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H A N C H A N D O

PORNOC o deboche e do prazer


d
em nome da moral,

Organizadores
Claudio Bertolli Filho
Muriel E. P. Amaral
Pornochanchando: em nome da moral, do deboche e do prazer 2016
Conselho Editorial
Danilo Rothberg (Universidade Estadual Paulista)
José Miguel Arias Neto (Universidade Estadual de Londrina)
Marcos “Tuca” Américo (Universidade Estadual Paulista)
Miliandre Garcia de Souza (Universidade Estadual de Londrina)
Silvia Cristina Martins de Souza (Universidade Estadual de Londrina)

Projeto gráfico, diagramação e produção gráfica


INKY DESIGN | Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação | Unesp
Alexandre Santana Furlan, Cassia Leticia Carrara Domiciano
Lucas Ikeda Martins, Luis Callegari, Ruan Augustinho e Fernanda Henriques
Capa e ilustrações
Lucas Ikeda Martins

791.430981 Pornochanchando : em nome da moral, do deboche e do prazer / Clau-


P873 dio Bertolli Filho e Muriel Emídio Pessoa do Amaral (organizadores).
São Paulo : Cultura Acadêmica, 2016

312 p.

ISBN 978-85-7983-796-8

1. Pornochanchada. 2. Cinema brasileiro. 3. Ditadura militar. I. Bertolli


Filho, Cláudio. II. Amaral, Muriel Emídio Pessoa do.

Copyright @ Claudio Bertolli Filho e Muriel E.P. Amaral


Cultura Acadêmica
Praça da Sé, 108
01001-900 - São Paulo, SP
Tel.: (0xx11) 3242-7171
Fax.: (0xx11) 3242-7172
www.culturaacademica.com.br
www.livrariaunesp.com.br
[email protected]
H A N C H A N D O
PORNOC o deboche e do prazer
d
em nome da moral,

Organizadores
Claudio Bertolli Filho
Muriel E. P. Amaral
SUMÁRIO

Apresentação

Parte 1 - Reconhecendo território

15 Um confronto esquecido: pornochanchada x moral e civismo


Claudio Bertolli Filho

41 Censura à pornochanchada: o caso “Anjo Loiro”


Caio Túlio P. Lamas

63 Gênero, censura e pornochanchada no cinema brasileiro


Luciana Rosar F. Klanovicz e Willian Bruno Corrêa

83 Pornochanchada: um sintoma brasileiro


Renan Siqueira Rossini

Parte 2 - Começando a despir


105 O Cientista e outros estereótipos em “O gênio do sexo”
Álvaro André Z. Cruz e Erik Ceschini P. Benedicto

121 As representações de perversão e estereótipo no filme “Macho,


fêmea e cia - a vida erótica de Caim e Abel”
Muriel E. P. Amaral

139 “A árvore dos sexos”: censura e moral na distensão do período


militar
Carlo José Napolitano

153 De conto de fadas a conto de fodas: a paródia de “Histórias que


nossas babás não contavam ”
Marcelo Bulhões
167 “O bem-dotado - o homem de Itu”: as peripécias do caipira ma-
cho na metrópole
Célio J. Losnak

195 Pornochanchada, paródia e representações sociais: análise fíl-


mica de “Bacalhau”, “Nos tempos da vaselina” e “Um pistoleiro
chamado Papaco”
Vinícius Carrasco e Bruno Jareta de Oliveira

221 O rei está nu!: os empréstimos da pornochanchada na adapta-


ção para o cinema da obra teatral “Pedro Mico”
José Carlos Marques

243 As mulheres de Ody Fraga: representação feminina em


“A dama da zona”
Lucas Sant’ana Nunes e Renata Aparecida Frigeri

259 A representação da travesti na pornochanchada: “Novas


sacanagens do viciado em C’”
Annelize Pires

Parte 3 – Depois de tudo


275 “Garotas da van”: fragmentos de pornochanchada na cultura
participativa
Gustavo Padovani

293 Entre a censura e a liberdade: a pornochanchada na série


televisiva “Magnífica 70”
Caroline Kraus Luvizotto

309 Sobre os autores


Apresentação: Pornochanchada como
discurso do desejo

Especular sobre o desejo e a sexualidade é


uma prática recorrente a qualquer ser humano que
habita a superfície terrestre. Aliás, esses conceitos
estão presentes em registros ainda na antiguida-
de. Cavicchioli (2008) aponta que representações
fálicas foram identificadas no mundo romano
e entre outros povos antigos como os egípcios,
etruscos, gregos e civilizações que habitaram a
Península Ibérica. Como representação de fertili-
dade, virilidade ou como objeto para espantar má
sorte e energias negativas, o falo fazia parte da de-
coração de estabelecimentos em muros, afrescos,
lamparinas e, até mesmo, motivo alegórico em ob-
jetos pessoais como colares, joias e máscaras.
Ao longo da história, a relação com o desejo
e com a sexualidade se alterou de acordo com os
códigos morais e éticos de cada época. Como a
possibilidade de restringir as manifestações da
sexualidade e do desejo às relações matrimoniais
ou que estivessem de acordo com os discursos re-
ligiosos, foi a máxima do mundo medieval, quan-
do prevaleceram a moral cristã. Mesmo havendo
essa intenção, isso não impossibilitaria a ocor-
rência de comportamentos libidinosos em espa-
ços destinados ao sexo ou de forma considerada
clandestina ou pecaminosa. Um panorama foi
traçado na Modernidade com o desenvolvimento
do pensamento científico em que as sexualidades
e os desejos não seriam apenas argumentos para
fomento de preconceitos, mas como uma tecno-
logia de investigação, classificação, averiguação
e estudos, conforme uma ordem positivista per-
tinente do discurso do moderno. (Foucault, 1999).
Lidar com o desejo e com a sexualidade pode ser uma condi-
ção embaraçosa ainda mais quando esses discursos se estruturam
em instâncias do inconsciente e, muitas vezes, não passam pela
significação do consciente. Como apresentou Freud, munido pelos
primeiros preceitos da psicanálise ainda no final do século XIX, ao
sugerir que o psiquismo humano é edificado em uma relação muito
intrínseca com a sexualidade que, por sua vez, é oferecida segundo
o sintoma do desejo. De forma mais sintética, para não nos estender
muito nos meandros da psicanálise, o desejo não é aquilo que fal-
ta para saciar uma necessidade que foi gerada enquanto uma con-
dição biológica do corpo ou pelos instintos do sujeito (Laplanche;
Pontalis, 1992) como, por exemplo, a ingestão de alimentos e água
para aniquilar a fome e a sede. O desejo é a força de pulsão que o su-
jeito apresenta no intuito de tornar possível a ausência daquilo que
o inconsciente traz como sintoma ao universo do visível. O desejo
move o sujeito em busca de prazeres e gozos.
Nessa perspectiva que a pornochanchada se articulou em apro-
ximadamente 20 anos de existência nas telas do cinema brasileiro;
um discurso que se propôs a dialogar para além dos gozos recalcados,
uma possibilidade de prazeres por imagens em movimento, eviden-
ciando a sexualidade, o corpo e o sexo de homens, mulheres e traves-
tis. Audaciosa na poética das imagens e dos textos, a pornochancha-
da trouxe o desejo e a sexualidade para fazerem parte das práticas
cinematográficas brasileiras, a despeito do vigor do regime da dita-
dura militar. A pornochanchada nasceu no Rio de Janeiro, mas foi na
marginalidade do centro da capital paulista que encontrou um terre-
no fértil para a prosperidade ainda no final da década de 1960, expan-
dindo-se até o começo da década de 1980 quando começou a perder
força para a concorrência de materiais pornográficos (estrangeiros e
nacionais) que começaram a circular no Brasil. A pornochanchada
foi uma intenção de descortinar aquilo que sempre ocorreu na socie-
dade brasileira, mas que, muitas vezes, estava escondido, inclusive
nas imagens do cinema: traição, pornografia, diversidade sexual, ho-
mossexualidades, travestismo e desejo feminino. Tudo isso, além de
outras práticas sexuais, não passaram em branco pelos roteiros mais
atrevidos da pornochanchada, que também pode ser avaliada como
uma resposta bem humorada ao biopoder agenciado pelos agentes
do Estado. Nesse sentido, deboche e prazer afloraram como possíveis
armas contra a ditadura e, inclusive por isso, o gênero fílmico perdeu
vigor a partir da “abertura” política.
O reconhecimento do público desse “estilo” cinematográfico
aconteceu justamente por que diretores, produtores, atores, atrizes
e demais profissionais do ramo (ou não) trouxeram a sexualidade e
o desejo de forma humorizada e recheada de deboche. O escárnio,
a zombaria, as sátiras, a nudez escancarada de homens, mulheres
e travestis e outras tantas práticas de irreverência faziam parte dos
discursos e das representações nos filmes. O pudor foi esquecido
em algum lugar do passado e a volúpia das cenas de sexo e sexua-
lidade tomaram conta das telas sem muito acanhamento. E, claro,
que isso incomodou alguns setores da sociedade. Não foi apenas
um incômodo para os órgãos responsáveis pela censura, mas tam-
bém para a sociedade conservadora e tradicional que insistia na
permanência dos valores basilares patriarcais e no resgate triun-
fante da moral e dos bons costumes.
Trazer à tona as expressões da pornochanchada para compor
um livro de conteúdo acadêmico e científico não deixa de ser uma
forma de aliviar os desejos que estavam represados. “Pornochan-
chando: em nome da moral, do deboche e do prazer” é fruto do de-
sejo de desafiar o paradigma dos objetos de pesquisa no universo
acadêmico e comprovar, assim, que a pornografia e as representa-
ções eróticas podem ser estudadas também pelas ciências da co-
municação, alargando e promovendo o conhecimento para além
das propostas metodológicas e teóricas já consolidadas na área. Por
ora, não havia uma obra concisa que abordasse sobre vários ângu-
los a poética subversiva da pornochanchada, as relações históricas
e culturais no momento em que ascendeu e decaiu a produção da
pornochanchada e as novas interfaces sobre sexualidade, desejo e
censura que ainda persistiram ao longo desses anos nas produções
televisivas e na internet.
Para realizarmos o nosso desejo, a obra é dividia em três par-
tes. A primeira dela é “Reconhecendo território”, em que os autores
Cláudio Bertolli Filho, Caio Túlio P. Lamas, Luciana Rosar F. Klano-
vicz, Willian Bruno Corrêa e Renan Siqueira Rossini, em quatro tex-
tos, apresentam as referências culturais e histórias que cercam os
momentos mais frutíferos da pornochanchada, bem como as rela-
ções com a censura acerca das proibições na exibição dos filmes.
A segunda parte do livro “Começando a despir” é composta por
nove trabalhos de autoria de Álvaro André Z. Cruz, Erik Ceschini P.
Benedicto, Muriel E. P. do Amaral, Carlo José Napolitano, Marcelo
Bulhões, Célio J. Losnak, Vinicius Carrasco, Bruno Jareta de Olivei-
ra, José Carlos Marques, Lucas, Sant’ana Nunes, Renata Aparecida
Frigeri e Annelize Pires. Essa parte se debruça sobre análise do con-
teúdo dos filmes, abordando as representações de gênero, sexuali-
dade, diversidade sexual, estereótipos e representações nos filmes.
Para finalizar, a última parte do livro, “Depois de tudo”, que con-
templa os textos de Gustavo Padovani e Carolina Kaus Luvizotto,
traz novos diálogos de produções midiáticas na televisão a cabo e na
internet ao que se referem a propostas mais recentes que retratam
a pornografia e produções audiovisuais contemporâneas, em certa
medida herdeiras da experiência nacional com a pornochanchada.
Alerta-se que os autores elaboraram seus textos de forma inde-
pendente, isto é, sem o compromisso com algum tipo de uniformi-
dade que não fosse a unidade temática. Isto resultou em perspecti-
vas em certos momentos contrastantes, fazendo com que o leitor
se defronte com possibilidades diferenciadas de interpretação da
importância e do significado cultural do material fílmico analisado.
O desejo sobre estudar e pesquisar os filmes da pornochanchada
não se esgota nessa obra, muito pelo contrário, esse livro deixa aber-
tas várias passagens para que outros pesquisadores também desper-
tem a libido em não deixar morrer a vontade de fazer do desejo e do
erotismo objetos de estudo e pesquisa no meio acadêmico, inclusive
nas ciências da comunicação. Tenham muito prazer na leitura!

Os organizadores

Referências bibliográficas

CAVICCHIOLI, M.R. O falo na Antigüidade e na Modernidade: uma leitura fou-


caultiana. In: FUNARI, P.P; RAGO, M. Subjetividades antigas e modernas. São
Paulo, Annablume/CNPq, pp. 237-250, 2008.
FOUCAULT, M. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Graal, 1999.
LAPLANCHE, J; PONTALIS, J.B. Vocabulário de psicanálise. Martins Fontes: São
Paulo: 1992.
parte 1

Reconhecendo
território
Claudio Bertolli Filho UM CONFRONTO ESQUECIDO:
PORNOCHANCHADA X MORAL E CIVISMO

Um dos argumentos comumente invocados


pelos militares e pelos grupos que os apoiaram
para justificar o Golpe de 1964 e sua vigência por
mais de duas décadas constituiu-se na suposi-
ção de que “o brasileiro não estava preparado
para votar”. Esta afirmação, endossada inclusive
por Pelé, no curso de uma entrevista concedida
no final da década de 1970, estava conectada a
outros engodos até hoje repetidos por muitos,
que fluem para a suposta baixa qualidade ética e
moral das camadas subalternas.
Imbuídos dessas ilusões, os generais-presi-
dentes alimentavam um discurso público am-
bíguo, pois ao mesmo tempo que em algumas
oportunidades enalteciam o caráter nacional
brasileiro, em outras declaravam seu desapego
e repugnância em relação ao cidadão brasileiro.
Essa circunstância ganhou maior evidência no
caso protagonizado pelo general João Baptista
Figueiredo em 1978, quando ainda servia no pos-
to de diretor geral do Serviço Nacional de Infor-
mações (SNI) e se preparava para ser o próximo
presidente do país; naquele ano, ao mesmo tem-
po que se dizia emocionado por ser aclamado pu-
blicamente como “João do povo” (o que era uma
mentira deslavada, inventada pelo próprio SNI),
ele confidenciou num momento de espantosa
sinceridade que preferia o “cheirinho dos cava-
los” ao “cheiro do povo”.
A avaliação ditatorial situava o brasileiro
como um potencial inimigo do governo militar
e, em consequência, a necessidade de estabe-
lecimento de dispositivos comprometidos com

15
a constituição de um “novo homem” o que, aliás, é uma proposta
comum aos regimes autoritários1. Nesse sentido, não só ocorreu a
multiplicação dos discursos autoproclamados “patrióticos” como
também a imposição de novas intervenções no contexto social, ob-
jetivando, com tediosas referências à moral e ao civismo, negar as
tensões que impregnavam o tecido coletivo.
Concomitantemente, entre 1964 e 1985 houve um rígido cerce-
amento da cultura brasileira, sendo a censura uma das possíveis
penalizações para os produtores culturais tidos como não alinha-
dos com o projeto ditatorial. Para além da censura, as punições po-
deriam chegar a extremos, como a prisão, a tortura e a morte dos
considerados “desviantes”.
A trama cultural elaborou de imediato estratégias de reação
às imposições golpistas. Para além das denúncias públicas dos
desmandos oficiais, o uso de metáforas e analogias tornou-se re-
curso insistente na literatura e nas artes, somadas a produções
alimentadas por um humor tendencialmente escrachado como
armas empunhadas contra os militares e seus apaniguados, in-
clusive contra a proposta oficial de (re)educação social. Nesse en-
caminhamento, observa-se o confronto entre perspectivas ideo-
lógicas antagônicas, assumindo-se o conceito de ideologia como
“um sistema ordenado de símbolos culturais”, cujo entendimento
se torna viável a partir de contextos sociais específicos e também
da concorrência entre ideologias dotadas de postulados total ou
parcialmente contrastantes (Geertz, 2014)
No plano da cultura do humor, do Pasquim de Ziraldo e Millôr
Fernandes ao humorístico Planeta dos homens de Jô Soares, das
charges de Henfil às produções cinematográficas irreverentes, for-
çava-se, sempre que houvesse oportunidade, a abertura de frestas
para solapar alguns dos princípios da fantasiosa revolução que só
existia na cabeça de seus líderes. Tais espaços favoreceram a cons-
tituição de um jogo de revela/esconde empenhado em fazer chegar
ao “grande público” mensagens que contradiziam a voz oficial, não
obstante o rígido crivo da censura e da vigilância policialesca.
A sociedade abrangente tramava formas sardônicas de crítica e
exemplos podem ser localizados nas versões populares conferidas

1
Comumente os conceitos de “ditadura” e “autoritarismo” são usados como sinônimos, tendên-
cia mais recentemente rejeitada por parte dos pesquisadores. No entanto, seguindo a tradição,
Parte 1

neste texto emprega-se ambos os termos como marcas características do regime instaurado
em março de 64.

16
aos slogans governamentais. Nesta operação, metamorfoseou-se
jargões caros aos militares em “Brasil grande potência de merda”,
“Brasil, ame-o ou deixe-o; o último que sair apague a luz”, “Este é um
país que vai para frente e para o fundo”, “Ninguém chupa a juventu-
de do Brasil”, “É necessário fazer o bolo crescer para então cagá-lo”.
Muitas outras formas de crítica foram elaboradas, como ressigni-
ficar o nome Caxias como um adjetivo adotado pelos jovens como
uma menção desqualificadora, recitar a primeira linha do Hino da
Independência com os termos “japonês da pátria filho” e ainda, de-
clamar “Quem tem cu tem medo, vota em Figueiredo”, quando da ci-
são do grupo militar no decorrer do processo de indicação de quem
substituiria Geisel no cargo de presidente da República.
O esmaecimento do poder ditatorial levava a situações inusi-
tadas que podem ser avaliadas como formas simbólicas de con-
fronto direto com o governo. Já no final do governo Figueiredo,
talvez até mesmo em consideração ao que ele havia falado sobre
suas preferências olfativas em relação aos cavalos e ao povo, ao
participar de uma missa na capital baiana, o presidente teve seu
relógio furtado por um anti-herói popular que jamais foi identifi-
cado, por mais que tenham sido os empenhos neste sentido por
parte do SNI e da Polícia Federal.
Frente à pluralidade de manifestações culturais engendradas
contra a ditadura, a maior parte da comunidade acadêmica tem
se mostrado acanhada, elegendo para a análise um limitado nú-
mero de produções literárias, musicais e cinematográficas como
emblematizadoras da reação ao autoritarismo. O critério que im-
pregna as pesquisas universitárias parece inibir a exploração de
fontes documentais que rejeitam figuras de linguagem e invocam
diretamente cenas de sexo que se aproximam do grotesco e fazem
uso prodigioso de palavras de baixo calão. Afinal – pensam mui-
tos – como um pesquisador pode querer manter uma reputação de
seriedade e escapar das inevitáveis bazófias de seus pares se for
especialista na análise de, como pontificou um colega da universi-
dade, “filmes de sacanagem”?2
Fixado o cenário, o objetivo deste texto é verificar alguns ele-
mentos temáticos presentes nos filmes de pornochanchada como
Reconhecendo território

2
Mesmo pesquisas acadêmicas mais recentes que focam a questão da sexualidade no ci-
nema limitam-se a tecer apenas rápidas e diluídas referências à pornochanchada, como fez
Rodrigo Gerace (2015).

17
possíveis respostas – ou reações – às falas pretensamente patrió-
ticas exaladas pelos generais-presidentes e reproduzidas com pou-
cas variações nas páginas dos livros didáticos de moral e civismo.
Alerta-se desde já que não se quer fazer a apologia de que os pro-
dutores, diretores e atores que realizaram as pornochanchadas os-
tentaram como proposta central combater a ditadura. Eles apenas
incorporaram em suas atividades algumas dimensões que não se
enquadravam no esperado pelos ditadores, elaborando formas hoje
consideradas quase que inocentes para driblar o tacão dos censo-
res governamentais, criando a impressão de alinhamento com as
propostas autoritárias para, como se dizia então, “dar o seu plá”, isto
é, emitir uma mensagem avaliada como franca e eficiente.
Em recente entrevista, após declarar que os quarenta filmes do
gênero que protagonizou eram “lixo”, a atriz Selma Egrei, afirmou:
“tem gente que vê a pornochanchada como um movimento cultural
underground, promovido para driblar a censura no período militar,
mas eu não acredito em nada disso (Sampaio, 2016).
Posta a questão-guia da pesquisa, a abrangência do tema con-
vida aos necessários recortes e, neste sentido, optou-se pelo enfo-
que do conteúdo de dez filmes que são rotulados pelos críticos, não
com o rigor esperado, como tributários da pornochanchada e que
constam da filmografia apresentada no final deste artigo. Os crité-
rios utilizados para a eleição dessas produções são de duas ordens;
o primeiro, refere-se à circunstância de tais fitas terem alcançado
sucesso de público e, o segundo, o ano de lançamento dos filmes.
Sobre esse segundo critério buscou-se contemplar exemplares de
pornochanchadas que abrangessem todo o período no qual vigo-
rou tal gênero cinematográfico; assim, o primeiro filme analisado é
datado de 1974, momento em que o formato do gênero já havia se
consagrado junto aos cineastas e ao público e também quando a
repressão militar havia chegado ao seu auge, enquanto que a últi-
ma das produções foi lançada em 1986, quando a pornochanchada
encontrava-se em franco declínio e no ano anterior havia findado o
pesadelo ditatorial.
Antes, porém, da análise de conteúdo das fitas é necessário res-
ponder a dois desafios preliminares: os fundamentos da educação
moral e cívica vigente no período e, na sequência, os elementos
constitutivos do gênero cinematográfico sob análise.
Parte 1

18
A moral e o civismo nos quadros da ditadura
Logo após a tomada do poder pelos golpistas e a nomeação do
marechal Castello Branco para o cargo presidencial, buscou-se arti-
cular uma nova aliança entre o Estado e a sociedade civil. Analisan-
do os discursos dos generais-presidentes fica evidente que, inicial-
mente, tentou-se empregar um tom próximo ao messiânico para
criar um fantasioso consenso popular em defesa do que era oficial-
mente denominado de revolução. No momento em que assumiu o
comando nacional, Castello Branco assim se pronunciou: “Venham
a mim os brasileiros e eu irei com eles para, com o auxílio de Deus
e com serena confiança, buscar os melhores dias no horizonte do
futuro” (Castello Branco, 1964).
O primeiro presidente golpista modelou em muitos aspectos
os pronunciamentos que seriam repetidos pelos militares que o
sucederam. Nas apresentações públicas, os mandatários apregoa-
vam que a autodenominada “Revolução de 64” correspondia a um
conjunto de ações que havia rompido com o período histórico an-
terior ao instigar a ordem em oposição à desordem, a união con-
tra a desagregação, a integração nacional versus a discriminação
regional, o amor em repúdio ao ódio. O otimismo e a confiança no
futuro eram alimentados pelo “clima de paz e tranquilidade” típico
de uma “sociedade cristã”, que veemente rejeitava os “materialistas
ateus” e os “corruptos”.
No plano discursivo oficial, os descaminhos a que fora lançada
a República antes de março de 1964 estavam sendo corrigidos pe-
los militares e seus seguidores civis, os quais contavam com fortes
aliados: Deus e a “civilização cristã”, sinônimo de sociedade brasi-
leira e anticomunista. Além desses, era também vigorosamente in-
vocada, a “família harmoniosa com espírito revolucionário”, assim
como o “amor pelo trabalho” e o “espírito de abnegação” da classe
trabalhadora. Em coerência com isto, o brasileiro foi representa-
do em certos momentos como “um homem trabalhador” e amante
da “ordem normal”; em consequência, ainda segundo o gongoris-
mo golpista, a existência do brasileiro era pautada pela “justa e or-
denada vida devotada ao trabalho” e colimada por um patriotismo
que incitava, dentre tantas atitudes, visitar Ouro Preto no Dia de
Tiradentes, transformando a cidade mineira em um “santuário de
Reconhecendo território

peregrinações cívicas”.
Esta concepção imaginária do brasileiro incitava Castello Bran-
co a reiterar os mesmos valores em cada um de seus discursos,
desdobrando-se em uma profícua gama de pontificações acerca da
19
“indômita bravura” e o “alto grau de maturidade política” da popula-
ção, assim como identificava uma “irrefreável consciência nacio-
nal de apoio à revolução”. Para além das falas públicas, no entanto,
mantinha-se a regra, já no movimento que levou à proclamação
da República e também durante o Estado Novo (1937-1945), de os
mandatários e as elites civis diagnosticarem à boca pequena os
agrupamentos populares como constituintes de uma massa inerte,
indisciplinada, avessa ao trabalho produtivo e descompromissada
com a pátria e com a família, enfim, uma população que precisava
ser dirigida e que não dispunha de qualidades que a capacitasse
para participar das decisões governamentais a não ser como mas-
sa passiva (Carvalho, 1987; Bertolli Filho, 2012).
Para os que tomaram o poder em 64, era claro que a ameaça
maior contra o regime não vinha de Cuba, da União Soviética ou
da China, mas sim dos “inimigos internos”. Para os militares, os
avessos à ditadura que deveriam ser imediatamente reeducados ou
reprimidos eram óbvios: uma parcela considerável dos intelectuais,
dos professores e estudantes universitários, do clero, dos sindica-
tos trabalhistas de tendência democrática e das organizações de
trabalhadores rurais (Skidmore, 1988, p. 22).
Se a maior parte dos discursos públicos de Castello Branco era
alimentada por uma pretensa sintonia de valores e interesses entre
a sociedade e o Estado, os receios que tais pronunciamentos en-
cobertavam coagiu o general a incluir em seus pronunciamentos
a importância de atos que fomentassem a “alta moral” e o “grande
civismo” dos brasileiros. Em dezembro de 1966, ao proferir o discur-
so de encerramento da Terceira Reunião Conjunta dos Conselhos
de Educação, realizada no Rio de Janeiro, assim ele se pronunciou:

A Educação Cívica (...) embora inscrita no texto principal de


nossa legislação educacional, a Lei de Diretrizes e Bases, não
tem ainda o desenvolvimento que acredito indispensável à
boa formação da nossa juventude, certamente uma das fina-
lidades essenciais de qualquer sistema de educação (Castello
Branco, 1966).

Sucessor de Castello Branco, o general Costa e Silva mostrou-


se mais contundente em suas perorações sobre a necessidade do
incremento da moral e do civismo na população para que os “ideais
revolucionários” fossem concretizados. Diferentemente de seu an-
tecessor, ele deixava claro que não havia a harmonia desejada entre
o Estado e a sociedade e que era necessário “que o povo decidisse
Parte 1

pela ordem ou pela desordem” sem, no entanto, abdicar das apolo-


20
gias sobre a “sociedade cristã” e o “fervor do homem brasileiro pelo
trabalho”. Imbuído muito mais do que Castello Branco da missão
cívico-doutrinária, Costa e Silva empenhou parte de suas falas em
ressaltar o apego nacional à tradição, isto é, aos “grandes vultos”, re-
ferindo-se exaustivamente a Pedro Alvares Cabral, Duque de Caxias,
Rui Barbosa, Ana Nery, Tiradentes e a muitos outros personagens
históricos de destaque, assim como a batalhas cultuadas como as
de Guararapes, Riachuelo e Tuiuti. Neste ritmo, momentos do pre-
térito foram idealizados e expostos como formadores do espírito
nacional; o “trabalho hercúleo” dos bandeirantes, o empreendedo-
rismo dos senhores de engenho e a valentia e lealdade do “homem
do Pampa” coloriram os discursos do segundo presidente golpista,
assim como referências ao amor pelos símbolos nacionais e, sobre-
tudo, a Deus e à família brasileira.
Em uma de suas exposições públicas, ele assim pontificou:

O nível da inteligência, a qualidade da fibra moral, o desen-


volvimento da cultura e o sentimento de responsabilidade
cívica do povo como um todo, são os fatores determinantes
da grandeza das nações. (...) Sede fiéis à vossa fé cristã, aos
vossos pais, aos vossos mestres, às paisagens familiares de
vossa terra natal, às inspirações de sua gente honrada, sim-
ples e boa. E sendo fiéis a esses pensamentos e a essas ima-
gens, sereis fiéis ao Brasil, e estareis sempre ao seu serviço,
como ele pede e espera (Costa e Silva, 1967).

Referências ad nauseam à “fibra moral”, “responsabilidade e


bravura cívica”, “exaltação cívica” “fé e confiança”, “fé cristã”, “Deus
na alma e o Brasil no coração”, “formação moral e cívica do ho-
mem brasileiro” e “mandamento brasileiro de compreensão, da
doçura e do amor” rimavam com invocações a Deus, a Jesus, à
família e aos heróis brasileiros. Estes valores eram referendados
por Costa e Silva em discursos levados à população por cadeias de
rádio e televisão e tinham a função de se opor à minoria de indi-
víduos que almejava “destruir a pátria”, a qual o presidente denun-
ciava como sendo “os comunistas, os terroristas, os subversivos,
os inimigos do povo e da civilização cristã”. Para o general linha
dura que se tornara presidente, as ações comandadas por seus
opositores justificaram a urgência e a necessidade da imposição
Reconhecendo território

do Ato Institucional no 5 (AI-5), datado de dezembro de 1968, o qual


tornava ainda mais opressivo o regime militar, já que concedia
poderes extraordinários ao presidente da República e suspendia
várias garantias constitucionais.
21
A exacerbação das tensões sociais no final da década de 1960
resultou na instauração, em setembro de 1969, da Comissão Nacio-
nal de Moral e Civismo (CNMC) que instituiu a obrigatoriedade das
disciplinas Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social
e Política Brasileira (OSPB) nos antigos cursos ginasial e colegial.
Pouco depois, a disciplina Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB)
foi implantada no currículo universitário que, frequentemente mi-
nistrada por militares ou por formandos dos cursos de curta dura-
ção da Escola Superior de Guerra, tinha como objetivo aprofundar
alguns tópicos já explorados em EMC e OSPB.
Se os generais sucessores de Costa e Silva na presidência, Gar-
rastazu Médici, Geisel e Figueiredo mantiveram o mesmo empenho
de doutrinação moral e cívica em seus discursos, passou a caber
ao CNMC coordenar as atividades centradas no projeto de constru-
ção do tipo brasileiro cobrado pelo regime militar. Patrocinando a
criação de centros de moral e civismo estaduais, a CNMC estipulou
três modalidades de disseminação de “amor à pátria”, além do am-
biente escolar: a “educação cívica militar”, apropriada para ser ensi-
nada nos quartéis, a “educação cívica comunitária”, a qual deveria
ser exercida por sindicatos, clubes, igrejas e demais associações
sociais e a “educação cívica popular”, mediante mensagens disse-
minadas pelo rádio, televisão, cinema, imprensa, cartazes e livros
(Almeida, 2009, p. 131).
Neste sentido, apesar de praticamente todas as pesquisas aca-
dêmicas se reportarem às disciplinas escolares EMC e OSPB, os
tópicos de moral e civismo, como vislumbrados pelos golpistas de
1964, deveriam ser apresentados a todos os agrupamentos e em to-
dos os setores da vida social. Enquanto um dos braços da tecno-
cracia estatal, o objetivo primordial da CNMC era claro: colocar a
sociedade em harmonia com os valores endossados pelo Estado.
O deus cristão, a família, os grandes heróis nacionais e o
trabalho como estratégias de consagração do Estado burocráti-
co-autoritário estavam presentes em todas as instâncias. A ex-
periência no período do autor deste texto mostra indícios disso;
nos cursos ginasial e colegial aprendeu (ou não) que os jovens
deveriam ter como modelo existencial a vida de Cristo e, ao servir
as Forças Armadas, um capelão militar predicou que o soldado
deveria “servir a Deus e ao governo, sempre lembrando que este é
a encarnação sagrada da pátria”. A instrução moral e cívica mili-
tar advogava também que Castello Branco era um herói nacional,
uma vez que “havia arriscado a própria vida para salvar o Brasil
Parte 1

do ateísmo comunista”.
22
A intensidade dos receios gerados pelo regime mostrava-se in-
disfarçável. A análise realizada por Almeida (2009) aponta que, se
os livros de EMC empenhavam-se em reproduzir os ensinamentos
presentes nos pronunciamentos oficiais, mesmo assim um grande
número de textos didáticos era prefaciado por ministros, militares
de altas patentes ou sacerdotes católicos. Na impossibilidade de
conseguir a apresentação destes, estampava-se nas páginas ini-
ciais do volume o documento de aprovação do livro pelo CNMC ou
dedicava-se o texto ao presidente ou à alguma autoridade civil ou
militar de proa.

A pornochanchada como desafio


A pornochanchada ainda permanece como um enigma nos
territórios da crítica especializada e das iniciativas acadêmicas. O
silêncio dos críticos sobre os filmes, populares nas décadas de 1970
e 1980, só é quebrado, de regra, por observações desairosas que, su-
postamente embasadas no arcabouço conceitual da Teoria Crítica,
avaliam a pornochanchada como “responsável por um período de
descrédito na produção nacional até o início dos anos 90” por ser
um tipo de filme que “não valia o ingresso” já que “sinônimo de pu-
taria”. O mesmo crítico que desferiu esse veredito acrescentou:

A história da pornochanchada se confunde com a lógica do


pão-e-circo que funciona tão bem no Brasil. Na verdade mais
circo que pão. Assim como ocorre hoje com programas de
TV de imprensa marrom (sic), com altos índices de audiên-
cia, os filmes deste gênero ganhavam a fidelidade do público
dialogando com o que há de mais cru no instinto humano.
Misturando elementos de linguagem fáceis, muita comédia,
apelo excessivo ao sexo em realizações de baixa qualidade
técnica, fracos roteiros em meio a um desfile de dezenas de
mulheres nuas por película, estes filmes feitos para o puro
entretenimento das massas eram, na verdade, o reflexo de
um período que pretendia nos desobrigar do pensar crítico: a
Ditadura Militar (Lopes, 2012).

Retirado o gênero do limbo acadêmico nos últimos quinze anos,


algumas poucas análises sobre o tema foram realizadas, exercendo
Reconhecendo território

papéis seminais duas produções, a de Seligman (2000) e a de Frei-


tas (2004). Para estes estudiosos, a pornochanchada constitui-se
em uma produção cultural que espelha a tessitura social do período
no qual foi gerada e que, antes de julgá-la torna-se necessário en-
23
tendê-la, afastando-se das visões simplórias como as que foram ar-
quitetadas pela nata cinema-novista sobre as antigas chanchadas
da década de 1950.
A primeira consideração que deve ser feita refere-se à porno-
chanchada como um gênero cinematográfico próprio, sem perder
de vista que a definição de gênero fílmico ainda se constitui em
uma operação questionável. Frente a isto, adota-se neste texto o
princípio segundo o qual o estabelecimento de um gênero artístico
é resultante de uma negociação cultural que leva em consideração
contexto histórico, quantidade e origem social da audiência, recep-
ção do mercado distribuidor, avaliações da crítica especializada e
sensibilidade social. Pode-se ainda acrescentar o linguajar empre-
gado, os tipos sociais representados e os valores ético-morais ado-
tados na trama (Mittel, 2004).
As primeiras produções de pornochanchada deram-se no ano
de 1969, sintomaticamente pouco após o advento do período conhe-
cido como Anos de Chumbo, e nos quadros de transformações cul-
turais aceleradas, com a estreia de duas iniciativas cariocas, Adul-
tério à Brasileira, de Pedro Carlos Rovai e Os Paqueras, de Reginaldo
Farias. Fruto de empréstimos da tradição da chanchada nacional e
do cinema erótico europeu, sobretudo o italiano, foi designada pri-
meiramente como comédia erótica, chanchada erótica e, em segui-
da, o rótulo que a consagrou: pornochanchada.
Apesar de desqualificado tanto pelos críticos que apoiavam
quanto pelos que se opunham ao regime ditatorial, este gênero
alcançou grande sucesso de público, sendo que três anos depois
de sua estreia, o centro de produção desses filmes foi transferido
para a região conhecida como Boca do Lixo paulistana, a qual tinha
como eixo principal a Rua do Triunfo. No final da década de 70, a
Boca era responsável pela produção de cerca de 90% de todas as
pornochanchadas, o que também representava mais de 40% da pro-
dução cinematográfica nacional, e isso sem contar com o patrocí-
nio da Embrafilme que, em apenas alguns raros casos, co-financiou
a distribuição das fitas (Freitas, 2004).
Em termos psicossociais, as pornochanchadas podem ser ava-
liadas como forma de descompressão de um cotidiano regido pelo
autoritarismo e também como exercício narcisíco, um encontro
onírico no ambiente escurecido do cinema entre o espectador e as
bonitas e gostosas projetadas na tela. O malandro e as malandra-
gens engendradas na conquista sexual e as estratégias adotadas
por personagens masculinos e femininos para a obtenção de van-
Parte 1

tagens de todo tipo exerciam uma atração peculiar sobre o público.


24
Nas tramas, a constituição de novos crivos de sociabilidade coadu-
navam-se com a representação do cotidiano coletivo que, em muito,
se identificava com as carências vivenciadas do lado de fora das
salas de projeção.
Para usar um termo típico da época, a avacalhação de vários
aspectos da vida social, se não era aceita pela ditadura, pelo me-
nos era por ela suportada, instigando os diretores das produções
erótico-humoristas a ousarem o que muitos diretores de outros gê-
neros fílmicos não tinham coragem, porque isto condenaria suas
realizações cinematográficas a serem vetadas pela censura. Empe-
nhados em identificar e abolir as elaborações artísticas explicita-
mente críticas à ditadura, a maior parte dos censores mostrava-se
despreparada – inclusive em termos intelectuais – para fiscalizar o
que havia de implícito nas pornochanchadas ou ainda, deixava-se
enredar pelos artifícios aos quais recorriam alguns cineastas e/ou
produtores para burlar o veto oficial.
Carlo Mossy foi um dos mais destacados personagens na arte
de contornar as dificuldades criadas pelos serviços de censura, ten-
tando reduzir os cortes de cenas e diálogos de suas realizações ci-
nematográficas. Como diretor de Bonitas e gostosas (1979), um filme
composto de cinco episódios, ele inseriu no final de cada segmento
a presença de um personagem que criticava acaloradamente os va-
lores expostos na tela, defendendo os princípios morais e cívicos
esposados pelo governo militar. Em outra pornochanchada, Giselle
(1980), na qual Mossy trabalhou como produtor e ator, projetou-se na
tela, tanto no início quanto no final da produção, um texto que ad-
vertia tanto o público quanto os censores sobre os motivos de apre-
sentação de um grande número de cenas eróticas e da exploração
dos (des) caminhos assumidos por uma família da elite nacional:

Assim como na antiga civilização romana, como em Sodoma


e Gomorra, todas as vezes que uma sociedade está em deca-
dência, a principal característica é a falta de valores morais, a
promiscuidade sexual, o desamor, as frustrações e os desen-
contros. Os dias que hoje estamos vivendo não diferem muito
daqueles que antecedem a destruição daquelas sociedades.
Em “Giselle” retratamos através de uma célula da nossa so-
ciedade, a família, uma família qualquer, um momento da
nossa realidade atual. Uma realidade de desencontros, de-
Reconhecendo território

samores, promiscuidades, procuras e frustrações através do


sexo, que por modismo e desinformações, passou a ser algo
sem nenhum valor, ao mesmo tempo em que inconsciente-
mente, é uma tábua de salvação.

25
A recorrência a estratégias como estas permitia que as porno-
chanchadas ficassem parcialmente livres do veto censorial e, con-
comitantemente a exposição de corpos nus, se reportasse ao coti-
diano social. Isto levou uma pesquisadora a ponderar o seguinte:

A pornochanchada apresenta um microcosmo do país. Claro


que, na maioria das vezes, este universo só está disponível
em uma leitura subliminar, já que a ditadura militar jamais
permitiu uma crítica social clara nas telas. Também não era
esse o objetivo principal dos filmes (Seligman, 2000, p. 77).

Isto somava-se a enredos simples – se não precários – e uma


linguagem de fácil entendimento, permitindo aos produtores em-
penhar-se no lançamento de peças fílmicas com títulos chama-
tivos, como A mulher que disputa (1974), As cangaceiras eróticas
(1974), Cada um dá o que tem – nunca tantas deram tanto em tão
pouco tempo (1975), A noite das taras (1980), Quando abunda não
falta (1984), Senta no meu que eu entro na tua (1986), Emoções sexu-
ais de um jegue (1986) e Minha cabrita, minha tara (1986).
O pendor pelo escracho também incitava os produtores a copia-
rem e alterarem o sentido de cenas de filmes estrangeiros conceitu-
ados ou mesmo se apropriarem de trilhas musicais internacionais,
provavelmente sem pagar os devidos direitos de uso. Além disso,
foi frequente conferirem títulos a peças que parodiavam os nomes
de filmes estrangeiros de sucesso na época, como A banana mecâ-
nica (1974), Bacalhau (1975), Nos tempos da vaselina (1979), Giselle
(1980), Rabo, a missão (1985) e Gemidos e sussurros (1987)3.
A confluência de todos esses recursos viabilizou que várias por-
nochanchadas atraíssem um público numericamente bem maior
do que comparecia aos cinemas para assistir às produções chan-
celadas pela Embrafilme, e mesmo os filmes norte-americanos. A
viúva virgem (1972) levou mais de 2,3 milhões de espectadores ao
cinema no prazo de oito meses e Ainda agarro esta vizinha (1974),
mais de 3,4 milhões nos primeiros seis meses após seu lançamento
(Seligman, 2000, p. 56).

3
Os filmes estrangeiros parodiados receberam os seguintes títulos no Brasil: Laranja mecânica
(1971); Tubarão (1975); Grease: nos tempos da brilhantina (1978); Emmanuelle (1974); Rambo 2, a
missão (1985) e Gritos e sussurros (1972). Ressalta-se que, pelo trabalho da censura ou de interes-
Parte 1

ses empresariais, alguns destes filmes foram lançados aqui anos depois de estrearem no exterior,
coincidindo ou se aproximando dos anos de lançamento das pornochanchadas mencionadas.

26
Devido às características dos filmes de pornochanchada, o co-
mum entre os pesquisadores é declarar que, comprometidas com
o gosto das massas, tais produções atraíam quase que exclusiva-
mente os homens pertencentes às camadas mais pobres e iletra-
das da sociedade (Rocha; França, 2009, p. 11). No entanto, a infor-
mação bem mais confiável de Seligman (2000, p. 74) esclarece que
o público predominante que assistia a esses filmes era oriundo da
classe média.
A abertura política ocorrida gradualmente a partir do início da
década de 1980 resultou também no esmaecimento da censura, tor-
nando possível a publicação de revistas centradas na exposição
de nus masculinos e, sobretudo, femininos, como Ele&Ela, Status,
Playboy e Playgirl, e também a livre projeção de filmes importados
que se enquadravam no gênero pornô propriamente dito. Tais cir-
cunstâncias obrigaram as pornochanchadas a transitarem da fase
soft para a hard, com a exploração explícita de atos sexuais, além da
adoção de títulos mais chamativos para as películas e que sugeriam
cenas que raramente apareciam nas revistas de nus, especialmente
de zoofilia, mesmo que na tela, o que era projetado eram pessoas
fantasiadas de animais. Tais renovações, no entanto – ou justamen-
te por causa delas – não impediram que o gênero entrasse em fran-
co declínio, deixando praticamente de existir a partir de 1990, sendo
substituído por fitas com pouco ou mesmo sem enredos e centradas
exclusivamente na exposição de atos sexuais. A pornochanchada
morria ao mesmo tempo em que nascia o pornô nacional.
Findo o ciclo, a pornochanchada legou sua realeza. Dentre o
grupo de atrizes e atores, Helena Ramos, Selma Egrei, Adriana Priet-
to e Aldine Muller até hoje são reverenciadas como as rainhas deste
gênero fílmico, enquanto que David Cardoso tornou-se o rei, sendo
superado neste título apenas por Carlo Mossy, considerado como “o
rei supremo da pornochanchada” por ter, como nenhum outro, se
dedicado a estes filmes no correr das décadas de 1970 e 1980. Além
de ator, diretor e roteirista, Mossy foi também proprietário da Vy-
dia Produções Cinematográficas, empresa que chancelou alguns
dos mais lucrativos filmes do gênero pornochanchada, dentre eles
Como é boa nossa empregada (1976), As massagistas profissionais
(1976) e Giselle (1980); em conjunto estas três produções levaram às
salas de cinema mais de 18 milhões de espectadores.
Reconhecendo território

Com a decadência e encerramento do ciclo cinematográfico


da pornochanchada, seus atores, produtores e diretores buscaram
migrar para a televisão, mas apenas uma parcela deles conseguiu
sucesso nesse meio de comunicação. Os que alcançaram destaque,
27
especialmente nas telenovelas, tentam apagar até hoje o trecho de
suas biografias comprometidas com a pornochanchada, dentre eles
Sônia Braga, Vera Fischer, Nádia Lippi, Xuxa Meneghel, Antonio Fa-
gundes, Reginaldo Farias e Nuno Leal Maia, além do autor de nove-
las Sílvio de Abreu. Carlo Mossy adotou na década de 1990 o pseudô-
nimo Giselle H. e tornou-se produtor e diretor de uma série de filmes
pornôs; no século XXI tem atuado em papéis menores em novelas e
reality shows e também no cinema, destacando-se O homem do ano
(2003) e, mais recentemente, Benjamin (2013) (Ormond, 2005).
O silêncio lançado sobre as pornochanchadas deve-se a vários
outros motivos além da recusa de atores e autores de telenovelas
em assumirem suas contribuições em fitas do gênero. A negativa
dos pesquisadores em se envolverem com o tema deixa claro que
o moralismo ainda desempenha um papel significativo nas opções
temáticas da universidade, enquanto que os empresários de comu-
nicação praticamente não têm imprimido em VHS ou, na sequên-
cia dos anos, em DVD/Blu-ray as fitas de pornochanchada. Além de
alguns poucos filmes disponíveis na rede mundial de computado-
res, o canal Brasil mantém, faz anos, uma sessão dedicada exclu-
sivamente à apresentação de tais produções, sendo que, com fre-
quência, são mostradas com cortes das cenas consideradas mais
atentadoras (ou tentadoras?) à moral. Vale acrescentar ainda que é
graças ao canal Brasil que as novas gerações têm redescoberto as
pornochanchadas e cobrado pesquisas sobre o tema.

Múltiplas vozes em tela


Apesar da polifonia que caracteriza qualquer gênero cinema-
tográfico, a pornochanchada mostrou-se tributária de um reduzido
número de temas que, mesmo assim extrapolam em muito o sim-
ples intuito de apresentar corpos nus para o regalo de uma plateia
que, como muitos supõem, mostrava-se afeita exclusivamente em
deleitar-se com as performances sexuais dos atores. Apesar de as
películas selecionadas para análise serem classificadas como por-
nochanchadas por explorarem questões sexuais e recorrerem ao
humor, é necessário notar que não era raro o espectador assistir
produções que contavam com poucas e veladas cenas de corpos
despidos, como são os casos de A super fêmea (1973) e A árvore
dos sexos (1977), dedicando-se muito mais em registrar situações
tendencialmente sensuais e/ou cômicas, alimentadas pelo embate
entre posturas sociais e morais avaliadas pelos próprios protago-
Parte 1

nistas das fitas como “tradicionais” e “modernas”.


28
Fruto deste confronto entre o potencialmente “arcaico” e o que
se apresentava como “novidade”, a pornochanchada desdobrou-se
na exploração de um conjunto de subtemas que guardavam a pro-
posta de exaltar a eficiência do confronto bem humorado entre a
desordem promovida pelos personagens “modernos” em contra-
posição à ordem que era ferreamente exaltada pelos “tradicionais”.
Neste encaminhamento, o comum era o enredo enfatizar a atuação
perturbadora e positiva de malandros urbanos dedicados à quebra
das regras sociais dentro do seu próprio território de sociabilidade,
como em A super fêmea, Ainda agarro esta vizinha, Bonitas e gos-
tosas, Me deixa de quatro e Onda nova, ou então conferir destaque
a tipos que migraram temporariamente de espaços metropolita-
nos nacionais ou estrangeiros para pequenas cidades interioranas,
circunstância que gerava sustos e apreensões entre os “nativos”,
como aconteceu em A árvore dos sexos e Giselle. O caminho opos-
to, quando um caipira deslocava-se para o ambiente metropolitano,
também foi explorado, destacando-se neste sentido O bem dotado
– o homem de Itú e Nos tempos da vaselina.
Em conjunto, estes filmes postavam-se em oposição, talvez
mesmo sem muita certeza ou clareza, aos mais caros valores de
moral e civismo defendidos pela ditadura, explorando nas tramas e
subtramas as seguintes perspectivas:

Os “donos do poder”
A confluência entre as imposições ditatoriais e as novas rebel-
dias admitidas pela renovação cultural inaugurada nos anos 60 en-
sejou uma acirrada crítica ao monopólio do poder, não só aquele
representado pelos generais-presidentes, mas também por indi-
víduos e instituições que buscavam se impor no contexto social
abrangente. A sensação segundo a qual era “proibido proibir” fazia
com que representantes de instituições tradicionais, ou pelo menos
parte deles, fossem alvos preferidos de exposições jocosas, revelan-
do a existência de um falso moralismo.
Sacerdotes cristãos e professoras, por exemplo, foram adotados
pela pornochanchada como indivíduos que apregoavam preceitos
éticos extemporâneos e que, com frequência, eles próprios não in-
corporavam em suas vidas privadas. Em A árvore dos sexos, um
Reconhecendo território

padre interiorano admoestou todas as mulheres da cidade, ponti-


ficando que sexo era pecado, porque elas apresentavam sintomas
de gravidez depois de comerem uma fruta com formato e odor do
órgão sexual masculino; no mesmo filme, a jovem e bela professora
29
da escola local reclamou junto ao prefeito para que tal árvore fos-
se cortada, negando-se a conversar sobre sexo com quem quer que
fosse. Neste último caso, a docente era a única mulher da cidade
que não engravidara, mas o seu desejo de se relacionar com um ho-
mem mostrava-se patente, a ponto de ela seduzir um pedreiro que
fora ao prédio da escola para fazer reparos no edifício.
Os agentes institucionais só ganharam positividade na tela
quando cediam aos ditames culturais tidos como afastados dos
modelos convencionais. O personagem padre de O bem dotado
angariou simpatias ao insistir que um assustado caipira vencesse
seus receios e se transferisse para a metrópole paulistana para tra-
balhar numa casa comandada por mulheres ricas. Da mesma forma,
o sacerdote de Ainda agarro esta vizinha foi retratado com graça
pelo fato de quebrar as regras religiosas e celebrar um casamen-
to literalmente correndo, já que a noiva estava em um avião que
taxiava na pista enquanto que o padre, o noivo e os padrinhos do
casamento estavam fora dele.
Aos potentados que tinham um poder emanado diretamente do
Estado foi negada qualquer simpatia e, em vez disto, multiplicaram-
se as críticas quando tinham um papel de alguma importância no
enredo fílmico. Em A árvore dos sexos, o prefeito, que se apresen-
tava como defensor da moral e do respeito ao bem público, negou-
se a ceifar a árvore que engravidara as mulheres da cidade porque
percebeu que os frutos do arbusto poderiam atrair turistas para o
município. Disposto a lucrar com a situação, o mandatário resolveu
investir dinheiro próprio na ampliação do bordel local, despreocu-
pando-se com a possibilidade de a presença de forasteiros bene-
ficiarem ou não a cidade. Ainda na mesma trama, o atrapalhado
delegado de polícia insistia em cobrar comportamentos pudicos
da população, enquanto que sua esposa mantinha relações sexuais
com vários personagens da trama.
No rol dos donos do poder, aqueles que detinham o poder eco-
nômico também foram alvos de críticas, já que adotavam valores
tradicionais acima de tudo para ressaltar que corporificavam uma
“classe superior”, portanto diferenciada da “massa”. A tendência nes-
tas fitas era o proprietário de alguma empresa – grande ou peque-
na – ser ríspido com seus funcionários e não raramente explorar
sexualmente os trabalhadores e seus familiares, transformando
o ambiente de trabalho e mesmo suas residências em pontos de
encontros escusos. Em O bem dotado, o interiorano simplório foi
contratado para servir como doméstico na casa de uma madame da
Parte 1

cidade grande, mas seu verdadeiro serviço era satisfazer a patroa e


30
suas amigas no plano sexual; em Giselle, um fazendeiro do interior
e empresário no Rio de Janeiro sustentava o filho de um emprega-
do falecido com quem mantivera relações amorosas e, ao mesmo
tempo, também era pedófilo, abusando de uma criança, filho da do-
méstica que o servia.

O contrapoder e o mundo do trabalho


Nas teias da pornochanchada, a existência de um poder contro-
lado por uma elite econômica e burocrática não fazia com que os
demais personagens se acomodassem na condição de explorados
e oprimidos. Nesse aspecto, ganhou dimensões heróicas o tipo ma-
landro que, aliás, predominava na maior parte das encenações do
gênero cinematográfico. O trabalho cotidiano e as relações sociais
tradicionais engendradas entre os patrões e seus empregados eram
apresentados na tela como condições indesejadas e que deveriam
ser evitadas a todo custo; ficou implícito na maior parte das tramas
analisadas que o mundo formal do trabalho correspondia a uma es-
pécie de escravidão e somente fora deste contexto é que a vida e
os prazeres por ela ofertados poderiam ser realmente desfrutados.
O viver sem trabalhar impunha a existência de alguém que
sustentasse o personagem que almejava livrar-se das amarras do
cotidiano. Em um dos episódios do filme Bonitas e gostosas, o qual
explora a trajetória de vida do pré-histórico Sacana Coça-Saco, que
seria o primeiro habitante do país e do qual todo brasileiro herdaria
as características ético-morais, o personagem uniu-se a uma mu-
lher e ambos geraram dez filhos. Para sustentar a todos, o homem
empenhou-se inicialmente no trabalho árduo, mas em pouco tempo
desistiu do compromisso familiar, amasiando-se com uma travesti.
Procurado pela esposa e pelos filhos, Sacana firmou um acordo: a
mulher e a travesti trabalhariam para o sustento do grupo, enquan-
to o homem permaneceria descansando numa rede, pois, segundo
o próprio Sacana – identificado por uma voz em off como “o pri-
meiro malandro brasileiro” – , “ninguém é de ferro”. Outra estratégia
para sobreviver com o mínimo de trabalho possível era o emprega-
do chantagear o patrão; em Giselle, um servidor em uma fazenda
que já usufruía de uma série de liberdades no trabalho, sutilmente
impôs a seu empregador que ele financiasse sua estadia e estudos
Reconhecendo território

no exterior para que silenciasse sobre suas aventuras sexuais.


Caso o ideal de viver afastado do trabalho não fosse alcança-
do, a opção seguinte constituía-se em ser trabalhador autônomo,
de preferência atuando em atividades que fugiam às convenções
31
sociais e tomasse o menor tempo possível. Em Um pistoleiro cha-
mado Papaco, o personagem-título tinha como característica arras-
tar um caixão por boa parte da trama, revelando-se ao espectador
somente na parte final do filme que Papaco era um comerciante
e a urna funerária era o modo que encontrara para transportar a
mercadoria que ele vendia: dildos. Em outra pornochanchada, Nos
tempos da vaselina, o personagem principal, um interiorano que se
aventurara no Rio de Janeiro, encontrou como forma de financiar
sua agitada vida noturna o serviço de acompanhante de animais
domésticos em passeios pela orla marítima.
Por último, se o trabalho assalariado se tornasse a única opção,
esta deveria ser uma circunstância passageira. A regra predomi-
nante era sabotar a vigilância do chefe, trabalhar o menos possí-
vel e, em alguns casos, buscar chances de enriquecimento rápido,
mesmo que ilícito. Em A super fêmea, uma personagem consegue
grande soma de dinheiro de concorrentes da agência de propagan-
da na qual trabalhava ao criar uma situação que levaria seu empre-
gador à ruina financeira, enquanto que outra, garota-propaganda
de uma fantasiosa pílula anticoncepcional masculina, engravidou
para fugir do contrato de trabalho que assinara sem ter lido. Em Me
deixa de quatro, o funcionário de uma oficina mecânica empenha-
va parte de seu horário de trabalho em aventuras amorosas e em
Ainda agarro esta vizinha, um homem, que sobrevivia do trabalho
esporádico como publicitário, inventava slogans ao acaso, e isto
somente quando o patrão batia à porta do seu apartamento para
exigir algo novo no campo da propaganda. Nos enredos das porno-
chanchadas, as maneiras de fugir aos compromissos do trabalho
multiplicavam-se sem limites.

A família e o ambiente familiar


Assim como aconteceu com os grupos que detinham em suas
mãos o poder coercitivo sobre o corpo social, a família foi avaliada
como polo reprodutor da cultura tradicional e, portanto, como ins-
tituição opressora. Da coleção de filmes eleitos para análise, seis
deles conferiram destaque à composição familial, apresentando-a
ao público como um núcleo desajustado e que existia como forma
vazia, não como um coletivo harmônico e solidário.
Se esta era a tendência hegemônica nas pornochanchadas,
certamente havia exceções, pouco privilegiadas nos enredos, que
sugeriam o bom funcionamento de famílias “diferenciadas” porque
Parte 1

incorporadoras dos princípios modernos de organização e funcio-


32
namento grupal. Em Onda nova, o diálogo franco entre mãe e filha
deu-se facilmente porque não havia um pai na família; na mesma
película, uma moça compartilhava livremente suas angústias ínti-
mas com o pai porque este era “amigo” e “liberal” a ponto de, a con-
vite de sua jovem esposa, quebrar as regras da “tradicional família
paulistana” em relação à moral sexual.
Na maioria dos enredos, entretanto, a existência de casais per-
manentes foi apresentada como “pura fachada”, como em Ainda
agarro esta vizinha e Giselle, enfatizando-se que a liberdade em
relação aos parceiros amorosos e sexuais mostrava-se mais impor-
tante que qualquer forma de comprometimento formal e duradouro.
E isto mesmo quando havia amor entre marido e esposa, já que tal
sentimento foi apresentado como algo circunstancial e passageiro,
sendo que seu esgotamento condenava o casal a uma existência
sob o império da frustração e do tédio.
Como composição substituta da família, o pertencimento a um
grupo de amizade ou afinidade constituía-se na estratégia de vi-
ver valorizada nos filmes; isto porque os enredos empenhavam-se
em destacar que tais composições grupais, fugindo às imposições
familiares e sociais, raramente censuravam o comportamento dos
seus integrantes, ampliando o sentimento de liberdade individual e
socorrendo seus membros em momentos difíceis. Em Nos tempos
da vaselina, o grupo de referência exaltado foi uma turma de rapa-
zes e moças que frequentavam a mesma praia carioca, enquanto
que em Me deixa de quatro era os amigos que celebravam seus su-
cessos e suas frustrações na mesa de um bar.
O enredo de Onda Nova instruiu a pornochanchada que maior
destaque concedeu à oposição entre família desarmônica e grupo
de amizade. Boa parte do filme foi dedicada em salientar a existên-
cia de famílias moral e eticamente arruinadas, nas quais nenhum
de seus componentes era feliz. Em resposta, as filhas destas unida-
des familiares se comprometeram com a participação em um time
de futebol feminino, o qual passou a desempenhar as funções que,
idealisticamente, deveriam ser realizadas pela organização fami-
liar. Enquanto espaço comunitário no qual os laços de sociabilidade
eram pautados pela sinceridade, as atletas viviam suas existências
e compartilhavam suas questões de vida.
Hoje raramente invocado, o lema “Aceita-me como sou” foi uma
Reconhecendo território

referência comum entre os jovens das décadas de 1970 e 1980 e, nas


produções cinematográficas visitadas este princípio tornou-se re-
corrente em várias tramas. O fato das mulheres de uma cidade, com
exceção de uma, apresentarem sinais de gravidez, em A árvore dos
33
sexos, determinou que uma legião de moças solteiras fosse expulsa
de casa por seus progenitores, sendo todas elas prontamente aco-
lhidas pela dona de um bordel, sob a alegação de que a cafetina e
suas funcionárias haviam passado pela mesma situação. O empe-
nho das prostitutas em socorrer as jovens abandonadas foi tanto
que, em pouco tempo, o lupanar abriu mão de suas antigas funções
para tornar-se oficialmente um lar de mães solteiras.

Relação de gêneros e sexualidade


Uma das dimensões mais invocadas pelos estudiosos da porno-
chanchada refere-se à “coisificação” da mulher. Para eles, o machis-
mo dominava o gênero cinematográfico, condenando as mulheres
à condição de personagens subordinadas e oprimidas tanto no pla-
no social quanto sexual (Gomes, 2010).
No entanto, acredita-se que se é verdadeiro o teor machista
em muitas produções fílmicas analisadas, o papel da mulher nem
sempre foi registrado pelo crivo da submissão ao homem. Isto por-
que, se algumas fitas ou certos momentos de um enredo exploram
o abuso social e sexual das mulheres, como ocorreu em Me deixa
de quatro e em Bonitas e gostosas, uma parcela significativa das
pornochanchadas chama a atenção pelo fato de as mulheres mos-
trarem-se personagens ativas, que sobrepujam o pendor masculino
no comando das ações, inclusive as de ordem sexual.
Neste encaminhamento, não só os homens serviam-se sexual-
mente das mulheres, mas também elas serviam-se deles. Nos enre-
dos dos filmes focados, as iniciativas erótico-sexuais partiam tanto
dos protagonistas masculinos quanto dos femininos e, com certa
frequência, eram as mulheres que “coisificavam” os homens e não
o contrário, como pode ser constatado nas tramas de O bem dota-
do e Nos tempos da vaselina. No mesmo sentido, as mulheres não
permaneciam em silêncio quando descobriam que seus cônjuges
mantinham casos extra-conjugais; em Me deixa de quatro, a espo-
sa de um mecânico, ao saber que o marido sustentava uma aman-
te, deixou-se seduzir por um amigo, assumindo a situação frente a
quem a traía. A passividade feminina fora ditada pela moral tradi-
cional e isto não poderia mais ser totalmente aceito nas tramas dos
filmes gerados no contexto de uma cultura que se queria moderna.
Em vários filmes as mulheres lutavam contra o machismo e as-
sumiam papéis de destaque nas tramas, negando a subordinação
exigida pelos homens. Em A árvore dos sexos, Onda Nova, Giselle e
Parte 1

A super fêmea as protagonistas lideravam as ações; coube à perso-


34
nagem-título de Giselle estabelecer os limites dos relacionamentos
sociais e sexuais que encaminham a trama, da mesma maneira que
ocorreu com a protagonista central de A super fêmea. No filme A
árvore dos sexos, uma jovem estudante universitária opôs-se a sua
própria família e ao jugo dos homens em nome da defesa da liber-
dade de discutir publicamente sobre sexo e feminismo, enquanto
que em Onda Nova uma das atletas do time de futebol negou-se
a comunicar sua gravidez ao rapaz com quem ela tivera um bre-
ve relacionamento, preferindo ela própria, com a ajuda das amigas,
custear o aborto ao qual decidira se submeter.
Não era exclusivamente no plano sexual que as mulheres bus-
cavam liberdade e autonomia. No campo do trabalho, várias pro-
tagonistas desempenhavam funções tipicamente masculinas; em
Um pistoleiro chamado Papaco era uma mulher que comandava
um grupo de cowboys, lutando em pé de igualdade com seus ini-
migos na disputa por um carregamento de dildos, e em Onda Nova,
as mulheres jogavam bola, discutiam futebol e falavam palavrões,
enquanto uma delas desempenhava a função de taxista.
Nesse contexto, os próprios homens infringiam as regras im-
postas em relação aos papéis sociais de gênero. Na parte introdu-
tória de Onda Nova, conhecidos jogadores de futebol profissional
travestiram-se de mulher, inclusive Casagrande, então considera-
do um símbolo de masculinidade, enquanto que em Um pistoleiro
chamado Papaco, uma das subtramas faz a apologia dos prazeres
resultantes do sexo anal.
Uma dimensão especial foi conferida nestes filmes às relações
homossexuais, tanto entre homens quanto entre mulheres. Se o
machismo aceitava quase em silêncio ou mesmo instigava os en-
contros eróticos entre mulheres, a mesma unanimidade não ocor-
ria em relação ao homossexualismo masculino. Em Me deixa de
quatro, o grande temor de um dos personagens centrais era a sus-
peita que seu filho fosse gay, chamando com exaltação um grupo
de homossexuais de “raça lazarenta” e “bichas mortíferas”. No en-
tanto, outros filmes, como Um pistoleiro chamado Papaco e Giselle
acolheram sem discriminação os personagens gays e bissexuais
masculinos como indivíduos com uma opção ou orientação sexual
tão legítima quanto qualquer outra. No entanto, a liberdade sexual
tinha seus limites; ainda em Giselle, no momento em que um em-
Reconhecendo território

pregado descobriu que seu patrão era pedófilo, fez questão de decla-
rar que “não concordava” com o fato.

35
O contexto político
A maior parte das pornochanchadas foi produzida no decorrer do
período ditatorial, sendo impossível que não se referissem critica-
mente ao momento político-econômico e social da época, mesmo
que de forma implícita. Se valores admitidos pelo governo militar
como “sadios” foram colocados em causa, os serviços de censura
e a própria autocensura assumida pela indústria cinematográfica
tendiam a inibir qualquer tentativa mais ousada que colocasse em
foco direto o regime político.
A exceção a esta regra, mesmo que tênue, encontra-se em Gisel-
le, produção lançada no início da fase da história nacional conhe-
cida como “abertura política”. Em uma cena relativamente rápida e
algo deslocada da trama geral, uma médica, antiga subversiva que
fora feita prisioneira pela ditadura e posteriormente trocada, junto
com outros detidos, pelo embaixador alemão que havia sido seques-
trado por opositores ao governo, falou que, após estudar em países
comunistas, chegou a conclusão que todos os regimes repressivos
um dia iriam cair. Na sequência, levou sua jovem amante à uma
reunião secreta, realizada em um pequeno recinto dominado pela
fotografia de Che Guevara, ocasião que a médica e outros presentes
foram fuzilados por agentes da ditadura.

Considerações Finais
Apesar de mal afamadas, as pornochanchadas também contri-
buíram para o movimento subterrâneo de solapamento da ditadu-
ra. Claro está que elas igualmente incorporavam vários estigmas
culturais, como a mulata boazuda, o caipira inocente e incapaz de
viver numa cidade grande, a loira burra, o brasileiro malandro, o
homossexual obrigatoriamente efeminado e a perspectiva de vida
orientada pelas aventuras sexuais, mas não pararam apenas nisto.
Também contribuíram com algumas e boas críticas à política então
vigente, inclusive à política cultural assumida pelos golpistas de 64.
Assim, entre a alienação e a rebeldia a pornochanchada cumpriu
seu ciclo de existência, incorporando um jogo de revela-e-esconde
semelhante ao que era empregado pelas vozes autoritárias.
Alguns leitores podem suspeitar que o autor deste texto está
“forçando a barra” em suas considerações. Mas também esses mes-
mos leitores têm que admitir que não se pode creditar ao acaso a
circunstância de muitas das tramas adotadas nas pornochancha-
das desqualificarem alguns valores que, no período, eram vigorosa-
Parte 1

36
mente propagandeados em nome da moral e do civismo. Se o papel
das pornochanchadas pode ser avaliado como dúbio, o empenho
crítico esteve presente em parte das produções, mesmo que sob
o manto do subliminar. Assim, não é possível para o pesquisador
acomodar-se na falácia de que tal gênero fílmico fosse de agrado e
mesmo patrocinado pelo ditador de plantão. As comédias eróticas,
isto sim, abriam espaço para tramas que se reportavam às novida-
des do cotidiano das décadas de 1970 e 1980. Vale lembrar ainda que
tais temas também estavam sendo explorados, mesmo com uma
estética bem mais refinada pelo cinema soft chic erótico europeu,
citando-se como exemplos de clássicos, Último tango em Paris
(1972) e Emmanuelle (1974).
Pelos motivos apresentados, acredita-se que, enquanto produ-
ções culturais de vasta abrangência popular, o que não quer dizer de
consumo exclusivo das classes subalternas, as pornochanchadas
merecem o apreço e a análise acadêmica, por mais que a universi-
dade continue a se constituir em um território irremediavelmente
tomado por temas moralistas. A ditadura também contou com opo-
sitores na indústria das pornochanchadas.

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A árvore dos sexos. Dir. Sílvio de Abreu. Brasil: Kinetos; MG Editores;
Maco Produções, 1977. VHS. (90 min.), color., sem legenda, Port.
A super fêmea. Dir. Aníbal Massaini Neto. Brasil: Companhia Pro-
dutora e Distribuidora de Filmes Nacionais, 1978. VHS. (100 min.),
color., sem legenda, Port.
Ainda agarro esta vizinha. Dir. Pedro Carlos Rovai. Brasil: Sincrofil-
mes, 1974. VHS. (91 min.), color., sem legenda, Port.
Bonitas e gostosas. Dir. Carlo Mossy. Brasil: Vydia Produções Cine-
matográficas, 1979. VHS. (90 min.), color., sem legenda, Port.
Giselle. Dir. Victor Di Mello. Brasil: Vydia Produções Cinematográfi-
cas, 1980. VHS. (87 min.), color., sem legenda, Port.
Me deixa de quatro. Dir. Fauzi Mansur. Brasil: J. Dávila Produções
Cinematográficas, 1981. VHS. (100 min.), color., sem legenda, Port.
Nos tempos da vaselina. Dir. José Miziara. Brasil: Produções Cine-
matográficas Galante, 1979. VHS. (90 min.), color., sem legenda, Port.
O bem dotado – o homem de Itú. Dir. José Miziara. Brasil: Compa-
nhia Produtora e Distribuidora de Filmes Nacionais, 1978. VHS. (99
min.), color., sem legenda, Port.
Onda Nova – Gayvotas Futebol Clube. Dir. José Antônio Garcia; Íca-
ro Martins. Brasil; Olympus Filmes, 1983. VHS. (98 min.), color., sem
legenda, Port.
Um pistoleiro chamado Papaco. Dir. Mário Vaz Filho. Olympus Fil-
mes, 1986. VHS. (70 min.), color., sem legenda, Port.
Reconhecendo território

39
Caio Lamas A CENSURA À PORNOCHANCHADA:
O CASO DE ANJO LOIRO

Introdução
Ninfomaníacas. Piadas de duplo sentido. Tí-
tulos apelativos e sem nexo algum com a trama.
Olhares maliciosos. Personagens perturbados.
Sintetizadores abundantes na banda sonora. Câ-
meras que vão e voltam em chicote durante uma
cena. Atores de performance duvidável e uma
produção de notável precariedade técnica.
Muitas são as características que podem ser
atribuídas ao abrigo de gêneros denominado por-
nochanchada, abundante na cinematografia bra-
sileira (sobretudo carioca e paulista) durante os
anos de 1970. Comédias, histórias de terror, sus-
pense, dramas, faroestes e outros gêneros cine-
matográficos, combinados com um apelo erótico
crescente para um público de baixo poder aqui-
sitivo, fizeram plateias significativas durante vá-
rios anos, desafiando prognósticos fatalistas de
críticos que anunciavam seu fim premeditado.
O fato é que persistiu com grande presença
de público, por mais de uma década em nosso
país, uma cinematografia de imagens precárias,
fazendo números de bilheteria a dar inveja a ou-
tros períodos do cinema brasileiro. O Bem Dotado
Homem de Itu, dirigido por José Miziara e lança-
do em junho de 1978, chegou a alcançar o número
de 2.409.162 espectadores; Amada Amante, dirigi-
do por Cláudio Cunha e lançado em julho de 1978,
alcançou 2.610.538 espectadores. Os exemplos
são vários, e na lista das maiores bilheterias da
história do cinema brasileiro, certamente a por-
nochanchada alcança destaque no panteão de

41
filmes de maior sucesso. Esse número é mais surpreendente ainda
quando são considerados os baixos orçamentos de grande parte das
produções; a origem dos investimentos, via de regra exclusivamen-
te privados e sem incentivo estatal; e o rápido tempo de rodagem.
Em São Paulo, foi na Boca do Lixo, polo de produção de cinema
localizado nas ruas do Triunfo, Gusmões, Vitória e dos Andradas, re-
gião central da cidade, que se iniciaram os projetos de vários desses
filmes. Os produtores eram fundamentais nesse processo, na medi-
da em que negociavam os salários dos técnicos e da equipe, busca-
vam investidores e estipulavam o tempo de filmagem e de pós-pro-
dução. Sternheim (2005), importante diretor da Boca, destaca o caso
de Galante, um dos produtores de maior destaque da região:

Os filmes tinham que ser feitos em prazos curtos e com pouco


negativo, que era o item mais caro de uma produção. Para se
ter uma ideia, um dos filmes foi rodado com 18 latas grandes
(300 m), em apenas três semanas. A edição final precisava
ter, no mínimo, 8 latas. Ou seja, na média, uma cena só podia
ser repetida duas vezes e meia (STERNHEIM, 2005, p. 26)

Um caso citado por Abreu (2006, p. 95) a respeito do filme Bandi-


do, a fúria do sexo (1978), do ator, diretor e produtor David Cardoso: o
roteiro foi escrito em oito dias, e o filme rodado em 13. Outro caso re-
presentativo é novamente o de Galante, que produziu 23 filmes entre
1976 e 1982, chegando a rodar de sete a oito filmes em 1978-1979, uma
média muito alta para a produção brasileira (ABREU, 2006, p. 195).
Os produtores da Boca também possibilitavam que o excedente
dos recursos gerados pelos filmes fosse investido em outros filmes,
criando uma cadeia de produção contínua. Também procuravam
investidores, e para convencê-los frequentemente já tinham pre-
parado os títulos das propostas, às vezes antes mesmo do enredo.
Esses títulos eram vistos como essenciais para a atração do públi-
co, jogando de forma maliciosa e sensacionalista com elementos
ligados à sexualidade.1
É importante notar que nada disso era exatamente algo novo,
se formos considerar o panorama internacional. Segundo Abreu
(1996), após os anos 1930, quando o cinema americano passou por

1
Exemplos notáveis são Senta no Meu que eu Entro na Tua (1984), Noite das Tara(1980), Amadas
e Violentadas (1976), O Prisioneiro do Sexo (1979), Dezenove Mulheres e Um Homem (1977), O
Sexo Mora ao Lado (1975), A Virgem e o Machão (1973), A Super Fêmea (1973), entre muitos
Parte 1

outros títulos.

42
um período forte de autocensura com relação às questões sexuais,
as décadas de 1940 e 1950 viram surgir o fenômeno dos exploita-
tions, filmes eróticos, de horror e policiais baratos, destinados às
plateias masculinas, que em sua vertente erótica contariam com
planos mais aproximados e uma nudez ainda velada.
Segundo Cánepa (2009, p.2), o ano de 1959 marcaria o surgi-
mento de ramificações desse cinema, em especial o “blaxploi-
tation (para filmes com temática violenta envolvendo afrodes-
cendentes), nunexplitation (para histórias bizarras passadas em
conventos); woman in prison (para filmes sobre presídios femini-
nos)”, além de outros. Entre essas denominações, se destacariam
os sexploitations, filmes baratos cujo chamariz principal, diante
da falta de estrelas e astros famosos ou de diretores e produto-
res reconhecidos, era o tratamento de temas polêmicos e tabus
relacionados à sexualidade, aproveitando-se de seu potencial de
escândalo para fins comerciais.
Começa-se também nessa época a questionar o papel da mu-
lher na sociedade e o direito que teria ao prazer sexual. Sem dúvida,
essa reivindicação teria encontrado menos espaço se não tivesse
sido lançada, em países da Europa, na Austrália e no Brasil, em 1961,
a pílula anticoncepcional, que permitiu à mulher exercer uma sexu-
alidade mais livre e com menos riscos de fecundação indesejada.
No mercado editorial, reflexos disso podem ser vistos na edição de
junho de 1967 da revista Realidade, A mulher brasileira, hoje2, com
reportagens que abordaram o corpo feminino, a existência de mães
solteiras e a atuação da mulher no mercado de trabalho. Em setem-
bro de 1973, é lançada nas bancas a revista NOVA, primeira publica-
ção no Brasil voltada para assuntos relacionados ao crescimento
pessoal da mulher na faixa de 20 a 30 anos3, que em seu primeiro
número tratava de assuntos como: “101 maneiras de um homem
agradar você”, “Você é sensual - um teste insinuante”, “Explore as
vantagens de morar sozinha” e “Toda mulher pode sentir prazer no
amor, Você também”.
Uma particularidade do caso brasileiro, sem dúvida, era o fato
de que uma indústria de filmes de teor erótico nasceu e se manteve
durante a existência da Ditadura Civil-Militar, implementada com o
Reconhecendo território

2
Disponível na biblioteca da Escola de Comunicações e Artes.
3
Informações retiradas de: <http://www.projetoradix.com.br/arq_artigo/XI_01.pdf>. Acesso em
25/07/2012.

43
golpe de Estado de 19644. Uma Ditadura que continuou com a siste-
matização da prática secular da censura no país5, dando-lhe outros
contornos e grau de importância.
Entre os critérios para a incidência de cortes, figurava um grupo
referente ao confrontamento de princípios éticos, nos quais se in-
seria a inclusão de palavras e imagens que ofendessem a moral e o
decoro público. Havia ainda outros, categorizados em dois grandes
grupos – a instigação contra a autoridade e o atentado à ordem pú-
blica, de um lado, e a oposição aos direitos e garantias individuais,
de outro – passando por fatores tão ambíguos como a presença de
elementos capazes de gerar angústia ou ofensivos a alguma reli-
gião. (FAGUNDES, 1974). Simões (1999) destaca ainda como a vigi-
lância sobre esses critérios era ampla, abrangendo de um livro ou
filme a transmissões de alto-falantes em pracinhas do interior.
É importante destacar que, de acordo com Pinto (2006), a Cen-
sura foi parte fundamental na sustentação do regime:

A tão propagada limitação intelectual dos censores, seus atos


pitorescos - motivo de chacota até hoje, os erros gramaticais
que cometiam ou seus argumentos que podem parecer ridí-
culos, lamentavelmente, nunca impediram a Censura de ser
um dos mais competentes órgãos de repressão da ditadura e,
seguramente, um dos pilares de sustentação do regime. Du-
rante todo o regime militar, a censura, hierarquicamente bem
organizada, foi sagaz, implacável, poderosa e suas decisões
frustraram sonhos, impediram caminhos, abortaram pro-
messas e calaram gerações. Sua ação no cinema brasileiro
buscou moldar a produção aos projetos políticos do regime. O
lema central era proibir, sempre que possível. Na impossibili-
dade de proibir, cortar. Se as duas opções falhassem, “colocar
na geladeira”, significando engavetar o processo de requisi-

4
De certa forma, o fenômeno da pornochanchada parece se assemelhar a outro “movimento”
cinematográfico espanhol, denominado destape. Seus filmes, de intuito claramente comercial,
exploravam de forma análoga a nudez (preferencialmente feminina). Isso tudo aconteceu duran-
te os anos 1970, quando a Espanha vivia o período de transição para a democracia, com a morte
do ditador Franco em 1975.
5
É importante destacar que, ao contrário do que muitas vezes se entende no senso comum, di-
versos estudos apontam como a censura foi praticada ao longo de séculos no Brasil, não sendo
uma exclusividade de períodos ditatoriais. A criação de um órgão estatal exclusivamente para
essa finalidade, entretanto, se deu somente no início de 1946, quando foi criado o Serviço de Cen-
sura de Diversões Públicas (SCDP), subordinado ao Ministério da Justiça, por meio do Decreto nº
Parte 1

20.493, que vigorará por mais de vintes anos após sua publicação.

44
ção de censura sem, no entanto, admitir o feito. O processo
permanecia “em análise”, sem que nenhum parecer fosse
emitido. Assim, os produtores não tinham argumentos para
sequer negociar com a censura. Esta atitude podia levar me-
ses, até anos. (PINTO, 2006, p. 4)

Nota-se que a Censura6 do período militar tinha diversos arti-


fícios para impedir ou limitar o acesso do público aos filmes, sub-
metendo os produtores e diretores a uma batalha desigual. Alguns
desses artifícios foram herdados diretamente de sua institucionali-
zação, por meio do Decreto nº 20.493 de 1946, e posteriormente por
outros decretos e atos institucionais que o sucederam. Outros arti-
fícios começaram a ser sistematicamente aplicados, mesmo que de
forma não assumida, como o atraso da análise de filmes destacado
por Pinto. Quando conveniente também, pareceres e outros docu-
mentos dos processos eram extraviados, gerando lacunas que não
só demonstram os recursos extrajudiciais adotados como dificul-
tam sua posterior compreensão.
Dentro desse quadro, mesmo que à revelia de certos setores
que reivindicavam uma atuação mais firme diante das comédias
eróticas e dos demais filmes denominados pornochanchadas, es-
ses eram geralmente liberados pela Censura para maiores de 18
anos, com poucos cortes em palavrões e cenas de exposição do
corpo feminino.
Entretanto, houve casos de pornochanchadas que sofreram
grande retaliação pelo órgão censor, boa parte deles ainda pouco
estudados. Um deles foi o processo de Os Mansos, comédia erótica
dirigida por Pedro Carlos Róvai, que teve em um primeiro exame da
Censura, em fevereiro de 1973, quase cinquenta cortes de imagem
e som, reduzidos após um longo processo de negociações (SIMÕES,
1999). Outro foi o processo do filme Os garotos virgens de Ipanema,
comédia erótica dirigida por Osvaldo de Oliveira e produzida por An-
tonio Polo Galante e Alfredo Palácios, vetada na íntegra de 1973 a
1979, mesmo com a série de negociações efetuadas pelos produtores
(REIS; LAMAS, 2013).
Reconhecendo território

6
Quando emprego o termo Censura com a inicial maiúscula, estou me referindo ao órgão federal,
a Divisão de Censura de Diversões Públicas(DCDP). Quando utilizo censura com a inicial minús-
cula, refiro-me à prática ou ação de proibição e veto, bem como a outras formas de interdição que
nem sempre partem do poder público.

45
Um desses casos, do qual tratarei neste artigo, foi o do filme
Anjo Loiro (1973). Trata-se de mais uma tentativa de me aprofundar
em um universo ainda pouco explorado – a relação entre a cinema-
tografia dos anos 1970 e a Censura.

Sexualidade, erudição e moralidade: análise de Anjo Loiro


Anjo Loiro, originalmente intitulado Anjo Devasso, foi o segun-
do longa-metragem dirigido por Alfredo Sternheim, baseado em
conto de Henrich Mann e contando com a participação de Mário
Benvenuti, Vera Fischer, Célia Helena, Ewerton de Castro, Nuno Leal
Maia e outros atores (STERNHEIM, 2005). Sternheim é um dos pou-
cos diretores da Boca ainda remanescentes: foi crítico de cinema
do jornal O Estado de S. Paulo, continuísta e assistente do diretor
Walter Hugo Khouri em A Ilha (1961), diretor de cinema – tem em
sua filmografia cerca de 25 longas e 14 curtas – e diretor de tele-
visão. Dirigiu um dos episódios do longa-metragem Memórias da
Boca (2015), filme que contou ainda com a direção de outros rema-
nescentes da Boca como Clery Cunha (Pensionato de Mulheres) e
José Mojica Marins (Exorcismo Negro, todos os filmes com o per-
sonagem Zé do Caixão) e que tem como foco um resgate nostálgico
das memórias do polo de produção.
A versão analisada aqui do filme se trata da gravação de uma
transmissão televisiva, e foi adquirida pelo site de um coleciona-
dor7. Grande parte das pornochanchadas não tem versões em DVD
disponível para venda, e precisam ser encontradas na programação
televisiva, em sites de colecionadores ou no acervo disponibilizado
para consulta na Cinemateca Brasileira.
Anjo Loiro conta a história de Armando (Mário Benvenuti), pro-
fessor de História de um tradicional colégio que vê sua vida mudar
por completo quando começa a sair com a jovem Laura (Vera Fis-
cher). Logo no início do enredo, Armando observa um comporta-
mento estranho em seu aluno Mário (Ewerton de Castro), filho de
um amigo seu que havia falecido há pouco. Mário passou a tirar
notas baixas nos últimos meses e permanecia desatento durante as
aulas. Foi quando Armando presenciou uma discussão entre Mário
e Laura, em que ouvimos o seguinte diálogo:

7
Disponível em <http://expirados.blogspot.com.br/2009/04/lista-pornochanchada-porno-nacio-
Parte 1

nal-e.html>. Acesso em 12 fev. 2016.

46
Mário: Você disse que me amava...
Laura: E não menti, mas isso não te dá o direito de mandar
sobre mim.

Esse diálogo acontece em resposta à primeira sequência do


drama, quando vemos Laura, depois de beijar Mário, ir conversar e
paquerar outros rapazes. Mário se diz humilhado por tal situação,
pedindo que a jovem parasse com tal comportamento, o que Laura
nega, vendo nessa atitude uma ameaça a sua liberdade.
Armando resolve então oferecer uma carona a Mário, aconse-
lhando que o mesmo esqueça a jovem. Segue o diálogo:

Armando: Sexo é mais um problema de cuca do que outra coisa


Mário: Só de cuca?
Armando: É lógico que o físico exige sexo. Mas o cérebro, o
pensamento, deve controlar e dominar tudo, a fim de evitar
que o erotismo tome conta da gente.
Mário: E o senhor é assim?
Armando: Eu também já tive os meus galhos, mas nunca
permiti que interferisse no meu trabalho. (...) Gosto mesmo de
tirar o atraso pagando, sem compromissos, sem amarração.
Mário: Se o senhor conhecesse uma moça como Laura...
Armando: Eu não me amarraria.

Na sequência seguinte vemos Armando, sempre de paletó e


gravata, ir atrás de Laura em um bar, ao som de jazz, pedindo-lhe
que se afastasse de Mário, com o intuito de preservá-lo de sua pre-
sença nociva. Nesse instante, Laura é ameaçada por um jovem, e
defendida por Armando. Armando resolve lhe dar uma carona, e
ambos começam a conversar:

Laura: Existem umas pessoas, que só por terem estado um


dia com a gente, já se veem no direito de mandar.
Armando: É detestável quando as pessoas querem nos do-
minar, sem haver nenhum compromisso da nossa parte.
Laura: Mas é exatamente isso...

Fica implícito na passagem de que há o direito de mandar e


dominar o parceiro, desde que haja um compromisso por parte
de ambos.
A situação é ponto de partida para que o racional professor dei-
Reconhecendo território

xe-se levar por Laura, recebendo-a na sua casa e viajando com ela
à praia. Ambos passam a morar juntos, e o coroa passa a ficar por
dentro, mudando seu visual e suas atitudes. Passa a fazer tudo aqui-
lo que disse não realizar ao jovem Mário, deixando que sua paixão
47
interferisse em seu trabalho. Seus atrasos passam a ser recorrentes,
recebendo reclamações de sua coordenadora, Dona Carla. Mostra-
se desatento, distraindo-se em meio a sua aula, procurando Laura
do lado de fora do colégio; mente para a coordenadora de que ha-
via se adoentado, a pedido de Laura, para que ambos ficassem mais
tempos juntos; passa a tratar rudemente a empregada, por esta fa-
zer uma comida não apreciada pela jovem.
Se Armando demonstra uma vulnerabilidade cada vez mais
crescente diante de sua nova amante, por outro lado Laura se mos-
tra gradativamente mais infantil. Passa a exigir mudanças na roti-
na do professor; é exigente com a comida e com detalhes da casa.
Resolve participar de uma montagem teatral da peça Antígone –
referência à tragédia grega Antígona, de Sófocles -, e diante da falta
de verba da produção procura persuadir Armando a investir suas
reservas financeiras no espetáculo.
Em um primeiro momento, Armando se nega a tanto, alegando
que suas reservas eram insuficientes. Laura se diz decepcionada,
chamando o professor de burguesão covarde. Resolve sair, sem di-
zer para onde iria, para desespero de seu inseguro parceiro. Depois
de um tempo, ela retorna e diz que a relação dos dois não daria mais
pé, e que estava partindo. Desesperado, Armando diz que mudara de
ideia, e que aplicaria boa parte de suas ações na peça. Animada com
a decisão, Laura resolve reatar o relacionamento.
Até esse momento, já é possível perceber que existe uma sepa-
ração construída ao longo do enredo entre jovens – mais ligados à
revolução dos costumes – e os adultos – mais ligados à erudição e
a uma concepção tradicional de relacionamento. O uso de termos
como cuca, coroa e por dentro atestam um certo esforço do filme
não só em retratar esses jovens – ainda que de forma caricata –
como também em se mostrar atual diante das questões que esta-
vam em efervescência nesse período.
Após a venda das ações, Armando se reúne em seu apartamen-
to com os demais membros da peça, que resolvem comemorar. No
dia seguinte, a empregada doméstica do professor se depara com
dois jovens nus deitados no chão – que não aparecem aos olhos do
espectador – e grita, estarrecida. Armando acorda, e diz que ela não
precisaria ter aquele tipo de reação, tratava-se de algo corriqueiro.
Esse momento da trama parece atestar que Armando finalmen-
te atravessou o outro lado, passando da dimensão adulta e tradicio-
nal, representada nesse momento pela reação de sua empregada,
para a dos jovens modernos e por dentro, para quem pessoas deita-
Parte 1

das nuas no chão não representariam perigo algum à moralidade.


48
A trama continua e, para coroar a travessia de Armando, ele
atrasa novamente para uma de suas aulas e é demitido por Dona
Carla, que entoa o seguinte discurso:

Dona Carla: (ser professor) Não é fácil. Exige muita dedicação


e disciplina. Muito auto respeito. Atributos que atualmente
lhe faltam porque o senhor se deixou envolver por uma me-
nina de péssima conduta moral. É ridículo uma pessoa na
sua idade...

Nesse momento, é interrompida por Armando, que irritado ir-


rompe para fora da sala. Encontra no meio do caminho seus alunos,
que olham atentos ao professor, reprovando sua atitude.
Há nesse instante um claro tom de reprovação da trama às mu-
danças de hábito de Armando e à atitude manipuladora de Laura.
Sem suas reservas financeiras e seu emprego, o até então professor
passa a divulgar a peça para jornais e revistas. Resolve visitar um
dos ensaios, e aí se depara com uma situação que faz com que recue
em sua travessia ao lado jovem: encontra todos os atores nus sobre
o palco e em uma disposição tal que um grupo deles encontra-se
agachado e ao redor de Laura, que permanece de pé, também nua.
Irritado e com ciúmes, Armando interrompe o ensaio aos gritos e
sai do local, acompanhado pela jovem.
Esse acontecimento marca um outro ponto do enredo, em que
caminhamos para seu final: Laura se demonstra cada vez mais
imatura, não retorna ao apartamento do protagonista, e inclusive
deixa de comparecer até aos ensaios da peça. Sem encontra-la em
lugar algum, Armando fica sozinho e deprimido. Isso acontece até
o momento em que encontra novamente Laura, em uma mesa de
bar, junto com amigos. Desesperado, Armando pede para que ela
retorne, pois não conseguiria viver mais sem ela. Laura concorda,
desde que tivesse total liberdade na nova etapa do relacionamento.
Armando aceita, sem medir corretamente as consequências
dessa decisão: pouco depois, ao retornar ao seu apartamento com
um buquê de flores para a amada, encontra-a na cama junto com
Paulo (Nuno Leal Maia), um jovem de aparição pontual na trama.
Tomado de ciúmes, Armando tenta agredir aos dois. É revidado
por Paulo, que o derruba, humilhando-o. Laura resolve pegar seus
pertences e encerrar definitivamente seu relacionamento, dizen-
Reconhecendo território

do a Armando:

Laura: (Ele é) quadradão mesmo. Ele não foi suficientemente


adulto pra me compreender. Você não sabe tudo da vida. Foi

49
bom morar aqui. Viver com você. Foi bom. E eu te amei. A
meu modo.

A trama se encerra com Armando tentando reconstruir sua vida,


já sem a presença de Laura: volta a lecionar, agora para um cursinho
do subúrbio, procurando aos poucos retomar sua independência fi-
nanceira e seu emprego como professor em outros colégios.
Nota-se por meio dessa breve descrição do enredo como a re-
volução dos costumes é tematizada na história, mas de forma ca-
ricata, com uma tendência a valorizar uma postura conservadora.
De um lado, critica-se aqueles que valorizam de maneira excessiva
a razão, aproveitando-se do sexo pago como alternativa às necessi-
dade do corpo. Esse é o Armando do início do enredo, que demons-
tra uma certa hipocrisia diante do sofrimento do jovem Mário.
De outro lado, atribui-se a práticas alternativas de relaciona-
mento – sobretudo o chamado amor livre, a relação aberta entre
parceiros – um certo grau de imaturidade. Laura, que é adepta dessa
vertente amorosa, parece não provocar de forma intencional as mu-
danças negativas que gera tanto para a vida de Mário como para a de
Armando. Faz isso exclusivamente por inocência. Essa inocência é
reforçada pelo fato da personagem ser uma mulher, que por sua vez
vem a perturbar uma ordem predominantemente masculina.
Curiosamente, a obsessão de Armando por Laura, tornando-a
uma espécie de vórtice de seus desejos, também se reflete na pró-
pria divulgação do longa-metragem, que assim como outros oriun-
dos da Boca tem como chamariz a própria participação de Vera
Fischer no elenco. Segundo a sinopse enviada pelos produtores do
drama à Censura8, as frases para a publicidade do filme são as se-
guintes: “Vera Fischer mais sensual do que nunca. De anjo ela só ti-
nha a aparência.” Para a imprensa, o primeiro parágrafo é destinado
a ela: “Trata-se do terceiro filme de VERA FISCHER, ex-Miss Brasil e
atualmente a mulher mais ‘badalada’ do Brasil.”
É importante destacar que, se podemos dividir os personagens
entre jovens e adultos, não são todos os jovens que preferem relações
amorosas alternativas. Após conversar com Armando, Mário perde
destaque na trama, mas nos poucos momentos em que aparece no-
vamente vemos ele acompanhado de outra garota, com a qual parece

8
Parte 1

Disponível em <http://www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0550242C00201.pdf>. Acesso


em 12 fev. 2016.

50
manter um relacionamento estável. Valoriza-se, assim, a estabilida-
de da relação amorosa, em oposição a um Armando cada vez mais
infeliz ao se aprofundar na instabilidade trazida junto com Laura.
É curioso notar, entretanto, que Laura é particularmente irres-
ponsável se comparada com os outros jovens que também parti-
cipam da peça. Esses permanecem na produção teatral, buscando
viabilizá-la, a despeito da ausência da principiante atriz.
Não é à toa, nesse jogo entre jovens e adultos, novidade e tra-
dição, que Armando ocupe a posição de professor, ainda mais de
uma disciplina como História. Fica implícita a ideia de que seria
no passado que se encontrariam as raízes a serem preservadas e
a solução para os dilemas do presente do filme. Essa dimensão da
tradição é reforçada nos diversos planos de Armando em sua escri-
vaninha, solitário; na fachada do colégio em que trabalha; na pró-
pria escolha de uma peça tão antiga e prestigiada como Antígona
para ser encenada durante o enredo. Parece existir aí uma busca
também por legitimidade do próprio filme, de forma semelhante a
outros filmes da Boca.9
Com relação à exposição do corpo feminino, são expostos no
campo da imagem somente os seios de Vera Fischer, em planos
rápidos – ao menos na versão a que tivemos acesso. Há também
uma certa coreografia dos corpos, já apontada por mim em outro
trabalho (LAMAS, 2013) e que é resultado evidente da preocupação
que o filme teve em não ultrapassar o tênue limite entre o proibi-
do e o permitido pela Censura em termos de exposição dos corpos.
Assim, em alguns planos, Vera Fischer se encontra de costas para
a câmera, ou posicionada em um ângulo estratégico, de maneira a
não expor seus seios, pelos pubianos ou outras partes de seu corpo.
Há que se destacar ainda, como sugere Abreu (2006), que as por-
nochanchadas procuravam dialogar diretamente com setores po-
pulares, de baixo poder aquisitivo, colaborando comum certo pro-
cesso educativo ou ao menos com a introdução a esse público de
temas que estavam presentes na sociedade do período de produção
do longa metragem. Anjo Loiro certamente não escapa dessa obser-
vação, ao abordar um assunto em voga no período de sua produção.
Reconhecendo território

9
Essa referência a elementos da cultura erudita é muito recorrente, por exemplo, em certos fil-
mes da cinematografia de Jean Garret, como Amadas e Violentadas (1976) e Mulher, Mulher
(1980).

51
O Anjo Devasso se torna loiro: o processo na Censura
O processo do filme na Censura, tal como disponível no site
Memória da Censura ao Cinema Brasileiro 1964-198810, abrange um
período longo de tempo, principiando-se no ano de 1971 e se alon-
gando até 1985. Atravessou com isso diversos períodos da Ditadu-
ra Civil-Militar, dos anos de chumbo do General Emílio Garrastazu
Médici (1969 – 1974), passando pelo princípio de abertura política
do governo do General Ernesto Geisel (1974 – 1979) e culminando
com o governo do General Figueiredo (1979 – 1985), que encerrou o
período militar.
Os processos de censura reúnem ampla e diversa documentação
da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão subordi-
nado à Polícia Federal responsável pela censura a diversos meios
de comunicação. Produzidos pela burocracia estatal, eles contêm
documentos de técnicos censores, chefes de departamento, eventu-
almente ministros da justiça e até governadores de Estado, liberan-
do, mutilando ou interditando filmes. Reúnem também documen-
tos de produtores cinematográficos e seus procuradores, diretores,
representantes da classe artística e da sociedade civil organizada.
Os documentos são vários: requerimentos e certificados de censura,
pedidos de reexame dos filmes, pareceres técnicos com a análise e
justificativas de vetos, certificados para filmes e trailers, documen-
tos de apreensão de cópias com exibição no mercado, entre outros.
O processo tem seu início na data de 01 de outubro de 1973, con-
forme informação disponibilizada em sua capa. Nela é possível ver
que o título original da obra era Anjo Devasso, pois o mesmo se en-
contra riscado, para dar espaço a Anjo Loiro logo ao lado.
O primeiro parecer data de 5 de outubro de 1973, e é assinado por
três censores: Ana Katia B. Veira, Teresa G. Paternostro e Sebastião
M. M. Coelho. É um documento bastante objetivo, e como em outros
da mesma época está dividido em categorias a serem preenchidas:
cenas, época, gênero, linguagem, tema, personagem, mensagem,
enredo, cortes e conclusão. Em cenas, encontramos: “sexo, dramá-
ticas, agressão”. Em linguagem, “Vulgar”. O tema, segundo os cen-
sores, é “a relação tempestuosa de um homem maduro com uma
mulher amoral.” No enredo, vemos a seguinte descrição:

10
O projeto, coordenado pela pesquisadora Leonor Souza Pinto, disponibiliza gratuitamente do-
cumentos relativos a 444 filmes brasileiros, incluindo aí os processos de censura completos,
notícias de jornal e arquivos do DEOPS. Disponível em: <http://www.memoriacinebr.com.br>.
Parte 1

Acesso em 04 mar. 2012.

52
Relata o conflito originado na vida de um professor quaren-
tão com uma moça de conduta amoral. Essa relação se relete
(sic) em sua profissão e no conceito que o mesmo desfrutava
em seu ambiente social, culminando com a ruptura inevitá-
vel entre os dois e a partida do professor em busca de seu
soerguimento moral e financeiro.

É importante observar que, de “culminando” até “financeiro”,


o texto se encontra grifado. Não parece ser algo sem propósito: o
final de qualquer história geralmente era um elemento muito im-
portante a ser considerado pelos censores. A partir dele determi-
nado filme poderia ser integralmente vetado ou não: se determi-
nado personagem tivesse uma conduta considerada repreensível,
mas ao final fosse penalizado na trama, o filme poderia sofrer san-
ções leves; caso contrário, poderia até mesmo deixar de circular
nas salas de exibição.
A seguir consta a lista de cortes, que totalizam oito:

PRIMEIRA PARTE: Na apresentação – cortar a toma-


da do casal que está nú de costas, entrando na piscina.
Cena que focaliza o ator com uma mulher na cama, ambos
nus, até o momento em que o mesmo aparece se vestindo.
SEGUNDA PARTE: Sequencia que focaliza o ator voltan-
do-se sobre a atriz até o instante em que o mesmo sai
para dar aula.Sequencia em que o ator acerca-se da cama
até o momento em que os dois são focalizados na mesa.
TERCEIRA PARTE: “Close” em que a atriz aparece nua de cos-
tas.Final dessa mesma parte onde a atriz é focalizada se-
midespida até o instante em que o ator aparece no Banco.
QUINTA PARTE: Sequencia em que o ator vira-se sobre a
atriz até o instante em que o mesmo aparece beijando a
roupa. E por último, a sequencia em que o casal é mostrado
na cama até o momento em que o ator levanta-se e segue
para o banheiro.

Como acontece também em outros processos analisados, a


própria descrição dos momentos dos cortes apresenta-se de forma
confusa, sem especificar de forma cronometrada em que instante
devem incidir os cortes. É possível observar, primeiramente, que a
versão a que tivemos acesso já não possui boa parte das cenas es-
pecificadas na lista: não há a cena na piscina, nem a do ator com a
Reconhecendo território

mulher nua na cama; não há nenhum close encontrado com uma


atriz nua e de costas; nem mesmo o momento em que o “ator vira-se
sobre a atriz”, somente a hora em que Armando “aparece beijando
a roupa” que pertencia a Laura, por conta de seu desaparecimento.

53
Apesar da dificuldade de se entender do que se tratam, aparen-
temente todos os cortes incidem sobre cenas de exposição dos cor-
pos dos atores. A intolerância dos censores pesa até sobre cenas
em que a atriz (provavelmente Vera Fischer) se encontra de costas,
sem revelar à câmera seus seios ou pelos pubianos. Nas conclusões,
encontra-se a seguinte observação:

Temática que enfoca com muito realismo as consequências


nefastas causadas por um relacionamento entre pessoas de
formação e princípios diferentes. Os inevitáveis conflitos
que se originam e que fatalmente se refletem na vida pro-
fissional, no meio social, além dos danos psicológicos cujos
efeitos são prejudiciais em sua totalidade. Obedecidos os
cortes assinalados, o mesmo poderá ser liberado com im-
propriedade máxima.

Novamente encontra-se grifado um trecho, que vai de “enfoca”


até “diferentes”. Parece haver, por parte dos censores, um reconhe-
cimento da face moral presente no filme, especialmente em seu fi-
nal, em que vemos como o tipo de relacionamento defendido por
Laura levou Armando à infelicidade. Isso não impediu, entretanto,
do filme receber inúmeros cortes, ser limitado a menores de 18 anos
e ter também seu trailer integralmente proibido.
As consequências desse tipo de corte para um filme como Anjo
Loiro, assim como para outras pornochanchadas, são evidentes.
Trata-se de um tipo de filme que tem no apelo erótico seu principal
atrativo de bilheteria. Perder cenas desse tipo é tornar o filme me-
nos atraente para boa parte de seus espectadores.
Emite-se assim o certificado de censura com os cortes estipu-
lados, e a validade de 16 de outubro de 1973 até 16 de outubro de
1978. Outro certificado é emitido, liberando-se uma nova versão do
trailer, com validade do período de 23 de outubro de 1973 até 16 de
outubro de 1978.
Menos de um mês depois, no dia 19 de novembro de 1973, consta
no processo uma correspondência do Chefe do Serviço de Censura
de Diversões Públicas (SCDP) do Rio Grande do Sul, órgão regional
subordinado à DCDP, endereçada diretamente ao diretor do órgão
em Brasília. Com ela, encaminha-se uma cópia apreendida do filme,
e uma observação de que houve uma denúncia a respeito do desres-
peito aos cortes estipulados.
Dois dias depois, consta no processo um parecer emitido por
dois censores a respeito da referida cópia, em que se nota um tom
Parte 1

severo e a minúcia com a qual examinaram a presença ou não dos

54
cortes estipulados anteriormente. Constatam, na primeira parte,
que o primeiro corte foi efetuado de forma integral, mas que o se-
gundo não foi por completo, “uma vez que o ator aparece em trajes
menores e a atriz, parcialmente nua.” Na segunda parte, novamen-
te o primeiro corte foi efetuado corretamente, mas o segundo não,
“visto aparecer a atriz semidespida, deitada na cama”.
Na terceira parte, “o primeiro corte foi reduzido, não conforme
deveria ser, ou seja, supressão total da nudez”, mantendo-se de for-
ma correta o segundo corte. Na quarta e última parte, o primeiro
corte foi obedecido em sua totalidade. “O segundo corte, no entanto,
não foi efetuado, nem siquer (sic) parcialmente. Trata-se da sequên-
cia que focaliza o casal nú na cama, abrangendo inclusive a briga
entre os amantes da mulher”.
O grau de atenção dos censores chega ao ponto de observar ou-
tros detalhes da nova versão, como indica o parágrafo a seguir:

Deve-se ainda ressaltar a possibilidade do filme ter sofrido


uma remontagem, uma vez que no primeiro corte referente a
quarta e última parte, deveria aparecer a tomada com o ator
beijando as vestes da atriz após haver mantido relações se-
xuais com a mesma, e esta tomada foi invertida, ou seja, o
ator é mostrado beijando as vestes, antes da referida cena, e
não depois. O mesmo ocorre em relação ao último corte da
parte final, quando deveria aparecer o ator após ter sido es-
pancado, dirigindo-se ao banheiro, o que não ocorre. (todo o
trecho grifado)

Todo esse grau de minúcia, sinal evidente da importância que


se dava pelo órgão à proteção da “moral e dos bons costumes” no
período e da busca pelos mínimos detalhes nas análises empreen-
didas, é coroada pela desqualificação da empresa produtora: “fican-
do portanto, patenteada a sua má fé, ludibriando desta maneira a
decisão emanada por este órgão censório”.
Nada pior do que isso, evidentemente, para uma produtora cine-
matográfica. Alimentar conflitos com a Censura não era algo acon-
selhável: muitas eram as chances de que outros filmes da mesma
empresa passassem a ser interditados, levando a grandes prejuí-
zos e à falta de retorno de investimentos nas produções, levando
seus realizadores a graves problemas financeiros. Não é sem moti-
Reconhecendo território

vo, portanto, que no documento que segue no processo vemos uma


correspondência da Brasecan, produtora do drama, e de sua repre-
sentante Eletro Filmes, endereçada diretamente ao diretor da DCDP,
Rogério Nunes. Nela vemos um grande esforço de argumentação

55
no sentido de mostrar a cooperação na devolução das cópias dos
filmes e dos certificados e mostrando-se incrédulos com relação à
falta de acatamento dos cortes estipulados:

3) – Causou-nos total surpresa a existência de senões e falhas


nos cortes, fato que foi lamentavelmente do total desconhe-
cimento desta empresa, vez que tais trabalhos estão afetos
tão somente a técnicos de direção e montagem da película.
4) – Nossa empresa sempre pautou suas ações dentro de um
completo e total respeito às normas dessa Divisão e de toda a
legislação vigente, e por essa razão, podemos afirmar à V. Sa.
que a infringência do preceito legal, conforme acima expuse-
mos, não foi de maneira alguma intencional, fugindo mesmo
ao conhecimento de nossa diretoria.

Chegam, por fim, a dizer que se sentem confiantes no “carinho


tantas vezes demonstrado para com o Cinema Nacional” por parte
da Censura, considerando “a importância que ‘Anjo Loiro’ ocupa no
desenvolvimento de nossa indústria cinematográfica”.
Tal apelo ao patriotismo da Censura não vale de muita coisa,
visto que um pedido de reexame do filme, feito posteriormente pela
produtora, é negado no dia 2 de janeiro de 1974, alegando-se para
tanto que o drama já havia sido reexaminado, “não cabendo mais
outra modificação”.
A resposta à arbitrariedade da Censura veio em correspondên-
cia datada de 7 de março de 1974, novamente ao diretor da DCDP, em
que o representante da Brasecran pede de volta uma das cópias do
filme para reexame, mas dessa vez seguindo orientações “de acordo
com entendimentos pessoais com o Diretor Geral do Departamento
de Polícia Federal – General Antonio Bandeira”. Na cópia, seriam
executados “cortes recomendados expressamente pelo Gal. Bandei-
ra”, e o mesmo apreciaria pessoalmente as mudanças para opinar
sobre a liberação ou não do filme. O mesmo representante requereu,
no dia primeiro de abril do mesmo ano, novamente as cópias apre-
endidas, e embora não tenham documentos que atestem isso se
supõe que o filme tenha sido liberado novamente para a circulação
nas salas de cinema.
Isso mostra, assim como já afirmava Simões (1999), como mui-
tas vezes eram necessárias negociações que extrapolavam a buro-
cracia do órgão estatal e iam para encontros pessoais nos corredo-
res de Brasília, tanto no Departamento de Polícia Federal como na
própria DCDP. Ganhava quem tinha mais contatos internos dentro
Parte 1

desses órgãos. Mostra também, como em outros casos analisados,

56
tanto de filmes mais pretensiosos do ponto de vista social11, outros
nem tanto12, como de fato, durante a ditadura Civil-Militar, os fil-
mes eram literalmente caso de polícia, em que muitas vezes filmes
despretensiosos paravam na mesa de um diretor da Polícia Federal.
Havia uma crença consolidada de que os filmes, bem como outras
obras de arte, poderiam causar um mal deletério àqueles com os
quais entrasse em contato. A única forma de extirpar esse mal, es-
pecialmente aos que fugissem à boa moral ou a diretrizes políticas
consideradas então corretas, era o ato da censura propiciado pelo
Estado com o apoio de organizações da sociedade civil.
Mas o processo ainda não havia se encerrado, e consta no dia
26 de julho de 1979, cinco anos depois, um pedido de reexame do
filme, dessa vez para televisão. Sabe-se como o processo de censura
para televisão era muito mais rigoroso do que para salas de cinema,
mesmo em períodos denominados de abertura política.13Dois pare-
ceres, datados de julho de 1979, liberam o filme por unanimidade
para maiores de 18 anos. Ambos indicam mais um corte logo no iní-
cio do enredo, para além daqueles indicados na avaliação de 1973.
Entre esses dois, o parecer assinado pela censora Teresa Cris-
tina dos Reis Marra é mais enfático, afirmando que o filme “pode-
rá ser liberado com a classificação máxima com corte de cenas de
bacanal e nus, contidas na apresentação da película.” (itálico meu).
Continua sua argumentação, afirmando que “a atuação livre e des-
regrada da personagem feminina, do ponto de vista sexual requer
uma impropriedade máxima”. Indica assim o corte, que vai “desde
quando aparecem casais em colóquio à beira da piscina, seminus
e cena de bacanal, até quando aparece um carro amarelo”. De fato,
essa cena não consta na versão analisada para este artigo.
O que chama a atenção primeiramente é a presença do termo
bacanal, de origem pejorativa, condenando a atitude dos jovens do
enredo. E, especialmente, o peso que cai para a censora sobre as ati-
tudes e o corpo feminino, mesmo que o filme termine com um viés
moralista que condena o relacionamento alternativo defendido por
Laura. A ênfase parece ser muito menor sobre o corpo masculino.
Outro certificado é emitido, com validade de 3 de agosto de 1979
Reconhecendo território

11
Como nos casos dos filmes Pixote: a lei do mais fraco(1981), O Homem que Virou Suco (1981)
e Pra Frente Brasil (1982).
12
Como no caso dos filmes Os Garotos Virgens de Ipanema(1973) e Coisas Eróticas (1982).
13
Como demonstram as análises dos processos de O Homem que Virou Suco (REIS JÚNIOR;
LAMAS, 2013) e Pra Frente Brasil (REIS JÚNIOR; LAMAS, 2014).

57
até 3 de agosto de 1984, proibindo o filme para antes das 23 horas e
impondo o novo corte especificado nos dois pareceres.
Outro pedido de censura é realizado, dessa vez datado de 29 de
agosto de 1984. Contrariamente ao que se poderia imaginar, nesse
tempo a censura à televisão era mais rigorosa do que em períodos
anteriores. Quem ocupava o cargo de diretora da DCDP era Solan-
ge Maria Teixeira Hernandes, a Dona Solange, conhecida pelo rigor
que cobrava na análise de filmes e outras obras pela Censura.
Assim, contrariamente aos pareceres anteriores, os dois emi-
tidos nessa fase do processo recomendam sua proibição integral
para televisão. Em um dos pareceres, datado de 14 de setembro
de 1984 e sem identificação de autoria, o censor resume a história
como a “dramática experiência da derrocada moral, física e econô-
mica de circunspecto professor ao se apaixonar por jovem devassa”.
Para ele, “as mensagens são deprimentes pelo ridículo e o drama
que cercam a destruição de amor e a inconsequente irresponsabili-
dade e egoísmo da jovem.” (itálico meu)
O filme tem sua face moral reconhecida, sendo considerado um
alerta como um exemplo do que não deveria acontecer. Encontra
problemas na linguagem oral dos personagens, caracterizando-a
como “incisiva e com deboches aos valores ‘antigos e quadrados’”.
Sua maior implicação censória, entretanto, encontrar-se-ia ainda
na exposição dos corpos, tal como no trecho em destaque:

Quanto ao quadro cênico abusa da nudez parcial da atriz com


apenas calcinhas, exibindo frontalmente os seios em toma-
das longas e em plano detalhe, durante os prelúdios, duran-
te e após o ato genésico, em saídas e entradas de banhos ou
pondo e tirando a roupa. Alguns cortes da liberação anterior
foram efetivados, outros atenuados, todavia, restam muitas
cenas inadequadas ao veículo pretendido, quais sejam va-
riadas cenas de nudez e relacionamentos sexuais, que não
foram tiradas.

Alega ao fim que, mesmo com essas supressões, o filme exigiria


um público adulto, e que de acordo com o novo Código de Menores
que entrara então em vigor nenhum filme com a classificação má-
xima de dezoito anos poderia ser exibido na TV. A não liberação do
filme, dessa vez, só seria derrubada com certificado de 28 de feve-
reiro de 1985 emitido pelo Conselho Superior de Censura, instância
intermediária que passou a examinar, em grau de recurso, as proi-
bições impostas pela DCDP.
Parte 1

58
Considerações Finais
O processo de censura de Anjo Loiro revelou, de forma similar
ao processo de Os Garotos Virgens de Ipanema, como um filme des-
pretensioso do ponto de vista político poderia ser alvo sistemático
da Censura, não só pelo número elevado de cortes, mas também
pela rigorosa fiscalização posterior, que abrangia da unidade central
em Brasília até órgãos regionais da DCDP. Da mesma forma também
que essa outra pornochanchada, o processo de Anjo Loiro mostra a
vulnerabilidade dos produtores aos desmandos da Censura, acarre-
tando graves prejuízos para a equipe, ainda mais em se tratando de
filmes que dependiam unicamente do retorno de bilheteria para o
pagamento de todos seus profissionais.
Similarmente também a Os Garotos Virgens de Ipanema, Pixo-
te: a Lei do Mais Fraco e O Homem que Virou Suco, Anjo Loiro teve
uma avaliação mais rigorosa ainda para a televisão do que para as
salas de cinema, mesmo tendo sido liberado anteriormente pelo ór-
gão federal. A exposição do corpo, sobretudo o feminino, permane-
cia sendo um problema em meados da década de 1980, mesmo que
o final da trama valorizasse a relação estável entre parceiros.
Tal constatação reforça também a imprecisão dos critérios ado-
tados em Brasília, que em um determinado período liberam o filme
para televisão, e em outro posterior o proíbem, mesmo com a inci-
dência de novos cortes e a limitação para maiores de 18 anos.
É importante notar que boa parte dos casos mais conhecidos de
rigor da censura às pornochanchadas – em que se destacam Anjo
Loiro, Os Garotos Virgens de Ipanema e Os Mansos – são de filmes
lançados durante os anos de chumbo da Ditadura Civil-Militar. No
caso desses três filmes, todos foram lançados no ano de 1973. A ava-
liação mais branda para o circuito cinematográfico, presente sobre-
tudo a partir da segunda metade da década de 1970, está inserida
em um quadro onde não só há uma certa abertura política e deslegi-
timação da Censura como órgão do Estado, mas também a retração
do circuito exibidor.
Como apontou Simões (1990, p.144) desde a segunda metade da
década de 1950 o público das salas de cinema no estado de São Pau-
lo sofreu uma queda considerável, chegando a uma média de de-
créscimo de 50% a cada 15 anos. Os suntuosos cinemas, símbolos de
Reconhecendo território

diversão garantida para diferentes idades e classes sociais, sinais


de novos hábitos de vida mais ligados à modernidade, deixaram de
usufruir de seu prestígio para cair em franco declínio, enquanto a
população da cidade quintuplicava e as ofertas de entretenimento
59
se diversificavam. Diante desse contexto, ter uma sala de cinema
rentável não se tornou tarefa fácil, e foram várias aquelas que cede-
ram espaço para outros estabelecimentos como depósitos, super-
mercados, agências bancárias, estacionamentos, igrejas, revende-
doras de veículos.
Em uma atmosfera “úmida e depressiva”, com um ar de em-
pobrecimento “nítido até nos uniformes puídos dos funcionários”
(SIMÕES, 1990, p. 113), as salas se dividiam e ficavam menores, os
lanterninhas deixavam de ser figura obrigatória nas sessões e seus
anos de ouro tinham perdido definitivamente espaço para uma ou-
tra relação do espectador com os filmes. Natural, portanto, que a
Censura deixasse de delimitar um cerco tão austero contra esse
circuito, uma vez que a população que o usufruía diminuía cada vez
mais, em detrimento do veículo televisivo, que ganhava abrangên-
cia nacional e por isso mesmo era objeto de um rigor muito maior.
Por meio da análise conjunta entre esta pornochanchada e o
processo censório, foi possível perceber com mais clareza os con-
tornos que delimitam a produção deste e de outros filmes: se já ha-
via a interferência do produtor e dos exibidores, bem como os inte-
resses do público e os temas vigentes no período de lançamento, os
diretores tinham que ainda lidar com os desmandos da Censura. As
consequências disso são evidentes: a tendência ao engessamento
das histórias e suas narrativas.
É de se impressionar, dentro desse quadro, a inventividade de
tantos diretores e profissionais que transitaram pela Boca. Carlos
Reichenbach, Rogério Sganzerla, José Mojica Marins, Ozualdo Can-
deias, Walter Hugo Khouri, Ody Fraga, Alfredo Sternheim, Jean Gar-
ret, John Doo, entre tantos outros realizadores, foram capazes de
explorar, persistir e manter viva, ainda que de forma precária, uma
cinematografia paulista certas vezes ousada, certas vezes nem tan-
to, mas que permanece como um contundente registro de uma épo-
ca. Cabe somente a nós não permitir que a memória desse passado
se desfaça nos ventos ágeis da contemporaneidade.

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Parte 1

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Reconhecendo território

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61
Luciana Rosar GÊNERO, CENSURA E PORNOCHANCHADA
Fornazari Klanovicz
NO CINEMA BRASILEIRO
Willian Bruno Corrêa

Ao longo dos anos 1970, muitas pornochan-


chadas lotavam as salas de cinema no Brasil.
Esse gênero ou agrupamento de gêneros fílmicos
(ABREU, 2006) que tinha como alicerce o erotis-
mo e a exibição de corpos femininos nus emergiu
em meio ao autoritarismo dos governos militares
pós-1964 e conviveu em jogos constantes com a
censura vertical praticada pelo estado e com as
censuras horizontais calcadas na ofensa “à moral
e aos bons costumes”, muito característica da so-
ciedade brasileira na época.
Ao experimentar as vicissitudes do regime au-
toritário e da presença das censuras, produtores
de cinema sofriam com cortes de cenas e textos,
esforçavam-se criativamente para transgredir
as barreiras impostas pelo estado até chegando
a expandir o espectro da liberdade de expressão,
problematizavam de maneira consciente ou não
valores e regras socioculturais (FREITAS, 2004).
Nesse sentido é que, já em 1995, Valter V. Sales
Filho enfatizava que “ao invés de ser desprezada,
a pornochanchada deve ser observada em rela-
ção ao falso moralismo e o conservadorismo da
sociedade brasileira (SALES FILHO, 1995, p.67).
Há várias leituras sobre as pornochanchadas,
que vão desde seus aspectos técnicos, passando
pelo enquadramento estético em meio aos gêne-
ros fílmicos, as biografias de artistas e técnicos
envolvidos, as trajetórias de produção, a sua poli-
tização inevitável em meio ao regime autoritário
e aos debates e dilemas morais da sociedade bra-
sileira e, mais recentemente, a discussão ligada
aos estudos de gênero e história.

63
Um dos principais elementos que precisam ser lembrados é
que, como fenômeno cultural e objeto de pesquisa, tendo nascido
durante a ditadura, a pornochanchada foi sendo interpretada à luz
dos períodos em que suas análises foram realizadas, num jogo que
ora posicionou as obras de pornochanchada como frutos diretos do
regime autoritário, ora representou-as num papel de resistência es-
tética e crítica à ditadura.
Ampliando-se o foco para além de quem patrocinou ou para
que fins a pornochanchada servira, do ponto de vista dos costu-
mes e mais especificamente a partir do mundo da sexualidade, se
diversos filmes escaparam à visão de classe média e do patriar-
cado em favor de uma sexualidade que alguns autores chamam
de favelada (FREITAS, 2004), também é importante considerar que
tais obras mantiveram firme compromisso com a manutenção da
heterossexualidade normativa.
Para pensar essas questões de gênero ligadas à história da por-
nochanchada, tomaremos como pano de fundo os filmes A Super
Fêmea, de Aníbal Massaini Neto (1973), e Guerra Conjugal, de Joa-
quim Pedro de Andrade (1974). A Super Fêmea (1973), com roteiro
de Lauro César Muniz, de Alexandre Pires e Adriano Stuart, narra
a história de uma modelo, Eva (interpretada por Vera Fischer), con-
tratada para uma campanha publicitária de pílulas contraceptivas
masculinas. Ela encontra dificuldades em conquistar o público-al-
vo, já que os homens têm medo de que pílula possa causar impo-
tência. Por outro lado, Guerra Conjugal adapta roteiros e histórias
do escritor Dalton Trevisan, e narra experiências de casais que se
odeiam, mas continuam vivendo juntos.
Nas duas obras, algumas cenas de sexo e expressões de baixo
calão foram alvo de censura total ou parcial, mas é interessante
pontuar que comentários referentes à política acabaram não so-
frendo cortes. Essa realidade de costura dos filmes nos abre a pos-
sibilidade de pensar o papel, as formas de agir de censores estatais
sobre a produção cultural no período (LAMAS, 2014).
Assim, não é forçoso discutir, em linhas gerais, o local de emer-
gência da pornochanchada e suas relações com os organismos de
controle de produções culturais que operavam no Brasil à época de
sua circulação, para depois deslocarmos o olhar para como esses
mesmos organismos trabalhavam em cima das obras.
Parte 1

64
Pensando a Pornochanchada
Grande parte da produção de pornochanchadas, cerca de 90%,
foi realizada na Boca do Lixo, na cidade de São Paulo. Este local
também foi o principal espaço de produção do cinema marginal,
ou cinema de invenção, caracterizado como sendo de vanguarda,
“absolutamente transgressor comprometido com a criatividade do
autor e o experimentalismo e que possibilitou nomes como Rogé-
rio Sganzerla, Andrea Tonacci, Fernando Cony Campos, Lygia Pape,
José Mojica Marins de mergulharem em um universo paleopolítico,
dissonante, caótico e questionador (TRAD NETTO, 2014). A cidade,
desde o final dos anos 1930 era polo da indústria de cinema e pro-
dutoras como a Paramount e a Fox instalaram-se na cidade e, ao
longo das décadas seguintes, distribuidoras, fabricantes de equipa-
mentos de cinema e eletrônicos além de empresas de menor porte
foram sendo atraídas para a região. As empresas localizaram-se
especialmente no Bairro da Luz, na rua do Triunfo, próximo à esta-
ção da Luz, o que facilitava o transporte de equipamentos pesados
e facilitava a logística.
O principal estúdio de cinema brasileiro, a Vera Cruz, veio a se
fixar na região. Contudo, com a falência do estúdio, todas as peque-
nas empresas, pessoal técnico e produtores moveram-se da região
e, a partir dos anos 1950, o espaço passou a ser ocupado por prostitu-
tas, usuários de drogas, mas também por inúmeros bares e espaços
de prazer barato (STERNHEIM, 2005, 2005, p.13). O autor lembra que,

Por volta de 1950 o meretrício, que ficava confinado quase


que legalmente em duas ruas do bairro do Bom Retiro, um
pouco mais adiante, do outro lado da estrada de ferro, se viu
expulso de lá por decreto do então governador Lucas Noguei-
ra Garcês. Na ilegalidade total, sem a proteção dos bordéis
do Bom Retiro, as prostitutas se concentraram justamente
nessas e em outras ruas da Luz. E, com elas, logo vieram ou-
tros marginais. As moças, além de atender à clientela local,
podiam investir nos homens que estavam em trânsito por
São Paulo, geralmente a trabalho, e se hospedavam naquela
região (STERNHEIM, 2005, p.15).

Tal fato, aliado aos bares do local e aos frequentadores daquele


Reconhecendo território

ambiente fizeram com que nascesse a denominação pejorativa do


cinema da Boca do Lixo. No ambiente dos bares ‘Soberano’ e ‘Fer-
reira’, aconteciam o encontro de técnicos, torneiros mecânicos que
produziam os aparatos técnicos para as produções, atores, diretores
e roteiristas. O diretor Cláudio Cunha afirma que era comum chegar
65
um diretor ou produtor no Soberano e perguntar: “Você tem negati-
vo? O seu equipamento está livre? Acontecia uma coprodução e na
semana seguinte estavam filmando. Segundo o publicitário Mau-
ricio Kus, “o Soberano funcionava como uma espécie de escritório
nos quais os roteiristas iam com o script embaixo do braço em bus-
ca de patrocínio e infelizmente, apenas 20% desses filmes foi bem
sucedido” (KUS apud CAMARGO, 2011).
Associadas, Boca do Lixo e Pornochanchada complementavam-
se a partir de uma dupla pejorativização que era alimentada pelo
cinema intelectualista, de um lado, pela crítica cinematográfica e
pela classe média brasileira de outro, que criticava veementemente
as produções oriundas daquele lugar social e artístico porque sua
estética rompia com os padrões morais típicos do brasileiro urbano
e médio (FREITAS, 2004). Não é à toa que a pornochanchada foi con-
vertida em alvo de inúmeras investigações, não apenas por emergir
do caldo do regime militar mais recente pelo qual o Brasil passou,
mas por ter feito sucesso com filmes de baixo custo, desenvolvido
uma estética própria e transgredido padrões.
Marcel Freitas pontua que ela emergiu no caldo do regime mi-
litar, convivendo com o cinema intelectualista gerado pelo cinema
novo. O autor considera que,

rotulada como despolitizadora, o meio acadêmico em geral


sustenta que este gênero foi incentivado pelo governo, tendo
recebido subvenção da Embrafilme, porque desviava a aten-
ção da sociedade dos desmandos e das perseguições políti-
cas mostrados pelos grandes diretores do autêntico cinema
brasileiro. Por outro lado, a pornochanchada também refletiu
o estouro sexual que a década de 1970 presenciou, sofrendo o
impacto, entre outras coisas, da pílula anticoncepcional e do
movimento feminista. A origem social parecer ser fonte de
parte de sua originalidade (FREITAS, 2004, p.5).

As maiores produtoras de pornochanchadas eram a Dacar, de


David Cardoso e a A.P. Galante. Para Santos (2003), a história da
pornochanchada pode ser dividida em dois momentos: o primeiro,
de 1968 a 1979 e o segundo de 1980 a 1990, quando, pressionada
pela instalação e profissionalização dos filmes pornográficos no
Brasil e pela política anticultural do governo Fernando Collor, deu
os últimos suspiros (SANTOS, 2003).
Por seu potencial polêmico, transgressor (pelo menos no que
diz respeito à “moral e aos bons costumes”, muitas pesquisas sobre
Parte 1

a pornochanchada detiveram-se às relações que cineastas, direto-

66
res e produtores teceram, ou foram obrigados a tecer, com os orga-
nismos de censura do estado.
Antônio Reis Junior e Caio Lamas (2014), nesse sentido, discuti-
ram o papel da censura estatal contra o filme Os Garotos Virgens de
Ipanema, de 1973. Ao analisar documentos da Divisão de Censura
de Diversões Públicas (DCDP), órgão da Polícia Federal responsável
pelo controle censor da produção cultural brasileira, pontuaram a
complexa dinâmica dos mecanismos de censura vertical frente ao
mundo das produções culturais no país.
De acordo com os autores, a leitura da censura como atividade
dinâmica e marcada pela complexidade só é possível se se observa
sua historicidade no Brasil. Criado nos anos 1920 em pleno estado
democrático e ligado visceralmente ao Ministério da Justiça e à Po-
lícia Federal, o controle da produção cultural teve, antes do regime
civil militar, um sentido eminentemente paternalista:

o estado se arvora[va] o direito de julgar o cinema a partir


de critérios nem sempre claros e formalizados, convertendo-
se em paladino da moral e defensor da segurança nacional,
pronto a proteger o público ‘frágil’ e ‘vulnerável’ aos efeitos
deletérios dos filmes e de outras manifestações artísticas”
(REIS JUNIOR e LAMAS, 2014, p.155).

Bem lembram Reis Junior e Lamas que,

com o golpe de 1964, a censura passa a ser utilizada como


instrumento de política persecutória e repressiva transitan-
do do campo das diversões públicas para o campo político.
Preocupação maior quanto à formação dos censores, que
passam a ter obrigatoriamente diploma de ensino superior.
Em 1973 passou a se chamar DCDP (2014, 156.).

A política de censura estabelecida pelo governo ditatorial aca-


bou por encontrar na pornochanchada um repertório diversificado
para exercitar tanto o olhar paternalista e elitista, quanto o contro-
le político de opositores. Poderíamos dizer, em certa medida, que
a pornochanchada e a censura se encontraram num campo de lu-
tas políticas e culturais importantes para o Brasil dos anos 1970 e
é talvez devido a isso que diversas polêmicas que atingiam a vida
Reconhecendo território

privada e eram representados por esse cinema, acabaram por ser


transformados em polêmicas políticas.
Uma das questões prementes da época, especialmente advinda
da emergência dos movimentos por direitos civis e dos feminismos
nos EUA nos anos 1960 foi a liberação sexual, especialmente femi-
67
nina. A pornochanchada representava cinematograficamente essa
questão no país.
No jogo do “tudo que é privado é público”, o impacto da porno-
chanchada foi tão interessante do ponto de vista da atenção des-
pertada que mesmo em 1979, em pleno regime militar, encadeou
análises acadêmicas acerca da relação que ela tecia com os corpos
de homens e mulheres, com o sexo e com a política.
Foi o caso de Sexo e Poder, coletânea organizada por Guido
Mantega. Dividido em 13 capítulos escritos por cineastas, psiquia-
tras, psicólogos e críticos de cinema, é possível compreender que
além da censura de estado sobre as produções culturais como a
pornochanchada, era possível pensar na censura diária praticada
pela própria população. De acordo com Mantega,

Nem sempre o autoritarismo veste uniformes militares e


encara os indivíduos em plena luz do dia, ele pode ser sutil,
invisível; estar incorporado em cada indivíduo, mesmo nas
sociedades de aparência mais democrática. Do mesmo jeito
que a nudez, por si só não é sinônimo de liberação da sexuali-
dade. O autoritarismo e a repressão sexual mais eficazes. Não
são vistos a olho nu (Mantega, 1979, p.5).

O capítulo “Sou... mas quem não é? Pornochanchada: o bode ex-


piatório do cinema brasileiro” de Inimá Simões, defende a ideia de
que a fórmula da pornochanchada era simplória e por consequên-
cia levava muita gente ao cinema, numa época em que o cinema
já tinha descoberto o valor do mercado do sexo. Simões enfatiza-
va que uma das características desse cinema era a construção da
figura feminina como eminentemente passiva ou dissimulada. A
pornochanchada, assim, vivia baseada numa divisão esquemáti-
ca, na qual determinava-se que a agressão era um traço masculino
enquanto que a passividade era feminina. De acordo com Simões,
as características que se apreciavam nas mulheres eram as do ho-
mem castrado: timidez, languidez, delicadeza e formas arredonda-
das (Simões, 1979 p.81). O homem, detentor da capacidade de fazer
uma mulher feliz, estava geralmente em evidência na pornochan-
chada, como é o caso do filme O Bem Dotado Homem de Itú, no qual
o macho tinha boa aparência e grande força física.
O capítulo “O escândalo da melância”, escrito por Jean Claude
Bernardet, tratava o curta metragem Vereda Tropical, de Joaquim
Pedro, que foi uma das quatro histórias filmadas para compor a pe-
lícula Contos Eróticos (1977). Bernardet lembrava que o pedaço do
Parte 1

filme dirigido por Joaquim Pedro foi totalmente censurado sendo

68
liberado apenas dois anos depois, porque era escandaloso e não en-
caixava o sexo num padrão vigente, quer fosse comercial ou político
(Bernardet, apud Mantega, 1979, p.91).
Em 2009, Cristina Kessler, em “Erotismo à brasileira: o ciclo da
pornochanchada”, pontuava que o sucesso delas era justamente sa-
berem explorar a ambiguidade presente tanto nos títulos dos filmes
quanto no conteúdo. A autora enfatiza que os filmes, voltados assu-
midamente ao público masculino, representavam tipos femininos
para todos os gostos: virgens, viúvas, mulheres experientes, quase
sempre belas e desinibidas (KESSLER, 2009, p.17). A autora ainda
enfatiza que, mais importante até mesmo que o próprio sexo, as
formas femininas eram o principal atrativo oferecido pelos filmes
(KESSLER, 2009).
Romulo G. de B. Gomes (2012) observa que as pornochanchadas
traziam em si toda a carga da cultura em que se inseriram, moldan-
do as relações sexuais expostas nas películas conforme as tendên-
cias normativas do período e contribuindo, de tal maneira, para a
contínua doutrinação do seu público. Nesse sentido, elas puderam
agir como instrumentos normatizadores de posturas misóginas
(GOMES, 2012, p.176).
Joana M. de Vasconcelos (2012) discutiu o impacto da lingua-
gem visual nos cartazes que serviam de suporte para a divulgação
dos filmes da pornochanchada, com ênfase na produção gráfica
e visual de Benício da Fonseca, principal ilustrador de cinema no
Brasil nos anos 1970. O trabalho da autora desloca o olhar sobre a
pornochanchada para a dinâmica complexa que apresentava ao
movimentar estética e economicamente outras indústrias para a
comercialização de seus produtos, tendo como ponto de partida a
construção estética da mulher desinibida, característica das narra-
tivas cinematográficas da pornochanchada.
Tatiana Trad Netto (2014) busca, por meio da leitura de carta-
zes de filmes da pornochanchada e do cinema marginal, discutir
a visibilidade das mulheres nas construções da narrativa cine-
matográfica brasileira. Para ela, pensar a pornochanchada com-
parativamente a outras estéticas cinematográficas no país é abrir
caminho para uma discussão mais ampliada e qualificada sobre
as construções de gênero.
Reconhecendo território

69
Super Fêmea e Guerra Conjugal
A Super Fêmea (1973, filme dirigido por Aníbal Massaini Neto,
filho de Oswaldo Massaini (proprietário da distribuidora Cinedis-
tri, no auge da pornochanchada), comandou a entrada da empresa
no gênero. No filme, um “grupo de publicitários recorreu a um guru
para descobrir como aumentar as vendas das novíssimas pílulas
anticoncepcionais masculinas. A solução dada por ele é criar uma
campanha cujo um ícone feminino, a super fêmea, seja o grande
incentivo para o consumo” (OLIVEIRA, 2013). O filme se concentra
em dois focos: o que acontece com Eva, a moça escolhida para ser a
garota propaganda das pílulas e, ademais, o mundo sujo da propa-
ganda que se move em torno da moça. No meio disso rolam piadas
prontas, referências a filmes famosos, Adoniram Barbosa, tiradas
sexuais, personagens estereotípicos, feministas que parecem um
tipo de inversão do machismo, um publicitário genial e exótico, os
peitinhos da Vera Fisher, algumas críticas aos militares e coisas
mais. [...] No geral, o gosto é bom. Entretanto, o que mais se apetece
é como ele lida com a ideia da criação de símbolos coletivos por
meio da propaganda e, obviamente, da política (OLIVEIRA, 2013).
O elenco era formado por Vera Fischer (no papel de Eva, a super
fêmea) e ainda apresentava artistas como Perry Salles, Adoniran
Barbosa e John Herbert. Super Fêmea foi produzido e lançado no
Brasil no mesmo ano em que o general Garrastazu Médici, então
presidente da República, sancionou a lei que instituía o novo Códi-
go Civil Brasileiro e uma campanha nacional de controle de nata-
lidade. O ano de 1973 também foi marcado pela profissionalização
da censura no país, quando a Política Federal passou a contratar
apenas profissionais de nível superior para a tarefa.
O filme começa com uma convenção de mulheres que exigia
que os homens passassem a tomar a pílula anticoncepcional. Em
seguida, há um corte abrupto de cena, e o plano desloca-se para
uma externa na qual retrata-se uma passeata. Ao longo da mani-
festação, podem ser lidos cartazes com a expressão “Abaixo ao po-
der do homem”. Não se trata apenas de uma referência ao poder
patriarcal ou ao poder exercido por homens em linhas gerais, mas
podemos inferir, também, que a expressão está dirigida ao próprio
presidente da república, o então general Emílio Garrastazu Médici,
que, à época, era chamado de “o homem”. Mais adiante, um discur-
so feminino abre a cena conclamando lutadoras para empunhar a
bandeira da revolução do sexo, na voz de uma personagem que é
Parte 1

repórter (interpretada por Elza Aguiar):

70
Um Acontecimento gente, um marco decisivo nas conquis-
tas do direito da mulher. Volta as ruas a mulher paulista,
como sempre para o exemplo ao país. Desta vez, empu-
nhando a bandeira da revolução do sexo, dentro do nosso
espírito democrático, vamos ouvir a opinião do sexo (SUPER
FÊMEA, 1973).

Necessário notar como duas palavras tão opostas: “revolução”


(expressão utilizada pelos militares para o golpe de 1964) e “demo-
crático” são usadas na mesma cena, no auge da repressão política,
sendo possível compreender a crítica social e política que há por
trás das anedotas. Nesses momentos iniciais da película, a história
é deslocada para a construção da campanha publicitária em torno
da pílula anticoncepcional masculina, na qual a personagem Eva
(Vera Fischer) é protagonista.
Surge um diálogo no qual há três personagens envolvidos: o
dono da agência de publicidade que está lançando a campanha com
a super fêmea, Onan Della Mano (interpretado por Perry Salles) e os
coordenadores da campanha (interpretados por Silvio de Abreu e
Renato Restier). A discussão gira em torno da censura estatal sobre
a campanha publicitária. Onan Della Mano reclama com os coorde-
nadores, argumentando que a campanha precisa de mais cenas de
sexo: “Esse filminho é uma bela merda. Vocês têm que fazer outro.
Neste filme falta sexo... sexo.” Os coordenadores da campanha in-
terpelam: “Mais ainda?” Sílvio de Abreu completa: “A censura não
deixa.” O diretor da agência, então, exclama, sem que os outros dois
personagens deixem-no terminar a frase: “Eu quero que a censura...”
(SUPER FÊMEA, 1973).
Para um país que tinha um setor específico dentro do Ministé-
rio da Justiça somente para cuidar disso e que em determinados
filmes limitava até mesmo a quantidade de vezes em que a palavra
“merda” era dita, observa-se aqui que claramente a censura deslocou
o olhar para outras cenas.
Em entrevista a Willian Correa, o jornalista Matheus Trunk co-
menta como isso se dava: “Algumas cenas nas pornochanchadas
eram chamadas de boi de piranha com o intuito de atrair a aten-
ção dos censores e deixar outras passarem despercebidas” (TRUNK,
2015), como é o caso de uma cena em A Super Fêmea em que é pos-
Reconhecendo território

sível observar um grito de “A Censura não deixa” seguindo com um


“Eu quero que a censura...” (TRUNK, 2015).
O filme encaminha-se para o final com a Eva dando à luz 100 be-
bês, comemorados por uma repórter eufórica e por telespectadores
que entendiam cada nascimento como um gol em partida de futebol.
71
Posterior a isso, com a música Pra frente Brasil (de Miguel Gus-
tavo, interpretada por “Os Incríveis”) de fundo, a Super Fêmea desfi-
la em carro aberto como os jogadores da seleção brasileira campeã
da Copa do Mundo de 1970. O detalhe quase que imperceptível que
é desse desfile em que todos estão comemorando vemos muito ra-
pidamente estampada em uma faixa a seguinte frase: “Brasil Cam-
peão Mundial de Natalidade”.
Já Guerra Conjugal, de Joaquim Pedro de Andrade (ou Joaquim
Pedro), foi produzido em 1974, com um percurso bem mais severo
no que diz respeito à relação com a censura estatal. Joaquim Pedro
já havia dirigido Macunaíma e, mesmo sob a égide do governo mili-
tar, buscava politizar suas produções.
Bibiano Girard enfatiza que Guerra Conjugal fala de “histórias
sórdidas de homens e mulheres desprezíveis, imundos, mas nem
por isso menos humanos” (GIRARD, 2012). Baseado em 16 contos
tirados dos livros Guerra Conjugal, Novelas Nada Exemplares, De-
sastres do Amor, O Vampiro de Curitiba, Cemitério de Elefantes e
O Rei da Terra, o filme traz o amor descontente e sádico de uma
sociedade violenta que ri a desgraça sozinha (GIRARD, 2012). Girard,
ao discutir o filme em sua interrelação com os contos que lhe dão
origem, observa que a permanência do clichê do “soco no estôma-
go” foi a maneira utilizada tanto por Trevisan quanto por Joaquim
Pedro para tratar de “homens reais” (GIRARD, 2012). Ali estão retra-
tados aqueles que, no mundo social, são indiferentes às vicissitu-
des e aos seres humanos e não humanos que habitam as ruas das
cidades (representados pelo personagem Nelsinho, que, de terno e
gravata, chuta um cachorro de rua); ali também estão retratados o
silêncio, a raiva, a miséria dos corpos, especialmente de oprimidos
que assumem o papel de opressores (por meio do casal de velhos
com poucos dentes na boca e com corpos imundos) (GIRARD, 2012).
O filme chocou os órgãos de censura. Uma cópia do filme foi soli-
citada em documento enviado à produção em 27 de dezembro de 1974.
Em 12 de dezembro daquele ano, o diretor havia enviado a sinopse do
filme e a mesma recebeu o seguinte parecer da censora Vilma Duarte
do Nascimento:

Trata-se de filme nacional com mensagem negativa focalizando


desde o trailer e início do mesmo cenas indecorosas, seminus,
nudez total, relações sexuais e também com velhotas gordas e
ridículas, palavras de baixo calão, homossexual conquistando
abertamente e complexo de Édipo. O Filme é como foi dito no
trailer “Uma guerra de cueca com calcinha”. Dado tratar da obra
contrariando nossa legislação vigente: decreto lei 1077 artigos
Parte 1

1º e 7; decreto 20493 artigo 41 linhas a e c, opino pela sua não


72
liberação (MEMORIA CINE BR, 2015. Disponível em: http://www.
memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0110082C00401.pdf).

Na mesma data o censor Roberto Antonio Coutinho vai além


e denota bem a política censora e mesmo o que o governo militar
impunha à sociedade em termos comportamentais:

A película em questão não há condição de ser liberada, por


ser ofensiva à moral e aos bons costumes, divulgar e induzir
aos maus costumes, contendo mesmo em seu treiler e de-
senvolvimento do tema cenas de ofensa ao decoro público. A
sua temática apresenta uma inversão de valores, desrespeito
à instituição da família e à pessoa humana. Outrossim, não
há condições de ser efetuado cortes, pois a temática é total-
mente negativa. Assim, opino pela sua não liberação, basea-
do no Decreto nº 20.493, art. 41, letras “a” e “c”, Decreto-Lei nº
1.077, artigo 1º/7º. (MEMÓRIA CINE BR, Disponível em: http://
www.memoriacinebr.com.br/pdfsNovos/0110082C00301.pdf).

Ao todo constam sete pareceres relativos à produção. Vale lem-


brar que 10 censores faziam parte do Departamento de Ordem Polí-
tica e Social (DOPS) e todos os pareceres vão ser favoráveis à proibi-
ção do filme, no mesmo dia 12 de dezembro de 1974.
Esse esforço repressor chamou atenção da imprensa. O jornal
brasiliense Crítica, em 9 de fevereiro de 1975, publicou matéria cuja
manchete era “Joaquim Pedro de Andrade & a Censura Federal”. A
reportagem dizia o seguinte:

Está retido na censura de Brasília o novo longa-metragem


de Joaquim Pedro de Andrade “A Guerra Conjugal” baseado
em alguns contos do escritor Dalton Trevisan. Não é a pri-
meira, mas esperamos que seja a última vez que filmes desse
mesmo diretor tenham problemas com a censura. [...] A In-
terdição de “A Guerra Conjugal” é mais um atentado contra a
liberdade de expressão assim como a de dezenas de outros
filmes, nacionais ou estrangeiros, que nosso super-ego brasi-
liense nos proíbe de ver mas não pode proibir de exibir ou de
serem feitos. Nos dias que correm isso vale quase como um
certificado de boa qualidade (CRÍTICA, 9 fev. 1975).
Reconhecendo território

Até aqui estamos acompanhando apenas o parecer do Esta-


do em relação a produção e se nota que uma verdadeira polêmica
teve início mesmo sem o filme ser liberado, para fins de explica-
ção e compreensão desse momento do trabalho, segue a sinopse
oficial da produção:
73
Filme focalizando várias estórias paralelamente; um casal de
velhinhos pobres com filho já homem e sem emprego, cujo
marido maltratava a esposa a ponto desta atentar contra sua
vida, mas finalmente este morre de doença; Nelsinho, jovem,
casado, feioso, frequentador assíduo de bordéis, que não con-
seguia satisfação sexual com moças, mas sim bom balzaque-
anas; Osiris, advogado de meia idade, casado, inescrupuloso,
oportunista, que se valia de problemas de clientes do sexo
feminino para lançar suas conquistas amorosas terminando
sempre por possuí-las; primeiramente uma jovem insinuan-
te desonrada pelo namorado que não tinha vida conjugal re-
gular; mulher casada sofisticada, cujo marido era um displi-
cente, torna-se sua amante. Este finalmente sai-se mal, pois
é cortejado por um homossexual também casado e que dizia
odiar as mulheres, que lhe propõem um colóquio amoroso
(MEMÓRIA CINE BR, 2015. Disponível em: http://www.memo-
riacinebr.com.br/pdfsNovos/0110082C00401.pdf).

Após a descrição da obra é possível compreender que não se


trata de uma crítica ao governo militar vigente ou alguma questão
que causasse alguma revolta, e sim se vê casos triviais do dia-dia,
mas que são inadmissíveis aos olhos dos censores. Após os diver-
sos pareceres e recolhimento da cópia surge o documento com
a lista de cortes. Segundo sugestão dos censores, o filme deveria
ter cortes em cenas do 2º, 3º,4º e 5º rolos. Se esses cortes todos
fossem levados ao pé da letra, a obra estaria totalmente compro-
metida. Vejamos conteúdo do documento que se segue sugerindo
as mudanças:

Procedendo ao reexame do filme “Guerra Conjugal”, os


signatários do presente laudo são do parecer de que a fita
poderá ser liberada para maiores de idade, observados os
seguintes cortes:
2º rolo: cortar toda a sequência em que a atriz aparece com
o busto nu, desde o instante em que ela se despe até quando
não mais focalizada nesta condição.
- cena rápida que focaliza mulher loura seminua.
- cena de Wilza Carla com seios de fora - tomada em que ela
abre o roupão.
3º rolo: ator sobre atriz com seios à mostra.
4º rolo: cena quando ator entra e atriz tira a roupa no sofá.
- cena em que a mulher se despe e pede para o ator colocar
o roupão.
- cena que focaliza atriz totalmente despida, desde o momen-
to em que tira a roupa até quando o ator é visto de frente por
Parte 1

sofrer ataque de asma.

74
5º rolo: cena no prostíbulo: cortar a partir do instante em que
a velha se despe até quando o ator sai do bordel.
OBSERVAÇÃO: cortes extensivos ao “treiler”, no que couber. É
o nosso parecer. Em 20 de janeiro de 1975.
Paulo Leite de Lacerda, Carlos Rodrigues, Correira Lima (ME-
MÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO, 2015).

A situação de penúria no que diz respeito à edição do filme, bem


como as negociações exaustivas com a Censura para a liberação da
película ocuparam duas páginas da revista Veja, de 5 de fevereiro
de 1975, acendendo a chama do debate sobre a regulamentação do
Conselho de Censura, que, de acordo com o próprio diretor, poderia
ter agilizado o processo de liberação da produção na época (VEJA 5
fev. 1975, p. 24).
Entre a produção, o exame e o reexame da censura e a finaliza-
ção do filme e seu lançamento, o tempo transcorrido foi muito gran-
de. Após a liberação o filme passou a conviver com outras maneiras
de censura, entre elas aquelas advindas da moral que triunfava na
sociedade brasileira na época, moral esta que tem no cinema ao
mesmo tempo sua produção e sua recepção, para usar os termos de
Marc Ferro (1992).
Guerra Conjugal, liberada para o cinema com cortes, foi tendo
relativa repercussão na imprensa escrita brasileira, reinseriu o Bra-
sil no Festival de Cannes depois de dois anos de três anos de jejum
(VEJA 4 jun. 1975) e acabou levando mais tempo ainda para ser li-
berado para exibição na televisão (o que aconteceu só em 1981). Le-
onor Souza Pinto (2007) cita o fato de a própria censura sugerir, em
relato no processo de reexame da obra, que o diretor apelasse para
o Conselho de Censura, que agora era regulamentado:

Que o interessado venha a requerer a liberação integral da


obra para cinema, em nome do direito, que o público brasilei-
ro tem, de acesso a uma das grandes produções de nosso ci-
nema, devidamente restaurada das mutilações que lhe foram
impostas no obscurantismo que caracterizou os anos 70 em
nosso País (PINTO, 2007).

Somente em outubro de 1981 após a liberação com cortes, res-


trição de horário (23h30) e público (somente maiores de 18 anos)
Reconhecendo território

sai para a televisão. Mesmo com tantas dificuldades, sem apoio fi-
nanceiro da Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme) e com
os militares no encalço, cineastas continuam trilhando o caminho
tortuoso e burocrático da liberação de suas produções e Joaquim

75
Pedro talvez seja um dos que mais percorreu corredores estatais
para negociar liberações.
A atuação da censura não se dava apenas pela sua forma mais
usual – a institucional e que é necessariamente verticalizada. Ela
também atuou de maneira horizontal e, entre os anos 1970 e 1980, é
interessante perceber a dinâmica mais pulverizada da censura em
suas nuances oficiais e aquelas aceitas socialmente.
Entende-se dessa forma, por censura vertical “a censura pro-
movida por meio dos dispositivos legislativos e mecanismos ins-
tituídos como norma ou regra estatal. Já a censura horizontal é
entendida como a censura promovida por cidadãos comuns, que
incluem pessoas as mais diversas, mas que não representam o po-
der público e do estado” (KLANOVICZ, 2008, p. 222).
Especialmente quando as produções culturais colocavam cor-
pos de homens e de mulheres em destaque é que podemos notar
que ambas as formas de censura eram tomadas como “vontades
de poder que atuaram de diferentes maneiras, mas que buscavam
a manutenção do cerceamento de determinadas relações, princi-
palmente quando se deparavam com aspectos do erotismo” (KLA-
NOVICZ, 2008, p. 222). Conforme salientado neste capítulo, mesmo
após a liberação de obras culturais para o circuito de exibição, car-
tas e telefonemas eram artifícios utilizados como forma de operar a
censura horizontal e impedir sua veiculação no país, especialmen-
te entre os anos 1970 e 1980.
O uso desses artifícios era patente, especialmente quando nos
referimos a obras produzidas durante a segunda metade dos anos
1980, mas é importante pensar também essa mesma relação entre
as censuras horizontal e vertical para os anos 1970, uma vez que,
como pontua Luciana Klanovicz, “as produções culturais represen-
tavam oportunidades para discutir a atuação da censura sobre a
liberdade de expressão, o papel dos artistas, ou ainda da relação en-
tre estado e cultura” (KLANOVICZ, 2013).
Nessa atmosfera, “assuntos como o erotismo repercutiam em
outros meios de comunicação, especialmente na imprensa escrita
—, seguidos de posicionamentos favoráveis e contrários, que acaba-
vam por ser vinculados a questões mais amplas, sobre a censura e
sua necessidade em meio ao mundo cultural brasileiro” (KLANO-
VICZ, 2013).
A reportagem publicada na revista Veja, de 23 de abril de 1975,
tratando do filme Guerra Conjugal, demonstra essa oportunidade
de discussão na mídia impressa. Ao apresentar o filme aos leitores
Parte 1

em uma matéria que ocupa quase uma página do periódico, a ênfa-


76
se recai sobre o impacto das representações implacáveis da família
brasileira escolhidas por Joaquim Pedro:

Os respeitáveis bacharéis, penhores da sanidade moral da fa-


mília brasileira (quem diria!) isolaram na santidade suas es-
posas e fazem propostas indecorosas a mocinhas que todos
acreditam virtuosas. Médicos e monstros de terno, gravata,
anel no dedo e feições grotescas que a câmara, implacável e
deformante, devassa em abjetas, mas afinal patéticas tume-
fações (VEJA, 23 abr. 1975, p. 95).

A repercussão do filme na imprensa escrita, sua indicação para


o Festival de Cannes e a crueza de suas representações sobre a fa-
mília brasileira inserem-no na discussão mais ampla sobre a deca-
dência moral e a reorganização social que assolavam não apenas
o Brasil mas outros países durante os anos 1970, em meio a ideia
de um “pânico moral” (conceito proposto por Carole Vance e Gay-
le Rubin) e apropriado por Adriana Piscitelli ao mencionar o clima
dos movimentos conservadores anti-prostituição (no caso do Reino
Unido) ou as cruzadas contra a homossexualidade nos EUA (PISCI-
TELLI, 2004, p. 9).
É importante considerar que, ao tratar da censura acerca do
erotismo, não havia apenas uma preocupação com a defesa de uma
heterossexualidade normativa, mas com a perda de uma segurança
institucional anterior que garantia limites mais profundos e com-
plexos do ponto de vista político. Nesse sentido, Carole Vance suge-
re que se deve buscar “o alcance desse fenômeno, sobre a singulari-
dade de suas dinâmicas em diversos contextos, particularmente no
que se refere às mobilizações simbólicas, à utilização de questões
sexuais como veículo para a expressão de ansiedades sociais e às
suas consequências políticas e legais” (PISCITELLI, 2004, p. 10).
Produções culturais como as pornochanchadas eram acompa-
nhadas de opiniões calorosas de leitores, de telespectadores e de
autoridades. No caso do período de redemocratização, amplamente
essas opiniões eram pelo retorno de mecanismos de censura. Na
época em que ela vigorava oficialmente a situação não era diferente
e ainda se somavam os problemas e os privilégios de apoio estatal
a filmes ligados a recortes de classe ou a relações entre famílias
Reconhecendo território

influentes e estado.
Pelo menos é o que pontua Trunk, quando se refere à falta de
apoio da Embrafilme às produções criadas na Boca do Lixo. Para ele,
a Embrafilme era mantida pelos realizadores oriundos do Cinema
Novo e, nesse sentido, o órgão destinava a maior parte de seu orça-

77
mento para apoiar produções de diretores ligados a essa corrente
cinematográfica. As coisas funcionavam na forma de um “clubinho
fechado e restrito”, de acordo com ele. Enquanto, argumenta, a em-
presa estatal financiava produções de filhos de ministros, diploma-
tas e políticos, diretores da Boca do Lixo como Rubens da Silva Pra-
do (Alex Prado), era filho de açougueiro e José Mojica Marins (Zé do
Caixão), antes de ser diretor de cinema foi operário numa fábrica de
fósforos (TRUNK, 2015).
Além disso, outro fator tinha relevância, de acordo com Trunk:
enquanto todas as autarquias e empresas públicas da União tinham
sede em Brasília, a Embrafilme jamais saiu do Rio de Janeiro, o que
acirrava ainda mais as disputas culturais com a cidade de São Paulo,
o que teria feito com que as produções paulistas fossem preteridas
(TRUNK, 2015).
Trunk (2015) afirma que a Embrafilme prestava apoio financei-
ro apenas para aqueles cineastas que faziam filmes mais voltados
à elite cultural brasileira. As produções da Boca do Lixo incomo-
davam essas mesmas elites, ao mostrar corpos nus ou seminus e
uma sociedade marcada pela crueldade, além de produzir filmes
voltados, como já dito, ao público masculino, com títulos de apelo
sexual: 19 mulheres e 1 homem (1977), A Noite das Taras (1980), Ain-
da Agarro Esta Vizinha (1974), A Dama do Lotação (1978), Vítimas
do Prazer (1977), Clube das Infiéis (1975), O Bem Dotado - o homem
de Itu (1979). Sobre o apelo sexual das obras produzidas no período,
Mantega observava, ainda em 1979, que

o espectador consome simbolicamente uma sexualidade que


não consegue vivenciar, a não ser em seu imaginário. Além
disso, os filmes mostram o sexo sob uma óptica técnica que
implica na valorização do capaz contra o incapaz, com solu-
ções correndo ao nível individual. O que vale aqui é o trambi-
que, o sonho do casamento bem-sucedido, o prêmio na lote-
ria, etc (MANTEGA, 1979, p 84-85).

Também sobre essa questão do corporal na pornochanchada


Matheus Trunk (2015) afirma que:

O público ia ao cinema ver as atrizes nuas ou seminuas. O


objeto de desejo do público eram as atrizes. Os caras paga-
vam ingresso pra ver Vera Fischer, Sandra Bréa, Helena Ra-
mos, Zilda Mayo, Patrícia Scalvi. Não tinha motivos culturais.
A própria trama muitas vezes pouco importava para aquele
público. A maioria do público que ia ver os filmes da Boca
Parte 1

normalmente via a programação de cinema no Notícias Po-

78
pulares e nas revistas masculinas de segunda linha. Ele não
ligava pra críticos de cinema, diretores (TRUNK, 2015).

Considerações Finais
A Boca do Lixo foi importante espaço de construção do cine-
ma brasileiro, tendo tido seus filmes repercussão e servido como
fontes para a produção de pesquisas, documentários, livros, filmes
e artigos. A pornochanchada não é tudo aquilo que foi produzido
na década 1970, tampouco só filmes eróticos, esses foram rótulos
que críticos, intelectuais e todos aqueles que desconheciam o árduo
trabalho da Boca a deram. Concluímos esse trabalho falando da im-
portância de se entender que a censura vigente durante o governo
militar era composta por técnicos censores sem o menor preparo o
que fez com que filmes com cenas de crítica social como A Super
Fêmea passassem despercebidos, se nessa produção observamos
seios, nu feminino e ainda no final uma ácida crítica ao governo
vigente, por outro lado tudo isso passou batido.
Já em Guerra Conjugal observa-se que os censores em unani-
midade fizeram de tudo para que a produção se quer fosse exibida,
tanto que o filme só teve permissão para ser exibido no ano seguin-
te da sua produção e a exibição na televisão fosse realizada com
cortes de cena e em horário restrito, apenas no final de 1981. No-
ta-se aqui duas formas distintas de censura, na primeira produção
analisada nesse trabalho, contamos com as sacadas irônicas do di-
retor e com nenhuma sugestão de corte. Já na segunda em que não
é possível observar nenhuma crítica ao governo vigente, o filme foi
praticamente retalhado pelos censores conforme documento apre-
sentado aqui. Assim sendo era mais importante nesse período proi-
bir o sexo, o nu, a insinuação de sexo, do que ter atenção em cada
detalhe da produção como em A Super Fêmea.
A censura estatal tinha inúmeros critérios para proibir uma pro-
dução cultural, além de instrumentos burocráticos que poderiam
congelar a tramitação de análises das produções a ela submetidas,
como é o caso de Guerra Conjugal. Ser católico, defender a família
brasileira ou outros itens que emanavam da subjetividade do cen-
sor poderiam bastar para mutilar alguma obra. Desenhava-se um
Reconhecendo território

jogo interessante entre produtores e censura, numa via de mão du-


pla de expectativas e de exercício de poder.
O grupo marginalizado pela sociedade que observamos neste
artigo forma um grande bloco de produtores, cineastas, artistas da

79
Boca do Lixo, que de maneira direta ou indireta, voluntária ou não,
atentaram contra alguns valores morais da sociedade brasileira
nos anos 1970.
A preocupação central, nesse sentido, foi a de contribuir para
ampliação do foco dos estudos acerca da história do cinema da
pornochanchada assim como da história da ditadura civil militar
na década de 1970. Vale reforçar que não existiu um único “padrão”
de censura acerca tanto do que se censura quanto de que forma se
censura, vertical ou horizontalmente. A Pornochanchada é História,
a Boca do Lixo é História, tanto quanto as questões políticas sociais
da década aqui discutida.

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Reconhecendo território

Guerra conjugal. Dir. Joaquim Pedro de Andrade. Brasil: Filmes


do Serro; Indústria Cinematográfica Brasileira (ICB), 1974. VHS (93
min.), color, sem legenda, Port.

81
Renan Siqueira Rossini PORNOCHANCHADA: UM SINTOMA BRASILEIRO

Os anos 70. As ruas eram tomadas pelos


urros daqueles que se diziam os salvadores da
pátria, as universidades gritavam por liberdade
intelectual em suas produções científicas, os
porões ecoavam os berros daqueles que eram
repreendidos por discordar da ordem imposta.
Em meio a esse estardalhaço, bem baixinho se
ouviam outros barulhos no escurinho do cinema:
sussurros, suspiros e respirações ofegantes. Era
a explosão da pornochanchada.
Parcela expressiva da produção cinemato-
gráfica brasileira, o gênero estampou uma época.
Se a identidade nacional é permeada por figu-
ras como a do “malandro” e pela representação
caricata da moleza de seu povo, a pornochan-
chada foi um elemento importante para que o
imaginário social admitisse o jeito “safado” do
brasileiro. Ainda hoje o povo brasileiro carrega
heranças social desse período, embora tenham
sido vistas por alguns como um fardo que man-
cha a imagem do país. De fato, após seu apogeu a
pornochanchada foi caminhando para o esque-
cimento e respira com dificuldade para ganhar
seu devido reconhecimento.
Frente a este cenário, o objetivo desse texto é
relacionar o sucesso da pornochanchada com o
público através das possíveis aproximações en-
tre o cinema e a psicanálise. Dado o contexto so-
cial e histórico que culminou no boom desse eixo
específico do cinema, a psicanálise pode trazer
contribuições importantes para compreender a
ampla aceitação brasileira do fenômeno. A partir
desse movimento, pretende-se iluminar as con-

83
siderações sobre a pornochanchada e suas explicações de cunho
psicológicas para seu imenso sucesso, tendo em vista que ainda é
um tema que encontra-se incipiente no meio acadêmico.

A Pornochanchada na sociedade brasileira


Os cenários dos filmes do gênero são mais variados e inusita-
dos, como velório, laboratório científico, casa de campo, internato,
embora relativamente indiferentes visto a verdadeira prioridade: os
corpos desnudos das mulheres para o desfrute do telespectador. O
abuso da imagem feminina marcou todo o período em que a por-
nochanchada esteve nas telas de cinema, despontando atrizes que
eram queridinhas do público. As silhuetas eram utilizadas como
artimanha principal a fim de atrair homens e garantir o preço do
espetáculo. A generalização do olhar masculino sobre as mulheres
é incorporado pelas câmeras de tal maneira que, abusando de ima-
gens, conseguiam deixar a narrativa em segundo plano para privi-
legiar a quentura das curvas femininas.
Produzidas com baixos recursos, as pornochanchadas se con-
solidaram à partir do erotismo que se insinuava no cinema inter-
nacional. As chanchadas cariocas produzidas na década de 1950
foram as precursoras daquelas que seriam as comédias eróticas e,
em 1973, como nomeado pela imprensa, das pornochanchadas. Seu
ciclo herdou das chanchadas a proximidade que tinha com o públi-
co através da forma caricata em tratar o cotidiano da classe média,
adicionando pitadas sexuais que começavam a despontar na socie-
dade em resultado das manifestações populares. Como mostra Se-
ligman (2003), tanto a chanchada como a pornochanchada são “crô-
nicas de costumes” da sociedade e apresentam certa “ingenuidade
maliciosa”, mas a última introduzia muitas vezes intenções sexuais
explícitas, diferente da primeira. Mais do que adicionar o prefixo
“porno” como relação à perversidade de relações sexuais, ela era um
reflexo da onda de permissividade e liberação dos costumes brasi-
leiros, engendrados pelos movimentos sociais que tinham o país
como palco em um período tomado pela ditadura militar.
Era uma época em que muitas ideologias autoritárias ganha-
ram poder com a cooptação do povo, destilando diversos governos
autoritários nos países do novo e velho mundo. Curioso pensar que,
no cinema internacional, havia conturbações que traduziam os mo-
mentos em que os países viviam. Nos anos 20 ocorreu, nos Estados
Parte 1

Unidos, uma revolução moral que pregava os “bons costumes”, ge-


84
rando censura em torno do que poderia ou não ser visto pela socie-
dade. A Hays Code, uma campanha institucional que vigorou até
meados da década de sessenta, estava convencida da influencia
moral que o cinema exercia sobre a sociedade e, com isso, contro-
lava seu conteúdo, utilizando do próprio meio para ditar o que era
certo ou errado para a sociedade, condenando qualquer alusão à
vida sexual (SELIGMAN, 2003).
No Brasil, não foi diferente. A ditadura que governava no perí-
odo elencou a pornochanchada como bode expiatório do cinema
nacional. A censura institucional era absolutamente contrária às
insinuações realísticas de sexo, acusando-a de deformar princípios
e a moralidade brasileira - não à toa que a Igreja Católica e as ligas
femininas foram o esteio do Golpe Militar.
Ao final da II Guerra Mundial, a modernização tardia da socie-
dade brasileira trouxe novos ares para os discursos sobre a sexuali-
dade, incluindo o de movimentos sociais feministas que iam mudar
para sempre a concepção de feminino e feminilidade. A interna-
cionalização dos filmes americanos e seu choque com a cultura do
velho mundo influenciaram os cinemas, dentre eles o brasileiro,
que se utilizava do cinema americano como parâmetro para os fil-
mes destinados às camadas populares. Dessa forma, o Brasil po-
sicionou-se de forma semelhante aos estadunidenses, acusando a
pornochanchada de deflagradora e má-fama do cinema nacional.
Dada as circunstâncias, como tentativa de atender às pressões po-
pulares, a pornochanchada passou a utilizar um recurso que viria a
ser sua marca registrada, as insinuações de sexo.
A primeira fase da pornochanchada, chamada por Seligman
(2000) de softcore, privilegia a comédia de costumes, dado a impos-
sibilidade de tratar da temática sexual explícita, enquanto a segun-
da fase, a hardcore, própria dos anos 80 até seu fim, atendeu às de-
mandas por cenas irresistíveis de sexo explícito, aderindo também
à pressão externa das produções eróticas, não precisando mais das
artimanhas sensuais anteriormente utilizadas.
De qualquer forma, a pornochanchada aboliu de seu receituá-
rio as complicações relacionadas ao sexo. Por seu sucesso, ela co-
meçou a caminhar sobre setores diversos da sociedade, como a
religião, as classes políticas, as entidades de defesa do civismo. O
movimento tomou tamanha proporção que parcelas da sociedade
Reconhecendo território

começaram a se mobilizar para se opor à exposição dos filmes, en-


cadeando uma jornada truculenta para findar com as produções.
Sua condenação não era apenas institucional, mas contou também
com movimentos populares para que os costumes do bom brasi-
85
leiro fossem mantidos - desencadeando reações cômicas, como a
marcha da família contra a pornochanchada.
No final da década de 60, o país passou por uma “revolução se-
xual” em consonância com o mundo, colocando o Brasil em par dos
acontecimentos mundiais: adequou-se ao mercado de consumo
e explorou, a partir disso, a sensualidade e o erotismo como fonte
de renda, assim como era feito “pelos gringos”. A pornochanchada,
nesse sentido, utilizou-se da fenda aberta pelo mercado de consu-
mo e passou a produzir filmes de caráter mais erótico para agradar
uma população que buscava esse perfil. Como a censura não afrou-
xava, os diretores precisavam se reinventar para conseguir atender
à demanda, abusando mais do erotismo, e ainda assim manter a
ingenuidade que agradava à censura.
Outra parcela específica da população brasileira responsável por
inúmeras críticas às comédias eróticas foi daqueles que denomina-
vam a si mesmo como verdadeiros produtores do cinema brasileiro,
expoentes do conhecido Cinema Novo. Preocupados com as mazelas
brasileiras e os imbróglios cometidos pelos militares, a elite intelec-
tual chafurdava as produções cinematográficas para as camadas po-
pulares, acusando os filmes eróticos de alienarem a população para
os problemas brasileiros, e criticava sua precariedade técnica, acre-
ditando o cinema ser uma das armas de conscientização do povo.
As colocações dos produtores do Cinema Novo não condiziam
com a realidade em que eles também se encontravam: à margem da
sociedade. Assim como a pornochanchada, os revolucionários do
movimento em questão eram perseguidos e seus filmes tampouco
eram bem aceitos pela censura. A suposta superioridade técnica e
proposta de emancipação da sociedade brasileira não foi suficien-
te para descolá-los do cinema pornográfico enquanto grupo; o que
de fato existia eram dois grupos marginais na produção dos filmes
brasileiros, um que se considerava culto e politizado e, portanto, o
verdadeiro cinema, composto por uma intelligentsia, e outro que fa-
zia um cinema despretensioso, malandro e erótico.
Se os ânimos não eram favoráveis à união desses dois grupos
que se consideravam heterogêneos, ambos se consolidaram como
um fenômeno de contracultura à medida que contestavam a or-
dem imposta. É notório que, além de criticar os costumes defen-
didos pela parcela conservadora da população, a pornochanchada
se aproveitou também para criticar as práticas convencionais do
ativismo. Com os anos de chumbo da ditadura, a edição do AI-5 re-
modelou a política do país: congresso em recesso; confisco de bens;
Parte 1

suspensos “habeas” políticos; restabelecidas as cassações; liquida-


86
da a vitalicidade. Só restavam três opções possíveis para aqueles
que se opunham ao regime: “aderir à luta armada, o exílio, ou ‘des-
bundar’ e viver às margens da sociedade” (GOMES, 2010, pg. 3).
Embora a contracultura brasileira seja mais reverenciada no
campo musical, com as canções de Chico, Gil e Tom Zé, a porno-
chanchada tem em si um funcionamento à lá Tropicalismo. O mo-
vimento ficou conhecido por reverenciar tudo aquilo que era “cafo-
na” aos ouvidos e olhos daqueles que seguiam os padrões dos bons
costumes da época, denunciando que o público consumia produtos
culturais desprezados e encontrava sentido neles. Era um movi-
mento que incorporava aquilo que a elite cultural criticava, sati-
rizando os valores sociais e políticos retrógrados que impunha o
regime militar (GOMES, 2010).
A pornochanchada se adentra nesse molde tropicalista de con-
tracultura porque ambos os movimentos não propunham nenhuma
solução para os conflitos morais da época, mas satirizavam a clas-
se média conservadora e hipócrita. Como mostra o autor, quando a
pornochanchada escancara a temática sexual em seus filmes, ela
busca afastar de si o zelo da moral e dos bons costumes que pairava
na cultura brasileira até então.
A identificação com o público foi tamanha que não demorou
para que ela se firmasse na preferência das plateias populares, fa-
zendo inimigos por todos que a circundavam. De início sua produ-
ção estava localizada no Rio de Janeiro, tendo em vista suas belas
praias e mulheres e o histórico de produção de comédias locais.
Vide o sucesso de bilheteria, as produções começaram a surgir em
São Paulo, especificamente na região conhecida como Boca do Lixo,
uma região de meretrício, se instalando em pequenas empresas de
comercialização cinematográfica.
A Boca do Cinema, ou simplesmente Boca, como ficou conheci-
da, estava localizada na Rua do Triunfo, onde um prédio funcionava
como o centro de suas atividades. Ao redor coabitavam clubes, bares,
escritórios de produtoras e distribuidoras, configurando um ambien-
te próprio para o crescimento dos filmes que ali eram gravados. Em
1975 pode-se dizer que a pornochanchada estava aclimatada aos ares
paulistanos criando uma espécie de gênero autoral, descolado dos
precedentes originais das chanchadas que tinham como inspiração
as comédias italianas. Sua fórmula era simples e produtiva: rentabi-
Reconhecendo território

lidade elevada em relação aos gastos efetuados (SELIGMAN, 2000).


Nesse tempo, a pornochanchada foi responsável por quase 40%
dos longa-metragens produzidos no país. Em 1977, alguns filmes
tentaram sair do circuito popular e estrito em que circulava através
87
do tratamento visual mais requintado e melhor estrutura de filma-
gem, mas não foi o que marcou de fato as suas produções. Na época
de ouro de suas produções, entre 1972 e 82, a Boca era responsável
por quase metade da produção brasileira do gênero, inclusive dos
subgêneros: a comédia erótica, o pornodrama, entre outros. Aliás, a
terminologia “pornochanchada” é, na verdade, um gênero que agre-
ga diversos filmes que lidam com a temática sexual, mas não tem
uma característica própria, podendo conter enredos de terror, ro-
mance, suspense e até experimental (SIMÕES, 2007).
Sua ampla aceitação fez dela uma das responsáveis pela demo-
cratização do cinema, levando as massas às salas que antes eram
apenas habitadas pela classe média. Muitas das críticas que se
endereçavam à pornochanchada eram motivadas pelo bom retor-
no de mercado, o que não aconteceu com os filmes daqueles que
se diziam autores do “cinema oficial” brasileiro. “O gênero foi uma
espécie de reflexo da sociedade brasileira, representando o seu
machismo, suas piadas, sua atração pelas mulheres ‘boazudas’, o
sexo como afirmação. E essas características, inerente a todas as
classes sociais, seriam percebidas e de certa forma admitidas ou
confirmadas, principalmente pelo público mais popular, de menor
poder aquisitivo” (GOMES, 2010, p. 10).
Pornô se tornou um sinônimo do cinema da classe média que
tinha, em si, os defeitos e qualidades do público que retratava, ou
seja, a classe média que é consumidora e produtora dos filmes. O
estereótipo negativo criado sobre o filme está fortemente relacio-
nado com o patrulhamento ideológico que sofreu, dado que suas
composições não eram boas, mas faziam sentido para o público ao
qual estava direcionado.
Para aprofundarmos essas questões, primeiramente mostra-se
necessário relacionar os campos de cinema e psicanálise, cuja dis-
cussão servirá de esteio para enriquecer o caminho em direção ao
objetivo que desejamos alcançar. A psicanálise aplicada, além de ser
uma forma legítima de interpretação dos fenômenos sociais (ROSA,
2004), contribui com as ciências humanas em geral, postulando no-
vas formulações através de sua concepção de Homem e de mundo.

“Fábrica de sonhos”: contrapontos entre cinema e psicanálise


Quando nos remetemos ao final do século XIX, temos um perí-
odo marcado por mudanças que afetaram diariamente as experi-
ências sociais do século seguinte: uma delas que nos interessa é o
Parte 1

surgimento do cinema, com os irmãos Lumière, em 1895; e a outra


88
é o delineamento da psicanálise com Freud. Se a primeira atingiu
uma população comum e transfigurou a forma como as percepções
sensíveis se davam, a segunda propôs uma revolução científica e fi-
losófica no entendimento sobre o ser humano, o mundo e a maneira
como eles se relacionam.
A grande contribuição que a psicanálise trouxe para a humani-
dade foi a descoberta do inconsciente. Segundo Freud, o inventor
da psicanálise, os seres humanos são regidos por uma lógica que
coloca em xeque o cogito cartesiano tão caro às ciências moder-
nas. Para efeito de análise, o inconsciente é uma instância psíqui-
ca composta por desejos sexuais que, por proibições culturais, não
podem habitar a consciência do sujeito, sendo recalcados para o
inconsciente onde o sujeito não tem acesso.
Em A Interpretação dos Sonhos, Freud (1900) coloca o sonho
em posição privilegiada na ciência psicanalítica que começa a
tomar forma, uma vez que eles correspondem à realização de de-
sejos inconscientes que encontraram uma forma de descarregar
sua afetividade. Segundo Rivera (2008), o sonho é uma produção
singular de imagens em movimento que, embora alucinatórias,
expressam uma forte impressão de realidade. Pela análise da es-
trutura dos sonhos, Freud deduziu que o inconsciente é atemporal
e não possui continuidade no espaço e que, através de suas inter-
pretações, é possível acessar lembranças e traumas passados que
não foram devidamente simbolizados e dar novos significados
para essas vivências.
A análise da situação do cinema coloca-nos a par de algumas
questões interessantes que são próprias da finalidade a qual o cine-
ma se propõe e nos remetem diretamente ao campo psicanalítico.
Por exemplo, o ambiente em que a experiência de assistir a um fil-
me ocorre propõe uma mudança de consciência do telespectador, a
começar pelo isolamento do mundo exterior e seus estímulos, que
seriam impeditivos para que o espectador mergulhasse na trama.
Não seria o escuro também propício para remeter o espectador a
“enxergar com os olhos de dentro”, como quando dorme e sonha?
Acrescenta-se a isso ainda a passividade física que acomete a tes-
temunha no momento em que o filme está sendo projetado, cuja
intenção é instigar o trabalho intelectual e nada mais, sem que seja
necessário exercício algum para a fruição que não o mental. Além
Reconhecendo território

do mais, a sensação que o cinema provoca através de suas técnicas


é a de que estamos de fato dentro do filme, de modo que vivencia-
mos seu enredo e interagimos com os personagens do seu interior.
Torna-se desnecessário perguntar para o personagem o que ele
89
está sentindo, porque nós somos coadjuvantes desse sentimento,
sentimos da mesma maneira que ele (GÁRATE, 2007).
De maneira análoga, o setting analítico encerra semelhanças
muito parecidas com o contexto do cinema. A utilização do divã
como artefato facilitador para o acesso ao inconsciente; a penum-
bra em que se dão as sessões; a ausência de objetos que possam
distrair o paciente de entrar em associação livre, isto é, dizer o que
lhe vem à cabeça sem que se preocupe com julgamentos externos,
regra fundamental para a realização da análise. Esses fatores se
assemelham à situação do cinema, entrevendo as possibilidades
de articulação entre a sessão cinematográfica e a analítica, cujo in-
tuito é a reflexão sobre uma história tanto interna quanto externa.
O fato de o sonho ser a realização de uma fantasia inconsciente
coloca o sujeito sonhador como o único que pode, através do resga-
te do conteúdo e sua interpretação, entendê-lo. Isso faz de cada so-
nho, único, tendo que cada sonho carrega os conteúdos inconscien-
tes daquele que o sonhou. Como o conteúdo dos desejos sexuais
inconscientes não podem ser manifestados na consciência devido
às proibições morais e sociais, o sonho se utiliza de algumas arti-
manhas específicas para existir, de modo que o desejo possa ser sa-
tisfeito e ainda assim não seja tão perturbador para a consciência.
Os jogos de palavra e figuras de linguagem pelos quais os so-
nhos se formam são resultados de mecanismos econômicos do in-
consciente, sendo eles a condensação e o deslocamento - ou, para
Lacan, metáfora e metonímia. No sonho, observa-se o processo de
condensação na lacuna entre o relato manifesto e o conteúdo la-
tente, sendo aquele uma tradução resumida deste. Trocando em
miúdos, as representações que são manifestas no sonho podem
representar várias cadeias associativas de representação, o que se-
ria o conteúdo latente; o desejo se utiliza dessas associações para
transitar entre elas e poder ascender à consciência de forma mas-
carada. Já no caso do deslocamento, ocorre de uma representação
importante se deslocar para outra representação de menor inten-
sidade, que seja aceitável para a consciência; isso acontece se as
representações fizerem parte de uma mesma cadeia associativa,
assim como na condensação. De fato, esses dois mecanismos são
as forças econômicas de funcionamento de todo o inconsciente,
presentes nas mais variadas formas de sua expressão, como sinto-
mas, frases de espírito, atos falhos.
Estudos apontam que há algumas semelhanças que são pos-
síveis de serem estabelecidas entre processos inconscientes e a
Parte 1

produção cinematográfica (MAGALHÃES, 2008; FROEMMING, 2002;


90
RIVERA, 2008). Condensação, deslocamento e identificação são al-
guns dos temas que os autores associam aos dois campos, sendo
necessário nos atentarmos para suas contribuições de forma a en-
tendermos como a pornochanchada se relacionou com os desejos
inconscientes dos espectadores.
Em primeiro lugar, a analogia que a produção de filmes mantém
com o conceito de condensação - ou metáfora - psicanalítica pode
ser encontrada em diversas cenas nas quais o diretor destaca um
objeto específico, trazendo-o para o primeiro plano, e ele remete a
algum momento importante para o personagem; por exemplo, no
que concerne às pornochanchadas, cenas de chuva para represen-
tar o orgasmo masculino. Diretores se utilizam de metáforas - e até
sonhos - para o desenrolar do enredo, podendo constituir situação
catárticas para o personagem e podem produzir um plot-twist, isto
é, uma mudança brusca de enredo tendo em vista os novos conteú-
dos de que o personagem dispõe.
No caso do deslocamento ou metonímia, percebemos a relação
entre cinema e psicanálise nas cenas em que um conteúdo ameno
simboliza uma cena muito mais forte - quem não se lembra da câ-
mera deixando a cena de um casal se beijando para centralizar a la-
reira, deixando subentendido o que se passa na cena omissa? Esses
dois exemplos servem de modelo para a forma como as tomadas de
um filme podem ser semelhantes às situações oníricas, represen-
tando de forma semelhante aquilo que acontece nos filmes, mas
que não pode acontecer no consciente.
Tomando como pressuposto de que a noção de tempo se defor-
ma no cinema e no insconsciente, Magalhães (2008) propõe que
adentrar em outro tempo é similar a mergulhar também em outro
mundo. Não poderia ser esse outro mundo o próprio inconsciente,
no caso? Ora, um dos lastros que utilizamos para entrar em con-
tato com a realidade e nela existir é exatamente o tempo e sua re-
gularidade. A autora propõe que os filmes permitem esse mesmo
mecanismo de alienação do tempo cotidiano para um tempo outro
através das superposições de espaços, como os cortes de cena e as
inversões. Gárate (2007) remonta, por fim, que existe uma associa-
ção possível em relação ao cinema que corresponde ao par vigília
e sonho, no qual o cinema exerce um papel homólogo ao segundo.
Isto quer dizer que, nele, estão projetadas fantasias que servem de
Reconhecendo território

compensação para as frustrações cotidianas, experienciadas no es-


tado de vigília. Ao invés de mudar de mundo, muda-se a cena.
Por isso seria presunçoso afirmar que o cinema corrobora para
uma fuga do real, como propõe alguns, haja visto que não há ne-
91
gação de que ela exista. O que o cinema proporciona é a possibi-
lidade de circular em uma realidade gêmea, que seja visualmente
real, mas que detém alguns mecanismos que não são semelhantes
aos da realidade. Seria como o trânsito despretensioso por uma re-
alidade que não é tão absurda e irreal, contudo é um “outro real”,
cujo tempo e espaço não são administrados da forma como o são
normalmente; o mais correto seria afirmar, portanto, que o cinema
promove um cancelamento provisório daquela.
O que parece estar em jogo é a sedução que o cinema nos causa
por ser uma narrativa ficcional que se aproxima de nossa tendên-
cia de historicizar a própria realidade, que, em si mesma, não tem
um sentido identitário. Isso quer dizer que a realidade nos parece
mais estranha do que a ficção e esta, por sua vez, seduz porque
a nossa subjetividade se constitui produzindo narrativas sobre si
e sobre a realidade. A partir dessa constituição, as obras de arte,
no caso o cinema, mas também a literatura, produzem conteúdos
narrativos que permitem com que o sujeito se identifique e elabore
suas questões.
Uma analogia didática possível é assumir que o cinema reme-
mora uma realidade ao mesmo tempo diferente e semelhante, a um
outro que é Outro, mas ao mesmo tempo não é verdadeiramente
diferente (GÁRATE, 2007). Essa relação aparece em Freud quando
ele trata sobre o papel do “estranho” na fruição artística, na qual nos
deparamos com algo que nos causa estranhamento, embora nos
seja particularmente familiar. Segundo ele, a sensação de estranha-
mento advém do retorno de conteúdos recalcados (FREUD, 1919).
A arte, seja ela qual for, conclama que o sujeito se posicione
em relação a ela, inevitavelmente. A angústia, a surpresa, a inda-
gação, qualquer que seja o sentimento que ela nos causa (e por
que não o tesão?), é fruto da posição privilegiada que adotamos ao
apreciá-la. De fato, a arte só existe quando há um outro que a veja,
que sinta o que ela provoca. A história refletida no anteparo, como
é no caso da arte cinematográfica, se entrega para ser consumida
por aquele que a criou, assim como na obra de arte, ganhando vida
quando é perscrutada.
Essa assimilação é próxima com a acepção de Lacan sobre o
papel do Outro na constituição do sujeito. Para este, somos cons-
tituídos como sujeitos a partir da incidência da linguagem sobre
nossos corpos, isto é, somos constituídos a partir do desejo do Outro
e nosso inconsciente é estruturado como uma linguagem (LACAN,
1979). Este Outro, grafado com maiúscula para referendar o lugar
Parte 1

da linguagem e do desejo, é fator essencial para que entremos na


92
cultura, alcemos o campo simbólico próprio dos homens. Essa bre-
ve introdução é suficiente para perceber que o outro, seja na arte
como na psicanálise, é fundamental para o eu: ele é indispensável
tanto para o cinema, quanto para o sujeito. De fato, somos constituí-
dos enquanto sujeitos a partir do olhar de um Outro, carregando em
nós parte de seu desejo, sendo inexorável ao eu que esteja à mercê
desse Outro para se constituir. Processo semelhante acontece com
a fruição artística, dado que a obra precisa de outro olhar que a exa-
mine e dê sentido, fazendo-a existir como tal. Como já foi colocado,
o sujeito é parte ativa na interpretação da obra, é ele quem coloca
suas experiências no enredo ficcional e dá sentido ao artístico.
Fica cada vez mais esclarecido que o sujeito não permanece
incólume ao cinema e à psicanálise. Apesar de trabalharem com
mundos opostos, entrecruzam-se no tocante às vivências do sujei-
to e a forma como ele passa a ver as coisas. São duas realidades que
se anunciam para o sujeito que, embora diferentes, provocam rea-
ção semelhantes, como a revivência de conteúdos passados. Isto
quer dizer que ambos possuem artimanha específicas para alçar
conteúdos latentes, que estão velados pela consciência e, quando
em um divã ou em um cinema, são possíveis de serem resgatados.
A câmera do cinema é capaz de tocar o telespectador mostrando o
banal, o cotidiano, no entanto ser revolucionária através da forma
que essa exposição é dada desse conteúdo aparentemente corri-
queiro. Quando o comum se torna atípico, o espectador é conclama-
do a repensar sobre determinado contexto, causando revivência de
conteúdos e sua possível ressignificação.
Por fim, o conceito de identificação, tão caro à psicanálise, é
ponto nodal para compreender as interlocuções possíveis entre ci-
nema e psicanálise. Maranhão (2011) salienta que, através dos estu-
dos de Freud sobre arte, o papel principal do cinema é promover a
identificação e fascinação no espectador. Por meio do mecanismo
de identificação, o sujeito torna-se presa de sentimentos, ao invés
de se aperceber conscientemente do que está acontecendo. Para
ela, o movimento particular do cinema “é o que toma de assalto o
espectador e confere veracidade à narrativa e também a possibili-
dade de identificação do sujeito-espectador com o que se desenrola
na tela cinematográfica” (MARANHÃO, 2011, p. 5).
Não se trata de uma identificação consciente, que também
Reconhecendo território

acontece entre o sujeito e o filme, mas de uma identificação que


obedece às leis próprias do inconsciente, na qual o sujeito é en-
golfado pela trama e seus sentimentos naquilo que toca seu mais
íntimo foro. “O espectador identifica-se, pois, menos com o repre-
93
sentado do que com aquilo que anima ou encena o espectáculo, do
que com aquilo que não é visível, mas faz ver, faz ver a partir do
mo-ver que o anima –obrigando-o a ver aquilo que ele, espectador,
vê, sendo esta, de certo, a função assegurada ao lugar (variável – de
posições sucessivas) da câmera” (BAUDRY, 1983, p. 396).
Em última análise, tanto o cinema quanto a psicanálise podem
revelar aquilo que é mais nevrálgico e cardeal do ser humano: suas
vivências subjetivas. Talvez a mais imediata relação que se faça en-
tre os dois mundos é, de fato, o impacto que causam no sujeito, cada
qual a sua maneira. E por isso - e as considerações que seguem são
pretensiosas, embora próprias - o cinema pode ser considerado
como a tentativa de universalização daquilo que há de mais parti-
cular, proibido e fantasioso do sujeito.
Assim como o cinema amadureceu após a primeira projeção de
1895 com o avanço das tecnologias, a psicanálise passou por diver-
sos períodos até que Freud a consolidasse como uma ciência do
inconsciente. Contudo, a proximidade inaugural dos dois campos
nos é peculiar porque, tendo em vista que são frutos de uma mes-
ma época, revela diversas convergências quanto a suas propostas, o
que nos permite fazer os entrelaçamentos propostos.

Pornochanchada e Psicanálise: unidas pela fantasia


Por meio do trajeto que caminhamos até então fica evidente
que a psicanálise é uma aliada influente na leitura sobre a “fábrica
de sonhos” que é o cinema. Os conceitos que foram utilizados são
ricos para a análise que se pretende fazer sobre a pornochanchada
e sua identificação com o público brasileiro, tanto quanto compre-
ender o movimento como fruto do contexto social nacional. Tendo
em conta o contexto que a pornochanchada apareceu no cenário
brasileiro, a psicanálise permite-nos inferir alguns pormenores so-
bre a moral e a ética que vigorava nos costumes da população e
apresentar como o cinema erótico foi uma válvula de escape para a
repressão sofrida durante a ditadura, principalmente a sexual.
A primeira contestação que se pode fazer em relação à porno-
chanchada e a sociedade brasileira se relaciona diretamente com
a identificação daquele que era o sujeito-espectador com os perso-
nagens e o enredo do filme. Vimos que o cinema promove a iden-
tificação do sujeito com o personagem, seja por meio das técnicas
cinematográficas ou pela projeção de alguns conteúdos incons-
cientes do sujeito naquele que está na tela. Não obstante, a comédia
Parte 1

de costumes, como ficou conhecida a pornochanchada, era o espe-


94
lho da classe que lotava os seus cinemas, com seus defeitos e suas
qualidades. Esse fator foi incisivo para que as fantasias sexuais dos
espectadores fossem identificadas nos personagens dos filmes, o
que possibilitou o compartilhamento da trama e seu desenrolar.
Quando o sujeito se identifica com a figura do protagonista que
é projetado na tela, ele se identifica com as conquistas, derrotas,
ideias, morais do personagem; quando se deixa envolver pela nar-
rativa que está no anteparo, podemos dizer que existe um mecanis-
mo de identificação que, para efeito de análise, chamaremos aqui
de consciente. No caso específico da pornochanchada, que é nosso
objeto específico, a identificação que o sujeito tem com os persona-
gens escapa a função desse mecanismo consciente, sendo de uma
dimensão mais profunda do psiquismo humano.
Existem, pois, duas formas de identificação que devem ser pon-
tuadas vide as diferenças que encerram entre si: a primeira, que
chamamos de consciente, é a identificação que faz com que o su-
jeito “entre na história” e viva com o personagem algumas de suas
experiências; a segunda identificação, propriamente inconsciente,
se estabelece para além do controle do indivíduo, na qual ele é toca-
do em suas vivências e invadido por suas emoções e sentimentos,
podendo ser arrebatadora e catártica. Ambas são importantes para
a experiência proporcionada para o cinema, mas quando se trata de
identificação para psicanálise, é da segunda que se fala.
Uma leitura plausível sobre a pornochanchada é a de que ela
trabalha majoritariamente com metáforas e metonímias para con-
seguir representar, através de outras tomadas, cenas de sexo. A in-
sinuação, carro chefe do gênero, tem papel fundamental na cons-
tituição do estilo de filme, haja visto que era apenas através dela
que os diretores conseguiam fazer seus filmes serem exibidos nos
cinemas, escapando da censura. Os mecanismos utilizados, por-
tanto, eram semelhantes aos de metáfora e metonímia pelos quais
funciona o inconsciente. Soma-se a isso que a cena na qual não se
escancara o sexo explícito abre brechas para a imaginação do sujei-
to, que dá uma apimentada com suas próprias fantasias.
Essa abertura permite que o sujeito se lance na história por
meio de suas próprias fantasias, preenchendo essa lacuna que
o diretor deixa em aberto. A realização dos desejos, então, se dá
por meio dos vazios que precisam ser preenchidos pelos desejos
Reconhecendo território

do indivíduo, no qual os mecanismos de condensação e deslo-


camento estão presentes, tanto por parte do sujeito, quanto por
parte do enredo. O ambiente próprio do cinema é, além de tudo,
um agente que facilita essa identificação e permite transitar
95
nessa realidade gêmea, onde (quase) tudo é possível, inclusive
os desejos mais obscuros.
Não é à toa que o gênero ganhou tantos adeptos espectadores
quanto produtores. A Boca foi o pólo crucial para a expansão da por-
nochanchada porque seu ambiente permitia o crescimento dos fil-
mes: cada qual queria colocar nos filmes um pouco de seus desejos,
seja o diretor, o financiador, o produtor ou o dono do bar da esquina.
O ambiente informal concedia esse privilégio para aqueles que ali
transitavam, sendo das relações que se estabeleciam nesse pavi-
lhão que fervilhava de todos os tipos de gente, que cada um fazia
parte do produto final que se endereçava aos cinemas. Sendo todos
constituídos de desejos, o produto final era o resultado de todas es-
sas fantasias, sendo essa singularidade que permite a projeção de
fantasias do sujeito-espectador na tela.
Cabe lembrar que tudo isso era possível com produções de bai-
xo custo, onde era impossível filmar cenas que fossem muito mais
elaboradas do que dos cenários de que se dispunha nas gravações.
Talvez o baixo orçamento tenha sido benéfico ao cinema marginal,
e não porque gerava lucro, mas porque representava o cotidiano cru,
da mesma maneira que viviam aqueles que assistiam às histórias.
A comédia de costumes permitia que o sujeito risse dos costumes
que ele próprio fazia parte porque era o seu cotidiano, a sua vida, os
seus desejos.
O fato de a pornochanchada se utilizar da comédia como forma
de sátira dos costumes pode ter corroborado, inclusive, para que
o gênero fosse tão aceito. Nesse caso, a comédia funcionou como
permissividade para assistir a um filme que seria moralmente con-
denável se ela não estivesse presente. A comédia era o bode ex-
piatório para a aceitação popular das afrontas contra os costumes
defendidos. Não significa, no entanto, que aquele que desfruta dos
filmes não esteja se deliciando com as outras cenas (mais marcan-
tes) do enredo. Isso porque os mesmos pais de família que lutavam
pela continuidade do núcleo familiar eram os que gargalhavam nas
telas de cinema com as pornochanchadas. Essas ocupam posição
análoga ao do retorno do recalcado tanto em âmbito pessoal, em
que os indivíduos se permitiam assistir aos filmes, quanto em âm-
bito social, que coloca uma sociedade à beira da insanidade que ne-
cessita de uma válvula de escape para se manter coesa.
Conforme foi colocado, existe uma relação entre o par vigília
e sonho com o cinema, no qual este faria papel semelhante ao se-
gundo. No caso da pornochanchada, essa relação é quase explíci-
Parte 1

ta: frente as frustrações que são imputadas ao sujeito diariamente,


96
através de uma moralidade repressora, essa vigília torna-se exaus-
tiva, sendo necessário o contrapeso desse movimento, ou seja, o ci-
nema, exercendo a função do sonho. Defronte a tela, consegue-se
esquecer a moral vigente para se permitir alguns minutos de prazer
sem aborrecimentos. A repressão era tamanha nos momentos em
que os sujeitos viviam suas vidas, sem poder exercer livremente
sua sexualidade, que o cinema era um santuário onde podia-se,
com permissão social para tal, viver alguns momentos prazerosos.
É tido no senso comum, assim como é também uma máxima
psicanalítica, que quanto maior a repressão, independente do que
se reprime, maior serão as formas pelas quais o conteúdo repri-
mido se expressará. A trajetória traçada aqui acaba por confirmar
essa ponderação: com o fechamento do AI-5 e o endurecimento da
Ditadura Militar, a pornochanchada cresce exponencialmente e se
espalha por todo o Brasil, sendo responsável por grande parcela das
produções cinematográficas do período. Os números se mostram
curiosos pois indicam a contramão daquilo que propunha o gover-
no: proibição de conteúdo degradante que combatia os preceitos
julgados corretos pelo governo autoritário.
Esse movimento às avessas tende a se relacionar com o próprio
mecanismo de censura empregado pelo governo. A máquina de
censura do governo não era sólida como se esperava, censurando
e permitindo produções artísticas sem um crivo a ser obedecido, o
que passava a impressão de que a canetada era dada sem que se le-
vasse em consideração o motivo para tal. Estudos, como o de Costa
(2006) e Lamas (2012), apontam a ambiguidade dos fatores que de-
viam ser censurados, o que poderia abrir espaço para arbitrariedade
por parte dos censores. Os filmes podiam sofrer censuras parciais
ou totais, isto é, podia ser recomendado corte de cenas específicas
que fossem degradantes da moral pública, ou a censura total da pe-
lícula, que era proibida de ser exibida e comercializada.
Não era à toa, no entanto, que o governo fazia “vista grossa” para
os conteúdos pornográficos. A pornochanchada foi massa de mano-
bra por parte dos generais como forma de descentralizar o foco de
questões políticas, ou seja, melhor a alcunha da libertinagem do que
a luta pela liberdade e democracia, até porque a primeira saída con-
siste em uma válvula de escape permissiva, mas que era condenável
moralmente, configurando um mecanismo perverso de submissão.
Reconhecendo território

O aparelho de censura do Estado podia até não funcionar com


o impacto desejado, seja por falta de fiscalização, de formalidade
nos critérios, ou de empreendimento no campo, mas quando se
trata da censura imposta pelo inconsciente, vemos um funciona-
97
mento que não mede forças para suprimir o conteúdo sexual. O
mecanismo de censura é altamente custoso para o psiquismo, que
precisa construir barreiras ativas para impedir que o conteúdo in-
consciente se manifeste para a consciência. Contudo, assim como
a censura do governo, a censura do inconsciente também é pas-
sível de falha, revelando o aparecimento de sintomas. Este teria a
mesma função do sonho, isto é, a realização de um desejo, mas que
encontrou outra via de descarga, por exemplo a corpórea. O sinto-
ma é material rico para interpretação de conteúdos inconscientes,
uma vez que eles são expressões de desejos sexuais reprimidos.
Pelo estudo dos sintomas das mulheres histéricas, ainda no
nascedouro da psicanálise, Freud (1895) descobriu que os sinto-
mas apareciam e persistiam pois as mulheres conseguiam sentir
prazer com eles. À primeira vista, pode soar antagônico: como um
sintoma, como a paralisia de músculos, pode ser prazeroso? Fica
claro de entender quando retomamos que tanto o sintoma quan-
to o sonho são expressões de desejos inconscientes que estão se
realizando, a despeito de não serem explicitamente sexuais e se
realizarem entre quatro paredes.
Sob esse olhar, não seria a pornochanchada um sintoma da
sociedade brasileira? Tomando como análogo o movimento de
censura imputado pelo governo e aquele que o inconsciente pro-
move, a expressão da pornochanchada é uma falha naquilo que
deveria ser proibido, ou seja, uma falha em reprimir “maus costu-
mes”, ofensa ao decoro público, e se expressa de maneira seme-
lhante ao sintoma quando a censura do inconsciente não barra
completamente o conteúdo sexual reprimido. Encarar o gênero
como o sintoma da época significa entendê-lo como a maneira
que uma sociedade altamente reprimida encontrou de realizar
seus desejos e obter prazer com suas fantasias proibidas por uma
moral opressora. Além disso, toda formação do inconsciente é um
compromisso entre a repressão e o desejo, de forma que existe um
ganho de quem reprime com essa formação. O governo, no caso,
era aquele que reprimia e, através do sintoma da pornochanchada,
conseguia manter a opressão por meio do deslocamento da aten-
ção do plano político para o afetivo-sexual.

Considerações Finais
A pornochanchada é um fenômeno expressivo da cultura bra-
sileira, embora renegada pelos seus cidadãos e pelo puritanismo
Parte 1

social. Foi com o intuito de diminuir a negligência com que o tema


98
é tratado que o presente texto tomou forma e, a partir das contribui-
ções do campo psicanalítico, aplicou seus conceitos em uma leitura
modesta sobre o fenômeno social das comédias de costume. Basta
dizer que essa é apenas uma leitura do que foi a pornochanchada
em um horizonte muito mais vasto e que interpelou outros aspec-
tos também significativos da cultura brasileira.
O período de surgimento e consolidação da pornochanchada
foi truculento e opressor: as críticas eram feitas de todos os lados;
precisava atender às demandas internas e externas, bem como às
demandas pessoas e coletivas; sofria censura formal e informal.
Todavia, o gênero foi revolucionário à medida que criticou os pa-
drões impostos sobre sexo, desamarrou-se da moralidade conser-
vadora vigente e resistiu aos ataques da ordem imposta. Por outro
lado, a pornochanchada acomodou-se com a alta rentabilidade dos
filmes e se aproveitou do conservadorismo para levar contingen-
tes expressivos de pessoas aos cinemas. Por ser a única expoente
da liberação sexual no cinema, despertou a curiosidade de muitos
- enquanto outros eram assíduos frequentadores.
Não cabe fazer um julgamento moral sobre o que foi o fenôme-
no da pornochanchada, como a população fez ao recriminar sua
existência, mas apontar que ele foi o sintoma de uma sociedade se-
xual e politicamente doente. Independente das críticas, da censura
e das demandas, a pornochanchada conquistou seu espaço na cul-
tura brasileira e se modificou conforme era proibida, expressando
sua criatividade e suas fantasias.
Com a abertura do país e sua redemocratização, a pornochan-
chada se finda e entram os filmes pornográficos de conteúdo explí-
cito. De fato, quando um sintoma consegue ultrapassar a censura
que lhe é imposta pelos caminhos corretos, ele desaparece e não
tem mais função de existir. Assim acontece com a pornochancha-
da: novos raios de luz amanheceram com a abertura política e no-
vos ares pornográficos passaram a propulsionar fantasias e desejos.
Restrita a uma parcela cult de telespectadores, a pornochancha-
da não mais exerce a função que exerceu em seus tempos áureos.
Muda a sociedade, mudam as pessoas, mudam os desejos.

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Reconhecendo território

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Parte 1

100
parte 2
Começando
a despir
Álvaro André Zeini Cruz O CIENTISTA E OUTROS ESTEREÓTIPOS EM
Erik Ceschini “O GÊNIO DO SEXO”
Panighel Benedicto
Nos últimos anos, para além de uma indiscu-
tível e multifacetada expansão da cinematogra-
fia nacional, a produção/exibição cinematográ-
fica brasileira tem usufruído e retroalimentado
um crescente interesse do público pela comédia.
Exemplo disso são os expoentes do gênero re-
lacionados à Globo Filmes que, além de contar
com um star system importado das telenovelas
da principal emissora do país, realoca para a tela
de cinema uma estética habitual ao público, pois
dialoga com nosso principal produto televisivo.
A comédia é designada como gênero desde
os primórdios do teatro grego e, segundo Aris-
tóteles, elas seriam, em oposição às tragédias,
representações dos homens inferiores. Entre-
tanto, o balizamento do gênero por parte dos
mais díspares autores ao longo da História fez
com que ele se desdobrasse. Eclodiram, assim,
os subgêneros da comédia chegando à conheci-
da estratégia do nonsense, mais conhecido por
“pastelão”, o qual se caracteriza exatamente pela
exposição das personagens a situações ridículas
e grotescas (ALMEIDA, 2004).
Contudo, as comédias não são uma novida-
de em nosso cinema; prova disso é a querela em
que se meteu o crítico Jean-Claude Bernardet
ao equiparar o recente De pernas para o ar 2 às
chanchadas da Cinédia e da Atlântida, comédias
de costumes onde reinavam o humor populares-
co e físico (a cena em que Oscarito, travestido,
imita Eva Todor como se esta estivesse refletida
num espelho, sintetiza com veemência o espírito
das chanchadas). Reconhecida historicamente

105
como um dos mais expressivos movimentos a constituir nossa ci-
nematografia, a chanchada lançou ainda nomes como Dercy Gon-
çalves e Grande Otelo (que, junto a Oscarito, protagonizou a célebre
cena em que interpretam, respectivamente Romeu e Julieta, no
filme Carnaval de fogo), além de diretores como Watson Macedo e
Carlos Manga.
Caracterizadas por uma “certa ingenuidade maliciosa”, como
ressalta Nuno Abreu (p. 167), as chanchadas tiveram seu ápice en-
tre as décadas de 1940 e 1950, decaindo na década seguinte (prin-
cipalmente com a falência da Atlântida). Surgiu, nos anos de 1960,
o Cinema Novo, nossa mais profícua produção considerando o re-
conhecimento artístico imediato. Acolhido por plateias da Europa,
o movimento capitaneado por Glauber Rocha e dotado de alto teor
político, despertou de forma inédita um interesse das elites brasi-
leiras (algo que as chanchadas – populares – não atingiram). Em
contraponto à devida atenção dada ao Cinema Novo, um outro mo-
vimento despontou no final da década de 1960, estendendo-se até
o início dos anos 1980: as chanchadas de outrora se aliaram ao ero-
tismo e surgiram, assim, as pornochanchadas. Abreu destaca que,
reverberando certa permissividade da época, a pornochanchada
aglutinava como elementos recessivos a nudez feminina e a insi-
nuação do ato sexual, entretanto, a comédia de costume continua-
va, como na chanchada, como elemento preponderante (p. 168).
As salas de cinema são, então, inundadas com títulos que va-
riam dos apenas sugestivos – como “A viúva virgem” e “O homem
de Itu” – aos maisexplícitos(“As Taradas Atacam”, “A árvore dos se-
xos”), ou ainda, satíricos com cunho de paródia ao estilo de “Baca-
lhau” e “Nos tempos da Vaselina” (parodiando, respectivamente, os
hollywoodianos Tubarão e Nos tempos da brilhantina).
Assim como as chanchadas, as pornochanchadas foram, tam-
bém equivocadamente, subestimadas em seu valor cultural. Essa
desvalorização encontra-se, inclusive, na etimologia dos termos,
originários do vocábulo “chancho”, que significa “porco”, em espa-
nhol (SELIGMAN, 2000). Ainda que ignorada pela elite intelectual
da época, a pornochanchada repetiu o fenômeno do movimento ci-
nematográfico primordial (a chanchada), tornando-se um sucesso
entre as camadas mais populares da sociedade. Mas, para atrair e
agradar o público, algumas estratégias foram adotadas.
A utilização da comédia de costumes escrachada foi, novamen-
te, medular, associada agora ao erotismo e ao apelo dos títulos, como
já mencionado. A popularidade da pornochanchada, bem como sua
Parte 2

inicial rejeição pela intelligentsia da época, foi bem diagnosticadas

106
pelo crítico Inácio Araújo, num texto de 1983 ao jornal Folha de São
Paulo: “o público quer ver problemas sexuais em cena, preocupa-se
com isso e não tem dinheiro para pagar o psicanalista. A porno-
chanchada é o divã do pobre. Não há mal nisso. Os letrados é que
são pudicos” (2010, p. 31). No mesmo artigo, Araújo, ao emprestar
uma citação de Bernardet, pontua que “a pornochanchada é o único
cinema honesto que se faz no Brasil atualmente” (p. 31).
As estratégias iam além: as peripécias do roteiro corroboravam
o tom de escárnio, e, com constância, beiravam o nonsense, ou seja,
de certa forma, como o Cinema Novo, a pornochanchada também
propôs rupturas à linearidade do classicismo cinematográfico. En-
tretanto, se os desdobramentos da trama eram, muitas vezes, ines-
perados, no que concerne à construção dos personagens, a utiliza-
ção de tipos típicos foi recorrente. São os chamados estereótipos.
As figuras que transitaram pelas pornochanchadas pertenciam,
portanto, a essa espécie de molde caricatural que é o estereótipo. A
etimologia da palavra reforça esse valor: formada pela união de dois
termos gregos, stereos significa “sólido”, enquanto typos traduz-se
como “um modelo”. O sentido atual do vocábulo se estabeleceu por
volta de 1824 e se refere a um comportamento repetitivo e rígi-
do, padrões e características associadas a um grupo (SCHNEIDER,
2004; SCALFI, OLIVEIRA, 2015).
Dentre os principais estereótipos utilizados nas pornochan-
chadas tem-se a personagem masculina tida como “o garanhão”,
o conquistador de mulheres malandro, macunaímico, não neces-
sariamente dotado de beleza física; as mulheres, em contrapartida,
eram constantemente apresentadas como objetos, erotizadas para
serem contempladas, conquistadas e servirem aos prazeres desse
conquistador-protagonista.
É alicerçada no estereótipo do malandro que se constitui a
trama de “O gênio do sexo” de 1979, dirigido pelo também ator
Paulo Figueiredo. No filme, o personagem conquistador é repre-
sentado por Jorge, que, apesar decasado com Geny, mantém ca-
sos extraconjugais com a secretária e a faxineira da casa. Entre-
tanto, o grande colapso ocorre quando Jorge se apresenta inapto
de cumprir com suas atribuições na cama, situação que preocupa
todas as suas mulheres. Mas é Geny, a oficial, quem procura a aju-
da do cientista conhecido como Professor Andorinha que, em um
anúncio, promete inventar qualquer coisa. Mediante à contrata-
Começando a despir

ção de Geny, Andorinha cria uma “super” cueca capaz de resolver


os problemas de Jorge, conferindo aquele que a veste um fantás-
tico desempenho sexual.
107
Entretanto seu invento é roubado pelo bandido Rodolfo, que ao
utilizar a vestimenta acaba por sair em busca de mulheres para sa-
tisfazer o vigor conferido pela cueca. Nesse meio tempo, Andorinha
e Geny vão atrás de Columba, em sua agência de detetives, pedir
auxílio no resgate da cueca.
Durante o desenrolar da trama, nota-se, claramente, o papel fe-
minino como hiper-sexualizado, além de colocado na posição de
objeto; a empregada coberta por um uniforme minúsculo sempre
pronto a revelar-lhe as coxas é exemplo contundente disso, além de
apontar outro dado: uma tendência em estereotipar o próprio fetiche.
Nesse sentido, a direção de arte é simples e direta ao adotar o ver-
melho saturado –recorrentemente ligado ao sexo e à luxúria – como
cor representativa da cueca afrodisíaca. O matiz do invento se repe-
te no próprio figurino do inventor, sobrepondo outras tonalidades de
vermelho. O uso de cores quentes – cujo imaginário entorno se liga
a um aspecto mais íntimo ou passional – é, por sinal, predominante
em todo o filme, não só através da direção de arte, mas também pela
fotografia, que dá uma amarelidão tropical aos espaços.
A personagem da empregada, caricatural como todas as outras,
não titubeia em parar o serviço para se entregar aos prazeres do
sexo. Seguindo essa tendência macunaímica que soma preguiça e
malandragem (e a obra de Mário de Andrade foi, por sinal, adaptada
pelo Cinema Novo num filme que deve muito à pornochanchada), a
secretária de Jorge demonstra grande preocupação em ter que re-
almente trabalhar, uma vez que Jorge não está requisitando-a como
amante. O machismo inerente às pornochanchadas se evidencia
ainda mais quando Columba e suas detetives entram em cena: Co-
lumba destaca-se como a única personagem feminina em situação
de poder, todavia ela é construída com nítidos traços masculinos,
enquanto suas subordinadas, ainda que destemidas, apresentam-
se exclusivamente em biquínis dourados e cintilantes – figurino
que, obviamente, serve para atender a erotomania do espectador.
O conceito de erotomania é abordado pelo francês Antoine de
Baecque como intrínseco à própria experiência da cinefilia (traba-
lhada pelo autor sob uma perspectiva masculina e heterossexual).
O autor evoca Maurice Zolotow, primeiro biógrafo da atriz Marilyn
Monroe, ao trazer a ideia de que a loura era dotada de uma“nudez
implícita”, regulamentada pela censura da erotomania cinéfila: “a
sugestão, a máscara, o artifício, a fragmentação do corpo em múl-
tiplos detalhes, a aparição dos excessos mínimos de um corpo fe-
minino preso nas malhas do olhar masculino” (p. 321). Essa nudez
Parte 2

implícita (bem como o ponto de vista masculino) se repete na por-


108
nochanchada, já que, muitas vezes, o corpo nu é uma aparição rara
ou que demanda tempo de projeção. É assim em “O Gênio do sexo”:
a nudez atém-se praticamente aos seios desnudos. O erotismo é
sugestionado pelos figurinos, pela iluminação (contra-luzes que
destacam os contornos dos corpos, por exemplo) e pelos enquadra-
mentos, como na cena em que Rodolfo faz sexo com as policiais; re-
lações sempre intercaladas por um plano detalhe sensual das atri-
zes e o anúncio (escrito e sonoro) de que um novo “round” se inicia.
Em suma, a decupagem esmiúça os corpos sem que eles estejam
literalmente nus. A nudez, entretanto, está implícita ao espectador
que, colocado próximo aos seios, coxas e nádegas das atrizes, é le-
vado a imaginar o que há por baixo dos escassos figurinos.
O ponto de vista masculino se torna ainda mais explícito na
cena em que o incontrolável Rodolfo – já em posse da cueca que
o torna sexualmente insaciável – ataca uma reunião de feminis-
tas e acaba por fazer sucumbir até mesmo a líder desse encontro.
É uma cena singular no sentido de que uma ideologia (a feminis-
ta) é posta à prova por algo que é mostrado pelo filme como um
comportamento natural, um instinto – o sexo. Tem-se assim outra
característica importante das pornochanchadas: para atingir seus
objetivos risíveis ou de deboche, elas utilizam-se da transgressão,
além das personagens inconvenientes que não respeitam regras
nem convenções sociais (SALES FILHO, 1997).
Desencadeado por uma invenção (a cueca), o desejo surge
como uma força primordial e incontrolável, que só encontra apazi-
guamento e restauração quando saciado de forma natural, ou seja,
através da relação sexual.
Assim, Rodolfo, o bandido, só se rende após relacionar-se com
as várias detetivesque estão em seu encalço; a missão cabida às
detetives é, portanto, saciar o desejo do homem, o que, novamen-
te, reitera a perspectiva masculina do filme. No desfecho, a cueca
volta a seu destinatário original, que, entretanto, se tipifica como
uma caricatura homossexual ao vesti-la no avesso (sendo esta a
piada final do filme). A peça íntima, elemento da intriga gerado na
trama por uma experimentação científica, tem a potência de fazer
retornar algo primordial; e, no caso, o sexo é colocado como um ato
quase primitivo (basta constar o comportamento de Rodolfo, que
em diversos momentos age como primata). Tal premissa, longe
de ser inédita, abre oportunidade para uma análise que traça um
Começando a despir

paralelo entre esta e uma das mais célebres comédias da era de


ouro hollywoodiana – o filme “O inventor da mocidade”, de Howard
Hawks. A comparação entre as tramas possibilita também um
109
aprofundamento no estereótipo do cientista como objeto de estudo,
bem como do uso da ciência no gênero aqui abordado.

“O inventor da mocidade” e o “O gênio do sexo”: um paralelo entre a


comédia clássica e a pornochanchada
O cinema nasceu de uma inovação tecnológica, ou seja, da ciên-
cia: embora outros como Thomas Edison já realizassem experimen-
tos com imagens em movimento, foi em 1895, quando os irmãos Lu-
mière apresentaram sua máquina – o cinematógrafo (da qual eles
próprios duvidaram da longevidade) –, que o cinema se concretizou
como invento. O mágico George Méliès, no entanto, visionou desde
o princípio as potencialidades do aparelho que registrava imagens
e as colocava em movimento numa tela bidimensional. Em 1902,
Méliès realizou Viagem à lua, conhecido como o primeiro filme de
ficção da história do cinema – uma ficção científica que se equili-
brava no limiar da fantasia.
A ciência, portanto, se fez presente tanto na gênese cinemato-
gráfica – o chamado “cinema de atrações” – quanto em sua ade-
rência a uma de suas características mais conhecidas: a de contar
histórias. De lá para cá, a ciência manteve-se impregnada nos rotei-
ros, avançando a gêneros além da ficção científica: do horror às co-
médias, das diversas adaptações de Frankenstein ou produções do
início do século XX, como Metrópolis, passando por obras célebres
como 2001: uma odisseia no espaço, De volta para o futuro, A mosca
ou Jurassic Park; a ciência e seus realizadores – os cientistas – es-
tiveram representados em formas e tons diversos1.
No entanto, a ciência não se ateve à ficção científica: um dos
mais célebres textos do crítico Jacques Rivette para a publicação
Cahiers du Cinèma foi sobre O inventor da mocidade, contundente
abordagem da ciência pelo viés cômico e que coloca no papel de
cientista ninguém menos que Cary Grant, galã hollywoodiano e es-
trela de dois dos cineastas mais admirados pela redação da revista
– Alfred Hitchcock, além do próprio Hawks. O filme norte-america-
no – que narra a história de um inventor em busca da fórmula da
juventude: é aqui trazido como exemplo para efeito de comparação,

1
A jornalista Lacy Barca traça um contundente panorama sobre o tema no artigo “As múltiplas
Parte 2

imagens do cientista no cinema”.

110
já que se trata de obra paradigmática num cinema responsável por
cristalizar elementos formais e de conteúdo para com o público – o
cinema de gênero. Como bem delimita Edward Buscombe, “a cons-
tante exposição a uma sucessão de filmes leva o público a reconhe-
cer que certos elementos formais são dotados de significado extra”
(p. 315). Por fim, além de ser um célebre expoente da temática den-
tro da comédia, O inventor da mocidade tangencia-se através das
peripécias da trama a O gênio do sexo, objeto central deste capítulo.
No texto intitulado O gênio de Howard Hawks, publicado na
Cahier du Cinèma nº 23, em maio de 1953, Rivette celebrava Hawks
como um cineasta da ação, que buscava justamente a superfície das
imagens e dos sons, suas parcelas mais denotativas. Rivette disse:

Não é a idéia o que fascina em um filme de Hawks, mas a


eficácia. A ação prende nossa atenção não tanto pela beleza
intrínseca quanto por sua eficiência e pelos mecanismos in-
ternos que regem seu universo. Uma arte dessas exige uma
honestidade básica, e o uso que Hawks faz do tempo e do es-
paço é testemunha disso [...] (RIVETTE, 1953)2

A ação colocada por Rivette não se coloca no sentido do “filme


de ação”, aqueles cujas tramas são repletas de perseguições e ati-
raria (e que tornaram-se praticamente um gênero próprio). Trata-
se de algo muito mais primário, dos próprios movimentos, gestos
e atitudes dos personagens em cena. Tão simples quanto é o ponto
de partida tomado por Hawks no que diz respeito a trama: Barna-
by (Cary Grant), um cientista cujo casamento caíra na rotina, de-
senvolve uma fórmula da juventude e, ao ingeri-la acidentalmente,
passa a ter comportamentos que retrocedem a sua idade. O filme,
que segundo Rivette, é uma obsessão de Hawks com o primitivismo
(sendo a infância o estágio mais primitivo de todos), toca a porno-
chanchada dirigida por Paulo Figueiredo no que diz respeito à tra-
ma: há tanto em “O inventor da mocidade”, quando em “O gênio do
sexo” a busca por um elixir que recupere o vigor.
As tramas partem de reveses constituídos no universo das rela-
ções adultas. Em “O inventor da mocidade”, o gênio vivido por Grant
é apresentado às voltas com um experimento: prestes a sair para
dançar com a esposa Edwina, ele não consegue concentrar-se em
tarefas simples do mundo adulto, como apagar as luzes e trancar
Começando a despir

2
Tradução por Nicola Matevski disponível em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.
br/2009/03/o-genio-de-howard-hawks-jacques-rivette.html

111
a porta – seu intelecto está voltado à ineficácia de sua fórmula da
juventude. O trabalho, e, consequentemente, a ciência, insere assim
um conflito na relação conjugal: compreensiva, Edwina aborta os
planos para a noite (“quando danço com você, quero dançar com
você todo. Não quero que sua cabeça esteja em outro lugar”).
O universo científico é apresentado, portanto, como algo que
consome aqueles que são devotos a ele, a ponto de atrapalhar as
ações mais corriqueiras, como trancar a casa. Habitante de um
filme cômico, o químico vivido por Grant é um estereótipo muito
bem consumado dentro do gênero: as maneiras atrapalhadas, o
uso de neologismos, o cabelo empapado em brilhantina e, sobre-
tudo, os óculos fundo de garrafa em armações grossas o estabe-
lecem como figura à parte do mundo normal (um personagem o
questiona – “Por que não pode ser gênio até o pôr-do-sol e homem
depois? ” – e Barnaby responde – “Nunca sei com antecedência
quando eu vou ser um gênio”).
Se no filme de Hawks o conflito conjugal é apresentado numa
ação corriqueira, na pornochanchada de Figueiredo, a rotina invade
o momento do sexo, apresentado já na cena introdutória: Jorge, um
garanhão nato, falha com a esposa Geny e esse é o incidente inci-
tante que a faz buscar a ajuda de Andorinha.
O cientista vivido por Pedro Cassador não tem o alinhamento
do vivido por Grant (nem a estampa do galã hollywoodiano), mas
ainda na perspectiva do estereótipo, mantém algumas caracterís-
ticas basilares (os óculos em armação circular, o jeito atrapalhado),
enquanto, simultaneamente, atualiza outras ao espaço e gênero (o
jaleco dá lugar ao colete vermelho, cor trabalhada em sobretons
também na camisa e na gravata). O estereótipo, assim, oscila den-
tro do próprio gênero: ainda que ambos mantenham-se no recorte
da comédia, o cientista vivido por Grant, que vive num contexto
norte-americano dos anos 1950, é mais próximo à realidade e se
enquadra bem ao tipo de comédia em que se encontra; já Ando-
rinha, esse cientista subdesenvolvido dos trópicos e habitante de
uma pornochanchada, atravessa o quase invisível limiar entre o
excêntrico e o esdrúxulo.
Seu “laboratório”, por sinal, é extensão de si próprio: bagunça-
do, está mais para um ferro-velho do que para um lugar destinado
ao desenvolvimentoda ciência. Nesse sentido, o estereótipo espa-
cial é quebrado; enquanto o imaginário comum de um laboratório
consiste em espaços amplos, claros e bem organizados (como é
o que trabalha Barnaby, em “O inventor da mocidade”), o local de
Parte 2

trabalho de Andorinha reflete a personalidade de um cientista es-


112
tapafúrdio, bem como o contexto do país subdesenvolvido em que
se encontra – não à toa, ele é adaptado a um barraco, construção
típica das favelas.
As peripécias das tramas norte-americana e brasileira também
podem ser colocadas num paralelo, já que os conflitos emergem a
partir do instante em que o invento cai em mãos erradas: enquan-
to em “O inventor da mocidade” a fórmula é manipulada por um
macaco-cobaia (e misturada à água dos funcionários), em “O gênio
do sexo” a cueca é roubada. As artimanhas da trama recaem, ainda
que de formas distintas, num mesmo tema: o sexo. Assim que, sem
querer, toma a poção, a pulsação de Barnaby acelera e, com a visão
restaurada, ele é destituído do objeto símbolo de seu figurino – os
óculos fundo de garrafa. Em seguida, uma curta jornada de restitui-
ção da juventude se desenvolve ao lado de, ninguém menos, daque-
la que, segundo Baecque (e Truffaut), é símbolo da erotomania cine-
matográfica: Marylin Monroe, que no filme de Hawks, interpreta a
secretária com uma queda pelo patrão, Barnaby.
O exibicionismo desse recém-adquirido vigor masculino é de-
flagrado em situações típicas da comédia clássica americana cap-
ciosa, mas invulgar: para mostrar-se à secretária, Barnaby compra
um carro esporte e acelera pelas ruas da cidade. Pouco depois, con-
clama os olhares do público para assistí-lo em um salto de trampo-
lim (e o humor surge quando se percebe que os olhares –masculi-
nos – estão todos em Monroe).
Delimitando desde já as diferenças de contexto, o tom de “O in-
ventor da mocidade” está mais próximo ao das chanchadas. A ques-
tão sexual é presente – quando é Edwina quem ingere a poção, ela
leva o marido a uma nova noite de núpcias – mas o sexo em si não
aparece na tela. Já na pornochanchada de Figueiredo, ele aparece
emulado, ainda que de forma bastante pudica, com a câmera fe-
chando-se nos pés ou algum móvel velando o ato.
Tocando, por fim, a decupagem (maneira como as ações se
traduzem na tela em imagens e que, portanto, abrange questões
como enquadramento e movimentos de câmera) é importante
pontuar outra recorrência, ainda que as comédias abordadas este-
jam distantes em seu espaço e tempo: gênero muitas vezes preso
aos corpos (o humor físico, as gags), a comédia de Hawks abusa
de planos mais abertos (planos gerais, planos americanos, planos
médios), justamente para poder captar a graça gerada pelos emba-
Começando a despir

tes físicos (as correrias e pontapés criados entre o casal Barnaby e


Edwina quando estes chegam ao estágio da infância, por exemplo).
Já na pornochanchada, a priorização de tais planos encontra um
113
elemento a mais para além da própria comicidade – a captura da
sensualidade dos corpos femininos. Obviamente tal escolha revela
uma das conhecidas fragilidades do gênero – a produção limitada,
constantemente tosca, algo que a pornochanchada assumiu como
característica formal. Apropriação que, aliás, corrobora a ideia de
único cinema honesto já trazida de Araújo e que, talvez, seja a úl-
tima ponte possível nesse inusitado paralelo aqui proposto: a ho-
nestidade de Hawks está nas ações, já que a linguagem está aberta
a intepretações e deturpações (e isso é falado no próprio filme). Já
a honestidade em O gênio do sexo é típica das pornochanchadas e
atravessa da feitura do filme (e suas limitações) ao tema. Afinal, é
preciso falar sobre sexo.

A ciência e o cientista em o “O gênio do Sexo” entre estereótipos e


preconceitos
Concentrando a análise em “O Gênio do sexo”, é interessante
notar a maneira como o filme introduz ao espectador a ciência con-
tidana trama. Inicialmente, o termo “gênio” pode conduzir à ideia de
um especialista em assuntos sexuais, ou até mesmo alguma enti-
dade envolta de magia. Porém, qualquer ideia do gênero logo é des-
feita pelo slogan do filme que traz, junto ao título, a imagem de uma
típica vidraria científica, da qual se desprendem bolhas e fumaça,
permitindo a associação do termo “gênio” a uma personagem dota-
da de atributos cognitivos. Institui-se assim uma lista de caracte-
rísticas típicas utilizadas na construção da personagem científica,
o professor Andorinha.
Discussões acerca dos estereótipos que envolvem ciência e cien-
tistas têm sido realizadas há certo tempo por diversos trabalhos que
se preocupam com a visão pública da ciência. Exemplo disso é um
teste desenvolvido em 1995, conhecido como “Desenhe um cientista”
(Draw-a-Scientist), experiência que propunha aos participantes que
desenhassem aquilo que entendem por um cientista, revelando suas
percepções sobre o tema (BARMAN, 1997). Dentre as diversas carac-
terísticas comuns conferidas a um cientista, a primeira a merecer
destaque é com relação ao gênero;nesse aspecto a grande maioria
das representações, em diferentes estudos, os cientistas são tidos
como do sexo masculino, assim como colocado no filme em questão.
A proposição de um cientista do sexo masculino – o Professor
Andorinha – reflete questões históricas sobre gênero e ciências.
Apesar das universidades (principais meio geradores e difusores de
Parte 2

114
conhecimento científico) serem datadas do século XII, as mulheres
só tiveram acesso às instituições apenas a partir de 1865. Contudo,
tal admissão recebeu forte oposição sob a justificativa de que a ati-
vidade acadêmica poderia debilitar o corpo feminino que, frágil, não
resistiria a atividades intelectuais elevadas, podendo interferir até
no papel da mulher como progenitora. Outra alegação, ainda mais
lancinante, era de que as mulheres nasceram para viver em subor-
dinação (YANNOULAS, 2007). Portanto, novamente o filme firma seu
caráter masculino, colocando homens em situações de comando.
O androcentrismo em “O gênio do sexo” não se restringe aos
personagens humanos: Robovaldo, a criação mecatrônica de An-
dorinha, revela-se uma personagem masculina que reverbera
diversos comportamentos estereotipados típicos ao gênero: de-
monstra seu interesse por corpos femininos (algo sempre cerca-
do de comentários machistas), explicita seu desejo em ter uma
companheira e revela que uma relação conjugal ou sexual só não
é consumada pelo fato de lhe faltar “a peça principal”. O robô ainda
demonstra-se extremamente constrangido quando precisa passar
pela troca de óleo, que ocorre por um orifício situado em sua par-
te traseira; nota-se assim que tal ato é compreendido como uma
afronta “a sua masculinidade”.
Robovaldo, porém, não é mera peça de afirmação da sobera-
nia masculina presente no roteiro; é engrenagem fundamental na
construção do próprio inventor. Num primeiro momento, ele ates-
ta a capacidade de Andorinha como inventor, pois trata-se de uma
obra tecnológica que causa espanto e admiração nos demais perso-
nagens; mais adiante, por ser o melhor e único amigo de Andorinha,
Robovaldo traz à tona outra importante característica vinculada ao
estereótipo do gênio – a exclusão social. Essa privação de conta-
to com outros seres humanos atinge seu ápice quando o professor
revela ao autômato que seu contato com o sexo feminino também
ocorrera por meios robóticos, relação que acabou mal sucedida (se-
gundo o cientista, ela o machucava), e que, portanto, levou Andori-
nha a priorizar uma companhia masculina.
Esse isolamento social atinge a própria geografia em que cir-
culam as personagens, já que o cientista vive em uma região de-
sértica. Não à toa, quando Geny – personagem urbana que estere-
otipa a mulher de classe média – adentra esse universo singular
e segregado, demonstra desconcerto logo respondido por Andori-
Começando a despir

nha: “Desculpe a bagunça, Madame. Todo cientista é meio maluco


e eu não sou exceção”. Portanto, para além da já discorrida desor-
dem, a casa-laboratório de Andorinha acaba por personifica não
115
apenas sua excentricidade, mas sua decorrente marginalidade
dentro das engrenagens sociais.
Não basta, todavia, introduzir a ciência como corpo estático; é
preciso colocá-la em funcionamento: Andorinha é, assim, posto em
ação a partir de uma coleção tradicional de clichês – em busca de
sua ideia genial (a cueca milagrosa), ele anda em círculos repeti-
damente, até ser iluminado por uma epifania. Em seguida, em seu
laboratório, envolto por vasta vidraria repleta de líquidos coloridos
em ebulição, Andorinha analisa os resultados em um microscópio;
as gotas de suor, que escorrem dos fios grisalhos ao rosto denotam
o empenho e energia gastos no serviço. O processo todo é estilizado
por uma luz avermelhada que acentua o clima de tensão durante
seu decurso. A soma de tais elementos constitui a típica persona-
gem científica colocada sob o viés da ridicularização, artifício re-
corrente da comédia como gênero.
É importante notar que a criação desta personagem utilizou-
se apenas de algumas características estereotipadas. Um exemplo:
apesar da excentricidade aparente, a loucura de Andorinha jamais
é associada a um caráter malévolo ou ambicioso, como o do cien-
tista que almeja poder ou a dominação mundial, figura recorrente
em muitos filmes. Pelo contrário, Andorinha apresenta-se como um
cidadão simples e honesto que busca ganhar dinheiro para pagar
suas contas. Desta forma, é extremamente carismático e logo ga-
nha a empatia de todos, o que, ao final, lhe garante uma recompensa
– a companhia de uma das personagens femininas. Ou seja, o objeti-
vo pelos quais movem-se as peripécias da trama: o sexo.
Cunha e Giordan (2009) relatam as diversas formas pelas quais
a imagem de ciência e cientistas aparecem em diversas épocas e
filmes, dentre elas há destaque para o aparecimento de um cientis-
ta carismático e trapalhão como estratégia para atingir a derrisão e
agradar ao púbico onde o

cinema passava apresentar um cientista atrapalhado que fa-


zia experiências incríveis e arriscadas, mas que nem sempre
‘davam certo’. Essas experiências surgiam sempre no mo-
mento oportuno para salvar alguém ou, se as experiências
não ‘davam certo’, elas eram corrigidas no final do filme. Nes-
sa época, os cientistas conquistaram a simpatia do público
e eram então vistos como pessoas amistosas e divertidas
(CUNHA, GIORDAN, 2009, p.13)
Parte 2

116
Embora exista em outros gêneros, na comédia o estereótipo de-
termina, com maior recorrência, marcas físicas dos personagens,
tornando-os caricaturas reincidentes. Cientistas excêntricos, em
maior ou menor grau, podem ser encontrados em filmes recentes
como as animações “Frankenweenie” e“Tá chovendo hambúrguer”,
assim como em filmes mais antigos, como “O incrível monstro tra-
palhão”, “Edward, mãos de tesoura”, “De volta para o futuro” (um es-
tereótipo inconfundível), e o já debatido “O inventor da mocidade”.
Apesar da popularidade desse “típico cientista” das comédias
com o público, é importante discutir o papel que os meios de comu-
nicação em massa têm na divulgação e reforço de ideais. Segundo
Siqueira (2006, p. 132):

O cinema, a televisão e a Internet – meios que exploram


fortemente o aspecto visual – são amplamente divulgados
como formas de lazer. O entretenimento que promovem, no
entanto, é constituído pela veiculação de informações – pu-
blicitárias, jornalísticas, narrativas e, até, científicas e tecno-
lógicas. Esses meios de alcance de massa poderiam ser mui-
to úteis à sociedade na transmissão de informações, de saber,
de conhecimento, na divulgação científica. A grande questão
é que geralmente não são; preocupam-se mais intensamente
com a manutenção comercial de canais e produtoras do que
com a qualidade das informações prestadas ou com a inova-
ção artística e estética.

O uso de estereótipos, reincidente em toda a história do cinema,


mostrou-se uma receita rentável para a construção e divulgação
das pornochanchadas,a qual se constituía por um conteúdo de fácil
elaboração que visava popularidade. E conseguiram: as pornochan-
chadas levaram quantidades enormes de espectadores ao cinema.
Entretanto, é preciso reforçar que, mesmo com personagens caris-
máticas, o cinema apresenta um discurso de múltiplas camadas.
Ou seja, além da superfície narrativa –a camada mais denotativa
das ações e reações – há uma série de ideias, conceitos e represen-
tatividades culturais não necessariamente evidentes ao espectador.
Logo, é preciso permanecer atento e crítico aos estereótipos disse-
minados pelo cinema, pois, muitas vezes, o uso de características
consolidadas, associadas a certos grupos, pode tornar-se uma ferra-
menta de expressão e reverberação de preconceitos, como expres-
Começando a despir

sa Sales Filho (1997, p. 136):

Nos produtos dos meios de comunicação de massa, a re-


presentação constante de tipos engraçados, caricatos, pode

117
surgir em função de modelos revestidos de categorias de
prestígio, categorias essas que são preconceituosamente
associadas (como o tipo físico, cultura, sucesso, desenvol-
vimento etc). A ridicularização aqui, pelo avesso, confirma a
existência de modelos considerados ideiais.

Como discutido, “O Gênio do sexo” (junto a outros títulos de por-


nochanchadas) reforça o caráter social machista e androcêntrico,
onde o homem é o centro das atenções e apresenta-se sempre em
níveis de dominação, ao passo que a figura feminina é marginaliza-
da e rebaixada à posição de objeto que deve servir aos desejos mas-
culinos. Não apenas dos personagens, mas também dos espectado-
res. Pontuando esse conjunto de lugares comuns, há a perpetuação
do estereótipo do cientista que acaba por cristalizar uma imagem
popular equivocada da atividade científica, mantendo visões como
a da ciência utilitária, a do cientista como um ser excêntrico e dota-
do de grande capacidade cognitiva, mas sem aptidões de convívio
social ou reconhecimento de riscos associados às criações cientí-
ficas. Tal situação acaba por consolidar o abismo entre a população
e a real atividade científica, podendo implicar em complicações de
caráter social e educacional. O gênio científico, segundo o cinema,
está mais para alguém vindo de uma lâmpada mágica (talvez essa
lâmpada seja a do projetor!), do que para alguém de carne e osso,
como somos todos nós.

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Parte 2

118
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min.), color, sem legenda, Port.
O inventor da mocidade (Monkey Business). Dir. Howard Hawks.
Estados Unidos: Twentieth Century Fox Film Corporation, 1952.
DVD (97 min.), P&B, legendado, Port.

Começando a despir

119
Muriel Amaral AS REPRESENTAÇÕES DA PERVERSÃO
E O ESTEREÓTIPO NO FILME
“MACHO, FÊMEA E CIA – A VIDA ERÓTICA
DE CAIM E ABEL”

Começando a desnudar-se
Transgressora pela poética visual e pelos
temas abordados, a pornochanchada brasileira
foi subversiva em apresentar cenas de nudez e
sexo explícito ainda na vigência do regime mili-
tar (1964-1985). Executada sob baixas cifras orça-
mentárias, com forte apelo da sexualização dos
corpos e qualidade técnica deficiente, a porno-
chancada levou um contingente considerável de
pessoas para as salas de projeção, não fazendo
distinção entre os indivíduos que a assistissem.
A pornochanchada não se limitava apenas à pro-
dução de filmes eróticos, mas mesclava-se com
outras narrativas como dos dramas, policiais,
suspense e melodramas (Abreu, 2006).
A idealização dos filmes da pornochanchada
começou no Rio de Janeiro na década de 1960,
mas se consolidou mais significativamente de
São Paulo, mais especificamente no centro da ca-
pital paulista, na região da rua do Triunfo, conhe-
cida popularmente por Boca do Lixo. Aquela re-
gião foi próspera na produção fílmica e de lá que
saíram muitas das produções que foram exibidas
pelas salas de cinemas do país, sendo muitas des-
sas produções independentes, no sentido de não
receber incentivos governamentais e ir contra as
referências de uma cultura erudita, dispondo no
mercado produtos culturais de baixo orçamento.
A pornochanchada e as produções da Boca
do Lixo tiveram papéis significativos na forma-
ção da indústria cultural brasileira ao estabelecer
uma relação de consumo e produção em larga

121
escala dos filmes que circularam pelo Brasil, muitos dos filmes gra-
vados pelas produtoras da Boca não se limitaram apenas às metró-
poles, mas alcançaram também as cidades interioranas.
Para Abreu (2006), a pornochanchada surgiu em um contexto
em que havia fortes movimentos da contracultura e a emergência
de consumo de produtos culturais que não acompanhavam os valo-
res e as referências produzidas e reproduzidas pela cultura erudita
e elitista. Em tons satíricos e irônicos, as narrativas das pornochan-
chadas desafiavam as estruturas conversadoras. Alguns filmes,
novelas, músicas, peças teatrais foram barrados para exibição por
conta da atuação da censura no País, todavia, poucos dos filmes
da Boca, incluindo a pornochanchada, foram censurados, mesmo
apresentando uma poética de alto teor erótico.
Para esse fenômeno, Caio Lamas (2012) se apoia nas reflexões
de Michel Foucault sobre poder e censura para explicar as razões
para esse fato. Para ele, sob olhar foucaultiano, o poder é transitó-
rio e impessoal e não necessariamente punitivo, além de ser um
campo de disputa e de tensão, em que as forças não se encontram
fixas, propondo deslocamentos de atuação. Isso oferece uma con-
dição de elucidar que mesmo havendo a repressão, tanto do Estado
como de algumas parcelas da sociedade em proibir a circulação e
produção desses produtos, há também uma força de intensidade
semelhante que faz com que o sistema não seja reprimido e con-
tinue em atividade. Lamas acredita que a censura acontece pela
ordem do desafeto que pode causar ao sujeito ou a algum grupo;
ao apresentar narrativas humoradas com altas doses de erotismo,
a pornochanchada não poderia ser interpretada como sendo ape-
nas ofensiva ou obscena, uma vez que arrebanhava várias pessoas
aos cinemas que desenvolviam alguma experiência estética com
aquela poética visual. “O obsceno é, sobretudo, uma variedade do
ofensivo, gerando estados mentais desagradáveis: não é possível
ter um inequívoco prazer com a pornografia e, ao mesmo tempo,
classificá-la de obscena” (Lamas, 2012, p.8).
A pornochanchada não seria tão ofensiva, mas certamente
transgressora e invasora e, quiçá, perversa. A perversão ocorre por
não reconhecer a sacralidade de alguns temas como matrimônio e
religiosidade e deslizar sobre as estruturas de poder, ou melhor, sa-
tiriza, vulgariza e recondiciona os valores morais. A perversão, para
a Psicanálise, é considerada uma condição estruturante do psiquis-
mo humano, assim como as neuroses (obsessão e histeria) e a psi-
cose. A intenção desse texto não é de relatar a forma estruturante
Parte 2

da perversão traçando uma linha histórica desse conceito como fez


122
Peixoto Junior (1999) ao elaborar desde as primeiras qualificações
das perversões ainda no século XIV às manifestações perversas da
sociedade do consumo no século XXI, todavia, torna-se necessário
fazer algumas colocações sobre esse conceito.
A perversão é uma das três saídas da realização do complexo
do Édipo, período iniciado na infância do sujeito e que é elaborado
de forma definitiva na adolescência, em que é realizada a castração
simbólica desse indivíduo. De modo muito sintético, a perversão
seria a subversão da atuação do pai pela renegação (verleugnung,
termo em alemão). O sujeito não reconhece o processo de castração
e, assim, renega a força castradora e objetiva os gozos.
Para Bleichmar (1984), a renegação ocorre na realização do
complexo do Édipo em que a criança, ainda na fase de união com
mãe, não a reconhece mais como uma figura fálica que é dotada de
poder e reconhece na figura do pai uma entidade capaz de extinguir
a relação de gozo entre ela própria e o seu objeto de prazer, no caso,
a mãe. Por isso, a busca incessante pelo gozo que não reconhece
as fronteiras de limites e as forças castradoras. Assim, justifica a
intenção de Freud (1996) ao afirmar sobre a substituição imprópria
do objeto sexual e o surgimento do fetichismo como sintoma da
perversão: a substituição do falo simbólico pelo falo imaginário.
Mesmo sendo considerada uma prática convencional ao psiquis-
mo humano, como o próprio Freud apontou, ao aludir sobre os está-
gios do desenvolvimento psíquico, a ocorrência fetichismo e outros
sintomas perversos se tornam patológicos quando o “anseio pelo
fetiche se fixa (...) e se coloca no lugar do alvo sexual normal, e ainda,
quando o fetiche se desprende de determinada pessoa e se torna o
único objeto sexual” (Freud, 1996, p.146). Assim, a busca pelo gozo e
a ocorrência da fetichização são realizadas não apenas para o pra-
zer do próprio indivíduo, mas também em nome da mãe que fora
reconhecida pelo sujeito como alguém castrado pelo pai e o fetiche
seria o improviso pela ausência do falo da mãe.
No campo social, as perversões não são interpretadas apenas
pelo viés da sexualidade, e trazem à tona alguns referentes como a
não aceitação “da proibição imposta pela lei e pelos seus efeitos (...)
justificando todo um programa, toda uma maneira de existir como
garantia de usufruir de um gozo que no final pode se reduzir sim-
plesmente ao gozo de transgredir” (Szpacenkopf, 2002, pp.36-37).
Nesse momento, é importante considerar outro lado das perver-
Começando a despir

sões, mesmo reconhecendo o lado negativo de “dessubjetivação e


instrumentalização do outro, além da fabricação de leis próprias”
(Szpacenkopf, 2011, p.23) há ainda porções dessa estrutura que tra-
123
zem reflexões importantes para reconsiderações de sentido. Na
perspectiva de Roudinesco (2008), as perversões podem ser con-
sideradas como discursos que ora não reconhecem as represen-
tações de poder, ora subvertem os códigos da ordem moral social.
Além de reconhecer os pontos negativos da perversão, a autora
posiciona que a perversão também pode servir de fomento para a
transgressão, enfrentando desafios e propondo novas ressignifca-
ções sociais. O aspecto transgressor da pornochanchada se encon-
tra no propósito de fazer emergir temas considerados tabus e into-
cáveis na sociedade brasileira que são assuntos que tangenciam
sexo e erotismo, bem como uma série de desejos, comportamentos
e práticas de sexuais.
Nesse ponto que o filme “Macho, fêmea e cia – a vida erótica
de Caim e Abel” torna-se um objeto instigante de ser analisado na
perspectiva da representação das perversões, principalmente ao
que se refere às concepções de gêneros. Quando esse filme foi pro-
duzido, o Brasil estava em processo de democratização e não havia,
por iniciativa do governo, medidas mais enfáticas de censura que
proibissem a produção, circulação e exibição desses produtos cul-
turais. Aliás, esse filme faz parte de um período das produções da
Boca do Lixo que apelaram de modo mais enfático para a pornogra-
fia como estratégias mercadológicas para enfrentar a invasão de fil-
mes eróticos estrangeiros no país (Abreu, 2006, p.42). Mesmo reco-
nhecendo que essa produção subverte e transgride códigos morais,
alguns signos e representações sociais permanecem cristalizados
e, por isso, além do apelo erótico e o baixo custo das entradas, que
os filmes de pornochanchada conseguiram arrebanhar público.
Na mesma medida em que a poética da pornochanchada era
transgressora e perversa na apresentação das imagens, a repre-
sentação social dos personagens ainda se encontrava estanque,
estereotipada em elementos que não ofereciam mobilidades de sig-
nificação de gêneros e identidades sexuais. Para comprovar essa
hipótese levantada nesse texto, serão analisados trechos do filme
em relação às passagens bíblicas, tendo como metodologia refle-
xões sobre sexualidade a partir da óptica de Elisabeth Roudinesco
(2008), Sigmund Freud (2013), Beatriz Preciado (2013), Michel Fou-
cault (1986, 2010, 2014) e Michel de Certeau (2011).

Entre o sagrado e o profano


A versão erotizada para relatar a criação da humanidade, pro-
Parte 2

posta por Mario Vaz Filho para o filme “Macho, fêmea e Cia – a vida
124
erótica de Caim e Abel” trafega em várias estâncias da simbologia
humana construindo momentos trágicos, subversivos e perversos,
satirizando a passagem bíblica que apresenta o começo do universo,
a criação de Adão e Eva e dos seus descendentes. Já na proposta do
filme encontra-se o primeiro movimento de perversão em subverter
um dogma, no caso, os cânones religiosos cristãos. A intenção desse
texto não é de fazer juízo de valores sobre as cenas de sexo explíci-
to que compõem o filme, nem de apresentar críticas às qualidades
poéticas das cenas, tão pouco de realizar julgamentos sob a ordem
moral da apropriação de uma passagem bíblica para o deboche da
pornochanchada, mas de analisar como foram construídas as re-
presentações de gênero e as relações que são estabelecidas que ora
tendem a significações estereotipadas com alta carga de preconcei-
to, ora são edificadas representações transgressoras e perversas, es-
tabelecendo agenciamentos que subvertem as estruturas de poder.
Antes de analisar as formas de representação de gênero do fil-
me, é importante resgatar a narrativa bíblica sobre a passagem que
apresenta Adão e Eva. De acordo com o livro Gênese, o primeiro da
Bíblia no antigo testamento, Deus criou o homem (Adão) do barro e
com o sopro deu fôlego da vida (Gn. 2-8) e a partir de uma costela,
Deus criou a mulher (Eva) para sejam ambos uma carne (Gn. 2-24),
a Sua imagem e semelhança. A única restrição imposta por Deus ao
casal era que não comesse o fruto da árvore proibida, mas, por deso-
bediência, Eva foi tentada por uma cobra e comeu o fruto e depois o
ofereceu a Adão. Como castigo, além da descoberta da sexualidade,
Deus os expulsa do paraíso e como penitência outorga a dor à mu-
lher no parto e a labuta ao homem.
Adão e Eva tiveram três filhos: Caim, Abel e Sete. Ao menos na
Bíblia, muito pouco se apresenta sobre Sete. As desavenças entre
Caim e Abel começaram quando o Caim começou a sentir ciúmes
de Abel, por que esse seria preferido por Deus. Abel oferecia o me-
lhor da colheita em adoração a Deus e Caim oferecia apenas as so-
bras do seu trabalho como devoção, por isso, a inveja e a intenção
de Caim matar o irmão. Na narrativa, a família cresce, mas a Bíblia
não apresenta como surgiram os demais descendentes de Adão e
Eva, retratando apenas a morte e o nascimento dos personagens.
Com a Terra povoada por seres humanos e muita contravenção
acontecendo, isso despertou a insatisfação divina quanto aos com-
portamentos humanos. Para recomeçar com uma nova proposta de
Começando a despir

povoamento da Terra, Deus nomeia Noé para salvar sua família e


os pares de animais, embarcando-os em uma arca porque a Terra
passaria por um dilúvio para que assim pudesse ser regenerada da
125
maldade causada pelo próprio homem. E, após esse episódio, cabe-
ria a Noé e aos seus descendentes povoar a Terra. O livro da Gêne-
sis se estende por outras passagens, mas esse trabalho se restringe
a esse recorte.
Na trama do filme, a história é contada de modo debochado. A
começar pelo fato de todos os atores encenarem nus, com exceção
do ator que interpreta a cobra, que no filme tem o nome de Cobra
Amarela. Ao contrário da versão bíblica em que ela se apresenta
como uma figura perigosa e que é preciso manter distância, no filme
o réptil medeia as intervenções entre Deus e a humanidade. Além
disso, a árvore do fruto proibido é representada por duas plantas que
produzem réplicas de pênis e vaginas. Na versão do filme, Adão es-
tava carente por uma companhia e queria uma companheira para
não se masturbar com tanta frequência; Adão foi representado
como um onanista compulsivo até a criação de Eva. Alguns com-
portamentos como a masturbação, a homossexualidade e a histe-
ria feminina, segundo a óptica da medicina moderna, eram vistos
como atitudes que poderiam ser corrigidas segundo uma ordem dis-
ciplinar já que se tratavam de patologias psíquicas. Foucault (2010)
relatou que houve, inclusive, propostas de projetos arquitetônicos
em espaços de concentração de homens para conter algumas des-
sas práticas consideradas subversivas, não apenas da masturbação,
mas também dos desejos do corpo. Foucault ainda afirmou que, pela
intervenção de discursos médicos, a masturbação deveria ser conti-
da para não comprometer a qualidade mental do indivíduo. Ele cita
o livro “Livre sanstitre” que apresentou e ilustrou sobre as perturba-
ções que o comportamento masturbatório pode causar

[...] de um lado, páginas em que são analisadas todas as con-


sequências desastrosas da masturbação e, na página em face,
a fisionomia cada vez mais decomposta, devastada, esque-
lética e diáfana do jovem masturbador que se esgota. Essa
campanha comporta igualmente instituições destinadas a
curar ou tratar dos masturbadores, prospectos de remédios,
anúncios de médicos que prometem às famílias curas seus
filhos desse vício (Foucault, 2010, p.204).

De acordo com o autor, a proibição da masturbação segue o dis-


curso de recalque do gozo, segundo uma relação de repressão “pura
e simples do corpo de prazer e da exaltação do corpo” (Foucault,
2010, p.206), em que a questão não é apenas moral, mas abrange
uma classificação patologizante que se realiza pela somatização
Parte 2

dos discursos médicos em desenvolver incursões sobre os des-


126
gastes físicos e mentais que podem ocorrer nos sujeitos que fazem
uso dessa prática. A masturbação, na visão dos discursos médicos,
poderia fomentar no indivíduo traços de comportamentos psicóti-
cos, já que essa prática já foi considerada como sendo um desvio do
comportamento humano.
No filme, os prazeres advindos da masturbação não chegam a
ser considerados nocivos à saúde mental ou do corpo, mas é com-
preendida enquanto uma forma monótona de prazer com o corpo.
Em uma das passagens, Adão questiona a Cobra Amarela sobre a
possibilidade de mudar a própria condição quanto aos prazeres.

Adão: Assim não dá?


Cobra Amarela: Eu não entendi.
Adão: Até quando eu vou ficar nessa?
Cobra Amarela: Dá para se explicar melhor?
Adão: O negócio é o seguinte: dois pontos. Eu já estou cansa-
do de bater punheta. Já estou com até calo na mão e outra,
vou me aborrecer.

A Cobra apresenta a exigência de Adão a Deus que se sente in-


comodado com a cobrança dele, mas ela O convence da necessi-
dade de atender ao pedido de Adão com dois argumentos: por que
ela própria seria a escolha de Adão para ser sua parceira sexual e
também pela empatia da situação do sujeito que se encontra pelo
excesso de masturbação. Para conter o comportamento masturba-
tório de Adão que, segundo o filme, Deus criou Eva. Pela Bíblia, ela
teria sido feita a partir da costela de Adão, mas na subversão fílmica,
ela teria sido constituída a partir das nádegas dele. Assim, no filme,
a criação de Eva foi apenas o desenvolvimento de um objeto pro-
duzido para a satisfação do desejo masculino. Quando analisamos
essa relação de modo simbólico, as transas entre Adão e Eva não
deixaram de ser masturbatórias uma vez que ela foi feita a partir
do corpo dele e que a relação entre eles se estabelece apenas para o
prazer, interpretando-a como sendo apenas um objeto de gozo.
Essa passagem do filme merece destaque por alguns motivos.
Além da subversão da versão bíblica, a parte escolhida para que
fosse dada a origem de Eva são as nádegas, de onde são expelidos
fezes e gases, o que pode remeter a uma construção de desprezo e
de menosprezo, representação de uma condição subalterna, além
de condicionar a mulher à condição de dejeto. Depois de criada,
Começando a despir

Eva também é representada enquanto uma mulher fútil e avessa


ao sexo, para transar exige de Adão contrapartidas como jantares,
idas ao cinema e presentes; uma representação muito fetichizada e
127
estereotipada da qualidade de ser mulher. Além dessas representa-
ções, uma das preocupações dela é quanto à aparência, ou melhor,
de insatisfação com a beleza. Essas representações naturalizam e
fomentam significações muito limitadas e estereotipadas sobre o
gênero feminino.
Na contrapartida desse discurso, a representação das nádegas,
além de ser uma parte do corpo de alta carga erótica, tanto em ho-
mens como em mulheres, a exposição delas também pode ser com-
preendida enquanto um manifesto de resistência, um deboche às
estruturas de poder. Não é raro, em protestos, pessoas mostrarem
as nádegas como forma de resposta para subverter a condição im-
posta. O deboche, a ironia o escárnio de expor o traseiro em ma-
nifestações faz desse comportamento um discurso subversivo por
não reconhecer autoridades e desafiar as estruturas de poder em
nome de uma condição libertária ou do próprio gozo.
Desafiar os poderes instaurados e refutar as representações fá-
licas que impedem o gozo são características muito marcantes dos
discursos perversos. Por isso, que o entendimento da perversão não
se realiza apenas enquanto um comportamento negativado, mas de
“criatividade, superação de si, grandeza” (Roudinesco, 2008, p.11). As-
sim, os comportamentos perversos podem ser interpretados tanto
como subversões abjetas por serem sintomas “do exercício de dita-
duras mais ferozes, a expressão soberana de uma fria destruição de
todo laço genealógico” (p.11), como também podem ser expressões
exponenciais de movimentos libertários que podem serem subli-
mes por que “se negam a se submeter à lei dos homens” (p.11). Nessa
perspectiva que a origem de Eva, a partir das nádegas de Adão, pode
ser considerada uma simbologia de uma perversão ao discurso re-
ligioso fomentado pela Bíblia ao longo de vários anos na história. O
recurso do deboche nessa passagem faz com que o filme apresente
um discurso que desliza sob a superfície da sacralização das práti-
cas e narrativas religiosas.
Ainda sob o olhar da perversão, assuntos sobre sexualidade e
identidade também precisam ser tomados com mais profundidade.
Na película, Abel não é representado por um homem heterossexual,
mas por uma travesti. A construção dessa personagem é feita sob
signos estereotipados, com trejeitos de uma pessoa extremamen-
te efeminada e obcecada por sexo. Mais uma vez, o filme reforça
qualidades muito refratárias e que contribuiram muito pouco para
representações que fossem além das significações construídas sob
elementos preconceituosos ou de estigma social. Por outro lado, a
Parte 2

perversão de enfrentar a heteronormatividade dos personagens bí-


128
blicos consagrados pela heterossexualidade compulsória se torna
um ato de coragem para a narrativa do filme, subvertendo estrutu-
ras que são consideradas naturalizadas segundo uma prática social.
Essa tomada de atitude não reconhece as qualidades do gêne-
ro, tão pouco de identidade, como elementos fechados em códigos
absolutos de representação, além de sublimar os ditames biológi-
cos. Preciado (2014) considera que a formação dos gêneros e das
sexualidades acontece enquanto atos políticos carregados de alto
valor de criticidade aos valores impostos pela sociedade binária,
falocêntrica e heterocentrada que reconhece apenas no recorte
biológico nas genitálias representação de gêneros, identidades e
sexualidades. Destarte que Preciado desconsidera as condições
biológicas para reconhecer os predicados entre homens e mulhe-
res. A contrassexualidade, conceito desenvolvida pela autora, (...)
“renuncia não só a uma identidade sexual fechada e determinada
naturalmente, como também os benefícios que poderiam obter de
uma naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de
suas práticas significantes” (Preciado, 2014, p. 21). O título do fil-
me expande a outras formas de pensar gêneros e sexualidades que
fogem da dicotomia homem e mulher; e apresenta “cia”, abrindo
caminhos para outras subjetividades.
Além de configurar uma relação incestuosa, que será abor-
dada no decorrer desse texto, no filme, na cena em que Caim
aborda Abel para transarem, o próprio Abel não se reconhece en-
quanto um homossexual ou travesti, aliás, não se define pelo cor-
po, nem pelo discurso, deixando suspensa a orientação sexual ou
identidade de gênero.

Caim: Tens um belo cu, até dá para dar uma fodinha.


Abel: Eu não sou bicha
Caim: Tudo bem, não vamos discutir, mas bem que você
poderia quebrar meu galho.

A refutação das qualidades dos gêneros e das identidades se


torna representações também perversas para as narrativas religio-
sas e biológicas. São as epistemologias queers que se encarregarão
de explicar a diluição das identidades nos estudos da sexualida-
de. A palavra da língua inglesa conotaria ofensa aos indivíduos
que pertencem à diversidade sexual, entretanto, foi incorporada
Começando a despir

como sendo uma subversão das identidades: daquilo que não pode
ser considerado nem como sendo bissexual ou homossexual, tão
pouco como heterossexual, e foge das amarras do processo estru-

129
turante das sexualidades, identidades e gêneros por sublimar as
relações de significação.

O queer se torna, assim, uma atitude epistemológica que não


se restringe à identidade e ao conhecimento sexual, mas
que se estende para conhecimento e a identidade de modo
geral. Pensar queer significa questionar, problematizar, con-
testar todas as formas bem-comportadas de conhecimento
e de identidade. A epistemologia queer é, neste sentido, per-
versa, subversiva, irreverente, profana, desrespeitosa (Silva,
2000, p.107).

O conceito atribuído por Silva de forma alguma o desqualifica


enquanto um comportamento nocivo ao psiquismo humano, mui-
to pelo contrário, é o lado positivo da perversão que não reconhe-
ce fronteiras o enquadramento, tornando-se uma epistemologia
libertária e transgressora.
Ainda no compasso da subversão de valores, o filme aborda
também a relação incestuosa entre Abel e Caim. Por não encon-
trar parceiras, Caim propõe a Abel a realização de práticas sexuais.
No filme, a masculinidade e virilidade de Caim é apontada a todo
momento, seja pela prática de atividades físicas ou pela compul-
são sexual, reforçando o estereótipo da masculinidade pela poten-
cialidade dos músculos ou pelo apetite sexual. O horror ao incesto
é considerado um tabu pela Psicanálise. Para Freud (2013), esse
acontece segundo uma relação edipiana que fora estabelecida pelo
recalque do desejo. Para explicar essa medida, Freud recorreu à
verificação das relações estabelecidas em uma tribo ancestral em
que os valores culturais eram peculiares quanto ao modo de vida e
a representação de divindades. Essa tribo tinha por adorações as
simbologias de totem e a condenação de comportamentos incestu-
osos, sendo o totem considerado

[...] o ancestral comum do clã, mas também o seu espírito pro-


tetor e auxiliar, que lhe envia oráculos, e, mesmo quando é
perigoso para outros, conhece e poupa seus filhos. Os mem-
bros do clã, por sua vez, acham-se na obrigação, sagrada e
portadora de punição automática, de não matar (destruir) seu
totem e abster-se de sua carne (ou dele usufruir de outro) [...]
Em quase toda parte em que vigora o totem há também a lei
de que membros do mesmo totem não podem ter relações
sexuais entre si, ou seja, também não podem se casar. É a
instituição da exogamia, ligada ao totem (Freud, 2013, p.8-10).
Parte 2

130
A morte do totem como um organizador da vida na sociedade
provoca a neurose nos indivíduos que viviam sob a regência des-
se personagem mítico. Essa ausência, quando não simbolizada de
tal forma que amenize o mal-estar, se torna um tabu por não ser
ressignificada, tornando-se uma representação recalcada pelo in-
consciente. Violar os tabus pode ser uma experiência traumática
no sentido de trazer à tona simbologias que se encontravam recal-
cadas, assim, a própria sociedade assume “a punição dos infratores,
cuja conduta pôs em perigo os companheiros” (Freud, 2013, p. 14).
Nessa relação que se encontra as produções da pornochanchada,
em especial desse filme, enquanto uma provocadora do mal-estar
por fazer emergir temas que são considerados tabus pela sociedade
e perversa por deslizar sobre os dogmas da religiosidade.
Do ponto de vista da produção cultural, a pornochanchada tem
o mérito de trazer à tona os tabus para as telas do cinema, nem
sempre os problematizando, mas, ao menos, expondo-os aos espec-
tadores. Em um diálogo entre a Historiografia e a Psicanálise, Certe-
au (2011) reconhece que os dois campos de conhecimentos operam
em referências distintas quanto ao entendimento sobre o passado e
o presente. Enquanto a Psicanálise alega a imbricação entre o pas-
sado e o presente e a ocorrência da repetição em que o presente
repete o passado, a Historiografia (p. 73) considera a relação entre
passado e presente como sucessividade, correlação (em maior ou
menor grau), efeito (um segue o outro) e da disjunção (um ou o outro,
mas não os dois mesmo tempo). O encontro que Certeau percebe
entre os dois campos é no rompimento necessário de compreender
que a formulação da história precisa contemplar também as repre-
sentações que foram silenciadas pelo poder. Aquilo que foi esqueci-
do pela relação de poder ou pela violência imposta por qualquer que
fosse o motivo é trazido à tona também para a formação da história.
Na Psicanálise, esse processo constrói o recalque que se encontra
no inconsciente, ou seja, um arcabouço de signos que não foram
simbolizados para a significação do consciente e que em determi-
nados momentos emergem como representações que deverão ser
trabalhadas e não mais negligenciadas. Como no psiquismo huma-
no, as questões sociais se edificam na produção da história e da cul-
tura sob a perspectiva de outros movimentos que fogem à regra da
força de poder no espaço social. O retorno do recalque dentro das
produções culturais nem sempre é previsível na história, a emersão
Começando a despir

acontece na necessidade de reformular conceitos, representações


e significações como aconteceu, por exemplo, no surgimento dos
movimentos artísticos do começo do século XX, pela ascensão do
131
rock e da contracultura a partir dos anos de 1960 como formas de
contemplar outras formas discursivas de cultura.
O recalque, aquilo que foi posto no limbo da memória e da lem-
brança emerge, surge como sintoma do trauma realizado, como
uma manifestação que atormenta e incomoda o universo cons-
ciente e civilizado. As repressões e as manifestações das sexuali-
dades e dos desejos nas produções culturais das décadas de 1960
e 1970 no Brasil se tornam um exemplo visível desse recalque em
que, mesmo havendo a possibilidade de veiculação e divulgação de
assuntos sobre sexualidades e tabus, havia censuras e restrições. A
pornochanchada seria uma simbologia do retorno desse recalque
que não foi simbolizado, mas sim, somatizado por um movimento
de castração, imposto e outorgado do desejo como sendo algo ab-
jeto e indiscutível, uma vez que, nem todas as representações das
sexualidades eram pertinentes nas produções culturais no período
da ditadura militar pelo cinema. “Se o passado (ao ter lugar e forma
em um momento decisivo no decorrer de uma crise) é recalcado,
ele retorna, mas sub-repticiamente, ao presente do qual havia sido
excluído” (Certeau, 2011, p.71). Se os desejos, os tabus e as sexuali-
dades não são simbolizados, esses emergem como sinais represen-
tativos de perversões por não se restringirem aos espaços de es-
quecimento ou indiferença; desafiam as estruturas de poder. Assim,
é possível abrir outros caminhos para o entendimento da história
que oferecem saídas para “reconduzir as representações de outrora
ou atuais a suas condições de produções” (Certeau, 2011, p.73), com
isso, a pornochanchada inaugura outras possibilidades de poéticas
visuais e também de enredos aos filmes brasileiros.
Abordar as sexualidades, incesto, homossexualidades nos
enredos nos filmes da produção cultural é um sintoma do recal-
que sofrido pela castração dessas representações e, de forma
muito debochada e sexualizada, a pornochanchada trouxe esses
temas às telas, abrindo outras possibilidades de entendimento
das linguagens, atuação profissional e também sobre os desejos
dos espectadores de cinema.
Ainda sobre o comportamento entre os irmãos, é interessante
considerar o desenvolvimento da relação. A sexualidade de Abel
é escancarada, em momento algum do filme ele teve a própria se-
xualidade ou desejo velados. Para que a diversidade sexual não se
propague na Terra e Caim não mantenha relações sexuais com o
irmão, ele relata o seu desejo por mulheres à Cobra Amarela que,
por sua vez, entra em contato com Adão e sugere que ele e Eva
Parte 2

tenham mais filhos para povoar o mundo. Com mais pessoas no


132
mundo, Caim acredita que possa reverter a sexualidade de Abel
que esse transe com outros homens. Caim chega a retirar o irmão
de um grupo de homens para atirá-lo em cima de uma mulher e
obrigá-lo a transar com ela. Essa passagem pode ser comparada às
medidas de vigilância dos prazeres pela biopolítica em que, através
de tecnologias de controle do corpo e do desejo, pudesse fomentar
subjetividades. Essa passagem do filme se assemelha ao concei-
to de panóptico abordado por Foucault (2014) quando são criadas
as tecnologias para a vigília dos comportamentos. As tecnologias
serão compreendidas não apenas como dispositivos materiais ou
métodos para a execução de tarefas, mas contemplando uma série
de práticas e discursos que podem interferir nas subjetividades do
próprio sujeito e do outro (Foucault, 1985), naturalizando e norma-
tizando regimes e comportamentos segundo uma ordem de poder.
Na sequência do filme, o comportamento lascivo de homens e
mulheres que habitavam a Terra desperta a ira de Deus que, por sua
vez, anuncia o dilúvio. Nesse momento há um anacronismo com
a versão bíblica. A Cobra é quem comunica a chegada do dilúvio e
sugere que apenas Caim e Abel fujam do espaço em que estavam.
Errantes e na companhia da Cobra, os três saem em busca de um
lugar seguro. Antes de chegarem a algum destino, Caim mata o ir-
mão não pela inveja despertada, como apresenta a Bíblia, mas por
não tolerar a sexualidade do irmão. Caim mata Abel chutando-o na
genitália depois de flagrá-lo transando com um homem.

Caim: Sua bicha de merda, vou te ensinar a ser homem.


Abel: Não vem que não tem, o cu é meu e eu faço dele o que
eu quero.
(Caim dá pauladas em Abel).
Cobra Amarela: Para com isso, você vai matar o cara.
Abel: Bate mais! Bate que eu gamo!
Caim: Seu filho da puta, fresco do caralho.
(Caim chuta a genitália de Abel)
Cobra Amarela: Agora está certo. Caim não matou Abel com
uma paulada, mas, sim, com um chute no saco. A história
segue e o seu rumo.
Caim: Porra, matei a bicha! Tô fodido! E logo agora que ela
ficou de pau duro.
Cobra Amarela: Vamos embora, já ficamos aqui muito tempo.
A água logo nos alcançará.
Começando a despir

Um ato de violência à diversidade sexual, já que não se reco-


nhece as identidades e desejos diferentes à regra heteronormativa
como legítimas de convivência e respeito. Esse trecho apresenta o
133
reforço em apagar ou aniquilar as representações das sexualida-
des que colocam em risco o reconhecimento dos comportamen-
tos heteronormativos e também legitima que a qualidade mascu-
lina de ser homem se encontra nos expoentes biológicos como a
ocorrência de ereção.
No Brasil, no final do século XIX e meados do século XX, medi-
das de intervenções médicas como tratamento com choques elé-
tricos, medicalização e injeções de hormônios, além das interven-
ções jurídicas para confinamento e punição, foram adotadas para
converter homossexuais em heterossexuais. Green e Polito (2006)
ilustram esses acontecimentos com a vivência de Zazá, homosse-
xual de comportamento lascivo para a época que fora preso várias
vezes por ser acusado de pederastia no Brasil, na década de 1930.
Há também o caso emblemático de Febrônio Índio do Brasil (Trevi-
san, 2000) que foi objeto de estudo de estudo da psiquiatria e ciên-
cias jurídicas para que fossem desvendadas as inquietudes que as
homossexualidades traziam, no final da década de 1920.
Retornando ao filme, quando Caim e a Cobra Amarela chega-
ram a um lugar, havia um outro grupo de pessoas liderado por Não
É, uma sátira ao profeta Noé, um homem de mais idade e de fala
embaraçada. Mesmo sendo um deboche, o nome do sujeito é Não
É. Não é, o que? Não é apenas de uma única e exclusiva forma que
a história se desenvolve? A verdade é uma construção que tem va-
lidade segundo um código de poder que a legitima e a estabelece
como sendo verdade? O nome do personagem pode ser analisado
segundo uma série de perspectivas, mas que pode sugestionar que
o direcionamento de um olhar edificado, enquanto um código de
poder. Na versão bíblica, a pedido de Deus, Noé construiu uma arca
para salvar a própria família e os animais. Com a chegada de Caim
e da Cobra Amarela, essa sugere que o mundo deva seguir o seu
caminho e ser povoado e começa, assim, mais práticas orgiásticas.
Até a família de Não É, que fora escolhida por Deus para ser salva,
se entrega aos prazeres do sexo. Já encaminhando para o final do
filme, Cobra Amarela questiona a fidelidade da esposa de Não É, já
que essa é flagrada transando com outros homens.

Cobra Amarela: Quem diria, seu Não É?! O senhor está


sendo corneado!
Não É: Não tem importância. Isso não estraga, lavou tá novo!

Nos dogmas do Cristianismo, o matrimônio é considerado sa-


Parte 2

grado, um sacramento inviolável. Há várias passagens que apre-

134
sentam a sacralidade do casamento como o trecho no livro de Efé-
sios, do antigo testamento: “Cada um de vós, individualmente, ame
a sua esposa como a si próprio; por outro lado, a esposa deve ter
profundo respeito pelo seu marido” (Ef. 5, 33). No mesmo livro há
uma das passagens polêmicas da Bíblia pede à mulher submissão
ao homem “As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido,
como ao Senhor.... Como, porém, a Igreja está sujeita a Cristo, as-
sim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu mari-
do” (Ef. 5, 22-24). Na subversão dos ensinamentos bíblicos, a esposa
do profeta pratica o adultério, um comportamento condenável na
perspectiva cristã como apresenta o livro de Êxodo “Não adultera-
rás” (Êx. 20,14). Mas em uma das passagens, uma mulher adúltera
foi perdoada por Cristo, como apresenta o evangelho de João (Jo. 8,
3) que a salvou do apedrejamento público pelo comportamento que
na época era considerado crime.
Fazer os enfrentamentos à ordem sacra do matrimônio pode
ser considerado um gesto perverso não apenas no sentido de sa-
tirizar o ponto de vista de um discurso normativo, mas de desafiar
os valores morais religiosos, ainda mais quem pratica o adultério
é uma mulher, uma figura estigmatizada como sendo submissa. A
brandura com que o personagem Não É aceita a traição da esposa
abre para uma reflexão muito pertinente sobre os desejos de um ca-
sal, as formas de lidar com a sexualidade e com a formação familiar,
não se limitando às práticas de uma relação mononuclear. Além de
naturalizar o desejo por outras experiências sexuais extraconjugais.
As traições, as homossexualidades e algumas práticas sexuais se
tornam tabus no meio social por nem sempre haver modos de simbo-
lizá-las enquanto uma forma de ressignificá-las no comportamento e
moral humanos. Incomodar pelos tabus é um meio de importunar as
demandas que uma sociedade não conseguiu lidar com esses fatos.
Por isso, o filme se apresenta enquanto uma produção transgressora
ao trazer à tona esses temas e satirizar passagens bíblicas e tabus re-
ligiosos, ainda mais quando a transgressão é construída pelo uso de
cenas de nudez e de sexo explícito. Entretanto, pela análise das falas
dos atores, pela construção poética das cenas e a comparação com
as reflexões teóricas apresentadas comparadas às passagens da Bí-
blia, os modos de representação dos gêneros são agenciados segun-
do movimentos que ora transgridem, ora não interferem nas con-
dições já conhecidas de representação, seja pela categorização dos
Começando a despir

discursos biológicos, seja pela força cultural de representação dos


gêneros. Alguns exemplos que podem ilustrar esse comportamento
são a vigilância, combate e controle da diversidade sexual (exerci-
135
dos por aqueles mesmos que têm desejos por sujeitos transexuais
ou travestis), a heterosssexualidade inquestionável do homem que
apresenta o papel de ativo na relação sexual, a compulsão por sexo
pela travesti e a representação da mulher como sendo fútil e dotada
de temperamento de difícil compreensão para os homens.
Por essa perspectiva que a pornochanchada é uma produção ins-
tigante do ponto de vista da comunicação por que, ao mesmo tempo
que oferece um discurso transgressor e perverso que não reconhece
autoridades nas formas de simbologia de representação e ultrapassa
os limites dos tabus, não avança em outros aspectos para trabalhar
significações que se encontram marmorizados no bojo social, produ-
zindo e reproduzindo valores já reconhecidos culturalmente.
Assim, podemos considerar que a comunicação é compreendi-
da enquanto um contrato, como aponta Lopes (2004). Para o autor,
o contrato se estabelece pela relação entre emissores e receptores,
seguindo movimentos que são sintomáticos à cultura, pois, não se
produz comunicação sem se levar em consideração o reconheci-
mento dos sujeitos (e dos lugares no âmbito social), das constru-
ções simbólicas que são edificadas (moral, ética, educação, etc...) e
dos meios que são transmitidos esses valores (jornal, cinema, in-
ternet...). E dentro dessa perspectiva, não há de negar o uso da co-
municação na manutenção e fomento de representações que não
subvertam a questão social, pois seguem a referência cultural cons-
truída de códigos morais vigentes. Mesmo sendo transgressora en-
quanto uma poética visual e também em certos valores sociais, a
pornochanchada estaciona frente a algumas representações já es-
tigmatizadas, sendo também um sintoma dos agenciamentos que
surgem nas tramas do tecido social.

Considerações Finais
Para entrar em contato com as produções fílmicas da Boca do
Lixo, em especial com os títulos produzidos segundo a proposta da
pornochanchada, é preciso despir-se de quaisquer traços de pre-
conceitos e reconhecer que esses filmes são peças que ofereceriam
uma proposta subversiva de produção de bens culturais em um de-
terminado recorte da história do país. Perceber os movimentos que
aconteceram na produção daqueles filmes é acompanhar as nuan-
ces culturais pelas quais o Brasil estava passando, verificando as
dinâmicas sociais e os comportamentos de consumo dos produtos
culturais, reconhecendo os agenciamentos que ora transgridem as
Parte 2

representações, ora mantém as estruturas incólumes.


136
A pornochanchada, com suas narrativas humoradas e cenas
sensuais, derrubou barreiras e libertou o desejo para as telas do
cinema, sem culpa ou qualquer ressentimento, ainda mais em uma
época em que o consumo, acesso, produção e circulação de mui-
tos produtos culturais ficaram censurados. Essas formas de per-
verter o sagrado, incomodar o recalque e parear-se ao estereótipo
se tornam estratégias de diligências para apresentar retratos não
obrigatoriamente de imitação do real, mas, ao menos, verossímeis
à vida, operando em situações e representação que estão cristali-
zadas e estigmatizadas nas relações simbólicas sociais. Assim foi
com o filme analisado e, possivelmente, entre outras produções do
mesmo estilo ou como acontece em muitas peças de outros estilos
cinematográficos, novelas, músicas, seriados televisivos e outros
produtos culturais.
Mesmo sendo estereotipada por produzir filmes que apresen-
tam cenas de sexo e nudez de modo gratuito, a pornochanchada
foi transgressora em vários momentos, a despeito de que, muitas
vezes, produziu e reproduziu conceitos estigmatizados e fetichiza-
dos de homens e mulheres. A perversão transgressora da porno-
chanchada se encontra nessa intenção de veicular erotismo e sen-
sualidade nas telas do cinema. Esse estilo não reconhece limites e
propõe o gozo e os prazeres ao alcance de qualquer um. A perver-
são também se encontra na poética visual de cenas de apresentam
com naturalidade desejos e fantasias de sujeitos comuns, trazendo
à tona a sexualidade não como um recalque, mas enquanto uma
forma natural de lidar com a vida.

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Começando a despir

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Filho. Brasil: L.G.R. Filmes, 1986. VHS. (68min). Color, sem legenda,
Port.
Parte 2

138
Carlo José Napolitano “A ÁRVORE DOS SEXOS”: CENSURA MORAL NA
DISTENSÃO DO PERÍODO MILITAR

“Correligionários, a mulherada tá com


fogo no rabo.”
Comendador Silveira1

O convite2 para elaborar um texto sobre um


filme de pornochanchada3, além de ser instigan-
te e desafiador, fez-me relembrar da minha in-
fância na pequena e pacata cidade de Mineiros
do Tietê, no interior do Estado de São Paulo que,
em alguns aspectos, é muito parecida com a ci-
dade de Bondomil, onde passa a história retrata-
da no filme “A árvore dos sexos”.
Essa lembrança tem algo especial para mim.
Meus avós maternos Angelo Toniato, mais co-
nhecido como Seu Gilin, e Ana Chiaramonte
Toniato, a Dona Ana, foram proprietários de um
cinema na minha cidade natal por mais de três
décadas, o conhecido e popular Cine Central4, o
único da cidade por um bom período de tempo.
Lá assisti a quase todos os filmes apresentados

1
Todas as frases mencionadas em epígrafe no presente texto foram cortadas para a aprovação da
exibição do filme na televisão.
2
Agradeço ao Cláudio Bertolli Filho o convite para participar dessa empreitada.
3
De acordo com Lamas (2012, p. 3) o termo pornochanchada surgiu “agregando o prefixo ‘pornô’, su-
gerindo conter pornografia, ao vocábulo ‘chanchada’, conceito que define produto de mal acabamen-
to e alcance popular –, era usado de maneira indiscriminada para designar produções de diferentes
gêneros cinematográficos, do drama ao suspense. Tratava-se, portanto, de um abrigo de gêneros,
um termo pejorativo, depreciativo. Ainda segundo o mesmo autor (2012, p. 2) a década de 70 foi um
período frutífero em termos de produção de pornochanchadas, menciona o autor que no ano de 1979
29% do mercado cinematográfico tratava desse gênero.
4
O Cine Central foi inaugurado em 1951 e funcionou até 1984. Por essa atividade empresarial recen-
temente meu avô foi homenageado pelo Município de Mineiros do Tietê nomeando o centro cultural
daquela cidade: Centro Cultural Angelo Toniato.

139
nesse livro, obviamente sem que os meus avós e pais soubessem.
No Cine Central também foi o meu primeiro trabalho, eu era o bilhe-
teiro do cinema na sua fase final nos anos oitenta, quando os meus
avós ainda bravamente mantinham o cinema em atividade.
O presente texto trata-se de uma análise da pornochanchada
“A árvore dos sexos”, filme dirigido por Sílvio de Abreu, no final da
década de 1970. O filme retrata uma pequena cidade onde uma ár-
vore dá um fruto em formato de um pênis. O fruto além de servir
de afrodisíaco para as mulheres da pacata cidade, também engra-
vida aquelas que o comem. Questões morais começam a surgir no
desenrolar da trama, envolvendo figuras proeminentes da cidade
como o prefeito, o delegado, a mulher deste e outros personagens.
Especificamente, a análise consistirá na questão da censura moral
imposta pelo regime militar, na promiscuidade de poder envolven-
do agentes públicos, com tentativas de favorecimento pessoal e das
relações do direito com a moralidade.
Para cumprir o objetivo de analisar o filme tendo como foco as
questões acima apontadas, o presente capítulo está assim estru-
turado: breve relato sobre o filme; apontamentos sobre a censura
moral durante o período militar; análise de atos de censura moral
em relação ao filme analisado; moralidade no direito e, por fim, al-
gumas considerações em sede de conclusão.

Breve relato do filme


“Você está querendo insinuar que a milha filha está dando por aí”
Mulher do Comendador

Antes do início do filme, uma cena apresenta um casal caval-


gando no campo, sendo seguido por um homem, também a cavalo,
armado com um revólver. O casal desce do cavalo, tira as roupas
e inicia uma transa. O homem armado chega e começa a atirar, o
que estava transando, tenta fugir, mas é alvejado certeiramente
em seus testículos e pênis, vindo a desfalecer bem embaixo de
uma árvore. É a partir dessa cena inicial que se desenvolve todo o
enredo da trama.
O enredo do filme se inicia com a inauguração de um busto do
Barão de Bondomil, fundador da cidade, que leva o seu nome. Barão
de Bondomil foi o homem que morreu embaixo de uma árvore e
mencionado acima. A inauguração do busto é uma homenagem do
prefeito Comendador Silveira (Felipe Carone) ao Barão de Bondo-
Parte 2

mil, também um benfeitor da cidade. Nesta cena inicial, além do


140
prefeito, as principais personagens já são apresentadas, o Delega-
do Anacleto (Antonio Petrin), mantenedor da ordem, para quem “a
lei é sempre vigilante”; a esposa do delgado, a fogosa Dona Santi-
nha (Marivalda); a filha do prefeito Angélica (Nádia Lippi), que vol-
ta da cidade grande, onde faz faculdade; o mecânico Rodrigo (Ney
Sant’anna), bisneto “torto” do Barão de Bondomil. Também apare-
cem as meninas da casa da Lara, casa de prostituição liderada por
Lara de los Rios (Virgínia Lane).
Na sequência do enredo, as mulheres da cidade aparecem co-
lhendo frutos de uma árvore, na praça central da cidade. A fruta que
dá na árvore, aquela mesma sob a qual morreu o Barão de Bondo-
mil, tem o formato de órgão sexual masculino, de um pingolim, nas
palavras da moralista professora Ruth (Maria Lucia Dahl). O fruto,
além de servir de afrodisíaco para as mulheres da pacata cidade,
também engravida todas que o comem. A notícia se espalha e pes-
soas da roça e da cidade vão até a cidadezinha para pegar e comer
o fruto. A cidade fica conhecida mundialmente.
Com a repercussão da fruta, uma onda moralista toma conta
da cidade. Essa onda é capitaneada pela professora Ruth. Como
dito, ao comer os frutos, as mulheres engravidam e são expulsas
das suas casas e da cidade, sendo as mesmas acolhidas no bordel
da dona Lara, cujo sócio é o prefeito da cidade. Ciente do potencial
da fruta, a dona do bordel sugere ao prefeito exportá-las. O prefei-
to aceita a ideia e combina com o coletor de impostos da cidade
a abertura de uma empresa fictícia para iniciar as exportações.
Quando a cidade se torna conhecida mundialmente a árvore seca
e deixa de dar frutos.
A população se rebela e demoniza as grávidas prevendo que
elas darão à luz a monstros, filhos da árvore da traição. As mu-
lheres tentam perder a barriga. E os homens culpam as mulheres
pelo episódio, imaginando traição, adultério. Um deles, o dono do
bar da cidade, tentar matar a sua esposa, mas acaba se suicidan-
do. No seu enterro, todas as mulheres da cidade grávidas estão
na procissão para o sepultamento quando, repentinamente, as
suas barrigas explodem e elas perdem os bebês. A única grávida
de verdade é a Dona Santinha, mulher do delegado, amante do
prefeito e do mecânico.
O filme termina com dona Santinha na maternidade após dar à
luz a um bebê, o delegado, o comendador e o mecânico. A médica
Começando a despir

diz que este recém-nascido é o único filho da fruta e todos caem na


gargalhada. Resta saber quem é o pai. O filme, de 1977, tem roteiro
de Sílvio de Abreu, Mauricio Rittner e Rubens Ewald Filho e foi ba-
141
seado no livro “Arvore dos sexos”, de Santos Fernando. A direção
é do renomado diretor de novelas Sílvio de Abreu. O filme recebeu
Certificado de Censura como sendo impróprio para menores de 18
anos para exibição nos cinemas. A sua exibição na televisão so-
mente foi permitida no início dos anos de 1980, após uma longa ba-
talha dos produtores com os órgãos de censura.
Por fim, observe-se que a única mulher da cidade que não
come a fruta é a professora Ruth, no entanto, no final do filme, ela
transa com um personagem interpretado por Kadu Moliterno, fato
que demostra a hipocrisia da moralidade em assuntos sexuais. Ao
todo no filme são apenas duas cenas de sexo: esta da professora e
a que finaliza o filme com uma cena envolvendo os protagonistas
Angélica e Rodrigo.

Censura moral no período militar


“Tenho certeza que algum sacana vai vender essa fruta no es-
trangeiro ... eu não comprava porque de pinto já estou até aqui
... mas o povo ... tá todo mundo querendo é sacanagem mesmo”.
Lara de los Rios

O período do regime militar (1064-1985) foi caracterizado pela


severa restrição à liberdade de expressão do pensamento, tanto
no aspecto político, quanto no aspecto cultural, esta intimamente
relacionada com as artes, a música e o cinema, por exemplo, en-
quanto aquela imbricava-se à liberdade de imprensa e de expres-
são política e ideológica.
Essas práticas de censura eram ações tanto institucionais
do Estado como também práticas sociais, “Aquela compreendida
como a perpetrada pelo Estado, através da sua burocracia, e esta por
procedimentos difusos, como a autocensura e o colaboracionismo”
(NAPOLITANO, LUVIZOTTO E GONZALES, 2014, p. 225).
No próximo item será tratada a censura imposta pela Divisão
de Censura de Diversões Públicas, do Departamento de Polícia Fe-
deral, do Ministério da Justiça ao filme em análise, portanto, da
censura institucionalizada.
No entanto, em relação às práticas sociais, especificamente em
relação ao gênero das pornochanchadas, notou-se também a cen-
sura perpetrada pela sociedade de forma difusa. Lamas (2012, p. 3-4)
menciona que “Ao mesmo tempo em que configurava sucesso de
público, a pornochanchada suscitou abaixo-assinados e a revolta
Parte 2

142
de setores da população que acusavam esse cinema de ruir a moral
e a família brasileira, solapar as bases da sociedade”5.
Cumpre observar que a censura imposta pelo regime militar às
diversões e espetáculos públicos tinha uma conotação moral, en-
quanto a que agia em relação à imprensa era essencialmente políti-
ca (NAPOLITANO, LUVIZOTTO E GONZALES, 2014).
No presente capítulo, o enfoque dado será para a censura rela-
cionada às diversões públicas, como é o caso do cinema, portanto, o
objetivo central será analisar a censura moral do regime militar em
um filme do gênero pornochanchada.
Em trabalho seminal sobre a censura imposta às obras cine-
matográficas Pinto (2006, p. 3) assevera que até antes do golpe de
1964 “a censura apenas classifica os filmes por faixa etária, e os cor-
tes não existem”, no entanto, com o advento do golpe “a censura é
reorganizada, com vistas a servir aos interesses políticos dos mili-
tares no poder”. Esses interesses visavam “moldar a produção aos
projetos políticos do regime. O lema central era proibir, sempre que
possível. Na impossibilidade de proibir, cortar.” (PINTO, 2006, p. 4).
Pinto (2006, p. 4) aponta também certa contradição nas ações
do regime militar, pois:

Paralelamente à repressão cultural no país, uma inteligente


política de difusão da imagem “democrática” do país no exte-
rior é montada. Para isso, lançam mão da excelente produção
cinematográfica brasileira. O mesmo cinema que, interna-
mente, combatem ferozmente. Primeiro criam o Instituto Na-
cional de Cinema (INC), em seguida a Empresa Brasileira de
Filmes (Embrafilme), cujas funções incluíam a distribuição e,
mais tarde, a coprodução. Era responsável também pelo en-
vio de filmes a festivais e mostras internacionais. Para o mer-
cado externo, os filmes não sofriam cortes, nem interdições,
sendo necessários apenas os carimbos de Boa Qualidade
(BQ) e de Livre para Exportação, concedidos até mesmo nos
casos de filmes interditados em sua integralidade dentro do
país, como acontece com Terra em transe, de Glauber Rocha.

5
De acordo com Bertolli e Talamoni (2014, p. 301) durante o período militar “Havia uma ‘moral’
Começando a despir

instruidora dos ‘bons comportamentos’, que eram cobrados e sofregamente fiscalizados como
se todos vivessem em um panopticum, termo explorado em um dos principais livros do filósofo
francês Michel Foucault, Vigiar e punir, lançado em 1975 e dois anos depois publicado no Brasil.”

143
Em relação especificamente às pornochanchadas, para exibi-
ção nos cinemas, essas obras, “com raríssimas exceções, não eram
proibidas pelo órgão censor. Na maioria das vezes, eram proibidas
para maiores de 18 anos, com alguns cortes” (LAMAS, 2012, p. 7)
A censura se contrapõe à temática da liberdade de expressão
do pensamento. Em outro texto, já tratei da liberdade de expressão
do pensamento (NAPOLITANO, 2015), alegando que de acordo com
a clássica teoria do direito constitucional brasileiro, a liberdade de
expressão do pensamento é o direito fundamental que qualquer
pessoa tem de exteriorizar, sob qualquer forma, o que pensa sobre
qualquer assunto. (SILVA, 2010).
Na liberdade de expressão está contida a liberdade de opi-
nião, reconhecida como a liberdade de expressão primária, que
consiste na prerrogativa da pessoa de adotar a postura intelectual
que quiser e, se for da sua vontade, exteriorizar essa opinião por
qualquer meio, através dos meios de comunicação, das artes, das
ciências, das religiões, etc.
Observe-se que em diversos dispositivos do atual texto consti-
tucional brasileiro, elaborado após o fim do regime militar e consi-
derado um marco para a redemocratização do país, há referências
à liberdade de expressão do pensamento. No artigo 5º, que trata dos
direitos e deveres individuais e coletivos, vários incisos abordam do
tema. No inciso IX, por exemplo, está disposto que é livre a expres-
são da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença. Verifica-se, deste modo,
que com a redemocratização e com a promulgação da nova consti-
tuição em 1988, a censura está constitucionalmente proibida, pelo
menos a burocratizada e institucionalizada pelo Estado. No entanto,
não era essa a sistemática vigente no período militar, como será
visto na seção que segue.

Censura moral em relação ao filme analisado


“que tal massagem no buraco quente”
Lara de Los Rios

Como mencionado, o filme “Árvore dos sexos” foi lançado nos


cinemas nacionais em 1977, ano compreendido com a quarta fase
das práticas de censura do regime militar.
Essas quatro fases são denominadas: moralista (1964/1966); de
Parte 2

144
militarização dos órgãos de censura (1967/1968); de censura políti-
co-ideológica (1969/1974) e, por fim, a fase da distensão (1975/1988)
(PINTO, 2006).
Na fase da distensão:

(...) observa-se uma interessante mudança de foco que des-


mente a noção, comumente difundida e até hoje aceita, de
que a censura termina com a instauração do processo de
abertura. Sua atenção se volta para a proibição dos filmes
brasileiros na televisão, onde se concentra o grande público,
enquanto os libera para as salas de cinema. (PINTO, 2006, p. 5).

Na presente seção serão analisados os pareceres emitidos por


agentes censores da Divisão de Censura de Diversões Públicas, do
Departamento de Polícia Federal, do Ministério da Justiça. O mate-
rial consultado para a elaboração do presente texto está disponível
no site http://www.memoriacinebr.com.br, decorrente do projeto
Memória da Censura no Cinema Brasileiro – 1964/1988, coordena-
do por Leonor Souza Pinto. No site é possível consultar, “mais de
quatorze mil documentos entre processos de censura, material de
imprensa e relatórios do DEOPS de 444 filmes brasileiros”. (Texto
extraído do próprio site).
Em relação à exibição nos cinemas, o filme, como já dito, foi
autorizado pelos órgãos censores a ser exibido com a indicação
da faixa etária de 18 anos (parecer 4630/77), seguindo o padrão
indicado por Lamas (2012, p. 7). O filme ainda recebeu a indica-
ção de Boa Qualidade e Livre para Exportação, em despacho de 03
de novembro de 1977, conforme a tendência dos órgãos censores,
apontada por Pinto (2006, p. 4).
A grande batalha dos produtores do filme foi em relação à exibi-
ção na televisão, adotando-se o modus operandi do período, confor-
me Pinto (2006). Considerando que a grande batalha dos produtores
do filme com os órgãos de censura se deu na tentativa de liberação
da película para a TV, somente sobre esse procedimento é que será
tratado a partir de agora.
No primeiro parecer disponível, no site acerca da tentativa de li-
beração da obra para a televisão (Parecer 1097/1982), a Divisão de Cen-
sura de Diversões Públicas proíbe inicialmente a exibição do filme
na televisão. No parecer questões de moralidade ficam evidentes, de
Começando a despir

acordo com o parecerista, várias cenas e diálogos do filme ressaltam


“a hipocrisia dos valores morais exteriorizados, principalmente ao
mostrar que as prostitutas não o comeram (o fruto, inclusão minha),
145
ajudaram adolescentes grávidas expulsas de casa e regeneraram-se.”
Em outro parecer (1098/1982) que também proibia a exibição na
TV, um dos argumentos do parecerista foi que “com inúmeras ce-
nas de nu parcial, principalmente feminino, o filme contém ainda,
um linguajar pautado por expressões grosseiras como: ‘Correligio-
nários, a mulherada tá com fogo no rabo’; ‘Você acha que a minha
filha anda dando por aí’ e situações de relações sexuais que, embora
não explícitas, mostram os casais de corpos colados, meio vestidos,
movimentando-se caracteristicamente”.
No parecer 2131/1982 ainda negando a exibição na TV, o parecer
tem o seguinte teor:

O filme é conduzido de modo a persuadir que o sexo deve vir


a ser encarado como coisa banal, e, neste mister, lafadas e
mais lafadas estão a inflar as velas do adultério (tipificado
como crime – Código Penal, art. 240) e aventada como bo-
nançosa a prostituição (induzir ou atrair alguém à prostitui-
ção – crime – Código Penal, art. 228).” Conclui o parecer que o
filme não pode ser liberado para a tv “em obediência ao esta-
belecido pelo Dec. 51.134/61, art. 2º (não será permitido na te-
levisão programa que: I (... ofender ou princípios da moral;) IV
(... induzir aos maus costumes e pela Lei 6.697/79, art. 53, III) 6.

No parecer 910/1983, já autorizando a exibição na TV, o parece-


rista assim se manifesta sobre a película:

Sem uso de recursos técnicos, neste filme, coloca-se uma


dose de maldade num enredo banal, com a finalidade de ca-
tivar a atenção do espectador. O resultado é desastroso, es-
pecialmente após os vários cortes de que há notícias no pro-
cesso. Por outro lado, sem tais cenas ou falas, o filme perdeu
muito das implicações que continha, tanto no tocante ao ero-
tismo quanto à pornografia. Permaneceu um humor maldoso
acessível a um público mais esclarecido.

A decisão dos agentes censores foi pela autorização da exibição


na televisão somente após as 23 horas. De acordo com Pinto (2006,
p. 14) essa era a prática institucionalizada pela censura na fase da
distensão, pois:

6
Observe-se que o crime de adultério somente foi revogado em 2005, isso mesmo, 2005. O de-
creto e a lei mencionadas também foram revogados. O crime de “Favorecimento da prostituição
Parte 2

ou outra forma de exploração sexual” continua vigente em nosso ordenamento jurídico.

146
Na contramão dos ares de liberdade ditados pela abertura po-
lítica, e diferentemente do que se costuma inferir, a censura,
mantida para os espetáculos de diversões públicas, inclusive
para o cinema, apenas muda seu foco, mas continua atuante.
Para as salas de cinema, libera os filmes com uma política
de cortes mais moderada, enquanto para a televisão, onde
agora se concentra o grande público, a censura, competente
e atenta, investe pesadamente nas proibições. Quando não
consegue proibi-los, são destruídos por cortes que os tornam,
muitas vezes, incompreensíveis, e liberados somente para
horários tardios.

Conforme se verifica, a exibição do filme somente foi liberada


para a TV após um longo processo e com inúmeros cortes e com
exibição somente após as 23 horas, seguindo o padrão relatado pela
literatura especializada.

A moralidade no direito
“Olha aqui sua cafona, vai tomar conta de sua filha, que ela é
uma dadeira.”
Nathália

O estudo da moralidade no direito é uma temática recorrente


em todas as áreas da ciência jurídica, em especial, da filosofia do di-
reito. Vários autores nesse sentido tratam das questões envolvendo
moral e direito em uma tentativa de apontar semelhanças e dife-
renças. Dessas tentativas, algumas são mais discordantes do que
concordantes. De acordo com Ferraz Junior (2008, p. 332):

primeiramente, é preciso reconhecer certa similaridade en-


tre normas jurídicas e preceitos morais. Ambos têm caráter
prescritivo, vinculam e estabelecem obrigações numa forma
objetiva, isto é, independentemente do consentimento subje-
tivo individual. Ambos são elementos inextirpáveis da con-
vivência, pois, se não há sociedade sem direito, também não
há sociedade sem moral. Não obstante isso, ambos não se
confundem, e marcar a diferença entre eles é uma das gran-
des dificuldades da filosofia do direito.

Por sua vez, Reale (2002, p. 44) afirma que:


Começando a despir

Podemos dizer que a Moral é o mundo da conduta espontânea,


do comportamento que encontra em si próprio a sua razão de
existir. O ato moral implica na adesão do espírito ao conteú-

147
do da regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o
indivíduo, por um movimento espiritual espontâneo realiza
o ato enunciado na norma. Não é possível conceber-se o ato
moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém pode ser
bom pela violência.

Essa divergência no que diz respeito à moralidade se ela é


subjetiva (REALE) ou não (FERRAZ JUNIOR) está presente no fil-
me na cena que a professora Ruth apresenta a fruta às damas da
sociedade, ao padre e ao prefeito. Em uma de suas falas a profes-
sora Ruth diz que “Existem os pilares da sociedade, existe mora-
lidade”. A professora é retrucada por Angélica ao afirmar que “A
moral se ajusta conforme a conveniência”, em uma clara alusão
da subjetividade da moral.
Não obstante essas divergências, o direito brasileiro, em espe-
cial o direito constitucional é repleto de menções à moralidade. Es-
pecial atenção será dada a um artigo do texto constitucional por es-
tar diretamente relacionado à temática do presente texto e do filme,
trata-se do artigo 37 constituição. O artigo dispõe que:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer


dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impesso-
alidade, moralidade, publicidade e eficiência. 

A moralidade administrativa, prevista no artigo 37 da Consti-


tuição, trata-se de um dos princípios7 da administração pública. Di
Pietro (1999) menciona que antes de chegar ao Direito Administrati-

7
A palavra princípio não é usada em sentido unívoco no direito, porém, vários autores se referem
aos princípios como sendo os alicerces, o início, a base de alguma coisa. Para Barroso (1998, p.
141) os princípios constitucionais podem ser definidos como “o conjunto de normas que espe-
lham a ideologia da constituição, seus postulados básicos e seus fins” ou ainda “a síntese dos
valores principais da ordem jurídica” (BARROSO, 1996, p. 287). No mesmo sentido, Rocha (1994,
p. 25) assevera que os princípios constitucionais “são as colunas mestras da grande construção
do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional”. Quase todas as definições
de princípios citadas têm um ponto em comum, o de asseverar que os princípios são a base, o
começo, o início, as linhas mestras do sistema jurídico. Alguns dos autores mencionados utili-
zam a analogia para comparar a construção do ordenamento jurídico com a construção de uma
obra, como, por exemplo, de uma casa e quase todos eles afirmam que os princípios são os
fundamentos, as vigas, o alicerce, ou seja, a infraestrutura na qual se apoiarão todos os demais
componentes da construção do ordenamento jurídico. Desta forma, em resumo, podemos con-
cluir, com apoio nos autores mencionados, que os princípios constitucionais são a infraestrutura
Parte 2

da construção do ordenamento jurídico de um determinado país. (NAPOLITANO, 2003).

148
vo, as regras de moralidade já estavam presentes na doutrina do di-
reito civil, em especial, nas que proíbem o locupletamento indevido.
Para Di Pietro (1999, p. 79) “sempre que em matéria adminis-
trativa se verificar que o comportamento da Administração ou do
administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em
consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as re-
gras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a
idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio
da moralidade administrativa”.
A questão da moralidade ainda segundo Di Pietro está também
relacionada à probidade administrativa, hipótese para a abertura
de processo de impeachment de presidentes. Como a temática da
moralidade também invadiu a seara constitucional, a teoria deste
ramo do direito também trata da questão, para Silva (2010, p. 668):

a moralidade administrativa não é meramente subjetiva,


porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurí-
dico a partir de regras e princípios da Administração. A lei
pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando
sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de preju-
dicar alguém deliberadamente, ou com o intuito de favore-
cer alguém, por certo que se está produzindo um ato for-
malmente legal, mas materialmente comprometido com a
moralidade administrativa.

Essa questão da moralidade administrativa está presente no


filme em especial quando o prefeito combina com o coletor de im-
postos da cidade a abertura de uma empresa fictícia para iniciar as
exportações da fruta, sendo esse um caso de imoralidade por favo-
recimento próprio. Mas por incrível que possa aparecer essa questão
da promiscuidade de um agente público com o interesse particular
não foi objeto da censura, restringindo-se como visto as ações cen-
suradoras às questões morais relacionadas ao sexo, adultério, etc..

Conclusões
O presente texto objetivou analisar a obra cinematográfica “A
árvore dos sexos” tendo como pano de fundo a temática da censura
moral imposta às diversões e espetáculos públicos durante o perío-
do da distensão do regime militar.
Começando a despir

A análise dos documentos elaborados pelos agentes censores


sobre o filme corrobora as conclusões da literatura especializada,
indicando que no período a grande preocupação dos censores era

149
com a exibição dos filmes na televisão, sendo os mesmos liberados
para os cinemas.
Também ficou claro que a censura no período se preocupava
basicamente com as questões morais relacionadas aos comporta-
mentos e evidenciou-se, na análise dos pareceres sobre o filme, que
não era preocupação central da censura o exame da moralidade ad-
ministrativa, tão cara nos dias atuais.

Referências Bibliográficas
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e futebol feminino nos anos derradeiros da ditadura militar. In: NA-
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Parte 2

150
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FERRAZ JUNIOR, T. S. Introdução ao estudo do direito. 6 ed. São
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Cásper Líbero. São Paulo. Anais do 8º Interprogramas de Mestrado,
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NAPOLITANO, C. J. A liberdade de iniciativa e os empreendedores
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(Mestrado em Direito) - Instituição Toledo de Ensino. Bauru, 2003.
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NAPOLITANO, C. J; LUVIZOTTO, C. K.; GONZALES, L. dos S. Censura
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2002.
ROCHA, C. L. A. Princípios constitucionais da administração públi-
ca. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 33 ed. São Pau-
lo: Malheiros, 2010.

Filmografia
A árvore dos sexos. Dir. Silvio de Abreu. São Paulo: Cinedistri, 1977.
35 mm, (90 min.), color, sem legenda, Port.
Começando a despir

151
Marcelo Bulhões DE CONTO DE FADAS A CONTO DE FODAS:
A PARÓDIA DE HISTÓRIAS QUE NOSSAS BABÁS
NÃO CONTAVAM

Nem Grimm nem Disney


É fácil para o espectador perceber a carac-
terização de Branca de Neve. Mas há diferenças,
provocativas. A protagonista é uma mulata sexy.
Perseguida e expulsa do castelo pela rainha má,
ela faz sexo com o príncipe, acompanhado pela
algazarra de bichos da floresta. Depois de resga-
tada pelos sete anões, ela está nua em uma ba-
nheira de espuma, enquanto eles fazem de tudo,
montam-se uns nos outros para assistir ao banho.
Pelas frestas, ela lança olhares maliciosos de
cúmplice exibicionista aos atrapalhados anões –
tão voyeurs quanto nós, na sala escura do cinema.
Histórias que Nossas Babás não Contavam,
filme de 1979, dirigido por Oswaldo de Oliveira,
é paródia tanto de “Branca de Neve”, conto que
compõe a célebre coletânea publicada em 1812
pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, quanto
do filme Branca de Neve e os Sete Anões, su-
cesso mundial de Walt Disney, de 1937. Neste
pequeno ensaio, quero comentar o discurso pa-
ródico nesse que é um dos últimos sucessos de
público da chamada pornochanchada, espécie
de ciclo de filmes brasileiros em que o sexo é
tratado com humor e deboche, que atingiu ápi-
ce de produção e sucesso na década de 1970. O
tratamento da paródia nesse caso parece ter
uma envergadura que não se restringe ao fil-
me de Oswaldo de Oliveira. Embora a paródia
seja a tônica de Histórias que Nossas Babás não
Contavam, não é rara na pornochanchada como
discurso de inversão e perversão de sentido de

153
matrizes cinematográficas dominantes, fundamentalmente, a do
cinema de mainstream hollywoodiano.
O discurso paródico é um dos traços fisionômicos cinematográ-
ficos que a pornochanchada herdou da chanchada. Em Nem San-
são nem Dalila (1954), por exemplo, filme de Carlos Manga, paródia
de Sansão e Dalila (1949), de Cecil B. DeMille, produção dos estúdios
Paramount, o barbeiro Horácio, personagem interpretado por Osca-
rito, sofre um insólito acidente e vai parar no Reino de Gaza no sé-
culo IV antes de Cristo. O filme de Manga reconfigura os elementos
visuais básicos do filme de Cecil B. DeMille; fornece componentes
essenciais no plano da expressão formal e algumas linhas do enre-
do para o reconhecimento por parte do espectador. O movimento da
paródia é, pois, um afirmar para negar, um ingerir para fagocitar. A
paródia é autogáfica.
O caráter grandiloquente do épico-kitsch de DeMille é adotado
para uma pseudo-imitação, lance astucioso em que a parecença é
estratégia para o decisivo desvio de sentido. O estratégico dessa
ocorrência intertextual strictu sensu é uma espécie de negação
pela assimilação, anunciada já no título Nem Sansão nem Dalila,
como caminho ao rebaixamento pelo ridículo em um “segundo tex-
to” cinematográfico. Segundo tal perspectiva conceitual – tomada
por alguns formalistas russos, notadamente Tinianov –, diferente-
mente da estilização e do pastiche, na paródia deve haver necessa-
riamente subversão ou inversão de significado do texto parodiado.
A aisthesis do espectador no caso do filme de Oswaldo de Oli-
veira vive, portanto, da identificação das camadas textuais subja-
centes – o texto cinematográfico de Disney e o literário dos irmãos
Grimm – como formas culturais canônicas. Mas o fruir da perver-
são de sentido em Histórias que Nossas Babás não Contavam chega
a dispensar o contato direto com tais discursos na forma de obra
literária e filme, tão impregnadas na cultura estão os contos e, em
particular, a narrativa de Branca de Neve. Ao atingir especificamen-
te Branca de Neve, a paródia de Histórias que Nossas Babás não
Contavam insere, por tabela, ranhura violadora à tradição, remota e
cara à cultura europeia, do conto de fadas, com suas amplas resso-
nâncias nos campos de difusão e recepção.
Histórias que Nossas Babás não Contavam incorpora Grimm e
Disney como um dos modos com que um discurso cinematográfi-
co – na periferia do cinema mundial – recolhe dobras de discursos
culturais muito caros da voz da supremacia cultural para troçá-los
e desestabilizá-los: nem Grimm nem Disney em uma escritura au-
Parte 2

diovisual que parece desagrega sentidos fossilizados. Essa parece


154
ser uma das inflexões do filme erótico de humor, a nossa – muitas
vezes (mal) dita – pornochanchada.
Quase sempre se dirigem à pornochanchada brasileira acu-
sações ao seu teor machista, preconceituoso, falocêntrico. O sexo
humorístico à brasileira da pornochanchada seria restritiva e in-
sistentemente preconceituoso por reiterar estereótipos sobre mu-
lheres, homossexuais, legitimar uma representação limitadora e
no fim das contas opressora da experiência sexual. Embora eu não
pretenda aqui anular sumariamente tais juízos e clamar por uma
“revisão” – o que seria, aliás, um despropósito em se tratando de um
artigo –, gostaria de pelo menos sugerir, a partir de Histórias que
Nossas Babás não Contavam, a insuficiência da sumária condena-
ção. Pois, além da etiqueta pornochanchada não constituir um blo-
co monólito de filmes – no arco que vai do fim dos anos 1960 para
os 70 até o início da década de 80 –, alguma ambivalência parece
envolver o fenômeno. As configurações que regem o olhar da cine-
matografia da pornochanchada parecem trazer ambiguidades. Tal-
vez uma atitude mais cuidadosa possa ver colorações cambiantes,
maior complexidade, problematizando o que nas últimas décadas
tem sido reafirmado pela crítica, que quase exclusivamente aponta
nesses filmes penúria estética e alienação. E divisar que no interior
mesmo das dominâncias do ideológico, o território guardião dos
discursos fossilizados do poder, vozes ardilosas e dissonantes se
insinuem e se queiram ouvir. Ou melhor – ver.

Voz materna, “pedagogia” familiar


Dizia há pouco que o espectador não necessita ter lido o con-
to dos irmãos Grimm para reconhecer o intertexto de Branca de
Neve em Histórias que Nossas Babás não Contavam. É que a nar-
rativa, proveniente de fontes difusas da cultura popular e erudita
e fixada pela escrita dos irmãos Grimm no século XIX, é um da-
queles patrimônios culturais que de tão disseminados e compar-
tilhados séculos afora se tornam repertórios cuja impregnação na
formação do indivíduo se dá de modo praticamente incontornável.
Das inumeráveis versões da indústria cultural a sua permanen-
te transmissão oral em ambiente familiar e adoção pelo aparelho
escolar infantil, a narrativa é peça ficcional basilar do repertório
Começando a despir

ficcional do indivíduo no ocidente. Seu lastreio de difusão cul-


tural – naturalmente ao lado de outros contos de fadas célebres,
como “Chapeuzinho Vermelho”, “João e Maria”, “Cinderela” ou “A
Bela Adormecida” – é tão difuso que se torna inviável divisar mi-
155
nimamente as inúmeras funções que desempenha nos variados
ambientes discursivos de circulação.
O conto de fadas é gênero de origem remota e indefinida, não
se circunscrevendo aos limites da literatura infantil – sua origem,
aliás, não se associava ao mundo infantil –, tendo como um dos
principais marcos de ancoragem a publicação de Contos da Mamãe
Gansa, de Charles Perault, em 1697. Perrault assumia-se um trans-
missor de moralidade com suas histórias, daí ter dado o título de
Contes du Temps Passé avec des Moralités (Contos do Tempo Pas-
sado com Moralidades) ao seu livro, rematando as tramas com uma
lição de moral. Mas é com a publicação, em 1812, dos Kinder-und
Hausmärchen (Contos para Crianças e Família), coletânea em que
os irmãos Grimm compilaram um grande repertório de narrativas
em parte da tradição oral popular, que o conto de fadas é assenta-
do como gênero literário. Filólogos, estudiosos ardorosos da cultura
alemã, os Grimm estabelecem com sua compilação de histórias um
protótipo que nortearia fenômenos semelhantes ao redor da Euro-
pa. Folcloristas, os Grimm estavam imbuídos de que sua coletânea
portava a autenticidade da “alma popular” alemã, aspecto caro ao
Romantismo. A partir de um repertório farto de histórias – muitas
delas tidas como grosseiras e vulgares pelos homens de letras da
época – a coletânea dos irmãos Grimm corporifica a marca essen-
cial do conto de fadas como gênero.
No percurso de séculos, a trajetória do conto de fadas inscreve-
ria um aspecto que acompanhou sua transformação de narrativa
popular remota em gênero canônico e “respeitável”, embora muitas
vezes moralistas lançassem desconfiança ou condenações ao teor
de algumas narrativas. Foi se consolidando em torno do gênero o
caráter de formação do indivíduo no espaço da vida privada, fami-
liar. O conto de fadas se constitui como forma narrativa vinculada
a um modo peculiar de transmissão, em um ambiente discursivo
que se consagra: o lar. Uma vez que os significados de um texto são
inseparáveis dos espaços e das condições de sua transmissão, a
marca de formação do indivíduo passa a se relacionar diretamen-
te com a veiculação do gênero no ambiente do familiar, instância
do sentimento de amparo que a vida familiar, íntima, representaria.
Tal binômio formação/proteção do conto de fadas é poderosamente
encampado pela fala da maternidade. Pela voz da mãe, da avó, da
irmã mais velha, de uma governanta – qualquer figura que encarne
o papel maternal –, seu caráter e função se tornam indissociáveis
da elocução do adulto protetor, a quem compete ler ou narrar oral-
Parte 2

mente para uma audiência de crianças. Há um senso de colhimento


156
e amparo em que o ouvinte, a criança, depara-se com um universo
ficcional de tramas cheias de perigos, aventuras, com personagens
astuciosos e ameaçadores. A elocução adulta e maternal narra um
mundo que seduz pela sua carga de fantasia e perigo, aventura e
ameaça de perdição ou morte. Ser o conto narrado no espaço ínti-
mo do lar, recolhimento do mundo externo, pela voz maternal, locu-
ção da proteção e da autoridade, funciona como amparo simbólico
e tácita advertência a perigos reais e imagináveis. Ao ouvir as his-
tórias precisamente pela voz daquela em quem a criança deposita
sua necessidade imperiosa de amor/proteção/sobrevivência, da
história narrada deriva um saldo de advertência e conselho. A voz
da figura materna que transmite as histórias representa, então, a
fala da experiência, do poder e da prudência adultas diante do ser
frágil, a criança, situado no espaço por excelência da proteção e do
acolhimento. Atuam nesse processo vínculos poderosos entre pais
e filhos. O contrato de intimidade na difusão dos contos é ponto
muito bem atado na urdidura dos laços familiares. A esse propósito,
há fartíssima iconografia que trazem matronas narrando os contos,
com máquina de fiar, à beira da lareira, ou na cama, onde uma audi-
ência de crianças se deslumbrada, ri ou se assusta, sempre atenta.
Nesses termos deve-se situar o peculiar caráter “pedagógico” do
conto de fadas. Mas ambiguidades e complexidades nos arranjos
narrativos ultrapassam ou chegam a contrariar a ancoragem das
“boas condutas” ou o suporte seguro aos enfrentamentos da vida. Di-
versas situações narrativas dos contos são carregadas de violência,
maldade, crueza, horror; personagens arquitetam traição, trapaça,
sombria atração, muitas das ações dos personagens das narrativas
revelam esperteza, maledicência ou crueldade. Daí ter acompa-
nhado o gênero o desagrado de clérigos, professores e moralistas
de plantão, atentos à suposta sedução corruptora de uma audição
“ingênua”. A exibição de um repertório de perigos, pecados e ardis
representaria nefasto aliciamento e, ao mesmo tempo, comportaria
a estratégia de exibir um campo de obstáculos e dificuldades cuja
superação serviria de preciosa lição ao enfrentamento das dificul-
dades da existência. Insolúvel ambiguidade.

Da candura de Disney ao carnaval sexual


Começando a despir

No conto “Branca de Neve”, dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm,


está-se diante de uma história: a de disputa entre uma malvada
rainha e uma menina ingênua, reconhecida em distintas culturas,
em circulação oral, com algumas variantes. Assim, na versão espa-
157
nhola, a rainha do conto supera em muito a maldade da rainha do
filme de Disney. Pede ao caçador, por exemplo, uma garrafa com o
sangue e o dedo da vítima. Já na versão italiana ela instrui o caça-
dor a trazer os pulmões e o fígado de Branca de Neve como prova
de sua morte. E em algumas versões, a rainha não é madrasta, mas
a própria mãe de sangue da garota. Como em outros contos, os ir-
mãos Grimm transformam a mãe má em madrasta para preservar
a noção de santidade materna. Mas sob distinções de versões dessa
história de contornos tão macabros parece residir um núcleo fun-
damental. A esse respeito, Sandra Gilbert e Susan Guba propõem,
em The Madwoman in the Attic (1979), uma leitura do conto que
identifica na trama o conflito entre uma mulher bela e jovem e ou-
tra, mais velha, também bela. Branca de Neve encarna a ingenui-
dade, leveza, passividade, enquanto na outra estão a maldade, viru-
lência, agressividade ardilosa. E em tal leitura Branca de Neve é a
filha, a Rainha má é a mãe. Estaríamos, segundo as autoras, diante
de uma forte dicotomia cultural da feminilidade.
Mas nem tudo dos caracteres de Branca de Neve é meiguice e
bondade. No conto dos Grimm, a crueldade de Branca se vinga da
rainha má, obrigando-a a calçar sapatos de ferro incandescentes e
dançar com eles até a morte. Final inaceitável para a candura do
mundo de Walt Disney. Em Histórias que Nossas Babás não Conta-
vam, a candura de Disney e o teor de formação moral do conto dos
Grimm são componentes fundamentais para a própria transgres-
são paródico-carnavalesca de nossa pornochanchada. A abertura
do filme se dirige ao conto dos irmãos Grimm ao remeter ao modo
paradigmático de transmissão do gênero. A subversão paródica que
converte o teor de história infantil em história sexual e desabusada
de humor se faz nos créditos de abertura: vê-se na tela uma mão
que abre um livro cuja iconografia e composição gráfica são típicas
das edições do gênero no século XIX. Mas em tal constituição icô-
nica se inscreve a marca paródica com gravuras das personagens
do filme: Branca de Neve é a negra sensual cuja vestimenta está
aberta, mostrando coxas e seios. O universo visual de Disney é aí in-
corporado, em chave avessa, com a iconografia dos trajes de Branca
sendo um decalque provocativo da versão cinematográfica de 1937.
Enquanto as mãos abrem as páginas das gravuras de uma Bran-
ca de Neve erotizada, uma canção atua como corretivo da chave
paródica, dizendo que as histórias que as babás contavam, a versão
canônica, seriam outra versão: “o lado que você conhecia/ era só
a fantasia”. A posição das mãos que abrem o livro-álbum dispõe o
Parte 2

efeito da câmera subjetiva, em que o olhar da câmera se confunde


158
com a visão do espectador. Abrir o livro-paródia é assistir ao filme,
assumir a perspectiva de um leitor que conhecerá a “verdadeira his-
tória”. E uma canção marota diz: “história de príncipe e de princesa/
sempre acaba em safadeza”.
O enunciador dispõe o leitor-espectador como ciente daquele
universo infantil tão conhecido para ser (sub) vertido na versão
anticanônica do “livro de sacanagens” adulto. Há certo espírito à
Carlos Zéfiro, o quadrinista conhecido pelos “catecismos”. Ressal-
vando-se alguma arbitrariedade dessa associação, o espectador das
pornochanchadas dos anos de 70 pertence à faixa de leitores, dos
catecismos de Zéfiro dos anos 1950. A partir de Zéfiro, aliás, outros
“catecismos” foram muito populares até, pelo menos, os anos 70 no
Brasil. Sendo o catecismo de Zéfiro paródia lexical transgressora do
puritanismo católico, Histórias que Nossas Babás não Contavam é
rebaixamento do puritanismo do conto de fadas. Tanto em Zéfiro
quanto no filme de Oswaldo de Oliveira os códigos da interdição e
do pudor se depositam para serem transgredidos como estratégia
de incitação sexual.
Aberto o livro, saídos os créditos, entra uma voz off feminina
que inicia uma narração: “era uma vez, num maravilhoso e longín-
quo reino, onde as flores nasciam mais belas, um bondoso rei...”.
Trata-se de um discurso totalmente kitsch, puro clichê de beleza,
que em nada corresponde ao início textual do conto dos irmãos
Grimm: “Era uma vez uma rainha. Um dia, no meio do inverno, en-
quanto flocos de neve grandes como plumas caíram do céu, ela es-
tava sentada costurando, junto de uma janela com uma moldura de
ébano” (GRIMM, 1987, p. 43; tradução nossa). É que interessa ao filme
fornecer uma estilização que funciona como forma fossilizada, cli-
chê discursivo do conto de fadas como gênero, ou melhor, como a
versão disseminada no senso comum. “Era uma vez” é o centro e o
cume do clichê textual, sintagma imediatamente associado ao gê-
nero como narrativa infantil de teor fantasioso. Tal clichê estilístico
identifica o gênero como o universo de um mundo maravilhoso e
longínquo; o conto de fadas é tomado como o reino do indefinido
temporal; espaço de idealização que elide o chronos profano.
Voz feminina, audiência masculina – mas adulta. Uma voz
feminina narrando para homens é o início da reversão paródica.
Enquanto a voz feminina inicia a narração, vemos os cenários fa-
miliares do universo do conto de fadas de Branca de Neve, castelo
Começando a despir

medieval, árvores, plantas que coam a luz do sol... Mas a narração é


logo interrompida pelas vozes dos marmanjos, que protestam estar
ouvindo uma história como as que escutavam na infância. Dizem
159
que desejam ouvir “outra” versão, interpelando: “vai dizer que na-
quele tempo ninguém comia ninguém?”. A narradora promete en-
tão contar uma “história como realmente aconteceu”. Engendra-se
aí a jogada discursiva que remete às condições transmissão oral
do gênero, no protótipo da voz maternal que oraliza a história para
crianças para subverter o seu teor. No lugar de histórias “ingênuas”,
a voz feminina narrará um enredo “adulto”, associando-se pronta-
mente tal escuta masculina ao espectador da sala de cinema que
veio assistir ao filme de Oswaldo de Oliveira.
Mas vale atentar para uma função de tal movimento que rever-
te a audiência infantil dos contos de fadas no espectador adulto da
pornochanchada. Tal conversão já é estratégia de estimulação se-
xual por seu caráter de contravenção. Erótico ou estimulante é esse
ato “pecaminoso” ou “maldoso” de transgredir a história edificante
de Branca de Neve, retirar-lhe seu caráter de formação “edificante”.
Sexual é adentrar-se em território infantil, consagrado como uni-
verso por excelência de “pureza”, tornando-o narrativa maliciosa.
Ou melhor, maliciosa é a própria ação de violar o universo da “ino-
cência”. Transformar conto de fadas em conto de fodas. Tal início
não é, pois, mero preâmbulo em tacada metanarrativa aleatória,
mas gesto que faz do desbancar da tradição, do caráter “sagrado” do
mundo infantil, mecanismo de estimulação erótica do espectador.
Com tudo isso o espectador está convidado a ser cúmplice da
violação que converte Branca de Neve em Clara das Neves, a mu-
lata brasileira intensamente sexualizada, incorporada pela exu-
berância da atriz Adele Fátima. Embora a estereotipia da mulata
remeta ao servilismo da negra como objeto de exploração sexual,
suas ações no decorrer dos episódios do filme encontram na pró-
pria via da paródia ao puritanismo de Branca de Neve a desfaçatez
debochada de uma personagem sexualmente ativa. Se a tônica evi-
dente é ser Clara das Neves objeto do prazer masculino – tanto dos
personagens da trama quanto do espectador –, por outro lado ela é
suficientemente ativa na investida sexual, atraindo os homens – o
príncipe, o caçador – para o seu prazer sexual. Tal ambivalência
não retira da figura erótica da protagonista de Histórias que Nossas
Babás não Contavam, no entanto, o traço “genético” da representa-
ção da mulher como item disponível ao prazer masculino – mes-
mo que muitas vezes não se ultrapasse o limite do voyeurismo –,
que a pornochanchada herdou da chanchada dos anos 1940 e 50.
Trata-se de matrizes de representação do feminino que remontam,
por sua vez, a gêneros anteriores, como o teatro de revista e as pu-
Parte 2

blicações carnavalescas do início do século XX, expressões que,


160
em termos históricos, dão início no Brasil à explanação da mulher
como figura sedutora. Nos anos 30 e 40, tal representação do femi-
nino nessa incitação do sexual é desempenhada pelas vedetes do
chamado teatro rebolado.
Clara das Neves – interpretada por uma atriz vinda do “teatro de
rebolado” dos anos 70, o show de mulatas comandado por Oswaldo
Sargentelli – é encarnação avessa à Branca de Neve de Walt Disney.
É que a estrutura visual do discurso cinematográfico paródico de
Histórias que Nossas Babás não Contavam se dirige frontalmente
a Branca de Neve e os Sete Anões, de Disney. Constitui despacho
intertextual explícito ao repertório do próprio cinema, afinando-se
a certa postura da tradição do cinema brasileiro – e em certa me-
dida latino-americano, bastante presente, por exemplo, no cinema
mexicano – de submeter à reversão escachada, pela emenda inver-
tida e grotesca, o mundo edulcorado do cinema norte-americano
de mainstream. Neste ponto o filme reitera o lastro da tradição da
chanchada dos anos 40 e 50, sobretudo dos filmes da Atlântida, cuja
evocação mais evidente são produções em cujos títulos já se flagra a
paródia ao cinema hollywoodiano, – Nem Sansão nem Dalila (1954)
ou Matar ou Correr (1955), de Carlos Manga. O lastro da paródia das
chanchadas dos estúdios Atlântida no filme de Oswaldo de Olivei-
ra explora o desbaste do “centro” cinematográfico, como o fizeram,
em seu contexto, as chanchadas dos anos 40 e 50 pela irreverência
que acolhia a comicidade e a espontaneidade popular do teatro de
variedades, do rádio, do circo, do carnaval e vertia-a em desbasto
do glamour hollywoodiano com a comicidade das tramas e das atu-
ações de um Oscarito, Grande Otelo ou Ankito. A ocorrência paródi-
ca de Histórias que Nossas Babás não Contavam é da extração, em
particular, de uma sequência de Carnaval no Fogo, antológica cena
em que Oscarito é Julieta e Grande Otelo é Romeu, inversão cômi-
co-grotesca da obra de Shakespeare. Na chanchada dá-se vazo ao
corpo cômico e grotesco do ator. Em Histórias que Nossas Babás
não Contavam, personagens como o espelho mágico, o caçador e
os anões acentuam na mise-en-scène a ação do corpo grotesco. O
rosto do ator Costinha, no papel do caçador que caça sexualmente
Clara das Neves e é por ela também caçado, acolhe o lastro circense
do burlesco e do caricato com exploração do grotesco.
Primeiro longa-metragem animado dos estúdios Disney, Bran-
ca de Neve e os Sete Anões possui os elementos que se tornariam
Começando a despir

recorrentes e exemplares às produções de Walt Disney: heroínas


pudicas e heróis indefectíveis, animais antropomorfizados e gra-
ciosos, o maniqueísmo das personagens com correspondências
161
plásticas de imediata identificação, o triunfo do bem como portador
de lição de moral. O filme sublinha com linha graúda – a despeito
da conhecida delicadeza do traço de Disney – a dicotomia de teor
maniqueísta entre duas mulheres. Enquanto a Rainha, na versão
da madrasta, é movida por uma irrefreável vingança homicida, to-
das as ações de Branca de Neve são da máxima candura e benigni-
dade. Dicotomia muito marcada, a personagem da Rainha possui
virulência e uma constituição sombria – pujante em termos plásti-
cos – como autêntico negativo da bondade de Branca de Neve, que
chega à inexpressividade. Os sete anões funcionam, aliás, como
contraponto expressivo a tal brandura que atinge a insipidez. Eles
são personagens mais intensos, dinâmicos e marcantes, diante da
“brancura” de Branca. O filme de Disney corroboraria, pois, a leitura
proposta por Sandra Gilbert e Susan Gubar (1979): no lugar de uma
disputa sexual de caráter edipiano pelo pai – na figura do espelho
–, em Disney estariam demarcados os padrões da mulher má e da
mulher boa. O horror que a rainha inspira chega a ser fascinante em
sua carga sinistra.
A veia de deboche crítico da chanchada em relação ao poder do
cinema americano é reprogramada no filme de Oswaldo de Oliveira
em irreverência transgressora da moral assexuada de Disney, em
que a apropriação dos irmãos Grimm serve como molde paroxístico,
pois acolhe o máximo da candura como versão de “pureza” infantil.
O traço erótico “maldito” de Histórias que Nossas Babás não Conta-
vam se dá precisamente na estimulação pela dessacralização des-
sa “pureza”; seu teor de perversão sexual se inscreve precisamente
em atuar no universo da infância, vertendo-o ao infame.
No filme de Disney os animais da floresta funcionam como um
coro cujos cânticos, gestos e movimentos celebram a união edul-
corada entre Branca e o Príncipe. Amigáveis, cândidos, delicados e
graciosos, acompanham com os olhos e gestos compassivos do en-
levo amoroso entre os protagonistas. Mas não são meras ilustrações
encantadoras de um ambiente natural muito acolhedor ao amor
“nobre” entre o Príncipe e Branca, tampouco apenas espectadores
distantes do enlevo. Têm presença ativa. Suas figuras demonstram
estar enlevados pela performance amorosa do casal que dança. Há,
com efeito, um comportamento que emoldura a noção de espetácu-
lo na cena. Os animais assistem ao conluio amoroso dos humanos
ao mesmo tempo em que o compõem. O efeito é de celebração; os
animais comemoram, assistem, mas, no conjunto, a cena funciona
como uma aprovação ritual que grifa a “pureza” daquele par, ao qual
Parte 2

se põem em condição de seres submissos. Estão ali como seres de


162
decoração, ornamentos animados. Glorificam, como espécie de co-
rifeus ou duendes, a versão do amor romântico ocidental.
O caráter de inversão a tal universo de sentido em Histórias
que Nossas Babás não Contavam se dá na cena da iniciação sexual
de Clara das Neves. A perda de virgindade é estrepitosa, assinala-
da com o espocar ruidoso da “perda da inocência”, com planos que
alternam o sexo de Clara e do príncipe a céu aberto e a “comemora-
ção” com a algazarra dos macacos que na mata assistem ao ato, em
tonalidade cômico-grotesca. E a candura dos sete anões é revertida
em intenso apetite sexual por Clara das Neves nas diversas situ-
ações em que ela é assediada e corresponde com uma disposição
erótica que torna os pequeninos em objetos do seu prazer.
Há algo de Macunaíma no filme de Oswaldo de Oliveira – re-
firo-me tanto à rapsódia de Mário de Andrade quanto à adaptação
anticanônica do filme de Joaquim Pedro de Andrade. O sexo em
Histórias que Nossas Babás não Contavam é uma festa com pudor
infantil. Nesse caso, serve a associação historicamente constituída
dos contos de fadas como narrativa para crianças – embora seu
lastro de difusão europeu, durante séculos, ultrapasse tal circuns-
crição. Mas a remissão intertextual direta ao filme de Disney ins-
creve a paródia aos termos em que o sexo é uma brincadeira in-
fantil “perversa”, festa comemorada praticamente por todos. O sexo
entre os anões e Clara das Neves é um carnaval de risos, euforia,
espalhafato, diversão. O que menos importa é uma boa performan-
ce sexual, ou melhor, as cenas preferem uma anti-performance, a
mise-en-scène de corpos pequenos e rostos grotescos que se deli-
ciam com a mulata nua explora a desproporção entre os corpos dos
amantes. O mundo do prazer é uma celebração festiva coletiva em
que se diluem atributos convencionais, destronam-se papéis sexu-
ais consagrados. A suruba de Clara com os anões tem o caráter da
brincadeira de criança, em que não entram o atributo da virilidade
masculina. Após várias brincadeiras sexuais, Clara e os anões re-
alizam uma espécie de carnaval em que cantam uma marchinha.
O sexo é lúdico, tomado por riso e zombaria; são rostos que se dis-
tendem entre jocosidade e malícia; os corpos se exibem em eufo-
ria, em uma cópula cuja estilização expõe o próprio mecanismo de
incitação ao olhar do espectador. Os corpos dos anões se torcem
histrionicamente no encontro com a nudez de Clara das Neves. A
câmera passeia, capta a expansão do corpo nu de Clara, cuja indo-
Começando a despir

lência se situa no mesmo plano da sensualidade. O traço jocoso e


estilizado do sexo, sendo tônica da pornochanchada brasileira – e
de seu similar italiano nos anos 60 e 70 – no filme de Oswaldo de
163
Oliveira fica sintonizado na gratuidade do lúdico. Se de um modo
geral o sexo na pornochanchada é estilizado – nada de sexo “de
verdade” –, o filme encaminha a estilização para um infantil toma-
do pelo grotesco. Os corpos pulam, a mise-en-scène reverte-se em
contorcionismo dos anões, em extração circense. Clara das Neves,
nua na cama, é o corpo adulto buscado que é por uma pantomima
grotesco-infantilizada do sexual como risonha travessura.
A nudez e o gozo são expressões de uma espécie de peripécia
descomprometida, de um jogo de engodos grotescos, na fanfarro-
nice de quase todos os personagens, em encontro com uma sexu-
alidade como mensagem de um prazer ocioso e despretensioso.
Naturalmente são aí revertidos os caracteres convencionais dos
personagens, tanto da versão de Disney quando dos irmãos Grimm.
Se em Disney e Grimm o universo do trabalho comparece como um
valor, na faina na mineração dos sete anões e nas tarefas domés-
ticas de Branca, em Histórias que Nossas Babás não Contavam a
festa, a preguiça, o deboche são declarações do prazer de viver.
Assim, não deve estranhar, no encaminhamento paródico de
certa extração à Macunaíma de destronamento da tradição do he-
rói europeu, que o príncipe da história seja desbancado no fim da
trama: Clara recusa-o e prefere a vida sexual com os anões, men-
cionando, em chave anti-romântica e carnavalesca, o tamanho do
“dote” de um deles. Quanto ao destino amoroso e sexual do príncipe,
é seduzido pelo anão gay, desfecho da (anti) fábula como ápice do
vetor intertextual rebaixador que desmonta o moralismo de Disney.
Trata-se da mesma matriz de dimensão carnavalizada, reprogra-
mada na pornochanchada em seu período final, dirigida ao filme
de Disney por representar o “classicismo” do cinema da matriz do
mainstream, e, em outra dimensão, seu deboche é vetor desestru-
turante da moralidade de um “mundo sério”, calcado na estrutura
familiar burguesa e na repressão religiosa judaico-cristã.

Gozo do país indigente


O caráter de irrisão pela inversão paródica de Histórias que
Nossas Babás não Contavam pode evocar considerações de “Ci-
nema: Trajetória no Subdesenvolvimento”, ensaio célebre de Paulo
Emílio Sales Gomes:

O público plebeu e juvenil que garantiu o sucesso dessas fitas


encontrava nelas, misturados e rejuvenescidos, modelos de
Parte 2

espetáculo que possuem parentesco em todo o cinema mas

164
que emanam diretamente de um fundo brasileiro constituído
e tenaz em sua permanência. A esses valores relativamente
estáveis os filmes acrescentavam a contribuição das inven-
ções cariocas efêmeras em matéria de anedota, maneira de
dizer, julgar e de se comportar, fluxo contínuo que encontrou
na chanchada uma possibilidade de cristalização mais com-
pleta do que anteriormente na caricatura ou no teatro de va-
riedades. Quase desnecessário acrescentar que essas obras,
com passagens rigorosamente antológicas, traziam, como
seu público, a marca do mais cruel subdesenvolvimento;
contudo o acordo que se estabelecia entre elas e o espectador
era um fato cultural incomparavelmente mais vivo do que o
produzido até então pelo contato entre o brasileiro e o produ-
to cultural norte-americano. (GOMES, 1980, p. 80)

Paulo Emílio assumia um embate teórico cuja transposição


para o contexto da comédia porno dos anos 70 não se faz sem
problemas. Todavia, posso assinalar, de sua defesa da chancha-
da – durante décadas maltratada por grande parte da nossa in-
telligentsia –, a aclimatação de expressões de espetáculo popular
como dispositivo em que o paródico da pornochanchada parece
ter encontrado vitalidade para a crítica do padrão mainstream
hollywoodiano. Machista, falocêntrico, conservador, preconceitu-
oso, tais acusações à pornochanchada brasileira dificilmente são
contestáveis em relação ao filme de Oswaldo de Oliveira. Mas algu-
ma ambivalência parece se inscrever, tornando as categorizações
insuficientes. A disposição dos papéis sexuais possui no filme cer-
ta dinâmica que dissolve a rigidez da estereotipia, embaralhando
os dados. Em determinada cena, Clara põe um dos anões no colo
e lhe oferece o seio, o que embaralha encontro sexual e ato mater-
nal. Se na maior parte da trama o príncipe é a figura masculina do
predador sexual do corpo feminino, seu destino na história é ser
seduzido e seduzir o anão homossexual.
Reservo um último lance da jogada paródica de Histórias que
Nossas Babás não Contavam. Na discussão – talvez hoje esmaecida
– do papel do cinema como representação do país, questão que ad-
quiriu matizes distintos e de coloração tensa em distintas fases do
nosso cinema, o filme de Oswaldo de Oliveira parece ter algo a dizer.
Como voz da periferia, expressão de um cinema desprezado pela
intelectualidade, Histórias que Nossas Babás não Contavam troça
Começando a despir

e desmonta, em um primeiro vetor, o senso romântico-nacionalis-


ta – projeto caro aos dos irmãos Grimm –, discurso de constituição
da identidade nacional pelo acolhimento da “alma alemã” que teria
erigido a tradição do conto de fadas. Em outro vetor, ao desbancar o
165
universo edulcorado de Disney o filme faz soar a voz de um cinema
de periferia que faz um discurso descentrado, o da paródia. Nesse
caminho, o filme acusa Disney e Grimm – o cinema hollywoodiano
e o mundo canônico europeu – como expressões problemáticas por
serem recorrentemente decalcadas pelos países periféricos.
Vista na perspectiva do que o tempo permite, Histórias que Nos-
sas Babás não Contavam, um dos últimos filmes de sucesso do ciclo
de aproximadamente vinte anos de pornochanchada, registra um
dos traços talvez vitais do “movimento”: a afirmação do subdesen-
volvimento e da própria indigência do cinema brasileiro pela incor-
poração do deboche paródico em que o carnaval sexual é resposta à
assepsia moral do filme de Disney como um anti-discurso que pro-
blematiza o próprio cinema, suas condições de produção e recepção.
Afinal, no cinema de mainstream a paródia não possui o caráter des-
bastador. Em filmes como Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu (1980)
ou Top Secret! (1984), de Jim Abrahams, David Zucker e Jerry Zucker,
o discurso paródico não ultrapassa a circunscrição da competência
fílmica, pelo esmero de seu labor técnico. Nesse caso a paródia que
escarnece de tantos filmes hollywoodianos se restringe ao humor
“competente”, que não implode a moldura do mainstream.
Já o riso paródico da pornochanchada brasileira pode ser lido
como gesto desconcertante apontado ao cinema hegemônico “de
qualidade”. E chamado lúcido à reflexão sobre nossa identidade –
com seus dilemas, dores e prazeres.

Referências Bibliográficas
GILBERT, S.; GUBAR, S. The madwoman in the attic: the woman wri-
ter and the nineteenth-century literary imagination. New Haven,
CT: Yale University Press, 1979.
GOMES, P.E.S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra; Embrafilme, 1980.
GRIMM, J.; GRIMM, W. The complete fairy tales of the brothers
Grimm. Toronto: Bantam, 1987.

Filmografia
Histórias que nossas babás não contavam. Dir. Oswaldo de Oliveira.
Brasil: Cinedistri, 1979. VHS (97 min.), color, sem legenda, Port.
Parte 2

166
Célio J. Losnak O BEM DOTADO – O HOMEM DE ITU:
AS PERIPÉCIAS DO CAIPIRA MACHO
NA METRÓPOLE

Introdução: o filme
O personagem central é Lírio1(Nuno Leal
Maia), um jovem inocente, tímido, sensível, sim-
plório, sexualmente virgem, católico, coroinha e
temente a Deus. Vivendo em Itu, cidade do interior
paulista e perto da capital, é representado com
traços considerados típicos do caipira: sotaque e
fala característicos2, dificuldade para se expres-
sar e interagir com as pessoas e acontecimentos,
postura corporal meio curvada, olhar desconfiado
e assustado com tudo que não conhece, com cal-
ça do alto da botina ao abdome, camisa de man-
ga comprida. Esses elementos componentes do
interiorano, misturando inocência e vivacidade,
ainda que seja com certo desajeito, irão compor
um dos elementos cômicos do filme3.
Lírio é criado pelo padre Belmiro ao mesmo
tempo em que ajuda nos serviços da paróquia,
na horta do vigário e em um projeto para jovens
pobres. Versado nos serviços domésticos, sua ex-
periência de vida restringe-se a esse universo pa-
roquial interiorano. Apesar da simplicidade em
relação às etiquetas da alta classe, é bem educa-
do, solidário e respeitador das regras sociais.

1
Simbolicamente a flor lírio é sinônimo da cor branca e, portanto, pureza, inocência, virgin-
dade. Há também o Lírio do Vale que em tradição cristã foi interpretado como designação
de Cristo, mas também a escolha do ser amado. O lírio lartagão, vermelho, representava
na mitologia grega os amores proibidos, a tentação. Nessa mesma tradição, o pistilo ver-
melho induziria à imagem fálica e da procriação (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002).
2
Por exemplo, pronúncia arrastada do R (em retroflexo), do LH com som de I, e alteração
do L.
3
Em contradição a essa imagem, o personagem também utiliza inicialmente um boné
para representar o elemento infantil.
167
Logo no início, na segunda cena, ele é assediado por uma jovem
conhecida. Em uma pequena corredeira, Lourdinha (Aldine Muller)
seminua, e acompanhada de amigas também de seios desnudos,
brinca e zomba dos trejeitos envergonhados e do temor do rapaz
diante da investida feminina. Lírio foge da sanha sensual daquelas
jovens desinibidas. A simplicidade da interpretação religiosa tradi-
cional, somada às orientações maternas, no passado, de que “mu-
lher é coisa do diabo”, orientam-no a um comportamento arredio
em relação à jovem, de corpo longilíneo e curvas acentuadas, que
brinca com a incapacidade de ele corresponder às suas insistên-
cias para um namoro e algo mais. No final do filme, descobriremos
que ela também era virgem e o que importava naquelas cenas ini-
ciais era a provocação da sedução de um indivíduo que ainda não
estava preparado para o sexo.
A vida interiorana muda quando Nair (Consuelo Leandro), uma
senhora grã-fina da capital, visitando a cidade em busca de lugares
históricos, objetos de arte e antiguidades, encontra-se com Lírio e
descobre o dote dele. Quando casualmente e furtivamente ela se
depara com o imenso e irresistível falo, fica muda e imóvel, ima-
ginando a presentificação de um êxtase vindouro. Ela decide levar
o rapaz para a capital sob argumento da competência dele para os
serviços domésticos. E a série de peripécias se iniciará na grande
cidade e na mansão da Zilá (Maria Luisa Castelli), amiga de Nair e
companheira de passeio em Itu.
Ainda em Itu, durante a conversa de Lírio com o padre sobre a
sua possível mudança para São Paulo, uma barreira cai para ele ao
ouvir do próprio vigário que era natural homem se interessar por
mulher e vice versa. Essa descoberta irá possibilitar ao personagem
lentamente redefinir seu comportamento em relação às mulheres.
A partir daí, três momentos cômicos recorrentes se destacam
na narrativa. O primeiro é a explicitação do desejo de Lírio, a ereção.
No início, sem muita consciência do que acontecia, posteriormente,
ainda que involuntária em algumas situações, ele passa a conhecer
e vivenciar a situação de excitação e desejo. A comicidade vem da
potência que, manifestada de tal maneira, rompe a calça e expõe
o membro de Itu, e é acompanhada por uma sonoridade de movi-
mento sucessivo de impacto, criando situações embaraçosas para
o personagem, causando espanto e admiração àqueles que o visua-
lizavam e, o mais importante, o desejo feminino irrefreável.
O desdobramento do bizarro possibilita o segundo momento cô-
mico, o deslumbramento feminino. No primeiro dia em São Paulo, a
Parte 2

jovem Julinha (Helena Ramos), filha de Zilá, depara-se com a ere-


168
ção, e a inconfundível característica de Lírio, e espalha a novidade
entre as amigas. A empregada Pedra (Esmeralda Barros) também
descobre o tamanho fascinante do membro do visitante e, apesar
de ser namorada do motorista Kimura, leva-o para cama na primei-
ra noite e o introduz aos prazeres do sexo. Nos dias seguintes, ele
será caçado pelas mulheres que buscavam satisfazer a curiosidade
e experimentar o grande pênis que proporcionaria o gozo absoluto.
Na manhã posterior a sua chegada, ele é atacado pela vendedora no
provador da loja de roupas; logo depois, Volga (Darlene Glória), uma
senhora casada e conhecida da família, o sequestra temporaria-
mente, leva-o para casa e ruma diretamente para quarto, enquanto
o marido estava à beira da piscina. Mais tarde, Neiva, outra amiga
da família, usa de subterfúgio para que Lírio seja enviado a casa dela
e abusa do rapaz inclusive com a ciência do marido; à noite, Lírio
já está desenvolto e ataca a jovem e indefesa empregada e irmã do
motorista Kimura; no outro dia, durante uma festa de senhoras, ele
assedia Lea, uma visitante da mansão, e é bem sucedido; e também
durante o evento, Lírio é seduzido por Julinha que acompanhava os
acontecimentos recentes com atenção, discrição e excitação.
Nessa festa, de uma Liga feminina conservadora, mas enal-
tecendo a emancipação da mulher, ocorrem trapalhadas, ereções,
confusões, perseguições, encontros e desencontros entre patrões
e empregados, mulheres e o ituano. Por fim, quando todas as as-
sociadas se deparam com Lírio nu no quintal, ainda que sem ere-
ção, ocorre o frenesi, saem em desabalada carreira perseguindo o
objeto desejado. A fuga do herói termina em Itu, à beira do córrego
onde Lourdinha se banha nua. Agora, a situação se inverte, Lírio
já versado na prática do sexo, ciente de seu prazer e de seu poder,
argumentando ser algo rotineiro e supondo que ela vai gostar do
que viria, avança, insiste, força a barra e penetra. Nesse momento,
ocorre uma revelação típica de final feliz e cômico.
O terceiro momento cômico ocorre com o efeito da penetra-
ção. A cada efetivação, a mulher grita a palavra “mamãe”, em vo-
lume muito além do possível, ao mesmo tempo em que a câmera
enquadrando o lado de fora da cena mostra o local balançando
como se estivesse ocorrendo um terremoto, todos da proximidade
se assustam e ficam intrigados com o que teria acontecido. Poste-
riormente, as mulheres sofrem sequelas, tem dificuldades para se
movimentar, algumas descadeiradas usam uma bengala para se
Começando a despir

amparar ao andar.
O filme foi lançado em 1978 e teve argumento, roteiro e direção
de José Miziara com produção de Aníbal Massaini e distribuição
169
da Cinedistri. O Bem Dotado foi o primeiro longa do cineasta com
autonomia de roteiro e direção. Ela havia trabalhado com teatro e
circo na juventude, posteriormente atuou em rádio, produziu por
décadas programas televisivos em vários canais. Em 1976, dirigiu
um curta, O Furo, como parte de Ninguém Segura Essas Mulheres,
produzido pelos Estúdios Silvio Santos. Posteriormente dirigiu vá-
rios filmes típicos da pornochanchada e alguns de sexo explícito,
também foi ator em cerca de vinte produções4. Diante das mudan-
ças do mercado, abandonou a área e passou a escrever para a TV;
até 2011, estava no SBT com a Praça é Nossa.
A trajetória de Miziara anterior ao filme revela um profissional
experiente com a linguagem televisiva, cômica e popular. Seu tra-
balho estava voltado para produções que buscavam rápida identi-
ficação do público, entretenimento e sustentação financeira. Para
isso, sabia usar estratégias verbais e audiovisuais de fácil decodi-
ficação com material cultural universalizado. O resultado foi o su-
cesso de público. A entrevista de Miziara a Marcelino (2011) revela a
lógica de um trabalho de produção cinematográfica com o viés téc-
nico-mercadológica voltada para a elaboração de um produto viável
e atraente para o público e, portanto, rentável financeiramente para
garantir o negócio e possibilitar a continuidade daquela indústria.
Nessa lógica, o produtor Aníbal Massaini afirmou que a obra atin-
giu três milhões de expectadores e foi lançada em italiano, alemão,
inglês e francês (NAGIB, 2002, p.296). Foi um filme de destaque na
tendência da pornochanchada.
Este breve resumo já indica que O Bem Dotado é uma obra que
demanda abordagem distanciada de dualidades interpretativas,
alienação/politização ou entretenimento/arte. Ele fez sucesso e
expressa diversos aspectos da sociedade brasileira do período em
diálogo com algumas tradições culturais, incluindo o cinema.
O filme foi liberado pela censura em 05/04/1978 sem restrição,
embora tenha sido observado que diante da temática “picante” ele

4
Dirigiu: Meus Homens, Meus Amores (1978), Embalos Alucinantes (1979), Nos Tempos da
Vaselina (1979), Mulheres do Cais (1979), Os Rapazes da Difícil Vida Fácil (1979), As Intimida-
des de Analu e Fernanda (1980), Como Faturar a Mulher do Próximo (1981), Pecado Horizontal
(1982), As Amantes de um Homem Proibido (1982), Mulher… Sexo Veneno (1984), Deliciosas
Sacanagens (1985), Sem Vaselina (1985), Rabo I (1985), A Quebra-Galho Sexual (1986), O Oscar
Parte 2

do Sexo Explícito (1986).

170
devesse ser exibido para público acima de 18 anos5. Há indícios
da existência de intrincado jogo entre produção/direção da por-
nochanchada e a censura, com autocensura, resistência e ousa-
dias por meio de tentativas de ampliar os espaços de expressão.
Neste filme, especificamente, há duas cenas referentes ao apara-
to repressivo ditatorial. Na primeira delas, quando Lírio havia se
perdido no centro da cidade e, sua patroa Nair está em prantos e
indaga o que fazer, o mordomo dispara: “A nossa polícia é muito
eficiente, dona Nair. Não se preocupe, daqui a pouco teremos notí-
cias dele”. Ironia ou afago? Na segunda cena, nos deparamos com
agentes da lei educados e gentis: Lírio ainda perdido anda pela
rua e é visto por dois policiais civis que o veem e desconfiam ser
o caipira perdido, abordam-no, conferem sua marca característica,
recolhem todas as sacolas de compras que estavam com ele e le-
vam-no para casa. Boas imagens de um bom serviço público, mas
na época reconhecido pela violência e arbitrariedade. Seria uma
forma de agradar aos censores?

O Bem Dotado no Cinema


Em texto que faz uma abordagem panorâmica sobre as obras
autorais do cinema no pós-64, Ismail Xavier (1985, p.26) afirma
que havia significativa diversidade da produção cinematográfica
a partir do início dos anos 1970, tornando difícil a caracterização
do conjunto, a identificação de períodos e grupos formados a partir
de linhas estéticas específicas. Nesse período, entre 1970 e 1985, o
Cinema Novo estava esfacelado e prevalecia “a invenção de cami-
nhos pessoais e muitas opções” não estabeleciam fronteiras “muito
nítidas”. Interessado em pensar os caminhos estéticos originais, o
Começando a despir

5
Do curto e simples texto de liberação pela censura, destaco a concordância com o erotismo:
“Comédia ligeira sobre os atributos sexuais de um ituano, puro e ingênuo,... num clima erótico sem
chegar à obscenidade”. Os documentos estão disponíveis no site Memória da Censura no Cinema
Brasileiro, 1964-1968, disponível no seguinte endereço: http://www.memoriacinebr.com.br/.

171
autor passa ao largo dos filmes da pornochanchada, relegando-os
ao ostracismo por não serem objeto de seu foco6.
Em abordagem diferente, Ramos (1990) mapeia algumas ten-
dências e incorpora a participação dos filmes eróticos. Nesse texto,
destacam-se duas questões importantes. Além da censura que foi
gradativamente sendo ampliada e sofisticada, buscando controlar a
produção cultural, reprimindo, mas também suscitando inúmeros
protestos, resistências e estratégias de burla, o Estado brasileiro es-
timulou e protegeu o cinema nacional, garantindo cota mínima de
exibição em salas pelo país7 e financiando películas pela Embrafil-
me. O órgão foi criado em 19698 e aperfeiçoado na segunda metade
dos anos 1970 com o objetivo de também coproduzir e distribuir. Pe-
reira (1985, p.61) defende que, entre 1975 e 1980, a entidade possibili-
tou “um impulso quantitativo nunca visto em sua história”.
Outra questão é que cinema dos anos 1970 estava mais volta-
do para o mercado do que aquele da década anterior. A ênfase na
política e no debate de ideias e a busca por filmes experimentais
e autorais não desapareceram, mas esmaeceram diante da predo-
minância da “gradativa industrialização da produção cultural” (RA-
MOS, 1990, p.401). Pereira (1985) observa que a orientação geral do
Instituto Nacional de Cinema (INC) era de que o cinema deveria ser
arte industrial, articulando aspectos técnico-econômicos e artísti-

6
Ramos (1990) esboça características gerais dessa diversidade. O início da década revelou
perspectivas diferenciadas que se avolumariam no decorrer dos anos. Havia cineastas forjados
nas décadas anteriores ou referenciados no Cinema Novo, como Joaquim Pedro de Andrade
(Os Inconfidentes (1972) e no Underground, como Carlos Reichenbach (Lilian M. Relatório Confi-
dencial, 1975), alguns que se afastavam dos cânones anteriores, Paulo Cesar Saraceni (A Casa
Assassinada, 1971) e Leon Hirszman (São Bernardo, 1972) e outros jovens que dariam vazão a
produções com diversos perfis. O nacional-popular matizado marcará obras diferentes como O
Amuleto de Ogum (1974), Dona Flor e seus dois maridos (1976), Tenda dos Milagres (1977), Bye
Bye Brasil (1979). Em outra perspectiva, a literatura seria a inspiração para obras com elementos
eróticos, como Lucíola (1975), Iracema, a virgem dos lábios de mel (1977), O Guarani (1979). Outra
tendência é de profissionais experientes e distantes dos debates estéticos e políticos produzi-
rem com eficiência obras que buscavam sucesso de bilheteria e lançarem A Estrela sobe (1974),
Amor Bandido (1978), Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977).
7
Entre 1966 e 1975 esteve em vigência o Instituto Nacional de Cinema (INC), que implantou
medidas estimuladoras e controladoras, tais como, o condicionamento de, no mínimo, 63 dias
por ano de exibição de películas nacionais, margem reajustada para 112 dias em 1975. Nesse
mesmo ano, foi criado um sistema mecanizado de venda de ingressos visando ao controle o
movimento de bilheterias.
8
Até 1975, o destaque é para o estimulo às narrativas com conteúdo histórico e cívico, surgindo
algumas obras bem comentadas (Independência ou Morte, O Caçador de Esmeraldas, Anchieta
Parte 2

José do Brasil) ao mesmo tempo em que as comédias eróticas iam ascendendo.

172
co-culturais em perspectiva universal, o popular “cinemão”. Proces-
so que ocorria em vários âmbitos na televisão, na música, no rádio
e na produção de livros e revistas foi caracterizado por Ortiz (1988)
como um dos elementos evidenciadores da consolidação da indús-
tria cultural no país.
E a pornochanchada acentua essa tendência com particulari-
dades específicas. As produções objetivavam rentabilidade finan-
ceira elevada, lançavam mão de pouca verba, os recurso técnicos
eram precários e improvisados e eliminavam a “ortodoxia cinema-
tográfica” (SIMÕES, 2007, p.189). A duração das filmagens era mais
curta do que o usual, o elenco costumava se reduzido, usava-se mão
de obra barata, o tempo entre a finalização do filme e o início da
exibição era diminuído ao máximo. A precariedade era acentuada
porque normalmente os filmes da Boca do Lixo não recebiam ver-
ba da Embrafilme9, o setor recorria ao financiamento de investido-
res diversificados, dos exibidores e até de pequenos comerciantes
que participavam com diminutas cotas. Haveria a constatação de
que a maior parte dos profissionais envolvidos não vinham dos
segmentos sociais intelectualizados e elitizados, eram trabalhado-
res manuais, aventureiros e interessados na produção audiovisual
distante dos grupos ligados à universidade e do trânsito entre as
altas camadas sociais. Essa questão precisa ser problematizada e
é possível constatar a presença de profissionais da televisão10 em
inúmeras obras. A presença deles na produção da Boca do Lixo de-
monstraria a existência de espaço propício à sustentação financei-
ra, criação mais livre, sem as restrições típicas do meio televisivo
ou do ethos dos grupos experimentais de cinema.
O nome da tendência, pornochanchada, seria uma suposta filia-
ção à chanchada carioca, criada pela produtora Atlântida, e famo-
sa nos anos 1940 e 1950, na perspectiva da comédia de costumes11.

9
Em 1976, Roberto Farias declara que a Embrafilme não financiava as comédias eróticas e que
elas deveriam ser combatidas (SELIGMAN, 2000, p.63-64).
10
O próprio diretor Mizziara é um exemplo e também podem ser citados: Ainda agarro essa
vizinha, de 1974, tinha como roteiristas Marcos Rey e Oduvaldo Viana Filho; A árvore dos sexos,
de 1977, foi dirigido por Silvio de Abreu e roteiro dele com Rubens Edwald Filho; Mulher Objeto,
de 1981, foi dirigido por Silvio de Abreu.
Começando a despir

11
O dicionário de origem francesa (PAVIS, 1999, p.81) apresenta chanchada como originada da
gíria argentina lunfardo designando porcaria e utilizada para caracterizar “peças, filmes e progra-
mas televisivos de baixo nível”. Seria uma produção voltada para o popular, de fácil decodifica-
ção e público massivo, com “comicidade escrachada, vulgar, escatológica, grosseira, e ... recurso
do circo e do teatro de revista”.

173
As características de teor erótico leve, na fase de 1969-1972, teriam
possibilitado aos críticos estabelecerem a aproximação, mas a pro-
dução sob essa denominação era diversa, durante os anos 1970, e
abrangia inúmeros gêneros não enquadráveis como pornochan-
chada12. Em relação ao O Bem Dotado é possível identificar refe-
rências internacionais. Em entrevista a Marcelino (2011) o diretor
Miziara declara que teria se inspirado no filme francês O Último
Homem Virgem Sobre a Terra lançado em 195013. Marcelino (2011)
identifica o título Le rosier de Madame Husson, dirigido por Jean
Boyer e baseado no conto de Guy de Maupassant publicado, em
1888, em livro de mesmo título. O argumento apresenta o jovem do
campo inocente, virgem e assediado por uma conhecida, e sua vida
sofre uma reviravolta, quando ele é levado por uma mulher para
Paris, perde a timidez e ingenuidade, volta para o vilarejo e seduz a
amiga. Essa não teria a primeira nem a última adaptação na França
da obra de Maupassant para o audiovisual.
Por outro lado, há outra referência temporalmente e tematica-
mente mais próxima. O diretor Cláudio Cunha (CAMARGO, 2011)
afirma que os roteiristas e diretores da pornochanchada se inspi-
ravam na comedia italiana e há referência vinda de outro profis-
sional, especificamente dos filmes de Lando Buzzanca (MOURA;
GODINHO; GRAZIANO, 2013). Mapeando as películas em que o ator
italiano atuou, destaca-se uma particularmente em que o argumen-
to é muito similar ao do O Bem Dotado: Homo Eroticus14. Um jovem
siciliano vai para uma cidadã média, procura emprego e passa a
trabalhar como mordomo para um casal que vive em uma mansão.
Ele, um engenheiro de idade e, ela, bela, jovem e disposta às novas

12
Considerando que este texto está incluído em publicação sobre a pornochanchada, limitamos
a utilizar a expressão para referir-se a um grupo social e conjunto de produções fílmicas social-
mente e historicamente abrangidas e largamente reconhecidas pela expressão. Não há aqui a
intenção de analisar os possíveis sentidos e usos dessa denominação com possíveis inadequa-
ções, preconceitos e reducionismos.
13
“Hoje, já posso contar, estou com 74 anos de idade [a entrevista foi feita em julho de 2010].
Há um filme francês, O Último Homem Virgem Sobre a Terra [ao que tudo indica, Le rosier de
Madame Husson, 1950, de Jean Boyer]. Se você achar esse filme, você vê O Bem Dotado. Eu pla-
giei, plagiei mesmo. É um filme com o comediante francês Bourvil. Peguei e passei para Itu – no
original, fazem numa vila da França. Duas mulheres que vão ser para juízas, acham o cara lá que
é virgem, trazem para a cidade… igualzinho. Pode pegar lá que você vai ver”.
14
Lançado em 1971, ele tem como diretor Marco Vicario, com roteirização dele e de Piero Chiara.
Parte 2

A versão do título para o português é O Super-macho.

174
experiências. Descobre-se que o jovem é bem dotado. A notícia cir-
cula no meio social do casal e desperta a curiosidade das mulheres
de várias idades e perfis, casadas, livres, empregadas, empresária,
nobre. No início, ele recebe roupas novas da patroa e é seduzido por
ela, depois, pelas amigas dela; com o tempo, ele conquista algumas,
desencadeando um ritmo frenético de sexo com cada uma, e com a
patroa em particular porque eles têm um caso mais sério. Como no
filme nacional, há a tese de viés masculino de que a virilidade era
determinada pelo tamanho do membro e na potência infindável de
dar conta do desejo feminino, mas também há o reconhecimento
de que as mulheres independentes e modernas experimentavam
ousadias sexuais. O desenlace de O Bem Dotado é diferente, a pro-
dução é inferior e as cenas de sexo são mais desenvoltas, mas as
similaridades entre ambos são nítidas15.
Homo Eroticus explora a imagem do corpo e da beleza femini-
na. Elas são jovens, usam saias curtíssimas, como era a moda no
período, e têm pernas e rostos focados pela câmera que acompanha
com detalhes os corpos esguios das atrizes. Seligman (2000, p.93)
comenta a tese de que a beleza das atrizes foi usada inicialmen-
te no cinema industrial norte-americano para “seduzir e cativar o
público”, consolidando o pressuposto de que a mulher era para ser
contemplada e desejada. E a autora identifica o mesmo recurso na
pornochanchada. Nesses filmes (SELIGMAN, 2000, p.96-98), “...a mu-
lher é colocada como objeto do olhar; o homem, como dono do olhar
e condutor do espectador”. A câmara “controla e conduz”, enquadra
da melhor maneira “o objeto da adoração... a personagem feminina”
e emerge da parte do público “o prazer de tomar o outro como objeto”.
O olhar do observador (voyeur) percorre o filme sobre homem
de Itu tanto na perspectiva das personagens como na do diretor,
ambos projetando para o público. Logo no início, podemos ver, por
imagens naturalistas, as jovens tomando banho na corredeira e a
câmera se aproxima dos corpos semidesnudos, enquanto isso Lírio
chega ao local, ouve a algazarra delas e espia, fica envergonhado
com a visão, põe a mão na frente dos olhos, mas mesmo sendo puro,

15
Em Homo eroticus há uma música repetida quando o personagem central está em ação e em
Começando a despir

determinado trecho há um sonoridade similar ao ruído onomatopaico (algo como: tóioooóimmm)


reproduzido quando o bem dotado brasileiro tem ereção. As principais diferenças, além das ca-
racterísticas do tempo e da sociedade, são: Michelino não era virgem, ele viera da Sicília fugindo
de um escândalo sexual e, quase no final perde a ereção ao passar por um trauma, mas há
sinalização de que a normalidade poderia ser recuperada.

175
não resiste, entreabre os dedos e olha de soslaio para satisfazer a
curiosidade. Posteriormente, quando em São Paulo, na casa de Zilá,
é Julinha (Helena Ramos) quem acompanha toda a movimentação
em torno do ituano na área dos empregados. Da janela do quarto
no alto, ela espia o que se passa entre eles e se excita, se acaricia,
tira a roupa e exibe o seu desejo para a câmera. Na mesma cena há
quatro olhares: a câmera postada na janela, e representando o olhar
de Julinha, acompanha as aventuras de Lírio entre as empregadas;
de dentro do quarto, observa-se o ato de dela espionar; como reforço
da mensagem, a câmera enquadra de fora a imagem dela na jane-
la; novamente dentro do quarto, podemos observar a intimidade do
corpo da musa da pornochanchada excitado e desejante. Quando a
empregada Pedra resolve ajudar Lírio a costurar a calça dele, ação
que possibilitará a ela descobrir o imenso falo, e o leva para o quar-
to, no ato ainda apenas solidário, o namorado Kimura identifica a
movimentação inocente e espiona o que acontece. No decorrer do
filme, ele e Julinha observam todos os acontecimentos na casa e
têm conhecimento das conquistas de Lírio.
No decorrer da narrativa o enquadramento da câmera continua
a permitir que o olhar perscrutador do público se movimente em
busca da satisfação e excitação pela imagem. E também pelo riso.
No teatro (PAVIS, 1999), é possível identificar intricada ramificação
de variados tipos de comédias com aproximações e confluências
em decorrência de produções históricas variando no tempo, por
país, região e autor16, mas tradicionalmente ela volta-se para a cena
cotidiana e as questões e pessoas comuns17.
Além de vários elementos da comédia estarem presentes na
pornochanchada, eles costuram a narrativa de O Bem Dotado ca-
racterizando o cômico por meio do gênero farsa18. Associada ao
“cômico grotesco e bufão”, a farsa é entendida como o despertar do

16
De maneira muito concisa, a comédia se opõe à tragédia e comumente é definida por três
elementos: personagens de condição modesta, final feliz e a finalidade de provocar o riso no es-
pectador. A estrutura da trama explora alguns elementos: “ideia repentina”, “mudanças de ritmo”,
o acaso e a “inventividade dramatúrgica e cênica” (PAVIS, 1999, p.52-53).
17
Há bibliografia significativa sobre o riso e com autores importantes. Limitamo-nos aqui a enfa-
tizar que o riso do expectador é de superioridade, a personagem risível é inferiorizada por algum
critério, mas também é possível encontrar a cumplicidade entre eles. O final feliz indica o resta-
belecimento da harmonia que fora desestabilizada anteriormente e a ordem social é ratificada
diante do desequilíbrio desenvolvido na trama.
18
Originalmente a farsa era entendida “como aquilo que apimenta e completa o alimento cultural
e sério da alta literatura”, etimologicamente vinda da palavra francesa farcir, “o alimento tempe-
Parte 2

rado que serve para rechear uma carne” (PAVIS, 1999, p.164).

176
riso grosseiro, pouco refinado e é considerada distante da alta co-
média. Ela está mais ligada ao corpo e ao cotidiano do que ao espí-
rito, explora e exige a elaborada técnica corporal do ator, demanda
forte teatralidade e apresenta o cotidiano provocando um riso leve
e popular; aparecem também equívocos, confusões, quiproquós,
confusões de identidade, descobertas acidentais, coincidências,
revelações súbitas (PAVIS, 1999, p.164)19. No cinema, a farsa foi gê-
nero típico de comediantes famosos como Chaplin, Irmãos Marx e
Jerry Lewis; no Brasil, o grande exemplo são os filmes dos Trapa-
lhões20. Ela teria um viés subversivo e libertador, opondo-se a pode-
res morais e políticos, autoridades, tabus, regras sociais, opressão
da realidade e da razão.
As peripécias de Lírio na capital são envoltas na farsa, como
por exemplo: ele se perde no centro da cidade, é localizado por
Volga (Darlene Glória), ciente dos dotes do rapaz, e é levado para
a casa dela, enquanto isso sua patroa Nair (Consuelo Leandro) em
prantos recorre à polícia para descobrir o paradeiro dele; mais tar-
de, depois do desaparecimento ser solucionado, Lírio é levado de
táxi para a casa de Neiva, com a justificativa de transportar uma
compra entregue no endereço errado, e chega lá no momento em
que o marido havia saído, mas o esposo tem um problema com
o carro, volta repentinamente para casa e se depara com os dois
na cama, pega um revolver no criado-mudo, ergue-o e faz uma
autoironia como corno manso, sai do quarto e deixa os amantes
à vontade. Durante a festa feminina ocorrida na casa de Zilá, o
motorista Kimura persegue Lírio - por ter a namorada e a irmã
devassadas pelo bem dotado - em correrias por cômodos, dribles
e esconde-esconde tumultuando o evento; contra a vontade, Lírio
atua na festa como garçom, mas as ereções incontroladas e cons-
trangedoras criam cenas que se apresentam como a peculiarida-
de do evento, preocupantes para a anfitriã Zilá e hilárias para as
mulheres já conhecedoras do segredo; a festa é definitivamente
encerrada intempestivamente com o aparecimento de Lírio nu e o
rebuliço das mulheres histéricas perseguindo-o.

19
A farsa utiliza diversos recursos como “máscaras grotescas, truques de clown, mímicas, ca-
retas, trocadilhos, todo um grosseiro cômico de situações, gestos e palavras, num tom copiosa-
Começando a despir

mente escatológico ou obsceno” (PAVIS, 1999, p.164).


20
Nos anos 1970, os filmes dos Trabalhões despontam com grande sucesso de bilheteria, es-
truturam-se no gênero da farsa, incorporam alguns profissionais da pornochanchada e revelam
algumas aproximações entre as duas tendências (FREITAS, 2004).

177
Outro elemento oriundo do teatro e do cinema presente no O
Bem Dotado é o grotesco. Este é cômico pelo estranho, “pela defor-
mação significativa de uma forma conhecida ou aceita como nor-
ma” (PAVIS, 1999, p.188), mistura animal, vegetal e humano criando
formas fantásticas. As razões para a deformação podem ser o riso
gratuito ou a sátira política e filosófica. Na contemporaneidade e
em viés tragicômico, o grotesco pode não apresentar uma visão
harmônica da sociedade e sugerir o caos, problematizando a re-
alidade do público. A deformação de Lírio chama atenção da au-
diência para o divertimento, o riso descontraído em relação ao
diferente, por ser anormal, que se remete ao ideal projetado pelo
masculino e para o feminino. A aberração constrange o persona-
gem central ao mesmo tempo em que o qualifica para as mulheres
a ponto de elas perseguirem-no incansavelmente. Ambos os con-
flitos são trabalhados por cenas risíveis e o personagem transita
pela ambiguidade do grotesco.

O Caipira e o interiorano: uma longa tradição de inferiorização


Um elemento importante de composição humorística do per-
sonagem Lírio é o caipira, uma figura compartilhada pelo grande
público na década de 1970. Ela percorreu o século XX na impren-
sa, na literatura e no cinema, mas apresentava duas referências
temporalmente próximas ao lançamento do filme e sua circulação
pelas salas brasileiras. A mais imediata e norteadora da trama é o
personagem Simplício criado por Francisco Flaviano de Almeida.
Natural de Itu, Almeida atuou em circo no interior paulista, poste-
riormente, na capital, trabalhou por décadas em rádios, canais de
televisão em programas, quadros humorísticos e temas sertanejos
(MATOS; CORTE REAL, 2010). Em torno de 1967, começou a partici-
par do programa A Praça da Alegria, dirigido por Manoel de Nóbrega.
Em um quadro cômico, Simplício representava um caipira acompa-
nhado de sua esposa, Ozório e Ofélia, e usava diversas imagens cor-
rentes do personagem do sertão, pronúncia e expressão distante da
norma culta, roupas características ainda que formais e modernas,
expressão corporal retraída e desconfiada, idealização do interior e
crítica à capital21.

21
Parte 2

É possível acessar pelo You tube trechos das apresentações de Simplício no programa em
várias décadas.

178
O ator teria autonomamente inserido na fala do personagem
exemplos fictícios de sua terra natal Itu e consolidado o persona-
gem (MATOS; CORTE REAL, 2010). Na localidade, tudo seria imen-
samente maior do que em outros lugares, particularmente em
relação à capital. Era uma forma do interior se colocar além da
metrópole. E a constante superioridade de Itu revelada pelo caipira
estilizado, e confirmada repetidamente pela esposa Ofélia, era o ri-
sível que percorreu décadas.
A exposição de Itu por meio daquele programa televisivo teria
despertado interesse do público pela imagem do exagero como
característica da cidade, atraído turistas, e os comerciantes se
apropriado da imagem, produzindo e comercializando objetos su-
perdimensionados22. O poder público contribuiu com a tendência:
o ministro das comunicações do governo Médici doou um orelhão
telefônico imenso e o prefeito local teria recebido como presente
um semáforo de grandes proporções e doado ao município. Ambos
foram instalados na área central. Marcos urbanos, comidas e ob-
jetos foram criados, expostos e comercializados no movimento de
reprodução da imagem grandiosa que se difundiu pelo imaginário
popular, estimulou o turismo de Itu e inspirou José Miziara a com-
por o caipira superdotado23.
A segunda referência imediata do público em relação ao perso-
nagem sertanejo risível estava no cinema de Mazzaropi. De origem
italiana, ele começou a atuar no início dos anos 1950, em movimen-
to de produção cinematográfica industrial da produtora paulista
Vera Cruz. No terceiro filme em que atuou, Candinho, Mazzaropi
representou um “caipira ingênuo e frágil, valorizando elementos da
temática rural”. Essa imagem era a oposta do que a produtora Vera
Cruz explorava, com a intenção de um cinema moderno, urbano e
com referências em Hollywood (FRESSATO, 2011, p.215).

22
Como exemplos, podem ser citados: pizzas de um metro de diâmetro, chope servido em uma
taça de um metro de comprimento, picolés de trinta centímetros, taça de sorvete com tamanho
bem superior ao normal, sanduíche feito com um longo pão (bengala), caixas de fósforo com
palito de treze centímetros, figuras de pulgas tão grandes que eram criadas em gaiolas, chapéus
Começando a despir

com abas de um metro e inúmeros outros objetos (MATOS; CORTE REAL, 2010).
23
Matos e Corte Real (2010) afirmam que Almeida foi secretário de turismo da municipalidade
por duas legislaturas, 1973-1976 e 1983-1988, e homenageado, em 2002, como Cidadão Honorá-
rio de Itu pelo estímulo dado ao turismo local.

179
O segundo filme produzido por Mazzaropi foi Jeca Tatu, em 1959,
e o quinto foi A Tristeza do Jeca, em 1961. Jeca era o personagem
principal de ambos e representado como “preguiçoso, valente, irre-
verente e debochado”, usava chapéu de palha, roupa xadrez remen-
dada, barba e bigode ralos, fumava cachimbo e cuspia no chão, vivia
em rancho de sapé e ambiente pobre, tinha “fala arrastada e cheia
de sotaque” (FRESSATO, 2011, p.215)24.
Apesar dos estereótipos detratores compondo o personagem,
pois eles delineiam o risível, mas não todos, Fressato (2011) identifi-
ca nas obras elementos da cultura popular, tais como solidariedade
grupal, sociabilidade caipira e religiosidade, crítica ao coronelismo
e ao arbítrio do grande proprietário rural, ênfase no ritmo de traba-
lho autônomo no campo e contrário ao processo racional e assa-
lariado, irreverência em relação às autoridades públicas. Para ela,
os elementos reproduzidos de criações oriundas de décadas ante-
riores, tais como a preguiça, o desajeito e o nome Jeca, seriam re-
cursos estéticos do personagem visando fácil aceitação do público
e não incorporação acrítica do caipira inerte25. Esse argumento da
autora pressupõe a intensa circulação da imagem do caboclo nos
anos 1950, mas que a cada contexto e tipo de produção apresentava
um viés personalizado.
O importante a destacar é a presença de elementos do caipira
que perpassam décadas, está presente em diversos tipos de mídia e
atinge o grande público, reforça o caricatural e supre novas produ-
ções por apresentar figuras familiares a todos. Mazzaropi não foi o

24
É possível identificar a presença dessas características do Jeca de Mazzaropi na tradição das
festas juninas no Estado de São Paulo que mantinha ainda nos anos 1980 a quadrinha montada
em escolas infantis. Além da música tradicional, as crianças deveriam compor uma fantasia com
roupas coloridas, remendadas, expressando a pobreza e simplicidade do caipira, as meninas
utilizavam vestidos de chita, acentuavam na maquiagem da mesma maneira que os meninos
usavam camisas xadrez, calca com remendos realçados e lançavam mão de recursos para dese-
nhar elementos masculinos adultos tais como bigode, barba, cavanhaque. Ainda que distante do
caipira paulista real, essas festas mantinham a representação do morador rural pobre e exótico,
para não dizer folclórico, como algo do passado lembrado por meio de um ritual lúdico e esvazia-
do do sentido explícito do objeto lembrado.
25
Importante lembrar que nos filmes posteriores o personagem sofre ligeira mudança ao viven-
ciar peripécias na cidade, mas ainda com valores e características oriundas do campo. Segundo
Parte 2

Fressato (2011), entre 1970 e 1975, os cinco filmes de Mazzaropi lançados atraíram entre 13 e
14 milhões de espectadores.

180
primeiro a explorar o caipira no entretenimento26, ele mesmo cita
duas referências importantes: o cantor e ator Sebastião Arruda e o
ator (circo, teatro, cinema) Genésio Arruda27. O cineasta não con-
firma ter lido Monteiro Lobato, mas não é possível negar a impor-
tância da obra do escritor para a difusão no público da imagem do
caipira por meio do personagem Jeca Tatu.
O texto Velha Praga, publicado inicialmente no jornal Estado de
S. Paulo, em 1914, atribui ao caboclo do vale do Paraíba a ação destru-
tiva da natureza, considera-o improdutivo, preguiçoso, “inadaptável
à civilização”, levando uma “vida semi-selvagem” (LOBATO, 1994,
p.159-164). Nesse texto inaugural aparece o nome Jeca Tatu e será
retomado alguns anos depois em Urupês, que segue a mesma linha,
considerando o Jeca um preguiçoso e ignorante: “é o sombrio urupê
de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas (LOBATO,
1994, p.176). Esse ser de raça inferior, destituído de qualquer valor
e qualidades modernas, e responsável pelas próprias mazelas será
a interpretação dominante do sertanejo e se popularizará na me-
mória paulista por meio do personagem do Almanaque Fontoura
desde os anos 1920, embora o autor tenha redefinido o personagem
ainda naquela década.
Lobato impõe mudanças educacionais e higienistas/sanitaris-
tas, Jeca supera as deficiências e se torna empreendedor próspero e
grande proprietário (BERTOLLI FILHO, 2002). Nos anos de 1940, com
aproximações políticas ao Partido Comunista, o autor transforma o
caipira no personagem Zé Brasil, um típico membro do povo brasi-
leiro injustiçado pelas condições de exploração, alienado e subme-
tido aos interesses do latifúndio e, portanto, vítima de condições
estruturais (LAJOLO, 1983). O caipira empreendedor e o trabalhador
explorado não foram objetos de reproduções intensas para o grande
público e o Lobato não inaugurou a representação detratora do ser-
tanejo e nem foi o único a divulgar esse viés28.

26
Também é importante enfatizar a presença da música caipira nas rádios, desde os anos de
1920, envolvendo além da música, conto de causos, falares característicos, elementos do univer-
so rural e valores compartilhados. O circo, o teatro e produções radiofônicas também laçaram
mão de temas rurais e da figura do caipira com vários perfis. O próprio Mazzaropi trabalhou em
rádio antes de ir para o cinema.
27
Genésio atuou no filme Acabaram-se os otários, de 1929, seria a primeira película sonora no
Começando a despir

Brasil e com o personagem caipira estilizado (FRESSATO, 2011; BERTOLLI, 2002).


28
Brandão (1983) e Bertolli (2002) identificam representações semelhantes no início do século XIX
no relato de viajantes europeus de autoridades do Estado do século XVIII. Brandão apresenta mape-
amento detalhado do preconceito, reducionismo e superficialidade nas interpretações do caboclo

181
Waldomiro Silveira, na literatura paulista do início do século XX,
e inclusive antes de Lobato, manteve alguns elementos da interpre-
tação do homem livre brasileiro do campo como aquele carente de
potencialidades (BERTOLLI FILHO, 2002). O folclorista Cornélio Pi-
res que desde os anos 1910 publicou livros, gravou discos, escreveu
e encenou teatro, produziu programas de rádio e estudou a cultura
caipira e a elegeu como objeto de seu trabalho, reconheceu o po-
tencial do homem do campo, explorou personagens com perspecti-
vas distintas (BERTOLLI FILHO, 2009), mas matizou as variações de
raça e hierarquizou, elegendo o “caipira branco” como descendente
da “melhor estirpe dos povoadores portugueses ou de imigrante de
outros campos da Europa” (BRANDÃO, 1983, p.30) e atribuiu aos ne-
gros e índios os extratos inferiores29.
É nessa tradição de interpretação do homem do campo que o
ituano foi composto por Miziara e lido por parte do público. Um in-
divíduo risível que representava o interior como sinônimo do atra-
so, era destituído de potencial para viver na grande cidade e não
estava sintonizado ao país moderno dos anos de 1970. Lajolo (1983,
p.104) comenta a análise feita por Antônio Cândido de que a ten-
dência denominada de “o regionalismo pós-romântico” estava vol-
tada para o “deleite estético do homem da cidade”. Ainda que essa
tese tradicional do âmbito da literatura seja polêmica e limitada, no
filme O Homem de Itu é o citadino que ri do caipira Lírio. Em de-
terminado momento, Rodolfo, o mordomo da casa, emite seu juízo
com convicção de superioridade: “A senhora sabe como são essas
pessoas do interior...., caipiras, retardadas!!”.

A capital de São Paulo: entre fascínio e idealização


São Paulo é mais uma referência para a trama do filme do que
propriamente uma personagem de destaque ou ainda palco decisi-
vo em que suas características estão constantemente expostas e
exploradas. As peripécias de Lírio se passam na cidade, mas poucas
ações ocorrem no espaço público e nas ruas. A referência remete-se
à experiência social dos personagens, o comportamento metropoli-
tano, seus valores e interesses em contraponto àquelas do interior.
É no mínimo secular a interpretação de que a vida na urbe de-
grada os indivíduos, tornando as relações entre eles mais conflitu-

29
Parte 2

Passando pelo caipira negro, caipira mulato e, por último na escala, o caipira caboclo (muito
próximo ao índio).

182
osas, mercantilizadas e atomizadas, isolando-os e afastando-os dos
valores comunitários, tornando-os anônimos nas multidões das
ruas e indiferentes ao outro30. Ao mesmo tempo, a cidade moderna é
valorizada como o espaço da iluminação, criação, experimentação e
novas possibilidades políticas e estéticas (BERMAN, 1987). No filme,
a caricatura do caipira pressupõe as afirmações das potencialidades
da cidade que possibilita a perda da inocência por parte de Lírio e o
leva a autodescoberta e ao contato com os valores mais avançados
da liberdade individual. A cidade é a negação do tradicional e do
conservadorismo. Embora, essa perspectiva não seja exclusiva dos
anos 1970, há o contexto do significado da capital paulista que pos-
sibilitava ao público reconhecê-la como uma urbe conectada a tudo
aquilo considerado mais contemporâneo em contraponto à vida in-
teriorana e ultrapassada de onde o caipira se originava.
Nos anos de 1970, a cidade de São Paulo revelava proporções
urbanas de expressão internacional como desdobramento de vá-
rias fases ulteriores, passando pelo auge da produção cafeeira e
posteriormente industrial. Ela contemplava grande concentração
populacional formada por autóctones, oriundos do interior de São
Paulo, de outros estados31, e descendentes de imigrantes de diver-
sas origens étnicas, em tendência de conturbação com os muni-
cípios vizinhos32. Parte significativa da indústria brasileira estava
sediada ali, ou no conjunto de cidades da região metropolitana,
evidenciando quesitos de metrópole moderna, tecnologicamente
inovadora, sintonizada às recentes tendências internacionais, em

30
Autores do final do século XIX e do início do XX debateram essas questões e teorizaram sobre
elas (VELHO, 1976). Ainda que superadas ou polêmicas, elas ilustram a existência da perma-
nência do pensamento que contrapõe campo e cidade em polos opostos. Em trabalho de maior
arco temporal, Williams (1989) identifica em longa duração, milenar essa tensão interpretativa.
31
Autores do final do século XIX e do início do XX debateram essas questões e teorizaram sobre
elas (VELHO, 1976). Ainda que superadas ou polêmicas, elas ilustram a existência da perma-
nência do pensamento que contrapõe campo e cidade em polos opostos. Em trabalho de maior
arco temporal, Williams (1989) identifica em longa duração, milenar essa tensão interpretativa.
32
A população da cidade de São Paulo, em 1960, era de 3.781.446 habitantes, em 1970, de
Começando a despir

5.924.615 e, em 1980, de 8.493.226 (SANTOS, 1993, p.137). A Região Metropolitana continha


8.139.730, em 1970, e 12.588.725, em 1980 (p.86). Segundo Santos (1993) a Região Metropolita-
na de São Paulo era a que mais cresceu no Brasil em números absolutos desde 1940. Ela recebeu
“quase 40% do incremento total das Regiões Metropolitanas entre 1960 e 1970 e mais de 40%
entre 1970 e 1980” (p.77).

183
contínuo e vertiginoso crescimento econômico e urbano33. Pesso-
as migravam em busca de novas oportunidades, e ali elaboravam
projetos de vida, trabalhadores de diversos segmentos se inseriam
na dinâmica urbana, compondo-a em suas mais variadas facetas,
social, cultural, política e econômica entrecruzadas por profundas
contradições sociais (SADER, 1988).
A representação do moderno viera a público em 1922, intensi-
ficara-se nos anos 1950 e se popularizara nas décadas seguintes34.
Por exemplo, no âmbito das artes, diante do “horizonte técnico da
sociedade industrial” o movimento dos poetas paulistas concretis-
tas (especialmente Haroldo de campos, Décio Pignatari e Augusto
de Campos) propunha, nos anos de 1950, a “adequação da palavra
às técnicas de comunicação próprias às sociedades urbano-indus-
triais e a reivindicação da modernidade no centro do discurso po-
ético” (HOLLANDA, 1992, p.37-39). Partilhando de um utopia desen-
volvimentista, os poetas concretos buscavam atualizar a cultura
nacional pelo contato com a estrangeira de destaque. E São Paulo
como espaço de debate e criação de novas linguagens não era um
ponto fechado em si, mas conectado a uma rede internacional de
artistas compartilhando elementos semelhantes da modernidade.
Essa mesma perspectiva estará presente no Tropicalismo, que
não surge em São Paulo, mas terá ali colaboradores com significa-
tiva receptividade e representaria a oportunidade de expressão do
local e do global a ponto de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé
mudarem-se para lá no fim dos anos 196035 e Tom Zé ter sido o au-
tor que mais tematizou a cidade em suas músicas (NAPOLITANO,

33
Os dados do censo de 1960 indicam que 38% da produção industrial brasileira eram oriundos
da grande São Paulo (SINGER, 2004). Na década de 1950, há intensificação e concentração da
produção na área de bens de produção, em 1959, 70% de toda a produção industrial do estado
estava na grande São Paulo e se formava um círculo com aproximação espacial de consumi-
dores (famílias e indústria) e de fornecedores de matéria prima (“bens elaborados e produtos
auxiliares”). Essas transformações se desdobram nas mudanças populacionais como apontam
os dados da nota anterior.
34
No final dos anos 1940 surgiram inúmeros grupos instituições que expressavam a complexi-
zação cultural e artística da cidade: Museu de Arte de São Paulo (1947), Museu de Arte Moderna
(1948), Teatro Brasileiro de Comédia (1948) e Bienal de São Paulo (1951) (ORTIZ, 1988). Podería-
mos acrescentar, dentre outros exemplos, a criação dos Estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo
do Campo em 1949.
35
O disco Tropicalia ou Panis et Circenses teve a colaboração do grupo Os Mutantes e do maes-
tro e arranjador carioca Rogério Duprat e que morava em São Paulo desde a década de 1950. O
Parte 2

maestro e paulistano Júlio Medaglia participou do grupo de poesia concreta e compôs o arranjo
da música Tropicália.

184
2005)36. Hollanda (1992, p.56-57) recupera Baudelaire, por meio de
Walter Benjamin, para observar elementos importantes da expe-
riência do moderno expostos pelo poeta francês, como os “episó-
dios cotidianos das grandes cidades, nas situações vivenciais das
milhares de existências desordenadas da vida urbana” e a autora
usa essa tematização para pensar a criação tropicalista. Seguindo
essa perspectiva da experiência moderna como essencialmente
urbana, é possível realçar a música Sampa de Caetano Veloso em
que ele tematiza a capital em que residira, representando-a imersa
nas contradições da urbe industrializada e em constante mudança
que demandava intensa conexão e vivacidade para trilhar desafios
incessantes, fascinantes e desafiadores. Para diversos autores mo-
dernos, em diferentes décadas, São Paulo foi representada por no-
vas modalidades e vida e de valores que circulavam pelos grandes
centros urbanos contemporâneos37.
No final dos anos de 1960, os movimentos jovens do rock and
roll, da contracultura, da difusão das drogas, da valorização da psi-
canálise, das terapias corporais propostas por Wilhelm Reich e das
críticas elaboradas pela antipsiquiaria defendiam a liberdade indi-
vidual, o sexo livre, a experimentação existencial e a recusa de sub-
missão aos valores tradicionais. O Pasquim foi um periódico im-
portante para difusão dessa tendência por meio do jornalista Luiz
Carlos Maciel e que fez sucesso por todo o país e tinha em São Paulo
um público significativo evidenciando a circulação de novas pro-
postas de vida iconoclasta e de liberação individual (BRAGA, 1991).
São Paulo também sediara o surgimento do Teatro de Arena, nos
anos 1950, as experimentações do Teatro de Oficina, do grupo Os Mu-
tantes e do cinema Underground nos anos 1960. Ao mesmo tempo
em que em âmbito mais massivo a Jovem Guarda, os festivais de
música popular da TV Record e programas musicais potencializa-
vam novas modalidades de expressão rebelde ou política dos jovens,
e ainda que muitos grupos estivessem na interface com a indústria

36
Napolitano (2005) defende que embora o termo tenha sido cunhado no Rio de Janeiro, a expe-
rimentação musical do grupo teria ocorrido em São Paulo e Tom Zé produziu inúmeras músicas
sobre a cidade e em período anterior à Sampa de Caetano Veloso.
37
Há intensa polêmica em torno da produção dos poetas concretos, do tropicalismo e até das
Começando a despir

músicas engajadas e de protestos dos anos 1960 e 1970, passando pela tese da autonomia da
forma, ênfase na política, transformação da criação artística em mercadorias culturais (ORTIZ,
1988; RIDENTI, 1993, p.73-115). Sem entrar nesse debate, o objetivo deste texto é apenas iden-
tificar a efervescência cultural e artística como alguns dos elementos suscitadores da visão da
São Paulo cosmopolita.

185
cultural, elas eram pressupostas como características da cultura da
metrópole38. O caleidoscópio da cidade diversa, multifacetada e que
abrigava novas oportunidades em diversos âmbitos contribuíam
para a consolidação da imagem do lugar que estava à frente no tem-
po e exigia, de seus habitantes, novas habilidades e valores.
Sem a intenção de idealizar a cidade e rivaliza-la com outras, e
longe da pretensão de caracteriza-la apenas pelos exemplos citados,
o que se destaca nessas considerações é a possibilidade de repre-
sentação de São Paulo compartilhada pelos seus moradores. Por
isso, quando Lírio é entregue em casa, depois de ter se perdido na
multidão das ruas do centro da cidade e identificado pela dupla de
policiais civis, um dos agentes da lei lança mão de sua sabedoria ci-
tadina e o aconselha com a frase sintética e evidenciadora de obvie-
dade primária e autoexplicativa: “Abre o olho, rapaz, isto é São Paulo”.

Sexualidade e gênero: a atuação da mulher


A maior parte dos filmes considerados da pornochanchada
apresentavam aventuras sexuais ou referências a elas e o papel de
destaque era o da mulher. Comumente os cartazes exibiam no cen-
tro uma ou várias delas, chamando a atenção do público e identifi-
cando qual era a estrela daquela película. O Bem Dotado é um dos
poucos desse perfil que coloca o homem no centro reforçando a tra-
ma em que todas as cenas convergem para Lírio. Ao mesmo tempo,
o corpo mais explorado pela câmera é o da mulher que contracena
com o ituano ou está desejando experimentá-lo. Essa perspectiva
reforça uma interpretação dominante, as mulheres são objetos es-
tratégicos para seduzir o público cinematográfico, e neste caso es-
pecífico, excita-lo como caminho para a fruição da obra e conquista
da audiência. Na narrativa, as mulheres gravitam em torno do ho-
mem e é sua força, oriunda daquilo que seria símbolo máximo da
masculinidade, que moveria a iniciativa delas.

38
Imprescindível seria compor esse sintético quadro sem citar a movimentação política dos
estudantes, artistas, partido de oposição, grupos de esquerda na clandestinidade, sindicatos
operários, entidade de classe, instituições como a OAB e ABI, a Igreja Católica e Protestante,
comunidades eclesiais de base que se mobilizaram e compuseram oposições à ditadura militar
durante os anos 1960 e 1970. Embora as ações desses grupos também ocorressem em muitas
cidades do país, incluindo aquelas dos interiores, as capitais concentravam os grupos de maior
fôlego e visibilidade reforçando a ideia de São Paulo e Rio de Janeiro como os lugares de van-
Parte 2

guarda política por excelência.

186
A posição secundária e dependente da mulher em relação ao
homem é motivo de riso e ao mesmo tempo de excitação. O olhar da
narrativa fílmica é masculino, perscrutando as linhas dos corpos
femininos e exibindo o desejo deles diante do poder do macho. E o
público, a maior parte de homens, acompanha o mito, a materiali-
zação do desejo máximo: ser irresistível a todas, pois não há neces-
sidade de conquista, elas estão lúbricas e dispostas a se entregarem,
sem nenhum pudor e restrições, e ele sempre está disponível e é ca-
paz de satisfazê-las continuamente, sem necessidade de descanso.
Embora não analise a visão falocêntrica, Seligman debruça-se
sobre o conservadorismo desse tipo de filme, enfatizando que di-
versos valores tradicionais estão no cerne do risível por valorizar
a pureza, a virgindade, o matrimônio, a fidelidade conjugal, a virili-
dade masculina, a heterossexualidade e inferiorizar seus opostos
e tudo aquilo que possa alterar a ordem familiar tradicional39. O
final sempre feliz apresenta a norma restaurada e aqueles perso-
nagens representantes da imoralidade e do desvio precisam refa-
zer-se para integrar-se a harmonia social, mas geralmente cabe
aos virtuosos a redenção.
Apesar de reconhecer a validades dessa interpretação, é possí-
vel identificar novo diálogo do O Bem Dotado, e alguns outros filmes
do segmento, com a sociedade da época. Vários autores comparti-
lham da tese de que a pornochanchada se disseminou e foi ficando
mais ousada em decorrência da liberação dos costumes acentuada
a partir dos anos 1960. Valores vindos da contracultura, dos gru-
pos de esquerda e do movimento feminista possibilitavam maior
desenvoltura da mulher em vários âmbitos, abrindo para diver-
sas possibilidades de relacionamentos hétero e homo e se desdo-
brando na indicação de redirecionamento dos papéis masculinos.
Nesse sentido, a onipresença da mulher liberada experimentando
relações sexuais antes e fora do casamento, e muito além da prosti-
tuição, ainda que se baseasse em pressuposto conservador na nar-
rativa, invadia a cena nacional e permanecia como possível.
Acompanhando o viés da contestação jovem dos anos 1970, a
sexualidade aflorava a despeito dos discursos moralistas das au-

39
Freitas (2004, p.6) defende que os filmes exploravam a imaginação erótica do “homem médio
Começando a despir

brasileiro” ao apresentar mulheres produzidas e liberadas para as aventuras sexuais. Em outra


perspectiva, esse homem comum, “submisso, pobre e sem perspectivas” se identifica com os
“galãs...., valentes, audazes e sexualmente predadores”. No aspecto cômico, o homem médio
ri de situações familiares: marido traído, o conquistador, a mulher atirada, um momento de im-
potência.

187
toridades militares e civis. E o sexo era objeto da trama em filmes
também não produzidos na Boca do Lixo ou não rotulados como
essencialmente comerciais40. Em muitas obras, a rebeldia, o debo-
che e a irreverência se manifestavam por meio dos palavrões, da
nudez, homossexualidade, negação ao recato sexual, ainda que os
atos fossem apenas sugeridos41.
O Bem Dotado produzido quase no final da década de 1970 é ex-
pressão da progressiva ousadia daquelas produções cinematográ-
ficas em que o erotismo e a nudez eram tolerados pela censura e
pela sociedade para um público mais amplo. A mulher estava cada
vez mais exposta como atração, mas também ensaiava persona-
gens ousados. No filme é verossímil que os personagens femininos
tomem a iniciativa da conquista, seduzam, desejem sexo sem amor
e sem relacionamento sério, por puro prazer. No caso do filme O
Bem Dotado, apesar da interpretação de que elas faziam tudo isso
pela força do falo e, portanto, estariam submetidas biologicamente
ao poder atrativo do macho, há elementos para considerar a auto-
nomia delas em se interessar e experimentar, rompendo a norma
da passividade e do recato. As primeiras quatro experiências se-
xuais de Lírio são de iniciativa das mulheres e controlada por elas,
objetivando o prazer. Na primeira cena, quando a empregada Pedra
seduz o jovem, a música de fundo é Perigosa, cantada pelas Frené-
ticas, com ênfase no trecho: “Eu sei que eu sou bonita e gostosa... Eu
sou uma fera de pele macia/...Eu posso prender, você meu escra-
vo/...Eu vou fazer você ficar louco/Muito louco, muito louco/Dentro
de mim”42; na segunda cena, quando a funcionária da loja adentra
o provador e ataca Lírio, o colega de trabalho interpreta a inicia-
tiva como curiosidade dela em experimentar o dotado freguês; na
terceira cena, Volga procura o ituano perdido na rua, leva-o para o
quarto marital, enquanto o marido estava à beira da piscina, e de-
monstra assertividade, tranquilidade e controle da situação, sem
nenhuma dúvida em relação ao que desejava; a quarta cena tem um
preâmbulo surpreendente: Neiva dispensa o jovem motorista por-
que ele era seu amante e mantido financeiramente por ela, mas ele

40
Importante lembrar que um dos filmes de maior bilheteria do Brasil ainda é Dona Flor e seus
Dois Maridos, de 1976, contendo cenas de nudez e um casamento em que a esposa escolhe viver
com dois homens que a satisfazem em âmbitos deferentes.
41
Dois exemplos: Guerra Conjugal, de 1974, com produção, roteiro e direção de Joaquim Pedro
de Andrade, argumento Dalton Trevisan. Um exemplo é O Casamento, lançado em 1976, dirigido
por Arnaldo Jabor e baseado na obra de Nelson Rodrigues.
Parte 2

42
Música de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Mota.

188
resiste, chora, sente-se traído e usado, desconsolado, não entende
o rompimento, insiste em saber o motivo para a quebra da relação
que aparentemente era boa, e depois de pressionada, ela confessa
com clareza revelando o plano previsto: “Eu sou uma mulher de ca-
ráter, trair o marido, vá lá, mas nunca vou trair o amante”; quando
Lírio chega à casa dela, já é levado imediatamente para o quarto e
ouve a ordem “Tira a roupa”, ele não entende, titubeia e ela ordena
novamente: “Tira a roupa, pô!!; durante a festa, depois de observar,
excitar-se com o que via, Julinha que parecia a mais comportada
leva Lírio para o quarto e o seduz com assertividade, calma e natu-
ralidade; por fim, na festa, Lírio é sensação entre as mais novas, mas
também entre as senhoras que representariam maior recato.
O Bem Dotado não é o único e primeiro filme nessa linha. Sem
uma análise detida, é possível citar As Cangaceiras Eróticas como
uma obra me que as mulheres desempenham papel sexual ativo e
autônomo, usam os homens como objetos sexuais dominando-os
e coisificando-os como meros seres úteis ao prazer delas43. O ar-
gumento explora a vingança de duas meninas que tiveram o pai
cangaceiro morto por outro bando e, depois de crescerem e terem o
orfanato atacado pelo mesmo grupo criminoso, elas se organizam
com outras jovens da instituição e partem para a vingança. Estili-
zadas com roupas próprias, acampadas no campo, armadas, corajo-
sas, inteligentes e estrategistas elas prendem homens e a primeira
providência é medir o pênis para avaliar a utilidade deles. Somente
aceitam aqueles com mais de 23 cm, do contrário descartam. Elas
cresceram brincando com o jumento Cacá, em orfanato religioso, e
o usam como referência para escolher as presas. No caso dos can-
gaceiros, são mortos depois de satisfazerem aos desejos delas. Há
cenas voltadas para o olhar masculino, com banhos de rio, alguns
seios nus, closes em pernas e bumbuns ocultos por grandes cal-
cinhas, além da dimensão do falo como critério para escolha dos
parceiros. Entretanto, a questão central é que elas mesclam prazer
sexual/corporal livre com a missão de varrer o cangaço do sertão,
restabelecendo a justiça. Na perspectiva atual, as cenas apresen-

43
Lançado em 1974, teve a direção de Roberto Mauro, argumento e roteiro de Marcos Rey, com
destaque para a atuação de Jofre Soares, Matilde Mastrangi e Helena Ramos. Nessa linha desta-
Começando a despir

co também: A Noite das Taras, de 1980, com três episódios dirigidos respectivamente por John
Doo, David Cardoso e Ody Fraga, argumento e roteiro de Ody Fraga; Gente Fina é Outra Coisa,
de 1977, produção carioca e paulista, dirigido por Antônio Calmon, argumento de Graça Mota,
Nelson Mota e Antônio Calmon, roteiro de Leopoldo Serran, Antônio Calmon, Mauro Rasi e Pedro
Carlos Rovai.

189
tam-se de maneira natural, entre risadas e bom humor, sem o viés
da perversão, e a subjugação dos homens aparece como um jogo
lúdico durante a busca pela vingança. Mesmo reconhecendo que
esse enredo possa expressar o sonho masculino da mulher devassa,
o paradoxo é que o homem não tem controle da situação, é submeti-
do aos interesses e ações das jovens e depois descartado; inclusive
elas são mais eficientes do que a polícia que, no final, reconhece a
importância do trabalho de extermínio do grupo de malfeitores. O
papel tradicionalmente representado pelo homem é desempenha-
do pelas mulheres.
Esses exemplos elencados sugerem que apesar da dominação
masculina na produção e nos enredos dos filmes da pornochancha-
da, algumas brechas eram abertas para expressões de outras pers-
pectivas de relação de gênero e visualizar facetas da emancipação
feminina que ocorria no país e fora das telas. A desenvoltura da mu-
lher com o seu desejo era um importante elemento de verossimi-
lhança. No âmbito da fantasia, havia a possibilidade para a mulher
ser dominadora, autônoma, ciente de seus desejos e necessidades,
decisiva para resolver problemas, ser o centro dos acontecimentos
e ter poder de conduzi-los.

Considerações Finais
Os filmes da pornochanchada foram tradicionalmente conside-
rados vulgares, despolitizados, superficiais, de elaboração técnica
precária, mercantis, típicos da diversão dos segmentos sociais pobres
e culturalmente baixos. Percorrendo outro caminho, e sem utilizar O
Bem Dotado como modelo referencial para todos, é possível identi-
ficar uma obra com certa originalidade porque dialoga com várias
tradições, no âmbito do cinema nacional e internacional, da cultura
urbana, da representação do morador do campo e do interior, da se-
xualidade e dos gêneros feminino e masculino. Lançando mão de um
universo cultural do público, com facetas mais tradicionais e outra re-
centes, o filme reúne vários tempos e entretêm ao manter elementos
da fantasia do metropolitano, por ser superior, e projetar no grotesco
interiorano maior masculinidade, em detrimento do citadino. O re-
verso dessa lógica é que o homem do campo estaria mais próximo do
natural e, portanto, da sexualidade como um dado biológico primal. A
outra fantasia, o desejo de se relacionar com a mulher lasciva e arroja-
da muito além do prostíbulo, está imbricada ao risco da emancipação
feminina a ponto de haver inversão dos papeis. Contradições que in-
Parte 2

citam o público e o familiarizam com dilemas da contemporaneidade.


190
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WILLIAMS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São
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Parte 2

192
Filmografia
A primeira vez do cinema brasileiro. Dir. Denise Godinho Costa;
Bruno Graziano; Hugo Moura Santos. Brasil: Controle Remoto Fil-
mes; Triumpho Filmes, 2013. DVD (84 min.), color, sem legenda, Port.
O bem dotado – o homem de Itu. Dir. José Miziara. Brasil: Cinedistri,
1978. VHS (104 min.), color, sem legenda, Port.

Começando a despir

193
Vinicius Carrasco PORNOCHANCHADA, PARÓDIA
Bruno Jareta de Oliveira
E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS - ANÁLISE FÍLMICA
DE BACALHAU, NOS TEMPOS DA VASELINA E UM
PISTOLEIRO CHAMADO PAPACO

Introdução
O presente capítulo irá tratar de paródias da
pornochanchada. Inicialmente, de forma contex-
tualizadora e introdutória, apresenta-se a porno-
chanchada e suas características. Parte-se, em
seguida, para uma abordagem teórica que tenta
relacionar a produção cinematográfica do perí-
odo da pornochanchada com as representações
sociais de tais obras enquanto produtos simbó-
licos da cultura de massa que carregam identi-
dades e alteridades abordados sob a perspectiva
sociossemiótica que se identifica com a ala latino-
-americana dos Estudos Culturais e dialoga com
teóricos como Mikhail Bakhtin, que considera
nos estudos e análises da linguagem a relação
do emissor com o receptor, o contexto social, his-
tórico, cultural, ideológico e de fala. Considerada
um subgênero da comédia, a pornochanchada
se apropria do humor, da sátira e da paródia na
construção de tais representações sociais, utili-
zando-se, para isso, da linguagem de dupla cono-
tação e trocadilhos, quer na construção narrativa,
nos diálogos ou mesmo na nomenclatura dos tí-
tulos como estratégia de atrair o público, elemen-
tos que foram responsáveis pela popularização
do cinema no país.
Optou-se pela escolha de filmes representa-
tivos da pornochanchada que contemplem a pa-
ródia dos sucessos de bilheteria estrangeiros e
atraíram grande contingente de público às salas
de projeção brasileiras. A priori abordou-se o as-
pecto jocoso e de escárnio em relação ao produto

195
de fora e artifícios textuais como o trocadilho para atrair o público.
Em seguida, analisou-se de forma interpretativa as representações
sociais presentes em tais paródias, considerando-as elementos
simbólicos e de produção cultural e de massa, que transita pela
construção de identidades e alteridades socioculturais.
Espera-se assim contribuir para reforçar e resgatar as contri-
buições significativas da pornochanchada enquanto produção ci-
nematográfica representativa do cinema brasileiro e de toda uma
sociedade e época, além de diminuir os estereótipos ou rótulos que
tais produções carregam, colocando-a à margem de outras verten-
tes do cinema nacional.

Contexto e estética
A pornochanchada surge no Brasil sob regime militar do final
dos anos de 1960 popularizando-se na década de 1970 (SELIGMAN,
2004). Para fins didáticos, costuma-se dividir a produção das por-
nochanchadas em dois períodos: um que vai de 1968-1969 até 1979
e outro que vai de 1980 a 1990 (FREITAS, 2004, p. 10). Os filmes da
indústria deste gênero tiveram a produção concentrada em dois
polos: Rio de Janeiro, principalmente na Cinelândia, e São Paulo,
na região central degradada da metrópole, conhecida como Boca
do Lixo - jargão policial que passou a denominar as ruas marcadas
pela prostituição barata, tráfico de drogas e violência, em especial
nas ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões e dos Andradas, nas ime-
diações da Estação da Luz e bairro Bom Retiro, de onde se originou
90% dos filmes. (FREITAS, 2004, p. 19; STERNHEIM, 2005).
Segundo o crítico Rubens Ewald Filho, o cinema paulista da-
quela época não teve ajuda de órgãos governamentais, foi autos-
suficiente e eficiente “com fitas que se pagavam e davam lucro”
e que o público adorava. A Boca do Lixo também revelou gran-
des cineastas como Ozualdo Candeias, João Batista de Andrade
e Carlos Reichenbach e estrelas como David Cardoso e Helena
Ramos (STERNHEIM, 2005, p. 9-10). Não havia uma coerência te-
mática entre as produções da Boca do Lixo que abrigou desde
obras do Cinema Novo como Cinco Vezes Favela (1962), Vidas Se-
cas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) até os sucessos
das pornochanchadas. A proximidade com estações ferroviárias
como a Luz e a Júlio Prestes facilitavam a logística e permitiam
o escoamento da produção. Isso fez com que empresas como Po-
lifilmes (então a maior distribuidora de filmes em 16 mm), a Co-
Parte 2

lumbia, a Paramount, a Warner, a Art Filmes, a Fama Filmes, a Pe-


196
l-Mex, a França Filmes do Brasil, a Paris Filmes e muitas outras
se instalassem na Boca. (STERNHEIM, 2005, p. 16).
As produções baratas e em série contribuíram para levar as
classes C, D e E às salas de projeção. Apesar do baixo orçamen-
to, os filmes lucrativos atingiram bilheterias maiores do que as
produções estrangeiras de alto custo exibidas no Brasil (KESSLER,
2009) e permitiram a sobrevivência dessa indústria até o período
final, quando precisou assumir caráter sexual mais explícito para
concorrer com a invasão de filmes eróticos internacionais, em es-
pecial após o lançamento de O Império dos Sentidos, de Nagisa
Oshima. Rafaelle Rossi, em 1981, inseriu cenas de sexo explícito
em Coisas Eróticas e vendeu mais de quatro milhões de ingres-
sos nos dois primeiros meses. A invasão do pornô estrangeiro
(hard-core), a inflação alta do governo Sarney e a concorrência da
Embrafilme na distribuição fez com que as pequenas produtores
e distribuidoras abandonassem o cinema (STERNHEIM, 2005). O
cinema da Boca, que se auto-sustentava sem patrocínios, era mais
racional e feito de forma obstinada, com disciplina e paixão. Por
isso, merecem respeito. (STERNHEIM, 2005, p. 44).
Caracterizada principalmente como comédia popular urbana
ou de costumes, as produções ridicularizavam os modos, costumes
e aparência de grupos ou determinada sociedade. Parte de sua não
aceitação pela denominada elite culta se deve ao fato de tais pro-
duções explorarem o erotismo por meio de cenas de nudez e/ou in-
sinuações sexuais. Por estes motivos, tais filmes foram rotulados
como comédia erótica sendo comparados ao gênero pornográfico e
marginalizados no meio acadêmico ou cinematográfico.

Esses filmes se constituíam de histórias curtas, de fácil


compreensão com personagens que beiravam o ridículo
sendo este ridículo componente do cotidiano social da épo-
ca. A apresentação do ridículo e os personagens cômicos
faziam coisas consideradas moral e socialmente erradas,
mostrando falhas e defeitos. O riso que nasce da constata-
ção de falhas e defeitos é chamado de “riso de zombaria”.
(SELIGMAN, 2004, p. 4).

O rótulo pejorativo de pornochanchada (derivada de por-


nô, uma vez que inclui as cenas de erotismo ou sua insinuação,
e chanchada, que do espanhol “chancho”, que significa “porco” ou
Começando a despir

leitão”) remete à expressão “porquice” ou “porcaria” numa tradução


grotesca. Cinematograficamente refere-se ao cinema popular, que
incorpora elementos característicos das produções das décadas de
197
1940 e 1950, que chegou a ser considerado sem valor artístico ou
cultural (SELIGMAN, 2000) e até uma espécie de besteirol, numa
versão mais “apimentada”.
Segundo Abreu (2006, apud Kessler, 2009), as referências de-
preciativas aos filmes deram origem ao apelido de “chanchada
erótica”. Já o termo pornochanchada começou a circular na im-
prensa por volta de 1973. Ao vocábulo chanchada foi acrescido o
prefixo porno, indicativo da suposta presença de pornografia. As-
sim, o termo passou a rotular qualquer filme que exibisse nudez
ou contivesse insinuações de sexo, fossem eles comédias, dramas,
suspenses ou filmes de horror, passando a representar em deter-
minado momento a produção cinematográfica brasileira que ficou
por um bom tempo carregando o estigma de exibir cenas com mu-
lher pelada.
De acordo com Simões (2013, p. 186), agregar a palavra “pornô” à
chanchada não se traduz no acréscimo da pornografia transgressi-
va (de mostrar relações sexuais):

A pornochanchada foi mais uma expressão nacional, um re-


flexo da onda de permissividade, de liberação dos costumes
da época, uma tematização da “revolução sexual” à brasi-
leira, tecendo tramas que de início e prendiam à paquera,
às conquistas amorosas, à virgindade, ao adultério, à viúva
disponível e fogosa.

De acordo com Seligman (2004, p. 9), a pornochanchada não


criou nada de novo, apenas incrementou com os ares da época em
que surgiu elementos já conhecidos e aprovados pelo público das
classes médias e populares. Nota-se neste tipo de produção influ-
ências desde a farsa, passando por comédias italianas com outras
formas de entretenimento tradicionais brasileiras como espetácu-
los mambembes, circenses e de teatro de revista marcados por jo-
gos maliciosos, oposição entre gêneros, ambiguidade, duplo sentido
e humor. (BERNARDET, 2009; LAMAS, 2014; VASCONCELOS, 2013).
Esse subgênero da comédia (SELIGMAN, 2004, p. 8) retoma a
relação do humor com a produção fílmica brasileira e também re-
força a herança das características da chanchada com representa-
ções como a “ideia de homem brasileiro simples, virador, malandro
e ladino”, com a presença do cômico e o jocoso”. Contudo, destaca
que a pornochanchada se apresenta com “apenas um pouco mais
de malícia” que mesmo assim era considerado um programa “fa-
miliar” em que “os pais de família podiam levar suas senhoras e
Parte 2

seus filhos maiores para os cinemas” para “assistir viúvas virgens,


198
cornos mansos e adultérios de todo o tipo e forma” (SELIGMAN, p.
9). Neste sentido, a autora afirma que a pornochanchada é um sub-
gênero da comédia que se aproximou do público popular por seus
atributos de fácil identificação e carisma, uma vez que os filmes
apresentavam ao expectador aquilo que “ele já estava acostumado
a ver”. Para a autora, a pornochanchada foi um “cinema de bilhe-
teria” que se utilizou de elementos próprios da tradição popular e
cultural do Brasil num período de liberalização de costumes e em-
bates morais e religiosos. (SELIGMAN, 2004, p. 12).

Pornochanchada e representações sociais


Humor, palavras de duplo sentido, insinuações ao sexo ou ce-
nas de nudez, sátiras ou paródias e referências a situações conhe-
cidas do cotidiano, foram alguns dos ingredientes que tornaram a
pornochanchada um sucesso de público e ao mesmo tempo tam-
bém renderam o rótulo de lixo cultural que não se enquadrava às
demais produções cinematográficas. A identificação com os teles-
pectadores por meio de personagens pitorescos também aproxima-
va o público que ora se via representado por algum tipo familiar, ora
se excluía de determinada representação.
Além do espaço de entretenimento e típico exemplar da cultura
de massa, pensando-se ainda neste aspecto do universo midiático
do cinema enquanto espaço cultural de representação social, há de
se relacionar com o panótico de Foucault1. A tela do cinema e os
filmes produzidos são espaços em que alguém observa a todos, uma
espécie de espelho social. É também o locus de poder e contrapoder
com as críticas ao poder, que podem ser bem observadas em algu-
mas produções como as analisadas neste artigo.
Há de se considerar o contexto midiático da produção cinema-
tográfica um contexto cultural e simbólico imerso no tecido social
onde se constroem ou se reproduzem representações sociais. Para
o psicólogo social romeno naturalizado francês Serge Moscovici
(2007) representações sociais são modalidades de conhecimento

1
O conceito de panóptico idealizado pelo filósofo e jurista Jeremy Benthan, em 1785, com um
Começando a despir

modelo de prisão que permitia vigiar seus internos sem que eles soubessem que estavam sen-
do observados e que poderia ser aplicado à instituições de ensino e/ou outras disciplinadoras.
Michel Foucault(2009) em seu livro Vigiar e punir, amplia tais conceitos para tratar da sociedade
disciplinar. Aqui, a alusão refere-se ao fato de que o cinema permite que a sociedade se veja e
analise através da ficção e das representações que ela contém.

199
prático orientadas para a compreensão do contexto social, mate-
rial e ideativo em que vivemos (SPINK, apud JODELET, 1985). Elas
são responsáveis por construções indenitárias e visão social dos
grupos e indivíduos através de processos de referenciação (GUA-
TARRI; ROLNIK, 1986). Nessa construção, inerente ao sistema
simbólico cultural são construídas do ponto de vista filosófico e
antropológico identidades e alteridades a partir da relação entre
os indivíduos, o outro e o meio. As identidades caracterizadas por
uma semelhança ou identificação por parte do público, quer sejam
por aspectos ligados ao gênero, raça, orientação sexual, condição
social ou pertencimento de grupo. As alteridades, referindo-se à
qualidade ou estado que é outro ou diferente, em sentido inverso
às primeiras, são geradas a partir da exclusão de fatores de apro-
ximação que permite que sejam classificadas em categorias, ar-
quétipos, rótulos ou padrões da polifonia social, onde se produzem
multi-identidades que combinam autoidentidade (ou identidade
requerida) e heteroidenditades (identidades atribuídas).
De acordo com García Canclini (2009), a questão do sujeito se
ampliou nas últimas décadas. A discussão sobre a concepção do
sujeito passou de um caráter universal (na filosofia e psicanálise),
para a análise empírica do sujeito relacionada à cultura, classe ou
nação (na história, na sociologia e na antropologia) passando a con-
siderar as interações entre indivíduos e sociedade.
Segundo Geertz (1978, p. 14), remetendo à “polifonia” con-
ceitual: o modo de vida global de um povo; o legado social que o
indivíduo adquire do seu grupo; uma forma de pensar, sentir e
acreditar; uma abstração do comportamento. Observa-se tanto
nas representações sociais dos filmes, quanto nas escolhas dos
títulos construções intertextuais e que se referem e dialogam com
a própria realidade e com outras referências culturais, conforme
já mencionado. Resgatando Mikhail Bakhtin que, segundo Robert
Stam (1992, p.12), enfatizou “a heterogeneidade concreta da parole”,
isto é, “a complexidade multiforme das manifestações de lingua-
gem em situações sociais concretas” e, e para quem o “discurso é
uma situação” fruto de um conjunto cumulativo entre o eu, o outro
e muitos outros (polifonia e dialogismo), pode-se pensar no sen-
tido que Bakhtin escreveu em Problemas da poética de Dostoié-
vski, de que “ser significa comunicar-se dialogicamente”, e como
o próprio autor propôs em A Questão dos Gêneros do Discurso, de
que “cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros
enunciados” e há de se considerar essa relação entre enunciado e
Parte 2

outros enunciados. (STAM, 1992, p. 72-73).


200
Assim, os filmes da pornochanchada enquanto produções so-
cioculturais também representam e carregam em seus enunciados
aquilo que a sociedade brasileira reverbera ou institucionalizara.
De acordo com Kessler (2009, p. 14), as produções da pornochan-
chada situam-se na esteira da contracultura e dos movimentos
contestatórios surgidos a partir dos anos de 1950 (rock, pop art,
etc.) e respondiam às demandas de um público que passava por
mudanças de comportamento provenientes da liberação dos cos-
tumes. Considerada um subgênero da comédia e tendo como ele-
mento marcante o humor, as pornochanchadas levaram também
este elemento criativo para os títulos, os cartazes e a construção
das personagens caricatas de suas obras.
Sales Filho (1995, p. 69) afirma que a pornochanchada nos faz
concluir que o que mais distingue nossa sexualidade é um certo de-
sejo pela transgressão. Como exemplo o autor destaca que o casa-
mento é indissolúvel (até certo ponto), a fidelidade é inquestionável
(até que apareça uma primeira oportunidade), a integridade da fa-
mília é suprema (às vezes), e questiona também a questão religiosa
ao indagar “somos todos católicos (alguém se lembra?)”. Para o autor,
uma análise mais detalhada desses filmes, entretanto, desmonta e
faz desmoronar qualquer ideia sobre a transgressão que tem “sor-
rateiramente caracterizado a identidade brasileira”. Ele relaciona
como fator de distinção identitária o conservadorismo “não apenas
no sentido da preservação dos chamados bons costumes”, mas “to-
das as ideias e conceitos em que estamos mergulhados: sejam eles
bons costumes, sejam preconceitos, ou estereótipos”.
Nas telas, os filmes reproduziam alguns estereótipos moralistas
da classe média da época que tratava algumas temáticas como tabu,
tais como as mencionadas por Freitas, (2004, p. 5) a malandragem,
o adultério, o travestismo, a homossexualidade (entendida como o
papel passivo), o tráfico de drogas, a bissexualidade feminina e se
valendo de uma linguagem que, do besteirol, passando pela brejeiri-
ce (1ª fase) ia até a picardia (2ª fase). Para ele, nascia, no final da dé-
cada de 1960, o cinema pré-erótico nacional, que se convencionou
denominar ‘Pornochanchada’, herdeira direta das chanchadas dos
anos de 1950 e da repressão instituída pelo AI-5 (em 1964).
Esse novo ciclo cinematográfico viria a ser uma “revolução se-
xual à brasileira” em tom de deboche, com personagens caricatos e
situações divertidas.
Começando a despir

O efeito psicológico da Pornochanchada era atingir direta-


mente as fantasias e despertar os mecanismos projetivos

201
dos espectadores. As mulheres extremamente maquiadas e
‘liberadas’ mexiam diretamente com o sonho erótico do ho-
mem médio brasileiro. Havia também um segundo processo
psíquico, ou seja, levava a uma identificação direta daquele
indivíduo submisso, pobre e sem perspectivas com os galãs
– grande parte canastrões e carregados no gestual – valentes,
audazes e sexualmente predadores. No que diz respeito à co-
média, na Pornochanchada o homem médio ria de situações
com as quais já vivera ou presenciara diretamente: um ma-
rido traído, um conquistador piegas, uma mulher atirada, um
rapaz que fica impotente no momento da relação, uma aven-
tura homossexual esporádica. Quanto a este último item, é
importante um adendo: diferentemente dos filmes pornográ-
ficos de hoje em dia, onde muito raramente há alguma cena
homossexual em sinopses basicamente heterossexuais, nos
filmes da Pornochanchada e mesmo nos filmes eróticos da
década de 80, a presença de relações sexuais entre homens
e entre homens e travestis (geralmente passivos) era tão
constante quanto a bissexualidade feminina, que permane-
ceu nos filmes heterossexuais da atualidade. Em síntese, a
pornochanchada, além de mais realista em se tratando da
fauna sexual do mundo concreto, não era hipócrita negando
o trânsito dos homens pela sexualidade com outros homens,
como se isso fosse uma coisa muito rara e específica. Por-
tanto, conforme David Cardoso em entrevista para a revista
“Playboy”, “(...) o homossexual é uma figura imprescindível em
toda pornochanchada” (FREITAS, 2004, p. 6).

Kessler (2009, p. 17) também identifica algumas dessas repre-


sentações. Os filmes representavam tipos femininos para todos
os gostos do público masculino que era a maioria dos telespecta-
dores: “virgens, viúvas, mulheres experientes, quase sempre belas
e desinibidas”. Ele afirma que mais importantes até mesmo que o
próprio sexo, as formas femininas “eram o principal atrativo ofe-
recido pelos filmes: as mulheres eram, de fato, as estrelas das nar-
rativas” e acrescenta que musas da pornochanchada como Hele-
na Ramos, Matilde Mastrangi, Nicole Puzzi, Adele Fátima, Aldine
Müller, Claudette Joubert e Zilda Mavo, além de atrizes que, mais
tarde, seriam “alçadas ao estrelato por suas carreiras no cinema e
na televisão”, desempenhavam papéis de colegiais, secretárias, em-
pregadas ou modelos e como exemplo cita que A super fêmea (1973)
era protagonizada por Vera Fischer; em A Dama do Lotação (1978),
a personagem de Sônia Braga traía o marido com desconhecidos
que encontrava no transporte coletivo; Olho mágico do amor (1981)
trazia Carla Camurati interpretando uma secretária que espionava,
Parte 2

202
pela parede do escritório, o cotidiano profissional de uma prosti-
tuta, vivida por Tânia Alves. Outro aspecto observado pelo autor é
a exposição de seios e nádegas femininos, bastante comum nos
filmes. Ele destaca ainda que em uma parcela menor deles, apare-
ciam também os pelos pubianos das mulheres e, mais raramente,
nádegas masculinas. Já o nu frontal masculino, “como acontece até
hoje, praticamente não era representado”.
Os personagens masculinos, por sua vez, eram tipicamente
“machões, espertos, cafajestes e malandros (vinculados ao sucesso
sexual), ou então garotos virgens e maridos impotentes (relaciona-
dos ao fracasso). Os homossexuais, em geral, eram ridicularizados.
Seligman (2000, p. 10-11) afirma que o malandro no caso da porno-
chanchada foi apenas retirado do morro e colocado na zona sul do
Rio de Janeiro, pois era o que dava status na época, mas a essência
era a mesma: não trabalhava e se dava bem, era um grande conquis-
tador e ainda por cima bonito e charmoso. Como parte integrante
do ideário popular, o malandro fez o maior sucesso.
Kessler (20009) afirma que a instituição do casamento era fre-
quentemente retratada, em geral com “um pretenso viés transgres-
sor à ordem vigente”. Como exemplos ele cita que maridos que tra-
íam suas esposas, viúvas fogosas e moças incapazes de manter a
recomendável virgindade pré-nupcial colocavam em pauta as con-
tradições entre as normas sociais e a vida cotidiana, como pode ser
observado em filmes como A infidelidade ao alcance de todos (1972),
Adultério à brasileira (1969) e Divórcio à brasileira (1973).
A linguagem também era característica. Diante de um cenário
político marcado pela censura, termos de duplo sentido insinu-
avam a questão sexual. Os títulos e cartazes dos filmes também
eram pensados com esta perspectiva e para atrair o público. Se-
gundo Seligman (2003), num primeiro momento denominado pela
autora como soft-core, os títulos soavam parecidos com os filmes,
incluindo palavras-chave que causassem curiosidade e desper-
tassem a imaginação do espectador, tais como paquera, cama e
adultério. Por exemplo: Motel / um filme de alta rotatividade (1975);
Cada um dá o que tem / Nunca tantas deram tanto em tão pou-
co tempo (1975). Numa segunda fase, classificada como hard core
não era mais necessário dissimular nada e os títulos chegaram a
exageros tais como Gozo alucinante (Jean Garret, 1985), No calor
do buraco (1987).
Começando a despir

203
Paródia
Ao explorar obras de ambos períodos da pornochanchada, não
é raro encontrar títulos que fazem referência a filmes de grande
sucesso do cinema internacional. No primeiro, por exemplo, filmes
como Nos tempos da vaselina (1979), Banana mecânica (1974) e
Exorcismo negro (1974) notadamente relacionados a Nos tempos
da brilhantina (1978), Laranja mecânica (1971), e O exorcista (1973).
No segundo período, Etéia, a extraterreste em sua aventura no Rio
(1983) e Etesão, quanto mais sexo melhor (1986), ambos na esteira
de E.T. – O extraterrestre (1982), e Um pistoleiro chamado Papaco
(1986) parodiando westerns americanos como Django, entre outros.
A estreia dessas paródias coincidia ou se aproximava com os lança-
mentos dos originais estrangeiros no país, os quais algumas vezes
tinham o lançamento atrasado no Brasil graças à censura ou inte-
resses empresarias (BERTOLLI FILHO; TALAMONI, 2015, p. 321)
Parodiar filmes de sucesso internacional não foi uma prática
que começou na pornochanchada. Kessler (2009, p. 18) destaca que
enquanto as chanchadas dos anos de 1940 e 1950 buscavam inspira-
ção nos musicais americanos, as pornochanchadas herdaram essa
tradição de “imitação” dos filmes estrangeiros, quer em sua fase
inicial, ao buscar inspiração nas comédias italianas em episódios,
estruturadas em um conjunto de filmes curtos, quer posteriormen-
te, com a adoção da paródia de filmes, em especial os americanos,
que eram sucesso de bilheteria. Como aponta Shaw (2007), ainda no
começo da indústria cinematográfica brasileira, nos anos de 1930,
esquetes e números musicais nacionais adotavam elementos dos
famosos musicais hollywoodianos, e “quando o gênero da chancha-
da evoluiu a partir desses primeiros musicais, a imitação dos mode-
los cinematográficos de Hollywood gradualmente deu lugar às in-
terpretações em forma de paródia desses mesmos modelos” (SHAW,
2007, p. 69). Segundo o autor (2007, p. 69-70), estes filmes exibiam
uma crítica irreverente ao modelo sagrado dominante e apontavam
o choque cultural entre a visão hollywoodiana de mundo e a reali-
dade da vida brasileira “devorando o original para criar algo novo
e autenticamente nacional em essência”. Para ele, as imitações
brasileiras eram desprezadas pelos críticos como parentes pobres
dos originais americanos nos quais estas eram inspiradas, às vezes
bem livremente. Mas é precisamente nessa inocência, em sua falta
de pretensão, sua inferioridade técnica e seu humor autodepreciati-
vo que reside a chave de seu brasilianismo intrínseco. Simões (2013,
Parte 2

p. 194) afirma que muitos críticos consideram esta estratégia uma


204
característica de uma cinematografia frágil, que para enfrentar a
forte concorrência da indústria cinematográfica americana, utiliza
a paródia como arma.
Com o desenvolvimento do que seria chamado de pornochan-
chada, a prática de parodiar filmes bem-sucedidos continuou. Ke-
ssler (2009, p. 18) lembra que nem mesmo os grandes sucessos
nacionais eram poupados. “O gosto das pornochanchadas por ‘vam-
pirizar’ os filmes de grande êxito comercial estendeu-se também ao
cinema brasileiro, como em As cangaceiras eróticas, que parodiava
os filmes nacionais de cangaço”. O autor também nos lembra que
nem mesmo as clássicas histórias infantis escapavam “ao ímpeto
burlesco dos roteiristas” e cita como exemplo Histórias que nossas
babás não contavam (1979), definida por ele como uma versão eróti-
ca de Branca de Neve e os sete anões na qual a protagonista, depois
de seduzir o caçador contratado pela madrasta para matá-la, foge
para viver com os anões.
Enquanto algumas obras usavam este recurso apenas no título,
outras levavam a paródia também para o processo de roteirização
do filme. Os já citados Banana Mecânica e Exorcismo Negro, por
exemplo, fazem parte das paródias que se limitam ao título, e que
em quase nada remetem aos filmes originais enquanto narrativa.
Outras obras, como Bacalhau (1976), aproveitavam não só o título,
mas também a estrutura narrativa da obra original, neste caso, o
filme Tubarão (1975).
Antes de avançar é necessário, no entanto, revisar o conceito
de paródia, para que seja possível compreender de que maneira os
filmes Bacalhau, Nos tempos da vaselina e Um pistoleiro chamado
Pacaco utilizam esta estratégia como recurso para satirizar tanto
a cultura cinematográfica estrangeira como o cotidiano social bra-
sileiro da época.
De acordo com Bakhtin, a paródia é inseparável dos gêneros
carnavalizados. Para o autor (2008, p. 132, grifo do autor), “o paro-
diar é a criação do duplo destronante, do mesmo ‘mundo às aves-
sas’”. Sobre a origem desta natureza carnavalesca da paródia, o
autor afirma que:

A Antiguidade, em verdade, parodiava tudo: o drama satírico,


por exemplo, foi, inicialmente, um aspecto cômico parodia-
do da trilogia trágica que o antecedeu. Aqui a paródia não
Começando a despir

era, evidentemente, uma negação pobre do parodiado. Tudo


tem a sua paródia, vale dizer, um aspecto cômico, pois tudo
renasce e se renova através da morte. Em Roma, a paródia
era momento obrigatório tanto do riso fúnebre quanto do

205
triunfal (ambos eram, claro, rituais de tipo carnavalesco). O
parodiar carnavalesco era empregado de modo muito amplo
e apresentava formas e graus variados: diferentes imagens
(os pares carnavalescos de sexos diferentes, por exemplo) se
parodiavam, umas às outras de diversas maneiras e sob dife-
rentes pontos de vista, e isso parecia constituir um autêntico
sistema de espelhos deformantes: espelhos que alongam, re-
duzem e distorcem em diferentes sentidos e em diferentes
graus. (BAKHTIN, 2008, p. 132-133).

Ao tratar sobre a concepção de paródia de Bakhtin, Stam (1992,


p. 85) ressalta esta questão da inversão da ordem e redistribuição
de papéis natural do carnaval, configurando um “mundo de ponta-
cabeça”. O autor aponta que a paródia, para o teórico russo, é uma
maneira inteligente de aproveitar a potência do discurso original:

A paródia, para Bakhtin, é o modo privilegiado de carnavali-


zação artística. Ao aproximar-se de um discurso já existente,
mas introduzindo nele uma orientação oblíqua, diametral-
mente oposta à do original, a paródia é especialmente ade-
quada às necessidades da cultura opositora, precisamente
porque ela reconhece a força do discurso dominante, apenas
para desdobrá-la, através de uma espécie de jiu-jítsu artísti-
co contra a dominação. (STAM, 1992, p. 90, grifo do autor).

Vladimir Propp (1992), na sua obra Comicidade e Riso, aponta


que a paródia é um dos instrumentos mais poderosos de sátira so-
cial, e que isso se deve ao fato de que ela revela a fragilidade interior
do que é parodiado (PROPP, 1992, p. 87). Segundo o autor, a paródia
consiste na imitação das características exteriores de um fenômeno
qualquer de vida (das maneiras de uma pessoa, dos procedimentos
artísticos, etc.), de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo
que é submetido a parodização. Para ele, é possível, a rigor, parodiar
tudo: os movimentos e as ações de uma pessoa, seus gestos, o andar,
a mímica, a fala, os hábitos de sua profissão e o jargão profissional;
é possível parodiar não só a pessoa, mas também o que é criado por
ela no campo do mundo material. Assim, seguindo esta linha de ra-
ciocínio, o autor afirma que “a paródia representa um meio de des-
vendamento da inconsistência interior do que é parodiado”. (1992, p.
85, grifo do autor). Propp alerta, no entanto, que o exagero não é obri-
gatório da paródia, mas está intimamente ligado a ela e só é cômico
quando evidencia algum tipo de defeito (1992, p. 88).
Tanto a lógica do “mundo às avessas” constata por Bakhtin nos
gêneros carnavalescos como o exagero cômico que revela defei-
Parte 2

206
tos presente nas paródias constatado por Propp são claramente
aferidos nas obras da pornochanchada. A indústria cinematográ-
fica brasileira, enquanto cultura opositora, se apropria do discurso
dominante da indústria estrangeira para ressignificar os potentes
discursos vindos de grandes estúdios, introduzindo, na versão
nacional, críticas e exageros que, juntamente com a “carona” que
é pegada no sucesso dessas obras originais, garantem público e,
consequentemente, mais lucro.

Análise fílmica
Para o presente artigo, optou-se pela escolha dentro do universo
fílmico da pornochanchada de elementos representativos deste gê-
nero que abarcassem a questão da paródia. Foram considerados su-
cessos de bilheteria para a época. Num primeiro momento, tratando
este aspecto jocoso e de escárnio em relação ao produto estrangeiro
e sua relação com trocadilhos e artifícios para atrair o público. Em
outro prisma, fazendo uma análise interpretativa das representa-
ções sociais presentes em tais paródias, considerando-as elemen-
tos simbólicos e de produção cultural e de massa, que transita pela
construção de identidades e alteridades socioculturais.

Um pistoleiro chamado Pacaco/Amores de um pistoleiro e Django


Dirigido por Mário Vaz Filho, Um pistoleiro chamado Papaco
(1986) que também recebeu denominação de Amores de um pisto-
leiro2 narra a história do pistoleiro, Papaco (Fernando Benini), que
vaga pelo Oeste arrastando seu caixão cheio de mercadorias pre-
ciosas para negociar com um grupo de bandidos na cidade de Santa
Cruz das Almas.
A obra remete a alguns dos principais clichês do “western spa-
ghetti”3 como trilha sonora característica que alterna músicas sua-
ves para imersão do telespectador no ambiente, ritmo e psicológico
do filme com as músicas mais agitadas para composição das cenas
de ação; duelos de armas de fogo e um anti-herói silencioso. O filme
é uma paródia da saga do personagem Django (Franco Nero) dirigi-
Começando a despir

2
Confira dados da produção em http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScrip-
t=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&exprSearch=Um%20%20and%20%20pistoleiro%20%20and%20
%20chamado%20%20and%20%20Papaco&nextAction=lnk&lang=p. Acesso em 10 set/ 2-16

207
da por Sergio Corbucci - Django atira primeiro (1966), Viva Django
(1968), Django não perdoa, mata (1968) e Django, o bastardo (1969)
– que se tornou cult nos Estados Unidos e Itália.
No enredo da obra brasileira, Papaco encontra-se no caminho
com Pancho Favela (Paco Sanchez) e depois de vencê-lo rompe com
o estereótipo do pistoleiro do western tradicional. No caminho ele
duela com os quatro maridos de Linda (Márcia Ferro) que o acom-
panha em sua jornada até uma cidade chefiada pelos criminosos
Jane (Nikita) e Sapato (Agnaldo Costa) onde é recebido no bordel
da cidade pelo personagem papa-defunto e rendido pelo anão Big
Boy (Anão Chumbinho), mandado por Jane. Após duelos e conflitos
resolvidos, o pistoleiro consegue “negociar” sua carga agradando
a todos os interessados e segue sua jornada roubando beijo pouco
provável da mocinha.
Ironias estão presentes no texto, na nomenclatura dos persona-
gens e na construção de cenas inusitadas como um todo que mis-
turam insinuações ou conotações sexuais sem nudez explícita com
sátiras cotidianas e temas políticos. (NEVES, 2013, p. 197-198). Em
alguns dos diálogos, a sexualidade do protagonista fica clara, como
na cena em que Linda se insinua para ele e ele responde: “meu ne-
gócio é outro”. Ou insinuações como “tem sorte que ele corta dos
dois lados”. No mesmo sentido, o então inimigo do pistoleiro Sapato
demonstra ao longo das cenas sua posição sexualmente submissa
numa inversão de poder com seus subalternos. Como exemplo da
sátira cotidiana, pode-se citar falas que definem o pistoleiro como
“mais perigoso que bomba atômica, mata mais do que Aids4”. Há até
brincadeiras com o próprio modelo do herói ou protagonista, como
em um diálogo em que dizem que “ele é o mocinho do filme, dá um
jeito”. Estereótipos também estão presentes em adjetivos como “pi-
ranha” em referência a uma das mulheres, e “viado bigodudo” em
referência a um dos pistoleiros.
O filme brinca com modelos e padrões sociais preestabelecidos,
questionando-os numa espécie de escárnio da sociedade brasileira.

3
Western Spaghetti, Faroeste espaguete ou Bang-bang à italiana são termos que se referem ao
subgênero western de produção italiana das décadas de 1960 e 1970 geralmente filmados na
Itália ou na Espanha que teve grande popularidade internacional.
4
A Aids (Síndrome da imunodeficiência adquirida) é uma doença do sistema imunológico huma-
no causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) que foi descoberta nos anos de 1980,
Parte 2

período em que foi gravado o filme, e responsável por inúmeras mortes até o início da produção
de coquetéis medicamentosos que permitiram sobrevida aos pacientes infectados.

208
O protagonista tem o típico perfil físico do cowboy dos filmes de wes-
tern e desempenha bem esse papel em determinadas ações como as
cenas em que acende o cigarro, empunha a arma e duela; contudo,
não esconde seu interesse por pessoas do mesmo sexo e até transi-
ta pela bissexualidade, quebrando o estereótipo do machão clássico
e até mesmo do homo ou bissexual afeminado ou cheio de trejei-
tos mais comum em outras produções da pornochanchada. Papaco,
meio às avessas, mantém a mesma áurea do temido pistoleiro de
bangue-bangue e, apesar de algumas características de anti-herói,
preserva também certas qualidades do típico malandro nacional
que se safa das mais inusitadas situações e ainda se dá bem.
Os demais pistoleiros também fogem ao estereótipo de machões
com sua sexualidade inquestionável. Tanto Pancho quanto Sapato,
criminoso temido, mas que ao mesmo tempo aparece em algumas
cenas em relações sexuais com seus subalternos, protagonizam situ-
ações hilárias que faz essa inversão de valores e brinca com a ques-
tão da masculinidade e do papel masculino convencional presente
nas demais pornochanchadas. O anão Big Boy é outra figura mas-
culina emblemática que carrega no nome um trocadilho que brinca
com a questão da virilidade nacional e a ideia de que, como se diz no
dito popular, tamanho do órgão genital masculino é documento.
As personagens femininas também são retratadas de forma di-
versa. Linda, com seus quatro maridos demonstra um modelo pouco
convencional de casamento. Jane, figura firme que detém o poder,
domina criminosos ou jagunços e está em busca do material secreto
no caixão carregado pelo protagonista disputando território, espaço
social ou poder com Sapato. As prostitutas (Denise Clair, Angelica
Dumont, Camila Navarro e Renato Augustus Reis Filho), persona-
gens marginalizadas e características dos filmes de velho oeste que
habitam os bordéis ou saloons e que também remetem à questão
sexual. Observa-se também a presença de personagem transexual.

Nos tempos da vaselina e Nos tempos da brilhantina


O filme Nos tempos da vaselina5 (1979), dirigido por José Mizia-
ra, tem Onofre (João Carlos Barroso), personagem que vive na roça e
resolve se mudar para o Rio de Janeiro a convite do primo Paulinho
para morar próximo à badalada praia de Ipanema.
Começando a despir

5
Dados e ficha técnica da produção podem ser obtidos em http://cinemateca.gov.br/cgi-bin/
wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=P&nextAction=search&exprSe-
arch=ID=024306&format=detailed.pft

209
Logo ao desembarcar, o matuto do interior começa a conhe-
cer a realidade carioca quando tem a mala roubada por um car-
regador, o motorista de taxi lhe leva o dinheiro e um mendigo o
deixa sem suas botinas. Depois de muito custo para localizar o
primo, Onofre tem contato com as garotas e garotos de Ipanema e
vai tentando se adaptar à cidade em aventuras e desventuras nas
mais variadas situações.
Onofre, o caipira vítima de chacota ou gozação dos moradores
da cidade maravilhosa, vai se transformando e sendo contaminado
pelos ares da cidade fazendo jus ao papel de malandro e incorpora
o estereótipo carioca de homem de lábia que atrai as mulheres e dá
sempre um jeitinho para se safar.
Nos tempos da vaselina é paródia de Grease (1978), dirigido por
Randal Kleiser, que tem como protagonistas John Travolta e Olivia
Newton-John e cujo título traduzido para o português como Nos
tempos da brilhantina, em alusão ao cosmético utilizado popular-
mente pela juventude da época para dar brilho e fixar os cabelos. Gre-
ase custou US$ 6 milhões e faturou US$ 394 milhões, entrando para a
lista dos musicais de maior faturamento da história do cinema.
Apesar de ser inspirado num dos grandes sucessos da música
gringa dançante, Nos tempos da vaselina, que tem trilha sonora as-
sinada pelo músico Carlos Lyra que também integra o elenco e apa-
rece tocando, traz o ar intimista da sociedade carioca que vivencia
a onda da Bossa Nova e a boemia da época. Retrata um pouco da
juventude brasileira, do matuto que sai do interior ao fluminense
descolado que ganha a cidade grande, a referência meio desloca-
da ao filme americano lançado um ano antes se dá em maior pro-
fundidade quando Onofre se matricula em um curso de dança e é
convidado pela professora a participar de um show ou concurso
numa discoteca badalada. Os planos de câmera, jogos de luzes e
cortes tentam retratar o movimento das casas noturnas que tocam
o tipo de som que fez com que o filme americano fosse sucesso de
bilheteria, assim como a Bossa Nova brasileira, que sofre grande
influência do jazz estadunidense, também foi aclamada pela crítica
americana do mesmo período. Essa tentativa de transportar o uni-
verso musical para a tela a exemplo do que fez o filme estrangeiro
também é vista na obra nacional. Além das rodas dos jovens com
banquinhos e violões, tem-se referências textuais e sonora a can-
ções populares como Aquarela Brasileira para compor a ambien-
tação, como se dissessem, vocês têm a disco music, as casas no-
turnas, mas nós temos nossas praias (em especial Ipanema reduto
Parte 2

de musas nacionais como Helô Pinheiro, imortalizada na música


210
de Tom Jobim e Vinicius de Morais) e somos os donos da Bossa. A
paródia e o tom de comparação está presente em diálogos como a
frase: “Parece até um filme americano, só…”. Tal texto permite uma
dupla interpretação, pensado sobre o ponto de vista da produção
simbólica e dos valores que ela carrega. Numa perspectiva remete
ao produto brasileiro em certo grau de inferioridade em relação ao
americano. Em outra, é citação em tom de humor dando referência
que a obra foi parodiada.
O filme também retrata outras representações tipicamente
brasileiras. Além da mulher, sinônimo de beleza, com seus corpos
esculturais, tem-se o carioca malandro no estilo Zé Carioca, perso-
nagem de Walt Disney. E esse caráter do personagem encarnado
pelo protagonista é destacado por uma própria frase de um dos di-
álogos no final do filme: “o cara é bom de cama, dá sorte com as
mulheres e ainda por cima dança tudo isso”. A temática da traição
também marca presença, quer no primo Paulinho enganado pela
amante que se insinua para Onofre, quer no marido traído (corno)
que pega a mulher no flagra com outro e a leva para casa como
um homem das cavernas. Tem-se na tela representado o país do
futebol, quer nas camisetas do Flamengo dos personagens que se
metem em uma enrascada no motel e saem todos uniformizados
como se tudo acabasse em futebol, nas brincadeiras com a bola na
praia; além da violência, representada pelos assaltos nas diversas
situações cotidianas vivenciadas pelos personagens (assalto na ro-
doviária, no motel, no taxi, etc.).
A obra de José Miziara difundiu-se principalmente em virtude
do trocadilho de seu título, que faz uma menção de duplo sentido ao
líquido derivado do petróleo com propriedades lubrificantes e, por
isso, popularmente relacionado como “facilitador” do ato sexual. Ela
apresenta algumas cenas eróticas, exibição de seios e incitação ao
nu até desproporcional à propaganda ou apelo promocional feitos
com este intuito para atração de público. Vaselina também pode ser
usado como uma espécie de adjetivação ao protagonista que ado-
ta as características do malandro conquistador e bom de lábia que
“escorrega” ou escapa de situações-problema do cotidiano nas quais
se ajeita ou “encaixa” facilmente. Entretanto, o filme não é o único
exemplar brasileiro da época a parodiar películas estrangeiras com
essa temática. No mesmo ano de lançamento tem-se Sábado alu-
cinante (1978), que também retratas os playboys ou bon-vivants da
Começando a despir

zona sul carioca numa discoteca; e Nos embalos de Ipanema (1978).


No ano seguinte, tenta-se aproveitar a relação entre a onda disco
e a chamada febre cigana de Amante latino (1979), protagonizado
211
pelo personagem cigano criado para Sidney Magal, numa tentati-
va de produzir uma identidade mais latina e próxima que gerasse
identificação com o público.

Bacalhau e Tubarão
Tubarão é um filme norte americano dirigido por Steven Spiel-
berg, produzido por Richard D. Zanuck e David Brown e lançado em
1975 - 20 de junho nos EUA e 7 de julho no Brasil. Baseado no ro-
mance homônimo de Peter Benchley e considerado do gênero ter-
ror e suspense, a obra conta a história de uma pequena cidade no
litoral dos Estados Unidos que é ameaçada pela presença de um
animal marinho que, ao atacar fatalmente os banhistas, coloca em
risco o turismo do município, principal fonte de renda dos mora-
dores. O filme, que custou a Universal Studios U$12 milhões, foi um
grande sucesso de público e faturou 40 vezes mais que seu orça-
mento, U$480 milhões em todo o mundo6 - consagrando o jovem ci-
neasta Steven Spielberg. No Brasil, o filme levou aos cinemas mais
de 13 milhões de pessoas e alcançou o segundo lugar no ranking de
maiores bilheterias do país.
Não demorou para que o sucesso nacional do filme de Spiel-
berg fosse parodiado pela pornochanchada. Adriano Stuart foi o
responsável por roteirizar e dirigir Bacalhau7, paródia de Tubarão
que estreou no Brasil no ano seguinte, em 1976. Na trama brasileira,
um animal de origem desconhecida começa a atacar banhistas em
uma cidade no litoral de São Paulo. Gravado em Ilha Bela, o filme
atingiu uma notável bilheteria, conquistando mais de 1,3 milhão de
expectadores8. Para evidenciar a estrutura narrativa que é apresen-
tada na obra original e mantida na paródia, será descrita a seguir a
ordem de acontecimentos comum aos dois filmes.
Uma banhista é atacada enquanto nada na praia de uma peque-
na cidade litorânea. Após seus restos mortais serem encontrados
na areia, o chefe de polícia do município suspeita que o ataque te-
nha sido feito por uma criatura marinha. Com o intuito de proteger

6
Informação disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1107200010.htm Aces-
so em 10 set. 2016
7
Dados da produção podem ser obtidos em http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.
exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=I-
D=024856&format=detailed.pft. Acesso em 10 set. 2016
8
Informação disponível em http://www.ancine.gov.br/media/SAM/2008/filmes/por_publico_1.pdf.
Parte 2

Acesso em 10 set. 2016

212
os moradores e turistas, o oficial argumenta que as praias precisam
ser fechadas, mas o prefeito, temendo que a cidade deixe de lucrar
com o turismo, não acata e ordena que as praias permaneçam aber-
tas. Novos ataques levam os moradores a agir. Um especialista de
fora da cidade é convocado, e como último recurso uma expedição
liderada por um pescador contratado é enviada para aniquilar o
animal que ameaça os banhistas e os lucros da cidade.
Enquanto essa sucessão de acontecimentos é construída no
primeiro filme a fim de servir ao suspense, ela é parodiada no se-
gundo para que sejam satirizados tanto a história contata no filme
de Spielberg, quanto os temas e personagens brasileiros inseridos.
O filme traz algumas representações sociais interessantes, quer
na forma caricata dos personagens, quer nos diálogos e cenas. Um
exemplo é o chefe de polícia dormindo com a espingarda e coberto
por um mosqueteiro comum aos berços de criança, como se bus-
casse proteção, ideia reforçada pelo texto: “homem da lei, sempre
pronto para entrar em ação!”. Uma outra representação interessan-
te traz o estereótipo do funcionário público como aquele que “marca
cartão e vai embora”. A figura do homossexual é retratada no filme
também com certa ridicularização, trejeitos, bigode. É alguém que
faz oração em latim na porta da igreja, mas que é obrigado a ficar
do lado de fora, numa metáfora de que a igreja da época não esta-
va aberta a este tipo de gente. O legista também passa laudos bem
inconclusivos sobre a morte da primeira vítima. Além de comentar
com o chefe de polícia que seu cachorro comeu a perna do cadáver
ele aponta que a morte pode ter sido entre meio dia e quatro horas
da manhã, por exemplo.
A linguagem também vem repleta de expressões maliciosas e de
duplo sentido como “cuidado com a cabecinha” ou “comer uma pes-
soa só por dia”, “ajuda no controle da explosão demográfica”, numa
brincadeira com a questão da contracepção e da libertinagem sexual.
A alusão à obra que inspirou a sátira é feita em alguns diálogos
como o que o chefe de polícia afirma que “tubarão desse tamanho,
só mesmo naquele filme”. Outro trocadilho com a questão cinema-
tográfica é feito quando se sugere que se busque um oceanógrafo e
um dos interlocutores afirma que “ninguém precisa de cenário aqui”
num trocadilho com a palavra cenógrafo. Trocadilhos também apa-
recem ao nomear as personagens. Um exemplo é a prostituta Ana
Bom Fôlego. Há também a secretária fofoqueira a quem se dirigem
Começando a despir

pedindo que espalhe a notícia e ela afirma que “não precisa nem
pedir”. Outra personagem cômica é a cigana que aparece em uma
cena com previsões tão imprecisas quanto as do legista.
213
Os jogos de poder também permeiam a obra, quer em falas
como “eu mando mais que ele”, do prefeito ao referir-se ao chefe
de polícia e/ou no imbróglio que envolve a interdição ou não das
praias. Autoridades, comerciantes e pessoas influentes com medo
de ter prejuízos com a interdição acabam sendo contrários à medi-
da mesmo diante do risco de mais mortes. A disputa por poder en-
tre o delegado e o prefeito é frequente. “Neste barco mando eu!” e o
subalterno sendo obrigado a buscar uma cerveja para servir aos ca-
prichos do mandatário que, por fim, o manda tomar a cerveja uma
vez que ele não bebe.
Mesmo numa época em que o telefone móvel ainda não fora di-
fundido, algumas cenas de tom cômico são recorrentes. O prefeito
da cidade, sempre chora e acaba por tirar dos bolsos telefones que
tocam. A figura de Quico, o pescador, é introduzida na trama por um
tambor de seu ajudante, numa espécie de rito tribal que marca a
presença. Uma piadinha que também é feita em alusão ao Tubarão
se refere a Quico como “aquele que o peixe come no fim do filme”.
Em certo momento, o nome é confundido com o jogador Zico, do
Flamengo, numa referência direta à paixão nacional (o futebol). Ou-
tra menção neste sentido se dá quando o legista menciona que o
cadáver é um jogador de futebol ou então uma torcedora.
A questão tributária também é criticada na obra, quando o pes-
cador se propõe a exterminar a fera devoradora e quer seu paga-
mento sem desconto de ISS (imposto sobre circulação de serviços).
O prefeito discute com o pescador dizendo que irá descontar do va-
lor pago Imposto de Renda, ISS e INSP. Há uma comparação com
o orçamento da prefeitura local e a de Nova York, uma brincadei-
ra com os custos de produção do filme nacional se comparado ao
hollywoodiano. “30 mil, quem ele pensa que é? É o astro do filme?”
reforça neste sentido um dos diálogos. Em outro momento, um dos
personagens questiona se ele é o Roberto Carlos da pesca, numa
referência ao cantor popular brasileiro. Até Shakespeare é utiliza-
do para tratar desta questão da dúvida que acomete esse impasse
financeiro. “Ser ou não ser, pagar ou não pagar”; “eu sou artista e
ninguém põe preço no meu trabalho”, novos diálogos que remetem
à questão da falta de incentivo ao cinema nacional e sua relação
com o custo de produção.
A questão política também é demonstrada em uma cena de pro-
testo na qual aparecem poucos manifestantes com faixas diante da
prefeitura. Seria uma menção aos protestos do tempo da ditadura?
A produção também faz piada com os portugueses que coloni-
Parte 2

zaram o Brasil e popularmente são motivos de chacota. E, em con-


214
trapartida, uma crítica por precisar “importar” algum estrangeiro
especializado ou para elucidar tecnicamente o problema, como se o
que vem de fora tivesse mais respeito ou credibilidade, o que tam-
bém pode ser visto como uma crítica velada aos enlatados ameri-
canos. Num dos momentos, um oceanógrafo de Portugal é enviado
para tentar resolver o problema. A figura caricata chega em uma
grande caixa do correio todo vestido de mergulhador, como se na
verdade fosse uma grande embalagem de sardinhas. O especialista
também entra na onda das piadas ao mencionar que a única coisa
que o bacalhau gosta são discos de Amália Rodrigues (1920-1999)
renomado ícone do fado português.
A fragilidade da cidade diante da ameaça d’além mar é reforça-
da em uma das cenas protagonizadas pelo pescador com direito a
afagos no barco ao som de Carinhoso, uma das mais expressivas
canções da música brasileira, composta entre 1916-1917 por Pixin-
guinha, e Boi da cara preta, uma cantiga de ninar infantil do can-
cioneiro popular, e, próximo do final apoteótico que remete o terror
trash, na hora do grande banquete, uma menção provocativa ao re-
frão da conhecida marchinha de carnaval que diz “caiu na rede é
peixe”, que dentro do contexto trazido pelo filme permite múltiplas
interpretações. Seria o bacalhau uma metáfora do produto externo
a nos devorar? Seria o filme estrangeiro um terror na praia nacio-
nal? Se ampliarmos para um contexto político em que o filme se
insere, quem seriam os devoradores? E quem seriam os peixes que
caíram na rede?
A paródia a Tubarão não acontece apenas na estrutura narra-
tiva da obra cinematográfica. Ela pode ser observada no título e no
cartaz do filme. O nome “bacalhau” mantém como destaque o tipo
de peixe que ameaça os banhistas do filme (levando em conside-
ração o título em português do filme original, já que a tradução de
“Jaws”, título original do filme norte americano, seria “mandíbula”),
e faz alusão tanto a Portugal, origem comumente atribuída ao ba-
calhau, como ao cheiro do peixe que popularmente era comparado
com o cheiro do órgão sexual feminino.
Quando os cartazes divulgados na época são comparados, é
possível identificar a paródia com o original através de um conjun-
to de elementos. A versão brasileira manteve a mesma disposição
dos elementos do cartaz de Tubarão, assim como as cores princi-
pais. A banhista, no entanto, está representada de maneira caricata
Começando a despir

em Bacalhau, tendo as curvas do seu corpo acentuadas, sorrindo e


numa pose notadamente visando o erotismo. A parte de baixo do
seu traje de banho está solta, flutuando ao lado do peixe que, vin-
215
do de baixo, não representa uma ameaça como os afiados dentes
do tubarão do filme original. É destacada na ilustração a língua do
bacalhau, que parece estar desejando a moça acima - referência à
vontade do peixe de “comer” as banhistas, verificada no filme. A ti-
pografia dos títulos, sólida e alinhada no original, está “bagunçada”
na capa brasileira. Por fim, outra menção evidente ao original é a
frase que acompanha o título: “... e tudo sempre acaba assim...” fun-
ciona como uma espécie de continuação para a frase no cartaz do
filme norte americano “e assim tudo começou...”. Enquanto em Tu-
barão a frase é uma maneira de pontuar que a cena representada no
cartaz dá início à narrativa que será vista no filme - a mulher sendo
atacada pelo animal -, em Bacalhau ela parece dizer que no Brasil
as coisas acabam em sexo - já que o peixe pretende satisfazer suas
necessidades sexuais com a banhista.

Considerações Finais
Marginalizada durante muito tempo pela elite intelectual en-
quanto produção cinematográfica com estética grotesca ou depre-
ciativa da sétima arte, a pornochanchada é inegavelmente um dos
períodos mais férteis do cinema nacional. O trocadilho aqui não se
faz com conotação sexual, mas no sentido de expressar o valor de in-
dústria de produção que se instaurou por aproximadamente quinze
anos a ponto de ser comparada como a Bollywood do cinema nacio-
nal, em alusão à indústria cinematográfica indiana com suas obras
de baixo custo se comparados aos mega-orçamentos da indústria
americana. Quer seja pela sua origem relacionada em São Paulo, à
Boca do Lixo, vale destacar que as pornochanchadas tiveram seu
valor ao conseguir imprimir um esquema de produção industrial
que antes não havia se observado. Elas revelaram empreendedo-
res que souberam driblar das dificuldades econômicas à censura
da época, e que conseguiram lucrar com seus filmes - muitas vezes
gerando fonte de receita para outras produções num ciclo sucessivo.
Sem seguir certo padrão, as pornochanchadas foram experimentos
do fazer cinema, sobretudo um cinema popular. E a fórmula esta-
va em transferir para o produto midiático características que eram
facilmente identificáveis, em seus personagens cotidianos, que se
viam ali representados, ou que se sentiam próximos da realidade
retratada socialmente nas películas. O uso da linguagem simples, do
humor e da habilidade do brasileiro de rir da própria sorte, de fazer
piada com o próprio destino, satirizar desde a infidelidade conjugal
Parte 2

aos seus governantes. Da mesma forma que, do ponto de vista sim-


216
bólico, pensamos nas alteridades geradas em relação ao produto
americano e o não reconhecimento nos blockbusters estrangeiros.
Observou-se nas produções analisadas o aspecto particular da
paródia, na ideia proposta por Bakhtin em relação à carnavalização
no sentido de apropriar-se de um discurso existente, ou no caso dos
filmes analisados, de um argumento ou elemento inicial existente
nas produções estrangeiras e gerador de interesse para uma forma
mais adequada ou apropriada à realidade local, mais próxima do pú-
blico do que as realidades enlatadas e impostas pelas distribuidoras.
Se pensarmos a produção cinematográfica do período da por-
nochanchada do ponto de vista da concepção de cultura, concebi-
da como sistemas de relações de sentido que identifica diferenças,
contrastes e comparações como propõem os defensores da pers-
pectiva sociossemiótica e interpretativa que se observa na porno-
chanchada, um vasto território a ser estudado do ponto de vista
sociológico e comunicacional dada a quantidade de filmes que fo-
ram rodados no período. Críticas à parte, com relação à elaboração
estética, seu caráter mercadológico ou popularesco, não se pode
marginalizá-la do ponto de vista do legado de sua produção, de
suas contribuições para a compreensão espaço, temporal, política
e social de sua época.
Projetam-se nas telas através dos personagens e enredos tra-
ços característicos da identidade brasileira, claro que acrescidos da
“dramaticidade eufemizada” ou exageros às vezes, como forma de
satirizar e chamar atenção para tais aspectos - função do exagero
cômico, apontado por Propp (1992). A tela amplifica tais nuances e
minúcias, muitas vezes escondidas ou que passam despercebidas
na sociedade pasteurizada e teoricamente limpa de toda essa visão
estereotipada, excludente, marginalizadora,
A sociedade, ao menos aparentemente, busca ignorar esse
legado em nome de uma purificação estética do cinema nacio-
nal, das personagens, com medo de encarar este espelho social
enredado nas pornochanchadas ou negar o que tais produções
deixaram aparente ou trouxeram à tona. É preciso trazer à tona
toda essa contribuição, esquecendo que os rótulos que cercam tais
produções são cristalizações sociais que vem aos poucos sendo
desconstruídas ou revistas.
Aqui são apresentadas algumas leituras das muitas possíveis.
São recortes, perspectivas e olhares que podem ser ampliados. Eles
Começando a despir

são falhos e incompletos enquanto signos, que permitem uma vi-


são microscópica do objeto, da sociedade, que encaminha para uma
dimensão panorâmica de sua compreensão.
217
Com o escárnio, brincando com o humor, a pornochanchada
escancara tipos, mazelas, o que está debaixo do tapete e não se
tem coragem de comentar nos almoços de domingo. Podemos nos
identificar ou não, podemos assistir como entretenimento ou ver
com olhar mais atento de reflexão ou indignação. Há de se admitir
essa abertura e esse caráter potencialmente provocador. Em certos
aspectos, a pornochanchada desnuda a própria sociedade, satiri-
zando e fazendo que nos coloquemos em papel de meros expecta-
dores, e nós atores sociais consigamos dar risada de nós mesmos,
de nossos defeitos expostos. É uma nudez ampliada que talvez não
queiramos ver ou admitir e ela incomoda mais do que os simples
corpos exibidos na tela. Por isso o rotulamos de lixo e o colocamos
de escanteio, importamos alguns modelos externos, preferimos o
Happy end e outro modo de vida, não o nosso.

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Parte 2

220
José Carlos Marques O REI ESTÁ NU! – OS EMPRÉSTIMOS DA
PORNOCHANCHADA NA ADAPTAÇÃO PARA
O CINEMA DA OBRA TEATRAL PEDRO MICO

Em 1985, em pleno processo de redemocra-


tização do Brasil após o fim da ditadura militar
instalada em 1964, o cinema brasileiro deparava-
se com a notícia do lançamento do filme Pedro
Mico – uma lição de malandragem, com direção
de Ipojuca Pontes e apoio da Embrafilme, mais a
presença do futebolista Pelé como destaque prin-
cipal. A história baseava-se em peça teatral escri-
ta por Antônio Callado e encenada pela primeira
vez no Rio de Janeiro em 1957. Nela, narram-se as
peripécias de Pedro, um malandro hábil na arte
de roubar e que se notabilizou por ludibriar conti-
nuamente as forças da polícia, evitando qualquer
tipo de captura.
A destreza de Pedro em escalar casas e pré-
dios fez com que a imprensa lhe conferisse a al-
cunha de “Mico”, em virtude da semelhança de
seus gestos com a agilidade típica do símio que
lhe empresta o nome. Pedro Mico vive (ou refu-
gia-se) no morro da Catacumba, entre os bairros
de Copacabana e Ipanema, com vista para a La-
goa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. E, devi-
do ao fato de não saber ler, precisa da ajuda e da
companhia de alguém minimamente alfabetiza-
do para poder ouvir as notícias a seu respeito que
são publicadas pelos jornais.
O que nos chama a atenção, neste caso, é o
fato de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé –
aposentado dos campos de futebol desde 1977 –,
ter sido convidado para representar um malan-
dro carioca, tendo que contracenar ainda com a
experiente atriz Tereza Raquel. Apesar de Pelé
não ser um iniciante no cinema (já havia partici-

221
pado de cinco produções anteriormente – Ver Quadro 1), em Pedro
Mico ele teria que, além de representar o personagem de um con-
traventor, encarar de corpo nu a gravação de uma cena de sexo com
a própria Tereza Raquel, por sinal, mulher de Ipojuca Pontes à época.
Para quem cultivou uma carreira futebolística um tanto distan-
te da imagem de rebelde ou de contraventor, a assunção de um per-
sonagem à margem da lei como Pedro Mico por Pelé pode-nos pa-
recer inusitada, ainda mais quando lembramos que: 1) em 1979 ele
mesmo havia participado de Os trombadinhas (direção de Anselmo
Duarte) no papel dele próprio, interpretando um benfeitor que lu-
tava contra o crime; 2) em 1982 ele já havia participado da super-
produção internacional Fuga para a vitória (direção de John Ford),
no qual aparece como prisioneiro de guerra dos nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial; 3) e em 1986, de modo a cultivar a mesma
imagem que tinha nos gramados, Pelé faz parte de uma produção
dos Trapalhões (Os Trapalhões e o Rei do futebol), mais uma vez
representando a si mesmo.

Quadro 1 – Filmes de Pelé Como Ator


Ano Lançamento Título
1971 O Barão Otelo no barato dos bilhões
1972 A Marcha
1979 Os Trombadinhas
1982 Fuga para a vitória
1983 A Minor Miracle
1985 Pedro Mico
1986 Os Trapalhões e o Rei do Futebol
1987 Hotshot
1989 Solidão, uma linda história de amor

Para Pelé, entretanto, tamanha exposição não era incomum,


tanto pelo seu passado como jogador renomado e reconhecido em
todo o mundo, tanto pela própria agenda pessoal a partir do mo-
mento em que se retirou dos gramados – basta lembrar o namoro
multimidiático que ele engatou com Xuxa Meneghel a partir de 1980,
quando a futura “Rainha dos Baixinhos” era apenas uma modelo
desconhecida em início de carreira. Ipojuca Pontes, que mais tarde
viria a ser Secretário Nacional da Cultura no governo de Fernando
Parte 2

222
Collor de Mello (1990-1992) e sobre quem pesa o fardo de ter sido um
dos mentores do fim da Embrafilme (a mesma que financiou o seu
Pedro Mico), talvez desejasse a presença de Pelé justamente pelo
impacto que essa escolha poderia conferir ao seu projeto. Segun-
do Andrea Ormond, que mantém um blog especialíssimo sobre o
cinema brasileiro – o Estranho encontro, dedicado a comentar e re-
senhar filmes diversos, especialmente os produzidos nas décadas
de 1970 e 1980 –, Pedro Mico era um projeto antigo do diretor, e a pe-
lícula só entrou em circuito comercial dois anos após ser lançada:

Filmar “Pedro Mico”, peça de Antônio Callado, era ideia an-


tiga de Ipojuca Pontes. Ainda em 1981, cogitava-se o cantor
Harry Belafonte para o papel. No final de 1982, já se falava em
Pelé. Embora em 83 muito se divulgasse sobre o filme na im-
prensa, e tenha sido efetivamente rodado entre 84-85, termi-
nou estreando, em circuito comercial, somente no distante
dezembro de 87. (Ormond, 2013 – online).

Além da presença física no filme, o curioso é perceber que Pelé


não aparece em Pedro Mico com a sua própria voz, mas sim com
a voz do ator Milton Gonçalves. Aqui, duas versões antagônicas
divergem sobre a causa de o “Rei do futebol” não ter dublado a si
mesmo (sim, até meados dos anos de 1990, e devido às formas de
captação de áudio, os filmes dependiam da dublagem – em estú-
dio – das cenas gravadas). De acordo ainda com Andrea Ormond,
Pelé sofreu um assalto em sua casa na Baixada Santista logo que se
iniciaram os trabalhos de dublagem do filme – daí o fato de ter sido
substituído pelo ator; matéria publicada no Portal UOL, porém, dá
outra explicação para o fato: “No acabamento da película, o ‘Rei do
futebol’ acabou dublado pelo ator Milton Gonçalves, porque o som
ambiente original nas gravações da favela atrapalhou a captação
da voz do ex-camisa 10 da seleção” (Documentário inédito mostra
cena de sexo de Pelé no cinema; veja o trecho”)1.
Não iremos nos preocupar, aqui, tanto com o possível folclore
e as diversas histórias que envolveram a presença de Pelé no fil-
me. Interessa-nos neste artigo verificar como a adaptação da peça
de teatro de Antônio Callado para o cinema nas mãos de Ipojuca
Começando a despir

1
Disponível em <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2011/04/29/em-filme-ine-
dito-pele-relembra-nu-artistico-e-quando-roubou-a-cena-de-stallone-veja-trecho.jhtm>. Acesso
em 15 jan. 2016.

223
Pontes, para além de ter recorrido à figura icônica do “Rei do fute-
bol”, apropriou-se ainda de recursos característicos da pornochan-
chada – gênero audiovisual tipicamente brasileiro que vigorou nas
décadas de 1970 e 1980 e que misturava elementos da chanchada
com o erotismo.
Nesta nova síntese cultural promovida por este gênero, a pre-
sença de mulheres nuas ou seminuas frente às câmeras de cinema
dava o tom de produções que visavam o grande público, ainda que
alguns trabalhos resvalassem para algum tipo de sofisticação ar-
tística, fosse por meio do roteiro, fosse por meio da fotografia ou de
outros recursos técnicos. Parece-nos ser este o caso de Pedro Mico.

A peça de Callado e os “dilemas” da adaptação para o cinema


Antes de nos debruçarmos sobre o filme, contudo, cabem algu-
mas reflexões sobre a peça homônima publicada por Antônio Calla-
do em 1957 e encenada no mesmo ano no Teatro República, com
direção de Paulo Francis e cenário de Oscar Niemeyer (como se vê,
o jovem escritor já iniciava sua carreira muito bem acompanhado).
Antes de Pedro Mico, Callado havia lançado três peças pouco co-
nhecidas hoje (O fígado de Prometeu – 1951; A cidade assassinada
– 1954; Frankel – 1955) e dois romances que lhe conferiram maior
reconhecimento (Assunção de Salviano – 1954; e A Madona de Ce-
dro – 1957). A consagração viria com o lançamento de Quarup, em
1967, ao lado de algumas coletâneas de reportagens, além de outras
peças e romances.
No volume sobre Antonio Callado para a coleção Literatura Co-
mentada, da Abril Educação (1982), a professora de literatura Lígia
Chiappini Moraes Leite (responsável pela seleção de textos, notas e
estudo crítico do autor) chamava a atenção para a filiação “român-
tica” dos escritos calladianos, que representariam uma tentativa de
revelar e conhecer o país por meio de uma recorrente “canção do
exílio”. Sua obra, assim, atestaria um esforço em representar um
país em busca da própria identidade em meio à paisagem tropical.
Nesse sentido, Lígia Chiappini aponta para um “projeto alencaria-
no” na obra de Callado, por meio da uma sondagem dos “avessos da
História brasileira”.
Na peça Pedro Mico, estes elementos reaparecem com força, seja
pela presença do arquétipo do malandro ou do personagem picares-
co (encarnado pelo próprio Pedro na esteira de uma longa tradição
brasileira construída por personagens diversos, como Macunaíma,
Parte 2

Sargento de Milícias, Pedro Malasartes etc., para não falar da músi-


224
ca popular), seja pela sutil abordagem de dois temas caros no país a
partir do início da segunda metade do século XX: o analfabetismo e
a desigualdade social. A associação mítica que se faz no texto teatral
entre Pedro Mico e Zumbi dos Palmares (falaremos disto mais adian-
te) sintetiza, de fato, aquele perfil alencariano que procura moldar a
identidade brasileira por meio da romantização de heróis populares
(índios e negros), como vemos em O Guarani, O Sertanejo e Iracema
– romances de José de Alencar – e como vemos na simbiose que a
peça estabelece entre o malandro carioca e Zumbi.
A peça de Callado, aliás, extrai grande parte de sua força do fato
de estar estruturada em apenas um ato, com toda a ação transcor-
rendo dentro do barraco de uma favela (o filme descentrará total-
mente este ímã dramático, esparramando-o também pela cidade
do Rio de Janeiro). O paradoxo do ambiente em que vive o contra-
ventor espelha todo o orgulho e a vaidade que ele assume para si,
como vemos no prólogo do texto da peça:

No interior do barracão, único cômodo, naturalmente, todo o


mobiliário de uma favela está acumulado: a lata de gasolina
de carregar água, cama, fogão, mesa de pau com bancos. No
canto do fogão, prateleiras com louça etc. Mas se sente que
o dono da casa é um dândi e um grande leitor dos jornais. Os
jornais estão por toda parte. Na parede há um grande espelho
e numa prateleira ao pé do espelho há dois pentes, brilhan-
tina, escova e pasta, água-de-colônia. Num armário feito de
caixote penduram-se uma roupa de panamá branco, outra de
brim claro, um terno de sarjão azul-marinho, e, num barbante
que passa diante das roupas, muitas gravatas, todas de cetim
lustroso e cores vivas. O armário não tem porta. No chão do
armário estão três pares de sapatos, de bico exageradamente
longo, um vermelho, um bicolor e um de couro de boi, mar-
rom e branco. (p. 1)

Ao lado das excentricidades do malandro, a questão do letra-


mento é recorrente por todo o texto teatral. Pedro quer saber como
os jornais relatam suas peripécias, ou seja, como se dá sua própria
construção narrativa de criação do herói mitológico, como defende
Joseph Campbell (1992). Na comunidade do morro, uma jovem cha-
mada Melize (junção dos nomes dos pais, Amélia e José), apaixona-
da por Pedro Mico, começa a aprender a ler, a fim de conquistar de
vez a confiança (e o coração) do herói. O irmão de Melize é o garoto
Começando a despir

Zemélio (anagrama invertido do nome da irmã, também numa ho-


menagem aos pais), espécie de fiel escudeiro de Pedro e igualmente
analfabeto. A aparente harmonia do barraco é rompida com a che-

225
gada de Aparecida, prostituta que Pedro Mico conhece no asfalto e
que provocará o conflito inevitável naquele ambiente “huis clos”2:

APARECIDA (petulante) - Mas você parou na praia de Ipane-


ma e veio me buscar. E já tinha muitos dias que você aparecia
lá e ficava me manjando, não é mesmo?
PEDRO MICO - É que eu ando mesmo com saudade da vida de
casado e queria uma mulher para viver junto. Mas aqui neste
morro tudo quanto é mulher é analfa de pai e mãe! Eu vi logo
que tu tinha pinta de saber ler. (p. 2)

Mais à frente, o texto confirma o porquê da abordagem de Pedro


a Aparecida:

APARECIDA - Você é mesmo um homem esquisito. Não es-


queço você me perguntando se eu sabia ler em vez de per-
guntar meu preço, como fazem os homens que me pegam na
praia. (p. 6)

O teste de fogo que Pedro impõe a Aparecida é a leitura das


notícias do dia, presentes nos jornais trazidos por Zemélio. Apare-
cida inicia-se, entretanto, com um assunto que não domina muito
e sobre o qual tem dificuldade para compreender do que se trata
(no filme, a notícia que é lida refere-se a uma visita do Papa João
Paulo II ao Zaire):

APARECIDA (lendo fluentemente mas sem parecer entender


muito) - “Os radicais-socialistas, liderados pelo ex-premier
Mendès-France, uniram-se aos socialistas para pedir que o
futuro governo da França seja formado por elementos dos
dois partidos que concorreram às recentes eleições gerais
sob a legenda da Frente Republicana...”
PEDRO MICO - Chega. (p. 3)

A certa altura, Aparecida estranhará que uma pessoa com tanta


astúcia e agilidade não saiba ler. A resposta de Pedro atesta, iro-
nicamente, o desprezo pelo letramento na mesma medida em que
denuncia o papel reservado à mulher em nossa sociedade (o de cui-
dadora), numa crítica bastante severa proposta pelo texto teatral:

2
Refiro-me à peça Huis Clos, lançada em 1944 pelo filósofo francês Jean Paul Sartre. O texto foi
traduzido e encenado no Brasil com o título “Entre quatro paredes” (embora o sentido do título em
Parte 2

francês tivesse mais a ver, em português, com a noção de “porta fechada” ou “espaço sem saída”).

226
APARECIDA - Ah... Eu... eu não sabia. Você é tão inteligente,
tão despachado, sei lá. Pensei que você tinha aprendido a ler.
PEDRO MICO - Eu não ia perder tempo com essa papagaia-
da. É muito mais fácil arranjar mulher que sabe ler do que
encher o crânio de letras com traço, com chapeuzinho, com
bolinha, com tudo quanto é raio de besteira. Toca o café pra
frente. Daqui a pouco estão aí os jornais do dia. É tempo da
gente engolir o café e meter um berço. (p. 5)

Em outro momento, Pedro dirá que “Mulher é pra ler jornal e dor-
mir com a gente, não é pra dar palpite em negócio de homem não.” (p.
12). Se à mulher são destinadas, portanto, as tarefas domésticas, cabe
referir que a purificação da mulher advém na mesma medida por for-
ça da companhia e da proteção do homem – no caso, o malandro:

PEDRO MICO - Olha, mulher que estiver com PEDRO MICO


ninguém chama disto, não. Nem que ela tenha passado em
revista todo o Corpo de Fuzileiros Navais. Nem que tenha
sido do Mangue no tempo do cincão. Pendurou no meu braço
é moça donzela de novo. (p. 12)

Numa inversão de papeis, a peça revela a força feminina ilus-


trada justamente pelo poder da palavra e da leitura: Aparecida – a
única alfabetizada entre os personagens - conta a Pedro a história
de Zumbi, líder do quilombo de Palmares, entre 1630 e 1695, na Serra
da Barriga, atualmente Estado de Alagoas. Em meio a uma narrati-
va que se mostra confusa e imprecisa, Aparecida diz que Zumbi pre-
feriu morrer por seu povo a entregar-se às forças de segurança que
tentavam capturá-lo. O paralelo que se estabelece com Pedro Mico
é imediato: Aparecida diz que ele, em vez de se entregar à polícia,
deveria honrar a comunidade da favela mimetizando o ato de Zum-
bi, que no momento em que se mata transforma-se imediatamente
em personagem mítico:

APARECIDA - O troço do Zumbi foi lá que aconteceu, Pedro,


em Alagoas. Só um cara que tem partes com o céu fazia o que
você fez, bem. Eu garanto que você... Não sei não, Pedro. Acho
que você é o Zumbi. (p. 24)

O fim da peça aponta para a idealização da luta social, com o


vaticínio em forma de desejo manifesto por Aparecida:
Começando a despir

APARECIDA (agarrando a boca da trouxa e pronta para carregá-


-la) - Você já pensou, Pedro, se a turma de todos os morros com-

227
binasse para fazer uma descida dessa no mesmo dia?..(p. 25)
(...)
PEDRO MICO - Não. Mas vou pensar.

É óbvio que uma simples leitura de trechos do texto teatral


não dá conta da força dramática que se obtém a partir da ence-
nação deste mesmo texto. A construção do universo dramático,
aliás, seja no palco ou nas câmeras, é que garante a sobrevivên-
cia e a plena realização do texto teatral, pois, como afirma Ana-
tol Rosenfeld, o “paradoxo da literatura dramática é que ela não
se contenta em ser literatura, já que, sendo ‘incompleta’, exige a
complementação cênica.” (Rosenfeld, 1985, p. 35)
No caso das câmeras, interessa-nos assim perceber quais as
“traduções intersemióticas” (na acepção de Roman Jakobson, 1969),
isto é, quais as transmutações de signos, do sistema verbal para ou-
tro sistema, que podem ser vistas na adaptação da peça teatral de
Antônio Callado feita para o filme dirigido por Ipojuca Pontes. Para
tanto, abandonamos de cara o juízo comum segundo o qual “o livro
é melhor que o filme” ou que “o filme não está à altura do livro”. Não
se trata, sequer, de se exigir da obra audiovisual o grau de fidelidade
que normalmente se cria na expectativa de que o filme seja “igual”
ao texto literário do qual se origina.

O problema – o estabelecimento de uma hierarquia normati-


va entre a literatura e o cinema, entre uma obra original e um
aversão derivada, entre a autenticidade e o simulacro e, por
extensão, entre a cultura de elite e a cultura de massa – ba-
seia-se numa concepção, derivada da estética kantiana, da
inviolabilidade da obra literária e da especificidade estética.
Daí uma insistência na “fidelidade” da adaptação cinemato-
gráfica à obra literária originária. Essa atitude resulta em jul-
gamentos superficiais que frequentemente valorizam a obra
literária sobre a adaptação, e o mais das vezes sem uma re-
flexão mais profunda. (JOHNSON, 2003, p. 40)

Essa insistência em torno da “fidelidade” quase sempre está


atrelada aos casos em que o espectador tem contato antes com o
texto literário e depois com a consequente obra fílmica. É comum,
do mesmo modo, que este problema não se coloque quando filmes
ou telenovelas de sucesso derivam de romances pouco conhecidos
do grande público. Em qualquer um dos casos, trata-se de “um falso
problema”, haja vista que as comparações ignoram as diferenças
semióticas de um meio e de outro meio, ou seja, porque se ignora “a
Parte 2

228
dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios
estão inseridos” (JOHNSON: 2003, p. 42). Além disso,

O processo de adaptação, portanto, não se esgota na trans-


posição do texto literário para um outro veículo. Ele pode ge-
rar uma cadeia quase infinita de referências a outros textos,
constituindo um fenômeno cultural que envolve processos
dinâmicos de transferência e interpretação de significados e
valores histórico-culturais. (GUIMARÃES, 2003, p. 92)

Uma das “inovações” que o filme Pedro Mico incorporará, e que


não se anuncia no texto teatral, tem a ver justamente com a explo-
ração do corpo e do nu feminino – daí a referência que fazemos a
uma estética típica da pornochanchada: “A pornochanchada, numa
sociedade mais permissiva, introduziu a cor, a nudez das mulheres”.
(ROVAI, 1976, p. 19). A cadeia quase infinita de referências a outros
textos é que abre o leque de alcance da obra fílmica, atualizando
inclusive as referências culturais que distanciam em quase 30 anos
o lançamento da peça e a produção da película. E essa estética da
pornochanchada que invade o filme estrelado por Pelé não poupa
nem mesmo o protagonista, que é submetido a um constrangimen-
to incomum pelo simples fato de o “Rei do Futebol” ter que encenar
uma cena de sexo – discutiremos isto em instantes.

Os enxertos na trama e a estética “pornochanchesca” de Pedro Mico


No primeiro semestre de 2000, período em que realizava minha
pesquisa de doutorado junto à Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA – USP), inscrevi-me como aluno
regular da disciplina “Nelson Rodrigues no cinema”, ministrada por
Ismail Xavier, pesquisador considerado hoje como uma das mais
respeitadas vozes críticas da academia brasileira sobre o cinema
nacional. Segundo Ismail, a “chave” para a compreensão de um fil-
me dava-se quase sempre na primeira cena do próprio filme: eram
naqueles primeiros frames da obra audiovisual que o diretor bus-
cava sintetizar a tese a ser defendida ou a expressão estética a ser
cultivada em seu trabalho.
Partindo desta singular proposição, cabe dizer que o filme Pe-
dro Mico, logo à partida, mostra-nos uma frase atribuída a Bertold
Começando a despir

Brecht, sobre um fundo laranja: “O tubarão tem dentes lindos e os


mostra como pérolas brancas”. A levar-se em conta o que defen-
de Ismail, teríamos já aqui vasto material para a elaboração de te-

229
ses e dissertações sobre o porquê do uso desta citação, ausente no
texto da peça de Callado, embora latente. Explicaremos tudo isto
com o auxílio da preciosa dissertação de mestrado de Júlio Barnez
Pignata Cattai (2011), dedicada a um estudo sobre a mídia impres-
sa no Brasil. A certa altura de sua pesquisa, Cattai faz referência à
balada satírica Ópera dos mendigos (The beggar´s opera), peça do
inglês John Gay de enorme sucesso de público no século XVIII. O
argumento do texto teatral era o de que ladrões e contraventores
comuns não eram diferentes dos burocratas inescrupulosos que se
encontravam em altos postos do governo: ambos os tipos não se
distinguiriam, já que suas formas de praticar os delitos fariam parte
da mesma natureza humana.
Essa mesma peça de John Gay começou a ser retrabalhada no
século XX pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, que a reescreve
com o título de Ópera dos três vinténs (Dreigroschenoper) e substi-
tui o personagem principal, que passa a chamar-se Mackie Messier,
ou Mack The Knife. Para não cansar leitor com muitas digressões,
cabe dizer que o tal Mack The Knife, uma espécie de anti-herói ma-
landro que simboliza em Brecht uma crítica ao capitalismo e às
concepções burguesas, irá mais tarde influenciar Chico Buarque
de Hollanda e sua Ópera do malandro. Além disso, uma música da
peça faria mais sucesso que a própria peça, segundo Cattai: trata-se
da canção The ballad of Mack the knife, ou simplesmente Mack the
knife, composta por Brecht para situar o criminoso em meio a um
ambiente de profunda desigualdade social.
Essa mesma canção mais a peça de Brecht foram traduzidas
para o inglês em 1950 pelo dramaturgo norte-americano Marc Blit-
zstein, que suavizou em parte o clima de tensão social dos originais.
Fato é que a canção foi imortalizada, na versão de Blitzstein, pelo
trompetista Louis Armstrong e mais tarde gravada também por íco-
nes do calibre de Ella Fitzgerald e Frank Sinatra. Os dois primeiros
versos da nova canção são “Oh the shark has pretty teeth, dear / And
he shows them pearly white”. Em tradução livre livre para o portu-
guês, teríamos a mesma inscrição que Ipojuca Pontes usa para abrir
seu filme – incorretamente atribuída a Brecht (na versão original do
autor alemão, os versos em inglês são “And the shark, he has teeth /
And he wears them in his face”, ou, numa tradução livre para o por-
tuguês, “E o tubarão, ele tem dentes / E os usa em seu rosto”).
É singular notarmos que Ipojuca Pontes, para além do apelo se-
xual de sua tradução semiótica da peça, soube interpretar o âmago
da proposta do texto de Callado, recuperando a questão que nos pa-
Parte 2

rece central: Pedro Mico será visto menos como um contraventor


230
e mais como um possível mártir, já que seria capaz de promover a
redenção dos menos favorecidos em prol da justiça social. Nesse
sentido, ele não seria menos bandido do que aqueles que seriam
responsáveis pela criação da desigualdade nacional. Voltamos, as-
sim, à discussão da adaptação de um texto literário para um filme,
algo que nos parece superada a partir de agora:

A questão da adaptação literária pode ser discutida em mui-


tas dimensões. E o debate tende a se concentrar no problema
da interpretação feita pelo cineasta em sua transposição do
livro.(...)O lema deve ser “ao cineasta o que é do cineasta, ao
escritor o que é do escritor”, valendo as comparações entre
livro e filme mais como um esforço para tornar mais claras
as escolhas de quem leu o texto e o assume como ponto de
partida, não de chegada. (XAVIER, 2003, p. 61-62)

Em Pedro Mico, Ipojuca Pontes intensificará a alegoria do malan-


dro carioca e da exploração do corpo feminino em meio ao exotismo
do morro e da favela, por um lado, e em contraposição ao universo
da corrupção nas altas rodas da sociedade carioca, por outro. Essa
característica povoa sobremaneira o cinema brasileiro a partir da se-
gunda metade da década de 1960, quando o interesse dos cineastas
ligados ao chamado Cinema Novo era comunicar-se com o grande
público tentando representar o país por meio de traços que ilustras-
sem a brasilidade em quadros alegóricos (RAMOS, 1987, p. 372-373).
Ainda que Ipojuca Pontes não seja um cineasta filiado ao Cine-
ma Novo, sua recriação de Pedro Mico reatualiza diversas caracte-
rísticas dos cinemanovistas: locações fora de estúdio, incorporação
na trama de temas que discutem as mazelas do país (aqui, a cri-
minalidade, o analfabetismo e a desigualdade social num ambien-
te urbano), a valorização de textos de autores nacionais (Antônio
Callado) e o emprego de atores amadores (se quisermos, aqui, pode-
mos considerar que Pelé não era um ator profissional).
Logo após a cena inicial com a frase atribuída a Brecht, o filme
apresenta um longo prólogo de seis minutos, em que são listados os
créditos iniciais da produção, além de algumas sequências de cenas
que sintetizam de maneira sui generis a obra que veremos a seguir.
Aparece-nos então a planta de um imóvel sobre uma mesa; sobre a
planta, um sujeito com mãos brancas e pequenas explica como o
outro sujeito, com mãos negras e grandes, deve proceder para entrar
Começando a despir

em determinado apartamento a fim de retirar um “bagulho” que se


encontra numa caixa fechada a chave. O interessante jogo de mími-
ca entre os dois personagens dá espaço para o desvelamento deles.
231
Transmitida a tarefa a ser executada, percebemos que o sujeito a
quem se “encomendou o serviço” porta um conjunto branco de pa-
letó e calça de linho, além de um chapéu escuro. Trata-se de Pedro
Mico. O solicitante é um anão que atende pela alcunha de “Gigante”,
espécie de capanga maior de algum contraventor da alta roda.
Pedro Mico sai do ambiente, um galpão perdido na periferia da
cidade, e, ao som da mítica Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (nada
poderia ser mais alencariano – ou calladiano – do que esta canção!),
aparece subindo uma escadaria no morro. Depara-se com uma insi-
nuante morena que segue em sentido contrário, e aqui comparece
o arquétipo do macho-alfa latino: o personagem pára, vira-se para
trás e lança uma olhadela para os atributos da moça, especialmente
o seu “derrière”; em seguida, volta a subir o morro gingando o corpo
e balançando o andar, com os trejeitos estereotipados do malandro
brasileiro. Uma reverência é feita a um trabalho de umbanda e outra
parada é feita para flertar com nova moçoila da comunidade – ato
repreendido veementemente por alguém mais velho, talvez o pai da
garota. Aos 4’30” de filme, temos um flerte mais explícito com a es-
tética da pornochanchada brasileira: uma mulher seminua aparece,
com uma navalha no pescoço e a roupa rasgada, sofrendo o assédio
de um homem de meia idade. Temos um plano americano nos seios
nus femininos, depois o plano abre-se, e Pedro Mico continua a subi-
da do morro, alheio à cena de estupro que a princípio só é percebida
pelo espectador. Sequência típica da pornochanchada brasileira:

É comum no universo das pornochanchadas um desfile de


obsessões e intrigas, de mulheres ávidas por aventuras sexu-
ais, de maridos traídos, de tresloucados personagens homos-
sexuais, entre outros. (SALES FILHO, 1995, p. 70)

Pedro Mico, com seu traje de dândi (ver Imagem 1)3, continua a
subida pelo morro até que se avista a praia de Copacabana. Somos
informados por um dos créditos do filme que o barraco do protago-
nista é um cenário de autoria de Oscar Niemeyer. Aos 7’20”, quando
Pedro Mico finalmente chega a casa no topo do morro, tem-se uma
visão completa da Lagoa Rodrigo de Freitas. Encerra-se a execução
de Aquarela do Brasil.
Nesta sequencia toda, quase temos um plano sequência. Popu-
larizado pelo teórico de cinema André Bazin, tal plano baseia-se na
teoria da autenticidade e da objetividade da montagem das cenas
cinematográficas, com o corte sendo substituído pelo movimento
da câmera. “Sua concepção teórica sobre o cinema realista coin-
Parte 2

232
Figura 1: Folder de divulgação de Pedro Mico – uma lição de malandragem.
Crédito da imagem: Marcelo Jesuíno – Cinemateca Brasileira.

cidiu com o desenvolvimento do neo-realismo italiano, que tinha


como proposta a utilização do plano sequência para ‘expressar a
realidade tal como ela é’.” (LEONE; MOURÃO, 1993, p. 62) A câmera
ganha assim maior mobilidade, buscando a ação e o movimento
dos atores. No caso de Pedro Mico, há vários cortes na montagem
que narra a subida do personagem pelo morro. No entanto, o efeito
de sentido que se pretendeu dar, a nosso juízo, é o que se aproxima
mais fortemente do plano-sequência clássico, intensificando as ve-
leidades sofisticadas desta produção.
Após a apresentação do herói, temos a aparição do personagem
que em breve se tornará a vítima da hora de Pedro Mico: um mul-
timilionário, vestido como sultão, “analisa” os atributos físicos de
duas mulheres, a quem dá ordens, em francês, para despirem suas
peças de roupa íntima e para pedir “Chérie, le champagne!”. Como
se fosse um dos contos das Mil e Uma Noites, o sultão deleita-se
com as duas mulheres em seu harém. Enquanto isso, as duas She-
razades nuas satisfazem as excentricidades do endinheirado. En-
quanto a orgia acontece, Pedro Mico, com o auxílio de uma corda,
Começando a despir

executa uma descida de rapel pela fachada do prédio em que está

3
Esta e as próximas duas imagens utilizadas neste texto foram retiradas do sitio da Cinemateca
Brasileira. Disponível em: < http://cinemateca.gov.br>. Acesso em:10 jan. 2016.

233
o multimilionário e furta joias e valores da escrivaninha, conforme
orientações recebidas de Gigante. O problema é que Pedro Mico não
cumpre sua parte acordada com o grupo que planejara roubar o sul-
tão e foge para a favela com o produto do roubo.
O tal do multimilionário era um empresário árabe que enrique-
cera por meio do petróleo do Oriente Médio. Estava no Rio Janeiro a
convite – e sob custódia – de um empresário ganancioso, que havia
planejado o tal roubo apenas para lucrar em cima da segurança do
sultão. Com a traição de Pedro Mico, entra em cena a polícia, ilus-
trada no papel do delegado Portela (Jorge Dória), que aparece em
seu gabinete com a foto na parede de João Batista Figueiredo, então
último presidente do Brasil da ditadura militar. Esta trama rocam-
bolesca e caricata, certamente cômica, desdobrar-se-á em novas
cenas de sexo e de corpos nus, elevando-se assim a estética da por-
nochanchada a um patamar distinto do proposto no texto teatral:

As pornochanchadas (...) combinavam a influência dos fil-


mes italianos em episódios (que juntavam humor, ironia e
malícia em histórias curtas), a tematização dos “dilemas do
dar e do comer”, que se insinuava nos filmes brasileiros da
década de 1960 (e em seus títulos apelativos), e a atualiza-
ção da comédia carioca popular urbana – a chanchada. A
nomeação, certamente elitista, contém algo de pejorativo,
procurando assemelhar a comédia erótica dos anos 1970 à
chanchada dos anos 1940 e 1950, no sentido de serem filmes
sem valor artístico, mal realizados e vulgares. Agregar o pre-
fixo “porno” à chanchada, contudo, não se traduz diretamente
em acrescentar pornografia, no sentido transgressivo. (...) O
“gênero” servia-se, basicamente, de um erotismo implícito na
exibição da nudez feminina e na insinuação de sexo, de títu-
los com duplo sentido – que ofereciam mais do que tinham
para dar –, de situações com peripécias amorosas, piadas
cheias de malícia e gags atualizadas da tradição circense.
Condensava um imaginário que atingia com precisão o pú-
blico ‘popular’. (...) Na pornochanchada (como na chanchada),
pode-se perceber a assimilação de formas tradicionais de
entretenimento popular brasileiro, advindas de esquetes dos
teatros de revista, dos espetáculos mambembes, dos circos e,
mesmo, do rádio – este já fazendo parte da cultura de massa.
Uma dramaturgia que oferece como entretenimento os jogos
maliciosos da sedução, da conquista e da performance, fil-
trados por um tipo de humor construído pela ambigüidade e
pelo duplo sentido. (ABREU, 2006, p. 142-144).

O crime duplo cometido por Pedro Mico não poderia perma-


Parte 2

necer incólume. Assim, de forma inesperada, numa cena que no


234
universo do cinema pornô seria classificada como “sexo inter-ra-
cial”, temos um negro e uma branca fazendo sexo num cubículo,
quando são descobertos por dois sujeitos que haviam confundi-
do o negro com Pedro Mico. O mal-entendido é fatal para o casal
que aparece nu e que é aniquilado à queima roupa. Lição lógica
do universo da bandidagem: não se reconhece os rostos de dois
meliantes impunemente.
Como as alegorias sexuais são variadas em Pedro Mico, temos
em seguida um giro de helicóptero feito pela polícia sobre o morro
da Catacumba; mais uma vez, surge uma cena de estupro de uma
mulher, cometido pelo mesmo homem que aparecera no prólogo
do filme. Mais à frente, ficamos sabendo que esse “estuprador em
série” do morro é o “Coisa Ruim”, que inclusive vai assediar Melize,
mexendo com os brios de Pedro Mico (os dois homens entram em
confronto, com Pelé exibindo seus dotes de atleta em meio a movi-
mentos de capoeira). Já em outra batida policial em busca de pistas
sobre Pedro Mico, o delegado Portela e mais dois tiras vão à procura
do negro “Come Quieto”, que aparece recebendo sexo oral de uma
loira em sua loja de automóveis.
Por último, nesta sanha de “perversões”, o Gigante (que havia
encomendado o serviço a Pedro Mico) aparece de cueca vermelha
e meias pretas, com uma garrafa de vodca na mão, esfregando-
se em duas mulheres seminuas ao som da canção Mambolê, de
autoria de Lucas Robles (no Brasil, a canção fez sucesso também
por meio do trio Los Angeles, que talvez tivesse muito a ver com
a pornochanchada!).
Esta amostra robusta de exploração do sexo e dos corpos das
mulheres, típica da estética da pornochanchada, aponta também
para um descentramento da proposta original de Antonio Callado
em seu texto teatral. Se ali é a situação em huis clos que impera,
com grande ênfase na questão do letramento e da busca da reden-
ção social por força de uma atitude do herói Zumbi, no filme são as
cenas de sexo, às vezes fora de contexto, que dão o tom da narrativa
– algo que, inclusive, criou outro folclore em torno de Pelé – e que
tantas críticas renderam às pornochanchadas:

A produção de pornochanchadas foi bastante criticada pelos


setores mais conservadores e mais intelectualizados, espe-
cialmente por estar recheada de aspectos como a banaliza-
Começando a despir

ção da sexualidade, a exploração do corpo da mulher, o ma-


chismo, o falocentrismo e outros. (SALES FILHO, 1995, p. 69).

235
Perto de uma hora de filme, o Rei finalmente fica nu (ver Ima-
gem 2): Aparecida e Pedro Mico transam no barraco do malandro.
Na cena, é nítido o desconforto de Pelé, em que pese a naturalidade
com que Tereza Raquel aborda a filmagem. A dificuldade do Rei do
Futebol teria chegado a irritar Ipojuca Pontes, em virtude da longa
demora em se concluir a cena, como se pode ver em depoimento do
próprio ex-jogador:

Tive essa cena, que é normal entre um casal que se ama, que
tava morando junto. Foi uma cena mais audaciosa”, explicou
o Rei. “Caramba é a mulher dele. Ele tá mandando eu pegar a
mulher dele [risos]. Eu ficava meio confuso. Fiquei – sei lá – a
tarde inteira tendo que repetir a cena porque eu não conse-
guia. (Documentário inédito mostra cena de sexo de Pelé no
cinema; veja o trecho”)4.

Não é à toa que o desempenho de Pelé atrás das câmeras tenha


despertado ironias das mais diversas, como a que se pode ver num
texto cômico do blog O poderoso chofer, que traz uma resenha es-
pecífica sobre este filme. Intitulado “(1985) ‘Pedro Mico’ – Era melhor
NÃO ter ido ver o filme do Pelé” 5, o texto leva a assinatura de alguém
que se autonomeia Giácomo Corleone e que chega a afirmar que
“Para mim, a interpretação do Pelé ficou tão ruim, que tiveram que

Figura 2: Folder de divulgação de Pedro Mico – uma lição de malandragem.


Parte 2

Crédito da imagem: Marcelo Jesuíno – Cinemateca Brasileira.

236
chamar o Milton Gonçalves para disfarçar” ou “O filme é tão ruim,
que depois dele Pelé nunca mais foi protagonista de filme nenhum
(em ‘Trapalhões e o Rei do Futebol’ ele é coadjuvante)”.
Intriga-nos, entretanto, que o cartaz oficial do filme (Figura 3)
não faça uso da nudez feminina, nem da violência, mas sim da ima-
gem de Pedro Mico (Pelé) ao lado da bandeira do Brasil, mais a frase
“ele não sabe ler, mas... pode escrever uma nova história!”. É como
se Ipojuca Pontes – ou os demais produtores do filme – quisessem
reaproximar-se da proposta original do texto de Antônio Callado.
Por último, cabe lembrar a indissociabilidade entre a porno-
chanchada e a ditadura militar. Como afirmam Bertolli Filho e Tala-
moni (2015), a abertura política a que o Brasil assistiu, especialmen-
te no início da década de 1980, acabaria por sepultar o gênero, que já
convivia em 1985 – ano de lançamento de Pedro Mico – com filmes
nacionais com sexo explícito (Coisas eróticas, o primeiro do gênero
no Brasil é de 1981) e com o surgimento da cultura do videocassete

Figura 3. Cartaz oficial de Pe-


dro Mico – uma lição de ma-
landragem.
Crédito: Cinemateca Brasileira.

4
Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2011/04/29/em-filme-ine-
Começando a despir

dito-pele-relembra-nu-artistico-e-quando-roubou-a-cena-de-stallone-veja-trecho.jhtm>. Acesso
em 15 jan. 2016.
5
Disponível em: <http://opoderosochofer.blogspot.com.br/2013/10/1985pedro-mico-era-me-
lhor-nao-ter-ido.html>. Acesso em: 20 fev. 2016.

237
e das locadoras de vídeo, que exponenciaram ao público brasileiro
a possibilidade de consumir, em casa, os filmes regados a sexo far-
to das produções norte-americanas. De todo modo, insistimos no
fato de que, na transmutação do Pedro Mico feita por Ipojuca Pontes,
ainda persistem diversos elementos característicos das produções
que sedimentaram a pornochanchada como um gênero de grande
alcance de público e de baixa ressonância na crítica, como vemos
na consideração abaixo:

Para usar um termo típico da época, a avacalhação de vários


aspectos da vida social, se não era aceita pela ditadura, pelo
menos era suportada, instigando os diretores deste gênero a
ousarem o que muitos diretores de outros gêneros fílmicos
não tinham coragem porque isto condenaria suas produções
a serem vetadas pela censura. Policiais que faziam tramoias
em companhia de sujeitos que deveriam prender, fazendei-
ras que recorriam à violência para se apoderarem de homens
que desejavam e políticos inescrupulosos literalmente cor-
rendo atrás de mulheres pudicas eram retratados em meio a
tiradas cômicas e corpos despidos. (BERTOLLI Filho; Talamo-
ni 2015, p. 321).

Ainda que esta citação não se refira ao filme Pedro Mico, é ine-
gável a possibilidade de associá-la à montagem realizada por Ipo-
juca Pontes. E, para além da imagem do Presidente Figueiredo no
gabinete do delegado Portela, conforme referido anteriormente, é
sintomático que o filme inclua na trama uma longa cena de tortu-
ra sobre o Gigante, executada por policiais dentro da delegacia, a
fim de que se revelasse a identidade e o paradeiro de Pedro Mico
– algo que nos lembra de algumas sequências de Pra frente Brasil
(1982, direção de Roberto Farias), o qual sofreu vários problemas
com a censura. Em que pese o tom cômico da sequência da tortu-
ra do Gigante, especialmente pelos trejeitos fisionômicos do ator,
não nos parece que a intromissão do tema seja tão inocente quan-
to se possa imaginar.

Considerações Finais
Ipojuca Pontes, ao iniciar seu filme com a tal frase atribuída –
erroneamente – a Bertold Brecht, intensifica sentidos que estão
latentes na peça de Antônio Callado, que sequer cita o dramatur-
go alemão. Trata-se, com efeito, de uma sofisticação e de uma eru-
Parte 2

dição que deve ter passado despercebida pela imensa maioria do


238
público que assistiu a Pedro Mico nos cinemas ou na televisão. De
todo modo, a associação entre Pedro e Zumbi (dois “contravento-
res” capazes de promover a redenção social) já fazia parte do texto
teatral de Callado, dentro daquele espírito “alencariano” a que alu-
dimos anteriormente e que aponta sempre para uma projeção dos
atos do herói.
Pelo menos nisto o filme atualiza o texto teatral, reafirmando a
possibilidade de superação das mazelas sociais por meio da luta e
da ação dos subjugados. O tom de exaltação romântica da peça de
Antônio Callado comparece igualmente na película de Ipojuca Pon-
tes, ainda que a peça dê maior importância e relevância à leitura e
à alfabetização. De todo modo, é preciso sempre levar em conta que,
tanto na trama do filme como no texto da peça, cabe a uma mu-
lher prostituta (Aparecida), no fundo tão marginalizada como Pedro
Mico, ser a agente da transformação social pelo fato de saber ler e,
nesse sentido, ter acesso a um conhecimento livresco da história
(daí a importância desta personagem para poder introduzir, ainda
que de maneira forçada, a história de Zumbi dos Palmares, que é
recontada com imprecisões e idealizações de todo tipo). Assim, a
redenção do malandro negro – e de todo o povo explorado – só é
possível por meio da única pessoa alfabetizada que, de dentro da
favela, é capaz de promover o chamamento do herói para a luta.
No filme, intensificam-se ainda os diálogos com diversas varia-
ções linguísticas que aparecem mais timidamente no texto teatral.
Explora-se na película, com mais intensidade, o falar carioca de
concordâncias pronominais particulares (como, por exemplo, nas
frases que também estão na peça “- Tu nunca viu?”; “- Tu soube?”
“- Tu conhece ele, mulher?”). Para além disso, procede-se a algumas
atualizações lexicais (“velhoca” passa a ser “coroa”; “vaca” passa a
ser “piranha” etc.).
Por último, na proposta de transliteração da peça para o cine-
ma, cabe voltar mais uma vez à opção estética que Ipojuca Pontes
promove em torno do forte apelo ao corpo da mulher, invariavel-
mente vista na trama como objeto de prazer num mundo domi-
nado pelos homens (daí a grande presença de prostitutas no filme,
que aparecem apenas para satisfazer seus adquirentes, e as cenas
de estupro protagonizadas pelo “Coisa Ruim”, algo ausente do texto
da peça). Ainda que não se filie explicitamente à pornochanchada,
é inegável perceber em Pedro Mico resquícios desse gênero que, à
Começando a despir

época, já traçava um caminho crepuscular na história de cinema-


tografia nacional. Mais instigante ainda é verificar também como
alguns laivos do Cinema Novo resvalam aqui e acolá em algumas
239
opções técnicas e temáticas de Pedro Mico (a mais direta, obvia-
mente, está na própria escolha de um texto de Antônio Callado
para o roteiro adaptado).
Por tudo isto, há de se lamentar o quase total anonimato que
o filme Pedro Mico experimentou nas últimas três décadas, desde
que foi lançado. Quase ninguém sabe que a película existe, muito
menos que Pelé, um dia, emprestou seus dotes artísticos para um
personagem tão complexo quanto Pedro Mico. A impressão que se
tem é que os defeitos do filme (que não são poucos) suplantaram
em larga medida suas virtudes. Entre vincular-se a certa erudição
cultural e vender-se como algo para o grande público, é capaz que a
obra de Ipojuca Pontes não tenha conseguido equilibrar-se na gan-
gorra. De todo modo, este texto serve um pouco para cumprir a pre-
dição de Andrea Ormond:

Revisto trinta anos depois, “Pedro Mico” chama a atenção


não apenas por suas precariedades – embora tenha sido uma
produção cara. Inscreve-se bonito, e com folgas, nas melho-
res antologias do gênero policial brasileiro, dando ao aprecia-
dor quase tudo o que ele espera. Reparem na frase: “Mandem
o pessoal da imprensa se foder, porra!”. É da lavra de gigantes
como Valério Meinel, José Louzeiro, Octávio Pena Branca.
Ou a epígrafe de Bertold Brecht em “Die Moritat von Mackie
Messer”; a trilha sonora de “Aquarela do Brasil” na voz de Wil-
son Simonal – portfólio também amaldiçoado pelos nenéns
neofascistas. Como sói ver, “Pedro Mico” daria um livro, por
tantos múltiplos detalhes, histórias e possíveis leituras. Li-
bertem o filme e o deixem respirar, por favor. (ANDREA OR-
MOND, 2013 – online. Os grifos são meus).

Na verdade, mais do que este texto, é este livro que se insinua


necessário e importante numa abordagem a que a academia sem-
pre vira as costas: a de debater e refletir os aspectos da cultura que
moldam nosso caráter e nosso cotidiano, sejam esses aspectos re-
lacionados às instituições centrais da ordem social, sejam esses
aspectos relacionados a sínteses culturais mestiças e populares,
das quais a pornochanchada é um exemplo rico e singular. O que
quisemos aqui, portanto, foi libertar Pedro Mico, o filme, e deixá-lo
respirar ao lado de outros congêneres igualmente marginalizados,
que quase sempre só conseguem ter exposição em alguma madru-
gada perdida na programação do Canal Brasil.
Parte 2

240
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Parte 2

242
Lucas Sant’Ana Nunes AS MULHERES DE ODY FRAGA:
Renata Aparecida Frigeri
A REPRESENTAÇÃO FEMININA
EM A DAMA DA ZONA

Este artigo pretende discutir as representa-


ções sociais e suas intertextualidades associa-
das às mulheres no filme A dama da zona, de Ody
Fraga (1979), em especial à prostituta, Esmeralda,
e à mãe-prostituta, Juliana. Esmeralda e Juliana
são as duas personagens centrais na película de
Fraga, sendo a primeira a protagonista que inte-
rage com a segunda e a transforma.
O gênero, como um tema inserido no cam-
po da cultura, deve ser tratado como uma cons-
trução simbólica e não uma ocorrência natural.
Observa-se que “ser mulher” ou “ser homem” são
processos ligados muito mais às representações
do que propriamente às características genéticas
e biológicas de cada um:

Existem diferenças genéticas, endócri-


nas, anatômicas entre a fêmea humana e
o macho: mas não bastam para definir a
feminilidade: esta é uma construção cul-
tural e não um dado natural. ,..., Ninguém
nasce mulher, as pessoas se tornam mu-
lher; ,..., ninguém nasce homem, as pesso-
as se tornam homem. Também a virilida-
de não é dada desde o início. (BEAUVOIR,
1972, p.486).

Mediante essa perspectiva, pode-se enten-


der a feminilidade como algo que perpassa as
representações sociais reproduzidas a partir dos
meios de comunicação ou dos procedimentos co-
municativos. As referências simbólicas para an-
corar significados às características ditas femini-
nas são construídas, o que denota um processo
de caráter sociocultural.
243
Enquanto agente cultural, o cinema ocupa posição privilegiada
na sociedade (ORTNER, 2007, p.576), pois guarda em si a função de
adotar e disseminar representações, que servem para a constitui-
ção de quadros de referência simbólicos sobre os mais variados te-
mas, entre eles a representação do gênero feminino.
A estética cinematográfica cria uma experiência de vivência
real nos espectadores por meio de procedimentos, tal experiência
objetiva gerar uma impressão de realidade a ser assumida pelo pú-
blico (METZ, 2012, p.16), além de fornecer construções simbólicas
de referências para fundamentar suas opiniões e comportamentos.
O cinema pode ser entendido como uma ferramenta de cará-
ter ideológico, pois produz os significados necessários para criar a
estrutura que auxilia na composição do imaginário dos indivíduos,
ele age como um horizonte simbólico para a sociedade: “O imaginá-
rio é a ordem que governa a experiência (ou “autoreconhecimento
errôneo”) que tem o sujeito de si mesmo com a totalidade. Assim, (...)
o imaginário é o lugar das operações ideológicas”. (KUHN, 1991, p.61).
O cinema também é um reflexo da sociedade, onde as constru-
ções culturais são exibidas, reforçadas ou mesmo questionadas.
Sendo o cinema um campo de construções simbólicas, de repre-
sentações sociais e de reflexos de uma sociedade, o cinema na-
cional provocou a tradicional sociedade brasileira da década de
1970 com a inserção de filmes eróticos no mercado. Seu formato
foi provocante o suficiente para que seus críticos o classificassem
como um gênero novo: nasciam assim filmes pejorativamente
chamados de pornochanchadas.
Apesar das críticas, as salas de cinema lotavam a cada exibi-
ção: as pornochanchadas mostravam mulheres nuas, livres e se-
xualizadas; elas eram as vizinhas, mas também eram as filhas, as
mães e as esposas. As pornochanchadas exibiam o adultério, a
traição, a contravenção.
Mas as pornochanchadas não se restringem a mulheres nuas
e cenas sexualizadas, muitos desses filmes também questionavam
problemas sociais, como a pobreza, a miséria, os conflitos humanos.
Ody Fraga foi um dos diretores de pornochanchadas que buscaram,
além da nudez, problemas e contradições da sociedade brasileira e
os expôs na tela.
Para adentrar uma obra cinematográfica é necessário pensar,
além de seu criador, seu contexto de produção, por isso,

Seguindo os conselhos de Nietzsche e Andreas-Salomé, em


Parte 2

vez de simplesmente partir do objeto do estudo (os filmes que

244
contêm representações do sexo), vamos considerar primei-
ro as relações históricas entre os mecanismos do poder e a
sexualidade humana, deixando que esta ocupe o centro da
arena, em vez de permanecer como simples “fonte” ou “tema”
para representações artísticas (GERBASE, 2006, p.41).

Assim sendo, faz-se necessário compreender o contexto nacio-


nal em que o filme A dama da zona foi produzido e também obser-
var o trabalho do diretor cinematográfico Ody Fraga.

Contexto e desenvolvimento sócio-histórico da pornochanchada


Os anos de 1970 no Brasil estão marcados, no campo cinema-
tográfico, pelo auge da pornochanchada, um período de questiona-
mento dos valores tradicionais da sociedade, a reivindicação da
liberação sexual e a crescente exploração do erotismo como fonte
de inspiração artística.
No campo político a ditadura estava em seu auge, o controverso
milagre econômico brasileiro acontecia, o país recebia uma série de
investimentos estrangeiros, alavancando os índices de crescimen-
to da economia brasileira. Paralela a este cenário, a pornochancha-
da passou por uma época de crescimento e sucesso comercial, suas
obras não atraiam investimentos e eram realizadas com baixos or-
çamentos, mas suas temáticas tinham forte apelo popular.
O gênero consolida-se como uma escola para novos realizado-
res da sétima arte, que buscavam inspirações e experiências ar-
tísticas para suas carreiras, a Boca do Lixo entra para o mapa da
produção cinematográfica brasileira. A Boca foi um espaço em São
Paulo que reunia cineastas para produção de filmes populares e as-
sim definido por Rubens Ewald Filho:

Como diria a canção do musical Camelot, por “a brief shining


moment”, o cinema paulista brilhou sem ajuda de órgãos go-
vernamentais, trabalhando com auto-suficiência e eficiên-
cia, com fitas que se pagavam e davam lucro. E que o nosso
público adorava. Ao contrário da Vera Cruz dos anos 50, não
era sofisticado, nem pretendia ser a Hollywood brasileira.
Era modesto, assumia-se como o Cinema da Boca. Do Lixo,
se quiserem, mas da antiga Boca de Cinema e prostituição,
que, por ironia do destino, conviviam no mesmo quadrilátero
(STERNHEIM, 2005, p.10).
Começando a despir

Influenciada pelas comédias populares italianas da década de


1960, em especial aquelas de tom erótico, a pornochanchada ex-
245
plorava os mais variados temas, desde a virgindade, o adultério, a
conquista amorosa, a violência e até mesmo os dramas pessoais e
sociais. Realizadas com baixos recursos técnicos e com uma tecno-
logia inferior àquela que vinha sendo utilizada no cinema da época,
as narrativas da pornochanchada eram mal finalizadas, estetica-
mente pobres e com grande apelo sexual, foram classificadas por
setores conservadores da sociedade como uma afronta aos bons
costumes, uma degradação moral. Neste contexto, os seus reali-
zadores buscavam caminhos para burlar os censores da ditadura,
como, por exemplo, utilizar planos que mais sugeriam do que mos-
travam a nudez, bem como a limitação de poucos minutos de cenas
de sexo em suas narrativas.
A pornochanchada surge em um contexto cinematográfico dife-
rente do Cinema Novo, uma escola artística formada por realizadores
de classe média intelectual e engajada com os temas sociais. O Cine-
ma Novo objetivava criar uma estética cinematográfica própria e que
refletisse a identidade cultural brasileira. (SIMONARD, 2006, p.115).
O Cinema Novo supostamente constrói um posicionamento
crítico ao sistema governamental e à situação socioeconômica da
época, onde os intelectuais e artistas da época engajaram-se em
sua transformação social (FIGUEIRÔA, 2004, p.17), enquanto a por-
nochanchada trata dos temas populares e aproxima-se mais dos
anseios do público, ainda que por meio de uma linguagem cinema-
tográfica simplória. Importante pontuar que o Cinema Novo recebia
apoio estatal para suas realizações por meio da Embrafilme, um ór-
gão da ditadura militar, ou seja, afirmava realizar uma crítica ao sis-
tema vigente sob a tutela e patrocínio financeiro do mesmo Estado
responsável pelo subdesenvolvimento do país, o qual condenavam.
O declínio da pornochanchada acontece em um momento em
que filmes pornográficos estrangeiros conseguem entrar no merca-
do brasileiro, além do esgotamento estético e industrial da porno-
chanchada, bem como a crise econômica que se agravou no país e
diminuiu gradativamente o público nas salas de cinema.

Sexo censurado
O sexo e a sexualidade na mídia nacional dos anos de 1970 fo-
ram controlados pelos censores da ditadura: cenas de sexo explí-
cito no cinema só foram permitidas no Brasil após 1981, quando se
iniciou o processo de abertura política. Para Sales Filho (1995, p.68)
“o Estado autoritário, considerando que as atividades culturais se
Parte 2

246
relacionavam intrinsecamente à ideologia da Segurança Nacional,
procurou interferir diretamente na produção cultural”, sendo assim,
os filmes eróticos da pornochanchada exibidos nos anos de 1970,
que se mesclavam com vários outros gêneros, desde os dramas até
as comédias, não mostravam na tela o ato sexual.
Os grandes sucessos de bilheteria desse período possuem ce-
nas que insinuam atos sexuais, onde o espectador pode imaginar,
mas não os assiste, ou seja, a sensualidade na pornochanchada era
sugerida, não era exposta. Em A dama da zona não é diferente, as
cenas com nudez ou insinuações de atos sexuais são poucas, ape-
sar de o tema principal do filme ser a prostituição.

Os filmes dos anos 70 agrupados sob essa denominação não


eram, de fato, filmes pornográficos, uma vez que os atores en-
volvidos não praticavam sexo em cena. Na verdade, o conte-
údo das obras costumava ser mesmo bem mais leve do que
levavam a supor os títulos e os cartazes promocionais. Na
maior parte das vezes, o conteúdo sexual dos filmes, ainda
que pudesse apresentar doses generosas de exposição de
corpos nus, era bastante inocente, limitando-se à criação de
piadas de duplo sentido e trocadilhos picantes, em nada se-
melhantes aos filmes estrangeiros de sexo explícito (KESS-
LER, 2009, p.15-16).

Foram filmes produzidos com uma grande carga erótica, mas


que se vendiam, por meio dos títulos e cartazes, como mais sexuais
do que de fato eram. O público da pornochanchada, em sua maioria
homens, ia ao cinema em busca de cenas de sexo e nudez. Para
Kessler (2009, p.17) os filmes eram “assumidamente voltados ao pú-
blico masculino”, a pornochanchada representava “tipos femininos
para todos os gostos: virgens, viúvas, mulheres experientes, quase
sempre belas e desinibidas”. Quanto mais atraente fosse o título e o
cartaz, maior a bilheteria do filme.
Os títulos dos filmes remetiam ao erotismo, também eram co-
muns os trocadilhos e frases com duplo sentido, como por exemplo
Efigênia dá tudo o que tem (1975), do diretor Olivier Perroy, A noite
das fêmeas (1976) e O clube das infiéis (1974) de Marcos Rey, Como
era boa nossa empregada (1973) dos diretores Ismar Porto e Victor
di Mello, entre tantos outros.
Outro apelo com conotação sexual eram os cartazes dos filmes,
Começando a despir

sempre com mulheres em poses eróticas; o cartaz do filme A dama


da zona exibe a personagem Esmeralda (atriz Marlene Silva) e suge-
re que o espectador irá encontrar cenas de sexo e nudez (Figura 1).

247
Figura 1: Cartaz do filme A Dama da Zona.
Fonte:Pinterest[https://www.pinterest.com/pin/369717450635079556/]
Acesso em 12.nov.2015.

Apesar do cartaz sugerir cenas com sexo, o espectador não vê


nenhuma cena com este teor no filme de 84 minutos: dentre as ce-
nas erotizadas, três insinuam o ato sexual, mas em todas elas o per-
sonagem masculino está com alguma parte do vestuário, cueca ou
mesmo calças; uma outra cena insinua sexo oral, mas também não
é mostrado, muitas cenas exibem os seios das personagens; há ape-
nas um nu frontal feminino, é uma cena onírica, a imaginação de
um personagem. A insinuação, ao invés da revelação do ato sexual,
constitui a concepção erótica da pornochanchada.
Os títulos e os cartazes dos filmes de pornochanchada conti-
nham forte apelo sexual para atrair o público, era preciso estimular
a imaginação do espectador para que ele fosse ao cinema.
Parte 2

248
Outro ponto comum entre os filmes de pornochanchada é o hu-
mor inserido nas cenas eróticas: as cenas de sexo são amenizadas
com o riso em A dama da zona. As cenas em que há o erotismo são
interrompidas por alguma situação cômica: o sexo oral acaba em
uma mordida; nos sonhos de Fernão com Esmeralda, em todas as
tentativas de aproximação física com ela, sua mulher, Encarnação,
é quem aparece para lhe tocar em outra cena que há insinuação do
ato sexual, a mãe da personagem está no mesmo ambiente assis-
tindo à televisão. A comédia, impregnada nos filmes de pornochan-
chada, visava contornar os censores da ditadura, então o humor foi
uma maneira encontrada para amenizar as cenas de sexo e conse-
guir que o filme fosse exibido nos cinemas.

Ody Fraga e o pensamento crítico


No documentário Boca do Lixo: a Bollywood brasileira (2011), di-
rigido por Daniel Camargo, o diretor cinematográfico Guilherme de
Almeida Prado afirma que “Ody Fraga era um intelectual da boca”,
mas essa percepção não era exclusiva de Prado, Antonio Meliande,
diretor de fotografia e diretor cinematográfico, reforça que “todo fil-
me erótico dele sempre tinha uma crítica”, a atriz Nicole Puzzi con-
corda, ela atuou em vários filmes de Fraga e destaca uma de suas
atuações: “Ody colocou uma cena minha que eu morria enforcada,
era uma referência aos mortos no porão da ditadura”, e continua
“ele estava na Boca por opção. Ele foi professor, trabalhou na TV Cul-
tura, estava na Boca por opção dele”.
Ody Fraga começou sua carreira no cinema como roteirista em
1960, seu primeiro filme como diretor foi iniciado em 1962 e concluí-
do em 1967, nos 20 anos seguintes, Fraga lançaria dezenas de filmes
produzidos na Boca do Lixo e assinaria o roteiro de outras dezenas.
Considerado um homem culto por seus colegas de profissão, Fraga
inseria em seus filmes produzidos na Boca do Lixo, além de cenas
convencionais de pornochanchada, críticas à sociedade.

(...) os registros a respeito do Cinema da Boca, em sua maio-


ria, insistem em expor essa fase de forma depreciativa, com
sarcasmo. Volta e meia batem nessa tecla de vulgarização,
de um cinema apenas voltado para o mercado consumidor.
Essa preocupação existia, afinal os cineastas sobreviviam,
Começando a despir

em sua maioria, do próprio cinema. Esse lado comercial não


invalida, porém, a sua importância para a própria existência
da indústria cinematográfica brasileira em uma época nada

249
fácil para o país e em especial para a sua criação artística
(STERNHEIM, 2005, p.14).

Em A dama da zona, Fraga satiriza o Cinema Novo, insere uma


prostituta empoderada no centro da trama e debate a pobreza com
temas que a cercam: falta de moradia, alimentação, mortalidade in-
fantil e a violência contra a mulher. O Cinema Novo é representado
por dois jovens que aparecem na comunidade pobre com “uma câ-
mera na mão e uma ideia na cabeça”, os personagens são extrema-
mente insensíveis com a pobreza e beiram a burrice; Esmeralda, a
prostituta central da trama, é uma mulher forte, independente e soli-
dária. Mas a crítica mais forte de Fraga fica no núcleo familiar com-
posto por mãe, pai e filho que tentam sobreviver em meio à pobreza.

A prostituta e a mãe
Para fins de análise, este texto irá deter sua atenção em duas
personagens da trama: Esmeralda, a prostituta, e Juliana, a mãe. Es-
meralda é uma mulher forte, independente, solidária e prostituta,
ela é a protagonista em A dama da zona. Juliana é uma mulher frá-
gil, pobre, casada, com um filho recém-nascido, que luta para sobre-
viver, ela é uma das personagens secundárias do filme de Fraga. Da
protagonista ao núcleo adjacente, todas as cenas do filme colocam
em evidência uma mulher. São mulheres criadas por Ody Fraga, um
homem, para que sejam vistas no cinema outros homens.
A função cumprida pelos meios de comunicação, em especial o
cinema, como meios que reproduzem uma série de representações
sociais, legitimam identidades e reiteram pontos de vista ideoló-
gicos a respeito dos mais variados temas. Os meios de comunica-
ção tornam-se instrumentos estruturantes da ideologia que contri-
buem para uma lógica de dominação:

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de co-


municação e de conhecimento que os sistemas simbólicos
cumprem a sua função política de instrumentos de imposi-
ção ou de legitimação da dominação, que contribuem para
assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência
simbólica) dando reforço da sua própria força às relações de
força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo
a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados
(BOURDIEU, 1998, p.11).

Ody Fraga, sendo um homem, assim como a maioria dos rea-


Parte 2

lizadores da pornochanchada, retrata o feminino a partir da ótica


250
masculina, o que muitas vezes reforça uma perspectiva estereoti-
pada e objetificada das mulheres.

(...) foram os homens os produtores das representações femi-


ninas existentes até hoje, e essas estão diretamente associa-
das às formas de a atual mulher ser, agir e se comportar. O
que se discute é o fato de a mulher contemporânea buscar
se enquadrar em uma imagem projetada de mulher que, na
verdade, é aquela que eles gostariam que ela fosse, a partir de
representações femininas cunhadas pelos meios de comuni-
cação e, principalmente, pelo cinema. São atitudes e compor-
tamentos balizados por imagens amplamente divulgadas no
cinema e que serviram e servem de modelo a todas as mulhe-
res. O que a teoria feminista do cinema procura demonstrar é
que esses estereótipos impostos à mulher, através da mídia,
funcionam como uma forma de opressão, pois, ao mesmo
tempo que a transformam em objeto (principalmente quando
endereçadas às audiências masculinas), a anulam como su-
jeito e recalcam seu papel social (GUBERNIKOFF, 2009, p.67).

A mulher no contexto de produção fílmica é portadora de signi-


ficado, mas não produtora de significados sobre o mundo e sobre si.
Os significados que constituem a representação feminina no cine-
ma, e em especial na pornochanchada, são construções simbólicas
construídas pelo homem e para o homem, a mulher está nas ima-
gens do cinema para ser olhada, representada através da lógica da
objetificação, perspectiva que influencia desde a posição da câmera
para representar o corpo feminino até a maneira como as perso-
nagens ocupam seus espaços nas narrativas. (KAPLAN, 1995, p.46).
As cenas em que o personagem interpretado pelo ator e humo-
rista Canarinho espia Esmeralda no banho mostram, mais uma vez,
o corpo da mulher fetichizado, reforçando a ideia de que o desejo
masculino deve ser guiado através de seu ímpeto voyeurista, já que
“nossa cultura difundiu a ideia de que o corpo da mulher é um espe-
táculo a ser olhado.” (GUBERNIKOFF, 2009, p.72).
O voyeurismo no filme A dama da zona é uma expressão mas-
culina de objetificação da mulher, a personagem e seu corpo estão
na tela para serem olhados, admirados e fetichizados como o local
onde reside o desejo do homem.

O voyeurismo está ligado ao instinto escopofílico (o prazer


Começando a despir

masculino de transferir o prazer de seu próprio órgão sexual


para o prazer de ver outras pessoas fazendo sexo). A crítica
assegura que o cinema baseia-se neste instinto, fazendo do
espectador basicamente um voyeur (KAPLAN, 1995, p.53).
251
A posição da câmera em A dama da zona é o ponto de vista do
personagem Canarinho, ele observa Esmeralda e outras mulheres
no banho por meio de uma abertura no teto do banheiro, o especta-
dor pode ver o que o personagem vê.

Figura 2: Canarinho observa Esmeralda no banho


Fonte: Frames de A Dama da Zona

O corpo de Esmeralda é erotizado, no entanto, ela não é uma


personagem impotente e passiva, pelo contrário, Esmeralda é uma
mulher forte, protagonista da história e referência social para a co-
munidade onde vive, guardando em si o capital simbólico e social
que a exibe como uma mulher empoderada, no entanto, ela perma-
nece retratada como objeto da fetichização e do desejo masculino.
Esmeralda revela-se uma personagem complexa, representada
de maneira ambígua na narrativa: se por um lado ela é a protago-
nista livre, independente e forte, por outro lado ela é objeto e está na
trama para servir aos homens, como prostituta na trama do filme e
como fetiche do olhar masculino na sala de cinema.
Moscovici (2007, p.207) aponta que a representação social se re-
fere a “uma série de proposições que possibilita que coisas ou pes-
soas sejam classificadas, que seus caracteres sejam descritos, seus
sentimentos e ações sejam explicados”. Pode-se entender a repre-
sentação social sobre um objeto ou assunto como uma polifonia de
significados que guarda em si pontos de vista simbólicos ligados à
ideologias, preconceitos e perspectivas sobre o cotidiano. Tais pers-
pectivas, em tempos de crise ou transformação social, tornam-se
ainda mais evidentes e abrem espaço para a elaboração de novas
formas simbólicas e representações sociais, pois os cenários, que
se apresentam como novos, requerem novas representações para
explicar o momento em que a sociedade vive:

(...) o caráter das representações sociais é revelado especial-


mente em tempos de crise e insurreição, quando um grupo,
ou suas imagens, está passando por mudanças. As pessoas
estão, então, mais dispostas a falar, as imagens e expres-
sões são mais vivas, as memórias coletivas são excitadas e
Parte 2

252
o comportamento se torna mais espontâneo. Os indivíduos
são motivados por seu desejo de entender um mundo cada
vez mais não-familiar e perturbado (MOSCOVICI, 2007, p.91).

A ambiguidade na maneira como Esmeralda é retratada na nar-


rativa reflete as contradições presentes na sociedade, uma vez que
o período sócio-histórico em que o filme está inserido configura-se
como uma época pautada pela modernização dos costumes e valo-
res, mas ao mesmo tempo, ainda está presente na sociedade traços
de conservadorismo.

Figura 3: Esmeralda, a prostituta


Fonte: Frames de A Dama da Zona

A manutenção dos valores conservadores também estão pre-


sentes na vida de Juliana. Ela é pobre, casada, dona-de-casa e mãe
de um filho recém-nascido, ela não tem dinheiro suficiente para
comer, tampouco para o aluguel. Juliana recorre frequentemente à
ajuda de Esmeralda para alimentar o filho.
A trama atinge seu clímax quando o filho de Juliana morre, esse
ponto marca também a mudança da personagem. Ela deixa de de-
sempenhar o papel de mãe e assume a gravidade de sua condição
social, uma vez que se tivesse uma melhor situação econômica po-
deria ter evitado a morte do filho. Nesse momento, Juliana decide
lutar contra as dificuldades financeiras e entra no mundo da prosti-
tuição, ela pede à Esmeralda que “a ensine a ser puta”.
Há uma transformação da personagem, ela migra da figura ide-
alizada da mãe para se tornar prostituta. A mãe é frequentemente
representada como um ser quase que mitológico, como um símbo-
lo que reitera a visão patriarcal: “O patriarcado vem representando
a mãe como fora do âmbito da sexualidade e, portanto, se quiser-
mos uma determinada definição, não-ameaçadora para o homem”.
(KAPLAN, 1995, p.84).
Começando a despir

A transição de mãe para prostituta é a passagem de um ser


não sexualizado e idealizado, por meio de um estereótipo que o
mostra desprovido de qualquer tipo de desejo, para um persona-

253
gem sexualizado e moralmente inaceitável, já que Juliana é ca-
sada. A passividade está presente na personagem até o ponto de
virada, Juliana acata todas as ordens de seu marido até a morte de
seu filho, mas ela deixa de ser passiva: além de prostituta, Juliana
nega sexo ao seu marido.
É Juliana quem passa a sustentar o marido e não o contrário.
Ou seja, a relação conjugal entre eles passa a se configurar em uma
lógica não tradicional, na qual o homem torna-se um ser passivo e
recluso ao lar, enquanto a mulher torna-se o elemento ativo, ela pro-
move o sustento da casa e da família, o que denota uma tentativa de
representar os papéis sociais ligados ao masculino e ao feminino
em um sentido inverso.
Juliana torna-se assim uma ameaça à honra masculina e ao
ego de seu companheiro, sob essa perspectiva, ela deve ser puni-
da: “a sexualidade feminina aqui é expressa na sua totalidade, mas
a traição e a duplicidade sexual femininas a veem como maligna,
dando ao homem o direito moral de destruí-la, mesmo que tal des-
truição signifique privar-se de um prazer muito necessário para ele.”
(KAPLAN, 1995, p.23).
O fim de Juliana é trágico: durante um baile na comunidade ela
é assassinada a facadas pelo marido, que havia descoberto suas ati-
vidades como prostituta. O crime acontece no meio do salão, em
frente a todas as pessoas. No cinema, o assassino não é punido, nin-
guém tenta detê-lo, tampouco vê-se a presença da polícia.

Figura 4: Juliana, a mãe


Fonte: Frames de A Dama da Zona

A tragédia de Juliana poderia ser apenas um reflexo da vida


real: nos anos 1970, os crimes contra mulheres não eram punidos
no Brasil1; talvez seja um alerta para as mulheres que transgridem

1
Em 1979, mesmo ano de lançamento do filme A dama da zona, acontece a primeira conde-
nação no Brasil de um homem que matou sua companheira: Doca Street assassinou Ângela
Diniz em 1976, após o fim do relacionamento. Em um primeiro momento, Doca foi absolvido,
diversos movimentos surgiram em protesto a absolvição, o primeiro julgamento foi cancelado
Parte 2

e Doca foi condenado a 15 anos de prisão. (OAB-SP).

254
as regras do patriarcado; ou então é uma crítica de Ody Fraga aos
excessivos assassinatos de mulheres nesse período.
No final da década de 1970 emergia no Brasil a segunda onda
do feminismo, o assassinato de mulheres por parte dos seus com-
panheiros passou a ser questionado como ilegítimo: com o assas-
sinato de Ângela Diniz, o movimento feminista ganhou visibili-
dade na mídia e deu início a campanha “Quem ama, não mata”, o
título da campanha virou título de minissérie da Rede Globo de
Comunicação em 1982.
Sendo Ody Fraga um cineasta crítico da sociedade, de modo
algum a inserção de uma cena de assassinato em seu filme de por-
nochanchada seria eventual, além disso, seu público era predomi-
nantemente masculino, que, como já foi destacado, ia ao cinema
em busca de cenas de sexo e nudez, jamais em busca de tragédia.
A inserção do assassinato de Juliana, no mínimo, evoca para que o
público pense a respeito das mortes.

Considerações Finais
A representação feminina de Esmeralda é dupla, uma perso-
nagem independente, dona de si e transgressora das representa-
ções tradicionais, mas ela é uma prostituta, e por isso, altamente
sexualizada. Se por um lado é possível notar um questionamento
do sistema vigente na personagem Esmeralda e sua representa-
ção está profundamente ligada a liberação sexual feminina, por
outro lado, a personagem continua sendo objeto para satisfazer o
desejo masculino.
Ao contrário de Esmeralda, cuja personagem inicia e termina o
filme sendo uma prostituta, Juliana passa por transformações pro-
fundas na tela, de uma representação quase sacra a alguém que, ob-
servado pela ótica do patriarcado, merece a morte. Simbolicamen-
te, o assassinato de Juliana é necessário para que seja retomada a
honra masculina: ela, esposa, transforma-se em um ser sexual para
outros homens, por isso torna-se uma ameaça à honra e aos valores
de seu marido.
Neste contexto, o filme de Ody Fraga assume um viés crítico
ao questionar a realidade social de sua época, já que se propõe a
discutir no âmbito cinematográfico não somente as mazelas so-
Começando a despir

ciais do período, como a pobreza, a degradação dos espaços urba-


nos, os problemas de saúde pública e a falta de infraestrutura da
sociedade para fornecer qualidade de vida à população, mas age
também em uma tentativa de desconstruir, ou ao menos, debater
255
estereótipos e questões de gênero, temas de extrema importância
para o contexto social, principalmente se observados os índices
de violência contra a mulher e a banalidade como a questão era
tratada na década de 1970.
A pornochanchada foi percebida pelo senso comum como uma
ferramenta de entretenimento no período da ditadura, mas ela está
além disso e, por meio de diretores, como Ody Fraga, debate questões
socioculturais e atua com um posicionamento crítico, ainda que o
realize por meio de filmes de baixo orçamento e roteiros pobres.
Os filmes de pornochanchada constroem uma estética cinema-
tográfica feita das camadas populares para, principalmente, as cama-
das populares, representando diversas questões, dentre elas o gênero
feminino, de maneira a refletir as contradições presentes na própria
sociedade, uma vez que esta passava por um momento de transição
de valores conservadores para uma liberação sexual e moral.
Ody Fraga pode ser caracterizado como um diretor único na
pornochanchada. Considerado como o “intelectual da Boca do Lixo”
por diversos diretores, roteiristas, atores e profissionais que com-
partilharam o cotidiano de produção cinematográfica, Fraga tra-
balhou incansavelmente de 1960 a 1982, realizando vinte e cinco
filmes como diretor e cinquenta como roteirista, além de dezenas
de outros trabalhos para a televisão.
A maneira crua como Ody Fraga enxergava o cotidiano é um fato
marcante que denota o esforço em mostrar uma realidade plena em
suas vicissitudes. Sob sua maestria como diretor, Fraga utilizou os
meios que lhe eram permitidos, dados os parcos recursos que dis-
punha, para capturar uma realidade que era muito familiar aos inte-
grantes do universo cinematográfico da Boca do Lixo, assim, expôs
com veracidade diversos problemas sociais e ao mesmo tempo utili-
zou do humor e do erotismo para fazer um retrato de sua época.
A Dama da Zona, assim como outros filmes de Ody Fraga, foi
uma obra que, além de mostrar a nudez e o sexo, provoca a refle-
xão do espectador. Fraga não esconde os problemas sociais, mas
também não oferece nenhuma solução para salvar Juliana, ele opta
pelo seu assassinato e reitera o cinema como um espaço que se
apropria dos valores vigentes na sociedade e os exibe na tela.
Parte 2

256
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Começando a despir

257
Filmografia
A dama da zona. Dir. Ody Fraga. Brasil: Kinema Filmes; Titanus Fil-
mes, 1979. VHS (85 min.), color, sem legenda, Port.
Boca do lixo: a Bollywood brasileira. Dir. Daniel Camargo. Brasil: Co-
malt, 2011. DVD (127 min.), color, sem legenda, Port.
Parte 2

258
Annelize Pires A REPRESENTAÇÃO DA TRAVESTI NA
PORNOCHANCHADA: “NOVAS SACANAGENS DO
‘O VICIADO EM C’”

No processo histórico, a sociedade seleciona


e naturaliza os modelos culturais que devem ser
admitidos como parâmetros de normalidade. Por
mais que se reitere que cada indivíduo usufrui de
ampla liberdade para interpretar as normas e os
padrões sociais, a opção possível para se adequar
ao momento cultural constitui-se na incorporação
dos valores propostos coletivamente, tornando-se
personagens ‘desviantes’ aqueles que ousam fugir
às orientações grupais (CUCHE, 2002, p. 145).
Nesse processo, afloram as coletividades que,
rotuladas como ‘minorias’, confrontam-se com os
valores hegemônicos, destacando-se dentre elas
o grupo dos transgêneros, designação ampla e
que abarca os indivíduos travestis, as e os transe-
xuais e todos aqueles que não se identificam com
a naturalização e normatização social do corpo
biológico como princípio de definição do gênero.
Apesar de todas as discussões sobre os direitos in-
dividuais, persiste a noção segundo a qual os apa-
relhos genital e reprodutor constituem-se nos ele-
mentos do enquadramento no binômio homem/
mulher e, a partir disso, na definição dos papéis
sociais que obrigatoriamente devem ser endos-
sados por cada sujeito social. A cultura mostra-
se como geradora de ideias estereotipadas sobre
experiências e orientações sexuais que recusam
o modelo aceito pelos donos do poder. Com isso,
tornou-se regra que, quem se afasta das atitudes
preconizadas, “vira anormal, receberá este status
e deverá pagar as sanções” (FOUCAULT, 2014, p. 8).
Espelhando as tendências dominantes, a mí-
dia empenha-se em retratar e reproduzir o que

259
é aceito como saudável pelo corpo social, enfatizando em suas
narrativas os modelos de ‘viver a vida’ tidos como positivos e, em
sentido oposto, caricaturizando e frequentemente condenando
as identidades avaliadas como corrompidas (LOPES, 2004, p. 114).
Nessa operação, é corriqueiro o reforço midiático – tanto nos pro-
dutos jornalísticos quanto nos ficcionais – de versões que contri-
buem para a propagação dos preconceitos e dos estereótipos em
relação às minorias.
A partir desse cenário, o objetivo deste texto é analisar como a
travesti é focada no universo cinematográfico, adotando-se como
estudo de caso a personagem Esmeralda, uma travesti do filme
“Novas sacanagens do ‘O viciado em C”, lançado em 1985 e dirigido
por David Cardoso, que apresenta-se como continuação de “O vi-
ciado em C”, do mesmo diretor e lançado em 1984. A opção pelo es-
tudo deste filme deve-se não só ao fato de estar inserido no gênero
da pornochanchada – ele próprio considerado por parte da socie-
dade como algo aberrante –, mas também por ser levado ao público
em um momento vital da história brasileira, pautado pelo fim da
ditadura militar e pelo reestabelecimento da democracia, período
no qual ganhou intensidade maior os movimentos reivindicadores
dos direitos das minorias.
Antes, porém, de analisar a produção fílmica, algumas ques-
tões precisam ser elucidadas, sendo elas o próprio enquadra-
mento da travesti no amplo cenário da cultura e, na sequência,
os caminhos adotados pelo cinema no enfoque da sexualidade e
identidade de gênero.

A travesti na trama ditatorial


As denominadas “minorias sexuais” foram e continuam sendo
alvos de julgamentos e estereotipações que as têm historicamente
relegado, no âmbito do imaginário social, às posições hierárquicas
inferiores em relação aos agrupamentos considerados “normais”.
Isto implica inclusive na identificação de tais comunidades como
núcleos compostos por indivíduos doentes e que obrigatoriamente
careciam de intervenção médica. Para Louro (2001, p.541), “hoje, as
chamadas ‘minorias’ sexuais estão muito mais visíveis e, conse-
quentemente, torna-se mais explícita e acirrada a luta entre elas e os
grupos conservadores”, gerando uma indisfarçável inquietação para
os indivíduos participantes dos grupos considerados “diferentes”.
Resultado da intensa desqualificação apoiada em uma ver-
Parte 2

são biológica da sociedade, já no século XIX a cultura ocidental


260
arquitetou estratégias para a solução dos dilemas representados
pelos desviantes:

A solução de questões sociais e históricas era vista como


uma espécie de profilaxia que responderia à questão: por que
tantos indivíduos caíam no crime, no álcool, prostituíam-se
ou desenvolviam outras formas de comportamento conside-
radas doentias, mas cujo tratamento ainda não fora desco-
berto? A resposta mais comum era a de que esses indivíduos
problemáticos não eram como a maioria. A solução dos pro-
blemas passava pela classificação de cada forma de anorma-
lidade, ou seja, o enquadramento de cada um em seu desvio.
(MISKOLCI, 2005, p. 10)

Apesar da significativa renovação dos valores sociais no ulti-


mo século, somada à crescente representatividade que os grupos
minoritários veem conquistando, ainda é inegável as dificuldades
do tecido social em conviver com a diferença e com os “diferen-
tes”. As falas que dão visibilidade às estratégias engendradas pelo
biopoder expõem interpretações e representações negativas que
são pontualmente incorporadas nos discursos políticos, eviden-
ciando a persistência de atitudes contrárias à simples existência
de indivíduos que se afastam dos critérios de normalidade insti-
tuídos pela malha cultural.
Ao não se identificarem com o gênero que lhes foi designado
biologicamente ao nascer, as travestis são relegadas a um território
condenado e condenável da vida social. Frente a isto e apesar de to-
das as censuras e violências, as travestis têm se empenhado em en-
tenderem suas próprias tramas de vida e de se autorepresentarem
perante o corpo social.É a partir desse processo que ganham realce
os confrontos entre indivíduo e sociedade e entre os comportamen-
tos tidos como anormal e normal que se define a identidade travesti.
Ao buscar maneiras próprias de ser e viver, tal personagem so-
cial adota valores comportamentais específicos, podendo ou não
vestir-se e portar-se de acordo com o gênero com o qual se iden-
tifica. Além disso, sente-se livre o suficiente para se submeter a ci-
rurgias e demais procedimentos estéticos, tratamentos hormonais,
implante ou retirada das mamas. As possíveis transformações cor-
porais são insufladas pela combinação de sentimentos e vontades
Começando a despir

próprias, isto é, pela subjetividade da travesti, com modelos propos-


tos pela própria comunidade estigmatizada, resultando deste con-
junto de operações a identidade travesti.

261
A travesti transita entre os gêneros, utilizando-se das caracte-
rísticas de cada um deles para que possa se representar.

A travesti é uma identidade brasileira (KULICK, 1998) em ge-


ral de indivíduos pertencentes às nossas classes populares
e que, portanto, comungam de valores morais, éticos e esté-
ticos sobre gênero e sexualidade característicos de uma so-
ciedade pós-escravista em que o binarismo e a dominação
masculina são tão arraigados quanto persistentes. Além dis-
so, as intervenções radicais e definitivas que fazem em seus
corpos as distanciam de outras experiências semelhantes.
As travestis, diferentemente das drags-queens, não vivem
personagens, ainda que, como aquelas, denunciem (mes-
mo que sem uma intencionalidade) que o gênero é sempre
construção e aprendizado. E ainda há, como também obser-
vou Kulick, uma grande centralidade da sexualidade como
marcadora da experiência travesti. Esforçam-se, assim, na
construção de toda uma engenharia erótica (DENIZART, 1997),
capaz de dar visibilidade a atributos associados ao femini-
no. Ainda que desestabilizem o binarismo de sexo/gênero, as
travestis, paradoxalmente, o reforçam em seus discursos e
ações. (MISKOLCI; PELUCIO, 2007, p. 262-263)

A sociedade brasileira no período da ditadura instaurada em


1964 mostrava-se refém do medo em relação aos subversivos, ter-
mo amplo e aplicado não só aos opositores políticos ao regime, mas
também a todos aqueles que não se enquadravam nos modelos de-
fendidos pelos generais-presidentes e seus apaniguados. Em resul-
tado, os personagens que fugiam aos padrões preconizados pelas
“autoridades” tornavam-se vítimas potenciais de tratamentos sim-
bólicos desqualificadores que, com frequência, tinham continuida-
de com a prática da violência física contra os “desviantes”.
No dicionário Unesp do Português Contemporâneo (2004, p.
1317), o termo “subversivo” recebe a seguinte definição:

1 Que pretende transformar a ordem política, social e econômi-


ca estabelecida; revolucionário. 2 Que provoca transformações
radicais; que subverte 3 profundamente diferente do conven-
cional; marginal 4 anárquico; perturbador Sm 5 quem pretende
transformar a ordem política, social e econômica estabelecida

Em suma, subversivo era inclusive o indivíduo que não se


identificava com as convenções sociais estabelecidas, vivendo de
acordo com preferências e ideias do grupo minoritário com o qual
Parte 2

se identificava. No Brasil, a ditadura militar firmou regras restritas


262
para a vida coletiva e muitas pessoas foram acusadas de subver-
são, por fugirem ao que era estabelecido e por irem contra o que as
instituições com maior poder estipulavam. Assim, o governo aos
poucos foi fechando cada vez mais o cerco à liberdade de expres-
são individual, tornando a sociedade quase como uma fábrica de
homogeneização social. Nesse contexto, identidades e orientações
pessoais, como a homossexualidade, o feminismo e ser travesti
eram consideradas perigosas e, em consequência, não deveriam
ser expostas aos “cidadãos de bem”.
Um dos significados de subversivo é “marginal”, algo que deve
ser separado e excluído daqueles que se adequam as regras vigentes.
Pode-se traçar aqui um paralelo com o que Leite Júnior (2011), dis-
corre em seu livro sobre os sujeitos considerados “desviantes sexu-
ais”, os quais foram automaticamente definidos como pessoas que
viveriam de excessos e “desvios” e, portanto, tipos humanos “ruins”,
já que de “índole duvidosa” e ameaçadores aos “bons costumes”.
Neste curso, acusar alguém de “subversivo” tornou-se uma ten-
tativa de punir e humilhar o outro, de tentar fazê-lo desejar ser igual
aos indivíduos que eram considerados respeitáveis membros da
sociedade. A tentativa de estabelecimento de uma rígida padroni-
zação social, típica dos regimes ditatoriais, resultou na fixação de
um modelo de identidade à qual todos deveriam se encaixar para
usufruir de prestígio frente a seus iguais e, mais do que isso, viver
a experiência de pertencimento a um “país que vai para a frente”,
como propagandeava um conhecido slogan ditatorial.

Pornochanchada e sexualidade
As produções cinematográficas permitem que o público entre
em contato com formas culturais diversas, aflorando a um só tem-
po como uma experiência estética e uma reflexão sobre um deter-
minado tema. Por mais que a pornochanchada tenha sido desqua-
lificada, inclusive na esfera acadêmica, como um gênero fílmico
que pode contribuir para o (re) pensar da sociedade. Em anos mais
recentes, as reavaliações geradas no seio da própria academia,
ainda que tímidas, têm assumido que a pornochanchada atuou
com intensidade inusitada na disseminação de representações do
sexo e da sexualidade; espelhando e contribuindo para os deba-
Começando a despir

tes travados em um momento cultural pautado pela atuação dos


movimentos sociais e nas ansiedades alimentadas pela contra-
cultura, incluindo nesta última a “revolução sexual à brasileira” e
a questão das “minorias sexuais”, colocando em destaque, sob o
263
manto do humor, situações embasadas em orgias, traições, bi e
homossexualidade (Gerace, 2015, p.140).
Neste sentido, é possível afirmar:

Rotulada como despolitizadora, o meio acadêmico em ge-


ral sustenta que este gênero foi incentivado pelo governo,
tendo recebido subvenção da Embrafilme, porque desviava
a atenção da sociedade dos desmandos e das perseguições
políticas mostrados pelos grandes diretores do ‘autêntico’
cinema brasileiro. Por outro lado, a Pornochanchada tam-
bém refletiu o estouro sexual que a década de 1970 presen-
ciou, sofrendo o impacto, entre outras coisas, da pílula anti-
concepcional e do movimento feminista. Grande parte dos
espectadores era constituída por homens, das mais diferen-
tes idades, raças e origens. (FREITAS, 2004, p. 5)

Por mais que parte dos críticos persista em pontificar que este
gênero apenas expressava assuntos relativos à sexualidade para
saciar os anseios das camadas subalternas, é possível perceber que
por trás da esfera caricata e da baixa qualidade cinematográfica
eram abarcados temas que poucos cineastas tinham coragem de
expor e, mais ainda, de retratar de forma não corriqueiros. Nesse
encaminhamento, as pornochanchadas unem padrões e conceitos
tradicionais com outros que fugiam da já conhecida estigmatiza-
ção, discriminação ou de tratamento excludente de indivíduos que
não seguiam os padrões sexuais considerados hegemônicos nos
décadas de 1970 e 1980.
No entanto, o padrão heteronormativo constituiu-se numa
regra de ouro que raramente a pornochanchada ousou romper e,
quando isso foi tentado, na maior parte das situações foi podada
pela censura oficial. Frente a isso, os diretores desses filmes bus-
cavam driblar o olhar censor, incorrendo em formas criativas para
discorrer sobre assuntos e personagens que eram vetados inclusive
nas produções literárias e acadêmicas. Assim, se pesquisas sobre
a sexualidade feminina de prestígio internacional, como o relató-
rio sobre a sexualidade feminina elaborado por Hite (1978) teve sua
primeira edição confiscada pelo governo brasileiro, alguns anos de-
pois, filmes como Um pistoleiro chamado Papaco (1986), apresen-
tavam personagens femininas que disputavam com os homens o
direito ao prazer sexual. Situações como estas permitiram que uma
das principais analistas desse gênero fílmico concluísse que:

Influindo diretamente na produção cinematográfica da épo-


Parte 2

ca, a repressão militar delineou os caminhos da pornochan-

264
chada, pois nem estes filmes conseguiram esquivar-se da
ação fatal da censura. Não uma censura ideológica, como a
que podou a produção mais intelectualizada, mas uma crí-
tica moral, perfeitamente contornável através de artifícios
que tornavam os filmes cada vez mais interessantes, ou que,
radicalizando pelo outro extremo, os rebaixava à estética da
grosseria. (SELIGMAN, 2000, p. 57)

As pornochanchadas são popularmente conhecidas por suas


cenas eróticas e de sexo explícito, no entanto, elas não abarcam
apenas cenas de pessoas tendo relações sexuais. Mostrar o sexo
também era uma forma de retratar identidades individuais e gru-
pais no âmbito de uma sociedade que não podia discutir aberta-
mente temas como a sexualidade, a morte e os grupos desviantes
e que, já na década de 80, estava se abrindo para a redemocrati-
zação. Por isso, algumas avaliações desses filmes seguem a trilha
assumida por Freitas (2004, p. 6), crítico que concluiu: “Em síntese, a
pornochanchada, além de mais realista em se tratando da fauna se-
xual do mundo concreto, não era hipócrita negando o trânsito dos
homens pela sexualidade com outros homens, como se isso fosse
uma coisa muito rara e específica”.
Assim, é possível notar que como Sales Filho (1995, p.69) afirma é:

evidente que a pornochanchada não questiona, não analisa


e não adota uma postura crítica sobre tais aspectos. Apenas
os expõe de forma escancarada, o que a tornou, na expressão
cunhada pelo crítico Jean Claude Bernardet, “o bode expiató-
rio” do que consideramos nossas mazelas culturais.

A pornochanchada exibe para a sociedade tudo o que pode es-


tar contido em suas formas de relacionamento, abrangendo a todos,
desmascarando fachadas e mostrando a multiplicidade identitária,
não importando o que ou quem são; a pornochanchada expõe pre-
conceitos, mas também, demonstra a normalidade da diversidade.
Como Freitas (2004, p. 2) assume em seu texto sobre a visão só-
cio-histórica da pornochanchada em sua época de maior produção
“Até mesmo o machismo, o racismo e outros ‘ismos’ de que são acu-
sadas tais fitas (geralmente com razão) são indícios históricos para
se refletir a mentalidade coletiva da época”. Apesar de não preten-
der-se analisar a parte histórica de um filme e sim as identidades
nele presentes, também nos utilizaremos das ideias de machismo,
Começando a despir

racismo, transfobia, no longa “As novas sacanagens do ‘O viciado


em C’” para entender-se como tais identidades eram reproduzidas e
as temáticas relacionadas.
265
Nesse contexto, a figura da travesti foi apresentada sob lentes
da ambiguidade. Se por um lado, a imagem caricatural do “desvian-
te” que vive do e para o sexo manteve-se constante, predominando
a representação da “bicha louca”, por outro lado alguns enfoques
inovadores foram levados a público, sendo um deles o apresentado
no filme “Novas sacanagens do ‘O viciado em C.”

Novas sacanagens, velhos estigmas


A dupla de personagens centrais de “Novas sacanagens do ‘O vi-
ciado em C” é composta pelo casal Esmeralda e José Carlos. Ambos
se conheceram e vivem no ambiente metropolitano e, no enredo
fílmico, eles se encontram numa minguada cidade interiorana, cujo
nome não é revelado, onde José Carlos se dirige para apresentar
aos pais sua noiva, que é uma travesti.
No filme em questão, é possível se detectar as duas dimen-
sões da identidade como propostas por Cuche (2002), isto é, a au-
to-identidade (a identidade que é reivindicada pela sujeito) e a
hetero-identidade (que é atribuída pelo grupo ao indivíduo). Nesse
encaminhamento, uma das possibilidades de entendimento das re-
presentações da travesti no enredo fílmico é detectar como cada
um dos personagens periféricos avaliou Esmeralda e de como a
travesti reagiu a cada uma das situações em que se viu envolvida.
O primeiro personagem a atribuir predicados à Esmeralda é
José Carlos, seu noivo. Para ele, Esmeralda é seu “amorzinho” e, du-
rante toda a trama, ele a trata como uma mulher e em nenhum mo-
mento se refere à condição da noiva como uma travesti. Mesmo no
momento em que ambos são aprisionados, ele a elogia dizendo que
“isso é que é um homem” quando Esmeralda reage à voz de prisão
feita por um delegado, enquanto que José Carlos se mantém silen-
cioso. A imagem positiva da travesti é corroborada pelos amigos
do noivo que não demonstram julgamentos preconceituosos com
o casal. Na festa de noivado alguns amigos perguntam se ele não
ia “se casar com um homem, quer dizer, uma mulher, quer dizer, um
bicha, um viado?”. Em resposta, José Carlos responde que trocou “a
Pérola pela Esmeralda”, pois a outra passou gonorréia para ele. Ain-
da mais, um dos amigos de José Carlos conhece e se apaixona por
Tina, também travesti, que é apresentada como prima de Esme-
ralda. A partir desse encontro, tal amigo decide “testar” qual ânus
ele prefere: o de uma mulher cisgênero da qual é noivo ou de “um
homem”; após realizar o “teste”, confidencia sua preferência pela
Parte 2

travesti. Em consequência, sua noiva mostra-se zangada por ser


266
trocada pela travesti e, ato contínuo, taxa o amado de “viado”, acres-
centando que em pouco o verá “desmonhecando”.
Na sequência, o pai do noivo, ao espiar pelo buraco da fecha-
dura do banheiro onde Esmeralda se encontra, descobre que a
personagem é uma travesti e demonstra preconceito em relação
à identidade de gênero da moça. Na festa de noivado do filho, o
velho diz para sua esposa que a noiva “é mais para um vira botas”,
convocando-a para comprovar que os genitais de Esmeralda não
são os designados biológica e socialmente para uma mulher. O
pai demonstra cada vez mais irritação ao reiterar o fato da noiva
“ser homem”, dizendo ao filho que ele não pode fazer um “papelão
desses”, e que pretende fazer algo para acabar com “essa safade-
za”, isto é, impedir o casamento. Ele não se conforma com a de-
cisão de José Carlos querer se casar com uma travesti e, por isso,
abdica da condição paterna, dizendo para a esposa que o filho é
somente dela, declarando todo o seu preconceito em relação à
Esmeralda. Acrescenta ainda que o rapaz vai se casar com “um
viado” e que está fazendo os pais desempenharem o papel de pa-
lhaços frente à comunidade.
Respondendo à solicitação do marido, a mãe de José Carlos
também observa a futura nora pelo buraco da fechadura e sua re-
ação é bem diferente à do cônjuge; ao observar o corpo desnudo da
travesti, ela proclama: “é uma moça tão delicada!”. Ao demonstrar
que não alimenta preconceitos em relação à Esmeralda, ela se colo-
ca ao lado do casal, apoiando o filho e aconselhando a noiva a “não
ligar” para os comentários negativos proferidos por outras pessoas.
Ao mesmo tempo, ela responde rispidamente aos comentários do
marido, criticando-o pelo comportamento machista e por abdicar
da condição paterna em relação a José Carlos.
Novas posturas críticas são apresentadas a partir do momen-
to em que o casal solicita que o padre da cidade celebre a união
de ambos. Ao verificar o documento de identidade de Esmeralda,
percebe que o nome civil da noiva foi registrado como Esmeraldo
e, de imediato, avalia como contravenção o pedido realizado pelos
noivos, abrindo frente para novas recriminações. O religioso nega-
se a realizar o casamento entre “dois homens”, pois se consagras-
se a união, estaria indo contra os desígnios divinos. Na sequência,
ele expulsa os noivos do recinto sagrado e, aos gritos, chama a
travesti de “viado”.
Começando a despir

Não satisfeito, o sacerdote dirige-se à chefatura de polícia para


denunciar os infratores, por que, segundo ele, este era seu “dever cí-
vico”. Informa aos policiais que a dupla era comunista e, mais ainda,
267
como o casal chegara à acanhada cidade em companhia de um gru-
po de amigos, conclui que a cidade estava sendo “invadida por co-
munistas”. O delegado diz odiar o termo comunista e pergunta como
eram os comunistas, como eles falam, se são fortes, se referindo aos
comunistas como “aquilo que os russos são”, ao que o padre justifica
“a mulher é homem e eles querem se casar, é um terrível caso de sub-
versão, eles querem acabar com a família, com a tradição, com tudo”.
Frente à situação, o chefe de polícia mostra-se lamuriento; em um
momento que o Brasil inciava o processo de redemocratização, ele
confidencia estar sentindo falta dos “bons tempos da ditadura”, pois
devido à atuação das instituições defensoras dos direitos humanos,
ele não mais podia usar a agressão física como corretivo para o tipo
de infratores que estavam sendo denunciados.
Mediante o destaque conferido às observações das autoridades
religiosa e policial, o enredo fílmico deixa claro ao espectador que
os termos “comunista” e “subversivo” constituíam-se em rótulos que
extrapolavam o horizonte das ideologias políticas e poderiam ser
aplicados a todo tipo de desvio da norma social. E tal como o sa-
cerdote e o delegado, os habitantes da cidadezinha condenam os
infratores; a síntese das apreciações coletivas sobre a identidade
atribuída aos “comunistas” foi colocada na boca de uma fofoqueira
local: acima de tudo eles eram apóstolos da “sem-vergonhice”.
Pelas avaliações e apoios recebidos, o delegado decide dar voz
de prisão ao casal tido como subversivo. Ao tentar colocar em uma
cela o casal, o policial pergunta se o casal era membro do PC (Par-
tido Comunista) e Esmeralda prontamente responde que sim, “sou
do Partido do Cu”, deixando o delegado enfurecido e sem resposta,
o que o faz tornar-se alvo de chacota pelos demais presos. Nesse
instante, entra em cena um advogado que apresenta um habeas
corpus que restitui a liberdade do casal, fato que faz a comunidade
local manifestar-se, exigindo publicamente que os infratores e seus
amigos sejam expulsos da cidade.
Durante todos os entreveros, Esmeralda e José Carlos não per-
dem o humor nem a disposição de se mostrarem apaixonados e, em
resposta à sentença coletiva, decidem regressar ao ambiente me-
tropolitano para então casarem-se. Com esta solução, o filme sob
análise repete o que muitas outras pornochanchadas utilizaram
como pano de fundo: as cidades interioranas constituem-se no ter-
ritório da defesa das tradições e de um padrão moral ultrapassado,
enquanto que as cidades maiores afloram como o reino da liberda-
de, pois a modernidade metropolitana já havia superado o patamar
Parte 2

dos valores tradicionais.


268
As cenas derradeiras do filme são empenhadas em registrar a
resposta que os desviantes oferecem aos seus opositores “caipiras”,
ao mesmo tempo que davam indícios da identidade reivindicada:
para o horror dos interioranos, promoveram uma intensa orgia, ex-
pondo em público seus corpos nus e exercitando suas sexualidades
de todas as maneiras possíveis. Não só Esmeralda e José Carlos
mantém relações sexuais, mas também seus amigos usam o sexo
para atestar sua liberdade de relacionarem-se de formas variadas,
dentre elas a homossexualidade masculina e feminina.

Considerações Finais
Enquanto texto cultural, a pornochanchada, tomando-se como
exemplo o filme “As novas sacanagens do ‘O viciado em C’”, incorpo-
ra a polifonia social, a qual é alimentada por múltiplas subjetivida-
des e interesses grupais. Nesse sentido, a produção cinematográfi-
ca representa a diversidade social e a resistência ao desconhecido
ou pelo menos, abrindo oportunidade para um possível questiona-
mento da normatização historicamente imposto ao corpo social.
Em um período no qual a ditadura chegara ao seu termo e a
censura perdia boa parte de seu ímpeto castrador das produções
culturais, o cinema renovou suas forças para opor-se não só aos
(des) mandos políticos impostos pelos agentes ditatoriais, mas às
suas derivações. O biopoder legitimado pela ditadura, que dentre
outras esferas, empenhava-se em legislar sobre a sexualidade indi-
vidual e punir os desviantes tornou-se alvo de contestações. Logo
após o encerramento oficial da ditadura a sociedade rapidamente
organizou múltiplas formas de contestação ao que se convencio-
nou denominar de “tradição”, sendo constituído um grande número
de grupos de discussão e de defesa das minorias sexuais.
Claro está que o gênero pornochanchada não pode ser avaliado
exclusivamente como um um conjunto de produções das normas
até então vigentes, sobretudo porque ele também incorporou valo-
res tradicionais que, com frequência invulgar condenaram através
do humor e do sarcasmo os tipos humanos e as identidades que
divergiam dos padrões tradicionais de sexualidade. No entanto,
muitos desses filmes incluíram tramas ou cenas que permitiam ao
público questionar a validade dos valores defendidos pelo Estado e
Começando a despir

pelas grandes instituições sociais, acabando de exercer um papel,


mesmo que limitado, de reação à ditadura e as instituições sociais
que concederam chancela ao grupo que deteve o poder por mais de
duas décadas.
269
Acredita-se que a personagem Esmeralda do filme dirigido por
David Cardoso tenha oferecido uma contribuição, mínima que seja,
para que no dia que se encerra a produção desse texto, o portal UOL
inclua dentre suas matérias de destaque um depoimento de uma
professora travesti. Na reportagem, a docente advoga que não se
pode automaticamente relacionar a travestilidade com a delinqu-
ência e que toda travesti deva usufruir dos direitos cidadãos que
durante tanto tempo lhes foram negados.

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Parte 2

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Mário Vaz Filho. Brasil : DaCar Produções Cinematográficas, 1985.
Filme. (80 min), color., sem legenda, Port.
Um Pistoleiro Chamado Papaco. Dir. Mário Vaz FIlho. Rot. Mário
Vaz Filho. Brasil: Olympus FIlmes, 1986. Filme. (70 min), color., sem
legenda, Port.

Começando a despir

271
parte 3
Depois de tudo
Gustavo Padovani GAROTAS DA VAN: FRAGMENTOS DA
PORNOCHANCHADA NA CULTURA PARTICIPATIVA

A produção fílmica compreendida sob a in-


sígnia da pornochanchada permite investiga-
ções direcionadas a um passado bem preciso. A
restrição temporal de análise desse gênero se
deve a um fato histórico: sua produção massiva
ocorreu entre o final dos anos de 1960 e a década
de 1980, sendo gradualmente abandonada nos
anos posteriores devido às mudanças mercado-
lógicas tensionadas pelos hábitos de consumo:
a chegada dos filmes pornográficos hardcore e
de outras mídias que ofereciam conteúdos so-
bre sexo. Por esse motivo, as pesquisas e artigos
acadêmicos relacionados à pornochanchada
procuram expor a influência que o contexto so-
ciopolítico do país exercia em suas temáticas,
analisar os aspectos de produção e recepção de
um ou demais filmes para aplicá-los em conjun-
to a outros campos disciplinares observáveis.
Pensando nessas premissas, o presente capí-
tulo parte de um ponto de vista cronologicamente
reverso ao considerar a hipótese da existência de
fragmentos da pornochanchada em novos produ-
tos midiáticos como o Garotas da Van, um site de
vídeos pornográficos. Embora seja possível afir-
mar que esse gênero cinematográfico tenha se
dissolvido da maneira que ele era compreendido
por algumas instâncias, essa investigação leva
em consideração a possibilidade de sua perma-
nência no contemporâneo ao adotar um entendi-
mento específico sobre a ideia de gênero.
Como a pornochanchada nasceu através do
reconhecimento de obras que fundem dois gêne-
ros já preexistentes (a chanchada e pornô), essa

275
operação pressupõe o conhecimento prévio de ambos tanto pelos
indivíduos e textos que procuram propagar o novo termo, como por
aqueles que irão tomar seu conhecimento nos meios em que ele
circula e/ou através de seu próprio consumo. Edward Buscombe
(2004), ao observar a questão de gênero no cinema americano, res-
salta a importância de sua existência para o consumo das obras, ao
observar que os filmes sempre possuem uma combinação de no-
vidade e familiaridade, principalmente porque “as convenções de
gênero são concebidas e reconhecidas pelo público, e tal reconhe-
cimento já é, por si só, um prazer estético” (BUSCOMBE, 2004, p. 315).
Indo além dessa concepção, Jason Mittel (2004) considera os
gêneros como práticas discursivas que são formadas através de
uma ampla negociação cultural atravessada pela mídia, fãs, estu-
dos acadêmicos, regulamentações e outras instâncias que se rela-
cionam com os mais diversos produtos culturais. De acordo com o
autor, “definições, interpretações e avaliações de gênero são parte
de uma operação genérica culturalmente mais ampla” (MITTEL,
2004, p.14) e, por esse motivo, o gênero não pode ser compreendido
como algo estático e dado por uma única definição conceitual, mas
se constitui como um processo em movimento, cuja construção
complexa está imbricada em um fluxo constante de transforma-
ções de ordem política, econômica e comportamental. Ao invés de
apenas identificar e analisar características meramente descriti-
vas de um objeto específico classificado como pertencente a um
gênero, Mittel (2004), amparado pelas teorias de formações discur-
sivas do Foucault, propõe observar como se dão as relações entre
os mais diversos textos produzidos sobre o gênero e suas práticas
culturais. O gênero, em sua concepção, possui, simultaneamente,
função e propriedade do discurso, sendo assim possível “examinar
as maneiras como várias formas de comunicação trabalham para
constituir e definir significados e valores dentro de contextos his-
tóricos particulares.” (ROCHA; FRANÇA, 2009, p.4)
Ao adotar esses paradigmas a respeito do conceito de gênero, a
análise do site e dos vídeos do Garotas da Van e as suas possíveis
relações com a pornochanchada necessitam de uma investigação
prévia a respeito dos gêneros da pornochanchada e da pornogra-
fia por meio de dados do seu consumo, os contextos sociais de sua
criação, os modelos de produção adotados por ambos e as reflexões
críticas a respeito desses produtos audiovisuais. No segundo mo-
mento será realizada a análise do site Garotas da Van, levando em
consideração o modelo de negócio utilizado, as estratégias de enga-
Parte 3

jamento criadas para atrair seus consumidores, a interface do site


276
para o acesso dos usuários aos conteúdos, assim como uma análise
da narrativa criada nesses vídeos e, por fim, a performance das atri-
zes e dos participantes nos conteúdos audiovisuais pornográficos.

Pornochanchada: humor, sexo e rentabilidade


Durante a década de 1960, o cinema brasileiro vivenciava um
período intenso marcado por mudanças estéticas, ideológicas e
críticas, influenciado pela noção do “cinema de autor” e pelo apa-
recimento de movimentos encabeçados por seus diretores, como o
Cinema Novo (de diretores como Glauber Rocha, Ruy Guerra, Nel-
son Pereira dos Santos e outros) e o Cinema Marginal (de diretores
como Rogério Sganrzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci e outros).
Essa época também corresponde também ao período da ditadura
militar no Brasil e, consequentemente, suas práticas de censura
aplicadas a produções artísticas que esboçavam ideias conside-
radas subversivas ou críticas ao governo vigente. Nesse processo
muitos artistas de diversas linguagens tiveram suas obras censu-
radas e, no caso específico do cinema, os profissionais da área so-
freram com incentivos boicotados pela empresa estatal de fomen-
to cinematográfico, a Embrafilmes (GATTI, 2007), e/ou passaram a
ser perseguidos pelo governo e exilaram-sedo país. No final dessa
mesma década, também surgiriam diversos cineastas e produto-
res interessados em fazer obras independentes dos incentivos do
governo ao unificar a tradição nacional e popular da chanchada
com o cinema erótico europeu (especificamente o italiano), crian-
do assim, uma denominação de um novo gênero classificado como
pornochanchada (BERTOLLI FILHO; TALAMONI, 2014).
A chanchada foi constituída por décadas como um gênero de
comédia genuinamente brasileiro, cujo sucesso das obras do gêne-
ro mobilizou a criação de diversas companhias cinematográficas
(Cinédia, Vera Cruz, Atlântida e Herbert Richers). As obras enquadra-
das no gênero geralmente possuíam tipos caricatos de personagens
em narrativas apressadas e desleixadas (VIANY, 1993, p. 78-79) que
parodiam o cotidiano brasileiro como em Este Mundo é um Pandeiro
(Watson Macedo, 1947) ou, até mesmo, sátiras de histórias bíblicas
como o Nem Sansão, nem Dalila (Carlos Manga, 1955). Essa ideia da
paródia, para autores como Jean-Claude Bernadet e Paulo Emílio Sa-
les Gomes, está ligada também a uma visão mais política, uma vez
Despois de tudo

que esses filmes afirmam o subdesenvolvimento do país de uma


maneira ridicularizada e não transgressora, pois o riso evocado por
essas obras teria a função de “uma catarse que aliviaria o complexo
277
de inferioridade de um público/povo que se despreza quando se com-
para aos países industrializados, que não se sente suficientemente
ativo no processo histórico de seu país” (BERNADET, 1979, p.80-81).
A aproximação da chanchada com o cinema erótico nos anos
de 1960 no Brasil ocorre como um reflexo de uma mudança com-
portamental observada em diversos países, pois o sexo foi um tema
amplamente explorado pela produção cinematográfica europeia
e americana desse período, tanto em filmes com narrativas mais
experimentais, quanto em obras que visavam apenas exploração
da nudez (ABREU, 2006). Filmes como Adultério à brasileira (Pedro
Carlos Rovai, 1969) e Os paqueras (Reginaldo Farias, 1969) são con-
siderados os pioneiros da pornochanchada ao utilizar a comicidade
tipicamente encontrada na chanchada, mas revestida com um ape-
lo sexual ao inserir uma quantidade maior de cenas com mulheres
(especialmente) e homens nus ou em ato sexuais, diálogos que ex-
põem os desejos carnais de seus personagens de uma maneira crua
e, geralmente, uma baixa qualidade técnica de produção observável
no resultado final das obras (LOPES, 2012).
A rígida censura promovida pela ditadura militar não afetou to-
talmente a produção e a exibição dos filmes de pornochanchada,
ainda que suas narrativas pudessem afrontar a moral e os costu-
mes conservadores. Esse fato suscita uma série de controversas so-
bre o entendimento crítico desses filmes no que diz respeito à que-
bra ou a manutenção de valores comportamentais para a sociedade
brasileira. Para Sales Filho (1995), a ideia de que a pornochanchada
era transgressora de valores é equivocada, porque a grande maioria
dos filmes não questiona, analisa ou coloca em cheque a questão do
sexo, mas apenas utiliza o apelo dos corpos e dos atos sexuais para
retratar o cotidiano. De acordo com o autor, o choque advinha da na-
turalidade das relações sexuais, mas os filmes de pornochanchada
acabam, de alguma maneira, reforçando as mesmas relações poder
e da moral conservadora existentes no período. Seligman (2000) ob-
serva um esforço na narrativa de grande parte dos filmes para criar
uma espécie de condenação endereçada àqueles personagens que
não correspondiam ao código ético da classe média no período.
Bertolli Filho e Talamoni (2014) demonstram esses aspectos ci-
tados em um dos cinco episódios que o compõe o filme Bonitas e
gostosas (Carlos Mossy, 1978). O episódio Sacanagem na Idade da
Pedra possui uma narrativa nonsense sobre a origem dos primei-
ros homens brasileiros, de acordo com os estudos de acadêmico
alemão, chamado Willy Bosta. O protagonista Sacana Coça-Saco
Parte 3

(Ângelo Antonio), uma espécie de homem das cavernas preguiço-


278
so que conhece a sua esposa Mulata Bunduda (Lúcia Legrand), tem
10 filhos e, cansado de sua rotina de trabalho e de suas obrigações
como homem de família, foge e acaba cometendo um adultério
com uma travesti, a Diva Gina (Jean Jacques). No fim, para o in-
teresse de todas as partes, os três acabam juntos formando uma
família, mas assim como acontece em outros episódios do filme
Bonitas e gostosas, ao final de cada um deles, o humorista Pedro de
Lara aparece para comentá-los e, no caso deste, efetiva uma série
de críticas. Em uma fala raivosa e cômica, bem ao seu estilo, o hu-
morista alega que “O Brasil é constante em tradição e cristianismo
e amor à família” e que o país “é história, é tradição, é amor e é fa-
mília. Bicha só com lombrigueiro! É só!”.
Como alegam os autores, o filme apresenta uma ideia transgres-
sora, mas em seguida insere um personagem para rejeitar o que ha-
via sido construído na narrativa, deixando claro que “o desbunde e a
curtição dos anos 70 tinham limites, mas também tinham suas ma-
nhas para driblar as imposições e a censura ditatorial”. (BERTOLLI
FILHO; TALAMONI, 2014, p.329). Todos esses elementos colabora-
ram para uma grande desclassificação crítica do gênero por alguns
intelectuais e pela parte mais conservadora da sociedade, fator que
motivou campanhas políticas no Congresso Nacional para a proibi-
ção das pornochanchadas (SIMÕES, 2007, p.191). Mas independente
dessa rejeição, boa parte dos filmes do gênero se tornaram grandes
sucessos comerciais.
As altas bilheterias somadas ao baixo custo de produção tor-
naram a pornochanchada um modelo de negócio rentável, atrain-
do investidores estrangeiros para distribuir e produzir películas
no país. Durante o período entre 1972 e 1982, os filmes brasileiros
chegaram a ter 120 milhões de ingressos vendidos no país, o que
representou 30% do total de 350 milhões de ingressos que envol-
vem também os filmes estrangeiros (SIMÕES, 2007, p. 193). As pro-
duções das pornochanchada também se tornaram centralizadas
pela região de São Paulo conhecida como Boca do Lixo, um berço
produções cinematográficas diversificadas em que atuavam cine-
astas como Carlos Reichenbach, Jean Garret, Silvio de Abreu e ou-
tros. Utilizando-se de mão de obra barata, elenco enxuto, contato
com distribuidores e um tempo curto entre a finalização da obra e
sua exibição (SIMÕES, 2007, p.189), seus diretores e produtores se
tornaram responsável pela produção 90% de todos os filmes nacio-
Despois de tudo

nais classificados como pornochanchada no final dos anos 1970 e


este gênero representava cerca de 40% (FREITAS, 2004) de todas as
produções cinematográficas do período.
279
Pornografia no Brasil
Durante a década de 1980, o mercado ocupado pela pornochan-
chada sofreu grandes transformações com a abertura política da
ditatura e, consequentemente, o enfraquecimento da censura no
Brasil: essa mudança possibilitou que os filmes pornográficos har-
dcore de outros países fossem exibidos nos cinemas e, posterior-
mente, sua disponibilização em fitas de vídeo VHS devido à popu-
larização dos videocassetes (BERTOLLI FILHO; TALAMONI, 2014,
p.321). Além dos filmes, a pornochanchada também disputava um
espaço de mercado com as revistas pornográficas que passaram
a publicadas no país, como Ele & Ela, Status e Playboy. Essa nova
concorrência influenciou o aparecimento de filmes de pornochan-
chada comum uso cada vez maior de cenas de sexo e títulos ex-
plícitos transformando-se, gradualmente, em filmes pornográficos.
De acordo com dados da Agência Nacional de Cinema, em 1987,
(FARIA, 2012, p.20), cerca de 20 filmes brasileiros com cenas de sexo
explícito ultrapassaram a marca de meio milhão de espectadores
nas salas de cinema.
Durante algum tempo, essa zona cinzenta entre a pornochan-
chada e pornografia existiu devido às cenas de sexo explícito, mas
gradualmente, ambos foram perdendo espaços de exibição em sa-
las de cinema. Não se tratava de uma falta de interesse do públi-
co, mas de uma mudança no hábito no consumo que priorizava o
VHS, pois isso permitia aos consumidores “assistir aos filmes em
suas próprias casas, em vez de vê-los com outras pessoas em um
cinema”1 e, consequentemente, possibilitava que seus realizadores
explorassem ainda mais explicitamente os aspectos da nudez e do
sexo. Essa mudança no mercado, por volta da década de 1990, oca-
sionou o surgimento de algumas produtoras nacionais focadas em
filmes pornográficos com baixo orçamento e um número bem limi-
tado de atores e membros da equipe como As Panteras, Brasileiri-
nhas, assim como produtoras estrangeiras como a Evil Angel (que
trazia seu castingpara gravar com atrizes e atores locais) e a Sexxxy
(uma filial brasileira da produtora americana Sexxy Angels).

1
Disponível em: <http://tecnologia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/11/09/se-voce-
gosta-de-novidades-tecnologicas-agradeca-tambem-a-pornografia.jhtm>. Acesso: 20 de dez.
Parte 3

2015.

280
O VHS foi uma janela de exibição extremamente lucrativa
para a pornografia. No final da década de 1990 e início dos
anos 2000, um número considerável de empresas surgiram,
aproveitando a popularização da mídia. Mas nem só com o
home video o mercado audiovisual pornográfico fazia suas
exibições. Em 1996, surge o Sexy Hot, primeiro canal por assi-
natura de conteúdo adulto (FARIA, 2012. p.22).

Como nota Díaz-Benítez (2010), grande parte dessa produção de


filmes começa a excluir as narrativas guiadas por um algum enredo
paralelo que justifique as cenas de sexo para que o arco dramático
seja o próprio ato sexual em si. Os filmes com essas características
também podem contar com o diretor interferindo na narrativa atra-
vés de sua fala com os atores ou intervindo na cena, o que os carac-
terizou como uma espécie de subgênero chamado de pornô “gonzo”:
uma referência advinda do campo do jornalismo com o trabalho
pioneiro de Hunter S. Thompson, um jornalista responsável por po-
pularizar uma série de matérias e livro narrando experiências em
primeira pessoa, de forma bem subjetiva, participativa e opinativa.
A evolução do VHS para o DVD e o aumento do número de as-
sinantes da TV a cabo com acesso a canais adultos no começo dos
anos 2000, popularizou ainda mais os filmes existentes no mercado
pornográfico, levando os títulos que antes ficavam restritos a loca-
doras, para bancas de jornal, conveniências e também por meio de
suas cópias ilegais encontradas a venda nos “camelôs” ou por ven-
dedores ambulantes. Outro reflexo da importância e da lucrativida-
de desse mercado pode ser observado no interesse de atores, atri-
zes e cantoras consagradas no passado, em dar novos rumos a suas
carreiras ao atuar em filmes pornográficos: a exemplo de Alexandre
Frota, Gretchen, Rita Cadillac, Mateus Carrieri, Leila Lopes e outros.
Outro momento crucial para a pornografia ocorreu durante os
anos 2000 com a internet. O aumento da velocidade da banda larga
ocasionaria a melhora dos serviços de download, do streaming de
vídeos e um número cada vez maior de conteúdo gerado e compar-
tilhado pelos usuários, fatos que, conjuntamente, contribuíram para
modificar a lógica do mercado audiovisual da pornografia no Brasil
e no mundo. Esse novo cenário propício para as condições de con-
sumo dos conteúdos audiovisuais pornográficos em sites fez com
que as antigas produtoras de vídeo (As Panteras, Brasileirinhas e
Sexxxy) produzissem também materiais para a internet. Uma das
Despois de tudo

maiores produtoras de vídeo como do país, a Brasileirinhas, mudou


os cursos dos seus investimentos, uma vez que ao longo da década
de 2000 seu faturamento caiu pela metade e a produção de filmes
281
foi reduzida em um terço. O oferecimento do conteúdo pago por
meio do site passou a representar em 2012, metade da receita men-
sal e seu site possuía 2 milhões de acessos mensais.2
Essa mudança também potencializou o aparecimento novas
empresas de conteúdos pornográficos de vídeos e fotos exclusiva-
mente para a internet, monetizando o consumo desses através de
várias opções de assinaturas mensais sob demanda (on demand).
Muitos desses modelos de site acabaram sendo incorporados por
grandes portais como o UOL Prive (detentor de 42 sites diversos de
conteúdos pornográficos) como o Rei do amador e o Garotas da Van,
o objeto a ser analisado nesse artigo.

Garotas da Van: um novo modelo participativo


Em atividade desde 2004, o site Garotas da Van3 é inspirado na
proposta do site pornográfico americano Bang Bros: vídeos porno-
gráficos de até 20 minutos, nos quais atores pornôs convidavam
outras atrizes (que interpretam pedestres andando pelas ruas)
para entrar em uma van com insulfilm nos vidros e realizar sexo
enquanto o veículo circula pela cidade. O site Garotas da Van, no
entanto, modificou essa estrutura ao escalar sempre três mulheres
que pertencem ao casting do site para participar do ato sexual e
um usuário do site que se inscreve para participar voluntariamente.
Os vídeos são restritos e oferecidos para os assinantes pagan-
tes em diferentes formatos de planos, mas o site sempre oferece
aos usuários, uma pequena amostra de cada episódio com cerca de
2 minutos e algumas fotos realizadas durante as filmagens. Com
o avanço de plataformas similares ao You Tube, mais especifica-
mente de pornografia, como o Xvideos e Red Tube, outros usuários
que tiveram acesso ao conteúdo pago do Garotas da Van, acabam
por distribuí-los gratuitamente nessas plataformas. Para caráter
de diferenciação, os vídeos do site oficial não são organizados por
datas ou temporadas, mas cada episódio é intitulado com o nome
do convidado para poder diferenciar o conteúdo, uma vez que as
mesmas atrizes participam em diversos episódios. Essa estratégia
dos títulos é, em sua grande maioria, mantida pelos usuários que
decidem postar esses conteúdos nas plataformas gratuitas citadas.

2
Disponível em:<http://www.istoe.com.br/reportagens/212239_O+DECLINIO+DA+INDUS-
TRIA+PORNO>. Acesso em: 02 jan. 2016.
Parte 3

3
Disponível em: <http://garotasdavan.uol.com.br/> acesso em: 10 dez. 2015

282
O fator de inovação do Garotas da Van reside justamente em
seus convidados: ao invés de participar apenas atores e atrizes
pornôs, os usuários do site podem manifestar interesse em partici-
par das filmagens e realizar sexo com as atrizes do Garotas da Van,
ajudando assim, a compor o conteúdo do site. Essa possibilidade
oferecida revela-se como um grande diferencial dentro do mercado
pornográfico que, por mais que muitas vezes estivesse relegado a
um caráter amador, não permitia diretamente que seu público par-
ticipasse em seu conteúdo.
Esse elemento fornecido pelo site Garotas da Van apóia-se no
ambiente da cultura participativa presente n aweb 2.0. Henry Jenkins
indicaria em A cultura da convergência (2009) como a participação
dos fãs em rede poderia influir na criação e na distribuição em pro-
gramas televisivos, seriados, filmes e na circulação de conteúdos por
várias plataformas. O ambiente em rede propicia uma participação
de usuários não como um processo de um caráter obrigatório, mas
algo que permite a propagação da liberdade, o incentivo desta con-
tribuição e a garantia de sua valoração entre os indivíduos que es-
tão inseridos nela, promovendo níveis de engajamentos diversos em
que alguns “vão se envolver mais superficialmente, alguns vão cavar
mais fundo” (JENKINS, 2006). Shirky (2011) também observaria esse
aspecto ao notar que a cultura da participação ocorre devido às moti-
vações sociais que são criadas, pois as “novas redes de comunicação
encorajam a participação em comunidades e o compartilhamento,
ambos intrinsecamente bons, fornecendo também apoio para a au-
tonomia e competência.” (SHIRKY, 2011, p.74).
O processo de participação dos usuários do Garotas da Van
também estão vinculados aos preceitos da convergência midiá-
tica, uma vez que sua produção abarca negociações que atendem
ao fluxo corporativo, ou seja, um processo que parte da empresa
para consumidores (de cima para baixo), assim como abre um
espaço para uma convergência alternativa (de baixo para cima),
dos consumidores para a empresa (JENKINS, 2009, p.44). A par-
ticipação do usuário na constituição do material do site porno-
gráfico se dá nessa zona de intersecção de interesses entre o
consumidor e a empresa, mas ao contrário de outras práticas
de estimulo a participação e criação de conteúdo, como redes
sociais (Facebook, Twitter) ou plataformas de vídeos diversos
(Xvideos, Youtube), o usuário participa por meio de sua presen-
Despois de tudo

ça física e com sua performance sexual, deixando a produção do


conteúdo audiovisual a cargo da empresa que, por sua vez, fará
as modificações necessárias para obter um produto final de qua-
283
lidade e, em um plano maior, obter a fidelização de usuários e o
ganho de novos assinantes.
O portal não deixa claro como se dão os termos de participação
do usuário, os direitos de imagem ou o processo de seleção utiliza-
do, mas por muito tempo ela foi estimulada através da área “Fale
Conosco”4, precedido da seguinte frase: “Cansado de rotina? Está
desesperado por uma viagem na van? Revoltado com a forma como
as garotas tratam os homens? Possui dúvidas, críticas, sugestões...
Entre em contato conosco!” A outra forma de estímulo à participa-
ção ocorre até hoje dentro dos próprios episódios. Sempre ao final
do vídeo, após o ato sexual das atrizes com os participantes, alguma
atriz pergunta a eles como foi a experiência, principalmente, como
forma de estimular outros a participar. No episódio intitulado Vitor,
o usuário participante diz olhando para a câmera: “Eu queria para-
benizar vocês, vocês são fantásticas. Se eu fosse vocês... Entrava
em contato.” Em seguida, a atriz olha para a câmera e realiza o cha-
mado: “Gente para vir aqui, tem que fazer a mesma coisa que ele. é
só acessar www.garotasdavan.com.br. No episódio do participante
Fabinho, uma das atrizes realiza uma pergunta logo após ele ejacu-
lar: “E aí, você indica para seus amigos?”. O participante, por sua vez,
responde com a voz trêmula: “Com certeza: indicadíssimo.”
É possível observar que a maioria absoluta dos participantes é
massivamente composta de homens (foram localizadas na pesqui-
sa para o artigo apenas três vídeos apenas com mulheres, mas que
são atrizes do próprio casting do Garotas da Van) dos mais diversos
tipos físicos (magros, gordos, altos, baixos), raças e vestimentas. A
figura do homem comum que era retratado nas pornochanchadas
das mais diversas formas, também está presente no Garotas da Van.
Mesmo que distante do contexto sociopolítico regido pelo autorita-
rismo da ditadura militar e de certos valores mais rígidos, onde o
sexo contido nos filmes de pornochanchada trazia a “representação
do cotidiano coletivo que, em muito, se identificava com as carên-
cias vivenciadas do lado de fora das salas de projeção” (BERTOLLI
FILHO; TALAMONI, 2014, p.319), o site possibilita que esse mesmo
público, agora entendido como usuários no ambiente em rede, vá
além e possa participar, realizando um desejo concreto e, simulta-
neamente, se torne parte dessa experiência audiovisual.

4
Parte 3

Disponível em: https://web.archive.org/web/20041109025522/http://www.garotasdavan.com.


br/home.php. acesso em: 18 dez .2015

284
Uma performance de avacalhação
A comicidade e o escracho, elementos típicos dos filmes de por-
nochanchada, também se fazem presentes no Garotas da Van, mas
com algumas diferenças fundamentais. Ao invés de uma narrativa
ficcional roteirizada com cenas, diálogos e personagens constitu-
ídos, o principal e único espaço em que se constitui toda a ação, a
van, funciona como um dispositivo: a câmera e as atrizes estão den-
tro do veículo para tencionar uma situação sexual que será ativada
com a chegada do participante e se transformará no conteúdo de-
sejado. Ao se utilizar desse dispositivo, a performance de cada atriz
é condicionada a uma naturalização da condição de ser filmada e
do próprio ato sexual, já que elas não interpretam nenhum tipo de
personagem e não há nenhum outro contexto senão o próprio ato
em si prestes a ser realizado. Essa condição específica, também pa-
rece autorizar as atrizes a utilizarem o humor em seus gestos e fa-
las, tanto como estratégia de aproximar e promover interações com
o participante pouco acostumado com as filmagens, quanto como
uma forma de criar uma interlocução com quem irá futuramente
assistir o conteúdo, principalmente, na forma como elas dialogam
olhando para a câmera e se referindo sempre a um “você”.
Antes que o ato sexual ocorra, no início do vídeo, as atrizes sem-
pre utilizam o mesmo procedimento com todos os convidados: ini-
ciam uma espécie de entrevista para saber detalhes dos mais diver-
sos sobre o participante, para que algum momento, o assunto alcance
um gancho específico para que o sexo possa começar. Durante essa
entrevista os assuntos variam desde características físicas dos con-
vidados, suas roupas, suas experiências sexuais prévias e dúvidas a
respeito de como o participante tomou conhecimento sobre o pro-
grama. No episódio intitulado Mike, uma das atrizes questiona ao
participante como ele descobriu o programa. Após ele revelar que
descobriu Garotas da Van através do site e também através de um
canal na televisão, ela ressalta esse aspecto com animosidade: “Que
legal! O pessoal está nos assistindo no canal adulto já!”. Em seguida,
a mesma atriz pergunta ao participante qual foi a grande motivação
para ele participar do programa e ele responde: “Ah, era a fantasia
de transar com três garotas, né?” Após sua resposta, uma outra atriz
que também estava no mesmo enquadramento tomando sorvete
de maneira totalmente caricata, afasta o picolé e passa a lamber
Despois de tudo

os seios da colega de cena que realizou as perguntas. O homem co-


menta com excitação: “Nossa, nossa!”. Em um momento posterior,
quando uma das atrizes passa a mão sobre a cueca do participante,
285
a outra mulher em cena alerta: “Cuidado com os germes aí, hein?”. O
participante ri e se defende: “Não, eu não tenho esse problema.”
Como já citado anteriormente, as informações fornecidas pelo
participante também são motivos de piadas entre as atrizes. O epi-
sódio Anderson se inicia com uma das atrizes sentada no colo do
participante, impedindo que ele apareça perante o enquadramento,
mas ela o apresenta olhando diretamente para a câmera e o descre-
ve como um “internauta muito tchutechuquinho (sic)”.Ao elogiar a
beleza do participante e seu cheiro bom, a atriz pergunta se ele tem
namorada. Ele responde: “Que nada, eu sou carente só!”. Nesse mo-
mento as três mulheres começam a caçoar o participante fazendo
vozes em tons de quem conversa com uma criança e a atriz ao lado
dele o abraça e pergunta: “Quer colinho? Quer leitinho? Quer ma-
mar?”. Nesse momento, essa atriz retira um de seus seios para fora
e o posiciona na boca participante.
As características físicas, por sua vez, também são motivos
para que as atrizes possam brincar com o participante. No episódio
Big One, uma das atrizes declara após apresentá-lo a sua colega de
cena: “Vamos ver agora o porquê do Big ou se é só história mes-
mo”. Enquanto as atrizes tiram a roupa dele, uma delas revela que já
sabe informações sobre o participante, pois ela menciona que “ou-
viu falar que ele havia saído do Sexo na Van” (um programa similar
veiculado pelo canal adulto da TV a cabo Sexy Hot e também parte
do portal UOL Prime) e ele responde alegando que está tentando
voltar ao mercado. Assim que a cueca do homem é retirada, uma
das atrizes declara um espanto com a grossura do membro do par-
ticipante, enquanto a outra atriz começa a cheirar o pênis e decla-
ra olhando para as câmeras: “Primeiro, aquela cheiradinha básica.
Porque homem porquinho a gente fala.” Assim como no exemplo
citado acima, é possível notar a presença de atores e ex-atores em
outros episódios e, quando isso acontece, as atrizes fazem questão
de expor esse fato de alguma maneira.

Considerações Finais
A análise dos vídeos e do site do Garotas da Van, assim como suas
estratégias para cativar os usuários a participar, apresenta, dentro da
ideia de gênero como uma prática discursiva, diversos fatores que o
fazem se relacionar com a pornochanchada. Como demonstrado, os
diálogos sobre sexo realizados pelas atrizes, a postura debochada em
relação à realização do ato sexual perante as câmeras e a presença
Parte 3

de uma heterogeneidade de diversos tipos de homens que partici-


286
pam nos vídeos, se aproximam das narrativas vistas em filmes como
Ainda agarro essa vizinha (Pedro Carlos Rovai, 1974), A quebra galho
sexual (José Miziara, 1986) e Filosofia da sacanagem (Mário Vaz Filho,
1987), por exemplo. No entanto, como ressalta Mittel (2004) a respeito
da questão de gênero, essa relação se estende muito além de deter-
minadas características de obras específicas e não se pode ficar res-
tritas a elas, até porque a formação do gênero é um complexo “lugar
de osmose, de fusão e de continuidades históricas, mas também de
grandes rupturas, de grandes descontinuidades entre essas matrizes
culturais” (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 66).
Seguindo a trajetória histórica da pornochanchada e da porno-
grafia, é possível observar que, embora o primeiro gênero seja forma-
do pelo segundo, a pornografia apenas vai se firmar economicamen-
te como um gênero audiovisual no Brasil em um período posterior.
Pelos dados de consumo analisados, fica visível a amplitude do con-
sumo de filmes de pornochanchada e a transferência desse mesmo
público para os filmes pornográficos. Os filmes de pornochanchada
significavam a porta de entrada (um pouco) discreta para satisfazer
os desejos de um público interessado em cenas de sexo e, para isso,
o uso de humor aparece para retirar ou amenizar diversos aspec-
tos que podem se apresentar como ofensivos ou chocantes a certos
costumes do período. No entanto, a mudança de sua exibição dos
espaços públicos das salas de cinema para um espaço privado com
a chegada do VHS, aparenta ter um impacto igual ou maior do que
o abrandamento da censura na ditadura militar, no que diz respei-
to a mudança das narrativas dos filmes de pornochanchada. Essa
observação sobre o consumo é novamente pertinente, quando ob-
servamos produtos audiovisuais migrando para outras plataformas
midiáticas, como no período do final da década de 1990, quando os
filmes pornográficos migraram para sites pornográficos: mais uma
vez, consequentemente, são criados novos hábitos que irão influen-
ciam no formato narrativo desse conteúdo.
O site Garotas da Van é um produto amparado na convergência
midiática, o que possibilita o surgimento de conteúdos que fundam
diversos gêneros e formatos com o propósito de atender a grande
demanda e oferta do mercado pornográfico. Suas estratégias anco-
radas na cultura participativa dos usuários buscam criar um valor
que a faça ser reconhecida como diferencial entre tantos outros si-
tes pornográficos: a possibilidade de seu consumidor transgredir o
Despois de tudo

campo do desejo imaginário imputado a tantas atrizes pornográfi-


cas e os colocar para participar fisicamente da realização do ato e
dos filmes, se tornando também parte do conteúdo.
287
Ainda que Garotas da Van represente um modelo de negócio em
atividade há 12 anos, viável e de baixo custo, sua produção de conte-
údo pornográfico já aponta para um certo desgaste, uma vez que os
usuários, podem agora assistir uma infinidade de vídeos em plata-
formas de compartilhamento de vídeos pornográficos como Xvide-
os, YouPorn e Red Tube, inclusive, conteúdos pagos e restritos que
podem ser adquiridos por um assinante, mas distribuído em rede
gratuitamente para outros usuários. A maior plataforma de vídeos
pornográficos da atualidade, o Xvideos, é o 43º site mais acessado
do mundo, recebe cerca de 1200 vídeos diários de usuários e empre-
sas pornográficas e possui mais de dois milhões de vídeos postados
na categoria de “vídeos amadores” (sem contar que esses vídeos
podem constar em outras categorias também5). Além disso, esse
desejo de se expor sexualmente perante a câmera assume possi-
bilidades diversas daquelas encontradas quando o Garotas da Van
começou suas atividades, pois hoje, ainda de maneira mais intensa,
há uma domesticação dos usos dos aparatos midiáticos e das suas
formas de produção e distribuição, possibilitando que os usuários
realizem seus próprios vídeos de experiências sexuais por meios
de câmeras e celulares e as compartilhar nessas plataformas. Tra-
ta-se de uma atividade e um fetiche contemporâneo utilizado em
escala cada vez maior, por mais que a prática atravesse uma série
de questões éticas e legais uma vez que alguns desses conteúdos
são filmagens sem o consentimento de alguns dos seus participan-
tes e/ou veiculados indevidamente pelo acesso de terceiros a esses
materiais de propriedade particular, retirados indevidamente pela
invasão ou roubo de dispositivos móveis, computadores ou unida-
des de armazenamento de dados (HD´s e Pen Drives).
Embora não seja o foco de análise desse artigo, também é no-
tório como o material encontrado sobre Garotas da Van possibili-
ta averiguações a respeito dos papéis do corpo nessa produção e,
principalmente, do papel da mulher no mercado pornográfico. Na
página principal do site em seus primeiros anos de funcionamento,
o site exibia uma caricatura de três mulheres diferentes em frete a
uma van com as frases: “para orgulho das feministas”, “é a mulhe-
rada no comando”, “tem que ser macho pra encarar”, “3 gatas devo-
radoras” e “1 cara de ‘vítima’6”. As frases desconexas trabalham com

5
Disponível em: <http://sweetlicious.net/artigonoticias/os-impressionantes-numeros-do-xvide-
os-33425>. acesso em: 23 dez. 2015
6
Disponívelem:<http://web.archive.org/web/20070217173617/http://garotasdavan.uol.com.br/
Parte 3

home.php>. acesso em: 10 dez. 2015

288
uma série de conceitos contraditórios e questionáveis, principal-
mente, ao pensar em autoras feministas e ativistas contra a porno-
grafia como Andrea Dworking e Catherine MacKinnon (1997) que
observam o apagamento do papel da mulher perante os objetivos
sexuais do homem em qualquer tipo de filme do gênero. Mesmo que
esse discurso se apresente de maneira falha, é possível observar
que o site tenta esboçar uma linha de argumentação que sirva para
blindá-lo contra críticas sobre o papel da mulher nesses conteúdos,
ao ressaltar que elas estão em maior quantidade e no poder, condu-
zindo o ato sexual e fazendo o homem de “vítima”.
Ao tratar de algo tão complexo quanto a sexualidade aplicada
a produção de conteúdo pornográfico em rede, muitas possibilida-
des de investigações permanecem em aberto. O site Garotas da Van,
assim como outros milhares sites e plataformas depornografia, são
objetos potentes para profundas discussões que possibilitam tanto
compreender a esfera de consumo, distribuição e produção audio-
visual desse mercado com proporções gigantescas, quanto provo-
car reflexões sobre os seus rumos futuros.

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290
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Filmografia
Garotas da van. www.garotasdavan.com.br

Despois de tudo

291
Caroline Kraus Luvizotto ENTRE A CENSURA E A LIBERDADE:
A PORNOCHANCHADA NA SÉRIE TELEVISIVA
MAGNÍFICA 70

Em 2015, uma produção da HBO Latin Ameri-


ca (com coprodução da Conspiração Filmes) sur-
preendeu o mercado de TV fechada no Brasil ao
lançar a série Magnífica 70, livremente inspirada
na produção cinematográfica da Boca do Lixo da
década de 1970. Nos treze episódios da primeira
temporada, o universo da Boca do Lixo nos anos
1970, em plena ditadura militar, foi o cenário es-
colhido para apresentar temas bastante caros e
contemporâneos: o preconceito, a relação entre
o desejado e o proibido, o machismo, a liberdade
sexual, a sexualidade feminina, a questão de gê-
nero, a ambição e o embate entre censura e liber-
dade. É o clima das pornochanchadas que em-
bala a trama e que permite que as personagens
explorem o que tem de mais íntimo, doloroso e
selvagem em cada um desses temas.
A série, que se passa em 1973, foi ao ar dia 24
de maio de 2015 na HBO Brasil. É uma criação de
Claudio Torres, Renato Fagundes e Leandro Assis,
e baseia-se no roteiro de Toni Marques. A primei-
ra temporada foi dirigida por Cláudio Torres e Ca-
rolina Jabor e não utilizou recursos da Agência
Nacional do Cinema – ANCINE, por meio de Lei
de Incentivo à Cultura, contando apenas com re-
cursos financeiros da HBO na produção. Foi reno-
vada para a segunda temporada em 2016. Apesar
de ser uma produção que pode ser analisada sob
vários aspectos, entre eles o histórico, o político e
o artístico, nosso objetivo é indicar os elementos
da pornochanchada que estão presentes na obra
de 2015 e que foram fundamentais para contextu-
alizar os temas anteriormente citados.

293
O nome Magnífica 70 é uma referência à produtora fictícia “Mag-
nífica Cinematográfica”, a produtora de filmes retratada na série,
que configura-se numa releitura das produtoras de cinema da Boca
do Lixo das décadas de 1970 e 1980. A série busca retratar o univer-
so da pornochanchada, mas faz algo bem distinto do que aconte-
cia nos anos de 1970: a produção de Magnífica 70 é extremamente
bem cuidada tecnicamente e bastante cara; recorreu-se a atores
conhecidos do grande público; a série é produzida para o consumo
doméstico de TV fechada. Neste sentido, a série de 2015 não pode
ser enquadrada como um produto típico do gênero pornochancha-
da, mas nela podem ser encontrados diversos elementos que fazem
referência a esse período histórico e também às pornochanchadas
que foram produzidas na Boca do Lixo e é por esse motivo que a
apresentamos neste capítulo.

Entre a censura e a liberdade


Magnífica 70 - entre a censura e a liberdade. É assim que a HBO
Brasil convida o telespectador a adentrar ao universo da série (Ima-
gem 1) e é assim que convidamos o leitor a conhecer um pouco
mais dessa história. Ambientada nos anos de 1970, o cenário princi-
pal da obra é a cidade de São Paulo, especificamente a Boca do Lixo,
área famosa durante o período de 1965 até o fim da década de 1980
e que abrigava produtoras de cinema pequenas que lucravam com
pornochanchadas de baixo custo, mas que rendiam boa bilheteria.
Em um clima de constante ameaça, a série retrata os abusos co-
metidos durante a ditadura militar, representados principalmente
pela figura dos militares e dos censores, e também os conflitos de
homens e mulheres que procuram romper com a censura em busca
de liberdade política, econômica, social e de expressão.
De modo muito breve e, apenas com o objetivo de situar o leitor
e contextualizar a história, apresento a seguir a trama principal
(divulgada no piloto, em várias sinopses e críticas, sem spoilers).
Vicente (Marcos Winter) é um homem entediado e reprimido, pre-
so num casamento monótono com Isabel (Maria Luisa Mendon-
ça), uma mulher fria e infeliz, também reprimida e submissa ao
pai e ao marido, e que se casou com Vicente apenas para sair da
casa dos pais. Isabel é filha do general Souto (Paulo César Pereio),
homem preconceituoso, moralista, símbolo do autoritarismo e do
machismo, e que consegue empregar Vicente, seu genro, como
censor da Polícia Federal.
Parte 3

294
Figura 1: Cartaz de divulgação da série Magnífica 70 pela HBO Brasil
Imagem extraída de <http://cdn.x2n.com.br/~filmesse/wp-content/uplo-
ads/2015/06/magnifica-70-2temporada.jpg>. Acesso em: 20 de jan. 2016.

O censor, solitário e atormentado pela lembrança da cunha-


da morta, a ninfeta provocante Ângela (Bella Camero), com quem
teve um relacionamento secreto, recebe a pornochanchada A de-
vassa da estudante, produzida pela Magnífica Cinematográfica, di-
rigida por Manolo (Adriano Garib) e estrelada por sua esposa, Dora
Dumar (Simone Spoladore). O fascínio de Vicente por Dora é ime-
diato, pois ela o faz lembrar de Ângela, morta em circunstâncias
Depois de tudo

bastante misteriosas. Essas lembranças, além de fasciná-lo, tam-

295
bém o perturbam muito, fazendo com que ele vete o filme com as
seguintes palavras:

Vicente: Dona Sueli, é um filme perturbador... um amontoa-


do vulgar de cenas de violência, sexo, lesbianismo, sadismo,
sem contar as críticas óbvias ao regime.
Dona Sueli: Seu parecer...
Vicente: Eu acho que esse filme não deveria existir.
Vicente: Minha recomendação é pelo veto total da obra.

Dora Dumar, que na verdade se chama Vera, é uma golpista


que se infiltra na Boca do Lixo como atriz para roubar os lucros
de uma produção cinematográfica a fim de salvar seu irmão, que
estava sendo ameaçado por um bandido. Mulher forte e sensual,
ela usa seu charme para seduzir os homens que a cercam. Em seu
disfarce, Dora mantém um casamento de fachada com o produtor
Manolo, ex-caminhoneiro com problema de impotência sexual e
que se casa com Dora para manter as aparências de homem viril,
em troca de proteger a moça do assédio sexual comum no meio
cinematográfico da Boca do Lixo. Entretanto, Manolo desconhecia
o lado golpista de Dora.
Dora e Manolo, inconformados com o veto de A devassa da
estudante, que poderia levar a Magnífica Cinematográfica à falên-
cia, procuram o órgão censor para reverter a decisão; sem sucesso.
Consumido pelas lembranças do passado e pelo fascínio que tem
por Dora, Vicente os procura fazendo-se passar por um homem
que tem contatos no órgão censor. Mantendo sua identidade em
segredo, ele propõe reescrever o final do filme, incluindo uma cena
extra que eliminaria as supostas subversões da obra, o que permi-
tiria que ela fosse liberada pela censura. Além de escrever, Vicente
dirige a filmagem da cena final (Imagem 2) e se apaixona por Dora
e pelo cinema, passando a trabalhar clandestinamente na Magní-
fica Cinematográfica como escritor e diretor do próximo filme da
produtora, a pornochanchada “Minha cunhada é de morte”, baseada
na história da vida e morte da ninfeta Ângela. A primeira tempora-
da concentra-se praticamente toda na produção dessa obra e nos
acontecimentos que a cercam.
A cada episódio torna-se mais evidente que Vicente, Dora e
Manolo estão imersos em um triângulo amoroso tenso e obsessivo
(Imagem 3). É possível observar a transformação de Vicente: de dia,
um censor do governo comprometido com os interesses do Estado
e casado com a filha de um general; de noite, um homem apaixo-
Parte 3

nado por uma atriz da Boca e pelo cinema, que se inspira nas obras
296
consagradas de Alfred Hitchcock e Stanley Kubrick. É a paixão pelo
cinema que dá outro sentido à vida do censor, mas que também o
coloca em perigo, não só no universo da Boca do Lixo, mas também
no universo militar.

Figura 2: Dora Dumar na cena final do filme A devassa da estudante, cena


escrita e dirigida por Vicente
Imagem extraída de <http://apaixonadosporseries.com.br/series/magnifi-
ca-70/>. Acesso em 20: jan de 2016.

Figura 3: Cena de muita tensão entre Manolo (à esquerda), Dora e Vicente


Depois de tudo

Imagem extraída de http://www.adorocinema.com/noticias/series/noti-


cia-115564/. Acesso em: 20 de jan 2016.

297
A obra também conta com dois outros grandes atores em papéis
marcantes e cheios de conflitos: Joana Fomm, que interpreta Lúcia,
mãe de Isabel e Ângela, esposa do General Souto, uma mulher que
finge ser muda e paralítica para se proteger da violência do marido;
e Stepan Nercessian, que interpreta George Larsen, o dono da Mag-
nífica Cinematográfica, homem ambicioso, que não entende nada de
cinema, absolutamente sem escrúpulos, viciado em sexo e que usa
a produtora para dar golpes em investidores e conhecer mulheres.
A série é repleta de personagens fortes, problemáticos e envol-
ventes que, no decorrer das filmagens da pornochanchada “Minha
cunhada é de morte” vão revelando seus medos, segredos, conflitos,
desejos e ambições, num período em que a Ditadura Militar e a mo-
ralidade os fazem transitar entre a censura e a liberdade, em todos
os sentidos de suas vidas.
Magnífica 70 manteve o cuidado na produção dos cenários e
encenações e procurou seguir o contexto da época, principalmente
no que se refere aos figurinos, nas imagens da cidade de São Paulo
daquele período, na trilha sonora (destaque para o tema de abertura
Sangue latino de Secos & Molhados), nos trechos relacionados aos
pronunciamentos do governo militar.

A censura durante o regime militar


A censura não é um fenômeno recente e tampouco exclusivo do
regime militar – basta lembrarmos a ação do DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda) criado em 1939 durante o Estado Novo de
Getúlio Vargas para atuar como órgão de controle e de divulgação
do regime. Sua força incide sobre os meios de comunicação, sobre
os costumes, sobre a diversão, sobre as liberdades políticas e indi-
viduais. No caso específico da ditadura militar, seus instrumentos
pautavam-se em um sistema de controle e coerção que, apesar de
serem utilizados pelos militares, baseavam-se em características
histórico-culturais da população brasileira.
É inegável a importância da ditadura militar e da censura para a
obra Magnífica 70. É a partir da repressão política, da censura e tam-
bém a partir da moralidade da época, que se constrói a história das
personagens. Apresento algumas considerações sobre esse momen-
to histórico, fundamentais para compreender o universo da série.
Durante os anos de ditadura militar no Brasil (1964-1985), obser-
vou-se a forma como os militares criaram leis e decretos, utilizando
uma grande rede de informação para restringir liberdades políticas
Parte 3

e individuais, bem como para controlar e vigiar os meios de comu-


298
nicação visando à publicação/divulgação apenas daquilo que pode-
ria beneficiar seus governos. O cenário era de opressão, violência,
autoritarismo, cerceamento das liberdades políticas e expressão
individual e violação de direitos humanos, observados nos casos
de privação dos direitos fundamentais, como a própria liberdade de
expressão, ferida por meio da institucionalização da censura (NA-
POLITANO; LUVIZOTTO; GONZALES, 2014).
De acordo com Carvalho (20012, p. 55), a censura militar pos-
suía íntima relação com a violência, por meio de ameaças ou com
efetivação da força, proibindo-se a expressão do pensamento em
diversos setores da vida social, e opunha-se ao “pluralismo político
e cultural”, assegurando “o predomínio de um discurso unívoco e
incontestável a respeito de uma dada realidade”. Carvalho (2012, p.
56), afirma ainda que a censura à liberdade de expressão do pen-
samento “pode ser compreendida a partir de duas dimensões (...),
enquanto prática institucional e enquanto prática social”. Essa úl-
tima pode ser bastante observada nos conflitos apresentados pelas
personagens de Magnífica 70, sobretudo nas relações familiares, de
gênero e relativas à sexualidade.
Pode-se dividir a atuação da censura durante a ditadura militar
em três períodos distintos: “antes do AI-5, entre o AI-5 e o início do
governo Geisel, e de então até a restauração da democracia” (Soares,
1988, p. 1). De acordo com Napolitano, Luvizotto e Gonzales (2014),
outros documentos jurídicos podem ser mencionados como insti-
tuidores da censura no Brasil, além do AI-5 (Ato Institucional nú-
mero 5): a Lei de Imprensa (lei 5.250/67) e o Decreto-Lei 1077/70, que
instituiu a censura prévia, dentre outras leis e decretos.
Tentando estabelecer relação direta com a série Magnífica 70,
destacamos o papel do censor. Podemos observar a forte institucio-
nalização da censura durante a década de 1970. A burocratização
da censura configura-se como aspecto relevante da força totalitária
do aparelho do Estado e mantinha o povo brasileiro desinformado
(NAPOLITANO; LUVIZOTTO; GONZALES, 2014). De acordo com Soa-
res (1988), observou-se também o crescimento do corpo técnico de
censores e, na década de 1970, esse número chegou a 400 no país:

A Censura era, essencialmente, federal e concentrava a qua-


se totalidade das suas atividades em Brasília. Os técnicos
tinham curso universitário em uma de cinco carreiras: Di-
reito, Filosofia, Sociologia, Comunicação Social e Psicologia;
Depois de tudo

além disso, freqüentavam um curso de especialização, cuja


duração era de três a seis meses, na Academia Nacional de
Polícia, em Brasília. Em um determinado momento, passa-

299
ram a exigir a aprovação em uma bateria de testes psico-
lógicos, o que levou à reprovação de 21 técnicos e 8 fiscais,
que recorreram à Justiça, em 1976. Este episódio reacendeu
o interesse por pesquisar a Censura e abriu alguns caminhos
para fazê-lo (SOARES, 1988, s/p).

Soares (1988) adverte que a Divisão de Censura (que ficava em


Brasília, mas, que na série, por licença poética, mantinha uma
central em São Paulo) não era uma entidade política, apesar de
exercer censura política indiretamente. Os órgãos de segurança
agiam por meio da Divisão, que incluía em sua estrutura áreas
como “costumes” e “diversão”. Com a atividade censora, o Estado
convertia-se em “paladino da moral e defensor da segurança na-
cional, pronto a proteger o público “frágil” e “vulnerável” aos efeitos
deletérios dos filmes e de outras manifestações artísticas” (REIS
JR.; LAMAS, 2013, p. 157).
O órgão censor possui importante papel na obra Magnífica 70.
A maior parte de suas ações se dá no universo da Boca do Lixo, e,
mesmo sendo propenso à proibição de filmes, Vicente encontra-se
dividido quando passa a conhecer as pessoas envolvidas nas pro-
duções cinematográficas da Boca. Vicente era contador de profis-
são e assumiu o posto de censor por influência e intimidação do
sogro, General Souto, ficando claro, na trama, que Vicente não tinha
vocação para aquele ofício.
Gomes e Lamas (2015) destacam o papel de doutora Sueli, perso-
nagem de Juliana Galdino, a chefe de Vicente. Os autores indicam
que talvez essa personagem tenha inspiração na censora Solange
Teixeira Hernandes, a dona Solange, que a partir de 1981 assumiu a
diretoria da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Ela
era famosa por sua rigidez e firmeza no trabalho e porque “priori-
zava uma abordagem punitiva à produção cinematográfica, mesmo
em meio ao processo de redemocratização em curso no período
de sua atuação como diretora” (GOMES; LAMAS, 2015, p. 04). Assim
como as demais mulheres da trama, doutora Sueli vai ganhando
destaque e, ao final da primeira temporada, estabelece o conflito
que irá se desdobrar na segunda temporada da série.
Em Magnífica 70, a pornochanchada A devassa da estudante é
um exemplo de obra, dentre muitas outras, que teve que ser reedita-
da para que pudesse ser liberada pela censura, e esse tipo de confli-
to vai se estabelecer novamente em Minha cunhada é de morte. O
gênero pornochanchada é fruto da repressão instituída pelo AI-5 e
tem sua origem nas chanchadas da década de 1950. É este o gênero
Parte 3

300
que embala a trama de Magnífica 70 e que dá vida a personagens
complexos e conflitantes.

A pornochanchada na série Magnífica 70


Na década de 1950, a chanchada era um dos gêneros mais popu-
lares no cinema brasileiro. Pode-se dizer que as chanchadas eram
produções de baixo custo e que agradavam por não terem outro ob-
jetivo, a não ser o entretenimento. Constituíam-se numa coletânea
de gêneros, como o melodrama, o romance, o policial, a ação, o mu-
sical e principalmente, a comédia (LYRA, 2007).
Na década de 1960, pode-se observar duas vertentes no cinema
nacional: uma, caracterizada por ser um cinema familiar, que retra-
tava situações de classes e a vida política e a outra que retratava
a sexualidade e as paixões humanas (XAVIER, 2000). É nesse ce-
nário que foram produzidas as primeiras chanchadas eróticas, que
de acordo com Abreu (2006), passaram a ser reconhecidas como
pornochanchadas no início da década de 1970. Eram “fruto de um
momento de forte repressão do poder à produção cultural”, e a por-
nochanchada era “filha da ditadura” (ABREU, 1996, p. 76-77). Freitas
(2004) situa as pornochanchadas no universo cinematográfico e
social brasileiro:

As pornochanchadas invadiram o mercado de modo ubíquo


e se caracterizaram por serem produzidas em série, no mais
literal sentido da palavra industrial. Eram levemente eróti-
cas, sem sexo explícito, derivadas das chanchadas (porcaria
em espanhol paraguaio) e indiretamente do Teatro de Re-
vista. Apesar de terem baixíssimo custo, eram altamente lu-
crativas. De acordo com seus defensores, contribuíram para
‘deselitizar’ o cinema brasileiro, levando as classes C, D e E
às salas de projeção. Pelos críticos de arte é considerada de-
cadente e de qualidade inferior à velha chanchada musical
(FREITAS, 2004, p. 08).

Como muitas produções eram feitas com baixíssimo custo,


consequentemente, tinham baixa qualidade técnica; atingiam pú-
blico bastante numeroso, o que garantia uma boa bilheteria. Eram
marcadas pela mistura da comédia e do erotismo, o que conferiu ao
gênero a alcunha de “filme de mulher pelada”, já que outro recurso
bastante utilizado era a presença de mulheres nuas ou seminuas
Depois de tudo

em cena. Segundo Sales Filho (1995, p. 69), a pornochanchada foi


criticada por setores mais conservadores e intelectualizados da

301
época, uma vez que estava “recheada de aspectos como a banaliza-
ção da sexualidade, a exploração do corpo da mulher, o machismo,
o falocentrismo e outros”. E o autor justifica a crítica:

Evidente que a pornochanchada não questiona, não analisa


e não adota uma postura crítica sobre tais aspectos. Apenas
os expõe de forma escancarada, o que a tornou, na expressão
cunhada pelo crítico Jean Claude Bernardet o “bode expiató-
rio” do que consideramos nossas mazelas culturais (SALES
FILHO, 1995, p. 69).

De acordo com Abreu (2006), o grande polo das produções cine-


matográficas do gênero localizava-se na Boca do Lixo, em São Paulo
e, como apontado anteriormente, esse é o cenário da série Magnífi-
ca 70. De acordo com Gomes e Lamas (2015, p. 09):

Se há referências suficientes à atuação da censura e seu mo-


dus operandi sobre filmes, peças de teatro e demais produ-
ções simbólicas colocadas sob seu crivo, Magnífica 70 tam-
bém recorre a uma série de elementos em seu enredo que
configuravam, de fato, particularidades da Boca do Lixo e seu
modo de produção.

A série apresenta a origem humilde de escritores, diretores, pro-


dutores, elenco e técnicos que faziam os filmes na Boca do Lixo:
Manolo, o produtor, é um ex-caminhoneiro; Vicente, o escritor e di-
retor, é um ex-contador e censor do governo militar; Dora Dumar,
golpista que precisa do dinheiro da produção para livrar o irmão das
ameaças de um bandido, Helena Garret (Júlia Ianina), outra atriz,
que ganhava a vida como garota de programa e era ex-parceira de
Dora em golpes no passado; Flint Westwood (André Frateschi), ator
da Boca que, assim como os técnicos que trabalhavam na produção,
possuía um ou mais empregos formais e trabalhava para a Magnífi-
ca Cinematográfica fazendo bicos.
Também explora a relação que pessoas comuns, alheias ao
universo do cinema, tinham com a produção da Boca: eram comer-
ciantes, pequenos industriais e fazendeiros que investiam recursos
financeiros nas produções, esperando aumentar o seu rendimento.
Larsen, o dono da Magnífica Cinematográfica, era o responsável por
captar esses investidores e lhes oferecer a parceria na produção,
criando a ilusão de que o retorno financeiro seria alto, mas ficando
com a maior parte dos lucros.
Segundo Abreu (2006), o bar Soberano foi o ponto de encontro
Parte 3

de artistas e produtores da Boca do Lixo durante as décadas de 1960


302
e 1970 e também é retratado em Magnífica 70, como o bar Imperador,
parada certa de Dora, Manolo e Vicente.
Alfredo Sternheim, diretor, responsável por 25 filmes produzi-
dos na Boca do Lixo (com destaque para o “Anjo Loiro”, que lançou
Vera Fischer como atriz), foi convidado para assessorar a produção
de Magnífica 70, para que a série se mantivesse fiel aos elementos
artísticos e históricos da época. Sternheim (2005) descreve a difi-
culdade de produzir um filme com baixo orçamento, o que obvia-
mente impactava a qualidade da obra:

Os filmes tinham que ser feitos em prazos curtos e com pouco


negativo, que era o item mais caro de uma produção. Para se
ter uma ideia, um dos filmes foi rodado com 18 latas grandes
(300 m), em apenas três semanas. A edição final precisava ter,
no mínimo, 8 latas. Ou seja, na média, uma cena só podia ser
repetida duas vezes e meia (STERNHEIM, 2005, p. 26).

A baixa qualidade técnica e o orçamento super-reduzido, carac-


terísticas de muitas pornochanchadas, também foram retratadas na
série e esse era um elemento de destaque nas negociações entre in-
vestidores, atores, técnicos, direção e produção. Boa parte da primeira
temporada concentra-se em produzir o filme “Minha cunhada é de
morte”. A máxima do baixo orçamento é determinante para a escolha
das locações, dos atores, dos custos da cenografia, e tudo isso inter-
fere no custo final do filme e na qualidade da obra. Tanto que Vicente,
escritor, roteirista e diretor, aparece frustrado ao ver o resultado final.
É com grande pertinência que Magnífica 70 aborda tipos e temas,
muitos deles recorrentes nas pornochanchadas: o machismo, o ma-
chão viril, a sexualidade e a bissexualidade feminina, a homossexu-
alidade, o adultério, o incesto, a violência contra a mulher, a repres-
são e a frustração sexual de homens e mulheres, o vício em álcool e
drogas, a malandragem, tudo isto passando pelo contexto histórico
da ditadura e abordando a censura, a tortura e o autoritarismo. Para
cada um desses temas havia uma ou mais personagens que se dedi-
cavam a explorá-los de forma envolvente durante toda a trama.
Observamos que as personagens femininas foram as que mais
se destacaram nesse aspecto. Logo no início da série essas mulhe-
res são retratadas como problemáticas, reprimidas, submissas, com
problemas com sua sexualidade. No decorrer da trama, vão se con-
frontando e se libertando de diversas amarras, chegando ao final da
primeira temporada como os grandes destaques da série. Aqui, re-
Depois de tudo

servo-me ao direito de não mencionar as personagens e seus con-


flitos, e nem como estes foram ou não resolvidos, para não fornecer
303
spoilers ao leitor, privando-o do prazer de assistir ao seriado e des-
cobrir por si só quais são esses conflitos, que são retratados a partir
dos recursos da pornochanchada: o erotismo e a comédia.
Diversas semelhanças com obras famosas podem ser identifi-
cadas em Magnífica 70. Por exemplo, o uso do sexo como meio de
manipulação, utilizado por Ângela e Dora, remetem a “Bonitinha,
mas ordinária” (1963). E Gomes e Lamas (2015, p. 05) vão além:

Na realidade, assistimos Magnífica 70 como se esta fosse um


pot-pourri das tragédias rodrigueanas. Entre Vicente, Dora,
Isabel e Manolo, sem deixar de lado a figura da cunhada/irmã
falecida, tece-se uma trama aos moldes já visitados por es-
sas tragédias: incesto, traição, frigidez, impotência, culpa e,
naturalmente, os interditos.

Para Sales Filho, os temas retratados nas pornochanchadas e,


por conseqüência, em Magnífica 70, não são fruto de um desejo de
transgressão, como pensava-se na época, mas sim, reflexo do con-
servadorismo que nos distingue:

Em uma primeira análise, o que é retratado na pornochan-


chada nos faz concluir que o que mais distingue nossa sexu-
alidade é um certo desejo pela transgressão. O casamento é
indissolúvel (até certo ponto), a fidelidade é inquestionável
(até que apareça uma primeira oportunidade), a integridade
da família é suprema (às vezes), somos todos católicos (al-
guém se lembra?). (...) Se existem normas, por que não deso-
bedecê-las? (...) Parece que o que mais claramente nos distin-
gue é o conservadorismo. Conservadorismo não apenas no
sentido da preservação dos chamados bons costumes, mas
sim de todas as ideias e conceitos em que estamos mergu-
lhados: sejam eles bons costumes, sejam preconceitos, ou
estereótipos (SALES FILHO, 1995, p. 69-70).

Concordamos com Sales Filho a respeito do conservadorismo


presente em Magnífica 70. Ele pode ser observado para além das
questões relacionadas à sexualidade. Representam, sobretudo,
os preconceitos presentes na sociedade brasileira e, nesta relei-
tura da pornochanchada em 2015, referem-se, principalmente, a
questões de classe, gênero, idade, cor de pele. Observa-se que a
série ressalta os contextos morais e sociais que muitas vezes são
ocultados em outras obras, como os assinalados nas citações ex-
traídas de Gomes e Lamas (2015, p.05) e Sales Filho (1995, p.69-70)
apresentadas anteriormente.
Parte 3

304
Considerações Finais
Magnífica 70 se passa no início da década de 1970, momento
de grande opressão e censura. O AI-5, promulgado em dezembro
de 1968, fortaleceu a ditadura e intensificou a perseguição a todos
aqueles que eram considerados subversivos: artistas, intelectuais
de esquerda, estudantes e cidadãos inconformados as ações autori-
tárias do governo militar.
O cinema também era constante alvo de repressão e censu-
ra. Há quem afirmasse que o governo militar investia recursos na
produção de filmes, via Embrafilme, com o objetivo de alienar as
pessoas e tirar a sua atenção dos acontecimentos políticos. Essa
era uma das críticas feitas as pornochanchadas, além daquelas já
mencionadas no texto.
A partir do erotismo e da comédia que as caracterizavam, as
pornochanchadas abordavam de modo irreverente temas tensos,
delicados e universais, que sempre foram marcados pelo forte con-
servadorismo de nossa sociedade. A valorização do sexual e da nu-
dez feminina apresentados nos filmes desse gênero refletiam, ao
mesmo tempo, uma liberação sexual e a censura dessa sexualidade
feita pelo regime militar e pela moralidade da época.
A produção cinematográfica da Boca do Lixo foi se esvaziando
ao longo da década de 1980, em grande parte, devido à ascensão dos
filmes de sexo explícito. Apesar de não ser o tema central da trama
de Magnífica 70, é esse cenário que confere autenticidade a uma
série ambientada naquele período e que pretende contar a histó-
ria não de pessoas reais, mas de pessoas que se envolveram com o
universo cinematográfico da Boca do Lixo, num momento histórico
onde sexo, política, poder e censura se misturavam na vida dessas
pessoas, em histórias dignas das narrativas rodrigueanas.
A releitura da pornochanchada nessa obra de 2015 enaltece a
figura da mulher, que no início das produções do gênero valoriza-
vam o aspecto sensual e erótico dos corpos femininos, mas que em
Magnífica 70 mostra que as personagens femininas foram muito
além disso. Problemas que, muitas vezes poderiam ter sua origem
na sexualidade feminina, apresentados num universo machista e
marginal, acabaram sendo superados, até mesmo pelo sexo, e que
transformaram essas personagens nos pontos fortes da série ao fi-
nal da primeira temporada.
Mais do que uma releitura da pornochanchada, Magnífica 70
Depois de tudo

faz referência ao que há de melhor e pior no cinema da época e


retrata, de modo bastante comprometido, as dificuldades de se pen-
305
sar e fazer cinema durante o regime militar. Alem disso, a série nos
permite refletir sobre a censura nos meios de comunicação e nas
artes e nos mostra a riqueza de um gênero por muito tempo margi-
nalizado e alvo de preconceito no meio acadêmico e artístico, o que
ressalta a importância de debater a pornochanchada, o cinema e as
artes durante o regime militar.

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XAVIER, I. Figuras do ressentimento no cinema brasileiro dos anos
1990. Porto Alegre: Sulina, 2000.

Filmografia
Magnífica 70. Dir. Claudio Torres; Carolina Jabor. Brasil: HBO Latin
America e Conspiração Filmes, 2015. HDTV. Série em 13 episódios,
color, sem legenda, Port.

Depois de tudo

307
Sobre os autores

Álvaro André Zeini Cruz – mestre e doutorando em Multimeios


pela Universidade de Campinas e pós-graduado em argumento e
roteiro pela FAAP. Bacharel em Cinema e Vídeo pela Faculdade de
Artes do Paraná (FAP). Diretor e roteirista de curtas-metragens e
idealizador, crítico e editor da revista Pós-créditos, publicação on-
-line voltada à crítica audiovisual.
Annelize Pires – graduada em Comunicação Social (Jornalis-
mo) e aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Estadual Paulista, onde desenvolve pesquisa sobre a
representação da travesti na mídia. Bosista Fapesp.
Bruno Jareta de Oliveira – doutorando em Comunicação pela
Universidade Estadual Paulista, docente nas Faculdades Integra-
das de Bauru e membro do GEA (Grupo de Estudos Audiovisuais) e
do CPS (Centro de Pesquisas Sociossemióticas).
Caio Lamas - mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/
USP. Docente das Faculdades Integradas Rio Branco e da Faculdade
Campo Limpo Paulista. É autor de diversos artigos sobre a história
do cinema brasileiro.
Carlo José Napolitano – docente do Departamento de Ciências
Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, Campus
de Bauru.
Caroline Kraus Luvizotto - Socióloga, doutora em Ciências So-
ciais. Docente do Departamento de Ciências Humanas e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Comunicação da FAAC – Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP – Universidade Esta-
dual Paulista, Campus de Bauru. Líder do Grupo de Pesquisa “Comu-
nicação Midiática e Movimentos Sociais”.
Célio José Losnak - professor do Departamento de Ciências
Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da
UNESP, Campus de Bauru.
Claudio Bertolli Filho – Cientista social e historiador, mestre e
doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e livre-do-
cente em Antropologia pela Universidade Estadual Paulista. Docen-
te no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e no Programa

309
de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Universidade Es-
tadual Paulista, campus de Bauru.
Erik Ceschini Panighel Benedicto - doutorando em Educação
para Ciência na Universidade Estadual Paulista; mestre e bacharel
em Química pela Universidade de São Paulo e licenciado em Quí-
mica pela UNESP. Trabalha com projetos interdisciplinares relacio-
nados às ciências e as artes. Docente na Universidade do Sagrado
Coração (Bauru).
Gustavo Padovani - Bacharel em Jornalismo pela Universida-
de Estadual Paulista (UNESP Bauru), especialista em Gestão em
Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre no Progra-
ma de Pós-Graduação de Imagem e Som (PPGIS) da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar). Membro do Grupo de Estudos sobre
Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS/UFSCar) e pesqui-
sador da rede de pesquisadores do Observatório Ibero-Americano
de Ficção Televisiva (OBITEL Brasil/UFSCar).
José Carlos Marques - Docente do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e do Departamento de Ciências Humanas da Uni-
versidade Estadual Paulista (Unesp – campus de Bauru). Doutor em
Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA – USP) e Mestre em Comunicação
e Semiótica pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP). Lí-
der do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Fu-
tebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos
sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP).
Lucas Sant’Ana Nunes - graduado em Relações Públicas e mes-
tre em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulis-
ta. Atualmente pesquisa as relações entre Cinema, representação
social e identidade profissional no âmbito das Relações Públicas.
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz - doutora em História
(UFSC, 2008). Docente do Programa de Pós-Graduação em História
e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvi-
mento Comunitário, na Universidade Estadual do Centro Oeste do
Paraná (Unicentro), campus Guarapuava.
Marcelo Bulhões - livre-docente (Unesp) em Teoria Literária,
Doutor em Literatura Brasileira (USP), Mestre em Teoria Literária e
Literatura Comparada (USP) e Licenciado em Letras (Unesp). É do-
cente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comuni-
cação e do Curso de Jornalismo da Unesp. Publicou, entre outros, A

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Ficção nas Mídias (Ática, 2009), Jornalismo e Literatura em Conver-
gência (Ática, 2007) e Leituras do Desejo (Edusp, 2003).
Muriel Amaral - doutorando em Comunicação pela Universida-
de Estadual Paulista (Unesp/Bauru), bolsista Capes/Unesp, mestre
pela mesma instituição. Foi professor da Universidade Norte do Pa-
raná (Unopar) nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda
e Desenho Industrial (modalidade virtual).
Renan Rossini – graduando em Psicologia pela Universidade
Estadual Paulista e em Filosofia pela Universidade do Sagrado Co-
ração. Bolsista FAPESP.
Renata Aparecida Frigeri - coordenadora do Curso de Publici-
dade e Propaganda da Faculdade Pitágoras de Londrina, mestra em
Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina e doutoran-
da em Comunicação Midiática na Universidade Estadual Paulista.
Atualmente pesquisa a identidade germânica nos filmes de Leni
Riefenstahl.
Vinicius Carrasco - Jornalista e doutorando em Comunicação
na Universidade Estadual Paulista. Docente na Universidade do Sa-
grado Coração (Bauru) e nas Faculdades Integradas de Jaú.
Willian Bruno Corrêa - Historiador pela Universidade Estadual
do Centro Oeste do Paraná (Unicentro).

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Álvaro André Zeini Cruz • Annelize Pires • Bruno Jareta de Oliveira •
Caio Lamas • Carlo José Napolitano • Caroline Kraus Luvizotto •
Célio José Losnak • Claudio Bertolli Filho • Erik Ceschini Panighel Benedicto •
Gustavo Padovani • José Carlos Marques • Lucas Sant'Ana Nunes •
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz • Marcelo Bulhões • Muriel Amaral •
Renan Rossini • Renata Aparecida Frigeri • Vinicius Carrasco • Willian Bruno Corrêa

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