AROEIRA SALLES. Tese, Tribunais de Contas PDF

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Alexandre Aroeira Salles

A necessária reformulação da Organização e do Processo nos


Tribunais de Contas para efetivo alcance dos Princípios do
Devido Processo Legal, do Contraditório e da Ampla Defesa

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO
2016
Alexandre Aroeira Salles

A necessária reformulação da Organização e do Processo


nos Tribunais de Contas para efetivo alcance dos Princípios
do Devido Processo Legal, do Contraditório e da Ampla Defesa

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
PUC-SP, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Direito - Efetividade do
Direito - sob orientação do Prof. Doutor Márcio
Cammarosano.

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO
2016
BANCA EXAMINADORA

____________________________________
Prof. Doutor Márcio Cammarosano (Orientador) – PUC-SP

____________________________________
Professor (a) convidado (a)

____________________________________
Professor (a) convidado (a)

____________________________________
Professor (a) convidado (a)

____________________________________
Professor (a) convidado (a)

São Paulo, ___ de _________ de 2017.


Dedico aos meus pais, Myriam e Celso.

Assim como a meus filhos, Thiago, Francisco e Izabela


Agradeço:
Ao Francisco Freitas pelas ricas discussões científicas.
Aos amigos Patrícia, Tathiane e Nayron, pelas vivências profissionais.
À Ana Elisa pelo amor, respeito e paciência.
À Marília por haver ajudado tão bem com a casa e filhos.
À Ana Paula e Silvia pelo apoio nas pesquisas e ajustes quanto à ABNT.
Ao Professor Márcio Cammarosano, pelas aulas e reflexões.
Aos colegas de escritório, por respeitarem minhas ausências e dividirem comigo o
mundo processual.
RESUMO

A CRFB/88 entregou aos Tribunais de Contas brasileiros importantes competências


para o controle externo dos gastos públicos, incluindo a função de julgar as contas
daqueles que usarem, arrecadarem, guardarem e administrarem recursos públicos,
podendo-lhes aplicar sanções e condenar à devolução de valores irregularmente
dispendidos. Ao mesmo tempo, a CRFB/88 garantiu, por meio do artigo 5o, a todos os
indivíduos que o Estado somente lhes possa privar de seus bens e direitos caso siga
fielmente as normas-princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa. Desrespeitando frontalmente tais princípios, a Lei Orgânica do TCU (Lei n.
8.443/92) organizou seu aparato de forma a incluir nas atribuições de seus Ministros
o papel de fiscalizar, acusar, instaurar, instruir, gerir as provas e decidir seus
processos acusatórios contra os indivíduos, além disso a referida Lei estabeleceu um
processo em que as partes não conseguem: produzir suas provas; acompanhar as
provas produzidas pelos seus acusadores e ao mesmo tempo julgadores; serem
ouvidas; e nem recorrerem para instância que não já as tenha fiscalizado e julgado.
Portanto é necessário mudar a Lei n. 8.443/92 para viabilizar tanto uma organização
como um processo justo no Tribunal de Contas da União, assim como as leis de todas
as demais Cortes de Contas estaduais e municipais, colocando nas competências dos
membros do Ministério Público de Contas as fiscalizações e as acusações, garantindo
às partes produzir amplamente suas provas e contraprovas, libertando os Ministros
para cumprir a função exclusiva de julgar imparcialmente, a partir da dialética
processual.

Palavras-chave: Direito Constitucional; Direito Administrativo; Devido Processo


Legal; Contraditório; Ampla Defesa; Controle Externo; Tribunal de Contas; Função
Jurisdicional; Função Administrativa; Imparcialidade; Estado Democrático de Direito.
ABSTRACT

The Brazilian Constitution of 1988 provided the Brazilian Courts of Accounts with
important competencies for the external control of public expenditures, including the
function of judging the accounts of those who use, collect, store, and administer public
resources, and the power to impose sanctions and order the return of amounts spent
improperly. At the same time, the 1988 Brazilian Constitution, through its Article
5, guarantees to all individuals that the State can only deprive them of their assets and
rights if it faithfully follows certain specific principles (“normas-princípio”) of due legal
process, adversarial system and full defense. Disrespecting directly such principles,
the TCU Organic Law (Law 8.443/92) structured the Federal Court of Accounts in such
a way as to give to thejudges (”Ministers”) of the Court the role of auditing, accusing,
instituting, instructing, administering the evidence and deciding on its accusatory
proceedings against individuals. Moreover, the Law established a process in which the
parties cannot: produce their evidence; analyse the evidence presented by their
accusers/judges; be heard; or even appeal to a forum that has not already reviewed
and decided on their case. Therefore, it is necessary to change Law 8.443/92 to enable
the creation of a structure and process in the Federal Court of Accounts that is fair (as
well as the laws of all other state and municipal Courts of Accounts), including among
the responsibilities of the members of the Public Prosecutor's Office of Accounts
auditing, accusing, and guaranteeing that the parties produce fully their evidence and
counter-evidence, freeing the Ministers to fulfill the exclusive function of judging
impartially, based on the procedural dialectic.

Keywords: Constitutional Law; Administrative law; Due Process of Law; Fair


Procedures; Adversarial System; Full Defense; Participation in legal and administrative
processes; Audit Office; Jurisdictional Function; Administrative Function; Impartiality;
Democracy.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 A ATIVIDADE DE CONTROLE DE CONTAS PÚBLICAS NA ORDEM JURÍDICO


NACIONAL................................................................................................................ 16
2.1 A atividade de Controle de Contas Públicas na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 .................................................................................. 16
2.1.2 A criação constitucional da atividade de prestar e de fiscalizar as contas
públicas ..................................................................................................................... 16
2.1.3 Do conteúdo jurídico da competência: fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial ................................................................... 18
2.1.4 Dos deveres-poderes entregues pela Constituição aos Tribunais de Contas . 19
2.1.4.1 A corrente que defende exercerem os Tribunais de Contas apenas a função
administrativa ............................................................................................................ 23
2.1.4.2 A corrente que defende exercerem os Tribunais de Contas também a função
jurisdicional ................................................................................................................ 27
2.2 Tribunais de Contas: competentes constitucionalmente para o exercício das
funções administrativa e jurisdicional .................................................................. 30
2.2.1 Da interpretação literal ou semântica ............................................................... 31
2.2.2 Da interpretação sistemática - aspectos formais e materiais ........................... 33
2.2.2.1 Da não violação à Tripartição dos Poderes .................................................. 34
2.2.2.2 Da inexistência do monopólio da função jurisdicional ao Poder Judiciário ... 35
2.2.2.3 Do não prejuízo ao conceito de coisa julgada ............................................... 38
2.2.2.4 Da força de título executivo ........................................................................... 41
2.2.2.5 Do significado de julgar pessoas ................................................................... 42
2.2.2.6 Da incompatibilidade entre auditar e julgar ................................................... 43
2.2.2.7 O exercício de funções hibrídas pelos Tribunais de Contas ......................... 46
2.2.2.8 Do Império da Constituição sobre a legislação..............................................47

2.2.3 Da interpretação teleológica ............................................................................. 48


2.2.4 Da interpretação histórica ................................................................................ 50
2.3 Dos efeitos jurídico possíveis decorrentes das decisões dos Tribunais de
contas ....................................................................................................................... 53
2.3.1 Obrigação de fazer e de não fazer ................................................................... 54
2.3.2 Obrigação de dar coisa certa ........................................................................... 54
2.3. 3 Decisões do TCU com eficácia de título executivo ......................................... 54
2.4 Dos sujeitos passivos da obrigação de prestas contas ................................ 55
2.4.1 Obrigação de prestar contas e a correspondente sança na hipítese de não o
fazer .......................................................................................................................... 55
2.4.2 O sujeito que pode ser chamado a defender-se quanto às contas ................. 57
2.4.1 Obrigação de prestar contas e a correspondente sança na hipítese de não o
fazer .......................................................................................................................... 55
2.5 A organização constitucionalmente prevista para o TCU ............................. 59
2.6 Conclusão do capítulo ...................................................................................... 60

3 A ORGANIZAÇÃO E O PROCESSO DE CONTAS PÚBLICAS NA LEGISLAÇÃO


INFRACONSTITUCIONAL ....................................................................................... 63
3.1 Da organização do Tribunal de Contas da União ........................................... 63
3.2 Do processo no Tribunal de Contas da União conforme a Lei Orgânica .... 67
3.2.1 Das fases do Processo de auditoria e inspeção .............................................. 68
3.2.2 Do Processo de Tomada de Contas Especial .................................................. 70
3.2.2.1 Comunicações e intimações ......................................................................... 70
3.2.2.2 Instrução do processo de Tomada de Contas Especial ................................ 71
3.2.2.3 Decisões e recursos ...................................................................................... 72
3.2.2.4 Possibilidade de adoçao subsidiária das demais normas processuais
vigentes ..................................................................................................................... 73
3.3 Conclusão do capítulo ...................................................................................... 73

4 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA APLICADOS AOS


PROCESSOS NO BRASIL ....................................................................................... 75
4.1 Procedimentos como um dos meios de manifestação do Estado ............... 75
4.2 Processo como procedimento realizado em contraditório ........................... 75
4.3 Contraditório e Ampla Defesa: normas-princípio constitucionais de eficácia
plena e aplicabilidade imediata, direta e integral ................................................. 76
4.4 O paradigma do Estado Democrático de Direito e sua influência no Processo
................................................................................................................................... 78
4.4.1 Estado liberal e o Processo .............................................................................. 78
4.4.2 Estado social e o Processo .............................................................................. 79
4.4.3 Estado Democrático e a participação da sociedade nos atos públicos decisórios
................................................................................................................................... 80
4.4.4 Processo Democrático: os indivíduos construtores do provimento estatal ...... 83
4.5 Os modelos históricos de processo – inquisitório e acusatório – e sua
inserção no Estado Democrático de Direito ......................................................... 84
4.6 Âmbito teórico e jurisprudencial do devido processo legal ........................ 88
4.6.1 Breve histórico do devido processo legal e sua razão científica de existir
................................................................................................................................... 89
4.6.2 – Neurociência e a justificação do devido processo legal.............................................94

4.7 Do Contraditório ................................................................................................ 97


4.7.1 Posicionamento atual da doutrina nacional e da jurisprudência quanto ao
contraditório ............................................................................................................... 98
4.7.2 Contraditório e imparcialidade do julgador ....................................................... 99
4.7.3 Contraditório e o direito de conhecimento dos atos processuais ................... 100
4.7.4 Contraditório e o direito à produção de prova e contraprova ......................... 102
4.7.5 Contraditório e a capacidade de reação simétrica entre as partes ................ 109
4.7.6 Contraditório e a capacidade de influir verdadeiramente na decisão ........... 110
4.7.7 Contraditório e o direito de ser ouvido por um julgador imparcial .................. 113
4.7.8 Contraditório e o dever do julgador de garanti-lo a ambas as partes ............ 114
4.7.9 Contraditório como principal atributo do direito de defesa ............................ 115
4.8 Da Ampla Defesa ............................................................................................. 117
4.9 Conclusão do Capítulo: requisitos mínimos de um Processo a partir da
interpretação da Constituição da República Federativa de 1988 ..................... 120

5 INCOMPATIBILIDADE DA ORGANIZAÇÃO E DO PROCESSO NO TCU COM A


CONSTITUIÇÃO FEDERAL ................................................................................... 124
5.1 inconstitucionalidade: a mesma autoridade julgadora é a responsável por
fiscalizar, instaurar, instruir e decidir ................................................................. 126
5.2 Inconstitucionalidade: ausência de partes independentes no processo .. 127
5.2 Inconstitucionalidade: gestão da prova exclusivamente no poder do
acursador/julgador ................................................................................................ 128
5.4 Inconstitucionalidade: ausência de recurso para órgão superior imparcial
................................................................................................................................. 129
5.5 Nulidade das decisões do TCU: consequências da existência das
inconstitucionalidades.......................................................................................... 129
5.6 Conclusão do capítulo .................................................................................... 130

6 DA ORGANIZAÇÃO E DO PROCESSO NECESSÁRIOS AOS TRIBUNAIS DE


CONTAS PARA ALCANCE DE SUAS COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS .. 132
6.1 Os sujeitos processuais ................................................................................. 132
6.2 Ministério Público de Contas e as funções de fiscalização e acusação ... 135
6.2.1 Procedimento de fiscalização e auditoria pelo MPC ...................................... 137
6.2.2 MPC e as Tomadas de Contas ordinárias dos responsáveis por valores públicos
................................................................................................................................. 138
6.3 Os Auditores do Tribunal de Contas da União e suas funções de decidir
sobre as atividades de fiscalização ..................................................................... 139
6.3.1 Procedimentos para esclarecimentos e determinações à administração pública
quanto a eventuais irregularidades ......................................................................... 139
6.3.2 Procedimentos para Tomada de Contas e aplicação de sanções ................. 140
6.4 Os Ministros do TCU e sua função de julgar as contas e de última instância
das fiscalizações das entidades governamentais ............................................. 141
6.4.1 Dos procedimentos para a ação de Tomada de Contas Especial ........... 141
6.5 Das Câmaras de Julgamento no TCU ........................................................... 143
6.6 O Plenário do Tribunal de Contas da União ................................................. 144
6.6.1 Procedimentos recursais quanto às fiscalizações e Tomada de Contas ....... 144
6.6.2 Da apreciação das contas da Presidência ..................................................... 144
6.6.3 Das respostasàs consultas e à elaboração de Súmulas ................................ 145
6.6.4 Fixação dos Coeficientes de Participações Constitucionais .......................... 145
6.7 Os Prestadotes de contas .............................................................................. 146
6.8 Das entidades fiscalizadas ............................................................................. 147
6.9 O acusado de um modo geral ........................................................................ 148
6.10 Organização e processo de Cortes de Contas no Direito Comparado .... 149
6.10.1 Da organização e processo no Tribunal de Contas de Portugal ........... 149
6.10.2 Da organização e processo no Tribunal de Contas da Itália ................. 151
6.10.3 Da organização e processo no Tribunal de Contas da França .............. 153
6.10.4 Da organização e processo no Tribunal de Contas da Espanha ........... 155
6.10.5 Linhas gerais sobre o órgão de auditoria inglês .................................... 157
6.11 Conclusão do capítulo .................................................................................. 158

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 160

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 163


12

1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 criou os Tribunais


de Contas e lhes outorgou em seu art. 71, incisos II, VIII e IX, importantes
competências de, entre tantas relevantes, (i) julgar as contas dos administradores,
dos demais responsáveis por bens públicos e daqueles que derem causa a perda ou
extravio de recursos públicos; (ii) anular atos administrativos; (iii) aplicar sanções aos
referidos responsáveis por ilegalidades na gestão das contas públicas.
Ao mesmo tempo, a Constituição determina no seu art. 5o, incisos LIV e LV,
que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral
são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes.
Como efeito dessas normas constitucionais, aqueles que se submetem às
decisões dos Tribunais de Contas deveriam ver assegurados seu direito e garantia
fundamental ao contraditório e à ampla defesa; do contrário, as referidas decisões das
cortes de contas, produzidas em custosos processos, seriam inconstitucionais.
Há inúmeras sentenças e acórdãos do Supremo Tribunal Federal, Superior
Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados
Federados reconhecendo que compete ao Poder Judiciário anular as decisões dos
Tribunais de Contas que não atenderam, no curso de seus processos, ao devido
processo legal, ampla defesa e o contraditório1.
Para reforçar a jurisprudência dominante há décadas, o Supremo Tribunal
Federal expediu a Súmula Vinculante n. 3 dispondo que nos processos perante o TCU
asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar a
anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado.

1
São exemplos de recentes decisões do STF: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso
Extraordinário 662458/SP. Relator: Min. Luiz Fux - Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico,
Brasília, 20 jun. 2012; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 28333/DF. Relator:
Min. Ricardo Lewandowski - Segunda Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 27 fev. 2012;
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança MS 27760. Relator: Min. Ayres Britto-
Segunda Turma. Diário de Justiça Eletrônico, 12 abr. 2012; BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Mandado de Segurança 28061/DF. Relator: Min. Ellen Gracie - Tribunal Pleno. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 11 abr. 2011; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança
26393/DF. Relator: Min. Cármen Lúcia. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 fev. 2010; BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 25116/DF. Relator: Min. Ayres Britto - Tribunal
Pleno, Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 17 set. 2010.
13

Além de estabelecer a necessidade de atenção aos referidos princípios, a


jurisprudência, salvo poucas exceções, compreende que não competiria ao Poder
Judiciário reapreciar o mérito das decisões dos Tribunais de Contas, por haver essas
cortes recebido missão própria da Constituição2.
3
Ademais, a doutrina publicística moderna brasileira e a do Direito
Comparado4 compreende que o Estado nas democracias plenas não se estrutura e
atua o direito de forma solitária e vertical, mas discursiva e horizontal, em que os
interessados (partes) constroem com isonomia e paritariamente o provimento estatal
(seja ele legislativo, administrativo ou judicial).
Sendo assim, para que as decisões dos Tribunais de Contas busquem
adequadamente seus fundamentos de validade no ordenamento jurídico
constitucional, é fundamental que sejam produzidas dentro de um processo em que
haja a garantia aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Conforme se demonstra no terceiro capítulo dessa tese, a estrutura
organizacional e o processo de formação das decisões condenatórias e fiscalizatórias
previstas pela Lei Orgânica do TCU (Lei n. 8.443/92) são correspondentes a um
processo verticalizado, que concentra suas decisões no plano burocrático-estatal, não
valorizando argumentos e fatos apresentados pelos envolvidos, em virtude das
seguintes principais características delimitadas pela própria Lei n. 8.443/92, reforçada

2
Importa transcrever aqui decisão do STF que vem sendo utilizada por maioria da jurisprudência pátria,
proferida no Mandado de Segurança 7280/RJ: “Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros
públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insusceptível de revisão na via judicial, a não ser quanto ao
seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta. Mandado de Segurança não conhecido” (BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 7280/RJ - Tribunal Pleno. Relator: Min. Henrique
D’Avila, Diário de Justiça, Brasília, 17 set.1962).
3
No Brasil os seguintes doutrinadores publicistas se dedicaram mais intensamente sobre esse tema:
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson. Processo Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012;
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. 3. ed. São Paulo: Saraiva.
2012; MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2010;
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del
Rey. 2012; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 4. ed. Porto Alegre: Síntese, 2001;
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A garantia do contraditório na atividade de instrução. Revista de
Processo, n. 35. São Paulo: Revista dos Tribunais,1984 e DINAMARCO, Cândido Rangel.
Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
4
Existe uma profusão de doutrinadores europeus e norte-americanos cuidando do tema, podendo citar
aqui: FAZZALARI, Elio. Instituzioni Di Direitto Processuale. 5. ed. Padova: CEDAM, 1989;
FOSCHINI, Gaetano. Sistema del Diritto Processuale Penale. 2. ed. Milano: Milano, 1965; José
CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina, 2003; HÄBERLE, Peter, Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor,
1997; PIZZORUSSO, Alessandro. Sistema Instituzionale del Diritto Publico Italiano. 2. ed. Napoli:
Jovene, 1992; AMAN JUNIOR, Alfred; MAYTON, Willian. Administrative Law. Minnesota, West
Publishing Co., 1993 e COMOGLIO, Luigi Paolo. Lezioni sul processo civile. Bologna: Il Mulino, 1995.
14

pelo correspondente Regimento Interno: (i) aquele mesmo órgão que acusa, também
instrui o processo, analisa seus esclarecimentos e defesas, administra o material
probatório e, ao fim, decide; (ii) quando da instauração, seus mesmos órgãos internos
formulam uma hipótese e depois procuram elementos e indícios que irão comprová-
la; (iii) os acusados ou fiscalizados não conseguem a produção de provas periciais
realizadas por peritos imparciais de fora dos quadros do Tribunal; (iv) os acusados
não podem formular quesitos e dependem sempre do espírito dialético e da boa
vontade do julgador; (v) não há audiências orais e nem produção de prova
testemunhal.
De acordo com as pesquisas levantadas no quarto capítulo, esse tipo de
processo é incompatível com os princípios do contraditório e do devido processo legal
no Estado Democrático de Direito, já que esses pressupõem ao menos: (i)
participação dialética e simétrica entre dois sujeitos ou mais; (ii) que esses dois
sujeitos estejam em situação de absoluta equivalência na gestão do discurso e da
prova; (iii) utilização de todos os meios permitidos em direito para a demonstração das
alegações; (iv) não prevalência da prova de uma das partes em relação a de outra
parte; (v) direito à oralidade por meio de audiência com presença física das partes;
(vi) o julgador não ser um interessado no provimento.
Tem-se, portanto, uma situação peculiar. A CRFB/88 entregou importantes
competências ao TCU, concedeu-lhe função de julgar pessoas, interferindo em seus
direitos administrativos (perda de cargo e função) e de propriedade por meio de
condenação de perda de direitos à restituição de dinheiro ao erário e ao pagamento
de multas. Não obstante, o legislador ordinário criou uma lei orgânica muito aquém
desse mister constitucional, acarretando ao fim um desperdício de tempo, dinheiro e
trabalho, pois as decisões terminativas e interlocutórias do TCU não conseguem ser
produzidas sob o manto democrático atual dos princípios do contraditório e da ampla
defesa, acarretando suas inevitáveis nulidades passíveis sempre de anulação pelo
Poder Judiciário.
Conforme demonstrado no capítulo 5, essa situação justifica necessária
reforma na organização e no processo utilizado pelo TCU (Lei n. 8.443/92 e seu
Regimento Interno) para exercício de sua competência de julgamento de contas,
aplicação de sanções e fiscalização de atos e contratos, confrontando-os com o
15

moderno conteúdo jurídico dos princípios constitucionais do devido processo legal, do


contraditório e da ampla defesa em nosso Estado Democrático de Direito.
Em decorrência desta compreensão, no último capítulo da tese propõe-se quais
os critérios mínimos devem ser observados para que as decisões dos Tribunais de
Contas sejam produzidas conformes a ordem jurídico-constitucional, tanto no âmbito
orgânico como no processual.
16

2 ATIVIDADE, ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE CONTROLE DE CONTAS


PÚBLICAS NA ORDEM JURÍDICO-NACIONAL

2.1 A atividade de Controle de Contas Públicas na Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988

O objetivo principal deste capítulo é a pesquisa sobre a atividade de controle


externo como delineada pelo nosso Constituinte originário de 1988 e os subsequentes
Constituintes derivados de 19985.
Isto porque, depois de alcançar a melhor interpretação constitucional para o
6
tema , haverá possibilidade de confirmar ou infirmar se a Lei n. 8.443/92 buscou
adequadamente o seu fundamento de validade nas correlatas normas constitucionais
contidas entre os artigos 70 e 75, quanto à organização e ao processo do TCU7.

2.1.2 A criação constitucional da atividade de prestar e de fiscalizar as contas


públicas

Nossa vigente Constituição (CRFB/88)8 organizou os Poderes da República


Federativa do Brasil em seu Título IV, estabelecendo no respectivo Capítulo I – Do
Poder Legislativo – a atividade denominada de Fiscalização Contábil, Financeira e
Orçamentária (Seção IX, artigos 70 a 75).
A CRFB/88, por meio do art. 70 9 , criou a norma jurídica: se alguém usar
(receber, gerir, arrecadar, administrar, guardar) recurso público, deverá fazê-lo de
forma correspondente à lei, à legitimidade e à economicidade.

5
Nesse sentido, as Emendas à Constituição n. 19 e n. 20 de 1998.
6
Como estamos em um sistema jurídico desenvolvido, nossa Constituição adota estrutura escalonada
de normas jurídicas, em que a Constituição deve ser o fundamento de validade das leis
infraconstitucionais.
7
O art. 75 da CRFB/88 estabelece que as suas normas previstas para o Tribunal de Contas da União
(TCU) servem para os demais nos Estados e Municípios: “as normas estabelecidas nesta seção
aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos
Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios”.
Portanto, cumpre adiantar que a tese analisará precipuamente as normas envolvendo o TCU, e quando
couber trará alguns comentários sobre as demais cortes de contas.
8
A partir desse momento se referirá à atual Constituição como CRFB/88.
9
“Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das
entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade,
aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante
controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder”
17

Como pode acontecer de alguém deixar de assim proceder, o mesmo


Constituinte Originário, seguindo seus antecessores de 1891 a 196910, entregou ao
Poder Público brasileiro a obrigação de fiscalizar as contas, as finanças e o orçamento
da sua administração pública11, e de punir o eventual infrator.
Além de criar a ação de fiscalizar, a CRFB/88 também delimitou a organização
e as competências para tal atividade, conforme caput do art. 70, do qual se podem
extrair as seguintes normas jurídicas:

a) Estabelece-se na União Federal o exercício da fiscalização contábil, financeira,


orçamentária, operacional e patrimonial;
b) A ser exercida perante toda administração pública direta e indireta da União;

c) Cuja competência para seu exercício será do Congresso Nacional,


caracterizando-a como controle externo;

d) Cada um dos Poderes (Executivo, Legislativo e o Judiciário) também deverá


exercê-la internamente, caracterizando-a como controle interno;

e) Quando da fiscalização, deverá ser apreciada a legalidade, a legitimidade e a


economicidade das escolhas realizadas pela atividade administrativa.

Visando ampliar ao máximo o sujeito passivo (obrigado a prestar contas), o


parágrafo único 12 do art. 70 determina que qualquer pessoa física ou jurídica que
“utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos
ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de
natureza pecuniária”.

10
Ao longo dessas cinco Constituições, que antecedem a de 1988, houve paulatino aperfeiçoamento
das redações e ampliação das atividades a serem exercidas, tendo a Constituição de 1967 alcançado
modelo similar ao atual.
11
Quando o autor, nesta tese, indicar em letras minúsculas a expressão “administração pública”
significará, sempre, a atividade administrativa que pode ser exercida pelos órgãos e agentes de todos
os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) de todas as esferas de poder (União, Estados,
Municípios e o Distrito Federal).
12
Conforme redação dada pela Emenda Constitucional n. 19 de 04 de junho de 1998.
18

2.1.3 Do conteúdo jurídico da competência: fiscalização contábil, financeira,


orçamentária, operacional e patrimonial

O sentido semântico da palavra fiscalização, na língua portuguesa, é a ação ou


efeito de examinar e verificar se o objeto em observação está ocorrendo ou ocorreu
como fora previsto13.
No âmbito jurídico, de acordo com o art. 70 da CRFB/88, o Estado14 (por meio
dos órgãos indicados na Constituição) tem a obrigação pública de examinar se a
utilização dos recursos públicos pela função administrativa (ou por quem lhe faça as
vezes) está ocorrendo ou se ocorreu como previsto pela lei.
Objetivando, pode-se afirmar que pelo enunciado normativo do art. 70 criou-se
15
norma jurídico-constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata ,
estabelecendo no Estado brasileiro a função pública de fiscalizar o uso de recursos
públicos, podendo subdividir a norma da seguinte forma:

a) Proposição hipotética fático-descritiva16: se qualquer pessoa física ou jurídica,


pública ou privada, usar, gerir, arrecadar, administrar, guardar recursos
públicos;
b) Consequentes fático-prescritivas:

i. o Estado brasileiro deve fiscalizar17 se a conduta descrita no antecedente


ocorreu de acordo com a legalidade, a legitimidade e a economicidade.

13
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
Elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 900.
14
Utiliza-se o signo ‘Estado’ nesse trabalho como a pessoa jurídica de direito público interno, ou seja,
União, Estados-Membros, Municípios e o Distrito Federal.
15
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000,
p. 89.
16
Adota-se aqui o critério bem tratado por Paulo de Barros em que: “a proposição antecedente
funcionará como descritora de um evento de possível ocorrência no campo da experiência social […]”
(CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 132).
17
“A relação jurídica estabelecida com esse consequente é entre Estado e cidadãos, em que o primeiro
tem obrigação de fiscalizar a correta aplicação dos recursos dos cidadãos, e esses têm o direito
subjetivo público de ter seus recursos fiscalizados pelo Estado. Se o Estado não fiscaliza, viola uma
obrigação de fazer, a outra face do direito subjetivo público do cidadão em relação ao Estado
(FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 1984, p. 147).
19

ii. A referida pessoa deve prestar contas ao Estado18.

Caso o Estado, no exercício da fiscalização, identifique discordância entre o


que fora previsto em lei19 e o uso do recurso público, então a CRFB/88 previu a partir
do art. 71 quais seriam as consequências jurídicas possíveis20, além de criar mais um
órgão para o exercício das respectivas funções.

2.1.4 Dos deveres-poderes entregues pela Constituição aos Tribunais de Contas

A fim de mais bem instrumentalizar a atividade de controle externo, a CRFB/88,


pelo art. 71, criou o órgão denominado Tribunal de Contas da União21, entregando-lhe
exaustivas competências.
Sua localização dentro da estrutura do Estado brasileiro é dentro do Poder
Legislativo, já que posicionada na Seção IX do Capítulo I – Do Poder Legislativo – do
Título IV (Organização dos Poderes) 22, em que pese o artigo 44 não lhe ter feito

18
Nesse momento tem-se a obrigação pública da pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que
usou recursos públicos, de prestar contas ao Estado; e esse tem o direito subjetivo público (dever-
poder) de exigir daquela a prestação das contas (FAGUNDES, Miguel Seabra. Ob. cit., p. 173).
19
Interessante notar que o constituinte usou no mesmo art. 70 a estrutura gramatical “quanto à
legalidade, legitimidade e economicidade”. Aparentemente pretendeu que a fiscalização não se
restringisse à lei, indicando que a administração pública devesse prever a melhor escolha a partir
também de critérios de economicidade e de legitimidade.
20
Pode-se aqui adiantar o que à frente se verá quando se interpretar o art. 71 da CRFB/88: Se alguém
usar recurso público – o respectivo uso deve ser correspondente com a lei, a legitimidade e a
economicidade. Se usado o referido recurso, mas não correspondido à lei, à legitimidade e à
economicidade – então deve ser relação sancionatória entre o sujeito do dever e o Estado-Juiz.
21
Desde a Constituição de 1891 institui-se um Tribunal de Contas “para liquidar as contas das receitas
e despesas e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso”, nos termos do seu
art. 89.
22
Carlos Ayres Britto (2002, p. 2) sustentou em artigo publicado no ano de 2002 que a localização do
TCU não seria no Poder Legislativo, em função de o art. 44 dizer que compõe tal Poder apenas o
Senado e a Câmara dos Deputados. Para Britto a melhor localização do TCU seria o próprio Poder
Judiciário, em decorrência de o art. 73 da CRFB/88 determinar a ele as mesmas atribuições entregues
aos órgãos judiciários indicados no art. 96. Não se pode concordar com essas afirmações, pois o art.
73 entrega ao TCU normas de competência, e não de localização do órgão dentro da estrutura do
Estado. Ademais, o art. 92 diz expressamente quais órgãos comporiam o Poder Judiciário, não
indicando ali o TCU. Não se pode confundir localização com competência, conforme será aqui tratado.
Inobstante tal celeuma, é indiferente em qual localização está o TCU, pois todas as suas competências
e funções são próprias e extraídas diretamente da Constituição; esse é um órgão de estatura
constitucional, e não se modificariam suas atribuições caso estivesse no lugar A, B ou C. Merece
destaque que no mesmo artigo mencionado, o autor é claro em evidenciar que o TCU não é subalterno
a qualquer dos Poderes da República, extraindo seu papel do texto constitucional. Nesse sentido, ver
BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. Revista Diálogo Jurídico,
ano 1, n. 9, Salvador, dez. 2001.
20

menção23. Não obstante, o denominado Tribunal de Contas da União (TCU)24 retira


os fundamentos para suas atribuições diretamente da CRFB/88, exercendo-as com
absoluta independência e autonomia, sem qualquer subordinação às casas
legislativas. Seu fundamento de validade e suas atribuições são obtidas diretamente
do texto constitucional. Salvo mudança na CRFB/88, não poderá o TCU ter
aumentada ou diminuída a sua gama de competências.
As normas constitucionais contidas entre os artigos 71 e 75 são todas de
eficácia plena, bem como acarretam a “proibição de outros órgãos ou entidades
exercerem aquelas mesmas atribuições” 25.
Não se acreditam necessários maiores esforços hermenêuticos para afirmar
que, por norma expressa de nossa Constituição, a atividade de controle externo tem
os poderes-deveres (competências) que podem ser sintetizados nas seguintes
ações26 (verbos):

a) Apreciar as contas do Presidente da República;


b) Opinar ao Congresso Nacional sobre a legalidade, legitimidade e
economicidade das contas do Presidente da República;
c) Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,
bens e valores públicos;
d) Julgar as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra
irregularidade de que resulte prejuízo ao erário;
e) Sancionar os responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou
irregularidade de contas, com aplicação de multas e outras sanções previstas
em lei;

23
Muito curiosa situação, pois se não estiver dentro do Legislativo (artigo 44, CRFB), também não
incluído entre os órgãos do Poder Judiciário (artigo 92, CRFB/88) e muito ao menos do Poder Executivo
(artigo 76, CRFB), o Tribunal de Contas poderia ser um pária, ou um novo Poder, o Poder do Controle
Externo, e tão externo seria que nem ao mesmo integraria qualquer dos três grandes órgãos da
República. Por isso apenas se pode aceitar a seguinte interpretação: o Constituinte o colocou dentro
do Capítulo do Poder Legislativo, entregando-lhe competências autônomas e independentes, mas
também um papel de auxiliar o Congresso no controle da Presidência da República. Poderia tê-lo
incluído dentro do Poder Judiciário, como o fez o constituinte português, mas preferiu mantê-lo onde
sempre esteve em nossa história. Isso em nada modifica o conteúdo jurídico de suas atribuições. Sua
localização não é relevante ao ponto de desnaturar suas competências e alcance de suas decisões.
24
A partir desse momento, a fim de facilitar a leitura, utilizar-se-á o símbolo TCU para significar o
referido Tribunal de Contas da União.
25
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000,
p.89.
26
Até o presente momento, adota-se para o signo ação o significado “disposição para agir; atividade;
energia” (HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
Elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 24).
21

f) Apreciar a legalidade dos atos de admissão de pessoal na administração


pública;
g) Apreciar a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões;
h) Inspecionar e auditar a administração pública direta e indireta da União;
i) Fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais;
j) Fiscalizar a aplicação dos recursos da União repassados às demais entidades
federativas;
k) Determinar à administração pública a adoção de providências para o
cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
l) Sustar, se não atendido, a execução do ato administrativo compreendido como
ilegal;
m) Representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados;
n) Prestar informações ao Congresso Nacional sobre suas atividades.

Além dessas evidentes delimitações, o parágrafo 3º do art. 71 da CRFB/88


dispõe que “as decisões do Tribunal que resulte imputação de débito ou multa terão
eficácia de título executivo”.
Atualmente, portanto, conforme interpretação dos referidos artigos 70 e 71, o
Estado brasileiro deve (i) fiscalizar, inspecionar e auditar as contas (contabilidade,
finanças, orçamento e patrimônio público) dos (ii) administradores públicos e daqueles
que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem dinheiros, bens e
valores públicos.
O órgão competente para tanto é (iii) o TCU que deverá, caso identifique
violação (iv) à legalidade, legitimidade e economicidade dos atos administrativos
indicados, (v) julgar as contas dos administradores e responsáveis e (vi) aplicar-lhes
sanções; devendo ainda (vii) determinar obrigação de fazer à administração pública,
e, caso não obedecido, (viii) executar diretamente o seu próprio comando normativo
específico e concreto.
Vale mencionar que o Congresso Nacional é o único competente para julgar as
contas prestadas pelo Presidente da República (inciso IX do art. 49), depois de
receber parecer do TCU (inciso I do art. 71). É também competente originariamente
para sustar a execução de contrato administrativo, apenas caso se omita é que a
Corte de Contas poderá agir.
Assim, com exceção, portanto, desse ato de julgar as contas do Presidente da
República, todas as demais atividades denominadas de controle externo foram
22

entregues pela CRFB/88 ao TCU, não podendo ao Congresso retirar-lhe ou avocar


dele tais competências.
Além de não ser adequado ao Congresso retirar-lhe ou avocar competências,
é obrigatório à função legislativa instrumentalizar o TCU para que possa efetivamente
exercer suas missões constitucionais, de modo compatível com todo o nosso sistema
jurídico-constitucional, incluindo os direitos e garantias fundamentais.
Conforme visto na introdução desse trabalho, é hipótese lançada a de que o
TCU não recebeu da Lei n. 8.443/92 os instrumentos necessários para bem exercer
suas atribuições, posto violar sempre as garantias ao contraditório e ao devido
processo legal.
Quando se perquire qual organização e qual processo devem seguir
determinada entidade pública, tem que se compreender com clareza a natureza
jurídica de seus atos e, consequentemente, quais os efeitos no mundo jurídico tais
atos podem seus acarretar.
Como se sabe, já há relevantes estudos sobre as funções estatais dos
Tribunais de Contas, com duas correntes divergentes: uma que limita suas
competências exclusivamente às próprias da função administrativa 27 ; outra que
compreende exercerem os Tribunais de Contas ambas as funções – administrativa
(os incisos I, III, IV, V, VI, VII, IX, X e XI do art. 71) e jurisdicional (inciso II)28.

27
Provavelmente, a corrente majoritária dos doutrinadores pátrios compreende que os Tribunais de
Contas exercem apenas a função administrativa. Essa corrente é formada por juristas de grande relevo,
como: MAZAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1977; MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Tribunais de Contas: natureza, alcance e efeitos de suas
funções. RDP, São Paulo, n. 73, p. 182, 1982; CRETELLA JÚNIOR, José. Natureza das Decisões do
Tribunal de Contas. Revista de Informação Legislativa, v. 24, n. 94, p. 183-198, abr./jun. 1987;
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1998. MEDAUAR, Odete. A processualidade no Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008; FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo:
Atlas, 2014. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007 e outros.
28
Recentemente foram produzidos cinco ótimas teses sobre esse objeto: PARDINI, Frederico. Tribunal
de Contas da União: órgão de destaque constitucional. 1997. 464f. Tese (Doutorado em Direito) -
Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1997; BUSQUETS,
Cristina Del Pilar Pineiro. A configuração jurídica do Tribunal de Contas: o processo e o tempo.
2010. 280f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010; PELEGRINI, Márcia. A competência
sancionatória do Tribunal de Contas no exercício da função controladora – contornos
constitucionais. 2008. 331 f. Tese (Doutorado em Direito em Direito do Estado) – Departamento de
Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: 2008 e COSTA,
Luiz Bernardo Dias. Tribunal de Contas: evolução e principais atribuições no Estado Democrático
de Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2006. Com exceção de Márcia Pelegrini, todos os demais
compreendem que os Tribunais de Contas exercem também a função jurisdicional quando julgam as
contas daqueles que utilizam recursos públicos.
23

Em que pese tal discussão já ter sido objeto de inúmeros e antigos excelentes
trabalhos acadêmicos, incluindo teses de doutoramento, entende-se relevante aqui
expor apenas rapidamente quais os seus principais doutrinadores e suas respectivas
posições, a fim de facilitar o desenvolvimento do tema nos capítulos vindouros.

2.1.4.1 A corrente que defende exercerem os Tribunais de Contas apenas a função


administrativa

Como mencionado em nota de rodapé, importantes doutrinadores pátrios


compreendem que os Tribunais de Contas exercem apenas a função administrativa:
Mario Mazagão, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, José Cretella Júnior, Hely Lopes
Meirelles29, Odete Medauar, Lúcia Valle Figueiredo, Maria Silvia Zanella de Pietro30,
José Afonso da Silva31 e outros.
A recente competente tese de doutoramento de Márcia Pelegrini discute o tema
das funções exercidas pelo Tribunal de Contas, citando muitos dos juristas acima
indicados e filiando-se à corrente doutrinária do exclusivo exercício da função
administrativa, conforme concluiu:

Em sentido contrário à jurisprudência firmada e nos filiando às teses que


afastam a natureza jurisdicional das decisões do Tribunal de Contas, uma vez
que suas decisão não têm força de coisa julgada e também por não
reconhecermos natureza política em quaisquer de suas atribuições,
comungamos com a opinião daqueles que consideram que suas decisões,
inclusive as decorrentes do estabelecido no inciso II do artigo 71, têm
natureza meramente administrativa, podendo ser revista pelo Poder
Judiciário, por força do princípio da unidade de jurisdição [...] (PELEGRINI,
2014, p. 100).

Deve, contudo, reconhecer ao Professor José Cretella Júnior o mais detalhado


trabalho sobre o tema desse subtítulo. Sustenta o autor fundamentalmente que no
Brasil não há a figura do contencioso administrativo, prevalecendo o monopólio da
jurisdição com o Poder Judiciário, e que seria absurdo imaginar a possibilidade de as

29
Para Hely Lopes Meirelles (1998) “por serem atos administrativos, comportam o “controle judiciário
ou judicial” (Ob. cit., p. 62)
30
Segundo Di Pietro “Não se trata de função jurisdicional, porque o Tribunal apenas examina as contas,
tecnicamente, e não aprecia a responsabilidade do agente público, que é de competência exclusiva do
Poder Judiciário” (Ob. cit., p.826).
31
Para José Afonso da Silva, o Tribunal de Contas “não julga pessoas nem dirime conflitos de
interesses, mas apenas exerce um julgamento técnico de contas [...] Estamos, assim, também de
acordo que o Tribunal de Contas é um órgão técnico, não jurisdicional”. (SILVA, José Afonso. Curso
de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 167).
24

Cortes de Contas deterem concomitantemente as duas funções – administrativa e


jurisdicional –, pois quem administra não julga, e quem julga não administra.
Cumpre trazer a seguinte transcrição32:

Em síntese, toda uma série de traços externos, de "aparência", epidérmicos,


é que tem levado os estudiosos a outorgar aos Tribunais de Contas a função
jurisdicional, quando esta, no Brasil, em que não há o contencioso
administrativo, mas onde impera o princípio da una lex, una jurisdictio, é
privativa do Poder Judiciário, cuja missão específica é a de aplicar
contenciosamente a lei ao caso concreto, dirimindo controvérsias entre
partes, dando, afinal, a razão a quem a tem, ou seja, concretizando ao
vencedor a entrega da prestação jurisdicional (CRETELLA JUNIOR, 1987
p.198).

Toshio Mukai 33 igualmente posiciona-se no sentido de que os Tribunais de


Contas produzem apenas decisões que fazem coisa julgada administrativa, alteráveis
perante o Judiciário, em razão do inciso XXXV do art. 5º da Constituição34. Adere a
esse entendimento José Rubens Costa35.
Nesse sentido, Ellen Gracie 36 em artigo sobre a possibilidade de o Poder
Judiciário rever as decisões dos Tribunais de Contas, expõe o entendimento de que,
na revisão judicial dos atos administrativos, tais quais as decisões do TCU, o poder

32
Não obstante, utiliza-se essa nota de rodapé para colacionar enxertos importantes do referido
trabalho de José Cretella Junior:
“Francesco Carnelutti, com base no critério orgânico, bem como Piero Calamandrei criticando
Carnelutti, e, por fim, Giovanni Cristofolini estudaram profundamente a diferença entre jurisdição e
administração, concluindo o último Autor que essa distinção repousa menos sobre base lógica do que
sobre base histórico-política, porque "administração é a atividade do Estado dirigida à consecução de
seus fins, mediante a satisfação de interesses que o Estado considera seus, ao passo que jurisdição é
a atividade do Estado dirigida para a consecução do interesse coletivo tendente à composição das
lides, mediante o estabelecimento de comandos concretos, dirigidos aos titulares dos interesses em
litígio. A jurisdição inclui-se, conceitualmente, na administração, de que se desmembrou pela exigência
política de assegurar a necessária independência dos órgãos incumbidos de realizar esse
importantíssimo interesse coletivo" (CRETELLA JUNIOR, Ob. cit., p.197).
33
MUKAI, Toshio. Os Tribunais de Contas no Brasil e a coisa julgada. Revista do Tribunal de Contas
da União, v. 27, n. 70, p. 83–86, out./dez., 1996.
34
Segundo Castro Nunes “A jurisdição de contas é o juízo constitucional de contas. A função é privativa
do Tribunal instituído pela Constituição para julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e bens
públicos. O judiciário não tem função no exame de tais contas, não tem autoridade para as rever, para
apurar o alcance dos responsáveis, para liberar. Essa função é ‘própria e privativa do Tribunal de
Contas’ [...] (NUNES, Castro. Teoria e Prática do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p.
30). Portanto, existe aí uma primeira questão: as decisões dos Tribunais de Contas, em suas essências,
são imutáveis perante o Poder Judiciário? Cremos que não. Nenhuma lesão de direito pode ser
subtraída da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da CRFB/88).
35
COSTA, José Rubens. Controle jurisdicional dos atos decisórios dos Tribunais de Contas. Boletim
de Direito Administrativo, São Paulo, v.12, n.6, p.341-356, jun. 1996.
36
GRACIE, Ellen. Notas sobre a revisão judicial das decisões do Tribunal de Contas da União pelo
Supremo Tribunal Federal. Fórum de Contratação e Gestão Pública FCGP, Belo Horizonte, ano 7,n.
82, out. 2008.
25

judiciário estará em “certos casos logicamente autorizado o reexame do mérito”, mas


devendo “preservar as competências essenciais da administração”. No entanto,
demonstra que a enorme maioria dos julgamentos do STF, que tenham por base
decisões da Corte de Contas, atém-se tão somente a questões de ilegalidades e
irregularidades formais graves37.
Há ainda reflexão da década de 70 do século passado de Heráclito Salles 38,
em que o autor, valendo-se da Teoria do Processo, sustenta não haver força de coisa
julgada nas decisões dos Tribunais de Contas, já que incumbiria ao Estado usar do
próprio Poder Judiciário para executar as decisões proferidas pelas Cortes de Contas.
Provavelmente, ainda em época em que a atuação do Tribunal de Contas se
restringia à apreciação de aposentadorias e pensões, Themístocles Cavalcanti 39
assentou que o TCU possuiria “função quase judicial”, entendendo assim que o
Tribunal possuiria jurisdição, num sentido literal, uma vez que julga, contudo as
decisões da Corte de Contas não se revestiriam dos efeitos dos atos judiciários, não
produzindo coisa julgada e sendo suscetíveis de revisão judicial.
Interessante que o clássico jurista excepciona de sua afirmativa o exame
contábil nas tomadas de contas, que não se submeteriam à reapreciação do Poder
Judiciário, sendo mera apuração aritmética de valores, advinda de função delegada
ao TCU pelo Congresso, perante o qual a Corte responderá40.

37
A autora conclui: “De acordo com o artigo 5°, XXXV da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e esse princípio encerra o axioma universal segundo o
qual nenhuma questão envolvendo interesse ou direito pode ser subtraída ao reexame do juízo natural
competente. Em outros termos, qualquer pretensão de qualquer pessoa relacionada a direito pode ser
deduzida em juízo. Nessa linha de entendimento, qualquer ação ou comportamento de pessoa privada
ou entidade pública capaz de ameaçar direito ou qualquer deliberação de entidade pública ou privada
com o mesmo intuito pode ser discutida em juízo pelo interessado ainda quando tenha sido ou pudesse
ser objeto de prévia discussão administrativa ou extrajudicial. Vige assim, entre nós, em qualquer
circunstância, o princípio da inafastabilidade do reexame judicial. Ante tal quadro, o controle externo da
atividade contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da
administração direta e indireta quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das
subvenções e renúncia de receitas (art. 70 da Constituição), a cargo do Congresso Nacional e exercido
com o auxílio do tribunal de Contas (art. 71 da Constituição), sujeita-se ordinariamente ao mesmo
regime de controle judicial” (GRACIE, Ellen. Ob. cit., p.26)
38
SALLES, Heráclito. Natureza, autonomia e duplicidade da função dos Tribunais de Contas. Revista
do Tribunal de Contas da União, v. 7, n. 14, p. 2–22, dez., 1976.
39
CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O Tribunal de Contas - Órgão constitucional - Funções
próprias e funções delegadas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 109, p. 1-10, jan.
1972.
40
Em que pese esse autor não concordar em hipótese alguma com as reflexões trazidos por
Themístocles Cavalcanti, pelo valor histórico vale à pena transcrever o enxerto seguinte: “Examinando,
em seu contexto, a competência e atribuições do Tribunal de Contas, poderemos ‘verificar que ele não
está vinculado ao sistema Judiciário mas a uma estrutura administrativa dentro de uma conceituação
moderna que inclui aquilo que os americanos chamam de função “quase judicial”. Na verdade, se a
competência para “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores
26

Em sentindo análogo ao tratado por Themístocles Cavalcanti, Marçal Justen


Filho 41 , em seu Curso de Direito Administrativo, em que pese não reconhecer
exercício de função jurisdicional aos Tribunais de Contas, afirma que: “[...] seria
possível aludir, a propósito do Tribunal de Contas, a uma atuação quase jurisdicional.
[...] Nenhum outro órgão integrante do Poder Executivo e do Poder Legislativo recebeu
da Constituição poderes de julgamento equivalentes, inclusive no tocante à relevância
e eficácia, aos assegurados ao Tribunal de Contas”.
Há os que colocam o tema em ponto de equilíbrio, pois em que pese
defenderem o exercício pelos Tribunais de Contas de apenas função administrativa,
concebem que suas decisões não são passíveis de sofrerem revisão pelo Judiciário
quanto ao seu mérito.
Nesse sentido, Benjamin Zymler 42 afirma não possuírem os Tribunais de
Contas função jurisdicional, o que não impediria a existência de uma relação
processual que ao final estabeleça juízo de mérito dentro de sua constitucional
competência:
É inegável que a definição da natureza jurídica da atuação dos Tribunais de
Contas, ao proferir julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros e
bens públicos, é tarefa árdua que vem desafiando, ao longo dos tempos,
nossos doutrinadores [...]. Se acalorados embates doutrinários discutiam a
delimitação da função judicante do Tribunal de Contas, que alguns entendiam
assemelhada à exercida pelo Poder Judiciário, não há negar a evidente
prevalência dos que propugnavam por uma acepção especial do verbo julgar
e da expressão jurisdição, circunscritas ao exercício de atribuição
administrativa [...]. Como reação natural à ‘heresia’ terminológica referida,
parcela importante da doutrina e da jurisprudência pátria pretendeu restringir
a competência do Tribunal de Contas a mero exame de conformidade de

públicos” significa, de algum modo, o exercício de uma função jurisdicional, não é menos certo que
esta função é puramente administrativa, restrita e hoje ainda mais limitada, de momento que o controle
da legalidade dos contratos foi subtraído ao Tribunal de Contas. A tese da função jurisdicional teve a
sua época, quando o Tribunal de Contas exercia um contencioso no exame da juridicidade e legalidade
dos contratos. Abolido esse controle, a ação fiscalizadora da Corte ficou apenas no exame, no
julgamento das contas, isto é, no resultado aritmético e contábil dessas contas, sem maior preocupação
pelo exame da legalidade de sua aplicação. Este ficou apenas na apreciação das aposentadorias e
pensões. Aí, sim, o controle se exerce em sua plenitude, mas sempre sujeito, quando provocado, à
revisão judicial. [...] Seria uma função jurisdicional no sentido literal porque o julgamento, pelo menos
quando se trata de apreciação da legalidade de aposentadorias, pensões, etc., envolve o exame de
um ato em face do direito vigente. Será, portanto, a rigor, uma função de dizer do direito dos
interessados. Mas, não tem os efeitos dos atos judiciários, notadamente quanto a produzir cousa
julgada, tornando-o insuscetível de revisão judicial. Serão atos administrativos, a que se aplicam todas
as regras relativas à usa eficácia. A única exceção a essa regra é quanto ao exame contábil nas
tomadas de contas, não só porque não importa em exame de legalidade, mas apuração aritmética dos
valores sob a guarda do seu responsável e dos administradores. Além do mais, nos termos da
Constituição, é ato do Tribunal de Contas exercido como auxiliar do Congresso e, portanto, como
função delegada. Responde o Tribunal perante o Congresso (CAVALCANTI, Themístocles Brandão.
Ob. cit., p. 1-10).
41
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Ob.. cit., p. 1206 e 1211.
42
ZYMLER, Benjamin. Processo Administrativo no Tribunal de Contas da União. Prêmio
Serzedello Corrêa 1996 – Monografias Vencedoras. Brasília: Instituto Sezedello Corrêa, 1997.
27

peças contábeis dissociando-a de uma avaliação sobre a conduta do agente


público. Ainda hoje, tal entendimento não raras vezes é acatado por alguns
magistrados, principalmente em sede de embargos à execução apresentados
em ações executórias de acórdãos do TCU – que têm eficácia de título
executivo extrajudicial (CF, art. 71, § 3º) – postulando a nulidade das decisões
emanadas da Corte de Contas. Em verdade, os que se posicionam
extremadamente — equiparando as deliberações do TCU a sentenças
judiciais ou entendendo-as como mero exame formal de contas —
desconhecem o real escopo da moderna processualidade administrativa que,
fazendo atuar o processo, inspirada pelos princípios da ampla defesa e do
contraditório, permite ao Tribunal de Contas da União estabelecer juízo de
mérito sobre os atos dos agentes públicos responsáveis por bens e dinheiros
públicos. Para a consecução desse mister, nada obsta que o TCU possa
avaliar os elementos objetivos e subjetivos da atuação do agente, de sorte a
julgar suas contas, não mediante mera atestação da regularidade formal de
um elenco de demonstrações contábeis, mas, sim, apreciando, em sua
plenitude, sob o prisma da legalidade, legitimidade e economicidade (caput
do art. 70, CF), o conjunto de atos administrativos praticados pelos
responsáveis durante o exercício financeiro (Prestação ou Tomada de Contas
Anual) ou associados à determinada ocorrência (Tomada de Contas
Especial). Os que assim não entendem também não admitem a existência de
um processo administrativo pleno. De igual modo, não percebem que a
distinção entre atividade administrativa e jurisdicional não impede que se
designe por processo todo procedimento administrativo exercido com a
intervenção dos interessados e informado pelo princípio do contraditório
(ZYMLER, 1997, p. 181).

Perceba-se o quão polêmico é o tema em nossa doutrina, interpretações em


direções distintas buscando delinear o posicionamento e natureza administrativa dos
Tribunais de Contas. Mais forte ainda é a controvérsia quando se deparam com as
análises abaixo, em que sustentam possuir função jurisdicional tais cortes de contas.

2.1.4.2 A corrente que defende exercerem os Tribunais de Contas também a função


jurisdicional

Não se pode negligenciar o peso acadêmico dos clássicos juristas brasileiros


defensores do exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas como
Pontes de Miranda 43 e Seabra Fagundes 44 . Para o primeiro desde 1934 que não
haveria qualquer dúvida sobre a competência jurisdicional dos Tribunais de Contas:

Tanto quanto ao Tribunal de Contas de 1934 ao Tribunal de Contas de 1937


reconhecêramos função judiciária. Êsse elemento de classificação, que
defendemos, foi reafirmado pela Constituição de 1946? A nova Constituição
tem o Tribunal de Contas como “órgão (auxiliar) do Poder Legislativo. Mas a
função de julgar ficou-lhe. No plano material, é corpo judiciário; no formal,
corpo auxiliar do Congresso Nacional. [...] O Tribunal de Contas tem duas

43
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1947.
44
FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 1984.
28

funções – uma, que é a antiga, ligada à execução orçamentária, e outra, de


julgamento de contas. Tanto numa quanto noutra é possível que ocorra a
necessidade de se responder à pergunta – é ou não inconstitucional? Como
tribunal, tem que julgá-lo (MIRANDA, 1947, p.141).

Já para o Seabra Fagundes:

Ao Tribunal de Contas se delega a apreciação jurisdicional de certas


situações individuais (as dos responsáveis por valores patrimoniais da
União), mas tão-somente no que concerne ao aspecto contábil, embora com
reflexos nas órbitas penal e civil (FAGUNDES, 1984, p. 122).

Das pesquisas realizadas, identificaram-se ainda as duas recentes teses45 de


doutoramento, de Frederico Pardini e Cristina Del Pilar Pineiro Busquets, tratando dos
Tribunais de Contas46. Em ambas, seus autores compreendem que os Tribunais de
Contas exercem também função jurisdicional (art. 71, inciso II, da CFRB/88). Há ainda
a posição do ex- Ministro do TCU, Luciano Brandão Alves de Souza 47 , o qual
participou das discussões que levaram nossos Constituintes à promulgação da
CRFB/88:
A prerrogativa de julgamento de contas está, pois, claramente definida no
inciso II do art. 71. Deve prestá-las quem quer que "utilize, arrecade, guarde,
gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos", conforme
preceitua o parágrafo único do art. 70.
O Tribunal é, em síntese, órgão público de controle externo, investido de
poder jurisdicional, próprio e privativo, em todo o território nacional, sobre
matérias do seu rol de atribuições, detidamente explicitadas (SOUZA, 1989,
p.45).

No mesmo sentido é a posição de Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz48:

A jurisprudência da Suprema Corte, ora reafirmada pelo Tribunal Regional


a
Federal da 4 Região, bem como da melhor doutrina, orienta-se no sentido
de que o julgamento proferido pelos Tribunais de Contas, ao apreciar as
contas do Chefe do Poder Executivo e julgar a dos administradores, no caso
do inciso II do art. 71 da CF/88, configura tal competência uma jurisdição
especial, na expressão do saudoso jurista RUY CIRNE LIMA, no que diz com

45
PARDINI, Frederico. Tribunal de Contas da União: órgão de destaque constitucional. 1997. 464f.
Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 1997; BUSQUETS, Cristina Del Pilar Pineiro. A configuração jurídica do Tribunal de
Contas: o processo e o tempo. 2010. 280f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Estudos Pós-
Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
46
Já a tese de Márcia Pelegrini, em que pese tratar do Tribunal de Contas, tem escopo mais delimitado
em enfocar sua competência sancionatória.
47
SOUZA, Luciano Brandão Alves de. A Constituição de 1988 e o Tribunal de Contas da União. Revista
de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 175, p. 36-46, fev. 1989.
48
LENZ, Carlos Eduardo Thompson Flores. O Tribunal de Contas e o Poder Judiciário. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 238, p. 265-282, jan. 2004.
29

o seu merecimento, o que revela a importância que a Constituição conferiu


às Cortes de Contas, visando afastar da vida pública aquelas autoridades que
não observaram no desempenho de suas atribuições, as normas de direito
administrativo e de contabilidade pública (LENZ, 2004, p. 272).

Nunca se poderia deixar de considerar em alta conta os importantes e inúmeros


estudos de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes 49 sobre o tema Tribunais de Contas,
merecendo destacar a seguinte passagem de uma de suas obras:

Nota-se no elenco de competência o rigor científico na terminologia


empregada, acentuando a diferenciação, inclusive da finalidade de cada
mister cometido. Para algumas tarefas empregou-se o termo apreciar, em
outras fiscalizar, em outras realizar inspeção e auditoria e, apenas em um
caso, julgar. Nesse quadro é impossível sustentar que o constituinte agiu
displicentemente, por ignorância ou descuido. Ao contrário, conhecendo a
riqueza do vocabulário utilizou-o com perfeição, ora restringindo, ora
elastecendo, ora visando a que esse Tribunal acompanhasse a execução
dos atos – num controle simultâneo – ora deixando evidente que o controle
seria posterior à prática (FERNANDES,1996, p.68).

Nesse mesmo diapasão é entendimento de Bento José Bugarin50:

O mestre Castro Nunes é de opinião, como se verifica, que o Tribunal de


Contas, embora sem integrar o Poder Judiciário, exerce uma jurisdição
contenciosa de contas, e que as decisões proferidas nessa jurisdição
constitucional de contas, que tem no TCU seu órgão privativo, condicionam
a instauração da ação penal e não podem ser revistas, quer no juízo penal,
quer no juízo cível da execução (BUGARIN, 1982, p. 33).

Athos Gusmão Carneiro51 compreende que a Constituição admite dois casos


de “jurisdição anômala”, o primeiro seria o julgamento nos crimes de responsabilidade
praticados por Presidente da República pelo Senado Federal, e o segundo seriam os
julgamentos pelos Tribunais de Contas das contas de responsáveis pelo erário.
Júlio Cesar Manhães de Araújo 52 detalha com muita adequação todas as
principais correntes doutrinárias favoráveis e contrárias à natureza da função
jurisdicional do julgamento de contas pelos Tribunais de Contas, para, enfrentando

49
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Limites à revisibilidade judicial das decisões dos Tribunais de
Contas. Revista do Tribunal de Contas da União, out/dez, n. 70, p. 39-71, 1996.
50
BUGARIN, Bento José. O Tribunal de Contas da União e o controle externo no Brasil. Revista do
Tribunal de Contas da União, Brasília, ano 12, n. 27, p. 25-61, dez. 1982.
51
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012
52
ARAUJO, Júlio Cesar Manhães de. Controle da atividade administrativa pelo Tribunal de Contas
na Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2010.
30

cada qual delas, concluir pela prevalência da função jurisdicional no exercício da


competência prevista no inciso II do art. 71 da CRFB/88:

O fato é que o exercício da jurisdição é definido pela própria Constituição da


República Federativa do Brasil, e tanto se constituiu em manifestação da
soberania o julgamento proveniente do Poder Judiciário, no desempenho de
sua atividade preponderante, quanto também é julgamento o proferido pelo
Senado Federal quando julga as autoridades alinhadas nos incisos I e II, do
artigo 82, quanto é jurisdição também o julgamento das contas a que alude o
artigo 72, inciso II, da Constituição. E isso não é nihil novum sub sole,
porquanto conforme alinha Fernandes, a expressão julgar parece ter se
originado no Código de Contabilidade Pública de 1922 (Decreto 4.536, de
28.01.1922, artigo 91) e, a partir daí, passou a figurar em todas as nossas
Constituições, desde a de 1937 (ARAUJO, 2010. p. 306).

Em similar dissertação 53 , enfrentando com cuidado o tema das funções


administrativa e jurisdicionais dos Tribunais de Contas, Luiz Bernardo Dias Costa
conclui:

A terceira conclusão cinge-se à natureza jurídica das decisões prolatadas


pelo Tribunal de Contas, em que esse exerce função jurisdicional especial
quando julga as contas dos administradores e demais responsáveis por
dinheiros, bens e valores públicos (artigo 71, inciso II, da CF/88), não
havendo possibilidade de revisão de mérito pelo Poder Judiciário, salvo
quando a decisão afrontar o devido processo legal ou for manifestamente
ilegal (COSTA, 2006, p. 150).

Do que se viu, ressalta o quão debatido vem sendo o tema54. Sem possuir a
pretensão de esgotar a polêmica discussão doutrinária de décadas, esse pesquisador
buscará traçar abaixo quais são as linhas hermenêuticas que o levaram à convicção
de que nossa Constituição da República de 1988 conferiu ambas as competências
aos Tribunais de Contas: a administrativa e a jurisdicional.

2.2 Tribunais de Contas: competentes constitucionalmente para o exercício das


funções administrativa e jurisdicional

53
COSTA, Luiz Bernardo Dias. Tribunal de Contas: evolução e principais atribuições no Estado
Democrático de Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
54
O debate sobre o tema é tão complexo que há ainda aqueles que iniciam reflexão no sentido de os
Tribunais de Contas no Brasil não exercerem nenhuma das três funções tradicionais do Estado, mas
uma quarta, que se denominaria de função de controle externo, como Carlos Ayres Brito. Contudo, não
nos parece o caminho hermenêutico correto a percorrer nesse momento.
31

Como vastamente conhecido, Miguel Seabra Fagundes55 brindou a ciência do


direito com sua excepcional obra “Do Controle dos Atos Administrativos pelo Poder
Judiciário”, onde discrimina com precisão as diferentes três funções estatais –
legislativa, administrativa e jurisdicional – em que:

a) a função legislativa seria aquela que produz norma jurídica (geral, abstrata e
obrigatória) de forma inovadora perante a ordem jurídica;
b) a função administrativa teria como escopo aplicar em concreto a norma jurídica
geral e abstrata produzida pela função legislativa;
c) e a função jurisdicional igualmente aplicaria em concreto a norma jurídica geral
criada pela função legislativa, mas traria um qualificador próprio, em relação à
função administrativa, o de aplicar a norma jurídica de forma definitiva.

Para analisar qual ou quais das referidas funções estatais teriam sido entregues
pelo constituinte originário ao órgão TCU, o cientista do direito deve proceder à
interpretação da própria Constituição56, incumbindo, na visão deste autor, seguir o
procedimento hermenêutico proposto por Karl Larenz 57 , qual seja: iniciar pela
interpretação literal, avaliando sua correlação e adequação com a interpretação
sistemática e, ao fim, confirmando pela interpretação histórica e teleológica.

2.2.1 Da interpretação literal ou semântica

Por meio de interpretação, literal, das proposições contidas nos transcritos


artigos 70 e 71, os Tribunais de Contas receberam dever-poder de instaurar processos
de auditoria de contas contra agentes e/ou pessoas físicas ou jurídicas, instruí-los,
julgar a legalidade, a legitimidade e economicidade das contas em tais processos,
sancionando os responsáveis.
A CRFB/88 utilizou, a fim de entregar tais competências, o verbo julgar apenas
nos seguintes artigos:

55
FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 1984.
56
Como o próprio nome diz, a constituição constitui o Estado, dizendo como deve se organizar, quais
funções deve exercer e quais princípios lhe conformarão, como muito bem demonstrado por José
Joaquim Gomes Canotilho e por tantos expoentes da Teoria da Constituição.
57
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1997.
32

a) Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] IX - julgar


anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os
relatórios sobre a execução dos planos de governo;
b) Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes
de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes
da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza
conexos com aqueles; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23,
de 02/09/99)
II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros
do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério
Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos
crimes de responsabilidade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
45, de 2004)
c) Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com
o auxílio do TCU, ao qual compete: [...];
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,
bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as
fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal,
e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra
irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
d) E, obviamente, no Capítulo III, Do Poder Judiciário, nos artigos 96, 102, 105,
108, 109, 114, 124, 125.

Não se verificou qualquer equívoco do Constituinte quanto ao manejo do


vocábulo julgar quando estabeleceu as competências dos órgãos acima; em todos
os artigos e inciso em que o colocou, sua intenção foi claramente aquela contida nos
dicionários da língua portuguesa “tomar decisão, deliberar na qualidade de juiz ou
árbitro; pronunciar sentença; sentenciar” (HOUAISS, 2009, p. 1138).
Em todas as referidas oportunidades, não se consegue substituir o símbolo
julgar por outra palavra sinônima, como sentenciar ou decidir, pois não seria
adequado do ponto de vista científico, já que tais ações são meras partes da ação
maior de julgar. O juiz julga, e para tanto tem que tomar decisões interlocutórias e a
decisão terminativa denominada de sentença. O tribunal julga, e para tanto tem que
33

tomar também decisões interlocutórias e expedir votos, que, em colegiado, formarão


o acórdão.
Interessante curiosidade: o Constituinte usou 28 vezes o símbolo julgar; em 24
vezes o utilizou entregando a competência própria de julgar; apenas em 4 momentos
(artigos 72, 84, XI, 103, 130) o apôs com o sentido claro e evidente de entender -
“solicitando as providências que julgar necessárias”, ou em idêntico sentido:
solicitando as providências que entender necessárias.
Pergunta-se: será que a CRFB/88 comete equívoco apenas no inciso II do
artigo 71?

2.2.2 Da interpretação sistemática

Equívocos todos podem cometer. Se houvesse norma ou princípio


constitucional antagônicos ao do inciso II do art. 71, então se poderia afirmar pela
inadequação da palavra julgar ali contida 58 . Para encontrar tal antinomia deve-se
iniciar, como ensina Karl Larenz, a interpretação sistemática do texto constitucional,
tanto na perspectiva material como na formal.
Sob o aspecto formal, pode-se começar pela inclusão expressa da palavra
jurisdição59 no art. 73, caput, segundo o qual, o TCU é “integrado por nove Ministros,
tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território
nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96”.

2.2.2.a Interpretação sistemática quanto ao aspecto formal

Ainda sob o aspecto formal, os parágrafos 3o e 4o do art. 73 estabelecem que


os “Ministros do TCU terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos,
vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça”, assim como

58
Interessante passagem do texto de Luís Roberto Barroso, segundo o qual, “O intérprete da
Constituição deve partir da premissa de que todas as palavras do texto Constitucional têm uma função
e um sentido próprios. Não há palavras supérfluas na Constituição, nem se deve partir do pressuposto
de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica. Idealmente, ademais, deve o
constituinte, na medida do possível, empregar as palavras com o mesmo sentido sempre que tenha
que repeti-las em mais de uma passagem. De toda sorte, a eventual equivocidade do Texto deve ser
remediada com a busca do espírito da norma e o recurso aos outros métodos de interpretação”
(BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2003, p.130).
59
A palavra jurisdição foi utilizada na CRFB/88 31 vezes, sendo que em 29 oportunidades foi colocada
para significar atribuição dos Tribunais do Judiciário, uma para o Tribunal de Contas e uma outra única
vez para a administração fazendária. Isto significa para o TCU certa coerência constitucional.
34

os seus auditores, “quando no exercício das demais atribuições da judicatura”, terão


as mesmas garantias e impedimentos dos juízes de Tribunal Regional Federal. Não
há qualquer outro momento em que o Constituinte tenha dado semelhante estatura
de judicatura60 a órgão que entregou apenas competência administrativa.
O próprio nome entregue pela CRFB/88 ao referido órgão foi Tribunal, diferente
dos demais órgãos administrativos que expedem decisões administrativas, como
conselhos, ministérios, secretarias, agências, corregedoria, procuradoria, autarquia,
administração fazendária ou tributária. Não há na CRFB/88 uma só utilização
equivocada da palavra tribunal, sempre no sentido de órgão colegiado de
magistrados61.
Assim, sob o aspecto formal, não há aparência de qualquer conflito que
pudesse retirar a força do verbo julgar.

2.2.2.b Interpretação sistemática quanto ao aspecto material

Quanto à perspectiva material, há interessantes análises a se fazerem.

2.2.2.1 Da não violação à Tripartição dos Poderes

Em relação aos princípios constitucionais, cumpre inicialmente avaliar o da


tripartição dos poderes (art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário): como já vastamente assentado pela
melhor doutrina62, cada um desses três órgãos podem exercer uma, duas ou até três
das funções do estado (legislativa, administrativa e jurisdicional), tanto é assim que:

60
Segundo o dicionário Michaelis, a palavra judicatura, substantivo feminino, significa “1. Cargo ou
dignidade de juiz. 2 Dir. Exercício da função de juiz; duração desse exercício. 3 Poder de
julgar. 4 Poder judiciário. 5 Tribunal”. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/definicao/judicatura%20_988263.html>. Acesso em:
20 nov. 2016.
61
Para Álvaro Guilherme Miranda, os Tribunais de Contas, diferentemente das auditorias e
controladorias, apresentam estrutura de colegiado formado por membros com cargos vitalícios –
semelhantes ao Poder Judiciário – e que exercem legitimamente poderes jurisdicionais e coercitivos
face aos particulares (MIRANDA, Álvaro Guilherme. Mudança institucional do Tribunal de Contas:
Os oito modelos debatidos na Constituinte de 1988 para o sistema de fiscalização do Brasil.
2009. 154f. Dissertação de Mestrado. Instituto de Economia/UFRJ - Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 2009).
62
Quanto à possibilidade de cumulação de funções típicas e atípicas pelos Poderes estatais, tem-se
CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina, 2003; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29 ed. São Paulo:
Malheiros, 2007; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009; NOVELINO, Marcelo.
35

a) ao Órgão Executivo foi entregue, além da precípua função administrativa, o


exercício da função legislativa quando expede medidas provisórias e leis
delegadas (artigos 59, 62 e 68 da CRFB/88);
b) ao Órgão Legislativo coube o exercício: da função legislativa, na expedições
de leis complementares, ordinárias, decretos legislativos e resoluções do
Senado Federal (art. 59); da função administrativa, quando lhe impõe gerir e
administrar autonomamente suas duas casas, Câmara dos Deputados e o
Senado Federal; da função jurisdicional, quando julga as contas do
Presidente e o julga por crime de responsabilidade (artigos 49, IX, e 52), além
de também exercê-la, por meio do Tribunal de Contas (órgão autônomo e
independente, mas que integra o Poder Legislativo63), quando julga as contas
daqueles que usam recurso público (art. 71, inciso II);
c) ao Órgão Judiciário, além da função jurisdicional ao qual é primariamente
vocacionado, exerce a função administrativa quando lhe impõe gerir e
administrar suas autônomas estruturas orgânicas.
Assim, não há qualquer ameaça ao referido princípio da tripartição dos poderes
no fato de o próprio Constituinte Originário entregar a um dos órgãos por ele mesmo
criado a função tal ou qual64.

2.2.2.2 Da inexistência do monopólio da função jurisdicional ao Poder Judiciário

Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Método, 2012; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014 e BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito
Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
63
De acordo com a CRFB/88, o Tribunal de Contas da União foi alocado dentro do Poder Legislativo,
sem personalidade jurídica própria. Contudo tem suas específicas competências que não podem ser
exercidas por outras entidades, substituindo-o, nem mesmo o Congresso Nacional. Por isso o TCU é
um órgão autônomo e independente, responsável por sua gestão administrativa interna, sem sofrer
interferência de qualquer outro órgão.
64
Marçal Justen Filho reconhece igual divisão em seu Curso de Direito Administrativo (2015, p. 118),
fazendo interessante e corajosa reflexão no sentido de ser necessário evoluirmos do entendimento
setecentista de mera Tripartição de Poderes para incluirmos mais dois Poderes completamente
autônomos e independentes dos demais: o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União. Essa
discussão é por demais rica e realmente merece ser enfrentada. Contudo, o objeto dessa tese é muito
mais simples e não alcança a pretensão de debruçar sobre tamanha reflexão filosófica. Outra questão
correlata é a de que se criarmos mais dois Poderes, seriam por eles também exercidas duas novas
funções? Ou o Ministério Público exerceria uma nova função de fiscalização ampla e o Tribunal de
Contas a função de fiscalização de contas? A função administrativa é correspondente com a função de
fiscalização?
36

Mais relevante dúvida advém sobre a possível afronta ao princípio que se


denomina de unicidade da jurisdição, pois quase que a esmagadora doutrina 65
brasileira e parte do Judiciário 66 ensinam que nossa Constituição de 1988 teria
escolhido tal modelo, aparando-se no art. 5º, inciso XXXV, segundo o qual “a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
De certa forma essa questão pode ser resolvida pela afirmativa acima, em que
se demostra a possibilidade de o Constituinte entregar o exercício da função
jurisdicional ao Senado Federal, por exemplo. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal,
interprete máximo da Constituição, reconhece a competência exclusiva dessa Casa
Legislativa para exercer atividade judicante quando há crime de responsabilidade
praticado pelo Presidente da República e demais agentes públicos, a teor do art. 52,
incisos I e II, da CRFB/88.
Tal entendimento restou consolidado no julgamento histórico do “Caso Collor”
por meio do Mandado de Segurança 21.564/DF 67 e, igualmente, no recente
julgamento da medida cautelar na ADPF 378/DF68, em se discutiu o rito do processo
de impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Nesse sentido, cumpre destacar
trechos de ambas as decisões:

[...]Impeachment do Presidente da República: compete ao Senado Federal


processar e julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade

65
Assim prelecionam CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16.
ed. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2006; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional
e o Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010; CINTRA, Antonio Carlos de
Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 30. ed.
São Paulo: Malheiros, 2014 e DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. cit.,
66
Destaca-se trecho de recente decisão proferida pelo Min. Marco Aurélio: “A existência de órgãos
pára-jurisdicionais, como o Tribunal de Contas da União, não afasta o fato de que, no Brasil, a jurisdição
é unitária, sendo certo que não dispomos de Contencioso Administrativo, como ocorre em outros
países. 2)Essa unidade – decorrente do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (ou da
ubiquidade da justiça) [art. 5º, XXXV] –, não se contrapõe, todavia, ao caráter soberano e permanente
das decisões dos Tribunais de Contas, quando no exercício da sua específica competência
constitucional (art. 71, da CF). Assim, impende observar a desejável harmonia entre as competências
constitucionalmente estabelecidas” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário
629711/RJ. Relator: Min. Marco Aurélio de Mello. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 11 nov.2015.
Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000246569&base=baseMonocra
ticas>. Acesso em: 03 out. 2016.
67
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 21564. Relator: Octavio Galloti -
Tribunal Pleno. Diário de Justiça, Brasília, 27 ago. 1993. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobrestfconhecastfjulgamentohistorico/anexo/ms21564.pdf>.
Acesso em 03 out. 2016
68
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na ADPF 378. Relator: Edson Fachin - Tribunal
Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 08 mar. 2016. Disponível:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10444582>. Acesso em: 03 out.
2016.
37

(CF, art. 52, I; art. 86, § 1º, II), depois de autorizada, pela Câmara dos
Deputados, por dois terços de seus membros, a instauração do processo (CF,
art. 51, I), ou admitida a acusação (CF, art. 86). É dizer: o impeachment do
Presidente da República será processado e julgado pelo Senado. O Senado
e não mais a Câmara dos Deputados formulará a acusação (juízo de
pronúncia) e proferirá o julgamento (CF, art. 51, I; art. 52, I; art. 86, § 1º, II, §
2º) [...]. Assim, em princípio, já se dava no regime anterior, não obstante,
agora, caiba ao Senado Federal, além de julgar, também processar o feito, o
que bem significa ser, na Câmara Alta, onde se realiza instrução do processo,
com a apuração das provas tidas como necessárias ou cabíveis. (BRASIL,
1993).

[...]Além disso, a expressão “processar e julgar” é utilizada pela Constituição


em diversas passagens (arts. 52, I e II; 102, I; 105, I; 108, I; 109, caput; 114,
caput; 124, caput; e 125, §§ 4º e 5º), sempre no contexto do exercício de
funções judiciais. Em todas essas situações, compete sempre e naturalmente
ao órgão judicante uma análise preliminar quanto à aptidão da demanda. Não
se cogita obrigar o órgão julgador a levar um processo até seus ulteriores
termos independentemente de uma análise prévia quanto à sua viabilidade.
Isto impediria o órgão de exercer adequadamente sua função julgadora
(BRASIL, 2016).

Ainda, o STF no julgamento do Mandado de Segurança 16.255/DF69 chegou a


entendimento análogo quando confrontado com o argumento do suposto monopólio
da jurisdição ao Judiciário. Os Ministros Evandro Lins e Silva (Relator do voto
unânime), Aliomar Baleeiro, Hermes Lima, Victor Nunes Leal, Luiz Gallotti e Vilas
Boas assim afirmaram:

[...] Como nas (constituições) anteriores, na Carta de 45 o monopólio


jurisdicional do Judiciário se manteve praticamente íntegro. Dêle se
excetuaram, apenas, matérias que, não obstante importando em jurisdição, o
próprio Constituinte entregou a órgãos não judiciários – o processo de
“impeachment”, atribuído, por seu caráter marcadamente político, à
competência sucessiva das duas casas do Congresso Nacional (CF artigos
59, n. I, 62, I e II, 88, 92 e 100), e o julgamento das contas dos responsáveis
por dinheiro ou outros bens do Estado ou das autarquias que, em atenção à
especialização técnico-contábil que pressupõe, se cometem ao Tribunal de
Contas (CF – artigo 77, II) [...]. (BRASIL, 1996).

Contudo, mais simples é a solução quando se verifica que não há antinomia no


texto constitucional entre o inciso XXXV do art. 5o e os referidos artigos 49, 52 e 71,
pois o inciso XXXV é expresso em dizer que a lei é quem não excluirá da apreciação
do Judiciário lesão ou ameaça a direito. Tal inciso não disse que outra norma
constitucional não o poderia fazer.

69
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 16.255/DF. Relator: Min. Evandro
Lins-Tribunal Pleno. Diário de Justiça, Brasília, 05 out.1966. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000152299&base=baseAcordao
s>. Acesso em: 05 dez. 2016.
38

A palavra lei não pode ser interpretada de forma diferente daquela contida no
próprio texto constitucional, quais sejam as normas jurídicas inovadoras produzidas
por meio dos seguintes instrumentos autorizados a veiculá-las: lei complementar, lei
ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto-legislativo, resolução do Senado
Federal (art. 59); tem-se também por expresso comando constitucional as leis
produzidas pelos poderes legislativos dos estados-membros, distrito federal e
municípios.
No máximo se poderia trazer maior reflexão sobre a extensão do símbolo lei
para abranger as emendas à constituição, no sentido de que não caberia uma emenda
excluir do Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito. Mas essa
discussão não ajuda ao caso em debate, pois a suposta entrega de função
jurisdicional ao Senado Federal e ao TCU foi realizada pelo Constituinte Originário.
Portanto parece-nos equivocada a posição da doutrina de que haveria no Brasil
monopólio da função jurisdicional70 ao Poder Judiciário. Pode até ser verdade que
esse sempre fora o sentimento corrente das práticas cotidianas nacionais, incluindo
71
vários acórdãos judiciais nesse sentido , mas escorar nisso para afirmar
categoricamente que a CRFB/88 teria delimitado o tal monopólio, não parece se
sustentar perante uma correta hermenêutica constitucional.

2.2.2.3 Do não prejuízo ao conceito de coisa julgada

Há ainda a afirmação de alguns juristas72 de que as Cortes de Contas não


exerceriam a jurisdição porque suas decisões não fazem coisa julgada 73 ! Essa

70
Destacam-se MEIRELLES, Hely Lopes. Ob. cit.; THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito
Processual Civil. 53. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo;
GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Ob. cit.; LEAL, Rosemiro Pereira. Ob. cit.
e MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros,
2013.
71
Nesse sentido, ver: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1115161/RS. Relator:
Min. Luiz Fux - Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 22 mar.2010; BRASIL. Tribunal
Regional Federal (4ª Região). Processo 2004.71.06.002162-5. Relator: Maria Lúcia Luz Leiria.
Florianópolis, 28 abr. 2010; BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). Processo
2005.34.00.037672-7. Relator: Kassio Nunes Marques. Brasília, 08 ago. 2014; BRASIL. Tribunal
Regional Federal (1ª Região). Processo 0005166-62.2011.4.01.0000. Relator: Fagundes de Deus.
Brasília, 09 set. 2011; BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). Processo 0054331-
44.2012.4.01.0000. Brasília, 30 set. 2013.
72
Essa perspectiva é defendida por Hely Lopes Meirelles, Márcia Pelegrini, Maria Sylvia Zanella Di
Pietro e José dos Santos Carvalho Filho.
73
Tal entendimento é acompanhado pelos Tribunais brasileiros que, raras exceções, reconhecem o
caráter meramente técnico-administrativo as decisões da Corte de Contas e por isso, em tese, não
produziriam coisa julgada face ao Poder Judiciário. Nesse sentido, ver: BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Recurso Especial 1.032.732/CE. Relator: Min. Benedito Gonçalves - Primeira Turma. Diário
39

proposição é o cerne da discussão: decisões jurisdicionais são aquelas que tem o


atributo de definitividade, como bem explicado por Miguel Seabra Fagundes.
Como se sabe, ocorre a coisa julgada quando a decisão passa a ser definitiva,
não podendo ser facilmente revista. Se se entender que a Constituição entregou aos
Tribunais de Contas a função de julgar as contas daqueles que usam recurso público,
a consequência imediata é a de configurar para suas decisões a característica de
definitividade, ou seja de coisa julgada. Assim, do ponto de vista da lógica, frágil a
tentativa de superar a interpretação literal do texto constitucional com esse argumento.
Mas há na CRFB/88 norma clara que estabelece às decisões condenatórias
do TCU certeza e liquidez, nos mesmos moldes que uma decisão condenatória do
Poder Judiciário. Essa norma está insculpida no art. 71 §3º, segundo o qual, “as
decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de
título executivo”.
Veja a gravidade da questão: o inciso II determina a competência de julgar as
contas de pessoas, o inciso IV a de aplicar sanções e o seguinte parágrafo 3o entrega
certeza e liquidez ao débito e multa decidida, constituindo-os como título executivo. O
significado correspondente é que não há mais o que se discutir quanto ao mérito da
decisão, apenas vícios formais, como de fato é o entendimento atual do Supremo
Tribunal Federal, conforme à frente se verá.
Não é à toa que Pontes de Miranda e Miguel Seabra Fagundes tratam com
naturalidade o caráter de definitividade das decisões dos Tribunais de Contas quando
apreciam contas, reconhecendo-lhes função jurisdicional de contas.
Outra sustentação contrária é a de que as decisões dos Tribunais de Contas
não fariam coisa julgada porque podem ser confrontadas por meio de mandado de
segurança, cuja competência originária para julgá-lo é do STF, como explícito na
Constituição74.

de Justiça Eletrônico, Brasília, 08 set. 2015; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
472.399/AL. Relator: José Delgado - Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 dez.
2002; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 28.343/DF. Relator: Min. Marco
Aurélio de Mello – Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 16 out. 2014.
74
Quanto ao tema, entre os doutrinadores nesse sentido pode-se encontrar a exposição de Carlos
Ayres Britto, na qual afirma que decisões dos Ministros do TCU podem sofrer questionamento via
Mandado de Segurança para o Supremo Tribunal Federal (BRITTO, Carlos Ayres. O regime
constitucional dos Tribunais de Contas. Revista Diálogo Jurídico, ano 1, n. 9, Salvador, dez. 2001, p.
8),
40

Também não se pode aceitar esse argumento como suficiente para afastar a
possível função jurisdicional das cortes de contas, pois conforme muito bem
delimitado pelo Constituinte no art. 5º, inciso LXIX:

conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,


não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável
pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (BRASIL, 1988).

Até mesmo Ministro do STF ou STJ pode praticar ilegalidade ou abuso de poder
no exercício de sua função jurisdicional. Nesse sentido, vale destacar a decisão
proferida no MS 33412/RS75:

MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA ACÓRDÃO


EMANADO DE TRIBUNAL SUPERIOR DA UNIÃO – INCOMPETÊNCIA
ABSOLUTA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL –
APLICABILIDADE DO ART. 21, VI, DA LOMAN – RECEPÇÃO PELA
CONSTITUIÇÃODE 1988 – MANDADO DE SEGURANÇA NÃO
CONHECIDO – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
O Supremo Tribunal Federal não dispõe de competência originária para
processar e julgar mandado de segurança impetrado contra
ato emanado de Tribunal Superior da União (o STJ, no caso). Súmula
624/STF. Precedentes. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal –
que já proclamou a plena recepção do art. 21, VI, da LOMAN pela
Constituição de 1988 (RTJ 133/633) – tem enfatizado assistir aos próprios
Tribunais competência para, em sede originária, processar e julgar
os mandados de segurança impetrados contra seus atos ou omissões.
Precedentes (BRASIL, 2015).

75
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 33412/RS. Relator: Min. Celso De Mello
– Segunda Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 12 nov. 2015. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=9772238>. Acesso em 04 out.
2016.
41
76
Não é sem razão, inclusive, que o STF possui inúmeras decisões
esclarecendo os limites do Judiciário para apreciar acórdãos proferidos pelos
ministros do TCU, a exemplo dos trechos abaixo colacionados77:

[...] 4. In casu, o acórdão recorrido assentou: “APELAÇÃO – ação anulatória


de ato administrativo – Prefeitura Municipal de Paulínia – Tribunal de Contas
rejeitou as contas dos anos de 1997 e 1998 – respeito aos princípio do
contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal – o Poder Judiciário
não pode julgar o mérito da questão, mas tão somente as irregularidades
formais – Recurso improvido.” 5. Agravo regimental a que se nega provimento
(BRASIL, 2012).

Portanto, ainda não se consegue retirar a força das expressões julgar,


judicatura, jurisdição, tribunal.

2.2.2.4 Da força de título executivo

Há ainda a posição de Luciano Ferraz78 e do Ministro Marco Aurélio Mello79


para quem, além do princípio da unicidade da jurisdição, estaria afastado o exercício
da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas em virtude de o nosso Código de
Processo Civil não haver incluído as decisões das Cortes de Contas no rol do que se

76
Ver também: BRASIL Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3715. Relator:
Min, Gilmar Mendes - Tribunal Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 30 out 2014; BRASIL
Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 25763/DF. Relator: Min. Eros Grau – Tribunal
Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 03 ago. 2015; BRASIL Supremo Tribunal Federal.
Mandado de Segurança 28074/DF. Relator: Min. Cármen Lúcia - Tribunal Pleno. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 14 jun. 2012; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança
22828/DF. Relator: Min. Néri da Silveira - Tribunal Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 14
jun. 2002; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 7280/DF. Relator. Min.
Henrique D’avilla - Tribunal Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 18 ago.1960; BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 25116/DF. Relator. Min. Carlos Ayres Britto -
Tribunal Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 10 fev. 2011; BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Mandado de Segurança 28333/DF. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 27 fev. 2012.
77
BRASIL Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 662.458/SP. Relator: Min.
Luiz Fux – Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 20 jun. 2012. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2198521>. Acesso em: 04 out.
2016.
78
FERRAZ, Luciano. Controle da administração pública. Elementos para a compreensão dos
Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999.
79
“Decisão recurso extraordinário – Inafastabilidade do controle jurisdicional – Negativa de seguimento.
1. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região negou provimento à apelação, ante os seguintes
fundamentos: Administrativo. Embargos à execução de título extrajudicial. Acórdão do TCU. Natureza.
Ato administrativo vinculado. Controle jurisdicional. Possibilidade. Princípio da ubiquidade da justiça.
Art. 5º, xxxv, da CF. Art. 745, inciso v, do CPC” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal Recurso
Extraordinário 629711. Relator Min. Marco Aurélio Mello, Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 11
dez. 2015).
42

considera título executivo judicial, e ainda de haver possibilidade de se rediscutir no


Judiciário o mérito da decisão do TCU por meio de embargos à execução.
Também não se pode aceitar esse argumento para afastar os expressos
comandos constitucionais. Mais uma vez, se a lei infraconstitucional não foi capaz de
alcançar a vontade manifesta da Constituição, o problema não está com essa, mas
com aquela. Não se pode interpretar uma constituição por meio da leitura das leis,
pois são essas que devem buscar sempre os seus fundamentos de validade naquela
Lei Maior, e não o inverso.

2.2.2.5 Do significado de julgar as contas de pessoas

Outros ainda tentam dizer que a CRFB/88 não concedeu aos Tribunais de
Contas competência para julgar pessoas, mas apenas para julgar as contas de
pessoas, por isso não exerceria nem a jurisdição penal e nem a civil, o que afastaria
totalmente o reconhecimento de função jurisdicional.
Esse argumento é de um primitivismo lógico sem fim, pelos motivos seguintes:
a) independentemente de ser jurisdição civil, penal ou de contas, sempre, sempre
e sempre o que um magistrado tem que decidir é se atos praticados por
determinadas pessoas foram ou não aderentes ao ordenamento jurídico.
Simples assim. As pessoas somente são julgadas por Deus. Os homens julgam
seus semelhantes por seus atos, omissivos ou comissivos, por suas escolhas
manifestadas perante o mundo real.
b) A Constituição estabeleceu no inciso VIII do art. 71 a obrigação de os Tribunais
de Contas aplicarem aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou
irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre
outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário”. Ou seja, a
interpretação correta da conjugação do inciso II com o VIII do art. 71 somente
pode ser a de que o Tribunal de Contas julgará a legalidade e a regularidade
das contas prestadas por alguém, se esse alguém tiver agido ilegalmente
sofrerá em sua pessoa ou patrimônio uma sanção, que deverá ser decidida
mediante lei.
c) Somente poder-se-ia aceitar tal despautério caso a norma constitucional
previsse aos Tribunais de Contas a competência para julgar as contas de
alguém, proibindo, não obstante, tais tribunais de aplicar qualquer sanção à
pessoa julgada. Nessa absurda hipótese, caso ocorresse, de fato a função
43

estatal entregue aos Tribunais de Contas não seria mesmo a jurisdicional, pois
serviria apenas como mero parecer, levando algum outro órgão a decidir e
aplicar a sanção cabível.
d) Ocorre que no caso de prestação de contas pelo uso, arrecadação, gestão,
administração e guarda de recursos públicos, quem julga se foram legalmente
aplicados tais recursos são os Tribunais de Contas. Sem sentido o Constituinte
dar esse dever-poder às Cortes de Contas e permitir que outro órgão também
o faça. Se além de não ter usado corretamente o dinheiro do erário, o
responsável também tiver ferido, por exemplo, a lei de improbidade
administrativa, incumbirá ao Ministério Público ou a respectiva Advocacia
Pública promover a ação de improbidade perante o Poder Judiciário. Se
durante o uso do dinheiro pelo responsável, o mesmo o houver subtraído para
si, igualmente deverá sofrer ao mesmo tempo persecução criminal, perante
outro Juízo que não aquele da ação de improbidade. Tudo porque o
responsável violou leis distintas: a de aplicação correta de recursos públicos; a
de improbidade administrativa; e a penal. Não há qualquer dificuldade em se
compreender pela natural divisão entre órgãos do estado.

Por essas singelas razões, não se podem aceitar tais alegações como
fundamento para afastar a clara e evidente norma constitucional indicada no inciso II
do art. 71.

2.2.2.6 Da incompatibilidade entre auditar e julgar

Outra linha de confrontação ao reconhecimento do exercício da função


jurisdicional pelos Tribunais de Contas está na discussão sobre o exato conteúdo
jurídico dessa função. Essa corrente doutrinária foi muito bem defendida por Cretella
Junior, cuja monografia sobre o tema afirma ser pressuposto de tal atribuição de julgar
a posição passiva do magistrado, a qual aguarda ser chamado a decidir, não cabendo
colocar na mesma entidade e ao mesmo tempo ambas as funções de administrar e
de julgar80.

80
Veja o trecho transcrito do artigo: “Contrastando de modo nítido com a atividade administrativa, que
se caracteriza pela aplicação da lei "de ofício", sem provocação, a atividade jurisdicional é provocada,
de iniciativa da parte ou do interessado, razão por que, no Brasil, nenhum juiz prestará tutela
jurisdicional sem requerimento da parte ou do interessado, nos casos e forma legais (art. 2.º do CPC
(LGL\1973\5)), principiando, assim, o processo civil por iniciativa da parte, desenvolvendo-se, depois,
44

Dessa afirmação advém duas questões objetivas:

a) um mesmo órgão não deveria aplicar a lei de ofício e também julgar eventual
conflito na aplicação da lei;
b) é pressuposto da conceituação da função jurisdicional a atuação inerte do
órgão que a exerce, até que seja chamado a atuar.

Sim, essas duas questões são fundantes de outros dois princípios contidos na
CRFB/88: o do devido processo legal e o do contraditório e ampla defesa. Esse ponto
é inclusive o verdadeiro objeto dessa tese de doutoramento.
É até tentador reconhecer que seria realmente um contrassenso permitir que
os Tribunais de Contas exercessem pura atividade administrativa quando fiscalizam,
apreciam, opinam, inspecionam, sustam, auditam, representam; e logo em seguida,
no exercício de jurisdição, instaurassem um processo e julgassem as contas de
alguém, aplicando-lhe sanção. Por isso é absolutamente compreensível a aparente
indignação de Cretella Júnior (e de tantos outros)81 contra a tese de jurisdição aos
Tribunais de Contas. Veja a transcrição de oportuna passagem desse ilustre
administrativista:
[...] Francesco Carnelutti, com base no critério orgânico, bem como Piero
Calamandrei criticando Carnelutti, e, por fim, Giovanni Cristofolini estudaram
profundamente a diferença entre jurisdição e administração, concluindo o
último Autor que essa distinção repousa menos sobre base lógica do que
sobre base histórico-política, porque "administração é a atividade do Estado
dirigida à consecução de seus fins, mediante a satisfação de interesses que
o Estado considera seus, ao passo que jurisdição é a atividade do Estado
dirigida para a consecução do interesse coletivo tendente à composição das
lides, mediante o estabelecimento de comandos concretos, dirigidos aos
titulares dos interesses em litígio. A jurisdição inclui-se, conceitualmente, na
administração, de que se desmembrou pela exigência política de assegurar
a necessária independência dos órgãos incumbidos de realizar esse
importantíssimo interesse coletivo [...] Quando o Tribunal de Contas aprecia
as contas ou examina a ‘concessão’ inicial de aposentadorias, pensões e
reformas, de modo algum está exercendo ‘atividade dirigida para a
consecução de interesse coletivo tendente à composição de lides, nem diante
o estabelecimento de comandos concretos, dirigidos a titulares de interesses
em litígio, em conflito’, para usar as palavras técnicas e exatas de Cristofolini.
Não; nesses, e em todos os demais casos, o Tribunal de Contas administra,

por impulso oficial (art. 262 do CPC (LGL\1973\5)). "Procedat Administratio ex officio", mas "ne procedat
judex ex officio" - eis os dois princípios que ressaltam a diferença entre a Administração e o Judiciário,
porque, neste último, ninguém pode ser juiz sem que haja autor ("nem o judex sine actore"). A inércia
inicial do Judiciário contrasta com o dinamismo inicial da Administração; sem ajuizamento da actio a
atividade jurisdicional não tem início, ao passo que a atividade administrativa - regra geral - não
depende do interessado.” (CRETELLA JÚNIOR, José. Ob. cit., p.195).
81
Segundo Carlos Ayres Britto (Ob. cit. p. 9), o incômodo de o Tribunal de Contas da União agir de
ofício, contrariamente ao Poder Judiciário, reforça, na visão do autor, o fato de não se conformar com
a função jurisdicional.
45

‘aplica a lei de ofício’, por desempenho, também nas palavras de Cristofolini,


de ‘atividade dirigida à consecução de seus fins, mediante a satisfação de
interesses que o Estado considera seus, e não de interesses de duas partes
que conflitam, solicitando ao Estado a prestação jurisdicional. (CRETELLA
JUNIOR, 1987, p. 197)

Há duas questões importantes aqui, a primeira é aquela mencionada acima de


se esperar do Tribunal de Contas atividade muito aquém daquela que a Constituição
lhe entregou, como se fosse um órgão meramente carimbador de prestação de
contas, ou seja: apresentou as contas ou não? Então carimbado e aprovado!
Não é assim. Para se decidir pela prestação ou não das contas, deve haver
complexo processo mental de análise da ordem jurídica e dos fatos havidos, nos
mesmos moldes de qualquer processo penal ou cível. Segundo, deste processo advirá
a condenação de um ser humano, privando-o de bens ou de direitos; não mais como
antes, mera reprovação de conduta de gestor público, sem qualquer sanção.
Na verdade todo o incômodo de Cretella Júnior decorre de que no Brasil ainda
não se consubstanciou um verdadeiro sentimento prático de qual o profundo papel
dos Tribunais de Contas.
Assim, pergunta-se: onde está o problema apontado por Cretella Júnior? Está
na CRFB/88? Ou estaria no costume e na legislação infraconstitucional que não
deram solução para organizar e instrumentalizar adequadamente os Tribunais de
Contas para bem exercerem suas competências criadas pelas normas
constitucionais?
Como todos sabem, a Constituição cria os órgãos estatais, entrega-lhes as
suas respectivas competências, estabelece quais os princípios devem se pautar e,
por fim, determina à função legislativa (por ela criada) que produza o arcabouço
normativo necessário para fazer com que seus órgãos, dentro de suas competências,
possam realmente funcionar na direção das atribuições a que foram vocacionados.
Se o legislador infraconstitucional for incapaz de alcançar tal desiderato, não
está o problema na Constituição. Incumbiria à sociedade, amparada pela comunidade
científica do direito, identificando falhas na legislação, clamar pela melhora no marco
legal próprio desse ou daquele órgão ou entidade. Parece ser esse o caso.
46

Inclusive importa trazer ao conhecimento a tese de Alexandre Mariotti82, em


que afirma, em determinado momento, que a norma contida no art. 6º da Lei n.
8.443/9283 confirmaria que as decisões do TCU seriam meramente administrativas,
cabendo revisão pelo Poder Judiciário.
Sem adentrar na interpretação específica do referido art. 6o e sua frase
“ressalvado o disposto no inciso XXXV do art. 5o da Constituição Federal”, tem-se
mais uma vez a inversão completa do escalonamento da ordem jurídica. A lei não é
instrumento de mudança do texto constitucional.

2.2.2.7 O exercício de funções híbridas pelos Tribunais de Contas

Outra linha de pensamento bastante interessante de se pontuar é aquela que


reconhece ao Tribunal de Contas funções híbridas, nem legislativa, nem
administrativa e nem jurisdicional. Como se a CRFB/88 houvesse criado um quarto
tipo, híbrido, denominado de processo de contas.
Quem o sustentou com arguta inteligência foi Carlos Ayres Britto, cuja
transcrição se impõe para mais claro conhecimento de seu pensamento:

[...]7.7. Esse o pano de fundo para uma proposição complementar: a


proposição de que os processos instaurados pelos Tribunais de Contas têm
sua própria ontologia. São processos de contas, e não processos
parlamentares, nem judiciais, nem administrativos. Que não sejam processos
parlamentares nem judiciais, já ficou anotado e até justificado (relembrando,
apenas, que os Parlamentos decidem por critério de oportunidade e
conveniência). Que também não sejam processos administrativos, basta
evidenciar que as Instituições de Contas não julgam da própria atividade
(quem assim procede são os órgãos administrativos), mas da atividade de
outros órgãos, outros agentes públicos, outras pessoas, enfim. Sua atuação
é conseqüência de uma precedente atuação (a administrativa), e não um
proceder originário. E seu operar institucional não é propriamente um tirar
competências da lei para agir, mas ver se quem tirou competências da lei
para agir estava autorizado a fazê-lo e em quê medida (BRITTO, 2002, p. 10).

Para chegar a tal conclusão, o autor reconhece que os julgamentos que fazem
os Tribunais de Contas possuem “a força ou a irretratabilidade que é própria das

82
MARIOTTI, Alexandre. O Devido Processo Legal. 2008. 132 f.Tese (Doutorado em Direito) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2008. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13555/000651057.pdf?1> Acesso em: 01 dez. 2016.
83
Nesse sentido dispõe o art. 6º da Lei n. 8.442/92 “Estão sujeitas à tomada de contas e, ressalvado o
disposto no inciso XXXV do art. 5° da Constituição Federal, só por decisão do Tribunal de Contas da
União podem ser liberadas dessa responsabilidade as pessoas indicadas nos incisos I a VI do art. 5°
desta Lei”.
47

decisões judiciais com trânsito em julgado”84, contudo não é a sua atividade fim, como
o é para o Poder Judiciário, sendo o julgamento de contas para tais Cortes de Contas
um meio para atingir o fim que é o controle externo. Daí sua função não ser nem a
administrativa e nem a jurisdicional.
Conforme premissa adotada como verdadeira nessa tese, o Estado exerce três
funções, sendo a característica da função jurisdicional a de aplicar o direito com
definitividade, ou seja, exatamente essa é a finalidade da jurisdição. Portanto,
compreende-se que adotar um novo critério para qualificar a natureza das funções
estatais é propor profunda reflexão filosófica que pode levar a ciência do Direito a
lugares ainda desconhecidos.
Ademais, em primeiro momento não nos parece adequado tal critério proposto
por Brito, posto a função jurisdicional (assim como as demais) possuir instrumentos
distintos para alcance de finalidades igualmente distintas. Cada diferente tipo de ação
possui ou pode possuir finalidades discrepantes, em especial quando se considera o
grande leque atualmente vigente de instrumentos processuais em ramos distintos do
Direito, como o Processual Penal, Eleitoral, Cível, Trabalhista e Militar, ainda podendo
considerar dentro de cada um deles variáveis como ações de indenização ou de
improbidade, de busca e apreensão ou de crimes contra a vida.
Se mergulhar na finalidade delas poder-se-á alcançar respostas distintas,
transformando em grande confusão a compreensão quanto as funções do estado
moderno85.

2.2.2.8 Do Império da Constituição sobre a legislação

Pela perspectiva única e exclusiva da Constituição, as atribuições dadas aos


Tribunais de Contas pelo art. 71 são múltiplos, entre as de fiscalizar e de julgar.
Para afastar a correta preocupação de importantes juristas de que nosso
sistema legal não entrega segurança jurídica sem a Unicidade da Jurisdição, pela falta
de capacidade de os Tribunais de Contas cumprirem o devido processo legal, bastaria
a lei orgânica de cada um dessas cortes de contas estabelecerem, por exemplo, duas
distintas organizações internas: uma para o exercício da atividade administrativa e

84
Ob. cit., p. 08.
85
Importante frisar que não se nega a possibilidade de refletirmos filosoficamente sobre as novas
possíveis funções do Estado no mundo moderno. Contudo, não se compreende útil para os fins da
presente tese de doutoramento.
48

outra para a sua função jurisdicional. Igualmente, a lei orgânica teria que criar dois
procedimentos distintos, um procedimento meramente administrativo para as funções
administrativas e um outro procedimento em contraditório para a sua função
jurisdicional86.
Vejam que essa situação deve ser resolvida pela lei e não, por causa de sua
insuficiência, desfigurar a Constituição.
A frase exponencial do Min. Sepúlveda Pertence, enquanto proferindo
relevante voto no julgamento do Mandado de Segurança 23.550-1/DF 87 , sintetiza
parte das questões trazidas neste tópico, pois denuncia nossa mania de inverter a
ordem da dinâmica jurídica brasileira “de qualquer modo, se se pretende insistir no
mau vezo das autoridades brasileiras de inversão da pirâmide normativa do
ordenamento, de modo a acreditar menos na Constituição do que na lei ordinária”.
Deve-se, portanto, por meio de interpretação sistemática do texto
Constitucional, que se reconhecer aos Tribunais de Contas os exercícios de duas das
funções estatais: a administrativa para competências dos incisos I, III, IV, V, VI, VII,
VIII, IX, X e XI do art. 71; e a jurisdicional para a do inciso II, conjugado com o VIII, do
art. 71.

2.2.3 Da interpretação teleológica

Igual resultado terá a interpretação teleológica, pois a CRFB/88 entregou a


especialidade aos Tribunais de Contas para que pudessem com tecnicidade decidir
as contas dos responsáveis por recursos públicos, protegendo os seus Ministros com
as mesmas garantias dos Ministros do STJ.
Seria sem sentido e desprovido de finalidade a CRFB/88 dar esse dever-poder
às Cortes de Contas e acabar por remeter a mesma discussão perante órgão não
especializado para tanto. Para evitar que isto ocorresse, a CRFB/88 estabeleceu,
como visto, que as decisões condenatórias no TCU terão força de título executivo,

86
Cumpre lembrar que a persecução criminal possui duas fases tramitando no mesmo juízo natural, a
do inquérito e a da ação penal propriamente dita.
87
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 23.550/DF. Relator: Min. Marco Aurélio
– Tribunal Pleno. Diário de Justiça, Brasília, 31 out. 2001. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85979>. Acesso em: 05 out.
2016.
49

restando à União apenas ingressar perante o Poder Judiciário com ação de execução,
tendo em vista a certeza e liquidez do título88.
Ademais, o STF vem decidindo reiteradamente que não cabe ao Poder
Judiciário rever o mérito das decisões89 dos Tribunais de Contas, tendo em vista a
especialidade destas cortes para o exercício de suas competências (o juízo natural
para apreciação de contas é o Tribunal de Contas, conforme comando expresso
constitucional).
Pode-se começar tal demonstração com nova citação do voto brilhante do Min.
Sepúlveda Pertence no Mandado de Segurança 23550-1/DF, o qual revelou que as
funções de controle do Tribunal de Contas têm conteúdo quase-jurisdicional:

De outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos


procedimentos administrativos comuns, a fortiori, é irrecusável que a ela há
de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal
de Contas, de colorido quase-jurisdicional (BRASIL, 2001).

Assim, se o STF90 interpreta os artigos 70 e 71 entendendo que: (1) o Poder


Judiciário não pode rever o mérito das decisões dos Tribunais de Contas, mas apenas
em questões formais na hipótese de violação aos direitos e garantias fundamentais.

88
Interessante notar a posição jurisprudencial predominante quanto ao tema: “ADMINISTRATIVO.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DESVIO DE DINHEIRO PÚBLICO PARA CONTA BANCÁRIA
PARTICULAR. RESSARCIMENTO. CONDENAÇÃO NO ÂMBITO DO TCU. TÍTULO EXECUTIVO.
DESNECESSIDADE DE NOVA CONDENAÇÃO EM JUÍZO [...] 2. Já tendo o apelante sido condenado
pelo Tribunal de Contas da União a ressarcir a totalidade dos prejuízos causados ao erário, em título
executivo líquido e certo apto a ensejar a devida execução (art. 71, § 3º - CF), não deve prosperar, e
não faz nenhum sentido, a pretensão de uma nova condenação, na via judicial. 3. Apelação provida
em parte” (BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). Processo - 0032598-85.2004.4.01.3400.
Relator: Olindo Menezes – Quarta Turma. Brasília, 10 fev. 2015. Disponível em:
<http://arquivo.trf1.jus.br/PesquisaMenuArquivo.asp?p1=200434000416833&pA=200434000416833&
pN=325988520044013400>. Acesso em: 03 dez. 2016.
89
Nesse sentido: “Ao apurar a alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o tribunal de contas
pratica ato insusceptível de revisão na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de
ilegalidade manifesta. Mandado de segurança não conhecido” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Mandado de Segurança 7280. Relator: Min. Henrique D'avilla - Tribunal Pleno. Diário de Justiça,
Brasília, 17 set. 1962. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000075924&base=baseAcordaos
>. Acesso em: 05 out. 2016. Da mesma forma, “[...] não se pode pretender que o poder judiciário exerça
a competência atribuída pela constituição, em substituição à Corte de Contas. 4. Mandado de
segurança denegado. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 22752.
Relator: Min. Néri Da Silveira - Tribunal Pleno. Diário de Justiça, Brasília, 21 jun. 2002. Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000017602&base=baseAcordao
s>. Acesso em: 05 out. 2016.
90
Em que pese haver discussão intensa na jurisprudência, assim como se viu na doutrina, há inúmeros
posicionamentos jurisprudenciais dos Tribunais Regionais Federais no mesmo sentido da do STF. Para
tanto, ver: BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). Processo 0016753-61.2000.4.01.3300.
50

Se o art. 71, parágrafo 3º, da CRFB/88 entrega dever-poder aos Tribunais de


Contas para: (2) expedir ao final de seus processos condenatórios os correspondentes
títulos executivos contra pessoas.
Então 1 + 2 = as decisões destas Cortes acabam por receber o atributo de
definitividade91.
Se essas decisões têm atributo de definitividade (e isso é o que caracteriza a
função jurisdicional, como lecionado por Seabra Fagundes e Pontes de Miranda entre
tantos e tantos outros), portanto, aqui também, haverá como efeito prático teleológico
na vida nacional o exercício da função jurisdicional aos Tribunais de Contas.

2.2.4 Da interpretação histórica

Por fim, por meio da interpretação histórica, também é irrepreensível a


compreensão do exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas. Não é
de 1988 que o verbo julgar está presente, já o estava nas pregressas constituições, a
ponto de Pontes de Miranda 92 ser um dos mais ardorosos defensores dessa
interpretação, conforme seus comentários à Constituição de 1946.
Vale a pena ler as precisas e diretas palavras de nosso maior jurista,
resgatando as constituições desde 1891:

O Tribunal de Contas é instituição de 1891, de 1934, de 1937 e de 1946.


Cumpre, porém, atendermos a que instituição, que se mantém, se mantém
conforme a estrutura que lhe dá o todo da Constituição e as novas atribuições
que lhe são conferidas. Ao tempo da Constituição de 1891, já se atribuía às
delegações do Tribunal de Contas e a ele-mesmo a tomada de contas; foi a
Constituição de 1934 que lhe deu caráter de corpo de julgamento, o que as
leis ordinárias não podiam fazer. O Decreto n. 392, de 8 de outubro de 1896,
§1º, 2), entendia que havia de funcionar o Tribunal de Contas como ‘Tribunal
de Justiça com jurisdição contenciosa e graciosa’, e o art. 3º miudeava os
casos. A lei orçamentária de 1918 ainda lhe conferiu tal caráter de ‘Tribunal
de Justiça para o fim de julgar as contas dos responsáveis, estabelecendo a
citada situação jurídica entre os mesmos e a Fazenda Pública’. Era, então,
inconstitucional; e não no é, hoje. Hoje o Tribunal de Contas julga e

Relator: Selene Maria De Almeida - Quinta Turma. Brasília, 31 mai. 2007; BRASIL. Tribunal Regional
Federal (5ª Região). Processo 432559. Relator: Frederico Pinto de Azevedo - Terceira Turma. Recife,
08 out. 2010; BRASIL. Tribunal Regional Federal (5ª Região). Processo 136258. Relator: Geraldo
Apoliano - Terceira Turma. Recife, 04 mar. 2004.
91
Interessante notar que, provavelmente, por essa razão Sepúlveda Pertence, com inteligência e
perspicácia, denominou as funções dos Tribunais de Contas como “quase-jurisdicionais”, já que o
Judiciário não pode rever o mérito das suas decisões, é jurisdicional; mas como pode rever nos
aspectos formais, é quase.
92
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1947.
51

estabelece, por isso mesmo, a situação jurídica entre os responsáveis e a


Fazenda Pública. Quanto aos crimes, o Tribunal de Contas continua a não
ter jurisdição. Mas julga as contas, o que é da máxima importância. Na
vigência da Constituição de 1891, a jurisprudência era divergente quanto à
necessidade e valor da tomada de contas (MIRANDA, 1947, p. 78).

O mesmo se manteve com a Constituição de 1967:

Art. 71 - A fiscalização financeira e orçamentária da União será exercida pelo


Congresso Nacional através de controle externo, e dos sistemas de controle
interno do Poder Executivo, instituídos por lei.
§ 1º O controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas e compreenderá a apreciação das contas do
Presidente da República, o desempenho das funções de auditoria financeira
e orçamentária, e o julgamento das contas dos administradores e demais
responsáveis por bens e valores públicos.
[...]
§ 4º - O julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais
responsáveis será baseado em levantamentos contábeis, certificados de
auditoria e pronunciamentos das autoridades administrativas, sem prejuízo
das inspeções referidas no parágrafo anterior.
[...]
Art. 73 - O Tribunal de Contas tem sede na Capital da União e jurisdição
em todo o território nacional.
§ 1º - O Tribunal exercerá, no que couber, as atribuições previstas no art.
110, e terá quadro próprio para o seu pessoal.
§ 2º - A lei disporá sobre a organização do Tribunal podendo dividí-lo em
Câmaras e criar delegações ou órgãos destinados a auxiliá-lo no exercício
das suas funções e na descentralização dos seus trabalhos.
§ 3º - Os Ministros do Tribunal de Contas serão nomeados pelo Presidente
da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre
brasileiros, maiores de trinta e cinco anos, de idoneidade moral e notórios
conhecimentos jurídicos, econômicos, financeiros ou de administração
pública, e terão as mesmas garantias, prerrogativas, vencimentos e
impedimentos dos Ministros do Tribunal Federal de Recursos.
[...]
§ 8º - O Tribunal de Contas julgará da legalidade das concessões iniciais de
aposentadorias, reformas e pensões, independendo de sua decisão as
melhorias posteriores (BRASIL, 1967).

Jacoby Fernandes93 esmera-se ao demonstrar quão importantes monografias


foram produzidas sobre a reconhecida função jurisdicional dos Tribunais de Contas,
desde a Constituição de 1891. Para o autor igualmente não haveria dúvidas sobre o
exercício de tal função pelas cortes de contas.
Conclui-se que não é algo fortuito e inesperado em nossa história o fato de os
muitos pregressos constituintes terem delineado esse arcabouço normativo
constitucional, entregando aos Tribunais de Contas ambas as funções: administrativa
e jurisdicional. Contudo, há que se reconhecer o fato de os Tribunais de Contas nunca

93
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Limites à revisibilidade judicial das decisões dos Tribunais de
Contas. Revista do Tribunal de Contas da União, out/dez, n. 70, p. 39-71, 1996.
52

terem conseguido de seus contemporâneos legisladores infraconstitucionais a


instrumentalização e organização adequada para exercerem com precisão seus
misteres jurisdicionais.
Ficaram relegados a um papel secundário na história, muito acanhados e
reféns do peso de nosso Estado centralizador e autoritário, em que o Poder Executivo
exercia poderes quase monárquicos medievais, sufocando tudo e a todos94. Desde
1988 o TCU vem resgatando o seu papel, contudo sem o amparo legal suficiente para
exercer suas funções com segurança jurídica para o Estado brasileiro e para os seus
cidadãos. A melhor interpretação da CRFB/88 é a de que à atividade de controle
externo foram entregues ambas as funções:

a) jurisdicional: para o Congresso ao julgar as contas do presidente da república


(art. 49, inciso IX), e para o TCU ao julgar as contas dos demais responsáveis
pelo erário (art. 71, inciso II);
b) administrativa: para o TCU no referente aos demais incisos do art. 71.

Não obstante toda essa antiga celeuma, conforme se demonstrará a seguir,


todas as decisões dos Tribunais de Contas afetam fortemente os interesses daqueles
por eles auditados, trazendo importantes consequências como a obrigatoriedade de
seus processos seguirem o devido processo legal, respeitarem o princípio do
contraditório e o da ampla defesa.
Isso é tão necessário que o STF se viu na conveniência e oportunidade de
expedir uma Súmula Vinculante, a de número 3, para afastar qualquer dúvida ao

94
Nesse mesmo sentido, há muito interesse estudo de Álvaro Miranda, o qual merece trazer a
transcrição: “Para concluir esse capítulo, podemos sublinhar as seguintes questões. Em primeiro lugar,
o Tribunal de Contas sempre foi marcado por uma trajetória de natureza clientelística desde o início da
República. Essa trajetória caracterizava-se pela circunstância na qual era uma prerrogativa exclusiva
do chefe do Poder Executivo a nomeação dos dirigentes do órgão. Mesmo que essa escolha fosse
submetida ao Senado, como preceituavam as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1967/1969, ou ao
“Conselho Federal, como determinava a Carta de 1937, a indicação (escolha) partia sempre do
Presidente da República. O Senado podia não aprovar o nome indicado, mas não podia também indicar
outro nome, tarefa que cabia somente ao chefe do Poder Executivo. Isso possibilitava forte influência
do Presidente da República na troca de favores para nomeação de políticos apadrinhados em cargos
estratégicos do poder público, um deles a “magistratura” do Tribunal de Contas” [...] Em segundo lugar,
um momento crucial e contraditório para o Tribunal de Contas foi o período do regime militar. Apesar
do texto constitucional de 1967 que ampliara seus poderes, o regime militar os retirou com decretos e
leis infraconstitucionais. É possível que o fortalecimento do órgão a partir da Constituição de 1988 tenha
sido uma reação ao período anterior para recuperar funções que eram inerentes ao trabalho do órgão
(MIRANDA, Álvaro Guilherme. Ob. cit., p. 74)
53

dispor que “nos processos perante o TCU asseguram-se o contraditório e a ampla


defesa quando da decisão puder resultar a anulação ou revogação de ato
administrativo que beneficie o interessado”.

2.3 Dos efeitos jurídicos possíveis decorrentes das decisões dos Tribunais de
Contas

Como visto acima, seguindo a interpretação dos referidos artigos 70 e 71, o


Estado brasileiro deve (i) fiscalizar, inspecionar e auditar as contas (contabilidade,
finanças, orçamento e patrimônio público) dos (ii) administradores públicos e daqueles
que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem, administrem dinheiros, bens e valores
públicos ou os que derem causa a perda, extravio ou prejuízo ao erário95. É o que se
extrai da norma:

Art. 71: O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido


com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
[...]
III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de
pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as
fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as
nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das
concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as
melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato
concessório;
IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado
Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de
natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas
unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e
demais entidades referidas no inciso II;
V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital
social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado
constitutivo;
VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União
mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a
Estado, ao Distrito Federal ou a Município (BRASIL, 1988).

O órgão competente para tanto é (iii) o TCU 96 que deverá, caso identifique
violação (iv) à legalidade, legitimidade e economicidade97 dos atos administrativos
indicados, (v) julgar as contas98 dos administradores e responsáveis e (vi) aplicar-lhes

95
Parágrafo único do art. 70 da CRFB/88.
96
Art. 71, caput da CRFB/88.
97
Art. 70, caput da CRFB/88.
98
Art.71, inciso II da CRFB/88.
54

sanções 99 ; devendo ainda (vii) determinar obrigação de fazer ou não fazer à


administração pública 100, e, caso não obedecido, (viii) executar diretamente o seu
próprio comando normativo específico e concreto101.

2.3.1 Obrigação de fazer e de não fazer

Por essas normas constitucionais, os Tribunais de Contas possuem


competência para expedir normas, específicas e concretas, criando a outrem
obrigação de fazer, de não fazer e de dar coisa certa. Os dois primeiros tipos de
obrigações são decorrentes de pura função administrativa, com prevalência sobre
todos os demais atos administrativos praticados pela administração pública. Pode
ocorrer, caso assim a lei venha a estabelecer, que uma das sanções imponha alguma
obrigação de fazer ou não fazer.

2.3.2 Obrigação de dar coisa certa

O terceiro tipo de obrigação, de dar, é a consequência do ato de julgar as


contas, o que importará na aplicação de sanção cuja penalidade mínima será multa
proporcional ao dano.
Cumpre salientar que o art. 71 em seu inciso VIII entrega clara competência ao
TCU para “aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou
irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras
cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário” (BRASIL, 1988). O
parágrafo 3o do mesmo artigo confere eficácia de título executivo às decisões do
Tribunal de Contas que resultarem em imputação de débito ou multa.
Portanto, os Tribunais de Contas possuem o dever-poder de constituir norma
jurídica, específica e concreta, obrigando o sujeito passivo a entregar ao Poder
Público determinada parcela de seu patrimônio, quando houver sido decidido a sua
prática de ato ilícito causador de prejuízo ao erário.

2.3.3 Decisões do TCU com eficácia de título executivo

99
Art. 71, inciso VIII da CRFB/88.
100
Art. 71, inciso IX da CRFB/88.
101
Art. 71, inciso X e parágrafo 1º da CRFB/88.
55

Como já visto, o artigo 71 estabelece que as decisões que resultem em


imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo, entregando liquidez e
certeza aos seus fundamentos e cálculos. Se o órgão competente para decidir sobre
as contas é o TCU, como expresso na CRFB/88, não haveria possibilidade de a
matéria ser revisitada em outros órgãos do Estado, salvo violação aos direitos e
garantias individuais, como bem pontuado pelo STF. Como tal, tem-se efeitos jurídicos
sérios e importantes as decisões das Cortes de Contas.
Interessante notar que não foi dado aos Tribunais de Contas o poder da auto-
executoriedade de suas decisões formadoras de título executivo. Incumbirá às
advocacias públicas, beneficiárias do crédito constituído ao seu favor, usarem o
respectivo título executivo para propor ação judicial de execução contra o devedor que
resistir ao pagamento do débito decidido pelo Tribunal de Contas correspondente.
É o Poder Judiciário aquele que poderá instruir e decidir sobre a execução do
crédito, líquido e certo, em favor do Poder Público e contra o particular, submetendo-
se assim aos procedimentos próprios contidos no Código de Processo Civil vigente.
Todas essas competências foram bem demarcadas pelo Supremo Tribunal Federal
em inúmeras importantes decisões.

2.4 Dos sujeitos passivos da obrigação de prestar contas

2.4.1 Obrigação de prestar contas e a correspondente sanção na hipótese de


não o fazer

Antes de tudo é relevante salientar que a CRFB/88 estabelece uma importante


obrigação de fazer para todas as pessoas que de alguma forma usem recurso público:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e


patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta,
quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções
e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante
controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública
ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros,
bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome
desta, assuma obrigações de natureza pecuniária (BRASIL, 1988).

Percebe-se por tal dispositivo que houve a criação de norma jurídica


(obrigatória, geral e abstrata), de eficácia plena e imediata, que impõe o seguinte
comando:
56

1) Proposição hipotética fático-descritiva: se alguma pessoa (física ou jurídica,


pública ou privada) usar, arrecadar, guardar, gerenciar ou administrar
dinheiros, bens, valores ou obrigações de natureza pecuniária públicos;
2) Consequente fático prescritiva de conduta: deve prestar contas, quanto à sua
legalidade, legitimidade ou economicidade, aos sistemas de controle externo e
de controle interno de cada Poder102.

A partir do momento em que ocorra no mundo real a hipótese fática


mencionada, nascerá automaticamente para o sujeito a obrigação jurídica de prestar
contas. Não há necessidade de o sujeito da obrigação ser cobrado para agir como
prescreve a referida norma, ou seja, não precisa advir um ato administrativo ou
jurisdicional introduzindo na ordem jurídica, de forma concreta e específica, uma
obrigação de fazer. Basta que ele use, arrecade, gerencie, administre ou guarde
recursos públicos, para que imediatamente se constitua sua obrigação de prestar
contas aos Tribunais de Contas.
Se a CRFB/88 parasse nesse art. 70, haveria dúvidas sobre como e quais as
sanções se submeteriam aqueles que se furtassem à prestação de contas.
Dependeria totalmente de criação de lei para completar a norma jurídica
constitucionalmente criada.
Ademais, o Constituinte introduziu o minucioso art. 71, cujo inciso VIII 103 ,
cumulado com o art. 74, completa a norma jurídica acima dissecada, nos seguintes
comandos:

a) Hipótese fática do consequente: se a pessoa não prestar as contas ou,


prestando, for decidida104 por sua ilegalidade ou irregularidade;
b) Prescrição sancionatória: deverá sofrer sanção (a ser definida em lei).

102
Pela norma constitucional não se tem o tempo em que o sujeito deverá prestar contas, isso deve
ser resolvido pela lei, salvo a interpretação de que a prestação de contas deverá ocorrer desde o
primeiro momento em que o sujeito use o recurso público até para sempre, segundo a tese da
imprescritibilidade do art. 37 § 5º da CRFB/88.
103
Art. 71. [...] VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de
contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao
dano causado ao erário”.
104
Veja que a decisão pela sua ilegalidade ou irregularidade poderá ser adotada pelo sistema de
controle interno de cada Poder ou pelo sistema de controle externo, nessa última hipótese pelo tribunal
de contas. Se a decisão advier do controle interno, a sanção será decorrente de ato administrativo
sancionador; se for produzida do controle externo, a sanção decorrerá do comando do inciso II do artigo
71.
57

Tem-se, a partir dessas normas jurídicas, o que se pode denominar de relação


jurídica de contas públicas, cujo sujeito passivo é aquele que tem o dever de prestar
contas 105 e o sujeito ativo é a Pessoa Jurídica de Direito Público Interno (União,
Estados-membros, Municípios), por meio de seus órgãos denominados de Tribunais
de Contas106, aos quais incumbem aplicar sanção na hipótese de não haver a legal e
regular prestação de contas pelo sujeito passivo.
A Constituição não define completamente quais serão as sanções cabíveis de
serem imputadas ao sujeito passivo da obrigação, apenas determina que tenha no
mínimo a aplicação de multa proporcional ao dano causado ao erário. A lei é o
instrumento introdutório de norma jurídica que deve estabelecer os precisos
parâmetros107.

2.4.2 O sujeito que pode ser chamado a defender-se quanto às contas

Ademais, da segunda metade do inciso II do art. 71, cumulado com o seu inciso
VIII, retira-se outra norma jurídica:

a) Proposição hipotética fático-descritiva: se alguma pessoa (mesmo que não


esteja abrangida dentre os responsáveis previstos no parágrafo único do art.
70, mas tendo atuado em conjunto com eles108) estiver em situação que possa
causar extravio, perda ou prejuízo ao erário;
b) Consequente hipotético fático-prescritiva: deve cuidar para evitar que sua
conduta, em conjunto com os responsáveis públicos, dê causa a perda, extravio
ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário;

105
Se o sujeito passivo for o Presidente da República, o sujeito ativo será o Congresso Nacional, nos
termos do art. 49 da CRFB/88.
106
Os órgãos de controle interno também possuem competência para apreciar as contas dos sujeitos
passivos. Mas como o objeto dessa tese é o controle externo, ater-se-á aos seus respectivos
parâmetros normativos.
107
Atualmente é a Lei n. 8443, de 16 de julho de 1992, que o faz.
108
Depois de anos de discussões, o Tribunal de Contas da União expediu a Súmula 186 que
reconheceu o que Walton Alencar Rodrigues muito bem sintetiza: “Demonstra-se, assim, que não
obstante toda a amplitude do comando constitucional, a jurisdição do Tribunal de Contas da União
concernente à competência para instaurar processos de Tomada de Contas Especial não abrange todo
o universo de possibilidades de dano ao Erário. Há de existir sempre a condição de agente público no
causador do dano à Administração Pública, ou sua ação em conluio com algum agente público, para
justificar a intervenção do Tribunal de Contas da União, tese que, a nosso ver, melhor atende os
interesses da Administração Pública e da coletividade em geral.” (RODRIGUES, Walton Alencar. O
dano causado ao erário por particular e o instituto da Tomada de Contas Especial. Revista do Tribunal
de Contas da União, Brasília, n.77, v. 29, jul/set, 1998, p. 54).
58

c) Hipótese fática do consequente: se agir causando perda, extravio ou outra


irregularidade de que resulte prejuízo ao erário;
d) Prescrição sancionatório: deverá sofrer sanção (a ser definida em lei).
Assim, tem-se duas possíveis hipóteses de sujeitos passivos que podem vir a
ser julgados e sancionados pelos Tribunais de Contas:

1) aquele que tem a obrigação de prestar contas por se enquadrar na hipótese do


parágrafo único do art. 70. Quem são esses? São os agentes públicos
ordenadores de despesas, entidades públicas ou privadas que recebam
mediante convênio ou outra forma de contratação recursos públicos109 para
serem geridos em prol da coletividade.
2) aquele que, não se enquadrando entre os da primeira hipótese, passam a se
obrigar, quando chamados, a defenderem-se da imputação de que teriam de
alguma forma causado prejuízo ao erário ao agirem em conjunto com aqueles
indicados na primeira hipótese.
Perceba como diferente é a situação dos dois sujeitos passivos. O primeiro tem
a obrigação de prestar contas. O segundo não. Para esse, o tribunal de contas ao
exercer atividade administrativa de fiscalização pode concluir que alguém, em
conjunto com um responsável público, tenha agido ilegalmente e causado prejuízo ao
erário enquanto usava, em nome do Estado, bens públicos. Nessa hipótese, depois
da fase investigatória, deverá instaurar um processo e citá-lo para apresentar sua
defesa ou, caso o reconheça, pagar a penalidade a ele cobrada.
Ao final o tribunal de contas irá julgar o caso. Se decidir pela condenação do
sujeito passivo, irá intimá-lo para pagar o valor julgado, caso esse não o pague,
constituirá um título executivo a ser encaminhado à respectiva advocacia pública que
deverá distribuir ao Poder Judiciário em forma de uma ação de execução fiscal.

109
Nos Mandados de Segurança 23.627-2/DF, 23.875/DF, 24.354/DF, 24.439/DF, 24.471/DF,
24.891/DF, 25.181/DF e MS 25.092/DF, o STF, por maioria, decidiu que a expressão “II – julgar as
contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros públicos da administração direta e
indireta [...]” significa que ‘dinheiros públicos’ sejam realmente de titularidade pública, e que nos casos
em questão, onde o dinheiro era de propriedade do Banco do Brasil em sua atividade fim, atividade
comercial, os dinheiros não pertenciam à União, mas à pessoa jurídica de direito privado, como previsto
no artigo 173 da CRFB/88. O que seria da União na hipótese versada eram as ações do Banco.
Portanto nestes casos não se permitiu ao TCU exercer sua competência prevista no inciso II do artigo
71. Contudo, a partir dos Mandados de Segurança 25092/DF e 25181/DF, o STF, por unanimidade,
mudou o seu entendimento, por entender que os bens das empresas estatais e das sociedades de
economia mistas são bens públicos, bem como por reputar abrangidas nas normas dos artigos 70 e 71
estas empresas estatais, devendo os seus administradores prestarem contas ao controle externo e
submeterem-se às jurisdições dos Tribunais de Contas.
59

2.5 A organização constitucionalmente prevista para o TCU

É fundamental esclarecer que a CRFB/88 delimitou todas as competências e


qual a organização deve possuir o TCU. Momento algum remeteu tal decisão ao
legislador federal ou mesmo ao estadual. No âmbito dos Estados Membros, são seus
Constituintes estaduais que têm o dever de organizar suas Cortes de Contas,
conforme norma do parágrafo único do art. 75.
As normas constitucionais dos artigos 71 a 75 são todas de eficácia plena,
como visto anteriormente. O art. 73 da CRFB/88 é expresso em determinar que o
TCU, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de
pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as
atribuições previstas no seu art. 96.
O art. 96, por sua vez, estabelece que competem aos Tribunais a elaboração
dos respectivos regimentos internos “com observância das normas de processo e das
garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento
dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.
Tem-se, portanto, que o TCU deverá organizar-se (a si próprio110) para exercer
suas competências constitucionais, assim como ocorre com o Poder Judiciário. Não
cabe ao Poder Legislativo exercer esse papel.
Qualquer intenção do legislativo de imiscuir em competência própria do TCU
quanto à sua própria organização deve ser entendida como inconstitucional. Por isso
compete ao TCU fazer as proposições de leis visando a criação, alteração ou redução
de cargos, vencimentos e subsídios, organizando suas divisões, secretarias e órgãos
internos. Atualmente é vigente a Lei n. 8.443/92, de proposição do próprio TCU e
aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do corrente processo legislativo.
As demais normas que não pressuponham a existência de lei podem ser
efetivadas pelo TCU diretamente, por meio de seu Regimento Interno, em especial a
estrutura e funcionamento dos seus órgãos, sempre devendo garantir a observância
das normas de processo e das garantias processuais das partes.
Já as normas processuais para o alcance dos provimentos do TCU devem
iniciar-se do democrático processo legislativo, nos termos do art. 22 da CRFB/88, em
que compete à União legislar privativamente sobre direito processual. Obviamente
que poderia a proposta de lei sobre a criação de um processo de contas advir do

110
A redundância se justifica para que não sobrem dúvidas sobre como deveria ser pelo Texto
Constitucional.
60

próprio TCU, incumbindo ao Poder Legislativo deliberar e elaborar tal lei, remetendo-
a à Presidência da República para a sua promulgação.
Além dos nove Ministros, a CRFB/88 ainda previu a figura de Auditores e
membros do “Ministério Público junto ao Tribunal”, sem delimitar quantos seriam. Isso
significa que tal delimitação dependerá de lei própria.
O auditor, conforme parágrafo 4o do art. 73, deverá exercer uma de duas
funções: atribuições próprias de judicatura, a ser definida em lei a partir das
competências delineadas no art. 71; e substituição dos Ministros, quando esses
ausentes.
Já ao Ministério Público junto ao TCU, conforme interpretação sistemática da
CRFB/88 (artigos 73 e 130), incumbiria o exercício das atribuições dos membros do
Ministério Público previstas nos artigos 127 a 130, aplicadas às competências
contidas no art. 71.
A partir dessa organização constitucionalmente estabelecida incumbiria à
legislação infraconstitucional e regimento interno prover com adequação às demais
normas constitucionais, incluindo as do art. 5o, suas competências acima
enumeradas.

2.6 Conclusão do Capítulo

Os Tribunais de Contas do país receberam da Constituição competências para


fiscalizar, inspecionar e auditar as contas dos administradores públicos e daqueles
que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem, administrem dinheiros, bens e valores
públicos ou, ainda, daqueles que, em conjunto com os primeiros, derem causa a
perda, extravio ou prejuízo ao erário.
Poderão ainda, caso identifiquem violação à legalidade, legitimidade e
economicidade dos atos administrativos indicados, julgar as contas dos
administradores e responsáveis, bem como aplicar-lhes sanções. Podem ainda
determinar obrigação de fazer ou não fazer às suas correspondentes administrações
públicas, e, caso não obedecidos, devem executar diretamente o seu próprio comando
normativo específico e concreto, com exceção da hipótese de sustação de contratos
(cuja execução deverá ser procedida pelo Congresso ou pela própria administração
pública).
Quando aplicam sanções, os Tribunais de Contas podem constituir obrigação
de dar coisa certa contra pessoas físicas e jurídicas de direito privado, e caso não haja
61

a extinção da obrigação via o seu pagamento, devem tais cortes de contas expedir o
respectivo título executivo, entregando certeza e liquidez à obrigação.
Vê-se, portanto, que as suas competências são importantes e extensas,
chegando ao ponto de poder restringir direitos e garantias dos indivíduos, tais como o
direito de propriedade, o de cidadania111 e o de exercício de função pública.
Como se sabe, o art. 5º da CRFB/88 é minucioso ao determinar quais são as
garantias individuais, podendo aqui citar as mais correspondentes ao presente tema:

[...]XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a


obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos
termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o
limite do valor do patrimônio transferido;
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as
seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa;
d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória;
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais (BRASIL, 1988).

Obviamente que, para o exercício de tamanho mister, seguindo as regras


constitucionais insculpidas no art. 5o, as cortes de contas devem ser organizadas de
modo a viabilizar o cumprimento dos direitos e garantias fundamentais. Quem
organiza e delimita o processo das cortes de contas são as leis federal, para o TCU,
estaduais e municipais, para seus respectivos Tribunais de Contas.

111
Depois de recente decisão do STF, colocou-se em dúvida a constitucionalidade da norma contida
no art. 91 da Lei n. 8.443/92 cumulada com a norma do art. 1°, inciso I, alínea g e no art. 3°, ambos da
Lei Complementar n. 64/90, em que incumbiria ao Tribunal enviar ao Ministério Público Eleitoral, em
tempo hábil, o nome dos responsáveis cujas contas houverem sido julgadas irregulares nos cinco anos
imediatamente anteriores à realização de cada eleição, para fins de inabilitação para concorrer a cargo
eletivo.
62

No próximo capítulo dedicar-se-á a identificar como nossos legisladores


organizaram o TCU, ou seja, verificar se a tal entidade houve a instrumentalização de
mecanismos orgânicos e processuais adequados ao cumprimento dos seus misteres
constitucionais.
63

3 A ORGANIZAÇÃO E O PROCESSO DE CONTAS PÚBLICAS NA LEGISLAÇÃO


INFRACONSTITUCIONAL

Iniciar-se-á esse capítulo com a análise da Lei n. 8.443, de 16 de julho de 1992,


cuja denominação conhecida é Lei Orgânica do TCU. À medida que outras leis
estaduais, criadoras de Tribunais de Contas estaduais, forem relevantes para
compreensão de maiores ou melhores dispositivos normativos organizadores de suas
entidades, cuidar-se-á de citá-las como exemplos de como a referida Lei poderia ser
aprimorada.
O mesmo se fará quanto ao Regimento do TCU, o qual deve, como visto no
capítulo acima, organizar e instrumentalizar o seu órgão.

3.1 Da Organização do Tribunal de Contas da União

O TCU, conforme determina a Lei n. 8.443/92, é organizado da seguinte forma:

1) O Tribunal é um órgão despersonalizado composto por nove ministros – art. 73


da CRFB/88 e art. 62 da Lei n. 8.443/92;
2) São apenas os ministros, isolada ou colegiadamente, que exercem todas as
competências previstas na Lei n. 8.443/92;
3) A Lei prevê possibilidade de divisão das competências do Tribunal entre o
Plenário e as Câmaras (art. 66 a 68 da Lei n. 8.443/92), sem especificar qual
colegiado é responsável pelo o que. Quem mais bem delimita tais
competências é apenas o Regimento Interno, por meio de seus artigos 15, 16
e 17. Vê-se que todas as funções são exercidas pelos Ministros por meio de
votações em ambos os tipos de colegiados.
4) Há as secretarias112 que atenderão aos ministros, ou seja, ao Tribunal, com a
mera função de apoiar-lhes técnica e administrativamente. (art. 85 da Lei n.

112
Cumpre destacar que a Lei Orgânica que rege o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro
(Lei Complementar n. 63/1990) e igualmente do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (Lei n.
2.423/1996) acrescentaram as chamadas “Delegações de Controle” (DCT) como órgãos que compõe
o Tribunal. As DCT’s funcionam diretamente junto às estatais do âmbito estadual e municipal e
apresentam competência para fiscalizar e instaurar processos necessários, podendo, inclusive, aplicar
sanções aos responsáveis.
64

8.443/92), em que pese seus servidores possuírem, ao menos funcionalmente,


autonomia de opinião113.
5) Por fim a Lei n. 8.443/92 criou órgão do Ministério Público junto ao Tribunal de
Contas114, que exerce básica e precipuamente a função de custus legis115 (art.
80 a 84 da Lei n. 8.443/92) e de providenciar os títulos executivos, enviando-
os à AGU. Atualmente são sete os representantes do Ministério Público de
Contas no TCU.
Veja que não há quaisquer distinções entre os órgãos que realizam as
fiscalizações e auditorias, dos que instauram os processos e dos que os instruem,
tudo é competência de um único órgão, o Ministro Relator.
Quanto ao ato crucial de decisão, a competência será dos mesmos Ministros
responsáveis por toda a estrutura que fiscaliza, audita, instaura e instrui os processos,
com a diferença que a decisão final será do seus respectivos colegiados – Plenário
ou Câmara.
As normas de organização são pouquíssimas e superficiais, mesmo
estruturando o TCU com mais três importantes órgãos, o Ministério Público junto ao
tribunal, os Auditores (que exercem apenas a função de substitutos dos Ministros) e
os servidores internos ao Tribunal.
Como a Lei n. 8.443/92 é extremamente expedita quanto à organização do TCU
para o exercício de suas competências (fiscalização de atos e de contratos116, bem
como julgamento de contas), esse autor pode descrevê-las, de forma didática, nos
poucos tópicos abaixo:

1) Para fins de fiscalização de atos e contratos (art. 41 ao 44 da Lei n. 8.443/92):

113
O art. 86 da Lei n. 8.443/92 estabelece, como obrigação do servidor que exerce funções específicas
de controle externo no Tribunal de Contas da União, “manter, no desempenho de suas tarefas, atitude
de independência, serenidade e imparcialidade”. Desse modo, na esteira do disposto na Lei Orgânica,
as manifestações são individuais. Sendo, como sabemos, comum, no âmbito de determinada unidade
técnica, haver pareceres e propostas distintas do Auditor, Diretor e do Secretário, advindo do livre
convencimento de cada um. Convém salientar, ainda, que não é raro acontecer dos Ministros
divergirem das propostas encaminhadas pela unidade técnica. Essas propostas das unidades técnicas
não são vinculativas.
114
A Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (Lei n. 79/1993) prevê em seu art. 5º
que, além do Ministério Público, a Procuradoria da Fazenda do Estado igualmente integrará o Tribunal
e com competência para emitir pareceres, interpor recursos e pronunciar-se nos autos.
115
O Regimento do Tribunal de Contas da União previu em seu art. 62 a possibilidade de os referidos
representantes do Ministério Público fiscalizarem, inspecionarem, auditarem e representarem contra
algum de seus órgãos jurisdicionados. Tal previsão amplia positivamente as competências desse
Ministério Público, contudo é de legalidade questionável o Regimento Interno dar o que a lei não
outorgou.
116
Nesta competência - fiscalização de atos e contratos – está abrangida a sua atribuição para apreciar
a legalidade dos atos de admissão de pessoal e concessões de aposentadorias.
65

a) O Plenário distribui os processos de fiscalização e auditoria a cada um dos


Ministros, para que sejam a partir daquele momento os fiscalizadores e
relatores de cada entidade administrativa ou caso específico;
b) O Ministro Relator determinado encaminha os autos do processo para que
seja realizada a fiscalização, inspeção ou auditoria por secretaria de apoio,
denominada de Secretaria de Controle Externo;
c) A referida secretaria distribui entre os seus servidores nela lotados a
condução dos trabalhos de fiscalização;
d) Terminada a fiscalização, a secretaria emite uma análise técnica e o
encaminha ao Ministro Relator;
e) Recebida a análise, o Ministro Relator poderá arquivar o processo ou, na
hipótese de encontrar ilegalidade, ilegitimidade ou antieconomicidade,
procederá à intimação do responsável para apresentar resposta por
escrito117;
f) Se os esclarecimentos do responsável não forem aceitos pelo próprio
Ministro Relator (Plenário/Câmaras), seja com o apoio ou não da Secretaria,
este poderá encaminhar ao respectivo Colegiado voto por aplicação de
multa nos termos do art. 58 da Lei n. 8.443/92. O Colegiado decide ao final.
g) Além da multa, se o Tribunal constatar alguma ilegalidade de ato ou
contrato, será concedido prazo de até 15 (quinze) dias para que o
responsável adote as providências necessárias ao estrito cumprimento da
lei.
h) Especificamente no caso de ato administrativo, se a determinação do
Tribunal não for atendida, este poderá, de imediato, (i) sustar a execução
do ato impugnado; e (ii) comunicar sua decisão à Câmara dos Deputados e
ao Senado Federal.
i) No caso de contrato, o Tribunal, se não atendido, comunicará o fato ao
Congresso Nacional, a quem competirá adotar o ato de sustação e solicitar
ao Poder Executivo que adote as medidas necessárias.
j) Caso o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de 90 (noventa)
dias, não adote as providências necessárias, o Tribunal poderá decidir
acerca da sustação do contrato.

117
Importante a leitura do art. 43 da Lei Orgânica que estabelece exatamente esse procedimento.
66

2) Para fins de julgamento de contas, denominado de Tomada de Contas


Especial (artigos 6º ao 16 da Lei n. 8.443/92):

a) Tendo o Tribunal, por meio dos mesmos Ministros relatores dos processos
de auditoria e fiscalização respectivos, identificado que houve omissão no
dever de prestar contas, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros,
bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal,
ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, o Plenário ou a
Câmara, depois de recebido voto do Ministro Relator, determinará a
instauração da tomada de contas especial, fixando prazo para cumprimento
dessa decisão (art. 8º da Lei n. 8.443/92);
b) O Ministro Relator da fase de fiscalização anterior presidirá a instrução do
processo de tomada de contas, determinando a citação dos responsáveis
(art. 11);
c) Citados os responsáveis, esses apresentarão ao Ministro Relator defesa
por escrito;
d) Recebidas as defesas, o Ministro Relator poderá contar com o apoio de uma
de suas secretarias para análise técnica e eventuais diligências visando o
saneamento dos autos;
e) Sem necessária vinculação à análise técnica realizada por sua secretaria
de apoio, o Ministro Relator emite um voto e o encaminha para julgamento
de mérito perante o Plenário ou pela Câmara na qual faz parte;
f) No Colegiado (Plenário ou Câmara) é julgado o mérito, condenando o
responsável e aplicando-lhe sanção ou determinação para ressarcimento
ao erário, ou ainda podendo absolvê-lo.
g) Caberá ao responsável condenado recorrer da decisão por meio de
reconsideração ao mesmo Ministro Relator que proferiu o voto condenatório
(art. 33), o qual analisará o cabimento do recurso e, posteriormente,
encaminhará o processo para sorteio de novo Relator (art. 154 do
Regimento Interno118), nessa hipótese poderá novamente o Ministro contar
com o apoio de alguma de suas secretarias internas;

118
É interessante notar que a Lei Orgânica indica que o recurso deve ser analisado pelo mesmo
Ministro que levou o voto recorrido ao Plenário. Apenas o Regimento do TCU que mais recentemente
previu a hipótese de novo relator para o recurso. Veja o seu art. 154: “O Presidente sorteará, entre os
ministros, relator de cada processo referente a: I – recursos de reconsideração e de revisão e pedido
67

h) Além dos recursos previstos na Lei Orgânica, o Regimento Interno, previu


o cabimento do agravo, em seu art. 277, inciso V.
i) Há a Secretaria de Recursos no âmbito do Tribunal, sendo esta a
responsável por apoiar o Ministro no exame de admissibilidade dos
recursos, bem como por empreender a análise de mérito119, submetendo,
posteriormente, seu parecer ao Ministro Relator;
j) De qualquer forma o recurso será decidido em definitivo pelo mesmo órgão
colegiado que lhe condenou (art. 285 do Regimento Interno)120.

São essas as conformações orgânicas do TCU. Apenas com essa estrutura é


que deverá tal relevante órgão processar e julgar pessoas.
O que mais chama a atenção é o fato de o mesmo órgão que fiscaliza e audita,
também instaura e instrui o processo, para ao final decidir aplicando sanções às partes
responsabilizadas. Cumpre, sequencialmente, analisar como se conforma o processo
dentro desse órgão.

3.2 Do Processo no Tribunal de Contas da União conforme a Lei Orgânica

Em relação à função fiscalizatória121 o art. 1º, incisos II e IV da Lei n. 8.443/92


dispõe que, compete ao TCU:

II - proceder, por iniciativa própria ou por solicitação do Congresso Nacional,


de suas Casas ou das respectivas Comissões, à fiscalização contábil,
financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das unidades dos poderes
da União e das demais entidades referidas no inciso anterior”;

de reexame interpostos às deliberações das câmaras ou do Plenário; II - auditorias a serem


coordenadas diretamente por ministros, com a sua participação na execução; III – projetos de atos
normativos; IV – assuntos que não ensejem a distribuição segundo os critérios previstos nos arts 148
e 149. Parágrafo único. Não participará do sorteio o ministro que tiver proferido o voto condutor do
acórdão objeto dos recursos previstos no inciso I, observadas as competências do Plenário e das
câmaras”.
119
Ao contrário da Lei n. 8.443/92, as Leis Orgânicas do Tribunal de Contas dos Estados do Paraná
(Lei complementar n. 113/2015) e do Espírito Santo (Lei complementar n. 621/2012), por exemplo,
autorizam expressamente às partes a realização de sustentação oral durante a sessão de julgamento
dos recursos, bem como a juntada de novos documentos nesta oportunidade.
120
“Art. 285. De decisão definitiva em processo de prestação ou tomada de contas, inclusive especial,
cabe recurso de reconsideração, com efeito suspensivo, para apreciação do colegiado que houver
proferido a decisão recorrida, podendo ser formulado uma só vez e por escrito, pela parte ou pelo
Ministério Público junto ao Tribunal, dentro do prazo de quinze dias, contados na forma prevista no art.
183”
121
Conforme o Regimento Interno do TCU, os instrumentos para a fiscalização consistem em
levantamento, auditorias, inspeções, acompanhamentos e monitoramentos.
68

IV - acompanhar a arrecadação da receita a cargo da União e das entidades


referidas no inciso I deste artigo, mediante inspeções e auditorias, ou por
meio de demonstrativos próprios, na forma estabelecida no Regimento
Interno (BRASIL, 1992).

No mesmo sentido dispõe o art. 41, inciso II, que:

para assegurar a eficácia do controle e para instruir o julgamento das contas,


o Tribunal efetuará a fiscalização dos atos de que resulte receita ou despesa,
praticados pelos responsáveis sujeitos à sua jurisdição, competindo-lhe, para
tanto, em especial: II - realizar, por iniciativa própria, na forma estabelecida
no Regimento Interno, inspeções e auditorias de mesma natureza que as
previstas no inciso I do art. 38 desta Lei (BRASIL, 1992).

Para tanto a Lei Orgânica fixou a competência122 ao Plenário ou às Câmaras,


compostas pelos Ministros, para determinar a realização das inspeções e auditorias.
Mas a execução material propriamente dita da fiscalização e da auditoria é procedida
pelos servidores da Secretaria do Tribunal, nos termos do art. 41, § 1°123.

3.2.1 Das fases do Processo de auditoria e inspeção

Quanto às fases do processo de auditoria, ao analisar os dispositivos que


compõe o Capítulo II (Seções I a V) do diploma legal, verifica-se que o legislador
estabeleceu poucas garantias processuais às pessoas que são submetidas às
inspeções. Nota-se que em geral a norma se limita a autorizar ao auditado o direito
de apresentar, por escrito, razões de justificativa e pedido de reexame contra a
decisão final124.

É o que se extrai do art. 43, inciso II da Lei Orgânica:

[...] Ao proceder à fiscalização de que trata este capítulo, o Relator ou o


Tribunal: II - se verificar a ocorrência de irregularidade quanto à legitimidade
ou economicidade, determinará a audiência do responsável para, no prazo
estabelecido no Regimento Interno, apresentar razões de justificativa
(BRASIL, 1992).

122
Nesse mesmo sentido dispõe o art. 245 do Regimento Interno do TCU.
123
“Art. 41, §1°. As inspeções e auditorias de que trata esta seção serão regulamentadas no Regimento
Interno e realizadas por servidores da Secretaria do Tribunal”.
124
A Lei Orgânica do TCE- TO (Lei n. 1.284/01) garante ao revel a possibilidade de “reassumir como
parte no processo, no estado em que se encontrar, sendo vedado pleitear sobre matéria já preclusa”
(art. 23). Igualmente, a Lei do TCE - AM (Lei n. 2.423/96) autoriza a parte revel intervir no curso do
processo.
69

Já em relação ao direito de interpor recurso, o art. 48 dispõe: “De decisão


proferida em processos concernentes às matérias de que tratam as Seções III e IV
deste capítulo caberá pedido de reexame, que terá efeito suspensivo” (BRASIL, 1992).
Já em relação à produção de provas, percebe-se que a lei expressamente outorgou
ao Relator/Tribunal a iniciativa e condução da instrução do respectivo processo.
Nesse sentido, estabelece o art. 40:

O Relator presidirá a instrução do processo, determinando, mediante


despacho singular, por sua ação própria e direta, ou por provocação do órgão
de instrução ou do Ministério Público junto ao Tribunal, a adoção das
providências consideradas necessárias ao saneamento dos autos, [...] após
o que submeterá o feito ao Plenário ou à Câmara respectiva para decisão de
mérito (BRASIL, 1992).

Ainda, dispõe o art. 41, “para assegurar a eficácia do controle e para instruir o
julgamento das contas, o Tribunal efetuará a fiscalização dos atos de que resulte
receita ou despesa, praticados pelos responsáveis sujeitos à sua jurisdição [...]”.
No entanto, observa-se que não existem previsões legais expressas que
assegurem ao auditado a produção de contraprova, juntada de documentos ou ampla
dilação probatória125. Por meio do cotejo entre os dispositivos, conclui-se que o TCU
ao exercer sua competência fiscalizatória, instrui e conduz o processo de forma
unilateral, com a mínima participação da pessoa submetida ao procedimento.

3.2.2 Do Processo de Tomada de Contas Especial

Quanto à competência da Corte para julgamento das contas, o art. 7° da Lei


Orgânica estabelece que as contas dos administradores e responsáveis “serão
anualmente submetidas a julgamento do Tribunal, sob forma de tomada ou prestação
de contas [...]”.
Para tanto, a norma atribui à autoridade administrativa e ao próprio Tribunal de
Contas (originalmente ou devido à omissão do órgão de controle interno) a

125
Constatou-se que as leis dos Estados de Pernambuco (Lei n. 12.600/2004) e Tocantins dedicaram
um capítulo/seção específica sobre ampla defesa nos processos perante tais Tribunais. O art. 21 § 1º
da Lei n. 1.284/2001 dispõe que “para o pleno exercício do direito referido no caput deste artigo, será
facultado ao responsável ou interessado o acompanhamento de todos os atos e fases do processo,
independentemente de intimação”. No mesmo sentido, o art. 50, parágrafo único, da Lei n. 12.600/2004
garante “à parte interessada a oportunidade de pronunciar-se sobre o conteúdo do parecer ou relatório
aditivo, nos casos em que forem apresentados fatos novos”.
70

competência para a instauração do processo de Tomada de Contas Especial. Nesse


sentido, dispõe o art. 8º:

Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da


aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso
VII do art. 5° desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros,
bens ou valores públicos, [...] a autoridade administrativa competente, sob
pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar
providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para
apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano
(BRASIL, 1992).

Em complemento, o art. 8º, §1°, estabelece que “Não atendido o disposto


no caput deste artigo, o Tribunal determinará a instauração da tomada de contas
especial [...] 126 ”. O agente responsável por tomar a iniciativa da instauração é,
portanto, o Colegiado, por meio de voto do Ministro Relator.

3.2.2.1 Comunicações e intimações

Cumpre destacar alguns dispositivos que dispõe sobre a comunicação de atos


processuais127 ao responsável. A exemplo, tem-se o art. 12, II, segundo o qual, “ [...]
o Relator ou o Tribunal se houver débito, ordenará a citação do responsável para, no
prazo estabelecido no Regimento Interno, apresentar defesa ou recolher a quantia
devida” e o inciso III “se não houver débito, determinará a audiência do responsável
para, no prazo estabelecido no Regimento Interno, apresentar razões de justificativa”.
Nesse sentido, também o art. 12, § 1° “O responsável cuja defesa for rejeitada
pelo Tribunal será cientificado para, em novo e improrrogável prazo estabelecido no
Regimento Interno, recolher a importância devida” e §3° “O responsável que não
atender à citação ou à audiência será considerado revel pelo Tribunal, para todos os
efeitos, dando-se prosseguimento ao processo” .
Quanto às formas de comunicação e notificação, vale destacar o art. 22 e seus
incisos:
Art. 22. A citação, a audiência, a comunicação de diligência ou a notificação
far-se-á:
I - mediante ciência do responsável ou do interessado, na forma estabelecida
no Regimento Interno;
II - pelo correio, mediante carta registrada, com aviso de recebimento;

126
Essas disposições são reproduzidas pelo art. 197, caput e art. 197, §1°, do Regimento Interno do
Tribunal.
127
Interessante informar que a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco
determina, por meio do art. 51, a notificação das partes sempre que houver exibição de documentos
novos e manifestações/pareceres que apresentem fatos novos.
71

III - por edital publicado no Diário Oficial da União quando o seu destinatário
não for localizado.
Parágrafo único. A comunicação de rejeição dos fundamentos da defesa ou
das razões de justificativa será transmitida ao responsável ou interessado, na
forma prevista neste artigo (BRASIL, 1992).

E, por fim, o art. 25 dispõe que “o responsável será notificado para, no prazo
estabelecido no Regimento Interno, efetuar e comprovar o recolhimento da dívida”.
Perceba que ao responsável é dado conhecimento apenas da instauração do
processo e da decisão que o condenou, salvo eventual diligência que a ele seja
diretamente dirigida. As fases de instruções internas no TCU não lhe são
comunicadas.

3.2.2.2 Instrução do processo de Tomada de Contas Especial

Não obstante a natural complexidade característica desse tipo de processo, a


Lei Orgânica do TCU possui um único dispositivo que “regulamenta” a produção da
prova128 no âmbito da Tomada de Contas. E, quando o fez, não trouxe em seu texto
garantias processuais direcionadas ao particular.
É o que se verifica no art. 11:

O Relator presidirá a instrução do processo, determinando, mediante


despacho singular, de ofício ou por provocação do órgão de instrução ou do
Ministério Público junto ao Tribunal, o sobrestamento do julgamento, a
citação ou a audiência dos responsáveis, ou outras providências
consideradas necessárias ao saneamento dos autos, fixando prazo, na forma
estabelecida no Regimento Interno, para o atendimento das diligências, após
o que submeterá o feito ao Plenário ou à Câmara respectiva para decisão de
mérito (BRASIL, 1992).

128
O art. 37 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (Lei n. 2.324/1996)
assegura expressamente à parte o direito de defesa, no prazo de vinte dias, sempre que do processo
lhes possa resultar alguma sanção, bem como acompanhar a instrução e produzir a prova. Contudo,
ao mesmo tempo, limita os meios de produção da prova ao dispor que “as provas que a parte quiser
produzir perante o Tribunal devem ser, preferencialmente, apresentadas de forma documental,
inclusive as declarações de terceiros” (art. 37, § 4º). Por outro lado, a norma do Tribunal de Contas do
Piauí (Lei n. 5.888/2009), em seu art. 143 admite ampla produção probatória, de modo que “a parte
poderá, na fase de instrução, juntar documentos e pareceres, requerer diligências, bem como aduzir
alegações referentes à matéria objeto do processo”. Além disso, a referida norma assegura à parte que
os elementos produzidos sejam considerados efetivamente na decisão do Tribunal, conforme o art.
143,§ 1º “Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório de instrução,
do parecer do Ministério Público de Contas, e da proposta de decisão ou do voto do Relator” e, por fim,
o § 2º arremata que “somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas
propostas pela parte quando sejam intempestivas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.
72

Além disso, o art. 87, inciso II, atribui competência aos servidores do TCU para
procederem às diligências necessárias para a instrução do processo, podendo
requerer informações e documentos pertinentes.

3.2.2.3 Decisões e recursos

Por fim, a Lei Orgânica da Corte de Contas, genericamente, garante ao


responsável a interposição de recursos129 face às decisões proferidas ao longo do
processo de tomada de contas. As hipóteses130 estão expressamente previstas no art.
32, a saber:

Art. 32. De decisão proferida em processo de tomada ou prestação de contas


cabem recursos de:
I - reconsideração;
II - embargos de declaração;
III - revisão.

Especificamente quanto à revisão, vale destacar que a lei estabeleceu que a


“falsidade ou insuficiência de documentos em que se tenha fundamentado a decisão
recorrida”, bem como a “superveniência de documentos novos com eficácia sobre a
prova produzida” 131 são hipóteses hábeis para a interposição do referido recurso e
correção da decisão.
Assim, em certa medida, a norma garante ao responsável a possibilidade de
alterar a decisão então definitiva, quando esta se fundamentar em conjunto probatório
insuficiente ou errôneo 132 . Para dificultar ainda mais a situação do responsável
recorrente, o órgão que julgará o recurso é o mesmo que proferiu a decisão julgada.

3.2.2.4 Possibilidade da adoção subsidiária das demais normas processuais vigentes

129
Destaca-se que os artigos 156 e 160 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Espírito
Santo asseguram nos recursos interpostos pelo Ministério Público, “mediante a concessão de
oportunidade para oferecimento de contrarrazões recursais, quando se tratar de recurso tendente a
agravar a situação do responsável ou do interessado”. Além disso, dispõe que “havendo partes com
interesses opostos, a interposição de recurso por uma delas enseja à outra a apresentação de
contrarrazões, no mesmo prazo do recurso”. Igualmente a norma do Tribunal de Contas do Estado do
Amazonas garante à parte impugnar o recurso (art. 129).
130
A Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Paraná para além desses tipos de recursos,
prevê no art. 65, inciso V e art. 99 § 2º, hipótese de interposição de “Embargos de Liquidação” contra
decisão que liquida valores referentes a multas, reparações e/ou restituições.
131
Nesse sentido, ver art. 35, incisos II e III da Lei n. 8.443/92.
132
A lei que rege o TCE- PI assegura à parte arguir e ver declarada a nulidade de atos processuais é
o que se depreende do art. 110, “pronunciada a nulidade na fase recursal, compete ao Relator do
Recurso declarar os atos a que ela se estende e ordenar as providências para a repetição ou retificação
do ato”.
73

Importante mencionar que o Regimento do TCU prevê em seus artigos 172 e


298 a possibilidade de se utilizarem subsidiariamente “as disposições das normas
processuais em vigor, no que couber e desde que compatíveis com a Lei Orgânica”.

3.3 Conclusão do capítulo

A partir da análise e cotejo dos dispositivos acima mencionados, percebe-se


que, em certa medida, o legislador atribuiu tão somente garantias processuais
correspondentes ao direito de resposta, por escrito, e interposição de recursos aos
mesmos órgãos que julgaram.
O art. 31 da norma em questão, estabelece (de forma genérica) que “em todas
as etapas do processo de julgamento de contas será assegurado ao responsável ou
interessado ampla defesa”. Contudo, a norma é omissa quanto aos meios pelos quais
o auditado/responsável pode efetivamente influenciar a decisão final da Corte de
Contas, bem como produzir amplamente a contraprova.
A Lei n. 8.443/92 se omite quanto ao princípio de contraditório, o que de todo é
compreensível, pois em nenhum momento organizou o TCU ou deu-lhe um processo
em que fosse minimamente possível alcançar tal relevante princípio constitucional.
Sendo assim, analisando especificamente a Lei Orgânica do TCU, verifica-se
que a sua estrutura organizacional e o processo de formação de suas decisões
condenatórias e fiscalizatórias são correspondentes a um processo verticalizado, que
concentra suas decisões no plano orgânico-estatal, e que não valoriza argumentos e
fatos apresentados pelos envolvidos, em virtude das seguintes principais
características delimitadas pela própria Lei n. 8.443/92, reforçada pelo
correspondente Regimento Interno: (i) aquele mesmo órgão que acusa, também
instrui o processo, analisa seus esclarecimentos e defesas, administra o material
probatório e, ao fim, decide; (ii) consequentemente, quando da instauração, seus
mesmos órgãos internos formulam uma hipótese e depois se colocam na obrigação
de avaliar se sua própria hipótese se confirma ou não; (ii) os acusados ou fiscalizados
não possuem controle sobre a gestão da prova; (iii) os acusados dependem sempre
do espírito dialético e da boa vontade do julgador; e (iv) não há audiências orais.
Como efeito, é necessário confrontar essa organização e seu respectivo
processo com os demais dispositivos constitucionais, que garantem o devido processo
74

legal, o contraditório e a ampla defesa, para confirmar ou infirmar a hipótese de que a


Lei n. 8.443 não entregou ao TCU os meios e recursos necessários para que consiga
produzir decisões condenatórias válidas e eficazes.
75

4 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA APLICADOS AOS


PROCESSOS NO BRASIL

4.1 Procedimentos como um dos meios de manifestação do Estado

O Estado de Direito é uma entidade que possui vontade. Diferentemente dos


seres humanos que pensam e sentem, a vontade do Estado é tão somente aquela
contida na ordem jurídico-nacional, por isso denominado de Estado de Direito.
Os homens se manifestam por diversas maneiras, o Estado não, somente por
meio da expedição de normas e de atos jurídicos, que podem ser atos legislativos,
atos administrativos e/ou atos jurisdicionais.
Para alcançar a expedição de determinados atos, são necessários que outros
atos anteriores sejam praticados de forma sequencial, em uma estrutura encadeada
de atos, um levando como requisito de validade ao outro, até o ato terminativo, o ato
jurídico final, aquele que introduz na ordem jurídica uma nova norma jurídica,
instituindo direitos ou obrigações, declarando situações jurídicas ou ainda as
modificando; estes são também denominados de provimentos.
Esse encadeamento de atos levando à expedição de um provimento é
denominado comumente de procedimento, que pode ser procedimento legislativo,
administrativo ou jurisdicional, dependendo da natureza do ato jurídico a ser expedido.

4.2 Processo como procedimento realizado em contraditório

Se o provimento vir a intervir de forma concreta e específica em direitos


individuais (liberdade e propriedade, por exemplo), há que se fazer conforme os
princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa; é o que
diz a CRFB/88, no seu art. 5o, quando os proclamam como direitos dos litigantes e dos
acusados em geral, assim como de todos que possam sofrer privação de sua
liberdade ou de seus bens.
Nesse contexto, como passa a ser fundamental a participação dos
interessados na atividade de preparação do provimento, o procedimento recebe a
76

denominação científica e técnica de Processo133. Daí, inclusive, a distinção moderna


entre Procedimento e Processo134.

4.3 Contraditório e Ampla Defesa: normas-princípio constitucionais de eficácia


plena e aplicabilidade imediata, direta e integral

Já ressalta evidente para toda a doutrina e jurisprudência nacional que devido


processo legal, contraditório e ampla defesa são normas jurídico-constitucionais, de
absoluta eficácia plena e aplicabilidade imediata, direta e integral135, que servem de
fundamento de validade para outras normas de hierarquia inferior, além de integrarem
todas as demais normas jurídicas, incluindo as constitucionais, pois indicam
finalidades que devem ser atendidas pelo sistema jurídico nacional.
Não há como se furtar à sua eficácia e aplicabilidade (conforme expressa
previsão no parágrafo primeiro136 do art. 5o da CRFB/88), seja informando a função
legislativa, a administrativa ou a jurisdicional137.

Ademais, como esses princípios conformam o método de atuação do Estado


brasileiro na relação com toda gente, eles não se aplicam por meio de ponderações,

133
Para a Teoria do Processo, a obra de Fazzalari é um marco importante, a qual concebe o processo
como procedimento realizado em contraditório. Aroldo Plínio Gonçalves analisou criteriosamente esta
influência do pensamento daquele autor, tendo sido feliz na síntese seguinte: “Há processo sempre
onde houver o procedimento realizando-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste
está na simétrica paridade da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele
são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos” (GONÇALVES, Aroldo Plínio.
Técnica Processual e Teoria do Processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2012, p. 98).
134
Nas décadas pregressas havia intensa dúvida entre os administrativistas sobre qual denominação
devesse utilizar: procedimento ou processo administrativo. Contudo, depois tanto da CRFB/88 e da Lei
Federal, tal discussão perdeu força, hoje prevalecendo o entendimento de que se houver o risco de um
provimento estatal afetar direitos concretos e específicos de algum cidadão, obrigatoriamente submete-
se o Estado ao Processo, seja ele judicial ou administrativo. Disto não há dúvida mais. O que restaria
certa discussão acadêmica é se as decisões administrativas que podem levar à ampliação de direitos
seriam submetidas a um procedimento ou a um processo. Esse autor não adentrará nesse debate, a
fim de não perder o foco na condução da pesquisa em questão, cuja litigiosidade é evidente ao se
pretender julgar contas e aplicar penalidades. Para maior aprofundamento no tema, recomenda-se a
ótima obra de Sérgio Ferraz e Adilson Dallari, os quais se filiam a corrente da defesa da denominação
processo administrativo, pois “uma “lei fundamental do cidadão, viabilizando sua participação ativa nos
processos decisórios da Administração, não mais ficando relegado à postura de sujeição, de simples
objeto do agir administrativo” (FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson. Ob.cit., p. 58).
135
“A Constituição de 1988 retomou a tradição da Constituição de 1946, anunciando aquelas normas
o
como de eficácia plena (art. 5 , inciso LV [...])” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas
Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 191).
136
Nesse sentido, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”.

137
Em idêntico sentido leciona Romeu Felipe Bacellar Filho (Ob. Cit., p. 53)
77

não se concebem atualmente quaisquer outros princípios que com eles possam
colidir, enfraquecer, retirar-lhes seu poder e validade138. Todos os demais princípios
constitucionais devem com eles conviver. Todas as demais normas
infraconstitucionais deles precisam extrair seus fundamentos de validade.
Pode-se, ainda, dizer que são mantras, proclamados aos quatro ventos, por
Magistrados, Advogados, representantes do Ministério Público, Professores,
Doutrinadores e Sociedade Civil.
Qualquer estudante de Direito mais atento pode repetir inúmeras definições
para eles, todos sabem do que se tratam, mas na vida real, no curso dos processos
judiciais e administrativos, há uma verdadeira Torre de Babel quando se necessita
definir se o pedido de prova pericial, por exemplo, deve ou não ser deferido; se o autor
pode obstar a pergunta do réu à testemunha de defesa; se deveria haver oitiva das
partes naquela audiência em processo administrativo; e tantos e tantas outras
situações concretas que trazem inúmeras dúvidas quanto à efetiva aplicação dos
referidos princípios.
Há dúvidas não apenas pelos aplicadores e intérpretes do Direito, mas também
nossos legisladores não se dão conta do exato conteúdo de tais princípios, a ponto
de demandarem frequentes atualizações legislativas visando mais bem adequar os
processos civil, penal e administrativo aos atuais parâmetros constitucionais. Se não
se consegue esgotar minuciosamente o exato conteúdo jurídico desses princípios, ao
menos se pode, buscando apoio na Teoria do Processo, circunscrevê-los em
parâmetros claros e, provavelmente, incontroversos, de onde se possa dizer:
No atual Estado Democrático de Direito brasileiro, o mínimo que um processo
deve seguir para alcançar atendimento aos princípios constitucionais do devido
processo legal, do contraditório e o da ampla defesa é ...!

Para fins metodológicos, compreende-se importante, nesse capítulo, descrever


qual o conteúdo jurídico dos referidos princípios, tanto na percepção da doutrina como
na da jurisprudência.

138
Adota-se aqui o pensamento de Humberto Ávila explicitado em seu “Teoria dos Princípios: da
definição à aplicação dos princípios jurídicos”. Pode-se citar o seguinte trecho bastante característico
para esse trabalho: “Os princípios são, portanto, normas que atribuem fundamento a outras normas,
por indicarem fins a serem promovidos, sem, no entanto, preverem o meio para a sua realização. […}
no sentido específico de não enumerarem exaustivamente os fatos em presença dos quais produzem
a consequência jurídica ou de demandarem a concretização por outra norma, de modos diversos e
alternativos” (Ob. cit. p. 134-136) [...] “Princípios como normas prescritivas de fins a serem atingidos e
que servem de fundamento para a aplicação de outras. [...]”(ob. cit. p. 139)
78

Em capítulo subsequente, confrontar-se-ão as regras atuais que organizam o


TCU com o conteúdo jurídico dos referidos princípios, para descrever, caso existam,
quais as falhas da Lei n. 8.443/92 que devem ser corrigidas por (i) nossos legisladores
e, enquanto isto não é realizado, pelos (ii) aplicadores do Direito aos casos concretos.

4.4 O paradigma de Estado Democrático de Direito e sua influência no Processo

As preocupações dos construtores do princípio do devido processo legal do


Século XIII até o início do Século XX estavam sempre ligadas ao abuso de poder pelo
homem que o detinha139. Acreditava-se que com a criação política dos Estados de
Direito, tripartites, tudo se resolveria.

4.4.1 Estado Liberal e o Processo

Com o enfraquecimento das monarquias e a criação de Estados Nacionais em


processo de industrialização surgiu o que se qualificou como Estado Liberal. Neste
há rígida introdução da tripartição dos poderes, em que ao Poder Judiciário deveria
se restringir à interpretação fria da lei, dirimindo os conflitos surgidos entre os cidadãos
ou entre algum indivíduo e a Administração Pública140. Ao Executivo incumbiria aplicar
a lei criada pelo Legislativo, garantindo a propriedade, liberdade e segurança física e
jurídica dos cidadãos, evitando de se imiscuir nas atividades econômicas
desenvolvidas pelos homens de negócios141.

139
Ou dentro da compreensão moderna sintetizada por Dinorá Grotti: “instrumento de garantia dos
administrados em face das prerrogativas públicas” (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. “Devido
processo legal e o procedimento administrativo”. In: Revista dos Tribunais. Cadernos de direito
Constitucional e ciência Política, São Paulo, v. 22, p. 118, 1998.)
141
Paulo Bonavides demonstra que o valor que inspira o liberalismo não se volta para a comunidade,
mas para a liberdade criadora do indivíduo dotado de razão. A importância que tem o indivíduo para o
conteúdo do liberalismo clássico manifesta-se, com particular relevo, no fato de que, originariamente,
o valor da personalidade era concebido como ilimitado e anterior ao Estado e à própria sociedade. Este
grande jurista ressalta, ainda, a elevação dos indivíduos frente a qualquer manifestação de poder
estatal, visando, assim, a protegerem-se contra aquele que sempre os sufocou, impingindo-lhes, por
séculos, condutas freqüentemente injustas e amorais: “No liberalismo, o valor da liberdade, segundo
Vierkandt, cinge-se à exaltação do indivíduo e de sua personalidade, com a preconizada ausência e
desprezo da coação estatal. Quanto menos palpável a presença do Estado nos atos da vida humana,
mais larga e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indivíduo. Caberia a este fazer e deixar de
fazer o que lhe aprouvesse”. (BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de
Janeiro: Forense, 1980, p. 31).
79

Contudo, ao longo do Século XIX e no início do Século XX verificou-se que o próprio


Estado de Direito poderia sufocar, fragilizar e até mesmo aniquilar as liberdades
individuais, frente às enormes desigualdades individuais e sociais.

4.4.2 Estado Social e o Processo

Antes e entre o período das duas Grandes Guerras Mundiais surgiu o Estado
Social nos países do mundo ocidental, como forma de responder as demandas reais
das populações desprovidas de poder político e econômico. O Estado assume um
papel de atuar com maior força na vida social, prestando serviços públicos,
interferindo no mercado, orientando e dirigindo a economia, regulando os negócios e
até mesmo produzindo bens e serviços que antes estavam com a sociedade civil142.
Não restrito à economia e à Administração Pública, como bem demonstrado
por Mirjan Damaska143, o Estado passou não apenas a usar a jurisdição como forma
de sanar os conflitos existentes entre os cidadãos e entre esses e o Estado, mas
fundamentalmente como maneira de realizar política pública144.
No âmbito processual, o juiz se transforma em principal peça do processo,
aquele que solitário, a partir de sua sabedoria, daria a melhor solução para o caso
concreto, solução essa compreendida por ele como a justa. As partes deixam de ser
importantes no curso do processo, não há necessidade de ouvi-las, mas apenas de

142
Cumpre transcrever parte da dissertação de mestrado do autor “Em suma, o Estado Social que se
forma no referido período possui três flancos fundamentais para a sua implementação. O primeiro é a
concepção econômica da denominada era Keynesiana, caracterizada pela presença forte do Poder
Público na economia, visando a garantir o pleno emprego e atuar em setores importantes e estratégicos
para o desenvolvimento nacional, como os da energia elétrica, mineração, petróleo e
telecomunicações, entre outros. O segundo decorre da preocupação com o social, que buscava conferir
ao cidadão acesso à educação, saúde, previdência social, habitação, transporte, saneamento. E, como
terceiro flanco, necessário o desenvolvimento do funcionamento interno do Estado, para que
conseguisse cumprir o que se propunha”. Isto se fez inclusive no âmbito do processo SALLES,
Alexandre Aroeira. Estado Democrático de Direito e a Reforma Administrativa. 2000. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2001, p. 62).
143
DAMASKA, Mirjan R. The Faces of Justice and State Authority: A comparative approach to the
legal process. New Haven: Yale University Press, 1986.
144
Para maior aprofundamento sobre o tema, importante conhecer os capítulos 3 e 5 de DAMASKA,
Mirjan R. Ob. cit., de onde se verifica que o Estado não mais se considera um ente neutro para resolver
os conflitos, mas sim como um gestor aplicador de objetivos comuns.
80

aguardarem o provimento jurisdicional145. O processo, ademais, é um instrumento do


Estado para pacificar e educar a sociedade146.
As principais consequências do Estado Social foram o isolamento do Poder
Público em relação às verdadeiras demandas da sociedade civil, e a fragilização das
liberdades individuais, sufocadas que ficaram por um Estado pesado e ineficiente, que
não conseguia compreender seus reais interesses e necessidades. A população
passa a exigir ser ouvida, se partícipe na gestão do seu próprio interesse.

4.4.3 Estado Democrático e a participação da sociedade nos atos públicos


decisórios

Como efeito, ao longo da segunda metade do Século passado, surgiu o novo


paradigma de Estado, denominado Democrático, resgatando a sociedade civil para
participar efetivamente das decisões públicas, não mais limitadas aos momentos
eleitorais, mas especialmente durante os processos decisórios, sejam eles os
legislativos, administrativos ou jurisdicionais.
Caso assim alcançado, o Direito passaria a ser legítimo, aceito e respeitado
pelos indivíduos, não por causa do temor de sofrer sanção, mas fundamentalmente
por reconhecer que a norma jurídica decorre de ampla argumentação, por meio de
procedimentos imparciais e justos, em que distintas compreensões da realidade sejam
levadas em consideração em igualdade de condições e com maior racionalidade147.
Um dos principais efeitos trazidos à Teoria do Processo com o nascimento
desse novo paradigma de Estado pode ser encontrado magistralmente nos três

145
Esse tema é muito bem tratado por BARROS, Flaviane de Magalhães. O paradigma do Estado
Democrático de Direito e as teorias do processo. Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito.
Belo Horizonte, ano 3, n. 1, julho de 2004.
146
Disto decorre também a perspectiva da instrumentalidade do processo a nós apresentada por
Cândido Rangel Dinamarco em 1986 (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do
Processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.).
147
Há diversas correntes que legitimam o Direito a partir desta perspectiva argumentativa democrática,
devendo dar destaque a HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.
2. ed. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. v. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010. Para bom
aprofundamento quanto ao tema, aplicado ao Direito Regulador, também se pode conhecer pela obra
de Luis Henrique Baeta Funghi, com interessante passagem: “Ou seja, o direito deverá englobar os
princípios que tornem possível o seu processo de legitimação. Tais princípios consistem nos direitos
fundamentais, os quais exprimem as condições de possibilidade de um consenso racional acerca da
institucionalização das normas do agir (FUNGHI, Luis Henrique Baeta. Regulação e Legitimidade
Democrática: o caso dos transportes terrestres no Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito.
UNB. 2012. p. 31).
81

primeiros artigos da CRFB/88 148 , que vale aqui transcrevê-los com grifos para as
partes que interessam ao presente trabalho:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988) (grifos
próprios).

Democracia é exatamente isto, todo o poder emanar do povo e ser por ele
exercido diretamente, nos termos da Constituição.
É também preocupar-se com a dignidade da pessoa humana149, pessoa aqui
compreendida como indivíduo, sujeito singular de direitos e obrigações, e nunca
pessoa como objeto150, desprovido de personalidade. Isto leva à obrigação de que
todas as pessoas sejam olhadas e ouvidas pelos órgãos públicos despersonalizados
(que são ocupados temporariamente por agentes) quando estes prestam/decidem
atividades essenciais do Estado em prol daquelas como, por exemplo, a jurisdição e
a administração.

148
Marcos Porta, buscando os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, salienta igualmente
esse pressuposto do artigo 1o da CRFB (PORTA, Marcos. Processo Administrativo e o Devido
Processo Legal. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 122).
149
Cumpre remeter o leitor a JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
150
Quando este autor estava finalizando essa tese, teve a oportunidade de assistir entrevista do
Programa Roda Viva com a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Carmen Lúcia Antunes
Rocha, que com precisão explicou: “no mínimo porque, enquanto juízes, estamos tratando da vida de
pessoas, aquilo que pode parecer apenas papel é na verdade a vida de alguém. (…) Nós juízes lidamos
com situações difíceis, que é do humano” (aos 8min e 30 segundos do programa iniciado). No mesmo
sentido, há quase vinte anos, a então advogada e professora Carmem Lúcia escreveu: “por isso, o
processo, como formalização de comportamentos para a reivindicação e efetividade de direitos, põe-
se como uma necessidade da civilização e da civilidade jurídica do homem no Estado” (Princípios
Constitucionais do Processo Administrativo no Direito Brasileiro. Revista de Informação
Legislativa. Brasília a. 34 n. 136 out./dez. 1997).
82

Mais ainda, Democracia é reconhecimento de que todos os indivíduos (pessoas


físicas) são iguais em direitos e obrigações, não podendo ser discriminados (ou
estereotipados, categorizados, despersonalizados) pelos órgãos e agentes no
exercício temporário da função pública.
Nossa Democracia busca construir uma sociedade solidária, onde todos devem
voltar-se mutuamente para apoiar, ajudar e fortalecer uns aos outros. Devem fazê-lo
também de maneira justa, honesta, ética e em boa-fé.
Por fim, Democracia é o respeito à liberdade individual, com responsabilidade,
mas livre. Como não poderia deixar de ocorrer em uma Democracia, nosso
Constituinte continuou sua missão de garantir os direitos fundamentais do homem,
promulgando o art. 5º, do qual se podem retirar decisivos princípios para a
compreensão do processo decisório do Estado brasileiro, no que interessa à vida, à
liberdade e à propriedade de todos os indivíduos (e não apenas da coletividade),
isonomia, legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes. (BRASIL, 1988) (grifos próprios).

Tem-se, portanto, que o processo passa a ser um direito e uma garantia dos
indivíduos contra o abuso ou excesso de Estado, seja no âmbito jurisdicional ou no
administrativo. Na democracia todos os cidadãos são agentes e responsáveis pela
construção da norma jurídica, seja ela geral e abstrata (por meio de representantes
eleitos), seja concreta e específica (diretamente, nos termos da constituição),
provenha da função legislativa, da jurisdicional ou da administrativa151.

151
O capítulo 3 da obra de Romeu Felipe Bacellar Filho (Ob. Cit., p.125) é primorosa em demonstrar
tal paradigma, trazendo ademais o pensamento de diversos importantes jusfilósofos, como Canotilho,
Günter Püttner e Luigi Ferrajoli.
83

4.4.4 Processo Democrático: os indivíduos construtores do provimento estatal

Neste sentido, as partes têm papel fundamental na construção do provimento


jurisdicional (dignidade da pessoa humana), devendo se colocar de forma equânime
entre si (isonomia, contraditório) e em posição de igualdade com o Estado Juiz (o
poder emana do povo), tendo o direito de argumentar amplamente suas razões (ampla
defesa) e a garantia de que seus argumentos serão ouvidos e apreciados (ampla
defesa) imparcialmente (isonomia) quando do provimento jurisdicional.
O julgador no Estado Democrático de Direito é aquele órgão que tem o dever
de garantir no curso do processo que o contraditório e a ampla defesa sejam
respeitados pelas partes, para ao final concluir imparcial e fundamentadamente o
resultado das “articulações lógico-jurídicas produzidas pelas partes construtoras da
estrutura procedimental” 152.
Ainda, vale a transcrição das precisas conclusões de Leonardo Augusto
Marinho Marques153:
Concretamente, espera-se que desse raciocínio problematizado, construído
sob o alicerce do pluralismo social e jurídico, resulte a resposta adequada
para cada situação individualizada, obviamente contando com a participação
das partes na elaboração do provimento. (MARQUES, 2009, p.145)

Igualmente, cumpre destacar os ensinamentos de Carvalho Netto154:

Agora, exige-se que o Juiz inverta esse caminho, que ele parta do caso
concreto em direção ao Direito, e identifique as leituras possíveis, não porque
o ordenamento encerra uma carga axiológica, mas porque o Direito em sua
integralidade se apresenta como “um mar revolto de normas em permanente
tensão concorrendo entre si para regerem situações” (CARVALHO NETTO,
2004, p. 40).

Este resultado da evolução do Processo é fruto não apenas da ciência do


processo e da ciência política, mas também, como a ser demonstrado nos próximos
capítulos, resultado da identificação histórica e da ciência quanto às limitações do ser

152
LEAL, Rosemiro Pereira. Ob. cit., p. 63.
153
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. A exclusividade da função acusatória e a limitação da
atividade do Juiz Inteligência do princípio da separação de poderes e do princípio acusatório. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, a. 46 n. 183 julho./set. 2009.
154
CARVALHO NETTO, Menelick de. A Hermenêutica constitucional sob o paradigma do estado
democrático de direito. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Coord.). Jurisdição e
hermenêutica constitucional no estado democrático de direito. Belo Horizonte: Mandamentos,
2004.
84

humano para escolher e decidir imparcialmente, limitações para decidir de forma


justa155.

4.5 Os modelos históricos de processo – inquisitório e acusatório – e sua


inserção no Estado Democrático de Direito

Desde o início de nossa civilização o homem busca aprimorar os métodos de


prestar jurisdição ou decidir administrativamente sobre determinado caso concreto.
Pesquisadores conseguiram analisá-los e levantar as suas principais características,
a fim de compreender aqueles mais justos e eficientes.
Dois modelos (alguns denominam de sistemas) de processo estiveram e estão
presentes em nosso tempo: o inquisitório e o acusatório (ou adversarial). Muitos bons
autores, nacionais e estrangeiros, vêm se dedicando ao tema, podendo aqui citar os
mais reconhecidos como Luigi Ferrajoli 156 , Franco Cordero 157 , Mirjan Damaska,
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho 158 , Geraldo Prado 159 , Leonardo Marinho
Marques, Aury Lopes Júnior160 e Mauro Fonseca Andrade161.
A partir do estudo desses autores162, consegue-se didaticamente sintetizar as
suas respectivas características:

155
Cumpre aqui remeter o leitor à ótima obra de Menelick Carvalho Netto onde em dado momento o
autor, depois de analisar o pensamento de Niklas Luhmann e de Jürgen Habermas, conclui: “O saber
que se sabe limitado funda-se no permanente debate público acerca de seus próprios fundamentos e,
assim, é precário, contingente e sempre aprimorável. Seus fundamentos são históricos e datados”
(CARVALHO NETTO, Menelick. Os Direitos Fundamentais e a (In) Certeza do Direito. A
produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte:
Fórum, 2012, p. 27), ainda, “Aprendemos a duras penas que racional é o saber que sabe da
precariedade de nosso próprio saber e busca lidar racionalmente com os riscos que ela acarreta”
(CARVALHO NETTO. Ob. cit., p. 65).
156
FERRAJOLI. Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006;
157
Em seu excepcional CORDERO, Franco. Procedura Penale. Milano: Giuffrè Editore, 2012, no seu
capítulo II, descreve minuciosamente os procedimentos próprios de cada sistema.
158
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar
constitucionalmente demarcado. Revista de informação legislativa, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set.
2009.
159
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais
penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
160
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual penal e sua conformidade constitucional. 3. ed. v, 2.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
161
ANDRADE, Mauro Fonseca. O sistema acusatório proposto no projeto de novo codex penal adjetivo.
Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 46, n. 183. Jul/set, 2009.
162
Em especial, destaca-se a conclusão de Luigi Ferrajoli: “Pode-se chamar acusatório todo sistema
processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento
como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com
a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre
convicção. Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício
85

1) Modelo Inquisitório:
a. Iniciativa do julgador para a investigação;
b. Iniciativa do julgador para a acusação;
c. Iniciativa do julgador em campo probatório;
d. Confusão entre julgador e acusação;
e. Discrepância de poder entre a acusação e a defesa;
f. Caráter escrito da instrução e das defesas;
g. Ausência de debate oral entre defesa e acusação para convencimento
do juiz;
h. Investigações sem participação das partes.
i. Construção do saber pelo juiz de modo solitário, anunciando o que
entende por verdade real163;
j. Decisões colegiadas.

2) Modelo Acusatório:
a. Separação rígida entre o julgador e a acusação164;
b. Paridade de posição e de armas entre a defesa e a acusação;
c. Gestão da prova precipuamente nas mãos da defesa e da acusação165;

à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita
e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa.” (FERRAJOLI.
Luigi. Ob. cit., 2006, p. 519-520).
163
Ver MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Hiper-racionalidade inquisitória. In BONATO, Gilson
[org]. Processo Penal, Constituição e Crítica – Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson
de Miranda de Coutinho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.p. 475 -485. Igualmente Richard-Paul
Martins Garrel faz profundo estudo sobre o princípio da verdade real, demonstrando o quão é
identificado com o sistema inquisitivo, concluindo: “assim, torna-se imperativa a desconstrução do
processo penal excepcional (presença fantasmagórica entre o autoritarismo e o direito) mediante a
substituição do “princípio” da verdade real, constituído a partir do dogmático hiper-racionalismo
inquisitório, por um princípio da verossimilhança racional, a partir das bases jurídico-epistêmicas da
teoria neoinstitucionalista do processo” (GARREL, Richard-Paul Martins. Reflexos Antidemocráticos
do Princípio da Verdade Real no Processo Penal Brasileiro. Dissertação de Mestrado – PUC-MG.
Belo Horizonte. 2013. p. 145 e 146).
164
O julgador não pode iniciar a investigação e nem instaurar a ação, pois se o faz na prática ele cria
uma hipótese fática antes de essa ser apurada mediante os fatos provados no curso de uma fase
instrutória. Salvo ser um iluminado, o julgador como ser humano médio acaba por manejar o processo
visando confirmar aquela hipótese previamente criada, já que tem responsabilidade pela instauração
do processo. Isto é o que Franco Cordero, seguido por Jacinto Coutinho, muito bem denunciou como
quadro mental paranóico. Em recentes pesquisas, o Professor da Universidade de Munique, Bernd
Schünemann (2013, p. 205 e 239), conseguiu demonstrar que a participação de magistrados alemães
nas investigações preliminares realizadas pelo Ministério Público acaba por vincular o magistrado na
tese criada pelo acusador, levando-o a condenar o réu em proporção muito maior do que se não tivesse
participado da fase investigatória e até mesmo da postulatória.
165
Schünemann (2013, p. 235) também demonstrou que quanto mais responsável e ativo na gestão
da prova, mais o julgador se envolve com a tese da acusação, acabando por condenar o réu em
proporção maior do que se estivesse afastado da incumbência de gerir prova. Sua tese comprova o
86

d. Ônus da prova de quem acusa166;


e. Garantia de debate oral entre defesa e acusação, com presença e diálogo
com o julgador;
f. Publicidade de todos os atos;
g. Posição do julgador como espectador da dialética entre as partes;
h. Posição do julgador como garantidor do contraditório e da ampla defesa;
i. Motivação racional da decisão, a partir dos elementos discutidos e provados
no processo;
j. Duplo grau de jurisdição.

A história demonstra que o modelo inquisitório é mais frequentemente


correlacionado aos Estados autoritários, enquanto o modelo acusatório é o
comumente adotado pelos Estados Liberais e atualmente pelos Democráticos. Mais
uma vez cumpre transcrever a análise de Luigi Ferrajoli:

Está claro que aos dois modelos são associáveis sistemas diferentes de
garantias, sejam orgânicas ou procedimentais: se o sistema acusatório
favorece modelos de juiz popular e procedimentos que valorizam o
contraditório como método de busca da verdade, o sistema inquisitório tende
a privilegiar estruturas judiciárias burocratizadas e procedimentos fundados

quão relevante é para fins de alcance da verdadeira imparcialidade o julgador se colocar como terceiro,
na precípua função de assistir o diálogo entre as partes (SCHÜNEMANN, Bernd. O Juiz como um
terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e
correspondência comportamental. In: GRECO, Luís [coord]. Estudos de direito penal, direito
processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 205-239).
166
Relevante decisão do STF reforça para o processo brasileiro atual esse mesmo princípio, valendo
sua transcrição:
“PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO - OBRIGAÇÃO DE O MINISTÉRIO PÚBLICO FORMULAR
DENÚNCIA JURIDICAMENTE APTA. - O sistema jurídico vigente no Brasil - tendo presente a natureza
dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter
essencialmente democrático - impõe, ao Ministério Público, notadamente no denominado “reato
societario”, a obrigação de expor, na denúncia, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a
participação de cada acusado na suposta prática delituosa. - O ordenamento positivo brasileiro - cujos
fundamentos repousam, dentre outros expressivos vetores condicionantes da atividade de persecução
estatal, no postulado essencial do direito penal da culpa e no princípio constitucional do “due process
of law” (com todos os consectários que dele resultam) - repudia as imputações criminais genéricas e
não tolera, porque ineptas, as acusações que não individualizam nem especificam, de maneira
concreta, a conduta penal atribuída ao denunciado. [...] Não compete, ao réu, demonstrar a sua
inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de
qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de
direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo),
criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado
provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes. - Para o
acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da
acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais (“essentialia delicti”) que compõem o
tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar
que é inocente[...]” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 88875/AM. Relator: Min.
Celso De Mello - Segunda Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 12 mar. 2012).
87

nos poderes instrutórios do juiz, compensados talvez pelos vínculos das


provas legais e pela pluralidade dos graus de juízo (instâncias) (FERRAJOLI,
2006, p. 520).

Conforme estes autores explicam, para acompanhar o Estado Democrático


atual brasileiro, quanto mais próximo estiver de modelos processuais acusatórios,
mais conformes estará com os princípios constitucionais brasileiros de direitos e
garantias fundamentais.
Não obstante vale a ressalva feita por Fredie Didier Jr.167 em que os modelos
adversarial (tratados aqui como acusatórios) e inquisitório utilizam-se de princípios
dispositivos ou inquisitivos, podendo preponderar mais uns do que outros em
determinadas fases processuais168.
Conforme palavras de Didier Jr., “os princípios do devido processo legal, da
boa-fé processual e do contraditório, juntos, servem de base para o surgimento de
169
outro princípio do processo: o da cooperação” . Veja que o autor cria o que
denomina de terceira espécie de modelo, o modelo cooperativo, que transcenderia
aos acima referidos170. Este seria, em sua visão, o modelo mais adequado para o
Estado Democrático de Direito.
Independentemente das semânticas utilizadas por importantes
processualistas, o certo é que a democracia pressupõe a presença dos princípios do
devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Esses princípios são, de todo
evidentes, incompatíveis com o modelo inquisitório de processo, não podendo
subsistir mais em nossa ordem jurídico-constitucional.
Para atuar bem como aplicadores do direito ou como legisladores, é
fundamental compreender com precisão o que tais princípios representam. Para
conseguir confrontar o modelo legislativo do denominado processo de tomada de
contas pelos Tribunais de Contas, também é necessário conhecer com atenção tais
pressupostos.

167
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Editora JusPodivm. 18a ed.
2016.
168
“Se é certo que dados culturais influenciam a conformação do processo, método de exercício de
poder, não há relação direta entre aumento de poderes do juiz e regimes autocráticos, ou incremento
do papel das partes e regimes democráticos” (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Ob. cit., p. 126).
169
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Ob. cit., p. 126.
170
Ob. Cit. p. 127
88

4.6 Âmbito teórico e jurisprudencial do devido processo legal

Esse é um dos temas mais agradáveis de se tratar na ciência do direito171, com


grandes obras científicas discorrendo sobre a história de nossa civilização e como
esta conseguiu conformar tais garantias individuais contra o abuso daqueles que
detêm o Poder do Estado. Com referências às principais e melhores obras já
publicadas sobre o tema, o autor, sinteticamente, delineará como a elas são
compreendidos teoricamente os princípios em referência.
Está-se em um Estado, que se diz de Direito; como se não bastasse, é uma
República e que se proclama Democrática; consequentemente, os processos que
decidem sobre a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos devem respeitar tais
magnos princípios.
Como visto no capítulo acima, essa afirmação foi impecavelmente comprovada
pelo ilustríssimo Mirjan R. Damaska, em sua famosa obra “The Faces of Justice and
State Authority: A comparative approach to the legal process”, onde descreve as
correlações existente entre (i) os modelos de Estado e suas respectivas organizações
socioeconômicas e políticas, hierárquicos e paritários, com (ii) os modelos de
processo judicial precipuamente adotados: inquisitorial ou acusatório (adversarial).
Damaska demonstra que os tipos de Estado e os respectivos objetivos do
processo judicial estão intimamente interligados com o próprio processo adotado,
como exemplo se mais ou menos sujeito ao controle pelas partes, se mais ou menos
propício à produção de provas pelas próprias partes, se com maior ou menor
participação daqueles que sofrerão os efeitos da decisão.
Os modelos de processos de diversos países decorrem das suas histórias e de
quais princípios foram acolhidos em seus sistemas jurídicos. O due process of law nos
países ocidentais sofreram imensa influência do sistema do common law. Assim, não
há como conhecer Teoria do Processo aqui sem que se sorva brevemente o histórico
do princípio do devido processo legal para nosso mundo ocidental.

171
Na verdade, esse tema interessa a toda humanidade, pois não bastaram as principais obras
filosóficas do direito, nem as históricas ou as de teoria do processo, há obras ficcionais maravilhosas
discorrendo sobre os processos e suas injustiças, como os clássicos de Kafka, Victor Hugo, Charles
Dickens, Dostoievski, Huxley, Shakespeare, Guimarães Rosa, Dias Gomes, e até obras populares
como as de John Grisham.
89

4.6.1 Breve histórico do devido processo legal e sua razão científica de existir

Para tal desiderato, desde já se faz remissão às excelentes obras de Pontes


de Miranda172, Carlos Roberto Siqueira Castro173, René David174, D. J. Galligan175,
Lawrence M. Friedman 176 e Bernard Schwartz177 que descrevem muito bem a sua
origem e evolução.
Por eles pode-se dizer que tal princípio foi o baluarte maior da organização
social dos países ocidentais, iniciado em 15 de junho de 1215 com a Magna Carta,
quando os nobres ingleses conseguiram limitar o poder monárquico, exigindo que este
seguisse normas processuais para condenar algum de seus pares à perda da
liberdade, propriedade e vida.
As Constituições e as Bill of Rights das colônias inglesas na América do Norte
proclamavam essas mesmas garantias, “sempre associada a um corajoso princípio
de resistência da cidadania contra o arbítrio dos governantes” 178.
Inspirados por discussões jurídicas na Inglaterra dos Séculos XVI e XVII,
capitaneadas pelo Sir Edward Coke, os norte americanos reforçaram o controle do
poder pelo uso e desenvolvimento do due process of law, tendo com bom exemplo o
pressuposto maior de que ninguém pode julgar e ao mesmo tempo ser parte
interessada no julgamento179.
Ao longo de Séculos, na Inglaterra e nos já Estados Unidos da América, o
princípio do devido processo legal foi se consolidando cada vez mais como
instrumento de proteção contra decisões arbitrárias do Poder Público, garantidores
das liberdades individuais, a ponto de a Constituição Norte-Americana de 1787 e suas

172
MIRANDA, Pontes de. Ob. cit., 1947.
173
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e
proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
174
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
175
GALLIGAN, D. J. Due Process and Fair Procedures. Oxford: Clarendon Press Oxford, 2004.
176
FRIEDMAN, Lawrence M. A History of American Law. 3. ed. New York: Simon & Schuster, 2005.
177
SCHWARTZ, Bernard. American Constitutional Law. United Kingdom: Cambridge University
Press, 1955.
178
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Ob. cit., p.9.
179
Siqueira Castro cita trecho do referido jurisconsulto inglês, cuja transcrição merece ser aqui
reproduzida: “The censors cannot be judges, ministers and parties; judges to give sentence of judgment;
minister to make summons, and parties to have the moiety of the forfeiture, quia aliquis non debet esse
judex in propria causa, imo iniquum est alequem suae rei esse judicem; and one cannot be judge and
attorney for any of the parties […]” (Ob. cit. p. 15).
90

Emendas 5a, 6a, 9a e 14 dedicarem específicas regras processuais, garantindo


importantes direitos aos acusados, podendo ser assim sintetizados180:

a. direito a julgamento por júri;


b. proibição de alguém ser julgado duas vezes pelo mesmo fato;
c. vedação de autoincriminação forçada;
d. direito a julgamento rápido e público;
e. por júri imparcial;
f. prévio conhecimento da natureza e causa da acusação;
g. “direito de defesa e ao contraditório, consistente na possibilidade de confrontar
testemunhas de acusação, de produzir provas, inclusive, de obter
compulsoriamente o depoimento de testemunhas de defesa”.
h. Direito de ser ouvido em audiência;
i. “Direito de contraditar argumentos”;
j. “Direito de conhecer e pronunciar-se sobre documentos juntados pela
acusação”.

Destes advirão tantos outros direitos com o desenrolar das discussões judiciais
e debates acadêmicos181, tanto nos Estados Unidos, seu principal criador, como nos
países que receberam suas influências, v.g. o Brasil.
Questão interessante que foi possível perceber ao longo dos últimos dois
Séculos é a que informa tal princípio como mantenedor de dois comandos
complementares, um denominado de substantivo e outro de processual. As cortes
jurisdicionais norte-americanas utilizaram o instituto do due process of law como forma
de delimitar quais as garantias individuais deveriam ser respeitadas no curso de um
processo (procedure process of law), assim como exigir que os julgamentos se
pautassem em parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade (substantive process

180
Todos os itens desse parágrafo podem ser encontrados nas emendas constitucionais norte-
americana, que foram ao longo do tempo aperfeiçoando suas regras para organização judiciária e
processo. Adotam-se aqui as traduções livres do autor e de Siqueira Castro (Ob. Cit. p. 28- 29), as
indicadas entre aspas, cujo trabalho é primoroso e merece leitura atenta para melhor compreensão do
instituto do devido processo legal e sua história.
181
Ótima síntese de Humberto Ávila para o conteúdo jurídico de devido processo legal: “nesse sentido,
a expressão composta de três partes fica plena de significação: deve haver um processo; ele deve ser
justo; e deve ser compatível com o ordenamento jurídico, especialmente com os direitos fundamentais”
(ÁVILA, Humberto. O que é “devido processo legal”? Revista de Processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, ano 33, n. 163, set. 2008, p. 57).
91

of law). Daí as expressões surgidas substantiva e procedimental para o instituto do


devido processo legal182.
Para fins deste trabalho, considerar-se-á o devido processo legal em sua
concepção procedimental, já que a substantiva poderá ser obtida por meio dos
princípios da legalidade e da igualdade.
As possibilidades de compreensão do conteúdo do devido processo legal são
dinâmicas e abertas, cabendo nele todas as garantias processuais e até materiais que
os indivíduos possuem em dada ordem jurídica. Independentemente, para facilitar a
compreensão do referido princípio, a CRFB/88 procurou abranger em normas
explícitas aquilo que a história consagrou como conteúdo implícito do devido processo
legal, cujas bases mínimas são: contraditório e ampla defesa, com presença imparcial
de magistrados e garantida da oralidade tanto para defesa como para suas
testemunhas, exigida ainda a motivação das decisões, a partir das provas e
argumentos apresentados pelas partes183.

182
Para aprofundar no conhecimento desta discussão doutrinária, ver ÁVILA, Humberto. Ob. cit., e
DIDIER JUNIOR, Fredie. Ob. cit.
183
Muitos autores descreveram em tópicos o que abrangeria o referido princípio. Veja por exemplo a
explicitação de Marcos Porta (Ob. Cit., p. 101 a 135) tratando do processo administrativo e o devido
processo legal. Já Egon Moreira descreveu o que não seria um processo devido: “Assim, não será
devido o processo (a) sigiloso ou fechado, a não ser quando indispensável para a segurança nacional
ou para a proteção do direito à intimidade; (b) absolutamente informal (não autuado ou encaminhado
segundo procedimento e sequencia desconhecidos); (c) burocratizado (excessivamente formal,
revestido de formalidades inúteis); (d) não-participativo ( em que o particular não é ouvido e não
consegue influenciar ou interagir com a Administração, ainda que não seja no exercício da ampla
defesa e contraditório); (e) desobediente a prazos mínimos para a prática dos atos; (f) violador ou
aviltante de garantias constitucionais e legais específicas; (g) que não represente um ‘caminhar para
frente’ (princípio da preclusão); (h) que despreze os limites objetivos e subjetivos fixados na peça inicial,
seja ela produzida pela Administração ou pelo particular (à semelhança do ‘princípio do libelo’ ou
‘estabilidade da demanda’); (i) que não busque atingir objetivo público certo, predeterminado e lícito; (j)
ineficiente (tanto o que não busca resultado útil quanto o que se vale de instrumentos inúteis na busca
de resultado útil); (k) ineficaz (não culmina em uma decisão com efeitos concretos ou práticos); (l) que
não preveja ou possibilite revisão dos atos decisórios de primeiro grau; (m) que não permite a atuação
ativa da defesa técnica, a ser exercitada por advogado e/ou peritos; (n) que não tenha início com
notificação, clara e precisa, em que se consigne prazo certo para apresentação de defesa; (o) que não
permite a produção de provas; (p) que não se fundamente única e exclusivamente em provas lícitas; e
(q) oneroso (excessivamente custoso aos cofres públicos ou aos particulares)” (MOREIRA, Egon
Bockmann. Ob. cit., 298). Incumbe salientar que o autor reconhece ser aberto o princípio do devido
processo legal, conforme se retira do seguinte trecho de sua ótima obra sobre o processo
administrativo: “Uma relação jurídica justa e equitativa, desenvolvida com precisão que outorgue
segurança ao administrado, ao mesmo tempo em que respeite sua dimensão moral – esses são traços
que caracteriza, o ‘devido processo legal’. Sem dúvida são expressões abertas, com significado
indefinível de plano. Devem ser compreendidas levando em contra que o sistema da common law é
eminentemente jurisprudencial. Inexiste limitação derivada de conjunto fechado de normas positivas
primárias, a serem aplicadas mediante operação lógica de silogismo – caminho diverso do brasileiro.
A toda evidência, não mais vige no Brasil a concepção mecanicista de aplicação da norma numa
operação automática, mas sim – e cada vez mais – a necessidade de integração dos fatos ao todo do
Ordenamento Jurídico e a construção da norma por parte do intérprete” (Ob. cit., p. 251).
92

Uma parte do voto do Min. Celso de Mello, no MS 26.358/DF 184 , detalha


adequadamente o conteúdo do devido processo legal no entendimento prevalecente
do STF:
O exame da garantia constitucional do “due process of law” permite nela
identificar, em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua
própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável
importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de
acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio
do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem
dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito
à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado
com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g)
direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de
ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do
princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-
incriminação); e (l) direito à prova (BRASIL, 2007).

A doutrina igualmente acompanha o entendimento acima explicitado pelo Min.


Celso de Mello, como exemplo se pode citar Humberto Theodoro Jr. para quem “a
garantia do devido processo legal, porém, não se exaure na observância das formas
da lei para a tramitação das causas em juízo”185, mas antes de tudo:

Compreende algumas categorias fundamentais como a garantia do juiz


natural (CF, art. 5º, inc. XXXVII) e do juiz competente (CF, art. 5º, inc. LIII), a
garantia de acesso à Justiça (CF, art. art. 5º, inc. XXXV), de ampla defesa e
contraditório (CF, art. 5º, inc. LV) e, ainda, a de fundamentação de todas as
decisões judiciais (art. 93, inc. IX)
[...]Diante dessas ideias, o processo justo, em que se transformou o antigo
devido processo legal, é o meio concreto de praticar o processo judicial
delineado pela Constituição para assegurar o plano de acesso à Justiça e a
realização das garantias fundamentais traduzidas nos princípios da
legalidade, liberdade e igualdade. Nesta ordem de ideias, o processo, para
ser justo, nos moldes constitucionais do Estado Democrático de Direito, terá
de consagrar, no plano procedimental:
a) o direito de acesso à Justiça;
b) o direito de defesa;
c) o contraditório e a paridade de armas (processuais) entre as partes;
d) a independência e a imparcialidade do juiz;
e) a obrigatoriedade da motivação dos provimentos judiciais decisórios;
f) a garantia de uma duração razoável, que proporcione uma tempestiva
tutela jurisdicional. (THEODORO JUNIOR, 2012, p. 27).

Pode-se, portanto, concluir que tal princípio, além de como já visto ser de
eficácia plena e aplicabilidade imediata, direta e integral, funciona como:

184
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 26.358/DF. Relator: Min. Celso de
Mello. Diário de Justiça, Brasília, 02 mar. 2007.
185
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 53. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p.27.
93

a. norma constitucional de competência que delimita a função legislativa,


impondo-a a criar leis processuais correspondentes ao seu conteúdo informativo;
b. princípio que auxilia na interpretação e integração das demais normas
constitucionais processuais, assim como na das leis existentes;
c. norma constitucional que proíbe a prática pelos órgãos do Estado de
atuações incompatíveis com seu conteúdo;
norma constitucional que confere aos cidadãos o direito subjetivo de obter das
atividades de Estado, no curso de seus procedimentos decisórios (seja
legislativo, administrativo ou jurisdicional), o cumprimento do seu conteúdo
jurídico-processual.
Tudo isto tem uma razão histórica e até científica, pois os homens aprenderam
que aqueles que ocupam poder (seja o legislativo, jurisdicional ou executivo) tendem
a abusar dele, decidindo a partir de fatores emocionais e/ou irracionais, quando
estejam de boa-fé, ou de forma racional mas intencionalmente prejudicial, quando há
má-fé 186 . Exatamente por isso precisaram desenvolver sistemas complexos de
governo, como a Tripartição de Poderes, e de procedimentos de decisão, como o
instituto do devido processo legal.
Nunca é demais lembrar que seu surgimento se dá a partir da percepção de
nossa civilização de que não pode um sujeito de direitos ser investigado, processado,
ver instruído o processo e tê-lo julgado pelo mesmo agente estatal, pois aquele que
investiga e instaura um processo contra outrem o faz apresentando uma tese,
levando-o naturalmente a buscar confirmar a sua própria tese durante a instrução e
julgamento187.

186
Novamente Carmem Lúcia Antunes Rocha (1997, p 28) é precisa ao concluir seu artigo sobre os
princípios constitucionais do processo administrativo: “Muitos cristos tem visto a história humana. De
Sócrates a Dreyffus, a mão do homem tem usado formas de processo para processos sem forma e
argumentos de lei para leis sem argumento”.

187
Nesse sentido, cumpre transcrever decisão do Superior Tribunal de Justiça: “[...] 1. A tutela
jurisdicional não pode ser prestada senão quando requerida e com base na causa invocada pela parte,
tendo em vista que o julgador não pode extrapolar o pedido, pois ao Estado-Juiz é defeso deliberar
sobre questão que não lhe foi dada a resolver. 2. A delimitação do âmbito do recurso, com a
apresentação dos motivos de fato e de direito que justificam a modificação da sentença, exsurge como
corolário do processo acusatório, do princípio do ne procedat judex ex officio [...] 4. Ordem concedida
para proclamar a nulidade do acórdão” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus
178.086/PR. Relator: Min. Celso Limongi – Sexta Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 21
fev. 2011).
94

Quando os nobres ingleses exigiram participar do julgamento de seus pares


acusados pelo rei e os norte-americanos construíram todos os princípios integrantes
do due process of law, todos fizeram-no exatamente com este fito188.

4.6.2 – Neurociência e a justificação do devido processo legal


A ciência moderna, por meio da neurociência e psicologia avançada,
conseguiu provar o que, por exemplo, os Founding Fathers suspeitavam: os homens
agem por motivações que nem eles mesmos conseguem conscientemente
compreender. Cumpre trazer aqui didáticos trechos da obra científica de Leonard
Mlodinow189:

Os seres humanos também desempenham inúmeros comportamentos


automáticos, inconscientes, mas tendem a não perceber isso porque a
interação entre nossa mente inconsciente e a consciente é muito complexa.
Essa complexidade tem raiz na fisiologia do nosso cérebro (Ob. cit., p. 166)

Para garantir nosso perfeito funcionamento, tanto no mundo físico quanto no


social, a natureza determinou que muitos processos de percepção, memória,
atenção, aprendizado e julgamento fossem delegados a estruturas cerebrais
separadas da percepção consciente (Ob.cit., p. 265).

Alguns cientistas estimam que só temos consciência de cerca de 5% de


nossa função cognitiva. Os outros 95% vão para além de nossa consciência
e exercem enorme influência em nossa vida – começando por torna-la
possível (Ob. cit., p. 573).

Muito interessante o apanhado de pesquisas científicas modernas que


Mlodinow traz para comprovar como nossa consciência não consegue sempre superar
a força dos fatores emocionais e inconscientes presentes em nossos cérebros e DNA.
São inúmeras e inúmeras pesquisas que merecem ser visitadas também pelos
cientistas do Direito. Cumpre aqui, ao título ilustrativo, citar alguns bons exemplos
trazidos pelo autor:

a. descrições floreadas em menus de restaurantes levam as pessoas a


pedir comidas descritas poeticamente e as levam a classificar esses pratos como
mais gostosos do que pratos idênticos descritos genericamente (Ob.cit., p.325);

188
Ademais, a própria criação da Tripartição dos Poderes é resultado da percepção que a mesma
pessoa que cria as leis, não deve ser a mesma que a aplica e nem a que a julga. Consectário lógico
inevitável para o Processo.
189
MLODINOW, Leonard. Subliminar. Como o Inconsciente Influencia Nossas Vidas. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.
95

b. nós julgamos produtos pela caixa (o que marqueteiros conhecem bem),


livros pela capa, balanços anuais de corporações pelo acabamento brilhante do
papel, médicos e advogados pela roupa; (Ob.cit., p. 368).
c. vinhos franceses e alemães idênticos, com mesmo preço, na mesma
prateleira do mesmo supermercado, foram comprados de forma diferente a
depender da música que estava tocando naquele dia, se francesa, 77% dos vinhos
vendidos eram franceses, se alemã, 73% eram alemães. Perguntados se a música
influenciou a compra, apenas um comprador em cada sete disse que sim; (Ob.cit.,
p. 375).
d. 25% das testemunhas de crimes identificam como criminosas pessoas
sabidamente conhecidas pelos policiais como inocentes (sejam pessoas já mortas
ou figurantes da própria delegacia ali colocadas para fazer número); (Ob. cit., p.
932);
e. 50% das testemunhas indicam alguém posto na sala de identificação
como o criminoso procurado, mesmo que sabidamente o verdadeiro criminoso
esteja preso em outra sala (Ob. cit., p. 939);
f. se dois falantes proferem exatamente as mesmas palavras, mas um
deles fala um pouco mais rápido, alto, com menos pausa e maior variação de
volume, esse falante será considerado mais enérgico, inteligente e bem-informado
(Ob. cit., p. 2414);
g. um discurso expressivo, com modulação na altura e no volume e com
um mínimo de pausas notáveis aumenta a credibilidade e incrementa a impressão
de inteligência (Ob. cit., p. 2414).

As pesquisas ainda comprovam que não se escuta tudo o que se ouve, o


cérebro é que completa o entendimento, para construir uma mensagem coerente. O
mesmo ocorre com a imagem, os olhos não enxergam o cenário como nos parece
mentalmente, as falhas da visão são completadas pelo cérebro, para que a cena
também sirva de adequado referencial. A memória é extremamente falha, o cérebro é
quem completa as recordações para que a história construída em nossa mente faça
algum sentido lógico. O preenchimento das lacunas sensoriais depende de quem
somos, como pensamos e quais nossos específicos referenciais.
Não se precisa ir tão profundamente em modernas pesquisas científicas para
reconhecer o que nossa civilização já sabe, ao menos, desde Hume e Kant: nós
96

criamos a realidade que somos capazes, por percepções inconscientes, de criar. A


verdade não existe no mundo físico, nós é que a concebemos, a partir de nossas
experiências e percepções construídas por nossas mentes. O mundo que vejo é o
mundo que crio.
Assim, o Processo precisa ser desenvolvido de modo a evitar que um único
homem-julgador seja capaz de construir isolada e solitariamente a sua verdade, a qual
ele denominará de real. Nem ao menos pode permitir que apenas um colegiado de
julgadores 190 , que não todos os sujeitos processuais e especialmente as partes
litigantes, construam a verdade processual.
Eugênio PacelliI191 agrega as dimensões filosóficas do Estado Democrático de
Direito com a compreensão do Devido Processo Legal na seguinte passagem de seu
Curso de Processo:

Assim, o processo assume os contornos de um verdadeiro lócus (lugar)


argumentativo, no sentido de tornar possível o sonho pós-positivista de que
a decisão judicial não seja obra única daquele que detém a autoridade para
fazê-lo. É dizer: o juiz não pode e não deve decidir segundo suas preferências
e convicções pessoais, mas sim, a partir do diálogo e da interlocução mantida
no processo com as partes. Com isso, obtém-se algo mais próximo do que,
em doutrina, se afirma tratar-se de justo processo, encerrado por uma
decisão democraticamente construída. (PACELLI, 2015, p. 98).

Pode-se concluir este capítulo sobre o devido processo legal transcrevendo


também a ótima síntese de Fredie Didier Jr.:

O devido processo legal é um direito fundamental cujo conteúdo é complexo


e vem sendo construído nos últimos dez séculos. Desde 1037, com o Decreto
Feudal de Conrado II, inúmeras garantias processuais vêm sendo reunidas
para garantir à pessoa que é parte de um processo um tratamento digno.
Essas garantias se articulam dentro de uma mesma rubrica: o devido
processo legal [...]. Dar um tratamento processual digno é garantir o
contraditório, a produção de provas, o direito ao recurso, o juiz imparcial, a
proibição de prova ilícita, a exigência de motivação, a lealdade processual, a
publicidade etc. Enfim, a dignidade da pessoa humana, no processo, é o
devido processo legal (DIDIER JUNIOR, 2016, p. 78).

190
A ciência também já demonstrou que o indivíduo tende a buscar aprovação, apoio e amizade do
grupo em que ele está inserido, levando-o inconscientemente a distorcer a realidade para alcançar
essa aprovação do grupo. Para aprofundamento nesses estudos, ver a obra citada de Mlodinow. Nessa
direção alcançou Hannah Arendt, em seu Origens do Totalitarismo (Edição Kindle, Companhia de
Bolso): “O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita.
Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples exemplos de leis e
ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo atinge e que supostamente está na
origem de todo acaso” (ob. Cit. p. 8037).
191
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
97

As decisões estatais precisam ser justas, e somente assim serão se


conseguirem provir de um processo justo. Processo justo é aquele que segue regras
procedimentais que tratem as partes envolvidas com a adequação necessária ao
alcance do que se tem hoje como due process of law 192 , integrando o direito ao
contraditório e à ampla defesa.
Assim, prepara-se o entendimento do que venha a ser Contraditório e Ampla
Defesa na moderna compreensão do Processo193.

4.7 Do Contraditório

Todas as pessoas no Brasil, físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito


privado, são detentoras de determinados direitos e obrigações jurídicas, conforme
delimita nossa ordem jurídico-constitucional (o mundo do Direito).
Como somente há relação jurídica entre pessoas, para cada obrigação
descumprida há um direito subjetivo violado. São faces opostas de uma mesma
moeda.
Pode ocorrer, no curso da vida real, o fato de alguma dessas pessoas acreditar
que sofreu lesão a um direito subjetivo seu (ou está ameaçada de sofrê-la) em
decorrência de suposto descumprimento de obrigação jurídica imposta por lei a outra
pessoa, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB/88.
Nesta hipótese, o próprio Direito entrega ao sujeito lesado, ou em vias de ser
lesado, específico instrumento que lhe confira a reparação ou a proteção de seu direito
subjetivo, em detrimento do outro que supostamente teria violado norma jurídica,
vigente, válida e eficaz. O instrumento criado pelo Direito para tanto é o Processo,
cuja finalidade é a obtenção de um provimento estatal que assegure o cumprimento

192
Na Universidade de Oxford, o Professor D. J. Galligan conduziu estudo minucioso sobre o tema,
denominado “due process and fair procedures”, em que procurou demonstrar o conteúdo da afirmação
acima descrita. Cumpre transcrever a seguinte passage de sua obra: “That is precisely what fair
procedures are about, for the means to fair treatment lie in fair procedures” (GALLIGAN, D. J. Due
Process and Fair Procedures. Oxford: Clarendon Press Oxford, 2004, p. 18).
193
Marcos Porta sintetiza muito bem a posição de que contraditório e ampla defesa são princípios
concretizadores do princípio do devido processo legal (Ob. Cit., p. 124). De fato nem haveria tanta
necessidade de serem conjuntamente explicitados, mas durante o processo constituinte de 1988 houve
intenso debate e decisão de deixá-los evidenciados para que dúvida alguma restasse da intensão do
povo brasileiro de ser partícipe das decisões estatais que interviessem em seus direitos.
98

da ordem jurídica, protegendo ou reparando os direitos subjetivos daqueles que os


detêm (seja um único indivíduo, seja toda a sociedade)194.
A instauração de um processo visando este desiderato é um direito subjetivo
da pessoa privada (especialmente no âmbito do Processo Civil) ou uma obrigação da
pessoa pública (no Processo Penal e no Administrativo) quando esteja nomeada pelo
Direito para defender os interesses da sociedade ou do próprio Estado.
Aquele interessado que instaura um processo tem a necessidade de arguir a
tese de que outro teria agido ilicitamente, e, portanto, deveria se submeter às
consequências jurídicas de seu ato ilegal. Ademais, até o final da fase instrutora
processual, é-lhe necessário comprovar os fatos ilícitos alegados.
O outro, a quem o processo instaurado se dirige, pode contradizer a referida
tese (antítese), negando totalmente ou confrontando os argumentos expendidos pelo
suposto interessado na instauração processual, bem como fazendo a contraprova à
prova do interessado.
Ambos buscam, ao final, o provimento estatal, dizendo com quem está o Direito
e aplicando-o ao caso concreto. Esse provimento é realizado por um terceiro sujeito,
normalmente um agente do Estado, necessariamente imparcial e não participante da
formação da tese e nem da antítese, que, além de dar o provimento final, administrará
o processo com vistas a garantir que as partes controversas arguam suas teses e
antíteses, promovendo suas provas e contraprovas, todas em posições dialéticas
isonômicas, simétricas faculdades de participação e arguição. Isto é o que se
denomina de Contraditório.
Não obstante, Jurisprudência e Doutrina ampliam referenciais para o princípio
em questão, merecedores de serem examinados neste trabalho.

4.7.1 Posicionamento atual da doutrina nacional e da jurisprudência quanto ao


contraditório

194
Existe importante discussão doutrinária distinguindo o Processo Civil do Penal quanto à sua
justificação. Há o entendimento de Nelson Nery Jr., pelo qual o principio do contraditório no âmbito do
processo civil não apresenta tanta amplitude como no processo penal. Segundo o autor, no processo
civil basta que as partes sejam ouvidas durante o processo e oportunizada a discussão isonômica da
causa, dessa forma, o contraditório se resumiria em “bilateralidade da audiência”, de modo que o ato
de citação implementa por excelência o contraditório, pois a partir desse momento o réu poderá deduzir
a resposta, nas formas previstas em lei (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na
Constituição Federal. 6. ed. v. 21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000).
99

A doutrina nacional está bastante evoluída na discussão do conteúdo jurídico


de contraditório, muito em função do Constituinte de 1988 haver erigido tal princípio
como um direito e garantia fundamental, tanto para os litigantes em processo judicial
ou administrativo, como para os acusados em geral. Cumpre colacionar as mais
importantes percepções doutrinárias.
Antes de se adentrar em nossa doutrina e jurisprudência, merece destaque o
didatismo de dois tratados internacionais incorporados por nossa ordem jurídica em
1992195 – o Pacto Internacional de Direitos Políticos e Civil da ONU (art. 14) e o Pacto
de São José da Costa Rica (art. 8º) – cujas principais normas podem ser assim
descritas:

a. todas as pessoas são iguais perante os tribunais;


b. o tribunal tem de ser competente, independente e imparcial;
c. o acusado tem direito de ser ouvido publicamente;
d. o acusado tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa;
e. o acusado tem direito de ser comunicado de forma minuciosa da natureza e
dos motivos da acusação;
f. todos têm o direito de dispor do tempo e meios necessários à preparação de
sua defesa, por si ou por defensor de sua escolha;
g. direito de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação, e de obter
o comparecimento ao interrogatório das testemunhas de defesa ou dos peritos,
nas mesmas condições de que dispõe as de acusação.

4.7.2 Contraditório e imparcialidade do julgador

O primeiro requisito para que seja efetivamente alcançado o contraditório é


haver um tribunal imparcial e independente. Imparcial e independente de quem? Claro
que daquele que acusa, seja em matéria penal, cível ou administrativa.
Sem independência e imparcialidade em relação ao formulador da tese de
acusação, não existe qualquer possibilidade de se efetivar a norma constitucional do
art. 5o, de eficácia plena e imediata: o princípio do Contraditório.

195
Incorporados à ordem jurídico-nacional por meio dos Decretos n. 592/92 e n. 678/92.
100

Também não se consegue alcançar o conteúdo jurídico do princípio do juiz


natural, ou aquele previsto nos tratados internacionais mencionados (Tribunal
competente, independente e imparcial), pois como ensina Romeu Felipe Bacellar
Filho: “se o acusador for o responsável pela preparação do provimento final, e estando
psicologicamente vinculado à acusação, a sua imparcialidade está comprometida196”.
De tamanha clareza solar esse pressuposto que não há necessidade de
maiores aprofundamentos teóricos.

4.7.3 Contraditório e o direito de conhecimento dos atos processuais

Ademais, o contraditório apresenta dupla faceta, pois expressa a necessidade


de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos processuais
subsequentes, bem como a possibilidade de reação e resposta aos atos
desfavoráveis197.
Nesse sentido, as partes que estão litigando “devem ter o direito de deduzir
suas pretensões e defesas, de realizar as provas que requereram para demonstrar a
existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no
processo” 198.

196
Ob. Cit. p. 428.
197
Idêntico posicionamento atual no Superior Tribunal de Justiça: “RECURSO ESPECIAL -
PROCESSO CIVIL - MANDADO DE SEGURANÇA - LICENÇA PARA CONSTRUÇÃO DE EDIFÍCIO -
JUNTADA DE DOCUMENTOS NOVOS - AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DA PARTE PARA SE
MANIFESTAR - OFENSA AO ART. 398 DO CPC - NULIDADE DO ACÓRDÃO - VIOLAÇÃO AO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO - RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO PARA
DETERMINAR O RETORNO DOS AUTOS À CORTE DE ORIGEM. O recurso merece prosperar pela
inequívoca violação ao disposto no artigo 398 do Código de Processo Civil. Com efeito, na hipótese
em exame a Corte de origem não deu oportunidade aos impetrantes de se manifestarem acerca da
juntada de documentos que se mostraram essenciais para a formação da convicção daquele Tribunal,
que, com base neles, deu provimento à apelação da parte contrária. A respeito do tema, pontificam
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que, "após o deferimento de juntada dos
documentos nos autos, o juiz deve determinar seja ouvida a parte contrária. Se isto não ocorrer e o
documento influir no julgamento do juiz, em sentido contrário ao do interesse da parte preterida, a
sentença que vier a ser proferida é nula e assim deve ser declarada". Na espécie, a juntada dos
documentos novos foi realizada pelo assistente da parte contrária, o que não afasta a aplicação do
artigo 398 do estatuto processual civil, uma vez que a atuação do assistente ocasionou evidente
prejuízo à defesa dos recorrentes. Dessarte, verificado na espécie o cerceamento de defesa, pela
ausência de oportunidade dada à parte para se pronunciar acerca dos documentos novos trazidos aos
autos, resta inafastável a nulidade do acórdão por ofensa ao princípio do contraditório. Recurso
especial provido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 264660/SP. Relator: Min.
Franciulli Netto – Segunda Turma. Diário de Justiça, Brasília, 03 nov. 2003).
198
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. cit., 132.
101

Para que tudo isso se efetive, é igualmente óbvia obrigação a comunicação dos
atos processuais às partes, a fim de que elas possam iniciar o diálogo processual, o
qual será encerrado com o provimento, de onde o julgador estará apto a retirar desse
diálogo a sua síntese, a verdade processual199.
Por conseguinte, “é direito do réu ser comunicado adequadamente sobre a lide
e seu conteúdo, fazendo-se ouvir no tribunal”200. Em conclusão, o autor reafirma que
o princípio do contraditório expressa as mesmas oportunidades e instrumentos
processuais para as partes, permitindo-se ajuizar a ação, deduzir resposta, requerer
e realizar as provas, recorrer das decisões judiciais, tudo isso, em suma, para fazer
valer seu direito.
Posicionamento semelhante quanto ao sentido do princípio do contraditório é
adotado por Humberto Theodoro Jr.201 e por Cintra, Grinover e Dinamarco202, em que
o juiz realiza um processo dialético e as decisões representam uma “síntese” do
contraditório que foi exercido por ambas as partes. Em outros termos, as partes devem
ser ouvidas, devem apresentar provas e influir na formação do convencimento do
magistrado, de modo que uma parte apresenta a “tese” enquanto a outra apresenta a
“antítese”. Para tanto, é necessária a comunicação efetiva de todos os atos
processuais, praticados pelo juiz ou pelo adversário, expressando-se na citação,
intimação ou notificação203.

199
Existem algumas importantes discussões doutrinárias que defendem inexistir a tal verdade real, mas
a única possível é a verdade auferida pelos elementos contidos em um processo, onde o contraditório
esteja presente. Para maior aprofundamento, ver estudo de Richard-Paul Garrel (ob. Cit. p. 70 a 135).
200
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. cit., 141.
201
Na mesma direção da doutrina majoritária, reconhece que o princípio do contraditório apresenta
dupla destinação, pois influencia a atuação do magistrado e, ao mesmo tempo, garante às partes o
direito de manifestação antes de qualquer decisão. O autor complementa o entendimento afirmando
que não basta garantir a oportunidade de “dizer e ser ouvido”, mas também cabe à parte ser
devidamente citada/intimada sobre cada ato e, ainda, manifestar-se e apresentar contraprova para
desconstruir as premissas e alegações do outro litigante (THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de
Direito Processual Civil. 53. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012).
202
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
203
Nesse sentido, cumpre destacar decisão do TJDF:
“PROCESSO CIVIL. SEGURO SAÚDE. OBRIGAÇÃO DE FAZER. JUNTADA DE DOCUMENTOS.
AUSÊNCIA DO CONTRADITÓRIO. SENTENÇA. APELAÇÃO. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE
DEFESA. ACOLHIMENTO. 1. Verificado que o autor não foi intimado para se manifestar sobre
documentos juntados pelo requerido e que esses documentos foram fundamentais à formação do
convencimento do Juízo, a sentença deve ser cassada por cerceamento de defesa e em atenção ao
princípio do contraditório, a teor do que dispõem o artigo 5º, LV, da Constituição Federal e o artigo 398
do Código de Processo Civil. 2. Uma vez que a indenização por dano moral é consequência da prática
de ato ilícito, deve ser cassada integralmente a sentença que não oportuniza o exercício do contraditório
em relação a documentos relevantes para a formação do convencimento do julgador acerca da ilicitude
do ato. 3. Preliminar de cerceamento de defesa acolhida. Sentença cassada” (BRASÍLIA. Tribunal de
102

Para Aury Lopes Jr.204 o contraditório e a ampla defesa estão relacionados ao


direito de ser informado de todos os atos desenvolvidos ao longo do trâmite
processual, pois o Réu somente pode participar de forma efetiva quando for
previamente comunicado/informado. Assim, na perspectiva do autor, a citação regular
consistiria o ato processual mais relevante, pois em um primeiro momento
comunica/informa o Réu sobre a existência de acusação em seu desfavor e,
posteriormente, assegura o direito à defesa técnica e processual.
Sintetizando as principais questões trazidas no presente tópico, vale destacar
trechos do voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence, no julgamento do MS 23.550-
1/DF205:
o
[...]A Constituição, no artigo 5 , LV, processualizou a atuação administrativa,
sempre que se cuide de decidir conflito atual ou potencial de interesses, de
modo a assegurar ‘aos litigantes [...] o contraditório e a ampla defesa.
[...]Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório
e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do
processo e a oportunidade de manifestar e produzir ou requer a produção de
provas de seu interesse.
[...]É ilação tão óbvia que seria ocioso aditar-lhe achegas doutrinárias.
De outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos
procedimentos administrativos comuns, a fortiori, é irrecusável que a ela há
de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal
de Contas, de colorido quase-jurisdicional (BRASIL, 2001).

Em suma, a dimensão deste direito é tão clara que causa tristeza precisar da
pena do STF para clarear às autoridades administrativas suas obrigações de
cumprimento ao contraditório.
Salienta ainda Romeu Felipe Bacellar Filho, completo de razão, que incumbe
respeitar o contraditório até mesmo na fase preparatória do processo administrativo
disciplinar. Ou seja, mesmo antes de se ver instaurado o processo, caso sejam
necessárias medidas que levem o acusador a produzir provas deverá ser comunicado
o interessado para acompanhar os trabalhos e propor o que de direito206.

4.7.4 Contraditório e o direito à produção de prova e contraprova

Justiça. Processo -20130310112819. Relator: Sebastião Coelho – Quinta Turma Cível. Brasília, 16
dez. 2014).
204
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual penal e sua conformidade constitucional. 3. ed. v, 2.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
205
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 23.550/DF. Relator: Min. Marco
Aurélio – Tribunal Pleno. Diário de Justiça, Brasília, 31 out. 2001. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85979>. Acesso em: 05 out.
2016.
206
Ob. Cit. p. 258
103

A questão do direito da produção da prova pelas partes é talvez o pressuposto


do contraditório mais difícil de se ver realmente alcançado na prática. Isto porque é
negligenciado o fato pelos julgadores de que muitas vezes somente pela produção da
prova as partes conseguem comprovar o seu argumento, a sua tese ou antítese.
Como visto acima, a doutrina é insistente quanto a este direito. A jurisprudência
também vem acompanhando este entendimento quanto ao contraditório e o direito de
produção probatória207.
Cumpre a transcrição de importante acórdão do STJ208 sobre o tema:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS


(CONSUMADO E TENTADOS). PORTE DE ARMA. CÁRCERE PRIVADO.
LAUDOS. JUNTADA. AUSÊNCIA DE OPORTUNIDADE PARA
APRECIAÇÃO. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. VIOLAÇÃO.
NULIDADE. RECONHECIMENTO.
1. O devido processo legal é fundamental para o desenvolvimento do justo
processo. Como corolários da referida cláusula constitucional, o contraditório
e a ampla defesa somente são assegurados quando às partes é garantido o
conhecimento e oportunidade de manifestação sobre o ingresso de
elementos de cognição nos autos. In casu, laudos do Instituto de
Criminalística, referentes a decodificação das mídias ofertadas pelas
emissoras de televisão Record, Gazeta e Bandeirantes, bem como do laudo
concernente ao exame de local indireto (reconstituição de cenário de cárcere
privado), aportaram nos autos. Todavia, a despeito de requerimento
defensivo no sentido de se conferir prazo para que se inteirasse sobre o novo
conteúdo do feito, houve a negativa judicial, carente, todavia, de motivação.
2. Ordem concedida para anular o processo a partir da audiência de instrução
e julgamento, inclusive, devendo ser assegurado o contraditório em relação
à prova carreada aos autos no dia da audiência e àquela ainda faltante em
tal ocasião, após o quê deve ser refeita a audiência de instrução e julgamento,

207
Como exemplo, tem-se a seguinte decisão: “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. DL 201/67.
TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. MEDIDA EXCEPCIONAL. INDEFERIDA. PEDIDO DE PERÍCIA.
AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO. CERCEAMENTO DE DEFESA RECONHECIDO. HABEAS
CORPUS PARCIALMENTE CONCEDIDO. [...] 2. Quanto ao pedido de produção de prova pericial, a
lei concede ao juiz a decisão sobre a necessidade/utilidade da prova, contudo, há que se ponderar a
respeito da produção de prova sob os princípios do contraditório e da ampla defesa. 3. Na hipótese, a
denúncia registra que o paciente não teria realizado a construção de algumas unidades sanitárias no
Município de Lusilândia, como determinado no convênio com a FUNASA nº 477/2002 . Sustenta o
impetrante que teria requerido a perícia in loco nas obras objeto do contrato a fim de aquilatar as
construções realizadas e que não teve conhecimento das vistorias realizadas. 4. Muito embora caiba
ao juiz indeferir as provas impertinentes, impende ressaltar a existência e necessidade de observância,
no nosso ordenamento jurídico, da garantia constitucional da ampla defesa, estabelecida no art. 5º, inc.
LV, da Constituição Federal, segundo a qual, "aos acusados em geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos e ela inerentes". 5. Em face da alegação do réu, confirmada
pelo MM. Juízo a quo, de que a perícia foi realizada sem a sua participação, merece ser concedida a
ordem de habeas corpus, para produção da prova pericial, com observância do direito do acusado ao
contraditório e ampla defesa. 6. Concessão da ordem de Habeas corpus em parte” (BRASIL. Tribunal
Regional Federal (1ª Região). Processo - 0063585-07.2013.4.01.0000. Relator: I’talo Fioravanti Sabo
Mendes – Quarta Turma. Brasília, 30 jul. 2014).
208
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habes Corpus 131.469/SP. Relator: Min. Celso Limongi -
Sexta Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 06 dez. 2010. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=130216
44&num_registro=200900484215&data=20101206&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 01 dez. 2016.
104

intimando-se e requisitando-se as testemunhas, com prazo razoável


(BRASIL, 2010).

O Contraditório impõe que seja dado direito à produção da prova, como já dito,
mas exige também que a outra parte, que não a solicitante ou produtora da prova,
possa acompanhar pari passu a sua produção, com seus advogados e assistentes
técnicos, levantando suas dúvidas e apresentando as suas conclusões.
Prova produzida sem que a parte adversa tenha sido intimada para
acompanha-la é prova nula, por violação ao contraditório, conforme também
posicionamento jurisprudencial209:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - ACIDENTE DE TRÂNSITO


- HONORÁRIOS PERICIAIS - REDUÇÃO - AGRAVO RETIDO PROVIDO -
PRELIMINAR DE JULGAMENTO ULTRA PETITA - ACOLHIMENTO -
NULIDADE DO LAUDO PERICIAL - NÃO INTIMAÇÃO SOBRE DATA E
LOCAL DE INÍCIO DOS TRABALHOS - AUSÊNCIA DE RESPOSTA AOS
QUESITOS FORMULADOS PELAS PARTES - PREJUÍZO DEMONSTRADO
- OFENSA AO CONTRADITÓRIO - SENTENÇA CASSADA.
O art. 431-A, do CPC exige que as partes sejam cientificadas da data e local
designados pelo juiz ou indicados pelo perito para a realização da prova. A
observância de tal norma é fundamental para que seja respeitado o princípio
do devido processo legal, do qual derivam os princípios do contraditório e da
ampla defesa, garantindo a efetiva participação das partes na produção da
prova técnica. Pela própria natureza da perícia a ser realizada e em virtude
da complexidade da matéria, a inobservância do preceito constante do art.
431-A do CPC, acarretou notório prejuízo à requerida, impossibilitando a
apresentação de laudo pelo seu assistente técnico. Ao deixar de informar o
local e a data em que seriam iniciados os trabalhos periciais, o i. experto
impediu que as partes participassem diretamente da realização da prova
técnica e que contribuíssem para a formação do livre convencimento do
julgador, o que, a toda evidência, acarreta ofensa aos princípios do
contraditório e da ampla defesa. Agravo retido provido; preliminar de nulidade
parcial da sentença, por vício de julgamento ultra petita, acolhida para decotar
o excesso; preliminar de cerceamento de defesa acolhida; sentença cassada
(MINAS GERAIS, 2014).

A doutrina reconhece, ainda, à unanimidade que o contraditório é direcionado


não só às partes, mas também ao próprio magistrado, conforme indica Cândido
Rangel Dinamarco 210 , a quem incumbe dever de direção, produção de provas e
diálogo211.

209
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Processo - 1.0024.03.885339-6. Relator: Eduardo Mariné da
Cunha - Décima Sétima Câmara Cível. Belo Horizonte, 29 jul. 2014. Disponível em:
<http://www8.tjmg.jus.br/themis/verificaAssinatura.do?numVerificador=1002403885339600220147597
78>. Acesso em: 04 dez. 2016.
210
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002.
211
O autor esclarece que o magistrado é obrigado a conduzir todo o procedimento por impulso oficial,
independente de requerimento das partes e nos casos previstos em lei. Essa obrigação também implica
105

Não há dúvidas de que o contraditório e a ampla defesa são princípios jurídicos-


institutivos e pressupostos definidores do processo, como adverte bem Rosemiro
Pereira Leal 212, o qual se fundamenta na liberdade de contradizer, mas de forma
limitada pelo tempo finito (prazo) da lei, convertendo-se em ônus processual se não
exercida. Perceba-se como o contraditório não pode ser resumido apenas ao “dizer e
contradizer” pelas partes, pois essa situação constituiria um “contraditório estático” no
qual a participação é fictícia, aparente e meramente formal213.
E como não poderia deixar de ser no âmbito do processo administrativo, o
STJ214 também utiliza o princípio do contraditório e o da ampla defesa para assegurar
ao processado o direito de indicar assistente técnico e formular quesitos quando da
produção da prova pela comissão processante em processo administrativo disciplinar:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. POLICIAL RODOVIÁRIO


FEDERAL. DEMISSÃO. UTILIZAÇÃO DE INCIDENTE DE SANIDADE
MENTAL INSTAURADO EM OUTRO PROCESSO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR, SEM OPORTUNIZAÇÃO DE CONTRADITÓRIO E AMPLA
DEFESA. NULIDADE CONFIGURADA. SEGURANÇA CONCEDIDA.
1. Trata-se de mandado de segurança atacando ato do Ministro de Estado da
Justiça que demitiu o impetrante do cargo de Policial Rodoviário Federal em
razão da prática das infrações tipificadas nos arts. 116, III, 117, IX e 132, IV,
da Lei 8.112/1990. 2. Alega o impetrante que o processo administrativo
disciplinar que resultou na sua demissão encontra-se eivado de nulidades,
uma vez que nele houve utilização de Incidente de Sanidade Mental
instaurado em outro processo administrativo disciplinar, sem oportunização
de contraditório e ampla defesa; e, ainda, pela ausência de intimação pessoal
relativamente aos atos praticados no PAD. 3. Com razão o impetrante, uma
vez que não consta dos autos do Incidente de Sanidade Mental notificação
para que pudesse exercer o contraditório e ampla defesa, especialmente
indicar assistente técnico e apresentar quesitos; e, ademais, a Junta Médica
- cujos membros foram identificados sem a indicação de suas áreas de
especialidade médica -, concluiu pela sanidade mental do acusado sem
apresentar fundamentação apropriada. 4. Segurança concedida para anular
o processo administrativo disciplinar a partir da utilização do aludido Incidente
de Sanidade Mental e determinar a reintegração do impetrante. (BRASIL,
2014).

na possibilidade de iniciativas probatórias, assim, “a garantia constitucional do contraditório lhe exige é


que saia de uma postura de indiferença e, percebendo a possibilidade de alguma prova que as partes
não requereram, tome a iniciativa que elas não tomaram e mande que se produza” (Ob. cit., p. 134).
Ainda, impõe-se ao juiz a participação por meio do diálogo, afastando-se decisões baseadas em
elementos que não foram discutidos com as partes e entre as partes. Portanto, para Dinamarco essas
três condutas do magistrado - direção, iniciativa probatória e diálogo - são desdobramentos do
contraditório, pois o processo é um instrumento público que não pode ser regido exclusivamente pelos
interesses, condutas e omissões dos litigantes.
212
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 4. ed. Porto Alegre: Síntese, 2001.
213
Nesse sentido NUNES, Dierle José Coelho et al. Curso de Direito Processual Civil:
fundamentação e aplicação. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
214
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 20.336/DF. Relator: Min. Mauro
Campbell Marques - Primeira Seção. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 01 abr. 2014. Disponível
em:https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=34583
795&num_registro=201302391427&data=20140401&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 28 fev. 2016.
106

Se em determinado momento de qualquer processo, mesmo que as partes já


tenham se manifestado sobre as principais questões trazidas até então aos autos, um
dos interessados juntar cálculos, análises, petição, documento aos autos, é
fundamental que seja dado direito à parte adversária de conhecer, contestar,
apresentar novos dados que confrontem aqueles inovadoramente juntados aos
autos215.
216
Sérgio Ferraz e Adilson Dallari explicam com grande didática que esse
princípio garante às partes o direito de produzir argumentos, provas e
analisar/contestar os elementos produzidos pela Administração Pública 217 , na
hipótese de processos administrativos. Ainda, expressa um diálogo entre as partes
e/ou autoridades envolvidas, com a alternância necessária de manifestação das
partes durante a instrução do feito.
Igual orientação é dada para a teoria do processo administrativo disciplinar,
como lecionado por Romeu Felipe Bacellar Filho: “tudo o que foi dito converte o
contraditório em garantia de efetiva possibilidade, conferida a todos os sujeitos
processuais, de influir na formação do convencimento do órgão julgador”218.

215
Nesse sentido: “PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – JUNTADA AOS
AUTOS DE DOCUMENTOS A DESPEITO DA OITIVA DA OUTRA PARTE – VIOLAÇÃO DO ARTIGO
398 DO CPC – CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA E VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO
CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. 1. Impõe-se a intimação da parte, em razão
da juntada de novo documento aos autos, cujo teor faz-se essencial para a formação da convicção do
juízo singular (art. 398 do CPC). 2. No caso, os cálculos apresentados pela Fazenda Pública devem
ser submetidos ao contraditório. Em outros termos, indispensável a abertura de vista à parte contrária,
fornecendo-lhe a oportunidade de manifestar-se sobre o montante referente à conversão em renda de
valores depositados em juízo; a resultar, in casu, nulo o decisum singular e reformado o acórdão a quo,
por inobservância do que dispõe o art. 398 do CPC (Princípio do Devido Processo Legal). Recurso
especial provido, para determinar a intimação da parte contrária, quanto aos cálculos ofertados pela
Autoridade Fazendária, nos termos do voto” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1086322/SC. Relator: Min. Humberto Martins – Segunda Turma. Diário de Justiça Eletrônico,
Brasília, 01 jul. 2009).
216
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001.
217
Assim é também o entendimento jurisprudencial: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RECURSO QUE NÃO ATACA TODOS OS FUNDAMENTOS DA
DECISÃO AGRAVADA. POLICIAL MILITAR. EXCLUSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR. AUSÊNCIA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA
DEFESA.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que a ausência de processo
administrativo ou a inobservância aos princípios do contraditório e da ampla defesa torna nulo o ato de
demissão de servidor público, seja ele civil ou militar, estável ou não. Precedentes. Agravo regimental
a que se nega provimento.
((BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 433239. Relator: Min.
Roberto Barroso - Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 10 set. 2014).
218
Ob. Cit. p. 247
107

Igualmente no caso de processo administrativo, o princípio do contraditório


reflete em acesso aos elementos do processo com prazo suficiente para se preparar
ao evento demarcado219, com a audiência do interessado; possibilidade de reação,
direito de produzir provas e contraprovas220, direito ao silêncio sem prejuízos à parte
e direito à revisibilidade (duplo grau)221, com impossibilidade do reformatio in pejus.
Ainda em âmbito administrativo, o STJ decidiu222 por garantir o contraditório,
tanto assegurando vista de documentos indevidamente negados à parte interessada,
como determinando a instituição de comissão processante com membros novos,

219
Igual sentido decisão reiterado do STJ:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO.
DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. NULIDADE. PRAZO PARA
NOTIFICAÇÃO DO ACUSADO. INOBSERVÂNCIA. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO
CONTRADITÓRIO CONTRARIADOS. SEGURANÇA CONCEDIDA.
[...] 2. A omissão existente no Regime Jurídico dos Servidores Públicos – Lei 8.112/90 – quanto ao
prazo a ser observado para a notificação do acusado em processo administrativo disciplinar é sanada
pela regra existente na Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração
Pública Federal. 3. O servidor público acusado deve ser intimado com antecedência mínima de 3 (três)
dias úteis a respeito de provas ou diligências ordenadas pela comissão processante, mencionando-se
data, hora e local de realização do ato. Inteligência dos arts. 41 e 69 da Lei 9.784/99 e 156 da Lei
8.112/90. 4. Ilegalidade da audiência de oitiva de testemunhas e, por conseguinte, do processo
administrativo disciplinar em razão do fato de que o impetrante foi notificado desse ato no dia que
antecedeu a sua realização, contrariando a legislação de regência e os princípios da ampla defesa e
do contraditório. 5. Segurança concedida. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de
Segurança 9.511/DF. Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima – Terceira Seção. Diário de Justiça, Brasília,
21 mar. 2005).
220
ADMINISTRATIVO. PROCESSO DE REVISÃO DE APOSENTADORIA. NECESSIDADE DE
OBSERVÂNCIA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. ARTIGO 38 DA LEI 9.784/99.
NULIDADE DOS DESCONTOS. MAJORAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA.
1. Nos termos do art. 38 da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo
no âmbito da Administração Pública Federal, o administrado possui o direito de juntar documentos e
pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do
processo antes da tomada da decisão. Tal formalidade não foi observada no caso concreto, pois o ato
administrativo não foi precedido do devido processo legal, uma vez que não se assegurou ao autor a
oportunidade de defesa em momento anterior à revisão de seu benefício. 2 - seria considerado irrisório.
Assim sendo, considerando a possibilidade legal da apreciação equitativa do juiz, o valor fixado a título
de honorários deve ser majorado para R$1.000,00 (mil reais). (SANTA CATARINA. Tribunal Regional
Federal (4ª Região). Processo - 5035033-57.2014.404.7200. Relator: Marga Inge Barth Tessler -
Terceira Turma. Florianópolis, 08 out. 2015).
221
REEXAME NECESSÁRIO - APELAÇÃO CÍVEL - CONCURSO PÚBLICO - GUARDA MUNICIPAL -
TESTE PSICOTÉCNICO - CRITÉRIOS SUBJETIVOS: NULIDADE - IRREPETIBILIDADE - RECURSO
ADMINISTRATIVO - AMPLA DEFESA: INOBSERVÂNCIA. 1. É possível a inserção de exame
psicotécnico como fase de concurso público desde que justificável para o exercício das atividades
inerentes ao cargo e desde que haja previsão legal autorizadora. 2. Ainda que verificado vício no exame
por ausência de objetividade dos critérios de avaliação, não se justifica sua repetição sob pena de
violação ao princípio da isonomia. 3. Estabelecido prazo extremamente exíguo para apresentação de
recurso administrativo, resta desrespeitada a garantia da ampla defesa, o que acarreta a nulidade da
etapa do concurso (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Processo – 10216080538640001. Relator:
Oliveira Firmino – Sétima Câmara Cível. Belo Horizonte, 08 fev. 2013.
222
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 18.138/DF. Relator: Min. Humberto
Martins - Primeira Seção. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 abr. 2014. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=33852486
&num_registro=201200234136&data=20140404&tipo=5&formato=PDF. Acesso em: 28 fev. 2016.
108

distintos dos da anterior comissão descumpridora dos princípios do contraditório e da


ampla defesa:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PROCESSO
DISCIPLINAR. DEMISSÃO. OFÍCIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
NOS AUTOS DO PAD. ROTULADO COMO SIGILOSO.
DESQUALIFICAÇÃO DAS CONCLUSÕES DA COMISSÃO. AUSÊNCIA DE
VISTA E DE POSSIBILIDADE DE CONTESTAÇÃO AO SERVIDOR.
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA.
1. Cuida-se de mandado de segurança impetrado com o objetivo de anular
processo administrativo disciplinar que culminou na demissão do impetrante
do cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal por violação das disposições
da Lei n. 8.112/90 e por improbidade administrativa; é alegado cerceamento
ao direito de defesa, bem como desproporção na sanção aplicada. 3. [...] O
documento do MPF foi qualificado como sigiloso. 4. Ressai evidente que a
ausência de oportunidade para contraditar o ofício sigiloso juntado violou o
direito de defesa. O referido documento reavaliou o processo administrativo
disciplinar, demandando providências da chefia da Corregedoria-Geral da
Receita Federal no sentido de não observar o relatório da Comissão
Processante, rotulado como equivocado e contraditório, e defendendo a
demissão do impetrante como obrigatória. 5. A negativa de conhecimento ao
indiciado do conteúdo de documento de pujante e evidente força simbólica
contra si, determina que seja localizada a violação dos princípios do
contraditório e da ampla defesa. 6. A segurança deve ser concedida em parte
com o fim de anular a portaria demissional e para a devida reintegração do
servidor, devendo ser mantido o ato de instauração do processo disciplinar,
que deverá - novamente - prosseguir com a designação de nova comissão
formada por membros que não participaram da anterior; deverá, ainda,
expungido do processo o parecer sigiloso do Ministério Público Federal, ser
proferido novo relatório final e nova deliberação da autoridade. Segurança
concedida parcialmente. (BRASIL, 2014).

No mesmo sentido é a jurisprudência para os demais ramos do direito


processual, como se verifica neste julgamento223 perante o STJ:

HIPÓTESE - JUNTADA DE DOCUMENTOS QUE INFLUÍRAM


CATEGORICAMENTE NO DESLINDE DO FEITO, SEM A REGULAR
ABERTURA DE VISTA À PARTE ADVERSA - INFRINGÊNCIA AO ART. 398
DO CPC - SENTENÇA CASSADA - RECURSO PROVIDO.
Havendo prejuízo processual pela não abertura de vista à parte contrária a
fim de que a mesma se manifeste acerca dos novos documentos juntados
aos autos, imperiosa se mostra a decretação da nulidade do processo [...],
pois não se admite, no nosso sistema jurídico-constitucional, decisão
proferida com fulcro em elemento de prova não submetido ao contraditório.
Afronta ao art. 398, do CPC. (BRASIL, 2000).

223
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 237.696/MG. Relator: Min. José Delgado –
Primeira Turma. Diário de Justiça, Brasília, 22 mai. 2000. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199901016894&dt_publicaca
o=22-05-2000&cod_tipo_documento=1&formato=PDF>. Acesso em: 28 fev. 2016.
109

Mesmo na hipótese de terceiro interessado, que não uma das partes, vier a
apresentar algum elemento novo aos autos que sirvam ao convencimento do julgador,
para que se garanta o contraditório, é necessário dar vistas às partes com tempo
suficiente para suas análise, manifestações e confrontações224.
Vale a atenção lançada por Marcos Porta225 no sentido de ser incumbência de
todos os julgadores garantirem que o contraditório se exerça com adequação, sem
que um dos sujeitos da relação processual abuse do direito de produção de provas,
quando o conteúdo dessa se mostrar claramente desnecessário dentro da dialética
processual e a prova solicitada o for com evidente intuito protelatório.

4.7.5 Contraditório e capacidade de reação simétrica entre as partes

Eugênio Pacelli ressalta que a visão do contraditório como tão somente


garantia de participação e direito a informação e reação não mais se sustenta, já que
a perspectiva da teoria moderna “garantiria que a oportunidade da resposta pudesse
se realizar na mesma intensidade e extensão”226, em verdadeira simétrica paridade
de armas.
Bom exemplo da exigência de paridade de armas é o julgado227 abaixo, que
rejeita seja usado como provas gravações feitas unilateralmente por uma das partes
seis anos antes de serem apresentadas em juízo, sem que tenha havido o competente

224
Vale destacar trechos de importante decisão do STJ “[...] O recurso merece prosperar pela
inequívoca violação ao disposto no artigo 398 do Código de Processo Civil. Com efeito, na hipótese
em exame a Corte de origem não deu oportunidade aos impetrantes de se manifestarem acerca da
juntada de documentos que se mostraram essenciais para a formação da convicção daquele Tribunal,
que, com base neles, deu provimento à apelação da parte contrária. A respeito do tema, pontificam
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que, "após o deferimento de juntada dos
documentos nos autos, o juiz deve determinar seja ouvida a parte contrária. Se isto não ocorrer e o
documento influir no julgamento do juiz, em sentido contrário ao do interesse da parte preterida, a
sentença que vier a ser proferida é nula e assim deve ser declarada". Na espécie, a juntada dos
documentos novos foi realizada pelo assistente da parte contrária, o que não afasta a aplicação do
artigo 398 do estatuto processual civil, uma vez que a atuação do assistente ocasionou evidente
prejuízo à defesa dos recorrentes. Dessarte, verificado na espécie o cerceamento de defesa, pela
ausência de oportunidade dada à parte para se pronunciar acerca dos documentos novos trazidos aos
autos, resta inafastável a nulidade do acórdão por ofensa ao princípio do contraditório. Recurso
especial provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 264660/SP. Relator: Min.
Franciulli Netto – Segunda Turma. Diário de Justiça, Brasília, 03 nov. 2003).
225
Ob. Cit. p. 128
226
PACELLI, Eugênio. Ob. cit., p. 43.
227
BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). Processo - 0000050-07.2013.4.01.0000. Relator:
Hilton Queiroz - Quarta Turma. Brasília, 10 dez. 2013. Disponível em:
<http://arquivo.trf1.jus.br/PesquisaMenuArquivo.asp?p1=500720134010000&pA
=&pN=500720134010000>. Acesso em: 01 dez. 2016.
110

exame público pericial, com a necessária participação de todos os sujeitos


processuais:

[...] 7. Com base nos princípios do devido processo legal e da ampla defesa,
e, considerando, ainda, a previsão contida nos artigos 158 e seguintes do
Código de Processo Penal, o diálogo apresentado deveria ter sido
apresentado previamente em Juízo para que fosse remetido à perícia oficial,
com vistas à realização de laudo pericial, em busca da autenticidade,
continuidade e idoneidade do arquivo. 8. Se por um lado não se afigura ilícito
o momento da apresentação da gravação pela acusação, por outro,
considerando o ineditismo da prova, que fora colhida há 6 (seis) anos, mostra-
se claro o cerceamento de defesa, decorrente da ofensa do devido processo
legal, do contraditório e da plenitude de defesa, face à paridade das armas
entre acusação e defesa. Ressalte-se que as provas, ocultadas há anos, não
interessavam somente à acusação, mas também aos defensores, magistrado
e jurados. 9. Sobre a autossuficiência da cláusula do devido processo legal
para proteção às partes no processo judicial, afirma o constitucionalista
Manoel Jorge e Silva Neto, verbis: o postulado do due process of law seria
suficiente para, por si mesmo, assegurar garantias processuais que
outorgassem às partes um processo "justo", isto é, possibilidade de
contraditório, ampla produção de prova e revisão da decisão judicial. (Curso
de Direito Constitucional, 6ª ed., Rio: Lumen Juris, 2010, p. 727). 10. Ordem
concedida para determinar ao Juízo de origem que solicite à Procuradoria da
República de Belo Horizonte o envio do Gravador Panasonic RR-QR160, a
fim de que possa ser encaminhado à Polícia Federal, de modo que a perícia
oficial possa promover a devida análise técnica de autenticidade e
incolumidade do arquivo de áudio original, bem assim para que possa
promover a degravação da conversa, evitando-se o cerceamento da defesa
(BRASIL, 2013).

Para maior parte da doutrina, as partes devem participar ativamente na


formação do provimento e com igualdade de meios processuais para fazer valer tal
direito, tudo perante o juízo de instrução228.

4.7.6 Contraditório e capacidade de influir verdadeiramente na decisão

Os processualistas mais modernos desenvolvem algo discutido fortemente na


teoria do processo de que “o contraditório constitui uma verdadeira garantia de não
surpresa, que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as

228
Da mesma forma compreendeu o STJ: “1. Segundo entendimento desta Corte, a prova idônea para
arrimar sentença condenatória deverá ser produzida em juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla
defesa, de modo que se mostra impossível invocar para a condenação, somente elementos colhidos
no inquérito, se estes não forem confirmados durante o curso da instrução criminal. 2. Não existindo,
nos autos, prova judicializada suficiente para a condenação, nos termos do que reza o artigo 386, inciso
VII, do Código de Processo Penal, impõe-se a absolvição do recorrente. 3. Recurso especial provido
para, reconhecendo a violação aos artigos 155 e 386, inciso VII, ambos do Código de Processo Penal,
absolver o recorrente. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1253537/SC. Relator:
Min. Maria Thereza De Assis Moura – Sexta Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília,19 out.
2011).
111

questões, inclusive as de conhecimento oficioso [...]”229. Assim, quanto ao julgador, o


contraditório busca afastar decisões baseadas em elementos estranhos ao que foi
efetivamente debatido pelas partes em momento oportuno230, ainda que a matéria
discutida seja apreciável ex officio.
Até mesmo as súmulas, as jurisprudências e as normas que fundamentam a
decisão precisam sofrer debate prévio, afastando-se surpresa no provimento final. Em
suma, o princípio do contraditório em uma perspectiva democrática “permite que o
cidadão assuma a função de autor-destinatário dos provimentos (jurisdicionais,
legislativos e administrativos), cujos efeitos sofrerá” 231, afastando-se uma sentença
que seja construída tão somente pela vontade do julgador232.

229
NUNES, Dierle José Coelho et al. Ob. cit., p. 88.
230
O STJ já decidiu proximamente a esse sentido, conforme trechos da ementa transcrita: “[...] 2. Tido
por muitos como o único e verdadeiro princípio de Direito Processual contido na Constituição Federal
de 1988 - art. 5º, LIV -,o princípio do due process of law abrange, como subprincípios ou corolários, a
ampla defesa, contraditório, publicidade dos atos processuais, proibição da prova ilícita, entre outros.
Como se vê, o devido processo legal é a garantia maior do cidadão em face do arbítrio, dando-se a ele
o direito, antes de ser submetido à sanção estatal, de ser submetido a um processo judicial cercado de
garantias e precauções. É incompatível, pois, a democracia com a inexistência de um processo judicial
revestido de garantias individuais. Ademais desses princípios, para o caso, há que se observar,
particularmente, o princípio dispositivo, que decorre da regra geral da disponibilidade do direito material.
Assim, em razão do predomínio do interesse individual, tem de ser deixado ao indivíduo,
consequentemente, a decisão se ele quer ou não efetivar seus direito perante o Poder Judiciário, e em
que medida. Desdobramento do princípio dispositivo é à adstrição do magistrado às alegações das
partes e a medida de sua atuação - decidir conforme o pleiteado no processo, isto é, o juiz deve julgar
a causa com base nos fatos alegados e provados pelas partes, sendo-lhe vedado, portanto, a busca
de fatos não alegados e cuja prova não tenha sido postulada pelas partes. Com efeito, o princípio
dispositivo está consubstanciado, inicialmente, pela necessidade de provocação da jurisdição (CPC,
art. 2º) e pela limitação do juiz à chamada litiscontestatio. Dessa forma, nos termos do art. 128, CPC,
o juiz haverá de decidir a lide nos limites em que foi proposta. 3. E é a partir da concepção dos referidos
princípios e do disposto nos artigos 128 e 264 do Código de Processo Civil que a presente demanda
deve ser analisada, na medida em que, se ao magistrado é vedado conceder mais, menos ou além do
que foi efetivamente pedido, esse deve ser certo e, sempre, submetido ao contraditório, oportunizando,
ao réu, contraditar, com todas as suas armas, o que fora deduzido em juízo. Aliás, é o que se consagra
no princípio da cooperação, que "orienta o magistrado a tomar uma decisão de agente-colaborador do
processo, de participante ativo do contraditório e não mais de mero fiscal de regras" (Fredie DidierJr.
em Curso de Direito Processual Civil). É afirmação corrente e quase dogmática que no processo civil,
em seu rito ordinário, que feita a citação é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem
o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei. No
Processo Civil, pois, há mecanismos aptos a estabilizar a demanda, que privilegiam a segurança
jurídica e o encadeamento lógico-sistemático dos atos processuais. Um desses mecanismos é o
previsto no art. 264, caput, do CPC, que veda ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o
consentimento do réu, após a citação. Pode-se dizer, portanto, que se trata de efeito processual da
citação, cuja regra consagra o chamado princípio da estabilização da demanda e tem como finalidade
impedir que o demandado seja surpreendido, comprometendo, severamente, o pleno exercício do
direito de defesa e do contraditório. Recurso especial não provido” (BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Recurso Especial 1307407/SC. Relator: Min. Mauro Campbell Marques – Segunda Turma.
Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 29 mai. 2012).
231
NUNES, Dierle José Coelho et al. Ob. cit., p. 93.
232
Igual posição possuem os principais modernos doutrinadores no direito comparado. Depois de citar
diversos juristas ingleses, norte americanos e europeus continentais, Galligan (2004, p.244) conclui:
“These elements combine to form a coherent whole, the distinctive mark of which is, according to Fuller,
112

Idêntica posição é a de Didier Jr.233, que adverte enfaticamente que “não pode
o órgão jurisdicional decidir com base em um argumento, uma questão jurídica ou
fática não postos pelas partes no processo” 234. Fredie Didier Jr. ressalta muitíssimo
a obrigatoriedade, para o alcance do contraditório, de efetivamente a parte ter “poder
de influência, de interferir com argumentos, ideias, alegando fatos” 235 , além,
obviamente, apresentando ou produzindo provas. Se isto não for substancialmente
conferido, o contraditório não terá sido efetivado236.
237
Sérgio Ferraz e Adilson Dallari ensinam que também no processo
administrativo “a decisão final deve fluir da dialética processual, o que significa que
todas as razões produzidas devem ser sopesadas, especialmente aquelas
apresentadas por quem esteja sendo acusado, direta ou indiretamente, de algo
sancionável”238.

the mode of participation of the parties. Each is able to present proofs and reasoned arguments in its
favour, and the decision must be founded on that basis. The adversarial nature of the procedure is its
hallmark” (GALLIGAN, D. J., Ob. cit., 244).
233
O referido autor faz referência a outros 14 doutrinadores, nacionais e estrangeiros, os quais
defendem que Decisão-surpresa é decisão nula, por violação ao princípio do contraditório.
234
Ob. cit., p. 84.
235
DIDIER JUNIOR, Fredie. Ob. cit., p. 84.
236
Vejam recente decisão do STF acolhendo esse posicionamento:
EMENTA HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. INTIMAÇÃO IRREGULAR, PROCEDIDA EM
NOME DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. DEFENSORA DATIVA CONSTITUÍDA NOS AUTOS.
NULIDADE. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O contraditório e a
ampla defesa são princípios cardeais da persecução penal, consectários lógicos do due process of law.
O devido processo legal é processo pautado no contraditório e na ampla defesa, no intuito de garantir
aos acusados em geral o direito não só de participar do feito, mas de fazê-lo de forma efetiva, com o
poder de influenciar na formação da convicção do magistrado. 2. Nulidade da intimação que se
reconhece, pois direcionada à Defensoria Pública da União, quando patrocinado o ora paciente por
defensor dativo (art. 370, § 4º, do Código de Processo Penal). Necessidade de realização de novo
julgamento, com a intimação da defensora nomeada da data da sessão a ser designada. 3. Habeas
corpus concedido (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 116985. Relator: Min. Rosa
Weber - Primeira Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 10 abr. 2014).
237
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 72.
238
Qualquer importante fato novo acrescido aos autos de um processo, mesmo que seja administrativo,
deve ser objeto de vista, análise e contradita por parte dos interessados. Cumpre transcrever esta
importante decisão do STJ:
“A Constituição Federal brasileira explicita no art. 5º, LV, ao dispor que aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral não assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes. 2. A oitiva de nova testemunha no autos do procedimento
administrativo impõe a abertura de prazo para a defesa manifestar-se, na forma escrita, sob pena de
violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa. 3. Em observância ao princípio do
contraditório e ampla defesa, deve ser oportunizada aos processados a apresentação de defesa com
relação a todos os fatos descritos no relatório final da Comissão Permanente de Disciplina. 5.
Apelações e Remessa Necessária não providas. Unânime. [1] (STJ - MS 9.677/DF, Rel. Ministra
MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE), TERCEIRA SEÇÃO, julgado
em 13/08/2014, DJe 22/08/2014).
113

Nessa perspectiva, destaca Leonardo Greco239 que em um Estado de Direito


Democrático o contraditório participativo e o diálogo humano exige que o juiz assegure
às partes o direito de “acompanhar o desenvolvimento do seu raciocínio e assim influir
eficazmente na formação da decisão final”240.
Tem-se, assim, que o contraditório reflete verdadeira participação democrática
dos indivíduos e pressupõe audiência bilateral, comunicação efetiva de todos os atos
processuais, produção de provas, apresentação de alegações e, por óbvio, tê-las
efetivamente consideradas na decisão judicial.

4.7.7 Contraditório e o direito de ser ouvido por julgador imparcial

Ademais, como visto acima em todos os posicionamentos doutrinários, “ser


ouvido” por um juiz imparcial é requisito para que o contraditório se estabeleça em
sua plenitude. A letra fria do papel desumaniza a parte, retira-lhe da condição de
humano para a de mero objeto, de simples documento argumentativo, com tese e
antítese.
Veja-se interessante julgado241 a respeito do tema:

Ocorrendo a prática de falta grave, a condenada deve ser ouvida antes da


decisão que, eventualmente, determinar a perda dos dias remidos. A razão
da obrigatoriedade da oitiva prende-se à possibilidade de poder justificar o
fato que provocaria a penalidade, e atende aos princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa, previstos no artigo 5º, LV da Constituição
Federal. Recurso conhecido e provido (MINAS GERAIS, 2013).

O direito a ser ouvido por juiz imparcial está contido nos já mencionados
tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário – Pacto Internacional de Direitos
Políticos e Civil da ONU e o Pacto de São José da Costa Rica:

o -
Artigo 8 Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as devidas
garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por
lei (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969).

239
GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Novos
estudos jurídicos, ano VII, n. 14, p. 9-68, abril, 2002.
240
Ob. cit., p. 18.
241
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Processo – 10155120018215001. Relator: Márcia Milanez –
Sexta Câmara Criminal. Belo Horizonte, 26 jun. 2013. Disponível em:
<http://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_resultado2.jsp?listaProcessos=10155120018215001>.
Acesso em: 30 mar. 2016.
114

Artigo 14 - Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as


cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida
publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de
qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1996).

São mais do que preceitos doutrinários ou jurisprudenciais, são normas


jurídicas que recebidas por nosso Estado obrigam todos os que precisam garantir o
cumprimento do devido processo legal e do contraditório, com exigido no art. 5o da
CRFB/88. Independentemente de ser processo judicial ou até mesmo administrativo,
nas hipóteses de litígio e acusação administrativa.
Julgando caso concreto envolvendo processo administrativo, o STJ242 decidiu
ser um direito da parte processada o seu interrogatório, tendo em vista caracterizar
princípio básico do contraditório e da ampla defesa, como posto na CRFB/88:

PROCESSO CIVIL - ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA -


AGENTE ADMINISTRATIVA DO QUADRO DE PESSOAL DO INSS/RS -
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - TESTEMUNHA INDICIADA
COMO SINDICADA NO CURSO DO PROCESSO - DEMISSÃO POR
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO
INEXISTENTES - CERCEAMENTO - SEGURANÇA CONCEDIDA. 1 - Se à
impetrante, arrolada como testemunha em Procedimento Administrativo
instaurado contra outras servidoras, não é garantido o direito a ser
interrogada, após sua indiciação, agora na condição também de acusada,
sendo-lhe facultada, apenas, a apresentação de defesa escrita após ter vista
dos autos, configura-se violação à ampla defesa e ao contraditório,
constitucionalmente assegurados (BRASIL, 2003).

Nossa ordem constitucional e infraconstitucional não entrega opção àqueles


que têm o dever-poder de decidir sobre a perda de direitos concretos e específicos
dos indivíduos: a oralidade se impõe.

4.7.8 Contraditório e o dever do julgador de garanti-lo a ambas as partes

Como bem lembram muitos dos processualistas acima citados, é o julgador


quem tem o papel essencial de assegurar o contraditório no curso de todo o processo,
à medida que garante a informação às partes para que se manifestem oportunamente.

242
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 7152/DF. Relator: Min. Jorge
Scartezzini - Terceira Seção. Diário de Justiça, Brasília, 06 out. 2003. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=877696&
num_registro=200000913464&data=20031006&tipo=5&formato=PDF. Acesso em: 28 fev. 2016.
115

Além de dar o provimento final, a ele incumbe garantir que o contraditório seja efetivo,
respeitado e atendido em todos os atos processuais243.
As dimensões de garantia do contraditório tanto à acusação quanto à defesa é
bem lembrado por Eugenio Pacelli244 e Julio Mirabete245. O primeiro, dedicando-se
bastante à compreensão do contraditório na perspectiva da teoria geral do processo,
afirma que os ditames e princípios constitucionais são referenciais tanto para a
atividade legislativa, quanto para o exercício do poder jurisdicional, abrangendo todos
os sujeitos processuais:

Assim, torna-se imperiosa a tarefa de definição de critérios mínimos de


interpretação constitucional que leve em consideração a aludida tutela penal,
que, a nosso aviso, deve ser dirigida à proteção dos direitos fundamentais,
no marco, portanto, de um direito penal de intervenção mínima, necessária à
afirmação daqueles direitos (fundamentais) contra ações especialmente
gravosas (PACELLI, 2014, p. 32).

E o segundo afirma que o princípio do contraditório corresponde à bilateralidade


da audiência, à isonomia, liberdade e igualdade processual, tanto para a defesa como
para a acusação, pois ambas se encontram em um mesmo plano.

4.7.9 Contraditório como principal atributo do direito de defesa

Interessante destacar que Mirabete não se preocupa em analisar e conceituar


separadamente o princípio da ampla defesa, visto que o princípio do contraditório, em
uma visão macro, já compreende o direito de defesa irrestrito.

243
APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO RENOVATÓRIA DE CONTRATO DE LOCAÇÃO
COMERCIAL. AGRAVO RETIDO. PROVA PERICIAL. APRESENTAÇÃO DE PARECER DE
ASSISTENTE TÉCNICO. INTIMAÇÃO DE APENAS UMA DAS PARTES. VIOLAÇÃO AOS
PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DA IGUALDADE PROCESSUAL.
CERCEAMENTO DE DEFESA CARACTERIZADO. SENTENÇA CASSADA. 1. Da redação do artigo
433, parágrafo único, do Código de Processo Civil, verifica-se ser fundamental a intimação das partes
do depósito do laudo pericial em cartório ou secretaria, a partir do que deflui o prazo de 10 (dez) dias
para entrega dos pareceres de seus assistentes técnicos. Ausente a intimação de alguma das partes,
mostra-se ineficaz a r. sentença, salvo se ausente prejuízo. 2. A ausência de intimação de uma das
partes para rebater as conclusões apresentadas em laudo pericial, na exata dimensão do disposto no
artigo 433, parágrafo único, do Código de Processo Civil, configura cerceamento de defesa, em afronta
aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da igualdade processual, especialmente se
demonstrado o acolhimento integral da perícia no r. decisum impugnado. 3. Apelo conhecido. Agravo
retido conhecido e provido. Sentença cassada. Prejudicado o mérito do apelo. (BRASÍLIA. Tribunal de
Justiça. Processo - 20120310185298. Relator: Simone Lucindo – Primeira Turma Cível. Brasília, 11
nov. 2015).
244
PACELLI, Eugênio. Ob. cit.
245
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
116

Como visto, o direito ao contraditório deve ser garantido desde o início da


instauração do processo, seja ele preparatório (na fase de inquérito) ou já instrutória
e decisória, assim como na recursal246.
Todas essas dimensões foram bem recebidas e até fortalecidas pelo STF247:

A Constituição de 1988 (art. 5º, LV) ampliou o direito de defesa, assegurando


aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes. [...] Assinale-se, por outro lado, que há muito a doutrina
constitucional vem enfatizando que o direito de defesa não se resume a um
simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o
constituinte pretende assegurar - como bem anota Pontes de Miranda - é
uma pretensão à tutela jurídica [...]. Daí afirmar-se, correntemente, que a
pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia
consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: a)
direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a
informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os
elementos dele constantes; b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung),
que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se, oralmente ou
por escrito, sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; c)
direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtingung),
que exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo
(Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões
apresentadas[...] (BRASIL, 2010).

Assim, não há dúvidas sobre o seu peso principiológico e normativo, nunca


podendo tal princípio ser limitado “a um simples direito de manifestação no processo”,
conforme palavras do Min. Gilmar Mendes, mas alcançando o conteúdo de obrigar o
julgador a considerar com isenção de ânimo os argumentos trazidos aos autos pelas
partes no curso processual.
Sem contraditório não há defesa, seja ampla ou reduzida. Em outras palavras,
de nada adiantaria dar a uma das partes ampla defesa sem que a ela fosse garantido
ao mesmo tempo e como pressuposto o exercício do contraditório.

246
Para ilustrar, vale citar o seguinte julgado:
[...] “Em observância aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, acarreta
nulidade absoluta a não abertura de vista à defesa para oferecimento de contra-razões recursais.
Ordem concedida para anular o julgamento proferido pelo e. Tribunal a quo, a fim de que se proceda à
devida intimação da defesa para o oferecimento das contra-razões recursais” (BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 21.847/SP. Relator: Min. Felix Fischer – Quinta Turma. Diário de
Justiça, Brasília, 07 abr. 2003).
247
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 22693/DF. Relator: Min. Gilmar
Mendes - Tribunal Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 13 dez. 2010. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=617722>. Acesso em: 28 fev.
2016.
117

4.8 Da Ampla Defesa

Um dos institutos jurídicos com expressão mais autoexplicativa como o da


ampla defesa deve ser difícil de se encontrar.
Aquele que é acusado da prática de algum ato contrário ao direito tem o direito
de se defender ampla e efetivamente, com todos os recursos e meios inerentes à
efetiva defesa. Além de todos os direitos indicados acima para o contraditório, a ampla
defesa ressalta que todos devem ter acesso a todos os elementos necessários para
que se consiga defender, mesmo que produzidos anteriormente ao início do
processo248.
A ampla defesa pressupõe a “oportunidade de exaurimento das articulações de
direito e produção de prova”249 e se traduz “na garantia de plenitude da defesa em
tempo e modo suficiente para sustentá-la”250. Refere-se ainda à garantia de uma boa
defesa técnica e o direito fundamental ao advogado capaz de esclarecer as questões
jurídicas às partes, bem como argumentar corretamente e se posicionar frente às
estratégias da parte contrária.
Inclusive, até mesmo no caso de processo administrativo, onde se tem
comumente desnecessária a defesa técnica em face de ausente preceito legal (há a
Súmula Vinculante n. 5 do STF sobre o tema 251 ), o STJ 252 já compreendeu ser
essencial para a garantia da ampla defesa, como bem posto por nosso Constituinte
de 1988:

248
Nesse sentido:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AUTOS DE INFRAÇÃO. VISTA DOS PROCESSOS
RESPECTIVOS OBSTACULIZADA. CERCEIO DO DIREITO DE DEFESA.
1. Obstaculizado o acesso aos processos administrativos pertinentes a autos de infração lavrados
contra as impetrantes, caracteriza-se cerceamento ao exercício do direito de defesa, assim lesão a
direito líquido e certo a ser reparada na via mandamental. 2. Remessa oficial não provida” (BRASIL.
Tribunal Regional Federal (1ª Região). Processo -003373-91.2012.4.01.3803. Relator: Carlos Moreira
Alves – Sexta Turma. Brasília, 10 mar. 2014.
249
LEAL, Rosemiro Pereira. Ob. cit., p. 104.
250
Ob. cit., p. 105.
251
Novamente com todo o acerto, Romeu Felipe Bacellar Filho (Ob. Cit., p. 317) discorda dos
fundamentos que levaram a Suprema Corte a adotar tal súmula. Igualmente assim compreendem
Marcos Porta (Ob. Cit., p. 130) e Dinorá Grotti (Ob. Cit., p. 118), pelo primeiro citada nos seguintes
termos: [...] “várias justificativas surgem, de regra, quanto à defesa técnica: equilíbrio entre os sujeitos
ou paridade de armas, vinculado à plenitude do contraditório[...]” (2003, p. 130).
252
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 10.837/DF. Relator: Min. Laurita Vaz
– Terceira Seção. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 13 nov. 2006. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=249875
9&num_registro=200501201586&data=20061113&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 26 fev. 2016.
118

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM


MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DEFESA
TÉCNICA CONSTITUÍDA APENAS NA FASE FINAL DO PROCEDIMENTO.
INSTRUÇÃO REALIZADA SEM A PRESENÇA DO ACUSADO.
INEXISTÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO. PRINCÍPIOS DA
AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INOBSERVADOS.
DIREITO LÍQUIDO E CERTO EVIDENCIADO.
1. Apesar de não haver qualquer disposição legal que determine a nomeação
de defensor dativo para o acompanhamento das oitivas de testemunhas e
demais diligências, no caso de o acusado não comparecer aos respectivos
atos, tampouco seu advogado constituído – como existe no âmbito do
processo penal –, não se pode vislumbrar a formação de uma relação jurídica
válida sem a presença, ainda que meramente potencial, da defesa técnica. 2.
A constituição de advogado ou de defensor dativo é, também no âmbito do
processo disciplinar, elementar à essência da garantia constitucional do
direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 3. O princípio
da ampla defesa no processo administrativo disciplinar se materializa, nesse
particular, não apenas com a oportunização ao acusado de fazer-se
representar por advogado legalmente constituído desde a instauração do
processo, mas com a efetiva constituição de defensor durante todo o seu
desenvolvimento, garantia que não foi devidamente observada pela
Autoridade Impetrada, a evidenciar a existência de direito líquido e certo a
ser amparado pela via mandamental. Precedentes. 4. Mandado de segurança
concedido para declarar a nulidade do processo administrativo desde o início
da fase instrutória e, por conseqüência, da penalidade aplicada (BRASIL,
2006).

Vale destacar que a ampla defesa estabelece uma forma organizatória entre
as relações das partes com o juiz, assegurando uma amplitude de argumentação, ou
seja, uma possibilidade de alegar e demonstrar (provar) toda a matéria articulada253.
A presunção de inocência é outra garantia necessária à ampla defesa,
conforme previsto em nossa CRFB/88 e na Declaração Universal dos Direitos do
Homem da ONU, de 1948254, assim como já visto no Pacto de São José da Costa
Rica e no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Na perspectiva do julgador, a ampla defesa traz grandes responsabilidades. Se
a parte argui determinado fato, prova ou elemento jurídico para afastar a sua
condenação ou sustentar a sua tese petitória, é dever do magistrado considerá-la na
sentença, enfrentando-a de forma lógico-jurídica, seja para confirmar ou infirmar a
tese posta. Neste sentido também vem se consolidando na jurisprudência255 pátria.

253
Nesse sentido, NUNES, Dierle José Coelho. Ob. cit., p. 95.
254
“Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
255
Para tanto, vale destacar as seguintes decisões:
“APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO QUALIFICADO - PROCESSO PENAL - OMISSÃO DO JULGADOR
QUANTO À TESE DEFENSIVA APRESENTADA EM ALEGAÇÕES FINAIS - NULIDADE ABSOLUTA
- CERCEAMENTO DE DEFESA.
01. A não-apreciação pelo Juiz, na sentença, de tese oferecida pela defesa em alegações finais
constitui causa de nulidade absoluta. 02. A motivação das decisões judiciais é preceito constitucional,
119

Por isso que a norma do art. 93 inciso IX da CRFB/88 (obrigação de motivação


das decisões) é um consectário lógico do princípio da ampla defesa.
Como salienta Luiz Guilherme Marinoni256, não há como negar que a garantia
da ampla defesa e do contraditório estão “contidos” no “direito de defesa”, considerado
mais abrangente, no qual se atribui às partes a possibilidade de influenciar a formação
do convencimento do juiz, mediante alegações, requerimento de provas, participação
na sua produção, consideração sobre os seus resultados, etc. Todavia, embora
contido em um “conceito” mais amplo, os dois princípios apresentam sentidos
complementares.
Assim, o princípio do contraditório compreende uma expressão “técnico-
jurídica” da participação democrática de ambas as partes no processo, seja por meio
de alegações, produção de provas ou interposição de recursos, o que implica na
legitimação do poder jurisdicional; enquanto à ampla defesa, entende-se como “o
conteúdo de defesa necessário para que o réu possa se opor à pretensão de tutela
do direito (à sentença de procedência) e à utilização de meio executivo inadequado
ou excessivamente gravoso”257.
Além dos meios que se possam usar para comprovar o fato alegado, é
elemento insofismável da ampla defesa o direito ao duplo grau de jurisdição, ou seja,
o direito à revisão da decisão que lhe foi desfavorável.
Vale mais uma vez lembrar ambos os tratados internacionais recebidos no
Brasil em 1992, que em seus artigos 8o e 14 expressamente salientam o direito de a
parte recorrer da decisão que lhe condenou para juiz ou tribunal superior.
Tribunal superior significa remeter o caso para outro colegiado que não aquele
próprio que o teria condenado, do contrário não seria em nada superior, mas igual.

além do que, analisar, ainda que seja para refutar as teses defensivas, caracteriza corolário natural do
princípio da ampla defesa” (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Processo - 10024122755473001.
Relator: Rubens Gabriel Soares - Sexta Câmara Criminal. Belo Horizonte, 02 dez. 2013) e, também,
“PENAL - PROCESSO PENAL - TRÁFICO DE DROGA E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO -
NULIDADE DA SENTENÇA - PRELIMINAR DE OFÍCIO - NECESSIDADE - AUSÊNCIA DE ANÁLISE
DE TESE DEFENSIVA - VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO.
1 É nula a sentença que não examina todas as teses da defesa sustentadas nas alegações finais. 2. A
omissão importa em cerceamento de defesa e ofensa ao princípio do devido processo legal. 3.
Preliminar ex officio. V.V. Não se anula sentença, por ausência de análise de tese defensiva, quando
devidamente fundamentada (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Processo - 0009307-
08.2014.8.13.0015. Relator: Pedro Vergara - Quinta Câmara Criminal. Belo Horizonte, 20 jul. 201515).
256
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.
257
Ob. cit., 310.
120

Veja que não é diferente o conteúdo da ampla defesa para o processo penal
ou o administrativo, pois impõe a “realização efetiva dessa participação, sob pena de
nulidade, se e quando prejudicial ao acusado” 258. Realizando-se por meio da “defesa
técnica, da autodefesa da defesa efetiva e por qualquer meio de prova hábil a
demonstrar a inocência do acusado” 259.
Na essência integra o devido processo legal, compreendido pelo respeito aos
princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa como cláusulas de
garantia do cidadão frente ao Estado, buscando-se um “processo justo e equitativo,
único caminho para a imposição da sanção de natureza penal”260 .
Já Fredie Didier Jr. conclui que devido ao “desenvolvimento da dimensão
substancial/material do contraditório, “pode-se dizer que eles se fundiram, formando
uma amálgama de um único direito fundamental. A ampla defesa corresponde ao
aspeto substancial do princípio do contraditório”261.
Frente ao todo exposto, acredita-se possível concluir quais são os requisitos
mínimos de todo e qualquer processo no Brasil em que haja litigante e acusados em
geral.

4.9 Conclusão do Capítulo: Requisitos mínimos de um Processo conforme


CRFB/88

Como se vê, atualmente o processo não é mais compreendido, pela ciência do


direito, como um instrumento de Poder do Estado para dar provimento jurisdicional ou
administrativo e realizar política social, mas sim e principalmente como um
procedimento que tem de ser realizar em contraditório pelas partes, no qual todos os
sujeitos isonômicos do processo – especialmente autor, réu e julgador – devem agir
visando garantir, em boa fé, os direitos e garantias fundamentais do homem, o
cumprimento do contraditório e o alcance da ampla defesa, com todos os meios e
recursos a ela inerentes.

258
PACELLI, Eugênio. Ob. cit., p. 45.
259
Ob. cit., p. 47.
260
Ob. cit., p. 44.
261
DIDIER JUNIOR, Fredie. Ob. cit., p. 89.
121

Em que pese existirem pequenas divergências doutrinárias referentes à melhor


categorização do Processo 262 , há grande consenso quanto ao mínimo que um
processo deve possuir para atender às normas constitucionais pátrias. Na verdade,
como visto em capítulo anterior, a CRFB/88 não quis deixar dúvidas quanto aos
comandos processuais a serem seguidos pelos legisladores, administradores e
julgadores.
Para começar, se está em um Estado de Direito (legalidade), que se proclama
República (governo de todos, publicidade) Democrática (o povo exerce o poder,
dialética processual), onde os fundamentos são a dignidade da pessoa humana e a
solidariedade (boa fé e confiança legítima), tendo como princípios a igualdade
(isonomia processual, contraditório) e a liberdade (presunção de inocência).
Dentre os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos ressaltam a mãe
dos princípios processuais, o do devido processo legal, assim como os seus dois
consectários lógicos inevitáveis, o contraditório e a ampla defesa. O interesse
público 263 somente será atendido pelos mandatários do Estado brasileiro se tais
garantias individuais forem atendidas, respeitadas, mantidas em seus processos
decisórios264.
Assim, e de tudo o que se tem refletido na doutrina e na jurisprudência, pode-
se, portanto, concluir que no atual Estado Democrático de Direito brasileiro, o mínimo
que um processo deve seguir para alcançar atendimento aos princípios
constitucionais é:

262
Antônio Scarance Fernandes elenca as discussões doutrinárias quanto ao que seria efetivamente
um processo, apresentando as diferentes visões de Fazzalari, Dinamarco, Araújo Cintra, Grinover,
Watanabe: se procedimento realizado em contraditório, ou se procedimento animado pela relação
jurídico processual (FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 36-37).
263
Não há nada mais correto e claro do que o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre
o tema, brilhantemente exposto em seu Curso de Direito Administrativo (2015, p. 60 a 63):
“É que na verdade o interesse público […] nada mais é do que a dimensão pública dos interesses
individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade […]. Pois bem,
é este ultimo interesse o que nomeamos de interesse público. Não é portanto de forma alguma um
interesse constituído autonomamente, dissociado do interesse das partes e, pois, passível de ser
tomado como categoria jurídica que possa ser erigida irrelatamente aos interesses individuais, pois,
em fim de contas, ele nada mais é que uma faceta dos interesses dos indivíduos: aquela que se
manifesta enquanto estes – inevitavelmente membros de um corpo social – comparecem em tal
qualidade”. “Donde, o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto
dos interesses dos indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros
da Sociedade e pelo simples fato de o serem”. (ob. Cit. p. 61 e 62)
264
Marçal Justen Filho igualmente assim ensina em seu curso, em que se “reconhece a supremacia
dos direitos fundamentais e a consagração dos procedimentos democráticos de formação e
manifestação da vontade estatal (ob. Cit. p. 159 e 160).
122

a. Quanto ao aspecto organizacional, há necessidade de três sujeitos, no


mínimo, integrando a relação processual:
i. aquele que pede/acusa (normalmente denominado de parte autora);
ii. o que se defende (normalmente denominado de parte ré); e
iii. o que, independente e imparcialmente, tem a incumbência de administrar
os trâmites processuais e dar o provimento final (normalmente denominado
de julgador);

b. Quanto ao aspecto processual, na perspectiva das partes litigantes:


i. os sujeitos da relação processual têm o direito de ser citados, notificados e
intimados de todos os atos processuais, desde sua instauração até o seu
encerramento;
ii. as partes autora e ré têm o direito de aduzir suas pretensões e defesas de
forma paritária;
iii. as partes têm o direito à defesa técnica, assim como de defenderem seus
interesses de forma ampla;
iv. as partes autora e ré têm o direito de reagir e responder aos atos
processuais que lhes forem desfavoráveis;
v. as partes têm o direito de realizar, simetricamente, todas as provas
necessárias para confirmar ou infirmar as alegação deduzidas;
vi. as partes têm o direito de acompanhar a prova solicitada e a ser produzida
pela outra parte, indicando assistentes técnicos e formulando quesitos;
vii. as partes têm o direito de serem ouvidas paritariamente pelo julgador;
viii. as partes têm o direito de influir simetricamente na convicção do julgador;
ix. as partes têm o direito de que as decisões sejam motivadas de modo a
representar uma “síntese” do contraditório (tese e antítese) exercido pelas
partes;
x. as partes têm o direito ao duplo grau de jurisdição.

c. Na perspectiva do Estado-julgador, para atender ao devido processo legal esse


deve exercer duas precípuas funções no curso do processo:

i. durante a fase de instauração da lide e de instrução: garantir o efetivo


exercício do contraditório, em igualdade de condições entre as partes,
123

assim como viabilizar a ampla defesa, dentro dos trâmites e prazos


processuais;
ii. durante as fases decisórias: decidir motivando com base nos argumentos e
provas extraídos do processo, e aplicando a norma jurídica compatível com
o caso.

Como efeito, os processos no TCU que tiverem a possibilidade de alcançar o


patrimônio e os direitos de qualquer pessoa devem respeitar o devido processo legal,
contraditório e ampla defesa. Conforme defendido nessa tese, têm que seguir os itens
acima enumerados, posto serem o mínimo que um processo necessita possuir para
ser coerente com as normas constitucionais.
O próximo capítulo terá a incumbência de confrontar a (i) estrutura orgânica e
o processo do TCU, como posto pela Lei n. 8.443/92 e seu Regimento respectivo, (ii)
com os pressupostos do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Caso se identifique que os referidos normativos infraconstitucionais não
buscaram adequadamente os seus fundamentos de validade na CRFB/88, propor-se-
á como devem conformar-se suas organizações e processos.
124

5 INCOMPATIBILIDADE DA ORGANIZAÇÃO E DO PROCESSO NO TCU COM A


CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Como visto no Capítulo 3, a organização dos Tribunais de Contas e, mais


especificamente, no TCU, delimitado pela Lei n.8.443/92 e seu regimento, pode ser
assim descrito:

i) No início de biênio o Plenário do TCU sorteia qual Ministro será a partir dali
responsável por qual área governamental;
ii) O mesmo Ministro sorteado será, durante no mínimo dois anos, responsável por
iniciar as fiscalizações, as auditorias, as instaurações dos processos de
Tomada de Contas Especial, e suas respectivas instruções e elaboração de
voto para os julgamentos;
iii) Para que o Ministro responsável exerça bem seu papel durante todas estas
etapas, ele poderá contar com apoio de secretarias de controle externo;
iv) Apenas na hipótese de haver interposição do recurso de reexame ou de
reconsideração, depois do crivo de admissibilidade, pelo mesmo Ministro, é que
poderá ser sorteado outro Relator.

O processo é igualmente pobre, desprovido de maiores mecanismos


garantidores dos direitos e garantias individuais, já que:

i) O Ministro Relator, sorteado para fiscalizar determinada área governamental


para aquele biênio, aprova a delimitação das unidades jurisdicionadas e
respectivos dispêndios a serem fiscalizados e auditados.
ii) As respectivas secretarias de controle externo, por meio de seus servidores,
realizam a fiscalização e auditoria, encaminhando ao Ministro Relator suas
análises e sugestões de providências;
iii) O Ministro Relator avalia tais análises e sugestões de providências,
elaborando um voto com a proposta ao Colegiado (Câmara ou Plenário) sobre as
providências a serem tomadas, que podem ter os seguintes conteúdos e
desfechos, caso aprovadas pelo Plenário:
1) Arquivamento dos autos por inexistência de irregularidades;
2) Continuação das fiscalizações, com seu aprofundamento, caso
haja identificado indícios de irregularidades;
125

3) Determinações à administração pública em face das


irregularidades identificadas e no voto arguidas;
4) Declaração de o Relator haver identificado graves irregularidades
que causaram prejuízo ao erário. Como efeito, o Relator vota para
converter os autos em tomada de contas especial para citar os
responsáveis para pagamento dos valores correspondentes às
sanções naquele momento aplicadas, ou a apresentação pelos
responsáveis de defesa no prazo de quinze dias, sob pena de
trânsito em julgado perante o Tribunal de Contas;

iv) Se o responsável, já constituído pelo TCU em débito, decide defender-se, o


processo tramitará assim:
1) O valor do débito fica suspenso, até nova decisão;
2) Sua defesa é escrita, e deve ser apresentada ao mesmo Ministro
Relator;
3) O Ministro Relator encaminha a defesa escrita para a mesma
secretaria de controle externo que elaborou a fiscalização,
auditoria e as análises e proposições;
4) A referida secretaria de controle externo analisa a defesa e
elabora nova proposta por escrito ao Relator, no sentido de: ou
rejeitar, total ou parcialmente, a defesa do responsável ou aceitá-
la.
5) O Ministro Relator, tendo recebido a análise e sugestão de
proposta de sua secretaria de controle externo, elabora o seu voto,
que pode ser no sentido de manter a condenação do responsável
por ele anteriormente sustentada no Colegiado (Câmara ou
Plenário), ou vota pela alteração de sua decisão, total ou
parcialmente.
6) Este voto é remetido ao Colegiado (Câmara ou Plenário) para
confirmar a condenação ou para alterá-la.
7) Durante a sessão do Colegiado (Câmara ou Plenário), antes da
leitura do voto pelo Relator, é dado à parte o direito de sustentar
oralmente suas razões pelo prazo máximo de 15 minutos.
126

8) O Ministério Público presente pode se pronunciar sobre as


questões tratadas.
9) Os Ministros do Colegiado (Câmara ou Plenário) votam.
10) Se a parte condenada não concorda, pode recorrer por escrito, no
prazo de quinze dias.

Sendo assim, por meio da Lei Orgânica mencionada, verifica-se que a sua
estrutura organizacional e o processo de formação de suas decisões condenatórias e
fiscalizatórias são correspondentes a um processo verticalizado, que concentra
suas decisões no plano orgânico-estatal, e que não consegue valorizar argumentos e
fatos apresentados pelos envolvidos.
Confrontando as conclusões dos Capítulos 2, 3 e 4, podem-se identificar
importantes não conformidades com a CRFB/88, em especial com os princípios do
devido processo legal e do contraditório.

5.1 Inconstitucionalidade: a mesma autoridade julgadora é a responsável por


fiscalizar, instaurar, instruir e decidir

O primeiro grande problema é o de que aquele mesmo órgão que fiscaliza,


também acusa e depois instrui o processo contra um cidadão, analisa seus
esclarecimentos e defesas, administra o material probatório e, ao fim, decide,
elaborando o voto que influirá decisivamente na decisão colegiada.
O colegiado que decide pela condenação pós-fiscalização encaminha ao
mesmo anterior Relator a condução da convertida Tomada de Contas Especial, o qual
novamente irá instruir o processo, analisar as defesas e por fim, novamente, elaborar
o voto que retornará ao mesmo colegiado para confirmar ou não a sua mesma decisão
anterior de condenação.
Quando os mesmos órgãos do TCU que instauram de ofício os processos, é
evidente que o fazem formulando uma hipótese e depois acabam por se ver na
necessidade de buscar os elementos e indícios que irão comprová-la. É o que se
identificou no capítulo anterior como Modelo Inquisitório.
127

5.2 Inconstitucionalidade: ausência de partes independentes no processo

Outra relevante nulidade é a completa ausência de partes nos processos.


Partes no sentido imposto pelo princípio do devido processo legal e do contraditório.
Como se verificou, due process of law e contraditório impõem que haja ao menos três
sujeitos processuais: o que acusa, o que se defende e aquele que independente e
imparcialmente garantirá que o acusador e o defensor dialoguem simetricamente, com
paridade de armas, para ao final poder isentamente decidir.
Nos processos perante o TCU, o acusado está sozinho, dialogando com aquele
que o acusa e que em seguida o irá condenar. Se o acusado defende que o acusador
está absolutamente errado, ele está na verdade dizendo que o seu julgador estava
equivocado quando o acusou (difícil paradoxo psíquico-emocional). Veja que o
processo já começa contra o acusado por uma tese sustentada pelo acusador e ao
mesmo tempo pelo seu julgador, e pior, esta tese de acusação e de julgamento foi
sustentada perante um colegiado que já a avalizou265.
Impossível em um processo como este o alcance do contraditório, por mais
bem intencionados e bem preparados que sejam os seus julgadores266.
Para reforçar ainda mais a inconstitucionalidade da Lei Orgânica do TCU, tem-
se que tanto os artigos 73 e 130 da CRFB/88 preveem o papel do Ministério Público
junto ao TCU, que deveria exercer as funções descritas nos artigos 127 a 129 da
CRFB/88, naquilo obviamente que for compatível.
Não obstante preciso designo constitucional, a Lei n. 8.443/92 simplesmente
retira de tal relevante órgão suas potencialidades como parte fiscalizadora,
investigadora e propositora de ações visando a defesa da ordem jurídica nacional.
O mesmo ocorre com a figura do Auditor, mencionado na Constituição e não
tratado com adequação pela legislação, colocando-o na posição meramente de
substituição aos Ministros, quando poderia exercer papel judicante relevante como
expressamente indicado no art. 73.

265
E a imprensa logo em seguida publicou (para os casos de repercussão Municipal, Estadual ou
Nacional).
266
Ver o Capítulo 4, em que se demonstra as limitações humanas para conseguir escolher
racionalmente, salvo haver o democrático diálogo processual, em absoluta paridade de argumentos e
gestão de provas, com terceiro não envolvido emocionalmente.
128

5.3 Inconstitucionalidade: gestão da prova exclusivamente no poder do


acusador/julgador

O terceiro problema é a ausência de gestão da prova pelo acusado, posto não


haver:

1) acompanhamento pelo acusado do levantamento probatório feito pelo seu


acusador;
2) indicação de assistente técnico e formulação de quesitos;
3) produção de prova pericial;
4) produção de prova testemunhal;
5) interrogatório do acusador e nem do acusado;
6) depoimento de testemunhas e esclarecimentos orais em audiência dos
técnicos envolvidos.

Na verdade, a única oportunidade que o acusado possui é apresentar sua


defesa por escrito com os documentos que compreende necessários para superar os
argumentos da acusação/julgador. Inclusive todas as provas possíveis também são
produzidas unilateralmente pelo acusado e/ou pela acusação/julgador, e sempre
escritas267.
Como efeito, os acusados dependem sempre do espírito dialético e da boa
vontade do seu acusador/julgador. Se isto acontece, ele tem chance de reverter a sua
condenação. Mas somente se isto efetivamente e de maneira casual ocorrer.
Exatamente para superar esse modelo processual, em que os direitos de uma
pessoa dependem substancialmente da boa vontade de um único órgão, é que nossa
civilização criou o due process of law e a Tripartição dos Poderes.

267
O Art. 162 do Regimento Interno do TCU é expresso neste sentido, segundo o qual “As provas que
a parte quiser produzir perante o Tribunal devem sempre ser apresentadas de forma documental,
mesmo as declarações pessoais de terceiros”, seguido pelos parágrafos § 1º e 2º, respectivamente
“São inadmissíveis no processo provas obtidas por meios ilícitos” “O relator, em decisão fundamentada,
negará a juntada de provas ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.
129

5.4 Inconstitucionalidade: ausência de recurso para órgão superior imparcial

Há ainda a situação de os recursos previstos serem decididos pelo mesmo


órgão que condenou o acusado. Como visto, é necessário que a revisão da
condenação se dê por órgão independente e imparcial, não aderente e nem
formulador da tese original da condenação.
A previsão do art. 5o de garantir aos litigantes e acusados em geral o
contraditório e a ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes, impõe o duplo
grau de jurisdição, que somente poderá ser alcançado caso novo grupo de julgadores
avaliem a decisão proferida por distintas pessoas.
Isso é reforçado por meio dos tratados internacionais recebidos pela ordem
jurídica nacional, como visto nesse trabalho.

5.5 Nulidade das decisões do TCU: consequências da existência das


inconstitucionalidades

A consequência na prática dessa situação perante os Tribunais de Contas é a


de que suas decisões condenatórias, por mais importantes que sejam, violam sempre
direitos e garantias fundamentais positivados em nossa Constituição. Como efeito,
suas decisões são nulas, e acabam sendo remetidas ao controle pelo Poder
Judiciário268.
No Poder Judiciário os juízes, cumprindo as regras do devido processo legal,
contraditório e ampla defesa, acabam por se ver na obrigação de rediscutir o que foi
tratado anos a fio no Tribunal de Contas, pois as partes podem dialeticamente, com
paridade de armas, apresentar suas teses, provando-as, tudo perante um órgão real
e finalmente imparcial.
Tem-se com isto grande perda de tempo, insegurança jurídica e desperdício de
dinheiro público e privado, sem contar as inúmeras injustiças que podem ser causadas
ao longo de anos de espera do indivíduo para que seja ao final inocentado, ou da
sociedade para que o malfeitor seja condenado.

268
Como demonstrado nos Capítulo 2 e 4 do presente trabalho, há inúmeras ações e decisões judiciais
discutindo a ausência de garantia ao contraditório e à ampla defesa aos condenados pelos Tribunais
de Contas.
130

Não se pode mais permitir tamanho desrespeito à ordem jurídico-constitucional


brasileira.
O mais impressionante dessas circunstâncias é que não há medidas
profiláticas ou paliativas suficientes que possam ajudar a evitar a inexorável nulidade
das decisões condenatórias do TCU (e assim com os demais estaduais e municipais),
pois toda a sua estrutura se conforma como Tribunal Inquisitorial, com papel
preponderante dos julgadores nas medidas fiscalizatórias, acusatórias e decisórias.
Não será prevendo em seu Regimento a possiblidade de a parte acusada
apresentar prova pericial, por exemplo, que conseguirá superar as
inconstitucionalidades apontadas. Igualmente não será permitindo uma audiência
para ouvir o acusado, que se furtará à nulidade processual.
A organização, os Ministros, os membros do MP, os servidores, as secretarias
de fiscalização, os órgãos administrativos do TCU formam um único bloco, coeso,
auto protetor, corporativo. Os mesmos analistas de controle externo que realizaram a
auditoria podem ser chamados para assessorar o Relator em processo por ele já
auditado. A carreira é a mesma, assim como os colegiados de Ministros somente
citam a parte quando eles e seus assessores já expuseram em um voto a tese pela
qual compreenderam gravíssimas aquelas irregularidades apontadas.
Por isso, infelizmente, não há meios de se ajustar uma norma ou outra do
Regimento Interno e da Lei Orgânica, deve-se pensar o Tribunal de Contas dentro do
seu contexto na CRFB/88, completa e sistematicamente cotejada.

5.6 Conclusão do capítulo

Se o Constituinte brasileiro entregou tamanhas competências aos Tribunais de


Contas, incluindo aquelas do inciso II do art. 71, como cidadãos, aplicadores do Direito
e juristas não se pode permitir que os desacertos da Lei n. 8.443/92 perdurem, bem
como das leis dos demais Tribunais de Contas estaduais e municipais. É urgente que
duas coisas ocorram:

a) o Congresso Nacional (e legislativos estaduais e municipais) promulgue nova


lei orgânica para o TCU, organizando-o adequadamente para o exercício de
suas funções, bem como instrumentalizando-o com um processo que
corresponda aos princípios constitucionais; e
131

b) por meio da faculdade que a Constituição lhe entregou, os Tribunais de Contas


elaborem compatíveis regimentos internos, organizando-os adequadamente
para o exercício de suas funções, bem como instrumentalizando-os com um
processo que corresponda aos princípios constitucionais.

O próximo capítulo terá a incumbência de indicar como os Tribunais de Contas


devem ser organizados para que alcancem efetivamente correspondência à ordem
jurídico-constitucional brasileira, aproveitando, ao máximo, as suas estruturas já
existentes.
132

6 DA ORGANIZAÇÃO E DO PROCESSO NECESSÁRIOS AOS TRIBUNAIS DE


CONTAS PARA ALCANCE DE SUAS COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS

Para que o sistema jurídico-constitucional brasileiro seja respeitado é


necessário que os provimentos dos Tribunais de Contas que apliquem sanções a
indivíduos sejam realizados a partir do devido processo legal, respeitando o
contraditório e a ampla defesa, como demonstrado nesse trabalho.
De acordo com o marco legal existente atualmente no Brasil, isso não é
alcançado, pois tais Cortes de Contas, salientando o TCU, foram instrumentalizadas
por meio de leis (Lei n. 8.443/92 no caso do TCU) para manejar procedimentos
correspondentes ao inquisitorial, completamente distantes do paradigma do Estado
Democrático de Direito e das normas do art. 5o da CRFB/88.
Conforme concluído no capítulo 4.6 e no capítulo 5 desse trabalho, é
necessário que um processo como os decorrentes de julgamento de contas e
aplicação de sanções pelo TCU (assim como pelos demais Tribunais de Contas)
atendam determinados pressupostos mínimos, sob pena de seus provimentos serem
nulos.
Como efeito, considerando a estrutura orgânica contida nos artigos 71 e 73 da
CRFB/88, cumulados com os artigos 96 e 130, todos coerentes com as demais
normas constitucionais, em especial as dos artigos 1o e 5o, demonstra-se abaixo quais
são os critérios, estruturas, organização e processos que o TCU deverá minimamente
possuir para que suas decisões sejam compatíveis com a CRFB/88.

6.1 Os sujeitos processuais

Um processo que alcance ao devido processo legal, contraditório e ampla


defesa deve possuir no mínimo três sujeitos processuais:

1) o que acusa;
2) o que se defende; e
3) o que garante o contraditório simétrico entre eles e ao final decide com quem
está a razão e o direito.
133

É tão evidente isto que não precisa de maiores esforços hermenêuticos para
reconhecer que tal parâmetro serve para todos os processos em que o resultado pode
interferir no direito de alguma pessoa, basta realizar um cotejo entre os incisos LIV e
LV, do art. 5º:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido


processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes; (BRASIL, 1988).

Como demonstrado no curso dessa tese e já reconhecido pela melhor doutrina


e jurisprudência, até mesmo para os processos administrativos a CRFB/88 garantiu o
devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, com todos os meios e
recursos a eles inerentes. A CRFB/88 não fez qualquer distinção entre processos
jurisdicionais e os administrativos para fins das referidas garantias. Se nossa Magna
Carta não o fez, não cabe ao legislador fazê-lo, muito ao menos aos aplicadores do
direito.
Independentemente, também se verificou neste trabalho que aos Tribunais de
Contas foram entregues duas distintas competências, jurisdicional para as hipóteses
previstas no inciso II do art. 71, e a administrativa para aquelas dos demais incisos do
mesmo.
Ademais, cumpre lembrar que o TCU exerce dois papéis relevantes para a
legalidade, legitimidade e economicidade dos gastos públicos: o controle prévio
(quando fiscaliza e faz determinações à administração pública para modificar atos
administrativos) e o a posteriori (quando anula atos administrativos, aplica sanções e
condena em ressarcimento os responsáveis).
Se tais Cortes de Contas exercem atividades distintas, é razoável que se
organizem de forma diferente para cada uma destas atividades, em especial porque
para a hipótese da função jurisdicional (julgamento de contas) não há possibilidade
de revisão pelo poder judiciário269, sendo a última instância onde a pessoa acusada
poderá arguir, produzir a sua prova e contraprova, confrontar a tese da acusação e
exercer ampla defesa.
A CRFB/88 previu os seguintes agentes públicos para o TCU:

269
Salvo, obviamente, haver violação exatamente aos princípios do devido processo legal, ampla
defesa e contraditório, como demonstrado no Capítulo 2 deste trabalho.
134

a) 9 Ministros, com as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos,


vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (art. 73
da CRFB/88);
b) 4 270 Auditores, com as mesmas garantias e impedimentos das de juiz de
Tribunal Regional Federal (art. 73, parágrafo 4o, da CRFB/88);
c) 7 membros do Ministério Público (art. 73, parágrafo 2o, da CRFB/88);
d) 25 271 Secretarias de Controle Externo, denominados na CRFB, art. 73, de
quadro próprio do TCU de pessoal; e ainda 27 Secretarias administrativas.
Ambas secretarias somadas devem ser compostas por cerca de dois
servidores públicos federais, como plano de cargos previsto em lei própria.

Atualmente todos estão juntos atuando na mesma direção, como um órgão


integrado: fiscalizar, auditar, instaurar os processos, analisar e se posicionarem
quanto às defesas escritas, dar veredictos e/ou pareceres conclusivos. O efeito real
disto é o de que todos servem, para a Teoria do Processo, com um único sujeito
processual.
O segundo, e último, sujeito processual é o responsável fiscalizado, auditado e
acusado272. Para viabilizar o devido processo legal, os agentes públicos previstos na
CRFB/88 e na legislação devem ser mais bem aproveitados, nos moldes
sinteticamente assim indicados:

a) ao Ministério Público de Contas incumbiria exercer o papel de acusação, a


partir de prévia fiscalização de contas;
b) as Secretarias de Controle Externo, com seus auditores federais (ex-analistas
de controle externo), seriam órgãos de fiscalização e auditoria, exatamente nos
moldes como hoje atuam, contudo servindo como apoio não aos Ministros
Relatores, mas sim aos representantes do Ministério Público de Contas;
c) aos Auditores/Ministros Substitutos incumbiriam atribuições preparatórias para
eventuais determinações às entidades fiscalizadas e para aceitação da
instauração da tomada de contas especial. Para tanto, poderiam receber apoio

270
O número de quatro é determinado pela Lei n. 12.776/2012.
271
O número de servidores é também decorrente da Lei n. 10.356/2001 e da Lei n.11950/2009 que,
em seu art. 2º, parágrafo único, previu em 2001 o seguinte quantitativo de cargos efetivos da carreira
de especialista do Tribunal de Contas da União, Analista de Controle Externo (1.096); Técnico de
Controle Externo (994); Auxiliar de Controle Externo (30), totalizando 2.120 cargos.
272
Na realidade, o Regimento Interno prevê a possibilidade de um interessado participar do processo,
quase como um assistente, conforme previsão do seu art.146.
135

dos servidores federais (atualmente ocupantes de cargos no TCU) que


fortaleceriam os seus gabinetes;
d) aos Ministros incumbiriam os exercícios das atividades propriamente ditas de
julgar e de impulsionar o processo de tomada de contas especial instaurado a
partir de ação proposta pelo MPC, garantindo que as partes obtivessem
efetivamente o contraditório. Igualmente aos Auditores, os Ministros seriam
assessorados por servidores próprios em seus gabinetes, a fim de garantir
apoio às complexas decisões que haverão de tomar;
e) as Câmaras serviriam para julgar colegiadamente em primeira instância as
demandas do MPC a elas levadas por meio de voto do Ministro Relator;
f) ao Plenário incumbiria precipuamente exercer competência de revisão das
decisões das Câmaras e em alguns aspectos dos Auditores (Ministros
Relatores);
g) Os responsáveis seriam considerados como acusados do MPC, cabendo-lhes
a ampla defesa;
h) Terceiros interessados poderiam ser aceitos, seja na posição de fortalecer a
acusação ou na de apoiar a defesa, em similar estrutura atualmente admitida.

A fim de mais bem delinear tanto a organização como o processo apto a serem
adotados no TCU (assim como em todos os demais Tribunais de Contas), os capítulos
abaixo serão o exercício do mais bem acabado trâmite processual e manejo dos atuais
agentes públicos ligados à função de controle externo. Espera-se com isto
efetivamente contribuir para a melhora de tão relevante função do Estado brasileiro.

6.2 Ministério Público de Contas e as funções de fiscalização e acusação

Atualmente, como visto, as fiscalizações a cargo do TCU são por ele


273
denominadas: as de iniciativa própria (onde os seus Ministros iniciam a
fiscalização); as representações 274 (seus próprios auditores, analistas de controle,

273
Na forma do art. 230, do Regimento Interno, “O Tribunal, no exercício de suas atribuições, poderá
realizar, por iniciativa própria, fiscalizações nos órgãos e entidades sob sua jurisdição, com vistas a
verificar a legalidade, a economicidade, a legitimidade, a eficiência, a eficácia e a efetividade de atos,
contratos e fatos administrativos”.
274
Segundo o art. 237, do Regimento Interno, têm legitimidade para representar ao Tribunal de Contas
da União o Ministério Público da União; os órgãos de controle interno; os senadores da República,
deputados federais, estaduais e distritais, juízes, servidores públicos e outras autoridades que
136

unidades técnicas, os representantes do Ministério Público, deputados e senadores);


as denúncias275 (qualquer cidadão); e as de iniciativa do Congresso276.
A medida mais direta e clara de ser adotada é atribuir ao Ministério Público de
Contas (MPC), com apoio das Secretarias de Controle Externo, a incumbência de
exercer tais funções. Ou seja, incumbiria ao MPC inspecionar e auditar a
administração pública direta e indireta da União; fiscalizar a aplicação de recursos da
União repassados às demais entidades federativas e as contas nacionais das
empresas supranacionais; fiscalizar as contas prestadas pelas pessoas abrangidas
no parágrafo único do art. 70 da CRFB/88.
O MPC poderá fazê-lo por meio de parte dos servidores atualmente lotados
nas secretarias de controle externo do TCU, ficando em prédios distintos e destacados
dos Ministros e dos Auditores.
Isto porque, materialmente, a execução de todas estas fiscalizações é exercida
pelos servidores federais277 aprovados em concurso público, cujo cargo recebe da lei
a denominação de analistas de controle externo278, atualmente de auditor federal de
controle externo.
Não há necessidade de restringir aqueles atualmente aptos a representar e a
denunciar. O que deveria ser modificado é a quem devem fazê-lo: os membros do
MPC seriam os destinatários das representações e denúncias, com a atribuição de
analisar seus fundamentos e, caso os aceitassem, assumiriam a acusação. Os que

comuniquem a ocorrência de irregularidades de que tenham conhecimento em virtude do cargo que


ocupem; os Tribunais de Contas dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, as câmaras
municipais e os ministérios públicos estaduais; as equipes de inspeção ou de auditoria; as unidades
técnicas do Tribunal; e outros órgãos, entidades ou pessoas que detenham essa prerrogativa por força
de lei específica.
275
Conforme art. 234, do Regimento Interno do TCU, “qualquer cidadão, partido político, associação
ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de
Contas da União”.
276
Nos termos do art. 232 do Regimento Interno, são competentes para solicitar ao Tribunal a prestação
de informações e a realização de auditorias e inspeções o Presidente do Senado Federal; o Presidente
da Câmara dos Deputados; e presidentes de comissões do Congresso Nacional, do Senado Federal
ou da Câmara dos Deputados, quando por aquelas aprovadas.
277
Segundo previsão regimental, na forma do art. 245, ao servidor que exerce função específica de
controle externo, quando credenciado pelo Presidente do Tribunal, ou por delegação deste, pelos
dirigentes das unidades técnicas da Secretaria, para desempenhar funções de fiscalização, são
asseguradas as prerrogativas de livre ingresso em órgãos e entidades sujeitos à jurisdição do Tribunal;
acesso a todos os processos, documentos e informações necessários à realização de seu trabalho e
competência para requerer, por escrito, aos responsáveis pelos órgãos e entidades, os documentos e
informações desejados.
278
Na verdade houve alteração recente de sua denominação, conforme previsão da Lei n. 11.950 em
seu art. 4º “os cargos de Analista de Controle Externo e Técnico de Controle Externo da Carreira de
Especialista do Tribunal de Contas da União passam a ter, respectivamente, a denominação de Auditor
Federal de Controle Externo e Técnico Federal de Controle Externo”.
137

denunciaram poderiam servir como terceiro interessado. Na hipótese de o MPC não


aceitar a denúncia, então se pode criar previsão de denúncia própria pelo cidadão ou
pela entidade pública prejudicada.
Para definir quais órgãos e contratos devem ser fiscalizados, o procedimento
atual deve ser alterado 279 , para passar tal responsabilidade aos Auditores 280
(comumente denominados de Ministros-Substitutos), a partir de proposta
encaminhada pelo Procurador Geral do MPC.

6.2.1 Procedimento de fiscalização e auditoria pelo MPC

Os servidores denominados de analistas de controle externo (atualmente


chamados de auditores federais) exerceriam exatamente suas funções atuais, ocorre
que ao invés de serem geridos pelos Ministros e de apresentarem a estes os seus
pareceres/análises, passariam a remeter o resultado de suas fiscalizações aos
representantes do MPC.
Recebendo as análises técnicas, o MPC procederia à sua avaliação fático-
jurídica. Caso este identificasse existência de algum ato ilegal ou irregular, procederia
à elaboração de uma petição, cujo nome poderia ser representação, que conteria as
seguintes possibilidades:

a) pedido para que fosse realizada determinação à Administração Pública281, para


o exato cumprimento da lei;

279
Atualmente, o plano de fiscalização é estabelecido pelo Presidente do TCU, a partir de dados
recebidos dos Ministros Relatores, conforme art. 244 do Regimento Interno, segundo o qual, “as
auditorias, acompanhamentos e monitoramentos obedecerão a plano de fiscalização elaborado pela
Presidência, em consulta com os relatores das listas de unidades jurisdicionadas, e aprovado pelo
Plenário em sessão de caráter reservado”. Em complemento dispõe o §1º e § 2º, respectivamente, que
“a periodicidade do plano de fiscalização, bem como os critérios e procedimentos para sua elaboração,
serão estabelecidos em ato próprio do Tribunal”; “os levantamentos e inspeções serão realizados por
determinação do Plenário, da câmara, do relator [...]”.
280
A CRFB/88 os denomina de Auditor, entregando as mesmas atribuições de judicatura dos juízes
dos Tribunais Regionais Federais, nos termos do art. 73 § 4º. Contudo são normalmente chamados de
Ministro substituto.
281
Atualmente, denomina-se este tipo de fiscalização como “auditorias de conformidade” que, segundo
o próprio TCU explica, “objetivam verificar se os atos administrativos estão sendo praticados pelo órgão
ou entidade com a observância da legislação e da jurisprudência que regulamentam a matéria. O
Tribunal, nesses casos, analisa os aspectos contábeis, financeiros, orçamentários e patrimoniais do
respectivo ato de gestão e, se identificada desconformidade, faz determinações corretivas, fixando
prazo para o seu cumprimento” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório Anual de
Atividades: 2015. Secretaria-Geral da Presidência: Brasília, 2016, p. 24). Tal competência do TCU
está prevista no art. 71, inciso IX, da CRFB/88.
138

b) Pedido para que, em face da alegada ilegalidade identificada, fosse aplicada


sanção ao gestor282;
c) pedido para que a fiscalização pudesse vir a ser convertida em Tomada de
Contas Especial, com posterior cálculo de suposto dano a ser ressarcido e
sugestão de quais sanções a serem aplicadas ser de responsabilidade do
MPC;
d) pedidos cautelares necessários para garantir a utilidade do processo a ser
instaurado.

6.2.2 MPC e as Tomadas de Contas ordinárias dos responsáveis por valores públicos

Além das fiscalizações, outra importante função do TCU é receber as


prestações de contas de qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que
utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou
pelos quais a União responda (art. 70 da CRFB/88).
Como visto no Capítulo 2 deste trabalho, estas pessoas são obrigadas a prestar
suas contas. Se não prestadas, imediatamente deve ser encaminhado o processo
para conversão em Tomada de Contas Especial, posto pressupor clara violação do
gestor público quanto à referida obrigação. Contudo, se as contas forem prestadas
mas houver dúvida se o foram de forma correta e/ou integralmente, então aquele que
possui a dúvida deve arguir e provar a sua falta ou insuficiência.
Portanto, também aqui se verifica importante entregar ao MPC esta função de
receber as contas prestadas e as analisar, reconhecendo a sua adequação ou,
contrariamente, recusando-as, hipótese em que representaria contra o gestor pedindo
ao Auditor que autorizasse a Ação de Tomada de Contas Especial, como abaixo se
explicará.
Percebam que com estes critérios acima indicados o processo consegue uma
primeira verdadeira parte, que com base em suas próprias avaliações formará uma
tese sobre a ocorrência de ato jurídico praticado com ilegalidade ou irregularidade. O
MPC continuará apenas como parte, ao longo de todo o resto do processo, em
nenhum momento lhe sendo dado o poder de julgar qualquer das pessoas que acusa.

282
O art. 71, inciso VIII, da CRFB/88 prevê a competência do TCU para “aplicar aos responsáveis, em
caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que
estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário”.
139

6.3 Os Auditores do TCU e suas funções de decidir sobre as atividades de


fiscalização

Os pedidos do MPC seriam, portanto, encaminhados aos Auditores (Ministro-


Substituto) do TCU para decisão, que igualmente ficariam em prédios distintos com
servidores próprios, não mais identificados com aqueles servidores que assessorarão
os membros do MPC283.

6.3.1 Procedimentos para esclarecimentos e determinações à administração pública


quanto a eventuais irregularidades

O Auditor sorteado, recebendo tais representações do MPC, deveria analisá-las:

a. para os pedidos de determinação à administração pública:


i. recebido o pedido do MPC, o Auditor deveria instaurar portanto o processo
de fiscalização, intimando a administração pública respectiva para, se
quiser, defender os atos questionados pelo MPC ou reconhecer a
necessidade de tomar as providências requeridas pelo MPC;
ii. Recebendo por escrito a manifestação da administração pública, o Auditor
deverá dar vistas ao MPC na hipótese de terem sido juntados documentos
novos;
iii. Posteriormente, deverá o Auditor, junto com suas equipes técnicas de
apoio, levantar os pontos controversos e agendar audiência de conciliação
e instrução entre o MPC e os gestores responsáveis pelas unidades
fiscalizadas;
iv. Depois da audiência o Auditor decidiria.
v. Desta decisão caberia recurso ao órgão colegiado de Auditores, na hipótese
de ter sido favorável à administração pública;
vi. Da decisão determinando à administração pública a adoção de atos visando
ao atendimento da lei, caberia recurso aos Ministros do TCU.

283
Seria inclusive ideal que as carreiras fossem distintas, desde a entrada por concurso como pela
progressão. Obviamente, deveria haver uma transição, podendo dar aos atuais analistas (auditores
federais) de controle externo a opção por qual quadro se deslocassem, os lotados com atribuições
próprias de fiscalização juntos ao MPC, ou os lotados como assessores especialistas dos Auditores.
140

6.3.2 Procedimentos para tomada de contas e aplicação de sanções

Para os pedidos de rejeição de contas; de conversão da fiscalização em


Tomada de Contas Especial; ou os de aplicação de sanção aos responsáveis, os
auditores poderiam:

a) intimar os responsáveis para que apresentem suas razões;


b) assim que recebidas, analisar os fundamentos de ambos os pedidos, o
do MPC e os da defesa;
c) se entender, em cognição sumária, que há indícios que merecem ser
processados, instruídos e julgados, autorizar ao MPC a propositura da ação de
tomada de contas especial ou a ação de aplicação de sanção, a partir dos fatos,
cálculos e fundamentos jurídicos a serem escolhidos pelo próprio MPC. Nesta fase
os Auditores não discutiriam ou analisariam cálculos e valores, apenas se teriam
indícios suficientes para permitir a instauração de uma TCE;
d) Se entender que não há indícios mínimos para a TCE, o MPC poderá
recorrer para o colegiado de auditores;
e) Eventuais medidas urgentes e cautelares a serem tomadas, os
auditores, mediante pedido do MPC, poderiam adotar.

Com esta estrutura, os Auditores passam a ser responsáveis pelas atividades


administrativas de fiscalização do TCU, decidindo ao final se as mesmas foram
praticadas legal, legítima e economicamente. Caso a entidade administrativa discorde
da decisão proferida pelos Auditores, como sugerido acima, poderia recorrer aos
Ministros do TCU.
Acredita-se que esta mesma sistemática pode servir para todas as demais
funções administrativas do TCU, com exceção das que aplicarem sanções a pessoas,
bem como dos pareceres ao Congresso Nacional sobre as contas da Presidência da
República e os atos de apreciação das aposentadorias e admissões, estas últimas a
serem analisadas em capítulo próprio.
Se os Auditores do TCU autorizarem a ser convertida a fiscalização já iniciada
em Tomada de Contas Especial, conforme item “b”, então incumbiria ao MPC adotar
as medidas visando elaborar a Ação de Tomada de Contas Especial em que acusará
os réus/responsáveis, delimitando a culpabilidade de cada qual, apontando o cálculo
do prejuízo ao erário e pedindo a aplicação de determinada sanção.
141

Nesta ação seria incumbência do MPC instruir com todos os documentos que
corroboram sua pretensão, bem como fazer as solicitações de provas compreendidas
como necessárias, incluindo o depoimento pessoal dos responsáveis, de testemunhas
e produção de provas periciais. A ação em questão deverá ser proposta perante o
TCU, cuja competência de julgamento seria dos seus Ministros.

6.4 Os Ministros do TCU e sua função de julgar as contas e de última instância


das fiscalizações das entidades governamentais

Como previsto na CRFB/88, os Ministros do TCU devem ser brasileiros com


notório conhecimento para o exercício de tamanho mister (art. 73, incisos III e IV).
Seis Ministros são escolhidos pelo Congresso Nacional, dois pela Presidência da
República e um dentre os representantes do MPC. Têm estatura e prerrogativas dos
Ministros do STJ, e de seus eventuais atos ilegais, violadores de direito líquido e certo,
somente o Supremo Tribunal Federal possui competência para, em sede de mandado
de segurança, julgar originalmente.
Garantir aos Ministros condições para que com isenção e imparcialidade
possam utilizar seus conhecimentos em prol das missões constitucionais do TCU é
algo desejável para a nação.
Dentro da estrutura indicada, os Ministros não agiriam de ofício instaurando
investigações, fiscalizações, auditorias e muito ao menos processo de Tomada de
Contas Especial. Assim como julgadores que são, conforme norma constitucional,
devem aguardar ser acionados pelo órgão responsável pela fiscalização de contas, o
Ministério Público de Contas (MPC).

6.4.1 Dos procedimentos para a ação de Tomada de Contas Especial

Tendo o MPC proposto ação de Tomada de Contas Especial perante o TCU,


haveria sua distribuição automática, mediante sorteio, da ação para algum dos
Ministros, recebendo a denominação de Ministro Relator.
O Ministro Relator determinaria à Secretaria do Gabinete que expedisse o
mandado de citação dos acusados (denominando-se réu ou responsável), com cópia
da inicial elaborada pelo MPC e facultando a cópia na íntegra dos autos. A ação
delimitaria os limites da acusação. Neste momento, ou em qualquer outro no curso do
142

processo, poderia também o Ministro Relator decidir sobre eventuais pedidos


cautelares solicitados pelo MPC.
Dentro do prazo regimental, os acusados, por meio de advogados regularmente
constituídos, apresentariam suas defesas por escrito, podendo refutar integralmente
a acusação do MPC, requerendo o que de direito, incluindo produção de provas
periciais e testemunhais.
O Ministro Relator, na hipótese de haver algum documento novo juntado pela
defesa, daria vista ao MPC para se manifestar. Qualquer elemento novo juntado aos
autos deve ser dado vista à contraparte.
Nos moldes do processo civil (o qual poderá servir como fonte de elaboração
de muitas das normas processuais a serem construídas para o TCU), o Ministro
Relator, por meio de sua assessoria, após despacho saneador, levantaria quais os
pontos controvertidos da lide instaurada, intimando as partes para indicarem quais
provas pretendem produzir.
Recebidos os pedidos de prova, o Relator marcaria uma audiência de
conciliação e instrução, já determinando que cada uma das partes traga as suas
testemunhas, incluindo a possibilidade de testemunha técnica.
Nesta audiência seria dada oportunidade para ouvir as partes – MPC e os réus
–, sobre as acusações contidas e delimitadas quando da ação inicial. Haveria
possibilidade igualmente de se identificar necessidade de extensão probatória, com
realização, por exemplo de perícia 284 . Esta decisão, do próprio Relator, deve ser
decorrente de diálogo entre todas as partes processuais: MPC, acusados, Ministro
relator. Dela caberá recurso de agravo à Câmara.
Na hipótese de perícia, as partes formulariam seus quesitos e apresentariam
assistentes técnicos, como efeito o Ministro Relator designaria especialista imparcial
para a sua realização. Durante os trabalhos os assistentes técnicos poderiam
acompanhar a perícia, complementando eventuais quesitos compreendidos como
necessários. Posteriormente aos trabalhos periciais, as partes poderiam apresentar
suas razões finais.
Com as provas e a dialética processual esgotadas, o Ministro Relator, com
apoio de sua assessoria, decidiria, motivado com base nos argumentos e provas

284
Boa parte das matérias tratadas no Tribunal de Contas da União são altamente técnicas, como da
ciência da engenharia, economia, contabilidade, matemática financeira etc.
143

contidos no processo, sem poder utilizar-se de fundamento não discutido entre e com
as partes, conforme visto no Capítulo 4 deste trabalho.
Se houvesse identificação de qualquer elemento não trazido pelas partes que
sirva para determinar sua convicção, deveria ser dado às partes o direito de sobre
elas se pronunciarem, em dado prazo igual para ambas.
Dessa decisão terminativa poderia a parte interessada recorrer à Câmara, cuja
composição seria de três Ministros, conforme sugestão abaixo.

6.5 Das Câmaras de Julgamento no TCU

Inicialmente seria interessante ampliar para três as Câmaras do TCU, ao invés


das atuais duas, com possibilidade de realizarem julgamentos públicos três vezes por
semana.
O recurso deve ter processamento similar aos procedimentos recursais dos
Tribunais Regionais Federais, garantindo ao máximo o exercício do contraditório. Na
sessão de julgamento, as partes por meio de seus procuradores poderiam sustentar
oralmente e, ao final, o Colegiado decidir, por meio de voto apresentado aos presentes
no ato do julgamento.
A parte irresignada com a decisão (MPC ou Acusado), caso demonstrasse
haver conflito de jurisprudência entre as decisões das Câmaras ou dessa com o
Plenário, teria direito de recorrer ao Plenário, que sortearia novo Ministro Relator,
funcionando a partir deste momento como os recursos nos Tribunais Superiores.
As Câmaras também seriam incumbidas de julgar os recursos apresentados
contra as decisões interlocutoras dos Ministros Relatores a elas integrantes.
A decisão final, transitada em julgado, com este rito processual e organização
acompanharia os requisitos estabelecidos nos direitos e garantias fundamentais,
entregando, finalmente, validade às importantes decisões do TCU.
Com o trânsito em julgado, caso houvesse condenação e não pagamento pelo
condenado, o MPC cuidaria das medidas necessárias para encaminhamento à AGU
do Título Executivo correspondente para ingresso de execução em Juízo Federal,
tendo agora sim um título perfeito, correspondente ao devido processo legal
constitucional.
144

6.6 O Plenário do TCU

Atualmente, o Plenário tem praticamente a totalidade das competências


entregues ao TCU, como visto. De acordo com a organização que se sugere, ele ao
final praticamente manterá a maior parte de tais competências, retirando de si, não
obstante, as responsabilidades de impulsionar as fiscalizações e decidir sobre
questões iniciais nas atividades de fiscalização e tomada de contas.

6.6.1 Procedimentos recursais quanto às fiscalizações e Tomadas de Contas

Todas as decisões finais sobre as fiscalizações e tomadas de contas poderão


chegar ao Plenário caso haja recurso da parte que se sentir irresignada com as
decisões dos Auditores e dos Ministros Relatores por meio de suas Câmaras,
demonstrada ocorrência de conflito jurisprudencial dentro do TCU.
Quanto à atividade de fiscalização, se o MPC pedir ao Auditor Relator para o
TCU fazer determinação à entidade ou órgão da administração pública referente ao
suposto necessário cumprimento de lei, e este assim o deferir, poderá tal entidade
recorrer ao Plenário, que sorteará Ministro Relator para, em conjunto com sua
assessoria, analisar os fundamentos de ambas as partes – MPC e entidade da
Administração Pública -, realizar audiência de conciliação e instrução, elaborar voto e
ao final o Plenário decidiria pelo deferimento ou não do pedido do MPC.
Quanto à Tomada de Contas, depois de a Câmara julgar em segundo grau de
jurisdição o processo em contraditório instaurado a pedido do MPC, caso qualquer
das partes prejudicadas com a decisão queira recorrer, o fará para o Plenário, em
circunstâncias similares às permitidas para o Recurso Especial perante o STJ. Será
sorteado novo Relator que, após apoio de alguma das secretarias especializadas do
Tribunal, elaborará o seu voto e o submeterá ao Plenário.
Além destas atividades, deveriam ficar sob o manto do Plenário as seguintes
demais atribuições.

6.6.2 Da apreciação das contas da Presidência


145

Anualmente o Plenário do TCU envia ao Congresso Nacional sua apreciação e


opinião quanto às contas da Presidência da República, para que na Casa Legislativa
possam tais contas serem julgadas.
Esta é uma atribuição puramente decorrente da função administrativa
consultiva, preparatória do processo (procedimento realizado em contraditório) que se
inicia verdadeiramente quando de sua instauração no Congresso Nacional.
Não obstante é atividade de grande repercussão jurídica e política, a merecer
ser cuidada pelo colegiado de nove Ministros do TCU. Como efeito, a sugestão é a de
que sejam mantidos os procedimentos atualmente adotados no Regimento e na Lei
Orgânica.

6.6.3 Das respostas às consultas e à elaboração de Súmulas

Como se sabe, o TCU tem respondido a consultas sobre dúvida suscitada na


aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes à matéria de sua
competência, quando questionado por determinadas autoridades previstas no art. 264
de seu Regimento Interno.
É interessante notar que tais consultas não podem versar sobre caso concreto
e suas respostas terão caráter “normativo e constitui prejulgamento da tese, mas não
do fato ou caso concreto”, conforme o mesmo art. 264 do Regimento Interno.
São parecidas com as uniformizações de jurisprudência por meio de Súmulas,
cuja competência também é a do Plenário285, e que podem ser mantidas as mesmas
organizações e procedimentos atualmente previstas, sem qualquer prejuízo aos
princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

6.6.4 Fixação dos Coeficientes de Participações Constitucionais

285
Além disto, o TCU vem exercendo um importante papel de normalizar a atuação da Administração
Pública, visando auxiliá-la na busca da profissionalização e eficiência, conforme seus relatórios anuais
indicam:
“Nesse aspecto, o Tribunal assume papel fundamental, na medida em que atua na prevenção,
detecção, correção e punição da fraude e do desvio na aplicação de recursos federais, bem como
contribui para a transparência e melhoria da gestão e do desempenho da Administração Pública”
(BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório Anual de Atividades: 2015. Secretaria-Geral da
Presidência: Brasília, 2016. Disponível em: <
http://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A8182A153D422DA0153E2950D8064
E1>. Acesso em: 01 dez. 2016).
146

Quanto à competência de fixação dos coeficientes de participações


constitucionais, como as dos Estados e Municípios286, tendo em vista serem objetivas,
decorrentes de critérios vinculados à Lei e a partir de dados matemáticos, podem
continuar como competência do Plenário nos moldes como atualmente se estabelece,
sem risco de violar garantias fundamentais.

6.7 Os Prestadores de Contas

Todas as pessoas que usam, arrecadam, guardam, recebem e administram


valores e bens públicos têm obrigação de prestar contas. Isto significa que a cada
exercício deve este responsável sistematizar todas as informações e documentos
necessários à prestação das suas contas. Se o fizer, ele cumpre sua obrigação de
prestá-las.
Contudo, pode ocorrer que aquele que as analisa não concordar com parte ou
a totalidade das contas prestadas. Nesta hipótese, o analista de contas deve
sistematizar os fundamentos, informações e documentos que justificam não concordar
com as contas prestadas.
Perceba que o ônus da prova neste momento se inverte. Se em um primeiro
momento é obrigação do responsável prestar contas, portanto é seu o ônus probante;
no segundo momento, com as contas já apresentadas, estas podem ser recusadas,
incumbindo aquele que as recusam provar suas razões.
Por isto aquele responsável, que não apresentou suas contas, deve
imediatamente sofrer a Ação de Tomada de Contas Especial, com todas as
cominações legais decorrentes de sua gravíssima omissão.
Já aquela pessoa que as apresentou, mas as teve recusada, deve lhe ser dado
a presunção de que as teria prestado, incumbindo ao que o acusa de não as ter
prestado o ônus de assim provar a sua convicção negativa. Este é o jogo correto do
ponto de vista do Estado Democrático, do devido processo legal e do contraditório.

286
Nesse sentido, dispõe o art. 290 do Regimento Interno:
“O Tribunal, até o último dia útil de cada exercício, fixará e publicará os coeficientes individuais de
participação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, no Fundo de Participação dos Estados
e do Distrito Federal (FPE), e no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), para vigorarem no
exercício subsequente”. E, em complemento, o seu parágrafo único fixa que “os coeficientes individuais
de participação serão calculados na forma e critérios fixados em lei e com base em dados constantes
da relação que deverá ser encaminhada ao Tribunal até 31 de outubro de cada ano pela Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”.
147

A análise sobre as contas apresentadas não pode ficar sobre aquele que o
julgará logo à frente, como visto. Assim, deve ser competência de quem poderá acusá-
lo: o Ministério Público.
Se o MPC compreender cabível, apresenta suas razões em cognição sumária
ao TCU, via Auditor Relator (Ministro Substituto), que intimará o responsável para
esclarecimentos. Ao fim decidirá se é caso de estender a fase probatória para uma
Ação de Tomada de Contas Especial ou se os esclarecimentos foram suficientes para
reconhecer como prestadas as contas.
A partir do momento em que o MPC acusar o cidadão pela não prestação total
ou parcial das contas, ao acusado será garantido todos os direitos para a ampla
defesa e para o contraditório, conforme visto acima.

6.8 Das entidades fiscalizadas

De acordo com o art. 71, incisos IV, V e VI da CRFB/88, é competência do TCU


fiscalizar as entidades da administração pública. O órgão apropriado para impulsionar
tal atividade, como visto, é o MPC, apoiado pelas Secretarias de Controle Externo,
que fiscalizariam anualmente as entidades, para identificar se estão aplicando bem
seus recursos e agindo de acordo com a lei 287 , tanto para orientar a função
administrativa como para perseguir a punição dos gestores que supostamente ajam
contrariamente à lei, legitimidade e economicidade.
As Secretarias de Controle Externo, de acordo com suas especialidades,
elaborariam os seus atuais achados de auditoria, apontando sugestões de
providências ao MPC. Este, por sua vez, intimaria a entidade fiscalizada para que,
desejando, pronunciasse-se, expeditamente, a fim de afastar eventual equívoco
cometido pela Secretaria.
Caso tal manifestação não fosse suficiente, o MPC representaria ao TCU –
Auditor Relator – sobre suas posições quanto à eventual descumprimento da lei. Se
os auditores, depois de ouvirem a entidade, compreendessem que assistiria razão ao
MPC, por meio de seu órgão colegiado (Câmara dos Auditores) expediriam decisão
de obrigação de fazer (tanto para ato administrativo como para contrato
administrativo) à entidade fiscalizada, indicando prazo limite. Se a entidade não

287
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório Anual de Atividades: 2015. Secretaria-Geral da
Presidência: Brasília, 2016.
148

concordasse, poderia recorrer ao Ministro Relator sorteado, que ouviria novamente as


razões da entidade e contrarrazões do MPC apresentadas, levando tal decisão a
alguma de suas Câmaras.
Entende-se que no âmbito de fiscalização das entidades governamentais,
como tal matéria envolve não a restrição de direitos e garantias fundamentais do ser
humano, mas sim atuação do Estado com o próprio Estado fiscalizando suas próprias
entidades, controle externo ao sistema de controle interno, não há necessidade de se
estabelecerem audiências e produções de provas como é exigido na hipótese de
Tomada de Contas Especial.
Por isto o procedimento acima proposto é mais simples, direto, com oitiva da
entidade administrativa fiscalizada pelo MPC, posteriormente pelo Auditor Relator e,
finalmente, caso não concordando, pelo Ministro Relator e julgamento pela Câmara
respectiva. Se ocorressem determinação de sustação de contrato administrativo,
como a CRFB/88 prevê, este ato deve ser realizado pelo Congresso Nacional, e
apenas por sua omissão, depois de 90 dias, poderá o TCU decidir a respeito.

6.9 O acusado de um modo geral

Não apenas aquele que usa, arrecada, guarda, gerencia e recebe recursos
públicos está submetido à jurisdição do Tribunal de Contas, conforme maciça
jurisprudência demonstrada no Capítulo 2 deste trabalho. Aqueles em conluio com os
primeiros podem ser responsabilizados e sancionados pelas Cortes de Contas.
Para estes, mais forte ainda deve ser a garantia ao devido processo legal,
contraditório e ampla defesa quando acusados pelo MPC.
Portanto, todas os requisitos mínimos acima indicados devem lhe ser
garantidos, como presunção de inocência, direito à ampla argumentação, à produção
da prova testemunhal, documental e pericial.
Se o MPC não conseguir provar que este acusado teria agido efetivamente em
conluio com o responsável por bens e valores públicos, não pode haver condenação.
A culpabilidade do responsável público é diferente da do particular que se
relaciona com a Administração Pública, pois aquele não pode agir com negligência e
149

imperícia graves, causando dano ao erário, já este somente responderia caso sua
conduta fosse dirigida intencional e ilegalmente à violação do interesse público288.

6.10 Organização e Processo de Cortes de Contas no Direito Comparado

Não se compreende adequado buscar introduzir no Brasil um sistema


emprestado de outras nações, mesmo porque a CRFB/88 e nossa ordem jurídica
possui suas próprias características e que devem ser por nós respeitadas.
Não obstante, importante mencionar que a indicação ora realizada está
compatível com experiências de importantes nações civilizadas.
Conforme se identificará, Portugal, Itália, Espanha, França e Inglaterra
possuem sistemas em que não se misturam a figura do fiscalizador com a do
acusador, e muito ao menos desses com a do instrutor e a do julgador.

6.10.1 Linhas gerais da organização e processo no Tribunal de Contas de Portugal

A Constituição Portuguesa289, por meio do art. 214, estabelece competência


jurisdicional ao seu Tribunal de Contas, nos seguintes termos:

O Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das


despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-
lhe, competindo-lhe, nomeadamente: a) Dar parecer sobre a Conta Geral do
Estado, incluindo a da segurança social; b) Dar parecer sobre as contas das
Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira; c) Efectivar a responsabilidade
por infracções financeiras, nos termos da lei; d) Exercer as demais
competências que lhe forem atribuídas por lei. (PORTUGAL, 1976)

Em Portugal, o art. 89 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de


Contas português (Lei n. 98 de 26 de agosto de 1997)290 é expresso em determinar

288
Esta diferenciação entre as condutas do responsável público e o particular de boa-fé quem com o
Estado, por exemplo, contrata, foi mais detalhadamente tratada em artigo do autor publicado na Revista
de Direito Administrativo (SALLES, Alexandre Aroeira. Ação de improbidade, controle externo e
economicidade: as diferentes consequências jurídicas entre a atuação administrativa ilegal e a
antieconômica (ou irregular). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 271, p. 223-250,
abr. 2016).
289
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa (1976). Disponível em:
<http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>. Acesso em:
09 dez. 2016.
290
PORTUGAL. Lei n. 98 de 26 de agosto de 1997. Lei de Organização e Processo do Tribunal de
Contas. Disponível em:
150

que a competência para requerer a instauração do processo jurisdicional de contas é


do Ministério Público, a quem impõe o dever de indicar os fatos, os fundamentos de
direito, os pedidos, os cálculos e as provas que possui e as que pretende produzir,
limitadas a no máximo dez testemunhas (art. 90).
Os Juízes de contas estão proibidos de proporem a ação, conforme norma do
art. 27. É interessante notar que se os órgãos internos de auditoria, no curso de
alguma fiscalização corrente, identificarem possibilidade de haver responsabilização
pessoal de algum sujeito de direitos, são obrigados a encaminhar o processo para o
Ministério Público, como prevê o seu art. 57, a fim de esse averiguar se é hipótese de
exercer o direito de ação, como indicado no art.89 acima.
Caso o Ministério Público apresente o pedido, incumbirá ao Juiz avaliar se o
recebe ou não. Recebendo, é determinada a citação do demandado, com prazo de 30
dias para apresentar a sua contestação, sendo obrigado se fazer representar por
advogado, por si constituído ou dativo.
Quando da contestação, o acusado poderá requerer todas as provas em
direito permitidas, salientando o limite de dez testemunhas, nos mesmos moldes que
o Ministério Público.
No prazo de trinta dias é realizada audiência, não sendo obrigatória a
participação do acusado. Nela, o Juiz deverá garantir que o contraditório entre as
partes se efetive, conforme expressamente determinado no art. 93 da referida Lei,
sendo garantido o depoimento pessoal das partes e alegações orais pelo Ministério
Público e pelo Advogado, de no máximo uma hora cada, com réplicas de 20 minutos.
Encerrada a audiência, o Juiz tem o prazo de 30 dias para sentenciar,
incumbindo considerar todos os argumentos e provas produzidos pelas partes,
conforme determina o art. 94. Da decisão é possível recurso, a ser encaminhado para
o Presidente do Tribunal, que sorteia novo Juiz relator para, depois de garantir
novamente o contraditório, votar e remeter ao colegiado em Sessão (artigos 95 a 100).
O Plenário somente apreciaria eventual recurso extraordinário, na hipótese de conflito
de decisões entre as Sessões e a fim de consolidar jurisprudência.
Perceba-se como em Portugal o respeito aos direitos e garantias individuais
quanto ao contraditório e à ampla defesa é verdadeiramente atendido pela
Organização e pelo Processo em sua Corte de Contas.

<http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=432&tabela=leis>. Acesso em: 09 dez.


2016.
151

6.10.2 Linhas gerais da organização e processo no Tribunal de Contas da Itália

O mesmo ocorre na Itália, em que para começar é reconhecido a sua função


jurisdicional, de julgar (giudica) as contas dos que usam recurso público, similar à
formulação brasileira, conforme previsto em sua Lei de 1934 (Regio Decreto 12.D. 12
Iuglio 1934, n. 1214)291.
Pelas regras aprimoradas ao longo de dois séculos, tanto pela legislação
como pela jurisprudência, o Ministério Público italiano recebeu a protagonismo, como
o titular da ação de contas, não podendo renunciar a esse importante papel 292, sendo
a ele indisponível tal dever-poder.

291
“Capo I - Attribuzioni in generale (giurisprudenza) 13. (art. 10 sostituito dall'art. 1, regio decreto 18
novembre 1923, n. 2441 e articoli 13 e 34, legge 14 agosto 1862, n. 800; art. 1, legge 11 luglio 1897, n.
256 modificato dall'art. 7, regio decreto-legge 18 giugno 1931, n. 788, art. 90, comma ottavo, regio
decreto 17 ottobre 1922, n. 1401; articoli 63, 81 e seguenti regio decreto 18 novembre 1923, n. 2440;
articoli 11, 18 e 19 legge 3 aprile 1933, n. 255.) - La Corte in conformità delle leggi e dei regolamenti:
fa il riscontro dei decreti reali; fa il riscontro delle spese dello Stato; vigila la riscossione delle pubbliche
entrate; fa il riscontro sui magazzini e depositi di materie e di merci di proprietà dello Stato, e sulle altre
gestioni patrimoniali indicate dalle leggi; fa il riscontro delle cauzioni degli agenti dello Stato che sono
obbligati a prestarle e vigila perché sia assicurata la regolarità della gestione degli agenti dello Stato, in
denaro e in materia; parifica il rendiconto generale consuntivo dell'amministrazione dello Stato e quelli
delle aziende a gestione autonoma soggette al suo riscontro, prima che siano presentati al Parlamento;
giudica i conti che debbono rendere tutti coloro che hanno maneggio di denaro o di valori dello Stato e
di altre pubbliche amministrazioni designate dalla legge; giudica sulle responsabilità per danni arrecati
all'erario da pubblici funzionari, retribuiti dallo Stato, nell'esercizio delle loro funzioni; giudica sui ricorsi
contro i provvedimenti amministrativi in materia di conti e di responsabilità, giusta le disposizioni delle
leggi speciali; giudica sugli appelli dalle decisioni dei Consigli di Prefettura sui conti dei Comuni, delle
Province, delle istituzioni di pubblica beneficenza; giudica sui ricorsi per rimborso di quote inesigibili di
imposte dirette, ai termini della legge di riscossione; giudica sui ricorsi in materia di pensione in tutto o
in parte a carico dello Stato o di altri enti designati dalla legge e sulle istanze tendenti a conseguire la
sentenza che tiene luogo del decreto di collocamento a riposo, ai termini dell'art. 174 del testo unico 21
febbraio 1895, n. 70 (25); giudica su tutti i reclami dei suoi impiegati (25/a); fa le sue proposte e dà
parere nella formazione degli atti e provvedimenti amministrativi indicati dalla legge” (ITALIA. Regio
Decreto 12 luglio 1934, n. 1214. Approvazione del testo unico delle leggi sulla Corte dei conti. Gazzetta
Ufficiale, Itália, 01 ago, 1934. Disponível em:
<http://presidenza.governo.it/USRI/magistrature/norme/RD_1214_1934_n.pdf, 1934>. Acesso em: 11
dez. 2016).
292
Nesse sentido, destaca-se Francesco Garri et al “È nozione di diritto comune che, per la tutela di
diritti che l'ordinamento ritiene di dover sottrarre alla disponibilità dei titolari, in relazione all'interesse di
natura pubblica, è prevista la figura del PM ed ove l'interesse pubblico abbia un massimo grado di
intensità è attribuito, nei termini che si vedranno, al PM un potere autonomo di agire; ove l'interesse
stesso sia meno intenso il PM à visto come intervento re necessario. Ed allora basterà richiamare i
principi affermati dalla giurisprudenza secondo cui il Procuratore generale è parte a difesa dell'
ordinamento nel quale si ricompongono gli interessi dell'erario globalmente inteso e le sue attribuzioni
sono rivolte alla tutela imparziale della buona gestione e non possono essere configurabili contrasti di
interesse tra azione del PM ed enti perché questi agisce nell'interesse obiettivo della legge, tant'è che,
trattandosi di materia non disponibile, egli non può rinunciare all'azione” (GARRI, Francesco et al. I
Giudizi Alla Corte Dei Conti: Reponsabilitá, Conti, Persioni. 4. ed. Milano: Giuffrè, 2007, p. 370).
152

O processo geral na Corte dei Conti respeita parâmetros do contraditório293 e


ampla defesa previstos no Codice di Procedura Civile italiano, a começar pelas regras
de interesse de agir, tanto para o acusador como para o acusado294.
Mudanças incluídas por meio da Leggere 453/1993 aumentaram o poder de
investigação do Ministério Público de contas, permitindo que exija a exibição e
sequestro de documentos, audiência pessoal do investigado, realização de perícias e
consultas técnicas, sendo garantido, não obstante, o direito de defesa durante a fase
de fiscalização295.
O processo de responsabilização pessoal recebe ainda mais as garantias
processuais individuais acima mencionadas. O ministério público é obrigado a indicar
para a Corte todos os dados necessários de delimitação claro da acusação que
formula, como a exposição dos fatos e como foram identificados, os sujeitos passivos
da demanda e seus graus de culpabilidade, as indicações dos meios de prova que
almeja se valer e os documentos com os quais fundamenta a ação proposta, pedidos
de audiência e de citação dos sujeitos passivos da demanda296. Isso se extrai tanto
da Lei de 1933 como do amadurecimento jurisprudencial ao longo do século passado.
Com a citação iniciam-se os efeitos processuais comuns, como a
litispendência, interrupção da prescrição e delimitação da lide, a qual deverão as
partes, incluindo o juiz, se aterem no curso de todo o processo297. A parte acusada
não é obrigada a se fazer constituir por advogado, sendo vedada utilizar-se da
Advocacia Pública.
Ademais, incumbe ao Ministério Público fornecer de maneira plena os
elementos de prova para corroborar sua ação, em face do caráter acusatório do

293
“E va tenuto presente (alla Corte dei Conti) che il principio del contradittorio (art. 101 c.p.c) si correla
sul piano costituzionale sia con la regola dell’eguaglianza (art. 3 Cost.) che con quella relative al diritto
di difesa ‘inviolabile in ogni strato e grado del giudizio’ (art. 24 Cost) e involge gli aspetti tecnici della
difesa e garantisce a ciascuno dei destinatari del provvedimento del giudice di poter influire sul
contenuto del medesimo (Ob. cit., p. 368). Para os italianos, assim como para os portugueses, é claro
e evidente que não há meios de o contraditório ser alcançado se o acusador for ao mesmo tempo o
julgador.
294
“La pacifica applicazione dell’art. 100 c.p.c. nei giudizi innanzi ala Corte dei Conti porta a richiedere
quella condizione dell’azione che è l’interesse ad agire, inteso come bisogno di tutela giurisdizionale
che emerge dall'affermazione contenuta nella domanda dei fatti costitutivi e dei fatti lesivi del diritto [...]
Anche la legittimazione, come titolarità attiva o passiva dell’azione, è necessaria, in quanto si possono
far valere innanzi ala Corte soltanto quei diritti che si affermano come propri e la cui titolarità passiva si
afferma in capo a colui contro il quale si propone la domanda” (Ob. cit., p. 367).
295
Ob. cit., p. 262.
296
Ob. cit., 508.
297
“La notifica dell’atto di citazione determina gli effetti processuali comuni della litispendenza con le
conseguenze in tema di perpetuatio iurisdictionis e quella sostanziale della interruzione della
prescrizione” (Ob. cit., p. 517).
153

procedimento na Corte de Contas italiana, garantidor do contraditório e da ampla


defesa:
Si premette che esattamente in giurisprudenza, superando passati salmi sul
potere sindacatorio, si è affermato che il P.M. ha il dovere istituzionale di
fornire in maniera piena ed esaustiva a sostegno ella propria azione e la
riforma della Corte dei Conti ha accentuato il carattere accusatorio del
procedimento giurisdizionale per dare effettività ai principi costituzionali del
contraddittorio e del diritto di difesa […] (GARRI, 2007, p. 530).

Durante as audiências, o Ministério Público deve falar primeiro, deixando


sempre a última palavra para a defesa, conforme nos noticia Garri remetendo à
jurisprudência recente italiana298.
Por fim, depois de as partes dialogarem tanto mediante o processo escrito
como em audiências, com as respectivas produções de prova, a Corte de Contas
decidirá, tendo o poder-dever (potere-dovere dos italianos) de qualificar exatamente
as discussões processuais, conforme também posicionamento jurisprudencial 299
prevalecente nesse país300.

6.10.3 Linhas gerais da organização e processo no Tribunal de Contas da França

Recentemente, no uso de suas atribuições regimentares, a Corte de Contas


francesa (Cour des Compte) expediu suas normas denominadas de normes
professionelles, sistematizando o que já se tinha como parâmetro processual para
apuração de responsabilidades de agentes públicos submetidos à sua jurisdição,
conforme o seu Code des Juridictions Financières301.

298
Ob. cit., 536.
299
Importante observar que o texto legal aplicável para a Corte dei Conti italiana é de 1934, claramente
insuficiente para atender ao significativo avanço doutrinário e jurisprudencial quanto à teoria do
processo que a Itália recebeu ao longo das décadas posteriores. Ao invés de eles manterem a aplicação
capenga de lei imprópria para seus valores e princípios, a Jurisprudência e a própria Corte dei Conti
foram ajustando seus procedimentos, resguardando os direitos ao contraditório e à ampla defesa dos
acusados em geral. Adotam para tanto as regras e princípios inscritos no seu código de processo civil,
fazendo inúmeras remissões às suas normas. É isso que se devia esperar de nossas Cortes de Contas.
300
Ob. cit., p. 573.
301
Como bem da cultura francesa, o referido Código é minucioso, e prevê as regras a serem cumpridas
perante o processo e organização da Corte de Contas francês (FRANÇA. Code des juridictions
financières. Disponível em: <
https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070249>. Acesso em: 11
jan. 2016).
154

Conforme se extrai de seus artigos II.31 a II.55, a competência para propor a


ação de responsabilização contra o acusado é do Ministério Público 302 , a quem
incumbe analisar os elementos recebidos do Tribunal que poderiam ensejar na
persecução estatal em relação ao responsável pelo gasto público.
É a acusação do Ministério Público que determina o âmbito do litígio que se
instaurará, com a individualização da suposta conduta irregular e indicação do
responsável 303 . As partes apresentam suas alegações, podendo comprovar pelos
meios necessários, incumbido ao juiz presidir a instrução com independência,
imparcialidade e neutralidade, seguindo as normas processuais próprias304. Ao final,
é obrigado a relatar todas as argumentações da acusação e suas respectivas
refutações da defesa, de modo a considerar as discussões havidas entre as partes305.
Esse relatório servirá para a audiência pública, em colegiado de magistrados
de contas, onde as partes poderão sustentar oralmente suas visões e direitos, sendo
devido ao Ministério Público iniciar. Caso qualquer magistrado presente ou qualquer
das partes entenda necessário novos elementos de prova, ou surja novo fato
relevante, poderá pedir a suspensão da audiência306.
Terminada a audiência pública, no mesmo dia ou em outro agendado, o
colegiado do Tribunal de Contas se reunirá para decidir, não podendo fazer parte da
sessão de decisão o juiz relator e nem o ministério público307.

302
“II.31 Le ministère public, exercé par le Procureur général près la Cour des comptes ou le procureur
financier près la chambre régionale ou territoriale des comptes, est le seul habilité à engager les
poursuites à l’encontre des comptables publics”.
303
“II.33. Le réquisitoire détermine le périmètre de l’instruction en indiquant la période concernée,
l’identité des comptables mis en cause et les faits présomptifs d’irrégularités”.
304
“II.36. Le magistrat rapporteur mène l’instruction en toute indépendance, impartialité et neutralité et
instruit à charge et à décharge, dans le respect des procédures fixées par le code des juridictions
financières.”
305
“II.44. Le magistrat rapporteur expose, pour chaque présomption de charge du réquisitoire, les
propositions argumentées de charge ou de décharge dans un rapport à fin d’arrêt ou de jugement
destiné à la formation délibérante. […]
II.46. Le rapport est rédigé de manière à permettre à la formation délibérante de décider, dans les
meilleures conditions possible, des suites juridictionnelles à donner aux présomptions de charges du
réquisitoire".
306
“II.56. L’audience publique comprend :- la présentation par le magistrat rapporteur de son rapport à
fin d’arrêt ou de jugement; - la présentation des conclusions écrites du ministère public, qui peuvent
être complétées oralement en tant que de besoin ; - les observations des parties à l’instance et de leurs
représentants.
II.57. Le président de la formation délibérante peut, de sa propre initiative ou à la demande d’une partie,
suspendre l’audience publique lorsqu’une nouvelle pièce est produite, un fait nouveau révélé ou un
argument inédit soulevé, si leur importance le justifie".
307
“II.58. Le délibéré a pour objet d’arrêter les décisions juridictionnelles de la Cour ou de la chambre
régionale ou territoriale des comptes.
II.59. Le président de séance organise le délibéré à l’issue de l’audience publique ou le renvoie à une
date ultérieure.
155

Da decisão colegiada das Câmaras regionais ou setoriais é possível recurso


ao Tribunal de Contas, e das decisões deste cabe recurso ao Conselho de Estado da
França.

6.10.4 Linhas gerais da organização e processo no Tribunal de Contas da Espanha

Na Espanha, seu Tribunal de Cuentas recebe delegação do Parlamento –


Cortes Generales – para realizar as fiscalizações pertinentes aos gastos públicos308.
Diferentemente dos demais países acima vistos, suas atribuições, em que pese
vastas, estão mais vinculadas ao órgão legislativo.
Podendo se utilizar de órgãos internos da administração pública, de entidades
privadas e de seus próprios analistas de controle, a Corte de Contas espanhola tem
o dever de elaborar relatório ao Parlamento, e para as assembleias legislativas das
comunidades autônomas, indicando suas conclusões, além de descrever os atos
irregulares encontrados, seus responsáveis e respectivos graus de culpabilidade,
além de quais as medidas necessárias de serem adotadas309.
O Tribunal de Cuentas possui competência para julgar os desvios
identificados na fiscalização de todos aqueles que usem, arrecadem, gerenciem ou
administrem bens e valores públicos, não podendo se furtar a tal papel, salvo se a
matéria identificada no curso da auditoria for de competência do Tribunal
Constitucional ou da corrente jurisdição administrativa, bem como envolver questões

II.60. La formation délibère à huis clos, en présence du greffier et sans la présence du magistrat
rapporteur et du représentant du ministère public.
II.61. Si un réviseur a été désigné, après le dépôt du rapport, parmi les membres de la formation
délibérante, il est chargé de la rédaction de l’arrêt ou du jugement. Prise de décisions
II.62. Les décisions sont prises selon les modalités fixées par le code des juridictions financières. En
cas de vote, elles le sont à la majorité des présents qui détiennent chacun une voix. Conformément au
principe d’invariabilité de la formation délibérante, seuls prennent part à la décision les membres ayant
assisté à l’intégralité de l’audience publique et du délibéré.
II.63. Le président note les décisions prises sur chacune des propositions. Les mentions, enregistrées
par le greffe, sont rédigées de manière à permettre le respect des décisions prises lors de la rédaction
de l’arrêt ou du jugement. Elles ne peuvent être modifiées que lors d’un nouveau délibéré.”
308
Conforme dispõe com clareza a Ley Orgánica 2/1982, del Tribunal de Cuentas (ESPANHA. Ley
Orgánica 2/1928 de 21 de maio de 1982. Disponível em: < http://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-
A-1982-11584> . Acesso em: 17 de nov. de 2016).
309
“Artículo doce. Uno. El resultado de la fiscalización se expondrá por medio de informes o memorias
ordinarias o extraordinarias y de mociones o notas que se elevarán a las Cortes Generales y se
publicarán en el «Boletín Oficial del Estado». Cuando la actividad fiscalizadora se refiera a las
Comunidades Autónomas o a Entidades que de ellas dependan, el Informe se remitirá, asimismo, a la
Asamblea Legislativa de la respectiva Comunidad y se publicará también en su «Boletín Oficial». Dos.
El Tribunal de Cuentas hará constar cuantas infracciones, abusos o prácticas irregulares haya
observado, con indicación de la responsabilidad en que, a su juicio, se hubiere incurrido y de las
medidas para exigirla.
156

como crimes, contravenções, cíveis, trabalhistas ou outras confiadas ao


conhecimento dos órgãos do Poder Judiciário310.
Além dos doze conselheiros de contas, com função de decisão, há também
os agentes responsáveis pela fiscalização e outros pelos procedimentos de
responsabilização que se fizerem necessários311. Depois de realizada a fiscalização
dos gastos públicos sobre determinado órgão ou pessoa, garantindo suas audiências
e recursos, é formulado um relatório encaminhado ao Parlamento e à denominada
Seccion de Enjuiciuamiento.
Se o procedimento administrativo realizado pelas referidas seções do Tribunal
identificarem a existência de elementos que possam levar à responsabilização de
alguma pessoa, física ou jurídica, isso deverá constar no relatório, indicando as suas
razões. A partir desse momento, apenas serão legítimos para iniciarem a
responsabilização definitiva destas pessoas supostamente responsáveis, o próprio
órgão ou entidade lesados, por meio de suas procuradorias jurídicas, ou o Ministério
Público312.
Com a citação do acusado, delimita-se a lide, estando o juiz vinculado às
argumentações e provas das partes. Caso depois das fases instrutórias o Juiz perceba
que há outros elementos além daqueles trazidos pelas partes que poderá servir para
formar o seu convencimento, deverá abrir vista para que as partes se pronunciem
sobre os mesmos313.

310
“Art. 15. Um. A acusação de contabilidade, como a jurisdição adequada do Tribunal de Contas, é
exercida sobre as contas para ser quem Aumento de pagamento, intervir, controlar, guardá-los, bens
manipulados ou usados, fundos ou efeitos públicas. Dois. A jurisdição de contabilidade se estende ao
âmbito de fundos públicos ou efeitos, bem como obrigações acessórias estabelecidas na gestão de
garantia. Artigo dezesseis anos. Não corresponde à contabilização jurisdição acusação de: a) As
questões atribuídas à competência do Tribunal Constitucional. b) As matérias sujeitas à jurisdição
administrativa. c) Os actos que constituam um crime ou contravenção. d) As questões cíveis,
trabalhistas ou outro confiada ao conhecimento dos órgãos do Poder Judiciário.”
311
Artículo diecinueve. Son órganos del Tribunal de Cuentas: a) El Presidente. b) El Pleno. c) La
Comisión de Gobierno. d) La Sección de Fiscalización. e) La Sección de Enjuiciamiento. f) Los
Consejeros de Cuentas. g) La Fiscalía. h) La Secretaría General.
312
Art. 57 da Ley 7/1988, 5 de abril. “1. Con arreglo a lo dispuesto en el artículo 47 de la Ley Orgánica
2/1982, la legitimación activa corresponderá, en todo caso, a la Administración o Entidad Pública
perjudicada, que podrá ejercer toda clase de pretensiones de responsabilidad contable ante el Tribunal
de Cuentas sin necesidad, en su caso, de declarar previamente lesivos los actos que impugne, y al
Ministerio Fiscal, que podrá ejercitar las pretensiones de aquella naturaleza que resulten procedentes.
Las restantes Entidades del sector público a que se refiere el artículo 4.º de la Ley Orgánica citada,
estarán legitimadas para el ejercicio de las pretensiones de responsabilidad contable que les competan,
con sujeción a las reglas por que cada una de ellas se rija. 2. Se considerarán legitimados pasivamente
los presuntos responsables directos o subsidiarios, sus causahabientes y cuantas personas se
consideren perjudicadas por el processo”.
313
Artigo 60 “1. La jurisdicción contable juzgará dentro del límite de las pretensiones formuladas por
las partes y de las alegaciones de las mismas. 2. No obstante, si el órgano de dicha jurisdicción, al
157

Dada a sentença, caberá recurso de apelação, que deverá seguir os trâmites


previstos no processo contencioso administrativo espanhol, ou o recurso de cassação,
que será julgado pela Sala do Contencioso-Administrativo do Tribunal Supremo
(Articulo 80 e 81 da Ley 7/1988).
A legislação processual contenciosa administrativa (Ley 29/1998) é enorme
protetora do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Os órgãos
julgadores estão sempre distantes daqueles que são legitimados ativos a instaurar um
processo, bem com daqueles legitimados passivos a responde-lo314.
Em que pese bastante complexo o sistema de controle externo espanhol,
pode-se afirmar que igualmente protege as garantias processuais individuais.

6.10.5 Linhas gerais sobre o órgão de auditoria Inglês

Na Inglaterra o sistema é bastante diferente dos países latinos acima vistos,


pois existe uma agência de auditoria própria (National Audit Office) que responde
diretamente à Câmara dos Comuns, em que pese suas auditorias serem
independentes e autônomas. Seu relatórios e recomendações são enviados para The
Commitee of Public Accounts e para outros comitês parlamentares, assim como para
departamentos públicos interessados315.
Os auditores são especializados em contabilidade, estatística, economia,
ciências sociais, finanças ou especialistas técnicos, tendo acesso a todos os órgãos
públicos ou entidades privadas que recebam recursos públicos, com missão principal
a de auxiliar no aperfeiçoamento da gestão.
No curso de suas auditorias, adotam os padrões internacionais, como se
fossem auditorias privadas. Ao final de seus trabalhos, emitem parecer tanto para o
órgão auditado como para o Parlamento, fazendo as recomendações que

dictar resolución, estimare que la cuestión sometida a su conocimiento pudiera no haber sido apreciada
debidamente por las partes por existir en apariencia otros motivos susceptibles de fundamentar la
pretensión de responsabilidad contable o su oposición, lo someterá a aquéllas mediante providencia
en que, advirtiendo que no se prejuzga el fallo definitivo, los expondrá y concederá a los interesados
un plazo común no superior a diez días para que formulen las alegaciones que estimen oportunas, con
suspensión, en su caso, del plazo para pronunciar la mencionada resolución”.
314
Cumpre remeter o leitor tanto à referida Ley como ao livro de Francisco Ruiz Risueño (RISUEÑO,
Francisco Ruiz. El processo contencioso-adminstrativo. 9. ed.Madrid: Colex, 2012).
315
REINO UNIDO. Local Audit and Accountability Act 2014. Disponível em:
<http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2014/2/pdfs/ukpga_20140002_en.pdf>. Acesso em: 09 dez.
2016.
158

compreenderem necessárias, visando sempre a melhor aplicação dos recursos


públicos (economicidade e eficiência).
Caso, durante a fiscalização, os auditores encontrem questões que indiquem
quaisquer despesas ou ações ilegais, possíveis ou reais, que levem a uma perda ou
deficiência na gestão dos recursos públicos, eles são obrigados a encaminhar tal
informação ao Secretário de Estado, à NHS England ou a seu superior dentro do
National Audit Office. O auditor deve ainda considerar a necessidade de um relatório
de interesse público no que diz respeito às questões referidas.
Consideram na Inglaterra, por meio do Local Audit and Accountability Act 2014
(Sessões 26 a 30), ser poderes e deveres (powers and duties) dos auditores
oportunizarem aos eleitores levantarem questões sobre as contas, decidindo sobre
tais questionamentos, bem como solicitar ao tribunal a declaração de que um item de
conta é contrário à lei e, caso seja desconsiderado pela autoridade competente o fato
supostamente ilícito, apresentar um pedido de revisão judicial.
Tem-se absoluta transparência e publicidade as auditoria realizadas, e caso
seja encontrado ato ilícito, os procedimentos jurisdicionais próprios de persecução
criminal e cível inglês entram em ação, com todos os requisitos próprios de um
processo acusatório.

6.11 Conclusão do capítulo

Não se espera aqui adotar qualquer um dos modelos acima referidos, não é
isso que se procurou na tese. O Brasil possui um sistema jurídico-constitucional
próprio, muito bem estruturado, que dá soluções apropriadas para a falta de
contraditório e ampla defesa perante os processos acusatórios nos Tribunais de
Contas.
Não se precisa fundar em experiências estrangeiras para fazer o que é
necessário para atender a CRFB/88. O problema nacional não é o de aperfeiçoar
modelos de controle, mas resolver as graves inconstitucionalidades existentes, com
ajustes no processo de funcionamento do sistema de controle externo, pois, como
visto, a CRFB/88 o previu de uma forma e as leis o estruturaram de outra.
Inobstante, conforme se verificou nas Nações Democráticas acima indicadas
(e poder-se-ia citar inúmeras outras), o que se conclui nessa tese é coerente com o
159

que se tem praticado lá fora. Garantir o contraditório é garantir o devido processo


legal, é respeitar o indivíduo e proteger os interesses públicos nacionais.
A CRFB/88 previu para o TCU a instituição do Ministério Público de Contas e a
do Auditor de Contas, colocou ambos em posições distintas entre si e da instituição
dos Ministros de Contas.
Se o Tribunal de Contas pretende exercer, com eficiência e validade, todos as
suas competências, seus deveres-poderes, é urgente que se organize e se
instrumentalize de um processo compatível com o devido processo legal, o
contraditório e a ampla defesa.
Caso não o faça, infelizmente suas decisões que aplicam sanções aos seus
fiscalizados continuarão passíveis de discussão e anulação junto ao Poder Judiciário,
aumentando desnecessariamente os custos desse e distanciando de se obter a
prestação daquele. Estará, ademais, violando suas obrigações públicas, bem como
prejudicando os direitos e garantias fundamentais, o que não é possível no Estado
Democrático de Direito pátrio.
160

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. As competências constitucionais da função de controle externo são extensas e


importantes, não podendo ser compreendidas como meras funções
administrativas.
2. Entre tais competências está a de decidir pela aplicação de sanções e
ressarcimento ao erário contra pessoas físicas e jurídicas que tenham
arrecadado, administrado, usado, gerido e alienado recursos e valores
públicos. Comumente denominada de jurisdição de contas.
3. Conforme jurisprudência predominante no STF, não cabe ao Poder Judiciário
rever o mérito das decisões sobre as contas de ditas pessoas.
4. A Constituição ainda entregou às decisões terminativas das Cortes de Contas
o poder de se constituírem em título executivo.
5. Como também previsto na CRFB/88 e vastamente reconhecido, tanto pela
jurisprudência nacional como pela doutrina, qualquer pessoa litigante, em
processos administrativos e judiciais, e acusados em geral tem o direito ao
contraditório e à ampla defesa. Igualmente, somente é possível a privação da
liberdade e dos bens de alguém por meio do devido processo legal.
6. Conforme vastamente reconhecido, tanto pela jurisprudência nacional como
pela doutrina pátria e alienígena, para que se configurem as referidas garantias
fundamentais, é essencial que o processo contenha:

a) Quanto ao aspecto organizacional, há necessidade de três sujeitos, no


mínimo, integrando a relação processual:
i. aquele que pede/acusa (normalmente denominado de parte autora);
ii. o que se defende (normalmente denominado de parte ré); e
iii. o que, independente e imparcialmente, tem a incumbência de
administrar os trâmites processuais e dar o provimento
final (normalmente denominado de magistrado).
b) Quanto ao aspecto processual, na perspectiva das partes litigantes:
i. os sujeitos da relação processual têm o direito de ser citados, notificados
e intimados de todos os atos processuais, desde sua instauração até o
seu encerramento;
161

ii. as partes autora e ré têm o direito de aduzir suas pretensões e defesas


de forma paritária;
iii. as partes têm o direito à defesa técnica, assim como de defenderem
seus interesses de forma ampla;
iv. as partes autora e ré têm o direito de reagir e responder aos atos
processuais que lhes forem desfavoráveis;
v. as partes têm o direito de realizar, simetricamente, todas as provas
necessárias para confirmar ou infirmar as alegação deduzidas;
vi. as partes têm o direito de acompanhar a prova solicitada e a ser
produzida pela outra parte, indicando assistentes técnicos e formulando
quesitos;
vii. as partes têm o direito de serem ouvidas paritariamente pelo
magistrado;
viii. as partes têm o direito de influir simetricamente na convicção do
magistrado;
ix. as partes têm o direito de que as decisões sejam motivadas de modo a
representar uma “síntese” do contraditório (tese e antítese) exercido
pelas partes;
x. as partes têm o direito ao duplo grau de jurisdição.

7. A Lei Federal n. 8.443/92 quando organizou e delimitou o processo a ser


utilizado pelo TCU não lhe entregou condições de cumprir suas importantes missões
constitucionais e ao mesmo tempo garantir tais princípios processuais constitucionais
(contraditório e ampla defesa especialmente), pois aquele mesmo órgão que
determina e inicia a fiscalização é o mesmo que instaura o processo acusatório, que
o instrui e ao final decide. Toda a gestão da prova está na responsabilidade deste
mesmo órgão, em um processo integralmente escrito e sem possibilidade de produção
paritária de provas, como a pericial e testemunhal.
8. Por causa da insuficiência da legislação federal, a estrutura
organizacional e o processo de formação das decisões condenatórias e fiscalizatórias
do TCU são correspondentes a um processo verticalizado, que concentra
suas decisões no plano orgânico-estatal, e que não valoriza argumentos e fatos
apresentados pelos envolvidos.
162

9. Como efeito, as decisões do TCU são passíveis de revisão pelo


Judiciário, pois há clara violação às garantias constitucionais do devido processo
legal, contraditório e ampla defesa, conforme também vem sendo reconhecido pela
jurisprudência, em especial a do STF.
10. Para que toda a sociedade tenha direito a um processo de contas
compatível com o texto constitucional, além de uma atuação eficiente, justa e
equânime, é necessário mudar a organização dos Tribunais de Contas, a fim de as
funções de fiscalização e instauração dos seus processos sejam feitos pelo órgão
independente do Ministério Público de Contas (MPC), podendo ser assessorado por
servidores público especificamente contratados para este fim. Aos Ministros deverá
ser entregue a função precípua de julgar as ações propostas pelo MPC, garantindo
assim, durante as fases instrutórias e decisórias, o contraditório e a ampla defesa de
todos os sujeitos processuais.
11. Igual destino devem ter os processos nos Tribunais de Contas, de modo
a permitir que o acusador MPC tenha o ônus probante, apresentando sua tese e
tentando prová-la no curso do processo. De outro lado o acusado possa sustentar a
antítese, facultando-lhe fazer a contraprova, por todos os meios permitidos em direito,
como a prova testemunhal, documental e pericial. E ao julgador seja permitido ver
formada a sua convicção no curso do debate paritário do processo; assim poderá o
julgador administrar a instrução do processo de modo a garantir o verdadeiro alcance
do contraditório e ampla defesa, motivando ao final sua decisão com base na dialética
processual.
12. Esse trabalho propõe uma determinada organização do TCU, sem que
haja necessidade de grandes alterações em seus quadros e prédios. O mesmo ocorre
com a indicação de um novo processo.
13. O ideal é que tal reorganização e novo processo sejam instaurados por
meio de lei federal, mas enquanto isto não se efetive, o próprio TCU pode fazê-lo
através de seu Regimento Interno.
14. Claramente que as sugestões finais de organização e processos não
são estanques e nem verdades únicas, muitas outras ideias e adequações podem ser
alcançadas, desde que tenham aderência aos requisitos mínimos para que qualquer
processo siga os princípios do procedure process of law, do contraditório e da ampla
defesa.
163

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