A Farra Dos Inimigos Do Povo
A Farra Dos Inimigos Do Povo
A Farra Dos Inimigos Do Povo
PRÓLOGO
Chegança dos palhaços
Panela de pressão
Primeiro Ato
Cena 1
Noite. Casa do doutor. Uma recepção acontece, MULHER serve aos convidados drinks
e aperitivos.
PREFEITO - Eu estava passando por aqui... Mas vejo que vocês têm visitas.
MULHER (Com ligeiro embaraço) - Pois é... (Um pouco alvoroçada) Quer tomar alguma
coisa?
PREFEITO - Não, não. Muito obrigado: eu fico só no chá com torradas. Mais saudável e
mais econômico.
MULHER (Sorrindo) – Falando assim, até parece que somos esbanjadores, hein?
PREFEITO - Você não, cunhada. Longe de mim! Meu irmão está em casa?
CENA 1 A
EDITOR - Sim. Desculpe o atraso... Ah, boa noite, Sr. Prefeito. Vim buscar um artigo
para o jornal com o doutor.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
PREFEITO - Ah, sim. Aliás, ouvi dizer que meu irmão está se dando muito bem como
colaborador da Voz do Povo.
EDITOR - Sem dúvida. Cada vez que ele precisa dizer umas verdades, escreve em nosso
jornal.
PREFEITO - É claro! E de modo algum eu o censuro. Aliás, Sr. EDITOR, não tenho nada
contra seu jornal.
PREFEITO - Imagino que o assunto do meu irmão seja o principal interesse de todos os
cidadãos honrados e preocupados com nossa cidade…
EDITOR - O senhor está falando da nossa Estação Balneária? O Parque das Águas
Medicinais?
PREFEITO - Exatamente! O Parque das Águas é uma coisa magnífica! Uma fonte de
riqueza vital para nossa cidade!
MULHER - De fato! Veja que desenvolvimento incrível tem tido nossa cidade nestes
últimos dois anos! Tá fervilhando de gente, vida, movimento.
PREFEITO - É verdade. E vai diminuir ainda mais... muitos veranistas... esses vão
espalhar a fama da cidade. O turismo é um mercado em crescimento!
EDITOR - Ah, então o artigo do doutor vai ser muito oportuno! Ele recomenda nossas
águas e destaca as ótimas condições higiênicas do Parque.
PREFEITO (com certa indignação) - A ele? É claro! Já ouvi várias pessoas dizerem isso.
Entretanto, eu acho que, modestamente, também dei a minha contribuição para a criação
desse empreendimento.
EDITOR - Todos sabem que foi o senhor quem pôs o negócio pra cima, quem deu vida!
Eu só quis dizer que a ideia foi do doutor.
PREFEITO - Sim, sim! Jamais faltaram ideias ao meu irmão. Mas quando se trata de
colocá-las em prática...
Cena 2
2
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR (Rindo e falando ruidosamente para os bastidores chega em casa com amigos)
DOUTOR (Na porta, voltando-se) - Ah! É você, Peter! (Aproxima-se dele e estende-lhe
a mão) Que bom te ver! Venha, vamos tomar uma.
DOUTOR - Olhe em volta, não se anima com essa juventude? Aqui tem vida, tem um
futuro pelo qual vale a pena trabalhar e lutar. E isso é o que importa. (Chamando)
MULHER! Veio o carteiro?
DOUTOR – Venha Peter! Vamos beber alguma coisa e colocar esse seu estômago pra
arder!! Hoje podemos nos dar certos luxos não é mesmo? Catarina coordena bem os
gastos e podemos comer e beber só do que há de melhor!
DOUTOR - Então! Eu agora posso me permitir isso. Catarina diz que eu ganho quase
tanto quanto o que gastamos.
DOUTOR - Afinal de contas, é preciso que um homem da ciência como eu, viva com
certa dignidade; tenho certeza de que um prefeito gasta muito mais…
DOUTOR - As pessoas que fazem parte do seu círculo social… gastam muito mais do
que eu.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR - Por outro lado, Peter, nós não fazemos despesas inúteis. Mas não posso
recusar o prazer de receber os amigos. Eu preciso disso, de ver gente, ter pessoas ao meu
redor, pessoas como o Sr. Editor, venha quero lhes apresentar.
PREFEITO - Ah! Sim... Conheço bem o EDITOR. Ele até me falou de um artigo seu que
vai publicar.
PREFEITO - Sim, sobre o Parque das Águas Medicinais. Um artigo que você escreveu
no inverno.
DOUTOR - É verdade, não me lembrava mais. Mas eu não quero que seja publicado por
enquanto.
PREFEITO (com desconfiança) - Mas... porque não? Segundo me disse o editor, o artigo
fala muito bem do nosso balneário!
PREFEITO - Muito misterioso. O que se passa? Alguma coisa que não posso saber? Acho
que como presidente da Estação tenho o direito a...
DOUTOR (interrompendo) - Me parece que... (contendo-se) Mas que diabos, Peter! Não
vamos começar com discussões, não é mesmo?
PREFEITO - Você me irrita! Você tem essa coisa de fazer tudo por conta própria. Você
tem que fazer as coisas conforme os manuais, meu irmão. Conforme os regulamentos. Já
é hora de você acertar o passo.
DOUTOR – Pára de ser louco. Está vendo problema onde não existe nada! Você e essa
sua mania de perseguição!
PREFEITO - Tomara que seja só isso! Adeus, minha cunhada. (Dirige uma saudação à
sala de jantar) Adeus, senhores. (Sai)
Cena 3
EDITOR - Acho que é a nós, do Jornal, que ele não consegue digerir.
DOUTOR - Lembrem-se de que Peter é um pobre solitário. Não tem uma família onde
possa se abrigar; tudo o que ele tem são negócios, negócios. E além disso, o que se pode
dizer de um homem que só bebe chá!? (Chamando) Catarina!
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
(Todos bebem)
SUB-EDITOR – Sabe-se lá o que vai acontecer! É que nem um navio sem capitão!
DOUTOR - Para falar a verdade, não me dou bem com essas coisas.
EDITOR - Como não entende nada? Que o senhor quer dizer? A democracia é como um
navio. Todos devem estar atentos à sua rota.
Cena 4
(Entra FILHA)
FILHA - Como!? Estão de festa por aqui enquanto eu dou duro lá fora?
FILHA - Obrigada, deixa que eu mesmo preparo. Você prepara um ponche muito forte.
Ah! (para o pai) Já ia me esquecendo, pai! Trago uma carta para você. O carteiro me
entregou quando eu estava saindo.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
Cena 4 A
SUB-EDITOR - E, pelo jeito, você ainda tem os deveres dos alunos para corrigir.
Cena 5
DOUTOR (Mostrando a carta) - Podem ficar certos, meus amigos, de que vamos ter
notícias sensacionais aqui na cidade!
SUB-EDITOR - Novidades?
DOUTOR - Exatamente. O que eu fiz! (Caminhando a passos largos) Quero ver dizerem
agora, como costumam dizer, que sou louco!! Quero ver quem!!!
DOUTOR (Detendo-se; toma fôlego) - Toda a economia de nossa cidade está baseada no
fato de que as águas daqui são medicinais. Eu é que dei a ideia de construir o Parque das
Águas, dizendo que a gente ia curar os doentes que bebessem ou se banhassem nas nossas
águas. Mas vocês se lembram, na época da construção, eu disse para fazer a tubulação
mais em cima do rio, onde as águas são limpas... só que o orgulho e a muquiranice de
alguns, deu nisso: nossa cidade é hoje um grande foco de infecções!
SUB-EDITOR – Tá de sacanagem?
FILHA - Dos matadouros? Até os locais de banhos? Até a água que os doentes bebem?
DOUTOR - Exatamente.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
EDITOR - E como o senhor pode estar tão convencido de tudo isso, doutor?
SUB-EDITOR - Lascou-se!
DOUTOR - Remediar isso. (Dá uma volta pela sala esfregando as mãos) Vais ver,
Catarina, o rebuliço que esse caso vai provocar! Você nunca viu nada igual. Vai ser
preciso refazer as tubulações mais pra cima, onde a água é boa.
DOUTOR - Na época, ninguém me deu ouvidos. Agora eles vão ter que me ouvir,
queiram ou não. Catarina, peça que a... a... (Bate com o pé) Como diabos se chama ela?
Essa menina que trabalha aqui em casa... Mande que ela leve esse relatório imediatamente
ao prefeito. (MULHER pega os papéis e sai pela sala de jantar)
DOUTOR - Sim, tem razão. Vou re-escrever meu artigo e o senhor publicará em seu
jornal..
SUB-EDITOR - Com toda a certeza o senhor vai se tornar um dos personagens mais
importantes da cidade.
DOUTOR (Caminhando, com ar satisfeito) - Que nada! Fiz apenas o meu dever. Não
importa… E se o Parque das Águas quiser aumentar o meu salário, vou recusar.
Recusarei! Você ouviu Catarina?
Segundo Ato
Cena 1
(Manhã seguinte)
MULHER - Seu irmão mandou avisar que vem aqui em casa daqui a pouco. Estou curiosa
para saber o que ele está pensando a respeito disso.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
MULHER - Nesse caso, Thomas, você deveria dividir com ele a honra da descoberta. E
se você fizesse Peter acreditar que foi ele quem lhe colocou na pista... Ou algo assim?
DOUTOR - Por mim não tem nenhum problema, desde que se façam todas as reformas
necessárias.
Cena 2
DOUTOR - Não acha que isso é uma verdadeira sorte pra a cidade?
LEITÃO - Sim, sim, sim. Mas, francamente, eu não achava você capaz de pregar uma
peça dessas no seu próprio irmão.
LEITÃO - Petra me disse que entraram alguns desses bichos. Uma porção.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR - Oi?
LEITÃO - Você não acha que o prefeito vai engolir essa história, né?
LEITÃO (se preparando para sair) - Todos? Sei não...Acho que vai ser é bem feito! Me
expulsaram do Conselho como a um cão. Mas vão pagar caro. É isso, meu genro, pregue-
lhes boas peças.
LEITÃO - Boas peças, já disse. (saindo) Se você conseguir fazê-los embarcar nessa, farei
uma boa doação aos pobres! Cem coroas! Para o Natal… Pelo menos umas cinquenta
coroas! (sai)
Cena 3
EDITOR - Nós conversamos muito sobre o assunto desde que saímos daqui.
DOUTOR - É mesmo?
EDITOR - Bem... O senhor, enxerga essa questão como médico e cientista, mas não vê
as consequências políticas.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
EDITOR - Radicais?
DONO DA GRÁFICA - … que tem poder para nos apoiar e dar maior visibilidade ao
artigo do Dr.
EDITOR - Todos temos condições de ganhar com isso, pense bem, Doutor. Nosso jornal
vai dar a cobertura necessária, e o DONO DA GRÁFICA traz o apoio da Associação dos
Proprietários e do Partido Moderado.
DONO DA GRÁFICA - As autoridades se movem com uma certa lentidão. É preciso dar
um empurrãozinho.
DOUTOR - (Entregando o artigo) - Nesse caso pode publicar o que escrevi. De ponta a
ponta.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
CENA 4
DOUTOR - Peter? Não, mas tive uma conversa com o EDITOR. Ele está entusiasmado
com a minha descoberta. Colocou o jornal à minha disposição.
DOUTOR - Acho que não. Em todo caso é bom saber que tenho ao meu lado a imprensa.
E além disso, recebi a visita do DONO DA GRÁFICA. Todos querem me apoiar, caso eu
precise. Sabe, Catarina, o que eu tenho por trás de mim?
DOUTOR - Tenho por trás de mim a maioria dos cidadãos, a opinião pública!
Cena 5
DOUTOR (ouvindo baterem à porta) - Deve ser ele...Bom dia, Peter, seja bem-vindo.
(Prefeito entra)
PREFEITO - Mais ou menos... (Ao doutor) Recebi seu relatório, referente às condições
das águas do Parque.
DOUTOR - Leu?
PREFEITO - Li.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
PREFEITO (Depois de uma pausa) - Tinha que fazer todas essas investigações nas
minhas costas?
PREFEITO - Você tem a intenção de mandar esse relatório para a direção do Parque das
Águas, oficialmente?
DOUTOR - Mas é a pura verdade, Peter! Pense um pouco - água envenenada! Imprópria
para beber e imprópria para o banho! É isso que estamos oferecendo a pobres doentes e
veranistas que vêm aqui! Essas pessoas que confiam em nós e nos pagam um bom
dinheiro para recuperar a saúde!
PREFEITO - E você chega à brilhante conclusão de que devemos mudar de lugar todo o
sistema de canalização!
PREFEITO - No mínimo. E o que seria da cidade? Você pensa que alguém viria até aqui
sabendo que nossas águas estão contaminadas?
PREFEITO - Se essa história vaza, vamos ter que fechar este Parque que nos custou tão
caro. E você terá arruinado a sua cidade natal.
PREFEITO - O futuro desta cidade é o Parque das Águas Medicinais. Você sabe disso
tão bem quanto eu.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
PREFEITO - Vamos estudar com calma o assunto. Precisamos ser discretos e contratar
uma consultoria… Vamos precisar de uma emenda parlamentar e depois realizar uma
concorrência ou licitação. No final vai ganhar uma dessas grandes empresas que vai fazer
o trabalho sem alarde.
DOUTOR - Mas, Peter, quanto tempo isso ia demorar? E até lá o que a gente faz?
Continua servindo veneno e dizendo que é remédio? Você julga que eu me associaria a
uma farsa dessa natureza?
DOUTOR - Sim, isso seria uma farsa, uma fraude, uma mentira, um verdadeiro crime
contra o povo, contra a sociedade! Você está preocupado é que saibam do seu erro na
construção!
PREFEITO - E se fosse isso? Eu me preocupo com a minha reputação. Olha, esse relatório
tem que desaparecer. É o interesse público que está em jogo! Mais tarde, faremos o que
pudermos. Mas em silêncio! Nada, absolutamente nada deve ser divulgado!
PREFEITO - Sim, para você e sua família! Faça imediatamente um desmentido público.
DOUTOR - Desmentido?
PREFEITO - Você pode dizer que, depois de conhecer o resultado de novas análises,
chegou à conclusão de que o caso não é tão grave. Como empregado do Parque das Águas,
você não tem direito a uma opinião individual e solitária.
PREFEITO (interrompendo) - Como cidadão, você pode pensar o que quiser. Como
funcionário do Parque, você não tem o direito de sair divulgando por aí uma opinião que
não esteja de acordo com a dos seus superiores.
DOUTOR - Mas isso já é demais! Eu, médico, homem de ciência, não tenho o direito
de...!
PREFEITO - Eu sou seu chefe e quando proíbo uma coisa, você nada mais tem a fazer
do que obedecer.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
Cena 6
FILHA (Abrindo a porta abruptamente) - Pai, você não pode aceitar isso.
MULHER - Vocês falavam tão alto que não se podia evitar de...
PREFEITO - Ah!
PREFEITO - Aí, então, não vou poder evitar que você seja demitido.
DOUTOR - O quê?
MULHER - Demitido!
FILHA - Meu tio, isso é uma forma revoltante de tratar um homem como meu pai!
DOUTOR - Quem se preocupa com o bem-estar da cidade sou eu! Vou denunciar vocês
e cedo ou tarde todo mundo vai saber! É minha obrigação, por amor à cidade!
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
PREFEITO - Amor? Você quer destruir sua principal fonte de riqueza! O homem que age
contra a sua própria cidade é um inimigo do povo.
Cena 7
DOUTOR (Caminhando de um lado para outro) - Não tenho que tolerar essas ofensas na
minha própria casa! Isso não vai ficar assim!
MULHER - Mas Thomas, teu irmão tem poder na cidade, você nada pode fazer.
MULHER - Isso tudo só vai servir para que você seja demitido.
MULHER - Para você é fácil falar, FILHA. Você é jovem, em último caso você pode se
manter. Mas e nós? Vamos ficar outra vez sem dinheiro, sem futuro. A VIDA é assim,
Thomas! Você não vai conseguir corrigir a injustiça do mundo.
Terceiro ato
Cena 1
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DONO DA GRÁFICA - Temos que manobrar com cautela, pois não adianta tirar os que
estão na gestão e não chegarmos ao lugar deles depois. Seria o caos!
DONO DA GRÁFICA - Os senhores não são cautelosos como eu porque não têm nada a
perder. Depois que nos tornamos proprietários temos que ser responsáveis com essas
coisas. Qualquer passo em falso pode ser terrível para os negócios. Quando temos bens,
o importante é protegê-los.
DONO DA GRÁFICA - Hum! Antes de você o jornal tinha um outro editor... que depois
chegou a um alto cargo na Prefeitura...
DONO DA GRÁFICA - Um político nunca deve dizer: desta água não beberei, Sr.
EDITOR.
SUB-EDITOR - Eu?!...
Cena 2
(DOUTOR entra)
SUB-EDITOR - Maravilha!
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR - Pode publicar, já lhe disse. Eles vão ter o que desejam. Teremos guerra, Sr.
SUB-EDITOR.
DOUTOR - Se vocês soubessem o que passei hoje! Foi horrível! Eles queriam que eu
mentisse, queriam que eu participasse de uma palhaçada sem tamanho!
DOUTOR (Sem se deixar perturbar) - Mas eles vão ver ao lerem meu artigo! Agora não
se trata só de encanamentos e de esgotos, entendem? É toda a sociedade que é preciso
limpar, desinfetar.
DONO DA GRÁFICA - Desde que atuemos com moderação, não corremos nenhum
risco. Deus vai estar do nosso lado.
DONO DA GRÁFICA - Sim, sem dúvida. O doutor é o melhor amigo dessa cidade.
DOUTOR (Emocionado) - Obrigado, obrigado, meus caros, meus fiéis amigos. É muito
bom ouvir estas palavras! O meu irmão me tratou de modo bem diferente. Mas ele vai
pagar! Cuide bem do meu artigo, Sr. EDITOR. Até a vista, meus amigos, até a vista!
(SAI)
Cena 3
DONO DA GRÁFICA - Sim, enquanto ele se limitar ao assunto das águas. Mas se quiser
ir além, não será prudente segui-lo.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
SUB-EDITOR - Vamos deixar que publique seu artigo e aí vemos as oportunidades que
aparecem.
EDITOR - Você conhece alguém disposto a nos adiantar o papel e os gastos da gráfica?
Cena 4
EDITOR - O prefeito?
DONO DA GRÁFICA - Sim, quer falar com a gente na surdina. Não quer ser visto.
(entra Prefeito)
EDITOR - Relatório? Ah, sim, ele menciona o relatório no artigo que escreveu.
PREFEITO - Ah, então os senhores já estão BEM a par do assunto. E mesmo assim vão
publicar?
PREFEITO - E não serão poucos os sacrifícios que a cidade vai ter de suportar.
SUB-EDITOR - A cidade?
DONO DA GRÁFICA - Mas não compreendo... São os acionistas do Parque das Águas...
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
EDITOR (Erguendo-se com vivacidade) - Sim, mas não há de ser a cidade que...
DONO DA GRÁFICA - Humm...Aos poucos vemos que as coisas tomam um rumo bem
diferente...
PREFEITO - E o pior é que a Estação Balneária ficará fechada durante pelo menos uns
três anos.
PREFEITO - Imaginem os senhores se, depois de tudo, virá alguém procurar nossa
Estação e nossas águas? Depois de sair no jornal que nossas águas estão poluídas, que
vivemos num terreno podre, que toda a cidade está...
SUB-EDITOR - Será que tudo isso não passa de uma simples fantasia do doutor?
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
PREFEITO - Meu irmão? Onde, onde? Onde ele está? Ele não pode me ver aqui. E eu
ainda preciso falar várias coisas com vocês...
PREFEITO - Mas...?
PREFEITO - Está bem. Mas vejam se ele não fica muito tempo.
(entra no barril)
Cena 5
DOUTOR - Está bem, está bem, meus amigos. Voltarei daqui a pouco. Voltarei duas, três
vezes se for preciso. Uma causa tão grande! Não se pode ficar parado quando o que está
em jogo é a salvação da cidade!
(Entra MULHER)
MULHER - Não me levem a mal: venho buscar o meu marido. Sou uma mãe de família!
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR - Eu aqui resolvendo o assunto mais importante da cidade e você veio aqui
fazer o quê? Tá de TPM?
MULHER - Sr. EDITOR, quero que saiba que está nos causando um mal gravíssimo,
arrastando o meu marido para as lutas políticas, tirando-o da família.
MULHER - Certamente que sim! Sei perfeitamente que você é o homem mais inteligente
da cidade, mas, por outro lado, Thomas, é o que se deixa enganar com mais facilidade...
(à equipe do jornal) O senhores sabem que ele será demitido se este artigo for publicado?
DOUTOR (Rindo) - Ha, ha, ha! Que experimentem! Pode ficar tranquila, MULHER,
porque eu tenho a meu favor a opinião pública. Catarina, volta para casa, cuida dos teus
afazeres e deixe-me tratar dos problemas. (Pára diante do chapéu do Prefeito) Mas... Mas
o que é isto?
DOUTOR - Vejam só, temos aqui um emblema da autoridade. (Segura com precaução o
boné do prefeito)
DOUTOR - Ah! Compreendo, ele veio oferecer um suborno! Ha, ha, ha! Mas é claro que
inutilmente! E, ao me ver chegar... (Desata a rir) Escapuliu-se, Sr. DONO DA GRÁFICA?
DOUTOR - Escapuliu-se deixando o boné e… Peraí! Peter não é de fugir. Mas o que
fizeram dele, afinal? Ah. Já sei, deve estar aí dentro. (DOUTOR põe na cabeça o boné do
prefeito e aproxima-se do barril onde desapareceu o Prefeito, dá algumas batidinhas e
em seguida o abre)
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
Cena 6
DOUTOR - Você deve me respeitar, meu caro Peter. Agora sou eu a autoridade.
PREFEITO - Tire o boné, já disse. Você vai se complicar! Não se esqueça de que é um
boné oficial, protegido pelos regulamentos.
DOUTOR - Eu sou o chefe da cidade, entende? Você veio lutar contra mim às escondidas.
Mas não vai conseguir nada! Amanhã vamos fazer a revolução! Tenho ao meu lado todas
as forças populares. Somos invencíveis! EDITOR e SUB-EDITOR farão da Voz do Povo
a nossa voz, e o DONO DA GRÁFICA marchará à frente da Associação dos Pequenos
Proprietários de Imóveis.
DONO DA GRÁFICA - Não, o Sr. EDITOR não é tão louco para arruinar seu próprio
jornal só por causa de uma fantasia...
SUB-EDITOR - Nem eu, depois que o Sr. Prefeito teve a gentileza de dar amplas
explicações sobre o problema...
DOUTOR - Não se atrevem? Que conversa é essa? Não é o senhor que manda no jornal?
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DONO DA GRÁFICA - Sim, senhor. Se seu artigo fosse publicado seria uma verdadeira
ruína para a nosso povo.
DOUTOR - Tô passado!
PREFEITO - Meu boné! (DOUTOR coloca o boné em cima da mesa. Prefeito recolhe
com vigor)
PREFEITO - Não durou muito a sua autoridade… (Tirando do bolso um papel) Publique
esta nota oficial. Isso bastará para a população. Este sim é um artigo de verdade.
DOUTOR - E o meu artigo, não? Acreditam que podem me calar, afogar a verdade? Não
é tão fácil como pensam. Sr. DONO DA GRÁFICA, por favor, mande imprimir
imediatamente. Eu pago! Faça uma tiragem de quatrocentos... não, quinhentos
exemplares.
DONO DA GRÁFICA - Nem por todo o ouro do mundo permitirei que minhas máquinas
imprimam seu artigo, Doutor. Não podemos ir contra a opinião pública. Deus me livre!
DOUTOR (muito revoltado) - Então eu vou convocar uma grande assembleia popular. É
preciso que todos ouçam a voz da verdade.
DOUTOR (Furioso) - Eu vou dizer por que: é porque nesta cidade não há homens; há
somente pessoas que, como você, só pensam nas suas famílias e nem um pouco na
comunidade.
MULHER (Pegando-o pelo braço) - Nesse caso, eu vou lhes mostrar que uma... Uma
pobre mulher pode, às vezes, valer tanto ou mais do que vale um homem. Agora, Thomas,
estou contigo!
DOUTOR - Bravo! Catarina! É muito importante que as pessoas conheçam o meu artigo.
Nem que eu tenha que percorrer a cidade com um tambor e lendo em todas as esquinas.
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
Quarto Ato
Cena única
(Grande assembleia)
SEGUNDO CIDADÃO - Ainda não sabe? O DOUTOR vai fazer uma conferência contra
o prefeito.
TERCEIRO CIDADÃO - Agora tão de pinimba. Mas o doutor é que tá errado. O jornal
falou!
HOMEM (Em outro grupo) - De que lado a gente deve estar, nesta história toda?
MULHER (Comovida e nervosa) - Eu sei, eu sei... Por favor, Thomas, não se exalte!!
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DONO DA GRÁFICA - Chamado pela confiança dos aqui presentes, aceito esta
importante tarefa. (é aclamado)
PREFEITO - Sugiro, para o bem da Estação Balneária e para o bem da cidade, que a
assembléia não autorize o cidadão que a convocou a ler o seu relatório ou mesmo emitir
sua opinião.
VELHINHO - Às panelas!!!
DOUTOR - Falsos?!...
DOUTOR - Então a assembleia não me autoriza a falar sobre o Parque das Águas?
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
BÊBADO - Isso mesmo! Vamos falar sobre outro assunto. Eu sou um contribuinte! E por
isso tenho também o direito de dizer a minha opinião! E estou plenamente, perfeitamente,
incrivelmente convencido que…
(Expulsam o bêbado)
DOUTOR - Existem questões mais graves sobre as quais gostaria de falar. É uma grande
descoberta que fiz nestes últimos dias: O povo é apenas massa de manobra dos poderosos!
DOUTOR - Os que governam este lugar nos envenenam mais a cada dia! O que eles
querem é que vocês permaneçam ignorantes, não conseguem ver isso? Um povo
contaminado e iludido é mais fácil de controlar!!!!
(Grande alvoroço. A maioria dos assistentes grita e bate panela. Muitos se divertem com
a situação. DONO DA GRÁFICA faz soar a campainha e pede silêncio. EDITOR e SUB-
EDITOR falam, ambos, mas não se ouve o que dizem. Momentos depois o silêncio se
restabelece)
(novo tumulto)
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR (Explodindo) - Ninguém pode impedir que eu diga a verdade! Vou procurar
os jornais das outras cidades! Todo o país ficará sabendo o que se passa por aqui!
DOUTOR - Amo tanto minha cidade que não posso aceitar que estejamos todos vendendo
veneno como se fosse remédio.
EDITOR (Berrando mais alto que os outros) - A pessoa que ataca desta forma o bem
comum é um inimigo do povo!
Quinto ato
Cena 1
(Gabinete do DOUTOR. Bolinhas de papel por todo lado. o DOUTOR pega uma delas)
MULHER - Pois vai encontrar um monte! Quebraram todas as vidraças da casa! Ah,
chegou uma carta para ti, Thomas.
MULHER - De quem é?
DOUTOR - São todos uns covardes. Todo mundo controlado pelos ricos, que mandam
nos políticos e na imprensa.
CENA 1 A
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
MULHER - Demitida!
FILHA - A Diretora disse que não podia fazer nada. Que depois que o papai foi
considerado inimigo do povo ele se tornou um fora-da-lei...
PREFEITO - Você tem alguma dúvida? E a partir de hoje não terá um cliente sequer nesta
cidade!
PREFEITO - Acho que você deve sair da cidade por uns tempos. Se, mais tarde, depois
de uns seis meses de reflexão, tendo pensado tudo muito bem, você escrever um artigo
no jornal reconhecendo que estava errado… Talvez o Conselho o reintegre ao seu posto.
PREFEITO - A opinião pública, meu caro Thomas, é uma coisa muito relativa, varia
muito, compreende? E, além disso, para falar com franqueza, o que importa é o seu
desmentido mas compreendo que você não esteja assim, tão preocupado com o futuro de
sua família, não é mesmo?
PREFEITO - Então o velho nunca lhe disse que sua fortuna será destinada a sua mulher
e à sua filha? E que você teria todo esse dinheiro em usufruto?
DOUTOR - Não! Ao contrário. Ele vive reclamando de barriga cheia! Tens certeza do
que está dizendo, Peter?
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DOUTOR - Santo Deus! Neste caso está assegurado o sustento e o futuro de Catarina e
de minha filha! Como esta notícia me deixa feliz!
PREFEITO - Calma, Thomas. Ainda não está seguro! O Leitão pode muito bem anular o
testamento...
DOUTOR - Não, Peter, ele não fará isso. Ele esteve aqui e eu percebi que ele estava muito
contente vendo que eu enfrentava a você e seus amigos.
PREFEITO - Ah! Então foi esse o preço que cobrou para figurar no testamento do
rancoroso LEITÃO?
DOUTOR (Quase sem voz) - Peter, como pode pensar isso, você é o ser mais execrável
que jamais encontrei na vida.
PREFEITO - Não há mais nada para conversar, Thomas. Sua demissão é irrevogável.
Temos agora uma arma muito poderosa contra você. (Sai)
Cena 2
FILHA (Na porta) - Papai, o vovô está aqui e quer falar contigo.
DOUTOR - Claro. (Vai até a porta) Entre, meu sogro. (Entra LEITÃO)
LEITÃO - Coisa muito melhor! (Saca um volumoso envelope, abre e mostra um maço de
documentos) ações da Estação Balneária! Comprei tudo o que consegui, enquanto tive
dinheiro.
DOUTOR - Mas meu sogro, o senhor se esquece do meu relatório sobre as águas da
Estação Balneária?
DOUTOR - Eu faço o que posso, meu sogro. Mas todos enlouqueceram nesta cidade.
LEITÃO - Ontem você disse que as piores imundícies que infectam as águas vinham do
meu matadouro. Se isso fosse verdade, meu avô, meu pai e eu seríamos há quase cem
anos a grande praga da cidade. Você acha que posso tolerar semelhante desonra sobre o
meu nome?
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
LEITÃO - Absolutamente! Eu prezo muito o meu nome e minha reputação. Será você,
meu genro, quem vai limpar o meu nome.
DOUTOR - Eu?
LEITÃO - Sim, você! Sabe você com que dinheiro eu comprei estas ações? Não, você
não pode saber. Pois bem! Foi com o dinheiro que Catarina, Petra e os rapazes deveriam
herdar, um dia, quando eu morresse.
DOUTOR (Com violência) - Como! É a herança de Catarina que o senhor emprega dessa
forma?
LEITÃO - Sim, todo esse dinheiro está investido na Estação Balneária. E agora eu quero
ver se você é realmente tão louco assim... Se vai continuar espalhando por aí que o lixo
que infecta as águas vem do meu matadouro. Pois divulgar estas mentiras significa
prejudicar os interesses diretos de Catarina, e sua filha também. Se você insistir nessa
loucura, esses papéis vão virar pó!
DOUTOR - Mas, maldição! A ciência deve nos dar uma saída… Pode até ser que eu
esteja errado. Pode ser até que tenham razão! É pura fantasia. Se isso lhes convém... Não
disseram que eu sou o inimigo do povo?
LEITÃO - Se é mentira ou verdade, isso é contigo. O que interessa é meu nome estar fora
disso.
DOUTOR - E se eu disser que não? O que o Senhor vai deixar para CATARINA?
LEITÃO - Nem um vintém. Você tem duas horas para me responder SIM ou NÂO.
Cena 3
EDITOR - Nós compreendemos que depois da nossa atitude de ontem, o senhor deva
estar chateado conosco.
DOUTOR (Faz cara de nojo) - Atitude! Vocês foram um bando de fí de uma égua!
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
DONO DA GRÁFICA - Mas por que o senhor não nos disse nada? Bastava uma palavra
ao EDITOR ou a mim.
SUB-EDITOR - Ou a mim.
EDITOR - O senhor tem que entender que há duas maneiras de explicar publicamente
este negócio.
DOUTOR - Claro! Se eu não der dinheiro, o jornal vai denunciar o negócio de forma
terrível, desonesta!
DOUTOR - Pois, então, vão procurar a sua no esgoto. (Corre pelo gabinete atrás dos
dois) Ah! Vamos ver qual de nós é o animal mais forte.
Cena 4
DOUTOR – Eu conto mais tarde. Agora tenho outra coisa a fazer. FILHA, mande essa
menina ir procurar o seu avô, agora mesmo. O recado é bem simples: Não, não e não!
(FILHA sai) Pode limpar o fiofó com os papeis.
MULHER – Papeis?
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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final
MULHER – E o que vamos fazer? Não temos mais casa, nem fonte de renda!
DOUTOR – (Tirando o nariz de palhaço e assumindo uma postura ereta, o que todos
os atores da peça imitam, subindo ao palco) Vamos fazer teatro! A gente junta um
bando de gente fudida e desajustada, uns malucos, uns deprimidos, uns esquisitos, gente
criativa... E aí quem sabe um dia a gente apresenta no (diz o lugar onde a peça está
sendo apresentada nesse exato momento)... A gente passa o chapéu no final, vai que
entra algum dinheiro... É uma maneira de desalienar nosso trabalho. A gente vai mandar
no próprio tempo, e poder trabalhar com criatividade e arte, já pensou? (vai saindo)
PETRA vai à frente do palco e puxa uma música. O público é chamado a cantar
junto
FIM
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