Alfabetização A Partir Da BNCC

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14393ER-v25n3e2018-7

Diferentes perspectivas de alfabetização a partir da Base


Nacional Comum Curricular: concepções e desafios

Ana Maria Esteves Bortolanza1


Ilsa do Carmo Vieira Goulart2
Giovanna Rodrigues Cabral3

RESUMO
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) se constitui como um
documento de caráter normativo norteador dos currículos dos sistemas e
redes de ensino, bem como das propostas pedagógicas de todas as escolas
públicas e privadas de Educação Básica de todo o Brasil. Neste artigo,
nossa proposta é a de refletir sobre o sentido atribuído à alfabetização na
versão final aprovada da BNCC, com intuito de problematizar as
descrições de aspectos legais instituídos pelo documento, com destaque
aos elementos que permanecem ou diferem-se em relação aos demais
documentos oficiais sobre o tema. Para tanto, desenvolve-se uma
pesquisa descritiva, de cunho qualitativo, apoiada na análise do
documento oficial da BNCC e nas orientações a respeito da alfabetização,
com base nos estudos do processo de compreensão da leitura e escrita de
Bajard (2006) e Vygotsky (2000), da concepção de leitura como prática
social de produção de sentidos de Chartier (1990; 1996) e Goulemot
(1996).
PALAVRAS-CHAVE: Base Nacional Comum Curricular. Alfabetização.
Leitura. Escrita. Políticas de alfabetização.

Different perspectives of literacy from the National Common


Curriculum Base: concepts and challenges

1
Pós-Doutorado em Educação. Universidade de Évora, Portugal. Email: [email protected].
2
Doutora em Educação. Universidade Federal de Lavras. Minas Gerais. Brasil. Email: [email protected].
3
Doutora em Ciências Humanas - Educação. Universidade Federal de Lavras. Minas Gerais. Brasil. Email:
giovanna.cabral@ded,ufla.br.

Ensino Em Re-Vista | Uberlândia, MG | v.25 | n. Especial | p. 958-983 | 2018 I SSN: 1983-1730 958
DOI: http://dx.doi.org/10.14393ER-v25n3e2018-7

ABSTRACT
The National Common Curricular Base (BNCC) is a document of guiding
the regulatory character of the curriculum teaching systems and
networks, as well as pedagogical proposals of all public and private
schools of basic education of all Brazil. In this article we propose is to
reflect on the meaning attributed to literacy in the final version approved
the BNCC, in order to discuss the legal aspects imposed by descriptions
document, highlighting the elements that remain or differ in relation to
other official documents on the topic. To this end, it develops a
descriptive research, qualitative measures, based on analysis of the
official document in the guidelines regarding BNCC and literacy, based
on studies of the process of reading comprehension and writing Bajard
(2006) and Vygotsky (2000), the design of reading as social practice of
production of senses of Chartier (1990; 1996) and Goulemot (1996).
KEYWORDS: National Curriculum. Literacy. Common Reading. Writing.
Literacy policies.

***

Introdução

Na esfera das discussões acadêmicas que abarcam as políticas públicas


para a educação no país, de modo específico para a alfabetização, demarca-se
o foco na compreensão de uma realidade educacional nem sempre
compreensível, seja pela ação contraditória entre o que se investe e o retorno
que se obtém, não repercutindo em melhoria dos índices de rendimento
escolar, revelando um movimento de reformas constantes em busca de
políticas nacionais que de fato melhorem a qualidade da Educação no país.
Nesta perspectiva, constitui-se, a partir da década de 1980, um
crescente movimento em prol da redemocratização do país, em reação ao
autoritarismo presente no regime militar, refletindo-se em propostas
liberais de reformulação do sistema educacional.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88, houve o
aumento da autonomia dos governos estaduais e o estabelecimento de

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mecanismos de descentralização fiscal e política. Pela primeira vez, os


municípios passaram a ser definidos como entes federados, tendo a
possibilidade de criar seus próprios sistemas de ensino e a responsabilidade
de atuar, prioritariamente, na oferta do Ensino Fundamental e da Educação
Infantil, em regime de colaboração com os Estados e a União.
A CF/88 definiu a Educação como um direito prioritário contemplando
essa questão em vários tópicos e tornando o acesso ao ensino obrigatório e
gratuito um direito público subjetivo (artigo 208, VII, § 1º). Isto posto
qualquer pessoa pode reclamar às autoridades públicas se não conseguir
usufruir desse direito ou se sua oferta for irregular, podendo recair nos
dirigentes estaduais e municipais a responsabilidade judicial pela
inexistência deste ensino obrigatório e gratuito.
Uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB,
depois de oito anos em tramitação no Congresso, foi promulgada em 20 de
dezembro de 1996. Essa lei fortaleceu a tendência à descentralização
normativa, executiva e financeira do sistema educacional e repartiu
competências entre as instâncias do poder (federal, estadual e municipal),
enfatizando a responsabilidade de estados e municípios pela universalização
do Ensino Fundamental.
A LDB/96, no art. 9º, em consonância com o art. 214 da CF/88,
determinou para a União, em articulação com Estados e Municípios, a
incumbência da elaboração de um Plano Nacional de Educação (PNE) de
duração plurianual, documento esse norteador para a área.
No âmbito curricular a CF/88, em seu art. 210, delimitou que devem
ser fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e
artísticos, nacionais e regionais. Nesse mesmo sentido, a LDB/96 apontou
que à União caberia a responsabilidade de "estabelecer, em colaboração com
os estados, Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para
a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão

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os currículos e os seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação


básica comum". (BRASIL, 1996).
A partir dessas determinações, mecanismos passaram a orientar os
sistemas de ensino quanto aos conteúdos e habilidades a serem ensinados
na escola. Em 1997, o Governo Federal divulgou os Parâmetros Curriculares
Nacionais como referência não obrigatória para a elaboração dos currículos
das redes e das escolas e, anos depois, foram aprovadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais, dessa vez de cunho obrigatório.
Assim, a proposta de criação de uma base curricular para a Educação
Básica estava prevista desde 1988 e já fora objeto de normatização pelo
Governo, no entanto, somente em 2014, a criação de uma base nacional
comum curricular foi definida como meta a ser cumprida pelo Plano
Nacional de Educação (PNE).
A versão aprovada da BNCC, que entrará em vigor em 2020, traz para
a esfera pública práticas já observadas em instituições privadas, buscando o
aumento no desempenho das escolas e uma maior padronização na
elaboração dos currículos e preparação dos alunos, para que estejam aptos a
competir nos testes padronizados em igualdade de condições,
independentemente de sua origem social e escolar.
Um dos principais pontos trazidos pela BNCC nesse sentido são as
orientações para a educação infantil, com a definição de direitos de
aprendizagem específicos para a etapa, ancorados nas competências gerais
que regem todo o documento, além da antecipação da alfabetização para o
final do 2º ano de escolaridade do Ensino Fundamental.
Parece que o documento que institui a Base está mais comprometido
com determinada lógica da sociedade capitalista do que com a formação
humana e integral, que deve ser o objetivo maior da Educação nacional.
Corroboramos com Geraldi (2015) quando esse afirma que a partir da
década de 1990, o sistema educacional brasileiro sofre as consequências do
modelo neoliberal adotado pelas políticas públicas educacionais por meio dos
“inúmeros documentos oficiais que pretendem implantar novas perspectivas

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para essas práticas, independentemente das possibilidades reais que as


escolas e os professores têm para concretizar tais mudanças” (GERALDI,
2015).
Pesquisadores de várias universidades vêm se posicionando
criticamente em relação à BNCC, entre eles Peroni (2009), evidenciando que
esta resulta de um contexto político em que o capital neoliberal cada vez
mais amplia a interferência empresarial em detrimento dos serviços
públicos como saúde, educação, transporte etc.
Nesse cenário neoliberal, em que tudo se transforma em lucro e
mercadoria, a concepção de currículo na BNCC apresenta uma visão estreita
e tecnicista trazendo os conhecimentos fragmentados sob a aparência de
uma suposta neutralidade. Segundo Silva (2017, p.1),

O documento traz uma visão restrita de currículo. A descrição de


listas de objetivos é uma retomada do modelo curricular chamado
de “tecnicista” e que o Brasil experimentou nos anos 70. Uma
listagem supostamente neutra de conhecimentos e tecnicamente
organizada. Mas o currículo escolar nada tem de neutro, já que ele
é uma seleção a partir de um conjunto de possibilidades. A decisão
sobre o que e como ensinar que orienta essa seleção é também uma
decisão sobre que tipo de pessoa se pretende formar, sendo mais do
que uma decisão técnica, uma decisão de natureza política que a
suposta neutralidade esconde. Por essa razão o modelo tecnicista
foi amplamente criticado.

Na direção contrária desse cenário político, nos posicionamos e


definimos a escola como espaço de constituição dos sujeitos. Para isso seus
conteúdos, objetivos, ações pedagógicas devem responder à uma educação
transformadora. Freire (1979, p. 21) afirma que “é preciso que a educação
esteja – em seus conteúdos, em seus programas e em seus métodos –
adaptada ao fim que se persegue: ser sujeito, construir-se como pessoa,
transformar o mundo, [...] fazer a cultura e a história”. Se queremos formar

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sujeitos autônomos e críticos, a alfabetização tem um papel fundamental


nesse processo.
Ancorados nessa premissa passamos a refletir sobre o sentido atribuído
à alfabetização na versão final aprovada da BNCC, com intuito de
problematizar as descrições de aspectos legais instituídos pelo documento,
com destaque aos elementos que predominam ou diferem-se em relação a
outros documentos oficiais. Ainda, discutimos sobre os possíveis impactos da
nova proposta no processo de formação docente.
Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa descritiva, de cunho
qualitativo, apoiada nos estudos e na análise do documento oficial da BNCC
e suas descrições a respeito da alfabetização, sob o aporte teórico de autores
que pesquisam sobre o processo de compreensão da leitura e escrita, como
Bajard (2006) e Vigotski (2000; 2009) e sobre a concepção de leitura como
prática social de produção de sentidos, como Chartier (1990; 1996) e
Goulemot (1996).

1. BNCC: aspectos estruturantes, críticas e possibilidades

Depois dos avanços e retrocessos nas discussões de três versões da


BNCC, a mesma emerge como um documento de caráter normativo que
define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que
todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da
Educação Básica.
Conforme definido na LDB/96, a Base deve nortear os currículos dos
sistemas e redes de ensino, como também as propostas pedagógicas de todas
as escolas públicas e privadas de Educação Básica em todo o Brasil. Esse
documento também será referência na orientação de outras políticas para a
área de Educação como as de formação de professores, de produção de
materiais didáticos e de avaliação.
Muitos autores criticam essa iniciativa por considerá-la nociva aos
processos democráticos, por acirrar a competição nas e entre escolas e por

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ampliar a influência empresarial na Educação nacional. De acordo com


Oliveira (2017), a Base é em si uma contradição, “pelo fato de que no Brasil
já existem diretrizes curriculares para os diferentes níveis e modalidades de
ensino”. Gadotti (2001, p. 36) mostra que “para o pensamento neoliberal, a
qualidade se confunde com competividade e explica que “as pessoas não são
competentes porque são competitivas, mas porque sabem enfrentar seus
problemas cotidianos juntos com os outros, não individualmente”.
Além de padronizar uma base curricular mínima para as escolas
públicas e privadas, mesmo essas tendo naturezas e estruturas diferentes,
podemos pensar que a fixação de uma base nacional comum para todas as
escolas do Brasil tem a função de permitir o aumento do controle sobre as
redes de ensino naquilo que ensinam e como ensinam. Esse controle do que é
ensinado nas escolas hoje está relacionado aos processos de avaliação em
larga escala associados a elas, bem como a indústria do material didático.
Ainda que de forma velada, esse maior controle dos processos e produtos
educacionais é trazido no texto da BNCC e, aqueles que não refletem as
intenções subjacentes à escrita literal, tendem a achar que a implantação da
Base, tal como ela está desenhada, é um ganho para a Educação no país.

A adoção desse enfoque vem reafirmar o compromisso da BNCC


com a garantia de que os direitos de aprendizagem sejam
assegurados a todos os alunos. Com efeito, a explicitação de
competências – a indicação clara do que os alunos devem saber, e,
sobretudo, do que devem saber fazer como resultado de sua
aprendizagem – oferece referências para o fortalecimento de ações
que assegurem esses direitos. (BRASIL, 2017, p.16)

Freitas denuncia que a BNCC não terá a função de “orientar” a


educação nacional, como seria de se esperar, mas sim a função de padronizar
competências, habilidades e conteúdos em todo o país, em nome dos direitos
de aprendizagem dos alunos, determinando o que as escolas devem ensinar e
quando. Na visão do autor a Base foi equivocadamente fixada como

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obrigatória e não como uma referência, a partir da qual os Estados


pudessem construir as suas próprias bases curriculares. Ainda, antecipa que
a partir da implantação da Base haverá a profusão da oferta de materiais
instrucionais que os sistemas de ensino serão obrigados a adotar (para
elevarem os índices nas avaliações externas), padronizando ainda mais o
trabalho do professor em sala de aula e eliminando o que resta da
autonomia dos profissionais da educação. Acredita-se que, a partir disso, a
Base também norteará a formação inicial e continuada dos professores,
como já se percebe com as orientações do programa de Residência
Pedagógica, instituído pelo MEC para a formação de professores nas
licenciaturas.
Crítico atuante da BNCC, Freitas estuda as experiências da
implantação de um currículo mínimo em outros países e aponta que nesses
países houve um processo de desqualificação e culpabilização tanto dos
professores quanto da própria gestão da escola frente ao fracasso das
instituições escolares nos índices educacionais, abrindo caminho para
formas de privatização da educação pública via terceirização e da oferta de
bolsas para os estudantes se transferirem para escolas privadas, pagas com
dinheiro que deveria ser investido nas escolas públicas.
Em que pesem todos os alertas e as críticas sobre a BNCC, entendemos
que é possível e necessária a implantação de uma Base curricular que seja
referência para o país, mas que parta de uma discussão sobre o que se
entende por educação ampla e integral, voltada para a formação de cidadãos
críticos e atuantes. Esse processo seria totalmente diferente do que foi
verificado com a implantação da BNCC, que hoje mais se assemelha à
determinação e padronização de uma lista de competências e habilidades
consideradas como a formação ideal, desconsiderando as realidades de um
país de dimensões continentais como o Brasil.
No entanto, é preciso que estudemos e nos debrucemos sobre as
orientações e diretrizes presentes no documento da Base, no sentido de
desvelar as concepções postas e contra argumentá-las para empoderar a

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comunidade escolar e a sociedade em geral com os conhecimentos


necessários para resistir à homogeneização e padronização que o Governo
tanto deseja.
É o que nos propomos nas seções seguintes desse texto: aprofundar os
estudos sobre a alfabetização a partir da BNCC.

2. A alfabetização na Base Nacional Comum Curricular

A alfabetização é por sua natureza e constituição histórica um tema


bastante complexo e polêmico do ponto de vista das políticas públicas, das
práticas pedagógicas, da formação de professores e dos processos de ensino e
aprendizagem.
O que constatamos na BNCC em relação à alfabetização é a
reafirmação da crença cristalizada no construtivismo e filtrada pelo discurso
pedagógico (MORTATTI, 2015). De acordo com a autora, a alfabetização na
BNCC revela de um lado, as apropriações da teoria construtivista; de outro,
a tradição pedagógica que resulta da formação de professores e de sua
atuação profissional.
A BNCC, ao tratar do processo de alfabetização, afirma que

[...] é preciso que os estudantes conheçam o alfabeto e a mecânica


da escrita/leitura – processos que visam a que alguém (se) torne
alfabetizado, ou seja, consiga “codificar e decodificar” os sons da
língua (fonemas) em material gráfico (grafemas ou letras), o que
envolve o desenvolvimento de uma consciência fonológica (dos
fonemas do português do Brasil e de sua organização em
segmentos sonoros maiores como sílabas e palavras) e o
conhecimento do alfabeto do português do Brasil em seus vários
formatos (letras imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas),
além do estabelecimento de relações grafofônicas entre esses dois
sistemas de materialização da língua. (BRASIL, 2017, p. 87-88).

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Bajard (2006, p. 493) já criticava em seu artigo Nova embalagem,


mercadoria antiga, a visão “do ato de ler como uma sequência de dois
processos distintos: uma extração da pronúncia, seguida por uma extração
da compreensão”, reafirmando a perspectiva saussuriana de língua escrita
como simples “representação da língua oral”, em que os grafemas apenas
traduzem os fonemas, portanto a leitura apenas como ato de decodificação e
codificação do código alfabético. A argumentação toma como referência uma
linguística redutora, ignora a dimensão semiótica da linguagem escrita,
recorre a uma concepção de leitura e do aprender a ler autoritária e
mecanicista.
Ao tratar das “relações grafofônicas entre esses dois sistemas de
materialização da língua”, referindo-se à relação entre letras e sons, a
BNCC (BRASIL, 2017, p. 88) ignora o percurso histórico do próprio alfabeto.
De acordo com o autor, o alfabeto “nasceu da transposição dos fonemas em
letras por meio de várias metamorfoses” sofridas ao longo de sua história.
(BAJARD, 2016, p. 498).

Os gregos, assumindo radicalmente o aspecto fonético da escrita


(século IX a.C.) suprimiram o espaço entre as palavras, presente
na escrita fenícia, uma vez que o espaço não correspondia a
nenhum sorri, fazendo prevalecer uma escrita perfeitamente
alfabética, a scriptio continua, com correspondências biunívocas
entre grafemas e fonemas (Saenger, 1998). Na Idade Média, a
partir do século IX, foi reintroduzido o espacejamento entre as
palavras e, mais tarde, a minúscula e a pontuação. Uma dimensão
ideográfica foi desse modo incorporada à lógica puramente
alfabética, dado que o acesso ao texto, que até então ocorria por
meio de sua oralização, passou a ser também visual, ou seja,
silencioso, sem depender da pronúncia. Essas mudanças
contribuíram para a autonomia da escrita - hoje reconhecida – em
relação à língua oral. (BAJARD, 2016, p. 498)

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Conhecendo o percurso histórico do alfabeto, podemos perceber que o


fonocentrismo traz uma ideia de escrita de uma outra época. Essa concepção
de escrita busca na linguística de Saussure a escrita como tradução da fala,
e, de acordo com Bajard (2006, p. 498), “a fonologia inventou um método
endógeno para identificar suas unidades – os fonemas - sem compará-las a
unidades escritas”. A questão que se coloca é: “Se hoje a escrita funciona com
uma relativa autonomia, por que definir a unidade escrita apenas a partir
da sua relação com a língua oral?” (BAJARD, 2006, p. 498).
Sobre as relações grafofônicas entre os dois sistemas de materialização
da língua defendidas no método fônico, cabe ainda refletir que tão somente
os elementos isomorfos da escrita correspondem, destacando-se o fato que os
grafemas da escrita são organizados em palavra (signos e significados)
enquanto na linguagem oral é a prosódia que organiza os fonemas.
Por que reduzir a alfabetização, isto é, o ensino da escrita a grafemas e
fonemas se o que está em jogo é, segundo Vigotski (2000, p. 184),

O domínio da linguagem escrita significa para a criança dominar


um sistema de signos simbólicos extremamente complexo. [...] o
domínio deste sistema complexo não pode realizar-se por uma via
exclusivamente mecânica, desde fora, por meio de uma simples
pronunciação, de uma aprendizagem artificial. [...] O domínio da
linguagem escrita é, na realidade, o resultado de um largo
desenvolvimento das funções psíquicas superiores do
comportamento infantil. (VIGOTSKI, 2000, p.184).

Vigotski (2000) opõe-se ao ensino da escrita que se reduz ao traçado de


letras e, sílabas, palavras esvaziadas de significados, apontando o caráter
mecanicista desse comportamento externo tantas vezes repetido que se
torna um hábito psicofísico. Aprende-se apenas a mecânica do sistema de
escrita alfabética, mas não se penetra no espírito da língua que se manifesta
por meio da linguagem em enunciados que dialogam entre si.
(VOLÓCHINOV, 2017; BAKHTIN, 2011).

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Não podemos aprisionar o ato de escrever aos limites dos


comportamentos condicionados como se tratasse apenas da aprendizagem de
uma técnica. A escrita é, sobretudo, uma atividade criadora de atribuição de
significados e sentidos. Para Vigotski (2000, p. 201), “deve organizar-se de
forma que a leitura e a escrita sejam de algum modo necessárias para a
criança” (VIGOTSKI, 2000, p. 201).
As investigações realizadas pelo autor apontam como eixo condutor da
aprendizagem da escrita o significado. Vigotski (2009, p. 246) explica que a
criança não aprende algo por associações que se vinculam e são
memorizadas, portanto aprender a ler e a escrever “é mais do que um
simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento [...]”.
Escrever requer muito mais que habilidade cognitiva e motora de registrar
grafemas relacionando-os a fonemas como expõe a BNCC. Não se trata de
ensinar o sistema ortográfico do português escrito nos dois primeiros anos
para “conhecer as relações fono-ortográficas, isto é, as relações entre sons
(fonemas) do português oral do Brasil em suas variedades e as letras
(grafemas) do português brasileiro escrito”. Consideramos um retrocesso na
alfabetização a afirmação que conhecer “o funcionamento da escrita
alfabética para ler e escrever significa [...] perceber as relações bastante
complexas que se estabelecem entre os sons da fala (fonemas) e as letras da
escrita (grafemas) [...]”. Ao concluir que se trata de a criança “perceber como
sons se separam e se juntam em novas palavras etc.”, a Base ignora que esse
processo complexo, já num primeiro momento, precisa ser conduzido pelos
significados e sentidos que as palavras adquirem em diferentes contextos e
para diferentes grupos, indivíduos, etc.
Aprender a ler e a escrever na perspectiva vigotskiana é, inversamente
ao que se propõe na BNCC, um processo de atribuição de sentidos à escrita
de que a criança se apropria ao ser imersa na cultura escrita, por meio de
textos, em seus usos e funções sociais. Desse modo, as atividades na
alfabetização precisam contemplar a diversidade de textos como bons
modelos a serem imitados e apreendidos pelas crianças, em atividades

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epilinguísticas significativas. A apropriação da escrita implica refletir sobre


a linguagem em suas dimensões linguística, semântica, ideológica, e não
memorizar correspondências entre sons e letras que nada significam para a
criança.
A BNCC denomina de processo básico de alfabetização a construção do
conhecimento “das relações fonografêmicas em uma língua específica, que
pode se dar em dois anos, a ser, complementado por outro, bem mais longo,
que podemos chamar de ortografização, que complementará o conhecimento
da ortografia do português do Brasil”. (BRASIL, 2017, p. 89). Nessa visão,
percebe-se que o processo de alfabetização se amplia por meio da
ortografização, quando entendemos que o processo de letramento é que deve
estar associado ao de alfabetização.
Interessante indicar que essa definição de alfabetização trazida na
BNCC, correspondendo ao núcleo duro da alfabetização, ao conhecimento
mecânico da escrita alfabética, se afasta da definição trazida pela Resolução
nº 2 de 2017, do Conselho Nacional de Educação que instituiu e orientou a
implantação da própria BNCC ao longo das etapas e respectivas
modalidades no âmbito da Educação Básica, trazendo uma abordagem mais
ampla sobre o conceito

Art. 12. Para atender o disposto no inciso I do artigo 32 da LDB,


no primeiro e no segundo ano do Ensino Fundamental, a ação
pedagógica deve ter como foco a alfabetização, de modo que se
garanta aos estudantes a apropriação do sistema de escrita
alfabética, a compreensão leitora e a escrita de textos com
complexidade adequada à faixa etária dos estudantes, e o
desenvolvimento da capacidade de ler e escrever números,
compreender suas funções, bem como o significado e uso das
quatro operações matemáticas do ponto de vista legal. (BRASIL,
2017, grifos nossos)

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Como destacado acima, no art. 12 da Resolução durante o processo de


alfabetização a ação pedagógica deve ser voltada tanto para que os alunos se
apropriem do Sistema de Escrita alfabética quanto para que compreendam
as práticas de leitura e escrita em textos. O que denota, diferentemente do
documento da BNCC, a preocupação em aproximar as práticas leitoras e a
escrita de textos do processo de apropriação do sistema de escrita.
Arena (2013, p. 112) esclarece que,

Na situação real, de tentativas de apropriação da língua escrita


como instrumento de comunicação de constituição do pensamento,
as letras, as palavras e o próprio enunciado ganham funções
plurais, em vez do engessamento técnico a apenas uma delas: a
relativa relação fonema-grafema. Como uma unidade na palavra, a
letra teria funções por preservar com ela os traços de significado
constituintes do todo.

A letra só tem função para a criança no processo de aquisição da escrita


quando ela se insere no enunciado, pois auxilia na significação do todo em
que está inserida. Portanto, não se trata apenas de ensinar o alfabeto; a
letra, como coadjuvante na aprendizagem da escrita, como meio de
comunicação e constituição do pensamento, adquire um valor semântico.
Ao argumentar sobre a função da letra na escrita, Arena (2013, p. 113)
traz Vigotski “como estudioso da linguagem” e explica que “[...] ele reconhece
o fonema como unidade do todo que envolve o aspecto fônico e o semântico
da palavra oral, [...] entretanto, destaca que somente se mantém como
unidade se for constituinte da palavra plena; fora dela, fora do enunciado, o
fonema deixa de ser unidade e fica reduzido a um elemento”.
Eleger para o ensino da escrita inicialmente a construção das relações
fonografêmicas reduz as letras a elementos, o que impede a atribuição de
significado pela criança, pois se retira da letra sua dimensão semiótica.
Arena (2013) argumenta que a letra não é apenas um sinal gráfico, na

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palavra ganha unidade e guarda consigo inclusive os valores ideológicos


(BAKHTIN, 2011) que tem em sua função semântica.
Essa ênfase nas relações fonografêmicas distancia a criança da
linguagem viva, em movimento, em suas interações verbais. Geraldi
conceitua a linguagem como uma “atividade constitutiva, cujo locus de
realização é a interação verbal”, por meio da qual “são construídos os
próprios instrumentos (a língua) que lhes permitem a intercompreensão”,
sendo que “a língua é uma destas formas de compreensão, do modo de dar-se
para cada um de nós os sentidos das coisas, das gentes e de suas relações”,
uma vez que “pelo processo de internalização do que nos era exterior [...] nos
constituímos como os sujeitos que somos, e, com as palavras de que
dispomos, trabalhamos na construção de novas palavras.” (GERALDI, 1996,
p. 67).
Quanto aos possíveis impactos dos gêneros textuais sobre “os processos
de alfabetização e ortografização”, de acordo com a BNCC (BRASIL, 2017, p.
91), “Em que pese a leitura e a produção compartilhadas com o docente e os
colegas, ainda assim, os gêneros propostos para leitura/escuta e produção
oral, escrita e multissemiótica, nos primeiros anos iniciais, serão mais
simples”. Citam-se gêneros do cotidiano como listas, bilhetes, convites etc.
que possibilitem trabalhar a grafia.
Como determinar os gêneros textuais que serão apresentados às
crianças elegendo o critério da facilidade, como se elas não trouxessem
experiência com outros gêneros textuais em situações, por exemplo, de
escuta de contos lidos pelos pais, de trechos da Bíblia lidos em cultos
religiosos, de filmes de suspense, e tantos outros. São também mencionadas
a pontuação e a acentuação, assim como as classes morfológicas das
palavras, o que revela a exploração do texto como pretexto para o trabalho
com os aspectos notacionais da linguagem escrita.

3. O eixo da compreensão da Leitura na BNCC

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No que tange à alfabetização, a BNCC concebe uma articulação dos


anos iniciais do Ensino Fundamental com as experiências vivenciadas na
Educação Infantil, que tem como prioridade valorizar situações lúdicas de
aprendizagem.
Importante refletir que a Base defende a definição do conjunto orgânico
e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. No
entanto, as estruturas apresentadas no documento para a educação infantil
e para o ensino fundamental são diferentes. A educação infantil está
organizada com base em direitos de aprendizagem e desenvolvimento,
distribuídos pelos campos de experiências, sendo que cada campo de
experiência apresenta em sua composição a definição de objetivos de
aprendizagem e desenvolvimentos organizados em três grupos, por faixa
etária. Já o ensino fundamental está organizado por áreas de conhecimentos
e dentro das quais são estabelecidas as competências específicas das áreas,
organizadas em unidades temáticas, cada uma com seus objetos de
conhecimentos e conjunto de habilidades determinadas. Essa diferença na
apresentação das estruturas normativas para as etapas da educação básica
pode gerar uma dificuldade no reconhecimento da progressão das
aprendizagens entre elas. A ausência de definição da estrutura para o
ensino médio também nos faz pensar nas rupturas e descontinuidades que
podem surgir na organização dos currículos das escolas. Talvez o que
justifique essa divergência de abordagem seja o uso de referenciais teóricos
específicos para cada etapa, o que denota que o documento sofreu
intervenções e contribuições de diferentes atores, sendo necessário pensar a
coerência entre essas normas e orientações que irão impactar a sala de aula.
Em diálogo com as DCN’s (BRASIL, 2013), que enfatizam que as
atividades de leitura e a escrita, como também, a História, as Ciências, a
Arte, oportunizam proximidade e experiências com um mundo diferente,
mais amplo e diverso às crianças. Isso balizados pela perspectiva de que um
trabalho pedagógico não restrito ao repasse de conhecimentos, mas como

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processo de reflexão crítica e dialógica “[...] a perceberem que essas formas


de entender e de expressar a realidade possibilitam outras interpretações, a
escola também oferece lugar para que os próprios educandos reinventem o
conhecimento e criem e recriem cultura”. (BRASIL, 2013, p.116).
O princípio argumentativo teórico da BNCC defende a perspectiva
enunciativa-discursiva da linguagem como forma de expressão e de
interação que acontecem em práticas sociais, por isso se concretizam em
manifestações diversas, como verbal e não-verbal. Deste modo, a área de
Linguagens tem por escopo possibilitar aos estudantes a participação em
práticas de linguagem diversificadas, em relações de uso que consintam
expandir as capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais
e linguísticas, como também seus conhecimentos sobre essas linguagens, em
continuidade às experiências vividas na Educação Infantil.
Sem evidência à expressão ou à conceituação de “letramento”, o foco
das considerações no documento apontam para que os componentes
curriculares tematizem diversas práticas nos anos iniciais do ensino
fundamental, especificamente ações relativas às culturas infantis
tradicionais e contemporâneas, visto que “[...] aprender a ler e escrever
oferece aos estudantes algo novo e surpreendente: amplia suas
possibilidades de construir conhecimentos nos diferentes componentes, por
sua inserção na cultura letrada, e de participar com maior autonomia e
protagonismo na vida social”. (BRASIL, 2017, p.61).
Manifestam-se seis competências específicas da área de Linguagens
para os anos iniciais do ensino fundamental, fundamentadas em ações
pedagógicas que garantam: compreender as linguagens como construção
humana, histórica, social e cultural, com visibilidade a sua natureza
dinâmica; conhecer e explorar diversas práticas de linguagem; utilizar
diferentes linguagens, como a verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e
escrita), corporal, visual, sonora e digital; utilizar diferentes linguagens
para defender pontos de vista que respeitem o outro e promovam os direitos
humanos; desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as

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diversas manifestações artísticas e culturais; compreender e utilizar


tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica,
significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais. (BRASIL, 2017,
p.63).
Balizado pela perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem, o
documento assume a centralidade do texto como unidade do trabalho
pedagógico, de modo a relacionar a seus contextos de produção e o
desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em
atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e
semioses.
A discussão da BNCC reitera diálogos com documentos anteriores como
os Parâmetros Curriculares Nacionais, defendendo que conhecimentos sobre
os “[...] gêneros, sobre os textos, sobre a língua, sobre a norma-padrão, sobre
as diferentes linguagens (semioses) devem ser mobilizados em favor do
desenvolvimento das capacidades de leitura, produção e tratamento das
linguagens”, sob a ótica do alargamento das possibilidades de participação
em práticas sociais. (BRASIL, 2017, p.65).
Neste foco argumentativo, o documento sinaliza para as práticas de
linguagem contemporâneas que apresentam “[...] gêneros e textos cada vez
mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de
produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir, o que
requer dos estudantes novas formas de leitura e escrita”. (BRASIL, 2017,
p.66).
As orientações do documento enfatizam as práticas dos
multiletramentos e letramentos em espaços digitais. Assim, os eixos de
integração considerados na BNCC de Língua Portuguesa são aqueles já
consagrados nos documentos curriculares da Área, correspondentes às
práticas de linguagem, como: oralidade, leitura/escuta, produção (escrita e
multissemiótica) e análise linguística/semiótica.
Assim, o Eixo Leitura abarca as práticas de linguagem a partir da
interação ativa e dinâmica do que denominam de “leitor/ouvinte/espectador”

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com os textos escritos, orais e multissemióticos e da compreensão. A


atividade de leitura é percebida como prática de fruição estética de textos e
obras literárias; de ação investigativa para o embasamento de trabalhos
escolares e acadêmicos; de realização de procedimentos instrucionais; de
conhecimento, de discussão e debate sobre temas sociais relevantes; de base
argumentativa na sustentação a reivindicação de algo no contexto de
atuação da vida pública; ter mais conhecimento que permita o
desenvolvimento de projetos pessoais, dentre outras possibilidades.
(BRASIL, 2017, p.69).
A leitura, no documento, é tratada apenas na esfera cognitiva ao
enfatizar as habilidades e competências, o que nos parece dissonante quando
se define leitura no contexto da BNCC a partir de “[...] um sentido mais
amplo, dizendo respeito não somente ao texto escrito, mas também a
imagens estáticas (foto, pintura, desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou
em movimento (filmes, vídeos etc.) e ao som (música), que acompanha e
cossignifica em muitos gêneros digitais”. (BRASIL, 2017, p.69).
Percebemos lacunas nas discussões que abarcam a compreensão de
leitura como prática social, uma vez que a inclui como atividade da
linguagem, como processo interdiscursivo, como ação e atuação do leitor,
distancia-se da concepção de leitura proposta por Chartier (1990, p.123) “[...]
prática criadora, atividade produtora de sentidos singulares, de significações
de modo nenhum redutíveis às intenções dos autores de textos ou dos
fazedores de livros[...]”, uma ação inteira e intensa do leitor, seja diante das
palavras impressas, visuais, sonoras, entre outras, Chartier (1996, p. 78)
propõe a pensar que são estes

[...] atos de leitura que dão aos textos significados plurais e móveis
situam-se no encontro de maneiras de ler coletivas e individuais,
herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de
leitura depositados no texto lido, não somente pelo autor que
indica a justa compreensão de seu texto, mas também pelo
impressor que compõe as formas tipográficas, seja com um objetivo

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explícito, seja inconscientemente, em conformidade com os hábitos


de seu tempo.

Longe desta perspectiva de leitura como prática social, a visão


alargada da atividade leitora parece contraditória no documento, ao
descrever que durante a realização da atividade de leitura opera-se em uma
sucessão de habilidades de forma articulada, em marca evolutiva, graus de
compreensão, pois descreve que em relação “[...] à progressão das
habilidades, seu desenvolvimento não se dá em curto espaço de tempo,
podendo supor diferentes graus e ir se complexificando durante vários anos”.
Mas que ao mesmo tempo, “[...] o desenvolvimento de uma autonomia de
leitura em termos de fluência e progressão, é difícil discretizar um grau ou
mesmo uma habilidade, não existindo muitos pré-requisitos (a não ser em
termos de conhecimentos prévios), pois os caminhos para a construção dos
sentidos são diversos”. (BRASIL, 2017, p. 74).
Entretanto, o trabalho pedagógico em relação às práticas leitoras
discrimina-se em dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão,
descritas com ênfase em ações que visem reconstruir e refletir sobre as
condições de produção e recepção dos textos; primem pela dialogia, pelo
relacionar textos; reconstruir a textualidade; recuperar e analisar a
organização textual; refletir de modo crítico sobre as temáticas tratadas e
validade das informações; compreender os efeitos de sentido provocados
pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos em textos
pertencentes a diferentes gêneros; criar estratégias e procedimentos de
leitura; aderir às práticas de leitura. (BRASIL, 2017, p.71).
O documento rege que a participação dos estudantes em atividades de
leitura com ações variadas sem restrições, possibilitam uma “[...] ampliação
de repertório de experiências, práticas, gêneros e conhecimentos que podem
ser acessados diante de novos textos, configurando-se como conhecimentos
prévios em novas situações de leitura”. (BRASIL, 2017, p.73).

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Ao descrever que o tratamento das práticas leitoras compreende


dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão, uma delas trata-
se da “adesão às práticas de leitura”, apontando como finalidade das ações o
“mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura,
textos de divulgação científica e/ou textos jornalísticos que circulam em
várias mídias”, ou ainda “mostrar-se ou tornar-se receptivo a textos que
rompam com seu universo de expectativa, que representem um desafio em
relação às suas possibilidades atuais e suas experiências anteriores de
leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os
gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor”. (BRASIL,
2017, p. 72).
A visão de práticas de leitura demarca-se em ações reducionistas ao
priorizar o “mostrar-se interessado” ou “mostrar-se receptivo ao texto”, o que
parece distanciado da proposta interativa do leitor com e sobre o texto, a
partir de ações e atuações de envolvimento, de apropriação textual, de
produção de sentidos, conforme Goulemot (1996), de atos de leitura, das
diferentes maneiras de ler que dão aos textos significados múltiplos,
discutidas por Chartier (1996), do dialogismo e da intertextualidade,
proposta por Bakhtin (2011).

Considerações finais: diferentes concepções, grandes desafios

Vimos que o modelo neoliberal de educação adotado pelas políticas


públicas educacionais no país vem se distanciando cada vez mais da escola
como espaço de formação integral do aluno e das práticas pedagógicas
alfabetizadoras, ora reprodutoras das experiências empíricas, ora marcadas
por modelos inovadores que focam a língua materna em seu processo
enunciativo, uma linguagem viva que considera as situações, os contextos,
os interlocutores em diálogo.
A concepção de currículo na BNCC traz uma perspectiva tecnicista e
redutora dos conhecimentos sobre a alfabetização, aparentemente

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articulados, que escamoteiam os interesses do capital neoliberal que toma


qualidade como competência. Nessa perspectiva está distante de uma escola
como lugar de constituição humana de seus alunos por meio de uma
educação transformadora em que o processo de apropriação da cultura
escrita pelos alfabetizandos tem um papel fundamental.
A BNCC reitera os discursos pedagógicos construtivistas e a tradição
pedagógica da formação e atuação dos professores, articulando-as como nova
proposta em que o método fônico ganha destaque ao tomar o processo de
alfabetização como o conhecimento da “mecânica escrita/leitura”, definindo a
alfabetização como processo de codificação e decodificação em que as
relações grafofônicas são vistas como “dois sistemas de materialização da
língua”. Dicotomizar o ato de ler em pronúncia e compreensão, como se
linguagem escrita fosse a representação da linguagem oral, é deixar de lado
as diferentes naturezas, funções e processo de aprendizagem da língua
materna na fase de alfabetização.
Trata-se do culto ao fonocentrismo quando o que está em jogo nesse
processo complexo e dinâmico é retirar da escrita sua autonomia e ignorar o
sistema da escrita constituído historicamente por palavras/signos cujos
significados são os eixos condutores no desenvolvimento das funções
psicológicas superiores da criança. As palavras organicamente articuladas
em enunciados dialogam por meio de atividades verbais atribuidoras de
significados e sentidos ao mesmo tempo que desenvolvem o pensamento
abstrato, a atenção, a memória, a autorregulação do comportamento
infantil.
A aprendizagem da leitura e da escrita, na perspectiva histórico-
cultural, é um processo de atribuição de significados e sentidos à escrita no
processo de apropriação dos atos de ler e de escrever. Contrariamente, a
BNCC aborda a base do processo de alfabetização como a construção do
conhecimento das relações entre fonemas e grafemas e, posteriormente, a
ortografização. Nesse sentido, a letra deixa de ter uma função e torna-se
apenas um elemento sem significado para a criança. Posteriormente, a

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proposta de seleção de gêneros discursivos que devem ser apresentados é


vinculada ao aprendizado da pontuação, da acentuação e das classes
gramaticais. O texto se torna apenas um instrumento para o ensino dos
aspectos notacionais da escrita.
O desafio está posto: são os professores, no cotidiano da escola, que
podem e devem (re)pensar as concepções e os desafios para uma
alfabetização como instrumento de uma educação transformadora. E, uma
vez que a Base se constitui como um documento normativo é preciso que se
construa um documento de formação capaz de empoderar os gestores,
professores e comunidade escolar com os conhecimentos necessários para
não só incorporar as orientações da BNCC ao currículo, mas, sobretudo,
como para extrapolar esse documento em busca de uma educação
emancipatória e libertadora.

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