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RESUMO
A obra de Sade, fortemente marcada por abordar a questão da sexualidade, da
liberdade e da natureza, tem da parte de Simone de Beauvoir uma leitura
singular. O ensaio Deve-se queimar Sade? compreende um estudo crítico em
que a autora elabora, a partir da vida e da obra do Marquês, uma possível
resposta à questão que dá título ao ensaio. A proposta deste artigo é apresentar,
no texto de Beauvoir, as dimensões da sexualidade humana e apreender como
sua obra aborda a relação entre a ética e o erótico a partir de Sade. Dessa
maneira, visa-se a demonstrar a presença de Sade na obra de Beauvoir a partir
de alguns de seus temas centrais e apreender de que maneira a leitura de Sade
tem um importante papel em sua trajetória como pensadora, da perspectiva da
singularidade do sujeito e de sua verdade.
ABSTRACT
Sade’s work, distinguished for approaching the issues of sexuality, freedom,
and nature, finds in Simone de Beauvoir a singular reader. The essay "Must we
burn Sade?" is a critical study in which the author elaborates a possible answer
to its title based on the life and work of the Marquis. The present paper
highlights the dimensions of human sexuality in Beauvoir’s text and analyzes
how it approaches the relation between ethics and erotic in connection with
Sade’s view. Thus, this article also intends to demonstrate Sade’s presence in
Beauvoir’s work considering some of her main themes and to apprehend how
the reading of Sade plays an important role in her trajectory as thinker,
regarding the perspective of the subject’s singularity and its truth.
Sapere Aude – Belo Horizonte, v.3 - n.6, p.214-223 – 2º sem. 2012. ISSN: 2177-6342 214
Elizângela Inocêncio Mattos
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Ao explorar a relação entre a ética e o erótico, Beauvoir escreveu dois ensaios, primeiro: Deve-se queimar
Sade? entre 1951 e 1952 e em seguida, Brigitte Bardot e a síndrome de Lolita, em 1959. TIDD, Ursula.
Simone de Beauvoir. London-New York: Routledge, 2004, p. 43.
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questão de gênero. O feminino em Sade está presente desde a evocação da mãe natureza até
as grandes mulheres a que ele delega o lugar de heroínas, como, para citar apenas algumas,
Madame de Saint-Ange e Juliette. Por meio desta última, Sade declara que a filosofia tem o
papel de dizer tudo. O caminho de Beauvoir concentra-se no caráter ético presente no
erotismo do Marquês. Este, ao tomar o sexo como ponto central, inclui os libertinos que,
independente do sexo, ocupam vários lugares:
Sade, um filósofo que expulsa a Igreja de seu universo, termina fazendo do sexo
uma nova religião. Seu pródigo ritualismo sexual dramatiza o hierarquismo
natural do sexo – um hierarquismo que nada tem a ver com o costume social, pois
as mulheres podem ser senhoras e os homens escravos. (PAGLIA, 1992, p. 229)
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à sua obra: a imaginação. Através dela consegue fugir da solidão e compor as múltiplas
cenas de libertinagem.
O século XVIII certamente relegou Sade ao esquecimento. A impossibilidade de
compreender o homem, descrito em toda sua radicalidade, caracteriza um momento da
história em que as possibilidades do humano se impõem de maneira provocadora. A
questão a que Beauvoir remete o leitor pode ainda ter sentido nos dias de hoje? Haveria de
fato um momento na história das ideias em que o homem estaria pronto para ler as obras de
Sade sem querer queimá-las? Seria mais oportuno e justo que uma obra assim,
compreendida como maldita, não houvesse existido?
No início do texto, Simone de Beauvoir indaga sobre o lugar de Sade na história das
ideias, chamando a atenção para o fato de seus escritos terem sido tomados muitas vezes de
um modo equivocado, quando o que realmente importava era compreender a obra, mais
ainda, o lugar de Sade diante das classificações possíveis, se um escritor ou um filósofo.
Assim, afirma ela:
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a existência social e os prazeres individuais. Esse conflito se dissolve nas fortes criticas que
Sade faz através de suas personagens com relação à força das leis e da moral, edificadas em
nome do ser social e de seu convívio com os demais. A existência de dados e informações
precisas sobre sua infância poderia certamente explicar e justificar sua escrita e seus temas.
Como escreveu Jean Desbordes:
Dessa maneira, a lacuna que separa o Sade escritor do homem impede um estudo
pormenorizado de sua vida, que todavia tão presente se mostra na sua obra. O texto de
Beauvoir, tal como o de Desbordes, enfrenta esse entrave, reconstituindo com precisão
intelectual a trajetória do Marquês. Nesse percurso, ressalta como, no tempo de cárcere,
Sade conseguiu viver sua agitação, seu característico furor apenas em termos de sua
atividade criadora, que, atrelada ao poder da imaginação, resultou em sua força como
escritor. Por isso, segundo Beauvoir,
a partir de 1782 é só a literatura que vai pedir o que a vida não mais lhe concede:
agitação, o desafio, a sinceridade e todas as alegrias da imaginação. E mesmo
nisso, é exagerado: escreve do mesmo modo que come, com frenesi.
(BEAUVOIR, 1961, p. 17-8)
É certamente na força criativa, por meio da palavra, que Sade consegue ultrapassar
os limites do espaço físico e descrever a vivência de uma liberdade que não tem: o livre
prazer, o objetivo permanente do gozo. A palavra sadiana, ao romper com o mundo que lhe
é dado, descreve o individuo diante do gozo e, em nome dele, consegue romper com o
estabelecido. Assim, atinge a plenitude do ser no momento último do gozo, quando se pode
pensar que está em uma situação distinta dos demais, podendo mesmo deixar de ser, em um
movimento permanente:
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sentido da liberdade depende do que fazemos com ela (ANDREW, 2007, p.27). Assim,
Sade alcança o sentido pleno da liberdade configurando uma roupagem possível do
humano.
Essa transitoriedade própria dos libertinos delega a própria subjetividade a uma
construção permanente, entre várias possibilidades. Contudo, se voltamos a considerar a
lacuna existente com relação à infância de Sade, constatamos que é a prisão que,
contraditoriamente, permite a Sade descrever o impasse entre o interesse individual e o bem
comum, a incompatibilidade entre as dimensões do desejo e os efeitos da moral e da
religião, ou seja, dos dispositivos da civilização.
A solidão que permite ao Marquês desenvolver sua força criadora, como um
resultado não de sua própria vontade, evidencia a capacidade do autor em construir uma
obra que escolheu o prazer no encontro dos libertinos como a representação de uma vida
humana que, ainda que rodeada de amigos, será sempre, em seu recôndito mais profundo,
uma aventura solitária. A prisão acaba por lhe permitir tomar todo o universo como uma
grande representação teatral (DIDIER, 1989, p. 15)3 de modo que, na consciência da vida no
cárcere, pôde ele apreender sua vocação de dramaturgo. Ao evocar a natureza, o mundo
representa a liberdade humana e a permanente luta pelo prazer. Assim,
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Beatriz Didier aborda entre outros temas, o dramaturgo Sade dentro do cárcere. Ao tomar o mundo como
um espetáculo teatral, o mesmo reconhece a necessidade do público, que as vezes numeroso, é chamado a
participar ativamente das cenas. Mais ainda, escrever se manifestou em Sade como, na condição de
prisioneiro, a única forma de rebelião possível.
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Sade fez o papel do imbecil, foi o bode expiatório, a vítima do Antigo Regime
que sucumbe, no momento em que este, perante um mundo que aplaudia a sua
derrocada, tentava salvar a sua existência na instauração de uma ordem moral
destinada a mascarar a fraqueza e o esgotamento. (CHAUSSINAND-
NOGARET, 1991, p. 290)
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The Cambridge Companion to Simone de Beauvoir. Cambridge University Press, 2003.
DELEUZE, Gilles. Sade – Masoch. Tradução de José Martins Garcia. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1973.
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