A Defesa de Vigotski Ao Ensino Da Gramática PDF
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RESUMO
A utilidade do ensino de gramática tem sido um dos temas frequentemente discu-
tidos entre os professores de língua portuguesa. Em geral, os que são contrários afir-
mam que aprender os aspectos gramaticais da língua não auxilia a produção escrita,
tampouco acrescenta novas habilidades linguísticas ao aluno. Neste texto, apresenta-
mos a contra-argumentação de Vigotski1 quanto à alegação de que o estudo de gramá-
tica é inútil ao falante da língua. Para tanto, abordaremos algumas concepções vigots-
kianas imprescindíveis para a devida compreensão dessa discussão, tais como o papel
da escola para o desenvolvimento dos conceitos científicos e a tomada de consciência.
Segundo a perspectiva do autor, o ensino de gramática mostra-se um forte aliado não
só quando se trata de favorecer as habilidades linguísticas, mas também quando a me-
ta é corroborar o desenvolvimento global do aluno. Cremos que o ensino de gramática
merece ser revisto sob a perspectiva vigotskiana, principalmente se o objetivo é ofere-
cer um ensino que favoreça o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva eviden-
ciada pela habilidade em fazer escolhas voluntárias e intencionais.
Palavras-chave:
Concepções vigotskianas. Ensino de gramática. Conceitos científicos.
1. Introdução
Tem sido notadamente discutida a utilidade do ensino da gramáti-
ca na escola (POSSENTI, 1996; NEVES, 2003; BECHARA, 2003;
TRAVAGLIA, 2003, entre outros). Os que contestam tal ensino alegam,
entre outros motivos, que não é necessário ensinar as estruturas formais
de uma língua que o falante já domina, já que se trata da língua materna.
Travaglia (2003), por exemplo, acredita que o estudo da teoria gramatical
somente interessa àqueles que objetivem se tornar especialistas na língua,
tais como filólogos, linguistas e professores de língua portuguesa.
É interessante observar que tal discussão não é recente. No início
do século XX, Vigotski (1934/2001) já apontava a existência de um mo-
vimento agramático. Os que integravam esse movimento ofereciam o
mesmo argumento utilizado contemporaneamente contra o ensino da
1 Preferimos grafar o nome do autor dessa forma (Vigotski), mas respeitamos os autores que opta-
ram pela grafia Vygotsky.
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gramática. Aparentemente, trata-se de um argumento bastante coerente e
plausível. No entanto, quando examinado sob a ótica epistemológica de
Vigotski, tal argumento não se sustenta.
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Para operar de forma voluntária, a fim de atender às demandas so-
ciais de um texto, é preciso que ocorra a tomada de consciência das ope-
rações linguísticas que o aluno realiza. Caso contrário, ele se orientará
apenas por “suposições” do que acredita ser a linguagem mais adequada
a determinado gênero e contexto. Confiar apenas em suposições não ofe-
rece segurança a quem deseja escrever um texto cuja linguagem deva ser
formal.
Silva (2005), ao investigar os expedientes cognitivos utilizados
por profissionais cuja atividade exige a escrita formal, constatou que eles
recorrem aos conteúdos gramaticais aprendidos, a fim de empregá-los
como critérios para a adequação da linguagem. Essa ação deliberada da
mente só é possível se houver a tomada de consciência dos aspectos for-
mais da língua, pois “Dominamos uma função na medida em que ela se
intelectualiza. A arbitrariedade na atividade de alguma função sempre é o
reverso da sua tomada de consciência.” (VIGOTSKI, 2001, p. 283).
A tomada de consciência é, portanto, fundamental para o domínio
das operações linguísticas, isto é, para as escolhas voluntárias e intencio-
nais em relação às formas linguísticas mais adequadas à determinada si-
tuação.
É justamente nesse sentido que Vigotski (2001) atesta a utilidade
da gramática. Segundo o autor, é graças ao aprendizado da gramática que
a criança aprende a tomar consciência das operações que realiza, e essa
tomada de consciência é que lhe permite operar voluntariamente e a ter
domínio de suas operações.
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realidade. O objeto de minha consciência é o ato de dar o nó, o próprio nó e
tudo o que acontece com ele, mas não aquelas ações que produzo ao dar o nó,
nem da maneira como o faço. O fundamento disso é o ato de consciência, do
qual é objeto a própria atividade da consciência. (VIGOTSKI, 2001, p. 288-289)
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que nos permitirá dominá-las. A escola, justamente porque garante a sis-
tematização mediante o desenvolvimento de conceitos científicos, execu-
ta o papel preponderante no desenvolvimento dessa consciência.
Essa sistematização consciente, por sua vez, pode ser transferida a
outros conceitos e a outras esferas do pensamento. “A consciência refle-
xiva chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos”
(VYGOTSKY, 1987, p. 79)
Vigotski (2001) observa ainda que a aprendizagem da gramática,
que permite a tomada de consciência sobre os fatos da língua, não se res-
tringe ao desenvolvimento de habilidades linguísticas. Qualquer aprendi-
zado escolar, seja qual for a disciplina, corrobora a tomada de consciên-
cia. De acordo com Vigotski, “... a tomada de consciência e a apreensão
são essa base comum a todas as funções psíquicas superiores cujo desen-
volvimento constitui a nova formação básica da idade escolar.” (p. 326)
Para compreendermos mais claramente o que isso significa, cabe
aqui abordar algumas considerações acerca do desenvolvimento dos con-
ceitos científicos e sua inter-relação com os conceitos espontâneos. Para
tanto, é preciso aludir ao papel da linguagem verbal como signo media-
dor na formação de conceitos.
5. O papel da palavra
A palavra é o sistema mais eficiente para representar simbolica-
mente a realidade. Segundo Vigotski (2001), cada palavra é ao mesmo
tempo um fenômeno do pensamento e da fala. É um fenômeno da esfera
do pensamento porque o significado da palavra, por ser um conceito ou
uma generalização, é indubitavelmente um ato de pensamento; no entan-
to é também um fenômeno da fala porque possui substância fônica. É a
união entre o suporte acústico e o significado que cria os símbolos (as pa-
lavras) com os quais os homens compartilham suas ideias uns com os ou-
tros. Assim surgiu a linguagem verbal, a qual possibilitou o intercâmbio
social.
Além disso, a linguagem apresenta ainda outra função: a organi-
zação da realidade mediante o pensamento generalizante. As palavras a-
brigam conceitos. Por isso, a linguagem permite ao homem conceituar a
realidade e organizar em sua mente os dados do mundo sensível e suas
próprias experiências, conferindo-lhes sentidos. Essa ordenação sistemá-
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tica, que implica uma classificação categórica baseada nas diferenças e
semelhanças dos diversos componentes, é uma exigência do intelecto
humano. Em outros termos, para compreender a realidade, o homem im-
prime ao meio o caráter de um todo ordenado e significativo. Tal ordena-
ção, realizada mediante a linguagem, é que lhe permite imprimir coerên-
cia ao mundo.
Dissemos que, para Vigotski, as palavras representam conceitos.
Oliveira (1992, p. 28) esclarece essa ideia ao comentar sobre a natureza
do pensamento verbal:
Isto é, os conceitos são construções culturais, internalizadas pelos indiví-
duos ao longo de seu processo de desenvolvimento. Os atributos necessários e
suficientes para definir um conceito são estabelecidos por características dos
elementos encontrados no mundo real, selecionados como relevantes pelos di-
versos grupos culturais. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve que
vai lhe fornecer, pois, o universo de significados que ordena o real em catego-
rias (conceitos), nomeadas por palavras da língua desse grupo. (p. 28)
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senvolvem. Em outros termos, a instrução escolar proporciona o desen-
volvimento dos conceitos científicos, girando em torno da tomada de
consciência e da apreensão intencional, o que promove o domínio das
operações. A escola, ao oferecer a aprendizagem de conceitos sistemati-
camente organizados, precede o desenvolvimento das estruturas mentais.
Segundo Panofsky et al (2002, p.246):
Vygotsky via no desenvolvimento de conceitos científicos um conjunto
de princípios gerais que invadem toda a instrução institucionalizada ou formal.
O mais importante é que a criança seja colocada na posição de recordar e ma-
nipular conscientemente o objeto da instrução.
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Voltando ao exemplo que oferecemos acima, a criança que espon-
taneamente desenvolveu o conceito gato, aprenderá, na escola, alguns
conceitos científicos correlatos, sistematicamente organizados. Aprende-
rá que o gato é um animal mamífero, carnívoro, felino, e que tais caracte-
rísticas o diferenciam de outras espécies. Assim, os conceitos gato, feli-
no, mamífero apresentam-se hierarquicamente relacionados, configuran-
do um sistema. A partir de então, qualquer conceito relacionado a esse
sistema também se modificará na mente da criança.
Por tais motivos, Vigotski (2001) acreditava que aprendizado sis-
temático oferecido pela escola é uma das principais fontes de formação
de conceitos, sendo capaz de direcionar e determinar o desenvolvimento
mental da criança. Cabe aqui mencionarmos a “tomada de consciência”
como fator fundamental desse processo:
Desse modo, a tomada de consciência se baseia na generalização dos pró-
prios processos psíquicos, que redunda em sua apreensão. Nesse processo ma-
nifesta-se em primeiro lugar o papel decisivo do ensino. Os conceitos científi-
cos – com sua relação inteiramente distinta com o objeto –, mediados por ou-
tros conceitos – com seu sistema hierárquico interior de inter-relações –, são o
campo em que a tomada de consciência dos conceitos, ou melhor, a sua gene-
ralização, como qualquer estrutura, é posteriormente transferida como um
princípio de atividade sem nenhuma memorização para todos os outros cam-
pos do pensamento e dos conceitos. Desse modo, a tomada de consciência
passa pelos portões dos conceitos científicos. (VIGOTSKI, 2001, p. 290)
Assim, está claro que o aluno pode não adquirir novas formas
gramaticais ou sintáticas na escola, mas isso não diminui de forma algu-
ma a importância da instrução gramatical. De acordo com Vigotski
(2001, p. 320),
Mas na escola a criança aprende, particularmente graças à escrita e à gra-
mática, a tomar consciência do que faz e a operar voluntariamente com as suas
próprias habilidades. Suas próprias habilidades se transferem do plano incons-
ciente e automático para o plano arbitrário, intencional e consciente.
8. Considerações finais.
Antes de encerrarmos, é necessário esclarecer um aspecto impor-
tantíssimo em relação ao ensino da gramática. Para ser útil e assinalar um
salto qualitativo nas habilidades linguísticas do aluno, é preciso que esse
ensino faça sentido, que haja conceitos espontâneos correlatos capazes de
oferecer suporte aos novos conceitos aprendidos. Nesse sentido, também
Vigotski (2001) admoesta os leitores quanto ao perigo de transmitir às
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crianças conceitos de maneira pronta, de forma direta:
... a experiência pedagógica nos ensina que o ensino direto de conceitos sem-
pre se mostra impossível e pedagogicamente estéril. O professor que envereda
por esse caminho costuma não conseguir senão uma assimilação vazia de pa-
lavras, um verbalismo puro e simples que estimula e imita a existência dos
respectivos conceitos na criança, mas, na prática, esconde o vazio. [...] No
fundo, esse método de ensino de conceitos é a falha principal do rejeitado mé-
todo puramente escolástico de ensino que substitui a apreensão do conheci-
mento vivo pela apreensão de esquemas verbais mortos e vazios (p. 247).
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participam não são coincidentes.
Não se pode admitir nem de antemão que o prazo de domínio do progra-
ma de assimilação da declinação de substantivos coincida com o prazo neces-
sário para o desenvolvimento interior da tomada de consciência da própria
linguagem e sua apreensão em alguma parte desse processo. O desenvolvi-
mento não se subordina ao processo escolar, tem sua própria lógica. (VI-
GOTSKI, 2001, p. 323)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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