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Artigo: A presença de Sade na obra de Simone de Beauvoir

A PRESENÇA DE SADE NA OBRA DE SIMONE DE BEAUVOIR

SADE’S PRESENCE IN THE WORK OF SIMONE DE BEAUVOIR


Elizângela Inocêncio Mattos

RESUMO
A obra de Sade, fortemente marcada por abordar a questão da sexualidade, da
liberdade e da natureza, tem da parte de Simone de Beauvoir uma leitura
singular. O ensaio Deve-se queimar Sade? compreende um estudo crítico em
que a autora elabora, a partir da vida e da obra do Marquês, uma possível
resposta à questão que dá título ao ensaio. A proposta deste artigo é apresentar,
no texto de Beauvoir, as dimensões da sexualidade humana e apreender como
sua obra aborda a relação entre a ética e o erótico a partir de Sade. Dessa
maneira, visa-se a demonstrar a presença de Sade na obra de Beauvoir a partir
de alguns de seus temas centrais e apreender de que maneira a leitura de Sade
tem um importante papel em sua trajetória como pensadora, da perspectiva da
singularidade do sujeito e de sua verdade.

PALAVRAS-CHAVE: Simone de Beauvoir; Sade; liberdade; ética

ABSTRACT
Sade’s work, distinguished for approaching the issues of sexuality, freedom,
and nature, finds in Simone de Beauvoir a singular reader. The essay "Must we
burn Sade?" is a critical study in which the author elaborates a possible answer
to its title based on the life and work of the Marquis. The present paper
highlights the dimensions of human sexuality in Beauvoir’s text and analyzes
how it approaches the relation between ethics and erotic in connection with
Sade’s view. Thus, this article also intends to demonstrate Sade’s presence in
Beauvoir’s work considering some of her main themes and to apprehend how
the reading of Sade plays an important role in her trajectory as thinker,
regarding the perspective of the subject’s singularity and its truth.

KEYWORDS: Simone de Beauvoir; Sade; freedom; ethic

Professora da Universidade Federal do Tocantins, doutoranda no PPG de Filosofia da UFSCAR. Email:


[email protected]

Sapere Aude – Belo Horizonte, v.3 - n.6, p.214-223 – 2º sem. 2012. ISSN: 2177-6342 214
Elizângela Inocêncio Mattos

A obra de Simone de Beauvoir, constituída de ensaios permeados de reflexão


filosófica, constitui um marco importante na história das ideias. Seu papel como escritora e
feminista é inquestionável. A preocupação com a ética e a liberdade, enquanto temas
centrais de sua obra, reforça sua contribuição ao pensamento filosófico (CARD, 2003, p. 3).
Escrito por volta de 1950 e conformando com Brigitte Bardot e a síndrome de Lolita um
conjunto de textos em que Beauvoir explora a relação entre a ética e o erótico,1 Faut-il
brûler Sade? constitui um importante marco, pois, ao questionar no próprio título a
presença do Marquês entre os autores modernos, chama a atenção do leitor para uma
questão extremamente pertinente que encontra em sua obra, a questão da liberdade e das
possibilidades do humano diante da própria sexualidade (BEAUVOIR, 1961). Assim, sua
abordagem constitui, para os estudiosos da obra do Marquês, uma contribuição singular e
de leitura indispensável, pelo enfoque dado pela autora à resposta da questão ponto de
partida do texto.
O ensaio, ao tomar a obra de Sade e seus temas centrais, apresenta de inicio uma
inquietação pertinente da abordagem de Beauvoir, pois a mesma constitui-se como se Sade
chamasse a todos para examinar o problema da verdadeira relação do homem com o
homem, contestando todas as respostas que pareciam até então demasiadas fáceis. Uma
justificativa possível para se compreender a abordagem de Sade seria o interesse da autora
em abarcar, sob os domínios da existência, as dimensões do corpo e sua inserção na
história. Assim, a autora de O Segundo Sexo, ao abordar a questão da liberdade e da relação
entre a filosofia e a política, encontra no contexto sadiano o elemento que compreende a
junção entre liberdade, subjetividade e a relação com os outros. Nesse sentido, a
preocupação em compreender o modo como a dominação é legitimada encontra em Sade
uma representação considerável. Mais ainda, o modo como as relações entre os homens
acontecem no interior da alcova sadiana representa o caráter imediato das relações
humanas, edificadas precisamente no momento de sua realização, em um acordo comum e
momentâneo entre os indivíduos.
É claro que pensar Sade na obra de Beauvoir poderia remeter, num primeiro
momento, a uma possível análise da condição sexual das personagens, no que respeita à

1
Ao explorar a relação entre a ética e o erótico, Beauvoir escreveu dois ensaios, primeiro: Deve-se queimar
Sade? entre 1951 e 1952 e em seguida, Brigitte Bardot e a síndrome de Lolita, em 1959. TIDD, Ursula.
Simone de Beauvoir. London-New York: Routledge, 2004, p. 43.

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questão de gênero. O feminino em Sade está presente desde a evocação da mãe natureza até
as grandes mulheres a que ele delega o lugar de heroínas, como, para citar apenas algumas,
Madame de Saint-Ange e Juliette. Por meio desta última, Sade declara que a filosofia tem o
papel de dizer tudo. O caminho de Beauvoir concentra-se no caráter ético presente no
erotismo do Marquês. Este, ao tomar o sexo como ponto central, inclui os libertinos que,
independente do sexo, ocupam vários lugares:

Sade, um filósofo que expulsa a Igreja de seu universo, termina fazendo do sexo
uma nova religião. Seu pródigo ritualismo sexual dramatiza o hierarquismo
natural do sexo – um hierarquismo que nada tem a ver com o costume social, pois
as mulheres podem ser senhoras e os homens escravos. (PAGLIA, 1992, p. 229)

O estudo que Beauvoir realiza sobre Sade constitui, de um lado, um importante


reflexo da presença do Marquês na obra da autora e também corrobora a tese de que a
temática abordada por Sade coaduna de certa maneira com o alicerce do pensamento de
Beauvoir. Nesse sentido, podemos ressaltar dois elementos. Em primeiro lugar, a
preocupação com a condição humana, com apreender a complexidade humana diante das
relações estabelecidas no decorrer da história, bem como o papel do outro quando do
primado do prazer, aspectos tão fortemente sublinhados na obra de Sade, onde ela
compreende haver uma ética. Mas o que justifica tomar a obra de Sade, que, como sua
leitura demonstra, foi escrita num tempo que parece não estava preparado para ela? Como
se justifica o interesse de Beauvoir por uma obra fortemente marcada pela renúncia de seu
autor aos dispositivos da civilização? Ao questionar o interesse de Beauvoir por Sade,
Ursula Tidd justifica que a autora de O Segundo Sexo reconhece que a vida e a obra do
Marquês dizem algo significativo sobre os limites e as possibilidades da sexualidade. Em
sua escrita, Sade manifestou uma ética do erótico, eis um segundo elemento que demonstra
a presença de Sade na obra de Beauvoir (TIDD, 2004, p. 43).
O erotismo em Sade é compreendido por Beauvoir como um modo de comunicação.
O Marquês, contudo, não deixa de entrever a crueldade como algo que integra a natureza, e
o caminho de seu erotismo, se considera o outro, faz isso em vista de um objetivo, o gozo
que está em jogo na cena, por isso se trata de um caminho para seu lugar de origem: a
solidão. A solidão do cárcere, da qual Sade consegue evadir por meio de um elemento caro

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à sua obra: a imaginação. Através dela consegue fugir da solidão e compor as múltiplas
cenas de libertinagem.
O século XVIII certamente relegou Sade ao esquecimento. A impossibilidade de
compreender o homem, descrito em toda sua radicalidade, caracteriza um momento da
história em que as possibilidades do humano se impõem de maneira provocadora. A
questão a que Beauvoir remete o leitor pode ainda ter sentido nos dias de hoje? Haveria de
fato um momento na história das ideias em que o homem estaria pronto para ler as obras de
Sade sem querer queimá-las? Seria mais oportuno e justo que uma obra assim,
compreendida como maldita, não houvesse existido?
No início do texto, Simone de Beauvoir indaga sobre o lugar de Sade na história das
ideias, chamando a atenção para o fato de seus escritos terem sido tomados muitas vezes de
um modo equivocado, quando o que realmente importava era compreender a obra, mais
ainda, o lugar de Sade diante das classificações possíveis, se um escritor ou um filósofo.
Assim, afirma ela:

Em Sade, as diferenças são levadas até o escândalo, e a imensidão do seu trabalho


literário mostra-nos com que paixão ele desejava ser aceito pela comunidade
humana: o conflito, a que nenhum indivíduo escapa sem mentir a si próprio,
encontramo-lo nele na forma mais extrema. É o paradoxo, e em certo sentido, o
triunfo de Sade, que, por haver-se obstinado nas suas singularidades, nos ajuda a
definir o drama humano em sua generalidade. (BEAUVOIR, 1961, p. 8)

A singularidade de Sade consiste assim em apresentar, em toda sua profundidade, as


possibilidades humanas e mesmo a vulnerabilidade do homem diante da força da natureza.
O drama humano, o conflito recorrente da relação entre os homens, a busca incessante pelo
prazer, atrelados ao comportamento adequado para a vida em sociedade, fazem de Sade o
representante de tudo aquilo de que não se podia e nem se deveria falar naquele momento,
se é que podemos considerar que, nos dias de hoje, seja possível tratar de seus temas sem
experimentar o mal estar ou o descaso preconceituoso de outrora.
Entre tantos pontos a se elencar, destaque-se que Beauvoir lamenta a existência de
lacunas talvez irrecuperáveis para o estudo e conhecimento da obra do Marquês: faltam
dados sobre sua vida, sobre sua infância, havendo informações desencontradas até com
relação a sua aparência. Contudo, essas lacunas não impedem que se perceba o alcance do
que possivelmente é o eixo central de sua obra: o fato de ele ter descoberto o conflito entre

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a existência social e os prazeres individuais. Esse conflito se dissolve nas fortes criticas que
Sade faz através de suas personagens com relação à força das leis e da moral, edificadas em
nome do ser social e de seu convívio com os demais. A existência de dados e informações
precisas sobre sua infância poderia certamente explicar e justificar sua escrita e seus temas.
Como escreveu Jean Desbordes:

Seria empolgante conhecer os múltiplos incidentes da primeira infância e, depois,


da adolescência de um Sade. Mas como censurar os pais dos grandes homens por
não terem redigido um diário cotidiano da vida de seus filhos, que então nada
predispunha para a glória? Sade só se tornará Sade na prisão e graças a ela.
(DESBORDES, 1968, p. 16).

Dessa maneira, a lacuna que separa o Sade escritor do homem impede um estudo
pormenorizado de sua vida, que todavia tão presente se mostra na sua obra. O texto de
Beauvoir, tal como o de Desbordes, enfrenta esse entrave, reconstituindo com precisão
intelectual a trajetória do Marquês. Nesse percurso, ressalta como, no tempo de cárcere,
Sade conseguiu viver sua agitação, seu característico furor apenas em termos de sua
atividade criadora, que, atrelada ao poder da imaginação, resultou em sua força como
escritor. Por isso, segundo Beauvoir,

a partir de 1782 é só a literatura que vai pedir o que a vida não mais lhe concede:
agitação, o desafio, a sinceridade e todas as alegrias da imaginação. E mesmo
nisso, é exagerado: escreve do mesmo modo que come, com frenesi.
(BEAUVOIR, 1961, p. 17-8)

É certamente na força criativa, por meio da palavra, que Sade consegue ultrapassar
os limites do espaço físico e descrever a vivência de uma liberdade que não tem: o livre
prazer, o objetivo permanente do gozo. A palavra sadiana, ao romper com o mundo que lhe
é dado, descreve o individuo diante do gozo e, em nome dele, consegue romper com o
estabelecido. Assim, atinge a plenitude do ser no momento último do gozo, quando se pode
pensar que está em uma situação distinta dos demais, podendo mesmo deixar de ser, em um
movimento permanente:

O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível,


puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação
ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza.
(BARTHES, 1996, p. 12)

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Rompendo com o estabelecido, o libertino consegue, em seu momento único,


percorrer os limites da existência humana: o momento do gozo, onde não há nenhum outro
motivo que possa equivaler a sua presença. O gozo em Sade pode ser compreendido como a
força da palavra, o ter encontrado na escrita o uma motivação nos seus anos de prisão.
Beauvoir percorre a vida de Sade, da infância vazia de elementos a sua associação
com o termo sadismo, para justificar o que ela chama de ética de Sade: perceber a
existência do outro que, importante para o gozo, não poderia ser isolado ou ignorado, bem
como do desejo de ser pelo e para o outro tocado. O que justifica o alcance de seu interesse
pelo autor de Justine é o fato de que, para ela, a sexualidade consiste em um fato social. As
sociedades sempre elencam algumas pessoas como libertinos, sempre no plural, em nome
do prazer. As pequenas sociedades que Sade constrói podem se justificar pelo fato de terem
em seu autor uma figura solitária que se rodeia de personagens e neles encontra a fuga da
própria solidão.
Considerando a natureza como a força que move o mundo e, assim, também o
homem, Beauvoir sublinha a influência que Mandeville teve na obra de Sade.2 Assim, a
ética do libertino ressoa na necessidade do crime e das paixões particulares na vida em
sociedade. Aliás, Sade, mesmo criticando a sociedade de seu tempo por não oferecer aos
desejos individuais a devida importância, não consegue fugir dela. E se por vezes pareceu
fazê-lo, foi para, no interior da alcova, edificar uma outra sociedade, onde os amigos
nutrem um objetivo comum, o gozo, longe da ideia de Deus e das normas que a civilização
privilegia.
Se a questão que norteia o texto remete, de um lado, ao esquecimento que a obra de
Sade encontrou na modernidade, a abordagem de Beauvoir chama o leitor a compreendê-la
em sua singularidade, corroborando a tese de que o sentido da existência é construído a
partir da luta permanente de cada indivíduo. Ao escolher a sexualidade como ponto central
a fim de tomar o humano em suas especificidades, Sade demonstra a verdade do homem e
somente em nome dela edifica a obra. Sem nenhum aparato encobridor, descreve o homem
sem máscaras e atributos condicionantes. Pensar a liberdade humana a partir da sexualidade
permite a Beauvoir tratar o tema da ética na obra de Sade, o que confirma a ideia de que o
2
Autor de A Fábula das Abelhas, Bernard Mandeville ( 1670-1733), descreveu em sua obra o papel do vício e
de outras qualificações compreendidas como negativas, importantes em uma sociedade.

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sentido da liberdade depende do que fazemos com ela (ANDREW, 2007, p.27). Assim,
Sade alcança o sentido pleno da liberdade configurando uma roupagem possível do
humano.
Essa transitoriedade própria dos libertinos delega a própria subjetividade a uma
construção permanente, entre várias possibilidades. Contudo, se voltamos a considerar a
lacuna existente com relação à infância de Sade, constatamos que é a prisão que,
contraditoriamente, permite a Sade descrever o impasse entre o interesse individual e o bem
comum, a incompatibilidade entre as dimensões do desejo e os efeitos da moral e da
religião, ou seja, dos dispositivos da civilização.
A solidão que permite ao Marquês desenvolver sua força criadora, como um
resultado não de sua própria vontade, evidencia a capacidade do autor em construir uma
obra que escolheu o prazer no encontro dos libertinos como a representação de uma vida
humana que, ainda que rodeada de amigos, será sempre, em seu recôndito mais profundo,
uma aventura solitária. A prisão acaba por lhe permitir tomar todo o universo como uma
grande representação teatral (DIDIER, 1989, p. 15)3 de modo que, na consciência da vida no
cárcere, pôde ele apreender sua vocação de dramaturgo. Ao evocar a natureza, o mundo
representa a liberdade humana e a permanente luta pelo prazer. Assim,

no fundo do seu castelo isolado e emparedado, os heróis de Sade pretendem


reconstituir o mundo e reproduzir a história do coração. Invocam a natureza e o
hábito; recolhem todos os poderes de uma e de outro, na África, na Ásia, na
Antiguidade, por toda a parte, para daí destacarem a verdade sensível ou a
finalidade propriamente sensual. Ironicamente, chegam a fornecer o esforço de
que os franceses ainda não são capazes para se tornarem republicanos.
(DELEUZE, 1973, p. 37-8)

A história do coração pode ser compreendida como a consciência de si e de todas as


possibilidades de estar no mundo. A verdade sem nenhum velamento, sem nenhum atributo
impeditivo, o corpo sendo explorado em todas as suas manifestações, sem para isso
carregar um rótulo preciso e totalizante. Da mesma forma, pode-se apreender a
possibilidade de outra configuração da subjetividade, a partir da representação e do efeito

3
Beatriz Didier aborda entre outros temas, o dramaturgo Sade dentro do cárcere. Ao tomar o mundo como
um espetáculo teatral, o mesmo reconhece a necessidade do público, que as vezes numeroso, é chamado a
participar ativamente das cenas. Mais ainda, escrever se manifestou em Sade como, na condição de
prisioneiro, a única forma de rebelião possível.

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que a liberdade permite, a consciência de si e do outro demonstrando a natureza como


limite (BERGOFFEN, 2001, p. 161).
Os impedimentos que a vida em sociedade apresenta constituem, no espaço de Sade,
inimigos à liberdade do indivíduo, que se reconhece livre de toda opressão e preconceitos,
os quais seriam precisamente os impedimentos da livre razão a que se aspira. Em Sade terá
existido? Chaussinand-Nogaret se refere ao mistério que o envolve, que ainda está por ser
esclarecido:

Sade fez o papel do imbecil, foi o bode expiatório, a vítima do Antigo Regime
que sucumbe, no momento em que este, perante um mundo que aplaudia a sua
derrocada, tentava salvar a sua existência na instauração de uma ordem moral
destinada a mascarar a fraqueza e o esgotamento. (CHAUSSINAND-
NOGARET, 1991, p. 290)

Por isso sua obra configura a denúncia do escondido, do que verdadeiramente


acontece e constitui o individuo e, nessa perspectiva, não existem valorações possíveis.
Bem e mal, vício e virtude compõem o mesmo enredo da existência humana. Se sua obra
chama a atenção para o crime, o vício e o mal, é, de um lado, pela influência de
Mandeville, como apontada por Beauvoir, e, de outro, porque tais elementos configuram o
individuo e suas possíveis inclinações. Contudo, ao chamar a atenção para esses aspectos
que são tidos como inimigos da civilização, o Marquês confronta os anseios da mesma com
os interesses do indivíduo, caracterizando a vida humana como um permanente conflito. Os
efeitos da moral e da religião se fazem ecoar e ressoa o conflito entre individuo e
sociedade. A ruptura que Sade realiza entre natureza e sociedade caracteriza o principal
impasse por meio do qual o individuo se encontra – e a possibilidade de fazer isso mostra
como sua obra defende a natureza e seus atributos enquanto distintos das normas sociais.
Ao abarcar as possibilidades da sexualidade humana, Sade apresenta a violência e a
agressividade como marcas da mãe natureza. Esses elementos, presentes nas dimensões da
sexualidade, constituem dados importantes, pois, no âmago do ser, a violência se faz
presente, clama por seu lugar, e é na sexualidade que consegue demonstrar sua força,
provocar no leitor a reflexão. No ensaio A volta da grande mãe: Rousseau versus Sade,
Camille Paglia escreveu que “a maior zona erógena de Sade é a mente” (PAGLIA, 1992, p.
229).

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Se é assim, retomemos a questão de Sade estar à frente de seu tempo. A sexualidade


como um fato social se realiza em Sade com a presença da violência e a dominação do
outro, que é também a dominação de si em nome de um gozo determinado pelos libertinos
em seu castelo. Talvez a pergunta de Beauvoir que dá título a seu texto possa ainda vigorar
nos dias de hoje, pois, ao demonstrar a verdade na relação entre os homens, Sade envolve a
todos de alguma maneira, o leitor não saindo ileso de sua leitura. Como reconhece Beauvoir
no fim de seu texto: “o que faz o supremo valor do seu testemunho é que ele nos inquieta”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREW, Barbara S. Beauvoir´s place in philosophical thought. In: The Cambridge


Companion to Simone de Beauvoir. Edited by Claudia Card. Cambridge University
Press, 2003.

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: editora


Perspectiva, 1996.

BEAUVOIR, Simone. Deve-se Queimar Sade? In: Novelas do Marquês de Sade.


Tradução Augusto de Souza. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961.

BERGOFFEN, Debra. Menage à trois: Freud, Beauvoir, and the Marquis de Sade.
Netherlands: Continental Philosophy Review, 34, 2001, pp. 151-163.

CARD, Claudia. Introduction: Beauvoir and the Ambiguity to “ambiguity” in ethics. In:
The Cambridge Companion to Simone de Beauvoir. Cambridge University Press, 2003.

CHAUSSINAND- NOGARET, Guy. Sade terá existido? In: Amor e Sexualidade no


Ocidente. Introd. Georges Duby, Tradução Ana Paula Faria. Portugal: Terramar, 1991.

DELEUZE, Gilles. Sade – Masoch. Tradução de José Martins Garcia. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1973.

DESBORDES, Jean. O Verdadeiro rosto do Marquês de Sade. Tradução de Freferico


dos Reys Coutinho. Rio de Janeiro: Casa editora Vecchi, 1968.

DIDIER, Béatrice. Sade. Tradução de Hugo Martínez Moctezuma. México: Fondo de


Cultura Económica, 1989

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Elizângela Inocêncio Mattos

PAGLIA, Camille. Personas Sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson.


Tradução Marcos Santarrita. São Paulo: companhia das Letras, 1992.

TIDD, Ursula. Simone de Beauvoir. London-New York: Routledge, 2004.

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