Aspectos Metodológicos Do Ensino Da Literatura
Aspectos Metodológicos Do Ensino Da Literatura
Aspectos Metodológicos Do Ensino Da Literatura
Annie Rouxel
Trad. Neide Luzia de Rezende
Instituir o aluno sujeito leitor. Isso significa, em primeiro lugar, tanto para o
professor quanto para o aluno, renunciar à imposição de um sentido convencionado,
imutável, a ser transmitido. A tarefa, para ambos, é mais complexa, mais difícil e mais
exultante. Trata-se de partir da recepção do aluno, de convidá-lo à aventura
interpretativa com seus riscos, reforçando suas competências pela aquisição de saberes e
de savoir-faire. O paradoxo da leitura literária em sala se atém ao fato que, lugar de
estudos e de aquisição de saberes, ela, de fato, não é mais apenas uma leitura. Como
fazer para que ela o seja? Como desenvolver, em proveito da leitura – quer dizer, sem
prejuízo para o investimento do leitor – a dialética leitura/estudo/leitura? Finalmente,
como adquirir os saberes no âmbito da leitura?
Na tensão entre o texto e o leitor que caracteriza a leitura literária em classe, os
saberes úteis são de três ordens: saberes sobre os textos, saberes sobre si e saberes sobre
a atividade lexical.
Essa escolha é determinante para a formação dos sujeitos leitores. Sabemos que
o professor deve levar em conta os programas e as prescrições oficiais, mas muitas
vezes lhe é permitido escolher, numa determinada lista, as obras para ler e estudar em
sala. Eis algumas reflexões capazes de orientar suas escolhas.
- É importante confrontar os alunos com a diversidade do literário (cujo
conhecimento afina os julgamentos de gosto):
- Diversidade genérica: ao lado de gêneros tradicionais (romance, teatro, poesia,
ensaio), os novos gêneros (autoficção, história em quadrinhos, álbum)-
Diversidade histórica: obras canônicas, clássicas, fundadas em valores nos quais
uma sociedade se reconhece, obras contemporâneas, literatura viva que lança um
olhar sobre mundo de hoje.
- Diversidade geográfica: literatura nacional, literatura estrangeira,
principalmente as grandes obras traduzidas do passado e do presente que se
abrem para outras culturas e constituem lugares de compartilhamento simbólicos
em momento de globalização.
- É importante também de propor obras das quais eles extrairão um ganho ético e
estético, obras cujo conteúdo existencial deixa marcas. Durante muito tempo
enfatizamos o estudo formal em detrimento do conteúdo, o que explica, como
denunciou Todorov (2007) e muitos outros sociólogos (Baudelot, Cartier,
Detrez, 1999) , o desapego dos jovens pela leitura. O desafio é de monta,
portanto, já que concerne tanto ao desenvolvimento do gosto de ler quanto a
construção identitária do leitor e o enriquecimento de sua personalidade. Assim,
as experiências de leitura invocadas pelos adolescentes durante as conversas ou
em suas autobiografias de leitor – que representam para eles um
“acontecimento” que os transformaram – provêm de obras que os colocam
diante de grandes questões existenciais: o amor, a morte, o desejo, o
sofrimento etc. A literatura popular que agrada tanto aos jovens – Harry Potter,
Crepúsculo – explora esse veio. A antropóloga Michele Petit (2002) explica que
essas leituras particulares respondem a uma necessidade e que possuem o mérito
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Este texto também estará presente no livro a ser publicado no Brasil, conforme a nota 1. N.T.
de verbalizar emoções e vivências, que muitas vezes se furtam à apreensão (da
consciência, da memória). A literatura lida em sal convida também a explorar a
experiência humana, a extrair proveitos simbólicos que o professor não consegue
avaliar pois estão ligados à esfera íntima. Enriquecimento do imaginário,
enriquecimento da sensibilidade por meio do vivido fictício, construção de um
pensamento, todos esses elementos que participam da transformação identitária
são mobilizados na leitura. “Nós pensamos somente a partir daquilo que nos é
lançado por outros (...)”, escreve Michèle Petit (2008, p. 38). “Sem o outro, não
há sujeito (...) [a identidade] se constrói tanto num movimento centrífugo quanto
centrípeto, num impulso em direção ao outro, uma ruptura de si, uma
curiosidade – uma vontade às vezes feroz”.
- Segundo a modalidade de leitura (autônoma ou na classe), convém observar o
grau de dificuldade da obra proposta.
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Lector in fabula. e Les Limites de l’interprétation.
- resultam de escolhas formais, estruturais: estrutura não linear, encaixes
de narrativas, de comentários metanarrativos...
- que embaraçam a mímesis, que afetam o mundo ficcional representado:
confusão cronológica, retenção de informações (sobre a motivação das
personagens, por exemplo), disseminação de índices ambíguos,
representação do conteúdo de pensamento ou de sonho de uma
personagem sem transição com a representação do mundo da intriga.
- que manifestam escolhas éticas ou estéticas surpreendentes ou
transgressoras: ponto de vista inesperado do narrador, surgimento do
sonho da fantasia num universo realista, ecos intertextuais ou reescrita
transgressiva ou paródica.
Na França, a literatura para jovens oferece uma mina de obras de qualidade para
essa aprendizagem da leitura literária. Há um grande número de obras nesse domínio –
álbuns, romances, peças de teatro – cuja fartura corresponde às grandes obras da
literatura contemporânea. A leitura dessas obras tende a criar um novo horizonte de
expectativas nos alunos.
No ensino médio, a relação com a complexidade resulta primeiro dos programas
que estipulam o encontro com obras do passado. O sentimento de alteridade domina
diante de textos que é preciso aprender a descobrir. Deve-se estimular a curiosidade
diante desses objetos diferentes cujos códigos linguísticos, éticos e estéticos são
desconhecidos ou pouco conhecidos. A inventividade do professor é requisitada para
elaborar um dispositivo capaz de interpelar os alunos. Relação da obra com outros
objetos semióticos da mesma época – um poema, um quadro, uma música; confrontação
da obra com suas adaptações contemporâneas que funcionam também como “textos de
leitores” – por exemplo, o romance de Proust, Em busca do tempo perdido, adaptado em
HQ ou para a tevê; vaivém entre uma obra do passado e sua reescrita contemporânea;
leitura de um clássico em comparação com uma obra do presente tratando da mesma
problemática, como sugeria Ítalo Calvino (1996), propondo a seguinte dupla definição
do clássico: “13 – É clássico aquilo que tende a relegar a atualidade à situação de rumor
de fundo sem, no entanto, extinguir esse rumor. 14 – É clássico aquilo que persiste
como rumor de fundo exatamente onde ali a atualidade que está mais distante reina
soberana”. Desse diálogo entre passado e presente pode nascer um conjunto de questões
que revelam um início de interesse, Trata-se de compreender a que necessidade
respondia essa obra no seu tempo e é a história literária que pode ser convocada para
tentar responder a essa questão. É também importante compreender como essa obra
pode ainda nos concernir hoje, um convite à leitura atualizada proposta por Yves Citton
(2007) no seu livro Lire, interpréter, actualiser – pourquoi les études littéraires?.
Se levamos em conta as reações entusiasmadas dos colegiais a partir da leitura
de certos grandes clássicos (com frequência mediadas pela adaptação cinematográfica),
compreende-se que essas obras vivem ainda por causa das leituras que necessariamente
as transformam. É essa reação sensível que indica a apropriação da obra pelo aluno.
Nesse caso se produz esse fenômeno próprio da leitura literária: a alteração da obra pelo
leitor e a alteração do leitor pela obra. Este, o leitor, se expõe ao ler, se desapropria de si
mesmo para se confrontar com a alteridade e descobrir a alteridade que está nele.
Entretanto, para que ocorra esse fenômeno é preciso que os alunos tenham
acesso às obras integrais. É ilusório esperar que se possa vivenciar essa experiência na
escola a partir unicamente da leitura de um fragmento. É por isso que a atividade de
leitura em sala de aula é em geral frustrante. Ao lado do tempo de estudo, a leitura
integral efetuada na esfera privada é a única capaz de modificar a relação dos alunos
com o texto. A prática da leitura cursiva, que se pode discutir na sala, oferece
possibilidades de renovação do ensino da literatura.
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Jogos de palavras que fazem menção a “prêt à porter” do mundo da moda. N.T.
a sagacidade do professor, que é adquirida com a experiência, ele deve avaliar as
dificuldades e seu tratamento: previsão, apagamento, regulação, intervenção se
distribuem em função dos textos e das situações.
Enfim, a confrontação com os textos resistentes (principalmente os de nossa
modernidade) permite também desenvolver uma competência que é aceitar a
persistência de zonas de sombra no texto, aceitar a abertura da obra – que finalmente
autoriza um investimento pessoal do leitor (fora do controle ou do consentimento do
professor ou da turma). Renunciar à transparência do texto, admitir o desconforto da
incerteza é ganhar maturidade. Michel Meyer, em seu ensaio Questions de rhétorique
(1993, p.143-4), denuncia as simplificações fáceis e transforma a complexidade num
valor: “É preciso se recusar terminantemente a abolir a problemática anulando-a por
arremedos de respostas, com as quais os homens se satisfazem quando precisam se
apoiar em ilusões que acabam muitas vezes em exclusões”.
Para concluir
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Principalmente os trabalhos de Jean-Claude Ameisen, difundidos na emissão de France Inter, Sur les
épaules de Darwin..
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