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GABRIEL FERRÃO MOREIRA

O ELEMENTO INDÍGENA NA OBRA DE VILLA-LOBOS:


OBSERVAÇÕES MÚSICO-ANALÍTICAS E CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

Florianópolis
2010
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA – PPGMUS
MUSICOLOGIA/ETNOMUSICOLOGIA

GABRIEL FERRÃO MOREIRA

O ELEMENTO INDÍGENA NA OBRA DE VILLA-LOBOS:


OBSERVAÇÕES MUSICO-ANALÍTICAS E CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Música da Universidade do Estado de
Santa Catarina como requisito parcial à obtenção
do grau de Mestre em Música, na sub-área
Musicologia/ Etnomusicologia

Orientador: Prof. Dr. Acácio Tadeu de Camargo


Piedade

Florianópolis
2010

2
GABRIEL FERRÃO MOREIRA

O ELEMENTO INDÍGENA NA OBRA DE VILLA-LOBOS:

OBSERVAÇÕES MUSICO-ANALÍTICAS E CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do PPGMUS/UDESC como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre em Música

Banca Examinadora

Orientador: ______________________________________________________
Prof. Dr. Acácio Tadeu Camargo de Piedade
UDESC

Membro: ______________________________________________________
Prof. Dr. Luis Fernando Hering Coelho
UNIVALI

Membro: ______________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler
UDESC

Florianópolis, 22 de dezembro de 2010

3
A Villa-Lobos, o compositor dessas obras que
analiso, dedico essa resposta às suas ‘cartas a
posteridade’. Aos meus familiares, pelo seu carinho,
apoio e conselhos, dedico esse trabalho. Dedico esse
trabalho, também, aos mais de 460 mil índios que
vivem no Brasil.

4
AGRADECIMENTOS

Esse trabalho teve diversas fases, mas em todas pude contar com familiares, amigos e apoio
institucional. Agradeço muitíssimo a minha família, especialmente meus pais, Osvaldo e Marta, e à
minha avó, Jandyra, pelo suporte emocional e financeiro, bem como pelo incentivo e conselhos.
Agradeço também a minha grande amiga e companheira, Aida, pelo seu carinho, compreensão,
apoio e interesse em me ouvir nas minhas questões, incluindo as da pesquisa.
Sou grato à CAPES pela bolsa que recebi de agosto de 2009 até o fim do mestrado, sem a
qual não teria podido me dedicar integralmente ao desenvolvimento desse trabalho e à manutenção
de tudo que envolve a vida do pesquisador de pós-graduação.
Agradeço à Universidade do Estado de Santa Catarina, especialmente ao Programa de Pós-
Graduação em Música que me proporcionou apoio financeiro para a participação de congressos e
viagens de pesquisa, sem os quais esse trabalho não teria sido possível. Agradecimentos especiais
ao prof. Marcos Holler e a Rosângela Aparecida.
Agradeço, também, ao professor Acácio Piedade pela sua orientação, na qual sempre me
exigiu bastante, demonstrando sua convicção de que eu era capaz de realizar essa empreitada com
excelência.
Ao professor Paulo de Tarso Salles, por ter me recebido gentilmente em entrevista em São
Paulo e compartilhado suas ideias - em momentos nos quais pude reelaborar as minhas próprias –
meu muito obrigado.
E, por fim, agradeço a Deus pela alegria de viver e realizar.

5
RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo central discutir através de observações analíticas e investigações
bibliográficas as maneiras pelas quais Heitor Villa-Lobos desenvolveu suas estruturas
composicionais utilizando elementos indígenas e construiu uma faceta de seu estilo muito
característica, que aponta para a brasilidade através do exótico e selvagem. Partindo do pressuposto
de que exista uma maneira peculiar e própria de Villa-Lobos representar o índio que constitua uma
linguagem específica do compositor, esse trabalho procura desvelar aspectos musicais e
hermenêuticos dessa linguagem. Com uma leitura compreensiva dos eventos que antecederam e que
sucederam o corte temporal dessa pesquisa – década de 20 - a análise musical se relacionará com as
informações obtidas pela análise do contexto histórico-cultural da época no Brasil e Europa as
interpretando, para sintetizar tais dados na construção de uma proposta de pensamento sobre o
desenvolvimento desse estilo musical do compositor, que o acompanhou até o fim de sua carreira
no final da década de 50.

PALAVRAS-CHAVE: Música erudita brasileira, musicologia, índio, Brasil.

6
ABSTRACT

This research is mainly aimed to discuss, through music analysis and bibliographical studies the
ways in which Heitor Villa-Lobos developed his compositional structures using indigenous
elements and built a facet of his style very characteristic, pointing to the Brazilianness through the
exotic and wild. Assuming that there is a peculiar way of Villa-Lobos to represent the indigenous,
that constitutes a specific language of the composer, this work seeks to reveal musical and
hermeneutics aspects of this language. With a comprehensive reading of the events that preceded
and followed the cutting time of this research - the 20´s - the musical analysis will relate to
information obtained by the analysis of historical and cultural context of the season in Brazil and
Europe to synthesize such data in the construction of an interpretation about this musical style of the
composer, who accompanied him to the end of his career in the late 50's.

Keywords: Brazilian Concert Music, Musicology, Brazilian Indian, Brazil.

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................10

CAPÍTULO I: VESTINDO A CASACA OU PONDO O COCAR:


O ÍNDIO NO BRASIL, NA FRANÇA E EM VILLA-LOBOS..............................................16
1.1 Do Guarani à Amazonas: A questão indígena interpretada pela música no Brasil...............16
1.2 Rameau, Rosseau, Milhaud e Cocteau – França: Do imaginário idealista à
procura da Musique Exotique............................................................................................................22
1.2.1 Os Franceses e os Ameríndios: O “Mito” do Bom Francês.......................................23
1.2.2 Rousseau, Rameau e o selvagem na França do século XVIII.................................26
1.2.3 Debussy, Cocteau, Milhaud e a descoberta do exótico em Música.........................32
1.3 Villa-Lobos: L´indien Blanc.......................................................................................................35

2 CAPÍTULO II: OS TRÊS POEMAS INDÍGENAS DE HEITOR VILLA-LOBOS.............44


2.1 Canide Ioune – Sabath: Primeiro Poema Indígena...................................................................45
2.1.1 Sobre a melodia temática...........................................................................................45
2.1.2 Sobre desenvolvimento formal..................................................................................46
2.1.3 Sobre a Textura...........................................................................................................53
2.2 Teirú: Segundo Poema Indígena.................................................................................................64
2.2.1 Sobre a melodia temática...........................................................................................64
2.2.1.1 As transcrições em Rondônia........................................................................65
2.2.2 Sobre o desenvolvimento formal................................................................................67
2.2.3 Sobre a textura............................................................................................................76
2.3 Iára: Terceiro Poema Indígena...................................................................................................94
2.3.1 Sobre a Poesia............................................................................................................94
2.3.2 Sobre a melodia temática...........................................................................................96
2.3.3 Sobre desenvolvimento formal................................................................................107
2.3.4 Sobre a textura.........................................................................................................110

3 CAPÍTULO III: O ELEMENTO INDÍGENA EM HEITOR VILLA-LOBOS................125


3.1 Utilização de melodias e textos de caráter indígena nas canções:
Estabelecimento de intertextualidade.............................................................................................127
3.1.1 Referências a material indígena na música instrumental de Villa-Lobos:
as diferentes abordagens e seu encontro no estilo composicional.........................................132
3.2 Graus conjuntos, modalismos e pulso constante na construção melódica:
encontros do atemporal e contemporâneo.....................................................................................140
3.2.1 Interrelações entre modalismo, religiosidade, o cantochão
e a música indígena em Villa-Lobos.....................................................................................152
3.3 Estruturas em Quartas/Quintas: uma tópica do natural.......................................................155
3.3.1 Modernidade e Antiguidade no uso das quartas e quintas em Villa-Lobos.............171
3.4 Paralelismo: uma tópica do primitivo......................................................................................178
3.4.1 Sobre a representação do índio através do paralelismo rítmico e harmônico..........189
3.5 O conceito repetição/estaticidade figurado no ostinato..........................................................194

8
3.6 A ‘horizontalização’ da estaticidade: o fluir da melodia na representação do índio
em Villa-Lobos..................................................................................................................................208
3.7 A Textura musical como ‘Ambientadora’ do índio: riqueza, magnitude
e biodiversidade musical na composição/orquestração de Villa-Lobos.......................................229
3.8 As tópicas indígenas em Villa-Lobos e suas (re)apropriações
pela música brasileira do século XX...............................................................................................231
4
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................239

Poslúdio: Tupinambás, Parecis e Nambiquaras.....................................................................243

1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................245

PARTITURAS.........................................................................................................................254

2. ANEXOS...................................................................................................................................256

Anexo A – Modinha ‘Quem Sabe’ de Carlos Gomes....................................................................257


Anexo B – ‘Quilombo: Quadrilha Brasileira’, de Carlos Gomes...............................................260
Anexo C - ‘Canide Ioune – Sabath’ dos ‘Três Poemas Indígenas’..............................................265
Anexo D – ‘Teirú’ Dos ‘Três Poemas Indígenas’ de Villa –Lobos...............................................268
Anexo E – ‘Teirú’, Na Coleção Escolar de Villa-Lobos................................................................272
Anexo F – ‘Iára’ Dos Três Poemas Indígenas, de Villa-Lobos.....................................................273
Anexo G – ‘Convite Tribal: Canto Ameríndio Brasileiro’, de Bidart.........................................284
Anexo H – ‘Quartas’. Da ‘Série Intervalos’, de Bidart................................................................287
Anexo I – Texto Explicativo De ‘Convite Tribal’, de Bidart........................................................290
Anexo J – ‘Teirú’, de Lacerda........................................................................................................291
Anexo K – ‘Canide Iune’, de Lombardi........................................................................................293
Anexo L – ‘Yanománi’, de Nobre...................................................................................................295
Anexo M – ‘Ukrinmakrinkrin Op. 17’, de Nobre........................................................................299
Anexo N – ‘Jóia’ de Veloso..............................................................................................................301
Anexo O – Índice de figuras da dissertação..................................................................................302

9
INTRODUÇÃO

Muito havia sido escrito sobre Villa-Lobos desde seus últimos anos de vida - quando já era
compositor consagrado e reconhecido no país (AZEVEDO, 1956; BARROS, 1950; LORENZO
FERNANDEZ, 1946; MARIZ, 1989, 2005a, 2005b; PEPPERCORN, 2000 SILVA, 2003) – mas, no
momento atual, percebe-se outra leva de escritos que refletem mudanças nas disciplinas
musicologia e análise musical brasileiras e nas abordagens utilizadas para perceber o sujeito e sua
obra. Principalmente de caráter biográfico, os primeiros textos escritos sobre Villa-Lobos, por Vasco
Mariz, Lisa Peppercorn e Adhemar Nóbrega demonstram abordagens um pouco diferentes do tema
entre si, mas coincidem na ausência de uma reflexão acerca de processos composicionais e
estilos/formas desenvolvidos por Villa-Lobos. Mariz, que utilizou como fonte documental o próprio
Villa-Lobos, nos rendeu uma biografia linear e teleológica por excelência. Lisa Peppercorn, apesar
de ter entrevistado Villa-Lobos, também se dispôs – e nisso fica o caráter excepcional de seu
trabalho à época – a pesquisar e derrubar mitos sobre a bibliografia villalobiana. Adhemar Nóbrega
dedicou-se à análise da música de Villa-Lobos, como um pioneiro, mas, em suas análises, não
propõe a procura de consistência na obra de Villa-Lobos, somando sua voz, de certa forma, ao
discurso de senso comum que avalia Villa-Lobos pela sua natureza indisciplinada, ‘voraz’ e
intuitiva, visão que tem recebido criticas e vem aos poucos sendo derrubada (SALLES, 2009a,
2009b). A escrita desses trabalhos à época da morte do compositor – feitos todos sobre o seu
recente desaparecimento – se dedicam a pesquisar Villa-Lobos pela sua importância como cidadão
brasileiro, exemplo de sucesso artístico e fazem parte do coro que se ouvia na Europa e Estados
Unidos a louvar seu nome1, porém sem aprofundar no estudo sistemático da sua obra; de sua
produção artística de fato.
Nos anos 70, iniciou-se a escrita, no Brasil, de livros com análises sobre obras de Villa-
Lobos. Adhemar Nóbrega escreveu dois livros, o primeiro sobre as Bachianas Brasileiras
(NÓBREGA, 1971) e um segundo sobre os Choros (NÓBREGA, 1974), recebendo prêmios do
Museu Villa-Lobos pelos dois livros e a sua conseguinte publicação. Com a preocupação da
preservação da memória de Villa-Lobos, o Museu e os órgãos públicos de cultura parecem ter
percebido que apenas a saudade do compositor não seria o suficiente para manter sua memória. Era
preciso que ele entrasse para história o valor daquilo que havia feito, pela criação de sua obra. Essa
tendência segue na década de 80 e José Maria Neves também escreve sobre os Choros de Villa-

1
Ao ler tais trabalhos se percebe facilmente – pelo uso dos termos e construção dos próprios livros – a tendência
laudatória dos textos. Essa atitude poderia ser esperada, uma vez que a relação destes escritores com Villa-Lobos
pode ter sido de particular admiração, ou por terem o conhecido – Mariz e Peppercorn o entrevistaram , Adhemar
Nóbrega foi seu discípulo -, admirado sua obra e vivenciado seu desaparecimento de maneira mais intensa pela
proximidade dos fatos.
10
Lobos (NEVES, 1981b). Muito embora esse direcionamento para o conhecimento de Villa-Lobos
através de sua obra propriamente dita vá crescendo entre musicólogos brasileiros, a publicação de
biografias, re-edições e novos ensaios jornalísticos sobre o compositor também continua
crescendo2. Villa-Lobos continua sendo objeto de curiosidade e pesquisa de diversos musicólogos
brasileiros durante as duas décadas que seguem sua morte (KIEFER, 1977, 1986; HORTA, 1987).
Com o advento da chamada Nova Musicologia3 nos Estados Unidos, novas perspectivas
analíticas se desvelaram e o valor agregado à composição do século XX e música antiga – a fim de
os tornarem agenda para a pesquisa musical – foi potencializado pela relação da musicologia com a
crítica musical, análise e disciplinas diversas das ciências humanas como Estudos Culturais, Crítica
Literária e Estudos Feministas (McCLARY, 1991a, 1991b; ROSEN, 2000, TAGG, 1979).
A musicologia brasileira, geralmente mais interessada na música do cânon europeu formado no
século XIX – que abrange composições dos séculos XVII, XVIII e XIX - começou a se reformar
para olhar para a música antiga colonial e para sua própria música erudita do século XIX e XX de
forma analítica. Ela olhava para essa música com novas perspectivas, procurando observá-la não
apenas com uma perspectiva comparativa em relação à música europeia, mas de forma a conhecer a
realidade da música colonial e no império per si. As decorrências desse turno de longo prazo
tiveram um efeito bipartido, o que não é estranho partindo de uma perspectiva pós-moderna.
Primeiramente, essa mudança suscitou discussões sobre as representações de Villa-Lobos do Brasil
como nação (BÉHAGUE, 1994; GIACONO, 1972; GIRO, 1980; LOUZEIRO, 2003), e também
fomentou um interesse que poderia ser classificado, paradoxalmente, de “desinteressado” pela sua
obra, em termos estéticos e formais. Os trabalhos surgidos a partir dessa perspectiva pós-moderna
podem ser vistos a parir da década de 90 e figuram como os que antecedem a reação que se vê a
partir dos anos 2000 na bibliografia especializada.
Como toda a discussão acerca da Nova Musicologia apontou, trabalhos surgiram repletos de
cuidados etimológicos e com intenção de destrinchar sentido e representação do Brasil em Villa-
Lobos sem se dedicar à análise de suas obras em diversas ciências humanas (PARANHOS, 2003) 4;
e outros trouxeram análises duras de conteúdo imanente da obra, sem uma reflexão acerca do
conteúdo estético, e sem um direcionamento crítico (CUNHA, 2004) que pudesse trazer revelações
para a discussão da musicologia e para a construção de um conhecimento sólido sobre Villa-Lobos
pela disciplina. Ambas as abordagens eram divididas, sem trazer grandes contribuições para os
2
Um exemplo desse fenômeno é o grande número de edições dos livros de Vasco Mariz que se estabeleceram, até o
final do século XX, como maior referência bibliográfica sobre a trajetória de Villa-Lobos. Outro indicativo dessa
situação é a diversidade de biografias e textos escritos sem rigor acadêmico, com um estilo de escrita que às vezes
beira a inverossimilhança (quando não admite ser fabular) (CLARET & RIBEIRO, 1987; MUSEU VILLA-LOBOS,
1991).
3
Tornada célebre a partir dos questionamentos do musicólogo Joseph Kerman (KERMAN, 1987).
4
Alguns desses trabalhos se dedicaram a discutir o nível de envolvimento de Villa-Lobos com o regime getulista,
parecendo conferir valor a sua produção intelectual e artística de acordo com esse critério.
11
estudos em Villa-Lobos. Havia, por outro lado, na investigação acadêmica acerca de Villa-Lobos,
trabalhos de pesquisa documental, revisão das obras, numa dimensão técnica. Esses trabalhos –
embora de boa qualidade - careciam de um pensamento coeso acerca de estilo em Villa-Lobos,
problema causado em parte, a meu ver, pela falta de análises musicais extensivas da sua obra
(DUARTE, 1989; MURICY, s.d).
A resposta a esse processo veio dos musicólogos da primeira década do século XXI, e ela foi
a síntese desses dois pensamentos anteriores. Para eles, o desenvolvimento de métodos de análise
musical relevantes não dependia, necessariamente, da perspectiva que se parte – análise das
representações e significado ou da análise do status estético da obra – mas sim dos procedimentos
interpretativos que se fariam a partir das análises musicais ou biográficas que se faziam – a procura
da consistência/coerência das composições.
Paulo de Tarso Salles publicou sua tese de doutorado intitulada Villa-Lobos: Processos
Composicionais (SALLES, 2009a) onde procura discutir Villa-Lobos nas enquanto sujeito e
compositor, revelando através das análises procedimentos complexos e construção de estilo e
forma, num compositor geralmente visto – pela incompreensão da maioria dos críticos – como
sendo voraz e sem critério, e justamente nisso lhe davam sua maior glória5. Gil Jardim (JARDIM,
2005 e 2009) demonstra, também através de análises e reflexão sobre a biografia de Villa-Lobos, o
estilo antropofágico de sua obra, os diversos “estilos” de ser musical de Villa-Lobos. A pesquisa
sobre Villa-Lobos, agora não mais teleológica – e quase teológica na sua exegese6 –, se dedica a
analisar a obra do compositor e dessas análises sua verdadeira grandeza e 'natureza' podem ser
mensurada. Nos estudos sobre a vida de Villa-Lobos, Paulo Guérios (GUÉRIOS, 2003 e 2009)
revisa praticamente tudo que havia sido dito sobre a trajetória do compositor – na narrativa apoiada
majoritariamente nos escritos de Vasco Mariz - quando afirma que a dicotomia homem e obra
proposta pelo próprio Mariz no título de seu livro não pode ser sustentada. O próprio Guérios opera
análises musicais condizentes com o nível de investigação estética que faz em seu livro para
reconstruir Villa-Lobos no seu discurso antropológico7.
Após todas essas reconstruções no campo de sua pesquisa e novas descobertas desveladas
pelas análises mais minuciosas de suas composições resta aos novos pesquisadores perguntar: quem

5
Na verdade, me parece uma espécie de indulgência da parte desses autores, pela incapacidade de compreenderem a
obra villalobiana em seus próprios termos. Por outro lado, essa ‘glória’ da voracidade não redundava em estudo
dedicado da música villalobiana. Afinal, porque estudar alguém que fez algo irrefletidamente? É praticamente um
contrassenso a procura de estruturas lógicas em uma obra dessa natureza.
6
A comparação entre os estudos sobre Villa-Lobos da segunda metade do século XX e algumas elucubrações teológicas
pode ser significativo. Em ambos os casos, pouco se investigava seriamente, ou com medo de se depreciar ou
macular o objeto de estudo através da pesquisa ‘intrusiva’, ou por falta de parâmetros avaliativos coerentes.
Portanto, na pesquisa em Villa-Lobos, grande parte das respostas às perguntas eram, como o correlato teológico,
profissões de fé, crença, ou louvor ao valor da obra, sem a apresentação de argumentos críticos sustentáveis.
7
Contudo, pontos importantes de sua dissertação serão questionados nesse trabalho.
12
é Villa-Lobos, e qual o valor e dimensão de sua obra? Pergunta-se acerca do valor não para que se
se possa “inferir valor”, mas para que se possa ter alguma reação e relação objetiva ao se partir para
novas análises de significado e de estética: qual o valor da obra de Villa-Lobos em si mesma? Como
essa obra é organizada internamente pelo compositor?
Nesse contexto o presente trabalho propõe construir – com base nos trabalhos mais recentes
sobre Villa-Lobos (AVELLAR, 2000; GERLING & BARRENECHEA, 2000; JARDIM, 2009;
LEE, 2005; LOPES, 2009; MOREIRA & PIEDADE, 2008; NASCIMENTO, 2005; PAZ, 2004;
SALLES, 2005, 2009a e 2009b; TACUCHIAN, 2009, VILLA-LOBOS, 2009) – um panorama do
desenvolvimento da obra villalobiana quando o compositor se utiliza da intenção indígena, através
da análise de obras chaves para a questão 8.
A presente dissertação é organizada da seguinte forma: o primeiro capítulo discursa sobre o
aparecimento do tema indígena na composição erudita brasileira no fim do século XIX no período
Indianista da literatura9 e a construção do imaginário francês sobre o “selvagem” com relatos
históricos do século XVI à XIX. Também faz observações sobre a relação de Villa-Lobos com as
fontes etnográficas que pesquisou e como pôde se situar estrategicamente num período onde tanto o
interesse francês pelo exótico em música e as discussões sobre nacionalidade e modernismo no
Brasil estavam em voga, para a construção da sua música e consequentemente do seu personagem.
No segundo capítulo – o capítulo central da dissertação – serão analisados os Três Poemas
Indígenas (VILLA-LOBOS, 1929) e os procedimentos composicionais de Villa-Lobos utilizados na
representação musical do indígena serão isolados. A escolha desses Poemas para análise pode ser
justificada pela utilização de temas indígenas originais nos dois primeiros – utilização documentada
pelo próprio compositor nas partituras – e pelo uso do Poema10 (Iára) de Mário de Andrade na
última peça dos poemas. Nesse contexto alguns aspectos poderão ser verificados: a ambientação
criada por Villa-Lobos nas canções poderá ser analisada objetivamente, uma vez que as melodias
temáticas das duas primeiras canções não são criações de Villa-Lobos, sendo mantidas,
essencialmente, como as originais. No caso da terceira canção, poderá se perceber a verve de
criação temática e melódica de Villa-Lobos sobre o tema indígena, uma vez que o que une essa
canção às outras é o poema – texto - de temática indígena, já que a melodia em si é de composição
de Villa-Lobos11. Nas análises. observo os seguintes aspectos das obras: forma, textura,

8
Uso o termo Intenção Indígena para não caracterizar apenas obras nas quais ele usa, de fato, melodias indígenas,
mas sempre que o compositor tem a intenção de evocar a musicalidade indígena brasileira.
9
Corrente literária do Romantismo brasileiro, onde o índio era visto como herói nacional, responsável pela gênese da
nação.
10
O nome desse poema de Mário de Andrade é simplesmente Poema, como pode ser visto no livro de poemas Clã do
Jabuti, de 1927.
11
No poema Iára não há referências à origem da melodia, como havia nos outros dois poemas. No momento atual da
pesquisa não há nenhuma evidência de que essa melodia seja originalmente indígena.
13
desenvolvimento melódico e harmônico e utilizarei outros recursos a medida da necessidade da
análise de parâmetros específicos como motivo, simetria e prolongações harmônicas e melódicas.
No terceiro capítulo, procurarei generalizar os resultados das análises dos Três Poemas
Indígenas para outras peças de temática indígena de Villa-Lobos. Serão feitas, consequentemente,
outras análises de obras de temática indígena de períodos diversos da vida do compositor onde
tentarei encontrar procedimentos específicos que delineariam a maneira de Villa-Lobos representar
o universo indígena e seus desdobramentos em suas composições12. Nesse capítulo, elaborarei
hipóteses e reflexões sobre a dimensão do significado dos procedimentos composicionais de Villa-
Lobos na representação do indígena, no tratamento harmônico dos motivos originais e na
construção particular da ambientação das peças. Por fim, ainda nesse capítulo, advinda das
observações resultantes dessas generalizações, uma discussão acerca da construção dessa linguagem
musical particular de Villa-Lobos – que representa o índio e seu meio ambiente – procurará transpor
os limites temporais do corte analítico desse trabalho para poder avaliar a dimensão do papel de
Villa-Lobos e de sua obra na constituição do que vem a ser o indígena brasileiro representado hoje
na música popular brasileira e no imaginário coletivo daqueles que tiveram contato com suas obras.
Muito mais do que repetir o discurso – que remete aos anos 80 – de que Villa-Lobos seria
Índio Branco por ter viajado ao Norte do Brasil (o que de fato fez), mais especificamente à Floresta
amazônica (o que ainda não se pode comprovar nem reprovar documentalmente) o objetivo dessa
pesquisa é, através de diversas análises minuciosas de uma obra escolhida por sua
representatividade e outras análises menores para apoiar as considerações, propor uma interpretação
hermenêutica para os procedimentos composicionais de Villa-Lobos, restrito a um de seus muitos
estilos particulares, o estilo indígena.
Villa-Lobos: exótico, ameríndio, selvagem. Como se constrói, em sua música, essa faceta
tão bem compreendida pelos seus ouvintes no mundo todo, que lhe deu muitos dos seus maiores
sucessos, como o Noneto, Amazonas, Uirapuru? Como utilizou as melodias coletadas? Como as
transformou em motivos diversos? Como procedeu em sua reutilização? Como construiu formas
através desses procedimentos? E por fim, como criou esse conceito de música indígena brasileira,
usada até hoje na música popular e erudita?
O presente tema dessa pesquisa é conveniente para uma análise de procedimentos
composicionais em Villa-Lobos, uma vez que, localizadas as fontes de onde se inspirou – muitas
vezes copiando-as literalmente – percebe-se a verve criativa e técnica do compositor, a alterar de
várias formas, manter, inverter, enfim, inventar sobre o substrato a que ele mesmo se limita a usar
(MOREIRA & PIEDADE, 2010). A escolha dos Três Poemas Indígenas é emblemática por ser uma

12
Uma referência importante para o corte analítico e metodológico que proponho aqui pode ser observado no livro de
Marcelo Cazarré, onde o autor procura a representação do negro na música brasileira para piano (CAZARRÉ, 2001).
14
obra em que se pode observar tanto o Villa-Lobos que se restringe ao uso literal de temas – em
Canide Ioune – Sabath e Teirú – a aquele que constrói o indígena por isolar os elementos
constitutivos dessa música e utilizar como recurso composicional – em Iára.
No ano de 2009 comemorou-se 50 anos da morte do compositor, e essa distância bastante
considerável nos traz segurança para a pesquisa e exige que dediquemos mais tempo para vermos
Villa-Lobos como compositor e artista. Precisamos, para isso, sobretudo, olhar para sua obra,
analisá-la e interpretar seu significado com os recursos disponíveis na musicologia. Isso nos traz o
benefício implícito de nos tornarmos aptos a compreender sua arte e compartilhar nossas
interpretações e sugestões para outros colegas e a sociedade brasileira.
Talvez Villa-Lobos deva ser visto como Índio Branco, sim, mas não apenas pela sua
almejada autenticidade na representação do índio brasileiro em Paris, mas também pela sua
capacidade de ressignificar a natureza à sua volta e seu próprio ‘corpo’ musical, criar seus
procedimentos composicionais sobre esta sua visão; inventar, como compositor, o novo indígena
que não se obriga a ser como os outros compositores/índios - mesmo que os absorvendo de forma
antropofágica –, que procura ser autêntico e único em si mesmo.
É sobre essa hipótese que a pesquisa que se segue pretende atuar.

15
CAPÍTULO I: VESTINDO A CASACA OU PONDO O COCAR: O ÍNDIO NO
BRASIL, NA FRANÇA E EM VILLA-LOBOS.

1.1 Do Guarani à Amazonas: A questão indígena interpretada pela música no


Brasil
Em 1929, em Paris, dá-se a primeira execução pública de Amazonas, poema sinfônico de
Heitor Villa-Lobos, com argumento de seu pai (MUSEU VILLA-LOBOS, 2009). Foi um dos
maiores sucessos do autor e se dá 59 anos depois de outro grande sucesso de um músico brasileiro
na Europa, a ópera Il Guarany (VOLPE, 2002, p.1) de Antônio Carlos Gomes.
Ambas as composições procuram representar um universo indígena brasileiro para audiências
europeias. Villa-Lobos entrega Amazonas ao público europeu na Sala Gaveau, em Paris e Carlos
Gomes estréia Il Guarany no Teatro Alla Scala, em Milão. Mais paralelos podem ser encontrados
entre os compositores e suas duas premières citadas acima. Os dois são considerados grandes
compositores brasileiros, que representam a musicalidade brasileira e que compõem música
programática (no caso uma ópera e um bailado) e as apresentam em grandes potências culturais de
seu tempo – a Itália, grande influência da música do império no século XIX, e a França, onde se
concentrava grande parte das inovações e exotismos culturais; onde os modernistas alimentavam
suas propostas estéticas – e compondo numa linguagem condizente com princípios estéticos
vigentes na Europa. Carlos Gomes compôs uma ópera de estilo italiano, para ser lançada na Itália;
Villa-Lobos, embebido das mesmas paixões que os franceses à época – Stravinsky e, ainda que
negasse, o Wagnerismo Debussyista (SALLES, 2009, p. 25) – compõe poema sinfônico digno de
uma coreografia da companhia de Diaghilev. O estilo aqui também é adequado a sua época – ópera
italiana no século XIX e Bailados para o início do século XX. Há de se observar também que a
própria temática das duas obras em questão é, de certa forma, a mesma: o indígena brasileiro. Se há
tantas semelhanças entre esses personagens, onde residem elementos que permitam o entendimento
das diferenças na abordagem do indígena dentro do Brasil, no final do século XIX e início do século
XX? Acredito que suas jornadas na Europa e, principalmente, suas composições em si, indiquem
essas diferentes abordagens.
Primeiramente, um ponto interessante é o que diz respeito ao caráter diferente das viagens
empreendidas por Villa-Lobos e Carlos Gomes e o contexto das mesmas. Em sua primeira viagem,
o propósito e dever de Villa-Lobos eram representar, à espécie de um diplomata, a música brasileira
e latino-americana (PEPPERCORN, 2000). Muito se fala a respeito da célebre frase de Villa-Lobos
“não vim aprender, vim mostrar o que tenho feito”, como que atribuindo a seu personagem
arrogância e presunção. Entretanto se vê que a Villa-Lobos foi cedido o dinheiro para a sua

16
primeira viagem não para estudar e se aperfeiçoar, mas para representar o Brasil e de certa forma a
América Latina na Europa (op, cit.).
Carlos Gomes, de forma diversa, foi enviado por D. Pedro II à Europa para estudar música
com mestres do velho continente (GUÉRIOS, 2009). A questão é ainda mais interessante quando se
analisa os desdobramentos da sua viagem ao exterior. D. Pedro II pretendia enviar Carlos Gomes à
Alemanha para estudar o estilo de Wagner, e a Imperatriz Dona Teresa Cristina – de Nápoles –
sugere que ele vá à Itália13. Nesse entremeio, esperou-se dele que se tornasse um grande compositor
indo à Itália para estudar; de Villa-Lobos, que ele mostrasse a arte mais brasileira possível, a fim de
representar o Brasil no concerto das nações europeias. Em sua segunda viagem, contudo, Villa-
Lobos se dedicou a mostrar sua obra e elaborar sínteses originais, com maior preocupação em
divulgar sua própria composição, e é nesse contexto que observamos a criação de Amazonas.
Vê se, então, que se esperavam coisas diferentes de cada um destes ‘representantes’ da
brasilidade musical (na verdade de ‘brasilidades’ musicais também diferentes). Essas expectativas
refletiam tanto a compreensão do compositor brasileiro e seu papel específico no Brasil como no
exterior, papel que, por sua vez, era elaborado em conjunto com as expectativas europeias acerca do
que vinha a ser ‘brasilidade’ em música14. Carlos Gomes fazia sucesso com suas óperas à medida
que compunha segundo a linguagem compreendida na Itália, o que era uma demanda musical da sua
época. Entretanto, ainda assim Carlos Gomes imprimia mesmo nessa linguagem musical
consagrada traços característicos de seu estilo composicional. Segundo Nogueira,

Essa ideia [de Carlos Gomes como reacionário e conservador] é bastante


discutível15 e vem sendo sucessivamente rejeitada através de trabalhos recentes,
que demonstram a utilização de procedimentos composicionais que o verismo de
Mascagni e Puccini iria consagrar anos depois. Essa assertiva fica ainda mais
enfraquecida se atentarmos para o fato de que, Fosca (1873), a segunda ópera de
Carlos Gomes na Itália, desagradou aos italianos justamente por ser considerada
wagneriana, assim como Maria Tudor (1879) (NOGUEIRA, 2005, p. 246)

Da mesma forma foi com Villa-Lobos. Muito embora o compositor se adequasse a


princípios estéticos da vanguarda parisiense, se esperava dele uma síntese de tudo aquilo agregado
ao sistema complexo e estruturado do seu metiê particular de compositor. Esperava-se dele que
fosse diferente, exótico. Villa-Lobos também dialogava com a estética musical de sua época, e sobre

13
Justamente por essa educação em ópera italiana tradicional – e obviamente sua filiação ao Imperador – é que Carlos
Gomes foi rejeitado para seguir liderando o Instituto Nacional de Música – muito embora ele mesmo tenha se
aventurado em compor ópera ao estilo de Wagner (NOGUEIRA, 2005)
14
Muito embora existam colagens de temas populares em obras de Carlos Gomes, como o quarteto de cordas Burrico
de Pau e a modinha Quem Sabe? (ANEXO A) e Quilombo: quadrilha brasileira (ANEXO B) - tais como em Villa-
Lobos – o tratamento do indígena é diferente nos compositores.
15
Outra asserção que se deve problematizar é a ideia de que Villa-Lobos propôs uma brasilidade mais autêntica e,
portanto, com mais valor que Carlos Gomes. Trabalhos atuais têm demonstrado que essa leitura é decorrente da
escola modernista que se apropriou do discurso nacionalista (FREITAS, 2009).
17
ela construía sua inventividade e inovação. Percebemos através do que lemos, que ambos os
compositores inseriam sua musicalidade particular em suas obras. Logo, considerar Carlos Gomes
como um compositor menos dedicado a desenvolver procedimentos inovadores em sua música é
‘contar a história’ de maneira tendenciosa. O que há, sim, é diferentes abordagens do que seria
vanguarda para os dois compositores. Enquanto que para Carlos Gomes o avanço na composição
seria na direção do desenvolvimento de um estilo já consagrado, para Villa-Lobos o avanço seria na
direção de um novo estilo, de novas linguagens. Essas demandas particulares dos compositores
devem ser lidas dentro do contexto que se lhes apresentou na Europa: para Villa-Lobos, uma França
deslumbrada com o mundo, que tornava seu interesse para o ‘Outro’, procurando incessantemente o
exótico e novo, para Carlos Gomes uma Itália interessada em sua própria música, procurando em
novos compositores releituras e criações inovadoras dentro do estilo consagrado.
A questão da brasilidade em música e o papel do índio nesse quadro de representação devem
ser entendidos da mesma forma, compreendendo as demandas sociais e culturais que envolviam
tanto o Brasil quanto a Europa. Segundo Volpe (VOLPE, 2002), Carlos Gomes desenvolveu em sua
maior obra, Il Guarany, o pensamento indianista do Romantismo de sua época, fim do século XIX.
Segundo a autora, o Indianismo 16, mais do que apenas um recurso literário utilizado na ópera de
Carlos Gomes – com argumento baseado no texto de José de Alencar, O Guarani - possui
significado cultural importantíssimo no desenvolvimento do ideal de nação. Por conseguinte, a
assimilação desse tema na ópera de Carlos Gomes a reveste de um papel especial na discussão
indianista. Segundo a autora:

O Indianismo tem sido considerado meramente um elemento literário na Ópera


Brasileira, sem exercer maiores conseqüências na expressão musical e seu
significado sócio-cultural. Eu argumento em outro texto que a contribuição do
Indianismo no processo de nacionalização da música brasileira precisa ser
redefinido, não apenas porque a escolha do sujeito literário era central no gênero
operístico, mas também e acima de tudo porque o Indianismo transmitia assuntos
ideológicos muito importante no que diz respeito à construção da identidade
nacional 17. (VOLPE, 2002, p. 179)

Na narração do mito de criação do país por José de Alencar, o herói indígena é bom e está
disposto a se “fundir” miticamente com o branco para fundar a nação (Carlos Gomes, na sua versão,
troca o malvado personagem italiano pelo malvado espanhol). Ainda segundo Volpe:

16
O Indianismo é um movimento do Romantismo do século XIX especifico do Brasil, onde a busca do herói nacional
na construção do mito fundacional do país levou à adoção do índio como personagem principal. São expoentes do
movimento o escritor José de Alencar e o pintor Victor Meirelles.
17
Original: Indianismo has been considered merely a literary element in Brazilian opera, exerting no major
consequences on musical expression and its social-cultural meaning. I argue elsewhere that the contribution of
Indianismo in the nationalization process of Brazilian music needs to be reframed, not only because the choice of
the literary subject was central to the operatic genre, but also and above all because Indianismo conveyed major
ideological issues concerning the construction of national identity.
18
Como mito, a literatura Indianista foi grandemente estampada com material
fundacional. O mito da origem nacional foi criado da experiência de descoberta e
conquista, e envolvia a união do Português e do Índio com uma condição
necessária para o nascimento da nação Brasileira. A literatura indianista construiu o
mito da fundação nacional pela aspiração de encontrar as origens nobres da nação
num passado mítico. A fronteira entre literatura e realidade, história nacional e
ficção se sobrepuseram18. (VOLPE, 2002, p. 180)

Há uma ideia perene na literatura de José de Alencar e na música de Carlos Gomes do índio
como um dos fundadores da nação brasileira. Esse pensamento da arte a respeito do índio vai
antecipar em quase meio século o pensamento sociológico acerca do índio como elemento
importante na fundação da nação brasileira19.
Sobre a questão do mito da formação nacional em Il Guarany e a valorização do índio como
herói nacional na agenda do Indianismo, há alguns paralelos a serem estabelecidos com o
pensamento do sociólogo Giberto Freyre, em seu livro Casa-grande e Senzala (1933). Nele, Freyre
fala da peculiaridade da formação da nação brasileira e do papel do índio nessa gênese:

O Brasil tipifica quase que sozinho [o exemplo de] região onde o elemento europeu
nunca se encontrou em situação de absoluto e indisputado domínio. Por mais rígido
que (…) fosse o seu domínio econômico sobre os outros elementos étnicos, social e
culturalmente os portugueses foram forçados pelo meio geográfico e pelas
exigências da política colonizadora a competirem com aqueles numa base
aproximadamente igual (FREYRE, 1994, p. 162-163)

Freyre afirma que essa situação se percebe quase que exclusivamente no Brasil, e
continuando seu comentário, diz:

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se


constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um
ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no
máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do
conquistador com a do conquistador com a do conquistado. Organizou-se uma
sociedade cristã na superestrutura, com a mulher indígena, recém-batizada, por
esposa e mãe de família; e servindo-se em sua economia e vida doméstica de
muitas tradições, experiências e utensílios da gente autóctone (FREYRE, 1994, p.
163).

18
Original: Like myth, Indianist literature was largely stamped with foundational materials. The myth of national origi n
was created out of the experience of discovery and conquest, and involved the union of the Portuguese and the
Indian as a necessary condition for the birth of the Brazilian nation. Indianist literature constructed the myth of
national foundation by “aspiring to found the nation’s noble origins in a mythical past. The border between literature
and reality, national history and fiction overlapped.
19
A ideia de que as mudanças nas estruturas musicais antecipa as mudanças sociais de um determinado grupo social é
defendida pelo sociólogo francês Jacques Attali (ATTALI, 1985).
19
Percebem-se, então, nessa análise sociológica e histórica de Freyre, homologias estruturais
com a narrativa Indianista – o selvagem que ‘adota’ a civilização20 e contribui para a formação da
nação. Muito embora ele fundamente suas colocações em causalidades históricas, a questão da
harmonia fina entre brancos e índios se mantém e se reafirma. De fato, o que se entendeu por
genuinamente brasileiro em arte na época de Villa-Lobos – principalmente pelas vanguardas
artísticas e depois pelo governo Vargas - foi legado dessa valorização do índio e de tudo que era
popular – inclusive da música negra – no Brasil e no mundo. Pode-se afirmar nesse contexto, que
ainda que à época de Carlos Gomes não se valorizasse a ‘brasilidade’ estética na música erudita
como fator de destaque, ele, tanto quanto Villa-Lobos, expressou valores brasileiros de sua época
em sua música, ainda que esses valores estivessem extremamente vinculados à concepção europeia
de arte, principalmente a vertente italiana21.
Outras tentativas indianistas de composição como de Alexandre Levy e Alberto
Nepomuceno demonstraram interesse na produção de música de concerto com material indígena e
africano, se aproximando do que faria Villa-Lobos, mais tarde. Entretanto, conforme próprio
depoimento de Nepomuceno, não havia, à sua época, pesquisas de música folclórica que pudessem
fornecer música e informações para a empreitada de construir um gênero musical nacional que
representasse essa pluralidade brasileira. Em entrevista de Alberto Nepomuceno dada à Revista A
Época Theatral em 1917 e relatada por Guérios, Nepomuceno fala sobre seu pensamento acerca da
música de inspiração nacional:

-Poderia o ilustre maestro dizer, a propósito, se a música brasileira tem uma nota
verdadeiramente independente e característica?
Em geral – respondeu-nos S.S.[Sua Senhoria] - a nota característica da música
popular brasileira são as indicativas de suas origens étnicas – indígena, africana e
peninsular – tal como na poesia popular foi verificado por nossos folcloristas (…)
Infelizmente, a parte musical nos estudos do folclore brasileiro ainda não foi
estudada, provavelmente por ser a técnica musical uma disciplina que escapa ao
conhecimento dos investigadores do assunto.
Nunca me dediquei a esses estudos, mas possuo, como diletante, uma coleção de
oitenta cantos populares e danças, e procuro sempre aumentá-la. Acham-se quase
todos estudados e classificados (…) Esses elementos ainda não estão incorporados
ao patrimônio artístico de nossos compositores. Será por culpa de nossa educação
musical europeia, refinada, que impede a aproximação do artista-flor de civilização
e da alma simples dos sertanejos – que até hoje – por criminosa culpa dos governos
não passam de retardatários, segundo a classificação justa de Euclides da Cunha;
ou será por não ter ainda aparecido um gênio musical sertanejo, imbuído de
sentimentos regionalistas, que, segregando-se de toda a influência estrangeira,
consiga criar a música brasileira por excelência, sincera, simples, mística, violenta,

20
Obviamente, estou relativizando as compreensões acerca do nível desta ‘aceitação’ do índio da civilização imposta
pelo colonizador, de acordo com as diferentes perspectivas históricas que acompanham os interlocutores citados.
21
Para aprofundar essa discussão sobre Carlos Gomes, recomendo a leitura do artigo Discussões sobre a Brasilidade em
Carlos Gomes, de Olga Freitas (FREITAS, 2009).
20
tenaz e humanamente sofredora, como são a alma e o povo do sertão
(NEPOMUCENO apud GUÉRIOS, 2009, p. 112)

Ao tentar reconstruir os aspectos do aparecimento da discussão acerca do índio no Brasil,


deve-se considerar, de maneira direta, o aparecimento do tema indígena na obra Indianista de Carlos
Gomes, onde o tema era tratado - tanto em Il Guarany como em Lo Schiavo - mas sem o uso de
elementos musicais propriamente indígenas; em Nepomuceno e Levy, o uso esporádico dessas
motivações temáticas na procura pela construção de um gênero de música brasileira, mas que por
falta de estudos folcloristas e pela falta do “gênio sertanejo imbuído de regionalismos” não havia
florescido a seu tempo com originalidade.
O terceiro momento, a meu ver, é o surgimento de Villa-Lobos, que apesar de não cumprir
completamente a profecia de Nepomuceno – pois se inspirou no que ouviu de europeu em seu
tempo – constituiu o que se entendeu como a invenção de um gênero de música erudita
prioritariamente nacional por representar bem a amálgama das “três raças” apresentada na fala de
Gilberto Freyre. Villa-Lobos parece ser o que Nepomuceno esperava: foi chamado de músico
brasileiro por excelência, violento, tenaz, sofredor e possuidor da alma brasileira. A profecia parece
ter se cumprido. Ainda à época de Villa-Lobos, o papel do índio enquanto cidadão formador da
nação brasileira era questionado. Discutindo aspectos antropológicos no que dizia respeito à
aceitação de Os Batutas (grupo musical liderado por Pixinguinha) como representantes legítimos da
música brasileira em Paris, no ano de 1922, Rafael Menezes Bastos afirma que:

Na época, a viagem provocou no país um acalorado debate sobre a legitimidade d’


Os Batutas – em sua maioria negros, que faziam uma música considerada nacional
brasileira – como representantes brasileiros em Paris. Para os envolvidos no debate,
Paris não se tratava de uma cidade qualquer, mas a capital cultural do mundo,
desde o século XIX referência central para a cultura brasileira, especialmente para
as elites. Embora a viagem não fosse uma missão de Estado, o debate tendeu a
assim considerá-la. No debate em consideração, os argumentos dos “contra”
tinham um cunho racista e eurocêntrico, desqualificando a música nacional como
provinciana e de baixa extração. Os “pró” enalteciam a competência dos músicos e
a natureza indígena de sua música (MENEZES BASTOS, 2005, p.178-179)

Essa leitura nos mostra o quanto a sociedade brasileira ainda possuía setores contrários à
concepção do índio e da população em geral como representantes autênticos da nação brasileira,
ainda no início do século XX mesmo sendo as etnias de maior número no país (levando em
consideração também os afrodescendentes). Entretanto, como Rafael Menezes Bastos argumentará
mais adiante (op.cit), os Batutas voltaram vitoriosos e aplaudidos em Paris, e deixaram grande

21
impressão do que seria a música brasileira em Paris, o que certamente influenciou os Seis de Paris22
e lançou fundamentos para a própria legitimação de Villa-Lobos. Falarei mais adiante, no ponto 1.3
da dissertação, Villa-Lobos: L´Indien Blanc, acerca da abordagem da temática indígena por Villa-
Lobos e as contingências sócio históricas e musicais que faziam parte desse contexto.
Após essa discussão sobre o aparecimento da temática indígena na música erudita brasileira
na procura do caminho musical que foi percorrido nessa direção antes de Villa-Lobos, é importante
discutirmos brevemente sobre o pensamento francês a respeito do selvagem, uma vez que esse
interesse peculiar do francês pelo exótico parece ter construído o substrato para o sucesso mundial
de Villa-Lobos, quando este se dedicou a representar o Brasil através, também, do índio.

1.2 Rameau, Rosseau, Milhaud e Cocteau – França: Do imaginário idealista à


procura da Musique Exotique

Muito embora tenhamos visto alguns pontos da elaboração do pensamento acerca do índio
na cultura musical brasileira do século XIX e início do século XX, cabe discutirmos, para essa
análise e reflexão, quais ideias acerca do índio brasileiro – e não apenas do “Outro” ou do
“selvagem” - povoaram a imaginação da civilização francesa na época em questão, também no
começo do século XX. Tal discussão é importante na medida em que se entende – o que se discutirá
ainda nesse capítulo – que a construção de Villa-Lobos como representante da música brasileira,
especialmente a indígena, se deve a um interesse pelo exótico (mais especificamente o exótico
ameríndio) na França dos anos 20.
A reflexão acerca do contexto e dos textos musicais de que falaremos será enriquecida por
uma discussão acerca da história da relação entre a França e os índios americanos, desde seu
contato com essas civilizações através do comércio e colonização nos Séculos XVI e XVII, a
idealização teórica do selvagem por Jean-Jacques Rosseau no Século XVIII, a procura dos
Franceses pelo exótico em suas feiras internacionais do fim do Século XIX (BARBUY, 1999) e o
interesse estético pelo outro musical demonstrado pelo destacado grupo de compositores da
vanguarda parisiense dos anos 20, Os Seis de Paris. É nesse último momento que Villa-Lobos entra
em cena é que suas composições são reconhecidas como verdadeira representação da brasilidade em
música erudita.
Eu poderia ter optado iniciar essa narrativa do momento que interessa essa pesquisa - século
XX, década de 20, modernismo em Paris - mas a fim de dar ênfase ao processo mais do que ao
resultado, vamos iniciar a discussão nos séculos XVII e XVIII e partir em diante para que ao final

22
Grupo de vanguarda artística de Paris, pós Primeira Guerra. Falarei mais sobre esse assunto nesse capítulo (ponto
1.2.3)
22
dessa seção nossa imagem final do que é a França de Jean Cocteau possua novos significados e seja
construída historicamente, para então seguir à interpretação do papel de Villa-Lobos e sua atuação
nessa sociedade parisiense. Partiremos também, após essa discussão, para uma análise musical
comprometida e enriquecida com o conhecimento do contexto social no qual a música de Villa-
Lobos foi produzida. Prossigamos, agora, na discussão do interesse francês pelo exótico, que se
manifestou em diversos momentos da história francesa de diversas formas, para que
compreendamos também a posição de Villa-Lobos dentro dessa rede de significados que também
atribui significado a sua própria obra.

1.2.1 Os Franceses e os Ameríndios: O “Mito” do Bom Francês23

A relação entre franceses e os índios americanos nos séculos XVI e XVII foi bastante
especial se vista em comparação com a de colonizadores de outras nações europeias. As nuanças
que envolviam seu comércio com os índios e a colonização podem revelar traços culturais que nos
ligarão nos séculos posteriores a essa relação específica e especial com o outro e o exótico que se
revela nos franceses no decorrer da história. Desde o início dessa narrativa onde se observa as
relações entre franceses e índios, se percebe o Brasil como um palco interessantíssimo para a
análise das mesmas. Muito embora não fossem os maiores colonizadores da América – levando em
consideração a partilha de terras entre a coroa portuguesa e espanhola – segundo historiadores, é no
Brasil que se encontra a presença maciça da França no Novo Mundo no século XVI (TRUDEL
apud PERRONE-MOISÉS, p. 1, 1995).
Sabe-se, também, que a presença da França no território brasileiro se dá antes de uma
tomada efetiva das terras brasileiras pela coroa portuguesa. Havia diversos focos de pirataria
francesa na costa brasileira os quais Portugal teve de sufocar para iniciar a colonização massiva do
Brasil. Segundo Perrone-Moisés:

No Rio de Janeiro, Cabo Frio, Paraíba, Pernambuco, Maranhão, enfim por toda
parte, comerciando com os índios, os portugueses topavam com navios mercantes
normandos e bretões, a ponto de Capistrano de Abreu afirmar que "durante anos
ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos Peró (portugueses) ou aos Mair
(franceses)" [1988, p.74] (PERRONE-MOISÉS, p.1, 1995).

A França, além da pirataria, também estabeleceu colônias para o povoamento do Brasil. São

23
Antes de iniciar essa discussão, devo agradecer à Beatriz Perrone-Moisés pelo excelente artigo publicado pelo
Instituto de Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo, intitulado “O Mito do Bom Francês: Imagens Positivas
das Relações entre Colonizadores Franceses e Povos Ameríndios no Brasil e no Canadá (PERRONE-MOISÉS, 1995)”.
Me utilizarei extensivamente das informações obtidas pela leitura desse artigo e partirei dessa reflexão para iniciar
minhas próprias.
23
conhecidas duas tentativas sendo a mais famosa é chamada a França Antártica24 (1555-1560), onde
se tentou estabelecer uma colônia huguenote. É interessante observar que o sucesso no início dessa
empreitada foi devido à conquista da Baía da Guanabara, lugar evitado pelos portugueses por
temerem os índios Tupinambás25. Os franceses comandados por Nicolas Villegagnon estabeleceram
boas relações com os dois povos indígenas da região, os Tamoios e os Tupinambás, e iniciaram a
colonização. Esse episódio é revelador quando se procura saber sobre o modus operandi dos
franceses na colonização e comércio com os índios. Segundo relatos históricos, os franceses -
sempre mais propícios a negociações amistosas com os indígenas que os portugueses - conseguiam
ser bastante bem sucedidos no comércio e na colonização no Brasil. Os relatos históricos do período
estão cheios de trechos nos quais o envolvimento dos franceses com os índios emprestava o título
de ‘selvagem’ também aos franceses. Segundo Perrone-Moisés (1995):

Os documentos portugueses chamam a atenção para a facilidade com que os


franceses se instalavam nas aldeias de seus aliados, onde acabavam tornando-se tão
selvagens quanto estes. Lá constituíam família, andavam uns, pintavam-se para a
guerra como seus anfitriões, faziam guerra com eles e a seu modo e, mais grave,
eram acusados de, como eles, comer os inimigos. Nos relatos portugueses, a
antropofagia, que era marca da selvageria entre os selvagens, aparece, assim, como
cúmulo da selvagização dos franceses. E mesmo os franceses que não viviam à
moda selvagem costumavam, dizia-se, dar a seus aliados indígenas prisioneiros
cristãos para serem comidos (PERRONE-MOISÉS, 1995, p.2).

Dentro dos relatos que se tem das relações entre indígenas brasileiros e franceses paira uma
impressão bastante nítida de que as relações entre eles eram de outra natureza, sobretudo muito
mais amistosas do que as relações entre os selvagens e os colonizadores portugueses. Em 1565 o
padre José de Anchieta também comentaria que os franceses no Brasil

vivem conforme aos Índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles,
pintando-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com as penas dos
pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando
contrários, segundo o rito dos mesmos Índios, e tomando nomes novos como eles,
de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana, que no mais sua vida
é corruptíssima, e com isto e com lhes dar todo gênero de armas, incitando-os
sempre que nos façam guerra e ajudando-os nela, o são ainda péssimos
(ANCHIETA, 1988, p.219)

Perrone-Moisés, utilizando os escritos do padre José de Anchieta, descreve a participação


ativa dos franceses na vida das aldeias em que habitavam.

Mais próximos dos índios, franceses são encontrados nas aldeias, onde
desempenham o papel de conselheiros dos chefes, instigadores e participantes das

24
A França Equinocial - segunda tentativa de colonização – ocorreu na atual região do Maranhão, entre 1612 e 1615.
25
Nesse contexto surge a figura de Jean de Lery, participante dessa empreitada que registrou cantos Tupinambá,
utilizados por Villa-Lobos nas canções que se pretende analisar nessa dissertação (capítulo 2).
24
guerras indígenas, parentes. Completamente adaptados aos modos indígenas,
parecem ter perdido qualquer traço de sua origem europeia (PERRONE-MOISÉS,
1995, p.3)

Tais relações amistosas entre índios e franceses facilitaram muito o comércio entre eles. Ser
um francês era praticamente possuir um salvo-conduto ao se passar pelas terras dos Tupinambás que
não hesitariam em “saborear” um português que andasse em seu território (TRUDEL apud
PERRONE-MOISÉS, 1995, p.4). Outro fato curioso era o estabelecimento, da parte dos franceses,
de “intérpretes” - os Truchement - jovens que ficavam nas aldeias para aprender a língua e os
costumes. Eram esses, precisamente que se tornavam ‘selvagens’ e facilitavam muito o comércio
com os indígenas. Por outro lado, indígenas também eram levados à França - numa espécie de
intercâmbio com os truchement - trocados pelas aldeias em que ficavam os intérpretes, para
conhecer a civilização francesa com o mesmo objetivo de aprender língua e cultura. Ao contrário do
que se imagina, em raras exceções os indígenas era levados como curiosidades ou escravos
(PERRONE-MOISÉS, 1995, p.6).
Os relatos sobre a boa relação entre franceses e índios se propagam ainda pelo século XVIII,
falando também sobre colonização francesa do Canadá, e Perrone-Moisés dedica grande parte do
seu artigo a demonstrar os benefícios comerciais que a França obteve por ter tal abordagem e os
benefícios que os índios recebiam – ou pelo menos das desvantagens que não possuíam – ao
negociar com os franceses. Há uma frase, citada em 1867 pelo historiador americano Francis
Parkman – frase depreciativa a sua época- que pode servir de epítome ao assunto que tratamos aqui:
“A civilização espanhola esmagou o índio; a civilização inglesa desprezou-o e abandonou-o; a
civilização francesa adotou-o e amou-o (PARKMAN apud PERRONE-MOISÉS, 1995, p.5)”.
Entretanto, Perrone-Moisés também deixa claro que tal abordagem amistosa à colonização só foi
possível pela particularidade da colonização francesa no Brasil. Em outros territórios onde
escravidão e disputa de terras foram necessárias – como nas Antilhas Francesas e Flórida – o
“código de conduta” francês foi quebrado, ou alianças nem chegaram a ser feitas. Nesse quadro,
Brasil e Canadá são encontrados próximos pela importância do comércio nas relações de
colonização, e nesses casos observa-se a atitude amistosa dos franceses.
Fica então, em suma, registrada na história, a imagem mítica de um bom francês, uma
espécie de antípoda do ‘bom selvagem’ proposto justamente por um cidadão que viveu na França,
Jean-Jacques Rosseau. Suas ideias viriam reforçar a aparente simpatia dos francófonos pelo
“selvagem”, e com a construção de uma filosofia que advogava a superioridade moral e física do
selvagem como ser mais próximo da essência primeira do homem, ele conduziria a politica, e por
consequência a filosofia e as artes para uma admiração pelo selvagem que, mais tarde, ajudaria a
fundamentar o interesse pela estética do outro, na procura da Musique Exotique na França.
25
1.2.2 Rousseau, Rameau e o selvagem na França do século XVIII

Em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens,


Jean-Jacques Rousseau (1755) argumenta que a sociedade tal como estava construída em sua época
sufocava o potencial humano, dos indivíduos, e era totalmente contra a lei da natureza – a lei
natural, como chamava. Argumentava que no estado natural os homens eram livres e não existia a
propriedade de terra, e que de acordo com os desenvolvimentos do gênero humano, incríveis
mudanças foram se sucedendo até que o primórdio do sistema social que ele vivia se estabelecesse.
As palavras-chave para esse entendimento são o poder, propriedade e estado (muito embora ele não
use o termo no seu discurso, fala da sociedade dentro desse esquema de estado). Dentro desse
contexto ele situa o selvagem como um indivíduo sem a percepção moral que temos de bondade –
nem de maldade – mas que age de maneira benévola por ser guiado por duas principais forças da
ação da Lei Natural sobre o homem: a comiseração e o instinto pela sobrevivência. Ele se opõe, nos
seus escritos, a Thomas Hobbes (HOBBES, 2002), filósofo inglês e autor de Leviatã, que cria ser o
homem selvagem - aquele destituído de civilização - agressivo por natureza; com tendências para o
mal.
Para Rousseau, as ações do homem natural eram reguladas por duas características básicas
da essência humana. A primeira era a comiseração, uma capacidade inata de se condoer do seu
semelhante e a segunda, o instinto de sobrevivência, que em casos extremos teria prioridade sobre o
princípio da comiseração. Dentre essa valorização da origem natural do homem, Rousseau afirma
ser o sentimento uma condição mais importante à humanidade do que a razão. Para ele, eram as
elucubrações filosóficas que permitiam ao homem cometer tantos atos cruéis; a filosofia fazia calar
sua ‘voz interna’ que atendia naturalmente ao princípio da comiseração – agindo com misericórdia-
diante de artifícios lógicos. Rousseau dizia que o desenvolvimento das faculdades intelectuais e
tecnológicas humanas trouxe tantos males ao homem que seria tolice considerar o estado atual desse
homem melhor do que os primeiros selvagens. Para ele, a descoberta das virtudes humanas trouxe
junto de si o conhecimento de nossos piores vícios, sendo melhor então, ter o homem se mantido
ignorante de suas potencialidades. O livro, atacando o sistema vigente na França - onde reinava a
mais poderosa monarquia absolutista do século XVIII – foi uma obra mestra para os pensadores da
Revolução Francesa, juntamente com o outro livro e Rousseau, mais célebre, O Contrato Social.
Nesse discurso pode-se compreender a elevação do status do ‘primitivo’, que era visto de forma
geral como um ser destituído de toda a civilidade (que era, então, vista com um valor positivo), para
o ‘bom selvagem’, incorrupto, que não foi seduzido pela maldade e ganância que constroem a
organização civil; nas palavras de Rousseau, ser que foi forte e valoroso o suficiente para não
permitir que outrem tomasse para si o que era de todos: a terra e a liberdade (ROUSSEAU, 2005).
26
Percebemos, através dessa breve discussão sobre o pensamento de Rousseau em relação ao
selvagem, a simpatia e quase ‘deificação’ que o autor faz do selvagem, que em seu tempo, vivia,
sobretudo, na América26.

Na realidade, Rousseau faz uma severa crítica a sua própria sociedade ao apontar o ideal
para existência humana algo totalmente oposto ao que se vivia. Em outras palavras, aquilo de que a
França se gabava – suas luzes do iluminismo, sua civilização – para Rousseau, era fruto de uma
cadeia de eventos doentia que progredia cada vez mais para a ruína, a não ser que houvesse alguma
revolução. Esse pensamento nutriu as mentes ocupadas em arquitetar a revolução, e os textos de
Rousseau tomaram caráter de profissão de fé dos que desejavam uma nova França. Não é de se
surpreender que esses outros temas tratados em seus escritos – como o bom selvagem – também se
mantivessem vivos na mentalidade de muitos pensadores posteriores a ele.
Não quero, de forma alguma, sugerir que o interesse pela música de outras culturas seja
consequência direta dos escritos de Rousseau. Mas seria bastante coerente sugerir que esse
exercício de alteridade que o escritor faz no auge do Iluminismo tenha trazido às letras e às artes
francesas um interesse peculiar pelo outro, pelo exótico. É interessante salientar essa questão – esse
trânsito do pensamento filosófico para as artes - especialmente porque Rousseau era um compositor
e teórico musical. Durante o início da sua carreira deu aulas de música e escreveu artigos sobre
tópicos musicais (ROUSSEAU, 2005). Rousseau inaugurou a Opera Buffa na França com a sua
ópera Le Devin du Village (O Advinho da Vila) de 1752 (ROUSSEAU & KAUFMAN, 1998) e foi
um defensor da ópera italiana na França, contrariando seu contemporâneo Jean-Philippe Rameau,
defensor da ópera francesa27.
Rameau, por sua vez, era o professor de música mais conceituado de Paris à época e havia
escrito, em 1722, o Tratado de Harmonia, instrumento importantíssimo na racionalização da música
ocidental, um fruto importante do Iluminismo Francês. Rousseau, sendo avesso à razão como
condutora do progresso da humanidade e dando primazia ao sentimento se opunha abertamente ao
pensamento de Rameau. Nas obras de Rousseau como a mais famosa O Advinho da Vila, ele
priorizava a melodia e o caráter popular desta. A melodia era, para Rousseau, um paradigma, o que
mais aproxima o homem do seu estado de natureza em música; contra a corrupção que era trazida às
artes musicais pelo excesso de efeitos postiços e superficiais – como o contraponto e a polifonia
exacerbada. Vejamos a partitura da primeira página de Le Devin du Village, de Rousseau, presente

26
Em diversas partes de seu ensaio, Rousseau utiliza como exemplificação de suas ideias sobre o selvagem, indígenas
habitantes da América, à seu tempo.
27
Esse debate musical teórico e estético era a manifestação de diferentes ideias sobre o homem e da concepção da arte
nessa construção, e mais, sobre a verdadeira música que deveria se ouvir e fazer na França, a Ópera Bufa Italiana
(comparada positivamente a tragédia francesa, de Jean-Baptiste Lully) ou a Ópera Francesa. Essa disputa ficou
conhecida como Querelle des Buffons, a Guerra dos bufões.
27
no Norton Anthology of Western Music (PALISCA, 2001). Observe a importância da melodia na
estruturação dessa canção, e o caráter popular da mesma:

Rameau, de forma contrária, priorizava a estruturação harmônica em oposição ao


procedimento melódico (caracterizado como tipicamente italiano), posição coerente para o escritor
do Tratado de Harmonia. Por causa dessa ênfase e da defesa da música mais ‘racional’ francesa,
recebia os ataques de Rousseau. Observe a composição Dardanus de Jean-Philippe Rameau, e as
28
relações particulares entre melodia e harmonia nessa composição, encontrada também, no Norton
Anthology of Western Music (op. cit.):

A visão da arte de Jean-Jacques Rousseau e seus desdobramentos políticos podem ser lidos
também em seu Discurso sobre as Ciências e Artes de 1750. Kaufman, ao comentar Le Devin du
Village na edição que fez da partitura da ópera, deixa clara a dimensão filosófica da importância da

29
melodia para Rousseau:

Rousseau argumenta que a melodia é a fonte da expressão natural em música, e que


melodia e linguagem determinam o caráter particular de um estilo musical
nacional. Só uma linguagem musical, como o italiano, pode dar origem à
verdadeira música. Pela grande importância da melodia, deve haver apenas uma
melodia por vez na composição (...). A França falha em todos testes de Rousseau
levando-o a conclusão – notória - de que não há tal coisa como ‘música francesa’
(ROUSSEAU & KAUFMAN, 1998, p.xi-xii) 28

Houve, de fato, um confronto ideológico e musical entre Rosseau e Rameau e seus


respectivos apoiadores. Sabe-se que os enciclopédicos como Diderot compartilhavam das ideias de
Rosseau e artigos musicais foram pedidos a Jean-Jacques Russeau para a Encyclopédie. Ao lado de
Rameau estavam os defensores do progressismo do pensamento Iluminista, preconizado por
Voltaire, no qual se cria que as luzes da razão conduziriam a humanidade a uma experiência de
conhecimento e harmonia. O Tratado de Harmonia de Rameau (RAMEAU & BARDEZ, 1992)
havia sido escrito dentro dessa perspectiva, dentro desse estilo de época vivido na França. Entende-
se, assim, a natureza desse embate filosófico e estético. A citação abaixo, de Stéphane Goldet,
esclarece essa disputa musical e ideológica entre o filósofo/compositor e o compositor/filósofo:

Para Rameau, a música é sumamente racional, igual sob todas as latitudes e em


todas as épocas: a compreensão da música é antes de tudo um fenômeno universal.
Para Rousseau, muito pelo contrário, a música expressa as infinitas variedades do
coração humano e não saberia de modo algum ser universal em sua forma. O
caráter da melodia não tem como não variar de um povo para outro, de um
momento para outro da História: a compreensão da música é, portanto, um fato
histórico e cultural. O autor do Traité d'harmonie reduite à ses principes naturels
(Tratado da harmonia reduzida aos seus princípios naturais) buscava os
fundamentos eternos da arte musical e isolou-os no princípio unificador da
harmonia. Nos antípodas desse "pitagorismo musical", Rousseau considerava nada
existir de tão antinômico com a expressão dos sentimentos como a matemática de
Rameau. Finalmente, para o autor de La Nouvelle Heloise (A nova Heloísa), o
gênio não pode observar qualquer regra, pois, tal como a natureza de que procede,
ele é sinônimo de liberdade. Mais de uma vez, por conseguinte, Rameau era
acusado de ter pouco engenho e muita doutrina. (GOLDET, 1997, p.505)

Há ainda uma curiosidade interessante sobre os compositores importante de ressaltar, e


acredito que seja o ponto alto dessa discussão: ambos os compositores possuíam interesse pela
temática selvagem/indígena, Rousseau em seus escritos, e Rameau pela sua música. Rameau, em
28
Original: Rousseau argues that melody is the source of natural expression in music, and melody and language
determine the particular character of a national music style. Only a musical language, such as Italian, can give rise to
true music. As the melody is so important, there should be only one melody at a time in a composition (…). The
French fails all of the Rousseau´s tests, leading him to the – notorious – conclusion that there can be no such thing
as French music.
30
1735 apresentou pela primeira vez sua ópera Les Indes Galantes (As Índias Galantes), obra onde
relata quatro histórias de amor que se passam nas Índias, a saber, as terras fora da Europa. O
primeiro ato da obra se chama O Turco Generoso; o segundo Os Incas do Peru; o terceiro As Flores
(que relata o amor de um príncipe persa por uma escrava do Zaire); e o quarto chamado Os
Selvagens, onde um romance envolvendo uma índia da América do Norte. Segundo alguns
historiadores, Rousseau inspirou-se nessa obra e compôs seu bailado Les Muses Galantes, de 1746.
O tema tratado na obra de Rameau é uma ode ao amor puro dos Índios, do seu outro. Parece então
que o tema Índio era de interesse na França da época, haja vista que dois opositores partilhavam do
interesse pelo assunto, Rameau em sua música e Rosseau em seus escritos.
Ainda comentando o embate entre os dois pensadores na França pré-revolucionária, é bom
ressaltar que o gosto pela música italiana entre os franceses na época de Rousseau – e o
consequente apreço por Le Devin du Village – tem implicações políticas. Charlotte Kaufman
explica:

Porque as audiências francesas se interessaram para o gênero cômico nessa época?


Alguns acadêmicos têm observado que na França pré-revolucionária, a
popularidade de obras como La serva padrona ou Le Devin tinham importantes
implicações políticas. A ópera trágica era identificada com os privilégios e a
autoridade enquanto a ópera cômica italiana era considerada contra a ordem
estabelecida e igualitária. Os próprios participantes reconheciam esse elemento
político e faziam referências a ele (ROSSEAU & KAUFMAN, 1998, p. xi). 29

Kaufman ainda traz a informação de que a ópera Le Devin du Village de Rousseau foi
executada mais de 400 vezes desde sua première, em 1752, até o fim do século XVII (ROSSEAU &
KAUFMAN, p. xi, 1998), demonstrando o forte apelo político da música na França revolucionária,
e a influência de Rousseau nesse contexto. Pode-se entender, dadas às circunstâncias, que Rousseau
deixou seu traço na filosofia e música francesas formulando ideias e conceitos para a próxima
geração, da França revolucionária. O fato é que importante notar que em algum momento de suas
vidas, os dois músicos deram importância à temática indígena, revelando uma espécie de espírito de
época (zeitgeist) nos quais pensadores se dedicavam a pensar o selvagem-índio, e, aparentemente, o
interesse por essa temática se manteve na França até o início do século XX, onde Villa-Lobos ‘entra
na história’.
Prosseguirei na linha do tempo para discutir, agora, o interesse dos pensadores franceses
pelo exótico, nos fins do século XIX e no início do século XX, na tentativa de explicar como esse

29
Original: Why did French audiences turn with such interest to the comic genre at this particular time? A number of
scholar have observed that in Pre-revolutionary France, the popularity of works as La serva padrona and Le devin,
had important political implications. Tragic opera was identified with privilege and authority while Italian comic
opera was considered anti-establishment and egalitarian. The participants themselves recognized the political
component and made references to it.
31
interesse se processou historicamente e musicalmente, e como ele se direcionou para a música
brasileira e para o índio – esse último como um dos constituintes dessa brasilidade musical.

1.2.3 Debussy, Cocteau, Milhaud e a descoberta do exótico em Música

Por um grande período de tempo – desde o classicismo até o modernismo no final do século
XIX- a influência da música erudita germânica sobre as outras músicas europeias era notável. No
Alto Romantismo havia uma espécie de língua franca musical dominada pelos princípios de
composição pós-beethovenianos que se ouvia em toda a Europa e também na Rússia. César Franck
e Vincent d´Indy foram alguns dos Ultra-Românticos franceses do final do século XIX que
propagavam em suas composições e escritos princípios dessa arte alemã, trazida ao seu tempo por
um herdeiro direto da tradição beethoveniana30, o compositor alemão Richard Wagner.
O gosto pela ópera era ainda bastante presente na França, sendo incentivado e nutrido pelo
Conservatoire de Paris31. Indy, continuando o pensamento musical do seu mestre Franck, prossegue
cultivando grande gosto por Wagner e discordando de posturas estéticas do Conservatório de Paris,
forma, junto com colegas, a Schola Cantorum Parisiense. Como o próprio nome da Schola denota,
d´Indy possuía grande interesse pelas melodias do cantochão gregoriano e também da música do
século XVI, procurando recuperar alguns princípios composicionais desses estilos em suas
composições (um detalhe importante nesse contexto era a fé católica do compositor). Pode-se
perceber momento um traço de exotismo ao se direcionar retroativamente a uma estética superada
para o encontro de novas sonoridades para se utilizar em composições. Nisso podemos perceber
essa postura heterodoxa apresentada pelo pensamento francês em diversos momentos do
desenvolvimento da cultura musical europeia.
Até o fim da Primeira Guerra Mundial o gosto musical na França não havia oscilado muito
da preferência por uma música orquestral e da música sinfônica e ópera – mesmo que Wagner seja
considerado vanguardista frente os operistas italianos como Puccini. As outras artes como poesia e
pintura haviam se desenvolvido bastante na França, mas a música continuava subjugada ao
romantismo alemão. Segundo Piedade

Até a virada do século XX, os artistas parisienses desenvolveram importantes


movimentos, como a pintura impressionista e a poesia simbolista, que surgiram em
reação às sólidas convenções realistas do início do século XIX, em prol de uma
nova arte para um novo século. A música francesa, entretanto, não acompanhava
este passo, mantendo-se “elevada e subjugada” pela musicalidade wagneriana,
predominando tipos formais e uma estética germânica (PIEDADE, 2007, p.4-5).
.

30
Herança que disputava com contemporâneos como Johannes Brahms.
31
Podemos perceber essa faceta cultural da França ao lembrarmos da Querelle des Buffons, discutida no ponto anterior
do capítulo, que debatia qual seria a melhor ópera para se ouvir em Paris.
32
Ainda demonstrando a secular influência estrangeira na ópera francesa,

Na França, a ópera até as primeiras décadas do século XIX é dominada pelos


estilos estrangeiros, representados por compositores como Jean Philippe Rameau
(1683-1764), Christoph Gluck (1714-1787) e André Modeste Grètry (1741-1813).
Nenhum deles chegou, apesar de seu valor individual, a criar uma legítima escola
nacional (SILVA, 2000).

Mesmo Debussy que, segundo musicólogos, havia escutado música estrangeira e exótica na
Exposição Universal de Paris, em 1889 – na qual a maior atração era um salão com 400 índios - e
que parece ter se interessado na pesquisa musical de matizes orientais para composição após essa
experiência, não deixou de admirar muito a Richard Wagner, mesmo quando intentou iniciar nova
escola na busca de recuperação de valores franceses em música, contrária aos princípios
wagnerianos/germânicos a Societé Nationale de Musique.

(…) a formação da Société Nationale de Musique, em 1871, foi um esforço de


construir um “renascimento” musical baseado na herança do passado musical
francês, onde a extensão do cromatismo e a intensificação expressiva, tipicamente
germânicas, dessem lugar a uma musicalidade de temperamento mais francês.
Debussy desponta neste momento e lidera este esforço já em suas primeiras obras
(PIEDADE, 2007, p.5)

Ainda segundo Piedade, “Debussy não apenas apreciava a música de Wagner: ele tocava a
obra de Wagner, ao piano, em diversos locais parisienses. Não escapou, portanto, da “febre
wagneriana (…) (PIEDADE, 2008, p.5)”. Mesmo no ano da Exposição Universal, onde teve
contato e se encantou com músicas étnicas, Debussy apreciou a música de Wagner: “em 1889,
[Debussy] fez duas peregrinações a Bayreuth [onde há o Festival Wagneriano] onde ouviu esta
ópera [Tristão e Isolda] (PIEDADE, 2007, p.5). A situação de conformidade dos franceses com os
princípios estéticos germânicos muda, entretanto, quando a intelligentsia artística de Paris pós
primeira guerra faz um nova proposta artística para mudar os rumos da estética parisiense,
contrapondo-se a Franck, d´Indy e Debussy e seu interesse pela música de características
germânicas. Consideram tais compositores conservadores, e logicamente, reacionários num
contexto pós-guerra contra a Alemanha.
Le Six, ou o grupo dos Seis era formado por Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger,
Darius Milhaud, Francis Poulenc e Germaine Tailleferre. Eram todos compositores franceses sobre
a liderança filosófica e artística de Jean Cocteau. Antes conhecidos como Os Novos Jovens (Les
Nouveaux Jeunes) – e sobre a influência de Erik Satie – os Seis – chamados assim a partir de 1920
por artigos de críticos da época como Henri Collet - eram compositores que se contrapuseram em
sua arte contra o Romantismo Alemão do final do século XIX e o Impressionismo Francês.

33
Desejavam ver na música valores opostos à opulência da grande música orquestral dos fins do
século XIX. Suas opções estéticas privilegiavam a simplicidade, clareza, objetividade e brevidade.
As opções instrumentais também eram de acordo com esse propósito, como se pode observar em
peças como Scaramouche de Milhaud, onde o piano soa como em choros brasileiros compostos à
época.
A essa época, Paris era a capital cultural do mundo ocidental. Para Bastos “Paris não se
tratava de uma cidade qualquer, mas a capital cultural do mundo, desde o século XIX referência
central para a cultura brasileira, especialmente para as elites (BASTOS, 1995, p. 178)” - lá se
faziam as Exposições Universais de arte e cultura. Nessa vontade de conhecer diversas músicas e
modernismos no mundo – vanguardas e exotismos -, em Paris circulavam grupos artísticos trazidos
dos lugares mais longínquos e diversos como Estados Unidos, Rússia e Brasil entre muitos outros.
Havia uma variedade enorme de estilos musicais que eram ouvidos – e modificados - por lá, desde
Jazz americano, Samba brasileiro e música tribal originária da África.
No artigo “Les Batutas, 1922: uma antropologia da noite parisiense” o prof. Rafael
Menezes Bastos dá relatos bastante vívidos dessa situação.

Desde o final do século XIX e início do XX a França já vinha sendo “invadida”


pelas danse exotiques e danses nouvelles (...). As primeiras incluíam tudo que fosse
estrangeiro; as segundas, especialmente as manifestações artísticas provindas das
Américas – o cake walk norte-americano, o tango argentino, o maxixe brasileiro, o
paso doble espanhol, a rumba cubana, entre outros. Os gêneros provenientes da
América Latina e os orientais – danças cambojanas, por exemplo – eram muito
prestigiados (BASTOS, 1995, p.180)

Nesse momento Paris também demonstra seu interesse pelo exótico e se aproxima desses
diversos mundos culturais os trazendo para si mesma. Artistas brasileiros como os Oito Batutas -
dos quais Pixinguinha era o mais famoso – são legitimados pela Cidade de Luz como representantes
da musicalidade brasileira mesmo antes de serem aceitos como tal em seu próprio país. Segundo
Bastos “na época, a viagem [dos Batutas à Paris] provocou no país um acalorado debate sobre a
legitimidade d’ Os Batutas – em sua maioria negros, que faziam uma música considerada nacional
brasileira – como representantes brasileiros em Paris (BASTOS, 1995, p.178)” 32.A questão era que
o que pensava a elite brasileira sobre os Batutas não importava muito. O que realmente se levaria
em conta - e que ficaria registrado na história oficial- era o que Paris pensava a respeito dos artistas
estrangeiros que ela conheceria.
Assim como na época das colonizações, Paris leva à França o outro e é lá que se solidifica a
identidade desse outro. Dessa vez, entretanto, Paris não tem tanto para mostrar quanto o que ouvir e

32
Obviamente a procura pelo exótico não se restringia às Américas negras e ameríndias. Um dos maiores sucessos do
russo Stravinsky, a Sagração da Primavera, foi estreada em 1913 no Théâtre des Champs-Élysées em Paris.
34
aclamar, numa espécie de crítica universal da arte. Aos que agradarem, os louros da autenticidade e
originalidade – que em música poderiam ser paradoxos mas não são nesse caso – e aos que não os
convencerem, a rejeição e despatriamento – tal compositor não é representante fiel da sua nação. A
frase de Darius Milhaud - integrante do Grupo dos Seis -, ao criticar a composição de alguns
brasileiros, parece ser o epítome desse pensamento:

É lamentável que todas as composições de compositores brasileiros, desde as obras


sinfônicas ou de música de câmara dos srs. [Alberto] Nepomuceno e [Henrique]
Oswald até as sonatas impressionistas do sr. [Oswaldo] Guerra ou as obras
orquestrais do sr. Villa-Lobos (um jovem de temperamento robusto, cheio de
ousadias), sejam um reflexo das diferentes fases que se sucederam na Europa de
Brahms a Debussy e que o elemento nacional não seja expresso de uma maneira
mais viva e mais original. A influência do folclore brasileiro, tão rico em ritmos e
de uma linha melódica tão particular, se faz sentir raramente nas obras dos
compositores cariocas. Quando um tema popular ou o ritmo de uma dança é
utilizado em uma obra musical, esse elemento indígena é deformado porque o autor
o vê através das lentes de Wagner ou de Saint-Saëns, se ele tem sessenta anos, ou
através das de Debussy, se ele tem apenas trinta (MILHAUD apud GUÉRIOS,
2003, p.95).

A respeito do que foi dito sobre Heitor Villa-Lobos, já sabemos do final da história.
Portanto, se aqui lemos que Villa-Lobos foi rejeitado por não ser autêntico em sua brasilidade - algo
que talvez nem todos saibamos – sabemos, contudo, que ele será chamado por parte dos escritores
Parisienses de Índio Branco, e tal título ecoaria pelos os quatro cantos do mundo artístico ocidental,
levando fama e reconhecimento de Villa-Lobos por onde ele passasse. Villa-Lobos passou pelas
duas experiências, e parece ter aprendido como funcionava esse jogo social e artístico.

1.3 Villa-Lobos: L´indien Blanc

Muitos artigos dedicados a Villa-Lobos na imprensa francesa da década de 1920


atestam o entusiasmo da crítica musical em relação ao jovem compositor. Seu
nome apareceu em revistas de música, revistas literárias, jornais de grande
circulação, mas também em Livros dedicados à música. Os críticos não podiam
dizer coisas boas o suficiente sobre o homem cujas obras mais comentadas são:
Amazonas, composto em 1918, Noneto composta em 1923, as Danças de Índios
Mestiços do Brasil, Três Poemas Indígenas, o Choros n º 8 e n º 10 . compostos em
1925 (FLÉCHET, 2004, p.59) 33

33
Original: Les nombreux articles consacrés à Villa-Lobos dans la presse française des annés 1920 attestent
l´enthousiasme de la critique musicale à l´égard du jeune compositeur. Son nom apparâit dans les revues musicales,
les revues littéraires, les grands quotidiens mais aussi dans les livros consacrés à la musique. La critique ne tarit pas
d´éloges sur l´homme dont les oeuvres les plus commentées sont: Amazonas composé en 1918, Noneto composé en
1923, les Danses des Indiens métis du Brésil, les Trois Poèmes indiens, les Chóros nº 8 et nº 10. composés en 1925
35
Dentro desse contexto da arte francesa pós-primeira guerra, Villa-Lobos chega, a primeira
vez em Paris no ano de 1923. Na década de 20 – e desde a primeira década do século XX, da qual
data a chegada da música de Igor Stravinsky 34 à França - o que se esperava em Paris, era o exótico,
o diferente, carregado de uma nova proposta estética – segundo a filosofia dos Les Six de Jean
Cocteau.

Na década de 20, Paris vivia o que seriam chamados os années folles — anos em
que movimentos estéticos como o cubismo de Picasso, o dadaísmo de Tzara e o
surrealismo de Breton competiram e se sucederam em grande velocidade. Nesse
ambiente, os artistas valorizavam o emprego de elementos considerados exóticos
em Paris (GUÉRIOS, 2003, p.94)35

Darius Milhaud, que era um dos Seis, também foi um elo entre o Brasil e a França nessa
época. Fez parte da Missão Diplomática Francesa e viveu no Rio de Janeiro de 1917 a 1919, onde
se interessou por melodias brasileiras, compondo músicas baseadas nessa inspiração como Le Boeuf
Sur le Toit (Baseada na canção do sambista Donga, O boi no Telhado), e Scaramouche, também
inspirada em músicas brasileiras. Milhaud havia expressado seu desagrado com a música erudita
brasileira, pela falta – inclusive pelo repudio – da inspiração popular em certas obras. Continuando
esse mesmo artigo, Milhaud exalta a música brasileira considerada popularesca no Brasil e exorta
aos artistas brasileiros que observem essa verve folclórica e popular nas suas composições:

[...] seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância de


compositores de tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês como Tupynamba ou
o genial [Ernesto] Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia indefinidamente
renovada, a verve, o ânimo, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa,
que se encontram em cada obra desses dois mestres fazem deles a glória e a alegria
da Arte brasileira (MILHAUD, 1920, p.61).

Nessa exortação Villa-Lobos é citado diretamente. Mas chegando como um ilustre


desconhecido à Paris em 1923, tendo como amigo apenas Darius Milhaud (LAGO, 2005, p. 56) e
prenunciado por alguns obras suas executadas na Europa por Arthur Rubinstein e Vera Janacópulos
e com algumas obrigações para cumprir no contrato de financiamento de viagens, Villa-Lobos
pouco pode fazer para ser reconhecido com grande compositor. Isso sem falar de algumas críticas
mornas que recebeu de críticos franceses nessa primeira viagem (PEPPERCORN, 2000, p.60).
Para Paulo Guérios, o insucesso 36 de Villa-Lobos nessa primeira viagem foi determinado

34
Sobre a importante atuação de Stravinsky no cenário musical mundial e as peculiaridades dessa atuação, recomendo a
leitura de trabalhos do musicólogo Richard Taruskin (TARUSKIN, 1996,2003).
35
Para compreender melhor a situação da vanguarda musical dos anos 20 e a construção histórica da(s) estética(s) dessa
época recomendo o livro Música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez (GRIFFITHS,
1987).
36
Parto da perspectiva de Paulo Guérios, que considera a segunda viagem de Villa-Lobos uma reviravolta na carreira do
36
não pelos problemas logísticos da sua viagem, mas pela falta de compreensão do projeto artístico da
intelligentsia parisiense. Ainda segundo esse autor, Villa-Lobos teria obtido seu grande sucesso na
segunda viagem por ter mudado seu modus operandi composicional e dirigido seus esforços para
uma construção consciente de uma brasilidade em música (GUÉRIOS, 2009). Entretanto, penso que
mesmo que se admita que Villa-Lobos dedicou-se à composição dos Choros – maiores
representantes da sua brasilidade musical na década de 20 - após sua primeira viagem à Paris, obras
representativas de sua construção musical brasileira como Nonetto (iniciada no Rio em 1923,
executada em Paris em 1924, segundo Peppercorn) e a Suíte Popular Brasileira (iniciada em 1908,
terminada em 1923) demonstravam um direcionamento incomum do compositor à música popular,
se comparado com seus antecessores já antes da primeira viagem. Relacionar a musicalidade
popular de Villa-Lobos e seu emprego na música apenas com os interesses europeus em jogo parece
ser uma alternativa simples, mas que não explica as muitas iniciativas anteriores do compositor com
a inserção dessa música folclórica e popular em sua obra. Por outro lado, a maior dedicação de
Villa-Lobos na composição de música erudita de matiz popular a partir dos anos 20 (especialmente
a matiz indígena) parece demonstrar, sim, a compreensão de Villa-Lobos de que o moderno em
música na Europa havia mudado desde que havia estudado Cours de Composition Musicale de
Vincent d´Indy, e o interesse pelo selvagem, primitivo e característico das diversas nações havia se
tornado uma das buscas da vanguarda artística na França, com a qual convivia e para a qual ele
compunha.
Um dos intuitos principais de Villa-Lobos parece ter sido o de ser um compositor
reconhecido pela sua obra – aqui lembro a célebre frase na qual ele enfatiza que não vai a França
aprender, e sim mostrar o que já faz. Durante seus primeiros anos como compositor a partir da
segunda metade da primeira década do século XX, não tinha grande projeção no cenário musical
carioca, ao qual se dedicava com bastante intensidade. Segundo Guérios (GUÉRIOS, 2009) e outros
autores como Peppercorn (PEPPERCORN, 2000) e Salles (SALLES, 2009), Villa-Lobos iniciou
sua carreira de compositor “sério” - com músicas para concertos – próximo a 1915, data na qual tem
seu primeiro concerto público, no interior do Rio de Janeiro, na cidade de Nova Friburgo. À época
suas influências principais são as de sua formação primeira e da situação musical da “modernidade”
carioca: Wagner e mais tarde Debussy. Observamos que estes compositores, mesmo de escolas
diferentes, possuíram uma estética “congênita” na qual diversos elementos e procedimentos tonais
presentes na música de Wagner se mantêm e se desenvolvem na música de Debussy 37. Salles mostra
em seu trabalho Villa-Lobos: Processos Composicionais (SALLES,2009) como essa influência

compositor. Na verdade, Villa-Lobos angariou algum sucesso na sua primeira viagem, com publicações suas pela
Max Eschig e a estréia do seu Nonetto (PEPPERCORN, 2000).
37
Como, por exemplo o Acorde de Tristão (PIEDADE, 2007). Discutimos no ponto anterior desse capítulo a
influência de Wagner na estética do Impressionismo Francês, especialmente no caso de Debussy.
37
wagneriana-debussyista se revela em diversas obras dessa primeira fase de Villa-Lobos, como em
Uirapuru e Amazonas (op. cit, p.25).
Para Gúerios (2009), Villa-Lobos permaneceu interessado pela estética contrária ao lugar
comum da ópera italiana (herdada dos fins do Segundo Império) se colocando ao lado dos
fundadores (ou melhor, reformadores38) do Instituto Nacional de Música. Ele se posicionava
juntamente a vanguarda musical de sua cidade a seu tempo, recebendo assim maior visibilidade
(para o bem e para o mal39) e participação na música que acontecia no Rio de Janeiro. Nas palavras
de Guérios:

A transição para a nova forma de governo teve grande impacto sobre as artes: o
imaginário ligado à liberdade e à modernidade, tão difundido nos primeiros anos
após a proclamação, criou um ambiente favorável para mudanças nas opções
estéticas. No campo da música erudita, alguns artistas aproveitaram essa
oportunidade para operar uma grande reestruturação na maior instituição de ensino
musical do país: menos de dois meses após o final do Império, um decreto
transformou o Imperial Conservatório de Música em Instituto Nacional de Música
(GUÉRIOS, 2003, p.83).

A verdade, entretanto, é que por diversos motivos não foi simples se estabelecer na capital
como compositor independente. Seja por motivos financeiros, ou pela imaturidade de sua
composição à época, na voz dos críticos, (PEPPERCORN, 2000) com dificuldade Villa-Lobos
conseguiu organizar seu primeiro concerto público em 1915. Muito depois de ser aclamado em
Paris como compositor brasileiro autêntico foi que Villa-Lobos conseguiu se afirmar no Rio (e no
Brasil) da mesma forma.
Ainda falando das influências em Villa-Lobos, Salles (SALLES, 2009) cita Stravinsky – o
que Peppercorn amplia para compositores russos (PEPPERCORN, 2000) – como uma terceira
influência de grande e duradouro impacto para o compositor. Enquanto Peppercorn percebe uma
oposição entre o aspecto debussyista-wagneriano – de sublimidade nos sentimentos - e o aspecto
dos bailados – de vitalidade rítmica e entusiasmo (PEPPERCORN, 2000, p.39), Salles percebe
como uma continuidade estética que perpassa os três compositores, também apoiando seu
argumento nos processos composicionais que suas análises demonstram40.
Toda essa explicação sobre o estilo de Villa-Lobos nos anos 10 e início dos 20 demonstra o

38
Após a deposição de Dom Pedro II, o antigo Imperial Conservatório de Música foi reformado para satisfazer a
interesses dos republicanos. A preferência musical das cadeiras do curso também foi deslocada do italianismo para o
germanismo em ópera.
39
Visibilidade ao ponto de conseguir patrocinadores como Olívia Penteado e Arnaldo Guinle e também críticos severos
como Oscar Guanabarino.
40
Salles demonstra que certos procedimentos perpassam a estética desses compositores e são usados por Villa-Lobos.
Um exemplo bastante claro é o uso dos acordes de quarta, que vindo de uma modificação do acorde de Tristão,
passa por Webern como seu Arquétipo, chegando a Stravinsky nas elaborações de harmonias quartais. Todos os
recursos citados são utilizados por Villa-Lobos (SALLES,2009).
38
quanto que ele se preocupava com o reconhecimento pelas vanguardas musicais de sua época e
como isso se refletia em sua composição. Ele procurava ser original, e mesmo que negasse essas
influências a análise histórica e musical de sua vida demonstra esses encontros musicais. Negava a
influência dos Balés Russos mesmo tendo tocado em algumas apresentações de grupos no Brasil, e
não admitia ser chamado de modernista. Nas palavras de Peppercorn (2000):

Uma nítida influência sobre o desenvolvimento musical de Villa-Lobos foi a do


Balé Russo. A companhia, dirigida por Fokine e com Nijinski como um dos
bailarinos esteve no Rio de Janeiro pela primeira em setembro de 1913. […] Como
membro da orquestra do teatro, Villa-Lobos pôde conhecer em primeira mão essas
peças que devem, inevitavelmente, ter deixado nele sua marca. […] O próprio
Villa-Lobos sempre declarou rejeitar totalmente os russos. O que não surpreende
porque ele sempre ele negou ter recebido qualquer influência. Mas a semelhança
do caráter musical de suas obras com as dos russos é tão semelhante que quem
ouve suas obras mais importantes pela primeira vez já percebe isso. Além do mais,
existem inúmeros motivos diretamente relacionados. (PEPPERCORN, 2000,
p.38,40)

E sobre o Modernismo ele disse:

Mas isso eu posso garantir: a minha arte é minha, e ninguém pode identificá-la com
aquele veneno que se chama Modernismo e que tem um efeito patologicamente
intoxicante sobre todos os talentos esforçados de hoje em dia, sejam jovens ou
velhos (apud PEPPERCORN, 2000, p. 55)

Não se pode afirmar categoricamente que sua opção era essa apenas para que gozasse de
prestígio na capital – é só observar a quantidade de criticas ferozes que recebeu de Oscar
Guanabarino. O que parece é que Villa-Lobos parecia crer realmente que tinha música para oferecer
ao mundo se tivesse a oportunidade. Entretanto, de acordo com Gúerios (2003) Villa-Lobos soube
dançar conforme a dança. Segundo o escritor (GUÉRIOS, 2003;2009), Villa-Lobos localizou-se
como vanguardista no Rio de Janeiro, de acordo com o pensamento do Instituto Nacional de
Música, e na França deu a eles o que dele esperavam, numa espécie de oportunismo para
autopromoção. Contudo, foi comprovado em estudos recentes que Villa-Lobos compôs música do
seu estilo ‘original’ ainda nos anos 10 (SALLES, 2009a)- muito antes de sua ida à Europa - e que
tinha acesso a música de vanguarda ainda não estreada no Brasil através do Círculo Veloso-Guerra,
no Rio de Janeiro (LAGO, 2005). Esse pensamento que procura relacionar os feitos do compositor a
simples ‘oportunismos’ não se sustenta quando se observa suas composições cronologicamente,
bem como a própria história da convivência de Villa-Lobos no Rio de Janeiro e suas primeiras
ações públicas (op. cit.).
Muito embora não se costume questionar que algumas viagens que Villa-Lobos disse que
havia feito foram criadas pela sua imaginação fértil e criadora – segundo a literatura atual do tema –
algumas viagens aconteceram comprovadamente, como sua mudança para Paranaguá e sua turnê de

39
concertos que foi do Rio de Janeiro até Manaus, ambas na primeira década do século XX
(GUÉRIOS, 2009). Também há a viagem para o interior de Minas na infância e seu convívio com
chorões da capital carioca, narradas por biógrafos como Vasco Mariz (2005a, 2005b) e Francisco da
Silva (2003) e Paulo Guérios (2009). Há também a pesquisa folclórica que Villa-Lobos organizou a
mando de seu mecenas Arnaldo Guinle, Alma Brasileira e as pesquisas folclóricas que ele
organizou e gerenciou quando fundou e presidiu a Superintendência de Educação Musical e
Artística (SEMA) na década de 30 (VILLA-LOBOS, 2009). Todas essas viagens e experiências –
embora não sejam trilhas para Barbados ou navegações no Rio Amazonas – refletem coisas
importantes acerca do caráter e da personalidade musical de Villa-Lobos. Villa-Lobos foi um
músico de instrução híbrida: popular e erudita. Podemos perceber essa verve popular em suas obras
dos primeiros anos como Suíte Popular Brasileira (1908-1923) e as cancionetas e músicas para
cabarés que compunha para sobreviver na sua juventude. Sua instrução erudita não foi adequada
segundo os padrões da época – não terminou seu curso no Instituto Nacional de Música e não foi à
Europa para estudar, como já foi dito nesse trabalho, mas para representar a música brasileira.
Villa-Lobos, ao voltar da primeira viagem à Europa inicia algumas composições de temática
indígena. Em 1926, no Rio de Janeiro, Villa-Lobos inicia a composição das canções para piano Três
Poemas Indígenas, para as quais, em 1927, elaborará arranjos para Orquestra e negociará com a
editora Max Eschig suas publicações. Nessa época, segundo Guérios, Villa-Lobos inicia sua
pesquisa dos textos do sertanista Edgard Roquete-Pinto (GUÉRIOS, 2009), onde recolhe o tema
Teirú que usara no Poema Indígena de número 2 (ROQUETE-PINTO, 1938). Ele também tem
contato com o livro Histoire d´un Voyage a terre du Brésil de Jean de Lery (1565), onde a melodia
de Canidé-Ioune Sabath é coletada.
Entretanto, segundo Peppercorn (2000) Villa-Lobos tinha conhecimento desse material de
Roquete-Pinto muito antes de compor os Três Poemas Indígenas. Segundo a escritora:

Villa-Lobos havia mostrado um grande interesse pelas melodias folclóricas e


etnográficas coletadas por Edgard Roquete Pinto (sic) nas suas expedições às
regiões ainda não-exploradas do Brasil. Junto com Lucília, ele visitou o Museu
Nacional, no Rio de Janeiro, para ouvir as gravações desses temas folclóricos e
guardá-los de memória. Até então, nunca lhe ocorrera usar qualquer uma dessas
melodias nas suas composições. Agora, entretanto, ele se esforçava cada vez mais
para dar a sua música um caráter decididamente brasileiro, o que achava que
poderia conseguir usando músicas folclóricas autênticas (PEPPERCORN, 2000, p.
71)

Nesse ponto onde a bibliografia especializada discorda – acerca das datas nas quais Villa-
Lobos havia pesquisado o material indígena para composição – percebemos que a tese elaborada

40
por Guérios é uma simplificação – errônea, no meu ponto de vista – acerca da questão complexa
que envolve a relação importantíssima entre a matiz popular da música de Villa-Lobos e suas
composições de sucesso nos anos 20. É fato que Villa-Lobos tenha encontrado uma situação
oportuna para seu desenvolvimento e reconhecimento como compositor: um espaço no exterior
onde as suas qualidades que eram reconhecidas no Brasil como defeitos pelas palavras dos críticos
eram aquilo que se esperava do compositor brasileiro. Entretanto, não parece pertinente afirmar que
as ações de Villa-Lobos na França visavam exclusivamente a autopromoção. Antes, parece que suas
qualidades enquanto compositor eram bem vistas lá - onde a novidade e o exótico se destacavam
como índices de criatividade - do que no Brasil - onde ainda havia um ambiente conservador em
relação às novas linguagens musicais. Nas palavras de Peppercorn, “Enquanto no Rio de Janeiro
era constante a oposição ao caráter africano (ou melhor, exótico) da sua música, parece que era
exatamente este elemento que agradava aos parisienses (PEPPERCORN, 2000, p. 91)”. Era essa a
situação da França nos seus Annés Folles, e Villa-Lobos, no seu retorno à Paris, em 1925, após seus
concertos de sucesso em São Paulo e em Buenos Aires no mesmo ano (PEPPERCORN, 2000, p.
68) e é reconhecido por sua originalidade, vivacidade e brasilidade que ficou na memória da
Europa, em especial da França.
Gostaria de antes de terminar esse capítulo, fazer um comentário acerca da relação entre
Villa-Lobos e Mário de Andrade, no que diz respeito ao pensamento de ambos sobre a construção
da música brasileira e sobre o papel da figura do índio nessa tarefa. Villa-Lobos nunca assumiu
bandeiras ideológicas muito definidas, o que pode ser depreendido de sua própria história. Da
mesma forma Villa-Lobos não aderiu ao movimento musical modernista de Mário de Andrade, e
sobre os modernismos, de forma geral, disse:

Mas isso eu posso garantir: a minha arte é minha, e ninguém pode identificá-la com
aquele veneno que se chama Modernismo e que tem um efeito patologicamente
intoxicante sobre todos os talentos esforçados de hoje em dia, sejam jovens ou
velhos (apud PEPPERCORN, 2000, p. 55).

Ainda assim, Villa-Lobos manteve comunicação com Mário de Andrade (TONI, 1987) e
dedicou seu Choros nº3 a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, duas figuras importantes do
movimento modernista. Parece haver, nessa fala do compositor, uma grande necessidade de
confirmar sua originalidade, um elemento bastante valorizado pelo próprio modernismo e pela
comunidade artística brasileira e mundial. A relação entre Mário de Andrade e Villa-Lobos possui
momentos de aproximação e outros de afastamento, geralmente por motivos políticos, conforme as
correspondências entre os dois e as cartas de Mário de Andrade acerca de Villa-Lobos para seus
companheiros confirmam (op. cit). Especialmente na questão musical, Villa-Lobos parece ter

41
conseguido algumas vezes ir de encontro aos anseios estéticos de Mário de Andrade. Andrade
escreveu uma crítica muito positiva sobre Amazonas, quando essa foi executada por Villa-Lobos, no
Brasil, em 1930 (ANDRADE, 1963).
Contudo, a ênfase no elemento ameríndio que construía a composição brasileira de Villa-
Lobos desagradava Mário de Andrade, que acreditava que essa música, com elementos carregados
de exotismo não representava bem o Brasil. Era um ‘fetiche’ para francês ver, por assim dizer. Em
suas próprias palavras: "Brasil sem Europa não é Brasil não, é uma vaga assombração ameríndia,
sem entidade nacional, sem psicologia técnica, sem razão de ser (ANDRADE, 1928)”. Quando em
1927 se espalhou pela imprensa parisiense – primeiramente através da caneta da sra. Delarue
Mardrus, da revista L´Intransigeant - que Villa-Lobos havia sido capturado por índios canibais e
nessa situação havia coletado os cantos que ouvia a sua volta, Mário de Andrade escreve crônica
repleta de ironia comentando o ‘fato’:

A sra. Delarue Mardrus, que uma feita, espaventada com as venturas de Villa-
Lobos em Paris, escreveu sobre ele artigo tão furiosamente possuído de água
possivelmente alcoólica da Castalia, que o nosso músico virou plagiário de Hans
Staden. Foi pegado pelos índios e condenado a ser comido moqueado. Prepararam
as índias velhas a famosa festa da comilança (o artigo não diz se ofereceram
primeiro ao Vila a índia mais formosa da maloca) e o coitado, com grande dança,
trons de maracás e roncos de japurutus, foi introduzido no lugar do sacrifício.
Embora não tivesse no momento nenhuma vontade para dançar, a praxe da tribo o
obrigou a ir maxixando até o poste de sacrifício. E a indiada apontava pra ele
dizendo: ‘lá vem a nossa comida, pulando!’. E as danças mortuárias principiaram.
Era uma ronda horrorífica prodigiosamente interessante que, devido ao natural
estado de nervos em que o músico se achava, se ia gravando inalteravelmente na
memória dele. Felizmente pra nós e infelizmente pra Etnografia brasílica, a dança
parou no meio. Simplesmente porque, por uma necessidade histórica, os membros
da missão alemã, já muito inquietos com as quatro semanas de ausência do jovem
violencelista, dera de chofre na maloca, arrasaram tudo e salvaram uma ilustre
glória do Brasil (GUÉRIOS,2009, p.179-178).

Percebe-se então, pelo teor da escrita de Mário de Andrade, o seu pensamento acerca da
recepção de Villa-Lobos como Índio Branco, em Paris41. Apesar de Mário de Andrade considerar
boas algumas obras de Villa-Lobos, inclusive a partir de seu próprio projeto nacionalista, Villa-
Lobos era compositor autônomo, e trabalhava em suas próprias bases de operação, fugindo assim –
e às vezes se encontrando, consciente ou inconscientemente – com a cartilha de Mário de Andrade.
Após essa condução histórica sobre a aparição do índio como tema na música brasileira –
demonstrando o caminho que a temática indígena percorreu desde o indianismo até o modernismo e
Villa-Lobos – e o interesse secular e particular da França pelo exótico e pelo ameríndio pode-se

41
Para discussão mais aprofundada sobre o pensamento de Mário de Andrade em relação entre a concepção de nação e
sua manifestação musical, ler o artigo de Arnaldo Contier O nacional na música erudita brasileira: Mário de
Andrade e a questão da identidade cultural (CONTIER, 2004).
42
compreender alguns aspectos que fundamentam historicamente a situação de Paris dos anos 1920,
onde Villa-Lobos apresenta suas obras e solidifica seu papel como compositor brasileiro autêntico,
que persiste até os dias de hoje no Brasil, na França e no mundo (SCHIC, 1987, FLÉCHET, 2004).
Prossigamos, então, para o objetivo central dessa dissertação, a análise musical, de onde
poderemos depreender o uso de Villa-Lobos dos seus recursos composicionais na composição de
uma obra central para a sua afirmação como Índio Branco, os Três Poemas Indígenas.

43
CAPÍTULO II: OS TRÊS POEMAS INDÍGENAS DE HEITOR VILLA-LOBOS

Após a discussão da dimensão de Villa-Lobos como compositor que trouxe uma nova
perspectiva sonora do índio para a música erudita brasileira, é importante verificar como,
musicalmente falando, ele realizou seu intento de criar uma sonoridade indígena em suas obras.
Quais procedimentos composicionais específicos ele aplicou, e como os aplicou?
Para esse fim, nesse capítulo analiso uma obra que acredito ser de central importância para o
entendimento da composição villalobiana de temática indígena, Os Três Poemas Indígenas.
Acredito na importância da análise desse ciclo pela possibilidade de perceber Villa-Lobos tanto
como ambientador42 de melodias indígenas originais (nos dois primeiros poemas), quanto de criador
de um estilo sui generis para a representação do índio musicalmente (no terceiro). Também a
importância da recepção da obra na França - que figura, em importância, entre o Nonetto, Choros
nº8 e 10 segundo Fléchet (FLÉCHET, 2004 p.59) – reforça a representatividade dessa obra a
respeito da construção musical de um Brasil no exterior.
Compostos no Rio de Janeiro, no ano de 1926, os Poemas foram originalmente escritos –
segundo o catálogo oficial do compositor (MUSEU VILLA-LOBOS, 2009) para orquestra e
diversas formações vocais. Canide Ioune – Sabath, o primeiro poema, foi composto para voz e
orquestra e possui uma versão a capela editada para o Canto Orfeônico de Villa-Lobos (VILLA-
LOBOS, 1940); Teirú, o segundo poema, foi composto para coro e orquestra, e Iára, o último, para
voz solista, coro e orquestra sobre texto de Mário de Andrade. Em 1929, durante a segunda viagem
de Villa-Lobos à Paris, foram publicadas pela editora Max Eschig adaptações das três canções para
voz e piano, que são as versões analisadas nesse trabalho.
Analiso cada um dos três poemas em aspectos estruturais gerais – tema (ou aspectos
melódicos), forma, texturas, dinâmica – e também as informações que dizem respeito à natureza dos
temas musicais e, no caso do terceiro poema, Iára, da poesia utilizada. Nessa análise procuro alguns
elementos recorrentes que possam vir a se tornar categorias de análise para a obra de temática
indígena em Villa-Lobos. No próximo capítulo outras análises serão feitas, na procura desses
elementos recorrentes como o fim se construir um léxico que congregue os procedimentos
composicionais de Villa-Lobos usados na criação da sua música indígena. Ao fim desse capítulo
discuto sobre a construção da unidade no ciclo, através de procedimentos comuns de Villa-Lobos às
três canções.

42
Villa-Lobos parece utilizar o conceito de ambientação como metáfora para o procedimento de inserção de texturas
que criam um contexto para a melodia que será utilizada, quando essa não é de sua autoria. A metáfora se observa
enquanto se pensa a melodia como um indivíduo sonoro e as outras texturas – de certa forma hierarquicamente
inferiores a ela – como um meio-ambiente, que sustenta essa existência individual da melodia (de certa forma, de
onde ela extrai os recursos específicos para sua subsistência).
44
2.1 Canide-Ioune – Sabath: Primeiro Poema Indígena

2.1.1 Sobre a melodia temática43

Canide Ioune – Sabath44 foi composta por Villa-Lobos utilizando duas melodias indígenas
distintas, Canide Ioune e Sabath, como o próprio título da obra de Villa-Lobos salienta. As duas
melodias tupinambás foram coletadas pelo viajante francês Jean de Léry no século XVI (LERY,
1585). Abaixo a transcrição das duas melodias conforme o historiador Guilherme de Melo (MELO,
1947).

Figura 1 Canide Ioune (MELO, 1947, p.11)45

Figura 2 Sabath (MELO, opus cit.)

As duas melodias são construídas sobre graus conjuntos e duas durações – semibreve e
mínima – segundo a transcrição. O fato de terem em comum a palavra Heura talvez confira ao uso
conjunto das duas melodias alguma unidade.
Villa-Lobos altera algumas durações das melodias – como o aumento da semibreve da sílaba
Iou da palavra Ioune (c.5) e da sílaba Heu da palavra Heura (c. 23); ele também nota a música
usando mínimas e semínimas. Vejamos o uso das melodias por Villa-Lobos e comparemos as duas
versões:

Figura 3 Canide Ioune na versão de Villa-Lobos

43
Para facilitar o entendimento do leitor, durante a dissertação as composições de Villa-Lobos serão destacadas com
itálico, enquanto as músicas indígenas homônimas não. Exemplo: Canide Ioune refere-se à composição de Villa-
Lobos, e Canide Ioune à melodia tupinambá.
44
(FAIXAS 1 E 4 DO CD ANEXO).
45
A lista de figuras da dissertação esta anexada ao trabalho (ANEXO O).
45
Figura 4 Sabath na versão de Villa-Lobos

2.1.2 Sobre o desenvolvimento formal

O desenvolvimento da grande forma de Canide Ioune – Sabath é determinado pela escolha


da aparição das melodias das duas canções, Canide Ioune e Sabath. Villa-Lobos apresenta
primeiramente Canide Ioune, logo após apresenta Sabath e retorna para Canide Ioune (c.34), no que
poderemos interpretar como forma ABA, pela escolha de apresentações temáticas que Villa-Lobos
fez: apresentação de Canide Ioune (A), apresentação de Sabath (B), recapitulação de Canide Ioune
(A´). A partitura completa da composição está anexa ao trabalho (ANEXO C).
As canções indígenas utilizadas, com base nas suas transcrições, não possuem essa forma,
mas como se trata de duas canções distintas, podemos utilizar a descrição forma ABA para
demonstrar o ofício de Villa-Lobos na apresentação das duas, tratando cada uma delas como um
tema distinto para sua composição Canide Ioune – Sabath. Note que o hífen entre o nome das duas
canções e a tradução independente em cada lado da folha ressalta que são duas canções
independentes que serão usadas (ainda que a melodia de Sabath seja alterada ritmicamente, como
veremos adiante), mais do que a elaboração de uma síntese das duas que constrói uma terceira obra,
original de Villa-Lobos, fruto da bricolagem dos temas. Mais uma vez, Villa-Lobos se coloca como
ambientador das canções dedicadas à Roquete-Pinto46.
Muito embora se verifique que a divisão ABA possa ser arbitrária, partindo da escolha dos
temas mais do que a intenção de contraste a seção B é contrastante melodicamente e
dinamicamente, ainda que possua alguns elementos importantíssimos que mantêm a unidade na
peça (como a letra, a divisão rítmica e o movimento por graus conjuntos).
Canide Ioune – Sabath inicia com dois compassos de introdução, onde um ostinato rítmico
grave é apresentado (c.1-3). Esse ostinato é um dos elementos texturais mais importantes da peça,
estando presente de diversas formas em toda a composição.

46
Como em Nozani-ná (MOREIRA & PIEDADE, 2010).
46
Figura 5 Ostinato na introdução de Canide Ioune- Sabath

No compasso quarto inicia a melodia da canção Canide Ioune, em Movimento de Marcha


Lenta. A melodia é citada duas vezes, uma do compasso 4 ao 12 e outra do 13 ao 20 (a transcrição
em MELO [1947] corresponde na composição de Villa-Lobos à parte do compasso 4 ao 11). Na
segunda citação de Canide Ioune (c. 13-20) a música torna-se menos densa dinamicamente e
harmonicamente, quando o acompanhamento acordal soa uma oitava acima da primeira
apresentação e a dinâmica é reduzida de mf para pp.

Figura 6 Exemplo das duas versões do tema Canide Ioune. no começo da canção (c.7 ao 13 e c.14 ao 20)

Após essa apresentação reiterada de Canide Ioune, inicia-se a seção B de minha divisão, a
contrastante melodia de Sabath (c.22-33). O contraste se manifesta também no andamento, Pouco
animando. Há a reiteração de Sabath, assim como houve a de Canide Ioune. Entretanto a reiteração
47
é afirmativa, no sentido de não haver mudanças significativas na escrita do compositor na repetição
da melodia (c.28-33). A presença repetida e afirmativa dessa parte de forte dinâmica e andamento
mais vigoroso dá o destaque necessário para essa seção que não será repetida na obra em análise.

O tema de Canide Ioune reaparece no compasso 34, e o desenvolvimento desse segundo A é


idêntico ao primeiro: Tempo de Marcha Lenta, oitava grave nos baixos e mesmas dinâmicas, e na
repetição (c.43) o acompanhamento do piano soa uma oitava mais alto e a dinâmica fica mais fraca.
A diferença mais substancial entre a primeira aparição de Canide Ioune, dos compassos 4 a 21 para
a segunda, é que na segunda repetição do tema, sua reiteração é mais fraca dinamicamente, sendo
ppp ao invés de pp,como no compasso 13. Por fim, a música tem sua finalização, sua coda, na qual
o tema se extingue e se ouve o ostinato grave do início da canção. O fim de Canide Ioune – Sabath
lembra seu início (FIG 8).

48
Figura 7 Re-exposição de Canide Ioune

Figura 8 O fim de Canide Ioune - Sabath (c.50)

Organizando a forma da música pelos seus compassos e seções, poderemos dividí-la da


seguinte maneira:

Introdução com ostinato: c.1-3


Tema de Canide Ioune com Acompanhamento Homofônico: c.4-21
Tema de Sabath com Acompanhamento episódico (com ênfase no ostinato): c.22-33
Tema de Canide Ioune com Acompanhamento Homofônico (repetição): c.34-51
Coda com ostinato: c.52-54

Vamos observar, agora, esses desenvolvimentos formais sob a partitura completa da música:
49
50
51
52
2.1.3 Sobre a Textura

Canide Ioune – Sabath possui três diferentes texturas sonoras, claramente identificáveis.
Assim como é simples identificar e separar as duas melodias indígenas dentro dessa composição de
Villa-Lobos, o tecido sonoro da música pode ser dividido em três grandes texturas: a melodia, nos
sons agudos (elemento que já foi discutido), o ostinato nos sons graves e o acompanhamento de
acordes no piano, no meio das duas texturas anteriores. A sonoridade dessa música é definida pela
variedade de relações entre essas três texturas, que apesar de se manterem de certa forma estáveis
em toda peça dinamizam a música com suas combinações e intensidades diferentes.

O acompanhamento acordal

Uma das sonoridades muito presentes em Canide Ioune – Sabath é o acompanhamento ao


piano, que durante toda a canção não compete em importância com a melodia; essa última sempre
predomina em força e distinção. Essa textura harmônica geralmente é composta por cinco ou seis
notas simultâneas que se movem homofonicamente, sem grandes variações rítmicas (BERRY, 1976,
p. 191).

Figura 9 Malha Harmônica do acompanhamento para piano em Canide Ioune - Sabath

Ainda considerando o aspecto textural e as relações entre as texturas de Canide Ioune –


Sabath, a parte de acompanhamento para piano é bastante interessante, por ocupar o meio da
construção musical, entre a melodia e o ostinato grave; como um preenchimento do espaço
intermediário do som nessa música.

53
Figura 10 As três texturas de Canide Ioune - Sabath (c.4)

Pensando a parte do piano como uma seção estrutural em si e o comportamento das notas
dessa construção de acordes percebe-se a construção daquilo que Berry chama de Textura de
Acordes47, a saber: textura acordal “é um termo convencional e perfeitamente aceitável, muito útil,
que se refere simplesmente à texturas que consistem essencialmente de acordes, com suas vozes
geralmente relacionadas de maneira relativamente homofônica (BERRY, op.cit., p.192)”
A textura harmônica de acordes desse poema indígena é feita pelo piano, como nos outros
dois Poemas Indígenas de Villa-Lobos. Ela acompanha o desenvolvimento e variações formais da
peça, na medida em que cada seção da música apresenta uma dinâmica diferente da textura
harmônica, e por conseqüência (ou como causa) uma relação melodia-acompanhamento específica.
Na introdução da música, por exemplo, nem a textura harmônica nem melodia se
apresentam imediatamente. Nos três primeiro compassos da canção o que se ouve é o ostinato
grave. No início da seção A (c.4) a textura harmônica é tecida por uma condução de vozes
homofônica, na qual uma das linhas melódicas se articula com o ritmo da melodia.

Na repetição do tema, ainda na seção A (c.13), toda a textura e dinâmica da música são
reduzidas. Pode se observar essa intenção pela notação pp (pianíssimo) na melodia. Essa intenção
foi reproduzida na textura harmônica pela mudança de altura: a textura harmônica se manteve com
as mesmas notas, mas subiu uma oitava em altura – juntamente com o ostinato.

4747
Em alguns trabalhos recentes o termo Chordal tem sido traduzido como cordal. Prefiro a tradução para acordal para
evitar a confusão entre a textura de acordes ou referência à instrumentos de cordas.
54
Figura 11 Redução de dinâmica e amplitude sonora na segunda repetição de Canide Ioune na exposição (c.13)

No inicio da seção B (c.22) o papel da textura harmônica se confunde com o do ostinato. A


melodia se torna fluída e os acordes opositores da melodia, ao entrecortar com acordes de quarta a
fluência melódica do tema. A textura harmônica também dialoga com o ostinato ao deslocá-lo
ritmicamente pela intervenção do acorde de dois tempos no início da frase. Esse acorde também é
ritmicamente compatível com a palavra “heura” do compasso 22.

Figura 12 Acordes que intercortam a fluência melódica de Sabath, deslocando o ostinato e dividindo essa seção em pulsos
assimétricos entre as notas longas (c.22)

Se procurarmos algo que caracterize o acompanhamento da textura harmônica e sua função


entre todas essas variáveis que ele apresenta na canção (Homofonia, condução de vozes, acordes
quartais, acompanhamento rítmico) o elemento que parece estar representado no acompanhamento
em todas as seções é a idéia de acordes de três ou mais sons como substrato para o desenvolvimento
da melodia temática.
Muito embora pareça estar em outra estética musical que não o modalismo da melodia (que
como vimos está em MI frígio), a condução de vozes da harmonia da apresentação do tema
apresenta uma grande estaticidade de igual forma modal, num âmbito intervalar:

55
Figura 13 A condução de vozes dos acordes nas citações de Canide Ioune - Manutenção da Sétima maior nas vozes externas

Como se pode ver na figura anterior, enquanto as vozes internas dessa camada harmônica de
desenvolvem na condução, as vozes externas se mantém durante o tema com o intervalo de sétima
maior FÁ-MI. É interessante notar que a harmonia sustenta a nota característica do modo frígio na
melodia, com as notas das vozes externas FA-MI (inversão da segunda menor). O FÁ grave da
textura harmônica pode ser entendido, nesse contexto, como um complementador da inversão do
movimento melódico de segunda menor FÁ – MI, da melodia do tema.

Figura 14 O intervalo de segunda menor FÁ - MI ressoa harmonicamente (c.16-17)

Após essa avaliação da condução de vozes – de uma perspectiva horizontal da harmonia – é


interessante perceber o discurso harmônico via acordes que mesmo trecho do tema apresenta:

56
Figura 15 Acordes do acompanhamento de Canide Ioune

Pela formação dos acordes e sua sequência, percebe-se que o centro tonal da canção,
especialmente nessa parte é a tríade de Fá Maior. Embora a melodia seja construída no modo de Mi
Frígio, as notas de mi frígio correspondem a notas da escala de fá maior. É interessante perceber
como as notas de mi frígio em seus repousos melódicos adiciona tensões aos acordes da textura
harmônica.
Nos seis primeiros compassos do tema – que correspondem à melodia “Canide ioune” e sua
repetição – a harmonia é estática no acorde de F7M(#11), onde as tensões Sexta e Nona Aumentada
se intercalam nos compassos.
O repouso musical reside na frase “Heura Ouêch” do compasso 11, onde o acorde de Fá
Maior com nona suspensa encerra a frase harmonicamente onde encerra o texto do tema. De todos
os acordes da seção o único que não foi cifrado como Fá, foi o do compasso 10. Ele é um acorde
bastante diferente dos demais, com seis sons e a inserção da ré e si bemol sobre o dó que sempre
acompanhava o Fá na clave de Fá. A sonoridade de movimento e de condução para o acorde final da
sentença sugere que esse seja uma subdominante (IV) para Fá Maior. Na seção B, entretanto, a
harmonia do acompanhamento se acopla a melodia montando acordes de quarta sobrepostas tendo
como nota mais aguda a nota da melodia.
Percebe-se, então, um deslocamento da importância do acorde como condutor do discurso
harmônico tonal. De fato, a tonalidade, ou melhor, centricidade da seção B reside na clareza da
melodia composta por Villa-Lobos. No modo de Ré Eólio e em graus conjuntos, a melodia torna-se
o elemento “tonalizante” enquanto os acordes se adequam a melodia, sendo montados com
57
intervalos de quartas paralelas inferiores a partir da nota da melodia.
No plano rítmico também há um descolamento da melodia, se comparada à parte A. Os dois
primeiros acordes nesse formato, entretanto, continuam reproduzindo um padrão da melodia dessa
canção: o deslocamento por graus conjuntos. Esses procedimentos unidos – os acordes de quarta e o
movimento por graus conjuntos – parecem construir uma tópica indígena de Villa-Lobos, pois
podem ser encontradas em outras obras com referências indígenas, inclusive em uma obra da
mesma época, Saudades das Sélvas Brasileiras, de 1927. Falarei mais sobre esse aspecto no
capítulo 3.

Sobre o ostinato

Como à primeira audição se pode ouvir, Canide Ioune – Sabath possui um ostinato durante
toda a composição. Esse “motivo obstinado” esta notado da seguinte forma na música (c.1):

Com mais frequência na música, esse motivo aparece em outra altura (c.5):

Em Canide Ioune – Sabath, o ostinato é uma estrutura textural que aparece de forma
bastante individual, quase paralela a outros desenvolvimentos rítmicos e harmônicos da obra. Isso
pode ser observado ao se perceber que independente dos desenvolvimentos das outras camadas de
textura da música, o ostinato tem, quase sempre, apenas dois compassos de duração e um compasso
de pausa (onde não é escutado). Poderíamos pensar, então, que essa pausa faz parte do ostinato, já
que uma linha melódica e rítmica coesa surge com o uso regular desse compasso sem som. Também
de maneira independente, o ostinato sempre aparece na dinâmica forte, mesmo quando outras
camadas estão em pianissimo (pp ou ppp) (compassos 14 e 17, 46 e 50).
Ao se fazer uma análise dos conjuntos de acordes usados, também se deve perceber essa
independência do ostinato. Ele não parece construir sobre si – mesmo sendo nota grave – uma

58
referência de função harmônica qualquer – procedimento típico de Stravinsky e de outros
compositores russos (Os Cinco48). É, realmente, um motivo “obstinado”, pois é ritmicamente,
melodicamente, e estruturalmente, repetido em padrões até a sua exaustão (no compasso final).
Há algumas variações interessantes sobre o ostinato. A fim de destacá-lo em partes da
música onde a densidade sonora não é tão forte (onde algumas camadas sonoras não estão tão
presentes, ou mesmo ausentes), Villa-Lobos executa esse motivo oitavado e mais grave, como que
preenchendo o vazio sonoro com a ressonância dos graves e o reforço harmônico da oitava.
O ostinato aparece dessa maneira nos compassos introdutórios (1-3) e nos compassos finais (52-54).

Figura 16 A aparição (c.1) e o desaparecimento do ostinato (c.52).

A única variação de dinâmica do ostinato acontece também nos compassos introdutórios,


onde de forte se torna mezzoforte, como que se unindo ao acompanhamento de piano que inicia no
compasso 4. Isso fica bem visível no gráfico das dinâmicas dessa peça (figura 24).
Continuando a falar da organização estrutural da composição via ostinato, deve-se perceber
que o ostinato é praticamente o único elemento presente em toda a peça. É o primeiro motivo
musical a surgir e o último a desaparecer na composição. Na seção B, onde ideias novas são
lançadas, a canção elegíaca Sabath (MELO, 1947) e o acompanhamento de piano – que antes era

48
Grupo de compositores russos do fim do século XIX que se dedicavam a produção de música erudita nacional russa,
procurando desvencilhar-se da tendência à simples estilização russa da música europeia. Era formado pelos
seguintes compositores, César Cui, Aleksandr Borodin, Mily Balakirev, Modest Mussorgsky, e Nikolay Rimsky-
Korsakov. O grupo francês, Os Seis (ponto 1.2.3), foi apelidado em função do Grupo dos Cinco da Rússia. Ver
artigo da Enciclopédia Brittanica: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/208976/The-Five
59
tecido por condução de vozes – se transformam; o ostinato se mantém e se reforça com oitavas e
ritmo deslocado (c. 24). Ele mesmo parece propiciar a transfiguração do acompanhamento de piano
em B, que se torna mais rítmico e interativo.
Salles (2009, p.45) afirma que Villa-Lobos utilizou, diversas vezes, padrões simétricos para
elaboração de motivos e estruturas importantes em suas obras. Uma das situações onde essa
simetria pode surgir, segundo os comentários de Salles, é como resultado de processos rítmicos.
O ostinato em Canide Ioune - Sabath apresenta um padrão de simetria que deriva de
processos rítmicos. Vamos observar mais uma vez sua figuração rítmica (c.1):

Figura 17 Padrão de sons e pausas do ostinato de Teirú.

Nesse exemplo se veem duas repetições do ostinato. Se pensarmos sua composição de


maneira aditiva, temos duas notas curtas e uma pausa longa. Para verificar melhor a
complementaridade desse trecho podemos dizer que dos três tempos do compasso em questão, dois
possuem som e um não. Se ampliarmos um pouco a visão das ocorrências dos ostinatos no decorrer
da música, perceberemos que esse padrão de eventos 1-1-0 ocorre em nível de compassos também
(c.5-10):

Figura 18 Padrão SOM-SOM-PAUSA constituindo os aparecimentos do ostinato em Canide Ioune (c.5-10)

De fato, existem três variações principais desse ostinato na composição.

60
Figura 19 As diferentes fórmulas rítmicas do ostinato de Canide Ioune - Sabath sobrepostas.

Muito embora seja diferente na escrita (e o exemplo dos compassos 22-23 apareça, de fato,
em compasso quaternário) o padrão 1-1-0-1 (som-som-pausa-som) se mantém nesses exemplos,
apesar das pequenas elaborações a que o motivo foi submetido (acréscimo de oitava; deslocamento
rítmico).

Figura 20 Em azul o som e em vermelho, o silêncio. Observe o padrão que se mantém apesar das diferentes
versões do motivo.

Observe que o ostinato aparece agora com uma voz inferior na clave de fá (notas com os
colchetes para baixo) no decorrer de toda a parte A e sua re-exposição, o ostinato aparece em dois
compassos e no terceiro não se ouve sua nota grave característica. Se observar no gráfico de
dinâmicas das texturas se percebe bem essa organização periódica 1-1-0

61
Figura 21 c.28-31: observe a interação entre os acordes de quartas e a métrica do ostinato. Mesmo mudando a acentuação
dinâmica, a simetria 1-1-0 se mantém no nível das notas.

Na seção B, o ostinato muda de acento ao interagir com o acorde de quartas do piano (c.28-
29). Acontece então, uma espécie polirritmia linear49, ao se considerar que, durante a seção A
inteira, e na re-exposição o ostinato começa no tempo fraco do compasso (observe figura anterior),
e na seção esse padrão entra em atrito com todas as demais aparições do ostinato, já bem
assimiladas pelo ouvinte.

Como falei no início dessa seção sobre a textura em Canide Ioune – Sabath são poucos os
desenvolvimentos das estruturas texturais. De fato, o que insere interesse e variedade são as inter-
relações dessas texturas mais ou menos estáticas. As diferentes dinâmicas de força de cada textura –
escritas em baixo de cada pauta – são importantes nesse contexto. Abaixo, um gráfico que elaborei
para demonstrar as relações entre as dinâmicas de cada uma das três texturas durante Canide Ioune
– Sabath.

49
Defino essa re-elaboração do ostinato como polirritmia linear pelo seu caráter temporal – não é estabelecida pela
simultaneidade a outro elemento rítmico, mas consigo mesma, de maneira sucessiva. Em outras palavras, o ostinato da
seção B é ouvido em comparação com as demais aparições anteriores e posteriores desse motivo, criando atrito e a
sensação de ritmos diversos no mesmo ‘lugar’ musical.
62
50
Figura 23 Gráfico textura x dinâmica em Canide Ioune - Sabath

63
2.2 Teirú: Segundo Poema Indígena

2.2.1 Sobre a melodia temática

Colhida por Roquete-Pinto em sua viagem à Rondônia em 1912, a melodia Teirú é citada no
livro Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938). O livro é uma espécie de etnografia feita por Edgar
Roquete-Pinto quando acompanhou ao Marechal Rondon nas pesquisas científicas e avanços
telegráficos em direção ao oeste brasileiro. Na seção do livro que retrata uma festa ocorrida na
Aldeia Queimada (Kêtêrôkô), na ocasião da caça e preparação de um veado para uma janta (op. cit,
p. 130) – Roquette-Pinto narra alguns elementos da festa e fala de canções entoadas por índios,
todas gravadas com o fonógrafo.
.Uma dessas canções citadas foi teirú. Ela é descrita da seguinte forma no livro: “o teirú
celebra a morte do cacique de Uaiuazarê-uaitekô, assassinado acidentalmente por Zalokarê.
Tahãrê-Kalorê, que presenciou o fato, compôs o teirú para comemorá-lo (op. cit, p. 132)”
A descrição da canção dada por Villa-Lobos na partitura da edição francesa é compatível
com a dada por Roquete-Pinto: “Teirú: Baseado em uma canção que celebra a morte de um cacique
da tribo dos índios Paricis, a província de Mato Grosso, Brasil, recolhida por Roquete Pinto em
1912 (VILLA-LOBOS,1929, p.4)” . É importante notar a importância da citação de fonte nesta
canção, onde foram informadas por Villa-Lobos tanto a situação onde foi cantada, com a descrição
do local onde foi recolhida e por quem. Tal atenção a esses fatos históricos e cronológicos não é
dada sempre pelo compositor. Além disso, é interessante notar que as os três Poemas foram
dedicados a Roquette-Pinto, conforme se verifica no título das partituras. De fato, Villa-Lobos situa
bem a fonte da melodia da composição de forma muito próxima ao descrito no livro de Roquete-
Pinto. Nessa composição – assim como em Canide Ioune-Sabath – Villa-Lobos não faz nenhuma
sugestão de ter sido ele o pesquisador a encontrar a melodia.

50
Gráfico elaborado por mim. Essa apresentação gráfica que opõe textura à dinâmica não foi utilizada em nenhum dos
livros das referências bibliográficas dessa dissertação.
64
Villa-Lobos se deteve bastante na transcrição de Teirú feita pelo prof. Astolfo Tavares
(ROQUETTE-PINTO, 1938, p. 137). Observou a mesma armadura de clave – um sustenido – e a
mesma figuração de tempo - mínima. O compositor não teve o mesmo cuidado com a transcrição de
Jean de Lery (século XVI), pois mudou a tonalidade e a figuração de tempo. Villa-Lobos repetiu,
entretanto, frases do poema indígena para que se adequassem ao desenvolvimento da sua forma
nesse segundo poema, como veremos adiante na seção forma.
É importante, portanto, que entendamos os fundamentos das transcrições musicais do livro
Rondônia para que possamos inferir mais sobre a composição de Villa-Lobos na sua relação com a
fonte primária que obteve no livro.

2.2.1.1 As transcrições em Rondônia

Feitas por Astolfo Tavares, as transcrições de Rôndonia são típicas do início da pesquisa
moderna de músicas não-ocidentais. Com referências e parâmetros ocidentais para sistemas
musicais diversos, tais narrativas são vistas hoje como defasadas e etnocêntricas, mas eram muito
comuns nos primórdios da musicologia comparada (VOLPE, 2004).
Ao se referir à instrumentação de algumas canções, por exemplo, Roquete-Pinto classifica
os tons das flautas Parecis com referência ao acorde menor, relativo do maior (ROQUETE-PINTO,
1938, p. 137). Ainda falando das flautas, a referência da afinação não é absoluta em hertz, mas
comparada com o diapasão. Nas palavras de Roquete-Pinto “as flautas estão em si, meio tom abaixo
do diapason normal (op. Cit, p. 137)”.
Falando da instrumentação, o escritor sempre faz referências a termos ocidentais. Isso é
bastante razoável se pensarmos na escassez de recursos de apelo visual e sonoro na época da edição

65
do livro, a necessidade de familiarizar o leitor com aquilo que se escreve bem como o estágio das
discussões antropológicas de uma forma geral (etnocêntricas, ainda que preocupadas com a cultura
do observado, em si). Atualmente, esse texto seria considerado bastante tendencioso, (LEVI-
STRAUSS, 1970; KERMAN, 1987), mas volto a considerar a época da escrita desse livro
(ROQUETE-PINTO, 1938).
Na página 138 de seu livro, Roquete-Pinto faz uma análise das notas produzidas pelos três
tipos de flautas - ao que chamou “família das flautas” – demonstrando como as notas dadas
convergem para a escala de Sol maior. Nas suas palavras:

O tom de sol maior é muito favorecido pelas notas fornecidas pelos três grupos [de
flautas]:
Grupo grave: si², ré²
Grupo médio: si², ré², fá²#, Sol²
Grupo agudo: ré², sol², si² (op. Cit., p.138)

Ele ainda fala, na mesma página de relações semelhantes entre as flautas, que os instrumentos
possibilitam o uso de certas tonalidades de maneira mais prática. O que está em questão aqui é o
uso de termos do vocabulário tonal dentro de outra música em avaliação, que não é regida pelos
princípios estéticos da música ocidental da prática comum (século XVIII e XIX).
Algumas referências bastante cômicas acerca da música dos parecis surgem durante a
descrição das canções: “O fonograma 14.602 é de um coro em lá maior, muito original quanto à
[sic] melodia e surpreende quanto ao ritmo (op. cit. p.139)”. Comentando o mesmo fonograma, o
escritor demonstra a visão das estruturas de compasso que acreditava ter observado nessa canção:
“[O ritmo] é incerto. Aproxima-se do 5/4, que é mantido durante os tres [sic] primeiros compassos;
aí, quebra-se , caindo o côro [sic], ora no compasso binário, ora em compasso ¾ para facilitar a
leitura (op. cit p.139)”. “Coro em Lá Maior”, ritmo incerto, número de compassos, compasso
quinquenário; enfim, o escritor fala da música numa perspectiva ética (como oposto de êmica),
atribuindo essas qualidades ocidentais à música, que certamente não parecem boas ferramentas de
análise. Ao se ler o livro se percebe uma digressão da abordagem geral do escritor ao se falar de
música, talvez por não ter sido ele a classificar a música51. Algumas páginas que não refletem
aspectos culturais intrínsecos na música tocada naquela noite de festa. Na verdade o escritor sai da
dinâmica narrativa que desenvolvia e parece trabalhar num apêndice de descrições musicais. Para
finalizar essa sub-seção é interessante notar o último comentário sobre os fonogramas, na página
139 onde outras observações bastante etnocêntricas são encontradas: “Notam-se em alguns
fonogramas, movimentos sincopados bem claros. Tais são os de números 14.594 e 14.595, onde se
encontra, pronunciadamente, o tempo de bolero, em 3/8 (op. cit. p.139)”. A utilização da
51 51
As interpretações musicológicas do livro Rondônia, foram feitas por Astolfo Tavares, musicólogo do Museu
Nacional.
66
comparação da organização de pulsos da música indígena com o tempo de bolero não esclarece
coisa alguma sobre a música, mas talvez sim sobre as dificuldades de fazer transcrições de música
não-ocidental à época.
Mesmo levando essas questões em consideração – que hoje são anacrônicas – devemos
observar o pioneirismo da investigação de Roquete-Pinto (foi o primeiro brasileiro a registrar
música indígena) que resultou tanto na incrível quantidade de dados coletados hoje expostos no
Museu Nacional no Rio de Janeiro e também no enriquecimento da música brasileira, que muito se
utilizou de suas descobertas musicais (ainda que a questão apropriação seja muito complexa).
Em 2008, a Petrobrás juntamente com o Arquivo de Fonogramas de Berlim, restauraram
alguns fonogramas e editaram um CD com encarte explicativo sobre a Comissão Rondon, e
principalmente sobre o papel de Roquete-Pinto e suas gravações

2.2.2 Sobre o Desenvolvimento Formal

Nessa seção da análise interpretarei e demonstrarei o desenvolvimento do segundo poema


indígena, Teirú52, de acordo com as texturas do acompanhamento do piano e suas relações com a
melodia temática. A partitura completa da composição está anexa ao trabalho (ANEXO D).
Teirú, assim como Canide Ioune - Sabath, inicia com um motivo ostinato na seção que
chamarei de introdução (c.1-9), de andamento Moderado. Gradativamente o ostinato da introdução
se desenvolve ritmicamente e harmonicamente até o surgimento de fragmentos da melodia temática
no piano em contraste com o ostinato. Essa aparição de fragmentos temáticos é o ponto final e
culminante da introdução - que termina com uma fermata na nota si – conduzindo para a aparição
do tema e o início do canto na música. O restante da música será cantado, sem interlúdios
instrumentais longos.
A seção de canto na música deve ser dividida em partes menores para que se percebam os
diversos procedimentos composicionais e como essa ambientação de Villa-Lobos é tão episódica
quanto a própria estrutura do poema pareci. Nos primeiros três versos da canção Teirú (c.10-16), a
melodia vocal é acompanhada por uma textura acordal dividida em várias vozes com
desenvolvimentos razoavelmente independentes, ainda que montando acordes e encadeamentos
harmônicos, que variam de densidade e qualidade de intervalos. Chamarei essa seção de Acordal,
relativa ao movimento quase homofônico das vozes do piano, em relação à seção do ostinato. Essa
seção, desde o início (c.9) é no andamento Muito Lento. Essa seção Homofônica se repete dos
compassos 17 a 22 – nos próximos três versos da canção - com algumas variações.

52
(FAIXAS 2 E 5 DO CD ANEXO).
67
Após essa seção acordal, uma seção que remete a introdução – com melodia e ostinato –
inicia no compasso 23. Sobre a repetição da palavra Uaiuazarê Uaitekô – o nome do cacique morto
e celebrado pela canção, segundo a etnografia de Roquette-Pinto - outra seção de ostinato sobre o
tempo Moderado se desenvolve, entrecortada por novos elementos motívicos, inéditos até então.
Assim como na introdução com ostinato essa seção terminado com uma diminuição de textura e
dinâmica, num uníssono na nota si. Nessa seção acaba a letra da canção indígena.
Com a indicação Muito lento como antes a canção retorna à dinâmica e textura da seção
Acordal (no c. 35), com a re-exposição do poema indígena, do inicio ao fim. Apesar da identidade
de seção homofônica se manter preservada, a repetição dos versos Uaié autiá hârêzênê ´ Zalôkârê
uêrôrêtô Uaiuazarê uaitekô possui um desenvolvimento particular com a repetição das notas SI e
RÉ em quiálteras sendo enfatizada (c.35 ao fim). No final dessa seção, algo semelhante a uma coda,
um fechamento temático sustenta a sílaba han! – que não está presente na transcrição de Rondônia –
através do desenvolvimento cromático que enfatiza as notas si e ré em sextinas. Essa seção finaliza
a música com um glissando ascendente partindo da nota SI.
Uma diferença estrutural importante entre Canide Ioune – Sabath e Teirú é a relação da
forma da composição e a forma interna das melodias. Como foi dito na análise do primeiro Poema
Indígena, a forma de Canide Ioune – Sabath é advinda da colocação arbitrária das duas canções
indígenas utilizadas – Canide Ioune e Sabath – em seções da música composta. Em Teirú, Villa-
Lobos utiliza o próprio desenvolvimento da melodia indígena como pano de fundo para seu
desenvolvimento formal. Como visto na análise da melodia de Teirú, a canção possui uma estrutura
padrão que é repetida com pequenas alterações de altura. Assim, Villa-Lobos insere o elemento
contrastante numa ruptura com o fluxo original da melodia indígena, repetindo a frase Uaié autiá
hârêzênê ´ Zalôkârê uêrôrêtô Uaiuazarê uaitekô para inserir também a ruptura com a estrutura
homofônica, utilizando o ostinato que remete à introdução. Villa-Lobos insere uma dinâmica de
contraste que era ausente à melodia indígena através de uma ruptura com o próprio
desenvolvimento da melodia e reafirma essa ruptura e criação de contraste com a inserção do
ostinato. Temos então, ainda uma forma com seção contrastante B, mas nesse poema possuímos a
estrutura AABA, fruto desse procedimento composicional de Villa-Lobos.
Na próxima página, demonstro o desenvolvimento formal da música com base nas texturas,
por seções e números de compasso, e logo após mostrarei o mesmo parâmetro na partitura original.

68
Introdução (com ostinatos): c. 1-9
Seção Acordal (exposição de Teirú): c. 10-16
Seção Acordal com Variação: c. 17-22
Seção de Ostinato: c. 23-34
Seção Acordal (Re-exposição de Teirú): c. 35-42
Coda: c.43-45

69
70
71
72
Ainda que a divisão de forma acima tenha sido elaborada através da interpretação das
texturas mais aparentes da peça - ‘homofonia acordal’, ostinatos (BERRY, 1976)- é interessante que
entendamos que apesar do contraste tornar-se mais nítido no acompanhamento do que na dimensão
melódica da canção – o que é justo se pensarmos que é justamente a ambientação a maior
contribuição de Villa-Lobos nessa música – o compositor desenvolve o tema (melodia e texto) de
maneira a permitir esses ‘excessos’ composicionais do acompanhamento que trazem à superfície da
música esse contraste mais fácil de ser observado. É importante salientar os meios com os quais
Villa-Lobos insere contraste e constrói a unidade nessa canção através do seu trabalho com o tema
indígena.
Villa-Lobos utiliza a melodia do canto indígena Teirú durante todo seu poema sem
alterações significativas de alturas e não insere texto novo na execução desse tema. De certa forma,
em sua composição, ele preza pela identidade53 da melodia indígena. Entretanto, para compor uma
música dinâmica – com seções de contraste de texturas rítmicas, principalmente no
acompanhamento – Villa-Lobos recorre a alguns artifícios que veremos frequentemente nos seus
Três Poemas Indígenas. Tomemos como exemplo o seguinte trecho de Teirú, do compasso 17 ao
22:

Nesse excerto de Teirú, Villa-Lobos insere modificações no tema pela repetição de um


trecho do poema – Tahãrê kalorê maucê - oitava abaixo. Além de ampliar a seção expositiva dessa
parte da canção, ele modifica a melodia acrescentando, assim, dinamismo à canção – pela repetição

53
Em outras palavra, o compositor procura não alterar o tema indígena a ponto de modificar partes substanciais que
comprometeriam sua compreensão como música indígena específica.
73
de um verso e sua mudança de altura - sem ameaçar de maneira significativa a autenticidade da sua
transcrição. Na figura abaixo (c. 22-30) se percebe esse artifício da repetição da melodia com
mudança de oitava para inserção de variação de forma mais clara, quando Villa-Lobos insere um
novo elemento de textura rítmica, a célula SÍ-DÓ#-RÉ#-FÁ#-SOL (c.25). A inserção desse
elemento ‘contrastante’ é possível pela repetição de um verso do poema indígena - uaiuazarê
Uaitekô- e a própria repetição do verso é proporcionada pela sua mudança de oitavas.

Já na seção de Introdução de Teirú (c. 4-9) podemos observar esse procedimento da


repetição de trechos melódicos como artifício para o desenvolvimento das seções e inserção de
contraste. A melodia do compasso 4 é baseada no início da melodia da canção indígena (c. 11). A
melodia é apresentada, construindo uma díade pela sobreposição de uma quarta abaixo (c.4-5), e a
mesma melodia, com uma pequena mudança melódica no compasso 7 - a troca de MI no segundo
tempo do compasso 5 por FÁ# no 7 – é apresentada com uma superposição de quartas. A inserção
das variedades de quartas e as variações do ostinato dinamizam e desenvolvem a introdução, ambas
são proporcionadas pela repetição do fragmento melódico dos compassos 4 e 5. Villa-Lobos,
entretanto, mantem a identidade da melodia na mão direita do piano, mudando os elementos
texturais em volta da melodia, sem contudo alterá-la significativamente.

74
Figura 24 Repetição de trechos melódicos para inserção de variação na Introdução de Teirú (c. 4-9).

Esse traço da repetição da melodia para inserção de novos trechos parece também colaborar
com a grande forma da música. Villa-Lobos re-expõe todo o poema indígena na recapitulação na
seção homofônica do compasso 35 ao 42. Ainda que a textura seja homofônica como na primeira
apresentação do tema (c.10-22), Villa-Lobos insere uma nova textura polirrítimica com as notas SI e
FÁ nessa re-exposição. Nesse sentido, parece que Villa-Lobos utilizou esse recurso de inserção de
variação com a finalidade de justificar uma re-exposição necessária à forma, ao contrário dos outros
exemplos mostrados, quando a repetição era inserida para justificar e servir como pano de fundo
para as criações de novas texturas e mudanças no acompanhamento.

75
Figura 25 Inserção de Tercinas na re-exposição de Teirú- nova textura rítmica (c.35-40)

2.2.3 Sobre a Textura

Teirú é composta de diversas camadas texturais que delineiam e definem a grande forma da
música. Assim como em Canide Ioune – Sabath, em Teirú Villa-Lobos tece no acompanhamento
do piano duas espécies de texturas: o acompanhamento acordal e o ostinato. Apesar de haver
motivos esporádicos que se caracterizam momentaneamente como outras texturas – estruturas
texturais independentes (BERRY, 1976) - o acompanhamento acordal e o ostinato estão sempre
presentes na canção determinando as seções maiores, que foram divididas na seção anterior para
análise.

Sobre o Ostinato

O ostinato é a primeira textura sonora a ser apresentada por Villa-Lobos em Teirú. Na


introdução, Villa-Lobos insere as texturas de forma gradativa. Primeiramente o ostinato em pp (c.1)
e no compasso 4 ele insere fragmentos da melodia da canção em mf até a formação do acorde de Si
menor na 1ª inversão, onde há a maior densidade de elementos simultâneos na introdução (c.8) e o
conseguinte relaxamento da tensão no rallentando. O ostinato, nesse contexto, serve como uma
76
própria paráfrase da introdução, enquanto a introdução é uma paráfrase da música toda. O ostinato
se adensa como a própria introdução, e termina com o desaparecimento das texturas com a nota SI
oitavada (c.9), assim como a música (c. 45). Se verificarmos a maneira com que Villa-Lobos insere
o ostinato na introdução percebemos que ele vai se adensando durante os compassos, ritmicamente,
em condensação dos intervalos e em participação nos compassos.

Figura 26 A inserção gradativa do ostinato na introdução de Teirú (c.1-9).

Podemos observar que Villa-Lobos insere, a principio, apenas a nota SOL oitavada, com
duração de uma semínima pontuada (c.1). A medida que a introdução continua, o ostinato vai se
desenvolvendo, e logo no segundo compasso dobra de andamento, se tocando duas notas na mesma
duração de tempo que o compasso 1. Daí em diante, na introdução, o ostinato mantém esse passo.
Quanto à presença do ostinato na introdução, se calculada de acordo com o tempo em que
essa textura se mantém como textura principal – quando não compete a atenção do ouvinte com
nenhuma outra – podemos fazer algumas observações. Durante os três primeiros compassos da
introdução só há o ostinato, atestando a importância seminal dessa estrutura. Já com o pulso em
semínimas e soando sozinho, o ostinato dura 9 pulsos (c.2-4). Após a inserção dos fragmentos
melódicos do tema indígena (c.4) o ostinato tem o destaque pelo seu movimento sobre a díade SI-
FÁ (c.5-6) durante 5 pulsos (cada um com duração de uma semínima). Após a segunda aparição do
fragmento melódico na clave de Sol (c.6-7) o ostinato tem a duração de 12 pulsos, sobre a tríade de
Si menor. Observe a tabela abaixo:

77
Compasso da Introdução Número de Pulsos com Destaque ao Ostinato
2-4 9
5-6 5
7-9 12

As notas que compõe o ostinato da introdução também revelam características importantes


da composição como um todo. O ostinato é formado por um pulso e o que podemos chamar de
contrapulso (na segunda colcheia do tempo), como se pode observar no compasso 2. O pulso do
ostinato é sempre a oitava de SOL enquanto o contrapulso, mais agudo, varia, ainda que mantenha a
nota SI do tenor por grande parte da introdução.
A variação do contrapulso durante a introdução possui algumas configurações, que em
conjunto com o pulso, constroem duas variantes do ostinato. Observe a figura seguinte:

Essas são as cinco variações do contrapulso do ostinato em Teirú, como estão escritas.
Observe que a variação 2 e 4 são enarmonias, mas pelo contexto do desenvolvimento do ostinato, e
pela opção da edição, serão tratados na análise como foram tratadas pelo compositor/editor. Como
se vê, todas tem na voz superior a nota SI, exceto a variação 5, a única que aparece apenas uma vez
em toda a introdução. Essas são as primeiras constatações de unidade e coerência no contrapulso do
ostinato: a repetição da nota SI em todos os contrapulsos (exceto o nº5, que acontece apenas uma
vez) e a repetição dessas mesmas variantes.
Villa-Lobos organiza o desenvolvimento do ostinato de acordo com a variação dos contra
pulsos – uma vez que o pulso é sempre a oitava de SOL – da seguinte forma: pulso – variação a do
contrapulso – pulso – variação b do contrapulso. Essa é a estrutura mínima, uma vez que ela é
estendida, repetida e variada durante a música – na introdução e em outras partes. Vamos observar
como o ostinato é organizado, segundo a aparição dos contrapulsos:

78
Villa-Lobos apresenta os contrapulsos em alternância, repetindo ao menos duas vezes cada
grupo. Os grupos são 1-2 (com a variação 1-5, onde o 5 possui o RÉ# do 2) e 3-4. Se considerarmos
esses grupos conjuntos em si e entendermos o 5 como variação do 2 – veremos mais tarde uma
possível explicação para essa inserção do LÁ no 5 – teremos a seguinte sequência: o grupo 1-2 é
repetido duas vezes (c.2-3), seguido por 5 repetições e meia do grupo 3-4 (c.4-8), e o ostinato é
finalizado no grupo 1-2 (c.8-9). Observe a tabela (vermelho para as repetições do Grupo 1-2 e azul
para as repetições do grupo 3-4:

Teirú é uma composição repleta de estruturas binárias, de continuações e oposições. Já no


estudo do ostinato da introdução, percebemos que Villa-Lobos trabalha a alternância de elementos
desde o menor elemento (uma nota) até construir os grupos do ostinato (e suas repetições de si
mesmos) conduzindo esse procedimento até a grande forma da obra. A coesão e unidade do pulso
(SOL-SOL) são desafiadas pela alternância com o contrapulso, que se intercala a ele. A unidade do
contrapulso – que sempre possui a nota si (exceto na variação 5) – é desafiada pelas mudanças da
sua nota mais grave (ora DÓ#, RÉ, RÉ# [MIb]). Entretanto, a repetição de alguns padrões – como
os da alternância entre os contrapulsos – criam grupos, reforçando a unidade – ainda que não
neguem essa alternância – dando origem a pequenas e médias formas que vão culminar na grande
forma da música.
Na próxima página represento com um gráfico essa dinâmica de identidade, alteridade,
alternância e a construção da unidade na introdução de Teirú.

79
Figura 27 Ciclo de Variação e Unidade na introdução de Teirú.

80
Sobre a variação do contrapulso número 5, algumas considerações devem ser feitas.
Contudo, é propício comentarmos sobre a estrutura intervalar do ostinato.
Se reduzido em suas repetições e analisado em seus intervalos, o ostinato desvela intervalos
importantes da peça e movimentações melódicas que serão observadas em outras texturas e na
própria melodia.

Figura 28 Redução do desenvolvimento do ostinato na introdução (c. 2 - 9). Observe a valorização dos intervalos de terça
maior na prolongação de SOL e SI e nas sextas menores durante todo o trecho.

As notas mais destacadas por Villa-Lobos nesse ostinato são as notas SOL, o pulso do
ostinato, e a nota SI, o tenor do contrapulso, que, como já vimos, é reforçado durante todo o
ostinato. Juntas, essas duas notas, que se alternam, fecham o ostinato com uma terça maior, que é
reforçada pelo salto melódico SOL – SI no último compasso da introdução, observe na figura a
seguir:

Figura 29 Salto melódico SOL - SI no compasso 9 de Teirú.

A terça maior e sua inversão, a sexta menor, são alicerces do ostinato na introdução. Como
pode ser observado, a relação de notas internas das díades do ostinato desenham sextas menores e a
própria inserção da nota LÁ, no tenor do contrapulso (c.3), se diferenciando das repetições desse
grupo do ostinato, forma uma sexta no cruzamento entre as vozes externas dos contrapulsos do
compasso 3, como o gráfico demonstra.
81
Outro intervalo valorizado no ostinato é a quarta aumentada. Como está demonstrado no
gráfico – no qual algumas notas foram mudadas de altura para tornar a representação gráfica mais
clara – o primeiro salto melódico das notas graves é de SOL à DÓ# (c.2), uma quarta aumentada. A
própria variação 5 do contrapulso é uma quarta aumentada, RÉ# - LÁ (c.3).
Outro intervalo destacado dentro do ostinato é aquele delineado pelo desenho melódico das
notas graves dos contrapulsos, a segunda. Voltando a observar a redução gráfica, onde se excluem
as repetições do pulso, se percebem o contorno melódico desenhado pelas notas graves dos
contrapulsos (uma vez que as notas agudas desses pulsos são sempre SI). Nas repetições do grupo
1-2, percebemos uma segunda maior entre DÓ# e RÉ#. Já nas repetições do grupo 3-4 há um
segunda menor, de RÉ a MIb. Villa-Lobos – ou o editor dessa partitura – preferiu obedecer a
ortografia musical – não escrevendo RÉ# após um RÉ (c.4-8) – e escondeu, assim, um fato
esclarecedor para a análise: essa díade – variação 4 do contrapulso – é igual a variação 2,
configurando assim uma continuidade, uma espécie de prolongamento, que valoriza a nota RÉ#-
MIb:

Figura 30 Redução do Ostinato da introdução de Teirú.

A descoberta da importância do RÉ#-MIb no contexto da introdução salienta mais uma vez


o intervalo de terça maior, pela sua inversão, a sexta menor. A prolongação dessa nota na introdução
fecha o ciclo: tanto o desenvolvimento melódico quanto as notas mantidas (SOL e SI) fortalecem a
importância desse intervalo. A relação intervalar do pulso com cada variação do contrapulso
também confirma a importância do intervalo de terça maior. Como o pulso é SOL e no contrapulso
a nota SI é sempre presente, já podemos observar essa relação de terça. Entretanto, outras relações
se desvelam na análise. Observe as figuras:

Figura 31 Relação intervalar entre as variações 1 e 2 do contrapulso com o pulso do ostinato da introdução de Teirú.

82
Na figura acima, observamos as variações 1 e 2 e suas relações intervalares com o pulso. Na relação
entre a variação 1 do contrapulso e o pulso, percebemos, além da terça maior SOL- SI, o trítono
SOL – DÓ# e a sétima menor DÓ# - SI. Na relação entre o pulso e a segunda variação, percebemos
que todas as relações intervalares são terças maiores ou sextas menores.

Figura 32 Relações intervalares entre as variações 3 e 4 com o pulso do ostinato da introdução de Teirú.

Na relação entre a variação 3 do contrapulso e o pulso, observamos, além da terça menor


comum a todas as variações, uma sexta maior (ou terça menor) e uma quinta justa. A variação
quarta é igual à segunda, logo não preciso fazer os comentários. Basta dizer, contudo, que a
repetição dessa variação acrescenta peso ao argumento da importância estrutural das terças e sextas
nessa música.
Antes de prosseguir para a análise do ostinato da Seção de Ostinatos dentro da música (c.23-
34) gostaria de demonstrar a minha interpretação de que a valorização das terças maiores e
menores, assim como das segundas, e suas inversões, vem da própria melodia indígena utilizada.
Observe o seguinte trecho da melodia de Teirú:

Figura 33 Trecho da Melodia original de Teirú com análise melódica intervalar.

83
A grande maioria dos intervalos utilizados nessa melodia são terças maiores e menores e
segundas maiores, e aparentemente os ostinatos emprestaram essas características intervalares –
bem como outras rítmicas – da melodia. Veremos na análise da textura do acompanhamento de
acordes, que essas relações intervalares e motívicas são frequentes em outras dimensões dessa peça.
Para terminarmos essa seção do capítulo sobre ostinatos farei alguns comentários sobre a
Seção dos Ostinatos (c. 23-34), que muito se assemelha a introdução, mas com alguns pontos
especialmente interessantes. Vamos observar a seção:

Figura 34 Seção de Ostinatos de Teirú (c.23-34)

O primeiro ponto que se percebe é que a direção do ostinato muda - o primeiro pulso é mais
agudo que o segundo. Continuaremos, entretanto chamando o primeiro pulso de pulso e o segundo
de contrapulso, pois na dimensão rítmica mantém a mesma relação. Já não são mais díades que
constituem o ostinato, mas tríades. Uma característica que se mantem é que o primeiro pulso ainda é
84
o que não se altera, e é alternado com pulsos que mudam. Também se constroem grupos de
repetição, e há 5 variações desse contrapulso.
Podemos ver, pela figura abaixo que a valorização de terças e segundas, suas inversões e o
trítono ainda se mantem nessa seção, com ênfase no intervalo de sétima menor que está em
praticamente todas as variações do pulso dessa seção, entre as vozes externas. Sobre a estrutura de
textura que aparece pela primeira vez no compasso 26, falarei sobre ela no subtítulo Estruturas
texturais independentes desse mesmo capítulo,

Figura 35 Relações intervalares do pulso com o contrapulso na seção de ostinatos de Teirú.

Enfim, nessa última seção de ostinatos percebemos como Villa-Lobos mantem a estrutura de
ostinatos, variações e alternâncias conforme a introdução, inserindo a variação, com elementos
como a mudança da direção do motivo do ostinato (antes descendente e agora ascendente). O uso de
tríades ao invés de díades vem reforçar essa mudança superficial, que no entanto não disfarça, na
análise, a função estrutural semelhante de cunho instrumental e intermediário – ou precursor – do
poema indígena cantado (logo após essa seção inicia-se a recapitulação, retornando ao início da
letra da música).

Sobre o Acompanhamento Acordal

Como vimos na discussão sobre a forma de Teirú,a canção possui duas seções que se
alternam e inserem a dinâmica, fruto do contraste entre si – a seção de ostinatos e a seção
homofônica. A seção de ostinatos é conduzida pelo desenvolvimento do ostinato, que surge como
um dos elementos texturais mais importantes da música, pela sua recorrência e pelo cuidado que
Villa-Lobos parece dedicar na sua estruturação.
A seção homofônica é conduzida pelo piano com acordes, principalmente em breves e
mínimas e mais raramente, seminimas. Compostas sem contratempos acentuados ou síncopas, as
mudanças de acorde ou inserção de notas acontecem sempre sobre o tempo forte:

85
Figura 36 Acompanhamento acordal do compasso 13-18

Há alguns comentários interessantes para serem feitos sobre a relação entre o


acompanhamento e o tema melódico em Teirú. Eles estão deslocados um do outro durante a
composição, definindo uma espécie de polirritmia formal, que perpassa as apresentações do tema
nas seções homofônicas. A melodia de Teirú pode ser entendida como uma sequência, na qual o
tema é repetido com variação, imediatamente após sua primeira exposição. As frases e suas
respostas gravitam em torno das notas RÉ e MI, respectivamente.

Figura 37 RÉ e MI, notas estruturais da melodia de Teirú.

86
Em Teirú, o acompanhamento acordal inicia no compasso 10, sobre a tríade SI – FÁ# - SI.
Após 1 compasso e meio do desenvolvimento da harmonia, no 11, inicia o primeiro verso de teirú.
Percebe-se que no compasso 17 a estrutura harmônica do compasso 10 retorna, classificando o
início de uma segunda repetição de todo o desenvolvimento harmônico, que se inicia no compasso
10 e termina ao 16, com algumas variações no final da estrutura (c.20-22), onde, como em um final
de consequente de um período, se inserem variações rítmicas e harmônicas caracterizando esse fim.
Entretanto, ao se reiniciar o ciclo harmônico no compasso 17, a melodia temática não está
sobre o ‘tema’de teirú (a melodia centrada em MI), mas sobre a resposta, centrada em RÉ, -
revelando mais uma importância estrutural do intervalo de segunda nessa canção. A percepção da
defasagem entre melodia e harmonia em Teirú é reforçada pelo número de versos cantados sobre o
primeiro ciclo desse ‘caminho harmônico’ da seção homofônica (c.10-16); três.
Fica claro para o ouvinte que a melodia de teirú é construída em oposições binárias, de tema e
resposta, somando ao todo três seções de tema e resposta. Entretanto, ao terminar o ciclo harmônico
no meio de uma dessas construções de tema e resposta, percebe-se esse deslocamento entre tema e
melodia, que é reforçado pela indicação a Tempo, que que se opõe ao Rallentando de finalização de
frase do compasso 16. Observemos os ciclos e períodos entre a melodia e o acompanhamento nessa
primeira seção homofônica:

Demonstrei, através desse gráfico o deslocamento rítmico entre a textura melódica e a


textura harmônica da primeira seção homofônica de Teirú. Vamos observar agora as estruturas
harmônicas que desenvolvem essa textura, através da condução de vozes da primeira seção
homofônica (FIG 38).

87
Figura 38 Condução de vozes na harmonia de Teirú (c.10-16).

Na partitura acima , as vozes estão separadas por coloração, demonstrando os diferentes


movimentos da harmonia. Alguns compassos que repetiam a mesma sequência de acordes foram
excluídos da representação (c.14). Podemos perceber na voz de cor vermelha a movimentação
predominante por graus conjuntos e a duplicação das voz para completar os acordes (c.10). A voz
azul mantem grande parte das seções na nota FÁ#, também se duplicando para montagem de
acordes – inclusive dobrando as notas da voz vermelha, como efeito de orquestração (c.13-14). A
voz verde, que corresponde ao baixo na condução de vozes se encaminha por saltos sobre as
fundamentais dos espectros sonoros que ressoam nas outras vozes.
A voz lilás desenha de diversas formas o intervalo de quarta. Já no primeiro compasso da
figura percebemos a tríade DÓ#-FÁ#-SI. No segundo compasso do exemplo o acorde soa mais uma
vez. A melodia da voz roxa nos demais compassos também revela uma quarta: um melodia
descendente, por graus conjuntos de FÁ# até SI. Ainda comentando a presença das quartas no
acompanhamento do piano, notemos no compasso 12 as quartas paralelas que descem por grau
conjunto, na voz vermelha.

88
A voz cinza contem as duas notas mais graves da seção, que não se enquadram na condução
das outras vozes. São as notas SOL# e LÁ#, ressaltando a segunda maior na região grave da peça,
lembrando, de certa forma a discussão do ostinato que conduzi no subtítulo anterior. A segunda
maior é valorizada em outras partes dessa seção, na voz vermelha e azul, simultaneamente, no
compasso 13. Percebemos aqui, superficialmente, como os intervalos de quarta e segundas são
valorizados pelo acompanhamento. As terças, sextas e décimas também são bastante utilizadas na
formação dos acordes, como pode-se perceber em toda a seção.
Vejamos agora, a estruturação desse tecido homofônico numa redução sem as durações,
mostrando ainda mais detalhadamente as conduções das vozes.

Figura 39 Redução da primeira seção acordal de Teirú (c.10-17). Observe a progressão melódica descendente de SI a SI nas
vozes externas e os motivos de Terça descendente (X), descida cromática (Y) o intervalo harmônico de segunda maior (W) e o
salto de quarta justa (Z). Em vermelho, os compassos.

Nesse gráfico podemos perceber os procedimentos melódicos e harmônicos que permeiam


toda a seção homofônica. Os intervalos de quarta comentados na figura anterior ganham mais
importância nas relações internas entre as diferentes vozes (motivo z). Aparecem mais claramente,
também, procedimentos melódicos e motívicos que conduzem a audição durante essa seção, como o
motivo x – descer uma terça maior por graus conjuntos – o motivo y – descer a mesma terça maior
por graus conjuntos cromáticos e o motivo w – que ressalta as segundas maiores, que surgem como
estruturas independentes nesse contexto. Essas relações podem ser observadas em motivos e
também em notas mais distantes, que regulam a grande estrutura da seção.
Sobre as notas que são prolongadas durante esse acompanhamento do piano, podemos
perceber, primeiramente, que a nota grave SI se desloca da oitava do tenor para a oitava do baixo,
do início ao fim desse primeiro ciclo harmônico (10-16). Se olharmos na partitura, veremos que o
restante dessa seção (c. 17-22) a voz grave toma o mesmo contorno, com diferenças superficiais de
nível melódico e formal. As setas do gráfico procuram demonstrar a condução das vozes quando
89
essas são mais intricadas – como quando há, por exemplo, superposição de vozes (c.11). Como
vemos, o acompanhamento acordal conduz a música em passo como o ostinato, e valoriza relações
intervalares semelhantes. Contudo, ele é tecido de maneira original e suas vozes constrõe blocos
sonoros concretos que vão se desenvolvendo na linha do tempo musical, de certa forma,
independentes da melodia temática.

Estruturas Texturais Independentes

Em Teirú há alguns motivos curtos ou esporádicos que se relacionam menos com o


desenvolvimento do grande forma da música, ainda assim desenpenhando um papel importante na
inserção do constraste e compartilhando características estruturais com as texturas principais da
música, o ostinato e a ‘malha harmônica’.
A primeira dessas texturas é o cluster melódico que aparece pela primeira vez na seção de
ostinatos, compasso 26.

Figura 40 Aparição do Cluster (c.26-27)

Chamo essa figura de cluster por ser, realmente, um amontoado de sons. Soando uma oitava
abaixo do que indicado na pauta e com a velocidade de semifusas, o que temos é a simultaneidade
desses sons num espectro sonoro grave, onde a distinção das notas é obscurecida. Essa característica
de cluster se mantém ainda que os intervalos sejam de segundas maiores e terças, entre as notas
dessa ‘melodia’.

Figura 41 O cluster melódico

90
Esse motivo surge na repetição do último verso – Uaiazarê Uaiteko - da poesia de Teirú, na
primeira exposição do tema (c.23-34). Como pode ser observado, os primeiros versos de Teirú são
apresentados sobre a malha harmônica do acompanhamento acordal, enquanto esse último verso é
apresentado sobre o ostinato. A repetição do verso parece abrir espaço para o desenvolvimento
composicional - para a inserção da novidade versus a identidade reforçada do próprio verso – nesse
contexto o ostinato e o cluster são inseridos com esse fim.
O cluster faz cortes temporais na execução do ostinato, episodicamente, adicionando outro
elemento de variação e constraste dentro da própria seção do ostinato: o número de pulsos de cada
divisão entrecortada do ostinato pelo cluster. Por ter a duração de um pulso do ostinato, podemos
dizer que o cluster rouba um pulso de ostinato e sua movimentação melódica, quase como uma
pausa de som. Observemos o número de pulsos do ostinato entre as intervenções do cluster:

Compassos 23-26 27-28 28-29 30-31


Qt. De pulsos no ostinato 16 5 4 5

Organizei a divisão acima tendo como parâmetro o início da seção de ostinatos (c.23), isso explica
a aparente disparidade entre as 16 repetições do pulso entre os compassos 23 e 26 e o número bem
menor de repetições nas outras seções.
Um último comentário a ser feito a respeito dessa estrutura é sobre seus intervalos
estruturais. Observe a figura abaixo:

O cluster soa harmonicamente - apesar de ser escrito como melodia - pelos aspectos
particulares dos graves e a rapidez das notas. Os intervalos de segunda maior e terça maior são
predominantes, assim como nas texturas que já observamos em Teirú anteriormente. O movimento
do cluster conduz de SI para SOL, como uma sexta menor, exatamente o oposto do movimento do
ostinato, que desce uma terça maior de SOL a SI. Percebemos, na figura abaixo o fio condutor

91
SOL-SI e SI-SOL nessa seção de ostinatos:

Figura 42 (c.26-28). Observe como os intervalos de segunda utilizados nessa seção do ostinato constroem uma sonoridade com
as notas da escala de tons inteiros de Sol, um procedimento orientalista de Debussy utilizado por Villa-Lobos em suas diversas
fases.

A segunda estrutura textural independente de Teirú é representada pelo motivo de tercinas


que aparece na re-exposição do tema, do compasso c.35 ao fim da música, compasso 44.

Figura 43 A inserção de tercinas na re-exposição de Teirú (c.35-36).

Villa-Lobos insere um compasso a mais entre o fim da seção de ostinatos e o começo


da seção homofônica (se comparado ao início da música) e coloca o motivo de tercinas, que se
prolongará em SI e RÉ alternados durante todo o restante da música. Esse motivo confere variação
à repetição do tema, que, de outra forma, seria em praticamente tudo semelhante a primeira. É um
elemento de destaque nesse contexto – também por ser introduzido sozinho no começo da seção
(c.35).
Por fim, há uma terceira textura independente em Teirú, o motivo de sextina dos compassos
43 e 44.

92
Figura 44 Sextinas no fim de Teirú (c.43-45)

Esse motivo se assemelha em alguns aspectos estruturais com o anterior: é uma quiáltera, e
valoriza as notas SI e RÉ. É uma passagem de Teirú que não está notada na transcrição original em
Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938), e é uma estilização vocal do índio, com as sílabas han e
cromatismos. É interessante comentar que Villa-Lobos apresentou uma versão de Teirú na sua
Coleção Escolar (VILLA-LOBOS, 19..), com melodia idêntica (com mudanças para o arranjo
coral), onde incluiu o cromatismo em sextinas, sobre a onomatopeia han (ANEXO E).

93
2.3 Iára: Terceiro Poema Indígena

2.3.1 Sobre a Poesia

A poesia do terceiro poema indígena, Iara54, foi extraída do livro de poesias de Mário de
Andrade, A Clã do Jabuti, de 1927. O nome desse poema de Mário de Andrade é apenas Poema.
Nesse livro, Mário de Andrade, segundo Souza, “leva-nos a viajar por caminhos folclóricos e
musicais, desbravados pelo poeta em viagens etnográficas pelo interior do país e em pesquisa
realizada sobre as tradições populares e indígenas do Brasil” (SOUZA, 2006, p.19). Há uma
coletânea de poemas tratando temas indígenas nesse livro, como a Toada do Pai-do-Mato, a Lenda
do céu e Poema bem como o próprio nome – A Clã do Jabuti – faz referência a elementos indígenas
e da floresta brasileira.
Observando com atenção a citação de Souza – que fez uma análise crítica da concepção de
cultura brasileira de Mário de Andrade através de A clã do Jabuti – a concepção que se tem de
Mário de Andrade como poeta e pesquisador se assemelha em alguns aspectos com a concepção que
se tem de Villa-Lobos enquanto músico e compositor. Ambos podem fazer a síntese do que seria a
cultura brasileira, pela experiência das viagens e da genialidade dessas personagens. Mais uma
citação do livro de Souza, afirma ser essa a concepção vigente à época. Citando o Jornal O Globo
de 1928, na fala do crítico e poeta Nestor Vitor;

[Mário de Andrade, em Clã do Jabuti] é estranhamente brasileiro, brasileiro


moreno, no seu ar, nos seus meneios, nos seus quês, irmão do carioca como
do paulista, do matuto de Minas, como do tirador de borracha do Acre.
Intimamente identificado com as nossas águas, as nossas árvores, o nosso
chão, conhecendo tudo pelo miúdo, e tal qual a gente simples conhece, sem
nenhuma nomenclatura latina (VÍTOR apud SOUZA, 2006, p.20).

Parece propícia a escolha de uma poesia de Mário de Andrade para musicar, na criação de
um poema indígena. Todos os outros dois Poemas Indígenas de Villa-Lobos haviam sido compostos
com textos etnográficos, e melodias transcritas de cantos indígenas, e não parece haver ninguém, à
época de Villa-Lobos, com tamanha autoridade de “falar pelos índios” – e segundo o depoimento de
Nestor Vítor – por todos brasileiros, do que Mário de Andrade. Nesse sentido, destaco que as
metáforas que associam a intimidade do compositor com o país com o conhecer de elementos da
natureza brasileira – como terra, rios, árvores – foram usadas para Villa-Lobos, assim como para

54
(FAIXAS 3 E 6 DO CD ANEXO).
94
Mário de Andrade. Letra e música serão compostas por dois Índios Brancos55.
Leiamos Poema de Mário de Andrade:
1 Neste rio tem uma iara...
2 De primeiro o velho que tinha visto a iara
3 Contava que ela era feiosa, muito!
4 Preta gorda manquitola ver peixe-boi.
5 Felizmente velho já morreu faz tempo.
6 Duma feita, madrugada de neblina
7 Um moço que sofria de paixão
8 Por causa duma índia que não queria ceder pra êle,
9 Se levantou e desapareceu na água do rio.
10 Então principiaram falando que a iara cantava, era moça,
11 Cabelos de limo verde do rio...
12 Ontem o piá brincabrincando
13 Subiu na igara do pai abicada no porto,
14 Botou a mãozinha na água funda
15 E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá.
16 Neste rio tem uma iara

Esse poema é musicado por Villa-Lobos e sobre essa possibilidade de liberdade de criação
Villa-Lobos explora diversos procedimentos que haviam se mostrado timidamente – em quantidade
e em transformação – nos dois primeiros poemas. A liberdade da criação de Villa-Lobos se
manifesta desde a invenção da melodia para Poema até a criação da sua instrumentação, que
funciona, ora como acompanhamento, ora como protagonista, no âmbito das texturas.
Por fim, é importante ressaltar que, segundo a partitura, Iára havia sido composta em 1926,
um ano antes da publicação de A Clã do Jabuti, o que parece, à primeira vista, um impasse
cronológico. Os Três Poemas Indígenas, entretanto, foram publicados pela Max Eschig em 1929,
dois anos após a publicação de Poema. Algumas hipóteses sobre essa questão podem ser levantadas:
Villa-Lobos compôs o acompanhamento e seu desenvolvimento em texturas em 1926 e adicionou a
melodia após 1927 até a publicação da sua obra em 1929? Nesse caso Villa-Lobos teria
intencionado uma composição indígena livre enquanto compunha os outros Poemas –ambos de
1926 – e adicionado a melodia sobre o texto de Andrade após 1927. Teria Villa-Lobos composto
toda a música – piano e voz – em 1926 e depois adicionado o poema sobre a melodia?
Há muitas possibilidades, e talvez o conhecimento desses detalhes revelasse alguns aspectos
importantes do procedimento composicional de Villa-Lobos e dos aspectos indígenas dessa obra,
mas são apenas especulações. A análise musical da obra como nós a temos é o recurso mais
relevante para a compreensão dos processos composicionais que a conceberam.

55
Ainda que Mário de Andrade deixasse claro que, para ele, sem a parte branca – europeia – não existiria o Brasil como
nação, e isso tem desdobramentos na produção artística brasileira (ANDRADE,1928).
95
2.3.2 Sobre a melodia temática

Diferentemente dos outros Poemas Indígenas, a melodia de Iára é composta totalmente por
Villa-Lobos. Essa característica reveste a melodia desse poema com especial interesse, e sugere
nova metodologia de análise. Nas discussões sobre os temas indígenas dos Poemas anteriores não
se discutiu de maneira aprofundada os motivos e características intrínsecas das melodias56, pois não
revelavam procedimentos composicionais de Villa-Lobos por não serem de sua autoria. Estes
revelavam, sim, a interpretação dos etnógrafos do que ouviram e como transcreveram a música.
Entretanto, a verve compositora de Villa-Lobos se manifesta na criação da melodia de Iára, e a
análise pormenorizada da mesma se faz necessária para a compreensão da obra toda. A partitura
completa da composição está anexa ao trabalho (ANEXO F). Vejamos, na próxima página, a
melodia completa de Iára:

56
A única análise melódica mais aprofundada que fiz foi de Teirú (ponto 2.2.1), justificada por revelar princípios
composicionais que foram aplicados às outras texturas da música, nas seções compostas por Villa-Lobos.
96
97
Apesar de se desenvolverem prosodicamente, sem se submeter a um acompanhamento fixo,
as melodias de Iára podem ser organizadas observando suas variações e repetições, através da
análise de padrões rítmicos ou melódicos que se repetem e são transformados. Abaixo classifico
todos ‘tipos’ 57 melódicos e posteriormente mostrarei um gráfico com a sua numeração de
compassos e sequência.

57
Classifico as frases musicais de Iára por suas particularidades melódicas. Cada verso possui uma construção
melódica, que pode ou não ser repetida durante a música, constituindo uma identidade, uma mônada que passa a ser
estrutural. A essa estrutura musical imediata e autorreferente chamo de ‘tipo melódico’.
98
As melodias dos versos de Iára

Melodia do primeiro verso: Essa melodia sempre aparece unida à frase “Neste rio tem uma Iára”,
no compasso 1, e no fim da música nos compassos 112 e 115. Na segunda aparição, no compasso
115, a melodia aparece um tom acima.

Figura 45 A melodia do primeiro verso de Iára (c.1) e as suas reaparições no fim da música (c.112 e c.115). Observe o aumento
de um tom na citação do compasso 112.

Melodia do segundo verso: Inicia com salto de terça menor, sobre uma segunda maior, retorna e
desce uma terça menor (SIb-RÉb-MIb-RÉb-SIb). Ela é apresentada no compasso 9, repetida do
compasso 32 ao 36 e do 38-39 (versos seis e sete), dessa vez com modificação de alturas – inserção
da nota FÁb.

Figura 46 No compasso 9 a melodia do segundo verso. Abaixo as outras duas aparições com transformações de ritmo,
compasso, e contorno melódico, mantendo, contudo, a mesma estrutura de intervalos melódicos.

Melodia do terceiro, quarto e quinto versos: De caráter recitativo, tem apenas três notas (SI – DÓ –
Láb) e um glissando. Possui a mesma estrutura no segundo verso. Repete-se semelhante no quarto e

99
no quinto verso uma terça menor acima, em RÉ, com outro contorno rítmico.

Figura 47 A melodia do segundo e terceiro versos (c.17), sua repetição uma terça acima (c.21-24)

Melodia do oitavo e nono verso: No oitavo e nono versos a repetição de notas alcança seu ápice e
apenas três notas soam durantes os dois extensos versos, FÁ, DÓ# SI. No oitavo verso a escrita
rígida das figuras rítmicas demonstra a precisão necessária para a execução do trecho, que é
repetido muito semelhante no nono, uma sexta menor acima. Nessa seção o desenvolvimento
melódico fica a cargo da melodia do piano.

Figura 48 Note a semelhança rítmica entre os dois versos e a superposição da melodia do piano sobre a voz.

Melodia da repetição do nono verso: Aqui acontece uma delineação melódica de um acorde de
sétima diminuta (SOL, SIb, RÉb, FÁb). A uma compressão rítmica nos primeiros compassos e na
100
palavra rio, um alongamento.

Figura 49 Repetição do nono verso da poesia de Iára

Melodia do décimo e décimo-primeiro versos: Motivo ascendente de grau conjunto e grande clareza
motívica. A melodia do décimo verso é elaborada num formato de sequência, (FÁ-SOL, SOL-LÁ,
LÁ-SI, SI-DÓ). No décimo-primeiro, saltos de terça e progressões melódicas de graus conjuntos se
misturam, mas a estrutura rítmica do décimo verso se mantem – inclusive a última nota longa (c.68-
69 e 72-73)-, com algumas modificações superficiais.

Figura 50 Melodia do décimo e décimo-primeiro versos de Iára

Melodia do décimo-segundo verso: Apesar da grande seção que separa esse verso do anterior – 25
compassos – o décimo segundo verso possui características semelhantes com do décimo primeiro –
melodia ascendente em graus conjuntos e motivo sequencial.

Figura 51 Melodia do Décimo-segundo verso de Iára

Melodia do décimo-terceiro e décimo-quarto versos: Esses dois versos iniciam com salto, descem
por graus conjuntos e são finalizados num salto descendente.

101
Figura 52 Melodia do décimo-terceiro e décimo-quarto versos de Iára

Melodia do décimo-quinto verso: Essa melodia retorna a repetição, a ênfase no intervalo de terça
menor e segunda (nas notas longas dos compassos 109-110) e o pequeno âmbito melódico, motivos
originários da melodia do segundo verso.

Figura 53 Melodia do décimo-quinto verso - uma depuração melódica que afirma os intervalos mais importantes da peça.

Finalizando a discussão sobre as frases melódicas dos versos de Iára apresento uma tabela
onde cada identidade melódica58 é representada por uma cor. Uma vez que a classificação foi por
primeira aparição de cada melodia (melodia do primeiro verso, melodia do oitavo verso), a
coloração das melodias será autorreferente, ou seja, no próprio gráfico se atribuirá a legenda das
cores à melodia. As variações de cada cor indicam mudanças significativas de variação temática
dentro de um mesmo tipo melódico. Aconselho que o gráfico seja observado juntamente com as
descrições da melodia de cada verso que foram feitas nessa seção. Pode-se, através do gráfico
acima, observar os padrões de repetição de tipos melódicos e de agrupamento das seções.

Verso 1 2 3 4 5 6 7 8 9 9.2
Melodia

Verso 10 11 12 13 14 15 16 16.2
Melodia

58
Cada desenho melódico que possui características específicas, como curva melódica e padrões rítmicos.
102
Considerações sobre a construção melódica de Iára

Em geral, os intervalos mais valorizados na melodia de Iára – além das segundas, como
graus conjuntos ou não – são as terças, e principalmente as terças menores. São inúmeros os
exemplos de frases que começam ou terminam sobre a estrutura de uma terça menor nessa melodia.
Se observarmos a própria frase inicial de Iára, percebemos a importância seminal desses intervalos
e da repetição de notas (FIG 54).

Figura 54 Já no compasso inicial de Iára, repetição de notas, terças (cor verde) e segundas (cor azul) definem sua importância
(c.1-2)

Os movimentos por segunda predominam nessa música, juntamente com os de terça, nem
sempre configurando notas de passagem (FIG 55-57):

Figura 55 Segundas em azul e terças em vermelho, no início da melodia temática em Iára (c.9-12)

Figura 56 Segundas em azul, terças menores em vermelho e terças maiores em verde, na segunda seção onomatopeica de Iára
(c.25-27)

103
Figura 57 Segundas menores em lilás, segundas maiores em verde e terças menores em vermelho na introdução instrumental
de Iára (c.5-8)

Outra característica importante da melodia pode se relacionar com texto do Poema. Segundo
Souza (SOUZA, 2006), o poema de Mário de Andrade narra a formação do mito da Iára, e esse mito
possui alguns aspectos particulares importantes, que são análogos ao próprio processo de formação
da cultura e arte brasileiras. Os mitos indígenas, narravam a história de Ipupiara e a Mãe d´água,
dois seres feios que apavoravam os rios e mares brasileiros. O homem português, ao ouvir sobre
esses entes e o mal que causavam, fundiu as duas histórias distintas em um só mito e relacionou
essas unidades com a Sereia ibérica, lenda de sua terra natal. A Iára indígena era feia, não possuía
castelo de cristal no fundo dos lagos, e tão pouco cantava (SOUZA, 2006, p.125-126). Nesse
sentido, o mito da Iára, como um todo, se reformou, obtendo aspectos ibéricos e indígenas. O
poema de Mário de Andrade, narra justamente essa fusão. Assim podemos dividir o poema em três
partes: a narrativa da ancestralidade indígena do mito – da feiúra da Iara - a ressignificação vinda da
contribuição europeia – da beleza física e do canto da Iara - e por fim a realidade do mito para os
indivíduos do tempo presente. A própria gramática utilizada em cada um dos versos se aplica a esse
fim, quando a ausência do artigo ‘o’ na frase “Felizmente velho já morreu faz tempo” se assemelha
a linguagem de Macunaíma e os versos da segunda divisão são mais ibéricos na construção das
sentenças gramaticais. A atemporalidade do mito aparece representada no poema pela frase ‘neste
rio tem uma Iara’ que inicia e termina o poema, demonstrando ser todo o poema apenas um ciclo
(SOUZA, 2006), de um processo interminável, onde a cultura se alimenta das crenças dos
indivíduos nas diversas situações que eles se manifestam e as significam. Observemos o poema
dentro dessas divisões:

104
1 Neste rio tem uma iara...

[Ancestralidade Indígena]
2 De primeiro o velho que tinha visto a iara
3 Contava que ela era feiosa, muito!
4 Preta gorda manquitola ver peixe-boi.
5 Felizmente velho já morreu faz tempo.

[A leitura Ibérica]
6 Duma feita, madrugada de neblina
7 Um moço que sofria de paixão
8 Por causa duma índia que não queria ceder pra êle,
9 Se levantou e desapareceu na água do rio.
10 Então principiaram falando que a iara cantava, era moça,
11 Cabelos de limo verde do rio...

[O tempo presente reforçando a crença]


12 Ontem o piá brincabrincando
13 Subiu na igara do pai abicada no porto,
14 Botou a mãozinha na água funda
15 E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá.

16 Neste rio tem uma iara

A melodia composta por Villa-Lobos parece se relacionar intrinsecamente com a narrativa


do poema. Na primeira seção, onde vemos a ancestralidade indígena no texto, podemos perceber o
caráter recitativo, repetitivo e que enfatiza a terça menor e a segunda maior, intervalos muito
presentes nas outras canções indígenas. A partir da frase “Então principiaram a falar que a Iara era
cantava” (c.65), percebe se uma construção melódica motívica tradicional, com mais saltos e maior
âmbito melódico. Entretanto, ainda se percebe a valorização de elementos como a terça menor na
melodia, e aos poucos, um retorno à estética mais primitiva do início da peça (c.107). Outro fato
importante a se destacar é o uso do pentatonismo em grande parte dos versos (geralmente baseado
em SIb), o que se constitui como um índice do caráter indígena da melodia, intrinsecamente ligado
ao uso dos saltos de terça menor e segundas como dispositivos melódicos comuns na canção.

105
Figura 58 Repetição de notas, salto de terça (maiores em verde, menores em azul) segundas que não são nota de passagem
(maiores em azul, menores em lilás) e menos estruturação ritmico-motívica são índices do indígena em Iára (c.9-25)

Figura 59 Na seção da poesia que fala da perspectiva do homem ibérico, temos melodias mais amplas (sétima menor) e
motivos rítmicos mais definidos. Ainda assim, intervalos de terça (vermelho) e segunda (lilás) estão presentes (c.65-73)

Figura 60 Ao final da canção os dois estilos se fundem e percebemos figurações motívicas claras, com muitos graus conjuntos,
seguidas por repetições de nota e saltos de terça (c.99-110)

106
2.3.3 Sobre o desenvolvimento formal

Em Iára a forma da canção é episódica, com alguns pontos autorreferentes onde elementos
motívicos e estruturais se conectam e criam ‘ambientes’ já visitados pelo ouvinte em outras partes
da canção. Essa forma pode ser encontrada, a princípio na própria estrutura da letra da poesia no
nível dos versos - não há seções de divisão, nem rimas, só um fluxo de palavras que contam uma
história. Curiosamente, as partes autorreferentes de Íara são aquelas das onomatopeias criadas por
Villa-Lobos, nas partes onde se canta “Ah-á!” e as texturas convergem de forma semelhante (c.13,
25, 57, 86) ou em ambientes puramente instrumentais, onde Villa-Lobos cria livremente.

Figura 61 Seção com a onomatopeia "A-ha". Nessas seções – são três durante a peça- a textura do piano e a voz constroem a
mais clara divisão de seções de Iára.

O texto não dá suporte para uma forma como ABA, mas uma espécie de Rondó, onde as seções
onomatopeicas formam o refrão. Obviamente, como vimos na seção anterior, estruturas melódicas
se repetem, sugerindo seções menores organizadas, mas essas são episódicas. As mudanças de
andamento e expressão indicadas na partitura podem esclarecer melhor forma total da música – com
notas longas, e fortes pontuando seções e andamento e expressão indicando o movimento da obra, a
progressão temporal. Vamos observar como Villa-Lobos separa o texto com essas seções de
onomatopeias e mudanças de andamento:
.

107
Vejamos, agora, como essas mudanças de andamento, expressão, e as seções
divisórias das onomatopeias intercortam e relacionam os agrupamentos melódicos de Iára.
Demonstro isso no gráfico abaixo, onde as colorações dos versos correspondem às estruturas
melódicas da tabela das melodias:

108
Observe como a coloração preta separa seções de cores contíguas (c.73). Nos versos
de cora amarela ela os circunda na transição dos vermelhos e para os vermelhos (c.13 e 25). Em
Iára, as seções menores de divisão da forma são construídas por um conjunto de texturas episódicas
e suas relações com a melodia, que devem ser melhor exploradas no estudo das texturas dessa peça.

109
2.3.4 Sobre as Texturas

Iára possui uma variedade de texturas que constroem as diversas seções episódicas
das músicas, a organizando, de certo modo, na grande forma fluida que podemos observar, nos
desenvolvimentos do piano em força, densidade e sua relação com a voz, como textura
independente. Esses motivos texturais e rítmicos diversas vezes valorizam os intervalos de terça e
segunda, fortalecendo o papel estrutural dessas sonoridades. Considero a melodia uma textura
independente, mas dela já falei num tópico específico (ponto 2.3.2).
Seguindo a ordem da aparição das texturas na música podemos apresentar as
seguintes texturas:

Ostinato motívico: esse ostinato possui um motivo específico, pois além de ser formado apenas por
colcheias possui uma ligadura que desloca seu acento, o sincopando. Aparece transformado em
outras seções da composição (figura 63).

Figura 62 Ostinato Motívico na introdução de Iára (c. 3)

Figura 63 O Ostinato Motívico transformado em Iára (c.29-31)

110
Podemos perceber como os intervalos de terça são valorizados na transformação do ostinato
motívico acima:

Figura 64 A inserção dos intervalos de terça maior, terça menor e segunda menor no ostinato simples em Iára (c.29-31)

Ostinato simples: É o ostinado construído pela sucessão de pulsos simples de colcheias com
diferentes articulações (FIG)

Figura 65 Ostinato simples na Introdução de Iára (c.7-8)

Melodia do piano na introdução: Uma melodia baseada na semínima e suas subdivisões. Aparece
algumas vezes na música e é desenvolvida motivicamente (c.92-103). Possui duas seções, o motivo
de terças menores (c.7) e a melodia cromática descendente. Esse motivos serão usados
separadamente nessa composição (FIG 66).

Figura 66 Melodia do piano na introdução de Iára (c.7-9)

Acordes de intervenção: Utilizados nas seções onomatopeicas de Iára, esses acordes quebram a
fluência dos ostinatos simples, se interpondo em diferentes tempos e contratempos de seus
compassos. Junto com os ostinatos simples constroem uma textura coesa na resposta para o “a-há”
da voz (c.13).

111
Figura 67 Acordes de intervenção (c.13-16).

Figura 68A transformação dos acordes de intervenção c. (c.58-60)

Esses acordes interrompem o fluxo do ostinato, dividindo essa textura e substituindo a


duração de dois pulsos do ostinato. Esses acordes aparecem em outras seções de “Ah á”, de outras

112
formas mas mantendo a forma de acordes de seis ou mais sons e interrompendo o ostinato:

Esses acordes de intervenção ao ostinato de “A há” também valorizam, em suas estruturas


intervalares melódicas e harmônicas, os intervalos de alicerce de Iára, as terças, segundas e as
quartas perfeitas:

Figura 69 Acordes de Intervenção em Iára (c.58-59), em vermelho segundas maiores, em azul terças menores, em verde terças
maiores, azul quartas justas. Observe que em todos acordes as vozes externas constroem uma segunda maior mesmo com os
diferentes intervalos internos dos acordes – a textura se mantém dentro desse âmbito de décima-sexta (duas oitavas + uma
segunda maior), mas a textura reduz sua densidade de dissonâncias no último acorde, de quartas perfeitas (MIb-FÁ, SIb-DÓ,
MIb-FÁ, DÓ-RÉ, LÁ-SI).

Textura Polichinelo: Em Iára, especialmente nos versos de 2 a 5 Villa-Lobos utiliza a


seguinte textura no piano (próxima página):

113
À primeira audição percebemos que essa textura politonal é muito semelhante à que utilizou
na obra para piano solo Polichinelo da Prole do Bebê nº1, de 1918, oito anos antes da data da
composição de Iára (PASCOAL, 2005). Vejamos uma parte da partitura editada em 1920, pela casa
Arthur Napoleão no Rio de Janeiro:

114
Percebemos que além das duas camadas texturais de tonalidades diferentes que se
interpõem, a própria figuração rítmica e melódica da textura em Iára se assemelha ao início de
Polichinelo, com o salto de terça descida em graus conjuntos para a mesma nota de que partiu o
salto. A mão direita toca as teclas brancas –acordes diatônicos de Dó Maior - intercalando com as
teclas pretas à mão esquerda. Ambas ‘mãos esquerdas’ das texturas politonais de Íara e Polichinelo
valorizam o intervalo de segunda maior (nas díades) e terça menor (juntamente com as segundas,
nas tríades).

Acordes em sextina: A partir do verso 11, uma nova estrutura acordal, que valoriza as terças e
segundas, assim como os acordes de intervenção, surge no compasso 85 e cresce em importância
até se revelar como uma das estruturas texturas mais importantes do final de Iára (c.106-101). São
acordes de 9 sons, que na primeira aparição do motivo apresentam-se estáticos, mas que durante o
resto do poema se desenvolvem melodicamente. Observe:

115
Figura 70 Aparição dos acordes em sextina, sem desenvolvimento melódico, ‘cortando’ o desenvolvimento do ostinato simples
(c.85)

116
Figura 71 Observe a progressão melódica dos acordes em sextina e a expansão da duração de cada aparição, culminando nas
sete repetições do acorde com LÁ-SOL# na voz superior. A progressão desses acordes acrescenta tensão e culmina na nota SIb
– central nessa peça. Anteriormente, do compasso 88 ao 91, acontece a mesma progressão desses acordes, com menos ênfase e
repetições do que essa versão da figura (c.106-111).

117
Vejamos a estrutura intervalar dos acordes de sextina:

Figura 72 Estrutura intervalar dos acordes em sextina. Segundas menores em azul claro, segundas maiores em azul escuro,
terças menores em roxo, quartas em verde e sextas em vermelho. Observe a linha melódica superior que progride uma
décima menor.

A estrutura intervalar dos acordes em sextina valorizam o intervalo de segunda e quarta –


observe os três grupos de intervalos de segunda separados por intervalos de quarta. A terça menor
também se revela importante através dessa estrutura – toda a progressão melódica vai de SOL à SIb,
num final conclusivo que retoma a citação da melodia inicial de Iára (c.112).

Estruturas texturais independentes

Intervalo de segunda LÁ-SI: Durante a música, podemos perceber a importância da sonoridade de


segunda maior, nas constituições dos acordes de intervenção, dos acordes de sextina e nos motivos
melódicos. Villa-Lobos utiliza em Iára um motivo rítmico e melódico – geralmente em conjunto
com o ostinato da introdução – que mostra a segunda maior como uma textura independente,
ressaltando sua importância. Observamos essa estrutura nos compassos 5-7 e 80-88. Na segunda
aparição o motivo se desenvolve, agregando a nota RÉ e servindo como conectivo para os acordes
de sextina, dos quais o primeiro possui o motivo de segunda LÁ-SI.

Figura 73 O motivo de segundas LÁ-SI, na sua primeira aparição (c.5-7)

118
Figura 74 Observe o desenvolvimento do motivo LÁ-SI. Indicado como uma voz independente, Villa-Lobos adiciona a nota
RÉ enfatizando o intervalo de quartas (c.86).

Figura 75 Observe como o motivo LÁ-SI serve como conectivo textural para os acordes de sextina. Excepcionalmente no
compasso 87, o primeiro acorde possui a segunda maior LÁ-SI herdada do motivo de segundas.

Motivo de saltos de terça: Na mesma seção da música em que o motivo de segunda LÁ-SI se
desenvolve, Villa-Lobos ressalta a importância estrutural de outro intervalo, a terça. Como um
motivo que se transforma em cada compasso – alturas e ritmos – o compositor adiciona uma nova
camada textural a Iára. Ele ainda utiliza o intervalo de segunda para separar os saltos de terça.
Observe:

119
Figura 76 O motivo do salto de terça se desenvolve, de semicolcheias para tercinas. Note que a nota inicial do primeiro motivo
é DÓ#, e que as notas iniciais descem por grau conjunto até SOL, nota do primeiro acorde de sextinas (c.82-86)

Motivo melódico-harmônico de quartas: Durante a citação da introdução e seu desenvolvimento


durante Iára (c.92-105) Villa-Lobos inaugura um motivo melódico e harmônico que ressalta a
sonoridade das quartas, responsáveis por grande parte da ambientação dessa peça. No
desenvolvimento linear, o motivo progride por saltos de quarta descendente. No plano vertical, cada
nota da melódica é harmonizada com sua quarta. Villa-Lobos primeiramente apresenta o motivo
melódico sem a quarta na harmonia, e, na segunda citação do motivo depois a acrescenta.

Figura 77 O motivo melódico-harmônico de quartas (c.100-105).

120
2.4 Considerações Finais sobre os Três Poemas Indígenas

Os Três Poemas Indígenas de Heitor Villa-Lobos são uma amostra especial da relação do
compositor com o tema indígena, com as melodias indígenas que utilizou e dos arranjos
instrumentais que constroem a ambientação indígena que Villa-Lobos sugere. Cada um dos poemas
possui características específicas de composição e também elementos que os unem enquanto
conjunto, tanto nos procedimentos composicionais, formais e utilização de motivos comum e
trabalho de texturas.
O primeiro elemento que une os Três Poemas é a utilização de intertextualidade com
materiais de temática indígena. Em Canide Ioune – Sabath e Teirú esses materiais são melodias
indígenas – tupinambá e pareci, respectivamente – coletadas por pesquisadores-viajantes. Em Iára
esse material indígena é uma poesia de Mário de Andrade, que descreve uma lenda indígena,
contada de uma perspectiva êmica59. Todos os Três Poemas, nesse sentido, possuem poesia
indígena, considerando que os dois primeiros são poemas compostos entre os indígenas, e o terceiro
– composto por Mário de Andrade – parte de uma perspectiva indígena. É a voz do índio se
manifestando. Nesse sentido, podemos perceber que Villa-Lobos preserva a identidade dessa voz
nos dois primeiros poemas, sem alterar as palavras e sem alterar substancialmente nenhuma das
melodias – nos dois primeiros poemas, o seu trabalho é a ambientação-harmonização. Ele constrói o
ambiente sonoro no qual o indivíduo/melodia vive.
Em Iára, contudo, ele tem mais liberdade para criar, pois assim como Mário de Andrade
inventa o índio que declara Poema, Villa-Lobos concebe o índio que canta Iára. Melodia e
harmonia são da autoria de Villa-Lobos, e, embora ele tenha modificado detalhes rítmicos dos temas
indígenas dos dois primeiros poemas, no terceiro ele compõe livremente, adequando as texturas e
melodias às seções do texto de Mário de Andrade. Em Canide Ioune – Sabath e Teirú Villa-Lobos
obedece às armaduras de clave das transcrições, a grande maioria das figurações de ritmo e duração,
bem como as letras, inserindo poucas onomatopéias que suportam motivos originais (como o Han
de Teirú), em Iára, não há o que ‘obedecer’ exceto ao texto de Mário de Andrade. Essa relação
binomial entre melodia/indivíduo e instrumentação/ambiente demonstra algumas diferenças
categóricas que existem entre os dois primeiros poemas e o terceiro.
Entretanto, Villa-Lobos segue alguns norteamentos na composição de Iára, e esse pode ser
considerado outro ponto de encontro entre as três peças que compõem esse ciclo. Em Canide Ioune
– Sabath e Teirú Villa-Lobos parece utilizar o piano para dar suporte para a apresentação da melodia
original indígena, colocando a melodia claramente em destaque de dinâmica, altura, arranjo e

59
O termo Êmico é comumente usado na antropologia e na etnomusicologia para descrever a perspectiva do “nativo”
sobre algum evento que ele observa ou participa. No poema de Mário de Andrade em questão, a persona que recita
se situa como primeira pessoa na narrativa, não como um terceiro, narrador.
121
identidade rítmica. Podemos dizer que há um acompanhamento acordal efetuado pelo piano durante
todas as duas primeiras peças.
Em Iára a dinâmica entre a voz e o instrumento muda drasticamente. O piano, que
anteriormente apenas acompanhava a melodia sem se impor ao seu desenvolvimento, se torna um
criador de múltiplas texturas, de grande diversidade, que compete com a melodia da voz por
destaque na música. O inverso também ocorre, a melodia surge como mais uma textura, como um
instrumento, que se posiciona ante a densidade de sonoridades que o piano produz.
Essas diferenças intrínsecas entre os dois primeiros poemas e o terceiro vêm como
conseqüência das fontes utilizadas para sua composição e da relação de Villa-Lobos com essas
fontes. Nos poemas com texto e melodia originalmente indígena, Villa-Lobos parece comportar-se
como compositor de modo a não obscurecer o achado musical que era mais importante nessas
musicas, a melodia indígena60. Já em Iára, Villa-Lobos tem esse compromisso apenas com a letra
da poesia, o que não o impediria – e de certa forma o impeliria – de reproduzir experiências mais
ousadas de texturas e harmonias, bastante comuns e afinadas com suas idéias de composição da sua
década de início da produção dos Choros. Algo importante a ser observado é que Villa-Lobos,
apesar da liberdade compositiva que o texto de Poema lhe dá, mantém procedimentos
composicionais na estruturação da melodia de Iára presentes nos outros dois poemas, como
intervalos, motivos melódicos e estruturas de textura, demonstrando assim a provável intenção de
Villa-Lobos de soar como índio na sua única canção do ciclo cujo tema não era de origem indígena.
Com o fim aparente de não ameaçar a identidade e a aura de autenticidade que permeava os
dois primeiros poemas, Villa-Lobos não faz bricolagem nessas peças e tão pouco trabalha o
desenvolvimento de motivos extraídos da melodia, como faz com a melodia de Nozani-ná na
Introdução aos Choros e nos Choros nº 3 (MOREIRA & PIEDADE, 2010). A diferença entre essas
obras citadas é que, nos Poemas, Villa-Lobos parece desejar, principalmente, apresentar as
melodias, embora com roupagens suas, e para tal, a identidade da melodia e seu vínculo da letra não
devem ser ameaçados por artifícios composicionais que obscureçam a relevância dessas melodias
dentro da obra.
Percebemos desdobramentos dessas diferenças de concepção entre Canide Ioune – Sabath,
Teirú x Iára também nas grandes e pequenas formas dos Três Poemas. Conforme o que foi dito,
Villa-Lobos apresenta as melodias com poucas alterações, inserindo repetições de versos ou de
seções com a mesma melodia, variando algumas vezes a oitava, para inserir a dinâmica necessária
na obra. Portanto, nos dois primeiros poemas, as divisões formais são coincidentes com os inícios e

60
Villa-Lobos tem o mesmo recato no tratamento de outras melodias indígenas em canções para voz e piano. Um
exemplo bastante emblemático é a canção pareci Nozani-ná, na qual ele apenas insere uma repetição ‘, pedal’
sustentando a melodia modal original da canção (MOREIRA & PIEDADE, 2010).
122
re-exposições do texto do poema indígena. Apesar de Canide Ioune – Sabath apresentar muito mais
coesão entre melodia e acompanhamento que Teirú – uma vez que nessa última canção o piano
constrói uma textura acordal independente, em certas seções, da melodia – as duas canções possuem
uma regularidade comum, onde as repetições de trechos do poema indígena coincidem com seções
de acompanhamento do piano, onde estão as oscilações da grande forma (A-B-A). Villa-Lobos
trabalha, nesses dois poemas, no sentido de inserir variações dinâmicas que a propulsionem na
direção do fechamento ao final da música, como conclusão, e nesse sentido também se restringe a
algumas possibilidades permitidas dentro do seu metier de compositor, cuidando para não ameaçar
a autenticidade das obras. Em outras palavras, Villa-Lobos substitui a criação no desenvolvimento
melódico, harmônico e textural – onde ele geralmente trabalha com bricolagem e desenvolvimento
de motivos – por outros artifícios. Por exemplo, em Canide Iouine – Sabath ele utiliza a melodia
original indígena Sabath como um desenvolvimento temático e dinâmico de Canide Ioune, e isso foi
possível pela semelhança de elementos identitários entre as duas melodias – graus conjuntos,
escalas com as mesmas notas e a palavra comum aos dois textos, Heura.
Em Iára a forma é episódica, assim como o próprio poema. Sem rimas nem estrofes
delimitadas – ainda que os temas internos ao poema e os modos de escrever de Mário de Andrade
sugiram divisões estróficas – o poema apenas possui versos. Da mesma forma Villa-Lobos trabalha
seus desenvolvimentos temáticos e texturais em versos, ou grupos de versos. Ele insere as
onomatopéias que figuram como um lugar de localização do ouvinte, onde a estilização do indígena
com as frases “a há!” e o ostinato – bom como os acordes que intercortam esses dois elementos
anteriores – são recebidos como um lugar de referência formal no meio da grande fluência rítmica,
melódica e textural de Iára, onde poucas melodias são autorreferentes – aparecendo apenas uma vez
na música sem retornar para a composição.
Falando sobre procedimentos composicionais utilizados nas três obras, de forma mais
específica, podemos destacar a utilização dos ostinatos, as divisões rítmicas do pulso e sua metade
nas melodias, o formato das introduções e das codas, as estruturas quartais nas texturas de
acompanhamento. Muitos desses pontos se revelarão parte integrante da linguagem indígena de
Villa-Lobos no decorrer desse trabalho.
Os ostinatos são texturas utilizadas com freqüência nos Três Poemas. Geralmente graves e
com pouca complexidade rítmica (geralmente soam como pulsos) são texturas independentes da
melodia e diversas vezes em diálogo com ela, como os extremos sonoras da composição
entremeados pela textura harmônica.
As divisões rítmicas do pulso e sua metade podem ser vistos mais como um elemento
negativo – a ausência de subdivisões menores do pulso e sincopas – do que como um elemento
positivo da música. Em outras palavras, as melodias se iniciam no tempo forte (backbeat) e se
123
desenvolvem no pulso do tempo ou da melodia – geralmente semínimas – ou suas metades.

O formato das introduções dos Três Poemas Indígenas consiste na adição gradativa das
texturas até a inserção da melodia temática. Nas codas acontece o contrário, vão se subtraindo
texturas até que haja apenas uma (geralmente o ostinato). No fim de Iára a primeira frase é cantada
acompanhada pelo ostinato, de forma um pouco diferente da introdução, reduzindo o princípio
regulador das codas para o seguinte: retorno ao motivo do início e presença do som grave do
ostinato.
As quartas são estruturas presentes em diversas seções da instrumentação dos Poemas.
Como as melodias vocais não são para duas vozes não há a possibilidade de Villa-Lobos trabalhar
os intervalos harmônicos de quarta nesse contexto – como o fez em Lendas Ameríndias, veremos
isso mais tarde nesse trabalho – sendo as terças e segundas os intervalos principais das linhas
melódicas dos Três Poemas. Entretanto, ao piano, grande número de texturas e motivos são
estruturados sobre o intervalo de quarta e sua inversão, a quinta justa. É grande o número de
estruturas motívicas e texturais reguladas per esses intervalos perfeitos.

Nessa seção do trabalho me restrinjo a fazer comentários analíticos sobre a estrutura


imanente dos Três Poemas Indígenas. Contudo, no último capítulo dessa dissertação, esses dados
serão relacionados a outras análises de trechos de músicas de temática indígena de Villa-Lobos para
então serem interpretados num sentido mais semiológico e ensaístico, onde congrego elementos
recorrentes nas músicas indígenas de Heitor Villa-Lobos como categorias de análise e discuto
algumas interpretações sobre cada uma delas.
Basta-me acrescentar uma característica importante acerca dos Três Poemas em comparação
às outras obras instrumentais de temática indígena em Villa-Lobos: a subordinação da criatividade
do compositor à manutenção da melodia indígena é evidente nesse ciclo (com exceção de alguns
pontos de Iára). Villa-Lobos economiza a sua orquestração e sua proficuidade em elaboração de
texturas para destacar as melodias e seu texto. Como já disse, ele faz o mesmo em outras canções
indígenas para voz e piano, como Nozani-ná e Ualalôcê. Em outras obras de temática indígena
como os Choros nº3, nº10, e a Introdução aos Choros Villa-Lobos possui outra filosofia de trabalho,
onde bricolagem, desenvolvimento, transformação e interversão – esta última no sentido Retiano
(RETI,1951) – demonstram o intricado repertório de processos composicionais de Villa-Lobos. No
primeiro e segundo poemas aqui analisados, Villa-Lobos parece querer apenas mostrar os poemas –
como um porta-retrato, que não apenas porta o retrato, mas destaca seu conteúdo - aproximando-os
do ouvinte com sua simples ambientação instrumental, também facilitando, dessa forma, a execução
das duas peças de câmara por diletantes.

124
CAPÍTULO III: O ELEMENTO INDÍGENA EM HEITOR VILLA-LOBOS

O principal objetivo dessa dissertação foi, desde o início do trabalho, construir um léxico
dos procedimentos musicais específicos de Villa-Lobos na construção da sonoridade de temática
indígena em sua obra. Um segundo objetivo era refletir sobre a utilização desses procedimentos
pelo compositor, numa dimensão de representação semiótica – onde as colocações do capítulo
primeiro se somarão a reflexão que será apresentada neste. A metodologia utilizada para suceder no
primeiro objetivo foi a análise musical, um instrumento construído especialmente para abordar
aspectos importantes nas músicas, detectados pela audição das mesmas ou pela investigação na
partitura. Dada a vastidão da obra desse compositor, obviamente precisei fazer escolhas para
proceder a análise, uma das primeiras foi restringir meu recorte analítico e procurar torná-lo o mais
eficaz e eficiente possível.
Precisei escolher uma obra central e desta procurei extrair aspectos musicais do indígena em
Villa-Lobos; essa obra foi Os Três Poemas Indígenas. A obra, escrita anteriormente à segunda
viagem de Villa-Lobos, é uma meta-composição, no sentido de que porta três outras composições,
os poemas indígenas individuais, cada um composto de maneira específica e particular, ainda que
com elementos unificantes em estrutura, textura e forma. Nesse aspecto, a escolha dessa
composição para ser a obra central da análise musical desse trabalho, não foi impensada; os Poemas
possuem elementos importantíssimos, a meu ver, para que possamos iniciar a procura dos elementos
indígenas da música de Heitor Villa-Lobos, sem nos perdemos em configurações estéticas que
podem ser facilmente generalizadas à grande parte da produção villalobiana, e não somente aquela
de temática indígena.
Dois dos Três Poemas Indígenas apresentam textos e melodias indígenas originais, com
poucas alterações da parte do compositor (Canide Ioune – Sabath e Teirú). A partir dessa simples
asserção podemos perceber a relevância dos dados analíticos que podem ser obtidos através da
decantação daquilo que Villa-Lobos insere como outro (no caso a melodia indígena dos dois
primeiros poemas) e a verve compositiva de Villa-Lobos, que os musica, ambienta e harmoniza.
Há também outra questão importante sobre os Poemas Indígenas. Essas obras não são as
únicas nas quais Villa-Lobos ambienta poemas indígenas originais; ele faz o mesmo em suas
Canções Indígenas de 1930. Entretanto, o faz posteriormente, após sua segunda viagem à França,
onde seus interesses se voltam, gradativamente, para a produção de música para o Brasil61, onde os
procedimentos texturais ricos, da fase dos Choros (presentes no terceiro poema Iára) cedem lugar à

61
Haverá uma dicotomia índio-exótico (anos 20, na apresentação europeia dos Choros e do Nonetto) e índio-familiar (a
partir dos anos 30, na concepção nacionalista do canto orfeônico e das Bachianas Brasileiras), postulada entre essas
duas concepções indígenas de Villa-Lobos?
125
ambientação e harmonização, mais modestas (alimentando as críticas de Mário de Andrade [TONI,
1987, p.41] e os posteriores comentários de José Maria Neves [NEVES, 1981a]), que se
encaminham para o estilo de composição que germinará as Bachianas Brasileiras, também
iniciadas na década de 30.
Os Três Poemas Indígenas possuem elementos que os unem – enquanto compilação - e que
os diferenciam – enquanto obras individuais - e assim sua análise contribui para alargar a concepção
de música de temática indígena em Villa-Lobos. Tendo isso em mente se procede à seguinte
pergunta: o que une e o que diferencia? De fato, ambas as respostas colaboram, a princípio nos Três
poemas, com o entendimento do léxico indígena de Villa-Lobos; em outras palavras, a definição do
termo indígena no ‘dicionário musical’ do compositor. O estudo de grandes obras de temática
indígena, como Amazonas, Erosão, ou mesmo O Descobrimento do Brasil, além de extremamente
extenuante e pouquíssimo prático (ou mesmo infactível) para o mestrado, não possibilitaria, com
tanta facilidade, a separação do elemento indígena de Villa-Lobos (e não apenas a representação da
Floresta Amazônica, do natural, ou mesmo dos portugueses em O Descobrimento do Brasil) para
análises e futuras generalizações (esse elemento musical específico aparece em outras obras de
temática indígena?). O estudo de uma grande obra individual não permitiria, na atual pesquisa, que
o principal objetivo fosse realizado, que era responder a seguinte pergunta: como se constrói o estilo
indígena de Heitor Villa-Lobos em diversas obras em diversos períodos de sua vida? Existe uma
consistência estilística nessa representação?
Portanto, prossigo para a minha tentativa de síntese, na resposta da seguinte pergunta: em
outras obras de temática indígena de Villa-Lobos, inclusive as de grande porte, podemos perceber
elementos musicais que correspondem e ampliam aqueles observados na análise dos Três Poemas
Indígenas, configurando assim um estilo consistente na representação do indígena em Villa-Lobos
durante os diversos períodos de sua vida?
A partir de agora apresento alguns elementos musicais bastante reincidentes na música de
temática indígena de Villa-Lobos, observados pela análise das partituras e escuta das músicas. É
uma proposta desse léxico indígena do compositor.62

62
O presente capítulo, pela sua característica exploratória, é extenso. Não poupei comentários e aparentes digressões
teóricas que considerei importantes. Para fundamentar as ideias propostas utilizei exemplos diversos, algumas vezes
apresentados mais de uma vez, quando quis salientar um ou outro elemento importante. Considero esse capítulo
portador da minha maior contribuição nessa dissertação, pela originalidade do tema e densidade da busca feita. Ele
está organizado em subcapítulos que procuram retratar procedimentos composicionais de Villa-Lobos na
representação do índio e oferecer discussões sobre a dimensão hermenêutica dessas opções. Assinalo também que
reservo o direito de não me aprofundar em questões de etnologia indígena – que não fazem parte do intento desse
trabalho – sempre me remetendo às transcrições utilizadas por Villa-Lobos quando discuto elementos de “música
indígena”.
126
3.1 Utilização de melodias e textos de caráter indígenas nas canções:
estabelecimento de intertextualidade

Ainda que não fosse um critério obrigatório na composição de temática indígena de Heitor
Villa-Lobos, o uso de melodias indígenas originais é um dos procedimentos sobre o qual ele
constrói parte da sua composição indígena. Dentro desse contexto devemos pontuar algumas
categorias de uso das melodias de indígenas em canções de Villa-Lobos: o uso das melodias
originais transcritas, com pouca ou nenhuma alteração de Villa-Lobos; o uso de fragmentos de uma
melodia original como elemento para bricolagem63 na composição livre (geralmente utilizada em
composições instrumentais com referências a fontes indígenas); e composição livre de melodia,
com objetivo da criação de melodia de caráter indígena, geralmente apoiada em poesia de Mário de
Andrade. De qualquer forma, geralmente há algum tipo de intertextualidade na composição, que a
justifica como indígena (como uma composição que não foi totalmente ‘inventada’ por Villa-
Lobos). Quando há uma melodia indígena o grau de autenticidade justifica chama-la de indígena;
quando não há, Villa-Lobos a compõe sobre um texto de Mário de Andrade, assim sustentando sua
posição não de compositor da canção que ele chama de indígena (o que seria, de fato, um
contrassenso), mas de ‘musicador’, harmonizador. Vejamos, agora, a utilização particular de
melodias de caráter indígena em algumas obras de Villa-Lobos.
Como dito no capítulo anterior, nos dois primeiros poemas indígenas – Canide Ioune –
Sabath e Teirú – Villa-Lobos utiliza melodias indígenas, citando sua fonte, no caso as transcrições
da música Pareci em Rondônia de Roquete-Pinto (ROQUETE-PINTO, 1938). No terceiro poema,
Iára, apesar de não usar música indígena, se baseia na intertextualidade com o texto original de
Mário de Andrade. Nas Canções Indígenas (1930), Villa-Lobos também demonstra suas fontes
originais na partitura. Na primeira das canções, Pai do Mato, com o poema Toada do pai-do-mato
de Mário de Andrade – assim como em Iára – Villa-Lobos indica na partitura poema ameríndio,
indicando uma assimilação do texto semelhante ao que fez nos Três Poemas Indígenas. Vejamos o
conteúdo do texto dessa canção:

A moça Camalalô
Foi no mato colher fruta.
A manhã fresca de orvalho
Era quase noturna.
- Ah...
Era quase noturna...

63
Estrangeirismo da língua francesa, bricolar significa criar algo novo a partir do que já se possui, como um
‘reaproveitador’. Termo utilizado em antropologia por Levi-Strauss em seu livro O pensamento selvagem (LEVI-
STRAUSS, 1970).
127
Num galho de tarumã
Estava um homem cantando.
A moça sai do caminho
Pra escutar o canto.
- Ah...
Ela escuta o canto...

Enganada pelo escuro


Camalalô fala pro homem:
Ariti, me dá uma fruta
Que eu estou com fome.
- Ah...
Estava com fome...

O homem rindo secundou:


- Zuimaalúti se engana,
Pensa que sou ariti?
Eu sou o Pai-do-Mato.
Era o Pai-do-Mato!

Observemos, também, o cabeçalho do autógrafo da partitura:

Figura 78 Cabeçalho autógrafo de Pai-do-Mato, primeira Canção Indígena de Villa-Lobos

Na segunda canção indígena, Ualalocê, Villa-Lobos situa a localização de sua fonte: mais
uma vez, Roquete-Pinto (1938). Na partitura se encontra a descrição feita por Villa-Lobos da
música: “lenda dos índios Parecis, cantada e dançada para festejar a caça. Recolhida por Edgard
Roquette Pinto, em 1908”. Na sua partitura está a indicação “harmonizada64 por H. Villa-Lobos”,
demonstrando a diferença clara entre a composição do acompanhamento de Villa-Lobos e a
identidade da melodia originalmente indígena.

64
Villa-Lobos parece utilizar indiscriminadamente Harmonização e Ambientação como sinônimos do processo de
composição de acompanhamento de uma melodia que não seja sua composição.
128
Figura 79 Cabeçalho do autógrafo de Ualalocê, segunda Canção Indígena. Nele está escrito "Lenda dos Índios, Cantada e
dansada (sic) para festejar a caça. Harmonizada por Villa-Lobos”

Na terceira Canção Indígena, Kamalalô, Villa-Lobos também utiliza poema homônimo de


Mário de Andrade. O comentário sobre a canção no catálogo oficial das obras de Villa-Lobos
(MUSEU VILLA-LOBOS, 2009) é “lenda dos índios Parecis”. Nas Canções Indígenas
percebemos uma espécie de intertextualidade que é destacada pela escolha das canções por Villa-
Lobos. Pai-do-Mato, Ualalocê e Kamalalô, as três integrantes das Canções Indígenas, acabam por
construir uma narrativa única. Segundo Souza (SOUZA, 2006) Roquete-Pinto faz referência ao Pai-
do-mato na sua tradução de Ualalocê, e, conforme percebemos, no poema de Mário de Andrade
Toada do Pai-do-mato, o escritor faz referência à moça Kamalalô, que é o tema da terceira canção
indígena, também. Aqui Villa-Lobos parece construir sua ideia do índio se baseando em dois dos
seus principais fornecedores de autenticidade65 (via intertextualidade), Roquette-Pinto e Mário de
Andrade.
Na compilação que abrange grande parte da vida produtiva do compositor, as Canções
Típicas Brasileiras – compostas do final dos anos 1910 ao fim dos anos 1930 – Villa-Lobos insere
duas canções de temática indígena e cita suas fontes. A primeira delas é Mokocê Cê-Maká, baseada
numa canção de ninar indígena recolhida por Roquete-Pinto. No catálogo oficial de obras de Villa-
Lobos (MUSEU VILLA-LOBOS, 2009), segue a observação sobre a canção: “‘Mokocê Cê-maká’
(Dorme na Rede) - canção de ninar dos índios Parecis da Serra do Norte, em Mato Grosso,
recolhida por Edgard Roquette Pinto em 1912’, ressaltando, mais uma vez a grande importância das
transcrições de Roquete-Pinto obtidas em sua expedição para a composição de temática indígena de
Villa-Lobos. Um detalhe interessante de se comentar é o uso da melodia dessa canção, no processo
de invenção por meio da bricolagem que Villa-Lobos executa na composição do Choros nº 10,
segundo o estudo de Salles (SALLES, 2009, p. 152).

65
A construção da autenticidade, em Villa-Lobos, parece análoga à destruição do papel do compositor que ‘inventa’ sua
obra sem referências. Nesse caso, ainda que Mário de Andrade também seja um criador original (que por sua vez
também explora a construção textual dos indígenas em sua obra) Villa-Lobos utiliza a obra de Andrade para
referenciar a sua própria, quando essa não está baseada totalmente em melodias indígenas.
129
A segunda Canção Típica Brasileira de temática indígena chama-se Nozani-ná, e é baseada
numa melodia Pareci que Villa-Lobos utiliza profusamente em sua carreira (MOREIRA &
PIEDADE, 2010). Nozani-ná parece ser - pela data de sua composição (1919) - a primeira canção
indígena harmonizada por Villa-Lobos. Nesse sentido se estabelece uma contradição entre as
opiniões de que o compositor havia se interessado por música indígena brasileira somente após sua
primeira viagem à Paris - ou seja, em 1924-25, na composição dos Choros nº3 (GUÉRIOS, 2009).
Contudo, o fato de Nozani-ná ser a primeira melodia indígena utilizada na composição de uma obra
de Villa-Lobos (tanto da canção típica brasileira quanto do Choros nº3) torna justo dizer que em
1925 Villa-Lobos se interessa de maneira mais aplicada à composição utilizando melodias indígenas
e reutiliza o tema Nozani-ná nesse contexto – essa interpretação se alinha com a visão de
Peppercorn (PEPPERCORN, 2000, p. 71). A descrição na partitura de Nozani-ná é a seguinte
“Nozani-ná: Canto dos Índios Parecis da Serra do Norte (Mato Grosso), sobre o fonograma 14597
do Museu Nacional do Rio de Janeiro” 66. É interessante observar que as duas canções de temática
indígena das Canções Típicas Brasileiras, Nozani-ná e Mokocê Cê-Maká tenham ‘cedido’ alguns de
seus motivos melódicos para a composição de Choros de Villa-Lobos, o nº 3 e o nº 10,
respectivamente (MOREIRA & PIEDADE, 2010; SALLES, 2009).
Outra composição onde Villa-Lobos parece reclamar a autenticidade do tema através de
relações intertextuais (com poemas, lendas, melodias originais, ou com o uso de idiomas indígenas)
é bem mais tardia dos que as comentadas até agora. Duas Lendas Ameríndias em Nheengatu,
composta em 1952 e publicada em 1958 – foi executada apenas postumamente, em 1967 (MUSEU
VILLA-LOBOS, 2009). Nessa canção Villa-Lobos reforça o valor indígena por duas espécies de
intertextualidade – o fato de serem lendas ameríndias e estarem sendo cantadas em Nheengatu, que
ele assinala na partitura como língua autóctone do Brasil. Diferente das outras músicas vocais com
temática indígena que foram discutidas até agora, essa composição foi escrita para quatro vozes, o
que adiciona um elemento a ser discutido: não há mais uma melodia que pressuponha uma
identidade indígena, mas uma construção de polifonia, dividida em duas seções: a melodia (duas
vozes superiores) e o acompanhamento (as duas inferiores). Esse elemento desafia uma concepção
comum sobre a música indígena ameríndia – a predominância da monodia contra a polifonia na
composição indígena.
Outro aspecto importante na construção da canção indígena em Heitor Villa-Lobos pode ser
observado no seu tratamento da temática indígena nos cadernos do Canto Orfeônico (MOREIRA,
2009). Ao tratar do índio nos seus Cantos Orfeônicos (VILLA-LOBOS, 1940, 1951), o compositor
procura inserir na escola a compreensão do índio como um dos formadores da nação brasileira, de

66
Original: D´après le phonogramme nº 14597 do Moseo N. de Rio Janeiro (sic).
130
certa forma ressoando o pensamento de Gilberto Freire, no início dos anos 30 (FREIRE, [1933]
1994). O Canto Orfeônico de Villa-Lobos (VILLA-LOBOS, 1951) apresenta canções inspiradas nas
mais diversas manifestações de folclore e tradição brasileira, como dos afro-brasileiros, dos ibéricos
e dos indígenas. Um documento escrito de punho por Villa-Lobos, e transcrito pelo Museu Villa-
Lobos intitulado SOBRE OS SERTANEJOS E ETC. (VILLA-LOBOS, S.d 2) demonstra que Villa-
Lobos possuiu um projeto de estudo do folclore brasileiro para a construção da nacionalidade
brasileira em arte. Na página 14 desse documento ele afirma que:

São quatro os elementos que influíram na nossa música popular e que poderão
servir para um estilo base da futura música artística nacional: Indígena (nativo
selvagem, Português, Espanhol (Europa) e o Negro (africano selvagem) (VILLA-
LOBOS, sd. P.14)

Podemos, dentro desse contexto, compreender a construção do canto orfeônico sobre as


bases dessa intencionalidade de Villa-Lobos; um livro que possua fragmentos de todas as músicas
que formam, segundo o que o compositor pensava, a cultura popular brasileira. Dentro dessas
contingências particulares do pensamento de Villa-Lobos pode se somar que à época da instituição
do canto orfeônico nas escolas, o Brasil sofria um processo de urbanização e de construção de
identidade nacional, onde o canto escolar era fundamental para a socialização da brasilidade
proposta pelo governo (MOREIRA, 2009). Após esse pequeno comentário sobre a natureza do
canto orfeônico, vamos observar a aplicação da canção de temática indígena de Villa-Lobos nos
livros do canto orfeônico.
Parece que o procedimento mais utilizado por Villa-Lobos para a evocação do índio no canto
orfeônico é a bricolagem de motivos extraídos das melodias indígenas com as quais Villa-Lobos
estabeleceu contato mais do que o uso de melodias extraídas de material etnográfico. Por exemplo,
apesar de no volume 1 do Canto Orfeônico (VILLA-LOBOS, 1951) encontrarmos um arranjo de
Nozani-ná e no segundo volume (VILLA-LOBOS, 1940) um de Canide Ioune - Sabath para seis
vozes, há um grande número de canções onomatopaicas de caráter indígena nas quais o compositor
não nos fornece a informação exata da fonte – ainda que mostrem a região a que pertencem. Há
algumas canções, inclusive, cujo recolhimento é atribuído a Villa-Lobos. Abaixo, as canções e as
descrições na partitura:

Aboios (p.33): Sobre temas Ameríndios-mestiços do Rio Amazonas – Recolhido e ambientado por
H. VILLA-LOBOS. Rio, 1935.
Cântico do Pará – Tema Guerreiro (p.35): Anônimo: Recolhido e ambientado por H. VILLA-
LOBOS. Rio, 1935.

131
Cânticos de Çairé nº1, nº2 e nº3 (p.37-39): Anônimo, do Folclore Amazônico: Ambientado por H.
VILLA-LOBOS, sd.
Evocação (p.40): Sobre temas ameríndios do solo do Amazonas. Anônimo: ambientado por H.
VILLA-LOBOS, sd.
Canide Ioune – Sabath (p.41): Sobre um tema indígena brasileiro de 1530: Anônimo: Recolhido por
JEAN de LERY, H. VILLA-LOBOS, Rio 1933.
Nozani-ná (p.69): Canto dos Índios Parecis. Recolhido por Roquette Pinto.

Vejamos, a seguir, as diversas maneiras pelas quais Villa-Lobos indica a sua intenção
indígena em algumas de suas músicas instrumentais.

3.1.1 Referências a material indígena na música instrumental de Villa-Lobos: as diferentes


abordagens e seu encontro no estilo composicional

Na música instrumental de Villa-Lobos podemos encontrar referências a material indígena


original em algumas obras. É bom observar que há outras obras nas quais ele utiliza melodias
indígenas que observou – e muitas vezes as harmonizou em suas canções – contudo, sem citá-las
nas obras instrumentais.
Danças Características Africanas (1914-1916), para piano, é umas das primeiras obras
instrumentais de caráter indígena na obra de Villa-Lobos – termo que compreende tanto o indígena
selvagem, quanto outra acepção da palavra indígena, referente a manifestações nativas de cultura
(MENEZES BASTOS, 2005) - Indien e Indigéne, respectivamente, no francês.
Villa-Lobos elabora uma explicação a respeito dessa obra, que pode ser observada nos
diversos nomes atribuídas a essas peças. Desde Danses Africaines, Danças dos Índios Mestiços do
Brasil ou Danças Características de Índios Africanos (na versão para orquestra), somando-se essas
nomenclaturas às de cada uma das três peças que compõe a obra: Farrapós, com subtítulos de
Dança Indígena nº1 e Dança dos Moços; a segunda peça Kankukus, subtitulada como Dança
Indígena nº2 e Dança dos Velhos e a última, Kankikis, como Dança Indígena nº3 e Dança dos
Moços (MUSEU VILLA-LOBOS, 2009).
No catálogo oficial de obras de Villa-Lobos (op. cit.) consta que a composição “foi
desenvolvida sobre material musical recolhido junto aos índios Caripunas, de Mato Grosso”. Nos
acervos do Museu Villa-Lobos há um manuscrito de Villa-Lobos, no qual ele explica a gênese da
obra:
Danças Africanas: As danças características africanas são inspiradas dos
temas e das danças dos índios Coripuna que vivem até hoje nas margens do

132
Rio da madeira em Mato grosso, estado do Brasil. É uma tribo que tendo
sido cruzada com os negros da África, que para aquelas florestas fugirão das
barbaridades da escravidão nos tempos coloniais, apareceu uma nova raça
mestiça de selvagens que os brasileiros civilizados denominavam de ‘Índios
africanos’ por serem de cor mais escura que os índios e terem os cabelos
iguais aos dos negros africanos. Os seus temas e as suas danças tem um
pouco de ritmo bárbaro das áfricas com uma melopeia original de aspecto
rude e primitivo (VILLA-LOBOS, s.d. 3) 67

A explicação dessa obra, por Villa-Lobos, nos revela um pouco sobre o processo
composicional da música em questão. De fato, a obra incorpora elementos de africanidade –
segundo os próprios conceitos do compositor (VILLA-LOBOS, s.d., p.14) – que se integram com o
sentimento indígena, que nas palavras dele se caracteriza pelo aspecto rude e primitivo. Podemos
observar que nessas peças, de maneira singular, Villa-Lobos utiliza a sincopa na divisão dos pulsos
– um elemento comum à música afro-brasileira – e também uma densidade textural que tira o lugar
privilegiado da melodia na hierarquia da composição, um procedimento um pouco atípico, uma vez
que em canções indígenas de Villa-Lobos, o elemento melódico é primordial – onde se pode
identificar sumariamente o personagem, o herói ou o conceito (BAHKTIN, 2003), o assunto de que
se trata a obra - submetendo-se a ele os aspectos texturais no processo composicional. Essa reflexão
me leva a questionar se essa diferenciação textura versus melodia, síncopa versus pulso marcado
pode ser atribuída a essa dicotomia constitutiva do elemento indígena e o elemento africano nas
Danças Características Africanas68. Observe a presença desses elementos nos exemplos abaixo,
extraídos das três Danças Características:

Figura 80 KANKUKUS: P.1, Segundo sistema, c.3-669

67
Transcrição revisada por mim segundo os padrões atuais da língua portuguesa.
68
A maioria dos compassos das partituras desse capítulo serão localizados por página, sistema e compasso das edições
adotadas. As exceções são as partituras dos Três Poemas Indígenas, que serão organizadas por compasso da
composição. As referências das partituras estão ao fim do trabalho.
69
As partituras das músicas a seguir foram alteradas para a transposição de som real (em dó) para a facilitação da
leitura.
133
Figura 81 KANKIKIS: P.3, segundo sistema, c.2-4

Figura 82 FARRAPOS: P.1 último sistema c.2-3

Entretanto, a relevância dessa discussão pontual nesse trabalho é demonstrar algumas das formas
pelas quais Villa-Lobos trabalha melodias de intenção indígena – com reprodução quase literal de
transcrições ou por criação baseadas nas mesmas – em suas músicas instrumentais.
Nos Choros nº3 (1925) 70, por exemplo, Villa-Lobos utiliza o tema Pareci Nozani-ná,
também recolhido por Roquete-Pinto (ROQUETE-PINTO,1938), e apresenta parte dele, bricolando
e o transformando (MOREIRA & PIEDADE, 2010) pelo coro masculino logo nos primeiros
compassos. Ao fim da obra Villa-Lobos apresenta grande parte dele, integralmente, misturando na
obra os processos de bricolagem e colagem. Na capa da edição de 1978, pela Max Eschig está
escrito, além da dedicação da peça a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, a seguinte descrição
“(para coro masculino e sete instrumentos de sopro) sobre/baseada (n)uma canção dos Índios
Parecis (VILLA-LOBOS, 1975)” 71.
Ainda dentro dos Choros podemos observar a utilização de temas de intenção indígena por
Villa-Lobos. Nos Choros nº10, ele cita o tema Pareci Mokocê Cê-Maká, numa utilização
semelhante à do tema Nozani-ná no Choros nº3, com a bricolagem e transformação (SALLES,
70
Segundo Gúerios (GUÉRIOS, 2009) foi essa a primeira obra de Villa-Lobos com o intuito de evocar o indígena
brasileiro, interesse que levou o compositor a ler, por exemplo, Roquete-Pinto. Para Peppercorn, entretanto, Villa-
Lobos havia demonstrado interesse pela coletânea de Roquete-Pinto anteriormente, e mostrado grande interesse ao
ponto de ir com sua esposa Lucília ouvi-los no Museu Nacional (PEPPERCORN, 2000, p. 71). Entretanto, os dois
concordam que o grande interesse de Villa-Lobos pelos fonogramas foi expresso pela primeira vez na composição
do Choros nº3, em 1925.
71
Original: (pour chœur masculin et sept instruments à vent ) sur une chanson des Indiens Parecis.
134
2009). As semelhanças entre essas duas obras escritas no mesmo ano (1925) na questão da
representação do indígena em Villa-Lobos não se restringem apenas à utilização de temas parecis.
Villa-Lobos também utiliza o coro nos Choros nº10 para reforçar a identidade indígena da obra. Ele
desenvolve uma seção coral, com solo de soprano, onde utiliza palavras diversas, aparentemente
sem sentido de construção fraseológica convencional, mas com a produção de efeitos sonoros
característicos. Essa seção de Choros nº10,remete o ouvinte a uma atmosfera indígena pelos
procedimentos utilizados, como a repetição de frases completas logo após suas aparições (como em
Jakatá Kamarajá, Jakata Kamarajá na página 82 da partitura acima citada) e pela sonoridade das
palavras, que se assemelham à palavras indígenas.
As palavras utilizadas nesse coro dos Choros nº10 não possuem sentido lexical– Kamarajó,
a exceção, que é o nome de uma comunidade quilombola do Maranhão. Uma análise um pouco
mais profunda da maneira que Villa-Lobos constrói seu texto nessa seção logo demonstra que o
interesse do compositor nessa ‘fala’ do coro é o efeito sonoro, e não a comunicação literal de algum
texto e seu entendimento. Na página 81 da partitura dos Choros nº10, percebemos nos compassos 1
e 2 a frase “túrútú karútatú”, que é explorada em suas possibilidades através da repetição. Na
página seguinte, percebemos uma frase que se relaciona com essa, “Jakatá kamarajá”, também
repetida, e na página seguinte “Tayapó Kamarajó”. Fica claro, após essa breve discussão, que a
palavra Kamarajó é utilizada por Villa-Lobos dentro da lógica da utilização das frases dentro das
outras duas sentenças anteriores, a saber: a valorização da sonoridade de uma vogal , com sua
reiteração na segunda palavra de cada frase (respectivamente ‘u’, ‘a’ e ‘o’) e o fonema “ka” que une
as três reiterações das vogais destacadas (em Karútatú, Kamarajá, Kamarajó). As referências
textuais e reiterações a que Villa-Lobos se prende são recursos composicionais que se operam na
esfera do texto e das figuras rítmicas que desenvolve nessa parte da canção, que são as mesmas nas
três frases. Observe o exemplo abaixo referente ao coro dos Choros nº10:

135
Figura 83 Exemplo do coro dos Choros Nº10 (p.43, c.1-2)

Há uma diferença importante entre os dois Choros discutidos aqui. No Choros nº3, Villa-
Lobos fala abertamente da utilização de uma melodia pareci – Nozani-ná, ainda que não a nomeie
na composição - , enquanto no Choros nº10 ele não faz referência à utilização de Mokocê Cê-maká.
Aqui poderíamos inferir que ele procede dessas formas particulares pelo grau de importância
atribuído às respectivas citações nas composições: ele utiliza Nozani-ná com letra e melodia e a
desenvolve durante longo período no início da composição e também no final, enquanto Mokocê
Cê-maká é utilizada com menos ênfase, sendo a construção do coro onomatopeico o elemento
indígena mais importante dessa obra – na superfície da textura musical. Uma observação importante
a esse respeito é que Villa-Lobos define, no prefácio da partitura dos Choros nº10 o seu conceito
por detrás de todo ciclo dos Choros, que nos ajudam a compreender a função das citações temáticas
dentro dessas obras:
O choro representa uma nova forma de composição musical, na qual fiquem
sintetizadas várias modalidades da nossa música selvagem e popular, tendo como
principais elementos o ritmo e qualquer melodia típica e popularizada, que aparece
de quando em quando, acidentalmente. Os processos harmônicos são também
quase uma estilização completa do próprio original (VILLA-LOBOS apud
GUÉRIOS, 2009, p.167)72

Quando Villa-Lobos fala de ‘processos harmônicos que estilizam o próprio original’,

72
Segundo Guérios (GUÉRIOS, 2009), a mesma definição dos Choros foi utilizada por Villa-Lobos no seu concerto de
despedida da Europa, na sua segunda viagem, em 1926, e depois repetida em gravações comerciais das suas obras.
136
podemos perceber que ele situa sua elaboração estilística – no caso, o coro onomatopeico dos
Choros nº10 – como uma apropriação de motivos e melodias originais que o inspiraram, ainda que
não cite as fontes dessas melodias. Tal asserção acerca de ‘estilização’ não foi necessária nos
Choros nº3, onde ele faz referência à melodia Pareci, mas no prefácio do Choros nº10, onde utiliza
profusamente de composição livre com uma temática indígena, ele deixa clara a função inventiva
do compositor, onde esses processos de condução de vozes e harmonização de texturas são
baseados e criadas a partir de melodia típica ou popular.
Para deixar esse atributo mais claro, especialmente na obra em discussão, podemos observar
na seção do coro dos Choros nº10 alguns procedimentos composicionais de Villa-Lobos que podem
ter sido apropriados da sua relação com a música indígena, construída através de leituras, em escuta
de fonogramas ou, quem sabe, através da escuta da própria performance musical, conforme clamava
o compositor. No âmbito do texto, por exemplo, observamos a repetição de frases e palavras, bem
como a ênfase nas sonoridades vogais como um procedimento claro no coro dessa obra – como nas
frases ‘Jakatá Kamarajá’ e ‘Turutú Katuratú’. Podemos remeter essa inspiração de Villa-Lobos à
própria canção Pareci Nozani-ná, onde as estruturas de frase se desenvolvem por repetição e ênfase
nas vogais das frases: “Nozani-ná Orekuá, Kuá; Cazaetê, etê (...) Oloniti, niti (...) Neê ená, ená
(...) (ROQUETE-PINTO, 1938, p. 331). No âmbito da construção melódica e harmônica do coro, há
uma grande ênfase nos intervalos melódicos de segunda, como graus conjuntos (como observados
em Sabath, melodia tupinambá utilizada por Villa-Lobos no primeiro poema indígena, Canide Ioune
– Sabath). Na questão harmônica observamos que no coro dos Choros nº10 as terças são enfatizadas
– especialmente as terças menores, em trechos não-diatônicos- , no início de algumas frases, sendo
o intervalo que separa as vozes, conduzindo a polifonia, algumas vezes, à construção de acordes
diminutos. Essa valorização da terça, por Villa-Lobos – desse ‘procedimento harmônico’ como
explicita no prefácio da obra – pode ter sido absorvida da construção melódica de diversos temas
indígenas, como, por exemplo, Teirú (melodia tupinambá do segundo poema indígena, Teirú)
constituindo nesse caso, uma estilização completa – totalmente composta por Villa-Lobos – a partir
da referência original, nas palavras do compositor.

137
Figura 84 Valorização do intervalo de segundo no coro dos Choros nº10 (p.73, c.1-2)

Figura 85 Valorização das terças no coro dos Choros nº10 (p.69, c.1-2)

138
Figura 86 Paralelismos de segundas e terças nos Choros nº10 (p.68, c.2.)

Villa-Lobos procura fazer uma síntese da música brasileira na série dos Choros, e para isso utiliza
as citações temáticas – de melodias típicas e popularizadas, em suas palavras (VILLA-LOBOS apud
GUÉRIOS, 2009, p.167) - como índices desses matizes culturais que compõem a cultura brasileira,
corroborando o seu pensamento da pluralidade da cultura brasileira, onde a música “selvagem”
(indígena e africana) e a música popular (as construções musicais onde uma síntese em menor
escala entre a música africana e ibérica formam estilos urbano-citadinos e rurais) possuem lugar
cativo nessa construção de brasilidade. A própria disposição dos temas e dos diversos materiais
motívicos dentro da construção da obra já faz parte do processo criativo de Villa-Lobos,
adicionando-se a esse processo criativo toda estilização e procedimentos específicos da linguagem
musical de Villa-Lobos.
Acredito que essa diferenciação entre os Choros nº3 e nº10 pode reduzir para o nível
fundamental – usando uma metáfora da análise musical - a discussão acerca da utilização de
materiais indígenas nas obras de Villa-Lobos. No meu ver, há dois tipos de posicionamentos de
Villa-Lobos com relação aos materiais indígenas na sua composição: o reconhecimento desses
materiais que se torna explícito através da citação de fonte; ou um reconhecimento diverso, que
pode estar expresso pelo título das obras – como em Amazonas ou Rudá - ou em seções de forte
caráter indígena dentro das peças, pela estilização dos materiais originais, através de uma
apropriação e elaboração desses materiais pelo compositor – como na maioria de obras de caráter
139
indígena de Villa-Lobos. Contudo, há elementos musicais que unificam o estilo indígena de Villa-
Lobos, tanto nas obras menos autorais (se podemos chamar assim, aquelas em que ele se restringe a
ambientar ou harmonizar melodias indígenas e citar suas fontes) quanto nas mais autorais (onde ele
faz bricolagens, transformações e assina com seu estilo a composição da obra). Esses elementos
musicais que constroem o indígena em Villa-Lobos perpassam ambas as abordagens, e são
construídos pela experiência particular do compositor com as melodias indígenas que conheceu,
onde alguns elementos salientes – como os graus conjuntos, intervalos harmônicos de segundas e
terças, e repetições de trechos curtos – são escolhidos para a reprodução dessa ambientação
indígena em obras nas quais Villa-Lobos cria livremente. Esses elementos, vindos da apropriação
de aspectos da música indígena por Villa-Lobos, são somados a representações estéticas do
selvagem, encontradas em outros compositores de seu tempo. Tais procedimentos podem ser
pensados como partes integrantes do espírito de época do modernismo da primeira metade do
século XX. 73
Algumas obras instrumentais que poderiam ser abordadas nessa seção serão utilizadas como
exemplo em outras seções desse capítulo, por possuírem aspectos mais interessantes noutros
elementos da composição de temática indígena de Villa-Lobos. Prossigamos, então, para a reflexão
sobre cada um dos procedimentos composicionais que parecem construir essa linguagem musical
indígena de Villa-Lobos.

3.2 Graus conjuntos, modalismos e pulso constante na construção melódica:


encontros do atemporal e contemporâneo.

Em diversas composições de intenção indígena, Villa-Lobos constrói as melodias temáticas


e tece os desenvolvimentos texturais sobre graus conjuntos. Citando apenas alguns exemplos, temos
Os Três Poemas Indígenas: Canide Ioune – Sabath, Teirú, Iára; Dança do Índio Branco, Duas
Lendas Ameríndias em Nheengatu – parte 1,Caboclinha, Ualalôcê, Kankikis, Farrapos, Nozani-ná,
e Amazonas.
Em Amazonas74, Villa-Lobos utiliza o princípio do grau conjunto em diversos níveis: tanto
na elaboração de melodias e motivos de caráter temático, quanto para a construção de texturas
diversas na atmosfera da composição.

73
Houve, de fato, nas primeiras décadas do século XX, um interesse geral nas artes pelo exótico, pelo africano, pelo
‘selvagem’ e seus desdobramentos populares/urbanos (CONTIER, 2004, p.7). Nas artes plásticas, um dos
representantes desse movimento modernista foi Pablo Picasso, na música, Igor Stravinsky foi um dos compositores
mais reconhecidos por esse procedimento. Numa conversa com a profª Elizabeth Travassos em 2009, ela sugeriu o
termo “Primitivismo dos Anos 20”, uma categoria que se encaixa muito bem nessa concepção que abordarei.
74
Essa discussão é referente à versão de Amazonas para piano.
140
Logo no início da composição, Villa-Lobos apresenta o tema de Amazonas, que é
constituído por duas notas, MI e RÉ.

Figura 87 AMAZONAS: Figura do tema de Amazonas, (c.1–2)

Esse tema será desenvolvido e apresentado de diversas formas durante a música, formado
basicamente por duas notas distantes uma segunda – um grau conjunto. Abaixo, diversos exemplos
da transfiguração rítmica e do contexto textural da segunda no decorrer da música.

Figura 88 AMAZONAS: (p.2, c.2-4)

Figura 89 AMAZONAS: Tema de segundas em Espelho da jovem índia (p.3, último sistema, c.1)

141
Figura 90 10 AMAZONAS: (p.4 segundo sistema, c.1)

Figura 91 AMAZONAS: p.4, terceiro, quarto e quinto sistemas

Figura 92 AMAZONAS: (p.5, quarto sistema, c.1)

No exemplo a seguir percebemos o desenvolvimento do motivo MI – RÉ – MI, através de


sua ampliação pela melodia descendente em graus conjuntos:

Figura 93 AMAZONAS: (p. 6, último sistema, c.2, mão direita)

Como pudemos observar, o elemento grau conjunto constitui um importante recurso


composicional de Villa-Lobos em Amazonas, no aspecto melódico, enfatizado pelas repetições do
intervalo e das suas notas integrantes. Como já comentei, Villa-Lobos também utiliza o grau
conjunto na criação de texturas diversas nessa obra. Logo após a apresentação do tema, nos
primeiros dois compassos da composição, Villa-Lobos insere estruturas harmônicas, formadas por
quintas paralelas, que se movem por graus conjuntos, num âmbito maior que a melodia
(inicialmente, uma quarta aumentada). Observe:

142
Figura 94 AMAZONAS: (p.1, c.1-2, mão esquerda)

Assim como a melodia temática foi desenvolvida e apresentada de diversas formas, uma vez
que essa estrutura das quintas paralelas que se movem no pulso do tempo são apresentadas, elas são
reiteradas das mais diversas formas durante a música, mas mantendo o contorno melódico de graus
conjuntos, com raros saltos.

Figura 95 AMAZONAS: (p.1 c,5-6)

Figura 96 AMAZONAS: (p.1 último sistema e p.2, primeiro sistema, mão esquerda)

Figura 97 AMAZONAS: (p.3, último sistema, c.1-2, mão esquerda)

Vamos observar em outras obras de menor porte a utilização estrutural dos graus conjuntos.
No ostinato da Canção Indígena Ualalocê, as camadas melódicas (‘baixo’ e ‘tenor’) são organizadas
em graus conjuntos – no âmbito de segunda.

Figura 98 UALALOCÊ: (p.1 c.1-5, mão esquerda)

Observamos o mesmo uso dos graus conjuntos no ostinato de Teirú, dos Três Poemas
Indígenas.

143
Figura 99 Ostinato dos 4 primeiros compassos de Teirú. Observe o movimento de segunda nos contrapulsos (DÓ#-RÉ# e RÉ-
MIb).

No início da quarta peça do Ciclo Brasileiro, Dansa do Índio Branco, Villa-Lobos utiliza os
graus conjuntos tanto para a construção da melodia diatônica, a partir do compasso 8, quanto para a
estruturação do ostinato nas duas claves: DÓ – SI, na superior; LÁ – SI na inferior.

Figura 100 DANSA DO ÍNDIO BRANCO: (p.1, c.1-2)

Figura 101 20 DANSA DO ÍNDIO BRANCO: (p.1, c.8-10)

Ainda falando sobre obras para piano, em Danças Características Africanas podemos
perceber a utilização recorrente dos graus conjuntos na construção de motivos.
Em Farrapos, uma estrutura semelhante ao ostinato da Dansa do Índio Branco é utilizada
pro Villa-Lobos. Essa semelhança, de natureza rítmica e de execução – quando o ostinato se divide
entre as duas mãos do pianista – encontra ressonância numa outra semelhança, de natureza
intervalar: a movimentação por segundas no desenvolvimento do ostinato.

144
Figura 102 FARRAPOS: (p.1, c.1-3)

Em Kankikis, Villa-Lobos ainda divide a melodia do início para duas mãos, e usa o motivo
construído por graus conjuntos MI – RÉ – DÓ – RÉ – MÍ. Após a apresentação bastante clara desse
motivo, Villa-Lobos o modifica ritmicamente e insere outra melodia, paralela e quarta abaixo.

Figura 103 KANKIKIS: (p.1 c.1-3). Apresentação do tema feito sobre segundas e terças

Figura 104 Apresentação do tema de KANKIKIS com a superposição de quartas (c.5-7)

Villa-Lobos também trabalha esse motivo rítmico de semicolcheias fora do contexto de


melodias de graus conjuntos, valorizando a segunda como intervalo independente:

145
Figura 105 KANKIKIS: (p.3 segundo sistema, c.3-4, mão direita)

Penso que a utilização de melodias com graus conjuntos e a valorização do intervalo de


segunda entram na composição de caráter indígena de Villa-Lobos como uma tópica especial, não
exclusiva, contudo. A simples utilização de passagens melódicas de graus conjuntos pode ser
encontrada em grande parte de sua produção de caráter popular, como no Choros nº1 para violão e
todas as peças onde ele se dedica a expressar o caráter popular de alguma melodia – como a
‘baixaria’ do Violão de sete cordas ou as melodias rápidas e glissandos da flauta.
Nas Danças Características Africanas identificamos peculiaridades rítmicas que não se
observam nos outros exemplos dados, como o uso frequente de síncopas. É bom ter em mente a
colocação de Villa-Lobos acerca da composição dessas Danças, da característica ‘mistura’ que traz
a essas composições sonoridades bárbaras, vindas da influência africana dos índios caripuna
(VILLA-LOBOS, s.d. 3). No caso das Danças podemos dizer que há uma fusão entre rítmicas hora
de matiz afro-brasileira ora de matiz indígena – considerando as misturas – e com procedimentos
melódicos que também misturam as duas influências.
A utilização dos graus conjuntos que representam muito bem o índio é a que se pode
observar nas transcrições utilizadas por Villa-Lobos, como Nozani-ná, Teirú, Canide Ioune e
Sabath. A melodia baseada em graus conjuntos, de pequeno âmbito – no máximo uma quinta – é
característica dessas transcrições indígenas utilizadas pelo compositor. Além disso, os movimentos
e poucos saltos são balanceados e compensados, retornam para um centro modal, uma nota de
referência sobre a qual a melodia gravita (logo passagens muito diatônicas ou tonais não se
encaixam propriamente nesse conceito).

Essa caraterística pode ser observada, por exemplo, no tema de Amazonas. Ao início da
música, o motivo MI-RÉ-MI, estabelece o centro da melodia em MI, de maneira clara. Ainda que o
compositor elabore o motivo em diversas situações e com diversas notas e contextos texturais, fica
nítido que a intenção indígena do primeiro momento vem dessa semelhança e associação com as
transcrições de música indígena que Villa-Lobos teve contato. Em Nozani-ná das Canções Típicas
Brasileiras isso é notável assim como em Ualalocê, das Canções Indígenas, e isso é decorrente de
serem ambientações de melodias originalmente indígenas.
Essa inspiração nas melodias indígenas coletadas pode-se percebida quando se observa o
uso do salto de terça nessas composições de Villa-Lobos– a semelhança, nas melodias criadas com
146
as melodias indígenas das transcrições.

Figura 106 ABOIOS: (c.1-6)

Figura 107 CÂNTICO DO PARÁ: (c-1-3)

Figura 107 CANTOS DE ÇAIRÉ Nº1: (c.1-4)

Figura 108 CANTOS DE ÇAIRÉ Nº2: (c.1-4)


147
Figura 109 CANTOS DE ÇAIRÉ Nº3: (c.1-4)

Figura 110 EVOCAÇÃO: (c.1-3)

Observemos, por exemplo, a discussão sobre a utilização das terças em Teirú e Iára do
segundo capítulo. Na análise, pude demonstrar como os intervalos utilizados para a construção das
diversas texturas harmônicas dessas músicas foram extraídos da melodia indígena que Villa-Lobos
musicava. O motivo introduzido no compasso 35 de Iára pode ser um exemplo de como Villa-
Lobos se apropria desses elementos arquetípicos – como intervalos da melodia, por exemplo – e
compõe livremente a partir deles, procurando manter a semelhança sonora que relaciona seus
desenvolvimentos e variações com aquele elemento inicial.

Figura 111 Motivo sextinado dos compassos 35 e 36 de Iára

O motivo do compasso 35 é uma espécie de resumo da qualidade melódica de Iára, diversas


frases que possuem ‘início’, ‘fim’ ou pontos estruturais em intervalos de terça – terça menor na
maioria dos casos – e que desenvolvem seu ‘meio’, também por intervalos de segunda. Esse motivo

148
condensa esses dois elementos, conforme pudemos ver no capítulo de análise de Iára. Vejamos
como esse motivo se desenvolve no decorrer da obra:

Figura 112 O motivo do compasso 35 se desenvolvendo no decorrer de Iára (c.82-87)

Como pudemos observar, Villa-Lobos avança nessa conjunção de elementos, e torna esse
‘motivo de resumo’ do compasso 35, uma nova estrutura para criação, numa grande rede de
referências e interrelações, que, de certa forma, representam, em uma minúscula dimensão, o que
sua obra de temática indígena pode ser: apropriações de música indígena e re-elaborações que
mantem semelhança sonora com as influências; re-elaborações que se desenvolvem como motivos
particulares, sempre se referenciando uns aos outros, sobre o arquétipo 75 da primeira inspiração do
compositor – ainda perceptível estesicamente.
Outra intertextualidade que corrobora essa interpretação das interrelações entre motivos na
obra de Villa-Lobos, é presente entre os Choros nº10 e os motivos característicos de Iára. A
predileção por saltos de terça e melodias que possuem movimentos de segunda e repetição de
notasvai construir um motivo muito semelhante nas duas obras. Observe a seguinte melodia nas que
se ouve nas madeiras dos Choros nº10 no contrafagote da página 8:

75
Tipo primeiro, princípio sobre o qual outras realizações são materializações dessa ‘ideia’ primeira.
149
Figura 113 CHOROS Nº10: (p.8, c.2-3)

Observe a semelhança estrutural do exemplo anterior com a melodia de Iára:

Figura 114 Melodia inicial de Iára (c.1-2)

Percebemos nesse exemplo como as influências se cruzam e são apropriadas pela criatividade do
compositor, que as reutiliza, transforma e assim constrói sua própria linguagem76 na relação com a
inspiração primeira, seu contato com a música indígena.
Numa dimensão geral da obra de caráter indígena em Villa-Lobos pode se dizer que a
apreensão particular do compositor das melodias indígenas com as quais teve contato – através dos
diversos meios possíveis – serviu de base para a concepção de Villa-Lobos do caráter da música
indígena; em suas palavras “o indígena concorre [na composição da música popular brasileira]
com o tom melancólico e bárbaro, o que torna qualquer melodia extremamente vaga e sem
nenhuma importância a qualquer acompanhamento que lhe segue (VILLA-LOBOS, s.d.2, p.14)”.
Podemos sugerir que essas categorias – melancolia, vagueza, sem importância, adicionadas a outras
dadas pelo compositor77- se expressam no tímido desenvolvimento melódico no contexto imediato
– da frase – e o caráter repetitivo da música. A aparente ‘falta de teleologia’ da música indígena
registrada nas transcrições pode dar base a essa impressão de Villa-Lobos, uma vez que naqueles
excertos de música muito pouco possa ser dito em relação procedimentos composicionais, variação
e outros aspectos musicais. Penso que esse pensamento do compositor acerca da música indígena
seja assim pela impressão que ele teve através dos pequenos exemplos musicais nas transcrições78,

76
Observaríamos durante as músicas analisadas inúmeras variações e tratamentos dos intervalos de segunda e terça por
Villa-Lobos.
77
Outras categorizações das melodias indígenas podem ser encontradas nos comentários de rodapé do texto de Villa-
Lobos: “[tom melancólico e bárbaro] próprio das raças incultas, que desconhecem a lei convencional das
quadraturas, a simetria do bom gosto, a relatividade das formas, o equilíbrio da lógica e só compreendem a lei do
espaço pelo mistério da natureza e a liberdade absoluta dos instintos humanos (VILLA-LOBOS, s.d. 2, p.14)”.
78
E da própria natureza da transcrição.
150
muito curtos, em ciclos de tempo em que na música ocidental ocorrem muito mais ‘mudanças’ – de
região harmônica, de caráter motívico e melódico, saltos e durações diversas. Acerca da categoria
rudeza (VILLA-LOBOS, s.d. 3), podemos tentar interpretar como a propriedade da dinâmica
rítmica da música indígena, na concepção de Villa-Lobos.
A divisão rítmica das transcrições indígenas utilizadas por Villa-Lobos – que consideramos
aqui apenas aproximadas da gravação – retratam, simplificadamente, as melodias indígenas através
de uma notação de pulsos (quase como compassos de um tempo só) e suas subdivisões binárias e
por conjunto de poucas notas com um centro de ‘relaxamento’ apenas (como um sistema modal79).
A rudeza que Villa-Lobos atribui a música indígena pode ser relacionada a essa grande ênfase no
pulso, observada nas transcrições, sendo a unidade de tempo e compasso o pulso da música.
Dentro desse contexto musical imediato que a transcrição proporciona – sempre limitada
pelas lentes da música ocidental que criou a notação – as pequenas variações de altura e ritmo que
não podem ser notadas apropriadamente não são registradas. Tal procedimento reduz
consideravelmente aspectos importantes dessa música; justamente aqueles que a diferenciam da
música ocidental. Entretanto, o que nos interessa aqui é entender que Villa-Lobos emitiu seus
julgamentos e compôs suas músicas de caráter indígena tendo como referência as transcrições e os
pequenos exemplos dos fonogramas, trabalhando exaustivamente com as suas representações do
rude, primitivo, vago e melancólico na música para retratar o índio.
Assim podemos resumir as categorias de Villa-Lobos sobre a música indígena, com base nas
transcrições e audições que fez, à monotonia, no sentido em que – dentro do sistema de notação
ocidental – essa música possui um âmbito pequeno de notas e de ritmos, fazendo a música soar
repetitiva a um não-índio, falante e ouvinte dos sistemas musicais ocidentais.
Nesse sentido, algumas partes das melodias das Danças Características Africanas não
correspondem a esse critério que estamos elaborando para a música indígena em Villa-Lobos. Ainda
que haja alguns elementos que colaborem para essa “melopeia original de aspecto rude e primitivo
(VILLA-LOBOS, s.d. 3)” que caracteriza a música indígena para Villa-Lobos – como o paralelismo
de quartas, que será abordado mais adiante –, boa parte das construções rítmicas e melódicas
possuem o caráter africano de que Villa-Lobos fala (op. Cit) onde a ‘monotonia’ das subdivisões de
pulso e repetição de notas dentro de um pequeno âmbito melódico são substituídas,
respectivamente, pela sincopa e pelas melodias de grande âmbito, diatônicas, sem o modalismo que
também caracteriza o primitivo para o compositor.

79
O livro O som o e o sentido de José Miguel Wisnik (WISNIK,1989) discute apropriadamente a dimensão simbólica
desse modo de composição.
151
3.2.1 Interrelações entre modalismo, religiosidade, o cantochão e a música indígena em Villa-
Lobos.

É interessante ressaltar um aspecto que surgiu das minhas audições dessas canções como
uma hipótese que logo mais se confirmou, através das palavras de Villa-Lobos, a relação entre a
música indígena utilizada por Villa-Lobos e o canto gregoriano. Melodias em graus conjuntos,
movimentos de segunda e saltos de terça, compensação, ritmo conduzido pela palavra em pulsos,
modalismo e função ritual, são características pertencentes às transcrições de música indígena com
as quais Villa-Lobos teve contato, mas também ao canto gregoriano. Em suas próprias palavras
Villa-Lobos declara a importância do canto gregoriano em suas obras com um todo:

As eras assírias, as relíquias esculturais da Coréia, o misticismo da Índia, o amor


abnegado do culto de beleza entre os visigodos, a melopéia romana, a epopéia
grega, as excursões gregorianas, que legaram à humanidade essa beleza eterna do
cantochão, influíram fortemente sobre certos aspectos da minha estética (VILLA-
LOBOS [1922] apud GÚERIOS, 2009, p. 123).

Villa-Lobos, nesse discurso, conecta a tradição do cantochão a eras ancestrais da


humanidade desenhando o progresso dessa arte até sua conexão com o velho mundo, à época em
que esse era mundo era ‘novo’. Aqui, ele elabora uma conexão em que os conteúdos culturais das
civilizações que cita se materializam ao conteúdo musical do cantochão, esse como um índice de
ancestralidade, beleza e religiosidade (expressa pelo uso dos termos culto e misticismo). Dada essa
semelhança entre o cantochão e aspectos das melodias indígenas nas transcrições, como Villa-Lobos
ressignifica essa relação, uma vez que afirma que os elementos do cantochão influíram fortemente
na sua estética?
Antes de prosseguir a procurar onde que podemos encontrar a conexão entre o cantochão e a
música de cunho indígena em Villa-Lobos, na dimensão simbólica, acredito que os
desenvolvimentos de Wisnik (WISNIK, 1999) sobre o diálogo dos novos elementos modernistas na
música e avanços da linguagem musical com meios de produção musical anteriores à tonalidade
barroco-clássica-romântica possam situar melhor o leitor sobre a minha hipótese e interpretação
dessa questão. Para Wisnik uma das questões principais dentro desse tópico é a reinserção do ruído
na música do século XX, banido quase totalmente das tradições musicais da prática comum (séculos
XVII e XIX). Foram inseridos novos códigos musicais com a intenção de se questionar os códigos
musicais estabelecidos e se construir novas experiências do som. Com o aparecimento e destaque
do ruído no cotidiano das grandes metrópoles – ruído de armas, máquinas, bombas – a música
contemporânea se apropriou desse elemento de discurso, que se tornou de um não-som em som, um

152
novo código de significados compreensíveis. Nas palavras de Wisnik:

A partir do século XX opera-se uma grande reviravolta nesse campo sonoro filtrado
de ruídos, porque barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como integrantes
efetivos da linguagem musical. A primeira coisa a dizer sobre isso é que os ruídos
detonam uma explosão generalizada de materiais sonoros (...). É de se pensar na
relação entre o desencadeamento desses eventos na música e o contexto da
Primeira Guerra Mundial (da qual, diz Walter Benjamim, os soldados voltaram pela
primeira vez, para perplexidade das famílias, mudos, sem histórias pra contar: o
potencial acumulado das armas de guerra, sua capacidade mortífera e ruidosa,
muito amplificada, estoura a dimensão individual do espaço imaginário e o
silencia). A ecologia sonora do mundo moderno estará alterada , e ruído e silêncio
entrarão com inevitável violência no templo leigo do som, a redoma da
representação tonal que se constituía o concerto (WISNIK, 1999, p.45-46)

Para Wisnik, nesse novo mundo que se configura, a música não se posiciona a favor deste ou
daquele sistema sonoro, mas se constrói na própria dicotomia entre o avanço da música erudita do
século XIX, ou a quebra com esse sistema e o retorno ao modal. Wisnik demonstra, através da
citação de Mário de Andrade, como este classificou essa ‘nova’ música, e como interpretou sua
gênese:

Si na verdade a música nunca foi tão musical como agora, depois que abandonou a
vacuidade cômoda do som abstrato e impôs como elemento primário de sua
manifestação o timbre, é incontestável também que certos certas combinações de
harmonias, certas concepções de escalas melódicas, a participação frequente do
ruído isolado ou em combinação com os timbres sonoros faz com que, ao lado da
música de agora, apareçam frequentissimamente manifestações que rompem todas
as experiências, evolução e conceito estético que vieram se desenvolvendo e
apurando por vinte e cinco séculos musicais (...) (Mário de Andrade apud WISNIK,
1999, p. 45)

Mário de Andrade continua a falar dessa música que mistura elementos de primitivismo com
desenvolvimento de técnicas tradicionais, usando o exemplo de Pierrot Lunaire de Schoenberg:

Dessa experiência resultou, (...) num poder de experiências de todo gênero (...) uma
nova arte a que, por falta de outro termo chamei de quase-música. Arte esta que por
sua primitividade ainda não é música exatamente como certas manifestações de
clãs africanas, ameríndios e da Oceania. É arte ao mesmo tempo que pelo seu
refinamento, sendo uma derivação e última consequência das experiências e
evolução progressiva musical de pelo menos vinte e cinco séculos, desde a Grécia
até Debussy, já não é mais intrinsecamente música . Resumindo: essa arte nova,
essa quase-música do presente, se pelo seu primitivismo inda não é música, pelo
seu refinamento já não é música mais (Op.cit, p.45)

Percebemos isso muito bem na música de temática indígena de Heitor Villa-Lobos. O


primeiro grande tópico a se observar nessa música é que há interesse na representação do índio,
numa dimensão simbólica, na qual os sons do índio importam, ainda que mediados pela transcrição

153
ou pelo fonograma. É mais do que um assunto apenas de agenda ideológica; é um assunto tratado
esteticamente pelos sons que se produzem, principalmente pela inserção do ruído (no sentido da
teoria da informação) característico da música indígena para os ouvintes ocidentais80. Musicalmente
falando, o que conecta as transcrições de música indígena utilizadas por Villa-Lobos à música do
cantochão é a rítmica dos pulsos e o sistema modal.
Parece que em parte da sua obra indígena a dimensão simbólica da religiosidade, da
experiência do divino, une o canto gregoriano e as melodias indígenas, e é nesse aspecto que penso
que se sustente a ideia de similitude entre esses diferentes sistemas musicais, sentida por Villa-
Lobos. Os dois primeiros Poemas Indígenas de Villa-Lobos tratam de temas religiosos. Presente em
Canide Ioune – Sabath, Sabath é denominado de canção elegíaca. A Elegia é modernamente
concebida como um poema de tom terno e triste. Geralmente é um lamento pela morte de um
personagem público ou ente querido daquele que o declama. O segundo poema, Teirú, é escrito para
celebrar a morte de um cacique. Amazonas lida com mitologias que se referem a deuses da Floresta
Amazônica. O aspecto solene de diversas dessas obras nos conduz a pensar que a representação da
subjetividade indígena, para Villa-Lobos, é intimamente ligada com a religiosidade indígena a
explicação do mundo e sua significação, figurada também nos temas das canções, que tratam das
diversas relações entre os homens e os deuses ou entidades espirituais. Outro indicativo dessa
relação entre o elemento indígena e a religiosidade monoteísta ocidental pode ser encontrado nos
Três Poemas Indígenas. O primeiro poema Canide Ioune – Sabath faz referência direta à palavra
hebraica Sabath, termo religioso que designa a separação de um tempo (dia da semana ou ano) para
a dedicação ao descanso, ordenado por Deus.81
A proposta dessa discussão não é sugerir que Villa-Lobos houvesse pensado nesses aspectos
apresentados, mas demonstrar uma interpretação do autor dessa dissertação sobre as possíveis
conexões simbólicas entre os aspectos da música indígena de Villa-Lobos e o universo do
cantochão. Procurei sugerir uma hipótese para responder por que essa influência musical aparece
nessas obras e nas falas do compositor, e por que meio ela é justificada: penso que seja pelo
modalismo, e pelas intertextualidades que realçam um caráter de religiosidade ritual.

80
Pensando, nesse momento, o ruído como um elemento estranho a algum contexto musical, conforme Wisnik
(WISNIK, 1989, p. 32). A repetição, monotonia e falta de teleologia nas construções temáticas indígenas transcritas
são ruídos por não serem signos comunicativos no código musical da maioria dos ouvintes ocidentais.
81
Apesar de ser originalmente um termo hebraico, o sabath deu origem ao sábado, dia santo de diversas religiões.
Tempos sabáticos são separados por diversas profissões de fé. A questão hermenêutica aqui pode ser mais complexa
ao se observar a relação feita entre rituais antropófagos tupinambá com o Sabath judaico, podendo conduzir o leitor
a uma espécie de anti-semitismo latente nas culturas cristãs europeias do medievo e renascimento.
154
3.3 Estruturas em Quartas/Quintas: uma tópica do natural.

Ainda discutindo sobre o aspecto primitivo que Villa-Lobos imprime a música indígena,
quais seriam outras maneiras de o compositor elaborar e tornar nítida essa categoria em sua
composição? Um recurso composicional difícil de ser ignorado pela sua grande recorrência na obra
de temática indígena de Villa-Lobos são as estruturas em quartas e quintas paralelas. Villa-Lobos as
utiliza, na maioria das vezes como estruturas de textura de ambientação – no acompanhamento -
baseando a construção melódica dos temas sobre intervalos de segundas e terças, como visto no
item anterior desse capítulo.
Antes de discutirmos sobre a procura do significado que a utilização de intervalos perfeitos
– e às vezes seus correlatos aumentados e diminutos – tem na música de caráter indígena em Villa-
Lobos, vamos observar algumas das diversas aparições dessas estruturas em sua obra.
Na Introdução aos Choros, Villa-Lobos utiliza as estruturas em quartas como um recurso de
construção de texturas. Nessa obra, onde a melodia se baseia em Nozani-ná, assim como os Choros
nº3, Villa-Lobos insere as estruturas quartais desde o primeiro compasso:

Figura 115 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.1 c.1-2)

Um pouco mais adiante, na mesma composição, as quartas são apresentadas melodicamente


em dois formatos, reafirmando a importância dessa estrutura como arquétipo na composição:

155
Figura 116 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.2, c.1-2)

Nessa segunda apresentação melódica – que descreve uma harmonia linear – observe as quartas
sobrepostas no contrabaixo e no violoncelo que sustentam, no grave, as quintas – inversão das
quartas – dos violinos e violas.

Figura 117 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.1, c.3-4 e p.3, c.1-3)

Observemos as quartas no clarinete e clarone:

Figura 118 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.9, c.1-3 e p.10, c.1-2)

Nos Choros nº3, após uma voz cantar a melodia do tema, outra voz a inicia, enquanto aquela
que cantou a primeira vez continua numa espécie de contra sujeito. As entradas das vozes temáticas

156
e seu encontro com contra sujeitos também se estabelecem em quartas.

Figura 119 CHOROS 3: (p.1, segundo sistema, c.1-6)

Na parte de Choros nº3 em que se ouve a palavra picapau, Villa-Lobos também utiliza
estruturas que progridem em quintas para conduzir, melodicamente, o desenvolvimento dessa seção:

Figura 120 CHOROS 3: (p.3, segundo sistema, c.3-5)

Nessa mesma seção, o fagote e a primeira trompa dobram as vozes, reforçando essa sonoridade:

Figura 121 CHOROS 3: (p.3, c.3-5)

157
Percebamos a importância das construções de quartas e quintas nos Choros nº3 no último
acorde em Fortíssimo da obra, onde Villa-Lobos superpõe quartas na divisão do primeiro tenor e
nas trompas e trombone. Observe a figura a seguir:

Figura 122 CHOROS Nº3: (p.12)

158
Em Amazonas Villa-Lobos também trabalha as quartas/quintas como estrutura de elaboração
de texturas – construindo um motivo característico. Ele já foi discutido sobre outro ponto de vista
nesse capítulo.

Figura 123 AMAZONAS: (c.3, mão esquerda)

Villa-Lobos utiliza essa estrutura com profusão durante toda a música, variando e a
desenvolvendo conforme a narrativa do poema prossegue. Há outro motivo de tercinas, mais
episódico, construído sobre saltos melódicos de quartas, e intervalos harmônicos de segundas, esses
últimos também importantes na obra de temática indígena em Villa-Lobos.

Figura 124 AMAZONAS: (p.5, c.1-2)

Percebe-se, nessa mesma seção da música – com o subtítulo Traição do Deus dos ventos –
uma estrutura de quartas sobrepostas harmonicamente, semelhante ao acorde final dos Choros nº3.

Figura 125 AMAZONAS: (p.5 c.1-4)

159
Villa-Lobos, ainda nessa seção, utiliza díades quartais nos agudos, com a seguinte estrutura:

Figura 126 AMAZONAS: (p.5, segundo sistema, c.1-2)

Durante toda a obra Amazonas as estruturas em quartas e quintas se apresentam, sempre


diferentes, em desenvolvimentos que alimentam o desenrolar da trama do poema sinfônico. Para
exemplificar essa dinâmica, na seção nove, Dança ao encantamento das florestas, Villa-Lobos
utiliza um compasso composto – característico de danças – e apresenta formações de
acompanhamento que desenham um acorde de quintas sobrepostas:

Figura 127 AMAZONAS: (p.8, último sistema, c.1-3)

Nos Choros nº10 Villa-Lobos utiliza um motivo de importância textural muito semelhante
àquele utilizado em Amazonas – díades de quintas que se movem por graus conjuntos:

160
Figura 128 CHOROS 10: (p.4, último sistema, c.6-7 e p.5, c.1-2)

Após um grande desenvolvimento da seção de cordas, com um complexo tecido se desenvolvendo


particularmente em cada instrumento, Villa-Lobos alcança o ápice num acorde de superposição de
quintas, destacando essa estrutura:

Figura 129 CHOROS 10: (P.3, último sistema, c.3-4 e p.4, c.1)

Após essa grande ênfase no acorde de quintas, Villa-Lobos destaca o contrabaixo da textura,
e utiliza um motivo tercinado, com salto de quintas:

161
Figura 130 CHOROS 10: (p.4, c.3-5)

São muitos os exemplos que podem ser dados sobre a utilização de quartas e quintas na
composição dos Choros nº10. Villa-Lobos utiliza diversas articulações para recriar e ressignificar
essa tópica. Observe os diversos modos pelos quais Villa-Lobos destaca as quartas no seguinte
exemplo:

162
Figura 131 CHOROS 10: (p.27, c. 1-3)

Ainda que a seção do coro – a partir da página 41 da grade – seja construída sobre graus
conjuntos e terça, se sustentando harmonicamente também através de intervalos de terça entre as
vozes, os instrumentos do acompanhamento continuam a trabalhar a harmonia em quartas e quintas.
Os instrumentos que deixam essa intenção do compositor bastante clara são a harpa e os tímpanos:

163
Figura 132 CHOROS 10: (p. 42 e 43)

Em obras menores podemos perceber como essa sonoridade se constrói como um recurso
sine qua non da música de temática indígena de Villa-Lobos.
Nas Danças Características Africanas, o elemento indígena é convocado – frente às
sincopas africanas – pela sonoridade em quartas e quintas. No início da primeira Dança, Farrapos,
Villa-Lobos insere arpejos de quartas e quintas (que valorizam o uníssono) entre as seções de
ostinatos em semicolcheias.

Figura 133 FARRAPOS: (p.1, c.7-8)

Ainda em Farrapos, o compositor ‘descola’ do piano uma textura independente, em quartas


e quintas, e a desenvolve em diversos momentos da composição:

164
Figura 134 FARRAPOS: (p.1, terceiro sistema c.2-4 e quarto sistema inteiro, mão direita)

Observemos como Villa-Lobos utiliza essa ideia musical no decorrer da peça:

Figura 135 FARRAPOS: (toda p.2, a partir do terceiro sistema, c.3-4)

Na segunda Dança, Kankukus, Villa-Lobos utiliza o intervalo de quarta entre as vozes de sua
melodia à mão direita:

Figura 136 KANKUKUS: (p.1, quarto sistema, c.3-5)

Na mesma obra, Villa-Lobos utiliza as quintas como recurso de aprofundamento timbrístico


- na direção do grave - e recurso textural:

165
Figura 137 KANKUKUS: (p.10, segundo sistema, c.2-4 e quarto sistema inteiro, mão esquerda)

No arpejo final de Kankukus, Villa-Lobos utiliza intervalos de quintas e quartas, intermediados, às


vezes, por intervalos de terça, demonstrando, nessa nova textura, a importância dessa sonoridade na
peça:

Figura 138 KANKUKUS: (p.11, quarto sistema, c.1)

Em Kankikis as estruturas em quartas e quintas aparecem de forma mais nítida na superfície


da música. Já no quinto compasso da música Villa-Lobos elabora uma melodia em quartas paralelas
que se move por graus conjuntos e saltos de terça:

Figura 139 KANKIKIS: (p.1, c.5-7)

Logo após essa apresentação da melodia temática, Villa-Lobos utiliza um arpejo semelhante
ao do final de Kankukus, com quartas e quintas intermediadas ou separadas por intervalos diversos:

166
Figura 140 KANKIKIS: (p.1, segundo sistema, c.3-4)

Durante toda a composição, Villa-Lobos desenvolve a melodia em quartas paralelas,


assumindo diversos contornos:

Figura 141 KANKIKIS: (p.3, c.4-8, mão direita)

Outra aparição dos intervalos de quartas e quintas é em região mais grave, como tríade.
Observe o seguinte exemplo:

Figura 142 KANKIKIS: (p.3, último sistema, c.4-5, mão direita)

Também nos Três Poemas Indígenas as estruturas de quartas e quintas são recorrentes, tanto
nos aspecto melódico quanto harmônico, como as análises do capítulo 2 podem confirmar. Duas
Lendas Ameríndias em Nheengatu – 1, obra tardia, de 1952, é uma peça vocal para cinco vozes,
onde Villa-Lobos deixa claro que seu pensamento harmônico para a representação do índio é
construídos nas estruturas quartais e quintais. Durante toda essa obra, Villa-Lobos trabalha o coro
dividido em dois conjuntos vocais, o primeiro formado pelas vozes femininas (soprano e contralto),
e o segundo pelas vozes masculinas (tenor e baixo), com diversos divises durante a música. Esses
grupos alternam entre si o ostinato e o desenvolvimento da melodia. Contudo, esses dois elementos
são harmonizados durante toda a composição, por quartas paralelas. Poderíamos pensar, nesse
contexto, que a obra possui duas vozes, e o restante são ‘ecos’ em quartas.
No início da peça, Villa-Lobos apresenta as melodias aditivamente, inserindo uma a uma,

167
como fez com as texturas nas introduções dos Três Poemas Indígenas:

Figura 143 DUAS LENDAS: (p.1)

Durante toda a obra, independentemente das dinâmicas de contraponto entre as vozes, os


intervalos entre elas são quartas. Esse procedimento reafirma que, mesmo depois de todos os
procedimentos vanguardistas dos anos 20 e a dita ‘modéstia’ do neoclassicismo/nacionalismo dos
anos 30, Villa-Lobos, sete anos antes da sua morte, relacionava os intervalos de quartas e quintas
paralelas como um índice do índio.

168
Figura 144 DUAS LENDAS: (p. 3 último sistema)

Os exemplos de quartas e quintas como estruturas de destaque na composição de Villa-


Lobos são inúmeros, e penso que nesse momento podemos nos direcionar a discussão dos possíveis
significados que este significante “quartas e quintas” possa ter e que o qualifique como um índice
do ethos indígena em Villa-Lobos. Entretanto, ainda resta um exemplo emblemático e bastante
curioso do uso de quartas e suas inversões em composições de temática indígena de Villa-Lobos.
Em 1958, ano anterior a morte do compositor, Villa-Lobos recebeu uma encomenda da
empresa americana Metro Goldwyn Mayer (MGM) para compor a trilha sonora do filme Green
Mansions (Divulgado no Brasil como A flor que não morreu), baseado no romance de mesmo
nome, do escritor Mel Ferrer. O filme retratava um romance que tinha como protagonista uma
menina selvagem, das selvas da Venezuela. Villa-Lobos compôs as canções e temas instrumentais
que acabaram não sendo usados integralmente, alguns sendo tomados apenas como matéria prima e
inspiração pelo compositor que finalizou a construção da trilha sonora, Bronislaw Keper.
Villa-Lobos, descontente com os cortes que haviam sido feitos na sua trilha para que ela se
adaptasse ao filme – ele havia composto a trilha baseado no romance, e não no roteiro do filme –
fez uma edição da sua música com cortes e a chamou Floresta do Amazonas (MUSEU VILLA-
LOBOS,2009). Sua première foi o último concerto da vida do compositor como regente, em Nova
Iorque no ano de 1959.
Nessa obra Villa-Lobos procura construir um cenário idílico que remeta à floresta e ao
selvagem, de forma diferente da que fez em sua carreira. A demanda para música de cinema era
diferente e isso se refletiu na linguagem do compositor para esse trabalho. As músicas são tonais,
bastante líricas e de fácil compreensão, como é oportuno para comunicar à audiência massiva do
cinema.
169
Dentre as várias divisões da obra82 uma chamou-me a atenção: Veleiro, que possui o
subtítulo Indian Song. Dentre todas as obras de temática indígena em Villa-Lobos que pesquisei,
essa possuía a estrutura mais diferente das demais. Na tonalidade bem estabelecida de Mi Menor,
num compasso regular de 12/8, acompanhamento convencional do piano e melodia lírica em
português, nenhum dos elementos que descrevia como indígena parecia aparecer nessa composição.
Perguntava-me onde poderia residir o elemento indígena que emprestara ao subtítulo o termo Indian
Song. Poderia também, afinal de contas, esse subtítulo ser apenas uma referência à cena do filme
para a qual Villa-Lobos havia o composto.
Entretanto, para minha surpresa, nos últimos compassos da composição, Villa-Lobos insere
a seguinte sonoridade:

Figura 145 Último compasso de Veleiro

Nesse último compasso, onde já não há mais voz, tampouco acompanhamento do piano,
Villa-Lobos insere uma melodia de terças menores, harmonizadas por quartas superiores, e ‘quebra’
a fórmula de compasso, organizando a melodia em pulsos simples de colcheias – quiálteras de 2:3.
O acorde utilizado por Villa-Lobos – aumentado com sétima maior – também insere sonoridades
típicas de seu estilo indígena, como terças sobrepostas e também quartas83.
Nesse ‘comentário musical’ final de Villa-Lobos percebemos a importância de alguns
elementos na objetificação sonora do índio. Fazendo essa estrutura soar por último na música –
ainda que tenha sido ignorada durante o restante da obra – ele dá destaque e a salienta, para alcançar
o efeito de veiculação de mensagem necessário.

82
Ela está dividida nas seguintes partes: “Abertura”, “Em Plena Floresta”, “Excitação entre os Índios”,
“Dança da Natureza”, “Cânticos dos Pássaros”, “Conspiração e Dança Guerreira”, “Veleiro”, “Em
Caminho da Caçada”, “Cair da Tarde”, “Os Índios à Procura da Moça”, “Caçadores de Cabeça”,
“Canção de Amor”, “Melodia Sentimental” e “Fogo na Floresta”
83
Villa-Lobos utiliza profusamente acordes aumentados nos seus Três Poemas Indígenas.
170
3.3.1 Modernidade e Antiguidade no uso das quartas e quintas em Villa-Lobos.

Sabe-se que a utilização de polifonia vocal como regra de composição não é costume dos
índios brasileiros84 – e de certa forma de todas as tribos estudadas das partes baixas da América do
Sul. Entretanto, vimos nesses últimos exemplos musicais que Villa-Lobos utilizou de diversas
formas o intervalo de quarta, como uma tópica indígena em sua música.
Segundo o pensamento que venho desenvolvendo, acredito que as estruturas que Villa-
Lobos utiliza para representar musicalmente o índio são apropriações particulares das músicas de
fonogramas e da sua leitura das transcrições. Entretanto, há um elemento ainda a ser considerado,
que também constitui essas opções musicais, a intenção que Villa-Lobos tem de emocionar e
comunicar sentimentos para a audiência que o escuta, em seu tempo.
Da mesma forma que Carlos Gomes, em sua ópera Il Guarany procurou comunicar os
sentimentos de amor e nacionalidade e Rameau evocou o amor e a disputa em sua ópera Les Indes
Galantes, ambos utilizando significantes musicais de suas respectivas épocas para comunicar com
sua audiência, Villa-Lobos também procurou efeitos específicos utilizando recursos composicionais
da linguagem musical de seu tempo. Outra comparação talvez seja mais esclarecedora. A grande
maioria dos filmes de temática medieval utiliza trilha sonora composta, atualmente, dentro do estilo
musical do romantismo do século XIX, ao invés de música do medievo85. De fato, o resgate e
releitura das novelas de cavalaria se deu também no Romantismo, e a significação emocional que se
vinculou a estas histórias fez parte do espírito de época literário do Romantismo. Logo, os conceitos
de bravura, amor, fidelidade foram vinculados a outros como tonalidade expandida, forma,
orquestra de cordas, que constroem a música do Romantismo.
Antes de aprofundar esse pensamento penso ser útil discutir o pensamento de Mikhail
Bakhtin (BAKHTIN, 2003) acerca do processo de criação. Apesar de não utilizar a música como
campo de discussão da sua ideia acerca do processo criativo, seu pensamento foi aplicado à análise
do processo de composição musical recentemente (PIEDADE, 2007; WAZLAWICK, 2010). Para
Bakhtin, o processo de composição de uma obra de arte é dialógico. Três ‘vozes’ dialogam a fim de
conceber a obra: o autor, o herói e o ouvinte. Sobre as três vozes, Patrícia Wazlawick, autora do
trabalho acima citado, diz:

84
Obviamente estou me referindo à música tradicional indígena e não às apropriações de outras músicas que algumas
populações indígenas atualmente fazem. Entretanto, é importante observar que a heterofonia é muito praticada por
essas mesmas populações.
85
Um exemplo interessante do uso da música como trilha sonora de novelas de cavalaria é encontrado no filme Robin
Hood de Ridley Scott (2010), onde a trilha sonora, no estilo do Romantismo, ambienta ‘emotivamente’ a narrativa,
enquanto em algumas cenas há canção de menestréis com alaúdes, remetendo a um cuidado com uma representação
histórica, quase como uma colagem, que deixa clara a intenção de representação pictórica no uso desses
instrumentos de época.
171
O processo de criação envolve de modo interligado uma relação a três, uma relação
triádica, entre o autor, o herói e o ouvinte. O autor é compreendido como o autor-
criador, a personagem ou o herói é o quê ou quem, temática, produto, objeto em
processo de criação é produzido; e o ouvinte é o leitor interlocutor, a audiência real
ou imaginária (WAZLAWICK, 2010, p. 39).

Essas ‘vozes’ são internas ao compositor. O autor cria, com sua bagagem de técnicas e maneiras
expressivas, a obra, que possui um motivo, ideia ou intenção. O autor está consciente da
necessidade comunicativa da obra, logo existe a voz ‘compositiva’ de uma audiência específica, do
ouvinte.
Podemos afirmar que Villa-Lobos escolheu o índio como herói nas suas composições de
temática indígena, e preparou sua música para a audiência de sua época – grande maioria formada
por europeus, e mais especificamente, parisienses (na época de composição dos Choros). Dentro
dessa comunicação musical comum, tendo consciência da importância seminal de Stravinsky no
cenário musical de Paris e da Europa, podemos nos perguntar acerca do uso de quartas com valor
estrutural e temático na obra desse compositor. Uma afirmação nesse sentido poderia certamente
propor a existência de um caráter de estilo posteriormente apropriado por outros compositores. Na
realidade, o uso de quartas e quintas paralelas fez parte da composição do grupo dos Cinco russos,
compositores que propuseram a construção de uma escola nacional de música russa no final do
século XIX, antes de Stravinsky. Em sua composição os elementos musicais utilizados divergiam
esteticamente da música europeia; inseriam ostinatos, quintas e quartas paralelas, remetendo ao
bárbaro da música folclórica russa e também, de certa forma, à religiosidade cristã característica da
Rússia, da sua Igreja Ortodoxa Russa.
O que podemos adiantar aqui é que a utilização das quartas e suas inversões em profusão
está diretamente vinculada à representação do exótico-selvagem. Villa-Lobos procurou representar
o índio brasileiro e seu meio ambiente, utilizando recursos musicais da representação do selvagem
genérico na Europa. Nessa questão se reforça a discordância entre o compositor e Mário de
Andrade, onde o último acusa o primeiro de elaborar música procurando sempre atrelar a ideia de
nacionalidade brasileira com a de selvageria, de uma maneira estereotipada e extravagante (TONI
1987). Mas, de fato, onde se encontram as ligações entre as estruturas sonoras quartais e a
representação do selvagem?
A utilização de harmonia quartal em profusão se relaciona, de certa forma, com a
redescoberta do oriente musical e da música africana por compositores das escolas modernas de
música – também através das Exposições Universais de Paris, desde o fim do século XIX
(BARBUY, 1999). Esse movimento se manifesta de maneira clara nos anos 10 e 20, no interesse
francês pelo exótico em arte, que em música será satisfeito por diversos estilos musicais sul-
americanos, africanos, entre outros (MENEZES BASTOS, 2005). A construção do outro musical é

172
um processo complexo. Mais do que inaugurar novas categorias sonoras, a importância do exótico
reside em questionar a própria identidade, aquilo que se é num determinado momento, e o uso de
quartas e quintas (principalmente em movimento paralelo) é uma grande alteridade para o
desenvolvimento da música erudita europeia. No tratado de Harmonia de Schoenberg
(SCHOENBERG, 2001), por exemplo, o autor desclassifica o uso de quartas e quintas paralelas
como sinônimos de modernidade86, e se opõe a essa tendência ‘regressista’ se direcionando cada
vez mais, em sua composição, à assimilação da dissonância87. Pra ele, o que realmente acontecia
não era um avanço a novas linguagens musicais com o uso das quintas paralelas – mesmo
considerando não haver explicações muito sensatas sobre a sua proibição durante todo o século
XIX- mas um retorno, um digressão musical aos padrões de composição musical da Idade Média,
na Ars Antiqua e Ars Nova (Séculos XI a XIV). Schoenberg não se evade de comentar o seu
pensamento acerca dessa estética que regredia na linha do tempo e dos desenvolvimentos musicais,
segundo ele.

A moda dos últimos anos – opor à cultura europeia a dos povos mais antigos,
orientais e exóticos – parece querer estender-se também á música. Contudo, por
maiores que sejam as conquistas desses povos, representam sempre: ou o
aperfeiçoamento de um estágio de desenvolvimento inferior ou a degradação de um
estágio superior ao nosso. E a verdadeira relação destas culturas com a europeia, e
vice-versa, é análoga a que existe entre o correio a cavalo e o telégrafo ótico e entre
este a radiotelegrafia: assim como a forma mais primitiva da segunda modalidade
ultrapassa em velocidade a forma mais perfeita da primeira, do mesmo modo a
forma mais primitiva da terceira é superior à mais evoluída da segunda
(SCHOENBERG, 2001, p.64, rodapé).

Adorno coloca o pensamento composicional de Schoenberg em oposição ao de Stravinsky


(WAIZBORT, 1990) reforçando essa oposição estética presente na música dos dois compositores.
As músicas de Schoenberg e Stravinsky foram entendidas pelo teórico como compostas a partir de
premissas completamente diferentes. Segundo Adorno, em Schoenberg, o ouvinte é autônomo, pode
trilhar a composição tomando parte nela, resolvendo seus problemas – e sua complexidade (talvez,
em parte pela abordagem tradicionalista do compositor em relação à elaboração de sua própria
música). Já em Stravinsky, o ouvinte é tomado pela arbitrariedade e força da música do compositor,
se tornando assim totalmente ‘refém’ de suas ‘artimanhas composicionais’. Chama então esse

86
O autor havia percebido esses desenvolvimentos da modernidade em seu próprio tempo. Ele era adepto do
pensamento da ‘evolução’ da música, se propondo, ele mesmo, com seu sistema dodecafônico conduzir a música a
um patamar mais desenvolvido. Não surpreende então que julgue os compositores que retornam ao Medievo, em
termos sonoros, como charlatões (SCHOENBERG, 2001,p. 120, rodapé).
87
Muito embora Schoenberg mesmo utilizou quartas paralelas em algumas composições, com o intuito de expandir a
tonalidade (como em sua Sinfonia de Câmara nº9).Ele a utilizava de forma muito diversa à Villa-Lobos, conduzindo
também seus alunos no uso dessa linguagem, como podemos admitir pela existência do Arquétipo de Webern,
construído basicamente sobre quartas (SALLES, 2009).
173
ouvinte de heterônomo; aquele que é forçado pela vontade de outrem – e de uma música que não
permite a fluência da melodia, e de outros atributos, como tantas outras músicas da história
ocidental – a percorrer o caminho que o compositor traçou. (WAIZBORT, 1990). Aqui se pode
pensar na questão da oposição entre indivíduo e meio, um binômio interessante se supormos que ao
representar a floresta – a selva, um elemento do universo do índio - em sua magnitude e densidade
em certas composições, Villa-Lobos tenha ‘escolhido’ a influência musical mais apropriada:
Stravinsky. O compositor russo parecia comportar o inexorável em música e a pequenez quase
insignificante do sujeito musical (indivíduo-melodia) no meio de tantas personalidades musicais
(texturas) que compõe o meio ambiente que o envolve88. De certa maneira, essa dicotomia entre
Stravinsky e Schoenberg que Adorno salienta pode ser encontrada em seus materiais de
composição, o uso de texturas diversas – e o papel diverso que a textura incorpora na música de
cada compositor- e o uso de sonoridades; o rumo ao complexo pelo dodecafonismo, ou a regressão
ao simples e natural pelo uso de ritmo marcado e intervalos perfeitos89.
Da mesma maneira que esses atributos modernos e ultrapassados na utilização de recursos
musicais para música erudita do início do século XX vêm à tona na discussão da estética de
Schoenberg ou de Stravisnky – esse último, compositor pelo qual Villa-Lobos reconhecidamente foi
influenciado nos primeiros anos de composição frutífera e reconhecida na Europa - é interessante
pensar o que de Stravinsky interessa àquele que quer o “selvagem indígena” em música.
É justamente essa negação da história do desenvolvimento da música que aproxima a
estética de Stravinsky dos paradigmas da arte primitiva. Ao renunciar, através de sua composição, a
história da música ocidental (em consonância com os interesses do grupo dos Cinco russos, do qual
é descendente), o compositor desloca sua música para uma narrativa que, de fato, elimina o sujeito;
o sujeito burguês que iniciou com sua música na Europa Central na história da evolução da
tecnologia e arte. Esse pensamento que Stravinsky acaba desconstruindo com sua música é bem
definido nos escritos de Max Weber90 (WEBER, 1995) sobre a música ocidental.

88
Muito embora seja difícil de comprovar que Villa-Lobos não tenha recebido influência alguma de Stravinsky – e
muito mais provável afirmar o contrário (LAGO, 2005) – Salles (SALLES, 2009) afirma que as falas nas quais
Villa-Lobos explica a semelhança de sonoridade entre algumas de suas obras e obras de Stravinsky remetendo a um
mote universal ancestral , presente na canção popular e folclórica de todas as civilizações incluindo Brasil e Rússia,
são plausíveis (op. Cit, p.202). Essa visão universalista pode ser integrante do pensamento musical de Villa-Lobos,
que também integra praticamente todo o pensamento e composição musical da idade antiga na construção do
cantochão (GÚERIOS, 2009, p. 123) nesse sentido invertendo a lógica do geral formando o particular (o mote
musical ancestral que integra folclores russo e brasileiro) para uma lógica do particular para o geral (influências
romanas e assírias na formação do canto gregoriano universalizado pela Igreja Católica).
89
Wisnik (WISNIK,1999) observa esses dois fenômenos como integrantes de um só fenômeno , a quase-música do
século XX, nos termos de Mário de Andrade. “A quase-música é essa área limiar que está aquém e além da música
(tonal) e que oscila entre modos opostos de se organizar, entre o discurso do tipo progressivo e o puro ritornelo, uma
música que não se decide entre ainda entre o pós-tonal (de uma linguagem feita de polifonias descontínuas de ruídos
sem retorno) e o eterno retorno modal (que também nos parece inacessível) (WISNIK, 1999, p.46).
90
Max Weber (WEBER, 1995) procura explicar o desenvolvimento da música ocidental numa perspectiva evolutiva,
onde a complexidade e sistematização são eixos nos quais acontece a progressão e a evolução da arte musical.
174
Nele [Stravinsky] a obra de arte dirige-se para um lugar em que a música ficou
para trás do sujeito burguês desenvolvido, ao atuar sem intenções e estimular
movimentos corporais, ao invés de ainda significar; para um lugar em que os
significados são tão ritualizados que eles não podem mais experimentar o sentido
específico do ato musical (ADORNO, 1989, p. 131)

Diversos paralelos antropológicos poderiam ser feitos entre as opções musicais anti-história
de Stravinsky e a criação da sua arte cíclica, redundante e primitivista. Escolhendo um novo tipo de
música, Stravinsky obtém um novo tipo de história, de uma nova relação entre sujeitos e meio91 e o
significado disso, atrelado a títulos sugestivos como Sagração da Primavera e Pássaro de Fogo
constroem uma semiótica da barbárie e da selvageria. Com certeza tal construção parece ter
influenciado Villa-Lobos.

em Stravinsky, a história assume uma posição inversa; ao invés de ser material de


reflexão, sedimento de realizações, soluções propostas aos problemas com que os
compositores defrontaram-se, ela é lixo, como o objeto descartável no capitalismo
tardio (WAIZBORT,1990)

A questão do tratamento do material musical e o deslocamento da música para o campo do


mito, e do rito também é abordada por Adorno. Mesmo o paralelismo que se encontra entre a
música de Stravinsky e o pensamento e construção da música indígena é apontado por Waizbort:

Pensemos na música indígena, que atua sem intenções não-rituais. A música


aparece como o próprio rito, ou parte dele, e sua referência básica é o mito.
Enquanto música mitificada, a música perde sua substância enquanto ato musical,
seu eixo é deslocado. (Claro está que é a própria história da música ocidental que
mediatiza o “ato musical” — história essa que é, em um momento determinado,
música burguesa.) Não se trata mais do ato musical, mas sim do ato ritual.
Despoja-se assim a música de sua história. O “elemento ritual” é, aliás, o elemento
central da Sagração (WAIZBORT, 1990)

Da mesma forma, esses elementos sonoros de certa forma comuns a Stravinsky e Villa-
Lobos – o desenvolvimento da melodia, que não se comporta como uma frase convencional, a
primazia da textura e timbre sobre a harmonia, uso de harmonia quartal - possuem essas
prerrogativas ritualísticas e a manutenção do deslocamento do ato musical convencional para a
música mitificada. O próprio nome dos dois primeiros Poemas Indígenas, e a origem das suas
melodias podem retificar essa ideia do ritual como chave nessa transição para outra linguagem

Stravinsky, nesse sentido, desconstrói a história do desenvolvimento musical por preferir ser ‘caótico’ ao invés de
priorizar continuar o caminho da tradição do desenvolvimento melódico e seus temas, como Schoenberg fez.
91
A ideia da equivalência entre o binômio indivíduo-contexto social e melodia- harmonia é discutida ao fim do artigo
Antidepressants and musical anguish management de Philip Tagg (TAGG, 2004).
175
musical, para a elaboração do primitivo; Canide Ioune - Sabath, uma canção elegíaca e Teirú; uma
canção de um ritual para um funeral de um cacique.
As quartas e quintas parecem invocar, além dessa alteridade oriental e selvagem, a ‘infância
da humanidade’ apoiada sobre um conceito de simplicidade e natureza, bastante eurocêntrico.
Schoenberg constrói uma hipótese acerca da primeira polifonia, construída com quintas paralelas:

Pode-se imaginar da seguinte forma o desenvolvimento da polifonia: o primeiro


impulso pode ter sido o desejo de participar de uma canção realizada por um
solista. Duas ou mais pessoas cantam a mesma melodia: se todos deviam cantar
com a mesma voz, por exemplo as vozes graves masculinas, é bastante plausível
que houvessem sentido esse canto a uma só voz, ao uníssono, como a consonância
mais perfeita. Quando entravam vozes femininas no canto e a melodia não era
demasiadamente aguda ou grave, surgia a segunda possibilidade: cantar em oitavas,
que é a consonância mais perfeita depois do uníssono. Porém, se acontecia de a
melodia ser demasiado grave para as vozes agudas femininas e masculinas, ou
demasiado aguda para as vozes graves femininas e masculinas, originava-se a
necessidade de encontrar algo diferente para estas vozes. Enquanto não se inventou
a verdadeira polifonia (se não se quer considerar o canto em oitavas como uma
relativa polifonia), não restou outro recurso senão cantar a mesma melodia a partir
de um outro som consoante. Como já se havia utilizado o uníssono e a oitava, o
ouvido deveria – necessariamente – eleger a consonância mais perfeita das ainda
não usadas: a quinta. E assim surgiu o organum por quintas, ou, como outro
resultado do mesmo caso, o organum por quartas. Somente muito mais tarde se
veio a fazer uso da terça para mesmo fim (...) (SCHOENBERG, 2001, p.117)

Schoenberg relaciona, então, a utilização da quinta como primeiro movimento da


sensibilidade humana na diferenciação entre vozes que conduziria até a polifonia, onde as terças
seriam utilizadas harmonicamente e o movimento contrário declararia a independência das vozes. A
questão pode ser entendida também por meio da compreensão da série harmônica, o acorde da
natureza, segundo Heinrich Schenker (SALTINI, 1995). Por ser uma realidade física, natural, a série
harmônica forneceria as notas relacionadas a uma frequência específica. À medida que a música
ocidental foi se desenvolvendo, as notas mais distantes da frequência fundamental que da origem à
série foram englobadas ao sistema de sons, segundo a explicação do desenvolvimento musical
ocidental, por Schoenberg. Como pode se perceber no discurso de Schoenberg, para ele a quinta foi
o primeiro intervalo a ser utilizado para o canto a duas vozes, após a oitava. Essa fala de
Schoenberg corrobora essa relação entre a percepção humana e a série harmônica, pois as duas
primeiras frequências da série harmônica são o uníssono e a quinta. Também deve se levar em
consideração que ao se cantar/tocar em uníssono a primeira frequência a se diferenciar
significativamente do uníssono e soar audivelmente é a quinta, como que uma segunda voz feita
pela própria natureza, reforçando essa ideia do natural do primordial, presente na utilização das
quintas e suas inversões (ambos intervalos perfeitos), principalmente se forem paralelas.

176
Figura 146 Série Harmônica da nota DÓ2. Observe a reincidência das quintas nessa estrutura

De qualquer forma, voltando-nos a pensar no uso dos intervalos perfeitos e paralelos como
símbolo de exotismo, profundidade religiosa, comunhão com a natureza – o conceito que congrega
todos os outros, o primitivismo - não faz tanta diferença a quem remeter o empréstimo de tais
recursos musicais aos compositores modernos, se para os compositores do início do século XX na
tentativa de expandir a tonalidade ou para os que olhavam ‘para trás’ na procurando evocar o
primitivo. O uso dos acordes de quarta é um exemplo importante que nos mostra como as diversas
influências musicais, de origens também diversas, ajudam a compor o cenário final da música
primitivista de Villa-Lobos. A sonoridade em quartas - por um lado, recurso para a desconstrução da
tonalidade tradicional através dos acordes do alto romantismo que vieram por Wagner, Schoenberg
e até Webern e seu Arquétipo baseado em quartas (SALLES, 2009), por outro, um sistema
harmônico que porta uma relação intrínseca com o sistema escalar de muitos povos não-ocidentais –
parece encontrar um máximo divisor comum sonoro entre esses dois interesses: apresentar à
sociedade ocidental do início do século XX o ‘novo’, o exótico .
Há ainda a forte presença dessa organização harmônica em quartas e intervalos perfeitos no
Organum Paralelo do século VIII – como lembrado por Schoenberg (SCHOENBERG, 2001) na
Europa cristianizada (o que fomentou bastante discussão a respeito de uma evolução natural da arte
e cultura, que passaria por esses estágios até atingir o pico do desenvolvimento, este pensado como
a arte clássico-romântica. O pensamento de Adorno a respeito do atraso e retardo de Stravinsky é
facilmente entendido nesse contexto).
A questão que se apresenta é que tanto na relação de sua composição com a música
contemporânea de seu tempo – na busca pelo exótico oriental e pelo exótico selvagem - quanto na
influência de seu herói (BAKHTIN, 2003) o índio – de onde extrai melodias e materiais para
composição e orquestração - quanto nas referências ao passado da cultura europeia – nas
semelhanças com o cantochão e o organum - Villa-Lobos se apropria das sonoridades das quartas e
quintas, reforçando significados desse som e o utilizando como uma metáfora musical do primitivo,
do selvagem e da simplicidade técnica e do natural. Villa-Lobos apresenta em sua música uma
síntese desses fatores sobre os quais, apesar de diversos, corroboram a noção de primitivismo
(técnico ou na relação com a natureza).

177
3.4 Paralelismo: uma tópica do primitivo.

Em suas obras de caráter indígena Villa-Lobos usa frequentemente paralelismo melódico na


condução das vozes do contraponto. Em obras de diversos gêneros e que abrangem todos os
períodos da sua carreira, ao representar o índio musicalmente, o compositor desenvolve a dimensão
harmônica de algumas de suas melodias com paralelismos melódicos em diversos intervalos
(quintas, quartas, terças, segundas). Qual aspecto Villa-Lobos pretende evocar e representar através
desse procedimento? Qual aspecto psicológico do índio – na concepção de Villa-Lobos e da sua
época – ele pretende representar com o uso praticamente único de paralelismos melódicos como
opção para a construção de polifonia melódica? Nessa seção do capítulo discutiremos essas
questões, mas primeiramente apresentarei alguns exemplos da utilização de paralelismo melódico
por Villa-Lobos em suas obras de intenção indígena.
Começando a falar da música para conjuntos instrumentais, percebemos a utilização de
paralelismos melódicos em Amazonas, Choros nº3 e nº10. Em Amazonas Villa-Lobos baseia uma de
suas texturas mais importantes durante a obra toda sobre o princípio do paralelismo, nesse caso
especialmente o paralelismo de quintas:

Figura 147 AMAZONAS: (p.1 c.3-5)

O motivo acima é desenvolvido durante grande parte da composição, mantendo sempre sua
estrutura de quintas paralelas, em vários contornos melódicos que desenvolve. Entretanto, o
paralelismo melódico se manifesta em outras estruturas mais esporádicas e de diversas formas,
como o seguinte exemplo, em que observamos terças paralelas:

178
Figura 148 AMAZONAS: (p.6, c.2)

Alguns acordes que Villa-Lobos utiliza em Amazonas também utilizam essa sonoridade de
movimento paralelo, como harmonias em bloco. Observe o seguinte exemplo, no qual os acordes,
apesar de se desenvolverem ritmicamente de maneira fluida, são formados por terças e se movem
paralelamente em saltos e graus conjuntos:

Figura 149 AMAZONAS: (p.6, terceiro sistema, c.1)

No exemplo seguinte o compositor constrói uma porção significativa da música pelo


movimento de vozes que se estruturam em terças paralelas e em saltos de terça:

Figura 150 AMAZONAS: (p.8 terceiro sistema, c.1-3)

Mais adiante, no início da seção Dansa ao encantamento das florestas, de Amazonas, Villa-
Lobos faz arpejos de díades separadas por terças menores, em saltos de quinta, reforçando esses
intervalos importantes na música, como um todo:

179
Figura 151 AMAZONAS: (p.8, último sistema, c.1-4)

Ainda falando da presença das estruturas melódicas paralelas rítmica e harmonicamente em


obras para conjuntos instrumentais, no Choros nº10 podemos encontrar passagens ricas dessas
estruturas musicais. Na seção abaixo percebemos o divise dos trompetes e as três trompas em fá
desenvolvendo a melodia paralelamente em terças e sextas. Esse é um exemplo bastante
esclarecedor da importância dessas estruturas na obra de temática indígena em Villa-Lobos.

Figura 152 CHOROS 10: (p. 7, c.1-4)

No exemplo seguinte, Villa-Lobos constrói melodias com contornos melódicos paralelos.


Contudo, os intervalos entre as vozes instrumentais são diversos, quartas e segundas. Podemos
considerar essa espécie de paralelismo mais complexa que a dos exemplos anteriores.

180
Figura 153 CHOROS 10: (p. 10 c.1-5)

Villa-Lobos utiliza paralelismo em movimento contrário no próximo exemplo. Aos


primeiros e segundos violinos construídos em terças paralelas, contrapõe as violas e violoncelos -
também estruturados por terças paralelas - opostos em movimento contrário:

Figura 154 CHOROS 10: (p. 13, c.1-4)

Essa textura sonora é repetida pelo piano e pela harpa, na mesma parte da música:

Figura 155 CHOROS 10: (p.13, c.1-4)


181
Villa-Lobos, em várias seções dos Choros nº10 utiliza estruturas paralelas diversas. No
próximo exemplo, bem adiante na música, a intervenção das trompas, trompetes e trombones a
fazer contraponto ao coro demonstra a riqueza da utilização de texturas paralelas nessa composição
especificamente, onde se mantém, através do paralelismo intervalos de segunda, terça, quarta e
sexta entre as vozes:

Figura 156 CHOROS 10: (p. 51, c.1)

No início dos Choros nº3,Villa-Lobos insere estruturas paralelas nos instrumentos de sopro
que acompanha a voz. Na apresentação do tema pelo segundo tenor:

Figura 157 CHOROS 3: (p.1, c.1-3)

182
Na apresentação do primeiro tenor, ele faz o mesmo com o clarinete:

Figura 158 CHOROS 3: (p.1 c.5-6)

Na apresentação do segundo tema do Choros nº3, picapau, Villa-Lobos também utiliza


estruturas paralelas, entre as vozes, em divises dos baixos e barítonos, organizados em terças em
cada clave:

Figura 159 CHOROS 3: (p.3, segundo sistema, c.4.-5)

Em obras de menor porte, Villa-Lobos também utiliza o paralelismo entre


melodias/instrumentos/vozes frequentemente. Em Duas Lendas Ameríndias nº1, Villa-Lobos utiliza
esse recurso em praticamente toda a obra, trabalhando cada grupo de duas vozes como conjuntos de
melodias paralelas, e em certas partes trabalha esses dois grupos em movimento contrário, ainda
que não de maneira contínua.

183
Figura 160 DUAS LENDAS: (p.1)

Numa obra de sua Coleção Escolar, Canto do Pagé, o compositor trabalha com paralelismo
de terça para estabelecer a tonalidade, numa espécie de uso bivalente do paralelismo, como
representante do índio – o Pagé – e facilitador da canção para os estudantes aos quais a Coleção
Escolar era destinada.

184
Figura 161 CANTO DO PAGÉ: (primeiro e segundo sistemas)

Ainda no contexto escolar – parecendo utilizar esses paralelismo como facilitadores da


execução das músicas por crianças – em obras de caráter indígena do Canto Orfeônico, podemos
observar a utilização recorrente de paralelismo nos arranjos/composições de Villa-Lobos. Apenas
para ilustrar esse evento frequente, em Cantos de Çairé nº2 percebemos que a fórmula de terças
paralelas parece se encaixar muito bem mais uma vez na representação do índio e para a execução
da canção para a audiência infantil, tanto na dimensão melódica quanto harmônica:

Figura 162 CANTOS DE ÇAIRÉ 2: (p.1, primeiro sistema)

Em outra peça vocal, Ualalocê, das Canções Indígenas, Villa-Lobos utiliza paralelismos de
quarta que se destacam bastante das estruturas e texturas restantes da música, como o
acompanhamento do piano e a voz.

185
Figura 163 UALALOCÊ: p.3, (primeiro sistema, c.1-5 e segundo sistema c.1-4, mão direita)

Na obra para piano solo de Villa-Lobos, esse recurso harmônico é explorado de maneira
enfática para a produção de paralelismos. Essa utilização revela de maneira especial o interesse de
Villa-Lobos por essas sonoridades, e a partitura do piano facilita a visualização das estruturas
paralelas, uma vez que nas grades orquestrais eles estão divididos em diversos instrumentos. Nas
Danças Características Africanas, Villa-Lobos esbanja paralelismos. Já ao início de Farrapós e
Kankukus e Kankikis, o compositor dá destaque a estruturas paralelas, cada obra à sua maneira. Em
Farrapós, a movimentação do piano no primeiro sistema, que enfatiza o movimento de segunda, é
construída inteiramente sobre paralelismos de terça, ressaltando a importância dessa estrutura na
obra.

Figura 164 FARRAPOS: (p.1, c.1-2)

Em Kankukus ele destaca, de maneira menos enfática, mas igualmente clara, a estrutura de
terças paralelas, até a primeira fermata da composição:

Figura 165 FARRAPOS: (p.1, c.1-2)

186
Em Kankikis, o paralelismo de terça também é apresentado nos primeiros compassos. Contudo, as
vozes estão deslocadas ¼ de tempo, criando um efeito de melodia pontilhada, que por ser deveras
rápido é absorvido quase como uma harmonia.

Figura 166 KANKIKIS: (p.1, c.1-4)

Após essa seção de paralelismos em terças, Villa-Lobos desenvolve o motivo de


semicolcheias dessa peça em estruturas paralelas de quarta e quintas; o paralelismo se mantém
como conceito, mudando, contudo sua sonoridade:

Figura 167 KANKIKIS: (p.1, c.5-7)

Ainda discutindo os paralelismos das peças de piano de Villa-Lobos de temática indígena,


podemos observar essa estrutura em Caboclinha – A boneca de barro, da Prole do Bebê nº1, obra
de 1918, início da carreira de Villa-Lobos. Ele utiliza durante grande parte da música estruturas
melódicas paralelas.

Figura 168 CABOCLINHA: (P.14, último sistema, c.1-3 e p.15 c.1-2, mão direita)

187
Além de utilizar as terças paralelas com o fim de desenvolver a melodia polifonicamente, ele
também utiliza as quartas e quintas paralelas para o mesmo fim, logo após o final da seção do
exemplo anterior:

Figura 169 CABOCLINHA: (p.15, segundo, terceiro e quarto sistemas, mão direita)

Em sua Dansa do Índio Branco, do Ciclo Brasileiro, Villa-Lobos, elabora, com uma estética
impressionista, os acordes pontuados em estruturas de quartas paralelas. Apesar desse procedimento
não aludir tão claramente a um exotismo – e daí talvez se perceba a qualidade europeia do Índio
Branco – a sonoridade paralela e seu destaque pontilhado parece aludir a uma representação
espacial/textural que remete ao uso comum das estruturas paralelas nas outras composições citadas
– onde talvez resida o indígena da música.

Figura 170 DANSA DO ÍNDIO: (p.6 quarto sistema, c.2-5)

Após esses numerosos exemplos da utilização de estruturas paralelas rítmica e


harmonicamente na representação indígena em Villa-Lobos, prossigamos à discussão das
características específicas da representação do índio que essa estrutura carrega na obra de Villa-
Lobos.

188
3.4.1 Sobre a representação do índio através do paralelismo rítmico e harmônico

Na sua hipótese sobre o desenvolvimento da polifonia na música ocidental, Schoenberg


retrata diversos passos que acredita terem se sucedido até o desenvolvimento da polifonia moderna
(relativa ao tempo da prática comum). O primeiro deles, como já vimos, foi o canto em oitavas, que
se diferenciava do canto uníssono pela altura. O segundo passo foi o canto em quintas e quartas,
como a opção mais consoante possível quando as pessoas eram impossibilitadas de cantar em
oitavas ou uníssono a melodia principal. Depois de algum tempo as terças foram descobertas como
consonância e se encontrou a possibilidade do movimento oblíquo e contrário, efetivando a
complexidade mínima necessária para a categoria ‘polifonia’ como Schoenberg a usa
(SCHOENBERG, 2001, p.118). De fato, ao pensar a polifonia como uma conjunção de vozes
independentes, não parece razoável considerar o uníssono ou as quintas e quartas paralelas como
tal; senão como reforços sonoros da melodia principal. A construção da identidade de uma melodia
vem pela sua particular elaboração motívica, no uso de movimento contrário e de diversos tipos de
intervalos.
Nesse entremeio, assim como a utilização indiscriminada de quartas e quintas na
composição de temática indígena em Villa-Lobos remete ao natural, indiferenciado, a utilização de
paralelismo melódico e rítmico (configurado em contornos melódicos iguais em duas ou mais
vozes, separados por intervalos constantes) parece remeter ao primitivo. Entretanto, esse primitivo
reside num nível de sofisticação um pouco superior ao natural, ao uso das quartas, uma vez que
Villa-Lobos utiliza, com frequência, juntamente às quartas, terças paralelas em suas músicas de
temática indígena. Especialmente sobre a utilização de terças paralelas leiamos o que Schoenberg
afirma:

As terças, onde se encontram empregadas exclusivamente, são consideradas como


um método inferior de conduzir as vozes, donde a expressão “terças acrescentadas”
apoiar-se em uma ideia legítima de vozes reais. No contraponto duplo, as terças são
apenas parte de recheio, elementos sonoros que são acrescidos sem que possuam
um mérito particular na condução das partes. Finalmente, as terças paralelas
(usadas exclusivamente) e as sextas paralelas percebem-se como fracamente
artísticas, até mesmo banais. Demonstração: a música popular, que as emprega
praticamente como única polifonia. São, talvez, vulgares, mas não impossíveis, e
ocasionalmente podem vir a ser um recurso artístico (SCHOENBERG, 2001, p.
118)

O comentário de Schoenberg reitera essa ideia acerca da falta de artisticidade na utilização


das terças paralelas; em outras palavras, a falta do artifício técnico na sua utilização e a ausência de
sofisticação. Nesse interim a ideia de primitivismo é reforçada, tendo no uso da terça paralela uma
espécie de metáfora sonora, que se justifica pela peculiaridade da sua própria aparição na música

189
ocidental, segundo a hipótese do surgimento da polifonia por Schoenberg.
Entretanto, quando falamos da obra de temática indígena em Villa-Lobos, precisamos
entender paralelismo como um conceito estruturante que ultrapassa a utilização específica de
alguma sonoridade, ainda que ele utiliza bastante as quartas e terças nesse contexto. Villa-Lobos
também trabalha o paralelismo em intervalos de segunda como em Iára, e também desenvolve esse
recurso composicional em estruturas de textura mais complexa, com diversos intervalos integrantes
(como o ostinato de Teirú).
A questão que tem sido abordada nesse capítulo é bastante complexa. Villa-Lobos
compreende os fundamentos musicais arquetípicos que as suas citações e criações precisam ter para
alcançar o objetivo que ele procura – suscitar alguma resposta afetiva da audiência. Nesse caso
específico, suscitar o selvagem (fruto da construção imaginária ocidental), através do índio que
tenta retratar em sua música. Tendo entendido como ‘funciona’ musicalmente essa representação
expressiva do índio, ele a amplia e desenvolve, remetendo, de alguma forma, o ouvinte a fonte
primeira de que extraiu esse elemento musical específico. Sobre a habilidade de Villa-Lobos
manipular os sons para seus objetivos expressivos e sua capacidade de conduzir essas
possibilidades, vejamos o que Fábio Zanon diz, com especial destaque a sua citação do violonista
Sérgio Abreu:

Villa-Lobos tem a audácia de levar uma possibilidade ao seu limite. Nesse


processo, cria situações aparentemente sem solução, mas consegue sair delas do
mesmo modo como um mágico desvia a atenção do público para o truque passar
desapercebido: a solução encontrada pode não ter nada a ver como o que
acontecera até então, mas se “encaixa” milagrosamente. Como diz o violonista e
luthier Sérgio Abreu [em declaração por e-mail]: “Ele tinha uma intuição muito
forte de como as pessoas reagem psicologicamente à música e aprendeu a
manipular muito bem esse aspecto da percepção. (ZANON, 2009, p.58)”

Ainda lembrando o que foi dito acerca do processo compositivo e as três vozes de
composição com as quais o autor criador inventa (BAKHTIN, 2003), devemos levar em conta que
havia interesses estéticos próprios da música erudita com os quais Villa-Lobos deveria lidar;
expectativas relativas à arte culta que deveriam ser satisfeitas por aqueles que participavam desses
círculos de composição. Devemos lembrar que no início do Século XX, especialmente na França
dos Seis de Jean de Cocteau, a capacidade de composição e o ‘gênio’ de um compositor residiam
em utilizar originalmente o elemento nacional, no que podemos encontrar uma aproximação com a
proposta nacionalista de Mário de Andrade, acerca da música erudita brasileira (ANDRADE, 1962).
Villa-Lobos fazia justamente isso: ao compreender os princípios que regiam alguma manifestação
musical nacional (ou não) que queria evocar, manipulava esse arquétipo conceitual ampliando as
suas possibilidades de acordo com sua própria inventividade (na voz do autor). Por exemplo, Villa-
190
Lobos tendo o intento de representar o índio brasileiro, compreende que esse possui valor
equivalente ao selvagem compreendido pela mentalidade europeia do final do século XIX, o
primitivo. Para representar esse conceito de primitivismo em sua música de temática indígena ele
utiliza os recursos composicionais que sustentam afetivamente e materialmente essa visão.
Sonoridades, movimentação de melodias e criação de texturas todas irão apontar para a construção
dessa representação dentro da música.
Entretanto, como compositor – e é nesse aspecto que reside sua valoração como gênio
(segundo a visão de sua época) – ele não deve apenas inserir o que se escuta nas rodas de música
popular, ou absorve da música afro-brasileira ou indígena, mas criar a partir delas novas expressões,
que, ainda que mantenham o gérmen da sua inspiração primeira – o conceito arquetípico que
extrapola a sonoridade específica – demonstrem a novidade criativa e as ideias particulares do
compositor. Aqui cito algumas falas de Mário de Andrade a respeito dessa questão:

O Brasileiro é um povo esplendidamente musical. Nosso populário sonoro honra a


nacionalidade. A transformação dele em música artística não posso dizer que vai
mal não, vai bem. Figuras fortes e moças que nem Luciano Gallet, Lourenço
Fernandez e Villa-Lobos orgulhavam qualquer país (ANDRADE, 1972).

Trazendo essa discussão para a utilização do paralelismo na obra de Villa-Lobos podemos


observar essas correspondências. Uma hipótese é que Villa-Lobos tenha concebido, pelo seu contato
com as transcrições92 e fonogramas, um conceito de unidade da música indígena, onde –
ritmicamente falando – não há diferenciação e apenas uma melodia é executada em conjunto. O uso
de terças – como ‘terças adicionadas’ nos termos de Schoenberg – e de quartas e quintas, pode,
segundo essa interpretação, ser identificado como um reforço sonoro à melodia principal, antes que
uma segunda voz composta para se fazer harmonia (nesse contexto os conceitos de primitivo e
natural se intercruzam). Agora, quando Villa-Lobos dedicava mais atenção ao uso do paralelismo
como recurso composicional, ele o utilizava na construção de seções de textura complexas ou entre
intervalos menos consoantes, onde a diferenciação entre as vozes salientada pela dissonância (como
segundas e quartas aumentadas) é um procedimento notável. Aqui se percebe um traço mais
característico do estilo composicional de Villa-Lobos, especialmente nos anos 20. São diversas
opções que se apresentam no fluir da obra, orientadas por um princípio que se manifesta
sonoramente de várias formas com diversos fatores – com o uso da sonoridade autêntica,
sonoridade convencionada e estilo de época, para dar alguns exemplos.
Para evocar alguma ideia e carrega-la com sua dimensão afetiva e cognitiva Villa-Lobos

92
– Além do conhecimento das prescrições estilísticas de manuais de teoria como o de Schoenberg (SCHOENBERG,
2001) com o qual Villa-Lobos provavelmente teve contato, por ser aluno de Nepomuceno no Instituto Nacional de
Música, à época que esse professor traduzia o livro para a língua portuguesa.
191
precisava se apegar em alguma realidade sonora específica em sua composição. Ela pode ser
autêntica estando presente sonoramente na manifestação que ele pretende representar – como, por
exemplo, as melodias indígenas que ele extrai do livro Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938). A
segunda opção é utilizar um recurso composicional que não está realizado materialmente nesse
herói (BAKHTIN, 1993), mas que por alguma relação de outra ordem se convencionou como
representação dessa categoria (por exemplo, as quartas paralelas na música indígena brasileira).
Essa sonoridade convencionada pode ser criada de diversas formas e por diversos meios; pode ser
uma generalização (como no exemplo do uso de quartas e quintas paralelas para o índio, uma
sonoridade emprestada do conceito de selvagem ao início do século XX) ou a materialização sonora
de um conceito abstrato (a materialização do conceito de primitivismo no uso de estruturas sonoras
paralelas, ausentes, a principio, na música indígena). A regra principal para o sucesso na construção
de uma música que faz referência afetiva e cognitiva é que as estruturas usadas sejam
representações claras do que se pretende evocar – independentemente da aparente autenticidade
dessas estruturas musicais - e a artisticidade do compositor se verifica nas maneiras criativas e
diversas nas quais ele encontra soluções para construir a forma e orquestração da sua obra com base
nessas estruturas referenciais primeiras93. Um exemplo bastante distinto desse uso de sonoridades
autênticas94 e sua transformação em diversos motivos musicais, tratados autonomamente pelo
compositor, pode ser encontrado no uso que Villa-Lobos faz da melodia pareci Nozani-ná, também
transcrita no livro de Roquete-Pinto (ROQUETE-PINTO, 1938), da qual já falamos nessa
dissertação. Esse tema foi utilizado profusamente por Villa-Lobos em diversas composições
(LAGO, 2003; MOREIRA & PIEDADE, 2010). Zanon (ZANON, 2009) propõe uma hipótese que
explica a importância dessa melodia indígena tão utilizada e de forma tão diversa95, na obra de
Villa-Lobos:
Não foi por acaso que a melodia Nozani-ná do Choros nº3 adquiriu posição icônica
dentro da obra de Villa-Lobos. Seu perfil oferece possibilidades ilimitadas de
adição, subtração e permuta de elementos simples, como a sequência de três notas
sol-la-dó ou a repetição da nota final; essa simplicidade foi empregada para sugerir
primitivismo, como no tema inicial de Amazonas, mas também aparece em
ambientes modinheiros e impressionistas, que antecedem suas obras indianistas.
Tal coincidência não deve ter passado despercebida pelo 'índio de casaca' (op. cit,
p.56).

93
É claro que pode haver numa única obra referências a diversos universos de representação, e isso especialmente em
Villa-Lobos. Observamos isso em suas Bachianas Brasileiras, por exemplo, no cruzamento entre o universo da
música popular e técnicas neoclássicas (MOREIRA, 2008). Na Introdução aos Choros Villa-Lobos evoca o universo
chorão, indígena e das danças de salão.
94
Considero sonoridade autêntica, como categoria, aquelas estruturas sonoras que foram extraídas das culturas a que
são atribuídas (ainda que se considere a imperfeição de tais apropriações [como a notação musical das transcrições
de música indígena, por exemplo ]e o desdobramentos dessas imperfeições no resultado sonoro).
95
Villa-Lobos utilizou Nozani-ná em diversos gêneros de suas composições: Canções Típicas Brasileiras n. 2, para
canto e piano ou orquestra, Choros n. 3, para coro a capela e/ou sexteto de sopros (1925); Introdução aos Choros,
para orquestra sinfônica; Rudepoema para piano; e Regozijo de uma Raça, para voz, coro e percussão e o último
quadro da Primeira Missa no Brasil, do seu Descobrimento do Brasil.
192
Zanon nos fornece um exemplo muito esclarecedor acerca do processo no qual o
compositor, após se apropriar de uma melodia indígena, a torna livre do seu contexto imediato – de
certa forma, autônoma - e a desenvolve de diversas formas. O escritor demonstra com clareza a
maneira pela qual a dimensão inerente da melodia Nozani-ná (suas notas) chama para si a atenção
do compositor que as desenvolve em obras variadas e de muitas maneiras. Zanon também afirma
que esta melodia foi utilizada para sugerir primitivismo, cumprindo assim seu papel representativo.
Com Nozani-ná temos um exemplo bastante claro de como Villa-Lobos se apropria de um elemento
original indígena, para que este sirva de ícone do próprio índio. Ao mesmo tempo, ele utiliza o tema
indígena como um ‘motivo’ germinador de uma grande série de outras citações, uma vez que ao
olhar intrinsecamente para o tema Nozani-ná, Villa-Lobos depreende aspectos formativos – como
intervalos, sequências de pequenos motivos melódicos – com os quais poderá desenvolver sua
música e demonstrar sua criatividade na composição. Villa-Lobos faz uma espécie de
transliteração96 da melodia de Nozani-ná para a música erudita, ao se apropriar de suas partes
constitutivas retirando-as de seu contexto original (como fonemas com significado dentro de sua
própria cultura), e as desenvolvendo dentro das regras de bricolagem permitidas pela música
ocidental.
Por fim, as possibilidades de interreferência entre conceito abstrato e representação musical
- e entre os diversos desenvolvimentos dessa representação musical enquanto som - são múltiplas,
como os resultados de uma análise combinatória. Essas relações entre conceitos abstratos podem ser
vistas nitidamente em intercâmbios musicais, como trans-traduções97. A próxima parte desse
capítulo, que discute a presença do ostinato na obra de temática indígena de Villa-Lobos
exemplifica esse processo de trans-tradução.

96
A transliteração é o processo no qual se transcreve uma palavra de uma língua para o alfabeto de outra, mantendo sua
estrutura fonética. A palavra apóstolo, por exemplo, é uma transliteração da palavra grega ἀπόστολος para a língua
portuguesa. Utilizo a metáfora para exemplificar o translado de uma música de um sistema para outro (no caso da
música indígena para a música ocidental erudita), sendo que no sistema de chegada ela é tratada dentro das mesmas
regras gramaticais e sintáticas das outras palavras.
97
O termo trans-tradução foi utilizado pelo prof. Rafael Menezes Bastos, numa aula de Antropologia da Arte (primeiro
semestre de 2010) para designar o processo de tradução que não trata apenas dos termos, mas se preocupa com a
compreensão exata dos seus significados na cultura para a qual se pretende traduzir.
193
3.5 O conceito repetição/estaticidade figurado no ostinato

Os ostinatos são utilizados profusamente nas músicas de intenção indígena de Villa-Lobos.


Podemos dizer que ele partilha do uso de uma estrutura musical bastante apreciada por
compositores da primeira metade do século XX, um elemento constitutivo de parte da linguagem
musical da época.
Podemos afirmar, também, que o ostinato remete a ideias concernentes ao primitivo, ou ao
passado – seja à música pré-colombiana ou tribal africana, ou à suíte barroca. No caso que
estudamos, em especial, o uso de ostinatos por Villa-Lobos remete à musicalidade ‘selvagem’.
Entretanto, que aspecto particular do índio de Villa-Lobos o ostinato evoca e representa? Antes de
desenvolver essa pergunta e tentar responde-la, apresentarei alguns exemplos da presença de
ostinatos na sua música de temática indígena.
Primeiramente, é importante salientar que os ostinatos são praticamente exclusivos às partes
instrumentais das composições de Villa-Lobos. Sempre encontrados nas partes graves, os ostinatos
podem ser encontrados em todos os instrumentos daquelas frequências sonoras: pianos,
contrabaixos, fagotes, etc. Via de regra, os ostinatos de Villa-Lobos são graves e ‘profundos’.
Nas peças com piano, encontramos os ostinatos à mão esquerda do pianista. Podem ou não
ter significação tonal (sendo acordes), mas sempre possuem uma célula rítmica repetida
incessantemente que caracteriza o ostinato. Portanto, o que classifica um ostinato é sua dimensão
rítmica, sendo a opção de conduzir uma progressão tonal ou não uma escolha do compositor para a
obra que está escrevendo de acordo com sua intenção estética.
Como já havíamos visto nas análises dos Três Poemas Indígenas do capítulo 2, Villa-Lobos
utiliza ostinatos em cada um dos poemas, e sobre ele também constrói e desenvolve os parâmetros
de forma. Em Canide Ioune – Sabath, Villa-Lobos utiliza o ostinato como uma textura bastante
destacada na obra, que soa durante todas as seções, impreterivelmente. Como uma afirmação da
importância dessa sonoridade, ela é a primeira textura a ser apresentada e a última a desaparecer.
Em Teirú, a utilização do ostinato é diferente: o compositor dá destaque ao ostinato
principalmente pela sua importância na delimitação das seções da forma e pelas alterações e
estruturas simétricas que o constituem. Em relação à forma, o ostinato de Teirú, divide a música em
duas seções bem distintas: com ostinato ou com acompanhamento acordal. Já no que diz respeito à
constituição melódica e harmônica do ostinato, pela dinâmica da construção do material dessa
estrutura, ela se torna uma espécie de resumo dos intervalos harmônicos e melódicos mais
importantes da obra.
Em Iára a importância do ostinato é ressaltada de outras maneiras. Como a música é
episódica e construída pela sobreposição e transformação de diversas estruturas texturais, o ostinato
194
é entendido como mais uma dessas texturas. Ao invés de se demonstrar como um motivo curto
nessa canção, o ostinato é entendido como um princípio: o princípio de repetição da nota SI bemol
em ritmo de colcheia – pulso-, que se manifesta de diversas formas durante a música. A ênfase a
esta repetição da nota SI bemol também é reforçada pelo fato de ser parte integrante da introdução,
que é citada claramente durante a música, e também pelo fato de a nota SI ser ouvida, durante partes
significativas da música como nota principal e polarizada (especialmente pelas diversas vezes que
Villa-Lobos a utiliza na região grave do piano, ou conduz texturas melódicas – como os acordes de
sextina – para seu ápice na nota SI bemol).
Ainda em obras para piano e voz, podemos perceber o ostinato como princípio de repetição
em Nozani-ná das Canções Típicas Brasileiras. Ao harmonizar e ambientar a canção pareci, Villa-
Lobos utiliza um acompanhamento de piano bastante repetitivo onde em diversos planos temporais
há repetição e reiteração; a saber, no ostinato em colcheias e nas notas presas da mão direita, essas
que se repetem em ciclos mais longos, além da ênfase nas segundas maiores na movimentação
melódica no interior do ostinato:

Figura 171 Exemplo do ostinato com ênfase nas segundas, em Nozani-ná (c.6-10)

Estruturado de maneira semelhante ao ostinato de Nozani-ná (com o movimento destacado


de segundas maiores), o ostinato de Ualalocê, outra das Canções Típicas Brasileiras, demonstra a
repetição em vários níveis. Observe a movimentação em segundas nos dois ‘planos melódicos’ do
ostinato na clave de fá (notas DÓ# e RÉ# no grave e MI e FÁ# no agudo):

Figura 172 Exemplo do ostinato de Ualalocê (c.1-5)

Nas obras de intenção indígena para piano de Villa-Lobos, a repetição motívica nas notas
graves é bastante recorrente, como acompanhamento da melodia (com tríades algumas vezes) ou
como uma textura mais independente. Na realidade há que se ter cautela para classificar essa ou
aquela estrutura repetitiva da mão esquerda como ostinato: algumas vezes o que está sendo
apresentado é um acompanhamento acordal simples, com um ritmo harmônico dinâmico. Nesse
caso, não parece adequado considerar essa estrutura um ostinato. Entretanto pode haver tríades

195
figuradas ritmicamente como ostinato num contexto modal, onde elas durem mais tempo e as
relações ‘tonais’ convencionais com a melodia se dissolvam. Nesse sentido, penso que as considerar
como um ostinato é mais razoável, especialmente se são constituídas de unidades de pulso,
geralmente como colcheias; obtendo assim, mais um ponto em comum com os ostinatos geralmente
utilizados por Villa-Lobos nas suas obras de intenção indígena.
Nas Danças Características Africanas, podemos perceber diversas vezes a utilização de
estruturas harmônicas repetidas constantemente na constituição do acompanhamento. Em Farrapos,
observamos essas estruturas em partes esporádicas do acompanhamento que é muito movido e
cheio de semicolcheias. Dentro desse contexto de movimentação intensa, os períodos onde essa
estrutura de colcheias se apresenta a destacam pela diferente textura e densidade sonora:

Figura 173 FARRAPOS: (p.4, segundo sistema, mão esquerda, c.1-3)

Há em Farrapós uma estrutura textural independente muito importante, constituída de


sincopas – portanto de matiz africana – que se repete durante grande parte da música.

Figura 174 FARRAPOS: (p.1, terceiro sistema, c.2-4 e quarto sistema)

196
Já no início de Kankukus, se percebe claramente o caráter de ostinato da mão esquerda do
piano: conduzindo a música ao pulso de colcheia, esse ostinato perdura por grande parte da música,
assumindo diversas formas, como dobramento de oitava e outros intervalos.

Figura 175 KANKUKUS: (p.3, segundo sistema, c.1-4)

Figura 176 KANKUKUS: (p.4, último sistema, c.2-4)

Kankikis possui um acompanhamento semelhante ao de Kankukus, contudo possui maior


densidade, com mais notas tocadas por pulso:

Figura 177 KANKIKIS: (p.1, último sistema, mão esquerda)

Na sua Dansa do Índio Branco, do Ciclo Brasileiro, Villa-Lobos utiliza a repetição


‘frenética’ do intervalo de segunda – mais uma vez valorizado nos seus ostinatos indígenas –
juntamente com a articulação staccato que distinguirá essa textura da melodia acordal que surgirá

197
mais adiante98.

Figura 178 DANSA DO ÍNDIO: p.1 terceiro sistema

Em sua Caboclinha, de um período de composição anterior na sua Prole do Bebê nº1 (1918),
Villa-Lobos utiliza os acordes de Mi bemol maior e Sol menor com sétima menor em sequencia,
construindo uma espécie de encadeamento modal entre os dois acordes:

Figura 179 CABOCLINHA: (p.1 segundo sistema c.3-4 e terceiro sistema c. 1-2, mão esquerda)

Nessa apresentação acima fica difícil compreender a estrutura como um ostinato


propriamente dito, tanto pelo tamanho da citação como pela sonoridade, que lembra mais os apelos
estéticos da primeira fase de Villa-Lobos, que corresponde à época dessa composição, onde as
influências da criação de atmosferas de Debussy podiam ser ouvidas. Entretanto, alguns compassos
antes, podemos ouvir uma estrutura no acompanhamento que remete mais à repetição – e ao
‘nativo’ e popular – que a sequencia de acordes que acabo de mostrar:

Figura 180 CABOCLINHA: (p.1 segundo sistema, c.1-2, mão esquerda)

98
Interessante notar essa ‘inversão’ textural nessa obra. Villa-Lobos acompanha uma melodia acordal com uma
estrutura melódica ao inserir o princípio de continuidade nessa melodia, pela rapidez da sua execução. Ele constrói
um complexo harmônico com essa melodia no grave; uma nova experiência timbrística para o piano.
198
No exemplo acima podemos notar a sincopa e deduzir que essa seja uma referência ao
caráter africano na música – pela remissão ao Baião (CASCUDO, s.d). Aqui é interessante fazer um
comentário acerca dos termos utilizados pelo compositor na descrição da obra que podem nos fazer
entender a utilização de certos motivos e inspirações composicionais.
O nome da obra em francês é Caboclinha – Petite indigéne du Brésil – La poupée em argile,
que significa em tradução livre ‘caboclinha, pequena indígena do Brasil, a boneca de barro’. De fato
podemos relacionar a remissão ao barro, no subtítulo da peça, a coloração da pele das populações
nativas do Brasil. Mas porque então a utilização de motivos africanos nessa composição, sendo que
ela propõe representar o indígena brasileiro? A questão pode ser respondida se compreendermos os
termos e sua tradução em francês e o significado da palavra indígena no Brasil nas primeiras
décadas do século XX.
Existem, no francês, duas palavras que mesmo possuindo semelhança de escrita tem
significados diferentes: Indigène e Indien. O termo Indigène se traduz como ‘nativo’, e Indien,
como ‘índio’ ou ‘indígena’ no sentido atual do termo. Na época da composição da obra, se utilizava
a palavra ‘indígena’ para designar toda manifestação cultural que tivesse caráter popular ou nativo,
como oposto da cultura urbana ou europeia (MENEZES BASTOS, 2005). Nesse contexto pode se
entender a presença de motivos de matiz africana em Caboclinha, pelo fato dessa cabocla ser
representante do indígena brasileiro, da maneira como a época a palavra era utilizada, a ‘nativa’,
que congregava musicalmente uma síntese das duas representações. É sobre esse motivo que Villa-
Lobos desenvolverá os ostinatos dessa canção.
É claro que o uso do ostinato como estrutura musical referente ao indígena não se limitou ao
repertório instrumental, por absoluto. Em Duas Lendas Ameríndias em Nheengatu Villa-Lobos
utiliza com profusão ostinatos e repetições:

199
Figura 181 DUAS LENDAS: (p.1)

A utilização frequente do ostinato na música de temática indígena em Villa-Lobos indica a


importância desse elemento musical na construção do universo indígena sonoro de Villa-Lobos.
Assim como discutimos, até aqui, como essa representação se dá na utilização de melodias
indígenas – e suas diversas formas de apropriação -, no uso estrutural e motívico-harmônico do
intervalo de quarta e quinta e no paralelismo rítmico e melódico, vamos submeter o conceito de
ostinato a mesma investigação. Qual a função do ostinato na representação do Índio por Villa-
Lobos?
Toda identidade construída se apoia na delimitação clara entre si e a(s) sua(s) alteridade(s).
Podemos identificar bem certo indivíduo, por exemplo, se ele possui um número de traços
fisiológicos que o distingue de quem é parecido com ele e de quem é deveras diferente. A
construção do índio sonoro em Villa-Lobos não foge a esse esquema: para definir bem a identidade
indígena, os elementos sonoros escolhidos devem demonstrar essa oposição essencial (movimento
direto versus movimento obliquo e contrário no contraponto; uso abundante de intervalos da mesma
espécie versus uso balanceado de intervalo perfeitos e imperfeitos, por exemplo). Essa oposição,
obviamente, acabará por quebrar ou desafiar claramente algumas regras da composição escolástica,

200
e é aí que o estilo peculiar do compositor sobressalta, na criação de sua identidade musical99. Em
Villa-Lobos, parte do processo compositivo consiste em conseguir definir bem essa identidade
(índio) no seu processo dialético com a alteridade (homem ‘civilizado’). Essa definição de
identidade opera então, de forma negativa e positiva. Positivamente, na afirmação do que é
diferente (uso de sonoridades selvagens, ou mesmo instrumentos diversos) e, negativamente, na
negação do que é comum (da condução convencional de vozes, da escolha de sonoridades, na
escolha de instrumentação, ou no desvio de padrões comuns de forma). Fica claro que esse é um
processo dialógico que se dá simultaneamente. Na escolha do tema a ser trabalhado na composição
e da maneira que será trabalhado, a criação de identidade se desenvolve nas afirmações e negações
que são próprias do material musical utilizado e do intento do compositor sobre esse mesmo
material.
Contudo, a questão dessa criação de identidade, em música erudita ocidental, possui
algumas particularidades. Uma delas é que a criação da identidade ‘exótica’ não poderia
comprometer demais a compreensão da obra musical pela audiência a quem era direcionada – mais
uma vez a voz do ouvinte era considerada pelo compositor (BAKHTIN, 2003). Logo, parte do
processo de composição nacionalista era dar a elementos populares – ou mais compreensivamente,
a todos os elementos que não eram ‘natos’ da composição erudita da época – uma roupagem estética
que os tornassem utilizáveis pelos formatos instrumentais da língua franca musical, como a
orquestra sinfônica, grupos de câmara e o piano, por exemplo. Havia, parece-me, na parte de Villa-
Lobos, a intenção de não modificar elementos importantes dessa musicalidade exótica, a ponto de
transforma-la e ocorrer no outro extremo, a descaracterizando totalmente e comprometendo essa
referência ao índio.
Como essa dinâmica de reforço do exótico e negação do comum aparece na utilização do
ostinato nessas composições? E por fim, qual o aspecto indígena que o ostinato empresta às
composições de Villa-Lobos? Como o ostinato era interpretado pela teoria estética da música à
época, ou melhor, pela musicalidade tradicional ocidental? Tradicionalmente, o ostinato era
considerado em composição musical, segundo Schoenberg (2008), como uma simplificação do
artifício de composição. Seja por ser o oposto do desenvolvimento variado – qualidade musical
extremamente apreciada na música ocidental de concerto - ou por ser uma ideia extremamente
simples que ao soar repetidas vezes torna-se monótona e sem função teleológica; o que – para uma
análise funcional, orgânica - é um defeito musical: uma célula sem função, que se repete por toda a

99
Podemos observar esse processo de criação, por exemplo, no uso abundante de cromatismos na música de Beethoven,
ou da quebra da rigidez formal da forma sonata em Sonatas de Mozart. Foi exatamente nos seus desvios das normas
tradicionais de composição que esses músicos construíram seus estilos particulares no classicismo.
201
estrutura100.
Observemos o que Schoenberg, em seu tratado de composição (SCHOENBERG, 2008), no
subtítulo A utilização do motivo requer variação (op. cit, p. 36) diz acerca da necessidade do
desenvolvimento nos motivos musicais, e a sua comparação desse processo com o desenvolvimento
de um organismo:
A preservação dos elementos rítmicos produz, efetivamente, coerência, (ainda
assim a monotonia não pode ser evitada sem ligeiras mudanças) (...). A música
homofônica poderia se denominada de estilo da “variação progressiva”. Isso
significa que na sucessão das formas-motivo, obtidas pela variação do motivo
básico, há algo comparável ao desenvolvimento, ao crescimento de um organismo.
(op. cit, p. 36)101.

Schoenberg, ao dar conselhos para o autotreinamento afirma diversas vezes que a


monotonia deve ser evitada pelo compositor, e indica as maneiras de evita-la na composição:

Evitar monotonia: Muita repetição de notas, ou de figuras melódicas, é aborrecido


se não se explora a vantagem da repetição – a ênfase. (...) Permaneça em um
âmbito de tessitura restrito e evite mover-se longamente em uma única direção (...).
Observar a linha do baixo: o baixo foi, anteriormente, descrito como uma ‘segunda
melodia’. Isto quer dizer que ele está sujeito aos mesmos requisitos da melodia
principal: deve ser ritmicamente equilibrado, deve evitar a monotonia com
repetições desnecessárias, deve possuir variedade de perfile deve fazer bastante uso
das inversões (...). (op. cit, p.146).

Tendo em consideração essa visão que afirma a monotonia ser o resultado da ausência de
mudanças no motivo musical, o motivo obstinado é perfeito para a representação dessa monotonia.
Basta fazer exatamente o oposto das recomendações de Schoenberg para se criar um motivo
obstinado: um motivo sem desenvolvimento variado, sem um conteúdo melódico valorizado e
geralmente num lugar de destaque na orquestração, o grave. Portanto, ele é algo que se distingue da
cultura ocidental por ser desaconselhado e repudiado pelos manuais de composição ocidental.
Devemos nos lembrar de que estamos com Villa na Paris dos anos 20, antes dos Minimalistas terem
feito arte ocidental com esses princípios de repetição102.
Penso que essa opção pela sonoridade dos ostinatos surge da intenção da evocação de um
imaginário de um outro musical a partir da negação do que é familiar e de uma escolha por outra
musicalidade , pois diversas culturas nativas “não-ocidentais” utilizam-se de ritmos contínuos e
100
O mesmo raciocínio pode ser aplica a outras formas de monotonia em música, como cadências repetidas,
modulações que não conduzam a cadências finais, etc...
101
Ainda que Schoenberg tenha utilizado o ostinato como um recurso expressivo, como em Pierrot Lunaire, nº8 Nacht,
ele utiliza esse elemento como uma referência a uma tradição mais antiga da música europeia, remetendo aos
ostinatos do barroco, como em Sarabandas de suítes e padrões retóricos de óperas, como o tetracorde descendente
menor (SCARINCI & KUBO, 2010).
102
Ainda que no minimalismo de Reich e Part o ostinato tenha sido usado como uma textura, que mesmo sendo
repetida, se submete a diversas alterações no grande tempo das peças, segundo os métodos próprios do minimalismo
(CERVO, 2005). Villa-Lobos faz uso diferente dos ostinatos, os utilizando como texturas sólidas que não possuem
um desenvolvimento em médio e longo prazo no tempo de suas obras de temática indígena.
202
marcados por pulsos em suas manifestações sonoras. Essa dualidade reforça minha hipótese da
construção dialógica entre essa negação do familiar e afirmação do exótico. Um breve caminhar ao
princípio da carreira musical mais expressiva de Villa-Lobos, nos anos 10, nos mostra um
compositor muito interessado na escola francesa representada por Debussy, um orientalista (mesmo
que não tenha utilizado ostinatos com profusão). Na realidade, época e lugar são fundamentais para
que se entenda a aplicação desses recursos musicais e o processo composição/execução/recepção da
música em análise.
Ainda na Paris dos anos 20, o fascínio pelo exótico (presente a muito tempo na cultura
francesa, como falado no primeiro capítulo da dissertação) se misturava com as tendências
modernistas do início do século XX, sugerindo aos artistas uma produção que renovasse a arte
usando, como paletas de significados, o exótico – aquilo que não sou eu. Juntamente a esse fascínio
pelo exótico – e, por conseguinte, o selvagem – a composição baseada nos construção da obra pelas
operações com texturas em detrimento das categorias melodia e acompanhamento, tradicionais,
tomam vulto na obra de muitos compositores, como Stravinsky 103, e o ostinato se prestava muito
para esse fim; é uma textura extremamente independente, com um tempo muito particular derivado
dos seus ciclos de início e fim curtos e que reforça sua identidade pela ênfase na estrutura rítmica e
motívica que o forma.
O ostinato e sua essência enquanto textura musical autônoma pode ser encontrada em
diversas músicas do continente africano. Freitas (FREITAS, 2008) ao analisar o ethos afro-
americano no Jazz de Miles Davis, em especial a sua fase do Jazz modal (do final dos anos 50), fala
do ostinato do baixo como uma representação do passado africano e uma projeção ao futuro
próximo do Jazz. Nas suas palavras, e citando Barret (BARRET, 2006):

Barrett traz uma série de apontamentos sobre as demais características que


contribuem para o estabelecimento desse éthos modal afro-moderno encontrado
nessa fase da música de Miles Davis, tais como: o traço da economia que pode ser
observado em diversos parâmetros musicais; o traço do estático valorizado pelos
vários padrões ostinatos que compõe o álbum e pela permanência de acordes por
vários compassos; a fragmentação e a reorientação de cifras convencionais; as
montagens de acordes por quartas em posições ambíguas e de múltiplas
funcionalidades; a condução paralela das vozes, o timbre, a articulação, a
respiração, etc (FREITAS, 2008, p.455, nota 14) 104.

O interesse dos europeus pelas artes consideradas primitivas e exóticas não foi exclusivo dos
músicos, como a citação de Schoenberg deixou claro (SCHOENBERG, 2001, p.64, rodapé). Pablo

103
Sobre a importância da textura como elemento estrutural na composição de Stravinsky ler o ensaio clássico de
Edward T. Cone (CONE, 2007).
104
É interessante observar a referência aos acordes de quarta na citação de Freitas, mostrando mais uma vez como as
referências se cruzam. As estruturas quartais se tornaram icônicas na representação do não-europeu de uma maneira
bastante abrangente.
203
Picasso baseou seu estilo de pintura mais conhecido, o Cubismo, em sua fase Africana, onde a
influência das artes visuais africanas lhe ofereceu as formas geométricas com meio de retratar sua
visão de mundo; o resignificando (KONERDING & MURILLO, 2004). Comparativamente, o
ostinato aparece também como uma maneira de se significar o exótico qual seja ele – o indígena em
Villa-Lobos, o primitivo ou bárbaro europeu em Stravinsky e Rimsky-Korsakov -, reler sua própria
cultura com um elemento “estranho” que leva a nova criação e reflexão.
Na verdade, a questão arquetípica que o ostinato parece envolver é a ressonância entre o
binômio desenvolvimento-estaticidade e o binômio ocidente-oriente. Essa questão pode ser
simpática à visão de Levi-Strauss das diversas histórias e desenvolvimentos humanos, no seu texto
Raça e História (LEVI-STRAUSS, 1978). Neste texto, Claude Levi-Strauss argumenta que não há
um sentido de história único, com uma única direção e teleologia, mas que cada cultura possui um
pensamento acerca da sua existência e relação com a natureza e meios de produção e tecnologia e
todas essas questões se relacionam com os seus propósitos de existência, que se relacionam com
suas crenças e visão cosmológica. Afirmando isso, Levi-Strauss ataca o etnocentrismo característico
dos pensamentos históricos e antropológicos que julgavam os povos com tecnologias, políticas e
religião consideradas menos desenvolvidas como primitivos. Levi-Strauss também pensava, como
estruturalista, nessas relações binomiais e suas correspondências, em diversas esferas da experiência
humana – entre mito, música, linguagem e pensamento matemático, por exemplo (MENEZES
BASTOS, 2008). Digo tudo isso para sustentar o argumento de que o ostinato, per si, evoca
conceitos abstratos que se tem acerca das populações ‘primitivas’ como a simplicidade técnica, a
repetição ritual, e a construção da música não pelo interesse melódico e harmônico, mas pela
experiência da dilatação do tempo em sua contrapartida, sua redução a ciclos curtos com pouca ou
nenhuma alteração em curto prazo.
Mesmo em termos “estritamente” musicais a questão dos diferentes ciclos de
desenvolvimento e seus períodos, abordada no texto de Levi-Strauss, encontra uma analogia
bastante clara. O ostinato, com seu período curto, remete a um estilo de vida que progride de forma
mais cíclica e estática do que linear e progressiva, com menos variações e embates – que encontram
na tonalidade e seus desenvolvimentos uma analogia bastante interessante (tensões, tônica, escalas,
graus, “motivo”, etc.). Nessa situação, talvez o pensamento estruturalista e binomial possa ajudar a
entender as correspondências entre as estruturas musicais e seus significados e as relações de
experiência do tempo musical e histórico das sociedades ocidentais e as ditas ‘primitivas’.
Trazendo para a discussão acerca da representação do ostinato especificamente a questão do
índio brasileiro a que Villa-Lobos gostaria de evocar. Além da relação genérica desse índio com o
conceito genérico do selvagem, existe alguma relação intrinsecamente sonora entre o ostinato e esse
herói de Villa-Lobos?
204
Fato é que o conceito do ostinato não se aplica a música indígena com a qual Villa-Lobos
teve contato. O ostinato é uma categoria da música europeia; como seu próprio nome diz, ele é
obstinado, contrário a alguma coisa. O ostinato só pode ser compreendido quando há o não-
obstinado, a melodia, o desenvolvimento das vozes, algo que seja progressivo linearmente, em
desenvolvimento, contra o qual se perceba o ostinato como um contraste, uma identidade
‘polifônica’ texturalmente falando. O conceito que Villa-Lobos parece procurar trazer com a
utilização do ostinato grave – além de toda carga de primitivismo – é a estaticidade, caracterizada
de maneira peculiar pela repetição desse motivo. É uma evocação ao estilo de vida do “selvagem
indígena”. Não digo especificamente monotonia porque dependendo do uso do motivo ostinato e
sua duração, Villa-Lobos desenvolve outras texturas de tal forma que há muita novidade e
desenvolvimento na obra, a ponto de obscurecer a monotonia que talvez fosse característica do
ostinato – monotonia essa que recebe às críticas de Schoenberg (2008). Nesse contexto, o conceito
estaticidade é mais aceitável do que o simples termo monotonia, inclusive pelo sentido literal que o
termo possa vir a adquirir quando se fala de música. Apesar de utilizar ostinatos de apenas uma nota
em algumas músicas – como em Canide Ioune – Sabath e Iára – isso não é uma regra: Villa-Lobos
trabalha em outras canções ostinatos diversos, com maior número de notas e certo
desenvolvimento105. Entretanto, a utilização do termo estaticidade – como alusão a algo que não
muda, ainda que se mova melodicamente na sua estrutura interna – pode ser entendida da mesma
forma como se aplica para o uso da nota pedal nas músicas do repertório tradicional erudito:
enquanto todas as vozes e/ou instrumentos se desenvolvem livremente, rumando para uma
resolução melódica e harmônica, uma outra voz se mantém estática e grave, aguardando o
derradeiro desenvolvimento da melodia para poder, encontrar, enfim, seu repouso.
Apesar dessa comparação entre os conceitos de estaticidade presentes no ostinato e na nota
pedal, uma distinção importante deve ser feita. A estaticidade da nota pedal é relativa, no sentido de
que sua função teleológica não é obscurecida: o pedal geralmente está sobre um acorde de
dominante esperando para ser resolvido. A estaticidade da nota pedal é resultado da quebra de rotina
do desenvolvimento ‘normal’ da música – onde todas as vozes se desenvolvem conduzindo o ritmo
harmônico de maneira convencional. Entretanto, a nota pedal carrega consigo outro conceito, o de
suspensão, que adiciona à estaticidade uma função temporal, tornando-a essencialmente um recurso
retórico. O ostinato, por sua vez, não carrega consigo essa suspensão, pois ele se livra dessa
demanda, deslocando-se – como textura independente – para outro plano da música, onde, ainda
que suas relações intervalares e texturais sejam compreendidas na relação com as outras vozes, ela
possua independência tal que se desprende até do tempo do início e fim da música. Podemos

105
Observe, por exemplo, a análise detalhada do ostinato em Teirú, no segundo capítulo.
205
reforçar essa interpretação quando percebemos que grande parte das canções indígenas de Villa-
Lobos (Os Três Poemas Indígenas, Nozani-ná das Canções Típicas Brasileiras, por exemplo) são
iniciadas e terminam apenas com seus ostinatos, como que sinalizando que estes ocorrem numa
dimensão paralela e anterior ao desenvolvimento musical que as melodias e acordes propiciam ao
ouvinte. Estaticidade é um dos arquétipos que formam o conceito de índio de Villa-Lobos. Esse
arquétipo se manifesta musicalmente de diversas formas em suas obras. Em Teirú dos Três Poemas
Indígenas, por exemplo, Villa-Lobos trabalha estaticidade através da relação entre melodia e
acompanhamento harmônico da seção Acordal. Ao repetir a mesma sequência harmônica e a iniciar
em momentos diferentes da melodia que esses acordes primeiramente acompanhavam – por causa
dos ciclos periódicos diferentes entre melodia e piano -, Villa-Lobos desloca esses acordes de
acompanhadores da voz, para textura independente, que se move noutro tempo ‘musical’; estáticos,
inexoráveis, não se importam com inícios e fins das outras estruturas, para se adequarem.
Em Iára, também dos Três Poemas, o próprio poema escrito por Mário de Andrade ressoa
esse arquétipo de estaticidade que o mito toma – ainda que mutante, como o poema e a música de
Villa-Lobos demonstram. Nas palavras de Souza:

Ao resgatar a forma popular do rondó no “Poema”, Mário reescreve em voz erudita


a crença popular no mito da Iara, bem como a musicalidade típica das vozes do
povo. “Neste rio tem uma iara...”, verso de abertura do poema, que se repete ao
final, é, portanto, o estribilho constante formador do rondó. A repetição do refrão
faz ressoar, no poema a crendice popular, reafirmando o mito da Iara. Os três casos
que nos conta o poema – a Iara ‘feiosa’ vista pelo velho, o moço atraído para o
fundo do rio e o piá que teve a mão devorada por piranhas – são versões de um
mesmo episódio que é retomado e modificado, compondo, assim, o rondó. O
estribilho, ou refrão na forma musical do rondó, intercala-se aos episódios e o
poema, iniciado e finalizado por um mesmo verso, fica em aberto, como se após o
último refrão, ou antes do primeiro, existisse outros episódios, inúmeros casos, que,
alternando-se infinitamente com os estribilhos, contam sempre a história da Iara
(SOUZA, 2006, p. 126).

A música de Iára, como um todo, traz à dimensão sonora – ainda que num aspecto mais
conceitual do que sonoro - essa realidade da composição de Mário de Andrade; toda a construção da
obra é apenas um ciclo, que começa e finaliza no mesmo lugar musical, na melodia da voz: “Neste
rio tem uma Iára”. O arquétipo da estaticidade se reafirma. Alguém poderia argumentar contra esse
conceito de estaticidade que apresento, dizendo que em quase toda música de concerto do século
XVIII e XIX o acorde final é o mesmo que o primeiro, a tônica. Contudo há uma diferença a ser
ressaltada: a obra clássico-romântica possui características de desenvolvimento particulares, onde a
historicidade do motivo – sua aparição, seu desenvolvimento, etc – encontra no fim da música um
fim para a história daquela melodia, que se restringe àquela obra. Em outras palavras, além do

206
acorde final, há pouca ou nenhuma semelhança em questões narrativas (em melodia, progressão
harmônica, expressão) do início ao fim da obra. Em Iára, entretanto, a melodia da primeira frase
desaparece da música até que a mesma frase seja repetida ao fim da música, por duas vezes. Não há
historicidade; os desenvolvimentos motívicos – apesar de se relacionarem entre si no âmbito da
escolha dos intervalos – são esporádicos. A única referência temporal da obra de Villa-Lobos são os
‘a-há’ inseridos por Villa-Lobos como cortes da fluência de cada conjunto de versos e a repetição
literal e ‘estática’ do primeiro verso. Como pode se observar, a utilização do ostinato parece ser
uma, entre muitas outras, manifestação sonora do conceito de estaticidade que se atribuiu a
existência indígena, como um ‘primitivo’ que havia se mantido tal qual na ‘infância da humanidade’
até os tempos presentes106.
O motivo pelo qual Villa-Lobos escolheu o ostinato para ser um elemento estruturante de
algumas peças, como as três que compõe os Três Poemas Indígenas (vide suas simetrias,
recorrências durante toda a peça) parece ser a eficiência dessa sonoridade como significante do que
é indígena em sua música. Assim como em todas as outras estruturas com as quais representa o
indígena, Villa-Lobos desenvolve o ostinato com interesses diferentes em cada composição, bricola,
transforma, mas mantém o caráter estático na dimensão rítmica, sem tornar a ‘melodia’ do ostinato
interessante a ponto de ser um motivo musical convencional (e demandar seus desenvolvimentos,
variações, etc). Villa-Lobos procura transtraduzir o conceito de repetição, presente na música
indígena - como um elemento formativo importante dessa música - para a música erudita; mas não
pode, obviamente, trazê-lo de maneira impositiva, com sua duração e como único elemento
musical. Tal ação traria bastante desagrado e não seria artístico segundo a estética musical da
época107. Logo, o ostinato precisa ser inserido num contexto musicalmente interessante do ponto de
vista ocidental – colocado sob uma rica construção com texturas musicais variadas, onde ainda seja
ouvido e entendido como ‘repetitivo’ mas predomine, na obra musical, o conceito de riqueza e
variedade, que vem também, paradoxalmente, da acepção do ostinato como mais uma textura para a
composição. Demonstra, assim, também nesse elemento musical, aspectos particulares de sua
criatividade e define seu estilo musical. Uma questão importante, que deve ser levada em
consideração, é que o ostinato também unifica os Três Poemas Indígenas como obra completa, além
de unificar as obras individuais que a compõe.
Em Canide Ioune – Sabath, por exemplo, utilizando o ostinato do primeiro compasso
durante toda a canção, composta por duas canções indígenas diversas (MELO, 1947) Villa-Lobos
assegura uma identificação das duas canções com uma obra coesa que esse primeiro poema intenta

106
Essa visão sobre a estaticidade das culturas indígenas é extremamente obsoleta. Estudos antigos e recentes
comprovaram, pelo contrário, o caráter assimilador e dinâmico de diversos povos não-ocidentais (MENEZES
BASTOS, 1999; NETTL, 2005).
107
Talvez esse ponto de vista tenha sido contemplado pelo minimalismo na segunda metade do século XX.
207
ser. Já no segundo poema, Teirú, Villa-Lobos intercala partes de acordes com partes de ostinatos,
constituindo a obra nessa variação dinâmica. Em Iára, faz o mesmo, de maneira menos periódica,
com a figura da colcheia em SI Bemol, que funciona como um ostinato/pedal. No contexto de todos
os Três Poemas Indígenas, então, o ostinato é uma figura que além de tornas as obras individuais
coesas, torna o conjunto das três autorreferente.
Para finalizar, é bom relembrar que Villa-Lobos não estava sozinho no uso desse elemento
musical. Stravinsky utiliza ostinatos em a Marcha do Soldado e na Sagração da Primavera, e
outros compositores como Bartók, Hindemith, Schoenberg e Webern também o utilizavam108.
Entretanto, mesmo elaborando através desses recursos elementos de exoticidade como outros
compositores, existem características peculiares da utilização do ostinato quando Villa-Lobos
procura representar o ameríndio. Villa-Lobos constrói os ostinatos em suas composições com
melodias de alcance pequeno, geralmente os movimentos são de segunda (como em Teirú, ou em
Saudades das Sélvas Brasileiras) ou uma única nota (Como em Canide Ioune – Sabath e parte de
Iára). A questão rítmica do ostinato em Villa-Lobos também merece discussão. O compositor dá
prioridade aos tempos fortes e as partes fortes dos tempos (“cabeça” do tempo) remetendo, de certa
maneira, aos passos fortes e conjuntos dos aborígenes a dançar em rituais. Percebemos, aqui, outra
referência a uma autenticidade sonora na representação do índio. Esse elemento somado a uma
divisão rítmica considerada simples surge também nas transcrições melódicas de Edgard Roquete-
Pinto e é utilizada por Villa-Lobos nestes ostinatos, para representar a diferente dimensão do tempo
e experiência de vida indígena – entendida pelo ocidental como estática - sendo quase monótono no
sentido literal do termo. Há outros recursos músicas que reforçam essa ideia de monotonia mais
diretamente. Um deles é a preferência pelas melodias construídas sobre pulsos fortes e suas divisões
binárias e é do que falarei a seguir.

3.6 A ‘horizontalização’ da estaticidade: o fluir da melodia na representação do


índio em Villa-Lobos

Nessa parte do capítulo farei uma discussão de maneira semelhante à primeira seção do
capítulo, discorrendo sobre o tema enquanto apresento os exemplos. Farei isso porque a explicação
de alguns conceitos pode ser repetitiva neste estágio final do capítulo e a utilização de exemplos
musicais situa esses conceitos de uma forma específica, tornando a informação mais rica, direta e
menos repetitiva.

108
Respectivamente em m Quarteto de cordas No. 4, Op. 32, último movimento; Pierrot Lunaire, No. 8, "Nacht" e
Passacaglia para Orquestra, Op. 1.
208
Em diversas composições de temática indígena em Villa-Lobos o tema melódico e seus
diversos desenvolvimentos e/ou ressonâncias (SALLES, 2009) são construídos sobre pulsos e/ou
suas subdivisões binárias em figuras rítmicas simples. Esses grupos rítmicos geralmente podem ser
divididos no contexto da melodia como inteiros de dois pulsos (o pulso forte e o fraco, ou o pulso e
o contrapulso). Alguns exemplos de figurações rítmicas que incorporam esse princípio são os
seguintes:

Figura 182 Algumas figurações rítmicas binárias que agrupadas formam a estrutura rítmica da maior parte dos temas
indíegnas em VIlla-Lobos

Em Amazonas, por exemplo, tanto o tema principal quanto o acompanhamento textural se


movem em ‘tempos cheios’, na figura da semínima:

Figura 183 Tema de Amazonas, estruturado sobre semínimas (c.1-2)

Figura 184 Acompanhamento do Amazonas, construído exclusivamente sobre semínimas, de pulso (c.5-6)

Nas diversas canções de temática indígena do Canto Orfeônico, percebemos a utilização dessas
estruturas de semínimas e suas subdivisões binárias e ternárias por Villa-Lobos:

209
Figura 185 Exemplos de figurações rítmicas em CANTOS DE ÇAIRÉ Nº1: (c.1-4), CANTOS DE ÇAIRÉ Nº2: (c.1-4),
CANTOS DE ÇAIRÉ Nº3: (c.1-4)

Em Uirapurú Villa-Lobos utiliza essas divisões em diversas partes da orquestração. Ele


reforça o entendimento dessas divisões em tempos cheios como pulsos e tempos fortes à medida
que insere acentos sobre essas melodias:

Obviamente, esses padrões rítmicos podem estar escritos com outras figuras, como colcheias
e semicolcheias, não perdendo assim seu caráter de pulso. Podemos perceber essa configuração nas
Danças Características Africanas.

210
Figura 186 Pulso em colcheias e suas subdivisões e, semicolcheias em Kankikis (c.4-5)

Nos Três Poemas Indígenas percebemos essa configuração em cada uma das três peças.
Nesse contexto, essa estrutura rítmica pode ser decantada como um aspecto muito importante da
caracterização do índio no conjunto da obra. Um aspecto relevante que pode ser constatado é que,
muito embora as melodias de Canide Ioune – Sabath e Teirú tenham sido recolhidas em tribos e
harmonizadas/ambientadas por Villa-Lobos, a melodia de Iára foi composta por ele mesmo. Sendo
assim, o compositor construiu melodia de Iára sobre as estruturas de pulso e divisões binárias por
opção de manter esse elemento de retórica indígena que ele parece prezar tanto. Nesse ponto a
discussão parece conduzir à pergunta: por que Villa-Lobos utiliza esse elemento tão frequentemente
na descrição ‘melódica’ – e também na dimensão do arranjo instrumental, como vimos em
Uirapuru e Amazonas – do índio?
Uma hipótese bastante razoável vem da observação das transcrições de música indígena com
as quais Villa-Lobos teve contato. A grande maioria delas – e de outras presentes no livro Rondônia
(ROQUETE-PINTO, 1938) que não foram utilizadas por Villa-Lobos, é construída por esses
padrões rítmicos. Mostrarei algumas transcrições extraídas desse livro para exemplificar essa
constatação. Observe a figura abaixo:

211
Figura 187 Nozani-ná: transcrição em Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938)

A construção de Nozani-ná – melodia utilizada em diversas composições por Villa-Lobos


(MOREIRA & PIEDADE, 2010) - é feita sobre estruturas de pulso: durante toda a canção as
durações de 1 tempo se seguem, sendo as frases divididas pelas durações de três tempos. Também
podemos notar a predominância do uso de intervalos melódicos de segundas e terças menores. Aqui
também percebemos que mais um padrão rítmico é inserido a nosso repertório de padrões
melódicos indígenas (com base nas transcrições): o pulso de um tempo seguido pela duração de três
tempos (entre sons e pausas, até a próxima nota).

212
Figura 188 Observe na repetição da palavra etê, na nota MI do segundo compasso (a partitura está em clave de Sol) do
exemplo a proporção 1 para três. Ela será enfatizada durante toda a canção

Villa-Lobos utiliza o mesmo padrão rítmico – e os saltos de terça menor - em suas Saudades
das Sélvas Brasileiras, nº1:

Figura 189 Padrão rítmico de Nozani-ná utilizado e elaborado por repetição em Saudades das Sélvas Brasileiras, nº¹ (c.35-38).
Observe a ênfase nos saltos melódicos paralelo de terça menor entre os acordes de quartas sobrepostas. Esse é um caso
especial da retórica indígena de Villa-Lobos

O mesmo padrão rítmico – e que também valoriza as terças menores – pode ser encontrado
na introdução de Iára:

Figura 190 Em Iára, dos Três Poemas Indígenas, Villa-Lobos utiliza a proporção rítmica 3 para 1 na sequência dos pulsos,
bem como os intervalos de terça menor e segundas além da repetição de uma nota na mesma duração (Si natural do
compasso 8). Todos esses elementos estão presentes na melodia de Nozani-ná

Continuemos a observar os exemplos de transcrições em Rondônia (op. cit):

213
Figura 191 Transcrição do fonograma nº14.596 do livro Rondônia

Nessa transcrição podemos perceber elementos comuns à Nozani-ná, que parecem fornecer
algumas informações sobre características da música indígena retratada, através dos filtros através
dos quais foi lida por Villa-Lobos, a transcrição. Na transcrição acima observamos que a melodia
prossegue não por graus conjuntos numa coleção de várias notas, mas em saltos de terça e quinta,
em três notas MI, SI (agudo e grave) e SOL#. Nesse contexto se percebe o valor estrutural do salto
de terça, pela grande quantidade de trechos nos quais o fluir da melodia é constante sobre o salto SI
214
– SOL# (como nos compassos 3-8). Outra característica da melodia que a relaciona com Nozani-ná
é a rítmica desse excerto, onde a melodia se move por pulsos (um a um) ou na relação 3 para 1
invertida (1 para 3), como o exemplo abaixo mostra.

Figura 192 As notas MI, SI e SOL# como estrutura - a ênfase nas terças - e a repetição das notas SI e MI pelas duas vozes,
reforçando a relação 1 para 3 nas durações da melodia

A melodia de Iára , por ser a única dos Três Poemas Indígenas a ser composta por Villa-
Lobos é um exemplo especial para revelar como a criatividade do compositor dialogava com o
material indígena que esse encontrava nos livros. Há um paralelo a ser traçado entre o exemplo
acima e o excerto musical de Iára abaixo:

Figura 193 Iára, compassos 107-109

Assim como no fonograma 14.596, a melodia acima é construída exclusivamente pela a


alternância entre duas alturas que distam uma terça menor uma da outra (SI bemol e RÉ bemol). O
motivo melódico das duas canções também está construído sobre colcheias. Parece que Villa-Lobos,
além dos intervalos e figurações rítmicas, extraiu das transcrições uma espécie de ‘visualidade’
onde as colcheias melhor representam o pulso como unidades básicas da construção da melodia
indígena.

215
Figura 194 Transcrição do fonograma 14.595 (ROQUETE-PINTO, 1938, p.329)

A música pareci transcrita acima é construída, na dimensão rítmica do pulso, por colcheias e
semínimas ocasionais nos fins das frases. Na dimensão motívica, percebemos uma célula que será
desenvolvida:

216
Figura 195 Motivo melódico dos primeiros dois compassos da transcrição do fonograma 14.595. Observe a condução por
grau conjunto, numa espécie de anacruse que conduz ao FÁ#, acentuado

O motivo inicial dessa canção é bastante claro e utilizarei terminologias familiares aos
leitores para demonstrar a minha leitura desse motivo. Partindo de RÉ, a melodia progride por graus
conjuntos à FÁ#, onde se estabiliza e se afirma, pelo destaque que o acento dá ao FÁ# e pela
passagem pela nota vizinha, MI. Após essa afirmação de FÁ#, a melodia desce por graus conjuntos
de volta a RÉ, terça maior descendente de FÁ#, nota de onde a música iniciou. A melodia consiste
de três fragmentos, demonstrados abaixo:

Figura 196 A): Afirmação de uma nota pela repetição; B): Afirmação de uma nota pela apojatura sobre ela, C): progressão
melódica descendente por grau conjunto

Nos primeiros 10 compassos da transcrição da canção, essas ideias motívicas são


desenvolvidas como pode ser visto abaixo:

Podemos observar, em cada uma dessas quatro frases, relações de terça e quarta entre as
notas que são acentuadas no canto e as notas que finalizam as frases (ou seja, entre duas notas
salientes nas seções). Como já vimos nesse trabalho, esse intervalos são usados em profusão por
Villa-Lobos em suas composições de temática indígena, tanto na dimensão melódica –
prioritariamente – quanto na dimensão harmônica.
217
Figura 197 As relações intervalares dos pontos fortes da melodia (notas acentuadas e graves: em vermelho as terças e em
verde, as quartas)

Observando todas as notas que são acentuadas pelo canto, poderemos perceber uma linha
melódica que progride por graus conjuntos, enfatizando a relação de segundas, um intervalo
também muito utilizado e destacado na composição de temática indígena em Villa-Lobos.

Figura 198 Movimentação por graus conjuntos entre as notas de maior acentuação dinâmica forma a melodia FÁ#, MI, RÉ,
MI, RÉ

Essa digressão analítica – de caráter ensaístico, uma vez que essa dissertação não pretende
abordar processos técnicos de análise de música não ocidental - serve para abrigar a discussão
acerca da utilização da bricolagem por Villa-Lobos sobre temas indígenas. De um material musical
curto - como a melodia dos primeiros dois compassos desse fonograma – o compositor ou
compositora indígena desenvolveu boa parte da canção, com variações e reiterações que garantiram
sua maior duração. Num processo semelhante Villa-Lobos utilizou algumas melodias (ou
fragmentos específicos delas) e as desenvolveu, estabelecendo um processo de busca de
consistência para sua própria composição. Um exemplo bastante claro desse procedimento
composicional pode ser observado em Introdução aos Choros.
Nessa obra, Villa-Lobos utiliza parte do tema de Nozani-ná como ‘mote’, utilizando seus
fragmentos e bricolando de diversas formas. A seção de Nozani-ná que é utilizada na Introdução
aos Choros compreende o primeiro e o segundo versos da canção indígena:

218
Figura 199 Os versos de Nozani-ná utilizados como 'matéria-prima' para o desenvolvimento motívico da Introdução aos
Choros

Villa-Lobos, com base nesse pequeno trecho de Nozani-ná, constrói uma miríade de motivos
musicais que ressoam o tema de Nozani-ná, como uma referência. Um desses materiais ressoantes
mais fortes de Nozani-ná na Introdução aos Choros são as figuras rítmicas, majoritariamente em
oposição como durações curtas (pulsos) e longas (fins de frases).
Para entender melhor a maneira pela qual Villa-Lobos faz sua construção e reaproveitamento
do tema de Nozani-ná, devemos dividir o verso utilizado em Villa-Lobos pelas sua unidades
rítmicas menores, demonstrando suas diversas possibilidades de categorização:

Figura 200 Motivos melódicos internos ao tema de Introdução aos Choros

Na primeira linha divide-se em três motivos o tema: 1) movimento ascendente de segunda


seguido de salto de terça menor; 2) motivo ziguezague de terça seguido de quarta (SALLES, 2009);
3) repetição de nota.
Na segunda linha se percebe uma interversão na qual o motivo a1 é um arranjo diferente dos
dois elementos utilizados em a numa espécie particular de simetria translacional (op. cit). Em a

219
temos a segunda SOL-LA e um salto ascendente de LÁ para DÓ; já em a1 a direção do salto é
modificada, sendo uma quarta descendente.
Na terceira linha o motivo A compreende um movimento ascendente (segunda SOL-LA),
um salto ascendente (terça menor LÁ – DÓ) e sua compensação, o movimento descendente (DÓ –
SI, segunda menor). O B corresponde ao a1 da segunda linha, e o C, a repetição de notas da
primeira linha.
Villa-Lobos utiliza em cada parte da composição um arranjo diferente dos elementos
motívicos que constituem o tema da Introdução aos Choros, extraído, como sabemos, de Nozani-
ná. Vejamos por exemplo, a apresentação do tema ao flautim, nos compassos 9-13:

Villa-Lobos desenvolve, a partir do compasso 10, a melodia utilizando os fragmentos


rítmicos do próprio tema.

Figura 201 Em Azul, fragmentos melódicos do tema relativos ao motivo 3, em verde ao motivo 1

Villa-Lobos utiliza a repetição da nota SOL, o motivo 3, como um marco de ressonância, e


mudando o contexto, sua configuração rítmica e melódica desenvolve a música de maneira fluída,
na dinâmica do momento musical, diluindo, de certa forma, a concepção tradicional da forma
musical. Do motivo 1 ele mantém os intervalos de segunda e terça, com a diferença de que ao invés
de resolver no SI após a nota DÓ, a melodia sobe uma segunda, indo para RÉ.
Em diversas situações da música Villa-Lobos utiliza combinações desse motivo. Mais um
exemplo será enriquecedor para a compreensão das particularidades de Villa-Lobos ao trabalhar
com esses recursos em diversos momentos de suas composições.

220
Figura 202 Em Azul, variações do motivo 1. Em verde, do 2 e em vermelho do 3

Nessa seção Villa-Lobos utiliza na ordem original os motivos do tema, 1, 2 e 3. Contudo, os


apresenta com o dobro da duração – de semicolcheias, surgem colcheias. Ele transforma o motivo 1
por simetria translacional, onde muda de altura essa seção (de SOL, inicia em LÁ). O motivo 2
mantém sua principal característica, o ziguezague. Ele é transformado, entretanto, na sua altura e
nas relações entre as notas formadoras desse motivo (como a repetição de nos tempos fortes do
ziguezague). Já o motivo três e apresentado idêntico em ritmo e altura, inclusive com o devido
destaque que o staccato lhe dá. Vamos observar a última transcrição de fonograma que será
utilizada nessa seção do capítulo:

Figura 203 Fonograma nº14.594 de Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938)

221
A principal diferença a ser notada nessa transcrição é a utilização do compasso 3/8. Nesse
contexto, os pulsos são três por compasso, o que insere mais um grupo rítmico que pode ser
utilizado para compor a melodia de caráter indígena – quando se baseia nas transcrições para a
composição, o que parece que foi feito por Villa-Lobos.
De fato Villa-Lobos utilizou subdivisões ternárias dos tempos dos compassos, como
tercinas, o que também pode ser observado com frequência em Iára. Ainda que a maioria das
canções fosse sobre compasso binário, volto a argumentar que Villa-Lobos pensava a melodia
indígena por pulsos, e a maneira de destacar o elemento ‘ternário’ na sua música de caráter indígena
é a subdivisão do pulso forte em três outros elementos. Vamos observar essa dinâmica em Iára.

Na figura acima percebemos que no início da música – seu primeiro compasso - a divisão do
pulso em subpartes ternárias idênticas já se assegura como algo importante na canção. Mais a
frente, no segundo verso do poema esse procedimento reaparece:

De fato, a tercina foi incorporada como um elemento discursivo do indígena em Iára. Se


prosseguirmos observando a recorrência da tercina na melodia de Iára nos depararemos com
inúmeros exemplos do uso desse ‘motivo’ na canção. Um último exemplo bastante representativo se
encontra no compasso 20:

Na série Cantos de Çairé do segundo volume do Canto Orfeônico, Villa-Lobos retrata


melodias indígenas fartas de tercinas, como subdivisões iguais do pulso, alternando-se com as
divisões binárias do tempo. Observe as figuras abaixo:

222
Figura 204 Tercinas em Cantos de Çairé nº1: (c.1-4)

Figura 205 Tercinas em Cantos de Çairé Nº2: (c.1-4)

Como pudemos observar, as melodias de caráter indígena em Villa-Lobos possuem um perfil


no qual são valorizados os padrões rítmicos do pulso e suas divisões binária e ternária. Também
como pode ser extraído dos exemplos das transcrições, Villa-Lobos provavelmente tomou essas
partituras por inspiração para compor suas peças de caráter indígena, mesmo naquelas composições
que não são referentes a nenhuma transcrição ou música específica (como as que foram compostas
inteiramente por Villa-Lobos). Segundo Lisa Peppercorn (PEPPERCORN, 2000) Villa-Lobos teve
acesso aos fonogramas das expedições de Roquete-Pinto.

No início da carreira, Villa-Lobos havia mostrado um grande interesse pelas


melodias folclóricas e etnográficas coletadas por Edgard Roquette Pinto nas suas
expedições às regiões ainda não exploradas no Brasil. Junto com Lucília [sua
esposa], ele visitou o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, para ouvir as gravações
desses temas folclóricos e guarda-los de memória (PEPPERCORN, 2000, p. 71)

Segundo Manoel Corrêa do Lago (LAGO, 2003) Villa-Lobos teria recebido indicações
acerca dos fonogramas com o próprio Roquete-Pinto, e sua citação abaixo detalha com muito
cuidado a dinâmica das relações de Villa-Lobos com as transcrições e os fonogramas, de um
aspecto geral, inclusive com as transcrições do livro de Jean de Lery (LERY, 1585):

Uma parte dos fonogramas realizados por Roquette Pinto, durante sua expedição de
1912, foi transcrita e publicada no seu livro Rondônia (3. ed. Rio de Janeiro: Cia.

223
Editora Nacional, 1935, p. 323-333). Os documentos utilizados de forma mais
reiterada por Villa-Lobos foram os fonogramas 14597 (Nozani-ná), 14594-95
(Ualalocê) e Teirú (sem indicação de fonograma). Diferentemente de Teirú,
Nozani-ná e Ualalocê, o tema Ena –Mokocê-Maká não está transcrito em
Rondônia. Segundo Aloysio de Alencar Pinto, esse tema ou constaria de
fonogramas não transcritos em Rondonia, ou teria sido transmitido oralmente por
Roquette Pinto (que tinha formação musical e chegou a publicar composições) a
Villa-Lobos. A descrição feita por Roquette Pinto das circunstâncias em que ouviu
Ena –Mokocê-Maká (1935 :127), diferentes daquelas em que realizou a gravação
dos fonogramas (1935:128), parece reforçar a segunda hipótese. Tampouco podem
deixar de ser mencionados, entre os temas indígenas com importância na obra de
Villa-Lobos equivalente a dos cantos Parecís, os cantos tupinambás Canindê-
Iounde e He-Heura, documentados no séc. XVI por Jean de Lery em seu clássico
Histoire d´un Voyage fait en la terre du Brésil, em relação aos quais Elza Cameu,
em Introdução ao Estudo da Música Indígena no Brasil (Rio de Janeiro: Conselho
Federal de Cultura, 1977), demonstrou o grande número de variantes nas edições
que se sucederam a partir de 1585. A versão utilizada por Villa-Lobos coincide
com aquela reproduzida por Guilherme de Melo (Música no Brasil. Bahia:
Tipografia São Joaquim, 1908) [nesse trabalho: (MELO, 1947)] (LAGO, 2003)

O exemplo abaixo é ótimo para demonstrar a que medida Villa-Lobos parece ter utilizado as
transcrições dos livros, as transcrições dadas por Roquete-Pinto bem como a audição dos
fonogramas como fonte de material musical para suas composições.

Figura 206 Teirú: transcrição de Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938). Sem indicação de fonograma

Na transcrição de Teirú, acima, percebemos um erro no preenchimento do segundo


224
compasso. A canção foi transcrita sobre um compasso 2/2, e no compasso 2, percebemos que falta
¼ de tempo para completar a duração do compasso. Uma hipótese é que o editor tenha se esquecido
de adicionar um ponto de aumento à última nota, o que completaria os dois tempos do compasso.
Observemos agora a melodia inicial de Teirú, o segundo poema indígena, na edição original, para
voz e piano:

Apesar de Villa-Lobos ter utilizado a mesma armadura de clave, figura de compasso,


desenho rítmico e ‘posição’ da melodia em relação à barra de compasso da transcrição de Teirú, o
compositor corrige a falta cometida pelo editor, tornando a semínima sobre a sílaba zê, da palavra
harênezê, uma semínima pontuada. A hipótese de que o erro nessa edição de Rondônia de 1938
tenha sido repetido nas anteriores, faz-nos pensar a respeito do processo da relação de Villa-Lobos
como esses textos, e como se constrói a relação dialógica entre eles. Observamos que Villa-Lobos
utiliza a mesma armadura de clave do exemplo e a mesma ‘entrada’ da melodia, a saber, no
contratempo do tempo de mínima (o que não é escondido pela partitura de Teirú, ainda que ele
tenha duplicado a duração do compasso de 2 tempos para 4). Apesar de oitavar a melodia, em
comparação com a transcrição, ele mantém a configuração rítmica escrita da mesma forma.
Segundo Lisa Peppercorn (PEPPERCORN, 2000), Villa-Lobos e Lucília foram ao Museu
Nacional no começo da carreira do compositor para ouvir os fonogramas, e ele memorizou algumas
dessas melodias. De acordo com o comentário de Manoel Correa do Lago, citado acima, Roquete-
Pinto conversou com Villa-Lobos em certa ocasião. Fica claro que Villa-Lobos estabeleceu diversos
contatos com essas melodias, suas transcrições e fonogramas, essa é uma hipótese bastante razoável
para explicar a razão de ter transcrito a melodia na mesma ‘tonalidade’ do livro de Roquete-Pinto.
Outra questão é a opção de ter as mínimas como unidades de compasso; sendo o sistema de notação
apenas referencial, ele poderia ter escolhido outras maneiras para notar a melodia, mas fez a mesma
opção de Astolfo Tavares, musicólogo responsável pela transcrição dos fonogramas de Rondônia.
Talvez o compositor quisesse utilizar essa escrita, baseada nas mínimas, como um indicador do
andamento moderado, o que estabeleceria uma coincidência nessa escolha. Mas parece seguro
afirmar, como base no que foi dito por Manoel Correa do Lago (LAGO, 2003), que Villa-Lobos se
envolveu com essas transcrições. Entretanto, a correção da semínima de zê, em harêzênê, parece
indicar que Villa-Lobos tenha ouvido, de alguma forma, a melodia, ainda que essa não tenha

225
indicação de fonograma no livro. 109
A questão mais importante nessa discussão é o fato de que já está documentado que Villa-
Lobos teve acesso a esse material, e foi conhecido daquele que o recolheu. As análises feitas nesse
trabalho tem demonstrado as repercussões desse contato e influência na composição, como o uso
frequente – e quase exclusivo – de fragmentos melódicos extraídos dos exemplos das transcrições.
Sobre o uso do pulso e suas subdivisões na construção das melodias, podemos inferir que
Villa-Lobos concebia previamente o efeito dessa estrutura musical sobre a audiência que fruiria sua
música de temática indígena. Ele parece aplicar uma espécie de horizontalização do conceito de
indiferenciação110 que era figurado no paralelismo rítmico e harmônico de quartas, o estendendo de
maneira mais notável no plano da melodia. De fato, aqui podemos observar a operação de outra
transliteração musical, na qual Villa-Lobos utiliza fragmentos melódicos das transcrições indígenas
com as quais teve contato para compor suas músicas indígenas e insere essas ‘musicalidades’
estrangeiras na composição da sua música.
Em relação às figurações rítmicas de pulso e suas divisões binárias e ternárias, existem
algumas considerações semióticas que podem ser discutidas aqui. Da mesma forma que discuti
acerca da recepção do ouvinte ocidental dos procedimentos ostinato e complexifiquei a questão
dessa recepção na exposição do binômio exótico versus moderno que a constituíam, penso que seja
relevante fazer o mesmo no caso que temos observado. Mas antes devo fazer alguns últimos
comentários sobre as melodias das transcrições indígenas em si.
As melodias utilizadas por Villa-Lobos nessas canções são exóticas à medida que se
constituem enquanto identidades de maneira bastante diferente dos temas clássico-românticos que
se baseiam na tradição beethoviniana111. O tema beethoviniano é constituído de diversos
‘personagens’ individuais, que são os motivos; curtos e afirmativos, eles são citações claras e
precisas de uma ideia rítmica que construirá, junto com outras ideias rítmicas, o tema como um
todo. A melodia indígena das músicas que observamos nas transcrições é centrada sobre um

109
Como disse anteriormente nesse trabalho, alguns fonogramas da expedição de Roquete-Pinto foram masterizados na
Alemanha com patrocínio da Petrobrás, na parceria com o Phonogramm-Archiv do Museu für Völkerkund, de
Berlim no ano de 2008 (Disponíveis ao 21/09/2010 em
http://www.laced.mn.ufrj.br/projetos_colecao_doc_sonoros.htm). Infelizmente nenhum dos fonogramas discutidos
nesse trabalho foi remasterizado nessa parceria, impossibilitando uma pesquisa mais aprofundada acerca desse meio
provável de apropriação da música indígena por Villa-Lobos. Entretanto, a audição das outras gravações deu-me a
noção do grau de liberdade interpretativa a qual uma gravação do início do século XX pode ser submetida, ao se
levar em consideração a qualidade da gravação e a definição do som. Lembro também que o foco do meu trabalho,
apesar de discutir alguns temas periféricos, é a análise musical da obra de caráter indígena em Villa-Lobos, e a
recorrências de certos elementos dentro das obras de Villa-Lobos. Logo essa discussão sobre os fonogramas se
presta apenas para esclarecer alguns pontos dentro desse debate principal.
110
Chamo de indiferenciadas as estruturas semelhantes soando juntas, em paralelismo rítmico, criando uma unidade
estável que não as diferencia como estruturas individuais.
111
É notável que a grande maioria de exemplos acerca da construção motívica e harmônica utilizados nos tratados de
Schoenberg, tenham sido extraídos ou baseados na obra de Beethoven, demonstrando que o teórico compreendia, de
certa forma, Beethoven como um compositor modelar da tradição (SCHOENBERG, 2008).
226
princípio regulador único (ainda que não monolítico) – num paralelo que pode ser observado entre a
música modal e a tonal, num certo sentido112. As melodias são construídas, geralmente, sobre o
ritmo da palavra falada, o que confere ao pulso esse poder regulador e centralizador que temos
observados nas análises das transcrições. As unidades rítmicas das frases – talvez com sentido
paralelo ao do motivo na música ocidental – são mais longas e se desenvolvem por mudanças sutis.
De fato, as melodias de cada música possuem identidade definida e estão longe de serem todas
iguais – e isso pode ser observado logo numa olhadela nas transcrições – mas possuem alguns
parâmetros comuns, que aos olhos de um ocidental não-índio, seria critério para a classificação de
seu estilo ou gênero. A impressão que tenho é que essa música acontece a cada pulso, na repetição
da nota ou da mudança de altura por grau conjunto ou salto – por não ‘obedecer’ a quadratura e o
período musical clássico sempre surpreende e parece fluente. Existem elementos reiterados – como
pode ser observado na análise motívica superficial que fiz do fonograma 14.595 (p.214) – mas essas
reiterações são de acordo com o fluir da música e os elementos não são repetidos literalmente. As
reiterações e desenvolvimentos existem sem o conceito da repetição e da ‘compensação’ melódica
imediata. A música gravada em fonogramas e posteriormente transcrita não parece cultivar o
conceito de compasso da mesma forma que a música clássico-romântica da Europa113, ainda que em
Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938) os comentários e transcrições sejam de caráter comparativo.
Nesse sentido, pela inexistência do compasso – ou da prescrição rítmica ‘enjaulada’ - se reafirma a
importância do pulso, à medida que é o regulador dos eventos e é imediato, não apenas conceitual.
A música das transcrições – e dos fonogramas que ouvi - parece mais uma arte do ‘estar’ do que do
‘ser’, no sentido que constrói um espaço no tempo para a experiência humana, onde os sons se
sucedem nesse ‘espaço’ como acontecimentos sincrônicos, não importando exatamente a sequência
de aparecimento de estruturas ou rigor composicional (em termos ocidentais), mas sua presença ou
ausência no ‘espaço’ que a música cria.
A aplicação desses princípios composicionais por Villa-Lobos na criação melódica de suas
músicas transformou as melodias indígenas, elas mesmas, em novos ‘indivíduos’ que participam da
música ocidental, contam suas histórias particulares, são divididas em motivos menores, que
possuem interesse rítmico inerente e são desenvolvidas e modificadas segundo demandas de
orquestração ou harmonia. Contudo, possuem em si elementos característicos suficientes – a
começar pela estrutura em pulsos e suas divisões, somada a outras como características intervalares
– para que sejam consideradas ressonâncias (SALLES, 2009) das fontes primeiras de onde foram
retiradas, e conduzam o significado semiótico das mesmas no decorrer de trechos das obras de

112
A afirmação de uma nota central é menos ‘questionada’ na música modal – que possui um centro fixo – que na
música tonal que modula para várias regiões tonais.
113
Nesse aspecto se estabelece mais um paralelo entre a música indígena e o cantochão, e isso não deve ter ‘passado
desapercebido ao índio de casaca’ (ZANON, 2009).
227
Villa-Lobos. É claro que isso é mais perceptível nas obras que Villa-Lobos utiliza o tema indígena
inteiro – como nas Canções Indígenas e nos Três Poemas Indígenas- mas mesmo nessas melodias,
onde tanto o título quanto à proposta da composição parecem querer revestir as canções o mínimo
possível, a questão da recepção deve ser problematizada, por diversos motivos, sendo o mais claro
deles a relação complexa entre o acompanhamento/ambientação com a melodia indígena, já lida
pelos filtros da escrita musical ocidental.
Tanto o conteúdo modal das melodias indígenas, quanto a espécie de ‘modo rítmico’ que
elas parecem seguir parecem contribuir para o sentido de exotismo que é atribuído a elas, e a
utilização desses fragmentos musicais por Villa-Lobos parece comunicar esse mesmo sentido,
através do processo de ressonância114 e por um ‘manuseio’ particular do compositor, que mantêm as
principais características inerentes dessas melodias presentes nos diversos usos que faz, como a
estruturação por pulsos e suas divisões, progressões de graus conjuntos, ênfase nos intervalos de
segunda e terça menor.
Quanto à questão rítmica resta assinalar a remissão que o som do ‘pulso’ faz aos passos dos
índios nos rituais onde se executam as músicas. É comum no imaginário ocidental – assim como é
comum nos rituais indígenas, de fato – a imagem de índios dançando e pisando forte ao chão,
marcando o pulso de sua dança ou movimento, sobre o qual também organizam a música. Às vezes
são usados chocalhos nos tornozelos que inserem uma espécie de polifonia aguda ao passo grave e
marcado. Parece que o uso dessas melodias baseadas no pulso – que segundo essas últimas
observações são como ‘ressonâncias’ sonoras da dança tribal – remete ao índio e seus cantos, no
contexto da tribo. O pulso remete a questão do movimento – o passo, a dança – e a estrutura
musical que sobre ele é construída o possui como referência. Grande parte das canções populares e
danças, num aspecto geral, possuem construções rítmicas simples que facilitam a execução. Isso
pode ser observado desde corais protestantes aos sambas-enredos, esses últimos simplificados
especialmente para que a escola possa seguir cantando, e passando pela passarela em conjunto
(BEZERRA, 2010). Talvez, aos ouvidos dos ocidentais, o uso desses fragmentos melódicos
indígenas por Villa-Lobos também remeta ao simples ou primitivo levando em consideração que na
própria cultura ocidental são caracterizadas como músicas simples aquelas que possuem padrões
melódicos semelhantes aos utilizados por Villa-Lobos para a representação do índio.

114
Para Salles (2009) a ressonância é uma repetição modificada de alguma estrutura musical dada (seja textura,
formação acordal, motivo, etc). É uma metáfora da ressonância física, onde o som que reverbera não é idêntico ao
primeiro, mas remete a sua fonte.
228
3.7 A Textura musical como ‘Ambientadora’ do índio: riqueza, magnitude e
biodiversidade musical na composição/orquestração de Villa-Lobos.

Diversas vezes, percebemos que cada um dos elementos discutidos anteriormente nesse
trabalho (as melodias indígenas, as estruturas quartais, o contraponto paralelo, o ostinato) se
configuram como uma textura particular da obra em análise. Várias vezes essas estruturas são
utilizadas simultaneamente ou contiguamente. Isso constitui o trabalho com textura na música de
temática indígena em Villa-Lobos, geralmente rica e que congrega todos os signos do índio sobre os
quais falei até agora.
O fato de Villa-Lobos utilizar princípios texturais para sua composição de temática indígena
propicia que elementos diversos soem conjuntamente, construindo um ‘ambiente’ que retrata
diversas facetas do indígena que pretende representar – especialmente em músicas programáticas
como Uirapuru, Amazonas e Rudá. Nesse sentido, o termo ambientação de Villa-Lobos pode ser
entendido como uma metáfora para a criação de um universo esteticamente sustentável, onde a
inspiração inicial – a intenção da composição é sua própria matéria prima (as transcrições ou suas
apropriações) – sobrevive para o ouvinte ocidental sob a proteção dos diversos recursos
composicionais que, ainda que representem semioticamente o índio e seu universo, fazem parte dos
procedimentos musicais da vanguarda da época do compositor.
Ainda sobre a questão da presença dos diversos elementos musicais que representam o índio
em Villa-Lobos concorrerem juntos para a construção do ‘ambiente’ para sua música há uma
questão importante a ser destacada. Villa-Lobos relaciona em diversas das suas composições a
figura do índio à da Floresta onde ele vive. Exemplos dessa relação feita diretamente entre índio e
Floresta são encontrados Amazonas, Uirapuru, Rudá e Floresta do Amazonas. A Floresta é o
‘ambiente’ do indivíduo indígena, assim como a construção textural ‘ambienta’ o indivíduo
representado pela melodia de matiz e inspiração indígena. A própria magnitude da orquestração –
como uma metáfora sonora para a magnitude da Floresta Amazônica - para as peças citadas como
exemplo e as relações textuais115 que possuem, mostram como Villa-Lobos utiliza reforçam essa
interpretação. A imitação de pássaros pelos instrumentos também é um recurso utilizado nessa
evocação da floresta. Essa evocação, por sua vez, intensifica a construção simbólica do próprio
índio (em uma espécie de simbiose simbólica), pelo fato de ser a própria floresta uma espécie de
atribuição do índio que ressoa sua dimensão natural e selvagem. A abundância de seres, indivíduos

115
Além dos próprios títulos das obras remeterem a elementos naturais das florestas, as seções de algumas peças e seus
subtítulos explicitam a intenção de Villa-Lobos de representar sonoramente a floresta e o índio. Exemplo disso são
alguns subtítulos de Amazonas: Contemplação do Amazonas, Ciúme do Deus dos Ventos, Dança ao encantamento
das florestas.
229
na Floresta, e sua consequente dinâmica acentuada (ou não), pode também ser relacionada as
diversas estruturas texturais, que se diferenciam por contorno melódico, intensidade ou mesmo
figuração rítmica. A utilização de uma textura rica em elementos e densa em sonoridades (com o
eventual reforço da série harmônica através das quintas justas nos graves) expressa a floresta
sonoramente, dentro da percepção que é absorvível pelo senso comum ocidental.
Villa-Lobos elabora - com a riqueza das suas estruturas texturais - uma rica biodiversidade
musico-textural. Ao utilizar diversos elementos para construir o ‘ambiente musical’ da floresta, ele
define claramente, através do seu traço composicional, os diversos indivíduos que compõe esse
quadro plural. Ao se falar da clareza com a qual Villa-Lobos define suas texturas, percebo a
polirritmia 116 como um recurso bastante eficaz na ‘separação’ de uma estrutura específica da massa
sonora, para destaca-la como ‘indivíduo musical’, e o diferenciar do restante. Aqui podemos
vislumbrar parte do complexo processo da construção de coerência interna da linguagem indígena
de Villa-Lobos: a construção da alteridade (das estruturas texturais particulares) que reforça a
identidade (na representação da Floresta), e a independência (no que diz respeito a construção
desses sujeitos sonoros – desenlaçados pelos critérios estéticos da harmonia tradicional) que conduz
a dependência (para a construção do edifício sonoro que ‘significa’ e ‘remete’; justificando-se
musicalmente pela dedicação do compositor à construção de uma textura musical consistente).
Outro fator a ser considerado é a utilização frequente da orquestra para a construção do
edifício sonoro da floresta. Em grande parte das músicas nas quais Villa-Lobos procura representar
a floresta - volto a dizer, como parte integrante do próprio conceito do silvícola - ele utiliza a
orquestra sinfônica como recurso instrumental. A ampla gama dinâmica possível, ampla gama de
alturas e os timbres de instrumentos específicos da orquestra como elementos constitutivos das
estruturas texturais reforçam a magnitude ou quietude da floresta e a sua riqueza e variedade de
vida, respectivamente.
Os próprios sons utilizados por Villa-Lobos para a representação do índio constroem, a meu
ver, um labirinto complexo entre o significante (som) e o significado (conceito atribuído). Embora
eu tenha escolhido facetas desse grande conceito que tento analisar aqui – “O Índio Segundo Villa-
Lobos” - e as relacionado com procedimentos musicais específicos, admito que as referências se
cruzam. Os conceitos se opõem e se reforçam: Primitivo x Natural, Religioso x Natural. Portanto ,
a representação do índio por Villa-Lobos precisa se apoiar no som da imitação do índio e seu
ambiente (ostinatos, imitação de pássaros, construção de cantos indígenas), quanto no som que
atribui significado mesmo sem ser relacionado com o índio a priori (estruturas quartas e quintas,
paralelismo de terça). Por essa razão, acredito, que quanto maior a intenção de representar uma

116
Como nos Três Poemas Indígenas (Escritos originalmente para orquestra), Amazonas, Rudá, Uirapuru.
230
proposta de psicologia117 indígena – dentro da visão redutora do ocidental – mais frequente o uso de
estruturas, e um maior número de estruturas são utilizadas para ‘ambientar’ e construir esse
universo indígena. A textura musical em si é um meta-elemento, um elemento sobre os outros, que é
formado por eles. Na dimensão do significado, também, podemos dizer que a textura geral da obra
analisada – e suas partes menores e relações com as texturas - constroem o complexo conceito do
índio para Villa-Lobos, um conceito indivisível e mutante (na dimensão da inventividade do
compositor) onde todos os outros elementos estruturam uma espécie de constructo do índio; uma
interpretação particular desse sujeito por Villa-Lobos em comunicação com a descoberta do oeste
brasileiro, a imaginação/criatividade particular do compositor e com a linguagem musical
internacional de sua época. Nesse ponto deixamos de pensar em elementos específicos – como
altura e ritmo – e podemos sugerir a existência de uma tópica indígena de Villa-Lobos, e procurar
em músicas de outros compositores a utilização dessa sonoridade villalobiana.

3.8 As tópicas indígenas em Villa-Lobos e suas (re)apropriações pela música


brasileira do século XX.

Para fins de análise e discussão mais direcionada, cada elemento musical que considerei
importante na representação do índio na música de Villa-Lobos foi abordado separadamente nesse
capítulo. Entretanto, como já foi comentado nesse trabalho, a ocorrência desses elementos musicais
– uso de estruturas paralelas, intervalos de quarta e quinta, ostinatos, melodias baseadas nas
transcrições, e os outros abordados – é observada, na maioria dos casos, em conjunto, como partes
integrantes e interdependentes na representação do índio por Villa-Lobos. A união desses elementos
constitui um novo elemento; na realidade, o verdadeiro elemento perceptível estesicamente
(NATTIEZ, 2003), no nível da textura musical e na compreensão da ‘mensagem’ programática que
refere ao índio. Aqui se constrói o que podemos chamar de tópica musical (HATTEN, 1994,2004;
AGAWU,1991): construção musical que se configura como significante – no sentido semiótico - ao
comunicar um significado para uma audiência informada desses signos culturais correntes118 – ou
com o capital cultural adequado, nas palavras de Bordieu (1984). A construção de uma tópica é um
processo complexo, fruto de associações diversas entre o som e outros significados culturais, e parte
do que discuti nesse capítulo foram interpretações desses processos de construção de significado em
Villa-Lobos, especialmente na sua música de matiz indígena.

117
Psicologia no sentido de Mário de Andrade, a saber, o ‘ser’ indígena, com suas atribuições culturais e costumes.
118
Como palavras que incorporam um significado. Um exemplo de tópica musical é o rufar de tambores, que comunica
a ideia de guerra/nacionalismo; ou o toque de trombetas, a presença de uma autoridade no recinto. Um exemplo
mais complexo é a popular marcha fúnebre de Chopin (Sonata para piano nº2, op. 35) que recebeu, no decorrer do
tempo e de seu uso um caráter inequívoco de conformação com a morte.
231
Abaixo demonstro dois excertos onde encontramos diversos elementos discutidos nesse
capítulo juntos, construindo algumas tópicas indígenas que podem ser observadas nas obras
analisadas.
Em Kankikis das Danças Características Africanas podemos perceber a presença das
quartas paralelas, do ostinato, da movimentação por graus conjuntos, da repetição de um motivo, e
da construção melódica sobre pulso e suas divisões.

Figura 207 A estilização indígena de Villa-Lobos em Kankikis (c.1-9)

Em Amazonas, a construção do motivo do acompanhamento possui os seguintes elementos


musicais: melodia sobre o pulso, graus conjuntos e quintas paralelas, além de um elemento de
circularidade na dinâmica – que fortalece a concepção cíclica da vida indígena, da qual falei
anteriormente (p.201). Esses elementos congregados constroem uma das tópicas indígenas de
Amazonas.

Figura 208 Acompanhamento em 5ªs paralelas de Amazonas: (c. 3-4)

Em Saudades das Selvas Brasileiras podemos observar uma tópica indígena que é formada
por quartas paralelas superpostas, movimentação por pulso e salto de terça menor paralela entre as
estruturas dos acordes:

Figura 209 Tópica indígena em Saudades das Selvas Brasileiras I (p.3, último sistema, c.3-4 e p.4 primeiro sistema, c.1-3)

232
Por outro lado, o próprio Villa-Lobos ‘brinca’ com a construção de suas referências. Por
exemplo, na Dansa do Índio Branco o compositor faz a referência ao ‘branco’ pela utilização de
progressões harmônicas tonais e da melodia de características seresteiras. Contudo, utiliza ostinatos,
estruturas de segundas e a dinâmica bastante expressiva no piano que se assemelha em magnitude
às suas obras de temática indígena. A própria rítmica da melodia seresteira se assemelha a maneira
que Villa-Lobos ‘melodiza’ o índio, com figuras rítmicas do pulso, sem divisões complexas (no
caso do exemplo abaixo, sem divisão alguma).

Figura 210 Mistura de tópicas seresteiras (progressões harmônicas de ponteio) e tópicas indígenas (ostinato, paralelismos,
retpetição) na Dansa do Ìndio Branco (c.14-23)

Via de regra, uma composição villalobiana intitulada de forma que seja relacionada ao
universo indígena vai possuir a maioria desses procedimentos arrolados aqui nesse trabalho. O
exotismo indígena, seu naturalismo religioso, sua ancestralidade, o status primitivo que recebe -
juntos ao exotismo e riqueza da natureza que qualificam também o ser que nela vive – serão
representados por Villa-Lobos e constituirão muitas das referências que se tem até hoje tanto da
própria ideia do índio que essa mentalidade ajudou a fortalecer quando do ethos indígena em
música utilizado por diversos compositores de tanto de música erudita, MPB, quanto na composição
de trilhas sonoras para filmes.
A princípio, a escolha de Villa-Lobos por alguns temas indígenas parece ter despertado

233
interesse em compositores posteriores na utilização de alguns temas indígenas específicos para a
música de temática indígena. Não se sabe ao certo se foi o contato com as grandes obras
instrumentais e vocais ou através do uso pedagógico do Canto Orfeônico e em sua Coleção Escolar
– para o qual Villa-Lobos escreveu versões para coro de diversas melodias que utilizou na sua
música de temática indígena -, que fomentou o interesse de outros músicos na utilização dessas
melodias (muito provavelmente o interesse veio das duas fontes). O que importa, nessa altura do
trabalho, é a investigação - a título de consideração final desse terceiro capítulo – de como esses
elementos indígenas presentes na obra de Heitor Villa-Lobos se constituíram como tópicas e são
observados em composições de outros artistas (no caso, os brasileiros).
O uso das quartas, por exemplo, foi um procedimento que se solidificou como representativo
do indígena brasileiro. Podemos observar nas composições indígenas de Lycia de Biase Bidart
(1910-1990) – compositora profícua, nascida em Vitória – ES - a presença de elementos utilizados
por Villa-Lobos nas suas obras de temática indígena, inclusive com referências diretas às fontes
primárias com as quais Villa-Lobos também teve contato.
Na composição Convite Tribal: Cantos Ameríndios Brasileiros para coro a quarto vozes
(1973), Bidart faz grande uso de repetição, ostinato, e intervalos de quarta em profusão. Se observar
as quartas no ostinato grave, na melodia do soprano e nas linhas melódicas do tenor (ANEXO G). A
compositora, em seu estudo de intervalos, a Série Intervalos, nomeia seu estudo do intervalo de
quarta como Quartas, em forma de dança indígena brasileira, demonstrando claramente a sua
compreensão do intervalo de quarta – em determinados usos específicos - como signo do indígena
(ANEXO H).
Essa concepção sobre a relação da quarta com o indígena é explicitada pela compositora nas
notas explicativas de seu Convite Tribal (ANEXO I): “De acordo com os dados colhidos, sobretudo
em Rondônia de Roquette-Pinto, encontramos a seguinte orientação: o intervalo musical peculiar
ao indígena é a quarta (BIDART, 1973)”. A autora se refere à mesma obra na qual Villa-Lobos teve
contato e se inspirou para compor suas músicas, citando outras fontes para sua obra, como pode ser
visto na partitura da composição (ANEXO G). Ao citar Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938) como
uma obra de referência parece transpor a referência a Villa-Lobos – já morto à época – mas reforça
procedimentos utilizados por Villa-Lobos, utilizadas, contudo, dentro de outra proposta estética,
particular da compositora.
Dentro da música erudita brasileira existem diversas composições feitas sobre temas
utilizados por Villa-Lobos. O compositor Osvaldo Lacerda em seu ciclo de composições de
temática indígena e folclórica Temas do Folclore Brasileiro, para quarteto de flautas-doce (1972)
inseriu uma peça intitulada Teirú, subtitulada Melodia dos índios parecis. Nesta peça – na qual ele
utiliza Teirú, das transcrições de Roquete-Pinto – Lacerda preenche as notas longas e os espaços da
234
canção indígena com melodias na escala pentatônica de Si menor. Lacerda também insere diálogos
de pergunta e resposta entre as flautas e valoriza, no âmbito harmônico, os intervalos de quarta e
quinta (ANEXO J). Um detalhe importante sobre sua composição é que ele utiliza o mesmo
compasso e armadura de clave da transcrição em Rondônia (op. cit), e mantém o erro de grafia que
não completa o segundo compasso da transcrição, por não satisfazer sua fórmula; ele não corrige a
semínima final de harêzênê, que deveria ser pontuada. O compositor mantém a mesma ordem dos
versos, sem repetição, diferindo assim de Villa-Lobos, que repetiu versos de acordo com os
desenvolvimentos formais da sua composição (p.70). Lacerda também não utilizou a onomatopeia
han e as sextinas cromáticas ao final da melodia, utilizadas por Villa-Lobos em seu poema indígena
e assim parece tentar refutar toda a possibilidade de ser remetido a Villa-Lobos, por ter utilizado
uma música já trabalhada por um compositor anterior a ele.
Diferente, contudo, é o caso do uso de Canide Ioune pelo compositor Nilson Lombardi. No
livro que estão publicadas suas obras, Nilson Lombardi: Obra Completa (PICCHI, 2002), se
encontra um arranjo da melodia pareci que estabelece outra relação com a composição de Heitor
Villa-Lobos (ANEXO K). Em sua composição Canide Iune, para coro a quatro vozes, Lombardi
utiliza fragmentos rítmicos construídos sobre o pulso e sua subdivisão binária - um dos principais
elementos na construção de tópicas indígenas de Villa-Lobos – na criação livre de onomatopeias e
padrões melódicos (c.1-2 e 12-13). Ele utiliza diversas vezes o intervalo de terça menor no
preenchimento harmônico (como nas notas LÁ-DÓ que iniciam no terceiro sistema do tenor) e a
repetição da melodia de Canide Ioune durante toda a composição, inclusive quando se ouve a
melodia de Sabath em alguma voz, numa espécie de moteto contemporâneo; tais recursos também
foram apresentados aqui como índices do indígena em Villa-Lobos, a valorização da terça menor e a
repetição extensiva e trechos musicais. O próprio uso de Sabath nessa composição é um ponto
importante no estabelecimento de alguma relação entre a composição de Lombardi e Villa-Lobos:
nas narrativas de Jean de Lery (LERY, 1585) e nas releituras de Guilherme de Melo (MELO, 1908),
Canide Ioune e Sabath são canções distintas. Villa-Lobos compôs seu primeiro Poema Indígena e a
canção no seu Canto Orfeônico (vol.2) consciente dessa distinção e os intitulou Canide Ioune –
Sabath, separando com hífen as duas canções originais. Lombardi, contudo, intitulou sua
composição apenas como Canide Iune, apesar de utilizar as duas canções distintas. Isso me leva a
supor que a utilização de Canide Ioune e Sabath por Nilson Lombardi tenha se baseado em Villa-
Lobos, que aglutinou as duas canções de forma quase inseparável, a ponto de se tornar a referência
musical na utilização do tema, mais do que Jean de Lery ou Guilherme de Melo.
Um caso interessante para continuar descrevendo a utilização de procedimentos
composicionais encontrados na obra de Villa-Lobos na representação do índio por outros
compositores brasileiros mais recentes é a obra de temática indígena de Marlos Nobre. Em duas de
235
suas músicas mais representativas do índio brasileiro, Yanománi, para coro misto, tenor-solo e
guitarra [violão] (1980) e Ukrinmakrinkrin, para soprano, instrumentos de sopro e piano (1968) o
compositor utiliza estruturas musicais de representação indígena utilizadas por Villa-Lobos.
Em Yanománi, em dialeto Xucurú e dedicada à memória de um Cacique Yanománi, Nobre
utiliza estruturas harmônicas quartais, movimentadas por graus conjuntos ou saltos de terça, sobre
estruturas rítmicas de pulso e suas subdivisões binárias e ternárias. Na verdade, do compasso 48 a
57 dessa composição (ANEXO L), se observam todos esses procedimentos concomitantemente, nos
mostrando uma espécie de releitura da tópica indígena em Villa-Lobos. O compasso 5/8 se relaciona
com a poesia ao ponto de ser lido como 2/8 + 3/8 (nas palavras Zúma Mainhúma), sempre soando
colcheias, que podem ser interpretadas como pulsos únicos – se cada sílaba for interpretada como
pulso – ou como estruturas binárias seguidas de estruturas ternárias, se considerarmos o texto como
parâmetro. As vozes possuem relação harmônica de quartas e uníssono entre si e se desenvolvem na
repetição das notas, graus conjuntos ou saltos curtos de terça. Na dimensão rítmica, as vozes da
seção são todas paralelas, e em cada compasso demonstram uma dinâmica circular (nos acentos de
crescendo e decrescendo em cada compasso), semelhante à textura paralela de quintas em
Amazonas (p.140). A seção acaba no compasso 57, com um acorde de violão que enfatiza as quartas
e quintas, com as notas FÁ – SI#-MI#-LÁ#-RÉb119. Como em Teirú, dos Três Poemas Indígenas,
essa canção parece ser dedicada à morte de um cacique, uma vez que na letra da composição –
composta pelo autor utilizando “sons e palavras da linguagem dos indígenas brasileiros (ANEXO
L)” o autor insere os versos em português “Mata cacique”, “mata, mata, mata” e “O cacique é
morto”.
Na composição Ukrinmakrinkrin, de Nobre, o intervalo mais característico é a segunda.
Nessa composição, percebemos o uso frequente dessa estrutura – que nos lembra do uso do mesmo
intervalo em Iára de Villa-Lobos (item 2.3) – e também dos acordes com movimentos paralelos que
se movem por graus conjuntos e terças (nesse caso, em suas inversões de sexta). Esses
procedimentos composicionais podem ser observados na parte do piano de Ukrinmakrinkrin, do
compasso 25-35 (ANEXO M). Pode-se dizer que vislumbramos alguns procedimentos
composicionais de Villa-Lobos aqui, também nos acordes dos compassos 31 a 35, a maneira de
Saudades das Selvas Brasileiras.
Agora, adentrando brevemente no repertório de MPB que se comunica de certa forma com a
linguagem indígena de Villa-Lobos, existem alguns casos que merecem ser contemplados nesse
trabalho. O primeiro deles diz respeito à canção Jóia, de Caetano Veloso, do álbum homônimo

119
Marlos Nobre utiliza quartas para nomear mesmo os intervalos reais de quinta e terça, FÁ-SI# e LÁ#-RÉb,
respectivamente. Ainda assim, quintas e terças menores fazem parte dessa semiótica musical do indígena já em
Villa-Lobos: as primeiras como inversões das quartas e as segundas como estrutura melódica essencial desde as
transcrições de Lery e Roquete-Pinto.
236
(1975). Nessa canção, a poesia utiliza termos como “selvagem”, “América do Sul”, “Beira do Mar”,
“Caju”, construindo uma narrativa literária, que valoriza elementos da natureza brasileira. Na
verdade, a própria letra da canção estabelece uma relação entre dois eventos separados pelo tempo
que são estruturalmente correlatos (ANEXO N). Observe:

Beira de mar
Beira de mar
Beira de mar na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Um momento de grande amor
De grande amor

Copacabana
Copacabana
Louca total e completamente louca
A menina muito contente
Toca a Coca-Cola na boca
Um momento de puro amor
De puro amor

Com o elemento ‘lugar’, ‘individuo’, ‘ação’ transitando em duas manifestações atemporais,


Caetano Veloso constrói uma poesia tipicamente tropicalista, enfatizando a identidade brasileira na
figura do selvagem aliada à modernidade, figurada na menina que toma Coca-Cola em Copacabana.
Na música dessa canção ele utiliza quartas paralelas, em melodias que se movem por graus
conjuntos e saltos de terça (semelhantemente à Nozani-ná). Apesar de a armadura de clave ter dois
bemóis, ela é modal. De todas as canções observadas no seu songbook, essa é a única sem acordes
(há a indicação de um Fá pedal por toda a música) e escrita com duas vozes (ANEXO N). Os traços
da semiótica indígena são explícitos na performance da música por Gal Costa, ainda que nessa
versão não se utilizem a melodia em quartas, mas sim em uníssono 120.
Por fim, a canção Nozani-ná, interpretada por Milton Nascimento no álbum Txai (1991), que
trata exclusivamente da temática indígena demonstra como a canção utilizada profusamente por
Villa-Lobos se consolidou como ícone da música indígena brasileira (FAIXA 7 DO CD ANEXO).
À própria faixa é atribuída a Villa-Lobos e Roquete Pinto, nessa ordem. Nessa canção a melodia é
apresentada em uníssono, harmonizada oitavas, terças paralelas e em quartas, como adição à versão
de Villa-Lobos, bastante fiel a de Roquete-Pinto. É notável o uso de ostinato que se assemelha ao
utilizado por Villa-Lobos em Nozani-ná das Canções Típicas Brasileiras (com a segunda se
reiterando no baixo). É bastante provável que Milton Nascimento saiba da procedência da canção –

120
Disponível em http://il.youtube.com/watch?v=ePBC4HvaaA8 (acessado em 28/09/2010).
237
que é pareci – entretanto atribui a faixa a Villa-Lobos e Roquete-Pinto, talvez pela fato de um ter o
coletado e outro o divulgado através de sua obra.
Percebemos que os procedimentos musicais de Villa-Lobos na representação do indígena se
tornaram icônicos e continuaram sendo utilizados pelos compositores que vieram após ele 121.
Apresentei aqui apenas alguns exemplos onde as referências ocorrem de várias formas. Não quero
dizer, de maneira nenhuma, que todos os compositores que utilizam procedimentos composicionais
semelhantes ao de Villa-Lobos na representação do indígena de forma consciente da referência ao
autor.
Penso que, ao contrário, a eficácia de Villa-Lobos na construção musical que representa o
índio brasileiro foi grande – pela consistência e pela repercussão nacional e mundial de suas obras -
a ponto de criar um estilo que se solidificou na subjetividade dos músicos e da audiência, que se
tornou uma influência sine qua non para a representação musical do índio brasileiro.

121
Sobre o legado estético de Villa-Lobos para compositores posteriores de MPB, ler a dissertação de Mônica
Chateaubriand, Villa-Lobos, Tom Jobim, Edu Lobo: o terceiro vértice (CHATEAUBRIAND, 2006).
238
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Villa-Lobos é sem dúvida um grande bricoleur, um inventor tão atento às diversas


contingências da(s) sociedade(s) a sua volta quanto a sua urgência de fazer música original e de
impacto. Nessa pesquisa que finalizo as análises e discussões conduzem a essa asserção.
Ressignificação, reelaboração e realocação são palavras-chave para entender o procedimento
composicional de Villa-Lobos na construção da sua música de temática indígena. Essa construção
pode ser interpretada tanto na dimensão musical objetiva quanto no estudo dos significados por trás
das estruturas musicais que ele utilizou. Penso que as contribuições da composição de temática
indígena de Villa-Lobos também são plurais: para a música universal, com seu estilo original, e
também por disseminar ideias particulares acerca dos índios e a própria temática indígena.

Pensando acerca da composição dos Três Poemas Indígenas, em 1926, podemos


depreender também o papel social que a divulgação indireta das canções pareci coletadas 14 anos
antes por Roquete-Pinto assumiu, no que diz respeito à divulgação a nível mundial da existência dos
povos indígenas no interior do Brasil. O próprio Villa-Lobos, no cabeçalho das obras, faz referência
às fontes e presta homenagem à Roquete-Pinto. A professora Flávia Toni, numa entrevista este ano,
me relatou a respeito da relação dos positivistas do Rio de Janeiro com os índios, no início do
século XX122. Eles se posicionavam a favor do cuidado dessas populações, contra teorias eugênicas
que se propagavam no final do século XIX e primeiras duas décadas do XX. No Rio de Janeiro
ficava a sede do Serviço de Proteção ao Índio (antecessora da FUNAI) para onde eram levados
indígenas em situação precária ou com as mais diversas pendências. Segundo Flávia Toni, de
acordo com testemunhos de parentes já falecidos, no Rio de Janeiro podia se ver muitos índios
andando pelas ruas, às vezes acolhidos por seus defensores, majoritariamente os positivistas. Villa-
Lobos cresceu nesse ambiente, e o próprio Roquete-Pinto, seu amigo, era positivista.

No governo de Getúlio Vargas, Villa-Lobos elaborou seus projetos pedagógico-musicais


para a formação cultural da nação inserindo diversas canções indígenas e canções compostas com a
temática do índio para, de certa forma, disseminar o papel importante e fundamental dos índios na
gênese da nação brasileira (MOREIRA, 2009) - e, portanto, o papel atual dessas populações à época
do compositor. Talvez, por essa razão discordasse de Mário de Andrade no que dizia respeito ao uso
de melodias indígenas e bárbaras na construção de uma música erudita nacional. É claro que Villa-
Lobos soube se conformar com as demandas de Paris nos anos 20 e do Brasil nos anos 30 e 40.
Contudo, se ele se conforma, o faz sem deformar a si mesmo, o que podemos observar pelo núcleo
de procedimentos composicionais que Villa-Lobos mantém durante toda sua vida, de certa forma

122
Conforme Toni (2010).
239
independentemente das mudanças de material tonal que ele utiliza nas composições. Entretanto, a
composição de Villa-Lobos mantém diversas características importantes das músicas populares e
indígenas nas quais se baseia, adicionando o seu estilo nos procedimentos harmônicos, melódicos e
texturais, em outras palavras ‘dando a sua cara’ à música. Nesse sentido, penso ser simplista a ideia
de Guérios (2003;2009) acerca da ‘conversão’ de Villa-Lobos ao seu estilo brasileiro, ou melhor,
sua mudança de interesse musical em direção ao popular, sendo relacionada apenas com as
demandas europeias. Como já disse, existem diversas obras villalobianas de temática popular já nos
anos 10, bem como na época de sua primeira viagem, e a própria vivência da música popular por
Villa-Lobos demonstra que o compositor e músico flertava com a música popular em diversas de
suas composições. Muito embora eu concorde com o pensamento de Guérios em relação a biografia
de Villa-Lobos escrita por Mariz (2005b; 1989) – que essa foi uma leitura apaixonada e uma
reelaboração do passado do compositor através de sua memória ao fim da vida -, penso que seria
uma posição extrema entender a questão dessa forma maniqueísta. A revelação mais importante que
espero ter deixado clara no meu trabalho é que Villa-Lobos se baseou nas transcrições de música
indígena não só para a elaboração de melodias – ainda que essa discussão também seja importante,
pois esse trabalho lida com os desdobramentos melódicos e releituras de maneira especial – mas
também para os procedimentos harmônicos e texturais. Assim como Villa-Lobos utilizou temas
indígenas ‘completos’ (de acordo com as transcrições) ou trechos para a criação de novas melodias
através do uso de padrões rítmicos (divisão em pulsos, subdivisão binária e ternária) e intervalares
(terças, segundas, repetição de notas e movimento em graus conjuntos) na elaboração dos motivos e
melodias mais longas, Villa-Lobos utilizou essas sonoridades extraídas também das transcrições
para elaborar texturas e formações harmônicas.

O compositor também soube condensar em sua música ideias sobre os índios com
elementos da música ocidental, que não eram observados necessariamente na música indígena:
ostinatos, na comunicação dos conceitos ‘estaticidade, repetição, monotonia’; acordes de quartas e
quintas paralelas na comunicação dos conceitos ‘primitivo, natural, religioso’, entre outros. Ele
também utilizou elementos musicais para tentar evocar a natureza, esse outro constituinte do índio,
com sons que imitavam elementos naturais (ventos, rios, farfalhar de folhas) e animais (pássaros).
Aqui percebemos três maneiras de comunicar o ethos indígena: 1) de forma direta, através do uso
de sonoridades utilizadas pelos índios e suas reelaborações por Villa-Lobos; 2) de forma indireta,
através da comunicação de conceitos ocidentais sobre os indígenas utilizando códigos musicais
próprios da audiência e 3) ambientando a totalidade dos procedimentos musicais anteriores com
alusões musicais miméticas das fontes sonoras naturais e animais (uma dicotomia um pouco
artificial, reconheço).

240
Sobre o lugar de Villa-Lobos enquanto representante musical do Brasil na França e no
próprio Brasil vale a pena escrever mais algumas linhas. Vimos, no primeiro capítulo dessa
dissertação, que o interesse da França pelo selvagem é secular, e que foi se reelaborando de diversas
formas em diversos períodos, até a época de Villa-Lobos. Nesse contexto, Villa-Lobos – que já
possuía interesse nas manifestações populares e indígenas de música – insere no seu vocabulário
tonal elementos extraídos da música indígena para representar musicalmente o Brasil. Porque ele
escolhe justamente a música indígena brasileira para representar o Brasil em Paris? Penso que seja
justamente pelo caráter exótico que, das manifestações musicais brasileiras, só a música indígena
poderia proporcionar. De certa forma, Villa-Lobos devia concordar com Andrade, quando este diz
que sem Europa, o Brasil não existiria, seria apenas uma ‘vaga assombração ameríndia’
(ANDRADE, 1928). O que mais poderia querer Villa-Lobos? Apresentar uma releitura da Europa
para a própria Europa não parece uma boa fórmula de se elaborar o exotismo que os franceses tanto
buscavam no novo mundo. Já no Brasil, Villa-Lobos se situa como um construtor não do exótico,
mas do familiar. Se na Europa o compositor procurava causar o estranhamento através da
demonstração do exótico, no Brasil, a partir dos anos 30, ele tenta inserir o exótico dentro da
própria identidade brasileira, na concepção da identidade nacional (MOREIRA & PIEDADE,
2010). Mais uma vez o compositor demonstra sua habilidade de realocação e reelaboração das
propostas identitárias através da música. A análise da música de Villa-Lobos voltada para a pesquisa
das apropriações particulares do elemento popular é especial por poder, de certa forma, decantar os
procedimentos composicionais de Villa-Lobos em diversos contextos musicais. A exemplo do que
fiz aqui, nesse trabalho, pode-se observar os meios composicionais de Villa-Lobos a transformarem
motivos e harmonias de origem popular, bem observar como o compositor insere elementos de sua
linguagem que estão presentes na grande maioria de suas obras, independentemente do ethos
particular que evoquem (indígena, caipira, nordestino, afro-brasileiro, popular urbano, etc.).
Acredito que com base nesse meu trabalho de mestrado, poderei ampliar o reduzir o foco do corte
analítico para poder abranger outras intenções de representação do Brasil por Villa-Lobos, em
pesquisas futuras.

Acerca da pesquisa em si, alguns fatores tornam a pesquisa em Villa-Lobos bastante


peculiar. Os problemas de direitos autorais com relação às partituras e gravações dificultam o
acesso a esse material pelo pesquisador, que acaba tendo de fazer viagens e pagar preços altos pelo
material a ser escutado. Nesse sentido, o cronograma de análise e escrita se torna mais justo, e é um
dos fatores a serem considerados na elaboração de projetos de pesquisa. Outra questão relacionada a
essa é a dificuldade que os estudantes de música poderão ter para ouvir as obras analisadas e,
consequentemente, construírem seu conhecimento no diálogo com minhas análises. Um último

241
ponto é o fato de que o próprio entendimento do leitor comum (ou mesmo o professor da educação
básica), o qual poderia tirar bastante proveito desse trabalho, fica impossibilitado de compreender
alguns dos pontos aqui esclarecidos. As viagens que fiz e o acesso à internet, certamente são
parcialmente responsáveis pela conclusão desse trabalho. É realmente uma pena que um compositor
amplamente reconhecido no cenário internacional pelo valor de sua composição, como Villa-Lobos,
não seja devidamente reconhecido no Brasil, e em parte essa falta de reconhecimento é fruto do
descaso acadêmico com sua obra e vida. Fico feliz por poder fazer parte de uma geração que se
dedica ao estudo de compositores brasileiros em geral, e não somente a Villa-Lobos. Acredito que
esse direcionamento da universidade à ‘pesquisa musical de música de concerto brasileira’ seja um
indicador cultural das mudanças socioeconômicas e mesmo de autoestima que a sociedade brasileira
vem passando, e pelo reconhecimento gradual da própria academia do valor e necessidade dessa
pesquisa.

Sobre a estrutura da dissertação, posso dizer que sua forma é de um Molto Crescendo: o
primeiro capítulo mais conciso, o segundo um pouco maior, e o terceiro o mais extenso (que
considero a verdadeira contribuição particular do meu trabalho), com essa breve coda de
finalização, reiterando e – o que talvez seja um pouco inapropriado para codas estritamente
musicais - propondo ideias para futuras ‘músicas-pesquisas’. A própria forma desse trabalho
demonstra a importância dada a cada tópico e a profundidade das investigações que foram feitas
(além do uso das partituras dos últimos dois capítulos que, obviamente, aumentam bastante o seu
número de páginas) para responder a pergunta inicial. Um capítulo conciso sobre contexto
sociohistórico e cultural, outro mais extenso numa análise sincrônica e mais detalhada (pesquisando
mais profundamente um objeto único) e por fim, um capítulo de análise mais abrangente, que
procurava fundamentar com exemplos algumas das hipóteses levantadas para a obtenção de sínteses
(pesquisando mais superficialmente diversos objetos). Talvez a forma reduzida desse trabalho possa
ser Contextualização – Análise – Síntese e Proposições (antíteses?).

Villa-Lobos, o Índio Branco: O ‘branco’ que pintou seu corpo com sons de índio. Ele
trouxe a música indígena para a composição erudita e popular brasileira, lhe deu um valor especial e
de lá ela não saiu mais. Criou, bricolou, reinventou; muitas vezes procurando manter a
verossimilhança, outras vezes mostrando intencionalmente sua pele branca por detrás das tinturas
indígenas com as quais queria se tingir. No fim, este ser branco e ser índio se fundiu em sua música,
construindo uma ontologia particular, que foi e é apropriada por diversos compositores no Brasil e
no mundo. Espero que esse trabalho tenha colaborado para a construção do conhecimento acerca do
compositor e de parte de sua vasta obra.

242
Poslúdio: Tupinambás, Parecis e Nambiquaras

Como havia dito em outras páginas dessa dissertação, meu tema principal é o compositor
Heitor Villa-Lobos e sua criação musical inspirada na música indígena. Disse também que essa
música indígena que inspirou Villa-Lobos – pelo menos aquela com a qual tive contato - era
mediada pelas partituras e fonogramas, o que distanciava ainda mais o compositor da integridade da
performance musical das culturas indígenas do Brasil. Considerando isso, fica exposta claramente a
razão que me levou a não dedicar tanto espaço desse trabalho a analisar a música indígena (o
máximo que fiz foi analisar transcrições, como no caso de teirú); de fato, eu não a possuía e o
próprio compositor não teve melhores condições de observá-la – ainda que possa ter ouvido, sim,
música indígena in loco durante sua vida, é mais difícil afirmar que pôde ouvir, com tanto
privilégio, canções tupinambá do século XVI. Na tentativa de reconstrução do complexo processo
criativo do compositor, ative-me a tudo que indicava um caminho possível na concepção do
compositor acerca da sua música indígena.
Entretanto, seria negligência minha terminar essa dissertação – feita sobre um tema
relacionado, secundariamente, às populações indígenas – sem discorrer acerca dessas populações,
nativas das terras [hoje] brasileiras. Ainda que o faça num espaço desconectado das análises, faço-o
propositadamente, reforçando a epistemologia dessa pesquisa. Apresentarei dados dos Tupinambás,
Parecis e Nambiquaras (tribos produtoras das músicas às quais Villa-Lobos teve acesso através dos
fonogramas e transcrições).
Os Tupinambás se referem tanto a uma grande nação de índios, da qual faziam parte
diversas tribos com línguas do tronco linguístico tupi, como um grupo específico também chamado
de tupinambá. À chegada dos europeus, no século XVI, eles habitavam em aldeias no norte da
Bahia e em Sergipe no litoral norte do Rio de Janeiro até São Sebastião 123; de fato a maior parte da
sua população se concentrava na região que hoje corresponde à Baía de Guanabara e ao município
de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro. A história narrada por Jean de Lery se passa nessa
região e é lá que ele recolhe as canções indígenas em seu livro. Os Tupinambá eram povos
guerreiros, que lutavam entre si, praticando a antropofagia nos rituais de vitória.
Hoje em dia encontramos dois núcleos de índios tupinambás no Brasil: no litoral da Bahia:
Olivença, município de Ilhéus, com 20 aldeias e 3864 indígenas; e a aldeia Patiburi, município de
Belmonte, com 199 pessoas.

123
Informações dadas por João Paulo Streapco, mestrando em História social da USP.
http://mundoestranho.abril.com.br/historia/pergunta_303242.shtml.
243
Os Pareci se localizam no estado do Mato Grosso, e são, segundo dados do sítio da
Fundação Nacional do Índio124 – FUNAI – em número de 1.492. Estão localizados, mais
especificamente na região noroeste do estado do Mato Grosso na área denominada “Chapada dos
Pareci”. A disposição espaço – física está delimitada dentro dos seguintes municípios: Diamantino
e Nova Marilandia (terra indígena: Estação Pareci e Uirapuru), Tangará da Serra (Terra indígena:
Estivadinho e Pareci), Barra dos Bugres (T. I. Figueiras), Pontes e Lacerda (T. I. Juinha), Campo
novo dos Pareci (T. I. Ponte da Pedra, Utiariti). O nome Pareci é a nomenclatura utilizada pelo
Governo Federal para identifica-los, enquanto reconhecem-se como Haliti.
Os Nambiquara habitam o oeste do estado do Mato Grosso e Rondônia. Segundo dados de
2010 da Fundação Nacional da Saúde – FUNASA - são em 1.950. Cito aqui o texto de descrição
dos Nambikwara extraído do projeto Povos Indígenas do Brasil do Instituto Sócio-Ambiental:

Famosos na história da etnologia brasileira por terem sido contatados


“oficialmente” pelo Marechal Rondon e por terem sido estudados pelo
renomado antropólogo Claude Lévi-Strauss, os Nambiquara vivem hoje em
pequenas aldeias, nas altas cabeceiras dos rios Juruena, Guaporé e
(antigamente) do Madeira. Habitam tanto o cerrado, quanto a floresta
amazônica e as áreas de transição entre estes dois ecossistemas. Os
Nambiquara ocuparam uma extensa região no passado e se caracterizaram
pela mobilidade espacial. Dotados de uma cultura material aparentemente
simples e de uma cosmologia e um universo cultural extremamente
complexos, os Nambiquara têm preservado sua identidade através de um
misto de altivez e abertura ao mundo125.

Há uma dívida histórica irreparável entre o ocidente e os povos nativos da América que vem
se estendendo e aumentando desde os tempos da invasão europeia, no século XVI. Como vimos
nesse trabalho que apresentei, a cultura indígena, tida como fascinante e misteriosa para o ocidental
foi utilizada pelo ‘homem branco’ para ampliar os limites de sua expressividade e alcançar novas
formas e conteúdo. Devemos aos índios, assim como também aos africanos, não só nossa
constituição como povo e nação brasileira, mas, de forma distinta dos outros ‘imigrantes’ – que
escolheram estar aqui – mas ‘devemos’ uma quantia imensurável pelos abusos cometidos de forma
covarde contra essas populações, que habitavam essas terras muitos séculos antes de serem
atingidas pela voraz empreitada europeia nas ‘índias ocidentais’.
Hoje o Brasil é uma nação heterogênea, constituída por pardos, brancos e negros, muitos
brasileiros (como eu) tem ascendência indígena, europeia e africana e suas existências parecem
celebrar uma espécie de confraternização entre essas etnias na constituição do ‘ser’ brasileiro.
Entretanto, não podemos nos esquecer de que existem índios que vivem em suas aldeias num

124
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJA63EBC0EITEMIDD19F924CA12B4784843E064D171482DEPTBRNN.htm
125
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/nambikwara
244
processo contínuo e intenso de lutas políticas pela manutenção de sua existência física e cultural,
num mundo que pouco compreende suas demandas essenciais. Espero que esse trabalho, assim
como as composições de Villa-Lobos, contribua um pouco para as discussões atuais acerca da
situação do índio em nossa sociedade, lançando algumas luzes sobre o tema.

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______. Veleiro: indian song. In: Floresta Amazônica. Manuscrito. 1958.

255
ANEXOS

256
ANEXO A – MODINHA ‘QUEM SABE’ DE CARLOS GOMES

257
258
259
ANEXO B – ‘QUILOMBO: QUADRILHA BRASILEIRA’, DE CARLOS GOMES

260
261
262
263
264
ANEXO C - ‘CANIDE IOUNE – SABATH’ DOS ‘TRÊS POEMAS INDÍGENAS’

DE VILLA- LOBOS

265
266
267
ANEXO D – ‘TEIRÚ’ DOS ‘TRÊS POEMAS INDÍGENAS’ DE VILLA-LOBOS

268
269
270
271
ANEXO E – ‘TEIRÚ’, NA COLEÇÃO ESCOLAR DE VILLA-LOBOS

272
ANEXO F – ‘IÁRA’ DOS TRÊS POEMAS INDÍGENAS, DE VILLA-LOBOS

273
274
275
276
277
278
279
280
281
282
283
ANEXO G – ‘CONVITE TRIBAL: CANTO AMERÍNDIO BRASILEIRO’, DE

BIDART

284
285
286
287
ANEXO H – ‘QUARTAS’. DA ‘SÉRIE INTERVALOS’, DE BIDART

288
289
ANEXO I – TEXTO EXPLICATIVO DE ‘CONVITE TRIBAL’, DE BIDART

290
ANEXO J – ‘TEIRÚ’, DE LACERDA

291
292
ANEXO K – ‘CANIDE IUNE’, DE LOMBARDI

293
294
ANEXO L – ‘YANOMÁNI’, DE NOBRE

295
296
297
298
ANEXO M – ‘UKRINMAKRINKRIN OP. 17’, DE NOBRE

299
300
ANEXO N – ‘JÓIA’ DE CAETANO VELOSO

301
ANEXO O – ÍNDICE DE FIGURAS DA DISSERTAÇÃO

Figura 1 Canide Ioune (MELO, 1947, p.11) ...................................................................................... 45


Figura 2 Sabath (MELO, opus cit.) .................................................................................................... 45
Figura 3 Canide Ioune na versão de Villa-Lobos ............................................................................... 45
Figura 4 Sabath na versão de Villa-Lobos ......................................................................................... 46
Figura 5 Ostinato na introdução de Canide Ioune- Sabath ................................................................ 47
Figura 6 Exemplo das duas versões do tema Canide Ioune. no começo da canção (c.7 ao 13 e c.14
ao 20).................................................................................................................................................. 47

Figura 7 Re-exposição de Canide Ioune ............................................................................................ 49


Figura 8 O fim de Canide Ioune - Sabath (c.50)................................................................................ 49
Figura 9 Malha Harmônica do acompanhamento para piano em Canide Ioune - Sabath ................. 53
Figura 10 As três texturas de Canide Ioune - Sabath (c.4) ................................................................ 54
Figura 11 Redução de dinâmica e amplitude sonora na segunda repetição de Canide Ioune na
exposição (c.13) ................................................................................................................................. 55

Figura 12 Acordes que intercortam a fluência melódica de Sabath, deslocando o ostinato e dividindo
essa seção em pulsos assimétricos entre as notas longas (c.22)......................................................... 55

Figura 13 A condução de vozes dos acordes nas citações de Canide Ioune - Manutenção da Sétima
maior nas vozes externas.................................................................................................................... 56

Figura 14 O intervalo de segunda menor FÁ - MI ressoa harmonicamente (c.16-17) ...................... 56


Figura 15 Acordes do acompanhamento de Canide Ioune................................................................. 57
Figura 16 A aparição (c.1) e o desaparecimento do ostinato (c.52). .................................................. 59
Figura 17 Padrão de sons e pausas do ostinato de Teirú. ................................................................... 60
Figura 18 Padrão SOM-SOM-PAUSA constituindo os aparecimentos do ostinato em Canide Ioune
(c.5-10) ............................................................................................................................................... 60

Figura 19 As diferentes fórmulas rítmicas do ostinato de Canide Ioune - Sabath sobrepostas. ........ 61
Figura 20 Em azul o som e em vermelho, o silêncio. Observe o padrão que se mantém apesar das
diferentes versões do motivo.............................................................................................................. 61

Figura 21 c.28-31: observe a interação entre os acordes de quartas e a métrica do ostinato. Mesmo
mudando a acentuação dinâmica, a simetria 1-1-0 se mantém no nível das notas. ........................... 62

Figura 22 Gráfico estrutura de textura e dinâmica versus compasso em Canide Ioune - Sabath.. .... 63
Figura 23 Gráfico textura x dinâmica em Canide Ioune - Sabath ..................................................... 63
Figura 24 Repetição de trechos melódicos para inserção de variação na Introdução de Teirú (c. 4-9)
............................................................................................................................................................ 75

Figura 25 Inserção de Tercinas na re-exposição de Teirú- nova textura rítmica (c.35-40) ................ 76
Figura 26 A inserção gradativa do ostinato na introdução de Teirú (c.1-9) ....................................... 77
Figura 27 Ciclo de Variação e Unidade na introdução de Teirú......................................................... 80
Figura 28 Redução do desenvolvimento do ostinato na introdução (c. 2 - 9). Observe a valorização
dos intervalos de terça maior na prolongação de SOL e SI e nas sextas menores durante todo o
trecho.................................................................................................................................................. 81

Figura 29 Salto melódico SOL - SI no compasso 9 de Teirú. ............................................................ 81


Figura 30 Redução do Ostinato da introdução de Teirú..................................................................... 82
302
Figura 31 Relação intervalar entre as variações 1 e 2 do contrapulso com o pulso do ostinato da
introdução de Teirú............................................................................................................................. 82

Figura 32 Relações intervalares entre as variações 3 e 4 com o pulso do ostinato da introdução de


Teirú. .................................................................................................................................................. 83

Figura 33 Trecho da Melodia original de Teirú com análise melódica intervalar. ............................. 83
Figura 34 Seção de Ostinatos de Teirú (c.23-34) ............................................................................... 84
Figura 35 Relações intervalares do pulso com o contrapulso na seção de ostinatos de Teirú. .......... 85
Figura 36 Acompanhamento acordal do compasso 13-18 ................................................................. 86
Figura 37 RÉ e MI, notas estruturais da melodia de Teirú. ................................................................ 86
Figura 38 Condução de vozes na harmonia de Teirú (c.10-16). ........................................................ 88
Figura 39 Redução da primeira seção acordal de Teirú (c.10-17). Observe a progressão melódica
descendente de SI a SI nas vozes externas e os motivos de Terça descendente (X), descida cromática
(Y) o intervalo harmônico de segunda maior (W) e o salto de quarta justa (Z). Em vermelho, os
compassos. ......................................................................................................................................... 89

Figura 40 Aparição do Cluster (c.26-27)............................................................................................ 90


Figura 41 O cluster melódico ............................................................................................................. 90
Figura 42 (c.26-28). Observe como os intervalos de segunda utilizados nessa seção do ostinato
constroem uma sonoridade com as notas da escala de tons inteiros de Sol, um procedimento
orientalista de Debussy utilizado por Villa-Lobos em suas diversas fases. ....................................... 92

Figura 43 A inserção de tercinas na re-exposição de Teirú (c.35-36). ............................................... 92


Figura 44 Sextinas no fim de Teirú (c.43-45) .................................................................................... 93
Figura 45 A melodia do primeiro verso de Iára (c.1) e as suas reaparições no fim da música (c.112 e
c.115). Observe o aumento de um tom na citação do compasso 112. ................................................ 99

Figura 46 No compasso 9 a melodia do segundo verso. Abaixo as outras duas aparições com
transformações de ritmo, compasso, e contorno melódico, mantendo, contudo, a mesma estrutura de
intervalos melódicos........................................................................................................................... 99

Figura 47 A melodia do segundo e terceiro versos (c.17), sua repetição uma terça acima (c.21-24)
.......................................................................................................................................................... 100

Figura 48 Note a semelhança rítmica entre os dois versos e a superposição da melodia do piano
sobre a voz........................................................................................................................................ 100

Figura 49 Repetição do nono verso da poesia de Iára ..................................................................... 101


Figura 50 Melodia do décimo e décimo-primeiro versos de Iára.................................................... 101
Figura 51 Melodia do Décimo-segundo verso de Iára ..................................................................... 101
Figura 52 Melodia do décimo-terceiro e décimo-quarto versos de Iára.......................................... 102
Figura 53 Melodia do décimo-quinto verso - uma depuração melódica que afirma os intervalos mais
importantes da peça.......................................................................................................................... 102

Figura 54 Já no compasso inicial de Iára, repetição de notas, terças (cor verde) e segundas (cor
azul) definem sua importância (c.1-2) ............................................................................................. 103

Figura 55 Segundas em azul e terças em vermelho, no início da melodia temática em Iára (c.9-12)
.......................................................................................................................................................... 103

303
Figura 56 Segundas em azul, terças menores em vermelho e terças maiores em verde, na segunda
seção onomatopeica de Iára (c.25-27) ............................................................................................. 103

Figura 57 Segundas menores em lilás, segundas maiores em verde e terças menores em vermelho na
introdução instrumental de Iára (c.5-8) ........................................................................................... 104

Figura 58 Repetição de notas, salto de terça (maiores em verde, menores em azul) segundas que não
são nota de passagem (maiores em azul, menores em lilás) e menos estruturação ritmico-motívica
são índices do indígena em Iára (c.9-25) ......................................................................................... 106

Figura 59 Na seção da poesia que fala da perspectiva do homem ibérico, temos melodias mais
amplas (sétima menor) e motivos rítmicos mais definidos. Ainda assim, intervalos de terça
(vermelho) e segunda (lilás) estão presentes (c.65-73) .................................................................... 106

Figura 60 Ao final da canção os dois estilos se fundem e percebemos figurações motívicas claras,
com muitos graus conjuntos, seguidas por repetições de nota e saltos de terça (c.99-110)............. 106

Figura 61 Seção com a onomatopeia "A-ha". Nessas seções – são três durante a peça- a textura do
piano e a voz constroem a mais clara divisão de seções de Iára. .................................................... 107

Figura 62 Ostinato Motívico na introdução de Iára (c. 3) ............................................................... 110


Figura 63 O Ostinato Motívico transformado em Iára (c.29-31) .................................................... 110
Figura 64 A inserção dos intervalos de terça maior, terça menor e segunda menor no ostinato
simples em Iára (c.29-31) ................................................................................................................ 111

Figura 65 Ostinato simples na Introdução de Iára (c.7-8) ............................................................... 111


Figura 66 Melodia do piano na introdução de Iára (c.7-9).............................................................. 111
Figura 67 Acordes de intervenção (c.13-16). ................................................................................... 112
Figura 68A transformação dos acordes de intervenção c. (c.58-60) ................................................ 112
Figura 69 Acordes de Intervenção em Iára (c.58-59), em vermelho segundas maiores, em azul
terças menores, em verde terças maiores, azul quartas justas. Observe que em todos acordes as
vozes externas constroem uma segunda maior mesmo com os diferentes intervalos internos dos
acordes – a textura se mantém dentro desse âmbito de décima-sexta (duas oitavas + uma segunda
maior), mas a textura reduz sua densidade de dissonâncias no último acorde, de quartas perfeitas
(MIb-FÁ, SIb-DÓ, MIb-FÁ, DÓ-RÉ, LÁ-SI). ................................................................................ 113

Figura 70 Aparição dos acordes em sextina, sem desenvolvimento melódico, ‘cortando’ o


desenvolvimento do ostinato simples (c.85) .................................................................................... 116

Figura 71 Observe a progressão melódica dos acordes em sextina e a expansão da duração de cada
aparição, culminando nas sete repetições do acorde com LÁ-SOL# na voz superior. A progressão
desses acordes acrescenta tensão e culmina na nota SIb – central nessa peça. Anteriormente, do
compasso 88 ao 91, acontece a mesma progressão desses acordes, com menos ênfase e repetições
do que essa versão da figura (c.106-111). ........................................................................................ 117

Figura 72 Estrutura intervalar dos acordes em sextina. Segundas menores em azul claro, segundas
maiores em azul escuro, terças menores em roxo, quartas em verde e sextas em vermelho. Observe
a linha melódica superior que progride uma décima menor. ........................................................... 118

Figura 73 O motivo de segundas LÁ-SI, na sua primeira aparição (c.5-7) ..................................... 118
Figura 74 Observe o desenvolvimento do motivo LÁ-SI. Indicado como uma voz independente,
Villa-Lobos adiciona a nota RÉ enfatizando o intervalo de quartas (c.86)...................................... 119
304
Figura 75 Observe como o motivo LÁ-SI serve como conectivo textural para os acordes de sextina.
Excepcionalmente no compasso 87, o primeiro acorde possui a segunda maior LÁ-SI herdada do
motivo de segundas. ......................................................................................................................... 119

Figura 76 O motivo do salto de terça se desenvolve, de semicolcheias para para tercinas. Note que a
nota inicial do primeiro motivo é DÓ#, e que as notas iniciais descem por grau conjunto até SOL,
nota do primeiro acorde de sextinas (c.82-86) ................................................................................. 120

Figura 77 O motivo melódico-harmônico de quartas (c.100-105)................................................... 120


Figura 78 Cabeçalho autógrafo de Pai-do-Mato, primeira Canção Indígena de Villa-Lobos. ........ 128
Figura 79 Cabeçalho do autógrafo de Ualalocê, segunda Canção Indígena. Nele está escrito "Lenda
dos Índios, Cantada e dansada (sic) para festejar a caça. Harmonizada por Villa-Lobos”. ............. 129

Figura 80 KANKUKUS: P.1, Segundo sistema, c.3-6. .................................................................... 133


Figura 81 KANKIKIS: P.3, segundo sistema, c.2-4......................................................................... 134
Figura 82 FARRAPOS: P.1 último sistema c.2-3 ............................................................................ 134
Figura 83 Exemplo do coro dos Choros Nº10 (p.43, c.1-2) ............................................................. 136
Figura 84 Valorização do intervalo de segundo no coro dos Choros nº10 (p.73, c.1-2). ................. 138
Figura 85 Valorização das terças no coro dos Choros nº10 (p.69, c.1-2)......................................... 138
Figura 86 Paralelismos de segundas e terças nos Choros nº10 (p.68, c.2.). .................................... 139
Figura 87 AMAZONAS: Figura do tema de Amazonas, (c.1–2). .................................................... 141
Figura 88 AMAZONAS: (p.2, c.2-4). .............................................................................................. 141
Figura 89 AMAZONAS: Tema de segundas em Espelho da jovem índia (p.3, último sistema, c.1).
.......................................................................................................................................................... 141

Figura 90 10 AMAZONAS: (p.4 segundo sistema, c.1). ................................................................. 142


Figura 91 AMAZONAS: p.4, terceiro, quarto e quinto sistemas. ................................................... 142
Figura 92 AMAZONAS: (p.5, quarto sistema, c.1) ......................................................................... 142
Figura 93 AMAZONAS: (p. 6, último sistema, c.2, mão direita). ................................................... 142
Figura 94 AMAZONAS: (p.1, c.1-2, mão esquerda). ...................................................................... 143
Figura 95 AMAZONAS: (p.1 c,5-6). ............................................................................................... 143
Figura 96 AMAZONAS: (p.1 último sistema e p.2, primeiro sistema, mão esquerda). .................. 143
Figura 97 AMAZONAS: (p.3, último sistema, c.1-2, mão esquerda). ............................................ 143
Figura 98 UALALOCÊ: (p.1 c.1-5, mão esquerda). ........................................................................ 143
Figura 99 Ostinato dos 4 primeiros compassos de Teirú. Observe o movimento de segunda nos
contrapulsos (DÓ#-RÉ# e RÉ-MIb)................................................................................................. 144

Figura 100 DANSA DO ÍNDIO BRANCO: (p.1, c.1-2). ................................................................ 144


Figura 101 20 DANSA DO ÍNDIO BRANCO: (p.1, c.8-10). ......................................................... 144
Figura 102 FARRAPOS: (p.1, c.1-3). ............................................................................................. 145
Figura 103 KANKIKIS: (p.1 c.1-3). Apresentação do tema feito sobre segundas e terças. ............ 145
Figura 104 Apresentação do tema de KANKIKIS com a superposição de quartas (c.5-7). ............ 145
Figura 105 KANKIKIS: (p.3 segundo sistema, c.3-4, mão direita)................................................. 146
Figura 106 ABOIOS: (c.1-6). ........................................................................................................... 147
Figura 108 CANTOS DE ÇAIRÉ Nº1: (c.1-4). ............................................................................... 147
Figura 109 CANTOS DE ÇAIRÉ Nº2: (c.1-4). ............................................................................... 147
Figura 110 CANTOS DE ÇAIRÉ Nº3: (c.1-4). ............................................................................... 148
Figura 111 EVOCAÇÃO: (c.1-3) .................................................................................................... 148
Figura 112 Motivo sextinado dos compassos 35 e 36 de Iára. ........................................................ 148
Figura 113 O motivo do compasso 35 se desenvolvendo no decorrer de Iára (c.82-87). ............... 149
Figura 114 CHOROS Nº10: (p.8, c.2-3). ......................................................................................... 150
Figura 115 Melodia inicial de Iára (c.1-2)....................................................................................... 150
305
Figura 116 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.1 c.1-2). ............................................................... 155
Figura 117 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.2, c.1-2). .............................................................. 156
Figura 118 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.1, c.3-4 e p.3, c.1-3). ........................................... 156
Figura 119 INTRODUÇÃO AOS CHOROS: (p.9, c.1-3 e p.10, c.1-2). ......................................... 156
Figura 120 CHOROS 3: (p.1, segundo sistema, c.1-6). ................................................................... 157
Figura 121 CHOROS 3: (p.3, segundo sistema, c.3-5). ................................................................... 157
Figura 122 CHOROS 3: (p.3, c.3-5). ............................................................................................... 157
Figura 123 CHOROS Nº3: (p.12). ................................................................................................... 158
Figura 124 AMAZONAS: (c.3, mão esquerda). .............................................................................. 159
Figura 125 AMAZONAS: (p.5, c.1-2). ............................................................................................ 159
Figura 126 AMAZONAS: (p.5 c.1-4). ............................................................................................. 159
Figura 127 AMAZONAS: (p.5, segundo sistema, c.1-2)................................................................. 160
Figura 128 AMAZONAS: (p.8, último sistema, c.1-3).................................................................... 160
Figura 129 CHOROS 10: (p.4, último sistema, c.6-7 e p.5, c.1-2). ................................................ 161
Figura 130 CHOROS 10: (P.3, último sistema, c.3-4 e p.4, c.1). .................................................... 161
Figura 131 CHOROS 10: (p.4, c.3-5). ............................................................................................. 162
Figura 132 CHOROS 10: (p.27, c. 1-3). .......................................................................................... 163
Figura 133 CHOROS 10: (p. 42 e 43).............................................................................................. 164
Figura 134 FARRAPOS: (p.1, c.7-8). ............................................................................................. 164
Figura 135 FARRAPOS: (p.1, terceiro sistema c.2-4 e quarto sistema inteiro, mão direita). ......... 165
Figura 136 FARRAPOS: (toda p.2, a partir do terceiro sistema, c.3-4)........................................... 165
Figura 137 KANKUKUS: (p.1, quarto sistema, c.3-5). ................................................................... 165
Figura 138 KANKUKUS: (p.10, segundo sistema, c.2-4 e quarto sistema inteiro, mão esquerda).
.......................................................................................................................................................... 166

Figura 139 KANKUKUS: (p.11, quarto sistema, c.1). .................................................................... 166


Figura 140 KANKIKIS: (p.1, c.5-7). .............................................................................................. 166
Figura 141 KANKIKIS: (p.1, segundo sistema, c.3-4). ................................................................... 167
Figura 142 KANKIKIS: (p.3, c.4-8, mão direita). ........................................................................... 167
Figura 143 KANKIKIS: (p.3, último sistema, c.4-5, mão direita)................................................... 167
Figura 144 DUAS LENDAS: (p.1). ................................................................................................. 168
Figura 145 DUAS LENDAS: (p. 3 último sistema). ....................................................................... 169
Figura 146 Último compasso de Veleiro. ......................................................................................... 170
Figura 147 Série Harmônica da nota DÓ2. Observe a reincidência das quintas nessa estrutura..... 177
Figura 148 AMAZONAS: (p.1 c.3-5). ............................................................................................. 178
Figura 149 AMAZONAS: (p.6, c.2). .............................................................................................. 179
Figura 150 AMAZONAS: (p.6, terceiro sistema, c.1). .................................................................... 179
Figura 151 AMAZONAS: (p.8 terceiro sistema, c.1-3). ................................................................. 179
Figura 152 AMAZONAS: (p.8, último sistema, c.1-4).................................................................... 180
Figura 153 CHOROS 10: (p. 7, c.1-4). ............................................................................................ 180
Figura 154 CHOROS 10: (p. 10 c.1-5). ........................................................................................... 181
Figura 155 CHOROS 10: (p. 13, c.1-4). .......................................................................................... 181
Figura 156 CHOROS 10: (p.13, c.1-4). ........................................................................................... 181
Figura 157 CHOROS 10: (p. 51, c.1)............................................................................................... 182
Figura 158 CHOROS 3: (p.1, c.1-3). ............................................................................................... 182
Figura 159 CHOROS 3: (p.1 c.5-6). ................................................................................................ 183
Figura 160 CHOROS 3: (p.3, segundo sistema, c.4.-5). .................................................................. 183
Figura 161 DUAS LENDAS: (p.1). ................................................................................................. 184
Figura 162 CANTO DO PAGÉ: (primeiro e segundo sistemas)...................................................... 185
Figura 163 CANTOS DE ÇAIRÉ 2: (p.1, primeiro sistema). ......................................................... 185
Figura 164 UALALOCÊ: p.3, (primeiro sistema, c.1-5 e segundo sistema c.1-4, mão direita). ..... 186
Figura 165 FARRAPOS: (p.1, c.1-2). .............................................................................................. 186
306
Figura 166 FARRAPOS: (p.1, c.1-2). ............................................................................................. 186
Figura 167 KANKIKIS: (p.1, c.1-4) ............................................................................................... 187
Figura 168 KANKIKIS: (p.1, c.5-7). .............................................................................................. 187
Figura 169 CABOCLINHA: (P.14, último sistema, c.1-3 e p.15 c.1-2, mão direita). .................... 187
Figura 170 CABOCLINHA: (p.15, segundo, terceiro e quarto sistemas, mão direita). .................. 188
Figura 171 DANSA DO ÍNDIO: (p.6 quarto sistema, c.2-5)........................................................... 188
Figura 172 Exemplo do ostinato com ênfase nas segundas, em Nozani-ná (c.6-10). ...................... 195
Figura 173 Exemplo do ostinato de Ualalocê (c.1-5). ..................................................................... 195
Figura 174 FARRAPOS: (p.4, segundo sistema, mão esquerda, c.1-3).......................................... 196
Figura 175 FARRAPOS: (p.1, terceiro sistema, c.2-4 e quarto sistema). ........................................ 196
Figura 176 KANKUKUS: (p.3, segundo sistema, c.1-4)................................................................. 197
Figura 177 KANKUKUS: (p.4, último sistema, c.2-4)................................................................... 197
Figura 178 KANKIKIS: (p.1, último sistema, mão esquerda)......................................................... 197
Figura 179 DANSA DO ÍNDIO: p.1 terceiro sistema. .................................................................... 198
Figura 180 CABOCLINHA: (p.1 segundo sistema c.3-4 e terceiro sistema c. 1-2, mão esquerda).
.......................................................................................................................................................... 198

Figura 181 CABOCLINHA: (p.1 segundo sistema, c.1-2, mão esquerda). ..................................... 198
Figura 182 DUAS LENDAS: (p.1). ................................................................................................. 200
Figura 183 Algumas figurações rítmicas binárias que agrupadas formam a estrutura rítmica da
maior parte dos temas indíegnas em VIlla-Lobos. ........................................................................... 209

Figura 184 Tema de Amazonas, estruturado sobre semínimas (c.1-2). ............................................ 209
Figura 185 Acompanhamento do Amazonas, construído exclusivamente sobre semínimas, de pulso
(c.5-6). .............................................................................................................................................. 209

Figura 186 Exemplos de figurações rítmicas em CANTOS DE ÇAIRÉ Nº1: (c.1-4), CANTOS DE
ÇAIRÉ Nº2: (c.1-4), CANTOS DE ÇAIRÉ Nº3: (c.1-4). ............................................................... 210

Figura 187 Pulso em colcheias e suas subdivisões e, semicolcheias em Kankikis (c.4-5). ............. 211
Figura 188 Nozani-ná: transcrição em Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938). .............................. 212
Figura 189 Observe na repetição da palavra etê, na nota MI do segundo compasso (a partitura está
em clave de Sol) do exemplo a proporção 1 para três. Ela será enfatizada durante toda a canção. 213

Figura 190 Padrão rítmico de Nozani-ná utilizado e elaborado por repetição em Saudades das
Sélvas Brasileiras, nº¹ (c.35-38). Observe a ênfase nos saltos melódicos paralelo de terça menor
entre os acordes de quartas sobrepostas. Esse é um caso especial da retórica indígena de Villa-
Lobos. ............................................................................................................................................... 213

Figura 191 Em Iára, dos Três Poemas Indígenas, Villa-Lobos utiliza a proporção rítmica 3 para 1
na sequência dos pulsos, bem como os intervalos de terça menor e segundas além da repetição de
uma nota na mesma duração (Si natural do compasso 8). Todos esses elementos estão presentes na
melodia de Nozani-ná. ..................................................................................................................... 213

Figura 192 Transcrição do fonograma nº14.596 do livro Rondônia ................................................ 214


Figura 193 As notas MI, SI e SOL# como estrutura - a ênfase nas terças - e a repetição das notas SI
e MI pelas duas vozes, reforçando a relação 1 para 3 nas durações da melodia. ............................. 215

Figura 194 Iára, compassos 107-109. .............................................................................................. 215


Figura 195 Transcrição do fonograma 14.595 (ROQUETE-PINTO, 1938, p.329) ......................... 216

307
Figura 196 Motivo melódico dos primeiros dois compassos da transcrição do fonograma 14.595.
Observe a condução por grau conjunto, numa espécie de anacruse que conduz ao FÁ#, acentuado.
.......................................................................................................................................................... 217

Figura 197 A): Afirmação de uma nota pela repetição; B): Afirmação de uma nota pela apojatura
sobre ela, C): progressão melódica descendente por grau conjunto. ............................................... 217

Figura 198 As relações intervalares dos pontos fortes da melodia (notas acentuadas e graves: em
vermelho as terças e em verde, as quartas). ..................................................................................... 218

Figura 199 Movimentação por graus conjuntos entre as notas de maior acentuação dinâmica forma a
melodia FÁ#, MI, RÉ, MI, RÉ. ........................................................................................................ 218

Figura 200 Os versos de Nozani-ná utilizados como 'matéria-prima' para o desenvolvimento


motívico da Introdução aos Choros. ................................................................................................ 219

Figura 201 Motivos melódicos internos ao tema de Introdução aos Choros................................... 219
Figura 202 Em Azul, fragmentos melódicos do tema relativos ao motivo 3, em verde ao motivo 1.
.......................................................................................................................................................... 220

Figura 203 Em Azul, variações do motivo 1. Em verde, do 2 e em vermelho do 3......................... 221


Figura 204 Fonograma nº14.594 de Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938). .................................. 221
Figura 205 Tercinas em Cantos de Çairé nº1: (c.1-4)...................................................................... 223
Figura 206 Tercinas em Cantos de Çairé Nº2: (c.1-4)..................................................................... 223
Figura 207 Teirú: transcrição de Rondônia (ROQUETE-PINTO, 1938). Sem indicação de
fonograma. ....................................................................................................................................... 224

Figura 208 A estilização indígena de Villa-Lobos em Kankikis (c.1-9). .......................................... 232


Figura 209 Acompanhamento em 5ªs paralelas de Amazonas: (c. 3-4). .......................................... 232
Figura 210 Tópica indígena em Saudades das Selvas Brasileiras I (p.3, último sistema, c.3-4 e p.4
primeiro sistema, c.1-3).................................................................................................................... 232

Figura 211 Mistura de tópicas seresteiras (progressões harmônicas de ponteio) e tópicas indígenas
(ostinato, paralelismos, retpetição) na Dansa do Ìndio Branco (c.14-23). ...................................... 233

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