SODRÉ, Muniz - A Ficção Do Tempo
SODRÉ, Muniz - A Ficção Do Tempo
SODRÉ, Muniz - A Ficção Do Tempo
Petrópolis,
RJ: Vozes, 1973.
“Quando se tenta abordar teoricamente esse tipo de narrativa, tão prolífico no interior da
industrial cultural, surge uma dificuldade de certo modo análoga ao problema semântico
de elucidação do significado das palavras. Isto é, sabemos empiricamente que tal
narrativa é de FC – assim como identificamos, na prática, o significado de uma palavra
qualquer – mas não dispomos de um conceito operatório, capaz de dar conta a priori das
características estruturais do gênero” p.7.
“a literatura não é representativa do real histórico (assim como pode sê-lo a linguagem
comum), embora uma parte dela – a prosa ficcional, sobretudo – sugira evocativamente
um certo real. Mas a mensagem literária terá sempre uma referencialidade imaginária, já
que é produzida pela própria literatura. Esta engendra a si mesma” p.13.
“Do ponto de vista literário, a Ficção Científica nasceu velha: discursiva e mimética, sua
forma tinha quase um século de atraso com relação ao que a vanguarda literária fazia na
época. Seus temas misturavam-se aos temas correntes da indústria cultural: foguetes e
viagens espaciais envolviam-se com mistérios policiais, dragões e aventuras de capa e
espada. Aliás, do ponto de vista de estrutura, a FC não nasceu mesmo com fotos de
criação literária ou artística. O engenheiro norte-americano Hugo Gernsback, primeiro
editor regular ‘oficial’ da FC – e que deu identidade ao gênero – tinha pretensões
revolucionárias a respeito da forma literária quando incursionou na narração, em 1911.
Mas tinha uma visão conteudística de literatura. Sua novela seriada Ralph 124C41, que
ele pretendia ser inovadora, não passava de uma listagem de invenções técnicas (do
vídeo-telefone aos alimentos sintéticos). O modelo narrativo era velhíssimo: descritivo,
cheio de lugares-comuns e juízos de valor, provavelmente concebido no rastro do
sucesso do clássico Looking Backward (2000-1887), de Edward Bellany, best-seller em
1880” p.35.
“Mas a FC parece também reinaugurar Balzac ao fazer da forma romanesca o meio por
excelência de demonstração dos mecanismos sociais e da sua lei. Para falar dos temores
de esmagamento do homem pela engrenagem industrial, o escritor de vanguarda (como
Joyce e Beckett, por exemplo) vai destacar pequenos tópicos que não chegavam a
constituir problema para o cidadão comum. Por exemplo, a posse de uma carteira de
identidade assusta romancistas como Joyce e Robbe-Grillet, mas tranquiliza o homem
comum. A identidade (perdida na urbs tecnológica, segundo o romance de vanguarda) é
buscada tenazmente pelos personagens de Kafka, sobretudo em O Castelo e O
Processo. Na FC, o temor à ordem tecnológica e aos efeitos da ciência seria explicitado
como nos romances panorâmicos de Balzac” p.35-36.
“A ciência de que fala a FC não passa de uma alucinação ideológica. É uma espécie de
reencaminhamento mental no qual se julga o objeto técnico-científico a partir de seus
usos ou suas consequências, operando-se uma conversão do logos ao mythos” p.38.
“Mas nova linha ainda é insuficiente para colocar a FC, como um todo, na esfera da
vanguarda artística. As doutrinas em voga e a conjuntura editorial continuam penetrando
e determinando a rede temático-formal da FC” p.50.
“Ao jogar com o tempo da história, a FC procura, miticamente, um tempo em que se fale,
sem a repressão da verossimilhança temporal romanesca, sobre a ratio técnico-
capitalista. Nem mesmo os escritores de idéias fascistas ou sempre tendentes a favorecer
o status quo tecnocrático, como Robert Heinlein, conseguem contornar a linguagem da
angústia. É como se um mito surgisse para exprimir uma angústia,somatizada na
máquina ou no elemento motor da mudança” p.104.
“Mas a narrativa mítica não é a mesma do romance. Este sucede à cosmogonia do mito
quando o indivíduo se sente capacitado pela História a optar pela realidade temporal de
suas ações em detrimento da ordem divina (a ordem do mito). O romance, ponte entre
mito e a História, surge assim no momento (Europa Ocidental, século XII) em que o clero
e a aristocracia feudal podem se reconhecer ideologicamente como classes. A ideologia
constitui uma outra noção de pessoa – agora o indivíduo integra uma formação social
ciosa de suas categorias e não mais uma ordem divina e indiferenciada. No romance, o
personagem significa a pessoa e a individualidade burguesas, isto é, o indivíduo
interpelado ideologicamente no seio de uma formação social emergente na História e
desejosa de organizar o seu tempo e seus valores. O eu (a subjetividade) romanesco
surge como um ideologema, uma unidade constitutiva mínima da ideologia, presente na
informação romanesca do imaginário” p.108.
“O mito se revela na obra, no instante em que esta produz de modo autônomo a sua
própria significação ideológica” p.109.
“Romance não se confunde, portanto, com narrativa mítica, embora a cultura de massa
opere com narrativas – o folhetim, a novela policial, etc. – que funcionam como episódios
ou variações de um determinado mito. Essas narrativas seriam ‘mitos degradados’ (na
expressão de Lévi-Strauss), utilizados como evasão ou entretenimento pela sociedade
industrial” p.109.
“Embora gerada pela cultura de massa, a FC não é uma mera forma degradada de mitos,
mas um mito novo em emergência no seio da formação social industrializada” p.109.
“Embora a FC rejeite as formas canônicas da poesia, o seu processo mítico atual abre
caminho para uma certa exploração poética do imaginário, estabelecendo um contato
direto entre razão e imaginação” p.113.
“A FC fala de origens (em geral, a causa suposta de dificuldades futuras, de como a Terra
chegou a este ou aquele estado), mas a obsessão com os começos é posta em segundo
plano por uma indagação ansiosa em torno do futuro, acionada principalmente pelo temor
à catástrofe termonuclear, à dominação tecnocrática (com efeitos variados: a alienação do
indivíduo pela propaganda maciça, a supressão das liberdades individuais, o
esmagamento da subjetividade, etc.) ou às mudanças nas relações institucionais
arraigadas no espírito humanístico-burguês (que é uma ideologia essencialista e
empirista) os alvos da ameaça tecnológica” p.118.
“A FC, que é uma forma simples mítica, produz uma questão e uma resposta (ideológicas,
já que partem das convulsões do humanismo) supostamente capazes de obrigar o futuro
a revelar-se. Ela cria assim um futuro, um tempo além do histórico, de modo bastante
semelhante aos procedimentos divinatórios do oráculo grego” p.119.
“De um lado, pode-se ver na FC um sonho do tipo junguiano: prospecção individual com
uma finalidade (visão antecipadora da atividade consciente futura), mas também com uma
face arcaica (a reminiscência do destino ancestral da espécie humana). O sonho pode ser
realmente prospectivo na medida em que é capaz de orientar para experiências novas,
por meio do relacionamento com o outro (rejeitado pela vida consciente)” p.123.
“De outro lado, vale relembrar que o indivíduo muda pouco na FC. Os mutantes ou os
deuses são fantasia que representam o sujeito constituído pela ‘verdade’ centrada de
uma formação social dividida em classes. Os poderes dos deuses são as roupagens
simbólicas de uma estrutura ideológica básica. Assim, o ‘sonho’ da FC, apoiado
excessivamente na ideologia, deve ser visto como um mito cuja função é fornecer uma
essência para o homem contemporâneo. Nesta ‘essência’, subentendem-se os produtos
alienados do trabalho humano, instaurados pelas relações capitalistas de produção, que
são esquecidas pela FC – logo, dadas como eternas. A atemporalidade do mito funciona
aqui também como a caução de estaticidade do real. A ela cola-se a ideologia, essa
estrutura que, pretendendo-se eterna, elide radicalmente o tempo, a História. Na FC, o
sonho, diria Barthes, ‘essencializa a vida em destino’” p.123-124.
“Ao mesmo tempo, entretanto, a FC reafirma a magia da linguagem – magia entendida
como a capacidade de produção, evocação e domínio da fala sobre os objetos e também
como a percepção do mana que estende às coisas, às petrificações, a realidade íntima da
vida do homem. Na FC, assim como na criação mágica do mundo, tudo é possível –
repetimos – porque o seu princípio é o Verbo” p.124.