Pornochanchando Online PDF
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Organizadores
Claudio Bertolli Filho
Muriel E. P. Amaral
Pornochanchando: em nome da moral, do deboche e do prazer 2016
Conselho Editorial
Danilo Rothberg (Universidade Estadual Paulista)
José Miguel Arias Neto (Universidade Estadual de Londrina)
Marcos “Tuca” Américo (Universidade Estadual Paulista)
Miliandre Garcia de Souza (Universidade Estadual de Londrina)
Silvia Cristina Martins de Souza (Universidade Estadual de Londrina)
312 p.
ISBN 978-85-7983-796-8
Organizadores
Claudio Bertolli Filho
Muriel E. P. Amaral
SUMÁRIO
Apresentação
Os organizadores
Referências bibliográficas
Reconhecendo
território
Claudio Bertolli Filho UM CONFRONTO ESQUECIDO:
PORNOCHANCHADA X MORAL E CIVISMO
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a constituição de um “novo homem” o que, aliás, é uma proposta
comum aos regimes autoritários1. Nesse sentido, não só ocorreu a
multiplicação dos discursos autoproclamados “patrióticos” como
também a imposição de novas intervenções no contexto social, ob-
jetivando, com tediosas referências à moral e ao civismo, negar as
tensões que impregnavam o tecido coletivo.
Concomitantemente, entre 1964 e 1985 houve um rígido cerce-
amento da cultura brasileira, sendo a censura uma das possíveis
penalizações para os produtores culturais tidos como não alinha-
dos com o projeto ditatorial. Para além da censura, as punições po-
deriam chegar a extremos, como a prisão, a tortura e a morte dos
considerados “desviantes”.
A trama cultural elaborou de imediato estratégias de reação
às imposições golpistas. Para além das denúncias públicas dos
desmandos oficiais, o uso de metáforas e analogias tornou-se re-
curso insistente na literatura e nas artes, somadas a produções
alimentadas por um humor tendencialmente escrachado como
armas empunhadas contra os militares e seus apaniguados, in-
clusive contra a proposta oficial de (re)educação social. Nesse en-
caminhamento, observa-se o confronto entre perspectivas ideo-
lógicas antagônicas, assumindo-se o conceito de ideologia como
“um sistema ordenado de símbolos culturais”, cujo entendimento
se torna viável a partir de contextos sociais específicos e também
da concorrência entre ideologias dotadas de postulados total ou
parcialmente contrastantes (Geertz, 2014)
No plano da cultura do humor, do Pasquim de Ziraldo e Millôr
Fernandes ao humorístico Planeta dos homens de Jô Soares, das
charges de Henfil às produções cinematográficas irreverentes, for-
çava-se, sempre que houvesse oportunidade, a abertura de frestas
para solapar alguns dos princípios da fantasiosa revolução que só
existia na cabeça de seus líderes. Tais espaços favoreceram a cons-
tituição de um jogo de revela/esconde empenhado em fazer chegar
ao “grande público” mensagens que contradiziam a voz oficial, não
obstante o rígido crivo da censura e da vigilância policialesca.
A sociedade abrangente tramava formas sardônicas de crítica e
exemplos podem ser localizados nas versões populares conferidas
1
Comumente os conceitos de “ditadura” e “autoritarismo” são usados como sinônimos, tendên-
cia mais recentemente rejeitada por parte dos pesquisadores. No entanto, seguindo a tradição,
Parte 1
neste texto emprega-se ambos os termos como marcas características do regime instaurado
em março de 64.
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aos slogans governamentais. Nesta operação, metamorfoseou-se
jargões caros aos militares em “Brasil grande potência de merda”,
“Brasil, ame-o ou deixe-o; o último que sair apague a luz”, “Este é um
país que vai para frente e para o fundo”, “Ninguém chupa a juventu-
de do Brasil”, “É necessário fazer o bolo crescer para então cagá-lo”.
Muitas outras formas de crítica foram elaboradas, como ressigni-
ficar o nome Caxias como um adjetivo adotado pelos jovens como
uma menção desqualificadora, recitar a primeira linha do Hino da
Independência com os termos “japonês da pátria filho” e ainda, de-
clamar “Quem tem cu tem medo, vota em Figueiredo”, quando da ci-
são do grupo militar no decorrer do processo de indicação de quem
substituiria Geisel no cargo de presidente da República.
O esmaecimento do poder ditatorial levava a situações inusi-
tadas que podem ser avaliadas como formas simbólicas de con-
fronto direto com o governo. Já no final do governo Figueiredo,
talvez até mesmo em consideração ao que ele havia falado sobre
suas preferências olfativas em relação aos cavalos e ao povo, ao
participar de uma missa na capital baiana, o presidente teve seu
relógio furtado por um anti-herói popular que jamais foi identifi-
cado, por mais que tenham sido os empenhos neste sentido por
parte do SNI e da Polícia Federal.
Frente à pluralidade de manifestações culturais engendradas
contra a ditadura, a maior parte da comunidade acadêmica tem
se mostrado acanhada, elegendo para a análise um limitado nú-
mero de produções literárias, musicais e cinematográficas como
emblematizadoras da reação ao autoritarismo. O critério que im-
pregna as pesquisas universitárias parece inibir a exploração de
fontes documentais que rejeitam figuras de linguagem e invocam
diretamente cenas de sexo que se aproximam do grotesco e fazem
uso prodigioso de palavras de baixo calão. Afinal – pensam mui-
tos – como um pesquisador pode querer manter uma reputação de
seriedade e escapar das inevitáveis bazófias de seus pares se for
especialista na análise de, como pontificou um colega da universi-
dade, “filmes de sacanagem”?2
Fixado o cenário, o objetivo deste texto é verificar alguns ele-
mentos temáticos presentes nos filmes de pornochanchada como
Reconhecendo território
2
Mesmo pesquisas acadêmicas mais recentes que focam a questão da sexualidade no ci-
nema limitam-se a tecer apenas rápidas e diluídas referências à pornochanchada, como fez
Rodrigo Gerace (2015).
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possíveis respostas – ou reações – às falas pretensamente patrió-
ticas exaladas pelos generais-presidentes e reproduzidas com pou-
cas variações nas páginas dos livros didáticos de moral e civismo.
Alerta-se desde já que não se quer fazer a apologia de que os pro-
dutores, diretores e atores que realizaram as pornochanchadas os-
tentaram como proposta central combater a ditadura. Eles apenas
incorporaram em suas atividades algumas dimensões que não se
enquadravam no esperado pelos ditadores, elaborando formas hoje
consideradas quase que inocentes para driblar o tacão dos censo-
res governamentais, criando a impressão de alinhamento com as
propostas autoritárias para, como se dizia então, “dar o seu plá”, isto
é, emitir uma mensagem avaliada como franca e eficiente.
Em recente entrevista, após declarar que os quarenta filmes do
gênero que protagonizou eram “lixo”, a atriz Selma Egrei, afirmou:
“tem gente que vê a pornochanchada como um movimento cultural
underground, promovido para driblar a censura no período militar,
mas eu não acredito em nada disso (Sampaio, 2016).
Posta a questão-guia da pesquisa, a abrangência do tema con-
vida aos necessários recortes e, neste sentido, optou-se pelo enfo-
que do conteúdo de dez filmes que são rotulados pelos críticos, não
com o rigor esperado, como tributários da pornochanchada e que
constam da filmografia apresentada no final deste artigo. Os crité-
rios utilizados para a eleição dessas produções são de duas ordens;
o primeiro, refere-se à circunstância de tais fitas terem alcançado
sucesso de público e, o segundo, o ano de lançamento dos filmes.
Sobre esse segundo critério buscou-se contemplar exemplares de
pornochanchadas que abrangessem todo o período no qual vigo-
rou tal gênero cinematográfico; assim, o primeiro filme analisado é
datado de 1974, momento em que o formato do gênero já havia se
consagrado junto aos cineastas e ao público e também quando a
repressão militar havia chegado ao seu auge, enquanto que a últi-
ma das produções foi lançada em 1986, quando a pornochanchada
encontrava-se em franco declínio e no ano anterior havia findado o
pesadelo ditatorial.
Antes, porém, da análise de conteúdo das fitas é necessário res-
ponder a dois desafios preliminares: os fundamentos da educação
moral e cívica vigente no período e, na sequência, os elementos
constitutivos do gênero cinematográfico sob análise.
Parte 1
18
A moral e o civismo nos quadros da ditadura
Logo após a tomada do poder pelos golpistas e a nomeação do
marechal Castello Branco para o cargo presidencial, buscou-se arti-
cular uma nova aliança entre o Estado e a sociedade civil. Analisan-
do os discursos dos generais-presidentes fica evidente que, inicial-
mente, tentou-se empregar um tom próximo ao messiânico para
criar um fantasioso consenso popular em defesa do que era oficial-
mente denominado de revolução. No momento em que assumiu o
comando nacional, Castello Branco assim se pronunciou: “Venham
a mim os brasileiros e eu irei com eles para, com o auxílio de Deus
e com serena confiança, buscar os melhores dias no horizonte do
futuro” (Castello Branco, 1964).
O primeiro presidente golpista modelou em muitos aspectos
os pronunciamentos que seriam repetidos pelos militares que o
sucederam. Nas apresentações públicas, os mandatários apregoa-
vam que a autodenominada “Revolução de 64” correspondia a um
conjunto de ações que havia rompido com o período histórico an-
terior ao instigar a ordem em oposição à desordem, a união con-
tra a desagregação, a integração nacional versus a discriminação
regional, o amor em repúdio ao ódio. O otimismo e a confiança no
futuro eram alimentados pelo “clima de paz e tranquilidade” típico
de uma “sociedade cristã”, que veemente rejeitava os “materialistas
ateus” e os “corruptos”.
No plano discursivo oficial, os descaminhos a que fora lançada
a República antes de março de 1964 estavam sendo corrigidos pe-
los militares e seus seguidores civis, os quais contavam com fortes
aliados: Deus e a “civilização cristã”, sinônimo de sociedade brasi-
leira e anticomunista. Além desses, era também vigorosamente in-
vocada, a “família harmoniosa com espírito revolucionário”, assim
como o “amor pelo trabalho” e o “espírito de abnegação” da classe
trabalhadora. Em coerência com isto, o brasileiro foi representa-
do em certos momentos como “um homem trabalhador” e amante
da “ordem normal”; em consequência, ainda segundo o gongoris-
mo golpista, a existência do brasileiro era pautada pela “justa e or-
denada vida devotada ao trabalho” e colimada por um patriotismo
que incitava, dentre tantas atitudes, visitar Ouro Preto no Dia de
Tiradentes, transformando a cidade mineira em um “santuário de
Reconhecendo território
peregrinações cívicas”.
Esta concepção imaginária do brasileiro incitava Castello Bran-
co a reiterar os mesmos valores em cada um de seus discursos,
desdobrando-se em uma profícua gama de pontificações acerca da
19
“indômita bravura” e o “alto grau de maturidade política” da popula-
ção, assim como identificava uma “irrefreável consciência nacio-
nal de apoio à revolução”. Para além das falas públicas, no entanto,
mantinha-se a regra, já no movimento que levou à proclamação
da República e também durante o Estado Novo (1937-1945), de os
mandatários e as elites civis diagnosticarem à boca pequena os
agrupamentos populares como constituintes de uma massa inerte,
indisciplinada, avessa ao trabalho produtivo e descompromissada
com a pátria e com a família, enfim, uma população que precisava
ser dirigida e que não dispunha de qualidades que a capacitasse
para participar das decisões governamentais a não ser como mas-
sa passiva (Carvalho, 1987; Bertolli Filho, 2012).
Para os que tomaram o poder em 64, era claro que a ameaça
maior contra o regime não vinha de Cuba, da União Soviética ou
da China, mas sim dos “inimigos internos”. Para os militares, os
avessos à ditadura que deveriam ser imediatamente reeducados ou
reprimidos eram óbvios: uma parcela considerável dos intelectuais,
dos professores e estudantes universitários, do clero, dos sindica-
tos trabalhistas de tendência democrática e das organizações de
trabalhadores rurais (Skidmore, 1988, p. 22).
Se a maior parte dos discursos públicos de Castello Branco era
alimentada por uma pretensa sintonia de valores e interesses entre
a sociedade e o Estado, os receios que tais pronunciamentos en-
cobertavam coagiu o general a incluir em seus pronunciamentos
a importância de atos que fomentassem a “alta moral” e o “grande
civismo” dos brasileiros. Em dezembro de 1966, ao proferir o discur-
so de encerramento da Terceira Reunião Conjunta dos Conselhos
de Educação, realizada no Rio de Janeiro, assim ele se pronunciou:
do ateísmo comunista”.
22
A intensidade dos receios gerados pelo regime mostrava-se in-
disfarçável. A análise realizada por Almeida (2009) aponta que, se
os livros de EMC empenhavam-se em reproduzir os ensinamentos
presentes nos pronunciamentos oficiais, mesmo assim um grande
número de textos didáticos era prefaciado por ministros, militares
de altas patentes ou sacerdotes católicos. Na impossibilidade de
conseguir a apresentação destes, estampava-se nas páginas ini-
ciais do volume o documento de aprovação do livro pelo CNMC ou
dedicava-se o texto ao presidente ou à alguma autoridade civil ou
militar de proa.
25
A recorrência a estratégias como estas permitia que as porno-
chanchadas ficassem parcialmente livres do veto censorial e, con-
comitantemente a exposição de corpos nus, se reportasse ao coti-
diano social. Isto levou uma pesquisadora a ponderar o seguinte:
3
Os filmes estrangeiros parodiados receberam os seguintes títulos no Brasil: Laranja mecânica
(1971); Tubarão (1975); Grease: nos tempos da brilhantina (1978); Emmanuelle (1974); Rambo 2, a
missão (1985) e Gritos e sussurros (1972). Ressalta-se que, pelo trabalho da censura ou de interes-
Parte 1
ses empresariais, alguns destes filmes foram lançados aqui anos depois de estrearem no exterior,
coincidindo ou se aproximando dos anos de lançamento das pornochanchadas mencionadas.
26
Devido às características dos filmes de pornochanchada, o co-
mum entre os pesquisadores é declarar que, comprometidas com
o gosto das massas, tais produções atraíam quase que exclusiva-
mente os homens pertencentes às camadas mais pobres e iletra-
das da sociedade (Rocha; França, 2009, p. 11). No entanto, a infor-
mação bem mais confiável de Seligman (2000, p. 74) esclarece que
o público predominante que assistia a esses filmes era oriundo da
classe média.
A abertura política ocorrida gradualmente a partir do início da
década de 1980 resultou também no esmaecimento da censura, tor-
nando possível a publicação de revistas centradas na exposição
de nus masculinos e, sobretudo, femininos, como Ele&Ela, Status,
Playboy e Playgirl, e também a livre projeção de filmes importados
que se enquadravam no gênero pornô propriamente dito. Tais cir-
cunstâncias obrigaram as pornochanchadas a transitarem da fase
soft para a hard, com a exploração explícita de atos sexuais, além da
adoção de títulos mais chamativos para as películas e que sugeriam
cenas que raramente apareciam nas revistas de nus, especialmente
de zoofilia, mesmo que na tela, o que era projetado eram pessoas
fantasiadas de animais. Tais renovações, no entanto – ou justamen-
te por causa delas – não impediram que o gênero entrasse em fran-
co declínio, deixando praticamente de existir a partir de 1990, sendo
substituído por fitas com pouco ou mesmo sem enredos e centradas
exclusivamente na exposição de atos sexuais. A pornochanchada
morria ao mesmo tempo em que nascia o pornô nacional.
Findo o ciclo, a pornochanchada legou sua realeza. Dentre o
grupo de atrizes e atores, Helena Ramos, Selma Egrei, Adriana Priet-
to e Aldine Muller até hoje são reverenciadas como as rainhas deste
gênero fílmico, enquanto que David Cardoso tornou-se o rei, sendo
superado neste título apenas por Carlo Mossy, considerado como “o
rei supremo da pornochanchada” por ter, como nenhum outro, se
dedicado a estes filmes no correr das décadas de 1970 e 1980. Além
de ator, diretor e roteirista, Mossy foi também proprietário da Vy-
dia Produções Cinematográficas, empresa que chancelou alguns
dos mais lucrativos filmes do gênero pornochanchada, dentre eles
Como é boa nossa empregada (1976), As massagistas profissionais
(1976) e Giselle (1980); em conjunto estas três produções levaram às
salas de cinema mais de 18 milhões de espectadores.
Reconhecendo território
Os “donos do poder”
A confluência entre as imposições ditatoriais e as novas rebel-
dias admitidas pela renovação cultural inaugurada nos anos 60 en-
sejou uma acirrada crítica ao monopólio do poder, não só aquele
representado pelos generais-presidentes, mas também por indi-
víduos e instituições que buscavam se impor no contexto social
abrangente. A sensação segundo a qual era “proibido proibir” fazia
com que representantes de instituições tradicionais, ou pelo menos
parte deles, fossem alvos preferidos de exposições jocosas, revelan-
do a existência de um falso moralismo.
Sacerdotes cristãos e professoras, por exemplo, foram adotados
pela pornochanchada como indivíduos que apregoavam preceitos
éticos extemporâneos e que, com frequência, eles próprios não in-
corporavam em suas vidas privadas. Em A árvore dos sexos, um
Reconhecendo território
pregado descobriu que seu patrão era pedófilo, fez questão de decla-
rar que “não concordava” com o fato.
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O contexto político
A maior parte das pornochanchadas foi produzida no decorrer do
período ditatorial, sendo impossível que não se referissem critica-
mente ao momento político-econômico e social da época, mesmo
que de forma implícita. Se valores admitidos pelo governo militar
como “sadios” foram colocados em causa, os serviços de censura
e a própria autocensura assumida pela indústria cinematográfica
tendiam a inibir qualquer tentativa mais ousada que colocasse em
foco direto o regime político.
A exceção a esta regra, mesmo que tênue, encontra-se em Gisel-
le, produção lançada no início da fase da história nacional conhe-
cida como “abertura política”. Em uma cena relativamente rápida e
algo deslocada da trama geral, uma médica, antiga subversiva que
fora feita prisioneira pela ditadura e posteriormente trocada, junto
com outros detidos, pelo embaixador alemão que havia sido seques-
trado por opositores ao governo, falou que, após estudar em países
comunistas, chegou a conclusão que todos os regimes repressivos
um dia iriam cair. Na sequência, levou sua jovem amante à uma
reunião secreta, realizada em um pequeno recinto dominado pela
fotografia de Che Guevara, ocasião que a médica e outros presentes
foram fuzilados por agentes da ditadura.
Considerações Finais
Apesar de mal afamadas, as pornochanchadas também contri-
buíram para o movimento subterrâneo de solapamento da ditadu-
ra. Claro está que elas igualmente incorporavam vários estigmas
culturais, como a mulata boazuda, o caipira inocente e incapaz de
viver numa cidade grande, a loira burra, o brasileiro malandro, o
homossexual obrigatoriamente efeminado e a perspectiva de vida
orientada pelas aventuras sexuais, mas não pararam apenas nisto.
Também contribuíram com algumas e boas críticas à política então
vigente, inclusive à política cultural assumida pelos golpistas de 64.
Assim, entre a alienação e a rebeldia a pornochanchada cumpriu
seu ciclo de existência, incorporando um jogo de revela-e-esconde
semelhante ao que era empregado pelas vozes autoritárias.
Alguns leitores podem suspeitar que o autor deste texto está
“forçando a barra” em suas considerações. Mas também esses mes-
mos leitores têm que admitir que não se pode creditar ao acaso a
circunstância de muitas das tramas adotadas nas pornochancha-
das desqualificarem alguns valores que, no período, eram vigorosa-
Parte 1
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mente propagandeados em nome da moral e do civismo. Se o papel
das pornochanchadas pode ser avaliado como dúbio, o empenho
crítico esteve presente em parte das produções, mesmo que sob
o manto do subliminar. Assim, não é possível para o pesquisador
acomodar-se na falácia de que tal gênero fílmico fosse de agrado e
mesmo patrocinado pelo ditador de plantão. As comédias eróticas,
isto sim, abriam espaço para tramas que se reportavam às novida-
des do cotidiano das décadas de 1970 e 1980. Vale lembrar ainda que
tais temas também estavam sendo explorados, mesmo com uma
estética bem mais refinada pelo cinema soft chic erótico europeu,
citando-se como exemplos de clássicos, Último tango em Paris
(1972) e Emmanuelle (1974).
Pelos motivos apresentados, acredita-se que, enquanto produ-
ções culturais de vasta abrangência popular, o que não quer dizer de
consumo exclusivo das classes subalternas, as pornochanchadas
merecem o apreço e a análise acadêmica, por mais que a universi-
dade continue a se constituir em um território irremediavelmente
tomado por temas moralistas. A ditadura também contou com opo-
sitores na indústria das pornochanchadas.
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Reconhecendo território
37
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Parte 1
38
Filmografia
A árvore dos sexos. Dir. Sílvio de Abreu. Brasil: Kinetos; MG Editores;
Maco Produções, 1977. VHS. (90 min.), color., sem legenda, Port.
A super fêmea. Dir. Aníbal Massaini Neto. Brasil: Companhia Pro-
dutora e Distribuidora de Filmes Nacionais, 1978. VHS. (100 min.),
color., sem legenda, Port.
Ainda agarro esta vizinha. Dir. Pedro Carlos Rovai. Brasil: Sincrofil-
mes, 1974. VHS. (91 min.), color., sem legenda, Port.
Bonitas e gostosas. Dir. Carlo Mossy. Brasil: Vydia Produções Cine-
matográficas, 1979. VHS. (90 min.), color., sem legenda, Port.
Giselle. Dir. Victor Di Mello. Brasil: Vydia Produções Cinematográfi-
cas, 1980. VHS. (87 min.), color., sem legenda, Port.
Me deixa de quatro. Dir. Fauzi Mansur. Brasil: J. Dávila Produções
Cinematográficas, 1981. VHS. (100 min.), color., sem legenda, Port.
Nos tempos da vaselina. Dir. José Miziara. Brasil: Produções Cine-
matográficas Galante, 1979. VHS. (90 min.), color., sem legenda, Port.
O bem dotado – o homem de Itú. Dir. José Miziara. Brasil: Compa-
nhia Produtora e Distribuidora de Filmes Nacionais, 1978. VHS. (99
min.), color., sem legenda, Port.
Onda Nova – Gayvotas Futebol Clube. Dir. José Antônio Garcia; Íca-
ro Martins. Brasil; Olympus Filmes, 1983. VHS. (98 min.), color., sem
legenda, Port.
Um pistoleiro chamado Papaco. Dir. Mário Vaz Filho. Olympus Fil-
mes, 1986. VHS. (70 min.), color., sem legenda, Port.
Reconhecendo território
39
Caio Lamas A CENSURA À PORNOCHANCHADA:
O CASO DE ANJO LOIRO
Introdução
Ninfomaníacas. Piadas de duplo sentido. Tí-
tulos apelativos e sem nexo algum com a trama.
Olhares maliciosos. Personagens perturbados.
Sintetizadores abundantes na banda sonora. Câ-
meras que vão e voltam em chicote durante uma
cena. Atores de performance duvidável e uma
produção de notável precariedade técnica.
Muitas são as características que podem ser
atribuídas ao abrigo de gêneros denominado por-
nochanchada, abundante na cinematografia bra-
sileira (sobretudo carioca e paulista) durante os
anos de 1970. Comédias, histórias de terror, sus-
pense, dramas, faroestes e outros gêneros cine-
matográficos, combinados com um apelo erótico
crescente para um público de baixo poder aqui-
sitivo, fizeram plateias significativas durante vá-
rios anos, desafiando prognósticos fatalistas de
críticos que anunciavam seu fim premeditado.
O fato é que persistiu com grande presença
de público, por mais de uma década em nosso
país, uma cinematografia de imagens precárias,
fazendo números de bilheteria a dar inveja a ou-
tros períodos do cinema brasileiro. O Bem Dotado
Homem de Itu, dirigido por José Miziara e lança-
do em junho de 1978, chegou a alcançar o número
de 2.409.162 espectadores; Amada Amante, dirigi-
do por Cláudio Cunha e lançado em julho de 1978,
alcançou 2.610.538 espectadores. Os exemplos
são vários, e na lista das maiores bilheterias da
história do cinema brasileiro, certamente a por-
nochanchada alcança destaque no panteão de
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filmes de maior sucesso. Esse número é mais surpreendente ainda
quando são considerados os baixos orçamentos de grande parte das
produções; a origem dos investimentos, via de regra exclusivamen-
te privados e sem incentivo estatal; e o rápido tempo de rodagem.
Em São Paulo, foi na Boca do Lixo, polo de produção de cinema
localizado nas ruas do Triunfo, Gusmões, Vitória e dos Andradas, re-
gião central da cidade, que se iniciaram os projetos de vários desses
filmes. Os produtores eram fundamentais nesse processo, na medi-
da em que negociavam os salários dos técnicos e da equipe, busca-
vam investidores e estipulavam o tempo de filmagem e de pós-pro-
dução. Sternheim (2005), importante diretor da Boca, destaca o caso
de Galante, um dos produtores de maior destaque da região:
1
Exemplos notáveis são Senta no Meu que eu Entro na Tua (1984), Noite das Tara(1980), Amadas
e Violentadas (1976), O Prisioneiro do Sexo (1979), Dezenove Mulheres e Um Homem (1977), O
Sexo Mora ao Lado (1975), A Virgem e o Machão (1973), A Super Fêmea (1973), entre muitos
Parte 1
outros títulos.
42
um período forte de autocensura com relação às questões sexuais,
as décadas de 1940 e 1950 viram surgir o fenômeno dos exploita-
tions, filmes eróticos, de horror e policiais baratos, destinados às
plateias masculinas, que em sua vertente erótica contariam com
planos mais aproximados e uma nudez ainda velada.
Segundo Cánepa (2009, p.2), o ano de 1959 marcaria o surgi-
mento de ramificações desse cinema, em especial o “blaxploi-
tation (para filmes com temática violenta envolvendo afrodes-
cendentes), nunexplitation (para histórias bizarras passadas em
conventos); woman in prison (para filmes sobre presídios femini-
nos)”, além de outros. Entre essas denominações, se destacariam
os sexploitations, filmes baratos cujo chamariz principal, diante
da falta de estrelas e astros famosos ou de diretores e produto-
res reconhecidos, era o tratamento de temas polêmicos e tabus
relacionados à sexualidade, aproveitando-se de seu potencial de
escândalo para fins comerciais.
Começa-se também nessa época a questionar o papel da mu-
lher na sociedade e o direito que teria ao prazer sexual. Sem dúvida,
essa reivindicação teria encontrado menos espaço se não tivesse
sido lançada, em países da Europa, na Austrália e no Brasil, em 1961,
a pílula anticoncepcional, que permitiu à mulher exercer uma sexu-
alidade mais livre e com menos riscos de fecundação indesejada.
No mercado editorial, reflexos disso podem ser vistos na edição de
junho de 1967 da revista Realidade, A mulher brasileira, hoje2, com
reportagens que abordaram o corpo feminino, a existência de mães
solteiras e a atuação da mulher no mercado de trabalho. Em setem-
bro de 1973, é lançada nas bancas a revista NOVA, primeira publica-
ção no Brasil voltada para assuntos relacionados ao crescimento
pessoal da mulher na faixa de 20 a 30 anos3, que em seu primeiro
número tratava de assuntos como: “101 maneiras de um homem
agradar você”, “Você é sensual - um teste insinuante”, “Explore as
vantagens de morar sozinha” e “Toda mulher pode sentir prazer no
amor, Você também”.
Uma particularidade do caso brasileiro, sem dúvida, era o fato
de que uma indústria de filmes de teor erótico nasceu e se manteve
durante a existência da Ditadura Civil-Militar, implementada com o
Reconhecendo território
2
Disponível na biblioteca da Escola de Comunicações e Artes.
3
Informações retiradas de: <http://www.projetoradix.com.br/arq_artigo/XI_01.pdf>. Acesso em
25/07/2012.
43
golpe de Estado de 19644. Uma Ditadura que continuou com a siste-
matização da prática secular da censura no país5, dando-lhe outros
contornos e grau de importância.
Entre os critérios para a incidência de cortes, figurava um grupo
referente ao confrontamento de princípios éticos, nos quais se in-
seria a inclusão de palavras e imagens que ofendessem a moral e o
decoro público. Havia ainda outros, categorizados em dois grandes
grupos – a instigação contra a autoridade e o atentado à ordem pú-
blica, de um lado, e a oposição aos direitos e garantias individuais,
de outro – passando por fatores tão ambíguos como a presença de
elementos capazes de gerar angústia ou ofensivos a alguma reli-
gião. (FAGUNDES, 1974). Simões (1999) destaca ainda como a vigi-
lância sobre esses critérios era ampla, abrangendo de um livro ou
filme a transmissões de alto-falantes em pracinhas do interior.
É importante destacar que, de acordo com Pinto (2006), a Cen-
sura foi parte fundamental na sustentação do regime:
4
De certa forma, o fenômeno da pornochanchada parece se assemelhar a outro “movimento”
cinematográfico espanhol, denominado destape. Seus filmes, de intuito claramente comercial,
exploravam de forma análoga a nudez (preferencialmente feminina). Isso tudo aconteceu duran-
te os anos 1970, quando a Espanha vivia o período de transição para a democracia, com a morte
do ditador Franco em 1975.
5
É importante destacar que, ao contrário do que muitas vezes se entende no senso comum, di-
versos estudos apontam como a censura foi praticada ao longo de séculos no Brasil, não sendo
uma exclusividade de períodos ditatoriais. A criação de um órgão estatal exclusivamente para
essa finalidade, entretanto, se deu somente no início de 1946, quando foi criado o Serviço de Cen-
sura de Diversões Públicas (SCDP), subordinado ao Ministério da Justiça, por meio do Decreto nº
Parte 1
20.493, que vigorará por mais de vintes anos após sua publicação.
44
ção de censura sem, no entanto, admitir o feito. O processo
permanecia “em análise”, sem que nenhum parecer fosse
emitido. Assim, os produtores não tinham argumentos para
sequer negociar com a censura. Esta atitude podia levar me-
ses, até anos. (PINTO, 2006, p. 4)
6
Quando emprego o termo Censura com a inicial maiúscula, estou me referindo ao órgão federal,
a Divisão de Censura de Diversões Públicas(DCDP). Quando utilizo censura com a inicial minús-
cula, refiro-me à prática ou ação de proibição e veto, bem como a outras formas de interdição que
nem sempre partem do poder público.
45
Um desses casos, do qual tratarei neste artigo, foi o do filme
Anjo Loiro (1973). Trata-se de mais uma tentativa de me aprofundar
em um universo ainda pouco explorado – a relação entre a cinema-
tografia dos anos 1970 e a Censura.
7
Disponível em <http://expirados.blogspot.com.br/2009/04/lista-pornochanchada-porno-nacio-
Parte 1
46
Mário: Você disse que me amava...
Laura: E não menti, mas isso não te dá o direito de mandar
sobre mim.
xe-se levar por Laura, recebendo-a na sua casa e viajando com ela
à praia. Ambos passam a morar juntos, e o coroa passa a ficar por
dentro, mudando seu visual e suas atitudes. Passa a fazer tudo aqui-
lo que disse não realizar ao jovem Mário, deixando que sua paixão
47
interferisse em seu trabalho. Seus atrasos passam a ser recorrentes,
recebendo reclamações de sua coordenadora, Dona Carla. Mostra-
se desatento, distraindo-se em meio a sua aula, procurando Laura
do lado de fora do colégio; mente para a coordenadora de que ha-
via se adoentado, a pedido de Laura, para que ambos ficassem mais
tempos juntos; passa a tratar rudemente a empregada, por esta fa-
zer uma comida não apreciada pela jovem.
Se Armando demonstra uma vulnerabilidade cada vez mais
crescente diante de sua nova amante, por outro lado Laura se mos-
tra gradativamente mais infantil. Passa a exigir mudanças na roti-
na do professor; é exigente com a comida e com detalhes da casa.
Resolve participar de uma montagem teatral da peça Antígone –
referência à tragédia grega Antígona, de Sófocles -, e diante da falta
de verba da produção procura persuadir Armando a investir suas
reservas financeiras no espetáculo.
Em um primeiro momento, Armando se nega a tanto, alegando
que suas reservas eram insuficientes. Laura se diz decepcionada,
chamando o professor de burguesão covarde. Resolve sair, sem di-
zer para onde iria, para desespero de seu inseguro parceiro. Depois
de um tempo, ela retorna e diz que a relação dos dois não daria mais
pé, e que estava partindo. Desesperado, Armando diz que mudara de
ideia, e que aplicaria boa parte de suas ações na peça. Animada com
a decisão, Laura resolve reatar o relacionamento.
Até esse momento, já é possível perceber que existe uma sepa-
ração construída ao longo do enredo entre jovens – mais ligados à
revolução dos costumes – e os adultos – mais ligados à erudição e
a uma concepção tradicional de relacionamento. O uso de termos
como cuca, coroa e por dentro atestam um certo esforço do filme
não só em retratar esses jovens – ainda que de forma caricata –
como também em se mostrar atual diante das questões que esta-
vam em efervescência nesse período.
Após a venda das ações, Armando se reúne em seu apartamen-
to com os demais membros da peça, que resolvem comemorar. No
dia seguinte, a empregada doméstica do professor se depara com
dois jovens nus deitados no chão – que não aparecem aos olhos do
espectador – e grita, estarrecida. Armando acorda, e diz que ela não
precisaria ter aquele tipo de reação, tratava-se de algo corriqueiro.
Esse momento da trama parece atestar que Armando finalmen-
te atravessou o outro lado, passando da dimensão adulta e tradicio-
nal, representada nesse momento pela reação de sua empregada,
para a dos jovens modernos e por dentro, para quem pessoas deita-
Parte 1
do a Armando:
49
bom morar aqui. Viver com você. Foi bom. E eu te amei. A
meu modo.
8
Parte 1
50
manter um relacionamento estável. Valoriza-se, assim, a estabilida-
de da relação amorosa, em oposição a um Armando cada vez mais
infeliz ao se aprofundar na instabilidade trazida junto com Laura.
É curioso notar, entretanto, que Laura é particularmente irres-
ponsável se comparada com os outros jovens que também parti-
cipam da peça. Esses permanecem na produção teatral, buscando
viabilizá-la, a despeito da ausência da principiante atriz.
Não é à toa, nesse jogo entre jovens e adultos, novidade e tra-
dição, que Armando ocupe a posição de professor, ainda mais de
uma disciplina como História. Fica implícita a ideia de que seria
no passado que se encontrariam as raízes a serem preservadas e
a solução para os dilemas do presente do filme. Essa dimensão da
tradição é reforçada nos diversos planos de Armando em sua escri-
vaninha, solitário; na fachada do colégio em que trabalha; na pró-
pria escolha de uma peça tão antiga e prestigiada como Antígona
para ser encenada durante o enredo. Parece existir aí uma busca
também por legitimidade do próprio filme, de forma semelhante a
outros filmes da Boca.9
Com relação à exposição do corpo feminino, são expostos no
campo da imagem somente os seios de Vera Fischer, em planos
rápidos – ao menos na versão a que tivemos acesso. Há também
uma certa coreografia dos corpos, já apontada por mim em outro
trabalho (LAMAS, 2013) e que é resultado evidente da preocupação
que o filme teve em não ultrapassar o tênue limite entre o proibi-
do e o permitido pela Censura em termos de exposição dos corpos.
Assim, em alguns planos, Vera Fischer se encontra de costas para
a câmera, ou posicionada em um ângulo estratégico, de maneira a
não expor seus seios, pelos pubianos ou outras partes de seu corpo.
Há que se destacar ainda, como sugere Abreu (2006), que as por-
nochanchadas procuravam dialogar diretamente com setores po-
pulares, de baixo poder aquisitivo, colaborando comum certo pro-
cesso educativo ou ao menos com a introdução a esse público de
temas que estavam presentes na sociedade do período de produção
do longa metragem. Anjo Loiro certamente não escapa dessa obser-
vação, ao abordar um assunto em voga no período de sua produção.
Reconhecendo território
9
Essa referência a elementos da cultura erudita é muito recorrente, por exemplo, em certos fil-
mes da cinematografia de Jean Garret, como Amadas e Violentadas (1976) e Mulher, Mulher
(1980).
51
O Anjo Devasso se torna loiro: o processo na Censura
O processo do filme na Censura, tal como disponível no site
Memória da Censura ao Cinema Brasileiro 1964-198810, abrange um
período longo de tempo, principiando-se no ano de 1971 e se alon-
gando até 1985. Atravessou com isso diversos períodos da Ditadu-
ra Civil-Militar, dos anos de chumbo do General Emílio Garrastazu
Médici (1969 – 1974), passando pelo princípio de abertura política
do governo do General Ernesto Geisel (1974 – 1979) e culminando
com o governo do General Figueiredo (1979 – 1985), que encerrou o
período militar.
Os processos de censura reúnem ampla e diversa documentação
da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão subordi-
nado à Polícia Federal responsável pela censura a diversos meios
de comunicação. Produzidos pela burocracia estatal, eles contêm
documentos de técnicos censores, chefes de departamento, eventu-
almente ministros da justiça e até governadores de Estado, liberan-
do, mutilando ou interditando filmes. Reúnem também documen-
tos de produtores cinematográficos e seus procuradores, diretores,
representantes da classe artística e da sociedade civil organizada.
Os documentos são vários: requerimentos e certificados de censura,
pedidos de reexame dos filmes, pareceres técnicos com a análise e
justificativas de vetos, certificados para filmes e trailers, documen-
tos de apreensão de cópias com exibição no mercado, entre outros.
O processo tem seu início na data de 01 de outubro de 1973, con-
forme informação disponibilizada em sua capa. Nela é possível ver
que o título original da obra era Anjo Devasso, pois o mesmo se en-
contra riscado, para dar espaço a Anjo Loiro logo ao lado.
O primeiro parecer data de 5 de outubro de 1973, e é assinado por
três censores: Ana Katia B. Veira, Teresa G. Paternostro e Sebastião
M. M. Coelho. É um documento bastante objetivo, e como em outros
da mesma época está dividido em categorias a serem preenchidas:
cenas, época, gênero, linguagem, tema, personagem, mensagem,
enredo, cortes e conclusão. Em cenas, encontramos: “sexo, dramá-
ticas, agressão”. Em linguagem, “Vulgar”. O tema, segundo os cen-
sores, é “a relação tempestuosa de um homem maduro com uma
mulher amoral.” No enredo, vemos a seguinte descrição:
10
O projeto, coordenado pela pesquisadora Leonor Souza Pinto, disponibiliza gratuitamente do-
cumentos relativos a 444 filmes brasileiros, incluindo aí os processos de censura completos,
notícias de jornal e arquivos do DEOPS. Disponível em: <http://www.memoriacinebr.com.br>.
Parte 1
52
Relata o conflito originado na vida de um professor quaren-
tão com uma moça de conduta amoral. Essa relação se relete
(sic) em sua profissão e no conceito que o mesmo desfrutava
em seu ambiente social, culminando com a ruptura inevitá-
vel entre os dois e a partida do professor em busca de seu
soerguimento moral e financeiro.
53
Apesar da dificuldade de se entender do que se tratam, aparen-
temente todos os cortes incidem sobre cenas de exposição dos cor-
pos dos atores. A intolerância dos censores pesa até sobre cenas
em que a atriz (provavelmente Vera Fischer) se encontra de costas,
sem revelar à câmera seus seios ou pelos pubianos. Nas conclusões,
encontra-se a seguinte observação:
54
cortes estipulados anteriormente. Constatam, na primeira parte,
que o primeiro corte foi efetuado de forma integral, mas que o se-
gundo não foi por completo, “uma vez que o ator aparece em trajes
menores e a atriz, parcialmente nua.” Na segunda parte, novamen-
te o primeiro corte foi efetuado corretamente, mas o segundo não,
“visto aparecer a atriz semidespida, deitada na cama”.
Na terceira parte, “o primeiro corte foi reduzido, não conforme
deveria ser, ou seja, supressão total da nudez”, mantendo-se de for-
ma correta o segundo corte. Na quarta e última parte, o primeiro
corte foi obedecido em sua totalidade. “O segundo corte, no entanto,
não foi efetuado, nem siquer (sic) parcialmente. Trata-se da sequên-
cia que focaliza o casal nú na cama, abrangendo inclusive a briga
entre os amantes da mulher”.
O grau de atenção dos censores chega ao ponto de observar ou-
tros detalhes da nova versão, como indica o parágrafo a seguir:
55
no sentido de mostrar a cooperação na devolução das cópias dos
filmes e dos certificados e mostrando-se incrédulos com relação à
falta de acatamento dos cortes estipulados:
56
tanto de filmes mais pretensiosos do ponto de vista social11, outros
nem tanto12, como de fato, durante a ditadura Civil-Militar, os fil-
mes eram literalmente caso de polícia, em que muitas vezes filmes
despretensiosos paravam na mesa de um diretor da Polícia Federal.
Havia uma crença consolidada de que os filmes, bem como outras
obras de arte, poderiam causar um mal deletério àqueles com os
quais entrasse em contato. A única forma de extirpar esse mal, es-
pecialmente aos que fugissem à boa moral ou a diretrizes políticas
consideradas então corretas, era o ato da censura propiciado pelo
Estado com o apoio de organizações da sociedade civil.
Mas o processo ainda não havia se encerrado, e consta no dia
26 de julho de 1979, cinco anos depois, um pedido de reexame do
filme, dessa vez para televisão. Sabe-se como o processo de censura
para televisão era muito mais rigoroso do que para salas de cinema,
mesmo em períodos denominados de abertura política.13Dois pare-
ceres, datados de julho de 1979, liberam o filme por unanimidade
para maiores de 18 anos. Ambos indicam mais um corte logo no iní-
cio do enredo, para além daqueles indicados na avaliação de 1973.
Entre esses dois, o parecer assinado pela censora Teresa Cris-
tina dos Reis Marra é mais enfático, afirmando que o filme “pode-
rá ser liberado com a classificação máxima com corte de cenas de
bacanal e nus, contidas na apresentação da película.” (itálico meu).
Continua sua argumentação, afirmando que “a atuação livre e des-
regrada da personagem feminina, do ponto de vista sexual requer
uma impropriedade máxima”. Indica assim o corte, que vai “desde
quando aparecem casais em colóquio à beira da piscina, seminus
e cena de bacanal, até quando aparece um carro amarelo”. De fato,
essa cena não consta na versão analisada para este artigo.
O que chama a atenção primeiramente é a presença do termo
bacanal, de origem pejorativa, condenando a atitude dos jovens do
enredo. E, especialmente, o peso que cai para a censora sobre as ati-
tudes e o corpo feminino, mesmo que o filme termine com um viés
moralista que condena o relacionamento alternativo defendido por
Laura. A ênfase parece ser muito menor sobre o corpo masculino.
Outro certificado é emitido, com validade de 3 de agosto de 1979
Reconhecendo território
11
Como nos casos dos filmes Pixote: a lei do mais fraco(1981), O Homem que Virou Suco (1981)
e Pra Frente Brasil (1982).
12
Como no caso dos filmes Os Garotos Virgens de Ipanema(1973) e Coisas Eróticas (1982).
13
Como demonstram as análises dos processos de O Homem que Virou Suco (REIS JÚNIOR;
LAMAS, 2013) e Pra Frente Brasil (REIS JÚNIOR; LAMAS, 2014).
57
até 3 de agosto de 1984, proibindo o filme para antes das 23 horas e
impondo o novo corte especificado nos dois pareceres.
Outro pedido de censura é realizado, dessa vez datado de 29 de
agosto de 1984. Contrariamente ao que se poderia imaginar, nesse
tempo a censura à televisão era mais rigorosa do que em períodos
anteriores. Quem ocupava o cargo de diretora da DCDP era Solan-
ge Maria Teixeira Hernandes, a Dona Solange, conhecida pelo rigor
que cobrava na análise de filmes e outras obras pela Censura.
Assim, contrariamente aos pareceres anteriores, os dois emi-
tidos nessa fase do processo recomendam sua proibição integral
para televisão. Em um dos pareceres, datado de 14 de setembro
de 1984 e sem identificação de autoria, o censor resume a história
como a “dramática experiência da derrocada moral, física e econô-
mica de circunspecto professor ao se apaixonar por jovem devassa”.
Para ele, “as mensagens são deprimentes pelo ridículo e o drama
que cercam a destruição de amor e a inconsequente irresponsabili-
dade e egoísmo da jovem.” (itálico meu)
O filme tem sua face moral reconhecida, sendo considerado um
alerta como um exemplo do que não deveria acontecer. Encontra
problemas na linguagem oral dos personagens, caracterizando-a
como “incisiva e com deboches aos valores ‘antigos e quadrados’”.
Sua maior implicação censória, entretanto, encontrar-se-ia ainda
na exposição dos corpos, tal como no trecho em destaque:
58
Considerações Finais
O processo de censura de Anjo Loiro revelou, de forma similar
ao processo de Os Garotos Virgens de Ipanema, como um filme des-
pretensioso do ponto de vista político poderia ser alvo sistemático
da Censura, não só pelo número elevado de cortes, mas também
pela rigorosa fiscalização posterior, que abrangia da unidade central
em Brasília até órgãos regionais da DCDP. Da mesma forma também
que essa outra pornochanchada, o processo de Anjo Loiro mostra a
vulnerabilidade dos produtores aos desmandos da Censura, acarre-
tando graves prejuízos para a equipe, ainda mais em se tratando de
filmes que dependiam unicamente do retorno de bilheteria para o
pagamento de todos seus profissionais.
Similarmente também a Os Garotos Virgens de Ipanema, Pixo-
te: a Lei do Mais Fraco e O Homem que Virou Suco, Anjo Loiro teve
uma avaliação mais rigorosa ainda para a televisão do que para as
salas de cinema, mesmo tendo sido liberado anteriormente pelo ór-
gão federal. A exposição do corpo, sobretudo o feminino, permane-
cia sendo um problema em meados da década de 1980, mesmo que
o final da trama valorizasse a relação estável entre parceiros.
Tal constatação reforça também a imprecisão dos critérios ado-
tados em Brasília, que em um determinado período liberam o filme
para televisão, e em outro posterior o proíbem, mesmo com a inci-
dência de novos cortes e a limitação para maiores de 18 anos.
É importante notar que boa parte dos casos mais conhecidos de
rigor da censura às pornochanchadas – em que se destacam Anjo
Loiro, Os Garotos Virgens de Ipanema e Os Mansos – são de filmes
lançados durante os anos de chumbo da Ditadura Civil-Militar. No
caso desses três filmes, todos foram lançados no ano de 1973. A ava-
liação mais branda para o circuito cinematográfico, presente sobre-
tudo a partir da segunda metade da década de 1970, está inserida
em um quadro onde não só há uma certa abertura política e deslegi-
timação da Censura como órgão do Estado, mas também a retração
do circuito exibidor.
Como apontou Simões (1990, p.144) desde a segunda metade da
década de 1950 o público das salas de cinema no estado de São Pau-
lo sofreu uma queda considerável, chegando a uma média de de-
créscimo de 50% a cada 15 anos. Os suntuosos cinemas, símbolos de
Reconhecendo território
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60
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Anjo loiro. Dir. Alfredo Sternheim. Brasil: Brasecran, 1973. VHS (90
min), color, sem legenda, Port.
61
Luciana Rosar GÊNERO, CENSURA E PORNOCHANCHADA
Fornazari Klanovicz
NO CINEMA BRASILEIRO
Willian Bruno Corrêa
63
Um dos principais elementos que precisam ser lembrados é
que, como fenômeno cultural e objeto de pesquisa, tendo nascido
durante a ditadura, a pornochanchada foi sendo interpretada à luz
dos períodos em que suas análises foram realizadas, num jogo que
ora posicionou as obras de pornochanchada como frutos diretos do
regime autoritário, ora representou-as num papel de resistência es-
tética e crítica à ditadura.
Ampliando-se o foco para além de quem patrocinou ou para
que fins a pornochanchada servira, do ponto de vista dos costu-
mes e mais especificamente a partir do mundo da sexualidade, se
diversos filmes escaparam à visão de classe média e do patriar-
cado em favor de uma sexualidade que alguns autores chamam
de favelada (FREITAS, 2004), também é importante considerar que
tais obras mantiveram firme compromisso com a manutenção da
heterossexualidade normativa.
Para pensar essas questões de gênero ligadas à história da por-
nochanchada, tomaremos como pano de fundo os filmes A Super
Fêmea, de Aníbal Massaini Neto (1973), e Guerra Conjugal, de Joa-
quim Pedro de Andrade (1974). A Super Fêmea (1973), com roteiro
de Lauro César Muniz, de Alexandre Pires e Adriano Stuart, narra
a história de uma modelo, Eva (interpretada por Vera Fischer), con-
tratada para uma campanha publicitária de pílulas contraceptivas
masculinas. Ela encontra dificuldades em conquistar o público-al-
vo, já que os homens têm medo de que pílula possa causar impo-
tência. Por outro lado, Guerra Conjugal adapta roteiros e histórias
do escritor Dalton Trevisan, e narra experiências de casais que se
odeiam, mas continuam vivendo juntos.
Nas duas obras, algumas cenas de sexo e expressões de baixo
calão foram alvo de censura total ou parcial, mas é interessante
pontuar que comentários referentes à política acabaram não so-
frendo cortes. Essa realidade de costura dos filmes nos abre a pos-
sibilidade de pensar o papel, as formas de agir de censores estatais
sobre a produção cultural no período (LAMAS, 2014).
Assim, não é forçoso discutir, em linhas gerais, o local de emer-
gência da pornochanchada e suas relações com os organismos de
controle de produções culturais que operavam no Brasil à época de
sua circulação, para depois deslocarmos o olhar para como esses
mesmos organismos trabalhavam em cima das obras.
Parte 1
64
Pensando a Pornochanchada
Grande parte da produção de pornochanchadas, cerca de 90%,
foi realizada na Boca do Lixo, na cidade de São Paulo. Este local
também foi o principal espaço de produção do cinema marginal,
ou cinema de invenção, caracterizado como sendo de vanguarda,
“absolutamente transgressor comprometido com a criatividade do
autor e o experimentalismo e que possibilitou nomes como Rogé-
rio Sganzerla, Andrea Tonacci, Fernando Cony Campos, Lygia Pape,
José Mojica Marins de mergulharem em um universo paleopolítico,
dissonante, caótico e questionador (TRAD NETTO, 2014). A cidade,
desde o final dos anos 1930 era polo da indústria de cinema e pro-
dutoras como a Paramount e a Fox instalaram-se na cidade e, ao
longo das décadas seguintes, distribuidoras, fabricantes de equipa-
mentos de cinema e eletrônicos além de empresas de menor porte
foram sendo atraídas para a região. As empresas localizaram-se
especialmente no Bairro da Luz, na rua do Triunfo, próximo à esta-
ção da Luz, o que facilitava o transporte de equipamentos pesados
e facilitava a logística.
O principal estúdio de cinema brasileiro, a Vera Cruz, veio a se
fixar na região. Contudo, com a falência do estúdio, todas as peque-
nas empresas, pessoal técnico e produtores moveram-se da região
e, a partir dos anos 1950, o espaço passou a ser ocupado por prostitu-
tas, usuários de drogas, mas também por inúmeros bares e espaços
de prazer barato (STERNHEIM, 2005, 2005, p.13). O autor lembra que,
66
res e produtores teceram, ou foram obrigados a tecer, com os orga-
nismos de censura do estado.
Antônio Reis Junior e Caio Lamas (2014), nesse sentido, discuti-
ram o papel da censura estatal contra o filme Os Garotos Virgens de
Ipanema, de 1973. Ao analisar documentos da Divisão de Censura
de Diversões Públicas (DCDP), órgão da Polícia Federal responsável
pelo controle censor da produção cultural brasileira, pontuaram a
complexa dinâmica dos mecanismos de censura vertical frente ao
mundo das produções culturais no país.
De acordo com os autores, a leitura da censura como atividade
dinâmica e marcada pela complexidade só é possível se se observa
sua historicidade no Brasil. Criado nos anos 1920 em pleno estado
democrático e ligado visceralmente ao Ministério da Justiça e à Po-
lícia Federal, o controle da produção cultural teve, antes do regime
civil militar, um sentido eminentemente paternalista:
68
liberado apenas dois anos depois, porque era escandaloso e não en-
caixava o sexo num padrão vigente, quer fosse comercial ou político
(Bernardet, apud Mantega, 1979, p.91).
Em 2009, Cristina Kessler, em “Erotismo à brasileira: o ciclo da
pornochanchada”, pontuava que o sucesso delas era justamente sa-
berem explorar a ambiguidade presente tanto nos títulos dos filmes
quanto no conteúdo. A autora enfatiza que os filmes, voltados assu-
midamente ao público masculino, representavam tipos femininos
para todos os gostos: virgens, viúvas, mulheres experientes, quase
sempre belas e desinibidas (KESSLER, 2009, p.17). A autora ainda
enfatiza que, mais importante até mesmo que o próprio sexo, as
formas femininas eram o principal atrativo oferecido pelos filmes
(KESSLER, 2009).
Romulo G. de B. Gomes (2012) observa que as pornochanchadas
traziam em si toda a carga da cultura em que se inseriram, moldan-
do as relações sexuais expostas nas películas conforme as tendên-
cias normativas do período e contribuindo, de tal maneira, para a
contínua doutrinação do seu público. Nesse sentido, elas puderam
agir como instrumentos normatizadores de posturas misóginas
(GOMES, 2012, p.176).
Joana M. de Vasconcelos (2012) discutiu o impacto da lingua-
gem visual nos cartazes que serviam de suporte para a divulgação
dos filmes da pornochanchada, com ênfase na produção gráfica
e visual de Benício da Fonseca, principal ilustrador de cinema no
Brasil nos anos 1970. O trabalho da autora desloca o olhar sobre a
pornochanchada para a dinâmica complexa que apresentava ao
movimentar estética e economicamente outras indústrias para a
comercialização de seus produtos, tendo como ponto de partida a
construção estética da mulher desinibida, característica das narra-
tivas cinematográficas da pornochanchada.
Tatiana Trad Netto (2014) busca, por meio da leitura de carta-
zes de filmes da pornochanchada e do cinema marginal, discutir
a visibilidade das mulheres nas construções da narrativa cine-
matográfica brasileira. Para ela, pensar a pornochanchada com-
parativamente a outras estéticas cinematográficas no país é abrir
caminho para uma discussão mais ampliada e qualificada sobre
as construções de gênero.
Reconhecendo território
69
Super Fêmea e Guerra Conjugal
A Super Fêmea (1973, filme dirigido por Aníbal Massaini Neto,
filho de Oswaldo Massaini (proprietário da distribuidora Cinedis-
tri, no auge da pornochanchada), comandou a entrada da empresa
no gênero. No filme, um “grupo de publicitários recorreu a um guru
para descobrir como aumentar as vendas das novíssimas pílulas
anticoncepcionais masculinas. A solução dada por ele é criar uma
campanha cujo um ícone feminino, a super fêmea, seja o grande
incentivo para o consumo” (OLIVEIRA, 2013). O filme se concentra
em dois focos: o que acontece com Eva, a moça escolhida para ser a
garota propaganda das pílulas e, ademais, o mundo sujo da propa-
ganda que se move em torno da moça. No meio disso rolam piadas
prontas, referências a filmes famosos, Adoniram Barbosa, tiradas
sexuais, personagens estereotípicos, feministas que parecem um
tipo de inversão do machismo, um publicitário genial e exótico, os
peitinhos da Vera Fisher, algumas críticas aos militares e coisas
mais. [...] No geral, o gosto é bom. Entretanto, o que mais se apetece
é como ele lida com a ideia da criação de símbolos coletivos por
meio da propaganda e, obviamente, da política (OLIVEIRA, 2013).
O elenco era formado por Vera Fischer (no papel de Eva, a super
fêmea) e ainda apresentava artistas como Perry Salles, Adoniran
Barbosa e John Herbert. Super Fêmea foi produzido e lançado no
Brasil no mesmo ano em que o general Garrastazu Médici, então
presidente da República, sancionou a lei que instituía o novo Códi-
go Civil Brasileiro e uma campanha nacional de controle de nata-
lidade. O ano de 1973 também foi marcado pela profissionalização
da censura no país, quando a Política Federal passou a contratar
apenas profissionais de nível superior para a tarefa.
O filme começa com uma convenção de mulheres que exigia
que os homens passassem a tomar a pílula anticoncepcional. Em
seguida, há um corte abrupto de cena, e o plano desloca-se para
uma externa na qual retrata-se uma passeata. Ao longo da mani-
festação, podem ser lidos cartazes com a expressão “Abaixo ao po-
der do homem”. Não se trata apenas de uma referência ao poder
patriarcal ou ao poder exercido por homens em linhas gerais, mas
podemos inferir, também, que a expressão está dirigida ao próprio
presidente da república, o então general Emílio Garrastazu Médici,
que, à época, era chamado de “o homem”. Mais adiante, um discur-
so feminino abre a cena conclamando lutadoras para empunhar a
bandeira da revolução do sexo, na voz de uma personagem que é
Parte 1
70
Um Acontecimento gente, um marco decisivo nas conquis-
tas do direito da mulher. Volta as ruas a mulher paulista,
como sempre para o exemplo ao país. Desta vez, empu-
nhando a bandeira da revolução do sexo, dentro do nosso
espírito democrático, vamos ouvir a opinião do sexo (SUPER
FÊMEA, 1973).
74
5º rolo: cena no prostíbulo: cortar a partir do instante em que
a velha se despe até quando o ator sai do bordel.
OBSERVAÇÃO: cortes extensivos ao “treiler”, no que couber. É
o nosso parecer. Em 20 de janeiro de 1975.
Paulo Leite de Lacerda, Carlos Rodrigues, Correira Lima (ME-
MÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO, 2015).
sai para a televisão. Mesmo com tantas dificuldades, sem apoio fi-
nanceiro da Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme) e com
os militares no encalço, cineastas continuam trilhando o caminho
tortuoso e burocrático da liberação de suas produções e Joaquim
75
Pedro talvez seja um dos que mais percorreu corredores estatais
para negociar liberações.
A atuação da censura não se dava apenas pela sua forma mais
usual – a institucional e que é necessariamente verticalizada. Ela
também atuou de maneira horizontal e, entre os anos 1970 e 1980, é
interessante perceber a dinâmica mais pulverizada da censura em
suas nuances oficiais e aquelas aceitas socialmente.
Entende-se dessa forma, por censura vertical “a censura pro-
movida por meio dos dispositivos legislativos e mecanismos ins-
tituídos como norma ou regra estatal. Já a censura horizontal é
entendida como a censura promovida por cidadãos comuns, que
incluem pessoas as mais diversas, mas que não representam o po-
der público e do estado” (KLANOVICZ, 2008, p. 222).
Especialmente quando as produções culturais colocavam cor-
pos de homens e de mulheres em destaque é que podemos notar
que ambas as formas de censura eram tomadas como “vontades
de poder que atuaram de diferentes maneiras, mas que buscavam
a manutenção do cerceamento de determinadas relações, princi-
palmente quando se deparavam com aspectos do erotismo” (KLA-
NOVICZ, 2008, p. 222). Conforme salientado neste capítulo, mesmo
após a liberação de obras culturais para o circuito de exibição, car-
tas e telefonemas eram artifícios utilizados como forma de operar a
censura horizontal e impedir sua veiculação no país, especialmen-
te entre os anos 1970 e 1980.
O uso desses artifícios era patente, especialmente quando nos
referimos a obras produzidas durante a segunda metade dos anos
1980, mas é importante pensar também essa mesma relação entre
as censuras horizontal e vertical para os anos 1970, uma vez que,
como pontua Luciana Klanovicz, “as produções culturais represen-
tavam oportunidades para discutir a atuação da censura sobre a
liberdade de expressão, o papel dos artistas, ou ainda da relação en-
tre estado e cultura” (KLANOVICZ, 2013).
Nessa atmosfera, “assuntos como o erotismo repercutiam em
outros meios de comunicação, especialmente na imprensa escrita
—, seguidos de posicionamentos favoráveis e contrários, que acaba-
vam por ser vinculados a questões mais amplas, sobre a censura e
sua necessidade em meio ao mundo cultural brasileiro” (KLANO-
VICZ, 2013).
A reportagem publicada na revista Veja, de 23 de abril de 1975,
tratando do filme Guerra Conjugal, demonstra essa oportunidade
de discussão na mídia impressa. Ao apresentar o filme aos leitores
Parte 1
influentes e estado.
Pelo menos é o que pontua Trunk, quando se refere à falta de
apoio da Embrafilme às produções criadas na Boca do Lixo. Para ele,
a Embrafilme era mantida pelos realizadores oriundos do Cinema
Novo e, nesse sentido, o órgão destinava a maior parte de seu orça-
77
mento para apoiar produções de diretores ligados a essa corrente
cinematográfica. As coisas funcionavam na forma de um “clubinho
fechado e restrito”, de acordo com ele. Enquanto, argumenta, a em-
presa estatal financiava produções de filhos de ministros, diploma-
tas e políticos, diretores da Boca do Lixo como Rubens da Silva Pra-
do (Alex Prado), era filho de açougueiro e José Mojica Marins (Zé do
Caixão), antes de ser diretor de cinema foi operário numa fábrica de
fósforos (TRUNK, 2015).
Além disso, outro fator tinha relevância, de acordo com Trunk:
enquanto todas as autarquias e empresas públicas da União tinham
sede em Brasília, a Embrafilme jamais saiu do Rio de Janeiro, o que
acirrava ainda mais as disputas culturais com a cidade de São Paulo,
o que teria feito com que as produções paulistas fossem preteridas
(TRUNK, 2015).
Trunk (2015) afirma que a Embrafilme prestava apoio financei-
ro apenas para aqueles cineastas que faziam filmes mais voltados
à elite cultural brasileira. As produções da Boca do Lixo incomo-
davam essas mesmas elites, ao mostrar corpos nus ou seminus e
uma sociedade marcada pela crueldade, além de produzir filmes
voltados, como já dito, ao público masculino, com títulos de apelo
sexual: 19 mulheres e 1 homem (1977), A Noite das Taras (1980), Ain-
da Agarro Esta Vizinha (1974), A Dama do Lotação (1978), Vítimas
do Prazer (1977), Clube das Infiéis (1975), O Bem Dotado - o homem
de Itu (1979). Sobre o apelo sexual das obras produzidas no período,
Mantega observava, ainda em 1979, que
78
pulares e nas revistas masculinas de segunda linha. Ele não
ligava pra críticos de cinema, diretores (TRUNK, 2015).
Considerações Finais
A Boca do Lixo foi importante espaço de construção do cine-
ma brasileiro, tendo tido seus filmes repercussão e servido como
fontes para a produção de pesquisas, documentários, livros, filmes
e artigos. A pornochanchada não é tudo aquilo que foi produzido
na década 1970, tampouco só filmes eróticos, esses foram rótulos
que críticos, intelectuais e todos aqueles que desconheciam o árduo
trabalho da Boca a deram. Concluímos esse trabalho falando da im-
portância de se entender que a censura vigente durante o governo
militar era composta por técnicos censores sem o menor preparo o
que fez com que filmes com cenas de crítica social como A Super
Fêmea passassem despercebidos, se nessa produção observamos
seios, nu feminino e ainda no final uma ácida crítica ao governo
vigente, por outro lado tudo isso passou batido.
Já em Guerra Conjugal observa-se que os censores em unani-
midade fizeram de tudo para que a produção se quer fosse exibida,
tanto que o filme só teve permissão para ser exibido no ano seguin-
te da sua produção e a exibição na televisão fosse realizada com
cortes de cena e em horário restrito, apenas no final de 1981. No-
ta-se aqui duas formas distintas de censura, na primeira produção
analisada nesse trabalho, contamos com as sacadas irônicas do di-
retor e com nenhuma sugestão de corte. Já na segunda em que não
é possível observar nenhuma crítica ao governo vigente, o filme foi
praticamente retalhado pelos censores conforme documento apre-
sentado aqui. Assim sendo era mais importante nesse período proi-
bir o sexo, o nu, a insinuação de sexo, do que ter atenção em cada
detalhe da produção como em A Super Fêmea.
A censura estatal tinha inúmeros critérios para proibir uma pro-
dução cultural, além de instrumentos burocráticos que poderiam
congelar a tramitação de análises das produções a ela submetidas,
como é o caso de Guerra Conjugal. Ser católico, defender a família
brasileira ou outros itens que emanavam da subjetividade do cen-
sor poderiam bastar para mutilar alguma obra. Desenhava-se um
Reconhecendo território
79
Boca do Lixo, que de maneira direta ou indireta, voluntária ou não,
atentaram contra alguns valores morais da sociedade brasileira
nos anos 1970.
A preocupação central, nesse sentido, foi a de contribuir para
ampliação do foco dos estudos acerca da história do cinema da
pornochanchada assim como da história da ditadura civil militar
na década de 1970. Vale reforçar que não existiu um único “padrão”
de censura acerca tanto do que se censura quanto de que forma se
censura, vertical ou horizontalmente. A Pornochanchada é História,
a Boca do Lixo é História, tanto quanto as questões políticas sociais
da década aqui discutida.
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Reconhecendo território
81
Renan Siqueira Rossini PORNOCHANCHADA: UM SINTOMA BRASILEIRO
83
siderações sobre a pornochanchada e suas explicações de cunho
psicológicas para seu imenso sucesso, tendo em vista que ainda é
um tema que encontra-se incipiente no meio acadêmico.
Considerações Finais
A pornochanchada é um fenômeno expressivo da cultura bra-
sileira, embora renegada pelos seus cidadãos e pelo puritanismo
Parte 1
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Parte 1
100
parte 2
Começando
a despir
Álvaro André Zeini Cruz O CIENTISTA E OUTROS ESTEREÓTIPOS EM
Erik Ceschini “O GÊNIO DO SEXO”
Panighel Benedicto
Nos últimos anos, para além de uma indiscu-
tível e multifacetada expansão da cinematogra-
fia nacional, a produção/exibição cinematográ-
fica brasileira tem usufruído e retroalimentado
um crescente interesse do público pela comédia.
Exemplo disso são os expoentes do gênero re-
lacionados à Globo Filmes que, além de contar
com um star system importado das telenovelas
da principal emissora do país, realoca para a tela
de cinema uma estética habitual ao público, pois
dialoga com nosso principal produto televisivo.
A comédia é designada como gênero desde
os primórdios do teatro grego e, segundo Aris-
tóteles, elas seriam, em oposição às tragédias,
representações dos homens inferiores. Entre-
tanto, o balizamento do gênero por parte dos
mais díspares autores ao longo da História fez
com que ele se desdobrasse. Eclodiram, assim,
os subgêneros da comédia chegando à conheci-
da estratégia do nonsense, mais conhecido por
“pastelão”, o qual se caracteriza exatamente pela
exposição das personagens a situações ridículas
e grotescas (ALMEIDA, 2004).
Contudo, as comédias não são uma novida-
de em nosso cinema; prova disso é a querela em
que se meteu o crítico Jean-Claude Bernardet
ao equiparar o recente De pernas para o ar 2 às
chanchadas da Cinédia e da Atlântida, comédias
de costumes onde reinavam o humor populares-
co e físico (a cena em que Oscarito, travestido,
imita Eva Todor como se esta estivesse refletida
num espelho, sintetiza com veemência o espírito
das chanchadas). Reconhecida historicamente
105
como um dos mais expressivos movimentos a constituir nossa ci-
nematografia, a chanchada lançou ainda nomes como Dercy Gon-
çalves e Grande Otelo (que, junto a Oscarito, protagonizou a célebre
cena em que interpretam, respectivamente Romeu e Julieta, no
filme Carnaval de fogo), além de diretores como Watson Macedo e
Carlos Manga.
Caracterizadas por uma “certa ingenuidade maliciosa”, como
ressalta Nuno Abreu (p. 167), as chanchadas tiveram seu ápice en-
tre as décadas de 1940 e 1950, decaindo na década seguinte (prin-
cipalmente com a falência da Atlântida). Surgiu, nos anos de 1960,
o Cinema Novo, nossa mais profícua produção considerando o re-
conhecimento artístico imediato. Acolhido por plateias da Europa,
o movimento capitaneado por Glauber Rocha e dotado de alto teor
político, despertou de forma inédita um interesse das elites brasi-
leiras (algo que as chanchadas – populares – não atingiram). Em
contraponto à devida atenção dada ao Cinema Novo, um outro mo-
vimento despontou no final da década de 1960, estendendo-se até
o início dos anos 1980: as chanchadas de outrora se aliaram ao ero-
tismo e surgiram, assim, as pornochanchadas. Abreu destaca que,
reverberando certa permissividade da época, a pornochanchada
aglutinava como elementos recessivos a nudez feminina e a insi-
nuação do ato sexual, entretanto, a comédia de costume continua-
va, como na chanchada, como elemento preponderante (p. 168).
As salas de cinema são, então, inundadas com títulos que va-
riam dos apenas sugestivos – como “A viúva virgem” e “O homem
de Itu” – aos maisexplícitos(“As Taradas Atacam”, “A árvore dos se-
xos”), ou ainda, satíricos com cunho de paródia ao estilo de “Baca-
lhau” e “Nos tempos da Vaselina” (parodiando, respectivamente, os
hollywoodianos Tubarão e Nos tempos da brilhantina).
Assim como as chanchadas, as pornochanchadas foram, tam-
bém equivocadamente, subestimadas em seu valor cultural. Essa
desvalorização encontra-se, inclusive, na etimologia dos termos,
originários do vocábulo “chancho”, que significa “porco”, em espa-
nhol (SELIGMAN, 2000). Ainda que ignorada pela elite intelectual
da época, a pornochanchada repetiu o fenômeno do movimento ci-
nematográfico primordial (a chanchada), tornando-se um sucesso
entre as camadas mais populares da sociedade. Mas, para atrair e
agradar o público, algumas estratégias foram adotadas.
A utilização da comédia de costumes escrachada foi, novamen-
te, medular, associada agora ao erotismo e ao apelo dos títulos, como
já mencionado. A popularidade da pornochanchada, bem como sua
Parte 2
106
pelo crítico Inácio Araújo, num texto de 1983 ao jornal Folha de São
Paulo: “o público quer ver problemas sexuais em cena, preocupa-se
com isso e não tem dinheiro para pagar o psicanalista. A porno-
chanchada é o divã do pobre. Não há mal nisso. Os letrados é que
são pudicos” (2010, p. 31). No mesmo artigo, Araújo, ao emprestar
uma citação de Bernardet, pontua que “a pornochanchada é o único
cinema honesto que se faz no Brasil atualmente” (p. 31).
As estratégias iam além: as peripécias do roteiro corroboravam
o tom de escárnio, e, com constância, beiravam o nonsense, ou seja,
de certa forma, como o Cinema Novo, a pornochanchada também
propôs rupturas à linearidade do classicismo cinematográfico. En-
tretanto, se os desdobramentos da trama eram, muitas vezes, ines-
perados, no que concerne à construção dos personagens, a utiliza-
ção de tipos típicos foi recorrente. São os chamados estereótipos.
As figuras que transitaram pelas pornochanchadas pertenciam,
portanto, a essa espécie de molde caricatural que é o estereótipo. A
etimologia da palavra reforça esse valor: formada pela união de dois
termos gregos, stereos significa “sólido”, enquanto typos traduz-se
como “um modelo”. O sentido atual do vocábulo se estabeleceu por
volta de 1824 e se refere a um comportamento repetitivo e rígi-
do, padrões e características associadas a um grupo (SCHNEIDER,
2004; SCALFI, OLIVEIRA, 2015).
Dentre os principais estereótipos utilizados nas pornochan-
chadas tem-se a personagem masculina tida como “o garanhão”,
o conquistador de mulheres malandro, macunaímico, não neces-
sariamente dotado de beleza física; as mulheres, em contrapartida,
eram constantemente apresentadas como objetos, erotizadas para
serem contempladas, conquistadas e servirem aos prazeres desse
conquistador-protagonista.
É alicerçada no estereótipo do malandro que se constitui a
trama de “O gênio do sexo” de 1979, dirigido pelo também ator
Paulo Figueiredo. No filme, o personagem conquistador é repre-
sentado por Jorge, que, apesar decasado com Geny, mantém ca-
sos extraconjugais com a secretária e a faxineira da casa. Entre-
tanto, o grande colapso ocorre quando Jorge se apresenta inapto
de cumprir com suas atribuições na cama, situação que preocupa
todas as suas mulheres. Mas é Geny, a oficial, quem procura a aju-
da do cientista conhecido como Professor Andorinha que, em um
anúncio, promete inventar qualquer coisa. Mediante à contrata-
Começando a despir
1
A jornalista Lacy Barca traça um contundente panorama sobre o tema no artigo “As múltiplas
Parte 2
110
já que se trata de obra paradigmática num cinema responsável por
cristalizar elementos formais e de conteúdo para com o público – o
cinema de gênero. Como bem delimita Edward Buscombe, “a cons-
tante exposição a uma sucessão de filmes leva o público a reconhe-
cer que certos elementos formais são dotados de significado extra”
(p. 315). Por fim, além de ser um célebre expoente da temática den-
tro da comédia, O inventor da mocidade tangencia-se através das
peripécias da trama a O gênio do sexo, objeto central deste capítulo.
No texto intitulado O gênio de Howard Hawks, publicado na
Cahier du Cinèma nº 23, em maio de 1953, Rivette celebrava Hawks
como um cineasta da ação, que buscava justamente a superfície das
imagens e dos sons, suas parcelas mais denotativas. Rivette disse:
2
Tradução por Nicola Matevski disponível em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.
br/2009/03/o-genio-de-howard-hawks-jacques-rivette.html
111
a porta – seu intelecto está voltado à ineficácia de sua fórmula da
juventude. O trabalho, e, consequentemente, a ciência, insere assim
um conflito na relação conjugal: compreensiva, Edwina aborta os
planos para a noite (“quando danço com você, quero dançar com
você todo. Não quero que sua cabeça esteja em outro lugar”).
O universo científico é apresentado, portanto, como algo que
consome aqueles que são devotos a ele, a ponto de atrapalhar as
ações mais corriqueiras, como trancar a casa. Habitante de um
filme cômico, o químico vivido por Grant é um estereótipo muito
bem consumado dentro do gênero: as maneiras atrapalhadas, o
uso de neologismos, o cabelo empapado em brilhantina e, sobre-
tudo, os óculos fundo de garrafa em armações grossas o estabe-
lecem como figura à parte do mundo normal (um personagem o
questiona – “Por que não pode ser gênio até o pôr-do-sol e homem
depois? ” – e Barnaby responde – “Nunca sei com antecedência
quando eu vou ser um gênio”).
Se no filme de Hawks o conflito conjugal é apresentado numa
ação corriqueira, na pornochanchada de Figueiredo, a rotina invade
o momento do sexo, apresentado já na cena introdutória: Jorge, um
garanhão nato, falha com a esposa Geny e esse é o incidente inci-
tante que a faz buscar a ajuda de Andorinha.
O cientista vivido por Pedro Cassador não tem o alinhamento
do vivido por Grant (nem a estampa do galã hollywoodiano), mas
ainda na perspectiva do estereótipo, mantém algumas caracterís-
ticas basilares (os óculos em armação circular, o jeito atrapalhado),
enquanto, simultaneamente, atualiza outras ao espaço e gênero (o
jaleco dá lugar ao colete vermelho, cor trabalhada em sobretons
também na camisa e na gravata). O estereótipo, assim, oscila den-
tro do próprio gênero: ainda que ambos mantenham-se no recorte
da comédia, o cientista vivido por Grant, que vive num contexto
norte-americano dos anos 1950, é mais próximo à realidade e se
enquadra bem ao tipo de comédia em que se encontra; já Ando-
rinha, esse cientista subdesenvolvido dos trópicos e habitante de
uma pornochanchada, atravessa o quase invisível limiar entre o
excêntrico e o esdrúxulo.
Seu “laboratório”, por sinal, é extensão de si próprio: bagunça-
do, está mais para um ferro-velho do que para um lugar destinado
ao desenvolvimentoda ciência. Nesse sentido, o estereótipo espa-
cial é quebrado; enquanto o imaginário comum de um laboratório
consiste em espaços amplos, claros e bem organizados (como é
o que trabalha Barnaby, em “O inventor da mocidade”), o local de
Parte 2
114
conhecimento científico) serem datadas do século XII, as mulheres
só tiveram acesso às instituições apenas a partir de 1865. Contudo,
tal admissão recebeu forte oposição sob a justificativa de que a ati-
vidade acadêmica poderia debilitar o corpo feminino que, frágil, não
resistiria a atividades intelectuais elevadas, podendo interferir até
no papel da mulher como progenitora. Outra alegação, ainda mais
lancinante, era de que as mulheres nasceram para viver em subor-
dinação (YANNOULAS, 2007). Portanto, novamente o filme firma seu
caráter masculino, colocando homens em situações de comando.
O androcentrismo em “O gênio do sexo” não se restringe aos
personagens humanos: Robovaldo, a criação mecatrônica de An-
dorinha, revela-se uma personagem masculina que reverbera
diversos comportamentos estereotipados típicos ao gênero: de-
monstra seu interesse por corpos femininos (algo sempre cerca-
do de comentários machistas), explicita seu desejo em ter uma
companheira e revela que uma relação conjugal ou sexual só não
é consumada pelo fato de lhe faltar “a peça principal”. O robô ainda
demonstra-se extremamente constrangido quando precisa passar
pela troca de óleo, que ocorre por um orifício situado em sua par-
te traseira; nota-se assim que tal ato é compreendido como uma
afronta “a sua masculinidade”.
Robovaldo, porém, não é mera peça de afirmação da sobera-
nia masculina presente no roteiro; é engrenagem fundamental na
construção do próprio inventor. Num primeiro momento, ele ates-
ta a capacidade de Andorinha como inventor, pois trata-se de uma
obra tecnológica que causa espanto e admiração nos demais perso-
nagens; mais adiante, por ser o melhor e único amigo de Andorinha,
Robovaldo traz à tona outra importante característica vinculada ao
estereótipo do gênio – a exclusão social. Essa privação de conta-
to com outros seres humanos atinge seu ápice quando o professor
revela ao autômato que seu contato com o sexo feminino também
ocorrera por meios robóticos, relação que acabou mal sucedida (se-
gundo o cientista, ela o machucava), e que, portanto, levou Andori-
nha a priorizar uma companhia masculina.
Esse isolamento social atinge a própria geografia em que cir-
culam as personagens, já que o cientista vive em uma região de-
sértica. Não à toa, quando Geny – personagem urbana que estere-
otipa a mulher de classe média – adentra esse universo singular
e segregado, demonstra desconcerto logo respondido por Andori-
Começando a despir
116
Embora exista em outros gêneros, na comédia o estereótipo de-
termina, com maior recorrência, marcas físicas dos personagens,
tornando-os caricaturas reincidentes. Cientistas excêntricos, em
maior ou menor grau, podem ser encontrados em filmes recentes
como as animações “Frankenweenie” e“Tá chovendo hambúrguer”,
assim como em filmes mais antigos, como “O incrível monstro tra-
palhão”, “Edward, mãos de tesoura”, “De volta para o futuro” (um es-
tereótipo inconfundível), e o já debatido “O inventor da mocidade”.
Apesar da popularidade desse “típico cientista” das comédias
com o público, é importante discutir o papel que os meios de comu-
nicação em massa têm na divulgação e reforço de ideais. Segundo
Siqueira (2006, p. 132):
117
surgir em função de modelos revestidos de categorias de
prestígio, categorias essas que são preconceituosamente
associadas (como o tipo físico, cultura, sucesso, desenvol-
vimento etc). A ridicularização aqui, pelo avesso, confirma a
existência de modelos considerados ideiais.
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Começando a despir
119
Muriel Amaral AS REPRESENTAÇÕES DA PERVERSÃO
E O ESTEREÓTIPO NO FILME
“MACHO, FÊMEA E CIA – A VIDA ERÓTICA
DE CAIM E ABEL”
Começando a desnudar-se
Transgressora pela poética visual e pelos
temas abordados, a pornochanchada brasileira
foi subversiva em apresentar cenas de nudez e
sexo explícito ainda na vigência do regime mili-
tar (1964-1985). Executada sob baixas cifras orça-
mentárias, com forte apelo da sexualização dos
corpos e qualidade técnica deficiente, a porno-
chancada levou um contingente considerável de
pessoas para as salas de projeção, não fazendo
distinção entre os indivíduos que a assistissem.
A pornochanchada não se limitava apenas à pro-
dução de filmes eróticos, mas mesclava-se com
outras narrativas como dos dramas, policiais,
suspense e melodramas (Abreu, 2006).
A idealização dos filmes da pornochanchada
começou no Rio de Janeiro na década de 1960,
mas se consolidou mais significativamente de
São Paulo, mais especificamente no centro da ca-
pital paulista, na região da rua do Triunfo, conhe-
cida popularmente por Boca do Lixo. Aquela re-
gião foi próspera na produção fílmica e de lá que
saíram muitas das produções que foram exibidas
pelas salas de cinemas do país, sendo muitas des-
sas produções independentes, no sentido de não
receber incentivos governamentais e ir contra as
referências de uma cultura erudita, dispondo no
mercado produtos culturais de baixo orçamento.
A pornochanchada e as produções da Boca
do Lixo tiveram papéis significativos na forma-
ção da indústria cultural brasileira ao estabelecer
uma relação de consumo e produção em larga
121
escala dos filmes que circularam pelo Brasil, muitos dos filmes gra-
vados pelas produtoras da Boca não se limitaram apenas às metró-
poles, mas alcançaram também as cidades interioranas.
Para Abreu (2006), a pornochanchada surgiu em um contexto
em que havia fortes movimentos da contracultura e a emergência
de consumo de produtos culturais que não acompanhavam os valo-
res e as referências produzidas e reproduzidas pela cultura erudita
e elitista. Em tons satíricos e irônicos, as narrativas das pornochan-
chadas desafiavam as estruturas conversadoras. Alguns filmes,
novelas, músicas, peças teatrais foram barrados para exibição por
conta da atuação da censura no País, todavia, poucos dos filmes
da Boca, incluindo a pornochanchada, foram censurados, mesmo
apresentando uma poética de alto teor erótico.
Para esse fenômeno, Caio Lamas (2012) se apoia nas reflexões
de Michel Foucault sobre poder e censura para explicar as razões
para esse fato. Para ele, sob olhar foucaultiano, o poder é transitó-
rio e impessoal e não necessariamente punitivo, além de ser um
campo de disputa e de tensão, em que as forças não se encontram
fixas, propondo deslocamentos de atuação. Isso oferece uma con-
dição de elucidar que mesmo havendo a repressão, tanto do Estado
como de algumas parcelas da sociedade em proibir a circulação e
produção desses produtos, há também uma força de intensidade
semelhante que faz com que o sistema não seja reprimido e con-
tinue em atividade. Lamas acredita que a censura acontece pela
ordem do desafeto que pode causar ao sujeito ou a algum grupo;
ao apresentar narrativas humoradas com altas doses de erotismo,
a pornochanchada não poderia ser interpretada como sendo ape-
nas ofensiva ou obscena, uma vez que arrebanhava várias pessoas
aos cinemas que desenvolviam alguma experiência estética com
aquela poética visual. “O obsceno é, sobretudo, uma variedade do
ofensivo, gerando estados mentais desagradáveis: não é possível
ter um inequívoco prazer com a pornografia e, ao mesmo tempo,
classificá-la de obscena” (Lamas, 2012, p.8).
A pornochanchada não seria tão ofensiva, mas certamente
transgressora e invasora e, quiçá, perversa. A perversão ocorre por
não reconhecer a sacralidade de alguns temas como matrimônio e
religiosidade e deslizar sobre as estruturas de poder, ou melhor, sa-
tiriza, vulgariza e recondiciona os valores morais. A perversão, para
a Psicanálise, é considerada uma condição estruturante do psiquis-
mo humano, assim como as neuroses (obsessão e histeria) e a psi-
cose. A intenção desse texto não é de relatar a forma estruturante
Parte 2
posta por Mario Vaz Filho para o filme “Macho, fêmea e Cia – a vida
124
erótica de Caim e Abel” trafega em várias estâncias da simbologia
humana construindo momentos trágicos, subversivos e perversos,
satirizando a passagem bíblica que apresenta o começo do universo,
a criação de Adão e Eva e dos seus descendentes. Já na proposta do
filme encontra-se o primeiro movimento de perversão em subverter
um dogma, no caso, os cânones religiosos cristãos. A intenção desse
texto não é de fazer juízo de valores sobre as cenas de sexo explíci-
to que compõem o filme, nem de apresentar críticas às qualidades
poéticas das cenas, tão pouco de realizar julgamentos sob a ordem
moral da apropriação de uma passagem bíblica para o deboche da
pornochanchada, mas de analisar como foram construídas as re-
presentações de gênero e as relações que são estabelecidas que ora
tendem a significações estereotipadas com alta carga de preconcei-
to, ora são edificadas representações transgressoras e perversas, es-
tabelecendo agenciamentos que subvertem as estruturas de poder.
Antes de analisar as formas de representação de gênero do fil-
me, é importante resgatar a narrativa bíblica sobre a passagem que
apresenta Adão e Eva. De acordo com o livro Gênese, o primeiro da
Bíblia no antigo testamento, Deus criou o homem (Adão) do barro e
com o sopro deu fôlego da vida (Gn. 2-8) e a partir de uma costela,
Deus criou a mulher (Eva) para sejam ambos uma carne (Gn. 2-24),
a Sua imagem e semelhança. A única restrição imposta por Deus ao
casal era que não comesse o fruto da árvore proibida, mas, por deso-
bediência, Eva foi tentada por uma cobra e comeu o fruto e depois o
ofereceu a Adão. Como castigo, além da descoberta da sexualidade,
Deus os expulsa do paraíso e como penitência outorga a dor à mu-
lher no parto e a labuta ao homem.
Adão e Eva tiveram três filhos: Caim, Abel e Sete. Ao menos na
Bíblia, muito pouco se apresenta sobre Sete. As desavenças entre
Caim e Abel começaram quando o Caim começou a sentir ciúmes
de Abel, por que esse seria preferido por Deus. Abel oferecia o me-
lhor da colheita em adoração a Deus e Caim oferecia apenas as so-
bras do seu trabalho como devoção, por isso, a inveja e a intenção
de Caim matar o irmão. Na narrativa, a família cresce, mas a Bíblia
não apresenta como surgiram os demais descendentes de Adão e
Eva, retratando apenas a morte e o nascimento dos personagens.
Com a Terra povoada por seres humanos e muita contravenção
acontecendo, isso despertou a insatisfação divina quanto aos com-
portamentos humanos. Para recomeçar com uma nova proposta de
Começando a despir
como sendo uma subversão das identidades: daquilo que não pode
ser considerado nem como sendo bissexual ou homossexual, tão
pouco como heterossexual, e foge das amarras do processo estru-
129
turante das sexualidades, identidades e gêneros por sublimar as
relações de significação.
130
A morte do totem como um organizador da vida na sociedade
provoca a neurose nos indivíduos que viviam sob a regência des-
se personagem mítico. Essa ausência, quando não simbolizada de
tal forma que amenize o mal-estar, se torna um tabu por não ser
ressignificada, tornando-se uma representação recalcada pelo in-
consciente. Violar os tabus pode ser uma experiência traumática
no sentido de trazer à tona simbologias que se encontravam recal-
cadas, assim, a própria sociedade assume “a punição dos infratores,
cuja conduta pôs em perigo os companheiros” (Freud, 2013, p. 14).
Nessa relação que se encontra as produções da pornochanchada,
em especial desse filme, enquanto uma provocadora do mal-estar
por fazer emergir temas que são considerados tabus pela sociedade
e perversa por deslizar sobre os dogmas da religiosidade.
Do ponto de vista da produção cultural, a pornochanchada tem
o mérito de trazer à tona os tabus para as telas do cinema, nem
sempre os problematizando, mas, ao menos, expondo-os aos espec-
tadores. Em um diálogo entre a Historiografia e a Psicanálise, Certe-
au (2011) reconhece que os dois campos de conhecimentos operam
em referências distintas quanto ao entendimento sobre o passado e
o presente. Enquanto a Psicanálise alega a imbricação entre o pas-
sado e o presente e a ocorrência da repetição em que o presente
repete o passado, a Historiografia (p. 73) considera a relação entre
passado e presente como sucessividade, correlação (em maior ou
menor grau), efeito (um segue o outro) e da disjunção (um ou o outro,
mas não os dois mesmo tempo). O encontro que Certeau percebe
entre os dois campos é no rompimento necessário de compreender
que a formulação da história precisa contemplar também as repre-
sentações que foram silenciadas pelo poder. Aquilo que foi esqueci-
do pela relação de poder ou pela violência imposta por qualquer que
fosse o motivo é trazido à tona também para a formação da história.
Na Psicanálise, esse processo constrói o recalque que se encontra
no inconsciente, ou seja, um arcabouço de signos que não foram
simbolizados para a significação do consciente e que em determi-
nados momentos emergem como representações que deverão ser
trabalhadas e não mais negligenciadas. Como no psiquismo huma-
no, as questões sociais se edificam na produção da história e da cul-
tura sob a perspectiva de outros movimentos que fogem à regra da
força de poder no espaço social. O retorno do recalque dentro das
produções culturais nem sempre é previsível na história, a emersão
Começando a despir
134
sentam a sacralidade do casamento como o trecho no livro de Efé-
sios, do antigo testamento: “Cada um de vós, individualmente, ame
a sua esposa como a si próprio; por outro lado, a esposa deve ter
profundo respeito pelo seu marido” (Ef. 5, 33). No mesmo livro há
uma das passagens polêmicas da Bíblia pede à mulher submissão
ao homem “As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido,
como ao Senhor.... Como, porém, a Igreja está sujeita a Cristo, as-
sim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu mari-
do” (Ef. 5, 22-24). Na subversão dos ensinamentos bíblicos, a esposa
do profeta pratica o adultério, um comportamento condenável na
perspectiva cristã como apresenta o livro de Êxodo “Não adultera-
rás” (Êx. 20,14). Mas em uma das passagens, uma mulher adúltera
foi perdoada por Cristo, como apresenta o evangelho de João (Jo. 8,
3) que a salvou do apedrejamento público pelo comportamento que
na época era considerado crime.
Fazer os enfrentamentos à ordem sacra do matrimônio pode
ser considerado um gesto perverso não apenas no sentido de sa-
tirizar o ponto de vista de um discurso normativo, mas de desafiar
os valores morais religiosos, ainda mais quem pratica o adultério
é uma mulher, uma figura estigmatizada como sendo submissa. A
brandura com que o personagem Não É aceita a traição da esposa
abre para uma reflexão muito pertinente sobre os desejos de um ca-
sal, as formas de lidar com a sexualidade e com a formação familiar,
não se limitando às práticas de uma relação mononuclear. Além de
naturalizar o desejo por outras experiências sexuais extraconjugais.
As traições, as homossexualidades e algumas práticas sexuais se
tornam tabus no meio social por nem sempre haver modos de simbo-
lizá-las enquanto uma forma de ressignificá-las no comportamento e
moral humanos. Incomodar pelos tabus é um meio de importunar as
demandas que uma sociedade não conseguiu lidar com esses fatos.
Por isso, o filme se apresenta enquanto uma produção transgressora
ao trazer à tona esses temas e satirizar passagens bíblicas e tabus re-
ligiosos, ainda mais quando a transgressão é construída pelo uso de
cenas de nudez e de sexo explícito. Entretanto, pela análise das falas
dos atores, pela construção poética das cenas e a comparação com
as reflexões teóricas apresentadas comparadas às passagens da Bí-
blia, os modos de representação dos gêneros são agenciados segun-
do movimentos que ora transgridem, ora não interferem nas con-
dições já conhecidas de representação, seja pela categorização dos
Começando a despir
Considerações Finais
Para entrar em contato com as produções fílmicas da Boca do
Lixo, em especial com os títulos produzidos segundo a proposta da
pornochanchada, é preciso despir-se de quaisquer traços de pre-
conceitos e reconhecer que esses filmes são peças que ofereceriam
uma proposta subversiva de produção de bens culturais em um de-
terminado recorte da história do país. Perceber os movimentos que
aconteceram na produção daqueles filmes é acompanhar as nuan-
ces culturais pelas quais o Brasil estava passando, verificando as
dinâmicas sociais e os comportamentos de consumo dos produtos
culturais, reconhecendo os agenciamentos que ora transgridem as
Parte 2
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Parte 2
138
Carlo José Napolitano “A ÁRVORE DOS SEXOS”: CENSURA MORAL NA
DISTENSÃO DO PERÍODO MILITAR
1
Todas as frases mencionadas em epígrafe no presente texto foram cortadas para a aprovação da
exibição do filme na televisão.
2
Agradeço ao Cláudio Bertolli Filho o convite para participar dessa empreitada.
3
De acordo com Lamas (2012, p. 3) o termo pornochanchada surgiu “agregando o prefixo ‘pornô’, su-
gerindo conter pornografia, ao vocábulo ‘chanchada’, conceito que define produto de mal acabamen-
to e alcance popular –, era usado de maneira indiscriminada para designar produções de diferentes
gêneros cinematográficos, do drama ao suspense. Tratava-se, portanto, de um abrigo de gêneros,
um termo pejorativo, depreciativo. Ainda segundo o mesmo autor (2012, p. 2) a década de 70 foi um
período frutífero em termos de produção de pornochanchadas, menciona o autor que no ano de 1979
29% do mercado cinematográfico tratava desse gênero.
4
O Cine Central foi inaugurado em 1951 e funcionou até 1984. Por essa atividade empresarial recen-
temente meu avô foi homenageado pelo Município de Mineiros do Tietê nomeando o centro cultural
daquela cidade: Centro Cultural Angelo Toniato.
139
nesse livro, obviamente sem que os meus avós e pais soubessem.
No Cine Central também foi o meu primeiro trabalho, eu era o bilhe-
teiro do cinema na sua fase final nos anos oitenta, quando os meus
avós ainda bravamente mantinham o cinema em atividade.
O presente texto trata-se de uma análise da pornochanchada
“A árvore dos sexos”, filme dirigido por Sílvio de Abreu, no final da
década de 1970. O filme retrata uma pequena cidade onde uma ár-
vore dá um fruto em formato de um pênis. O fruto além de servir
de afrodisíaco para as mulheres da pacata cidade, também engra-
vida aquelas que o comem. Questões morais começam a surgir no
desenrolar da trama, envolvendo figuras proeminentes da cidade
como o prefeito, o delegado, a mulher deste e outros personagens.
Especificamente, a análise consistirá na questão da censura moral
imposta pelo regime militar, na promiscuidade de poder envolven-
do agentes públicos, com tentativas de favorecimento pessoal e das
relações do direito com a moralidade.
Para cumprir o objetivo de analisar o filme tendo como foco as
questões acima apontadas, o presente capítulo está assim estru-
turado: breve relato sobre o filme; apontamentos sobre a censura
moral durante o período militar; análise de atos de censura moral
em relação ao filme analisado; moralidade no direito e, por fim, al-
gumas considerações em sede de conclusão.
142
de setores da população que acusavam esse cinema de ruir a moral
e a família brasileira, solapar as bases da sociedade”5.
Cumpre observar que a censura imposta pelo regime militar às
diversões e espetáculos públicos tinha uma conotação moral, en-
quanto a que agia em relação à imprensa era essencialmente políti-
ca (NAPOLITANO, LUVIZOTTO E GONZALES, 2014).
No presente capítulo, o enfoque dado será para a censura rela-
cionada às diversões públicas, como é o caso do cinema, portanto, o
objetivo central será analisar a censura moral do regime militar em
um filme do gênero pornochanchada.
Em trabalho seminal sobre a censura imposta às obras cine-
matográficas Pinto (2006, p. 3) assevera que até antes do golpe de
1964 “a censura apenas classifica os filmes por faixa etária, e os cor-
tes não existem”, no entanto, com o advento do golpe “a censura é
reorganizada, com vistas a servir aos interesses políticos dos mili-
tares no poder”. Esses interesses visavam “moldar a produção aos
projetos políticos do regime. O lema central era proibir, sempre que
possível. Na impossibilidade de proibir, cortar.” (PINTO, 2006, p. 4).
Pinto (2006, p. 4) aponta também certa contradição nas ações
do regime militar, pois:
5
De acordo com Bertolli e Talamoni (2014, p. 301) durante o período militar “Havia uma ‘moral’
Começando a despir
instruidora dos ‘bons comportamentos’, que eram cobrados e sofregamente fiscalizados como
se todos vivessem em um panopticum, termo explorado em um dos principais livros do filósofo
francês Michel Foucault, Vigiar e punir, lançado em 1975 e dois anos depois publicado no Brasil.”
143
Em relação especificamente às pornochanchadas, para exibi-
ção nos cinemas, essas obras, “com raríssimas exceções, não eram
proibidas pelo órgão censor. Na maioria das vezes, eram proibidas
para maiores de 18 anos, com alguns cortes” (LAMAS, 2012, p. 7)
A censura se contrapõe à temática da liberdade de expressão
do pensamento. Em outro texto, já tratei da liberdade de expressão
do pensamento (NAPOLITANO, 2015), alegando que de acordo com
a clássica teoria do direito constitucional brasileiro, a liberdade de
expressão do pensamento é o direito fundamental que qualquer
pessoa tem de exteriorizar, sob qualquer forma, o que pensa sobre
qualquer assunto. (SILVA, 2010).
Na liberdade de expressão está contida a liberdade de opi-
nião, reconhecida como a liberdade de expressão primária, que
consiste na prerrogativa da pessoa de adotar a postura intelectual
que quiser e, se for da sua vontade, exteriorizar essa opinião por
qualquer meio, através dos meios de comunicação, das artes, das
ciências, das religiões, etc.
Observe-se que em diversos dispositivos do atual texto consti-
tucional brasileiro, elaborado após o fim do regime militar e consi-
derado um marco para a redemocratização do país, há referências
à liberdade de expressão do pensamento. No artigo 5º, que trata dos
direitos e deveres individuais e coletivos, vários incisos abordam do
tema. No inciso IX, por exemplo, está disposto que é livre a expres-
são da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença. Verifica-se, deste modo,
que com a redemocratização e com a promulgação da nova consti-
tuição em 1988, a censura está constitucionalmente proibida, pelo
menos a burocratizada e institucionalizada pelo Estado. No entanto,
não era essa a sistemática vigente no período militar, como será
visto na seção que segue.
144
militarização dos órgãos de censura (1967/1968); de censura políti-
co-ideológica (1969/1974) e, por fim, a fase da distensão (1975/1988)
(PINTO, 2006).
Na fase da distensão:
6
Observe-se que o crime de adultério somente foi revogado em 2005, isso mesmo, 2005. O de-
creto e a lei mencionadas também foram revogados. O crime de “Favorecimento da prostituição
Parte 2
146
Na contramão dos ares de liberdade ditados pela abertura po-
lítica, e diferentemente do que se costuma inferir, a censura,
mantida para os espetáculos de diversões públicas, inclusive
para o cinema, apenas muda seu foco, mas continua atuante.
Para as salas de cinema, libera os filmes com uma política
de cortes mais moderada, enquanto para a televisão, onde
agora se concentra o grande público, a censura, competente
e atenta, investe pesadamente nas proibições. Quando não
consegue proibi-los, são destruídos por cortes que os tornam,
muitas vezes, incompreensíveis, e liberados somente para
horários tardios.
A moralidade no direito
“Olha aqui sua cafona, vai tomar conta de sua filha, que ela é
uma dadeira.”
Nathália
147
do da regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o
indivíduo, por um movimento espiritual espontâneo realiza
o ato enunciado na norma. Não é possível conceber-se o ato
moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém pode ser
bom pela violência.
7
A palavra princípio não é usada em sentido unívoco no direito, porém, vários autores se referem
aos princípios como sendo os alicerces, o início, a base de alguma coisa. Para Barroso (1998, p.
141) os princípios constitucionais podem ser definidos como “o conjunto de normas que espe-
lham a ideologia da constituição, seus postulados básicos e seus fins” ou ainda “a síntese dos
valores principais da ordem jurídica” (BARROSO, 1996, p. 287). No mesmo sentido, Rocha (1994,
p. 25) assevera que os princípios constitucionais “são as colunas mestras da grande construção
do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional”. Quase todas as definições
de princípios citadas têm um ponto em comum, o de asseverar que os princípios são a base, o
começo, o início, as linhas mestras do sistema jurídico. Alguns dos autores mencionados utili-
zam a analogia para comparar a construção do ordenamento jurídico com a construção de uma
obra, como, por exemplo, de uma casa e quase todos eles afirmam que os princípios são os
fundamentos, as vigas, o alicerce, ou seja, a infraestrutura na qual se apoiarão todos os demais
componentes da construção do ordenamento jurídico. Desta forma, em resumo, podemos con-
cluir, com apoio nos autores mencionados, que os princípios constitucionais são a infraestrutura
Parte 2
148
vo, as regras de moralidade já estavam presentes na doutrina do di-
reito civil, em especial, nas que proíbem o locupletamento indevido.
Para Di Pietro (1999, p. 79) “sempre que em matéria adminis-
trativa se verificar que o comportamento da Administração ou do
administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em
consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as re-
gras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a
idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio
da moralidade administrativa”.
A questão da moralidade ainda segundo Di Pietro está também
relacionada à probidade administrativa, hipótese para a abertura
de processo de impeachment de presidentes. Como a temática da
moralidade também invadiu a seara constitucional, a teoria deste
ramo do direito também trata da questão, para Silva (2010, p. 668):
Conclusões
O presente texto objetivou analisar a obra cinematográfica “A
árvore dos sexos” tendo como pano de fundo a temática da censura
moral imposta às diversões e espetáculos públicos durante o perío-
do da distensão do regime militar.
Começando a despir
149
com a exibição dos filmes na televisão, sendo os mesmos liberados
para os cinemas.
Também ficou claro que a censura no período se preocupava
basicamente com as questões morais relacionadas aos comporta-
mentos e evidenciou-se, na análise dos pareceres sobre o filme, que
não era preocupação central da censura o exame da moralidade ad-
ministrativa, tão cara nos dias atuais.
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Parte 2
150
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Filmografia
A árvore dos sexos. Dir. Silvio de Abreu. São Paulo: Cinedistri, 1977.
35 mm, (90 min.), color, sem legenda, Port.
Começando a despir
151
Marcelo Bulhões DE CONTO DE FADAS A CONTO DE FODAS:
A PARÓDIA DE HISTÓRIAS QUE NOSSAS BABÁS
NÃO CONTAVAM
153
matrizes cinematográficas dominantes, fundamentalmente, a do
cinema de mainstream hollywoodiano.
O discurso paródico é um dos traços fisionômicos cinematográ-
ficos que a pornochanchada herdou da chanchada. Em Nem San-
são nem Dalila (1954), por exemplo, filme de Carlos Manga, paródia
de Sansão e Dalila (1949), de Cecil B. DeMille, produção dos estúdios
Paramount, o barbeiro Horácio, personagem interpretado por Osca-
rito, sofre um insólito acidente e vai parar no Reino de Gaza no sé-
culo IV antes de Cristo. O filme de Manga reconfigura os elementos
visuais básicos do filme de Cecil B. DeMille; fornece componentes
essenciais no plano da expressão formal e algumas linhas do enre-
do para o reconhecimento por parte do espectador. O movimento da
paródia é, pois, um afirmar para negar, um ingerir para fagocitar. A
paródia é autogáfica.
O caráter grandiloquente do épico-kitsch de DeMille é adotado
para uma pseudo-imitação, lance astucioso em que a parecença é
estratégia para o decisivo desvio de sentido. O estratégico dessa
ocorrência intertextual strictu sensu é uma espécie de negação
pela assimilação, anunciada já no título Nem Sansão nem Dalila,
como caminho ao rebaixamento pelo ridículo em um “segundo tex-
to” cinematográfico. Segundo tal perspectiva conceitual – tomada
por alguns formalistas russos, notadamente Tinianov –, diferente-
mente da estilização e do pastiche, na paródia deve haver necessa-
riamente subversão ou inversão de significado do texto parodiado.
A aisthesis do espectador no caso do filme de Oswaldo de Oli-
veira vive, portanto, da identificação das camadas textuais subja-
centes – o texto cinematográfico de Disney e o literário dos irmãos
Grimm – como formas culturais canônicas. Mas o fruir da perver-
são de sentido em Histórias que Nossas Babás não Contavam chega
a dispensar o contato direto com tais discursos na forma de obra
literária e filme, tão impregnadas na cultura estão os contos e, em
particular, a narrativa de Branca de Neve. Ao atingir especificamen-
te Branca de Neve, a paródia de Histórias que Nossas Babás não
Contavam insere, por tabela, ranhura violadora à tradição, remota e
cara à cultura europeia, do conto de fadas, com suas amplas resso-
nâncias nos campos de difusão e recepção.
Histórias que Nossas Babás não Contavam incorpora Grimm e
Disney como um dos modos com que um discurso cinematográfi-
co – na periferia do cinema mundial – recolhe dobras de discursos
culturais muito caros da voz da supremacia cultural para troçá-los
e desestabilizá-los: nem Grimm nem Disney em uma escritura au-
Parte 2
164
que emanam diretamente de um fundo brasileiro constituído
e tenaz em sua permanência. A esses valores relativamente
estáveis os filmes acrescentavam a contribuição das inven-
ções cariocas efêmeras em matéria de anedota, maneira de
dizer, julgar e de se comportar, fluxo contínuo que encontrou
na chanchada uma possibilidade de cristalização mais com-
pleta do que anteriormente na caricatura ou no teatro de va-
riedades. Quase desnecessário acrescentar que essas obras,
com passagens rigorosamente antológicas, traziam, como
seu público, a marca do mais cruel subdesenvolvimento;
contudo o acordo que se estabelecia entre elas e o espectador
era um fato cultural incomparavelmente mais vivo do que o
produzido até então pelo contato entre o brasileiro e o produ-
to cultural norte-americano. (GOMES, 1980, p. 80)
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ter and the nineteenth-century literary imagination. New Haven,
CT: Yale University Press, 1979.
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GRIMM, J.; GRIMM, W. The complete fairy tales of the brothers
Grimm. Toronto: Bantam, 1987.
Filmografia
Histórias que nossas babás não contavam. Dir. Oswaldo de Oliveira.
Brasil: Cinedistri, 1979. VHS (97 min.), color, sem legenda, Port.
Parte 2
166
Célio J. Losnak O BEM DOTADO – O HOMEM DE ITU:
AS PERIPÉCIAS DO CAIPIRA MACHO
NA METRÓPOLE
Introdução: o filme
O personagem central é Lírio1(Nuno Leal
Maia), um jovem inocente, tímido, sensível, sim-
plório, sexualmente virgem, católico, coroinha e
temente a Deus. Vivendo em Itu, cidade do interior
paulista e perto da capital, é representado com
traços considerados típicos do caipira: sotaque e
fala característicos2, dificuldade para se expres-
sar e interagir com as pessoas e acontecimentos,
postura corporal meio curvada, olhar desconfiado
e assustado com tudo que não conhece, com cal-
ça do alto da botina ao abdome, camisa de man-
ga comprida. Esses elementos componentes do
interiorano, misturando inocência e vivacidade,
ainda que seja com certo desajeito, irão compor
um dos elementos cômicos do filme3.
Lírio é criado pelo padre Belmiro ao mesmo
tempo em que ajuda nos serviços da paróquia,
na horta do vigário e em um projeto para jovens
pobres. Versado nos serviços domésticos, sua ex-
periência de vida restringe-se a esse universo pa-
roquial interiorano. Apesar da simplicidade em
relação às etiquetas da alta classe, é bem educa-
do, solidário e respeitador das regras sociais.
1
Simbolicamente a flor lírio é sinônimo da cor branca e, portanto, pureza, inocência, virgin-
dade. Há também o Lírio do Vale que em tradição cristã foi interpretado como designação
de Cristo, mas também a escolha do ser amado. O lírio lartagão, vermelho, representava
na mitologia grega os amores proibidos, a tentação. Nessa mesma tradição, o pistilo ver-
melho induziria à imagem fálica e da procriação (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002).
2
Por exemplo, pronúncia arrastada do R (em retroflexo), do LH com som de I, e alteração
do L.
3
Em contradição a essa imagem, o personagem também utiliza inicialmente um boné
para representar o elemento infantil.
167
Logo no início, na segunda cena, ele é assediado por uma jovem
conhecida. Em uma pequena corredeira, Lourdinha (Aldine Muller)
seminua, e acompanhada de amigas também de seios desnudos,
brinca e zomba dos trejeitos envergonhados e do temor do rapaz
diante da investida feminina. Lírio foge da sanha sensual daquelas
jovens desinibidas. A simplicidade da interpretação religiosa tradi-
cional, somada às orientações maternas, no passado, de que “mu-
lher é coisa do diabo”, orientam-no a um comportamento arredio
em relação à jovem, de corpo longilíneo e curvas acentuadas, que
brinca com a incapacidade de ele corresponder às suas insistên-
cias para um namoro e algo mais. No final do filme, descobriremos
que ela também era virgem e o que importava naquelas cenas ini-
ciais era a provocação da sedução de um indivíduo que ainda não
estava preparado para o sexo.
A vida interiorana muda quando Nair (Consuelo Leandro), uma
senhora grã-fina da capital, visitando a cidade em busca de lugares
históricos, objetos de arte e antiguidades, encontra-se com Lírio e
descobre o dote dele. Quando casualmente e furtivamente ela se
depara com o imenso e irresistível falo, fica muda e imóvel, ima-
ginando a presentificação de um êxtase vindouro. Ela decide levar
o rapaz para a capital sob argumento da competência dele para os
serviços domésticos. E a série de peripécias se iniciará na grande
cidade e na mansão da Zilá (Maria Luisa Castelli), amiga de Nair e
companheira de passeio em Itu.
Ainda em Itu, durante a conversa de Lírio com o padre sobre a
sua possível mudança para São Paulo, uma barreira cai para ele ao
ouvir do próprio vigário que era natural homem se interessar por
mulher e vice versa. Essa descoberta irá possibilitar ao personagem
lentamente redefinir seu comportamento em relação às mulheres.
A partir daí, três momentos cômicos recorrentes se destacam
na narrativa. O primeiro é a explicitação do desejo de Lírio, a ereção.
No início, sem muita consciência do que acontecia, posteriormente,
ainda que involuntária em algumas situações, ele passa a conhecer
e vivenciar a situação de excitação e desejo. A comicidade vem da
potência que, manifestada de tal maneira, rompe a calça e expõe
o membro de Itu, e é acompanhada por uma sonoridade de movi-
mento sucessivo de impacto, criando situações embaraçosas para
o personagem, causando espanto e admiração àqueles que o visua-
lizavam e, o mais importante, o desejo feminino irrefreável.
O desdobramento do bizarro possibilita o segundo momento cô-
mico, o deslumbramento feminino. No primeiro dia em São Paulo, a
Parte 2
amparar ao andar.
O filme foi lançado em 1978 e teve argumento, roteiro e direção
de José Miziara com produção de Aníbal Massaini e distribuição
169
da Cinedistri. O Bem Dotado foi o primeiro longa do cineasta com
autonomia de roteiro e direção. Ela havia trabalhado com teatro e
circo na juventude, posteriormente atuou em rádio, produziu por
décadas programas televisivos em vários canais. Em 1976, dirigiu
um curta, O Furo, como parte de Ninguém Segura Essas Mulheres,
produzido pelos Estúdios Silvio Santos. Posteriormente dirigiu vá-
rios filmes típicos da pornochanchada e alguns de sexo explícito,
também foi ator em cerca de vinte produções4. Diante das mudan-
ças do mercado, abandonou a área e passou a escrever para a TV;
até 2011, estava no SBT com a Praça é Nossa.
A trajetória de Miziara anterior ao filme revela um profissional
experiente com a linguagem televisiva, cômica e popular. Seu tra-
balho estava voltado para produções que buscavam rápida identi-
ficação do público, entretenimento e sustentação financeira. Para
isso, sabia usar estratégias verbais e audiovisuais de fácil decodi-
ficação com material cultural universalizado. O resultado foi o su-
cesso de público. A entrevista de Miziara a Marcelino (2011) revela a
lógica de um trabalho de produção cinematográfica com o viés téc-
nico-mercadológica voltada para a elaboração de um produto viável
e atraente para o público e, portanto, rentável financeiramente para
garantir o negócio e possibilitar a continuidade daquela indústria.
Nessa lógica, o produtor Aníbal Massaini afirmou que a obra atin-
giu três milhões de expectadores e foi lançada em italiano, alemão,
inglês e francês (NAGIB, 2002, p.296). Foi um filme de destaque na
tendência da pornochanchada.
Este breve resumo já indica que O Bem Dotado é uma obra que
demanda abordagem distanciada de dualidades interpretativas,
alienação/politização ou entretenimento/arte. Ele fez sucesso e
expressa diversos aspectos da sociedade brasileira do período em
diálogo com algumas tradições culturais, incluindo o cinema.
O filme foi liberado pela censura em 05/04/1978 sem restrição,
embora tenha sido observado que diante da temática “picante” ele
4
Dirigiu: Meus Homens, Meus Amores (1978), Embalos Alucinantes (1979), Nos Tempos da
Vaselina (1979), Mulheres do Cais (1979), Os Rapazes da Difícil Vida Fácil (1979), As Intimida-
des de Analu e Fernanda (1980), Como Faturar a Mulher do Próximo (1981), Pecado Horizontal
(1982), As Amantes de um Homem Proibido (1982), Mulher… Sexo Veneno (1984), Deliciosas
Sacanagens (1985), Sem Vaselina (1985), Rabo I (1985), A Quebra-Galho Sexual (1986), O Oscar
Parte 2
170
devesse ser exibido para público acima de 18 anos5. Há indícios
da existência de intrincado jogo entre produção/direção da por-
nochanchada e a censura, com autocensura, resistência e ousa-
dias por meio de tentativas de ampliar os espaços de expressão.
Neste filme, especificamente, há duas cenas referentes ao apara-
to repressivo ditatorial. Na primeira delas, quando Lírio havia se
perdido no centro da cidade e, sua patroa Nair está em prantos e
indaga o que fazer, o mordomo dispara: “A nossa polícia é muito
eficiente, dona Nair. Não se preocupe, daqui a pouco teremos notí-
cias dele”. Ironia ou afago? Na segunda cena, nos deparamos com
agentes da lei educados e gentis: Lírio ainda perdido anda pela
rua e é visto por dois policiais civis que o veem e desconfiam ser
o caipira perdido, abordam-no, conferem sua marca característica,
recolhem todas as sacolas de compras que estavam com ele e le-
vam-no para casa. Boas imagens de um bom serviço público, mas
na época reconhecido pela violência e arbitrariedade. Seria uma
forma de agradar aos censores?
5
Do curto e simples texto de liberação pela censura, destaco a concordância com o erotismo:
“Comédia ligeira sobre os atributos sexuais de um ituano, puro e ingênuo,... num clima erótico sem
chegar à obscenidade”. Os documentos estão disponíveis no site Memória da Censura no Cinema
Brasileiro, 1964-1968, disponível no seguinte endereço: http://www.memoriacinebr.com.br/.
171
autor passa ao largo dos filmes da pornochanchada, relegando-os
ao ostracismo por não serem objeto de seu foco6.
Em abordagem diferente, Ramos (1990) mapeia algumas ten-
dências e incorpora a participação dos filmes eróticos. Nesse texto,
destacam-se duas questões importantes. Além da censura que foi
gradativamente sendo ampliada e sofisticada, buscando controlar a
produção cultural, reprimindo, mas também suscitando inúmeros
protestos, resistências e estratégias de burla, o Estado brasileiro es-
timulou e protegeu o cinema nacional, garantindo cota mínima de
exibição em salas pelo país7 e financiando películas pela Embrafil-
me. O órgão foi criado em 19698 e aperfeiçoado na segunda metade
dos anos 1970 com o objetivo de também coproduzir e distribuir. Pe-
reira (1985, p.61) defende que, entre 1975 e 1980, a entidade possibili-
tou “um impulso quantitativo nunca visto em sua história”.
Outra questão é que cinema dos anos 1970 estava mais volta-
do para o mercado do que aquele da década anterior. A ênfase na
política e no debate de ideias e a busca por filmes experimentais
e autorais não desapareceram, mas esmaeceram diante da predo-
minância da “gradativa industrialização da produção cultural” (RA-
MOS, 1990, p.401). Pereira (1985) observa que a orientação geral do
Instituto Nacional de Cinema (INC) era de que o cinema deveria ser
arte industrial, articulando aspectos técnico-econômicos e artísti-
6
Ramos (1990) esboça características gerais dessa diversidade. O início da década revelou
perspectivas diferenciadas que se avolumariam no decorrer dos anos. Havia cineastas forjados
nas décadas anteriores ou referenciados no Cinema Novo, como Joaquim Pedro de Andrade
(Os Inconfidentes (1972) e no Underground, como Carlos Reichenbach (Lilian M. Relatório Confi-
dencial, 1975), alguns que se afastavam dos cânones anteriores, Paulo Cesar Saraceni (A Casa
Assassinada, 1971) e Leon Hirszman (São Bernardo, 1972) e outros jovens que dariam vazão a
produções com diversos perfis. O nacional-popular matizado marcará obras diferentes como O
Amuleto de Ogum (1974), Dona Flor e seus dois maridos (1976), Tenda dos Milagres (1977), Bye
Bye Brasil (1979). Em outra perspectiva, a literatura seria a inspiração para obras com elementos
eróticos, como Lucíola (1975), Iracema, a virgem dos lábios de mel (1977), O Guarani (1979). Outra
tendência é de profissionais experientes e distantes dos debates estéticos e políticos produzi-
rem com eficiência obras que buscavam sucesso de bilheteria e lançarem A Estrela sobe (1974),
Amor Bandido (1978), Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977).
7
Entre 1966 e 1975 esteve em vigência o Instituto Nacional de Cinema (INC), que implantou
medidas estimuladoras e controladoras, tais como, o condicionamento de, no mínimo, 63 dias
por ano de exibição de películas nacionais, margem reajustada para 112 dias em 1975. Nesse
mesmo ano, foi criado um sistema mecanizado de venda de ingressos visando ao controle o
movimento de bilheterias.
8
Até 1975, o destaque é para o estimulo às narrativas com conteúdo histórico e cívico, surgindo
algumas obras bem comentadas (Independência ou Morte, O Caçador de Esmeraldas, Anchieta
Parte 2
172
co-culturais em perspectiva universal, o popular “cinemão”. Proces-
so que ocorria em vários âmbitos na televisão, na música, no rádio
e na produção de livros e revistas foi caracterizado por Ortiz (1988)
como um dos elementos evidenciadores da consolidação da indús-
tria cultural no país.
E a pornochanchada acentua essa tendência com particulari-
dades específicas. As produções objetivavam rentabilidade finan-
ceira elevada, lançavam mão de pouca verba, os recurso técnicos
eram precários e improvisados e eliminavam a “ortodoxia cinema-
tográfica” (SIMÕES, 2007, p.189). A duração das filmagens era mais
curta do que o usual, o elenco costumava se reduzido, usava-se mão
de obra barata, o tempo entre a finalização do filme e o início da
exibição era diminuído ao máximo. A precariedade era acentuada
porque normalmente os filmes da Boca do Lixo não recebiam ver-
ba da Embrafilme9, o setor recorria ao financiamento de investido-
res diversificados, dos exibidores e até de pequenos comerciantes
que participavam com diminutas cotas. Haveria a constatação de
que a maior parte dos profissionais envolvidos não vinham dos
segmentos sociais intelectualizados e elitizados, eram trabalhado-
res manuais, aventureiros e interessados na produção audiovisual
distante dos grupos ligados à universidade e do trânsito entre as
altas camadas sociais. Essa questão precisa ser problematizada e
é possível constatar a presença de profissionais da televisão10 em
inúmeras obras. A presença deles na produção da Boca do Lixo de-
monstraria a existência de espaço propício à sustentação financei-
ra, criação mais livre, sem as restrições típicas do meio televisivo
ou do ethos dos grupos experimentais de cinema.
O nome da tendência, pornochanchada, seria uma suposta filia-
ção à chanchada carioca, criada pela produtora Atlântida, e famo-
sa nos anos 1940 e 1950, na perspectiva da comédia de costumes11.
9
Em 1976, Roberto Farias declara que a Embrafilme não financiava as comédias eróticas e que
elas deveriam ser combatidas (SELIGMAN, 2000, p.63-64).
10
O próprio diretor Mizziara é um exemplo e também podem ser citados: Ainda agarro essa
vizinha, de 1974, tinha como roteiristas Marcos Rey e Oduvaldo Viana Filho; A árvore dos sexos,
de 1977, foi dirigido por Silvio de Abreu e roteiro dele com Rubens Edwald Filho; Mulher Objeto,
de 1981, foi dirigido por Silvio de Abreu.
Começando a despir
11
O dicionário de origem francesa (PAVIS, 1999, p.81) apresenta chanchada como originada da
gíria argentina lunfardo designando porcaria e utilizada para caracterizar “peças, filmes e progra-
mas televisivos de baixo nível”. Seria uma produção voltada para o popular, de fácil decodifica-
ção e público massivo, com “comicidade escrachada, vulgar, escatológica, grosseira, e ... recurso
do circo e do teatro de revista”.
173
As características de teor erótico leve, na fase de 1969-1972, teriam
possibilitado aos críticos estabelecerem a aproximação, mas a pro-
dução sob essa denominação era diversa, durante os anos 1970, e
abrangia inúmeros gêneros não enquadráveis como pornochan-
chada12. Em relação ao O Bem Dotado é possível identificar refe-
rências internacionais. Em entrevista a Marcelino (2011) o diretor
Miziara declara que teria se inspirado no filme francês O Último
Homem Virgem Sobre a Terra lançado em 195013. Marcelino (2011)
identifica o título Le rosier de Madame Husson, dirigido por Jean
Boyer e baseado no conto de Guy de Maupassant publicado, em
1888, em livro de mesmo título. O argumento apresenta o jovem do
campo inocente, virgem e assediado por uma conhecida, e sua vida
sofre uma reviravolta, quando ele é levado por uma mulher para
Paris, perde a timidez e ingenuidade, volta para o vilarejo e seduz a
amiga. Essa não teria a primeira nem a última adaptação na França
da obra de Maupassant para o audiovisual.
Por outro lado, há outra referência temporalmente e tematica-
mente mais próxima. O diretor Cláudio Cunha (CAMARGO, 2011)
afirma que os roteiristas e diretores da pornochanchada se inspi-
ravam na comedia italiana e há referência vinda de outro profis-
sional, especificamente dos filmes de Lando Buzzanca (MOURA;
GODINHO; GRAZIANO, 2013). Mapeando as películas em que o ator
italiano atuou, destaca-se uma particularmente em que o argumen-
to é muito similar ao do O Bem Dotado: Homo Eroticus14. Um jovem
siciliano vai para uma cidadã média, procura emprego e passa a
trabalhar como mordomo para um casal que vive em uma mansão.
Ele, um engenheiro de idade e, ela, bela, jovem e disposta às novas
12
Considerando que este texto está incluído em publicação sobre a pornochanchada, limitamos
a utilizar a expressão para referir-se a um grupo social e conjunto de produções fílmicas social-
mente e historicamente abrangidas e largamente reconhecidas pela expressão. Não há aqui a
intenção de analisar os possíveis sentidos e usos dessa denominação com possíveis inadequa-
ções, preconceitos e reducionismos.
13
“Hoje, já posso contar, estou com 74 anos de idade [a entrevista foi feita em julho de 2010].
Há um filme francês, O Último Homem Virgem Sobre a Terra [ao que tudo indica, Le rosier de
Madame Husson, 1950, de Jean Boyer]. Se você achar esse filme, você vê O Bem Dotado. Eu pla-
giei, plagiei mesmo. É um filme com o comediante francês Bourvil. Peguei e passei para Itu – no
original, fazem numa vila da França. Duas mulheres que vão ser para juízas, acham o cara lá que
é virgem, trazem para a cidade… igualzinho. Pode pegar lá que você vai ver”.
14
Lançado em 1971, ele tem como diretor Marco Vicario, com roteirização dele e de Piero Chiara.
Parte 2
174
experiências. Descobre-se que o jovem é bem dotado. A notícia cir-
cula no meio social do casal e desperta a curiosidade das mulheres
de várias idades e perfis, casadas, livres, empregadas, empresária,
nobre. No início, ele recebe roupas novas da patroa e é seduzido por
ela, depois, pelas amigas dela; com o tempo, ele conquista algumas,
desencadeando um ritmo frenético de sexo com cada uma, e com a
patroa em particular porque eles têm um caso mais sério. Como no
filme nacional, há a tese de viés masculino de que a virilidade era
determinada pelo tamanho do membro e na potência infindável de
dar conta do desejo feminino, mas também há o reconhecimento
de que as mulheres independentes e modernas experimentavam
ousadias sexuais. O desenlace de O Bem Dotado é diferente, a pro-
dução é inferior e as cenas de sexo são mais desenvoltas, mas as
similaridades entre ambos são nítidas15.
Homo Eroticus explora a imagem do corpo e da beleza femini-
na. Elas são jovens, usam saias curtíssimas, como era a moda no
período, e têm pernas e rostos focados pela câmera que acompanha
com detalhes os corpos esguios das atrizes. Seligman (2000, p.93)
comenta a tese de que a beleza das atrizes foi usada inicialmen-
te no cinema industrial norte-americano para “seduzir e cativar o
público”, consolidando o pressuposto de que a mulher era para ser
contemplada e desejada. E a autora identifica o mesmo recurso na
pornochanchada. Nesses filmes (SELIGMAN, 2000, p.96-98), “...a mu-
lher é colocada como objeto do olhar; o homem, como dono do olhar
e condutor do espectador”. A câmara “controla e conduz”, enquadra
da melhor maneira “o objeto da adoração... a personagem feminina”
e emerge da parte do público “o prazer de tomar o outro como objeto”.
O olhar do observador (voyeur) percorre o filme sobre homem
de Itu tanto na perspectiva das personagens como na do diretor,
ambos projetando para o público. Logo no início, podemos ver, por
imagens naturalistas, as jovens tomando banho na corredeira e a
câmera se aproxima dos corpos semidesnudos, enquanto isso Lírio
chega ao local, ouve a algazarra delas e espia, fica envergonhado
com a visão, põe a mão na frente dos olhos, mas mesmo sendo puro,
15
Em Homo eroticus há uma música repetida quando o personagem central está em ação e em
Começando a despir
175
não resiste, entreabre os dedos e olha de soslaio para satisfazer a
curiosidade. Posteriormente, quando em São Paulo, na casa de Zilá,
é Julinha (Helena Ramos) quem acompanha toda a movimentação
em torno do ituano na área dos empregados. Da janela do quarto
no alto, ela espia o que se passa entre eles e se excita, se acaricia,
tira a roupa e exibe o seu desejo para a câmera. Na mesma cena há
quatro olhares: a câmera postada na janela, e representando o olhar
de Julinha, acompanha as aventuras de Lírio entre as empregadas;
de dentro do quarto, observa-se o ato de dela espionar; como reforço
da mensagem, a câmera enquadra de fora a imagem dela na jane-
la; novamente dentro do quarto, podemos observar a intimidade do
corpo da musa da pornochanchada excitado e desejante. Quando a
empregada Pedra resolve ajudar Lírio a costurar a calça dele, ação
que possibilitará a ela descobrir o imenso falo, e o leva para o quar-
to, no ato ainda apenas solidário, o namorado Kimura identifica a
movimentação inocente e espiona o que acontece. No decorrer do
filme, ele e Julinha observam todos os acontecimentos na casa e
têm conhecimento das conquistas de Lírio.
No decorrer da narrativa o enquadramento da câmera continua
a permitir que o olhar perscrutador do público se movimente em
busca da satisfação e excitação pela imagem. E também pelo riso.
No teatro (PAVIS, 1999), é possível identificar intricada ramificação
de variados tipos de comédias com aproximações e confluências
em decorrência de produções históricas variando no tempo, por
país, região e autor16, mas tradicionalmente ela volta-se para a cena
cotidiana e as questões e pessoas comuns17.
Além de vários elementos da comédia estarem presentes na
pornochanchada, eles costuram a narrativa de O Bem Dotado ca-
racterizando o cômico por meio do gênero farsa18. Associada ao
“cômico grotesco e bufão”, a farsa é entendida como o despertar do
16
De maneira muito concisa, a comédia se opõe à tragédia e comumente é definida por três
elementos: personagens de condição modesta, final feliz e a finalidade de provocar o riso no es-
pectador. A estrutura da trama explora alguns elementos: “ideia repentina”, “mudanças de ritmo”,
o acaso e a “inventividade dramatúrgica e cênica” (PAVIS, 1999, p.52-53).
17
Há bibliografia significativa sobre o riso e com autores importantes. Limitamo-nos aqui a enfa-
tizar que o riso do expectador é de superioridade, a personagem risível é inferiorizada por algum
critério, mas também é possível encontrar a cumplicidade entre eles. O final feliz indica o resta-
belecimento da harmonia que fora desestabilizada anteriormente e a ordem social é ratificada
diante do desequilíbrio desenvolvido na trama.
18
Originalmente a farsa era entendida “como aquilo que apimenta e completa o alimento cultural
e sério da alta literatura”, etimologicamente vinda da palavra francesa farcir, “o alimento tempe-
Parte 2
rado que serve para rechear uma carne” (PAVIS, 1999, p.164).
176
riso grosseiro, pouco refinado e é considerada distante da alta co-
média. Ela está mais ligada ao corpo e ao cotidiano do que ao espí-
rito, explora e exige a elaborada técnica corporal do ator, demanda
forte teatralidade e apresenta o cotidiano provocando um riso leve
e popular; aparecem também equívocos, confusões, quiproquós,
confusões de identidade, descobertas acidentais, coincidências,
revelações súbitas (PAVIS, 1999, p.164)19. No cinema, a farsa foi gê-
nero típico de comediantes famosos como Chaplin, Irmãos Marx e
Jerry Lewis; no Brasil, o grande exemplo são os filmes dos Trapa-
lhões20. Ela teria um viés subversivo e libertador, opondo-se a pode-
res morais e políticos, autoridades, tabus, regras sociais, opressão
da realidade e da razão.
As peripécias de Lírio na capital são envoltas na farsa, como
por exemplo: ele se perde no centro da cidade, é localizado por
Volga (Darlene Glória), ciente dos dotes do rapaz, e é levado para
a casa dela, enquanto isso sua patroa Nair (Consuelo Leandro) em
prantos recorre à polícia para descobrir o paradeiro dele; mais tar-
de, depois do desaparecimento ser solucionado, Lírio é levado de
táxi para a casa de Neiva, com a justificativa de transportar uma
compra entregue no endereço errado, e chega lá no momento em
que o marido havia saído, mas o esposo tem um problema com
o carro, volta repentinamente para casa e se depara com os dois
na cama, pega um revolver no criado-mudo, ergue-o e faz uma
autoironia como corno manso, sai do quarto e deixa os amantes
à vontade. Durante a festa feminina ocorrida na casa de Zilá, o
motorista Kimura persegue Lírio - por ter a namorada e a irmã
devassadas pelo bem dotado - em correrias por cômodos, dribles
e esconde-esconde tumultuando o evento; contra a vontade, Lírio
atua na festa como garçom, mas as ereções incontroladas e cons-
trangedoras criam cenas que se apresentam como a peculiarida-
de do evento, preocupantes para a anfitriã Zilá e hilárias para as
mulheres já conhecedoras do segredo; a festa é definitivamente
encerrada intempestivamente com o aparecimento de Lírio nu e o
rebuliço das mulheres histéricas perseguindo-o.
19
A farsa utiliza diversos recursos como “máscaras grotescas, truques de clown, mímicas, ca-
retas, trocadilhos, todo um grosseiro cômico de situações, gestos e palavras, num tom copiosa-
Começando a despir
177
Outro elemento oriundo do teatro e do cinema presente no O
Bem Dotado é o grotesco. Este é cômico pelo estranho, “pela defor-
mação significativa de uma forma conhecida ou aceita como nor-
ma” (PAVIS, 1999, p.188), mistura animal, vegetal e humano criando
formas fantásticas. As razões para a deformação podem ser o riso
gratuito ou a sátira política e filosófica. Na contemporaneidade e
em viés tragicômico, o grotesco pode não apresentar uma visão
harmônica da sociedade e sugerir o caos, problematizando a re-
alidade do público. A deformação de Lírio chama atenção da au-
diência para o divertimento, o riso descontraído em relação ao
diferente, por ser anormal, que se remete ao ideal projetado pelo
masculino e para o feminino. A aberração constrange o persona-
gem central ao mesmo tempo em que o qualifica para as mulheres
a ponto de elas perseguirem-no incansavelmente. Ambos os con-
flitos são trabalhados por cenas risíveis e o personagem transita
pela ambiguidade do grotesco.
21
Parte 2
É possível acessar pelo You tube trechos das apresentações de Simplício no programa em
várias décadas.
178
O ator teria autonomamente inserido na fala do personagem
exemplos fictícios de sua terra natal Itu e consolidado o persona-
gem (MATOS; CORTE REAL, 2010). Na localidade, tudo seria imen-
samente maior do que em outros lugares, particularmente em
relação à capital. Era uma forma do interior se colocar além da
metrópole. E a constante superioridade de Itu revelada pelo caipira
estilizado, e confirmada repetidamente pela esposa Ofélia, era o ri-
sível que percorreu décadas.
A exposição de Itu por meio daquele programa televisivo teria
despertado interesse do público pela imagem do exagero como
característica da cidade, atraído turistas, e os comerciantes se
apropriado da imagem, produzindo e comercializando objetos su-
perdimensionados22. O poder público contribuiu com a tendência:
o ministro das comunicações do governo Médici doou um orelhão
telefônico imenso e o prefeito local teria recebido como presente
um semáforo de grandes proporções e doado ao município. Ambos
foram instalados na área central. Marcos urbanos, comidas e ob-
jetos foram criados, expostos e comercializados no movimento de
reprodução da imagem grandiosa que se difundiu pelo imaginário
popular, estimulou o turismo de Itu e inspirou José Miziara a com-
por o caipira superdotado23.
A segunda referência imediata do público em relação ao perso-
nagem sertanejo risível estava no cinema de Mazzaropi. De origem
italiana, ele começou a atuar no início dos anos 1950, em movimen-
to de produção cinematográfica industrial da produtora paulista
Vera Cruz. No terceiro filme em que atuou, Candinho, Mazzaropi
representou um “caipira ingênuo e frágil, valorizando elementos da
temática rural”. Essa imagem era a oposta do que a produtora Vera
Cruz explorava, com a intenção de um cinema moderno, urbano e
com referências em Hollywood (FRESSATO, 2011, p.215).
22
Como exemplos, podem ser citados: pizzas de um metro de diâmetro, chope servido em uma
taça de um metro de comprimento, picolés de trinta centímetros, taça de sorvete com tamanho
bem superior ao normal, sanduíche feito com um longo pão (bengala), caixas de fósforo com
palito de treze centímetros, figuras de pulgas tão grandes que eram criadas em gaiolas, chapéus
Começando a despir
com abas de um metro e inúmeros outros objetos (MATOS; CORTE REAL, 2010).
23
Matos e Corte Real (2010) afirmam que Almeida foi secretário de turismo da municipalidade
por duas legislaturas, 1973-1976 e 1983-1988, e homenageado, em 2002, como Cidadão Honorá-
rio de Itu pelo estímulo dado ao turismo local.
179
O segundo filme produzido por Mazzaropi foi Jeca Tatu, em 1959,
e o quinto foi A Tristeza do Jeca, em 1961. Jeca era o personagem
principal de ambos e representado como “preguiçoso, valente, irre-
verente e debochado”, usava chapéu de palha, roupa xadrez remen-
dada, barba e bigode ralos, fumava cachimbo e cuspia no chão, vivia
em rancho de sapé e ambiente pobre, tinha “fala arrastada e cheia
de sotaque” (FRESSATO, 2011, p.215)24.
Apesar dos estereótipos detratores compondo o personagem,
pois eles delineiam o risível, mas não todos, Fressato (2011) identifi-
ca nas obras elementos da cultura popular, tais como solidariedade
grupal, sociabilidade caipira e religiosidade, crítica ao coronelismo
e ao arbítrio do grande proprietário rural, ênfase no ritmo de traba-
lho autônomo no campo e contrário ao processo racional e assa-
lariado, irreverência em relação às autoridades públicas. Para ela,
os elementos reproduzidos de criações oriundas de décadas ante-
riores, tais como a preguiça, o desajeito e o nome Jeca, seriam re-
cursos estéticos do personagem visando fácil aceitação do público
e não incorporação acrítica do caipira inerte25. Esse argumento da
autora pressupõe a intensa circulação da imagem do caboclo nos
anos 1950, mas que a cada contexto e tipo de produção apresentava
um viés personalizado.
O importante a destacar é a presença de elementos do caipira
que perpassam décadas, está presente em diversos tipos de mídia e
atinge o grande público, reforça o caricatural e supre novas produ-
ções por apresentar figuras familiares a todos. Mazzaropi não foi o
24
É possível identificar a presença dessas características do Jeca de Mazzaropi na tradição das
festas juninas no Estado de São Paulo que mantinha ainda nos anos 1980 a quadrinha montada
em escolas infantis. Além da música tradicional, as crianças deveriam compor uma fantasia com
roupas coloridas, remendadas, expressando a pobreza e simplicidade do caipira, as meninas
utilizavam vestidos de chita, acentuavam na maquiagem da mesma maneira que os meninos
usavam camisas xadrez, calca com remendos realçados e lançavam mão de recursos para dese-
nhar elementos masculinos adultos tais como bigode, barba, cavanhaque. Ainda que distante do
caipira paulista real, essas festas mantinham a representação do morador rural pobre e exótico,
para não dizer folclórico, como algo do passado lembrado por meio de um ritual lúdico e esvazia-
do do sentido explícito do objeto lembrado.
25
Importante lembrar que nos filmes posteriores o personagem sofre ligeira mudança ao viven-
ciar peripécias na cidade, mas ainda com valores e características oriundas do campo. Segundo
Parte 2
Fressato (2011), entre 1970 e 1975, os cinco filmes de Mazzaropi lançados atraíram entre 13 e
14 milhões de espectadores.
180
primeiro a explorar o caipira no entretenimento26, ele mesmo cita
duas referências importantes: o cantor e ator Sebastião Arruda e o
ator (circo, teatro, cinema) Genésio Arruda27. O cineasta não con-
firma ter lido Monteiro Lobato, mas não é possível negar a impor-
tância da obra do escritor para a difusão no público da imagem do
caipira por meio do personagem Jeca Tatu.
O texto Velha Praga, publicado inicialmente no jornal Estado de
S. Paulo, em 1914, atribui ao caboclo do vale do Paraíba a ação destru-
tiva da natureza, considera-o improdutivo, preguiçoso, “inadaptável
à civilização”, levando uma “vida semi-selvagem” (LOBATO, 1994,
p.159-164). Nesse texto inaugural aparece o nome Jeca Tatu e será
retomado alguns anos depois em Urupês, que segue a mesma linha,
considerando o Jeca um preguiçoso e ignorante: “é o sombrio urupê
de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas (LOBATO,
1994, p.176). Esse ser de raça inferior, destituído de qualquer valor
e qualidades modernas, e responsável pelas próprias mazelas será
a interpretação dominante do sertanejo e se popularizará na me-
mória paulista por meio do personagem do Almanaque Fontoura
desde os anos 1920, embora o autor tenha redefinido o personagem
ainda naquela década.
Lobato impõe mudanças educacionais e higienistas/sanitaris-
tas, Jeca supera as deficiências e se torna empreendedor próspero e
grande proprietário (BERTOLLI FILHO, 2002). Nos anos de 1940, com
aproximações políticas ao Partido Comunista, o autor transforma o
caipira no personagem Zé Brasil, um típico membro do povo brasi-
leiro injustiçado pelas condições de exploração, alienado e subme-
tido aos interesses do latifúndio e, portanto, vítima de condições
estruturais (LAJOLO, 1983). O caipira empreendedor e o trabalhador
explorado não foram objetos de reproduções intensas para o grande
público e o Lobato não inaugurou a representação detratora do ser-
tanejo e nem foi o único a divulgar esse viés28.
26
Também é importante enfatizar a presença da música caipira nas rádios, desde os anos de
1920, envolvendo além da música, conto de causos, falares característicos, elementos do univer-
so rural e valores compartilhados. O circo, o teatro e produções radiofônicas também laçaram
mão de temas rurais e da figura do caipira com vários perfis. O próprio Mazzaropi trabalhou em
rádio antes de ir para o cinema.
27
Genésio atuou no filme Acabaram-se os otários, de 1929, seria a primeira película sonora no
Começando a despir
181
Waldomiro Silveira, na literatura paulista do início do século XX,
e inclusive antes de Lobato, manteve alguns elementos da interpre-
tação do homem livre brasileiro do campo como aquele carente de
potencialidades (BERTOLLI FILHO, 2002). O folclorista Cornélio Pi-
res que desde os anos 1910 publicou livros, gravou discos, escreveu
e encenou teatro, produziu programas de rádio e estudou a cultura
caipira e a elegeu como objeto de seu trabalho, reconheceu o po-
tencial do homem do campo, explorou personagens com perspecti-
vas distintas (BERTOLLI FILHO, 2009), mas matizou as variações de
raça e hierarquizou, elegendo o “caipira branco” como descendente
da “melhor estirpe dos povoadores portugueses ou de imigrante de
outros campos da Europa” (BRANDÃO, 1983, p.30) e atribuiu aos ne-
gros e índios os extratos inferiores29.
É nessa tradição de interpretação do homem do campo que o
ituano foi composto por Miziara e lido por parte do público. Um in-
divíduo risível que representava o interior como sinônimo do atra-
so, era destituído de potencial para viver na grande cidade e não
estava sintonizado ao país moderno dos anos de 1970. Lajolo (1983,
p.104) comenta a análise feita por Antônio Cândido de que a ten-
dência denominada de “o regionalismo pós-romântico” estava vol-
tada para o “deleite estético do homem da cidade”. Ainda que essa
tese tradicional do âmbito da literatura seja polêmica e limitada, no
filme O Homem de Itu é o citadino que ri do caipira Lírio. Em de-
terminado momento, Rodolfo, o mordomo da casa, emite seu juízo
com convicção de superioridade: “A senhora sabe como são essas
pessoas do interior...., caipiras, retardadas!!”.
29
Parte 2
Passando pelo caipira negro, caipira mulato e, por último na escala, o caipira caboclo (muito
próximo ao índio).
182
osas, mercantilizadas e atomizadas, isolando-os e afastando-os dos
valores comunitários, tornando-os anônimos nas multidões das
ruas e indiferentes ao outro30. Ao mesmo tempo, a cidade moderna é
valorizada como o espaço da iluminação, criação, experimentação e
novas possibilidades políticas e estéticas (BERMAN, 1987). No filme,
a caricatura do caipira pressupõe as afirmações das potencialidades
da cidade que possibilita a perda da inocência por parte de Lírio e o
leva a autodescoberta e ao contato com os valores mais avançados
da liberdade individual. A cidade é a negação do tradicional e do
conservadorismo. Embora, essa perspectiva não seja exclusiva dos
anos 1970, há o contexto do significado da capital paulista que pos-
sibilitava ao público reconhecê-la como uma urbe conectada a tudo
aquilo considerado mais contemporâneo em contraponto à vida in-
teriorana e ultrapassada de onde o caipira se originava.
Nos anos de 1970, a cidade de São Paulo revelava proporções
urbanas de expressão internacional como desdobramento de vá-
rias fases ulteriores, passando pelo auge da produção cafeeira e
posteriormente industrial. Ela contemplava grande concentração
populacional formada por autóctones, oriundos do interior de São
Paulo, de outros estados31, e descendentes de imigrantes de diver-
sas origens étnicas, em tendência de conturbação com os muni-
cípios vizinhos32. Parte significativa da indústria brasileira estava
sediada ali, ou no conjunto de cidades da região metropolitana,
evidenciando quesitos de metrópole moderna, tecnologicamente
inovadora, sintonizada às recentes tendências internacionais, em
30
Autores do final do século XIX e do início do XX debateram essas questões e teorizaram sobre
elas (VELHO, 1976). Ainda que superadas ou polêmicas, elas ilustram a existência da perma-
nência do pensamento que contrapõe campo e cidade em polos opostos. Em trabalho de maior
arco temporal, Williams (1989) identifica em longa duração, milenar essa tensão interpretativa.
31
Autores do final do século XIX e do início do XX debateram essas questões e teorizaram sobre
elas (VELHO, 1976). Ainda que superadas ou polêmicas, elas ilustram a existência da perma-
nência do pensamento que contrapõe campo e cidade em polos opostos. Em trabalho de maior
arco temporal, Williams (1989) identifica em longa duração, milenar essa tensão interpretativa.
32
A população da cidade de São Paulo, em 1960, era de 3.781.446 habitantes, em 1970, de
Começando a despir
183
contínuo e vertiginoso crescimento econômico e urbano33. Pesso-
as migravam em busca de novas oportunidades, e ali elaboravam
projetos de vida, trabalhadores de diversos segmentos se inseriam
na dinâmica urbana, compondo-a em suas mais variadas facetas,
social, cultural, política e econômica entrecruzadas por profundas
contradições sociais (SADER, 1988).
A representação do moderno viera a público em 1922, intensi-
ficara-se nos anos 1950 e se popularizara nas décadas seguintes34.
Por exemplo, no âmbito das artes, diante do “horizonte técnico da
sociedade industrial” o movimento dos poetas paulistas concretis-
tas (especialmente Haroldo de campos, Décio Pignatari e Augusto
de Campos) propunha, nos anos de 1950, a “adequação da palavra
às técnicas de comunicação próprias às sociedades urbano-indus-
triais e a reivindicação da modernidade no centro do discurso po-
ético” (HOLLANDA, 1992, p.37-39). Partilhando de um utopia desen-
volvimentista, os poetas concretos buscavam atualizar a cultura
nacional pelo contato com a estrangeira de destaque. E São Paulo
como espaço de debate e criação de novas linguagens não era um
ponto fechado em si, mas conectado a uma rede internacional de
artistas compartilhando elementos semelhantes da modernidade.
Essa mesma perspectiva estará presente no Tropicalismo, que
não surge em São Paulo, mas terá ali colaboradores com significa-
tiva receptividade e representaria a oportunidade de expressão do
local e do global a ponto de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé
mudarem-se para lá no fim dos anos 196035 e Tom Zé ter sido o au-
tor que mais tematizou a cidade em suas músicas (NAPOLITANO,
33
Os dados do censo de 1960 indicam que 38% da produção industrial brasileira eram oriundos
da grande São Paulo (SINGER, 2004). Na década de 1950, há intensificação e concentração da
produção na área de bens de produção, em 1959, 70% de toda a produção industrial do estado
estava na grande São Paulo e se formava um círculo com aproximação espacial de consumi-
dores (famílias e indústria) e de fornecedores de matéria prima (“bens elaborados e produtos
auxiliares”). Essas transformações se desdobram nas mudanças populacionais como apontam
os dados da nota anterior.
34
No final dos anos 1940 surgiram inúmeros grupos instituições que expressavam a complexi-
zação cultural e artística da cidade: Museu de Arte de São Paulo (1947), Museu de Arte Moderna
(1948), Teatro Brasileiro de Comédia (1948) e Bienal de São Paulo (1951) (ORTIZ, 1988). Podería-
mos acrescentar, dentre outros exemplos, a criação dos Estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo
do Campo em 1949.
35
O disco Tropicalia ou Panis et Circenses teve a colaboração do grupo Os Mutantes e do maes-
tro e arranjador carioca Rogério Duprat e que morava em São Paulo desde a década de 1950. O
Parte 2
maestro e paulistano Júlio Medaglia participou do grupo de poesia concreta e compôs o arranjo
da música Tropicália.
184
2005)36. Hollanda (1992, p.56-57) recupera Baudelaire, por meio de
Walter Benjamin, para observar elementos importantes da expe-
riência do moderno expostos pelo poeta francês, como os “episó-
dios cotidianos das grandes cidades, nas situações vivenciais das
milhares de existências desordenadas da vida urbana” e a autora
usa essa tematização para pensar a criação tropicalista. Seguindo
essa perspectiva da experiência moderna como essencialmente
urbana, é possível realçar a música Sampa de Caetano Veloso em
que ele tematiza a capital em que residira, representando-a imersa
nas contradições da urbe industrializada e em constante mudança
que demandava intensa conexão e vivacidade para trilhar desafios
incessantes, fascinantes e desafiadores. Para diversos autores mo-
dernos, em diferentes décadas, São Paulo foi representada por no-
vas modalidades e vida e de valores que circulavam pelos grandes
centros urbanos contemporâneos37.
No final dos anos de 1960, os movimentos jovens do rock and
roll, da contracultura, da difusão das drogas, da valorização da psi-
canálise, das terapias corporais propostas por Wilhelm Reich e das
críticas elaboradas pela antipsiquiaria defendiam a liberdade indi-
vidual, o sexo livre, a experimentação existencial e a recusa de sub-
missão aos valores tradicionais. O Pasquim foi um periódico im-
portante para difusão dessa tendência por meio do jornalista Luiz
Carlos Maciel e que fez sucesso por todo o país e tinha em São Paulo
um público significativo evidenciando a circulação de novas pro-
postas de vida iconoclasta e de liberação individual (BRAGA, 1991).
São Paulo também sediara o surgimento do Teatro de Arena, nos
anos 1950, as experimentações do Teatro de Oficina, do grupo Os Mu-
tantes e do cinema Underground nos anos 1960. Ao mesmo tempo
em que em âmbito mais massivo a Jovem Guarda, os festivais de
música popular da TV Record e programas musicais potencializa-
vam novas modalidades de expressão rebelde ou política dos jovens,
e ainda que muitos grupos estivessem na interface com a indústria
36
Napolitano (2005) defende que embora o termo tenha sido cunhado no Rio de Janeiro, a expe-
rimentação musical do grupo teria ocorrido em São Paulo e Tom Zé produziu inúmeras músicas
sobre a cidade e em período anterior à Sampa de Caetano Veloso.
37
Há intensa polêmica em torno da produção dos poetas concretos, do tropicalismo e até das
Começando a despir
músicas engajadas e de protestos dos anos 1960 e 1970, passando pela tese da autonomia da
forma, ênfase na política, transformação da criação artística em mercadorias culturais (ORTIZ,
1988; RIDENTI, 1993, p.73-115). Sem entrar nesse debate, o objetivo deste texto é apenas iden-
tificar a efervescência cultural e artística como alguns dos elementos suscitadores da visão da
São Paulo cosmopolita.
185
cultural, elas eram pressupostas como características da cultura da
metrópole38. O caleidoscópio da cidade diversa, multifacetada e que
abrigava novas oportunidades em diversos âmbitos contribuíam
para a consolidação da imagem do lugar que estava à frente no tem-
po e exigia, de seus habitantes, novas habilidades e valores.
Sem a intenção de idealizar a cidade e rivaliza-la com outras, e
longe da pretensão de caracteriza-la apenas pelos exemplos citados,
o que se destaca nessas considerações é a possibilidade de repre-
sentação de São Paulo compartilhada pelos seus moradores. Por
isso, quando Lírio é entregue em casa, depois de ter se perdido na
multidão das ruas do centro da cidade e identificado pela dupla de
policiais civis, um dos agentes da lei lança mão de sua sabedoria ci-
tadina e o aconselha com a frase sintética e evidenciadora de obvie-
dade primária e autoexplicativa: “Abre o olho, rapaz, isto é São Paulo”.
38
Imprescindível seria compor esse sintético quadro sem citar a movimentação política dos
estudantes, artistas, partido de oposição, grupos de esquerda na clandestinidade, sindicatos
operários, entidade de classe, instituições como a OAB e ABI, a Igreja Católica e Protestante,
comunidades eclesiais de base que se mobilizaram e compuseram oposições à ditadura militar
durante os anos 1960 e 1970. Embora as ações desses grupos também ocorressem em muitas
cidades do país, incluindo aquelas dos interiores, as capitais concentravam os grupos de maior
fôlego e visibilidade reforçando a ideia de São Paulo e Rio de Janeiro como os lugares de van-
Parte 2
186
A posição secundária e dependente da mulher em relação ao
homem é motivo de riso e ao mesmo tempo de excitação. O olhar da
narrativa fílmica é masculino, perscrutando as linhas dos corpos
femininos e exibindo o desejo deles diante do poder do macho. E o
público, a maior parte de homens, acompanha o mito, a materiali-
zação do desejo máximo: ser irresistível a todas, pois não há neces-
sidade de conquista, elas estão lúbricas e dispostas a se entregarem,
sem nenhum pudor e restrições, e ele sempre está disponível e é ca-
paz de satisfazê-las continuamente, sem necessidade de descanso.
Embora não analise a visão falocêntrica, Seligman debruça-se
sobre o conservadorismo desse tipo de filme, enfatizando que di-
versos valores tradicionais estão no cerne do risível por valorizar
a pureza, a virgindade, o matrimônio, a fidelidade conjugal, a virili-
dade masculina, a heterossexualidade e inferiorizar seus opostos
e tudo aquilo que possa alterar a ordem familiar tradicional39. O
final sempre feliz apresenta a norma restaurada e aqueles perso-
nagens representantes da imoralidade e do desvio precisam refa-
zer-se para integrar-se a harmonia social, mas geralmente cabe
aos virtuosos a redenção.
Apesar de reconhecer a validades dessa interpretação, é possí-
vel identificar novo diálogo do O Bem Dotado, e alguns outros filmes
do segmento, com a sociedade da época. Vários autores comparti-
lham da tese de que a pornochanchada se disseminou e foi ficando
mais ousada em decorrência da liberação dos costumes acentuada
a partir dos anos 1960. Valores vindos da contracultura, dos gru-
pos de esquerda e do movimento feminista possibilitavam maior
desenvoltura da mulher em vários âmbitos, abrindo para diver-
sas possibilidades de relacionamentos hétero e homo e se desdo-
brando na indicação de redirecionamento dos papéis masculinos.
Nesse sentido, a onipresença da mulher liberada experimentando
relações sexuais antes e fora do casamento, e muito além da prosti-
tuição, ainda que se baseasse em pressuposto conservador na nar-
rativa, invadia a cena nacional e permanecia como possível.
Acompanhando o viés da contestação jovem dos anos 1970, a
sexualidade aflorava a despeito dos discursos moralistas das au-
39
Freitas (2004, p.6) defende que os filmes exploravam a imaginação erótica do “homem médio
Começando a despir
187
toridades militares e civis. E o sexo era objeto da trama em filmes
também não produzidos na Boca do Lixo ou não rotulados como
essencialmente comerciais40. Em muitas obras, a rebeldia, o debo-
che e a irreverência se manifestavam por meio dos palavrões, da
nudez, homossexualidade, negação ao recato sexual, ainda que os
atos fossem apenas sugeridos41.
O Bem Dotado produzido quase no final da década de 1970 é ex-
pressão da progressiva ousadia daquelas produções cinematográ-
ficas em que o erotismo e a nudez eram tolerados pela censura e
pela sociedade para um público mais amplo. A mulher estava cada
vez mais exposta como atração, mas também ensaiava persona-
gens ousados. No filme é verossímil que os personagens femininos
tomem a iniciativa da conquista, seduzam, desejem sexo sem amor
e sem relacionamento sério, por puro prazer. No caso do filme O
Bem Dotado, apesar da interpretação de que elas faziam tudo isso
pela força do falo e, portanto, estariam submetidas biologicamente
ao poder atrativo do macho, há elementos para considerar a auto-
nomia delas em se interessar e experimentar, rompendo a norma
da passividade e do recato. As primeiras quatro experiências se-
xuais de Lírio são de iniciativa das mulheres e controlada por elas,
objetivando o prazer. Na primeira cena, quando a empregada Pedra
seduz o jovem, a música de fundo é Perigosa, cantada pelas Frené-
ticas, com ênfase no trecho: “Eu sei que eu sou bonita e gostosa... Eu
sou uma fera de pele macia/...Eu posso prender, você meu escra-
vo/...Eu vou fazer você ficar louco/Muito louco, muito louco/Dentro
de mim”42; na segunda cena, quando a funcionária da loja adentra
o provador e ataca Lírio, o colega de trabalho interpreta a inicia-
tiva como curiosidade dela em experimentar o dotado freguês; na
terceira cena, Volga procura o ituano perdido na rua, leva-o para o
quarto marital, enquanto o marido estava à beira da piscina, e de-
monstra assertividade, tranquilidade e controle da situação, sem
nenhuma dúvida em relação ao que desejava; a quarta cena tem um
preâmbulo surpreendente: Neiva dispensa o jovem motorista por-
que ele era seu amante e mantido financeiramente por ela, mas ele
40
Importante lembrar que um dos filmes de maior bilheteria do Brasil ainda é Dona Flor e seus
Dois Maridos, de 1976, contendo cenas de nudez e um casamento em que a esposa escolhe viver
com dois homens que a satisfazem em âmbitos deferentes.
41
Dois exemplos: Guerra Conjugal, de 1974, com produção, roteiro e direção de Joaquim Pedro
de Andrade, argumento Dalton Trevisan. Um exemplo é O Casamento, lançado em 1976, dirigido
por Arnaldo Jabor e baseado na obra de Nelson Rodrigues.
Parte 2
42
Música de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Mota.
188
resiste, chora, sente-se traído e usado, desconsolado, não entende
o rompimento, insiste em saber o motivo para a quebra da relação
que aparentemente era boa, e depois de pressionada, ela confessa
com clareza revelando o plano previsto: “Eu sou uma mulher de ca-
ráter, trair o marido, vá lá, mas nunca vou trair o amante”; quando
Lírio chega à casa dela, já é levado imediatamente para o quarto e
ouve a ordem “Tira a roupa”, ele não entende, titubeia e ela ordena
novamente: “Tira a roupa, pô!!; durante a festa, depois de observar,
excitar-se com o que via, Julinha que parecia a mais comportada
leva Lírio para o quarto e o seduz com assertividade, calma e natu-
ralidade; por fim, na festa, Lírio é sensação entre as mais novas, mas
também entre as senhoras que representariam maior recato.
O Bem Dotado não é o único e primeiro filme nessa linha. Sem
uma análise detida, é possível citar As Cangaceiras Eróticas como
uma obra me que as mulheres desempenham papel sexual ativo e
autônomo, usam os homens como objetos sexuais dominando-os
e coisificando-os como meros seres úteis ao prazer delas43. O ar-
gumento explora a vingança de duas meninas que tiveram o pai
cangaceiro morto por outro bando e, depois de crescerem e terem o
orfanato atacado pelo mesmo grupo criminoso, elas se organizam
com outras jovens da instituição e partem para a vingança. Estili-
zadas com roupas próprias, acampadas no campo, armadas, corajo-
sas, inteligentes e estrategistas elas prendem homens e a primeira
providência é medir o pênis para avaliar a utilidade deles. Somente
aceitam aqueles com mais de 23 cm, do contrário descartam. Elas
cresceram brincando com o jumento Cacá, em orfanato religioso, e
o usam como referência para escolher as presas. No caso dos can-
gaceiros, são mortos depois de satisfazerem aos desejos delas. Há
cenas voltadas para o olhar masculino, com banhos de rio, alguns
seios nus, closes em pernas e bumbuns ocultos por grandes cal-
cinhas, além da dimensão do falo como critério para escolha dos
parceiros. Entretanto, a questão central é que elas mesclam prazer
sexual/corporal livre com a missão de varrer o cangaço do sertão,
restabelecendo a justiça. Na perspectiva atual, as cenas apresen-
43
Lançado em 1974, teve a direção de Roberto Mauro, argumento e roteiro de Marcos Rey, com
destaque para a atuação de Jofre Soares, Matilde Mastrangi e Helena Ramos. Nessa linha desta-
Começando a despir
co também: A Noite das Taras, de 1980, com três episódios dirigidos respectivamente por John
Doo, David Cardoso e Ody Fraga, argumento e roteiro de Ody Fraga; Gente Fina é Outra Coisa,
de 1977, produção carioca e paulista, dirigido por Antônio Calmon, argumento de Graça Mota,
Nelson Mota e Antônio Calmon, roteiro de Leopoldo Serran, Antônio Calmon, Mauro Rasi e Pedro
Carlos Rovai.
189
tam-se de maneira natural, entre risadas e bom humor, sem o viés
da perversão, e a subjugação dos homens aparece como um jogo
lúdico durante a busca pela vingança. Mesmo reconhecendo que
esse enredo possa expressar o sonho masculino da mulher devassa,
o paradoxo é que o homem não tem controle da situação, é submeti-
do aos interesses e ações das jovens e depois descartado; inclusive
elas são mais eficientes do que a polícia que, no final, reconhece a
importância do trabalho de extermínio do grupo de malfeitores. O
papel tradicionalmente representado pelo homem é desempenha-
do pelas mulheres.
Esses exemplos elencados sugerem que apesar da dominação
masculina na produção e nos enredos dos filmes da pornochancha-
da, algumas brechas eram abertas para expressões de outras pers-
pectivas de relação de gênero e visualizar facetas da emancipação
feminina que ocorria no país e fora das telas. A desenvoltura da mu-
lher com o seu desejo era um importante elemento de verossimi-
lhança. No âmbito da fantasia, havia a possibilidade para a mulher
ser dominadora, autônoma, ciente de seus desejos e necessidades,
decisiva para resolver problemas, ser o centro dos acontecimentos
e ter poder de conduzi-los.
Considerações Finais
Os filmes da pornochanchada foram tradicionalmente conside-
rados vulgares, despolitizados, superficiais, de elaboração técnica
precária, mercantis, típicos da diversão dos segmentos sociais pobres
e culturalmente baixos. Percorrendo outro caminho, e sem utilizar O
Bem Dotado como modelo referencial para todos, é possível identi-
ficar uma obra com certa originalidade porque dialoga com várias
tradições, no âmbito do cinema nacional e internacional, da cultura
urbana, da representação do morador do campo e do interior, da se-
xualidade e dos gêneros feminino e masculino. Lançando mão de um
universo cultural do público, com facetas mais tradicionais e outra re-
centes, o filme reúne vários tempos e entretêm ao manter elementos
da fantasia do metropolitano, por ser superior, e projetar no grotesco
interiorano maior masculinidade, em detrimento do citadino. O re-
verso dessa lógica é que o homem do campo estaria mais próximo do
natural e, portanto, da sexualidade como um dado biológico primal. A
outra fantasia, o desejo de se relacionar com a mulher lasciva e arroja-
da muito além do prostíbulo, está imbricada ao risco da emancipação
feminina a ponto de haver inversão dos papeis. Contradições que in-
Parte 2
191
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Começando a despir
193
Vinicius Carrasco PORNOCHANCHADA, PARÓDIA
Bruno Jareta de Oliveira
E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS - ANÁLISE FÍLMICA
DE BACALHAU, NOS TEMPOS DA VASELINA E UM
PISTOLEIRO CHAMADO PAPACO
Introdução
O presente capítulo irá tratar de paródias da
pornochanchada. Inicialmente, de forma contex-
tualizadora e introdutória, apresenta-se a porno-
chanchada e suas características. Parte-se, em
seguida, para uma abordagem teórica que tenta
relacionar a produção cinematográfica do perí-
odo da pornochanchada com as representações
sociais de tais obras enquanto produtos simbó-
licos da cultura de massa que carregam identi-
dades e alteridades abordados sob a perspectiva
sociossemiótica que se identifica com a ala latino-
-americana dos Estudos Culturais e dialoga com
teóricos como Mikhail Bakhtin, que considera
nos estudos e análises da linguagem a relação
do emissor com o receptor, o contexto social, his-
tórico, cultural, ideológico e de fala. Considerada
um subgênero da comédia, a pornochanchada
se apropria do humor, da sátira e da paródia na
construção de tais representações sociais, utili-
zando-se, para isso, da linguagem de dupla cono-
tação e trocadilhos, quer na construção narrativa,
nos diálogos ou mesmo na nomenclatura dos tí-
tulos como estratégia de atrair o público, elemen-
tos que foram responsáveis pela popularização
do cinema no país.
Optou-se pela escolha de filmes representa-
tivos da pornochanchada que contemplem a pa-
ródia dos sucessos de bilheteria estrangeiros e
atraíram grande contingente de público às salas
de projeção brasileiras. A priori abordou-se o as-
pecto jocoso e de escárnio em relação ao produto
195
de fora e artifícios textuais como o trocadilho para atrair o público.
Em seguida, analisou-se de forma interpretativa as representações
sociais presentes em tais paródias, considerando-as elementos
simbólicos e de produção cultural e de massa, que transita pela
construção de identidades e alteridades socioculturais.
Espera-se assim contribuir para reforçar e resgatar as contri-
buições significativas da pornochanchada enquanto produção ci-
nematográfica representativa do cinema brasileiro e de toda uma
sociedade e época, além de diminuir os estereótipos ou rótulos que
tais produções carregam, colocando-a à margem de outras verten-
tes do cinema nacional.
Contexto e estética
A pornochanchada surge no Brasil sob regime militar do final
dos anos de 1960 popularizando-se na década de 1970 (SELIGMAN,
2004). Para fins didáticos, costuma-se dividir a produção das por-
nochanchadas em dois períodos: um que vai de 1968-1969 até 1979
e outro que vai de 1980 a 1990 (FREITAS, 2004, p. 10). Os filmes da
indústria deste gênero tiveram a produção concentrada em dois
polos: Rio de Janeiro, principalmente na Cinelândia, e São Paulo,
na região central degradada da metrópole, conhecida como Boca
do Lixo - jargão policial que passou a denominar as ruas marcadas
pela prostituição barata, tráfico de drogas e violência, em especial
nas ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões e dos Andradas, nas ime-
diações da Estação da Luz e bairro Bom Retiro, de onde se originou
90% dos filmes. (FREITAS, 2004, p. 19; STERNHEIM, 2005).
Segundo o crítico Rubens Ewald Filho, o cinema paulista da-
quela época não teve ajuda de órgãos governamentais, foi autos-
suficiente e eficiente “com fitas que se pagavam e davam lucro”
e que o público adorava. A Boca do Lixo também revelou gran-
des cineastas como Ozualdo Candeias, João Batista de Andrade
e Carlos Reichenbach e estrelas como David Cardoso e Helena
Ramos (STERNHEIM, 2005, p. 9-10). Não havia uma coerência te-
mática entre as produções da Boca do Lixo que abrigou desde
obras do Cinema Novo como Cinco Vezes Favela (1962), Vidas Se-
cas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) até os sucessos
das pornochanchadas. A proximidade com estações ferroviárias
como a Luz e a Júlio Prestes facilitavam a logística e permitiam
o escoamento da produção. Isso fez com que empresas como Po-
lifilmes (então a maior distribuidora de filmes em 16 mm), a Co-
Parte 2
1
O conceito de panóptico idealizado pelo filósofo e jurista Jeremy Benthan, em 1785, com um
Começando a despir
modelo de prisão que permitia vigiar seus internos sem que eles soubessem que estavam sen-
do observados e que poderia ser aplicado à instituições de ensino e/ou outras disciplinadoras.
Michel Foucault(2009) em seu livro Vigiar e punir, amplia tais conceitos para tratar da sociedade
disciplinar. Aqui, a alusão refere-se ao fato de que o cinema permite que a sociedade se veja e
analise através da ficção e das representações que ela contém.
199
prático orientadas para a compreensão do contexto social, mate-
rial e ideativo em que vivemos (SPINK, apud JODELET, 1985). Elas
são responsáveis por construções indenitárias e visão social dos
grupos e indivíduos através de processos de referenciação (GUA-
TARRI; ROLNIK, 1986). Nessa construção, inerente ao sistema
simbólico cultural são construídas do ponto de vista filosófico e
antropológico identidades e alteridades a partir da relação entre
os indivíduos, o outro e o meio. As identidades caracterizadas por
uma semelhança ou identificação por parte do público, quer sejam
por aspectos ligados ao gênero, raça, orientação sexual, condição
social ou pertencimento de grupo. As alteridades, referindo-se à
qualidade ou estado que é outro ou diferente, em sentido inverso
às primeiras, são geradas a partir da exclusão de fatores de apro-
ximação que permite que sejam classificadas em categorias, ar-
quétipos, rótulos ou padrões da polifonia social, onde se produzem
multi-identidades que combinam autoidentidade (ou identidade
requerida) e heteroidenditades (identidades atribuídas).
De acordo com García Canclini (2009), a questão do sujeito se
ampliou nas últimas décadas. A discussão sobre a concepção do
sujeito passou de um caráter universal (na filosofia e psicanálise),
para a análise empírica do sujeito relacionada à cultura, classe ou
nação (na história, na sociologia e na antropologia) passando a con-
siderar as interações entre indivíduos e sociedade.
Segundo Geertz (1978, p. 14), remetendo à “polifonia” con-
ceitual: o modo de vida global de um povo; o legado social que o
indivíduo adquire do seu grupo; uma forma de pensar, sentir e
acreditar; uma abstração do comportamento. Observa-se tanto
nas representações sociais dos filmes, quanto nas escolhas dos
títulos construções intertextuais e que se referem e dialogam com
a própria realidade e com outras referências culturais, conforme
já mencionado. Resgatando Mikhail Bakhtin que, segundo Robert
Stam (1992, p.12), enfatizou “a heterogeneidade concreta da parole”,
isto é, “a complexidade multiforme das manifestações de lingua-
gem em situações sociais concretas” e, e para quem o “discurso é
uma situação” fruto de um conjunto cumulativo entre o eu, o outro
e muitos outros (polifonia e dialogismo), pode-se pensar no sen-
tido que Bakhtin escreveu em Problemas da poética de Dostoié-
vski, de que “ser significa comunicar-se dialogicamente”, e como
o próprio autor propôs em A Questão dos Gêneros do Discurso, de
que “cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros
enunciados” e há de se considerar essa relação entre enunciado e
Parte 2
201
dos espectadores. As mulheres extremamente maquiadas e
‘liberadas’ mexiam diretamente com o sonho erótico do ho-
mem médio brasileiro. Havia também um segundo processo
psíquico, ou seja, levava a uma identificação direta daquele
indivíduo submisso, pobre e sem perspectivas com os galãs
– grande parte canastrões e carregados no gestual – valentes,
audazes e sexualmente predadores. No que diz respeito à co-
média, na Pornochanchada o homem médio ria de situações
com as quais já vivera ou presenciara diretamente: um ma-
rido traído, um conquistador piegas, uma mulher atirada, um
rapaz que fica impotente no momento da relação, uma aven-
tura homossexual esporádica. Quanto a este último item, é
importante um adendo: diferentemente dos filmes pornográ-
ficos de hoje em dia, onde muito raramente há alguma cena
homossexual em sinopses basicamente heterossexuais, nos
filmes da Pornochanchada e mesmo nos filmes eróticos da
década de 80, a presença de relações sexuais entre homens
e entre homens e travestis (geralmente passivos) era tão
constante quanto a bissexualidade feminina, que permane-
ceu nos filmes heterossexuais da atualidade. Em síntese, a
pornochanchada, além de mais realista em se tratando da
fauna sexual do mundo concreto, não era hipócrita negando
o trânsito dos homens pela sexualidade com outros homens,
como se isso fosse uma coisa muito rara e específica. Por-
tanto, conforme David Cardoso em entrevista para a revista
“Playboy”, “(...) o homossexual é uma figura imprescindível em
toda pornochanchada” (FREITAS, 2004, p. 6).
202
pela parede do escritório, o cotidiano profissional de uma prosti-
tuta, vivida por Tânia Alves. Outro aspecto observado pelo autor é
a exposição de seios e nádegas femininos, bastante comum nos
filmes. Ele destaca ainda que em uma parcela menor deles, apare-
ciam também os pelos pubianos das mulheres e, mais raramente,
nádegas masculinas. Já o nu frontal masculino, “como acontece até
hoje, praticamente não era representado”.
Os personagens masculinos, por sua vez, eram tipicamente
“machões, espertos, cafajestes e malandros (vinculados ao sucesso
sexual), ou então garotos virgens e maridos impotentes (relaciona-
dos ao fracasso). Os homossexuais, em geral, eram ridicularizados.
Seligman (2000, p. 10-11) afirma que o malandro no caso da porno-
chanchada foi apenas retirado do morro e colocado na zona sul do
Rio de Janeiro, pois era o que dava status na época, mas a essência
era a mesma: não trabalhava e se dava bem, era um grande conquis-
tador e ainda por cima bonito e charmoso. Como parte integrante
do ideário popular, o malandro fez o maior sucesso.
Kessler (20009) afirma que a instituição do casamento era fre-
quentemente retratada, em geral com “um pretenso viés transgres-
sor à ordem vigente”. Como exemplos ele cita que maridos que tra-
íam suas esposas, viúvas fogosas e moças incapazes de manter a
recomendável virgindade pré-nupcial colocavam em pauta as con-
tradições entre as normas sociais e a vida cotidiana, como pode ser
observado em filmes como A infidelidade ao alcance de todos (1972),
Adultério à brasileira (1969) e Divórcio à brasileira (1973).
A linguagem também era característica. Diante de um cenário
político marcado pela censura, termos de duplo sentido insinu-
avam a questão sexual. Os títulos e cartazes dos filmes também
eram pensados com esta perspectiva e para atrair o público. Se-
gundo Seligman (2003), num primeiro momento denominado pela
autora como soft-core, os títulos soavam parecidos com os filmes,
incluindo palavras-chave que causassem curiosidade e desper-
tassem a imaginação do espectador, tais como paquera, cama e
adultério. Por exemplo: Motel / um filme de alta rotatividade (1975);
Cada um dá o que tem / Nunca tantas deram tanto em tão pou-
co tempo (1975). Numa segunda fase, classificada como hard core
não era mais necessário dissimular nada e os títulos chegaram a
exageros tais como Gozo alucinante (Jean Garret, 1985), No calor
do buraco (1987).
Começando a despir
203
Paródia
Ao explorar obras de ambos períodos da pornochanchada, não
é raro encontrar títulos que fazem referência a filmes de grande
sucesso do cinema internacional. No primeiro, por exemplo, filmes
como Nos tempos da vaselina (1979), Banana mecânica (1974) e
Exorcismo negro (1974) notadamente relacionados a Nos tempos
da brilhantina (1978), Laranja mecânica (1971), e O exorcista (1973).
No segundo período, Etéia, a extraterreste em sua aventura no Rio
(1983) e Etesão, quanto mais sexo melhor (1986), ambos na esteira
de E.T. – O extraterrestre (1982), e Um pistoleiro chamado Papaco
(1986) parodiando westerns americanos como Django, entre outros.
A estreia dessas paródias coincidia ou se aproximava com os lança-
mentos dos originais estrangeiros no país, os quais algumas vezes
tinham o lançamento atrasado no Brasil graças à censura ou inte-
resses empresarias (BERTOLLI FILHO; TALAMONI, 2015, p. 321)
Parodiar filmes de sucesso internacional não foi uma prática
que começou na pornochanchada. Kessler (2009, p. 18) destaca que
enquanto as chanchadas dos anos de 1940 e 1950 buscavam inspira-
ção nos musicais americanos, as pornochanchadas herdaram essa
tradição de “imitação” dos filmes estrangeiros, quer em sua fase
inicial, ao buscar inspiração nas comédias italianas em episódios,
estruturadas em um conjunto de filmes curtos, quer posteriormen-
te, com a adoção da paródia de filmes, em especial os americanos,
que eram sucesso de bilheteria. Como aponta Shaw (2007), ainda no
começo da indústria cinematográfica brasileira, nos anos de 1930,
esquetes e números musicais nacionais adotavam elementos dos
famosos musicais hollywoodianos, e “quando o gênero da chancha-
da evoluiu a partir desses primeiros musicais, a imitação dos mode-
los cinematográficos de Hollywood gradualmente deu lugar às in-
terpretações em forma de paródia desses mesmos modelos” (SHAW,
2007, p. 69). Segundo o autor (2007, p. 69-70), estes filmes exibiam
uma crítica irreverente ao modelo sagrado dominante e apontavam
o choque cultural entre a visão hollywoodiana de mundo e a reali-
dade da vida brasileira “devorando o original para criar algo novo
e autenticamente nacional em essência”. Para ele, as imitações
brasileiras eram desprezadas pelos críticos como parentes pobres
dos originais americanos nos quais estas eram inspiradas, às vezes
bem livremente. Mas é precisamente nessa inocência, em sua falta
de pretensão, sua inferioridade técnica e seu humor autodepreciati-
vo que reside a chave de seu brasilianismo intrínseco. Simões (2013,
Parte 2
205
triunfal (ambos eram, claro, rituais de tipo carnavalesco). O
parodiar carnavalesco era empregado de modo muito amplo
e apresentava formas e graus variados: diferentes imagens
(os pares carnavalescos de sexos diferentes, por exemplo) se
parodiavam, umas às outras de diversas maneiras e sob dife-
rentes pontos de vista, e isso parecia constituir um autêntico
sistema de espelhos deformantes: espelhos que alongam, re-
duzem e distorcem em diferentes sentidos e em diferentes
graus. (BAKHTIN, 2008, p. 132-133).
206
tos presente nas paródias constatado por Propp são claramente
aferidos nas obras da pornochanchada. A indústria cinematográ-
fica brasileira, enquanto cultura opositora, se apropria do discurso
dominante da indústria estrangeira para ressignificar os potentes
discursos vindos de grandes estúdios, introduzindo, na versão
nacional, críticas e exageros que, juntamente com a “carona” que
é pegada no sucesso dessas obras originais, garantem público e,
consequentemente, mais lucro.
Análise fílmica
Para o presente artigo, optou-se pela escolha dentro do universo
fílmico da pornochanchada de elementos representativos deste gê-
nero que abarcassem a questão da paródia. Foram considerados su-
cessos de bilheteria para a época. Num primeiro momento, tratando
este aspecto jocoso e de escárnio em relação ao produto estrangeiro
e sua relação com trocadilhos e artifícios para atrair o público. Em
outro prisma, fazendo uma análise interpretativa das representa-
ções sociais presentes em tais paródias, considerando-as elemen-
tos simbólicos e de produção cultural e de massa, que transita pela
construção de identidades e alteridades socioculturais.
2
Confira dados da produção em http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScrip-
t=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&exprSearch=Um%20%20and%20%20pistoleiro%20%20and%20
%20chamado%20%20and%20%20Papaco&nextAction=lnk&lang=p. Acesso em 10 set/ 2-16
207
da por Sergio Corbucci - Django atira primeiro (1966), Viva Django
(1968), Django não perdoa, mata (1968) e Django, o bastardo (1969)
– que se tornou cult nos Estados Unidos e Itália.
No enredo da obra brasileira, Papaco encontra-se no caminho
com Pancho Favela (Paco Sanchez) e depois de vencê-lo rompe com
o estereótipo do pistoleiro do western tradicional. No caminho ele
duela com os quatro maridos de Linda (Márcia Ferro) que o acom-
panha em sua jornada até uma cidade chefiada pelos criminosos
Jane (Nikita) e Sapato (Agnaldo Costa) onde é recebido no bordel
da cidade pelo personagem papa-defunto e rendido pelo anão Big
Boy (Anão Chumbinho), mandado por Jane. Após duelos e conflitos
resolvidos, o pistoleiro consegue “negociar” sua carga agradando
a todos os interessados e segue sua jornada roubando beijo pouco
provável da mocinha.
Ironias estão presentes no texto, na nomenclatura dos persona-
gens e na construção de cenas inusitadas como um todo que mis-
turam insinuações ou conotações sexuais sem nudez explícita com
sátiras cotidianas e temas políticos. (NEVES, 2013, p. 197-198). Em
alguns dos diálogos, a sexualidade do protagonista fica clara, como
na cena em que Linda se insinua para ele e ele responde: “meu ne-
gócio é outro”. Ou insinuações como “tem sorte que ele corta dos
dois lados”. No mesmo sentido, o então inimigo do pistoleiro Sapato
demonstra ao longo das cenas sua posição sexualmente submissa
numa inversão de poder com seus subalternos. Como exemplo da
sátira cotidiana, pode-se citar falas que definem o pistoleiro como
“mais perigoso que bomba atômica, mata mais do que Aids4”. Há até
brincadeiras com o próprio modelo do herói ou protagonista, como
em um diálogo em que dizem que “ele é o mocinho do filme, dá um
jeito”. Estereótipos também estão presentes em adjetivos como “pi-
ranha” em referência a uma das mulheres, e “viado bigodudo” em
referência a um dos pistoleiros.
O filme brinca com modelos e padrões sociais preestabelecidos,
questionando-os numa espécie de escárnio da sociedade brasileira.
3
Western Spaghetti, Faroeste espaguete ou Bang-bang à italiana são termos que se referem ao
subgênero western de produção italiana das décadas de 1960 e 1970 geralmente filmados na
Itália ou na Espanha que teve grande popularidade internacional.
4
A Aids (Síndrome da imunodeficiência adquirida) é uma doença do sistema imunológico huma-
no causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) que foi descoberta nos anos de 1980,
Parte 2
período em que foi gravado o filme, e responsável por inúmeras mortes até o início da produção
de coquetéis medicamentosos que permitiram sobrevida aos pacientes infectados.
208
O protagonista tem o típico perfil físico do cowboy dos filmes de wes-
tern e desempenha bem esse papel em determinadas ações como as
cenas em que acende o cigarro, empunha a arma e duela; contudo,
não esconde seu interesse por pessoas do mesmo sexo e até transi-
ta pela bissexualidade, quebrando o estereótipo do machão clássico
e até mesmo do homo ou bissexual afeminado ou cheio de trejei-
tos mais comum em outras produções da pornochanchada. Papaco,
meio às avessas, mantém a mesma áurea do temido pistoleiro de
bangue-bangue e, apesar de algumas características de anti-herói,
preserva também certas qualidades do típico malandro nacional
que se safa das mais inusitadas situações e ainda se dá bem.
Os demais pistoleiros também fogem ao estereótipo de machões
com sua sexualidade inquestionável. Tanto Pancho quanto Sapato,
criminoso temido, mas que ao mesmo tempo aparece em algumas
cenas em relações sexuais com seus subalternos, protagonizam situ-
ações hilárias que faz essa inversão de valores e brinca com a ques-
tão da masculinidade e do papel masculino convencional presente
nas demais pornochanchadas. O anão Big Boy é outra figura mas-
culina emblemática que carrega no nome um trocadilho que brinca
com a questão da virilidade nacional e a ideia de que, como se diz no
dito popular, tamanho do órgão genital masculino é documento.
As personagens femininas também são retratadas de forma di-
versa. Linda, com seus quatro maridos demonstra um modelo pouco
convencional de casamento. Jane, figura firme que detém o poder,
domina criminosos ou jagunços e está em busca do material secreto
no caixão carregado pelo protagonista disputando território, espaço
social ou poder com Sapato. As prostitutas (Denise Clair, Angelica
Dumont, Camila Navarro e Renato Augustus Reis Filho), persona-
gens marginalizadas e características dos filmes de velho oeste que
habitam os bordéis ou saloons e que também remetem à questão
sexual. Observa-se também a presença de personagem transexual.
5
Dados e ficha técnica da produção podem ser obtidos em http://cinemateca.gov.br/cgi-bin/
wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=P&nextAction=search&exprSe-
arch=ID=024306&format=detailed.pft
209
Logo ao desembarcar, o matuto do interior começa a conhe-
cer a realidade carioca quando tem a mala roubada por um car-
regador, o motorista de taxi lhe leva o dinheiro e um mendigo o
deixa sem suas botinas. Depois de muito custo para localizar o
primo, Onofre tem contato com as garotas e garotos de Ipanema e
vai tentando se adaptar à cidade em aventuras e desventuras nas
mais variadas situações.
Onofre, o caipira vítima de chacota ou gozação dos moradores
da cidade maravilhosa, vai se transformando e sendo contaminado
pelos ares da cidade fazendo jus ao papel de malandro e incorpora
o estereótipo carioca de homem de lábia que atrai as mulheres e dá
sempre um jeitinho para se safar.
Nos tempos da vaselina é paródia de Grease (1978), dirigido por
Randal Kleiser, que tem como protagonistas John Travolta e Olivia
Newton-John e cujo título traduzido para o português como Nos
tempos da brilhantina, em alusão ao cosmético utilizado popular-
mente pela juventude da época para dar brilho e fixar os cabelos. Gre-
ase custou US$ 6 milhões e faturou US$ 394 milhões, entrando para a
lista dos musicais de maior faturamento da história do cinema.
Apesar de ser inspirado num dos grandes sucessos da música
gringa dançante, Nos tempos da vaselina, que tem trilha sonora as-
sinada pelo músico Carlos Lyra que também integra o elenco e apa-
rece tocando, traz o ar intimista da sociedade carioca que vivencia
a onda da Bossa Nova e a boemia da época. Retrata um pouco da
juventude brasileira, do matuto que sai do interior ao fluminense
descolado que ganha a cidade grande, a referência meio desloca-
da ao filme americano lançado um ano antes se dá em maior pro-
fundidade quando Onofre se matricula em um curso de dança e é
convidado pela professora a participar de um show ou concurso
numa discoteca badalada. Os planos de câmera, jogos de luzes e
cortes tentam retratar o movimento das casas noturnas que tocam
o tipo de som que fez com que o filme americano fosse sucesso de
bilheteria, assim como a Bossa Nova brasileira, que sofre grande
influência do jazz estadunidense, também foi aclamada pela crítica
americana do mesmo período. Essa tentativa de transportar o uni-
verso musical para a tela a exemplo do que fez o filme estrangeiro
também é vista na obra nacional. Além das rodas dos jovens com
banquinhos e violões, tem-se referências textuais e sonora a can-
ções populares como Aquarela Brasileira para compor a ambien-
tação, como se dissessem, vocês têm a disco music, as casas no-
turnas, mas nós temos nossas praias (em especial Ipanema reduto
Parte 2
Bacalhau e Tubarão
Tubarão é um filme norte americano dirigido por Steven Spiel-
berg, produzido por Richard D. Zanuck e David Brown e lançado em
1975 - 20 de junho nos EUA e 7 de julho no Brasil. Baseado no ro-
mance homônimo de Peter Benchley e considerado do gênero ter-
ror e suspense, a obra conta a história de uma pequena cidade no
litoral dos Estados Unidos que é ameaçada pela presença de um
animal marinho que, ao atacar fatalmente os banhistas, coloca em
risco o turismo do município, principal fonte de renda dos mora-
dores. O filme, que custou a Universal Studios U$12 milhões, foi um
grande sucesso de público e faturou 40 vezes mais que seu orça-
mento, U$480 milhões em todo o mundo6 - consagrando o jovem ci-
neasta Steven Spielberg. No Brasil, o filme levou aos cinemas mais
de 13 milhões de pessoas e alcançou o segundo lugar no ranking de
maiores bilheterias do país.
Não demorou para que o sucesso nacional do filme de Spiel-
berg fosse parodiado pela pornochanchada. Adriano Stuart foi o
responsável por roteirizar e dirigir Bacalhau7, paródia de Tubarão
que estreou no Brasil no ano seguinte, em 1976. Na trama brasileira,
um animal de origem desconhecida começa a atacar banhistas em
uma cidade no litoral de São Paulo. Gravado em Ilha Bela, o filme
atingiu uma notável bilheteria, conquistando mais de 1,3 milhão de
expectadores8. Para evidenciar a estrutura narrativa que é apresen-
tada na obra original e mantida na paródia, será descrita a seguir a
ordem de acontecimentos comum aos dois filmes.
Uma banhista é atacada enquanto nada na praia de uma peque-
na cidade litorânea. Após seus restos mortais serem encontrados
na areia, o chefe de polícia do município suspeita que o ataque te-
nha sido feito por uma criatura marinha. Com o intuito de proteger
6
Informação disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1107200010.htm Aces-
so em 10 set. 2016
7
Dados da produção podem ser obtidos em http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.
exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=I-
D=024856&format=detailed.pft. Acesso em 10 set. 2016
8
Informação disponível em http://www.ancine.gov.br/media/SAM/2008/filmes/por_publico_1.pdf.
Parte 2
212
os moradores e turistas, o oficial argumenta que as praias precisam
ser fechadas, mas o prefeito, temendo que a cidade deixe de lucrar
com o turismo, não acata e ordena que as praias permaneçam aber-
tas. Novos ataques levam os moradores a agir. Um especialista de
fora da cidade é convocado, e como último recurso uma expedição
liderada por um pescador contratado é enviada para aniquilar o
animal que ameaça os banhistas e os lucros da cidade.
Enquanto essa sucessão de acontecimentos é construída no
primeiro filme a fim de servir ao suspense, ela é parodiada no se-
gundo para que sejam satirizados tanto a história contata no filme
de Spielberg, quanto os temas e personagens brasileiros inseridos.
O filme traz algumas representações sociais interessantes, quer
na forma caricata dos personagens, quer nos diálogos e cenas. Um
exemplo é o chefe de polícia dormindo com a espingarda e coberto
por um mosqueteiro comum aos berços de criança, como se bus-
casse proteção, ideia reforçada pelo texto: “homem da lei, sempre
pronto para entrar em ação!”. Uma outra representação interessan-
te traz o estereótipo do funcionário público como aquele que “marca
cartão e vai embora”. A figura do homossexual é retratada no filme
também com certa ridicularização, trejeitos, bigode. É alguém que
faz oração em latim na porta da igreja, mas que é obrigado a ficar
do lado de fora, numa metáfora de que a igreja da época não esta-
va aberta a este tipo de gente. O legista também passa laudos bem
inconclusivos sobre a morte da primeira vítima. Além de comentar
com o chefe de polícia que seu cachorro comeu a perna do cadáver
ele aponta que a morte pode ter sido entre meio dia e quatro horas
da manhã, por exemplo.
A linguagem também vem repleta de expressões maliciosas e de
duplo sentido como “cuidado com a cabecinha” ou “comer uma pes-
soa só por dia”, “ajuda no controle da explosão demográfica”, numa
brincadeira com a questão da contracepção e da libertinagem sexual.
A alusão à obra que inspirou a sátira é feita em alguns diálogos
como o que o chefe de polícia afirma que “tubarão desse tamanho,
só mesmo naquele filme”. Outro trocadilho com a questão cinema-
tográfica é feito quando se sugere que se busque um oceanógrafo e
um dos interlocutores afirma que “ninguém precisa de cenário aqui”
num trocadilho com a palavra cenógrafo. Trocadilhos também apa-
recem ao nomear as personagens. Um exemplo é a prostituta Ana
Bom Fôlego. Há também a secretária fofoqueira a quem se dirigem
Começando a despir
pedindo que espalhe a notícia e ela afirma que “não precisa nem
pedir”. Outra personagem cômica é a cigana que aparece em uma
cena com previsões tão imprecisas quanto as do legista.
213
Os jogos de poder também permeiam a obra, quer em falas
como “eu mando mais que ele”, do prefeito ao referir-se ao chefe
de polícia e/ou no imbróglio que envolve a interdição ou não das
praias. Autoridades, comerciantes e pessoas influentes com medo
de ter prejuízos com a interdição acabam sendo contrários à medi-
da mesmo diante do risco de mais mortes. A disputa por poder en-
tre o delegado e o prefeito é frequente. “Neste barco mando eu!” e o
subalterno sendo obrigado a buscar uma cerveja para servir aos ca-
prichos do mandatário que, por fim, o manda tomar a cerveja uma
vez que ele não bebe.
Mesmo numa época em que o telefone móvel ainda não fora di-
fundido, algumas cenas de tom cômico são recorrentes. O prefeito
da cidade, sempre chora e acaba por tirar dos bolsos telefones que
tocam. A figura de Quico, o pescador, é introduzida na trama por um
tambor de seu ajudante, numa espécie de rito tribal que marca a
presença. Uma piadinha que também é feita em alusão ao Tubarão
se refere a Quico como “aquele que o peixe come no fim do filme”.
Em certo momento, o nome é confundido com o jogador Zico, do
Flamengo, numa referência direta à paixão nacional (o futebol). Ou-
tra menção neste sentido se dá quando o legista menciona que o
cadáver é um jogador de futebol ou então uma torcedora.
A questão tributária também é criticada na obra, quando o pes-
cador se propõe a exterminar a fera devoradora e quer seu paga-
mento sem desconto de ISS (imposto sobre circulação de serviços).
O prefeito discute com o pescador dizendo que irá descontar do va-
lor pago Imposto de Renda, ISS e INSP. Há uma comparação com
o orçamento da prefeitura local e a de Nova York, uma brincadei-
ra com os custos de produção do filme nacional se comparado ao
hollywoodiano. “30 mil, quem ele pensa que é? É o astro do filme?”
reforça neste sentido um dos diálogos. Em outro momento, um dos
personagens questiona se ele é o Roberto Carlos da pesca, numa
referência ao cantor popular brasileiro. Até Shakespeare é utiliza-
do para tratar desta questão da dúvida que acomete esse impasse
financeiro. “Ser ou não ser, pagar ou não pagar”; “eu sou artista e
ninguém põe preço no meu trabalho”, novos diálogos que remetem
à questão da falta de incentivo ao cinema nacional e sua relação
com o custo de produção.
A questão política também é demonstrada em uma cena de pro-
testo na qual aparecem poucos manifestantes com faixas diante da
prefeitura. Seria uma menção aos protestos do tempo da ditadura?
A produção também faz piada com os portugueses que coloni-
Parte 2
Considerações Finais
Marginalizada durante muito tempo pela elite intelectual en-
quanto produção cinematográfica com estética grotesca ou depre-
ciativa da sétima arte, a pornochanchada é inegavelmente um dos
períodos mais férteis do cinema nacional. O trocadilho aqui não se
faz com conotação sexual, mas no sentido de expressar o valor de in-
dústria de produção que se instaurou por aproximadamente quinze
anos a ponto de ser comparada como a Bollywood do cinema nacio-
nal, em alusão à indústria cinematográfica indiana com suas obras
de baixo custo se comparados aos mega-orçamentos da indústria
americana. Quer seja pela sua origem relacionada em São Paulo, à
Boca do Lixo, vale destacar que as pornochanchadas tiveram seu
valor ao conseguir imprimir um esquema de produção industrial
que antes não havia se observado. Elas revelaram empreendedo-
res que souberam driblar das dificuldades econômicas à censura
da época, e que conseguiram lucrar com seus filmes - muitas vezes
gerando fonte de receita para outras produções num ciclo sucessivo.
Sem seguir certo padrão, as pornochanchadas foram experimentos
do fazer cinema, sobretudo um cinema popular. E a fórmula esta-
va em transferir para o produto midiático características que eram
facilmente identificáveis, em seus personagens cotidianos, que se
viam ali representados, ou que se sentiam próximos da realidade
retratada socialmente nas películas. O uso da linguagem simples, do
humor e da habilidade do brasileiro de rir da própria sorte, de fazer
piada com o próprio destino, satirizar desde a infidelidade conjugal
Parte 2
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Parte 2
220
José Carlos Marques O REI ESTÁ NU! – OS EMPRÉSTIMOS DA
PORNOCHANCHADA NA ADAPTAÇÃO PARA
O CINEMA DA OBRA TEATRAL PEDRO MICO
221
pado de cinco produções anteriormente – Ver Quadro 1), em Pedro
Mico ele teria que, além de representar o personagem de um con-
traventor, encarar de corpo nu a gravação de uma cena de sexo com
a própria Tereza Raquel, por sinal, mulher de Ipojuca Pontes à época.
Para quem cultivou uma carreira futebolística um tanto distan-
te da imagem de rebelde ou de contraventor, a assunção de um per-
sonagem à margem da lei como Pedro Mico por Pelé pode-nos pa-
recer inusitada, ainda mais quando lembramos que: 1) em 1979 ele
mesmo havia participado de Os trombadinhas (direção de Anselmo
Duarte) no papel dele próprio, interpretando um benfeitor que lu-
tava contra o crime; 2) em 1982 ele já havia participado da super-
produção internacional Fuga para a vitória (direção de John Ford),
no qual aparece como prisioneiro de guerra dos nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial; 3) e em 1986, de modo a cultivar a mesma
imagem que tinha nos gramados, Pelé faz parte de uma produção
dos Trapalhões (Os Trapalhões e o Rei do futebol), mais uma vez
representando a si mesmo.
222
Collor de Mello (1990-1992) e sobre quem pesa o fardo de ter sido um
dos mentores do fim da Embrafilme (a mesma que financiou o seu
Pedro Mico), talvez desejasse a presença de Pelé justamente pelo
impacto que essa escolha poderia conferir ao seu projeto. Segun-
do Andrea Ormond, que mantém um blog especialíssimo sobre o
cinema brasileiro – o Estranho encontro, dedicado a comentar e re-
senhar filmes diversos, especialmente os produzidos nas décadas
de 1970 e 1980 –, Pedro Mico era um projeto antigo do diretor, e a pe-
lícula só entrou em circuito comercial dois anos após ser lançada:
1
Disponível em <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2011/04/29/em-filme-ine-
dito-pele-relembra-nu-artistico-e-quando-roubou-a-cena-de-stallone-veja-trecho.jhtm>. Acesso
em 15 jan. 2016.
223
Pontes, para além de ter recorrido à figura icônica do “Rei do fute-
bol”, apropriou-se ainda de recursos característicos da pornochan-
chada – gênero audiovisual tipicamente brasileiro que vigorou nas
décadas de 1970 e 1980 e que misturava elementos da chanchada
com o erotismo.
Nesta nova síntese cultural promovida por este gênero, a pre-
sença de mulheres nuas ou seminuas frente às câmeras de cinema
dava o tom de produções que visavam o grande público, ainda que
alguns trabalhos resvalassem para algum tipo de sofisticação ar-
tística, fosse por meio do roteiro, fosse por meio da fotografia ou de
outros recursos técnicos. Parece-nos ser este o caso de Pedro Mico.
225
gada de Aparecida, prostituta que Pedro Mico conhece no asfalto e
que provocará o conflito inevitável naquele ambiente “huis clos”2:
2
Refiro-me à peça Huis Clos, lançada em 1944 pelo filósofo francês Jean Paul Sartre. O texto foi
traduzido e encenado no Brasil com o título “Entre quatro paredes” (embora o sentido do título em
Parte 2
francês tivesse mais a ver, em português, com a noção de “porta fechada” ou “espaço sem saída”).
226
APARECIDA - Ah... Eu... eu não sabia. Você é tão inteligente,
tão despachado, sei lá. Pensei que você tinha aprendido a ler.
PEDRO MICO - Eu não ia perder tempo com essa papagaia-
da. É muito mais fácil arranjar mulher que sabe ler do que
encher o crânio de letras com traço, com chapeuzinho, com
bolinha, com tudo quanto é raio de besteira. Toca o café pra
frente. Daqui a pouco estão aí os jornais do dia. É tempo da
gente engolir o café e meter um berço. (p. 5)
Em outro momento, Pedro dirá que “Mulher é pra ler jornal e dor-
mir com a gente, não é pra dar palpite em negócio de homem não.” (p.
12). Se à mulher são destinadas, portanto, as tarefas domésticas, cabe
referir que a purificação da mulher advém na mesma medida por for-
ça da companhia e da proteção do homem – no caso, o malandro:
227
binasse para fazer uma descida dessa no mesmo dia?..(p. 25)
(...)
PEDRO MICO - Não. Mas vou pensar.
228
dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios
estão inseridos” (JOHNSON: 2003, p. 42). Além disso,
229
ses e dissertações sobre o porquê do uso desta citação, ausente no
texto da peça de Callado, embora latente. Explicaremos tudo isto
com o auxílio da preciosa dissertação de mestrado de Júlio Barnez
Pignata Cattai (2011), dedicada a um estudo sobre a mídia impres-
sa no Brasil. A certa altura de sua pesquisa, Cattai faz referência à
balada satírica Ópera dos mendigos (The beggar´s opera), peça do
inglês John Gay de enorme sucesso de público no século XVIII. O
argumento do texto teatral era o de que ladrões e contraventores
comuns não eram diferentes dos burocratas inescrupulosos que se
encontravam em altos postos do governo: ambos os tipos não se
distinguiriam, já que suas formas de praticar os delitos fariam parte
da mesma natureza humana.
Essa mesma peça de John Gay começou a ser retrabalhada no
século XX pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, que a reescreve
com o título de Ópera dos três vinténs (Dreigroschenoper) e substi-
tui o personagem principal, que passa a chamar-se Mackie Messier,
ou Mack The Knife. Para não cansar leitor com muitas digressões,
cabe dizer que o tal Mack The Knife, uma espécie de anti-herói ma-
landro que simboliza em Brecht uma crítica ao capitalismo e às
concepções burguesas, irá mais tarde influenciar Chico Buarque
de Hollanda e sua Ópera do malandro. Além disso, uma música da
peça faria mais sucesso que a própria peça, segundo Cattai: trata-se
da canção The ballad of Mack the knife, ou simplesmente Mack the
knife, composta por Brecht para situar o criminoso em meio a um
ambiente de profunda desigualdade social.
Essa mesma canção mais a peça de Brecht foram traduzidas
para o inglês em 1950 pelo dramaturgo norte-americano Marc Blit-
zstein, que suavizou em parte o clima de tensão social dos originais.
Fato é que a canção foi imortalizada, na versão de Blitzstein, pelo
trompetista Louis Armstrong e mais tarde gravada também por íco-
nes do calibre de Ella Fitzgerald e Frank Sinatra. Os dois primeiros
versos da nova canção são “Oh the shark has pretty teeth, dear / And
he shows them pearly white”. Em tradução livre livre para o portu-
guês, teríamos a mesma inscrição que Ipojuca Pontes usa para abrir
seu filme – incorretamente atribuída a Brecht (na versão original do
autor alemão, os versos em inglês são “And the shark, he has teeth /
And he wears them in his face”, ou, numa tradução livre para o por-
tuguês, “E o tubarão, ele tem dentes / E os usa em seu rosto”).
É singular notarmos que Ipojuca Pontes, para além do apelo se-
xual de sua tradução semiótica da peça, soube interpretar o âmago
da proposta do texto de Callado, recuperando a questão que nos pa-
Parte 2
Pedro Mico, com seu traje de dândi (ver Imagem 1)3, continua a
subida pelo morro até que se avista a praia de Copacabana. Somos
informados por um dos créditos do filme que o barraco do protago-
nista é um cenário de autoria de Oscar Niemeyer. Aos 7’20”, quando
Pedro Mico finalmente chega a casa no topo do morro, tem-se uma
visão completa da Lagoa Rodrigo de Freitas. Encerra-se a execução
de Aquarela do Brasil.
Nesta sequencia toda, quase temos um plano sequência. Popu-
larizado pelo teórico de cinema André Bazin, tal plano baseia-se na
teoria da autenticidade e da objetividade da montagem das cenas
cinematográficas, com o corte sendo substituído pelo movimento
da câmera. “Sua concepção teórica sobre o cinema realista coin-
Parte 2
232
Figura 1: Folder de divulgação de Pedro Mico – uma lição de malandragem.
Crédito da imagem: Marcelo Jesuíno – Cinemateca Brasileira.
3
Esta e as próximas duas imagens utilizadas neste texto foram retiradas do sitio da Cinemateca
Brasileira. Disponível em: < http://cinemateca.gov.br>. Acesso em:10 jan. 2016.
233
o multimilionário e furta joias e valores da escrivaninha, conforme
orientações recebidas de Gigante. O problema é que Pedro Mico não
cumpre sua parte acordada com o grupo que planejara roubar o sul-
tão e foge para a favela com o produto do roubo.
O tal do multimilionário era um empresário árabe que enrique-
cera por meio do petróleo do Oriente Médio. Estava no Rio Janeiro a
convite – e sob custódia – de um empresário ganancioso, que havia
planejado o tal roubo apenas para lucrar em cima da segurança do
sultão. Com a traição de Pedro Mico, entra em cena a polícia, ilus-
trada no papel do delegado Portela (Jorge Dória), que aparece em
seu gabinete com a foto na parede de João Batista Figueiredo, então
último presidente do Brasil da ditadura militar. Esta trama rocam-
bolesca e caricata, certamente cômica, desdobrar-se-á em novas
cenas de sexo e de corpos nus, elevando-se assim a estética da por-
nochanchada a um patamar distinto do proposto no texto teatral:
235
Perto de uma hora de filme, o Rei finalmente fica nu (ver Ima-
gem 2): Aparecida e Pedro Mico transam no barraco do malandro.
Na cena, é nítido o desconforto de Pelé, em que pese a naturalidade
com que Tereza Raquel aborda a filmagem. A dificuldade do Rei do
Futebol teria chegado a irritar Ipojuca Pontes, em virtude da longa
demora em se concluir a cena, como se pode ver em depoimento do
próprio ex-jogador:
Tive essa cena, que é normal entre um casal que se ama, que
tava morando junto. Foi uma cena mais audaciosa”, explicou
o Rei. “Caramba é a mulher dele. Ele tá mandando eu pegar a
mulher dele [risos]. Eu ficava meio confuso. Fiquei – sei lá – a
tarde inteira tendo que repetir a cena porque eu não conse-
guia. (Documentário inédito mostra cena de sexo de Pelé no
cinema; veja o trecho”)4.
236
chamar o Milton Gonçalves para disfarçar” ou “O filme é tão ruim,
que depois dele Pelé nunca mais foi protagonista de filme nenhum
(em ‘Trapalhões e o Rei do Futebol’ ele é coadjuvante)”.
Intriga-nos, entretanto, que o cartaz oficial do filme (Figura 3)
não faça uso da nudez feminina, nem da violência, mas sim da ima-
gem de Pedro Mico (Pelé) ao lado da bandeira do Brasil, mais a frase
“ele não sabe ler, mas... pode escrever uma nova história!”. É como
se Ipojuca Pontes – ou os demais produtores do filme – quisessem
reaproximar-se da proposta original do texto de Antônio Callado.
Por último, cabe lembrar a indissociabilidade entre a porno-
chanchada e a ditadura militar. Como afirmam Bertolli Filho e Tala-
moni (2015), a abertura política a que o Brasil assistiu, especialmen-
te no início da década de 1980, acabaria por sepultar o gênero, que já
convivia em 1985 – ano de lançamento de Pedro Mico – com filmes
nacionais com sexo explícito (Coisas eróticas, o primeiro do gênero
no Brasil é de 1981) e com o surgimento da cultura do videocassete
4
Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2011/04/29/em-filme-ine-
Começando a despir
dito-pele-relembra-nu-artistico-e-quando-roubou-a-cena-de-stallone-veja-trecho.jhtm>. Acesso
em 15 jan. 2016.
5
Disponível em: <http://opoderosochofer.blogspot.com.br/2013/10/1985pedro-mico-era-me-
lhor-nao-ter-ido.html>. Acesso em: 20 fev. 2016.
237
e das locadoras de vídeo, que exponenciaram ao público brasileiro
a possibilidade de consumir, em casa, os filmes regados a sexo far-
to das produções norte-americanas. De todo modo, insistimos no
fato de que, na transmutação do Pedro Mico feita por Ipojuca Pontes,
ainda persistem diversos elementos característicos das produções
que sedimentaram a pornochanchada como um gênero de grande
alcance de público e de baixa ressonância na crítica, como vemos
na consideração abaixo:
Ainda que esta citação não se refira ao filme Pedro Mico, é ine-
gável a possibilidade de associá-la à montagem realizada por Ipo-
juca Pontes. E, para além da imagem do Presidente Figueiredo no
gabinete do delegado Portela, conforme referido anteriormente, é
sintomático que o filme inclua na trama uma longa cena de tortu-
ra sobre o Gigante, executada por policiais dentro da delegacia, a
fim de que se revelasse a identidade e o paradeiro de Pedro Mico
– algo que nos lembra de algumas sequências de Pra frente Brasil
(1982, direção de Roberto Farias), o qual sofreu vários problemas
com a censura. Em que pese o tom cômico da sequência da tortu-
ra do Gigante, especialmente pelos trejeitos fisionômicos do ator,
não nos parece que a intromissão do tema seja tão inocente quan-
to se possa imaginar.
Considerações Finais
Ipojuca Pontes, ao iniciar seu filme com a tal frase atribuída –
erroneamente – a Bertold Brecht, intensifica sentidos que estão
latentes na peça de Antônio Callado, que sequer cita o dramatur-
go alemão. Trata-se, com efeito, de uma sofisticação e de uma eru-
Parte 2
240
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Parte 2
242
Lucas Sant’Ana Nunes AS MULHERES DE ODY FRAGA:
Renata Aparecida Frigeri
A REPRESENTAÇÃO FEMININA
EM A DAMA DA ZONA
244
contêm representações do sexo), vamos considerar primei-
ro as relações históricas entre os mecanismos do poder e a
sexualidade humana, deixando que esta ocupe o centro da
arena, em vez de permanecer como simples “fonte” ou “tema”
para representações artísticas (GERBASE, 2006, p.41).
Sexo censurado
O sexo e a sexualidade na mídia nacional dos anos de 1970 fo-
ram controlados pelos censores da ditadura: cenas de sexo explí-
cito no cinema só foram permitidas no Brasil após 1981, quando se
iniciou o processo de abertura política. Para Sales Filho (1995, p.68)
“o Estado autoritário, considerando que as atividades culturais se
Parte 2
246
relacionavam intrinsecamente à ideologia da Segurança Nacional,
procurou interferir diretamente na produção cultural”, sendo assim,
os filmes eróticos da pornochanchada exibidos nos anos de 1970,
que se mesclavam com vários outros gêneros, desde os dramas até
as comédias, não mostravam na tela o ato sexual.
Os grandes sucessos de bilheteria desse período possuem ce-
nas que insinuam atos sexuais, onde o espectador pode imaginar,
mas não os assiste, ou seja, a sensualidade na pornochanchada era
sugerida, não era exposta. Em A dama da zona não é diferente, as
cenas com nudez ou insinuações de atos sexuais são poucas, ape-
sar de o tema principal do filme ser a prostituição.
247
Figura 1: Cartaz do filme A Dama da Zona.
Fonte:Pinterest[https://www.pinterest.com/pin/369717450635079556/]
Acesso em 12.nov.2015.
248
Outro ponto comum entre os filmes de pornochanchada é o hu-
mor inserido nas cenas eróticas: as cenas de sexo são amenizadas
com o riso em A dama da zona. As cenas em que há o erotismo são
interrompidas por alguma situação cômica: o sexo oral acaba em
uma mordida; nos sonhos de Fernão com Esmeralda, em todas as
tentativas de aproximação física com ela, sua mulher, Encarnação,
é quem aparece para lhe tocar em outra cena que há insinuação do
ato sexual, a mãe da personagem está no mesmo ambiente assis-
tindo à televisão. A comédia, impregnada nos filmes de pornochan-
chada, visava contornar os censores da ditadura, então o humor foi
uma maneira encontrada para amenizar as cenas de sexo e conse-
guir que o filme fosse exibido nos cinemas.
249
fácil para o país e em especial para a sua criação artística
(STERNHEIM, 2005, p.14).
A prostituta e a mãe
Para fins de análise, este texto irá deter sua atenção em duas
personagens da trama: Esmeralda, a prostituta, e Juliana, a mãe. Es-
meralda é uma mulher forte, independente, solidária e prostituta,
ela é a protagonista em A dama da zona. Juliana é uma mulher frá-
gil, pobre, casada, com um filho recém-nascido, que luta para sobre-
viver, ela é uma das personagens secundárias do filme de Fraga. Da
protagonista ao núcleo adjacente, todas as cenas do filme colocam
em evidência uma mulher. São mulheres criadas por Ody Fraga, um
homem, para que sejam vistas no cinema outros homens.
A função cumprida pelos meios de comunicação, em especial o
cinema, como meios que reproduzem uma série de representações
sociais, legitimam identidades e reiteram pontos de vista ideoló-
gicos a respeito dos mais variados temas. Os meios de comunica-
ção tornam-se instrumentos estruturantes da ideologia que contri-
buem para uma lógica de dominação:
252
o comportamento se torna mais espontâneo. Os indivíduos
são motivados por seu desejo de entender um mundo cada
vez mais não-familiar e perturbado (MOSCOVICI, 2007, p.91).
253
gem sexualizado e moralmente inaceitável, já que Juliana é ca-
sada. A passividade está presente na personagem até o ponto de
virada, Juliana acata todas as ordens de seu marido até a morte de
seu filho, mas ela deixa de ser passiva: além de prostituta, Juliana
nega sexo ao seu marido.
É Juliana quem passa a sustentar o marido e não o contrário.
Ou seja, a relação conjugal entre eles passa a se configurar em uma
lógica não tradicional, na qual o homem torna-se um ser passivo e
recluso ao lar, enquanto a mulher torna-se o elemento ativo, ela pro-
move o sustento da casa e da família, o que denota uma tentativa de
representar os papéis sociais ligados ao masculino e ao feminino
em um sentido inverso.
Juliana torna-se assim uma ameaça à honra masculina e ao
ego de seu companheiro, sob essa perspectiva, ela deve ser puni-
da: “a sexualidade feminina aqui é expressa na sua totalidade, mas
a traição e a duplicidade sexual femininas a veem como maligna,
dando ao homem o direito moral de destruí-la, mesmo que tal des-
truição signifique privar-se de um prazer muito necessário para ele.”
(KAPLAN, 1995, p.23).
O fim de Juliana é trágico: durante um baile na comunidade ela
é assassinada a facadas pelo marido, que havia descoberto suas ati-
vidades como prostituta. O crime acontece no meio do salão, em
frente a todas as pessoas. No cinema, o assassino não é punido, nin-
guém tenta detê-lo, tampouco vê-se a presença da polícia.
1
Em 1979, mesmo ano de lançamento do filme A dama da zona, acontece a primeira conde-
nação no Brasil de um homem que matou sua companheira: Doca Street assassinou Ângela
Diniz em 1976, após o fim do relacionamento. Em um primeiro momento, Doca foi absolvido,
diversos movimentos surgiram em protesto a absolvição, o primeiro julgamento foi cancelado
Parte 2
254
as regras do patriarcado; ou então é uma crítica de Ody Fraga aos
excessivos assassinatos de mulheres nesse período.
No final da década de 1970 emergia no Brasil a segunda onda
do feminismo, o assassinato de mulheres por parte dos seus com-
panheiros passou a ser questionado como ilegítimo: com o assas-
sinato de Ângela Diniz, o movimento feminista ganhou visibili-
dade na mídia e deu início a campanha “Quem ama, não mata”, o
título da campanha virou título de minissérie da Rede Globo de
Comunicação em 1982.
Sendo Ody Fraga um cineasta crítico da sociedade, de modo
algum a inserção de uma cena de assassinato em seu filme de por-
nochanchada seria eventual, além disso, seu público era predomi-
nantemente masculino, que, como já foi destacado, ia ao cinema
em busca de cenas de sexo e nudez, jamais em busca de tragédia.
A inserção do assassinato de Juliana, no mínimo, evoca para que o
público pense a respeito das mortes.
Considerações Finais
A representação feminina de Esmeralda é dupla, uma perso-
nagem independente, dona de si e transgressora das representa-
ções tradicionais, mas ela é uma prostituta, e por isso, altamente
sexualizada. Se por um lado é possível notar um questionamento
do sistema vigente na personagem Esmeralda e sua representa-
ção está profundamente ligada a liberação sexual feminina, por
outro lado, a personagem continua sendo objeto para satisfazer o
desejo masculino.
Ao contrário de Esmeralda, cuja personagem inicia e termina o
filme sendo uma prostituta, Juliana passa por transformações pro-
fundas na tela, de uma representação quase sacra a alguém que, ob-
servado pela ótica do patriarcado, merece a morte. Simbolicamen-
te, o assassinato de Juliana é necessário para que seja retomada a
honra masculina: ela, esposa, transforma-se em um ser sexual para
outros homens, por isso torna-se uma ameaça à honra e aos valores
de seu marido.
Neste contexto, o filme de Ody Fraga assume um viés crítico
ao questionar a realidade social de sua época, já que se propõe a
discutir no âmbito cinematográfico não somente as mazelas so-
Começando a despir
256
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Parte 2
258
Annelize Pires A REPRESENTAÇÃO DA TRAVESTI NA
PORNOCHANCHADA: “NOVAS SACANAGENS DO
‘O VICIADO EM C’”
259
é aceito como saudável pelo corpo social, enfatizando em suas
narrativas os modelos de ‘viver a vida’ tidos como positivos e, em
sentido oposto, caricaturizando e frequentemente condenando
as identidades avaliadas como corrompidas (LOPES, 2004, p. 114).
Nessa operação, é corriqueiro o reforço midiático – tanto nos pro-
dutos jornalísticos quanto nos ficcionais – de versões que contri-
buem para a propagação dos preconceitos e dos estereótipos em
relação às minorias.
A partir desse cenário, o objetivo deste texto é analisar como a
travesti é focada no universo cinematográfico, adotando-se como
estudo de caso a personagem Esmeralda, uma travesti do filme
“Novas sacanagens do ‘O viciado em C”, lançado em 1985 e dirigido
por David Cardoso, que apresenta-se como continuação de “O vi-
ciado em C”, do mesmo diretor e lançado em 1984. A opção pelo es-
tudo deste filme deve-se não só ao fato de estar inserido no gênero
da pornochanchada – ele próprio considerado por parte da socie-
dade como algo aberrante –, mas também por ser levado ao público
em um momento vital da história brasileira, pautado pelo fim da
ditadura militar e pelo reestabelecimento da democracia, período
no qual ganhou intensidade maior os movimentos reivindicadores
dos direitos das minorias.
Antes, porém, de analisar a produção fílmica, algumas ques-
tões precisam ser elucidadas, sendo elas o próprio enquadra-
mento da travesti no amplo cenário da cultura e, na sequência,
os caminhos adotados pelo cinema no enfoque da sexualidade e
identidade de gênero.
261
A travesti transita entre os gêneros, utilizando-se das caracte-
rísticas de cada um deles para que possa se representar.
Pornochanchada e sexualidade
As produções cinematográficas permitem que o público entre
em contato com formas culturais diversas, aflorando a um só tem-
po como uma experiência estética e uma reflexão sobre um deter-
minado tema. Por mais que a pornochanchada tenha sido desqua-
lificada, inclusive na esfera acadêmica, como um gênero fílmico
que pode contribuir para o (re) pensar da sociedade. Em anos mais
recentes, as reavaliações geradas no seio da própria academia,
ainda que tímidas, têm assumido que a pornochanchada atuou
com intensidade inusitada na disseminação de representações do
sexo e da sexualidade; espelhando e contribuindo para os deba-
Começando a despir
Por mais que parte dos críticos persista em pontificar que este
gênero apenas expressava assuntos relativos à sexualidade para
saciar os anseios das camadas subalternas, é possível perceber que
por trás da esfera caricata e da baixa qualidade cinematográfica
eram abarcados temas que poucos cineastas tinham coragem de
expor e, mais ainda, de retratar de forma não corriqueiros. Nesse
encaminhamento, as pornochanchadas unem padrões e conceitos
tradicionais com outros que fugiam da já conhecida estigmatiza-
ção, discriminação ou de tratamento excludente de indivíduos que
não seguiam os padrões sexuais considerados hegemônicos nos
décadas de 1970 e 1980.
No entanto, o padrão heteronormativo constituiu-se numa
regra de ouro que raramente a pornochanchada ousou romper e,
quando isso foi tentado, na maior parte das situações foi podada
pela censura oficial. Frente a isso, os diretores desses filmes bus-
cavam driblar o olhar censor, incorrendo em formas criativas para
discorrer sobre assuntos e personagens que eram vetados inclusive
nas produções literárias e acadêmicas. Assim, se pesquisas sobre
a sexualidade feminina de prestígio internacional, como o relató-
rio sobre a sexualidade feminina elaborado por Hite (1978) teve sua
primeira edição confiscada pelo governo brasileiro, alguns anos de-
pois, filmes como Um pistoleiro chamado Papaco (1986), apresen-
tavam personagens femininas que disputavam com os homens o
direito ao prazer sexual. Situações como estas permitiram que uma
das principais analistas desse gênero fílmico concluísse que:
264
chada, pois nem estes filmes conseguiram esquivar-se da
ação fatal da censura. Não uma censura ideológica, como a
que podou a produção mais intelectualizada, mas uma crí-
tica moral, perfeitamente contornável através de artifícios
que tornavam os filmes cada vez mais interessantes, ou que,
radicalizando pelo outro extremo, os rebaixava à estética da
grosseria. (SELIGMAN, 2000, p. 57)
Considerações Finais
Enquanto texto cultural, a pornochanchada, tomando-se como
exemplo o filme “As novas sacanagens do ‘O viciado em C’”, incorpo-
ra a polifonia social, a qual é alimentada por múltiplas subjetivida-
des e interesses grupais. Nesse sentido, a produção cinematográfi-
ca representa a diversidade social e a resistência ao desconhecido
ou pelo menos, abrindo oportunidade para um possível questiona-
mento da normatização historicamente imposto ao corpo social.
Em um período no qual a ditadura chegara ao seu termo e a
censura perdia boa parte de seu ímpeto castrador das produções
culturais, o cinema renovou suas forças para opor-se não só aos
(des) mandos políticos impostos pelos agentes ditatoriais, mas às
suas derivações. O biopoder legitimado pela ditadura, que dentre
outras esferas, empenhava-se em legislar sobre a sexualidade indi-
vidual e punir os desviantes tornou-se alvo de contestações. Logo
após o encerramento oficial da ditadura a sociedade rapidamente
organizou múltiplas formas de contestação ao que se convencio-
nou denominar de “tradição”, sendo constituído um grande número
de grupos de discussão e de defesa das minorias sexuais.
Claro está que o gênero pornochanchada não pode ser avaliado
exclusivamente como um um conjunto de produções das normas
até então vigentes, sobretudo porque ele também incorporou valo-
res tradicionais que, com frequência invulgar condenaram através
do humor e do sarcasmo os tipos humanos e as identidades que
divergiam dos padrões tradicionais de sexualidade. No entanto,
muitos desses filmes incluíram tramas ou cenas que permitiam ao
público questionar a validade dos valores defendidos pelo Estado e
Começando a despir
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Filme. (80 min), color., sem legenda, Port.
Um Pistoleiro Chamado Papaco. Dir. Mário Vaz FIlho. Rot. Mário
Vaz Filho. Brasil: Olympus FIlmes, 1986. Filme. (70 min), color., sem
legenda, Port.
Começando a despir
271
parte 3
Depois de tudo
Gustavo Padovani GAROTAS DA VAN: FRAGMENTOS DA
PORNOCHANCHADA NA CULTURA PARTICIPATIVA
275
operação pressupõe o conhecimento prévio de ambos tanto pelos
indivíduos e textos que procuram propagar o novo termo, como por
aqueles que irão tomar seu conhecimento nos meios em que ele
circula e/ou através de seu próprio consumo. Edward Buscombe
(2004), ao observar a questão de gênero no cinema americano, res-
salta a importância de sua existência para o consumo das obras, ao
observar que os filmes sempre possuem uma combinação de no-
vidade e familiaridade, principalmente porque “as convenções de
gênero são concebidas e reconhecidas pelo público, e tal reconhe-
cimento já é, por si só, um prazer estético” (BUSCOMBE, 2004, p. 315).
Indo além dessa concepção, Jason Mittel (2004) considera os
gêneros como práticas discursivas que são formadas através de
uma ampla negociação cultural atravessada pela mídia, fãs, estu-
dos acadêmicos, regulamentações e outras instâncias que se rela-
cionam com os mais diversos produtos culturais. De acordo com o
autor, “definições, interpretações e avaliações de gênero são parte
de uma operação genérica culturalmente mais ampla” (MITTEL,
2004, p.14) e, por esse motivo, o gênero não pode ser compreendido
como algo estático e dado por uma única definição conceitual, mas
se constitui como um processo em movimento, cuja construção
complexa está imbricada em um fluxo constante de transforma-
ções de ordem política, econômica e comportamental. Ao invés de
apenas identificar e analisar características meramente descriti-
vas de um objeto específico classificado como pertencente a um
gênero, Mittel (2004), amparado pelas teorias de formações discur-
sivas do Foucault, propõe observar como se dão as relações entre
os mais diversos textos produzidos sobre o gênero e suas práticas
culturais. O gênero, em sua concepção, possui, simultaneamente,
função e propriedade do discurso, sendo assim possível “examinar
as maneiras como várias formas de comunicação trabalham para
constituir e definir significados e valores dentro de contextos his-
tóricos particulares.” (ROCHA; FRANÇA, 2009, p.4)
Ao adotar esses paradigmas a respeito do conceito de gênero, a
análise do site e dos vídeos do Garotas da Van e as suas possíveis
relações com a pornochanchada necessitam de uma investigação
prévia a respeito dos gêneros da pornochanchada e da pornogra-
fia por meio de dados do seu consumo, os contextos sociais de sua
criação, os modelos de produção adotados por ambos e as reflexões
críticas a respeito desses produtos audiovisuais. No segundo mo-
mento será realizada a análise do site Garotas da Van, levando em
consideração o modelo de negócio utilizado, as estratégias de enga-
Parte 3
1
Disponível em: <http://tecnologia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/11/09/se-voce-
gosta-de-novidades-tecnologicas-agradeca-tambem-a-pornografia.jhtm>. Acesso: 20 de dez.
Parte 3
2015.
280
O VHS foi uma janela de exibição extremamente lucrativa
para a pornografia. No final da década de 1990 e início dos
anos 2000, um número considerável de empresas surgiram,
aproveitando a popularização da mídia. Mas nem só com o
home video o mercado audiovisual pornográfico fazia suas
exibições. Em 1996, surge o Sexy Hot, primeiro canal por assi-
natura de conteúdo adulto (FARIA, 2012. p.22).
2
Disponível em:<http://www.istoe.com.br/reportagens/212239_O+DECLINIO+DA+INDUS-
TRIA+PORNO>. Acesso em: 02 jan. 2016.
Parte 3
3
Disponível em: <http://garotasdavan.uol.com.br/> acesso em: 10 dez. 2015
282
O fator de inovação do Garotas da Van reside justamente em
seus convidados: ao invés de participar apenas atores e atrizes
pornôs, os usuários do site podem manifestar interesse em partici-
par das filmagens e realizar sexo com as atrizes do Garotas da Van,
ajudando assim, a compor o conteúdo do site. Essa possibilidade
oferecida revela-se como um grande diferencial dentro do mercado
pornográfico que, por mais que muitas vezes estivesse relegado a
um caráter amador, não permitia diretamente que seu público par-
ticipasse em seu conteúdo.
Esse elemento fornecido pelo site Garotas da Van apóia-se no
ambiente da cultura participativa presente n aweb 2.0. Henry Jenkins
indicaria em A cultura da convergência (2009) como a participação
dos fãs em rede poderia influir na criação e na distribuição em pro-
gramas televisivos, seriados, filmes e na circulação de conteúdos por
várias plataformas. O ambiente em rede propicia uma participação
de usuários não como um processo de um caráter obrigatório, mas
algo que permite a propagação da liberdade, o incentivo desta con-
tribuição e a garantia de sua valoração entre os indivíduos que es-
tão inseridos nela, promovendo níveis de engajamentos diversos em
que alguns “vão se envolver mais superficialmente, alguns vão cavar
mais fundo” (JENKINS, 2006). Shirky (2011) também observaria esse
aspecto ao notar que a cultura da participação ocorre devido às moti-
vações sociais que são criadas, pois as “novas redes de comunicação
encorajam a participação em comunidades e o compartilhamento,
ambos intrinsecamente bons, fornecendo também apoio para a au-
tonomia e competência.” (SHIRKY, 2011, p.74).
O processo de participação dos usuários do Garotas da Van
também estão vinculados aos preceitos da convergência midiá-
tica, uma vez que sua produção abarca negociações que atendem
ao fluxo corporativo, ou seja, um processo que parte da empresa
para consumidores (de cima para baixo), assim como abre um
espaço para uma convergência alternativa (de baixo para cima),
dos consumidores para a empresa (JENKINS, 2009, p.44). A par-
ticipação do usuário na constituição do material do site porno-
gráfico se dá nessa zona de intersecção de interesses entre o
consumidor e a empresa, mas ao contrário de outras práticas
de estimulo a participação e criação de conteúdo, como redes
sociais (Facebook, Twitter) ou plataformas de vídeos diversos
(Xvideos, Youtube), o usuário participa por meio de sua presen-
Despois de tudo
4
Parte 3
284
Uma performance de avacalhação
A comicidade e o escracho, elementos típicos dos filmes de por-
nochanchada, também se fazem presentes no Garotas da Van, mas
com algumas diferenças fundamentais. Ao invés de uma narrativa
ficcional roteirizada com cenas, diálogos e personagens constitu-
ídos, o principal e único espaço em que se constitui toda a ação, a
van, funciona como um dispositivo: a câmera e as atrizes estão den-
tro do veículo para tencionar uma situação sexual que será ativada
com a chegada do participante e se transformará no conteúdo de-
sejado. Ao se utilizar desse dispositivo, a performance de cada atriz
é condicionada a uma naturalização da condição de ser filmada e
do próprio ato sexual, já que elas não interpretam nenhum tipo de
personagem e não há nenhum outro contexto senão o próprio ato
em si prestes a ser realizado. Essa condição específica, também pa-
rece autorizar as atrizes a utilizarem o humor em seus gestos e fa-
las, tanto como estratégia de aproximar e promover interações com
o participante pouco acostumado com as filmagens, quanto como
uma forma de criar uma interlocução com quem irá futuramente
assistir o conteúdo, principalmente, na forma como elas dialogam
olhando para a câmera e se referindo sempre a um “você”.
Antes que o ato sexual ocorra, no início do vídeo, as atrizes sem-
pre utilizam o mesmo procedimento com todos os convidados: ini-
ciam uma espécie de entrevista para saber detalhes dos mais diver-
sos sobre o participante, para que algum momento, o assunto alcance
um gancho específico para que o sexo possa começar. Durante essa
entrevista os assuntos variam desde características físicas dos con-
vidados, suas roupas, suas experiências sexuais prévias e dúvidas a
respeito de como o participante tomou conhecimento sobre o pro-
grama. No episódio intitulado Mike, uma das atrizes questiona ao
participante como ele descobriu o programa. Após ele revelar que
descobriu Garotas da Van através do site e também através de um
canal na televisão, ela ressalta esse aspecto com animosidade: “Que
legal! O pessoal está nos assistindo no canal adulto já!”. Em seguida,
a mesma atriz pergunta ao participante qual foi a grande motivação
para ele participar do programa e ele responde: “Ah, era a fantasia
de transar com três garotas, né?” Após sua resposta, uma outra atriz
que também estava no mesmo enquadramento tomando sorvete
de maneira totalmente caricata, afasta o picolé e passa a lamber
Despois de tudo
Considerações Finais
A análise dos vídeos e do site do Garotas da Van, assim como suas
estratégias para cativar os usuários a participar, apresenta, dentro da
ideia de gênero como uma prática discursiva, diversos fatores que o
fazem se relacionar com a pornochanchada. Como demonstrado, os
diálogos sobre sexo realizados pelas atrizes, a postura debochada em
relação à realização do ato sexual perante as câmeras e a presença
Parte 3
5
Disponível em: <http://sweetlicious.net/artigonoticias/os-impressionantes-numeros-do-xvide-
os-33425>. acesso em: 23 dez. 2015
6
Disponívelem:<http://web.archive.org/web/20070217173617/http://garotasdavan.uol.com.br/
Parte 3
288
uma série de conceitos contraditórios e questionáveis, principal-
mente, ao pensar em autoras feministas e ativistas contra a porno-
grafia como Andrea Dworking e Catherine MacKinnon (1997) que
observam o apagamento do papel da mulher perante os objetivos
sexuais do homem em qualquer tipo de filme do gênero. Mesmo que
esse discurso se apresente de maneira falha, é possível observar
que o site tenta esboçar uma linha de argumentação que sirva para
blindá-lo contra críticas sobre o papel da mulher nesses conteúdos,
ao ressaltar que elas estão em maior quantidade e no poder, condu-
zindo o ato sexual e fazendo o homem de “vítima”.
Ao tratar de algo tão complexo quanto a sexualidade aplicada
a produção de conteúdo pornográfico em rede, muitas possibilida-
des de investigações permanecem em aberto. O site Garotas da Van,
assim como outros milhares sites e plataformas depornografia, são
objetos potentes para profundas discussões que possibilitam tanto
compreender a esfera de consumo, distribuição e produção audio-
visual desse mercado com proporções gigantescas, quanto provo-
car reflexões sobre os seus rumos futuros.
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MAGNÍFICA 70
293
O nome Magnífica 70 é uma referência à produtora fictícia “Mag-
nífica Cinematográfica”, a produtora de filmes retratada na série,
que configura-se numa releitura das produtoras de cinema da Boca
do Lixo das décadas de 1970 e 1980. A série busca retratar o univer-
so da pornochanchada, mas faz algo bem distinto do que aconte-
cia nos anos de 1970: a produção de Magnífica 70 é extremamente
bem cuidada tecnicamente e bastante cara; recorreu-se a atores
conhecidos do grande público; a série é produzida para o consumo
doméstico de TV fechada. Neste sentido, a série de 2015 não pode
ser enquadrada como um produto típico do gênero pornochancha-
da, mas nela podem ser encontrados diversos elementos que fazem
referência a esse período histórico e também às pornochanchadas
que foram produzidas na Boca do Lixo e é por esse motivo que a
apresentamos neste capítulo.
294
Figura 1: Cartaz de divulgação da série Magnífica 70 pela HBO Brasil
Imagem extraída de <http://cdn.x2n.com.br/~filmesse/wp-content/uplo-
ads/2015/06/magnifica-70-2temporada.jpg>. Acesso em: 20 de jan. 2016.
295
bém o perturbam muito, fazendo com que ele vete o filme com as
seguintes palavras:
nado por uma atriz da Boca e pelo cinema, que se inspira nas obras
296
consagradas de Alfred Hitchcock e Stanley Kubrick. É a paixão pelo
cinema que dá outro sentido à vida do censor, mas que também o
coloca em perigo, não só no universo da Boca do Lixo, mas também
no universo militar.
297
A obra também conta com dois outros grandes atores em papéis
marcantes e cheios de conflitos: Joana Fomm, que interpreta Lúcia,
mãe de Isabel e Ângela, esposa do General Souto, uma mulher que
finge ser muda e paralítica para se proteger da violência do marido;
e Stepan Nercessian, que interpreta George Larsen, o dono da Mag-
nífica Cinematográfica, homem ambicioso, que não entende nada de
cinema, absolutamente sem escrúpulos, viciado em sexo e que usa
a produtora para dar golpes em investidores e conhecer mulheres.
A série é repleta de personagens fortes, problemáticos e envol-
ventes que, no decorrer das filmagens da pornochanchada “Minha
cunhada é de morte” vão revelando seus medos, segredos, conflitos,
desejos e ambições, num período em que a Ditadura Militar e a mo-
ralidade os fazem transitar entre a censura e a liberdade, em todos
os sentidos de suas vidas.
Magnífica 70 manteve o cuidado na produção dos cenários e
encenações e procurou seguir o contexto da época, principalmente
no que se refere aos figurinos, nas imagens da cidade de São Paulo
daquele período, na trilha sonora (destaque para o tema de abertura
Sangue latino de Secos & Molhados), nos trechos relacionados aos
pronunciamentos do governo militar.
299
ram a exigir a aprovação em uma bateria de testes psico-
lógicos, o que levou à reprovação de 21 técnicos e 8 fiscais,
que recorreram à Justiça, em 1976. Este episódio reacendeu
o interesse por pesquisar a Censura e abriu alguns caminhos
para fazê-lo (SOARES, 1988, s/p).
300
que embala a trama de Magnífica 70 e que dá vida a personagens
complexos e conflitantes.
301
época, uma vez que estava “recheada de aspectos como a banaliza-
ção da sexualidade, a exploração do corpo da mulher, o machismo,
o falocentrismo e outros”. E o autor justifica a crítica:
304
Considerações Finais
Magnífica 70 se passa no início da década de 1970, momento
de grande opressão e censura. O AI-5, promulgado em dezembro
de 1968, fortaleceu a ditadura e intensificou a perseguição a todos
aqueles que eram considerados subversivos: artistas, intelectuais
de esquerda, estudantes e cidadãos inconformados as ações autori-
tárias do governo militar.
O cinema também era constante alvo de repressão e censu-
ra. Há quem afirmasse que o governo militar investia recursos na
produção de filmes, via Embrafilme, com o objetivo de alienar as
pessoas e tirar a sua atenção dos acontecimentos políticos. Essa
era uma das críticas feitas as pornochanchadas, além daquelas já
mencionadas no texto.
A partir do erotismo e da comédia que as caracterizavam, as
pornochanchadas abordavam de modo irreverente temas tensos,
delicados e universais, que sempre foram marcados pelo forte con-
servadorismo de nossa sociedade. A valorização do sexual e da nu-
dez feminina apresentados nos filmes desse gênero refletiam, ao
mesmo tempo, uma liberação sexual e a censura dessa sexualidade
feita pelo regime militar e pela moralidade da época.
A produção cinematográfica da Boca do Lixo foi se esvaziando
ao longo da década de 1980, em grande parte, devido à ascensão dos
filmes de sexo explícito. Apesar de não ser o tema central da trama
de Magnífica 70, é esse cenário que confere autenticidade a uma
série ambientada naquele período e que pretende contar a histó-
ria não de pessoas reais, mas de pessoas que se envolveram com o
universo cinematográfico da Boca do Lixo, num momento histórico
onde sexo, política, poder e censura se misturavam na vida dessas
pessoas, em histórias dignas das narrativas rodrigueanas.
A releitura da pornochanchada nessa obra de 2015 enaltece a
figura da mulher, que no início das produções do gênero valoriza-
vam o aspecto sensual e erótico dos corpos femininos, mas que em
Magnífica 70 mostra que as personagens femininas foram muito
além disso. Problemas que, muitas vezes poderiam ter sua origem
na sexualidade feminina, apresentados num universo machista e
marginal, acabaram sendo superados, até mesmo pelo sexo, e que
transformaram essas personagens nos pontos fortes da série ao fi-
nal da primeira temporada.
Mais do que uma releitura da pornochanchada, Magnífica 70
Depois de tudo
Referências Bibliográficas
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pinas: Editora da Unicamp, 2006.
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FREITAS, M. Entre estereótipos, transgressões e lugares comuns:
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LYRA, B. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primei-
ro cinema às chanchadas e pornochanchadas. Conexão – Comuni-
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do lixo. In: XXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA CO-
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NAPOLITANO, C. J.; LUVIZOTTO, C. K.; GONZALES, L. S. Censura à
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Revista Comunicação e Educação, São Paulo v. 1, n. 3, p.67-70. 1995.
Disponível em: http://revistas.univerciencia.org/index.php/come-
Parte 3
Filmografia
Magnífica 70. Dir. Claudio Torres; Carolina Jabor. Brasil: HBO Latin
America e Conspiração Filmes, 2015. HDTV. Série em 13 episódios,
color, sem legenda, Port.
Depois de tudo
307
Sobre os autores
309
de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Universidade Es-
tadual Paulista, campus de Bauru.
Erik Ceschini Panighel Benedicto - doutorando em Educação
para Ciência na Universidade Estadual Paulista; mestre e bacharel
em Química pela Universidade de São Paulo e licenciado em Quí-
mica pela UNESP. Trabalha com projetos interdisciplinares relacio-
nados às ciências e as artes. Docente na Universidade do Sagrado
Coração (Bauru).
Gustavo Padovani - Bacharel em Jornalismo pela Universida-
de Estadual Paulista (UNESP Bauru), especialista em Gestão em
Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre no Progra-
ma de Pós-Graduação de Imagem e Som (PPGIS) da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar). Membro do Grupo de Estudos sobre
Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS/UFSCar) e pesqui-
sador da rede de pesquisadores do Observatório Ibero-Americano
de Ficção Televisiva (OBITEL Brasil/UFSCar).
José Carlos Marques - Docente do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e do Departamento de Ciências Humanas da Uni-
versidade Estadual Paulista (Unesp – campus de Bauru). Doutor em
Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA – USP) e Mestre em Comunicação
e Semiótica pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP). Lí-
der do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Fu-
tebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos
sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP).
Lucas Sant’Ana Nunes - graduado em Relações Públicas e mes-
tre em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulis-
ta. Atualmente pesquisa as relações entre Cinema, representação
social e identidade profissional no âmbito das Relações Públicas.
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz - doutora em História
(UFSC, 2008). Docente do Programa de Pós-Graduação em História
e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvi-
mento Comunitário, na Universidade Estadual do Centro Oeste do
Paraná (Unicentro), campus Guarapuava.
Marcelo Bulhões - livre-docente (Unesp) em Teoria Literária,
Doutor em Literatura Brasileira (USP), Mestre em Teoria Literária e
Literatura Comparada (USP) e Licenciado em Letras (Unesp). É do-
cente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comuni-
cação e do Curso de Jornalismo da Unesp. Publicou, entre outros, A
310
Ficção nas Mídias (Ática, 2009), Jornalismo e Literatura em Conver-
gência (Ática, 2007) e Leituras do Desejo (Edusp, 2003).
Muriel Amaral - doutorando em Comunicação pela Universida-
de Estadual Paulista (Unesp/Bauru), bolsista Capes/Unesp, mestre
pela mesma instituição. Foi professor da Universidade Norte do Pa-
raná (Unopar) nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda
e Desenho Industrial (modalidade virtual).
Renan Rossini – graduando em Psicologia pela Universidade
Estadual Paulista e em Filosofia pela Universidade do Sagrado Co-
ração. Bolsista FAPESP.
Renata Aparecida Frigeri - coordenadora do Curso de Publici-
dade e Propaganda da Faculdade Pitágoras de Londrina, mestra em
Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina e doutoran-
da em Comunicação Midiática na Universidade Estadual Paulista.
Atualmente pesquisa a identidade germânica nos filmes de Leni
Riefenstahl.
Vinicius Carrasco - Jornalista e doutorando em Comunicação
na Universidade Estadual Paulista. Docente na Universidade do Sa-
grado Coração (Bauru) e nas Faculdades Integradas de Jaú.
Willian Bruno Corrêa - Historiador pela Universidade Estadual
do Centro Oeste do Paraná (Unicentro).
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Álvaro André Zeini Cruz • Annelize Pires • Bruno Jareta de Oliveira •
Caio Lamas • Carlo José Napolitano • Caroline Kraus Luvizotto •
Célio José Losnak • Claudio Bertolli Filho • Erik Ceschini Panighel Benedicto •
Gustavo Padovani • José Carlos Marques • Lucas Sant'Ana Nunes •
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz • Marcelo Bulhões • Muriel Amaral •
Renan Rossini • Renata Aparecida Frigeri • Vinicius Carrasco • Willian Bruno Corrêa