Fracasso Escolar

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA
(PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU)

GLASIELE GAEDE DE AZEVEDO

A produção do fracasso escolar


no contexto das escolas públicas brasileiras

Rio de Janeiro
2017
GLASIELE GAEDE DE AZEVEDO

A produção do fracasso escolar


no contexto das escolas públicas brasileiras

Monografia apresentada ao Curso de


Especialização (Pós-Graduação lato
sensu) em Psicopedagogia como
requisito parcial às exigências para
obtenção do título de Especialista em
Psicopedagogia.

Orientadora:
Profa. Dra. Maria Letícia Cautela de
Almeida Machado

Rio de Janeiro

2017

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus pelas oportunidades concedidas que


fizeram de mim o que sou hoje, inspiração para que eu conseguisse enfim
concluir este trabalho.
Agradeço à minha família – Luiz Carlos, Angela Maria, Renan Gaede,
Vitor Fonseca e Eliza Souza –, fonte de todo meu esforço para ser alguém
melhor. Foram e são eles os meus principais incentivadores na longa jornada
que enfrentei até hoje. Meu maior exemplo de amor e superação. A eles dedico
minha vitória.
Ao meu noivo Vitor Fonseca, em especial. Ele me inspira com seu esforço
em ser melhor em tudo que faz e me estimula a dar o meu melhor em tudo que
faço. Desde que chegou em minha vida, mudou minha rota, incentivando-me a
buscar realizar todos os meus objetivos.
A uma amiga especial, Cintia Fonseca, por ter apoiado a minha inscrição
no curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia. Além disso, em razão da
alegria dividida comigo, o que me impulsiona a expandir meus conhecimentos
visando ao crescimento profissional.
À amiga e colega de curso Crislane Peres, pela motivação e pelo incentivo
diários, tanto durante o convívio em classe, quanto na fase posterior de
construção deste trabalho.
Aos amigos que cultivo. De alguma maneira, suas palavras contribuíram
para que eu perseverasse na luta pelos meus objetivos. Compartilhar minha
angústia com vocês sempre me fez mais forte.
À minha coach Amanda Bífaro. O processo de coaching foi fundamental
para que alcançasse esta meta. Inicialmente, traçamos desígnios profissionais,
mas o trabalho foi tão intenso que hoje estou em outro patamar de
desenvolvimento pessoal.
À minha orientadora, Profª. Drª. Maria Letícia Cautela de Almeida
Machado, por ter aceitado a empreitada. Agradeço especialmente por sua
disponibilidade em dividir comigo seus conhecimentos. Preciso expressar aqui o
muito orgulho que sinto em ter sido brilhantemente orientada por ela.

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RESUMO

AZEVEDO, Glasiele Gaede de. As dimensões sociais do fracasso escolar no


contexto das escolas públicas brasileiras. 2017. 51 f. Monografia
(Especialização em Psicopedagogia) – Instituto de Psicologia, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

O presente trabalho monográfico pretende analisar a produção do fracasso


escolar no contexto das escolas públicas brasileiras. A partir de um estudo
bibliográfico sobre o fenômeno do fracasso escolar, buscaram-se subsídios que
fundamentassem a discussão que se propôs estabelecer acerca dos aspectos
sócio históricos que contribuem para a exclusão de alunos das classes populares
dos processos de escolarização. Em geral, os sujeitos do fracasso escolar são
aqueles que não correspondem às expectativas de um modelo educacional que
valoriza a absorção de conteúdos curriculares e a formação social e cultural
desses sujeitos alinhados ao modelo cartesiano. Numa perspectiva
preconceituosa, esses alunos são frequentemente culpabilizados por
fracassarem na escola, sendo considerados incapazes de aprender devido as
suas condições biológicas ou diferenças culturais. No entanto, os resultados da
pesquisa indicam que é preciso levar em consideração que outras questões
alimentam tal discussão, tendo em vista que as reflexões sobre a produção do
fracasso escolar entre sujeitos de escolas públicas não podem estar reduzidas
a concepções deterministas que buscam culpabilizar o aluno e sua família por
sua condição de fracasso na escola. Conclui-se que o Fracasso Escolar é um
fenômeno complexo perpassado por fatores políticos, sociais, culturais que
extrapolam os limites da instituição escolar.

Palavras-chave: Fracasso Escolar. Medicalização da Educação. Escola. Sujeito


escolar.

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ABSTRACT

AZEVEDO, Glasiele Gaede de. The social dimensions of school failure in the
context of Brazilian public schools. 2017. 51 f. Monograph (Specialization in
Psychopedagogy) – Institute of Psychology, Rio de Janeiro State University, Rio
de Janeiro, 2017.

The present monographic work intends to analyze the production of the school
failure without context of the Brazilian public schools. Based on a bibliographical
study on the phenomenon of school failure, we have sought subsidies that base
a discussion that is a protocol on the socioeconomic aspects that contribute to
the exclusion of students from the popular classes of education processes. In
general, the subjects of school failure are those that do not correspond to the
expectations of an educational model that value an absorption of curricular
contents and a social and cultural formation, subject to Cartesian model. In a
biased perspective, these students are often blamed for failing in school, being
imprinted unable to learn due to their biological conditions or culture. However,
the research results indicate that it is necessary to take into account, in addition
to issues related to the subject, in terms of reflections on the production of school
failure among public school subjects can not be reduced to deterministic
conceptions that seek to blame the student and his family because of his failure
status at school. It is concluded that School Failure is a complex phenomenon
permeated by political, social and cultural factors that go beyond the limits of the
school institution.

Keywords: School Failure. Medicalization of Education. School. School subject.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................ 8
CAPÍTULO 1 – A Escola, os processos educacionais e o sujeito
escolar........................................................................................................ 13
1.1 – A construção do pensamento educacional no Brasil....................... 19
CAPÍTULO 2 – A produção do fracasso escolar no Brasil...................... 25
2.1 – A construção da identidade social do povo brasileiro, seu
processo de escolarização e a produção do fracasso escolar nas
classes populares............................................................................. 25
2.2 – As concepções de escola e fracasso escolar no Brasil desde o
início do século XX.................................................................................. 29
2.2.1 – As concepções sobre o fracasso escolar presentes nas
produções acadêmicas....................................................................... 32
CAPÍTULO 3 – Repensando o fracasso escolar e o sujeito escolar
numa perspectiva sócio-histórica da Educação..................................... 38
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................... 47

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INTRODUÇÃO

A realização do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Psicopedagogia


na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) contribuiu de maneira
significativa para a minha história profissional e acadêmica. Durante o primeiro
semestre, a disciplina intitulada “Estudo Crítico do Fracasso Escolar”, ministrada
pela Profª. Drª. Maria Letícia Machado, reacendeu o meu interesse sobre a
relação estabelecida entre as classes populares e a Escola, principalmente no
que diz respeito ao desempenho escolar de crianças e jovens das escolas
públicas brasileiras.
No decorrer da minha vida escolar estabeleci uma relação pessoal com a
Escola Pública, inicialmente como aluna e, nos anos finais do Ensino Médio,
como estagiária do Curso Normal. Nessa experiência, pude acompanhar de
perto os processos educacionais desenvolvidos no interior da Escola; os
movimentos de inclusão dos alunos que apresentavam rendimento acima da
média esperada para os estudantes da rede pública; e a exclusão e
estigmatização daqueles considerados incapazes de aprender ao não
corresponderem aos padrões de aprendizagem definidos pela Escola.
Corroborando tal experiência, a pesquisa realizada por Gualtieri e Lugli
(2012) traz à tona dados sobre a instituição do sistema público de ensino no
Brasil, revelando o caráter seletivo da Escola desde o seu estabelecimento
oficial. Ainda na segunda metade do século XX, estar matriculado em uma escola
não garantia a permanência nesse sistema, já que ao final de cada ano o aluno
deveria realizar provas confirmando a sua aptidão para cursar a série seguinte,
além dos exames para acesso ao Ginásio e ao Secundário, afora o próprio
vestibular – atualmente, em algumas universidades, substituído pelo ENEM
(Exame Nacional do Ensino Médio) – para admissão no Ensino Superior. Tais
procedimentos, ao longo de muitos anos, impuseram barreiras a muitos alunos,
que, ao não apresentarem rendimento compatível com o determinado pela
Escola, eram impedidos de prosseguir com os estudos.
Conforme as autoras, a rigorosidade no processo seletivo imposto pelo
sistema escolar era consentida a partir de referenciais liberais, sustentados pelos
conhecimentos científicos das áreas de Medicina, Biologia e Psicologia. Nessa
perspectiva, o êxito ou o insucesso de um aluno dependia da sua capacidade,
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de modo que a qualidade da Escola Pública era aferida em razão dos resultados
dos alunos bem-sucedidos. Em outras palavras, a responsabilização do aluno
pela sua exclusão do sistema escolar era considerada tão natural que o papel
da organização escolar nesse processo ficava em segundo plano. Ao Estado era
conferido o dever de oferecer igualdade de oportunidades a todos, por meio da
Educação pública, ao passo que a permanência de cada aluno na Escola estava
condicionada à sua capacidade.
Atualmente, a organização escolar não conta com procedimentos
avaliativos para a admissão de alunos nas etapas da Educação Básica. Todavia,
a análise dos dados da Educação Pública no Brasil divulgados pelo Censo
Escolar da Educação Básica de 2016 (BRASIL, 2017) revela índices
preocupantes sobre a repetência, a evasão e o baixo rendimento escolar entre
alunos das redes estaduais e municipais de ensino. Informações extraídas desse
compêndio estatístico oficial, divulgados em fevereiro de 2017, expõem o
aumento da frequência à Escola, de 2001 até 2012, de alunos entre seis e
quatorze anos. No entanto, esse aumento não tem sido suficiente para que tais
crianças e adolescentes apresentem bom rendimento escolar, não sendo
possível aos mesmos cursar as séries seguintes. De acordo com o censo,

no ensino fundamental e no ensino médio, há diferenças expressivas


entre as taxas de não aprovação (soma de reprovação e abandono)
por série, principalmente na rede pública [...]. Na rede pública,
preocupa a alta taxa de não aprovação no 3º ano (etapa típica de um
aluno de 8 anos e no final do ciclo de alfabetização) e também as altas
taxas nas séries introdutórias dos anos finais e do ensino médio.
(BRASIL, 2017, p. 21)

As taxas de não aprovação – considerada pelo Censo Escolar como a


soma dos percentuais de evasão e repetência – de alunos matriculados nas
Escolas Públicas brasileiras concomitantemente ao rendimento inadequado às
exigências da Escola são apontados como índices do fracasso escolar. As
estatísticas divulgadas pelo Censo Escolar 2016 (BRASIL, 2017) sobre a
trajetória de estudantes brasileiros apresentam que está entre os alunos da
Escola Pública os maiores índices de evasão, multirrepetência e mau rendimento
escolar. Tais dados são sintomáticos de que há um movimento de exclusão do
ambiente escolar envolvendo alunos pobres, usuários predominantes dessa
Escola. Considerando que, desde o estabelecimento do sistema público de

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ensino no Brasil, as camadas pobres da população têm sido sistematicamente
segregadas da Escola, observa-se a dificuldade dessa parcela de brasileiros em
escolarizar-se, já que as perspectivas sobre a trajetória escolar desses sujeitos
esteve sempre marcada pelo estigma que associa pobreza às dificuldades de
aprendizagem. Isso denuncia que há entre professores e autoridades escolares
uma tendência de culpabilizar o aluno por seu fracasso.
Nesse sentido, os aspectos aqui sinalizados, somados à minha trajetória
educacional, movem essa pesquisa na direção do interesse em problematizar:
1. Afinal, quem são os sujeitos da Escola Pública? 2. Sob quais perspectivas a
Escola e a sociedade definem o que é sucesso ou fracasso escolar? 3. Cabe, de
fato, aos alunos o protagonismo pelas suas dificuldades de aprendizagem ou se
trata de um fenômeno complexo e multifacetado?
Ao abordar o fracasso escolar, o presente trabalho pretende desvencilhar-
se dos preconceitos e estigmas que pairam sobre alunos que cotidianamente
são encaminhados para consultórios de psicologia, psicopedagogia e
fonoaudiologia, ou até mesmo para os quais são prescritos o uso de medicação,
simplesmente por não corresponderem às expectativas da Escola com relação
à aprendizagem ou ao modo de se comportarem em sala de aula. Além disso,
aspira-se apontar a necessidade de se repensarem as concepções – ou as
bases – que sustentam a Escola, sobretudo no que se refere à valorização da
cultura dos alunos, visto que muitas vezes, apesar das políticas de inclusão, os
alunos são integrados ao sistema escolar e, ao mesmo tempo, excluídos por
meio da marginalização de sua cultura, conforme apontam Machado e Senna
(2012).
Desse modo, esse trabalho tem por objetivo geral analisar as dimensões
sociais do fracasso escolar, considerando-se o contexto das Escolas Públicas
brasileiras. Como desdobramento, configuram-se os seguintes objetivos
específicos: a) delinear o papel social da Educação na conjuntura histórica da
sociedade europeia na Modernidade e seus reflexos na construção do modelo
escolar brasileiro; b) discutir o sentido de escolarização para a sociedade
brasileira, desconstruindo o conceito de Educação civilizatória; c) definir as
diferentes abordagens do fracasso escolar, problematizando seu processo de
medicalização; d) apontar os aspectos sociais e culturais que contribuem para a
patologização do fracasso escolar; e) recontextualizar o fracasso escolar e o

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sujeito escolar numa perspectiva sócio-histórica da Educação; f) questionar os
estereótipos acerca do estudante da Escola Pública e de sua realidade social e
familiar que o associam ao fracasso escolar; g) sublinhar o papel da sociedade
e da família no processo educacional do sujeito.
Para alcançar tais objetivos, a análise está estruturada em três capítulos,
de modo que, no Capítulo 1 – A Escola, os processos educacionais e o sujeito
escolar - está presente um estudo introdutório, com base em Aranha (2006),
Cunha (1980), Patto (2015) e Senna (2007), sobre a história e o sentido da
Educação na Europa no período de ascensão da burguesia, bem como a sua
influência na construção do modelo educacional adotado no Brasil,
profundamente marcado por um caráter civilizatório que visava à padronização
do brasileiro à moda europeia. Ainda neste capítulo se discute o processo de
democratização da Escola em nosso país.
Avançando para o Capítulo 2 – A produção do fracasso escolar no Brasil
- discutem-se, a partir de Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004), Machado
e Senna (2012) e Patto (2015), o que é fracasso escolar, tanto quanto suas
diferentes abordagens, destacando o sentido social da Escola para as classes
populares, tendo em mente que o processo de escolarização no Brasil ainda é
marcado por profundas desigualdades sociais que se refletem no âmbito da
instituição escolar. Além disso, problematiza-se o conflito cultural entre classes
no espaço escolar, reafirmando que, ao almejar a civilização dos sujeitos das
classes populares, a Escola reforça seu modelo excludente e conservador.
No mesmo capítulo, a partir de Leonardo e Suzuki (2016) e Moysés
(2001), questiona-se a medicalização do fracasso escolar, sinalizando-a como
fruto de uma abordagem biologizante do processo de aprendizagem, que encara
as dificuldades de ajustamento do sujeito à Escola como decorrente de um
distúrbio. Assim, elencam-se referências que demonstram de que forma os
aspectos sociais e culturais destacados na literatura sobre a construção do
pensamento educacional contribuem para o processo de patologização do
fracasso escolar.
Por fim, no Capítulo 3 – Repensando o fracasso escolar e o sujeito escolar
numa perspectiva sócio-histórica da Educação - busca-se apresentar, a partir de
uma perspectiva sócio-histórica, o fracasso na Escola como fenômeno
multifatorial. Para tanto, analisa-se como a precarização da Escola, a qualidade

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da formação docente, assim como as práticas pedagógicas são elementos que
podem corroborar para os alarmantes índices de crianças em situação de
repetência e evasão escolar. Este estudo pretende, com isso, desmistificar a
ideia de que o mau desempenho escolar desses alunos esteja necessariamente
associado a distúrbios de aprendizagem de origem biológica, tendo em vista que
são crianças que aprendem esportes, o uso de tecnologias e a operar com
dinheiro, dentre outras atividades que demandam pleno desenvolvimento de
suas habilidades cognitivas. Dessa forma, a partir de Esteban (2000), Gualtieri e
Lugli (2012) e Moysés (2001), esse capítulo pretende desconstruir os
estereótipos acerca do estudante da Escola Pública e de sua realidade social e
familiar que o associam ao fracasso escolar, além de destacar o papel da
sociedade e da família no processo educacional desse sujeito.
Considerando a relevância desse tema para o cenário educacional de
nosso país, esse trabalho pretende contribuir para a construção de um olhar
diferenciado sobre os alunos que não avançam no processo de escolarização ou
que ao realizar avaliações apresentem baixo rendimento. Repensar o fracasso
escolar significa repensar a Escola e o seu sentido social para famílias de baixa
renda. Estreitar laços entre família e Escola é fundamental para que sejamos
capazes de contribuir para o desenvolvimento dos nossos alunos; mais do que
isso, é preciso refletir sobre o que, de fato, pode ser considerado um aluno de
sucesso. Definitivamente, o que define um sujeito de sucesso não é a aquisição
mecânica de conhecimentos escolares sem sentido em sua vida cotidiana.
Para a Psicopedagogia, essa reflexão é fundamental, já que os alunos
das classes populares, sujeitos das Escolas Públicas, são alvos de inúmeras
queixas que os levam aos consultórios de diferentes profissionais para o
tratamento de pretensos transtornos e dificuldades de aprendizagem. Na
realidade é o olhar sobre esse sujeito que pode redefinir seu desempenho na
Escola, contribuindo para a mudança do estigma de problemático para conduzi-
lo ao lugar de protagonista do seu processo de aprendizagem.

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CAPÍTULO 1
A Escola, os processos educacionais e o sujeito escolar

O primeiro capítulo desse trabalho apresenta um quadro de referências


históricas que esclarece como as transformações políticas, econômicas,
culturais e sociais influenciaram o pensamento educacional na atualidade. O
panorama ora exposto foi elaborado a partir das sínteses de Aranha (2006),
Cunha (1980), Patto (2015) e Senna (2007).
De acordo com Senna (2007), a discussão sobre o modelo de Escola na
atualidade implica delinear os processos históricos que corroboraram para o
entendimento de que a construção do sentido da Educação para as sociedades
não se estabeleceu enquanto um processo isolado das transformações impostas
por novas demandas, criadas a partir da necessidade de instaurar um novo
modelo político, social e econômico.
Dados históricos, segundo Senna (2007), comprovam que, dentre todas
as sociedades, a europeia ocupou papel determinante na influência de outras
culturas fora de seu continente, e difundiu, com a expansão ultramarina, um
sentido de Educação idealizado nos moldes da conduta do branco europeu. O
autor salienta que a expansão marítima europeia se configurou de forma
autoritária, destruindo modelos de sociedades já estabelecidas nas terras
dominadas e modificando substancialmente os modos de vida daqueles povos.
“O mundo absorveu o modelo europeu e, em um movimento de introjeção,
adotou-o como parâmetro de bem-estar e segurança, o qual vingou-se
universalmente”. (SENNA, 2007, p. 31)
Com a crise do período medieval, uma nova classe social emergiu dando
força para a original ordem pública que se instaurava no continente europeu: a
burguesia. Essa burguesia ascendente – constituída principalmente por
advogados, negociantes e capitalistas – buscou, de modo crescente, o
rompimento com o modelo de sociedade advindo da Idade Média. Inconformada
com a grande dificuldade de mobilidade social, que lhe impunha o lugar de serva,
conduziu a construção de uma ordem pública baseada na valorização do
trabalho como fonte de ascensão e estratificação social. Mais do que isso, os
burgueses ressignificaram o trabalho e lhe atribuíram o sentido da vida. Patto
(2015, p. 45) acrescenta que “a visão de mundo da burguesia nascente foi

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profundamente marcada pela crença no progresso do conhecimento humano, na
racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza”.
Patto (2015) destaca que a ascensão da burguesia introduziu o modo de
produção capitalista, culminando em grandes convulsões sociais e políticas no
século XIX como fruto das profundas transformações ocorridas em decorrência
da Revolução Industrial. Tais mudanças acarretaram numa reorganização
populacional, provocando êxodo rural para os centros urbanos industriais,
formando assim cidades profundamente marcadas por desigualdades
estabelecidas entre ricos e pobres.

[...] O processo de constituição dos estados nacionais modernos


engendrou uma nova classe dominante – a burguesia – e uma nova
classe dominada – o proletariado –, explorada economicamente
segundo as regras do jogo vigente no novo modo de produção que se
instala e triunfa no decorrer desse século. (PATTO, 2015, p. 37)

A autora afirma que, no processo de transição do modo de produção


feudal para o modo de produção capitalista, a massa camponesa assim como
os artesãos foram destituídos da condição de produtores e agricultores
independentes. A perda dos instrumentos de produção da matéria-prima para o
trabalho e da terra para cultivo, associada a outros eventos, submeteu essa
população a péssimas condições de vida, o que ocasionou o deslocamento
dessas pessoas para os grandes centros urbanos em busca de superar a fome
e a miséria. O contingente populacional migrante inaugurou uma nova relação
de trabalho: a de trabalhador assalariado, que vendia sua mão de obra em troca
de salários – que mal eram suficientes para a manutenção de sua sobrevivência.
De acordo com Patto (2015), a relação de exploração estabelecida entre
burgueses e trabalhadores expôs, nesse momento histórico, uma contradição
básica da sociedade burguesa: embora houvesse defesa de ideais de liberdade
e igualdade, ao atingir seu apogeu a burguesia industrial subalternizou e
marginalizou cada vez mais o trabalhador braçal. Ao longo do século XIX, essa
relação resultou numa divisão social expressa pelo antagonismo entre duas
classes, gerando uma clara hierarquização em que a visão de mundo da classe
dominante era imposta à classe dominada.
A revolução burguesa apresentou, conforme Patto (2015), novos critérios
para a estratificação de classes sociais, combatendo o privilégio da nobreza e

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do clero encastelados na monarquia, bem como a rigidez das estruturas
hierárquicas. No entanto, isso não significou que a partir de então haveria
uniformidade social. Os novos critérios de diferenciação passaram a ser o talento
individual, determinante para definir se um sujeito pertenceria a uma classe
social superior ou inferior. A compreensão sobre os critérios de distinção de
sujeitos, de acordo com Patto (2015), nos auxiliam a vislumbrar tanto as
perspectivas que orientam as explicações sobre o fracasso escolar, quanto
também o processo de expansão dos sistemas de ensino para a população.
No que diz respeito aos sistemas de ensino, Patto (2015) pontua que
pesquisas históricas demonstram que foi no século XIX que teve início uma
política pública educacional na Europa, derivada de três vertentes da visão de
mundo da classe dominante: 1) de um lado, o poder da razão e da ciência: o
Iluminismo; 2) de outro, o projeto liberal de um mundo em que se substituíssem
as desigualdades baseadas na herança familiar pela igualdade de
oportunidades; 3) unindo ambos, a luta pelo fortalecimento dos Estados
Nacionais, que parece ter sido a propulsora da implantação de redes públicas de
ensino em partes da Europa e da América do Norte nas últimas décadas do
século XIX.
Durante os anos de 1800, a educação escolar recebeu, de acordo com
Zanotti (1972 apud PATTO, 2015), uma fundamental missão:

A ilustração do povo, a instrução pública universal, obrigatória, a


alfabetização como instrumento – mãe que atingirá o resultado
procurado. A escola universal, obrigatória, comum e, para muitos, leiga
– será também o meio de obter a grande unidade nacional, será o
cadinho onde fundirão as diferenças de credo e de raça, de classes e
de origem. (ZANOTTI, 1972, p. 21 apud PATTO, 2015, p. 47)

Patto (2015) afirma que essa concepção de Escola atribuiu a si própria o


status de redentora da humanidade, muito embora em um primeiro momento os
sistemas de ensino não tenham assumido grandes proporções, pois nessa
época a presença social da Escola se restringia a grupos de intelectuais da
burguesia.
À massa de trabalhadores que chegava do campo para as indústrias não
cabia a escolarização, nem mesmo para as próprias atividades laborativas,
levando-se em conta que a operação das máquinas não apresentava grau de

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complexidade. Aos burgueses interessava que essa classe trabalhadora
desenvolvesse atitudes compatíveis com a nova maneira de produzir. Nessa
conjuntura, de acordo com Patto (2015), as medidas tomadas pelos patrões para
a capacitação de seus trabalhadores incluíam a imposição de regras rígidas no
ambiente de trabalho; a baixa remuneração desses operários, que os forçava a
trabalhar mais para garantir sua sobrevivência; a contratação de mulheres e
crianças – mão de obra mais barata e dócil –; e a ação vigilante no controle
desse trabalhador. Ainda que com o avançar dos anos a indústria tenha se
modernizado, sugerindo a necessidade de especializar os operários, a Escola
não se fixou, nos primórdios do surgimento da indústria, como necessária a
esses profissionais, pois naquela época a especialização era conduzida por
treinamento na própria fábrica.
Patto (2015) lembra que, durante grande parte do século XIX, tanto as
classes empresariais quanto a massa trabalhadora não apresentavam grande
interesse pela Educação. A primeira estava preocupada com a expansão de
seus negócios, ao passo que a segunda não apresentava relevante interesse na
Escola. A Educação, neste momento histórico, configurava-se enquanto anseio
de uma estreita parcela da população, representada pelas pequena e média
burguesias e pela nobreza.
No entanto, a autora chama a atenção para o fato de que, a partir de
meados do século XIX, a educação escolar ganhou relevante destaque em
países capitalistas liberais, assumindo para cada segmento das classes sociais
um significado diferente.

[...] A escola é valorizada como instrumento real de ascensão e de


prestígio social pelas classes médias e pelas elites emergentes. Como
instituição a serviço do desenvolvimento tecnológico necessário para
enfrentar as primeiras crises do novo modo de produção, de modo a
racionalizar, aumentar e acelerar a produção, ela interessa aos
empresários. Como manutenção do sonho de deixar a condição de
trabalhador braçal desvalorizado e de vencer na vida, ela é almejada
pela grande massa de trabalhadores miseráveis de uma forma ainda
frágil e pouco organizada. (PATTO, 2015, p. 50-51)

No entanto, até os 70 primeiros anos do século XIX, os sistemas de ensino


eram privilégios da parcela rica da população e valorizada por esses segmentos
como instrumento para atingir a ascensão social e o progresso econômico.
Dentro dessa perspectiva, educar para essa sociedade significava integrar os

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sujeitos identificados entre si por um padrão de pensamento e de conduta
idealizado (SENNA, 2007). Aos que não estavam adequados ao modelo de
cidadão preconizado pela cultura científica e religiosa caberia a marginalização
da sociedade, ou seja, à massa popular continuaria reservado o papel social de
trabalhador braçal, já que a esta parcela da população a Educação ofertada não
visava ao rompimento com a condição de vida à qual estava submetida.
A introdução de um novo ideal de ser humano, orientado pelas elites,
pressupunha um sujeito que acompanhasse a cultura científica e fosse capaz de
controlar as forças da natureza. Aliado ao desenvolvimento da tecnologia e dos
modos de produção, esse ser humano idealizado desencadeou novas formas de
relações sociais. Essas transformações sociais, gestadas pela modernização da
sociedade, inauguraram um conceito original de vida urbana, nomeado por
Senna (2007) como urbanidade civilizada. Segundo o autor, tal conceito
estabeleceu-se como parâmetro a ser alcançado por uma sociedade em busca
de qualidade de vida para os indivíduos nela inserida.
O conceito de urbanidade civilizada está imbricado às condições materiais
que propiciem ao indivíduo felicidade e prosperidade, fundamentais nesse
contexto para o desejo de uma vida de sucesso. A expectativa dessa sociedade
era formar um cidadão ideal alinhado ao que se pensava ser o homem urbano
moderno, de razão cartesiana e capaz de se apropriar da cultura erudita –
modelada pelo padrão europeu – e de se integrar aos seus pares, a fim de
atender às demandas de conjunturas em constante transformação. (SENNA,
2007)
Segundo Senna (2007), a crescente busca pela formação e pela
integração desse sujeito trouxe profundas modificações no que a priori se
entendia por Educação. Se em um primeiro momento a Educação definia-se
enquanto adaptação ao meio para realização das necessidades de
sobrevivência, a partir de então passaria a ser condição primordial para a
constituição e a coesão do ser humano ideal, entrelaçada à crença numa vida
idealmente feliz e próspera, num mundo novo.
Cunha (1980) acrescenta que a consideração da educação escolar como
agente de ascensão social se organiza enquanto um dos pilares do liberalismo.
Já nos primórdios da luta contra a aristocracia, a burguesia empunhava os
princípios de igualdade de direitos e oportunidades, e combatia a manutenção

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dos privilégios hereditários, defendendo assim o respeito à individualidade e
preconizando a Educação universal, estimada como capaz de possibilitar,
mediante aperfeiçoamentos intelectuais, melhores condições de vida para cada
indivíduo.
Segundo Cunha (1980), o pensamento liberal, nos princípios basilares de
individualidade, liberdade, propriedade e democracia, produziu transformações
não apenas sociais, mas também no próprio sentido da Educação. Desse modo,
apreender as questões levantadas pelo liberalismo é de suma importância para
a compreensão de tais modificações.
O autor salienta que, na esfera do individualismo, o pensamento liberal
atribui a cada indivíduo a responsabilidade pelo seu êxito ou fracasso social; já
a crença na liberdade capacita o homem a ser livre para ascender socialmente
a partir de suas capacidades e aptidões. Nesse contexto, a propriedade é
compreendida como “direito natural imprescritível” (CUNHA, 1980, p. 30),
abrangendo a todos. Cunha (1980) complementa que o pensamento liberal
defende ainda a igualdade civil, ou seja, todos os indivíduos têm o direito, por lei,
à vida, à liberdade e à propriedade como fundamento social. A democracia,
enquanto expressão das teorias políticas liberais, consiste no igual direito de
todos à participação no governo por meio de representantes de sua própria
escolha.
Definidos esses princípios, reportemo-nos ao seu desdobramento sobre
a Educação, que, na concepção do pensamento liberal, deve estar a serviço do
“homem total, liberado e pleno” (CUNHA, 1980, p. 34). O autor complementa que
“a escola a serviço do Homem, independente da família, classe ou religião a que
pertença, irá revelar e desenvolver em cada um, seus dotes inatos, talentos e
vocações” (CUNHA, 1980, p. 34). Conclui, então, que para o liberalismo a
ascensão ou decadência social de um indivíduo está ligada à sua Educação,
instrumento de equalização de oportunidades.
No entanto, a medida que imputa à esfera individual o sucesso ou o
fracasso de cada um, a doutrina liberal legitima a divisão de classes sociais,
muito embora sustente a possibilidade de que cada indivíduo seja capaz de –
por meio do trabalho, do talento e da constituição de riqueza – melhorar suas
condições de vida. (CUNHA, 1980)

17
No que diz respeito à concepção de Educação, Cunha (1980) alerta que
alguns teóricos liberais defendem posições distintas. Segundo o autor, teóricos
cuja posição pendia para um modo mais elitista/classista reconheciam o papel
da Educação popular como direito; no entanto, legitimados pelas diferenças
socioeconômicas, afirmavam não ser possível a mesma instrução para todas as
classes sociais, logo a separação do tipo de Escola era adequada a cada classe.
Esse pensamento não era unanimidade entre os teóricos liberais, pois haviam
os que resguardavam a todos o direito de uma Educação baseada nos princípios
da igualdade, capaz de uniformizar oportunidades visando à construção de uma
sociedade aberta.
Em defesa dessa última concepção de Educação, Cunha (1980) destaca
John Dewey, filósofo norte-americano que mais tarde influenciaria a Educação
brasileira na figura de Anísio Teixeira.
De acordo com Cunha (1980), Dewey, em sua teoria denominada como
pedagogia da Escola Nova, defendia um modelo de Escola destinada à
reconstrução dos laços sociais, orientada para a utilização das qualidades
individuais do ser humano como meio de conquista da democracia, e não
destinada à estratificação social defendida pelos teóricos mais conservadores.
Nessa concepção, a Escola seria o meio difusor do desenvolvimento
tecnológico e da democracia. No entanto, Aranha (2006) sinaliza que, muito
embora o rompimento com a Educação tradicional fosse bem visto pelos
progressistas, a crítica é de que a teoria de Dewey desconsiderou as
contradições sociais e políticas presentes no contexto escolar.
De acordo com Aranha (2006), a pedagogia da Escola Nova reforça a
adaptação do indivíduo à sociedade, porém não a questiona. Dessa maneira,
trata-se de uma teoria que, a despeito da tentativa de distanciamento de uma
pedagogia tradicional, se coaduna às demandas dos valores burgueses, sem
contestar as contradições que representam. A autora indica que o principal valor
burguês atendido reside na manutenção da divisão de classes, que a posteriori
estabeleceria o dualismo do pensamento educacional brasileiro, dividido entre a
Escola que recebe os filhos das classes populares e aquela que atende aos
herdeiros das classes economicamente favorecidas. Como se configura esse
pensamento educacional é o tema abordado a seguir.

18
1.1 – A construção do pensamento educacional no Brasil

Ao longo dos anos, a Escola vem sofrendo com um profundo sentimento


de frustação por parte dos professores e alunos, por não atenderem às
demandas da sociedade. No entanto, o fracasso da Escola é uma problemática
que está para além de seus muros, pois a instituição escolar está submetida às
transformações sociais, crescentes no decurso do tempo, que alteraram o modo
das pessoas relacionarem-se entre si e com o mundo. (SENNA, 2007)
Caracterizada pela forte influência de culturas diversas – por exemplo,
africanas, povos indígenas e brancos europeus –, a sociedade brasileira
desenvolveu-se, desde o período da colonização, à margem das europeias,
importando o modelo de urbanização instituído naquele continente e almejando
para seus indivíduos o padrão de comportamento daquele povo. Nesse contexto,
os nascidos no território colonial, mas não adequados ao ideal de ser humano
estabelecido pelos europeus, eram marginalizados pelo núcleo de luso-
brasileiros brancos e ricos, representados por clérigos, militares, membros e
representantes da Coroa portuguesa e grandes comerciantes. (SENNA, 2007)
Nessa conjuntura, conforme aponta Senna (2007), o processo
educacional no Brasil não se instituiu apenas a fim de civilizar e iluminar
cientificamente os sujeitos sociais, mas também mascarar a brasilidade que
marcava a influência dos povos inspirados pela cultura oral.
O Brasil que conquistara a emancipação da Coroa portuguesa manteve
uma forte relação de submissão cultural ao continente europeu, perseguindo o
mesmo modelo de desenvolvimento e introduzindo uma nova ordem pública
condicionada à necessidade de progresso industrial. Nesse contexto típico das
mudanças emergentes da industrialização e da urbanização, engendradas no
país a partir das consequências da instituição multissecular da escravidão, o
mercado de trabalho determinou novas diretrizes para o processo de
escolarização dos brasileiros, voltadas para a integração dos marginalizados ao
mundo do trabalho e a formação de mão de obra com a finalidade de atender à
crescente demanda por industrialização. (SENNA, 2007)
Segundo Senna (2007), a divisão social estabelecida na sociedade
brasileira se refletiu no tipo de Educação ofertada pelas escolas. Dessa forma, a
Educação acadêmica foi dedicada às classes afortunadas, enquanto às classes

19
subalternizadas coube a Educação profissionalizante, formadora de
trabalhadores para acelerar o processo industrial brasileiro.
Longe de proporcionar igualdade de oportunidades educacionais e
melhores condições de vida aos brasileiros que constituíam o grupo
marginalizado, a instituição escolar brasileira continuaria a perseguir um modelo
de brasileiro aos moldes da conduta do europeu. Essa meta calcava-se na
crença em uma sociedade urbana industrializada que seria capaz de viabilizar o
progresso e o bem-estar para aqueles a ela conformados.
Sendo assim, Senna (2007) afirma que, ainda que não expressasse
efetivamente melhores condições de vida, a Educação – reprodutora do modelo
de divisão de classes – seguia satisfazendo os desejos públicos. Dessa forma,
para uns significava mascarar a brasilidade promovendo a imitação do europeu,
ao passo que para os excluídos da esfera do que se entendia por cidadania,
simbolizava a chance de ascender socialmente através de um emprego
reconhecido e legitimado.
Contudo, Senna (2007) adverte que essa condição de submissão cultural
brasileira, que induzia o brasileiro a reproduzir o comportamento dos europeus,
foi questionada e remodelada a partir da arte. Segundo o autor, tal evento
histórico contribuiu para que o povo brasileiro atribuísse novo sentido à
Educação, e introduziu, gradualmente no século XX, um resgate da autoestima
nacional motivada pelo reconhecimento de uma estética cultural própria.
Paralelamente a esse movimento, a sociedade viu ruir a crença no modelo
social perseguido desde o ocaso da Idade Média, pois a humanidade voltou a
vivenciar em larga escala guerras, moléstias graves, pobreza e fome. A crise
estabelecida por esse sentimento de fracasso desestabilizou as perspectivas de
futuro da humanidade (SENNA, 2007).
De acordo com Patto (2015), a Primeira Guerra Mundial desferiu um duro
golpe na hegemonia do pensamento liberal, pois a crença na instituição escolar
como redentora da humanidade, capaz de transformá-la e libertá-la da
ignorância e da opressão, desmoronou. A perda de esperança na Educação
urgiu uma reação dos pedagogos liberais no combate à Escola tradicional, que
segundo eles era responsável pelos desastres sociais, já que, “se a escola não
estava formando democratas, isto se devia ao fato de ela mesma não ser
democrática” (p. 52). Nesse contexto, o pensamento da Escola Nova ganhou

20
força no século XX, condenando a pedagogia tradicional e defendendo uma
Educação capaz de promover espiritualmente o ser humano. Ainda segundo
Patto (2015), os pedagogos liberais do início desse século, inspirados pelo
humanismo, avaliavam a Escola como meio de “realizar uma sociedade
igualitária” (p. 53), acreditando no mérito pessoal como diferencial na ocupação
de lugares sociais.
No Brasil, conforme Aranha (2006), a teoria da Escola Nova inaugurou
novas técnicas pedagógicas que rompiam com a Educação tradicional,
asseverando a necessidade de uma Escola única, obrigatória e gratuita para
todos. No entanto, a autora salienta que os benefícios dessa nova concepção de
Educação não foram suficientes para que o debate sobre a universalização das
oportunidades educacionais fosse fortalecido, persistindo assim o dualismo
escolar e a desvalorização do ensino fundamental destinado às classes
populares.
A Educação brasileira influenciada pelos ideais da pedagogia da Escola
Nova avançou no sentido de atendimento à maior parcela da população, porém,
à medida em que ampliava seu poder de alcance, se acentuava seu caráter
discriminatório.
Nessa conjuntura, surgiram os cursos profissionalizantes, sob o
argumento proveniente de alguns setores da sociedade acerca da necessidade
de adequar o Brasil ao progresso, por meio da formação de mão de obra para o
desenvolvimento industrial do país (ARANHA, 2006). No entanto, essa
Educação destinava-se apenas às classes populares, já que às camadas médias
– desejosas de ascensão social e econômica – e às abastadas – mirando a
manutenção de seus privilégios – cabia a Escola formativa. Evidentemente, tal
dicotomia no processo educacional brasileiro intensificou a discriminação social,
em uma sociedade já marcada pela divisão de classes.
Desse modo, segundo Aranha (2006), atenta às demandas do liberalismo,
a Escola, instituição reprodutora dos ideais sociais, percorreu o caminho do
tecnicismo, que impõe à Educação a obediência a um modelo empresarial de
organização baseado na lógica do sistema de produção capitalista, que
preconiza a economia de tempo, esforços e custos. Nesses termos, “investir em
Educação significaria possibilitar o crescimento econômico”. (ARANHA, 2006, p.
315)

21
No entanto, a autora salienta que, não obstante os esforços em instaurá-
lo no país, o tecnicismo não se solidificou. Muito embora tenha incorporado
alguns dos seus procedimentos burocráticos característicos, a classe docente
continuou seguindo a tendência tradicional aliada a pressupostos da pedagogia
da Escola Nova.
Contudo, conforme demarca Aranha (2006), não se configura uma
hipótese descartada a adoção de medidas educacionais baseadas nos
pressupostos teóricos do tecnicismo, tendo em vista o atual momento de
globalização e o avanço do ideal neoliberal que visam, antes de tudo, à
estabilidade econômica do Estado. A autora sinaliza que instituições
internacionais exercem forte influência em países considerados periféricos,
como o Brasil, para que cumpram a cartilha neoliberal que impõe a contenção
de gastos e a distribuição de recursos de acordo com a qualidade das escolas –
verificada mediante avaliações aplicadas pelo Ministério da Educação (MEC). A
autora ainda adverte que, ao estabelecer essas medidas, o Estado valoriza a
concorrência entre as escolas, estimulando a política do ensino pago, como
também a parceria público-privada, objetivando a captação de recursos.
Nessa perspectiva, o conceito de Educação enquanto bem público,
gratuito e dever do Estado se desloca para a esfera do privado, transferindo,
inclusive, sua responsabilidade para a sociedade civil, a comunidade e a família.
Dessa maneira, as medidas adotadas segundo a cartilha neoliberal representam
perdas significativas para a Educação Pública, reduzindo investimentos do
Estado e afetando Políticas Públicas Educacionais.
Conclui-se, portanto, que, ao longo da história da Educação no Brasil, é
possível verificar que a Escola tende a conservar seu caráter seletivo, pois é
notória a tardia universalização da Educação, principalmente para as classes
populares. Conforme sinaliza Aranha (2006), basta constatar que a parcela mais
pobre da sociedade tem sido sistematicamente excluída da Escola ou
encaminhada para cursos profissionalizantes, reforçando o dualismo que
sempre existiu entre a Escola técnica destinada às classes populares e a Escola
formativa restrita aos sujeitos de maior poder econômico.
Esse processo de exclusão, no entanto, nunca foi privilégio apenas dos
segmentos mais pobres, mas também de mulheres e portadores de
necessidades educativas especiais. Além destes, faz parte desse grupo de

22
excluídos aqueles que abandonam cedo a Escola por apresentarem dificuldades
em acompanhar o modelo de Escola implantado, seja por serem considerados
indisciplinados ou julgados como portadores de algum distúrbio ou disfunção, ou
simplesmente pela necessidade de começar a trabalhar para ajudar no sustento
da família. Verifica-se, portanto, que apesar dos significativos avanços, a Escola
Pública Brasileira ainda está marcada pela exclusão dos diferentes, sendo
assim, não plenamente democrática.

23
CAPÍTULO 2
O processo de escolarização das classes populares e a produção do
fracasso escolar no Brasil

Na análise de dados oficiais (Brasil, 2017) sobre o sistema educacional


brasileiro sobressaem, predominantemente nas redes públicas de ensino, altos
índices de reprovação e evasão escolar, apesar de apresentar alguns avanços
nas políticas educacionais que possibilitam o acesso de crianças, jovens e
adultos das classes populares à escola. A consequência direta destes índices
consiste na exclusão prematura desses alunos do processo de ensino-
aprendizagem. Corroborando com esse diagnóstico, Esteban (2000) já advertia
que, por um lado, a ampliação do número de alunos e, por outro, a gradual
redução dos índices de evasão e repetência não significaram efetivamente a
superação dos graves problemas na trajetória de uma parcela dos estudantes
que se encontram em situação de distorção idade-série.
Nesse sentido, este capítulo pretende analisar e problematizar, a partir da
produção acadêmica sobre o processo de escolarização no Brasil, de que
maneira as concepções difundidas por alguns teóricos sobre o processo de
desenvolvimento escolar de alunos de segmentos mais pobres da população
contribuem para que esses sejam estigmatizados e paulatinamente excluídos da
Escola sob a condição de fracassados. Para tanto, destacam-se o processo de
expansão da Educação Escolar e o acesso das classes populares às unidades
de ensino, bem como as condições que colocam esses sujeitos em situação de
fracasso escolar.

2.1 – A construção da identidade social do povo brasileiro, seu processo de


escolarização e a produção do fracasso escolar nas classes populares

A construção da identidade social e cultural do brasileiro, como


anteriormente discutido, foi desde a colonização marcada por uma relação
hierarquizada entre uma classe dominante e uma classe dominada e, também,
marginalizada. Nesse sentido, pode-se afirmar que a lógica de exclusão é o
escopo fundamental da estrutura social brasileira, na qual diferentes povos
conviveram (e ainda convivem) em conflitos culturais a partir da chegada dos

24
europeus nessa terra. Sobre tal aspecto, Machado e Senna (2012) asseveram
que a constituição do perfil da nossa sociedade foi marcada pelo preconceito da
parcela branca da população em relação aos sujeitos orientados por culturas
orais multiétnicas – povos indígenas e povos africanos. Segundo esses autores,
“a constituição do povo brasileiro, miscigenado étnica e culturalmente” (p. 46)
influenciou diretamente o processo de escolarização do povo brasileiro.
No Brasil, o processo de expansão do atendimento escolar à população
se desenrolou sob um cenário de efervescência social e política, com a
incorporação de ideais liberais. No entanto, não escondeu seu caráter
eminentemente elitista, já que “a educação escolar era privilégio de
pouquíssimos; quando da Proclamação da República, menos de 3% da
população frequentava a escola” (PATTO, 2015, p. 79).
De acordo com Machado e Senna (2012), a Escola brasileira surgiu
orientada pela qualificação do ser humano tanto para o trabalho quanto para a
civilização do povo brasileiro aos moldes de uma cultura europeia. No decorrer
do século XX, a democratização da Escola significou também a obrigatoriedade
da sua oferta para todos, o que significou o que Farias (2007, p. 235) chamou de
“quebra de barreiras entre pobres e ricos pela igualdade de chance para todos”,
muito embora se tenha configurado apenas um sonho, visto que na realidade a
Escola tratou de manter a lógica de subalternização da classe dominada em
relação à dominante. Machado e Senna (2012) salientam que a Escola
incorporou os dois brasis, o formado aos moldes da cultura europeia e o
tipicamente brasileiro. Nesse último, o povo visava à entrada no mercado de
trabalho, sem abandonar sua identidade cultural.
Nesse sentido, a expansão da escolarização no Brasil significou o
deslocamento dos conflitos culturais e sociais entre a classe dominante e a
classe dominada para o domínio da Escola. Segundo Mantoan (2010), a
Educação Escolar, desde a sua inserção na sociedade brasileira, está atrelada
a um projeto escolar elitista, no qual predomina uma concepção de aluno
idealizado que deve ser ensinado a partir de uma perspectiva meritocrática e
homogeneizadora. Esse aspecto revela que a construção do pensamento
educacional, influenciado pela busca de um sujeito ideal, acaba por rotular o
sujeito real, que não se enquadra nos parâmetros estabelecidos pela Escola e

25
pela sociedade, sendo, então, identificado como portador de distúrbios de
aprendizagem.
Mas afinal, quem é o sujeito das classes populares e qual o sentido da
Escola para essas pessoas? De acordo com Machado e Senna (2012, p. 47),
para o povo a Escola representa uma oportunidade de melhorar de vida
mediante a possibilidade de conquista de “um emprego reconhecido e legitimado
socialmente”. Porém, desde a sua inserção no processo escolar, sob o escudo
da obrigatoriedade do ensino, esses alunos são recorrentemente instados à
busca por um padrão social normatizador que nega a sua identidade cultural,
colocando-os sistematicamente em um lugar de subalternizado. Senna sintetiza
esse conflito:

Parecer ser um homem urbano preparado para o trabalho sempre foi


mais importante para o brasileiro comum do que ser um homem urbano
que pensa na vida como um labor. Parecer ser um homem que opera
com o mundo dos conceitos científicos – normalmente nas provas e
nos exames escolares – sempre foi mais relevante do que incorporar o
modelo científico de pensamento para planejar e estruturar seu futuro.
(SENNA, 2007, p. 41)

Conforme Machado e Senna (2012), para esses sujeitos, a crença no


poder da Escola em transformar a sua realidade e a aparente possibilidade de
satisfação dos desejos públicos é que os mantinham dentro das unidades de
ensino. Entretanto, os autores salientam que crises mundiais ocasionadas por
guerras e crises econômicas do início do século XX concorreriam para a ruptura
desse pacto, pois não seriam mais garantidas as condições de bem-estar social.
A fome, a pobreza e a proliferação de doenças incuráveis se traduziria em revolta
das classes menos favorecidas.
Aliado a esse fato, a sociedade brasileira experimentou também o
fortalecimento do sentimento de autoestima dos marginalizados. O povo
brasileiro saía da clandestinidade para o protagonismo social com o
reconhecimento de uma estética cultural e artística própria. Para Senna (2007),
tais fatores contribuíram para que o mito do homem cartesiano civilizado caísse
por terra. O autor sinaliza que a perda de confiança na Educação Escolar e no
padrão de homem ideal instaura uma crise social, suscitando questionamentos
das classes populares quanto à serventia da Escola, levando em consideração

26
que se transformar em um homem urbano não significaria melhora da sua
condição de vida.
Desse modo, conforme aponta Machado e Senna (2012), num contexto
social marcado por profundas transformações, a Educação Escolar pautada num
modelo civilizatório, à moda de um homem idealizado pelos iluministas, entra em
colapso. Segundo os autores, a Escola não satisfaz as pluralidades de
identidades culturais afloradas na sociedade contemporânea. Combinado a isso,
segue preservando seu caráter excludente, na medida em que desconsidera os
sujeitos que não se encaixam no padrão social da classe dominante.
Dubet (2003) evidencia que, ao longo de toda a sua construção, a
Educação Escolar esteve marcada pela ambiguidade gerada a partir da
resistência das classes populares em incorporarem integralmente o padrão
instituído pela classe dominante. Soma-se a isso a estrutura excludente da
Escola, visto que a oferta escolar nunca se configurou de maneira homogênea,
tampouco produz o mesmo efeito para todos. Esse quadro deve-se, como já
sinalizado, a uma seletividade no oferecimento da Educação às classes
populares.
Diante dessa perspectiva, pensar o fracasso escolar é contextualizá-lo
nas escolas públicas, já que, de acordo com Patto (2015), no Brasil, a discussão
acerca das dificuldades de aprendizagem tem como cenário essas escolas.
Segundo a autora, é predominantemente entre crianças oriundas das classes
populares, matriculadas na rede pública, que se manifestam tais dificuldades.
Esse aspecto evidencia o preconceito em relação aos sujeitos das classes
populares.
O processo de ensino-aprendizagem de alunos pobres é perpassado por
rótulos a respeito de sua capacidade de assimilação dos conteúdos escolares,
refletidos na visão preconceituosa sobre os motivos pelos quais esses alunos
não atingem o rendimento escolar esperado pela Escola e pela sociedade.
Ao longo dos anos, a academia dedicou-se a pesquisar os processos
educacionais no Brasil e investigar os motivos pelos quais os alunos das classes
populares apresentam resultados escolares aquém do esperado pela Escola e
pela sociedade. Tais pesquisas contribuem substancialmente para que
possamos entender quais são as bases teóricas que fundamentam o preconceito
direcionado a esses alunos e de que maneira tais concepções nortearam a

27
implementação de Políticas Públicas Educacionais no país. Considerando a
relevância dessas pesquisas para a compreensão dos processos que conduzem
os alunos das classes populares para as situações de fracasso escolar,
apresenta-se um breve histórico sobre os aspectos que influenciaram as
percepções sobre educação e fracasso escolar presentes em documentos
oficiais e produções acadêmicas desde o início do século XX, tendo como base
principal o estudo apresentado por Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004).

2.2 – As concepções de escola e fracasso escolar no Brasil desde o início do


século XX

De acordo com Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004), no final da


década de 1930, o Brasil começou a dar os primeiros passos na construção de
um campo de pesquisa que tinha como foco os processos educacionais no país.
A criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep)1, órgão vinculado
ao então Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública (atual Ministério
da Educação – MEC), conduziu as primeiras pesquisas oficiais sobre a
Educação Brasileira, com o objetivo de subsidiar a condução de políticas
públicas no âmbito educacional. Segundo as autoras, esse momento inaugural
foi fortemente influenciado pelo sentido de Educação defendido pela Escola
Nova, cuja base científica compreendia uma abordagem biológica e psicológica
da Educação Escolar. Essa perspectiva evidentemente serviu de base para o
entendimento inicial sobre o fracasso escolar e inflamou discursos que mais
tarde justificariam a patologização da Educação.
O segundo momento da pesquisa educacional no país aconteceu no
período de ascensão da ideologia nacional-desenvolvimentista, durante a
década de 1950. O contexto centrava-se na busca pelo progresso econômico
valorizando o desenvolvimento da tecnologia. Em virtude disso, a Escola era
necessária à formação de mão de obra qualificada para o trabalho. Tal
compreensão refletiu-se em Políticas Públicas Educacionais norteadas por uma
concepção utilitarista da Educação, difundida na sociedade como meio de

1“O Inep foi criado, por lei, no dia 13 de janeiro de 1937, sendo chamado inicialmente de Instituto
Nacional de Pedagogia. No ano seguinte, o órgão iniciou seus trabalhos de fato, com a
publicação do Decreto-Lei nº 580, regulamentando a organização e a estrutura da Instituição e
modificando sua denominação para Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos”. (INEP, 2015)

28
modernizar o país e ampliar a indústria (ANGELUCCI, KALMUS, PAPARELLI e
PATTO, 2004).
Nas décadas seguintes, é possível observar que as concepções acerca
da Educação não se distanciaram efetivamente do caráter utilitarista já defendido
nos anos 1950. De acordo com Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004), a
pesquisa educacional sobre o fracasso escolar da década de 1970 aponta para
a relação dos currículos escolares com as necessidades do mercado de trabalho,
reforçando a marca, acima debatida, do caráter utilitarista da Educação Escolar
no Brasil.
O entendimento de que a Escola representava um meio pelo qual a
sociedade atingiria o progresso econômico e a expansão da industrialização do
país denuncia, de acordo com Patto (2015), uma concepção funcionalista de vida
social, que segundo a autora propiciou a adesão maciça por parte de
autoridades, pesquisadores e da própria Escola à Teoria da Carência Cultural.
Tal teoria, desenvolvida pela psicologia educacional norte-americana e
amplamente difundida no Brasil, advoga que as crianças das classes populares
estão inseridas em ambientes econômica e culturalmente desfavorecidos, sem
condições de serem estimulados para amadurecerem habilidades exigidas pela
Escola, justificando a incapacidade de aprender. Nesse sentido, o baixo
desempenho escolar de alunos das classes populares tem como determinantes
as características específicas desses alunos e de seu contexto familiar. Essa
perspectiva desconsidera que existam fatores intraescolares que influenciam o
processo de ensino-aprendizagem e, por isso, culpabilizam o sujeito pobre por
seu fracasso escolar.
No entanto, segundo Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004), no final
da década de 1970, outras pesquisas começaram a denunciar a participação da
Escola na produção do fracasso escolar. A reflexão sobre aspectos como a
burocratização da escola, o distanciamento entre a cultura escolar e a cultura
popular, a carência de material didático apropriado e a discriminação da
comunidade escolar em relação aos alunos diferentes alavancou uma ruptura
teórica a respeito do entendimento construído acerca do fracasso escolar.
Contudo, as autoras asseveram que essa nova abordagem do tema ainda estava
impregnada da Teoria da Carência Cultural, na medida em que se apoiava na
justificativa de que “a escola é inadequada às características psíquicas e

29
culturais da criança carente” (p. 56). Farias (2007) acrescenta que a hipótese da
carência cultural de alunos das camadas populares define que as crenças, os
hábitos e as habilidades considerados como típicos da classe social dominante
são tomados como mais adequados para um desenvolvimento psicológico sadio.
Nesse sentido, efetivamente, o que se pode perceber é que o pensamento
educacional, desta época, acerca dos fatores que levam os sujeitos das classes
populares a fracassar na escola não a considerava como instituição social
perpetuadora de rótulos e da divisão de classes sociais, já experienciada fora de
seus muros, o que, por sua vez, condenava os pobres à marginalização dos
processos escolares.
De qualquer forma, Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) sinalizam
que a pesquisa educacional do final da década de 1970 propiciou que nas
décadas seguintes a abordagem sobre o fracasso escolar de alunos das classes
populares tivesse incrementado um viés mais crítico, porém insuficiente para que
o discurso de que alunos pobres apresentam deficiências culturais e cognitivas
que os impedem de aprender tenha sido superado. De acordo com Patto (2015),
à medida em que as pesquisas sobre o tema foram aprofundando-se na análise
da estrutura da Escola e do seu funcionamento, a qualidade da Educação
Escolar ofertada às classes populares foi questionada, no entanto, se repetindo
a alegação de que a escola é inadequada à clientela carente. Essa perspectiva
expõe que o debate sobre as causas do fracasso escolar dos sujeitos
pertencentes a segmentos mais empobrecidos da população, apesar de um
sensível avanço, sempre esteve marcado pelo olhar preconceituoso a respeito
das possibilidades de aprendizagem de alunos pobres.
Nos anos 1980, novas concepções acerca da Educação e do fracasso
escolar são orientadas, conforme asseveram Angelucci, Kalmus, Paparelli e
Patto (2004), por teóricos como Althusser, Bourdieu e Gramsci – críticos do
modelo educacional em vigor na época. A chegada ao Brasil, no início da
década, de Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, obra de Althusser
originalmente publicada em 1970 na França e traduzida no Brasil apenas na
década seguinte, criou um abismo entre a concepção de Escola até então
consensual: “a partir de então, firmou-se a concepção de Escola como instituição
social que só pode ser entendida se remetida à estrutura da sociedade que a
inclui” (ANGELUCCI; KALMUS; PAPARELLI; PATTO, 2004, p. 56).

30
De acordo com Patto (2015), as ideias de Althusser, Bordieu e Passeron,
dentre outros autores, introduziram um novo olhar sobre o papel social da
Escola, a partir de uma compreensão crítica da sociedade. Segundo Patto
(2015), tais autores integraram a bibliografia das publicações sobre o
pensamento educacional no Brasil e o processo de escolarização de seu povo,
apresentando um contraponto às ideias difundidas pela Teoria da Carência
Cultural, concomitantemente ainda bastante difundida no país. Sobre tal
aspecto, a autora assevera que:

[...] [essas novas ideias] forneceram as ferramentas conceituais para o


exame das instituições sociais enquanto lugares nos quais se exerce a
dominação cultural, a ideologização a serviço da reprodução das
relações de produção; na escola, o embaçamento da visão da
exploração seria produzido, segundo essa teoria, principalmente pela
veiculação de conteúdos ideologicamente viesados e do
privilegiamento de estilos e de linguagem característicos dos
integrantes das classes dominantes, o que faria do sistema de ensino
instrumento a serviço da manutenção dos privilégios educacionais e
profissionais dos que detêm poder econômico e o capital cultural.
(PATTO, 2015, p. 137)

Diante dessa perspectiva, a partir da década de 1980, aprofundam-se os


estudos que centram a Escola como objeto de reflexão, jogando luz sobre as
contradições estabelecidas pela própria instituição escolar, como reprodutora da
lógica da desigualdade social. Nesse contexto, embora tenha dividido a atenção
com as concepções que atribuíam ao aluno e às suas condições
socioeconômicas, culturais e familiares a responsabilidade pelo seu insucesso
na Escola, o fracasso escolar foi ressignificado, de sorte que os fatores
intraescolares, tomados assim como determinantes para que os alunos
apresentem baixo rendimento escolar, ganharam relevância para a construção
de um novo olhar sobre o tema.

2.2.1 – As concepções sobre o fracasso escolar presentes nas produções


acadêmicas

A partir da análise da produção acadêmica realizada na década de 1990,


Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) destacaram algumas concepções
sobre o fracasso escolar que nos fornecem dados para compreender como o
tema é entendido e estudado.

31
Entre as obras que se debruçaram sobre a investigação a respeito das
causas do fracasso escolar, há uma vertente, segundo as autoras, que atribui tal
fenômeno a problemas psíquicos do aluno. Ao abordar o tema a partir dessa
concepção, tal corrente imputa aos alunos e às suas famílias a responsabilidade
pelos maus resultados que apresentam na Escola. Os pesquisadores defensores
dessa teoria argumentam que a inserção em meios familiares patologizantes
causam às crianças das classes populares problemas emocionais que, aliados
à sua incapacidade intelectual decorrente da sua carência cultural, são
determinantes para que fracassem na escola.
De acordo com Farias (2007), a compreensão de que o ambiente familiar
das crianças das classes populares é desfavorável ao seu processo de
desenvolvimento, bem como decisivo para que fracassem na escola surgiu da
incorporação de saberes da Psicologia pelo campo da Educação. Sobre as
consequências da adoção da Teoria da Carência Cultural para a prática
educativa, o autor assevera que:

O reflexo disso foi a adoção pelas escolas de especialistas para


operarem tanto no campo da prevenção quanto no do reparo dos
problemas de aprendizagem, supostamente decorrentes da vivência
do aluno em ambientes familiares entrópicos. (FARIAS, 2007, p. 237)

Segundo Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004), nessas teses a


escola é vista como o ambiente ideal para o desenvolvimento de habilidades e
potencialidades do aluno, de forma que a não adequação ao sistema escolar
demonstra a sua incapacidade de adaptação ao ambiente. Nesse contexto,
espera-se que esse aluno seja capaz de desenvolver suas capacidades
individuais que o preparem para lidar com uma realidade imponderável. A partir
dessa perspectiva é que alguns pesquisadores correlacionam o desempenho
escolar à saúde mental, denunciando o aspecto biológico dessa abordagem
sobre o fracasso escolar.
Farias (2007) alerta que a concepção de fracasso escolar enquanto
consequência de uma anomalia biológica desencadeou a prática da
medicalização daqueles que não aprendem na Escola. Tal procedimento baseia-
se na crença de que é possível corrigir alguns desvios de normalidade mediante
a prescrição de remédios.

32
Sobre a medicalização da Educação, Leonardo e Suzuki (2016, p. 48)
destacam que em tal procedimento prevalece “uma concepção individualizante
dos problemas no processo de escolarização, em desconsideração aos aspectos
sócio-históricos”, reforçando o quadro de biologização do processo de ensino-
aprendizagem, defendida pela vertente que atribui aos problemas psíquicos as
causas do fracasso escolar. Embora seja uma prática bastante em voga na
Modernidade, as autoras evidenciam que a medicalização é uma prática
socialmente aceita há mais de um século.
A interferência da Medicina nos processos educacionais expõe uma
perspectiva positivista da Educação, transformando um fenômeno social, o
fracasso escolar, em objeto biológico (MACHADO, 2015).
De acordo com Moysés (2011), no século XIX, a partir da instituição de
um serviço de saúde escolar, a Medicina interferiu inclusive nos currículos
aplicados às escolas, sob a justificativa de que essa seria o lugar ideal para que
as doenças fossem combatidas. O saber médico influente à época imputava a
proliferação de muitas dessas doenças à ignorância das classes populares.
Assim, sob o pretexto de garantir condições de saúde adequadas à
aprendizagem dos alunos, a Medicina dentro da Escola tratou de selecionar e
classificar aqueles que não se ajustavam à instituição, com a justificativa de que
esses alunos apresentariam distúrbios de aprendizagem, encaminhando-os aos
serviços de atendimento clínico (MOYSÉS, 2011)
Na atualidade, de acordo com Machado e Signor (2014), há um número
expressivo de crianças e jovens que são encaminhados a avaliações clínicas por
não se adequarem às expectativas do sistema escolar. As autoras denunciam
que um percentual significativo desses alunos, ao serem submetidos a
avaliações de profissionais da saúde, acabam sendo diagnosticados com
transtornos de aprendizagem, com destaque para os Transtornos Funcionais
Específicos (TFE). Esses transtornos são compreendidos como um conjunto de
sinais ou sintomas manifestados em função de disfunções neurológicas que
comprometem a capacidade de aprendizagem dos alunos enquadrados nesse
diagnóstico.
Os TFE compreendem as doenças do não aprender na Escola
classificadas como dislexia, disortografia, discalculia, disgrafia, transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), distúrbio de processamento auditivo

33
central (DPAC), transtorno de oposição desafiador (TOD), dentre outros.
(MACHADO; SIGNOR, 2014)
Machado e Signor (2014) advertem que as práticas avaliativas do campo
da saúde, em geral, se enquadram na perspectiva do pensamento naturalista, o
qual atribui aos problemas escolares caráter orgânico, colaborando diretamente
para o processo de patologização da Educação. Sobre tal aspecto, as autoras
sublinham:

Tal processo representa a transformação de questões não médicas,


isto é, sociais, e historicamente construídas, em questões da área da
saúde. Quando patologizados, os aspectos sociais perdem sua
dimensão coletiva; a questão deixa de ser de ordem cultural, histórica,
afetiva e política e passa a ser um problema individual. (MACHADO;
SIGNOR, 2014, p. 506)

O processo de patologização da Educação justifica a atuação de


profissionais da área da saúde a partir de tratamentos e práticas medicalizantes
para tratar o mau rendimento escolar de sujeitos que na verdade não atendem
às demandas da escola. Leonardo e Suzuki (2016) acrescentam que a
prescrição de remédios não apresenta efetivo combate ao fracasso escolar,
tendo em vista que persistem dados de crianças e jovens que apresentam
problemas com a aprendizagem dos conteúdos escolares.
Contrapondo as concepções medicalizantes e psicologizantes sobre o
fracasso escolar, Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) apontam outra
vertente da pesquisa sobre o assunto que propõe reflexões acerca das origens
da queixa escolar, fugindo do reducionismo de se atribuir a culpa sobre o mau
rendimento aos próprios alunos. No entanto, as autoras ponderam que, apesar
da tentativa de superar a culpabilização do aluno por seu fracasso, tal
abordagem contradiz-se ao se reaproximar da perspectiva que criticam.
Propondo avaliações e intervenções centralizadas no aluno como forma de
combater as dificuldades de escolarização, essa vertente reafirma seu caráter
reducionista, inclusive atribuindo ao professor o papel de interventor capaz de, a
partir do conhecimento e da aplicação da técnica de ensino correta, remediar
problemas culturais, emocionais e comportamentais dos alunos, e assim
viabilizar a apresentação de melhores resultados na Escola.

34
A partir dessa afirmação, é possível perceber que a abordagem que
confere ao professor a responsabilidade pelo baixo rendimento de seus alunos
está impregnada de preconceitos em relação ao aluno pobre. Nessa perspectiva,
o aluno chega à escola repleto de dificuldades, pois sua condição
socioeconômica insere-o em um ambiente que não estimula as suas habilidades
cognitivas, sociais e culturais. Consequentemente, é o professor, mediante o
domínio da técnica de práticas pedagógicas eficazes, quem será capaz de
remediar os problemas de aprendizagem desse aluno. Se mesmo assim esse
aluno não melhorar seus resultados, então é encaminhado para especialistas,
pois é considerado como portador de alguma anomalia psíquica. (ANGELUCCI;
KALMUS; PAPARELLI; PATTO, 2004)
Patto (2015) reforça a proposição de que tal abordagem é igualmente
influenciada pela Teoria da Carência Cultural, ao afirmar que algumas
publicações da década de 1980 sugerem a análise do currículo e da forma de
trabalho do professor, orientando para que sejam consideradas as reais
condições de aprendizagem das crianças das classes populares. A autora
destaca o caráter irreconciliável entre as teorias baseadas na relação professor-
aluno e a Teoria da Carência Cultural, muito embora estejam presentes em
diversas produções acadêmicas a respeito do fracasso escolar.
Entre as abordagens predominantes sobre o fracasso escolar, de acordo
com Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004), há ainda a vertente que atribuiu
a esse fenômeno causas institucionais, advogando que a Escola obedece a uma
lógica de exclusão, inerente ao sistema educacional público no Brasil, que se
reflete no mau rendimento de alunos das classes populares.
Nesse ponto de vista, as Políticas Públicas assumem um papel
determinante na produção do fracasso escolar, na medida em que suas ações,
perpassadas pelos valores e interesses do capital, condicionam a Escola a um
sistema cada vez mais intolerante às diferenças, por consequência reproduzindo
a lógica excludente própria do sistema capitalista. A superação desse panorama,
para os pesquisadores, reside na reestruturação das Políticas Públicas
Educacionais comprometidas com a construção de uma Escola Pública
democrática e progressista.
No entanto, Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) ponderam que,
ao relacionar o fracasso escolar diretamente à estrutura seletiva e excludente do

35
sistema escolar, pesquisadores não escapam à armadilha de ver tal fenômeno
por meio de uma ótica tecnicista, posto que nessa abordagem a superação do
fracasso de crianças e adolescentes na Escola fica dependente apenas da
adoção de Políticas Públicas Educacionais. Ademais, afirmam que as reformas
e os projetos para superar os problemas da Educação são prejudicados pelo
conservadorismo dos professores, cuja prática é orientada por uma visão
tradicional do aluno e da Escola.
Superando as abordagens anteriores, Angelucci, Kalmus, Paparelli e
Patto (2004) destacam, a partir da análise de documentos acadêmicos, que há
uma corrente de pensamento que confronta os estigmas e estereótipos acerca
dos alunos pobres, das suas famílias, do despreparo do professor para atuar
com essa clientela e do tecnicismo defendido pelos que advogam pela adoção
de medidas técnicas pedagógicas no combate a um fenômeno complexo como
o fracasso escolar.
O fracasso escolar consiste, portanto, em um fenômeno intrincado e
multifacetado, de modo que a abordagem sobre o tema não pode se alinhar a
perspectivas reducionistas que atuam na busca por explicações que
culpabilizam os alunos, as suas famílias, os professores e o sistema educacional.
As pesquisas apresentadas por Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004)
evidenciam a marcante tendência de pesquisadores em não considerar a
patente complexidade do tema, apresentando explicações unicausais sobre o
problema de escolarização de alunos das classes populares.
Sobre as diferentes abordagens do fracasso escolar, Gualtieri e Lugli
(2012) revelam que, apesar dos equívocos na interpretação desse tema, as
concepções apresentadas influenciam significativamente na maneira como
Escola e a sociedade lidam com o assunto. As autoras advertem que tais
concepções

[...] circulam entre os educadores, convivem em seu imaginário,


organizam práticas escolares, são referência para compreender a
aprendizagem, o papel da escola e do professor, afetam os
julgamentos que se fazem dos alunos e de suas famílias, orientam
políticas públicas. (GUALTIERI; LUGLI, 2012, p. 14)

Conforme Gualtieri e Lugli (2012), é preciso suplantar as abordagens


reducionistas sobre o fracasso escolar. Nesse sentido, as autoras apontam que

36
há de se considerar que a prática educacional está envolvida com o
entrelaçamento de aspectos como a cultura escolar, o currículo, os conteúdos
escolares, os métodos de ensino, os fatores individuais relativos aos educadores
e alunos, a configuração do grupo de professores e alunos que interagem e os
fatores culturais e sociais que afetam a vida escolar. Explicitar e discutir todos
esses aspectos é essencial quando se quer analisar, repensar e, sobretudo,
enfrentar o fracasso escolar.

37
CAPÍTULO 3
Repensando o fracasso escolar e o sujeito escolar numa perspectiva sócio-
histórica da Educação

Este capítulo pretende, a partir de uma perspectiva histórico-cultural,


discutir os problemas de escolarização de crianças e jovens das classes
populares – público predominante das escolas públicas brasileiras. Saliente-se
para tanto a importância de repensar os processos educacionais, questionando-
se as manifestações de problemas de aprendizagem desses sujeitos na Escola.
Para atingir tais objetivos, este capítulo trará reflexões sobre a organização da
Escola, a formação e a prática docentes, a relação estabelecida entre as famílias
e a Educação Escolar e o sentido da experiência escolar para os sujeitos
rotulados como fracassados.
De acordo com Gualtieri e Lugli (2012), o enfrentamento das questões
que caracterizam o fracasso escolar – mau desempenho dos alunos, repetência
e evasão escolar – tem recebido, nos últimos anos, especial atenção do sistema
educacional brasileiro. As autoras sustentam que os indicadores sobre o
processo de escolarização de alunos das classes populares vêm apontando para
a ineficiência desse sistema, já que são expressivos os dados sobre os sujeitos
que fracassam na Escola. Dessa forma, a presença de alunos das classes
populares nas escolas não se tem constituído enquanto garantia de que sejam
de fato incluídos nos processos de escolarização.
As autoras pontuam que os problemas enfrentados pelos segmentos
empobrecidos da população não são novidade, pois a “baixa escolarização ou
pouca educação formal” (GUALTIERI; LUGLI, 2012, p. 45) de uma considerável
parte da população sempre foi expressiva. No entanto, conforme a sociedade
passou a tratar com urgência a necessidade de formação de mão de obra
especializada, começou também a exigir da classe trabalhadora conhecimentos
que fossem além de ler, escrever e realizar operações matemáticas simples.
Sobre esse panorama, as autoras advertem que,

[...] à medida em que ocorreu a entrada maciça de novas tecnologias


que substituíram boa parte do trabalho humano braçal e repetitivo, a
atividade produtiva e de serviços começou a reclamar uma
escolarização mais longa e abrangente, que fosse além das primeiras
letras e contas. (GUALTIERI; LUGLI, 2012, p. 45-46)

38
No entanto, Gualtieri e Lugli (2012) afirmam que, para além da carga
utilitarista atribuída à Educação voltada para o mundo do trabalho, a
democratização do ensino e do acesso da classe trabalhadora à Escola se
configurou como a resposta à pressão de movimentos sociais que clamavam
pela inclusão de crianças e jovens das classes populares no sistema escolar, já
que esses não poderiam continuar tendo seus direitos negados.
A entrada de sujeitos das classes populares na Escola não se deu sem
conflitos, posto que nela “dois brasis se encontraram: um, europeu, o outro,
tipicamente brasileiro, que apesar de desejar se inserir no mercado de trabalho
não pretendia abrir mão de sua cultura” (MACHADO; SENNA, 2012, p. 47).
Nesse contexto, de acordo com Machado e Senna (2012), educar o sujeito das
classes populares era, acima de tudo, civilizá-lo, isto é, marcado por traços da
cultura brasileira, esse sujeito careceria de instrução à moda da cultura científica
europeia.
A imposição aos sujeitos das classes populares de um padrão de
comportamento alinhado ao modelo de homem cartesiano civilizado expõe a
intolerância e o preconceito da Escola com as outras formas de manifestações
culturais e práticas sociais destoantes dos valores sociais dominantes
estabelecidos pela cultura moderna.
Na medida em que Escola e sociedade negavam a identidade cultural dos
sujeitos das classes populares, esses foram conduzidos para a condição de
marginalizados e sistematicamente excluídos dos processos educacionais.
Sobre tal aspecto, Machado e Senna (2012) advertem:

O problema se instaura quando a escola, e a própria sociedade, não


reconhecem nesse sujeito marginalizado uma cultura, nem tampouco
uma capacidade de aprender, pois só reconhecem o sujeito cartesiano
e uma única forma de desenvolvimento e aprendizagem. (MACHADO;
SENNA, 2012, p. 51)

Nesse sentido, refletir sobre as formas de combate ao fracasso escolar


exige a desconstrução da concepção determinista de que crianças e jovens
pobres fracassam na escola por apresentarem dificuldades ou distúrbios de
aprendizagem de origem individual. Isso porque, conforme Moysés (2001), tal
perspectiva, ao longo de décadas, tem cada vez mais justificado que esses

39
alunos sejam estigmatizados e paulatinamente excluídos dos processos
escolares. Segundo Gualtieri e Lugli (2012), a atribuição de incapacidade de
aprendizagem aos filhos das classes populares demonstra, na realidade, uma
inadaptação desses sujeitos ao processo de escolarização pois em geral
manifestam “grande capacidade cognitiva, múltiplas habilidades e criatividade
em suas vidas, nas atividades lúdicas, nos fazeres domésticos, mas fracassam
na escola” (GUALTIERI; LUGLI, 2012, p. 12). Dessa forma, não se deve
considerar que esses sujeitos tenham problemas ou qualquer tipo de distúrbio
de aprendizagem, mas sim que manifestam dificuldade de aprender na Escola,
tendo em vista a desvalorização de seu repertório de saberes, privilegiando-se
o conhecimento científico institucionalizado pela Escola.
Os alunos das classes populares carregam consigo o peso das
concepções conservadoras sobre o seu processo de aprendizagem, o que
significa dizer que, antes mesmo de adentrarem à Escola, são questionados
quanto à sua capacidade de adaptação ao sistema de ensino. Assim sendo, tais
pontos de vista legitimam o processo de patologização da Educação. No entanto,
de acordo com Moysés (2001), esses jovens e crianças chegam à Escola, na
verdade, absolutamente normais, mas, a partir da introjeção de rotulações que
sofrem e estigmatizados pelo meio, são considerados enfermos, manifestando
então as doenças do não aprender na Escola.
O processo de anormalização desses sujeitos têm raízes históricas e
culturais, pois, como já vimos, a Escola reproduz a lógica da divisão de classes,
priorizando as manifestações culturais das classes dominantes em detrimento
da cultura popular. Nesse contexto, ser diferente equivale a ser anormal, o que
significa, consequentemente, ser encaminhado para serviços de saúde. Esse
tipo de abordagem costumeiramente provoca abalos na autoestima dos alunos,
pois passam a acreditar que apresentam disfunções que os impedem de
aprender e muitas vezes, por conseguinte, desistem da Escola.
Em pesquisa realizada por Gualtieri e Lugli (2012), há relatos de
professores e diretores que culpabilizam os alunos pela inadaptação e pelo
consequente fracasso na escola, reafirmando a tendência presente em algumas
pesquisas em atribuir os motivos pelos maus resultados de alunos pobres na
Escola à sua inserção socioeconômica e cultural. Sob essa lógica, algumas

40
autoridades escolares afirmam que crianças e jovens apáticos e desrespeitosos
na Escola assim se comportam porque são desinteressados.
As autoras refletem sobre tais comportamentos enquanto sintomas da não
adaptação desses alunos, considerados problemáticos, ao sistema normativo da
Escola. A esses alunos é imposto que estejam conformados à disciplina escolar
e à exigência de que estejam atentos às falas dos professores por horas a fio,
tanto quanto à passividade diante dos conteúdos escolares. No entanto, de
acordo com as autoras, resignar-se o tempo todo ao imobilismo e à extrema
disciplina exigidos não são tarefas fáceis, o que suscita reações adversas às
esperadas, podendo variar entre a apatia e a irreverência.
Conforme pesquisa realizada por Moysés (2001), o desempenho escolar
de crianças culpabilizadas por sua inadequação ao sistema escolar exprimem
“as marcas de sua inserção social, impregnado de sua pertença social”
(MOYSÉS, 2001, p. 46). Todavia, conforme a autora, esses valores e expressões
são considerados inferiores, logo a maneira como o aluno das classes populares
manifesta seu desenvolvimento não passa pela aprovação dos instrumentos de
avaliação padronizados, portanto seu saber não é reconhecido pela cultura
escolar.
Sobre os instrumentos de avaliação utilizados pela Escola, Esteban
(2000) destaca que o conhecimento que se pretende avaliar nas provas
escolares é frequentemente reduzido a fragmentos dos conteúdos
sistematizados no currículo escolar. A autora salienta, por um lado, a evidente
preocupação em classificar sujeitos e, por outro, o descompromisso dessas
avaliações com outras formas de conhecimento que não sejam os produzidos e
legitimados pela Escola. Tal postura joga luz no caráter seletivo e no esforço
desses testes em utilizar a avaliação como um instrumento de classificação e
difusão de um conhecimento padronizado.
O esforço dos processos avaliativos em categorizar sujeitos se justifica
dentro de uma estrutura disciplinar e seriada da Educação, na qual os
conhecimentos dos alunos devem ser medidos para que sejam classificados em
aptos ou não à aprovação. Segundo Arroyo (1997, p. 20), a organização da
Escola pautada por esse modelo é excludente, pois condiciona a progressão no
sistema educacional ao domínio de fragmentos dos conhecimentos produzidos
e acumulados socialmente, estes organizados e apresentados pela escola em

41
disciplinas e séries escolares. Nesse contexto, a reprovação ou a repetência,
assim como a constante submissão de alunos a processos avaliativos impõem
a necessidade de aferir a “capacidade de cada educando de apreender esses
saberes e essas disciplinas” (ARROYO, 1997, p. 20).
Nesse sentido, segundo Arroyo (1997), é o próprio sistema escolar que
define quem são os sujeitos capazes de se manterem no percurso escolar, na
medida em que a aprovação ou a reprovação desses sujeitos estão
condicionadas ao atendimento dos critérios estabelecidos pela Escola. Assim,
“sucesso ou fracasso escolar são produzidos deliberadamente pelo sistema de
ensino” (ARROYO, 1997, p. 21). A constante pretensão de homogeneidade das
classes escolares acaba por excluir aqueles que, dentro do prazo estabelecido
pela Escola, não apresentam resultados compatíveis com os critérios de
aprendizagem estabelecidos pela própria instituição.
De acordo com Esteban (2000), a busca pela equivalência nos processos
avaliativos desconsidera a riqueza de possibilidades que a heterogeneidade
propõe, pois são as diferenças e a diversidade cultural os traços centrais da
nossa sociedade. Nesse sentido, é no confronto de diversos saberes que novos
conhecimentos são construídos e reconstruídos, obedecendo, segundo a autora,
a um movimento contínuo.
A partir dessa concepção, entende-se que uma avaliação comprometida
com o processo de ensino-aprendizagem é aquela que se distancia de
julgamentos, pois, conforme a autora adverte:

A qualidade desta avaliação não está em sua capacidade de julgar os


melhores e piores – conhecimentos, processos, resultados, pessoas –
mas em sua capacidade de indagar e provocar reflexões, sintonizando
com um processo de ampliação permanente do saber e do saber fazer.
(ESTEBAN, 2000, p. 70)

A reflexão sobre os métodos de avaliação na escola se faz


indubitavelmente necessária. A compreensão de que são a consequência de
uma organização do sistema escolar que hierarquiza aprendizagens e fragmenta
conhecimentos justifica essa prática.
Diante de todo o exposto, o presente trabalho convoca a uma reflexão
sobre o papel da escola na produção do fracasso escolar, tendo em vista que o
sistema escolar, com o seu modelo organizacional – disciplinas, séries,

42
organização do tempo, currículos esvaziados de significados e instrumentos
avaliativos calcados na aferição de conhecimentos apresentados de forma
fragmentada –, tem contribuído para que uma quantidade expressiva de alunos
das escolas públicas brasileiras sejam enquadrados em diagnósticos
deterministas, que conduzem a uma visão preconceituosa sobre a sua
capacidade de aprendizagem e, consequentemente, a processos de exclusão.
As reflexões até aqui expostas caminham para a desconstrução dos
estereótipos construídos sobre os sujeitos das classes populares e o seu
fracasso na Escola, reorientando o olhar da pesquisa para os fatores
intraescolares, tanto quanto para os fatores extraescolares, que contribuem para
a produção desse fracasso dentro das unidades de ensino.
Nesse sentido entende-se o Fracasso Escolar como um fenômeno
complexo e multifatorial, produzido por questões políticas, sociais, afetivas, entre
outras, que se refletem na construção do currículo escolar e orientam práticas
de ensino. Portanto, não cabe a imputação exclusiva de culpa à escola -
tampouco ao próprio aluno - pelo fracasso no processo de escolarização,
vivenciado por parcela de sujeitos pertencentes às classes populares.
De acordo com Gualtieri e Lugli (2012), a distância estabelecida entre os
conhecimentos legitimados e valorizados pela Escola e aqueles provenientes
dos alunos dos segmentos mais pobres da população provoca nesses alunos
um sentimento de não pertencimento, pois para eles a escola perde um sentido
real. As autoras sustentam que, para esses alunos, incorporar os saberes
difundidos pela Escola significa aceitar a desqualificação de sua cultura e sua
origem, pois a instituição escolar ensina e determina que o seu jeito de falar é
“errado”, que o seu comportamento é “inadequado”, embora a Escola constitua-
se como espaço de integração desses sujeitos à sociedade.
A Escola, calcada nos princípios do pensamento cartesiano, não tem
logrado fazer frente à tarefa primordial de, conforme Machado e Senna (2012, p.
48), “satisfazer a pluralidade de identidades culturais que afloram
individualmente na sociedade contemporânea”. Sendo assim, de acordo com os
autores, a persistência da Escola em formar sujeitos idealizados se configura
como um erro.
No entanto, como pensar uma Escola orientada por novos padrões se a
própria sociedade e o sistema escolar legitimam tal prática? A Escola enquanto

43
instituto social reproduz práticas que são comuns ao tecido social. Nesse
sentido, o preconceito e a marginalização de sujeitos sob a negação de sua
cultura não é uma invenção da Escola, mas sim um comportamento social das
elites nacionais que pensaram a Escola dedicada a seus filhos e que
posteriormente, contudo, foram obrigadas a aceitar sujeitos de camadas
populares frequentando o mesmo espaço. (LEITE, 2010)
Para fugir dos reducionismos do senso comum, esse trabalho busca
afastar-se da tendência em apontar culpados para o fracasso escolar, que ainda
se impõe como uma barreira para a escolarização de alunos pobres. Por essa
razão, enxerga-se a Escola inserida numa trama social complexa. De acordo
com Senna (2007, p. 45 apud LEITE, 2010, p. 32), “a educação é uma
responsabilidade da sociedade que criou e justificou a Escola no interior de
determinado projeto de desenvolvimento humano”. Segundo Leite (2010), a
Educação que se pratica na Escola é, na realidade, a extensão do modelo
educacional adotado pela sociedade. Nesse sentido, de acordo com a autora,
não cabe à Escola a responsabilidade exclusiva pela Educação desses sujeitos.
Conforme Leite (2010), a sociedade depositou a expectativa de que a
escola tem por função civilizar os sujeitos, atribuindo ao professor a missão de
ser protagonista desse processo e entregando em suas mãos a possibilidade de
transformar a vida de crianças e jovens e conduzi-los para um futuro melhor. No
entanto, a autora adverte que, na contemporaneidade, experimentamos a era
dos imediatismos, bem como a descrença no amanhã.
Nesse cenário, Leite (2010) afirma que a função da Escola e papel do
professor são cada vez mais questionados pelos alunos, já que não
compreendem a importância desses institutos sociais em suas vidas. De acordo
com a autora, o vínculo que esses sujeitos estabelecem com a escola é de
obrigação, entendendo que devem cumprir esse rito social que, para eles, não
têm significado algum. Ao professor, sujeito cartesiano formado para uma
prática alinhada com os princípios do conhecimento científico, tem sido
reservada a tentativa de, segundo Leite (2010, p. 32), “reverter esse quadro”.
Afastando-nos das perspectivas que culpabilizam o professor, ou mesmo
daquelas que o elevam à condição de redentor da Escola, concordamos com
Leite (2010) ao considerar que esse não pode ser julgado por reproduzir as

44
práticas que lhe foram inculcadas. Nesse sentido, propõem-se a reflexão e a
problematização sobre a formação docente no Brasil.
De acordo com Gualtieri e Lugli (2012), a prática dos docentes está
saturada do que compreendem por aprendizagem, sendo moldada fortemente
pelo modelo escolar a que foram submetidos. Dessa forma, segundo as autoras,
o desafio dos cursos de formação de professores consiste em reavaliar seus
currículos, a fim de que as antigas concepções sobre o ensino e a aprendizagem
desses alunos sejam ressignificados, possibilitando assim que desenvolvam
uma prática reflexiva que oportunize a socialização de seus conhecimentos com
a classe.
Em um contexto social e cultural fortemente marcado pela influência
digital, em que milhares de pessoas tem acesso a diferentes fontes de
conhecimentos sobre os mais variados assuntos, de acordo com Leite (2010, p.
22) o aluno idealizado, passivo diante da disciplina e rigidez exigida pela escola
já não é mais encontrado nas salas de aulas. Posto que, segundo a autora, a
atual geração de crianças e jovens, tem acesso a todo conhecimento que lhe
interessar através de apenas um “clique no mundo virtual”. Diante desse
contexto a autora adverte que escola e professor perderam o status de
detentores do saber.
Conforme Leite (2010, p.23) eis o grande desafio do professor na
contemporaneidade: adequar sua prática a um novo sujeito escolar antenado
com “uma cultura imediatista, tecnológica, individualista”, tendo sido formado
para dar aula para um sujeito que, segundo a autora, não existe mais. Machado
e Lopes (2016, p.159) advertem que “nesse contexto de mundo contemporâneo
– inacabado, provisório, variável, em devir –, os indivíduos se constituem não em
uma identidade única, mas em várias, tanto em seu aspecto cognitivo quanto
cultural”.
As autoras assinalam ainda que, “inserida numa sociedade pós-moderna
marcada pela pluralidade de identidades culturais, a escola assume um caráter
de formação cultural, integrando-se a uma educação emancipatória [...]”
(MACHADO E LOPES, 2016, p.160). Essa concepção intercultural pauta-se pela
“necessidade de reconhecer, conhecer e respeitar os sujeitos em suas
singularidades” (p.160).

45
Entretanto, além de enfrentar os desafios propostos pela necessidade de
se repensar a Escola nessa “ordem intercultural, complexa, caótica e
assimétrica” (MACHADO E LOPES, 2016, p.160), o professor se depara com um
contexto escolar cada vez mais hostil a sua autoridade. Esses profissionais ainda
enfrentam o sucateamento da escola pública, a desvalorização de sua profissão,
os baixos salários e intensa rotina a que tem que se submeter, com horários
intensos de trabalho e planejamento de atividades próprias da docência.
Considerando todos os aspectos destacados neste capítulo entende-se
que não cabe a imputação de culpa ao aluno, sua família ou ao professor pelo
fracasso produzido na escola. O fracasso escolar é um fenômeno complexo e
são múltiplos os fatores que contribuem para que os alunos das escolas públicas
brasileiras manifestem transtornos de aprendizagem. Tais dificuldades, com
frequência, podem simplesmente indicar uma inadaptação ao sistema escolar,
burocrático e autoritário. Nesse sentido, tal fenômeno apresenta-se enquanto
produto de uma sociedade desigual, impregnada de preconceitos que
estigmatizam o sujeito da escola pública, ou seja, os sujeitos das classes
populares.

46
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esse trabalho buscou-se, através do referencial teórico, apresentar


discussões que contribuíssem para a desconstrução do preconceito acerca dos
alunos das escolas públicas brasileiras. A partir do referencial de que o fracasso
escolar é, não raro, fruto da inadaptação desses sujeitos a uma escola que, ao
longo de décadas, têm sistematicamente negado sua cultura levando-os à
condição de excluídos dos processos de escolarização, o presente trabalho
apresentou aspectos históricos sobre a sociedade brasileira e a construção do
pensamento educacional brasileiro.
Os aspectos sócio históricos apresentados nesta pesquisa permitem a
compreensão de que a produção do Fracasso Escolar é perpassada por
aspectos intraescolares e extraescolares. Sendo a escola reprodutora dos
preconceitos já existentes na sociedade acerca do processo de desenvolvimento
de sujeitos pertencentes a seguimentos mais empobrecidos da população.
Diante de um cenário de conceitos pré-estabelecidos sobre a capacidade
de aprendizagem dos sujeitos das classes populares, a inadaptação dos
mesmos à escola tem sido interpretada por vertentes psicologizantes e
biologizantes da educação como decorrentes de um distúrbio ou uma disfunção
localizada no próprio indivíduo, conduzindo esses estudantes a unidades de
atendimento de especialistas.
A vertente biologizante do Fracasso Escolar acarreta um processo de
patologização da educação que transfere para a medicina a competência de
combater o fracasso de crianças e jovens na escola, além de imputar a esses
sujeitos e suas famílias a culpa por não corresponderem as expectativas da
escola. Tal aspecto tem influenciado o crescente processo de medicalização da
educação apresentado à sociedade enquanto meio de combater as dificuldades
de alunos que fracassam na escola.
As concepções deterministas que atribuem ao aluno a responsabilidade
pelo seu insucesso na escola desconsideram a participação dos fatores
intraescolares e extraescolares nesse processo, entendendo que a manifestação
dos problemas de aprendizagem desses sujeitos está condicionada
exclusivamente à sua inserção cultural, social e familiar. Nesse contexto, a
organização escolar, pautada pela homogeneização das classes, pelo

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cumprimento de currículos escolares que apresentam conteúdos fragmentados
e esvaziados de significados para o aluno real, por uma cultura avaliativa muito
mais comprometida com a seleção do que com a formação do sujeito, que induz
a reprovações e evasão da escola, não é compreendida como agente que
contribui para a produção do fracasso escolar.
O modelo de escolarização imposto pela escola tem, ao longo de
décadas, sofrido um notório processo de rejeição por parte dos sujeitos da escola
pública que, diferentemente do que ocorria no período de expansão da
escolarização no Brasil, não têm visto na escola a possibilidade de atingir a
sonhada ascensão social.
Na sociedade atual professores não ocupam mais a posição de
detentores absolutos do conhecimento, nem tampouco a escola é a única fonte
de conhecimento. Na contemporaneidade o conhecimento tem sido
democratizado pela internet, o que possibilita aos sujeitos terem acesso a
inúmeras possibilidades de conhecimentos, o que tem afastado cada vez mais
esses alunos da escola, já que a mesma não atende a suas demandas, além de
impor a eles padrões de comportamentos que se chocam com sua identidade
cultural.
Nesse sentido, as discussões apresentadas nesse trabalho se afastam
das abordagens que culpabilizam os alunos, suas famílias e os professores pelo
fracasso desses sujeitos na escola, pois, entende-se que tal concepção alicerça
uma interpretação reducionista de um problema tão complexo que exclui
cotidianamente crianças e jovens do processo de escolarização. Dessa forma
atendemos ao questionamento sinalizado na introdução desse trabalho,
destacando que não cabe ao aluno o protagonismo por sua condição de fracasso
na escola.
O enfrentamento do fracasso dos alunos da escola pública brasileira
requer a reorientação do olhar acerca das capacidades desses sujeitos,
atentando para a necessidade de que a sociedade e as autoridades reflitam
sobre o modelo educacional a que esses alunos são submetidos, a medida em
que se entende que o processo de educar é um ato político, que compreende a
formação de sujeitos em suas múltiplas potencialidades. À escola cabe
reconhecer nesses alunos a capacidade de aprendizagem e às políticas
educacionais garantir medidas que possibilitem a reorganização escolar de

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modo que a rigidez imposta pelos currículos e disciplinas sejam flexibilizados,
proporcionando experiências de aprendizagem realmente significativas para
esses alunos.

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