As Notas Musicais e o Simbolismo Planetário PDF

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As notas musicais e o simbolismo planetário

O caráter simbólico particular das notas musicais é determinado, por um lado,


intrinsecamente, pelo seu croma, e por outro, de forma extrínseca, em suas relações contextuais
com outras notas, com células rítmicas, timbres, intensidades e etc. É absolutamente impossível
falar da simbolicidade das notas musicais sem distinguir essas diversas ordens e organizá-las pelo
critério da variabilidade e invariabilidade dos termos considerados, que corresponderão, por sua
vez, ao menos universal e ao mais universal, ao mais acidental e ao mais essencial.
Há muitas noções importantes em música, como as de altura, duração, intensidade, timbre,
nota, harmonia, ritmo e etc., que devem ser consideradas na elaboração de uma simbólica musical,
evidentemente. Mas não se pode começar a construção de uma casa pelo telhado. É necessário
que o nosso ponto de partida seja o dos princípios fundamentais dessa ciência, sobre os quais
poderemos erguer uma estrutura teórica estável. Esses fundamentos são os dois polos elementares
da arte musical: a nota musical e o ritmo.
A nota musical é na música o que o ponto é na geometria, e o ritmo é como que a
proporção das distâncias existentes entre diversos pontos no espaço. A nota musical, contudo, é o
princípio musical por excelência, do qual depende qualquer relação harmônica e qualquer melodia
ou motivo. As demais noções musicais, com exceção do ritmo, têm com esse princípio uma relação
de dependência, e portanto pertencem a ordens mais particularizadas e acidentais. Em uma
comparação com a metafísica Hindu, podemos dizer que as demais noções musicais estão para as
noções de nota musical e ritmo como os diversos tattwas estão para Purusha e Prakriti. Vejamos,
pois, como se dá essa relação em seus diversos planos.
O timbre de um instrumento depende da amplitude das frequências subordinadas a uma
nota principal, pela sua série harmônica. Essas frequências são aquilo que vulgarmente se chama
de harmônicos. Os harmônicos apresentam uma certa estabilidade, o que é suficiente para o seu
reconhecimento — tanto é assim que se pode conhecer a série harmônica de uma determinada nota
musical —, e portanto eles também têm uma qualidade própria, um croma. Pode-se, assim, dizer
que a nota Dó tem, em sua série harmônica, a micronota Sol. Ora, se o timbre depende de uma
relação de intensidade, isto é, de amplitude, entre micronotas da série harmônica de uma nota
principal, é evidente que timbre é uma qualidade menos universal do que as próprias notas
musicais. Ademais, o timbre é uma qualidade ligada ao aspecto material dos agentes sonoros, e é
variável de instrumento para instrumento, sendo portanto uma qualidade mais particularizada,
distante dos princípios musicais. Igualmente, a intensidade, que é a amplitude de uma frequência
sonora, é determinada pela mecânica associada ao agente sonoro, mais precisamente à força
colocada no ato físico que determina a emissão de um som. É portanto uma qualidade física
dependente da emissão de sons.
As notas musicais, com efeito, independem de sua emissão. É, ao contrário, a emissão que
pressupõe o que é emitido. Atribuir uma anterioridade ontológica, uma prioridade na ordem do
ser, da emissão em relação às notas musicais é equivalente a afirmar que os movimentos da boca
criam o verbo. Aquilo que é emitido pela boca é a razão mesma da emissão; aquilo que é falado
não é criação da fala, mas justificação dela, porquanto a fala tem em vista o que é dito. Do mesmo
modo, a emissão de um instrumento musical tem em vista aquilo que é emitido, e que justifica a
emissão mesma, enquanto ela é apenas o meio para a atualização de um determinado som. Ainda,
a emissão é particular, podendo ser esta emissão, feita agora, ou outra emissão, feita depois; ela é
um ato que ocorre na temporalidade. As notas musicais, ao contrário, são sempre aquilo que são,
de modo que o Dó emitido hoje é ainda o Dó que foi emitido ontem. Não fosse assim, a
reprodução de qualquer peça musical seria absolutamente impossível, pois a cada execução as notas
seriam coisas absolutamente distintas, e o reconhecimento das formas musicais seria inviabilizado.
A noção de duração, por um lado nasce do ato de emissão, e por outro nasce da relação
entre as notas musicais e um ritmo. O ritmo, da mesma forma, tem um aspecto emissivo e um
aspecto qualitativo ou numérico. Sob o aspecto emissivo, o ritmo é a relação de proximidade
temporal existente entre diferentes emissões; sob o aspecto qualitativo ou numérico, o ritmo é a
forma ou proporção atualizada por meio dessas emissões. A diferença entre um e outro pode ser
esclarecida da seguinte maneira: a proporção rítmica é aquilo que independe das emissões
particulares, e que pode ser representado em uma partitura, por exemplo, sem que qualquer som
seja emitido. A proporção rítmica é aquilo que mais propriamente se pode chamar de ritmo. Ela é
o que há de mais essencial e invariante em um determinado ritmo; é aquilo que independe dos
atos particulares que o manifestam, e que é sempre o mesmo. O aspecto emissivo do ritmo é apenas
o caráter particularizado de uma forma rítmica; é o seu caráter fático, aquilo que é sempre único,
sempre diferente dos outros atos.
Ritmo é uma proporção de ordem temporal, que surge da descontinuidade dos atos
perceptivos. Tão logo se estabelece uma ligação entre a atenção do sujeito e um determinado objeto
e ela já se rompe, voltando-se a atenção para um novo objeto. Dito isto, pode-se então dizer que o
ritmo não depende das notas musicais. Por outro lado, as notas musicais também não dependem
do ritmo, senão pelo seu aspecto emissivo, isto é, pela sua causa material. O ritmo e as notas
musicais são noções irredutíveis uma a outra, e por isso dissemos acima que elas são os dois polos
da música.
Para ilustrar melhor a noção de ritmo, façamos um exercício imaginativo: imaginemos um
homem que, dos cinco sentidos, tem apenas a visão, e que no entanto nunca viu nada senão um
fundo branco. Esta visão é, então, o único fenômeno que ele conhece. Para esse homem, que só
tem a experiência visual de uma claridade que não muda a sua aparência, o tempo é uma ideia
inconcebível. O antes é idêntico ao agora, e o depois sequer foi construído conceptualmente; tudo
se encontra num estado de indiferenciação. Se, de uma hora pra outra, o fundo branco se tornasse
preto, a ideia de tempo enfim surgiria. A dualidade de objetos daria ao sujeito a possibilidade da
comparação das suas atualidades. Em outras palavras, o sujeito, percebendo a diferença entre um
objeto e outro, perceberia a identidade de cada um deles, e então perceberia a atualidade de um
ou de outro em relação a si próprio. Quando aparecesse, então, o preto, o sujeito perceberia que
o preto é aquilo que se mostra atualmente para ele. O sujeito perceberia a presença de um objeto
distinto. Essa percepção de uma presença distinta é a percepção da atualidade da relação sujeito-
objeto — “algo se mostra agora para mim”. A partir daí ele forma a noção de outro, e em seguida a
de eu. A primeira dualidade que surge subjetivamente, portanto, não é sujeito-objeto, mas sim isto-
aquilo. A primeira noção temporal é o agora, que é formada quando o sujeito percebe uma
presença distinta. Em seguida ele usa essa noção de presença distinta para interpretar a fase de
indistinção perceptiva, e então ele representa para si mesmo o estado anterior como uma outra
presença, também distinta, que é menos intensa do que a presença atual. Aplicando isto ao nosso
exemplo, o sujeito, percebendo o preto como presença distinta, representa para si mesmo a
experiência do branco como uma outra presença distinta, porém menos intensa do que a do preto,
pois esta se impõe no agora. Na medida em que o sujeito representa a experiência do branco para
si mesmo ele torna a experiência do preto mais virtual, pois a sua atenção muda de objeto, ainda
que ele continue percebendo o preto.1 A consciência se concentra, ora no preto, ora na lembrança
do branco. O ponto de encontro entre o foco da consciência, isto é, a atenção, e um desses dois
objetos é o que ele vai entender como sendo o agora. Se o encontro da atenção com um objeto
constitui o agora, o reconhecimento de um objeto em uma representação mental que se distingue
do objeto real presente atualmente torna-se, para o sujeito, o antes. A noção de depois só é formada
pela lembrança de uma sucessão acontecida no passado. O primeiro depois, portanto, é um depois-
acontecido; é a lembrança de que o objeto B sucedeu, no passado, o objeto A2. Essa noção de
depois não é idêntica à noção de futuro, que só se forma quando o sujeito projeta uma expectativa
no agora, criando um depois-do-agora, o que pressupõe a compreensão de um padrão de sucessões
já experimentado, além de uma certa inconformidade com o agora.

1 A atenção se desvia do objeto real para um objeto mental, nesse caso, sem que a consciência, no
entanto, se desligue completamente do objeto real.
2 “Ontem, depois do almoço, fui ao banco”. Aqui, o depois ocorre no passado.
O homem mede a sucessão temporal pela intensidade das suas percepções, e a duração de
cada percepção em particular é medida pelo grau de familiaridade que ele tem com ela. Quanto
mais o sujeito se identifica com uma determinada percepção, em seu aspecto fático 3 , mais
duradoura esta é para ele. Assim, quanto mais ele se identifica com o preto, mais o preto se mostra
como duradouro. Quando, depois de muito tempo, o fundo preto tomar a cor azul, o sujeito
perceberá os primeiros momentos da percepção do azul como uma presença distinta que possui
um grau de identificação muito menor com ele, e isso é a sensação da brevidade. Algo em seu ser
é mais branco e preto do que azul, e é por isso que a presença do azul lhe parece mais breve. E
pelos graus de identificação com as percepções o sujeito vai medindo as distâncias temporais. No
exemplo dado acima, se o homem visse o azul depois de muito ver o branco e o preto, e logo em
seguida o azul se tornasse amarelo, ele se identificaria menos com as percepções do amarelo e do
azul e mais com as do branco e do preto, percebendo, portanto, as percepções do branco e do
preto como duradouras, e as do azul e do amarelo como breves. Essa sucessão de percepções
manifesta para o sujeito uma proporção temporal marcada pelas descontinuidades entre as
percepções. As descontinuidades consistem, nesse caso, numa ruptura da ligação estabelecida entre
o objeto (a cor, no nosso exemplo) e a atenção do sujeito: quando o fundo azul se tornou amarelo,
a atenção do sujeito se desligou do objeto azul e se ligou ao objeto amarelo. A descontinuidade
entre as percepções é um ponto que as delimitam, marcando o fim de uma e o início de outra. A
esses pontos de ruptura chamaremos, por falta de um nome melhor, de pontos intencionais. Entre
um ponto intencional e outro nós temos uma unidade perceptiva.4 O grau de identificação entre o
sujeito e a unidade perceptiva mede a duração; a cadeia de sucessões de diferentes unidades
perceptivas, cada qual apresentando um grau diferente de identificação com o sujeito, forma uma
proporção rítmica. O ritmo, portanto, é medido pelos diferentes graus de identificação que o sujeito
tem com unidades perceptivas que se sucedem de forma encadeada, com certa contiguidade.
Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que a duração simboliza a identificação
entre o sujeito e o objeto. Uma nota muito longa precedida e sucedida por notas breves gera no
sujeito a sensação de uma profunda intimidade entre ele e a qualidade melódico-harmônica que a
nota apresenta naquele contexto. Ela como que torna mais intensa, mais profunda, a presença
daquilo que ela indica na psique do ouvinte. Assim, o mais duradouro na ordem temporal
corresponde ao mais unido na ordem espiritual. Além disso, uma célula ritma revela um arithmos,
um número, em sua lei de proporcionalidade intrínseca5, e esse arithmos tem uma simbolicidade
própria. Dizemos que um ritmo tem caráter ternário, por exemplo, quando ele apresenta o ternário
em sua lei, em seu nomos. Um ritmo de caráter ternário apresenta, pois, o simbolismo do ternário;
um ritmo quaternário, por sua vez, o simbolismo do quaternário.
Em que consiste o caráter quaternário do ritmo quaternário? Consiste na figura rítmica ou
na fórmula do compasso? Esse caráter consiste primeiramente na fórmula do compasso, e de modo
secundário — e dependente do outro, por definição6 — nas disposições das figuras rítmicas entre si,
que não são senão subdivisões de uma fórmula dada a priori. De modo que, em um compasso

3 Ou seja, pelo seu aspecto particular. O pai, quando vê o seu filho adulto, sabe que aquele ente é
essencialmente idêntico ao bebê que ele pegou no colo há muitos anos, mas sob o aspecto fático cada
percepção que ele tem do seu filho é nova, e portanto, em certo aspecto, diferente das outras. A
percepção que o pai teve do seu filho ontem, na janta, é distinta da que ele tem hoje no almoço,
embora o objeto da percepção seja essencialmente idêntico, e embora o sujeito mesmo o perceba
como idêntico. A percepção não é a mesma porquanto houve uma descontinuidade na relação entre
este objeto e a atenção do sujeito (por exemplo: o olhar do pai, entre ontem e hoje, mirou a sua esposa,
o cachorro, a televisão, o sofá e etc., rompendo várias vezes a ligação perceptiva estabelecida com o
filho).
4 Ainda que esta unidade se apresente de modo dinâmico.
5 A lei que rege a sua estrutura, e que pode ser imitada por outros entes. O termo foi criado pelo filósofo

Mário Ferreira dos Santos, e geralmente é usado para se referir ao aspecto reprodutível da forma de
uma determinada substância.
6 Porquanto o valor das figuras é determinado pela fórmula.
simples 4/4, o caráter quaternário está presente ainda que a disposição das figuras rítmicas nele
contidas apresente uma relativa independência em relação às pulsações. Evidentemente, se a
disposição das figuras rítmicas não apresentar qualquer coincidência com a pulsação, o caráter
quaternário do compasso será engolido pela predominância de um novo caráter, dado na relação
entre as figuras. No entanto, em casos desse tipo, onde há uma dispersão rítmica quase total, não é
exato dizer que ainda se trata de um compasso quaternário, ainda que ele o seja na forma de
notação. Mas vejamos, antes de entrarmos propriamente na interpretação simbólica do ritmo, o
que é pulsação, compasso, fórmula de compasso, figura, e etc.
A pulsação é a medição de uma cadeia de descontinuidades — projetada ou não pelo
sujeito 7 —, de caráter constante, na percepção do tempo. A distância temporal entre uma
descontinuidade e outra tem uma proporção determinada, e é a regularidade desta proporção que
torna possível a captação da pulsação por parte dos ouvintes e executantes de uma peça musical.8
Só é possível acompanhar a pulsação depois que a proporção entre as descontinuidades na
percepção temporal é captada intelectualmente, permitindo então que o ouvinte estime com certa
exatidão o momento em que se dará o próximo ponto de descontinuidade.
O ser humano, como já foi dito, pode formar a noção de ritmo a partir de qualquer
fenômeno perceptivo que apresente alguma regularidade, seja ele visual, táctil, auditivo ou etc., e
portanto o ritmo não é nem um elemento particularmente auditivo, nem particularmente táctil ou
visual. O ritmo é essencialmente um movimento intelectual; é a captação intelectual de proporções
regulares reveladas no movimento das coisas.9 O simples fato da existência dessas proporções pode
ser captado pelo sujeito na regularidade dos seus batimentos cardíacos10, na regularidade da sua
respiração, na regularidade do seu funcionamento fisiológico, na regularidade de seus passos no
ato de caminhar, na regularidade do movimento solar, na regularidade dos ciclos lunares, na
regularidade dos movimentos planetários e do brilho das estrelas, na regularidade do voo e do
canto dos pássaros, e etc.
O compasso é, em suma, um conjunto determinado de pulsações. A palavra compasso nos
dá uma dica do seu significado: compasso é nome de um instrumento usado por geômetras para
construir círculos perfeitos. Ele funciona com a fixação de uma de suas pontas em uma superfície
plana — que marcará o centro do círculo —, e em seguida com o giro de 360° da sua outra ponta,
que riscará uma circunferência em torno daquele eixo central. O movimento que o compasso faz
em torno de seu eixo é perfeito em si mesmo. O círculo termina exatamente no ponto de onde ele
partiu. O compasso, então, é aquilo que é capaz de produzir vários círculos perfeitos e acabados,
idênticos em sua proporção, com um único e mesmo movimento. O compasso musical é, por sua
vez, como que um conjunto de pulsações definido, perfeito e acabado, que se repete ciclicamente,
como círculos desenhados por um compasso. Um compasso musical recomeça no ponto exato
onde ele termina, de modo que o limite que divide o compasso A do compasso B é tanto o fim do
compasso A quanto é o início do compasso B. Ademais, enquanto a pulsação é uma sequência
indefinida de proporções definidas, o compasso é um conjunto definido de proporções definidas.

7 O que não significa que a noção de ritmo não tenha fundamento nas coisas.
8 Há uma certa confusão entre pulsação e o que chamarei de marcação. A pulsação não depende de
qualquer emissão sonora; a marcação, ao contrário, é necessariamente uma emissão. As pulsações de
uma música não exigem emissões, pois se exigissem, só seria possível fazer pausas entre as pulsações.
Ora, há a possibilidade de se fazer pausas de compassos inteiros, sem que a pulsação seja interrompida.
Logo, a pulsação, antes de ser um ritmo marcado, é um ritmo implícito ou ritmo silencioso.
9 É uma forma de captação do aspecto estável do reflexo de Purusha em Prakriti, na terminologia hindu,

ou da verdade manifestada pelas formas imutáveis que a substância universal sempre-mutável


apresenta, na terminologia pitagórica.
10 Não é por acaso que o coração, aquilo que mais evidentemente simboliza o centro vital do homem, e

portanto a sua essência, revele uma regularidade, um arithmos. O Purusha do tamanho de um polegar
se encontra no coração do homem, está escrito em uma das Upanishads.
A fórmula do compasso é aquilo que determina o número de pulsações compreendidas
por ele, assim como o valor das figuras rítmicas usadas na notação musical. A fórmula possui,
portanto, um indicador quantitativo e um indicador qualitativo, que são, respectivamente, o seu
numerador e o seu denominador.
As figuras rítmicas são unidades que representam as pulsações e as possíveis subdivisões
de um tempo. A unidade mais simples entre as figuras rítmicas é a semibreve.11As demais figuras
são desdobramentos ou subdivisões da semibreve, e portanto são dependentes dela. Assim, a
mínima vale metade de uma semibreve; a semínima vale metade de uma mínima; a colcheia vale
metade de uma semínima; a semicolcheia vale metade de uma colcheia; a fusa vale metade de uma
semicolcheia; e a semifusa vale metade de uma fusa. A mínima é a semibreve dividida em duas
partes (1/2); a semínima é a semibreve dividida em quatro partes (1/4); a colcheia é a semibreve
dividida em oito partes (1/8); e assim por diante. O número de partes iguais em que a semibreve é
dividida é indicado pelo denominador da fórmula do compasso, e corresponde a uma das figuras
rítmicas. Esta figura indicada será o valor de cada tempo do compasso.
O tempo, em um compasso, é a proporção dada entre uma pulsação e outra. Os tempos
de um compasso podem ser preenchidos por sons ou pelo silêncio. Um mesmo som pode
preencher um tempo inteiro ou mais de um tempo, e também pode preencher frações de um
tempo, subdividindo-o em partes iguais ou desiguais. A duração dos sons e das pausas em suas
relações com o compasso é representada pelas figuras rítmicas.12 O que foi dito até agora já basta
para que se compreenda as explicações que se seguirão mais a frente. Exponhamos agora a parte
que concerne às notas musicais.
Uma nota musical é uma informação sonora distinta qualitativamente de todas as outras,
do ponto de vista da sua altura.13 Só se pode falar em nota quando a frequência sonora se distingue
claramente de outras, opondo-se a todas as outras, portanto, constituindo-se a si mesma como uma
unidade formal, um centro. A nota é, em suma, um som que se põe como qualitativamente
definido, sob o aspecto de sua altura. É uma frequência que persiste em não ser nenhuma das
outras, que se estende, que perdura num certo equilíbrio dinâmico, permitindo-nos identificá-lo
como uma forma distinta da própria emissão. O que quero dizer com isto: a emissão de um ruído,
cuja frequência é mais ou menos indefinida, é percebida como uma forma distinta, mas não há,
além da própria emissão, um algo (alius + quid; outro que) percebido na emissão. Percebemos que
o ruído branco da televisão não é o latido do cachorro e nem o canto dos pássaros, e portanto a
sua emissão é distinta de outras, porém não há um conteúdo formal que flui através desta emissão.
Esta emissão é, por assim dizer, a emissão de uma indefinição, uma emissão caótica. É o caso em
que a vibração do corpo elástico, agente da emissão, não apresenta perduração num certo equilíbrio
dinâmico que delineia uma tensão, uma unidade formal distinta da própria emissão. Dizer que um
som não tem uma frequência definida, e que ele não obedece a um equilíbrio dinâmico no que diz
respeito à sua altura, é dizer que ele não tem uma lei de proporcionalidade intrínseca.
A nota musical não é senão o conteúdo formal transmitido por uma emissão sonora. É
portanto algo distinto da emissão, e pertencente a uma outra ordem. A nota musical está para o
som mais ou menos como a palavra está para a fala. O ato de falar a palavra “galinha” não é a
mesma coisa que a palavra galinha, que pode ser falada por outras pessoas, e pode também ser
pensada sem ser falada. Antes, a palavra flui através do ato da fala, distinguindo-se deste. O universo
da linguagem e o universo dos atos físicos estão, portanto, em ordens ontológicas diferentes. Esta
mesma diferença de ordens se dá na relação entre as notas musicais e os sons.
Se a palavra “galinha”, no que ela tem de mais distinto em relação ao ato físico da fala, é
uma estrutura conceptual com fundamento na percepção de uma determinada espécie animal, o
que a nota musical é sob o seu aspecto não-físico, e portanto não-sonoro? Esta é uma boa pergunta.

11 Cujo símbolo gráfico curiosamente é o círculo.


12 As positivas representando os sons; as negativas representando as pausas.
13 Isto é, do ponto de vista que considera o quão rápida é a sua frequência — o que pode ser medido em

Hertz.
Uma das características das notas musicais, naquilo que elas têm de distinto em relação aos
fenômenos físicos, é que elas se apresentam junto com um sistema. Dada uma nota, as
possibilidades relacionais se abrem imediatamente em torno dela, segundo leis de caráter
geométrico. São como as direções espaciais, que se desenham imediatamente ao redor de um
ponto, assim como as diferentes possibilidades de distanciamento entre o ponto e outros lugares
no espaço.
Todas as possibilidades de distanciamento se dão no momento mesmo em que um ponto
é dado no espaço. Do mesmo modo, todas as notas musicais possíveis são dadas no momento
mesmo em que uma nota quebra o silêncio. O silêncio está para a nota como o espaço está para o
ponto. O espaço, considerado como o plano ontológico das possibilidades totais de ubiquação,
possui, por definição, todas as distâncias e todos os pontos. Ele é a possibilidade de todas as
localizações ou posições. Mas tal coisa só pode ser real na medida em que um ponto é determinado
de fato nesse reino de lugares possíveis, e a determinação de um ponto é necessariamente a negação
de todos os outros pontos. O espaço, assim, não é a simples soma de pontos determinados, mas a
possibilidade da determinação de pontos. Da mesma forma, o silêncio não é a soma dos sons, mas
a possibilidade da determinação de sons. Aquilo que se opõe absolutamente a um som
determinado é o silêncio; aquilo que se opõe absolutamente um ponto determinado é o espaço
vazio. O silêncio é o não-som; o espaço vazio é o não-ponto. Temos, assim, o seguinte esquema
analógico:

Silêncio |Espaço|Não-Ser
Som |Ponto |Ser

Quando algo se põe no plano da manifestação existencial, ou ôntica, todas as outras


possibilidades de ser imediatamente se dão. Ser um cachorro é não ser uma árvore, não ser uma
mesa, não ser uma pessoa, não ser um copo, não ser o sol, não ser uma abelha, e etc. Cada ente
em particular é a negação de todos os outros entes possíveis. Ou seja, só se pode falar em um ente
porquanto a sua essência negue todos os outros entes possíveis. Essa negação de todos os entes
possíveis dada na constituição mesma de um ente é, por outro lado, a afirmação da possibilidade
de todos os entes distintos dele mesmo. Dito isto, a existência de um único ente afirma a
possibilidade de todos os outros. Esta mesma relação dialética entre ser e não-ser se dá com as
notas musicais: a existência de uma única nota musical afirma a possibilidade de todas as outras
notas, na medida em que ela se opõe a todas as notas que não são ela. Ser um Fá é não ser um Lá,
não ser um Si bemol, não ser um Sol, e etc. No espaço é a mesma coisa: estar aqui é não estar ali,
não estar lá, não estar acolá, e etc., pois uma determinada posição é a negação de todas as outras
posições possíveis, e, na mesma medida, a afirmação de sua possibilidade.14
O silêncio pode ser entendido de dois modos: no primeiro, e mais comum, como a
ausência relativa de sons; no segundo, como a total ausência de sons — o que não se dá nunca no
devir, por conta do seu modo de ser, que é dinâmico. Para que se desse, na ordem temporal, a
total ausência de vibração dos corpos, seria necessário que o tempo cessasse e o universo inteiro se
tornasse estático, sem movimento. Portanto, sempre que nos referimos ao silêncio, no sentido
prático, como quando pedimos para que alguém se cale ou para que algum instrumento pare de
emitir um determinado som, trata-se do silêncio relativo, pois o calar-se é o calar-se desta voz e não
o de todo o universo. O silêncio em sentido absoluto é uma noção ideal, portanto, apreendida da
relação entre sons mais intensos e sons menos intensos.

14 Em certo sentido, o ponto cria o espaço; o som cria o silêncio; a luz cria as trevas; o ser cria o nada.

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