 28.
38 No texto original o autor faz um jogo de palavras com as expressões culs-bénis,
usada de forma pejorativa para se referir a pessoas piedosas, beatas; e cul plombé,
semelhante ao nosso CDF – NT.
41
fabrice hadjadj
42
maneira breve, e por ora reduzida, trata-se da questão da carne e
do Espírito. Com o pão, é a carne sem o Espírito; com o abando-
no aos anjos, é o espírito sem a carne; com a proposta dos reinos
terrestres, é uma carne e um espírito unidos, mas diminuídos, di-
gamos uma carne virtualizada por um espírito mundano, a fim de
uma produzir essa contradição sedutora: o grande espetáculo da
oração, o grande divertimento da fé...
43
SEGUNDA LIÇÃO
O evangelho do diabo segundo Marcos
E ele esteve
no deserto quarenta dias,
sendo tentado por Satanás;
e vivia
45
fabrice hadjadj
entre as feras,
e os anjos o serviram.
1 Sobre esse tema, ver o primeiro capítulo do primeiro de livro de J.L. Chértien, Lueur
du secret, L´Herne, 1985.
2 Mc 15, 39.
46
Milagre em Cafarnaum
Segundo Marcos, o começo de sua vida pública não é menos
perturbador que esse final. Onde, após o chamado dos primeiros
discípulos, Mateus evoca as numerosas curas e João apresenta
como primeiro sinal o milagre nas bodas de Canaã, Marcos relata
com precisão um shabat em Cafarnaum. O episódio é reencontra-
do em Lucas, mais ou menos no mesmo lugar, mas ele é precedido
de um primeiro conflito em Nazaré (Ninguém é profeta na sua
terra) e seguido somente pelo chamado aos discípulos. Em Marcos,
portanto, a passagem em Cafarnaum tem verdadeiramente algo de
inaugural e se desenvolve na sequência da primeira pregação da
fé: Arrependei-vos e crede no Evangelho.3 No teatro, poderia ser
uma cena de exposição (no boxe, um round de observação). Amar-
ra a intriga entre dois casais antagonistas que não cessaram de se
enfrentar daí em diante: fé teologal e fé dos demônios, autoridade
de Jesus e autoridade dos escribas. No meio deste enfrentamento,
os discípulos estão desorientados, ou melhor, perturbados como
uma bússola bem perto do polo. A Meta está lá, no meio deles, é
por isso que não sabem mais seu caminho.
Eis-nos em pleno Cafarnaum. Como este nome veio a desig-
nar de maneira comum um “lugar de desordem e devassidão” ou
ainda uma vasta “miscelânea de objetos diversos”? O Tesouro da
língua francesa explica recordando que, nesta cidade às margens
do lago de Tiberíades, “Jesus foi assaltado por uma multidão hete-
rogênea de enfermos implorando seu poder curador”. Cafarnaum
seria antes de tudo um sinônimo de uma corte de milagres. Mas
essa singularidade cômica esconde uma outra, mais temível. Lucas
e Mateus relatam, a propósito desta cidade, o que talvez seja a
maldição mais grave proferida por Cristo:
3 Mc 1, 15.
4 Mt 11, 24-23 e Lc10,15.
47
fabrice hadjadj
5 Is 14, 12-15.
6 Mc 1 23-27.
48
Questionemos, então, sabendo que se não vamos além da sim-
ples questão: “Que é isto?”, não seremos melhores que o povo de
Cafarnaum. Primeiramente notemos este fato estranho que o es-
pírito impuro não impede o nosso homem de ir a sinagoga, isto é,
transpondo as coisas aos nossos dias, impede-o de ir à igreja, ou ao
menos ao grupo de oração. O demônio não é contra o fato de abrir
o livro na página 131 para cantar o canto 669; ele chega mesmo
a aplaudir a homilia de certos padres. Por que ele faria aquele que
atormenta se distanciar do lugar de culto pelo corpo? O essencial
é ele mesmo se distanciar do culto, mas pelo coração.
Em seguida, esse demônio reconhece imediatamente a identida-
de de Cristo. Ele afirma sem hesitar um instante: Sei quem tu és:
o Santo de Deus. Alguns traduzem por “Sei muito bem”, a fim de
que a expressão transpire uma segurança tal como se encontraria
nos doutores em teologia. Ninguém mais na sinagoga sabe tanto.
Nem mesmo os primeiros discípulos que lá entraram com Jesus. É
a primeira vez que uma criatura se faz eco da voz descida dos céus
durante o Batismo no Jordão: Tu és meu Filho amado, em ti me
comprazo.7 Como se o espírito impuro se fazia durante a descida
da pomba branca...
Além disso, o demônio obedece a Jesus. Quando ele lhe orde-
na: Cala-te (traduzido segundo a exata eloquência de nossos dias:
“Cala a boca!”) e sai dele, lhe obedece sem demora. Bem enten-
dido, ele a executa com um grande grito, constrangido e forçado
pelo soberano poder do Verbo: não é obediência propriamente fa-
lando, porque a obediência por natureza é livre, mas em todo caso,
assim lhe parece.
Enfim, e isso é o mais assombroso, se Jesus lhe ordena calar, não
é por causa da aspereza de seu tom, mas pelo conteúdo de suas
palavras. A sequência deixa bem claro para quem ainda duvidasse.
No entardecer do mesmo dia, após o pôr-do-sol, toda a cidade de
Cafarnaum se reúne na porta onde Jesus cura numerosos enfermos:
E expulsou muitos demônios, e não consentia, porém que falassem,
pois sabiam que era ele.8 Ora, não é a missão da Igreja anunciar
quem é Jesus? Por que então censurar tão persuasivas declarações?
7 Mc 1,11.
8 Mc 1, 34.
49
fabrice hadjadj
9 Mc 5, 6-7.
50
é por Deus que conjura a Cristo, como alguém que conhece sua
religião. E por este que é seu pedido: não me atormentes, que ele
trai, sem dúvida, o demoníaco, mas faz pensar também em Simão-
-Pedro após a primeira pesca milagrosa: Atirou-se aos pés de Jesus,
dizendo: Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!”10
A Cristo, que lhe pede seu nome, o espírito responde operando
uma estranha passagem do singular ao plural, do “eu” ao “nós”
(inverso aquele de Cafarnaum que passa do “nós” ao “eu”). Le-
gião é o meu nome, porque somos muitos.11 Uma legião, no tem-
po de Augusto, são 6.826 pessoas, divididas em 726 cavaleiros e
6.100 membros da infantaria. Que sublime senso de partilha! Que
paróquia, no curso da mais fervente quaresma, esperaria tais cifras
na distribuição de seus dons? Ou mesmo um clube de swing, no
curso da mais febril orgia. Tem só essa pobre alma de nosso pos-
suído, e os demônios a constrangem, repartindo-a coabitando-a
em massa, com uma solidariedade que encantaria o ministério da
coesão social. Sem dúvida, diríamos que essa partilha tem mais de
gang bang do que de comunhão: é uma festa de rapinadores antes
que uma mesa de amigos. Não é menos fascinante. Porque detrás
do deslizamento do singular ao plural, se perfila algo muito mais
profundo.
Esse deslizamento concerne um possuído que vive entre as tum-
bas, isto é, um homem a quem o nada lhe atrai. Ora, o mesmo des-
colamento gramatical se encontra duas vezes, em paralelo, quando
o homem é tirado do nada. É o primeiro capítulo do Genesis: Elo-
him disse [singular]: “Façamos [plural] o homem à nossa imagem,
como nossa semelhança, e que eles dominem [plural] sobre os pei-
xes do mar, as aves do céu, etc”.12 Deus é Um em Três Pessoas. E
o humano o manifesta corporalmente sua imagem através da viva
relação entre um homem e uma mulher. A Legião é um simula-
cro ao mesmo tempo da comunhão trinitária e da aliança sexual.
A possessão de nosso pobre rapaz por essa turba de demônios é
uma invejosa réplica da inhabitação da Trindade na alma fiel. Ela
é também um negativo de núpcias na sua fecundidade: um tipo de
10 Lc 5, 8.
11 Mc 5, 9.
12 Gn 1, 26.
51
fabrice hadjadj
copulação múltipla, uma grande orgia espiritual não para que seja
trazida ao mundo uma criança, mas para que o velho homem seja
posto no inferno.
52
mar.16 Eles morreram por causa de Jesus. Dir-se-iam mártires da fé.
Porque morrendo assim eles parecem testemunhar sua força: olhai
que poderoso feiticeiro, vede aquele que pururuca os espíritos nos
porcos, admirai sua charcutaria mágica! Suicídio que caracteriza
o martírio, testemunho da vontade de poder, lá onde o Cristo quer
um testemunho por sua descida por amor.
Assim os demônios distorcem tudo o que é cristão e proclamam
seu evangelho aos suínos. As pobres pessoas que veem esses pro-
dígios, influenciadas por essa proclamação, ou bem comprimem o
grande curandeiro a risco de esmagá-lo17 ou suplicam ao afogador
de porcos que se afastasse do seu território.18 Os que estão à beira
do caminho onde a Palavra foi semeada são aqueles que ouvem,
mas logo vem Satanás e arrebata a Palavra neles semeada.19 Airô,
o verbo que eu traduzo aqui por “arrebatar”, também pode ser
traduzido por “levantar do solo”, ou ainda, “apropriar-se”. Sata-
nás não destrói, portanto, a pregação. Ele a assimila orgulhosa-
mente. Ele a eleva em artifício: que a semente não seja enterrada
no solo, que o grão de mostarda seja substituído por uma maçã
bem grande e bem visível, que o ritmo natural de seu crescimento
não seja respeitado, que não a permita agir como nessa parábola
encontrada apenas em Marcos, na qual o Reino é comparado com
uma semente que cresce sozinha, sem que ele saiba como, na graça
de Deus.20 Ele quer que se domine inteiramente o crescimento da
semente. Ele quer uma fé que suba à cabeça, ao invés de uma que
desça ao coração.
16 Mc 5, 13.
17 Cf. Mc 3,9.
18 Cf. Mc 5, 17.
19 Mc 4, 15.
20 Cf. Mc 4, 26-29
21 Mc 3, 21-22.
53
fabrice hadjadj
22 Cf. Mc 6, 3-6.
23 Mc 4,40-41.
24 Mc 6, 51-52.
25 Mc 8, 17-19.
26 Mc 9, 19.
54
crer em Maria Madalena de quem havia expulsado sete demônios27
e uma vez mais, seis versículos antes do fim, Jesus, ressurgido dos
mortos, censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração.28
Satanismo pontifical
Porém, o mais forte se situa exatamente no centro desse Evan-
gelho. Sabe-se que mais frequentemente na composição bíblica,
como num candelabro de sete braços, o que está no meio é o que
suporta o restante: no meio do livro do Êxodo, por exemplo, o
Decálogo; no meio do segundo livro de Samuel, o arrependimento
de Davi; no meio do Sermão da Montanha, o Pai Nosso.29 Ora, o
que está no meio do Evangelho segundo Marcos? Essa passagem
onde Pedro professa a fé verdadeira e logo depois é chamado de
Satanás. É onde se situa o ponto de virada de todo o livro.
27 Mc 16, 9-11.
28 Mc 16,14.
29 Sobre os princípios da estrutura bíblica, ler Jacques Cazeaux, Histoire, Utopie,
Mystique: Ouvrir la Bible comme un livre, Éd. du Cerf, 2003.
30 No original: “Va-t-en derrière moi”. As traduções francesas trazem essa expressão:
‘atrás de mim’, que aqui foi mantida para melhor compreensão da explicação
posterior – NT.
31 Mc 8, 29-33.
55
fabrice hadjadj
Não acho que o que Evangelho quer nos dizer aqui faz referên-
cia à fragilidade humana, a qual Pedro estava exposto, pois a his-
tória das três negações é o suficiente para isso. Levando em conta
a diferenciação que, ao repreendê-lo, Jesus faz entre “as coisas dos
homens” e “as de Deus”, me parece primeiramente que o signi-
ficado tem relação aos perigos de toda soberania aqui de baixo,
com sua atmosfera de adulação, de autoritarismo e de amor ao
prestígio, além de intrigas e ambições pessoais criadas ao seu redor,
tanto no mundo eclesiástico quanto no mundo laico”.33
56
Vida. Assim podemos tirar esta conclusão muito provável: em sua
dupla ciência, o demônio busca, ao mesmo tempo, fazer assassinar
a Cristo e fazer amá-lo de um modo ruim. Ao protegê-lo contra
essa atroz humilhação pela qual ele salvará os homens, poderia
fazer com que o proclamasse rei temporal de Israel. Ele reúne, por-
tanto, as multidões ao seu redor, faz que o aclamem como tau-
maturgo, que o sigam como zelotes vitorioso, o admirem como
o maior sábio deste mundo. Comentando a alegoria da caverna,
Heidegger nota que o modo contemporâneo de matar um filósofo
é torná-lo célebre. Nada é mais eficaz para apagar o sábio do que
fazê-lo uma personalidade, nada melhor para eclipsar sua estrela
do que torná-lo um popstar. Não há nada mais a temer depois
que sua palavra passa a ser debitada em slogans que se repetem de
boca em boca. Ela já não levanta questionamentos, apenas contri-
bui para bate-bocas. Quem sabe se essa fama baseada no equívoco
não é um dos objetivos principais do diabo? E quem sabe se certos
pseudoapóstolos de nossos dias não permanecem nesta fé?
Devemos, contudo, ter a seguinte evidência: por mais confu-
so que pareça, a incredulidade dos discípulos vale mais que a fé
dos demônios – do mesmo modo que a desobediência do leproso
purificado que, apesar da “severa advertência” para se calar, foi
difundindo a notícia de sua cura, vale mais que a obediência do
espírito impuro que se cala a partir do momento que Jesus lhe
ordena calar.34 Mas como um desconhecimento pode ser melhor
que esse saber angélico? Como um certo ateísmo, no fundo, pode
ser menos mal que conhecer Jesus? É preciso suspeitar da própria
fé? Até nova ordem, não podemos mais que clamar como o pai do
epilético endemoniado: Eu creio, ajuda a minha incredulidade!35
34 Cf. Mc 1, 40-45
35 Mc 9, 24.
57
TERCEIRA LIÇÃO
A lucidez das trevas
Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem
obras, de que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo?
Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes falta-
rem o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém den-
tre vós lhe disser: “Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos”, e não
lhes der o necessário para a sua manutenção, que proveito have-
rá nisso? Assim também é a fé, se não tiver obras, está morta em
seu isolamento. De fato, alguém poderá objetar-lhe: “Tu tens fé
e eu tenho obras. Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei
a fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus? Ótimo!
Lembra-te, porém, os demônios creem, mas estremecem”.1
59
fabrice hadjadj
afinal, ela lhe parece muito distante do sola fides, da fé que sozinha
justifica, segundo a sua própria leitura da epístola aos Romanos.4
Não se trata aqui de entrar nesse debate. Notemos somente que
esse Jacó do Novo Testamento,5 como aquele do Antigo, combate
com o Anjo. Ele não procura tanto opor a fé e as obras, quanto
opor uma fé com outra fé, o que é mais profundo e de consequên-
cia muito mais grave: nem nossas obras nem nossa própria fé são
suficientes para nos salvar. Como, com semelhante revelação, o
cristão não seria coxo? Impossível ficar bem de pé como o fariseu
da parábola; impossível se manter firme nas próprias pernas.
Mas de que fé estamos falando? Tu crês que há um só Deus,
diz São Tiago. Não se trata aqui de um movimento voluntário, de
um crer em algo ou alguém, que implica se colocar à disposição de
alguém, ou ao menos dar-lhe confiança. Trata-se, de fato, de uma
certeza especulativa, de crer que isso é verdadeiro, sem que esteja
em jogo entregar-se com total confiança à palavra do outro. Uma
fé sem confiança, desconfiada mesmo, isto é, uma fé que se borra
de medo, se a teologia pode se permitir um pouco de gíria.
Beda o Venerável, retoma essa distinção dizendo que uma coisa
é crer algo (credere illum), outra coisa é crer em algo (credere in
illum): “Crer que Deus é, crer que o que Ele disse é verdade, os
demônios também podem. Mas crer em Deus, isso só é possível
àqueles que amam a Deus, isto é, àqueles que não são cristãos só
pelo nome, mas também pela vida e pelos atos”.6 Crer em Deus
(acusativo) implica ir para Ele, e como é o amor que nos faz sair de
nós mesmos para tender ao outro, porque aquele que ama tem seu
coração e seu espírito intencionalmente no seu bem-amado mais
do que nele mesmo, só a caridade divina nos dá o crer verdadeira-
mente em Deus. Deste ponto de vista, os demônios não creem em,
mas fora de Deus, isto é, sem amor.
4 Um outro aspecto dessa Carta repugna especialmente a Lutero; é que nela se encontra
a menção e o fundamento escriturístico do sacramentos dos enfermos: “Eu lhe digo, ele
escreve, se alguma vez se delirou, foi principalmente aqui” (De captivitate Babylonis,
citada por Joseph Chaine, L´Épître de saint Jacques, Paris, 1927). Que Lutero veja aqui
o exemplo do delírio, interessa especialmente a nossa reflexão: os demônios, quando
creem, dificilmente deliram, enquanto que o fiel entra numa certa loucura (a môria tou
kérugmatos, loucura da proclamação, de que fala São Paulo – 1Cor 1, 21)
5 Ele faz uma relação entre o Patriarca Jacó e São Tiago por conta dos seus nomes em
latim, ambos Jacob – NT.
6 Patrologia Latine, Migne, XCIII, 22
60
Santo Agostinho sublinha que somente aí se encontra a diferen-
ça das idênticas afirmações: “Pedro diz: Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo. Os demônios dizem também: Nós sabemos que tu és o
Filho de Deus, o Santo de Deus. Isso que diz Pedro, os demônios
o dizem também: mesmas palavras, mas não no mesmo espírito.
E onde está a prova de que Pedro dizia as essas mesmas palavras
mais de outro modo? É que a fé do cristão é acompanhada do
amor piedoso, que falta ao demônio. Os demônios expressavam-
-se assim para que Cristo se afastasse deles, porque antes de dizer
“Nós sabemos que tu es, etc.”, tinham dito: O que há de comum
entre nós? Vieste nos destruir antes do tempo marcado? Portanto,
uma coisa é confessar o Cristo para ligar-se a Ele, outra coisa é
confessar o Cristo para o repelir para longe de ti”.7 Confissão
que não vai se confessar, portanto, acolhimento da hóstia na boca
para, meio-mastigada, melhor cuspi-la para o ar.
Tomás de Aquino é mais preciso na sua terminologia. A distin-
ção do credere in Deum (crer em/para Deus) e do credere Deum
(crer que tal é Deus), ele acrescenta aquela do credere Deo (crer
a Deus).8 No primeiro caso, trata-se do objeto da fé considerado
do ponto de vista do fim, como aquele que realiza a beatitude; no
segundo caso, o objeto da fé é considerado do ponto de vista ma-
terial, quer dizer, enquanto que tal ou tal artigo proposto se refere
a Deus; no terceiro caso, o objeto da fé é considerado do ponto de
vista formal, como aquele que a motiva, a saber, a autoridade de
Deus que se revela. Se no primeiro caso o objeto da fé, percebido
como soberano bem, põe em movimento a vontade (credere in
Deum) nos dois outros casos o objeto da fé concerne à inteligência
e se apresenta como aquilo no que creio (quod creditur), e aquilo
porque eu creio (quo creditor). Ora, é por esse do quo creditir que
o motivo da fé demoníaca não é a mesmo que a fé teologal. O
credere Deo (dativo) é mais que um ato de confiança. É um crer a
partir de Deus que se revela: o próprio Eterno que ilumina a inteli-
gência e a leva a acolher uma Revelação que ultrapassa suas forças
naturais. Ora, os demônios não querem principalmente nada que
os exceda, tanto do lado da vontade tanto do lado da inteligência.
Eles creem, e isso faz seu orgulho, a partir de sua penetração de
61
fabrice hadjadj
9 Ibid., 5,2.
10 Serge-Thomas Bonino, o.p., Les anges et les démons, Parole et Silence, col. “Bibliothè-
que de la Revue thomiste”, 2007, p.154.
62
Cristo, que em Marcos inauguram sua pregação: Arrependei-vos e
crede no Evangelho.11 “A construção “crer no”, pisteiô + en + dati-
vo, comenta Jean Delorme, é excepcionalmente rara e só se encontra
aqui, em Marcos. Ela não está nem no grego clássico nem no grego
comum dos papiros. É atestada pela Septuaginta, e alguns outros
textos do Novo Testamento se aproximam dela. Explica-se ordina-
riamente como uma torção de tipo semítico ou ainda por confusão,
frequente no grego comum, entre as preposições en (com dativo,
“dentro de” sem movimento) e eis (com acusativo, “dentro de” ou
“em direção a” com movimento)”.12 Em suma: para crer na boa
nova é preciso que o grego da sabedoria natural seja como subverti-
do pelo hebreu da Revelação. O barbarismo é aqui uma delicadeza
divina. Ele diz à própria gramática o que se opera na verdadeira fé: a
infusão do Espírito Santo no coração do homem, semelhante a esta
intrusão da língua de Moisés na língua de Ésquilo.
Diante de tal possibilidade, o diabo não queria perder seu gre-
go. Ele parece a “estes homens que tem mais cuidado em observar
as leis dos Gramáticos que aquelas de Deus”.13 “Crer dentro de
Deus”, como quem habita dentro de suas entranhas, o que haveria
de mais nojento para ele? Essa torção é por demais retorcida. Ela
expressa com veemência do que ele se afasta. Marcos não podia
deixar de usá-lo – tal uma luz e um contrapeso – no umbral da
narrativa que não cessa de atestar a infalibilidade demoníaca. O
demônio sabe, sem dúvida, mas ele não está em Deus. Como diz
meu vizinho trombonista: “Quando se toca a música, uma coisa é
conhecer a partitura, outra é estar ‘dentro’.”
63
fabrice hadjadj
64
obscenidade, enquanto nós permanecemos sem mancha do lado de
cá – mas apenas para carregar a corrupção no fundo de nossa alma).
Então, eis aqui o protesto: – O quê? Devemos tolerar esses cor-
pulentos no Céu? Isto é inconcebível! Eles mijam e cagam e ainda
serão chamados à mesma glória que os puros espíritos? E ainda
não contei o pior: eles copulam, eca!; eles fazem sexo e devemos
dizer amém a essa monstruosidade como uma imagem lambuzada
da Trindade!... Vamos impedir que ocorra este absurdo! Façamos
pensar que a carne é por si mesma má, ou ao menos que ela nada
tem a ver com o espírito!
Ninguém pode negar o valor especulativo desta tese da queda
invejosa. Mas ela permanece parcial e não remonta a tão longe. Se
o livro da Sabedoria diz que foi por inveja do diabo que a morte
entrou no mundo,17 não diz que foi também por meio dela que a
morte entrou no diabo. O libro de Ben Sirac lembra igualmente: o
princípio de todo pecado é o orgulho.18 No entanto, Santo Agos-
tinho observa que
65
fabrice hadjadj
66
filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse: “Filho, vá trabalhar hoje na
vinha. Ele respondeu: “Não quero”; mas depois, reconsiderando
sua atitude, foi. Dirigindo-se ao segundo, disse a mesma coisa. Este
respondeu: “Eu irei, senhor”; mas não foi. Qual dos dois realizou
a vontade do Pai? Responderam-lhe: “O primeiro”. Então, Jesus
lhes disse: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas
estão vos procedendo no Reino de Deus!”20 Não fazer a vontade do
Pai, este é o próprio pecado. Mas o que o radicaliza é ter prometido
anteriormente que a realizaria. Como não pensar, se o pecado de-
moníaco é radical, que se trata de um sim sem consequência, uma
promessa não mantida, como ainda agora, de uma dupla invocação
(Senhor! Senhor!) sem ato de justiça? Mas também, como pensar
nisso? O santo é aquele que disse não, mas cujo não se tornou um
sim após se arrepender. O maligno é aquele que disse sim, mas cujo
sim dissimula um não sem nenhum remorso.
Para entender melhor, é necessário sublinhar as duas palavras
empregadas pelo segundo filho. Começando pela segunda: Senhor.
O outro filho tinha dito somente: Não quero. Ele não chama seu
pai de “Senhor”. Este uso no segundo manifesta uma relação me-
nos filial que servil, fundada mais sobre o temor do que sobre o
amor. Talvez por zombaria, como eu diria a minha esposa: “Sim,
chefe!” Mas eis a primeira expressão frequentemente traduzida
por “Entendido”, “Eu irei”, “Sim, Senhor”.21 Trata-se de um pro-
nome grego que não é preciso traduzir: Ego. No contexto, ele sig-
nifica: “Eis-me aqui! A vosso serviço!”. Mas este OK esconde seu
Goodbye. Este “Eis-me aqui” significa “Aqui estou EU”. É onde se
encontra a soberba. Não tanto pela recusa do serviço, como pelo
desejo de servir a seu critério, um pouco como o escravo da dialé-
tica hegeliana: ele serve de modo que o mestre se torne o seu ser-
viçal, e finalmente, o servo do servo (essa inversão constitui toda
a intriga do The Servant, de Harold Pinter: o mordomo da casa se
torna efetivamente patrão de seu patrão, por meio de um serviço
enganoso): “Sou eu, Senhor, que venho a teu socorro. Eu não sou
como meu irmão, eu. Eu, eu não digo não. Deixa-me, portanto, te
servir como eu quero”.
20 Mt 21, 28-31.
21 No francês “Entendu”, “J´y vais”, “Oui, Seigneur” – Respectivamente, da versão fran-
cesa da Bíblia de Jerusalém, da Traduction œcuménique de la Bible, e da Tradução
oficial litúrgica – NT.
67
fabrice hadjadj
22 Ef 2, 8.
23 Assim como o homem jamais se torna Deus, mas pode ser divinizado sem que nada de sua
personalidade seja alienada. Nem a graça nem a glória abolem a natureza humana para
transubstanciá-la na natureza divina. Pelo contrário, por ela a natureza humana é preser-
vada, restaurada e elevada, tornando o homem ainda mais humano porque participa mais
na divindade – ainda mais carnal porque mais espiritual, teria dito Péguy.
68
Mas ele ainda sabe outra coisa mais estranha e menos notada: é
que, sendo um anjo, por natureza ele é mensageiro e servo do Altís-
simo. Como o ignoraria? Ele cumpre sempre uma função na gran-
de sinfonia do universo. Suas dissonâncias fazem parte da partitu-
ra, seus ataques serão empregados, como para Jó, para manifestar
a fé do justo. Também não é menos absurdo a seus olhos pretender
escapar ao poder do Onipotente. O demônio não quereria escapar
dele enquanto seu Criador. Somente lhe recusa enquanto ele quer,
por complemento, ser seu Esposo, porque não haverá matrimônio
sem consentimento mútuo. Não lhe rende menos serviço. É mesmo
um servo útil (só existem senão santos que são servos inúteis – Lc
17,10 –, isto é, que saem da lógica utilitária e funcional para en-
trar na liberdade do amor). Seu pecado não é, portanto, o de não
servir, mas de estar num serviço sem amor; trabalhar a vinha, sem
dúvida, mas sem acolher a ordem sobrenatural, ou melhor, traba-
lha nela como Botrytis Cinerea, que se chama também “podridão
nobre”: um cogumelo que por si mesmo não tende senão a devas-
tar as colheitas, mas que, em certas condições de humidade e de
sol, bebendo a água das uvas, permite concentrar o açúcar e fazer
esses cachos d’ouro e de mel que obtemos no vinho de Sauternes.
Mas como melhor definir esta desordem no ímpeto de servir a
Deus e assemelhá-lo? Santo Tomás emprega palavras que tem um
quê de surpreendente. Ele chama isso de “possuir sua beatitude
última por suas próprias forças.”24 Não é a virtude primordial do
homem cheio de confiança em si? E, no entanto, querer fazer por si
mesmo sua felicidade e aquela dos outros é necessariamente trocar
a providência pelo planning, seguir uma rotina sem acontecimen-
tos, não encontrar a resistência de um outro, a fim de não acolher
Aquele que vem. O diabo é um fazedor. Ele sabe fazer a caridade
sem vivê-la. Ele a faz como se diz também “fazer amor”, ou seja,
mudando o lugar de uma desapropriação amorosa numa cadeia da
usinagem de prazeres.
Suas próprias forças, isto é, suas forças naturais, o anjo já as
recebeu, de fato, do Deus criador; mas, uma vez que ele foi criado,
suas forças lhe são dadas por Deus como uma justiça e algo devi-
do. Isso não igual para a graça: ela não é algo devido à criatura,
mas um dom de amor gratuito. Ela não exige absolutamente nada
24 Suma Teológica, I, 63, 3.
69
fabrice hadjadj
em troca, e isso é bem mais difícil para que se tome por alguma
coisa. Ela não exige o fazer, mas deixar Deus fazer em nós. E nós
lhe respondemos não colocando obstáculo a esse amor livre e di-
vino que a própria graça suscita em nós. Mas o demônio não quer
se abandonar. Ele prefere ser um self-made-man. E já posso vê-lo
abrir um curso de desenvolvimento pessoal – se tornar coach dos
winners, fornecer travesseiros àquele que não tem onde repousar a
cabeça, eutanasiar o homem das dores.
Verdadeiro monólogo
– Dá-me o que é devido à minha natureza e estamos quites. Não
quero esta graça que exige uma Aliança como resposta. Só quero
buscar a minha felicidade e encorajar os outros a buscarem a sua
por seus próprios meios. Ou pelo menos recusar essa felicidade en-
venenada que tu propões, esse dom que, por mais gratuito seja, nos
obriga, nos torna responsáveis ao infinito, impõe não sei qual morte
a nós mesmos na oferenda de nossa vida a Ti, como uma virgem
oferece suas coxas abertas a seu esposo. Quero ser a Virgem não
desposada, não redimida por ninguém. Quero ser o Filho sem pai,
que se separa de sua origem e só está bem no que ele inventa a par-
tir do nada. Quero ser o servo absoluto, que sabe ensinar a cada
um a não depender de ninguém. Quero ser o Verbo que não foi
proferido, a Palavra que ninguém escuta, o puro Monologos... E
depois esta ordem da graça incomoda demais a ordem da natureza:
nós, anjos, podemos nos encontrar em igualdade com os homens!
Nós, anjos, deveríamos adorar a humanidade de Cristo! Nós, anjos,
deveríamos venerar como nossa rainha essa judiazinha: a Virgem
Maria! Virgem de quê, já que ela se deixa incessantemente beijar
pelo Espírito do Pai e do Filho? Sou eu, repito, a Virgem verdadeira,
a criatura que tem menos contato com seu Criador... E queríeis que
essa injustiça manifesta nos deixasse sem reação? Queríeis que não
aplaudíssemos a amargura do filho mais velho diante do acolhimen-
to do filho pródigo? Estas núpcias obscenas da graça, essa orgulhosa
comunhão na divindade, nós a recusamos. Mas nós dizemos “Sim”
à pura natureza. Nós respondemos: “Eis-me aqui” a quem queira
fazer sua felicidade, não sem Deus-Causa-primeira, certamente por-
que nós saímos forçosamente dele, mas Deus-Esposo-último, por-
que podemos não voltar para ele. Cada um deve poder alcançá-lo
70
por si mesmo, como um adulto; sem ser forçado a acolher no seu
seio esta semente do Verbo, como está escrito naquela abjeta pará-
bola do semeador! Enfim, olhai para mim, eu sou o verdadeiro servo
sofredor de um sofrimento eterno! Apesar de tudo, eu trabalho duro
para o Altíssimo, sem ter o repouso do sábado nem do domingo. Eu
aceito os Jós mais ingratos. Por que quem é que esfrega, pole e faz
reluzir seus belos santos? Euzinho! Eu os tento com a aflição, tomo
suas propriedades, apodreço suas carnes, corroo seus ossos, como
o companheiro de Hus;25 ou os tento com o conforto, enriqueço
suas propriedades, acaricio suas carnes, endureço seus ossos, como
os consumidores de Felicidade; mas se eles não sucumbem, se não
guardam o gosto da benção, sua glória será muito maior. Acredita-
ríeis se dissesse que recebo o menor agradecimento? Eu faço tudo
isso como uma máquina, sem esperar recompensa. Humilde, humi-
líssimo é meu amor, porque não está interessado na sua beatitude!
Puro, puríssimo é meu amor: um álcool a 100 graus que causa uma
intoxicação da qual nunca mais se fica sóbrio! Compreendei-me
bem. O outro está doravante no Céu, no seu esplendor, com seus
anjos prostrados e suas chagas jorrando luz. E eu? Sou a autêntica
e pura vítima sem propiciação. O Verbo se incarnou? Eu caí como
relâmpago. Eu nunca me levantarei... Minha dor, assim como meu
prazer, são sem volta...
Esse discurso parecerá talvez cheio de orgulho e de inveja. O
demônio chama isso de humildade e justiça. Seu encadeamento
ao pecado, ele o considera como uma emancipação, enquanto que
a santidade lhe parece o cúmulo do orgulho. Ele vive seu ódio a
Deus com um retificador de erros: “Por que não limitou a natu-
reza? Por que esta super-rogação, esse dom sobrenatural que nos
coloca em igualdade com inferiores e nos engaja a agradecê-lo com
toda nossa existência, sem nada de sobra só para si?”
25 Cf. Jó 1, 1.
71
fabrice hadjadj
72
amor-próprio. Diante do grito de louvor que contém o nome do
arcanjo Miguel: Quis ut Deus, “Quem é como Deus?”, e lança so-
bre a turba seu grito de guerra: Quis ut ego, “Quem é como Eu?”.
Muitos fazem como se o anjo mau ignorasse que Deus é amor: o
pobre diabo, que ignorante! Eles se contentam em citar: Que queres
de nós, Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos?28 Que dispara-
te: tomar o Salvador por aquele que nos perde! Ora, Ele vem nos
salvar! É o bê-á-bá do catecismo! Portanto, é impossível que o de-
mônio não saiba. Ele sabe!, muito melhor do que os que creem,
que a Redenção é uma trivialidade. Seu Evangelho da Perdição é
mais verdadeiro que aquele do conforto. Eu não quero dizer que
ele sonhe com o geena prometido aos réprobos. Ele fala da carida-
de, do próprio verdadeiro amor, aquele que exige a noite nupcial e
oferenda dos corpos. Ele sabe que o amor de Deus nos perde. Cristo
dirá mais tarde: Aquele que perder a sua vida por causa de mim e
do Evangelho, irá salvá-la.29 É precisamente esta perda da criatura
transformada em hóstia viva que escandaliza o demônio e lhe faz
espontaneamente se insurgir com a sua aproximação. Ele quer lutar
contra esta perdição. E prefere se salvar... no inferno. Que cada um
possa subsistir, dar ao Senhor sua quitação, agradecê-lo no sentido
profissional, como quem demite um bom servo... Mas, pelo contrá-
rio! Esse servo quer permanecer no quarto, e dormir comigo, e me
arrancar este grito que me arranca lágrimas! Eis bem a depravação
divina. Por que não se contenta com um obrigado cordial? Por que
nos quer completamente entregues ao amor?
Aqueles que creem que o demônio desconhece a radicalidade
do amor divino cometem o mais grave erro a seu respeito, uma
vez que é essa radicalidade mesma que o revolta. Não apenas o
desculpam, mas tornam-se mais facilmente um brinquedo nas
suas mãos: nada é mais acessível a suas sugestões do que acredi-
tar que ele é mais burro que nós. E entre todas as besteiras que
se lhe imputa, aquela de fazê-lo ignorante das consequências da
caridade é a pior, porque supõe que não se compreendeu a subli-
me exigência. Com o diabo, não se trata de disputar quem é mais
forte, mas de se reconhecer falível. Nem de fingir superioridade,
mas de querer-se mais amável.
28 Mc 1, 24.
29 Mc 8, 35.
73
fabrice hadjadj
Liturgia do pandemônio
Para melhor nos fazer perceber o perigo que nos cerca e que se
torna mais terrível quando nos cremos protegidos, Tomás nos re-
corda que “o pecado do anjo não supõe a ignorância, mas somente
a ausência de consideração do que se deve, quer dizer, da ordem
requerida pela divina vontade”; e ele o compara a “alguém que
decide rezar e o faz sem observar as regras litúrgicas instituídas
pela Igreja”.30 Esse exemplo sempre me assustou. Ele nos con-
firma com rigor que o demoníaco não é tanto querer o mal, mas
querer fazer o bem sem obedecer a fonte de todo bem, de querer
fazer o bem conforme sua própria regra, num dom que nada pre-
tende receber, numa espécie de generosidade que coincide com o
mais fino orgulho. Há ali não uma ignorância especulativa, mas
uma ignorância prática, ativa, que se esforça em não considerar as
mediações queridas pelo Altíssimo, por nossa comunhão mútua,
nossa dependência de uns face aos outros. A ouvir falar de regra
litúrgica, de direito canônico, de magistério, o demônio se revolta:
ele o faz em nome de seu tradicionalismo mais velho que a tradi-
ção, ou de seu progressismo mais up to date que o mundo futuro.
Em todo caso, ele reza, nós vimos acima, com um o fervor ardente:
Conjuro-te POR DEUS que não me atormentes!”31 Desde que seja
com um missal confeccionado ad hoc, para seu uso pessoal ou
para sua seita do momento, numa espiritualidade oscilante entre o
masturbatório e o orgástico.
A liturgia do pandemônio não tem a unidade vivente como a da
Igreja. Quando se quer una, se faz bloqueio. Quando ela se quer
viva, faz tumulto. A fé dos demônios não tem sua fonte na visão
de Cristo, mas na inteligência natural de cada um, não há entre
eles propriamente uma só fé,32 dependente do único dom de Deus,
mas um conhecimento partilhado, que um pode reivindicar contra
o outro como fruto de seus próprios esforços. Individualista é a
sua crença. Mesmo sendo dividualista. Essa divisão mútua é real-
mente complicada por uma divisão individual: o pecado deprava o
primeiro ímpeto de sua natureza para com Deus, seu livre arbítrio
74
se volta contra sua vocação essencial, sua vontade ut voluntas se
opõe a sua vontade ut natura, se bem que “a alma do perverso é
devastada pelas facções”.33 O demônio não pode se recolher. En-
tão, se explode.
Qual é o único princípio unificador deste reino em migalhas, o
ponto de encontro litúrgico no país da Legião? O ódio do mesmo
Inimigo. A filosofia política de Carl Schmitt se aplica muito bem
ao pandemônio. O acordo do demônio consigo mesmo, da mesma
forma que com os outros, só se realiza por razão deste ódio. Ele
não recobra seu ser de outra forma senão através de sua raiva,
tentando desfazer a obra do Altíssimo. Para isso, os diabos se en-
tendem como os ladrões de feira, em vista de um roubo que exi-
ge, apenas por uma questão de eficiência, uma operação conjunta.
Mas a associação de malfeitores termina quando se trata de dividir
o produto do roubo. A cumplicidade se torna desavença.
Jean-Joseph Surin relata que “o inferno está em contínua con-
fusão”: seu príncipe, como um CEO obcecado por produtivida-
de, tiraniza os demônios subalternos, especialmente “quanto não
conseguem fazer todo mal que ele quer”; e esses, que batem nos
seus próprios inferiores, “só obedecem a contragosto, apenas na-
quilo que é conforme a sua paixão, ou seja, o ódio de Deus”.34
O violento gênio de Teresinha prolonga a experiência do grande
exorcista (Surin fui quem lutou contra o exército demoníaco que
tinha tomado possessão das religiosas de Loudun). Numa “recre-
ação piedosa” – O triunfo da humildade –, ela expõe as quere-
las litúrgicas que despedaçam o pandemônio. Belzebu lança a seu
príncipe, Lúcifer:
33 Aristóteles, Ética a Nicômaco, IX, 1166b, trad. Franc. Tricot, Vrin, 1990, p. 446.
34 Triomphe de l´amour divin sur les puissances de l´Enfer, seguido de Science expéri-
mentale des choses de l´autre vie (1653-1660), Jérôme Millon, Grenoble, 1990, p.360.
75
fabrice hadjadj
76
Criador que quer que eu me sirva dela para ajudar o pobre; mas se
eu a emprego para matar, eu desvio o ímpeto desta força, eu arru-
íno seu florescimento em comunhão (tanto com Deus como com o
próximo), isto é, numa existência mais dilatada. E devo esse desvio
a mim mesmo. Eis o deleite que busca o mal: eu não posso ser a
causa primeira do ser, mas eu posso ser a causa primeira do nada.
Ao invés de ser filho neste universo, ao mesmo tempo mais trági-
co e mais alegre, eu prefiro reinar só, num mundo fictício. Assim,
quando eu me sinto lesado, acuso os outros e me recuso a me re-
conciliar: eu sofro e só consigo azedar ainda mais a minha ferida,
mas eu gozo por me encontrar no centro de um mundinho ilusório
onde me porto como o juiz supremo. Isso implica sem dúvida, por
minha natureza, uma certa subserviência ao diabo. Mas mesmo se
este último me tentou, eu sozinho sou formalmente responsável
pela falta, pois se ela não procedesse da minha vontade, eu não
seria culpável, e não se pode retirar de mim este mesquinho prazer
de reinar sob as minhas quimeras.
Assim, no inferno, cada um reza por si mesmo, com uma ora-
ção que pretende saber exatamente o que lhe falta. E quando se
reza pelos outros (porque não?) é porque tal os representa e por
lhes obter um bem que decidiram por si mesmos – por exemplo
– habitar os porcos... Mas chega também a rezar todos juntos, se
é para repelir uma defensiva do Santo. A liturgia demoníaca é às
vezes massiva, às vezes dispersada. Quando a questão é opor-se ao
Verbo feito Judeu, é uma assombrosa cerimônia de Nuremberg.
Quando se trata de cobiçar seu próprio bem, é uma formidável
cacofonia. Pulverização libertária no amor-próprio, solidificação
totalitária no ódio de Deus. Impessoal orgia em marcha, concor-
rência feroz de indivíduos. Tal é a pulsação infernal.
77
fabrice hadjadj
78
mais perspicaz que a nossa. Mas e do lado o objeto? Por que Deus
não quis produzir fortes sinais para nós? Por que no momento
da consagração eucarística, o Céu não se abre para fazer descer
visivelmente Jesus? Por que a palavra de cada pegador não é acom-
panhada de chamas que jorram de sua boca? E por que o nariz do
herético não se alonga como o de Pinóquio? As coisas não seriam
melhores assim? E isso não vale só para a ordem da Revelação,
mas também para a ordem da natureza. Sem dúvida que, a partir
das coisas aqui de baixo, a luz natural de nossa razão é capaz de
remontar até a necessidade de uma Causa primeira, e chegar a
uma prova da existência de Deus. Mas esta prova não é imediata.
Além disso, as preocupações desta vida, as fragilidades de nossa
reflexão e os meandros de nosso coração conseguem nos desviar
facilmente. Mas Deus não poderia ter implantado em nós uma es-
pécie de fone para que pudéssemos ouvir sua palavra diretamente,
de forma sonora e convincente? Não poderia ter assinado melhor
suas obras, como faz qualquer artista? Bastava uma palavrinha
escrita em cada flor (o que, aliás, implicaria que sua beleza não
basta). Ou ao menos um murmúrio de consolação a cada vez que
se sofre, que nos afirmasse a envolvente ternura do Eterno, não
pelas páginas de um livro, nem pela voz de um rabino e muito
menos pelo sacramento que administra um sacerdote, mas por vós,
Senhor, manifestamente por vós – e de forma tão evidente como
o fato da água molhar! Quantas guerras de religião poderiam ser
evitadas! Quantos erros se tornariam impossíveis! Nenhum anti-
cristianismo; nenhum ateísmo. Ao menos no plano especulativo,
porque no plano prático...
E aqui nós tocamos a condição de possibilidade objetiva da
incredulidade ateia ou anticristã. Ela constata esta insuficiência
intelectual dos sinais fornecidos por Deus. Eles não são absoluta-
mente obscuros, mas também não são bastante claros. Deveriam
ser mais? Há uma falta do lado de Deus? É esse tipo de sinal des-
lumbrante que queriam ainda os sumo-sacerdotes aos pés da Cruz.
Sua zombaria é uma exigência; sua incredulidade uma fé sob con-
dição do milagre último. Eu imagino a angústia que oprimia suas
almas naquele instante: “E se estivermos enganados? E se aquele
ali fosse o Messias de verdade?” Então, para fugir da vergonha, eles
contrabandeiam uma oração, sob o manto do escárnio: A outros
79
fabrice hadjadj
salvou, a si mesmo não pode salvar! Rei de Israel que é, que desça
agora da cruz e creremos nele! Confiou em Deus: pois que o livre
agora, se é que se interessa por ele! Já que ele disse: “Eu sou filho
de Deus!”37 Eu não posso escutar essas palavras sem sentir um
golpe no coração. É a queixa de todos aqueles que vacilam e pe-
dem a Deus mais visibilidade. Mas esse mais não seria um menos?
Se Jesus tivesse descido da Cruz para provar irrefutavelmente sua
divindade, que fé teríamos nós, com nossa baixeza, a não ser a do
demônio que adora?
37 Mt 27, 42-43.
38 Mc 1, 44-45.
39 Mc 5, 43.
80
ocasião, uma montanha: Vendo o sinal que ele fizera, aqueles ho-
mens exclamavam: “Esse é, verdadeiramente, o profeta que deve
vir ao mundo!” Jesus, porém, sabendo que vinham buscá-lo para
fazê-lo rei, refugiou-se sozinho na montanha.40
Mas que oportunidade perdida! Quantos católicos trabalham
duro para que se realize o reino social de Cristo, e eis que, no seu
tempo, Ele o recusa! Para quê, então, Ele está jogando esse jogo?
Pelo menos não podemos duvidar de sua inocência: em Deus,
não há uma perversa diversão, nem manipulação como “je-t´aime-
moi-non-plus”, tampouco um prazer roubado do suplício de Tân-
talo.41 Seu segredo não é culto secreto, do mesmo modo que seu
anúncio não é exibição. É necessário, portanto, manter o parado-
xo: o silêncio diz muito. Longe de sufocar a proclamação, essa reti-
cência desdobra em profundeza. Longe de rejeitar seu Reino (cada
Pai Nosso pede a sua vinda), ela o afirma, mas como um Reino de
amor, não de força; como um Reino para os miseráveis que neces-
sitam da Misericórdia, não como o de uma monarquia onde todos
estão fascinados pelo espetáculo de uma atuação.
De uma parte, do lado do objeto da fé, essa reticência acaba
impedindo o mal-entendido sobre a missão de Cristo, que é de hu-
mildade. Seus milagres poderiam fazer com que ele fosse tomado
por um taumaturgo, pois manifestando algo de seu poder divino,
correm o risco de ofuscar algo de seu divino amor. Ora, a fascina-
ção diante do Profeta tornaria ainda mais inadmissível o caminho
de sua Paixão. Uma prova é o ocorrido com Herodes: ele ouvira
falar dos prodígios e, quando trazem Jesus preso até ele, experi-
menta uma grande alegria ao vê-lo; espera que Jesus lhe mostre
uma coisa extraordinária. O curioso é que o pai havia ordenado
o massacre dos inocentes, enquanto o filho espera do Inocente um
milagre. No entanto, o Inocente se cala. Mantendo-se assim tão
desarmado como as crianças outrora assassinadas por seu pai, He-
rodes acaba na zombaria: veste Jesus com um manto cômico antes
40 Jo 6, 14-15.
41 Je t’aime Moi non plus é a célebre canção semierótica de Serge Gainsbourg, que com-
para o amor às ondas que vêm e vão, num trocadilho que diz: “Eu te amo, mas não te
amo”. Já Tântalo foi o rei da Frígia. Na mitologia grega, foi condenado pelos deuses
a viver num vale com muitos frutos e abundante água, porém, inacessíveis para que
pudesse saciar a fome e a sede. Sua súplica era estar tão perto daquilo que desejava,
ao mesmo tempo em que tudo lhe era inacessível – NE.
81
fabrice hadjadj
82
que ele nos quer libertar como irmãos. Portanto, a essa imprecisão
ele pede humildemente o acréscimo de um livre consentimento.
Seu poder teria certamente podido fazer com que a cada Eucaris-
tia uma coluna de fogo abrasasse o altar, mas o que sobraria da
imprecisão amorosa e do nosso livre consentimento? Porque as-
sim, explícita, a nossa adoração seria exterior, coagida, servil. Por
outro lado, vindo sob espécies extremamente humildes, permite
que possamos dar a ele a nossa confiança. Enfim, mendiga o amor
que ele mesmo nos infunde em segredo, nos preparando para que,
da nossa parte, possamos nos voltar aos pobres. Ele, embora fosse
rico, por causa de vós, se fez pobre, para vos enriquecer com a sua
pobreza.42
Pascal é o pensador desta pobreza que é, em verdade, a nossa
riqueza; desse retiro que é um dom, dessa obscuridade que permite
uma luz mais íntima. Ele sempre repete que esta obscuridade de
sinais e de profecias não tira a autoridade da Revelação. Contra
aqueles que lamentam “Ah! Se Miquéias ou Isaías nos tivessem
fornecido de antemão uma indubitável ficha descritiva do Mes-
sias”, Pascal observa que Isaías e Miquéias dizem precisamente
que, na vocação messiânica, consta sofrer o desprezo: “Que di-
zem os profetas? Que ele será evidentemente Deus? Não, mas que
ele é um Deus verdadeiramente escondido, que será desconhecido,
que não se pensará mesmo que seja ele, que será pedra de trope-
ço, na qual muitos se chocarão, etc. Que não nos censurem mais,
portanto, pela falta de clareza, porque dela fazemos profissão”.43
Embora não fale da fé dos demônios, Pascal deixa entender que a
razão última desta obscuridade é a de nos arrebatar de suas trevas:
“Deus quer dispor mais a vontade que o espírito; a claridade per-
feita serviria ao espírito e feriria à vontade. Abaixar a soberba”.44
Num outro fragmento, diz: “Se não houvesse ponto de obscuri-
dade, o homem não sentiria sua corrupção; e se não tivesse ponto
de luz, não esperaria o remédio. Assim, não é somente justo, mas
útil para nós, que Deus esteja em parte escondido, e em parte des-
coberto, porque é igualmente perigoso ao homem conhecer Deus
sem conhecer sua miséria, e conhecer sua miséria sem conhecer
42 2Cor 8, 9.
43 Pascal, Pensées, Le Guern, § 213.
44 Ibid. § 219.
83
fabrice hadjadj
45 Ibid. § 416.
84
na sua sogra como no cantarolar do Pisco-de-peito-ruivo. Enfim,
para abrir sua atenção para as pequenas coisas, para lhe dar es-
paço para arriscar seu próprio passo. Para que com relação a sua
inteligência, sua vontade não esteja num atraso fatal. Esse pensa-
mento de que a discrição é, aqui, lugar de uma oferenda, não está
distante do tsimtsoum da mística hebraica: Deus criou o mundo
como o oceano faz aparecer a terra, retirando-se dela. Ela encon-
tra sua mais bela expressão nesta história de um neto e seu avô, o
Rabbi Baroukh, ele mesmo neto de Baal-Shem-Tov:
46 Martin Buber, Récits hassidiques, trad. Franc. Armel Guerne, Éditions du Rocher,
1978, p. 157-158.
47 Mc 10, 15.
85
segunda PARTE
PAI NOSSO DA MENTIRA
ou como a fé dos demônios
fecunda os erros dos homens
87
fabrice hadjadj
88
estéreis com relação a eles a paciência de suportá-los como inimi-
gos, esperando a alegria de recebê-los como confessores! Que ela
se lembre também de que durante sua peregrinação neste mundo,
muitos que lhe são unidos pela comunhão dos sacramentos não
lhe serão associados na eterna felicidade dos santos”.50
É inútil dizer que estes últimos têm maior participação no com-
plô mais obscuro, porque eles manobram à luz do dia. A conspira-
ção mais oculta não é aquela que age longe, mas no meio de nós.
Quem sabe, portanto, se não somos seus mais insidiosos instru-
mentos? Eu mesmo, me coloco em suspeita. Consequentemente, o
Inimigo não poderia fazer melhor que me tomar pouco a pouco,
quase que à minha revelia, por seu agente secreto... Compreen-
de-se, portanto, o porquê de o último ofício monástico, antes do
grande silêncio de noite, repetir a exortação de Pedro: Sede sóbrios
e vigilantes! Eis que o vosso Adversário, o diabo, vos rodeia como
um leão rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé,
sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge vossos irmãos
espalhados pelo mundo.51 É uma pena que no breviário, a cita-
ção esteja truncada antes do final da frase (esse final foi devorado
pelo tal leão que ruge?). Porque diz admiravelmente: com relação
à instrumentalização diabólica, a oposição entre aqueles que estão
no mundo e aqueles que dele se retiraram, não têm mais papel al-
gum, de modo que através da luta contra esta instrumentalização,
emprega-se uma fraternidade muito maior.
89
PRIMEIRA LIÇÃO
Extensão do domínio da luta
A tentação no Jardim
“Não fui eu quem começou!” É assim que, diante de seu censor,
a criança se justifica. E não faria melhor o velho terrorista. Sabemos
que, com esse argumento, uma boa consciência pode perpetrar ge-
nocídios. Afinal, quem poderia dizer que não tenha experimentado
anteriormente, que em nada foi ofendido, que não sofreu antes de
fazer sofrer? A agressão mais manifesta pode, portanto, alegar le-
gítima defesa. E os carrascos competem sob o pretexto de que eles
foram vítimas antes e muito mais do que os outros. A quem isso
beneficia mais? Àquele que, para o mal, começa pelo bem.
Bem antes das tentações do deserto, houve a tentação do Jar-
dim. No Éden, é a Serpente que começa (este começar é, na ver-
dade, uma maneira de acabar). Depois disso, começa então para
nós a má fé. O homem: “Não fui eu quem começou, Senhor, foi
a mulher que tu pusestes ao meu lado!” A mulher: “Não fui eu
quem começou, Senhor, foi a serpente que me seduziu!” Eva está
mais perto da verdade que Adão. Além disso, a resposta dele, mais
evasiva, denota de sua parte uma falta redobrada: após ter deso-
bedecido a Deus, ele projeta seu pecado sobre sua vizinha. Mas
a esposa também age como se a sedução não lhe tivesse deixado
nenhuma liberdade. Tais são nossas primeiras mentiras.
Como chegamos lá? Melhor reler a sempre incrível passagem
da primeira sedução. Original, ela deve ter algo de estrutural. Ver
91
fabrice hadjadj
como o ardiloso agiu com a mulher, é ver também como ele age
conosco, e como nos deixamos enredar estupidamente pela pre-
tensão de responder-lhe por nós mesmos. Recordemos a Carta de
Judas, citando o livro de Zacarias: O Anjo do Senhor disse a Satã:
“Que o Senhor te repreenda!”.1 A mulher não deveria ter res-
pondido assim para a serpente, enviando-a ao diabo, ou ainda,
recomendando-se a Deus? Mas ela quis tomar a iniciativa e, no lu-
gar de a uma resposta, ela deu-lhe uma réplica. Este foi o primeiro
passo em falso e a raiz do paradisíaco desenraizamento.
Uma palavra de Jesus nos adverte no Evangelho de João. Mas
esta palavra é raramente traduzida com sua ambivalência signifi-
cativa. Jesus refere-se explicitamente à falta original. Fala daquele
que foi homicida desde a origem e o qualifica desta estranha ma-
neira (traduzo o mais literalmente possível para deixar mais claro
o que vem a seguir): Quando diz a mentira, é a partir do que lhe é
próprio dizer, porque ele é mentiroso e o pai dele.2 Esse “dele” de
que é pai (pater autou), é a “mentira” que em geral os tradutores
se referem: o diabo é “mentiroso e pai da mentira”. Mas, surpre-
endentemente, o que o versículo nos diz é que esta mentira corres-
ponde à maior sinceridade. Ora, o que quer dizer “falar a partir de
seu próprio interior” (ek tôn idiôn), senão “ser sincero”? A sinceri-
dade consiste em dizer o que se pensa, isto é, o que há no interior
de cada um. Mas aqui, especificamente, dizer o que se pensa por
si mesmo. Assim o mentiroso por excelência pode ser sincero por
princípio. Ele não se contenta em dizer o falso porque ele é falso,
ainda que pretenda dizer alguma verdade. E qual é a essência desta
falsidade? Uma sinceridade absoluta que refere ultimamente a ver-
dade de si, antes que a própria Verdade. É neste sentido que se deve
ler a expressão “pai dele”. O genitivo não se refere à “mentira”,
mas ao “mentiroso”. O diabo é pai do mentiroso que ele mesmo é.
É isto que qualifica radicalmente o seu mal: a pretensão de ser pai
de si mesmo ao invés de filho de Deus; a pretensão de falar a partir
de seu próprio interior, ao invés de partir da Palavra.
Para dizer de outro modo: Satanás ama o dom de si. Tal é seu
orgulho mais sutil: o dom de si até querer dar sem ter recebido, até
falar sem ter escutado, mas a partir daquilo que vêm somente de
1 Zc 3, 2.
2 Jo 8,44.
92
si. Não importa se, por consequência, não tem nada a doar. Ora: a
mulher, escutando a serpente, cai diretamente nessa armadilha. Ela
quer apenas se defender – ek tôn idiôn – por si mesma, sozinha,
como uma adulta, sem Deus nem o seu próximo – por que ela não
chamou Adão? – e é assim que ela se deixa capturar.
Mas detalhemos o processo desta infração, retomando o duplo
monólogo (porque não pode se tratar de um verdadeiro diálogo)
que inicia solenemente todas as tragédias vindouras:
3 Gn 3, 1-6.
4 Ambos passos de ballet – entrechat: movimento em que o bailarino salta e, no ar,
cruza rapidamente as pernas antes de chegar ao chão na posição original; ronds de
jambé: são semi-círculos que a bailarina traça no chão, com a perna, enquanto se
apoia na barra. Serve como exercícios para aprimorar os movimentos circulares – NE.
93
fabrice hadjadj
Santa-do-pau-oco, proto-pecadora
O autor do Gênese emprega a ironia com uma leveza espanto-
sa. A resposta que coloca na boca da mulher se parece ao manda-
mento divino, tem o gosto do mandamento divino, mas já não é
94
mais o mandamento divino. Contém uma subtração e uma adição
(um “além disso” já do diabo). A mulher enfrenta a serpente, sem
dúvida alguma, mas ela já se deixou levar a seu próprio terreno:
...nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fru-
to da árvore que está no meio do jardim, Elohim disse: “Dele não
comereis, etc.”. Após ter afirmado a permissão de comer de toda
as árvores, esquece de recordar a disponibilidade central da árvore
da vida, pois complementa a interdição que concerne à árvore do
conhecimento. O que nos havia dito o capítulo precedente?5 IHVH
Elohim planta a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do
conhecimento do bem e do mal.6 A árvore do conhecimento não
é situada exatamente. Pode-se supor que cresce ao lado da árvore
da vida. Mas, falando de forma absoluta, é a árvore da vida que
está no meio do jardim e não a árvore do conhecimento, como a
mulher o pretende. Ou ela só imagina que a defesa diz respeito à
árvore da vida? Aqui se produz seu primeiro desvio da palavra: de
maneira sub-reptícia – rastejante – o negativo se torna mais central
que o positivo, a proibição prevalece sobre o dom do Eterno.
Ela não deveria ter respondido à serpente exatamente o contrá-
rio, sem acrescentar mais nada? Por exemplo: “E podemos comer
mesmo o fruto da árvore que está no meio do jardim”. Assim,
dando mais prioridade ao conhecimento do que sobre a vida, ela
parece já se inclinar ao inchaço da serpente, cuja inteligência está
em atraso em relação ao amor. Referindo-se ao fruto defendido
no lugar do fruto oferecido, e a proibição no lugar do dom, ela
parece já decair da mística à moral. Porque ainda está a defender
essa proibição, e com muito zelo! Sem Adão, sem o Nome divi-
no (a invocação do Tetragrama não está na sua réplica), ela se
acredita demasiado forte para ser a defensora da defesa divina, a
advogada do Paráclito, a criança ingênua que se crê capaz de pro-
teger a Pomba que desce dos céus. E eis o segundo desvio: IHVH
Elohim tinha dito: Não comerás da árvore do conhecimento, mas
a mulher acrescenta: Elohim disse: “Dele não comereis, NELE NÃO
TOCAREIS...” Ela adiciona uma proibição e se faz literalmente de
santa-do-pau-oco!
5 Para exegese que segue, meu maior débito é devido ao belíssimo livro de Jacques
Cazeaux, Le Partage de minut: essai sur la Genèse, Éd. du Cerf, 2006.
6 Gn 2, 9.
95
fabrice hadjadj
Quem foi assim tão mau leitor, quem foi tão tolo para pensar
que o primeiro pecado tinha a ver com a luxúria? O nele-não-toca-
reis é suficiente para percebermos que este pecado denota apenas
um orgulho puritano. Se, para muitos cristãos, esta evidência passa
ainda despercebida, ela sempre foi lembrada entre os hebreus. Aos
olhos de Rabbi Hiyya, sábio do Talmud, este acréscimo é a primei-
ra mentira do homem, e seu verdadeiro ponto de inflexão. Assim
como Midrach Rabba: “Está escrito: Não acrescentes nada às suas
palavras, porque te responderá, e passarás por mentiroso.7 Rabbi
Hiyya ensinou: “Não faça a cerca mais importante que a cepa, e
evitarás que a primeira caia e arranque a planta. O Santo, bendito
seja ele, havia dito “porque o dia que comerdes dele, morrerás’,
ora, não é isso que repete a mulher, mas, sim, que ‘Elohim disse:
Dele não comereis e nele não tocareis’. Desde que a serpente viu
Eva passar diante de árvore, a tomou e empurrou contra esta últi-
ma. Vês, exclamou, não estás morta! Tu não morreste ao tocá-la,
tu não morrerás ao comê-la!”.8 É assim que a santa-do-pau-oco se
transforma em libertina. Mostrando-lhe que aquilo que a assusta
não é tão ruim como parece, todo seu pequeno sistema colapsa.
Fácil, depois disso, precipitá-la no vácuo. Porque a proibição por
ela inventada não tinha razão de ser, assim pôde crer que a proi-
bição divina não tem um valor muito maior. Não ficamos mais
surpresos de ver as mais recatadas caírem na libertinagem. No dia
em que percebem, com razão, que seu excesso moralizador é insu-
portável, se metem a julgar erroneamente que mesmo a verdadeira
moral vai contra a vida.
A serpente pode dar o golpe de desgraça. Seu primeiro argu-
mento era grosseiro, mas o segundo é de um refinamento extremo.
No primeiro relato da Criação, aquele dos sete dias, se fala do ho-
mem à imagem e semelhança de Elohim.9 Nada disso no segundo
relato, aquele do Éden. Exceto na boca bífida. Só a serpente fala
de ser imagem de Deus. Só ela propõe a semelhança atestada pelo
próprio Elohim no relato precedente: Vós sereis como Elohim, co-
nhecendo o bem e o mal. Enquanto que na primeira réplica, parece
7 Pr 30, 6
8 Midrach Rabba, t. I, Gènese Rabba, trad. B. Maruani e A. Cohen-Arazi, Vedier, La-
grasse, 1987, p. 215.
9 Gn 1, 26-27.
96
pretender que se cometa um erro enorme, na segunda se apoia em
uma verdade essencial. No princípio, dizia algo que não era; em se-
guida, convida a algo que já é. Primeiro, exagerava o mandamento
negativo; depois, usa o mandamento positivo. Porque Adão e sua
mulher já conhecem o bem e o mal, que justamente distinguiam
através do respeito ou do desprezo pela proibição sobre a árvore.
Eles já são como Elohim, por natureza e por graça, mesmo se eles
têm o dever de o ser ainda mais, até à glória.
É frequente admitir que a frase do Tentador implica uma inveja,
uma mentira de Yahvé: “Ele vos fez crer que morrereis, o avaro, é
que ele não quer vos comunicar seu bem. Vos mantendo também
numa cegueira de escravo. Comei, e vossos olhos se abrirão”. Mas
antes não é, como ocorreu com Jesus no deserto? Quando o diabo
toma a palavra divina do seu modo e joga somente sobre a inter-
pretação? Morrer, não morrereis, isto é: “vós morrereis” deve ser
interpretado como “vós não morrereis”. Com efeito, Deus é todo
bom, ele quer nosso bem: esta morte de que fala é uma passagem
para uma vida mais elevada. Mas ele quer também que tenhais
espírito de iniciativa. Ele sabe que no dia em que comerdes, vossos
olhos se abrirão, e vós sereis, enfim, como ele, com ele... A serpente
não pode empurrar a mulher a uma transgressão muito patente: a
consciência dela a surpreenderia em flagrante delito e reteria sua
mão. Então, vai bem docemente. Não nega a prova da árvore. Vai
em sentido inverso. E essa maneira é bem digna de uma inteligên-
cia tão desatada que decaiu. Trata-se claramente de uma sedução:
a mulher se refere sempre ao mandamento divino, mas não é mais
a partir da viva Palavra de Deus, é a partir dela e da autoridade
usurpada do primeiro glosador: Satanás. Ela deseja a beatitude
prometida por Deus (tornar-se como Elohim), mas doravante por
suas próprias forças, imaginado que Deus não disse tudo. Talvez
até mesmo imagine que seu “vós morrereis” significa “vós mor-
rereis a si mesmos e entrareis na minha Vida”, de tão hábil é o
orgulho de se falsificar com pretextos de humildade.
O que vem depois testemunha uma última série de inversões. A
mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que
essa árvore era desejável para adquirir entendimento. No capítulo
que evoca a criação do Jardim, as coisas estavam escritas numa
ordem inversa: IHVH Elohim fez crescer do solo toda espécie de
97
fabrice hadjadj
10 Gn 2, 9.
11 Em francês, a palavra ‘mon-de’ invertida fica ‘de-mon’ – NT.
12 Sl 13, 2.
13 Sl 118,73.
14 Gn 24, 7.
15 Ex 6, 7.
98
Além do mais, o fruto que conseguimos agarrar por nós mesmos
não é senão o da medida de nossas mãozinhas, enquanto que o
fruto dado por Deus é da medida de sua imensidade. É a diferença
que há entre um mero copo d´agua e a imensidão do mar.
16 Jo 1,1.
99
fabrice hadjadj
cena, mas é para melhor feri-lo através de seu próprio lado, a carne
de sua carne, os ossos de seus ossos, até chegar ao coração. Após
ter invertido o sentido da prova, inverte o sentido da comunhão.
O sacramentum Dei se torna instrumentum diaboli. A assistência
mútua se deforma em mútua adulação.
O homem, por fidelidade à mulher – uma súbita fidelidade, pior
que o adultério – come o que a mulher lhe dá. Não é somente a
relação com a Lei que é pervertida (não comerás – Gn 2, 17), é a
relação com o Amor (eles serão uma só carne – Gn 2, 24).
De modo mais preciso, depois que a mulher é desviada da rela-
ção com a Verdade, o homem desvia a relação com a Misericórdia.
Porque, no presente, é uma miserável que está diante dele. Sua co-
munhão com ela deve passar adiante, tornar-se comiseração: “Mi-
nha pobrezinha, estás sozinha, meu amorzinho, o que aconteceu
contigo? Mas não temas. Eu tomo sobre mim tua aflição e me afun-
do contigo!” Isso não nos lembra alguma coisa? Adão devia ter sido
aqui o Agnus Dei: que carrega o pecado do mundo, e o mundo para
ele era a mulher. Mas, ao invés de carregá-lo, ele mesmo cai, cede,
deixa-se levar por uma compaixão que parece cumplicidade.
Sua pseudo-misericórdia é uma caricatura da Redenção. Adão
está com ela, o Senhor está conosco. Mas enquanto o Verbo desce
na nossa carne pecadora para nos tirar de nosso pecado, Adão
desce até sua mulher pecadora para deleitar-se no pecado dela.
Comunhão sem o ser, ceia de casal, eucaristia de aflição. Toma o
fruto proibido como se celebrasse o dom de sua corrupção, como
se ele ordenasse a todos os que saíssem dele: Tomai e comei... Pecai
uns após os outros até estarem próximos. Como se o pecado não
os dobrasse sobre si. Mas a compaixão de Adão o faz olhar para
si mesmo; é uma descida narcisista, uma descida satisfeita de seu
abaixamento pelo outro, e que, nesse meio tempo, esquece que a
finalidade não é afundar com ele na lama, mas resgatá-lo.
Eis o duplo orgulho original – o grau supremo da paródia: crer
que se pode defender a Deus sem Deus, crer que se pode salvar o
homem sem a graça. E como não admirar a maestria com a qual
a serpente conduziu o seu negócio, por assim dizer, a um bom
termo? A sequência é como de uma peça só: o estratagema de um
erro grosseiro provoca uma reposta excessiva; a réplica, um dese-
quilíbrio a partir de seu excesso; o desequilíbrio, uma inversão na
100
ordem dos bens; a inversão, uma consumação ruinosa, uma com-
paixão falsa; a compaixão falsa, uma caricatura alcançada da ima-
gem de Deus. Pode-se dizer que logrou o seu golpe. Então, como
poderia errar conosco?
101
fabrice hadjadj
24 Ap 5, 9.
25 Charles Baudelaire, Mon coeur mis à nu, XVI, Oeuvres complètes, Robert Laffont,
Col. “Bouquins”, 1980, p. 411.
26 Fusèes, XIV, op. cit., p. 397.
102
Nós perecemos naquilo que acreditamos viver. A mecânica
nos terá americanizado de tal forma, e o progresso nos terá atro-
fiado tanto em nossa parte espiritual, que nada entre os deva-
neios sanguinários, sacrílegos ou antinaturais dos utopistas po-
derá comparar-se a seus resultados positivos.27
103
fabrice hadjadj
104
No alto, um exército combate por mim
Temos que desesperar dessa nossa condição? São Paulo toca o
alarme um pouco alto:
30 Ef 6, 12.
31 Centúrias sobre a caridade¸ I, §63, trad. Fran. J. Touraille, Abadia de Bellefontaine,
1985, p. 26.
105
fabrice hadjadj
106
muito mais sábios e poderosos. Para manifestar isto a Madiã e
Amalec, fortalecidos com mais de cem mil soldados, Deus reduziu
o exército de Gedeão de vinte e dois mil para apenas trezentos sol-
dados, e lhe deu a vencer adversários tão numerosos como grilos
armado somente com... jarros! Bem, não temos um jarro conosco?
Não sou eu mesmo inútil como um jarro? Pelo menos posso as-
pirar ser um, mesmo porque um jarro para servir humildemente
um copo d´água pode ser mais poderoso que todas as coalisões
tenebrosas. São Tomás nos explica o porquê:
107
fabrice hadjadj
Que nada é diabólico em si, mas que tudo deve ser reconquistado
Nada é em si diabólico. Satanás é o príncipe deste mundo, mas
seria falso concluir que todas as coisas deste mundo são más. Ele
36 Santa Teresa de Ávila, Caminho de perfeição, capítulo XXI, 9.
37 “Foi chrétienne et démonologie”, L´Osservatore Romano (versão francesa), 4 de
julho de 1975.
38 Ap 12, 10.
108
mesmo gostaria de nos fazer crer nessa falsidade. Fazendo uma
confusão entre o mal e o ser, poderíamos odiar o universo saído
das mãos do Criador e nos refugiar em nossos pequenos além-
-mundos privados. O mal é uma privação, é o irreal, o virtual, o
fictício, o não-ser e o não-agir que são propriamente do domínio
privado do Maligno. Nenhuma realidade pertence de fato a essa
maleficência. Façamos, portanto, o inventário das coisas que se
associam a ele, e vejamos se cada uma pode ser recuperada a um
fim benéfico:
– Tomai a palavra: Vós sereis como deuses (Gn 3, 5). Não é a
frase satânica por excelência?
– Talvez, mas um salmo põe na boca do próprio Senhor: Eu de-
clarei: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo! (Sl 81,6)
– E o número 666? É o número da Besta, no Apocalipse (13,18).
– É também o número dos filhos de Adonicam, no livro de Es-
dras (2, 13). Aqueles que saíram do exílio na Babilônia e encontra-
ram a Terra prometida. Adonicam significa assim mesmo: “Meu
Senhor me levantou”.
– Mas e a serpente? Vós não podeis dizer que a serpente não é
um símbolo do diabo; é o diabo em pessoa no Genesis!
– É também um símbolo tradicional do Crucificado. No de-
serto, Moisés fabricou uma serpente de bronze, e os Hebreus que
o olhavam eram libertos das mordidas das serpentes abrasadoras
(Nm 21, 6-9). O próprio Jesus disse: Como Moisés levantou a ser-
pente no deserto, assim é necessário que seja levantado, o Filho do
Homem a fim de que todo aquele que crer tenha nele a vida terna
(Jo 3, 14-15)
– Mas os bodes, igualmente? Toda uma iconografia representa
o diabo sob forma de bode. Além disso, Jesus declara que no Julga-
mento o pastor separará as ovelhas dos bodes (Mt 25, 32)
– Perdoe-me se vos faço perder a calma, mas aqui também o
bode, o famoso bode expiatório, é uma figura de Cristo. Está es-
crito no livro dos Sacerdotes: Tomai um bode para sacrífico pelo
pecado (Lv 9,3). Enfim, antes que me faleis do grande lobo mal,
deixai-me dizer que também o lobo, emblema de Satanás, pode
ser símbolo de luz e de fecundidade, como a loba de Roma ou o
109
fabrice hadjadj
lobo branco de Apolo [este Apolo-Sol que “teve a honra de ser as-
semelhado alegoricamente a Jesus Cristo pela Igreja ocidental dos
primeiros séculos]”.39
– Não me deixareis nem mesmo o sapo? O sapo, por favor, por
favor... é símbolo de luxúria...
– O sapo é muito útil aos jardins. Ele devora os vermes parasi-
tas. No seu Dictionnaire d´archéologie chrètienne, Dom Leclercq
chega a sugerir que a rã foi um “símbolo da ressurreição”. A pas-
sagem do girino aquático ao grande animal anfíbio fornecia, com
efeito, um tipo de imagem. Mas disse que o sapo come seus ver-
mes: eu não gostaria que fizésseis uma má ideia destes últimos. O
Messias em pessoa se assimila a sua pobre espécie: Quanto a mim,
sou verme, e não homem (Sl 21, 7).
– Desta vez sim, não vai conseguir: a cruz invertida... ah!, é a
joia dos satanistas, da perversão pura!
– O próprio brasão do primeiro papa! O sinal do martírio de
São Pedro que, por humildade, não quis ser crucificado de pé como
seu Mestre!
– O pentagrama! A estrela de cinco pontas que se opõe a estrela
de Davi.
– Vemos pentagramas em certas igrejas. Cinco, de resto, é o nú-
mero de pães que Jesus multiplicou para fazer cinco mil (Mt 16, 9).
E é também aquele que corresponde a uma recompensa do povo
que segue os mandamentos de Deus: Perseguirei vossos inimigos,
que cairão a espada diante de vós. Cinco de vós perseguição cem...
(Lc 26, 7-8)
– Mas e os chifres? Por favor... os chifres!
– Aqueles do cordeiro enviado por Deus e que salva Isaac da
imolação (Gn 22, 13).
– Então a cauda que arrastava um terço das estrelas (Ap 12, 4)?
– Do cordeiro sacrificado, Moisés, ao Eterno, oferece também
a cauda (Lc 8, 25)?
– E o enxofre fedorento?
– O sopro do Senhor, como uma torrente de enxofre (Is 30,
33)...
39 Louis Charbonneau-Lassay. Le Bestiaire du Christi, Albin Michel, 2006, p. 307.
110
O teorema: nenhuma coisa pertence propriamente ao mal; o
que implica também este corolário: não importa quê, exceto Deus
e os seus santos, qualquer coisa pode ser desviada. A espada, o
aspersório,40 um ícone da Santíssima Virgem, um tabernáculo
transformado em cofre-forte, o retábulo do Cordeiro místico
transformado em propaganda de estadia turística... Príncipe deste
mundo, apesar de tudo. Que o ritual proponha um exorcismo até
sobre a alma, mostra que mesmo a matéria que lava pode servir-lhe
para sujar.
Mas tudo isso que foi desviado, deve ser restaurado pelo justo.
De novo, o mal moral não é uma coisa, malum non est aliquid,
como dizem os escolásticos, ele é só um certo uso desordenado de
algo. Nós o observamos no relato da queda: ali onde as coisas são
belas de ver e boas para comer; o olhar se borra e o fruto se torna
primeiro bom para comer (ele era somente, único entre todos, belo
para ver e, sem dúvida, agradável para tocar). A culpa não produz
nada de real, somente não segue a ordem requerida. Ela não per-
tence à criação, mas à descriação. Essa insistência é necessária: ela
evita que entremos neste lugar comum de diabolizar tal ou qual
realidade em si mesma.
Isso que o magistério chama de “cultura da morte” não é um
conjunto de objetos malignos. É um uso perverso dos mesmos
objetos que a “cultura da vida” faz de forma boa. Um dvd de
baixa pornografia pode ser útil para calçar uma cômoda (da mes-
ma forma que um filme gotejando sentimentalismo). Uma grande
Bíblia litúrgica pose ser empregada como uma arma contundente
para golpear mortalmente o próximo. Sem dúvida que um dvd
como tal faz uma caução medíocre, e que a Bíblia é bem melhor
como meio de sabedoria: ambos foram concebidos para um ou-
tro uso que lhes é próprio próprios, mas podemos pervertê-los
por conta de uma certa inclinação. Mas nada impede, uma vez
que existam, que possam ser distorcidos pela força ou recupera-
dos por uma ternura.
Tomemos outros dois exemplos, certamente mais neutros e
mais esclarecedores. O diagnóstico pré-natal foi inventado pelo
111
fabrice hadjadj
112
Entre a distração e o orgulho: o diabo partilhado
O diabo é, por etimologia, aquele que se opõe. Ele rompe o vín-
culo, ergue o obstáculo, divide o que estava unido. Entrevimos qual
desordem reina no pandemônio e dissemos que não há unidade no
seu ódio comum. Mas em verdade é bastante provável que também
seja assim na sua estratégia de combate contra os homens. Duas
táticas concorrentes se apresentam a ele: a que nos empurra ao erro
e se serve de nossa fraqueza; e a que nos empurra ao orgulho e se
serve de nossa força. Porque seu ódio pelos homens o incita a rebai-
xá-los muito abaixo de si mesmo, e o ódio por Deus o impulsiona a
torná-los tão rebeldes como ele. Sua revolta nos exalta quando sua
inveja nos esmaga. Se, de um lado, ele nos joga na lama, de outro,
fomenta nossa mais alta soberba. Induzindo por aí ao erro, incitan-
do aqui à traição, o veremos às vezes desumano, mas por vezes um
humanista, outras, professor de angelismo, e ainda fomentador de
bestialidade. Ou ele faz do homem sua coisa pela possessão, ou, pela
adulação, faz dele seu imitador. Recordemos que Cristo o chama ao
mesmo tempo de mentiroso e pai do mentiroso:43 trata-se de uma
redundância ou da distinção de suas táticas diversas? De uma divi-
são interna do falso pretendida por ele, ou que tenhamos falsidade
ou sejamos falsos? O demônio quer nos manter enganados e, con-
tudo, não despreza que na espuma de sua passagem – e como jus-
tificando seus passos – sejamos também lucidamente enganadores.
Mentiroso como é, nos engana e exerce sobre nós a sua dominação,
mas também – e aqui se encontra sua contra-performance – nos for-
nece as circunstâncias atenuantes, porque a ignorância e a fraqueza
diminuem a gravidade do pecado. O pai dos mentirosos não apenas
mente para nós, mas nos convida a mentir como ele, nos convida a
sermos como ele: verdadeiramente falsos, o que é um plus no cami-
nho para a condenação. Então, eis aqui a audácia: ele espezinha o
homem para satisfazer a sua inveja, arranca-lhe o seu orgulho. Por
outro lado, eleva-o para, pelo orgulho, fazê-lo cair numa armadilha,
se dispensando, portanto, de satisfazer a sua inveja.
“Os demônios”, escreve Santo Agostinho, “induzem ao erro atra-
vés de um zelo enganador e também por uma intenção invejosa, se-
gundo a qual põe sua alegria no desvario dos homens”.44 O extremo
deste desvario parece se encontrar na possessão. O homem perde
43 Jo 8, 44.
44 Santo Agostinho, De divinatione daemonum, cp. VI, 10.
113
fabrice hadjadj
45 Dostoievski, Irmãos Karamazov, Livro XI, IX: “Eu sou Satanás e estimo que nada
daquilo que é humano me é estranho”.
46 Jules Michelet, La Soucière, VIII, GF, 1966, p. 99. [Michelet (1798-1874) é historiador
francês – NE].
114
Ser um mundo que se basta a si mesmo: nenhuma expressão diz
melhor o que nos tenta, o que nos fascina no pecado. Para conse-
gui-lo é preciso ter toda sua cabeça, aliás, numa baita cabeçorra.
Assim, o demônio pode possuir melhor o homem não o pos-
suindo, mas estimulando esta suficiência planetária. De qualquer
forma, isto pode tomar formas graciosas e aparências benignas.
Era o que Baudelaire notava a propósito de George Sand,47 quan-
do o que ela pretendia, por “bom coração”, que “os verdadeiros
cristãos não acreditassem no Inferno”: “Eu não posso pensar nesta
estúpida criatura sem um certo estremecimento de horror. Se eu
a encontrasse, não poderia me impedir de jogar nela uma pia de
água benta na cabeça”.48
115
fabrice hadjadj
116
No livro do Deuteronômio, o capítulo 13 (precisamente o nú-
mero azarado que muda para afortunado) começa com esta sur-
preendente passagem:
52 Dt 13, 2-4.
117
fabrice hadjadj
53 Mt 18, 12-14.
118
Quanto mais ele engana a ovelha, mais ela se deixa reencontrar
pelo Senhor, e mais ele coopera para a sua alegria. E não somente
a de Deus, mas também a de seus rivais diretos, porque Lucas fala
da alegria do Céu inteiro, e mais especialmente da alegria dos an-
jos.54 Por tudo isso podemos compreender sua amargura. Podemos
adivinhar todos os esforços da sua inteligência para que a ovelha
não possa ser encontrada. Para que ela se metamorfoseie em lobo.
Definitivamente.
54 Lc 15, 10.
119
SEGUNDA LIÇÃO
Um orquestrador de debates
122
para resolver questões mais políticas, Voltaire endossa a postura das
filosofias que denuncia e, junto a seu poema sobre o desastre, um
outro poema muito menos vibrante sobre a Lei natural. Adeus Re-
velação! De agora em diante ele pretende “estabelecer a existência
de uma moral universal e independente não somente de toda reli-
gião revelada, mas de todo sistema particular sobre a natureza do
Ser supremo”. Ao qual se junta um Cândido que zomba neste ponto
da teodiceia que favorece uma ateodiceia igualmente presunçosa. As
lágrimas de 1755 são enxugadas com o sarcasmo.
Como compreender essa concessão? Em toda sua crítica, Vol-
taire não leva em conta o diabo. Ainda irá, cada vez mais, atri-
buir o mal à própria providência, não para o melhor dos mundos
possíveis, mas para o pior, no qual não resta mais nada, a não ser
cultivar seu jardim. Rousseau explica isso nas suas Confissões:
123
fabrice hadjadj
Da besteira à Besta
As grandes guerras e os grandes desastres originam-se de fac-
ções que se levantam umas contra as outras e que, no entanto, se
entrelaçam entre si. Irmãos inimigos: o capitalista e o comunista, o
relativista e o dogmático, o puritano e o libertino, etc. Observamos
assim as besteiras adversárias que se rivalizam, se superam, che-
gam aos extremos, como diria Clausewitz,3 enfim, engrenam-se
umas às outras como as rodas de uma moenda gigantesca e supe-
riormente inteligente: enrola os infelizes e os mói de tal modo que,
sobrando algum pedaço depois da moagem, dá uma meia volta
para trás e reinicia o trabalho.
O magistério recente chama essa máquina de triturar homens
de “estrutura de pecado”. A expressão é frequentemente usada,
mas raramente compreendida nas suas implicações. A primeira é
que uma tal estrutura não é o fruto de uma só decisão, mesmo
comum. Ela não corresponde a uma simples instituição humana,
porque está além de seus atores. A isso se pode imputar a perda
de visibilidade e de responsabilidade que implica a divisão buro-
crática do trabalho.4 Mas isso vai ainda mais longe. A estrutura
do pecado se baseia num conjunto de instituições adversas, num
encaixe de intenções contrárias, de conflitos que se coordenam e
124
nos enredam para colocar a culpa no bravo zigoto. O efeito per-
verso que resulta disso ultrapassa a perversidade para a qual os
homens concorrem. Esses aparecem então como “inocentes cul-
pados”, nunca inteiramente inocentes, mas não mais inteiramente
culpados. Esse é talvez o maior sucesso de tal estrutura: favorecer
crimes massivos, mas com um ar natural, sem ódio, sem nada, de
forma higiênica e mecânica, de modo que as consciências nãos
fiquem muito perturbadas. Cada um pode se crer no seu direito.
Cada um pode ter o sentimento que combate o erro oposto. E cada
um poderá pleitear, mais tarde, não ter errado senão pela metade:
“Não é minha culpa, eu não sabia, eu fui enganado, etc”.
Eis, portanto, um complô cujos conspiradores não combina-
ram, e até mesmo se denunciam uns aos outros. Eis uma tolice
multiforme que se antecipa melhor que a mais fina estratégia, além
de saber preparar uma armadilha com um gênio que excede seus
protagonistas. Fábula de abelhas onde, numa semiconsciência, os
interesses individuais e divergentes convergem não para produzir
mel, mas para uma fantástica amargura. Como compreender esta
garra invisível? Segundo Bernanos, tal fenômeno pode fundar uma
demonstração pelo absurdo da existência de um Gênio Maligno
mais maligno que o cartesiano:
5 George Bernanos, Les Grands Cimitières sous la lune, I, III, em Essais et Écris de
combat, I, Gallimard, col. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1971, p. 405-406.
125
fabrice hadjadj
Não é à toa que estas linhas foram escritas sob o fogo da guerra
da Espanha. Os atos de violência cometidos pelos republicanos
contra os católicos empurraram inúmeros católicos a optar aber-
tamente pelo campo adversário, aquele dos fascistas. Para repelir
o diabo vermelho, abraçaram o diabo marrom. Mas para embara-
lhar ainda mais a situação, havia um branco súcubo do pacifismo
servindo aos outros dois de contrapeso? Como evitar uma armadi-
lha sem cair na outra? Como cruzar este estreito entre o turbilhão
de Caríbdis e os dentes de Cila, e também resistir ao doce despu-
dor de Calipso?6
Bernanos foi protegido por seu sentido do demoníaco. Evitou
cair nessa isca tripla (embora tenha sido manchado para sempre
por sua familiaridade com a Ação Francesa).7 Maritain também
adivinhava a manobra angélica. Ele queria ser franco sem tomar
partido por Franco: por isso perdeu a amizade do grande domi-
nicano Garrigou-Lagrange e, apesar de oblato da Abadia de São
Pedro, tornou-se persona non grata em Solesmes.
O raciocínio de Bernanos vai da estupidez humana à Besta do
Apocalipse. São a imagem e obra desta Besta que se encontram
atrás de toda nossa estupidez, que são concorrentes e cúmplices.
Mas esse raciocínio não fornece uma verdadeira demonstração.
Ele cai no que, em teologia, se chama argumento de conveniência.
Acrescenta-se a fé, porque, se nos atemos à razão natural, pode-
mos crer que o processo é imanente. Este também é o caminho que
toma a apologética de René Girard:
126
A rivalidade mimética e a concorrência vitimária bastariam para
explicar esse mecanismo sem engenheiro – seria do mesmo modo
que o darwinismo bastaria para compreender uma seleção natural
sem selecionador? A grande orquestração da qual tentaremos apre-
ender os princípios pode, com efeito, ser compreendida sem locali-
zar o chefe de orquestra. Mas isso é entregar-se a um perigo duplo:
1º: de reduzir a um mero mecanismo aquilo que é sempre cheio de
invenção; 2º: de responder a esse mecanismo pelas sutilezas de uma
lógica, quando é preciso lhe desfazer pelo ardor de um amor.
O heresiarca dogmático
Já falamos sobre não haver um dogma de que o demônio não
saiba a verdade exata. Pois bem, é precisamente isso que o tor-
na hábil para sugerir uma infinidade de heresias. O conhecimento
de uma coisa também faz conhecer sua privação: um bom gra-
mático sabe como induzir a todo tipo de erros de ortografia; um
programador especialista em antivírus sabe como fabricar vírus
implacáveis. A fé do diabo lhe permite nos sugerir uma variedade
indefinida de impiedades. Como um frio dogmático, ele sabe bem
como se inspira, ou melhor, como se expira, por mudanças quase
imperceptíveis, por diferenças infinitesimais, um ou outro desvio
num homem persuadido de sua suprema retidão. Assim ele se tor-
na o heresiarca dos heresiarcas, o mais hostil dentre eles. Além
disso, aproveita-se do combate contra a heresia – e essa é sua espe-
cialidade – para atiçar uma outra ainda pior em sentido contrário.
Desta forma, ele prova a tenacidade de nossa ortodoxia e ainda lhe
resta sua melhor cartada: incitar-nos numa fidelidade tão estrita
como a sua, isto é, tão carente de caridade.
Percebe-se, então, o que São Paulo quer dizer quando afirma
que Satanás não é somente o príncipe deste mundo, mas o deus
deste mundo:9 tudo está misturado e confuso, os advogados da
fé são tão malvados que fazem a cama da infidelidade; os infiéis
mostram uma inteligência e muitas vezes uma humildade que os
tornam atrativos; e por trás disso tudo, como moderador imodera-
do, animador dos animadores, chefe de orquestra dessa algazarra
humana, o Adversário favorece todos os debates sem diálogo e ri
do espetáculo de nossas polêmicas.
9 2Cor 4, 4.
127
fabrice hadjadj
10 Thomas Browne, Pseudoxia epidêmica, L.1, cap. X, Trad. B. Hoepffner. José Corti,
2004, p.79. A culpa moral implica formalmente à vontade, peca-se sempre completa-
mente só em último lugar, e é isso, o dissemos, que faz a fascinação solitária do mal.
11 Ludion no original, Ludião em português: um aparelho usado para demonstrar o
princípio de Pascal sobre a pressão hidrostática. Em suma, é uma espécie de garrafa
na qual é inserido um objeto flutuante. Quando a garrafa é comprimida, aumenta-se a
pressão e o objeto dentro dela é empurrado para o fundo. De fato, uma ótima imagem
para a manipulação demoníaca que nos nos pressiona e nos arrasta para baixo. Mas o
tradutor decidiu-se pelo termo fantoche devido ao entendimento mais imediato – NE.
12 Id., p.88.
128
Por que este jogo de cinco erros? Não poderiam ser sete ou oito,
como naquela parábola bíblica que os editores costumam intitu-
lar “retorno ofensivo do espírito impuro”?13 E por que não 666,
como no Apocalipse? Ou 6.826 como numa legião romana?14 Há
uma lógica para chegar a este número? Não deveríamos, classifi-
cando as questões e seguindo Aristóteles na sua Ética, reduzi-los
a dois? Porque, no final, sobram apenas três questões: uma sobre
a existência de Deus, outra sobre a do diabo e a terceira sobre a
sua natureza. Para cada uma, erros opostos: não existe Deus/exis-
tem vários deuses; o diabo não existe/o diabo é absoluto; o diabo
é menos que o homem/o diabo é mais que um anjo (o quarto e
sexto erros coincidem, chegamos, então, ao número de 5). Seja
qual for a proliferação do erro, seu princípio parece, em primeiro
lugar, a dualidade. Os dois fragmentos da verdade se dividem e se
tornam adversários e, em seguida, por conta da sua instabilidade,
fragmentam-se, e assim sucessivamente, em cadeia, como numa
fissão nuclear.
129
fabrice hadjadj
130
carne e seu espírito, e articular cada uma delas sem confundi-las
nem separá-las. Entretanto, essa tensão se torna mais forte à me-
dida que tocamos realidades mais simples. Os enunciados da fé
católica estão aqui para se fazer aderir à Verdade simplíssima de
Deus (como diversos traços existem para nos fazem conhecer o
único e indecomponível rosto de uma pessoa). Mas eles são em
si mesmos múltiplos e totalmente estendidos: Deus é uno e trino,
Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Maria é redimida
e imaculada, a Igreja é sem pecado, mas não sem pecadores, etc.
O heresiarca dogmático sabe muito bem disso. Seu prazer ma-
ligno é aproveitar de nossa fraqueza para tornar tudo mais bran-
do. E nos encoraja por uma dupla atração.
A primeira tem a ver com o angelismo: como seria bom alcançar
a verdade simples de maneira simples, ao modo dos anjos. Quanto
seríamos poupados de esforços, retificações e até mesmo de erros!
(Sim, porque, como o homem tomado pela vertigem num despenha-
deiro, existe um certo temor do erro que nos faz tremer). Esse modo
angélico, intuitivo de conhecer, não é humano. E a infelicidade aqui,
certamente, é que “quem se pretende anjo, torna-se besta”.16 Abran-
dando-se a tensão, diminui-se o mistério que nos escapa no momen-
to mesmo em que cremos prendê-lo nos nossos limites.
A segunda atração tem a ver com o autonomismo: escolher
uma parte da verdade que nos convém e ignorar a outra, e ter a
felicidade de construir, por si mesmo, um sisteminha. É o sentido
próprio da palavra “heresia”. O grego hairésis designa a ação de
tomar partido, de fazer uma escolha. Eu escolho tal aspecto do
dogma – Jesus é Deus –, mas rejeito algum outro – ele não é o Deus
do Antigo Testamento (caso do marcionismo). Tem-se a impressão
de ser mais livre. Na verdade, ainda não saiu do supermercado.
131
fabrice hadjadj
132
a nossa morada. A criação está, portanto, do lado do que sai da Uni-
dade absoluta. Mas como compreender esse dois? O que significa
habitar a Casa de Deus? É o número do casal ou da dualidade? Da
duplicidade ou do diálogo? Encontraremos na Bíblia o que já per-
cebemos filosoficamente. O dois vem selar a tensão de uma prova.
O célebre capítulo terceiro do Eclesiastes concebe esse desdo-
bramento como aquele do tempo humano:
19 Ibid.
20 Eclo 33, 14-15.
133
fabrice hadjadj
134
Como então não atacaria, como o abutre-barbudo sobre um cor-
deiro, o que faz a relação última entre as coisas? Não tanto para
rompê-la absolutamente, mas para falsificá-la, para capturar ao
invés de acolher, para fazer um objeto de conhecimento ao invés
de uma questão de reconhecimento.
135
fabrice hadjadj
23 G.K. Chesterton, Ortodoxia, trad. Franc. Anne Joba, Gallimard, Col. “Idées”, 1984,
p.43-44. Tradução: Ives Gandra da Silva Martins Filho, Ecclesiae, 2013, p. 54.
136
certa de si mesma quanto mais ela é adúltera. O dueto se transfor-
ma em duelo. A complementariedade se rompe em contrariedade.
O gênio diabólico, já o vimos, não está tanto em rejeitar o bem,
mas em monopolizá-lo por conta própria (rezar sem respeito à
ordem divina, dizia Tomás). Assim extravia nosso próprio desejo
de fazer o bem, separando essas bondades que a verdade une: a
justiça sem misericórdia, que vira crueldade face à misericórdia
sem justiça, que vira laxismo; a humildade sem magnanimidade,
que vira modéstia preguiçosa face à magnanimidade sem humilda-
de, que vira ativismo vaidoso... enfim, a verdade sem amor, que é
a fé dos demônios, face ao amor sem verdade, que é a filantropia
do diabo. Corremos atrás dessas virtudes parciais que são vícios
completos, e o mundo pode perecer por conta de nossa diligência.
137
fabrice hadjadj
138
Cristo é somente um homem, tinha apenas uma aparência divina;
o Cristo é somente Deus, tinha apenas uma aparência humana; o
Cristo é ao mesmo tempo Deus e homem, mas em duas pessoas
distintas sob uma carne esquizofrênica. Três derivam da confusão,
segundo a qual, na mistura, se diminui uma ou outra, ou ainda
as duas naturezas: o Cristo é Deus que se diminui para entrar na
natureza humana; o Cristo é um homem sem alma, mas cuja alma
é substituída pelo Espírito de Deus, ou cuja humanidade foi dis-
solvida como uma gota de mel no oceano da divindade; enfim, o
Cristo é semi-homem semideus, redução e mistura dos dois numa
só natureza inédita. Certamente, isto não é tudo. Sob esses erros
genéricos podem se agrupar múltiplas variantes.
Por exercício, e através dos ajustes necessários para um outro
tema, o leitor tente essa fórmula sobre a relação do homem e da
mulher, da alma e do corpo, da pessoa e do bem comum, da ação
e da contemplação, da natureza e da graça, da justiça e da paz, etc.
Poderá fabricar seu pequeno hexágono de erros contrários e perce-
ber como, tirando-se as núpcias do verdadeiro, eles se interpelam
uns aos outros tal como numa calçada onde se prostitua.
Esses erros, repitamos, estão numa relação de incitação recí-
proca. Opondo-se a um, corremos sempre o risco de cair no outro.
No prefácio de uma obra polêmica, Gustave Thibon distingue de
maneira oportuna:
139
fabrice hadjadj
26 Teólogo líbio ou egípcio que chegou a Roma no século III, com grande autoridade, e
se pôs a pregar uma doutrina que enfatizava a unidade de Deus, negando a Santíssima
Trindade. Sua doutrina foi condenada ainda no século III – NE.
140
E eu vos digo: fazei amigos com Dinheiro da iniquidade, a fim de
que, no dia que faltar, eles vos recebam nas tendas eternas.27
27 Lc 16, 8-9.
141
fabrice hadjadj
Qual é esse estado bem pior do que ser possuído e que supõe
que já previamente se expulsou seu primeiro diabo? Não devería-
mos admitir que é descrito como posterior à conversão? E não se
deve afirmar, ademais, que ele suscita por si mesmo os sete outros
diabos, que consolida os seis erros mais a falsidade idêntica à sua?
28 Lc 11, 24-16.
142
Essa falsidade, teremos compreendido, não está no conhecimen-
to, mas nos atos. Ela consiste em defender a verdade sem amor, ou
ainda, a verdade sem verdade, ilusão mais temível que todas: o
erro que se acha sem erro, a falência sem falha, que sinalizaria à
inteligência claramente. O conteúdo é verdadeiro, mas a maneira
é falsa. O conhecimento está lá, mas sem reconhecimento. De um
modo que ele excite, sem rodeios, todos os conteúdos falsos cuja
maneira pode ser um pouco mais verdadeira. É que a verdade se
declara nupcial e tensionada não somente no seu enunciado, mas
também no seu modo, na sua finalidade. Para dizê-lo numa forma
aristotélica, a comunhão não está somente do lado da causa mate-
rial (o enunciado verídico), mas também do lado da causa formal
e da causa final, porque ela é a causa eficiente. Aquele que é em si
mesmo é comunhão. Fonte da verdade, a comunhão deve aparecer
no enunciado verdadeiro, mas ela deve também propagar-se na
maneira de comunicá-lo, e como finalidade desta comunicação. O
anúncio da verdade se realiza no amor divino ao próximo, espe-
cialmente do pecador, não para ter razão, mas para estar com ele
– comungante. Trata-se menos de dar uma lição do que de acolher
um irmão. Remover este impulso de comunhão, por mais ortodo-
xa que seja vossa palavra, procede de um sopro impuro, possui
um fundo demoníaco. E tereis feitos inimigos com a Riqueza da
Justiça.
É contra essa falsidade sem erro que, na Carta aos Coríntios,
São Paulo canta um hino a caridade:
143
fabrice hadjadj
144
TERCEIRA LIÇÃO
A grande maquinação: ateísmo ou farisaísmo
1 C. S. Lewis. Cartas de um diabo a seu aprendiz, 2ª. ed. - São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009.
145
fabrice hadjadj
146
a reação do anticlericalismo, e que o molinismo,3 na medida em
que propunha uma apologética mais racional, provocou ao mes-
mo tempo, à sua direita, o fideísmo protestante, à sua esquerda, o
racionalismo ateu.
E quanto ao segundo motivo, ele pode ser elucidado pela ques-
tão seguinte: nosso ateísmo é o que satisfaz melhor os demônios?
Pierre Bayle pretendia o contrário afirmando que
147
fabrice hadjadj
148
Weil fala até de “ateísmo purificador”. Mas aqui seria melhor falar
de purificação do ateísmo: a fim de ir até o fim no seu empreen-
dimento e ser mais puro possível, o ateu não deve fazer de seu
ateísmo uma nova religião, nem fazer do seu próprio julgamento
um deus. Desta forma se dispõe à verdadeira transcendência, ao
acolhimento do que está para além do bem e do mal, demasiado
humano... Os demônios não saberiam amar muito esse ateísmo. Se
o atiçam é para, muito rapidamente depois, moderar seu fogo, e o
levar de volta para aquela tibieza vomitada pelo Eterno, para essa
indiferença que crê na verdade da neutralidade, que se fabrica um
mundo onde Deus se torna uma opção ao invés de o segredo de
todas as coisas.
Para os demônios, essa indiferença é um incontestável êxito
mundano. Conduz a um mundo de ilusão ótica, onde o diverti-
mento toma o lugar da liturgia cósmica. Mas é realmente um êxito
infernal? É com isso que se aumenta a população dos condenados?
A oposição entre êxito mundano e êxito infernal corresponde, no
espírito diabólico, à partilha entre a inveja e o orgulho. Através
desta nossa indiferença, sua inveja triunfa porque nos degrada,
porque retira Deus do campo de nosso desejo assim como de nos-
sas preocupações. Mas seu orgulho não é satisfeito. Sua rebelião
faz escola apenas superficialmente. Ele não está seguro de que estes
corações que o ignoram detestam verdadeiramente a graça. Não,
se essa ignorância é involuntária, se ela vem de uma lavagem cere-
bral sofrida desde a infância, o diabo não ganha completamente.
Até mesmo pode ser que ele perda no fim: para ele é divertido
saber que o homem aqui na Terra passa ao largo da verdade e viva
sob um céu de teto baixo. Mas se esse homem é humilde, se põe
em prática o pouco que ele sabe sobre a justiça, se tem reconheci-
mento pelo bem recebido, mesmo quando não tivesse o conheci-
mento do Doador, então, a ele, torna-se uma desgraça! Porque este
homem estará salvo apesar de tudo. Talvez terá vivido um inferno
durante sua vida terrestre, mas isso não é melhor do que se estives-
se perdido para o inferno que não tem fim?
O ateísmo involuntário daquele que rejeita uma Igreja sobre
a qual ele se equivoca, e que a acolhe no seu coração sob outros
nomes, não é para os demônios senão uma vitória de aparência.
Permite-lhe apenas envolver a Terra em trevas, mas não povoar
149
fabrice hadjadj
9 Gal 5, 6.
10 1Col 8,1.
150
Numa de suas Crônicas angélicas, Vladimir Volkoff 11 conta a
história de um sábio russo que teria descoberto uma prova simples
e acessível a todos da existência de Deus. Quando preso pela po-
lícia dos sovietes, esperava ser enviado para a Sibéria, mas curio-
samente o chefe da Tcheka o acolheu de braços abertos. Até havia
preparado uma conferência de imprensa para difundir sua prova:
151
fabrice hadjadj
14 Lc 15, 29-30.
15 Baudelaire, “Ao leitor”, in: As Flores do Mal, ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1985, p. 99-101. Trad. de Ivan Junqueira.
152
“É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios”.
E [Jesus] chamando-os para junto de si, falou-lhes por parábolas:
“Como pode Satanás expulsar Satanás? Se um reino se dividir
contra si mesmo, tal reino não poderá subsistir. E se uma casa de
dividir contra si mesma, tal vasa não poderá manter-se. Ora, se
Satanás se atira contra si próprio e se divide, não poderá subsistir,
mas acabará. Ninguém pode entrar na casa de um home forte e
roubar os seus pertences, se primeiro não amarrar o homem for-
te; só então poderá roubar a sua casa. Na verdade, eu vos digo:
tudo será perdoado aos filhos do homem, os pecados e todas as
blasfêmias que tiverem proferido. Aquele, porém, que blasfemar
contra o Espírito Santo, não terá remissão para sempre. Pelo con-
trário, é culpado de um pecado eterno”. É porque eles diziam:
“Ele está possuído por um espírito impuro”.16
– Oh! Mas nós não somos como esses escribas. Se Jesus hoje
fizesse um milagre, nós o reconheceríamos imediatamente, o leva-
ríamos em triunfo, porque nós não somos como nossos pais, nós
não assassinamos os profetas, mas o celebramos, erguemos igrejas
para eles...
Vós dizeis: “Se estivéssemos vivos nos dias dos nossos pais, não
teríamos sido cumplices seus no derramar o sangue dos profetas.
Com isso testificais, contra vós, que sois filhos daqueles que ma-
taram os profetas. Completai, pois, a medida de vossos pais!”.17
153
fabrice hadjadj
18 Lc 9,40-50.
154
poder do Inimigo, e nada poderá vos causa dano. Contudo, não
vos alegreis porque os espíritos que se vos submetem; alegrai-vos,
antes, porque vossos nomes estão inscritos nos céus”.19
Satanás cai, mas nós podemos cair com ele, exatamente como
a primeira mulher sábia, demasiado segura de poder, sozinha, res-
ponder à Serpente. E se nós caímos é por alegrarmo-nos de nosso
poder enquanto poder (os demônios se nos submetem) e estimá-lo
enquanto exclusivo (quisemos impedi-lo porque ele não te segue
conosco). Ora, o que deve fazer a nossa alegria é uma graça que
não merecemos, e que se oferece também ao outro, ao estrangeiro,
o próprio endemoniado, pecador como nós, talvez até menos, já
que somos cristãos e também podemos pecar, apesar dos nossos
maiores dons. Mas os recém-convertidos podem se tornar os in-
quisidores mais virulentos. Consciente deste perigo superior, São
Paulo proíbe sua ordenação a um lugar muito elevado:
Meus irmãos, não queirais todos der mestres, pois sabeis que
estamos sujeitos a mais severo julgamento, porque todos nós tro-
peçamos frequentemente.21
19 Lc 10, 17-20.
20 1Tm 3, 6.
21 Tg 3,1.
155
fabrice hadjadj
156
bens, a morte de seus filhos, a úlcera que devora o seu corpo, mas
os conselhos de sua mulher, depois o de seus amigos. A primeira
o convida a maldizer a Deus e morrer. Os outros, ao contrário,
empreendem uma defesa de Deus que tende a lhe fazer perder o
ânimo. E são esses últimos que são piores. A mulher, ao menos,
reconhece a obscuridade do mal e lhe pede para renegar a bondade
divina. Já seus amigos desprezam o mistério, declarando que tudo
é normal, que não há motivos para clamar contra o Céu. Elifaz
de Temã o reprova: “Tu que fortalecias aos outros, perdestes a
fé? Tu não tens o direito de enfraquecer”, como se a fé do santo
fosse similar à fé dos demônios, isto é, uma obstinada propriedade
intelectual. Baldad de Suás vai além e o acusa: “O que te passa, é
porque teus filhos ou tu, vós pecastes, e se tu pretendes o contrário,
não é essa a prova do teu orgulho, e portanto que tu és o peca-
dor?”, como se tudo se reduzisse a estrita justiça e não a prova da
mais radical misericórdia. Sofar de Naamat o rejeita: “Deus é ab-
solutamente transcendente, como poderias tu disputar com ele?”,
como se essa transcendência não devesse nos trabalhar, suscitar o
excesso do clamor, provocar aquela violenta situação, que é o sinal
de uma Aliança mais profunda do que todos os deleites.
Esses bons amigos querem, à qualquer preço, boas contas: é
preciso cobrir essa brecha no corpo da doutrina, amordaçar essa
boca do pobre que geme muito alto. Seus discursos não são falsos,
mas eles o pronunciam falsamente, tudo se encontra desviado. A
intenção deles está longe de ser má, mas no lugar de chorar com
aquele que chora, querem secar suas lágrimas com seus lencinhos –
e não há mais lugar para a espera do Salvador. Eles pretendem ser
do partido de Deus contra Jó sem ter o amor de Deus por Jó. São
João Crisóstomo comenta:
25 João Crisóstomo, Comentário sobre Jó, c. IV, 1, trad. Franc. H. Sorlin, “Sources
chrétiennes”, 1988.
157
fabrice hadjadj
Ele repreende Jó por sua impaciência, [...] mas ele mesmo ma-
nifesta o temperamento de um homem muito impaciente e irascí-
vel, que não suporta escutar até o fim o que lhe é dito e se excita
desde as primeiras palavras.26
26 Tomás de Aquino, Exposição literal sobre o livro de Jó, trad. Franc. J. Kreit, Téqui,
1998.
158
Jó fala como pensa, como sente, e como todo mundo sentiria
no seu lugar. Seus amigos falam, pelo contrário, como se o Oni-
potente, cuja conduta julgam, não fosse seu ouvinte, e como se
amassem mais atraindo para si suas boas graças, do que dizendo
a verdade. A perfídia que eles põem em afirmar de fachada, coi-
sas que deveriam convir que não verificaram, como para simular
uma convicção que na realidade não tinham, faz um violento
contraste com a retidão de Jó, tão distante de toda a adulação
mentirosa.
A mais criminal das mentiras está nesta fé cujo zelo não é senão
exterior: aquele que a confessa com os lábios jamais desceu ao
fundo de seu coração para ver sua própria aflição para confessar
que as coisas não são tão claras.
Há sempre um perigo, no entanto, ao fazer a crítica dos amigos
de Jó: arrisca-se a se apresentar como mais um de seus amigos,
porém, melhor que os outros. Kant poderia ter se contentado em
dizer que nenhuma teologia esgota a experiência do mal, já que
exige uma resposta existencial e não uma solução teórica. Mas
ele acaba por julgar que a razão não poderia alcançar um conhe-
cimento certo sobre Deus. O retorno do pêndulo o faz passar de
Wolff à Hume – de uma teodiceia racional para um racionalismo
agnóstico, ao qual se justapõe – é a especificidade kantiana – um
tipo de fideísmo prático. O drama de Jó trabalha no fundo da Crí-
tica da razão pura. Quando Kant explica: “Tive, pois, de suprimir o
27 Emmanuel Kant. Considerátions sur l´optimisme e outres textes, Vrin, 1972, p. 207 e 213.
159
fabrice hadjadj
160
Shoah com a racionalização da existência, mas, sobretudo, desta
racionalização com uma certa teodiceia cristã, onde os caminhos
do Senhor seriam para nós inteiramente sondáveis e penetráveis. A
figura de Malthus é um eixo desta boa intenção totalitária:
A questão, para esse pastor cristão, era a morte dos pobres sem-
pre mais numerosos: por que Deus o permitiria? Malthus poderia
ter, como Jó, se encerrado em seu grito. Mas como se contentar
com um grito que é precisamente a ruptura de todo contentamen-
to? Portanto, ele quis explicar, legitimar e mostrar que era, sob
qualquer ponto de vista, para o melhor. Alguns anos mais tarde,
Marx teria a mesma experiência. Dirá, talvez contra Malthus, que
a religião é o ópio do povo. Mas sua lógica será fundamentalmente
a mesma: ele se crê, segundo a expressão de Raymond Aron, “con-
fidente da providência”, ele possui as leis da História, sabe que o
mal tem seu princípio na propriedade privada e que o sofrimen-
to dos proletários conduz dialeticamente à sociedade sem classe.
Lá onde Malthus termina por justificar a violência do Mercado,
Marx justifica aquela da Revolução. Nós começamos a entrever:
de Malthus a Darwin, que aplica o princípio da população a toda
natureza, depois a Marx e Hitler, que, cada um à sua maneira, rea-
plicam-no na ordem política. O teísmo desaparece, mas a teodiceia
29 Richard L. Rubenstein, The Age of Triage, Beacon Press, Boston, 1983, p. 54-55.
161
fabrice hadjadj
A ilusão da cristandade
A possibilidade do demoníaco assombra toda a obra de Kierke-
gaard. É o que dá lugar à sua definição da verdade: “A verdade é
subjetividade ou a interioridade”, definição que, por sua vez, in-
fluenciará a de Heidegger. O sério em Kierkegaard é uma noção
que busca nos fazer sair do plano nocional para que em nós a ver-
dade se faça carne. Kierkegaard o sabe: a Verdade é uma pessoa,
não um texto, de modo que se o texto subsiste, é antes de tudo
para recordar a voz que o excede e o revela: Eu sou a verdade (Jo
14, 6 – Pode-se pensar que todo o existencialismo, mesmo aquele
de Sartre, deriva, via Kierkegaard, desta afirmação evangélica). A
pior das mentiras, portanto, não é mais não dizer a verdade, mas
dizê-la sem cessar apenas para não vivê-la. Nisso a palavra de sa-
bedoria corresponde a mais perversa das tagarelices, porque é uma
tagarelice que se ignora, ou que toma sua baba como orvalho do
céu: um meio de diferir a passagem para a existência, de fugir da
verdade do discípulo, abraçando a do professor.
Kierkegaard define o demoníaco como a angústia diante do
bem. Nem todo pecador é demoníaco. Aquele que está no mal e
que tem a angústia do mal, já está iluminado pela luz do arrepen-
dimento: visto do alto, ele já tem um pé no Reino. Mas para aquele
que permanece no mal e que tem a angústia do bem, nenhum bri-
lho nem iluminação para voltar: ele pertence à espécie dos demô-
nios. Ora, essa angústia do bem pode muito bem se esconder atrás
de uma defesa do bem: o importante é adiar, é retardar a elevação
de nosso ser na bondade.
162
E mais tarde Kierkegaard compara o demoníaco defensor da
ortodoxia mais dura com
163
fabrice hadjadj
32 Ver Kierkegaard, Vingt et um articles, Oeuvres Complètes, 19, trad. Tisseau, 1982, p. 44
33 Point de vue explicatif de mon oeuvre d´écrivain, Oeuvres Complètes, 16, trad.
Tisseau, éditions de l´Orante, 1971, p. 17.
34 L´Instant, Oeuvres Complètes, 19, trad. Tisseau, 1982, p. 145
164
Se todos estão na ilusão ao se dizerem cristãos, e se é preci-
so trabalhar contra, essa ação deve ser realizada indiretamente e
não por um homem que proclame bem alto que ele é um cristão
extraordinário, mas por um homem que, melhor informado, de-
clara que sequer é cristão.35
165
fabrice hadjadj
166
Porque aquele que diz isso também está enunciando uma dou-
trina, e essa doutrina, para se difundir, tem necessidade de certa
instituição que repita: O que fizestes ao mais pequeno, é a Deus
que fizestes... Desprezando as mediações, querendo ser cristão
completamente sozinho ou num pequeno comitê, não é possível
ver como a fé escaparia melhor do orgulho, do espírito de partido
– ao espírito impuro, portanto. O medo do demônio aqui parece
pertencer ao próprio demoníaco. Não é superado pela confiança
no Ressuscitado que ordena: Ide, portanto, e fazei que todas as
nações se tornem discípulos.38
A cristandade é sem dúvida um risco, o risco de uma hipocrisia
diabólica, do risco de uma tibieza a vomitar, de uma perversidade
plena sob a cobertura da caridade. Mas por que não seria um risco
a correr? Cristandade não consiste numa identificação entre Igreja
e Estado, que seria efetivamente um desastre. Ela permite um Es-
tado que não se feche em si mesmo, que conviva em um ambiente
livre para o anúncio do mistério divino, e uma Igreja que, quanto
menos mundana, muito mais tem a dar para o mundo. Acima de
tudo, contra um elitismo que degradaria o Evangelho numa gnose
exoterizante, a cristandade permite uma proposição da fé a todos,
sobretudo aos pobres, devorados definitivamente pelas seduções
do mercado. E o que estes pobres que olham por seus empregos
não teriam dado se a tendência geral tivesse sido olhar para a hós-
tia? Pois todos esses pequeninos que são feitos melhores que os
sábios – e muito melhores que eu – para resplandecer à santidade,
estão agonizando sob os pés da besta.
Proteger-se da cristandade por temor de uma falsidade, pro-
teger-se de toda apologética por temor do orgulho, é crer-se bom
demais para ter orgulho ou falsidade. Pois a apologética é uma
urgência, não para produzir a fé, mas para servir a ela, desbravar
o terreno de todo erro a fim de deixá-lo livre para a verdadeira
e íntima batalha. A extensão do cristianismo numa cristandade
não serve para buscar o sucesso mundano da Igreja, mas para a
santificação dos pobres que, de outra forma, são feitos reféns. A
cristandade certamente não é um fim. Ela não é o Reino dos céus.
Pelo contrário, numa sociedade onde a verdadeira caridade é co-
nhecida, o pecado é mais identificável e até nos parece bem pior. É
38 Mt 28, 19.
167
fabrice hadjadj
168
Melcom e Camos e muitos outros falsos deuses.42 A intensão é
fazer com que todos os povos venham ao Eterno, mas no final o
Eterno é trocado por pequenos ídolos. O desejo da comunhão se
afoga na cobiça de comércio. O perigo é certo, como Kierkegaard
recorda. Mas isso não impede essa verdade: vosso coração perten-
cerá totalmente ao Senhor na medida em que o Senhor não seja
só para o seu povo, como se fosse sua pequena propriedade, mas
para todos os povos da Terra. Não se trata da conquista nem de
anexação, mas de humildade e oferenda.
Aqui começa a se desenhar o que pode ser a estratégia do de-
mônio em relação ao ateísmo. Uma sociedade inteiramente ateia
não o satisfaz suficientemente. Após uma cristandade cujo conluio
com o poder temporal soube fazer suas delícias, ele tende a pro-
mover, ao mesmo tempo, uma sociedade secular no meio da qual
a minoria dos cristãos se fecha num farisaísmo superior – de certo
modo, o farisaísmo do publicano – que consiste em se sentir me-
lhor posando de minoria perseguida. Foi o que notou C. S. Lewis
numa de suas obras-primas, The Screwtape Letters, título que se
convencionou traduzir como Cartas de um Diabo a seu Apren-
diz. Um diabo chefe divulga alguns sábios conselhos de tentação
a um demônio subalterno que ele chama de sobrinho, obviamente
porque não poderia chamá-lo de irmão. Sua intenção a propósito
desta minoria de cristãos é finalmente explicada:
169
fabrice hadjadj
44 Id. p. 12
45 Id., p. 35 e124
46 Doutrina moral que faz a apologia da dor – NE.
170
O que nós desejamos, se não houver mesmo jeito e os homens
tiverem de tornar-se cristãos, é mantê-los num estado de espíri-
to que eu chamo de ‘Cristianismo e alguma outra coisa’. Você
sabe – Cristianismo e a Crise, Cristianismo e a Nova Psicologia,
Cristianismo e a Nova Ordem, Cristianismo e a Cura pela Fé,
Cristianismo e Pesquisa Psíquica, Cristianismo e Vegetarianis-
mo, Cristianismo e a Reforma Ortográfica. Se não houver saída
e eles se tornarem cristãos, deixe-os ao menos serem cristãos
com um diferencial. Substitua a fé em si por alguma Moda com
colorido cristão.47
Por alguma moda, isto é, por uma moda que se contenta em ser
do contra, desde que se coma uma hóstia com seu molho.
O essencial para esse “e alguma coisa” é desfalcar o cristianis-
mo de seu mistério de graça. Uma vez mais, a fé dos demônios
consiste, não em abolir, mas, se eu ouso dizer, realizar uma fé à me-
dida de seu tempo, de suas necessidades, de seus caprichos. Nada
melhor para isso do que formar, seja uma grande Igreja do mundo,
como se o Eterno tivesse absolutamente necessidade de estar na
moda; seja uma pequena Igreja de privilegiados, como se ela não
tivesse absolutamente necessidade de nós.
171
fabrice hadjadj
172
sociais temem passar por torturadores, portanto, terminam por
ceder à gentileza letal. Mas os “catô-trad”, do outro lado, também
se prestam a esse jogo da compaixão: que tudo se resuma à luta
contra o aborto e que se esqueça de anunciar a Graça que salva o
miserável (especialmente ao que aborta), eis que aqui se alegra in-
finitamente o inferno. Temos aqui o debate modelo, perfeitamente
orquestrado pelo pandemônio.
Para tocar a fundo da fé demoníaca, sem dúvida é necessário
afirmar que o diabo crê na sua própria misericórdia. Ele sabe que
faz o mal com relação a Deus, mas não pensa que, com relação a si
mesmo, isso seja mal, de outro modo não seria levado plenamente
a fazê-lo. Se não há nele erro especulativo, há, ao contrário, um
erro afetivo ou moral:
É manifesto que o diabo agiu mal, mas não julga que agiu
mal, porque ele não percebe sua culpa como um mal, mas nela
persevera com espírito obstinado. Isso manifesta falsidade do co-
nhecimento prático ou afetivo.48
173
fabrice hadjadj
174
terceira PARTE
SOL DE SATÃ E NOITE DA FÉ
Ou aquilo que o demônio não tem: a carne, a morte, a graça
177
fabrice hadjadj
178
Não pode acontecer que a idolatria ou a heresia constitua um
motivo para nos abstermos dos prazeres do corpo? [...] Embora
existam, procedentes da carne, certos impulsos para o vício e até
desejos viciosos, não devemos, apesar disso, atribuir à carne to-
dos os vícios de uma vida iníqua, não se deve limpar de todos eles
o Diabo, que não tem carne. Não há dúvida de que se não podem
atribuir ao Diabo a fornicação, a embriaguez e outros males se-
melhantes que tenham relação com os prazeres da carne, mesmo
quando é ele o conselheiro e o instigador oculto de tais pecados.
Todavia, é, no mais alto grau, orgulhoso e invejoso.5
5 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, L. XVI, trad. Fran. L. Moreau, Éd. du Seuil,
col. “Points”, 1994. Trad. Portuguesa. J. Dias Pereira, 2ª. Edição Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000. p. 1237. 1241
6 Ibid., 1264 e 1265
179
fabrice hadjadj
7 Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Théâtre au Carmel, Cerf-DDB, 1985, p. 257.
180
PRIMEIRA LIÇÃO
O fruto do ventre
Meu Deus, eu quero ter a tua lei dentro das minhas entranhas
— Sl 39,9
1 Gn 3, 15.
181
fabrice hadjadj
182
A mulher aqui não é mais a fraqueza maleável às influências
demoníacas. Ela é o lugar de uma resistência. Resistência das boas
obras, diz Agostinho. Muito bem! Mas porque essas boas obras
são vistas sob à luz do feminino?
Que se trate do feminino enquanto tal, e não de outra coisa,
um indício nos é dado no encerramento desta sequência. Quando
Adão acaba de escutar seu castigo, eis que nos é dito em contra-
peso: Adão chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os
viventes.3 É a primeira vez que aparece esse nome. Eva é a mesma
santa-da-pau-oco do jardim. Mas esse nome não lhe é dado senão
depois da nossa ruína. No momento de sua criação, Adão a no-
meia somente “mulher”, isha, à partir da palavra “homem”, ish.
Essa derivação nominal significa que ela foi tirada dele próprio.
Mas vem a queda, e a queda para a mulher: seria compreensível
que, de agora em diante, Adão a chamasse de a “Mortal” ou a
“Mortífera”. Mas ele a chama Havah, isto é, a “Vivente”. O mais
impressionante para nós é aqui a justaposição da morte no homem
e da vida na mulher. Releia-se os dois versículos concernentes,4
como seguem, sem nenhuma transição: “Com o suor do teu roso
comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele fostes tirado.
Pois tu és pó e ao pó retornarás”. Adão chamou sua mulher “Eva”,
por ser a mãe de todos os viventes... A mudança é tão violenta que
o editor se sente obrigado a sair do recuo do texto, na passagem do
versículos 19 para o 20. O anúncio da morte deveria ter arrancado
de Adão algum grito de pavor, impulsionando-o, por vingança, a
degolar sua mulher, ou ao menos insultá-la com escarros. Mas ao
invés disso ele a nomeia com o nome mesmo da Vida, sem qual-
quer tipo de julgamento. Por quê? Muito provavelmente ele escu-
tou a maldição da serpente: ele crê no caráter salvífico, vivificante,
desta inimizade entre o feminino e o demoníaco.
Para entrevê-lo, primeiro convém determinar o que é o femini-
no. Conhecemos a concretíssima definição de Aristóteles no seu De
generatione animalium: “Por macho, entendemos o ser que gera
num outro, e por fêmea o ser que gera em si”. O masculino corres-
ponde a uma operação transitiva e, por isso, visível: ele lança sua
semente fora de si; seu tempo sexual é curto, seu espaço é exterior;
3 Gn 3, 20.
4 Gn 3, 19-20.
183
fabrice hadjadj
184
um nada. Maria não vence o diabo como o Arcanjo. São Miguel
lança o dragão por terra, é ativo, alveja o Inimigo, brande a lança e
a espada. Nossa Senhora, ao contrário, se mantém sobre a serpente
como se não se desse conta de que ela estivesse lá. Maria não está
preocupada, não olha o seu calcanhar. Todo seu ser, na sua femi-
nilidade, é somente acolhimento ao Altíssimo. Ela esmaga Satanás
por acréscimo, porque não cessa de ser receptáculo transbordante
da graça. Por isso Satanás é melhor esmagado por ela do que pelo
Arcanjo: Maria sequer lhe dá a chance de um combate.
Depois do século XVI, os grandes comentadores do Gênesis
reconheceram na nossa passagem o que se chama comumente o
“protoevangelho”, isto é – logo que consumada a queda, no cora-
ção mesmo da maldição divina – ocorre o feliz anúncio do Verbo
feito carne, nascido de uma mulher e que trará a vitória sobre o
demônio. A propósito disso, escreve Grignion de Montfort:
185
fabrice hadjadj
Demoníaco e filiação
A inimizade não é apenas entre a mulher e a serpente; é tam-
bém entre duas linhagens (ou “sementes”, literalmente). Mas aqui
a mesma palavra designa duas realidades muito diferentes. A des-
cendência da mulher é carnal; a da serpente, espiritual. A primeira
depende da filiação no abraço; a segunda da sugestão no orgulho.
Quem diz filiação diz, portanto, duas coisas que o orgulho recusa,
a saber, o espírito da infância e a piedade filial. No Salmo, pode-
mos entender:
8 Sl 8, 2-3.
186
passagem pela infância, que marca para sempre o íntimo do nosso
ser, é a melhor forma que o Altíssimo encontrou para nos pre-
servar, tanto quanto possível, do mal definitivo. Bernanos talvez
tenha sido o que melhor percebeu isso. Toda a sua obra é tomada
por essas duas polaridades contrárias da infância e do demoníaco.
É o que aponta Albert Béguin sobre o seu biografado:
9 Albert Béguin, Bernanos, Éd. du Seuil, col. “Écrivains de toujours”, 1954, p.5.
187
fabrice hadjadj
próprio poder, espera-se um dom que nos encante e que nos leve
para a eternidade. Por outro lado, a memória da infância torna-se,
o princípio dos retornos mais altos: a infância é em nós como uma
reserva, a lembrança dos possíveis, de uma certa inocência. Para o
velho homem que nela submerge, é o retorno a um frescor e a pos-
sibilidade de recomeçar. Mas por não ter infância, porque já nasce
adulto, o anjo não pode voltar atrás: suas escolhas são irrevogá-
veis, devem carregá-las para sempre, sem nenhuma possibilidade
de voltar atrás. Nós, ao contrário, temos o privilégio de sempre
poder recomeçar, até o limiar de nossas vidas podemos nos reabrir
ao mistério. A infância em nós é como uma fonte de renovação –
essa provisão de óleo que permite às virgens sábias estarem abertas
à imprevisível vinda. Se bem que o espírito da infância não é so-
mente docilidade a uma providência paternal, disposição à graça
– o que o anjo bom também possui – mas ponto de apoio para se
arrepender, possibilidade de voltar mesmo quando se tenha caído.
Porque as quedas, nos pequeninos, não machucam. E eles sabem
desarmar a cólera de seus pais, jogando-se nos braços deles.
A filiação também implica esta piedade que funda a comunida-
de fraterna. A grande tentação moderna, demo(no)crática, é tentar
constituir uma fraternidade sem pai, isto é, uma comunidade de
puros indivíduos, sem carga histórica, sem esse vínculo de carne
que escapa à escolha. Porque não escolhemos a família, nem a
língua materna, tampouco o próprio corpo. Portanto, a utopia li-
bertária seria enxergar-se um puro espírito, não tendo o dever de
assumir e purificar uma herança, ainda mais um demônio, que-
rendo reconhecer na autoridade do pai somente o poder e não a
ternura, é aquele que impõe ao invés de instruir.
188
no se fez carne, Deus se tornou o Pai destes animais desprezíveis e
pouco racionais, e seu Pai tanto no sentido espiritual como carnal:
como admitir essa fraternidade não escolhida, essa comunhão, não
com uma elite, mas com toda essa ralé de barro e sangue?
Assim, a fé teologal se enraíza nesta realidade carnal da filiação.
Ser um fiel, é ser um filho. Ora, ser filho, é assumir livremente uma
história que passa pelo corpo e que Deus atravessa fisicamente por
sua graça, apesar de nós e de nossos crimes, como nos revela Ma-
teus na genealogia de Cristo. Está dito no último livro da Torah:
11 Dt 7, 8.
189
fabrice hadjadj
190
Tomar carne, para o Verbo, não supunha somente uma mu-
lher enquanto indivíduo fêmea, mas também uma filha enquanto
herdeira de uma cultura que ela transmite a seu Filho, dizendo de
outro modo, uma Hebreia. O Senhor, explica a grande teologia
católica, escolheu este pequeno povo, o formou à partir de Abraão,
Isaac e Jacó, deu-lhes leis para ser o berço do Verbo Encarnado.
Mas irradiando esse Verbo sobre as nações, a presença deste povo
se torna caduca? O homem adulto renegaria o ventre que o carre-
gou? O tempo das núpcias desprezaria aquele do noivado? Com a
casa nova construída, renegaremos o antigo lar? O demônio fre-
quentemente sugere aos cristãos que assim devem agir. Seu cami-
nho contra o mistério de Israel é multiforme: pode incitar os he-
breus ao orgulho da raça, como se sua eleição não tivesse sido dom
de Deus; ou lhes empurrar a se fundir no movimento da história
como um povo qualquer; ou incitar aos não-hebreus a fazê-los de-
saparecer como tais; ou ainda, mais especificamente, encorajar os
cristãos a crer que os hebreus são uma anomalia na epopeia da Sal-
vação, que todos deveriam tornar-se católicos, que sua resistência
atrapalha o triunfo da Igreja universal. Na verdade, esse mistério
de Israel, irredutível à Igreja visível, é interior à própria Igreja. É o
selo de sua secreta abertura. Porque coloca o externo no interno e
o singular no coração do católico, proíbe aos cristãos se fecharem
num universalismo da uniformidade e da mundialização. Há algo
que resiste. Há um dom de Deus sem arrependimento e que nos
recorda que, mesmo se ele se doa através de sua esposa, a Igreja, o
Eterno não é no entanto a propriedade dos cristãos.
Reconhecer o verdadeiro mistério de Israel é, portanto, necessá-
rio a quem não quer se perder na fé dos demônios. Assim se atesta
o amor da Encarnação. A esse propósito, São Paulo escreve na
Carta aos Romanos:
Não quero que ignoreis, irmãos, este mistério, para que não
vos tenhais na conta dos sábios.13
13 Rm 11, 25.
191
fabrice hadjadj
Corpo e oferenda
O peso do corpo, na oração, ainda é o que coloca o homem aci-
ma do diabo. É o que podemos ver numa sequência do Evangelho
de Mateus, que se desdobra entre o primeiro e o segundo anúncio
da Paixão, ao redor da Transfiguração no Tabor.14 Esse breve con-
junto, intercalado entre dois capítulos, basta para implantar uma
espiritualidade da carne contra a espiritualidade do orgulho. Pedro
acabara de fazer sua profissão de fé: Tu és o Cristo, o filho de Deus
vivo, ao qual Jesus lhe responde: Bem-aventurado és tu, Simão, fi-
lho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso,
e sim o meu Pai que está nos céus. Nesse ponto, uma leitura apres-
sada poderia deixar crer que a carne e o sangue são maus, que não
participam na glória futura, e que Pedro se sente confiante num es-
piritualismo presunçoso. Mas eis que Jesus anuncia sua crucifixão,
a qual só pode ter lugar pelo ministério da carne.
Pedro protesta, como sabemos, contra a ignominia deste sofri-
mento corporal lançado ao coração do Deus vivo, e é então que
Jesus lhe ordena: Vai-te para trás de mim, Satanás. Depois ele
enuncia a seus discípulos a condição para segui-lo e não se deixar
enrolar pelo príncipe das trevas: Se alguém quiser vir atrás de mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Se a carne não
basta (nem toda a ordem natural) para confessar a fé teologal, ela
é ao menos necessária para que esta fé se testemunhe na oferenda.
Porque o que especifica o homem em relação aos anjos é poder
192
oferecer seu corpo, o que Jesus chama “sua cruz”, com um pos-
sessivo de desapropriação. Neste mundo ferido, isto é, tão satura-
do de arrogância, se oferecer implica a se abrir, e se abrir implica
sofrer, de modo que essa oferenda, impossível a toda hierarquia
angélica, não tem outro sentido para o discípulo a não ser carregar
sua cruz. Charles de Foucauld descobriu isso desde muito cedo:
nossa grandeza com relação às criaturas celestes se encontra nesta
pequenez de nossa carne passível:
193
fabrice hadjadj
não deveria vir primeiro?”, pode ser entendida como, “o que acon-
teceu com aquele corpo que não conheceu a morte?”. Ora, Jesus
responde que Elias já veio, mas não o reconheceram, ao contrário,
fizeram com ele tudo quanto quiseram: assim também o Filho do
homem irá sofrer da parte deles. Os discípulos compreenderam
que ele fala de João Batista, certamente, e do caráter insubstituível
do corpo: Elias não devia reencarnar, sua vinda em João Batista
é a realização de sua missão por um outro. Mas Cristo aqui fala,
insistindo sobre o vínculo entre a carne e a glória, como que ar-
ticulando dois episódios precedentes do anúncio da Paixão e da
antecipação da Ressurreição: aquele que se espera para a instau-
ração do Reino irá sofrer como um malfeitor.
Sucede o pai do menino epilético que muitas vezes cai no fogo,
outras muitas na água, e que pede a Jesus que tenha piedade dele:
Eu trouxe a teus discípulos mas eles não foram capazes de curá-lo.
Subitamente Cristo exclama a seu encontro: Ó geração incrédula e
perversa, até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei?
Ele expulsa o demônio do menino e depois acontece esse diálogo:
194
Que significa o jejum, de fato, senão a participação do corpo
na oração? Alguns padres nele veem uma imitação da vida angé-
lica. Isso não quer dizer que jejuar é fazer como se estivéssemos
sem corpo. Sucumbiríamos à influência de um certo dualismo.
Além disso, os anjos não jejuam: regalam-se intelectualmente
sem cessar. O jejum é um ato do corpo, e se imita os bem-aven-
turados serafins, não é tanto porque ele nos faz puro espíritos,
mas porque ele tende a fazer apresentar, na oferenda, o nosso
ser inteiro, da fina ponta da alma até ao meandro das entranhas.
Nenhum desprezo da carne nem espiritualismo ostensivo: exige,
ao contrário, que cuidemos da pele, que escondamos o esforço
sob uma bela e leve aparência:
18 Mt 6, 17-18.
19 Joseph Ratzinger, O Espírito da Liturgia, trad. Franc. G. Català, Ad solem, Genebra,
2001, p. 175
195
fabrice hadjadj
20 Citado e traduzido por Jean-Louis Chrétien, La Voie nue, Ed. de minuit, 1990, p. 41
196
conduzido a seu terreno. A nudez deve chegar até a essa desapro-
priação que consiste, segundo Francisco de Sales, a
197
fabrice hadjadj
198
grandioso, e essa comunicação sempre se opera na proximidade
corporal, no contato físico: eis que o sacerdote submerge o homem
na pia batismal, impõe suas mãos para lhe dar a força do Espíri-
to, faz Cristo entrar na mandíbula em que será mastigado, alivia
a alma do horror que a possui, deixando o penitente se ajoelhar
diante dele... Nos sacramentos, sempre haverá presença mútua dos
corpos: impossível se confessar por MSN ou comungar pela web-
cam. Os mais altos dons do Eterno exigem a mediação desta carne
perecível, e antes que se difundir à distância, sem face, sem encon-
tro do próximo, a graça se torna mais viva ao ser oferecida por um
pároco bem gordo.
E isso algo terrível ao demônio. Nós vimos que, segundo Grig-
nion de Montfort, o demônio, de certo modo, teme mais Maria
que o próprio Deus, porque foi muito mais humilhante ter sido
esmagado por uma jovem moça do que pelo próprio Onipotente.
O que dizer quando é derrotado não apenas por um ser de carne,
mas por alguém que nem mesmo é imaculado, por um pecador
ordinário, por um pobre sacerdote que recita sua fórmula e atra-
vés do qual Deus dá sua misericórdia? O diabo não aguenta mais.
É um osso que fica atravessado na sua goela: ele detesta o sacer-
dócio com todas as suas forças. Esse divino poder que o expulsa
através de um corpo com milhares de achaques, é uma atrocidade!
Ele, o anjo que não conhece o peso da carne, que não está sujeito
aos limites do tempo e espaço cósmicos, pode ser abatido por um
velhinho barrigudo na paróquia de Pruillé-le-Chétif, às 18h47. E
depois, ele não pode mais jogar nosso imaginário sobre uma graça
invisível e distante que se poderia arrogar diretamente. Ele não
pode mais nos fazer sonhar com uma mística soberba que despre-
zaria um futuro ordinário.
Aqui nós tocamos no mistério do papado. Muitos viram nele
uma instância diabólica pervertendo o espírito do Evangelho:
cesaropapismo denunciado pelos ortodoxos, papa-anticristo de-
signado por Lutero... Certamente, a primazia de Pedro afirmada
por Jesus é imediatamente seguida pelo “Vai-te para trás de mim,
Satanás!” Se o demônio é humilhado pelo sacerdócio, só lhe resta
atacar os sacerdotes, fazê-los alvos privilegiados de seu amor. E
cada um que se eleva na hierarquia apostólica, se abate voluptuo-
samente sobre ele: com que aspereza, desde então, não se lançará
sobre o Soberano Pontífice, a fim de lhe dar o gosto do poder
199
fabrice hadjadj
200
possibilidade para ele mais perigosa: declarar melosamente, “Amo a
Deus”, e não ser mais que um filhote do demônio. Portanto, a ver-
dadeira separação está entre àqueles que amam o irmão que veem,
ou seja, que amam seu próximo, e aqueles que são “misadelfos” (ou
como diríamos, misóginos) isto é, que o detestam ou, sendo mais
preciso, que o amam especialmente quando não o veem.
Essa palavra recorda que o amor de Deus e o amor do próximo
formam um só mandamento que, como a lua sob o sol, possui sua
face oculta e sua face visível. O problema é que podemos confun-
dir a escuridão da sombra – devido ao próprio poder da luz –, com
a escuridão das trevas – devida à sua ausência. Como saber que é o
Deus invisível que se ama, e não alguma outra devaneio produzido
para acalmar a nossa consciência?
Acaba se tornando tentador, para evitar a ambiguidade, incli-
nar-se a uma visibilidade sem sombra – o amor do homem, tão
evidente, tão acessível –, e não mais se preocupar do amor Deus,
tão obscuro, tão indeciso. Mas conhecemos a história de Peter
Schlemihl,26 que vendeu sua sombra por uma bolsa de onde tiraria
dinheiro sem-fim: a perda da sombra é a perda da alma. E a luz na
qual nos encontramos só pode ser uma luz falsa – um sol de Satã –
como essas luzes de led circulares de supermercados, que falseiam
um meio-dia para tirar as sombras.
Mas não há dúvida de que a ressonância do mandamento Ama
teu próximo através da história tornou possível o ateísmo mo-
derno. E reencontramos o príncipe deste mundo, como porta-es-
tandarte nos dois campos de batalha, e chocando com sua dupla
progenitura: aqueles que pretendem amar a Deus sem amar seu
irmão, e aqueles que pretendem amar seu irmão sem amar a Deus.
De um lado, a teocracia desumana; o do outro, o humanismo ateu.
Contra essa divisão indolente, é preciso insistir sobre dois pon-
tos. O primeiro, é que amar o próximo significa querer seu bem.
Não se trata de bons sentimentos, mas de objetividade da beatitu-
de: em que consiste esse bem capaz de encher esse próximo de ver-
dade? Qual é a felicidade verdadeiramente sua e não apenas um
projeto meu para ele? Qual é, além disso, a alegria capaz de resis-
tir à injustiça e a morte? E como darei isso a ele, eu que sou mor-
201
fabrice hadjadj
27 Lc 10, 31-32.
202
declara que com os trezentos denários que custa esse perfume, te-
ria se podido ajudar os pobres e tirar uma glória humanitária. O
stárets Zosima, no Os Irmãos Karamazov, relata a propósito de
seu amigo médico:
203
fabrice hadjadj
30 Citado pelo Cônego Vida, Aux sources de la joie avec Saint François de Sales,
Monastère de la Visitation, Annecy, 2006, p. 29. Existe uma tradução brasileira desta
obra publicada: As Fontes da Alegria Com São Francisco de Sales¸ Editora Loyola,
1974.
31 Denis Vasse, Le Temps du désir, Éd. du Seuil, col. “Points-Essais”, 1997, p. 41.
204
ao diabo, porque o homem espiritual é favorável a fé, desde que
seja desencarnada; e se faz voluntariamente promotor da caridade,
desde que seja apenas no discurso ou na distância.
Não esqueçamos que ele também é invisível. Frequentemente,
não sei por que, quando se fala de invisível, se sonha com coisas
boas e reveladas. Mas a palavra convém muito bem ao pande-
mônio. O que faz o fundo de sua raiva, a esse pandemônio, é que
pela Encarnação o Eterno se tornou visível numa criança, e que o
visível, daí em diante, seja o único caminho ao Deus invisível, que
o corpo, agora, esteja em contato direto com o Verbo infinito. Eis
porque ele promove tanto a idolatria como a iconoclastia, uma
imagem adorada por si mesma ou uma adoração odiosa a toda
imagem; eis porque ele encoraja o humanitarismo tanto como as
perseguições: um homem paparicado como um porco na engor-
da, ou um homem degolado como o gado que se abate. Artificio-
so, quer bem que se ame o seu próximo sem Deus. Semeador de
confusão, admite essa mística humanista, onde a caridade fraterna
reduz a nada a liturgia, ou ainda essa mística das rubricas, onde a
liturgia reduz a nada a caridade fraterna. Para ele, o essencial é se-
parar o raio do sol, é recusar esse mútuo envolvimento da carne e
do Espírito Santo – e do próximo com Deus – no verdadeiro amor.
32 M. Lutero. Propos de table, XLVI, trad. Franc. Louis Sauzin, Aubier, 1992, p. 348.
205
fabrice hadjadj
33 Tg 2, 26.
34 Tg 1, 3.
206
Cada qual é tentado pela própria concupiscência, que o ar-
rasta e seduz.35
Se alguém pensa ser religioso, mas não refreia sua língua, an-
tes se engana a si mesmo, saiba que a sua religião é vã.37
35 Tg 1, 14.
36 Tg 1, 22.
37 Tg 1, 26.
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38 Tg 5, 4-6.
39 Tg 2, 25.
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corporal é atestado por estas palavras: Depois disso ela apareceu
sobre a terra e no meio dos homens viveu (Br 3, 38). Destes mes-
mos exploradores, a Igreja recebe o sinal da salvação no escarla-
te, cor evidentemente simbólica, no plano das honras, da realeza,
e no plano físico, do sangue. Duas realidades que se aplicam à
Paixão, porque o Senhor foi revestido de um manto desta cor (Jo
19, 2) e que o sangue jorrou do seu lado (Jn 19, 34).40
40 Santo Hilários de Poitiers, Tratado dos mistérios, II, I, in Thèmes et Figures bibliques,
trad. franc. Carmelitas de Mazille, DDB, 1984, p. 50-60.
41 Mt 1, 5.
42 Respectivamente: Paraíso, IX, 114-120 e XXXII, 15
43 Mt 21, 31.
44 Tg 2, 13.
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45 Tg 1, 17.
210
SEGUNDA LIÇÃO
Aunque es de noche 1
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O selo do seu ódio é nos ninar em nosso amor próprio. Mas,
por mais fortemente que nos aperte, Cristo está sempre aí, ele que
se deixou apertar por todas as forças diabólicas até esgotá-las, e
espera nosso abandono. Porque Bernanos não teme fazer o santo
de Lumbres dizer que o falimento é definitivo, que já estamos ven-
cidos pelo demônio. Mas essa derrota não é nossa perda, é o co-
meço de nossa salvação. Tememos que um de vós não estime che-
gar tarde demais.6 O quê? Nós já caímos? Na hora certa! Ocorre
quando, depois de longo tempo, tarde demais para nossas forças,
nós começamos com a graça de Deus. Vencidos desde a origem,
não resta outra escapatória a não ser nos deixarmos vencer ainda
mais pelo Altíssimo:
6 Hb 4, 1.
7 Dom Anschaire Vonier, La Victoire du Christ, cap. 8, L´Oeuvre, 2009.
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A graça da reconciliação
Vamos nos debruçar um instante sobre este fato: o demônio
posa como vítima. É a razão pela qual ele é chamado o Acusador.
Mas ele sabe também perdoar, na medida em que o perdão lhe
serve de instrumento de poder, e o autoriza a não ver sua própria
injustiça. Ele é mesmo “fanático de conciliação”.10
O que foram os grandes totalitarismos do século XX? Gran-
des tentativas de reconciliação definitiva, unicamente pelas forças
do homem (e quando se trata unicamente de nossas forças, cer-
tamente, o diabo dá uma mãozinha). O nazismo queria produzir,
através do Reich milenário, uma Europa enfim sã e unida. O co-
munismo queria nos tirar para sempre da luta de classes. Adal-
berto, assassino católico de Ruanda, explica assim o que motivou
o genocídio: “livrar-se de um perigo para sempre”, e Pio, outro
extremista, corrobora invocando “o desejo de ganhar a partida
definitivamente”.11
É, mais uma vez, a parábola do joio e do trigo. O Inimigo é
aquele que semeia a cizânia no meio do grão bom enquanto os ser-
vos dormem; mas também é ele quem sugere aos servos a intenção
8 1Cor 4, 4.
9 1Jo 3, 20.
10 Cf. Georges Bernanos, op.cit., p. 290.
11 Jean Hatzfeld, Une saison de machettes, Éd. du Seuil, col. “Points”, 2003, p. 254.
[Sobre o genocídio em Ruanda, entre abril e julho de 1994, o grupo extremista
étnico dos hutus massacrou a comunidade minoritária dos tutsis, chegando a 800 mil
assassinatos, muitos deles cometidos com enxadas, facões e machados – NE].
214
zelosa de eliminar toda erva daninha, e assim eliminar também o
trigo verde. Assim nossos grandes projetos reconciliadores se vol-
taram à destruição. Hoje ainda, com a maior compaixão possível,
o nobre projeto de fabricar um homem novo pacificado e aper-
feiçoado pela técnica, acabará por descartar o obsoleto sapiens
sapiens. E se consideramos o erro contrário, a fanática ambição de
submeter o mundo a Deus graças ao terror, não pode senão entre-
gar o mundo ao diabo.
O homem não deve ter a última palavra. Certamente, os agnósti-
cos poderiam dizer a mesma coisa: tanto o religioso como ideólogo
pretendem ter a última palavra, nós dizemos que Deus é incognos-
cível e assim somos bastante humildes. Evita-se o totalitarismo, sem
dúvida, mas não se evita a mutilação: uma vida de bruços, uma boca
metida no coxo. Porque, não havendo a última palavra efetiva, a
penúltima palavra se torna ipso facto a última palavra. O religio-
so fervoroso, longe de ser fanático, sabe que a última palavra é de
Deus, e que ele mesmo não a pode ter, nem para condenar nem para
absolver. Se condena por si mesmo, risca o erro e cai na superficia-
lidade; se absolve por si mesmo, corre o risco de laxismo e desliza
facilmente numa forma surda de chantagem: “Eu te perdoei, eu, o
inocente, a vítima, tu me deves portanto ainda mais!” Esse modo
de posar de vítima absoluta, reivindicando a justiça ou ostentando
seu perdão, está na origem de todas as revanches e essas extorsões
que se perpetram com muito mais crueldade, pois se creem justi-
ficados diante de sua consciência. Nesta justiça presunçosa, neste
perdão arrogante, encontra-se o demoníaco. Porque, pelo contrário,
a verdadeira reconciliação exige se deixar reconciliar primeiro com
o Pai das misericórdias, o único que pode transformar em irmãos os
fratricidas que somos, fratricidas desde a origem, fratricidas mesmo
quando pretendemos conceder um perdão do qual seríamos a fonte
pura. Assim São Paulo se apresenta aos Coríntios: não como mestre,
mas como débil embaixador de uma reconciliação da qual ele é o
primeiro beneficiário: Em nome de Cristo suplicamos-vos: reconci-
liai-vos com Deus.12 O que também quer dizer: “Sem Deus, não vos
deixeis reconciliar, pois isso seria uma diabólica ilusão”.
Para tentar se aproximar desta verdade, seria preciso reler a pa-
rábola do devedor implacável.13 Conhecemos essa história do servo
12 2Cor 5, 20.
13 Mt 18, 23-35.
215
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insolvente que devia 100 mil talentos, o mesmo que dizer ‘uma
soma infinita’. Ele se lança aos pés de seu senhor para suplicar-lhe,
e o senhor, tocado pela piedade, lhe perdoa toda a dívida. Mas eis
que saindo leve por ter recebido essa graça, o servo torna-se mais
pesado para com um companheiro que lhe deve 200 denários, o
que, comparando com o que devia, representa um quase nada. O
texto diz que ele toma o seu credor pelo pescoço e, rejeitando sua
súplica, o faz cair na prisão. O que aconteceu? O servo, agora
sem dívida, posa de pura vítima inocente. Reclama para si toda a
justiça. Sem clemência, faz aplicar a lei, quando seria mais correto
ter exercido o perdão. No entanto, não teria sido a mesma coisa se
ele tivesse perdoado o companheiro, se tivesse remido sua dívida,
posando de pura vítima? Enfim, ele teria podido olhar seu deve-
dor do alto, como se fosse o princípio da misericórdia (querer ser
princípio do bem, já vimos, é onde está a origem do mal). O im-
placável piedoso lhe teria feito ouvir: “Olha só o que tu me deves,
porque eu te poupei da prisão. Veja! Eu esqueço até mesmo estes
100 denários, sim, eu os esqueço, e sempre te recordarei que eu
os esqueci...”. Por esse ângulo, ele insiste sobre uma outra dívida,
mais espiritual, e o encarcera numa outra prisão, psicológica, mo-
ral, mais aprisonante do que uma penitenciária.
Esta desigualdade da pura vítima face ao puro carrasco não
permite reconciliação verdadeira, mesmo quando advogasse uma
anistia geral. Ela não permite entrar numa fraternidade. Para per-
doar verdadeira e profundamente, sem usurpar uma posição divi-
na, seria preciso reconhecer que eu mesmo sou pecador, seja por-
que já pequei e depois recebi o perdão de Deus, seja porque, por
uma graça especial, fui preservado. Mas sei que sem essa graça do
alto seria apenas um carrasco mais infame que todos os outros
carrascos infames.
Só assim a verdadeira reconciliação se realiza. Não apenas pela
força do homem, mas antes pela sua fragilidade, por sua própria
miséria declarada que acolhe o outro miserável na Luz de uma
Misericórdia infinita. Estão sempre presentes as palavras de Paulo:
Pois quando sou fraco, então é que sou forte.14 Isso é crer que a
profecia de Zacarias se realizou: Contemplarão aquele que trans-
passaram. E avante! Todos deicidas! Eu o primeiro, o mais covarde,
14 2Cor 12, 10.
216
o mais frio sob a febre de um falso amor!... Só aí, portanto, que a
reconciliação pode ter lugar.
Aquele que carrega a fé teologal, essa fé que se diz tão conso-
ladora, deve primeiro aprender que é um assassino. Ele crê, fir-
memente, que levou o Filho à morte, e descobre que esse Filho se
juntou a ele no fundo de sua miséria para fazer-lhe misericórdia.
É assim, e somente assim, enquanto filho pródigo cujo retorno é
festejado pelo pai, e por derivação, que ele pode fazer misericór-
dia. Francisco de Assis, vendo um condenado à morte, reconhe-
ceu diante dele que, sem a Misericórdia divina, ele teria sido um
grande criminoso, e o condenado pode se arrepender. Catarina de
Sena bebe o sangue de um decapitado como se fosse para ela o do
Redentor. Como não seria o mesmo para Maria, a Virgem Imacu-
lada? Ela sabe, no seu coração, que sem essa graça antecipada vin-
da da Cruz de seu Filho ela seria, não mais a Filha de Sião, mas a
Grande Prostituta da Babilônia. E é por saber disso que a humilde
serva, na sua extrema pureza, pode ser considerada o “Refúgio dos
pecadores”. Se ela tivesse se acreditado imaculada por si mesma,
se tivesse se fiado de suas próprias luzes para ter a iniciativa da
misericórdia, enfim, se tivesse se pavoneado da sua plenitude de
graça como de algo que lhe era devido, teria sido filha de Satanás.
Mas ela é Mãe de Deus, e é por ter se entregue totalmente a Deus
como uma criancinha que não é nada sem seu Pai.
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A religião é o ser da humanidade na sua infância; mas a criança
vê sua essência fora de si, no homem: na infância, o homem é
o objeto para si mesmo sob o aspecto de um outro homem. É
por isso que o progresso histórico das religiões consiste no que
se considera agora como subjetivo, o que as religiões primitivas
tinham como objetivo, dito de outro modo, no que se conhece
agora como humano, o que antigamente era contemplado e ado-
rado sob as espécies de Deus. Para a que lhe sucede, toda religião
é idólatra.18
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a fé dos demônios
discutir e nos indignar com os ímpios, e eis essa invisível viga que
desce do teto e nos esmaga na rede como a uma vespa industriosa
sob o mata-moscas. De onde vem essa súbita depressão? Somente
de si mesmo? Não é antes como a força de um outro que vos cerca
e vos impede de fazer algum mal? A vida de oração é aquela a que
o demônio renunciou. Ele a detesta mais que qualquer outra. Ele
não pode senão preservar os seus dela. É um hiperativo infatigável
e cheio de novos projetos urgentes. Ele queria que tudo dependesse
unicamente de seus esforços. Ele não ama irradiar senão por mé-
rito próprio. Impossível para ele ficar num lugar. E é seguindo a
ele, que, de maneira tão misteriosa, sofremos essa enfermidade de
“não saber permanecer em repouso num quarto”.
Mas admitamos ultrapassar esse obstáculo de principiantes e
que nos tornamos campeões da oração, o diabo está ainda aí para
nos ajudar. Ele pesa então sobre a memória do religioso, sobre sua
inclinação ao prazer, suscita nele uma impaciência da beatitude,
similar a sua.
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O amor na noite
Abrir-se para a luz divina é como, numa noite de núpcias, a
esposa se entregar totalmente ao seu esposo. O fiel, de certo modo,
sabe cada vez menos, sabe menos que o próprio ateu. Quando os
outros creem saber e não sabem, a sabedoria de Sócrates é a de
saber que não sabe nada. Já a sabedoria do cristão é conhecer a
Deus como inefável, despindo-se de sua razão para adentrar nos
caminhos noturnos do amor:
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37 Alain Finkielkraut e Benny Lévy, Le Livre et les livres, Verdier, Lagrasse, 2006, p. 94.
38 1Jo 2, 3.
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para mim como um lobo numa jaula, e não deixar Deus fazer
sua obra, que é vir, falar e prometer, vir primeiro, falar primeiro
e prometer primeiro.39
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a fé dos demônios
Meu filho, por que agistes assim conosco? Olha que teu pai e
eu, aflitos, te procurávamos.41
41 Lc 2, 48.
42 Lc 16, 24.
43 Lc 2, 50.
44 Lc 8, 10.
45 Lc 2, 50-51.
46 A imagem é do Padre Pierre-Thomas Dehau no seu pequeno livro admirável: Em
prière avec Marie.
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a fé dos demônios
cada vez mais escura. Teresa de Ávila indica com traços fortes o
caminho que penetra as sete moradas. Teresa de Lisieux abre a “pe-
quena via”, mas mergulha também em apavorantes securas. Teresa-
-Benedita da Cruz, passando pela porta mais curta e ainda mais
comum, morre em Auschwitz: ela entra na câmara de gás como
Elias no Horeb, se prostrando diante do silêncio de Deus. Teresa de
Calcutá parece seguir um caminho ainda mais ordinário e, contudo,
entra profundamente nestas trevas que ela não compreende. Não é
tanto que lhe falte a ciência carmelita, mas é que essa ciência já não
é capaz de alcançá-la nesta noite que ela adentrou:
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56 Mc 14, 36.
57 Carta ao Padre Picachy de 06 de março de 1962.
58 Vocalização ornamental característica do canto gregoriano – NE.
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61 Ef 3, 20.
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TERCEIRA LIÇÃO
A ser escrita pela graça, com seu próprio sangue
Vinde!
— Apocalipse, passim.
241
AGRADECIMENTOS
243