Anais - II Reuniao de Antropologia Da Sa PDF
Anais - II Reuniao de Antropologia Da Sa PDF
Anais - II Reuniao de Antropologia Da Sa PDF
Resumo:
1
Graduada em Ciências Sociais (2017) pela Pontifica Universidade Católica do Paraná - PUCPR.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde
algum histórico pessoal e/ou familiar de dependência química – seja ela lícita e/ou
ilícita – como crack, cocaína, maconha, tabaco e álcool, além de, problemas
psicológicos como a depressão.
Pai nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome, vamos nós
ao vosso reino (...). Amém.
Por ser um elemento chave dos rituais daimistas os hinos serão aqui
trabalhados como uma ferramenta de transmissão de ensinamentos e que sob o
efeito da bebida funciona como instrumento de mudança de comportamento,
posteriormente, mudança de visão de mundo principalmente para aqueles/as que
estão ingerindo a bebida com a intenção de se libertar da dependência
química/alcóolica. A dependência é entendida como uma condição em que o/a
sujeito está iludido. A ideia de ilusão, por eles estabelecida, é um estado onde não
há consciência divina, e que, uma vez estabelecida essa consciência, o sujeito
estaria liberto como no caso de José2(35):
2
Nome fictício em respeito à integridade dos entrevistados e das entrevistadas.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde
Eu sou, eu sou, eu sou o seu doutor, / Trazendo o remédio pra curar a tua dor. / A tua dor foi
você quem criou / Eu trago o remédio pra curar a tua dor. / Eu venho de branco, trazendo o amor, /
Te entrego o remédio e levo a tua dor. / Eu venho, eu venho, eu venho de verdão, / Trazendo a
alegria e deixando em tuas mãos. / Nesta doutrina, você vai encontrar, / Paz, amor e alegria e tudo
que te faltar, / Estando nesta linha / Nada vai te atrapalhar3.
Eu te dou, eu te dou / é com carinho e com amor. / Eu te dou, eu te dou / é com carinho e com amor.
/ Quem mandou, quem mandou, / foi a divina luz de amor. / Quem mandou, quem mandou / foi a
divina luz de amor. / Eu te digo para ti / E para os outros tu dizer. / Eu te digo para ti / E para os
outros tu dizer. / Quem estiver dormindo acorde / que o tempo já chegou, / aquele que ficar dormindo
/ fica sem ter a luz de amor.
3
Hino coletado durante os rituais e verificados em site da Doutrina.
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suportava ficar perto dele...meu pai quis a mudança dele...o daime é pras
pessoas que querem mudar...
Segundo ela, sua família conheceu o Céu da Nova Vida através de seu tio,
também com histórico de dependência química, o qual tinha uma filha com o mesmo
problema, e indicou a casa para seu pai que fazia uso de álcool e drogas (não
especificadas). Há aqui a ideia de irmandade muito comum nas esferas religiosas
sendo ainda mais habitual na doutrina do Santo Daime pois é entendido que há um
Pai em comum (Deus), uma mãe (Virgem Maria) e ainda um irmão-mestre (Mestre
Irineu). Por isso, na casa as relações de consanguinidade, quando há, são
reiteradas através da doutrina e indicadas como melhoria da saúde - física e
espiritual, pois "quando alguém da família adoece, todos adoecem".
(...)
Eu vou entrar nessa estrada / Com amor no coração / Que trago a verdade pura / Para ensinar os meus irmãos /
Para ensinar os meus irmãos / Para todos aprender / Para que todos enxerguem / Todos possam compreender.
O General Juramidam / Os seus trabalhos é no astral / Entra no reino de Deus / Quem tem força Divinal / Este
Reino excelente / É para todos meus irmãos / Os que forem obedientes / E limpar seu coração / Neste Reino de
meu Pai / É para mim com todos entrar / Os que obedecer os ensinos / E depois que se humilhar / Este Reino de
Cristal / É um poder superior / Meu Pai quer seus filhos limpos / Pois Ele é o Rei do Amor.
Eu usei de tudo, as drogas que mais usava assim, que era diariamente,
era maconha, cocaína e o álcool né, diariamente e usava, assim,
esporadicamente outros tipos de drogas dentre elas crack, lsd enfim...isso
num período mais ou menos de 10 anos (...) foi neste trabalho (pronto-
socorro) que eu consegui, realmente, alcançar o despertar da consciência e
me libertar dessa mazela (...) tendo em vista que o daime ele é um espelho
do nosso interior... a gente se depara, literalmente, com todos aqueles
demônios que a gente ta alimentando através desse comportamento
doente, inconsciente(...)... foi bem difícil foi bem forte, mas ao mesmo
tempo que eu tava vivenciando toda aquela experiência tenebrosa que era
minha realidade, já sentia um conforto no coração, uma luz no fim do
túnel...sabia que aquilo tava sendo o meu processo de libertação..(...)
quando eu saí daqui (Céu da Nova Vida), ainda tava na energia do
trabalho, tava na força do daime... as coisas elas... não tinham ainda tanta
clareza, mas depois, no dia seguinte, quando acordei, eu vi que era uma
nova pessoa, sabe?....(... ) porque a primeira coisa que fiz quando cheguei
na minha casa daqui foi jogar toda droga que tinha lá fora...a primeira coisa
que fazia quando acordava era fumar maconha, então no dia seguinte
acordei, levantei, lavei meu rosto, tomei café... coisa que há anos que eu
não fazia... realmente assumi uma nova vida...vi realmente que tava
livre(...) (Marcos,33)
Quem procurar esta casa / Que aqui nela chegar / Encontra com a Virgem Maria / Sua saúde Ela dá /
(...) / Aqui dentro desta casa / Tem tudo que procurar / Seguindo o bom caminho / Fazer bem, não
fazer mal.
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(...) são muitas coisas que mudaram, sabe...(...) eu vim buscar o daime a
principio por causa da dependência química, né?! e percebi que isso era só
um detalhe... a ponta do iceberg...realmente o processo de cura... ele é
muito mais profundo,né...o que eu adquiri aqui todos esses anos tomando
daime... entendimento, compreensão, paciência, tolerância, sabe?! coisas
que realmente eu não tinha,e hoje se tornaram valores morais que me
servem né?! não só aqui dentro da Igreja mas na minha vida ...mas foram
vitórias grandiosas (...) sou extremamente grato tenho consciência que
devo a minha vida a esse trabalho... (Marcos,33)
Além do trabalho ser uma metáfora para o trabalho espiritual, ele enquanto
atividade produtiva é valorizado pelos participantes, até porque segundo Marcos,
“nunca vi pessoas harmonizadas, alegres, trabalhando pra utilizar uma droga” já que
“o daime exige trabalho constante interno e externo”.
com o daime, além de se abster das químicas concebe a bebida também como
responsável por suas mudanças:
Considerações finais:
Desde que foi liberada para uso religioso pelo CONAD, é vedada a
associação da ayahuasca às práticas terapêuticas. Sendo assim, as curas são
incorporadas à interpretação do ritual, sendo associadas a cura espiritual e
afirmadas conforme as narrativas e associando a experiência com o daime,
enquanto uma experiência de reviravolta, fazendo com que os (ex) dependentes
químicos possam enxergar suas vidas a partir de um outro ângulo, abandonando o
vício, iniciando uma Nova Vida.
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Resumo
Introdução
O debate que proponho a seguir decorre de pesquisa antropológica no
interior da SERVOS (Sociedade de Empenho na Recuperação de Vidas),
composta pelo complexo terapêutico das salas de ajuda mútua e Comunidade
Terapêutica Fazenda do Senhor Jesus, no Distrito Federal. Instituição privada,
há 30 anos a SERVOS possui uma diretoria formada por familiares daqueles
identificados como dependentes químicos.
É inspirada em 12 Passos de Alcoólicos Anônimos e Amor Exigente,
mandamentos da modelo terapêutico da ajuda mútua e cartilha para
recolocação de limites por parte da família, respectivamente. Ambos são
conhecimentos não acadêmicos produzidos no século XX, nos Estados Unidos
e com notável popularidade. Em termos gerais, no interior do tratamento da
chamada dependência química, a metodologia dos 12 passos está axiada em
princípios espirituais, psicológicos e comportamentais e supõe a obtenção de
mulheres são mais difíceis de “entrar no tratamento”, uma vez que não seriam
afeitas a “aceitar ajuda” e, diferente dos homens, “sofrem de auto
comiseração”. Sendo assim, injunções de gênero produzidas no universo de
pesquisa apontam para um comportamento diferenciado por parte das
mulheres, o que indica a importância de uma observação atenta às
especificidades no cuidado das mulheres no universo da adicção química.
Metodologia de pesquisa
A pesquisa na SERVOS iniciou-se em 2014 e entre janeiro e agosto
realizei a primeira fase do trabalho de campo, ainda não voltado para a
questão que ora me ocupa. Participei como observadora das reuniões dos
grupos NATA (Núcleo de Atenção aos Toxicômanos e Alcoolistas) e NAFTA
(Núcleo de Atenção aos Familiares de Toxicômanos e Alcoolistas), entrevistei
participantes de ambos os grupos e visitei a CT, unidades masculina e feminina
em dinâmicas promovidas por voluntárias, quando realizei entrevistas com
residentes.
Então interessada em compreender a inclusão de comunidades
terapêuticas no financiamento federal de tratamentos para a dependência
química, analisei como os saberes terapêuticos vernaculares produzem uma
síntese do pensamento do cristianismo laico em sinergias morais com o
Estado, ambos interessados na transformação das relações pessoais e não na
transformação de estruturas sociais (Melo, 2016). Em 2017, desde que retomei
o campo, tenho conduzido meus interesses de pesquisa acerca na análise das
aludidas dificuldades do tratamento com as mulheres, no interior e além do
contexto ora abordado.
Nas duas salas do NATA, a de “triagem”, de “adictos na ativa” e “na
perseverança”, daqueles “em recuperação”, cerca de 80% da frequência é
masculina. Nas salas dos familiares das três categorias de adicto (“ativa”,
residente, “perseverante”), a porcentagem inverte-se. Na CT masculina a taxa
de ocupação é alta, enquanto na feminina é baixa, tendo como parâmetro o
número de vagas oferecidas. Como em outros níveis de frequentação religiosa,
bem como na visita aos presídios, a participação nas salas da família e nas
visitas aos residentes nas duas CT’s é majoritariamente feminina. Assim, é a
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Conclusão
Situar o alcoolismo como entidade nosológica, ainda hoje questão
polêmica, para muitos médicos foi uma decisão mais humanitária do que
científica (Room, 1983). Contudo, se o conceito de doença à princípio isenta o
indivíduo da responsabilidade penal pelo beber desregrado, o conceito impõe-
se como necessidade de tratamento, uma vez assumida a condição.
Enquanto algumas pesquisas apontam para o uso intenso de álcool
entre mulheres como um dado invisibilizado nas pesquisas (Roberston, 1988)
outros dados apontam para um aumento significativo na quantidade de
mulheres com uso problemático de álcool e o outra drogas no mundo ocidental.
Uma das principais preocupações no campo da saúde pública com
essas mulheres está na procriação e cuidado das crianças. O sofrimento
mental que subjaz aos comportamentos compulsivos e destrutivos tem, no
caso da adicção química, uma diferença de gênero notável que é o exercício
da maternidade. Entendo que as mães com um quadro de uso problemático de
substâncias nas camadas economicamente desfavorecidas personificam de
modo dramático o desvio de uma ordem social fundante na era moderna, a que
aloca e hipertrofia as responsabilidades maternas no cuidado da prole.
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Bibliografia
ALBUQUERQUE, José. A. G. 1978. “Ordem social e desordem mental”. In:
FIGUEIRA (org.) Sociedade e Doença Mental. Rio de Janeiro: ED. Campus.
Pp. 195-203.
DUARTE ET. ALL. 2006. “Família, reprodução e ethos religioso: subjetivismo e
naturalismo como valores estruturantes”. In: DUARTE et. all. Família e Religião.
Rio de Janeiro. Contra Capa Livraria. Pp. 15-50.
FONSECA, Cláudia. 2006. “Da circulação de crianças à adoção internacional:
questões de pertencimento e posse”. Cadernos Pagu (26), janeiro-junho: 11-
43.
KNAUTH, Daniela. 1997. “Maternidade sob o signo da AIDS: um estudo sobre
mulheres infectadas”. In: Albertina de Oliveira Costa. Direitos Tardios: saúde,
sexualidade e reprodução na América Latina. São Paulo: PRODIR/FCC – São
Paulo: Ed. 34. pp. 39-62.
LEVINE, Harry G. 1978. "The Discovery of Addiction: Changing Conceptions of
Habitual Drunkenness in America". Journal of Studies on Alcohol 15: 493-506.
MELO, Rosa V. 2016. Crack: doença e família na lógica da ajuda mútua. In:
SOUZA, J. (org.) Crack e exclusão social. Ministério da Justiça e Cidadania,
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Pp. 223-250.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
O seu jeitinho logo faz com que todos estejamos bem à vontade. Rimos
todos e eu respondo: “como não a senhora é a pessoa que mais manda aqui”.
Dona Luiza veio a unidade há quinze dia atrás com queixa de tosse
produtiva, que se estendia por vários dias e não passava com remédios
caseiros. Durante a anamnese ela contou aos alunos que morava no sítio há
muitos anos, foi lá que ela criou os filhos, e que até hoje ela fazia questão de
manter alguns hábitos, sendo um deles cozinhar no fogão a lenha.
- “Os meninos estão todos casados, mas todo final de semana descem
para o sitio, a família toda, e o que eles querem é comer a comida feita no
fogão de lenha. Eu tomei o xarope sim e parei de cozinhar no fogão a lenha por
uma semana, mas está me fazendo muita falta”.
Foram muitas perguntas, feitas pela dona Luzia. E ela vai se colocando
durante todo o tempo.
Dona Luiza continua: “fiz o RX no mesmo dia, mas se ele não chegou
não adianta nada né”!
E a dona Luiza de novo muito direta responde que o marido a trouxe sim
e que ele não tem nada não, pois ele bebe e dizem que quem bebe não tem
nada, em seguida até faz uma piadinha dizendo que o genro já mandou ela
beber também.
Referências bibliográficas
Introdução
1
Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2
Professora permanente do PPGA e do PPGS da UFPB.
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José Ciríaco Sobrinho [Capitão] é líder indígena dos Potiguara e vive atualmente Aldeia Forte
3
(Baía da Traição/PB).
4
D. Maria da Neves Santana é neta de Manoel Santana e filha de Daniel Santana, ambos
foram Cacique-Geral dos Potiguara e foram muito importantes para a organização social
política dessa etnia indígena.
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Neste sentido, o indivíduo sabe que grupo étnico ele pertence, mas para poder
entrar em contato, por exemplo, com outra organização social, instituição de
saúde deverá manter uma interação social, respeitando os aspectos políticos,
econômicos, culturais daquela sociedade, porém sem perder a sua identidade
étnica indígena. Desta forma, o indígena vive num jogo identitário, mantendo
relações num contato interétnico, interagindo, estabelecendo redes de relações
sociais para que possa dar sustentação a sua identidade social naquele
ambiente citadino, num hospital da rede pública, por exemplo.
Embora ele (o indígena) possa ser atendido e assistido por qualquer
hospital da rede pública nas cidades como referendado pela legislação do SUS
e a Constituição Federal de 1988. Entretanto, em muitos casos prefere acionar
sua identidade social como forma de se resguardar e, dessa forma, conseguir
um tratamento de saúde mais eficaz sem ter que passar por um “processo
seletivo étnico” que poderia conotar em algum tipo de “privilégio” e,
possivelmente, desembocaria no campo do preconceito e discriminação.
5
“CGU aponta rombo de R$ 75 milhões na Funasa”. Link:
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cgu-aponta-rombo-de-r-75-mi-na-funasa,78780
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Metodologia
6
Em 2010 o povo indígena Tabajara é oficialmente reconhecido pelos órgãos federais (FUNAI
e SESAI) e também pela sociedade como grupo étnico após a conclusão do Relatório de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Tabajara situada no litoral sul da Paraíba.
7
“Indígenas prendem funcionários da SESAI na PB por melhorias na saúde”. Link:
http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2012/07/indigenas-prendem-funcionarios-da-sesai-na-pb-por-
melhorias-na-saude.html
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Considerações finais
REFERÊNCIAS
LUCENA, Jamerson B. “Índio é índio onde quer que ele more” – uma
etnografia sobre indígenas Potiguara que vivem na região metropolitana de
João Pessoa. Paraíba: Dissertação (Mestrado), PPGA/UFPB, 2016, 242p.
Resumo
1. Introdução
3
Sobre isso ver, por exemplo, Roberto Cardoso de Oliveira (1996) “O trabalho do antropólogo”.
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que dizia que queria ser Outro, era conduzido a ser o Alberto
novamente pela equipe de saúde. Inclusive, disse-me que iria levar
aquele documento ao posto de saúde para que pudesse ser
reconhecido de outra forma, não mais como Alberto. Nesse ponto,
me senti na obrigação de lhe dizer que o documento não surtiria o
efeito desejado por meu interlocutor (será mesmo que o documento
não significou a possibilidade de um Devir, de uma linha de fuga, de
um desejo?). Após nossa conversa, que ficou marcada por esse Outro
que, desde um novo lugar de enunciação contou-me sobre como era
a vida de Alberto, entendi que devia contar para a equipe o que
acontecera nesta entrevista. Quando termino o relato sobre os
efeitos inesperados do TCLE recebo como resposta de profissionais
da equipe uma leitura que codifica completamente sua fala desde o
problema de saúde mental e ao uso de medicação incorreta.
(Fragmento de Diário de Campo)
4
A autora pontua sobre a “distância” que: “é justamente porque não se está no lugar do outro
que se tenta representar ou imaginar o que seria estar lá, e quais “sensações, percepções e
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pensamentos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas
“sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da
feitiçaria” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159). E sobre “comunhão afetiva” se opondo a essa ideia:
“Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar no sistema da feitiçaria não me informa nada sobre
os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifca meu próprio
estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros.” (FAVRET-
SAADA, 2005, p. 159)
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
5
Ver Eduardo Viveiros de Castro (2002) “Nativo Relativo”.
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3. Considerações Finais
pode contribuir para a compreensão tanto das entrevistas, quanto das práticas
no CAPS.
4. Referências Bibliográficas
Nesta apresentação explanarei sobre a pesquisa para o estágio pós-doutoral que estou
realizando no PPGAS-UFSC, com o intuito de incorporar a proposta do INCT Brasil Plural.
Trata-se de explorar a ideia de ciência-rede, a qual tem em vista pensar a inovação
tecnológica a partir da tradição antropológica de pesquisa etnográfica e qualitativa junto a
grupos populacionais, valorizando o investimento nesta forma de produção de
conhecimento, por um lado, e por outro, colocando a própria ciência sob o escrutínio e a
colaboração dos diferentes sujeitos sociais e comunidades.
Para isso elaborei um projeto com linhas bem gerais, com o intuito de entender as
interpretações que os Guarani Mbya têm a respeito do que comumente chamamos de
transtornos mentais, bem como as terapias e cuidados que empregam nesses casos, e
por outro lado, observar se e de que modo as práticas da "medicina tradicional", como
chamam os rituais com uso da ayahuasca, têm dinamizado outras práticas terapêuticas
mbya e suas práticas de autoatenção. Em algumas aldeias do litoral catarinense,
particularmente M’Biguaçu, a incorporação de novas técnicas e elementos rituais foram
Para a realizar este estudo, pretendo debater o projeto com alguns representantes mbya
e provavelmente reorientá-lo, mantendo interesses comuns. A ideia é que sejam
agregados ao trabalho alguns pesquisadores mbya, ou ao menos um, que queiram
trabalhar com esta temática, com a ideia de compartilhar a autoria etnográfica e
multiplicar os objetivos da pesquisa. Assim, talvez, "pesquisa participativa" talvez não seja
a definição mais adequada a esta proposta, já que envolve negociar seu desenho e
implementação de modo empreender uma co-construção explícita, borrar as fronteiras
entre produção e devolução dos dados da pesquisa e amainar, ou talvez dissolver, uma
autoridade exclusivista na etnografia.
Até o momento, além de três incursões a campo, busquei o diálogo através de dois
coordenadores da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC,
o que me remeteu ao atual coordenador da Comissão Nhemonguetá, uma associação de
lideranças guarani dos estados de Santa Catarina e Paraná que atua para garantir seus
direitos nas esferas da saúde, educação, território etc. Embora já tenha iniciado o
processo de co-construção, a pesquisa em si mesma ainda não aconteceu. Assim, não
irei falar de avanços da pesquisa, embora considere estas tentativas como parte do
processo.
Aqui vou me ater a levantar alguns tópicos sobre o que poderia ser uma etnografia no
âmbito de uma ciência-rede, considerando a produção de conhecimento de modo
simetrizante.
!2
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Por conta disso achei que vale a pena trazer para o debate do GT dois pontos relativos a
uma pesquisa etnográfica compartilhada, pensada em sentido amplo, fundamentando-me
nas reflexões de dois pesquisadores indígenas, Linda Tuhiwai Smith, uma maori que
atualmente é professora de educação indígena na Universidade de Waikato, na Nova
Zelândia, e de João Paulo Lima Barreto, um índio tukano do Alto Rio Negro, com
mestrado em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, e que é pesquisador
do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena na UFAM.
Antes, porém, para esclarecer o título desta apresentação, o que estou considerando
como legado malinowskiano é basicamente a ideia de pesquisa em campo prolongada;
convivência com o grupo estudado embutida na definição de observação participante; uso
da língua nativa para tentar apreender a perspectiva do grupo sobre a temática abordada;
registro sistemático e rigoroso das atividades, conversas etc.; bem como, pesquisa e
análise articuladas pelas teorias antropológicas e pela autonomia intelectual.
* * * * *
Vale ressaltar que apesar de ter escrito o livro fundamentalmente para pesquisadores
indígenas e argumentar a favor de que os próprios indígenas façam pesquisa de campo
em suas comunidades e entre seus povos, Smith não descarta a produção dos não-
indígenas na descolonização da produção de conhecimento. E, por outro lado, reconhece
que os índios formados na academia também correm o risco de manter um estilo de
discurso colonizador sobre si, demandando uma atenção e reflexão constante.
Bruce Albert, no final dos anos 1990, já tinha chamado atenção pra esse mesmo ponto,
ligado às críticas postas sobre o colonialismo na pesquisa etnográfica, de que a
objetificação cultural dos povos indígenas não faz mais sentido diante do empoderamento
do movimento indígena atrelado às questões ecológicas mundiais (Albert, 1997). Ele
considera que os antropólogos precisam assumir duas obrigações de âmbito político e
ético: (1) assumir a responsabilidade sobre o conhecimento que produz em relação aos
sujeitos pesquisados; (2) implicar a produção de conhecimentos com estratégias de
resistência indígena em relação às políticas de Estados espoliadoras.
Este autor também aponta para dois problemas ligados a essa prática: Como manter
certa independência intelectual em face às demandas sociais assim colocadas (pois não
se trata apenas de ratificar um discurso político)? Quais seriam as potencialidades
heurísticas de uma relação etnográfica que não se baseia na sujeição política e na
ingenuidade positivista? São esses os tópicos que destaco como cruzamentos
epistemológicos e modos de fazer pesquisa.
Antes de tudo, vale a pena sublinhar o que Linda e João Paulo comentam a respeito da
experiência de fazer pesquisa com seu próprio povo. Seus relatos de são semelhantes.
Eles descrevem o desafio de assumir um papel de conhecedor desde fora e lidar as
críticas internas ao grupo. Linda Tuhiwai Smith, diferente de João Paulo Barreto, fez
pesquisa com mulheres em sua própria comunidade e percebeu como a formalidade das
!4
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
João Paulo Barreto (Barreto, 2017; Barreto e Santos, 2015), diferente de Linda Tuhiwai
Smith, não põe em questão o colonialismo de forma explícita, isto é, não se propõe a uma
crítica do fazer científico. Sendo alfabetizado pelos Salesianos e graduado em filosofia,
sentiu-se estimulado a ingressar na antropologia para estudar os Brancos a partir das
concepções e conhecimentos tukano, da mesma maneira que estes estudam os índios há
séculos. Escolheu pesquisar sobre as práticas de ictiologia no Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia por serem os peixes um agente central na cosmologia tukano.
Tentou realizar a observação participante individual, a metodologia clássica, mas se
deparou com o problema de ter sido afastado do convívio familiar e comunitário desde
jovem para estudar, o que não possibilitava acessar os conhecimentos tukano para
interpretar o que via, a não ser de modo fragmentário. Isso o levou a rever sua estratégia
de pesquisa e chamar seu pai, um especialista em benzimentos, bahsesse, para morar
com ele em Manaus. Na visão de seu orientador, Gilton Mendes, criou-se um processo de
investigação conjunta que não era exatamente o exercício antropológico clássico, pois os
dois se dedicaram a dissecar esquemas inteligíveis dos mitos tukano desde a mesma
referência cosmológica. Neste caso não há concepções de mundo diversas a produzir um
estranhamento da realidade. E tampouco essa era a maneira de obter uma formação
clássica de um especialista tukano, que teria que ocorrer na aldeia, como frisou Ovidio
Barreto, o pai, com um longo processo de preparação que envolve inclusive práticas de
fabricação corporal (Barreto e Santos, 2015). Nesse caso, pai e filho aparecem como
autores nos artigos.
Em sua proposta metodológica, Linda Tuhiwai Smith afirma que o processo de pesquisa é
mais importante que o produto final: deve propiciar respeito, capacitação, educação e
cura do grupo envolvido. Ela distingue dois caminhos interligados no que denomina
pesquisa emancipatória: (1) projetos de ação comunitária, iniciativas locais e pesquisas
!5
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Nos dois casos, deve-se partir de uma abordagem orientada pelas seguintes questões
(Smith, 1999):
Para os pesquisadores não-indígenas, que seria o caso que busco desenvolver, Linda
Tuhiwai Smith descreve como um modo de relação no "modelo bicultural": projeto em que
trabalham pesquisadores indígenas e não-indígenas, modelado e controlado também por
todos, envolvendo um processo político em que os resultados possíveis da pesquisa
devem ser pensados antes de sua realização.
!6
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Linda Tuhiwai Smith não entra muito nessa discussão epistemológica, seus
questionamentos se situam mais na esfera da relação entre pesquisador e pesquisado,
bem como do contexto histórico, político e social mais amplo de produção de
conhecimentos sobre os índios.
João Paulo Barreto tem como horizonte metodológico uma "antropologia cruzada",
instigado por seus mentores Gilton Mendes e Carlos Dias (2009), professores na UFAM.
Seu interesse é desenvolver um conhecimento sobre os Brancos desde os princípios
epistemológicos tukano, associados à sua cosmologia. Esse tipo de experimentos de
tradução e reflexividade, contidos numa antropologia indígena, vem aparecendo em
contextos acadêmicos em várias parte do Brasil, cf. Gallois e colaboradores (2016),
apontando para a emergência de inovações teórico-metodológicas na etnologia indígena
brasileira. Estes autores são favoráveis a uma posição metodológica que esteja entre o
solipsismo relativista, contido na proposta de que cabe somente aos indígenas fazer
etnografias sobre seus povos, e o universalismo objetivista, próprio da ciência colonial.
De outro lado, Bruce Albert (1997) identifica um mal-estar associado a esse estilo de
etnografia em que os antropólogos estão implicados, como uma espécie de conselheiro
intercultural que pretende viabilizar o empoderamento dos povos com que trabalha.
Contudo, sublinha que uma pesquisa delineada por um ética da responsabilidade não se
limita a reproduzir o discurso étnico. Este é o desafio para o pesquisadores não-indígenas
numa proposta de pesquisa descolonizadora.
Vale lembrar aqui as críticas que a antropologia pós-moderna trouxe sobre a produção de
conhecimentos legitimada pela experiência de campo — tomado como um experimento
realista — e validada por estratégias e convenções textuais — especialmente a retórica
de um narrador onisciente e invisível mesclada com descrições em que o autor está em
cena — para tornar coerentes as ambiguidades e a diversidade de significados atribuídos
aos fatos testemunhados ou narrados durante a realização da pesquisa (Clifford, 2002).
!7
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
É curioso contrapor essas críticas a uma carta escrita por Margaret Mead, na década de
1930, traduzida por Mariza Peirano (2002), onde ela orienta um estudante de doutorado a
como treinar um assistente de pesquisa. Ela cita seu assistente balinês, muito eficiente,
que registrava rituais e transcrevia conversas. E sugere que é possível ter um assistente
analfabeto, que não foi seu caso, que poderia ser treinado para observar e relatar
eventos, no esforço de acompanhar ao máximo o que ocorria em vários espaços nas
cerimônias. Ou seja, ela sugere que seja feita uma espécie de pesquisa colaborativa,
porém sem que esses pesquisadores locais assumam uma responsabilidade integral na
produção de conhecimentos. Embora Mead afirme estar convencida do trabalho
cooperativo, na pesquisa que empreendeu em Bali com Gregory Bateson, que eu saiba,
somente os dois assumem a autoridade etnográfica, sem atribuir esses créditos a seus
seis assistentes de campo.
* * * * *
há uma receita pronta de como fazer pesquisa em outros termos, é preciso testar, ousar,
experimentar, se desvencilhar da ilusão de objetividade ligada à autoridade científica do
pesquisador. Acredito que no campo da saúde indígena precisamos estimular e propor
novos tipos de experiências etnográficas que abortem a autoridade suprema do
especialista externo. Enfatizo, porém, alguns elementos que precisam ser retidos do
legado malinoswkiano:
1. a fusão entre teoria e descrição, que é o cerne do método etnográfico, e que não está
de modo nenhum posto em discussão
2. o tempo prolongado de campo, como destaca Albert, é fundamental tanto para
apreender esses novos objetos de pesquisa que despontam no mundo
contemporâneo, quanto para produzir o que na ótica de Smith seriam processos
emancipatórios
3. o rigor descritivo, apesar das múltiplas vozes ou da dialogia que compõe a pesquisa
descolonizadora, é o pilar de uma boa etnografia. Como argumenta Mauss (2010), os
equívocos derivados de observações mal feitas, das ideias pré-concebidas ou dos
excessos de interpretação podem ser reparados, mas a imprecisão é um problema
quase irreparável.
4. reconhecer a capacidade analítico-criativa como ferramenta legitima da produção de
conhecimento antropológico é outro eixo fundamental, que Smith se refere como
"imaginação sociológica", a fim de deslocar teorias, estruturar metodologias
alternativas e novos modos de descrição textual
Bibliografia
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!9
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
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!10
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
!11
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
Neste trabalho pretende-se discutir as implicações e resultados parciais de um
trabalho etnográfico realizado em uma unidade de atenção primária à saúde na
cidade do Rio de Janeiro. A escolha de enfocar o trabalho em uma única
unidade, justifica-se pela possibilidade de realização de uma imersão no
cotidiano desta, mas também de relacionar o funcionamento e história deste
serviço específico com dois outros contextos: 1) o local onde ele está
localizado, o conjunto de favelas do Complexo do Alemão e 2) as políticas
públicas em saúde no campo da atenção básica. O Complexo do Alemão
emerge como espaço privilegiado para esta análise, por ter sido por tantos
anos negligenciado no âmbito das políticas públicas em geral. Ao acompanhar
a rotina desta unidade, em um trabalho etnográfico minucioso, foi possível
aprender sobre as lógicas e experiências de cuidado que se estabelecem entre
profissionais e usuários, mas também lançar luz sobre o contexto e os modos
de vida no Complexo do Alemão e sobre as políticas públicas em saúde. Deste
modo, ao contrário do que se pode presumir, a análise de uma única unidade
não implica em uma etnografia de particularismos desta experiência, mas nos
ensina também sobre contextos mais amplos.
Palavras chave: saúde, atenção básica, etnografia, favelas
Introdução
Neste trabalho, pretendo discutir as implicações e resultados parciais de
uma etnografia realizada em uma unidade de atenção primária à saúde na
cidade do Rio de Janeiro. A unidade de saúde na qual a maior parte da
observação foi realizada localizava-se aos pés do Morro do Alemão, uma das
treze comunidades que compõem o Complexo do Alemão, entre as áreas
consideradas pela administração municipal como “formal” e “informal”,
popularmente chamadas de “asfalto” e “morro”. Mais recentemente, no entanto,
ainda durante a pesquisa, foi transferida para o bairro de Ramos, vizinho ao
Complexo do Alemão, passando a atender parte da população do Alemão e
também parte dos moradores de Ramos. Ou seja, deixou de estar dentro da
1
Doutoranda em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
favela, assim como boa parte dos equipamentos públicos destinados a esta
população. Na mesma época, no final de 2016, outra unidade de saúde
localizada dentro do Complexo de favelas também foi fechada, a Clínica da
Família das Palmeiras, a última a ser inaugurada no Complexo, em 2014. Sua
história diz muito sobre os serviços públicos voltados para a população mais
pobre no Brasil. Atendendo a uma demanda da população de haver uma
unidade no ponto mais alto do morro, para atender as famílias ainda sem
cobertura da Estratégia de Saúde da Família, foi criada a Clínica das
Palmeiras, situada dentro da Estação do Teleférico do Alemão, hoje também
extinto2. Sua construção foi simultânea ao fechamento de uma biblioteca
pública que antes ocupava este mesmo espaço, outra demanda da população
que havia sido atendida há pouco. O argumento da Prefeitura era de que este
seria o único espaço viável para instalação da unidade na área. Então era
necessário escolher, biblioteca ou Clínica da Família? A população não se opôs
à Clínica, uma demanda antiga e tida como mais urgente e deu adeus à
biblioteca. Mas no final de 2016, com o acirramento do conflito armado na
comunidade, junto ao fechamento do teleférico do Alemão e o subsequente
sucateamento das estruturas das estações que abrigavam serviços públicos e
salas para uso da comunidade, a clínica acabou encerrando as atividades
naquele local e suas equipes foram incorporadas a outra unidade, bem mais
distante da área de cobertura. O movimento de “saída” dos serviços de saúde
de dentro da favela, remete as origens das políticas públicas de saúde no
Brasil e a formação e ocupação inicial do Complexo do Alemão, como
demonstro abaixo.
“IDH zero”
A escabiose, no dicionário Houaiss, é definida como “doença contagiosa
da pele causada nos homens por Acarus scabiei ou Sarcoptes scabiei e nos
animais por ácaros diversos, e que se caracteriza por intenso prurido e
eczema; sarna, pereba, pira”. Dotada de forte estigma por se tratar de algo
recorrente em animais que não recebem cuidados, a doença está presente nas
2
Matéria sobre o fechamento do Teleférico do Alemão: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2016/12/21/fechado-ha-3-meses-teleferico-do-alemao-e-exemplo-da-crise-financeira-do-
rj.htm (Acessado em 30/06/2017)
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
3
Trata-se de um nome fictício utilizado para preservar a identidade do médico.
4
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é um índice que serve de comparação entre os países, com
objetivo de medir o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população. O
relatório anual de IDH é elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
órgão da ONU.
5
Ranking do IDH dos bairros do Rio de Janeiro de 2013, disponível em:
http://www.wikirio.com.br/IDH_dos_bairros_da_cidade_do_Rio_de_Janeiro (Acessado em
01/08/2015).
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
6
Em pesquisa coordenada pelo IPEA (2013) é possível observar o processo inicial de ocupação da área
hoje conhecida por Complexo do Alemão onde as condições de vida nesse período ficam evidentes. Há
também uma significativa bibliografia sobre as condições de saúde mais gerais da população residente
na zona da Leopoldina do Rio de Janeiro no período entre os anos 1980 e 2010, que corrobora com o
quadro relatado pelos interlocutores (Valla, 2011).
7
A criação dos SAMDU se deu em 1949, ainda durante a Era Vargas. De acordo com Mercadante (2002:
237): “A importância histórica desse evento decorre de três características inovadoras da iniciativa: o
atendimento médico domiciliar até então inexistente no setor público, embora comum na prática
privada; o financiamento consorciado entre todos os IAPs (Instituto de Aposentadorias e Pensões) e,
principalmente, o atendimento universal ainda que limitado aos casos de urgência”.
8
Conferir o trabalho de Homero Teixeira de Carvalho (1996) sobre a história do GEL e seus
desdobramentos.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
9
Compõem a AP 3.1 as seguintes regiões administrativas: X RA - Ramos (Bairros de Manguinhos,
Bonsucesso, Ramos e Olaria); XI RA - Penha (Bairros da Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil,
Parada de Lucas, Vigário Geral e Jardim América); XXIX RA - Complexo do Alemão (Comunidades do
Morro do Alemão, Morro da Baiana, Nova Brasília, Joaquim Queirós, Itararé, Morro das Palmeiras,
Mourão Filho, Parque Alvorada, Relicário, Vila Matinha); XXX RA - Complexo da Maré (Comunidades do
Parque União, Parque da Maré, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro, Rubens Vaz, Morro do Timbau,
Ramos, Vila do João, Vila Pinheiro, Conjunto Pinheiro, Conjunto Esperança, Conjunto Bento Ribeiro,
Conjunto Nova Maré).
10
Cabe notar que a trajetória política de Mariza é bastante extensa, tendo sido também presidente da
Associação de Moradores do Morro do Adeus e a primeira Administradora Regional do Complexo do
Alemão.
11
Para uma análise sobre o Programa de Saúde da Família e a formação de médicos de família no Brasil
e na Argentina ver Bonet, 2014.
12
Trata-se de um nome fictício utilizado para preservar a identidade do Agente Comunitário de Saúde.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Saúde presente?
Em maio de 2009, foi lançado pela Prefeitura do Rio de Janeiro o
programa Saúde Presente13. Um dos maiores marcos deste programa foi a
13
De acordo com o site da Prefeitura do Rio de Janeiro: “O Programa Saúde Presente marcou o início de
uma nova fase para o atendimento de saúde da população carioca. Lançado em maio de 2009 com o
objetivo de expandir os serviços de saúde a toda população do Rio de Janeiro, o programa tem como
conceito a territorialização da cidade, atendendo regiões até então prejudicadas na gestão de saúde (...)
Unidades que compõem o Saúde Presente: Clínicas da Família; Centros Municipais de Saúde (CMS);
Policlínicas; Centros de Especialidades Odontológicas; CAPS – Centros de Atenção Psicossocial (CAPS,
CAPSad e CAPSi); Unidades de Pronto Atendimento 24 horas (UPA); Hospitais e Maternidades;
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
14
Aplicativo de mensagens para smartphones.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações finais
Etnografar uma unidade de saúde no Complexo do Alemão nos permite
ao mesmo tempo falar de passado, presente e talvez até, do futuro das
políticas públicas em saúde neste local. Afinal, ao que tudo indica, o futuro se
aproxima de algum modo do que foi o passado, serviços de saúde mais
precários, menos profissionais atuando, menos foco na atenção primária e
prevenção e maior distância fisíca do local de moradia da população. E então
podemos nos perguntar, as políticas de saúde funcionam de maneira diferente
para as populações de favelas? Ao pensarmos aqui em como os sujeitos
abordados nesta pesquisa cuidam e são também cuidados, por profissionais e
por familiares, notamos com clareza que há uma grande limitação entre os
projetos possíveis de serem realizados pela população e profissionais que
atuam no Alemão. Ricardo Ayres (2004) nos lembra que o cuidado consigo e
com os outros significa, de algum modo, a realização de um projeto de vida. A
ideia de projeto, ele sugere, parece ser:
um traço constitutivo do modo de ser (do) humano e que estabelece
uma ponte entre uma reflexão ontológica, sobre o sentido da
existência, e as questões mais diretamente relacionadas à
experiência da saúde e da atenção à saúde. (AYRES, 2004, 21)
Referências
Resumo
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) se compõem, junto às residências
terapêuticas, enquanto principal estratégia da reforma psiquiátrica no Brasil.
Com foco em um atendimento integral, visa uma forma de tratamento que
busca reintegrar seus usuários a seus contextos de origem/existência, referidos
pela categoria território. Para isso, procura mobilizar uma diversidade de
recursos e redes, de modo a incluir a rede de apoio – categoria nativa que se
refere àqueles que investem cuidado para seus usuários nos contextos extra-
instituição, sendo estes principalmente familiares – no tratamento. Pretendo
abordar nesse trabalho como se deu a realização da minha etnografia nos
grupos de familiares que ocorreram no Centro de Atenção Psicossocial II “Dr.
Nelson Fernandes” em Araraquara, que realizei do período de novembro de
2016 até fevereiro de 2017 e a elaboração de meu atual projeto de mestrado.
Para isso, pretendo discorrer, em um primeiro momento, sobre os trâmites no
comitê de ética, o contato com a equipe técnica da instituição e demais
necessidades do projeto que envolve a prática da etnografia em uma instituição
de saúde. Logo após, abordo as minhas estratégias para a realização do
trabalho de campo, em meio às expectativas dos agentes da instituição de
saúde e dos familiares dos usuários da instituição frente a um projeto de
pesquisa antropológica.
1. Introdução
Procuro desenvolver neste trabalho2 uma reflexão sobre como se deu
meu trabalho de campo em um Centro de Atenção Psicossocial no interior do
Grifo nosso
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Grifo nosso.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
3. Necessidades do projeto
3
As aspas em torno da palavra ético se referem não a uma falta de preocupação quanto aos
possíveis efeitos que a pesquisa poderia vir a ter sobre vida dos interlocutores, mas sim, a
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
problematização em torno de um tipo especifico de consideração daquilo que seja o ético que
dá-se a partir de um pensamento inicialmente formulado para o campo das ciências
biomédicas, e que posteriormente tende a se aplicar às ciências humanas, o que Duarte (2014;
2015) coloca-se contra.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências
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de Saúde, 2013.
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WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac & Naif, 2010.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
1
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo -
UNIFESP
2
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de Buenos Aires – Instituto de Ciencias
Antropológicas, UBA – CONICET-
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
O presente trabalho surgiu como um diálogo entre duas experiências
etnográficas diferentes, mas interligadas e desenvolvidas na mesma unidade
de saúde. Ambas buscavam entender as possíveis relações existentes entre os
processos migratórios internacionais e a saúde, considerando a complexidade
dos elementos imbricados neste contexto.
A primeira experiência desenvolveu-se no contexto de um estudo sobre
a tuberculose entre os imigrantes bolivianos e bolivianas e a segunda
percorrendo os diferentes espaços de cuidado voltados para os imgrantes
bolivianos e sobretudo bolivianas. A partir do dialogo entre a experiência
etnográfica das duas pesquisadoras, a proposta ‘e refletir sobre o cuidado
voltado à população boliviana por parte das agentes comunitárias de saúde.
Com o foco nessa população, residente na Região Metropolitana de São
Paulo, buscamos entender as implicações que sua presença tinha para a
organização dos serviços de saúde e para o modo como Atenção Primária em
Saúde, por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), realiza o
acompanhamento e cuidado desses imigrantes (Aguiar, 2013; Xavier, 2010).
O principal cenário etnográfico foi o Centro de Saúde-Escola “Dr.
Alexandre Vranjac” (CSEBF), unidade básica de saúde, que se situa no Distrito
de Saúde Oeste, mas atua também em bairros em conexão com a área central
do município de São Paulo, como o Bom Retiro e o Brás (região centro-leste).
Além disso, procuramos circular por outros espaços sociais com os quais
bolivianos e bolivianas se relacionavam, para uma observação ampliada do
modo como essas pessoas se inserem na cidade.
A etnografia como percurso teórico-metodológico nos permitiu ir
conhecendo a temática da migração por meio da perspectiva dos profissionais
aos quais fomos nos aproximando. A circulação pelos diferentes espaços do
Centro de Saúde-Escola Barra Funda acontecendo a partir de conversas com
os profissionais, conforme íamos colocando inquietações, dúvidas e
questionamentos com relação à temática. Desse modo, o recorte de pesquisa
foi sendo construído processualmente e junto com eles.
Os processos de migração, internos e internacionais, suas causas,
efeitos e modos de estruturação representam um campo de estudo
amplamente desenvolvido nas ciências sociais. As abordagens predominantes
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
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Grupo de Trabalho 3
Direitos sexuais e reprodutivos em
narrativas femininas: o meu corpo me
pertence em sua miríade
Coordenadoras: Rosamaria Carneiro (FCE/UnB) e
Giovana Tempesta (DAN/UnB)
Grupo de Trabalho 3
Direitos sexuais e reprodutivos em narrativas femininas: O meu
corpo me pertence em sua miríade
Este GT busca agregar trabalhos que versem sobre os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres, a partir de suas experiências de gestação,
abortamento, parto e puerpério, expressas em narrativas e outras formas de
agência, incluindo relatos de violência em seus variados matizes. Nesse
sentido, se dispõe a refletir sobre o histórico slogan "o meu corpo me pertence"
dos anos 80, mas em sua atualidade, contemplando investigações dedicadas a
questões implicadas nas diferentes formas de viver a maternidade no Brasil e,
eventualmente, em outros países. A ideia é reunir leituras contemporâneas das
temáticas a partir de movimentos de mulheres, feminismos, relatos de
experiência e etnografias que busquem refletir sobre tais temas à luz de
contextos culturais e históricos diversos, urbanos e rurais, envoltos em
percepções biomédicas ou associadas a saberes tradicionais, que explicitem
diferentes contornos de subjetividade feminina, conjugalidade, sexualidade,
corporalidade, arranjos familiares e interação com o Estado.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
1
FCE/UnB; MUSA/ISC/UFBA
2
FFCH/UFBA; MUSA/ISC/UFBA
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
Discutiremos o processo de gestação e as buscas por apoios e cuidados,
em uma vila de marisqueiras e pescadores artesanais, que denominamos
Riachão3. Parte de uma ilha no Baixo-Sul da Bahia, a vila é habitada por quase
1300 pessoas, maioria negra e de baixa-renda. Durante nove meses em campo,
dezoito mulheres que vivenciavam o processo reprodutivo (da gestação ao
puerpério) foram acompanhadas. Este texto é uma reflexão sobre os dados de
campo, onde vimos, desde as práticas contraceptivas até a aceitação da
gravidez, a importância do apoio social, as concepções nativas sobre o corpo
feminino e a responsabilização pela gravidez que recai sobre as mulheres. Da
aceitação até se tornar pública, reforça-se o caráter socialmente constituído da
gestação e a importância que este processo tem na assimilação intersubjetiva
das mulheres. A “barriga” simboliza e solidifica as relações sociais que vão se
estabelecendo ao seu redor enquanto cresce. O homem aparece como
importante sujeito nestas relações e o Estado se revela encarnado no sistema
de saúde, fornecendo cuidados no acompanhamento da gestação, do
desenvolvimento do bebê. O modelo de atenção faz da reprodução um
fenômeno biológico de um corpo que produz outro e está fundamentado em uma
ordem de saber científica, que também é incorporada nas explicações nativas,
em discurso que agrega uma ordem de saber oriunda da prática. Ambos os
conhecimentos interagem de modo dinâmico e complementar, confirmando que
a transformação de um corpo em outro não prescinde de relacionalidades – que
é o que dá conteúdo à reprodução. Diversos tipos de cuidados são acionados
para a condução adequada da gestação e as relações entre os próximos da vida
social, persistem em prevalecer.
3
Os nomes da vila e das pessoas são fictícios, escolhidos em diálogo com os sujeitos da pesquisa.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
uma conversa, “para ela (a mulher) tem várias formas de prevenir e para o
homem só tem a camisinha, e pode estourar”. Todos os outros métodos incidem
no corpo feminino – com exceção da vasectomia, raramente feita. Mesmo na
unidade de saúde local, os programas ofertados para o Planejamento Familiar
são exclusivamente voltados às mulheres, o que resulta no reforço desta
concepção que responsabiliza principalmente as mulheres acerca da ocorrência
da gravidez.
Iara, jovem, branca, de dezoito anos e marisqueira, estava grávida de seu
segundo filho. Casada com Donovan, descobriu sua gravidez com cinco meses.
Ambos não queriam filho. Explicou que apesar do homem fazer o filho, quem é
responsável pela gravidez é a mulher e se ela tivesse se cuidado, não estaria
grávida. Donovan também a responsabilizou pela gravidez. Falou sobre o (não)
uso da camisinha, apontando outras explicações, que não refletiam o medo de
Eduarda sobre a possibilidade de estourar:
“Veja só a situação, analise bem: eu compro tudo, compro remédio, ciclo 21
e injeção. Eu quero engravidar?? Aí as pessoas dizem que o culpado sou eu,
porque eu devia usar camisinha, mas eu vou usar camisinha com minha
mulher de casa? Vai parecer o quê? Que ela é mulher de rua, que é uma
quenga? Ela tá na minha casa. É até um desrespeito, parece que eu tô
desconfiando dela... Eduarda que estava comigo, concordou neste momento.
E ele continuou: Eu falei tanto pra ela. Quando tava com uns dois meses ela
me disse assim, tem alguma coisa mexendo na minha barriga. E eu que sou
muito brincalhão falei, que ela tava com verme. Depois eu refleti, e disse, olhe
pode ser mioma, mas você é muito nova pra ter mioma, com tua idade você
deve estar grávida, você tá prenha! Aí quando eu vi isso eu disse: mas Iara
você me enganou?? Você me enganou, mulher?” (NC).
(Bárbara)
P: E essa barriga? Como foi ela crescendo, e você vendo...
B: Só o peso na hora de andar... É assim, quando ninguém ainda sabe, a
barriga fica normal, mas basta algumas pessoas saber que num instante sai,
aparece logo... parece uma coisa, quando muita gente sabe, num instante sai.
[...] Ai é de boa... Um bocado de gente fica falando...
(Rosa)
R: Porque eu também me achava muito feia... Ai depois apareci com uma
barriga grande... até o dia que eu não contei pra ninguém, eu ainda estava
com uma barriga que dava pra esconder. Tinha pessoas que desconfiou, mas
deu pra esconder pelo menos em casa...
P: E como foi esse processo de aceitação do corpo? De mudança no corpo?
R: As roupas feias. Eu mudei tudo meu. Engordei demais! Eu tinha muita
roupa curta, e ai foi horrível... enjoo... comecei a sentir tudo: sonolenta, as
mão ficavam muito dormentes... pra andar, tudo me cansava.
P: Como foi isso da barriga crescer?
R: Você vai aprendendo a se conhecer. Ai quando eu comecei a contar pras
pessoas, ai fui gostando daquela situação, porque eu não gostava. Ai já via
mexendo, já via crescendo. Aí foi passando mais aquela vergonha. Já
aceitava a minha barriga. Já ria quando eu me via com aquele barrigão.
Enquanto ninguém sabia, eu não gostava, mas quando eu comecei a contar
para as pessoas, ai eu comecei a gostar da criança. Ai eu já comecei a gostar,
já sabia que fazia parte de mim, ai eu não pensei em fazer mais nada para
poder tirar. Entendeu? Não foi assim até os 9 meses.
I: É engraçado. Eu vejo que ela tá dura, mas ela cresce, cresce e eu não
entendo nada. Parece que tem elástico.
A idéia de que a barriga carrega outro ser ganha sentido durante seu
crescimento, que tem em sua constituição uma relação estabelecida com outras
pessoas. Neste processo, o outro ser vai se tornando uma pessoa que se
relaciona com as mulheres e com os demais sujeitos. Dentre os sujeitos, o pai
da criança figura como central. Este ser que está dentro da barriga da mulher é
seu filho, aquele que foi colocado no corpo dela, ainda pequeno. Nas palavras
de Osvaldo: “como um girino”. Esta noção se concretiza na medida em que o
bebê cresce na barriga e começa a se mexer. Isabela demonstra ainda a
importância deste processo e a relação que o pai da criança passou a
estabelecer com ela e sua “barriga”, quando o bebê começou a mexer.
I: primeiro ficava zangada porque ela não mexia. Aí de um tempo pra cá eu
percebi ela mexendo, ai eu ficava tentando mostrar a alguém que ela mexia,
só que ela só mexia uma veizinha... E quando eu falava pra alguém, ela não
mexia mais... Ai eu ficava com raiva... Eu queria que alguém visse aquilo
comigo... Compartilhasse comigo, mas ninguém conseguia vê, só eu... Eu
ficava danada da vida... Uma vez meu namorado conseguiu vê, ai ele adorou!
Começou a passar a mão na minha barriga. Ai ele começou a gostar da minha
barriga também...
P: Por quê? Ele também tinha uma dificuldade em aceitar a sua barriga?
I: É... Não sei... ele não ficava muito bolindo, porque ele também não via
nada... Ele via, mas nunca tinha visto mexer. Ai quando ele viu mexendo, ele
sempre fica olhando se tá mexendo, fica olhando, conversando. Ele gosta de
conversar... Falando: “Minha filhinha, não sei lá o que...” Quando ela mexe,
ele fica olhando: “Eta que vai arrombar a barriga...” A perninha... Ele sente o
pezinho dela...
4
O catador é um espaço, preparado pelo empregador, onde as mulheres se reúnem durante as tardes
para catar piaçava. O espaço pode ser um barracão improvisado ou o fundo de uma fazenda, sempre um
espaço coberto para proteção contra o sol. A catação de piaçava é uma atividade realizada por mulheres
de separação dos fios bons e dos fios quebrados ou ruins, cada tipo de fio serve para uma determinada
função, são vendidos separados com distintos valores.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
As autoras nos sugerem que estas noções estão mais difusas no território
baiano. No entanto, mesmo com semelhanças, este trabalho não mencionou a
associação do sexo com a abertura do eixo feminino, como colocaram algumas
mulheres do Riachão. Observa-se que a constituição da paternidade perpassa o
corpo, desde a fecundação até o fim da gestação – durante a qual é importante
a presença masculina para ajudar no preparo do corpo feminino para o parto. A
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
P: O fato de ser mãe, e ser mãe solteira, o que você acha disso?
R: É ruim, é muito chato. É um vazio que forma em você. As pessoas
perguntam sempre por ele... cadê o pai... Ainda mais que o pai não mora
aqui.... Quando o pai mora, mostra que tem pai mesmo. As pessoas te olham
de outro jeito. Até você mesma... Você quer ter um filho, mas quer ter uma
pessoa, quer estar com a sua vida organizada... Eu fico assim, tenho filho,
mas não tenho uma pessoa, não tenho uma casa.
P: Você acha que os homens querem ser pais?
R: Eles querem ter o filho, agora se eles querem ser pai é que eu não sei. [...]
Ter um filho, todo mundo quer, todo o homem quer ter... agora a
responsabilidade, ai é difícil... “Eu sou pai, eu tenho um filho...” Agora a
responsabilidade cadê?
P: Como é ser pai?
R: Ser pai é ser homem, é estar presente, ali junto. É estar vendo as coisas...
As dificuldades, as alegrias... Tem filho que só fala pai pelo telefone... Eu
quero ter esse prazer, eu quero fazer isso por ele... que eu ligue na hora que
ele está falando... Mas se não, ele não ia saber... Não ia saber das alegrias...
eu estive doente... muito doente... cadê o pai que não está aqui? Isso é pai?
Só porque dá uma pensão? Mas não é...
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. 2000. “Assistência Pré-natal: Manual técnico” - 3ª
edição. Brasília: Secretaria de Políticas de Saúde - SPS/Ministério da Saúde.
BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2009. “Cuidado infantil e construção social da
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Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.
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desigualdades sociais, de gênero e raciais em Salvador da Bahia: «escolhas»
contraceptivas de mulheres «negras» de baixa renda na tensão entre a casa e a
clinica.” Forthcoming in: Annals of 1st International Seminar on “Gender, race,
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Salvador, Bahia, Brazil, December.
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município de Campo Grande, Brasil”. Saude soc.,São Paulo, v.17, n.2, June.
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Atenção Básica.” Dissertação de mestrado, Salvador: ISC.
MCCALLUM, Cecilia. 2008. “Víctimas egoístas: Perspectivas sobre la
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Salvador”. Brasil. In: WADE, Peter, et.al.(Orgs). Raza, etnicidad y sexualidades.
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Colombia. Facultad de Ciencias Humanas. Centro de EstudiosSociales (CES),
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MULLINGS, Leith. 1995. “Households headed by women: the politics of race,
class and gender.” In: GINSBURG, Faye & RAPP, Rayna. Conceiving the New
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
O texto versa sobre as práticas sexuais, gestação, parto e violação dos direitos
reprodutivos das mulheres adeptas da Antroposofia – ciência espiritual suíça –
moradoras da Comunidade da Demétria, na cidade de Botucatu/SP. As
narrativas das Mães Waldorf compõem parte da etnografia sobre a concepção
de cura antroposófica, realizada em 2016, na Saúde Coletiva da Unifesp de São
Paulo. Em meio a essas histórias de vida, proponho refletir sobre como
interagem neste grupo cultural, do ideário do “parto sem dor” dos anos 1950, o
slogan feminista "o meu corpo me pertence", dos anos 1980, e as orientações
espiritualistas e estéticas da Antroposofia na busca do “belo parto”. A
Antroposofia propõe às mulheres de classe média, adeptas desta ciência
espiritual, uma gramática emocional e práticas de controle corporal que
assumem um caráter próximo ao religioso, que evocariam a “coragem” materna.
Durante o sexo, por exemplo, a mãe deveria desejar uma criança capaz de ações
altruístas. Após a fecundação, as gestantes deveriam abdicar de comidas e
bebidas consideradas nefastas. Mas é no momento do parto que os ideários se
coadunam. A Antroposofia sugere que a mãe controle o corpo e seja
protagonista do seu parto, evitando interferências medicamentosas. A dor do
parto deve ser suportada sem anestesia, buscando um “silêncio religioso” e
acolhedor. No encontro dessas mulheres com o parto humanizado do Hospital
da Unesp de Botucatu, surge a frustração e a violência obstétrica.
Introdução
1 RaquelLittério de Bastos, cientista social, doutora em saúde coletiva pela Unifesp de São Paulo,
docente nos cursos de Biomedicina e Farmácia – Faculdade Capital Federal [FECAF/Taboão da
Serra/SP]
2 Os resultados sobre as orientações antroposófica para a gestação e o parto das mulheres do
bairro da Demétria apresentadas neste paper faz parte de uma etnografia maior intitulada “Corpo
e Saúde na Antroposofia: Bildung como cura”, tendo um campo de investigação sobre a
concepção de cura na Antroposofia, composto pelas duas organizações antroposóficas
instaladas na América Latina, especificamente no Brasil, pioneiras fora da Europa: a Clínica
Tobias (São Paulo-Capital) no Ramo Tobias, situado no bairro de Santo Amaro e o bairro
Demétria (Botucatu, interior de São Paulo) no Ramo Jatobá, no período de 2012 a 2016.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
A etnografia
3 A expressão ‘Mãe Waldorf’ é habitualmente usada para nomear as mães que tem seus filhos
cursando escolas antroposóficas Waldorf, independente do grau de adesão à Antroposofia. No
artigo utilizo a expressão de forma mais ampliada, querendo me referir a todas as mães que
tiveram seus filhos segundo as orientações antroposóficas e os educam nas escolas Waldorf.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
4 Zekhry N. Gestação e parto na Antroposofia. Site Weleda [Internet], 2014. Infelizmente esse
conteúdo foi retirada no site, na fase final da edição deste artigo. A referência foi substituída pela
tese “Corpo e Saúde na Antroposofia: Bildung como cura” (2016).
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
relatou que seu parto foi acompanhado por quinze pessoas desconhecidas e que
não tinham nenhuma função direta no procedimento. Para fazer prevalecer os
direitos de paciente, ela procurou antecipadamente um médico que respeitasse
a sua orientação antroposófica. O objetivo era evitar intervenções
desnecessárias e que o médico a ajudasse a conter os abusos profissionais,
principalmente em relação a intervenção medicamentosa. Mesmo assim, não
conseguiu evitar o que considerou uma violência (Tesser, et al, 2015) durante o
parto.
Eu procurei uma médica mais experiente, que já havia
realizado partos em casa, e que me apoiasse na recusa
das intervenções de praxe no parto hospitalar. Na consulta,
ela me apoiou na decisão do parto normal, mas não no
parto domiciliar. Depois, eu pedi também a pediatra para
que não houvesse intervenções, como a prática de pingar
um colírio para evitar a cegueira na criança em caso de
sífilis e o banho que retira o cerume protetor da criança, e
mesmo assim não consegui escapar das intervenções. A
hora do parto foi horrível, havia por volta de quinze pessoas
desconhecidas acompanhando o parto, eu me revoltei,
gritei e questionei a presença de tanta gente olhando. Foi
quando a médica alegou que era tudo “em nome da
eficiência”. (Magnólia)
A experiência do parto hospitalar é descrita como traumática entre as
gestantes da Demétria. Mesmo com alto nível de escolaridade e conhecimento
dos seus direitos sociais, essas mulheres da Demétria são atropeladas pelas
normas e procedimentos biomédicos, que desconsideram suas escolhas e
práticas alternativas de saúde. Para as mulheres da Demétria, conforme vai
ocorrendo a metamorfose corpórea da gestante, mediante dietas e mudança de
hábitos, sobrevém também uma transformação interna espiritual, guiada pela
busca da coragem para o parto perfeito.
Bibliografia
BADINTER, Elizabeth. 2010. “Mèrer, vous leur devez tout! “ In: Le conflit: la feme
et la mère. Flammarions, Paris, 2010.
RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. 2013. “Mas elas são de outro planeta? sentidos
do parto em questão”. In: Anais Fazendo Gênero. UFSC.
O recorte desse campo de estudos prioriza mulheres que criam seus filhos
como as únicas responsáveis por essas crianças, em arranjos monoparentais.
Aqui não cabe questionar o registro ou conhecimento da filiação, mas atentar
para as dinâmicas familiares centradas na figura dessas mulheres mães.
Tomamos o cuidado com a saúde do grupo familiar e a preocupação com
características herdadas ou de cunho genético como um guia para mapear o
acionamento de relações familiares e redes de ajuda mútua.
Neste sentido, existe em paralelo a reflexão que diz respeito à carga que
é imposta sobre mulheres e sua autonomia dentro da construção de uma
família (STRATHERN, 1995), pensando tanto no caráter objetivo de como são
vistas e (re)tratadas na sociedade por assumirem um modo de vida que por
mais disseminado que seja nos tempos atuais, ainda carrega estigmas
ímpares, o que leva a um ao caráter subjetivo o qual informa muito sobre
emoções, sentimentos e sentidos que mulheres mães possuem e projetam
sobre o mundo e seus próprios corpos.
Considero que pesquisas que adotam tais perspectivas adquirem sua
relevância ao pensar contextos de bairros populares envolvendo famílias, e
consequentemente relações complexas entre os indivíduos que ali residem.
Com isso, pensando que a família é uma categoria que está sempre se
reinventando e que é um tema que atrai muitos estudos em diversas áreas de
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
2
Em folheto informativo distribuído pelos Centros de Referência em Assistência Social de
Maceió – AL, texto organizado pelas Assistentes Sociais Adriana Cristina Lins da Silva e
Adriana Barros de Lima, sem ano.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
quando dizia “Eu gosto é de ficar dentro de casa...”, no que seguia relatando
que não confia e que prefere não ter contato com seus vizinhos.
Referências Bibliográficas
1
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, Brasil.
Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail:
[email protected]
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
Anos antes, em uma turnê do Théâtre du Soleil pelo Brasil, Petra Costa
conhece Olivia e Serge, atores da companhia – e futuros personagens de sua
obra. Estes vinham de uma vasta carreira de teatro de improviso, o que
despertou na diretora um grande desejo de parceria. Ao desenhar um novo
roteiro para o festival de Copenhagen, Petra decide convidar Olivia. Porém,
existia um fator extra: ela estava grávida. E o que era pra ser um dia na vida
dela, viraram 9 meses .
Como, então, filmar a jornada psicológica de uma mulher ao longo de
sua gravidez, em sua dimensão profunda, obscura e existencial? Eis o que o
filme se propõe investigar. Um caminho pela fronteira entre atuar e ser, entre
real e ficção, entre roteiro e vida – tal como Olivia encarava em sua vida e, na
gravidez, ainda mais.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
A gaivota
O trabalho em Olivia
ele sobre seu dia, sobre os ensaios, a outra atriz que a está substituindo na
montagem da peça, se alguém perguntou por ela. Serge, visivelmente exausto,
não responde a todas as perguntas e pergunta se pode tomar banho. Nesse
momento, o diálogo gira em torno do pedido de Olivia para que ele a entenda
nesse processo, pois ela está vivendo um presente que diz respeito aos dois,
apesar de apenas ela o carregar. Ela diz estar trabalhando pelos dois, mas que
se sente sozinha e com medo. Serge segue justificando seu cansaço, agora
por um viés financeiro. Fala que precisam de dinheiro para sobreviver e que
apenas ele pode exercer isto no momento. Olivia ironiza seu "discurso de
contador" e diz não pedir que ele deixe de trabalhar – ela tem plena
consciência da necessidade disso – porém, pede sua companhia em atividades
corriqueiras como vê um filme ou conversar. Ao contrário do cansaço de Serge,
Olivia diz estar cheia de energia. Neste momento, ouve-se a voz da diretora do
filme. Ela pede uma variação na cena. Pede por uma Olivia menos severa e um
pouco mais aberta a compartilhar com Serge o que se passa na sua mente e
no seu corpo. Retomam a cena do início, com Serge a perguntando como fora
seu dia. Olivia, chorando e comendo uma banana, responde que terminou as
orelhas e que talvez tenha feito os cílios e terminado o fígado – o que a tomou
muita energia. Fim da cena.
O corpo-dispositivo
como uma máquina. A clássica oposição entre natureza e cultura está no cerne
desta discussão, sendo a biologia um forte fator para a justificação da
estratificação baseada no gênero.
Como o mundo do trabalho esteve historicamente relacionado a um
rompimento com a natureza e exigia esforço para dominar a natureza,
as mulheres, as pessoas associadas à esfera "natural" da família, eram
vistas como dominadas (MARTIN, 2006, p.53)
Azevedo e Arrais (2006) enfatizam o quão prejudicial pode ser esse ideal
de maternidade apresentado como natural e instintivo para mulheres que
buscam satisfação absoluta na maternidade, configurando-se como um dos
responsáveis pela instalação e manutenção da depressão pós-parto.
O início do começo
Nessa jornada psicológica e cinematográfica do processo de gravidez de
Olivia, e da sua impossibilidade de trabalhar, vemos as ambivalências e
complexidades existentes em um âmbito que, muitas das vezes, é apresentado
como uma receita de bolo, cheia de listas e manuais de etiqueta sobre o que
uma mãe deve ou não fazer. A metáfora do Olmo, que significa, em italiano,
uma árvore que cresce incessantemente a partir das suas raízes, e da Gaivota,
um ser que alça voo e baila livre no ar, nos traz a refletir as complexas
ambivalências na experiência de conceber outro ser. Será possível sobreviver
em sua própria pele?
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
REFERÊNCIAS
healthcare providers (Jarecki, 2015), nos conta que, no dia seguinte da cesárea
vivida e indesejada, abriu um arquivo em seu computador, intitulado homebirth
cesarean, e ali o deixou em branco, tendo a certeza de que a ele voltaria
brevemente e com outro intuito.
No que tange a dor é interessante pensar que não se trata da dor física,
da tão temida dor do trabalho de parto, mas de uma “dor emocional” que, antes
do corte no corpo, parece advir de um corte nas expectativas e naquela mulher
como pessoa, em seus projetos e leituras de mundo. Desse modo, bem
diferente do que se vê entre as mulheres que optam por um parto natural, a dor
não advém do parto vivido, fruto das contrações uterinas, da laceração
perineal, suor e lágrimas, mas do parto não experimentado, da ausência, do
não alcançado e/ou de seu vazio. E, em outro sentido, também do corte que,
antes da dor fisiológica, parece advir da ruptura ou da “violação” daquela
pessoa e de suas relações sociais estabelecidas, até então, ao redor daquele
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
parto. Essa dor seria, então, para esse grupo de mães, a “dor da cesárea
indesejada”, alojada justamente no procedimento que se faz, em tese, para
evitar a dor ou sofrimento do trabalho de parto.
O parto domiciliar que termina uma cesárea ou HBC parece lido pelas
mulheres que o vivenciam como uma experiência de “belo parto” fracassada.
Muitos dos relatos encontrados na internet sugerem a dúvida quanto ao que
poderiam ter feito para evitar a cesárea ou a insatisfação com relação ao seu
desfecho, cicatriz e estado psíquico, bem como vínculo com a família e a
criança. Por essa razão, não são incomuns narrativas de isolamento e
distanciamento de grupos de mulheres que viveram um parto em casa,
angústia e negatividade do vivido, mostrando-nos como a ideia de um “belo
parto” pode criar hierarquias e diferenças entre mulheres.
estados pelos quais você passa ou fatos que acontecem com você (não ações
que você realiza)” (Martin, 2006, p. 135).
Referências bibliográficas
_____________. 2014. “De perto e de longe do que seria natural, mais natural
e/ou humanizado. Uma etnografia de grupos de preparo para o parto”. In: J.
Ferreira & S. Fleischer (orgs.) Etnografias em Serviços de Saúde. Rio de
Janeiro: Garamond. pp. 243-265.
JARECKI, C. 2015. Homebirth Cesarean. Stories and Support for families and
healthcare providers. Oregon, Portland: Incisio Press.
Filmes e documentários
Nota
Resumo
Introdução
Metodologia
Por último, é necessário afirmar que os nomes citados neste texto são
reais, como autorizado pelas participantes da pesquisa por meio de Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa
CAEE 64934017.8.0000.8027.
Resultados
“Para você estar num parto, você tem que estar resolvido com algumas questões
suas, senão você acaba levando seus medos e a sua história para aquele
processo”
Discussão
AMANTINO, M. E eram todos pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes
cobrisse suas vergonhas. In: História do Corpo no Brasil. [s.l: s.n.]. p. 568.
JIANG, H. et al. Selective versus routine use of episiotomy for vaginal birth
(Review). n. 2, 2017.
Notas
i http://www.eulivre.com.br/
ii Para mais informações, acesse http://www.mercadosul.org/
iii Devido à necessidade de um ambiente mais acolhedor para as gestantes e
mães, com acesso a banheiros e espaços para as crianças ficarem, em
meados de 2017 a roda mudou de localidade.
iv Mais informações em http://caisdoparto.blogspot.com.br/
v http://www.janetecapiberibe.com.br/noticias-relecionadas/item/985-parteiras-
precisam-integrar-a-sa%C3%BAde-p%C3%BAblica-dizem-parlamentares.html
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
Este trabalho é um esforço preliminar de sistematização de minhas
impressões sobre algumas questões que verifico rondarem o diagnóstico e a
vivência, em mulheres, de um conjunto de condições médicas denominadas de
“trombofilias”. Essas impressões são orientadas tanto pela minha formação e
minha experiência como médica sanitarista e generalista, pesquisadora que se
dedica a investigações sobre moralização, discurso médico e apropriações do
conceito de risco pelo campo da saúde, quanto pela minha condição de mulher
trombofílica, portadora de ao menos dois tipos de trombofilias hereditárias.
Trombofilia é uma predisposição aumentada a tromboembolismo, devida
a fatores genéticos ou adquiridos (GUIMARÃES et al., 2009). Dito de outro
modo, trombofilias são um conjunto de condições de saúde caracterizadas pelo
risco aumentado de situações potencialmente fatais, chamados “eventos
trombóticos”. Devido a mecanismos de coagulação alterados, várias doenças
são comumente associadas a esses eventos, para os quais as pessoas com
diagnóstico de trombofilia têm maior probabilidade de ocorrência. Citam-se:
tromboses venosas e arteriais, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral,
infarto agudo do miocárdio, entre outros.
Em mulheres, além dos eventos descritos, destaca-se o risco
aumentado de perdas gestacionais recorrentes e de outras intercorrências
durante a gravidez e o puerpério. O diagnóstico de trombofilia é, então, uma
causa comum de busca por tecnologias de reprodução assistida na chamada
“clínica de infertilidade” (SILVA SOLIGO et al, 2007). Ainda, o uso de
contraceptivos de base hormonal (CBH - também chamados de
anticoncepcionais) em mulheres trombofílicas funciona como um fator de risco
somado à condição de base, aumentando ainda mais a probabilidade de
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
2 Circunscrevendo essa questão ao Brasil, uma breve observação sobre o número de estudos
publicados sobre esta temática aponta para uma possível lacuna na produção de
conhecimento. Na primeira quinzena de outubro de 2017, ao buscar pelo termo “trombofilia”
entre os periódicos da biblioteca eletrônica Scielo Brasil, sem utilizar quaisquer filtros de
campo, foram recuperadas apenas 54 referências. Ao combinar “trombofilia” com o termo
“gênero”, houve recuperação de apenas uma referência cujo enfoque, no entanto, não aborda
essa questão. Possivelmente, há produções de autores de afiliação institucional brasileira em
outras bases de recuperação de referências mas, de todo modo, esse breve mapeamento
mostra a exiguidade de estudos sobre a temática em língua portuguesa, que podem funcionar
melhor para divulgar informações, seja facilitando o advocacy, seja para subsidiar a formulação
de políticas públicas no Brasil.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
de um corpo que se situa como passível de ser falado para além da função
reprodutiva.
Como mencionei, apesar de eu ter ao menos dois tipos de trombofilias
hereditárias, meu diagnóstico ocorreu, no entanto, somente há 4 anos, após
um dos vários episódios trombóticos que tive ao longo da vida. Portanto, essas
impressões remontam ao início de 2013. No episódio mencionado, apresentei
mais um dentre os vários ataques isquêmicos transitórios (AIT) que tive antes
de iniciado o tratamento por tempo indeterminado com anticoagulantes.
Diferentemente dos demais episódios, tive minhas queixas clínicas valorizadas,
o que permitiu uma breve e protocolar internação numa unidade de cuidados
intensivos (UTI) num hospital da rede suplementar do estado do Rio de
Janeiro.
A distinção desta abordagem para as demais foi que, desta vez, e
escapando ao “protocolo para AIT”, o médico plantonista permitiu uma
anamnese prolongada, que começou com a assertiva: “mas me conte sobre a
sua vida”. Apesar de ser um procedimento que deveria ser habitual para casos
como este, a abertura para investigar tal “caso atípico” desta maneira tem
perdido força no meio médico, sobretudo após as inflexões que a racionalidade
da protocolização impôs à prática clínica (CASTIEL e PÓVOA, 2002).
Ele me perguntou se eu tinha ou não filhos, ao que respondi que não, e
se eu usava contraceptivos orais. Ele se impressionou que, mesmo com 39
anos, eu não tivesse feito uso desses medicamentos. Quando me perguntou o
porquê de não usar anticoncepcionais, respondi que utilizava preservativos,
pois para mim se tratava de uma tomada de posição política feminista. Falamos
brevemente sobre gênero e ele achou interessante meu interesse nesta área.
Ainda, me perguntou se alguma vez eu havia ficado grávida, ao que respondi
que “não que eu soubesse”, pois não havia realizado nenhum aborto até então.
Perguntou por que eu não tinha tido filhos e eu disse que, apesar de ter um
companheiro de longa data, a maternidade, por sua via biológica, nunca fora
para mim um desejo.
Após me pedir licença para estudar na sala anexa, o jovem, bem-
humorado e atencioso médico retornou e me perguntou, então, se eu “toparia”
fazer um conjunto de exames de rastreamento para trombofilias. Antes, porém,
ele quis se certificar de que eu estava ciente dos possíveis desdobramentos
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
narrativas mostrarão o caminho pelo qual o/a participante chegou até ali 4. De
modo geral, as mulheres recorrem aos grupos: 1) após receberem o
diagnóstico de trombofilia; 2) através de uma dentre duas vias principais: a) a
ocorrência de um problema grave de saúde, muitas vezes relacionado com o
uso de CBH; b) uma ou mais perdas gestacionais atribuídas à trombofilia.
Geralmente, os grupos dedicados ao enfrentamento e suporte mútuo de
eventos trombóticos graves, como trombose venosa profunda, e os grupos de
usuários de warfarina apresentam uma narrativa trágica, com um número maior
de relatos sobre o diagnóstico de trombofilia realizado após esses eventos
graves. São comuns relatos sobre perdas de familiares, várias das vezes
jovens, ou relatos pessoais e fotografias que refletem diferentes graus de
restrições cotidianas. Muitas vezes essas restrições se prolongam, seja pelo
evento trombótico, seja pelo uso de anticoagulantes orais, durante meses ou
previsto para toda a vida. Trata-se de uma narrativa de suporte aos
portadores/usuários e, aqui, é interessante ver postagens comuns sobre uma
estética nova a que o corpo (feminino) precisa se encaixar: a existência de
manchas roxas em áreas expostas que, por um lado, integram um estigma que
cerca o uso de anticoagulantes – a existência de hemorragias ou seu risco
iminente; por outro, dão aos corpos femininos anticoagulados uma feição
distante do “padrão de beleza” propalado, o que piora naquelas que
apresentam também o efeito colateral de queda de cabelo.
Nesta primeira via, há diversas postagens que tematizam a banalização
da prescrição de anticoncepcionais e que começam a problematizar as demais
opções contraceptivas. Na maior parte das vezes, percebi que definir outra
opção, além dos CBH, é reconhecida como missão das mulheres trombofílicas
cisgênero. Pouca discussão sobre gênero alcança os posts, bem como sobre o
uso dos preservativos, ainda que haja alguns posts nos grupos de língua
inglesa sobre isso, e neles alguns homens se manifestam a favor de opções
geralmente menos interventoras sobre o corpo feminino.
4 No grupo Factor V Leiden (em língua inglesa), por exemplo, várias mulheres comentam terem
procurado o grupo após a ocorrência de algum evento trombótico, geralmente grave: são os
casos de mulheres que sofreram embolia pulmonar e/ou trombose venosa profunda. Há
postagens recorrentes de pessoas que receberam o diagnóstico e ainda estão em tratamento
com anticoagulantes, perguntando sobre a duração do tratamento e o significado dos
resultados de exames de sangue realizados.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
5 Este termo se refere a CBH que contêm somente derivados sintéticos da progesterona em
sua formulação.
6 O mesmo ocorre com o DIU de base hormonal.
7 Sobre isso destaco a ação de um grupo de ativistas que possui uma página do Facebook
Austrália que integram o grupo Factor V Leiden (em língua inglesa). Os grupos correlatos em
língua portuguesa não percebi essa frequência.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde
Figura 1.
Referências:
BANK, Ivan et al. Social aspects of genetic testing for Factor V Leiden mutation
in healthy individuals and their importance for daily practice. Thrombosis
Research, v.113, n.1, 2004, p.7–12.
G1. 'Me sinto completa', diz mãe que tomou mais de 500 injeções para manter
duas gestações. 12 mai 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/mogi-
das-cruzes-suzano/noticia/me-sinto-completa-diz-mae-que-tomou-mais-de-500-
injecoes-para-manter-duas-gestacoes.ghtml>. Acesso em 08 out 2017.
A Systematic and Critical Review. Appl Health Econ Health Policy, 2017.
doi:10.1007/s40258-017-0318-x
“Eu tenho uma boa genética!”: reflexões sobre a difusão científica entre
homens usuários de testosterona
Lucas Tramontano1
Resumo
Esse trabalho parte de reflexões vindas de meu campo de doutorado em Saúde
Coletiva, no qual analisei 21 relatos de história de vida de homens cis e trans
usuários de testosterona, de diferentes idades, orientações sexuais e
raças/etnias, buscando compreender a relação entre o uso do hormônio e a
construção de masculinidades. Para esse trabalho, faço um recorte relativo a
uma ideia recorrente nas entrevistas, de que a magnitude dos efeitos da
testosterona dependeria da “genética” dos seus usuários. A partir de uma noção
de genética já superada no discurso biomédico mais oficial, que associa um gene
(ou conjunto de) a uma condição biológica específica, meus interlocutores
argumentavam possuir “uma boa genética”, o que favoreceria o desenvolvimento
mais pronunciado da musculatura, ou uma maior “passabilidade” na transição de
gênero. Ainda mais interessante, outros interlocutores fizeram duras críticas a
essa ideia, que consideram disseminada entre seus pares (vale ressaltar as
semelhanças entre esses grupos e os grupos de biossocialidade), argumentando
como a mesma funciona de forma a hierarquizar corpos e sujeitos numa escala
de perfeição genética. Isso aponta para uma nova organização da velha “grande
cadeia do ser” de Arthur Lovejoy, e indica uma atualização contemporânea e
molecularizada de teorias evolutivas que ranqueavam sujeitos entre os séculos
XIX e XX. Com isso, pretendo refletir sobre como se dá a apreensão da noção
de genética e epigenética no discurso popular desses homens, que alternam
entre falas muito técnicas e a manutenção de noções que seriam atualmente
consideradas obsoletas, à luz do processo de molecularização.
1
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM-IMS-UERJ)
1
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
Esse trabalho parte de relatos de história de vida de homens usuários do
hormônio sexual testosterona para diferentes finalidades, coletadas durante
minha pesquisa de doutorado em Saúde Coletiva, defendido em maio de 2017.
A reflexão aqui proposta busca responder a uma pergunta que me acompanhou
durante todo o campo, acerca da naturalidade ou artificialidade do corpo sob
efeito da testosterona. Havia uma preocupação disseminada entre diferentes
grupos sobre os limites do corpo “natural”, e como o uso de um hormônio sexual
parecia borrar perigosamente essa fronteira. O período anterior à minha entrada
no campo foi marcado por profundas reflexões em torno desse assunto, a partir
de uma literatura muito focada na ideia de aprimoramento, frequentemente
apresentado com um tom negativo. Na maioria dos casos, decorria de uma
crítica à prática da indústria farmacêutica de promover, simultaneamente,
patologias, diagnósticos e medicamentos, construindo doenças questionáveis, e
conferindo aos corpos características consideradas quase que sobre-humanas.
Por outro lado, entre minhas fundamentações teóricas também estavam
obras do campo de estudos de gênero e sexualidade em interface com a ciência
e a saúde, em especial os trabalhos das chamadas “feministas biólogas”, nos
quais a distinção natural x artificial era apresentada em termos da falsa dicotomia
entre natureza e cultura. Havia, portanto, uma tendência a defender que a noção
de um corpo natural seria, na verdade, uma consequência de um positivismo
empirista das Ciências Biológicas, que apresentam seus pressupostos e
hipóteses com uma aura de “verdade” absoluta conferida ao corpo e seus
processos, pensados exclusivamente a partir dessa episteme.
Um dos usos mais populares de testosterona objetiva o anabolismo
muscular (as famosas “bombas” das academias de ginástica), o que me colocou
em contato com uma literatura da Sociologia da Esporte focada na construção
do corpo do atleta, seja amador ou profissional. Nesses textos, o corpo de fato
era despido de naturalidade: nada que envolvia o intenso treinamento esportivo
soava exatamente natural, e o corpo do atleta era, consequentemente,
construído em seus pormenores, exibindo performances virtualmente
inatingíveis e características percebidas pela sociedade como sobre-humanas.
Entretanto, quando o problema deixava de girar em torno da insistência
científica na manutenção do binarismo de gênero, apresentando os corpos
2
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
3
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
A testosterona e a genética
Assim, é possível dizer que, para os meus interlocutores, a testosterona
funciona como uma biotecnologia de otimização do corpo. Seus efeitos são
descritos como bastante estáveis, e três principais modificações se repetem em
todos os relatos: o aumento da força física, do desejo sexual e da agressividade.
2
As outras mutações, a saber, subjetivação, expertise somática e economias de vitalidade foram muito
centrais em diferentes análises de minha tese de doutorado. Contudo, por questões de espaço, ater-me-ei
nesse trabalho à otimização, e manterei a molecularização como a episteme prioritária para descrição dos
processos vitais em nossa sociedade. Para maiores detalhes, ver Tramontano, 2017.
4
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Foge ao escopo desse trabalho descrever tais efeitos, mas a percepção uniforme
deles levantou outra questão em campo, não pensada anteriormente. Se a
testosterona tem os mesmos efeitos em todos eles, e constrói um corpo com
uma plasticidade muito semelhante (pronunciado desenvolvimento muscular,
drástica redução de gordura corporal, e alta definição muscular), por que seus
usuários têm corpos muito diferentes? Algum dos homens com quem conversei
exibiam um corpo de enormes proporções, de acordo com o estereótipo do
“bombado” usuário de anabolizantes. Outros, porém, tinham um corpo “seco”, ou
seja, com baixíssimo percentual de gordura corporal, uma evidente definição dos
músculos, mas “pequeno”, sem muito “volume”, para utilizar termos êmicos.
Alguns emagreceram (muito) com o uso, mas dificilmente seriam descritos como
“sarados”, ao passo que outros apenas pararam de engordar. Passei a incluir
essa pergunta nas entrevistas, questionando-os dos porquês da diferença nos
corpos dos usuários3. Tendia a abordar a questão utilizando o exemplo de um
“cara magro” e um “cara gordo”, que começassem a tomar o(s) mesmo(s)
composto(s) de testosterona ao mesmo tempo, nas mesmas dosagens, e pedia
que explicassem as diferenças na modificação corporal obtida.
Foi através desse exercício que emergiu uma noção muito particular de
“genética” no discurso de meus interlocutores. Ao que tudo indica, para eles,
diferentes homens exibirão diferentes plásticas corporais, ainda que sob as
mesmas condições de uso da testosterona, devido a configurações genéticas
individuais. Segundo Sérgio4, “o efeito é, pra mim, muito maior...é que vai
também muito da genética da pessoa”, apesar de não saber explicar melhor.
Existe uma ideia, tratada como óbvia por meus interlocutores, de que há
uma individualização absoluta no código genético, que nos torna únicos. Nessa
perspectiva, a testosterona interagiria com essa essência genética particular,
gerando resultados singulares. O curioso é que essa individualização não era
3
Vale ressaltar que meus interlocutores se apresentavam como estudiosos informais da testosterona, e de
fato exibiam uma expertise somática notável, utilizando termos biomédicos e descrevendo processos
metabólicos com clareza e evidente domínio do tema, maior até do que nos discursos oficiais sobre o uso
não supervisionado de testosterona. Esse ganho de expertise vinha do contato com outros usuários, os quais
constituem um grupo similar aos grupos de “biosocialidade” ou “cidadania biológica”, deixando evidente
a ideia de subjetivação mencionada por Rose (2013).
4
Os nomes aqui citados são fictícios para garantir o anonimato, e os trechos em itálico são transcrições
diretas de entrevistas. Para maiores detalhes, ver Tramontano, 2017.
5
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
5
Nas Ciências Farmacêuticas, a idiossincrasia se refere, grosso modo, a efeitos não previstos no uso de um
determinado medicamento, e não relatados por outros usuários. Seria, portanto, individual, não explicado
pelo mecanismo de ação ou outras características farmacológicas do medicamento.
6
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Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
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Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações Finais
Em suma, a separação entre os iluminados possuidores da boa genética
e os desfavorecidos de genética ruim só poderá ser percebido no cotidiano do
uso. Como destaquei, algo que muito me chamou atenção é que a noção de
genética era bastante “solta” em comparação à precisão das outras
características orgânicas mediadas pela testosterona. Não consegui
compreender se a genética de meus interlocutores era pensada a nível de
cromossomos, ou de genes. Tive a impressão de manutenção de uma ideia um
tanto ultrapassada, a noção de um gene ou conjunto de genes para uma dada
característica, uma visão da genética humana que, como bem argumenta Rose
(2013), foi desacreditada após o sequenciamento do genoma humano. Porém,
no meu campo, permanece a ideia de que haveria algo relacionado à genética –
descrito como uma habilidade, uma aptidão ou um dom, resquício da eugenia do
início do século XX – para algo específico, no caso, a modificação corporal a
partir do uso de testosterona.
Ao invés de elucubrar o que meus interlocutores pretendiam ao falar em
genética, sigo a análise por outro caminho: a genética parece ser o locus
privilegiado de uma essência individual. É preciso considerar que esses
indivíduos estão, conscientemente ou não, desafiando os limites entre um corpo
“natural” ou “artificial”, através do uso de uma molécula produzida pelo corpo
(todo corpo, mesmo entre não-humanos), mas que é, ainda assim, acrescentada
ao organismo. A construção de uma corporalidade ideal por esses homens ataca
diretamente a pretensa distinção entre natureza e cultura. Ao longo de todo o
período em que convivem com a testosterona (para muitos, vitalício depois de
9
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
iniciado), essas dicotomias estarão em xeque. Há, num primeiro olhar, algo de
transgressor no uso da testosterona, por escancarar que nossos corpos são,
realmente, construídos; no caso deles, explicitamente. Não à toa, palavras como
“moldar”, “modelar”, “ajustar”, “adequar” e “construir” o corpo são usadas
profusamente em seus relatos. Porém, em algum lugar, interno, individual,
inacessível e imprevisível, mantém-se uma “essência” de si. Por mais cuidadoso
que alguém seja nessa modelagem de si, a modificação corporal não pode ser
infinita; ela irá esbarrar, inevitavelmente, na “genética” do indivíduo. Guarda-se,
em algum lugar difuso e de difícil definição, uma natureza imutável, e uma
“verdade” biológica, mantendo viva a atomização do indivíduo-valor que Louis
Dumont (1985) descreve, e que David LeBreton (2011) localiza dentro dos limites
da pele. A essência do indivíduo não está mais em sua subjetividade, ou na
robustez moral de seus valores, mas em algo orgânico, microscópico e invisível,
que marca indelevelmente os sujeitos.
Seguindo esse raciocínio, algo mais perigoso se avizinha a partir dessa
essencialidade genética. Ao apresentar as pessoas como possuidores de uma
genética “boa” ou “má”, acaba por se estabelecer um ranqueamento dos
indivíduos, nos quais aqueles de “boa” genética seriam superiores,
organicamente, daqueles infelizes de genética ruim. Há inegáveis vantagens por
ocupar essa posição genética hierarquicamente superior. Essa percepção me
leva a refletir sobre o lugar da noção de susceptibilidade, em consonância com
a ideia de genética de meus interlocutores (uma pré-disposição orgânica), num
mundo molecularizado. Uma vez que é imutável, presente desde o nascimento
até a morte, a “genética” se constitui numa prova cabal de superioridade ou
inferioridade de uns sobre os outros. Sugiro que se trata, portanto, de uma nova
organização da velha Grande Cadeia do Ser, conforme pensada por Arthur
Lovejoy (2005), agora em um momento molecular. Para que essa ideia pudesse
se converter numa hipótese, contudo, seria necessário um aprofundamento com
outras pesquisas, que considerassem o possível cruzamento com determinados
marcadores sociais de diferença, por exemplo. De toda forma, indico essa
possibilidade como algo que merece atenção e enseja maior aprofundamento,
de forma que pudéssemos compreender melhor o que significa esse
ordenamento humano pela “genética”.
10
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências
BOLTASNKI, Luc. 2004. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra.
CLARKE, Adele; SHIM, Janet; MAMO, Laura; FOSKET, Jennifer Ruth;
FISHMAN, Jennifer. 2003. “Biomedicalization: technoscientific transformations of
health, illness and US biomedicine”. American Sociological Review, 68: 161-194.
DEBERT, Guita. 1997. “A invenção da terceira idade e a rearticulação de formas
de consumo e demandas políticas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34
(12): 39-56.
DUMONT, Louis. 1985. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco.
LAQUEUR, Thomas. 2001. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a
Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
LeBRETON, David. 2011. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis:
Vozes.
LOVEJOY, Arthur. 2005. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo.
ROSE, Nikolas. 2013. A política da própria vida: biomedicina, poder e
subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus.
RUBIN, GAYLE. 1984. “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of
sexuality”. In: VANCE, Carole (ed.) Pleasure and Danger. New York: Routledge
& Kegan Paul. pp. 143-178.
TRAMONTANO, Lucas. 2017. Testosterona: as múltiplas faces de uma
molécula. Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
VAZ, Alexandre. 2005. “Doping, Esporte, Performance: notas sobre os ‘limites’
do corpo”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 27 (1): 23-36.
11
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
RESUMO
1. INTRODUÇÃO
1
Cientista Social formada em 2010 pela Universidade Federal de Pernambuco. É aluna regular do Programa
de Pós Graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal de Alagoas desde janeiro de 2017.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. A linguagem autorizada e homologias de classe
2
Farei no tópico três uma discussão introdutória do tema, para saber mais, ver produção de desejo por
filho Naara Luna, Pedro Nascimento, Marilyn Strathern e Débora Allebrandt.
2
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Foucault (1977), por sua vez, lançou seu olhar sobre o nascimento da
clínica realizando uma digressão no tempo para entender a partir de quando a
medicina passou a ter status de ciência clínica e a construção do discurso clínico
na sociedade ocidental. Para ele, “a clínica é, ao mesmo tempo, um novo recorte
das coisas e o principio de sua articulação em uma linguagem na qual temos o
hábito de reconhecer a linguagem de uma «ciência positiva»” (FOUCAULT,
1977, p. XVII). É essa linguagem que desperta singular interesse neste artigo,
linguagem positiva e ao mesmo tempo composta por elementos ritualísticos que
ao passo que distancia o interlocutor do agente, o referenda quanto porta-voz.
3
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Como é o caso das frequentes postagens feitas pela “Tentante 1”; com
fotos das vitaminas e remédios na palma da mão, ela relaciona os nomes dos
remédios que está tomando seguidos das hashtags5 #fiv20176, #vem Positivo e
#meuBebe. Ou mesmo da “Tentante 2” que fez um apelo “Preciso de ajuda! Estou
no 39 DC7 e até agora não desceu a menstruação. Ontem comecei a ter leves cólicas mas ia e
3
É comum a utilização de nick names ou codinomes que remetam tanto à enfermidade que acomete a
usuária do perfil, quanto a nomes que informam sobre o desejo daquelas usuárias de ser mães e/ou estarem
tentando engravidar, ao que se autodenominam como “tentantes”. Aqui, como forma de preservar suas
identidades, ainda que em codinomes, optarei por identifica-las como Tentante 1, 2, 3 e 4.
4
A autorização foi solicitada pela própria rede social através de um pedido meu de maneira privada no
Instagram de cada perfil relacionado.
5
Hashtags são localizadores via Web que etiquetam palavras, frases e/ou expressões para facilitar buscas
futuras por parte de outras pessoas, para isso basta digitar no localizador da rede social, no caso, o
Instagram, a palavra, frase ou expressão que os perfis que usaram essas Tag’s (ou etiquetas) aparecerão nos
resultados da busca.
6
FIV é a abreviação de uma técnica de reprodução assistida chamada Fertilização In Vitro.
7
DC é a abreviação das palavras “dia” do “ciclo”, referindo-se ao ciclo menstrual.
4
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
voltava até que parou e não tive mais. Fiz teste de gravidez e deu negativo. Não tenho nenhum
sintoma, hoje acordei com dor de cabeça. Se alguém já tiver passado por isso deixa aqui nos
comentários”. O mesmo relato de atrasos menstruais é frequentemente mencionado pela
“Tentante 4”.
5
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
A construção do desejo por filhos nos tempos atuais perpassa por admitir que
as NTR têm assumido um papel central entre pessoas com ausência involuntária
de filhos, pessoas estas que se autodenominam “tentantes”. Tentantes são em
geral mulheres que estão tentando ter filhos com ou sem a ajuda de NTR, mas
comumente esse termo está associado ao uso dessas tecnologias.
Esse desejo por filhos, nos moldes ocidentais dos séculos XX e XXI,
perpassa pela noção de família nuclear, ou seja, pai, mãe e filho(s) e pela
constante associação entre fertilidade e felicidade (abundância, saúde).
Segundo Maria Claudia Crespo Brauner (2003), “parece vigorar a ideia de que a
mulher torna-se feliz e realizada quando engravida e dá à luz e, que as nulíparas
são mulheres amargas, egoístas e desequilibradas psicologicamente”
(BRAUNER, 2003, p.50).
6
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Strathern faz um debate sobre ciência e tecnologia afirmando que estes temas
caminham junto com a sociedade sendo então, indissociáveis. A autora conclui
que,
7
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
8
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
8
A interlocutora registrou o nome do perfil do médico, aqui suprimido.
9
Refere-se ao estado que reside, mesmo que tenha grafado em letra minúscula, entende-se que o “rio” diz
respeito ao Rio de Janeiro, estado brasileiro.
9
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
O poder das palavras reside no fato de não serem pronunciadas a título pessoal
por alguém que é tão-somente “portador” delas. O porta-voz autorizado
consegue agir com palavras em relação a outros agentes e por meio de seu
trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o
capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele
é, por assim dizer, o procurador. (BOURDIEU,1996, p. 89).
3.CONCLUSÃO
10
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Não obstante, fiz breve análise de como se constrói o desejo por filhos na
sociedade ocidental e como, por esse desejo, se recorre às Novas Tecnologias
de Reprodução – NTR’s, que produz um campo de discursos médicos
especializados muitas vezes inacessíveis até mesmo para quem se submete aos
tratamentos. Com essa breve discussão entre algumas autoras da área10,
procurei entender como esses discursos provocam as homologias de classe e
suas hierarquias.
Por fim, fiz um sobrevoo na performance médica num discurso da web trazido
por uma das minhas interlocutoras para ilustrar o conceito de eficácia simbólica,
entendendo que os elementos simbólicos que circundam este campo inscrevem
sobre os autores a linguagem autorizada a que é referendada por essa eficácia,
conceito trazido por Bourdieu. Segundo o autor, “(...) a ciência social deve levar
em conta o fato da eficácia simbólica dos ritos da instituição, ou seja, o poder
que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real”
(BOURDIEU,1996, p. 99).
10
Como a maioria das referências bibliográficas que utilizei sobre o tema eram mulheres, optei por deixar
no feminino.
11
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Resumo
Sobre a cadasil
Desde que Arthur Kleinman (1988) fez a famosa distinção entre illness
e disease, atribuindo à primeira um aspecto mais subjetivo da experiência da
doença, a ideia de illness narratives tem contribuído para dar sentido à forma
como as pessoas afetadas por alguma enfermidade ordenam suas
experiências para além do discurso biomédico. Sônia W. Maluf (1999), num
artigo intitulado “Antropologia, narrativas e a busca de sentido”, reitera que “as
narrativas das experiências de doenças são centrais para uma compreensão
dos modelos interpretativos dos grupos pesquisados, de suas explicações
sobre a doença e sobre a história vivida pelo narrador”. Jean Langdon (2014)
apontou: “a doença é uma experiência que gera narrativas que procuram dar
sentido ao sofrimento e também ajudam as pessoas a negociar decisões”. É
tendo isso em mente que procuro ouvir meus interlocutores sobre suas
experiências envolvendo a cadasil, independente dos diagnósticos que tenham,
se fizeram testes ou não, considerando a doença não apenas como um
processo biológico e corporal, mas também como resultado de um contexto
cultural e de experiências subjetivas de aflição (cf. Langdon, 1995).
Uma das principais queixas, assim como apontadas por famílias com
histórico de Machado-Joseph (Aureliano, 2015, p. 05), é a demora e dificuldade
de encontrar um diagnóstico, porque muitas vezes, por ser rara, a doença é
desconhecida pelos próprios médicos. Alguns estudos apontam que o
diagnóstico de uma doença rara pode demorar até trinta anos (Black et al,
2015). Por vezes, as pessoas com uma doença rara passam por diversos
outros diagnósticos e terapêuticas que acabam tornando-se ainda mais
prejudiciais aos seus quadros de saúde. Como exemplo, o trabalho de João
Biehl (2008) sobre Catarina, uma mulher com Machado-Joseph, que recebeu
diversos diagnósticos psiquiátricos e foi medicamentalizada de acordo com
esses diagnósticos - ainda que o foco do trabalho dele tenha sido outro.
animais, sendo que essa alimentação seria responsável por “colesterol alto”
que levava aos “derrames”. Foi a partir do diagnóstico de um tio, já falecido,
que outros casos, inclusive de meu avô, começaram a fazer sentido. Outros
casos, ainda, não apenas começaram a fazer sentido, como passaram a
“existir”, no sentido de que antes se dava pouca atenção a eles. O diagnóstico
genético deu legitimidade às “desordens” (Lock & Nguyen, 2010) de tal forma
que qualquer outra enfermidade é comumente associada à cadasil.
que era uma doença rara, e Fernanda relata que chorou muito ao chegar a
casa depois da consulta. Nesse sentido, o aconselhamento genético entra não
só como uma forma de garantir a autonomia das pessoas que recebem alguma
informação genética (Guedez & Diniz, 2009), mas também como forma de
preparar as pessoas para receber um diagnóstico como esse.
Uma questão que surge dessa reflexão é pensar quais desses critérios
são considerados mais relevantes pelos sujeitos que resolvem fazer os testes
quando os resultados são divergentes. José, por exemplo, considera o
diagnóstico de cadasil somente a partir do histórico familiar e da ressonância
magnética, sem necessitar do teste genético, inclusive porque o preço do teste
é alto e se torna pouco acessível. Além disso, apenas esses dois critérios
foram o suficiente para que ele conseguisse “entrar na perícia” e ficar afastado
do trabalho. Sobre isso, uma outra interlocutora – que, dias depois da primeira
entrevista me escreveu para dizer que preferia não dar continuidade às
conversas e que já tinha manifestado receio de que as pessoas, além do
marido e da irmã, acabassem descobrindo que ela tem a doença – disse: “se
tem focinho de porco, se tem rabo de porco, por que você vai fazer o teste para
descobrir que é porco?”.
Riscos e cuidados
O fato de estar “em risco” também gera uma série de ansiedades nas
vidas diárias das pessoas que são incluídas nesta classificação. Uma
experiência pessoal: no fim da graduação, escrevendo monografia de
conclusão de curso, estudando para a seleção de mestrado, fazendo uso
excessivo de computador, passei a ter várias crises de enxaqueca – uma delas
durou doze dias. Com frequência também esquecia palavras, objetos e outras
coisas. Possivelmente uma pessoa que não está na classificação de risco de
uma doença que causa demência precoce pode considerar tudo isso apenas
como uma manifestação de stress, mas no meu caso esse conjunto de
“sintomas” acabavam levando a um constante questionamento sobre a doença.
Inclusive, como forma de autocuidado, ainda hoje, sempre que estou com uma
dor de cabeça muito intensa, realizo exercícios que detectam a ocorrência de
algum avc.
Considerações finais
A intenção neste trabalho foi mostrar algumas das questões que tem
aparecido neste início de pesquisa [ainda no primeiro ano] de mestrado e que
serão abordadas de maneira mais aprofundada na dissertação. O que, em
princípio, se pode perceber é que o diagnóstico de cadasil de uma pessoa na
família abre a possibilidade de diversas tensões referentes aos próprios
diagnósticos, modos de organização familiar, questões ligadas à reprodução,
etc. Aqui neste trabalho não entrei na questão das políticas públicas nem
aprofundei sobre os diferentes serviços de saúde que essas famílias utilizam
para fazer acompanhamento da doença, mas essa discussão é um objetivo da
dissertação. Meus interlocutores são todos de classe média, mas com uma
variação significativa de renda. Eles oferecem três tipos de relações com
serviços de saúde a serem explorados: Fernanda e Felipe utilizam
principalmente serviços privados; José utiliza o Sistema Único de Saúde mas
por vezes recorre às clínicas particulares; Márcia e Beatriz fazem o
acompanhamento de seus quadros de saúde e de sua mãe principalmente
através do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, onde há o Serviço de
Genética Médica – hospital público, universitário.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
HUNICHE, Lotte. 2011. “Moral landscapes and everyday life in families with
Huntington’s disease: aligning ethnographic description and bioethics”. Social
Science and Medicine, 72(11):1810-6.
KLEINMAN, Arthur. 1988. “Illness narratives: suffering, healing and the human
condition.” New York: Basic Books.
SILVEIRA, Maria Lúcia da. 2000. “O Nervo Cala, o Nervo Fala: a Linguagem da
Doença”. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.
Notas
1 Quero deixar registrado que o desenvolvimento deste trabalho só tem sido
possível graças à condição de bolsista CAPES e ao apoio do INCT Brasil Plural
para o trabalho de campo.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
______________________________________________
Este artigo traz como tema a saúde da população negra camponesa e o acesso
dessa população aos serviços de saúde oferecidos pelo Estado brasileiro. Focou-
se, inicialmente, na história da formação de um campesinato negro e depois na
questão da saúde do negro nos tempos da escravidão até a atualidade. Em
seguida, fez-se uma análise a respeito das políticas públicas direcionadas a essa
questão (saúde da população negra, saúde de comunidades quilombolas) e
também com relação à igualdade e equidade no sistema de serviços de saúde
brasileiro. Como conclusão, o artigo traz reflexões e discussões que podem ser
feitas a partir da realidade atual examinada ao longo do projeto, uma vez que é
fato que ainda há muito o que melhorar, principalmente em relação à equidade
nos serviços de saúde e também ao racismo institucional presente até hoje.
Palavras-Chave: saúde da população negra; equidade em saúde;
campesinato negro.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
________________________________________________________________
Desenvolvimento
______________________________________________________
foram sendo expulsos do território por capangas, junto com também o avanço
tecnológico, que dispensou muito do trabalho que era realizado pelos
camponeses. É importante apontar que os camponeses tinham poucos laços
fortes com a terra, uma vez que eram itinerantes e migrantes no território, não
havendo a possibilidade de legalização e titulação das terras que exploravam.
Além disso, muitos voltaram a trabalhar nas lavouras com os antigos senhores e,
mesmo recebendo salário ou algum pagamento, o mesmo se mostrava
insuficiente, suprindo apenas as necessidades mais básicas e enquadrando,
novamente, o negro nas condições e imposições do capitalismo.
Podemos dizer que esse sistema branco, europeu, capitalista
foi o que impediu a formação e consolidação concreta de uma classe camponesa
de negros antes e durante a escravidão. E nos anos seguintes, mesmo com o
advento da República, a proposta de reforma fundiária foi barrada pelos
conservadores e cafeicultores que haviam se convertido ao movimento e que
entregaram o poder para as oligarquias agrárias.
Devemos analisar, também, o caso dos quilombos e quais as questões
envolvidas na transformação do quilombola em camponês brasileiro. Sabemos
que, durante a escravidão, haviam fugas de cativos e formações dos chamados
quilombos, que eram núcleos de resistência à ao sistema escravista e abrigavam
negros fugidos, índios e brancos marginalizados. Esses núcleos agrícolas
funcionavam sob um sistema de subsistência economicamente auto-suficiente no
campo,
identidade com a terra, uma vez que também eram itinerantes e não podiam
depender da mesma terra sempre, tendo vínculos pouco profundos com a
mesma. Por razões políticas, o quilombola não se apegava à terra, sendo a
mesma apenas local de trabalho e não havendo uma perspectiva com a posse da
mesma. Considerando essas questões, é possível afirmar que a formação de um
campesinato negro originário dos quilombos também não foi possibilitada durante
o período escravista. Após a abolição da escravidão,
negros libertos tiveram acesso à terra por vários meios, sendo os mais comuns
por doação de terras de seus senhores ou entidades religiosas, além de ocupação
em locais considerados como terras devolutas em fazendas abandonadas. Além
desses, como vimos, negros libertos e livres também formaram pequenas
comunidades agrícolas como caboclos e plantadores rurais, junto aos quilombos
de cativos fugidos. O recente liberalismo e a recém-proclamada República nada
ofereciam a esses grupos negros rurais, por impossibilitarem a aquisição e
propriedade de terra, através de mecanismos como a Lei das Terras. Além disso,
outros mecanismos como tarifas, auxílios e a imigração europeia paga
consolidaram o objetivo de enriquecer e manter a antiga nobreza agrícola
brasileira, auxiliados pela falta de laços familiares e o caráter breve e incerto das
ocupações de negros camponeses.
O campesinato negro, assim, nasce já invisibilizado pelos grandes
latifúndios e à sombra do campesinato imigrante europeu, formando um grande
exército de trabalhadores constituído de ex-escravizados, negros, mulatos, índios
e mestiços, mantidos marginalizados pela população. Com a Marcha para o
Oeste, durante o governo Vargas, terras incluídas dentro do projeto de
interiorização do país, em sua maioria populada pelos negros, sofre grande
pressão fundiária e, sem conseguir se organizar politicamente, se mantém à
margem da disputa pelo poder.
compulsório, a sua saúde também foi enormemente afetada por esse sistema,
tanto os que foram escravizados quanto os que permaneceram na África, e é
possível detectar isso em sua descendência. Ainda em seu artigo, Cruz (1993)
traz informações que comprovam o fato: desde a caça e o aprisionamento do
escravizado até os anos de trabalho compulsório, o africano escravizado foi vítima
de diversos males e doenças, não apenas físicas, mas também mentais e
emocionais, que resultaram em uma série de deficits em seu organismo. A “caça
e aprisionamento” dos africanos escravizados afetava sua saúde mental
grandemente ao perder sua liberdade, causando uma angústia espiritual (North
American Nursing Diagnosis Association, 1989); o transporte, feito em navios
negreiros, causava problemas de saúde de todos os tipos, como de nutrição,
padrão respiratório e grande potência para infecções, que eram facilmente
passadas uns aos outros. Isso além de diversos outros problemas, como de
comunicação, crescimento e nutrição, mobilidade física, distúrbio no padrão de
sono, desenvolvimento mental e físico. Não podemos esquecer e nem ignorar os
castigos e tortura institucionalizada pelo sistema escravista, onde trabalho e
castigo não se contrapunham, pelo contrário, um complementava o outro. Nas
senzalas e nos engenhos, as condições de vida e saúde dos negros continuava
sendo deplorável e degradante, sendo a vida média de um escravo era estimada
em sete anos. Diante disso, fica claro e inegável como o sistema escravista
influenciou e causou inúmeras doenças e predisposições na população
escravizada, como aponta CRUZ (1993).
acesso, é imprescindível que haja uma justiça quanto à aplicação dos mesmos.
Por exemplo, os impostos cobrados aos cidadãos não são igualitários, mas são
justos, uma vez que relaciona a tributação de acordo com a capacidade de
pagamento do indivíduo. Enquanto igualdade/desigualdade é mensurável e
podem ser medidos, equidade/iniquidade são conceitos dotados de significados
políticos e levam em monta a moral com a justiça social. Considerando, portanto,
o fato de as pessoas serem diversas e, principalmente olhando o caso de minorias
em nossa sociedade, o termo de equidade surge para garantir, muito além de um
tratamento homogêneo, um tratamento diferenciado, uma vez que as
necessidades e condições dos indivíduos são diferentes.
Conclusões
_____________________________________________________
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
________________________________________________
Lucas Freire 1
Resumo: Esse trabalho tem por objetivo principal discutir como vem se
construindo a ideia de “crise de saúde pública” no Rio de Janeiro, especialmente
no que diz respeito ao fenômeno da “judicialização da saúde”, a partir de uma
etnografia que vem sendo realizada na Câmara de Resolução de Litígios de
Saúde (CRLS). Fundada em setembro de 2013, a principal missão da instituição
é oferecer “resoluções administrativas” para demandas relacionadas à saúde, de
modo a reduzir tanto o tempo quanto os custos para solucionar judicialmente tais
questões. Busco refletir sobre o papel assumido por membros do Poder
Judiciário – em especial aqueles ligados à Defensoria Pública – em um contexto
que é caracterizado pela “escassez de recursos” e pela “crise político-
institucional”. Tenho intenção, ainda, de refletir sobre o papel institucional da
CRLS na gestão das tensões que perpassam o fenômeno da “judicialização da
saúde”, uma vez que o litígio em saúde conforma uma arena em que atores de
distintos setores da Sociedade Civil, do Judiciário, do Executivo e do Legislativo
disputam interesses e estabelecem alianças.
1
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ)
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
O fenômeno conhecido como “judicialização da saúde” é relativamente
recente no cenário político institucional brasileiro. Pautados na garantia do
“direito à saúde” preconizado na Constituição Federal de 1988, profissionais
ligados a Organizações Não Governamentais (ONGs) especializadas em
advocacy no campo do HIV-Aids levaram aos tribunais brasileiros os primeiros
casos de demandas por medicamentos antirretrovirais. Em algumas décadas,
esse tipo de ação se espraiou para movimentos de familiares e pacientes
acometidos por outras doenças crônicas e/ou de tratamentos de alto custo,
muitas vezes impulsionados e financiados por laboratórios farmacêuticos que
visavam utilizar a legislação brasileira em saúde para garantir a consolidação de
um mercado para seus insumos (Biehl e Petryna, 2013).
Como destacado por especialistas da saúde coletiva, da gestão pública,
do direito e de outras áreas do conhecimento correlacionadas, a crescente
judicialização de demandas no setor da saúde representa um “desafio
administrativo e fiscal” para a saúde pública no país, uma vez que o fenômeno
tem um enorme potencial de acirrar ainda mais as desigualdades na prestação
de serviços de saúde (Ferraz, 2009). Além disso, como discute Pepe et al.
(2010), o acesso a medicamentos financiados com dinheiro público via
judicialização pode causar desequilíbrios nas políticas de assistência
farmacêutica do Sistema Único de Saúde (SUS) ao fazer com que a alocação de
recursos se dê de forma distinta do planejamento orçamentário original.
Nesse cenário, as disputas entre os diversos atores são inúmeras: de um
lado, os gestores públicos do SUS acusam membros do Judiciário de
extrapolarem suas funções ao influir diretamente na distribuição dos recursos
destinados à saúde pública; do outro, juízes, promotores, defensores públicos
etc. questionam a eficiência dos administradores em alocar corretamente tais
recursos e tomam para si a missão de assegurar a efetivação dos direitos
fundamentais prestacionais (Pereira, 2015).
No contexto atual, segundo dados do CNJ, no Rio de Janeiro, os
processos judiciais envolvendo demandas de saúde saltaram de 12.208 casos
em 2007 para 29.970 processos em 2014. O progressivo aumento no número de
processos e as constantes tensões entre distintos órgãos do poder público fez
com que fosse criada a Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS), uma
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
2
Apesar da CRLS ser uma instituição composta por funcionários oriundos de distintos órgãos e
setores governamentais, as pessoas que procuram seus serviços são chamadas de “assistidos”,
categoria que designa os sujeitos que recebem assistência da Defensoria Pública no Rio de
Janeiro.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Algumas cenas
Trago aqui as narrativas de alguns casos que nos permitem visualizar de
que modo a possibilidade da judicialização dos casos é acionada pelos
profissionais da CRLS na tentativa de iluminar as questões que pretendo abordar
ao longo do texto.
O filho de Bruno 3 compareceu a CRLS no início do mês de junho de 2017
alegando que seu pai estava aguardando a marcação de uma consulta em
urologia há muito tempo. Após passar pela triagem e pelo atendimento, os
documentos do assistido foram encaminhados para o setor de análise técnica da
CRLS. No setor de análise técnica, um dos pareceristas verificou que a
solicitação havia sido inserida pelo profissional de saúde que acompanha o
quadro de Bruno no Sistema Nacional de Regulação (SISREG) em dezembro de
2016 com risco amarelo 4 e que, portanto, o prazo para a autorização do pedido
e marcação da consulta já estava ultrapassado há bastante tempo. Diante disso,
o analista da CRLS entrou em contato com a Central de Regulação Unificada
(REUNI-RJ), que solicitou que os documentos de Bruno fossem encaminhados
por e-mail. Em seu parecer, o técnico solicita uma posição da REUNI em um
prazo de 7 dias, caso contrário o caso será encaminhado para a Defensoria
Pública para que seja judicializado.
A representante de João compareceu a CRLS pela primeira vez no início
do mês de julho de 2017 informando que o assistido estava aguardando há muito
tempo a realização de um procedimento de cateterismo cardíaco. João tem 66
anos e mora na zona Oeste do Rio, apresenta quadro de cardiopatia isquêmica,
pequenas anginas e também é portador de Diabetes Melitus tipo II. Nessa
ocasião, foi feito o contato com o Núcleo Interno de Regulação (NIR) da unidade
3
Como de praxe em pesquisas antropológicas, os nomes aqui citados são pseudônimos
utilizados para proteger a identidade dos interlocutores.
4
A tabela de classificação de risco do SISREG para regulação ambulatorial está organizada por
cores, do seguinte modo:
Vermelho = até 30 dias para o atendimento
Amarelo = até 90 dias para o atendimento
Verde = até 180 dias para o atendimento
Azul = atendimento eletivo / mais de 180 dias para o atendimento
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
de saúde que atende o paciente e foi informado que o material necessário para
a realização do procedimento ainda estava em fase de licitação. Diante disso, foi
solicitado um prazo de 7 dias para que a instituição se posicionasse em relação
ao caso. No final do mês de julho, a representante compareceu novamente a
CRLS para informar que a situação ainda não havia sido resolvida. Em consulta
ao SER, foi verificado que o pedido do paciente foi inserido em meados de março
de 2017 com risco vermelho e que ele aguarda em fila desde então. Uma das
pareceristas da CRLS entrou em contato com o setor de cardiologia do SER e
foi informada por uma médica que a regulação não está sendo feita porque não
há material para a realização do procedimento e nem houve repasse de verba
para a compra dos mesmos. A profissional da Câmara contestou alegando que
o paciente era de risco vermelho, ao passo que a médica respondeu que há mais
de 100 pessoas na mesma situação que João na frente dele na fila e que
realmente não há vagas nesse momento. Diante disso, o caso de João foi
encaminhado para a Defensoria Pública e o parecer informou que foram feitas
tentativas de resolução administrativa sem sucesso.
O representante de Geraldo compareceu a CRLS em junho de 2017
solicitando fraldas geriátricas e bolsas coletoras de fezes. Geraldo tem 59 anos
e sofre de incontinência fecal. O parecerista da Câmara explicou que as bolsas
coletoras não fazem parte da lista oficial de insumos dispensados, mas que seria
possível tentar uma solução administrativa para o caso, uma vez que as bolsas
são amplamente utilizadas nas internações dos hospitais. Ele elaborou um
parecer a ser encaminhado para a UBS de referência do assistido solicitando
que a instituição se articule com os hospitais públicos e solicite a transferência
de bolsas coletoras para a unidade, para que a unidade possa fornecer ao
paciente. Ele informa que caso essa articulação não seja possível, a UBS deve
enviar um relatório a ser enviado para a Defensoria Pública detalhando os
motivos da falha na articulação interinstitucional. O parecerista solicitou também
a revisão da quantidade de fraldas solicitadas, tendo em vista que o número foi
considerado excessivo diante da constante falta de insumos nas instituições 5.
5
O funcionário da CRLS em questão me informou que “antigamente” – isto é, antes da
instauração da “crise” – não havia questionamento da quantidade de fraldas solicitadas, mas
que atualmente há um limite de 4 fraldas diárias por paciente.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
A filha de Jorge chegou na CRLS pela primeira vez em maio de 2017. Ela
alegou que seu pai tem 72 anos e aguarda a realização de uma cirurgia para
tratar de uma hérnia inguinal desde agosto de 2016. Na época em que o pedido
foi inserido no Sistema de Regulação, Jorge foi classificado como risco amarelo.
Entretanto, sua família foi informada que não havia material no hospital para a
realização do procedimento e que eles deveriam aguardar. Na ocasião de seu
primeiro atendimento na CRLS, houve uma tentativa de contato com o Hospital
Federal de Bonsucesso – local que faz o acompanhamento do paciente – e foi
solicitado um prazo para que a unidade de saúde se pronunciasse sobre o caso.
No início do mês de julho a filha de Jorge se dirigiu novamente a CRLS e recebeu
novamente uma resposta desse tipo. No fim do mês de julho, ela compareceu
mais uma vez a Câmara. Quando a demanda chegou ao setor de análises, a
parecerista da CRLS conferiu o histórico do caso e tentou entrar em contato
telefônico com o hospital para falar sobre a situação de Jorge. Na terceira
tentativa, ela conseguiu falar com um profissional do setor de cirurgias. Durante
a ligação, ela informou que o caso do paciente era grave, que o prazo para a
realização do procedimento já havia sido ultrapassado há muitos meses e que
razão de seu contato era para “evitar um mandado judicial”. O profissional do
outro lado da linha pediu que ela retornasse a ligação no turno da tarde, que ele
levaria o caso para apreciação. Enquanto aguardava para entrar em contato
novamente com o hospital, outra parecerista da CRLS emitiu um parecer
encaminhando Jorge para que a unidade básica de saúde de sua região
reinserisse o pedido no SISREG, uma vez que o Hospital Federal de Bonsucesso
não realizaria o procedimento necessário em pacientes maiores de 70 anos.
A mãe de Marcela foi pela primeira vez na CRLS no final de junho de
2017. Sua filha, de 12 anos, estava aguardando a chegada do material
necessário para a realização de uma cirurgia no fêmur direito para corrigir uma
dismetria de 10cm em relação a perna esquerda. A solicitação do material foi
feita através de um memorando em março de 2017 e a mãe de Marcela foi
informada que o procedimento seria feito imediatamente após a chegada dos
insumos. Diante da não previsão para a aquisição do material, a representante
da assistida solicitou que seu caso fosse “agilizado” com o auxílio da Defensoria
Pública da União (DPU). No final de julho, a mãe de Marcela compareceu
novamente a CRLS para informar que a situação de sua filha ainda não havia
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
6
A PIDC é uma patologia considerada rara que causa a perda ou diminuição progressiva dos
reflexos, da sensibilidade táctil e da força muscular. Uma das formas de tratamento da doença é
a utilização recorrente da imunoglobulina humana intravenosa, um medicamento que custa cerca
de R$ 1.200,00 o frasco.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
FERRAZ, Octavio Luiz Motta. 2009. “The right to health in the courts of Brazil:
worsening health inequities?”. Health and Human Rights: An International
Journal, v.11, n.2, pp.33-45.
Resumo: Os homens são fortemente atingidos por mortes por causas externas como
os homicídios e os acidentes de trânsito. Apenas com motocicletas, entre 2008 e
2015, ocorreram 2.058.504 acidentes com morte ou invalidez. Estima-se que, desse
total, pelo menos 82% eram homens, segundo dados do Departamento Nacional de
Trânsito (DENATRAN). Em 2009, o Ministério da Saúde (MS) publicou os princípios
e diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, o que
evidencia um atraso em sua construção de pelo menos duas décadas quando
comparadas à políticas voltadas para outros grupos populacionais, questão difícil de
justificar à luz dos altos índices de morbimortalidade evidenciados. Em seu texto, o
MS aponta que os homens, em geral, habituaram-se a evitar o contato com os
espaços da saúde porque são avessos à prevenção e ao autocuidado, apresentam
“pensamento mágico” de invulnerabilidade, protelam a procura por atendimento e,
com isso, permitem o agravamento de sua condição com resultados que geram
maiores despesas para o sistema de saúde. A partir dessas premissas, estudantes
de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) do Distrito Federal,
orientados por docentes de Medicina e Antropologia, realizaram incursões
etnográficas na UnB entre várias pessoas que transitavam pelo campus no intuito de
capturar a realidade dos homens para sua relação com os serviços de saúde. Os
resultados trouxeram diversas falas de homens e mulheres que em nada
corroboraram com as justificativas apresentadas no texto do manual de saúde. A
análise dos dados etnográficos descontruiu a narrativa de culpabilidade imposta aos
APRESENTAÇÃO
Nos últimos anos, uma importante variável tem ganhado destaque no debate acerca
de políticas públicas, a Saúde do Homem. A percepção mais recente de que uma
grande parcela da população, 27, 43% - que corresponde aos homens entre 20 e 59
anos (DATASUS, 2012), não pode ser esquecida pelas políticas públicas de Saúde
se deve aos índices elevados de morbimortalidade nesse grupo populacional, sendo
que grande parte dos agravos que atingem essa população são considerados
evitáveis 4. O Ministério da Saúde (MS) lançou os princípios e diretrizes da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) em 2009. Sendo sua
necessidade devido aos altos índices de morbimortalidade nessa faixa da população
associados à baixa procura por assistência à saúde por esses homens,
principalmente no âmbito da prevenção. Em 2012, foi publicado o Perfil Sobre a
Situação de Saúde do Homem no Brasil, documento feito pelo Ministério da Saúde
em parceria com o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente
Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF-Fiocruz). Esse documento teve
o intuito de trazer dados sobre a Saúde do Homem nas 27 unidades da Federação e
ser um instrumento para a PNAISH. Neste documento foi então delineado um perfil
da Saúde do Homem no seguinte trecho:
“As diferenças de morbimortalidade entre homens e mulheres são amplamente
conhecidas: os homens morrem mais cedo, morrem principalmente por causas
externas (acidentes e violências), são mais suscetíveis às doenças
cardiovasculares, possivelmente pelos comportamentos de risco mais
frequentes, procuram menos os serviços de saúde, por limitação de tempo e,
principalmente, pela falsa auto percepção da sua infalibilidade física e mental”
(MOURA, 2012: 9)
4 Os agravos e as causas de mortes evitáveis ou reduzíveis são definidos como aqueles preveníveis,
total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde, bem como demais políticas públicas,
que estejam acessíveis em um determinado local e época (MALTA, 2007: 174)
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Para entender como os homens estão inseridos (ou não) na saúde, nós, estudantes,
docentes e preceptores do curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da
Saúde (ESCS), participantes de um curso para capacitação na compreensão e
execução da etnografia, com duração de três meses, ministrado pelo Mestre em
Antropologia, Médico Obstetra e Docente da ESCS, e nosso orientador, Fernando
Natal, e a Doutora e Docente em Antropologia da Universidade de Brasília (UnB),
Carla Teixeira, durante o referido curso, ao discutirmos a PNAISH, percebemos que
era importante dar voz aos próprios homens e também às mulheres no que se refere
à Saúde do Homem, e para isso fazer uso da etnografia. Decidiu-se, então, realizar
incursões etnográficas na Universidade de Brasília (UnB) pois era um local de fácil
acesso, e onde supomos que poderíamos encontrar muitos homens e mulheres de
diferentes áreas de estudo, cidades, idades, entre outras variáveis. A atividade
ocorreu no período da tarde, e nós, estudantes, docentes e preceptores, ao
chegarmos à UnB, nos dividimos e cada um seguiu para um lugar específico da
universidade. Alguns foram para a Faculdade de Tecnologia (FT), outros para o
Restaurante Universitário (RU), e outros ainda para o Instituto Central de Ciências
(ICC). Um dos locais visitados por nós, Ananda e Sérgio, foi a FT, ao chegar nela,
apesar de estar um pouco vazia, havia dois rapazes sentados. Com eles a
aproximação foi fácil, ocorreu ao perguntar a eles onde ficava um determinado Centro
Acadêmico, apresentando-se como estudante de Medicina, e a partir disso ir aos
poucos fazendo perguntas, como quais cursos eles faziam, o que estavam fazendo
naquele momento e com o desenvolver da conversa, aproveitar o fato do Novembro
Azul (a incursão foi realizada em novembro), e perguntar se eles sabiam do que se
tratava, e o que achavam dessa campanha, se era necessária. Aproximações
semelhantes foram realizadas no RU, onde outros homens e também mulheres
conversaram conosco, bem como também no ICC. Em todos os casos, foi necessário,
após um momento inicial de conversa sobre assuntos diversos, aos poucos e de
forma sutil, incluir a saúde no assunto, pois precisávamos ouvir o que as pessoas
tinham a dizer sobre tal tema. A campanha do Novembro Azul colaborou muito para
que a inserção do tema saúde fizesse sentido e para que as pessoas se sentissem à
vontade para falar sobre o tema. Nem sempre foi necessária a nossa apresentação
como profissionais ou estudantes da área da saúde, pois, em alguns momentos, como
no RU, a conversa fluiu e foi ainda melhor observar como as pessoas discorriam sobre
o assunto, sem a pressão de estar falando com alguém da área da saúde. Não que
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
isso tenha parecido intimidar aquelas pessoas às quais nos apresentamos como
estudantes do curso de Medicina, essas também falaram sem qualquer problema,
apesar de que a conversa pareceu demorar um pouco mais para fluir. Gilberto Velho
(1978) sugere que com o advento da comunicação em massa, certos ambientes e
culturas nos tornam familiares sem serem ao menos conhecidos de fato. Desse modo
ressalta que há importância no estudo do até então familiar, já que muito se pensa
que à antropologia apenas o exótico seria válido, que para fazer uma etnografia se
deva ir a uma ilha isolada como fez Malinowski. No entanto, Velho (1978) faz refletir
acerca do estranhamento do familiar, muitas vezes esse familiar é na verdade exótico
ao pesquisador, que em grande parte não lhe conhece verdadeiramente. Exemplo
disso foi a experiência na UnB, por ser um ambiente que apesar de muito
frequentarmos, geralmente apenas de passagem ou indo à Biblioteca Central da UnB
(BCE), sem nunca observar de fato as pessoas ao redor e seus costumes tem-se a
impressão de conhecimento, no entanto pela simples observação percebe-se o
quanto esse ambiente é diferente, e o quanto encontramos em nossa breve incursão
pessoas de opiniões e orientações diversas, o que colaborou bastante para ter uma
visão ampliada do que as pessoas pensam sobre saúde e como os homens e
mulheres estão inseridos nela.
5 Grifo nosso.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
vinculando-a com um estado de “doença”, que para eles não eram agravos leves,
como já descrito. Ao serem questionados sobre a última vez que foram ao médico,
não era incomum responderem que faz anos desde seu último “check-up” ou da última
vez que devido adoecimento foi necessário procurar atendimento médico, mas, em
geral, complementando que não ficavam doentes e que então não havia necessidade
para tal. Essa grande importância dada ao “check-up” foi muito recorrente, apesar de
muitos ainda que reconhecessem sua importância relataram não fazer. Soma-se a
isso o fato de que os agravos que mais afetam os homens são por muitos vistos como
“inevitáveis”, “acaso do destino”, “acidentes”, como dito por eles, sendo assim, seria
impossível preveni-los. Dessa forma, é questionável se as dificuldades estruturais
para conseguir atendimento em hospitais e centros de saúde, a responsabilidade
muitas vezes apenas da mulher no planejamento reprodutivo, a falta de
reconhecimento dos agravos evitáveis como de fato evitáveis não seriam os fatores
que mais afastam o homem do real cuidado com sua saúde e contribuem para a
dificuldade em se criar um reconhecimento social de uma política direcionada aos
homens, mais do que uma ideia generalizada de invulnerabilidade masculina.
CONCLUSÃO
O homem é duplamente atingido pela violência, é o agressor e o agredido. Nenhum
determinismo genético justifica essa condição intrínseca como masculina e não
parece haver nenhum esforço para explicar o que é inexplicável, afinal é visto por
muitos como biológico, ou seja, não dá para mudar. De forma geral, não há a
construção de uma política de saúde que lide com essa aparente epidemia de
violência, a qual atinge principalmente os homens. Talvez isso não ocorra, pois a
violência, muitas vezes, não é vista como um problema de saúde, mas sim um
problema social incurável e que não cabe a nenhuma outra área que não seja de um
departamento de segurança. Não foi incomum a nós, estudantes, iniciar o processo
de construção de etnografia com pressupostos muito semelhantes a estes, ou seja,
submersos em uma construção social de que o homem é violento, se imagina
invulnerável e é desleixado com sua própria saúde. De fato, alguns desses aspectos
foram encontrados nas falas de alguns dos homens, mas de forma geral, houve uma
dissonância enorme com os pressupostos e as informações coletadas com a
experiência etnográfica deste trabalho. Tal experiência possibilitou a nós perceber
que o homem se importa sim com sua saúde, mesmo que de forma diferente da
esperada por profissionais de saúde. A definição captada nas falas dos entrevistados
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
do que é estar “doente” pode explicar muito do que se justifica como descuidado e
pensamento de invulnerabilidade. Os homens e mulheres entrevistados referiram que
o homem quando percebe que está doente demonstra grande preocupação e busca
sim algum atendimento médico. A grande questão é que este grupo não julga leves
condições que afetem a saúde como passíveis de evoluir à condições mais graves,
como importantes, e não veem agravos evitáveis como situações que poderiam ser
evitadas, tudo isso dificulta a busca por serviços de saúde preventivos. E isso se
repete no grupo das mulheres, segundo as falas das entrevistadas, pois estas
referiram que vão ao médico não porque julgam que condições leves afetem sua
saúde, mas por buscar um atendimento de saúde orientadas pela mãe, amigas,
primas, geralmente para fazer o preventivo, bem como por propagandas que
estimulem a busca por esse exame. Buscam o serviço de saúde mesmo sem
condições leves. Em outras palavras, muitas vezes as mulheres procuram o
atendimento porque aprenderam com as políticas públicas que devem cuidar da
saúde dentro do espectro da prevenção. Isso não ocorre com a Saúde do Homem.
Este arcabouço teórico etnográfico nos possibilitou aprender mais sobre uma forma
diferente de entender o que é saúde e o que é doença, e o que é importante como
motivador para se procurar um serviço de saúde, tanto para homens quanto mulheres.
Ainda assim, sabendo disso e com uma nova visão acerca da Saúde do Homem, é
um desafio explicar aos colegas da área da saúde, que a culpabilização de uma certa
população não trará mudanças, os índices continuarão aumentando, o ônus ao
Estado cada vez maior e as perdas humanas muitas vezes serão irreversíveis. Assim,
é essencial uma mudança na visão de que a violência é intrínseca ao homem, que
não tem solução pois é algo biologicamente determinado, assim como traumas no
trânsito são inevitáveis, isso não pode ser uma desculpa para a construção de
serviços e políticas que mais culpabilizam do que protegem uma população.
REFERÊNCIAS
LARAIA, Roque de Barros. 2001. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de
Janeiro: Zahar.
MALTA, D.C. et al. 2007. Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do
Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde.
MOURA, Erly (org.). 2012. Perfil da situação de saúde do homem no Brasil. Rio de
Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Fernandes Figueira.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo: O texto é um relato de experiência que tem como base os três anos
(2012-2015) em que estive trabalhando na Divisão de Atenção à Saúde
Indígena (DIASI), no Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do
Sul (DSEI-MS) na cidade de Campo Grande – MS. Como profissional da área
de antropologia a trabalhar continuamente no DSEI em regime que não fosse
apenas de cooperação, mas sim de contratação direta do Ministério da Saúde
via Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), trago um breve
relato sobre as experiências profissionais, mas principalmente sobre qual é o
lugar da antropologia entre as ciências médicas e a administração pública
através da perspectiva do serviço público. O objetivo aqui é analisar as
relações de poder tanto entre os discursos biomédicos e administrativos e o
discurso da antropologia, quanto entre o discurso dos órgãos governamentais e
dos indígenas, principalmente no que diz respeito às mulheres indígenas e sua
saúde reprodutiva, através de minhas vivências durante os três anos que
trabalhei com as sete etnias que vivem no Mato Grosso do Sul.
INTRODUÇÃO
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU).
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Veja, esta era uma situação sui generis, pelo menos em minha visão. O
que havia aprendido é que “o antropólogo” passava o máximo de tempo em
campo, vivendo e convivendo com seus interlocutores, depois desde tempo
este profissional seria capaz de elaborar um relato ou talvez até, nos moldes de
Clifford Geertz, uma descrição densa de tudo que havia acontecido e a partir
daí uma análise seria possível. O que me foi solicitado dentro da lógica da
administração pública era completamente diferente: o reconhecimento então só
poderia ser superficial, a densidade se esvairia no pouco tempo dedicado a
tarefa e as conclusões ou seriam muito óbvias ou não teriam nenhuma
profundidade teórica.
2
Interessante notar que, apesar de não ser recorrente, nesta primeira viagem fui acompanhada
apenas de colegas homens. Muitas mulheres trabalham no DSEI-MS, mas nenhuma delas à
época fazia parte de divisão de transportes como motorista. A maioria das mulheres que
trabalham no distrito são da área da enfermagem.
3
Por parentes aqui quero dizer tanto os parentes consanguíneos de Dona Damiana, quanto os
companheiros na empreitada da retomada, sendo este um termo recorrentemente utilizado
entre os indígenas para denominarem seus pares.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
O que ocorreu comigo nesta viagem foi presenciar uma destas “cenas
de realidade”, que foi registrada e computada como parte da realidade da
mulher indígena no DSEI-MS. O sofrimento intrínseco a condição de desalento,
abandono institucional – mitigado pelas poucas visitas dos agentes de saúde
impossibilitados de chegar ao local pela falta de estrutura – e pela ausência de
seus entes queridos potencializou ao máximo a percepção de que a mulher
indígena que ali estava era antes de tudo uma lutadora, que superava as
adversidades através de sua batalha pela terra.
entre as fortes mulheres indígenas que ainda estava por aprender muito sobre
o lugar ocupado pela mulher naquela sociedade.
4
Segundo o site da instituição: “A Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul (PR/MS)
é a unidade do Ministério Público Federal (MPF) que atua no estado de Mato Grosso do Sul
nos casos de competência da Justiça Federal em primeira instância. Os procuradores da
República exercem suas funções nos processos em tramitação nas varas e juízos federais e
também nas ações ajuizadas perante o Tribunal Regional Eleitoral, por meio da Procuradoria
Regional Eleitoral”.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
A questão não findou com esta reunião e o que eu mais temia ocorreu,
em meio aos processos burocráticos e as turbulências políticas o tema foi
sendo arrastado nas instâncias superiores, até que eu mesma deixei meu
posto de trabalho no DSEI-MS, com a questão não estando definitivamente
resolvida. A insistência na interpretação das indígenas como portadoras de
uma humanidade completa e assim sendo não necessitadas da mendicância
de autorização sobre seus próprios corpos continua, nas mesmas e em novas
batalhas diuturnamente.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Jorge Eremites de; PEREIRA, Levi Marques. 2012. “Terra Indígena
Buriti”: perícia antropológica, arqueológica e histórica sobre uma terra terena na
Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul – Dourados: Ed. UFGD.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
SANTOS, Alessandra Carla Baia dos (et. all). 2012. “Antropologia da saúde e
da doença”: contribuições para a construção de novas práticas em saúde. Rev.
NUFEN [online]. 4(2):11-21.
1
Master in Development Studies (Class of 2017), the Graduate Institute of
International and Development Studies, Geneva, Switzerland.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introduction
In the wake of the atypical increase of microcephaly cases in the Northeast
of Brazil in 2015, the Brazilian federal government declared a Public Health
Emergency of National Concern (Emergência de Saúde Pública de Importância
Nacional - ESPIN). In the scope of the ESPIN Brazilian government tried to
organize its bureaucracies and institutions, in the three administrative levels
(federal, state and municipal), in order to identify the etiology and gather
epidemiological data on the epidemic; combat the vector; produce knowledge
and educate officials and health personnel on the epidemic and its
consequences; and provide the necessary assistance and care to those affected,
with various degrees of success.
The efforts on the federal level of government were organized within the
scope of the “National Plan for the Combat of Microcephaly,” later renamed
“National Plan for the Combat of the Aedes Mosquito and its Consequences,” 2
which was a simple document consisting of three “areas” in which the government
would articulate efforts for addressing the zika virus and microcephaly. 3 The
parallels to dengue were established throughout the document, from the cover,
which highlighted the information that the “Dengue mosquito can kill and is even
more dangerous to pregnant women… it can transmit zika, which can cause
microcephaly”, to the content, which used the same lines and slogan as the
previous dengue campaign to engage people in the efforts for the control of the
Aedes mosquito. 4
This article analyses the documents by the federal government that have
framed state action in regard to area II of the national plan (“medical assistance
2
There was no official explanation for the change in the name, which happened
around April 2016. In interviews, officials claimed the modified name was more
precise and more inclusive of all actions within the plan.
3
At the declaration of the ESPIN and in the first months of action, all official
documents referred to “microcephaly”. Afterwards, it became known that zika
congenital syndromes had other symptoms and in October 2016 the Ministry of
Health Protocols would establish that microcephaly was not the primary
symptom of zika congenital syndrome.
4
“Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia”, Ministério da Saúde,
accessed 04 February, 2016,
http://portalarquivos.saude.gov.br/images/campanhas/dengue2015/Broadside_
Microcefalia_20x28_V2.pdf. Translated by the author.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
5
Activities in area I of the National plan have not significantly differed from the
strategies adopted by the Federal Government in the past decades in the context
of dengue epidemics. They have mainly focused on mechanical and chemical
control of mosquito breeding sites, strategies that have been proved ineffective
in the past. In terms of constructing a narrative that justified the continued
infestation of Aedes mosquitos in the country, the government has, again
repeated the same formula employed during dengue campaigns, emphasizing
people’s “responsibility” in allowing breeding sites to exist, attributing the cause
of the infestation of people’s negligence. The issue of pubic sanitation has been
almost inexistent in this debate.
Area III of the National Plan focuses on research and development of
technologies.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
and class inequalities are embodied through epidemics, for example, leading to
death, illness and stigmatization (Farmer, 2004:308). These structures engender
a kind of systemic violence that perpetuates oppression and marginalization,
through a system that connects the social, biologic and symbolic dimensions
(Ibid., 307-8).
Facing the Zika Epidemic: Women and the Area II of the National Plan
The second axis of the National Plan, in the first moments of the epidemic,
focused on the dissemination of protocols and guidelines that explained to
doctors and medical professionals the changes in the epidemiology of
microcephaly and instructed them on the diagnostics of microcephaly (later of
zika congenital syndrome) and care for women and children affected. The
protocols addressed services which were already included in the Brazilian Public
Health System (SUS), such as laboratorial and image exams for diagnostics, that
could, in theory, be mobilized in the context of the epidemic, as well as existing
health programmes. As the complexity of the crisis increased, with a growing
number of suspected cases needing definitive diagnostics and care in a
increasing area of the territory (including areas with low density of care facilities)
other normatives, strategies and activities were added to the second axis of the
national plan.
The protocols were particularly vague about the issue of reproductive
health and rights. They mentioned the need to alert women about their
contraceptive options, reinforcing the idea that contraception was provided in
SUS. However, there was no mention to the fact that many women do not have
their contraception needs met through SUS, or any suggestion of different
approaches or strategies to deal with that. Particularly alarming was the fact that
there was no mention about the guidelines regarding the obligation to care for
women who have undergone voluntary abortions. Although voluntary abortions
are criminalized in Brazil, the Ministry of Health has normatives establishing the
obligation of hospitals and medical personal to provide adequate, non-judgmental
and unbiased care to women who have complications due to illegal abortions,
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
none of which were reinforced in any of the protocols elaborated the context of
the zika epidemic. 6
Besides the protocols, another relevant federal effort in the scope of the
ESPIN was the implementation of a joint strategy, implemented by the Public
Health System (SUS) and the National Social Service System (Sistema Único de
Assistência Social - SUAS). This joint strategy, called Rapid Strategy of Action
(Estratégia de Ação Rápida - EAR), aimed at allowing states and municipalities
to actively search children with suspected and confirmed microcephaly, organize
health facilities for providing a definitive diagnosis, ensure infants diagnosed with
microcephaly were receiving adequate medical care and fast track the affected
families into social security programmes and benefits, specially the extremely
poor. To enable municipalities and states to provide these services, states
received R$ 2,200 for each children. The total amount of money could be used
at the states’ discretion – in some places, it was important to provide
transportation and accommodation for women and children who lived far away
from hospital and care facilities, other places had to pay private hospitals for the
use of tomography scanners, for example.
The strategy was supposed to last from March to May 2016 and cover
4,976 infants, that is, the infants that were notified until March; it ended up being
extended until October 2016 covering the cases notified until that point, 9,770
cases. 7 69.1% of the overall cases during the EAR were diagnosed (2,347 were
confirmed as microcephaly and 4,401 were discarded), and 30.9% were still
under investigation by the end of the strategy. Of the confirmed cases, 73.7%
were in the Northeast.
The diagnose was necessary for fast-tracking children with microcephaly
(and afterwards zika congenital syndrome) into certain social security schemes,
6
In 2014, for example, a Brazilian newspaper found that 33 women had been
arrested that year for their voluntary abortions, most of after doctors reported
them to the police, which indicates that some doctors do not comply with the
abortion normative. “33 Mulheres Foram Presas Por Aborto Em 2014 |
EXAME.com - Negócios, Economia, Tecnologia E Carreira,” Exame, December
22, 2014, http://exame.abril.com.br/brasil/33-mulheres-foram-presas-por-aborto-
em-2014/.
7
Instrução Operacional Conjunta no. 01-MS-MDSm; Ministério da Saúde,
Boletim Emidemiológico v.48, n.6, 2017.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
8
Ministério da Saúde, “1 ano com Zika,” Presentation at the Ministry of Health,
18 November 2016,
http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2016/novembro/18/Aumento-do-
Cuidado-com-as-famlias-gestantes-e-bebes-com-edicao.pdf.
9
The criteria for the granting of the BPC are very rigid and income is determinant
for this benefit. This is why it is extremely likely that all families that apply have a
per capita income that is at least close to ¼ of the minimum monthly wage.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
will have to be available many days a week to take the children out of the
household, a situation made difficult if the family has other children/elderly people
that need care and if they cannot afford transportation. It is obvious, then, that
guaranteeing access and continuation of care requires a closer look to gendered
family dynamics as well as to the inadequacy of state equipment that should offer
care facilities and education services that these families need. In this sense, by
addressing the issue of care/attention mostly in medical terms, the activities on
area II of the national plan further a perspective of care as a private matter, to be
solved by families, which does not favor poor families and burdens women in
particular.
Furthermore, a closer look into the issue of reproductive health and rights
is necessary. From the beginning of the crisis, women’s advocacy groups have
argued that
“pregnant and childbearing-age women all across the country are living the
stress and even the panic of giving birth to a child with microcephaly. Every
prenatal visit and every ultrasound test is a moment of emotional torture.
It is urgent and necessary that responses to the zika virus epidemic include
the issue of women’s reproductive rights” (Pitanguy, 2016:1).
From the moment when the connection between zika and neurological fetal
malformations was made, the government advised women to avoid being bitten
by mosquitoes when pregnant. Considering the historical failure of the
government in tackling the aedes infestation and the lack of short term solution
for this issue, civil society organizations demanded the government: 1) assist
women in better controlling their reproduction by improving the distribution of
contraception; 2) remove legal barriers that prevent women from deciding if they
wanted to be pregnant; and 3) protect their pregnancy from zika infection through
the distribution of mosquito repellents. 10
10
Some of these claims have been summarized by ANIS, a feminist organization
specialized in strategic litigation and research, and ANADEP, the National
Association of Public Defenders, in a lawsuit in the Brazilian Supreme Court
accusing the government of violating the fundamental rights of women regarding
the zika epidemics. In the Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI – Direct Suit
of Inconstitutionality) 5581, they claim that the state is violating fundamental
principles of the Constitution by failing to provide effective public policies to: 1-
appropriately inform citizens about zika, the risks related to neurological disorders
and effective means of prevention; 2- guarantee access to family planning, and
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
12
According to this research, which is the largest of its kind in Brazil and is used
as reference by the Ministry of Health, only 45% of pregnancies “have been
planned for the time at which they eventually occurred.”
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
the zika congenital syndrome women as “mothers” or, at least, potential mothers.
Women appear, in most of the documents related to the national plan, campaigns
and in the protocols for clinical attention as mothers who want to avoid
microcephaly-zika congenital syndrome/mother of infants with microcephaly-zika
congenital syndrome. This framing avoids a discussion about abortion and
contraception.
The centrality of the idea of “women” as “mothers” is not accompanied,
however, by strategies or actions that deal with the issue of care, apart from
orientations regarding the neurological development of children. That is,
instructions about how to stimulate the neurological development of affected
infants exist, but they do not get into the complicated matter of how low income
families organize care, erasing structural violence that shapes and influences the
kind of attention and care women as mothers can actually dispense to their
children.
13
“WHO | Ten Things You Need to Do to Implement the IHR,” WHO, accessed
May 16, 2017, http://www.who.int/ihr/about/10things/en/.
14
According to the PAHO website, the decision of notifying the WHO of an event
must take four points into consideration: Is the public health impact of the event
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
The data selected for the presentation 15 told one story about the zika
emergency: the story of the mosquito, which is on its way to be defeated through
technology, and its consequences, addressed by an increase in facilities and
training for dealing with neurological symptoms of children. The presentation
about the end of the ESPIN does not articulate the relationship between
investments in care (rehabilitation centers and training of doctors) and the social
world in which the affected people are inserted. Except for the numbers on
notification and diagnosis, no other relevant information was provided on the
people affected. Although some of this information can be found in other
government documents, it is worth of note that the people affected, their realities
and the challenges they face were not part of the narrative for the end of the
ESPIN. The announcement of the end of the ESPIN ended up confirming the idea
that the structural violence that is embodied as disease – the open sewages, the
risks which women who decide not to be pregnant face, the endless wait in public
hospital, the lack of transportation that causes early stimulation appointments to
be missed, the insufficient and unreliable income that determines where people
live – have little place in the official discourse about the epidemic
Gender, race, class and regional inequalities organize the environment
and social, economic and political lives of those affected by the zika epidemic.
The state response, considering the categories mobilized in the documents
analyzed, in many ways failed to address these structures. By failing to address
their sexual and reproductive rights, women are burdened with the costs and
consequences of planning their reproductive lives, in a context where adequate
contraception may be hard and expensive to acquire, and exposed to the risk of
illegal abortions, risks and costs that affect poor, non-white and less educated
women the most. The lack of provision of financial support to all poor families
(and the insufficient support to the extreme poor families who receive the BPC)
impacts not only the quality of care the children receive, but the lives of the
caretakers (who are mainly women), stripping them of choices regarding work,
education, political participation, and all other spheres of life.
Bibliography
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Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde
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Central Nervous situacao/Microcefalia-Protocolo- Ministry of Health
System Related to the de-vigilancia-e-resposta- (Secretariat of Health
Infection by Zika Virus 10mar2016-18h.pdf 10-Mar-16 Surveillance)
Integrated Surveillance
and Health Assistance Ministry of Health
Orientations in the (Secretariat of Health
Scope of the Public http://combateaedes.saude.gov.br/i Surveillance and
Health Emergency of mages/pdf/orientacoes-integradas- Secretariat of Health
National Concern vigilancia-atencao.pdf 12-Dec-16 Attention)
Grupo de Trabalho 6
Jovens e saúde: desigualdades, diferenças
e possibilidades
Coordenadoras: Breitner Tavares (UnB); Marcia Longhi
(UFPB) e Mónica Franch (UFPB)
Grupo de Trabalho 6
Jovens e saúde: desigualdades, diferenças, possibilidades
Este GT se destina à apresentação e debate de pesquisas, intervenções e
formulações propositivas que articulem questões de juventude e saúde na
contemporaneidade. Historicamente, a relação dos jovens com o campo da
saúde aponta para dois caminhos. Por um lado, os jovens têm sido
representados a partir de figurações de valores que os sujeitam a experiências
específicas de saúde, adoecimento e risco. Por outro lado, as práticas, estilos
de vida e de consumo juvenis têm sido, com frequência, medicalizados,
contribuindo para o controle social de suas expressões culturais e políticas.
Considerando as diferentes formas de representar e vivenciar os ciclos da vida
em contextos marcados pela diversidade sociocultural, a proposta deste GT é
compreender a articulação juventude/saúde em relação com marcadores
sociais como gênero, classe, territórios, raça, entre outros. As temáticas que
podem ser discutidas incluem questões de saúde sexual e reprodutiva
(gravidez, aborto, contracepção), de saúde mental (depressão, suicídios),
incluindo os chamados transtornos alimentares, e também questões relativas
ao consumo de álcool e outras drogas. Além disso, sabe-se hoje que a
violência na forma de homicídios é uma das principais causas de mortes não
naturais entre jovens no País. Trabalhos que tratem desse tema transversal
também serão benvindos.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
RESUMO
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, Mestre em
Segurança Pública pela Universidade Federal do Pará. Especialização em Direito Público pela Universidade
Católica Dom Bosco e Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera. Graduação em Direito pela
Universidade da Amazônia. Graduação em Gestão de Riscos Coletivos pelo Instituto de Ensino de Segurança do
Pará. Servidora Pública do Estado do Pará. E-mail: [email protected].
2
Professora das Universidades de Brasília e Federal do Pará, doutora em Antropologia, Sociologia e
Demografia pela Université Paris Descartes (Sorbonne) e Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-
doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fundação
Oswaldo Cruz, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense. E-mail:
[email protected].
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
1. INTRODUÇÃO
3
FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
4
Idem, p. 17-21.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
5
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997.
6
GRINBERG, L. Culpa y deprestón. Buenos Aires, Paidós, 1971.
7
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008.
8
Idem, p. 84 – 87
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
9
Expressão utilizada na obra O que é Loucura? De FRAYZE-PEREIRA (1994, p. 67): A sociedade moderna do
século VXII percebe e isola todo um conjunto variado de personagens que põem em jogo as proibições sexuais e
religiosas, as liberdades do pensamento e dos afetos: devassos, alquimistas, suicidas, blasfemadores,
portadores de doenças venéreas, libertinos de tod a espécie. O internamento, que representa o Bem contra o
reino do Mal e encerra uma cumplicidade entre a polícia e a religião, realiza a ideia burguesa segundo a qual
a virtude é adequada à ordem.
10
FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
11
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 84 – 87.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Bittencourt, a periculosidade pode ser definida como um estado subjetivo mais ou menos
duradouro de antissociabilidade. É um juízo de probabilidade — tendo por base a conduta
antissocial e a anomalia psíquica do agente — de que este voltará a delinquir.12
Este juízo de probabilidade cabe a um médico, o que leva a instituição médica, em
caso de loucura, a tomar o lugar da instituição judiciária. No entanto, em contrapartida, o
sujeito submetido à medida de segurança fica sob os cuidados do sistema penitenciário do
Estado, o que causa um paradoxo não solucionado ainda na maioria dos Estados Brasileiros.
Trata-se a doença em instituições terapêuticas ou destaca-se o caráter delituoso da conduta
com a vinculação a instituições punitivas?
É inevitável a necessidade do tratamento para ter “cessada a periculosidade”, pois a
existência desta característica justifica a continuidade da internação. Mesmo após o término
do prazo mínimo de duração da medida de segurança, é verificada a cessação da
periculosidade do agente. Este procedimento é regulamentado pelo art. 175 da LEP:
12
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1, 17ª ed., São Paulo, Saraiva,
2012, p. 950.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
13
FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
44
14
FOUCAULT, M. (2006b). Poder e saber. In M. B. Motta (Org.). Estratégia, poder-saber (Coleção Ditos &
Escritos, Vol. 4, pp. 223-240). 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 342-343
15
CAETANO DA SILVA, Haroldo (Coord.).Paili: Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator. Goiânia:
MP/GO, 2013. Informação extraída das cláusulas do termo de convênio de corporação técnica e operacional
firmado entre o Estado do Goiás, por intermédio das Secretarias de Estado da Saúde e da Justiça, o município de
Goiânia, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e o Ministério
Público do Estado de Goiás.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Percebe-se que há, nesse programa, um cuidado para que a emissão do laudo de
periculosidade seja confeccionado em conformidade com a verdade real do quadro clínico do
sujeito a ser examinado, pois atua nesse sistema uma equipe multidisciplinar que municia o
Judiciário com elementos comprobatórios do real estado clínico do sujeito que pleiteia a sua
liberdade. A equipe multidisciplinar é formada por no mínimo 1 advogado, 2 assistentes
sociais, 1 médico psiquiatra, 4 psicólogos e 1 enfermeira.16 Apesar de ter uma equipe
reduzida, o Paili tem abarcado toda a população em medida de segurança do estado de Goiás.
Esse estado é, aliás, o único do Brasil a não ter estabelecimentos de custódia e tratamento
psiquiátrico. O tratamento das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei no
Sistema Único de Saúde (SUS) constitui, assim, uma experiência vanguardista e exemplar.
CASO 01:
HABEAS CORPUS LIBERATORIO COM PEDIDO DE LIMINAR
PACIENTE: E. L. M. IMPETRANTES: Eliana Socorro Santos
Vasconcelos – Defensora Pública Waldir Macieira da Costa Filho – 1ª
Promotor de Justiça de Defesa da Pessoa Com Deficiência
IMPETRADO: Juízo de Direito da Vara Única da Comarca de Juruti
PROCURADOR DE JUSTIÇA: Dr. Francisco Barbosa de Oliveira
PROCESSO: N. 0009822-56.2017.8.14.0000
16
Idem.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
CASO 02:
ACÓRDÃO Nº. __________________________.
SECRETARIA DA 1ª CÂMARA CRIMINAL ISOLADA
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL
PROCESSO Nº 0040734-07.2015.8.14.0000
COMARCA DE BELÉM: 1ª VARA DE EXECUÇÕES PENAIS
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL
AGRAVADO: J. F. L.
REPRESENTANTE: ELIANA SOCORRO SANTOS VASCONCELOS
PROCURADORIA DE JUSTIÇA: DR. FRANCISCO BARBOSA
OLIVEIRA
RELATORA: DESª VERA ARAÚJO DE SOUZA
17
Disponível em: < http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=336892> Acesso em
06/10/2017.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
CASO 03:
ACÓRDÃO N.º
PROCESSO N° 0000406-11.2013.8.14.0063
RECURSO: APELAÇÃO PENAL
ÓRGÃO JULGADOR: 1ª CÂMARA CRIMINAL ISOLADA
COMARCA DE ORIGEM: BELÉM
APELANTE: J. R. G. M. (ADV. OMAR ADAMIL COSTA SARÉ)
APELADA: A JUSTIÇA PÚBLICA
PROC. DE JUSTIÇA: DRA. UBIRAGILDA SILVA PIMENTEL
RELATORA: DESA. VÂNIA LÚCIA SILVEIRA
18
Disponível em: <http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=37753> Acesso em:
06/10/2017
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Percebe-se que, nos três casos, a preocupação dos magistrados foi direcionada a
periculosidade do agente. Com esse raciocínio, poderíamos concluir que o fator
periculosidade seria predeterminante para a manutenção do internamento, ou para o retorno a
esta reclusão. O CASO 01 transcrito acima exemplifica essa situação, quando demonstra que
a periculosidade passa a ser parte integrante da vida de um ex-interno, pois mesmo que este
NÃO pratique um ato tipificado como crime, mas sendo indicativo de que continua
periculoso, o praticante da ação pode ser submetido novamente a medida de segurança.
Estas informações são ratificadas nos CASOS 2 e 3 expostos acima, pois não é
considerada ilegal a decisão que revoga a medida de desinternação e mantém a medida de
segurança, quando persiste a periculosidade do interno, esta caracterizada, em laudo
psiquiátrico médico-legal.
É certo que a Constituição da República Federativa do Brasil determina, em seu artigo
5º, XLVII, b, que no Brasil não haja penas de caráter perpétuo. O limite de cumprimento das
penas privativas de liberdade, previsto pelo Código Penal, em seu artigo 75, é de 30 anos. O
Supremo Tribunal Federal (STF), em diversos precedentes, firmou o entendimento de que o
prazo máximo da medida de segurança não pode ser superior a 30 anos, em aplicação
analógica do disposto no artigo 75 do Código Penal. O Superior Tribunal de Justiça (STJ)
seguiu esse entendimento e foi além, ao concluir que a duração máxima da medida de
segurança não deve ultrapassar nem mesmo o limite máximo da pena abstratamente
cominada para o crime praticado.
19
Disponível em: <http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=177810> Acesso em
06/10/2017
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
No entanto, podemos citar situações em que isso não é observado. Vejamos o estudo
da Debora Diniz, realizado no Brasil, em 2011. Há compilação de dados estatísticos que
demonstram um atraso, na proporção de 41% dos indivíduos em medidas de segurança no
Brasil, para a realização anual do exame de cessação de periculosidade, previsto em nosso
ordenamento jurídico. Isso favorece para a existência de casos de pessoas que continuam
enclausuradas por mais tempo que o previsto na legislação, pois a desinternação é
condicionada as informações relatadas neste laudo.20
Além disso a decretação da extinção da medida de segurança não significa a saída
desse interno dos hospitais de custódia. Pelo menos 25% (741) dos indivíduos em medida de
segurança não deveriam estar mais internados, por terem sentença de desinternação, mas
permanecem por não existirem políticas sociais voltadas à ressocialização destes indivíduos,
que têm medo, devido à desculturação e ao estigma, aos braços amiúde cruéis da sociedade.
O que vem acontecendo em alguns estados é a implantação dos serviços residenciais
terapêuticos que trabalham nesse processo de transição entre o enclausuramento e a liberdade
dos que foram considerados um dia loucos infratores.
5. CONCLUSÃO
O silêncio que recai sobre a loucura no mundo contemporâneo foi decretado mediante
internamentos. As vozes dos ditos loucos antes escutadas por plateias foram silenciadas. O
tratamento ofertado não deve estar voltado somente para a medicalização, deve priorizar
também o exercício da escuta de um, profissional, em detrimento do exercício da fala de
outro, o interno. Nesse encontro há uma relação de confiança traçada, o interno passa de uma
saber de si mesmo a uma saber de si em consonância com o mundo que lhe rodeia.
A luta antimanicomial defende uma sociedade sem manicômios. Peter Pál Pelbart
trouxe à tona uma importante distinção entre o louco e a loucura: “Por louco entendo esse
personagem social discriminado, excluído e recluso. Por loucura, que para facilitar chamarei
aqui de desrazão, entendo uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a
alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como o seu limite, o seu
20
DINIZ, Debora. A custodia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres; Editora
Universidade de Brasília, 2013.
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contrário, o seu outro, o seu além.” Ou seja, nesse sentido poderíamos afirmar que o louco é
fruto da loucura da sociedade. 21
A reforma psiquiátrica já aconteceu de forma legislativa com a Lei Federal 10.216,
sancionada em 2001, que propôs um modelo de atenção à saúde mental sem a internação em
hospícios como mecanismo de tratamento. A proposta foi oriunda do deputado federal Paulo
Delgado por meio do Projeto de Lei 3.657. A reforma psiquiátrica preconizou a abolição da
exclusão do doente mental.22
Embora a reforma psiquiátrica tenha avançado em relação à loucura, ela negligenciou
a loucura associada à criminalidade. As pessoas com transtornos mentais em conflito com a
lei continuam excluídas e silenciadas.
Pois, não basta extinguirmos os manicômios físicos, se os manicômios mentais
continuarem existindo, pois nossa razão acaba sendo carcerária. As práticas sociais devem
voltar-se à desrazão mental para contrapor a racionalidade explicativa excessiva. “O direito à
desrazão significa poder pensar loucamente” (PELBART, 1990, p. 137). Medidas de auxílio à
reintegração dessas pessoas devem ser enfatizadas, como a implantação dos serviços
residenciais terapêuticos, que são locais de moradias destinados a regressos de internações
com lapso temporal extenso que não possuem condições imediatas de retornar ao convívio
familiar.23
6. REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1, 17ª ed., São
Paulo, Saraiva, 2012
21
PELBART, Peter Pál. Manicômio Mental – a outra face da clausura”. In:SaúdeLoucura2. São
Paulo:Ed.Hucitec, 1990, p. 113.
22
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
23
PELBART, Peter Pál. Manicômio Mental – a outra face da clausura”. In:SaúdeLoucura2. São
Paulo:Ed.Hucitec, 1990, p. 137.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
______. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes,
2002.
GUP, Ted. “Diagnosis: Human”. Opinião dada a The New York Times no dia 02 de abril de
2013
ROSA, João Guimarães. “Sorôco, sua mãe, sua filha”. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2005
ROHDE, Luis Augusto. “Pela precisão do diagnóstico”. Entrevista concedida à Revista Veja
no dia 31 de julho de 2013
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
Mirani Barros1
1
1
Instituto de Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
A crítica do autor vai além do que tais publicidades revelam, mas certamente
sobre aquilo que elas embotam, que como ele próprio diz, a multiplicidade, a
diversidade. Da outra mão desse processo, a intensa medicalização da gordura em
função de um ideal corporal, sobretudo nas mulheres, tem provocado um sentimento
de falta constante e uma busca permanente por adequação (Bordo e Heywood,
2004). Segue-se enxergando um corpo medido e quantificado, cuja prospecção de
perfeição simétrica, mantém forte ralação com a distribuição e combinação de
diversos componentes corporais, assignada como saudável. Funda a sensibilidade
que nos permite ver, compreender e perceber esse corpo padronizado com os
auspícios da verdade científica, sacramentada e propagada como que a promessa
de ‘Deus’ de que trata Haraway (1991a). Uma metáfora com a ideia de onipresença
divina, aquele que se sabe estar em toda parte, contudo, em lugar nenhum. O que
está, porém não é tangível. E como um poderoso ‘Deus’, como questionar
2
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/protocolo_saude_mulher.pdf.
Disponível em 28/05/2016.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
3
Pretas e pretos são categorias êmicas.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
narcisista. Várias ativistas, como a feminista Kite (2016) de muita expressão nesse
debate, têm abordado o fenômeno através de uma ótica universalista e vitimista,
defendendo que o excesso do autorretrato implicaria a objetificação da mulher. Para
Baker (2015), no entanto, ainda que a indústria e o mercado tenham prejudicado, de
maneira geral, a percepção de si das mulheres através de um controle extremo das
formas corporais femininas e a pregação de um padrão inatingível, o itinerário das
selfies tem permitido colocar em tensão a ideia do que é belo, suscitando um debate
entre beleza (que seriam os atributos disponíveis e reais) e a boniteza (que seria
aquilo que a tecnologia digital e médica tem oferecido). Assim, as selfies seriam
ferramentas de ‘reclamação’ na disputa pela política de construção desses corpos,
sobretudo no grupo da pesquisa onde tais recursos de edição de imagem não são
bem-vindos, afirma-se constantemente que aquele é um lugar para “mulheres de
verdade”.
O vitrinismo desdobra o no sistema de elogios. É através desse mecanismo
de exibição e resposta – que acontece o flerte, que se expressa através de
‘curtidas’, comentários e elogios mútuos. Estes vão construindo os sinais de
interesse sexual que eventualmente progredirão para algum modo de encontro ou
relacionamento, ou também para relações de amizade.
O elogio entre mulheres é também bastante comum. Do ponto de vista delas
esse tipo de elogio serve para três fins. O primeiro seria colocar a postagem em
evidência, de modo que quanto mais comentada e mais curtida a foto, mais tempo
ela permanece no ar (seria um acordo tácitos entre as mulheres se apoiar
mutuamente nesse sentido). Em segundo, o elogio cria uma relação de proximidade
com novos membros, de modo que se estabelece um clima amistoso e elegante. E
por último, mas não menos importante, trata-se de uma forma de trabalhar a
autoestima, em que os elogios entre mulheres criam um clima de afago coletivo e
reforço positivo para essa corporalidade. Essa dinâmica de elogios entre mulheres
cria um clube de dicas, onde elas compartilham opiniões e trocam tutoriais diversos,
no qual criam seus próprios padrões em conexão com seus valores de classe, suas
experiências e capitais particulares, mas sobretudo pelo que emerge desse
aprendizado coletivo sobre a corporalidade gorda. Por fim, as selfies e o sistema de
elogios que elas suscitam são uma oportunidade para criar narrativas que possam
contar a história dessas mulheres, constituindo de modo sensível seu lugar no
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
pelos saberes daí advindos, são agenciadores incomodados com pesos e formas.
Entretanto, no percurso desses investimentos, tais abordagens parecem deixar
escapar o cerne da questão, haja vista que as pessoas continuam a engordar, e
atualmente somam 50,8% da população no pais (Brasil, 2017). Então, de que tem
servido combater a obesidade ou regular a plástica corporal? De que saúde ou outro
valor se trata?
Diante desse desafio que visa compreender e atuar em processos de saúde
entendidos como ameaçados pelo corpo gordo, sustento que é preciso voltar o
olhar, antes para a ciência e política que temos operado; nas suas abordagens,
técnicas de investigação e, sobretudo, para a fixidez de uma ideia de saúde
vinculada exclusivamente ao corpo magro. Em segundo é preciso ampliar e
considerar estudos que tomam a experiência com a gordura, algo central nas
definições de seus objetos, considerando que as experiências de corpos não
hegemônicos podem ser pensadas como um processo constante, numa prática de
atribuição simbólica e discursiva, que interfere sistematicamente na produção das
corporalidades. Propõe refletir a experiência corporal como contestação, ao passo
que expõe os modos de construção social do corpo, abrindo possibilidades de
mudança de paradigmas para a corporalidade gorda, enquanto categoria de
conhecimento e pensamento.
Desse modo, mulheres gordas e seus admiradores nesse trabalho oferecem
pistas para verificar meios de valorização da corporalidade gorda, a importância
disso, os mecanismos de exposição de sua potência e seus limites, no modo como
produz sentidos e significados próprios a partir dessas vivências. Isso pode orientar
o olhar da ciência e sociedade em relação aos modos como tradicionalmente
classificam-se gordas e gordos em função na norma.
Os achados e principais análises desse estudo, elencam: os usos eróticos do
corpo gordo como prática que o localizam como objeto de maior valor nessas
interações, o capital dessas trocas. Recupera-se a partir daí sentidos e potencias
sequestradas pelo discurso médico. A valorização de seus atributos, pode desdobrar
em modificações corporais e retomada dos cuidados em saúde, como produto desse
processo, e não o contrário. É preciosa a atenção a esse ponto pela compreensão
de como formas de abordagem e visibilidade positiva e negativa tem repercutido
distintamente sobre a plástica corporal gorda, sugerindo que mudanças discursivas
são necessárias, para a ciência e políticas, haja vista que estão constantemente
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
representados como algo ruim, a ser corrigido, ou nos termos de Wooley (2016) e
Cooper (1998), nas formas negativadas.
Em segundo, a circulação das imagens e o sistema de elogios tem criado um
sistema de valoração e visibilidade dos corpos gordos femininos, configurando meio
de aprendizado coletivo sobre esta corporalidade e seus atributos. Nesse processo,
alargam-se as fronteiras morais da feminilidade e da masculinidade, para abarcar o
corpo gordo e sensual, bem como a inclinação dos homens ante esse corpo. Esse
cenário revela a importância de espaços coletivos para vivencia e experiência da
corporalidade gorda, e o modo como eles têm reverberado em aprendizado sobre a
condição e elevação da autoestima, que constitui ponto nevrálgico da afirmação
dessa corporalidade como identidade.
De fato, as experiências de gordinhas e admiradores têm produzido
deslocamentos importantes nas vivências íntimas e nos modos de compartilhá-las
coletiva e publicamente, desafiando a indiscrição à qual o estigma da gordura
condena. Inversamente, a admiração e desfrute do corpo gordo feminino cria estilos
e uma estética – que o reorienta e o localiza num ponto entre o corpo hegemônico e
o bizarro, acenando que muitos outros sentidos pra diversas formas de corpo podem
habitar esse espectro.
Em terceiro, as experiências observadas constituem-se no enredo da
transição nutricional. Chamo atenção para o modo como essa corporalidade torna-
se mais comum, e mais pessoas a experimentam testando seu efeito mortificante,
configurando o estigma como desafio, que permite identificar tabus, constituindo
formas coletivas de derrubá-los.
Por fim, este trabalho assinala o que tem experimentado corpos gordos
femininos e jovens nessas interações. Também não trata de uma ode a
corporalidade gorda, e nem mesmo da defesa de que sobre ele não possam se
confirmar as morbidades para que ele tem sido o candidato preferencial. Não
obstante, o corpo gordo classificado como doente, inapto e incapaz, ameaçado com
a poluição da fronteira, constitui na atualidade um lugar de conflito entre a norma e a
desordem, desafiando compreendê-lo como prazer e perigo simultaneamente. A
tarefa, talvez, seja reconhecer que saúde e doença estão disponíveis para todos os
tipos de corpos, e pensar o que experiências como a das gordinhas e seus
admiradores têm produzido no sentido de afastar de si padrões e uma moral que o
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
condena a priori, urdindo para a necessidade de ampliar o leque pelo qual beleza,
feminilidade, juventude e saúde possam ser representadas.
A valorização do corpo e das mulheres gordas, com todos seus atributos e
simbolismo, nesta pesquisa, em certa medida cumpre esse papel, desenhando
estilos de sociabilidade que tensionam as concepções estruturantes da gordura
corporal como categoria de pensamento e conhecimento. O estudo dessas
mudanças merece toda atenção, de modo a compreender as operações do poder
instituinte da regulação da plástica corporal na sociedade contemporânea, bem
como o que pessoas e coletivos podem fazer com este.
Bibliografia
BAKER, J. Things no one will tell fat girls: a handbook of unapologetic living.
Berkeley, California: Seal Press, 2015.
BORDO, S.; HEYWOOD, L. Unbearable Weight: Feminism, Western Culture, and the
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California Press, 2004.
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JUTEL, A. Weighing Health: The Moral Burden of Obesity. Social Semiotics, v. 15, n.
2, p. 113–125, 1 ago. 2005.
LAQUEUR, T. Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud. Revised ed.
edition ed. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1992.
SFEZ, Lucien (1996) A saúde perfeita. Crítica de uma nova utopia. São Paulo:
Unimarco-Loyola.
WOOLEY, D. Aberrant consumers: Selfies and fat admiration websites. Fat Studies.
V.6. 2017. Dispnível em: http://dx.doi.org/10.1080/21604851.2017.1242356.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
2 Todos os nomes próprios aqui apresentados são fictícios com o objetivo ético de preservar a
identidade da escola e das/dos interlocutoras/es.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
PEDRO
- Minha mãe acha que foi de repente, mas não foi. Isso já vem desde
sempre, e com o tempo foi crescendo. Eu sempre gostei de futebol,
de carrinho, odiava bonecas, gostava de brincar com os meninos. Eu
sei que começar a transicionar é algo arriscado, que tem um custo,
que depois que você começa não pode retornar facilmente. Tipo eu
teria que tomar hormônios femininos, e isso tem um dano no corpo.
(Diário de campo 25.07.17).
meio que aceitou. Só que há uns cinco anos, ele disse que não
queria mais viver desse jeito. Entrou na Igreja. Então, não sei bem o
que ele fez, mas hoje ele tem um corpo de homem e se relaciona só
com mulheres. (Diário de campo 25.07.17).
Gisele
Gisele é uma jovem travesti que começou a sua transição acerca de três
anos. Sua primeira experiência com hormônios se deu a partir do momento que
foi expulsa de casa, quando a mãe descobriu a sua homossexualidade.
Ela foi morar com algumas amigas “viadas” e travestis que lhe aplicaram as
primeiras injeções de anticoncepcionais. Gisele retornou para a casa materna
após alguns meses, mas não deixou de fazer uso dos hormônios apesar das
críticas e negação de sua família acerca de sua expressão de gênero feminina.
Para a sua família Gisele não existe, quem existe é Gilson. Na escola Gisele é
profundamente engajada com a visibilidade LGBT, e tida enquanto referência
para as/os estudantes que saíram do “armário”, ou pensam em fazê-lo. Ela foi
a primeira travesti a ser eleita Rainha do Milho e coordena um grupo de dança
que se apresenta regularmente nos eventos da escola, e é formado por
estudantes que escapam dos pressupostos heteronormativos.
Gisele afirma que os hormônios a ajudam a ser o que ela é na realidade
alguém “bem garota”. Ele planeja no futuro realizar a cirurgia de redesignação
sexual, “mudança de sexo” para tornar-se uma “mulher trans”. Para isso Gisele
está guardando todo dinheiro advindo da prostituição e pagando uma
endocrinologista que a mandou interromper os hormônios que tomava por
conta própria. O que a deixa aflita sobre as possíveis perdas de sua
feminilidade, a diminuição dos seios e o aparecimento de pelos no rosto.
O hormônio é assim a expressão da feminilidade (LIONÇO, 2005:102).
No intervalo Gisele adora relatar suas experiências enquanto garota de
programa, e sempre conta com um número notável de ouvintes que
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Segundo Gisele:
3 Pênis.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Carlinha
4 Ânus.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
- Olha, ela era toda machinho antes. Mas aí o irmão dela foi preso,
por que era traficante. Foi um baita perrengue pra ela e toda a
família. Ele deixou muitas dívidas, e o pessoal ficou cobrando a
Carlinha. Pra pagar o pessoal que o irmão dela estava devendo. A
Carlinha começou a fazer aviãozinho5, só que pra isso precisava de
5 Jovens que fazem transporte de drogas, em pequenas quantidades, dos traficantes para os
usuários.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações Finais:
6 Cordões de prata.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas:
Resumo
Introdução
Paraíba. O seu nome é comumente escrito com a sigla do estado de origem para diferenciar do Botafogo
de Futebol e Regatas, o homônimo do Rio de Janeiro.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
A arquibancada é heteronormativa
quem eram eles. Pois o rival é sempre o “gay”, o “filho da puta”, o que “toma no
cu”, o “viado safado”. Enquanto que o jogador do time da casa é sempre
descrito e reverenciado como o “macho”, o “forte”, o “destemido”, o “brigão”.
A maioria do estádio costuma cantar em coro os xingamentos machistas
e homofóbicos contra o rival, com o argumento primeiro de desestabilizá-lo
num momento de decisão. Vi mulheres reproduzindo cânticos machistas. E, por
inferência, não é difícil imaginar que homossexuais possam igualmente ter
participado de cantos homofóbicos contra o outro.
Algo que Pierre Bourdieu vai chamar de “violência simbólica”, quando
“os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos
dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como
naturais” (2012:46). Trata-se, portanto, de uma “violência doce e quase
invisível” (2012:47).
Não é algo inato ao esporte, obviamente. Mas, como é praxe nestes
casos, trata-se de uma construção social que ultrapassa gerações e se inicia
ainda na infância do brasileiro:
3Ao longo de conversas informais, pude descobrir que a maioria é formada por professores, funcionários
públicos, profissionais liberais.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
Não aceitam intrusos. São marcados. Mas, aos seus modos, marcam também.
Não pretendem dividir o espaço destinado a elas com quem não seja um deles.
A idade, por sinal, é um outro marcador social da diferença que vai se
fazer presente no estádio e que vai ter papel decisivo nas posições de cada
torcedor no estádio. Como já dito, as torcidas organizadas são espaços de
maioria jovem. Convocadas para cantar o tempo todo, para pular, para se
movimentar agilmente de tempos em tempos. Não é lugar de gente velha,
lenta, com pouca mobilidade. Eis os sinais diacríticos mais uma vez à tona.
O torcedor idoso, portanto, fica à margem. Mais para as laterais das
arquibancadas. Ou para os degraus mais acima, mais longe do campo de jogo.
Longe do tumulto, do foco principal dos acontecimentos. Sempre afastado de
onde está localizado, por exemplo, os torcedores rivais. Fica, também, muitas
vezes sentado. Mas nem sempre.
É uma espécie de segregação. De cuidado ou preocupação com os mais
velhos, talvez. De colocá-los fora do agito. De excluí-los. Ou simplesmente
mantê-los à parte dos demais. Não importa o motivo, seja ele nobre ou não. O
fato é que é mais um comportamento pautado numa construção social, de algo
que não é natural, mas que acaba sendo “naturalizado” pelo costume.
forma, um mito. Pois, tal como no mundo exterior, tudo o que é diferente passa
a ser visto de uma forma ou de outra como estranho nas arquibancadas.
Evita-se o abraço no torcedor muito sujo, sugere-se parcimônia ao
torcedor muito velho, ri-se do torcedor muito bêbado, aponta-se ironicamente
para o torcedor “louco” que passa todo o jogo falando sozinho. Todos esses
exemplos são reais. Retirados das observações realizadas na Série C.
Tudo isso, aliás, está em consonância com o que diz Le Breton:
Conclusão
Referências
Livros:
Artigos em periódicos:
Artigos em coletâneas:
DE LEÓN, Adriano. 2011. Tem viado no gramado dos campos de futebol? Uma
proposta metodológica para analisar diferentes performances masculinas. In:
CharlitonMachado; MariaNunes; IdalinaSantiago (ed.). Olhares: gênero,
sexualidade e cultura. João Pessoa: Editora Universitária UFPB. pp. 47-72.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde
RESUMO
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS) em São Leopoldo/Rio Grande do Sul/Brasil.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
O presente artigo tem por objetivo principal investigar os modos de acesso dos
homens a PEP em um serviço de saúde visando à identificação de fatores associados
às limitações e possibilidades desta estratégia de prevenção do HIV. No cenário
epidemiológico atual, vários são os motivos para a implementação da PEP como parte
das política de prevenção ao HIV/Aids. Um dos principais problemas a serem
enfrentados diz respeito ao retorno de uma tendência de aumento na proporção de
casos entre os Homens que fazem Sexo com Homens - HSH2 nos últimos dez anos, a
qual passou de 34,6%, em 2004, para 43,2%, em 2013. Cabe ressaltar que, entre os
HSH, observa-se que a proporção de casos é superior entre aqueles com até 29 anos.
Ao analisar esses dados por região de residência, observa-se que há uma tendência
significativa de aumento da proporção de casos nessa categoria na Região Sul, assim
como no Sudeste e Centro-Oeste (BRASIL, 2014).
No Brasil, e no mundo, a PEP surge da ampliação do uso de antirretrovirais
como forma de prevenção da infecção pelo HIV em contexto específico de exposição a
materiais potencialmente infectados, em ambientes de exposição ocupacional, o uso
expandiu para as exposições ocorridos por violência sexual antecede, embora, se
associe a outras estratégias: testar e tratar, circuncisão masculina, Profilaxia Pré-
Exposição (PrEP) sexual e PEP. A primeira tecnologia mencionada diz respeito à
massificação da testagem para o diagnóstico do HIV que já vem sendo utilizado por
meio de campanhas como a “Fique Sabendo”, em todo o território nacional, e algumas
intervenções de testagem para populações específicas3. Ainda nessa direção, o projeto
“Viva Melhor Sabendo”, realizado em parceria entre organizações não governamentais
e o Departamento DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, objetiva a
2
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), populações-chave “são grupos definidos que,
devido a comportamentos de maior risco específicos, estão em maior risco de infecção pelo HIV,
independentemente do tipo da epidemia ou do contexto local”. A vulnerabilidade acrescida desses grupos
também se explica pelo fato de serem alvos comuns de discriminação e exclusão social, fenômenos que
têm afastando-as dos serviços e ações em saúde, e interferido negativamente na adesão ao tratamento
em caso de soropositividade. Compõem o grupo de populações-chave os homens que fazem sexo com
outros homens (HSH), travestis e transexuais, profissionais do sexo, usuários de drogas e pessoas em
prisões e outras instituições fechadas.
3 O Grupo Arco-íris – GAI, situado na cidade do Rio de Janeiro, realiza testagem na sua sede e o Grupo
Leões do Norte, situado na cidade do Recife, realiza testagem no carro que eles chamam “Kombi da
prevenção”. São ações piloto que tem apoio do DN DST/Aids e HV desde 2010.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
execução de projetos de testagem rápida com amostra de fluído oral entre populações-
chave4. Tais campanhas e intervenções, de acordo com os gestores de saúde, têm
como princípio a ideia de que quanto mais precocemente à pessoa souber de sua
condição sorológica, mais cedo iniciará o tratamento e poderá ter mais longevidade e
qualidade de vida. Recentes evidências que mostram uma redução de 96% na
transmissão para o parceiro soronegativo quando o parceiro soropositivo está em
tratamento para a doença (COHEN et al., 2011) têm fortalecido o desenvolvimento de
políticas de prevenção do HIV baseadas em estratégias biomédicas.
A circuncisão, embora ainda controverso, é outro método biomédico de
prevenção do HIV, diz respeito aos procedimento cirúrgico que consiste na remoção do
prepúcio, prega cutânea que recobre a glande do pênis por indicação médica ou
relacionadas à culturas religiosas. Algumas pesquisas realizadas na África
comprovaram que a circuncisão reduz entre 50 e 60% a infecção pelo HIV em homens
que declaram ter apenas relações heterossexuais, ou seja, somente haverá redução
significativa do risco de infecção para homens que fazem sexo com mulheres
soropositivas para o HIV (ABIA/GIV, 2011). Por enquanto, a mulher não infectada pelo
HIV não desfruta de nenhuma proteção se mantiver relações sexuais com um homem
HIV positivo5 (ABIA/GIV, 2011).
Por sua vez, a PrEP é a terapia com antirretrovirais de uso oral ou em gel 6 por
pessoas em risco de infecção iniciada antes da provável exposição ao HIV. A
segurança e a eficácia da PrEP foram analisadas em ensaios clínicos controlados
envolvendo casais heterossexuais sorodiscordantes (BAETEN et al, 2012), jovens
heterossexuais (THIGPEN et al, 2012) e HSH (GRANT et al, 2010), provenientes de
4
No Rio Grande do Sul as ONGs, no Edital 01/2015 para seleção de organizações da sociedade civil
para a realização de ações de testagem rápida do HIV com amostra de fluído oral entre populações
chaves, foram selecionadas no total de sete instituições.
5 Como não há resultados satisfatórios de proteção por meio de circuncisão em gays e homens que
fazem sexo com homens (HSH), e a epidemia de HIV/AIDS no Brasil está concentrada também nessa
população, não há recomendação oficial do Ministério da Saúde para implementar essa política, ainda
que, mesmo com menor impacto, seja um método de barreira e que estudos realizados na África do Sul e
nos Estados Unidos demonstrem a redução da transmissão de outras DSTs, como o herpes genital, em
25% dos casos, e o HPV, em 35%. (ABIA, 2011)
6A PrEP Oral, que, nos estudos atualmente em curso, se caracteriza pelo uso por via oral de comprimidos
de Tenofovir ou Truvada (Tenofovir combinado com Emtricitabina); A PrEP Tópica, que tem sido,
principalmente, pesquisada na forma de gel de Tenofovir. Trata-se de um tratamento, ainda em teste no
Brasil, que disponibiliza antirretrovirais para pessoas soronegativas para prevenir a não infecção ao HIV.
(ABIA/GIV, 2011)
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
7
A recomendação do uso da PEP prevê que esta deve ser iniciada, preferencialmente, nas primeiras 2
horas ou no limite de 72 horas após a exposição sexual ao HIV, utilizando, por 28 dias, os medicamentos
zidovudina (AZT), lamivudina (3TC) e tenofovir (TDF) ou AZT, 3TC e Lopinavir/ritonavir (LPV/r), com
acompanhamento clínico e sorológico por seis meses. Para os casos com parceria HIV+ em uso de
antirretrovirais o esquema terapêutico é avaliado em consonância ao esquema utilizado pela parceria.
8 Relação consensual é quando não se trata de violência e/ou estupro.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
9
A Linha de Cuidado para Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e outras DST tem como objetivo
orientar os municípios na organização das Redes de Atenção a Saúde (RAS). Apresenta diretrizes e
recomendações gerais que subsidiam a definição de atribuições entre os níveis de atenção, buscando
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Cachoeirinha, Gravataí, Guaíba, Caxias do Sul, Rio Grande, Santana do Livramento e Uruguaiana.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Gays e outros HSH são mais escolarizados, têm maior
poder aquisitivo e acessam mais o serviço público de saúde que os homens em geral,
junho 17, 2010. Disponível em: http://www.aids.gov.br/noticia/gays-e-outros-hsh-sao-
mais-escolarizados-tem-maior-poder-aquisitivo-e-acessam-mais-o-servico (Acessado
em 18 de outubro de 2014).
SAÚDE, Secretária Estadual do Rio Grande do Sul. Linha de Cuidado para Pessoas
Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e outras DST. Porto Alegre: Secretária Estadual de
Saúde do Rio Grande do Sul, 2014.
2 Entendidas no sentido de Jasanoff (2004, p.5) como práticas e processos pelos quais um
conjunto de ideias ganha supremacia sobre outros concorrentes ou falha em fazer isso.
3 A vacina quadrivalente é composta pela combinação de proteínas de quatro subtipos virais:
4O verbo performar (diferente de performatizar) trata-se de uma opção pela tradução do termo
enact proposto por Annemarie Mol (2004).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
modo que não é só a realidade do HPV que está em jogo, há muitas outras
envolvidas, como a da sexuação do corpo em polos binários.
O Relatório 82 começa com o tópico intitulado “A Doença”. No entanto,
ao longo do texto seria possível ler a doença à que o título se refere como a
infecção por HPV, como câncer de colo do útero ou como lesões percursoras
desse câncer. O HPV é descrito como um vírus de transmissão sexual e de alto
potencial transmissivo, sendo que 75% dos indivíduos que iniciaram sua vida
sexual seriam infectados em algum momento. Logo em seguida, o HPV é a
“causa necessária, ainda que não suficiente” para o câncer cervical, o qual
seria um problema de saúde pública principalmente “nas regiões mais pobres
do mundo”. No entanto, o texto também reconhece que nem toda infecção por
HPV vai evoluir para câncer, sendo que a maioria dessas infecções é
assintomática e auto-resolutiva, 80% regrediria sem intervenções (BRASIL,
2013, p.4). Dessa forma, a infecção por HPV é ao mesmo tempo algo com uma
probabilidade grande de não precisar de intervenção, mas pode “evoluir” para
“o câncer”.
Ainda na apresentação da doença, vale destacar também a menção aos
“fatores associados”, que, embora listados, não são apresentados com a
respectiva previsão de ação em relação a eles, de forma que a tecnologia
agiria na prevenção ao evitar apenas o agente infeccioso, a “causa
necessária”.
Outros fatores foram identificados como associados à presença de
lesões pré-cancerosas e desenvolvimento do câncer de colo do útero:
início precoce da atividade sexual, promiscuidade do parceiro, sexo
anal, múltiplos parceiros, imunossupressão, multiparidade,
precocidade da idade materna no primeiro parto, fumo, uso a longo
prazo de contraceptivos hormonais, co-infecção por Chlamydia
trachomatis ou vírus Herpes simplex e fatores relacionados à dieta
(BRASIL, 2013, p.4, grifo meu).
não começa com a “descoberta” do HPV como “causa necessária”, mas vai se
produzindo ao longo da história desse câncer.
Além dessa descrição da doença, o Relatório 82 aborda também os
estudos de custo efetividade, bem como uma análise de impacto orçamentário,
além de um pequeno histórico das discussões sobre a implantação no MS.
Antes da decisão da CONITEC (de 05/09/2013), em 31/10/2012 o Ministro da
Saúde anunciou a decisão de realizar uma parceria de desenvolvimento
produtivo da vacina HPV para o começo da vacinação em 2014. Assim, o que
me parece possível perceber após a leitura do documento da CONITEC, é que
a “decisão” pela incorporação (ou o processo que permitiu que a vacina fosse
incorporada) talvez tenha sido anterior (e concomitante) à análise da
CONITEC, embora este seja um passo fundamental e que antecederia,
segundo as normas burocráticas, a incorporação de uma tecnologia no SUS
(derivando de tal análise, inclusive, um processo de “consulta pública”). Nesse
sentido, o Relatório 82 reúne articulações heterogêneas, que ocorreram
anteriormente e em paralelo, no esforço de estabilizar um entendimento sobre
o problema de saúde pública e a melhor forma de intervenção, justificando a
incorporação da tecnologia da vacina.
A discussão sobre essa incorporação começou no MS com o registro da
primeira vacina pela ANVISA em 2007, com a criação de Grupos de Trabalho e
Comitês nos anos seguintes, sendo que até 2012, nos documentos a que tive
acesso (SILVA et al. 2008; INCA, 2010; BRASIL, 2012; NOVAES, 2012,
BRASIL, 2013), não houve um posicionamento favorável à incorporação. Em
todos os documentos acessados, é recorrente a menção a algumas “lacunas”
no conhecimento acerca da vacina. E muitas delas são apontadas também
pela Consulta Pública realizada pela CONITEC, contudo sem ser totalmente
respondidas e sem afetar efetivamente a implantação da vacinação como
recomendado pela Comissão.
Haveria incertezas quanto aos resultados finais da vacinação, na
medida em que os estudos comprovariam eficácia somente quanto à redução
das lesões pré-cancerosas. O desenvolvimento do câncer em pessoas
infectadas com HPV poderia demorar até 20 anos e não foram realizados
estudos com essa amplitude – essa duração entre a produção e as vendas não
seria interessante para indústria. Além disso, não se sabe a duração da
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
5No primeiro ano (2014) foram vacinadas meninas de 11 a 13 anos, em 2015 meninas de 9 a
11, e em 2016 o foco da campanha se tornou as meninas de 9 anos.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências
SILVA, E.; CONTI, M.; ELIAS, F.; LARANJEIRA, F. 2008. Eficácia, segurança,
custo-efetividade e impacto orçamentário da vacina contra o Papiloma
Vírus Humano (HPV) na prevenção do câncer de colo de útero – infecção
persistente por HPV e lesões precursoras. Parecer Técnico Científico e
Impacto Orçamentário. Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia
e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia.
1
1Departamento de Medicina Preventiva/FMUSP; 2 Escola Fiocruz de Governo/ Fiocruz Brasília; 3 Núcleo de Estudos
para a Prevenção da AIDS (NEPAIDS/USP); 4Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica
de Santos
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
Erving Goffman (1978) definiu estigma como um tipo especial de relação
entre atributo e estereótipo que resulta em profundo descrédito do indivíduo.
Alguns atributos como, por exemplo, ter HIV, a cor da pele negra, entre outros,
se destacam por configurarem expectativas normativas em relação aos
indivíduos. Tais exigências correspondem a uma identidade social virtual em
que as características atribuídas ao indivíduo ocorrem por um retrospecto em
potencial. O estigma potencializa a discrepância entre esta identidade social
virtual e a identidade social real, entendida como a categoria e os atributos que
o sujeito, efetivamente, prova possuir (GOFFMAN, 1978). Já os estereótipos
podem ser compreendidos como generalizações culturais e normativas que se
expressam de forma abusiva (atinge uniformemente todos os membros de um
grupo), extrema (conotação superlativa) e são, frequentemente, mais negativos
do que positivos (LIMA, 1997).
Goffman também afirmava que temos uma tendência a inferir uma série
de imperfeições a partir de uma ‘imperfeição original' e que somos todos, em
algum momento da vida, estigmatizados. Na melhor das hipóteses, somos
‘desacreditáveis’ se não já ‘desacreditados’ e, dessa forma, a relação entre
normais e estigmatizados assemelha-se mais a um continuum, por vezes
intercambiável, do que a uma polarização propriamente (GOFFMAN, 1978).
Assim, o manejo interpessoal do estigma por meio do controle da
informação potencialmente prejudicial é crítico para que indivíduos
‘desacreditáveis’ possam recorrer ao acobertamento do estigma, não revelando
informações que denotam seu atributo de descrédito por temerem as sanções
sociais.
Parker & Aggleton (2003) partem da concepção original de estigma, mas
criticam a ênfase dada por Goffman ao estigma como um “atributo
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Procedimentos Metodológicos
Baseamo-nos em dados do Estudo Combina!, que analisa a efetividade
do uso da PEP sexual em serviços públicos de saúde de cinco cidades
brasileiras. O Combina! apresenta dois componentes, um epidemiológico e
outro qualitativo, e é neste último que nos apoiamos neste trabalho. Foram
entrevistadas 57 pessoas que buscaram espontaneamente PEP sexual nos
anos de 2015 e 2016, incluindo mulheres (trabalhadoras sexuais e não-
trabalhadoras sexuais) e homens (heterossexuais, bissexuais e
homossexuais).
As entrevistas foram orientadas por roteiro que contemplou aspectos
como conhecimento sobre PEP sexual, motivações para buscar a profilaxia e
experiência de uso da profilaxia no âmbito social e familiar. Ressalte-se que o
roteiro original não focalizou o estigma como temática central, embora aspectos
relacionados ao estigma, preconceito e discriminação tenham emergido em
muitas entrevistas. Assim, selecionamos para esta análise excertos de
narrativas que remetem ao estigma relacionado ao HIV Aids como parte da
experiência de fazer uso da PEP sexual. A Tabela 1 apresenta uma síntese
das características dos entrevistados incluídos na presente análise.
As entrevistas foram realizadas por pesquisadores treinados, em local
privativo nos serviços de saúde, mediante o aceite ao convite em participar e a
anuência no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A duração média
das entrevistas foi 40 minutos e todas foram transcritas na íntegra.
Os dados foram analisados considerando os seguintes procedimentos:
leitura exaustiva de cada entrevista; estabelecimento de categorias temáticas;
organização e análise do material segundo essas categorias; e cotejamento
dos conteúdos das categorias com a literatura existente e com referências
teóricas sobre estigma, preconceito e discriminação. O software NVivo foi
utilizado para extração de dados das categorias previamente delimitadas e
como recurso auxiliar na análise temática de conteúdo.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resultados
Antecipação do Estigma
Os resultados mostram que o estigma da aids com frequência interfere
na experiência de uso da PEP sexual. De maneira geral, os entrevistados
adotam estratégias para não revelar que estão em uso da profilaxia por
temerem ser estigmatizados. Há, assim, um movimento de antecipação do
estigma, no qual a principal estratégia é o controle da informação sobre o uso
da profilaxia. A experiência costuma ser compartilhada com uma ou poucas
pessoas de confiança, embora alguns optem por não comenta-la com ninguém.
Medo, vergonha e receio são palavras que aparecem nas narrativas de
entrevistados ao explicarem os motivos para não revelar o uso da PEP:
Não [conversei com ninguém]. Tive medo. Vergonha também, né?[Conversei] só
comigo mesmo, eu guardei tudo. Guardei tudo. Fui acumulando, acumulando.
[Foi] péssimo, péssimo. Não tô muito bem, ainda. Tô com muito medo, muito
receio, né? Mas busquei agora um acompanhamento psicológico". (Aislan, 30
anos, homossexual)
O temor de ser "confundido" com uma pessoa que vive com HIV resultou
na adoção de uma série de cuidados. Alguns manifestaram preocupação de
serem vistos em serviços especializados em aids ou ainda de portar materiais
que identificassem esses serviços, como nos conta Ramon:
Assim que eu saí daqui [do serviço], eu já aboli a sacolinha preta, né? (...)
Porque eu não queria ser visto com essa sacola porque automaticamente,
entendeu? As pessoas iam perceber que eu tava ali com a medicação pra HIV.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
(...) Um amigo até brinca: se você vê um veado no terminal [de ônibus] com um
saquinho preto, saiba que ele veio do [nome do serviço especializado em aids].
(Ramon, 31 anos, homossexual)
Meu maior medo era minha mãe [descobrir]. Então tirei o rótulo, por que no
rótulo diz HIV e tal...e daí, principalmente, se ela achasse, ela não ia entender
que eu tava fazendo uma profilaxia, ela ia achar que eu tava infectado, ia
começar a chorar. (Noel, 33 anos, homossexual)
Eu não quero pegar o HIV porque eu sei que é uma coisa muito inconveniente.
Eu ia ter que passar o resto da minha vida com esses remédios (...). E também
tem o estigma ainda das outras pessoas. Eu acho ia ser mais difícil eu
conseguir um relacionamento, um parceiro, porque é mais difícil encontrar
alguém porque as pessoas costumam estigmatizar isso. (...) Essa seria minha
maior preocupação. (Roberto, 32 anos, homossexual)
Essa história de dizer "gente, olha, vive vinte, quarenta [anos com HIV]",
mentira! E eu não quero viver nem mil anos com HIV, eu não quero ter HIV de
jeito nenhum! E é muito leviano de quem quer vender essa história, de que é
uma doença de que não mata mais, você vive lindo, feliz, pode casar. Mentira.
Mentira, mentira. É terrível, é um bicho de sete cabeças, é sim! O que se faz é
prolongar a vida, se vive muito mal, entendeu? A sobrevida é terrível. Ainda
tem muito preconceito. (Ramon, 31 anos, homossexual)
minha vida eu achava que se desse positivo ia ser tudo ok. Então, como um
quase positivo, eu já vi que não era tudo ok pra mim. (Marcone, 19 anos,
homossexual)
[Minha família] nem imagina [que ele tem HIV]. A minha família ela é muito
preconceituosa. (...) nunca aceitaria eu estar com um soropositivo e nunca
iriam me perdoar por eu ser soropositiva por opção. (...) Minha família [iria]
perguntar 'porque que tu ficou com ele se no primeiro dia que vocês sentaram
e conversaram ele te disse que era [soropositivo]?'. (Ana Flávia, 42 anosl)
caso de Pablo, a descoberta veio da família e ele conta que foi possível
explicar e até ir com eles ao serviço de saúde posteriormente. Já Danilo abriu a
situação para os colegas de trabalho. Diferentemente de outros entrevistados –
que criaram histórias sobre o porquê de estarem se sentindo mal, não estarem
bebendo ou que solicitaram ao médico cuidado em atestados de trabalho para
que não identificassem nada relacionado ao HIV –, Danilo não escondeu que
os problemas digestivos que estava tendo eram causados pela PEP:
Então, assim, precisei espalhar isso. As pessoas sabiam o que estava
acontecendo. Muitas vezes me viram saindo correndo pra ir no banheiro
vomitar. E aconteceu mesmo no meio do trabalho, eu tava tomando café,
conversando e vinha do nada e tinha que voar pro banheiro, senão eu
vomitava no caminho. (Danilo, 27 anos, homossexual)
Discussão
Neste estudo, exploramos como o estigma da aids interfere no uso da
PEP sexual entre pessoas que buscaram espontaneamente este método em
serviços públicos de saúde. Embora não tenhamos identificado narrativas em
que o estigma da aids tenha impedido a adesão ao medicamento - o que pode
ser explicado, em parte, pelo fato dos entrevistados serem pessoas que deram
prosseguimento ao acompanhamento no serviço - é notável nas experiências
dos usuários da PEP sexual como o estigma da aids interferiu na gestão da
informação e da tomada dos medicamentos, acrescentando dificuldades para a
efetiva consecução do tratamento profilático.
A experiência de uso da PEP sexual transporta para os indivíduos sãos
– pessoas que, em princípio, não estão infectadas pelo HIV – o atributo social
da doença, gerando considerável sofrimento e angústia para elas e reforçando
a estigmatização das pessoas que vivem com HIV. Assim, nos termos do
interacionismo simbólico, a eficiência do indivíduo nas estratégias de controle
da informação sobre o uso do método se torna central para que ele não ocupe
a posição de ‘desacreditado’.
Tomar a PEP é percebido como uma antecipação do estar com aids. O
‘desacreditado’ com menor valor da hierarquia social é justamente a pessoa
que tem HIV e, com isso, o maior temor dos entrevistados é ser
equivocadamente considerado soropositivo. Com efeito, as narrativas ilustram
ocasiões em que o controle da informação ‘falhou’ e teve como consequências
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
a associação imediata com ser uma pessoa que vive com aids e, até mesmo, a
efetiva discriminação por ser julgada como alguém que tem aids.
Além disso, há aqueles que já na busca pela PEP se apresentam, de
certo modo, como ‘desacreditados’. O sentimento de vergonha ao chegarem ao
serviço de saúde, independentemente do ‘olhar externo’, e a projeção de um
futuro com HIV – representado pela impossibilidade de manter vínculos com
parceiros afetivos e com a família e por uma saúde precária – simbolizam a
busca pela PEP como confirmação e consequência do diagnóstico de HIV.
Diferentemente do preservativo, que as pessoas se orgulham em dizer
que usam e que representou a possibilidade de uma certa liberdade para que
as práticas sexuais diante da ameaça da aids, a PEP é associada à vergonha.
Em parte, isso se explica por sua associação a situações indesejadas e
acidentais de potencial exposição ao vírus, situações que são elas mesmas
estigmatizadas – trabalho sexual, relações homossexuais, extraconjugais ou
com pessoas que vivem com HIV.
Em suma, nossos resultados mostram que o estigma da Aids permeia
tanto a busca como o uso da PEP, contribuindo para invisibilidade e
subutilização desse método preventivo. Indicam, portanto, a necessidade de
integrar intervenções sociais focadas no enfrentamento do estigma às ações
desenvolvidas nos serviços de saúde e à implantação de tecnologias de
prevenção baseadas no uso de antirretrovirais. Reconhecemos que a
ampliação de métodos para a prevenção do HIV, sobretudo os baseados no
uso dos antirretrovirais, é um avanço importante para o enfrentamento da
epidemia e que a variedade de métodos ofertados tem potencial para ampliar
as opções de prevenção e, com isso, ampliar a chance da população
incorporá-los às suas práticas sexuais (GRANGEIRO E COLS, 2015). Contudo,
reiteramos com base nos dados desse estudo o que vários autores no campo
dos estudos sociais sobre a epidemia (KENWORTHY E COLS, 2017; FERRAZ
E PAIVA, 2015; KIPPAX E NIAMH, 2012) têm destacado : para assegurar a
efetividade da proteção de quaisquer métodos de prevenção do HIV é preciso
criar condições sociais que favoreçam seu uso consistente e apropriado,
promovendo diálogo sobre sexualidade, gênero e direitos, eliminando barreiras
de acesso aos serviços e desconstruindo estigmas associados à aids.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
FERRAZ, Dulce; PAIVA, Vera. 2015. Sexo, direitos humanos e AIDS: uma
análise das novas tecnologias de prevenção do HIV no contexto brasileiro.
Revista Brasileira de Epidemiologia, 18, Suppl 1, 43-62.
SONTAG, Susan. 1989. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das
Letras.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Trabalhadora
Judith 32 Católica, NP Não Não Sexual Heterossexual Branca São Paulo
Cabelereiro e
Juliano 22 Católico, P Não Não estudante Homossexual Negro Fortaleza
Acredita em Ribeirão
Juno 23 Deus Não Não Call Center Homossexual Pardo Preto
Mário 40 Não tem Sim Não Médico Homossexual Branco São Paulo
Desenvolvedor de
Michael 29 Católico, NP Não Não Sistemas Heterossexual Branco Curitiba
Umbandista e Porto
Miqueias 19 espírita Sim Não Atendente Homossexual Negro Alegre
Porto
Nelson 58 Católico, P Não Sim Aposentado Heterossexual Branco Alegre
Assistente
Noel 33 Não tem Não Não financeiro Homossexual Pardo Curitiba
Trabalhadora
Patrícia SI Católica, P Não Sim Sexual Heterossexual SI Curitiba
Sim,
Plínio 32 Não tem mulher Não Funcionário Público Bissexual Branco Ribeirão
Roberto 32 Não tem Não Não Professor de inglês Homossexual Branco São Paulo
Trabalhadora
Rosa 39 Não Sim Sim Sexual Heterossexual Branca São Paulo
Trabalhadora
Simone 27 Várias Não Sim Sexual Heterossexual Indefinida São Paulo
Ribeirão
Victor 46 Católico, NP Não Sim Atendente e livreiro Heterossexual Branco Preto
1
Doutoranda do Instituto Fernandes Figueira/IFF/Fiocruz/RJ.
2
Professora e Pesquisadora do IFF/Fiocruz/RJ.
3
Professora e Pesquisadora do IFF/Fiocruz/RJ.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Para Monteiro (2013), esse olhar sobre a estética dos corpos contribui
para uma “exclusão” das mulheres soropositivas e com lipodistrofia por não “se
enquadrarem” em tal padrão de beleza e estética.
A lipodistrofia
HIV/aids mudanças
sobre o corporais são
corpo: A percebidas e
construção vividas pela
da PVHA.
corporeidade
”.
Mulheres e Dissertação Saúde Através de 2013 Analisar como Qualitativa Mulheres
lipodistrofia ligada Coletiva currículo de a lipodistrofia
ao HIV: uma pesquisador associada ao
abordagem de HIV/aids afeta
gênero. a vida das
mulheres
soropositivas
em uma
abordagem de
gênero.
Percepções e Tese Sociologia Através de 2013 Tratar das Qualitativa Mulheres
sentidos da aids, do uma percepções e
corpo, da dissertação sentidos
sexualidade e do atribuídos a
amor entre aids, ao corpo,
mulheres vivendo a sexualidade e
com HIV: um ao amor por
estudo a partir da mulheres
análise de vivendo com
trajetórias de vida HIV – a partir
da análise de
suas trajetórias
de vida.
Representações de Dissertação Enfermagem Através de 2012 Compreender Qualitativa Homens e
pessoas com outra representações mulheres
HIV/aids sobre o dissertação de pessoas
corpo: A construção com HIV/aids
da corporeidade sobre o corpo e
suas
interações,
após o
diagnóstico da
infecção.
Atenção à saúde das Dissertação Política Através de 2010 Compreender e Qualitativa Mulheres
mulheres vivendo Social outra interpretar as
com HIV e Aids no dissertação percepções das
Distrito Federal: um mulheres
estudo sobre a vivendo com
síndrome HIV e aids
lipodistrófica. sobre a atenção
integral à sua
saúde em
relação à
síndrome
lipodistrófica
vivenciada por
elas.
A vida crônica é Dissertação Medicina Através de 2006 Compreender a Qualitativa Homens e
novidade na aids: as artigo experiência da Mulheres
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
transformações da enfermidade
aids aguda para a dos pacientes
aids crônica sob o de aids no
ponto de vista dos contexto da
pacientes aids crônica.
Transformações da Artigo Saúde Scielo 2008 Apresentar e Qualitativa Homens e
“aids aguda” para a Coletiva comparar as Mulheres
“aids crônica”: mudanças
percepção corporal corporais
e intervenções percebidas por
cirúrgicas entre pessoas que
pessoas vivendo vivem com
com HIV e aids. HIV e aids,
ocorridas nos
últimos anos
da epidemia,
com a
utilização dos
antirretrovirais.
Discussão
10
Nenhum dos entrevistados do estudo de Ivo, no momento da pesquisa, apresentavam sua “[...] condição
sorológica expressa no corpo” (Ivo, 2012: p.85).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
11
Assintomáticas (carga viral baixa e CD4 em alta).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências bibliográficas
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
1
Filiação: Integra: Grupo de Estudos, Intervenção e Educação em Psicologia, Cronicidades e
Políticas Públicas em Saúde. Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da
Universidade de Brasília. Brasil.
2 Departamento de Psicologia, Faculdade de Educação. Universidade Eduardo
Mondlane.Moçambique.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Polejack (2005) aponta algumas revisões de literatura que trazem fatores que
influenciam nesse processo da adesão como o próprio sujeito, a doença em si, o
tratamento, questões interpessoais e o contexto social e organizacional. Nessa
perspectiva, a saúde é vista como um processo multifatorial em que a produção de
saúde e doença é influenciado fortemente pelas dimensões sócio-econômicas e
políticas vivenciadas pelas coletividades (Fonseca, 2007). Torna-se necessária,
além da conscientização dos profissionais, a elaboração de políticas públicas que
acessem diferentes níveis da vivência da população de um país para a efetiva
promoção de saúde, ampliação de acesso e melhoria da qualidade de vida desses
(Polejack, 2007).
É importante ter atenção ao fenômeno da globalização, em que países mais
desenvolvidos, a partir das experiências realizadas em seus territórios, transferem e
financiam algumas políticas públicas específicas para países em via de
desenvolvimento. Tais transferências, podem ocorrer de diversas formas, como
lições de aprendizagem coercitiva até imposições diretas (Milani e Lopes, 2014).
Segundo o mesmo relatório de 2016 da UNAIDS, a maioria das pessoas que
vivem com aids moram em países da região sul e leste do continente africano.
Dessa forma, é necessário que a produção científica acerca desses assuntos possa
se voltar às especificidades e necessidades dos governos e populações desta
região do globo, de forma a fortalecer atores locais e instrumentalizar a elaboração
de políticas públicas que sejam capazes de dar conta das problemáticas envolvidas
no esforço de combate à epidemia, especialmente na promoção à adesão devendo
estar contextualizadas, levando em consideração as necessidades e prioridades da
população. Nesse sentido, é importante que as informações sejam consistentes e
fidedignas para melhor contribuírem com o desenvolvimento das políticas públicas
e, consequentemente, que estas sejam essenciais para influenciarem positivamente
a qualidade de vida dos indivíduos - principalmente no contexto de vulnerabilidade.
Considerando-se o contexto de Moçambique e o histórico do HIV/Aids,
conforme Polejack (2007), observa-se a importância de construir políticas públicas
alinhadas aos direitos humanos, apoio psicossocial, desenvolvimento econômico e
governamental, bem como a capacitação profissional e redefinição dos aspectos
relacionados ao gênero, para que a adesão ao tratamento seja eficaz de modo
global, atingindo os pacientes, profissionais e trabalhando com a prevenção.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
está ilustrado na tabela 1. Para organizar a análise, foi atribuída uma numeração
para cada artigo, assim como é descrito na tabela 2. Nesta tabela estão
sumarizados dados essenciais sobre os artigos, a saber: o título da publicação, a
nacionalidade dos sujeitos estudados e a nacionalidade dos pesquisadores que
realizaram cada estudo. Enquanto as pesquisas com populações brasileiras foram
feitas por pesquisadores nativos (com exceção do estudo 8 que contou com a
participação de portugueses), das 12 pesquisas analisadas feitas em outros países,
11 contaram com uma participação expressiva de pesquisadores estrangeiros,
principalmente estadunidenses, ingleses, belgas, suecos e franceses.
As metodologias adotadas variaram entre desenhos quantitativos, qualitativos
e mistos. Os objetivos mais mencionados nos estudos eram: a) Oferecer suporte a
pessoas soropositivas e aumentar a adesão; b) Avaliar, propor, comparar e
melhorar modelos de intervenção; c) Envolver a comunidade no apoio a adesão; d)
Envolver a família, aumentar sua coesão e espaço de diálogo; e) Aumentar o
suporte social e diminuir o estigma; f) Facilitar e ampliar acesso a serviços de
saúde. Os níveis de análise e intervenção incluíram o nível familiar, comunitário,
individual e o multinível. Dos estudos analisados, 86% sugerem que as intervenções
propostas sejam implementadas por meio de políticas públicas governamentais,
equipes multiprofissionais e trabalhadores comunitários. Apenas 6 estudos traziam
explicitamente definições de adesão. A maioria dos que o fizeram levaram em
consideração múltiplos fatores (biopsicossociais) e colocaram como necessário um
envolvimento ativo do paciente no processo de cuidado como um todo, mas alguns
apenas citavam a tomada de MARV, o comparecimento a consultas e o acato a
instruções como indicadores de adesão.
Além disso, apenas 11 dos 23 estudos informaram quais eram as instituições
financiadoras dos seus projetos. Dentre as entidades citadas temos: National
Institutes of Mental Health, USAID-AMPATH, PEPFAR, National Institutes of Allergy
and Infectious Diseases (International Epidemiologic Databases to Evaluate AIDS –
East Africa Regional Consortium), National Institutes of Mental Health, Médicos Sem
Fronteiras, entre outros. Quanto à estrutura das intervenções sugeridas pelos
pesquisadores, separamos os estudos em setes diferentes categorias: a)
Aconselhamento e cuidado de base domiciliar; b) Atividades de grupo com
familiares; c) Aconselhamentos antes e depois do envolvimento da família; d)
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
e, a partir disso, dar sugestões superficiais sobre como deveria ser tratada a
questão do apoio. Esse tipo de sugestão geral não deixa de ser importante, mas
contribui pouco para processos de elaboração de políticas públicas se não for
melhor estruturada, testada e avaliada em microssistemas reais.
Também constatamos que grande parte dos estudos encontrados que
tratavam do suporte familiar apenas tratavam de famílias de crianças e
adolescentes soropositivas, com menor disponibilidade de artigos que reconheciam
como importante que famílias de adultos soropositivos sejam envolvidas no TARV.
Consideramos que isso seja problemático, pois a infecção de um membro de uma
família pelo vírus HIV traz consequências para toda a organização desse grupo,
seja essa pessoa um adulto ou uma criança. O contrário também verdadeiro, pois
os rituais familiares e a coesão familiar interferem na forma com que é construído o
ajustamento psicológico e a qualidade de vida de pessoas soropositivas, podendo
facilitar ou dificultar a adesão (Biale, 2014).
Pode-se dizer que colocar a família em segundo plano no tratamento de
adultos é uma consequência da predominância de um referencial ocidental
individualista no meio acadêmico. Em situações em que não há dependência direta
de outras pessoas, como ocorre entre crianças e seus cuidadores, questões sociais
são deixadas de lado e sujeitos são vistos como indivíduos isolados. Essa lógica se
torna ainda mais problemática quando existem tentativas acríticas de aplicá-la a
contextos não-ocidentais, em que as relações interpessoais e familiares são ainda
mais valorizadas culturalmente. Associado a este problema, encontramos outra
tendência preocupante. Pôde ser observado na tabela 2 que houve participação
expressiva de pesquisadores estrangeiros em estudos feitos em contextos de
baixos recursos e, além disso, que todas as 11 publicações que declararam os seus
financiadores contaram com fundos concedidos por entidades estrangeiras. A partir
disso, e levando em conta as relações de poder vigentes entre “países que
financiam” e “países que recebem financiamento”, devemos nos atentar para o teor
das estratégias propostas e de que forma envolvem comunidades e governos locais.
Por exemplo, os estudos que compõe a categoria “Apoio econômico e
qualidade de vida das famílias” propõe um modelo que perpassa pela capacidade
dos governos locais de oferecer assistência alimentícia e financeira para pessoas
soropositivas em situação de vulnerabilidade, que, de um ponto de vista
orçamentário, dificilmente poderia ser feito sem financiamento estrangeiro. E ao
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Anexos:
Nacionalidade Nacionalidade
Nacionalidade dos Nacionalidade dos
N.º Título dos sujeitos pesquisadores N.º Título dos sujeitos pesquisadores
An interdisciplinary study
exploring how health
communication can most
effectively explain Adherence to
Antiretroviral Medication antiretroviral treatment:
(ART) and motivate comprehensive care
adherence among young bades on the care model
1 people África do Sul África do Sul 13 for chronic conditions Brasil Brasil
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Vietnam.
Referências
AGINS BD (2004). “Promoting Adherence to HIV Antiretroviral Therapy.”In: Aids Institute New York
State Departament of Health.Editing Johns Hopkins University School of Medicine- Division of
infections diseases
MILANI, C. R. S., Lopes, R. N. (2014) “Cooperação Sul-Sul e Policy Transfer em Saúde Pública:
análise das relações entre Brasil e Moçambique entre 2003 e 2012.” Carta Internacional, 9(1), 59-78.
MKHIZE, N. (2004). “Psychology: An African Perspective.” Em: D. Hook (Ed.) Critical Psychology.
República da América do Sul: Creda Communications.
2. VAN ROOYEN, Heidi; ESSACK, Zaynab; ROCHAT, Tamsen; WIGHT, Daniel; KNIGHT, Lucia;
BLAND, Ruth; e CELUM, Connie. 2016.“Taking HIV Testing to Families: Designing a Family-Based
intervention to Facilitate HIV Testing, Disclosure, and intergenerational communication”. Frontiers in
Public Health. 4(154).
3. LEMOS, Társilla; PEREIRA, Eliane; COSTA, Daniela; SILVA, Rose; SILVA, Marcos; OLIVEIRA,
Denize. 2016. “Atuação do profissional de saúde junto à família com HIV/AIDS”. Revista Cubana de
Enfermaria. 4(32).
7. DURGANTE, Vânia; BUDÓ, Maria; GUIDO, Laura. 2015. “Mulheres com AIDS: disponibilidade e
satisfação do suporte social”. Ciência, Cuidado e Saúde. 14(1).
8. LEVANDOWSKI, Daniela; PEREIRA, Marco; DAS DORES, Silvana; RITT Gabriela; SCHUCK,
Lara; SANCHES, Isabela. 2014. “Experiência da gravidez em situação de seropositividade para o
VIH: Revisão da literatura brasileira”. Análise Psicológica. 32(3).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
11. MORENO, Diva; REIS, Alberto. “Revelação do diagnóstico da infecção pelo HIV no contexto do
aconselhamento: a versão do usuário”. Temas em Psicologia. 21(3).
12. GADISAL, Tsigereda; TYMEJCZK, Olga; KULKARNI, Sarah; HOFFMAN, Susie; LAHUERTA,
Maria; REMIEN, Robert; YIGZAW, Muluneh; DABA, Shalo; ELUL, Batya; NASH, Denis; MELAKU,
Zenebe. 2016. “Disclosure History Among Persons Initiating Antiretroviral Treatment at Six HIV
Clinics in Oromia”. AIDS and Behavior. 21(1).
13. FIUZA, Maria; LOPES, Emeline; ALEXANDRE, Herta; DANTAS, Patrícia; TERESINHA, Marli;
GALVÃO, Gimeniz; PINHEIRO, Ana. 2013. “Adherence to antiretroviral treatment: comprehensive
care bades on the care model for chronic conditions”. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem.
17(4).
14. RASSCHAERT, Freya; DECROO, Tom; REMARTINEZ, Daniel; TELFER, Barbara; LESSITALA,
Faustino; BIOT, Marc; CANDRINHO, Baltazar; VAN DAMME, Wim. 2014. “Adapting a community-
based ART delivery model to the patients’ needs: a mixed methods researchi n Tete, Mozambique”.
BMC Public Health.
15. SANTOS, Jacinta. 2011. “Alteração do paradigma da gestão dos cuidados à pessoa com
infecção VIH : um modelo centrado nos cuidados de saúde primários”. Dissertação de Mestrado.
Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa.
16. NGOMANE, Joaquim. 2015. “Motivação e desafios dos voluntários provedores de cuidados
domiciliários a doentes padecendo de SIDA: os casos das associações Ahitipaluxene e Kubatsirana,
incluindo os seus respectivos membros localizados nas cidades de Maputo e Chimoio”. Dissertação
de Mestrado, Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane.
18. MCCOY, Sandra; NJAU, Prosper; CZAICKI, Nancy; KADIYALA, Suneetha ; JEWELL, Nicholas;
DOW, William; PADIAN, Nancy. 2015. “Rationale and design of a randomized study of short-term
food and cash assistance to improve adherence to antiretroviral therapy among food insecure HIV-
infected adults in Tanzania”. BMC Infeccious Diseases. 15(490).
19. HONG, Steven; FANELLI, Theresa; JONAS, Anna; GWESHE, Justice; TJITUKA, Francina;
HEEHAN, Heidi; WANKE, Christine; TERRIN, Norma;JORDAN, Michael TANG, Alice. 2014.
“Household Food Insecurity Associated with Antiretroviral Therapy Adherence Among HIV-infected
Patients in Windhoek, Namibia”. National Institutes of Health. 67(4).
20. CARDIM, Mariana; NORTE, Monique; MOREIRA, Martha. 2013. “Adesão de crianças e
adolescentes à terapia antirretroviral: estratégias para o cuidado”. Revista de Pesquisa Cuidado é
Fundamental. 5(5).
21. VAN TAM, Vu; LARSSON, Mattias; PHARRIS, Anastasia; DIEDRICHS, Björn; NGUYEN, Hoa;
NGUYEN, Chuc; HO, Phuc; MARRONE, Gaetano; THORSON, Anna. 2012. “Peer support
and improved quality of life among persons living with HIV on antiretroviral treatment: a randomised
controlled trial from north-eastern Vietnam”. Health and Quality of Life Outcomes. 10(53).
22. FREDRIKSEN-GOLDSEN, Karen; SHIU, Cheng-Shi; STARKS, Helene; CHEN, Wei-Ti; SIMONI,
Jane; KIM, Hyun-Jun; PEARSON, Cynthia; ZHAO, Hongxin; ZHANG, Fujie. 2010. “`You Must Take
the Medications for You and for Me`: Family Caregivers Promoting HIV Medication Adherence in
China”. AIDS Patient Care and STDs. 25(12).
23. VAN GRIENSVEN, Johan; DE NAEYER, Ludwig; UWERA, Jeanine; ASIMWEE, Anita; GAZILLE,
Claire; REID, Tony. 2008. “Success with antiretroviral treatment for children in Kigali, Rwanda:
Experience with health center/nurse-based care”. BioMed Central Pediatrics. 8(39).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
A partir de etnografia virtual que vem sendo conduzida em uma rede social na
internet e da experiência do autor como pessoa vivendo com HIV/aids (PVHA),
busca-se analisar o discurso da cronicidade, bem como seus efeitos, na atual
configuração do dispositivo da aids no Brasil. A disponibilidade e o acesso a
medicamentos antirretrovirais no Sistema Único de Saúde possibilitaram a
construção social de uma “aids de antes” (doença fatal) e de uma “aids de
agora” (doença crônica). Nesse sentido, argumenta-se que tal deslocamento se
deu a partir da produção de um discurso da cronicidade sobre a condição de
viver com HIV/aids que tem possibilitado a operação de tecnologias do eu
(automonitoramento, autovigilância, autodisciplina, autorresponsabilização,
autocontrole, adesão e autosilenciamento) próprias das doenças compridas.
Em tempos de maturidade da epidemia, o suposto caráter de longa duração
dessa infecção tem resultado, por exemplo, no silenciamento e invisibilidade
das PVHA, em sociabilidades virtuais mediadas (ou não) pelo anonimato, na
produção de novas identidades clínicas (indetectável, soropositivo, pessoa
vivendo) e no borramento dos marcadores sociais da diferença. Diante disso, a
partir desse caso particular, este estudo discute as intencionalidades do
discurso da cronicidade e seu papel nas ações e estratégias do dispositivo da
aids. Faz-se isso por meio do questionamento do estatuto de verdade dessa
adjetivação e da ratificação do caráter transmissível da infecção e das
condições de vulnerabilidade que determinam socialmente sua nova fase de
expansão, em termos epidemiológicos, na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Experiência com adoecimentos e sofrimentos de longa
duração; HIV/aids; Políticas de saúde; Dispositivo da aids; Cronicidade.
1
Uma versão inicial deste ensaio foi apresentada na mesa redonda “Aids, sexualidade e
ativismo: 35 anos de epidemia e lutas sociais” durante as atividades do “Colóquio Saúde,
Sexualidades e Ativismo Biossocial: perspectivas e estudos antropológicos” promovido pelo
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) nos dias 05 e 06 de outubro de 2017. Sou grato, portanto, aos professores
Carlos Guilherme Octaviano Valle, Mónica Franch, Luís Felipe Rios e Rozeli Porto cujas
discussões contribuíram para o adensamento das reflexões.
2
Doutor em Ciências pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Atualmente é
estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal da Paraíba e Professor Adjunto, área
de Saúde Coletiva, no curso de Medicina da Escola Multicampi de Ciências Médicas da UFRN,
campus Caicó. Professor do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRN,
campus Santa Cruz. Líder do Laboratório de Pesquisas Sociais em Medicina e Saúde –
LAMES/UFRN/CNPq.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
“Tenho sorte por estar vivendo com o HIV neste momento da história,
quando a cronicidade tem, gradativamente, roubado o lugar da
sentença de morte. Mas, ainda assim, o estigma e a moralidade que
cercam as pessoas que, como eu, vivem com o HIV nos rouba o
direito do acalanto da família. A cada dia, tenho me convencido de
que viver com o HIV é uma condição para si e uma ‘doença do outro’!
Espero o dia em que o tempo que percorre o meu sangue faça-me
sentir forte o bastante para enfrentar esse ‘outro’”. (Caicó-RN, 15 de
agosto de 2016. Diário pessoal do autor).
3
Fui diagnosticado em 30 de maio de 2015 após testagem rápida. Resolvi fazer o teste após
um amigo ter sido diagnosticado naquele mesmo mês. Além disso, saber da condição desse
amigo acionou as memórias de um teste rápido que eu mesmo fiz em mim, em abril de 2014,
durante um plantão num hospital universitário, cujo resultado considerei como falso-negativo.
Com isso, mantive o teste em segredo e não busquei uma confirmação do seu resultado,
seguindo a vida como se nada tivesse ocorrido.
4
Já trabalhava com este referencial desde meu Doutorado quando estudei pessoas que vivem
com diabetes tipo 2. Posteriormente, pesquisei a experiência de pessoas que vivem com a
Síndrome de Berardinelli-Seip no sertão do Rio Grande do Norte.
5
Segundo, pois o primeiro armário em que vivi foi o do silêncio/segredo/negação da
homossexualidade.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
6
Cumpre destacar a mudança recentemente proposta pelo Ministério da Saúde nesta sigla. Em
vez de PVHA, a política de saúde agora traz a PVHIV (pessoa vivendo com HIV). Alguns
grupos do movimento social de aids têm se posicionado contrários a tal mudança, uma vez que
se trata de estratégia de apagamento da aids nos documentos e discursos oficiais.
7
É importante destacar que na última década, o número de grupos de apoio/ajuda mútua
organizados por Organizações Não Governamentais em aids (ONG/aids) é cada vez menor.
Em cidades pequenas, contextos rurais e etnicamente diferenciados essa ausência pode ser
ainda mais sentida. Sobre o mundo social da aids nos anos 1990-2000, ver Valle (2008) e
Pelúcio (2009).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
8
Desde que ingressei no grupo, a participação dos moderadores e administradores é muito
pequena diante do volume de postagens/comentários e de temáticas. Em geral, eles intervêm
em situações de conflitos e discussões (as “tretas”) entre membros, em comunicados que
visam reiterar as regras de convivência no grupo, em postagens administrativas ou de
recepção/convite de novos membros e na divulgação de ações dos colaboradores da Rede em
outras redes e mídias sociais. Em algumas postagens eles são incitados a “falar”,
principalmente sobre temas que problematizam a atual situação da política pública de aids e a
atuação do Ministério da Saúde – eu mesmo já fiz isso algumas vezes, porém seus
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
10
Tal afirmação se fundamenta nos resultados de uma revisão sistemática dessa literatura em
fase de finalização por um grupo de pesquisadores vinculados ao LAMES/UFRN/CNPq.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
11
Sobre o dispositivo da aids nessas décadas, ver Pelúcio & Miskolci (2009).
12
Tais análises não negam que a cronicidade para o HIV é uma conquista das lutas sociais
que se travaram desde a década de 1980 e cujos resultados é uma possibilidade de vida mais
digna para as PVHA e uma estratégia de enfrentamento do estigma e dos preconceitos.
Porém, o que se destaca aqui são os usos sociais e políticos que tal conquista também passa
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde. 2013. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas
para manejo da infecção pelo HIV em adultos. Brasília: Ministério da Saúde.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
CUNHA, Claudia Carneiro da. 2012. “Os muitos reveses de uma “sexualidade
soropositiva”: o caso dos jovens vivendo com HIV/AIDS”. Sexualidad, Salud, y
Sociedad – Revista Latinoamericana, 10:70-99.
FERZACCA, Steve. 2000. “‘Actually, I don’t feel that bad’: managing diabetes
and the clinical encounter”. Medical Anthropology Quartely, 14(1):28-50.
KAFKA, Franz. 1997. A metamorfose. 39ª reimp. São Paulo: Companhia das
Letras.
ROSE, Nikolas. 2001. “The politics of life itself”. Theory, Culture & Society,
18(6):1-30.
ZAGO, Luis Felipe & SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos. 2013. “Os limites do
conceito de empoderamento na prevenção ao HIV/Aids entre jovens gays e
bissexuais no Brasil”. Physis – Revista de Saúde Coletiva, 23(3):681-701.
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé – Faculdade de Medicina;
Consultório na Rua/SMS-RJ.
2
Fundação Oswaldo Cruz – Instituto Oswaldo Cruz/LEAS.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
Metodologia
Resultados e Discussão
Sobre as mulheres
A faixa etária das oito entrevistadas variou entre 38 a 79 anos, com
prevalência de idade superior a 50 anos. Entre suas biografias, destacam-se
marcas das desigualdades sociais e de gênero, como experiências de violência
doméstica, dependência econômica em relação ao parceiro, dificuldade de
divisão de tarefas domésticas e sobrecarga de trabalho, acrescida de
responsabilidades de cuidados de familiares não compartilhados.
A maioria reside na Zona Norte do Rio de Janeiro. Duas concluíram o
ensino superior; cinco, pelo menos o ensino médio; uma não concluiu o
fundamental. Observa-se possível relação entre a escolaridade e a inserção no
mercado de trabalho, com trajetórias de ocupações profissionais em atividades
de baixa remuneração ou vínculos precários. No momento da entrevista,
grande parte recebia benefícios (em geral, o benefício de prestação
continuada) e estava ausente do mercado de trabalho, sobretudo em função do
diagnóstico do HIV. Somente uma exercia atividade remunerada numa
ONG/aids.
Todas declaram que não tiveram experiências homo ou bissexuais. As
práticas sexuais, em geral, eram desprotegidas e havia dificuldade na
negociação do uso do preservativo, principalmente nas relações conjugais
estáveis. A infecção do HIV resultou, sobretudo, de relações sexuais
desprotegidas com parceiros/maridos, já falecidos devido a aids ou parceiros
instáveis. Duas atribuem à infecção a transfusão de sangue, uma delas num
episódio de abortamento clandestino. O contexto de descoberta do HIV, a
maioria na década de 1990, deu-se pelo adoecimento próprio ou do parceiro,
no pré-natal e numa triagem para doação de sangue; apenas uma delas fez um
teste num contexto de avaliação geral da saúde.
Todas realizam tratamento regular para a infecção, a maioria em
serviços da rede pública de saúde, com acompanhamento médico e, algumas
com equipe multiprofissional, realização de exames periódicos e aquisição do
tratamento antirretroviral (TARV).
3
Entre os estudos encontrados, cujo foco de análise é o contexto brasileiro, destacam-se:
Carvalhaes, Teixeira, 2012; Silva, Castro-Silva, 2011; Ramos, 2010; Farias, Dimenstein, 2006;
Zaquieu, 2006; Castro-Silva, 2009; Galvão, 2002.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
4
Expressão discutida por Lévi-Strauss (1975), em suas análises sobre as dimensões
simbólicas da cura xamanística e a relação com a psicanálise.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
PARKER, Richard. 2011. Grassroots activism, civil society mobilization, and the
politics of the global HIV/aids epidemic. The Brown Journal of World Affairs,
17(2): 21-37.
VALLA, Victor Vicent. 2001. O que a saúde tem a ver com a religião? In:
VALLA, Victor Vicent (org). Religião e Cultura Popular. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, p.103-139.
Resumo
Introdução
análise das práticas e saberes na prevenção das DST/Aids”, sob orientação de Simone
Monteiro e Carlos Otávio Fiúza Moreira (ENSP-Fiocruz).
7 Tecnologia utilizada segundo critérios díspares em cada serviço: alguns priorizam gestantes,
“grupos vulneráveis” ou pessoas muito “ansiosas” pelo resultado.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
olhar, porque eu acho que se olhar vou chegar na sala com uma cara assim de
“deu problema””. Nesses casos, a trajetória do usuário é retomada
detalhadamente a partir das informações do formulário individual utilizado nos
CTA.
Às vezes pergunto: Qual é a sua expectativa? Você acha que você tá? Eu
já vou preparando a caminha. Às vezes a pessoa chega nervosíssima.
Então calma, vamos primeiro aguardar o resultado da parceira e tal ....
Não deixo ninguém sair daqui sem que eu perceba o impacto do primeiro
momento. Deixo ela chorar ou eu deixo ela falar, mas eu quero ver falar
sobre isso, ninguém positivo fica mudo e vai embora. Eu falo: “Pensa alto
um pouquinho pra gente conversar sobre isso”. “Ah não, eu já sabia, eu
tinha uma esperança que eu não tivesse, mas eu tive o resultado antes,
eu fiz em outro lugar”, aí as pessoas falam, entendeu. (Quésia, psicóloga)
9 As ações de suporte emocional do grupo são atravessadas pelo que Scheer (2012) define
como “práticas emocionais”, isto é, modos de fazer e de dizer que se expressam e são
vivenciados nos gestos, nos movimentos e na linguagem verbal.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Esse hospital é um lugar que não é bem visto né?, pelas pessoas, que é
muito lotado, que os pacientes são maltratados, “ah, então não, não quero
ir lá, não quero ir porque ali tem muita gente que morre lá” Fica difícil, né?
Como você vai dar uma referência dessa, você devia ter uma referência
boa para a pessoa se sentir tranquila. Lá eu sei que ele pode ser tratado,
mas desse jeito o negócio já ta estigmatizado, já é um matadouro, já é um
horror.
Tem que ser uma coisa diferenciada, você vai lá conversa com a
assistente social explica qual é a sua situação, marca pelo menos uma
consulta que eles sabem que não vai ser para agora, vai ser lá para
janeiro, nós estamos em novembro. Mas ele tem que ter um vínculo, como
é que ele vai ficar sem atendimento. O que eu faço com essa pessoa?
Você faz a sua parte mas não tem como seguir. Ai você fica preocupado,
para essa pessoa ficar bem, encaminhar, tratar ... dá uma frustração.
(Bianca, fisioterapeuta)
Referências
10 Diretriz que recomenda o início precoce da TARV entre adultos com HIV,
independentemente do estágio clínico da infecção ou da contagem do CD4, respeitando o
consentimento do usuário (ver Brasil, 2015).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Trajetória
no CTA
Seudónimo Sexo Idade Formação (anos)
Aline F 50 Técnica de enfermagem 11
Bianca F 42 Fisioterapia 5
Camila F 49 Farmácia 7
Gabriela F 60 Sociologia 20
Helga F 52 Enfermagem 4
Irma F 50 Psicologia 19
Joana F 31 Psicologia 8
Luana F 30 Psicologia 6
María F 52 Enfermagem 3
Nino M 30 Enfermagem 5
Roberto M 60 Enfermagem 18
Sandra F 35 Enfermagem 5
Resumo:
As respostas à Aids foram, e ainda são, fruto de contextos sociais e científicos
específicos. As considerações aqui presentes fazem parte de pesquisa de
doutorado, ainda em andamento, cujo o objetivo principal é construir uma
narrativa antropológica acerca do fenômeno da Profilaxia de Pré-Exposição
(PrEP), a fim de analisar os desdobramentos que a implementação deste tipo
de tecnologia provoca nas representações políticas da epidemia. Para esta
apresentação, buscamos demonstrar que a PrEP simboliza uma mudança
significativa no paradigma de prevenção. A partir da revisão sistemática da
literatura sobre as estratégias de prevenção do HIV elaboradas ao longo dos
anos e da etnografia documental realizada em arquivos da Organização
Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde nacional a respeito do uso de
medicamentos como artifício preventivo (diretrizes, recomendações e
protocolos), argumentamos que a PrEP está inserida no cerne de um discurso
preventivo centrado no indivíduo e elaborado em torno das noções de
autonomia, responsabilidade e gestão da sexualidade (através do dualismo
“risco e prazer”). Ademais, nos lançamos especialmente ao desafio de pensar
como este método será implementado no Sistema Único de Saúde (SUS) uma
vez que o cenário de crise política e econômica não aparenta qualquer alívio.
Com o anúncio da PrEP, será necessária a dupla distribuição de fármacos:
para prevenção e para tratamento. Logo, é possível sustentar um modelo
preventivo que prevê maior circulação de insumos? E então nos perguntamos,
a adversidade pode reestabelecer estratégias que reconciliem abordagens
mais pedagógica e coletiva da prevenção?
1
Mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Bolsista CAPES. E-mail de contato:
[email protected]
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
2
Autores mais críticos como Biehl (2007) argumentam que a política de acesso universal ao
medicamento não é de fato universal. Podemos ter mecanismos facilitadores de aquisição dos
ARVs, mas não há meios institucionais de generalizar esse acesso, ficando restrito às classes
trabalhadoras, médias e altas, excluindo os miseráveis.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Figura 1:
Conclusão
4
As proibições do material de educação sexual nas escolas apelidado sarcasticamente de ‘kit
gay’ (https://goo.gl/eTYQJ3) e da campanha "Eu sou feliz sendo prostituta" sobre prevenção de
DSTs entre profissionais do sexo (https://goo.gl/2dxIR) demonstram o quanto o
conservadorismo religioso pode afetar negativamente as tentativas de se construir, na
sociedade civil, um debate qualificado e necessário sobre sexualidade e prevenção.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
AYRES, José Ricardo de Carvalho et al. “Vulnerabilidade e prevençäo em
tempos de Aids”. In: Sexualidades pelo avesso: direitos, identidades e poder.
Editora 34, 1999.
BIEHL, J. “Introdução e Capitulo II”. In: Will to live. Princeton University Press.
2007.
Introdução
Esta comunicação, baseada no método etnográfico, busca investigar as relações
entre prazer e risco existente nos “roteiros sexuais” (Gagnon, 2006) entre homens que
frequentam espaços comercias ou organizam eventos voltados ao sexo principalmente no
contexto urbano da cidade do Rio de Janeiro. Partindo da observação de que termos
como “prevenção”, “cuidado” e “risco” são polissêmicos, isto é, seus significados e usos
são relacionais e contextuais, busco nesse trabalho compreender como esses termos são
ali ressignificados ou onde tomam sentidos originais próprios em suas práticas,
principalmente na “tensão libidinal” entre o prazer e o risco. Tomo como objeto de análise
as práticas sexuais percebendo em que medida dimensões “sensoriais” e “sensuais”
também mobilizam decisões e escolhas, colocando em cheque a racionalidade
instrumental prevalente no campo da saúde. Práticas sexuais são entendidas aqui como
experiências sociais e subjetivas, interseccionadas por fatores como gênero, etnia, classe,
sexualidade, idade etc. que influenciam significativamente os sentidos atribuídos pelos
sujeitos às suas ações.
Autores como Silva e Iriart (2010) apontam como no campo da prevenção da
infecção pelo HIV, “uma das dificuldades é se comunicar de modo adequado com grupos
populacionais com comportamentos considerados de maior risco para a saúde, o que
enfatiza a necessidade de problematizar modelos e referências utilizados na construção
de projetos para a prevenção do HIV”. No caso HSH, por exemplo, as “convenções
sociais acerca de gênero e de sexualidade que norteiam classificações, condutas e
identidades sexuais devem ser consideradas ao pensarmos tais campanhas” (Gamboa,
2013, 16). Nesse sentido, pensar como são negociadas a prevenção para esses homens
é pensar a maneira como se constrói determinados “roteiros de gênero” e “roteiros
sexuais” em contextos específicos. Fica destacado, portanto a importância de estudos
etnográficos nesses contextos e sua contribuição para a construção de conhecimento
sobre dimensões dos “roteiros sexuais” e sua relação com as práticas sexuais
enquadradas como comportamentos para a prevenção de doenças, o cuidado de si e a
avaliação dos “riscos” – ou a ausência/falta delas.
Apresento aqui alguns dos dados e das questões que apareceram durante o
trabalho de campo para a realização de minha Tese de Doutorado em Antropologia,
recentemente publicada em livro (Barreto, 2017). Ali realizei uma análise sobre a prática
do sexo grupal/coletivo realizada entre homens em reuniões ou eventos de orgia. Mais
especificamente uma etnografia de festas de orgia entre homens que acontecem na
cidade do Rio de Janeiro.
O desenvolvimento desse trabalho deu-se do acompanhamento durante dois anos
e meio (do início de 2013 à metade de 2015) de quatro dessas festas de orgia que
acontecem periodicamente no Rio2. Elas acontecem em torno de uma ou duas vezes ao
mês, uma delas semanalmente, em diferentes locais da cidade seja em clubes, saunas,
apartamentos comerciais, ou mesmo em um sítio ou em um barco. Dessas quatro festas,
duas fazem o que eles chamam de processo seletivo, isto é, há uma escolha ou avaliação
do público que pode entrar no evento. E as outras duas são abertas a quem quiser ir,
desde que corresponda à exigência de ser homem e a um perfil de masculinidade
desejado, é claro. O número de participantes varia muito, mas fica em torno de 150 a 200
homens naqueles eventos que não exigem seleção e no máximo 50 naqueles onde há o
processo seletivo.
Prazer e risco
uns 30% devem usar mesmo. Claro que tem aqueles que já trazem
camisinha e gel de casa, já vêm preparados, gostam de um determinado
tipo ou marca e tal. As que eu tenho são aquelas de posto, pessoal
reclama... Mas mesmo assim, eu vejo porque sou eu que ajudo a limpar
tudo no final, né? (organizador)
Ou como me resumiu outro organizador: “não sou fiscal de foda de ninguém, sei
que tem bareback (sexo sem camisinha), mas meu papel eu faço, forneço o kit-foda”.
Segundo os organizadores, portanto, seria da responsabilidade de cada um o cuidado de
si mesmo, não são “babá de homem grande”, “até porque todo mundo sabe que vários
soropositivos frequentam a festa”. Ser soropositivo aqui é muito mais tido como uma
categoria de acusação (principalmente daqueles que “se jogam” mais) do que uma
condição que seja assumida de forma aberta e pública. Mas, certa vez, presenciei uma
exceção: numa roda de conversa com uns dez homens na área dos armários ao final de
uma festa onde o tema debatido era a PrEP e um dos presentes se pronunciou: “eu acho
ótimo! Principalmente para mim que sou soropositivo”. A informação foi recebida com um
silêncio constrangedor ao que ele continuou: “mais alguém aqui é? (novo silêncio) Claro
que tem mais, só que ninguém tem coragem pra falar isso, né?”.
Um dos fatores mais práticos para se deixar o preservativo de lado me foi apontado
por um participante: “como é que eu vou carregar camisinha e gel pelado desse jeito? A
galera aqui guarda dentro da cueca ou então colocam dentro da meia, até já vi gente com
uma bolsinha pendurada no pescoço tipo aquelas pra carregar documento e dinheiro no
Carnaval, sabe? Acho desconfortável”.
Imagina, você está naquela coisa intensa no banheiro que fica em uma das
pontas da sauna. Aí para pegar camisinha você tem que ir lá na recepção
que fica lá do outro lado da sauna. Você vai conseguir interromper, pausar,
descer até o seu armário ou então na recepção, pegar os apetrechos, voltar
e continuar de onde parou? Ou então pensando que você tá no meio de
uma galera como é aqui. Não tem como... Você consegue?
interação, mas a não obrigatoriedade se você for o ativo, “só coloco se pedem, senão vai
sem mesmo”. Esse pensamento seria justificado pela ideia de que é só quando você esta
sendo passivo é que tem mais chance de se contaminar com alguma coisa. Ou de como
após uma interação sem o preservativo que eu acompanhei, aquele que estava sendo o
passivo se virou e disse para o outro: “nossa, que loucura! A gente nem chegou a usar
nada!” e o outro respondeu: “Pode ficar tranquilo, eu sou casado”. Como se o fato de
estar casado o fizesse uma pessoa com menos perigo de contaminação, mais pura.
A ideia das práticas e dos “prazeres perigosos” é preciso ser olhada com mais
atenção. O “se jogar”, se arriscar, ou se colocar numa situação de potencial perigo
principalmente naqueles relativos a algum tipo de contaminação não acontece por algum
desconhecimento ou falta de informações técnicas sobre formas de contágio. Nem
mesmo uma “atitude rebelde” de desobediência ao controle médico dos “poros e das
paixões” (Perlongher, 1985). O que eu percebo é a elaboração de um conhecimento
outro, próprio, que usa de vários elementos, sejam eles vindos do saber médico, do
cotidiano, e/ou de experimentações próprias. O que há ali é uma “ciência do concreto”, a
elaboração de um saber construído e posto em prática (nem por isso menos “científico”)
sobre o que é risco, o que é perigoso, sobre formas de contaminação e maneiras e
técnicas para evitá-las3.
Se expor ou não a algo é um “cálculo infinitesimal” feito a partir do prazer que se
sente, da intensidade da interação e do que se percebe como riscos menores ou maiores.
Tomemos um exemplo para que fique mais claro, o do sexo oral: durante todo o trabalho
3Em “O Pensamento Selvagem” (1989), Lévi-Strauss argumenta contra a ideia de que os povos indígenas
tenham algum tipo de lógica ou pensamento menos racional que a dos europeus e chamou o pensamento
elaborado pelos nativos de “ciência do concreto”. O autor argumenta que havia ordem e método no que a
princípio poderia ser classificado como associações caóticas entre elementos da natureza como plantas e
animais e sua relação com instituições sociais. “Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo
sentido, de seu excesso”.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
de campo nunca observei alguém fazer sexo oral usando preservativo; ainda que essa
seja uma recomendação médica, sabe-se que a possibilidade de contaminação por esse
ato é muito pequena. Uma quantidade muito pequena de risco principalmente diante da
quantidade de prazer que proporciona. Isso não quer dizer que não haja várias técnicas.
Ainda no exemplo do sexo oral sem preservativo vários conhecimentos são
compartilhados: você precisa observar se o pau é muito “babão” (ou seja, se ele libera
muito líquido seminal); se sim, você pode guardar o líquido na boca e cuspir de tempos
em tempos, evitando engolir a “baba”. É melhor evitar a ejaculação direto na boca, se não
conseguir evitar, uma opção é que o esperma seja imediatamente cuspido; se não quiser
ou não conseguir cuspir, então que ele seja engolido rapidamente (“o ácido do estômago
mata todos os vírus, é mais fácil se contaminar na boca que no estômago”); lavar a boca
com enxaguante bucal depois é outro cuidado para se diminuir os riscos de alguma
contaminação. Contrário a esse “ensinamento”, certa vez ouvi no banheiro: “se você fez
sexo oral eu não indicaria fazer isso (usar o enxaguante bucal). Listerine tem ácido e pode
machucar”. Trata-se de um conjunto de conhecimentos, receitas pessoais e uma
determinada medicina particular criada e compartilhada pelas pessoas ali. Há toda uma
ideia do que se pode ou não fazer, do que pega ou não pega, do que é risco ou não,
enfim, uma profilaxia própria. Não é só a hierarquização de riscos, é uma elaboração
própria de conhecimento, tal como uma “ciência do concreto”.
Outro exemplo é o da própria penetração anal: deve-se primeiro reparar no pênis e
evitar os “paus babões”. Se a interação estiver caminhando para o não uso do
preservativo, começa-se colocando o pênis aos poucos: “vou só brincar, só colocar a
cabecinha, só mais um pouco”. O uso de bastante gel ou saliva para evitar o atrito é
recomendado. Se a penetração sem a camisinha ocorrer de fato, que se evite os
movimentos bruscos ou uma penetração mais agressiva, “assim você não rompe vaso
nenhum, não se machuca, mas é preciso estar bem relaxado e nunca, nunca, deixe gozar
dentro, porque esse é que é o perigo todo, sempre fora”.
Percebe-se toda uma gradação de riscos em que uma série de cálculos deve ser
feita para dosar o que é mais ou menos perigoso aliado ao quanto de prazer pode ou não
proporcionar. Assim são decididos e negociados os usos de preservativos, o contato com
o esperma, as práticas sexuais em geral. “Qual o perigo de pegar alguma coisa com isso?
Qual o prazer que me proporciona? O quanto estou disposto?”; são perguntas feitas a
todo momento, a cada nova interação e a cada nível de intensidade das práticas. Além
disso, outros fatores são agenciados nesses cálculos como a apresentação corporal do
outro, cheiros, toques, cor, idade etc. Você pode estar mais disposto a determinadas
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
práticas com uma pessoa que com outra levando esses fatores em consideração, aqueles
que, por inúmeras razões, podem “te passar mais confiança” (Gamboa, 2013).
Claro que a erotização dos riscos é algo que aparece, que não é necessariamente
o mesmo de algum desejo ou procura pela morte, mas sim de eventos ou situações que
envolvem um risco “tornando a própria vida parte integrante do jogo que se quer
jogar” (Rocha, 2011, 63). Se assemelha ao que os praticantes de esportes radicais
pesquisados por Verônica Rocha colocam como uma tensão que traz um sentido à vida
que se quer viver: colocar a vida em risco e “brincar” com ela não é de forma alguma
procurar a morte, mas sim intensificá-la, o risco e o perigo libertando de uma “morte em
vida”. O desejo de estímulos sensoriais que proporcionem um modo de vida “original”,
“grandioso”, “prazeroso”, “ativo” e “excitante” (op.cit., 78).
Não que a opção mais extrema pelo perigo também não possa ser tomada. A
prática sexual bareback e seus riscos implícitos também é muito desejada nesses
espaços4. Durante o trabalho de campo foi possível perceber a organização de várias
outras festas paralelas que se colocam como exclusivamente de prática bareback , e
também de eventos de “roleta russa” ou mesmo de “festas de conversão”, onde sabe-se
da presença de soropositivos e joga-se com uma situação de possível contaminação. São
festas diferentes (e mais específicas) daquelas que pesquisei, mas que, de certa forma,
também as atravessam, com participantes que frequentam ambas. Mas mesmo nas
festas de orgia é possível ver práticas onde se deixa “gozar dentro”, “engolir o gozo”,
“tomar o leite”, “espalhar ele pelo corpo” ou mesmo de relatos de participantes que
recolhiam camisinhas usadas do chão dessas festas para tomarem o gozo ou se
banharem. Lembro da minha surpresa ao ver um interlocutor conhecido saindo do meio
de uma aglomeração no dark se aproximar de mim e pegar minha mão para passar na
perna dele e dizendo sorrindo: “é porra seca. Tô todo colado. Acho que uns dois gozaram
4Sobre a prática barebacking, conferir artigo de Garcia (2009) que problematiza a origem do termo e busca
trazer algum entendimento sobre esse desejo dentro de um contexto maior de políticas de saúde e do que o
autor chama de “terrorismo biológico”.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
dentro”, levou a minha mão a seu ânus e disse: “sente, coloca a mão aqui para você ver
como ela está escorrendo”. Por ser uma pessoa com a qual estabeleci um contato maior
não pude evitar a reprodução de um discurso normalizador e de cuidado com a saúde, ao
que fui rebatido com um “tenho o meu direito a me foder se eu quiser”, para o qual não
tive resposta. Meu choque vinha de uma dificuldade inicial de entender (ou aceitar) que
também se pode optar pelo risco, por um caminho perigoso (ou por uma outra noção de
“cuidado”) em prol de outra coisa, daquilo que se acredita que seja o melhor. Esse direito
se relaciona com o que eles chamam de “ligar o foda-se” se jogando perdidamente no
intensivo, no excesso, em uma linha de abolição.
Na tensão entre prazer e risco, os elementos do consentimento e da
responsabilidade voltam com força, seja para consigo mesmo e/ou também com o outro.
O que meus interlocutores apontam é que mesmo os riscos também precisam ser
consentidos e que suas consequências cabem à responsabilidade individual:
“Cara, eu vi gente ali que nem via quem metia nelas, ainda mais se estavam
com camisinha ou se aquela camisinha estava sendo usada em outro. Saía
um, outro ocupava o lugar e o cara nem aí”
“Eu acho que o outro tem que ter caráter, uma coisa é o cara avisar pra
você: ‘Olha, eu sou soropositivo. Você quer fazer com ou sem camisinha?’
Ou mesmo que ele não tenha nada, tem que acordar antes! Se o cara tenta
sem perguntar, eu fico desconfiado e não transo mais com a pessoa”
“Se você tá chupando o cara, ele tem que te avisar que vai gozar antes, isso
pra mim é muito básico. Pra você se preparar, pra poder decidir se deixa ou
não. E se eu não quero? E se eu não gosto de porra? E mesmo que eu
goste, quem disse que eu vou querer engolir a tua? Eu fico muito puto
quando o cara acha que pode gozar. A mesma coisa de querer gozar no
rosto ou no cu e, principalmente essa coisa de camisinha, é “de bom tom”
pedir antes, não tô falando nem de educação não, por uma coisa meio de
ética também, sabe? Como é, já vai sair gozando ou metendo assim?”
No limite, portanto, a decisão de fazer “com capa” ou “no pelo” e do contato mais
direto com o esperma do outro deve ser acordada consensualmente e é de
responsabilidade individual de cada um. Porém, durante o trabalho de campo repercutiu
uma notícia nos meios midiáticos relacionada ao que ficou conhecido como “Clube do
Carimbo”. A polêmica que se iniciou a partir de um blog da internet e já bastante
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
5 Até porque a prática do sexo sem camisinha pode adquirir sentidos diferentes a depender do contexto. A
decisão de não se usar preservativo nas relações amorosas (tanto hetero quanto homossexuais) podendo
significar, por exemplo, um voto de confiança e um passo maior de intimidade entre o casal. Ou mesmo na
prática da prostituição em que o uso do preservativo é associado à dinâmica do programa e ausente nas
relações de contexto amoroso. Interessante perceber como o termo bareback se prendeu ao contexto das
relações sexuais entre homens e sempre atravessado pelo debate da contaminação.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
BARRETO, Victor Hugo de Souza. Festas de orgia para homens: territórios de intensidade
e socialidade masculina. Salvador: Editora Devires, 2017.
DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. O sexo sempre é culpável? Notas sobre prazeres, perigos e
fissuras na sexualidade. Matéria publicada no blog Folha do Gragoatá, Rio de Janeiro.
Acesso por: http://afolhadogragoata.blogspot.com.br/2014/06/o-sexo-sempre-e-culpavel-
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MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
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PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo
de aids. São Paulo: Anablume-Fapesp, 2009.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde
PERLONGHER, Nestor. “Aids. Disciplinar os poros e as paixões”. Lua Nova vol.2 no.3
São Paulo Dec. 1985.
ROCHA, Verônica Maria Monteiro da. “Ninguém se arrisca à toa: os sentidos da vida para
praticantes do esporte base jump”. In: Maria Claudia Coelho ; Claudia Barcellos Rezende.
(Org.). Cultura e Sentimentos - ensaios em antropologia das emoções. Rio de Janeiro:
Contra Capa/FAPERJ, 2011, v. , p. 63-80.
RUBIN, G. S. “Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”. In:
NARDI, P . M.; SCHNEIDER, B. E. (Ed.). Social perspectives in lesbian and gay studies: a
reader. New York: Routledge, 1998. pp. 100-133.
Resumo
Palavras-chave:
Antropologia da Saúde; Experiência da Doença; Saber Local; Eficácia Terapêutica.
Essa pesquisa se baseia nos relatos de vida de Dona Francisca, advinda de uma
realidade social específica, a zona rural conhecida como baixa verde, no município de
Bento Fernandes, Rio Grande do Norte, nordeste brasileiro. Conhecida por Doutora Raiz
ou mulher das ervas no bairro que habita hoje, Pium, município de Parnamirim/RN ela
emana o conhecimento popular atrelado ao científico ao perceber o potencial medicinal de
diversas espécies vegetais, corriqueiramente vistas como “mato” e indica “tem uma
farmácia em cada esquina”.
Imersa em um cenário de diversidade cultural e mudanças, como é o bairro
litorâneo do Pium, melhor descrito na pesquisa monográfica (BEZERRA, 2016), onde há a
presença de uma ruralidade em meio a urbanidade, construímos essa pesquisa
etnográfica a partir de seus relatos de vida (ALBERTI, 2004). Por meios dos quais ela nos
possibilita apreender algumas técnicas e rituais terapêuticos que vivenciou. Em uma das
entrevistas, explicou que seu lugar de origem, Riacho dos Paus, era muito longe de meios
urbanos e, assim, não tinha acesso médico algum. As pessoas tinham de ir, quando
doentes, para João Câmara, que fica a mais de 20 quilômetros de distância: “quando
morria colocava na rede e jogava na cova”. Nessa realidade de pouco contato com as
técnicas da medicina oficial, o habitus (BOURDIEU, 2004) ligado a segmentos
camponeses do Nordeste brasileiro fez também com que experimentasse diversos
tratamentos.
Dona Francisca narra que sua mãe, Dulce, às vezes, fazia remédio difícil e que
eles tinham uma particularidade: “ninguém podia saber do que era feito não, porque se
soubesse, não ficava bom”. Ela conta que as irmãs tinham asma, cansaço e que sua mãe
fazia um chá: “Pense num remédio difícil! Ele era feito com a entressola da sandália”.
Fiquei muito surpresa e apenas perguntei se era de couro e era. Como Dona Francisca
não tinha esses sintomas, ela podia ver o preparo. Mas o segredo fazia parte da receita.
Dentre as variedades vegetais locais encontradas no “mato” com as quais os remédios
eram preparados foram citados: Pereiro, Jurema, Fedegoso.
Sendo sua realidade social marcada pelo contato com as ervas da terra nos
processos terapêuticos que a rodiavam ela hoje apresenta um extenso repertório
etnobotânico. Ao percorrer o quintal com Dona Francisca, somos estimulados a perceber
todas essas plantas desconhecidas, talvez conhecidas apenas pelo nome, e somos
apresentados às suas utilidades, seu valor e modo de transformar em remédio. No dia
que fomos ao terreno atrás da sua casa, estávamos à procura do Mussambê, utilizado
para infecções bucais fazendo gargarejo do chá das folhas. Ela pegou pés de xanana
para um lambedor que ia fazer no dia, com a beterraba, cenoura e outros elementos para
o preparo.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Figura 1. D. Francisca no terreno atrás da sua residência após a colheita da Xanana (Turnera ulmifolia L.)
Fonte: Acervo pessoal. Maio, 2016
Há uma sutil diferença diante do trabalho de Loyola, pois Dona Francisca não dá
consultas ou faz diagnósticos, pois prefere que a pessoa já venha com um diagnóstico
médico. Ela prescreve o tratamento para a doença que já foi identificada por uma
autoridade médica. Ela produz as garrafadas a partir de folhas, raízes, cascas e sementes
com as variedades botânicas que planta e compra.
A partir do conhecimento sobre as ervas da terra de D. Francisca e sua interação
com o saber médico científico, propomos aqui a pensar sobre as interseções entre o
conhecimento científico e popular que existem na prática da Dr. Raiz:
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
“Francisca: Nunca mais tomei remédio de pressão, meu pai faleceu, uma coisa
que eu me admirei, que pedi muito a Deus eu não assisti o velório da minha mãe,
da minha irmã que faleceu, da minha tia, chega minha pressão me bota pro
hospital, eu num vejo mais sepultamento de ninguém da família, eu num suporto a
pressão. E esse de papai não, eu soube de noite, tive só uma reação na hora que
soube a notícia, travou as pernas, o treme treme. O menino “Já tomou seu
remédio hoje mãe?” era me preparando pra notícia. Falei “Não, vou tomar agora”
Botei logo uma chaleira no fogo, capim santo, amora e camomila, fiz uma garrafa
de chá, passei a noite todinha sem dormir, passei a noite todinha tomando chá, fiz
uma garrafa quente e outra gelada. Levei pra lá “Menina, o que é isso?” “É chá
gelado e chá quente, mas é do mesmo chá” “ai que chá bom, que chá gostoso é
esse?” digo é “camomila e amora é tranquilizante” Todo mundo tranquilo, eu num
senti uma dor de cabeça. Acredita? E eu digo a todo mundo, “olhe como as coisas
movimenta diferente” Por que eu não tinha como, me dava uma tremedeira, uma
coisa ruim, uma coisa tomando meu fôlego, eu morrendo se acabando, corria me
dava amansa leão no hospital, diazepan, saia doida, lerda, num sabia nem o
que tava fazendo, pra vir pra casa. Agora através dos meus chás, tá ali o
remédio, eu não tomei o remédio que o médico passou. Minhas garrafadas,
meus sucos, dentro de casa eu não paro de tomar.” (Entrevista com Dona
Francisca, 12/05/2016)
Esse trecho de entrevista nos remete à essa ligação com a medicina oficial, a
tensão e a coexistência com os saberes populares. Devido à pressão alta seguida de
dores de cabeça, ela ia para o hospital onde eram prescritos remédios que tem um efeito
colateral muito forte, tal como o diazepan. A sensação posterior não era vista como de
bem-estar. Então, a partir de seu conhecimento e efeitos dos alopáticos ela resolve não
recorrer ao tratamento biomédico, optando pelo uso de chás, realizando uma mistura de
variedades vegetais que tem a mesma propriedade medicinal, a de acalmar.
À medida em que os utilizou em si mesma, passou também a recomendá-los para
pessoas com quem se relaciona, em ambientes sociais e até rituais, por exemplo velórios.
Ela já contou mais de uma experiência de levar os chás aos funerais e as pessoas que
consumiram mudarem de atitude, melhorando consideravelmente a partir do consumo do
chá, que é tão aceito socialmente que não há receio para tomá-lo. Os diferentes níveis de
acesso à medicina científica fazem com que quanto mais acessível e próxima, mais seus
discursos e valores acabam por ser incorporados. Mas muitas vezes a prática médica
oficial também é vista com desconfiança, principalmente com base em critérios como
amabilidade do profissional de saúde, explicação detalhada sobre a doença, prescrição
de exames e eficácia do tratamento.
Francisca: Tem uma muda de anador, tem pé de menta aí, a muda de malva rosa
tá linda as malvas, foi o que me levantou, quando eu cheguei fiz um chá de
sabugueiro malva rosa e... Qual foi a outra coisa, meu deus? Mirra e Colônia, fiz
um chá bomba, tomei dois dipirona e me deitei. Suei igual a porta de geladeira.
Tem remédio melhor do que os meus? Eu vou pro hospital ver o que? Olhar
pras caras dos médicos de joelho que num olha nem pra gente, meu neto foi
lá comigo, de madrugada, com febre, 40 graus, tomou um banho aqui chegou lá
com 38. Ele pegou um germe, coçava coçava chega sangrava.
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A médica passou um remédio pra alergia, “Rodrigo isso não é alergia” “Tá
bom, a senhora quer saber mais do que o médico!” Agora deu. Ele chegou
aqui eu botei gelo, ele chega pedia mais, ele passou dormiu aqui, quando acordou
chega a pele tava calminha. Passando pomada não resolvia de nada. Foi pro
Antônio Prudente, chegou com 40,5 graus a médica disse que “Isso aqui nunca
foi alergia”, era um germe tomando de conta do menino dando febre alta era do
germe e a gente foi pra esses burro aqui de Pirangi “Não aqui é só gesso”.
Cristina: É muita imprudência.
Francisca: Se você tá precisando ir no médico, tá com o ouvido doente, uma
dor de cabeça, ele não vai examinar seu ouvido, vai só passar o remédio pra
passar a dor? Gente, é uma irresponsabilidade muita desumanidade um
negócio desse. “Mãe, vamo pro hospital” “Vou não”. (Entrevista com Dona
Francisca, 01/04/2016)
Dona Francisca tem uma variedade de plantas em casa, conhece suas funções,
tomando-os com consciência da ação no corpo e, em casos de febre, associa ao
consumo de remédios alopáticos como a dipirona, mostrando a intersecção entre os
saberes encontrada nas práticas terapêuticas. Lembrando, como foi colocado por Luc
Boltanski (2004), que os casos de febre são os que mais preocupam as camadas
populares, pois indicam que a doença é grave.
O fato é que em relação ao seu neto ela tinha um diagnóstico diferente da médica
que o atendeu em Pirangi, Parnamirim/RN, mas seu filho desacreditou do seu
conhecimento, afirmando que ela queria saber mais que a médica. Como a criança não
melhorou, na verdade a febre subiu com o passar do tempo, eles procuraram outro
médico (como pondera Boltanski, há a troca de médico quando o tratamento não é
eficiente), o que evidenciou um itinerário terapêutico (LOYOLA, 1984), ou como Soraya
Fleishcer (2016) apontou, em comunicação oral 30ª RBA, uma peregrinação. Para por
fim, no atendimento do Hospital Antônio Prudente, localizado no bairro do alecrim,
Natal/RN, ser constatado o que Dona Francisca suspeitava, um germe. Por esses
diagnósticos incongruentes, inclusive pela generalização da ideia de alergia, e pela falta
de atenção dos médicos para com o paciente, que a ida ao hospital só ocorre, para
muitas pessoas das camadas populares, numa emergência. Dona Francisca frisa que,
diversas vezes, eles só medicam para a dor, apaziguando o sintoma, e não curando a
doença, criticando a falta de atitude investigativa dos médicos que muitas vezes não
pensam as enfermidades de modo mais integrado com a realidade que o paciente está
inserido.
Mas é necessário perceber a legitimidade do saber médico quando Dona Francisca
diz que prefere que a pessoa já tenha ido ao médico e a procure já com o diagnóstico,
porque dessa maneira ela pode sugerir o tratamento adequado. Essa afirmação remete a
análise de que o advento da modernidade além do desenvolvimento de outros métodos
de tratamento também estabeleceu diferentes regras de higiene e de relação com o
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corpo, produzindo também uma situação hierárquica, na qual o médico é visto como o
detentor do saber, enquanto o paciente é concebido como leigo. Como essa relação é
legitimada, as pessoas dão mais credibilidade quando o médico é atencioso, explica o
que causa, como se desenvolve a doença.
Para pensar sobre a concepção de doença nas camadas populares na realidade
contemporânea brasileira fomos remetidos ao trabalho “Saúde e gênero no bairro do
Ibura” de Parry Scott e Marion T. Quadros (2009) que mostra como o terreno da vivência
popular é marcado pelo cuidado das “mães”, “esposas” e “irmãs” e que não há uma única
significação da doença pois elas contêm múltiplas compreensões, que podem estar
envoltos no que Duarte (1986) chamou de “problemas físico-morais”. O que Langdon
(2014) traz quando aborda a experiência da doença é que ela é primeiro designada pela
família, e que pode recorrer à diversos especialistas terapêuticos, mas com a legitimação
da medicina oficial, é perceptível no trabalho de Scott e Quadros (2009) a ida ao médico
como uma ação subsequente prioritária. Enquanto concomitantemente procura mais
familiares e vizinhos para lidar com o problema, e também o uso de remédios caseiros à
base de ervas e raízes, ou a busca por um farmacêutico para aliviar os sintomas.
Assim, percebendo todas possibilidades imersas nas experiências da doença
durante a pesquisa de campo, fui compreendendo o itinerário terapêutico a partir dos
diversas narrativas. Das diversas vivências relatadas por Dona Francisca, a “doença nos
ossos” é a que mais marca, por ser uma dor constante e sem cura. Há eventos-críticos na
experiência da doença. E no trecho da entrevista transcrito abaixo possível compreender
alguns desses no caso de D. Francisca:
Francisca: Eu comecei a sentir depois de uma queda que eu levei em 1982.
Afetou bacia, fêmur e quadril. Começou a gravidade dai, nessa época eu
morava numa granja, num tinha médico certo, num tinha tempo pra correr atrás e
foi se agravando cada dia pior.
Quando foi agora, de 2001 eu comecei a trabalhar foi que eu comecei a sentir a
situação complicando, eu caminhava daqui pra Pirangi a pés. (...)E a gente
tinha que ir caminhando pra num chegar atrasada, e num tinha transporte nessa
época. Aí foi quando eu comecei as coisas foi se agravando, e sempre
trabalho. E qual é a máquina que trabalha direto e num estraga uma peça? E a
gente, e a peça que a gente estraga faz o que? Aí foi quando eu saí, passei o
tempo, operei o pé, que foi a sequela de uma cirurgia.
Cristina: No acidente?
Francisca: Foi do acidente que eu sofri, tive só a torsão do pé. Não quebrou,
não fraturou, foi só torsão. Foi se agravando mas foi um cisto entre o dedão
e o outro. E esse dedo foi estufado assim pra fora. Ainda hoje é torto, tá vendo?
Isso aqui foi feito uma cirurgia daqui aqui. E foi botado um pino pra poder
emendar esse osso que foi descolado pra poder tirar o cisto. Ai isso é tudo
dormente, eu não sito nadinha. E fui caminhando e sempre trabalhando. Que eu
nunca tive repouso.
(...)
Francisca: [Até 2009] Eu trabalhava de babá e de doméstica, e a noite cuidava da
menina. Ainda passei três anos, saí pra fazer tratamento, não aguentei mais
continuar.
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Como se pode perceber ela sofreu uma queda em 1982 e afetou o quadril e o
fêmur, passou por um acidente de carro em 1988 (ocorrido na Rota do Sol quando estava
se mudando para o Pium) no qual houve uma torsão no pé. Mais de dez anos depois ela
fez uma cirurgia no pé, mas devido à Artrite Reumatóide não teve boa recuperação. O
marcante nessa narrativa é que ao se ver em uma doença sem cura, ela se utiliza da
crença e do conhecimento sobre as ervas da terra para superar a crise inflamatória que
estava passando.
Deve-se destacar o fator relevante da percepção do itinerário terapêutico de Dona
Francisca, a autoatenção que ela teve consigo e a ligação com as plantas fez com que ela
dialogasse com os médicos e profissionais de saúde, pois ela percorreu hospitais em
Natal, Parnamirim, fez os exames como ressonância, raio-x, exame de sangue p ara
entender o que tinha. Em paralelo, ela foi manipulando os remédios naturais. Atualmente,
pelos processos advindos de sua experiência, ela se apoia em seu saber-fazer, na
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pela artesã, a partir da crença nas ervas que curam, embasada pelo saber local
(GEERTZ, 2009), e no habitus desse saber-fazer (CERTEAU, 1994).
Estabelecendo uma relação de confiança com os que estão em volta, família,
amigos, clientes e sendo ela uma produtora e trabalhadora autônoma que estabelece
interações e se encontra em situações de valorização do conhecimento e da fé, que é
necessária para a eficácia terapêutica como foi abordado aqui. Ela ensina o modo de
fazer os lambedores, em especial quando não tem tempo para fazer produtos para
alguém que precisa fazer um tratamento com as ervas que curam.
Com efeito, pesquisa realizada teve a intenção de abordar alguns dos aspectos
que perpassam essas diversas práticas a fim de perceber os agenciamentos que
perpassam essa realidade, tanto o fenômeno do uso social de remédios naturais como a
manutenção de terapias alternativas e tradicionais de cura e a relação dessas com a
medicina científica, tomando o caso de uma única terapeuta popular: Dona Francisca.
Trata-se de uma eficácia terapêutica imersa no cenário das classes trabalhadoras do
meio urbano e rural, de pessoas que por mais que tenham relativo acesso à medicina
oficial, e cheguem a fazer uso dela, recorrem aos métodos e práticas terapêuticas
populares porque acreditam em sua capacidade de cura das plantas medicinais
associada à capacidade de transformação em remédios naturais através da manipulação
pela experiência da sabedoria popular e empírica.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas
ALBERTI, Verena. 2004. Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV.
BEZERRA, Cristina. Saber local e práticas terapêuticas da Doutora Raiz: uma pesquisa
antropológica sobre medicina popular e crença. Trabalho de Conclusão de Curso,
Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016.
BOLTANSKI, Luc. 2004. As classes sociais e o corpo. 3 Ed. São Paulo: Paz e Terra.
BOURDIEU, Pierre. 2004. A produção da crença: contribuição para uma economia dos
bens simbólicos. São Paulo: Zouk.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1986. Da vida nervosa das classes trabalhadoras urbanas.
Rio de Janeiro: J. Zahar.
LANGDON, Esther Jean. 2014. “Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições
para as políticas públicas”. In: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 19 (4).
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014194.22302013 . Acesso em: 16
de agosto de 2017.
LOYOLA, Maria Andréa. 1984. Médicos e Curandeiros: Conflito social e saúde. São
Paulo: DIFEL.
SCOTT, Parry; QUADROS, Marion (orgs). 2009. A diversidade no Ibura: gênero, geração
e saúde num bairro popular do Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE.
TAVARES, Fátima; BASSI, Francesca. 2012. Para além da eficácia simbólica: estudos em
ritual, religião e saúde. Salvador: EDUFBA.
Resumo:
Este trabalho apresenta as primeiras impressões de meu campo de pesquisa ao
qual me dedico para realizar minha tese de doutorado a ser defendida em junho de 2020
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia.
Apresento neste trabalho meus dados iniciais de campo, recolhidos a partir dos primeiros
contatos com o lugar e com alguns interlocutores, além de dados levantados em sítios da
internet.
Minha pesquisa localiza-se na região de Serra Grande, distrito de Uruçuca – BA,
e se propõe a reconhecer os agenciamentos terapêuticos que se dão nesses contextos, que
a princípio poderiam ser considerados “tradicionais”, mas atentando para as
transformações que estão em curso nas práticas terapêuticas contemporâneas dos
profissionais da cura que ali residem. Proponho um olhar que busque perceber os mais
diversos agenciamentos, humanos e não humanos que compõem o sistema de cuidado e
cura naquela região, nos termos e cosmologia nativos, sem, portanto, tecer classificações
apriorísticas sobre o que sejam as práticas tradicionais ou modernas
Isso significa, a meu ver, em termos práticos, que a pesquisa se propõe
inicialmente a perseguir os rastros (LATOUR, 2012) daqueles que estejam envolvidos
com os “saberes tradicionais” (nos termos nativos) da cura, da saúde e do cuidado das
pessoas da região de Serra Grande, porém, deixando uma larga flexibilidade para o que o
contexto possa oferecer, ou nas palavras de Jeanne Favret-Saadad (1977), deixando-me
afetar, através do que Ingold (2014) denominou de os princípios da investigação
antropológica apropriada e criteriosa, sejam eles: “o compromisso aberto e de longo
prazo, a atenção generosa, a profundidade relacional e a sensibilidade ao contexto.”
1
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
2
http://barracaodangola.com/pt/contato - acessado em 27/09/2017
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Figura 2 – Mapa Parque Estadual do Conduru, APA Itacaré-Serra Grande e APA Lagoa encantada3
3
http://barracaodangola.com/pt/contato
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
4
Nestes 20 dias em Serra Grande, dois empreendimentos foram fechados e um novo empreendimento
foi aberto na praça, ocorrências frequentes conforme me afirmaram alguns moradores da vila.
5
Quando fazíamos uma caminhada pelo Parque do Conduru, o guarda parque, que faz a caminhada
junto aos visitantes nos contou que era exatamente ali aonde os portugueses iam extrair as madeiras
para construção, destacando inclusive a inexistência atualmente do Pau Brasil, na mata, árvore que
existia ali em grande quantidade na época da chegada das primeiras embarcações portuguesas.
6
Informações retiradas do sitio: http://www.parquedoconduru.org/index.php/regiao, acessado em
26/09/2017.
7
Conforme o guarda Parque é o lugar que possui mais diversidade de espécies vegetais do mundo,
possuindo cerca de 465 espécies por hectare quadrado de terra.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
8
Conforme o sitio da Sociedade Antroposófica Brasileira (http://www.sab.org.br/pedag-wal/pedag.htm):
“Essa concepção leva em conta as diferentes características das crianças e adolescentes segundo sua
idade aproximada. O ensino é dado de acordo com essas características: um mesmo assunto nunca é dado
da mesma maneira em idades diferentes. Ela é uma pedagogia holística em um dos mais amplos sentidos
que se pode dar a essa palavra quando aplicada ao ser humano e à sua educação. De fato, ele é encarado
do ponto de vista físico, anímico e espiritual, e o desabrochar progressivo desses três constituintes de sua
organização é abordado diretamente na pedagogia. Assim, por exemplo, cultiva-se o querer (agir) através
da atividade corpórea dos alunos em praticamente quase todas as aulas; o sentir é incentivado por meio
de abordagem artística constante em todas as matérias, além de atividades artísticas e artesanais,
específicas para cada idade; o pensar vai sendo cultivado paulatinamente desde a imaginação dos contos,
lendas e mitos no início da escolaridade, até o pensar abstrato rigorosamente científico no ensino médio.
O fato de não se exigir ou cultivar um pensar abstrato, intelectual, muito cedo é uma das características
marcantes da pedagogia Waldorf em relação a outros métodos de ensino.” Acessado em 28/09/17.
9
Utilizo esta expressão para estabelecer uma diferenciação entre nativos e aqueles que vem de fora e se
estabelecem na cidade como moradores.
10
Utilizo terapias alternativas referindo-me a terapias que não são estritamente biomédicas, podendo,
entretanto incluir elementos da biomedicina moderna, mas que estão pautadas também em outros
pressupostos, como a espiritualidade, a intuição, o dom, o instinto, a fé, o amor, o servir.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
No episódio “Ervas que Curam”’, Dona Val, Dona Miúda e Dona Isabel,
apresentam-se como erveiras. As três senhoras vivem há muitos anos na região, todas
nascidas em lugarejos do interior da Bahia. Dona Miuda e Dona Izabel vieram cedo para
a região de Serra Grande com suas famílias e participaram do surgimento e crescimento
da Vila. Já Dona Val passou um tempo em Salvador antes de chegar à Vila. Conforme se
auto referem no vídeo, estas mulheres são “detentoras do saber tradicional das ervas”, da
região de Serra de Grande.
Ao assistir o vídeo, algumas questões me vieram à tona. Apesar do vídeo não
aprofundar nas origens das erveiras, os modos de linguagem, vocabulário e as narrativas
de suas experiências pessoais sobre como adquiriram seus conhecimentos apresentam não
11
Conforme indicado no sítio da internet, o financiamento desses vídeos veio através do Instituto
Arapyaú, no âmbito do Projeto Nacional de Ações Integradas Público-Privadas para Biodiversidade
(Probio II), a partir de uma parceria entre o Fundo Nacional para a Biodiversidade (FUNBIO) e o Fundo
Global para o Meio Ambiente (GEF).
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
12
Se referindo à uma alimentação mais influenciada por movimentos Nova Era que tratam a alimentação
como forma de cuidado da saúde e propõem redução de alimentos animais e maior riqueza de fontes
vegetais de um modo geral.
13
Após assistir ao vídeo comecei a pesquisar mais informações sobre as erveiras de Serra Grande e
acabei por descobrir que Dona Val é uma figura central, muitas vezes chamada de mãe e avó , no
cenário do cuidado em Serra Grande.
14
Em minha primeira visita à Casa Caminho das ervas, em uma roda de gestantes, durante a rodada de
apresentações, Dona Val apresentou-se dessa forma, se referindo à uma ideia de força universal, da
natureza, expressões frequentes nos diálogos da casa Caminho das ervas.
15
O filme “Umbigo”, produzido pelo filho mais novo de Dona Val, Cauê, conta a história da Vida de Val -
http://umbigofilme.com.br/val/ - Acessado em 29/09/17.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
forte referência de afirmação existencial para muitos que buscavam romper com o sistema
existente, marcado pela forte repressão com a ditadura militar”, como nos conta seu filho
Cauê, no filme “Umbigo”. Daí em diante Dona Val trabalhou em restaurantes de comida
natural, que lhe ampliaram seus conhecimentos sobre o que ela chama de “alimentação
viva”, e fez mais de 200 partos, tornando-se ativista da causa do parto natural:
O lugar de encontro principal com Dona Val é a casa “Caminho das Ervas”, a qual
já me referi anteriormente, feita a partir da iniciativa dessa erveira, em colaboração com
seus filhos, que são grandes entusiastas de seu trabalho, bem como das pessoas que a
admiram e convivem com Dona Val, e que desejam usufruir e apreender os
conhecimentos dela. A casa localiza-se na praça central de Serra Grande. Um grande
muro verde, com um portão rosa escondem um jardim florido e um quintal cheio de ervas
medicinais. Na sala de entrada encontra-se um altar de frente a porta. Nesse altar, estão
imagens de Shiva, Yogananda, Mestre Gabriel, Jesus Cristo, Santo Antônio e Nossa
senhora do bom parto, velas e incensos. Nesta sala acontecem encontros de oração,
encontros de gestantes, cine-debates, todos orientados por Dona Val, e encontros sobre a
relação da espiritualidade com a física quântica orientados por um terapeuta alternativo
da comunidade. Além das atividades na sala, acontecem vivencias semanais com as
plantas e cuidados com o jardim. Há, ainda, dois quartos, que conforme me foi informado
por Aranda, filha de Dona Val, estão disponíveis para terapeutas da comunidade que não
possuam seus espaços de atendimento ainda.
A programação mensal de atividades da casa fica colada atrás do altar, de frente
para a entrada da casa, de modo que todos possam vê-la assim que entram na sala. Dentre
as atividades encontram-se: cuidados com o jardim, vivência das plantas, oração e todas
as práticas semanais. No dia de cuidados com o jardim, acontecem cuidados com toda a
casa, faxina e arrumações. No dia de vivências das plantas, os cuidados atêm-se aos
jardins e as ervas medicinais. A oração, conforme me descreveram, dura em torno de uma
hora e envolve desde cantos xamânicos a menções cristãs e acionamento de entidades
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
como Nanã e Oxum, que costumeiramente são chamadas em cânticos durantes as diversas
vivências. Existe uma participação feminina majoritária, assim como as conversas entre
os frequentadores da casa, incluindo Dona Val, giram em torno da intuição feminina, do
amor maternal, da força da Deusa e sabedoria ancestral feminina.
Na casa “Caminho das ervas”, o tradicional e o moderno estão “em comunhão”,
para usar uma expressão do vocabulário local. Para as pessoas que ali frequentam, afirmar
a tradicionalidade, nos termos de uma ancestralidade dos saberes é uma forma de
valorizar esse saber, bem como propagar sua força agindo como guardiões dessa
sabedoria. Parece-me, também, que grande parte dessa força está na intenção e
comunicação no dizer, afirmar, desejar, além do agir. No grupo de watts app do “Caminho
das ervas” existem aproximadamente 85 integrantes, informação que foi ressaltada por
Aranda (filha de Dona Val), ao pedir ajuda financeira para a manutenção dos gastos da
casa. Devo ter conhecido 10 ou 12 participantes do grupo que frequentam a casa nas
atividades propostas em três momentos que compareci para as atividades semanais.
Entretanto nas mensagens sobre desenvolvimento espiritual e celebração de datas
religiosas, a atuação destas pessoas é intensa.
Minha percepção sobre a intensa participação na casa é também reafirmada na
convivência com as pessoas, ao se perceber que o cuidado nas palavras dirigidas aos
outros é grande: não se notam palavras negativas, que se refiram à tristeza, e quando estas
surgem são rapidamente reprimidas, acompanhadas de uma sugestão de perceber a
situação de uma maneira positiva, bem como a intensa frequência com que se usam
determinadas expressões como “estou na vibração16”, “chama que vem17”, “estou na
intuição”18. Certa vez, Aranda chegou à Casa muito animada com a ideia de ganhar um
lote para, segundo ela, “construirmos a Casa Caminho das ervas e pararmos de pagar
aluguel”. Conforme ela dizia, “nós merecemos”. Ela ainda acrescentou: “Acordei nessa
intuição e estou vibrando com toda força, vai rolar!!! E outras pessoas diziam: “Vamos
irmã! Vamos vibrar”!
16
Referindo-se à ideia de vibrar positivamente para atrair o objetivo.
17
No sentido de chamar o desejo para que ele venha até você.
18
São expressões que se referem a uma ideia ou pressentimento que surgiu e que é comumente
interpretado como um sinal do universo de que aquele é o caminho para se alcançar as conquistas que
se deseja.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências Bibliográficas:
INGOLD, Tim. That's enough about ethnography! In: HAU, Vol. 4, n1. London, 2014.
19
A denominação tradicional tem mostrado bastante polêmica na antropologia como destaca Carneiro
da Cunha (2002), entretanto utilizarei a categoria não antropologicamente, mas como discurso nativo, já
que esta é a expressão a qual Dona Val utiliza a se referir a si mesma e alguns outros terapeutas antigos
da região.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
1
Departamento de Medicina e Enfermagem/Universidade Federal de Viçosa
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Da pessoa à vida
qual se mudou]. O caso dela não tem cura. Sinto que o esquecimento tá
aumentando [não fica claro se ela fala de um esquecimento dela ou da tia].
─ Você consegue ter algum tempo pra você todo dia?
─Tenho medo de ter problema na outra vista. Não sei, sinceramente eu não sei.
Estou chegando no meu limite. Minha chefe não quer me mandar embora. Não
sei como será voltar ao trabalho. Não tem com quem deixar ela. O que vou fazer?
Tem hora que ela dorme. Sei que é uma doença, não é da idade. A família somos
nós.
Janaína descreveu com vários detalhes a situação de dependência de sua
tia em relação a ela. O residente ouviu atento por alguns minutos e depois
interrompeu:
─ Tô vendo que você não está bem. A gente já vem conversando sobre isso e
não está ficando melhor. Acho que seria bom a gente iniciar uma medicação.
Jaime explica que vai passar fluoxetina para a paciente.
─ O remédio é apenas uma muleta, mas ele não vai andar por você. Ele é como
um casaco quando a gente está com frio dentro de casa. A gente coloca o casado
e ajuda a suportar o frio, mas não faz a gente sair de casa. Quem sai é a gente.
Vou te passar um “trabalho de casa” também. Quero que você responda no papel
três perguntas [escreve num receituário e fala em voz alta]: três coisas boas
neste momento, três coisas ruins, três coisas que estou aprendendo. Pôr no
papel é um exercício diferente, às vezes a gente não sabe porque está sofrendo.
Ajuda a organizar. Ajuda a entender como a gente está se me vendo.
─ Vou tentar, acho que consigo.
─ Isso que você está vivendo tem relação com o seu momento de vida. É muito
importante tudo o que você está fazendo, e vindo aqui se cuidar.
─ Eu sinto muita culpa em relação ao falecimento da minha mãe.
─ A gente vai conversar sobre isso. Vamos nos ver de novo na próxima sexta?
─ Sim.
Enquanto Jaime, preparava as receitas, perguntei a Janaína sobre seu
trabalho. Ela explicou que era encarregada de limpeza em uma firma que
prestava serviços na zona sul do Rio. Estava de licença do trabalho pelo
glaucoma, mas não via mais condições de seguir nesse trabalho, mesmo depois
da cirurgia.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Da pessoa à vida
Referências bibliográficas
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
COOPER, Sarah. 2016. Global mental health and its critics: moving beyond the
impasse. Critical Public Health, 26, (4): 355–358
Resumo: Este trabalho consiste no debate sobre o papel social dos especialistas
em cura de comunidades indígenas do Estado de Pernambuco. Nota-se que
diversidade de especialistas em cura dentro de sistemas médicos é comum à
quaisquer sistemas, assim como se outorga a eles múltiplas posições/funções
sociais. Tais funções se relacionam tanto com o seu papel enquanto agente de
cura, como também de mediador entre diferentes esferas da vida da comunidade,
sendo elas politico ou religiosas. A partir disso propõe-se analisar como os
especialistas em cura nos sistemas médicos indígenas desenvolvem seu papel
social, enquanto agentes, e como este papel se reconfigura dentro das dinâmicas
do sistema médico e se relaciona às politicas de assistência à saúde do Estado
Brasileiro. Para isto, serão analisados 3 (três) grupos indígenas: Kapinawá,
Pankararu e Fulni-ô, a partir de seus respectivos sistemas médicos. A analise terá
como base observações realizadas no encontro de pajés de Pernambuco em
2016, em visitas realizadas no biênio 2015-2017 e pelas bibliografias existentes
destinadas ao tema.
Palavras-chave: Saúde indígena, saberes tradicionais, politicas públicas.
1
Programa de Pós-graduanda em Antropologia pela UFPE, membro do NEPE –Núcleo de estudo e pesquisas
em Etnicidade e GESI –Grupo de Estudo em Saúde Indígena.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
analise mais cuidadosa dos seus sistemas. São eles: Kapinawá, Pankararu e
Fulni-ô.
A população indígena do Estado de Pernambuco há muito tempo sofre as
consequências do seu contato com a sociedade envolvente, que vão desde a
declaração de sua extinção pelos discursos oficiais, ocorrida depois de um forte
processo de miscigenação promovido pelo diretório pombalino (1755) e a extinção
dos aldeamentos, até o seu movimento de emergência étnica (Arruti, 1995)
quando finalmente retomam sua visibilidade enquanto populações tradicionais
frente à sociedade. Podemos destacar que apesar do contato interétnico
estabelecido desde o século XVII, os grupos étnicos do estado resistem de formas
bem particulares às duras situações sociais nas quais estão envolvidos, sendo
protagonistas de sua própria historia. Dentro deste contexto histórico, localizamos
aqui três etnias do Estado que serão objetos de estudo nesse trabalho.
além de contarem com a fé, após os partos a parteira continua orientando a mãe
com as restrições dietéticas, o uso de banhos mornos com plantas e orientações
repouso. As parteiras se responsabilizam sobre as mulheres que atendem,
dedicando a elas atenção.
2
Remédios caseiros à base de plantas, estas plantas geralmente são encontradas dentro do território
indígena, seu uso se destina a prevenir e tratar diversos males.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
3
Remédios caseiros à base de plantas, estas plantas geralmente são encontradas dentro do território
indígena, seu uso se destina a prevenir e tratar diversos males.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
IV Conclusão:
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Bibliografia.
--
1
Aluna do oitavo período em Ciências Sociais na Fundação Getulio Vargas – Rio de
Janeiro (CPDOC/FGV). E-mail: [email protected]
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
Apertar aquele botão foi muito mais do que publicizar uma história
pessoal: foi um “turning point”. Em outubro de 2017, o texto tem 1.100
visualizações, tendo alcançado o primeiro resultado nas buscas do Google por
“feminismo + transtorno alimentar”. Dessa forma, aproprio-me da expressão
“sair do armário” (ou “coming out as”), mais usualmente utilizada por e sobre
homossexuais, transexuais e pessoas transgêneras, para dizer que, naquele
momento, eu saí do armário como uma pessoa que desenvolveu um transtorno
alimentar. O termo é também utilizado pela militância gorda não no sentido de
publicizar algo secreto, mas de testarem e resistirem ao estigma em relação
aos seus corpos, assumindo-os como são (SAGUY e WARD, 2011).
Enquanto não queria ser identificada como nativa desse campo, uma
das minhas maiores justificativas era o medo de que esse trabalho fosse lido
como uma auto-terapia, e, assim, desqualificado.
Decidir que me identificaria, sim, portanto, foi perceber que todo tema de
pesquisa, quando escolhido pelo pesquisador, parte de uma motivação
pessoal, muitas vezes desconhecida pelos leitores. Quando realizei, durante a
graduação, uma pesquisa sobre o “ritual” da primeira menstruação, não me
preocupei com me considerarem “pouco distante” do objeto por ter um útero.
2
O termo na língua inglesa, popularizado na internet, aparece timidamente em textos
da historiadora Louise Foxcroft, sem conceituação. Foi encontrado, através de
pesquisa nas plataformas Google Scholar e Scielo, um único trabalho acadêmico que
utiliza a expressão, excluindo as referências que significam um tipo de alimentação
específico de uma região ou uma cultura no sentido biológico do termo, de
microorganismos. “Diet Culture and Obesity in Northern Africa” só carrega a expressão
no título, não contendo menção ou conceituação ao longo do trabalho.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
mas é também me expor a ser vista como fraca, menos digna, vulnerável –
estigmas comuns àqueles com transtornos mentais.
3
Nomes fictícios escolhidos por elas a fim de preservar suas identidades.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
IV. Bibliografia
MCKENNA, Katelyn Y.; BARGH, John A. 1998. Coming out in the age of the
Internet: Identity" demarginalization" through virtual group participation. Journal
of personality and social psychology, 75(3):681-694.
SAGUY, Abigail C.; WARD, Anna. 2011. Coming out as fat: Rethinking
stigma. Social Psychology Quarterly, 74(1):53-75.
Anexo A
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo: O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre a experiência de ter um transtorno
alimentar através de uma perspectiva autoetnográfica. Utilizando a narrativa pessoal da autora,
o artigo levanta questões sobre silenciamento e empatia em relação às sobreviventes de
anorexia nervosa e bulimia.
Palavras-chave: Transtornos alimentares, Autoetnografia, Saúde Mental, Gênero, Empatia
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que possa despertar a empatia dos leitores através dos significados atrelados à
experiência (ELLIS, 1999). Eu estaria sendo desonesta caso insistisse que as
conversas com as minhas interlocutoras falam somente a respeito delas e nada
sobre mim, como se minha percepção sobre os seus relatos fosse isenta de ser
contaminada pelas minhas próprias experiências.
A autoetnografia me permitiu muito mais do que apenas escrever este
artigo, pois também me ofereceu a oportunidade de impactar positivamente as
outras ao meu redor compartilhando as minhas próprias vulnerabilidades. A
autoetnografia busca formular a análise social para experiências de vida de
sujeitos corporificados, procurando dar conta da densidade subjetiva do
trabalho de campo, no qual o pesquisador também está inserido (MARÉCHAL,
2010). Um dos receios das pesquisadoras em relação à técnica da
autoetnografia é o medo de que o texto pareça uma elucubração egocêntrica e
autoindulgente, com pouco a oferecer para o entendimento dos fenômenos
sociais (WALL, 2016, p. 4). Ao longo do processo de escrita e reflexão, me
deparei algumas vezes com esse sentimento, justamente por sentir uma
estranheza em relação a essa nova experiência de pesquisa, cujos processos
são profundamente diferentes da maneira como aprendi a fazer pesquisa ao
longo da graduação em Ciências Sociais.
O processo de reflexão sobre a temática através da autoetnografia, que
consistiu na abertura de feridas emocionais e na documentação do processo
de cicatrização, me lembrava muito mais os meus processos artísticos de
pintura e desenho do que os artigos e resenhas que me habituei a fazer ao
longo da graduação. Durante o início do curso, aprendi que devemos nos
separar de nossos objetos de pesquisa (DURKHEIM, 2007 [1895]). Mais tarde,
já na Antropologia, aprendi que, o antropólogo em campo necessariamente
enfrenta sentimentos de inadequação e se sente deslocado entre seus novos
interlocutores em campo (WAGNER, 2010 [1975], p. 54). Não me senti
inadequada ou deslocada, justamente o contrário, me senti abraçada e incluída
pela primeira vez em quase quatro anos de Universidade. Expor as minhas
vulnerabilidades psicológicas e tentar tocar o interior emocional de outras
mulheres, que também estavam em sofrimento, me fez sentir como se o meu
período na Universidade finalmente tivessem um sentido, que não era apenas
acadêmico, e sim humano. Para mim, a Antropologia é, além de uma disciplina,
7
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alimentar, eu botava para fora logo em seguida - o famoso “miar”, presente nos
tutoriais pró-ana e pró-mia, e mal visto mesmo dentro da comunidade (SILVA,
2005, p. 39). Minha mãe também comprava latas e latas de Mucilon e
Sustagen, para misturar na minha comida, na esperança que eu ganhasse um
pouco de peso.
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para ser capaz de captar os afetos, sentir aquilo que não é possível ser
simbolizado por meio do discurso. De acordo com Favret-Saada (2005, p. 158):
Segundo a primeira acepção (indicada na Encyclopedia of Psychology), sentir empatia consistiria, para uma
pessoa, em “vicariously experiencing the feelings, perceptions and thoughts of another” . Por definição, esse
gênero de empatia supõe, portanto, a distância: é justamente porque não se está no lugar do outro que se
tenta representar ou imaginar o que seria estar lá, e quais “sensações, percepções e pensamentos” ter-se-ia
então. Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, percepções e pelos
pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em
vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa é literalmente inimaginável, sobretudo
para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, é-se
bombardeado por intensidades específícas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis.
que eu não me machucasse mais e dizendo que eu era a garota mais linda que
ele conhecia (63 kg).
A utilização dessa metodologia experimental e subjetiva, e
completamente nova para mim até o momento, não me mobilizou apenas
enquanto pesquisadora, mas também enquanto sobrevivente de Ana e Mia. Em
vez de buscar a separação entre pesquisadora e sujeito, o que aconteceu foi a
fusão entre essas duas identidades, em uma delicada aquarela na qual se
torna impossível delimitar as fronteiras entre as duas coisas. A proposta de Ellis
e Bochner, de trazer o coração para a escrita etnográfica, através do uso da
primeira pessoa e a fusão entre arte e ciência (ELLIS et BOECHNER, 2000, p.
761 apud ETORRE, 2005, p. 532), gera repercussões interessantes para o
entendimento da experiência de transtornos alimentares. A utilização da
expressividade e emotividade na Antropologia tem o potencial de fomentar a
empatia em múltiplos níveis, inclusive entre o leitor e a própria história (ELLIS
et BOECHNER, 2002 apud ETORRE, 2005, p. 532).
Dessa forma, acredito que, embora a empatia tenha suas limitações
enquanto ferramenta metodológica (FAVRET-SAADA, 2005), ela é necessária
para que se humanize as vítimas e sobreviventes dos transtornos alimentares.
A “história única” dos transtornos alimentares nos trata de forma
condescendente e até mesmo ofensiva, tratando-nos como loucas, patéticas ou
fúteis. Por outro lado, o poder de mobilização subjetiva que é latente na escrita
autoetnográfica pode auxiliar na busca de novas representações que também
escutem nossas vozes e que sejam sensíveis às nossas dores. Só assim é
possível propor um novo modelo de entendimento sobre os transtornos
alimentares, no qual a trajetória de vida e a dimensão emocional das
sobreviventes sejam a prioridade.
11
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Referências Bibliográficas
ALVES, Iulo Almeida; ALVES, Tainá Almeida. O perigo da história única: diálogos com
Chimamanda Adichie. Disponível em: < http://bocc.unisinos.br/pag/alves-alves-o-perigo-
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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
Contextualização
Escrevo este ensaio auto-etnográfico a partir da intersecção de meus
pertencimentos como pesquisadora em saúde pública e mulher jovem2 diagnosticada
com câncer de mama em estágio inicial. Meu intento é refletir criticamente sobre o
1
Escola FIOCRUZ de Governo - Fundação Oswaldo Cruz - Brasília; Depto de Medicina Preventiva - FM-USP;
NEPAIDS/USP.
2
O câncer de mama é mais prevalente entre mulheres com mais de cinquenta anos e mulheres abaixo dessa
idade são consideradas jovens para a doença. Globalmente, estima-se que cerca de 7% dos casos ocorrem
em mulheres com menos de 40 anos (ANDERS E COLS, 2009).
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Relato
31/12/2016, verão. Enxugo o colo com a mão tentando aliviar o suor. Bem na
parte superior do seio esquerdo, sinto uma bolinha. Verifico o direito. Não tem
bolinha. Mostro ao meu companheiro. 'Não deve ser nada, só algum gânglio
mais inchado por variação do ciclo hormonal. Vamos observar se desaparece
daqui uns dias'. Claro que 'não deve ser nada'. Tenho 36 anos, amamentei
duas filhas por quase dois anos cada, não fumo, não tomo hormônios, não é
possível que eu tenha câncer de mama. Aliás, nunca ninguém na minha
família teve. Apesar da racionalização, meu pedido à meia-noite é que aquilo
'não seja nada'.
3
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público, de onde saio com mais uma mamografia feita e material coletado para a
biópsia.
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avaliação. Mas é que eu sei que tem muitos efeitos adversos. E eu não
estou falando de cair cabelo, que as pessoas ficam pensando que eu estou
preocupada com isso, não é isso! Eu sei que a quimio é um tratamento
sofrido e que pode ter efeitos adversos graves, inclusive neurológicos,
mesmo a médio e longo prazo'. Ele me ouve: 'Você tem razão'. E eu
continuo: 'Então, se tiver que fazer, eu vou fazer, mas eu queria saber,
quanto ela acrescentaria de proteção pra mim'. 'Essa é uma ótima
pergunta, mas as respostas não são muito precisas. Digamos que tendo
feito a cirurgia o risco de uma recidiva seja de 15%. Com a quimioterapia,
cairia pra 10% e com a hormonioterapia cairia ainda pra 7%. A gente nunca
chega a risco zero'. Tento uma última opção: 'um oncologista do Brasil me
falou que existe um teste genômico que pode ser feito pra averiguar se a
quimio é indicada pra mim'. 'Sim, é verdade. Mas eu não indico esse exame
quando a paciente tem tumor de grau 3 porque nós acreditamos que grau 3
é uma indicação absoluta de quimio'. Choro. Ele explica: 'Você tem razão
nos seus questionamentos. O que nós fazemos em oncologia é
overtreatment porque nós não temos como prever quais pacientes
efetivamente se beneficiarão de cada tratamento, então nós optamos por
tratar mais para diminuir o risco de recidiva, sobretudo quando se trata de
uma mulher jovem, como você'. Eu me rendo aos argumentos dele. Saio
com a primeira sessão de quimioterapia agendada para dali duas semanas.
Em casa, mais tarde, decido ligar para uma clínica que diz fazer tratamento
integral em oncologia. Um dos médicos, Dr E, aceita fazer uma consulta por
telefone depois de receber os laudos dos meus exames.
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17 de março de 2017. 'Alô! Oi, Dr F, tudo bem? Eu queria te pedir pra gente
fazer o teste molecular. Eu sei o que você pensa sobre o grau e tal, mas eu
não quero partir pra quimio sem ter essa avaliação'. Ele concede: 'Ok, eu
posso pedir pro hospital fazer. Mas, olha, demora uns oito a dez dias o
resultado'.
Senti muito medo do que poderia vir como resultado. Em pouco mais de
uma semana um exame diria qual era a probabilidade de eu ter uma recidiva. Meu
medo, claro, era descobrir que meu risco era alto.
30/03/2017. Por um erro de comunicação, meu companheiro não chega a
tempo para a consulta. Entro sozinha no consultório. Antes que eu diga
qualquer coisa, Dr F se antecipa: 'Eu tenho novidades muito interessantes
pra você!'. Não sou muito delicada na minha resposta: 'Interessantes?! Eu
quero saber se elas são boas ou ruins!'. Ele ri alto, como de costume:
'Deixa eu te mostrar o resultado - ele me entrega um papel -, o seu score é
12, você está no grupo de baixo risco'. Agarro a mão dele: 'Caramba, isso é
maravilhoso!'. 'Sim. E o exame ainda mostra qual seria o possível
acréscimo de proteção da quimioterapia para você: 1%. É claro que diante
disso eu não posso te dar a quimioterapia'. Estou radiante: 'Você imagina o
quanto eu estou feliz, né?'. Ele ri de novo: 'Sim. E eu quero te agradecer por
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ter insistido em fazer o teste. Você sabe que eu não faria se não fosse pela
sua insistência. Mas, de agora em diante, vou passar a recomendá-lo mais
em casos como o seu.Talvez, daqui alguns anos, com mais uso dessas
tecnologias, a gente descubra que o grau do tumor não quer dizer tanta
coisa assim'. Minha alegria é em dobro: eu, paciente, muito feliz por mim
mesma; eu, profissional de saúde pública, feliz porque talvez minha
persistência fosse ajudar outras mulheres na travessia dessa jornada.
Algumas considerações
Os momentos assistenciais em saúde são momentos de decisão sobre o
que pode e deve ser feito diante da singularidade de cada caso. A variabilidade
das opções possíveis depende da compreensão da ideia de saúde que guia o
momento assistencial. Na abordagem biomédica, com frequência, 'o que' fazer se
restringe a um conjunto de técnicas terapêuticas para recuperação de certas
funcionalidades orgânicas, entre as quais as mais valorizadas são as cirurgias e
os medicamentos (CAMARGO, 2005). Contudo, quando o momento assistencial
se limita a esse intento, uma outra tecnologia valiosa se perde. Trata-se da
conversa. É somente por meio da conversação que o Cuidado (Ayres 2004) pode
se realizar porque é apenas através dela que saberes podem se encontrar; que
quem cuida pode vir a conhecer o projeto de felicidade de quem está em busca de
cuidado; que esses sujeitos, juntos, podem construir as decisões possíveis sobre
o que fazer. Para realizar o Cuidado, o profissional precisa abrir mão da fantasia
de poder de decisão unilateral para se tornar aquele que constrói mediações - de
saberes, de desejos, de sentimentos.
Nos recortes de minha trajetória que apresentei, são marcantes aqueles em
que o diálogo foi inviável. No primeiro, a consulta para recebimento dos resultados
dos exames pós-cirúrgicos, se destaca o abandono: logo após a recomendação
de um tratamento mais agressivo, a médica se desvencilha do delicado trabalho
de me oferecer explicações ao mesmo em que comunica que não me
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3 O termo “o ‘era uma vez’” é utilizado para se referir ao ponto de partida das reflexões
desenvolvidas neste texto e que são atravessadas por uma série de estórias do passado,
presente e futuro, posteriormente abordados.
4 Opto por manter a denominação sujeito da pesquisa e participante da pesquisa junto como
biomédicas, intervencionistas e quantitativas, mais de 60% das pesquisas avaliadas pelo CEP,
em 2006, era da área das ciências sociais e humanas. Em 2016, buscando solucionar alguns
entraves do enquadramento das ciências sociais e humanas em um modelo biomédico, é
assinada pelo Conselho Nacional de Saúde a Resolução 510, de 7 de abril de 2016
(http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf). Mas que no momento da
pesquisa ainda não tinha sido efetivada em sua plenitude, pela “dificuldade de compreensão” e
pela sua “recente publicação”, segundo relato do CEP que avaliou esse projeto de pesquisa em
2016.
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6 Essa escola, bem como esse processo junto a/ao Plataforma Brasil/CEP, está vinculado a
uma instituição de ensino superior pública brasileira, com mais de 50 anos de existência.
7 O termo ‘era uma vez’ de minha história faz alusão a um possível ponto de partida de minha
caminhada. Compreendo que minha história apresenta vários pontos de partidas não lineares e
não cronológicos que compõem a trama dos sentidos de minha existência, por isso, decidi
começar com um dentro os vários “era uma vez” para contextualizar, ainda que brevemente, o
local de minha fala nesse texto.
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Abrindo a ficha
lógica vigente, a busca por espaços em que pudesse expor meus pensamentos
se fez constante e o PET GraduaSUS foi o principal espaço dentro da
Universidade.
Estava eu, na linha de frente, junto com mais alguns alunos realizando
uma oficina para os trabalhadores de uma Unidade de Saúde da Família na
qual trabalhamos junto com o PET GraduaSUS (a professora nos dava
suporte) então inicia a discussão, parecia uma guerra. Por um momento
acreditei ser o responsável pela frustração daqueles trabalhadores, a presença
dos preceptores que trabalhavam na gestão deixava tudo com um ar mais
dramático.
Saio da frente, sento um pouco e escrevo no meu diário de campo
algumas perguntas: O que é saúde? Nesse contexto o que é mesmo o conceito
de saúde? Estado de bem-estar? De quem? Como promover a saúde se essa
sociedade lucra com a doença? Até mesmo a doença dos trabalhadores da
saúde.
biopsicossoci… o que?
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Como seis bolsistas, dois de cada curso, mais meia dúzia de gatos
(voluntários) pingados podem influenciar nessa situação? Ou até mesmo na
faculdade. Esses poucos professores que vivem em seus guetos podem
contagiar a maioria não reflexiva que vive seu dia voltado para uma busca
econômica de uma vida melhor?
Temos medo do conflito, do diferente, o profissional questionador era mal
visto pelo grupo participante das oficinas, isso se repetiu em todas que
participei. No SUS lidamos com todos e suas diferenças, mas estamos
preparados?
Também tivemos vários ganhos. Ampliação dos campos de estágios na
saúde da família, manuais de estágio, vislumbre da implantação de
acolhimento aos usuários nas unidades que estamos inseridos, mudança na
percepção de alguns colegas sobre o que é o Sistema Único de Saúde.
Poderia ser esse texto apenas para falar das coisas boas, mas acredito que
nesse momento precisamos nos dedicar mais nas falhas para tentar arrumar.
Questionar é um ato político!
É preciso pensar em modificações sociais. Como mudar o currículo?
Sabemos que historicamente os ambientes educativos foram organizados para
ser um local mais próximo da reprodução do modelo de sociedade que se
espera. O currículo se apresenta como reprodução do sistema que domina a
maioria da população.
Usando da teoria queer, penso no seus conceitos e questionamentos.
Talvez essa autoetnografia é justificada somente por sua influência. É preciso
estranhar!
Estranhar o currículo, é estranhar a forma em que ele se apresenta e as
condições no qual o conhecimento se constrói. Devemos questionar o que é
conhecido e de que forma vamos conhecer algumas coisas em detrimento de
outras. "A questão é: o que há para aprender com a ignorância?" (Louro, 2008).
***
Continuamos a ir para as unidades, mais uma equipe entra na sala para
oficina, mais uma leva de profissionais desmotivados, travados no processo de
trabalho, presos em pequenas burocracias. O problema da saúde pública é o
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
REFERÊNCIAS
Abstract: The article aims to summarize the internal conflicts of one of the
interlocutors who had their report analyzed in the monograph titled 'An Embrace
to Silence: The influence of the family nucleus in the referrals of cases of sexual
abuse' in which the objective of the research is to reflect the importance of the
supporting reception (or lacking of if) for the person who has been sexually
abused, observing how much such violence influences the reactions and
actions of their family members. The central proposal of the article is to expose
Nínive's questions from three different perspectives in a reflection that aims to
explain why she is the main reason for the research.
Key-words: Sexual abuse; reception; familiar; silencing.
Introdução
Minha proposta inicial para este artigo era apresentar resumidamente
uma das análises feitas em meu trabalho monográfico que tem como temática
abuso sexual. Neste trabalho analisei casos reais onde conclui-se que as
interlocutoras foram silenciadas no que se refere ao compartilhamento de seus
relatos e por conseguinte não receberam o acolhimento, evidenciando a
dinâmica familiar como um dos impeditivos para a subnotificação dos casos. Eu
queria expor especificadamente o caso de Nínive. O problema é que existiam
questões sobre o acolhimento que eu mesma desconhecia, até ouso dizer que
eu não queria entender. Na busca de entender o que é o acolhimento e
encontrar pessoas com as quais me identifico eu desvalorizei a pessoa que
mais precisava do meu apoio. Desta forma, precisei rever o que propus
inicialmente e abrir espaço para que Nínive não fosse mais silenciada por mim.
Em uma conversa um grande amigo me fez uma pergunta para cada ser;
Thuani, Nínive e o Silêncio, e na necessidade de responder sinceramente a tais
perguntas encontrei o que faltava no artigo que escrevera inicialmente para
este evento. Assim, compartilho a seguir o fruto de tais questionamentos,
finalmente dando voz a pessoa mais importante pra mim.
Qualquer lugar é melhor do que aquele. Mamãe ligava para o pastor, contava
minhas peripécias com na vez em que joguei shampoo e terra no estrogonofe,
me fez passar pelo constrangimento de ter que contar detalhes de como
estraguei a comida e todos concordaram que aquilo era rebeldia por causa da
novela. “Essa novela deixa as crianças rebeldes!” era isso que repetiam e isso
era motivo o suficiente para que eu quisesse matar o bicho papão com
shampoo na comida. Pra mim, o bicho papão foi real, ele vinha todas as noites,
passava a mão pelo meu corpo e se masturbava. O que se sabe aos 8 anos
sobre isso? Nada. Mas uma vez vi um livro sobre doenças sexualmente
transmissíveis e no meio dele havia uma página dupla onde havia corpos
masculinos representando as fases de crescimento do bebe ao idoso de um
lado, e do outro o mesmo processo mas com corpos femininos. Rapidamente
procurei o meu corpo e o identifiquei em meio os outros corpos desenhados;
mas olhando curiosamente para os corpos masculinos percebi que o corpo do
bicho papão não era compatível com o meu, mas sim com o desenho igual ao
corpo de minha mãe e pensando sobre isso senti o primeiro estranhamento.
Engraçado foi que depois disso eu meio que fiquei com nojo de me sentar na
cama da minha mãe, como eles podem namorar e ele faz aquela coisa
estranha comigo? É nojento …. logo me esqueci de tudo isso, e la estava eu,
assistindo TV sentada na cama outra vez.
Olha, nem sei porque tô falando isso de novo, já contei essas paradas
algumas vezes. As pessoas não se importam, elas nem sabem o que fazer.
“Se fosse com uma filha minha eu matava o filho da puta!” é o que eles dizem
enquanto tem uma parente passando por isso embaixo do nariz. As pessoas
falam e falam, uma coleguinha da escola veio fazer trabalho aqui em casa uma
vez e eu estava tão mal que desabafei. Ela disse “porquê você não conta
nada? Se você passa por isso a tanto tempo assim parece que você gosta!”,
óbvio que logo depois me afastei dessa pessoa porque, né? Eu devia ter uns
10 anos. Quando se sofre terror psicológico para que não abra o bico, a gente
começa a pensar nas diversas formas de morrermos sem muita dificuldade. Na
volta da escola eu costumava me imaginar sendo atropelada por cada carro
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Refletindo sobre isso me fiz uma nova pergunta: Tem modo melhor de
trazer prejuízo do que continuar viva? Não, definitivamente não. E prejuízo pros
dois lados. Aos 13 eu já me cortava superficialmente, me mordia e em picos de
stress socava minha própria cara. Arranhões, afundar as unhas na pele e bater
a cabeça na parede também eram bem eficazes pra espalhar o auto ódio pelo
corpo. Minha mãe cortou meu cabelo “joãozinho“ porque eu não tinha vaidade
e era “relaxada” com a aparência e assim comecei a ser zoada na escola. Eu
sei, eu sei, já é demais né? Abuso sexual em casa e bullying na escola? Pois é,
isso mesmo. Mas óbvio que na escola eu era feliz, faladeira, animada e legal.
Eu podia ser só uma criança normal que sofre bullying, tava ótimo assim.
Quando eu tinha picos de stress pelas interações na escola ou raiva por causa
do abuso era só eu esperar, uma hora meu próprio corpo ia cuidar de tudo.
Socos no rosto, cabeçadas na parede, pode ter certeza que começaram
conscientemente, mas depois de um tempo eram involuntárias. Quando eu
perdia o controle eu prendia os braços entre as pernas e começava a respirar
rápido. Esse método funciona até hoje.
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Eu não sabia o que faria de bom pra me manter viva, mas eu precisava
achar alguma coisa. Assim, conforme fui crescendo, fui tendo diversas ideias,
mas um dia, sentada dentro de uma igreja eu só pensei “Olha só, preciso
mesmo transformar isso tudo em algo bom, porque tô pensando em me matar
de novo e dessa vez eu não vou só tentar...” Não bastava só viver, e eu sabia
que encontrar pessoas que me entendem não era o suficiente. Eu só queria
que minha mãe acreditasse em mim e me apoiasse o que por uma série de
motivos isso não foi possível. Logo, eu colocava minha energia em outras
coisas, como trabalho voluntário ou coisas do tipo. Pensei que começar um
grupo de terapia coletiva seria uma boa ideia, mas com Thuani se
desenvolvendo na faculdade ela começou a pensar nos outros e esquecer de
mim, não me ouvia mais. Talvez me estudando ela fale comigo e me deixe falar
com as outras meninas também.
faculdade, e assim esqueceu de vez de mim. Quer dizer, ela falava comigo vez
ou outra, mas tinha medo de ficar muito tempo comigo. E aí você me pergunta
como eu me sinto sendo estudada? Me sinto enxergada, ela não pode correr e
nem se esconder, não existe mais mundo paralelo e eu quero conhecer lugares
e quero sentir as coisas, eu quero receber afeto e amparo que ela não me deu
na desculpa de que ninguém o deu a nós. Eu só quero dela o que a gente
queria da nossa mãe, um abraço.
entrevistas, mas não a deixou falar tudo que queria. Depois das entrevistas eu
tive que ficar com Nínive, tomar conta dela até que Thuani analisasse todos os
casos e por último o dela.
Resumindo, eu ainda estou aqui, e acredito que por tempo
indeterminado porque a Thuani não sabe viver sem mim! Quem você acha que
a possibilita ser a “coisa saltitante” que a Nínive tanto reclama? Olha, não
pense que sou ruim, eu penso nas consequências da minha existência todos
os dias. Se não fosse eu, ela não teria escrito, e desde a infância fui eu que
ajudei as duas a sobreviver. Como você acha que elas estão vivas agora? Eu
dei as duas o dom de conseguir transparecer uma vida normal e isso já as
livrou de mais represálias do que você pode imaginar. Ele perseguia até os
amigos dela, ela tinha que parecer normal. Admito que por minha causa hoje
elas não conseguem se aproximar direito, quando o fazem o corpo fica em um
estado ruim, é como duas almas em um corpo só. Mas eu estou tentando
colaborar pra essa melhora, tenho me afastado delas principalmente nas
últimas semanas e adivinha só, tá tudo uma bagunça! Na minha humilde
opinião, sem mim elas tem duas opções; ou uma das duas deixam de existir ou
elas se fundem e se tornam outra pessoa, é só um palpite. Particularmente
para Thuani, acredito que ela existe só por minha causa, estamos juntos desde
que ela se entende como gente e ela nem se lembra de como era a vida antes
de mim. Ela não sai pra trabalhar sem mim, e nem interage com as pessoas
sem que eu esteja junto. Ela encontrou uma menina igual a ela, e essa garota
fica dando conselhos que diminuem minha importância, mas com jeitinho acho
que ela consegue seguir sem me deixar de lado. Ela tem tentado me deixar de
fora nas interações com o marido e ela já viu que isso não dá certo porque a
Nínive vive tendo crises por isso. Falando na Nínive, ela sofre diariamente pelo
tanto que a sufoco, acho que fiz tanto mal a ela quanto bem pra Thuani. Por
minha culpa quando Nínive quer chorar a Thuani não deixa, enquanto Nínive
passa mal ela simultaneamente trabalha e sorri pras pessoas, e sabe o que é
mais bizarro? Não é falso, não é mentira! Elas são definitivamente uma obra de
arte! Por minha culpa a Nínive nunca pode chorar de verdade tudo o que tinha
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pra chorar. Ela faz em prestações, geralmente quando elas estão sozinhas em
casa e de novo, todos os dias, Thuani esconde a Nínive em mim.
Thuani, como se sente escrevendo sobre um tema em que você tem que
esconder que é a personagem principal ?
Olha eu gostei, Nínive que não curtiu muito. Foi uma forma eficaz de
fazer algo útil com tudo o que aconteceu. Não tem porque ficar sofrendo e
sentindo as dores pra sempre. Nínive e o silêncio ficam me cobrando que eu os
dê voz, mas pra quê? Pra ficarem se lamentando e olhando pro próprio
umbigo? Sabe quantas pessoas estão sendo abusadas agora enquanto ela se
lamenta? Ela não pode sofrer pra sempre e já que ela não quer parar eu deixo
o silêncio tomando conta dela. Eu não sou ruim como parece, nesses últimos
meses eu tenho dado atenção a ela – admito que as vezes fico na dúvida se foi
uma boa ideia – e a deixo ver as coisas lá fora. Deixei ela conversar e se expor
pras pessoas, ela acha que é simples e fácil e nem valoriza todo o trabalho que
tenho pra deixá-la participar das minhas interações! Eu até tento a entender
mas ela fica com esse drama, bloqueia meu corpo e minhas sensações e eu
quero sentir como todo mundo, isso é ser normal! Sentir! Ela acha que tenho
medo de encará-la e que eu não quero ceder, mas a verdade é que eu dei
muito duro pra conseguir sair e interagir com as pessoas e se eu der espaço
pra ela tudo pode ir pelo ralo! Já tentou conviver com nós duas? Eu não sei
explicar como meu marido ainda não fugiu. Admito, bloqueio as crises e
escondo Nínive quando ele está perto, mas fala sério, quem não esconderia?
Fazer a análise do relato de Nínive por último foi muito bom pois eu pude
trabalhar em paz! Você devia ver a lambança que foi o quando ela escreveu o
relato pra mim. Uma choradeira, uma lamentação que eu não tenho mais
paciência. Ela fica vulnerável demais e me prejudica. Olha, achei muito bom,
gostei abeça. Levei ela nas entrevistas e ela contou seu relato as outras
meninas, nas semanas que se passaram ela estava com um bom humor e isso
equilibrou as coisas entre nós duas, mas depois disso ela queria ver pessoas
sempre e conversar sempre e isso já estava demais. Atualmente estamos em
um embate e por isso ela fica tendo crises psicológicas que com certeza ela
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações finais
Tudo isso pode parecer confuso e desconexo, mas é importante pensar
além de uma contextualização e descrição dos acontecimentos e abrir espaço
para a importância de se poder falar, pesquisar e produzir esclarecimentos
sobre questões próximas. Ainda estou para descobrir como abraçar Nínive,
acolhê-la, ouvi-la. Por tanto tempo a escondi, a privei de viver e ter
experiências. Hoje, quero aprender com ela, como se fosse a primeira vez que
a vejo. Esta foi a primeira tentativa em anos de realmente ouvi-la com a
pretensão de lhe dar lugar e voz. Eu permiti que a academia fizesse conosco o
mesmo que nossa família, nos silenciasse. Desde minha adolescência Nínive
sempre existiu e que a escondia e escondo sempre que acho necessário,
assim como me escondi atrás dela e do silêncio para conseguir escrever. Sinto
muito por isso, peço perdão a ela por todas as vezes que a negligenciei e a
convido por meio deste escrito a caminhar comigo daqui em diante, pra
sempre. Boa parte disso aconteceu pois eu tive que aprender a dar espaço a
ela e ao silêncio para escrever este artigo, para entender mais profundamente
o que é a autoetnografia.
A grande questão em relação a autoetnografia é a utilidade além
academia que a acompanha. Sempre existiu a necessidade de uma escrita
mais palatável e, mais ainda, de uma acessibilidade dos materiais que
explicitamente visam o aprimoramento e/ou a explicação de determinadas
questões e interações sociais. Escrever sobre o que se vive é redirecionar sua
sensibilidade em direção ao coletivo.
Nesse caso, usar o olhar antropológico para tal é reforçar a importância
das pesquisas que explicitem mais abertamente a perspectiva do interlocutor.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde
Certa vez ouvi um doutor em antropologia, que falava sobre sua pesquisa na
área de políticas públicas dizer algo mais ou menos assim: “O antropólogo não
pesquisa coisas nunca vistas antes, mas sim, aquilo que todos estão vendo
todos os dias e naturalizaram”. Assim, quando o antropólogo passa pela
experiência que é ligada diretamente a pesquisa emerge a sensibilidade de
uma perspectiva direcionada as individualidades que juntas criam um coletivo.
Ao compartilhar minha vida com um amigo ele me disse que eu o estava
fazendo uma crueldade, pois ao inteirá-lo sobre as questões referentes ao
abuso sexual sofrido por tantas pessoas diariamente eu estava entregando a
ele uma partícula de responsabilidade. Assim, ele se perguntou o que ele faria
com aquela partícula que eu acabava de lhe entregar.
Em tempo, entendo a autoetnografia, principalmente as que tem relação
direta com saúde e cidadania, como compartilhamento de responsabilidade
carregado de informação. Autoetnografar é o oposto de limitar-se as paredes
acadêmicas, uma escrita acessível seria a confirmação da proposta de
expansão da responsabilidade e informação.
Utilizei a autoetnografia como ferramenta para dialogar com o silêncio,
silêncio que pessoas que não sofreram abuso sexual nunca entenderiam.
Quem poderia dizer que as ferramentas disponíveis das Instituições Públicas
não são o suficiente se não as pessoas que não puderam acessá-las? Foi
necessário dialogar com o meu próprio silêncio para acolher outras histórias,
para repensar o que realmente significa o acolhimento e os danos de se viver
sem ele e mais necessário ainda dar voz a outros silêncios e dialogar com eles
para expor que abafar conflitos e não acolher pode ser tão prejudicial quanto o
abuso. Nínive foi abraçada pelos amigos, pelo marido, mas eu ainda não a
abracei. No processo de compreender e escrever abri os braços invés de
fechá-los em torno de mim. Ao compreender abracei os outros e esqueci de
mim. A nova hipótese é que caso eu me permita abraçar Nínive, ao abrir os
braços novamente caberá mais gente que antes.
Grupo de Trabalho 10
Antropologias e deficiências
Coordenadoras: Luciana Lira (UFPE); Éverton Luís
Pereira (DSC/UnB), Soraya Fleischer (DAN/UnB)
Grupo de Trabalho 10
Antropologias e deficiências
É relativamente recente, na antropologia brasileira, a discussão sobre
experiências e condições de deficiência. Esse GT pretende reforçar essa
discussão, no sentido de reunir relatos de experiências, pequenos filmes e
artigos que relatem e analisem o que é considerado deficiência, como é
percebida e vivida a partir da primeira e da terceira pessoa e, se pertinente, de
que modo é encaminhada e tratada. As explicações etiológicas e simbólicas
para a deficiência, os atores envolvidos no cuidado e acompanhamento
cotidiano, as lutas sociais e políticas para garantir sua visibilidade e
acolhimento são todos temas de interesse aqui. Etnografias e pesquisas sobre
deficiências em relação às epidemias recentes, às doenças e síndromes raras,
aos acidentes, medicamentos e genética poderão aqui encontrar espaço para
apresentação. As interfaces, nem sempre fáceis ou produtivas, com as
iniciativas e definições do Estado e da Biomedicina são de particular
importância também. Além disso, pretende-se considerar também como raça,
gênero, sexualidade, geração e classe, por exemplo, perpassam as
experiências da deficiência, dos cuidados a ela dirigidos e dos movimentos
sociais que a representam.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
1
A Fundação Oswaldo Cruz, doravante Fiocruz, é uma instituição de pesquisa e desenvolvimento em
ciências biológicas fundada no Rio de Janeiro nos idos anos de 1900 pelo sanitarista Oswaldo Cruz.
Atualmente, possui centros de pesquisa em 10 estados e no Distrito Federal, além de contar com uma sede
em Maputo, capital de Moçambique
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Uma das primeiras respostas do Governo Federal para lidar com a SCZV
foi o lançamento, em dezembro de 2015, do Plano Nacional de Enfrentamento à
Microcefalia. A proposta do documento era a de atuar em três frentes: I)
prevenção e combate ao mosquito Aedes Aegypti; II) Atendimento às pessoas;
e III) Desenvolvimento tecnológico, educação e pesquisa. (BRASIL, 2015b).
Como parte do eixo destinado ao atendimento das famílias, o documento previa
a disponibilização do Protocolo e Diretrizes Clínicas para o Atendimento à
Microcefalia, que foi divulgado em janeiro de 2016 sob o nome de Diretrizes de
Estimulação Precoce (BRASIL, 2016).
2
É importante acrescentar que a microcefalia é o sinal mais comum da SCZV, porém nem todos os casos
de bebês diagnosticados com a síndrome nasceram com o perímetro cefálico reduzido. Há casos em que
o bebê apresenta outros transtornos associado à infecção pelo ZIKV.
3
Para a neurociência, a plasticidade cerebral diz respeito a possibilidade do cérebro de alterar e
transformar sua estrutura. Estudos recentes revelam que mesmo cérebros maduros, de pessoas adultas
e idosos, ainda são passíveis de modificação da estrutura interna.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Léo4 foi uma das crianças em estimulação precoce com quem Fernanda,
Lays e Soraya dialogaram; À época da pesquisa, ele estava com 10 meses de
idade. As pesquisadoras o conheceram pela primeira vez em sua casa, numa
visita articulada pela equipe de pesquisa por meio de cartas e mensagens pelo
aplicativo de conversa WhatsApp ao longo de alguns meses com sua mãe,
Damiana, antes de partirem de Brasília para o Recife mas também puderam
acompanhar mãe e bebê em outros ambientes, como a organização não
governamental AMAR5 e o hospital Fundação Altino Ventura
4
Para preservar a identidade das interlocutoras, todas as pessoas aqui citadas tiveram seus nomes
alterados.
5
A Aliança de Mães Raras (AMAR) uma organização sem fins lucrativos que desenvolve projetos
voltados para famílias de crianças diagnosticadas com síndromes e doenças raras.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
6
Para citação explícita dos trechos encontrados nos diários de campo, foi adotado um modelo fixo por
toda a equipe de pesquisa que consiste na apresentação da pesquisadora responsável pela autoria do
diário, seguido pelo ano de produção e a página do Tomo em que o trecho se encontra. Desta forma, a
abreviação “DCFV, 2016:86” refere-se a página 86 do Tomo produzido em 2016 por Fernanda Vieira.
Doravante, os acrônimos utilizados para a produção de Soraya Fleischer e Lays Venancio serão,
respectivamente, DCSF e DCLV. Aproveito esse espaço para, novamente, agradecer às pesquisadoras por
consentirem a leitura e utilização dos dados produzidos.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
visto que estes são uma forma de acesso a formas de sociabilidade mais
explícitas e estruturadas. Ao contrário do que se pensou por muito tempo, o
autismo não se caracteriza simplesmente por uma profunda indiferença ao
social, o dito isolamento autista. Afinal, não seria o interesse intenso e obsessivo
por cronogramas, mapas, números, entre outras coisas, comumente observado
entre autistas, também uma forma de conexão com o mundo social?
Embora as relações entre conhecimento e habilidades interpessoais e
sócio-culturais sejam complexas, sendo difícil traçar fronteiras específicas entre
um domínio e outro, é fácil notar como essa observação desestabiliza teorias
psicológicas a respeito de um suposto déficit na teoria da mente como uma das
características centrais do autismo. O termo “teoria da mente” refere-se à
capacidade de atribuir estados mentais a outras pessoas e predizer o
comportamento das mesmas em função dessas atribuições. Segundo as teorias
de desenvolvimento infantil, toda criança eventualmente desenvolve essa
capacidade ao longo de seu processo de socialização, mas a aquisição dessa
habilidade estaria comprometida no autismo. Ainda que a palavra “teoria” possa
remeter a algum processo intelectual abstrato, nesse contexto ela refere-se a um
sistema de inferências incorporado, relacionado ao senso comum e adquirido ao
longo de repetidas interações durante o processo de socialização primária.
Entretanto, mesmo que existam boas razões para associar essa suposta falha
na teoria da mente a distúrbios sensoriais e falhas no sistema de processamento
de informações em autistas, uma abordagem centrada unicamente em déficits
individuais e inatos, acabar por ignorar também a possibilidade de que existam
outras formas de aprendizado social, conforme exposto acima. Dito de outra
forma, não é apenas a criança que formula, unicamente por intermédio de suas
próprias habilidades cognitivas, uma teoria a respeito da mente dos outros. É
também o ambiente que lhe oferece os esquemas sociais e culturais através dos
quais sua sociabilidade pode ser desenvolvida.
Em um trabalho apresentado num workshop que organizamos juntas, e
que no momento está no processo de se transformar em capítulo de livro, a
antropóloga e psicóloga Elizabeth Fein traz alguns exemplos contundentes a
esse respeito, retirados de sua pesquisa de doutorado nos Estados Unidos. Fein
conta por exemplo, a história de Eric, um menino de onze anos, obcecado por
Vila Sésamo, entre outros programas de TV e filmes. Quando sai um DVD novo,
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
se é de um filme que ele gostou, ele o assiste dezenas de vezes, até memorizar
todas as falas. Pergunta a seu pai sobre o significado de expressões faciais dos
personagens, ou sobre gírias que ele não conhece ainda. Eric, como muitos
autistas, tem dificuldade no processamento auditivo, levando um tempo para
compreender o que escuta. Mas se isso lhe traz problemas especialmente na
interação face a face, o aparelho de DVD ajuda-o a minimizar essas dificuldades.
Fazendo as vezes de um professor paciente, o DVD acaba por ajudá-lo a
organizar palavras, frases, expressões faciais e gírias em um todo significativo.
Eric não é o único autista a fazer esse tipo de coisa. Um caso semelhante
aparece em um livro, já traduzido para o Português, e que virou também um
filme. Trata-se do Vida, animada!, que conta a vida de Owen Suskind. Owen teria
sofrido do que se costuma chamar de “autismo regressivo” – até os três anos de
idade era uma criança normal, alegre e brincalhona, e depois de um rápido
processo de regressão, cessou qualquer tipo de comunicação verbal. Um dia,
depois de anos sem se comunicar, Owen reproduziu uma fala do filme A
Pequena Sereia. Durante todos os anos em que permaneceu em silêncio, Owen
assistia obsessivamente as animações da Disney e foi através dos personagens
e tramas narrativas dessas animações que ele retomou contato com o mundo a
sua volta. Seus pais passaram então a se travestir desses personagens para se
comunicar com o filho autista. Até hoje, personagens e histórias da Disney
permanecem como uma forte referência para Owen, que aparece no filme já
adulto, levando uma vida relativamente independente, apesar da presença e
ajuda frequente de diversos profissionais em sua rotina diária.
A paixão pela repetição, também transformada em sintoma em manuais
psiquiátricos, seria na verdade, segundo Fein como uma forma específica de
envolvimento com a cultura. Fein resgata um argumento desenvolvido por
Geertz acerca da profunda dependência humana em relação a cultura para
embasar seu argumento. Segundo Geertz, “a cultura é melhor vista não como
complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos,
tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas como um
conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (...) –
para governar o comportamento.” (1989 [1973]: 32 grifo meu). Geertz prossegue
argumentando que “o homem é precisamente o animal mais desesperadamente
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Bibliografia:
HART, Brendan. 2014. “Autism parents & neurodiversity: Radical translation, joint
embodiment and the prosthetic environment”. BioSocieties, 9(3): 284-303.
OCHS, Elinor; Tamar Kremer-Sadlik, Karen Gainer Sirota e Olga Solomon. 2004.
“Autism and the social world: an anthropological perspective”. Discourse Studies,
6(2): 147-183.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
OCHS, Elinor e Olga Solomon. 2007. “Practical Logic and Autism.” In: Conerly
Casey and Robert B. Edgerton (eds.) A Companion do Psychological
Anthropology. Malden, Oxford & Carlton: Wiley-Blackwell. Pp. 140-167.
Resumo
2 Cabe esclarecer que o Ministério Público Federal em Santa Maria instaurou Inquérito Civil
Público destinado à “verificação e acompanhamento sobre a longa espera na fila para a
realização de cirurgias eletivas na especialidade de traumatologia/ortopedia no HUSM” (BRASIL,
2013). A partir de tal inquérito, tive acesso ao processo de Aida.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
3 Para uma abordagem da chamada incapacidade para os atos da vida civil, ver FIETZ, 2015.
4 Recentemente, por outro lado, a etnografia de Lucas Freire (2017), acerca da Câmara de
Resolução de Litígios de Saúde no Rio de Janeiro, mostra como a judicialização da saúde pode
funcionar, ao mesmo tempo, como uma razão para a criação de instâncias administrativas e
forma de ameaça ou pressão nos diálogos interinstitucionais de resolução extrajudicial.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
5 Me inspiro aqui em Kohn (2013), para quem o engajamento empírico via imersão etnográfica
tem o sentido de visibilizar e amplificar problemas gerais.
6 Nesse universo, vale ressaltar que elas não apenas são dimensões indivisíveis (KLEINMAN;
KLEINMAN, 1991), mas compõem o núcleo da problemática das experiências jurídicas aqui
analisadas (FASSIN, 2013; MOL, 2008).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
7 Como afirma Smith-Morris (2010:25), a cronicidade pode ser abordada como o processo de
identificação a que qualquer paciente (independente de diagnóstico), pode passar, à medida que
ele se passe a considerar habitado pela sua doença. Tal condição levanta uma série de questões
entrelaçadas no contexto de nossa etnografia, sobretudo no que se refere a temas como
invisibilidade, grupos específicos de pacientes, variabilidade de sintomas, dificuldade de precisão
do diagnóstico, comorbidade e dificuldade no acesso a tratamento.
8 Uso aqui a expressão enfermidade crônica, e não doença crônica, exatamente para colocar
em evidência que a experiência de sofrimento não pode ser tomada como dada por diagnósticos
médicos e institutos jurídicos. Para fugir ao risco de ignorar a continuidade da experiência
humana em prol de categorizações não antropológicas, opto por considerar histórias de pessoas
sem me ater a limitações impostas por diagnósticos médicos ou de matérias jurídicas. Assim,
independente de laudos médicos (com suas previsões de urgência, risco de morte, possibilidade
ou tempo de recuperação) ou mesmo das demandas identificadas por instituições jurídicas
(versando ou não sobre a chamada “qualidade de segurado” nos casos concretos), tenciono me
ocupar aqui com um recorte eminentemente antropológico.
9 Como aponta Matos (2017: 123), “ser ou estar inválido, e receber esta classificação, não se
constitui em algo desejável ou visto como positivo. Perder o valor enquanto força de trabalho e
atividade, temporária ou permanentemente, seria um peso negativo que superaria o valor do
benefício e o simples recebimento deste”.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
10 Um dos critérios materiais discutidos é a classificação prioritária das doenças de dor crônica,
levando em conta as consequências individuais (depressão, incapacidade para o trabalho,
perturbação nas relações sociais etc.), comorbidades como artrite, artrose e fibromialgia e a
prevalência de dor crônica (estima-se que um em cada cinco adultos sofra com ela). Por vezes,
os argumentos em torno da priorização de doenças crônicas chamam a atenção para o impacto
econômico da redução da capacidade laboral (BARCELLOS et al, 2017:462). Outros critérios
relativos às doenças incluem patologias que exigem cuidados de terceiros, doenças com
impactos coletivos e com tratamentos efetivos. Quanto as pessoas prioritárias a serem
atendidas, “situações de vulnerabilidade em geral – como a pouca idade, a senilidade, a
maternidade, a pobreza e a deficiência – tornam justificável o amparo estatal, destinando-se mais
recursos aos mais frágeis ou necessitados.” (:462).
11 Especialmente sobre a alegada falta de estrutura para realização das cirurgias traumato-
13 Os estudos recentes sobre o tema definem como capacitismo “a forma como as pessoas com
deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de
trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações
sexuais etc.) (...). Essa postura advém de um julgamento moral que associa a capacidade
unicamente à funcionalidade de estruturas corporais e se mobiliza para avaliar o que as pessoas
com deficiência são capazes de ser e fazer para serem consideradas plenamente humanas.
(MELLO, 2016: 3272).
14 Tramita no STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 182), que
busca alterar a definição de pessoa com deficiência como “pessoa incapacitada para a vida
independente e para o trabalho” (cf. art.2º, p.2º da Lei 8.742/1993) em direção à definição da
Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (segundo a qual "Pessoas com
deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”).
A Convenção foi ratificada em 2008 e, portanto, incorporada ao ordenamento jurídico com status
de norma constitucional.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS
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Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
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Didier e EIDELIMAN, Jean-Sébastien (orgs.). Économies Morales
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FASSIN, D.; D'HALLUIN, E.. (2005). The Truth from the Body: Medical
Certificates as Ultimate Evidence for Asylum Seekers. American Anthropologist
107 (4): 597–608
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FREIRE, L. (2017) “Entre disputas e convênios: algumas notas sobre a
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estudo etnográfico acerca das práticas de governo em uma Associação de
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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KENDALL, C., HILL, Z. (2010) Chronicity and AIDS in three South African
communities in Manderson, L., & Smith-Morris, C. (Eds.). Chronic conditions,
fluid states: Chronicity and the anthropology of illness. New Brunswick: Rutgers
University Press
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
Rotina do Treinamento
miolo; Fazer a limpeza folha a folha com trincha ou escova de juba, sem pular
páginas; Fazer a limpeza das capas com pano seco, solução com álcool,
borracha ou pó de borracha; Anotar o número de páginas do livro e o nome de
quem fez a higienização (para registro de produtividade); Guardar o livro no
carrinho de livros limpos; Limpar a mesa retirando o acúmulo de sujidades;
Recomeçar o processo com outro livro.
Enlaces
Em meio a esta rotina de trabalho e aprendizagem na Universidade,
quase que inesperadamente, foi possível a construção de um encontro. De um
lado, como já narramos, estavam os jovens com deficiência intelectual, em sua
maioria, acostumados a ouvir sobre sua impossibilidade de estarem ali, mas
que descobrem uma possibilidade de formação profissional na vivência da
Biblioteca da Universidade. De outro lado, jovens que tiveram um percurso de
vida cujo sonho previa o ingresso em uma instituição universitária, buscam uma
experiência prática dentro do curso que escolheram – Psicologia. Como estas
vidas se encontraram? Quando jovens estudantes de psicologia, foram
demandados a, semanalmente, ao longo de três anos, oferecer atendimentos
psicológicos em grupo aos jovens aprendizes da APAE. Desta forma, as mãos
que aprendiam a cuidar dos acervos começaram a ser cuidadas e a ensinarem
também.
Da relação construída entre pares, por todos estes jovens, observam-se
transformações na vida de todos os estagiários e também dos aprendizes
(Vigotski, 1997). Pouco a pouco, o que se vê são histórias que se enlaçam pelo
cuidado - de si, de uns pelos outros, e com os acervos públicos. Seus
horizontes são ampliados, suas convivências, o respeito com os próximos e a
compreensão de que todos devem ter voz nas relações que estabelecem.
Tenta-se, assim, contribuir para a transformação de suas próprias vidas, dentro
de uma Universidade que se faz inclusiva desde a sua concepção e que
pretende lançar no mundo quem se beneficia de sua formação (Caixeta, Souza
& França, 2016).
Historicamente, a deficiência é alvo de discriminação e de exclusão
social, processos que se mantêm até os dias de hoje. Por isso passamos a
defender para este público as sessões de psicologia como um espaço de
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Desmontando a Exposição
Referências
Caixeta, J. E.; Sousa, M.A. & França, P. (Orgs.) (2016). Educação e Psicologia:
Mediações Possíveis Em Tempo de Inclusão. Curitiba: Editora CRV.
O presente precário das mulheres do zika: temporalidade nas narrativas de mães de crianças com
síndrome congênita do zika vírus na Bahia
K. Eliza Williamson, Rice University
II Reunião de Antropologia da Saúde-RAS: “Antropologias e políticas em contextos de crise”
Universidade de Brasília, 8 a 10 de novembro de 2017
Se diz que uma epidemia tem um início, um meio, e um fim. A epidemia do zika vírus no
Brasil teve o seu início entre 2014 e 2015. Em outubro de 2015, os primeiros casos de
microcefalia começaram a surgir. Até fevereiro de 2016, o zika já tinha atingido o status de
epidemia de porte não somente nacional como também internacional (Diniz 2016). Em maio
deste ano, diante de uma queda importante no número de bebês com síndrome congênita do zika
vírus (SCZV), o Ministério da Saúde declarou o “fim” da emergência de saúde pública no Brasil.
Muito antes, o zika e as suas vítimas tinham sido virtualmente esquecidas nas mídias e no
discurso público.
Para Debora Diniz, no entanto, “[o] zika é ainda uma epidemia” (2017: 75). O mosquito
ainda acomete a população brasileira, particularmente os setores mais pobres, e as mulheres
continuam dando à luz a, e cuidando de, crianças com má-formações neurológicas. Agora as
famílias atingidas pelo zika enfrentam um longo e incerto caminho no cuidado de crianças com
múltiplas deficiências. Disse Margaret Chan, diretora geral da Organização Mundial de Saúde,
em fevereiro deste ano: “A OMS e os países afetados precisam manejar o zika não em um
[footing] de emergência, mas na mesma maneira sostenida em que respondemos a outros
patógenos suscetíveis a epidemias estabelecidos, como a dengue e o chikungunya, aquele [fluxo
e refluxo – ebb and flow] em ondas recorrentes de infecção. […] Agora estamos na viagem de
longo percurso [the long haul] e estamos todos juntos nisso” (Human Rights Watch 2017).
Neste [paper], me detenho sobre esse “long haul” desde o ponto de vista de mulheres
mães de crianças com síndrome congênita do zika vírus. Especificamente, faço uma reflexão
sobre as experiências do tempo de mães que hoje criam filhas e filhos vítimas do zika vírus no
“depois” da epidemia. Sugiro que essas mulheres vivem o que chamo aqui de present tense—um
trocadilho mal traduzido ao português como “presente tenso.” “Present tense” é como chamamos
em inglês o tempo verbal do presente. A minha utilização do present tense aqui sinaliza, por um
lado, a permanente tensão em que essas mães vivem no cuidado de filhos com corpos precários
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
que se desestabilizam, que engasgam, que dão crises convulsivas, que não conformam a um
modelo hegemônico do filho “normal.” Elas estão sempre em alerta, atentando a sinais e
sintomas que possam sinalizar problemas mais graves. Porém a tensão do present tense não vem
somente do filho com deficiência, como irei destacar, senão já faz parte de vidas vividas em
precariedades de vários tipos. Por outro lado, present tense sinaliza a orientação ao tempo que
surgiu nas narrativas das mulheres que entrevistei até agora: um tempo que parece um eterno
presente, sem um claro futuro.
Em um ensaio sobre a própria experiência de deficiência, Ellen Samuels escreve que “[o]
tempo de deficiência [crip time] é viagem no tempo”:
A deficiência e a doença têm o poder de nos extrair do tempo linear e progressivo com os seus estágios de
vida normativos e nos lançar no buraco de minhoca de aceleração para trás e para frente, paradas e começos
espasmódicos, intervalos tédios e finais abruptos. […] Nós que ocupamos os corpos do tempo de
deficiência [crip] sabemos que nunca somos linear… [Samuels 2017: parágrafo 5]
mais do que as mães, sobre quem recai a grande maioria do trabalho de cuidar (Fisher e Goodley
2007, Ginsburg e Rapp 2013, Landsman 2009, Read 2000, Traustadottir 1991). Para as
cuidadoras também, o tempo vem a ser outro. Cheryl Mattingly escreve que para pessoas “na
crise de vida,” como mães de crianças com deficiências e doenças potencialmente fatais, “o
tempo há mudado a sua velocidade; há virado concentrado, portentoso. Pode ser ou rápido
demais ou devagar demais, mas nunca é luxoso” (2010: 2). As cuidadoras também vivem entre
as eternas esperas e crises repentinas, entre a esperança e a sua falta. “A esperança mora em um
lugar incerto,” diz Mattingly, “em uma espécie de sala de espera temporal. Ela nos aponta para
um futuro que só podemos imaginar” (2010: 15).
As mães entrevistadas aqui no cuidado de filhos com SCZV, vivem um “presente tenso”
em que nada é garantido, tudo pode acontecer em qualquer momento, e o futuro é altamente
nebuloso—até impossível de imaginar. Esse present tense tem gênero, classe e cor, categorias
que condicionam profundamente a existência dessas mães e dos seus filhos, de maneira que o
nascimento da criança com SCZV é um evento desestabilizador em uma vida já cheia de
precariedades. Com essa reflexão, pretendo contribuir à construção de uma possível abordagem
ao “pós” da epidemia do zika vírus.
Metodologia
Me baseio principalmente na análise das narrativas de nove pessoas—a maioria mulheres
e mães biológicas—que cuidam de crianças com SCZV e que fazem ou já fizeram atendimento
no Centro Estadual de Prevenção e Reabilitação da Pessoa com Deficiência (Cepred), em
Salvador-BA. O Cepred é um centro de excelência, 100% SUS, que atende pessoas de todo o
estado da Bahia. Com o grande número de bebês nascendo com a SCZV, o Cepred virou um dos
principais centros de estimulação precoce, contratando novos profissionais nas áreas de
fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para atender à nova demanda. Também
fornece órteses para os que precisam. Desde maio deste ano, venho conduzindo uma série de
entrevistas semi-estruturadas com mães e pais sobre as suas experiências desde o início da
gestação do filho com SCZV até hoje. O roteiro da entrevista abrange as vivências da gravidez, o
diagnóstico da má-formação neurológica, o parto e nascimento, e os meses depois do nascimento
até agora. Embora não aparecem explicitamente aqui, minha análise é informada por entrevistas
informais e observações feitas ao longo dos últimos dois anos, como voluntária da Associação
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
1
Este projeto de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Cepred (Parecer Técnico emitido no
20/09/16), do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CAAE 60894816.0.0000.5030) e da
Rice University (Parecer No. 702001-2). A coleta de dados foi financiada pela Fundação Fulbright (Fulbright-Hays
P022A150055-002) e pela Rice University (bolsa de pós-graduação).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Eliza: Quando você pensa no futuro—o futuro do Diego, o futuro da família—como você acha que
vai ser?
Letícia: Bem, eu não penso nem como é que vai ser. Eu tento viver o hoje, tentando buscar o melhor
para ele, em função dele. Hoje, no momento, estou buscando as terapias, tentando aprender, a
conhecer, saber o que não sabia, né. O que eu puder fazer de melhor por ele, eu vou fazer.
Agora, o restante é só Deus. Só Deus proverá. No momento não sei nem te dizer, nem sei o
que que eu penso pro futuro no momento. É como eu disse a você: eu quero tentar trabalhar,
pra poder construir alguma coisa que na minha falta, ou com a minha presença, eu possa dar
uma qualidade de vida melhor a ele. Pelo menos no que eu puder dar, e não estar passando
por esse aperto como a gente vem passando nesses últimos tempos, entendeu? Porque não foi
pouco o aperto que a gente passou não. O Abraço [Associação Abraço a Microcefalia]
também ajudou muito a gente nisso aí, na questão do leite principalmente. O leite, a fralda,
vou te dizer, viu. Não sei o que seria da gente não. […] E hoje se eu penso em ter alguma
coisa de prosperar, de aumentar, é em função dele também. Mesmo porque, eu penso o
seguinte: uma criança normal é difícil para alguém querer ficar; imagine uma criança
especial. Se eu morrer, quem que vai ficar com meu filho?
Surpreendida pela sua sugestão de que poderia morrer em um futuro próximo, perguntei:
criado. Mas e o meu filho, como é que vai ser? Tinha que pensar nele. Eu digo a ele [marido]
ainda: ‘Se eu morrer, bote ele no orfanato.’ Mas mesmo no orfanato, eu quero deixar alguma
coisa para ele.
Na fala de Letícia, evidencia-se um conjunto de precariedades que já faziam parte da sua vida
antes, mas que foram exacerbadas depois da chegada de Diego. Há as dificuldades em
providenciar as necessidades do dia-a-dia (leite e fralda), as preocupações com a qualidade de
vida do filho futuramente, a insegurança/instabilidade em relação à presença do companheiro, e
por fim, a incerteza da própria vida. Tudo isso faz com que o futuro parece algo quase
impossível de se pensar. Fica, enfim, na mão de Deus. Ao mesmo tempo, o “agora” que Letícia
vive é um agora de preparações para um futuro bastante incerto, um tempo de “construir alguma
coisa.” Diego vai andar algum dia? Vai falar? Vai poder cuidar de si mesmo, de alguma forma?
Nada disso se sabe, então tem que se preparar para tudo. E “tudo” inclui a própria morte de
Letícia, o fim da vida de quem sustenta a vida de Diego. Ela prepara—procurando as terapias,
aprendendo mais sobre a condição do filho, lutando para “construir alguma coisa” que possa
garantir que Diego seja cuidado, caso ela algum dia não esteja aqui para fazê-lo.
Me chamou a atenção que Letícia se referiu à sua morte. Me chamou a atenção também
que no caso do seu falecimento precoce, ela queria que o marido colocasse Diego em um
orfanato. Apesar de não participar muito das tarefas de casa, Danilo sempre me pareceu um “pai
presente.” Ia muito aos encontros da Abraço junto com Letícia, e acompanhou eles também nas
duas vezes que participaram no Fórum Perinatal da Rede Cegonha de Salvador. Ela me falou que
Danilo ajudava na estimulação de Diego em casa. Não havia, pelo menos ao meu ver, motivo de
achar que ele não tomaria conta do filho na ausência da esposa. Mas essa ideia parece que nem
passou pela cabeça de Letícia. E ela sabia que, por ser uma “criança especial,” teria dificuldade
em achar alguém para “ficar” com Diego. Já era difícil achar alguém para ficar com uma
“criança normal”; atender a todas as outras necessidades de uma criança com deficiências era
uma tarefa, ela imaginou, que ninguém iria querer.
Os mesmos temas—a incerteza, a precariedade cotidiana—persistiram em entrevistas
subsequentes com outras mães. Até a questão da morte potencial reapareceu, na fala de Amanda,
uma mulher de 35 anos que se auto-declara “negra.” Morava com a filha, Melissa, de um ano e
sete meses, e o marido, em um bairro periférico de uma cidade vizinha de Salvador. Melissa é a
primeira filha dos dois. Antes de ter Melissa, Amanda trabalhou em uma fábrica de cosméticos.
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Saiu de licença maternidade e não voltou. O marido ainda trabalhava como mecânico industrial,
mas tinha perdido o emprego que fornecia um plano da saúde para a família.
Amanda engravidou sem querer, depois de anos em que, me disse, “não tinha intenção
nenhuma de ser mãe.” Quando descobriu, estava com dez semanas de gestação. Foi um momento
intenso: “Não foi planejada,” me contou, “Mas também… Aí fiquei pensando: e agora? […]
Peguei e falei para ele [marido], ele aceitou, eu também aceitei. Aí comecei a fazer o pré-natal já
com três meses.” Fez em uma clínica particular, pois ainda tinha o plano de saúde do emprego do
marido. No segundo ultrassom morfológico, aos cinco meses, a imagem mostrou que Melissa
“tava com os ventrículos dilatados.” A filha nasceu às 34 semanas, de parto cesárea, à
recomendação da médica neurocirurgiã, que disse que precisava dreinar o líquido do cérebro da
menina. Melissa compartilha com Diego muitas das mesmas dificuldades: calcificações
cerebrais, disfagia, hipertonia, crises convulsivas, descontrole da coluna cervical, e também
ventriculomegalia e hidrocefalia.
Falei com Amanda em uma sala vazia no Cepred, depois dos atendimentos de Melissa—
nesse dia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. Ela segurou a menina nos braços enquanto
conversamos, reposicionando a intervalos, brincando e falando com ela, reagindo aos sons que a
menina emitia, aos olhares e sorrisos efémeros que a filha presenteava à mãe. Quando perguntei
sobre o futuro, Amanda disse:
Amanda: As minhas preocupações é não conseguir tornar ela independente. Mas eu desejo muito
que, pelos meus esforços, né, me abdiquei de coisas, eu tô lutando por ela, pra que
amanhã ou depois eu consiga ouvir ela falar ‘mamãe,’ né. Imagine quão prazeroso isso é
prà gente, mãe, ouvir o filho chamar ‘mamãe.’ E quantas pessoas dizem à gente que eles
não vão chamar.
Eliza: As pessoas dizem isso? Quem?
Amanda: Dizem. Médicos… Médicos falam que não vai falar, que não vai andar. E o desejo da
gente… Eu falo assim, ‘Se a Melissa não andar, que se torne independente, que ela
consiga me chamar, que ela consiga ir na geladeira e pegar uma água só. Mesmo que eu
tenha que adaptar a casa pra isso, mas que ela consiga fazer tudo sozinha, pra que… No
caso, imagine, ela só tem a mim. Ela só tem a mim, entre aspas. Eu tenho 35 anos. Não
sou uma pessoa que tá boa de saúde. E se eu faltar para ela? O que vai ser dela? Minha
preocupação toda é essa.
Amanda me conta que alguns dias antes da nossa entrevista, ela teve uma consulta médica em
que foi recomendado ela fazer uma cirurgia para tirar um tumor benigno da garganta. Apesar da
insistência da otorrino, Amanda sabia que não podia fazer a operação: “Eu não vou fazer a
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cirurgia,” ela teria falado para a médica. “Quem vai ficar com minha filha?” Quando soube que
na recuperação ela teria que ficar sem falar e sem pegar peso, ela teria repondido: “Não vou
poder pegar peso? Eu tenho que levar minha filha prà terapia. Quem vai conversar com minha
filha nesse período que eu tô [recuperando]? Não posso fazer.” Dias depois, Amanda fez um
preventivo cujo resultado a deixou em lágrimas. A ginecologista tentou acalmá-la. Disse
Amanda à medica: “Imagine se isso se agravar, se eu ficar doente… Quem vai ficar com minha
filha?” Continuou: “Eu fico assim, desesperada. Eu cheguei em casa e comecei a brigar. Minha
mãe falou, ‘O que é, Amanda?’ Eu falei assim, ‘Imagine se eu não conseguir chegar ao tempo de
deixar minha filha independente. O que vai ser dela?’ […] É, minha preocupação maior é essa:
eu não ter tempo para ver ela de maior e independente.”
Curiosa de ver se Amanda, como Letícia, iria excluir o companheiro do futuro
imaginado, perguntei como ela imaginava o casamento daí a cinco ou dez anos. Era “difícil de
dizer,” Amanda me disse, porque o companheiro era “uma pessoa de fases,” “uma pessoa que, na
mesma hora que tá aqui, arruma a mochila e vai embora.” Já tinha feito isso três vezes, ao longo
dos 14 anos que levavam de relacionamento. “Quem me garante que ele não vai, né?” perguntou
retoricamente. No entanto, ela “queria muito que tivesse tudo estável, tudo bem, a gente
cuidando da nossa filha, né, a gente bem, a gente com os propósitos que a gente tem para
construir uma casa maior para ela, né, já que a casa da gente é pequenininha. Mas aí eu falo por
mim.” Adicionou: “Eu penso desse jeito. […] Mas às vezes o que eu penso não é o que ele
pensa.” Se dirige à filha: “Né, gostosa?”
Amanda “se abdicou de coisas,” até os cuidados com a própria saúde, para poder ver
Melissa dizer “mamãe” algum dia. A sua preocupação é de ver a filha “independente,” mas teme
a possibilidade de “não ter tempo” para conquistá-lo. Corre contra o relógio para fazer com que a
filha possa cuidar de si mesma, podendo, por exemplo, “ir na geladeira e pegar uma água só,”
porque prevê a dificuldade de alguém cuidar da menina na sua ausência. Tudo tem que ser feito
agora para preparar Melissa para um futuro incerto. E uma cirurgia que possa prevenir maiores
problemas de saúde para Amanda é uma impossibilidade, frente aos cuidados que ela tem que
assumir na falta de qualquer outra pessoa que os faça—levar ela nas terapias, falar com ela,
“ficar com ela” em geral. Assim, Amanda se encontra em um Catch-22: não pode cuidar da
saúde porque tem que cuidar da filha, mas se os seus problemas de saúde agravarem, podem
chegar a tirá-la da vida da menina, que estaria sozinha no mundo.
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repleta dessas paradas e desses começos—e recomeços. Embora ela tenha tentado voltar ao
trabalho depois do primeiro aniversário do filho—coisa que, para muitas outras mães da classe
trabalhadora, é a progressão normativa—não conseguiu. Acompanhou o menino nas internações
e voltou a se dedicar exclusivamente ao cuidado dele. Não sabe quando irá poder tentar trabalhar
novamente, do jeito que as coisas estão, pois “tudo vai surgindo muito…de repente.”
Vemos como o tempo vivido, e as preocupações sobre o tempo, estão intimamente
atrelados ao cuidado (care). Letícia e Amanda relataram querer preparar tudo possível para que
os seus filhos possam sobreviver e ter qualidade de vida na sua ausência. As preparações podem
ser de juntar dinheiro e expressar o desejo ao companheiro que a criança vá para um orfanato
caso a mãe morrer, ou também de buscar as terapias necessárias para tornar a criança
independente, o suficiente para “pegar uma água sozinha.” As mães estão, nesse sentido,
correndo contra o tempo, preparando os filhos para um futuro altamente incerto, em que nem a
independência, nem o cuidado e nem a vida são garantias. Cuidar aqui aparece como uma
questão de tempo—e de tempo precário. O presente é vivido na tensão de saber que o amanhã
não é garantido, e que tem que tomar todas as medidas possíveis para assegurar “alguma coisa”
para a criança.
A condição de saúde da criança também aparece como um fator que desestabiliza o
tempo, não só da criança, mas também da mãe. Essa desestabilização é uma questão de cuidado.
Letícia e o marido vivem “em função” do Diego. Amanda “se abdicou de coisas,” até os
cuidados com a próprias saúde, para cuidar da Melissa. Míriam saiu do trabalho e abriu mão de
uma fonte de renda para poder se dedicar ao Bruno. Cuidar do futuro do filho com SCZV, para
elas, é fazer sacrifícios no presente. Elas “correm atrás” das terapias, dos remédios, do BPC (a
palavra “correr” transmite bem a velocidade frenética que a vida assume). É muita coisa. Tanto
que ocupa o presente de uma maneira que oculta o futuro que, os mesmos médicos dizem, é
incerto.
Talvez as preocupações de Letícia e Amanda não deveriam surpreender tanto. Afinal,
elas pertencem a um setor da população brasileira que vive infinitas incertezas, inclusive em
relação à própria vida. As mulheres negras brasileiras, que representam a maioria das que foram
infectadas pelo zika vírus e que tiveram filhos com SCZV (Carvalho 2017: 145), têm de fato
uma menor expectativa de vida do que as mulheres brancas (Marcondes et al. 2013, Pinheiro et
al. 2009). A população negra em geral vive menos tempo do que a população branca, um efeito
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do menor acesso aos serviços de saúde e a violência, inclusive a violência praticada pelo Estado
(Alves 2014, Cerqueira et al. 2017, Marcondes et al. 2013, Martins 2006, Perpétuo 2000, Smith
2016). É nesse contexto de precariedade de vida que podemos entender a preocupação com a
morte precoce.
Além do racismo estrutural que as mulheres negras enfrentam, também pertencem, na sua
maioria, a setores da população brasileira que já vivem uma série de precariedades econômicas e
laborais—precariedades que, no pós-golpe, só aumentam a cada dia. A crescente terceirização no
mercado laboral, assim como a insegurança do mercado informal, deixa os setores menos
abastecidos em um perpétuo ciclo de idas e vindas do trabalho remunerado (Borsoi 2011, Costa
2005, Millar 2014). Entre as mães entrevistadas, todas estavam em alguma situação laboral
precária, exacerbada pela tarefa de cuidar de um filho com “necessidades especiais.” Letícia e
seu marido viviam de bicos; Míriam tentou voltar a trabalhar com Bruno na creche, mas não deu
certo; Amanda não conseguiu retornar à fábrica de cosméticos e dependia em parte do salário do
companheiro que, como ela disse, era “uma pessoa de fases.” Todas dependiam, pelo menos
parcialmente, de assistência do governo. O “aperto” que Letícia relata ter passado é com certeza
exacerbado pela chegada de um filho com deficiências, mas o aperto em si nunca está longe da
vida dessas mulheres.
Falar no companheiro “de fases” de Amanda, surgiu fortemente nos dados apresentados
os efeitos vivenciados do machismo, que permite os homens abandonar suas companheiras e
seus filhos, e que relega as tarefas domêsticas, inclusive o cuidado do(s) filho(s), integralmente
às mulheres (Hirata 2012, Silva 2014, Barbosa et al. 2007, Falkenbach et al. 2008, Scott et al.
2017). É um dado pertinente que Letícia e Amanda, duas mulheres “casadas,” não imaginavam
que na sua ausência, o companheiro tomaria conta da criança. “Quem vai ficar com meu filho?”
é uma pergunta, mas também é uma constatação: não posso contar com o pai para cuidar do
nosso filho, e sei que ninguém mais vai querer tomar conta de uma criança com deficiências.
Elas se baseiam na realidade da instabilidade marital e do preconceito contra pessoas com
deficiência.
O que eu quero destacar aqui é que o “presente tenso” que as mães vivem não é algo
novo para a maioria, e que tem gênero, classe e cor. A tensão vivida em relação ao cuidado do
filho complementa tensões de longa data da população mais atingida pelo zika vírus, para quem
pode-se dizer que a precariedade é endêmica.
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Conclusão
Este trabalho é uma tentativa de pensar as experiências do tempo entre as mães de
crianças com SCZV. Trouxe uma abordagem teórica da antropologia e da área de estudos das
deficiências (disability studies) que contempla o tempo vivido das cuidadoras de crianças com
deficiência para [frame] as falas de três mães que entrevistei como parto da minha pesquisa na
Bahia. Sugeri que, nessas falas, aparece um “presente tenso” em que o corpo precário do filho se
junta às precariedades pervasivas já existentes nas vidas dessas mulheres, e em que o futuro tem
uma qualidade nebulosa e se torna quase impossível de imaginar. Esse “presente tenso,” como
destaquei, tem gênero, classe e cor. Também sugeri que os cuidados no presente, ao mesmo
tempo que preparam o caminho ao futuro, ocultam esse mesmo futuro. Cuidar do futuro talvez
seja uma forma de “praticar a esperança” (Mattingly 2010), uma esperança tímida mais presente.
Quero enfatizar, novamente, que este trabalho não pretende generalizar essas
experiências a todas as mães de crianças com SCZV, embora acho que encontraríamos fios das
temporalidades discutidas no tecido das narrativas de mulheres mães no Brasil todo. Além disso,
gostaria de dizer que pretendo representar aqui só uma parte da experiência dessas mães. Se
parece que tenho destacado o sofrimento, os aspectos “negativos” do cuidado de filhos com
deficiência, é porque o sofrimento está, de fato, muito presente para as minhas interlocutoras. O
luto, a luta, as grandes incertezas, as preocupações, o grande “straggle” que é cuidar de um filho
com múltiplas deficiências (Fleischer 2017: 104; ver também Mattingly 2014: 7, Miles 2008:
101)—esses são aspectos que não podemos ignorar. Porém, não quero dar a impressão de que ser
“mãe de micro” se resume ao sofrimento. A esperança, o amor, a auto-descoberta, a
ressignificação da condição do filho e a reconsideração de preconceitos contra pessoas com
deficiência—estes temas também surgiram nas observações e nas narrativas. Ficam, no entanto,
para um próximo trabalho, ou talvez uma expansão deste.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
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Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
3
A Síndrome de Guillain-Barré (GBS) é uma fraqueza muscular imunomediada que pode resultar em
espasmos, dores de cabeça e paralisia.
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entender e por vezes evitar, como o choro constante e agudo dos primeiros
momentos da vida. Nesse processo, estabelece-se um conjunto de saberes,
uma ciência doméstica, do qual as mães se armam quando em interface com
os discursos biomédicos. Como ressaltamos, a Síndrome ainda é envolta em
camadas de contestação e controvérsia no âmbito da ciência biomédica. Ela
não está estabelecida e os limites dos bebês nascidos com ela não são
plenamente conhecidos. Nesse contexto movediço, as mães ganham terreno
na arena de disputas de discursos e práticas médicas com seus saberes
construídos e adquiridos na convivência e no cuidado.
Para nortear o texto, utilizaremos dados etnográficos produzidos pelas
pesquisadoras Fernanda Vieira, Lays Venancio e Soraya Fleischer a partir do
projeto “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos
diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres
e suas famílias no estado de Pernambuco” que está sendo coordenada pela
professora Soraya Fleischer junto ao Departamento de Antropologia (DAN) da
Universidade de Brasília (UnB). O grupo realizou sua primeira imersão em
campo no Recife em outubro de 2016. A viagem resultou no primeiro Tomo de
diários de campo do projeto, material ao qual tivemos acesso após
consentimento de todas as pesquisadoras envolvidas na produção de dados e
que será utilizado por nós no desenvolvimento deste trabalho. Aproveitamos
para agradecer às pesquisadoras pela autorização de uso desses dados.
pai faz uma festa para ele. Ele adora, sorri, reconhece mesmo”
(DCSF, 2016: 192)
Ou seja, Sandra chama atenção para o fato de que falar é uma das
formas de reconhecer alguém, não a única. Há várias outras maneiras de estar
presente, de se construir e ser construído enquanto membro de uma família.
Se o processo que se desdobra cotidianamente entre os bebês com
Síndrome e o mundo a sua volta é o da redução às suas deficiências, a
tradução proposta pelas mães vai na direção oposta, a da expansão,
produzindo contra-ruídos, fazendo barulho e fincando a identidade de seus
bebês no escopo da humanidade, longe das concepções de monstros e
demônios.
As mães traduzem a miríade sensível percebida por elas na convivência
com suas crianças para o mundo externo, elas pegam o que de mais profundo
vai surgindo na relação intensa de cuidado e afeto e transformam em fala, em
discurso, em defesas de suas crianças frente às adversas reações públicas a
elas.
O segundo elemento que acionamos para justificar e refletir sobre a
relação diferenciada que nos propomos a analisar diz respeito à associação de
outros marcadores sociais de diferença que entram no jogo das relações
sociais produzidas a partir da Síndrome.
Como mostram diversas autoras (Lesser e Kitron, 2016; Nunes e
Pimenta, 2016; Carvalho, 2017), a Zika é uma epidemia no sentido de sua
abrangência generalizada, mas é bastante localizada no eixo da classe e da
raça. O flagelo da doença recai nas zonas negligenciadas, nas localizações
periféricas, onde a vontade do Estado de deixar viver as suas populações
chega rala, frágil, debilmente materializada nas péssimas condições sanitárias
e nas sucateadas estruturas da saúde pública. Assim, um olhar interseccional
para a realidade das mães de micro e seus bebês mostra como a Síndrome
agrava um já complicado estado de bem-estar social da família por uma via e,
por outra, na contramão, afeta o acesso dos bebês às terapias de estimulação
precoce tão imprescindíveis para o seu contínuo desenvolvimento. Os
marcadores aliam-se na produção de diferenças.
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Considerações finais
No contexto da epidemia da Zika e suas consequências, um mundo foi
mobilizado, construído, demolido e reelaborado frente a um dos graves
desdobramentos da epidemia: a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Milhares
de crianças diagnosticadas com esta síndrome passaram a percorrer os
corredores do estado e terem seus corpos manipulados pelos saberes
biomédicos para serem estimulados, por um lado, e fornecerem informações
relevantes para o entendimento da SCZV, por outro.
Percorrendo esses trajetos com os bebês e se envolvendo em uma
extenuante rotina de cuidado em casa, as mães desenvolvem um poderoso
conjunto de saberes a partir da observação intensa dos corpos dos bebês com
micro. Se o bebê não consegue se comunicar, outras estratégias de
comunicação vão sendo desenvolvidas para estabelecer a transmissão de
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências bibliográficas
SEGATO, Rita Laura. Raça é signo. Série antropologia no. 372. Brasília:
Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, 2005.
VALIM, Thais. Ele sente tudo que a gente sente: um olhar antropológico sobre
a sociabilidade de bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Zika Vírus
em Recife/PE. Monografia de graduação, Departamento de Antropologia –
Universidade de Brasília, 2017.
1
Doutoranda do Programa de pós-graduação em processos de desenvolvimento humano e saúde,
Instituto de Psicologia, UnB. Analista em Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
2 http://actays.org/
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
uma dor que consideram tão primeva que obriga as pessoas a verem refletidas,
em suas escamas de dragoas, seus próprios medos.
Para Beatriz, essa categoria a qual ela odeia pertencer, a representa
como nenhuma outra, porque lhe parece que somente pessoas que passaram
por isso podem compreender o que é viver apenas o presente, mas com uma
intensidade antes desconhecida, temendo o futuro (Domínguez, março de
2013).
A redefinição de suas vidas por causa da doença as leva a procurar
outras pessoas que viveram situações parecidas para que consigam entender
e transformar o que estão vivendo, para que possam, enfim, encontrar seus
lugares como mães. Essa experiência dialoga com o conceito de
biossociabilidade, definido por Paul Rabinow como uma nova localização de
identidades biológicas, não mais centrada nas clássicas categorias ocidentais
de raça, classe e idade, mas centrada no e ao redor do DNA e na tentativa de
seu mapeamento; em categorias biológicas, corporais ou médicas (Rabinow,
1999: 13). Essas categorias operam como novos modos de subjetivação,
intimamente relacionados com as tecnologias diagnósticas existentes.
Para Beatriz, encontrar outras famílias que partilhavam de sua
experiência com a doença foi fundamental para que ela pudesse encontrar um
sentido para o que estava vivendo e afirma que entrou em uma guerra com os
outros familiares contra a doença, uma guerra que busca, sobretudo, chamar a
atenção para a doença de Tay-Sachs e encontrar apoio financeiro para que se
encontre uma cura. Afirma que essa é sua missão, o que tem sido, atualmente,
sua atuação na ACTAYS.
Esses sentimentos de pertencimento e missão ficam mais claros se
pensarmos que os familiares e as crianças afetadas pela doença são
entendidas como uma comunidade, construída pelo diagnóstico, pelo DNA,
nesse caso, por mutações disfuncionais nesse DNA. Essa possibilidade de
comunidade parece especialmente relevante para o caso de deficiências ou de
doenças crônicas e raras, uma vez que esses grupos compartilham suas
experiências em seus próprios grupos, nem mesmo com sua família imediata:
são experiências individuais e isoladas que, inclusive, podem perturbar as
noções de parentesco.
2. Experimentando com e a vida com a morte:
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
3“The sky was clear, the air was soft. That’s Ronan’s day of living in this world. One more alive day, and also another day – for both
mother and son – closer to death. We could wish it weren’t true, we could wish desperately, but we could not have one without the
other.” (Rapp, 2014, p. 204)
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Beatriz: “Estou porque está Isabel”, a vida segue e é importante viver cada dia
enquanto suas crianças estão vivas: um dia todos vamos morrer, todos os
outros, estaremos vivos.
Um dilema que Emily e Beatriz compartilham é o de ter que decidirem
sobre que tipo de suporte à vida admitiriam em seus filhos: sonda nasogástrica,
sonda neoenteral, equipamentos para a sucção de secreção, auxílio
respiratório, vida ligada a aparelho... Quando decidir que essas intervenções já
não valiam na vida suficientemente boa que imaginavam para seus filhos? É
interessante ver como esses dilemas são vividos cotidianamente e que as
decisões sobre eles não são dadas nem fixas. Elas experimentam com eles,
conforme a doença avança. Emily Rapp decidiu não utilizar alimentação
forçada em seu filho e precisou ser assegurada pelos médicos de que essa não
era uma decisão cruel e teve que lutar contra a idéia de que estava matando
seu filho de fome e a culpa que sentia por essa decisão.
Já Beatriz relata que quando ouvia outras famílias contarem sobre o uso
da sonda parecia a ela que essa era uma escolha absurdamente difícil de ser
tomada, mas que quando foi sua vez de decidir pela sonda, a escolha foi a
mais fácil, uma vez que tinha acompanhado sua filha desenvolver uma reação
muito negativa em relação ao ato de alimentar-se. Assim, os experimentos
morais nos quais estavam envolvidas desafiavam cotidianamente e os limites
da vida boa de ser vivida são difusos. Quando passar da esperança no
cotidiano e decidir por começar os cuidados paliativos para sua morte?
2.3. Os múltiplos sentidos de esperança e cura
Para Beatriz, o principal dilema moral é o de manter a esperança de que
se chegue a uma cura ainda no tempo de sua vida, o que vemos no próprio
nome do blog: Tal vez Isabel. A partir daí, entender como é possível cuidar
dessa criança que ainda está viva, sem perder a esperança de que possa
haver uma cura, mas não se agarrar a essa possibilidade, sabendo o quão
difícil ela é.
No livro de Emily Rapp, não encontrei esperanças em alguma cura para
seu filho. Desde o momento em que recebeu o diagnóstico, teve a certeza de
que seu filho morreria. Assim, o dilema central da vida dela não parece ser o de
manter a esperança de que seu filho possa sobreviver a essa doença, mas de
lidar com a vida muito mais do que com a morte e de viver sabendo que vai ter
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
que se despedir dele, saber que vai ter que vê-lo morrer e sobreviver, ela, a
isso.
Assim como as maternidades são múltiplas tanto quanto o são as
pessoas e suas histórias, lendo essas narrativas descubro que a idéia de cura
também o é. Para Emily, a cura não seria seu filho amanhecer sem a doença,
visto que ela não acreditava nessa possibilidade, mas que ele tivesse seu lugar
no mundo, a cura seria que o mundo aceitasse as pessoas como elas chegam.
Tanto Beatriz quanto Emily anseiam não perder a vida de seus filhos, seja pelo
ativismo, seja pela escrita de seu mito.
Para Beatriz, a força que sua filha teve de morrer inteira: ainda
enxergando, ouvindo e sentindo o mundo, interagindo com quem amava;
parece ser um tipo de cura ou pelo menos um combate à doença: “... seu forte
caráter que com apenas um ano já começou a mostrar e com o qual se foi
desse mundo. Antes do tempo, mas encarando o monstro de Tay-Sachs de
frente, como que lhe dizendo, ‘você não terá tudo de mim” (Domínguez,
outubro de 2014). Essa experiência também indicou a Beatriz uma nova forma
de ter esperança e de manter a vida da sua filha: ela deveria ser forte no
combate à doença, deveria aproveitar o que aprendeu com sua experiência,
fortalecendo sua associação a cada dia.
3. Escrever para manter vivas suas experiências e a vida de seus filhos:
Essas duas mulheres insistem em que suas histórias não sejam vistas
como tragédias. Não escrevem para causar nem pena por elas e nem alivio
para quem lê. Escrevem para encontrarem um sentido novo para suas vidas,
para dar sentido à vida de seus filhos, escrevem para inscrevê-los no mundo,
para que aqui permaneçam quando já tiverem ido. Escrevem, também, porque
afirmam ter aprendido muito sobre as possibilidades de serem mães nesse
mundo e que não vêem essas possibilidades relatadas e compartilhadas.
Escrevem, então, para compartilhar suas experiências para que outras
mulheres em situações similares possam ter outras fontes com as quais se
subjetivar, mas também para que as pessoas saibam que suas vidas não são
uma tragédia, sem, com isso, negar a tragédia que vivem.
Suas experiências de cuidado nos confrontam com nossas idéias de
cuidar para o futuro, maternar para o desenvolvimento e vida plena. Nos
mostram, com uma força arrebatadora, que experimentaram e criaram com
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências bibliográficas
Antropologia da saúde
A proposta deste grupo de trabalho é acolher reflexões variadas acerca dos
sistemas de saúde, baseando-se nas perspectivas antropológicas de análise
dos fenômenos sociais.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
1
Ângelo Moreira Miranda é graduando do Departamento de Antropologia (DAN) da UnB.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
2
Os hospices são concebidos pela bibliografia sobre cuidados paliativos como instituições de cunho
religioso que existiam durante a Idade Média. Eles tinham como objetivo propiciar abrigo e cuidado para
viajantes, moribundos e pessoas marginalizadas. Logo, o termo hospice foi retomado pelas instituições
praticantes da filosofia paliativa para denominar o movimento em prol do cuidado e acolhimento digno
aos pacientes terminais (SILVA, 2015: 7).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Contexto brasileiro
Contexto brasiliense
Helen - “E aí acabou que ele foi a óbito, né. E na, no cuidado paliativo a
gente lida obviamente com muitas mortes, mas uma coisa que eu aprendi
também, que a morte muitas vezes é a salvação do paciente, é a libertação da
dor, daquele incômodo que já tá... já tá em estágio de degeneração mesmo,
né. Então no caso dele, que bom que ele conseguiu morrer. Só que a morte
não precisa ser nem traumática nem sofrida, ela pode ter dignidade.”
Considerações finais
Referências bibliográficas
CONSIDERAÇÕES
Este trabalho propõe investigar a prática de yoga como técnica do corpo e
como recurso terapêutico para suas praticantes e o impacto desta prática no
sistema público de saúde, especificamente numa UBS na cidade São Paulo.
Para analisar a prática de yoga, nos termos aqui propostos, será utilizada a
noção de “técnica corporal”, fundamentada por Mauss (2003), e como
possibilidade terapêutica, a partir de sua “eficácia simbólica”, norteando-me na
concepção teórica de Lévi-Strauss (2012). No que se refere à eficácia dessa
forma terapêutica, o antropólogo indica um caminho teórico ao descrever a
“eficácia simbólica”, fundamentada a partir da prática do xamã pela qual
mobiliza elementos presentes na cosmogonia do grupo e constrói uma
narrativa junto à paciente em trabalho de parto, para que ela consiga realizar o
parto difícil. A visão de mundo da cosmogonia indígena compartilhada pelo
xamã e os mecanismos mobilizados no processo de cura são reforçados pela
crença do grupo. Assim, o ritual descrito envolve uma intervenção que é ao
mesmo tempo psicofisiológica e psicossocial.
No que diz respeito ao corpo como instrumento de uma representação coletiva,
o conceito de técnica corporal é desenvolvido por Marcel Mauss (2003), para
descrever esta prática como uma forma de uso do corpo, inscrita em uma
cultura e transmitida à coletividade como conhecimento e prática adquiridos,
concebendo a educação das técnicas corporais como um modo de adaptar o
corpo para seu uso.
Pressupostos metodológicos
Trata-se fundamentalmente de uma pesquisa de metodologia qualitativa, que
utiliza diversas técnicas de pesquisa. Além da “participação observante” da
pesquisadora, inspirada em Wacquant(2002), utiliza-se a aplicação de um
questionário inicial, entregue às/aos pacientes durante as primeiras idas à
campo e realização de entrevistas semi-estruturadas para registrar as
narrativas das/os interlocutoras/es para entender esta prática na rotina diária
de uma UBS e a história de vida das praticantes. Além destes recursos,
participo do grupo de whatsapp “Yoga profa. M.” administrado pela paciente N.
e constituído pelas alunas da prática de yoga.
O trabalho de campo foi realizado durante sete meses, de dezembro de 2016 a
julho de 2017, uma vez por semana durante as segundas-feiras e
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
3 Utilizo nome fictício para preservar a identidade das interlocutoras, conforme termo de
consentimento.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
tempo, mas sabe sem ter muita ideia de que ele estava mesmo sendo
eficaz, muito complicado falar isso, o remédio não é tudo, não muda
que nem eu pensava.
Sobre o efeito das aulas de yoga e meditação diz “estou melhor, quando saio
da aula me sinto mais calmo e meus pensamentos mais organizados.”
Verônica relata a diferença com o uso de medicamentos assim que conheceu a
prática de yoga:
“Com o AVC eu fiquei com sequelas do Parkinson, então eu tremia
que nem vara verde. Então às vezes eu chegava lá na yoga pra fazer,
e eu chegava tremendo, aí eu fazia e quando acabava, nossa, era
uma beleza!Eu estava sem tremor nenhum, até o medico diminuiu a
quantidade de Prolopa que é para o Parkinson. Eu tinha uma dor de
cabeça que era horrível, eu nunca mais tomei um remédio pra dor de
cabeça, há dois anos que eu faço yoga, nunca mais tomei remédio
para dor de cabeça, nunca mais tive crise.
Mariana, integrante do grupo de yoga e meditação relata: “Cada dia é uma luta.
Os remédios antidepressivos me fazem mal e parei de tomar. Não estou
tomando remédio, quero conseguir superar isso sem tomar os remédios, mas
só Deus sabe como estou aqui!”
Quando a farmacologia não se mostra eficaz para o tratamento médico, a
insurgência destas práticas indicadas pelas especialidades médicas se torna
um recurso para minimizar dores e ansiedade. Há uma inversão na finalidade
da prática médica na medida em que admite a ineficiência medicamentosa e o
encaminhamento para as práticas integrativas.
Celina faz a modalidade de yoga desde o início da formação da turma e relata
o significado da prática em sua vida:
Esse alívio faz falta quando não faço. Eu acho que fiz alguma coisa
pra mim, porque eu saí de casa e fiz alguma coisa, porque ficar só
dentro de casa, parece que fica muita coisa na cabeça, os problemas
ficam né , e aqui a gente vem, conversa com as pessoas, além de
físico, é pra mente também, pra mim alivia bastante.Eu sei que o
problema tá ali, mas eu tenho que tentar resolver, parece que aquele
pânico que eu tinha, porque eu sofri de síndrome de pânico, o que eu
tratava com a dra S. era isso, mas não me dá mais aquela coisa, pra
eu resolver agora, eu me tranquilizo um pouco mais, eu consigo lidar
melhor, tô conseguindo!
A paciente Amélia possui distensão abdominal e relata que já fez tratamento
médico para resolver este problema. Ela apresenta sua perspectiva sobre seu
corpo, o tratamento médico e a prática de yoga:
Eu já fiz tratamento médico, mas eles fazem assim: Qual o
pensamento nesta linha? A pessoa tem prisão de ventre e o alimento
fica no estômago, e ele estraga e é ele que causa isso. Só que no
meu caso é diferente: eu vou muito ao banheiro, vou muito, eu janto,
eu almoço e já vou ao banheiro, e questão de vinte minutos eu já tô
no banheiro, então eu não tenho prisão de ventre, mas tenho muitos
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
BIBLIOGRAFIA
Documentos consultados:
Sites consultados:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=98
591
https://www.youtube.com/watch?v=NXj1IugD1og
http://www.correiodoestado.com.br/variedades/medico-indica-menos-remedio-
e-mais-espiritualidade-contra-a-depressao/296124/
http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ioga-pode-ajudar-a-prevenir-
problemas-do-envelhecimento,70001912030
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica/medici
nas_tradicionais/index.php?p=20377
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/trabalho-e-
previdencia/506037-projeto-regulamenta-exercicio-profissional-da-ioga.html
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Resumo
Será investigada a água resultante de atividades para fins não potáveis - como
a rega de plantas, as lavagens de ambientes, as descargas nas instalações
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Revisão bibliográfica
Do ponto de vista dos recursos hídricos, Léo Heller (2016), diz, tanto para os
recursos superficiais quanto para os subterrâneos, verificam diversos usos
demandados pelas populações e pelas atividades econômicas, alguns deles
resultando em perdas entre o volume de água captado e o volume que retorna
ao curso de água (usos consuntivos) e outros em que essas perdas não se
verificam (usos não consultivos), embora possam implicar alteração no regime
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Conforme o autor Benedito Braga e et al. (2005), existem duas formas para
caracterizar os recursos hídricos, a primeira, com relação à sua quantidade e a
segunda, em relação a sua qualidade. Aonde a qualidade da água depende
diretamente da quantidade de água existente para dissolver, diluir e transportar
as substancias benéficas e maléficas para os seres que compõem as cadeias
alimentares.
As águas cinza segundo, Simone May (2009), podem ser divididas em dois
grupos. O primeiro em águas cinza claras, essas são residuais originadas de
banheiros, chuveiros, lavatórios e maquinas de lavar roupas. E o outro grupo, é
águas cinza escuras, que tem sua origem residual da pia da cozinha e maquina
de lavar louças.
Metodologia
Caracterização da edificação
Análise e resultados
Pode-se destacar algumas das causas para esse tipo de situação, como a
ineficiência da impermeabilização da laje. Então quando se encontra uma
quantidade de água sobre a mesma, ela infiltra por essa laje e cria fatores
positivos para a proliferação os fungos.
Outro ponto que não podemos descartar é que possa conter algum vazamento
da rede de distribuição que passa dentro da laje. Essa hipótese somente pode
ser confirmada com o auxilio do projeto hidro sanitário da edificação, para que
seja analisado os pontos onde se encontram mofos, e verificados se passam
tubulações de água fria, pois deve-se atentar que se a tubulação que passa
pelos locais de mofos for tubulação de água quente essa hipótese pode ser
eliminada, pois esse sistema foi desligado há algum tempo no hospital.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
E o último ponto que pode ser destacado para esse tipo de patologia, seria a
ineficiência do sistema de drenagem da laje. Onde o sistema não retira a água
da chuva com eficiência, permitindo o empossamento da água na laje,
tornando ineficiente o sistema de impermeabilização para conter a infiltração.
Uma solução para esse tipo de patologia é analisar toda a rede do hospital,
buscando acabar com todos os vazamentos nos tubos e aparelhos,
observando o estado de conservação e condição de operação de cada
aparelho hidráulico, evitando assim o desperdício da água, que pode ser bem
significativo.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
ventilação no ambiente, para que haja circulação do ar, para a redução dos
níveis de umidade.
A Figura 5 mostra que em alguns leitos o banheiro não tem iluminação natural,
deixando o ambiente escuro, podendo afetar a saúde das pessoas naquele
ambiente.
Conclusão
Outra inovação a ser proposta é a utilização das aguas cinzas para os usos
não potáveis, utilizando um sistema duplo de distribuição, tendo como
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Bibliografia
HELLER, Léo. li. PÁDUA, Valter. 2006. Abastecimento de água para consumo
humano. Ed. Belo Horizonte: UFMG.
Resumo
2 Não me deterei aqui nesta oportunidade a uma discussão levantada por Pereira (2012), mas deixo
registrado em nota, que segundo o autor, uma “simples crítica a objetividade médica, à diferença de
linguagem entre profissionais de saúde e pacientes, ao exercício do poder médico não consegue (…)
abarcar todas dimensões nas quais profissionais de saúde se relacionam com cosmopolíticas
ameríndias.” (PEREIRA, 2012, p.532).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
3
Figura 1: Vista para a Aldeia Mina Grande,
Para mais informações sobre um dos produtos que resultaram deste projeto acessar:
Território Kapinawá. Foto: Flávia Vieira.
http://cclf.org.br/noticias/lancamento-de-livros-indigenas-acontecem-nesta-sexta-no-cclf/
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Considerações finais
Como afirmei na introdução deste trabalho, o material aqui exposto se
configura como uma primeira tentativa de desenvolver e ampliar teoricamente e
metodologicamente meu projeto de pesquisa de mestrado ainda a ser
desenvolvido. De toda forma, acredito que as recuperações históricas e
conceituais aqui apresentadas podem trazer contribuições para debates dentro
das áreas da Antropologia Indígena e da Antropologia da Saúde. Ainda assim,
tenho convicção que ainda existe um longo caminho a ser trilhado por esta
pesquisa com vistas a sua efetiva consolidação e amadurecimento teórico-
metodológico.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências
ANDRADE, Lara Erendira de. 2014.”Kapinawá é meu, já tomei, tá tomado:”
organização social, dinâmicas territoriais e processos identitários entre os
Kapinawá. Dissertação de mestrado. Universidade Federal da Paraíba.
KLEINMAN, A., Eisenberg, L., & Good, L. 2006. Culture, illness, and care:
Clinical lessons from anthropologic and cross-cultural research. Focus, 4: 140-
149.
LUCIANO, Gersem dos Santos. 2006. “O Índio Brasileiro: o que você precisa
saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje.” Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade;
LACED/Museu Nacional.
SILVA, Georgia da. 2007. “Chama os Atikum que eles desatam já”: práticas
terapêuticas, sabedores e poder. Dissertação de mestrado. Universidade
Federal de Pernambuco.
SOUZA, Liliane Cunha de. 2004. "Doença que rezador cura" e "doença que
médico": modelo etiológico Xukuru a partir de seus especialistas de cura.
Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Pernambuco.
Resumo
Introdução
Este trabalho tem por objetivo, por meio de um resgate sobre o conceito
de gênero e sua construção, analisar a emergência do conceito de
empoderamento feminino e se ele pode ser utilizado enquanto uma ferramenta
para garantir a diminuição das desigualdades entre homens e mulheres.
1
Mestranda em Ciências Sociais pelo programa de Pós – Graduação da Universidade Federal de
Uberlândia.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
2
Androcêntrico é a concepção que visa supervalorizar o pensamento masculino, sendo este um
pensamento cercado de pensamentos conservadores, moralistas e machistas. Está intimamente ligado à
noção de patriarcado. Entretanto, não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também à forma
com a qual as experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos
e tidas como uma norma universal, tanto para homens quanto para mulheres, sem dar o reconhecimento
completo e igualitário à sabedoria e experiência feminina. A tendência quase universal de se reduzir a
raça humana ao termo "o homem" é um exemplo excludente que ilustra um comportamento
androcêntrico.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Como nos explica Lara (2016) a ideia de girl power, vendida nas redes
sociais, propagandas, na literatura, considera a mulher como um ser forte de
acordo com quantas dificuldades ela superou para alcançar uma posição alta
no emprego, de acordo com quais produtos de beleza ela utiliza, como ela
consegue cuidar da casa, dos filhos, do marido, do trabalho e ainda de si
mesma.
Conclusão
Referências
LARA, Bruna, et al. #Meu Amigo Secreto: Feminismo para além das redes. Rio
de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016.
Resumo
1
Aluno do Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Educação de Goiás - Campus Anápolis.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
1. Introdução
2
Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Educação de Goiás - Campus Anápolis.
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2. Questões Metodológicas
3Introdução do livro lida e comentada em sala de aula do curso de Medicina Narrativa como
modalidade etnográfica.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
alas o uso de água é mais intenso que os demais setores do hospital, porém a
lavanderia atualmente é o setor que mais utiliza água no HAB, por ter
responsabilidade de lavar as roupas utilizadas em todo o hospital. Essas
lavagens são realizadas todos os dias, quatro a cinco lavagens pela manhã e
uma ou duas pela tarde, dependendo da quantidade de roupas e pacientes nos
leitos cotidianamente. Já nos outros locais observados do hospital, a água é
utilizada apenas nos lavatórios como meio de limpeza das mãos e meio de
limpeza dos pátios e corredores.
4. Conclusão
4
Levantamento de informações para criação e desenvolvimento de um sistema. Um dos métodos já
citados no começo desse documento sobre etnografia.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
5. Referências Bibliográficas
https://cteme.files.wordpress.com/2011/05/simondon_1958_intro-
lindividuation.pdf. Acesso em 28 set. 2017.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Introdução
1
Graduanda do curso de Ciências Sociais Bacharel e Licenciatura da UNESP – Araraquara;
Membro do AKOMA, grupo de estudos em africanidades, culturas diversidade e memória. E-
mail: [email protected]
2
Usar o termo “Escravizado” ao invés de “Escravo” é reconhecer que a escravidão é um processo, não
um dado da natureza.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Como base teórica faço a leitura de autores clássicos das ciências sociais,
como o médico legista Raimundo Nina Rodrigues, médico psiquiatra Arthur
Ramos e o sociólogo Gilberto Freyre. Autores que discutiram a questão de raça
no Brasil no fim do século XIX e início do século XX, momento em que a
produção científica da Europa ocidental estava voltada para questões que
buscavam compreender a natureza humana de forma a dar vasão para teorias
raciais que estudavam tanto o físico como aspectos comportamentais dos
povos não europeus. De certo modo esses autores foram influenciados por
essa produção que chegava ao Brasil (DOS SANTOS, 2002).
Esse momento histórico é marcado por produções científicas que ecoaram nos
séculos seguintes gerando o nascimento das ciências que se voltam para o
homem na necessidade de compreende-lo.
Essa percepção foi uma das bases que legitimou a escravidão de muitos
povos, entre eles etnias africanas, pois os classificou em um estado primitivo
na evolução, ou seja, ele se encontrava em um estado mais próximo da
3
A anemia falciforme é uma doença genética e hereditária, predominante em negros. Se caracteriza por
uma alteração nos glóbulos vermelhos, que perdem a forma arredondada e elástica, adquirem o aspecto
de uma foice (daí o nome falciforme) e endurecem, o que dificulta a passagem do sangue pelos vasos de
pequeno calibre e a oxigenação dos tecidos.
4
Evento “Saúde da Mulher Negra” realizado no dia 10/04/17 pelo LASAM- Liga Acadêmica de Saúde da
Mulher, que é um grupo do curso de medicina da Universidade de Araraquara.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
5
Referência ao conceito de Razão para Kant, em “ crítica da Razão Pura” 1995, edições Ouro.
6
Sistema econômico agrícola baseado em monocultura, latifúndios e mão-de-obra escravizada.
7
Academia Brasileira de Letras é uma instituição literária brasileira fundada na cidade do Rio de Janeiro
em 20 de julho de 1897
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Em resposta a Nina Rodrigues, Arthur Ramos (1940), seu discípulo rebate suas
ideias, explicando o “problema do negro” na chave da psicologia. Para ele, o
problema do negro não está em sua natureza, mas sim em sua cultura que tem
papel central de colonizador do Brasil fazendo com que mudasse os costumes
portugueses.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Com isso é possível notar que o corpo do negro e africano foi compreendido
por esse pensamento científico desde o percurso de saída de África, como um
corpo que traz consigo as características do atraso. Foi dado a ele o status de
anomalia, seja no âmbito natural como cultural e esse imaginário racista esteve
presente nos espaços de socialização dos intelectuais, incluindo os médicos e
a sociedade civil. Tanto Nina Rodrigues quanto Arthur Ramos eram intelectuais
que dialogavam com a saúde e as ciências sociais, pois ambos para além de
seu papel na consolidação da antropologia brasileira, eram médicos e exerciam
influências na medicina.
Esses pensamentos caminharam junto com o projeto nação que propôs pensar
e repensar o Brasil como uma tarefa constante do poder político. Foi entendido
que para melhorar o Brasil seria necessárias políticas que tivesse o fim de
melhorar sua imagem, com isso a política pública de imigração europeia
ganhou cada vez mais suporte, pois para além da esperança de uma mão-de-
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
obra mais qualificada para o trabalho fabril, também contavam com a mudança
da paisagem demográfica brasileira pelo ideal de branqueamento, como relata
o presidente do Museu Nacional da época, João Baptista de Lacerda que era
médico e também antropólogo. Participou em 1911 no Congresso Universal
das Raças realizado em Londres, que debatia a relação de raças com o fim de
dar soluções aos aspectos negros e indígenas que haviam restado na
sociedade. (DE SOUZA, V. S., & SANTOS, R. 2012). O branqueamento da
população para Lacerda era a esperança da civilização Brasileira e para ele
essa possibilidade viria nas próximas gerações embranquecidas através das
misturas de raças.
O projeto de uma sociedade limpa tem sua continuidade no Brasil e nos anos
1960 a 1990, os projetos de esterilização de mulheres negras, indígenas e
pobres é posto em prática de modo significativo. Ter um atestado de
esterilização era um fato que colaborava para a inserção da mulher no
mercado de trabalho (WERNECK, 2003).
Não há como falar de saúde no Brasil sem falar da saúde das “classes
populares”, sem contextualizar a presença da população negra no processo de
concretização das instituições, do pensamento científico brasileiro. O corpo
negro é questionador da ordem, ao mesmo tempo em que traz para a medicina
oficial conhecimentos e práticas de saúde.
Com a Marcha Zumbi dos Palmares em 1995 que foi realizada em busca de
Cidadania e Vida, decretou a criação do GTI – Grupo de Trabalho
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde
Referências
Batista, L. E., Werneck, J., & Lopes, F. (2012). Saúde da população negra.
ABPN-Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.
Campos, G. W. D. S., Minayo, M. D. S., Akerman, M., Drumond Júnior, M., &
Carvalho, Y. D. (2006). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 767-82.
Dos Santos, G. A. (2002). A invenção do" ser negro": um percurso das ideias
que naturalizaram a inferioridade dos negros. Univ Pontifica Comillas.
Fanon, F., & da Silveira, R. (2008). Pele negra, máscaras brancas. SciELO-
EDUFBA.
Schwarcz, L. M. (2013). Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça
na sociabilidade brasileira. Editora Companhia das Letras.
Souza, V. S. D., SOUZA, V., Santos, R. V., Santos, R. V., & SANTOS, R. V.
(2012). O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e
debates.