A Defesa de Vigotski Ao Ensino Da Gramática PDF

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Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

A DEFESA DE VIGOTSKI AO ENSINO DA GRAMÁTICA


Elisabeth Ramos da Silva (Unitau)
[email protected]

RESUMO
A utilidade do ensino de gramática tem sido um dos temas frequentemente discu-
tidos entre os professores de língua portuguesa. Em geral, os que são contrários afir-
mam que aprender os aspectos gramaticais da língua não auxilia a produção escrita,
tampouco acrescenta novas habilidades linguísticas ao aluno. Neste texto, apresenta-
mos a contra-argumentação de Vigotski1 quanto à alegação de que o estudo de gramá-
tica é inútil ao falante da língua. Para tanto, abordaremos algumas concepções vigots-
kianas imprescindíveis para a devida compreensão dessa discussão, tais como o papel
da escola para o desenvolvimento dos conceitos científicos e a tomada de consciência.
Segundo a perspectiva do autor, o ensino de gramática mostra-se um forte aliado não
só quando se trata de favorecer as habilidades linguísticas, mas também quando a me-
ta é corroborar o desenvolvimento global do aluno. Cremos que o ensino de gramática
merece ser revisto sob a perspectiva vigotskiana, principalmente se o objetivo é ofere-
cer um ensino que favoreça o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva eviden-
ciada pela habilidade em fazer escolhas voluntárias e intencionais.
Palavras-chave:
Concepções vigotskianas. Ensino de gramática. Conceitos científicos.

1. Introdução
Tem sido notadamente discutida a utilidade do ensino da gramáti-
ca na escola (POSSENTI, 1996; NEVES, 2003; BECHARA, 2003;
TRAVAGLIA, 2003, entre outros). Os que contestam tal ensino alegam,
entre outros motivos, que não é necessário ensinar as estruturas formais
de uma língua que o falante já domina, já que se trata da língua materna.
Travaglia (2003), por exemplo, acredita que o estudo da teoria gramatical
somente interessa àqueles que objetivem se tornar especialistas na língua,
tais como filólogos, linguistas e professores de língua portuguesa.
É interessante observar que tal discussão não é recente. No início
do século XX, Vigotski (1934/2001) já apontava a existência de um mo-
vimento agramático. Os que integravam esse movimento ofereciam o
mesmo argumento utilizado contemporaneamente contra o ensino da

1 Preferimos grafar o nome do autor dessa forma (Vigotski), mas respeitamos os autores que opta-
ram pela grafia Vygotsky.

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gramática. Aparentemente, trata-se de um argumento bastante coerente e
plausível. No entanto, quando examinado sob a ótica epistemológica de
Vigotski, tal argumento não se sustenta.

2. Para que estudar gramática?


O movimento agramático do início do século XX fundamentava-
se em um argumento que tem sido muito utilizado ultimamente. Vigotski
(2001) reporta-se a tal alegação, sintetizando-a da seguinte maneira:
O estudo da gramática é uma das questões mais complexas do ponto de
vista metodológico e psicológico, uma vez que a gramática é aquele objeto es-
pecífico que pareceria pouco necessário e pouco útil para a criança. A aritmé-
tica propicia novas habilidades à criança. Sem saber somar ou dividir, graças
ao conhecimento da aritmética a criança aprende a fazê-lo. Mas poderia pare-
cer que a gramática não propicia nenhum nenhuma habilidade nova à criança.
Antes de ingressar na escola, a criança já sabe declinar e conjugar. O que a
gramática ensina de novo? (VIGOTSKI, 2001, p. 319, grifo nosso).

Fundamentando-se em suas investigações sobre o aprendizado da


gramática, Vigotski (2001) contesta esse argumento, afirmando que “a
análise do aprendizado da gramática, como a análise da escrita, mostra a
imensa importância da gramática em termos de desenvolvimento geral do
pensamento infantil” (p. 319). O autor admite que a criança já domina a
gramática de sua língua muito antes de ingressar na escola, mas tal do-
mínio ocorre de forma inconsciente e espontânea. A criança conjuga ver-
bos, constrói frases em tempos e modos diversos, mas faz essas opera-
ções linguísticas de maneira inconsciente. Se pedirmos a uma criança que
empregue em outro tempo ou modo o verbo que acabou de falar, ela não
saberá fazê-lo. Portanto, segundo Vigotski (2001, p. 320), embora saiba
falar, “ela está limitada, é limitada para aplicar suas habilidades”. Ela a-
inda não tomou consciência das operações que realiza, por isso não tem o
domínio sobre elas.
Podemos inferir que o mesmo ocorre quando se trata de adequar a
linguagem às exigências de determinados gêneros, sobretudo os que de-
mandam a escrita formal. Quando é preciso empregar o padrão culto da
língua, o aluno deve saber discernir as construções linguísticas conside-
radas formais daquelas que são vistas como informais. Para desempenhar
tal tarefa, pautar-se apenas no conhecimento intuitivo não parece ser sa-
tisfatório, visto que o domínio da norma-padrão repousa fundamental-
mente no conhecimento das regras concernentes a essa variante.

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Para operar de forma voluntária, a fim de atender às demandas so-
ciais de um texto, é preciso que ocorra a tomada de consciência das ope-
rações linguísticas que o aluno realiza. Caso contrário, ele se orientará
apenas por “suposições” do que acredita ser a linguagem mais adequada
a determinado gênero e contexto. Confiar apenas em suposições não ofe-
rece segurança a quem deseja escrever um texto cuja linguagem deva ser
formal.
Silva (2005), ao investigar os expedientes cognitivos utilizados
por profissionais cuja atividade exige a escrita formal, constatou que eles
recorrem aos conteúdos gramaticais aprendidos, a fim de empregá-los
como critérios para a adequação da linguagem. Essa ação deliberada da
mente só é possível se houver a tomada de consciência dos aspectos for-
mais da língua, pois “Dominamos uma função na medida em que ela se
intelectualiza. A arbitrariedade na atividade de alguma função sempre é o
reverso da sua tomada de consciência.” (VIGOTSKI, 2001, p. 283).
A tomada de consciência é, portanto, fundamental para o domínio
das operações linguísticas, isto é, para as escolhas voluntárias e intencio-
nais em relação às formas linguísticas mais adequadas à determinada si-
tuação.
É justamente nesse sentido que Vigotski (2001) atesta a utilidade
da gramática. Segundo o autor, é graças ao aprendizado da gramática que
a criança aprende a tomar consciência das operações que realiza, e essa
tomada de consciência é que lhe permite operar voluntariamente e a ter
domínio de suas operações.

3. O que significa “tomar consciência”?


Cabe agora esclarecer no que consiste para Vigotski a “tomada de
consciência”. Inicialmente, o autor estabelece diferença entre inconscien-
te e não conscientizado. “O que é não conscientizado não é nem incons-
ciente em parte e nem consciente em parte. Não significa um grau de
consciência, mas outra orientação da atividade da consciência.” (VI-
GOTSKI, 2001, p. 288). Para entender o que isso significa, Vigotski ofe-
rece-nos um exemplo ilustrativo:
Eu dou um nó. Faço isto conscientemente. Entretanto não posso dizer
exatamente como o fiz. Minha ação consciente acaba sendo inconsciente por-
que a minha atenção estava orientada para o ato de dar o nó, mas não na ma-
neira como eu o faço. A consciência sempre representa algum fragmento de

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realidade. O objeto de minha consciência é o ato de dar o nó, o próprio nó e
tudo o que acontece com ele, mas não aquelas ações que produzo ao dar o nó,
nem da maneira como o faço. O fundamento disso é o ato de consciência, do
qual é objeto a própria atividade da consciência. (VIGOTSKI, 2001, p. 288-289)

Para Vigotski, a tomada de consciência se baseia na generalização


dos próprios processos psíquicos, resultando em sua apreensão. Sem em-
bargo, poderíamos inferir que a tomada de consciência decorrente da a-
prendizagem da gramática permitirá ao aluno escolher, de forma inten-
cional e planejada, as construções sintáticas que deseja conferir a seu tex-
to. Nesse processo, manifesta-se prioritariamente o papel decisivo do en-
sino:
Mas na escola a criança aprende, particularmente graças à escrita e à gra-
mática, a tomar consciência do que faz e a operar voluntariamente com as suas
próprias habilidades. Suas próprias habilidades se transferem do plano incons-
ciente e automático para o plano arbitrário, intencional e consciente. (VI-
GOTSKI, 2001, p. 321)

4. O papel da escola para a “tomada de consciência”


A escola oferece a instrução formal, sistemática, por isso cumpre
um papel decisivo para a conscientização da criança de seus próprios
processos mentais. O aprendizado escolar é o principal responsável pelo
desenvolvimento dos conceitos científicos, e estes, por apresentarem uma
relação inteiramente distinta com o objeto, por serem mediados por ou-
tros conceitos e ainda por apresentarem um sistema hierárquico, lógico e
coerente, revelam-se como o campo em que ocorre a tomada de consci-
ência. Na idade escolar, a memória se intelectualiza, surgindo a atenção
voluntária, isto significa que a criança passa a depender cada vez mais de
seu intelecto. De acordo com Vigotski:
Observa-se, pois, que no campo da atenção e da memória o aluno escolar
não só descobre a capacidade para a tomada de consciência e a arbitrariedade,
mas também que o desenvolvimento dessa capacidade é o que constitui o con-
teúdo principal de toda a idade escolar. (p. 283)

Nesse sentido, também Daniels (2003), ao explanar sobre as idei-


as de Vygotsky (1934/1987), afirma: “De acordo com Vygotsky
(1934/1987), as crianças podem fazer uso deliberado dos conceitos cien-
tíficos, são conscientes deles e podem refletir sobre eles.” (p. 69).
Podemos entender, a partir das afirmações acima, que é a consci-
ência que adquirirmos sobre nossas próprias operações mentais o fator

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que nos permitirá dominá-las. A escola, justamente porque garante a sis-
tematização mediante o desenvolvimento de conceitos científicos, execu-
ta o papel preponderante no desenvolvimento dessa consciência.
Essa sistematização consciente, por sua vez, pode ser transferida a
outros conceitos e a outras esferas do pensamento. “A consciência refle-
xiva chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos”
(VYGOTSKY, 1987, p. 79)
Vigotski (2001) observa ainda que a aprendizagem da gramática,
que permite a tomada de consciência sobre os fatos da língua, não se res-
tringe ao desenvolvimento de habilidades linguísticas. Qualquer aprendi-
zado escolar, seja qual for a disciplina, corrobora a tomada de consciên-
cia. De acordo com Vigotski, “... a tomada de consciência e a apreensão
são essa base comum a todas as funções psíquicas superiores cujo desen-
volvimento constitui a nova formação básica da idade escolar.” (p. 326)
Para compreendermos mais claramente o que isso significa, cabe
aqui abordar algumas considerações acerca do desenvolvimento dos con-
ceitos científicos e sua inter-relação com os conceitos espontâneos. Para
tanto, é preciso aludir ao papel da linguagem verbal como signo media-
dor na formação de conceitos.

5. O papel da palavra
A palavra é o sistema mais eficiente para representar simbolica-
mente a realidade. Segundo Vigotski (2001), cada palavra é ao mesmo
tempo um fenômeno do pensamento e da fala. É um fenômeno da esfera
do pensamento porque o significado da palavra, por ser um conceito ou
uma generalização, é indubitavelmente um ato de pensamento; no entan-
to é também um fenômeno da fala porque possui substância fônica. É a
união entre o suporte acústico e o significado que cria os símbolos (as pa-
lavras) com os quais os homens compartilham suas ideias uns com os ou-
tros. Assim surgiu a linguagem verbal, a qual possibilitou o intercâmbio
social.
Além disso, a linguagem apresenta ainda outra função: a organi-
zação da realidade mediante o pensamento generalizante. As palavras a-
brigam conceitos. Por isso, a linguagem permite ao homem conceituar a
realidade e organizar em sua mente os dados do mundo sensível e suas
próprias experiências, conferindo-lhes sentidos. Essa ordenação sistemá-

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tica, que implica uma classificação categórica baseada nas diferenças e
semelhanças dos diversos componentes, é uma exigência do intelecto
humano. Em outros termos, para compreender a realidade, o homem im-
prime ao meio o caráter de um todo ordenado e significativo. Tal ordena-
ção, realizada mediante a linguagem, é que lhe permite imprimir coerên-
cia ao mundo.
Dissemos que, para Vigotski, as palavras representam conceitos.
Oliveira (1992, p. 28) esclarece essa ideia ao comentar sobre a natureza
do pensamento verbal:
Isto é, os conceitos são construções culturais, internalizadas pelos indiví-
duos ao longo de seu processo de desenvolvimento. Os atributos necessários e
suficientes para definir um conceito são estabelecidos por características dos
elementos encontrados no mundo real, selecionados como relevantes pelos di-
versos grupos culturais. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve que
vai lhe fornecer, pois, o universo de significados que ordena o real em catego-
rias (conceitos), nomeadas por palavras da língua desse grupo. (p. 28)

Daí o interesse de Vigotski pela formação de conceitos, uma vez


que as funções psicológicas superiores (objeto central das investigações
do autor) são as operações realizadas mediante sistemas simbólicos cul-
turalmente aprendidos. Dentre estes está a linguagem: “O desenvolvi-
mento da linguagem – sistema simbólico básico de todos os grupos hu-
manos – representa, pois, um salto qualitativo na evolução da espécie e
do indivíduo.” (OLIVEIRA, 1992, p. 27). É a cultura que fornece ao in-
divíduo a aprendizagem de uma língua e dos sistemas simbólicos que lhe
permitirão ordenar o mundo em categorias. Por sua vez, é essa capacida-
de de ordenar o mundo mediante a utilização de sistemas simbólicos cul-
turalmente aprendidos que possibilitou à espécie o salto para os processos
psicológicos superiores.
Os conceitos são, portanto, construções culturais, as quais são in-
ternalizadas pelo indivíduo ao longo de seu desenvolvimento, e se trans-
formam em material simbólico de mediação entre o sujeito e o objeto de
conhecimento.

6. A inter-relação entre os conceitos científicos e os espontâneos


Vimos que as palavras representam conceitos e que, segundo Oli-
veira (1992, p. 31), “a trajetória de desenvolvimento de um conceito já
está predeterminada pelo significado que a palavra que o designa tem na
linguagem dos adultos”.
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Vigotski (2001) diferencia, no processo de formação de conceitos,
os conceitos espontâneos dos conceitos científicos. A criança forma con-
ceitos espontâneos ao interagir com os aspectos da realidade e ao nomeá-
los por palavras que representam categorias culturalmente já estabeleci-
das. Por exemplo: ao apontar um animal, a criança ouve a palavra “gato”.
Aos poucos, ela compreende que tal palavra não denomina apenas aquele
animal em particular, mas todos os animais que apresentam as mesmas
características gerais, as quais permitem distinguir o gato dos outros a-
nimais. Forma-se, assim, um conceito que lhe permitirá inclusive não só
discernir o gato dos outros animais, mas ainda identificar como “gato”
qualquer animal cujas diferenças de raça não chegam a descaracterizá-lo
como um ente da espécie. Assim, justamente porque possui o conceito,
ela será capaz de enquadrar na mesma categoria o gato siamês e o gato
angorá, embora reconheça que este possui pêlos mais espessos que o gato
siamês. O mesmo ocorrerá com outros entes, objetos e eventos que por-
ventura façam parte de seu cotidiano. Ela, por exemplo, será capaz de re-
conhecer um “copo”, ainda que seja de material diverso e apresente-se
em outro formato. Se não o fizer imediatamente, a intervenção do adulto
ou de outra criança mais experiente poderá ajudá-la a enquadrar o objeto
dentro das características do conceito apreendido.
No entanto, ainda que a criança apreenda, mediante a experiência,
quais são as características que conceituam um “gato” ou um “copo”, ela
ainda não será capaz de definir com palavras os conceitos gato e copo.
Segundo Vigotski (2001), isso ocorre porque a criança ainda não é cons-
ciente de seu ato de pensamento. Só muito mais tarde ela poderá definir
conceitos e empregá-los intelectualmente de forma mais consistente.
Portanto, a formação dos conceitos espontâneos é realizada de
forma assistemática, espontânea, segundo as experiências cotidianas da
criança e sua interação com o meio. É justamente nesse sentido que os
conceitos espontâneos se diferenciam dos conceitos científicos. Estes úl-
timos formam-se em situações formais de ensino-aprendizagem, tal como
ocorre na escola. O desenvolvimento dos conceitos científicos é um fator
muito requisitado em sociedades letradas, uma vez que, em tais culturas,
a escolaridade e o conhecimento científico são quesitos muito almejados.
A instrução escolar formal foi muito valorizada por Vigotski
(2001) justamente porque a escola favorece o desenvolvimento dos con-
ceitos científicos, assinalando um salto qualitativo no desenvolvimento
do indivíduo, sendo o meio pelo qual o domínio e a consciência se de-

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senvolvem. Em outros termos, a instrução escolar proporciona o desen-
volvimento dos conceitos científicos, girando em torno da tomada de
consciência e da apreensão intencional, o que promove o domínio das
operações. A escola, ao oferecer a aprendizagem de conceitos sistemati-
camente organizados, precede o desenvolvimento das estruturas mentais.
Segundo Panofsky et al (2002, p.246):
Vygotsky via no desenvolvimento de conceitos científicos um conjunto
de princípios gerais que invadem toda a instrução institucionalizada ou formal.
O mais importante é que a criança seja colocada na posição de recordar e ma-
nipular conscientemente o objeto da instrução.

Isso ocorre porque, ao contrário dos conceitos espontâneos, os


quais se originam espontaneamente, os conceitos científicos não depen-
dem diretamente da experiência cotidiana. Tais conceitos se organizam
em sistemas consistentes de inter-relações. Isto é, os conhecimentos são
transmitidos ao aluno em um sistema, de forma organizada e planejada.
No entanto, para a criança ser capaz de absorver um conceito ci-
entífico, é preciso haver um conceito espontâneo correlato e suficiente-
mente desenvolvido. Por isso, um dos aspectos principais do estudo de
Vigotski sobre a formação de conceitos é o fato de os processos de de-
senvolvimento dos conceitos espontâneos e dos conceitos científicos es-
tarem intimamente ligados. Ao se desenvolver, o conceito espontâneo a-
bre caminho para o conceito científico. Os conceitos científicos desen-
volvem-se para baixo, por meio dos conceitos espontâneos, e os concei-
tos espontâneos desenvolvem-se para cima, por meio dos conceitos cien-
tíficos.
Ambos os processos - o desenvolvimento dos conceitos espontâ-
neos e dos conceitos científicos - relacionam-se íntima e estreitamente e
se influenciam mutuamente, formando um único processo: o desenvol-
vimento da formação de conceitos. Isso significa que o desenvolvimento
dos conceitos constitui, na verdade, um processo unitário. O conceito es-
pontâneo oferece ao conceito científico suporte concreto para que este úl-
timo se desenvolva; caso contrário haveria o risco de o conceito científi-
co tornar-se apenas um verbalismo vazio devido ao alto grau de abstra-
ção. Por sua vez, o conceito científico organiza o conceito espontâneo,
expandindo-o em um sistema devido à nova aprendizagem. De acordo
com Vigotski (2001), os rudimentos de sistematização têm início por
meio dos conceitos científicos, sendo posteriormente transferidos para os
conceitos cotidianos.

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Voltando ao exemplo que oferecemos acima, a criança que espon-
taneamente desenvolveu o conceito gato, aprenderá, na escola, alguns
conceitos científicos correlatos, sistematicamente organizados. Aprende-
rá que o gato é um animal mamífero, carnívoro, felino, e que tais caracte-
rísticas o diferenciam de outras espécies. Assim, os conceitos gato, feli-
no, mamífero apresentam-se hierarquicamente relacionados, configuran-
do um sistema. A partir de então, qualquer conceito relacionado a esse
sistema também se modificará na mente da criança.
Por tais motivos, Vigotski (2001) acreditava que aprendizado sis-
temático oferecido pela escola é uma das principais fontes de formação
de conceitos, sendo capaz de direcionar e determinar o desenvolvimento
mental da criança. Cabe aqui mencionarmos a “tomada de consciência”
como fator fundamental desse processo:
Desse modo, a tomada de consciência se baseia na generalização dos pró-
prios processos psíquicos, que redunda em sua apreensão. Nesse processo ma-
nifesta-se em primeiro lugar o papel decisivo do ensino. Os conceitos científi-
cos – com sua relação inteiramente distinta com o objeto –, mediados por ou-
tros conceitos – com seu sistema hierárquico interior de inter-relações –, são o
campo em que a tomada de consciência dos conceitos, ou melhor, a sua gene-
ralização, como qualquer estrutura, é posteriormente transferida como um
princípio de atividade sem nenhuma memorização para todos os outros cam-
pos do pensamento e dos conceitos. Desse modo, a tomada de consciência
passa pelos portões dos conceitos científicos. (VIGOTSKI, 2001, p. 290)

Para ilustrar a inter-relação entre o desenvolvimento dos conceitos


espontâneos e o desenvolvimento dos conceitos científicos, Vigotski alu-
de à influência que o processo de aprendizado de uma língua estrangeira
exerce sobre o conhecimento da língua materna que espontaneamente a
criança já possui. Na língua estrangeira, o processo de aprendizagem é
desde o início consciente e deliberado. Ela terá que aprender as caracte-
rísticas formais da língua relativas à fonética, à morfologia e à sintaxe
para alcançar desenvoltura linguística. Nesse caso, os aspectos gramati-
cais terão que ser apreendidos, e isso exigirá muito esforço e empenho.
O mesmo não ocorreu na aquisição da língua materna. Nesse ca-
so, a criança aprendeu espontaneamente a conjugar verbos e a flexionar
palavras sem ter consciência dos aspectos gramaticais envolvidos nessas
operações. Na língua estrangeira, os aspectos que demandam certa cons-
ciência das formas gramaticais desenvolvem-se antes da fala espontânea.
No entanto, o êxito no processo de aprendizagem da língua estrangeira
dependerá da maturidade que o aluno apresenta em sua própria língua.
Em contrapartida, o aprendizado da língua estrangeira favorecerá o a-
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prendizado dos aspectos gramaticais de sua língua materna:
... as condições internas e externas de estudo da língua estrangeira e da forma-
ção de conceitos científicos nos seus traços mais essenciais coincidem e, prin-
cipalmente, distinguem-se da mesma forma das condições de desenvolvimento
da língua materna e dos conceitos espontâneos, que também se revelam seme-
lhantes entre si: aqui e lá a diferença se deve em primeiro lugar à linha de en-
sino como fator novo de desenvolvimento, de sorte que, da mesma forma co-
mo distinguimos conceitos espontâneos e não espontâneos, poderíamos falar
de desenvolvimento espontâneo da linguagem e desenvolvimento não espon-
tâneo para a língua estrangeira. (VIGOTSKI, 2001, p. 268).

Cremos que essas considerações são suficientes para fundamen-


tarmos de forma consistente por que acreditamos na utilidade do ensino
da gramática, entendida aqui como teoria gramatical, a qual se diferencia
da gramática internalizada, aprendida espontaneamente pela criança.

7. O ensino de gramática e a tomada de consciência


A análise de Vigotski (2001) acerca do desenvolvimento dos con-
ceitos evidenciou que o estudo de gramática é de grande importância pa-
ra o desenvolvimento mental da criança. Para que pudéssemos entender o
porquê dessa afirmação, abordamos alguns postulados do autor a fim de
esclarecermos o papel do ensino da gramática para promover o “salto
qualitativo” nas habilidades linguísticas. Lembremo-nos que o autor ad-
verte que, sem a gramática, o aluno permanecerá “limitado para aplicar
suas habilidades” (p.320).
Concluímos, então, mediante os postulados do autor, que um dos
aspectos relevantes é o fato de a gramática ser aprendida na escola, de
forma sistemática e intencional. Desde o início, essa aprendizagem é me-
diada por outros conceitos. E ainda que necessite de aportes oriundos de
conceitos espontâneos correlatos, os quais correspondem à gramática in-
ternalizada aprendida espontaneamente, a instrução gramatical oferecida
pela escola permite ao aluno a compreensão de que sua língua é um sis-
tema ordenado, cujos elementos se relacionam hierarquicamente, a fim
de instaurar sentidos. Esse olhar “sobre” a língua, permitindo percebê-la
como sistema é de suma importância para a tomada de consciência.
De fato, pensar “sobre” a língua, verbalizar os fatos linguísticos,
sendo capaz de generalizar as regras, de discriminá-las e reconhecê-las,
são operações que assinalam a tomada de consciência, a qual permitirá ao
aluno operar suas habilidades linguísticas conscientemente. É nesse sen-
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tido que Vigotski (2201) compara aprendizagem da gramática à aprendi-
zagem da escrita. A escrita igualmente demanda a tomada de consciência
e a arbitrariedade:
Depois do que já sabemos sobre a natureza consciente e arbitrária da es-
crita, sem esclarecimento algum podemos concluir sobre a importância pri-
mordial que para a apreensão da escrita tem essa tomada de consciência e o
domínio da própria linguagem. [...] quando está aprendendo a escrever, ela
começa a fazer arbitrariamente a mesma coisa que antes fazia não arbitraria-
mente no campo da linguagem falada. Desse modo, tanto a gramática como a
escrita dão à criança a possibilidade de projetar-se a um nível superior no de-
senvolvimento da linguagem. (VIGOTSKI, 2001, p. 321).

Assim, está claro que o aluno pode não adquirir novas formas
gramaticais ou sintáticas na escola, mas isso não diminui de forma algu-
ma a importância da instrução gramatical. De acordo com Vigotski
(2001, p. 320),
Mas na escola a criança aprende, particularmente graças à escrita e à gra-
mática, a tomar consciência do que faz e a operar voluntariamente com as suas
próprias habilidades. Suas próprias habilidades se transferem do plano incons-
ciente e automático para o plano arbitrário, intencional e consciente.

Torna-se evidente que adquirir consciência das próprias habilida-


des é o fator que permite dominá-las, ou seja, o aluno poderá decidir
conscientemente as construções sintáticas a serem utilizadas no texto, e
este, por sua vez, deverá estar de acordo com as demandas sociais. Ora,
saber empregar a norma-padrão, cujo conhecimento é exigido socialmen-
te, implica a obediência a certas regras, e isso pressupõe atenção voluntá-
ria e escolhas conscientes. Do mesmo modo, a transgressão às regras
com o intuito de primar pela expressividade (sobretudo em textos literá-
rios) também exige operações conscientes e deliberadas. Então, se a gra-
mática corrobora a tomada de consciência e, consequentemente, a com-
petência linguística, por que decidir não ensiná-la?

8. Considerações finais.
Antes de encerrarmos, é necessário esclarecer um aspecto impor-
tantíssimo em relação ao ensino da gramática. Para ser útil e assinalar um
salto qualitativo nas habilidades linguísticas do aluno, é preciso que esse
ensino faça sentido, que haja conceitos espontâneos correlatos capazes de
oferecer suporte aos novos conceitos aprendidos. Nesse sentido, também
Vigotski (2001) admoesta os leitores quanto ao perigo de transmitir às

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crianças conceitos de maneira pronta, de forma direta:
... a experiência pedagógica nos ensina que o ensino direto de conceitos sem-
pre se mostra impossível e pedagogicamente estéril. O professor que envereda
por esse caminho costuma não conseguir senão uma assimilação vazia de pa-
lavras, um verbalismo puro e simples que estimula e imita a existência dos
respectivos conceitos na criança, mas, na prática, esconde o vazio. [...] No
fundo, esse método de ensino de conceitos é a falha principal do rejeitado mé-
todo puramente escolástico de ensino que substitui a apreensão do conheci-
mento vivo pela apreensão de esquemas verbais mortos e vazios (p. 247).

Tais palavras ilustram o que pode acontecer quando o ensino de


gramática prioriza a memorização, desconsiderando os aspectos da lin-
guagem espontânea da criança. O aluno limitar-se-á a decorar as regras,
mas será um conhecimento inútil se ele não for capaz de relacioná-las à
língua viva que utiliza e à adequação da linguagem. Cremos que é nesse
sentido que muitos educadores se opuseram à gramática. O aspecto que
condenavam certamente não era o conteúdo gramatical, mas a forma co-
mo a gramática tem sido ensinada e avaliada. As palavras de Bagno e
Rangel (2005, p. 75) atestam esse parecer:
De fato, se o saber fizer sentido para o aluno, se o sistema apresentado for
organizado de maneira coerente e não se reduzir a uma classificação ou a uma
etiquetagem descolada do uso e da significação, se não se restringir à palavra e
à frase, a gramática aparecerá mais conectada com a língua, tal como a explo-
ram os diferentes usuários, e não será mais vista como um discurso abstrato,
inapropriável porque inadequado.
Outra questão que merece ser esclarecida é o fato de alguns considerarem
a gramática inútil porque os conteúdos gramaticais não ensinam a escrever, ou
seja, nem sempre aquele que conhece as regras é hábil na escrita.

Acreditamos que tal argumento não invalida a utilidade do ensino


de gramática. A teoria gramatical de fato não ensina a escrever, mas co-
nhecê-la significa ter domínio sobre a língua, decidir deliberadamente
quais as construções mais apropriadas ao momento, enfim, significa ser
proficiente na produção de textos.
A gramática oferece regras, e estas são critérios que possibilitam julga-
mentos de adequação da linguagem à norma-padrão. Utilizar as regras como
critérios de análise é, a nosso ver, a grande finalidade do ensino da gramática.
(SILVA, 2006, p. 3).

Por fim, é preciso considerar que o ensino de gramática deve ser


ministrado de forma contínua, pois a estrutura de uma língua não é a-
prendida em curto prazo. Vygotsky (2001, p. 323) afirma que as curvas
do progresso de aprendizagem e as das funções psicológicas que dele

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participam não são coincidentes.
Não se pode admitir nem de antemão que o prazo de domínio do progra-
ma de assimilação da declinação de substantivos coincida com o prazo neces-
sário para o desenvolvimento interior da tomada de consciência da própria
linguagem e sua apreensão em alguma parte desse processo. O desenvolvi-
mento não se subordina ao processo escolar, tem sua própria lógica. (VI-
GOTSKI, 2001, p. 323)

Para exemplificar esse parecer, o autor alude ao ensino de aritmé-


tica. É possível que, nas primeiras etapas da aprendizagem, pouco seja
acrescentado à compreensão da criança. No entanto, na etapa seguinte,
talvez a criança consiga captar um princípio geral, o que lhe proporciona-
rá um desenvolvimento acentuado nesse momento. "Porque na escola
não se ensina o sistema decimal como tal. Ensina-se a copiar números,
somar, multiplicar, resolver exemplos e tarefas, e como resultado de tudo
isso ela acaba desenvolvendo algum conceito do sistema decimal". (VI-
GOTSKI, 2001, p. 324).
Podemos dizer que o mesmo ocorre com a aprendizagem da gra-
mática. Não se ensina prontamente a estrutura de uma língua em sua tota-
lidade. Apresentam-se as classes gramaticais e suas respectivas flexões,
paulatinamente. As relações morfossintáticas vão sendo apreendidas aos
poucos, mas esses conhecimentos vão configurando, na mente do apren-
diz, o sistema da língua, permitindo-lhe a tomada de consciência e as es-
colhas arbitrárias. E essa aprendizagem se transfere para além dos limites
do conteúdo específico da gramática: "a criança que aprende os casos es-
tá aprendendo uma estrutura que, em seu pensamento, transfere-se para
outros campos imediatamente desvinculados dos casos e inclusive da
gramática em sua totalidade". (VIGOTSKI, 2001, p. 326).
Cremos que as considerações de Vigotski acerca da aprendizagem
da gramática não devem ser ignoradas. No início do século XX, a genia-
lidade de Vigotski já observava o quanto é prematuro decidir por não en-
sinar a gramática sem atentar para as reais implicações que tal exclusão
comporta ao desenvolvimento das funções psíquicas superiores, à tomada
de consciência e à arbitrariedade. Sabemos que o discurso pedagógico
contemporâneo ainda abriga preconceitos contra o ensino de gramática,
mas cremos que tais preconceitos não sobreviverão quando submetidos
ao olhar de Vigotski ao ensino da gramática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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