Aprendizagemescrita Ideograma
Aprendizagemescrita Ideograma
Aprendizagemescrita Ideograma
São Paulo
2015
MÔNICA LIE MARUYAMA
São Paulo
2015
MÔNICA LIE MARUYAMA
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho
Instituto de Artes - Orientadora
__________________________________________________________________
Prof. Mestre em Artes Visuais Guilherme Nakashato
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de São Paulo
São Paulo
Data da aprovação
25 de novembro de 2015
Agradeço e dedico este trabalho:
À minha mãe, por povoar nossa casa de amor,
espiritualidade, livros e arte, suas paixões.
Aos meus irmãos, pela infância mágica e criativa.
Ao meu pai, por sempre fazer o seu máximo.
Às minhas avós, mulheres admiráveis, pela
resistência travestida de resignação.
Aos amigos, por serem grandes companheiros de
descobertas.
À minha orientadora, que construiu comigo o rumo
deste trabalho.
Ao Joaquim e Thiago, pelo hoje feliz.
Lista de ilustração
Introdução..............................................................................................................7
1 Desconstruindo o mito da alfabetização..............................................................10
1.1 A importância do ato de ler..................................................................................11
2 Aquisição de linguagens: evolução dos sistemas de representação..................13
2.1 A pesquisa de Analice Dutra Pillar......................................................................14
2.2 A evolução do desenho infantil............................................................................15
2.3 Aquisição da linguagem escrita...........................................................................17
2.4 Resultados da pesquisa de Analice D. Pillar.......................................................18
2.5 A complexidade da escrita..................................................................................19
3 Entre a escrita e o desenho: os ideogramas japoneses.....................................22
3.1 A atividade proposta............................................................................................23
3.2 O desenvolvimento do jogo e os resultados........................................................27
4 Ideograma e o desenho infantil...........................................................................38
4.1 O pensamento impresso nos ideogramas...........................................................40
5 Considerações Finais..........................................................................................45
Referências.........................................................................................................51
Anexo A...............................................................................................................53
Anexo B...............................................................................................................54
Apêndice A..........................................................................................................55
Resumo
The aim of this paper is to gather research information and studies posted about the
importance of social environment in the development of symbolic systems on
children. Languages verbal, visual and written are interrelated representation
systems, although each one has its own characteristics and elements. The objective
of this paper is to elucidate the importance of linking the various existing types of
language and therefore the importance of a coordinate approach also in the
teaching-learning situations of these systems. The work also intends to disclose how
thin is the line that separates writing of drawing, both of them as representative
systems. As well as to show how visual information and language are intrinsically
linked as thought happens by the connections between them. The work includes the
report of an activity with Japanese ideograms done in the author’s teacher’s training
at formal education. It also approaches pictographic, creative and poetic aspects of
ideograms that brings up new ways of thinking and representing symbolically just like
the methods of artistic language.
7
Introdução
Foi durante o estágio formal que cumpri na E.E. Cel. Raul Humaitá que a questão da
alfabetização me tocou. Mesmo sendo estagiária de artes, não pude ficar indiferente
a essa questão. Conheci alguns alunos que no terceiro e quarto anos do ensino
fundamental, com idade entre 8 e 10 anos, não sabiam ler e escrever. Em uma aula
de artes, eles estavam resolvendo um caça-palavras com nomes de instrumentos
musicais e duas meninas circularam letras aleatórias. Achei estranho e questionei o
motivo disso. Uma colega que estava próxima logo disse que elas não sabiam ler e
escrever. Isso me chocou porque eu sempre estudei em escola particular, e não
conhecia essa realidade, apenas ouvia falar.
1. Nível pré-silábico é um dos níveis da escrita segundo Emília Ferreiro, conforme pág. 15.
2. Garatujas são desenhos produzidos por crianças que se encontram no nível do realismo fortuito do
desenho infantil segundo Luquet, conforme pág.13.
8
os colegas faziam de seus desenhos. Infelizmente a professora permitiu que ele não
fizesse nada na aula de artes e ele passava a aula com a cabeça recostada na
carteira.
Fiquei triste por ela ter “desistido” do menino, pois acredito que nessas horas o
educador tem que buscar uma solução, usar sua criatividade, conversar com outros
educadores, com os pais, tentar alguma atividade diferente para aquele aluno e
fazer o possível para integrá-lo às atividades e ao grupo.
Essa experiência me fez pensar nos meus primeiros anos na escola em que fui uma
boa aluna e acredito ter aprendido tudo ou quase tudo o que queriam me ensinar na
escola. Nessa fase da infância eu me lembro de ter muitos livros em casa. Eu
adorava ler e não tinha dificuldades na escola. Mas a partir dos 14 anos fui me
distanciando da escola. Talvez porque aquele conteúdo abordado em sala de aula
não conversasse mais com minhas experiências, minhas questões e meus anseios.
Acredito que, como muitos adolescentes, foi nessa fase que comecei a me
questionar sobre o sentido da vida, “por que as coisas são assim?”, “por que não
podem ser diferentes?”, etc. E infelizmente a educação formal da maioria das
escolas brasileiras ignora esses questionamentos dos jovens, o que acaba cavando
um abismo entre o jovem e a escola. Comigo foi assim. Afastei-me da escola,
recusando-me a aprender o que queriam me ensinar. Talvez por isso o desenho se
tornou uma válvula de escape a partir daquele momento. Mesmo tendo o desenho
como um instrumento da minha inconformidade com as coisas, as minhas questões
não deixaram de existir. Faltavam-me palavras para organizar pensamentos e
sentimentos. Essas preciosas palavras, essas que possibilitam calibrar os
pensamentos, acredito que encontrei só mais tarde, ao longo dos anos, através de
amigos com quem conversei sobre tudo (ou quase tudo) e também através de livros
onde encontrei algumas de minhas ideias e sentimentos escritos por outras pessoas.
a professora me mostrou uma foto de uma viela e me perguntou como era esta rua.
Respondi prontamente “fino” e ela me corrigiu dizendo “estreito”. São esses
inúmeros sinônimos da língua portuguesa que nos permitem calibrar os
pensamentos. E esse aprendizado só se adquire lendo e exercitando a construção
de uma linha de pensamento através da escrita.
Sobre os livros, posso citar o livro Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. Esse
livro foi um grande marco, pois enquanto eu lia Os Lusíadas na escola (estava no
primeiro colegial, atual primeiro ano do Ensino Médio), resolvi ler esse livro que
sempre esteve na estante de casa (aquisição de minha mãe). Então descobri nele a
possibilidade de uma literatura diferente daquela da escola e que me interessava
muito mais. Também através de livros e de amigos conheci assuntos com os quais
me identifiquei, como a ideia de anarquismo como uma possibilidade de sociedade
ou a ideia de imanência de Spinoza, que contradiz a existência de um Deus
transcendente ou a ideia de sociedade líquida de Zygmunt Bauman. Assuntos da
cultura que diziam muito a respeito das minhas questões pessoais. Por isso,
reconheço a importância da alfabetização como sendo o primeiro passo de uma
longa caminhada. Uma caminhada na companhia das palavras.
10
O que Harvey J. Graff1 (1995) aponta através de suas pesquisas é que esse índice
de alfabetização contabiliza a parte da população que domina o sistema alfabético,
ou seja, pessoas alfabetizadas que podem assinar documentos, entre outras coisas,
mas não necessariamente têm o hábito da leitura ou de alguma produção literária.
Graff afirma que apenas alfabetizar um indivíduo não é garantia que este venha a se
tornar uma pessoa mais consciente, crítica ou participativa na vida em sociedade,
etc.
Graff considera que a escrita pode ser um mero acidente evolutivo: o Homo sapiens,
como espécie, vem evoluindo há cerca de um milhão de anos, sendo que a arte
rupestre, que indica a capacidade simbólica, surgiu há cerca de 30.000 anos e a
escrita, há cerca de 5.000 anos. Ele afirma que a comunicação verbal é uma
capacidade evolutiva que foi incorporada aos nossos genes, pois ao longo da
evolução foi um fator seletivo para a sobrevivência de nossa espécie, ou seja,
aqueles indivíduos que possuíam essa capacidade da comunicação verbal foram
Graff segue afirmando que a linguagem escrita ainda não foi incorporada aos nossos
genes, pois se trata de um fator recente, que ainda não atingiu tempo suficiente para
ter se tornado ou não um fator de seleção natural da espécie humana. E a
alfabetização ocidental, que se propõe como a democratização da escrita, existe
desde aproximadamente o ano 600 a.C., o que corresponderia a apenas 0,26% do
tempo de existência da espécie humana.
A alfabetização por si só não pode ser considerada solução para a violência ou para
uma economia subdesenvolvida. Porém ainda é o passo inicial para o indivíduo ter
12
acesso a uma grande fatia da cultura e do conhecimento humano que até o presente
momento se encontram disponíveis no meio literário.
“Nossa análise atribui à atividade simbólica uma função organizadora específica que
invade o processo do uso de instrumentos e produz formas fundamentalmente
novas de comportamento.” (VYGOTSKI, 2003, p.32). Todas as formas de atividade
simbólica, portanto, são capazes de tal interferência na atividade cognitiva e
1
. Lev Vygotski (1896-1934) foi um importante psicólogo bielo-russo que atribuiu grande importância
às relações sociais no desenvolvimento humano. Seus estudos deram origem à corrente pedagógica
chamada socioconstrutivismo ou sociointeracionismo. Discordava da teoria epistemológica de Jean
Piaget, que enfatizava mais os processos internos dos indivíduos no processo de desenvolvimento e
aprendizagem. Apesar das divergências, muitos estudiosos reconhecem as importantes contribuições
de ambos os autores e acreditam na conciliação de suas obras.
2
Jean Piaget (1896-1980) foi um importante biólogo suíço que criou um campo de investigação
científica denominada epistemologia genética. Submeteu o processo de aquisição de conhecimento
de indivíduos, em particular as crianças, à observação científica. Suas pesquisas influenciaram tanto
a psicologia como a pedagogia.
14
A pesquisa contou com dois grupos de crianças do primeiro ano de uma escola
pública de Porto Alegre. No grupo A, as crianças desenvolviam atividades de
alfabetização e de desenho sistematicamente e em proporções semelhantes. Ambas
as atividades recebiam a mesma importância. Já no grupo B, as crianças tinham
mais atividades de alfabetização do que de desenho. As crianças foram submetidas
a 03 entrevistas individuais ao longo do ano letivo para acompanhar o
desenvolvimento do desenho e da escrita. Nas entrevistas, o entrevistador lia uma
história para a criança. Em seguida era dada uma folha de papel e materiais gráfico
1
Analice Dutra Pillar realizou Estágio de Pós-Doutorado em Artes na Facultad de Bellas Artes da
Universidad Complutense de Madrid, Espanha. Atua como professora na graduação e no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS, orientando Mestrado e
Doutorado na área de Educação e Artes Visuais. Também é especialista em Alfabetização de
Classes Populares e coordena o Grupo de Pesquisa em Educação e Arte (GEARTE/UFRGS/CNPq).
2
PIAGET, Jean. A formação do símbolo da criança: Imitação, Jogo e Sonho, Imagem e
Representação. Tradução: Álvaro Cabral e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 1978.
15
como canetas hidrográfica, lápis de cera ela era convidada a desenhar o que
quisesse. Não era imposto que se desenhasse algo relacionado à história lida. Em
seguida havia um pequeno ditado de algumas palavras e de uma frase. E em
algumas entrevistas a criança também podia escrever algo livre ou relacionado ao
seu desenho. Nesta pesquisa, foram tomados por base os níveis de desenho
categorizados por Luquet e os níveis de escrita categorizados por Emília Ferreiro,
conforme os dois tópicos que seguem.
1
Georges Henri-Luquet (1876-1965) foi um filósofo francês que em sua tese de doutorado em Artes
teve como tema o desenho infantil (1913). Sua tese se baseou na observação de mais de 1700
desenhos de sua filha coletados durante 10 anos. Suas teses influenciaram a psicologia do
desenvolvimento e consequentemente a pedagogia. Também dedicou estudos à antropologia e
etnologia, focados no desenvolvimento da comunicação por imagens e na arte primitiva.
16
Por último vem o estágio do Realismo Visual, no qual a criança busca desenhar
aquilo que vê, ou seja, pode chegar a interpretar e representar a perspectiva e as
relações espaciais, caso seja iniciada nestes códigos.
17
Silábico-alfabético: a criança constata que apenas uma grafia para cada sílaba não é
suficiente. Começa a analisar por sílabas e fonemas. Assim oscila entre representar
cada fonema por um grafema e uma sílaba inteira por um grafema, dependendo da
situação.
1
Emília Ferreiro é psicolinguista argentina que estudou os mecanismos do aprendizado da leitura e
escrita baseada nos mecanismos de assimilação e reacomodação dos esquemas internos deduzidos
por Piaget. Suas publicações em meados dos anos 80 revolucionaram a pedagogia, levando os
educadores a reverem seus métodos.
18
Em relação à escrita, apesar da maioria das crianças ter atingido ao longo do ano o
nível Alfabético, os resultados apontam que algumas crianças, de ambos os grupos
pesquisados, mesmo tendo atingido o nível do Realismo Intelectual de desenho,
atingiram somente os níveis Pré-silábico, Silábico ou Silábico-alfabético de escrita.
Posso citar o exemplo de um indivíduo do Grupo B que na primeira entrevista se
encontrava no nível da Incapacidade Sintética do desenho e no nível Pré-silábico da
escrita. Na segunda entrevista, já se situava no nível do Realismo Intelectual do
desenho, mas se manteve no nível Pré-silábico da escrita. E na terceira entrevista
se manteve como na segunda. Outros dois indivíduos, também do grupo B, se
situavam no nível do Realismo Intelectual do desenho e no nível Pré-silábico da
escrita e assim se mantiveram na segunda e terceira entrevistas, sem evoluírem na
aquisição da escrita. (Anexo B)
1
Leonor Scliar-Cabral é doutora em Linguística pela USP e coordena grupos de pesquisa em
linguística e projetos de combate ao analfabetismo funcional.
21
Conclui-se com isso que a linguagem escrita merece especial atenção por toda a
complexidade do seu aprendizado, e reconhecer a evolução do desenho como um
precedente necessário para a aquisição da linguagem escrita é imprescindível para
se pensar num programa de ensino que reconheça as atividades artísticas como
fundamentais para o desenvolvimento das capacidades cognitivas e motoras da
criança.
22
Por ter sido pouco o tempo no nihongakko e por minha pouca idade, não cheguei a
estudar os kanjis, os ideogramas japoneses. Estudei apenas o hiragana e katakana,
que são os alfabetos silábicos japoneses. Essa reaproximação com a língua
japonesa, em especial com os ideogramas, aconteceu por acaso durante o estágio
formal realizado na escola estadual de ensino fundamental I Raul Humaitá. Alguns
alunos demonstraram muita curiosidade pela cultura japonesa, sempre me
perguntando como se dizia isso ou aquilo em japonês e perguntando sobre o
significado de nomes de personagens de desenhos animados japoneses e comidas.
Certo dia, uma aluna do quinto ano insistiu para que eu ensinasse japonês para sua
turma. Então conversando com Lúcia, professora de artes daquela turma, chegamos
a conclusão que seria interessante abordar os ideogramas japoneses que, sendo
representações pictográficas de palavras, possuem relação com a arte, e o tema
23
conversava também com o que eles estavam vivenciando nas aulas de artes
naquele momento, que era a pixação, alfabeto pixo, estilização de letras e tags.
Grupo Sol - Sol, Manhã, Amanhã, Lua, Brilhante, Bom/Próspero e Cristalino. (Figura
1)
Grupo Natureza - Árvore, Floresta, Selva, Água, Rio, Montanha e Raiz. (Figura 2)
Grupo Mulher/Homem - Mulher, Barulhento, Paz, Tranquilidade, Senhora, Homem e
Força. (Figura 3)
Grupo Corpo Humano - Boca, Olho, Coração, Mão, Pele, Pensar e Dizer. (Figura 4)
Grupo Pessoa - Pessoa, Prisioneiro, Grande, Gordo, Cachorro, Corpo e Fogo.
(Figura 5)
24
Em cada sala, a turma foi dividida em 06 grupos, cada grupo recebeu um envelope
contendo as cartas com os ideogramas e seus significados em português. Cada
envelope continha em média sete ideogramas. Antes de abrirem os envelopes, falei
rapidamente que a escrita por ideogramas era baseada no desenho daquilo que as
palavras representavam e que cada ideograma correspondia a uma palavra. Então
pedi para que abrissem os envelopes e relacionassem cada ideograma com uma
das palavras contidas no envelope que receberam.
O jogo foi bem aceito pelos estudantes. A partir do repertório deles, foram atribuindo
os significados aos ideogramas, de uma maneira muito lógica e intuitiva. Em alguns
momentos houve divergência de opiniões entre os integrantes do grupo a respeito
de qual ideograma correspondia a tal palavra. Essas situações foram resolvidas com
muito diálogo, um tentando convencer o outro do seu ponto de vista ou se ainda não
se resolvesse assim, faziam uma pequena votação entre os integrantes para decidir
qual ideograma seria atribuído a tal palavra.
Começando pelo Grupo Sol (figura 7), podemos observar uma lógica intuitiva nas
atribuições de significados. Foi anunciado ao grupo o ideograma Sol e, a partir disso,
deduziram que a Lua seria o ideograma mais parecido com o Sol, com apenas uma
pequena diferença, que é o traço horizontal abaixo da figura central. À palavra
Brilhante, eles atribuíram a figura que para eles lembrava o Sol irradiando os raios.
Podemos observar na figura os traços verticais que se prolongam levemente para
baixo do último traço horizontal. À palavra Manhã eles atribuíram a figura que
representava para eles um sol sobre prédios, como se estivesse nascendo naquela
paisagem. À palavra Cristalino, a figura do Sol + Brilhante (interpretação posterior
28
Aqui irei expor os resultados de dois Grupos Árvore, pois obtivemos alguns
resultados semelhantes que vale a pena mencionar. Ao Grupo Árvore nº 1 (figura 8),
foi anunciado o ideograma Árvore. A partir disso, as participantes fizeram suas
relações. À palavra Montanha, elas atribuíram a figura que lembrava dois cumes,
como conhecemos de fotos e pinturas de paisagem. À palavra Floresta, atribuíram a
figura que para elas era uma paisagem de árvores. À Selva, elas atribuíram a figura
que lembrava uma planta brotando do solo. Porém cabe ressaltar aqui que essa
figura é o ideograma Raiz de ponta-cabeça. Elas não prestaram atenção na
informação no verso da carta, que era a pronúncia do ideograma em letras
românicas. Curiosamente, mesmo ignorando essa informação, elas utilizaram os
outros ideogramas com a orientação correta. À palavra Raiz, atribuíram a figura que
lembrava as raízes debaixo da terra, como nos desenhos dos livros didáticos. Note
29
que a figura (que na realidade é o ideograma Rio) são três traços em ordem
crescente e que têm a extremidade superior começando do mesmo ponto. Para
elas, esse detalhe, essa linha imaginária, representava o solo. Ao Rio, atribuíram a
figura que lembrava o encontro de rios, como na vista topográfica que conhecemos
dos livros didáticos de geografia e história. E à Água, atribuíram a imagem que
restou, disseram que foi por eliminação, mas que lembrava uma fonte de água, um
chafariz.
Ao Grupo Árvore nº 2 (figura 9), o ideograma Árvore não foi informado. Os alunos
atribuíram ao ideograma Árvore a palavra Raiz, pois para eles o traço na horizontal
seria o solo e as partes abaixo deste traço, a raiz. O que faz muito sentido. À palavra
Montanha, atribuíram a figura que para eles lembra uma paisagem de montanhas.
As palavras Água e Rio ficaram com os ideogramas trocados. Isso porque o
ideograma Água realmente se originou a partir da pictografia de um rio em curso,
mas posteriormente tomou a forma que lembra mais a vista topográfica do encontro
de rios e o ideograma Rio se manteve mais próximo da imagem do rio em curso. À
palavra Selva atribuíram o ideograma Montanha de ponta-cabeça. Disseram que a
figura lembrava cipós. À palavra Árvore atribuíram a figura com dois elementos, que
para eles eram árvores. Interessante que, como não foi informado o ideograma
Árvore, eles o atribuíram à palavra Raiz, pois o que parece estar em destaque é
30
realmente a parte inferior. E a figura com duas árvores remetem mais à silhueta
longilínea que pertence ao nosso repertório visual.
Figura 9 – Resultados do Grupo Árvore nº 2
da mãe, da mesma maneira que são aqueles símbolos dos banheiros públicos: a
figura feminina de saia e a figura masculina sem nenhum adereço.
Aos dois grupos Corpo Humano foi informado o ideograma Boca. Como olho e boca
são elementos do rosto e ambos são cavidades, o grupo Corpo Humano nº 1 (figura
15) associou à palavra Olho o ideograma mais parecido com boca, com formato
quadrado porém com os traços que se cruzam no meio do quadrado, representando
a íris do olho. À palavra Dizer atribuíram a imagem que lembra uma boca com os
traços na parte inferior que representam para o grupo algum som sendo emitido.
Notem que o grupo Corpo Humano nº 2 (figura 16) fez a mesma associação, sendo
que o grupo nº 2 foi mais além, invertendo a posição da figura, que tornou mais clara
a ideia de som sendo emitido. Como já comentamos anteriormente, esses traços
são um artifício muito usado em HQ’s, mangás, cartoons, tirinhas, etc. para
representar som ou espanto.
O grupo Corpo Humano nº 1 (figura 15) atribuiu à palavra Pensar a imagem que o
grupo interpretou como sendo duas cabeças, a primeira pensando, cheia e a
segunda, vazia, sem pensar. Já o grupo nº 2 (figura 16) atribuiu à palavra Pensar a
figura que lembrava um cérebro.
Após essa etapa, alguns alunos de grupos onde eu já havia feito a correção e
comentários acompanhavam os grupos seguintes. Algumas crianças também
aproveitaram para copiar alguns ideogramas em seus cadernos de Arte.
O objetivo do jogo era apresentar uma forma diferente de escrita, onde as palavras
são representadas por um único símbolo gráfico, diferente da nossa escrita, onde
cada som é representado por um símbolo gráfico e a possibilidade de através de
símbolos de objetos concretos criar significados abstratos. Também foi interessante
observar essas questões do repertório visual dos alunos que influenciou bastante
nas escolhas que fizeram.
Acredito que a atividade não tem diretamente relação com a alfabetização, mas
indiretamente tem relação com o ensino e aprendizagem de línguas, pois na
atividade foi abordada a origem e o contexto social daquela escrita. Também foram
abordados aspectos culturais, como a adoração ao Sol e a questão de gêneros. E
isso seria bem-vindo também no ensino de qualquer língua, tornando o ensino
menos mecânico, apenas focado nas regras gramaticais e ortográficas.
37
Como o contato dos alunos ficou restrito aos ideogramas de seu grupo, resolvi criar
um pequeno zine com os ideogramas da atividade para todos os alunos tivessem
acesso a todos os ideogramas. No zine, apresentei brevemente a origem da escrita
e inseri os comentários que fiz durante a atividade. O zine foi muito bem recebido
pelas crianças. Em uma turma que o recebeu, tive a oportunidade de permanecer
em sala de aula e ver a reação deles (Figura 17). Era uma aula vaga, pois a
professora fora participar de uma reunião. Os alunos ficaram bastante interessados
e ficavam perguntando entre si como se dizia isto ou aquilo, pois no zine também
havia a pronúncia em japonês (Apêndice A).
Ainda sobre a definição do desenho infantil segundo Luquet (1913), temos o que o
autor denomina de “modelo interno”. Esse modelo interno seria a combinação de
uma memória visual que a criança adquire e aplica em seu desenho, seguindo um
1
Eleanor Rosch é professora de psicologia na Universidade da Califórnia, Berkeley. Sua
especialização é em psicologia cognitiva. Também se destaca por seus estudos em psicologias
orientais e psicologia da religião.
39
Mesmo que muito da pictografia dos ideogramas seja arbitrária, uma vez anunciada
a lógica da representação, esta é facilmente identificada e memorizada. Como nos
ideogramas Gordo, Grande, Raiz, Sol, Lua, e Olho (figura 19). No ideograma Gordo,
por exemplo, é marcado o centro da figura principal, como se destacando a barriga,
que denota a pessoa gorda. Em Grande, se destaca a parte superior da figura com
um traço na horizontal. Em Raiz, se destaca a parte inferior do ideograma Árvore,
com um pequeno traço horizontal. Já os ideogramas Sol, Lua e Olho são a
estilização de formas circulares.
nome do país, que em japonês se diz Nihon, os elementos que compõem Nihon são
Sol e Raiz, ou seja, Sol Nascente (figura 21).
Figura 21 – Ideogramas Corpo e Nihon
Essa representação é uma metáfora visual, por isso esse tipo de escrita despertou o
interesse de estudiosos da poesia, como Ernest Fenollosa1, que descreveu os
caracteres de escrita chinesa (que deram origem à escrita japonesa) como
instrumentos para a poesia.
...a poesia apenas faz conscientemente aquilo que raças primitivas 2 faziam
inconscientemente. O principal trabalho dos escritores, e dos poetas em
particular, ao lidar com a linguagem, consiste em rastrear retrospectivamente as
1
Ernest Fenollosa (1853-1908) foi um professor americano de filosofia e política econômica,
convidado a lecionar na Universidade Imperial de Tóquio em 1878. Esse convite aconteceu num
período em que o Japão buscava se modernizar através da ocidentalização. Por isso, nesse período,
muitos professores universitários foram “importados” de países ocidentais. Porém Fenollosa, ao
entrar em contato com a cultura japonesa e posteriormente chinesa, se tornou um grande estudioso e
entusiasta dessas culturas orientais. Após 08 anos no Japão, ajudou a fundar a Academia de Belas
Artes de Tóquio e o Museu Imperial, auxiliando inclusive na composição do currículo da Academia de
Belas Artes. Foi uma figura importante no processo do Japão redescobrir e valorizar a própria arte e
cultura.
2
Nota-se que, como homem de seu tempo (transição do séc. XIX para séc. XX), fazia distinção entre
raças primitivas e evoluídas.
42
antigas linhas de avanço. É o que têm de fazer para que as palavras conservem
a riqueza dos matizes sutis de todos os seus significados. As metáforas originais
se dispõem como uma espécie de fundo luminoso, emprestando-lhes cor e
vitalidade, forçando-as a se aproximarem da concretude dos processos
naturais.1 (FENOLLOSA, 2000, p.128).
Quando os ideogramas foram incorporados pelo Japão, apesar de muitos terem sido
simplificados e alguns abolidos, podemos afirmar que o próprio processo de seleção
e simplificação dos ideogramas foram processos criativos, uma vez que
aconteceram de acordo com as demandas e anseios da própria sociedade japonesa.
E essa a simplificação dos traços aconteceu visando o entendimento através de
formas mais simples e eficientes.
1
Os processos naturais mencionados são as linhas objetivas das relações na própria Natureza, como
a semelhança da estrutura da raiz com a estrutura de nervos e do curso de rios, etc. Outra
semelhança identificada por Fenollosa diz respeito à plasticidade da língua chinesa, pois, como na
Natureza, as partes do discurso crescem literalmente, brotando umas das outras, pela sucessão de
ideogramas. Conta também o fato de coisa e ação não serem separadas, pois um ideograma pode
ser utilizado para designar coisa e verbo, dependendo de sua relação com os outros ideogramas da
sentença.
43
1
Fonte consutada: <http://chineasy.org/basics/set-1/woman/argument.aspx?compound=1820>
Consulta em dez./2015.
44
Existem também outros ideogramas com o elemento Mulher com conotação positiva,
mas ainda machista, como Paz e Tranquilidade (figura 25). No caso de
Tranquilidade, o ideograma é a junção de Telhado e Mulher, como se uma mulher
dentro de casa significasse Tranquilidade.
5 Considerações finais
A alfabetização
Sobre os ideogramas
Quando fui convidada a elaborar a aula com os ideogramas, não fazia ideia das
possibilidades que o tema traria consigo. Foi uma experiência rica abordar os
ideogramas japoneses em uma aula de arte primeiramente por sua etimologia
visível: o caráter pictográfico dessa escrita conserva o impulso e o processo criador
à vista e em ação. (FENOLLOSA, 2000).
Também não seria possível abordar esta escrita sem mencionar o contexto histórico
de sua origem e sua evolução, seu caráter criativo e não meramente copista e seu
caráter poético-metafórico resultante de uma lógica de pensamento peculiar.
Infelizmente a atividade foi pontual e ficou restrita ao espaço de uma aula, mas se
existisse a oportunidade de estender o assunto, seria fundamental estabelecer a
relação entre língua, história, cultura e arte japonesas, pois como pondera Ana
Amália Barbosa,
1
Eliot Eisner (1933-2014) foi um dos principais estudiosos do campo da Arte-educação. Foi professor de
Educação e de Artes na Universidade de Stanford. Escreveu diversos artigos sobre currículo escolar, experiência
estética, ensino e aprendizado. Acreditava na contribuição das Artes para a educação, sendo a Arte um dos
aspectos mais impressionantes de uma cultura e um dos meios mais poderosos para o desenvolvimento da
mente humana.
47
Através da arte e dos significados possíveis através dela podemos expandir nossa
capacidade perceptiva e interpretativa, aumentando nossa sensibilidade e
consciência do mundo. Não apenas do mundo material, na esfera do visível, mas
das estruturas invisíveis que sustentam essa realidade.
1
Michael Parsons é professor e pesquisador em Arte- educação da Universidade de Illinois. Suas pesquisas são
direcionadas à Filosofia da Arte, Psicologia da Arte, desenvolvimento da criança e currículo integrado.
48
Também cita outros exemplos: Is (é, em inglês) vem da raiz ariana as, que quer
dizer respirar. Fala que be (ser, em inglês) vem de bhu, crescer. Cita também que
personalidade em outro momento significou não a alma, e sim a máscara da alma. E
diz que é esse tipo de coisa que esquecemos (mas não deveríamos) e que a língua
chinesa não deixa esquecer. Conhecer essas origens dá outro valor a nossa própria
língua.
Mas onde eu quero chegar com essas considerações? Bem, o ensino brasileiro da
língua portuguesa, focado na gramática e na ortografia, torna mecânico o uso das
palavras. Seria interessante e uma experiência muito mais enriquecedora ter
também noções da origem das palavras, da história da nossa língua, assim como
temos observado o quanto é importante contextualizar uma obra de arte para a
leitura e compreensão desta. Não seria importante contextualizar nossa própria
língua para melhor compreensão da mesma?
Transdisciplinaridade
Não posso deixar de tocar neste assunto neste trabalho, pois antes de toda essa
pesquisa e experiência no estágio, lá no começo do curso de licenciatura, tive
contato com textos sobre a complexidade e transdisciplinaridade de Edgar Morin1 e
de Bassarab Nicolescu2, que me fizeram questionar a finalidade do ensino como um
todo.
1
Edgar Morin é filósofo e sociólogo francês. Realizou estudos em Filosofia, Sociologia e
Epistemologia. É um dos principais pensadores da contemporaneidade sobre a complexidade. Critica
o modelo de ensino atual e defende que a literatura e as artes não devem ser tratadas como
conhecimentos secundários. Possui mais de 30 livros publicados, dentre os quais O método,
Introdução ao pensamento complexo e Os sete saberes necessários para a educação do futuro.
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Bassarab Nicolescu nasceu na Romênia e posteriormente se radicou na França. É físico e filósofo.
É físico teórico e pesquisador especialista em partículas elementares e alta energia. É o presidente-
fundador do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET), ONG fundada
em 1987 que conta com 165 pesquisadores transdisciplinares de 26 países.
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Por isso vale ressaltar aqui não apenas a importância do conhecimento plural e
integrado, mas a importância de se questionar o emprego dos conhecimentos. A
sociedade necessita de indivíduos conscientes do que fazem, como, para quê e por
que o fazem. Ao conhecimento científico é necessário agregar as questões éticas e
morais tão ausentes no processo que originou o mundo que hoje conhecemos e tão
urgentes para a reescrita dele. Por reescrita, entenda-se o compromisso com a
mudança, mudança de comportamentos, de desejos, de formas de relacionar, de
formas de trabalho, ensino, consumo, produção, enfim, mudança no sentido de
nossa existência.
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REFERÊNCIAS
LIVROS
EISNER, Eliot (2008). Estrutura e mágica no ensino de artes. In: BARBOSA, Ana
Mae Tavares Bastos (org.). Arte-educação: leitura no subsolo. - São Paulo: Cortez,
p.89-91.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Cortez Editora, 1989.
PILLAR, Analice Dutra. Desenho & escrita como sistemas de representação. 2 ed.
rev. ampl. Porto Alegre: Penso, 2012.
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VERBETE
Anexo A
Resultados do Grupo A da pesquisa de Analice D. Pillar
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Anexo B
Resultados do Grupo B da pesquisa de Analice D. Pillar
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Apêndice A