Fístulas Digestivas2 PDF
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FÍSTULAS DIGESTIVAS
Maria Isabel T. D. Correia
Profa. Titular de Cirurgia
Faculdade de Medicina
Universidade Federal de Minas Gerais
Generalidades
As fístulas digestivas são definidas como comunicação anormal entre vísceras ocas
(fístulas internas) ou entre estas e a pele (fístulas externas). Podem ser congênitas ou
adquiridas, sendo as últimas pós-operatórias, traumáticas ou espontâneas. A maioria das
fístulas digestivas adquiridas ( 75 - 85 % ) são pós-operatórias1. Podem se apresentar sob
a forma de quadros dramáticos, com mortalidade significativa. Assim, o adequado
manuseio dessa complicação por cirurgião mais experiente implica em evidente redução
da morbidez e mortalidade. Por exemplo, não é incomum, em algumas situações de
abordagem cirúrgica precoce, ao identificar o orifício fistuloso da anastomose,
especialmente quando pequeno, o cirurgião inexperiente acreditar que um simples ponto
no local corrigiria o problema. Entretanto, pelas condições locais, o que frequentemente
se observa é a ampliação do orifício após o manuseio. Evitar atitudes “heróicas” é
salutar, sob todos os aspectos. O tratamento primário das fístulas digestivas pós-
operatórias é conservador, reservando-se a abordagem cirúrgica para casos de insucesso.
Classificação
Existem múltiplas classificações de fístulas digestivas mas as que trazem maior
informação prática são as estabelecidas de acordo com critérios anatômicos, fisiológicos
e etiológicos.
Os dados anatômicos estão relacionados com os procedimentos cirúrgicos previamente
executados, fatores de risco para o surgimento da fístula ou, por meio de realização de
ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada, ressonância magnética do
abdome e estudos radiológicos contrastados convencionais ou administrando o contraste
pelo trajeto da fístula. Os primeiros métodos de imagem citados quase sempre localizam
coleções purulentas intra-abdominais. O estudo contrastado através do orifício externo da
fístula é o que traz maiores informações anatômicas da fístula, mas não substitui os
demais métodos pois fornece informações distintas. O manuseio do trajeto da fístula deve
ser cuidadoso e preferencialmente realizado alguns dias após a instalação, quando ocorrer
estabilização da fístula, com bloqueio peritonial do trajeto, permitindo a realização do
estudo.
As fístulas podem ser internas, externas, envolvendo múltiplos órgãos, com ou sem
descontinuidade total, com ou sem obstrução distal, de trajeto curto ou longo (tendo
como base dois centímetros) e com defeitos na parede intestinal maiores ou menores do
que um centímetro de diâmetro.
Alguns fatores que influenciam a cicatrização espontânea das fístulas estão listados na
tabela 11.
Fisiopatologia
O aparecimento de fístula digestiva depende de vários fatores, isolados ou associados,
relacionados ao paciente ou mesmo ao cirurgião. Há condições gerais que podem
propiciar o aparecimento da fístula, tais como desnutrição grave, imunossupressão,
radioterapia, quimioterapia, presença de câncer e uso prolongado de corticóides. Dentre
as condições locais, salientam-se vascularização deficiente na linha de sutura, presença
de peritonite infecciosa e anastomose realizada em área intestinal previamente doente
(doença inflamatória intestinal, neoplasia etc). O papel do cirurgião é importante visto
que ligaduras vasculares inadequadas, anastomose sob tensão e falhas técnicas na
execução podem levar ao aparecimento de fístulas iatrogênicas. Chama muita atenção o
fato de que cerca de metade das fístulas de intestino delgado que surgem no pós-
operatório estão associadas a lesão inadvertida e não às anastomoses ou suturas
intestinais1.
O conjunto dos fatores fisiopatológicos relatados leva a resultados muito diferentes em
variadas situações, como descrito a seguir. A fístula após gastrectomia por câncer ocorre
entre 5 e 10% dos casos e tem mortalidade de 50 a 75%. Se a mesma operação é realizada
por doença benigna, o índice de fistulização é de 1 a 3%. A localização anatômica da
fístula é outro fator que influencia no índice de mortalidade. Por exemplo, a mortalidade
geral dos portadores de fístula duodenal é de 30%1.
Quadro clínico
A possibilidade do aparecimento de fístula digestiva pode ser presumida pelo cirurgião. É
importante conhecer que essa pode ocorrer sem nenhum fator indicativo geral ou local e
sem falha técnica por parte do cirurgião. Nas situações de mais alto risco, como por
exemplo, após sutura duodenal de úlcera perfurada com intenso processo inflamatório na
parede intestinal, o cirurgião deve optar pela colocação de dreno sentinela nas
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Diagnóstico
O diagnóstico é firmado ao se encontrar secreção digestiva no conteúdo proveniente do
dreno abdominal ou nas drenagens de incisões cirúrgicas espontâneas ou operatórias.
Quando o paciente apresenta abscesso intra-abdominal o diagnóstico segue as etapas
descritas anteriormente.
Se o doente se apresenta com peritonite difusa sem exteriorização de secreção digestiva,
o diagnóstico prévio será o do acometimento peritonial, com suspeita de fístula digestiva.
Neste caso, o paciente apresenta dor abdominal difusa, distensão abdominal, sinais de
irritação peritonial, febre, taquicardia, sequestro de líquidos e oligúria. A avaliação
laboratorial pode evidenciar distúrbio hidro-eletrolítico, leucocitose com desvio à
esquerda e elevação de escórias. A radiografia simples de abdome demonstra distensão
de alças intestinais com níveis hidroaéreos e mesmo sinais de líquido peritonial
aumentado. A ultrassonografia abdominal fica prejudicada pelo excesso de gases
abdominais mas pode demonstrar espessamento da parede das alças intestinais e presença
de líquidos na cavidade peritonial. A tomografia abdominal computadorizada não é
afetada pela presença de gases, demonstra espessamento e distensão das alças intestinais
e presença de líquido na cavidade peritonial. Em relação à ultrassonografia abdominal, a
tomografia tem a desvantagem da irradiação e do maior custo. Estabelecido o diagnóstico
de peritonite difusa, a laparotomia permite que se conclua quanto à etiologia do processo
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Tratamento
A fístula digestiva tem por ter espectro de apresentações muito amplo, pode evoluir de
distintas maneiras, desde quadros catastróficos até àqueles sem qualquer repercussão no
paciente como um todo. O diagnóstico pode ser até mesmo fortuito. O tratamento às
vezes é quase contemplativo. Por outro lado, nos casos de apresentação catastrófica com
grande comprometimento do estado geral do paciente, deiscência completa da parede
abdominal, lesão grave de pele, septicemia, distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos,
síndrome da resposta inflamatória sistêmica grave e insuficiência renal, há a necessidade
de conhecimento e experiência na abordagem. A rápida evolução para o óbito pode
ocorrer na falha terapêutica.
As bases do tratamento do portador de fístula digestiva são drenagem adequada,
tratamento da infecção associada por meio de antibioticoterapia e drenagem de abscessos
intra-abdominais, correção dos distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos, terapia
nutricional e cuidados com a pele. É rotineiro o jejum absoluto por via oral,
especialmente nas fístulas proximais. Neste grupo, quando a fístula é de alto débito,
diferentemente do que pensamos, alguns autores utilizam cateter nasogástrica para
reduzir a drenagem da fístula2. Algumas drogas, também visando redução do débito da
fístula têm sido empregadas, como veremos adiante. Colas biológicas podem ser
utilizadas, no intuito de se tentar obter fechamento mais precoce das fístulas. Nos casos
de insucesso com o tratamento conservador, institui-se a abordagem cirúrgica da fístula.
A secreção drenada deve ser mensurada, diariamente, e ter o aspecto analisado pelo
cirurgião. O melhor sistema parece ser a manutenção de aspiração contínua das
secreções, sob baixa pressão, para não ocasionar lesão tecidual. Esta abordagem ajuda na
proteção da pele, reduzindo o contato da secreção com a mesma, facilita a quantificação
do volume drenado e torna a drenagem mais eficaz.
Apesar de alguns autores reintroduzirem a secreção drenada nos pacientes que têm
jejunostomia à jusante de fístulas altas3 , não nos parece adequada a técnica pois é
comum diarreia sequencial, por contaminação da secreção digestiva. Ademais, há outras
maneiras de se repor esta perda.
O método selante a vácuo representa alternativa moderna e atraente para o tratamento de
fístulas digestivas e já foi utilizado com sucesso em humanos. Trata-se de criar barreira
semi-permeável envolvendo a área da fístula com polímero hidrofóbico sintético
acoplado a câmara de vácuo. Isto mantém a secreção digestiva no interior da alça
intestinal. Um dos relatos da literatura, descreve o débito da fístula que era em média de
800mL por dia tendo diminuído imediatamente para 10mL em 24 horas. A cicatrização
da fístula e da ferida cutânea ocorreu em 50 dias de tratamento4. A experiência ainda é
muito pequena para se obter quaisquer conclusões.
insuficiência renal pré-renal e óbito. As perdas podem suplantar quatro a seis litros a cada
24 horas2. Neste grupo de doentes o balanço de ofertas e perdas deve ser realizado não
mais diariamente mas a cada intervalo de quatro a seis horas. A reposição leva em
consideração perdas estimadas e não apenas as já ocorridas sob pena de não haver mais
tempo hábil para corrigi-las. A dosagem de eletrólitos é realizada diariamente.
Terapia nutricional
Pacientes com fístula digestiva apresentam, na grande maioria, quadro concomitante de
desnutrição grave. Este é, em geral, decorrente do processo hipercatabólico associado à
infecção, do longo período de jejum associado ou não a dismotilidade intestinal
prolongada e, de outras causas prévias à operação. De sorte que, a Terapia Nutricional
deve ser indicada o mais precocemente possível. Desta maneira, tenta-se evitar a piora
progressiva do estado nutricional, que é por si só fator de mau prognóstico para que
ocorra cicatrização espontânea da fístula6.
A opção pelo tipo de tratamento nutricional (parenteral ou enteral) deve levar em conta a
localização e o débito da fístula, ainda que numa fase inicial, quase sempre, se deva optar
pela administração de nutrição parenteral (NP). Esta atitude é justificada pela necessidade
de garantir, de imediato, a oferta de nutrientes a pacientes já previamente desnutridos, e
que em geral, apresentam dismotilidade gastrointestinal associada, o que dificulta a
administração de nutrição enteral. A nutrição parenteral poderá ser feita em veia
periférica ou central. No entanto, o acesso central (veias subclávias ou jugulares, via de
regra) é, quase sempre o mais indicado, pois de antemão se sabe que o tempo médio para
a cicatrização de uma fístula é de quatro a seis semanas. A nutrição parenteral periférica
está indicada para pacientes com perspectiva de uso de NP por tempo inferior a quinze
dias.
Após o estabelecimento e controle da fístula, mesmo em pacientes já em uso de NP, a
nutrição enteral poderá ser usada. Via de regra, em pacientes com fístulas de baixo
débito, quando estas estão localizadas no trato gastrointestinal baixo ou no caso de
localização no trato gastrointestinal alto quando se dispõe de acesso enteral à jusante do
orifício fistuloso (cateter ou ostomia) devemos usar a nutrição enteral. Se houver
aumento significativo do débito da fístula, esta forma de tratamento deve ser reavaliada.
Pode optar-se por interromper a nutrição enteral ou apenas diminuir o volume de infusão
e associar NP. Nos pacientes que não apresentaram aumento significativo do débito da
fístula com a nutrição enteral e, assim que as necessidades nutricionais sejam alcançadas,
deve-se suspender a NP. Ao se prescrever nutrição enteral é importante determinar o tipo
de fórmula a ser usado. De preferência, as fórmulas oligoméricas que são mais facilmente
absorvidas devem ser prescritas. O uso de nutrientes imunoestimulantes, como arginina,
RNA, glutamina e ácidos graxos Omega-3 parece trazer benefícios a pacientes com
quadros de resposta inflamatória sistêmica. No entanto, o assunto ainda é controverso.
Além disso, não existem, no mercado, fórmulas oligoméricas prontas contendo estes
nutrientes, o que representa a necessidade de serem adicionados, o que ocasiona maiores
riscos de contaminação das fórmulas enterais.
A nutrição parenteral é o tratamento de escolha para pacientes com fístulas de alto débito.
Todavia, sempre que possível, o mínimo de nutrição enteral deve ser ofertado, com
intuito de estimular os enterócitos. Isto pode ocorrer tanto em pacientes com fístulas do
trato gastrointestinal baixo (cateter posicionado no estômago) ou alto (cateter ou ostomia
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Uso de drogas
O jejum por via oral como parte integrante do tratamento da fístula digestiva baseia-se na
expectativa de reduzir as secreções digestivas circulantes na área da fístula, com o
objetivo de facilitar a cicatrização espontânea. Na tentativa de reduzir mais ainda a
secreção digestiva, várias substâncias podem ser utilizadas, como por exemplo a
somatostatina ou o análogo, octreotide. Estas substâncias reduzem a circulação
esplâncnica e, assim, diminuem significativamente a secreção digestiva. Alguns estudos
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Colas biológicas
Mais recentemente tem-se lançado mão da utilização de colas biológicas com o intuito de
propiciar cicatrização da fístula digestiva. A cola pode ser introduzida por via
endoscópica, através do orifício interno ou externo, após desbridamento e limpeza do
trajeto fistuloso. A experiência ainda é pequena mas os resultados iniciais parecem ser
promissores.
Prognóstico
Mesmo com os avanços obtidos, a mortalidade dos portadores de fístula digestiva ainda é
alta, no geral oscilando entre 6,5% e 21%10. Há, no entanto estatísticas recentes em que
os índices atingem 37%. Isto se deve à heterogeneidade dos pacientes e das fístulas. Nos
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Tabela 1
Fatores anatômicos que influenciam na cicatrização espontânea de fístulas digestivas
Favoráveis Desfavoráveis
Tabela 2
Bibliografia