A Relação Dialética - Kowarzik
A Relação Dialética - Kowarzik
A Relação Dialética - Kowarzik
Wolfdietrich Schmied-Kowarzik
Cascavel
2019
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Sumário
mesmos. Foi assim que, em seu livro Tempo final e final dos tempos, Günther Anders
(1972) apresentou-nos, de forma enfática, a problemática em que nos encontramos:
Com o dia 06 de agosto de 1945, o dia de Hiroshima, iniciou-se
uma nova era: a era na qual nós, a cada momento e em qualquer
lugar, podemos transformar até mesmo nossa terra inteira numa
Hiroshima [...] Não importa quanto tempo, ou mesmo se for para
sempre, esta era é a última: Pois [...] a possibilidade de nosso au-
toextermínio não pode chegar ao fim – a não ser pelo próprio fim
[...] Nossa existência define-se, com isso, enquanto “prazo” [...].
Com esse fato, modificou-se a questão moral básica [...]. ‘Temos
de nos precaver para que o tempo final seja sem fim, embora ele,
a cada momento, possa virar fim dos tempos; portanto, para que a
reversão nunca ocorra’ (ANDERS, 1972, p. 93).
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As obras são aqui referenciadas em conformidade com a edição portuguesa ou brasileira, quando esta existir,
acompanhadas da data, entre colchetes, da edição da obra utilizada na versão original. Quando não houver
edição em língua portuguesa, as citações são traduzidas diretamente, mantendo-se a referência da obra original
citada. [N.T.]
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Veja-se também Habermas (1983 [1976]).
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Exposto aqui de modo breve, esse foi o estado da discussão no qual tentou
intervir meu livro A relação dialética do homem com a natureza, de 1984. Nele, bus-
quei, em termos histórico-filosóficos, liberar a problemática da relação do homem
com a natureza do preconceito de que a natureza pode ser tematizada apenas pelas
ciências naturais. Para tanto, recorri à dupla tematização da natureza em Kant, à
filosofia da natureza e da liberdade em Schelling, e à controvérsia entre os amigos
de juventude, Hegel e Schelling. Apenas a partir desse pano de fundo – mediado
por Friedrich D. E. Schleiermacher (1981) e Ludwig Feuerbach (1975) – torna-se
compreensível a dupla dialética entre homem e natureza, tal como Marx a desen-
volveu basicamente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e continuou a
perseguir em toda sua obra.
De fato, o livro A relação dialética do homem com a natureza desencadeou
um debate científico, que foi inicialmente travado na disputa científica entre mim
e Hans Immler (1989), economista comprometido com a ecologia. O debate
foi documentado e editado por nós, em conjunto, no livro Marx e a questão da
natureza (1984/2011), e ampliado posteriormente, em 1986, em congresso onde
o tema foi ainda mais amplamente desenvolvido. O livro A relação dialética do
homem com a natureza foi também publicado em uma tradução para o coreano
(SCHMIED-KOWARZIK, 1994), e partes dele foram traduzidas para o italiano,
croata e francês4. Em duas séries de palestras pelo Brasil, em 1990 e 1999, pude
apresentar algumas teses fundamentais da obra, experimentando ressonância muito
positiva (SCHMIED-KOWARZIK, 2002).
No entanto, visto em geral, meu livro de 1984 veio tarde demais para a
discussão sobre Marx e cedo demais para o debate ecológico ainda incipiente. A
discussão sobre Marx, que havia eclodido em decorrência do movimento estudantil
nos anos 70, tinha também alcançado a filosofia. Por um lado, apareceram nova-
mente, nos seminários filosóficos, livros reeditados e novos de Georg Lukács, Ernst
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Vejam-se Schmied-Kowarzik (1985; 1988; 2011).
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Vejam-se Bahro (1991), O’Connor (1998), Foster (2000), Kovel (2002), Altvater (2005), Löwy (2016), Stache
(2017) e Armanski (2017).
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Wolfdietrich Schmied-Kowarzik
Viena, Áustria, junho de 2018.
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Preâmbulo
cego e feroz do modo industrial de produção, apenas pode ser contraposta uma
práxis modificada de sujeitos humanos tornados conscientes de si mesmos.
“Uma verdadeira práxis revolucionária depende, porém, da intransigên-
cia da teoria em face da falta de consciência, com a qual a sociedade deixa que o
pensamento se enrijeça” (HORKHEIMER; ADORNO, 2006, p. 23). Adorno e
Horkheimer escreveram isso em 1944, e um ano depois, foram lançadas as bom-
bas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki; com essa data – conforme frisa Günter
Anders, em seu ensaio filosófico Tempo final e fim dos tempos (1972) –, entramos
em uma nova era da história da humanidade: na era tanto do início de nosso
autoextermínio quanto da destruição da vida terrestre.
Uma guerra mundial, levando em conta o acúmulo de armamentos atô-
micos existente atualmente, significa o mesmo que o extermínio da humanidade,
e os sistemas armamentistas cada vez mais sofisticados e autorreguladores tornam
uma guerra nuclear, devido a uma falha técnica ou humana, infinitamente mais
provável do que a sobrevivência planejada da humanidade. Mas o olhar fixado
nessa possibilidade de uma guerra mundial exterminadora da humanidade faz-
nos negligenciar que, a nossas costas, está em curso um sorrateiro, mas irresistível
envenenamento e destruição da vida, que, independentemente de se haverá ou não
uma guerra, arruinará irreversivelmente – tanto no Leste quanto no Ocidente e
no mundo todo – não apenas nossa vida humana, senão toda a vida terrestre tão
somente pela continuidade de nosso modo industrial de produção. O que de nós se
aproxima não é uma catástrofe natural, mas um processo destrutivo desencadeado
por nós mesmos mediante nosso modo industrial de produção, o qual, porém,
autonomiza-se como que de modo natural. Os dejetos venenosos coproduzidos
pelo processo de produção industrial, que, inescrupulosamente, relegamos ao ar,
ao mar e à terra, modificam, passo a passo, na maior parte irreversivelmente, os
ciclos vitais da biosfera.
A loucura de nossas ações fica mais claramente evidenciada lá onde nós,
por interesse em uma produção crescente de energia, não nos intimidamos em
produzir, em concentração maciça, capaz de aniquilar a vida, o mais perigoso
veneno já elaborado por nós mesmos: o plutônio 239. É, na verdade, claro para
todos os participantes que, por todos os tempos, esse veneno – e seu lixo radioa-
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A parte delimitada entre colchetes refere-se a uma inserção solicitada pelo próprio autor da obra (Schmied-
-Kowarzik), posterior, portanto, à edição original. [N.T.]
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mesmo o próprio conceito de natureza das ciências naturais está posto em questão
enquanto momento de nossa relação alienada com a natureza. Precisamos, portan-
to, tentar antes retomar a discussão filosófica sobre a natureza no ponto em que
foi abandonada há 180 anos atrás para podermos, assim, atualizar novamente o
horizonte do problema que subjaz também à teoria marxiana.
Ainda hoje, o campo de problemas aqui indicado é marcado pelas posições
opostas de Kant e Schelling. Não é uma injustiça o fato de Kant ser considerado
o antepassado da teoria científica das ciências modernas, pois ele identificou, em
termos transcendental-filosóficos, as condições de possibilidade de um conheci-
mento rigoroso das leis científicas, nas quais as ciências objetificadoras continuam
a mover-se e diferenciar-se; ainda assim, a compreensão da natureza por Kant não
se deixa reduzir, de maneira alguma, ao conceito de natureza das ciências naturais.
Em contrapartida a isso, Schelling insistiu em esboçar uma filosofia da natureza,
que reflete a natureza a partir de suas próprias potências. Até agora, a tentativa de
Schelling quase não encontrou seguidores; não obstante, sua filosofia da natureza
vem ganhando cada vez mais importância, por ser, talvez, a última, até mesmo
a única grande tentativa de compreender nosso real “estar-na-natureza” a partir
do próprio contexto real da natureza. Marx vincula-se a isso, diretamente ou via
Feuerbach, e chega, assim, a uma filosofia da práxis social fundada em uma filosofia
da natureza, a qual ele não contrapõe, na verdade, de modo algum, à natureza, mas
define dialeticamente como fundada na própria natureza e a ela referida.
Tentaremos, portanto, primeiro explicitar novamente a determinação de
natureza em Kant e Schelling, para, assim, alcançarmos o horizonte do problema,
em geral, a partir do qual Marx discute a dialética da relação com a natureza. Após
um minucioso desenvolvimento da implicação da teoria marxiana com a filosofia da
natureza, tanto nos Manuscritos filosóficos da juventude quanto nos escritos tardios
acerca da Crítica da economia política, deverá ser ainda apenas indicado, em um
último parágrafo, que a discussão posterior acerca da filosofia da práxis, sobretudo
em Ernst Bloch e Alfred Redel, alcança novamente o nível do problema atingido
entre Kant e Schelling, ainda que sem ultrapassá-lo – tendo agora, como base, a
filosofia da práxis de Marx.