MANZATTO, Antonio. Literatura e Teologia Da Libertação

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DOI - 10.19143/2236-9937.

2012v2n4p73-86

Literatura e Teologia
da Libertação

Antonio Manzatto*

Arquivo recebido em Resumo


28 de setembro de 2012
e aprovado em O autor se pergunta se há interesse da
15 de novembro de 2012
Teologia latino-americana da Libertação, co-
nhecida por seu compromisso com as trans-
formações históricas da sociedade em benefí-
cio das classes pobres, em manter um diálogo
com a literatura ou se isto poderia significar
V. 2 - N. 4 - 2012 uma alienação da realidade sócio-histórica e,

*Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina (Louvain-la-Neuve, Bélgica, 1993), apresenta
a primeira tese sobre Teologia e Literatura, sob orientação de Adolphe Gesché sob o título de Teologia
e Literatura. Uma reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado,
obra que vem a ser a primeira produção teológica desta natureza no Brasil. Professor de Teologia
Sistemática na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Professor
convidado na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Louvain. Membro co-fundador da
Associação Latino Americana de Teologia e Literatura (ALALITE) e criador do Grupo de Estudos de
Literatura, Religião e Teologia (LERTE/PUC-SP). Trabalhos publicados mais importantes: Teologia e
Literatura - Uma reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São
Paulo: Loyola, 1994; A reflexão teológica a partir da literatura. Pequeno percurso autobiográfico. In:
ROCHA, Alessandro; YUNES, Eliana; CARVALHO, Gilda. (Org.). Teologias e Literaturas. São Paulo: Fonte
Editorial, 2011, p. 129-151; Uma leitura de Informação ao crucificado In: DE MORI, Geraldo; SANTOS,
Luciano; CALDAS, Carlos (Org.). Aragem do sagrado - Deus na literatura brasileira contemporânea.
São Paulo: Loyola, 2011, p. 213-234; Pequeno panorama de teologia e literatura In: MARIANI, Ceci
Baptista; VILHENA, Maria Ângela. (Org.). Teologia e Arte. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 87-98; Le
théologien, responsable du monde In: GAZIAUX, Éric (Org.). Responsabilité et tâches du théologien.
Leuven/Paris/Walpole: Peeters, 2009, v. 38, p. 105-120; O paradigma cristológico do Vaticano II e sua
incidência na cristologia latino-americana In: LOPES GONÇALVES, Paulo Sérgio & BOMBONATTO,Vera
Ivanise (Org.). Concílio Vaticano II, análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 207-225; Bento
XVI e a teologia: o lugar da teologia na universidade In: ABREU, Elza Helena de; ZACHARIAS, Ronaldo.
(Org.). Teologia da Criação e marcos do magistério de Bento XVI. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 103-
119; Cristologia latino-americana In: SOUZA, Ney de. (Org.). Temas de teologia latino-americana. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 25-65; La théologie en Amérique latine. Résultats marquants et défis actuels
In: SEVRIN, Jean-Marie et HAQUIN, André (Org.) La théologie entre deux siècles. Actes du colloque
organisé à l’occasion du 575e. anniversaire de l’Université Catholique de Louvain. Louvain-la-Neuve:
Publications de la Faculté de Théologie, 2002, p. 113-126; Pour une anthropologie du risque In:
GESCHÉ, Adolphe; SCOLAS, Paul (Org.). La foi dans le temps du risque.Paris: Cerf, 1997, p. 13-30.
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por conseguinte, descompromisso com as causas populares. Apresenta, então,


uma série de argumentos que ajudam a perceber a importância de tal diálogo a
partir da opção preferencial pelos pobres como seu elemento chave, seja para a
elaboração teológica, seja para a leitura que se faz da obra literária ou, mesmo,
para a percepção daquilo que esta reflexão teológica, própria de nosso conti-
nente, pode apresentar como seu contributo específico e característico para o
estabelecimento deste diálogo com a literatura.
Palavras-chave: Teologia e Literatura, Teologia da Libertação, Antropofania,
Revelação.

Abstract
The author calls in question if there is interest in Latin American Theology
of Liberation, known for its commitment to the historical transformations of socie-
ty in favour of the poor, to maintain a dialogue with the literature. Except, if this
could mean an alienation of the socio-historical and therefore causes disenga-
gement with popular causes. This paper will present a series of arguments that
help to realize the importance of this dialogue from the preferential option for the
poor as its key element, into the specific contribution and characteristic for the
establishment of this dialogue with the literature.
Keywords: Literature and Theology, Liberation Theology, Anthropophany,
Revelation.

Introdução
São 520 anos da chegada de Colombo a este continente que pas-
sou a ser chamado de americano. São 50 anos da abertura do Concílio
Vaticano II, aquele que procurou fazer um aggiornamento da maneira de
ser igreja no século XX, em tempos de modernidade. São 40 anos da
Teologia da Libertação, contados a partir da realização do lançamento
do livro de Gustavo Gutierrez1, em 1971, e do famoso Encontro de El
Escorial, em 19722. São outros tantos anos de pesquisa e trabalho que
procuram relacionar literatura e teologia, fazê-las se aproximarem para
poderem dialogar. Neste contexto, parece que estamos no tempo opor-
tuno para, mais uma vez, colocarmos a pergunta sobre as relações entre

1. Gustavo Gutierrez, Teología de la liberación, perspectivas; Lima: CEP, 1971.


2.  Trata-se do I Encontro de El Escorial, organizado pelo instituto espanhol Fé y
Secularidad e realizado em julho de 1972, que contou com a presença de importantes
teólogos latino-americanos da época e que acabou sendo como que a apresentação da
Teologia da Libertação latino-americana ao continente europeu.

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a literatura e a Teologia da Libertação, aquela comprometida social e


politicamente com os mais pobres da sociedade. Em muitos sentidos a
aproximação entre teologia e literatura parece afastar a reflexão da re-
alidade social das classes populares e empobrecidas. Parece até que o
recurso à literatura clama por outro tipo de reflexão teológica que aquela
que parte da realidade dura e crua analisada pelas ciências do social.
Pode-se, então, falar de outras coisas que não seja a dura realidade do
pobre e da necessidade de transformação social. Mas será necessário
que assim seja? O recurso ao literário deverá ser negação ou alienação
das questões sociais para que o discurso teológico se centre apenas na
transcendência ou na interioridade do indivíduo? Em vez de uma refle-
xão sobre o papel social da literatura, o a questão pode ser abordada,
principalmente, a partir de um estudo de teologia fundamental, ou seja,
da compreensão do que seja teologia, quais suas referências básicas e
qual o seu papel na vida do crente.

1. A atualidade da Teologia da Libertação


Nascida nos anos 70 em terras latino-americanas, a Teologia da
Libertação progrediu rapidamente, espalhou-se por todo o continente
e por outras terras e provocou muitos debates e muita polêmica. Sua
proximidade com as questões sociais e políticas, incluindo aspectos pró-
ximos do marxismo, trouxe à baila reações até violentas por parte da-
queles que querem sempre manter separadas as práticas religiosas da
prática política, a menos que possam controlar uma e outra. A transfor-
mação eclesial dali decorrida, a organização das Comunidades Eclesiais
de Base e a força sócio-política do povo cristão organizado, questionou
as estruturas do governo e da sociedade, propondo e apontando para
outras formas possíveis de se organizar a vida social e política a partir
do direito dos pequenos. Em época de ditaduras na maior parte do con-
tinente latino-americano, compreendem-se bem as reações contra este
tipo de pensamento e prática cristã que originou o combate levado a
cabo contra a Teologia da Libertação pelos setores mais conservadores
da sociedade e da igreja.
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Hoje a situação é diferente. Por força da atuação dos cristãos e


da Igreja comprometida com a Teologia da Libertação, nossas socie-
dades são mais democráticas e inclusive vários governos de esquerda
instalaram-se ou estão instalados em países latino-americanos. A prá-
tica religiosa também sofreu profundas alterações, não apenas com a
diminuição da frequência religiosa por conta da secularização, mas tam-
bém pelo reaparecimento de correntes fundamentalistas e intimistas que
transformaram radicalmente a forma de se compreender a função da re-
ligião na vida das pessoas e da sociedade. Mais ainda, as características
da cultura de pós-modernidade neoliberal trouxe outros referenciais an-
tropológicos e sociais, ajudando uma criar a sociedade que busca quase
que somente a diversão e o entretenimento. No meio disso tudo, muitos
aproveitam para sepultar a Teologia da Libertação, considerando-a como
coisa do passado, já superada3.

É verdade que, com a mudança do contexto que lhe deu origem e


sendo afirmada como uma teologia contextual, ela não pode mais se
construir da mesma forma que nos anos 70. É verdade, também, que por
conta disto ou por outras razões, a Teologia da Libertação passou por
transformações ao longo de sua história. A “nova ordem mundial” esta-
belecida a partir da queda do muro de Berlim em 1989 e do fim do comu-
nismo soviético, a celebração do quinto centenário e da Conferência de
Santo Domingo4 em 1992 e as instruções do Vaticano5 sobre a Teologia
da Libertação, são marcos destas transformações. Ainda recentemente
a revisão empreendida por Clodovis Boff6 sobre seu trabalho de metodo-
logia teológica que havia fundamentado a maneira de se fazer Teologia

3. Joerg Riger, Lembrar-se dos pobres, o desafio da teologia no século XXI, São
Paulo: Loyola, 2009.
4. Celam, Nova evangelização, promoção humana, cultura cristã; Conclusões da IV
Conferência do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo; São Paulo: Paulinas,
1992.
5.  Tratam-se das duas Instruções da Congregação para a Doutrina da Fé: a “Instrução
sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação” (Libertatis Nuntius), de 1984, e a
“Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação” (Libertatis Conscientiae), de 1986.
6. Clodovis Boff, Teoria do método teológico, Petrópolis: Vozes, 1998.

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da Libertaçãoe seu debate com outros teólogos7, mostram exatamente


as transformações realizadas no interior desta teologia.

O mundo dos pobres mudou nestes últimos 40 anos e a igreja mu-


dou também; a teologia não poderia ficar imune a estas mudanças. No
entanto, algumas das conquistas da Teologia da Libertação permane-
cem de valor, inclusive algumas tendo sido confirmadas na ainda recen-
te Conferência de Aparecida8. Pode-se citar, por exemplo, a confirma-
ção do método ver-julgar-agir, do caminho e do valor das Comunidades
Eclesiais de Base, a aproximação entre fé e vida, a leitura popular da
Bíblia, a valorização da religiosidade popular, a importância da prática
política dos cristãos, a força da religiosidade popular, e ainda outros as-
pectos. O mais importante, no entanto, é a opção preferencial pelos po-
bres, característica praticamente específica da Teologia da Libertação
e que também foi confirmada pelo próprio papa como “inerente à
fécristológica”9. Trata-se da chave hermenêutica de leitura da história
e da Revelação que proporciona a ruptura epistemológica própria da
Teologia da Libertação. Tal princípio faz hoje parte do patrimônio comum
de toda teologia cristã, constituindo-se como um dos grandes aportes
da teologia latino-americana à igreja universal. Talvez seja a partir dela,
então, que se deva colocar a questão da relevância da abordagem lite-
rária para a elaboração da reflexão teológica. Este é o ponto de vista de
R. Mosimann da Silva em seu interessante estudo publicado em 201010,
onde lembra que toda teologia que se quer cristã não pode esquecer, em
nenhum momento, seu compromisso com as pessoas pobres, e ainda
afirma que a passagem pela literatura pode evidenciá-lo com mais força.

7. Clodovis Boff,”Teologia da Libertação e volta ao fundamento”; REB 268 (2007), p. 1001-


1022; Luiz Carlos Susin e Érico João Hammes, “A Teologia da Libertação e a questão de
seus fundamentos: em debate com Clodovis Boff”; REB 270 (2008), p. 277-299; Clodovis
Boff, “Volta ao fundamento: réplica”; REB 272 (2008), p. 892-927.
8. Celam, Documento de Aparecida, São Paulo: Paulinas, Paulus, Edições CNBB, 2007.
9. Bento XVI, Discurso Inaugural da V Conferência Geral do Episcopado da América
Latina e do Caribe,3.
10. Rogério Mosimann da Silva, “Teologia e literatura na ótica das pessoas pobres no
século XXI”; Perspectiva Teológica 42 (2010), p. 227-240.

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2. As provocações literárias
Já em meu primeiro estudo11 eu havia tentado afirmar que a reflexão
teológica a partir da literatura não consiste em alienação com relação às
questões sociais, bem ao contrário. Para o que nos interessa, pode-se
dizer que o literário não nos afasta da realidade de vida do povo pobre.
De maneira diferente daquela proposta pelas ciências, o artístico em ge-
ral e o literário em especial, apresentam uma visão do mundo, uma for-
ma de conhecimento da realidade que não se faz de forma quantitativa,
aquela própria da ciência, mas de uma maneira mais afetiva, mais exis-
tencial, mas que continua sendo forma de conhecimento da realidade.
Se a literatura, por seus procedimentos próprios, não nos afasta da vida
real mas, ao contrário, dela nos aproxima, a teologia que com ela dialoga
vai, por consequência, aproximar-se também da vida real e conhece-la
para, então, elaborar sua reflexão específica.

Porque a literatura não nos afasta da leitura da realidade, mas


nos permite uma leitura crítica sobre ela, cabe talvez perguntar se
toda literatura pode proporcionar uma reflexão teológica de libertação.
Mosimann afirma que não é qualquer texto literário que se mostra “ade-
quado para subsidiar uma reflexão teológica sensível à vida das pessoas
pobres”12. Talvez isso seja verdade. Sua escolha do texto de Guimarães
Rosa13demonstra que, no mínimo, há textos que são adequados para
tal abordagem. Minha experiência com os textos de Jorge Amado já o
havia demonstrado, e tal escolha, na época, correspondeu bem ao inte-
resse em se fazer uma reflexão teológica comprometida com a situação
dos pobres do Brasil, já que ele foi um literato reconhecido exatamente
por seu engajamento social e sua luta, política inclusive, em favor das
classes mais exploradas e discriminadas da sociedade. Uma literatura
comprometida pode ensejar uma reflexão teológica igualmente compro-
metida.

11. Antonio Manzatto, Teologia e literatura, São Paulo: Loyola, 1994.


12. Rogério Mosimannda Silva, “Teologia e literatura...”, p. 231.
13. João Guimarães Rosa, “A Benfazeja”, in Primeiras Estórias, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985, p. 113-122.

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Posto isto, confesso, no entanto, que não fico completamente satis-


feito com a solução. Se apenas certa literatura pode ser importante para
a elaboração teológica, não estaremos distantes daquela compreensão
que dividia a literatura entre sagrada e profana e se interessava apenas
pela primeira,como se a literatura tivesse importância e valor apenas
pelas ideias que transmite, por sua atitude confessante ou, no caso em
questão, por sua opção ideológica. Aqui já não teríamos um encontro
entre teologia e literatura, mas sim entre certa teologia e certa literatura,
aquelas que se reconhecem ou se repetem. O risco do círculo vicioso
é bastante forte e evidente, com a teologia encontrando na literatura o
que ela mesma ali plantou ou repete constantemente; ou então, o que
talvez seja pior, encontrando nela aquilo que poderia encontrar em outro
lugar, mas resolve encontrar na literatura para fazer diferente.Creio que
algumas provocações que saem do lugar comum são, também, interes-
santes e bastante motivadoras. Uma literatura que navegue por águas
diferentes pode ser também reveladora do ser humano e de sua condi-
ção histórico-social, e desta forma ajudar a impelir a reflexão teológica
para novos horizontes.

Em recente estudo, Alberto Toutin14 preocupa-se também, de certa


forma, com a questão. Sua abordagem, de resto extremamente impor-
tante e interessante, permite-lhe situar-se na cultura latino-americana
como espaço contextual onde ler a obra literária e realizar sua refle-
xão teológica.Seu estudo da obra de Augusto Roa Bastos lhe permite
desenvolver uma reflexão teológica com características profundamente
latino-americanas e que se situa na linha de continuidade com a Teologia
da Libertação15. Tal solução parece bastante interessante. Uma obra li-
terária será sempre fruto de certo contexto, por ele marcada e a refle-
xão teológica que se realizará na sequência também terá as marcas do
contexto onde a leitura é realizada, e tal procedimento é defendido pela

14. Alberto Toutin, Teologia y literatura, hitos para um diálogo; Anales de la


Facultad de Teologia 3; Suplementos a Teología y Vida; Santiago: Pontifícia
Universidad Católica de Chile, 2011.
15. Alberto Toutin, Teologia y literatura..., p. 411-481.

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Teologia da Libertação, que se quer contextual. Segundo Toutin, certa


transculturalidade pode ser admitida no sentido de que o leitor pode es-
tabelecer relações com obras produzidas em outro contexto e a partir
delas realizar uma reflexão teológica que seja pertinente. Com isso se
evita o risco de fechar as obras literárias em sua cultura de origem como
se fosse este o único lugar em que pudesse ser lida. Afinal, os clássicos
ultrapassam contextos, épocas e sociedades, e mesmo se permanecem
por eles marcados, podem ser significativos para outros leitores.

O que me parece importante recordar é que a literatura é espaço de


desvelamento do humano, em sua realidade e em suas possibilidades.
O que chamei de “caráter antropológico da literatura” Toutin chama, com
mais propriedade, de característica antropofânica da literatura16. E é exa-
tamente isto, a literatura como espaço de revelação e afirmação do hu-
mano. Em certo sentido estaremos falando de “humanização”, presente
mesmo nas obras mais pessimistas a respeito do que é o ser humano.
Tal humanização não estaria distante da noção de libertação, sobretudo
se aplicada aos pobres, exatamente porque o que se busca é que sua
dignidade humana seja reconhecida e respeitada. Neste sentido, a lite-
ratura ajudaria a teologia a enxergar a realidade para além dos números
frios dos PIBs e dos salários, para se encontrar com a humanidade an-
tropologicamente empobrecida.

Cabe lembrar a questão, tantas vezes debatida, de saber quem é o


pobre e o que constitui a pobreza. Vale dizer que a pobreza econômica
conta, e muito, mas talvez não seja o único indicador do que seja a reali-
dade da pobreza vivida pela maioria dos habitantes do continente latino-
americano. Jon Sobrino alude a uma constante em todas as situações
onde se afirma a pobreza, lá onde “existem maiorias de seres humanos
para quem o fato de viver é uma carga muito pesada, cujo peso provém
não só de limitações naturais mas, sobretudo, históricas”17. Se isto não
restringe a pobreza ao sócio-econômico, contudo não esvazia a dimen-

16. Alberto Toutin, Teologia y literatura...


17.  Jon Sobrino, Fuera de los pobres no hay salvacion, San Salvador: UCA, 2008, p. 72.

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são das necessidades básicas dos cidadãos18. Também neste aspecto


lembre-se que a literatura não aliena do real vivido, mas dele se aproxi-
ma pelos caminhos próprios das manifestações artísticas.

Destaque-se, ainda, nas culturas populares a importância das nar-


rativas, das histórias contadas, escritas ou transmitidas oralmente. É a
partir de tais narrações, históricas ou míticas, épicas ou trágicas, que o
substrato cultural, os valores, a identidade e as buscas dos povos são
afirmados e transmitidos às novas gerações. Como a cultura popular não
maneja a linguagem conceitual, mais próxima da elaboração ilustrada,
as narrações, em poema ou prosa, constituem de certa forma seu ponto
de constituição de identidade. Seu ser é afirmado em sua forma de ver a
vida que é expressa em sua maneira de contar as histórias que lhes são
significativas. Conhecemos, no Brasil, a literatura de cordel, autêntica
manifestação da cultura popular; e outras tantas, muitas vezes identifica-
das como folclore ou lendas e mitos, mas que traduzem a alma das po-
pulações que as criam e mantêm vivas. Por este aspecto pode-se dizer
que uma teologia que quer fazer presente em sua reflexão a realidade do
povo pobre, deve aprender a dialogar com a cultura popular não apenas
no limite do religioso, o que normalmente chamamos de religiosidade
popular, mas também ali onde se gesta sua alma, onde se exprime sua
sabedoria e se concebe sua identidade, nas histórias e narrações que,
eventualmente, podem incluir questões de fé e religiosidade. Só isto já
bastaria para afirmar a referência que a Teologia da Libertação deve
fazer ao literário, ao menos o que se convencionou chamar de literatura
popular. Afinal, através de imagens e símbolos que se referem, gran-
demente, ao maravilhoso, o ambiente popular projeta o que se espera
e o que se quer construir como mundo onde todos os povos tenham
dignidade e possam autodeterminar-se, e todas as pessoas, inclusive e
sobretudo as mais pobres, sejam respeitadas em sua humanidade. Uma
teologia que valoriza o pobre vai valorizar, necessariamente, seu mundo
e sua cultura.

18.  Cf. Rogério Mosimann da Silva, “Teologia e literatura...”, p. 231.

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3. Opção pelos pobres


Sem dúvida a opção preferencial pelos pobres, que constitui o gran-
de aporte da Teologia da Libertação à igreja e que hoje, de maneira
inconteste, faz parte do patrimônio teológico universal, será o grande
definidor do tipo de teologia que se elabora19. Sem tomar a sério a op-
ção pelos pobres a teologia não se constituirá em relação à libertação
das pessoas, e talvez nem seja mais uma teologia cristã. Já é sabido e
exaustivamente afirmado que a opção pelos pobres não é exclusiva nem
excludentemas, ao contrário, é condição para contemplar todas as pes-
soas, todos os povos e todas as classes sociais. Os projetos e iniciativas
de todos os tipos e níveis que se preocupam em primeiro lugar com os
pobres, podem interessar a todos universalmente; aqueles que não par-
tem da realidade dos pobres os excluirão pois não atingirão os últimos
da sociedade e da história, e por isso não são universalizáveis. Assim, a
opção pelos pobres continua sendo não apenas marca, mas exigência
da Teologia da Libertação e, para seguir o dito de Bento XVI, exigência
de toda teologia cristológica.

A Teologia da Libertação que dialoga com a literatura sempre terá


presente esta realidade da opção pelos pobres por conta da própria exi-
gência teológica. Ela é parte do procedimento teológico, é a chave her-
menêutica de leitura da Revelação de Deus ao seu povo, de leitura da
história da vida da humanidade e, por conseguinte, também chave de
leitura das obras literárias. Por isso estará presente no olhar do teólogo
que lê a obra literária e assim a completa, atualizando-a e ressignifican-
do-a para o contexto onde realiza seu trabalho. Sendo procedimento es-
pecificamente teológico, mesmo que não esteja presente ou evidente na
obra literária, ainda assim poderá e deverá ser utilizado. Afinal, toda teo-
logia cristã passará, como lembra Toutin20, pela realidade do Cristo e, por
fidelidade a ele, passará também pela opção preferencial pelos pobres.

19. Pedro A. Ribeiro de Oliveira (org.), Opção pelos pobres no século XXI, São
Paulo: Paulinas, 2011.
20. Alberto Toutin, Teologia y literatura..., por exemplo, p. 487.

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Mas tal opção poderá, eventualmente, também estar presente na


própria obra literária ou no procedimento criativo de seu autor. Talvez ela
seja um dos grandes aportes que a teologia de marca latino-americana
pode oferecer ao mundo da literatura e, pelas características das obras
de grandes autores literários do nosso continente, parece que já o faz.
A noção de libertação contém elementos de realização de humanidade
que se inserem dentro do quadro histórico da existência humana. Ela
se relaciona com a salvação eterna e transcendente, claro, mas coloca
em evidência o aspecto relevante do enfrentamento da condição huma-
na dentro deste mundo, imanente e provisório. O literário trabalha exa-
tamente com estas realidades, inserindo nelas o desenvolvimento da
vida humana. Em seu trabalho de apresentação dos desdobramentos
do que seja a realidade humana, real ou possível, aponta para caminhos
de humanização lá onde o humano é real e completamente humano,
na realidade histórica ou para além dela. Neste sentido, os processos
de libertação histórica dos pobres apontam para a mesma realidade de
humanização, sua humanização, onde as condições de desenvolvimen-
to de sua humanidade serão possíveis e respeitados. Esta realidade,
que possibilitou à teologia a afirmação de sua importância e significação
para a história recente dos povos latino-americanos, pode possibilitar o
mesmo à literatura que se tornará, cada vez mais, expressão da vida, da
alma e dos sentimentos de seu povo.

Pode-se sempre levantar a pergunta, incômoda e constante,que


questionar o desvio pela literatura se a teologia já possui e conhece a
opção pelos pobres. Efetivamente, não será necessário passar pela lite-
ratura para se conhecer a opção pelos pobres, que é procedimento emi-
nentemente teológico; parece, então, que a Teologia da Libertação não
teria muito, ou mesmo não teria nada a ganhar, com sua aproximação
da literatura. A importância da passagem pela literatura é, exatamente,
o encontro e o diálogo com o diferente. Diferente da teologia, por ser
literatura; diferente de seus procedimentos ilustrados, por ser proximi-
dade com o mundo da cultura popular; diferente de seu vocabulário de

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conceitos, por ser narração e simbolismo; diferente porque lhe possibilita


encontrar-se com outro mundo, o mundo da obra literária, da criativida-
de do autor, dos possíveis imaginários apresentados diante dos olhos
e dos sentidos. Sobretudo, será importante porque permitirá à teologia
encontrar-se com o diferente presente em outros projetos de humaniza-
ção que não o seu próprio, projetos de autores literários e de povos que
exprimem seus ideais através da literatura; este encontro possibilitará à
teologia escapar da estreiteza de seus próprios limites e condicionantes,
possibilitando-lhe enxergar a realidade da vida humana para além das
imagens ideologicamente já definidas de consumação, plenificação ou
salvação. O diálogo com a literatura vale para a Teologia da Libertação
o mesmo que vale para toda teologia, ou seja, como Deus se revela no
humano e a literatura é lugar de desvelamento do humano, real ou possí-
vel, então será lugar onde se poderá ler algo da revelação de Deus. Isto
em termos de conhecimento de Deus e de seu projeto, expresso em re-
alidades teológicas importantes como salvação, criação, humanização e
outros ainda, que relevam do estatuto teológico da literatura. Permanece
a questão a que já aludi em outros lugares21 sobre a literatura como lugar
de afirmação de realidades teológicas, pois situada, exatamente, entre
o histórico e o doutrinal. O literário é espaço de construção e apresenta-
ção, nos textos narrativos, do que seja a verdade de significação, para
além d histórico e de maneira diferente da afirmação dogmática. Isto vale
também para a questão da realidade da libertação dos pobres. A litera-
tura pode expressar e significar tal libertação de maneira maior e mais
significativa que qualquer outra ideologia ou simples evento histórico,
como o podemos comprovar pelos próprios relatos evangélicos.

Conclusão
Não considero inviável uma reflexão teológica que se interesse pela
realidade dos pobres e contribua em seu processo histórico de liberta-

21. Antonio Manzatto, “O Messias do texto”; Ciberteologia, 36 (2011), p. 5-22.

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ção e que eleja a literatura como interlocutora. É interessante lembrar,


inclusive, o interesse dos governos ditatoriais em censurar manifesta-
ções artísticas, pois nelas reconhecem uma grande força, que não lhes
interessa, de transformação da realidade. Lembremos, ainda, que se a
América Latina não possui grandes filósofos ou teóricos políticos, pos-
sui, sim, grandes literatos, o que pode significar que o pensamento po-
lítico e social dos povos de nosso continente se encontra apresentado
nas obras literárias. A passagem pela literatura será interessante para a
Teologia da Libertação ao menos, digamos, por isso.

Mas há os elementos a que aludimos e que consideramos impor-


tantes. O primeiro, aquele de lembrar que a literatura não afasta do real,
mas também se constitui em lugar apropriado para ver a realidade onde
se vive, seja pela afirmação ou seja pela crítica apresentada na obra lite-
rária. Um outro, o de reconhecer que a literatura é lugar de antropofania,
de revelação e afirmação do humano e que isto é fundamental quando
se quer falar de libertação dos pobres, pois se trata de ter clareza em re-
lação a qual tipo de humanidade aquela libertação conduzirá. E não será
sem interesse lembrar, ainda, a importância da cultura popular, aquela
que exprime a verdadeira alma dos povos latino-americanos e que se
encontra de maneira especial nas histórias narradas por estes povos.

Em seu diálogo com a literatura, e isto também já foi dito inúmeras


vezes, a teologia não abrirá mão de sua própria identidade, daquilo que
lhe é específico. Em termos de Teologia da Libertação latino-americana,
além dos elementos constitutivos de toda teologia cristã, afirma-se de
maneira especial a opção pelos pobres. Tal opção poderá, inclusive, ser
umaspectoque nutre o diálogo entre literatura e teologia, pois poderá ser
o elemento que interessa à literatura e através do qual elas poderão con-
tinuar seu diálogo de compreensão do que significa ser humano neste
mundo.

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Teoliterária V. 2 - N. 4 - 2012

Bibliografia
Alberto Toutin, Teologia y literatura, hitos para um diálogo; Anales de la
Facultad de Teologia 3; Suplementos a Teología y Vida; Santiago:
Pontifícia Universidad Católica de Chile, 2011.
Antonio Manzatto, Teologia e literatura, São Paulo: Loyola, 1994.
Joerg Riger, Lembrar-se dos pobres, o desafio da teologia no século XXI, São
Paulo: Loyola, 2009.
Pedro A. Ribeiro de Oliveira (org.), Opção pelos pobres no século XXI, São
Paulo: Paulinas, 2011.
Rogério Mosimann da Silva, “Teologia e literatura na ótica das pessoas pobres
no século XXI”; Perspectiva Teológica 42 (2010), p. 227-240.

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