Armando Souto Maior - QUEBRAQUILOS
Armando Souto Maior - QUEBRAQUILOS
Armando Souto Maior - QUEBRAQUILOS
brasiliana
volume366
QUEBRA-QUILOS
lutas sociais no outono do Império
Bibliografia.
Direção de
AMERICO JACOBINA LACOMBE
QUEBRA-QUILOS
LUTAS SOCIAIS NO OUTONO
DO IMPÉRIO
Em convênio com o
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
MINISTERIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
e participação do
INSTITUTO JOAQUIM NABUCO DE PESQUISAS SOCIAIS
Direitos reservados
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639
01212 São Paulo, SP
1978
Impresso no Brasil
Ao meu filho Pauto
SUMARIO
1. Introdução, 1
3. O Quebra-quilos na Paraíba, 19
4. Os liberais e o Quebra-quilos, 55
7. O Quebra-quilos em Pernambuco, 92
1
linguagem específica através da qual se fizessem ouvir nas suas
aspirações e contestações. Em certas áreas, por outro lado, apare-
cem nomes de certo prestígio social e seria ingênuo não se perceber,
espelhados no movimento, os ressentimentos da Questão Religiosa
que abalara o País em 1873.
Embora o Quebra-quilos seja, de certa forma, um movimento
mudo e hesitante, comparativamente a outros movimentos do século
passado e do atual, não se poderia dizer cego, fruto da fúria de
assassinos e bandidos. A consciência política é uma aquisição lenta
e de algum modo sistemática. Os sediciosos ora estudados perten-
cem ao inframundo especial dos que não têm nem escrevem livros
expondo idéias. Os de maior categoria social são extremamente
cautelosos e agem mais como prof iteurs, do que como agentes
ativos. A ótica com que deve ser observado, portanto, jamais
poderá ser a mesma que clareia a análise de grandes revoluções
ou revoltas com corpo de doutrinas progressistas ou retrógradas,
pouco importa, porém com intenções históricas perfeitamente
definidas.
Embora a referência possa ter enfoque universal, não se tenha
em vista aqui, como parâmetros, grandes movimentos como a
Revolução Francesa ou a Revolução Americana. O paralelismo pos-
sível deverá ser nacional.
Ao dizermos que a subversão do Quebra-quilos pertence a
uma forma arcaica de rebeldia, limitamos naturalmente o seu modus
operandi de reivindicações. O Quebra-quilos é resultado da evolução
histórica da economia do Império e seus agentes mais visíveis nem
sempre têm noção mais ou menos precisa do que seja o Estado
e sua máquina de soldados e policiais, cobradores de impostos,
diferenciação de classes, concentração fundiária, comércio, etc ...
Repetidamente aparece a palavra criminoso na documentação
sobre as agitações que, desorganizadamente, tentaram impedir o
funcionamento do Estado, com ou sem reivindicações. Isso nos
obriga preliminarmente a distinguir, neste trabalho, o criminoso
daquele outro tipo de out-law que é o bandido social.
A palavra criminoso, usada em relação aos chefes quebra-
quilos, pelos seus repressores dos fins do século XIX, nem sempre
significará assassino, porém jamais se afasta da noção de delin-
qüente jurídico. Vistos hoje, com a ampla perspectiva que um
século de história pode permitir, parecem-nos pobres Robin Hood
da caatinga e do sertão, revoltados contra os impostos e- as desi-
gualdades que Thomas Morus chamou de conspiração dos ;ricos.
2
Os quebra-quilos têm entre si o parentesco da pobreza e po-
tencialmente sempre foram inimigos daqueles a quem considera-
vam exploradores, mal sabendo, talvez, exprimir o conceito dessa
palavra, sentindo porém que lhes tentavam impor as suas próprias
regras. Essa situação traz em si os germes do movimento. Ao
romper-se o equilíbrio social, mal conservado pelas contradições
dos proprietários nordestinos, pela revolta contra a nova lei de
alistamento militar, implantação de um novo sistema de pesos e
medidas, ressentimentos religiosos e reação contra o excesso tri-
butário, foi inevitável o aparecimento de um tipo especial de ban-
dido social, transitório, às vezes paradoxalmente conservador, que
é o líder quebra-quilos.
O fenômeno não é singular nem histórica nem geografica-
mente. O cangaço nordestino, paralelamente à sua marginalização
no sentido de criminalidade comum, tem exemplos bastante conhe-
cidos de banditismo social. Na Calábria, os camponeses muitas
vezes foram para as montanhas por razões pessoais concomitantes
a querelas e questões com o Estado ou com a classe dirigente.
Assinala com razão Hobsbawn que o "banditismo social é um
fenômeno universal e virtualmente imutável; é mais que um pro-
cesso endêmico de camponeses contra a opressão e a pobreza: um
gesto de vingança contra os ricos e os opressores, um vago sonho
de poder para impor-lhes um freio, justiçar os erros individuais.
Modesta é a ambição dele: um mundo tradicional em que os ho-
mens sejam tratados justamente e não um mundo novo e perfeito.
Ele se torna mais epidêmico do que endêmico quando uma socie-
dade rural que não conhece outros meios de autodefesa se en-
contra em condições anormais de tensão e desmembramento". No
Brasil, o final do século XIX não apresenta somente a crise de
um sistema político, mas também uma crise das formas de produ-
ção e dos relacionamentos sociais tradicionais.
As lideranças no Quebra-quilos são efêmeras e o banditismo
social mescla-se com agressividades momentâneas de homens e mu-
lheres rotineiramente pacíficos, resignados e quase sem aspirações
reivindicatórias. Enfim, não tiveram organização duradoura e sua
ideologia foi vaga e imprecisa. Inserindo-se nessa categoria arcaica,
aparecendo muitas vezes como uma sedição pré-política, o movi-
mento Quebra-quilos não pôde ser absorvido pelas idéias republi-
canas e abolicionistas que agitaram o País nas últimas décadas do
século passado. Foram pálidas, embora existentes, como será do-
cumentado, suas reivindicações ligadas à Abolição e muito con-
fusas suas exigências de proteção social.
3
Em diversas cidades o Quebra-quilos não passa de uma turba,
sem atingir, ao menos, a gradação de sedição. Se bem que o con-
ceito de turba seja extremamente elástico e plurivalente, aplicável,
na maioria dos casos, a movimentos pré-políticos urbanos, a cir-
cunstância especial de grupos de quebra-quilos, na sua grande
maioria agricultores, viverem na periferia de cidades ou vilas e de
os acontecimentos marcantes de sua atuação terem lugar nas feiras,
nas igrejas e nos cartórios, enfim, nos centros econômicos e so-
ciais de comunidades urbanas pré-industriais, a subversão da or-
dem coloca-se precisamente nesse nível.
As sedições dos quebra-quilos - tomadas aqui em sua plu-
ralidade, em virtude da ocorrência variada e distribuída em áreas
distintas - poderiam ser encaradas como reformistas, de maneira
apenas limitada. Raramente os matutos que tomam parte na agita-
ção concebem a construção de uma nova sociedade. O que pedem,
em seu limitado universo mental e político, é a correção do que
lhes parecem anormalidades e injustiças da velha ordem tradicio-
nal. Não familiarizados com a idéia de tomada de poder, os que-
bra-quilos, na sua pobreza, têm, como categoria histórica, para-
doxal paralelismo com certos movimentos da burguesia colonial,
que não tendiam à mudança dos quadros dirigentes e do regime
e tão-somente tiveram reivindicações eventuais de caráter econô-
mico. A revolta de Beckman, no Maranhão, seria um exemplo a
considerar. A Balaiada lhe está próxima.
4
2. O QUEBRA-QUILOS
E A ECQNOMIA NORDESTINA
5
bre a posse e o dominio de alguns palmos de terra. Em regra ele
é rendeiro, agregado, camarada ou o que quer que seja; e então a
sua sorte é quase a de um antigo servo da gleba." 1
As variantes históricas e as diversidades geográficas dos acon-
tecimentos de 1874 e 1875 deslocam o Quebra-quilos desde tu-
multos singulares até uma onda de agitação, envolvendo sedições
e revoltas que não se limitam apenas à área do queixume de Diogo
Velho Cavalcante de Albuquerque e abrangem quase todo o inte-
rior do Nordeste. Para sua exata compreensão é necessário um
perfil da economia dessa região e parece-nos razoavelmente insus-
peito o Estado Financeiro das Províncias, publicado pela Presidên-
cia do Conselho de Ministros, em 1886, síntese estatística das fi-
nanças nacionais na época. Sua leitura esclarece que Pernambuco
e Paraíba já tinham um sério déficit em 1876-1877, e que conti-
nuaram a tê-lo. Algumas referências sobre o Nordeste são de im-
pressionante atualidade, como, por exemplo, a de que "as provin-
cias de Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte e Parayba, lutam
mais ou menos, com a crise economica que as aflige e outras do
norte do lmperio procedente da depreciação dos principais produ-
tos de sua exportação e, em grande parte, da escassez destes; sendo
já consideravel em relação aos respectivos recursos, as dividas de
Sergipe e Parayba: mais ainda a desta ultima, talvez por má ges-
tão dos negocios de sua Fazenda. Tem variedade de industria, de
que tiram recursos, por meio de contribuições directas, aliás já tão
exploradas nellas quanto é passivei; com lavoura rotineira e limi-
tada e poucos generos de exportação, e estes mesmos d'aqueles que
encontram formidavel concorrencia nos mercados de consumo; sem
traços nem recursos para se atirarem a exploração de novas indus-
trias, estas provincias não se podem considerar em via de pros-
peridade, antes correm o risco de ver agravada a sua situação.
A do Maranhão pelas mesmas causas, está em posição mais
precaria ainda; talvez porque, sendo Provinda que já prosperou
em tempos não muito remotos, torna-se mais sensivel o seu aba-
timento; tendo somente em seu favor o bom regimen financeiro,
com que vai pairando sobre as dificuldades que a cercam".
Referindo-se ao Piauí, diz o Estado Financeiro das Províncias
que a sua posição era estacionária, o que vale dizer que em nada
se desenvolvera. As províncias de Pernambuco e Bahia são espe-
cialmente destacadas na análise, dizendo Carlos de Figueiredo, seu
autor, que "são as que, pela posição importante, que já tiveram
6
entre as mais prosperas do Imperio, se destacam com maior sa-
liencia no quadro das que hoje se debatem com os efeitos da crise
economica e que nestas duas Provincias produz abalos mais
sensíveis (grifo nosso), por isso mesmo que ellas se tinham affeito
à vida dos tempos prosperos. D'ahi resulta que, à medida que exa-
geram os seus impostos a ponto de que, não podendo levar mais
longe a sede dos que oprimem as industrias e a produção local,
tiveram de abertamente voltar aos de importação, aliás não per-
mitidos em nosso direito constitucional, a despesa de ambas não
retrogradou, antes caminhou desapercebida até elevar ao dobro o
deficit orçamentado que tinha em 1876-77.
l!, portanto, da Bahia para o norte, até ao Maranhão, que
se nota a existencia da crise economica que há alguns preocupa
o espirito dos que tem em suas mãos os destinos do Estado e ha
motivado as indagações a que desde seu começo se tem dedicado
o Governo Imperial" .2
O ano de 1864 fora um ano crítico para a produção açuca-
reira e o decênio que se seguiu viu o comprometimento de toda a
economia nordestina. Pernambuco, em 1876, tivera uma receita de
2.552.318$851 contra uma despesa de 2.855.420$883, o que re-
presenta um déficit de 303.102$022. Dez anos depois a receita é
mais ou menos a mesma, ou seja 2.575.635$778, porém o aumen-
to da despesa para 3.762.436$668 elevara o déficit ao montante
de 886.800$890. Para supri-lo foram emitidas apólices com juros
de 7 % , solução de emergência de duvidosa eficácia para o sanea-
mento das finanças, porém muito em voga na economia européia
da época e já experimentada pelo Governo Imperial.
Não era esperançosa também a situação econômica da Paraí-
ba. Em 1850, a Província da Paraíba, visivelmente mais pobre
que a de Pernambuco, ainda não podia arcar com a despesa de
dois contos de réis para iluminar sua capital, despesa autorizada
cautelosamente pela Lei n.º 18, da Assembléia Provincial, que de-
terminava, no seu artigo 11, que o Presidente da Província ficava
autorizado "a promover a iluminação da cidade, segundo as cir-
cunstancias do cofre".
Desconsoladamente, Antônio Coelho de Sá e Albuquerque,
Presidente da Província, diria no ano seguinte, em relatório diri-
gido à Assembléia: "Autorizado o Governo da Província pelo art.
7
11 da Lei Provincial n. 0 18, de outubro de 1850, a promover a
iluminação desta cidade, segundo as circunstancias do cofre, man-
dou o meu ultimo antecessor fabricar na Província de Pernambuco
cem lampiões que já se acham prontos. Atendendo a fraqueza do
cofre provincial e considerando que o tempo atual não é muito
conveniente para a arrematação da iluminação publica, visto que
azeite está caríssimo, adiei essa arrematação para tempo mais opor-
tuno". Um ano depois, em seu relatório de 3 de maio de 1852,
repetia com sincero realismo administrativo: "Sinto dizer-vos que
ainda não se acha estabelecida a iluminação n'esta cidade, embora
por conta dela eu já houvesse dispendido na Provincia de Pernam-
buco a quantia de 2.160$rs. na compra e condução de cem lam-
piões. Mais de uma vez hei mandado proceder a arrematação desse
ramo de serviço e nenhum licitante tem aparecido. Crendo que a
base era baixa, mandei elevai-a e este arbítrio foi improfiquo para
fazer a iluminação por administração. Será ultimo recurso, que já
não tenho adotado, porque sinceramente vos digo, que não sou
amigo de administração por conta dos cofres publicos". 3
Paralelamente à pobreza nordestina, emerge na administração
o velho e repetido erro de centralização asfixiante. A tutela exer-
cida pelo Governo Imperial atingia até a atividade intelectual. A
propósito, conta Clóvis Beviláqua que no curso anexo a uma de
nossas mais antigas faculdades de Direito, o compêndio adotado era
o de Barbe. O professor da cadeira, no entanto, traduzira a obra
de Charma e a adotara como texto didático. Ao saber disso, o
Ministro do Império, Sousa Ramos, "chamou a contas o diretor
da Faculdade e exigiu uma explicação dessa grave irregularidade".
O detalhe em si é relativamente de pouca importância, como tam-
bém o são os lampiões encomendados pelo governo provincial da
Paraíba, porém indica um quadro administrativo extremamente
esclerosado e frágil.
Em carta dirigida a Neto Campeio, seu biógrafo e contem-
porâneo, o próprio Lucena acentuava que a situação da Província
de Pernambuco, em 1872, era extremamente difícil dizendo textual-
mente: "Quando assumi o governo de Pernambuco em novembro
de 1872, a situação financeira da provinda era deploravel e meu
antecessor, desembargador Farias Lemos, no relatorio com que pas-
sou a administração, e na fala com que abriu a Assemblea Pro-
vincial, propunha até desconto nos vencimentos dos empregados
publicos para conjurar as dificuldades. Alem da divida fundada,
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constitui da por apolices de juros de 7 % , devia-se ao Banco do
Brasil a importante somma de 1.800:000$000 vencendo o juro de
8% e pagável em prazo curto, estando já vencidas duas presta-
ções" 4 •
Devia muito o governo pernambucano. Estavam por pagar as
obras da atual praça da República e a construção do prédio da
Assembléia Provincial.
Pernambuco dispunha de uma receita orçamentária pequena e
mal arrecadada, que oscilava entre 1.800.000$000 a 2.000.000$000,
porque os impostos, embora excessivos, eram arrematados por in-
fluências políticas, as mesmas que obtinham posteriormente na As-
sembléia Legislativa perdão ou abatimento de quantias financeira-
mente expressivas para uma província em decadência.
Não se poderá negar que foram saneadoras as medidas toma-
das por Lucena para restaurar as finanças de sua província. Contra
a resistência de amigos e adversários e até do próprio Inspetor do
Tesouro Municipal e do Procurador Fiscal, criou coletarias em to-
dos os municípios. Se, por um lado, a criação de coletarias racio-
nalizava a exação, facilitando o fisco, por outro, antepunha aos
olhos da inculta população sertaneja a máquina governamental num
dos seus aspectos mais odiados. Daí o ataque às coletarias ter sido
sempre uma tônica nas violências cometidas pelos quebra-quilos
em suas repetidas investidas no interior pernambucano.
Em 1875, Henrique Augusto Milet iniciava nas páginas do
Jornal do Recife uma série de artigos que, mais tarde, constitui-
riam o hoje raro e precioso opúsculo Os Quebra-Kilos e a crise da
lavoura 5 , editado no ano seguinte, obra fundamental para a aná-
lise, não somente do Quebra-quilos como também das dificuldades
e problemas · então enfrentados pelos agricultores nordestinos no
ocaso do Império.
E extraordinariamente lúcida a visão de Milet em torno dos
problemas da terra que adotou, como se ali houvera nascido. Fa-
lando nas peculiares circunstâncias do que ele chamava de nossa
"officina social", assinala que, a partir de 1871, os meios de pro-
dução do Nordeste viviam o regime de crise permanente e que a
indústria e o comércio, pela "liquidação forçada do capital empre-
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gado", ensejavam "uma verdadeira Revolução Social, sem que os
poderes do Estado tenham dispensado a necessaria atenção a se-
melhante fenomeno".
Vendo o câmbio subir e as exportações manterem-se sempre
superiores às importações, os políticos de então fizeram tabula rasa
do cassandrismo de Milet que, por sua vez, não lhes perdoava a
subordinação ao que ironicamente chamou de "livros de Além-
Mar", referindo-se às teorias econômicas européias da época.
Para Milet, contemporâneo do movimento Quebra-quilos, este
era filho legítimo dos sofrimentos e do mal-estar provocado pela
destruição do capital de giro - então chamado de "flutuante" -
da lavoura e do comércio. O otimismo da época, contra o qual
Milet investe, fora abalado pelas agitações surgidas em cinco pro-
víncias do Império; como testemunha do que estava acontecendo
no Nordeste, não perdeu Milet a oportunidade de também anate-
matizar a centralização econômica na qual o governo surgia natu-
ralmente como senhor absoluto do crédito e regulador todo-pode-
roso da circulação monetária.
As soluções emergenciais do governo para desbordar seus
apertos econômicos nem sempre foram muito felizes. O Tesouro
fazia empréstimos aos bancos, emitindo bilhetes, que eram simples-
mente certificados de depósito com juros, desviando-se assim, teo-
ricamente, os recursos que poderiam servir às atividades comer-
ciais e industriais. A crise já fazia parte da história econômica e
financeira do País, não obstante os esforços, os pronunciamentos
e os discursos oficiais, alienados uns, ufanistas outros. Mais papel
moeda ou novos empréstimos constituíram a angústia prometéica
do Conselho de Estado para salvar o Império da bancarrota.
Para Milet a crise começara em 1872 e a perturbação da
"officina social" não se limitava aos produtores. Por ocasião do
Quebra-quilos, consumiam seu próprio capital ou viviam à custa
de empréstimos. Gastos limitados ao indispensável e redução do
braço livre impunham-se a quase todos os produtores, com suas
inevitáveis projeções sociais, porém eram sobretudo os pequenos
engenhos, aqueles que eram obrigados a recorrer a "alugados" para
os trabalhos de roçagem, plantação e limpa, corte e transporte do
açúcar, os que sofriam, mais agudamente, os efeitos da recessão.
Embora houvesse na época engenhos capazes de produzir de
5.000 a 6.000 pães de açúcar (375.000 a 450.000 quilos) em cada
safra, a grande maioria não passava de 1.000 e, levando-se em
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conta que em Pernambuco havia perto de 2.000 engenhos, a mé-
dia seria aproximadamente de 600 pães por engenho. São extrema-
mente precisos os dados fornecidos por Milet relativos ao custo
agrícola da matéria-prima que ia ser transformada nas unidades
autônomas de produção:
Primeira limpa $500
Segunda limpa $400
Terceira limpa $400
Semente
(a 5$000 por carro) $500
Corte e amarração $660
Transporte para o engenho $668
TOTAL 4$328
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época em que aqueles produtos podiam ser vendidos a 3$000 e a
12$000. Milet, diante de tal quadro, para o qual aliás não via so-
luções a curto prazo, disse espirituosamente que, enquanto o povo
miúdo levantava-se em sedições, a classe média desesperadamente
pedia a Deus uma boa guerra que fizesse outra vez baixar o câmbio.
Estabelecendo um paralelo entre as reivindicações das clas-
ses inferiores de uma sociedade industrial como a inglesa, que vi-
via nessa época o apogeu de sua revolução industrial, e a nossa,
mesmo com a "lepra da escravidão", assinalou Milet que se os
preços dos produtos ingleses, por qualquer circunstância, se tor-
nassem inferiores ao custo de produção, "nem o governo, nem a
própria constituição social perdurariam por espaço de 24 horas".
A enfática afirmativa revela sua profunda convicção de que o Que-
bra-quilos não podia ser considerado somente como um pronuncia-
mento político ou como um protesto religioso.
Não foi apenas o regime servil que limitou as potencialidades
das reivindicações do campesinato nordestino dos fins do século
XIX. Os trabalhadores livres tinham um mínimo de subsistência
na caça, na eventual pesca e numa pequena atividade agrícola ao
redor de casa, que, reunidas, os mantinham desgraçadamente vi-
vos. Essa possibilidade de sobrevivência, malgrado o ônus físico e
cultural dela decorrente, era sempre um desbordamento histórico
da dilemática em que se inseriram as classes inferiores do passado:
lutar ou perecer. A adaptação e as formas miméticas de convivên-
cia e existência, estimuladoras da estática social do Império, dimi-
nuíram o impacto quebra-quilo. Até que ponto poder-se-ia consi-
derar a fase mais aguda do movimento como uma tentativa de re-
forma social? O próprio Milet, alarmado, julgou-se diante dos
"prodromos de uma revolução social" pois outro nome não via
para "se dar a substituição de uma classe da sociedade por outra
na posse dos instrumentos de trabalho, e à destruição em poucos
annos de grande parte do capital acumulado pelas gerações que nos
precederam".
A crise, entretanto, não era precisamente um processo agudo. ~
um mal crônico, exacerbado temporariamente pelos níveis com-
prometedores de estabilidade social. Se o engenheiro francês, tão
bem estudado por Vamireh Chacon 6 , pecou ao medir o potencial
de mudança de sua épcca, não lhe escapou o aparecimento de uma
burguesia urbana, inovadora e progressista que se imporia no sé-
12
culo seguinte. E daí sua advertência de que, sem os enérgicos re-
médios que a conjuntura exigia para a preservação da ordem econô-
mica vigente, presenciar-se-ia a destruição dos agricultores e co-
merciantes substituídos pelos capitalistas e usuários na posse de
seus instrumentos de trabalho. Sua advertência a políticos de pres-
tígio na época - a quem se refere com indisfarçada antipatia,
pluralizando-os como Itaborahys, Ferrazes e Torres-Homens e cha-
mando-os amargamente de "senhores dos nossos destinos" - , de
que não deveriam perder um só instante para salvarem-se e man-
terem a ordem social, é bem um paralelo brasileiro do caveant
consules.
A crise algodoeira nordestina relaciona-se diretamente com o
crescimento das plantações de algodão nos Estados Unidos. Con-
sultando-se os níveis de exportação da época vê-se uma curva des-
cendente até o momento em que, eclodindo a Guerra da Secessão,
fecham-se os portos americanos e a produção sofre o impacto das
operações militares e a subseqüente emancipação dos escravos. De-
saparecendo do mercado internacional o algodão americano produ-
zido nos estados escravocratas do Sul, que constituía, aliás, 70%
das importações européias, as ofertas ao mercado brasileiro mul-
tiplicaram-se espantosamente e os preços chegaram ao quádruplo
dos obtidos antes do conflito norte-americano. Na safra 1858-1859
havíamos produzido 83.000 arrobas; após a safra de 1866-18ó7 so-
mente o porto do Recife embarcou 1.096.000 arrobas de algodão,
rivalizando essa exportação com a do açúcar, principal produto
tropical primário do Nordeste.
Terminada a Guerra da Secessão recuperoq-se a produção ál-
godoeira americana. Baixaram os preços, diminuíram as ofertas e
os nossos agricultores do sertão nordestino viram-se nas mesmas
circunstâncias anteriores, isto é, na imposibilidade de competirem
com os plantadores do Mississípi. Paralelamente à mecânica sim-
ples da oferta e da procura do algodão no mercado internacional,
fora atingido o Brasil no seu câmbio pelas elevadas despesas feitas
com navios e material bélico, comprados no Exterior, para a con-
tinuação da Guerra do Paraguai.
Posteriormente o câmbio restaurou-se lentamente com o café,
exportado em escala crescente, porém o algodão, com pequenas va-
riações, permaneceu como uma atividade agrícola pouco rendosa,
sobretudo quando se tratava de uma fonte de produção distante
mais de 200 ou 300 quilômetros dos portos por onde saía para o
estrangeiro.
O preço do açúcar dolorosamente refletia os progressos da
cultura da beterraba, iniciada na Europa na década de 1850-1860,
e também o aperfeiçoamento de sua produção a partir dos cana-
viais nas Antilhas, ilhas Maurício e Java que desenvolveram técni-
cas industriais de rendimento bem superior aos nossos rotineiros
processos de vaporização e cozimento. De 1861 a 1864 os preços
internacionais não são compensadores para produtores com baixa
tecnologia e o resultado aparece nas dívidas contraídas no comér-
cio da época. Ao iniciar-se a Guerra do Paraguai, plantadores de
cana e fabricantes de açúcar já eram devedores crônicos.
Nos fins do século já estão os produtores de açúcar em se-
gundo plano, apreensivos com a concorrência nos mercados exter-
nos de produtos tropicais primários oriundos de outras regiões.
Politicamente é visível seu enfraquecimento. Já Milet intuiu, com
absoluta consciência de classe, que os senhores de engenho esta-
vam diante de uma crise de difícil solução. E daí ter seu livro a
pretensão de "abrir os olhos dos agricultores acerca dos seus ver-
dadeiros interesses e convence-los de que tem que esperar do go-
verno coisas mais importantes que não postos da Guarda Nacio-
nal, condecorações ou nomeações policiais".
Sobretudo no Nordeste, e particularmente em Pernambuco,
onde a burguesia semi-urbana das cidades do interior deu fisiono-
mia própria a uma região inteira, esse fenômeno se fez sentir.
Continuará entretanto essa classe a ter sua parcela de importân-
cia gravitando em torno do trono, que nem sempre garantirá me-
didas favoráveis à solução das crises econômicas que lhe atingem
diretamente. O desenvolvimento da lavoura cafeeira no Sul, cada
vez mais, acelerará o seu processo de desorganização.
A partir de 1870 os proprietários já não podiam pagar os sa-
lários tradicionais aos trabalhadores do campo. Tal circunstância
determinou intensa oferta de trabalho braçal e suas conseqüências:
o desemprego e a redução dos salários.
Milet não esconde sua posição ante os quebra-quilos e diz
que o governo "como era de sua mais estrita obrigação recorreu
ao emprego da força para restabelecer a ordem, e o prestígio das
autoridades" e, com exagerado otimismo, diz que "graças ao te-
légrafo elétrico, aos vapores e locomotivas, as medidas de repres-
são foram tão prontas como eficazes", o que nem sempre corres-
ponde à documentação da época. Preocupou-o - e aí está o seu
grande mérito - a etiologia do movimento. Por que o nosso ho-
mem do campo, cerimonioso e respeitador, em virtude dos condi-
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cionamentos a que foi submetido secularmente, levantou-se sem
motivos concretos, objetivos ao aceno de agitadores sem prestígio
social? A indagação formulada por Milet, com palavras e ótica
próprias de sua condição e de sua época, ainda hoje se impõe
quando, modernamente, com enfoques e posicionamentos diferen-
tes, pretende-se estudar as origens diretas e indiretas desse pro-
cesso conflitual. A pesquisa documental e a nova metodologia per-
mitem hoje uma análise crítica dos acontecimentos de 1874-1875
que, evidentemente, nem Milet nem seus contemporâneos tinham
condições de fazer, porém não há negar que nenhuma análise da
economia nordestina nos fins do século XIX teve paralelo com a
sua obra.
Avaliada um século depois, a história do Império oferece, em
sua evolução, uma perspectiva global que não pode, evidentemen-
te, desprezar as idéias de Milet. As instituições imperiais represen-
tavam, já na sua época, um passado incompatível com a economia
do País; conseqüentemente, ou sofreriam profunda e radical trans-
formação ou fatalmente se encaminhariam ao processo de autodes-
truição. A Abolição da Escravatura e a República são os parâme-
tros mais fáceis para a constatação do processo.
O grande elogio que se poderia fazer ao reinado de Pedro
II é o de sua longa duração. Com o crepúsculo do cielo revolucio-
nário platino e o término da Revolução Praieira foi imposta ao
País uma maquinaria parlamentar que permitiu a reforma centra-
lizadora e a anestesia política traduzida pela famosa conciliação
de 1853, orientada por Paraná.
Nas suas tendências absorventes, o Império operou lentamen-
te uma relativa transformação na classe rural detentora de lati-
fúndios, cuja tradição de prepotência e autonomia vinha desde os
primeiros tempos do período colonial. A estabilidade do governo--
de Pedro II, entretanto, sempre fora ilusória, embora permanen-
temente apresentada como justificativa para continuidade do re-
gime e do sistema contra os princípios republicanos. Os presiden-
tes de província são nomeados pela Corte e os gabinentes ministe-
riais se revezam sob a vigilância imperial, enquanto uma grande
parte de nossa população, escravos e homens livres de baixa ren-
da, na agricultura, que praticamente sustenta a economia nacio-
nal, estão marginalizados de todo o processo político. Os motins,
as revoltas, as sedições e as revoluções do século XIX, no Brasil,
desenvolveram-se quase sempre ao largo desses deserdados da for-
tuna. As exceções são poucas.
15
Embora sejam visíveis nas agitações de 1874 e 1875 cons-
tantes e desesperados ataques aos cartórios, que pareciam aos se-
diciosos depósitos dos grilhões que os prendiam às malhas dos po-
derosos, sugerindo uma certa unidade, a perspectiva global que
se tem do movimento é assimétrica e divergente. Se, numa cidade,
escravos lutam por uma vaga liberdade, noutras o pequeno agri-
cultor rebela-se na feira contra o novo sistema de pesos e medi-
das. Em 1874 há recusas sistemáticas de pagamento de· impostos;
em 1875 reage-se contra o alistamento militar. O que se nota, so-
bretudo estruturalmente, é que a estabilidade social já atingira ní-
veis comprometedores.
O movimento englobou uma complexa gama de motivações;
seus ideais, embora tenham a tônica comum de todas as reivin-
dicações sociais das classes inferiores no passado, refletem agu-
damente pronunciamentos políticos frustrados, impotentes protes-
tos religiosos e uma amarga e desordenada revolta social. No seu
conjunto, os assimétricos episódios dos quebra-quilos constituem
uma revolução social refletindo uma crise de estrutura e de pro-
dução.
Diversas causas poderiam ser apresentadas como justificati-
vas do excesso das cargas fiscais. Inicialmente convém conside-
rar que se trata da tributação em país de independência recente.
Se, por um lado, isso significa a necessidade de se instituir e man-
ter uma máquina administrativa e serviços onerosos, a partir de
uma nova realidade política, por outro, significa, também, a con-
tinuidade de uma velha fórmula a que estavam habituados os
brancos colonizadores dos antigos tempos da Metrópole e da Co-
lônia. Não eram descendentes de portugueses, cobradores por ex-
celência de pesados tributos, os que faziam e formavam o novo
governo?
Em 1881, Milet publicaria outro livro, hoje catalogado como
obra rara na Biblioteca Nacional 7 • Estava terminada a revolta dos
quebra-quilos, ainda presos alguns dos seus participantes, porém
a crise continuava. Diria Milet, analisando os acontecimentos eco-
nômicos de 1881 que "como em 1876 e 1878, para a mesma
maioria de nossos senhores de engenho, os preços que seus gene-
ros obtem nos grandes mercados consumidores, calculados ao cam-
bio de 27 dinheiros, não pagavam os gastos da produção e se eles
tem realizado de 1877 para cá lucros, que os levaram a aumentar
16
suas plantações e levantar novos engenhos, se as duas ultimas sa-
fras manifestaram instavel acrescimo na produção do açucar, este
resultado é devido unicamente ao suplemento de braços que lhes
trouxe o flagello da seca e antes de tudo ao estado do cambio,
que oscilando entre 19 e 23 lhes tem proporcionado um lucro adi-
cional de 15 e até 30%".
A crise transformara-se em mal crônico e para debelá-lo o
Presidente da Província, Henrique Pereira de Lucena, empenhara-
se em fomentar a cultura do cafeeiro; o Município de Bonito já
produzia o suficiente para exportar para o Recife. Porém a crise
financeira continuaria atravessando os orçamentos imperiais e o
café enfrentou sérios problemas. Desde 1874 o preço do café co-
meçara a cair de sua alta média de 6$304 réis por saca, mantido
de 1870 a 1875, para 3$247 réis. O aumento de produção com-
pensou de certa forma a redução do preço, màlgrado a deprecia-
ção cambial. A moeda fora reduzida de 18$554 réis a 16$951 per
capita em virtude da grande quantidade de papel moeda então
posta em circulação. Não se deverá entretanto esquecer as dificil-
mente quantificáveis remessas para o exterior, fator permanente-
mente desfavorável à balança de pagamentos, como muito bem
lembra Willeman 8 • A partir de 1879 a queda no câmbio será ace-
lerada e a despesa mostrará sempre um largo excesso sobre a ren-
da. A gravidade da situação do Tesouro nesse período era de tal
ordem que José Honório Rodrigues 9 não hesitou em afirmar en-
faticamente: "todas as dificuldades do Império tinham origem na
situação financeira do País".
Que posteriormente ao Quebra-quilos não se seguiram me-
lhores dias, revelam também as atas das conferências de 30 de mar-
ço e 10 de abril de 1878 do Conselho de Estado. O déficit no segun-
do semestre de 1878 era estimado em 24.956.275$351. Porém o
próprio Ministro da Fazenda declarara que havia uma dívida flu-
tuante, em bilhetes do Tesouro, que perfazia 46.016.600$000, ele-
vando-se assim o déficit a 70.972.875$371. A lição de que um
grande aumento de impostos em época de crise era suicídio po-
lítico fora aprendida pelo governo. Daí dizer Abaeté que "novos
impostos seriam, além de uma calamidade, de tardio efeito" e pro-
por, como único meio para tirar as finanças imperiais da crise,
17
uma em1ssao de papel moeda restrita ao quantum absolutamente
indispensável para satisfazer os compromissos do Estado, acompa-
nhada da garantia de resgate certo e regular. O visconde de Bom
Retiro foi bem claro no Conselho: "O Governo tem de satisfazer,
por honra do Império, sérios e transcedentes compromissos; vê-se,
ao mesmo tempo, a braços com enorme dívida flutuante e com
a deficiência e notável diminuição da receita. Está provado que
não tem como desempenhar-se pelos meios ordinários, e todos con-
cordam que a renda não pode ser aumentada no estado crítico de
nossa lavoura e de outras classes sociais, pela criação de novos
impostos ou elevação dos atuais, na larga, demorada e odiosa es-
cala em que fora mister fazê-lo".
18
3. O QUEBRA-QUILOS NA PARAfBA
19
Na América, a cobrança de impostos preparou a agitação que
mais tarde seria a Revolução Americana. O Stamp Act de 1764
criou uma reação tão grande contra a política fiscal inglesa que o
Parlamento recuou, temendo a eclosão de uma revolta que final-
mente rebentaria em 1776 com fermentação política e ideológica.
A Revolução Francesa apresenta, também, nas suas origens, abusos
em matéria de impostos. Talvez se possa dizer que a igualdade pe-
rante o imposto sempre foi para a massa tão ou mais importante
do que a liberdade política.
No Brasil a reação à cobrança do quinto do ouro é um exem-
plo clássico do quanto o fisco é responsável pela dinâmica his-
tórica da Independência. No Quebra-quilos, o excesso de tributos
apresentar-se-á também como um aspecto importante de sua etio-
logia, onde aparecerá paralelamente, o curioso problema da adoção
de um novo sistema de pesos e medidas, que parecia uma simples
providência administrativa e se transformou no seu aspecto mais
visível e do qual decorreria, por extensão, a sua própria desig-
nação.
O sistema métrico fora inventado pelo padre Gabriel Mou-
ton, matemático e vigário de Saint Paul, em Lyon, no ano de 1670,
porém, apesar de sua praticidade, não foi de imediato adotado na
França. No ano seguinte, o também matemático Jean Picard acres-
centaria detalhes ao plano inicial; porém a configuração geral do
sistema surgiria, por iniciativa da Academia de Ciências da França,
com os trabalhos de uma comissão da qual faziam parte Borda,
Lagrange, Laplace, Monge, Condorcet e posteriormente Méchain De-
lambre.
O novo sistema somente seria oficializado, em 1801, no
Consulado, apesar do convite do Diretório, em 1799, a todas as
nações civilizadas para que instituíssem em seus territórios, a prá-
tica e inteligente criação francesa. Porém não foi muito tranqüi-
la a implantação do novo sistema na própria França, tanto assim
que, Napoleão, em 1812, viu-se obrigado a decretar o emprego
de medidas provisórias a fim de que se fizesse sem choques maio-
res a sua apl!cação.
Napoleão III, no Segundo Império, reuniria, em 1870, em
Paris, uma Comissão Internacional para promover a generalização
do sistema decimal. A guerra franco-prussiana interrompeu, en-
tretanto, os trabalhos da comissão e somente em 1875 conseguiu-
se realizar a "Convenção do Metro", na qual várias nações com-
prometiam-se a adotar o sistema métrico decimal. Nessa altura dos
20
acontecimentos, no Brasil, o metro Jª era lei e os quebra-quilos
já haviam feito sua triste, violenta e trágica aparição em nossa
história.
No Brasil, o Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Pú-
blicas, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, referendara a Lei
n.º 1.1572 , votada pelo Legislativo, que adotaria no Império o sis-
tema francês de pesos e medidas ou sistema métrico decimal.
(2) Lei n.º 1.157, de 26 de junho de 1862. "D. Pedro II, por graça
de Deus e unanime aclamação dos povos, Imperador Constitucional e De-
fensor Perpetuo do Brasil: Fazemos saber a todos os nossos suditos que a
Assembleia Geral Legislativa decretou, e Nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1.º - O atual sistema de pesos e medidas será substituído em
todo o Imperio pelo sistema metrico francês na parte concernente às medidas
lineares, de superficie, capacidade e peso.
Art. 2.º - e o Governo autorizado para mandar vir da França os
necessarios padrões do referido sistema, sendo ali devidamente aferido pelos
padrões legais e outrossim para dar as providencias que julgar convenientes
a bem da execução do art. precedente, sendo observadas as disposições
seguintes:
§ 1.º - O Sistema Metrice substituirá gradativamente o atual sistema
de pesos e medidas em todo o lmperio, de modo que em dez anos cesse
inteiramente o uso legal dos antigos pesos e medidas.
§ 2.° - Durante este prazo as escolas de instrução primaria, tanto
publicas como particulares, comprenderão no ensino da aritmetica a explica-
ção do sistema metrice comparado com o sistema de pesos e medidas
atualmente em uso.
§ 3.º - O governo fara organizar tabelas comparativas que facilitem
a conversão das medidas de um sistema nas de outro, devendo as repartições
publicas servir-se delas enquanto vigorar o atual sistema de pesos e medidas.
Art. 3.º - O Governo, nos regulamentos que expedir para execução
desta Lei, poderá impor aos infratores a pena de prisão até um mes e multa
de 100$000.
Mandamos por tanto a todas as authoridades a quem o conhecimento
e a execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam
cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contem. O Secretario de
Estado dos Negocios da Agricultura, Comercio e Obras Publicas a faça
imprimir, publicar e correr.
Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos vinte e seis de junho de 1962,
41.º da Independencia e do lmperio
Imperador (Com rubrica e guarda).
João Luís Vieira Cansansão de Sinimbu.
21
Não se diga que a Lei brasileira foi precipitada e radical. Ao
contrário, foi cautelosa, pois determinava que a substituição de-
veria ser feita gradualmente, de modo que somente em dez anos
cessasse totalmente o uso legal das antigas medidas lineares, a vara,
o côvado e a ;arda, e das medidas de volume que eram onças, libras
e arretéis, com as quais se quantificavam a carne-seca, o bacalhau
e o açúcar. Os líquidos, anteriormente, mediam-se às canadas e
aos quartilhos e os grãos e a farinha em selamins, quartas e al-
queires.
Rio Branco tinha boa formação matemática pois fora profes-
sor da Escola Politécnica, da Escola Militar e da Escola de Belas
Artes e, além disso, estava no poder. Constatando que não haviam
sido tomadas providências para a substituição dos antigos padrões,
sugeriu ao Ministro da Agricultura, Francisco do Rego Barros Bar-
reto, em 1872, que se publicasse "instruções" para execução da
Lei, já votada dez anos antes. Determinou-se, então, que, do dia
l.º de julho de 1873 em diante as mercadorias oferecidas no co-
mércio deveriam ser medidas ou pesadas de acordo com o novo
sistema de pesos e medidas. O uso do sistema antigo seria punido
com prisão de cinco a dez dias ou multa de 10$000 a 20$000. As
"instruções" de 18 de setembro de 1872 moderavam assim as san-
ções que na legislação determinavam penas de prisão de até um
mês e multas de até 100$000. ·
O engenheiro Guilherme Schüch de Capanema, mais tarde
barão de Capanema, faria a primeira grande crítica à resolução
governamental. Publicaria no jornal A Reforma, nos começos de
1873, artigo no qual acusava as autoridades de não terem tomado
antecipadamente a precaução de distribuir os novos padrões, dizen-
do: "O grande numero de individuas que se serve hoje de pesos
e medidas é obrigado a mudar de chofre os seus habitas; a lei dava-
lhes dez anos para se prepararem. Não o podiam fazer, porem,
sem que o governo cumprise o que ela determinava, que era a
expedição de regulamento e a distibuição de padrões. Houve pror-
rogação do prazo da lei, porque dentro dele nem mesmo os regu-
lamentos foram expedidos. Chegará o termo desse novo prazo, e
quem não tiver pesos ou medidas de quilograma, metro, litro, pa-
gará multa e irá para a cadeia. Devia dizer-se ao consumidor onde
encontrar-se essas medidas e pesos".
As multas e as prisões davam à Lei, de qualquer forma, uma
aura de violência contra hábitos que vinham desde os tempos da
Colônia e que não eram, na época, simples determinações legais,
22
constituindo-se em pautas culturais bem estratificadas. Compreen-
de-se, portanto, a reação natural das populações menos esclareci-
das, não somente no Nordeste de 1874, porém na própria Corte,
em 1871.
A primeira notícia na imprensa sobre o movimento Quebra-
quilos, na Paraíba, foi publicada pelo O Despertador, a 7 de no-
vembro de 1874, em termos tão amenos, que nada indicava, no
relato das ocorrências do interior paraibano, ser aquele jornal um
órgão da oposição. Registrava-se apenas ter havido um "conflito",
na povoação de Fagundes, do termo de Campina Grande, entre o
povo e a polícia, em conseqüência dos npvos impostos lançados
pela Assembléia Provincial, do qual resultaram alguns feridos.
Timidamente O Despertador acrescentava que esses impostos
"tão agravantes para a pequena industria e a pequena propriedade
já sobrecarregadas podem não ser verdadeiros e caso se trate de
boatos, deve o presidente publicar o orçamento para desvanecer
as apreensões do povo". Entretanto, as notícias que, logo em se-
guida, apareceriam no Jornal da Parahyba, órgão do governo, di-
ziam que os distúrbios de Fagundes eram "oriundos dos impostos
municipais de uma comarca liberal" e o que se queria era "ferir
a administração".
e bastante curioso o duelo jornalístico entre O Despertador
e o Jornal da Parahyba, nesses primeiros dias do movimento. Re-
presentando a mesma estrutura social, malgrado suas posições
partidariamente antagônicas, tanto para liberais como para con-
servadores, os acontecimentos de Fagundes tinham o perigoso
aspecto de subversão da ordem econômica e social, e, conseqüen-
temente, deviam ser olhados com a cautela e a severidade que se
impunham, por se tratar de uma agressão à ordem então vigente.
Uma semana após a publicação da primeira notícia sobre
os quebra-quilos, um tanto ironicamente o jornal do governo, em
editorial sob o título "Campina Grande", diz que O Despertador
não deveria temer a revolução nessa cidade, "pois a população
de Fagundes tem se tornado remissa ao pagamento dos impostos
municipais e atribui-se a causa de semelhante impugnação à ex-
tinção do juizado desse distrito" 3 •
A polêmica jornalística, tão ao gosto da época, tomará, pouco
a pouco, as páginas dos dois jornais e oscilará entre frases de
efeito, picuinhas, sarcasmo noticioso e informações mais ou me-
nos verídicas.
(3) Jornal da Parahyba, de 14 de novembro de 1874.
23
Numa apóstrofe ao O Despertador, diria o Tornai da Parahy-
ba que o "ato de Fagundes é obra de seus instrumentos naquela
localidade, não só pelas doutrinas apregoadas em seus periódicos
como espalhados ocultamente no seio do povo". E para acicatar o
adversário, diria, também, que sua asserção não se referia ao
Partido Liberal da Paraíba e sim ao "partido de O Despertador".
N'O Despertador 4 , o Diretório do Partido Liberal, em mani-
festo oficial, dirimiria dúvidas a respeito, dizendo-se completa-
mente estranho aos movimentos populares ocorridos na Província.
A hipótese da participação de jesuítas no conflito fora logo
aventada, baseada, aparentemente, na circunstância de não terem
os sediciosos líderes ostensivos. Conseqüentemente, seria o movi-
mento uma "conspiração tramada nas trevas" e extremamente
ramificado.
Ao chegarem as primeiras notícias das agitações do Ingá, as
autoridades da Paraíba ficaram atemorizadas, não sabendo precisar
a extensão e a gravidade do movimento. Segundo .o relato de O
Despertador, no dia 21 de setembro de 1874, o povo da Vila do
lngá arrombara a casa da Comarca, destruíra todos os papéis que
nela encontrara, não obstante as ponderações e exortações do vigá-
rio Bento José Barros Mendonça, e obrigara o comandante de
Polícia, Aranha, a assinar um compromisso, no qual garantia aca-
bar com os novos impostos, a lei do recrutamento, a aplicação dos
novos pesos e medidas e custas judiciais. No dia seguinte, Aranha
abandonaria, às escondidas, a vila conflagrada.
Silvino Carneiro da Cunha, Presidente da Província, descon-
soladamente diria que estava "sem forças para manobrar, sem
meios para fazer seguir em perseguição desses desordeiros que
certos de nossa fraqueza, ameaçam-nos a cada instante ... ". Seus
inimigos não o pouparam, na hora da aflição. Nas páginas polê-
micas e contundentes de A Província, o eco de seu queixume foi
cruel: "Não afirmava e ainda não afirma o governo, que tem o
decidido apoio da nação? Pois já chegou a vez de se confessarem
fracos e repelidos pelo povo. E. pena que só tão tarde o Sr. Silvino
se reconhecesse nulidade, sem meios para perseguir as vítimas dos
impostos criados por ele, e mais por esse governo patoteiro, que
flagela o país para gozar da abundancia, dos confortos, do luxo
e de todos os meios de corrupção. ( ... ) Impotentes, fracos e repe-
lidos pela opinião pública tremem nos seus covis, e pedem tropa,
mais tropa - unico recurso dos despotas".
( 4) O Despertador, de 25 de novembro de 1874, n.º 917.
24
O pedido de tropas feito por Silvino Carneiro da Cunha a
Henrique Pereira de Lucena, Presidente de Pernambuco, não esca-
para também à irreverência dos redatores de A Província, que se
aproveitaram da ocasião para ridicularizar, ao mesmo tempo, Lu-
cena e o Ministro João Alfredo. As alusões eram diretas: "0 Sr.
Lucena ha de ser sempre o Sr. Lucena: homem sempre a tremer
diante da revolução fazendo evoluções militares. Sempre a enga-
nar-se e iludir-se com os homens e as coisas. Quem disse ao Sr.
Lucena que ha movimento armado? Para que mandou força ante-
ontem e. ontem para a Paraíba, e vai mandar hoje? Pois ignora,
ainda duvida o Sr. Lucena, que o povo do interior está reunido
não para a guerra, mas para vir cumprimentar e felicitar o mi-
nistro João Alfredo, pela sua excelente gestão nos altos negocios
da Patria? ( ... ) Para que força? Mande, Sr. Lucena, recolher
toda a tropa aos quarteis, e unicamente fazer sair as musicas, e
atacar foguetes. A epoca é de festas! ( ... ) Por que não vai o mi-
nistro? ( ... ) Andam barulhos pelo interior da Paraíba, e o Sr.
Lucena mandou 100 homens de presente ao seu colega Silvino. Que
ocasião perdida! ( ... ) O Sr. João Alfredo, o homem da popula-
ridade imensa, do saber imenso, da beleza imensa, de tudo imen-
so. . . o Sr. João Alfredo devia ir, e tudo se acabaria em festas e
melopeas".
Se o Partido Liberal, institucionalizado, olhara com as mais
severas reservas a insurreição popular, individualmente, muitos
liberais aceitaram a legitimidade social da revolta. Um deles, sob o
pseudônimo de "Um Parahybano", solicitaria na imprensa a publica-
ção desse curioso documento para a compreensão do pensamento
liberal-republicano da época: "Essa provinda tocou o desespero. O
peso dos impostos e o modo barbara de cobra-los e as extorsões de
todo genero feitas ao povo para saciar esse sorvedouro insaciavel que
se chama "necessidades públicas" esgotaram afinal a paciencia
deste e lançou-o no caminho da revolta. Não somos amigos das
revoluções armadas, mas um povo que se deixa matar à fome é
um povo suicida; e o suicidio é uma infamia num povo, como o é
no individuo. O governo do Imperador quer matar o povo à fome, o
povo não achou recurso nos seus representantes e governador
que são meros instrumentos daquele governo, não teve coragem
para deixar-se matar, lançar mão do triste, mas unico recurso que
lhe restava - a força, está no seu direito porque defende sua vida".
Depois de justificar a revolução como último caminho a ser
tomado, o anônimo autor do artigo mostra que a situação é i-esul-
25
tante da política adotada na província que asfixia o povo, a fim
de atender às "necessidades públicas" e segue, afirmando: "Eis os
primeiros frutos do ministerio Paranhos, o mais fatal, o mais de-
sastrado, de quantos tem tido o Brasil de 1822 para cá, frutos
amargos, e que são precursores de outros muito mais amargos.
Amanhã, a guerra civil estará devastando aquela pobre província,
amanhã, o sangue paraibano estará regando o próprio solo que
lhe deu vida, amanhã estarão os corvos e os cães devorando os
cadaveres de irmãos mortos por irmãos, amanhã estará a família
paraibana se estrangulando em dois acampamentos opostos, e o
Sr. Silvino rir-se-a, porque isto agrada ao Sr. Paranhos, e o Sr.
Paranhos rir-se-a, porque isto agrada ao Imperador, e o Imperador
rir-se-a porque os Neros de todos os tempos deleitam-se com o
cheiro de sangue, ainda que este seja o das entranhas de sua pró-
pria mãe. Desgraçado Governo!
Por que foram tão descomunalmente aumentados os impostos
provinciais da Parahyba? Os cofres estão "phtysicos", a província
sobrecarregada de uma dívida imensa, os empregados publicos
(exceto os de casa) com o ordenado de meses sem ser pago, os sol-
dados de polícia morrendo à fome, e todos os dias criam-se novos
impostos e pesadíssimos impostos! Como se explica isto? Oh! Só
quem mora naquela desgraçada terra pode penetrar a causa miste-
riosa de todas essas miserias. E que os cofres tem chaves, não tem
dinheiro, mas criam-se todos os dias sinecuras vergonhosas para
dar de comer a quem tem fome. E que os íntimos sustentam, sem
rendas aparen~es, um luxo de príncipe. E que o comandante do cor-
po de policia, que nada mais tem do que o seu mesquinho ordena-
do, vive como um pachá, e no jogo, sua profissão de a muitos
anos, perde quantias avultadas, e quando se zanga, rasga e queima
notas de 100 mil reis, como quem possui milhões. E é das veias do
povo que sai o sangue com que se alimenta todo esse luxo, todo
esse jogo imoral, todas suas zangas de dardos! Povo desgraçado!
Quer ser livre, reduzem-no a escravo, queixa-se, matam-no à fome;
revolta-se, riem-se com o prazer infernal de beberem-lhe o sangue!
Povo desgraçado! E amanhã a Parahyba será um vasto tumulo,
mas tudo irá bem, porque estão satisfeitas as paixões danadas
deste desgraçado Governo! Um Parahybano."
Prova da gravidade da situação do interior paraibano, está
nas providências militares tomadas, então, pelo Presidente da Pro-
víncia, Silvino Carneiro da Cunha. Em carta dirigida ao Minis-
tro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, em 7 de dezem-
bro de 1874, diz Carneiro da Cunha que tornando-se "indispensavel
26
a vinda da ala esquerda do 14.º Batalhão, requisitei do Presidente
da Província de Pernambuco o regresso d'ella com urgencia a fim
de dar um golpe completo na sedição, como tambem, a remessa
de mais de duzentas armas completas, para o que fiz logo voltar
para alli o vapor Calderon. Ultimamente mandei internar pelas
duas estradas dos Brejos e do Sertão duas fortes colunas, uma do
14.º e outra do 18.º Batalhão, com os seus comandantes a frente,
de cuja operação espero colher os mais · felizes resultados, estabe-
lecendo por todas as partes do imperio da lei e prendendo os
sediciosos".
Os resultados das primeiras providências militares tomadas
por Carneiro da Cunha serão surpreendentes e contraditórias. Os
sediciosos presos não são apenas gente humilde, quebra-quilos típi-
cos, mas também o bacharel Francisco Lucas de Sousa Rangel e
um padre jesuíta "que se achava em sua companhia e estavão muito
ompromettidos em vista de diligencias e buscas procedidas na
cidade do Recife da Província de Pernambuco, para onde os fiz re-
metter hontem em vapor especial" 5 •
O coronel Severiano Martins da Fonseca 6 , irmão de Deodoro
da Fonseca, fora encarregado pelo governo imperial, a 28 de no-
vembro de 1874, de acabar com a sedição surgida na Paraíba.
Saindo do Rio a 29 de novembro - tal era a urgência do assunto
- chegará à Paraíba a 7 de dezembro. Após visitar o depósito
de armas, Severiano organiza um piquete de cavalaria e dirige-se
a Campina Grande. A darmos crédito ao seu primeiro relatório. a
serra Redonda e a serra do Pontes estavam infestadas de sedicio-
sos que "invadiam as casas de negociantes respeita veis de Ingá,
atiravam à rua os pesos e medidas do novo systema obrigando-os
a servirem-se de outros que lhes impunham" 7 •
Acompanhando-se sua marcha, presencia-se a prisão de 56 re-
voltosos em um só dia, porém, tem-se notícia também de que
muitos escaparam internando-se nas matas. A coluna do coronel
27
Severiano levava um canhão que "por caminhos quase intransita-
veis rodeados de despenhadeiros e precipicios chegou a Campina
a 25 de dezembro". A cidade, entretanto, já havia sido atacada
pelos quebra-quilos.
Três dias após o primeiro relatório, uma longa carta, datada
de 11 de janeiro de 1875, escrita na cidade de Areia, dará ao
Presidente da Província da Paraíba um detalhado informe sobre
os acontecimentos:
"Comando Geral das Forças estacionadas na Província da Pa-
rahyba, cidade de Arêa, 11 de janeiro de 1875. 1.1mo e E.xmo Sr. -
Satisfazendo a recomendação feita por V. E.xa passo a dar conta
de todos os movimentos que se tem dado pelo centro da Provincia
depois das diligencias feitas na Serra do Pontes e Serra Redonda.
Aproveitando-me da noite de 23 de dezembro do ano proximo
passado, dividi a força pelas duas estradas que do Ingá vão ter a
Campina pelas quais constava-me haver grande numero de sedicio-
sos nos pequenos povoados que as margeão e assim fiz, organizando
duas colunas, ambas marchando em direção ao SSO, isto é a pri-
meira vez que me acompanhou levou este rumo até Poção a tres
leguas do Ingá, onde tomou para Oeste pela estrada do Surrão. Era
composta da ala do 14.º Batalhão de Infantaria e a tropa de fogo
e passou por Surrão, Pao Coveta, Jacu, Santíssimo, percorrendo
assim nove leguas até Campina onde descansou para prosseguir
a proteger a outra composta de 80 praças de Infantaria e o piquete
de cavalaria comandada pelo capitão Antonio Carlos da Silva Pira-
gibe, que devia aguardai-a no lugar denominado Boqueirão, garganta
imensa cheia de sinuosidades que corta a Serra de Queimadas e
onde constava haver grande numero de sediciosos reunidos para
fazer frente a força que por esse ponto tentava ganhar a cidade
de Campina. A coluna do Capitão Piragibe a qual acompanhou o
meu ajudante de ordens o Segundo Tenente Ezequiel Macedo
Aguiar seguiu a primitiva direção pela estrada de Fagundes até o
lugar denominado Jardim que dista cinco leguas de Ingá e depois
o de NO até Baixa Verde. A minha coluna principiou logo a sen-
tir grandes dificuldades em sua marcha por serem pessimos os ca-
minhos para o trajeto da artilharia; estas dificuldades a proporção
que a coluna internava-se crescião e chegarão a ponto de me for-
çarem a deixar a peça junto a Lagoa do Surrão protegida por 20
praças de Infantaria para poder satisfazer as condições do plano
que havia concebido, pois que não queria que a coluna do Cap. Pi-
ragibe se demorasse a espera de proteção junto a Serra das Quei-
madas. Chegou a Campina no dia 24 as 10 horas da noite passan-
28
do pelos lugares já indicados. A outra coluna cujos esforços são
dignos dos maiores elogios não se limitou a passar pelos pontos
indicados por mim no seu itinerário, os oficiais, de combinação,
conduziram-na por Piabas, Fuma da Onça, ou Ronco da Abelha e
Queimadas onde devia acampar por ser este ponto o determinado
para que me esperassem o que não sucedeu porque a coluna acos-
sada pela sede varou sem a menor novidade o Boqueirão as 7 horas
da noite em busca d'água que até ali não tinha encontrado apezar
de ter feito treze leguas de marcha e acampou as 10 horas da
noite de 24 entre José Velho e Ligeiro a duas leguas de Campina
tendo andado de Queimadas até ali outras tantas. Os pontos por-
que passou esta coluna são conhecidos como foco de sediciosos,
de facínoras e tidos por verdadeiros covis de ladrões. Ao alvorecer
do dia 25 quando me preparava para ir protegei-a ela entrou em
Campina, trazendo grand~ numero de presos; o canhão s6 chegou
a noite do mesmo dia 25. De Campina fiz no dia 27 partir uma
diligencia ao mando do Cap. Piragibe para Mariz-Preto e Pocinhos
com ordens terminantes para prender os homens indicados por auto-
ridades d'aquelles lugares e ao mesmo tempo proceder a um rigo-
roso recrutamento. Em Pocinhos muitos sediciosos aguardaram ar-
mados a força e sobre ela fizerão uma descarga de fuzilaria, embre-
nharam-se na serra, porem felizmente mais tarde alguns delles fo.
ram presos. Ainda de Campina fiz sahir muitas outras diligencias
das quais se tirou o melhor resultado possível. Cheguei a esta ci-
dade no dia 3 do corrente e nela tenho que demorar-me por algum
tempo por me achar doente. Por uma diligencia que saiu hontem
foi preso o chefe Alexandre Viveiros como verá V. E.xa no meu
oficio n.0 32. Deus guarde a V. E.xa Severiano Martins da Fonseca,
Coronel." 8
A sedição paraibana não fora subestimada na Corte que per-
cebera, desde logo, o perigo. Já a 26 de novembro de 1874, o
Intendente-interino do Ministério da Guerra escrevera ao Presi-
dente Provincial informando que nomeara o Brigadeiro Herculano
Sanches da Silva Pedra para "suffocar a sedição incipiente" 9 • São
minuciosas as referências ao armamento enviado, que incluía "tres
canhões de montanha de calibre 4". Provavelmente, este documen-
to é um dos mais esclarecedores a respeito da reação governamen-
29
tal aos quebra-quilos nos seus primeiros momentos e sucessos, pelo
que se impõe a sua transcrição:
"Expedi as necessarias ordens para que incontinente siga para
essa província um contingente de tropa de linha, composto de 14.º
Batalhão de Infantaria, tendo em seu effectivo 400 praças e meia
bateria de artilharia com 3 canhões de montanha de calibre 4,
servida por vinte e duas praças e dous officiaes. A força de In-
fantaria vai munida de carabinas a minié, cincoenta mil cartuchos e
sessenta mil capsulas e a de artilharia com 80 tiros por peça. No
vapor "Calderon", que partirá hoje conduzindo esa força, faço
tambem seguir para essa Provinda 200 espingardas a minié, 20
mil cartuchos e outras tantas capsulas, para armar a força da Guar-
da Nacional que for necessaria chamar a destacamento, de con-
formidade com a ultima lei que lhe deo nova organisação, visto
que se trata de debellar uma sedição. Para encher os cartuchos
de artilharia que forem necessarios e que vão promptos, poderá
V. E.xa empregar a polvora existente no Deposito dessa Província,
requisitando da de Pernambuco, onde existe em quantidade, a de
que possa ainda precisar. E para adiantar ao mesmo presidente or-
deno que mande por a bordo do "Calderon" alguma polvora pro-
pria para encher os sacos ou cartuchos de artilharia, aproveitando
as poucas horas de demora que o dito vapor tenha no porto do
Recife. Não convindo que as forças que vão operar nessa Província
para suffocar a sedição incipiente trabalhem sem um chefe que
dirija os movimentos militares, tenho nesta data nomeado o Briga-
deiro Herculano Sanches da Silva Pedra actualmente na Bahia
e que seguira no mesmo vapor, o "Calderon", que conduz as for-
ças que ora faço embarcar. Logo que tiver V. E.xa recebido as for-
ças e mais recursos que ora faço seguir, convem que não retar-
de a partida do "Calderon" para este porto, afim de transportar
quaisquer outros recursos que porventura convenha remetter-se,
devendo V. E.xa informar-me telegraphicamente, por via de Per-
nambuco, de quaesquer occurrencias que se deem, do curso da se-
dição, e de quaesquer outras circunstancias que interesse ao Gover-
no conhecer, a fim de tomar novas e immediatas providencias. Com
estes recursos de pessoal e material bellico que ora remetto, com os
que V. E.xa terá ahi organisado, pensa o Governo estar V. E.xa
habilitado a suffocar os movimentos sediciosos e espera de seo
zelo e actividade que o conseguirá, codjuvado pelo valente official
que vai dirigir as forças em operações."
Paralelamente ao duelo jornalístico entre o Jornal da Para-
hyba e O Despertador, espalharam-se na vizinha Província de Per-
30
nambuco notícias a respeito do "melindrosíssimo estado de seguran-
ça e paz pública" 10 • O noticiário publicado no Recife dizia ter
principiado o movimento em Campina Grande, com ataques ao
próprio delegado de polícia e ao comandante do destacamento local,
capitão João Peixoto de Vasconcelos, que ficara gravemente ferido
com uma pedrada que lhe atingira a cabeça. lngá, Alagoa Grande,
Salgado e Alagoa Nova aparecem como focos de agitação. Nenhu-
ma referência à pequena povoação de Fagundes, porém em relação
a lngá o noticiário é detalhado: "O povo, em numero superior a
mil pessoas, em sua maioria, bem armados, invadio a villa, na
feira de sabbado passado, apezar de ser intimado pelo commandan-
te da força, para que se dispersasse, e ahi cometteu excessos e
invadindo a casa da camara municipal, quebrou-lhe todos os mo-
veis, incendiou o archivo e todos os livros existentes; e dirigindo-
se para a casa do mercado, tentou arrombar-lhe as portas para inu-
tilizar os pesos e medidas contra os quaes griti:., a; o que não con-
seguia, por haver intervido a força publica ja disposta a desfechar
as armas" 11 •
O noticiário da imprensa, nesse período da sedição, é incom-
pleto, e seria extremamente perigoso segui-lo historicamente como
eixo factual. Há reservas, cautelas, afogando fatos . Ao se noticiar
que, após o conflito de Ingá, o povo fora ao Salgado, povoado vi-
zinho, diz-se também que em Alagoa Grande concentrava-se um
número de revoltosos "não inferior a duas· mil pessoas, com um
chefe conhecido a frente" 12 •
As causas da sedição - pelo menos as exteriorizadas - apa-
recem, quando se diz que o povo "levanta vozes contra os impos-
tos, a nova lei do recrutamento que a denominam de lei do capti-
veiro, e também a dos pesos e medidas".
Espalhou-se na Paraíba uma onda de notícias aterradoras, al-
gumas verdadeiras, outras simples boatos alarmistas. O quartel-
general dos sediciosos seria Alagoa Grande, de onde passariam à
cidade de Areia e daí à Capital.
No hoje raro livro de Irineu Jófilly, Notas sobre a Parayba 13, o
autor assegura, como testemunha de vista, não ter sido a sedição
do Quebra-quilos promovida pelo clero e principalmente pelo mis-
sionário padre Ibiapina. Fora a decretação dos novos impostos pro-
vinciais a principal causa do movimento e o fruto da ignorância
(10) Diário de Pernambuco, de 27 de novembro de 1874.
(11) Idem, ibidem.
( 12) Idem, ibidem.
(13) Rio de Janeiro, 1892.
31
de uma população pobre e desamparada. Para Jóffily, os distúrbios
teriam começado na serra do Bodopitá, quatro léguas ao sul de
Campina Grande. Não assinalou exatamente o primeiro foco, porém
não lhe passou despercebida a circunstância de que os quebra-qui-
los não tinham um chefe que os dirigisse. Fagundes, pequeno dis-
trito do termo de Campina Grande, fora entretanto o primeiro
barril de pólvora a explodir e, a 7 de novembro de 1874, já O Des-
pertador noticiara o acontecimento.
Celso Mariz, escrevendo, em 1922, seus Apanhados Históricos
da Parahyba, embora se detenha na administração de Silvino El-
pídio Carneiro da Cunha não fez a menor referência ao movimento
Quebra-quilos, mas, na sua biografia do padre lbiapina 14 , apare-
ce-nos a figura do missionário, já alquebrado e doente, carismático,
dando bênçãos, perorando contra mancebias, falando nos castigos
do inferno e nas delícias do céu, fazendo muitos crentes e eventuais
inimigos políticos. Para Mariz, lbiapina "nunca atacou instituições
nem governos" 15 • Não se deve aceitar a afirmativa de Mariz. lbia-
pina atacara freqüentemente a maçonaria, então influente, e não
poupara o governo. Sua ira, aliás, era fácil quando hostilizava a
Igreja. Da cidade de Teixeira dizia-se que saiu, em 1864, batendo
o pó das alpercatas e é notória sua frase "o Cariri Novo não me
verá mais", explosão de seu descontentamento em relação àquela
região.
O missionário surgirá na documentação oficial sobre o Que-
bra-quilos como extremamente suspeito. Há, no entanto, que se dis-
tinguir entre sua pregação antimaçônica, com duras críticas ao
governo, e uma hipotética liderança entre os quebra-quilos. Na pri-
meira, Ibiapina provavelmente está inserido; porém, na segunda,
seu nome escapa à lógica dos acontecimentos. A liderança entre os
quebra-quilos na Paraíba, como em Pernambuco, foi sempre even-
tual, desarticulada e transitória. Ora é um major, Antônio Lelis de
Sousa Pontes, do Ingá, que fora deputado provincial na legislatura
1870-1871, ora é um vigário, Calixto Correia da Nóbrega, em Cam-
pina Grande, os que tentam aproveitar a força contestatória dos
quebra-quilos. Refletem, sempre, essas possíveis chefias, aspectos
locais, simpatias e antipatias puramente regionais. No caso especial
dos dois prelados, lbiapina e Calixto, há que destacar a dimensão
de uma luta maior entre a Igreja e a maçonaria.
32
A sedição iniciada no Município de Campina Grande alastra-
ra-se, atingindo Cabeceiras, São João do Cariri, Ingá, Alagoa No-
va, Alagoa Grande, Bananeiras e Areia. Horácio de Almeida 16 des-
creve detalhadamente a atuação dos quebra-quilos em Areia. Não
houve derramamento de sangue nem foram violadas as casas; os
revoltosos limitavam-se a invadir os estabelecimentos comerciais, a
fim de quebrar os pesos e as medidas. Aterrorizadas, porém, as fa-
mílias mais ricas da cidade foram para os seus engenhos e fazen-
das no interior do Município. O advogado Luís Vicente Borges,
por curioso exemplo, teria corrido para o seu engenho Lameiro,
em cujos partidos de cana enterrou um caixote com vinte contos
de réis e, receando que alguém sonhasse com a botija, cada dia,
cautelosamente, mudava de um lugar para outro o tesouro escon-
dido.
O juiz de Direito João da Mata Correia Lima presenciou im-
potente todos os acontecimentos da sedição em sua comarca, uma
vez que a força pública fora imediatamente desarmada. Até a
banda de música fora obrigada a tocar em homenagem aos se-
diciosos. Queimaram-se, com vozerio, os papéis da Câmara Muni-
cipal. O teatro da cidade - ainda hoje um dos mais interessan-
tes exemplos arquitetônicos de teatros do século XIX, no inte-
rior - , por pouco não foi demolido. Suas linhas, sua platéia, parece-
ram aos amotinados coisa maçônica e perigosa. Falou-se em exumar
do cemitério os restos mortais do antigo juiz de Direito da comar-
ca, maçon conhecido, que não deveria portanto repousar em lugar
sagrado.
Quando chegou à cidade a força comandada pelo coronel
Severiano da Fonseca, o movimento já estava por si mesmo exauri-
do. Severiano deixou em Areia uma ala de seu batalhão, sob o
comando do capitão Longuinho, e determinou que a outra deve-
ria estacionar em Campina Grande, às ordens do capitão Piragibe.
Pior e mais violenta do que a atuação dos quebra-quilos foi
a repressão das forças comandadas pelo capitão Longuinho, hoje
tristemente famoso pelos "coletes de couro", tortura que aplicou
aos que lhe foram apontados ou denunciados como quebra-quilos.
Amarrados os prisioneiros, eram, em seguida, metidos em grossei-
ros coletes de couro cru; ao ser molhado, o couro encolhia-se,
comprimindo o tórax das vítimas, quase asfixiando-as.
JJ
Caminhando sob o sol do dezembro nordestino, sedentos e fa-
mintos, foram os sediciosos enviados às autoridades policiais para
o devido processo e julgamento. A repressão foi cega e violenta,
atingindo pessoas estranhas ao levante. O depoimento de uma tes-
temunha da época, com todas as reservas históricas de ser depoi-
mento de deputado de partido oposicionista, é dramático: "o asi-
lo do cidadão era violado à qualquer hora, a honra da esposa,
da donzela, ·da viúva, e da mulher honesta, exposta ao assalto
da violência militar. As mães, as irmãs, seguiam até a capital
seus filhos, pais e protetores. Mas que podiam fazer, senão der-
ramar lágrimas, porque a autoridade se mostrava indiferente a
seus clamores?" 17 •
A tragédia dos quebra-quilos, surrados, aprisionados e enco-
Ietados, foi o tema de uma música, atribuída a Pedro Joaquim
d' Alcantara César 18 cuja letra, muito divulgada, até hoje permane-
ce no anonimato de um Dr. S. P., evidentemente um autor receoso
das sanções da época.
34
E ao quebra-quilo, desonrado e louco
E tudo pouco, quanto a infâmia faz
Se ali contempla da família o roubo
Aqui no dobro, se o flagela mais
Vê sua esposa, da desgraça ao cimo
Por seu arrimo, tudo expô-la em vão:
Recorda as filhas, que sem mãe ficaram
E lhes as roubaram. . . que perdidas são.
Tiranos vede que misérias tantas! . ..
Nem a quebranta nem pungir nem ais
Martírios, ultrages de negror, fazei-me
Porém dizei-me se também sois pais!
A bofetada minha face mancha
A corda a prancha me doer senti
A vil desonra da família querida
Tira-me a vida. . . de pudor morri.
35
é apenas a faísca que detonará a carga explosiva. Tinha Fagund_es
uma tradição de revolta adquirida por ocasião do "Ronco da Abe-
lha", na administração de Antônio Coelho de Sá e Albuquerque.
No relatório que este Presidente Provincial apresentou à Assem-
bléia, a respeito da aplicação da nova legislação sobre registros de
nascimentos e óbitos, diria, com oficial tristeza, que a ordem pú-
blica fora perturbada. Não havendo entendido bem o que preten-
dia aquela lei censitária, logo conhecida como "lei do cativeiro", a
população enfurecida organizara-se em grupos que depredaram
muitas casas, e um deles, composto de mais de duzentas pessoas,
chegou a invadir a vila do lngá, onde-destruiu todos os livros e
papéis existentes na casa do Juiz de Paz.
A gente humilde aprendera também com os próprios senho-
res da terra o exemplo da contestação, da negação e do ódio polí-
tico. "A política de Fagundes, no tempo do Império", diz Elpídio
de Almeida l!I, "era mais extremada que a da sede. Os políticos
odiavam-se e moravam afastados. Nenhuma comunicação entre eles.
A capelinha, erguida no meio da rua, era o marco divisório. Os
moradores da capela para cima pertenciam ao Partido Liberal, os
da capela para baixo ao Partido Conservador. As alterações políti-
cas que sofria Campina Grande, decorrentes das mudanças parti-
dárias, refletiam-se com a mesma intensidade na povoação".
Mamanguape estava alarmada pelas notícias trazidas pelo ca-
pitão Antônio Floro, que chegara de Alagoa Grande. Esta cidade
fora invadida por um grande número de homens que arremes-
saram os pesos numa lagoa das proximidades e entregaram às cha-
mas os arquivos da Câmara e papéis dos cartórios. O capitão João
Alves Pereira, ali destacado, "fugira sem farda nem espada pelas
matas e chegara a Independencia todo arranhado" noticiaria a im-
prensa de Pernambuco. Em Mamanguape, entretanto, por astúcias
de seu delegado, segundo a narração de Coriolano de Medeiros,
os soldados saíram da cidade e espalharam notícias entre os que
nela queriam entrar, que estavam convergindo para ali "soldados
com cometas e tambores", indicação de que viria uma grande tro-
pa. A idéia de um saque cartorial foi então abandonada pelos que-
bra-quilos.
Cuité, a meia légua da vila de Independência, atual Guara-
bira, foi invadida no dia 23 de novembro. As autoridades haviam
fugido e ninguém sabia onde estava o juiz municipal, Dr. Samuel
36
Henriques, o delegado-suplente Manuel Lopes de Albuquerque e
o deputado provincial capitão Marcolino Tavares da Silva. O mes-
mo grupo que atacara Bananeira atacou, também, no dia 23 de
novembro, Arara.
No dia 24 de novembro, ao meio dia, fora a vez de Salgado.
Mais de cem homens "fazendo corpo com mais de duzentos do
lugar" acometeram os feirantes, arrebentaram os pesos e as me-
didas do sistema decimal. Um pequeno grupo de músicos fora le-
vado à força, à frente dos revoltosos, que davam vivas a quem
não mais quisesse pagar impostos. O arrematante do "imposto do
chão" Joaquim Napoleão refugiou-se imediatamente na casa do
comerciante Manuel da Paz. Enquanto a turba tentava derrubar a
porta de quem o acolhera, o arrematante fugia pelo quintal, li-
vrando-se assim dos que queriam sová-lo.
Em Alagoa Nova aparece na agitação popular o problema
de recrutamento. Depois de devidamente quebrados e jogados na
lagoa os quilos e bem queimados os papéis da Câmara e dos car-
tórios, dirigiu-se um grupo ao engenho do Dr. Francisco de Sousa
Gouveia, pois sendo ele doutor teria, com certeza, a lei do recru-
tamento que deveria imediatamente ser destruída, de acordo com
o raciocínio simplista do eventual chefe da turba. Voltou o grupo
do meio do caminho ao saber que ali apenas estava a família do
proprietário.
No Pilar aderiram aos quebra-quilos muitos trabalhadores dos
engenhos e fazendas. Segundo Delmiro de Andrade 20 é um senhor
de engenho, Inácio Bento, o seu chefe mais destacado, sempre
acolitado em suas insólitas correrias a cavalo por dentro das fei-
ras e na liturgia violenta de quebrar pesos e medidas, por um
desordeiro conhecido pela alcunha de Bilinguim. Suas razões eram
provavelmente políticas, não se sabendo entretanto qual o nível de
sua contestação, se o do personagem de Cervantes, que era sem-
pre contra o governo, ou o do espírito do próprio cavalheiro da
triste figura. Não se tem provas de uma liderança consciente, obje-
tiva, com problemática definida, porém é cer!o que o engenho
Sant'Ana era foco de rebeldia na Várzea do Paraíba.
Em Cabaceiras repetiram-se as cenas das outras localidades
atacadas pelos quebra-quilos: câmara saqueada e cartório incendia-
do, pesos e medidas quebrados, recusa violenta ao pagamento de
impostos.
37
O hoje tão esquecido romancista nordestino Rodolfo Teófilo
no seu Os Brilhantes lançou suas personagens principais em terras
paraibanas em plena revolta dos quebra-quilos. Jesuíno Brilhante
corre em suas páginas, juntamente com outros bandidos, em busca
de justiça particular contra as iniqüidades sociais, enquanto per-
plexos presidentes de câmaras municipais discutem com padres
maliciosos o que fazer:
" - E que fazer?
- Nada mais fácil: oficiar ao governo dizendo que o povo
não aceita, não se sujeita ao tal sistema, ao diabo de um nome
cuja segunda letra é Y. Maquinações de Satanás, senhor compa-
dre, maquinações de Satanás ...
- Será bem como diz o senhor compadre; e se o presidente
teimar?
- Era o que faltava ver! Ele que venha obrigar o roceiro
a quebrar a sua terça; o lojista a queimar a sua vara e o seu cô-
vado, e comprar outra medida. Energia, senhor compadre! Res-
peitemos a memória de nossos pais e com ela as nossas tradições.
Hoje mesmo, do púlpito, eu clamarei contra esse despotismo e di-
rei ao povo que lute, mas não se sujeite a tão grande humilhação.
Eu responderei ao ofício em termos de tirar bons resultados ... " .21
Jesuíno Brilhante tomara parte no assalto à cadeia pública de
Campina Grande, pondo em liberdade quarenta e três presos, e
com eles aumentara o seu bando. O delegado de Pombal, tenen-
te Ricardo Antônio da Silva Barros, foi assassinado por esses ban-
didos que, marginalmente aos quebra-quilos, dificultam historica-
mente a necessária separação nos tumultos quebra-quilos entre cri-
mes comuns e contestação social. As próprias forças de repressão
do governo, por sua parte, fizeram na Paraíba concorrência àque-
les a quem perseguiam, saqueando fazendas e engenhos. Também
estavam famintas.
Enquanto Silvino Elvídio Carneiro da Cunha tentava explicar
ao Conselheiro João José de Oliveira Junqueira que a causa da re-
belião não era a cobrança de impostos e sim a Questão Religiosa,
a imprensa oposicionista levava-o ao ridículo. Dizia-se na "Carta
da Parahyba", publicada nA Província, de 2 de dezembro de 1875,
que realmente não era verdadeira a exist~ncia de certos impostos
como aquele que atingia a mulher casada que desejasse amarrar
os cabelos, que deveria então pagar 3$000 ou 5$000 no caso de
38
ser solteira e honesta. Ao divulgar o humor popular, a imprensa
da oposição fazia o jogo dos quebra-quilos. Um artigo, também
publicado nesse mesmo dia, depois de chamar Silvino Elvídio de
"Pachá da Parahyba", incitava os pernambucanos: "Eis ahi como
o Pachá da Parahyba governa de modo a nos provocar subleva-
ções. Eis ahi o povo que não tem razão de revoltar-se! Prouvera
a Deus que Pernambuco soubesse cumprir tambem o seu dever".
Na Corte a apreensão com os acontecimentos paraibanos fo-
ra grande. O Intendente da Guerra, João José de Oliveira Jun-
queira, já remetera um contingente de infantaria e artilharia e ma-
terial bélico para que fosse municiada e preparada a Guarda Na-
cional 22 • No ofício reservado que lhe enviara o Presidente da Pro-
víncia vizinha, Henrique Pereira de Lucena, dissera-lhe que era
necessário "garantir a capital da província e conter os sediciosos".
Preocupara-se Lucena com as atribulações de seu colega Carneiro
da Cunha, porém as suas não eram menores, sobretudo quando
recebeu a notícia, em carta oficial, de que não receberia as "mu-
las para tiragem da artilharia" 23 , que deveriam ser obtidas no Re-
cife na Companhia de trilhos urbanos. O que não pensariam do
governo os recifenses quando vissem os burros de seus bondes
desviados a puxar canhões contra os quebra-quilos?
A repressão na Paraíba foi muito violenta. Era a vez da Po-
lícia. Em Campina Grande, Manuel Caldas Barreto, Chefe de Polí-
cia da Província, iniciaria a formação de culpa dos implicados no
movimento quebra-quilos paraibano. Logo efetuou a prisão do pa-
dre Calixto da Nóbrega, Antônio de Barros Arruda, Manuel de
Barros Sousa, Antônio Martins de Sousa, Manuel Nunes e João
Vieira da Silva, vulgo João Carga d'Água. No seu longo "Relató-
rio" 24 , enviado a Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, preliminar-
mente espantava-se com a "descommunal excitação popular, que
levou grande parte de diversos municipios d'esta província, reco-
nhecidamente pacifica e ordeira, a levantar-se como uma só pes-
soa, sob o impulso de uma só ideia, em um mesmo dia, contra
todos os principias estabelecidos, manifestando decidida oposição
39
as leis e as autoridades constituídas, que foram por essa forma
forçadas a interromper o exercido de suas funções". Em seu as-
tigmatismo político, Caldas Barreto parece-nos descrever a maior
revolução do Império. Nega que os novos impostos fossem a cau-
sa da sedição, aduzindo que a Lei que os criara ainda não havia
sido posta em execução, o que também sucedia em relação ao re-
crutamento. Seria mater et geratrix de tudo a sotaina jesuítica. Pa-
ra o policial os novos pesos e medidas "nunca soffrerão opposi-
ção e a que todos já se achavão habituados".
O padre Calixto Correia da Nóbrega aparece-lhe também co-
mo um dos principais mentores dos quebra-quilos. Ao abrir luta
contra a loja maçônica "Segredo e Lealdade", Calixto expulsara
publicamente da Matriz maçons de prestígio social como Bento Go-
mes Pereira Luna, Pedro Américo de Almeida, Salvador Clemen-
tino da Costa, Raimundo Tavares Candeia, todos com patentes de
oficiais da Guarda Nacional. Fora também a convite do padre
que Ibiapina pregara em Campina Grande. Calixto seria, assim,
um chefe quebra-quilo, e, desde muito, preparava o movimento;
ao colher assinaturas para um memorial ao governo, a favor de
D. Vital, nada mais fizera do que ficar sabendo com quem e com
quantos poderia contar.
O relatório policial registra que em Ingá o alferes Matias de
Freitas Vasconcelos, Antônio Alves Barbosa, Saturnino de Sousa
Carvalho, Idalino Cavalcanti Albuquerque, Rozendo de Arruda
Câmara, Francisco Nogueira, João Francisco dos Santos, Antô-
nio Aires de Melo, Francisco José de Lima e Manuel Alves Bar-
bosa haviam capitaneado os quebra-quilos. Estavam todos incursos
no artigo 111 do Código Criminal.
Estranhou o Chefe de Polícia que as autoridades judiciárias
de Campina Grande não estivessem na comarca. Nem Antônio da
Trindade Antunes Meira Henriques, juiz de Direito, nem o pro-
motor público interino Irineu Ceciliano Pereira Jófilly, nem José
Alves Viana, juiz municipal. Para ele, todos seriam, em tese, che-
fes quebra-quilos. Até o delegado pareceu-lhe suspeito. Tão sus-
peito que, no inquérito que fizera, apontara como chefes princi-
pais da sedição os capitães Manuel Gustavo de Farias Leite e An-
tero Francisco de Paula Cavalcanti, ambos, ao que parece, inimi-
gos do padre Calixto. O primeiro era delegado de polícia em Ba-
naneiras e estivera em Fagundes alguns dias depois do levantamento
do povo naquela localidade.
O padre Calixto da Nóbrega é para Caldas Barreto a perigosa
batina que mais subvertera a ordem. Insuflara no povo "ideas anar-
40
chicas das quaes originaram-se mais de ,uma vez disturbios e feri-
mentos". Uma testemunha teria visto pessoa do povo ajoelhar-se
aos seus pés e entregar-lhe um bacamarte e uma faca de ponta.
Tal fato lhe pareceu extremamente grave. Não estaria só na chefia
da rebelião pois João Vieira da Silva, Antônio de Barros Arruda,
Marcolino de tal, Manuel de Barros Sousa, Manuel Nunes, Antô-
nio Martins de Sousa e seu irmão José Martins também eram ca-
beças da sedição. Foram todos aliás pronunciados por Caldas
Barreto.
O desconhecido Marcolino de tal, anônimo e modesto mora-
dor de Piabas, também conhecido por Marcos, é provavelmente o
primeiro quebra-quilo nordestino. Nada se sabe sobre esse matuto
que um dia aparecera na feira de Fagundes gritando que não pa-
gava o "imposto do chão" por ter sido criado pelos maçons 25 •
Esse imposto consistia no pagamento de cem réis por carga que se
levava à feira. Destruída na própria insurreição dos quebra-quilos
toda a documentação relativa aos impostos municipais de Campi-
na Grande, nenhuma referência subsistiu ao total que advinha da
cobrança do "imposto do chão". Não deveria ser muito. Seria até
ínfimo. Mas era imposto de maçom, imposto excomungado, ímpio,
contra a religião e até contra Deus. A religião dos antigos
colonizadores insere-se sincreticamente no universo crítico e mo-
ral dos caboclos do Nordeste, com o primarismo e a agressivi-
dade sugerida pela própria região. Sincretismo que, como assina-
lou Roberto Mota 26 , não é uma concessão "ao contrário, repre-
senta um confisco, uma apropriação legítima e justa dos bens do
opressor pelo oprimido. A religião como a praça é do povo".
O nome de Marcolino entra e desaparece na história do Que-
bra-quilos quase sem deixar rastros. Os padres, os doutores e os
oficiais da Guarda Nacional é que nos deixam documentação va-
riada e abundante. Não agradara a Caldas Barreto a atuação das
autoridades de Campina Grande. O delegado prendera quem ele
havia soltado e soltara a quem prendera. O juiz concedera habeas
corpus ao suspeitíssimo Antônio Martins de Sousa, amigo do pa-
dre Calixto, e um dos cabeças mais exaltados da sedição. Dirá
41
que, em Areia, "ao envés do que se passou na cidade de Campina
Grande, prestaram-se apoio e auxilio as autoridades" 27 •
Entre Campina Grande e Areia passara Caldas Barreto em
Alagoa Nova e lá prendera os que lhe pareciam "cabeças", con-
forme as informações então recebidas. Os Chacon, na Paraíba, es-
tavam divididos; se, de um lado, o tenente-coronel Francisco An-
tônio Aranha Chacon, com cinqüenta praças, no Ingá, tentava de-
belar os sediciosos, por outro, Matias de Holanda Chacon, em
Alagoa Nova, é indiciado como quebra-quilo, juntamente com Ma-
nuel Furt~do de Mendonça, Patrício Gomes Querino e Manuel
Alexandre de Viveiros.
Em Areia, na ótica repressora de Caldas Barreto, aparecem
como quebra-quilos nomes de projeção: o major Antônio Lelis de
Sousa Pontes, o alferes Jeremias Clemente de Vasconcelos, o te-
nente Cleodon Clementino Pereira e o alferes Antônio de Sousa
Ribeiro. ·Antônio Severino é provavelmente um pobre agricultor,
porém Alexandre de Viveiros talvez seja o mesmo Manuel Alexan-
dre de Viveiros já conhecido nos anais dos crimes comuns. O te-
nente Cleodon Pereira e o major Lelis haviam conseguido impedir
que os quebra-quilos em Areia incendiassem a coletoria. A autori-
dade moral de ambos perante a turba enfurecida, mais tarde, foi
entendida como liderança entre os revoltosos. Não conseguiram ou
não quiseram impedir, entretanto, o ataque à Câmara Municipal,
que ficava no pavimento superior da penitenciária e dali os lí-
deres do movimento atiraram os objetos que encontraram, papéis,
livros, enfim o que existia no arquivo, pelas janelas, inclusive es-
tantes e móveis, sendo tudo quebrado, dilacerado e queimado.
Em comunicação, na sessão de 30 de agosto de 1925, ao Ins-
tituto Histórico e Geográfico Paraibano, Simão Patrício 28 reve-
lou a existência de duas cartas assinadas, uma pelo major Antô-
nio Lelis e outra pelo tenente Cleodon, dirigidas a duas pessoas
de influência em Areia, que são documentos da maior importân-
cia para a compreensão do movimento naquela cidade:
"Amigo e senhor Silva. A pressa lhe escrevo. Agora a
tardinha chegou o Viveiros com porção de povo na Es-
palhada e continua a juntar gente para tocar de novo
ahi, dizendo, segundo me disse um matuto, que ama-
nhã sim, se ia fazer o serviço bem feito. Deliberei
42
com o companheiro de ontem, Jeremias, ir a Espalha-
da, conversar, expondo-lhe o que há afim de ver se
conseguimos alguma coisa.
Nossa Senhora corôe os nossos intentos.
Matutos meus chegados da Parayba a meia hora,
pouco mais ou menos, contam com certeza que desem-
barcaram ontem, quatrocentas praças de linha, e espe-
rava-se um vapor de guerra com seiscentos.
Conservam-se a noite, na ponte, duas bocas de
fogo e dizem os da praça que agora não é mais possi-
vel entrar matutos ali.
Do ocorrido lhe participarei, caso ele teime em
seu· intento.
Continuo atropelado.
Transmita esta aos meus e ao vizinho padre. l!
verdade o que lhe conta seu amigo Cleodon - Sete
horas da noite de 27 de novembro de 1874.
(Está com a firma reconhecida pelo tabelião José Fran-
cisco Alves.)
Carta de 12 de dezembro de 1874, do major Antonio Lelis
de Souza Pontes, endereçada para Areia:
Ilmo. Sr. Mathias de Freitas: Já sabia de todas as
ocorrencias e ontem escrevi ao senhor Emygdio para
que avisasse de tudo.
Escrevi ao governo segunda carta a favor do povo
da qual foi portador o coronel Eufrasio, e logo que
ele a leu, prendeu-o.
Eu falei com energia e verdade, e mandaram-me
dizer que o governo me mandava prender; ele supõe
que eu morro de caretas.
Ontem a noite, em Itabaiana, dormiu uma força
de duzentos homens, do governo. Porem quem deu a
noticia disse que a força não queria subir com medo
do povo de Guarita e Mogeiro.
O governo supõe que bate pé ao povo e o inti-
mida. Eu tenho estado doente, de sorte que estou em
Mandahú e por isso não tenho aparecido.
Não tenham cuidado em mim, que eu por cá me
garantirei; pois estou entre homens:
41
Hoje disse aqui um matuto que viu o coronel Eu-
frasio na rua da capital solto, porem tambem disseram
que ele andava na rua com o delegado e de noite ia
para o brigue de guerra.
Dr. Rangel foi solto.
A força que dizem vinha para Alagoa Grande
ainda não chegou aqui e nem sei se está em Guarabira.
~ o que ha e o que sei.
Os homens de Areia ficaram satisfeitos com o
povo de Serra de Pontes pelo seu bom procedimento.
Seu amigo A. de Lelis
(Está reconhecida a firma pelo tabelião José Francisco
Alves Gama.)"
44
desenfrear-se livremente na sua fúria subversiva contra a legalida-
de e o poder" 29 •
Não poupou o inquisidor Caldas Barreto o labéu de quebra-
quilos ao subdelegado de Independência que o divide com João
Cardoso de Lima, também indiciado.
Acompanham o "Relatório" de Manuel Caldas Barreto os au-
tos de perguntas feitas a Antônio da Costa Gadelha, Graciliano
Frontino Lordão, Filipe Aranha d'Albuquerque Montenegro, Rai-
mundo Teodomiro José Dornelas, Francisco Alves da Luz e João
Vieira da Silva. A leitura desses autos impõe reservas e dá-nos a
impressão de especialmente selecionados entre outros tantos que,
certamente, foram lavrados; como que estão ali para corroborar
o que diz Caldas Barreto ao Presidente da Província da Paraíba.
Esse aspecto seletivo e a relatividade testemunhal que as respos-
tas a todo "auto de perguntas" sugere dão ao historiador dile-
mas de difícil solução. O padre Ibiapina é apresentado, em quase
todos os depoimentos, como tendo pregado abertamente contra o
governo, porém nas entrelinhas sempre aparece a razão do possí-
vel ataque: a maçonaria. Não se contesta a ordem social. Como
tantos outros pregadores do sertão nordestino, numa tradição na
qual os "beatos" fizeram o seu estilo e sua mundivivência, Ibia-
pina era um exaltado; em Cajazeiras, ao atacar o concubinato, dis-
sera aos seus habitantes: "hei de ve-los andar correndo como de-
sesperados" 30 • Seu biógrafo Celso Mariz transmitiu-nos o depoi-
mento que ouviu do coronel Tito Silva, antigo diretor da Impren-
sa Oficial da Paraíba, que, em seus tempos de menino, ouvira
Ibiapina falando com aspereza e zanga, lembrando a possibilidade
de castigos, raios e infernos. E possível, portanto, que sejam ver-
dadeiras as referências - que nesse ponto são concordes - às
suas flamejantes investidas contra os maçons. "Tanto fazia matar
maçons como a cães damnados" teria dito Ibiapina, segundo o de-
poimento de Filipe Aranha d'Albuquerque Montenegro, "caixeiro
de cobrança" de firmas comerciais do Recife, que o acusa de ter
aconselhado ao povo, publicamente, "que não obedecesse ao go-
verno, por ser governo maçon". Antônio da Costa Gadelha, pa-
raibano, que se qualifica genericamente como artista, residente em
Campina Grande, declara que nos ataques de Ibiapina contra a
maçonaria o pregador esposara doutrinas que desde logo "consi-
derou subversivas da ordem social e inteiramente revolucionárias".
(29) Oliveira Viana. Populações meridionais do Brasil. 9.ª ed., Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1952, p. 433.
(30) Celso Mariz. Obra citada, p. 139.
45
O primeiro testemunho tem a suspeição especial de ser o de
um arrematante do "imposto do chão"; o segundo, de ser eviden-
temente o de um pedreiro livre, condição transparecida ao longo
de suas respostas. O professor de primeiras letras, Graciliano Fron-
tino Lordão, acusa diretamente o vigário Calixto da Nóbrega e
lbiapina, dizendo que o povo ficara fanatizado com a atuação de
ambos, a ponto de não querer comprar ou vender a pessoas liga-
das à maçonaria, assinalando também que, no distrito de Fagun-
des, negara-se ao pagamento de impostos, sob o pretexto de ser
maçom o governo.
Raimundo Teodomiro José Domelas é quem nos dá notícias
do episódio campinense da expulsão do templo, quando o padre
Calixto, acometido de santa ira, expulsou da igreja matriz, no dia
20 de julho de 1874, aos gritos de "ímpios, cães estradeiros e ex-
comungados" ao tenente Bento Gomes Pereira Luna, capitão Pe-
dro Américo de Almeida, capitão Salvador Clementino da Costa,
alferes Raimundo Tavares Candeia, Estêvão Alexandre José Dor-
nelas e ao próprio informante.
Era a guerra declarada contra a loja "Segredo e Lealdade"
que começava. Seu depoimento é extremamente interessante, pois
é completado com a narrativa do que ele considerou "o primeiro
movimento popular d'esta cidade". Estariam na rua do Seridó, dis-
cutindo a respeito do conflito Igreja-maçonaria, Juvino Machado
Carneiro Rios e o capitão Manuel Francisco Nogueira de Morais,
quando surgiram, de repente, cerca de cinqüenta pessoas, tendo nes-
sa ocasião Juvino Rios comprado dez caixas de espoletas, ao mes-
mo tempo que Agripino Cavalcanti declarava ter cinqüenta armas
de fogo em casa, ,à disposição dos católicos.
A agitação dos quebra-quilos em Campina Grande é comple-
ta. No dia 26 de novembro foram queimados os papéis da Câmara
Municipal, da coletoria e do cartório do tabelião Pedro Américo
de Almeida. O dia seguinte fora a vez dos móveis. Os livros da
"Segredo e Lealdade", apreendidos pelos revoltosos, são levados ao
padre Ca.lixto. Em Campina Grande agora a maçonaria estava nas
mãos de Igreja.
Está no longo depoimento de Domelas uma prova da margi-
nalização dos escravos no movimento. Inquirido pela autoridade
policial se sabia quem chefiava os revoltosos, respondeu que os
grupos sediciosos eram atendidos pelo vigário Calixto Correia da
Nóbrega, Antônio Martins de Sousa e Alexandrino Cavalcante de
Albuquerque. O primeiro, todos conheciam; o segundo era chefe
46
quebra-quilos, notório, pois "sendo negociante conservava sua porta
aberta quando todo o commercio permanecia feixado" 31 • O últi-
mo "na occasião da insurreição de escravos dos quaes nove lhe
pertencião, elle mandou chamar Neco de Barros que se apresentou
com o grupo sedicioso de Queimadas e Baixa Verde para se oppor
aos mesmos escravos insurrecionados" 32 •
O depoimento de Paulo Ferreira de Brito é também de suma
importância para o conhecimento do que realmente se passou em
Fagundes, a centelha do Quebra-quilos. Brito é o escrivão do dis-
trito e depois de esclarecer que estava em Pernambuco quando
começaram os distúrbios, narra como, no dia 29 de novembro, fora
sua casa assaltada por um grupo de trinta pessoas armadas, que o
forçou a entregar o cartório, então queimado, sob vistas e comando
de João Nunes, morador no Cumbi. Não lhe é estranho, como se
lê no seu depoimento, o nome de Marcolino ou Marcos de tal, o
desconhecido morador de Piabas, que ateara no Nordeste o grande
incêndio do movimento Quebra-quilos.
Com notarial espírito registra o escrivão que sabia que o
vigário da freguezia, padre Calixto da Nóbrega, convidara o povo
a assinar um papel, devendo cada pessoa que o assinasse pagar
cento e sessenta réis para o reconhecimento da. firma "e quem não
assignava não era catholico e ficaria excommungado" 33 . Brito
apresenta-se como corajoso; recusara apor sua assinatura em seme-
lhante documento. Tratava-se apenas de uma memorial de apoio
a D. Vital.
João Vieira da Silva, o João Carga D'Agua, que agora, depois
de cem anos de histórica solidão, está magicamente presente no
romance armorial de Ariano Suassuna 34, fora preso em Santa
Luzia do Sabugy pelo capitão Justino da Nóbrega e confessava,
perante o Chefe de Polícia, ser um quebra-quilos. E. cauteloso e
admite ter sido Antônio Martins de Sousa que o aliciara para
"acabar com papéis e tributos". Nas perguntas, que lhe fazem, o
tão visado padre Calixto da Nóbrega é por ele inocentado numa
47
possível lealdade de comandado. O vencido João Carga D'Água
vencia, assim, as astúcias inquisitoriais de Caldas Barreto.
A repressão aos quebra-quilos na Paraíba não somente se
manchará com o colete de couro, a triste criação do capitão José
Longuinho. Mal debelada a sedição, já estava circulando entre
políticos, juízes de direito, promotores e pessoas importantes na
vida econômica paraibana, a "Resposta do Juiz de Direito de
Campina Grande, Bacharel Antonio de Trindade A. M. Henriques,
ao Relatorio do Dr. Chefe de Policia Manoel Caldas Barreto sobre
os movimentos sediciosos havidos n'esta Província, apresentado ao
E.xmo Sr. Presidente da mesma Dr. Silvino Elvidio C. da Cunha,
em 23 de fevereiro de 1875". Ao longo de suas páginas está a
revolta do magistrado ante as acusações do Chefe de Polícia a sua
pessoa, contraditadas com dezenove documentos e detalhadas expli-
cações a respeito do que sucedera em Campina Grande, por oca-
sião da sedição. ~ documento de leitura imprescindível à compre-
ensão da trama política e ideológica de então, e ainda hoje aquece
suas páginas o calor da luta entre as duas autoridades paraibanas.
Exige, mais do que qualquer oútro documento da época, leitura
nas entrelinhas, pois tem grandezas e misérias da condição humana.
Seu autor, o bacharel Antônio da Trindade Henriques, nas-
cera na capital da Paraíba, a 11 de março de 1836, e diplomara-se
na Academia de Direito de Olinda. Voltando à sua Província natal,
iniciara a carreira de magistrado como juiz municipal de lngá e, em
janeiro de 1874, assumira a comarca de Campina Grande 35 • Estra-
nhara Caldas Barreto que o magistrado, por ocasião da sedição,
houvesse saído da comarca em companhia do comprometido padre
Calixto da Nóbrega, e que houvesse posto em liberdade um dos
mais destacados chefes quebra-quilos, Antônio Martins de Sousa.
Admitira, por essa razão, a existência de um plano de cerceamento
de sua autoridade.
A retaliação do juiz, em documentada letra de forma, começa
dizendo que Caldas Barreto inspirara-se em "insinuações sinistras
de cabeças de sedição n'esta comarca", e mais adiante, em revide
ao ataque sofrido, assinala "que o Sr. capitão Antero Francisco
de Paula Cavalcante como cabeça da sedição, se fez acompanhar
d'elle em sua chegada e sahida, e com elle vivia diariamente em
grande intimidade n'esta cidade, af frontando a moralidade pu-
48
blica" 36 • O juiz jamais estivera comprometido com os sediciosos.
Ao contrário, sua casa fora saqueada e seus papéis e documentos
queimados. Como símbolo da lei pagara por ela. A ·não-participa-
ção do magistrado encontra-se demonstrada, não somente no seu
opúsculo respondendo às acusações que lhe foram feitas pelo Chefe
de Polícia, Caldas Barreto, como também pelo testemunho de seu
próprio "Diário", que tivemos ocasião de consultar, por genti-
leza de sua descendente, D. Maria Frederica Alcoforado, no qual
se lê a categórica narração: "N'esse periodo reagi contra o movi-
mento sedicioso denominado "Quebra Killos" que se levantou
n'essa e em outras comarcas d'esta e da Provincia de Pernambuco
conseguindo pela intervenção da Força Publica enviada da Corte
sob o commando do coronel Severiano Martins da Fonseca, esta-
belecer-se a ordem publica, tão profundamente alterada e que
patenteei no opusculo que sobre a minha conduta publiquei
n'aquelle anno, repostando as acusações do Chefe de Policia Ma-
noel Caldas Barreto e do qual guardo um exemplar".
Tinham sido expedidas, por ocasião dos inquéritos e prisões,
muitas ressalvas, consideradas por Caldas Barreto simples venda
de salvo-condutos ou condenável ato de proselitismo político. Trin-
dade Henriques, ao defender-se também da acusação de conivência
com o escândalo das ressalvas, assinalaria: "Esta providência foi
tomada pelo Sr. tenente-coronel delegado de policia de accordo com
o senhor coronel Severiano, commandante geral das forças, sob
o louvavel intuito de restituir aos seus habituaes affazeres, e ao
seio de suas familias, muitos individues, a quem o terror que
adrede era espalhado da acção da força publica havia atirado aos
matos" 36 • As ressalvas custavam caro, pois rendiam mil réis cada
uma ao escrivão do crime e o próprio juiz as declarara irregulares
e ilegais, alarmado que estava com os abusos cometidos. Quem não
estivesse munido de tão caro salvo-conduto, estaria à mercê de
uma prisão.
Alguns implicados na sedição do Quebra-quilos, em Campina
Grande, cujos nomes não constam na documentação policial da
época, surgem nas páginas de Trindade Henriques. t o caso de
Paulo Professor de Maria - de raro e estranho patronímico - réu
confesso em inquérito e "um dos mais valentes campeões de Carga
d' Água", no dizer quase elogioso do magistrado, e o do preto
49
Benedito José Figueiredo "preso como cabeça de insurreição de
escravos" 37 •
Um nome ilustre e conhecido emerge também na "Resposta"
de Trindade Henriques: Irineu Pereira Jóffily, o futuro autor de
Notas sobre a Parahyba e da Sinopsis das sesmarias da Capitania
da Parahyba. Irineu Jóffily fora testemunha de vista dos aconte-
cimentos que convulsionavam sua terra, onde, em Campina Grande,
exercera por alguns dias, de 15 de janeiro de 1875 até a véspera
da chegada de Caldas Barreto, as funções de promotor público.
A circunstância de seu pedido de demissão ter sido formulado um
dia antes da chegada do Chefe de Polícia e de ter este constatado
que ele, juntamente com o juiz Trindade Henriques e o padre
Calixto da Nóbrega, havia se retirado para São Vicente, em Per-
nambuco, induziu-o apressadamente a dizer, por escrito, que havia
"uma trama, cujo fim era crear-me embaraços em ordem a serem
mais espessas as sombras, em que se envolviam os sediciosos mais
notaveis" 38 •
O juiz Trindade Henriques juntaria à sua "Resposta" dois
documentos assinados por Jóffily. O primeiro é uma resposta ao
convite do magistrado para que exercesse o cargo de promotor-inte-
rino da comarca, porém ressalvando que o fazia "pela urgencia do
serviço publico" e que, como a função contrariava seus interesses
como advogado, pediria exoneração "logo que chegar o Dr. Chefe
de Policia para instaurar processo aos cabeças da sedição". Se a
carta foi realmente assinada a 13 de janeiro jamais se saberá.
Teria sido elaborada posteriormente quando já pesava sobre Jóf fily
a suspeita de conivência com os sediciosos?
Não restam dúvidas contudo do quanto a inquinação de que-
bra-quilos atingira o futuro historiador, pois, ao ajudar ao juiz a
aduzir provas da inocência de ambos, autorizara a divulgação de
uma carta que lança sobre a história do Quebra-quilos na Paraíba
uma série de indagações:
"Ilm. Sr. Dr. Antonio da Trindade Antunes Meira Henriques.
- Em resposta a carta supra de V. S. tenho á dizer-lhe, que muito
admirei a falta de circunspecção e demasiada leviandade do Sr.
Caldas Barreto, tanto mais sendo um magistrado investido d'um
cargo importante.
Assim sem haver entre nós as menores relações de amizade,
declarou perante mim, e mais uma pessoa que desejava que a
50
sedição havida nesta provinda tomasse proporções taes, que fizesse
cahir o Imperador.
E verdade que elle não pronunciou o seu nome, mas deu a
entender claramente por palavras, e em gesto expressivo.
Nesta cidade portou-se o mesmo Dr. Caldas com tal parcia-
lidade, que afastou de si os principaes habitantes, que o procurarão,
resultando d'isso queixar-se em muitas partes com a maxima
leviandade do despreso em que aqui foi tido.
O mesmo chefe de policia declarou nesta cidade, segundo me
informou uma pessoa digna de toda fé, que estava convencido da
innocencia do vigario Calisto, e que o despronunciaria.
Lamento, que um magistrado brasileiro proceda de tal modo.
Tenho exposto com verdade o que sei dos dous pontos de
sua carta, sobre os quaes invoca o meu testemunho.
Poderá uzar desta minha resposta como lhe approuver.
Sou com toda consideração. - De V.S. - C. e cr.º obr.º -
Irineo C. Pereira Joffely."
Ibiapina não chegará a ser denunciado. Seu nome/ já era
um mito e o governo prudentemente recuou. O padre Calixto da
Nóbrega será defendido pelo seu aliado e amigo Irineu Jóffily,
que conseguirá sua absolvição. Em outubro de 1875, o Quebra-
quilos já era parte integrante da história escrita da Paraíba e um
de seus principais capítulos seria o relatório que Carneiro da Cunha
apresentaria à Assembléia Provincial no qual fala na conseguida
tranqüilidade pública: "Esta província, que sempre se distinguiu
em todas as epocas pelo seu conhecido espírito d'ordem e respeito
as autoridades, em Novembro do ano proximo passado foi vitima,
em diversos municípios, das ciladas dos agitadores, e fanatismo
religioso, sob o pretexto dos impostos provinciais e leis do alista-
mento do exercito e armada e do sistema metrico decimal.
Com uma população em grande parte ignorante, e cheia de
preconceitos, não soube dar o devido apreço as doutrinas anar-
quicas e perigosas, que a mãos largas espalhou a imprensa faccio-
sa. Somente para contrariar as vistas beneficas e patrioticas do
Governo 'Imperial, que sempre e invariavelmente tem sido obser-
vadas pelo seu delegado.
Graças ao zelo e actividade do patriotico Gabinete de 7 de
Março, não se fizeram esperar nesta província as suas sabias pro-
videncias, que foram bem compreendidas e aproveitadas, de modo
51
que dentro em poucos dias estava restabelecida por toda parte a
ordem e tranquilidade pública, o respeito a lei e as autoridades
constituidas.
Diante uma situação tão difícil e cheia de perigos mantive-me
com aquela integridade, que me cumpria, sem olhar a outros inte-
resses, que não os da mais estricta justiça e severa imparcialidade.
Entretanto, como sempre em situações desta ordem, fui vitima
das mais injustas e apaixonadas apreciações, que o tempo se encar-
regará de apagar, si porventura ainda perdurarem no espirita dos
incautos, e dos que não acompanharam de perto os acontecimentos.
Para d'um golpe abafar este movimento, deponente de nossa
civilisação, era necessario energia, promptidão de ação, e a mais
imperturbavel serenidade d'espirito.
Tenho consciencia de que procurei desenvolver, quanto me
foi possível, aquelas qualidades indispensaveis em situação tão
melindrosa, tomando como juiz severo de minha conduta á todos
os homens· honestos da província sem diferença de cores políticas.
Tem melhorado consideravelmente em toda a província a se-
gurança individual e de propriedade.
O alto sertão, onde os mais graves atentados se reproduziam
a cada momento, e sob os mais futeis pretextos, hoje oferece um
aspecto muito diverso.
E para significar-vos este estado agradavel, que entretanto é
susceptivel de maior desenvolvimento, basta dizer-vos, que, quando
todos os municípios proximos á esta capital se envolveram na sedi-
ção, que infelixmente teve lugar na província, o alto sertão conser-
vou-se na mais perfeita tranquilidade, apesar dos elementos de
desordem, que antes se notava em seu seio." 39
A pouco feliz atuação do Chefe de Polícia Caldas Barreto na
repressão ao Quebra-quilos atingira um nome de prestígio como o do
juiz Antônio da Trindade Henriques e sua "Resposta" tivera grande
divulgação. Será substituído e um novo chefe de polícia dará ao
governo, a 20 de setembro de 1875, explicações a respeito de quem
fora processado e de quem já estava absolvido: "Como sabe V.
Excia., a tranqüilidade, de que tem gosado a Província, graças a
índole pacifica dos seus habitantes, e ao benefico influxo das nossas
52
instituições patrias, fora seriamente perturbada em algumas locali-
dades do interior nos fins do ano proximo passado.
Refiro-me aos movimentos sediciosos, que tiverão lugar em
Campina Grande, lngá, Pilar, Alagoa-Grande, Alagoa Nova, Areia
e outros lugares, pondo em alarma toda a Provinda.
Não descerei a detalhes acerca das causas de taes movimentos,
e nem dos graves atentados cometidos então pelas massas em desa-
tino, não só por que, sendo já á esse tempo V. Excia. o Presidente
da Província, teve perfeito conhecimento de todas as ocurrencias,
cabendo-lhe a gloria de conseguir o restabelecimento da ordem
publica, mediante as acertadas providencias, que tomou, e os socor-
ros, que de promto recebeu do Governo Geral, como tambem,
porque o meu ilustrado antecessor, o Dr. Caldas Barreto, sendo por
V. Excia., encarregado, depois de pacificada a Província, de sindi-
car dos fatos, e de proceder criminalmente contra os culpados, no
relatorio, em que deu conta a V. Excia. do resultado de sua comis-
são, ocupou-se largamente da materia, e seria temeridade de minha
parte tentar retoca-la, não a tendo estudado, como ele, no teatro
dos acontecimentos.
Limitar-me-ei, pois, á dizer, que dos indivíduos por ele pro-
cessados e pronunciados, como cabeças da sedição, em número de
34, já foram julgados e absolvidos pelo Juri da Capital os seguin-
tes: - Vigário Calisto Correia da Nobrega, Antonio Martins de
Souza, José Correia de Araujo, Manoel Nunes da Silva, João Vieira
da Silva, Manoel José de Sant'Ana, Mathias de Hollanda Chacon,
Remigio de França Coelho, Mathias de Freitas Vasconcellos, Anto-
nio Alves Barbosa, Idalino Cavalcanti de Albuquerque, Rosendo de
Arruda Camara, Francisco José de Lima, Manoel Alves Barbosa,
Martiniano Ferreira de Maria e Silva, Manoel Maria Brayner, te-
nente Cleodon Clementino Pereira, Alferes Jeremias Clementino de
Vasconcellos, alferes Antonio de Souza Ribeiro e major Antonio
de Lelis Souza Pontes.
Restam, por tanto, para serem julgados quatorze, dos quaes se
acham presos dois.
Felizmente depois dos movimentos, de que venho de falar, a
ordem publica se consolidou, e continua inalteravel." 40
O Presidente da Paraíba, futuro barão de Abiaí, era um polí-
tico de seu tempo e como tal fizera aliados intransigentes e inimigos
5J
que não esqueciam. Um deles, Almino Alvares Afonso, sob o pseu-
dônimo de Philopoemen, publicará, ainda em 1875, em Fortaleza,
na Tipografia Imperial, Uma nota sobre os Quebra-Kilos da Pa-
rayba do Norte, de cuja edição resta raro e valioso exemplar na
Biblioteca Nacional. Em meio a ataques pessoais ao seu inimigo,
Philopoemen escreverá, no seu opúsculo, a primeira página da
história social do Quebra-quilos, ao indagar: "Que outra coisa
foi o Quebra-Killos senão o grito dos padecimentos populares acu-
mulados durante muito tempo e que num momento explodiram?" .41
54
4. OS LIBERAIS E O QUEBRA-QUILOS
55
Disse com muita razão Antonio Freire 1 que faltou ao Que-
bra-quilos um Euclides da Cunha. A tragédia dos quebra-quilos
ficou historicamente na obscuridade dos episódios pouco estudados
e a complexidade de sua mecânica social desestimulou trabalhos
definitivos sobre o asunto. Muitas vezes os quebra-quilos são tipos
sociais semelhantes aos jagurtços de Antônio Conselheiro e suas
motivações quase as mesmas. A ótica com que vêem as instituições,
tanto os jagunços como os amotinados de 1874, têm a mesma etio-
logia e daí se ter dito e repetido, com maior ou menor insegurança,
que a principal causa da revolta do Quebra-quilos foi a ignorância,
geradora da reação das populações sertanejas ao recrutamento mi-
litar, que lhes parecia injusto, aos impostos e à implantação do sis-
tema de pesos e medidas, baseado no sistema métrico decimal fran-
cês, instituído no Brasil pela Lei n.º 1. 157, de 26 de junho de 1862.
A expressão quebra-quilos não é nordestina. Aparece no Rio
de Janeiro por ocasião das arruaças de 1871, quando alguns grupos
de marginais e desocupados depredaram casas comerciais que esta-
vam usando o novo sistema de peso e medidas. Como gritassem
Quebra os quilos! Quebra os quilos! a expressão passou generica-
mente a indicar todos os participantes dos movimentos de con-
testação ao governo no que diz respeito ao recrutamento militar,
à cobrança de impostos e à adoção do sistema métrico decimal.
Nem a arquivística nacional escapou a essa generalização. Ainda
hoje, parte da documentação sobre esses acontecimentos acha-se
reunida em um só códice, no Arquivo Público Nacional, onde
quebra-quilos paraibanos e pernambucanos, juntamente com re-
voltadas mulheres mineiras e paulistas contra o recrutamento mi-
litar, repousam na serenidade de uma única classificação.
O ato depredatório de quebrar as medidas do novo sistema
de pesos e medidas nas feiras adquiriu pouco a pouco, entre os
quebra-quilos, uma ritualidade que os identificava perante as
vilas e cidades nordestinas. Entretanto, por mais ignorantes e ingê-
nuos que fossem, por certo não acreditavam - pelo menos a gran-
de maioria - que a simples destruição dos quilos e vasilhames
aferidos, obstaria a sua reposição. A depredação era como que uma
cerimônia de solidariedade, em cuja participação vinculavam-se
mutuamente, adquirindo, assim, experiência contestatária nos vagos
objetivos que pretendiam alcançar. Era um batismo.
56
Nos processos instaurados contra os quebra-quilos. dos quais
restam-nos alguns, raros e preciosos 2 , nota-se a preocupação dos
réus em não serem identificados como criminosos. Tendo enfren-
tado o Estado, em cujas mãos se encontram, mais ou menos sem
defesa, assumem posição de vítimas ou de heróis, a primeira natu-
ralmente mais comum do que a segunda.
A Província, nos últimos dias do ano de 1874, publicou uma
série de artigos contra o governo, assinados por José Antônio de
Figueiredo, professor da Faculdade de Direito, na qual o problema
dos quebra-quilos aparece segundo a ótica da oposição liberal. O
liberalismo de Figueiredo é apenas nominal como se pode ver na
opinião do articulista a respeito ,da escravidão. Indaga, referindo-
se à cautela que se deve ter nas mudanças e inovações se não
"seria rematada loucura, a do philantropo que procurasse extin-
guir de chofre esse mal". Sua conclusão é a de muitos conserva-
dores da época: "Quem o tentasse e o conseguisse, mataria, com
um só golpe, o nosso commercio e a nossa desanimada lavoura".
Entretanto, não sem razão, o bacharel Antônio de Figueiredo
observava que na sedição não havia chefes e que ela se originava
de "causas poderosas, capazes de agitar o povo e de arremessai-o
a desatinos". E em retorcida, gongórica e cassândrica visão de sua
época assinalava: "Reina entre nós uma atmosfera desde muitos
anos, e essa atmosfera, cada vez mais se vai carregando de teme-
rosa eletricidade".
Não se pode negar a José Antônio de Figueiredo uma ótica
realística de certos fatos ao seu redor. Suas palavras finais, em
artigo publicado nA Província3 , merecem registro: "O povo, cons-
tante vitima de recrutamentos barbaros, verdadeira caçada huma-
na, o povo encurralado por tributos excessivos lançados sem con-
testação alguma, por camaras unanimes; o povo faminto e nu, em-
bora nascido em um paiz fertilissimo; o commercio e a lavoura
em deploravel estado como nunca crise igual os fulininava; os
proprietarios e lavradores das províncias do norte, forçados pela
necessidade e venderem os poucos escravos que possuem, os quaes,
as centenas são conduzidos mensalmente em vapores que os levam
para o sul; e para cumulo de males essa fatal questão religiosa,
essa geral inquietação das consciencias, taes, são as causas dessa
57
lamentavel sedição! Não é pois de boa política nem de são patrio-
tismo fechar os olhos às verdadeiras causas da sedição, e tel-os
bem abertos para lançar a responsabilidade sobre homens inocentes
punindo-os por crimes a que são estranhos, por crimes dos quaes
são antes victimas do que authores".
Em janeiro de 1875 continuavam a sair em A Província os
artigos de Figueiredo. Não são mais do que o desenvolvimento das
idéias defendidas logo no primeiro da série.
As causas da sedição permaneceriam envoltas nos pasmos e
dúvidas dos artigos de jornal, dos discursos e das comunicações
oficiais. Uma coisa entretanto já era conhecida e os jornais a no-
ticiaram corretamente: a tática dos quebra-quilos de entrarem em
pequenos grupos e depois agirem conjuntamente ou, como diria um
redator do Diário de Pernambuco, "estão usando da tactica de
entrarem aos dous e tres para o theatro de suas loucuras onde a um
sinal previo se reunem" 4 •
Caracteristicamente um movimento pré-político, o Quebra-
quilos não investiu contra o Imperador, considerado sempre muito
distante e apenas indiretamente responsável pelas injustiças sociais
de seu tempo.
O número de componentes dos grupos armados que invadiam
as feiras, destruindo pesos e medidas e queimando cartórios varia
bastante. Ora não passa de trinta, às vezes chega a trezentos, con-
forme larga documentação deixada pelas autoridades municipais
em suas cartas, queixas e relatórios aos governos provinciais. ~
provável que exageros estejam presentes na maioria desses do-
cumentos. Receber mais munições e reforços dava, naturalmente,
às autoridades interioranas, maior superioridade militar e psico-
lógica e, indiretamente, aumentava-lhes o prestígio perante a popu-
lação.
O que se poderia chamar de a primeira defesa dos quebra-
quilos apareceu no dia 28 de novembro, em forma de volantes,
distribuídos pela cidade. No dia seguinte, A Província a publica-
ria na íntegra.
A anállse desse documento revela uma ansiosa e paradoxal
tentativa de identificar os quebra-quilos com os interesses dos altos
comerciantes do Recife. O seu teor, acentuadamente partidário, não
esconde o desejo de unir a opinião pública contra os conservadores .
Os quebra-quilos são apresentados como grupos pacíficos que se
58
reúnem tranqüilamente para reclamar dos impostos "inconstitucio-
nais" com os quais um governo despótico revela a sua face auto-
crática ao ordenar a mais severa cobrança. Nessa altura dos acon-
tecimentos, já claramente percebe a opinião pública que o movi-
mento não era restrito ao interior da Paraíba e que constituía, pela
sua extensão geográfica, uma sedição que se alastrava também pelo
interior de Pernambuco. Atribuindo aos impostos iníquos as causas
do movimento popular e criticando as autoridades, o documento,
ao mesmo tempo que protestava contra o "derramamento de sangue
brasileiro", insinuava, hostilizando mais uma vez o governo, que
deveriam ser considerados "cabeças da revolução" os redatores
dA Província, os negociantes da Associação Comercial, enfim to-
dos aqueles que haviam representado contra os novos impostos.
Cotejando-se o contraditório noticiário da imprensa da época,
evidencia-se que o Diário de Pernambuco pretendeu minimizar a
insurreição. Órgão conservador, apoiando o governo, em sua edição
de 30 de novembro, diria "que estava a acabar-se o movimento
armado da Paraíba". Não deram tréguas ao Diário os redatores
dA Província. Os acontecimentos da Paraíba foram qualificados
como "o grande movimento paraibano" e com o sarcástico título
de "Vivas e vivas epocha de vivorum" noticiaram os jornalistas
daquele órgão liberal a chegada à capital paraibana das forças
conduzidas pela corveta "Paraense", dirigidas pelo Chefe do 2.º
Distrito Naval, Mamede da Silva, as quais segundo fontes oficiais,
teriam sido aclamadas aos desfilarem na cidade.
Insistiram sempre os líderes liberais, nessa primeira fase,
em mostrar que o movimento era sumamente popular e que o par-
tido liberal nada tinha a ver__ com a insurreição. As contradições
liberais da época aparecerão ao---l~go de publicações, editais e no-
tícias onde o partido liberal ora se auto-intitula "colunas da mo-
narquia" e ora diz "somos nós, somos o povo". O movimento
Quebra-quilos não seria, segundo as notas oficiais do partido libe-
ral - e tal fato constitui uma circunstância, em suas linhas mais
gerais, seguramente verdadeira - , um movimento de partido ou
premeditado, e sim uma resposta popular à situação então vigente.
Resposta violenta aos bacharéis, deputados, câmaras, coletorias,
cartórios e impostos, peças fundamentais da engrenagem político-
administrativa da época. Os enfoques locais fazem com que apa-
reçam como leitmotiv do movimento a política dos governadores
provinciais. Se, na Paraíba, é Silvino Carneiro da Cunha que
"faz emprestimos aos bancos do Rio de Janeiro" e "lança impostos
sobre generos alimentícios e sobre o chão que se pisa" convertendo
59
"o povo da Parayba em escravos de sua feitoria", no Recife, Hen-
rique Pereira de Lucena é mater et geratrix de todas as desgraças
que se abatem sobre Pernambuco. São freqüentes, na imprensa da
época, alusões à carestia. Alarmam-se todos porque a arroba da
carne está a 7$000 e a 8$000. A barrica de bacalhau a 24$000 pa-
rece um descalabro, e a circunstância de que uma arroba de carne
seja equivalente a três de açúcar dá ao quadro geral dos preços
uma tonalidade apocalíptica.
João Alfredo Correia de Oliveira, Ministro do Império, esta-
va em visita à sua Província natal, Pernambuco, quando o movi-
mento Quebra-quilos ameaçava atingir Goiana. Visitara aquela ci-
dade pernambucana e dela retirara-se, um tanto apressadam~nte,
ante a onda de boatos alarmantes de uma próxima invasão dos
quebra-quilos. Não lhe pouparam os adversários críticas e sarcas-
mos ao que chamaram a "fuga do ministro". Identificado com Lu-
cena na repressão à insurreição interiorana, considerado pelos ad-
versários como conivente na inércia governamental da época, João
Alfredo, entretanto, revela, através de sua correspondência, ser um
estadista consciente dos problemas econômicos e sociais de sua
terra. Preocupava-o bastante a expansão do movimento.
Um dia após seu regresso ao Rio, os inimigos políticos do Mi-
nistro ofereceram aos quebra-quilos uma plataforma política e
um amplo programa de reivindicações. A Província, depois de
recordar os "brados pela liberdade de 1817, 1822, 1824, e ainda
de 1848", lembrava, em sua edição de 8 de dezembro de 1874, um
"programa mais pronto, mais urgente, que se constituía na liber-
dade, na lei de eleições; na liberdade nas leis judiciárias; na liber-
dade no serviço militar ou abolição do recrutamento; na liberdade
para a milícia cidadã ou abolição da Guarda Nacional e finalmen-
te a liberdade para o elemento servil ou a emancipação dos escra-
vos".
Obviamente a palavra liberdade e toda a magia semântica de
seu significado s6 poderia ser explicitamente aplicável ao proble-
ma da escravidão negra e é provável que o programa sugerido pela
A Província jamais tivesse possibilidades de ser lido pelos quebra-
quilos.
O deslocamento de tropas, ordenado pelo governo, demonstra
a dimensão de sua preocupação com o movimento: haviam seguido
imediatamente para a Paraíba, pela vapor "Mundahu", cem mari-
nheiros, artífices e praças de linha. Da Bahia, meio batalhão deslo-
cou-se para Pernambuco a bordo da corvete "Paraense". Da Corte
60
partiria para o Nordeste o 14.º Batalhão e as corvetas "lpiranga"
e "Vital de Oliveira", juntamente com a fragata "Amazonas".
A ausência de urna liderança unificada ou pelo menos de
urna concreta identidade de objetivos, deu às violências cometidas,
cores muito regionais. Condicionaram-se assim as reivindicações dos
quebra-quilos a problemas locais; inimizades pessoais e políticas de
juízes de Direito, delegados e proprietários afloraram abruptamen-
te, e seus reflexos aparecerão constantemente na imprensa da épo-
ca.
61
S. O QUEBRA-QUILOS E A QUESTÃO RELIGIOSA
62
é de se estranhar que a Igreja se considerasse então perseguida
pelo Governo Imperial e que pouco se importasse com a sorte da
Monarquia que o Internúncio classificará, em ofício à Secretaria
de Estado de Sua Santidade, datado de 3 de dezembro de 1889,
referindo-se ao regime, pouco antes deposto, como una Monàrchia
troppo corrota, dai favoritismo, dali" arbitrio, delle cortigianerie 2 •
À crítica histórica de Joaquim Nabuco não passou desperce-
bida a dimensão republicana do problema. Ao justificar o seu mo-
narquismo, diria que "a história recordará em uma de suas páginas
mais originais essa monarquia brasileira, que não era militar, nem
clerical, nem aristocrática, e que por isso foi derrubada pelo exér-
cito, depois da revolta contra o escravismo, com indiferença da
Igreja" 3 • Observou Nabuco, com inteligência e mal disfarçado
saudosismo político, que os republicanos se aliaram indiferente-
mente com a Igreja ou com a maçonaria, ~u com ambas, como
se aliaram com os abolicionistas e os grandes proprietários, com os
militares e os inimigos do militarismo.
A interação entre o Quebra-quilos e a Questão Religiosa é
assimétrica. Saldanha Marinho, agravando o conflito entre a Igre-
ja e o Estado representa a aliança republicana com a maçonaria.
Aristides Lobo será o elo de aproximação com a ressentida Igreja
Católica. O radicalismo de Saldanha Marinho acendera em Per-
nambuco, onde a Questão Religiosa assumira contraditórias conse-
qüências políticas, um movimento de opinião pública contra a
Igreja, apresentada, então, como uma internacional negra que se
movia entre o jesuitismo e a depravação da Cúria Romana.
Ao pedir ao governo rigor no caso dos bispos, o Ganganelli
panfletário e irreverente é, de certo modo, a contrafração popular
do hierático Pedro II, que não era propriamente anticlerical, como
assinalou Nabuco, "pois o que não lhe inspirava interesse era a
própria vocação religiosa; evidentemente o padre e o militar eram
aos seus olhos de estudioso infatigável de ciência, senão duas inu-
tilidades sociais, duas necessidades que ele quisera utilizar melhor:
o padre, fazendo-o também mestre-escola professor de Universi-
dade; em vez do militar, um matemático, astrônomo, químico, en-
genheiro" 4 •
6J
Discutiu-se no Conselho de Estado, diversas vezes o proble-
ma dos bispos. Consultado pela primeira vez, em 12 de fevereiro
de 1873, o Conselho estrutura as bases da doutrina oficial, o re-
galismo. D. Vital recebe do governo ordem de levantar, no prazo
de um mês, a suspensão das confrarias e o interdito das igrejas.
A maçonaria seria uma sociedade beneficente, permitida pelo Esta-
do, e as bulas papais inaplicáveis, pois não haviam recebido o
placet imperial. Confraria era "matéria mista" e, conseqüentemen-
te, um bispo não podia suspendê-la sem a permissão governamental.
Um dos documentos mais esclarecedores da Questão Reli-
giosa no que ela tem de político, como dimensão de um hiato
histórico entre o elitismo governamental e uma nova Igreja, que
procura seus próprios caminhos, é a sessão de 8 de setembro de
1875. Três pontos foram propostos estão no Conselho:
1.º - Não será medida salutar conceder um perdão ou, antes,
uma anistia que reponha tudo no antigo Estado?
2.º - O fato de terem os Bispos a certeza de que continuando em
vigor as leis punitivas, terão eles de ser novamente proces-
sados, não poderá afastá-los de reincidências?
3.º - E para que seja esta reprimida, não resta ao Governo o
recurso de solicitar do Poder Legislativo medidas claras, po-
sitivas e adequadas, que não possam dar lugar a tergiver-
sações?
O voto do visconde de Abaeté é mais uma indagação do que
uma conclusão. Diria Abaeté: "Se repor tudo no antigo Estado,
quer dizer que o governo deixará em esquecimento todos os atos
anteriores e não fará executar as resoluções que, em recurso à
Coroa, obtiveram as irmandades de Pernambuco e do Pará, acho
que o procedimento do governo será interpretado ou como um ato
de fraqueza, ou como uma condenação de tudo quanto nesta grave
questão se tem feito; e quaisquer que tenham sido a este respeito
as minhas opiniões individuais, persuado-me que cumpre ao Go-
verno ser coerente e evitar que dos seus atos sobre tão importante
assunto se dê pretexto para formar um juízo menos favorável, com
o que muito perderia ele da força e prestígio indispensáveis para
vencer as dificuldades com que luta". Adiava, assim, Abaeté, com
habilidade florentina, a possibilidade de anistia.
O voto do marquês de São Vicente é radical. Segundo ele o
que há da parte da Igreja é um sistema organizado e firmemente
disposto a predominar sobre o poder político. Vencê-lo ou capi-
64
tular, é a questão. Ao responder ao primeiro quesito, julga que
"cumpre antever as graves dificuldades que o Poder Político encon-
trará no futuro para combater, quando for necessário, uma teocra-
cia sistemática, perseverante e, até mesmo, intrépida que envida
esforços contra a civilização e contra as autoridades que a prote-
gem".
O pronunciamento mais importante, entretanto, é o de Rio
Branco. Presidente do Conselho, Ministro da Guerra e Ministro da
Fazenda, no Gabinete conservador de 1871 (7.3.1871 a
24.6.1875), com a responsabilidade de ter dois bispos encarcera-
dos, Rio Branco, em novembro de 1874, quando lhe chegaram as
primeiras notícias sobre os quebra-quilos, comunicara em carta ao
Imperador, que aparecera um movimento sedicioso na Paraíba e
que a capital estava ameaçada por mil sediciosos que vinham
de Campina Grande e lngá e que "o Ibiapina parece ser o agita-
dor, andava proclamando. O pretexto é o recrutamento, os novos
-pesos e medidas e a Questão Religiosa" 5 •
No dia seguinte completará suas informações ao soberano:
"Essa chamada conflagração deve ser a presença de grupos agita-
dores naqueles lugares mediatos onde não encontram força. O
grito morra os mações mostra que é a questão religiosa" 6 •
Uma outra carta, datada de 27 de novembro comunicava que
havia sido enviado telegrama ao Presidente da Província de Per-
nambuco recomendando que fosse empregada a intervenção dos
capuchinhos " mas estando a força à vista, ou perto, para obrar,
se preciso" 7 •
Longe dos acontecimentos, informado sobretudo por telegra-
mas de Lucena, perseguido pela idéia de uma "vasta revolução",
onde a Questão Religiosa e os jesuítas funcionavam como setores
de atuação política dos liberais, Rio Branco adiantaria em sua carta
ao Imperador, datada de 28 de novembro: "Para mim é evidente
que a causa primordial é o manejo dos ultramontanos, o mais serve
para excitar os que não compreendem a questão religiosa ou para
acender-lhes a dedicação" 8 •
65
Desconcertado com as notícias que recebia diariamente diria
ainda, a 29 de novembro, comentando as informações do Presi-
dente da Província de Pernambuco: "Custa-me a crer, que em
Pernambuco os sediciosos não falem também na questão religiosa.
Aquilo deve ser informação do Capuchinho ... " 9 • Referia-se Rio
Branco, assim, com indisfarçada dúvida, a um despacho de Lucena
dizendo-lhe que a cidade de Bom Jardim fora pacificada por um
religioso daquela ordem.
Parecem ainda estar presentes na mente de Rio Branco todas
as suspeitas de vinculações dos quebra-quilos com a Questão Re-
ligiosa, quando deu o seu voto: "O mais provável é que eles vejam
na clemência do Poder Moderador, uma confissão da fraqueza do
Governo e da ineficácia dos seus meios repressivos; por outros
termos, uma vitória preciosa para as doutrinas e os propósitos po-
líticos da Curia Romana.
Em este caso provável, o que terá conseguido o governo? Terá
talvez desmoralizado a ação das leis civis e os seus Tribunais que
tão dignamente o auxiliaram na defesa dos direitos do Estado; dará
novo calor às pretensões dos mesmos Bispos e aos seus secretários;
desanimará a parte do Clero Nacional que simpatizava com a causa
do governo, pela violência feita à sua liberdade civil e à sua cons-
ciência de verdadeiros católicos.
Por ventura as dificuldades que ora inquietam o governo de-
saparecerão por esse modo? Decerto não. Ao revés disso, poderá
tomar maiores proporções pelo clamor dos que sofrem a opressão
dos prelados e de todos os que vêem neste conflito uma questão
séria de princípios,. que interessam à dignidade e à segurança da
Nação Brasileira. Os Bispos e os sectários do seu ultramontanismo
ficaram de fato triunfantes e poderão aprovar e repetir os mesmos
fatos e pretexto de punirem a suposta heresia dos mações; achar-
se-ão na posição de vítimas e queixosos por falta de proteção le-
gal".
Temperou Rio Branco seu voto com uma dose de humor
que a circunstância, o local e sua posição permitiam, dizendo:
"Seja-me permitido dizer como o bom senso popular qualificaria
semelhante política: ele diria que o governo desprezou da medici-
na alopática, que era a medicina legal e socorreu-se à homeopatia,
entregando a cura do mal aos seus próprios autores, que são os
(9) Idem.
66
prelados diocesanos de quem se trata, disposto a voltar a primeira
medicina, se a segunda não restabelecer o enfermo" 10 .
Não se poderia dizer, entretanto, que o visconde de Rio
Branco estivesse fechando a questão. A abertura está clara quando
diz, referindo-s~ ao primeiro quesito, que se o governo "tem razão
para crer que assim procederá eficazmente pro bono pacis et pro-
bono eclesia, pode-se fazer sem maior inconveniente, uma vez
que_ resguarde de alguma forma a sua dignidade e os seus prin-
cipias que tem defendido". Muritiba defenderia, com cautela, os
bispos no grave problema que, segundo suas próprias palavras,
chegou "quase a ponto de causar um perigoso cisma na Igreja
do Brasil 11 . Não escondeu o visconde de Bom Retiro, Luís Perei-
ra do Couto Ferraz, a impressão que lhe havia causado o movi-
mento Quebra-quilos, indisfarçadamente revelada quando assina-
lou que "o Império, além do mais perde com tudo isso o auxílio
eficaz e benefico que por meio da predica e da influencia, pro-
veniente do carater sagrado, podiam prestar e que em outras oca-
siões tem prestado, os ministros da Religião, em quadra como atra-
vessamos, esclarecendo a população de nossos sertões e do interior
do Brasil que, em geral, pouco ilustrada, tanto carece de quem,
inspirando-lhes a fé a guie pelos caminhos suasorios à obediencia às
autoridades e a chame ao caminho legal. Tal estado de coisas não
pode, com efeito, continuar por muito tempo, sem que se sintam
reais apreensões de perigos de ordem elevada" 12 .
Rio Branco foi provavelmente o estadista que mereceu a maior
confiança de D. Pedro II. Não somente pelo cargo que ocupava
como também pelas qualidades que possuía. Sua palavra sempre
foi acatada pelo Imperador, e é possível que este não duvidasse
também das ligações dos quebra-quilos com o clero depois de ouvi-
lo. Não se pode· dizer, entretanto, que o visconde de Rio Branco
fosse um intransigente. Nabuco o definiu com sua lúcida capaci-
dade de análise: "tinha seºriedade, critério, infatigabilidade, cora-
gem, vigor físico, pontualidade, correção, franquesa, maneiras" 13
67
e, juntando-se a isso o depoimento da vmva de Rui Barbosa a
Batista Pereira 14 , confessando que o visconde fora o homem mais
belo que vira em toda a sua vida, tem-se o perfil de um privilegiado.
Não passaram despercebidas a Rio Branco as mudanças de
sua época e a transição que se operava no Brasil a partir de 1850.
Conservador, identificado com o trono, tem muitas vezes atitudes
mais liberais do que os liberais da época, - como um José de
Alencar, "vanguarda na literatura e retaguarda da política", como
espirituosamente assinalou José Honório Rodrigues 15 • :e bem ver-
dade que a fronteira entre conservadores e liberais foi quase sempre
mais partidária do que ideológica, e daí o julgamento severo de
Oliveira Viana: "os dois velhos partidos não tinham opinião, como
não tinham programas; o seu objetivo era a conquista do poder e
conquistado este, conservá-lo a todo transe. Nada mais. Era este
o principal programa dos liberais, como era o dos conservadores",
juízo tanto mais severo quando completado, mais adiante, pela
observação cáustica de que em nosso país os partidos: "não dispu-
tam o poder para realizar idéias; o poder é disputado pelos pro-
ventos que concede aos políticos e aos seus clans. Há os proventos
morais, que sempre dão a posse da autoridade; mas há também os
proventos materiais que essa posse também dá. Entre nós a Política
é, antes de tudo, um meio de vida; vive-se do Estado, como se vive
da Lavoura, do Comércio e da Indústria, e todos acham infini-
tamente mais doce viver do Estado do que de qualquer outra coi-
sa; num país assim, a conquista· do poder é um fato inquestionavel-
mente mais sério e mais dramático do que em outro país, em que
os indivíduos vão ao poder no intuito altruístico de realizar um
grandt! ideal coletivo. Daí, a áspera violência das famosas "derri-
badas". O partido que subia derrubava tudo - quer dizer: sacudia
para fora dos cargos públicos, locais, provinciais e gerais, todos os
ocupantes adversários, era uma vassourada geral, que deixava o
campo inteiramente limpo e aberto ao assalto dos vencedores" 16 •
Foi assim até o último dia do Império e o povo não seria to-
talmente enganado. Nas vésperas da República, o Lincoln, jornal
68
abolicionista alagoano, dizia acremente: "Os partidos são um fac-
simile um do outro, com a diferença de que o que está sob a opres-
são promette sempre melhorar, subindo o estado actual das coisas
- é uma tactica commum dos dois. Mas quando qualquer d'elles
sobe, só trata de entricheirar-se obstinadamente para, por mais
tempo, conservar-se no poder" 17 • "
69
certeza de que eles auxiliam a resistencia dos Bispos e são, portanto,
estrangeiros perigosos.
A minha questão é de oportunidade. Agora não se pode alegar
perigo iminente, porque o movimento vai sendo sufocado. O Sr.
Junqueira não vota pela deposição (sic) sem prova cabal da
culpabilidade dos acusados" 19 •
As notícias enviadas por Rio Branco, a 17 de dezembro, ao
Imperador, indicam que a sedição não fora debelada e que Lucena
insistira no sentido de que fossem os jesuítas deportados. Dizia tex-
tualmente Rio Branco: "A noite recebi o telegrama junto sobre
o qual conferenciarei hoje à noite com meus colegas. Espero que
se resolverá a deportação dos jesuítas, visto que continua o movi-
mento e o Presidente insiste por essa providencia".
A 22 de dezembro, Rio Branco estava plenamente convencido,
pelos telegramas que lhe enviara Lucena, que o plano de agitação
que perturbava Pernambuco e Paraíba era jesuítico, com ·a cola-
boração de alguns políticos do Partido Liberal. Escreveria a Pedro
II: "Junto os telegramas ontem recebidos. Está evidente que o
plano é jesuítico, com algum auxílio de políticos desabusados. Com
a repressão com cada vez mais vigor e alguns vão sendo escar-
mentados, brevemente veremos, espero eu, essa comoção sufoca-
da".
Os acontecimentos de Triunfo, em Pernambuco, chegaram ao
conhecimento de Rio Branco não somente através da correspon-
dência oficial do Presidente da Província, como também através
das informações do conselheiro João Alfredo, que regressara à
Corte, após sua viagem à terra natal. Impressionara-o também a
queixa do Presidente de Santa Catarina contra o jesuíta João Maria
Cybeo que, no interior daquela província, andara pregando contra
o governo. Rio Branco via o invisível dedo jesuítico na subversão
da ordem no interior e daí seu telegrama a Lucena, enérgico, ca-
tegórico, apreensivo e antijesuítico: "A autoridade não deve recuar.
Os jesuítas de Triunfo são os mais perigosos; prepararam o movi-
mento da Paraíba e de Pernambuco, de intelig~ncia com lbiapina
e outros missionários. Parece que ali está o foco principal da sedi-
ção. Proceda com prudência, mas com energia, dispondo para esse
fim de elementos eficazes. Aumente-se a força de linha. Vá o Chefe
de Polícia, Luís Maranhão, a Buíque e outros cidadãos que con-
corram. Combine-se a operação com as forças da Paraíba, que
70
marcham para aquele lado. Força das Alagoas, que fosse pelo rio
até certo ponto, procurando Tacaratu, poderia entrar nessa opera-
ção. Se não há aí, nem em Maceió, vapor para subir o rio, requisi-
te ao Presidente da Bahia um vapor da Companhia Bahiana. São
indicações que deixo ao competente arbítrio de V. E.xa que pode
melhor julgar. O essencial é não arriscar um revés da autoridade,
fazer cumprir a ordem, apresentando no lugar, por uma ação
pronta, hábil, enérgica e sem estrépito os meios eficazes de impor
respeito e vencer pela força, se for indispensável. Vá o Capuchinho,
se o há que se preste e mereça confiança, para tomar conta das
obras. Prometa-se (não como transação) que as igrejas serão con-
cluídas, mas prendam-se e saiam os jesuítas. Fraquear, nesse caso,
é animar novas resistências, é perder tudo" 20 •
71
6. O QUEBRA-QUILOS,
OS JESutTAS E O JESUITISMO
72
Pernambuco e excitar o fanatismo popular entre as pessoas pouco
instruidas" 1 •
Não estavam há muito tempo em Pernambuco os jesuítas.
Sepultada no tempo a política pombalina, voltaram em 1866, pelas
mãos do bispo D. Manuel Medeiros, instalando-se, no Recife, cau-
telosamente, sob o nome de "padres de São Francisco Xavier".
Acomodaram-se modestamente no "collegio do Hospício" e cola-
boraram ativamente no jornal O Catholico. No seu primeiro nú-
mero, O Catholico apresentava a principal razão de seu programa
ideológico: "necessidade urgente de defender, na quadra actual
a \religião christã e a Igreja". Não estaria a serviço de nenhum
partido político. Como único responsável por todos os artigos nele
publicados, aparecia o nome do Conselheiro Pedro Autran da
Mata Albuquerque, porém a indicação de que estava "sob os auspí-
cios do bispo D. Francisco Cardoso Ayres" dá-lhe características de
órgão oficial. E visível nas suas páginas a presença jesuítica; a
linguagem é por vezes violenta, quando se refere à maçonaria. "Ba-
fos pestilenciais que sahein da boca do maçon nas lojas" parecem-
lhe os ataques recebidos do Jornal do Recife.
Em 1872, o Dr. José Sariano de Sousa, intelectual ligado aos
jesuítas, surgirá como o novo responsável. O liberali~mo não era
evidentemente piece de résistance do jornal e a 20 de abril de
1872, sairia publicado, na primeira página, seu conceito de gover-
no liberal: "Assim como a felicidade, quer dos indivíduos, quer
das nações só pode derivar da sua perfeita dependência de Deus
e da lei moral; assim também o não ser dependente de Deus e da
lei moral, é a fonte da infelicidade tanto dos indivíduos como das
nações. Supposto isto, quando Deus quer castigar os crimes de
uma nação basta que a entregue a um governo que toma por base
esta independência de Deus e da lei moral. Tal é portanto o go- ·
verno liberal".
A década de 1870 a 1880 será de agitação ideológica e,
como assinalou Nilo Pereira, "entre 1870 e 1876 o Recife é teatro
de um intenso debate filosófico-religioso, que se reflete na impren-
sa sob formas de polêmicas e discussões, muito ao gosto do tem-
po" 2 • Discute-se teologia, avança o racionalismo, combate-se o
73
regalismo. A árvore jesuítica dava frutos de vária espécie e qua-
lidade.
Não soube o Império colocar os inacianos a seu serviço, va-
lendo-se da tradição ibérica e da própria experiência da História
brasileira. Para o distante Imperador, ensimesmado no seu pró-
prio monarquismo, o regime devia existir por si só ou, como afir-
maria Nabuco, "sem trocar serviços, sem fazer favores, sem criar
apanágios e vassalagens" 3 • Se, por um lado, o jesuitismo, no pas-
sado, pretendeu e conseguiu, muitas vezes, domínio político, por
outro, a reação a sua influência não foi menos importante. Esta
foi a dilemática da Coroa. O espírito pombalino na história per-
nambucana fará aparições nas páginas de um hoje raro e pouco
conhecido livro de Aprígio Guimarães escrito sob o pseudônimo de
Fábio Rústico 4, com ataques diretos, procedentes numas linhas,
injustos noutras, lançados no turbilhão religioso-político daquela
cidade que, como assinalou Nilo Pereira 5 , "vivia dias ansiosos, que
só se pode sentir lendo-se os velhos jornais, pelos quais ainda hoje
perpassa um frêmito de paixão".
A inaciana nostalgia política dos tempos de outrora, onde con-
fessores de rainhas e · eminências pardas de governos tinham o
ganho diário do poder de decisão, não era menos forte do que o
desejo de colocar-se em defesa de um bispo atacado pelo Império.
Tem também a Companhia a apologética certeza de que luta pela
soberania da fé contra a soberania da Coroa. O jesuitismo, entre-
tanto, já havia percorrido suficientes décadas, na história do século
XIX, para fazer seus novos inimigos e o Fábio Rústico pernambu-
cano não o poupou do ataque, na introdução de sua obra: "o je-
suíta é um moedeiro falso de christianismo, batendo a sua moeda
sobre a ignorancia e a boa fé, e principalmente sobre a hypo-
crisia" 6 •
Alguns padres do interior haviam criticado o governo, nos
sermões dominicais, pela sua posição no· caso dos bispos D. Vital
e D. Macedo Costa. Mas não são geralmente jesuítas os que têm
essa coragem. São simples padres seculares ou membros de outras
ordens. Um deles, o padre Manuel Antônio de Jesus, vigário "en-
comendado" de Granito, é denunciado pelo promotor público
74
Geraldo de Carvalho por ter "procurado alterar a ordem pública
com práticas encediozas contra o Governo, tomando por funda-
mento a questão religiosa e a condenação do Sr. Bispo D. Vital,
quando para isso suppõe-se que é animado por alguem, a quem
agrada o movimento sedicioso que se vai desenvolvendo por esta
provinda" 7 • E provável que esse padre realmente fizesse censuras
públicas ao Governo, pois o juiz municipal também o denunciou
dizendo "que o vigario encomendado desta Freguesia Padre Ma-
noel Antonio Martins de Jesus, abuzando da tribuna sagrada, onde
só deveria falar linguagem da verdade, tem procurado incutir no
animo do povo ideias subversivas a ordem publica, dizendo-lhes
que não deve obedecer ao Governo nem soffrer mais imposições,
por que elle quer acabar a Religião do Estado: que a prisão dos
Bispos desta provinda e da do Pará é um atentado contra as
Leys da Igreja" 8 •
O vigário apressou-se a desmentir seus denunciantes, de resto
apoiados pela Câmara Municipal de Granito. "Taes acuzações são
falças", · diria o vigário, "e são filhas da indispozição que tem
contra mim sertos mandões deste lugar, porque eu não vim ser
vigario aqui por intermedio delles, como era o caso do Costume
Velho, pois só cazo e baptizo prehenxido os requisitos que a Santa
Igreja exige". E não querendo ser envolvido pelo Quebra-quilos
diz ainda o padre Manuel: "Nunca fallei sobre revolução, e quan-
do tenha ainda de fallar será para lamentar esse desvario dos meos
semilhantes; protesto portanto contra semilhante callunia, contra
tão grande falcidade". E para que não restassem dúvidas: "O que
vão soffrendo os meos irmãos sacerdotes, tenho lamentado porque
não é crime dar expanção aos sentimentos do meo coração pela
morte dos meos Irmãos em Jesus Christo. Não sou politico Exmo.
Sr. isso mesmo tenho declarado aos meos parochianos, e tenho
dado provas e direi; o meo crime perante inimigos gratuitos é viver
com independencia e terem elles esgotado os meios para botarem-
me para fora dessa freguezia e não terem podido" 9 •
75
Não se pode fiar muito nesse vigário. O chefe da Polícia Mi-
litar do Recife, Antônio Francisco de Araújo, diria ao Presidente
da Província: "Convem dizer a Vossa Excelencia que existe em
poder do mesmo delegado um barril com polvora, já aberta, que foi
encontrado em casa do vigario Manoel Antonio Martins de Jesus,
bem como 4 clavinotes, 3 espingardas, 1 pistola, 1 revolver, 1 faca
e 1 facão" 10 •
Paralelamente às violentas manifestações dos quebra-quilos,
circulavam na capital e interior, moderados manifestos ,de adesão
aos bispos presos. Ambos atingem o governo. O vigário de Buíque,
Herculano Marques da Silva, em ofício ao Presidente Henrique
Pereira de Lucena, tentando rebater as· acusações que lhes haviam
sido feitas pelo juiz e pelo delegado locais, dizia que havia mos-
trado "ao Juiz de Direito interino desta comarca, Bacharel Luiz
da Silva Gusmão, um protesto de adhesão ao Exmo. e Ilmo Snr.
Bispo Diocesano, concebido pouco mais ou menos, nos mesmos ter-
mos em que outros muitos parochos os teem feito, e, declarando
eu a esse Juiz que no Domingo seguinte hia convidar os meus pa-
rochianos assignarem comigo essa manifestação catholica, respon-
deo-me elle que estava bom esse trabalho e nada mais disse" 11 •
O delegado João Pires Ferreira tomou as dores do Governo.
Tentou demover o cura local de ler o manifesto de adesão aos
bispos na missa e de solicitar o apoio da paróquia. No domingo,
16 de novembro, BÚíque presenciou uma cena insólita, quando, se-
gundo a narração do vigário, o "mencionado delegado, cercado
de meia dúzia de homens, uns emancebados e outros que se dizem
mações, apresentou-se na Matriz, o que nunca fazia, armado de
um revolver e dirigindo-se esses Snrs. a minha pessoa (que ainda
se achava no altar e revestida das vestes sagradas) gritarão a ma-
neira de quem dá pateadas em theatro: fora o Jesuíta, não quere-
mos sermões de Jesuíta; basta a missa etc. etc.; insinuando o
mesmo delegado ao povo que despejasse a Matriz" 12 •
Ao mesmo tempo que declarava a Lucena que nunca incitara
o povo a reagir contra a autoridade civil e que o juiz vivia "publi-
camente emancebado", às voltas com maçons e ímpios, "para mao
(10) Cod. Chefe de Polícia, abril a junho, 1875. P.C. 121, ms. 28, 6
de abril de 1875. "Correspondência dirigida ao Presidente da Provinda",
Arquivo Público do Estado de Peranmbuco.
(11) Cod. Eclesiástico, ms., 1873-75, Arquivo Público do Estado de
Pernambuco.
( 12) Cod. Elesiástico, ms., 1873-75, does. 146-49, Arquivo Público do
Estado de Pernambuco.
76
exemplo e ruina dos pequenos", o atribulado vigário de Buíque re-
gistra também que, no dia 29 de novembro, houvera um "conflito
entre o povo e os soldados do destacamento ( ... ) em razão ·da
repugnancia com que foi também recebida por alguns habitantes
desta freguesia a lei do registro dos animaes" 13 •
Negou, veemente, o vigário Marques da Silva, que tivesse algo
a ver com o ocorrido, como lhe imputavam os inimigos, o que era
"tamanha falsidade e injúria". Revoltou-se também contra as atitu-
des do delegado Pires e do juiz Gusmão, registrando que "a fim
de lançarem o odioso sobre mim faziam propallar por meio d'aquel-
les poucos que os cercão, que eu sou um jesuita, e como tal, hei
de ser um ladrão, seductor e deflorador das filhas alheias, alem
de outras couzas mais que deixarei em silencio, pois ·assim o man-
da a modestia" 14 •
Emerge da querela entre um padre, um juiz e um delegado da
cidade de Buíque, perdida no interior do Nordeste, não apenas
o distante reflexo daquela luta maior, entre o poder temporal e a
Igreja. Irritara profundamente o vigário Herculano Marques da
· Silva a ameaça que lhe fizera o delegado de que "não mais recebe-
ria a congrua da tesouraria" e que "seria arrastado pelas ruas desta
villa espicassado" 15 • Ao povo desagradara sobretudo a obrigação
de registrar seus animais. O. Leviatã estatal com suas taxas. seus
impostos, sua contabilidade, sua máquina fiscal e sua organização
era, na mentalidade primária de homens rudes e à margem da
civilização, um mal desnecessário. A documentação sobre os aconte-
cimentos de Buíque demonstram, por outro lado, uma posição
contestatária, porém, tangencial, do clero. Os padres de 1874 não
são aqueles de 1817. A Igreja mudara. Não fora a atitude de seus
dois bispos, D. Vital e D. Macedo Costa, provavelmente nenhum
obstáculo ideológico ou moral seria oposto por seus sacerdotes ao
sistema. A herança da estrutura político-eclesiástica da colônia
teria sido preservada. ·
Falou-se muito, na imprensa conservadora da época, de do-
cumentos que teriam sido apreendidos pela polícia "n'um sitio
da Travessa que vai da Soledade para a rua do Príncipe e estrada
de João de Barros, da freguesia da Boa Vista". Não havia mais
dúvidas. Segundo sua ótica, os jesuítas "os mais cruciantes inimi-
gos da liberdade; elles, a negação absoluta das verdades políticas
77
sociais e scientíficas dos tempos modernos, elles, o fanatismo, o
embrutecimento das massas, as trevas para os espiritos, o aniquila-
mento da razão, o ensombramento da consciencia" seriam respon-
sáveis pela sedição. Os homens da roupeta negra eram a alma dos
quebra-quilos.
Acrescentava Q jornal: "Se por um lado os documentos co-
lhidos pela policia, nesta cidade e no povoado de S. Lourenço da
Mata, em as residencias dos padres jesuítas, ministraram preciosas
informações acerca do papel dessa boa gente no conflito religioso,
que, desde dous annos, traz alarmados os espíritos, e se, em certo
modo, corroboram as deduções logicas tiradas dos fatos que de
presente se dão, mostrando que elles se prendem intimamente ao
mesmo conflito religioso; por outro lado cada vez se torna mais
patente a influencia malefica de uma certa imprensa desta província
e da província da Parahyba sobre os animos daquelles que, esque-
cidos do respeito que devem a si e ao seu partido, para só se lem-
brarem do que pretendem os especuladores que os aconselham
atiram-se ao campo de sedição, imbuídos de ideas falsas, e assim
auxiliam a uma causa que tem por principal objetivo destruir as
conquistas da liberdade.
Para nós, para os homens de criterio que, desde dous annos
acompanham pari passu as peripecias do conflito religioso, e, obser-
vando o que vai por aqui, abstem-se em confrontar ainda as mais
pequeninas subtilezas ultramontanas com os seus altaneiros vôos,
em outros paizes, é fora de duvidas, e incontestavel que, embora
socorrendo-se das paixões atiçadas por outros, é o ultramontanis-
mo, que tem sua mais subida expressão nos jesuítas; e inspirado a
alma damnada da sedição que vai por esta e pela província da Pa-
rahyba" 16 •
Não se pode estabelecer, entretanto, ligação material com-
pleta entre o Quebra-quilos e o clero de modo particular. Na res-
sentida Igreja Católica, sangrando com a prisão de seus bispos, a
conduta dos padres, em geral, nas cidades e vilas onde o movi-
mento se manifestou com maior ou menor intensidade, é de uma
variedade tal que se impõe ao historiador a idéia de serem situa-
ções locais, idéias pessoais em matéria política; ligações amistosas
ou inimizades com as autoridades as condicionantes fundamentais
das posições assumidas pelos párocos do interior ante a revolta,
a sedição ou ao simples tumulto dos quebra-quilos. Isso em relação
ao clero secular. Quanto aos inacianos, se bem que o governo
78
estivesse convencido do contrário, não aparece uma prova direta,
conclusiva, documental, da atuação institucional dos jesuítas.
Intimamente, a grande maioria do clero, tanto o regular como
o secular, regozijou-se com as agitações de 1874 e 1875 e é pro-
vável que muitos padres as considerassem o esperado castigo do
céu ao império maçônico que se atrevera a desafiar Sua Santidade
e a sacralidade episcopal. Para esses, entretanto, o aparente suces-
so dos quebra-quilos, em fins de 1874 e começos de 1875, foi ape-
nas um consolo de sacristia. Conservadora ontem, revanchista ago-
ra, a Igreja desempenhou no Quebra-quilos um papel assimétrico
e muitas vezes contraditório. Se um lbiapina prega contra o Im-
pério em Campina Grande, se jesuítas são presos na Paraíba e no
Recife, por terem em seu poder "papéis comprometedores", se
Onorati e Aragnetti são expulsos de suas paróquias pelo governo
provincial, por outro lado, um grande número de padres exorta
os enfurecidos quebra-quilos a não queimarem cartórios, a pagarem
os impostos e a respeitarem as autoridades.
~ curioso observar-se que, no auge da agitação dos quebra-
quilos, repetidas vezes os juízes de. direito são acusados também
de protegerem os sediciosos. Essas acusações têm as mais variadas
origens e derivam geralmente de rivalidades políticas locais que
afloram sob forma de denúncias, com o fito de desmoralizar, pe-
rante o governo, os magistrados. Muitas vezes é a rivalidade funcio-
nal, o direito de prender e soltar e o relacionamento, ainda hoje
difícil, entre juízes e delegados, que permitem denúncias dessa
ordem. O delegado de ltambé apontará, juntamente com os no-
mes de sediciosos, o do juiz municipal, Dr. Menelau dos Santos
Fonseca, como protetor dos mesmos 17 • As denúncias contra juízes
envolvidos nos acontecimentos da época são quase sempre impro-
cedentes. A figura do juiz no Império era a encarnação da Lei.
Para muitos matutos era a única idéia de Estado ou Governo que
percebiam. Por seu lado, o juiz, com maior conhecimento da Lei
do que o delegado de polícia, sente-se na obrigação moral e jurí-
dica de impedir violências que o trato direto com os fora-da-lei
muitas vezes quase que obriga. Daí conflitos freqüentes entre essas
autoridades e a conseqüência enxurrada de ofícios em que se acusam
mutuamente. Os juízes de Campina Grande, na Paraíba, Bom Jar-
dim, I també e Goiana, em Pernambuco, são exemplos típicos dessa
circunstância especial, por ocasião da sedição.
(17) Códice Polícia Civil, out.-dez. 1874, mss. 391-403. Arquivo Pú-
blico do Estado de Pernambuco.
79
Todas as tentativas do Governo de encontrar provas concre-
tas da participação direta de jesuítas no movimento dos quebra-
quilos falharam. Aproveitando a estada em Flores, do próprio Che-
fe de Polícia da Província, apresentou-se o Prof. Manuel Joaquim
Xavier Ribeiro para depor sobre a correspondência que dirigira
aos padres, e que havia sido apreendida na Capital. Embora Correia
de Araújo diga, em ofício dirigido ao Presidente da Província 18 ,
que as cartas que lhe foram então oferecidas, algumas escritas por
jesuítas, "trazem luz para a questão religiosa", nada indica que
contivessem provas da participação direta dos padres na sedição.
Indícios eventualmente aparecem. Provas nunca.
A participação jesuítica entretanto não saía das páginas dos
jornais. Em 8 de janeiro de 1875, com o título de Os Kiloclastas~,
dizia e perguntava o Diário de Pernambuco: "Que os liberais je-
suitas são os que movem os quebrakilos, é o que de algum modo
já ficou demonstrado. A quem pode interessar a agitação? Ao go-
verno? Não ... Quando nos vemos atacados, duplicamos de esforço,
vigilancia e de união, aumenta-se a confiança e só se busca repelir o
ataque ... ".
Hostilizando o governo apenas muito veladamente, perfeita-
mente identificada com a ordem social então· vigente, sem rasgos
de coragem de categoria igual às posições assumidas por D. Vital
e D: Macedo Costa, a atuação dos jesuítas constitui um apêndice
da Questão Religiosa, com repercussões de difícil dimensionamento
na assimétrica estrutura do movimento Quebra-quilos. A ação dos
padres em 'triunfo e em Flores é singular. Nessas cidades, onde
"preparam missões" os jesuítas Onorati e Aragnetti, os aconteci-
mentos terão características especiais, não restando a menor dúvida
que resultaram da ação indireta dos padres. Dirá o juiz de Direito
na época, Joaquim Manuel Vieira, que, ao serem, os dois jesuítas
italianos, intimados a comparecerem à Secretaria de Polícia da
Capital, ficou a população em "completo alarma e na disposição
de se opporem as ordens do governo quando pretender faser retirar
os tais jesuítas que tem conseguido fanatisa-los". E acrescenta: "E
por isso não trepidaram em desobedecer as ordens do governo,
disendo ao Delegado que não acceitavam aquella intimação e da-
qui só sahirião presos". Seu comentário final é importante para a
compreensão do que se passava naquela cidade:
(18) Códice Chefe de Polícia, jan.-mar., 1875, P.C. 129, ms. 186. Arqui-
vo Público do Estado de Pernambuco.
80
"Estes dous padres. Exmo. Snr., desde o dia 15 deste mez que
estam fasendo missões n'esta villa, e a ellas tem concorrido um
numero immenso de povo de todos os ·1ogares do Pajeú e Piancó,
e comquanto a doutrina d'elles no pulpito não tenha sido subversiva
da ordem publica, todavia o fanatismo do povo para elles e a in-
dignação pela intimação feita cresceu a tal ponto, que na madruga-
da do dia de hoje depois da missa da festa para a qual concorreu
seguramente cinco mil pessoas, um grupo immenso d'este povo ar-
mados e cheio de maior desatino percorreu todas as ruas d'esta
villa dando: vivas aos jesuítas etc., e morra o governo a maçonaria
e as autoridades! e desenfreadamente forão ter a casa do mui digno
D .or Juis de Direito Correia de Andrade que aqui se acha com sua
familia , e n'essa occasião estava agasalhado, e tentaram botar as
portas de sua casa abaixo manifestando uma veis a mais perversa
intenção de o matar!" 19
Não coincidiram, entretanto, com a permanência de Onorati
e. Aragnetti em Triunfo os costumeiros ataques dos quebra-quilos
aos cartórios e a violenta destruição dos novos pesos e medidas. A
agitação processa-se, como se observa no testemunho do juiz de Di-
reito, a nível de apoio pessoal aos dois missionários italianos e de
condenação à maçonaria e, por extensão, ao Governo maçom e
ímpio.
Na localidade denominada Afogados, no termo de Ingaseira,
distante apenas 59 quilômetros de Triunfo, a violência dos quebra-
quilos far-se-á sentir com uma característica curiosa: seu chefe é
uma capitão da Guarda Nacional, Jordão da Cunha França e Brito.
O juiz municipal foi dramático ao anunciar ao Governo o
ataque quebra-quilos: "Uma horda de vandalos capitaneada pelo
capitão da Guarda Nacional deste termo Jordão da Cunha França
e Brito e pelo seu enteado Francisco Vasco Pereira de Moraes
acabam de invadir a feira e casas de negocio deste povoado de
Afogados, quebrando pesos e medidas e commettendo latrocínios
e teriam causado prejuisos immensos se não fossem repellidos com
energia pelo Capitão Esperidião de Siqueira Campos, tenente-coro-
nel Galvino Pereira de Moraes, Antonio Pereira de Moraes e o
sub-delegado deste distrito". O vigário dessa freguezia, religioso
secular, é acusado também, frontalmente, por suas atividades sub-
versivas. Acrescenta o informante: "Devo informar a V. Exc. que
o vigario desta freguezia João Vasco Cabral d'Algonez, em suas
predicas feitas todos os domingos, na missa conventual, vive con-
(19) Códice "Officios Diversos", 1874-79, ms. 207. Arquivo Público
do Estados de Pernambuco.
81
citando o povo à revolta e a não obedecer ao governo. Ultimamente
lhe foi remettido desta cidade proclamações incendiarias e elle
as tem distribuído pelo povo, essas proclamações vieram, segundo
se julga, dentro do periodico União, do qual é assignante o referido
vigario e tambem dentro do periodico denominado Província. Es-
pero que V. Exc. se dignará de approvar o alvitre que tomei em
requisitar as 50 praças alludidas. Deus guarde a V. Exc. Manoel José
Nunes, Juiz Municipal Supplente" 20 •
Ao grupo de Jordão ter-se-ia oposto um outro capitão, José
Mateus Campos, ajudado por outras pessoas da povoação, segundo
documento assinado pelo promotor de Flores 21 •
A defesa de Flores era precária; praticamente estava nas mãos
da Guarda Nacional e de quem nela quisesse tomar parte. O pro-
motor público, ao que parece, depositava suas esperanças no tenen-
te-coronel Francisco Miguel de Siqueira 22 , pois na sua comarca, o
alferes José Pereira da Silva Guimarães, embora autorizado pela
Presidência Provincial até a entrar em território paraibano, para
perseguir grupos de sediciosos, era um desamparado; tinha apenas
um destacamento de sete praças. Diria desconsoladamente o alferes-
delegado que, mesmo assim, cinco estavam na Capital "em diligên-
cia" e das duas restantes uma estava doente. Sua munição era
nenhuma conforme diria ao próprio Lucena 23 •
Ali estivera pregando Onorati e obtivera o mesmo ou maior
prestígio do que o seu companheiro Aragnetti. Ao saberem, no dia
seguinte, de sua discreta saída às duas da madrugada, mais de cin-
qüenta pessoas reuniram-se e, lideradas pelo alferes da Guarda Na-
cional Silvério Pais de Sousa, armadas e dispostas, foram pela estra-
da que de Triunfo alcança Piranhas, ao encontro do jesuíta, para
solicitarem que voltasse e oferecerem garantias contra qualquer vio-
lência ou prisão que porventura fosse determinada pelo Governo.
"Felizmente o Padre não accedêo ao convite d'esses mal intenciona-
dos" diz o Chefe de Polícia Antônio Francisco Correia de Araújo,
informando ao Presidente da Província 24•
82
Em Gravatá, um outro vigário encomendado, Manuel Gomes
de Brito, também inimizado com o delegado local, a quem acusa
de indolente e dorminhoco, apressa-se a comunicar ao Presidente
Provincial como fora atacada a feira pelos quebra-quilos e amea-
çada a casa do capitão Antônio Manuel Pereira Viana, arrematante
dos impostos municipais 25 .
O testemunho da ·Câmara Municipal de Triunfo em relação
à ação de um dos jesuítas estrangeiros então expulsos, Antônio
Onorati, contrasta com a idéia geral que Lucena fazia dos inacianos
metidos no nosso interior. Um ofício da mesma, datado de 10 de ja-
neiro de 1875 26 , dizia textualmente que fora relevante a sua ação
como pacificador quando da adoção do novo sistema de pesos e
medidas. Onorati havia aconselhado "ao povo não imitar aos dos
mais lugares em que por causa de pesos e medidas, se haviam
amotinado e cometido crime contra as leis do pais".
A Câmara do Triunfo considerava importantes os serviços do
jesuíta "Estando certa que muita falta fará o Padre quando nestes
sertões começar a generalizar-se o sistema dos novos pesos e me-
didas, pois com a sua autorizada palavra, poderia conseguir o que
as autoridades conseguiram com sacrifícios de vida de um e risco
de propriedade de muítos, não podendo comunicar a V. Excia um
futuro lisongeiro por essa ocasião, não neste municipio, mas em
muitos pontos destes sertões, onde muito deverá valer a presença
e a palavra do referido Padre".
Irritou-se Lucena com o pronunciamento da Câmara de Triun-
fo. Próxima à Paraíba, Triunfo parecia-lhe vital como elo entre a
sedição dos quebra-quilos naquela província e os acontecimentos
de Pernambuco. Seu ofício de 7 de janeiro de 1875 27 determinará
que suas "ordens devem e hão de ser cumpridas, visto como ema-
navam de autoridade competente e trazem o cunho da legalidade
das graves razões que as motivaram". "A essa corporação cumpre",
pontificava Lucena, "desempenhar as beneficas funções de que se
acha revestida, esclarecendo ao povo ignorante e fazendo-o compre-
hender os grandes inconvenientes que resultam da atitude hostil
as ordens do governo, que não podem ter como objectivo senão o
bem estar do povo. Desde que a Camara ou os vereadores indivi-
(25) Códice Ecclesiástico, ms. AE 14, 1873-1875, ms. 339 de 2 de
janeiro de 1875. Arquivo Público do Estado de Pernambuco.
(26) Códice Câmaras Municipais, CM 49, 1875, ms. 411. Arquivo Pú-
blico do Estado de Pernambuco.
(27) Códice Boletins do Expediente, 1874-1877, ms. 4. Arquivo Públi·
co do Estado de Pernambuco.
83
dualmente interpozerem o seu prestigio e força moral no sentido da
ordem, é de esperar que os animas se acalmem e a paz não seja
alterada nesse municipio por motivo tão frivolo, como é o de
que falla a camara em seu officio".
O jesuíta Onorati estivera em Triunfo com seu companheiro,
também italiano, Antônio Aragnetti. Não residiam ali. Estavam
ambos "dando as santas missões", isto é, pregando e fazendo ca-
tequese. Ao Governo pareciam dois grandes agitadores interna-
cionais e sobre eles há vasta documentação onde se alternam fugas,
ordens de prisão, disfarces, artigos na imprensa e ofícios da pre-
sidência provincial. Documento insuspeito, entretanto, que escla-
rece perfeitamente a atuação desses italianos no sertão nordestino, é
um ofício do próprio delegado de polícia de Triunfo, Manuel Ze-
ferino de Carvalho, dirigido a Antônio Francisco Correia de Araú-
jo, então Chefe de Polícia. Nele, inicialmente, testemunha-se e
comprova-se a existência de atividades panfletárias na sedição dos
quebra-quilos, orientadas pelos seus profiteurs. O mesmo documen-
to demonstra que os jesuítas missionários em Triunfo não com-
pactuavam com os quebra-quilos e nem ao menos os acatavam.
Onorati e Aragnetti provavelmente retiraram-se de Triunfo
no dia 17 de dezembro. Fora encarregado de prendê-los o capitão
Cândido Alfredo do Amorim, que encontrou Aragnetti na locali-
dade de Cachoeira de ltaepé, onde, segundo seu comunicado, "o
dito jesuita andava com muita precipitação e completamente dis-
farçado para escapar-se a justa prizão, que o aguardava" 28 • Não
se pode dar crédito absoluto ao ofício de Amorim porquanto seu
fecho é histórico modelo de bajulação, ao dizer: "Desejoso como
estou de ver coroado de glórias o governo de V. E~a. como digno
Delegado do patriótico e sábio Gabinete, asseguro a V. Exa. que
envidarei todos os meios ao meo alcance para que o resultado da
comissão que V. Exa. se dignou confiar-me seja em tudo satisfatorio
ao Governo". Fora este capitão o substituto de Manuel Zeferino
Magalhães. Não raras vezes as ocorrências que ponteiam o cotidia-
no das cidades do interior nordestino, ameaçadas pelos quebra-
quilos, ao envolverem padres covardes e delegados semi-analfabetos,
juízes ausentes e promotores omissos tiveram o colorido tragicô-
mico que enriqueceria, posteriormente, as "comédias municipais"
de José Carlos Cavalcanti Borges. Porém o colete de couro e a re-
volta da turba ante circunstâncias adversas dão aos quebra-quilos,
84
não raras vezes também, o pathos universal das tragédias gregas. J!
o drama do homem e da terra que, prometeicamente, lhe devora,
na secura dos sertões, suas possibilidades de progresso social e
esclarecimento.
O próprio Chefe de Polícia da Província fora a Triunfo
prender Onorati, porém não o encontrou; este seguira para Pira-
nhas, na costa. Raspara a barba, vestira-se secularmente, e Correia
de Araújo registra que pessoa fidedigna ouvira seu sermão de des-
pedida, agradecendo a boa acolhida que tivera em Triunfo por
parte do povo.
Saíra na madrugada do dia 17 de janeiro, impressentido, o que
levou Correia de Araújo a falar em fuga 29 • Registra essa autoridade
que, no outro dia, quando souberam os amigos do padre de sua
saída, reuniram-se em número superior a cinqüenta e chefiados pe-
lo alferes da Guarda Nacional, Silvério Pais de Souza, foram a sua
procura pela estrada que vai de Triunfo a Piranhas e, ao encon-
trá-lo, disseram-lhe que não temesse ser preso, porquanto os que
ali se achavam estavam dispostos a defendê-lo, e que o Governo
não teria força suficiente para resistir ao povo daquela cidade que
se levantaria em massa para garanti-lo.
Tendo contra si uma ordem de deportação, Onorati pruden-
temente agradeceu a solidariedade dos moradores de Triunfo e
disse-lhes que iria se apresentar à presidência da Província.
Afirmando que todos os fatos, todas as circunstâncias e todos
os detalhes da luta religiosa corroboravam a certeza da participa-
ção dos jesuítas na sedição, o Diário de Pernambuco, em panfle-
tário estilo, achava, entretanto, que "a maior responsabilidade
dos movimentos sediciosos pesa, com toda a sua rigidez cadaverica,
com todo o seu peso esmagador, sobre esses padres e seus se-
quazes, representantes da política meticulosa de Roma sacerdotal,
dessa Roma de todos os tempos, nunca saciada em sua sede devo-
radora de ouro, de grandeza, de influencia e de prestigio, embora
na conquista de tudo isso, passe por sobre a ruína dos povos,
deixando apos si traços inapagaveis de sangue!" 30 • O antijesuitismo
faria cada vez mais adeptos.
Lucena convencera-se também da periculosidade jesuítica, e
não descansou enquanto não conseguiu do Governo Imperial ex-
85
pulsar os padres que eram estrangeiros. A apreensão de alguns
documentos, na busca feita na Soledade, ofereceu-lhe a oportuni-
dade desejada. A documentação então divulgada 31 , agrupava em
onze "provas" a subversão jesuítica:
(31) Idem.
86
a tempo porque o Collaço afinal separa-se de nós e está fundan-
do, dizem, outra sociedade que lhe sacie o desmesurado orgulho."
87
vendo ao Rvd. padre reitor, as escrevi também para V. Rma.
Quanto ao pedido que V. Rma. me inculcou tão repetidas vezes
que eu faça aquelle santo varão pe. 1biapina, se elle vier cá, não
o deixarei; porém duvido muito que venha por varias razões que
elle n'estes ultimes dias deu-me em resposta à uma minha que lhe
escrevi, solicitando a sua vinda. Parece-me que, cançado por seus
grandes trabalhos na vida de missionário, queria mais cuidar do
governo de suas vinte casas que de outra missões."·
88
o deixarei, porém duvido muito que venha por varias razões que
ele nestes últimos dias deu em resposta a uma missiva que eu lhe
escrevi, solicitando a sua vinda. Parece-me que, cançado por seus
grandes trabalhos na vida de missionário, com sua idade de seten-
ta annos, queria mais cuidar do governo de suas vinte casas que de
outras missões". Que outras missões seriam estas? Depreender-se
que estavam ligadas à elaboração de um plano de agitação e arre-
gimentação dos camponeses é interpretação enclausurada no mais
puro subjetivismo.
O próprio Presidente da Província, poucos meses depois, em
sua "Fala" de abertura na Assembléia Provincial, usaria a expres-
são "missão" em sentido bem pouco revolucionário, ao se referir
aos capuchinhos, dizendo: "continuam os reverendíssimos padres
capuchinhos a prestar inapreciaveis serviços a essa província no
desempenho de seu sagrado ministerio. Durante o anno passado
abriram doze missões das quais recolhemos copioso f ructo em re-
lação a moralidade dos costumes, à construção e a reconstrução de
templos" 32 •
Um segundo documento probante da responsabilidade jesuí-
tica seria a carta, sem data, do professor público de Vertentes,
Manuel Xavier Ribeiro, também dirigida ao vigário de São Lou-
renço da Mata, na qual diz que irá escrever ao lbiapina que se
acha "em missão para as partes de Guarabira e que faz-se ne-
cessário a ida do dito padre a Baixa-Verde, primeiro do que S.
Lourenço para acabar a missão".
Frases genéricas como "convém irmos nos firmando acolá de
maneira que possamos (emborà a operação seja do tempo) atingir
os desiderata que almejamos" pareceriam ao Governo Provincial
prova bastante da participação eclesiástica num vasto plano sedi-
cioso. A missão de Baixa-Verde era, evidentemente, apenas missão
no sentido catequético da palavra e não se conhece inquinação em
contrário.
Forçando interpretações, vendo subversão onde existia apenas
secreto prazer ante às atribulações do poder civil, Lucena compro-
meteu-se ao dizer que "dos trechos citados, interrogatorios e ou-
tros documentos aqui não especificados, se verifica que os padres
jesuítas, residentes nesta província, esquecendo-se do bom acolhi-
mento que receberam desde o primeiro dia em que a ella aporta-
ram, tem se desviado da linha de proceder que seu sagrado ministe-
89
rio e sua qualidade de estrangeiros lhes prescrevem, perturbando a
paz e harmonia que sempre reinaram entre a Igreja e o Estado,
e violando as santas leis da hospitalidade, que deviam de ser os
primeiros a manter e respeitar" 33 •
Tentara Lucena compensar os pouco convincentes documen-
tos com uma série de consideranda, onde sofismas mesclam-se com
suspeitas para gerar a verdade governamental. O primeiro partia
da premissa de que "foram os ditos padres jesuitas os que pro-
moveram o conflito religioso" e os que se seguiam pretendiam que se
aceitasse que o jornal A União havia se convertido em uma "pe-
dra de escandalo" e que já era público e notório serem os mencio-
nados padres jesuítas os que conceberam o plano de um movimen-
to sedicioso que devia ser dirigido pelo padre lbiapina. Este não
arrastara "após si o povo do Sertão" provavelmente em virtude
de "seus setenta anos e enfermidades".
Finalizou considerando que a permanência de inacianos na
Província de Pernambuco era perigosa ao sossego e à tranqüilida-
de pública, e anunciou que os jesuítas estrangeiros seriam ex-
pulsos. Os termos da portaria de Lucena em relação às atividades
exercidas pelos jesuítas, demonstram que o Presidente da Província
de Pernambuco acreditava firmemente na existência de um plano
geral de revolta, elaborado pelos jesuítas, no qual o carisma de
Ibiapina seria aproveitado.
A idéia de manifestações espontâneas provocadas pela crise
econômica, pelo fanatismo religioso, com o estímulo da Questão
Religiosa, pelo vislumbre de liberdade entre os negros, pelo ex-
cesso fiscal, pela ignorância iludida nas operações comerciais a
base de um novo sistema de pesos e medidas, sem lideranças de-
finidas, com ubiqüidades comprometidas pelas características es-
peciais de cada Município ou Província, não lhe entrara na cabe-
ça. A Companhia de Jesus ad gradior fizera o movimento. O seu
tentame fracassara.
A deportação dos jesuítas provocou a esperada reação de al-
guns católicos e de políticos do Partido Liberal. Não estava a opi-
nião pública da época inteiramente convencida da culpabilidade
dos inacianos nas desordens e conflitos do interior. Os tão falados
documentos subversivos apreendidos entre eles, e que instruíram
a portaria de Henrique Pereira de Lucena determinando a depor-
tação, não eram de todo convincentes. Não era fácil descobrir-se
90
subversão na carta de um deputado sobre as fraquezas do Gabi-
nete de 7 de março ou em trechos de cartas de um jesuíta resi-
dente em Londres, anunciando a transcrição no Tab/et de artigos
da imprensa católica brasileira. Não era diversa a qualidade dos
outros documentos, trechos de carta solicitando ao Papa que aben-
çoe o jornal A União, como já acontecera com A Esperança, ou
cartas de D. Vital ao Geral dos jesuítas para que mande a Roma
um padre capaz de expor documentadamente a Questão Religiosa
no Brasil, miscelânea que provavelmente gerou mais dúvidas que
convencimento e mais irritação que concórdia.
Em sua edição de 23 de dezembro de 1874, o Didrio de Per-
nambuco publicaria na íntegra a portaria, assinada pelo Presidente
da Província, expulsando os jesuítas estrangeiros de Penambuco.
Nessa altura dos acontecimentos já haviam sido presos os padres
Mario Arconi, João Batista Raiberti, Vicente Mazzi e Fillipe Sotto-
via, e recolhidos a bordo da corveta "Vital de Oliveira". O apoio
dado pelo jornal a Lucena era incondicional. Paralelamente ao do-
cumento oficial, um editorial classificaria os inacianos como "ini-
migos da sociedade moderna" acrescentando "que não podia ser
outro o procedimento do governo".
Um dos paradoxos do conservadorismo brasileiro foi este: ga-
binetes conservadores em franca hostilidade à Igreja. D. Vital foi
à barra do tribunal levado por conservadores, e sua defesa feita
por um liberal, Zacarias de Góis e Vasconcelos. Consultando-se a
imprensa da época, aqui e ali, vêem-se espalhados elogios da ex-
trema-esquerda dos liberais ao próprio Rio Branco.
A monarquia vicariante - para usar uma expressão toynbe-
neana - onde a Coroa e o altar congruíam-se em bloco político-
eclesiástico, tão vivido pelos portugueses, cedera lugar à nova rea-
lidade econômica gerada pela burguesia nascente das cidades. Ten-
do remetido as esperanças de seus crentes para um futuro mera-
mente teológico, ao pregar a submissão, e tomisticamente aceitar,
pelo menos em teoria, que pecunia non parit pecunia, a Igreja
enfrentava uma outra realidade histórica: o capitalismo nascente,
o que explica em parte, o anticatolicismo e o antijesuitismo de
toda uma geração.
Chegara o momento de mudar e o sinal do tempo eram as
posições metapartidárias, tanto dos conservadores como dos li-
berais. Os ideais dos primeiros estavam sendo superados parale-
lamente à morte de arcaicas formas de relações sociais. Seus opo-
sitores, por sua vez, não conseguiram evitar a espada de Deodoro.
91
7. O QUEBRA-QUILOS EM PERNAMBUCO
92
mesmo ano da vila de Independência (PB) 1 • Há evidente excesso
fiscal em todas as províncias. Haverá pranto e riso. O humor
acompanhará de perto o amargor do fisco, por exemplo, neste sus-
peito, porém notável, documento:
93
E para que não digam que não sabiam, mando afixar este
edital e mais outro na porta de frente e de trás do boticário, que
é o lugar onde se fala de vida alheia. Em 4 de março de 1868" 2 •
A análise da evolução tributária no período que antecede aos
quebra-quilos, mostra que, em Pernambuco, no período de 1870 a
1874, foram criados 32 impostos novos e suprimidos 13, elevadas
as taxas de 59 e reduzidas as de 36.
Justificava e explicava o Governo pernambucano semelhante
arrocho fiscal no Relatório enviado à Presidência pelo Inspetor
do Tesouro, Antônio Vitrúvio Pinto Bandeira e Acioli de Vascon-
celos 3, que dizia: "tomada em seu todo, vem de longe, se não são
legados que procedem da situação administrativa, que antecedeu a
atual na direção do estado.
Inspirando-se em circunstancias que emergiam de uma oca-
sião transitoria, deixou-se fascinar pela superficialidade que ellas
apresentavam correndo effectivamente apos uma especialidade
fallaz. A elevação do preço do algodão, que proveio da guerra in-
testina dos Estados-Unidos, animou a emprendimentos largos; por-
que dessa elevação resultou accrescimo da receita provincial. Crea-
ram-se então despezas importantes de natureza permanente sem
previdencia do futuro, que não podia ter o carater de certo, de
sorte que com a cessação da causa social, que produzira o pheno-
meno economico da ampliação da nossa renda, foi esta reduzida
naquella fonte alias importante, permanecendo todavia o onus da
despeza, cuja decretação poderia ter melhor consultado os interes-
ses geraes da provinda, se não fosse a confiança a que alludo.
D'ahi, pois, grandes encargos tiveram lugar e delles agora se
rescente não pouco o estado financeiro da provinda" 4 •
De modo geral, a taxação no Brasil era elevada se comparar-
mos a tributação nacional com a de outras nações. Os dados do
Bouillet, reproduzidos por Milet, são alarmantes quando se tem
em conta nossas incipientes indústrias, a pobreza das vias de co-
municação e o baixo aproveitamento dos recursos naturais 5 •
94
O estudo comparativo dos impostos cobrados, nos meados do
século XIX, no Brasil e em outras nações, demonstra que nossa
carga fiscal esteve sempre acima das possibilidades tributárias do
País. Cotejando-se o Atlas de Bouillet (1865) com os relatórios
do Ministério da Fazenda, chega-se também a essa evidência:
Renda Pública
Naçõe:s (Taxas e Impostos) População
95
Cousin Fusco - como era chamado em virtude da semelhança de
sua linha ideológica com o pensamento de Victor Cousin - es-
crevera na revista O Progresso: "A maior parte do território de
nossa província está dividida em grandes propriedades, fragmento
das antigas sesmarias, das quais mui poucas hão sido subdivididas.
O proprietário ou rendeiro ocupa uma parte delas, e abandona,
mediante pequena paga, o direito de permanecer noutra e de culti-
vá-la, a cem, duzentas, e algumas vezes, a quatrocentas famílias de
pardos ou pretos livres, dos quais ele se torna protetor natural;
mas deles também exige obediência absoluta e sobre eles exerce
o mais completo despotismo. Daí resulta, que as garantias da lei
não são para estes mal-aventurados, que entretanto compõem a
maior parte da população da província, mas para estes proprie-
tários, dos quais 3 ou 4, reunidos pelos laços de sangue, da ami-
zade ou da ambição, bastam para aniquilar, numa vasta extensão
de terreno, as forças e influências do governo" 7 •
Uma pequena classe média, exigindo a "democratização da
terra", que Nabuco defenderia na sua campanha abolicionista, ou
a reforma agrária preconizada pelo marechal Beaurepaire Rohán,
um déficit crônico, a agitação republicana, a relutância escravo-
crata, o excesso fiscal, uma Igreja magoada e ressentida, consti-
tuem a moldura econômica e social de Pernambuco quando che-
gam, vindas da Paraíba, as primeira notícias a respeito do que su-
cedera em Fagundes.
O Recife de 1873 era uma cidade de protestos. O jornalismo
de crítica e de debates multiplicou-se rapidamente nessa época,
surgindo A Liberdade, O Jesuita (dirigido pelo antijesuíta Aprígio
Guimarães), O Excomungado, o Liberal Pernambucano, A Luz,
O Trabalho, O Verdadeiro Catholico, A Lanterna e O Postilhão,
onde idéias conservadoras, liberais, abolicionistas e republicanas,
maçônicas e jesuíticas tentavam aliciar a opinião pública. A Ques-
tão Religiosa, pela sua importância, foi comentada em quase todos
eles; a imprensa pernambuéana dessa época refletia, conforme suas
tendências, a própria instabilidade social e política da Província.
Como assinalaria Paulo Cavalcanti, do ponto de vista ideológico, a
imprensa da década de 70, em Pernambuco, apresenta o espetá-
culo do descompasso e da versatilidade onde " ... o problema re-
ligioso, como a questão da luta contra o monopólio português do
comércio, confundia-se ,com o movimento abolicionista, com a pro-
96
paganda republicana e até com a chamada revolução dos quebra-
quilos, que os adeptos de D. Vital, no interior, utilizaram como
anna de intimidação ao Governo" 8 •
Não era fácil para o Governo enfrentar D. Vital, como não
era fácil aos liberais conseguirem grandes êxitos nos seus ataques
ao Presidente Lucena, amigo e protegido do Ministro do Império,
João Alfredo Correia de Oliveira. Em Pernambuco, liberais e re-
publicanos nem sempre se entenderão, e mais de uma vez haverá
choques entre liberais que condenam a abolição e conservadores
que a defendem.
A Questão Religiosa poderia ser um estopim e João Alfredo
sentiu perfeitamente o perigo ao escrever a Lucena uma carta re-
servada dizendo-lhe: "nunca pensei que o Bispo nos causasse tão
grandes dificuldades. Penso que ele abandonou a tarefa util, efi-
caz e gloriosa por essa triste luta que perturba a ordem ·publica" 9 •
A luta entre os jesuítas e a maçonaria marca, em 1873, a his-
tória do Recife. No dia 24 de maio, após uma concentração ma-
çônica na praça Conde d'Eu (atual praça Maciel Pinheiro) um
grupo mais exaltado dirigiu-se ao Colégio dos Jesuítas, então lo-
calizado na rua do Hospício 32, e depredou suas instalações. Pou-
co depois um outro grupo empastelava o jornal A União, que
substituíra O Catholico como órgão de divulgação da Igreja, e ao
qual tinham franco acesso intelectual os jesuítas. Sua redação e
oficinas situavam-se na rua da União e de lá foi levado quase
todo o material gráfico, uma edição pronta e alguns móveis, ime-
diatamente jogados pela turba no Capibaribe. Dois dias depois,
após convocação através de boletins, espalhados na véspera, por
toda a cidade, reuniram-se maçons, liberais, republicanos e anti-
jesuítas em um grande ~mício no Campo das Princesas (atual
praça da República). No momento em que, da varanda do Giná-
sio Dramático, falava José Mariano, o brigadeiro Manuel da
Cunha Vanderlei, comandante das Armas, deu ordem à cavala-
ria para que dispersasse a multidão. Houve espancamentos, cor-
rerias e feridos. Um conservador viu, com declarada amargura, o
feitio popular que os liberais deram à luta entre jesuítas e maçons
e escreveu: "O costume estabelecido pelo Partido Liberal de reu-
nir-se nas praças públicas para tratar de negócios políticos tem
97
oferecido espetáculos bem desagradáveis. O povo exalta-se por tudo
quanto apresenta as cores da anarquia, a que dão nome de Liber-
dade e o Partido Liberal alimenta estes prejuízos da classe menos
ilustrada da sociedade, supondo daí tirar vantagens" 10 •
O governo preocupou-se com o clima de agitação então rei-
nante e o Comandante das Armas, Cunha Vanderlei, prevendo o
pior, pediu ao Presidente da Província que reforçasse a força de
linha existente na guarnição. Excusava-se de entrar em conside-
rações sobre as probabilidades de uma próxima revolta. Embora
jogasse a cavalaria em comícios, no fundo era um prudente, como
se observará em seu ofício: "As ocorrencias havidas nesta capital
nos dias 14 e 16 do corrente, a exacerbação em que se achão os
animos, mesmo fora d'ella, presagião acontecimentos que podem
trazer uma conflagração á Província e a primeira Autoridade della,
encarregada de velar pela conservação da ordem e tranquilidade
publica, deve estar preparada para debellar, se não prevenir que
a revolta alce o collo impunemente.
Pelo posto, e em cumprimento de um dever, tenho de pon-
derar a V. Exa. que acho insufficiente a força de linha ora exis-
tente nesta guarnição para conseguir esse desideratum; e portanto
considero de urgente conveniencia que o Governo reforse a mesma
guarnição, mandando para aqui mais alguma tropa, tendo em con-
sideração que os dois batalhões de linha 2.º e 9.º de Infantaria
estão despachados, e que com atropelo se está fazendo o serviço
diario da guarnição da Capital.
Considero tambem de toda conveniencia a remessa de um
parque de artilharia de campanha para os fogos de rua. Um dos
meus antecessores o Brigadeiro Emílio Luís Mallet, reconhecendo
esta necessidade requisitou a essa Presidencia por officio, junto
com copia, datado de 9 de abril do anno passado a vinda de um
Parque de 12 bocas de fogo com a competente palamenta e muni-
ção será bastante para o fim que se tem em vista, devendo acompa-
nhai-o os artilheiros precizos para o desempenho do seu serviço,
por isso que os não ha nesta Província.
Escuzo entrar em consideração acerca das probabilidades de
uma proxima revolta, e dos elementos que a podem produzir, por
que V. Exa. estando a par do estado da Província, melhor do que
( 1 0) Félix Cavalcanti de Albuquerque. Memórias de um Cavalcanti.
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940, p. 99.
98
eu, que ha pouco a ella cheguei se acha habilitado para espol-o
ao Governo Imperial. Deos Guarde a V. Exa. Quartel General do
Commando das Armas de Pernambuco, 19 de maio de 1873. Bri-
gadeiro Manoel da Cunha Vanderley Comandante das Armas" 11 •
Juntamente com as tropas regulares a Guarda Nacional to-
mará parte ativa em Pernambuco na repressão ao Quebra-quilos,
embora, aqui e ali, seus oficiais tomem partido a favor dos se-
diciosos. Sua criação resultara da necessidade de, após a Indepen-
dência, estabelecer-se um apoio ao Exército e à polícia ainda em
formação.
Da Guarda Nacional se cogitara, três dias após o 7 de Setem-
bro, na Representação do Procurador Estevão Ribeiro Resende pro-
pondo medidas para a segurança do País 12 , na qual se sugeria
uma força suficiente para manter a segurança, "alem da guarda
nacional ou civica que se há de criar". Descera a detalhes o Pro-
curador: "Devia-se convidar o Povo em massa para se dispor a
defender e guardar a Cidade, nomeando-se Comandantes para o
alistamento geral de todos os cidadãos. A arma mais própria para
o povo que tem sido adotada em tais circunstancias é a das lanças
e chuços, que se podem aprontar no Arsenal para se repartirem no
momento da presição". Contudo, somente em 1831 (Lei de 18 de
agosto de 1831) foi criada a Guarda Nacional, servindo então de
arma a Feijó para controlar a ordem pública no agitado período
regencial.
Na sua primeira fase, romântica e democrática, os oficiais
e subalternos eram eleitos, por escrutínio secreto, pelos soldados.
Somente os comandantes superiores é que recebiam seus postos
por nomeação do Governo. Em 1850, no Gabinete Araújo Lima -
Costa Carvalho, sofreu a reforma que, com pequenas modifica-
ções, manteve até a sua extinção, na República, quando ridicula-
rizada pela impossibilidade de manejar armamento mais complexo,
já cumprira, com altos e baixos, sua missão histórica de exército
cívil.
99
Por ocasiao do Quebra-quilos, em Pernambuco, não passa-
vam de 1-.000 os praças da Guarda Nacional aquartelados 13 • Seus
oficiais eram escolhidos principalmente entre os proprietários de
terras e funcionários do Governo. Em algumas cidades foram fa.
zendeiros como Francisco Alves Cavalcanti Camboim, barão de
Buíque, os que, na qualidade de comandante da Guarda Nacio-
nal, organizaram a defesa contra os quebra-quilos, dada a dimi-
nuta força policial de então, incapaz de impedir os incêndios nas
coletorias e nos cart6rios14 •
O Corpo de Polícia da Província estava dividido em cinco
companhias e o seu contingente seria aproximadamente de 500
praças 15 • Daí os Ministros da Guerra e da Marinha haverem re-
metido tropas para o Nordeste, logo que chegaram à Corte as no-
tícias relativas à sedição na Paraíba.
Repercutiram vivamente em Pernambuco as primeiras notí-
cias vindas da Paraíba a respeito dos quebra-quilos. Em poucos
dias, transmitidas oralmente, transformaram-se em uma série de
ofícios e informações ao governo. Um dos primeiros foi a alar-
mada comunicação do Juiz de Direito de I també, João Francisco
da Silva Braga: "Julgo de meo rigorozo dever trazer antes, ao
conhecimento de V. Exa., a fim de providenciar como em sua
sabedoria entender mais acertado algumas occurrencias dadas na
Província da Parahiba do Norte em diversas Vilas e povoações,
(13) (14) Mapa geral da Guarda Nacional, aquartelada em Pernam-
buco por ocasião do Quebra-quilos, segundo a "Fala" de Henrique Pereira
de Lucena à Assembléia Provincial, em 1.0 de março de 1875. Em seu Rela-
tório a Rio Branco, entretanto, registra Lucena 1.500 homens.
Munlclplos N.• de praças Munlclplos N.• de praças
Recife 474 Nazaré 40
Garanhuns Caruaru 40
Bom Conselho 40
Boa Vista
Bulque 30 Ourlcurl 40
Barreiros Cabrobó 40
Agua Preta 20
Exu
Brejo Tacaratu 40
Clmbres 40
Floresta
Flores Bonito 60
lngazelra 40
TOTAL 944
100
mais ou menos proximas desta Província, as quaes como que já
vão repercutindo em alguns pontos desta Comarca. Diversas vilas
e povoados da Província da Parahiba tem sido victimas de ata-
ques do povo em massa, em numero superior a mil individuas,
segdo. o conceito mais verídico, os quais declarão arrogantemente
que não mais se sugeitarão ao pagamento de quaesquer impostos
legaes; assim como não consentirão que continue em execução o
systema metrico, levando seo frenesi ao ponto de agredirem as
collectorias, e as casas das Camaras Municipaes dilacerando seos
archivos, escangalhando e incendiando suas mobilias; e exigindo
dos commerciantes em seos estabelecimentos e nas feiras os pesos
e medidas do novo padrão inutilizando tudo, e qdo. por ventu-
ra alguma vez, a força publica se tem apresentado, elles a tem re-
pellido, sem duvida por ser ella insufficiente ... "
Em um tal estado de cousas, e a falta de uma prompta e
efficas repressão d'esses desordeiros, se vão elles animando na con-
tinuação de seo desmascardo procedimento, ameaçando a invazão
d'outras localidades, as quaes tambem por si e a seo turno já se
vão manifestando no mesmo sentido, e é assim q. nesta Comarca
nos povoados de Timbauba, Cruangy e São Vicente já se mani-
festou a população opposta ao pagamento dos impostos munici-
paes, deixando, de pagar aos contribuintes o chão da feira e ou-
tros; e fazendo voltar a esta V. dous empregados da colletoria,
que pa. ali havião ido para realizarem os lançamentos e effectuar
algumas cobranças, deixando de levar a efetividade o cumprimento
de seos deveres para escaparem as violencias, de que terião neces-
sariamente de ser victimas, caso se mostrassem resolutas a realisar
seos intuitos: tendo as cousas ainda chegado a ponto, de, um offi-
cial da Fazenda, que achava em Cruangy effectuado a cobrança
de uns mandados executivos, ter sido escondido por uma mulher
em um forno velho, d'onde só pode sahir à noite para poder
escapar ao furor do povo que o procurava com o maior interesse
e mal intenção.
Cumpre-me ao exposto accrescentar que segundo o juízo de
pessoas mais ou menos competentes por seos caracteres e rela-
ções, espera-se qe. no dia 30 do corrente, por occasião da feira,
será esta Vila também atacada pelos desordeiros, e atacada, com
preferencia, a Colletoria, cuja sorte deve ser a mesma qe. tem
tido as da Província da Parahyba, isto é, delacerando todos os
seos livros e papeis.
Dando sciencia a V. Exa. desse estado de cousas, não devo
omittir a decfaração de não haver aqui força publica nas condi-
101
ções de poder oppor a menor resistencia ao canibalismo de taes
desordeiros, se por ventura realizar-se a invasão desta vila, onde a
seo salvo tudo poderão fazer, retirando-se incolumes attento a
que, V. Exa. resolver com o acerto com que tem caracterizado
seos actos de previdencia. Deos Guarde a V. Exa. João Francisco
da Silva Braga."
A leitura do aflito comunicado do não menos aflito juiz de
Itambé evidencia que, anteriormente a 24 de novembro de 1874,
provavelmente uma semana antes, começara a agitação dos que-
bra-quilos pernambucanos, paralela à dos paraibanos.
Dois dias depois, mais alarmado ainda, comunica o juiz que
a Vila estava ameaçada de ser invadida por grande número de
homens vindos da Província da Paraíba, para queimar os arquivos
das Câmaras Municipais, livros das coletorias e cartórios, em con-
seqüência - julgava o magistrado - dos últimos impostos. A vi-
sava também que, no dia 21 de novembro, alguns indivíduos
estimularam o povo de Timbaúba a negar-se ao .pagamento do
imposto municipal espancando o oficial da fazenda que efetuava
a cobrança.
Encerrando seu comunicado dizia que um grupo de mais de
SOO pessoas atacara a vila do Pilar, e que era esperado em
Itambé a qualquer momento. A vila estava aterrorizada; alguns
moradores abandonavam suas casas, era a alarmante notícia final
dada pelo juiz do Município.
Em virtude de sua proximidade com a Paraíba, Itambé mui-
to preocupava o Governo de Pernambuco como possível foco de
quebra-quilos. No dia 7 de dezembro de 1874, a feira local já
fora realizada sob a mais estrita vigilância policial. Após a distri-
buição das medidas métrico-decimais, pelas quais, aliás os feiran-
tes eram obrigados a pagar, não houve nenhuma reação e os
impostos municipais foram cobrados sem maiores problemas a
não ser a ostensiva má vontade em pagá-los. O delegado perma-
neceu com alguns soldados entre os feirantes, a fim de evitar a
repetição dos incidentes das feiras anteriores. Ao que parece, re-
cebeu informações de que algo novamente se preparava e não he-
sitou, então, em efetuar mais prisões.
Julgaram às autoridades locais que, entre os detidos, dois
seriam cabeças do movimento sediciosos, e como tais mantidos
sob severa vigilância. Os outros, como eram aptos ao serviço mi-
litar, forain logo enviados para que servissem no Exército e na
Marinha. Isso realmente constituía um castigo. Compreende-se a
102
reação das populações rurais à prestação do serviço militar. Sig-
nificava deixar a família, o roçado e a feira, e socialmente equi-
valia a um nivelamento com os que, tendo alguma culpa, expia-
vam-na como soldados e marinheiros.
Embora houvesse a cidade voltado à tranqüilidade, após as
agitações de 28 de novembro, seu delegado de polícia reclamou a
retirada das tropas de Itambé, por ordem do Presidente da Pro-
víncia, Henrique Pereira de Lucena. Muito respeitosamente lem-
bra-lhe o delegado Cristóvão Leitão 16 que, ao assumir suas fun-
ções, recebera uma lista de 87 "criminozos" que deveria prender
se fossem encontrados na comarca. Apenas alguns desses seriam
criminosos comuns. A lista era de quebra-quilos e, para cumpri-
mento das ordens recebidas, solicitara o policial a permanência
da chamada "força de linha" na comarca de ltambé. Não dis-
farçava, também muito respeitosamente, os seus receios.
Os quebra-quilos haviam estado igualmente em Cruangi, con-
forme testemunha o juiz de paz daquela localidade, Antônio José
de Sousa Pinto a seu colega Francisco da Silva Braga, da comarca
de Itambé, narrando que "um grupo de matutos armados de facas
e cacetes, quebrando as medidas e pesos que existiam na feira,
procuraram invadir algumas casas à procura de medidas e pesos
e não satisfeitos com isto foram à casa do escrivão da Subdelegacia
e Juiz de Paz, aí apoderaram-se de todos os papeis, que existiam
no cartorio, rasgando-os e queimando-os, finalmente transforma-
ram os referidos papeis em cinzas". A autoridade policial local
nada pôde fazer por falta de soldados, é a desconsolada informa-
ção final do documento.
O promotor público de Itambé, Meira de Vasconcelos, secun-
dou o juiz de sua comarca nos dramáticos apelos feitos ao
Presidente da Província. Rogava que o governo enviasse, com
urgência, reforços para evitar "gravíssimos acontecimentos" e
informava que a "força enviada estava a ponto de ser agredida pelo
povo que se armava melhor e esperava grandes grupos armados" 17 •
A comunicação por terra entre Recife e ltambé, em 1874,
não era fácil. Daí o envio de uma força de 40 "praças de linha"
ter sido feito por mar, até as proximidades de Goiana, no vapor
"Emperor", então gratuitamente cedido pelo seu proprietário 18 •
(16) Códice PC 315, doe. 52, Arquivo Público do Estado de Per-
nambuco.
(1 7) Códice Prom. Pub. PJ 9, ms. n.• 299, Arquivo Público do Estado
de Pernambuco.
( 18) Diário de Pernambuco, de 28 de novembt,Q de 1874.
103
Os acontecimentos de ltambé repercutiram na imprensa do Recife
através de óticas diferentes, conforme, naturalmente, as tendências
políticas de cada jornal. O Diário de Pernambuco, nessa ocasião,
acusaria o juiz João Francisco da Silva Braga, de compactuar com
os acontecimentos de 29 de novembro, quando "fizeram auto de
fé nos moveis da Camara Municipal e nos papeis do cartorio
de paz" 19 •
Itambé, próxima à fronteira paraibana, realmente é um dos
pontos de contato dos quebra-quilos da Paraíba, com a província
vizinha, Pernambuco. A primeira incursão fora limitada: apenas
63 homens, quase todos vestidos com roupas de couro, destruindo
os novos pesos e medidas que encontravam nas casas de comércio
e alguns papéis que se achavam na pequena casa que servia de
coletoria. O "auto de fé" nos móveis da Câmara e nos papéis do
cartório de paz da vila, entretanto, fora uma "barriga" do jornal;
esses acontecimentos tiveram lugar em Pedras de Fogo, na Paraíba.
As acusações ao juiz, por parte do Diário de Pernambuco,
onde certamente o magistrado tinha inimigos ou amigos de seus
inimigos, eram infundadas. Diante do primeiro ataque quebra-
quilos, Braga agira com prudência. Soubera o juiz dos graves acon-
tecimentos dos povoados de Cruangi e Timbaúba, pertencentes à
sua comarca, quando os revoltosos queimaram os cartórios de paz,
e temera que, na sede, mais povoada e economicamente mais impor-
tante, a repetição daqueles fatos tivessem dimensões mais sérias.
Provavelmente, por ser juiz de uma comarca fronteira ao grande
foco quebra-quilos que era a Paraíba, seus receios, alimentados
pela onda de boatos que então invadia Pernambuco, eram muito
maiores, e sua cautela em reprimir as primeiras agitações perfeita-
mente justificável. Diria ele a Lucena, defendendo-se ante a acu-
sação que lhe fora feita, que não lhe era "desconhecido o apoio
moral que em toda parte encontravão [os quebra-quilos] da parte
de um crescido numero de cidadãos abastados e prestigiozos, apoio
que muito e muito contribuía para favorecer, rapidamente, o aug-
mento em numero e a audacia e exaltação dos sediciosos; não me
sendo extranho que já alguns pontos da Província da Parahyba
haviam sido accommettidos por elevado numero de desordeiros
subindo ao de tres mil" 20 • Segundo Braga, havia um plano defi-
nido dos quebra-quilos em relação a Itambé. Um grupo de tre-
(19) Diário de Pernambuco, de 2 de dezembro de 1874.
<2º) Códice Officios Diversos, 1874-1879, mss. 35-37. Arquivo Público
do Estado de Pernambuco.
104
zentas a quatrocentas pessoas já esta_va tfã cidade, armado de cace-
tes e facas, destruindo pesos e medidas, fazendo pouco ou nenhum
caso das perorações apaziguadoras do capuchinho frei Venâncio.
Se a força policial aquartelada em Itambé optasse por uma
repressão violenta, outros grupos, na periferia da cidade, acudi-
riam. Pareceu-lhe, pois, mais avisado e cauteloso não arriscar os
soldados a uma derrota "da qual poderia resultar não só a des-
truição total de tudo quanto se pretendia defender, como tambem
ser acompanhada de consequencias mais fataes e lamentaveis". Sua
ordem fora de que a força só deveria atacar se os sediciosos arre-
metessem contra a casa onde se achava guardado o arquivo nota-
rial. Lucena louvou seu zelo para com a justiça e a causa pública,
porém não aceitou como verdadeiros os números e fatos apresen-
tados. dizendo, polida e politicamente, que "não lhe era dado
então conhecer que muitos dos factos eram falsos ê espalhados
com o intento de entibiar os animos das auctoridades e da força
publica" 21 •
A verdade é que ltambé fora tomada pelo pânico. O juiz
municipal e dos órfãos, Menelau dos Santos da Fonseca Lins,
corroborando o que dissera o juiz de Direito, João Francisco da
Silva Braga, oficiara a Lucena afirmando que, a 25 de novembro,
a Vila do Pilar fora atacada, e que em Timbaúba o "terror de que
se possuíram os habitantes (desta Villa) é impossível de discrever-
se e chegou a ponto de muitos abandonarem suas casas, sendo
tanto mais sensível quanto de nenhuma força dispondo a Delegacia
vião os mesmos habitantes na contigencia ou de abraçarem a ideia,
que os rebeldes impõem pela violencia, fazendo parte do referido
grupo, ou de se sujeitarem a serem publicamente maltratados" 22 •
Em · São Vicente ocorreriam fatos semelhantes aos de Tim-
baúba. No dia 28 de novembro, "um grupo de quarenta a cin-
quenta pessoas armadas de cacetes, facas e pistollas" quebraram
todos os pesos e medidas existentes na feira. Quando porém se
preparavam para incendiar o cartório, o vigário da freguesia con-
seguiu demovê-los do intento. Ter-se-iam, dirigido às casas comer-
ciais, pedindo dinheiro para "compras de fogos do ar", e a gritarem
que "aparecesse o cobrador de impostos". A se dar crédito ao
delegado João Pires Ferreira, excessivamente cônscio de sua própria
105
autoridade, os sediciosos, "se retirarão na tarde d'aquele dia, dando
vivas as novas autoridades, que entre elles se nomearão" 23 •
Depois dos acontecimentos de 30 de novembro, Itambé teve
uma semana de relativa tranqüilidade e, na feira de 7 de dezembro,
após a distribuição dos padrões do sistema métrico-decimal, pelos
quais foram normalmente vendidas as mercadorias, o capitão Pedro
de Alcântara Tibério Capistrano supervisionara pessoalmente a
cobrança dos impostos, enquanto o delegado João Pires Ferreira,
com alguns soldados, prendera todos aqueles contra os quais caía
a suspeita de serem quebra-quilos. A força policial, dividida em
três grupos, postara-se estrategicamente: uma parte na rua Santo
Antônio, outra no beco do Cajueiro, onde se achavam 'escondidos
os livros pertencentes à Câmara Municipal, à coletoria e aos car-
tórios; a terceira protegera o quartel e a cadeia. Foram presos
vinte homens.
Alguns dias mais tarde, onze eram postos em liberdade, porém
nove "aptos para o recrutamento por terem tomado parte nas
desordens do dia 30", seguiam para o Recife. Eram eles Antônio
Leandro, Manuel Francisco Custódio, José Inácio de Melo. Seve-
rino Gomes da Luz, José Benedito, Joaquim Gomes da Luz e João
Manuel do Nascimento. Os cabeças seriam Manuel Clemente da
Cunha Rego e João Joaquim da Rocha Ponciano, que ficaram
presos em Itambé para serem devidamente processados. A repres-
são policial fez crescer o círculo de inimizades do delegado. Dirá
ele a Lucena, em seu ofício 24 de 8 de dezembro de 1874, que
tinha notícias de "que o povo em São Vicente está muitíssimo
insubordinado" e de que "o povo de Timbauba tambem está cheio
de audacia e que até prepara-se para esperar emboscando a força
que tiver de lá ir". Não se pode dizer que João Pires Ferreira
fosse um delegado popular.
A Provincia não deixou em branco os acontecimentos de Itam-
bé. Um artigo sob o pseudônimo de "A Sentinela" minimizava os
acontecimentos, criticava o Governo e ridicularizava o delegado.
Tudo não passara "do quebramento e inutilização de algumas me-
didas do novo systema" e o povo executara essa tarefa sem contar
com chefes, apenas por mera imitação dos eventos de povoações
vizinhas, tendo respeitado a propriedade e a vida de todos. O Go-
106
vemo fizera uma bárbara e injusta perseguição, ficando as prisões
cheias.
Pires Ferreira, apesar de ter participado de 1848, diz o jornal
liberal, mostrara-se contra o povo, prendera sem dizer motivos, não
marcara prazo para apresentação de isenção de recrutamento e
desaparecera quando tinha que despachar petições, e tudo isto
fizera em nome do cumprimento de ordens.
Deslocara-se Pires Ferreira para Timbaúba, a fim de instaurar
o inquérito policial sobre o incêndio do Cartório do Escrivão da
Paz e a quebra dos peses. Curiosamente, registra que, além disso,
um grupo invadira as casas dos portugueses José Ferreira e Joaquim
Pimenta "a fim d'os espancar e os fazer retirar-se deste lugar".
t o mesmo sentimento xenófobo que eclodirá em Goiana que aí
aparece violentamente.
Alguns nomes de quebra-quilos são apontados: Manuel Be-
zerra, Joaquim Gomes Damasceno, Manuel Correia, Alexandre
Velho, João Cândido, Vicente Ferreira da Silva Maia, cabo Sebas-
tião, Francisco Montenegro, Manuel Belegino, Manuel Cavalcanti
e José Félix. São quase todos gente humilde. Vicente Ferreira da
Silva Maia, entretanto, era terceiro suplente do juiz municipal e
um ano depois ainda estará às voltas com a justiça "no processo
sobre os movimentos denominados quebra-quilos" 25 • Aparecerá
também um nome muito conhecido na região, o senhor do enge-
nho Lages, Virgínia Horácio de Freitas, apontado como um dos
cabeças da agitação do dia 30, em Itambé. Freitas fora preso no
seu próprio engenho e recolhido à cadeia às sete horas da manhã
de 23 de dezembro.
Pires Ferreira não descansava. Novos nomes serão pronun-
ciados e, logo no início de 1876, julgava ter apanhado os "chefes"
quebra-quilos, que deveriam ser Tomás Guitirana, Severino de
Freitas, Vicente Vital, Manuel Félix, Gaudêncio Pereira de França
e Antônio Sá Maia 26 •
Enquanto eram remetidos à força para o Recife os quebra-
quilos aptos para o Exército, e corriam processos por crime de
sedição, a cidade viveria sua pequena tragicomédia municipal.
O próprio delegado Pires Ferreira era denunciado, como tendo
colaborado com a sedição, pelo juiz municipal Menelau dos Santos
107
Lins. Já a 10 de dezembro de 1874 as hostilidades entre as duas
autoridades aparecem no ofício que Pires Ferreira enviou ao Chefe
de Polícia da Província, Antônio Francisco Correia de Araújo, no
qual o juiz Menelau é acusado de ser protetor e protegido de um
dos cabeças dos quebra-quilos de Timbaúba, João Cândido de
Melo Lima, que teria dito que "o Doutor Menelau somente soffre-
ria do povo amotinado, depois que elle morresse".
Um quilométrico ofício de Pires Ferreira 27 , datado de 15 de
dezembro de 1874, defendendo-se da acusação oficial perante a
Presidência da Província, curiosamente revelará duas coisas, uma
de pouca importância, a simples intrigalhada de comuna do inte-
rior, que poderia interessar apenas tangencialmente, e outra, rele-
vante, que é o testemunho de uma autoridade. policial sobre a
repercussão popular dos quebra-quilos.
Os dramatis personae, Menelau, o juiz, Pires Ferreira, o dele-
gado, Inojosa 28 , o advogado, Malaquias, o oficial de justiça, João
Cândido Montenegro e Antônio Praniso, quebra-quilos, movimen-
tam-se no documento em torno de uma afirmativa infeliz de Pires
Ferreira, em referência ao propalado ataque dos ,quebra-quilos:
"Se vierem - teria dito o delegado - me veria forçado a não
postar a força na feira para guardal-a por ser ella apenas sufficiente
para guardar a cadeia e minha caza onde se achavam armas do
governo, os papeis da collectoria e outros". A kafkiana intriga e
seu conseqüente processo indicarão o delegado como responsável
pelas tropelias de 30 de novembro e "motor da sedição". Teria
dito também o policial que o povo podia quebrar pesos e medidas
e tudo fazer. O advogado Inojosa lhe advertira "quanto custará
dar-se um advogado para testemunha". Tudo isso "ledo engano
d'alma" de um ressentido juiz municipal a quem havia sido recu-
sada a entrega de oito praças, pois a força policial estava à dispo-
sição do juiz de Direito.
O que é de importância, sem dúvida, é o depoimento de Pires
Ferreira, fazendo considerações gerais sobre o movimento: "Pri-
meiro que tudo é o que pode haver de mais contrario a verdade
dizer-se que cauzava inexplicavel consternação aos habitantes desta
Villa a entrada na caza da Collectoria deste Municipio, bem como
os demais e ainda maiores attentados praticados pelos sediciozos
108
no dia trinta; porquanto o certo é que com excepção do pequeno
numero de pessoas desta Villa incluzive as autoridades bem com-
penetradas de seus deveres deste, e do lado da Parahyba, todos os
mais habitantes, mostravam-se favoraveis a cauza do povo e davam-
lhe razão applaudindo aos seus desatinos.
Depois que aqui começou a reacção contra os sediciozos, e
de modo a fazer incutir no animo de todos a convicção aas energicas
disposições do governo, então é que, por assim dizer, milagroza-
mente, operou-se uma metamorphoze do modo geral de apreciar-se
o criminoso procedimento do povo".
Compreende-se, portanto, que Pires Ferreira tenha mandado
dizer, anteriormente, ao Presidente da Província, que o povo de
São Vicente estava "muitíssimo insubordinado" e que o "povo de
Timbauba tambem está cheio de audacia".
O ano de 1874 terminaria com ltambé freqüentemente nas
páginas dos jornais. Nos primeiros dias de dezembro, o Diário de
Pernambuco anunciará reforço das tropas, publicando que seguira
pelo vapor "Jaguaribe" mais um contigente de trinta braços de
linha, que desembarcaria em Goiana e daí marcharia para o seu
destino 29 • No último dia do ano, o Jornal do Recife, sem muita
convicção, dizia que fora capturado Virgílio de Freitas, chefe da
sedição desenvolvida em Itambé 30 •
Já na documentação das autoridades de Itambé, percebe-se
a iminência da manifestação quebra-quilos em Timbaúba, que
irromperá, finalmente, no dia 28 de novembro de 1874, conforme
comunicação do escrivão Saturnino Francisco de Sousa ao subde-
legado, capitão Valdomiro da Silveira, registrando-se, as~im, o co-
meço da longa série de violências dos quebra-quilos na Província
de Pernambuco.
l! muito curioso e esclarecedor o relato do escrivão Saturnino
ao subdelegado e serve perfeitamente de amostragem do comporta-
mento dos quebra-quilos. Sendo uma mensagem entre duas auto-
ridades menores, que não se devem maiores vinculações adminis-
trativas, nem tampouco fidelidade partidária, em seu teor há um
tom de sinceridade que merece especial registro 31 • Datado de 30
de novembro de 1874, assinala que homens armados entraram na
109
feira e formando um só grupo, dirigiram-se ao cartório, onde alti-
vamente ordenaram a entrega de todos os papéis nele existentes
"e sem atenderem a reclamação alguma, arremessaram-se ao arqui-
vo e arrastaram para o meio da rua onde lançaram fogo no meio
de brados e entusiasmados vivas. ( ... ) Depois dirigiram-se para
diversos pontos desta povoação em carreiras e vozerios, a quebra-
rem medidas, kilos e metros, isso com medonhos insultos e sempre
acompanhados de vivas, fogos do ar e repiques de sino, retirando-
se o mesmo grupo já por volta das seis horas da tarde".
As provocações e acusações dA Província 32 , que vão desde
protestos políticos ao deboche, e sobretudo, a gravidade da situação
no interior, levaram Lucena a uma ampla comunicação às autori-
dades e ao povo de Pernambuco 33 , sobre a posição de seu governo
diante da crise. Não se pode entender a administração de Lucena,
sua filosofia de governo, seu condicionamento conservador, sem a
sua leitura: "Ante o movimento sedicioso á que espíritos malevolos
teem arrastado a parte ignorante e incauta da população, incutin-
do-lhe idéas subversivas da ordem social, é imperiosa e benefica
a missão que incumbe áquelles que, no caracter de autoridade, se
acham em mais aproximado contacto com o povo, que os respeita
como agentes immediatos dos interesses e bem estar communs e
vigias da tranquilidade publica.
Por todos os motivos injustificavel, como é aquelle movimento,
que vai revelando-se por assaltos ás povoações do interior da pro-
vincia e pela pratica de attentados revoltantes, não pode deixar de
ter a condemnação dos cidadãos de criterio e de sã consciencia.
No civismo desses cidadãos, pois, encontrará certamente a
autoridade um efficaz auxiliar dos meios a empregar para extirpar
uma sedição, que é apenas o resultado do exercido aturado e
subtil desses discolos, falsos amigos do povo, que sob extrava-
gantes e perniciosos aleives, insinuam-lhe noções corrosivas da
moral social e o instigam a practica de actos de selvageria, que
nos hão de envergonhar perante o mundo civilisado e para os
quaes as leis, em nome dos bons princípios, decretam punição.
E, sendo do mais util e benefico effeito que a autoridade
empregue os meios brandos e persuasivos antes de qualquer outro,
convem que procure, com o apoio dos bons cidadãos, desviar do
110
espirito do povo as ruins ideas que lhe incutiram aquelles, que
só das calamidades publicas esperam recolher proventos pessoais.
1! tambem de summo proveito esclarecer o povo sobre o grande
erro a que o induziram. A simples enunciação das astucias gros-
seiras com que illudem a sua boa fé, para concita-lo contra as leis
e a autoridade, patenteia os malevolos designios dos concitadores,
e deve bastar para attrahir-lhes a animadversão geral.
Incutir no espirito do povo a persuasão de que para evitar a
decretação de phantasiados e novos impostos, offensivos até da
moral domestica e dos bons costumes, é necessario rebellar-se con-
tra as leis, e subtrahir-se á contribuição que a sociedade exige de
cada cidadão, é realmente intuito de maxirna perversidade.
Negar ao Estado a pequena quota que exige, na proporção
dos haveres de cada um de seus membros, para isso accumular a
receita, que tem de ser aplicada a imrnensos e variados encargos
de manutenção da ordem, garantia da liberdade e muitos outros
misteres, que asseguram o exercício regular das instituições poli-
ticas e civis. de que resultam os principios salvadores dos direitos
pessoaes e de propriedade, é privar o corpo social do seu indispen-
savel e unico elemento de vida, promover a sua completa destruição.
Ainda que injustos e pesados fossem, que o não são, os impos-
tos existentes, os quaes são os mesmos já cobrados em annos
anteriores, não era a recusa de paga-los, nem o incendio dos archi-
vos publicos o meio legitimo de remover o mal.
Os impostos tantos gerais corno provinciaes ou rnunicipaes,
são arrecadados para reverterem ao bem cornrnum em medidas
salutares, que marquem á cada um a esphera de suas acções, e
assegurem a todos o gosto imprescindivel de seus direitos. Alem
do que, não ha fundamento para as reluctancias ao pagamento dos
impostos. As taxas das imposições actuaes não apresentam altera-
ção notavel, principalmente quanto aos impostos rnunicipaes, que
sendo os mesmos decretados de muitos anos, já a população está
habituada.
De muito foi recol'!hecido que o antigo systema de pesos e
medidas ressentia-se de graves defeitos, porque os multiplos e sub-
rnultiplos das unidades principaes de uma mesma especie de gran-
deza eram inteiramente arbitrarios, em damno da uniformidade ne-
cessaria as operações de compra e venda, succedendo que, perdidos
os padrões da unidade principal, meramente convencional, perdida
estava a base do systema. Reconhecendo ainda que adoptando
cada paiz um systerna diverso, tomava-se obrigatoria nas transa-
111
ções commerciaes a redução, sob bases vacillantes, das medidas
de um as que regulavam em outro paiz, reducção essa que apos
serias dificuldades, dava lugar â enganos e erros muitas vezes de
grande prejuízo, procurou o governo imperial solver materia de
tanta monta, estabelecendo, como o fez pelo decreto n. 1.157 de
26 de junho de 1862 e instrucções anexadas ao de n. 5. 089 de 18
de setembro de 1872, a substituição do nosso antigo termo de
pesos e medidas pelo systema metrico decimal, que é o resultado
da mais apurada investigação e profundo estudo da Academia das
Sciencias em França, e alli mandada executar, bem como depois
em quasi todos os paizes civilisados, desde 1795.
As vantagens deste systema acodem á mais simples reflexão
que sobre elle se queira fazer: fixando o metro com base invaria-
vel e os multiplos e submultiplos na razão decupla do metro, uni-
formisa as relações commerciaes nos maiores como nos mais insig-
nificantes actos de transacção, facilitando quanto é possível a
operação arithmetica.
Em quanto á lei do recrutamento, de todos os angulos do
imperio partiam queixas e allegações de que ella só existia para o
homem do povo, cujos filhos eram constantemente victimas expia-
torias de caprichos mal entendidos e de mesquinhas vinganças.
Elle só, o homem do povo, diziam, cançado de viver foragido
pelas mattas, via-se de momento preso e algemado a fim de pagar
o duro imposto de sangue, sentando praça no exercito e na mari-
nha. As camadas medias e superior da sociedade brasileira esta-
vam á salvo desse pesado ônus. Pois bem: o governo imperial
propõe e o parlamento reforma essa lei, reputada iniqua, estabe-
lecendo, apos acurado estudo, a igualdade legal, acabando com o
odioso privillegio dos favorecidos da fortuna, cortando pela raiz
aquelle pernicioso genero de perseguição, chamando ao serviço
militar do paiz tanto o filho do proletario como o do mais abas-
tado capitalista, creando nobres estímulos de patriotismo para que
o soldado não seja, pela origem viciosa, um automato, mas o cidadão
benemerito da patria.
E é em vantagem daquella lei que se combate a reforma,
insuflando a parte da população a que ella mais aproveita.
O conflito r~ligioso tambem tem sido mina explorada por
aquelles que procuram desvairar o espirita dos incautos, para deli-
ciarem-se com os tristes resultados do desvairamento.
Não foi o governo quem levantou esta gravíssima questão,
pelo contrario, empregou todos os meios suasorios para evitar
112
as melindrosas consequencias que della poderiam decorrer. Quando,
porem a insania do fanatismo chegou ao ponto de atacar a_s leis
fundamentais do estado, e a soberania nacional, nada mais lhe
cumpria fazer respeitar essas leis e essa soberania, que em tem-
pos anormaes estiveram sempre na mais intima harmonia com
o poder da igreja e com os santos preceitos do catholicismo, que
todos nós professamos desde o berço.
O governo que deixasse correr á revelia a causa nacional,
seria traidor aos seus mais sagrados deveres.
O governo que aplica qma das maiores verbas de seu orça-
mento á manutenção da religião catholica, não pode sem mani-
festa injustiça, ser taxado de irreligioso ou apostata.
Não bastando todos estes aleivos, que ahi ficam apontados,
•explora-se ainda o vago e indefinido, fallando de um suposto mal
geral, que não pode ser demonstrado, mais que serve para crear
em animes inexpertos prevenções e antipathias ao governo do paiz.
Entretanto o paiz vê que o patriotice ministerio de 7 de março,
que ha cinco· annos levantou a grandiosa crusada dos melhoramen-
tos moraes e materiaes, cuidando da instrucção publica, abrindo
estradas de ferro, estabelecendo linhas telegraphicas, auxiliando a
agricultura, reanimando o credito publico, ministerio que acaba
de conceder garantia de juros á vias férreas em quasi todas as
províncias; que reformou em sentido liberal quasi todas as leis
que diziam ser oppressoras, bem como a da guarda nacional, a de
3 de dezembro de 1841 e a do recrutamento; que tem por sabias
providencias regulado o movimento economico da fazenda publica;
este ministerio, que só por desvairamento das paixões. politicas,
poder ser arguido de imprevidente, desazado e oppressor, é sem
duvida merecedor da confiança publica e da gratidão nacion_al.
Ao ministério, que traz na fronte a aureola da emancipação
do filho da mulher escrava, só espíritos pervertidos podem attri-
buir intentos ferrenhos e oppressores.
Isto, posto, tendo Vmc. em muita conta estas verdades, per-
functoriamente aqui expendidas, as faça circular pela população,
no intento de restabelecer o domínio das idéas sãs e retirar do povo
os falsos supostos, que o tem transviado.
E, portanto, pelos meios suasorios e brandos e com a demons-
tração da verdade, que agitações como a que ocorre nesta provin-
cia, devem ser em principio combatidas.
Esgotados porem estes meios, e convencido Vmc. da nenhuma
efficacia delles, tenho por muito recommendado que faça empregar
os que a lei collocou em suas mãos, como autoridade constituída.
113
Muito desagradavel me será e grande reprovação me mere-
cerá a inercia do agente da autoridade que deixar ou tolerar que,
em districto de sua juridição, se pratiquem ou repitam os atten-
tados de que alguns povoados da província já tem sido theatro.
A autoridade e a força publica não devem, nem podem ser
testemunhas impassíveis do desrespeito e rebeldia ás leis, exerci-
tados por actos de violencia, tendentes a interromper a cobrança
dos impostos e a incendiar os archivos publicos.
A repressão desses attentados, quando não haja meio de evi-
ta-los é o que cumpre á autoridade tornar energicamente effectivo,
bem como organisar inqueritos que dêm lugar á exemplar punição
dos autores e conniventes no movimento.
Taes são as instruções que entendo conveniente endereçar a
Vmc. de cujo zelo e criterio espero estricta observancia.
Deus guarde a Vmc. - Henrique Pereira de Lucena."
Ao falar nos díscolos "falsos amigos do povo", Lucena en-
tendia que a sedição não era espontânea. A massa agia estimulada
por jesuítas e liberais, enganada por astúcias que percorriam toda
a escala da subversão, do deboche desmoralizador ao desmorona-
mento da ordem social. O Presidente da Província, em vitoriano
parágrafo de sua comunicação ao povo pernambucano, divulgara,
também, inadvertidamente, um aspecto do humor popular contra
a exação. Falava-se desse assunto fesceninamente, e o ridículo que
o envolvia talvez fosse arma mais poderosa, pela força psicológica
que possuía, do que as estatísticas dos excessos tributários do go-
verno, publicadas pelos jornais liberais. Os "phantasiados e novos
impostos, offensivos até da moral domestica e dos bons costumes",
aos quais fizera referência Lucena, seriam os que, na boca do
povo, futuramente seriam cobrados por atos fisiológicos. Um deles
era particular motivo de chistes, anedotas, gracejos e pilhérias,
pois seria o tributo que deveriam pagar homens e mulheres todas
as vezes que tivessem contato sexual.
O que era apenas de alguns, tornou-se assunto público. A gar-
galhada dos liberais mais inteligentes deve ter sido geral.
A nota oficial de Lucena tem, entretanto, seus bons aspectos
didáticos, explicando detalhadamente, em termos simples, para
que servem os impostos, quais eram os graves inconvenientes do
antigo sistema de pesos e medidas, como era mais democrática a
nova Lei do recrutamento, como aplicando uma de suas maiores
verbas orçamentárias na manutenção da Igreja Católica, era direi-
to do Es.tado obrigá-la a cumprir suas leis, cmfim, qual mestre-
114
escola, ensinava como o Governo zelava pelo bem público e pela
ordem.
Sabia Lucena do baixo nível intelectual da grande maioria
das autoridades no interior. Com bom senso político e administra-
tivo, que lhe faltou no parágrafo vitoriano, a nota visava a escla-
recer delegados, subdelegados, coletores, juízes municipais e todo
o pequeno mundo político das comunidades interioranas, quanto
ao perigo quebra-quilos.
Nas linhas e entrelinhas de sua nota, Lucena havia deixado
um página sobre a complexa origem do movimento sedicioso. Bem
ou mal explicara-se ao povo de Pernambuco. Fizera-o como um
político do Partido Conservador. Ao visconde de Rio Branco,
entretanto, deverá enviar relatório mais completo do que se passa-
va em sua Província. Esse documento, a salvo das contingências
políticas das "Fallas" que, logo impressas e divulgadas, são sem-
pre material político para ataques da oposição, constitui, pelos da-
dos econômicos que apresenta uma fonte indispensável à análise
financeira da época 34 • Tendo sido atacado repetidamente pela
imprensa liberal da Corte e de sua Província, no que dizia respei-
to aos excessos fiscais, assegurava insistentemente a Rio Branco
que não pesavam sobre a população "imposições exageradas ou
vexatorias", e, quase se desculpando, confessava que "existem, é
certo, alguns impostos um pouco acrescidos mas não tanto que
possam ser tidos como gravosos e oppresivos nem capazes de gerar
o desespero da população. Todo esse clamor que levantaram sobre
as imposições desta Provincia carece de fundamento, e resulta de
estratagema político".
Descartava-se, assim, Lucena, perante o Presidente do Conselho
de Ministros, da hipótese de que os impostos fossem a principal
causa do Quebra-quilos. Os distúrbios derivavam de "ideias ruins
que incutiam no animo do povo ignaro, aquelles que das calami-
dades publicas recolhem ganho de causa". Reconhecia o Presidente
que o povo manifestara "certa relutancia" à substituição dos novos
pesos e medidas, porém, segundo sua ótica, tal fato fora "sagaz-
mente explorado". Encastelando-se na teoria de que a origem do
Quebra-quilos não era econômica, Lucena assumia o papel de
grande defensor do Partido Conservador, e como que, pretendia
justificar e quase louvar seu domínio político em Pernambuco.
Devia sua nomeação a João Alfredo, de quem era amigo e a quem
115
era grato 36 , e mais lhe convinha atiçar a Corte contra o m1m1go
comum do que reconhecer a míngua da Província que lhe servia de
base eleitoral e política. Nascera no Município de Bom Jardim (Per-
nambuco), e percorrera variado cursus honorum administrativo 36 •
Quando recebera a Presidência de Pernambuco, o tesouro provin-
cial devia 226.241$343, além da responsabilidade de 152.000$000
116
de apólices emitidas. Não estando pagas obras como os serviços de
iluminação pública do Recife e de Olinda e várias prestações do
contrato Mornay, que atingia 92 .425$750, o montante do passivo
estatal, na época, chegava provavelmente a mais de 2. 000 . 000$000.
Novos empréstimos e novos impostos deram, a Pernambuco, mo-
mentaneamente, uma falsa -sensação de alívio financeiro. A si mes-
mo disfarçando a verdade econômica da Província, Lucena diria
tainbém a Rio Branco "que o estado atual das finanças é a muitos
respeitos satisfactório". Não podia, entretanto, esconder, pois já
era notória, a crise agrícola tão bem apontada por Milet 37 , a crise
comercial, que todos sentiam, e a diminuição da produção do açú-
car e do algodão. Estes dois produtos, em três anos, (1872, 1873,
1874), não haviam rendido mais do que 750$000:000 de impostos.
Tentara Lucena, na Corte, um empréstimo de 4. 000 . 000$000,
em continuação à discutível política financeira da Província de
Pernambuco de cobrir déficits com novos empréstimos. Dourara a
pílula de seus argumentos com a desculpa de que só com a instru-
ção gastava-se 493. 000$000, e com a força policial 380. 000$000.
A primeira passara por uma reforma que a encarecera, e a segunda
teria de ser aumentada, em virtude da Lei da Reforma da Guarda
Nacional que dispensava aquela instituição do serviço de destaca-
mento. Como Presidente de Pernambuco doía-lhe tanto a verdade
dos números quanto os ataques da imprensa liberal provincial que,
em seus jornais, publicava, em boa letra de forma, acusações como
esta: "A conservação dos augmentos de impostos determinado pela
Guerra do Paraguay, e cuja justificação cessou com a conclusão
dessa guerra, e sobretudo a criação de novos onus de novos im-
postos, até sobre os generos de primeira necessidade, facto que há
de atestar na história a sede de dinheiro, o desprezo pelo bem
estar do povo, o cynismo e os intrepidos desmandos d'essa situação
são as causas proximas dos acontecimentos a que nos temos re-
ferido"38.
Não deve ter sido pouca à angústia política de sua alma de
conservador, quando soube da publicação, no Rio de Janeiro, de
uma dura crítica onde se revelava ao público, talvez o que, no
íntimo, pensasse a ala florentina dos conservadores: "para o Go-
verno seria bem mais interessante que a sedição corresse por conta
do clero a fim de apadrinhar-se com a opinião dos liberais na ques-
tão religiosa" 39 .
• • •
(37) Sérgio Henrique Augusto Milet. Obra citada.
(38) A Província, de 20 de dezembro de 1874.
(39) Idem, de 14 de dezembro de 1874.
117
O primeiro documento crítico sobre os quebra-quilos de Per-
nambuco data de 6 de dezembro de 1874. :É um ofício do juiz de
Direito de Nazaré, Pergentino de Araújo Galvão, ao Presidente
da Província de Pernambuco, Henrique Pereira de Lucena, infor-
mando de que grupos de sediciosos vindos de Timbaúba invadiram
a povoação de Lagoa Seca, inutilizaram os pesos e medidas do
novo sistema, não permitiram a arrecadação dos impostos muni-
cipais e prometeram que, no sábado seguinte, entrariam na cidade.
Analisando-os, diz o juiz que "são audaciosos e dizem que costu-
mam cumprir suas promessas". Acredita o magistrado que, se eles
se atrevem a entrar numa cidade guardada e defendida, "é certa-
mente por excederam-na muito em número e recursos, porque de
outra sorte não o fariam".
A Guarda Nacional de Pau d'Alho, já em período pouco cas-
trense, fora chamada a Nazaré para "obstar a que os sediciozos
levem a effeito a anarchia que reina na comarca", no dizer de
seu comandante superior, José Francisco Lopes Lima, escrevendo
daquela cidade ao Governo Imperial. Já estavam ali aquarteladas
as praças e dois oficiais inferiores.
O barão de Tracunhaém, grande proprietário de terras em
Pernambuco, havia armado cem homens e formado assim sua mi-
lícia pessoal contra os quebra-quilos, paralela à força pública. O
juiz tem suas dúvidas quanto às possibilidades repressivas desse
contingente particular e diz que "não se deve fiar nessa força de
paisanos, por mais dedicada que seja ao barão". Registra também
que a Guarda Nacional recusava-se ao serviço de destacamento e
que qualquer pessoa do povo, convidada a acompanhar a força
legal, respondia invariavelmente "que não vai contra seus patrio-
tas".
Com realismo, finalizava o juiz de Nazaré seu ofício, com
uma observação que intranqüilizou o governo pernambucano: "O
movimento é simpatico a quase todos e encontra adesões, toma-se
por isso mais terrível e irá engrossando dia a dia se não forem
tenazmente perseguidos e os pontos mais ameaçados bem defen-
didos".
Contrapõem-se naturalmente às informações do juiz Pergen-
tino Galvão, as informações remetidas pelo barão ao Governo. Es-
crevendo a Henrique Pereira de Lucena diz o todo-poderoso barão
João Cavalcanti Maurício Vanderlei: "Depois que em data de 7 do
corrente comuniquei a V. Exa. haver prendido na povoação de An-
gélicas a 11 indivíduos sediciosos que tomarão parte no quebra-
mento de metros e cuias, me dirigi no dia 8 para o engenho Taba-
118
tinga com uma força que reuni, a fim de dispersar grupos de sedi-
ciosos, que ali se dizião reunidos, onde nada encontrei, passei por
Vicencia onde capturei 3 indivíduos que tomarão parte. Sabado 12
do corrente, me dirigi para a povoação de Alagoa-Seca com uma
força da Guarda Nacional, Guarda local e 50 paizanos a cavallo,
para dezassombrar os cidadões pacificos e aterrados pelos factos,
como tambem para prender os envolvidos no movimento e os fiz
recolher a Cadeia, onde hoje vim proceder os inqueritos policiais,
incluindo os presos em Angelicas e Aliança figurando entre estes
trez que são filhos e genro da senhora do Engenho Cangaú e de
nomes José Teophilo Monteiro de Farias, Manuel Batista Ferraz
e Manoel Joaquim de Andrade Lima. Remeti ao juiz Municipal
os inqueritos e os solteiros que se achão prezos, estes os recrutei
e os vou remetter ao Dr. Cheffe de Polícia. A força da Guarda
Nacional aquartellada é de 40 praças e sob o comando de um
Alferes e a vou por em movimento para percorrer a Comarca e
capi turar os sediciozos foragidos como também os criminozos" 40 .
A acusação do barão contra os filhos e o genro da "Senhora
do Engenho Cangaú", José Teófilo Monteiro Faria, Manuel Batista
Ferraz e Manuel Joaquim de Andrade Lima, dá ao Quebra-Quilos
em Nazaré a característica, não muito comum, de não implicar
apenas o matuto pobre, analfabeto, pequeno trabalhador em terra
alheia, incitado no seu ânimo de revolta pela dura cobrança de im-
postos e prisões de bispos de sua Igreja à qual está ligado através
de polimórfica dependência cultural; são também quebra-quilos o
filho do senhor de engenho, o genro do senhor de engenho, prova-
velmente alfabetizados, com interesses econômicos bem diversos
daqueles outros de seus companheiros de sedição. Lamentavelmen-
te os processos desses quebra-quilos desapareceram na voragem anti-
arquivística de que fala Petronilo da Cunha Pedrosa 41 •
Goiana tem na sedição dos quebra-quilos aspectos que lhe
são peculiares. Paralelamente à etiologia comum da agitação da
época, apresenta um antilusitanismo que mereceu de Paulo Ca-
valcanti 42 destaque-' especial. Em 1872, a cidade já fora abalada,
no dia 3 de agosto, por distúrbios mais ou menos sérios contra
comerciantes portugueses e italianos. Um pasquim da época regis-
tra que, na cidade, residiam 49 portugueses e mais de 20 italia-
119
nos, a maior parte deles casados com brasileiras. A leitura dessa
publicação, que seu autor intitula "Apontamentos para a História
de Goyanna" 43 estarrece pela xenofobia. Sua raridade e impor-
tância exigem integral reprodução, para a devida compreensão do
ânimo público daquela cidade:
"Quaes foram os chefes da gloriosa patriotica e civilisadora
revolução dos tres dias de agosto? ~ o que ainda ninguém sabe,
é o que todos procuram saber, e o que cumpre indaga,r a todo
transe - por todos os meios conhecidos de investigação historica.
Não é possível que fiquem desconhecidos, que escapem aos
applausos e eterna gratidão de contemporaneos e vindouros, os va-
Tões illustres, que conceberam e puzeram em execução o gigan-
tesco plano de expellir galhardamente, a golpes de quiri da patria
de Felippe Camarão, os luzas e italianos que tiveram o desaforo
de a vir profanar, estabelecendo-se entre nós, não como criados
para nos servirem, o que fora toleravel, mas, insolencia incrivel
neste seculo XIX! como commerciantes, para nos venderem tudo
o que produz a arte e a industria da decadente Europa, - e nos
comprarem os produtos da nossà infante e inocente agricultura.
Uma grande calamidàde nos ameaçava.
Já Goyana contava em seu seio 49 portuguezes, a maior parte
delles casados com brazileiras, e vinte e tantos italianos. A ame-
nidade do clima, as commodidades da vida que offerece esta rica
e populosa cidade, sem contestação a segunda da província de
Pernambuco, a facilidade de ganhar dinheiro, que aqui encontra
todo homem intelligente e laborioso, eram poderosos estímulos a
emigração estrangeira. Os patriotas pensadores já anteviam n'um
proximo futuro esta terra cheia como um ovo de agricultores, nego-
ciantes, artistas e operarias de todas as nações, catholicos, protes-
tantes, judeos, mahómetanos, adoradores de Budha, do grande La-
ma, de todos os deuses enfim qtle povoam a terra - com grande
e incalculavel prejuízo nosso - tanto moral como material, porque
somos um povo afferrado as santas tradições, que nos legaram
nossos virtuosos avós, esses bons e fieis servidores do rei velho -
de Portugal - , que traziam todo o anno tamancos nos pés e rosa-
rio ao pescoço por cima de um par de bentinhos.
E o que seria então de nós, ou de nossos filhos? De duas
uma, ou os goyanistas abandonariam o solo natal aos estrangeiros,
ou teriam de fazer inauditos esforços para iguala-los ou excede-los
120
nas artes, em que elles nos são superiores, sob pena de passarem
por um povo sem estimules, sem nobres aspirações, ou estupido e
degenerado.
E não fôra uma deshumanidade, um crime mesmo, expor
os nossos descendentes a um penoso trabalho, a innumeras fadigas,
para aprenderem o que sabem os filhos dessas regiões esteries e
ingratas, que deixam morrer de fome quem não trabalha!
Não foi para que vivessemos sem trabalhar, ou trabalhando
o menos possível, sem cansar nosso juizo, que a providencia cobriu
o nosso sólo de arvores que dão sem cultura os mais saborosos fruc-
tos, encheu os nossos rios de uruás e camarões, as nossas matas
de cutias, pacas e tatús, os nossos mangues de amorés e caranguei-
jos, e fez-nos presente de uma infinidade de passares, que encan-
tam a vista de quem os contempla, os ouvidos de quem os ouve,
e o paladar de quem - os come?
Por certo. Isto é tão evidente como a infabilidade do papa e
a perversidade dos maçons.
Se tivessemos um governo menos cego ou menos indifferente
aos interesses desse abençoado paiz, já os nossos portos estariam
fechados aos estrangeiros, e grandes muralhas, no gosto chinez,
como um cordão sanitario, defenderiam as nossas costas dessa pes-
te sem igual - a emigração.
Mas se o governo do Brasil não cuida dos brazileiros, em
Goyana ha goyanistas que sabem devotar-se pelo torrão natal.
Urgia affastar para bem longe d'esta terra os lusitanos intru-
sos e os impertinentes subditos do excommungado Victor Manoel,
de modo que não lhes viesse mais nunca a vontade de para cá
voltar, e logo não faltaram cabeças que concebessem o plano mais
sabio e efficaz, nem braços que o puzes:sem promptamente em
pratica.
Todos teem presentes na imaginação as heroicas e sublimes
scenas de inexcedivel patriotismo, que tiveram por theatro - as
ruas d'esta cidade, esclarecidas pelo ardente e brilhante sol de
agosto: mas os chefes? Quaes foram, como se chamam, esses mo-
destos e conspícuos varões que salvaram a patria e escondem na
sombra as frontes radiantes, que o povo - no furor de seu enthu-
siasmo e gratidão - soffre por não as ver cingidas com virentes
corôas de immarcessiveis louros? Ninguém o sabe. Muitas conjec-
turas se teem feito, mas todas falsas.
121
Sómente nós possuimos este segredo, e havemos de revelai-o
- , corem embora com o rubor da modestia as venerandas frontes
dos benemeritos da patria ...
Mas, pio leitor, para que vos seja communicado o X desse
problema - , é necessario que habiliteis o editor abaixo assignado
a proseguir na publicação dos "Apontamentos para a historia de
Goyana" o que podereis fazer dando em troca d'esta folha de papel
-=- 200 réis em bôa especie.
Goyana 9 de agosto de 1872.
L. R. Silva."
(44) Códice JD 54, ms. 452. Arquivo Público dô. Estado de Per-
nambuco.
122
O nativismo pernambucano era antigo. Sua tradição, nos co-
meços do século XIX, já estava bastante cristalizada, manifestan-
do-se através dos epítetos com que reinóis e brasileiros se injuria-
vam. Os nativos chamavam de "galegos", "marinheiros" e "pés-de-
chumbo" aos portugueses; estes, em represália, denominavam de
"cabras" aos da terra. No naufrágio semântico do tempo, "mari-
nheiros" e "pés-de-chumbo" desapareceram do falar nordestino.
Persistem vivas e atuais, as expressões "galego" e "cabra". A pri-
meira é a designação geral de quem tem a pele muito clara ou
cabelos alourados. Cabra só é insulto quando é safado. "Cabra
bom", "cabra da peste", "cabra danado" têm conotação carinhosa
ou exprimem respeito e admiração. Valeria registrar também os
banquetes políticos realizados nas vésperas da Revolução de 1817,
onde se excluía o trigo, usando-se farinha de mandioca, bebendo-
se cachaça em substituição ao vinho.
Os quebra-quilos gozaram de simpatia entre as camadas mais
humildes de onde aliás eram, na sua grande maioria, oriundos.
Essa circunstância não passou despercebida ao promotor de Goiana,
que se refere à "adesão que um grande numero de habitantes pres-
tam a propaganda sediciosa", e que se podia comprovar essa
adesão "pelo assalto no povoado de Goianinha por um grupo de
indivíduos concorrentes às feiras e que impediu o emprego do
novo sistema de pesos e medidas e invadiu o cartorio do escrivão
de Paz sem que a autoridade podesse opor resistencia ou persegui-
los" 45 •
As lideranças populares da época dissolviam-se no anonimato
e nos ataques imprevistos. O juiz reconhecia essa característica
com a fria informação de que à noite os soldados "que andavam
de ronda foram espancados".
Estava também alarmado o juiz de Goiana com a pequena
força policial, apenas 16 homens, de que dispunha sua cidade. Em
ofício dirigido ao Presidente da Província, não escondeu suas anti-
patias ao subdelegado Francisco de Paula Cabral, a respeito de
quem diz que "não se presta a serviço algum de policia", narrando
um tanto humilhado, que a ronda noturna fora realmente espan-
cada por desconhecidos e que a guarda local estava completamente
desmoralizada 46 •
123
Os quebra-quilos não se atreveram a atacar os cartórios de
Goiana, a primeira cidade do interior da Província de Pernambuco,
na época. Porém, nas feiras do povoado de Goianinha, que per-
tencia à Comarca, um grupo de aproximadamente 100 pessoas
quebrara pesos e medidas e depredara o Cartório do Escrivão de
Paz. Disso tudo tomara conhecimento o promotor Sebastião Coelho
Cintra 47 que, onze dias depois, ao comunicar a abertura de inqué-
rito e a expedição de mandatos de prisão contra os sediciosos 48 ,
revela que o proprietário do engenho Jatobá, Francisco Roma, co-
nhecido também como Francisco Pedreiro, concitara os rebeldes
ao atentado "por meio de fallases insinuações, uma das quaes
foi que o Governo promulgara recentemente as mais ve~_atorias
medidas".
Muito preocupara Lucena o que sucedera em Goianinha, rela-
tivamente próxima ao Recife. Seu longo despacho determina ao
promotor que "não deve apenas requerer inquéritos e sim, sem
perda de tempo, providenciar a captura dos cabeças". A força que
aí está, diz impacientemente Lucena, "não deve conservar-se ina-
tiva, que esse movimento tem se propagado por que até hoje não
tem havido represão". E para dar ânimo ao acabrunhado repre-
sentante do Ministério Público, finaliza dizendo-lhe que ele, como
agente da autoridade, deveria levantar o espírito da população
abatido por um pânico sem razão plausível.
Livrar-se-á a cidade de Goiana dos quebra-quilos, porém não
cessará a xenofobia naquele velho centro açucareiro da zona norte
da Província e isso devorará sua vida econômica e social. De nada
valeram as medidas governamentais - tão defendidas e atacadas
na imprensa da época - como mudança de juízes e promotores,
ocupação militar da cidade, reforço policial e perseguição aos líde-
res do Partido Liberal. O cartório do escrivão do júri será vio-
lado, não pelos quebra-quilos, mas sim por uma serventuária do
mesmo, apaixonada por José Henrique César de Albuquerque, pro-
cessado por tentativa de morte contra súditos portugueses, cujo
processo então desapareceu e nunca mais foi achado.
Em Caruaru a atuação dos quebra-quilos explode no dia 12
de dezembro de 1874. Aproximadamente 400 homens, usando pu-
nhais e bacamartes, chefiados por Vicente e Manuel Tenório, mo-
radores da Comarca vizinha do Brejo, e João Barradas, residen-
124
te em Caruaru, invadem a cidade, às 10 horas, quando se reali-
zava a feira, aliciando revoltosos e lançando insultos contra as au-
toridades. Estas, em comunicação conjunta 49 ao Presidente da Pro-
víncia, registram que "alguns atenderam ao pedido de ordem, dan-
do vivas à liberdade, a religião, a ordem publica e às autoridades,
porem a massa dos sediciosos aumentada pelos moradores da feira
e por grande numero de proletarios desta cidade gritaram que não
atendiam a ninguém e que queriam a abolição dos impostos e do
sistema metrico e para tal lutariam até a morte".
e extremamente curiosa e rara a designação de "proletarios"
em documentos brasileiros dessa época. Seu uso demonstra cla-
ramente que as autoridades judiciárias de Caruaru - ou pelo
menos uma delas - tinham perfeita consciência da atração que
exercia o movimento dos quebra-quilos sobre os de baixa renda,
ainda hoje rigorosamente classificáveis como proletários .. Sedicio-
sos e proletários invadiram a coletoria e a casa da Câmara, quei-
maram seus arquivos, inutilizaram todos os pesos e medidas que
encontraram, e praticamente mantiveram-se como senhores da ci-
dade até às quatro da tarde, quando se retiraram prometendo que
voltariam se persistisse a cobrança dos impostos que consideravam
injustos. Como em dezenas de outros documentos de autoridades
postas em cheque pela ousadia dos quebra-quilos, vê-se no aflito
expediente que foi enviado a Lucena, que, de Caruaru, pediam as
autoridades reforços urgentes, ameaçadas que estavam de nada po-
derem fazer ante a sedição proletária.
A visão dos acontecimentos por parte do Presidente da Câ-
mara de Caruaru é curiosa e dá à atuação dos quebra-quilos na-
quela área, a característica especial de contar também com a ajuda
"das pessoas importantes da cidade" 50 •
:É provavelmente procedente a sua observação, pois o juiz
municipal Antônio Paulino Cavalcanti d' Albuquerque, diria pouco
depois, a 10 de dezembro, a mesma coisa ao Presidente da Provín-
cia. Temia o juiz que os sediciosos, conforme prometiam, invadis-
sem a prisão para dela tirarem alguns quebra-quilos que já haviam
125
sido presos. Os inquéritos ainda não estavam instaurados, e o ma-
gistrado dirá, pesando bem as palavras, que confia no promotor
público que "saberá cumprir o seu dever apesar dos embaraços
que possam sobrevir, pois pessoas influentes e que tem sequito,
acham-se comprometidas na sedição".
"Todos receiam dar testemunho das ocorrências do dia 12",
diz o juiz Cavalcanti d' Albuquerque, e acrescenta: "e os que para
isso tem sido notificados escondem-se para não serem coagidos". A
situação de Caruaru era realmente difícil. O destacamento de 50
praças da Guarda Nacional, era qualitativa e quantitativamente
incapaz de enfrentar os quebra-quilos, na hipótese de um novo
ataque. A munição e o armamento que foram enviados pelo Go-
verno, juntamente com uma força policial auxiliar, ficaram. com o
delegado de Palmares. Nos distritos vizinhos ou próximos o clima
era de pânico.
No distrito de Jurema do Brejo, o subdelegado escandalizou-
se com o ânimo das pessoas mais importantes do lugar, em rela-
ção à organização de um sistema de defesa contra uma esperada
sortida dos quebra-quilos. Quando apareceram, as minguadas for-
ças de que dispunham as autoridades nada puderam fazer. Um
professor primário, João José Ribeiro de Morais, tentara inutil-
mente, por ocasião do assalto, estimular a população com apelos
aos "sentimentos de ordem". Ao que parece, nada conseguiu, pois
o subdelegado local dirá, entre impotente e atônito: "Posso asse-
verar que é limitadíssimo o numero de pessoas que não partilhão
dos mesmos sentimentos dos sediziosos, tanto que não houve quem
pagasse imposto algum de qualquer natureza" 51 •
O Município de Caruaru tinha sofrido uma das mais violen-
tas investidas dos quebra-quilos.
***
No Brejo, atual Brejo da Madre de Deus, a Guarda Nacional
será comandada pelo barão de Buíque, Francisco Alves Cavalcanti
Camboim. Acorrera o barão, com mais de duzentos homens, à
feira do velho burgo, em virtude dos boatos de que, no dia 19
de dezembro, os quebra-quilos ali apareceriam. Diria, em ofício
dirigido à Presidência, o também coronel Camboim: "Os sedi-
ciosos se acham acampados nos limites desta Comarca com a de
Limoeiro, d'onde teem feito suas correrias por Caruaru e é d'alli
que pretendem vir ao Brejo, se bem que se falle de outro grupo
126
das partes do Cariri" 52 • Já haviam estado, no dia 14, nos po-
voados de Capim, Santa Cruz e Jacu 53 , porém não se atreveram a
aparecer na sede do Município. Não confiava muito na Guarda
Nacional o juiz João Alvares Pereira de Lessa, e já dissera até ao
Presidente Provincial que, sendo "composta de homens do povo,
facilmente se pode levar pelo falso preconceito de que esses se-
diciosos são os libertadores do povo, como se apregoão, e a prova
disso é que onde chegão, achão sempre um grande grupo que a
elles se liga" 54 • Pareceram ao Governo de Pernambuco tão im-
portantes a dúvida e a informação de seu juiz, que logo foi envia-
da uma cópia do seu ofício ao Ministro da Justiça. Não era dife-
rente a opinião do promotor Augusto Coelho de Morais, para
quem "nenhuma confiança pode inspirar a Guarda Nacional" 55 •
Segundo sua informação, indivíduos que faziam causa comum com
os sediciosos já não queriam pagar impostos.
Alarmou-se Lucena. A vila só possuía oito soldados e na im-
possibilidade de enviar-lhe tropa municiada, pois recebia cons-
tantemente o Governo pedidos de outros Municípios, determinou
que se oficiasse ao juiz municipal, ao juiz de Direito e ao promo-
tor, fazendo-se um apelo para o patriotismo de cada um, estimulan-
do-os a organizarem a resistência. Para o delegado José Alves Ma-
rinho, entretanto, uma força pública era "a única que podia inspi-
rar confiança" 56 •
Nas vizinhanças, a situação não era melhor. O distrito de Ju-
rema do Brejo, segundo indica um ofício do seu subdelegado, José
Leopoldino dos Santos 57 , era um foco quebra-quilos, pois este já
dissera enfaticamente à autoridade policial: " Posso asseverar que
é limitadíssimo o numero de pessoas que não partilhão dos mes-
mos sentimentos dos sediciosos, tanto que não houve quem pa-
gasse imposto algum de qualquer natureza". Sabia-se, na sede do
Município, quem tinham sido os chefes do tumulto de Santa Cruz,
onde fora arrombada a casa do arrematante dos impostos muni-
cipais. Seu nome era Manuel Francisco, e era morador do povoado
127
de Picada. Na povoação de Capim, o capitão das desordens fora
Herculano Boaventura Liberal, morador em Tacaité, do termo de
Caruaru 58 •
Não se havia entusiasmado o promotor com o direto apelo
ao seu patriotismo, feito pelo Presidente PrQvincial. Um ofício de
17 de dezembro revela apenas seu medo e o pânico da população:
"Devo dizer a V. Excia. que nada tem podido fazer as autoridades
policiaes afim de conterem as desordens, pois que nenhuma força
tem a seu dispor; notavel que as pessoas reunidas nos lugares as-
saltados em ocasião da feira, quando se não collocam em posição
hostil aos interesses de ordem publica identificam-se dest'arte com
os invasores tomão-se neutrais negando apoio a autoridade, que
se vê isolada. Tenho entendido não promover por hora em tão cri-
tica situação a punição dos culpados".
Para Lucena tais cautelas atingiam francamente a fronteira da
pusilanimidade e seu despacho é excepcional: "Que proceda à in-
queri tos e a procurar os cabeças. Que busque prender os crimi-
nosos. Que haja resistencia às desordenes. Energia! "59 •
Entretanto, não mais seriam necessárias militâncias no Brejo.
Apesar dos medos e receios e da presença de quebra-quilos nas
redondezas, a cidade foi poupada. Da tragédia passou-se à comédia
municipal: o delegado oficiaria ao Chefe de Polícia da Província,
José Alves Moreira Falcão, dizendo-lhe que "o pequeno destaca-
mento de policia que aqui he composto de sete praças está intriga-
do com a Guarda Nacional" 6ó.
Ao contrário do juiz de Palmares, o promotor de Vila Bela
confiava na Guarda Nacional e, a 28 de outubro, dizia ao Chefe
da Polícia da Província 61 que, após a dissolução da mesma, os
criminosos "mais de uma vez tem passeado dentro da Villa sem
escrupulo algum e menoscabando as autoridades". O juiz soi disant
"sectario do principio antes privinir do que punir", já tentara re-
solver o problema da prisão dos jesuítas Onorati e Aragnetti e
dera-se mal. Às 3 horas da madrugada, um grupo de mais de 300
pessoas, do qual fazia parte a própria ronda, fora à sua casa aos
gritos de morram os maçons! e quase arrombaram a porta. Antije-
suíta e, provavelmente, maçom, estava convencido de que os dois
128
italianos eram os grandes responsáveis pelo Quebra-quilos e que a
matriz de seu Município era a base das operações. A prova de
que eles foram os principais cabeças do movimento é que foram
chamados à Capital, sentencialmente informará ao Presidente Lu-
cena a 26 de dezembro. Para ele os chefes quebra-quilos não eram
Leonel Barbosa dos Santos e João dos Santos, como presumiam
algumas pessoas. Aturdido, dirá ainda com insuspeitada bravura
o juiz: "acho-me sob um volcão e só não abandono a Comarca,
como outros o tem feito, porque entendo nas circunstancias difíceis
o empregado publico tem o estrito dever de sacrificar até a vida".
Pode-se dizer que Onorati e Aragnetti bem representam os
padres que agiam imprudentemente, piorando as relações entre a
Igreja e o Estado, e contra os quais reclamava, no Rio de Janeiro,
o protonotário apostólico Michel Ferrini, em carta ao cardeal An-
tonelli 62 • Provavelmente não pretendiam uma revolução, porém,
malgrado serem estrangeiros, defendiam a tese de que só se de-
via obedecer ao Governo naquilo que não fosse ofensivo à religião.
Não se dão em Vila Bela ataques à Câmara, à coletoria e aos
cartórios; os impostos continuarão a ser cobrados regularmente.
Na correspondência posterior a ira do magistrado contra os padres
não desaparece e, a 7 de janeiro de 1875, quando tudo já indicava
que Vila Bela não teria mais problemas, explodirá verbalmente seu
medo no oficio que enviou ao Presidente: "E quer saber V. Exa.
o novo suplicio que me estava reservado segundo me informaram?
Era ser lentamente sangrado com um sabugo de milho de que co-
mummente faz o povo um uso bem vil" 63•
No primeiro dia de dezembro de 1874, Bom Jardim encheu-
se de boatos. Dizia-se que os quebra-quilos de Barra de Natuba,
na Paraíba, preparavam-se para marchar contra a cidade, onde des-
truiriam todos os pesos e medidas que encontrassem, queimariam
a coletoria, matariam as autoridades, sendo que o coletor seria pu-
nido duplamente, pois teria também a sua casa demolida. Muitas
pessoas abandonaram a cidade e o promotor pediu reforços. O de-
legado já oficiara ao Chefe de Polícia da Província de Pernambuco,
Antônio de Araújo, dizendo-lhe que não eram "notícias vagas" e
que o caso era realmente de perigo iminente.
129
Realmente, na madrugada do dia 2 de dezembro, sessenta
homens armados entraram na cidade adormecida, arrombaram a
coletoria, onde rasgaram alguns papéis sem importância, retiran-
do-se em seguida. O povoado de Surubim fora também visitado
pelos quebra-quilos que destruíram alguns pesos e medidas e saí-
ram logo depois. Esperava-se, entretanto, que, no sábado seguinte,
dar-se-ia a propalada e temida ocupação da cidade pelos revolto-
sos. :e provável que fosse essa, realmente, a intenção dos quebra-
quilos, pois haviam se agrupado nas proximidades; retiraram-se,
porém, para local ignorado, possivelmente na Paraíba, a fim de
reforçar suas fileiras em Barra de Natuba.
O Governo havia recomendado, com insistência, que fossem
identificados os cabeças. O novo delegado de Bom Jardim, capi-
tão Pompílio da Rocha Moreira, chegou a insinuar ser um tal Luís
Barreto um dos principais, mas se eximindo, posteriormente, da
responsabilidade da acusação, diria que a informação não pas-
sava de boato. Aliás suas observações em relação aos quebra-
quilos são sempre vagas e contraditórias, o que provocará certa
impaciência no Governo Provincial. Em seu ofício de 6 de dezem-
bro de 1874, por exemplo, disse textualmente que "pelas medidas
tomadas os animos estão se acabrunhando, não obstante o avulta-
do numero de pessoas que reunem-se em diversos lugares". Três
dias depois, um outro ofício de sua autoria, ao dizer que "vai este
termo sem maior alteração", tem um despacho irritado do Presi-
dente Lucena que, sem esconder o que realmente pensa, o adverte:
"Já lhe tenho recomendado por mais de uma vez que não convem
que esta força fique ali inactiva e quero lhe cumprir capturar com
todo o empenho os criminosos, não só os que tomaram parte no
movimento sedicioso como os de outros crimes, que ali existem".
Lucena pouco confiava em Pompílio da Rocha. No dia 11
de dezembro, chegaria a Bom Jardim uma força comandada por
Luís de Albuquerque Maranhão, cujo relatório ao Governador é
perfeito modelo de imodéstia não-combatente, pois, entre outras
coisas, registra Maranhão que, em Barra de Natuba, na Paraíba,
achava-se avultado número de sediciosos que, segundo se dizia, pre-
tendiam atacar a cidade, mas com a notícia de que era o coman-
dante da força pacificadora, dispersaram-se, dizendo que com tal
militar não se bateriam. "Nenhum receio se deveria ter de que a
ordem pública continuasse a ser alterada" diz enfaticamente Luís
de Albuquerque Maranhão em seu relatório.
Retirou-se o pouco modesto Albuquerque Maranhão para São
Vicente e Timbaúba, deixando a cidade tranqüilizada em relação
JJO
aos quebra-quilos, porém, às voltas com um problema interno: as
rivalidades e malquerenças entre as autoridades locais, sempre ten-
sas pela presença dos quebra-quilos. Abriu fogo o juiz Austerlia-
no Correia de Castro, oficiando ao Presidente da Província, dizen-
do-lhe que "desde os primeiros movimentos populares desta co-
marca fora esta villa abandonada pelo Dr. Promotor Publico, igno-
rando este juizo onde se acha o dito promotor". Os quebra-quilos
pagarão pela inimizade entre ambos, pois, no dia seguinte, o pro-
motor não hesitará em indicar, como cabeça da sedição, o próprio
juiz Austerliano Correia de Castro, juntamente com o alferes Ma-
nuel d'Assunção e Santiago, Antônio José d'Orleonia e Francisco
Ferreira da Silva.
Estarreceu-se a cidade vendo o seu juiz acusado como chefe
dos quebra-quilos.
O que se passara realmente em Bom Jardim está perfeita-
mente documentado em minucioso relatório do capitão Antônio
Raimundo Lins, comandante de um destacamento volante, estacio-
nado eventualmente naquela cidade. Os chefes dos sediciosos na
região eram Luís Barreto; paraibano de Barra de Natuba, e o al-
feres reformado do Exército, Manuel d'Assunção e Santiago. Os
homens de Luís Barreto estavam reunidos em Mata Virgem (Pa-
raíba), para atacarem Bom Jardim, em represália à prisão do alf e-
res Assunção, e haviam organizado piquetes e emboscadas para re-
pelir quaisquer forças do Governo. A liderança de Luís Barreto
entre os quebra-quilos, ao que parece, estava entretanto compro-
metida pois não comparecera ao encontro marcado para dirigir o
ataque à cidade, previsto e programado para o dia 5 de dezembro.
Luís Barreto julgara mais estratégico retirar-se para Cabaceiras.
Os fazendeiros locais deram ajuda substancial às tropas de
Luís Albuquerque Maranhão. Emprestaram-lhe homens e franquea-
ram-lhe as terras, conforme seu depoimento 64 • Pode assim criar
Maranhão, com elementos locais, uma "Companhia de Cavallaria"
que pretende quase institucionalizar, pois pedirá, em dezembro de
1874, "a remessa de uma tabela que regule a forragem dos solda-
dos de cavalaria que criei visto que, no sertão, se faz grande des-
pesa com animais, máxime neste tempo de seca". A oposição vio-
lenta dA Província a todos os atos do Governo não deixou passar
a ocasião de atacá-lo e, em sua edição de 17 de dezembro, dirá
131
que, na força volante atuante em Bom Jardim, havia até "crimino-
sos de morte".
Gravíssimas foram as denúncias do promotor público Manuel
Tertuliano de Arruda ao Presidente da Província 65 : o cabeça da
"sedição que se levanta na comarca, contra a arrecadação de im-
postos", seria o próprio juiz Austerliano Correia de Castro, juiz
municipal do Termo, mterinamente na função de juiz de Direito.
Acompanhavam o nome do juiz, na acusação, outros, também de
destaque na localidade: o alferes Manuel d'Assunção e Santiago,
o bacharel Antônio José de Alcona, além dos que se dissolviam
no anonimato plebeu da terra, Francisco Ferreira da Silva, Luís
Barreto, José Bezerra de Meneses, Antônio Fabrício, Gabriel Nunes
da Rocha, José dos Santos, Manuel Bernardo, Marcelino Pereira de
Lima, Isidoro Pereira da Silva, Inácio Soares, Joaquim Gomes,
Ângelo Pereira, João Cafurute e Venceslau Ferreira do Espírito
Santo.
O alferes Manuel d'Assunção já estava preso juntamente com
Venceslau Ferreira do Espírito Santo. Os outros haviam prudente-
mente saído da comarca.
Enquanto o promotor requeria a abertura de um inquérito po-
licial, apontando supostos cabeças da sedição, de Bom Jardim se-
guirá para Surubim o capitão Antônio Raimundo Lins Caldas com
um destacamento volante. Seguia temeroso 66 , porque os habitan-
tes de Surubim já estavam conhecidos nas redondezas como sim-
patizantes dos sediciosos. Com efeito, alguns quebra-quilos en-
trincheirados nas casas da pequena vila abriram fogo contra a tro-
pa de Lins Caldas e houve também luta de baionetas. No tiroteio
morreu Marcelino Gomes Barbosa, ao que parece, o chefe do
grupo. Seus companheiros fugiram e "embrenharam-se nos matos",
de acordo com o relato da correspondência oficial. Foram presos,
entretanto, Antônio Candeia Guimarães, Florentino Ferreira Lima
e Henrique Gomes Barbosa. O primeiro era apontado como "um
dos influentes mais exaltados de Surubim" 67 • O último era irmão
de Marcelino, morto em combate, e ambos eram, segundo a comu-
nicação, extremamente perigosos.
A participação do juiz Austerliano Correia de Castro no mo-
vimento ou sua simples simpatia para com os quebra-quilos é mui-
132
to pouco provável. Ainda em Bom Jardim, a 29 de dezembro de
1874, comunica que, no dia 24, deixara de exercer o cargo de
juiz-interino e expõe o enredo do drama municipal: inimigo fida-
gal do coletor Rogberto Barbosa da Silva, iniciara este contra ele
uma campanha de calúnias apontando-o como "auxiliar dos desor-
deiros" 68 •
O delegado Pompílio da Rocha Moreira, a quem também não
suporta.va, tem também sua parte no comunicado do juiz: "Sem
a maior competencia para julgar da intervenção que pudesse eu
ter no movimento reacionaria (o que repito é uma calunia) é sem a
mais ligeira prova ou mais leve indicio de relações minhas com os
desordeiros, levam sua audacia ao ponto de fazer-me o mais extra-
ordinario desacato de que haja noticia em uma sociedade regu-
lar" . Segundo o relato do magistrado, fora ele desacatado e prati-
camente detido na noite de 23 de dezembro. As razões da inimi-
zade entre o delegado e o juiz aparecem indisfarçadamente na co-
municação deste último que temia até ser assassinado: "Ante a
perspectiva de um atentado planejado pelo odio do parente de Vos-
sa Excelência Rogberto Barbosa da Silva, a cuja disposição ou an-
tes a cuja descrição se acha a força comandada por aquele capitão,
não era possível permanecer por mais tempo, sujeitando a autori-
dade de que então me revestia as violencias de novas injurias, des-
respeitos e acintes de tais energumenos" 69 •
Sua ausência da Comarca foi bem aproveitada pelos seus ini-
migos. Instaurou Pompílio da Rocha Moreira um inquérito poli-
cial 70 , aliás um dos mais extensos documentos sobre a sedição
em Bom Jardim, no qual o juiz, através de testemunhos mais ou
menos suspeitos, é indiciado como cabeça da sedição. Nele apa-
recem as armas usadas pelos quebra-quilos, clavinotes, clavinas,
facas e cacetes, a par da admissível liderança de Luís Barreto, de
Barra de Natubá, e José Bezerra de Meneses, de Viração. Uma
reação à excessiva cobrança de impostos é atribuída aos revolto-
sos. Não se fala em jesuítas. Teriam dito os revoltosos que o cole-
tor "tinha um ferro para ferrar como cativos os meninos que d'ora
em diante nascessem e que o mesmo coletor era quem arreca-
dava para si os rendimentos das igrejas e cemiterios que já não
pertenciam aos Padres"; esta será a única referência ao clero. Re-
(68) Códice Juízes de Direito, MSS J.D., 1874, ms. 579. Arquivo
Público do Estado de Pernambuco.
(69) Idem, doe. 579.
(70) Códice Chefe de Polícia, MSS P.C. 120, does. 30/89. Arquivo
Público do Estado de Pernambuco.
133
ferências, aliás, de um analfabeto que sabe "de ouvir dizer" e
pelo qual assina, a rogo, Manuel de Barros Alves da Nóbrega.
Não tem maior valia, pois, seu testemunho de que o juiz da Co-
marca era o cabeça da sedição.
As perguntas então formuladas no inquérito são capciosas. In-
daga-se, por exemplo, se uma testemunha sabia se o Dr. Auster-
liano, o Dr. Alcovia e Francisco Ferreira da Silva, viviam em per-
feita harmonia e comunhão de idéias, movendo-se todos de comum
acordo.
Austerliano aparece no inquérito como um omisso, testemu-
nhando inerte a influência dos quebra-quilos e tendo amizade com
alguns deles. Nenhuma providência teria sido tomada pelo magis-
trado. Outros nomes surgem como quebra-quilos bonjardinenses:
Antônio Fabrício, Gabriel Nunes da Rocha, José dos Santos, Ma-
nuel Bernardo e Marcelino Pereira de Lima. O alferes Manuel
d'Assunção e Santiago, entretanto, é quem enfrentará um processo
judicial, indiciado como quebra-quilos. O Governo não se conven-
ceu da implicação do juiz na sedição, mas não teve dúvidas quan-
to ao alferes. O Diário de Pernambuco 71 , polêmico e partidário,
verá, entretanto, em Bom Jardim, a sotaina inaciana forrando "o
pasto infeliz de jesuitismo" onde "o preparo das más paixões foi
feito pelo grupo que acompanha certa imprensa desta e da Provín-
cia da Parayba".
Em janeiro de 1875, o delegado de polícia Pompílio da Ro-
cha, informava a Lucena que, no lugar Mata Virgem, na fron-
teira com a Paraíba, ainda havia muita exaltação e confessava ser
muito difícil a prisão dos cabeças que "estão nos matos com cau-
telas" 72 •
Em virtude de sua posição social, o inquérito e o processo
do alferes Manuel d' Assunção e Santiago provocaram dezenas de
artigos em jornais, pareceres e ofícios. Santiago não era um ta-
baréu. Além de alferes reformado do Exército, era advogado provi-
sionado no Ingá, onde parece ser benquisto 73 • Preso no dia 13
de dezembro de 1874, em Bom Jardim, e remetido à Fortaleza do
Brum, no Recife, havia requerido, através do bacharel Eliseu de
Sousa Martins, um habeas corpus sob a alegação de que não fora
preso em flagrante e sim por denúncia de seus inimigos políticos.
134
Lucena tentou obstaculizar as providências dos amigos de Santiago
no sentido de libertá-lo, determinando ao comandante das Armas,
que levantasse conflito de jurisdição, pois o crime era militar.
Santiago parecia-lhe perigoso.
O presidente do Tribunal da Relação não fraquejou diante
da pressão do Presidente da Província. Em ofício datado de 26
de janeiro de 1875, comunica-lhe que o crime de Santiago era de
sedição, e como tal não era militar e sim civil. Se a justiça civil
não o achasse culpado nada teria a fazer a justiça militar, pois só
ao Tribunal da Relação competia conhecer da legalidade ou ile-
galidade da prisão, uma vez que a mesma só podia ser decretada
por autoridade judiciária. Ficará também famoso, na época, o pa-
recer de Maciel Pinheiro: "Que crime commetterão esses grupos de
mais de vinte homens livres, que rasgarão papeis publicos nas
estações fiscaes e destruirão os padrões de pesos e medidas muni-
cipaes nas localidades interiores?
Não faltará quem repute de todo ociosa esta questão, e per-
feitamente claro e conhecido o direito criminal, que a regula.
Mostraremos que pelo menos sérias duvidas se podem susci-
tar em sua solução.
A circumstancia de apresentarem-se ou não armados esses gru-
pos, no todo ou em parte, é decisiva para constituir o crime de
sedição, porque este crime se não dá sem o armamento dos reu-
nidos.
O armamento, porém, será condição que impossibilite os cri-
mes de conspiração, de rebellião, de damnificação de bens publi-
cos, ou ajuntamento illicito?
Não é; pois que póde ter por fim unicamente garantir a effi-
cacia de qualquer desses crimes e não de outros, sem chegar a
ter emprego algum estranho a elles.
Além disso os crimes praticados por meio de conspiração e
rebellião só em caso extraordinario se realisão sem o emprego de
armas. O de ajuntamento illicito póde ser praticado por meio de
violencias que o Codigo prevê em diversos artigos para elevar a
pena imposta; e a violencia não se faz sempre sem armas.
Além disso o armamento, que não é empregado como meio
para o fim intencional da reunião, não tem o elemento criminal
que o faz entrar como qualificativo do crime de sedição. A cir-
cunstancia da noite não aggrava o delicto, senão quando procurada
para facilitar o crime ou a fuga do delinquente. Assim é o armamen-
to, o qual temos convicção de que em todos os pronunciamentos
135
populares do sertão, não passou de uma circumstancia inteiramen-
te alheia ao intuito criminoso, e proveio apenas do habito inve-
terado de andar o sertanejo sempre armado, de modo que onde
se acha elle, em qualquer ajuntamento licito ou illicito em que en-
tra, está sempre com o seu instrumento tanto de off ensa e aggres-
são, como de defeza.
Portanto, se em tal condição o armamento não serve para
qualificar o crime de sedição, tambem não pode prejudicar a qua-
lificação do crime de ajuntamento illicito.
Qualquer outro delicto que tenha tido principio de execução,
ou se haja effectuado com outros elementos e circumstancias fóra
dos intuitos da reunião, não faz objecto das nossas ligeiras obser-
vações.
O intuito que moveu a reunião, é o que dá ao delicto sua
classificação verdadeira, quer se verifique a circumstancia do ar-
mamento, quer não. E assim, uma vez sabido que as pessoas reu-
nidas não tinhão o proposito de perpetrar algum dos crimes men-
cionados nos arts. 68, 69, 85, 86, 87, 88, 89, 91 e 92 do Cod.
Crim., ficão fóra de questão os crimes de conspiração e rebellião.
As leis penaes têm por objecto aquelle direito stricto que não
comprehende senão pessoas, factos, circumstancias particular e
especificadamente nellas tratados com precisão formal e positiva.
Razões de paridade e illações não podem condemnar a ninguem.
E portanto a hypothese, que se não achar rigorosamente compre-
hendida nos termos da lei, que não tenha realisado todas as con-
dições especificadas em certo artigo, não é por esse artigo regulada.
Tendo em attenção este principio, consideramos o facto ante
os artigos do Cod. Crim., que qualificão os crimes de sedição, de
damnificação de bens publicos e de ajuntamento illicito.
O facto criminoso, de que são accusados tantos indivíduos,
consiste apenas em uma certa circumstancia preliminar, que o
Codigo Criminal tenha constituido em crime especial, ou consis-
te na realisação do proposito formado pelos delinquentes, na rea-
lisação do intuito que os reunio? O crime está na circumstancia
inicial da reunião, ou nos actos realisados por meio dessa reunião?
Se o crime está nos actos praticados depois da reunião, deve
certamente ser classificado como damnificação de bens publicos.
Se está no facto da reunião, reduz-se a questão a saber se o
crime foi o de sedição, se o de ajuntamento illicito.
Na hypothese do ajuntamento illicito, ficão ainda os delin-
quentes sujeitos a todas as outras penas, em que tenhão incorrido
136
por actos praticados durante elle. E, como em tal caso se achão
as do crime de damnificação, ainda por isto, pondo de parte esta
especie reduz-se a questão a saber, se as reuniões de que foi thea-
tro o sertão devem ser classificadas como sedição, ou como ajun-
tamento illicito.
O proposito, com que se reunirão os delinquentes, podendo
versar sobre objectos differentes, dirigir-se a fins diversos, cons-
titue um desses dous crimes, conforme o ponto que vão directamen-
te ferir.
Uma cousa são os princípios geraes de ordem publica, as nor-
mas do poder, a sua autoridade, o seu exercício, o imperio total
e completo da legalidade; e outra cousa é um acto dos funcciona-
rios publicas, uma manifestação do seu poder, um facto do seu
exercicio.
A reunião de pessoas, que sem dirigir-se aos funccionarios,
têm por fim frustrar alguma norma de justiça, algum preceito de
ordem publica, alguma imposição legal, é qualificada pelo Codigo
Criminal como uma espécie de crime, com denominação especial;
e a reunião que tem por fim attentar contra um acto particular
de algum funccionario, contra alguma manifestação do seu poder,
contra um facto do seu exercicio, é qualificada como outro crime,
com denominação differente.
Assim, impedir a percepção de alguma taxa ou tributo legi-
timamente imposto, ou a execução de alguma lei ou sentença, são
intuitos que respeitão directamente ao principio da ordem publi-
ca, as normas da autoridade, a um preceito da justiça; mas nem
por isso suppôem ataque aos agentes do poder ou da autoridade,
o que lhes daria caracter mais insolito e odioso.
Assim, obstar a execução e cumprimento de qualquer acto
ou ordem legal de legitima autoridade, é intuito que respeita espe-
cial e particularmente ao depositaria do poder publico, ao agente
da ordem social, em um momento dado, em um certo ponto de
sua actividade, em certa manifest~ção de sua autoridade; é intuito
de opposição, de resistencia (e tem esta qualificação, se não chega
a vinte o numero dos sediciosos), de emprego de força ou violen-
cia contra determinado agente do poder publico, cujo exercício
entretanto, quanto ao mais, se mantem illeso o funcciona até com
vigor.
Em qual destas especies se acha classificado o facto de que
nos occupamos?
A reunião do povo, que rasgou papeis e destruio os padrões
de pesos e medidas municipaes, tinha por fim manifesto impedir
137
que se puzesse em pratica o novo systema de pesos e medidas; im-
pedir que se cobrassem as taxas municipaes (aluguel) dos pesos e
medidas, que por esse tributo se tomarão odiosos, encarecendo o
preço dos productos vendidos por meio delles; impedir a exe-
cução da lei que estabeleceu no lmperio o uso obrigatorio desse
mesmo systema de pesos e medidas; impedir que por meio dos
respectivos livros e papeis (rasgando-os e queimando-os) nas esta-
ções fiscaes se cobrassem os impostos provinciaes, votados pelo
poder competente.
Isto não é querer obstar a execução de um acto, o cumpri-
mento de uma ordem, reagindo contra o agente da autoridade; é
querer frustrar a pratica de preceitos do poder publico, de nor-
mas da autoridade. Não houve opposição de força à força, não
houve affronta a funccionario nenhum official.
Segundo o art. 285 do Codigo Criminal:
"Julgar-se-ha commettido o crime de ajuntamento illicito, reu-
nindo-se tres ou mais pessoas com a intenção de se ajudarem ...
para ... privarem illegalmente alguem - do exercício de algum de-
ver."
Comprehendendo na palavra alguem os funccionarios publi-
cas, não se deve todavia confundir - exercício de algum dever
com execução de acto ou ordem - Quem executa acto ou ordem
legal de autoridade competente, exerce certamente algum dever;
mas "exercer algum dever" não quer dizer exactamente "executar
ou cumprir qualquer acto ou ordem legal de legitima autoridade".
Segundo o art. 287 do mesmo Codigo, o ajuntamento illicito
póde "ter por fim impedir a percepção de alguma taxa, direito,
contribuição ou tributo legitimamente imposto, ou a execução de
alguma lei ou sentença".
Foi nisto de facto que consistia o fim, o proposito do ajunta-
mento da gente do sertão em diversas localidades.
Segundo o art. 111 do mesmo Codigo:
"Julgar-se-ha commettido o crime de sedição, ajuntando-se
mais de vinte pessoas, armadas todas, ou parte dellas, para o fim
de obstar a posse do emprego publico ... ou para obstar a execução
e cumprimento de qualquer acto ou ordem legal de legitima auto-
ridade."
Não é, evidentemente, esta a culpa; não é este o facto cri-
minoso de que são accusados os que se reunirão, rasgarão papeis
publicas e destruirão os padrões de pesos e medidas, acreditando
138
em sua grosseira ignorancia que assim ficarião livres dos tributos
constantes daquelles papeis e das leis relativas ao novo systema de
pesos e medidas decimaes.
Para não fugir das difficuldades desta questão jurídica, inda-
guemos se o numero dos reunidos decide por si da classificação
do crime.
Basta que o numero dos reunidos exceda de vinte pessoas,
sendo todavia inferior a vinte mil, para que o crime seja de se-
dição, e não de ajuntamento illicito ou de rebellião?
Seria desattender completamente ao fim da reunião, ao seu
intuito, ao pensamento que a determinou; seria prejudicar o ele-
mento moral do acto condemnado. Além de que o Codigo admitte
no art. 289 que o ajuntamento illicito conste de mais de vinte
pessoas. Esta cidade tem sido theatro de diversos ajuntamentos
considerados illicitos, e como taes dispersados (embora sem tir-te
nem guar-te) constantes de centenas de pessoas.
Do mesmo modo, sempre que o numero dos reunidos fôr de
mais de tres e menos de vinte pessoas, não se póde concluir que
a reunião constitue o crime de ajuntamento illicito.
Nem tambem se deve concluir que, excedendo destes limites o
numero dos reunidos, deixa de haver esse crime, - embora o
fim da reunião seja clara e positivamente expresso nos termos em
que o Codigo define o mesmo crime de ajuntamento.
Portanto, desde que o Codigo Criminal não fixou no artigo,
em que qualificou o crime de ajuntamento illicito, o maximo do
numero de pessoas, dizendo apenas: - "tres ou mais pessoas ... "
devemos concluir que esse crime se dará, sempre que um grande
numero de pessoas se reunir com a intenção ou com o fim indi-
cados nos arts. · 285 e 287 do mesmo Codigo.
l! verdade que o crime de sedição está capitulado pelo legis-
lador criminal entre os crimes publicas, que são aquelles que
affectão a segurança interna do Imperio, e publica tranquillidade;
e que o de ajuntamento illicito o está entre os crimes policiaes,
com penas menores.
Mas, todo o acto illegal, que affecta a segurança interna do
Imperio, não é forçosamente sedição, apenas seja praticado por
mais de vinte pessoas. Porque o acto illegal não se acha formal,
positiva e claramente qualificado e condemnado por outra dispo-
sição penal expressa, não se segue que deva ser classificado como
sedição, pela simples razão de affectar a segurança interna do Im-
perio ou a tranquillidade publica.
139
E o crime de ajuntamento ellicito tanto affecta a tranquilli-
dade publica, que está sujeito a processo ex-officio.
e forçoso, para ser classificado como sedição, que se tenha o
facto realisado com os elementos e condições indicados no art.
111 do Codigo Criminal.
Não deve ficar impune o ajustamento illicito de mais de vinte
pessoas, que tiver por fim o indicado nos arts. 285 e 287, pela
razão de que nesses artigos se não estabelece o limite maximo do
numero dos reunidos, e porque o crime de sedição, como o de
conspiração, tem o limite mínimo de vinte pessoas.
Mas quando se verifique que o facto em questão, attentando
contra a segurança interna do Imperio, não está sua natureza com-
prehendido na qualificação de ajuntamento illicito, a consequencia
a seguir não é leva-lo ao artigo da sedição, onde tambem elle se
não acha; a consequencia é negar que em tal caso a reunnião seja
um crime especial, e votar apenas pela existencia do crime de damni-
ficação praticado em bens publicas pelos individuas reunidos.
Quanto à penalidade: e verdade que o crime de ajuntamento
tem pena menor que as da sedição: mas por este crime incorrem
os delinquentes unicamente nas severas penas para elle decreta-
das; ao passo que, dado o ajuntamento illicito, ficão os delinquen-
tes sujeitos a todas as penas decretadas para qual quer violencia
que commettão.
Dominando a opinião de que sedição foi o crime commetido
pelos sertanejos, não se trata de punil-os pela damnificação dos
bens publicas que destruirão. Entretanto, se a reunião delles for
considerada ajuntamento illicito, estão elles ainda sujeitos ás pe-
nas do art. 178 - prisão com trabalho por dous -mezes a quatro
annos e multa de cinco a vinte por cento do valor do damno cau-
sado.
Se as reuniões da gente do sertão para rasgar papeis publicas
e destruir os pesos e medidas decimaes é um verdadeiro· ajunta-
mento illicito, isto é, se não é o crime de sedição, então é preciso
clamar com todas as forças do espirita que:
- A relação do districto tem de seu lado a razão, quando
declara illegal a prisão do alferes Assumpção.
Porque só o crime de sedição, que se não deu, estão os mili-
tares sujeitos ao processo e tribunal militares" 74 •
140
Santiago foi libertado às onze horas da manhã do dia 28
de junho de 1875. A Provincia fora-lhe fiel. Desde sua prisão, dia-
riamente, publicara um editorial, sob o título "Mofina", no qual
chamava a atenção dos seus leitores para o perigo de fuzilamento
que pairava sobre a sorte do alferes-advogado. O "Ultimo Brado
da Mofina", publicado a 29 de julho, seria um grito de vitória:
"Triunphou com altivez a innocencia. Triunphamos nós os defen-
sores das liberdades individuaes. Os instrumentos do despotismo
perderão a vasa e mais uma vez cairão fulminados pela execração
publica" 75 •
Limoeiro fora invadida no dia 12 de dezembro 76 , e alguns
dos seus invasores eram paraibanos de Serra Bonita e Mata Vir-
gem. A cidade dispunha apenas de 16 guardas, porém não houve
tumultos 77 • A dez de janeiro de 1875, o juiz da Comarca, Fran-
cisco Bernardo de Carvalho, juntamente com o capitão do Desta-
camento Volante, Antônio Raimundo Luís Calado, enviaram ao
Presidente da Província a lista 78 "de indivíduos denunciados como
quebra-quilos e presos na madrugada dos dias 2, 3, 4 e 5 de ja-
neiro:
1. Joaquim Teixeira da Silva - preso no dia 4 - solteiro
2. João Teixeira da Silva - preso no dia 2 - casado
3. José Te.odoro da Silva Teixeira - preso no dia 2 - solteiro
4. Joaquim da Rocha Peixoto - preso no dia 2 - solteiro
5. Antônio Francisco dos Panos - preso no dia 2 - casado
6. Antônio Sebastião da Silva Pio - preso no dia 3 - casado
7. José Sebastião da Silva - preso no dia 2 - casado
8. Manuel Justino do Nascimento - preso no dia 2 - casado
9. José Byuna dos Santos - preso no dia 2 - casado
10. Lenadro Gomes de Moura Cavalcante - preso no dia 2 - casado
11. Ricardo - preso no dia 2 - escravo
12. José Francisco de Moura - preso no dia 5 - casado
13. Manuel João de Deus - preso no dia 2 - casado
14. Manuel José da Paixão - preso no dia 2 - casado
15. Antônio Marinho da Costa Tenório - preso no dia 2 - casado
Vertentes, segundo o testemunho de Laudino Manuel de Aze-
vedo, escapara da fúria de 78 quebra-quilos que entraram na vila,
no dia 19 de dezembro de 1874, graças à astúcia diplomática do
141
alferes Joaquim Rosa da Costa, que dispunha apenas de sete ho-
mens para defendê-la. Não escaparam entretanto os quebra-quilos
a um inquérito e a subseqüente denúncia do promotor público
Cassiano Bernardino dos Reis e Silva, que aponta curiosos nomes
como Umbelino Baraúna e José Marques Defensor do Império como
"cabeças do movimento". Dois alferes teriam ajudado os cabeças,
segundo o promotor Iimoeirense. O primeiro, Manuel Correia da
Silva, fornecera a Baraúna uma espada e, aos que o seguiam, co-
midas e bebidas alcoólicas; o segundo, Joaquim Teixeira da Silva,
oferecera a Jorge Marques Defensor do Império dois cavalos e um
rebanho de ovelhas para alimentação do seu brancaleônico exército.
Vertentes é também singular no noticiário da época. Segundo
o Jornal do Recife, o grupo que entrara na vila dera estrepitosos
vivas à religião católica e levara à frente uma bandeira branca na
qual estavam pintadas as imagens do Senhor Crucificado e de Nossa
Senhora.
Queixando-se de interferências a favor dos dois militares, em
seu ofício à Presidência dirá irritado o promotor: "Feita a denún-
cia, apresentou-se nessa comarca a proteção em favor dos dois
últimos denunciados, com todo o cortejo de escandalos e conse-
quencias!"
Bezerros será também vítima dos quebra-quilos, e estes, por
sua vez, serão vítimas da improbidade do tenente Bernardo José
Brayner79 • Armados de facas, machados, clavinotes e garruchas,
conforme haviam prometido 80 atacaram a cidade de Bezerros no
dia 11 de dezembro de 1874. Dirigiram-se, primeiramente, à casa
do juiz municipal, Licurgo de Albuquerque Nascimento, e pedi-
ram-lhe todos os papéis das coletarias e da Câmara. Respondeu-lhes
o juiz que não tinha os papéis exigidos e que não ordenaria a sua
entrega. Dirigiu-se então o grupo à casa do coletor e lá mesmo foi
queimado seu arquivo. A feira sofrera as desordens habituais de
um ataque quebra-quilos. Alguns arquivos, entretanto, haviam sido,
por precaução, escondidos na capela de Nossa Senhora do Rosá-
rio, e, graças à intervenção de diversas pessoas, foram poupados.
Arrematara o direito de cobrar os impostos o tenente Ber-
nardo José Brayner. Aproveitando o tumulto dos quebra-quilos,
Brayner invadiu a Câmara e retirou as letras pelas quais se obri-
142
gara, como arrematante, ao pagamento de 820$000, estando, aliás,
a primeira delas, no valor de 205$000, já vencida. Para obter con-
fiança e apoio dos quebra-quilos, Brayner dissera-lhes que a Câ-
mara era a responsável por tudo o que se cobrava na cidade e
que, se chegassem às suas mãos alguns papéis dos seus arquivos,
o povo ficaria livre de pagar imposto. Assim iludidos, facilita-
ram-lhe os quebra-quilos a violência, nada podendo fazer o Pre-
sidente João Francisco de Vasconcelos. De posse das letras, de-
clarou Brayner às autoridades que nada tinha a ver com os revol-
tosos e como prova mandou que seu filho, José Bernardo dos San-
tos, tomasse as armas de alguns espantados quebra-quilos. Pas-
sada a agitação, declarou-se desobrigado de qualquer pagamento
ao Município 81 , porém o primarismo de sua atitude não ficou im-
pune. Sabedor do acontecimento, o Presidente da Província de-
terminaria, a 23 de janeiro de 1875, ao juiz municipal de Bezerros
a imediata prisão do tenente e sua remoção para a cadeia de Vi-
tória. Um outro ofício, do dia 1.0 de fevereiro de 1875, entrega-
va-o à disposição do Chefe de Polícia: "Fica a disposição de V. S.
o tenente Bernardo José Brayner indiciado cabeça de sedição no
termo de Bezerros, e remetido pelo respectivo juiz municipal."
Grava tá fora atacada, no dia 1.º de dezembro, por "povos
considerados nocivos", na descrição do subdelegado Bernardino
Paiva Cavalcanti 82 . Os quebra-quilos, depois de quebrarem as
odiadas medidas, haviam-se dirigido à casa do arrematante de im-
postos, capitão Antônio Manuel Viana, dispostos a matá-lo. A
ajuda do destacamento local pôde contê-los. Eram, apenas, cerca
de 50 pessoas e com uma "grande bebedeira de vinho" termina-
ria a agitação.
Em Garanhuns, decorria pacificamente a feira do dia 19 de
dezembro de 1874, quando a um sinal de Vitoriano Reinaldo de
Freitas e Joaquim Bento de Cerqueira, um grupo que repentina-
mente se revelou quebra-quilos, iniciou a destruição das barracas
· e a quebra dos pesos e medidas. Os relatórios do episódio 83 são
unânimes em dizer que ao grupo inicial juntaram-se aproximada-
mente seiscentas pessoas. Enquanto umas saqueavam as mercado-
rias das barracas destruídas, outras dirigiram-se para o cartório
e para a coletoria. Reuniu o delegado, tenente Manuel Cândido
143
de Albuquerque, seu pequeno destacamento, porém nada pôde fa-
zer; a superioridade numérica dos quebra-quilos obrigou-o a pro-
teger a entrada da Câmara Municipal, da cadeia, dos cartórios e
da coletoria. A feira ficou entregue à sua própria sorte e os co-
merciantes também. Uns jogaram imediatamente seus pesos e me-
didas na calçada, outros, mais resistentes, foram intimados pelos
quebra-quilos a entregá-los sob ameaças. Enquanto um grupo reti-
rava do açougue público balanças, pesos e medidas, outro diri-
gia-se à loja do capitão da Guardà Nacional, -Pedro do Rego Cha-
ves, e exigia-lhe também a entrega de seus pesos e padrões de
medidas.
As autoridades locais, o juiz, o delegado, o vigário, junta-
mente com as pessoas de mais influência econômica da cidade, com
diplomacia e ponderação quase que conseguiam demover os que-
bra-quilos. Depois de parlamentarem, houve até vivas de parte a
parte. Entretanto, uma hora depois, voltaram os quebra-quilos à
casa do capitão Pedro Chaves, onde já se encontrava gente armada
para defendê-lo. Quando acorreu o delegado Cândido d' Albuquer-
que, para exigir dos revoltosos o cumprimento do acordo feito an-
teriormente, três deles o atacaram. Defendeu-se o tenente com a es-
pada, porém o chefe quebra-quilo Joaquim Bener d'Oliveira o
prostrou com profundo golpe de foice na omoplata. Iniciou-se a
luta, e da gente armada que protegia a casa do capitão Chaves
partiram os primeiros tiros. Não estavam os revoltosos, como em
outras localidades, armados apenas com foices e cacetes. Muitos
tinham bacamartes e, logo entrincheirados, responderam ao fogo ini-
migo, imediatamente aumentado pelos homens da força policial
destacada, que guardavam a Câmara, os cartórios e a coletoria. No
combate morreram os dois chefes quebra-quilos e ficaram feridos
muitos dos seus seguidores. O soldado Manuel Francisco da Silva
também morreu na luta. Debandaram os quebra-quilos ao verem
seus chefes mortos, porém os habitantes de Garanhuns estavam
certos de que voltariam, e o juiz José Alves Lima Júnior pediu
imediatamente reforços.
No dia seguinte, bem cedo, às seis horas da manhã, o major
Miguel Reinaux Duarte ocupava a cidade com 94 homens bem
armados e municiados. Não se atreveram os revoltosos a um novo
combate e, ainda sob a tensão dos acontecimentos do dia anterior,
recebeu a Câmara de Garanhuns a estranha notícia de que, em
dois povoados do Município, Palmeiras e Correntes, os quebra-qui-
los, depois de quebrarem pesos e medidas, haviam apagado ou
arrancado a numeração de todas as casas.
144
Seguiu para Palmeiras uma pequena força sob o comando do
subdelegado José Elias de Morais, ajudada por civis bem arma-
dos. Recebida à bala, reagiu matando um quebra-quilo e fazendo
muitos feridos. O promotor público e o delegado dirigiram-se tam-
bém ao povoado. Era necessário naturalmente fazer inquéritos e
efetuar prisões. O novo delegado de Garanhuns, Martiniano Eleu-
tério da Silva 84 , bem informará ao Presidente da sua Província:
"Tenho a honra de remeter nesta data para o termo de Panellas,
obedecendo as ordens que de V. Exa. tenho, os recrutas cons-
tantes da Relação inclusa feitos por mim neste termo, aos quais
V. Exa. dará o destino que julgar conveniente. Aproveitando esta
ocasião peço venia a V. Exa. recomenda-los visto serem elles de
pessima conduta e estarem mais ou menos envolvidos nos movi-
mentos sediciosos de que foi theatro este termo a saber: Antonio
Teixeira -de Macedo, Laurentino José da Silva, Joaquim José da
Silva e João Jorge do Nascimento foram quebradores de kilos
sendo os quatro primeiros desta villa e o ultimo do Districto de
Correntes, como se vê dos inqueritos que se procederão, Manoel
Silvestre de Freitas, João Antunes Janebro e João Brandão de
Sousa são solteiros e optimos recrutas para o serviço do exercito.
Declaro que me acharei sempre prompto a cumprir as sabias or-
dens de V. Exa."
Sairá publicado na imprensa, nas vésperas do Natal de 1874,
uma longa carta de Pedro do Rego Chaves, defendendo-se das
acusações de que os tiros que deram origem ao "combate de Ga-
ranhuns" teriam partido de sua casa. "~ falsíssimo que o primeiro
tiro tivesse partido da minha casa como diz o Sr. Peixoto; partia
dos sediciosos, e foi esse o sinal da renhida luta, em cujo começo
foi logo ferido o delegado que se aproximara, e mortos muitos
soldados que vinham em socorro."
Na carta de Pedro do Rego Chaves verifica-se que o quebra-
quilo morto, Vitoriano Reinaldo de Freitas, não era um simples
tabaréu; era seu irmão o tenente Eulália Ifigênio Freitas Vilela.
Revela também outra circunstância curiosa: houvera uma prepa-
ração psicológica nas feiras anteriores àquela trágica, de 19 de de-
zembro. "Não fui eu quem exitou o animo da população", diz
Chaves, e acrescenta: "não fui eu quem ia ler na feira os artigos
da Província assim como um papelucho avulso que com ele dis-
tribuído, em que concitava o povo a amotinar-se ... " Lamentavel-
145
mente não existe em nossos arquivos nenhum exemplar desses vo-
lantes que, por certo, não foram redigidos por quebra-quilos anal-
fabetos.
Enquanto os quebra-quilos atacavam as vilas e povoados do
interior, editoriais publicados na imprensa pernambucana 85 da
época fazem constantes referências às violações ao direito de pro-
priedade. No movimento Quebra-quilos, entretanto, não aparecem
bem definidas as reivindicações de terras. A propriedade fundiária
no Nordeste nunca sofrera grande contestação popular, e a idéia
de reforma agrária conotava-se sempre com simples processos de
modificação de técnicas agrícolas, extensão do crédito rural e me-
lhoria das vias de comunicação. O sistema perfeito e acabado da
estrutura latifundiária, historicamente ainda não permitia preten-
sões maiores que a lateralidade da emancipação dos escravos e,
assim mesmo, com acirrada oposição.
Os boatos costumeiros 86 invadiram Vitória (atual Vitória de
Santo Antão), nos primeiros dias de dezembro de 1874. Os que-
bra-quilos atacariam a cidade, quebrariam pesos e saqueariam a
Câmara, as duas coletorias e os cartórios. No dia 14, o juiz Ma-
nuel Correia da Câmara Tamarindo, tinha grandes esperanças de
que nada aconteceria87 • No dia 20 tornou-se o magistrado Tama-
rindo apreensivo, pois soubera, com detalhes, do que sucedera em
Bezerros e Gravatá.
Vitória, nessa época, possuía três tipografias, e duas delas,
segundo entendia seu juiz, "se tem pronunciado em favor dos se-
diciosos, incitando o povo a desordem e a desobediencia as auto-
ridades" 88 . A mais perigosa era a do Liberal Victoriense, perió-
dico que fazia oposição ao Governo. Não escondeu o magistrado
sua crescente apreensão: "Tenho por certo que se for invadida
esta cidade pelos desordeiros, encontrarão aqui bons auxiliares do
modo que se achão impregnados os animos pela linguagem incen-
diaria dos jomaes e dos tribunaes nas reuniões particulares." Irri-
tou-se Lucena com os medos de seu juiz e lhe dirá, sem rodeios:
"que do seu officio deprehende que o medo é ahi epidemico e que
tem acometido as proprias authoridades. A ser certo o boato que
corre que estão agora mais preocupados na defeza da cidade do
146
que na perseguição dos criminozos que como Vmce. diz fez correr
varios povoados da Comarca. Será preciso ainda uma vez dizer
que esses boatos são falsos ou exagerados, que esse panico de que
se deixarão possuir as authoridades ha de servir de epigrama a
essas mesmas authoridades e de vergonha para esta província?" 89
Não eram tão falsos ou exagerados os boatos, como irritada-
mente afirmara Lucena. Nesse mesmo dia, na localidade de Chã
Grande, no próprio Município de Vitória, aproximadamente trinta
pessoas atacaram a feira local, destruíram todos os pesos e medi-
das que encontraram, tomaram à força os recibos dos contribuintes
que já haviam pago os impostos, e, sem serem incomodados por
nenhuma força policial, retiraram-se tranqüilamente.
Buíque foi atacada pelos quebra-quilos, no dia 18 de dezem-
bro de 1874. A descrição do juiz José Maria Moscoso da Veiga
Pessoa 90 é detalhada e curiosa: um grupo de duzentos indivíduos,
capitaneados por uns 20 ou 25 "cabeças", tendo à frente um de-
les, tocando uma caixa de guerra, dirigiu-se à Coletoria Geral que
servia também de Correio, e ali rasgaram todos os papéis que en-
contraram e quebraram os móveis. Terminada a depredação da co-
letoria foram ao cartório, para fazer o mesmo, mas atenderam aos
pedidos de algumas pessoas de que ali nada fosse queimado ou
rasgado. Poupado o cartório, dirigiram-se a quase todos os esta-
belecimentos comerciais, onde inutilizaram os pesos e medidas que
encontraram. Às cinco horas da tarde, dando por finda sua missão,
retiraram-se.
O relato do Presidente da Câmara de Buíque 91 não é menos
interessante, pois acrescenta a circunstância de darem os revoltosos
vivas a São Félix, e jogarem no açude próximo os pesos e medi-
das apreendidos nas casas comerciais e que ainda não haviam con-
seguido quebrar.
Não estavam com armas de fogo e sim com facas e cacetes,
dirá o Juiz municipal Manuel Carmelo Pessoa Cavalcanti. Mais
uma vez irritou-se Lucena com a atitude de seus funcionários no
interior e despachou: "Se como diz o povo que praticou taes de-
satinos estava mor parte armado de cacetes, a força publica ahi
existente era mais que sufficiente para conter os desordeiros e eu
não posso aprovar o procedimento das autoridades que concor-
147
rerão para neutralizar a ação da força publica, que em taes oca-
siões não pode e não deve permanecer irnpassivel." 92
Não eram boas, na época, as relações entre o vigário e o de-
legado de Buíque 93 • O vigário Herculano Marques da Silva havia
lido, na missa, um memorial de adesão a D. Vital e isso o irritara.
Provavelmente pensou o delegado que os revoltosos tinham gran-
des ligações com o pároco, e quis evitar um conflito maior omitin-
do-se; o pacificador fora o coronel Tomás de Aquino Cavalcanti
que conseguiu levar a multidão para a frente da Matriz, onde,
novamente, aos gritos de "Viva São Félix", depositaram os cace-
tes que ameaçadoramente haviam brandido poucas horas antes.
O grande número de pessoas indiciadas corno quebra-quilos
em Buíque pareceu excessivo ao Governo Provincial. As ordens
governamentais anteriores eram de que só deveriam ser presos os
que dirigiam o movimento ou alidavarn o povo. Por precaução,
entretanto, a fim de auxiliar às autoridades locais nas capturas,
receberia o Chefe de Polícia autorização para enviar corno reforço
àquela cidade o chamado "contingente de índios" 94 •
Em Panelas, um ofício do Presidente da Câmara Municipal,
dirigido ao Presidente Lucena, e datado de 15 de dezembro, in-
formava que o Município estava ameaçado de "soffrer um assalto
de um gruppo em numero crescido de pessoas desordeiras que
com todo desplante procurarão a destruir os archivos das reparti-
ções fiscaes e ·bem assim as da Carnara ( ... ) corno acaba de su-
cedor na cidade de Caruaru lirnitrophe com esta Comarca" 95 •
A invasão dos quebra-quilos era esperada e temida. Estava
exaltada a população, porém, no dia 23 de dezembro, o delegado
de polícia de Panelas, capitão Manuel Accioly de Moura Gondirn,
enviava ofício ao Chefe de Polícia da Província de Pernambuco,
informando-lhe que, na feira do último sábado, com exceção de
um pequeno incidente com o cobrador de impostos municipais, a
vila estava em sossego, o que ele atribuía "a demora de um rnis-
148
sionario capuchinho que seguia para Canhotinho e a chegada da
força. de 20 praças de linha" .96
Ao nosso ver o segundo argumento era mais convincente aos
possíveis invasores quebra-quilos; diversos povoados do Município
de Panelas, exatamente os desprovidos de ptoteção policial, foram os
assaltados, principalmente nos dias de feira, com o corriqueiro
quebrar medidas e pesos. Fora assim em Queimadas, cuja feira foi
assaltada a 18 de dezembro. Desse ataque resultaram sete feridos,
entre os quais o próprio filho do inspetor que conseguiria ainda
prender o criminoso Claudino Domingos da Rocha. No dia se-
guinte, foi assaltado São Benedito, "povoado sempre revoltoso (...),
repetindo-se as mesmas scenas mais seni lamentar derramamento
de sangue apezar do apparecimento de um grupo que parece ser
de saltiâdores pertencentes ao Brejo e que fizerão alguns furtos" 97 •
No povoado de Lagoa dos Gatos, onde nada se esperava, "um
grupo de 300 homens embriagados, armados de facas e cacetes"
assaltou a feira, no dia 19 de dezembro, às três horas da tarde,
quebrando os pesos e as medidas do sistema métrico e tentou in-
vadir as casas do suplente do juiz municipal e do juiz de Paz para
os obrigar, com gritos e insultos, a entregarem os arquivos e con-
tratos da Câmara Municipal. Resistiram os magistrados até que
"a intervenção benefica dos proprietarios" os livrou das mãos dos
sediciosos. Nessas informações, constantes do relatório do delegado
de polícia de Panelas, há um detalhe importante: pelo menos um
dos assaltantes de Lagoa dos Gatos, não era campónês pobre e sem
terra. Carlos Muniz de Sousa é "homem de alguma influencia pela
grande familia que tem no lugar Piripiri deste termo donde mora"
e, depois do assalto, achava-se "acastelado com homens armados
em sua propriedade Piripiri para virem tomar os presos". O dele-
gado justifica-se de não ter ainda mandado dispersar esses ho-
mens: "tenho pouca força e guardo muitos presos na cadeia cor-
rendo boatos acerca da proxima invasão ( .. . ) não devo por agora
distrair o destacamento".
Por ocasião da intervenção do delegado de Panelas em Lagoa
dos Gatos, apreenderam-se dez armas e grande quantidade de pól-
vora e espoletas existentes na vila, esclarecendo então o delegado
que não sabe se essa pólvora "é para negocio ou se propositada-
mente se achava na casa onde foi aprehendida".
(96) Idem.
(97) Idem.
149
Embora Panelas não tivesse sido atacada pelos quebra-quilos,
seu ambiente, ·nos últimos dias do ano 1874, era de franca apre-
ensão das autoridades e da população, por causa da iminência de
uma invasão. A inquietação geral manifesta-se nos diversos ofícios,
enviados ao Presidente da Província, Henrique Pereira de Lucena,
pelo delegado de polícia de Panelas (ofício de 26 de dezembro),
pelo subdelegado de Piripiri, Joaquim Cordeiro Ribeiro Campos
(ofício de 27 de dezembro), pelo juiz de Direito de Panelas, José
Antônio Correia da Silva (ofícios de 28 e 31 de dezembro) e pelo
comandante João Vieira de Melo e Silva, do Comando Superior da
Guarda Nacional das Comarcas de Caruaru e Panelas. Este último
ofício, datado em 25 de dezembro, comunica o estado de pânico
em que se encontravam os habitantes da cidade; já se havia retirado
a maior parte das famílias locais, ameaçadas que estavam com a
invasão por mais de 300 homens, já acampados no lugar Borba,
termo do Brejo, distante 8 léguas da sede do Município.
Assim mesmo realizou-se, sem incidentes, a feira do dia 24
de dezembro, se bem que pouco concorrida, apesar de ser véspera
de Natal, e foram normalmente cobrados os impostos. O coman-
dante da Guarda Nacional acusa alguns membros do Partido Li-
beral de terem tomado parte muito ativa nos tumultos, distribuin-
do proclamações, chegadas com o jornal A Provincia, assinalando:
"fiz vir a minha presença alguns dos influentes do mesmo partido
que tem tomado parte occulta nos movimentos, os fiz responsaveis
pelas consequencias ·que se dessem caso entrassem os amotinado-
res" 98 •
No último dia do ano 1874, o subdelegado de polícia do dis-
trito de Piripiri informara ao Presidente da Província que, havendo
se dirigido à Panelas para reforçar a guarnição dessa cidade, "três
ou quatro insufladores do Povoado de Barra de Jangada" apro-
veitaram sua ausência "para retirarem o padrão atual, o que con-
seguirão, hoje propalão que será padrão d'aquelle Povoado as me-
didas de 8 tigellas e o pezo de 2 patacas". Uma semana depois, o
promotor público da Comarca de Panelas informará ao Presidente
da Província que "poude, com alguma difficuldade, restabelecer
os pesos e medidas do novo systema ou padrão, e com mais diffi-
culdade pode obter que pagassem impostos municipaes" 99 • Era o
princípio do fim da sedição na Comarca de Panelas.
150
Fora moderado em Bonito o início da sedição. Apenas algu-
mas pessoas, na feira, negaram-se a pagar impostos. Asseverou o
juiz municipal a Lucena que a questão "não tem carater da Ques-
tão Religiosa. Era assunto político 100 e aquelas pessoas eram todas
do partido progressista (sic) ".
Obviamente irritou-se, mais uma vez, o Presidente Provincial:
"o panico é maior do que a realidade" dirá em seu despacho, acres-
centando "bastão dez ou doze homens dispostos para conterem os
desordeiros".
Enganava-se Lucena. Estavam aliciando adeptos Pergentino
Capreiro, Timóteo Bispo de Barros, Antônio Gomes da Silva
Magno e Manuel Joaquim Semedos 1º1 •
No dia 19 de dezembro iniciou-se o assalto à coletoria. Eram
muitos os assaltantes e a cidade apenas dispunha de 20 praças de
linha e doze guardas locais. Enquanto forçavam as portas e janelas
e tentavam, destelhando o edifício, penetrar no seu interior, foram
os quebra-quilos atacados pela força pública e da luta resultou três
mortos e cinco feridos entre eles. Um deles morrera com um gol-
pe de sabre, quando já conseguira penetrar na coletoria. Não hou-
ve baixas na força pública; apenas três feridos era o seu saldo,
após a fuga dos quebra-quilos.
Dentre os mortos estava Antônio José Henrique, capitão da
Guarda Nacional, de idéias liberais e de certa influência política
no Município 102 • :e extremamente difícil sáber se o capitão di-
rigia ou não o ataque. Segundo o testemunho de João Bráulio Cor-
reia e Silva, o capitão Antônio José Henrique não estava armado.
Sua adesão aos quebra-quilos iniciara-se com uma discussão com
um dos soldados que guardavam a coletoria, a quem teria dito,
talvez para evitar derramamento de sangue, que deixasse o povo
entrar. Atacara primeiro o capitão com um prosaico guarda-chuva,
transformado em arma, no calor da discussão. O revide fora um
tiro mortal. Alguns minutos depois o prédio fora invadido.
A repercusão da notícia de que um capitão da Guarda Na-
cional chefiara o ataque dos quebra-quilos à coletoria de Bonito
foi, como não poderia deixar de ser, muito ampla. Félix Fernandes
Portela publicará uma carta nA Província que, não obstante seu
151
partidarismo, é curiosa e esclarecedora 103 : "Algum mal intencio-
nado governista, da cidade de Bonito, mandara calumniar na corte
os liberais deste termo, assegurando que foram eles os chefes dos
quebra-kilos ou quebra-grilos na frase dos matutos. Todavia essas
noticias não tem fundamentos pois já foi instaurado um processo,
no qual oito testemunhas afirmam que nenhum liberal influente se
comprometeu com o movimento, mais sim o povo "sem ,cabeça
nem rabo", como diziam os amotinados, um por todos e todos por
. um, para assim enfeixados acabarem com as extorsões dos seus
governantes.
Neste termo existem três partidos politicos bem distinctos: o
liberal, o conservador, e o chamado do governo, verdadeiro esque-
leto sem elementos para governar, e que é odiado de todos, gran-
des e pequenos, que para se sustentar no poder é de mister en-
redar, mentir e armar ciladas contra seus adversários políticos, fa-
zendo-os culpados de tudo e até da carestia da carne seca e do
bacalhao, que é uma das causas da agitação do povo.
Durante a luta entre o povo e força publica, os membros in-
fluentes dos dois partidos legítimos procuraram sempre manter-se
na mais restrita neutralidade.
Quando Srs. Redactores, do proprio seio do palacio do go-
verno partem as machinações, as perfidias e as intrigas sem re-
buço contra adversarios políticos, o paiz que tolera víboras desta
ordem vai mal e muito mal, e acabará incontestavelmente por
uma tremenda revolução.
Bernardo Brayner, que em Bezerros foi chefe dos quebra-
kilos, é conservador e tio do delegado deste termo Odilon Bray-
ner, este facto tem passado desapercebido, e ainda não foi tele-
graphado para a Corte, nem será" 104 •
Repercutirá nos jornàis do Rio o episódio de Bonito. A mor-
te de um liberal de prestígio, à frente de quebra-quilos e atacando
uma coletoria, era para alguns políticos uma prova do espírito li-
beral da revolta.
O jornal liberal O Globo reptara o Governo a provar que o
Partido Liberal era o grande mentor do movimento quebra-quilos.
Prudentemente A Nação, órgão conservador, respondeu: "Dizer-se
que em Bonito os chefes dos desordeiros são liberais, não importa
152
dizer que no norte os chefes da sedição pertencem todos ao Parti-
do Liberal, ou que a sedição tem carater politico". O jornal per-
nambucano A Província 105 dirá que em "honra do partido libe-
ral do imperio é preciso convir que ele reprovou essas desordens
promovidas pelos jesuitas e ultramontanos que se dizem uns con-
servadores, outros liberais e outros que nada tem de comum com
esses partidos".
A versão final que A Provinda daria aos acontecimentos de
Bonito, foi extremamente política, de lógica duvidosa e pouco con-
vincente: "Em conclusão toda a responsabilidade desse aconteci-
mento cabe ao delegado que querendo reunir toda a força em um
só edificio, ao qual fossem recolhidos os arquivos das diversas re-
partições do município, dividiu a força com quatro guardas de 6
e 7 praças cada uma, enfraquecendo-a e tirando-lhe todo o pres-
tígio e respeito.
Um delegado, energico e bem intencionado teria também proi-
bido a venda de aguardente que, alias se fez em grande escala no
dia 19, teria conservado a força reunida, não teria lançado de-
sqrdem na população com uma carreira injustificável; não teria
com que o oficial de linha abandonasse a força, para lhe servir
de ajudante de ordens ainda depois da triste figura do dia 19, o
delegado Odilon, apresentou-se no comando asseverando que o
partido -liberal deste termo não havia sido estranho ao movimento
sedicioso. "1º6
O arrematante dos impostos de Bonito compreendeu, porém,
que não havia mais condições para cobrá-los naquele Município.
Requereu, a 30 de janeiro de 1875, ao Presidente da Câmara Mu-
nicipal, que autorizasse uma nova arrecadação ou os cobrasse por
sua conta "em virtude dos justos receios que tem o supplicante de
sahir a cobrar os impostos pelos Engenhos e lugarejos comprehen-
didos no perímetro arrematado, por ser geral a indisposição contra
os exactores" 167 • Essa era a pobre e relativa vitória dos quebra-
quilos.
Quando começaram a circular em Barreiros notícias de que
os quebra-quilos iriam invadir Trombetas, Agua Preta, Porto Calvo
153
e depois aquela cidade, até o juiz alarmou-se 108 • O Presidente da
Província, entretanto, confiava no regime latifundiário e lhe diria
"que se essa Vila for atacada, estejam certos que a maioria dos
agressores serão residentes no termo e que por isso cumpre estar
acautelado para impedir qualquer manifestação deles, fazendo pren-
der e processar os que andarem instigando e aconselhando o povo
a praticar seus desatinos. Que a Guarda local ahi existente com o
auxilio dos grandes proprietarios, que não se recorram a mim em
auxilio da authoridade para garantia da ordem e do socego pu-
blico, será suficiente para contei-os; se assim não succede o que
não é de se esperar, encontre indiferença por parte dos referidos
proprietarios, avise-me pelo telegrafo que providencias serão da-
das".
O promotor público temia, porém, até índios, e dirá apavo-
rado "que esta villa está completamente desguardada e a mercê
desses vandalos se aqui vierem e alem disto temos uma aldeia de
índios proxima a este Jogar, perversos com poucas excepções,
dados a pilhagem, e é bem posivel que se reunam elles aos se-
diciosos para melhormente poderem dar pasto ao seu genio". 109
O delegado, por sua vez, não sabia o que fazer, e o confessa
francamente, em antológico comunicado 110 : "Cumpre-me desde já
asseverar a V. Sa. que não será por desculpavel negligencia ou
falta de zelo desta delegacia que semelhantes desordens se darão
neste termo. Hé porem verdade que nos achamos por aqui lutan-
do com sérias dificuldades ante as quaes perde valor o patriotismo
e discora o zelo da autoridade policial qtle não tem acção nem
razão de ser. Não pode effectuar prisão alguma, ainda por suspeita
de deserção ou para recrutamento que não soffra hum processo
pela Promotoria Publica cujo proceder hé logo sancionado pelo Dr.
Juiz de Direito que acaba pela condução ao pagamento de multa
e de contas triplicadas. Desta sorte não sei como se possa policiar
e dispensar sacrifícios a bem da ordem e serviço publico".
Os proprietários de terras, e quem mais quisesse, podiam
comprar armas, o que, aliás, parece ter sido um bom negócio na
época. O subdelegado do 2.º Distrito de Barreiros informaria ao
Chefe de Polícia que partira para a sede do Município com 35
pessoas, que conseguira aliciar, a fim de proteger a cidade dos
154
quebra-quilos, e comprara fiado, numa "venda", por sessenta réis,
seis clavinotes e três pistolas.
No dia 23, tentaram os sediciosos atacar a povoação de São
José, a poucas léguas da sede do Município. Nada conseguiram.
Havia armas bastantes nas mãos da lei e da ord.em.
O ataque quebra-quilos à Papacaça tivera as características
gerais das outras razzias. Repercutira, na imprensa da época 111 ,
como obra liberal. A verdade é outra. A permanência da estru-
tura social oligárquica de que fala o Cousin Fusco 112 fazia com
que, em Papacaça, um pacto de aliança, com casamentos entre as
quatro ou cinco famílias mais importantes do lugar, dominasse,
sem distinções definidas entre liberais e conservadores, a Câmara
Municipal, e influísse, poderosamente, nos dois juízes e nas auto-
ridades policiais.
A repressão fora rápida. Ficara um saldo político: os feri-
dos foram recolhidos e tratados em casas ligadas aos liberais, que,
aliás, condenaram publicamente a violência dos quebra-quilos.
Em Itamaracá já estava divulgada a idéia de que o quilo era
uma forma de enganar matutos. Um deles ali comprara uma libra
de bacalhau e, na conversão de medidas que lhe fizeram, furta-
ram-lhe um quarto. Ao dar-se conta do logro, revoltou-se o praiei-
ro, e, violentamente, lançou os pesos e medidas da pequena ta-
verna ao mar. Vinha da praia de Taquara (Paraíba) e, entre os
moradores de lá, conseguiu reunir de quarenta e cinqüenta ho-
mens, que invadiram todas as vendas da ilha, e, com a cumplici-
dade de alguns pescadores, jogaram seus pesos e medidas no mar.
O Município de Igarassu é provavelmente o mais próximo
à Capital nas correrias, tumultos e ataques quebra-quilos. Foi agi-
tado em I tapissuma e Três Ladeiras. Em I tapissuma, os comercian-
tes entregaram logo seus pesos e medidas, para serem devidamente
inutilizados pelos revoltosos a troco da tranqüilidade pessoal de
cada um. Em Três Ladeiras, também, não houve maior violência
do que o quebramento das odiadas medidas e pesos do novo sis-
tema. Estando muito próximas à Capital essas povoações, imedia-
tamente chegaram reforços e a notícia de que todos os implicados
iriam ser recrutados. Os culpados e os pobres mais prudentes de
Itapissuma esconderam-se imediatamente nos mangues. Os de
Três Ladeiras embrenharam-se nas matas.
155
Depois do inquérito, descobriram-se os nomes dos "cabeças":
Francisco Dias de Albuquerque, João do Terço, Lourenço Coelho,
um João Batista de tal e seu irmão Herculano, todos pernambuca-
nos, como informa o promotor, e sem ligações com os revoltosos
da Paraíba 113 •
O mês de dezembro de 1874 era um suceder ininterrupto de
más notícias para o Governo. Estava alarmado todo o interior
pernambucano, e muitos julgavam que se tratava de uma guerra
civil, como André de Abreu Porto que, em tom de grandiloqüente,
dirigindo-se ao juiz de Pau d' Alho, oferecia-se para a luta e nela
comprometia também os seus trabalhadores dizendo: "Atendendo
as graves e extraordinarias circunstancias em que se acha a nossa
Província e a urgencia e indeclinavel necessidade de tomar todas
as providencias para a sustentação da honra e integridade do pais,
e confiado no patriotismo voluntario ao cumprimento de seus de-
veres em toda esta gente, que tenho empregada (... ) venho official-
mente oferecer a V. S. noventa e quatro homens, inclusive trinta
e cinco artistas e a minha pessoa, que se presta como humilde sol-
dado ao cumprimento de suas ordens. Peço a V. S. que leve esta
minha oferta ao conhecimento de S. Excia. o Presidente da Provín-
cia, pois desejarei auxiliar com dedicação e valor esta Província
de que sou filho".
O juiz de Pau d'Alho, Joaquim Pires Gonçalves da Silva,
se bem que considerasse os ânimos de sua Comarca "sobressaltados
com o boato" 114 , não achou oportuno que se aceitasse o ofereci-
mento de André de Abreu Porto.
Não há documentos sobre ataques à Câmara e aos cartórios
em Pau d' Alho. Bastante povoada, a cidade era um núcleo de
defesa para proteger a região e é de lá que sai uma força de 350
homens, comandada pelo coronel Luís Maranhão, para garantir a
ordem em 'ltambé. A partida desse pequeno exército foi um acon-
tecimento. Houve choros e discursos, como seria de esperar. Diria
o juiz municipal, emocionado, na hora da partida:
'"Briosos Pao d'Alhensesl Sois dignos de louvores, e dos mais
elevados elogios, porque pressurosos acudis ao reclamo de vossos
visinhos, oprimidos por um pedaço de sediciosos! Sim alli é um
pequeno grupo de rebeldes às autoridades, os quaes, transgredin-
156
do a lei, tem invadido as cidades; soltando criminosos, incendiando
repartições públicas, commettendo verdadeiros actos de barbaria,
aqui é um batalhão de denodados guardas nacionais que se le-
vantam como um só homem em prol da causa do governo. Tendes
a frente o nosso digno e já bem conhecido chefe, o coronel Luiz
Maranhão que por muitas vezes tem liberalisado sua benefica in-
fluencia em defender os nossos interesses e que agora nos conduz
a restabelecer a ordem social e defender a causa do governo.
Ide, e não vos assusteis por vossa familia e propriedade; por-
que aqui ficam outros tantos bravos amigos que honrosa e digna-
mente saberão defende-las.
Marchai, e em breve voltareis içando a bandeira da paz que
ides plantar, onde quer que a ordem e a tranquilidade publicas
tenham sido perturbadas.
Viva a S. M. o Imperador!
Viva a Familia Imperial!
Viva o distinto coronel Luiz Maranhão!
Viva o distinto povo Pao d' Alhense!"
Comunicaria Maranhão ao Presidente da Província sua par-
tida para Nazaré 115 com menos vibração cívica, dizendo-lhe que
levava 350 praças, não incluindo os oficiais, e que não conduzia
toda a força, porque o estado de pânico em que se encontravam
os negociantes de Pau d' Alho era tal que alguns praças, já alis-
tados, tinham desistido.
No Município de Palmares, eram os moradores da povoação
de Capoeiras os que mais reagiam ao pagamento de impostos. Na
feira, a força policial intimidara os recalcitrantes, colocando-se em
posição de ataque. Sem maiores incidentes a cobrança foi feita.
O juiz da sede da Comarca, entretanto, gongoricamente preocupa-
do, dirá, com insuspeitada bravura, ao seu Presidente: "Serei o
ultimo soldado da cruzada civilizadora prometendo que so aban-
donarei o meu posto quando, o que procurarei evitar, se houver
queimado o ultimo cartuxo em garantia da ordem da vila e da
propriedade ameaçadas por esses vandalos que, sem direito razão
e necessidade, procurarão na anarchia semear maleficios ". No dia
31 de dezembro 116 , dirá, menos entusiasmado, que as notícias che-
gadas a Palmares sobre os acontecimentos de Garanhuns "fez exal-
tar os animas d'alguns desordeiros". "Já tenho 14 guardas nacio-
nais aquartelados que me chegarão agora", informará mais tarde,
157
acrescentando que "é preciso confessar que não deposito inteira
confiança neles". A força policial de Palmares, sob o comando do
alferes Francisco Evaristo de Sousa, andara em Porto Calvo e vol-
tara estropiada e com soldados doentes 117 • Seu comandante, pou-
co nordestino, perdera-se no caminho de volta. Nas vésperas do
Natal, ainda, pedirá o juiz dos Palmares ao Presidente da Pro-
víncia uma ajuda incomum: "também julgo de muita necessidade
a vinda de um corneteiro que V. Excia. bem sabe o effeito que
produz o toque de cometa e a falta que faz elle em um destaca-
mento do mato" 118 • Não havia mais perigo.
Que, no termo de Ouricuri, no dia 23 de janeiro de 1875, a
feira fora invadida por grupos de quebra-quilos, e que haviam
quebrado pesos e medidas, não tinha dúvidas o Governo Provin-
cial. Recebera comunicações de diversas fontes, e isso não lhe
causara admiração. Poucas cidades, entretanto, oferecem nesse agi-
tado período uma documentação histórica tão pirandeliana como
a deixada pelas autoridades locais. O Presidente da Câmara Muni-
cipal, por exemplo, informa que o protetor dos quebra-quilos na-
quela localidade é o juiz Antônio Lopes da Silva Barros 119 , que,
com ajuda do filho do vigário, o chefe dos quebra-quilos capitão
Apolônio Pedro da Silva, gera a linha mestra do drama municipal.
Para esclarecer como fora o tumulto quebra-quilos, o subdelegado
não achou melhor processo do que prender um comerciante por-
tuguês, ali residente, para averiguações. A representação do Presi-
dente da Câmara Municipal, datada de 29 de janeiro de 1875, di-
rigida ao Presidente da Província, a quem narra os acontecimen-
tos, é também extremamente curiosa, embora provavelmente não
de todo verdadeira:
"Quando os soffrimentos chegão ao extremo e são causados
por uma authoridade disvairada e sem consciencia de seos actos,
é mister que para suavital-os, quándo não de todo removei-os, se
procure a primeira authoridade que, como guarda da lei e garante
do direito individual, lhes ponha termo como dispõe a nossa legis-
lação.
Isto posto, a Camara Municipal desta Villa, como orgão de
seos municipes, resolveo reunir-se hoje em sessão extraordinaria,
para levar ao alto conhecimento de V. Excia. o estado assaz desa-
158
nimador em que se acha este Termo de tão desagradaveis tra-
dicções, na história política da Província: mas antes de entrar na
rezenha dos factos que vai expor, permitta V. Excia. que esta Co-
marca lhe declare ser o principal motor e responsavel d'elles o
Juiz de Direito desta Comarca Bacharel Antonio Lopes da Silva
Barros.
Exmo. Snr. Este Magistrado chegando a esta Comarca em fe.
vereiro do anno proximo passado, quando se achava ella com-
pletamente agitada pela judicatura do Bacharel Rolim, conduzia-se
de modos a fazer jus a algumas demonstrações de aprêço, e com
effeito esta Camara em uma de suas Sessões, enviou-lhe uma Com-
missão para felicitai-o em nome de seus Munícipes, mas como que
para desmentir o juízo lizonjeiro que d'elle se formava, de pos-
se ainda da confiança de seis commarcãos, julgando já impossível
quaes quer accuzações a sua Autoridade escudado sem duvida
nos elogios que obtivera, tem revelado ultimamente o mais des-
communal comportamento, acercando-se de certos tempos para cá,
da gente mais dezordeira desta Villa, encorporando-se a uma frac-
ção, já condemnada pela opinião publica, e aqui sob o titulo de
liberal capitaneada pelo vigario Francisco Pedro da Silva, homem
perverso e avezado na pratica de crimes e extorções.
Este procedimento do actual Juiz de Direito, Exmo. Snr. fa.
zendo causa commum com homens criminozos, tem afrouxado de-
maziadamente, a grande machina da segurança publica, e deo ul-
timamente lugar aos disturbios e conflitos que passa a referir.
No dia 23 do conente mês, tendo esta Camara mandado para
a feira desta Villa, as medidas do novo systema metrico decimal
ultimamente adaptado, forão recebidos pelos conccunentes ao mer-
cado, com aquella satisfação que sempre inspira a realização de
uma ideia grande e generoza; mas alguns d'esses aventureiros que
tanto infestão a nossa sociedade, em numero de quatro, pouco
mais ou menos. a mandado, segundo é publico, do Capitão Apolo-
nio Pedro da Silva, filho do vigario supracitado, quebrarão ditas
medidas, cauzando á maioria do povo, uma geral indignação.
O Subdelegado desta Villa que se achava prezente, deo in-
continente voz de prizão em flagrante delicto a treis dos dezor-
deiros, porque o outro evadira-se, e tratava com a energia que o
destinguio, de levai-a a effeito, quando se aproxima o Juiz de Di-
reito Dor. Barros, acompanhado do mesmo Apolonio indigitado
mandante dos quebra-kilos e nullificando as prizões feitas, proce-
deo a leitura da circular de V. Excia. dirigida as authoridades da
Província, sobre tal materia.
159
A leitura dessa importante peça Ôfficial, teria sem duvida
produzido o dezejado effeito e conseguido acalmar o espirita um
tanto agitado do povo, se por ventura o Dor. Barros não tivesse
aggravado a situação, com um acto que esta Camara pede per-
missão a V. Excia. para qualificai-o de descomedido, inepto, e
arbitraria, visto que, tendo elle dispensado a prizão dos quebra-
kilos corno ja fica dito, foi algum tempo depois, em caza do por-
tuguez Custodio, negociante nesta Villa, e ahy, fora dos cazos de
flagrante delicto, prendeo a um d'elles, e o mandou com destino
a cadeia, sob o pretexto de averiguação!
Essa prizão externporanea, illegal por qual quer face encara-
da, deo lugar a que um parente do prezo de nome Antonio Ma-
rinho Ribeiro, se propozesse a tornai-o do poder da escolta que o
levava, porem, tendo alguns amigos de Marinho, lhe feito ver a
inconveniencia de seu passo, renunciou esse plano que não chegou
mesmo a ter principio de execução. O Doutor Barros porem, sendo
avizado de que Marinho tomara o prezo, quando a tornada não se
havia verificado, derigio-se com violencia e precipitação para o lu-
gar onde este se achava, indagando da força, o motivo da prizão
de seu parente, e sem mais preambulos nem reflexão, grita que
se prenda Marinho, ao que, acodirão entre muitas pessoas, os
criminozos appelados Manoel Florencio de Sá, conhecido por Né,
e Francisco de Paula, conhecido por Chico Wanderlei, os quaes,
de Cacetes e pistolas, acornmetterão a Marinho con tanta violencia,
que lhe fizerão instantaneamente, diversos ferimentos na extensão
do corpo. Sobjugado Marinho, pelos cacetes dos dois sicarios que,
armados acornpanhavão Dor. Barros, (não obstante haver nesta
Villa uma força de policia) poude por um exforço supremo, lançar
mão de uma pistola de que se achava munido, e descarregar um
tiro, que produziu os ferimentos de Manoel Ribeiro Granja e Igna-
cio de Souza, posto que a estes, não fosse elle derigido.
Assim terminou esse conflicto, com os ferimentos quase todos
graves de quatro pessôas, inclusive Marinho, victima da sanha de
seos inimigos, e sobretudo da imprudencia do actual Juiz de Di-
reito que, não tendo bastante confiança em sua authoridade, invo-
ca á qualquer reflexão, o auxilio de homens criminosos, a quem
elle mesmo tem julgado!
Depois de terminado o conflito, sem haver uma só prizão, e
que cada um encaminhou-se á sua caza, entendeo essa authori-
dade, que devia dar ainda os mais absurdos exemplos, de falta
de respeito a lei, procurando alterar a ordem publica. Requizitou
sem perca de tempo 40 praças da G. N. e as destacou sob o co-
160
mando do Capitão Apolonio, Chefe dos quebra-kilos, convindo
notar a V. Excia., que, treis, dos que quebrarão as medidas fazem
parte da força destàcada pelo Juiz de Direito!
Officiou aos diferentes sobdelegados deste e do Termo vi-
zinho, para que se aprezentassem com o maior numero de gente,
passive!, e o povo sempre avido de novidades, foi entrando aos
grupos, armados de cacêtes, facas, clavinotes, garruchas, ignoran-
do-se porem a cauza de tanto aparato bellico, porque a ordem es-
tava já completamente restabelecida, a ponto de treis quebra-kilos
fazerem parte da força destacada e ser esta commandada pelo o
author do disturbiol
Escrevêo a pessoas particulares, para que entrasse com gente
armada; dêo ordem a uma certa caterva que cerca, para munirem-
se tambem de armas e n'esse estado tranzitarem as ruas, sendo que
do numero desta, são os criminozos Né e Paula, que teem sempre
assento, ao lado do Juiz de Direito.
Pretendeo mandar forçar a fazenda Manoino do offendido
Marinho, buscal-o prezo, em razão dos inimigos deste, lhe dize-
rem por espírito de malevolencia, que fora Marinho, quem man-
dara quebrar as medidas, quando é publico, notaria, e está pro-
vado, que fora o Capitão Apolonio, filho do vigario Francisco
Pedro, mas felismente não realizou essa deligencia, que teria pro-
vavelmente consequencias fataes, por dispor Marinho, de uma
numeroza familia, ser considerado cidadão respeitavel e capaz de
reagir contra ordens illegaes.
Desta maneira, Exmo. Senr., está esta Villa alarmada pelos
grupos armados do Juiz de Direito actual, e os cofres publicas
ameaçados de soffrerem um desfalque com o sustento de 40 pra-
ças, 2 officiaes, e mais gente sem a menor necessidade, tem o Juiz
de Direito feito aquartelar.
:e tempo de dizer a V. Excia. que dois dias antes de se darem
esses acontecimentos, o Juiz de Direito, suspendeo de seos respec-
tivos exercícios, o Delegado de policia e o 2.0 suplente do sobde-
legado que n'elle se achava, allegando para justificativa seo acto
incompatibilidades, por serem pai e irmão do Juiz Municipal sup-
plente Antonio Leonel de Alencar.
Concluindo, esta Comarca supplica V. Excia. se digne dar as
providencias que julgar consentaneas com a situação exposta, e
approveita a occasião para reiterar a V. Excia. os prottestos da
mais alta consideração em que o tem."
161
A versão do juiz Silva Barros não é menos tumultuada: acusa
inicialmente o padre da freguesia de Granito, Manuel Antônio
Martins de Jesus, de "praticas subversivas da ordem e da autorida-
de civil", e registra que já o advertira por escrito, e que o respon-
sabilizava por qualquer movimento sedicioso que surgisse em Gra-
nito.
Na própria cidade de Ouricuri, sede do Município, para o
magistrado, o perigo estava no "individuo José Evaristo dos San-
tos Leal, de classe média que andava seduzindo povos para que-
brar os pesos e medidas".
A correspondência do delegado Francisco Angelim tumultua
mais ainda o conhecimento dos fatos quando diz que a causa prin-
cipal do abalo que sofreu Ouricuri é a Guarda Nacional:
"Julgo do meu rigoroso dever levar ao alto conhecimento de
V. Sa. o estado desagradavel da segurança pública neste termo
depois dos fatos criminosos praticados do dia 23 de janeiro do
corrente anno e que deram em resultado serem destruídas as me-
didas do novo sistema na feira desta villa, como já V. Sa. deve
ter recebido a participação respectiva. A cauza primordial Ilmo.
Snr. do abalo que soffre a segurança publica é a forma da Guarda
Nacional aqui destacada que achando-se unicamente sob as imme-
diatas ordens do juiz de Direito Bacharel Antonio Lopes da Silva
Barros e do Capitão Zeferino Granja homem desordeiro, e am-
bos inimigos do Governo atual, vai diariamente cometendo toda a
casta de violencias e depredações. Devo dizer que a ação da au-
toridade policial neste termo está completamente enervada por-
que o Juiz de Direito subordenou tanto a força da policia como
da Guarda Nacional a seo unico mando e discricionarias ordens, a
ponto desta delegacia não contar com uma só força de praça des-
tacada. No dia 4 do corrente foi espancado em frente a porta do
Juiz de Direito, o cidadão José Alves Evangelista sem que para
um tal espancamento houvesse o menor motivo os espancadores
forão soldados da Guarda Nacional destacados e até hoje não se
tomou nenhuma providencia no sentido de serem punidos os de-
linquentes. Um dos espancadores foi preso em flagrante delicto
segundo me consta, mas no outro dia foi posto em liberdade por
ordem do Juiz de Direito, e continuou a fazer parte da força como
se não tivesse cometido crime algum. E note V. Sa. que José
Alves Evangelista é um homem manço e pacifico, seu unico crime,
na phrase do Juiz de Direito foi ter tomado parte activa na re-
presão dos quebra-quilos no dia referido de cujo movimento é esse
162
o principal cauzador e responsavel. Tenho me opposto, Ilmo. Snr.,
dos desvarios do Juiz de Direito actual, mas caro me vai custando
esse meu procedimento porque acabo de ser intimado para me
ver processar em dia 10 do corrente em crime de responsabili-
dade, sem que tenha eu praticado nenhum acto ou facto contra-
rio a lei, também foi denunciado e vai ser processado em crime
de responsabilidade o subdelegado do l .º Distrito Antonio Es-
colano Maria Seixas, cujo motivo justo é ignorado. O Juiz de Di-
reito tem dispensado a maior proteção possível aos quebra-quilos
admittindo-os até a fazerem parte da força publica, pois que nas
quarenta praças que destacou se contam cinco ou seis indivíduos
dos que quebraram as medidas. Ao passo que este magistrado
assim procede para com os verdadeiros criminosos, vai desenvol-
vendo a mais desabrida perseguição. aos cidadãos pacíficos, por
que diz elle que ha de reformar a todo transe a face da política
desta Camara, e que para conseguir o seo desideratum não esco-
lhe meios, com tanto que realize seos desígnios. Em vista pois
do que fica exposto, Ilmo. Snr. rogo a V. Sa. para que se digne
providenciar no sentido de restabelecer-se a ordem publica nesta
localidade, para conseguir o que penso unicamente que seja posto
a minha disposição uma força de policia regular commandada por
um official de confiança e moralidade com o qual farei cessar
tantos inconvenientes." 120
O Presidente da Província não deve ter entendido muito bem
os acontecimentos de Ouricuri. Prudentemente não deu despacho
em nenhum dos ofícios recebidos, mandando simplesmente que
fossem todos reunidos e arquivados e esperou que um dia se sou-
besse a verdade desentranhada das acusações e denúncias. São
mais ou menos evidentes as dificuldades do relacionamento entre
o magistrado e as autoridades policiais. De resto, Ouricuri, no alto
sertão de Pernambuco, a 12 dias de viagem da Capital, pelo seu
isolamento e distância, pouco recebia e pouco dava ao Governo.
Naquela pequena vila, as individualidades se magnificam nos pe-
quenos conflitos e a estrutura político-administrativa nada mais é
do que a lealdade ao Partido Liberal ou ao Conservador. Nas
comunidades do interior nordestino, a sujeição dos pequenos po-
líticos e funcionários do Governo ao Partido, para a obtenção de
cargos públicos, era total. Obrigava o candidato a uma fidelidade
partidária que tinha seu prêmio e seu ônus. Vínculos de dependên-
(120) Códice Chefe de Policia, PC 120, mss. 469 e 470. Arquivo Pú-
blico do Estado de Pernambuco.
163
eia formavam-se em intrincadas compos1çoes verticais, espalhadas
horizontalmente nos municípios vizinhos. O empreguismo e o spoil
system caboclo acabaram por se transformar em virtude. Quem
discutiria não ser virtude a manutenção, acima e abaixo de pa·
drões éticos comuns, da fidelidade correligionária?
As notícias enviadas em 11 de fevereiro de 1875, pelo juiz
Silva Barros, demonstraram que os quebra-quilos e os tumultos
de Ouricuri extinguiram-se pela própria dinâmica de sua vida de
comuna pobre. "Nenhuma ocorrência grave se tem dado neste
termo" dirá o juiz 121 , acrescentando que a Guarda Nacional "ul-
timamente destacada, está parte della desarmada e anda em man-
gas de camisa." Os presos pobres da cadeia - finaliza o magis-
trado - não têm mais quem lhes forneça comida, pois os forne-
cedores não foram pagos, estando os mesmos dependendo da ca-
ridade pública. O quadro não podia ser mais languento.
No auge da agitação, isto é, em dezembro de 1874, são co-
muns as notícias de bandidos infiltrados nos grupos de quebra-
quilos. Mesmo contraditória e primária, os quebra-quilos ti·
nham uma ideologia. Entretanto, o bandido rural que a eles .
se achega, de modo geral, não tem ideologia nenhuma nem
sua turbulência tem qualquer sentido antifiscal ou religioso. Im-
põe-se toda cautela na análise do banditismo rural como fenômeno
de revanche social ou política e os casos singulares de certos ban-
dos jamais deverão conduzir às generalizações românticas.
Filhos do isolamento de regiões de difícil acesso ao poder
judiciário, esses bandidos são endêmicos durante o movimento que-
bra-quilos. Muitas vezes receberam proteção, por medo ou por
conveniência, e, em outras mais raras, por compadrismo, de pro-
prietários rurais inseridos no mesmo universo cultural.
Muito raramente o bandido rural, o assassino, é um quebra-
quilos. Em geral suas vinculações sociais raramente têm sentido
contestatório a uma ordem ideologicamente rejeitada. O facínora
que se presta ao papel de vingativa polícia particular de um se-
nhor rural, abatendo seus inimigos, ou seja, o capanga, é candi-
dato natural ao cangaço. Em qualquer dessas situações, porém,
será sempre um declassé. E o caso, por exemplo, de um Cesário
- que prometia entrar em São Bento, no dia 19 de dezembro,
para matar alguns inimigos e roubar - , conhecido chefe dos com-
ponentes de um dos dois bandos existentes nas cercanias de Ga-
164
ranhuns e São Bento, aos quais, exagerando, o delegado 122 desta
última cidade, chama de "formidaveis".
São Bento seria atacada pelos quebra-quilos no dia 20. Seus
arquivos haviam sido cautelosamente escondidos pelas autorida-
des locais. Limitaram-se a quebrar pesos e medidas, e do tumulto
na feira resultou a morte de José Joaquim da Silva. O bandido Ce-
sário, ao contrário do que se esperava, poupando São Bento, in-
vadira Canhotinho, no dia 16, e limitara-se a desarmar a guarda
da cadeia e a soltar três presos 123 •
Cesário é um cangaceiro já conhecido, motivo de ódio e de
humilhação para o delegado, que escreverá à Capital 124 , dizendo
que continua a "assassinar, roubar e deflorar, conforme me cons-
ta e tenho o desgosto de declarar a V. Sa. que me acho impottente
para perseguir este acelerado, por quanto habita nas matas acom-
panhado de sessenta sicarios, todos armados, donde sae para suas
excursões".
A xenofobia não se desenvolvera apenas em Goiana. Alguns
italianos residentes em São Bento, na feira do dia 28 de novembro,
foram atacados pelo próprio povo da cidade, que lhes destruiu as
barracas e roubou-lhes mercadorias; não haviam os estrangeiros
dado muita atenção às ameaças recebidas, por escrito, de que
deveriam sair da cidade dentro de 15 dias, se não quisessem ser
espancados. Ao apresentá-las ao delegado, disseram-lhe, com oti-
mismo, que não acreditavam que tal sucedesse e atribuíram as no-
tas a um gaiato.
O arrematante de impostos de São Bento, ante o clima e a
agitação no Município, fez o que outros arrematantes já estavam
fazendo; alegando não ter feito a cobrança dos impostos durante
três feiras seguidas "em consequencia do movimento sedicioso" 125
pediu um abatimento de 300$000 no seu débito. O Governo negou
à Câmara autorização para conceder a redução. Era contra a Lei
e, como diria Lucena 126 , "quasi todos os impostos podem ser co-
brados posteriormente".
165
Em cândido e pudoroso ofício, o juiz de Direito de Bom Con-
selho, Bento Ceciliano dos Santos Ramos 127 , narrando a Lucena
o começo da agitação dos quebra-quilos, cheio de dedos, dizia-
lhe que, em sua Comarca, tendo o delegado de Polícia "mandado
gente para acompanhai-o em uma diligencia que pretendia hoje
fazer, espalhou-se o boato de que tal força não seria para a dili-
gencia porem para assistir n'esta villa a leitura d'um papel creando
o imposto de cinco mil réis, que deveria pagar cada mulher, que
d'ora em diante penteasse o cabello, e que por causa d'este im-
posto e por mais outro, que por decencia deixo de referir a V.
Excia, a villa seria atacada hoje pela manhã para impedir-se a
leitura de tal papel".
Neste mesmo dia, 400 homens invadiram a cidade, armados
de facas, clavinotes e garruchas, dispostos a atacar a coletoria, car-
tórios e a destruir tantos pesos e quantas medidas encontrassem.
Um frade capuchinho, frei José, chamado às pressas pelo juiz, im-
pediu, com diplomáticas palavras, a cena que, dada a avalanche
de quebra-quilos, seria irreprimível. A promessa de muitos de que
voltariam na próxima feira e as dúvidas a respeito da repetição do
prodígio de frei José, a quem o magistrado chama de "nosso anjo
tuttellar" 128 , induziram-no a transportar para Águas Belas os pa-
péis da coletoria.
O comandante Serra Barros, do destacamento policial, não
estava menos aterrorizado, e dirá ao Presidente Lucena: "o povo
aqui está completamente sublevado, não ha mais quazi nada de
ordem e nem tão poco de autoridade e garanto a V. Excia. que se
não vier já e já, força em nosso socorro, talvez quando chegar não
ache mais a quem socorrer" 129 •
O promotor da cidade, que por sua vez, entre atônito e irrita-
do, dirá que "os moveis que os dirigem são dizem-nos, uma va-
riante dos mesmos que tem dirigido os desordeiros da Parayba,
havendo muito mais que receiar do povo d'aqui, que obra de alta-
mente ignorante como o d'acolá, tem de mais a ser dado ao vicio
do furto que é quasi uma profissão entre a população desta ter-
ra" 130,
No dia 19 de dezembro, deu-se a segunda invasão da cidade.
Foi imediatamente arrombada a Câmara Municipal. A pequena
166
força policial entrou em ação e, iniciado o tiroteio, morreram logo
quatro quebra-quilos que conseguiram, entretanto, matar um sol-
dado e ferir gravemente dois outros, um dos quais veio a falecer.
Muitos soldados e quebra-quilos saíram da luta com ferimentos
leves.
Nas vésperas do Natal de 1874, recebia Lucena comunicado
com detalhes · do ocorrido. Dizia-lhe o juiz de Bom Conselho: "a
Guarda Nacional portou-se soffrivelmente e o seu comandante com
toda a distinção". Como um juiz osiriano, distribuía o magistrado
recompensas morais, elogiando os grandes da terra, Francisco Tei-
xeira de Macedo, Dr. Manuel Antônio da Silva Rios, Manuel Car-
neiro Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, Américo Infante Mari-
nho Falcão, Martim Avelino de Albuquerque e também o subdele-
gado Tertuliano Tenório Vila Nova. Os cabeças seriam apontados
depois. O primeiro deles era o inspetor de quarteirão Clemente
Nunes Pereira; os outros perdiam-se em humildes nomes identifi-
cados como "um tal Antonio Rodrigues que se apresentou vocife-
rendo contra o governo" ou o rábula Lourenço de Carvalho Araú-
jo, que, por ser filho natural do chefe do Partido Liberal, Manuel
Cavalcanti de Albuquerque, pareceu bom argumento ao juiz dizer
também ao Presidente Provincial: "estou certo que o Partido Libe-
ral da localidade não é extranho a esses movimentos" 131 • O dele-
gado receberia sua exoneração por ser, no dizer e apontar do
juiz, "um homem tímido, sem força moral para com a popula-
ção" 132 • Seu substituto foi Francisco Pedro de Laje, nomeado a 19
de janeiro de 1875.
A rebelião que se alastrara de feira em feira, do norte ao sul,
da costa ao sertão de Pernambuco, também atingirá a povoação de
Alagoinha, a poucos quilômetros da atual cidade de Pesqueira. A
agitação em Alagoinha teve aspectos curiosos.
Mais de duzentos homens, recusando-se a pagar impostos 133 ,
romperiam, ao mesmo tempo, os editais que .se achavam afixados,
aos gritos de "Queremos as leis velhas!" ·
Para o juiz de Cimbres, já temeroso de que se repetissem na
sede do seu Município as cenas de Alagoinha, o que aí sucedera
não era "acto de uma fracção do povo ou de algum individuo
(131) Códice Juizes de Direito, jul.-dez., 1874, ms. 556. Arquivo Pú-
blico do Estado de Pernambuco.
(132) Códice JD, ms. 55. Arquivo Público do Estado de Pernambuco.
(133) Códice Officios Diversos, 1874-1879, mss. 87 e 88. Arquivo
Público do Estado de Pernambuco.
167
desordeiro, he filho da persuação a que chega o povo quando pese
sobre ele impostos innadmissiveis e que absorvem grande parte do
seu trabalho; os especuladores, do que podem pescar, nas agoas
turvas fazem o visto. Se amanhã rebentar a sedição n'esta villa não
ha possibilidade de resistencia" 134 •
Tomava o juiz, de qualquer modo, suas providências, confor-
me escreverá à Capital. Cuidava que se colocassem a salvo os pa-
péis mais importantes dos cartórios e arquivos de Cimbres, e pro-
curara amigos de ambos os partidos para ajudarem a que se evi-
tasse o mais possível "o ajuntamento do povo" 135 •
O promotor público de Cimbres descobrirá os nomes dos se-
diciosos de Alagoinha: José de Carvalho Cavalcante Neto, Cipriano
José da Silva, Simeão Macambira, Manuel Paz Torres Galindo,
Joaquim Boa Esperança, José Vicente da Costa e Leandro José
da Cruz.
Eram esses os que "em grande vozeiro proclamavão a sobera-
nia do povo". Haviam ameaçado incendiar o cartório-crime, o ar-
quivo da Câmara Municipal e as duas coletarias, a provincial e a
geral. Para o desconfiado promotor não estavam sós, mas "eram
apoiados por outros como o tenente coronel Joaquim de Carvalho
Cavalcanti, major Emydio Camello Pessoa de Siqueira e Antonio
Pessoa de Siqueira Cavalcanti, este último ex-coletor da localidade,
pessoalmente interessado na destruição de um processo que envol-
via seu nome" 136 •
Os arquivos de Cimbres continuavam ocultos, temendo seus
habitantes os quebra-quilos de Alagoinha. Nem a Guarda Nacional
merecia confiança das autoridades de Cimbres "tornada suspeita
de parcialismo", como diria uma de suas autoridades judiciais.
O particularismo do movimento quebra-quilos, que em cada
Município adquire cores locais, variando desde a ignorância e o
fanatismo religioso até sonhos liberais de tomada do poder, com
gradações de nuances republicanas, tons jesuíticos, claro-escuros
sociais de protestos contra impostos excessivos e firmes linhas con-
tra o recrutamento, tem, nos episódios de Alagoinha e Cimbres, um
de seus mais característicos exemplos. Sob a moldura geral de uma
época em crise, Alagoinha e Cimbres refletem o predomínio das
grandes famílias locais defendendo interesses políticos de seu
piccolo mondo, onde liberais e conservadores, em alternâncias con-
168
flitantes, no fundo, lutam pela manutenção de vantagens econômi-
cas e privilégios. Era a dimensão local do problema geral que Hof-
fnagel assinalou ao estudar a história do Partido Liberal em
Pernambuco: "the acquisition and distribution of political and ad-
ministrative patronage rather than the satisfaction of ideological
demands comprised the principal thrust of Liberal activity throu-
ghout much of the period" 137 •
Os gritos pela soberania do povo, a formação de um des-
tacamento de 50 índios pobres e analfabetos para ajudar a impe-
di-la, os vivas ao Governo Imperial, dados por pequenos comer-
ciantes e funcionários de segundo escalão, contrapostos aos desejos
de latifundiários que tudo recebiam do Império, dão-nos a medida
de suas contradições e a certeza histórica de ser o Quebra-quilos
uma revolução que não se definiu por falta de liderança maior.
Percebendo as autoridades de Cimbres, o juiz de Direito, o
juiz municipal, o promotor e o delegado, o conteúdo político exis-
tente nas agitações de Alagoinha, politicamente preveniram-se. Bem
apoiados pelos conservadores 138 realizaram, na antevéspera do Na-
tal de 1874, uma grande concentração onde se pretendia transfor-
mar "os planos sinistros desses homens que, se dizendo liberais
arrastaram o povo ao abysmo da revolução".
Discursos do juiz de Direito Francisco Brandão Cavalcanti de
Albuquerque, do promotor Joaquim Francisco de Barros Barreto e
do vigário Domingos Leopoldina da Costa Spinoza, fizeram a
"completa gloria para o partido conservador". 1! provável até que
tenham sido "phreneticamente applaudidos" como registra o Diá-
rio de Pernambuco 139 • A cobrança de impostos não sofreu restri-
ções. Os quilos não foram quebrados. Era a vitória dos conser-
vadores. Era a paz.
169
8. O QUEBRA-QUILOS NAS ALAGOAS
170
O juiz municipal, João Fernandes Chaves, não esconde sua
colocação político-partidária, dizendo ao Pre~idente da Província,
no mais rebuscado estilo, que não estranhe "a cautella, porque
infelizmente ha gente que transforma tudo em negocio para fazer
clientela e especular com descredito dos adversarios ainda quando
estes tem provas soberanas de que nunca sacrificarão a justiça no
altar da politica e das paixões". Como que justificando-se, inter-
roga: "Havera nisto perseguição política ou cumprimento de serios
deveres?" E acrescenta: "Hoje dei principio ao processo de sedição
que instaurei contra Manoel Fernandes da Costa, e com a presença
do Promotor Publico inquiri cinco testemunhas de vista que lar-
gamente depuseram". Concluindo, informa que iria proceder a
outras diligências.
O documento é tangencial ao assunto principal e fala mais
nas entrelinhas do que no texto, quando diz: "Infelizmente não
posso ainda asseverar a V. Exa. que as cousas voltarão ao antigo
estado, apezar de não terem apparecido novos attentados, princi-
palmente se attender aos maus elementos que abundão n'este termo,
sobre o que tenho atendido varias vezes com V. Exa. Sei que a
imprensa política já principiou para seus fins a alterar os factos
e mesmo a agredir as autoridades da Comarca".
A onda de revolta contra o pagamento de impostos, a furiosa
destruição dos novos pesos e medidas do sistema métrico-decimal,
os ataques aos cartórios e a reação ao alistamento militar, que cons-
tituem a parte mais visível do movimento Quebra-quilos, somente
surgirão, na Paraíba e em Pernambuco, três meses depois. Manuel
Fernandes Costa não estará envolvido nos episódios do Quebra-
quilos. Temido e respeitado pelos atos de violência que praticava,
terá um neto que lhe herdará a violência, o cangaceiro Corisco,
do bando de Lampião. Em 1874, residia em Atalaia, onde era se-
nhor do engenho Brasileiro, por ele vendido, posteriormente, na
década de 1880, aos irmãos franceses Felix e Gustave Vandesmet,
introdutores da usina em Alagoas (Usina Brasileiro), em 1892.
Adepto fervoroso do padre Cícero 3 mereceu de Graciliano Ra-
mos 4 uma referência especial na crônica onde o escritor alagoano
analisa o fator econômico no cangaço. ·
171
Na sua "Fala", de 15 de março de 1875 5 , o Presidente da
Província das Alagoas, João Vieira de Araújo, no tópico "Tranqui-
lidade Publica", esclarecera as razões especiais por que havia man-
dado para Atalaia a Companhia de Infantaria de Linha. Apenas
auxiliara a ação da justiça, diz o Presidente, na penhora dos bens
de Manuel Fernandes da Costa, senhor do engenho Brasileiro, pa-
ra pagamento da quantia de vinte mil-réis que devia à Câmara
Municipal. Manuel Fernandes Costa reunira gente armada e resis-
tira. Se considerarmos a reação ao pagamento de impostos, como
uma das dimensões mais importantes do movimento Quebra-quilos,
esse senhor de engenho alagoano seria um de seus precursores,
justificando-se então a inclusão, no Códice 603 do Arquivo Na-
cional, da documentação sobre sua reação à Lei e à ordem. Sonegar
e reagir ao imposto, entretanto, sempre seria mal muito freqüente
na vida civilizada, e as sanções aos contribuintes faltosos já estão
bem desenhadas nos papiros egípcios:
O Quebra-quilos foi coletivo e tem, conseqüentemente, a es-
trutura de movimento, e como tal, somente atingirá Alagoas, no
dia 26 de dezembro de 1874, quando, na povoação de Mundaú-
mirim, foram inutilizados pesos e medidas do sistema métrico e
queimados os cartórios do juiz de paz e da subdelegacia, conforme
comunicação feita por Manuel Martins de Miranda ao Presidente
da Província.
Manuel Martins de Miranda, ao fazer considerações sobre a
etiologia daqueles acontecimentos, percebeu as causas econômicas
do Quebra-quilos e, como que esperando uma análise do futuro,
escreverá ao Presidente João Vieira de Araújo:
"Não posso afirmar se os amotinadores terão a sua razão de
existir no fanatismo que nestes ultimos tempos há manchado o
sentimento religioso do pais; se da repugnancia em aceitar o novo
sistema de pesos e medidas adotado pelas nações civilizadas; se
da ação ignobil e treda das facções que maculando a politica do
pais pretendem obstar a realização do bem publico; se das peque-
nas colheitas que ultimamente tem sido feitas; se dos preços re-
duzidos e minguados que nos mercados europeus têm obtido os dois
principais produtos da Provinda; se dos novos impostos provin-
ciais, que sendo lançados sobre todas as classes, são quase de mo-
do insensível pagos pelo indivíduo.
(5) Fala dirigida à Assembléia Legislativa da Província das Alagoas,
na abertura da 2.ª sessão da 20.ª legislatura, em 15 de março de 1875 pelo
doutor João Vieira de Araújo, Presidente da Província. Maceió, Typ. do
Jornal das Alagoas, 1875, p. 5.
172
O espírito crítico e imparcial, estudando os fatos e aquila-
tando as intenções, algum dia assinalará a fonte dos males pre-
sentes e julgarão os promotores da desordem." 6
No "Reservado" 7 de 7 de fevereiro de 1875, o juiz de Direito
da Comarca de Imperatriz, da vila de Murici, Francisco de Araújo
Lima, informava à Presidência alagoana, detalhadamente, o que se
passara:
"As desordens aqui ocorridas por· ocasião das de Pernambuco
e Paraíba, circunscreveram-se aos povoados de Mundaú-mirim e
Timbó. Como origem .delas pode-se bem assinalar a ignorância do
povo em reação contra o novo sistema de pesos e medidas que ele
mal entende, sua prevenção contra impostos e por ventura insinua-
ções de quem mira um interesse mais ou_ menos remoto nessas per-
turbações.
Os amotinados de Mundaú-mirim inutilizaram os pesos e me-
didas que encontraram, queimaram o cartório de paz e o título ou
contrato de cobrador dos impostos de · feira e procuraram para
queimar um papel do cativeiro. Ou por que a polícia não oferece-
ram (sic) resistência, ou por que os amotinados não traziam outro
intento senão o referido, o certo é que nenhuma ofensa pessoal
houve, notando-se que ele.s apareceram sem armas de fogo.
No Timbó a desordem teve por origem uma prisão que pes-
soas do povo re,putaram ilegal e frustraram. Este fato, bem como
o já referido do Mundaú ainda dependem de decisão minha e por
isto não antecipo a respeito meu juízo sobre a criminalidade deste
ou daquele indivíduo. Basta por ora dizer que os que tomaram par-
tido do preso, logo que este saiu da casa onde estava detido, reti-
raram-se do povoado, sem fazer ofensas às pessoas ou coisas.
Creio que estão terminados os movimentos desordeiros desta
comarca a julgar pela tranqüilidade de que gozam os povoados e
vilas; para isto muito concorreu o aumento do destacamento da
Imperatriz e movimentos da força pública pelos distritos daquele
termo."
. Estava o Chefe de Polícia de Maceió, Joaquim Guedes Cor-
reia Gondim, convicto de que a causa da perturbação da tranqüi-
lidade pública em Alagoas fora, indubitavelmente, a sedição que
rebentara nas Províncias da Paraíba e de Pernambuco, e que se
ampliara, atingindo território alagoano.
(6) Códice "Revoltas e Sedições", 1833-1875, março 5, estante 15.
Arquivo Público de Alagoas.
(7) Idem, ibidem.
173
Escrevendo, a 23 de fevereiro de 1875, considerava restaura-
da a paz na Província, e esclarecia à Presidência que uma das
causas dos conflitos era "a decretação de certos impostos inteira-
mente novos, os quais são reputados antipáticos, plausivelmente, e
vexatórios, cavilosamente". O novo sistema de pesos e medidas
estaria sendo aproveitado para a exploração de "mercadores ra-
toneiros ".
Preocupara-se com a gênese política dos tumultos, porém não
sabia - e dificilmente poderia saber - quem estimulava o Que-
bra-quilos. Apontava, com a reserva de ter sido denunciado por
um escravo, AntQnio Tomás de Aquino como cabeça da sedição
em Mundaú-mirim, e perdia-se nas dúvidas de "um certo ódio ou
prevenção que alguns elementos hipócritas, tendo a mira em cál-
culos sinistros, hão incutido desacertada e aleivosamente em al-
guuns indivíduos simplorios e levianos contra as medidas que os
poderes quer gerais, quer provinciais, tem adotado com o intuito de
ressalvar os interesses públicos" 8 •
A imprensa liberal de Pernambuco noticiara que, no dia 2
de janeiro, Quebrângulo fora assaltada por 300 homens que des-
truíram pesos e medidas, e que da luta que se seguiu resultou um
saldo de nove mortes. O tenente-coronel Firmino Rabelo Torres
Maia, à frente de 400 homens, ocupara a Assembléia preventiva-
mente.
O clima geral de agitação estimulara desocupados e marginais
de Maceió a promoverem desordens nas noites de Natal e Ano
Novo. A assuada fora prontamente reprimida e não passara disso.
Não sabendo aquilatar as dimensões dos acontecimentos, o Presi-
dente alagoano pedira ao pernambucano que o ajudasse. Para Ma-
ceió seguiu a corveta "Vital de Oliveira", que ali deveria aguar-
dar a chegada da canhoneira "Henrique Dias" e da corveta "Ipi-
ranga" 9 •
A parcialidade partidária de um jornal oposicionista não he-
sitou: "por que, então, a necessidade de um navio de guerra? Na
verdade, o que se pretende em Maceió, é ter força e porão de
navio de guerra para prender e trucidar aos adversários políti-
cos" 10 •
Alagoas vivia o seu amargo quinhão da crise brasileira. No
quarto de século transcorrido de 1847 a 1872, como observou
174
Moacir Sant'Ana 11 , "a população alagoana livre aumentara em
6 7 ,5 % enquanto a escravatura local diminuíra em mais de 1O%,
diferença devida não só à exportação para as Províncias do Sul
do Império, como à elevada mortalidade infantil entre os negros.
A devastação é causada pela varíola, febre amarela e principal-
mente pela cólera morbo, nos anos de 1855 e 1862, moléstias res-
ponsáveis pela morte de grande número de escravos". O Quebra-
quilos explodira em Alagoas em um período de mudanças de suas
classes e camadas sociais, tão bem percebida por Douglas Apratto
Tenório ao assinalar que "ao lado da preeminente classe dos se-
nhores de terra e dos escravos e agregados, insinua-se uma classe
média urbana, constituída por elementos ligados ao comércio, pelo
imenso funcionalismo, pelos profissionais liberais, bem como um
contingente operário que trabalhará em atividades modernizadoras
ou nas incipientes indústrias maceiosences" 12 • Diferentemente de
Pernambuco, a Província das Alagoas, por ocasião da eclosão do
Quebra-quilos, não apresentava déficit orçamentário 13 porém dez
anos depois aparecia, esclarecendo a verdade contábil, a própria
informação do Presidente Provincial José Moreira Alves da Silva,
dirigindo-se a Cotegipe: "Recursos bastantes de riqueza tem a
Província em si; faltam-lhe porem, os meios para desenvolvei-a, e
estes estão ao alcance de V. Ex. e do nobre Governo Imperial. As
rendas publicas provinciaes, se não tem retrogradado, como que
estacionam, e dahi o mal estar da Província, porque estas precisam
progredir para satisfação das necessidades publicas que, de dia
a dia, vão crescendo 14 •
175
9. O QUEBRA-QUILOS NO RIO GRÁNDE DO NORTE
176
haviam sido remetidas "espingardas raiadas de 14,8 com as com-
petentes bayonetas e suas bainhas, bandoleiras, tarugos, guarda
fechos e mais accessórios" 2 •
Fora comunicado ao Governo norte-rio-grandense, pelo padre
João Jerônimo da Cunha, que um numeroso grupo de sediciosos
se achava postado no engenho Bom Jardim, a uma légua de Goia-
ninha, "com o intuito de acomettel-a". Eram 300 pessoas entre
homens e mulheres, todos armados, dispostos a enfrentarem as for-
ças do capitão João Paulo Martins Naninguer. Este fora avisado
que um outro grupo arregimentava-se no Piauí e resolvera, então,
de comum acordo com o juiz de Direito e o delegado, enfrentá-las
antes que atacassem a cidade. Um relatório enviado à Corte pelo
Presidente da Província, narrando naturalmente os acontecimentos
de acordo com as informações fornecidas pelo capitão João Paulo
Martins Naninguer 3 , diz que os sediciosos receberam os soldados
à bala e que a seção comandada pelo alferes Francisco de Paula
Moreira, simulando um ataque de baioneta, fez alto a dez braças
de distância "para não offendel-os nem sacrificar a força". Era uma
tentativa de dissuasão. Inútil foi a manobra. O que o relatório cha-
ma de atitude ameaçadora do grupo é, provavelmente, o fracasso
das propostas então feitas. Os soldados abriram fogo, e, logo na
primeira carga, dois sediciosos tombaram mortos e cinco foram
gravemente feridos, entre eles três mulheres. A debandada dos
quebra-quilos foi geral; embora armados, não dispunham de or-
ganização militar, e os que não conseguiram fugir, foram imedia-
tamente presos.
Câmara Cascudo 4 registra ataques dos quebra-quilos na cida-
de Jardim do Seridó, distritos de Vitória e Luís Gomes, Poço Lim-
po, cidade do Príncipe, Vila do Acari, Mossoró, Patu e Barriguda
(Alexandria).
Iniciaram-se os inquéritos e processos, e o Dr. Marinho Fal-
cão, que exercia interfoamente o cargo de Chefe de Polícia, prome-
teu paz e sossego aos habitantes de Alagoinha e Canguaretama.
Porém, o próprio Presidente da Província confessaria que os âni-
mos não estavam arrefecidos. O movimento hibernaria alguns
meses.
177
Tinha razão o Presidente da Província do Rio Grande do Nor-
te. O juiz de Direito de Goianinha, a 31 de agosto de 1875, escre-
via-lhe longa e explícita carta, dando-lhe conta do que então se
passava. Iniciava o documento "sob a mais dolorosa impressão"
e na'rrava "os tristes acontecimentos" que presenciara, dando, aqui
e ali, a sua interpretação e posição político-social. Tudo fizera para
libertar "do espírito do povo os preconceitos que o impelia aos
seus já repetidos desatinos". Porém, "o povo apparentemente paci-
ficado, a surdina se preparava a fim de que melhormente levasse
a meta seu louco cometimento de por todos os meios evitar o
alistamento". Haviam surgido boatos de que, na localidade cha-
mada Várzea, os sediciosos reuniam-se e municiavam-se. Cenas de
sangue não poderiam ser evitadas, dizia o juiz Antônio José de
Amorim, "a menos que o governo, em vista do esphito dos sedi-
ciosos quizesse suspender a execução da lei, o que era de pessimas
consequencias" 5 •
A reação contra os pesos e as medidas tinha um fermento
poderoso na execução da nova Lei de recrutamento. Novamente
escrevendo ao Duque de Caxias, dizia o Presidente da Província do
Rio Grande do Norte que o movimento sedicioso, que se manifes-
tava nas Comarcas de São José e Canguàretama, apresentava-se
"assustador", nesta última. E que no dia 16 de agosto, quando a
junta paroquial reunida dav:a início aos seus trabalhos, um grupo
de, aproximadamente, 400 pessoas, entre homens e mulheres, che-
fiado por Antônio Hilário Pereira, irrompera no local da reunião
e ameaçara matar o juiz de Direito e todos os membros da Junta,
se a Lei de recrutamento que denominavam "lei para captivar o
povo", tivesse execução naquela freguesia.
Apavorados, os membros da junta adiaram a reunião, e, no
dia seguinte, o alferes Ferreira de Oliveira, comandando aproxima-
damente 6Q soldados, cumpriu a missão que lhe fora confiada, logo
após a dissolução da junta paroquial: prendeu Antônio Hilário Pe-
reira e mais quarenta sediciosos. Pereira e seus homens não ha-
viam sido _presos sem resistência. Quatro soldados do alferes Oli-
veira estavam feridos.
A prisão de Pereira não interrompeu a agitação. Prevendo no-
vos conflitos, o juiz de Direito solicitara a presença imediata, em
sua Comarca, do capitão João Paulo Martins Naninguer, coman-
dante das forças em operação nas Comarcas de Canguaretama, São
178
José e Goianinha. Contaria, agora, com redobrada repressão poli-
cial-militar.
Logo pela manhã do dia 18, as novas forças entram em ação.
Os sediciosos tentaram ocupar a cidade, entrando por quatro vias,
e agruparam-se na frente da Matriz. No seu interior, estava reuni-
da a junta paroquial de recrutamento. Era, como diziam o pároco
Manuel Januário Bezerra Cavalcanti, o delegado de polícia Jerô-
nimo Pereira de Farias e o juiz Antônio Jerônimo Pinheiro, em
documento onde narram o episódio, a "furia de um povo supina-
mente ignorante e mal aconselhado por alguns que impõe de
vulto no Paiz" 6 •
O comandante determinou, imediatamente, que se evacuasse
a igreja. O tenente-coronel José da Costa Vilar e os fazendeiros
Afonso Leopoldo de Albuquerque Maranhão e João de Albuquer-
que Maranhão Cunhaú, acompanhados, cautelosamente, pelo dele-
gado de polícia, que, por sua vez, não se esqueceu de fazer-se
acompanhar pelo subdelegado, tentaram usar "meios brandos e
suasórios para dissuadilos do intento em que estavão de oppor
resistencia a execução da lei". A argumentação de nada valeu. Uma
carga de baionetas caladas, então ordenada, feriu vários sediciosos
e possibilitou o aprisionamento imediato de dezenove homens. Nes-
sa operação militar, além de aparecerem os nomes do capitão João
Paulo Martins Naninguer, do tenente João Paulo da Silva Porto e
dos alferes João Ferreira de Oliveira e Francisco de Paula Moreira,
há um "contingente de povo", que os fazendeiros Albuquerque
Maranhão haviam apresentado para auxiliar a força pública, no
caso de ser necessário 7 •
O coronelismo nordestino aparece, aí, em toda a sua extensão.
O proprietário de terras se faz acompanhar de seus homens, que
não indagam quais são os seus interesses e agem tão-somente em
função de vínculos de dependência, que tradicionalmente os unem
ao patrão. Os elogios aos Albuquerque Maranhão repetem-se, na
documentação sobre o episódio, e o juiz de Direito registra, pos-
teriormente, que continuam "a prestar relevantes serviços à ordem
não só com seu prestígio mas também despendendo de dinheiro
na sustentação de não pequeno número de pessoas que para ga-
rantir as autoridades e a Junta Paroquial". Não mudou muito a
situação dessa classe no interior nordestino, fato que qualquer pes-
quisa social primária pode constatar.
179
Pacificada a cidade, a junta, à tarde, continuou os seus traba-
lhos, no consistório da Matriz, não obstante os "boatos aterrado-
res" de que fala o juiz Antônio José de Amorim.
Novos interrogatórios foram feitos e mais processos instau-
rados.
Em Mossoró, a invasão das igrejas, onde se procediam os tra-
balhos de alistamento, e a clássica destruição dos livros e anotações
ficaria conhecida e famosa como o "motim das mulheres", por te-
rem sido dirigidas por Ana Floriano, a primeira a arrancar editais
e despedaçar listas.
Na correspondência trocada entre João Capistrano Bandeira
de Melo Filho, que governou a Província do Rio Grande do Norte,
de 17 de junho de 1873 a 10 de maio de 1875, e Henrique Pereira
de Lucena, Presidente da Província de Pernambuco, sobre as agita-
ções daquele período, há referências a um movimento passivo em
Santa Rita 8 , localidade onde a população apenas se recusou pa-
cificamente a transacionar com os novos pesos e medidas. Não hou-
ve violências. Não se destruiu nada. Apenas não se comprou e
não se vendeu.
180
10. O RECRUTAMENTO MILITAR
181
camente, o alistamento seria feito por sorteio. A Lei, entretanto, logo,
criou má fama. A oposição liberal arrastou-a nas páginas dos jor-
nais, e, no interior, as conversas sobre "recrutamento" alimentaram
a suspeita de que quem não tivesse dinheiro iria para o quartel.
Em parte era verdade. Logo nos primeiros artigos do texto legal,
tratava-se ·das isenções, e, entre elas, a do artigo 7.0 , declarava
isento aquele que "pagar a contribuição pecuniaria que for marca-
da em lei". Estariam também a salvo os graduados e estudantes,
quem apresentasse substituto idôneo, quem fosse proprietário, ad-
ministrador ou feitor de fazenda com mais de dez trabalhadores
ou caixeiro de casa de comércio, "que tiver ou se presumir que
tem de capital 10.000$000 ou mais" 3 •
Por ocasião da fase aguda do Quebra-quilos, em dezembro de
1874, A Província 4 desancava a Lei, registrando que, na Prússia,
o serviço militar era de três anos. Na futura Prússia americana,
dizia mordazmente o jornal, o recruta deverá servir seis anos. "Mi-
litarizado o Paiz, como inquestionavelmente ficará, as industriais
privadas do seu melhor musculo e mais fresco talento e estaria o
Brasil reduzido a uma vasta barraca militar" era a conclusão a que
se chegava, no artigo incendiário, que se admirará, como fecho, de
ter o Imperador consentido que seus ministros apresentassem ao
mundo civilizado tal projeto.
Pernambuco, em 1874, conforme aviso-circular do Ministério
da Guerra (10 de dezembro de 1873), deveria apresentar 530 re-
crutas. As estatísticas mostram que, dos 398 apanhados nas ma-
lhas do recrutamento, somente foram "apurados" 232.
Recomendava-se 5 todo cuidado para que não se alistassem
escravos nas fileiras do Exército; porém, se algum o conseguia, e
chegava a prestar serviço, não voltava à condição de cativo, e seu
dono teria direito a receber indenização deduzida de um fundo
especial de emancipação. Embora seja comum a presença de ne-
gros nas fileiras militares, casos como o do escravo Luciano, de
"estatura baixa, rosto redondo e cheio e fala descançada", que
sentara praça 6 , não são freqüentes.
182
A idéia generalizada de que tropa era lugar de castigo, apa-
rece nas punições impostas aos quebra-quilos. São numerosos os
documentos 7 remetendo implicados na sedição para servirem
o Exército. O próprio Intendente-interino da Guerra, João José
Junqueira, oficiara ao Presidente da Província de Pernambuco,
determinando que somente fossem processados os cabeças da se-
dição; os que apenas tivessem sido envolvidos deveriam ser con-
siderados recrutados e enviados para a Corte. As autoridades po-
liciais não deixam de registrar o que lhes parecia importante con-
tra o recrutado à força, como nos casos de Anastácio José da Silva,
Francisco Teixeira Borba e Tomás de Aquino Ferreira, a respeito
dos quais diz, textualmente, o delegado do Expediente: "o primei-
ro não tem em seu favor isenção alguma, o segundo não obstante
ser casado não vive maritalmente e é de pessimos costumes, e o
terceiro além de não ter isenção tomou parte nos movimentos sedi-
ciosos do termo de I també" 8 •
Desordeiros, vagabundos, faquistas e larápios são encaminha-
dos, devida e burocraticamente, ao Exército9 • Os quebra-quilos Vi-
cente Ferreira do Nascimento, Firmino José Timóteo, Manuel José
da Silva e João de Lemos far-lhes-ão companhia 10 • Havia vagas
esperanças, nas capitais, de que a caserna recuperasse marginais, e
de que convencesse os ex-quebra-quilos a respeitar a Lei. No in-
terior haveria revolta.
Ao que parece, Pernambuco contava com suficiente efetivo
militar para a manutenção da ordem no interior, porquanto as tro-
pas pedidas para a Província de Alagoas, ao desembarcarem no
Recife, vindas dó Maranhão, pelo navio "Werneck", composta de
"cem praças de pret" e oito oficiais do l.º Batalhão de Infantaria,
sob o comando do major Roberto Ferreira, foram reembarcadas
de volta ao Maranhão, em virtude das "notícias lisongeiras" 11 que
vinham das Alagoas.
Houvera intensa movimentação de tropas no País, por caus~
dos problemas ligados aos quebra-quilos. A continuidade da repres-
são tinha agora tima nova justificativa: a revolta contra o alista-
(7) Códice PC 120, mss. 76, 66, 52, 55 e 18. Arquivo Público do
Estado de Pernambuco.
(8) Idem, ms. 156.
(9) Códice PC 121, ms. 99. Arquivo Público do Estado de Per-
nambuco.
(10) Códice PC 120, ms. 66. Arquivo Público do Estado de Per-
nambuco.
(11) Códice 603, ms. 117. Arquivo Nacional.
183
mento. Estava no interior de Pernambuco a Companhia de Infan-
taria de Santa Catarina, e o 18.º Batalhão de Infantaria da Bahia
seguira para a Paraíba, sob o comando do capitão José Longuinho
da Costa Leite.
Não haviam se transformado, entretanto, em realidade as
apreensões dos proprietários do interior e pessoas ligadas ao Go-
verno de Pernambuco. João Pedro Carvalho de Moura, então na
Presidência da Província, em longa exposiç!o ao Ministro da Guer-
ra, datada de 14 de agosto de 1875, dizia que as manifestações
que apareceram no mês de julho não podiam ser atribuídas a um
sentimento de hostilidade nem ao propósito de alterar a ordem
pública, mas a simples desconfiança de um aumento de sacrifícios
pessoais. O Presidente pernambucano registra, contudo, as cir-
cunstâncias de que os mesmos sentimentos atuaram sobre as auto-
ridades policiais subalternas e paralisaram sua ação.
Carvalho de Moura, na sua contraditória porém altamente
significativa exposição, diz, referindo-se ao problema do envio das
tropas, que não atendeu às constantes requisições de destacamento
de linha, que lhe eram feitas pelas autoridades do interior, porque
o emprego da força poderia também alarmar a população e modifi-
car as suas disposições, "animando-a a praticar actos de resistencia
pela esperança de que não poderião ser contidas desde que se
apresentassem simultaneamente em diversas partes da Provinda" 12 •
Revela-se Moura um governante da Renascença italiana no
Nordeste brasileiro. Suas atitudes são pensadas, obedecem a cer-
tos princípios florentinos, quando diz: "limitei-me a recomendar
as autoridades locais que promovessem a execução da sobredita
lei procedendo de modo a consiliar a moderação com a finalidade
de uma firmesa e procurando desvanecer as desconfianças do povo.
Reservei-me porem, lançar mãos dos meios energicos nos lugares
onde os factos mostrassem a necessidade de sua aplicação" 13 •
Realmente, o Governo da Província mandara, inicialmente,
seguirem apenas dois destacamentos, um de 20 pares de linha e
outro de 25, o primeiro para lngazeira e o segundo para Paracatu.
Reservara o grosso de suas forças para o futuro mais ou menos
incerto da· reação das populações do interior ao alistamento. Esta-
vam chegando notícias desagradáveis de Alagoas e da Paraíba.
Em Panelas, editais que haviam sido afixados na coletoria
foram manchados com sangue por grupos de pessoas que, sendo
(12) Códice 603, ms. 123. Arquivo Nacional.
(13) Códice 603, ms. 125. Arquivo Nacional.
184
analfabetas, os confundiram com listas de recrutamento; simbólica
e violentamente, externaram assim o seu protesto. Ao mesmo tempo
circularam boatos de que o juiz de paz seria agredido por ocasião
da reunião da junta e que a mesma seria impedida, com violências,
de instalar-se.
O próprio juiz, em virtude de ser a pessoa mais visada ou
por ter realmente comprovado o clima de intranqüilidade de sua
Corrtarca, declarava que havia "exaltação do povo" e "boatos ater-
radores". O coronel José dos Santos e Silva e o pároco Genésio
Valfrido de Sousa Gurjão "foram incansáveis em persuadir as pes-
soas dos benéficos efeitos da lei e dissuadilas de 5eus intentos
hostis", conforme assinala a exposição de João Pedro Carvalho
de Moura, o que indica ser objetiva a observação do juiz de Direito
e muito compreensível seu receio.
Em Buíque, também os editais da coletoria forám destruídos
por pessoas que os julgavam documentos relativos ao alistamento.
A tão complexa e difusa interferência religiosa nas agitações de
1874-1875 aparece nessa cidade, em duas ocasiões: primeiramente,
o pároco declara-se impedido e, não havendo quem o substituísse,
a junta de recrutamento é obrigada a adiar seus trabalhos; em se-
gundo lugar, tudo indica uma certa conivência dos católicos mais
exaltados com os revoltosos contra a Lei de recrutamento. Na sua
exposição, João Pedro de Carvalho de Moura registra que "alguns
indivíduos mal intencionados e enfensos à situação procurarão explo-
rar a ignorancia dos povos, creando em seos espíritos prevenções
contra a lei do casamento civil e animando-os a attentarem contra o
alistamento". J! provável que o próprio pároco fosse desses "mal in-
tencionados", coisa que logo chegou aos ouvidos do Governo.
Não é simples coincidência que a suspeição argüida pelo pároco
seja registrada logo após a informação de uma pública e ostensiva
atuação junto à população, contra uma Lei que diminuía as prer-
rogativas eclesiásticas no que dizia respeito ao casamento.
Em Bom Conselho não houve violências, mas a campanha,
no sentido de a população negar nomes para a organização das
listas de alistamento, foi feita sob os olhares impotentes da junta.
Em Cimbres, Bonito e São Caetano repetiram-se as ameaças
e insultos aos membros da junta. A população de Bonito nem aos
inspetores de quarteirão perdoou, e a de São Caetano julgou pru-
dente não se reunir por não ter comparecido a autoridade po-
licial 14•
185
Em Altinho, conforme as próprias palavras do Presidente da
Província, "achavão-se os animas em geral em ponto tal de exal-
tação que as mulheres ameaçaram de empedir os trabalhos de
alistamento, não tendo os ·lnspectores conseguido fazer as listas
diante da tenacidade com que o povo negava-se a dar seos no-
mes" 15 •
Em São Bento, a reação às autoridades é mais organizada. Não
se rasgam apenas os editais. São estes substituídos por uma pro-
clamação impressa, que lamentavelmente se perdeu, concitando a
população não somente a não dar nomes como também a resistir
à execução da Lei. Não foram poupados insultos à queima-roupa
dirigidos ao delegado, ao vigário e ao escrivão de paz. Usou a
autoridade de violências, repelindo os mais afoitos, mas não houve
vítimas. Sob o pretexto de que haviam recebido poucas listas e
assim mesmo incompletas, resolveram, prudentemente, os membros
da junta, adiar os trabalhos.
Em Gravatá, corriam rumores insistentes de que, no dia 1.º
de agosto de 1875, um grande grupo de homens e mulheres ar-
mados tentariam impedir o alistamento. Como prenúncio de agita-
ção, os editais foram arrancados. Porém a junta reuniu-se e bem
ou mal conseguiu realizar sua missão.
Garanhuns foi abandonada pela população. No relatório do
Presidente da Província, o quadro político-social da cidade tem co-
res dramáticas. Por duas vezes, diz o Presidente, "foram rasgados
os editais, circulavam boatos de que a junta seria dispersada a
fogo, caso se reunisse. O terror, que era geral, apoderou-se de tal
sorte dos habitantes da villa que esta ficou quase deserta, sendo que
os homens rurais que podião com o seu prestigio auxiliar efficaz-
mente as autoridades, também abandonarão a villa e emigraram
para outros pontos" 16 •
Para lá seguira, a pedido do juiz, o subdelegado de Palmeira,
com sessenta homens armados e municiados, para garantir a ordem
na cidade semideserta. A junta adiou, prudentemente, seus tra-
balhos.
A presença em Ingazeira de uma força de vinte praças de li-
nha, comandada pelo alferes Mariano José Pereira da Silva, faz
com que as promessas de agitação não sejam cumpridas. De modo
geral, nas outras localidades do interior de Pernambuco, por oca-
(15) Idem, ms. 127.
(16) Códice 603, ms. 128. Arquivo Nacional.
186
sião dos alistamentos, a ordem e a paz eram obtidas pela "atitude
energica das autoridades" como repetiu o Presidente da PrÓvíncia.
Em Triunfo, paralelamente às dificuldades opostas pela po-
pulação unida contra a execução da Lei, usa-se uma cômoda e
singular forma de fuga ao recrutamento: o casamento. Dizia, des-
consolado, o juiz da Comarca que, além de não formar listas, jul-
gava que somente poderia fazer o alistamento, se este compreen-
desse os homens casados, porque apenas nos últimos dois meses
haviam sido realizados para mais de duzentos casamentos de ho-
mens de 19 a 30 anos de idade.
As notícias que chegaram ao Recife, vindas de Cabrob6, fo-
ram mais graves. A junta de alistamento, reunida na Matriz, foi
agredida por um grupo armado com cacetes e facas, chefiado por
Lino da Costa Araújo, que se apoderou de todos os papéis que ali
se encontravam. Da luta então havida resultara a morte de um dos
assaltantes, José Vieira. Imediatamente, o Governo de Pernambuco
enviou por um vapor da Companhia Pernambucana, vinte praças
de linha, sob o comando de um oficial "de plena confiança", até
Penedo, com ordens para reunirem-se em Paracatu com a força ali
destacada, e dali marchar para Leopoldina, Boa Vista, Ouricuri e
Exu, devendo demorar-se nessas cidades o tempo suficiente para
que as respectivas juntas procedessem os seus trabalhos 17 •
Lino Araújo não é um joão-ninguém, um chefe ao acaso. De-
preende-se essa circunstância das informações prestadas pelo major
Luís Sebastião Moscoso da Veiga Pessoa de que: "não é apoiado
pela família em semelhantes desordens, todavia sendo ela grande
ou derramada pelas duas comarcas contiguas esta e a do Ouricury
bem como na de Barbalha, Província do Ceará, não são pouquís-
simas praças que tem Cabrobó que o poderão abordar e perseguir
como deve ser". Não é sem certa razão que o major Vieira Pessoa
assinalaria estar a população local "agitada e sem segurança" 18 •
Em ltambé, tão agitada em novembro de 1874, foram usados
processos menos violentos para obstar a execução do alistamento.
Durante a noite, desconhecidos arrombaram a Matriz, e, usando
ferros, abriram as gavetas existentes no consistório, onde haviam
sido guardadas as listas.
A reação contra o alistamento, dada sua extensão e intensida-
de, indica claramente uma onda de insatisfação e revolta popular.
De certa forma é a continuação do movimento Quebra-quilos.
(17) Códice 603, ms. 128. Arquivo Nacional.
(18) Idem, mss. 134. 135.
187
Na Província do Ceará, repetem-se os episódios da Paraíba,
talvez com menor gravidade, porém com curiosa e particular ca-
racterística: são as mulheres que se opõem violentamente ao re-
crutamento. Essas lisístratas do sertão nordestino rasgam listas e
insultam os membros das juntas. A 25 de agosto de 1875, o Presi-
dente da Província, Gomes Parente, informava o fato ao Duque
de Caxias, dando-lhe conta da violência feminina em Limoeiro,
Acarape, Quixadá, Boa Viagem e Conceição de Baturité 19 • As vio-
lências na vila do Acarape foram as mais sérias. Não somente mu-
lheres, porém também mais de cinqüenta "desordeiros", armados
de foices e cassetetes, agrediram a força pública que se achava
enfileirada na porta do quartel "motivando-se um renhido conflicto
que durou cerca de meia hora entre aggredidos e aggressores", re-
sultando a morte de um deles e ferimentos graves em outros 20 •
Alguns homens foram presos, porém a maioria retirou-se,
prometendo, aos gritos, que voltaria. Alarmado com os aconteci-
mentos de Acarape, o Governo da Província determinou o reforço
das tropas. Para a vila ameaçada seguiu o capitão Francisco Ferreira
Rabelo, do 15.º Batalhão, com 20 praças.
Os revoltosos não voltaram. Instauraram-se os inquéritos, e
nomes apareceram. Eram todos de gente humilde, sem implicações
políticas, circunstância que não passou despercebida à desconfiada
Presidência da Província do Ceará, que escreveria, mais tarde, ao
Duque de Caxias, dizendo "devo, no entanto, dizer a V. Exa. que
do inquérito a que se procedeo, ficou verificado que nenhuma pes-
soa importante d'aquella localidade tomou parte n'aquelle movi-
mento sedicioso" 21 •
Em Tamboril, continuavam os moradores a desacatar a junta
de recrutamento, e, mais uma vez, foram tomadas providências
militares para evitar tumultos. Seguiu, no dia 14 de setembro de
1875, da capital para a vila, o alferes Miguel Vieira de Novais,
com 20 praças e ordens expressas de garantir a ordem pública.
O policiamento militar ostensivo para os trabalhos da junta
de recrutamento tornou-se rotina; incidentes menores, porém, re-
petiram-se, e, a 19 de outubro, ainda acusando "grupos de mulhe-
res que de surpresa tem conseguido as listas e mais papeis concer-
nente a esse serviço", desculpa-se, um tanto sem jeito, o Presidente
188
Gomes Parente, ao Ministro da Guerra, por não ter podido con-
cluir, em sua Província, os trabalhos de alistamento para a Ar-
mada e o Exército.
Esses quebra-quilos cearenses revoltaram-se apenas contra um
recrutamento discriminatório. A designação "quebra-quilos", con-
sagrada pela documentação do Códice 603 do Arquivo Nacional,
deverá, entretanto, aplicar-se mais pela generalização do que pelo
paralelismo histórico com os sediciosos de 1874, em Pernambuco,
na Paraíba e no Rio Grande do Norte.
A reação ao alistamento, entretanto, não foi um fenômeno
apenas nordestino. Em São Paulo e Minas Gerais, também, apare-
cem distúrbios com o mesmo objetivo. Não se pode considerá-la
apenas uma fase tardia, um desdobramento da revolta dos quebra-
quilos. Tem maiores dimensões. Inseridas no mesmo clima de insa-
tisfação social, que caracteriza a mudança que então sofre o País,
nas vésperas da Abolição e da República, certas regiões do Sul
estavam presenciando, isoladamente, reações contra o Governo e
suas instituições 22 •
O particularismo regional dessa reação tem aspectos realmen-
te curiosos: no Nordeste, os párocos são sempre membros das jun-
tas, e, quando se dirigem às autoridades civis, demonstram inequí-
voco zelo político. Em São Paulo, entretanto, quando após os cos-
tumeiros insultos e violências, um grupo de homens atacou a junta,
reunida na Matriz de Rio Verde (Comarca de Faxina), o Governo
paulista, ao que parece, estava mais ou menos seguro de que fora
o vigário da paróquia o autor intelectual do atentado. Diria o
Presidente da Província, não querendo ser muito claro, que "se
tem dado a coincidência de tais movimentos sediciosos só terem
apparecido nas localidades em que existem muitos romeiros". Mi-
nas presenciou uma série de atentados às juntas de alistamento
em Lavras, Serro, Arrepiados, São Miguel, Catas Altas, Monte San-
to, Aterrado, Lagoa Dourada, Campo Místico, Pouso Alegre e Mu-
riaé. Em Ponte Nova, o padre João Paulo de Brito é apontado pelas
autoridades locais como o instigador dos distúrbios, tendo sido feita
uma inócua representação contra ele ao vigário capitular padre
Silvério Pimenta.
Foi grande a agitação de Serro, conforme se vê na informação
prestada ao Ministro Duque de Caxias pelo Presidente da Província,
destacando que os sediciosos rasgaram os papéis do alistamento à
189
porta da igreja "com grandes alaridos, dando foras a lei do Sorteio
e vivas à soberania e a religião catholica sem que pudesse seme-
lhante acontecimento ser obstado pelas autoridades, e antes con-
tinuando até a noite d'esse dia, em que o dito grupo incorporado
com maior numero de individuos percorreu as ruas da cidade, pre-
cedido de música e foguetaria, repetidos vivas e discursos'' 23 •
A 2 de setembro de 1875, o Presidente da Província de Minas
Gerais estava convicto que, nas agitações de sua terra, havia "um
plano de opposições politicas alimentado pela ignorancia das mas-
sas populares, e tanto mais facil n'esta provincia onde é fora do
comum o receio da vida militar". Pelo menos no que diz respeito à
segunda parte de sua observação, tinha razão o Presidente. Nin-
guém se engajava em Minas, para servir na companhia de linha, e
a convocação da Guarda Nacional reunira pouquíssima gente, ao
contrário do que acontecia no Nordeste 24 •
Fora muito intensa a atuação das mulheres mineiras nas agi-
tações de Ponte Nova e Rio Turvo. Na primeira localidade, talvez
tenham contado com uma certa cumplicidade ou, pelo menos, sim-
patia do juiz de paz, e com a declarada antipatia do promotor pú-
blico, Ângelo da Mota Andrade, que chama de mulheres de duvi-
dosa conduta a umas e prostitutas a outras. O padre João Paulo
Maria de Brito mereceu-lhe também palavras muito duras e refe-
rências à sua atuação contra o Governo Imperial. O juiz municipal
mandou prender o padre, convencido que estava da atuação sub-
versiva do mesmo. A população de Ponte Nova não perdoou o seu
promotor e incendiou-lhe a casa.
A agitação de Ponte Nova cresceu com a prisão do padre
Brito, e compreende-se perfeitamente a ira impotente do promotor
quando diz que o padre Brito "agora rebelou-se contra a lei da
conscripção, fazendo d'isso alarde e ostentação na tribuna Sagra-
da, no altar, nas ruas e praças recusando não só fazer parte da Jun-
ta, sem motivo justo e confessavel, como prestar informações e cer-
tidões que lhe eram exigidas". Para o severo representante do
ministério público, o padre Brito incitava as "mulheres desvaira-
das", e de toda agitação resultara o desprestígio da junta paroquial,
deixando-se "um attestado da ignorancia e barbarismo em que ain-
da se acha o povo d'esta cidade de uma comarca onde residem
funcionarios publicos de elevada posição" 25 •
190
Em Cabo Verde (Minas Gerais), o juiz municipal oferece
pormenorizada descrição do que sucedia em sua comarca dizendo:
"Seriam 12 horas do dia de hoje quando um bando de 200 pessoas,
quasi todas a cavallo e armadas de garruxa, espingarda e faca di-
rigiram-se para esta villa todos elles compactos e pararão em frente
a casa do cidadão Theodoro Candido de Vasconcellos, subdelega-
do de Policia e Membro da Junta de alistamento do serviço do
exército e armada. Ahi gritarão unisonos: Venhão as listas, que-
remos rasgai-as. O subdelegado vendo o grande numero de ho-
mens, sahio logo e vio que era inutil umma resistencia. Os homens
sediciosos cercarão-no logo e o conduzirão pelas ruas da Villa até
a casa do secretário da Junta, onde se achavam os papeis e livros
do alistamento. Alguns policiais que se achavão a frente da casa
do subdelegado foram desarmados pela turba multa".
Conta depois o juiz, com estilo notarial, como os sediciosos
tomaram conta da cidade, e dá os pormenores de como foi feita
uma fogueira na frente da Matriz "sendo executor desse acto o pro-
prio Secretario a quem os malvados obrigarão a fazer a fogueira
e lançar n'ella os papeis". Prometendo um- saque na coletoria, os
sediciosos retiraram-se. Eram gente conhecida, e o juiz não teve
dificuldades em saber os nomes dos chefes: José Joaquim de Oli-
veira, Mariano de Sousa, Joaquim José Teixeira, Herculano Gou-
lart, Joaquim Estêvão dos Santos Freire, Francisco José Martins,
Vicente José de Sousa Travassos, Antônio Mariano de Sousa e
José Moreira de Sousa.
Em Caldas, não foi muito diferente o que aconteceu, e, no
Serro, também houve tumultos. Percebe-se que a Lei de alistamen-
to fora, se não mal elaborada, pelo menos, mal apresentada a po-
pulações cujo horizonte social e político não passava das Comar-
cas onde viviam. As idéias de Exército, de Armada, de Pátria, tal-
vez comprometidas com os relatos a sotto voce da guerra do Pa-
raguai, eram abstrações que o cotidiano das cidades do interior
rejeitava ou passava para um segundo plano na hierarquia de seus
valores morais.
Na Bahia, em Camamu, receava-se a vinda de oitocentas pes-
soas armadas para ocupar a cidade e, em Santana do Catu, duzentos
homens armados de faca e cacetes ameaçavam as autoridades "op-
pondo-se à execução da lei do alistamento". Mesmo sem o pequeno
exército apresentado em Camamu, os sediciosos já controlavam
a cidade, porque a primeira força do Governo, que lá se dirigia,
com intuitos de manter a ordem, regressara "sob pressão do medo
191
que causava a atitude ameaçadora do povo do lugar e arredores,
em número superior a seiscentas pessoas" 26 •
Cenas mais ou menos semelhantes sucedem-se em Barcelos e
Maraú. A atitude do Governo é sempre a mesma: envia soldados,
instaura inquéritos e manda processar os cabeças.
A situação na Paraíba e nó Rio Grande no Norte não era
de tranqüilidade. O Gabinete da Presidência da Província, a 4
de setembro de 1875, informara, contraditoriamente, ao Conselhei-
ro do Estado, Duque de Caxias, que reinava a Lei na Paraíba,
e que se executava a nova Lei de recrutamento, porém que as
juntas paroquiais de alistamento funcionavam irregularmente, por
falta de pessoal e de listas dos cidadãos aptos para o recrutamento.
Aparece, nesse documento, a primeira referência à rebeldia pa-
raibana, no que diz respeito ao alistamento, ao se dizer, em tom
de desculpa, que, em geral, a população do interior rejeita o fazer-
se alistar "de forma que o trabalho é incompleto". A comunicação
dá conta, também, do que se passa em algumas Comarcas do Rio
Grande do Norte onde "a resistência popular é muito grande, com
sanguinários conflitos". Com uma promessa de que não se poupa-
ria esforços para o restabelecimento da ordem, Carneiro da Cunha.
pelo menos, admitia, com otimismo, que os meses seguintes seriam
de tranqüilidade.
As tensões que se formaram, efetivamente, avizinhavam sé-
rios problemas ao Governo Provincial. Na recusa violenta das po-
pulações norte-rio-grandenses ao alistamento, não se poderia dei-
xar de ver o efeito tardio da mecânica contestatória dos quebra-
quilos.
192
11. DO PATHOS À COMl!DIA
19J
Jornal do Recife que, após exigir punição severa para os cabeças
do movimento Quebra-quilos, registra que "em Vertentes diziam
os chefes do movimento que havia uma lei que obrigava o homem
casado a deixar um substituto em casa sempre que viajasse, sob
pena de multa de 10$ ".
A Província, como jornal combativo da oposição, amenizou,
freqüentemente, os noticiários de violências com o humor. Seus
redatores intuíam, talvez, que o ridículo era uma forte arma con-
tra o Governo, e, nos primeiros dias de dezembro, o Recife de-
liciava-se com As duas aranhas, cômica referência à ação dos co-
mandantes de polícia, Aranha Chacon, da Paraíba, e Aranha
Carneiro, de Pernambuco. O primeiro, segundo se propalava, teria
sido obrigado pelos quebra-quilos a assinar um documento em que
prometia acabar com os impostos e o recrutamento; o segundo,
acompanhara o Ministro João Alfredo no seu. regresso, um tanto
apressado, ao Recife. A versão humorística e metrificada, expon-
do-os ao ridículo, foi:
194
E trocaram os seus nomes,
Como uns animaes sem fé:
Um disse que era Carneiro,
Outro que era Cabotré.
195
THEATRO
DE
SANTO ANTONIO
Domingo 13 do corrente
(4) Mauro Mota. História em rótulos de cigarros. 2.• ed. Recife, Ins-
tituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1971, p. 42.
197
tem-se em luta desigual, pois há nas proximidades mais cinco mi-
litares.
Comparando-se a fotografia de Henrique Pereira de Lucena 5 ,
com os traços mais característicos do personagem que aparece em
quase todos os rótulos, chega-se à evidência de que foi desejo
de alguns desenhistas identificá-lo com o Presidente da Província
de Pernambuco, na época do movimento Quebra-quilos. Os rótu-
los eram críticas com gravuras caricatas sobre a vida social e polí-
tica. Lucena, como homem público, não escapou.
A imprensa liberal da Corte, a princípio, também se riu com
os problemas do Presidente da Província de Pernambuco. Joaquim
Serra, parodiando seus aflitos telegramas, publicaria na cáustica A
Reforma: "ltambé, ltambi, Itambó e Itambu, acabam de ser blo-
queados. ( ... ) Três mil homens avançam. Levam a fogo pesos
e medidas e dão pancadas sem pesos e sem medidas. ( ... ) Quei-
mam-se os arquivos. ~ preciso recompor o de Melo Morais".
Durante muito tempo, uma chita popular, estampada a preto e
a vermelho, foi chamada de quebra-quilo 6 • A designação está se
perdendo. Em 1976, um extraordinário e fantástico personagem de
Ariano Suassuna, Quaderna, nascido no litoral da Paraíba, quan-
do a parte fêmea do Mar deu um pontapé no ventre de sua mãe,
deu-nos a única visão mágica que temos do Quebra-quilos: no
sertão paraibano, comandados por seu avô, El Rei Dom Pedro II
e pelo seu primo, o infante Dom João Vieira, o Caixa Dágua, os
sertanejos reuniram-se formigantes na Serta do Bodopitá, e, se-
guindo instruções secretas do padre Calixto da Nóbrega, desceram
para Campina Grande, cuja feira invadiram, "sob o pretexto de
protestar contra o novo sistema métrico decimal, decretado pelo
governo herético do Impostor Bragantino, que ocupava indevida-
mente, no lugar dos Quadernas, o Trono do Império do Brasil" 7 •
198
12. A ESCRAVIDÃO E OS QUEBRA-QUILOS
199
diária, sempre se antepusera aos planos político-filantrópicos da
época, jogando-os no limbo das utopias sociais.
Rohan, com certa ingenuidade, recomendara o retalhamento
da grande propriedade, condição que considerava indispensável ao
desenvolvimento da lavoura, e duvidava que os fazendeiros não
compreendessem essa necessidade. O sistema da grande proprie-
dade continuou, e o regime escravista sobreviveu sustentado pelo
latifúndio indene ao moroso processo político das leis abolicionis-
tas. Em 1873, entretanto, já duvidava o próprio Governo da efi-
cácia produtiva do braço escravo. Diria o Ministro Costa Pereira,
nas vésperas do Quebra-quilos, que "o trabalho grosseiro do escra-
vo dava, em regra, um produto mal preparado". Malgrado o fra-
casso, em Pernambuco, da tentativa de substituir escravos, nos
trabalhos mais especializados, por operários alemães com a cria-
ção da Companhia de Operários, que mereceu de Marta Pimen-
tel e Emília Augusta Freire acurado estudo 2 , o que se nota é que
a força de trabalho transferia-se lentamente para o braço livre.
A escravidão, por ocasião da eclosão do Quebra-quilos, já era,
no Brasil, uma instituição em decadência. Como observou Max
Weber, a escravidão somente é rendosa, quando se a obtém comes-
trita disciplina; vai associada a uma explosão implacável, e reúne,
entre outros requisitos, a possibilidade de se procurar escravos e
alimentos a baixo preço, e de se desenvolver uma cultura depreda-
tória que, por sua vez, requer disponibilidades ilimitadas de terra.
Na madrugada do último quartel do século XIX, já não havia,
de modo geral, no Nordeste, ambiente para adoção desse estágio
escravocrata. Não foram mais brandas do que as características
apontadas por Weber as situações vividas anteriormente pelos es-
cravos no início da colonização, e, por isso, entre outros condi-
cionamentos, a vingança africana cultivaria, lentamente, nos lati-
fúndios nordestinos, a criminalidade e a revolta.
Ao desarticular as sólidas estruturas sociais da casa-grande,
a invasão holandesa possibilitara, a grande número de escravos, a
fuga para aldeamentos no interior, protegidos pela natureza e pelo
medo dos brancos. Os quilombos são conseqüência histórica dessa
desarticulação senhorial, de seu comércio interno e externo, opção
entre a continuidade da submissão resignada das senzalas e a li-
berdade.
200
A nossa cultura latifundiária, de base escravocrata, trouxera
no próprio seio o gérmen de sua decomposição. Porém, a aristo-
cracia rural, que se diria desarticulada e desmontada, lentamente
se recompusera após a expulsão dos holandeses. A liberdade obtida
pelo escravo, no Nordeste, durante a ocupação flamenga, embora
precária e transitória, resultado de uma crise, constituíra um mo-
vimento coletivo, de massa. O quilombo dos Palmares, que cres-
ceu em torno de um pequeno refúgio de negros evadidos do cati-
veiro, desenvolvera-se extraordinariamente com a conquista holan-
desa, do mesmo modo que o quilombo da Carlota coincidiu com
a exaustão das minas de Mato Grosso. Os quilombos tiveram, pois,
um momento determinado, como assinalou Edison Carneiro 3 • O
Quebra-quilos, rebelião primitiva que é, oferece entretanto dificul-
dades de comparação com revoltas negras. Não é uma revolta de
escravos e, sim, de homens livres. Aparecem negros e mulatos en-
tre os quebra-quilos, porém a liberdade, tão desordenadamente pro-
curada com a destruição de papéis cartoriais, é mais conseqüência
do que causa.
Na Paraíba, os escravos viram no Quebra-quilos a oportuni-
dade de sua redenção. Raimundo Teodorico José Domelas, per-
nambucano que, em 1874, residia em Campina Grande, muito de-
talhadamente, nos autos das perguntas, que lhe foram feitas por
Caldas Barreto, narra que: "no dia vinte e nove forão cercadas as
casas do sitio Timbauba, distante duas legoas desta cidade, por um
grupo de trinta a quarenta escravos todos armados; n'essa casa
achava-se ele, respondente, com a sua familia e foram forçados
pelos mesmos escravos a vir a esta cidade com outras pessoas onde
se achavam em Timbauba, para onde se haviam refugiado recei-
osos dos sediciosos, a fim de lhes entregar o livro da liberdade,
que eles forçados como estavão prometterão entregar; que na via-
gem vinhão as pessoas de Timbauba montadas à cavallo, tendo a
anca um escravo armado e que encerrava a marcha o famigerado
escravo Firmino, criminoso de morte e de propriedade de Alexan-
drino Cavalcanti de Albuquerque, prompto a disparar a arma so-
bre aquelle que correse; que chegando a esta cidade pelo estado de-
clarado, forão levados até d'elle respondente e ali se apoderarão
os mesmos escravos do livro de classificação de escravos e levarão
ao dito Vigário Calisto para lei-o, por ser pessoas em que elles
201
confiavão, e que ali chegando declarou-lhes o vigario que não exis-
tia livro contra sua liberdade"'·
Aderbal Jurema 5 , em seu livro Insurreições negras no Bra-
sil, oferece detalhes dessa insurreição. Fora o negro Manuel do
Carmo que dera o grito de revolta, e mais de trezentos escravos o
seguiram à casa-grande do engenho Timbaúba, onde se encontra-
va o Presidente do Conselho, Bento Gomes Pereira. Dizem-lhe que
querem "o livro da emancipação onde estavam pintados os es-
cravinhos novos", e recebem como suposto atendimento um livro
qualquer. Sem saber ler, estavam sendo facilmente enganados. Jul-
gando-se livres, levaram à força, para Campina Grande, todas as
pessoas que se encontravam no engenho Timbaúba.
Ao chegarem à cidade, o padre Calixto da Nóbrega disse-lhes
que a liberdade não lhes poderia ser dada por aquelas pessoas.
Compreenderam os escravos o engano de que haviam sido vítimas,
porém não desanimaram, e o grupo de Manuel do Carmo conti-
nuou a crescer com inúmeros adeptos que a ele se juntaram, cons-
tituindo-se, assim, uma força respeitável. Para combatê-los, os fa-
zendeiros da região arregimentaram-se, e sob a chefia de Belarmino
Ferreira da Silva, latifundiário de Cacimbas, marcharam sobre
Campina Grande onde estavam reunidos os homens de Manuel do
Carmo. Temerosos do que podia lhes suceder, os escravos, sem
praticar desordens ou depredações, debandaram e internaram-se,
divididos em grupos, no sertão.
Uma perspectiva ampla das lutas sociais na história brasilei-
ra aproximará certamente o movimento Quebra-quilos da Balaiada,
reunindo seus negros e camponeses pobres na província enfraque-
cida pelas lutas e rivalidades entre duas facções políticas, os bem-
te-vis (oposicionistas e liberais) e os cabanas (governistas e con-
servadores). O seu momento é a crise que Milet 6 percebeu e que
os Presidentes das Províncias de Pernambuco e da Paraíba não
esconderam.
202
13. DE CANUDOS AO IMPOSTO DO VINTEM
(1) Os sertões. 19.' ed. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, s.d.,
p. 180.
203
portanto, o chefe dos jagunços com os sertanejos que participaram
do Quebra-quilos, e seria razoável admitir-se a influência destes
no seu ideário de rebeldia. Se tem razão Antônio Freire, quando
diz que faltou ao movimento do Quebra-quilos um Euclides da
Cunha, não é menos verdade que faltou aos quebra-quilos, corno
sediciosos, um Antônio Conselheiro.
Em fevereiro de 1897, O Paiz, que se publicava no Rio, e
era, provavelmente, o jornal de maior circulação na época, destaca-
va horrorizado que "a fama e o poder de Antônio Conselheiro in-
crementaram-se de modo estraordinário", e que o chefe dos ja-
gunços "começou açulando o povo a não pagar impostos". As in-
formações de O Paiz têm concordância com o relatório do Chefe
de Polícia da Bahia, redigido após a campanha de Canudos, que
esclarece diariamente: "impediam a mão armada a cobrança de
impostos".
A queima dos editais da Câmara por Antônio Conselheiro
custou-lhe a primeira repressão armada, empreendida por um des-
tacamento de trinta soldados da polícia militar, na localidade de
Massete, aliás totalmente fracassada, em virtude de seu desmora-
lizante término, a fuga desordenada dos militares. Isso lhe valeu o
"anti-republicanismo", que lhe foi atribuído pelos jornalistas e
políticos da época. Antônio Conselheiro, porém, foi tão monarquista
corno os quebra-quilos filojesuítas. Houve, quando muito, vagas
dependências ideológicas, resultantes, tão-somente, de urna certa
convergência de interesses, nem sempre pressentida pelo Conse-
lheiro ou pelos quebra-quilos.
Frades capuchinhos tentaram, sem nenhum resultado, realizar
um trabalho de apaziguamento e catequese entre os discípulos de
Antônio Conselheiro. Em 1874, por ocasião do movimento Que-
bra-quilos propusera-se a Ordem a colaborar com o Governo, e
o Intendente-interino da Guerra, João José de Oliveira Junqueira,
recomendara ao Presidente da Província de Pernambuco que ani-
masse aqueles missionários a continuarem no propósito de pacifi-
cação dos sediciosos, acrescentando que, da Bahia, seguiria frei
Afonso de Bolonha "para empregar-se n 'esse louvavel mister" 2 •
Aos republicanos menos esclarecidos, ainda temerosos de urna
restauração monárquica, a rebeldia às leis da República - sobre-
tudo as que cobravam impostos - só poderia ser, por antinomia,
204
um perigoso monarquismo. E o mesmo simplismo político aplicado
aos quebra-quilos, que se rebelaram contra a dura exação do Im-
pério; nada, aparentemente, foi mais lógico aos donos do poder,
em 1875, do que vinculá-los, de modo global, aos ressentimentos
jesuíticos malferidos na questão dos bispos de Olinda e do Pará.
No primarismo de seu ideário político-religioso, vindo, como
diria Euclides, do "tirocínio brutal da fome, da seca, das fadigas,
das angústias recalcadas e das misérias fundas", Antônio Conselhei-
ro, por antinomia, também, antepôs à República, que o perseguiu,
a única forma de governo que conhecia, e na qual nascera: a mo-
narquia. A primeira seria a "lei do cão", e a segunda uma fór-
mula mítica, irreal e coroada, em muito semelhante àquela outra
que, vinte anos antes, alguns quebra-quilos, genérica e vagamente,
chamaram de "soberania do povo".
As duas décadas que separam os quebra-quilos de Pernambu-
co e da Paraíba dos jagunços de Canudos, constituem etapa lógica
de uma época de mudança econômica e social, um ciclo que che-
ga ao seu término. Mais importante, talvez, do que o câmbio Mo-
narquia-República foi, para o Nordeste, a mudança do centro de
gravidade econômica do País, transferido para o Sul. Por mais de
três séculos, baseara-se sua agricultura no braço escravo, agora
contestado em eficiência pelos trabalhadores livres das fazendas
de café. O Nordeste, com sua tradicional estrutura latifundiária
e escravocrata, foi perdendo terreno em todos os setores; até mes-
mo uma grande parte de seus escravos seria absorvida pela bem-
sucedida empresa de café sulina. A parcela de economia nordestina
que conseguia sobreviver era a agro-indústria açucareira, come-
dora de terras e sujeita a graves crises periódicas.
Os pesados tributos cobrados à massa nordestina, nos idos
de 1874, possivelmente explicam um dos aspectos etiológicos mais
complexos do Quebra-quilos. Os impostos, quando excessivos, ou
mesmo quando, a nível razoável, são cobrados em épocas de cri-
se, constituem o trovejar anunciador de revoltas, sedições e violên-
cia social. Ao homem da grande massa anônima, que forma a
quase totalidade da sociedade brasileira dos fins do século XIX,
o fisco representou o monstro todo-poderoso do Estado a devorar-
lhe a minguada economia.
Essa colocação será válida também em outras situações históri-
cas. Cinco anos depois dos graves acontecimentos de 1874, por
exemplo, a Capital do Império assistiria a um epílogo tardio da
ampla contestação popular à política econômica e social do Go-
205
vemo. Depois da seca de 1877, a situação do País piorara visivel-
mente, e os efeitos do declínio econômico eram, naturalmente, mais
vividos pelo homem comum, pelo funcionário modesto, pelo pe-
queno comerciante e pelo "jornaleiro", designação genérica dos
assalariados, da época. O câmbio acusava baixas, que, publicadas
nos jornais, agravavam também a insatisfação da burguesia mercan-
til exportadora de produtos tropicais primários, sem, contudo, en-
fraquecê-la.
A contestação popular apresentou a síndrome da violência,
quando o Ministro da Fazenda, Afonso Celso, determinou a co-
brança de uma taxa nas passagens de bondes, o que obviamente
atingiria milhares de pessoas que os usavam. A própria Botanical
Garden Railroad Co., empresa americana que explorava o serviço
de carris urbanos no Rio, compreendeu que seria prudente suge-
rir ao Governo que a cobrança do imposto fosse feito diretamente
à Companhia, numa estimativa proporcional ao número de passa-
geiros que se serviam de seus veículos, ou seja, a quantia de
120.000$000, pagável em parcelas mensais de 10.000$000. Desse
modo a população não seria diretamente atingida por mais um
tributo. As outras companhias, entretanto, não queriam ou não
se achavam em condições para assumir a nova responsabilidade, o
que fatalmente resultou na determinação legal de que o imposto
deveria ser pago pelo público. Assim, a partir de 1.0 de janeiro
de 1880, data em que o novo tributo deveria entrar em vigor, quem
fizesse um percurso nos bondes do Rio de Janeiro era devedor não
somente da passagem nonnal mas também do respectivo imposto.
Nos últimos dias de dezembro o Ministro da Fazenda já ga-
nhara a alcunha de "Afonso Vintém", e a imprensa oposicionista
recebera material bastante explosivo para alimentar comícios e
manifestações populares contra a nova tributação. Uma multidão,
aproximadamente quatro mil pessoas, dirigiu-se ao Paço de São
Cristóvão, com o intuito de entregar ao Imperador um memorial,
no qual se pedia a revogação imediata do imposto, medida que se
justificava pelo pesado ônus que este representava na baixa renda
da maioria dos habitantes da Capital do Império.
A guarda do Paço impediu que os líderes da marcha popular
tivessem acesso ao Imperador, e isso nada mais fez que agravar
descontentamentos. No dia 1.0 de janeiro, o policiamento da Ca-
pital fora aumentado, e as forças de linha distribuídas em locais
de grande movimento ou junto às estações. De nada valeram essas
providências. A população irada iniciou uma incontrolável obstru-
206
ção nas linhas e a depredação dos bondes; os mais exaltados arran-
cavam os trilhos e municiavam-se com pedras deslocadas do cal-
çamento. O coronel Antônio Galvão foi atingido por uma pedrada
e seus soldados reagiram a bala matando alguns manifestantes.
O tumulto transformara-se numa revolta popular e, durante
vários dias, o comércio não se atreveu a abrir as portas. Os poucos
carris, que trafegavam na cidade, iam sempre guarnecidos com
soldados, que asseguravam a cobrança do imposto com a ponta da
baioneta. A partir do dia quatro foi-se normalizando a vida da
cidade, porém incidentes isolados, que podem ser acompanhados
pela imprensa da época, repetem-se constantemente. A impopulari-
dade dos ministros Sinimbu, Afonso Celso e Lafayette era visível,
e o próprio Imperador não escapou à irreverência do povo insatis-
feito, que o satirizou numa divulgadíssima música-protesto, cujo tí-
tulo, "Pedro Banana", indica perfeitamente o seu conteúdo debo-
chado.
Pedro II diria, em uma de suas cartas, que os mais exaltados
eram os "jornaleiros", e reconheceria que a instituição do imposto
fora inoportuna. Porém, jamais deveria, o Governo, ceder ante a
ameaça popular, segundo o seu majestático entendimento. Como em
outras oportunidades, faltou-lhe a sensibilidade política necessária
para tirar partido de uma resolução ministerial infeliz, e restaurar
seu prestígio junto ao povo, que olhava ·com desconfiança uma Co-
roa que encarcerava bispos, e que, na sua falta de visão política,
repetia, cuidadosamente, os mesmos erros.
207
LEITURAS COMPLEMENTARES
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