Anais - II Reuniao de Antropologia Da Sa PDF

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Anais da II Reunião de Antropologia da Saúde – II RAS

O Laboratório de Antropologia da Saúde, da Universidade de Brasília


(LABAS/UnB), juntamente com o Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e
Cultura da Universidade Federal da Paraíba (GRUPESSC/PPGA/UFPB), o
Núcleo de Pesquisa em Gênero, Saúde e Direitos Humanos – Mandacaru, da
Universidade Federal de Alagoas (PPGA/UFAL) e o Grupo Gênero, Corpo e
Sexualidades – GSC (PPGAS/UFRN), com apoio do Instituto de Ciências
Sociais (ICS/UnB), do Departamento de Antropologia (DAN/UnB), do
Departamento de Saúde Coletiva (DSC/UnB) e da Faculdade de Ceilândia
(FCE/UnB), e contando com financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa
do Distrito Federal (FAP-DF), realizaram a II Reunião de Antropologia da
Saúde – II RAS, nos dias 8, 9 e 10 de novembro de 2017 na Universidade de
Brasília.
O evento deu continuidade à I RAS, realizada na UFPB em 2015, com a
finalidade de reunir pesquisadores, docentes e discentes de diferentes núcleos
de pesquisa em Antropologia da Saúde que participaram da primeira edição do
evento, bem como professores, estudantes de graduação e pós-graduação e
gestores e profissionais de saúde do Distrito Federal e região do entorno e
também de diferentes estados do país, atuantes na interface entre a
antropologia, as ciências sociais e humanas e a saúde.
Para esse encontro, cujo tema foi “Antropologias e políticas em
contextos de crise”, o eixo norteador dos debates foi o momento de profunda
instabilidade política que o país está vivenciando. O Sistema Único de Saúde é
a maior política pública do país e, mesmo com desafios estruturais já
amplamente identificados, segue sendo uma política apreciada nacional e
internacionalmente e sobre a qual muitas antropólogas da saúde têm
pesquisado e desejam que se mantenha e se aprimore. Contudo, o que temos
visto nos últimos meses, de modo muito acelerado, é um desmonte dessa e de
outras políticas públicas, num intuito bastante intenso de minimizar a atuação e
as atribuições do Estado. Assim, reunir pesquisas etnográficas dentro, com ou
sobre o SUS é de vital importância no momento e a II RAS elegeu as reflexões
sobre o SUS como eixo norteador de nossas discussões durante o evento.
Nestes anais estão reunidos muitos dos trabalhos completos
apresentados ao longo do evento, organizados por Grupos de Trabalho. O
intuito é o de registrar e fazer circular as discussões que animaram o evento,
trazendo diversidade de pensamento e apontando diversos caminhos para as
futuras edições da Reunião de Antropologia da Saúde.

Brasília, janeiro de 2018.


Grupos
de trabalho
Grupo de Trabalho 1
Antropologia da Adicção: dependência
química como categoria e suas terapêuticas
Coordenadoras: Rosa Virgínia Melo (DAN/UnB); Nívio
Caixeta (UNODOC) e Janaína Capistrano (UFTO)
Grupo de Trabalho 1
Antropologia da adicção: dependência química como categoria e suas
terapêuticas
A proposta do GT objetiva reunir pesquisas em torno da reflexão dos sentidos
sociológicos, culturais e históricos da adicção química, cujo termo técnico
contemporâneo é dependência química, percebida como doença crônica.
Acolhemos trabalhos que, além disso, analisem critérios de falta de controle, os
efeitos de verdade do diagnóstico, controvérsias e disputas leigas e
profissionais sobre a natureza da dependência de álcool e outras drogas e as
ações de cuidado nesse contexto. O debate visa integrar ao campo de
tratamento os saberes médicos, psicológicos, religiosos e leigos, tendo em
vista a problematização dos valores e práticas implicadas nas percepções de
saúde, indivíduo e sociedade, noções de direitos e níveis de autonomia e
heteronomia elaborados nas diversas terapias concernentes às condutas
socialmente rejeitadas. Procuramos também interrogar a presença/ausência
dos sujeitos da nomeada doença no cenário público. O escopo da discussão
inclui relatos etnográficos e teóricos em quatro eixos temáticos: 1) práticas de
uso e critérios de inclusão na categoria de dependência e estratégias de uso e
controle; 2) redes de cuidados formais e informais que envolvem usuários, bem
como os familiares e agentes das diversas terapêuticas envolvidas na
nomeada doença; 3) sentidos das ações de aceitação e rejeição de estratégias
terapêuticas; 4) agenciamentos e experiências de políticas públicas em
território nacional. Uma antropologia da adicção, entre outros aspectos, propõe
a análise da nosologia da dependência química e suas afinidades com a
temática da regulação moral em suas variadas concepções.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ayahuasca na cura da dependência química: uma etnografia no Céu da


Nova Vida

Karoliny Felipe Martins1

Resumo:

A consagração do enteógeno ayahuasca – mistura de cipó e folhagens, - tem sido


vivenciada no Brasil por meio da expansão do que José Guilherme Magnani e
Esther Langdon mencionam como neoxamanismo e das religiões ayahuasqueiras.
Nessa apresentação, proponho refletir sobre como o neoxamanismo tem contribuído
para a propagação e ressignificação das medicinas indígenas, em especial a
ayahuasca e seu possível uso terapêutico. Por meio de uma etnografia realizada no
Céu da Nova Vida, centro daimista referência no atendimento a dependentes
químicos, indico que a bebida sacramental é utilizada terapeuticamente no
tratamento da dependência química.

Palavras-chaves: Santo Daime. Cura. Consciência.

Com base no sincretismo religioso com forte influência cristã, a Doutrina do


Santo Daime se estabelece enquanto uma doutrina neoxamânica que oferta aos
seus integrantes teorias etiológicas para se pensar, sentir e tratar o trinômio saúde-
doença-cura. Com base nisso, o presente trabalho se trata de uma pesquisa
etnográfica em um centro daimista intitulado Centro Espiritual Céu da Nova Vida
que teve como intuito a análise das mediações terapêuticas realizadas por meio da
ayahuasca no tratamento de dependentes químicos.

O Centro Espiritual Céu da Nova Vida se coloca enquanto um lugar que


propõe a mudança do Ser tanto espiritual quanto material baseados na doutrina de
Deus e tendo como fundamento as obras de caridade. Por este motivo, os trabalhos
não são cobrados ao público, o que em sua maioria se constitui de pessoas que tem

1
Graduada em Ciências Sociais (2017) pela Pontifica Universidade Católica do Paraná - PUCPR.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

algum histórico pessoal e/ou familiar de dependência química – seja ela lícita e/ou
ilícita – como crack, cocaína, maconha, tabaco e álcool, além de, problemas
psicológicos como a depressão.

O perfil de seus adeptos é mesclado, de acordo com o dirigente da casa,


sendo integrado por pessoas, em sua maioria, entre os 35 e 40 anos, oriundos das
camadas populares como observado. No entanto, por se tratar de um espaço
familiar, há ainda muitas crianças e jovens.

Os rituais – chamados de trabalho - são divididos em: trabalho de


concentração, trabalho de cura e bailado, consistindo basicamente na consagração
do daime acompanhado do hinário.

Pai-nosso e Ave-Maria são as principais orações entoadas no inicio e término


dos trabalhos. No entanto, a primeira, é adaptada à doutrina fazendo menção á
ideia de que a bebida é uma forma de acesso ao reino Divino, pois, após as orações
é iniciado o despacho, sendo entoada da seguinte forma:

Pai nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome, vamos nós
ao vosso reino (...). Amém.

Feita as orações, é realizado o primeiro despacho - momento em que o


daime é servido -, dando sequência ao ritual.

Além da casa ter o perfil de fornecer tratamento gratuito para tratar


dependentes químicos através do daime, há ainda casos psicológicos como
depressão. De uma forma geral, a cura é estabelecida através da consciência divina
a qual é promovida por meio da ingestão do daime, a bebida permitiria um encontro
consigo mesmo, fazendo com que uma análise pessoal de comportamento seja
feita. Segundo os daimistas, em especial os frequentadores do Céu da Nova Vida,
há uma relação maquineísta de visão de mundo. A Saúde entendida como
manifestação divina, e a doença, por sua vez, como um estado não-natural do Ser-
Humano.

Entende-se que no processo de cura, vômitos e diarreias, são sinônimos de


limpeza, tanto que é o termo atribuído a esses atos. Por isso o uso de luvas, pelos
daimistas, para que não haja contato com aquilo que está sendo jogado fora.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

São mencionadas, diversas vezes durante o ritual, questões referentes a


saúde e cura, questões estas vinculadas aos hinários - mensagens cantadas e que
constituem o ponto chave do trabalho. É através do hinário que os valores morais,
éticos e cristãos são repassados. Sob o ritmo de uma espécie de maracá - chocalho
indígena -, um atabaque - instrumento comum em terreiros - e violão, podendo ser
acrescentado pandeiro e sanfona, as letras reverenciam a Virgem Maria, Jesus
Cristo e o Mestre Irineu , além de, transmitir mensagens do Universo Cristão como
amor e bondade. Pecado também é mencionado em diversos hinários. Somado a
isso, são cantadas também, questões relacionadas ao Universo daimista como
disciplina/firmeza, obediência e relação com o mundo astral, o outro mundo.

Por ser um elemento chave dos rituais daimistas os hinos serão aqui
trabalhados como uma ferramenta de transmissão de ensinamentos e que sob o
efeito da bebida funciona como instrumento de mudança de comportamento,
posteriormente, mudança de visão de mundo principalmente para aqueles/as que
estão ingerindo a bebida com a intenção de se libertar da dependência
química/alcóolica. A dependência é entendida como uma condição em que o/a
sujeito está iludido. A ideia de ilusão, por eles estabelecida, é um estado onde não
há consciência divina, e que, uma vez estabelecida essa consciência, o sujeito
estaria liberto como no caso de José2(35):

(...) usava crack, cocaína, maconha, fumava cigarro, bebia, usava


praticamente tudo aí que tem de droga...era novo, né, então tava naquele
mundo da ilusão né, achando que tava curtindo, só que aí me envolvi
nessas drogas mais pesadas o crack né, que ai é uma situação diferente,
mais pesada ai você vira um escravo, não tem domínio, não que as outras
tenham mas ai a coisa piora, porque você vira um zumbi...faz um monte de
coisa errada só pra poder consumir, né...transformou tudo, né? A gente
enxerga a vida de uma maneira bem diferente...sai do mundo de
ilusão...mundo de mentira...vive com alegria, com satisfação, num ambiente
sadio, sem vícios...muda do vinho pra água como a gente diz, né

Para os integrantes do Céu da Nova Vida o chá é compreendido como


ferramenta de libertação, consequentemente, de cura - como colocado no hino
abaixo - por permitir o estabelecimento da consciência divina a qual é afirmada por
meio da ingestão do chá de ayahuasca.

2
Nome fictício em respeito à integridade dos entrevistados e das entrevistadas.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

Eu Sou – Tufi Rachid Amin

Eu sou, eu sou, eu sou o seu doutor, / Trazendo o remédio pra curar a tua dor. / A tua dor foi
você quem criou / Eu trago o remédio pra curar a tua dor. / Eu venho de branco, trazendo o amor, /
Te entrego o remédio e levo a tua dor. / Eu venho, eu venho, eu venho de verdão, / Trazendo a
alegria e deixando em tuas mãos. / Nesta doutrina, você vai encontrar, / Paz, amor e alegria e tudo
que te faltar, / Estando nesta linha / Nada vai te atrapalhar3.

Pode-se interpretar este hino da seguinte maneira: o doutor sendo os


fardados - madrinha e padrinho -, responsáveis por realizar o despacho, os quais
utilizam a farda branca - "eu venho de branco" - com detalhes em verde - "eu venho
de verdão". O remédio seria o próprio daime, agente incumbido de realizar a "ponte"
entre o mundo físico e o mundo astral da onde é retirada as mensagens. Além
disso, acredita-se que a doença está diretamente relacionada ao avanço espiritual,
pois, ela seria um empecilho para o mesmo, mas que seria uma "fase" necessária
para tal avanço já que ela seria originada internamente pelo indivíduo - "a tua dor,
foi você quem criou".

Eu Te Dou - Germano Guilherme

Eu te dou, eu te dou / é com carinho e com amor. / Eu te dou, eu te dou / é com carinho e com amor.
/ Quem mandou, quem mandou, / foi a divina luz de amor. / Quem mandou, quem mandou / foi a
divina luz de amor. / Eu te digo para ti / E para os outros tu dizer. / Eu te digo para ti / E para os
outros tu dizer. / Quem estiver dormindo acorde / que o tempo já chegou, / aquele que ficar dormindo
/ fica sem ter a luz de amor.

A ideia de ficar dormindo está associada com o despertar espiritual que


consiste o tratamento de cura – sem internamento ou qualquer tipo de restrição -,
pois de acordo com os participantes, é ele somado ao autoconhecimento que faz
com que os sujeitos se libertem do mundo de ilusão, mas que só é possível através
da ingestão do chá já que a cura é uma cura espiritual.

É muito comum, observado pelos relatos dos/as entrevistados/s, a indicação


da casa como forma de dar credibilidade aqueles/as que estavam em situação de
dependência perante á família. Dessa forma, a composição dos/as participantes da
casa é estabelecida, em grande maioria, por relações de consanguinidade.

Há um ponto principal para que a cura seja concretizada que é a concepção


do perdão de atos e/ou sentimentos considerados errados e/ou negativos, nesta ou

3
Hino coletado durante os rituais e verificados em site da Doutrina.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

em vidas passadas, visto que, a doença é um desdobramento destas questões.


Sendo assim, o perdão está associado ao reestabelecimento da saúde.

A cura, no Céu da Nova Vida, é entendida enquanto um processo pois


implica uma transformação pessoal e não, necessariamente, o desaparecimento de
sintomas de uma enfermidade. Tal processo é realizado na força da bebida o que,
segundo os frequentadores, permite uma análise de comportamento, e
consequentemente, possibilita a mudança. Sendo notórias, as mudanças ocasionam
em outras mudanças, principalmente, nas pessoas do convívio familiar, como no
caso da Bárbara (31), por exemplo:

Eu soube do daime através da minha mãe, dependente química, 10 anos


de crack, alcoolismo, cigarro (tabaco né), e eu fazia uso da maconha muitos
anos, desde meus 13 anos de idade. Depois de seis meses, através da
mudança, da recuperação dela, eu resolvi vir. (...) As mudanças mais
evidentes foram as de comportamento, de opinião, eu vi que ela começou a
mudar de opinião... já não bebida, já não fumava...com um mês na casa ela
já deixou de usar drogas, de fumar e de beber...isso pra mim jamais iria
acontecer, né?! Porque eu cresci vendo ela... totalmente virada... então eu
comecei a perceber isso mês após mês, né...ai eu falei 'nossa, eu vou lá
conhecer'...(...)através da mudança do seu próximo, você vai se adequando
e vai querendo também né?!

Dessa forma, a questão familiar é muito recorrente e colocada como um fator


de extrema importância para a recuperação dos enfermos, pois, o
reestabelecimento das relações familiares é sinônimo de saúde e harmonia. Por
isso, menções à mãe - Virgem Maria – e ao pai – Deus - são muito comuns nos
hinos, além de, o individuo que está entoando os hinos, se colocar numa posição de
filho, assim como o mestre Irineu, já que o mesmo é considerado, na doutrina, como
a reencarnação de Jesus Cristo, o filho de Deus, irmão-mestre dos adeptos.

Ana (19) atribui ao Santo Daime, em especial ao Céu da Nova Vida, a


recuperação de sua família com histórico de dependência química.

Nossa, a gente só tem o que agradecer. eu agradeço muito, sempre falei


muito bem da Igreja porque eu via a mudança dentro de casa, tava meu
pai, minha mãe e minha irmã tomando daime, eu via isso neles... a
consciência...(...) o meu pai quis resgatar a família dele, né(..) transformou
a nossa vida...ninguém da minha família acreditava no meu pai, ninguém
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

suportava ficar perto dele...meu pai quis a mudança dele...o daime é pras
pessoas que querem mudar...

Segundo ela, sua família conheceu o Céu da Nova Vida através de seu tio,
também com histórico de dependência química, o qual tinha uma filha com o mesmo
problema, e indicou a casa para seu pai que fazia uso de álcool e drogas (não
especificadas). Há aqui a ideia de irmandade muito comum nas esferas religiosas
sendo ainda mais habitual na doutrina do Santo Daime pois é entendido que há um
Pai em comum (Deus), uma mãe (Virgem Maria) e ainda um irmão-mestre (Mestre
Irineu). Por isso, na casa as relações de consanguinidade, quando há, são
reiteradas através da doutrina e indicadas como melhoria da saúde - física e
espiritual, pois "quando alguém da família adoece, todos adoecem".

O hino abaixo é um demonstrativo dessa difusão da doutrina por meio dos


irmãos.

MEU DIVINO PAI ETERNO - Antônio Gomes

(...)

Eu vou entrar nessa estrada / Com amor no coração / Que trago a verdade pura / Para ensinar os meus irmãos /
Para ensinar os meus irmãos / Para todos aprender / Para que todos enxerguem / Todos possam compreender.

É através dessa compreensão que os sujeitos mudam. A doutrina implica,


implicitamente, um sistema de regras que deve ser cumprido baseado sempre na
obediência a qual é estabelecida através de uma hierarquia bem fundamentada:
Mestre Irineu, o Padrinho da casa e os fardados mais antigos.

A compreensão, por sua vez, se baseia em assimilar os ensinos Divinos


transmitidos pelo Mestre Juramidam:

General Juramidam - Antônio Gomes

O General Juramidam / Os seus trabalhos é no astral / Entra no reino de Deus / Quem tem força Divinal / Este
Reino excelente / É para todos meus irmãos / Os que forem obedientes / E limpar seu coração / Neste Reino de
meu Pai / É para mim com todos entrar / Os que obedecer os ensinos / E depois que se humilhar / Este Reino de
Cristal / É um poder superior / Meu Pai quer seus filhos limpos / Pois Ele é o Rei do Amor.

O estar limpo corresponde não somente às drogas, mas também a todos os


sentimentos ruins como mágoa, tristeza, orgulho, inveja etc que comprometem a
saúde e o bem-estar dos participantes, fazendo com que, consequentemente haja
um adoecimento.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

A eficácia da cura, entretanto, é comprovada através das narrativas que


afirmam um discurso positivo de cura com o daime além das mudanças de
comportamento que materializa esse discurso.

Eu usei de tudo, as drogas que mais usava assim, que era diariamente,
era maconha, cocaína e o álcool né, diariamente e usava, assim,
esporadicamente outros tipos de drogas dentre elas crack, lsd enfim...isso
num período mais ou menos de 10 anos (...) foi neste trabalho (pronto-
socorro) que eu consegui, realmente, alcançar o despertar da consciência e
me libertar dessa mazela (...) tendo em vista que o daime ele é um espelho
do nosso interior... a gente se depara, literalmente, com todos aqueles
demônios que a gente ta alimentando através desse comportamento
doente, inconsciente(...)... foi bem difícil foi bem forte, mas ao mesmo
tempo que eu tava vivenciando toda aquela experiência tenebrosa que era
minha realidade, já sentia um conforto no coração, uma luz no fim do
túnel...sabia que aquilo tava sendo o meu processo de libertação..(...)
quando eu saí daqui (Céu da Nova Vida), ainda tava na energia do
trabalho, tava na força do daime... as coisas elas... não tinham ainda tanta
clareza, mas depois, no dia seguinte, quando acordei, eu vi que era uma
nova pessoa, sabe?....(... ) porque a primeira coisa que fiz quando cheguei
na minha casa daqui foi jogar toda droga que tinha lá fora...a primeira coisa
que fazia quando acordava era fumar maconha, então no dia seguinte
acordei, levantei, lavei meu rosto, tomei café... coisa que há anos que eu
não fazia... realmente assumi uma nova vida...vi realmente que tava
livre(...) (Marcos,33)

O pronto socorro, trabalho responsável pela libertação de Marcos, é um


trabalho dedicado às pessoas debilitadas, em especial dependentes químicas, e
que ocorre diariamente no Céu da Nova Vida em dois períodos: pela manhã e a
tarde tendo duração de 2h.

Estar doente significa, portanto, um estado de não reconhecimento da


natureza Divina, de Deus. Assim, a doença física é apenas um desdobramento
dessa condição tendo sua raiz no mundo espiritual.

Quem procurar esta casa – Mestre Irineu

Quem procurar esta casa / Que aqui nela chegar / Encontra com a Virgem Maria / Sua saúde Ela dá /
(...) / Aqui dentro desta casa / Tem tudo que procurar / Seguindo o bom caminho / Fazer bem, não
fazer mal.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

O reestabelecimento da saúde pela Virgem Maria, a mãe, demonstra seu


aspecto espiritual e que condiz, necessariamente, a trilhar um caminho com base
nos valores cristãos. Por isso, as mudanças de comportamento são indicativos
desse reestabelecimento.

(...) são muitas coisas que mudaram, sabe...(...) eu vim buscar o daime a
principio por causa da dependência química, né?! e percebi que isso era só
um detalhe... a ponta do iceberg...realmente o processo de cura... ele é
muito mais profundo,né...o que eu adquiri aqui todos esses anos tomando
daime... entendimento, compreensão, paciência, tolerância, sabe?! coisas
que realmente eu não tinha,e hoje se tornaram valores morais que me
servem né?! não só aqui dentro da Igreja mas na minha vida ...mas foram
vitórias grandiosas (...) sou extremamente grato tenho consciência que
devo a minha vida a esse trabalho... (Marcos,33)

Há uma característica do Santo Daime que é a questão da firmeza que pode


ser interpretada por obediência. É através dela que o comportamento dos/as
participantes é definido pela doutrina. Estar firme presume comprometimento com a
doutrina a qual tem dentre os seus preceitos a não intoxicação por entender que o
corpo é um instrumento espiritual, por isso que, os rituais são também denominados
trabalhos. Este último, engloba aspectos tanto da vida material quanto da vida
espiritual dos sujeitos pois, em decorrência da noção maquineista, considera que a
vida seja um constante trabalho. Isso quer dizer que sentimentos interpretados
como pecado - luxúria, orgulho, avareza, gula, soberba, heresia, ira, preguiça,
mentira – devem ser trabalhados a fim de serem eliminados para que as virtudes
divinas se apossem daquele/a sujeito/a.

Além do trabalho ser uma metáfora para o trabalho espiritual, ele enquanto
atividade produtiva é valorizado pelos participantes, até porque segundo Marcos,
“nunca vi pessoas harmonizadas, alegres, trabalhando pra utilizar uma droga” já que
“o daime exige trabalho constante interno e externo”.

A abertura da casa foi inspirada por Gabriel (48) ex-dependente de cocaína e


ex-paciente de outro centro espiritual em Sorocaba-SP, o Céu Sagrado, que
também realiza tratamento de dependentes químicos com a bebida. Segundo ele,
há 18 anos atrás conheceu o daime, assim como os outros entrevistados, com o
intuito de se libertar das drogas, pois atrás de inúmeras tentativas por meios
convencionais de tratamento, inclusive internamento, não obteve êxito. Para tanto,
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

com o daime, além de se abster das químicas concebe a bebida também como
responsável por suas mudanças:

No Âmbito pessoal, âmbito moral, âmbito ético e principalmente no âmbito


espiritual que... são questões que realmente, quando a gente tá iludido, ta
cego a gente não tem percepção, a gente realmente não percebe o
fundamento da nossa existência, né? Então a gente começa a perceber e
respeitar muito mais os valores éticos e morais e se comportar enquanto
realmente como um verdadeiro cidadão, uma pessoa de bem, espírito e a
caminhar de uma maneira bem diferenciada...

Considerações finais:

Desde que foi liberada para uso religioso pelo CONAD, é vedada a
associação da ayahuasca às práticas terapêuticas. Sendo assim, as curas são
incorporadas à interpretação do ritual, sendo associadas a cura espiritual e
afirmadas conforme as narrativas e associando a experiência com o daime,
enquanto uma experiência de reviravolta, fazendo com que os (ex) dependentes
químicos possam enxergar suas vidas a partir de um outro ângulo, abandonando o
vício, iniciando uma Nova Vida.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

Gênero e dependência química: o cuidados das mulheres.

Rosa Virgínia Melo1

Resumo

No universo da oferta de cuidado em saúde mental no Brasil, em geral,


são as mulheres as mais atuantes nas ações de ponta, seja no âmbito privado,
como mães e esposa dadivosas, seja no público, como enfermeiras, psicólogas
e assistentes sociais. A presente discussão objetiva problematizar questões de
gênero quando são as mulheres que precisam de cuidados em contexto de uso
abusivo de álcool e outras drogas, a partir das possibilidades e limites
da metodologia de tratamento no modelo de 12 Passos de Alcoólicos
Anônimos. É recente a visibilização do uso imoderado de álcool e outras
drogas entre mulheres, e a entrada delas no tratamento interroga a
aplicação de uma metodologia pensada para atender homens adultos,
brancos e casados. Palavras – chaves: dependência química, tratamento,
gênero, maternidade.

Introdução
O debate que proponho a seguir decorre de pesquisa antropológica no
interior da SERVOS (Sociedade de Empenho na Recuperação de Vidas),
composta pelo complexo terapêutico das salas de ajuda mútua e Comunidade
Terapêutica Fazenda do Senhor Jesus, no Distrito Federal. Instituição privada,
há 30 anos a SERVOS possui uma diretoria formada por familiares daqueles
identificados como dependentes químicos.
É inspirada em 12 Passos de Alcoólicos Anônimos e Amor Exigente,
mandamentos da modelo terapêutico da ajuda mútua e cartilha para
recolocação de limites por parte da família, respectivamente. Ambos são
conhecimentos não acadêmicos produzidos no século XX, nos Estados Unidos
e com notável popularidade. Em termos gerais, no interior do tratamento da
chamada dependência química, a metodologia dos 12 passos está axiada em
princípios espirituais, psicológicos e comportamentais e supõe a obtenção de

1  Pesquisadora  colaboradora  DAN/Unb  


Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

forças suficientes para a transformação do comportamento a partir de uma


identificação entre pares e desses com Deus. Já O Amor Exigente é uma
cartilha que preconiza medidas disciplinares orientadas por papéis sociais
firmes para uma reformulação das relações familiares baseadas nos conceitos
de dependência e co-dependência.
Os Alcoólicos Anônimos, grupo fundado em 1935 por dois bebedores de
classe média norte americanos, protestantes e politicamente conservadores
(Robertson, 1988), foi pensado inicialmente para atender exclusivamente
homens brancos e casados, em ambiente de mutualidade. Mulheres alcoolistas
eram internadas em sanatórios mas não incluídas no grupo, pois às mulheres
não era atribuído o problema, idealizadas nas funções de mãe e esposa,
solicitadas como apoio ao tratamento dos cônjuges, pais, irmãos, filhos.
No Amor Exigente entende-se que, em geral são as mulheres as co-
dependentes, pois “facilitam” o desenvolvimento da nomeada dependência
química, ao permitirem, por excesso de amor, a manipulação exercida por
maridos e filhos. Segundo o saber local, facilitar a manipulação oculta um
desejo feminino de manter relações familiares adoecidas e o combate a essa
forma de relacionamento preconiza um tratamento de “confronto amoroso” ou
“recolocação de limites” para introjeção dos papeis considerados devidos.
Não me deterei nessa oportunidade, em tecer comentários aos alicerces
metodológicos do complexo terapêutico da SERVOS, suas contradições e
inconsistências à luz de certas vertentes da psicologia contemporânea que
defendem a empatia, mas aponto como os conhecimentos aí contidos
dialogam com saberes populares acerca de relações intersubjetivas no
universo da família (Duarte et all, 2006), numa linguagem próxima aos sujeitos
de pesquisa, predominantemente de classes trabalhadoras.
No interior de uma discursividade eloquente e complexa que percebe o
comportamento desviante como uma doenças do espírito, das emoções e do
cérebro, interessa-me pensar aquilo que a doença retira e o tratamento busca
repor e, a partir disso, observar a produção, presença e invizibilização do
gênero.
É frequente no campo da ajuda mútua para dependência química o dizer
que todos sofrem do mesmo problema, “o que muda é o endereço”. Contudo, o
gênero contraria esse dizer, pois é também frequente a percepção de que as
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

mulheres são mais difíceis de “entrar no tratamento”, uma vez que não seriam
afeitas a “aceitar ajuda” e, diferente dos homens, “sofrem de auto
comiseração”. Sendo assim, injunções de gênero produzidas no universo de
pesquisa apontam para um comportamento diferenciado por parte das
mulheres, o que indica a importância de uma observação atenta às
especificidades no cuidado das mulheres no universo da adicção química.

Metodologia de pesquisa
A pesquisa na SERVOS iniciou-se em 2014 e entre janeiro e agosto
realizei a primeira fase do trabalho de campo, ainda não voltado para a
questão que ora me ocupa. Participei como observadora das reuniões dos
grupos NATA (Núcleo de Atenção aos Toxicômanos e Alcoolistas) e NAFTA
(Núcleo de Atenção aos Familiares de Toxicômanos e Alcoolistas), entrevistei
participantes de ambos os grupos e visitei a CT, unidades masculina e feminina
em dinâmicas promovidas por voluntárias, quando realizei entrevistas com
residentes.
Então interessada em compreender a inclusão de comunidades
terapêuticas no financiamento federal de tratamentos para a dependência
química, analisei como os saberes terapêuticos vernaculares produzem uma
síntese do pensamento do cristianismo laico em sinergias morais com o
Estado, ambos interessados na transformação das relações pessoais e não na
transformação de estruturas sociais (Melo, 2016). Em 2017, desde que retomei
o campo, tenho conduzido meus interesses de pesquisa acerca na análise das
aludidas dificuldades do tratamento com as mulheres, no interior e além do
contexto ora abordado.
Nas duas salas do NATA, a de “triagem”, de “adictos na ativa” e “na
perseverança”, daqueles “em recuperação”, cerca de 80% da frequência é
masculina. Nas salas dos familiares das três categorias de adicto (“ativa”,
residente, “perseverante”), a porcentagem inverte-se. Na CT masculina a taxa
de ocupação é alta, enquanto na feminina é baixa, tendo como parâmetro o
número de vagas oferecidas. Como em outros níveis de frequentação religiosa,
bem como na visita aos presídios, a participação nas salas da família e nas
visitas aos residentes nas duas CT’s é majoritariamente feminina. Assim, é a
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

figura feminina ressaltada no método de cuidado que tem um gênero como


protagonista.

Gênero e modelo de cuidado


Das cinco entrevistas com mulheres que utilizo na temática do gênero,
duas foram realizadas no interior da CT (uma das residentes não concluiu o
tratamento) e três no prédio onde funcionam as salas. Apenas uma das
entrevistadas não havia se internado da Fazenda e sim noutras entidades de
tratamento e apenas ela fazia uso de medicamento controlado para ansiedade,
receitado por ocasião de sua frequência a um CAP’S AD. Seguia frequentando
a sala da perseverança a qual atribuía também a função “de remédio contra
suas insanidades”, numa não rara associação entre o Centro de Atenção
Psicossocial e a Comunidade Terapêutica, uma indicação de trajetória flexível
entre os dois universos terapêuticos diversos e configurados num campo de
disputas por regimes de verdade que atravessam o campo da saúde mental
álcool e outras drogas.
Profissionais da saúde, membros de ajuda mútua e usuários de outras
metodologias de tratamento mencionam que a auto estima das mulheres
adictas é menor, apresentam depressão e ansiedade maiores e têm
desempenho das habilidades sociais prejudicado. A culpa e a vergonha pelo
estilo de vida no interior da subcultura das drogas nas mulheres é notado como
mais acentuado  que nos homens.
Como dito acima, a análise nos contornos de pesquisa partiu de dados
de campo segundo os quais as mulheres não se adaptam tão bem ao
programa porque sofrem, mais do que os homens, de autocomiseração. Dessa
forma teriam maiores dificuldades de entrar num programa terapêutico cuja
temporalidade enfatiza o presente para a construção da “recuperação”.
Dentre as informantes da pesquisa, a maternidade figura como a ruptura
“mais difícil de recuperar”, dentre aquelas apontadas como parte da trajetória
do portador da doença da dependência química. A percepção das mães
interlocutoras diante do próprio comportamento na fase da “ativa” difere da
percepção de mães portadoras de outras doenças que, a depender do estágio,
impedem a mãe de responsabilizar-se pelo cuidado das crias, como a AIDS
(Knauth, 1997). Diferentemente dessa ou outras condições de vida pouco
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

favoráveis à maternagem, como trabalho contínuo, más condições de moradia,


muitos filhos, etc, frequente em classes populares (Fonseca, 2006; Knauth,
1997), o uso intensivo de drogas, mesmo quando considerado uma doença,
não atenua a responsabilidade das mulheres pelo comportamento perante o
cuidado dos filhos.
Grande parte da população feminina com uso problemático de álcool e
outras drogas encontra-se em faixa etária reprodutiva, o que é considerado
pelos agentes de saúde como comportamento de risco para a gestação. Se o
cuidado com o homem adicto refere-se a sua própria pessoa, o mesmo não
pode ser dito no caso das mulheres, não apenas devido à gestação, mas
também aos encargos de cuidados com o bebê atribuídos à mãe após o
nascimento e durante a infância.
Do ponto de vista médico a gravidez é desaconselhada. Do ponto de
vista jurídico a função materna nesses casos pode ser temporariamente
deslocada para outro membro da família ou mesmo para uma instituição
pública. Do ponto de vista do tratamento em tela, a questão não recebe um
direcionamento específico, ou seja, assumir responsabilidades familiares é
obrigação moral do homem e da mulher. Contudo, nas conversas e entrevistas,
o cuidado com as crias surge de modo dessemelhante entre homens e
mulheres entrevistados. Nas entrevistas com mulheres surgem percepções do
“fracasso como mãe” e decorrentes culpa, ansiedade e angústia. Tais
sensações que, vale ressaltar, não são compartilhadas nas reuniões de grupo
e tampouco surgem facilmente nas entrevistas, sugerem ansiedades diante de
uma auto responsabilização pelos efeitos do consumo de drogas na saúde e
no cuidado da criança. É no entrecruzar dessas dimensões que faço as
primeiras considerações na construção de uma análise do problema
encontrado, ou seja, no alegado desajuste entre o tratamento e as mulheres.
O caso da mãe adicta provoca um impacto social decorrente de dois
temas tabus superpostos: o abuso de drogas e a considerada “má mãe”. O
primeiro contraria postulados da razão e o segundo contraria uma natureza
dadivosa, qualificativo do feminino, esteio protetor do núcleo familiar.
Algumas pistas para a continuidade da análise está no imaginário
alocado na mentalidade ocidental que tece relações entre a mulher, a
maternidade e a natureza. A palavra latina natura significa nascimento e nas
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

línguas europeias ela é feminina e quando personificada ela é a mãe. Segundo


Sheldrake (1993), até mesmo a visão materialista da natureza está permeado
de metáforas maternas, uma vez que, em latim, a palavra matéria deriva da
mesma raiz de mãe (Sheldrake, 1993).
Entendo que o debate acerca da necessidade de atenção diferenciada
no tratamento com as mulheres inicia-se pela fixação da noção de doença
crônica no campo da chamada adicção química (Levine, 1978). A categoria
tem sido usada nas ciências sociais no sentido de levar a sério, compreender
seus supostos, dialogar com agentes de saúde e não de reificar seus supostos
biomédicos. Adotada por discursos terapêuticos diversos, com semelhanças e
divergências na compreensão das fronteiras da “doença”, na construção do
sentido do termo encontra-se, com maior ou menor força, o sentido da vida
moderno contemporânea nos últimos 200 anos e sua transformação: de uma
regulação moral à cargo de uma instância social, coletiva, para uma individual,
interiorizada (Raikhel and Garriot, 2013).

Conclusão
Situar o alcoolismo como entidade nosológica, ainda hoje questão
polêmica, para muitos médicos foi uma decisão mais humanitária do que
científica (Room, 1983). Contudo, se o conceito de doença à princípio isenta o
indivíduo da responsabilidade penal pelo beber desregrado, o conceito impõe-
se como necessidade de tratamento, uma vez assumida a condição.
Enquanto algumas pesquisas apontam para o uso intenso de álcool
entre mulheres como um dado invisibilizado nas pesquisas (Roberston, 1988)
outros dados apontam para um aumento significativo na quantidade de
mulheres com uso problemático de álcool e o outra drogas no mundo ocidental.
Uma das principais preocupações no campo da saúde pública com
essas mulheres está na procriação e cuidado das crianças. O sofrimento
mental que subjaz aos comportamentos compulsivos e destrutivos tem, no
caso da adicção química, uma diferença de gênero notável que é o exercício
da maternidade. Entendo que as mães com um quadro de uso problemático de
substâncias nas camadas economicamente desfavorecidas personificam de
modo dramático o desvio de uma ordem social fundante na era moderna, a que
aloca e hipertrofia as responsabilidades maternas no cuidado da prole.
Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

O ordenamento social segundo o qual é a maternidade característica


fundante do feminino precisou de apenas um século para fincar suas raízes
como ordem natural, ou seja, tornando-se substantiva na concepção da
cuidado da prole e distanciando-se da rede de cuidados que circunscrevia a
vida familiar das crianças. Resultado de grandes deslocamentos sociais,
políticos e econômicos, a nuclearização da família e o papel da maternidade aí
localizada são estratégias de adaptação a uma nova ordem social
(Albuquerque, 1978), modeladas pelo individualismo e capitalismo. No interior
do contexto sócio simbólico e terapêutico da adição química, o modo de
exercício da maternidade expressa regimes de verdade do comportamento
feminino ao tempo que se coloca como principal desafio diante de adaptações
necessárias ao método moralmente inspirado.

Bibliografia
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Grupo de Trabalho 1 II Reunião de Antropologia da Saúde

RAIKHEL, Eugene & GARRIOT, William. 2013. “Introduction Tracing New


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SHELDRAKE, Rupert. 1993. O Renascimento da Natureza. São Paulo: Cultrix.
Grupo de Trabalho 2
Metodologias participativas em
Antropologia e Saúde Coletiva: diálogos
necessários
Coordenadoras: Ana Gretel Echazú Böschemeier
(PPGSCOL/UFRN); Elizabethe Cristina Fagundes de
Souza (Departamento de Saúde Coletiva/UFRN) e Lívia
Vitenti (Consultora Opas)
Grupo de Trabalho 2
Metodologias participativas em Antropologia e Saúde Coletiva:
diálogos necessários
Propomos esse GT a partir de nossa prática acadêmica interdisciplinar e com
intuito de produzir pontes de entendimento entre as noções de "cartografia" e
"etnografia", ambas metodologias participativas de produção de conhecimentos
e práticas em saúde vindas das linhagens conceituais da Saúde Coletiva e da
Antropologia, respectivamente. Temos observado que, se bem as cartografias
e as etnografias caminham muitas vezes de forma paralela, elas bebem de
fontes semelhantes. A Saúde Coletiva tem se constituído desde fins da década
de 1970 no Brasil e possui especificidades e uma potência que são
mundialmente reconhecidas. O campo da Antropologia se constituiu na Europa
no século XIX e se reconstruiu no Brasil de forma diversificada, sendo a
Antropologia da Saúde uma minoritária, mas vibrante expressão dele. Nesse
contexto, múltiplas cartografias e etnografias contemporâneas emergiram,
dando conta da riqueza e do teor crítico da produção participativa do
conhecimento dentro e fora das instituições da saúde oficial. Desta forma,
recebemos neste GT papers, relatos de experiência e pequenos filmes
condensados sob a forma de exercícios práticos de tipo etnográfico e
cartográfico. Com interesse genuíno no diálogo aberto entre disciplinas,
pretendemos expandir a reflexão sobre as metodologias participativas em
saúde para além das fronteiras disciplinares.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

O ensino da Clínica Ampliada na Atenção Primária sob um olhar


etnográfico

Autores: Daniele Cristina Godoy, Antônio P. Pithon Cyrino.


Instituição: Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp.

Resumo

O cenário da etnografia são as unidades básicas de saúde do município de


Botucatu, os sujeitos: alunos e tutores da disciplina Interação Universidade
Serviços de Saúde e Comunidade (IUSC), dirigida ao terceiro ano de
graduação médica da Faculdade de Medicina de Botucatu. A disciplina tem
como atividade principal a consulta médica supervisionada orientada pelos
princípios da integralidade e humanização da prática e como
proposta pedagógica o ensino da “Clínica Ampliada”. O objetivo do presente
estudo foi reconhecer, através da observação participante com registro em
diário de campo, as singularidades desta prática de ensino
aprendizagem sob a perspectiva de diferentes sujeitos envolvidos. Imersa
no campo da IUSC, durante dois anos vivenciei uma experiência muito rica,
na qual num primeiro momento me vinculei ao campo e aos atores nele
inseridos e assim realizei a entrada no campo da pesquisa, revisitei a
disciplina após uma experiência prévia neste mesmo campo com minha
pesquisa de mestrado (GODOY, 2013), num segundo momento realizei a
observação participante com olhar disciplinado e orientado para as
estratégias pedagógicas da disciplina e suas potencialidades e fragilidades na
realização da clínica neste contexto de ensino aprendizagem. E a presente
pesquisa até aqui me permitiu apreender as ações e relações que compõem a
prática da clínica na IUSC, além de uma reflexão sobre a disciplina e o
processo de formação médica.
Palavras Chaves: Educação Médica, Clínica Ampliada, Atenção Primária
à Saúde.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Criada em 2003, inicialmente como um programa e mais tarde


estruturada como disciplina, a IUSC (Interação Universidade Serviços de
Saúde e Comunidade) nasce como uma proposta de ensino interdisciplinar
desenvolvido na comunidade, orientada pelos princípios da integralidade e
humanização e por inovações pedagógicas. Composta por um conjunto de três
disciplinas - IUSC I, II e III – dirigida aos três e dois primeiros anos de
graduação, respectivamente, de medicina e enfermagem.

A IUSC está ligada ao Conselho de Curso da Faculdade de Medicina de


Botucatu, Unesp (FMB), portanto não é vinculado a departamentos. Trabalha
com pequenos grupos de alunos, sob a supervisão de um profissional de saúde
de diferentes áreas, o tutor, inseridos em unidades básicas de saúde do
município de Botucatu, com e sem estratégia de saúde da família.

Foram essenciais para a estruturação da disciplina IUSC o apoio


recebido pela FMB de diferentes programas de incentivo à mudança da
formação da graduação de profissionais de saúde dos Ministérios da Saúde e
do Ministério da Educação: PROMED, Pró-Saúde e Pet-Saúde. (BRASIL, 2002,
2005, 2008).

O presente estudo tomou como campo a disciplina IUSC III, ministrada


ao terceiro ano de graduação médica, orientada pelas concepções da
humanização e integralidade do cuidado, tendo o ensino da Clínica Ampliada
como proposta pedagógica e a consulta médica supervisionada, como
atividade nuclear.

A Clínica Ampliada enquanto tecnologia de atenção à saúde está


fundamentada na singularização do atendimento clínico, no seguimento
longitudinal dos casos, ampliação do grau de autonomia do sujeito, construção
de vínculo entre os sujeitos da clínica, valorização da escuta e superação da
fragmentação do cuidado (CAMPOS, 2007; CUNHA, 2005).

Este estudo, de natureza etnográfica, buscou reconhecer as


singularidades desta prática de ensino-aprendizagem sob a perspectiva dos
diferentes sujeitos envolvidos. Para tanto, o campo envolveu uma aproximação
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

deste objeto por meio de estudo bibliográfico e documental e observação


participante com registro em caderno de campo e construção de diário de
campo, com vistas a produzir uma descrição densa (GEERTEZ, 1989) do
processo de ensino-aprendizagem da prática da Clínica Ampliada na disciplina
IUSC III.

A IUSC III é uma disciplina eminentemente prática que acontece nas


unidades básicas de saúde, numa parceria entre universidade e Secretaria
Municipal de Saúde. Os atores envolvidos nesta prática são os professores
tutores, médicos vinculados a rede municipal de saúde de Botucatu, ao
Hospital das Clínicas e ao Centro de Saúde Escola, os dois últimos vinculados
à FMB. Esses profissionais têm um perfil diversificado quanto à área de
atuação, e nesta atividade atuam como generalistas (GODOY, CYRINO, 2013).

Os alunos interlocutores deste campo de pesquisa, são jovens cursando


o terceiro ano de graduação médica, organizados em grupos de cinco ou seis
alunos, supervisionados por um professor-tutor, que tem nesta atividade a
primeira oportunidade de prática clínica.

As principais estratégias pedagógicas adotadas pela disciplina são: o


uso de uma “anamnese ampliada”, retornos frequentes do paciente para o
mesmo aluno (vínculo longitudinal), discussão dos casos atendidos com o
professor-tutor, discussão sobre a vivência do aluno com psicólogos e a
elaboração cotidiana de narrativas pelo aluno, como prática de reflexão e
avaliação formativa.

Revisitando a disciplina IUSC III

O envolvimento com este campo da pesquisa tem início no mestrado


(GODOY, CYRINO, 2013), quando analisei os diários do aluno na IUSC III,
acima citados, caracterizando os principais temas identificados nestes diários.
Trabalhar com os diários dos alunos no mestrado permitiu reconhecer
muitas dimensões presentes nesta prática de ensino: a construção do vínculo
aluno-paciente, os desafios do encontro aluno-paciente – a conversa na clínica,
os sentimentos do aluno, os sentimentos dos pacientes, a objetividade do olhar
clínico, o trabalho da equipe de saúde da unidade e a centralidade do médico
na equipe, a relação do aluno com a equipe de saúde, a abordagem do social e
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

do psicológico na prática da Clínica Ampliada e a orientação por uma prática


humanizada e integral.
O presente estudo foi desenvolvido mediante dois anos de campo junto
a disciplina IUSC, 2014 e 2015, participando de reuniões de professores-
tutores e coordenadores, atividades introdutórias em sala de aula e na unidade
de saúde e o acompanhamento das atividades nas unidades de saúde (a
consulta médica supervisionada, supervisão do aluno pelo tutor e as
discussões de caso com a equipe etc.) e discussões de casos com a
psicologia.

Entrando no campo da pesquisa: o campo e os seus desafios1


Anterior a entrada no campo, o primeiro passo e maior desafio foi a
negociação com os sujeitos da pesquisa, para a inserção da pesquisadora na
disciplina e a seguir em cada uma das unidades.
Sou fisioterapeuta de uma das unidades de saúde na qual a disciplina se
desenvolve (o Centro de Saúde Escola), portanto conhecida dos
coordenadores da disciplina e de boa parte dos professores-tutores. O fato
desta unidade ser o meu local de trabalho facilitou muito a minha entrada e
permanência no campo. E foi uma experiência muito interessante, pois muitas
vezes a minha participação sobressaia a observação e o desafio estava em
saber articular este duplo papel.
O primeiro encontro com os professores-tutores ocorreu em reunião
destes com a coordenação da disciplina, na qual tive pouca oportunidade para
me expressar, o que gerou em mim um sentimento ruim, pois havia uma
enorme expectativa com relação a minha apresentação ao grupo e aceitação
pelo mesmo, e isto foi um aprendizado, pois assim fui descobrindo o meu papel
de observadora.
Embora a resposta positiva por parte dos tutores era esperada, o pavor
surgia quando eu pensava que o aluno poderia se recusar a me receber
durante a consulta médica realizada por ele.

1Neste tópico a primeira autora apresenta na primeira pessoa sua experiência de


entrada no campo.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Quando a disciplina começou, o meu primeiro contato com os alunos foi


inicialmente em sala de aula. Sentada entre os alunos, com caderno de campo
na mão eu observava e registrava tudo o que acontecia ali.

Após dois encontros em sala de aula, a disciplina passou a acontecer


nas unidades básicas de saúde, com encontros semanais, quando se inicia o
processo de vinculação a estes pequenos grupos, com os quais estive durante
o ano, produzindo os meus dados.

Os grupos agora são menores, me apresento e esclareço sobre a minha


atividade durante o ano. Os alunos falam pouco, alguns me cumprimentam e
me dão as boas vindas, outros permanecem calados.
Em alguns grupos fui logo acolhida e considerada como parte dele, pois
eu observava, anotava e interferi em algumas consultas, quando julguei
necessário, como articuladora entre os alunos e a unidade, equipe e
funcionários, fazia uma consulta compartilhada com os alunos, discutindo os
casos e contribuindo enquanto outro profissional não médico.
Já em outros grupos, a vinculação foi difícil, os alunos praticamente me
ignoravam, e quando eu me aproximava de uma dupla e pedia permissão para
acompanhar a consulta, a resposta vinha simplesmente com um balançar de
cabeça, um sim porém quase um não.
Com relação aos pacientes atendidos, a minha aceitação foi muito
tranquila. Sempre fui muito bem recebida, me deixavam muito à vontade e a
minha percepção era de que trazia certa segurança a eles. Quando o assunto
tratado era mais sério, os pacientes olhavam primeiro para mim ao contar algo
a respeito e depois aos alunos, talvez por eu ser mais velha que os jovens
alunos.
A entrada em campo em local conhecido acontecia de maneira tranquila
e espontânea. Todavia, o olhar para o cotidiano da unidade ficava prejudicado,
por ser um ambiente familiar. Alguns acontecimentos ao redor do meu objeto
de pesquisa muitas vezes passavam desapercebidos.
Em unidades novas e terrenos não familiares, a observação do novo já
se dava desde a chegada, como se eu quisesse fotografar ou filmar tudo que
estava diante de mim, para complementar o meu registro em diário de campo.
A produção etnográfica aconteceu em grande parte dentro dos
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

consultórios. Porém, desde a minha chegada no campo, sempre procurava


estar junto com os alunos em diferentes momentos: na leitura prévia dos
prontuários dos pacientes que aguardava atendimento, durante a consulta e
após, quando o aluno discutia o paciente atendido com seu tutor.
As atividades da disciplina ocorrem de forma muito dinâmica. Os alunos
chegam e já começam a buscar os prontuários dos pacientes que serão
atendidos e, em duplas, leem os registros nos prontuários para se inteirarem do
caso, tiram dúvidas com os tutores e realizam a consulta. Após cada consulta
discutem os achados com o tutor e voltam ao consultório para fazer a
prescrição, pedidos de exames e todas as orientações requeridas.
Em geral, sobrava pouco tempo para que eu pudesse conversar com os
alunos e tutores, pois este conjunto de atividades durava entre uma hora e
meia a duas horas; e, muitas vezes, este tempo se ampliava ainda mais,
quando os alunos precisavam aguardar que o professor-tutor para que
concluísse a discussão.
E esta entrada em uma nova unidade de saúde sempre me causou
insegurança e ansiedade. Pois seria um novo percurso buscando conquistar a
confiança do tutor e grupo de alunos.
Mas vale a pena contar que depois tudo corria muito tranquilamente
tanto para mim quanto para os alunos, que quase sempre ficavam muito à
vontade, assim como os pacientes que sempre me receberam muito
carinhosamente.
E assim como a entrada a minha permanência no campo foi sempre
muito prazerosa, uma relação de vínculo e confiança foi desenvolvida com
muitos dos atores, com os quais eu permaneci um tempo maior. Muitas vezes,
os alunos me agradeciam ao final pela ajuda durante a consulta.

O processo de ensino aprendizagem da Clínica Ampliada na Atenção


Primária à Saúde: Disciplina IUSC III

Já na sala de espera posso observar a familiaridade entre o aluno Caio e


dona Luiza. A consulta é um retorno, o terceiro encontro da senhora Luiza com
a disciplina IUSC III, a terceira consulta sendo atendida pelo mesmo aluno
Caio, e seus colegas Felipe e Emanuel. Os dois se cumprimentam com sorriso
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

no rosto e perguntam um ao outro se está tudo bem, a senhora queixa-se da


demora de hoje para ser chamada. O aluno Caio pacientemente explica que há
muitos atendimentos, que ele e o seu colega já atenderam um paciente hoje.
Ali mesmo, na sala de espera, fica tudo resolvido. A primeira observação de
vínculo proporcionado por uma consulta de retorno, pois não acredito que em
uma primeira consulta, num primeiro encontro aluno e paciente tivessem essa
liberdade de expressar-se com tanta facilidade.

O vínculo longitudinal, uma das estratégias pedagógicas centrais da


disciplina IUSC III, é definido pela mesma como o retorno frequente do
paciente para o mesmo aluno, ou mais comumente como é conhecida, a
consulta de retorno.

A disciplina reconhece nesta estratégia um potente recurso pedagógico


para a percepção do tempo enquanto tecnologia da clínica. O objetivo da
estratégia de retornos frequentes para a disciplina é promover a construção do
vínculo entre os sujeitos da clínica, responsabilização do aluno pelo paciente,
promovendo uma melhor compreensão do processo saúde doença.

O vínculo e a confiança são um dos efeitos benéficos da


longitudinalidade, segundo alguns autores (BARATIERI, 2012; CUNHA,
GIOVANELLA, 2011).

A dona Luiza mora no sítio, é acompanhada nesta unidade e quando


vem para a consulta traz junto a preocupação dos afazeres que deixa para trás,
preocupa-se também com o marido que a traz para a consulta, e tem pressa de
ir embora, para continuar o trabalho na roça.

O Caio é um aluno muito simpático, paciente e ouve atentamente a


queixa da paciente, tentando explicar-se pela demora.

No consultório, eu que estava de expectadora deste encontro até o


momento, apresento-me, falo o meu nome, pergunto se a dona Luiza está bem
e peço permissão para permanecer na consulta, como aluna do doutorado,
acompanhando a consulta dos alunos Caio e Fernando.

A dona Luiza é muito espontânea e bastante proativa: “Claro que sim, e


o que eu mando aqui”?
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

O seu jeitinho logo faz com que todos estejamos bem à vontade. Rimos
todos e eu respondo: “como não a senhora é a pessoa que mais manda aqui”.

A autonomia do sujeito é um dos aspectos fundamentais da Clínica


Ampliada (CAMPO, 2007), proposta de ensino da clínica na IUSC III. E neste
momento no qual a paciente coloca-se como alguém que não decide nada na
consulta, nós os outros atores envolvidos trazemos para dona Luiza que ela
tem um papel central, com direito de decidir, de escolher.

A consulta vai começar e quem inicia o diálogo é a dona Luiza


perguntando pelo terceiro aluno que a atendeu da última vez: “Cadê o outro?
Vocês estavam em três na outra consulta”. E já de início pude observar as
particularidades da consulta de retorno.

- Dona Luiza a senhora tomou o xarope que receitamos? E o fogão de


lenha?

Dona Luiza veio a unidade há quinze dia atrás com queixa de tosse
produtiva, que se estendia por vários dias e não passava com remédios
caseiros. Durante a anamnese ela contou aos alunos que morava no sítio há
muitos anos, foi lá que ela criou os filhos, e que até hoje ela fazia questão de
manter alguns hábitos, sendo um deles cozinhar no fogão a lenha.

- “Os meninos estão todos casados, mas todo final de semana descem
para o sitio, a família toda, e o que eles querem é comer a comida feita no
fogão de lenha. Eu tomei o xarope sim e parei de cozinhar no fogão a lenha por
uma semana, mas está me fazendo muita falta”.

Campos (2007) recomenda para o estabelecimento de um diagnóstico,


dentro da prática da Clínica Ampliada, agregar elementos da história de vida do
paciente, identificando fatores de risco e proteção, ou seja, ir além da
investigação proposta pela semiologia tradicional.

Os alunos ouvem tudo atentamente e dona Luzia continua falando: “eu


não consegui fazer aquele exame, que vocês pediram para ver o catarro. Eu
posso colher durante o dia, ou precisa ser de jejum? Às vezes ao meio dia a
tosse vem e tem mais secreção”.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

A valorização da história de vida do paciente, o ouvir o paciente são


também recomendações para a prática da Clínica Ampliada (CAMPOS, 2007)

O protagonismo da paciente fica nítido, ela se coloca, direciona o seu


atendimento com muita confiança e segurança. Alunos e paciente já se
conhecem e o diálogo flui.

Foram muitas perguntas, feitas pela dona Luzia. E ela vai se colocando
durante todo o tempo.

Dona Luiza continua: “fiz o RX no mesmo dia, mas se ele não chegou
não adianta nada né”!

Depois das primeiras coordenadas da dona Luiza, o Fernando toma a


direção e pergunta se a paciente traz alguma outra queixa hoje.

O direcionamento dado a consulta a caracteriza como a consulta de


retorno, primeiro o aluno questiona sobre o seguimento dado para a queixa que
a trouxe na consulta passada, quer saber se a paciente tomou o xarope
receitado e se parou de cozinhar no fogão a lenha, depois de ouvir pergunta
sobre novas queixas.

Após escutar atentamente as colocações da paciente, o aluno Caio se


levanta e explica que agora vão realizar o exame físico de rotina: PA, FC e FR
e que a consulta hoje é mais rápida.

O Felipe já é menos técnico e ainda prolonga um diálogo com a paciente


antes do exame físico, quer saber se ela sempre se consulta nesta unidade, se
ela está acompanhada do marido, se ele está apresentando tosse também.

E a dona Luiza de novo muito direta responde que o marido a trouxe sim
e que ele não tem nada não, pois ele bebe e dizem que quem bebe não tem
nada, em seguida até faz uma piadinha dizendo que o genro já mandou ela
beber também.

Novamente foi possível observar o vínculo da paciente com os alunos,


que sente-se à vontade para trazer aspectos da sua vida, da família e até de
maneira descontraída
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

O ambiente é muito acolhedor e familiar para todos ali. Os alunos


realizam o exame, deixam transparecer as dificuldades, próprias de alunos do
terceiro ano, a dona Luiza muito segura e participando ativamente compõem
com os alunos numa relação de igualdade.

Para realizar a ausculta pulmonar os alunos pedem a dona Luiza para


tirar a blusa. A pergunta foi feita com muito jeito: “precisamos fazer a ausculta
pulmonar, a senhor se incomoda de tirar a blusa”? Dona Luiza responde que
não gostaria de tirar e então os alunos sugerem que ela apenas levante a
blusa.

O protagonismo do paciente, recomendação da prática da Clínica


Ampliada é observado neste momento. O acompanhamento longitudinal
permite que em um terceiro encontro, os alunos antes da ausculta pulmonar
perguntem a dona Luiza se ela pode erguer a blusa para a realização do
exame como na última consulta e a dona Luzia já sabendo o que vai acontecer,
fica mais à vontade e receptiva para o procedimento.

Quando os alunos voltam a perguntar sobre a retirada do fogão de lenha


e a percepção pela paciente da melhora do quadro, ela insiste que não vê
relação e reafirma a falta que o fogão de lenha lhe faz. E para validar a sua
insatisfação com a conduta conta-nos que há cinquenta anos cozinha no fogão
de lenha: “a comida fica muito mais gostosa e está sempre quentinha”. Os
alunos ouvem atentamente sem interrupção, respeitam a opção e o gosto pelo
hábito.

Esse foi um grupo de alunos que pude acompanhar em alguns


atendimentos e assim observar esta abertura para ouvir o paciente, respeitar
as suas opções, sem imposições, bem como pude apreender a potência de
uma consulta de retorno para promove um ambiente adequado para a
formação do vínculo e empatia.

O que é possível observar e concluir é que através das estratégias


pedagógicas eleitas pela disciplina IUSC III em seu processo de ensino
aprendizagem, como a consulta de retorno, a disciplina traz grandes
contribuições ao aluno na prática da clínica e proporciona ao mesmo vivenciá-
la sob vários aspectos da Clínica Ampliada.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

“Eu vi que ali poderia atender as necessidades do meu povo” - a circulação


e as inter-relações de indígenas Potiguara no Hospital Universitário Lauro
Wanderley em João Pessoa.

Jamerson Bezerra Lucena1


Ednalva Maciel Neves2

Este trabalho traz uma reflexão acerca da circulação e das relações


estabelecidas pelos indígenas Potiguara no Hospital Universitário em João
Pessoa/PB, a fim de garantir o cuidado em saúde. Partimos da experiência de
acompanhamento, como companheiro, durante a realização do pré-natal,
assim como de relatos de indígenas Potiguara que trabalham (e trabalharam)
na UFPB; daqueles que vivem na cidade/aldeia e que foram hospitalizados
nessa unidade de saúde. Observamos que, dentre as estratégias utilizadas, a
rede de solidariedade étnica tem sido mais eficiente e que se espraia no HU,
de modo que os doentes não recorram diretamente ao Distrito Sanitário
Especial de Saúde Indígena-Potiguara (DSEI-Potiguara). Assim, existe uma
pirâmide de relações sociais, nos setores onde são atendidos cidadãos de
várias etnias, incluindo: pré-natal, pneumologia etc., a partir dos quais as
interações são mais intensas em função da rede de parentesco e amizades.
Essa dimensão relacional do acesso tem sido identificada em vários outros
níveis do cuidado em saúde, mesmo na população não indígena, através do
“conhecimento” de agente ou profissional de saúde. No caso dos Potiguara, o
processo de sociabilidade marca também um jogo de identidade em situações
de saúde, de modo a garantir o atendimento em consultas e internações para
um tratamento de saúde sem sofrer qualquer tipo de discriminação, utilizando
“comportamento de fachada”. A partir desta alteridade, a nossa proposta é
aprofundar o trabalho de campo, trazendo informações etnográficas dos
Potiguara que frequentam o HU e de suas estratégias para enfrentar os
desafios do adoecimento e do acesso ao cuidado. Na experiência de pai, o
apoio da rede social ali instituída fortaleceu a solidariedade e o reconhecimento
do outro na fragilidade da vida.

Palavras-Chave: Hospital universitário. Potiguara. Redes sociais. Etnicidade.

Introdução

1
Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2
Professora permanente do PPGA e do PPGS da UFPB.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em setembro de 2016, quando minha companheira estava no terceiro


mês de gravidez, iniciei o processo de assistência, como acompanhante,
durante o seu pré-natal no Hospital Universitário (HU) da UFPB. A partir daí fui
percebendo com um olhar antropológico a construção de relações sociais que
eram tecidas naquele local. Posto isso, sob a dimensão da alteridade fui aos
poucos fazendo um exercício antropológico, onde o “investigador-investigado
estão igualmente em casa” (STRATHERN, 2014, p. 134) e, dessa forma, tive a
oportunidade in loco de constatar através da observação participante e,
posteriormente, com auxílio de minha companheira no papel de informante,
como e onde aquelas redes sociais foram “costuradas” entre profissionais de
saúde e pacientes no intuito de conseguir o acesso ao tratamento de saúde
naquela instituição sem necessariamente passar por uma triagem e
encaminhamento (procedimento básico) num posto de saúde local da cidade
ou posto de atenção primária como ocorre com os indígenas nas aldeias.
Nesse ínterim, fazendo uma “antropologia em casa” somando as
articulações que minha informante conseguia fazer com as outras gestantes
durante as consultas, o que a possibilitou fazer parte daquele grupo social e,
consequentemente, isso foi envolvendo com o tempo relações afetivas,
similaridades nos casos (pré-natal de alto risco, hipertensão, cuidados para
evitar a diabetes gestacional etc). Estas ações contribuíram para a coleta de
informações sobre as estratégias sociais usadas por aqueles usuários.
Essas “estratégias de ação” parecem ser comuns nessas instituições de
saúde, pois são construídas por laços estreitos de amizade, relações de
parentesco e troca de favores entre servidores internos e externos da UFPB e
que envolve também outros órgãos públicos da esfera municipal, estadual e
federal (mas não só!). Neste sentido, percebi desde a minha pesquisa de
campo do mestrado (2014-2016) em Antropologia Social na UFPB, onde
construí uma “etnografia sobre indígenas Potiguara que vivem na região
metropolitana de João Pessoa” (LUCENA, 2016).

Contatos com os Potiguara

Meu contato com os Potiguara surgiu em 2010 quando estagiei na


Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em João Pessoa por quase dois anos e
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

conheci o líder indígena José Ciríaco Sobrinho (60 anos), popularmente


conhecido como Capitão, além de vários caciques Potiguara. Em 2014, durante
a minha pós-graduação stricto sensu (mestrado) em Antropologia no Campus I
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) tive contato mais intenso com o
Capitão Potiguara3.
Ao realizar meu estudo antropológico (Mestrado) com meus egos da
pesquisa, Capitão Potiguara juntamente com D. Maria das Neves Santana 4,
mais conhecida como D. Neves que também pertence a esse grupo étnico e
vive na cidade de Bayeux, mas ainda possui casa na Aldeia Camurupim,
mantendo um fluxo constante entre a aldeia e a cidade. Posto isso, percebi
nesses indígenas a riqueza de suas narrativas, principalmente no que se refere
às relações sociais (parentesco e amizade) afetivas construídas na aldeia e
cidade, colaborando também para dar assistência aos parentes que muitas
vezes vem fazer algum tratamento de saúde na capital paraibana.
Capitão desde o início dos anos de 1970 viveu em João Pessoa e
trabalha na UFPB. Com ajuda de parentes que já viviam na capital paraibana
ele conseguiu se manter na cidade, trabalhar e constituir uma família. As ações
sociais desenvolvidas pelo líder indígena nessa instituição envolvem a
formação de ciclos de reciprocidade com servidores de vários setores da UFPB
e uma rede de solidariedade étnica construída por seus parentes na aldeia e
cidade.
Capitão relata que fez muitas amizades em vários setores no campus I
da UFPB, principalmente no HU e, foi lá onde constatou que “ali poderia
atender as necessidades do meu povo” (Capitão, João Pessoa, 2015)
ocasionando, posteriormente, um dinamismo do contato interétnico com a
circulação de indígenas no espaço urbano, especificamente, em direção ao HU
onde procura sempre ajudar os Potiguara, através de sua intermediação com
profissionais de saúde destas “instituições totais” (GOFFMAN, 2010) porque
muitas vezes agem de forma mecânica, desumana com os pacientes e,
principalmente, com os indígenas por não compreenderem seus aspectos

José Ciríaco Sobrinho [Capitão] é líder indígena dos Potiguara e vive atualmente Aldeia Forte
3

(Baía da Traição/PB).
4
D. Maria da Neves Santana é neta de Manoel Santana e filha de Daniel Santana, ambos
foram Cacique-Geral dos Potiguara e foram muito importantes para a organização social
política dessa etnia indígena.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

sociais, culturais, desembocando num processo de “estigma” (GOFFMAN,


2005).
Nessa perspectiva, muitos são atendidos sem a necessidade de acionar
a sua identidade étnica, apenas ativando sua identidade social e articulando
suas ações com parentes e amigos que vivem na cidade. De acordo com Barth
(1995, p.2, tradução nossa), “ser uma pessoa indígena não significa carregar
uma cultura indígena em separado. Ao contrario, isso significa que,
provavelmente, em certas ocasiões você diz ‘essa é minha identidade étnica,
esse é o grupo ao qual eu pertenço’”. Neste sentido, percebemos que o
indivíduo carrega consigo várias identidades e numa situação específica
poderá acionar ou não a sua identidade étnica, desembocando assim em
ações da etnicidade.
Segundo Eriksen (2010, p. 37, tradução nossa), em seus estudos
antropológicos realizados nas Ilhas Maurício, onde constatou que,

Mauritanos, Hindus e Creoles se encontram sem referência implícita


ou explicita às suas respectivas identidades étnicas, por exemplo,
sendo a situação definida através de seus status como colegas ou
parceiros de negócios [...] Na maioria das outras situações, essa
identidade particular não é ativada; isso não parece relevante na
definição de situações sociais. Em outras palavras, os indivíduos têm
muitos status e muitas identidades possíveis, e é uma questão
empírica quando e como as identidades étnicas se tornam mais
relevantes.

Seguindo essa linha de pensamento e dinâmica relacionada ao espaço


urbano, a etnicidade, como afirma o autor, “provou ser um conceito muito útil,
uma vez que sugere uma situação dinâmica da variável de contato, conflito e
competição, mas também ajustamento mútuo entre os grupos” (ERIKSEN,
2010, p. 13, tradução nossa).
O autor (2010, p. 14, tradução nossa), ainda reforça expressando que “o
conceito de etnicidade pode ser dito para unir duas lacunas importantes na
antropologia social: ela implica um foco na dinâmica ao invés de estática, e
relativiza as fronteiras entre ‘nós’ e ‘eles’, entre os modernos e tribais”.
Então, nesse caso, como demonstra Eriksen (2010, pp. 16-17, tradução
nossa), a “Etnicidade é um aspecto da relação social entre pessoas que se
consideram como essencialmente distintas dos membros de outros grupos dos
quais eles estão conscientes e com o qual eles entram em relacionamentos”.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Neste sentido, o indivíduo sabe que grupo étnico ele pertence, mas para poder
entrar em contato, por exemplo, com outra organização social, instituição de
saúde deverá manter uma interação social, respeitando os aspectos políticos,
econômicos, culturais daquela sociedade, porém sem perder a sua identidade
étnica indígena. Desta forma, o indígena vive num jogo identitário, mantendo
relações num contato interétnico, interagindo, estabelecendo redes de relações
sociais para que possa dar sustentação a sua identidade social naquele
ambiente citadino, num hospital da rede pública, por exemplo.
Embora ele (o indígena) possa ser atendido e assistido por qualquer
hospital da rede pública nas cidades como referendado pela legislação do SUS
e a Constituição Federal de 1988. Entretanto, em muitos casos prefere acionar
sua identidade social como forma de se resguardar e, dessa forma, conseguir
um tratamento de saúde mais eficaz sem ter que passar por um “processo
seletivo étnico” que poderia conotar em algum tipo de “privilégio” e,
possivelmente, desembocaria no campo do preconceito e discriminação.

Panorama da saúde indígena no Brasil

Não pretendemos fazer uma análise crítica sobre o contexto histórico e


complexo da saúde indígena do nosso país. Contudo, pensamos num
panorama da saúde indígena no Brasil a fim de compreender a luta dos povos
indígenas por uma assistência à saúde diferenciada designada a proteção do
índio. O advento por serviços de saúde para os povos indígenas brasileiros a
nível nacional teve seu início com a criação do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) em 1910. Este órgão indigenista estava vinculado, à época, ao Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). A partir daí foram instalados nos
territórios étnicos Postos Indígenas (PIN), mas apesar dessa iniciativa os
serviços de saúde prestados, à época, tornaram-se insuficientes e precários
devido à dificuldade em atender as áreas de difícil acesso. Com a derrocada do
SPI por problemas de ingerência e corrupção nos anos de 1960 surge em seu
lugar a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967 que por sua vez
pertencia ao Ministério do Interior.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em 1973 é criado o Estatuto do Índio (Lei 6.001) que pode assegurar


aos indígenas um regimento específico para o atendimento à saúde
referendados nos artigos 54 e 55 desse estatuto. Mesmo diante dessa iniciativa
os problemas relacionados à saúde, por exemplo, falta de um corpo técnico, de
recursos operacionais e financeiros devido à crise econômica que se alastrava
culminaram no estrangulamento das ações no nível local.
Nesse ínterim, foram estabelecidas nos anos de 1984 as estratégias de
Ações Integradas de Saúde (AIS) que funcionou como esteio para o
desenvolvimento e implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988 inserido no Art. 196, onde
também constam os direitos indígenas dispostos nos artigos 231 e 232
(BRASIL, 1988), reconhecendo e respeitando as organizações socioculturais
dos povos indígenas e, dessa forma, garantindo cidadania plena e,
concomitantemente, tornando a tutela obsoleta. Neste arcabouço constitucional
o SUS estabelece o acesso universal e equitativo à saúde, como um direito de
todos e um dever do Estado.
Nos anos de 1999 (Lei Arouca - nº 9.836/99) cria-se o Subsistema de
Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, composto pelos Distritos Sanitários
Especiais Indígenas (DSEI) que são Subsistemas Diferenciados de Saúde do
Índio vinculados ao SUS e que tem como atribuições o atendimento em nível
primário aos indígenas nas aldeias. A partir daí a Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA), órgão do Ministério da Saúde passa a ser a executora da Política
Nacional de Saúde Indígena (PNSI), atuando como o principal órgão
responsável pela gestão da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas (Pnaspi). A Pnaspi tinha como caráter normativo atuar de forma
coordenada com diversos órgãos e ministérios, buscando viabilizar as ações
necessárias ao alcance de seu propósito.
Sendo assim, as Secretarias Estaduais e Municipais atuariam de forma
complementar na execução das ações de saúde indígena, em articulação com
a Funasa. Um dos principais critérios adotados foi à organização dos serviços
de atenção à saúde dos indígenas na forma de Distritos Sanitários Especiais
Indígenas (DSEIs). Contudo, esse modelo de gestão foi perdendo credibilidade
no decorrer do tempo por falta de um gerenciamento mais voltado para as
necessidades dos indígenas e casos de desvio de recursos de convênios com
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

prefeituras e organizações não governamentais (ONGs) para obras de


saneamento básico e serviços de atenção à saúde indígena, após analise
realizada pela Controladoria Geral da União (CGU) em 20075.

A situação de saúde dos indígenas Potiguara

Desde 2010 quando iniciei minhas atividades de Apoio Administrativo na


FUNAI de João Pessoa tive acesso a dados informais através de líderes e
caciques Potiguara que a situação de saúde dessa população indígena
necessitava de mais cuidados, pois era (ainda é!) considerada precária em
vários aspectos desde a Atenção Primária Básica que não ocorre de forma
eficaz, atendendo as 32 (trinta e duas) aldeias, até em casos que ocorre a falta
de recursos para conseguir deslocamento de indígenas para fazer tratamento
de saúde mais complexo na capital. De acordo com alguns indígenas, estes
casos costumam se repetir (com mais intensidade ou não) em várias outras
regiões do território brasileiro. Estas atribuições relacionadas a vigilância em
saúde ficam sob a direção do DSEI-Potiguara.
Nessa perspectiva, muitas organizações e movimentos indígenas
inclusive no Nordeste há tempos vem se mobilizando e lutando para que as
populações indígenas tenham acesso a uma secretaria especializada que
represente a integração diferenciada, destacando as características
etnoculturais, geográficas (localização), entremeando com o sistema de
vigilância em saúde. Após anos de luta política as mobilizações indígenas
conseguiram em outubro de 2010 com a criação da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI) sob o decreto N° 7.336 do Ministério da Saúde e que
passa a partir de então gerenciar, controlar e executar as ações de saúde
pública voltadas para atender os indígenas.
Vale ressaltar que mesmo com o surgimento da SESAI as atividades de
atendimento e assistência aos cuidados de saúde na Paraíba não obtiveram
grande êxito, pois além de passar em 2012 por um processo de reestruturação
das ações de assistência às comunidades indígenas do DSEI-Potiguara,
responsável pelas ações de atenção primária nas aldeias, ocorreram vários

5
“CGU aponta rombo de R$ 75 milhões na Funasa”. Link:
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cgu-aponta-rombo-de-r-75-mi-na-funasa,78780
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

entraves assistenciais e no atendimento de saúde para os povos indígenas da


Paraíba6. Segundo o cacique geral dos Potiguara, Sandro Gomes Barbosa7,

Nos hospitais [os polos base da SESAI], não temos atendimento


adequado. O Governo Federal manda dinheiro e não vemos isso. O
indígena só pode ficar doente de segunda a sexta porque no sábado e
no domingo não tem atendimento”, relatou com indignação. Nesta
mesma narrativa, à época, o cacique geral aproveitou para fazer várias
outras reclamações direcionadas à farmácia atende aos povos
indígenas da região não está funcionando e que não há transporte para
dar assistência. “Queremos saúde de qualidade para o nosso povo.

Posto isso, percebemos diante dessa conjuntura que está relacionada a


questões políticas, onde forças internas do aparelho administrativo indigenista
acionam, muitas vezes, mecanismos racionais e tecnicistas no planejamento de
saúde, entrando em divergência com os cuidados de saúde dos indígenas. Estas
ações desembocam em manifestações de “resistência” (SCOTT, 2002), onde os
indígenas realizam para chamar a atenção da agência indigenista a fim de que os
problemas de saúde sejam solucionados. Desta forma, visualizamos um jogo de
poder, onde essa relação estabelecida vai ser sempre desigual, pois a
reciprocidade nunca é igual já que “em cada um destes jogos a distribuição de
poder é inequivocamente desigual, não elástica e estável” (ELIAS, 1980, p. 90).
De acordo com Wolf (2003, p. 325) existem vários tipos de poder e cada
um deles está relacionado a um nível distinto: “do poder atribuído ao dom da
pessoa individual ao poder produzido nas relações interpessoais, do poder
tático ou organizacional posto em movimento para dirigir ou limitar a ação de
outros ao poder estrutural que influencia os impulsos da sociedade”. Este
último se enquadra no poder exercido pela SESAI, onde rege suas ações
políticas-administrativas, mas que ainda possui incongruências o que acaba
levando a ineficiência das atividades em cuidado em saúde.

Metodologia

6
Em 2010 o povo indígena Tabajara é oficialmente reconhecido pelos órgãos federais (FUNAI
e SESAI) e também pela sociedade como grupo étnico após a conclusão do Relatório de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Tabajara situada no litoral sul da Paraíba.
7
“Indígenas prendem funcionários da SESAI na PB por melhorias na saúde”. Link:
http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2012/07/indigenas-prendem-funcionarios-da-sesai-na-pb-por-
melhorias-na-saude.html
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Como se trata de um trabalho, em andamento, buscaremos dar


continuidade no ano de 2018, focando as Aldeias Três Rios, Camurupim e
Forte. Estas aldeias merecem bastante atenção, pois guardam similitudes
relevantes no que se refere às articulações com parentes que vivem na região
metropolitana de João Pessoa para conseguirem ser atendidos num hospital.
Diante disso, buscamos compreender essa circulação e formação de redes
sociais, onde conseguem assistência médica no H.U./UFPB. Ao longo desta
pesquisa serão realizadas Entrevistas Narrativas (EN) com D. Neves, Capitão e
jovens indígenas universitários que também dão assistência a seus parentes
que vivem na aldeia e precisam de apoio no espaço urbano.
Com relação ao método de análise optaremos pelo o “estudo de caso
detalhado”. De acordo com Van Velsen (2010 [1967], pp. 439-440), “À medida
que a pesquisa de campo tornou-se aceita como método de coleta de material
antropológico, a ênfase, que antes se concentrava no estudo das sociedades
como um todo, foi gradualmente deslocada para comunidades específicas ou
segmentos de sociedades”.
A metodologia também será construída seguindo um exercício da
autoantropologia refletindo sobre a subjetividade do pesquisador, das ações do
informante e a situação em que se encontra o objeto de estudo, buscando agir
de modo consciente nesse processo porque o etnógrafo, neste caso, também é
o autor. De acordo com Strathern (2014, p.150) a “posição de autor é
testemunhar o mundo através de olhos diferentes” e através da experiência de
campo e conhecimento que adquiri durante meu estudo antropológico
(Mestrado) será possível ordenar as informações a partir da reflexão, mas
tomando o devido cuidado para os limites da razão, para não banalizar os fatos
e, dessa forma, fazer uma análise refinada das relações sociais construídas
pelos indígenas naquela instituição de saúde.

Considerações finais

A princípio destacamos nesse trabalho, em andamento, que essas


relações baseadas na solidariedade étnica urdidas nesses espaços
interseccionais (aldeia e cidade) e acabam se conectando com as instituições
de saúde.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Nessa perspectiva, a rede de solidariedade étnica e outras redes sociais


construídas nesses espaços desempenham um papel de fundamental
relevância para os indígenas. Segundo Barnes (2010 [1969], p. 175), “A noção
de rede social está sendo desenvolvida na Antropologia Social tendo em vista a
análise e a descrição dos processos sociais que envolvem conexões que
transpassam os limites de grupos e categorias”. Vale ressaltar que as redes
sociais dos indígenas não são necessariamente constituídas apenas pela
identidade étnica, pois muitas vezes os contatos desses indígenas tem seus
laços afetivos construídos por amizades que vão além do território étnico.
Nos casos relatados pelos indígenas nesse trabalho vimos que os
Potiguara fazem o percurso contrário, ou seja, eles seguem em direção à
cidade uma vez que não conseguem ser atendidos com eficácia em suas
comunidades (aldeias), demonstrando uma ineficiência do SUS que tem “
tendência em priorizar ações de saúde voltadas para as áreas urbanas [...] pois
os órgãos de saúde acumularam maior expertise na organização de serviços
dirigidos aos aglomerados urbanos” (GARNELO, 2012, p. 23). Este descaso é
resultado da falta de uma política de saúde voltada para atender com equidade
e boa vontade as populações rurais, principalmente, os indígenas. A
complexidade das políticas de atenção à saúde dos indígenas está associada a
uma engrenagem hierárquica formada por diversas instituições, relações de
poder que regem forças internas buscando, muitas vezes, interesses subjetivos
e status, vilipendiando o interesse principal que é o cuidado de saúde.
Por outro lado, o indígena ainda é visto pelos “brancos” e muitos
indigenistas como um ser incapaz, dependente da tutela e, dessa forma,
necessitaria de uma “atenção diferenciada” e não apenas por causa da questão
sociocultural. Este pensamento arraigado ao senso comum ratifica a falsa
sensação de que o indígena está sendo favorecido/privilegiado “em um modelo
de atenção à saúde que pressupõe a “equidade” na assistência prestada,
assim como a assimilação das populações assistidas ao modelo gestor das
políticas de saúde pública” (LANGDON, 2015, p. 96). No final das contas o
indígena busca alternativas e estratégias, conectando a outros espaços sociais
no intuito poder ser atendido por um especialista em saúde sem ter que pagar
“altos custos para aqueles que as desempenham” (DA MATTA, 1976, p.35), ou
seja, o indígena.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História. Trad. Carlos Eugênio


Marcondes de Moura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Etnografia em um Centro de Atenção Psicossocial: Aproximações entre


Saúde Coletiva e Antropologia.

Gustavo Koetz da Rosa1

Resumo

No ano de 2016 participei como entrevistador do “Inquérito Multicêntrico


sobre o funcionamento da atenção básica em saúde e ao acesso
especializado”2. Da experiência de realizar entrevistas com usuários de dois
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Porto Alegre a partir da
pesquisa da Saúde Coletiva, realizei uma aproximação com a temática da
saúde mental, e, por outro lado, fui conduzido a uma reflexão de ordem
antropológica. A experiência em campo me permitiu refletir a respeito de
diferentes nuances da vivência em um CAPS, que tanto apontam para
continuidades na transição do modelo de internação para o substitutivo de
saúde mental, quanto para descontinuidades. A reflexão que proponho a partir
de relatos de campo apresenta duas vias. A primeira está na compreensão de
como dispositivos criados desde a reconfiguração da Saúde Mental que
culminaram no surgimento dos CAPS, tais quais os princípios da política
nacional de saúde mental, atuam na relação entre equipe profissional de saúde
e usuários do serviço de saúde em questão. Mais especificamente, sigo
caminhos abertos de minha anterior experiência de pesquisa para
problematizar de que forma princípios como os da autonomia, e a ideia da
desinstitucionalização – no sentido de não tornar dependentes dos serviços de
saúde os seus demandantes – poderiam operar como obstáculos na proposta
reformativa de ser o CAPS um espaço destinado a um cuidar em liberdade que
implica na possibilidade de emergência de subjetividades outras, ou, em outras

1Mestrando em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


2
Pesquisa de caráter multicêntrico coordenada a nível nacional pelo Prof. Dr. Gastão
Wagner Campos (UNICAMP) e local pelo Prof. Dr. Dario Frederico Pasche (UFRGS). A
partir de quatro agravos de saúde definidos como traçadores hipertensão arterial, gestação
de alto risco, câncer de mama e saúde mental, realizaram-se entrevistas com usuários dos
serviços especializados oferecidos pelo SUS.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

palavras, da emergência da diferença. E a segunda se coloca na valorização


do CAPS, no que tange principalmente as oficinas/atividades que oferece,
como espaço privilegiado para a emergência de sociabilidades outras que não
as pautadas pela biomedicina.
Palavras-chave: Antropologia, Saúde Coletiva, Saúde mental

1. Introdução

Estou na entrada do serviço de saúde. Na pequena “recepção”


onde consta a plaqueta “Sala de Acolhimento”. Como de costume,
sempre que chego ao CAPS, organizo-me para a realização das
entrevistas com as pessoas que estão sendo assistidas pelo
equipamento de saúde em questão. Enquanto procuro na lista que
havia sido me passada para o cumprimento do trabalho de
entrevistador quais as pessoas que poderiam ser entrevistadas
naquele dia, sou interpelado por Alberto. Por duas vezes já tinha
tentado a interlocução com ele: numa delas fui coibido por um dos
profissionais que me alertou sobre o recente retorno de Alberto da
internação hospitalar; em outro dia, quando fui conversar com ele,
vir a saber se tinha interesse em fazer a entrevista, obtive um não
com um balançar de cabeça. Notei que das vezes que eu estava
presente lá, sempre o via sozinho, pelos corredores, mas em especial
na “Sala Multi-Uso” que continha quadro negro, mesa, violão
computador, livros...

Assim que Alberto se sentou perto de mim perguntou:

- Tu que tá conversando aqui?


- Sim, se tu quiseres, podemos fazer a entrevista. Que tu
acha?
- Acho que sim...
- Então vamos lá. Vou procurar uma sala que esteja vaga,
vamos junto.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Esse tipo de situação contradizia em muito as expectativas


que a formação de entrevistador realizada pela coordenação da
pesquisa em Saúde Coletiva havia provocado em mim. Claro, a
sensação que tinha sobre a prática que estava prestes a desenvolver
em moldes quantitativos – existia um questionário elaborado
previamente pelos pesquisadores que coordenavam o Inquérito
Multicêntrico Sobre o Funcionamento da Atenção Básica em Saúde e
Acesso à Atenção Especializada - era a de desconforto por vários
motivos, dentre eles incomodava o fato de que as categorias que
seriam mobilizadas na produção desse conhecimento dificilmente
estariam passíveis de serem suspensas. Tínhamos sido informados de
que nossa presença nos serviços de saúde mental significaria uma
“intervenção” para os mesmos. A ideia que se formava era a de que
potencialmente atrapalharíamos as dinâmicas, a atenção em saúde.
Assim, se constituiu a ideia de que nossa presença teria caráter
invasivo. De todo modo, o que via em campo contradizia essa ideia
inicial fruto da preparação, pois se tornou muito comum o pedido de
que a entrevista se repetisse, demonstrando que a entrevista se
revelava como polissêmica, os interlocutores queriam muitas vezes
conversar mais uma vez, ou seja, a entrada em campo foi revelando
outras dimensões de repercussão do Inquérito.

Voltando ao relato sobre a entrevista com Alberto: entramos


em uma das salas e, como sempre o fazia, expliquei qual era o
sentido da pesquisa, que eu era um entrevistador e de que minha
formação no ensino superior não se dava na área da saúde, que a
entrevista poderia ser interrompida a qualquer momento sem
implicar em nenhum prejuízo na assistência em saúde do CAPS,
enfim, preenchi os dados de identificação que servia de dispositivo
no aplicativo do questionário para permitir ou não a realização da
entrevista. Alguns critérios de objetividade estavam ali colocados
como por exemplo ter sido encaminhado de um posto de saúde, e ter
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

ingressado no serviço a no máximo três anos com o fim de garantir a


credibilidade da memória dos entrevistados. Até aí, tudo certo.
Quando apresento o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e
peço para que Alberto o assine, um encontro não previsto acontece.
(Fragmento de Diário de Campo)

Este trabalho discute, a partir de uma revisita à experiência de campo


realizada em 2016 em um Centro de Atenção Psicossocial da região
metropolitana de Porto Alegre, modos de relacionar saúde coletiva e
antropologia no que tange à saúde mental. Dessa forma, as impressões
desenvolvidas no período de 4 meses de idas diárias ao serviço como
entrevistador serão levantadas para problematizar princípios e/ou diretrizes da
atenção psicossocial, assim como, discutir modos de realizar uma pesquisa
qualitativa tomando como base o “método” da entrevista.

A antropologia, embora tendo se constituído ao longo da história da


disciplina através do diálogo entre diferentes abordagens teóricas3, de forma
consensual preza por uma pesquisa de campo longa e cuidadosa que
possibilite o conhecimento de elementos de experiências de grupos
sociais/culturais que passariam despercebidos à primeira vista. Assim, os
imponderáveis que emergem na experiência do pesquisador em campo são
imprescindíveis para uma compreensão mais ampla e menos homogeneizante
das realidades em que se envolve o antropólogo.

Não se pretende exaurir a discussão antropológica a respeito das


disputas de posições epistemológicas e de posicionamentos de teóricos, e, sim
realizar uma apresentação de duas perspectivas defendidas na antropologia
como capazes de serem mobilizadas por outras áreas do conhecimento, como
no caso desse Grupo de Trabalho, a Saúde Coletiva.

As abordagens que serão discutidas estão imbuídas de uma


problematização a respeito de métodos de pesquisa nas ciências sociais como
um todo. A primeira proposta a ser apresentada e discutida é a de Jeanne
Favret-Saada (2005) “Ser afetado”. O intuito será o de seguir a esteira da

3
Sobre isso ver, por exemplo, Roberto Cardoso de Oliveira (1996) “O trabalho do antropólogo”.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

problematização realizada pela autora sobre a ferramenta tão mobilizada em


pesquisas: a “observação participante” ou “participação observante”.

E o segundo debate a ser iluminado aqui é o de Charles Briggs (1986)


na sua defesa em trazer de volta para a reflexão na pesquisa em ciências
sociais a “entrevista”, mobilizando para tal uma abordagem que aproxima a
antropologia da linguística. Dessa forma, o que entra em jogo é a possibilidade
de entender a entrevista como um “repertório comunicativo” e analisa-la sob a
perspectiva de um “evento etnográfico”.

2. Imprevistos e afetos como material da pesquisa.

Na presente seção do trabalho exponho o permitir “ser afetado” (Favret-


Saada, 2005) enquanto modo de imersão em campo como perspectiva
etnográfica a partir de dois eixos: (i) o que têm de implicações para a postura
do pesquisador sob um ponto de vista ético no trabalho de campo; (ii) e como -
desse material fruto de uma implicação com os sujeitos com quem se pesquisa
– se realizar posterior análise, na proposta da autora.

Da mesma forma, a partir da exposição dessa discussão sobre produção


de conhecimento, desenvolvo brevemente como essa perspectiva permite que
se questione princípios do Sistema Único de Saúde como por exemplo o da
“autonomia”.

2.1 A relação com os sujeitos da pesquisa: as implicações de levar


a sério os interlocutores no CAPS

Na pesquisa sobre feitiçaria no Bocage, Favret-Saada nos apresenta


uma proposta que, embora não seja normativa, mostra de forma detalhada
uma outra possibilidade de encarar o trabalho de campo. Um dos pontos
tocados é justamente a dimensão empírica da antropologia: a “observação
participante”, ou “participação observante” é questionada a respeito do grau de
envolvimento do pesquisador com seus interlocutores e também no que tange
ao quanto a escrita do texto revela essa dimensão. Favret-Saada em sua
preparação para sua pesquisa sobre feitiçaria na França percebe um
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

distanciamento por parte dos antropólogos. Segundo as pesquisas destes a


feitiçaria acontece na África, não na França. Assim, a autora desconfia desse
recorte que exclui da Europa a feitiçaria, como se nesta não existisse
conhecimentos e práticas de magia.

Outra questão tratada pela autora se refere a análise realizada por


outros pesquisadores quando debruçados sobre a feitiçaria. Ademais, esses
antropólogos considerados em sua preparação para o campo no Bocage se
prendiam à compreensão de “quem acusa quem de o ter enfeitiçado em dada
sociedade? ” (Idem) e relegavam todos os elementos restantes a erros e
imaginações nativas. Ou seja, a busca por uma racionalidade que está
subordinada a uma ideia estrutural-funcionalista de sociedade serve de lente
para esses autores, mesmo considerando que Turner busca dar conta da
dimensão de conflito inerente as relações humanas.

A atividade da fala – enunciação - é escamoteada, não


restando mais do discurso nativo que seu resultado, isto
é, os enunciados são impropriamente tratados como
proposições e a atividade simbólica reduz-se a emitir
proposições falsas. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 157)
No meu percurso dentro do CAPS, e levando em conta a influência que
a biomedicina detém mesmo nesses espaços, encontrei ressonância com
alguns pontos de Favret-Saada. Em que medida os meus interlocutores tinham
sua fala levada a sério? Considerando que carregavam categorias biomédicas
sobre seu problema de saúde mental, como abrir espaço para a diferença
dentro desses serviços? A tensão que se colocou em jogo diz respeito tanto ao
questionário fechado, quanto ao que pude observar da relação dos usuários
com a equipe profissional. Isto é, esses interlocutores, tanto diante do Inquérito,
quanto de sua relação com a equipe profissional, têm suas falas consideradas
fora do registro da doença mental?

No momento de assinar o Termo de Consentimento Livre e


Esclarecido Alberto me disse que não assinaria. Não como Alberto.
Queria assinar como Outro, ou como Minha Vida. E assim o fez.
Disse-me que estava muito feliz em ter me encontrado, pois sempre
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

que dizia que queria ser Outro, era conduzido a ser o Alberto
novamente pela equipe de saúde. Inclusive, disse-me que iria levar
aquele documento ao posto de saúde para que pudesse ser
reconhecido de outra forma, não mais como Alberto. Nesse ponto,
me senti na obrigação de lhe dizer que o documento não surtiria o
efeito desejado por meu interlocutor (será mesmo que o documento
não significou a possibilidade de um Devir, de uma linha de fuga, de
um desejo?). Após nossa conversa, que ficou marcada por esse Outro
que, desde um novo lugar de enunciação contou-me sobre como era
a vida de Alberto, entendi que devia contar para a equipe o que
acontecera nesta entrevista. Quando termino o relato sobre os
efeitos inesperados do TCLE recebo como resposta de profissionais
da equipe uma leitura que codifica completamente sua fala desde o
problema de saúde mental e ao uso de medicação incorreta.
(Fragmento de Diário de Campo)

O “ser afetado” de que trata Favreet-Saada, permite que o pesquisador


persiga suas vivências admitindo o envolvimento no campo como uma
dimensão a não ser escamoteada. Pelo contrário, aponta para que se encare a
dimensão do participante postulada pelo genérico tão adotado por cientistas
sociais chamado de observação participante. É justamente essa dimensão que
gostaria de colocar em destaque como produtora de engajamento intelectual e
de afecções que a prática de entrevistador produziu.

Contudo, é importante apontar para os destaques feitos pela autora


quanto a diferenças de “ser afetado” e a ideia de “empatia”. O que Favret-
Saada havia feito em campo não tinha relação com desenvolver um
posicionamento empático em campo. As duas dimensões contidas no
entendimento sobre “empatia” que se distinguem da proposta defendida pela
autora são (i) a ideia de distância e a de (ii) comunhão afetiva4.

4
A autora pontua sobre a “distância” que: “é justamente porque não se está no lugar do outro
que se tenta representar ou imaginar o que seria estar lá, e quais “sensações, percepções e
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Um imponderável do campo definido pela coordenação do Inquérito em


conjunto com a coordenação do serviço de saúde determinou que as
entrevistas deveriam se realizar no interior do CAPS. Esse ambiente,
principalmente no que tange às salas de consulta psicológicas/psiquiátricas,
me apresentou para meus interlocutores em muitas ocasiões como mais um
profissional de saúde e menos como um cientista social que estava realizando
entrevistas. O que busco colocar em jogo é justamente o que essa relação
pode ter de potência para uma discussão sobre às problemáticas atinentes ao
próprio serviço especializado em saúde mental público como um todo.

2.2 Recuperando a “entrevista” desde uma perspectiva


antropológica

Acima apresentei uma possibilidade de desde as ciências sociais


desenvolver uma reflexão justamente sobre e a partir da dificuldade de impor
claramente uma identidade nos serviços de saúde que não seja à de
profissional de saúde. Na seção que se apresenta aqui, a ponte que busco
construir entre a área da saúde e a das ciências sociais se inicia em outro
ponto. Com a proposição de enfrentar a temática a ser debatida, trago como
sugestão uma ferramenta que a princípio já foi suficientemente escrutinada.
Contudo, como aponta Briggs (1986) se colocarmos essa ferramenta sob uma
perspectiva da antropologia linguística, entendo-a como um “evento
comunicativo”, podemos recuperá-la como potente aliada na pesquisa
qualitativa.

O argumento que segue a favor de uma revisão teórica sobre a


entrevista diz respeito ao fato de esta não ser tomada pelos pesquisadores
como uma “rotina comunicativa” (BRIGGS, 1986, p. 2) que, como sugere o
conceito, é usual para a “nossa própria comunidade nativa de fala” (Idem), mas
que, todavia, na maioria dos casos dos grupos pesquisados não se apresenta

pensamentos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas
“sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da
feitiçaria” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159). E sobre “comunhão afetiva” se opondo a essa ideia:
“Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar no sistema da feitiçaria não me informa nada sobre
os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifca meu próprio
estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros.” (FAVRET-
SAADA, 2005, p. 159)
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

como tal. Assim, há o apontamento de que incorremos em erro ao ignorar


algumas questões teorico/metodológicas importantes.

O primeiro ponto que envolveria o que chama o autor de nossa “miopia


metodológica” se refere ao fato de não enfrentarmos os repertórios de eventos
metacomunicativos que possuem os grupos com os quais trabalhamos.
Durante as entrevistas muitas vezes deixamos de perceber como nossos
interlocutores acionam esses repertórios que, se analisados detidamente,
podem revelar como estes se relacionam diretamente com aspectos
pragmáticos de uma situação social particular.

Principalmente, o autor aponta para um problema que diz respeito a


estrutura da entrevista, e que, na verdade, se refere a uma reflexão produzida
largamente na antropologia sobre a relação com o outro5. O entendimento de
que o conhecimento produzido a partir da entrevista é derivado de uma coleta
de dados do entrevistador sobre o entrevistado é um erro que acontece em
larga medida em função de que a entrevista comumente se assenta em temas,
perguntas e respostas que se remetem a um outro tempo e lugar. Assim, a
partir desse distanciamento do momento em que se produz os conhecimentos
atinentes à entrevista, o pesquisador pode resvalar quando realizar a análise e
deixar de atentar para o fato de que o conhecimento é produzido
conjuntamente pelo entrevistador e pelo entrevistado.

No que tange mais especificamente às contribuições que a


sociolinguística e a análise de discurso pode oferecer a esta discussão Briggs
apresenta ideias de Roman Jakobson (1960) como de grande valia para que se
pense a entrevista. Partindo do pressuposto de que esta é um evento
discursivo e de que estes são fenômenos multifacetados, leva-se em
consideração uma distinção básica sobre modos de estabelecer significado:
referencial e indexical. A significação referencial está na correspondência entre
o conteúdo do que foi emitido com um estado de coisas no mundo real
(BRIGGS, 1986). Já a indexical depende do contexto, da situação.

Deslocando essas reflexões para a experiência de entrevistador que


vivenciei junto ao CAPS, pude estabelecer um diálogo que contribuiu para uma

5
Ver Eduardo Viveiros de Castro (2002) “Nativo Relativo”.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

melhor compreensão do que representou a adoção da entrevista na pesquisa


em questão.

No relato de campo que trago para a discussão apresento de que forma


um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pode se desdobrar em
eventos inesperados, e, ao valorizar esses eventos que parecem escapar aos
fins da entrevista, podemos destrinchar reflexões valiosas. Tomando como
base as problematizações e sugestões elencadas por Briggs, pude com a
continuidade da convivência no CAPS me aproximar do que seria um repertório
metacomunicativo referente a esse grupo de pessoas que detém uma longa
trajetória em serviços de saúde mentais. Ao acompanhar Alberto, em sua forma
de se relacionar com o serviço, assim como, em conversas que tivemos em
outros momentos, observei que as coisas eram mobilizadas constantemente.
Ou seja, o que a princípio foi uma surpresa, na verdade era um modo de
produzir significado constantemente acionado por meu interlocutor. A “sala
multi-uso” que continha violão, quadro negro, dentre outras coisas era
frequentemente percorrida por Outro/Minha Vida e repetidamente este usava o
giz para riscar o quadro com desenhos, palavras, como “Alberto”, dentre outras
inúmeras criações.

Para o pesquisador compreender que o modo de significação indexical é


mobilizado recorrentemente por seu interlocutor pode ser de grande valia para
uma pesquisa que busque dar conta de alteridades tão múltiplas quanto às que
se apresentaram no contexto da vivência que tive no CAPS. E, ao mesmo
tempo, problematizar que tipo de informações que a partir da entrevista
devemos considerar na ora de realizar a análise da “aplicação” destas.

3. Considerações Finais

Por fim, considerando as referências supracitadas acerca dos modos de


produção de conhecimento e de engajamento em campo, buscou-se analisar o
modo como atividades relacionadas ao papel de entrevistador despertaram
relações e problemáticas no serviço de saúde em questão. E, assim, deixar
pistas sobre como as entrelinhas de desempenhar o papel de entrevistador
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

pode contribuir para a compreensão tanto das entrevistas, quanto das práticas
no CAPS.

4. Referências Bibliográficas

BRIGGS, Charles. Learning how to ask. A sociolinguistic appraisal of the


role of the interview in social Science research. 1986.

FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campos, 2005, ano 14.


p. 155- 163.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo. Revista de


Antropologia, USP, v. 39, nº 1, 1996.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, 8(1): 113-148,


2002
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Pesquisa participativa em saúde indígena: desconstruindo o legado


malinowskiano?

Nádia Heusi Silveira1

Resumo: Nesta comunicação farei algumas considerações sobre uma proposta de


metodologia participativa em curso em uma pesquisa com os Mbya sobre práticas de
autoatenção voltadas a transtornos mentais. Estou trabalhando a partir da ideia de
"ciência-rede", em elaboração entre os pesquisadores do INCT Brasil Plural. Esta
concepção implica um modo de produção de conhecimento colaborativo e simetrizante,
envolvendo questões significativas para os grupos investigados. Os pontos a serem
explorados consistem no planejamento e orientação da pesquisa com este intuito, bem
como a redefinição do que seja a devolução dos resultados para o grupo, pensando nos
limites e possibilidades da pesquisa etnográfica clássica diante das demandas colocadas
pelos povos indígenas.
Palavras-chave: descolonização da pesquisa antropológica; ciência-rede; terapias e
práticas de autoatenção mbya

Nesta apresentação explanarei sobre a pesquisa para o estágio pós-doutoral que estou
realizando no PPGAS-UFSC, com o intuito de incorporar a proposta do INCT Brasil Plural.
Trata-se de explorar a ideia de ciência-rede, a qual tem em vista pensar a inovação
tecnológica a partir da tradição antropológica de pesquisa etnográfica e qualitativa junto a
grupos populacionais, valorizando o investimento nesta forma de produção de
conhecimento, por um lado, e por outro, colocando a própria ciência sob o escrutínio e a
colaboração dos diferentes sujeitos sociais e comunidades.

Para isso elaborei um projeto com linhas bem gerais, com o intuito de entender as
interpretações que os Guarani Mbya têm a respeito do que comumente chamamos de
transtornos mentais, bem como as terapias e cuidados que empregam nesses casos, e
por outro lado, observar se e de que modo as práticas da "medicina tradicional", como
chamam os rituais com uso da ayahuasca, têm dinamizado outras práticas terapêuticas
mbya e suas práticas de autoatenção. Em algumas aldeias do litoral catarinense,
particularmente M’Biguaçu, a incorporação de novas técnicas e elementos rituais foram

1 Pós-doutoranda pelo INCT Brasil Plural/PPGAS-UFSC.


!1
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

estimuladas inicialmente por um médico ligado a um movimento neoxamânico


transnacional, na virada dos anos 2000, através de um casal cabeça de parentela que
vivia naquela aldeia (Rose, 2010; Langdon e Rose 2013; Rose e Langdon, 2010). Após
esse começo de articulação, a atividade foi promovida em cerca de 10 aldeias guarani
nos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, financiada com recursos do
sistema oficial de saúde por quatro anos. Conforme as autoras, a remodelação dos rituais
mbya em função da constituição da Aliança das Medicinas, agregando o xamanismo
guarani, o Fogo Sagrado e o Santo Daime, produziu fortalecimento social e valorização
cultural na aldeia M’Biguaçu.

Para a realizar este estudo, pretendo debater o projeto com alguns representantes mbya
e provavelmente reorientá-lo, mantendo interesses comuns. A ideia é que sejam
agregados ao trabalho alguns pesquisadores mbya, ou ao menos um, que queiram
trabalhar com esta temática, com a ideia de compartilhar a autoria etnográfica e
multiplicar os objetivos da pesquisa. Assim, talvez, "pesquisa participativa" talvez não seja
a definição mais adequada a esta proposta, já que envolve negociar seu desenho e
implementação de modo empreender uma co-construção explícita, borrar as fronteiras
entre produção e devolução dos dados da pesquisa e amainar, ou talvez dissolver, uma
autoridade exclusivista na etnografia.

Até o momento, além de três incursões a campo, busquei o diálogo através de dois
coordenadores da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC,
o que me remeteu ao atual coordenador da Comissão Nhemonguetá, uma associação de
lideranças guarani dos estados de Santa Catarina e Paraná que atua para garantir seus
direitos nas esferas da saúde, educação, território etc. Embora já tenha iniciado o
processo de co-construção, a pesquisa em si mesma ainda não aconteceu. Assim, não
irei falar de avanços da pesquisa, embora considere estas tentativas como parte do
processo.

Aqui vou me ater a levantar alguns tópicos sobre o que poderia ser uma etnografia no
âmbito de uma ciência-rede, considerando a produção de conhecimento de modo
simetrizante.

!2
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Por conta disso achei que vale a pena trazer para o debate do GT dois pontos relativos a
uma pesquisa etnográfica compartilhada, pensada em sentido amplo, fundamentando-me
nas reflexões de dois pesquisadores indígenas, Linda Tuhiwai Smith, uma maori que
atualmente é professora de educação indígena na Universidade de Waikato, na Nova
Zelândia, e de João Paulo Lima Barreto, um índio tukano do Alto Rio Negro, com
mestrado em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, e que é pesquisador
do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena na UFAM.

Antes, porém, para esclarecer o título desta apresentação, o que estou considerando
como legado malinowskiano é basicamente a ideia de pesquisa em campo prolongada;
convivência com o grupo estudado embutida na definição de observação participante; uso
da língua nativa para tentar apreender a perspectiva do grupo sobre a temática abordada;
registro sistemático e rigoroso das atividades, conversas etc.; bem como, pesquisa e
análise articuladas pelas teorias antropológicas e pela autonomia intelectual.

* * * * *

No seu livro "Metodologias descolonizantes" (1999), Linda Smith, mostra como o


desenvolvimento de conhecimentos científicos sobre os Maori esteve atrelado aos
interesses do Império Britânico e ao desenvolvimento de um comercio mundial. Explora a
criação de sociedades científicas com recursos privados, como a Royal Society of
London, a partir do século XVII (que na Nova Zelândia surgem no XIX), para se contrapor
às limitações ao conhecimento dadas pelas universidades enquanto instituições religiosas
e que patrocinaram algumas expedições científico-coloniais pelo mundo. Mostra ainda,
como as teorias científicas foram usadas para legitimar a usurpação das riquezas locais.
Uma das teorias que ela questiona refere-se aos Maori como índios hostis que teriam
migrado da Melanesia já assimilados por ancestrais polinésios mais agressivos,
guerreado com um povo local pacífico que dizimaram, os Moriori, e que foi utilizada para
justificar a violência aplicada contra os Maori. Partindo da premissa que o imperialismo
não se situa no passado, mas que seus efeitos e campos de disputas permanecem, sua
proposta é que a agenda de pesquisas com povos indígenas esteja associada à sua
!3
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

autodeterminação, no sentido de transformar as relações estabelecidas, descolonizar o


conhecimento, curar e mobilizar pessoas. Linda defende que o caráter político da
pesquisa seja assumido.

Vale ressaltar que apesar de ter escrito o livro fundamentalmente para pesquisadores
indígenas e argumentar a favor de que os próprios indígenas façam pesquisa de campo
em suas comunidades e entre seus povos, Smith não descarta a produção dos não-
indígenas na descolonização da produção de conhecimento. E, por outro lado, reconhece
que os índios formados na academia também correm o risco de manter um estilo de
discurso colonizador sobre si, demandando uma atenção e reflexão constante.

Bruce Albert, no final dos anos 1990, já tinha chamado atenção pra esse mesmo ponto,
ligado às críticas postas sobre o colonialismo na pesquisa etnográfica, de que a
objetificação cultural dos povos indígenas não faz mais sentido diante do empoderamento
do movimento indígena atrelado às questões ecológicas mundiais (Albert, 1997). Ele
considera que os antropólogos precisam assumir duas obrigações de âmbito político e
ético: (1) assumir a responsabilidade sobre o conhecimento que produz em relação aos
sujeitos pesquisados; (2) implicar a produção de conhecimentos com estratégias de
resistência indígena em relação às políticas de Estados espoliadoras.

Este autor também aponta para dois problemas ligados a essa prática: Como manter
certa independência intelectual em face às demandas sociais assim colocadas (pois não
se trata apenas de ratificar um discurso político)? Quais seriam as potencialidades
heurísticas de uma relação etnográfica que não se baseia na sujeição política e na
ingenuidade positivista? São esses os tópicos que destaco como cruzamentos
epistemológicos e modos de fazer pesquisa.

Sobre os modos de fazer pesquisa em outros termos

Antes de tudo, vale a pena sublinhar o que Linda e João Paulo comentam a respeito da
experiência de fazer pesquisa com seu próprio povo. Seus relatos de são semelhantes.
Eles descrevem o desafio de assumir um papel de conhecedor desde fora e lidar as
críticas internas ao grupo. Linda Tuhiwai Smith, diferente de João Paulo Barreto, fez
pesquisa com mulheres em sua própria comunidade e percebeu como a formalidade das
!4
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

entrevistas levava as mulheres a tornar suas casas um ambiente limpo e organizado,


mostrar o asseio na maneira de vestir suas crianças, bem como sinalizavam os limites
para não terem suas vidas invadidas, da mesma forma como fariam ao receber uma
pesquisadora não-indígena. A identidade de pesquisador não é facilitada pelo fato do
pesquisador ser do mesmo grupo pesquisado. Neste modelo em que o pesquisador faz
parte do grupo, ele nunca deixa de representar o que vem de fora. Ambos reconhecem a
necessidade de constante reflexividade para lidar com as consequências do processo de
pesquisa em sua vida diária.

João Paulo Barreto (Barreto, 2017; Barreto e Santos, 2015), diferente de Linda Tuhiwai
Smith, não põe em questão o colonialismo de forma explícita, isto é, não se propõe a uma
crítica do fazer científico. Sendo alfabetizado pelos Salesianos e graduado em filosofia,
sentiu-se estimulado a ingressar na antropologia para estudar os Brancos a partir das
concepções e conhecimentos tukano, da mesma maneira que estes estudam os índios há
séculos. Escolheu pesquisar sobre as práticas de ictiologia no Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia por serem os peixes um agente central na cosmologia tukano.
Tentou realizar a observação participante individual, a metodologia clássica, mas se
deparou com o problema de ter sido afastado do convívio familiar e comunitário desde
jovem para estudar, o que não possibilitava acessar os conhecimentos tukano para
interpretar o que via, a não ser de modo fragmentário. Isso o levou a rever sua estratégia
de pesquisa e chamar seu pai, um especialista em benzimentos, bahsesse, para morar
com ele em Manaus. Na visão de seu orientador, Gilton Mendes, criou-se um processo de
investigação conjunta que não era exatamente o exercício antropológico clássico, pois os
dois se dedicaram a dissecar esquemas inteligíveis dos mitos tukano desde a mesma
referência cosmológica. Neste caso não há concepções de mundo diversas a produzir um
estranhamento da realidade. E tampouco essa era a maneira de obter uma formação
clássica de um especialista tukano, que teria que ocorrer na aldeia, como frisou Ovidio
Barreto, o pai, com um longo processo de preparação que envolve inclusive práticas de
fabricação corporal (Barreto e Santos, 2015). Nesse caso, pai e filho aparecem como
autores nos artigos.

Em sua proposta metodológica, Linda Tuhiwai Smith afirma que o processo de pesquisa é
mais importante que o produto final: deve propiciar respeito, capacitação, educação e
cura do grupo envolvido. Ela distingue dois caminhos interligados no que denomina
pesquisa emancipatória: (1) projetos de ação comunitária, iniciativas locais e pesquisas
!5
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

baseados em reivindicações; (2) pesquisas desenvolvidas por centros indígenas de


pesquisa e programas de estudo ligados a espaços institucionais acadêmicos. O que, em
geral, separaríamos como pesquisa aplicada e acadêmica, ela trata em continuidade.

Nos dois casos, deve-se partir de uma abordagem orientada pelas seguintes questões
(Smith, 1999):

-Quem define o problema de pesquisa?


-Para quem o estudo é válido e relevante? Quem afirma isso?
-Quais conhecimentos a comunidade ganhará com o estudo?
-Quais conhecimentos o pesquisador ganhará com o estudo?
-Quais são os prováveis resultados positivos do estudo?
-Quais são os possíveis desdobramentos negativos do estudo e como podem ser
eliminados?
-Em quem o pesquisador inspira confiança?
-Que outros processos servem de apoio à pesquisa, aos pesquisados e ao pesquisador?

Assim, Smith antecipa outras questões à habilidade de combinar o problema de pesquisa


com um conjunto de estratégias de investigação (que em sua proposta não são
exclusivamente etnográficas). Esta metodologia envolve um posicionamento político
explícito e põe em xeque a ideia de que todo pesquisador tem, a priori, o direito ao
conhecimento. O fundamental é priorizar os interesses dos pesquisados. Nesse sentido,
como afirmam Maluf e Andrade (2017) ao analisar a devolução dos resultados de
pesquisa no que denominam de antropologia no Estado e antropologia do Estado, a
devolução da pesquisa não é posterior à realização da pesquisa em si, mas produz-se no
próprio enquadre da produção de conhecimento antropológico, quando é dada atenção ao
processo de pesquisa como um processo emancipatória, como afirma Smith.

Para os pesquisadores não-indígenas, que seria o caso que busco desenvolver, Linda
Tuhiwai Smith descreve como um modo de relação no "modelo bicultural": projeto em que
trabalham pesquisadores indígenas e não-indígenas, modelado e controlado também por
todos, envolvendo um processo político em que os resultados possíveis da pesquisa
devem ser pensados antes de sua realização.

!6
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Sobre os cruzamentos epistemológicos:

Linda Tuhiwai Smith não entra muito nessa discussão epistemológica, seus
questionamentos se situam mais na esfera da relação entre pesquisador e pesquisado,
bem como do contexto histórico, político e social mais amplo de produção de
conhecimentos sobre os índios.

João Paulo Barreto tem como horizonte metodológico uma "antropologia cruzada",
instigado por seus mentores Gilton Mendes e Carlos Dias (2009), professores na UFAM.
Seu interesse é desenvolver um conhecimento sobre os Brancos desde os princípios
epistemológicos tukano, associados à sua cosmologia. Esse tipo de experimentos de
tradução e reflexividade, contidos numa antropologia indígena, vem aparecendo em
contextos acadêmicos em várias parte do Brasil, cf. Gallois e colaboradores (2016),
apontando para a emergência de inovações teórico-metodológicas na etnologia indígena
brasileira. Estes autores são favoráveis a uma posição metodológica que esteja entre o
solipsismo relativista, contido na proposta de que cabe somente aos indígenas fazer
etnografias sobre seus povos, e o universalismo objetivista, próprio da ciência colonial.

De outro lado, Bruce Albert (1997) identifica um mal-estar associado a esse estilo de
etnografia em que os antropólogos estão implicados, como uma espécie de conselheiro
intercultural que pretende viabilizar o empoderamento dos povos com que trabalha.
Contudo, sublinha que uma pesquisa delineada por um ética da responsabilidade não se
limita a reproduzir o discurso étnico. Este é o desafio para o pesquisadores não-indígenas
numa proposta de pesquisa descolonizadora.

Vale lembrar aqui as críticas que a antropologia pós-moderna trouxe sobre a produção de
conhecimentos legitimada pela experiência de campo — tomado como um experimento
realista — e validada por estratégias e convenções textuais — especialmente a retórica
de um narrador onisciente e invisível mesclada com descrições em que o autor está em
cena — para tornar coerentes as ambiguidades e a diversidade de significados atribuídos
aos fatos testemunhados ou narrados durante a realização da pesquisa (Clifford, 2002).

!7
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

É curioso contrapor essas críticas a uma carta escrita por Margaret Mead, na década de
1930, traduzida por Mariza Peirano (2002), onde ela orienta um estudante de doutorado a
como treinar um assistente de pesquisa. Ela cita seu assistente balinês, muito eficiente,
que registrava rituais e transcrevia conversas. E sugere que é possível ter um assistente
analfabeto, que não foi seu caso, que poderia ser treinado para observar e relatar
eventos, no esforço de acompanhar ao máximo o que ocorria em vários espaços nas
cerimônias. Ou seja, ela sugere que seja feita uma espécie de pesquisa colaborativa,
porém sem que esses pesquisadores locais assumam uma responsabilidade integral na
produção de conhecimentos. Embora Mead afirme estar convencida do trabalho
cooperativo, na pesquisa que empreendeu em Bali com Gregory Bateson, que eu saiba,
somente os dois assumem a autoridade etnográfica, sem atribuir esses créditos a seus
seis assistentes de campo.

Clifford (2002) associa o método etnográfico à construção de um sujeito absoluto que


confere esse amálgama de experiência pessoal intensa e análise cientifica à observação
participante. Ele sugere romper com as convenções literárias que dão autoridade
científica ao pesquisador e elaborar abertamente uma versão de realidade em
colaboração, como fizeram João Paulo Barreto e seu pai.

Para Albert (1997), pensando nos investigadores não-indígenas, trata-se de deslocar o


foco da arquitetura das unidades sociais e formas simbólicas para a dinâmica histórica da
produção e reprodução social. Para tanto, é necessário olhar para todos os lados das
relações interétnicas, pensando nos planos local e global. Essa abordagem demanda
engajamento de longo prazo, e então, o "estar lá" constitutivo da autoridade do
pesquisador deixa de fazer o mesmo sentido do passado. O cruzamento epistemológico
se dá, nesse caso, quando o pesquisador toma essas demandas por sua participação e
as novas práticas simbólicas e políticas que daí emergem como objeto etnográfico.

* * * * *

Ao colocar o legado malinowskiano em questão, não estou buscando a reinvenção da


roda. A maior parte dos contornos que defenderam os primeiros antropólogos como o
método antropológico de pesquisa se mantém absolutamente válida. Contudo, as críticas
aqui relembradas já têm duas décadas e, ainda hoje, não produziram mudanças
significativas no âmbito das práticas de pesquisa de campo como poderiam ter feito. Não
!8
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

há uma receita pronta de como fazer pesquisa em outros termos, é preciso testar, ousar,
experimentar, se desvencilhar da ilusão de objetividade ligada à autoridade científica do
pesquisador. Acredito que no campo da saúde indígena precisamos estimular e propor
novos tipos de experiências etnográficas que abortem a autoridade suprema do
especialista externo. Enfatizo, porém, alguns elementos que precisam ser retidos do
legado malinoswkiano:

1. a fusão entre teoria e descrição, que é o cerne do método etnográfico, e que não está
de modo nenhum posto em discussão
2. o tempo prolongado de campo, como destaca Albert, é fundamental tanto para
apreender esses novos objetos de pesquisa que despontam no mundo
contemporâneo, quanto para produzir o que na ótica de Smith seriam processos
emancipatórios
3. o rigor descritivo, apesar das múltiplas vozes ou da dialogia que compõe a pesquisa
descolonizadora, é o pilar de uma boa etnografia. Como argumenta Mauss (2010), os
equívocos derivados de observações mal feitas, das ideias pré-concebidas ou dos
excessos de interpretação podem ser reparados, mas a imprecisão é um problema
quase irreparável.
4. reconhecer a capacidade analítico-criativa como ferramenta legitima da produção de
conhecimento antropológico é outro eixo fundamental, que Smith se refere como
"imaginação sociológica", a fim de deslocar teorias, estruturar metodologias
alternativas e novos modos de descrição textual

Bibliografia

ALBERT, Bruce. 1997. Ethnographic Situation' and Ethnic Movements: Notes on post-
Malinowskian fieldwork. Critique of Anthropology, 17(1):53-65.

BARRETO, João Paulo L. 2017. Papera kumu: caminho de formação de xamã de leituras.
In: Deise L. Montardo; Marcia R. C. (orgs.) Saberes e ciência plural: diálogos e
interculturalidade em Antropologia. Florianópolis: EdUFSC.

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Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

BARRETO, João Paulo L.; SANTOS, Gilton M. 2015. De peixes e homens: por uma outra
antropologia. [Artigo publicado na revista Les Temps Modernes, 2015, n. 686, tradução]

DIAS JR., Carlos; SANTOS, Gilton M. 2009. Ciência da floresta: Por uma antropologia no
plural, simétrica e cruzada. Revista de Antropologia, 52(1): 137-160.

CLIFFORD, James. 2002. Sobre a autoridade etnográfica. In: _____ A experiência


etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

GALLOIS, Dominique T.; TESTA, Adriana Q.; VENTURA, Augusto; BRAGA, Leonardo V.
2016. Ethnologie brésilienne. Les voies d’une anthropologie indigène, Brésil(s) [En ligne],
9 | 2016. Disponível em: http://bresils.revues.org/1897 Acesso em: 23 out 2017

LANGDON, Esther Jean; ROSE, Isabel S. 2013. Contemporary Guarani Shamanisms:


Traditional Medicine and discourses of Native Identity in Brazil. Health, Culture and
Society, 3(1):30-48.

MALUF, Sonia W.; ANDRADE, Ana Paula M. 2017. Entre políticas públicas e experiências
sociais: impactos da pesquisa etnográfica no campo da saúde mental e suas múltiplas
devoluções. Saúde Soc. 26(1):171-182.

MAUSS, Marcel. 2010. Profissão etnógrafo, método sociológico. Tradução de Mauro


Guilherme Pinheiro Koury. RBSE, 9(27):1045-1055.

PEIRANO, Mariza. 2002. Treinar um assistente de pesquisa. Cadernos Pagu (19):


335-341.

ROSE, Isabel S. 2010. Tata endy rekoe - Fogo Sagrado: encontros entre os Guarani, a
ayahuasca e o Caminho Vermelho. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa
Catarina.

ROSE, Isabel S.; LANGDON, Esther Jean. 2010. Diálogos (neo)xamânicos: encontros
entre os Guarani e a ayahuasca. Revista Tellus, 18:83-113.

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Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

SMITH, Linda Tuhiwai. 2008 [1999]. Decolonizing Methodologies. Research and


Indigenous Peoples. London: Zed Books Ltd - Dunedin: Un of Otago Press.

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Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Políticas de saúde e experiências de cuidado: etnografia de uma


unidade de atenção básica à saúde na favela

Natália Helou Fazzioni1

Resumo
Neste trabalho pretende-se discutir as implicações e resultados parciais de um
trabalho etnográfico realizado em uma unidade de atenção primária à saúde na
cidade do Rio de Janeiro. A escolha de enfocar o trabalho em uma única
unidade, justifica-se pela possibilidade de realização de uma imersão no
cotidiano desta, mas também de relacionar o funcionamento e história deste
serviço específico com dois outros contextos: 1) o local onde ele está
localizado, o conjunto de favelas do Complexo do Alemão e 2) as políticas
públicas em saúde no campo da atenção básica. O Complexo do Alemão
emerge como espaço privilegiado para esta análise, por ter sido por tantos
anos negligenciado no âmbito das políticas públicas em geral. Ao acompanhar
a rotina desta unidade, em um trabalho etnográfico minucioso, foi possível
aprender sobre as lógicas e experiências de cuidado que se estabelecem entre
profissionais e usuários, mas também lançar luz sobre o contexto e os modos
de vida no Complexo do Alemão e sobre as políticas públicas em saúde. Deste
modo, ao contrário do que se pode presumir, a análise de uma única unidade
não implica em uma etnografia de particularismos desta experiência, mas nos
ensina também sobre contextos mais amplos.
Palavras chave: saúde, atenção básica, etnografia, favelas

Introdução
Neste trabalho, pretendo discutir as implicações e resultados parciais de
uma etnografia realizada em uma unidade de atenção primária à saúde na
cidade do Rio de Janeiro. A unidade de saúde na qual a maior parte da
observação foi realizada localizava-se aos pés do Morro do Alemão, uma das
treze comunidades que compõem o Complexo do Alemão, entre as áreas
consideradas pela administração municipal como “formal” e “informal”,
popularmente chamadas de “asfalto” e “morro”. Mais recentemente, no entanto,
ainda durante a pesquisa, foi transferida para o bairro de Ramos, vizinho ao
Complexo do Alemão, passando a atender parte da população do Alemão e
também parte dos moradores de Ramos. Ou seja, deixou de estar dentro da

1
Doutoranda em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

favela, assim como boa parte dos equipamentos públicos destinados a esta
população. Na mesma época, no final de 2016, outra unidade de saúde
localizada dentro do Complexo de favelas também foi fechada, a Clínica da
Família das Palmeiras, a última a ser inaugurada no Complexo, em 2014. Sua
história diz muito sobre os serviços públicos voltados para a população mais
pobre no Brasil. Atendendo a uma demanda da população de haver uma
unidade no ponto mais alto do morro, para atender as famílias ainda sem
cobertura da Estratégia de Saúde da Família, foi criada a Clínica das
Palmeiras, situada dentro da Estação do Teleférico do Alemão, hoje também
extinto2. Sua construção foi simultânea ao fechamento de uma biblioteca
pública que antes ocupava este mesmo espaço, outra demanda da população
que havia sido atendida há pouco. O argumento da Prefeitura era de que este
seria o único espaço viável para instalação da unidade na área. Então era
necessário escolher, biblioteca ou Clínica da Família? A população não se opôs
à Clínica, uma demanda antiga e tida como mais urgente e deu adeus à
biblioteca. Mas no final de 2016, com o acirramento do conflito armado na
comunidade, junto ao fechamento do teleférico do Alemão e o subsequente
sucateamento das estruturas das estações que abrigavam serviços públicos e
salas para uso da comunidade, a clínica acabou encerrando as atividades
naquele local e suas equipes foram incorporadas a outra unidade, bem mais
distante da área de cobertura. O movimento de “saída” dos serviços de saúde
de dentro da favela, remete as origens das políticas públicas de saúde no
Brasil e a formação e ocupação inicial do Complexo do Alemão, como
demonstro abaixo.

“IDH zero”
A escabiose, no dicionário Houaiss, é definida como “doença contagiosa
da pele causada nos homens por Acarus scabiei ou Sarcoptes scabiei e nos
animais por ácaros diversos, e que se caracteriza por intenso prurido e
eczema; sarna, pereba, pira”. Dotada de forte estigma por se tratar de algo
recorrente em animais que não recebem cuidados, a doença está presente nas

2
Matéria sobre o fechamento do Teleférico do Alemão: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2016/12/21/fechado-ha-3-meses-teleferico-do-alemao-e-exemplo-da-crise-financeira-do-
rj.htm (Acessado em 30/06/2017)
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

narrativas sobre o Complexo do Alemão, remetendo a um período em que as


condições de saneamento básico, urbanização, habitação e qualidade de vida,
de um modo geral, eram ainda mais precárias do que nos dias de hoje. Em
entrevista, o médico Cláudio Andrade3 rememorou tais condições em 2005, na
época de sua entrada na unidade onde ainda trabalha.
Eu até conversei outro dia com a enfermeira que depois de mim é a
pessoa que tem mais tempo aqui no posto. Então, conversando com
ela, eu disse: você lembra que todo dia aqui era um monte de
escabiose, que toda hora você via as pessoas se coçando? Hoje se
você vê uma pessoa aqui por mês é muito.

Hoje vistas com menos frequência nos postos de saúde, a escabiose e


outras doenças semelhantes aparecem nos relatos aqui apresentados
fortemente associadas à ideia de pobreza e falta de condições dignas de vida.
Curiosamente, em muitas falas, a condição de vida no Complexo do Alemão
aparece representada pela expressão “IDH baixo” ou “IDH zero”. A referência
ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)4 é recorrente entre os
profissionais de saúde do Complexo do Alemão, possivelmente pelo fato de a
região figurar em último lugar na lista que ranqueia os bairros do Rio de
Janeiro5. Essa referência, entretanto, não aparece necessariamente articulada
a uma discussão mais formal sobre o índice e seus indicadores, mas apenas
para dizer que se trata de um local extremamente pobre e com serviços
públicos básicos escassos ou inexistentes. Ao contar sua trajetória como
liderança comunitária, Mariza Nascimento, atrela sua motivação para exercer
esta atividade às condições de vida no Complexo do Alemão.
Vim para o Rio de Janeiro em 1970. Cheguei aqui no Rio de Janeiro,
subi pro Morro do Adeus e fiquei com vontade de voltar pra casa,
porque aquilo não era o Rio de Janeiro, no meu pensamento. Mas
não tem jeito, a gente tem que ficar mesmo, né? (...) Quando foi em
1980, eu comecei auxiliando o trabalho comunitário, porque a gente
não tinha água, nem luz, nenhum benefício aqui na comunidade de
serviço público, IDH zero, em todo o Complexo do Alemão.

3
Trata-se de um nome fictício utilizado para preservar a identidade do médico.
4
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é um índice que serve de comparação entre os países, com
objetivo de medir o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população. O
relatório anual de IDH é elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
órgão da ONU.
5
Ranking do IDH dos bairros do Rio de Janeiro de 2013, disponível em:
http://www.wikirio.com.br/IDH_dos_bairros_da_cidade_do_Rio_de_Janeiro (Acessado em
01/08/2015).
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ainda que o IDH seja uma medida comparativa criada somente em


1990, Mariza utiliza este recurso para caracterizar a precária situação da região
nos anos 1980. E se as condições naquele tempo eram consideradas
precárias, o difícil acesso aos serviços de saúde as agravava ainda mais6. De
acordo com registros feitos aqui, até o início dos anos 2000, o acesso da
população aos serviços de saúde se dava por meio de três unidades centrais: o
Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (Samdu) de Ramos,
extinto em meados dos anos 2000; o Posto de Saúde (hoje Centro Municipal
de Saúde – CMS) Américo Veloso, na Praia de Ramos; e o Posto de
Assistência Médica (PAM) de Del Castilho (hoje CMS e Policlínica Rodolpho
Rocco). Não foi possível determinar a data de inauguração exata do Samdu de
Ramos7; sabe-se, no entanto, pelos relatos, que a unidade figurou por muito
tempo como único local de atendimento a esta população.
Diante desse cenário de difícil acesso às unidades de saúde, que eram
poucas e distantes para boa parte das pessoas, algumas importantes
articulações reivindicatórias de moradores do Complexo do Alemão
despontaram no campo da saúde, sobretudo a partir dos anos 1980.

Mobilização e saúde da família


A trajetória pessoal de Mariza Nascimento permite mostrar como se
desenvolveu o processo de mudança nas mobilizações sociais e nas políticas
públicas em saúde voltadas para esta região da cidade entre os anos 1980 e
1990. Mariza participou ativamente do Grupo Executivo Local (GEL) 8, que
reunia uma série de lideranças comunitárias da Zona da Leopoldina e recebia
ainda apoio de pesquisadores de instituições como Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) e UFRJ. O grupo se reunia no posto Américo Veloso, na Praia de

6
Em pesquisa coordenada pelo IPEA (2013) é possível observar o processo inicial de ocupação da área
hoje conhecida por Complexo do Alemão onde as condições de vida nesse período ficam evidentes. Há
também uma significativa bibliografia sobre as condições de saúde mais gerais da população residente
na zona da Leopoldina do Rio de Janeiro no período entre os anos 1980 e 2010, que corrobora com o
quadro relatado pelos interlocutores (Valla, 2011).
7
A criação dos SAMDU se deu em 1949, ainda durante a Era Vargas. De acordo com Mercadante (2002:
237): “A importância histórica desse evento decorre de três características inovadoras da iniciativa: o
atendimento médico domiciliar até então inexistente no setor público, embora comum na prática
privada; o financiamento consorciado entre todos os IAPs (Instituto de Aposentadorias e Pensões) e,
principalmente, o atendimento universal ainda que limitado aos casos de urgência”.
8
Conferir o trabalho de Homero Teixeira de Carvalho (1996) sobre a história do GEL e seus
desdobramentos.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ramos e, posteriormente, em 1994, após a consolidação do Sistema Único de


Saúde (SUS), esteve totalmente articulado à criação do Conselho Distrital de
Saúde da Área programática (AP) 3.19. Mariza acabou se tornando vice-
presidente do Conselho Distrital de Saúde e, anos depois, em 2000, quando
houve a criação de conselhos regionais nas regiões administrativas que
compunham a AP 3.1, tornou-se a primeira presidente do Conselho
Comunitário de Saúde do Complexo do Alemão (Consa), conselho
representativo da XXIX Região Administrativa, no Complexo do Alemão10.

Entre os trabalhos realizados pelo Consa, houve a formulação de um


projeto para que fosse implementado o Programa de Saúde da Família (PSF) 11
no Complexo do Alemão. Após ampla mobilização deste grupo, em 2003, foi
inaugurado o “PSF Alemão”. No ano seguinte, em 2004, foram inaugurados os
outros postos de atendimento do PSF no Complexo: Nova Brasília, Adeus e
Esperança, os dois primeiros hoje incorporados na estrutura da Clínica da
Família Zilda Arns, da qual trataremos adiante.
Sobre o momento inicial de implementação da atenção básica em saúde
no Complexo do Alemão, especificamente do PSF, o médico Cláudio e Fábio12
– um dos primeiros Agentes Comunitárias de Saúde, até hoje em exercício –
ressaltaram alguns aspectos interessantes sobre a característica do trabalho
desenvolvido naquela época. Fábio contou que:
Na essência, a proposta inicial era a promoção da saúde mesmo.
Eles caíam pra dentro disso. Visita domiciliar, a gente quase que não
ficava dentro da unidade. Era praticamente o tempo todo fora com o
enfermeiro, o enfermeiro quase não atendia, ficava com a gente na
área direto, entendeu? Médico ia duas vezes na semana pro
território. E hoje já mudou muito isso, mas no início era muito

9
Compõem a AP 3.1 as seguintes regiões administrativas: X RA - Ramos (Bairros de Manguinhos,
Bonsucesso, Ramos e Olaria); XI RA - Penha (Bairros da Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil,
Parada de Lucas, Vigário Geral e Jardim América); XXIX RA - Complexo do Alemão (Comunidades do
Morro do Alemão, Morro da Baiana, Nova Brasília, Joaquim Queirós, Itararé, Morro das Palmeiras,
Mourão Filho, Parque Alvorada, Relicário, Vila Matinha); XXX RA - Complexo da Maré (Comunidades do
Parque União, Parque da Maré, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro, Rubens Vaz, Morro do Timbau,
Ramos, Vila do João, Vila Pinheiro, Conjunto Pinheiro, Conjunto Esperança, Conjunto Bento Ribeiro,
Conjunto Nova Maré).
10
Cabe notar que a trajetória política de Mariza é bastante extensa, tendo sido também presidente da
Associação de Moradores do Morro do Adeus e a primeira Administradora Regional do Complexo do
Alemão.
11
Para uma análise sobre o Programa de Saúde da Família e a formação de médicos de família no Brasil
e na Argentina ver Bonet, 2014.
12
Trata-se de um nome fictício utilizado para preservar a identidade do Agente Comunitário de Saúde.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

promoção da saúde mesmo. E olha que foi um baque, porque as


pessoas também não entendiam o que era isso. A gente também
começou a entender, né? E era muito complicado as pessoas
aceitarem, no início, participar de grupo, essas coisas todas.
.
Já o envolvimento de Mariza com este momento inicial de
implementação da atenção básica não é relembrado com tanto entusiasmo.
Pontos como a dificuldade de efetivar o projeto da forma como havia sido
formulado pelos membros do Consa, bem como de realizar atividades
propostas pela própria população foram destacadas por ela como as principais
deficiências no modelo de saúde que acabou sendo implementado nas
unidades do Alemão. Mariza relatou que,
Quando chegou a saúde da família no Alemão, eu tinha um desejo
de que ela caminhasse dessa maneira, mas eles, que vêm de fora,
não querem saber de comunidade. Eles vêm com as normas deles e
impõem, e aí você é obrigada, porque eles são chefes e nós somos
subordinados. A gente é obrigado a fazer como eles querem, e a
gente sabe que tá fazendo errado. Então, assim, quando eu tô indo
pro território, eu vejo quais são as necessidades dessas pessoas.
Então, assim, eles querem o que dá resultado financeiro e nós
queríamos o que dava resultado para a saúde, para população.
Então, isso começou meio que um embate, sabe?

O desânimo de Mariza com as possibilidades de atuação no campo dos


serviços públicos em saúde se refletiu em sua aposentadoria em 2008, quando
acabou se afastando da atividade de agente comunitária de saúde e passou a
se dedicar a sua própria ONG, a Nascibem. No entanto, de repente, em 2011,
desempregada e enfrentando problemas de saúde na família, resolveu retornar
ao trabalho de ACS. Nesse período, porém, os serviços de saúde no Complexo
do Alemão já estavam bastante modificados.

Saúde presente?
Em maio de 2009, foi lançado pela Prefeitura do Rio de Janeiro o
programa Saúde Presente13. Um dos maiores marcos deste programa foi a

13
De acordo com o site da Prefeitura do Rio de Janeiro: “O Programa Saúde Presente marcou o início de
uma nova fase para o atendimento de saúde da população carioca. Lançado em maio de 2009 com o
objetivo de expandir os serviços de saúde a toda população do Rio de Janeiro, o programa tem como
conceito a territorialização da cidade, atendendo regiões até então prejudicadas na gestão de saúde (...)
Unidades que compõem o Saúde Presente: Clínicas da Família; Centros Municipais de Saúde (CMS);
Policlínicas; Centros de Especialidades Odontológicas; CAPS – Centros de Atenção Psicossocial (CAPS,
CAPSad e CAPSi); Unidades de Pronto Atendimento 24 horas (UPA); Hospitais e Maternidades;
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

expansão da Estratégia de Saúde da Família cuja cobertura na cidade passou


de 3,5%, em janeiro de 2009, para 56,8% em setembro de 2016. Um pouco
antes das eleições municipais em 2016, as últimas unidades foram
inauguradas pelo então prefeito Eduardo Paes (PMDB/2009-2016), ao lado de
seu candidato à eleição, o Deputado Federal Pedro Paulo (PMDB). Uma delas
foi a CF Valter Felisbino, onde parte desta pesquisa foi realizada. As CFs
inauguradas pelo Saúde Presente diferenciam-se das outras unidades mais
antigas que já abrigavam a Estratégia de Saúde da Família em virtude de sua
estrutura arquitetônica, planejada para comportar diferentes atividades, além
do atendimento médico, e também pelos novos equipamentos.
Apesar de toda essa nova estrutura, Cláudio e Fábio fazem críticas ao
trabalho feito nas unidades de atenção básica que se concentram em um
aspecto principal, a falta de tempo e o “inchaço” das equipes de saúde da
família, ou seja, o alto número de pacientes atendidos por cada profissional. O
“inchaço” se revela sobretudo pelo número de famílias em cada uma das
equipes e tem como consequência, a difculdade em atuar na “prevenção à
saúde”.
Outro problema é o excesso de “demanda espontânea” no posto que, de
acordo com a maior parte dos profissionais, possui duas razões, em primeiro
lugar a explicação tem relação com a UPA (Unidade de Pronto Atendimento)
do Complexo do Alemão, na qual supostamente a população não vai, pois
dificilmente são bem atendidos e poucos médicos estão disponíveis. Assim, as
unidades de atenção básica locais acabam por atender a uma demanda que,
teoricamente seria da UPA. Por outro lado, alguns atribuem à gerencia da
unidade a prática de acolher todas as demandas, causando assim um excesso
de atendimentos diários que acarretaria em um atendimento insatisfatório,
devido ao pouco tempo disponível para realizar as consultas e outras
atividades fundamentais da unidade como as Visitas Domiciliares.
Neste processo, os profissionais estão sempre com muita demanda e
assim, atuam com um tempo restrito e assim, notamos, simultaneamente, a
precariedade do sistema e o pouco preparo destes para exercer o trabalho de
cuidado neste contexto – são em sua maioria médicos recém formados ou sem

Coordenações Regionais de Emergência (CER)”. Disponível em:


http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/saude-presente (Acessado em 30/07/2015)
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

nenhuma experiência prévia na atenção básica ou formação em medicina de


família. Ali, prevalece uma alta rotatividade de profissionais, incluindo desde
Cládio, o único médico especialista em medicina de família e comunidade que
trabalha na unidade há 12 anos, passando por três médicos cubanos
provenientes do programa Mais Médicos e inúmeros médicos recém-formados,
sem residência ou experiência profissional. No ano de 2017, com o fim do
contrato dos médicos cubanos, a rotatividade na unidade – que funciona desde
o início dos anos 2000, ainda que tenha mudado de nome, localização e
formato – atingiu seu recorde de acordo com os profissionais mais antigos
(enfermeiros e Agentes Comunitários de Saúde). Nenhum médico contratado
permaneceu por mais de três meses na unidade, todos pediram demissão ou
transferência para outra unidade alegando excesso de demanda e problemas
administrativos. Até julho do mesmo ano, ao menos dez médicos entraram e
saíram da unidade, a maior parte deles era recém-formado ou nunca havia
atuado na atenção básica.
Mas os problemas de “inchaço” nas equipes e falta de profissionais não
são os únicos enfrentados pelos profissionais e usuários no Complexo do
Alemão. A partir dos anos 1990, diferente daquele momento narrado
especialmente por Mariza, em que o território estava marcado principalmente
pelas péssimas condições de vida, soma-se a este, um segundo componente
que vem agravar ainda mais as condições de saúde da população: a violência
marcada pela presença do tráfico de drogas no local e a violenta ação da
Polícia Militar nas áreas de favela na cidade. Os problemas decorrentes dos
tiroteios constantes são muitos e estão além das possibilidades de morte ou
ferimento pelos tiros. Um deles são os transtornos mentais de ansiedade,
pânico e depressão. Além disso, os dias de confronto entre policiais e
traficantes são marcados pela dificuldade de ir e vir, tanto dos usuários até o
posto, como dos profissionais até o território. Muitos profissionais tem medo de
trabalhar na unidade em razão da sua área de atuação, o que contribui ainda
mais para falta de profissionais, especialmente médicos.

Especificidades do cuidado no Complexo do Alemão


As formas de lidar com o cotidiano violento entre os moradores do
Alemão, são muitas e variáveis. No grupo de hipertensos e diabéticos a
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

temática aparece com frequência: os picos de pressão são comuns entre


alguns hipertensos durante os momentos de tiroteio, assim como sintomas de
taquicardia e dificuldade de respiração. Durante uma conversa sobre a
violência, enquanto esperavam pela consulta individual após o término do
grupo, uma jovem arriscou uma tentativa de classificação, dizendo que os
moradores do Alemão se dividiriam entre aqueles que “saem de casa quando
dá tiro” e os que “não saem de casa quando dá tiro”. Ela se encaixaria nesse
último grupo e por isso, segundo ela, suas crises de pressão não estariam
associadas aos tiroteios, ao contrário de outros moradores que costumavam
estar na rua nesses momentos.
A dificuldade de lidar com os tiroteios e se manter tranquilo enquanto
eles ocorrem é compartilhada por muitos moradores e profissionais. Cláudio é
o único médico da unidade que nunca deixa de fazer VD, independentemente
da situação, exceto quando o conflito está ocorrendo exatamente em sua área
de visita. Para monitorar esta situação, o principal termômetro de violência são
os grupos de WhatsApp14 de cada uma das equipes, onde normalmente são
repassadas as notícias que circulam no grupo de WhatsApp dos Agentes.
Oficialmente, no entanto, a unidade segue um protocolo – estabelecido pelo
Comitê Internacional da Cruz Vermelha em parceria com a Secretária Municipal
de Saúde – com relação à situação de violência chamado “Acesso Mais
Seguro”. Na rotina da unidade, entretanto, estas determinações são ignoradas
e a avaliação é feita caso a caso de acordo com cada profissional.
Cláudio, provavelmente por estar tanto tempo trabalhando ali, lida com a
violência de forma mais próxima aos Agentes Comunitários e moradores, do
que aos médicos e enfermeiros das outras equipes. Além de não hesitar em
andar pelo morro sempre que é necessário, recorrentemente faz piadas com o
assunto, outro hábito típico dos moradores. Em uma discussão no grupo de
hipertensos, uma senhora reclamava da dificuldade de sua mãe em conseguir
encaminhamento para a fisioterapia, quando começou a contar que um dia a
mãe que pendurava roupas na laje e tinha muita dificuldade em andar, escutou
os tiros passando bem próximos a sua casa e chegou no andar de baixo
rapidinho. “Está vendo Dr., aqui no morro nem precisa de fisioterapia, o tiro

14
Aplicativo de mensagens para smartphones.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

cura”, ela completou, e todos riram.


No entanto, a associação entre a violência e a falta de estrutura do
sistema resulta em situações mais graves. O caso de uma paciente que pude
acompanhar, ilustra de maneira complexa esta realidade. Josefa é uma
senhora de 65 anos que vive na casa da irmã, junto ao marido, filha e netos
desta. Há alguns anos ela foi diagnosticada com Alzheimer e desde então tem
alternado entre períodos vivendo na casa de suas duas irmãs e na rua. Já há
dois anos ela vive no Alemão na casa de sua irmã Dulce, está acamada, mas
nunca havia recebido a visita de um médico, apenas da enfermeira e da Agente
Comunitária de Saúde. A equipe responsável por seu domicílio estava
comumente sem médicos ou com dificuldades de realizar as visitas devido aos
tiroteios. Quando chegamos na casa de Josefa, ela se encontrava desnutrida,
desidratada e com sinais claros de infecção urinária, além de não apresentar
resposta a nenhum tipo de estímulo. Por alguns segundos, pensamos que ela
estivesse morta, até o médico checar seus sinais vitais. Apesar de viva, seu
estado geral era grave e o médico insistia que ela deveria ser levada a um
hospital.
Neste momento, várias tensões entravam em jogo, primeiro a de sua
irmã que se sentia responsável por seus cuidados e que claramente
sobrecarregada, pois também cuidava dos netos e da casa, se sentia culpada
pelos profissionais por terem qualificado o estado geral de Josefa como
péssimo. Em segundo lugar, o médico culpava a Agente por não ter lhe
avisado antes sobre eles terem uma paciente grave na área. E finalmente, nem
o médico, nem a Agente sabiam como resolver o problema do
encaminhamento, já que a casa ficava no meio de um beco na favela, a
paciente não se locomovia, a ambulância com sorte chegaria à via carroçável
mais próxima e a paciente necessitaria ser levada até a área considerada
“formal”, fora da favela, por um taxi e a família não dispunha de recursos para
pagar. Finalmente, os profissionais temiam que ao ser encaminhada para um
hospital da área, a paciente fosse simplesmente enviada de volta para casa,
considerando que este tem sido quase um padrão nos hospitais da rede
pública na cidade, devido à falta de leitos e recursos. Ao sair da casa, o médico
estava claramente nervoso com tudo o que havia acontecido. Ele reclamava
que a Agente e a enfermeira haviam estado ali há poucos dias e não lhe
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

notificaram de que o estado da paciente era “grave” e agora ele era o


responsável por Josefa caso algo acontecesse.
O caso de Josefa, ao mesmo tempo em que exemplifica um conjunto de
tensões e violências que acometem a paciente e sua família, também
demonstra uma estrutura complexa e frágil que afeta também os profissionais e
as práticas profissionais de cuidado. O médico se vê desesperado diante da
quase ausência de vida em Josefa, pela qual ele se sente responsável.
Naquele momento ele representava o Estado diante daquela mulher e de sua
família, negligenciada pelo Estado em tantos aspectos e momentos.

Considerações finais
Etnografar uma unidade de saúde no Complexo do Alemão nos permite
ao mesmo tempo falar de passado, presente e talvez até, do futuro das
políticas públicas em saúde neste local. Afinal, ao que tudo indica, o futuro se
aproxima de algum modo do que foi o passado, serviços de saúde mais
precários, menos profissionais atuando, menos foco na atenção primária e
prevenção e maior distância fisíca do local de moradia da população. E então
podemos nos perguntar, as políticas de saúde funcionam de maneira diferente
para as populações de favelas? Ao pensarmos aqui em como os sujeitos
abordados nesta pesquisa cuidam e são também cuidados, por profissionais e
por familiares, notamos com clareza que há uma grande limitação entre os
projetos possíveis de serem realizados pela população e profissionais que
atuam no Alemão. Ricardo Ayres (2004) nos lembra que o cuidado consigo e
com os outros significa, de algum modo, a realização de um projeto de vida. A
ideia de projeto, ele sugere, parece ser:
um traço constitutivo do modo de ser (do) humano e que estabelece
uma ponte entre uma reflexão ontológica, sobre o sentido da
existência, e as questões mais diretamente relacionadas à
experiência da saúde e da atenção à saúde. (AYRES, 2004, 21)

Cláudio, Fábio, Mariza, Dona Josefa e muitos outros possuem ou


possuíram projetos de vida que se ligam as suas formas de cuidarem de si e
dos outros. Todos estas vidas passaram em algum momento pelo Complexo do
Alemão. E o que este território propicia a elas de comum? Judith Butler utiliza o
conceito de “condição precária” para tratar de diferentes situações na
sociedade moderna. Diferente da precariedade, que para a autora é a condição
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

de existência de qualquer vida – “não há vida sem necessidade de abrigo e


alimento, não há vida sem necessidade de redes mais amplas de sociabilidade
e trabalho, não há vida que transcenda a possibilidade de sofrer maus-tratos e
a mortalidade” –, a “condição precária” ,“designa a condição politicamente
induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de
apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à
violência e à morte”. A “condição precária” no Alemão, portanto, não se
concretiza apenas para aqueles que são vitimas das armas de fogo disparadas
pela Polícia ou pelos traficantes. E apesar de seus contornos mais dramáticos
nestes casos, todos os dias, homens, mulheres, idosos, recém nascidos,
crianças e trabalhadores da saúde enfrentam a vida e a morte no Complexo do
Alemão de forma precária. Isso não significa porém que os projetos sejam
impossíveis de serem realizados ou sempre insuficientes, há inúmeras formas
de viver e agenciar esta “condição precária” que aqui se estabelece e muitas
vezes se impõe de forma brutal.
João Biehl (2011), em pesquisa sobre tratamentos médicos no Brasil,
escreve:

Atravessando mundos de risco e escassez, limitadas sem serem


totalmente sobredeterminadas, as pessoas criam pequenos e
passageiros espaços, através e além de classificações e aparatos de
governança e controle, nos quais podem desempenhar um tipo
de bricolagem de vida com as escolhas e os materiais limitados que
têm à sua disposição (BIEHL, 2011, 271-272).

Finalizo assim, sugerindo que se o desafio de sobreviver e de cuidar e


ser cuidado em meio a “mundos de risco e escassez” é imenso, como
demonstram os casos aqui abordados, é também grande o desafio de realizar
etnografias e pesquisas de um modo geral, que consigam ampliar o olhar e não
capturar somente as grandes estruturas, que por mais importante e limitadoras
que sejam, só fazem sentido se olhadas em conjunto com as vidas e
experiências vividas.

Referências

AYRES, Ricardo. 2004. “O cuidado, os modos de ser (do) humano e as


práticas de saúde”. Saúde e Sociedade v.13, n.3, p.16-29, set-dez.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

BIEHL, João. 2011. “Antropologia no Campo da Saúde Global”. Horizontes


Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 257-296, jan./jun.
BONET, Octavio. 2014. Os médicos da Pessoa: um olhar antropológico sobre a
medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras.
BUTLER, Judith. 2015. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
CARVALHO, Homero de Teixeira. 1996.”Conselhos de Saúde e Práticas de
Comunicação: Ação pelo Controle Público e Invisibilidade Social.” Dissertação
de mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Rio de
Janeiro: Fiocruz.
IPEA. 2013. Histórico Fundiário e da Urbanização do Complexo do Alemão,
Rute Imanishi Rodrigues (coord.). Rio de Janeiro: IPEA – DIRUR/DIEST.
MERCADANTE, Otávio Azevedo (coord). 2002. “Evolução das Políticas e do
Sistema de Saúde no Brasil”. In: FINKELMAN, JACOBO (org.). Caminhos da
Saúde Pública no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
VALLA, Victor Vincente (org). 2011. Classes populares no Brasil: exercícios de
compreensão. Rio de Janeiro: Fiocruz.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Etnografia em um Centro de Atenção Psicossocial: a instituição de saúde


enquanto campo de pesquisa antropológica.

Luiz Ricardo de Souza Prado1

Resumo
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) se compõem, junto às residências
terapêuticas, enquanto principal estratégia da reforma psiquiátrica no Brasil.
Com foco em um atendimento integral, visa uma forma de tratamento que
busca reintegrar seus usuários a seus contextos de origem/existência, referidos
pela categoria território. Para isso, procura mobilizar uma diversidade de
recursos e redes, de modo a incluir a rede de apoio – categoria nativa que se
refere àqueles que investem cuidado para seus usuários nos contextos extra-
instituição, sendo estes principalmente familiares – no tratamento. Pretendo
abordar nesse trabalho como se deu a realização da minha etnografia nos
grupos de familiares que ocorreram no Centro de Atenção Psicossocial II “Dr.
Nelson Fernandes” em Araraquara, que realizei do período de novembro de
2016 até fevereiro de 2017 e a elaboração de meu atual projeto de mestrado.
Para isso, pretendo discorrer, em um primeiro momento, sobre os trâmites no
comitê de ética, o contato com a equipe técnica da instituição e demais
necessidades do projeto que envolve a prática da etnografia em uma instituição
de saúde. Logo após, abordo as minhas estratégias para a realização do
trabalho de campo, em meio às expectativas dos agentes da instituição de
saúde e dos familiares dos usuários da instituição frente a um projeto de
pesquisa antropológica.

Palavras-chave: CAPS – Doença Mental - Etnografia

1. Introdução
Procuro desenvolver neste trabalho2 uma reflexão sobre como se deu
meu trabalho de campo em um Centro de Atenção Psicossocial no interior do

1Mestrando em Ciências Sociais; UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara;


Bolsista CAPES; [email protected].
2
Este trabalho é resultado do desenvolvimento de um projeto de Mestrado dentro do programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara, com contribuições a partir das discussões realizadas na disciplina “Seminário de
Pesquisa I”, em que o projeto de mestrado e a pesquisa como um todo foram discutidas. Parte
do que apresentado aqui também foi desenvolvido a partir de um trabalho desenvolvido para a
Jornadas de Antropologia John Montero, da UNICAMP.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

estado de São Paulo, no caso, o CAPS II em Araraquara, a partir da minha


pesquisa sobre as categorias de doença mental utilizadas por parte dos
familiares dos usuários deste mesmo centro, onde me foi possível desenvolver
uma monografia sobre os grupos de familiares que eram ali realizados
(PRADO, 2017).
Desta forma, pretendo abordar brevemente como surgem os CAPS,
como se deu minha experiência de trabalho de campo e os preparativos
necessários: a passagem pelo comitê de ética em pesquisa e o planejamento
do projeto a partir dessa demanda. Na segunda parte, abordo como foi meu
trabalho de campo, e quais condições tive que enfrentar para realizar a
pesquisa

2. Centros de Atenção Psicossocial: do hospital à atenção no território

Nesta sessão eu realizo um pequeno apontamento da história da


instituição e o seu papel na reforma psiquiátrica brasileira.
Inicialmente no Brasil os cuidados destinados aos portadores de
transtornos mentais eram restringidos a sua contenção em lugares como
porões de Santas Casas ou prisões, especialmente àqueles que manifestavam
um comportamento agitado ou agressivo, muitas vezes vindo a falecer devido
às péssimas condições na qual eram enclausurados (RIBEIRO, 1999). A partir
do século XIX, os portadores de transtornos mentais passam a ser
direcionados para hospitais psiquiátricos, que serão o modelo vigente até a
reforma psiquiátrica (MATEUS, 2013).
Segundo Mário Dinis Mateus (2013), a crítica aos clássicos hospitais
psiquiátricos ocorre por três motivos: um financeiro, em relação aos altos
custos gerados pelos hospitais psiquiátricos; um clínico, sobre a incapacidade
de resolução da doença pelos hospitais e a “cronificação institucional” a qual
sofriam os pacientes devido aos grandes períodos de internação; outro ético,
onde se via a prática do isolamento como desrespeito aos direitos civis e às
liberdades individuais.
Do desenvolvimento dessas críticas e da atividade política de alguns
grupos ligados aos serviços de saúde mental – como associações de usuário,
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

de familiares e de trabalhadores dos próprios serviços de saúde – se tem uma


transformação no modelo de atenção à saúde mental, de modo que:
A mudança do modelo chamado hospitalocêntrico para o outro
nomeado comunitário (Szmukler e Thornicroft, 2001) tornou-se
premissa básica no que se convenciona chamar reforma da
assistência psiquiátrica, cunhando-se o termo
desinstitucionalização para as políticas caracterizadas por: a)
evitar admissões de casos novos em hospitais psiquiátricos,
através de alternativas de tratamento na comunidade; b)
devolver à comunidade todos os pacientes institucionalizados
que tenham recebido a adequada preparação para essa
mudança; e c) estabelecer e manter um sistema de suporte e
reabilitação na comunidade para as pessoas com transtornos
mentais graves (MATEUS, 2013, p.59).

Com a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 – resultado de um


movimento conjunto de associações de usuários de serviços de saúde mental,
familiares e profissionais – são garantidos direitos ao portador de transtorno
mental, de modo a assegurar sua não discriminação por sua condição de
portador de transtorno mental grave. Assim, assegura direitos aos usuários,
como de acesso à saúde conforme suas necessidades, livre acesso quanto às
informações sobre sua condição, e garantias quanto à internação, sendo
apenas mobilizada enquanto último recurso terapêutico disponível. Aponta-se
para uma mudança nas práticas terapêuticas em relação ao portador de
transtorno mental, de modo que o foco se dá não mais em um tratamento
voltado para a condição biomédica da loucura, mas enquanto sujeito
biopsicossocial, visando sua reintegração ao meio social o qual em pertence,
explicitado no Artº4, §º1: “O tratamento visará, como finalidade permanente, a
reinserção social do paciente em seu meio”(BRASIL, 2001). Neste processo, a
participação dos familiares e o relacionamento do usuário com seu contexto
social de existência toma importância, como está presente no artigo 3º da lei
10.216:
Art. 3º: É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da
política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações
de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida
participação da sociedade e da família, a qual será prestada
em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as


Grifo nosso
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde


aos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2001) .

Esse conjunto de mudanças resultará nas transformações das políticas


públicas de saúde mental, que se direcionam para duas formas institucionais:
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas.
Enquanto política pública de saúde, os CAPS se compõem como uma
tentativa de desinstitucionalização do atendimento psiquiátrico às assim
chamadas doenças mentais, procurando realizar o tratamento ambulatorial e
integral aos portadores de transtornos psíquicos, evitando sua internação por
longos períodos de tempo. Deste modo, sua equipe técnica compõe-se de uma
diversidade de especialistas da saúde, como psicólogos, psiquiatras,
terapeutas ocupacionais, farmacêuticos e assistentes sociais, voltados a uma
ação direcionada para o usuário deste tipo de serviço de saúde mental que
proporcione sua reinserção social.
Segundo o documento “Saúde Mental no SUS: Os Centros de Atenção
Psicossocial” (BRASIL, 2004), os CAPS são definidos como:

[...] instituições destinadas a acolher os pacientes com


transtornos mentais, estimular sua integração social e
familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da
autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e
psicológico. Sua característica principal é buscar integrá-
los a um ambiente social e cultural concreto, designado
como seu “território”, o espaço da cidade onde se
desenvolve a vida quotidiana de usuários e familiares. Os
CAPS constituem a principal estratégia do processo de
reforma psiquiátrica (BRASIL, 2004, p. 09).

Para além do modelo manicomial, o CAPS foca-se em constituir uma


atenção diária a seus pacientes portadores de transtornos mentais graves, de
modo que a condução do processo terapêutico também os reabilite para a
inclusão social, fortalecendo vínculos com o grupo familiar e com sua
comunidade. Assim, para além das diversas formas de tratamento oferecidas
(terapias psicológicas, medicação, consultas com psiquiatras), a instituição
também promove grupos de familiares e grupos de pacientes, com o intuito de


Grifo nosso.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

aproximar os familiares do tratamento e transmitir conhecimento sobre os


transtornos emocionais e psíquicos.
Dentre suas obrigações, além de oferecer terapias aos usuários diretos
de seu serviço, tem também foco em atender a família dos usuários e reinseri-
los em seus contextos sociais, como é colocado nos itens e e f do Artigo 4.4 da
portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, que estabelece as competências
do CAPS, nesse caso em especial as do CAPS II (BRASIL, 2002).
O CAPS nos aparece como importante espaço de análise no momento
em que se coloca como uma das principais instituições na reforma psiquiátrica
brasileira, tendo papel atuante não apenas no campo da saúde como também
no processo de educação da sociedade em geral e dos próprios servidores da
atenção básica em saúde para com questões de doença mental, na forma da
organização de eventos e simpósios sobre o tema. A instituição procura
familiarizar parte da população com suas terapêuticas, de modo a incorporar
para seus tratamentos setores da população que possam vir a ter certa
distância das práticas terapêuticas oficiais, o que é especialmente pertinente
quanto às classes populares, uma vez que as relações entre classes populares
e medicina, muitas vezes se colocava na forma de antagonismo ou resistência
(MONTERO, 1985; LOYOLA, 1984), sendo que a abordagem psicossocial
desta instituição de saúde procura inculcar - dada à própria necessidade de
sua forma de trabalho e operação - suas categorias de doença e saúde metal,
ou seja, produzir uma maior incorporação dos conceitos e categorias da
medicina oficial.
Entretanto, o processo de adoecimento não pode ser separado dos
condicionantes sociais que atravessam as experiências da doença, como é
colocado por Minayo (2006), pois a doença e a saúde não se reduzem a uma
evidência orgânica, natural e objetiva, mas a forma pela qual é vivenciada pela
pessoa doente e pelos grupos sociais, o que está intimamente ligado às formas
de organização social e cultural de cada sociedade. Logo, o doente é também
um personagem social e sua experiência e a experiência do grupo em relação
a ele são os parâmetros os quais também contribuem para a construção da
doença enquanto realidade. Deste modo, como também observado por Loyola
(1984), Pires (2014), Duarte (1986), Nakamura (2007), Lépine (1992), Cardoso
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

(1999), Santos (2013), os distintos grupos sociais produzem concepções


etiológicas e nosológicas próprias com bases em referenciais próprios, levando
a terapêuticas alternativas e complementares às da medicina oficial.
Pois então, a tarefa da instituição passa por reelaborar a experiência de
saúde e doença dos familiares de usuários a partir dos termos médicos ali
veiculados, uma vez que a diferença da base sociocultural das representações
sobre os processos patológicos levam a produção de representações
diferentes entre clientela atendida e corpo técnico da instituição.
Deste modo, como pensar o processo de encontro entre agentes
socioculturais distintos – a equipe técnica do CAPS e os familiares de usuários
– dentro dessa instituição de saúde? Tomando por referencial as discussões
teóricas de Montero (2006), buscamos então observar se há possibilidade de
criação de formas de consenso, os quais podem gerar novas formas de
percepção e explicação das doenças, advindas da prática terapêutica médica
em contexto de atendimento público, que pode vir a produzir alteração nas
representações portadas por estes agentes sociais, em um processo de
tradução das categorias locais de transtorno mental - "louco", "mal da cabeça"
ou nervoso, constantemente presentes na bibliografia – para as categorias
médicas ali veiculadas.

3. Necessidades do projeto

Para a realização da pesquisa, foi necessário o envio do projeto ao


comitê de ética em pesquisa da UNESP - FCLAr, uma das exigências por parte
dos técnicos da instituição para possibilidade de realização da pesquisa
científica em um local de saúde como esse. Deste modo, foram produzidos
Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para a aplicação aos
interlocutores da pesquisa, além do parecer do Comitê sobre meu projeto que
tive que entregar à instituição.
Creio que o maior problema da passagem ao comitê de ética em
pesquisa deu-se devido à distância entre o tempo da pesquisa em Antropologia
e o requerido pelo formato de projeto que teria de ser enviado à comissão de
ética em pesquisa: preparação de um questionário prévio ao trabalho,
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

delimitação de que sujeitos serão entrevistados e seu número, além da


aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido aos sujeitos com que
eu trabalhasse – mesmo com a possibilidade de requisição de dispensa do
termo para situações específicas dentro da pesquisa. Dessa forma, eu
precisaria de uma formatação prévia das questões de campo, uma vez que
haveria necessidade de fazer um acordo prévio sobre o que seria e o que não
seria pesquisado; ou como coloca Duarte sobre a formulação de projetos para
Comitês de Ética:

“Isso pode ocorrer evidentemente nas ciências biomédicas,


suscitando inclusive previsões normativas de informação ao
sistema Cep/Conep das modificações que se venham a fazer
necessárias. Mas nas CHS o caráter processual é intrínseco,
permanente, já que a experiência da interlocução de campo é
fonte contínua de retroalimentação do projeto, que “aprende”
justamente no “caráter processual e dialógico” da pesquisa,
como enuncia nosso terceiro princípio. Não há como comunicar
alterações dos procedimentos de pesquisa, porque o próprio
desenho da pesquisa prevê que eles sejam alterados ao longo
de seu curso” (DUARTE, 2014, p.11).

Para além daquilo que Wagner (2010) afirma sobre a invenção de


nossos instrumentos teóricos para a explicação dos contextos socioculturais
nativos, a prática etnográfica de pesquisa envolve uma temporalidade única
(PEIRANO, 2007), incapaz de ser esquematizada previamente e de se
movimentar de acordo com um modelo previamente estabelecido. Se
tomarmos como referência Favret-Saada (2005) que pensa que a experiência
etnográfica se realiza por meio daquilo que nos afeta, ou seja, a produção de
um deslocamento subjetivo que nos torna capazes de realizar uma leitura
sobre aquela realidade social que esteja mais próxima das experiências
concretas dos sujeitos que estamos em diálogo/convivência, a ideia da
possibilidade de um “contrato” inicialmente firmado com os interlocutores sobre
os movimentos da pesquisa aparece como contraintuitiva, uma vez que, como
coloca Duarte (2014), a negociação do consentimento para a realização de
pesquisa é muito mais processual do que pontual. Dessa forma as exigências
“éticas”3 formais de pesquisa se transformaram mais em uma condição de

3
As aspas em torno da palavra ético se referem não a uma falta de preocupação quanto aos
possíveis efeitos que a pesquisa poderia vir a ter sobre vida dos interlocutores, mas sim, a
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

realização da pesquisa, a qual tinha que reafirmar a todo o momento, seja


durante a entrevista ou as etnografias.
Entretanto, a noção de um acordo “ético” sobre a pesquisa se coloca de
forma problematizada, uma vez que, em uma das entrevistas, durante a
explicação das garantias e direitos da interlocutora, a mesma se pôs a contar
sua história de vida e o que havia levado seu familiar à instituição, de modo
que a interrupção de sua fala para a continuidade da explicação do termo
poderia levar a perda das informações tão preciosas veiculadas naquele
momento. Assim, não se pode colocar que o processo de pesquisa comece em
determinado tempo específico, justamente porque o pesquisar se faz em
qualquer interação com seus interlocutores em campo, e não apenas quando
estamos os questionando ou observando suas ações diretamente.

4. A etnografia em um Centro de Atenção: o grupo de familiares no CAPS


II de Araraquara

Como coloquei anteriormente, com o objetivo de apreender um


hipotético processo de incorporação das categorias psiquiátricas mobilizadas
nesse centro de atenção à clientela ali atendida, realizei etnografias entre
novembro de 2016 e fevereiro de 2017 no CAPS II de Araraquara, participando
de algumas das reuniões de equipe, mas principalmente das reuniões com
familiares de usuários, o chamado grupo de familiares. A partir do que foi
levantado no trabalho de campo, foram entrevistadas duas familiares de
usuários do CAPS II em Abril de 2017, procurando desenvolver nas entrevistas
algumas das questões, como qual o impacto da instituição na visão que se têm
sobre o tratamento; como chegaram ao CAPS; se já fizeram uso de alguma
outra forma de terapia que não as reconhecidas pelo Estado, etc.
Os grupos de familiares aconteciam em um local mais ao fundo do
prédio, em uma área coberta ao lado de um pequeno pátio, pelo qual algumas
vezes transitavam usuários do CAPS II. A reunião se desenvolvia sem um

problematização em torno de um tipo especifico de consideração daquilo que seja o ético que
dá-se a partir de um pensamento inicialmente formulado para o campo das ciências
biomédicas, e que posteriormente tende a se aplicar às ciências humanas, o que Duarte (2014;
2015) coloca-se contra.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

roteiro já delineado, geralmente com uma introdução daquelas que


coordenavam o grupo sobre a especificidade do mesmo e qual sua função. Nas
vezes observadas, as coordenadoras do grupo eram psicólogas ou terapeutas
ocupacionais, as quais eram responsáveis por manter a ordem das falas,
organizar os relatos, direcionar as discussões e dar algum esclarecimento às
perguntas ali realizadas. Geralmente ocorriam em roda, com algumas das
técnicas responsáveis pelo grupo nas extremidades, e os familiares espalhados
pelas cadeiras; duravam aproximadamente uma hora e meia, indo das 10h até
11h30 muitas vezes.
O intuito do grupo de familiares era, segundo seus realizadores, a troca
de experiências, realizada através da conversa entre estes e as terapeutas, ou
entre os familiares entre si. A partir do incentivo inicial das organizadoras do
grupo, que era geralmente perguntar para alguns dos presentes sobre o estado
atual dos usuários em suas casas, dar algum informe sobre um evento
específico como passeios e outras atividades recreativas, ou abordar os
problemas como falta de medicamentos na rede pública, um conjunto de
questões ia se desenvolvendo nas falas dos presentes, como a resistência de
um usuário a tomar medicação, ou a pressão social feita por parentes e amigos
sobre a família em relação ao tratamento, ou a transformação de perspectiva
em relação a algumas questões ali tratadas como delicadas, como a
necessidade de internação em surto ou mesmo sobre a doença e o tratamento.
Percebi que muitos desses problemas comuns eram agenciados em
torno de problemáticas como “direito a cidadania”, “bem-estar”, “autonomia” e
outras categorias que remetem a uma constituição a um sujeito autônomo,
capaz de autogoverno. Muito do que era falado ali remetia a um projeto ético-
político que perpassava a instituição, onde se incentivava, por exemplo, que
não se poderia haver um cuidado excessivo do usuário do CAPS II, uma vez
que a ideia não é deixa-lo dependente de alguém, mas capacitá-lo para que o
mesmo fosse capaz de tomar conta de sua própria vida. Assim, a discussão
sobre “direitos” aparecia nas falas das organizadoras do grupo de famílias,
como em situações onde se discutia sobre a falta de medicamento e a ida ao
ministério público para consegui-los; discussões sobre a estrutura e qualidade
do hospital utilizado para internações em quadros agravados; entre outros.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Muitas vezes eu era referido através do nome “estagiário” pelos técnicos


da instituição, devido a minha posição de pesquisador que, ao mesmo tempo
não era diretamente ligado a instituição, como também não participava da
mesma na condição de gestor, técnico, usuário ou familiar de usuário, os
sujeitos recorrentemente presentes ali. Percebo que um dos condicionantes do
trabalho de campo envolvia quais resultados essa pesquisa poderia trazer,
condição inicial para a possibilidade do trabalho de campo. Desta forma, tanto
os técnicos quanto alguns dos familiares falavam comigo a partir da posição de
pesquisador, alguém que era capaz de elaborar uma leitura das relações ali
presentes e produzir uma análise que seria útil aos fins da instituição, como me
apareceu em uma das entrevistas, na qual uma das interlocutoras me disse
que “loucura de verdade” seria não cooperar com uma pesquisa a qual poderia
trazer resultados para o CAPS II. Logo, a minha presença enquanto
pesquisador não passava despercebida, mas tinha de ser negociada em todos
os momentos da pesquisa.
.
5. Considerações

A experiência de etnografia no CAPS II de Araraquara me serviu para


perceber como em qualquer campo de pesquisa se faz necessário o
desenvolvimento de estratégias de entrada para que seja possível se “inteirar”
ao local e participar – não completamente, mas de alguma forma - das relações
ali presentes, que em meu processo se deu mediante o domínio da linguagem
dos códigos da ética e da responsabilidade social do conhecimento, através do
qual era reconhecido.
O trabalho de pesquisa em Ciências Sociais – em especial, em
Antropologia – no campo da saúde faz-se de modo a apreender os significados
sociais do adoecer. Dessa forma, a pesquisa etnográfica é capaz de produzir
uma leitura sobre os processos socioculturais que envolvem a experiência da
doença, trazendo como se dá a realização cotidiana das políticas públicas de
saúde e como podem se constituir relações sociais neste tipo situação.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Reflexões sobre a etnografia no âmbito da saúde: a experiência do


cuidado dos Agentes Comunitários de Saúde aos imigrantes bolivianos e
bolivianas em um Centro de Saúde-Escola da região central de São Paulo.
Nana Silva Foster1
Eugenia Brage2

Resumo

O aumento do fluxo migratório internacional na Região Metropolitana de São


Paulo tem exigido uma reconfiguração das políticas e práticas de assistência
em saúde no que diz respeito à garantia do acesso dos diferentes grupos de
imigrantes aos serviços, considerando a motivação das pessoas para
migrarem, suas trajetórias singulares e coletivas e o processo de adaptação a
um novo país. O objetivo desse trabalho é refletir sobre o cuidado voltado aos
imigrantes bolivianos e bolivianas através da Estratégia de Saúde da Família
(ESF) no Centro de Saúde-Escola Barra Funda. Partimos da perspectiva dos
próprios imigrantes assim como dos profissionais de saúde, tendo em vista que
as ações de cuidado são geralmente desenvolvidas por mulheres. O trabalho
de campo etnográfico foi desenvolvido para um projeto de pesquisa intitulado:
“Estudo etnoepidemiológico sobre a tuberculose entre imigrantes sul-
americanos: contribuições à análise das condições de vida, de trabalho e de
saúde dos imigrantes bolivianos e bolivianas na cidade de São Paulo” e para o
mestrado de umas das autoras. Nesse trabalho apresentamos também as
riquezas da etnografia para a abordagem dos processos sociais, tendo em
consideração os diferentes níveis de análise, as políticas, as instituições e os
próprios imigrantes.
Palavras-Chave: Imigração, Atenção Primária à Saúde, Estratégia Saúde da
Família, Bolivianos e Bolivianas.

1
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo -
UNIFESP
2
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de Buenos Aires – Instituto de Ciencias
Antropológicas, UBA – CONICET-
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução
O presente trabalho surgiu como um diálogo entre duas experiências
etnográficas diferentes, mas interligadas e desenvolvidas na mesma unidade
de saúde. Ambas buscavam entender as possíveis relações existentes entre os
processos migratórios internacionais e a saúde, considerando a complexidade
dos elementos imbricados neste contexto.
A primeira experiência desenvolveu-se no contexto de um estudo sobre
a tuberculose entre os imigrantes bolivianos e bolivianas e a segunda
percorrendo os diferentes espaços de cuidado voltados para os imgrantes
bolivianos e sobretudo bolivianas. A partir do dialogo entre a experiência
etnográfica das duas pesquisadoras, a proposta ‘e refletir sobre o cuidado
voltado à população boliviana por parte das agentes comunitárias de saúde.
Com o foco nessa população, residente na Região Metropolitana de São
Paulo, buscamos entender as implicações que sua presença tinha para a
organização dos serviços de saúde e para o modo como Atenção Primária em
Saúde, por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), realiza o
acompanhamento e cuidado desses imigrantes (Aguiar, 2013; Xavier, 2010).
O principal cenário etnográfico foi o Centro de Saúde-Escola “Dr.
Alexandre Vranjac” (CSEBF), unidade básica de saúde, que se situa no Distrito
de Saúde Oeste, mas atua também em bairros em conexão com a área central
do município de São Paulo, como o Bom Retiro e o Brás (região centro-leste).
Além disso, procuramos circular por outros espaços sociais com os quais
bolivianos e bolivianas se relacionavam, para uma observação ampliada do
modo como essas pessoas se inserem na cidade.
A etnografia como percurso teórico-metodológico nos permitiu ir
conhecendo a temática da migração por meio da perspectiva dos profissionais
aos quais fomos nos aproximando. A circulação pelos diferentes espaços do
Centro de Saúde-Escola Barra Funda acontecendo a partir de conversas com
os profissionais, conforme íamos colocando inquietações, dúvidas e
questionamentos com relação à temática. Desse modo, o recorte de pesquisa
foi sendo construído processualmente e junto com eles.
Os processos de migração, internos e internacionais, suas causas,
efeitos e modos de estruturação representam um campo de estudo
amplamente desenvolvido nas ciências sociais. As abordagens predominantes
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

enfatizaram os deslocamentos para fins de trabalho, produto de desigualdades


sociais e relacionados à busca de melhores condições de vida de grupos
migratórios específicos e seus processos de integração social.

Vários autores abordaram os processos de atendimento das populações


migrantes em termos de acesso aos sistemas de saúde pública e
estigmatização de certos grupos (Abel e Caggiano, 2006, 2007, Jelin, Grimson,
Zamberlin, 2006). Ou seja, a articulação dos estudos migratórios com o campo
da saúde tornou relevante a complexidade dos fenômenos migratórios da
presença de grupos de imigrantes nos hospitais e serviços de saúde, dando
conta das formas de discriminação étnica e discursos raciais e discursos
xenófobos e práticas em instituições

Os processos saúde-doença-atenção-cuidado são articulados em


processos econômico-sociais e políticos que determinam "a capacidade que os
grupos têm de usar indistintamente e de mais de uma maneira, a possível
solução ou atenção de seus sofrimentos" (Menéndez, 1994,: 20). Nesse
sentido, os itinerários que as pessoas estabelecem para cuidar das doenças
dependerão de um conjunto de elementos socioeconômicos, políticos e
culturais disponíveis, incluindo redes sociais e comunitárias, bem como acesso
à informação. Isso tem sido amplamente discutido na Antropologia da Saúde,
ressaltando a importância do acesso diferencial à saúde e a incidência das
diferenças de classe (Antonovsky, 1967) no tipo de atendimento e acesso à
hospitalização.

No que diz respeito ao acesso à saúde pública, as deficiências do


sistema de saúde boliviano foram bem explicadas por Ramírez Hita (2009). A
autora nos aproxima do funcionamento dos serviços, alegando que a saúde
pública esteve e está ausente em muitas partes da Bolívia e, acima de tudo,
em áreas indígenas remotas.

Acreditamos que essas questões não são menores quando se trata de


estudar a inserção dos bolivianos e bolivianas para os serviços de saúde em
São Paulo. Vale ressaltar que muitas vezes há uma tendência em se perder de
vista de que os bolivianos e bolivianas utilizam os serviços de saúde,
generalizando uma ideia de que eles usam formas de cuidados tradicionais.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em nossa perspectiva, é mais pertinente considerar as formas de pluralismo


médico, nas quais os bolivianos combinam diferentes modelos e uma atenção
fortemente estruturada a partir da biomedicina. Esta dimensão da saúde
pública boliviana não pode ser desconsiderada, uma vez que também fornece
informações sobre as formas como os bolivianos vão se inserindo no SUS e,
neste caso, na ESF.

O trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde expressa os "cuidados


institucionais" para além dos cuidados biomédicos. O contato que os Agentes
Comunitários de Saúde têm com a população imigrante é fundamental para a
garantia da continuidade do cuidado. Os serviços de assistência à saúde,
principalmente a ESF, são muitas vezes a “porta de entrada” dessa população
não só no Sistema Único de Saúde, mas também no estabelecimento de uma
forma de inserção social dessa população (Martes; Faleiros, 2013; Aguiar,
2013; Carneiro Jr. et al., 2010; Xavier, 2010). Xavier (2010), Martes e Faleiros
(2013) destacam a carteirinha do SUS como algo valorizado pelos imigrantes
bolivianos e bolivianas, sendo muitas vezes o primeiro documento dessas
pessoas no Brasil.

Alguns autores (Silveira et al, 2014; Goldberg; Silveira, 2013; Martes e


Faleiros, 2013) apresentam problemas relacionados ao acesso dessa
população ao serviço de saúde e ao problema de continuidade do tratamento.
Dentre eles, a barreira da língua, as diferentes compreensões do processo
saúde-doença e das noções de cuidado, as condições de trabalho, moradia e,
muitas vezes, a situação de estarem indocumentados, que acaba
potencializando uma condição de vulnerabilidade.

A suposta condição de vulnerabilidade comumente atribuída aos


imigrantes bolivianos e bolivianas já tem sido mais relativizada, de acordo com
as falas de alguns profissionais de saúde que os acompanham. Os
profissionais dizem que percebem de modo geral uma melhoria nas condições
de vida dessa população. Outra transformação apontada pelos profissionais foi
no acesso ao serviço. Os profissionais do CSEBF que os acompanham há um
tempo comentam que o acesso antes era mais difícil e hoje isso mudou. Alguns
profissionais inclusive mencionaram que eles valorizam o acesso ao CSEBF, a
qualidade da assistência oferecida e têm buscado mais o serviço, o que indica
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

o estabelecimento de uma relação mais sólida entre essa população e a equipe


de saúde.
Esses pontos destacados tornam-se as premissas para uma
aproximação dos modos de organização necessários para acolher essas
pessoas, considerando seu contexto cultural de origem, suas histórias de vida,
suas concepções de vida, saúde e adoecimento. Além disso, o
desenvolvimento de estudos sobre os processos migratórios na saúde coletiva
“tem contribuído para a ampliação dos debates metodológicos e conceituais
sobre o tema” (Silveira e Goldberg, 2017, p. 257). Sendo assim, esses estudos
podem viabilizar a formulação das políticas de saúde, a ressignificação das
ações de cuidado assim como a reorganização dos diferentes serviços.
Nesse sentido, as seguintes indagações nos acompanharam ao longo
deste trabalho: quais estratégias e ações o CSEBF desenvolveu ou continua
desenvolvendo para essa população? Como o CSEBF está estruturado para
atender esses imigrantes? Considerando a ESF como importante “porta de
entrada” dos imigrantes ao SUS, contando com a mediação fundamental dos
Agentes Comunitários de Saúde, quais são os pressupostos para o
acolhimento, acompanhamento e continuidade do cuidado oferecidos a esses
grupos? Quais as percepções dos profissionais de saúde em relação à
população de bolivianos atendida? Há diferença entre o acompanhamento e
atendimento dessa população e da população de brasileiros? Quais os
problemas de saúde que os imigrantes trazem ou que os profissionais
identificam?
A construção do cuidado
O cuidado em saúde tem sido constituído como uma grande tema de
debate dentro da saúde coletiva como parte das contribuições das ciências
sociais e humanas em saúde. Tal como tem sido evidenciado por Luz (2011)
uma das contribuições das ciências sociais na saúde, além da sua mutação do
“olhar disciplinar”, foi a instrumentação conceitual de políticas inovadoras de
saúde, que “levam em consideração a participação, como atores, de pacientes
e coletivos de usuários, ao incorporar categorias das ciências humanas, como
as de sujeito, sofrimento e cuidado (...)” (Luz, 2011: 27).
O cuidado é definido como um conjunto de atividades destinadas a
satisfazer as necessidades básicas de um e outros para a sustentabilidade da
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

vida. Considerando que nossa experiência é atravessada por diferentes graus


de dependência e vulnerabilidade (Tronto, 1993), o cuidado deve ser entendido
dentro da rede de interações que compõem a vida reconhecendo que todos os
indivíduos somos em diferentes momentos tanto autônomos quanto
independentes, bem como vulneráveis e dependentes (Benhabib, 1994). Nesta
perspectiva, todos temos direito de receber cuidados adequados durante a vida
e participar de relações de cuidados que dão sentido às nossas vidas (Tronto,
2004).

No âmbito do Centro de Saúde-Escola Barra Funda, a maioria dos


profissionais e técnicos de saúde responsáveis pelo cuidado da saúde são
mulheres. Dentro da equipe de Estratégia Saude da Familia, que fez parte das
duas pesquisas, dos 10 profissionais da equipe, 9 são mulheres.

Os Agentes Comunitários são aqueles profissionais de saúde, que vivem


nos bairros de atuação da ESF..A função primordial destes agentes é garantir
que a equipe de saúde chegue até as pessoas e que as pessoas possam ir
criando uma relação cada vez mais próxima com o serviço de saúde, de acordo
com suas necessidades de saúde. No caso da população boliviana, a
construção desta proximidade demonstrou ser fundamental para a criação de
um vínculo entre esta e os ACS. Por consequência, vai-se tendo uma maior
visibilidade das realidades sociais, culturais e das condições de vida e de
trabalho dessa população .

Neste contexto, ocorre uma relação de cuidados formal e informal


(Brage, 2017). A entrada na vida diária dos bolivianos pelos agentes de saúde
da comunidade, embora possa ser interpretada como uma relação de controle,
pode ser interpretada como uma relação de cuidados. Essa tensão entre
controle e cuidados aparece freqüentemente nos debates sobre cuidados de
saúde e é um tema que pretendemos abordar no futuro, levando em
consideração os fatores intrínsecos que são tecidos no campo.

Considerações Finais

As experiências de campo no Centro de Saúde Escola Barra Funda


demonstraram que se trata de um serviço privilegiado no que se refere tanto
aos recursos humanos quanto à própria estrutura física, contemplada com
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

diferentes espaços de cuidado para atender à população de seu território


(incluindo os imigrantes bolivianos e bolivianas), caracterizada pela
heterogeneidade no seu perfil e, consequentemente, nas suas necessidades.
Pelo relato dos diferentes trabalhadores de saúde entrevistados, que
estão há pelo menos um ano no serviço, fica claro que algumas dificuldades
iniciais para garantir o acesso dessa população ao serviço de saúde foram
sendo superadas. Segundo os trabalhadores, pela estratégia de aproximação e
construção do vínculo entre os eles e os imigrantes bolivianos, que residiam e
residem ainda, em sua maioria, em oficinas de moradia-confecção.
A percepção dos trabalhadores de saúde em relação a essa população,
de modo geral, é de que, conforme foram se aproximando de suas realidades e
contextos de vida, puderam mudar seu olhar em relação a esses imigrantes. O
relato de alguns trabalhadores demonstrou a amenização de uma visão
estigmatizada e vitimizada dessa população, podendo rever preconceitos,
como aqueles referentes à superexploração de seus trabalhos ou como
pessoas que não cuidam da própria saúde. Essa mudança de referencial não
indica uma superação das dificuldades e preconceitos, mas torna evidente um
esforço de entender seus modos de vida e seus problemas de saúde
Algumas estratégias realizadas neste serviço estavam voltadas à
população de bolivianos. Uma delas foi a criação de uma agenda semanal pela
equipe da ESF para concentrar o atendimento e acompanhamento das
gestantes bolivianas (e outras sul-americanas), todas às segundas à tarde.
Houve também a intensificação da realização da estratégia de busca
ativa para casos de tuberculose entre os bolivianos e bolivianas que residem e
trabalham em oficinas de costura. Esta ação estava relacionada ao fato de que
a incidência desta doença entre os sul-americanos era significativamente maior
do que a incidência na população brasileira, conforme pôde ser identificado na
pesquisa sobre tuberculose mencionada no início deste trabalho. Este dado,
pudemos identificar, está fortemente ligado às condições de vida e de trabalho
da população de imigrantes sul-americanos que reside no território de atuação
deste serviço.
Outra estratégia realizada pelo CSEBF que merece destaque foi a
contratação de duas trabalhadoras de outras nacionalidades, uma ACS
boliviana e uma enfermeira chilena, que foi contratada em outra equipe da
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

ESF. Essas duas trabalhadoras auxiliam na comunicação com os sul-


americanos na tradução da língua, mas também acabam atuando como
mediadoras culturais. Essas funções, segundo outros trabalhadores,
possibilitaram uma melhor compreensão das particularidades das culturas, algo
que Aguiar (2013) também observou em sua pesquisa no bairro do Bom Retiro.
Dentro da ESF, o recurso das visitas domiciliares pelos ACS também
assumiu um papel importante para essa população. Segundo a médica e a
enfermeira da ESF, essas visitas foram possibilitando a aproximação dos
homens bolivianos, que, no início (quando estas começaram a trabalhar no
CSEBF), eram mais resistentes à realização de consultas e exames e
apareciam pouco no serviço. A enfermeira da ESF relata que, por meio do
vínculo com as bolivianas gestantes, conseguiram ir se aproximando aos
poucos dos bolivianos. Nas VDS conseguem, por exemplo, orientá-los em
relação à prevenção de DSTs e no uso de métodos contraceptivos.
Os estudos etnográficos têm servido de subsídio para a reflexão sobre
diversos temas que atravessam o cotidiano dos serviços de saúde e todos os
atores fazem parte deste contexto. A possibilidade de trazer as diferentes
narrativas destes atores tem enriquecido o campo da saúde coletiva, pensando
desde as políticas e a gestão até as relações sociais se estabelecem na
realidade dos diferentes serviços e como se constroem as ações de cuidado.
A importância de trabalhos acadêmicos voltados à compreensão da
relação dos diferentes grupos de imigrantes com a saúde está justamente na
possibilidade de, a partir da compreensão de seus modos de vida, oferecer
visibilidade para a questão do processo migratório, mostrando como este
fenômeno afeta as relações sociais em nível local, regional, global e deve ser
incluído nas discussões e construções das políticas públicas em diferentes
áreas.
Grupo de Trabalho 2 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 3
Direitos sexuais e reprodutivos em
narrativas femininas: o meu corpo me
pertence em sua miríade
Coordenadoras: Rosamaria Carneiro (FCE/UnB) e
Giovana Tempesta (DAN/UnB)
Grupo de Trabalho 3
Direitos sexuais e reprodutivos em narrativas femininas: O meu
corpo me pertence em sua miríade
Este GT busca agregar trabalhos que versem sobre os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres, a partir de suas experiências de gestação,
abortamento, parto e puerpério, expressas em narrativas e outras formas de
agência, incluindo relatos de violência em seus variados matizes. Nesse
sentido, se dispõe a refletir sobre o histórico slogan "o meu corpo me pertence"
dos anos 80, mas em sua atualidade, contemplando investigações dedicadas a
questões implicadas nas diferentes formas de viver a maternidade no Brasil e,
eventualmente, em outros países. A ideia é reunir leituras contemporâneas das
temáticas a partir de movimentos de mulheres, feminismos, relatos de
experiência e etnografias que busquem refletir sobre tais temas à luz de
contextos culturais e históricos diversos, urbanos e rurais, envoltos em
percepções biomédicas ou associadas a saberes tradicionais, que explicitem
diferentes contornos de subjetividade feminina, conjugalidade, sexualidade,
corporalidade, arranjos familiares e interação com o Estado.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Gestação: “A barriga” e suas implicações relacionais em uma vila de


pescadores e marisqueiras no Baixo-Sul Baiano.
Patrícia de S. Rezende1
Cecilia Anne McCallum2
Resumo

O trabalho é resultado de uma etnografia sobre reprodução feita de 2011 a 2014,


no Baixo-Sul da Bahia, com pescadores e marisqueiras artesanais,
remanescentes de quilombolas, em uma vila referida como ‘Riachão’.
Documentamos em notas de campo (NC) e registros de entrevistas as
experiências de mulheres grávidas, puérperas, e seus parceiros, familiares e
vizinhos ao acompanhá-los no dia-a-dia. Aqui, focamos a gestação e as buscas
das mulheres por cuidados. Na aceitação da gravidez, revela-se a importância
do apoio social e das concepções nativas sobre gênero e o corpo feminino. Ao
tornar a gravidez pública (quando “sai pra rua”), confirma-se seu caráter social e
sua importância na assimilação intersubjetiva das mulheres. A “barriga”,
enquanto cresce, simboliza e solidifica as relações ao seu redor, concretizando-
se em um fenômeno social que conecta sujeitos. Mostramos como a
transformação de um corpo gera a modulação e recriação do nexo de
relacionalidade – que é o que dá conteúdo à reprodução. Os homens são
centrais na constituição do processo gestacional de modo saudável e esperado
socialmente. Nos cuidados acionados, prevalecem as relações entre os
próximos da vida social. Mas o Estado também aparece como sujeito.
Materializado no sistema de saúde, acompanha a gestação, através do Pré-
Natal (PN), revelando papel ambíguo de cuidado. O modelo de atenção faz da
reprodução um fenômeno biológico, com foco no corpo que se desenvolve dentro
de outro corpo. A gestação se revela um momento importante em que os olhares
estão centrados naquele corpo que é produzido. Este modelo explicativo é
incorporado nas concepções nativas, porém agregado à ordem de saber prático:
conhecimentos que interagem de modo dinâmico, complementar e complexo.

Palavras-chave: Gestação; Barriga; Saúde; Relacionalidades

1
FCE/UnB; MUSA/ISC/UFBA
2
FFCH/UFBA; MUSA/ISC/UFBA
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução
Discutiremos o processo de gestação e as buscas por apoios e cuidados,
em uma vila de marisqueiras e pescadores artesanais, que denominamos
Riachão3. Parte de uma ilha no Baixo-Sul da Bahia, a vila é habitada por quase
1300 pessoas, maioria negra e de baixa-renda. Durante nove meses em campo,
dezoito mulheres que vivenciavam o processo reprodutivo (da gestação ao
puerpério) foram acompanhadas. Este texto é uma reflexão sobre os dados de
campo, onde vimos, desde as práticas contraceptivas até a aceitação da
gravidez, a importância do apoio social, as concepções nativas sobre o corpo
feminino e a responsabilização pela gravidez que recai sobre as mulheres. Da
aceitação até se tornar pública, reforça-se o caráter socialmente constituído da
gestação e a importância que este processo tem na assimilação intersubjetiva
das mulheres. A “barriga” simboliza e solidifica as relações sociais que vão se
estabelecendo ao seu redor enquanto cresce. O homem aparece como
importante sujeito nestas relações e o Estado se revela encarnado no sistema
de saúde, fornecendo cuidados no acompanhamento da gestação, do
desenvolvimento do bebê. O modelo de atenção faz da reprodução um
fenômeno biológico de um corpo que produz outro e está fundamentado em uma
ordem de saber científica, que também é incorporada nas explicações nativas,
em discurso que agrega uma ordem de saber oriunda da prática. Ambos os
conhecimentos interagem de modo dinâmico e complementar, confirmando que
a transformação de um corpo em outro não prescinde de relacionalidades – que
é o que dá conteúdo à reprodução. Diversos tipos de cuidados são acionados
para a condução adequada da gestação e as relações entre os próximos da vida
social, persistem em prevalecer.

Da descoberta ao “deixar”: contracepção, interrupção e aceitação da


gravidez.
No Riachão, são os homens que fazem os filhos. O discurso corrente em
torno da reprodução que explica o processo procriativo, atribui ao homem a
centralidade na feitura (concepção) dos filhos. Mas também responsabiliza as
mulheres quando não “evitaram” a gravidez. Uma recorrente descrença
perpassa o uso de preservativos, pelo risco de estourar. Segundo Eduarda em

3
Os nomes da vila e das pessoas são fictícios, escolhidos em diálogo com os sujeitos da pesquisa.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

uma conversa, “para ela (a mulher) tem várias formas de prevenir e para o
homem só tem a camisinha, e pode estourar”. Todos os outros métodos incidem
no corpo feminino – com exceção da vasectomia, raramente feita. Mesmo na
unidade de saúde local, os programas ofertados para o Planejamento Familiar
são exclusivamente voltados às mulheres, o que resulta no reforço desta
concepção que responsabiliza principalmente as mulheres acerca da ocorrência
da gravidez.
Iara, jovem, branca, de dezoito anos e marisqueira, estava grávida de seu
segundo filho. Casada com Donovan, descobriu sua gravidez com cinco meses.
Ambos não queriam filho. Explicou que apesar do homem fazer o filho, quem é
responsável pela gravidez é a mulher e se ela tivesse se cuidado, não estaria
grávida. Donovan também a responsabilizou pela gravidez. Falou sobre o (não)
uso da camisinha, apontando outras explicações, que não refletiam o medo de
Eduarda sobre a possibilidade de estourar:
“Veja só a situação, analise bem: eu compro tudo, compro remédio, ciclo 21
e injeção. Eu quero engravidar?? Aí as pessoas dizem que o culpado sou eu,
porque eu devia usar camisinha, mas eu vou usar camisinha com minha
mulher de casa? Vai parecer o quê? Que ela é mulher de rua, que é uma
quenga? Ela tá na minha casa. É até um desrespeito, parece que eu tô
desconfiando dela... Eduarda que estava comigo, concordou neste momento.
E ele continuou: Eu falei tanto pra ela. Quando tava com uns dois meses ela
me disse assim, tem alguma coisa mexendo na minha barriga. E eu que sou
muito brincalhão falei, que ela tava com verme. Depois eu refleti, e disse, olhe
pode ser mioma, mas você é muito nova pra ter mioma, com tua idade você
deve estar grávida, você tá prenha! Aí quando eu vi isso eu disse: mas Iara
você me enganou?? Você me enganou, mulher?” (NC).

As pessoas entendem que a responsabilidade pela contracepção é


feminina e são diversas as concepções que as pessoas possuem acerca do uso
da camisinha: desde uma desconfiança na sua eficácia, até o possível
significado de infidelidade e desconfiança conjugal que o uso pode carregar.
Susan, uma amiga, também explicou de um modo parecido:
“pra prevenir um filho, a responsabilidade é da mulher, claro! É ela que tem
que se cuidar, não o homem. O homem não tá preocupado. Camisinha, ele
usa com a mulher de fora, com a mulher de casa não”. Em outra conversa
com as mulheres do catador, uma delas me disse: “O homem fica bravo
quando a mulher tá grávida, porque não tem noção. Não pensa. Só quer
satisfazer seu instinto. A mulher que pensa, ela que tem que se cuidar”.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

A maioria das mulheres participantes não planejou engravidar, mas


poucas foram aquelas que relataram a possibilidade de interrupção. Nina,
marisqueira, negra, era mãe de três filhos e tinha 25 anos quando engravidou
novamente. Disse que não queria mais filhos, mas engravidou e começou a
desconfiar depois de dois meses. Então contou os métodos dos quais se utilizou
para a interrupção:
“Nunca tomei remédio não, mas tomei um bucado de chá pra matar: cidreira,
pulga do campo, sonrisal com coca cola, alumã, alumã com cravo, cravo,
garrafada, com um bucado de folha, pau de resposta... tudo que me davam
eu tomava. Tudo que dizia que era bom pra mata eu tomava... Depois foi
ficando grande aí fui ficando com medo de fazer mal pro bebê ou pra mim aí
eu parei e deixei” (NC).

Ao ser questionada sobre as razões de querer interromper a gravidez,


Nina respondeu: “Queria tirar porque a vida não é boa. É muito difícil. Situação
financeira, criar filho sem pai...” Nina catava marisco desde os 12 anos de idade
e recebia Bolsa Família. Sua mãe cria um de seus filhos e os outros dois ela
mesma quem cria. Estava com seu parceiro, o futuro pai do bebê, mas se referia
às dificuldades de criar filhos sozinha, pois já experimentava aquela condição.
Além de Nina, Rosa também não aceitou sua gravidez com tranquilidade.
“[…] fiz meus exames, ai deu certo, deu positivo. Só que eu não aceitava, não
queria, não gostava da situação que eu ia ter um filho... Ai foi muita coisa... Ai
eu deixei passar um pouco. Esqueci que estava com um filho dentro de mim
e resolvi contar para a minha família quando já estava com quatro meses.
Escondi, com quatro meses resolvi contar”.

Sobre a possibilidade de interrupção Rosa comentou que havia tentado,


sem sucesso. Outras mulheres não mencionaram interrupção. Algumas
disseram que não queriam, mas uma vez grávida não tentaram interromper. Para
outras, mesmo sem planejar a gravidez, a descoberta e aceitação não se deram
em grandes conflitos.
O apoio do parceiro é muito importante no processo de aceitação como
sinaliza Jussara: “No primeiro mês, eu já sabia que estava grávida porque a
menstruação não desceu mais... Pra mim foi tranquilo porque meu namorado
disse que ia assumir, ai eu fiquei tranquila”. A aceitação é um momento delicado
e importante, pois, como Eduarda nos revelou, “a barriga” vem a partir do
momento em que a gravidez é assumida. Eduarda engravidou de uma relação
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

casual. Gonçalo, não morava na ilha e quando visitou Riachão, se relacionou


com Eduarda, engravidando-a:
“Eu pensei em tirar, mas só que disse a Gonçalo: Querer eu não quero, mas
eu não tenho querer, não posso fazer nada, então, vou ter que fazer o que
tenho que fazer... Aí eu deixei e a barriga veio. […] Não gostei não (dos nove
meses de gestação), me sentia feia. Não queria. Não gostava da barriga,
não tinha apoio de ninguém.” (NC).

Frequentemente as mulheres sinalizavam a importância e centralidade de


redes de pessoas que servem como apoio social para a condução deste
processo. “A barriga” vem quando as mulheres “deixam” a gravidez “sair pra rua”.
Deixar a gravidez “sair pra rua”, no Riachão, é um processo consoante aos
achados por Bustamante (2009: 209), quando sinaliza a existência de um
processo de aceitação da gravidez e deixar a barriga crescer. Além disso,
significa assumir todos os desdobramentos de torná-la pública.

Quando a gravidez “Sai pra rua”


Há meses em campo, procurava por mulheres que aceitassem participar
da pesquisa, quando visitei Ângela e conversamos muito com sua amiga Lena e
vários de seus filhos. Perguntavam como era a pesquisa, se haveria algum
prêmio ou benefício aos moradores que participassem. Enquanto explicava,
comentei que haviam poucas gestantes e Lena interrompeu: “mas tem um
bocado de menina nova de 15, 14 anos, por debaxo dos pano, aí prenha...”
Interessada na informação repeti o que ela havia dito, perguntando se poderiam
aparecer outras meninas grávidas, ao que ela respondeu: “pode, não! tá! é que
não foi pra rua ainda... a hora que sair pra rua a gente vai ficar sabendo...” A
expressão se referia à gravidez se tornar pública. Houveram outras ocasiões de
especulação sobre novas gravidezes. Como todos sabiam da pesquisa,
passavam a notícia sigilosamente, pois em breve a gravidez “sairia pra rua”.
Quando se descobrem grávidas, a participação de outras pessoas no
apoio social, incide na aceitação desta gravidez, ao “deixar” que “a barriga”
venha. “Deixar a gravidez sair pra rua” demonstra, deste modo, como a gravidez
é um fenômeno social amplo, já que toda a vila participa deste processo. Muitas
vezes, embora não tenha sido planejada, a gravidez é bem recebida pelas
mulheres, sobretudo, quando estão envolvidas em um relacionamento amoroso
aparentemente estável. A busca por apoio se dá no processo de decidirem o que
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

fazer. Os principais agentes de cuidado ativados neste momento são seus


parceiros/futuros pais, as suas mães e/ou pais, irmãs, vizinhas, comadres,
amigas. Pessoas de seu círculo social mais próximo. A busca pelo serviço de
saúde ocorre quando a gravidez já “foi pra rua”.
Bárbara, embora tenha o pai como Agente Comunitário de Saúde, fez o
primeiro Pré-Natal (PN) aos três meses de gestação e fez a primeira
ultrassonografia com quase seis meses. Como era adolescente e não possuía
renda própria, não podia pedir dinheiro ao pai para fazer o teste de gravidez, pois
não saberia como contar que “saiu de casa”. “Sair de casa”, no Riachão, significa
começar a ter relações sexuais. Se Bárbara procurasse o posto de saúde, os
desdobramentos seriam os mesmos. Ir ao posto de saúde e começar o PN
significa tornar pública a gravidez, ou “deixar” esta “sair pra rua”, com todos os
seus possíveis desdobramentos. Bárbara passou três meses pensando o que
fazer, até que seu pai descobriu através de terceiros.
Enquanto as mulheres são consideradas as principais responsáveis pela
ocorrência da gravidez, na ilha, o processo de inclusão dos homens na
responsabilização da gravidez ocorre de forma muito tímida nos relatos locais,
mesmo sendo eles que fazem os filhos. Diante de um cenário de julgamentos
morais face à uma nova gravidez tornada pública, o processo de legitimação
desta nos revela como o exercício da reprodução é esculpido por assimetrias. O
caso de Bárbara demonstra um contexto de desigualdade nas relações de
gênero e idade. Jovem, adolescente, antes de engravidar não costumava pegar
preservativos nem mesmo usar anticoncepcional, pois as pessoas descobririam
que tinha relações sexuais, especialmente seus pais. Depois de engravidar, foi
o mesmo processo. Como ela, Jussara e Isabela relataram o mesmo problema.
Nas poucas vezes em que presenciei jovens mulheres no posto de saúde em
busca de preservativo ou para aplicar o contraceptivo, todas já tinham filhos.
Como observado em outras pesquisas, na região central de Salvador, o
exercício da sexualidade adolescente é tratado como um tabu, sobretudo nas
esferas familiares. Também nas unidades de saúde se observavam práticas
carregadas de julgamentos morais acerca do exercício da sexualidade
adolescente, ainda na lógica de responsabilização das mulheres por uma
possível gravidez precoce (MARINHO, 2006; REZENDE, 2011). As relações de
gênero, neste contexto, são assimétricas por conformarem casos em que as
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

mulheres quem são as principais culpabilizadas pela gravidez, além de serem


aquelas que mais sofrem as consequências de ter de criar um filho no contexto
de relativa pobreza (De ZORDO, 2009; MCCALLUM, 2008; SCHRAIBER, 2005;
MULLINGS, 1995).
Mullings (1995), em trabalho sobre as condições de vida e saúde da
população moradora do Harlem em Nova Iorque, observou ainda as
consequências da responsabilização que as mulheres carregam por engravidar,
dado que a criação de filhos em condições de pobreza intensifica gradativamente
o estado de vulnerabilidade destas mulheres e seus familiares. Esta reflexão é
pertinente para pensarmos o contexto específico que tratamos aqui e nos
questionarmos em que medida estas mulheres e jovens garotas são mesmo
responsáveis pelas suas gravidezes e pela manutenção das condições de
pobreza e vulnerabilidade nas quais vivem. No Riachão, a vulnerabilidade das
jovens grávidas é reforçada pelos julgamentos morais e o medo de encará-los,
provocando uma delonga na busca por cuidados à saúde, seja para
contracepção, seja para o PN. Contudo, as dinâmicas são bem diversas entre
as mulheres locais, e a publicização da gravidez nem sempre é um processo
conflituoso. Mesmo assim, a aceitação desta sempre carrega consigo o medo
sobre como conseguirão cuidar da criança. Alguns fatores são sempre
sublinhados, como a necessidade de ter “casa” e “condições” para criar o filho.
Ao deixar a gravidez “sair para rua”, as mulheres buscam cuidados no
posto de saúde e um novo processo se constitui na sua experiência de gestante.
Neste momento, o Estado, personificado no sistema formal de saúde, aparecerá
como um importante agente de cuidado à saúde destas mulheres.
As relações com o serviço de Saúde
A gravidez coloca as mulheres gestantes em relacionamentos com o
serviço de saúde – SUS. Elas consideram que o atendimento no PN garante o
acompanhamento e zelo pela saúde e desenvolvimento do bebê, além de ser
vista como medida importante do posto de saúde. Mesmo assim, existem
aquelas que não gostavam de fazer PN, como era o caso de Nina.
“Nunca gostei desse negócio de pré-natal não. Tenho tudo meus filho sem
pré-natal”. Perguntada sobre a necessidade de ir ao posto: "é, porque pode
ter alguma complicação no parto e tem que fazer todos exames, para saber
se vai ser cesáreo, ver colesterol... agora que eu to indo. Que não fui de
nenhum..." "eu não gosto de médico, é de mim mesmo. Eu sou mais tomar
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

um chá caseiro, alguma coisa assim... Ah porque agora essa gravidez é


diferente, to sentindo muitas dores, muitas contrações. Dos outros eu não
sentia nada." (NC)

Nina é sobrinha de Bianca. Ambas tiveram complicações em seus partos


anteriores. Por isso, Bianca repetia a Nina várias vezes sobre a importância de
ir ao posto fazer o PN, pois era com o PN que saberiam como estavam os bebês
e como seriam os partos. A preocupação ronda especialmente a possibilidade
de ter algum problema com o bebê. Iara e Ângela também comentaram sobre a
importância do PN:
“[…] Tem que fazer Pré-Natal" Iara completa: "pra cuidar dos menino". E
Ângela: "eu acho que tem que fazer o Pré-Natal". Ilustrando com o caso de
uma menina de Santo Antônio: “morreu os dois filho, porque não ia no posto,
e acabou morrendo os dois. A mãe dela nunca foi em médico nenhum e teve
seus filhos então ela também não quis ir. Daí morreu os dois”. (NC)

Ainda que as pessoas declarassem frequentemente suas satisfações com


relação ao serviço de saúde local – pela melhoria na oferta de serviços durante
os últimos dez anos – às vezes era difícil conseguir o atendimento buscado
relativo ao PN. A presença da enfermeira no posto de saúde tinha a frequência
semanal, sendo apenas um dia na semana, pois o posto de saúde da ilha é uma
unidade satélite, tendo como pólo o posto de outra ilha vizinha, e os profissionais
precisavam se revezar entre as unidades.
Nem sempre as primeiras consultas de PN refletiam a data exata da
busca. Algumas mulheres acionavam o serviço antes da primeira consulta,
faziam seu cadastro, mas não eram atendidas por diversos motivos, dentre eles
a ausência de profissional ou a falta de cartão da gestante, como foi o caso de
Dália. Apenas Thalia teve sua primeira consulta no primeiro mês de gestação.
Todas as outras foram consultadas a partir do segundo, terceiro, quarto, quinto
ou sexto mês de gestação.
O manual técnico da assistência pré-natal, publicado pelo MS em 2000,
aponta a importância da qualidade da assistência pré-natal para a adesão das
mulheres ao serviço, promoção do parto normal e redução de agravos no
processo parturitivo e no pós-parto. Orienta que os profissionais do sistema de
saúde tenham escutas sensíveis a cada uma das mulheres e familiares,
respeitando-as em suas particularidades, buscando compreender os múltiplos
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

significados da gestação em cada trajetória pessoal; contribuir na constituição


de vínculos entre usuários e serviço de saúde. Aponta a necessidade de se
desenvolver “Uma escuta aberta, sem julgamentos nem preconceitos, que
permita à mulher falar de sua intimidade com segurança, fortalece a gestante no
seu caminho até o parto e ajuda a construir o conhecimento sobre si mesma,
levando a um nascimento tranqüilo e saudável” (BRASIL, 2000: 7). No Riachão,
a enfermeira local relata como se dá o PN:
“Envolve tudo”. “O ACS vai atrás ou as mulheres buscam”. “Eles (ACS) ficam
sabendo (da gravidez), me comunicam e agendam”. “Elas se cadastram, eu
solicito exames, ultrassom...dá o cartão de gestante. As consultas são uma
vez por mês. Mede a barriga, a altura uterina, passa suplementos”. “Assim
que descobrem a gestação, faz o PN de imediato” (NC).

Os relatos das mulheres, sobre as consultas de PN, foram unânimes,


seguindo o procedimento de rotina, tal qual explicou a enfermeira: Medir a
barriga, acompanhar o peso, pedir exames e passar vitaminas, ilustrando o modo
padronizado de atenção à saúde no PN, pouco envolvido com a mulher que é
atendida. Segundo Duarte & Andrade (2008), as ações do PN deveriam incluir
educação em saúde, sob a perspectiva da Atenção à Saúde Integral das
Mulheres, considerando os diversos aspectos que envolvem o processo da
gestação e que contextualizam cada mulher em suas especificidades:
antropológicos, sociais, econômicos, culturais. Deste modo, as mulheres seriam
respeitadas em suas totalidades, e compreendidas dentro do “contexto em que
vivem, agem e reagem” (DUARTE & ANDRADE, 2008: 134).
As mulheres gestantes fazem diversos exames, além de tomar vitaminas.
Os principais exames de que falavam eram exames de urina, de sangue para
saber se possuem alguma doença e a ultrassonografia. A maioria era feita pelo
SUS, mas as ultrassonografias quase sempre eram pagas. Trata-se do exame
mais comum e popular entre as mulheres grávidas. O SUS oferece, mas apenas
uma vez. Então muitas também pagam para fazê-lo novamente e saber o sexo
do bebê, sua posição e estado de saúde. Os momentos em que fazem esses
exames são bem variados. Enquanto algumas mulheres fizeram logo no início
da gestação, outras fizeram no meio ou perto do fim. A ultrassonografia, como
consideram o exame mais importante, se podem, fazem várias vezes. Bianca fez
sua primeira ultrassom na vila sede do município, pelo SUS, e contou:
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

“Eles manda fazê porque vê a criança. Bota um gel na barriga, um telão e vê


a criança; Aí eu não vi porque é em Visconde. [...] quando tiver com seis
meses vou fazer em Valiosa. Aí tem que pagar pra fazer. Eu tava
preocupada... depois de uma ultrassom, mostrei a enfermeira e ela disse que
tava tudo bem. Dá pra ver se ta tudo bem. Dá pra ver se tá tudo bem, se o
coração tiver batendo fraco da pra ver. É o mais importante esse porque da
pra ver tudo. Minha sobrinha mesmo tava grávida, e já tinha um bom tempo
com a criança morta e ela não sabia, com a ultrassom que viu.” “agora com
seis meses eu vou fazer outro. Aí já é pra ver o sexo, aí é curiosidade... mede
a criança, tudo...” (NC)

O caso da sobrinha de Bianca aconteceu anos antes e ela não conseguiu


se lembrar há quanto tempo, apenas utilizou como exemplo. As outras mulheres
compartilham desta visão sobre a ultrassonografia, explicando sua função para
visualizar a situação e desenvolvimento do bebê.
Os cuidados no pré-natal, por parte do sistema de saúde local,
concentram suas atividades no acompanhamento do desenvolvimento da
gestação e do bebê, a partir das medidas de peso e tamanho, das vitaminas e
suplementos prescritos e dos vários exames requeridos, além de realizarem
atividades educativas para as mulheres gestantes. O foco na função reprodutiva
das mulheres acompanha a perspectiva biomédica no sentido de reduzi-las ao
aparelho reprodutor que “produz” um bebê: um corpo que produz outro. O Estado
– representado pelo PSF – participa da gestação deste modo. Não estabelece
vínculos mais estreitos com as mulheres gestantes, porém tem sua presença
marcada e, na medida em que visa acompanhar o desenvolvimento gestacional,
vai se tornando uma figura mais próxima. O fornecimento dos exames
necessários são questões importantes para as mulheres, porém ainda é
necessário que sejam melhor acessados e mais eficientes – já que várias
reclamaram da delonga em conseguir um exame ou pegar os resultados. Neste
ponto, destaca-se a proeminência da ultrassonografia, tão valorizada por elas.
O Estado, enquanto agente de cuidado, nesta fase, demonstra-se ainda
incipiente, porém valorizado e aceito de modo negociado pelas mulheres. As
relações carecem de vínculo, mas vão se tornando mais concretas e próximas
da vida reprodutiva. O processo corporal da gravidez é conformado nas relações
sociais, mas também na biopolítica.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

As mulheres valorizam o PN, embora as consultas sejam conduzidas de


modo padronizado e distante. Consideram uma ação importante para prevenção
de agravos e complicações no parto para sua própria saúde, e entendem que se
trata de um importante meio de acompanhar o desenvolvimento dos bebês, para
garantir seu crescimento saudável e adequado. Este aspecto fortalece uma
noção de gravidez enquanto um processo no corpo feminino, pelo qual este
corpo carrega outro corpo, à maneira como é tratada a gravidez no serviço de
saúde.

Um corpo no outro: a “barriga” e suas implicações para as mulheres


Já sabemos que o homem faz o filho. Como contrapartida a esse ato é a
mulher quem “gera o bebê e bota pra fora.” Ora, e o que se passa entre o
processo do homem parir até que a mulher bote pra fora o bebê já grande? Como
as pessoas da ilha entendem o corpo feminino para a reprodução? Quais as
implicações deste processo na vida das mulheres? Ao tentar responder tais
perguntas, procuramos compreender como são as noções nativas sobre o corpo
das mulheres – lócus da gravidez e foco de transformação – além das
implicações deste processo em suas vidas. Segundo Osvaldo, pai de Bárbara,
“o homem é quem pare primeiro”:
“O corpo da mulher serve para geração, para desenvolvimento do óvulo e do
espermatozóide. A transformação. O homem pare primeiro porque ele que
coloca o esperma no corpo da mulher. É como se fosse o bebê pequenininho,
como um girino. E vai crescer no corpo da mulher. O corpo da mulher serve
para o desenvolvimento do óvulo e do bebê.” (NC)

Osvaldo nos revela noções sobre o corpo feminino e a compreensão que


se faz deste no processo reprodutivo. É o corpo que é transformado e o corpo
que transforma outro corpo – que gera e carrega um bebê. Este corpo precisa
de cuidados e é foco de atenções. O desenvolvimento deste “bebê
pequenininho” em um bebê grande, no interior do corpo feminino suscita
curiosidades, porém não é muito explicado entre as pessoas.
O processo de transformação do corpo é contínuo como é, igualmente, o
processo de assimilação. Algumas das mulheres falam muito menos do que
outras. Umas resistem mais às transformações percebendo cada etapa desta
mudança. Na concepção das mulheres, depois que assumem a gravidez, “a
barriga” cresce muito rápido. Bárbara e Rosa relataram suas experiências:
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

(Bárbara)
P: E essa barriga? Como foi ela crescendo, e você vendo...
B: Só o peso na hora de andar... É assim, quando ninguém ainda sabe, a
barriga fica normal, mas basta algumas pessoas saber que num instante sai,
aparece logo... parece uma coisa, quando muita gente sabe, num instante sai.
[...] Ai é de boa... Um bocado de gente fica falando...

(Rosa)
R: Porque eu também me achava muito feia... Ai depois apareci com uma
barriga grande... até o dia que eu não contei pra ninguém, eu ainda estava
com uma barriga que dava pra esconder. Tinha pessoas que desconfiou, mas
deu pra esconder pelo menos em casa...
P: E como foi esse processo de aceitação do corpo? De mudança no corpo?
R: As roupas feias. Eu mudei tudo meu. Engordei demais! Eu tinha muita
roupa curta, e ai foi horrível... enjoo... comecei a sentir tudo: sonolenta, as
mão ficavam muito dormentes... pra andar, tudo me cansava.
P: Como foi isso da barriga crescer?
R: Você vai aprendendo a se conhecer. Ai quando eu comecei a contar pras
pessoas, ai fui gostando daquela situação, porque eu não gostava. Ai já via
mexendo, já via crescendo. Aí foi passando mais aquela vergonha. Já
aceitava a minha barriga. Já ria quando eu me via com aquele barrigão.
Enquanto ninguém sabia, eu não gostava, mas quando eu comecei a contar
para as pessoas, ai eu comecei a gostar da criança. Ai eu já comecei a gostar,
já sabia que fazia parte de mim, ai eu não pensei em fazer mais nada para
poder tirar. Entendeu? Não foi assim até os 9 meses.

“A barriga” constitui um símbolo fundamental da gravidez e assume,


então, a natureza social do processo reprodutivo – já que é a partir do
conhecimento público que “a barriga” cresce e o processo subjetivo de aceitação
vai se consolidando. A gravidez se torna algo com a qual as mulheres irão se
relacionar positivamente na medida em que relações vão sendo estabelecidas e
outras pessoas passam a participar deste processo. Do mesmo modo como
observou Bustamante (2009: 205) em seus achados, ao deixar a gravidez, dar-
se-á continuidade à relação com a barriga, onde está o bebê. O relacionamento
das mulheres com suas barrigas no processo de transformação e crescimento é
um processo que vai se constituindo como algo positivo, tendo em seu primeiro
momento o estranhamento. Isabela explica seu processo:
I: no começo eu não gostava muito, eu ficava reclamando […] Agora eu gosto.
Logo no começo eu ficava me olhando no espelho... a sombra, e ficava
pensando quando minha barriga crescesse. Agora, quando eu olho pra
sombra do banheiro eu falo: Olha! Como tá grande! Eu gosto já! Já me
acostumei.
P: Como é a sensação quando você vê que ela tá grande?
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

I: É engraçado. Eu vejo que ela tá dura, mas ela cresce, cresce e eu não
entendo nada. Parece que tem elástico.

A idéia de que a barriga carrega outro ser ganha sentido durante seu
crescimento, que tem em sua constituição uma relação estabelecida com outras
pessoas. Neste processo, o outro ser vai se tornando uma pessoa que se
relaciona com as mulheres e com os demais sujeitos. Dentre os sujeitos, o pai
da criança figura como central. Este ser que está dentro da barriga da mulher é
seu filho, aquele que foi colocado no corpo dela, ainda pequeno. Nas palavras
de Osvaldo: “como um girino”. Esta noção se concretiza na medida em que o
bebê cresce na barriga e começa a se mexer. Isabela demonstra ainda a
importância deste processo e a relação que o pai da criança passou a
estabelecer com ela e sua “barriga”, quando o bebê começou a mexer.
I: primeiro ficava zangada porque ela não mexia. Aí de um tempo pra cá eu
percebi ela mexendo, ai eu ficava tentando mostrar a alguém que ela mexia,
só que ela só mexia uma veizinha... E quando eu falava pra alguém, ela não
mexia mais... Ai eu ficava com raiva... Eu queria que alguém visse aquilo
comigo... Compartilhasse comigo, mas ninguém conseguia vê, só eu... Eu
ficava danada da vida... Uma vez meu namorado conseguiu vê, ai ele adorou!
Começou a passar a mão na minha barriga. Ai ele começou a gostar da minha
barriga também...
P: Por quê? Ele também tinha uma dificuldade em aceitar a sua barriga?
I: É... Não sei... ele não ficava muito bolindo, porque ele também não via
nada... Ele via, mas nunca tinha visto mexer. Ai quando ele viu mexendo, ele
sempre fica olhando se tá mexendo, fica olhando, conversando. Ele gosta de
conversar... Falando: “Minha filhinha, não sei lá o que...” Quando ela mexe,
ele fica olhando: “Eta que vai arrombar a barriga...” A perninha... Ele sente o
pezinho dela...

O marido de Dália, Luciano, contou sua experiência:


L: na verdade foi uma experiência assim que foi até que meio engraçada, né
que, mas é que, sei lá, é meio difícil também mais pra ela, nela de ficar
carregando uma criança, mas fora isso, ótimo, tudo normal. [...] Emocionado
também, aquela ânsia de ver a criança nascer logo. [...] Sentia mexer, mexia
assim na barriga, mexia às vezes. E quando eu botava a mão ele parava de
mexer, é engraçado... bem legal, experiência única, só muito legal, engraçado
também. Porque sei lá, porque quando a gente vê, bota a mão na barriga
assim, vê ele chutando né, Dália?! Vê a criança chutando assim, pô, aquilo ali
é massa, véi!
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Luciano demonstrou sua satisfação, o estranhamento e curiosidade ao


não saber explicar como se passa o processo, mas entender que aquela
“barriga”, carregava um filho seu. As mulheres compartilhavam da ideia de que
carregavam ou seguravam um filho, que quem fez foi o homem. Sua participação
na constituição do filho está no corpo que segura o bebê e fornece ambiente
perfeito para seu desenvolvimento e crescimento. “Gestar” ou “gerar” uma
criança e “botar pra fora” são partes do processo, centrado no corpo feminino.
Quando estava no “catador4” perguntei se poderíamos considerar que a mulher
era como se fizesse um “favor” de segurar o bebê na barriga. Vívian respondeu:
“não tem aquelas barriga de aluguel?”, confirmando a noção de um corpo que
carrega outro corpo. Concordavam com esta ideia e faziam alusão às cartilhas
de biologia, aos conhecimentos adquiridos na escola, porém isto não bastava no
processo de constituir outro ser. Porque o processo de desenvolvimento e
crescimento se dava no corpo feminino. É a mulher que passa os nove meses
“segurando” os bebês na “barriga” e são elas quem “botam pra fora” já grande.
A “barriga” simboliza o processo da gravidez constituído por ambas as partes.
Os conhecimentos científicos e práticos se fundem para fundamentar as
explicações e noções nativas. O corpo que carrega outro corpo só ganha sentido
na medida em que se relaciona com os demais. A “barriga” tem implicações
práticas na vida das mulheres e é preciso que cuidem deste processo. Dos
cuidados resultam “bons” partos e boas recuperações. Mas isso não quer dizer
que as mulheres precisem de cuidados intensos ou mudar comportamentos e
rotinas. A gravidez para as mulheres no Riachão é um estado de saúde. É saúde
porque é preciso ter saúde para engravidar. “Engravida quem pode!”, disse
Ângela. Segundo Nina, "Tem muita mulher que nasce histérica sem poder
engravidar que tem problema no útero, né!?! Já é uma forma de doença." (NC).
Por ser saúde, a gravidez não produz mudanças cotidianas para as mulheres.
Algumas se sentem mais cansadas, ao longo dos meses e do peso da barriga.
Mesmo assim, foram poucos os relatos de mudanças nos afazeres, durante a
gestação. Ângela continuou seu trabalho até parir. Jussara jogava futebol até o

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O catador é um espaço, preparado pelo empregador, onde as mulheres se reúnem durante as tardes
para catar piaçava. O espaço pode ser um barracão improvisado ou o fundo de uma fazenda, sempre um
espaço coberto para proteção contra o sol. A catação de piaçava é uma atividade realizada por mulheres
de separação dos fios bons e dos fios quebrados ou ruins, cada tipo de fio serve para uma determinada
função, são vendidos separados com distintos valores.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

quinto mês de gestação. Lílian e Maria Helena trabalharam durante todas as


duas gestações.
A gravidez também é saúde porque é um meio pelo qual as pessoas
cuidam de sua saúde e garantem assim a saúde do filho. Para Isabela, “gravidez
ajuda a pessoa cuidar da saúde, né!?! Porque a pessoa tem que cuidar mesmo,
saúde de duas pessoas, tem que ir ao médico, tem que ter uma saúde boa. Uma
boa saúde. Pra criança crescer sadia..." (NC) As implicações da “barriga”
também se voltam para os cuidados com a saúde. Além da busca pelo serviço
de serviço para o PN, Bianca sinalizava outros cuidados na gestação, para
prevenir que tenha complicações no parto, como ela e Nina tiveram. Dentre os
cuidados, figuravam alguns alimentos perigosos que fazem com que a placenta
cresça mais do que o bebê e prejudique o menino, além de outros alimentos que
faziam a placenta ficar “agarrada” no corpo das mulheres, provocando
hemorragia na hora de sua retirada. A placenta frequentemente era mencionada
para explicar os riscos de complicações do parto. “Ela segura o bebê na barriga”.
“É onde fica o bebê”. “Acompanha o menino”. Precisa sair depois do bebê. Mas
se ela crescer mais do que a criança ela pode matar a criança. E se ela ficar
agarrada no corpo da mulher pode, igualmente, matá-la. Bianca detalhou seu
caso anterior, em que a placenta ficou grudada, quando puxaram e ela teve
hemorragia. Assim evitava comer alimento que tivesse “pegado” na panela
(quando começam a queimar e ficam grudados no fundo da panela), pois deixa
a placenta “agarrada”; mamão verde e cacau verde provocavam o mesmo
resultado ou faziam com que a placenta crescesse mais do que o bebê.
Também é importante vivenciar uma gestação tranquila. Um dia, Susan e
eu conversávamos com Priscila, sua cunhada, que contava sobre suas
gravidezes e mencionou a perda de um filho. Estava grávida de gêmeos, mas
um deles nasceu morto – há 18 anos. Seu parto foi de oito meses: “tudo indica
que foi susto”. Priscila contou que estava na casa de sua mãe com seu
primogênito e apareceu uma cobra na sala, onde ele estava. Ela sentiu na hora
“uma dorzinha, e três dias depois eu parí, mas só que um já tinha morrido”. A
importância da tranquilidade também diz respeito às relações entre as mulheres
e os parceiros. Bianca, uma vez, comentou que tinha se “enraivado” e que aquilo
não fazia bem para a gravidez. Discutiu com seu marido e isso prejudicava na
gestação. Thalia confirmava: “Ele vai, conversa, dá atenção à mulher, não faz a
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

mulher se irritar, se tiver acontecido alguma coisa, senta e conversa, como


pessoa civilizada e dá bastante atenção e carinho como a mulher merece!" (NC).
As diversas ordens de conhecimento se relacionam em uma interação
dinâmica para conformar explicações em torno da reprodução e dos cuidados
durante a gestação. Cada ordem de saber – científico e prático – constitui, nesta
interação, o modo como a reprodução é vivida pelos diversos sujeitos. A
explicação de Osvaldo ilustra a fusão destes conhecimentos na vida local, é
forma que agrega conteúdo nas relações sociais.
Os dados apresentados sugerem que, nos cuidados requeridos para a
gestação, a participação dos homens permanece, não apenas como o sujeito
que deposita seu elemento biológico, o filho, na mulher, mas também como
aquele que contribui na promoção de bem-estar às mulheres, confirmando a
coparticipação de ambos na constituição do processo reprodutivo. Além deles
outras pessoas também contribuem de modo fundamental.
Os homens e as redes de relações na condução da gravidez
As mulheres que nunca tiveram filhos têm o “eixo fechado”. O “eixo” é por
onde passa o bebê ao nascer de parto normal. Quando está grávida é preciso
manter relações sexuais para “abrir o eixo”. Muitas mulheres têm o parto cesáreo
porque tem o “eixo fechado” ou “eixo de homem”. Macêdo & Belaunde (2007),
no relatório final de uma pesquisa sobre a Saúde Reprodutiva e Morte Materna
entre os Tupinambás de Olivença-BA, também destacaram as noções acerca do
eixo fechado e eixo aberto, entre os Tupinambás.
No que se refere ao parto, a ideia de “aberto” e “fechado”, associado ao
feminino e ao masculino, respectivamente, também está presente. É comum
escutar que uma das dificuldades “naturais” de se ter um parto vaginal diz
respeito ao fato da mulher possuir “eixo de homem”, ou “eixo fechado”, “sem
abertura”, o que obriga a parturiente se submeter a uma cesariana (MACEDO
& BELAUNDE, 2997: 82).

As autoras nos sugerem que estas noções estão mais difusas no território
baiano. No entanto, mesmo com semelhanças, este trabalho não mencionou a
associação do sexo com a abertura do eixo feminino, como colocaram algumas
mulheres do Riachão. Observa-se que a constituição da paternidade perpassa o
corpo, desde a fecundação até o fim da gestação – durante a qual é importante
a presença masculina para ajudar no preparo do corpo feminino para o parto. A
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

constituição da paternidade revela-se também na necessidade de provisão


material, atenção e no cumprimento de deveres como parceiro.
Bela detalhou como se dava o apoio necessário do parceiro, desde que a
mulher se encontra grávida, em referência ao caso da filha, Bárbara, que teve o
apoio mais sólido do rapaz apenas depois do nascimento.
B: como eu disse a você – na gravidez dela foi uma coisa, ele não deu o apoio
que tá dando hoje, é importante as duas partes: na gravidez e agora; na
gravidez ele não deu esse apoio que ele tá dando hoje. Ele não tava aqui, e
então é maravilhoso pro filho e pra ela. […] toda vez que ela ia pra fazer a
consulta a medica perguntava a ela, porque esse negócio de pré natal, agora,
manda fazer (sexo) a cada semana. Tem que fazer uma relação pro eixo se
abrir. Você engravida, né, vamos dizer que o pai que te engravidou... quando
você vai pro médico, a médica fala que você tem por obrigação fazer, transar
uma vez na semana. E é com aquele parceiro seu, se não for com aquele
parceiro seu não adianta.
P: por quê?
B: isso ai eu não sei, mas não adianta! Você tem que tá com o que fez o filho
com você.
P: uma vez por semana desde que você engravidou?
B: é! Isso não aconteceu com ela porque ela não tava com ele. Aí que ela tem
que caminhar pra os eixos se abrir, porque muitos não vai ter, muitos tem
cesáreo porque não tem espaço porque tem que tá, entendeu!?! Pra o
menino, pra aquilo ali, ter aquele espaço ali completo, pra não precisar ser
cesáreo, pode ser a questão do homem, do marido que te engravidou tá ali
com você, pra toda semana você fazer...uma vez por semana.
P: pro eixo se abrir?
B: O eixo se abrir
P: pra quando eu tiver meu filho...
B: ter espaço de o menino sair.
P: E é isso que chama de eixo de homem?
B: é, eixo de homem, é isso aí, então hoje ela recebeu um apoio que ela não
teve no começo. [...] então hoje ela tendo esse apoio e antes ela não teve
esse apoio, então quer dizer que antes teve mais precisão do que agora, né!?!
Porque antes precisava mais do que agora! Porque é isso, porque já nasceu!
[…]
P: Bárbara teve parto cesáreo por ter eixo de homem?
B: Teve, porque ela teve fechado. Ela não teve normal.

Além da importância da presença do homem no sentido do apoio moral,


do reconhecimento da paternidade e da provisão material necessária, também
se requere dele a presença para as relações sexuais durante a gravidez, de
modo que se ajude a mulher “abrir seu eixo” e ter parto normal. Na entrevista,
Rosa comenta sobre a importância do parceiro:
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

P: O fato de ser mãe, e ser mãe solteira, o que você acha disso?
R: É ruim, é muito chato. É um vazio que forma em você. As pessoas
perguntam sempre por ele... cadê o pai... Ainda mais que o pai não mora
aqui.... Quando o pai mora, mostra que tem pai mesmo. As pessoas te olham
de outro jeito. Até você mesma... Você quer ter um filho, mas quer ter uma
pessoa, quer estar com a sua vida organizada... Eu fico assim, tenho filho,
mas não tenho uma pessoa, não tenho uma casa.
P: Você acha que os homens querem ser pais?
R: Eles querem ter o filho, agora se eles querem ser pai é que eu não sei. [...]
Ter um filho, todo mundo quer, todo o homem quer ter... agora a
responsabilidade, ai é difícil... “Eu sou pai, eu tenho um filho...” Agora a
responsabilidade cadê?
P: Como é ser pai?
R: Ser pai é ser homem, é estar presente, ali junto. É estar vendo as coisas...
As dificuldades, as alegrias... Tem filho que só fala pai pelo telefone... Eu
quero ter esse prazer, eu quero fazer isso por ele... que eu ligue na hora que
ele está falando... Mas se não, ele não ia saber... Não ia saber das alegrias...
eu estive doente... muito doente... cadê o pai que não está aqui? Isso é pai?
Só porque dá uma pensão? Mas não é...

Rosa evoca constantemente a questão do carinho e atenção demandados


aos homens, no exercício de sua função da paternidade. A importância dada ao
processo de criação, da manutenção e sustento familiar e das crianças também
é facilmente partilhada entre as pessoas da ilha. É esta criação que atualiza,
valida e conforma a relação entre pais/mães e filhos. Quando Rosa fala que ter
um filho é diferente de ser pai, ela nos apresenta um cenário em que a
paternidade terá validade na medida em que ela é atualizada – no processo do
cuidado, do sustento, do reconhecimento e da presença cotidiana desta figura
paterna na vida do filho. A biologia é então, não o pressuposto fundamental da
reprodução, mas uma das suas dimensões. Assim ela não pode ser vista como
determinante do modo como as pessoas dão significado e compreendem as
implicações deste processo como um todo. É nesse sentido que ter filho é
diferente de ser pai, porque a biologia não é suficiente para explicar as relações
que conformam este processo e nem os resultados deste.
As mulheres constantemente falam sobre o homem bom, sendo aquele
que dá atenção e carinho. “Que dá as coisas” pra elas e que “bota as coisas em
casa”. Este é o homem de quem se “pode parir mais de uma vez”. Este homem
valida sua capacidade de paternidade quando pode participar do processo de
criação do filho. Em uma realidade de relativa pobreza, apesar da abundância
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

de recursos naturais ajudar as pessoas na “luta” cotidiana por seu sustento, a


escassez de trabalho e renda não permite que tenham condições melhores.
“Botar as coisas em casa” não seria, portanto, uma tarefa fácil. Mas as mulheres
constantemente explicavam que bastaria o fato dos homens estarem na “luta”
para conseguir “botar as coisa em casa” e, especialmente, não gastarem o
dinheiro no bar ou com outra mulher.
O homem que criava as crianças mesmo não sendo pai de concepção,
também é merecedor da titularidade de pai. Este torna-se pai de consideração e
trata-se de um processo que deve ser contínuo e permanentemente atualizado.
Assim também o é para as avós que criam seus netos ou outras pessoas que
criam outras crianças que não sejam filhas biológicas. Significa dizer que os
laços de pai/mãe e filho se constituem não apenas por meio da consangüinidade,
mas sobretudo, pela reiteração que faz destas relações no cotidiano, na
presença, no cuidado e no sustento dado aos filhos, como coloca Viegas (2003).
O grau dessa consideração que perpassa as relações também não é transferível.
Dois irmãos do mesmo pai e da mesma mãe, que tiveram histórias diferentes de
convívio – e cuidado – com seus pais, podem considerá-los, ou não, pais de
modo diferente entre si. Isto evidencia o caráter social da paternidade e como
esta é constituída e revalidada, atualizada o tempo todo. Ainda que a paternidade
biológica esteja presente, é preciso mais do que um laço biológico. Pina-Cabral
& Silva (2013) também abordam este aspecto das relações sociais no Baixo-Sul.
O ato de reconhecimento paterno implica em responsabilidades sociais e
econômicas. Além disso, os autores explicam como a paternidade de criação é
importante neste contexto. A criação, mesmo não correspondendo aos laços
biológicos, mesmo não vinculada à fecundação, é uma relação de consideração
com implicações mais profundas e duráveis. Nas palavras dos autores,

[…] quando os pais de criação são verdadeiramente empenhados na relação,


os filhos de criação ficam muito gratos para toda a vida e tomam isso muito
em consideração (no sentido baiano da palavra). O sentimento de obrigação
nessas pessoas geralmente é muito profundo; muito mais profundo, dir-se-ia
até, que nos casos de filiação de concepção. […] O exercício da paternidade
– de criação ou concepção – valida a maternidade da mãe (Pina-Cabral &
Silva, 2013: 32, 34).
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ao tratar da questão da filiação – de concepção e/ou de criação, os


autores discutem a centralidade do elemento “consideração” que é uma das
chaves para compreensão do modo de organização social nesta região da Bahia.
No Riachão a consideração permite e valida as relações, especialmente, ao
tentar compreender o processo reprodutivo e as dinâmicas intra-domésticas ao
seu redor. Como disse Rosa, os homens podem tornar-se pais (no sentido de
fazerem jus a esta titularidade), carregando consigo uma espécie de
merecimento. Estes são mais valorizados do que aqueles que apenas fazem
filhos. E a consideração está implícita nestas relações de merecimento e
validação da paternidade. É preciso que os homens respondam às atribuições
que lhes são demandadas, no sentido de exercer a paternidade – e estes
atributos começam a ser requeridos desde que as mulheres descobrem a
gravidez, tornando fundamental que sejam capazes de dar conta destas
demandas já a partir da gestação.
Além da importância da figura masculina, outras relações são ativadas
durante a gestação. Nos últimos meses, começam alguns preparativos: chá de
fraldas; arrumação do enxoval do bebê – com muitas doações de roupas e
utensílios usados por outros bebês sejam irmãos daquele que está para nascer,
ou primos, ou apenas amigos; organização de como vão à maternidade e com
quem; decidir o nome do bebê, os padrinhos, etc. Este processo se dá enquanto
as mulheres esperam pelo fim da gestação e hora do parto, onde as redes de
apoio e cuidado estabelecidas fora do sistema de saúde local permanecem
centrais, com os parentes, os parceiros, os amigos, os vizinhos e afins. Não há
uma regularidade no tempo em que buscam organizar tais detalhes. Algumas o
fazem mais cedo do que outras. Neste processo de organização as mulheres
mais próximas da gestante estão mais envolvidas, cuidando de organizar o chá
de fraldas, o enxoval, etc. Para Jussara, foi sua irmã mais velha quem organizou
o chá de fraldas. Lílian, por sua vez, participou ativamente do processo de
organização do seu chá e me deu pessoalmente o convite. Seu marido e irmãos
caçaram animais para cozinharem e as mulheres da família, irmãs, cunhadas e
Dona Conceição cozinharam. Com Bárbara, houve um processo mais demorado
de negociação entre os seus pais e os de Gabriel (o parceiro de Bárbara) para
realizar o chá de bebê.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Assim, concluímos que a gestação também permite mobilizar as pessoas,


na criação de relacionalidades, indicando como a dimensão fisiológica interage
com a dimensão social. A atuação dos homens/parceiros sexuais tem especial
destaque na condução “ideal” da gravidez. A amplitude do processo reprodutivo
fica mais clara ao observarmos como que desde a procriação/fecundação, as
pessoas são lançadas em relacionamentos e estas relações envolvem não
apenas sujeitos individuais, mas todo o corpo social da vila, que constitui o
espaço público pelo qual as gravidezes devem transitar e se tornar legítimas,
além das instituições formais saúde do Estado.

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Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

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de Mestrado, Salvador: ISC.
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Anthropological Institute. Vol.9, Issue 1, 21-37, March.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Mães Waldorf: entre o feminismo e a espiritualidade/religiosidade


Resumo

O texto versa sobre as práticas sexuais, gestação, parto e violação dos direitos
reprodutivos das mulheres adeptas da Antroposofia – ciência espiritual suíça –
moradoras da Comunidade da Demétria, na cidade de Botucatu/SP. As
narrativas das Mães Waldorf compõem parte da etnografia sobre a concepção
de cura antroposófica, realizada em 2016, na Saúde Coletiva da Unifesp de São
Paulo. Em meio a essas histórias de vida, proponho refletir sobre como
interagem neste grupo cultural, do ideário do “parto sem dor” dos anos 1950, o
slogan feminista "o meu corpo me pertence", dos anos 1980, e as orientações
espiritualistas e estéticas da Antroposofia na busca do “belo parto”. A
Antroposofia propõe às mulheres de classe média, adeptas desta ciência
espiritual, uma gramática emocional e práticas de controle corporal que
assumem um caráter próximo ao religioso, que evocariam a “coragem” materna.
Durante o sexo, por exemplo, a mãe deveria desejar uma criança capaz de ações
altruístas. Após a fecundação, as gestantes deveriam abdicar de comidas e
bebidas consideradas nefastas. Mas é no momento do parto que os ideários se
coadunam. A Antroposofia sugere que a mãe controle o corpo e seja
protagonista do seu parto, evitando interferências medicamentosas. A dor do
parto deve ser suportada sem anestesia, buscando um “silêncio religioso” e
acolhedor. No encontro dessas mulheres com o parto humanizado do Hospital
da Unesp de Botucatu, surge a frustração e a violência obstétrica.

Palavras-chave: parto, gestação, Antroposofia, Waldorf, Demétria


Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Mães Waldorf: entre o feminismo e a espiritualidade/religiosidade


Raquel Littério de Bastos1

Introdução

A Antroposofia é uma ciência espiritual, elaborado pelo pedagogo e


esotérico Rudolf Steiner, fundada na Suíça no século XIX. Steiner, inspirado nos
aspectos do romantismo alemão, desenvolveu um sistema terapêutico
integrando terapias e medicina neorromântica, oriundos do esoterismo histórico,
aceitas atualmente no Sistema Único de Saúde (SUS), desde 2006. A
Antroposofia é amplamente conhecida no Brasil por meio das escolas Waldorf e
os medicamentos da Weleda.

A Antroposofia compartilha do ideário do parto natural e sugere às


mulheres formas peculiares de como se comportar na hora da concepção, da
gestação e do parto. Estudos recentemente publicados no Brasil, apontam para
diferentes contornos sobre o parto (Carneiro, 2014), havendo estudos que
investigam a ideia de parto orgástico (Ribeiro, 2010); a Rede Nacional pela
Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA) (Portella, 2013) e sua
relação com grupos ecológicos (Tornquist, 2004); os inventários sobre os modos
e as narrativas de nascer na atualidade (Muller, 2013); as redes de mulheres
para o parto (Pimentel, 2013 e Carneiro, 2011) e o sofrimento no parto (Pulhez,
2013). Sobre o parto na Antroposofia no Brasil temos o estudo sobre os serviços
de assistência ao parto de uma ONG antroposófica, a Associação Comunitária
Monte Azul – ACOMA (Hotimsky, 2001) e a recente etnografia sobre os partos
na Demétria/Botucatu (Bastos, 2016).

Este paper versa sobre as experiências da gestação e do parto das Mães


Waldorf na comunidade rural da Demétria2, no interior do estado de São Paulo,

1 RaquelLittério de Bastos, cientista social, doutora em saúde coletiva pela Unifesp de São Paulo,
docente nos cursos de Biomedicina e Farmácia – Faculdade Capital Federal [FECAF/Taboão da
Serra/SP]
2 Os resultados sobre as orientações antroposófica para a gestação e o parto das mulheres do
bairro da Demétria apresentadas neste paper faz parte de uma etnografia maior intitulada “Corpo
e Saúde na Antroposofia: Bildung como cura”, tendo um campo de investigação sobre a
concepção de cura na Antroposofia, composto pelas duas organizações antroposóficas
instaladas na América Latina, especificamente no Brasil, pioneiras fora da Europa: a Clínica
Tobias (São Paulo-Capital) no Ramo Tobias, situado no bairro de Santo Amaro e o bairro
Demétria (Botucatu, interior de São Paulo) no Ramo Jatobá, no período de 2012 a 2016.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

e os desafios etnográficos na busca de compreender a intersecção entre o


ideário do “parto sem dor” dos anos 1950, o slogan feminista "o meu corpo me
pertence", dos anos 1980, e as orientações religiosas/espiritualistas na estética
antroposófica do “belo parto”. Este ensaio não possui uma conclusão. Seu
objetivo é problematizar possíveis limitações da categoria analítica gênero em
contextos eco religiosos, pois ora favorecem a compreensão da condição
feminina, ora desfavorecem a observação dos aspectos culturais da
comunidade.

A etnografia

A comunidade da Demétria, é composta em sua grande maioria por


famílias da classe média e classe média alta. A comunidade conta hoje com
aproximadamente sessenta e cinco membros da Sociedade Antroposófica no
Brasil, além de uma população intermitente, com aproximadamente oitocentos
moradores (IBGE, 2015) no bairro. Nesse grupo, as mulheres são a maioria,
apresentando um percentual acima dos 75% dos habitantes. Um traço
característico dessas mulheres da Demétria é a ausência de uma constante
parceria masculina. Elas vivem sozinhas, por vezes porque são idosas, viúvas
ou separadas de seus companheiros por opção, além das mulheres que ficam
aguardando, com seus filhos, a volta dos companheiros que trabalham na capital
paulista. Mas elas não estão isoladas, há uma rede de colaboração entre as
chamadas “Mães Waldorf”3 que promove apoio e interação. A maioria dessas
Mães desenvolvem atividades profissionais e possuem curso superior, sendo
algumas pós-graduadas em suas áreas de formação.

A descrição etnográfica que lerão a seguir, encontra-se mais detalhada


no artigo “Mães Waldorf: gestação e parto na Comunidade Antroposófica”
(Bastos, 2018), a ser publicado na Revista Interface. Nestes episódios estão
descritas a busca por um equilíbrio emocional e controle corporal destas
gestantes. Esse equilíbrio funciona como formação e construção permanente
do ético e do estético no “caráter materno”, articulando aspectos emocionais,

3 A expressão ‘Mãe Waldorf’ é habitualmente usada para nomear as mães que tem seus filhos
cursando escolas antroposóficas Waldorf, independente do grau de adesão à Antroposofia. No
artigo utilizo a expressão de forma mais ampliada, querendo me referir a todas as mães que
tiveram seus filhos segundo as orientações antroposóficas e os educam nas escolas Waldorf.
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corporais e espirituais. A busca é a da construção de uma gramática


emocional, estabelecendo condutas para a expressão dos sentimentos 24
como a dor e o sofrimento, condicionando-os a uma atitude de “coragem e a
dignidade” frente aos desafios da maternidade. Para evidenciar essa busca,
exponho nesta parte dos resultados as principais narrativas dessas Mães,
salientando as principais orientações antroposóficas e os conflitos ao
resistirem a procedimentos biomédicos destinados ao parto.
De acordo com as orientações antroposóficas, quando a mãe suporta
conscientemente as dores do parto, ela ajuda a criança a cumprir seu
desenvolvimento físico e espiritual. Para isso, a Antroposofia destaca a
importância em diferenciar a dor como sensação física da dor como sofrimento
imbuído de emoção. A sensação física da dor deveria ser acompanhada de
alegria, apesar do sofrimento. De acordo com o site da Weleda4, se ocorrer o
grito da mãe, então que seja como um instrumento de conquista: um grito de luta
(Bastos, p. 159, 2016). Gritar de dor, fora deste contexto prescrito, é
desaconselhado para o momento da concepção. Ao evitar a dor do parto, a mãe
estaria desperdiçando uma oportunidade de superação física e espiritual,
importante em sua “formação moral de mãe”.

É importante mencionar que a Antroposofia não é contra a anestesia no


caso de dor extrema, apesar da orientação para a não utilização de qualquer tipo
de droga para não afetar a criança e a consciência da parturiente, mas adverte
que não deve haver um esforço além do suportável, para que a dor “não
prejudique a conexão da mãe com o processo de nascimento”, cada caso deve
ser observado individualmente (Bastos, p. 160, 2016). No entanto, há uma
expectativa durante o parto, de que a mulher faça “um silêncio religioso” (Bastos,
p. 160, 2016), somente interrompido pelo choro do bebê. Para os antropósofos
“um choro suave e delicado nos mostra que o trauma do nascimento foi
amenizado” (Bastos, p.160, 2016). O parto domiciliar é considerado o mais
apropriado à gestante, pois favorece um ambiente de intimidade, adequado para

4 Zekhry N. Gestação e parto na Antroposofia. Site Weleda [Internet], 2014. Infelizmente esse
conteúdo foi retirada no site, na fase final da edição deste artigo. A referência foi substituída pela
tese “Corpo e Saúde na Antroposofia: Bildung como cura” (2016).
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atingir o desejado controle corporal e emocional. Para isso é necessário


aprender e praticar uma técnica corpora (Mauss, 1984) do nascimento,
executadas pela mãe e por quem auxilia o parto.

Na busca desse controle corporal e emocional, havia uma interlocutora,


Camélia, uma jovem mãe de origem judaica, que concebeu seu primeiro filho
logo após se mudar para a Demétria. Assim como as outras entrevistadas, pediu
que o seu nome fosse ocultado para expor mais tranquilamente a sua
experiência de maternidade na comunidade antroposófica. Segundo Camélia,
ela estava bem envolvida com a Antroposofia quando resolveu ter seu primeiro
filho. Hoje, um pouco mais distante do ocorrido, diz entender que, na época, foi
fundo demais nas orientações, mas que não se arrepende, afinal o resultado foi
positivo: seu filho era uma criança saudável e era esse seu objetivo maior.
Camélia considerava ter tido êxito no parto porque só escutou o choro da criança
depois de três dias após o nascimento, ou seja, a criança havia nascido sem o
trauma do procedimento hospitalar. Para isso, ela foi orientada pela Antroposofia
a meditar para trazer ao mundo alguém relevante para a humanidade.

Havia uma prática de você desejar que viesse uma pessoa


especial, que fizesse uma diferença para a humanidade.
Na meditação eu pedia que viesse alguém especial, porque
eu achei o certo para fazer naquela hora. Era um trabalho
de meditação da maior responsabilidade. Eu nunca contei
isso para ninguém, mas eu mentalizei durante o ato sexual,
eu mentalizei! (Camélia)

Para Steiner, a mulher que vivencia com consciência a chegada de seu


filho tem a oportunidade de desenvolver a coragem para as tarefas que virão
como mãe. A coragem estaria primeiro em “esperar o início do trabalho de parto,
de experimentar a próxima contração, de ajudar o filho a nascer, crescer”, para
mais tarde desenvolver-se e ser livre e pleno (Bastos, p.161, 2016). Para as
interlocutoras, a tarefa de gestar e parir é um ato de coragem, compromissado
com uma moral cristã complexa que perpassa todas as orientações
antroposóficas. A definição de coragem, por exemplo, está apoiada na missão
contemporânea do Arcanjo Micael, que foi enviado por Cristo para acompanhar
e dar força ao desenvolvimento correto da humanidade. A sua representação é
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de um arcanjo vestido de soldado que controla com os pés e uma espada os


movimentos de um dragão subjugado, porém vivo.

Na Antroposofia, o impulso da coragem é a maior qualidade moral que um


humano pode desenvolver, responsável pela evolução e amadurecimento por
meio das experiências da vida. O parto é visto como uma dessas experiências,
enfrentá-lo com coragem e dignidade forjaria uma armadura para enfrentar as
turbulências da maternidade. A coragem seria uma força interna além da
consciência para dominar os “dragões” da vaidade, do egoísmo, do medo, da
ganância e do orgulho. Os dragões seriam a representação de tudo aquilo que
nos prendem ao mundo material. Para isso, não é necessário matar o dragão,
mas enfrentá-lo com controle e equilíbrio para dominar as forças do mal que ele
representa. O ferro que corre no sangue é compreendido como uma extensão
da espada de Micael que confere a coragem necessária para viver.

Em outro relato, identifiquei esse ideal de coragem associado ao parto


natural visto como uma missão espiritual desta mãe, que, ora estimulava essas
gestantes a um parto heroico, ora gerava uma profunda ansiedade com a
expectativa do próprio desempenho. Nas conversas com as mães mais jovens,
observei uma atitude de competição entre as narrativas sobre a auto superação
na hora do parto. Nessas histórias, quase sempre contadas nas rodas femininas
que se formavam nos espaços entre as compras das feiras de alimentos
orgânicos e na espera dos seus filhos na escola, media-se, de forma sutil, a
coragem daquela mulher em se tornar mãe em condições adversas sem perder
a serenidade difundida pela orientação antroposófica.

Esse comportamento competitivo, observado apenas entre as Mães


Waldorf mais jovens, suscitou algumas hipóteses sobre a intersecção entre o
ideal feminista e os aspectos religiosos. A primeira hipótese está na possibilidade
de que essas jovens tenham uma leitura mais rígida das orientações originais da
Antroposofia para o parto, e essa leitura seria estimulada pelo desejo de atingir
uma distinção espiritual no grupo social, alimentando a competitividade, que não
necessariamente seria impulsionada pela comunidade, uma vez que os relatos
de parto entre jovens e idosas apresentam contrastes sobre os enfrentamentos
da dor. A segunda hipótese é complementar a primeira e abre para uma
indagação sobre as questões geracionais na Antroposofia, inaugurando uma
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possibilidade de compreender a leitura das orientações antroposóficas dessas


mães jovens, não exatamente como rígida, mas como o resultado de um cenário
sociopolítico e cultural feminista, distinto das primeiras gerações de Mães
Waldorf.

Violeta, uma jovem senhora de quarenta anos e uma mãe experiente em


partos domiciliares, fez questão de explicar os sacrifícios necessários para
realizar um parto normal. Com uma personalidade bastante forte, Violeta
ostentava o resultado positivo da gestação ao afirmar que o filho, nascido a dez
anos, quando começou sua vida profissional e pessoal na Demétria, havia
nascido uma criança saudável:

Eu sou a favor de não tomar anestesia para não atrapalhar


o neném. Eu ficava pensando em tudo que a anestesia
podia fazer no neném. Eu estava preocupada como o
neném iria receber essas informações que eu não queria
que ele recebesse. É uma coisa muito louca, porque você
quer um ser purinho. Eu parei de comer chocolate, tomar
café, de fumar maconha, tudo antes de engravidar, meses
antes. Parei com os hormônios anos antes de engravidar.
(Violeta)

Ao enaltecer os seus feitos, Violeta desafiava de forma simbólica as outras


mães mais jovens ou ainda grávidas a suportarem uma adversidade maior do
que a sua. Em sua narrativa, parir em um hospital era considerado pouco ousado
perto da adversidade de precisar parir em um banco de uma caminhonete, em
uma estrada de terra, sem qualquer assistência médica. Violeta acreditava que
isso sim era uma demonstração de coragem, um feito digno de elevar o status
na comunidade. As demais mães que presenciavam as narrativas se sentiam,
em parte, entusiasmadas com o exemplo e, em parte, estimuladas a um
desempenho similar.

Na narrativa de Dália, uma simpática euritmista da escola Waldorf, que


aos 23 anos gestava o seu primeiro filho na Demétria, foi possível perceber que
esse desafio no desempenho das técnicas corporais do parto e na adequada
manifestação dos sentimentos, gerava angústia e mesmo competição velada
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entre as mães mais jovens da comunidade. Em nossas conversas, Dália


demonstrava essa ansiedade com a hora do parto. Preocupada, arrumando os
cabelos com os dedos de forma nervosa, contou seu receio de não conseguir
atingir o grau de coragem exigido e, assim, demonstrar um tipo de fraqueza que
a colocasse à margem na comunidade da Demétria. Ela ouvia das mães mais
experientes que, para atingir esse ideal de coragem, era necessário ir além do
suportável fisicamente. Após o parto, Dália questionou sua insegurança e a
expectativa exagerada que alimentou para demonstrar coragem no parto normal.

Eu achava que ia ser menos corajosa, que ia ser menos


firme se eu não tivesse essa coragem de ter o parto normal.
Só que eu levei isso muito ao extremo, eu tinha essa
fixação de que fosse o mais natureba possível, mais
impecável possível, sabe? Que fosse vencer uma etapa no
nosso purgatório, uma coisa assim, que a gente tem que
vencer. Tem que passar, tem que conseguir por que é o
certo. (Dália)

Esse ir além do suportável fisicamente também aparece nas conversas


informais. Havia uma grande preocupação das mulheres em não reclamar das
dores do parto, “aguentar sem fazer escândalos”, sentir a dor, mas não parecer
sofrê-la. Apesar dessa disposição das mães, os relatos eram da dor do parto
como algo “animalesco”. As Mães Waldorf com quem conversei foram unânimes
em dizer que tentaram bravamente controlar a dor e os gritos para não
atrapalharem o momento espiritual da concepção, apesar do claro descontrole
corporal, expresso nas falas constrangidas sobre terem defecado durante o
parto, em decorrência do extremo esforço. As gestantes que não conseguiram
realizar o parto normal e domiciliar lamentavam e se entristeciam ainda mais por
terem fracassado ao cumprir a sua “missão materna” como haviam planejado.
Magnólia, aparentando por volta de quarenta anos, intensa nas opiniões,
moradora da Demétria há mais de dez anos e mãe de dois filhos, assumiu que
sentiu fortes dores no parto e, apesar de não ter tomado anestesia, descreveu o
momento como sendo muito complicado, principalmente se o parto é realizado
no hospital, pois o desejo e o direito da gestante em conduzir o parto de forma
íntima, no hospital, é desrespeitado pelos médicos e enfermeiras. Magnólia
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

relatou que seu parto foi acompanhado por quinze pessoas desconhecidas e que
não tinham nenhuma função direta no procedimento. Para fazer prevalecer os
direitos de paciente, ela procurou antecipadamente um médico que respeitasse
a sua orientação antroposófica. O objetivo era evitar intervenções
desnecessárias e que o médico a ajudasse a conter os abusos profissionais,
principalmente em relação a intervenção medicamentosa. Mesmo assim, não
conseguiu evitar o que considerou uma violência (Tesser, et al, 2015) durante o
parto.
Eu procurei uma médica mais experiente, que já havia
realizado partos em casa, e que me apoiasse na recusa
das intervenções de praxe no parto hospitalar. Na consulta,
ela me apoiou na decisão do parto normal, mas não no
parto domiciliar. Depois, eu pedi também a pediatra para
que não houvesse intervenções, como a prática de pingar
um colírio para evitar a cegueira na criança em caso de
sífilis e o banho que retira o cerume protetor da criança, e
mesmo assim não consegui escapar das intervenções. A
hora do parto foi horrível, havia por volta de quinze pessoas
desconhecidas acompanhando o parto, eu me revoltei,
gritei e questionei a presença de tanta gente olhando. Foi
quando a médica alegou que era tudo “em nome da
eficiência”. (Magnólia)
A experiência do parto hospitalar é descrita como traumática entre as
gestantes da Demétria. Mesmo com alto nível de escolaridade e conhecimento
dos seus direitos sociais, essas mulheres da Demétria são atropeladas pelas
normas e procedimentos biomédicos, que desconsideram suas escolhas e
práticas alternativas de saúde. Para as mulheres da Demétria, conforme vai
ocorrendo a metamorfose corpórea da gestante, mediante dietas e mudança de
hábitos, sobrevém também uma transformação interna espiritual, guiada pela
busca da coragem para o parto perfeito.

As interlocutoras mais idosas, fundadoras da Demétria na década de 1970


contaram sobre os seus partos, inclusive os realizados no passado, na Clínica
Tobias. Foi surpreendente ouvir de uma das interlocutoras as críticas sobre a
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demora dos obstetras da Clínica Tobias em solucionar os partos mais


complicados, estendendo o sofrimento do parto. A princípio, considerei a
informação antagônica, mas compreendi no decorrer da pesquisa que não se
tratava de desejar a dor e o sofrimento como forma de redenção, mas de
enfrentá-los com bravura, construindo uma estética do parto, tornando-o belo.

Os limites da categoria gênero

As escolhas das mulheres da Demétria estão vinculadas não apenas com


as orientações oriundas da Antroposofia, mas também permeadas pelos
movimentos ecológicos no Brasil o crescimento do retorno da fibra materna como
chave-explicativa para as novas formas de parto. As ideologias desse retorno
são, entretanto, criticadas no livro de Elizabeth Badinter “Le conflit: la femme et
la mère” (2010). A autora desenvolve sua análise sobre a Ofensiva Naturalista,
destacando processos ideológicos, que, estando em curso desde os anos
1970/80, têm contribuído para recrudescer a luta pela autonomia/emancipação
das mulheres. A pesquisadora Tornquist (2002) menciona situação semelhante
ao considerar esta ideologia como uma “armadilha da nova era”.
O discurso ecológico seria, segundo estas autoras, um dos responsáveis
por uma retrógrada postura feminina em relação à maternidade, provocando o
rechaçamento de processos envolvendo, por exemplo, à não utilização da
anestesia peridural. Badinter (1980) afirma que houve uma revalorização do
instinto de ser mãe alicerçada na biologia que vê a “fêmea” no lugar da mulher,
retomando a teoria do vínculo, garantindo, inclusive, melhor desenvolvimento
infantil ao longo do primeiro ano de vida, fazendo que a maternidade venha
sendo considerada como “a experiência crucial da feminilidade” como uma das
principais características da segunda onda feministas, a partir dos anos de 1980.
No entanto, Badinter (2010) ao utilizar a categoria analítica gênero, nos
conduz a acreditar que a postura das Mães Waldorf é um ascetismo ecológico.
Primeiro porque as múltiplas exigências feitas às mães assumem um caráter
repressor, exigindo que a mulher esteja em uma vida digna de ser mãe, ou seja,
abandone a vida mundana do tabagismo e das bebidas, similar à de quem adere
a uma religião. Contudo, as interlocutoras veem no parto um caminho uma
oportunidade de a mulher ser protagonista do próprio corpo, necessário de ser
trilhado para se desenvolver a coragem materna.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Bibliografia

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BADINTER, Elizabeth. 2010. “Mèrer, vous leur devez tout! “ In: Le conflit: la feme
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Universidade Federal de Santa Cantarina.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

MULHERES MÃES: NOVOS ENTENDIMENTOS SOBRE FAMÍLIAS E MONOPARENTALIDADE


EM GRUPOS POPULARES DA CIDADE DE MACEIÓ-AL.

GIOVANA VIRGÍNIA OLIVEIRA SILVA1

RESUMO: Essa pesquisa busca por meio de narrativa etnográfica,


contextualizar práticas de filiação e circulação de crianças dentro de um
contexto de negociação de parentesco na capital do estado de Alagoas, cidade
de Maceió, conhecida por altos índices de violência em relação a outras
capitais brasileiras.

O objetivo deste trabalho está em compreender como se constituem as


relações de parentesco e pertencimento, e como mulheres inseridas em
famílias populares de regiões periféricas, neste caso com foco nos bairros
Riacho Doce e Santos Dumont, configuram suas famílias. Os métodos
utilizados são de caráter etnográfico como observação/observação participante
e entrevistas, bem como uma ampla fundamentação teórica, que busca dar
conta da compreensão e imersão nas relações complexas entre indivíduos,
expressas objetiva e subjetivamente, versando sobre o mapeamento do
contexto para compreensão do discurso e trajetórias dos atores sociais.

O recorte desse campo de estudos prioriza mulheres que criam seus filhos
como as únicas responsáveis por essas crianças, em arranjos monoparentais.
Aqui não cabe questionar o registro ou conhecimento da filiação, mas atentar
para as dinâmicas familiares centradas na figura dessas mulheres mães.
Tomamos o cuidado com a saúde do grupo familiar e a preocupação com
características herdadas ou de cunho genético como um guia para mapear o
acionamento de relações familiares e redes de ajuda mútua.

PALAVRAS-CHAVE: Monoparentalidade, Gênero, Família, Práticas de


Cuidado.

¹ Graduanda em Ciências Sociais vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Gênero, Saúde e


Direitos Humanos da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: [email protected].
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

A pesquisa tem sido realizada com o objetivo de contextualizar práticas


de cuidados e entendimentos de “bons cuidados” em diferentes famílias de
camadas populares pensando a circulação de crianças e negociação do
parentesco a partir de aspectos ligados à compreensão da saúde das
populações e novas formas de conexão e pertencimento familiar.
Especificamente, existe a necessidade de compreender como se dão as
relações de parentesco, e o quanto o caráter genético impacta no que se
concebe enquanto família, de forma que priorizo o estudo de mulheres que
criam seus filhos como as únicas responsáveis, isto é, em arranjos
monoparentais, contando com a ajuda de pessoas que fazem parte da família
consangüínea ou não, assim como amigos e vizinhos.

A ideia central desse trabalho é repensar a hegemonia do conceito de


família nuclear no entendimento de políticas públicas e sua repercussão,
pensando a conformação parental e o rompimento com o que é definido
“família normal” e as ideias das pessoas sobre que tipo de comportamento é
habitual e que tipo de comportamento é correto e apropriado em seu círculo
social (BOTT, 1976), sobre a hipótese da reconfiguração do parentesco, tendo
em vista que tal “norma” não deve ser considerada como um conjunto de
regras precisas e consistentes (GLUCKMAN, 1955).

Neste sentido, existe em paralelo a reflexão que diz respeito à carga que
é imposta sobre mulheres e sua autonomia dentro da construção de uma
família (STRATHERN, 1995), pensando tanto no caráter objetivo de como são
vistas e (re)tratadas na sociedade por assumirem um modo de vida que por
mais disseminado que seja nos tempos atuais, ainda carrega estigmas
ímpares, o que leva a um ao caráter subjetivo o qual informa muito sobre
emoções, sentimentos e sentidos que mulheres mães possuem e projetam
sobre o mundo e seus próprios corpos.
Considero que pesquisas que adotam tais perspectivas adquirem sua
relevância ao pensar contextos de bairros populares envolvendo famílias, e
consequentemente relações complexas entre os indivíduos que ali residem.
Com isso, pensando que a família é uma categoria que está sempre se
reinventando e que é um tema que atrai muitos estudos em diversas áreas de
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

conhecimento e que assume grande importância no mundo das antropologias,


busco entender as dinâmicas presentes no contexto parental em camadas
populares, sobretudo no olhar sobre a maternidade e práticas de cuidado.
Ao longo de um ano e meio, esta pesquisa tem sido construída com
base em dados obtidos através de saídas de campo, durante as quais faço uso
de observação e entrevistas, guiadas por um pequeno índice de perguntas
chave como: “Como se dá a rotina em casa? Há divisão de tarefas? Quando a
criança fica doente, quem cuida?”, buscando tocar em assuntos que informam
tanto sobre relações familiares, quanto sobre outras relações que se possa ter
com o próprio espaço. As respostas recebidas indicam uma acumulação do
trabalho materno, visto que me foi relatado que há pouca divisão do trabalho,
mas que a mãe sempre fica com os cuidados sob a criança, tendo apenas a
possibilidade de dividi-lo com alguma outra mulher da família.
Nesse trabalho, o debate está fundado no estudo da monoparentalidade,
seu desenvolvimento e trajetória, pensando tanto na possibilidade de
independência em mulheres que estão dispostas a criar seus filhos como
únicas responsáveis, como também nos padrões familiares que muitas vezes
são impostos, fazendo com que mulheres adquiram tarefas de maneira
irreflexiva e dada. Existe sobretudo a preocupação com a capacidade e
oportunidade de escolha, analisada no contexto periférico, e como e em quais
circunstância tais escolhas são possíveis.
Até o presente momento, foram feitas pesquisas de campo em dois
espaços distintos, o primeiro deles é o bairro de Riacho Doce, localizado a
beira-mar no litoral norte da cidade, onde uma grande parcela de moradores
obtém seus meios de subsistência de atividades pesqueiras ou da venda de
bolos e doces na rodovia AL 101 Norte, a qual serve como um divisor do bairro,
entre parte alta e parte baixa. Nesse local, as entrevistas se deram nas
próprias casas das interlocutoras, onde na maioria dos casos, ao serem
abordadas, logo convidavam para entrar. Considero importante o fato de que
as práticas de cuidados eram muito mais discutidas sobre o aspecto de
acontecimentos no passado, visto que o número de mulheres que “já tem seus
filhos criados” é grande.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

As entrevistas, que eu prefiro colocar como conversas, por terem sido


realizadas muito mais sob esse aspecto do que como algo conduzido,
perpassavam inúmeros aspectos da vida cotidiana naquele bairro. Existia em
todas as conversas que tive nesse espaço, um tom bastante marcado de
“saudosismo”, com enfoque sempre “na liberdade que se tinha naquele tempo”,
tempo no qual as crianças “brincavam soltas pela rua” e onde o “cuidado era
muito mais compartilhado do que hoje em dia”. Ouvia com curiosidade tais
falas, questionando sobre entre quais pessoas esses cuidados eram
compartilhados, o que me era respondido com bastante ênfase que se tratava
de mulheres, que se identificavam como sendo “tudo da mesma família”.
Já no caso do segundo bairro, Santos Dumont, localizado na parte alta da
cidade, nos entornos da Universidade Federal de Alagoas, vivem famílias que
pouco se lembram da existência do mar nessa cidade. Nesse local, o campo
tem sido feito especialmente no Centro de Referência de Assistência Social
(CRAS) onde de segunda a sexta – feira das 8h às 12h acontece o cadastro e
recadastro do programa Bolsa Família bem como uma série de outras
atividades comunitárias e assistenciais; a escolha desse ambiente como
campo, advém das próprias definições que a instituição assume:

Os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) são espaços


físicos públicos, localizados em área de maior vulnerabilidade social,
que possibilitam o acesso das famílias e indivíduos aos programas,
projetos, serviços e benefícios direcionados para a prevenção de
situações de risco e fortalecimento de vínculos familiares e
comunitários (grifo meu)2.

Assim os vínculos familiares nesse bairro, me parecem muito mais


localizados em espaços de convivência, como é o caso de ruas ou
condomínios, onde os espaços de circulação tanto de crianças quanto de
adultos são bem circunscritos. Em mais de uma entrevista ouvi de
interlocutoras, quando questionadas sobre o compartilhamento de cuidados
para com as crianças, falas semelhantes à de Cleonice que era enfática

2
Em folheto informativo distribuído pelos Centros de Referência em Assistência Social de
Maceió – AL, texto organizado pelas Assistentes Sociais Adriana Cristina Lins da Silva e
Adriana Barros de Lima, sem ano.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

quando dizia “Eu gosto é de ficar dentro de casa...”, no que seguia relatando
que não confia e que prefere não ter contato com seus vizinhos.

A relação entre família e espaço, e entre circulação de crianças e


território, surgiram em meu trabalho de maneira empírica, fomentando uma
reflexão sobre as distinções no que diz respeito aos bairros estudados,
pensando nas diferentes apropriações do espaço e o quanto este pode vir a
unir famílias ou não, dependendo muito do contexto e da possibilidade de
transitar e se conectar com aqueles que vivem em volta.
Com relação às práticas e metodologias de condução de entrevista, bem
como observação, têm sido guiadas de maneira semelhante, com diferenciais
contextuais no que concerne à conversa em local privado no Riacho Doce, e
em local público no Santos Dumont e sobretudo considerando que em locais
diferentes, com meios de subsistência diferentes e mais especificamente
pensando os processos constitutivos de cada um dos bairros e sua posição
histórica na cidade de Maceió, existem condutas que por mais gerais que
possam parecer, por estar se tratando de regiões dentro da mesma cidade, têm
suas particularidades.
As idas a campo são sempre munidas de um pequeno bloco de notas, que
frequentemente é utilizado apenas para anotar contatos e endereços dos
interlocutores quando os laços são estreitados e haja proposta de entrevista
em ambiente privado, especialmente nas conversas que acontecem no CRAS.
O fato de eu residir nesse bairro é outro fator marcante que, diz muito sobre as
pesquisas realizadas na contemporaneidade em que já se faz menos estudos
em lugares “distantes e exóticos”, e que passamos a observar o que está a
nossa volta cotidianamente, o que levanta a dificuldade do “distanciamento” do
campo; principalmente quando se trata de composição familiar, pois pode
haver desdobramentos complexos por não existir modelos padrões, então
variam em larga medida sendo um desafio a compreensão (FONSECA, 2004).
No geral, devo enfatizar que a proposta não é um estudo comparativo entre
bairros, mas que faço tais descrições no intuito de lançar luz sobre as
mudanças que essa pesquisa tem enfrentado, considerando os processos os
quais tem influenciado para a ida de um bairro a outro. Com relação às
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conceituações teóricas, recorro frequentemente a um arcabouço de referências


contemporâneas, não deixando, contudo, de pensar conceitos há muito
discutido em etnografias tidas como “clássicas”.
Tendo em vista que o presente trabalho se encontra em processo de
construção e de investigação, não pretendo apontar análises de caráter
conclusivo, mas sim detalhar as metodologias utilizadas e como o
conhecimento vem sendo gerenciado, a fim de remontar trajetórias que falam
não apenas de casos particulares, mas também que informam relações e
subjetividades de uma rede muita mais ampla do que as presentes no contexto
de periferias maceioense propriamente.
Por fim, existe a necessidade de discussão acerca dos entraves de
pesquisa e como mulheres pesquisadoras são recebidas e percebidas em um
campo que trata de outras mulheres e de algo que em muitos casos está
mantido sob a esfera da intimidade e do segredo. Deste modo, é levado em
conta expectativas que partem das interlocutoras no que concerne a minha
realidade de vida exatamente, pois, com certa freqüência também sou
questionada sobre a minha conjunção familiar ou ainda sobre o local onde
resido.
Caracterizo como algo de importância elementar a fala da coordenadora do
CRAS, após uma visita, que ao se despedir disse “Espero te ver em breve,
você é da área”, ou então a empolgação de Dona Ivone, quando eu disse que
“moro ali na rua de trás” e ela em seguida “eu também morei ali por mais de 20
anos”.
Assim, a proximidade de realidades entre pesquisador e interlocutores pode
render muito a ser relatado, especialmente em contextos contemporâneos
onde os indivíduos estão cada vez menos acostumados a falar sobre suas
vidas para desconhecidos, sendo precisamente marcante o fato de dizer “que
moro aqui no bairro também”. Dessa forma, debates que há muito estão
presentes dentro da antropologia, versando sobre o distanciamento e
estranhamento do campo de pesquisas, vem sendo cada vez mais pensados
dentro dessa pesquisa, que envolve em certo ponto, muito mais que técnica e
conhecimentos para a boa condução de entrevistas, como também uma prática
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“empática” e que busca uma horizontalidade, através de afinidades e até


mesmo “uma certa proximidade”.
Existe assim, um debate que por mais definido que seja, por se tratar de
redes complexas, adentra outros campos e reflexões que não foram pensadas
a priori, mas que acabam envoltas na medida em que essa pesquisa agrega
pessoas/famílias e amplia tanto a quantidade de entrevistas, como o contato
com interlocutores. Assim, sem me referir ou buscar como ideal uma
antropologia totalizante, caminho por entre tais discussões procurando reservar
espaço para debates que se mostram pertinente e somatórios nesse estudo.
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Referências Bibliográficas

AUGÉ, M. et al. Os domínios do parentesco – filiação, aliança matrimonial,


residência. Lisboa, Edições 70 (col. Perspectivas do Homem, n.º 2), 1978
(trad. Ana Maria Bessa, Les Domaines de la Parenté, Librairie François
Maspero, 1975).

BOTT, E. Família e Rede Social; tradução de Mário Guerreiro, revisão técnica


de Alba Zaluar Guimarães, prefácio de Max Gluckman. Rio de Janeiro, F.
Alves, 1976.

FONSECA, C. Família, Fofoca e Honra: etnografia de relações de gênero e


violência em grupos populares / Claudia Fonseca. - 2.ed. - Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2004.

PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, v. 20, n.


42, p. 377–391, 2014.

SARTI, C. A. A Família Como Ordem Simbólica. v. 15, n. 11, p. 11–28, 2004.

STRATHERN, M. Necessidade De Pais, Necessidade De Mães. Estudos


Feministas, n. 2, p. 303–329, 1995.
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Título: "O Olmo e a Gaivota – ou reflexões acerca do trabalho produtivo e


reprodutivo"

Autora: Lorena Ferreira Cronemberger1

Resumo: O hibridismo de gênero cinematográfico trazido pelo filme O Olmo e


a Gaivota, nos trás uma ficção-documental intensa para se pensar as
reformulações de uma experiência que parte do corpo para a construção
subjetiva e atuação direta com o social. Até que ponto a experiência da
gravidez influi na compreensão de trabalho? Nas palavras de uma das
diretoras do filme: "Se Elena explorou o desafio que é criar raízes no mundo, –
torna-se um ser, adulta, mulher –, em Olmo e a Gaivota, minha vontade é
entender esse segundo momento, em que é necessário desapegar dessa
identidade conquistada, criando condições para que um outro nasça, seja um
bebê ou uma nova versão de si". Nosso interesse se compactua com a da
diretora.

O presente trabalho partirá da clássica discussão acerca do trabalho


produtivo e reprodutivo, perpassando o conceito de Marx, porém indo de
encontro às discussões feministas que buscaram problematizar esse conceito.
Meu foco, dentro deste panorama, é refletir não só acerca da invisibilização do
lugar da mulher no conceito de trabalho produtivo, com sua intensificação, no
século XXI, através da tripla jornada feminina. Mas, principalmente, em
perceber como o trabalho reprodutivo ainda é vivenciado enquanto lugar de
subalterno, assim como as experiências de sofrimento e inquietações na
vivência da maternidade. Essas indagações fazem parte da minha
problematização de mestrado, que está em desenvolvimento, acerca de uma

1
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, Brasil.
Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail:
[email protected]
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visão sociológica sobre a depressão pós-parto a partir da visão da construção


social da maternidade.
Palavras-chave: maternidade, trabalho, olmo e a gaivota

O filme O Olmo e a Gaivota (2015) surge do desejo comum das diretoras


Lea Glob e Petra Costa em investigar a fronteira entre ficção e realidade,
envoltas também de uma insatisfação acerca das poucas abordagens
cinematográficas acerca da maternidade e da gravidez – salvo exceções como
O bebê de Rosemary, um exemplo no mínimo peculiar. Queriam identificar
seus lugares como artistas e mulheres, contando uma história de forma íntima
e corporal.
Convidadas pelo festival de Copenhagen CPH:DOX (DOX:LAB), as
diretoras, após uma semana buscando inquietações comuns, descobriram que
tinham o desejo em fazer um filme em que pudessem usar uma estrutura
ficcional para olhar para a vida de uma personagem real, buscando construir
dispositivos e situações que permitissem os personagens mergulharem em
suas memórias, desejos, remorsos, hábitos e segredos. Estavam interessadas
no tema da mulher, em um dia na vida de uma de nós.

Anos antes, em uma turnê do Théâtre du Soleil pelo Brasil, Petra Costa
conhece Olivia e Serge, atores da companhia – e futuros personagens de sua
obra. Estes vinham de uma vasta carreira de teatro de improviso, o que
despertou na diretora um grande desejo de parceria. Ao desenhar um novo
roteiro para o festival de Copenhagen, Petra decide convidar Olivia. Porém,
existia um fator extra: ela estava grávida. E o que era pra ser um dia na vida
dela, viraram 9 meses .
Como, então, filmar a jornada psicológica de uma mulher ao longo de
sua gravidez, em sua dimensão profunda, obscura e existencial? Eis o que o
filme se propõe investigar. Um caminho pela fronteira entre atuar e ser, entre
real e ficção, entre roteiro e vida – tal como Olivia encarava em sua vida e, na
gravidez, ainda mais.
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A gaivota

O filme se inicia com a encenação da peça A gaivota, de Anton Tckekov.


Escrita em 1896, a peça conta a história de Nina e Arkádina. Nina, uma atriz
que cai na loucura. Arkádina, uma atriz entrando na velhice e tendo o medo de
perder o lugar como grande atriz do teatro russo. Dois medos de Olivia –
loucura e impossibilidade de trabalhar em sua carreira por uma limitação
corporal. Ainda no início do filme, em sua dimensão "real", Olivia e Serge
descobrem que vão ter um filho. Jogam-se na cama celebrando. Porém, um
primeiro desafio se coloca: contar para a companhia de teatro que está grávida.

Em meio à celebração da notícia de uma turnê de estreia, Olivia decide


partilhar com seus parceiros de ofício a notícia de sua gravidez e,
consequentemente, sua perturbação acerca da equalização do tempo da
gravidez com o tempo do trabalho. Neste momento, as elaborações racionais
de Olivia e de seu grupo acerca da implicação da gravidez para a execução do
trabalho começam a fazer chão para o nosso debate.

Ter um filho ou trabalhar? Eis uma questão que aparenta, no primeiro


momento (e talvez em outros), como uma escolha que, consequentemente,
excluirá a outra. A busca pela experiência da maternidade parece seguir um
caminho inverso ao do investimento profissional, ao que passo que implica algo
incondicional da mulher: seu corpo. De fato, existem mulheres que
praticamente não param de trabalhar ao ter um filho, principalmente quando a
subsistência e sobrevivência dos seus dependem da sua atuação. Porém, é
possível se pensar em uma categoria de mulheres que já alcançaram novos
direitos e desejos, através de conquistas feministas, e buscam a satisfação
pessoal em outras dimensões sociais, como econômica e intelectual, e não se
sentem plenamente satisfeitas com a maternidade e a vivência doméstica
implicada. Neste ponto, parecemos nos deparar com uma encruzilhada. Qual
caminho tomar? É realmente um caminho que se bifurca? Para discutir essas
questões, farei um breve passeio por autoras e autores que pensaram
sociologicamente o trabalho, especificamente o trabalho das mulheres.
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Karl Marx, apesar de ser um pensador que não buscou problematizar a


questão de gênero em suas obras, assim como a questão patriarcal imbricada
no desenvolvimento capitalista, se configurou como um autor basilar para
algumas teorias feministas. Neste âmbito, o conceito de trabalho constituiu-se
como elemento-chave em sua obra. Para ele, o trabalho estaria relacionado
com a produção da vida material e seria um aspecto fundante do ser social, a
condição eterna do homem.

Para Araújo (2000), o enfoque histórico e material do marxismo permitiu


fazer uma intersecção com o pensamento feminista, de modo a ajudar a
perceber a desnaturalização da subordinação da mulher em contextos
socioeconômicos, assim como o conceito de ideologia para pensar as relações
e conflitos sociais para além da ordem material e as relações entre trabalho
produtivo e doméstico na economia política. Contribuiu, então, a perceber
como as relações sociais, sendo também as relações entre homens e
mulheres, como parte e produto das práticas e construções históricas e sociais,
e não através de uma natureza humana imutável e ontológica.

Segundo a autora, Engels também contribuiu neste âmbito,


principalmente em sua obra A origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado (1977), que, apesar das críticas, se constituiu como uma referência
para pensar a opressão da mulher envolta das relações entre condições
materiais e surgimento da propriedade privada e das instituições. Desse modo,
as condições materiais seriam a primeira instância de opressão, e não uma
essência masculina dominadora.
De fato, o marxismo fora criticado por sua subestimação da posição do
trabalho reprodutivo na dinâmica econômica capitalista, porém
a leitura mais atenta das obras de Marx e Engels permite identificar a
constante relação entre produção e reprodução da vida envolvendo, por
conseguinte, trabalho pago e trabalho não-pago, inclusive o doméstico.
A economia política, ao estabelecer tal conexão, fornece as bases
necessárias para se proceder a uma crítica sobre o valor desse trabalho
no próprio ciclo produção/reprodução, assim como para o entendimento
dos caminhos através dos quais a exploração de classe e a opressão
de sexo se articulam. (Araújo, 2000, p.66-76)
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ávila (2011) também ressalta que a concepção de trabalho, em Marx e


de um modo geral, foi compreendida por muito tempo como apenas referente
ao trabalho produtivo, sendo o trabalho reprodutivo ou trabalho doméstico,
negligenciado nesta compreensão ontológica. Segundo a autora, "a
reestruturação desse conceito para alcançar as duas esferas do trabalho é
parte do processo político e de uma prática de produção do conhecimento que
se constroem a partir do movimento feminista em uma relação dialética"
(ÁVILA, 2011, p.53). Para Ávila, na análise marxista, o trabalho doméstico
existiria como um substrato do trabalho produtivo, sendo limitado ao espaço
doméstico e voltado centralmente para a reprodução da sociedade, que só
seriam contabilizados a partir do consumo dos produtos. Desse modo, o
trabalho existente na instância doméstica, tal como o cuidado, a produção da
alimentação ou a organização do espaço familiar estariam alheios à
contabilidade da mais-valia, não sendo percebido como lucrativa na exploração
capitalista.
Porém, perceber a relação entre trabalho produtivo e reprodutivo, nos
leva a perceber também a relação entre divisão social do trabalho e divisão
sexual do trabalho, que, historicamente, constitui-se com homens na esfera
pública e mulheres na privada. Embora seja essa a percepção da época, assim
como a de Marx, sempre houve mulheres na instância produtiva, e isso tomaria
ainda mais corpo ao longo dos tempos, desencadeando uma dupla jornada
feminina, ou seja, as mulheres cumprindo o papel de provedoras do lar na
instância financeira e produtiva, e também sendo as principais responsáveis
pelo cuidado da casa e dos filhos.
Em O olmo e a Gaivota, a personagem Olivia, ao vivenciar uma gravidez
de risco, se depara com a impossibilidade de fazer o que fez toda a vida: atuar.
Ou seja, exercer seu trabalho. A atriz, em um ato indagativo (que não sei ao
certo se dirigido ou pessoal), se confronta com a diretora ao se deparar com
esse "confinamento" inesperado e a questiona se o filme ainda teria algum
sentido, já que ainda não visualizava seu novo papel, tão diferente do roteiro
imaginado. Olivia diz se sentir presa e que sua expectativa em vivenciar uma
gravidez trabalhando, sem pausas, era uma mentira. Que sentia medo do
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compromisso. Perder um trabalho que investiu 10 anos de sua vida? Seria o


começo do fim de sua carreira? Para ela, um momento sem chão e sem ter
onde se segurar. Porém, as diretoras solucionam rapidamente a preocupação
de Olivia (e a nossa): "é disso que a gente vai falar".

O trabalho em Olivia

Olivia não viveria uma gravidez convencional – se é que isso possa


existir. Sua gravidez não seria tão ativa quanto ela esperava, dado um
hematoma uterino, o que configuraria uma gravidez de risco e,
consequentemente, sua atuação se restringiria ao espaço físico de seu
apartamento. Petra Costa, uma das diretoras do filme, diz que tinha desejo por
fazer uma arqueologia de afetos, onde buscaria elaborar uma narrativa ficcional
de uma personagem real. O tema da maternidade, que adentrou no panorama
do filme inesperadamente, acabou tomando um aspecto de urgência, dado a
quase inexistência de filmes que relatem as complexidades do processo de
gravidez e tragam à cena a maternidade enquanto um lugar de escolhas.

A maternidade se configurava, até meados dos anos 70, como um


caminho inevitável, instintivo e obrigatório àquelas que tinham como principal
papel social a perpetuação da espécie e os deveres religiosos imperando em
seu corpo. Com a chegada dos métodos contraceptivos, chega à cena a
possibilidade da escolha da mulher neste até então "destino oracular". Como
Badinter (2010) ressalta, apresenta-se assim uma discussão acerca da
ambivalência materna, onde o desejo de ter filho não se configuraria mais
como algo constante ou universal. A possibilidade da escolha abria caminho
para a diversidade de opiniões, para os dilemas.

Em uma determinada cena do filme, podemos ver de maneira bem


delicada essa discussão. Serge chega em casa após um expediente no teatro
de 10 horas. Olivia está sentada na poltrona da sala, olhando o celular. Serge
pergunta a Olivia como havia sido seu dia – ela não responde. Ela pergunta a
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

ele sobre seu dia, sobre os ensaios, a outra atriz que a está substituindo na
montagem da peça, se alguém perguntou por ela. Serge, visivelmente exausto,
não responde a todas as perguntas e pergunta se pode tomar banho. Nesse
momento, o diálogo gira em torno do pedido de Olivia para que ele a entenda
nesse processo, pois ela está vivendo um presente que diz respeito aos dois,
apesar de apenas ela o carregar. Ela diz estar trabalhando pelos dois, mas que
se sente sozinha e com medo. Serge segue justificando seu cansaço, agora
por um viés financeiro. Fala que precisam de dinheiro para sobreviver e que
apenas ele pode exercer isto no momento. Olivia ironiza seu "discurso de
contador" e diz não pedir que ele deixe de trabalhar – ela tem plena
consciência da necessidade disso – porém, pede sua companhia em atividades
corriqueiras como vê um filme ou conversar. Ao contrário do cansaço de Serge,
Olivia diz estar cheia de energia. Neste momento, ouve-se a voz da diretora do
filme. Ela pede uma variação na cena. Pede por uma Olivia menos severa e um
pouco mais aberta a compartilhar com Serge o que se passa na sua mente e
no seu corpo. Retomam a cena do início, com Serge a perguntando como fora
seu dia. Olivia, chorando e comendo uma banana, responde que terminou as
orelhas e que talvez tenha feito os cílios e terminado o fígado – o que a tomou
muita energia. Fim da cena.

Parece-nos uma excelente metáfora do trabalho doméstico feminino, e,


além disso, uma desconstrução da imagem de passividade da mulher em todos
os processos ligados à sexualidade e à reprodução. Dizer que ela fez as
orelhas, os cílios e o fígado significa que há uma atividade feminina, que o
corpo da mulher está, de fato, fazendo outro ser, alimentando-o, protegendo-o
e permitindo-lhe crescer dentro de si e consigo.

O corpo-dispositivo

Nos estudos que pensam o cinema contemporâneo, a ideia de um


cinema de dispositivo também permeia a discussão do filme em questão
(PARENTE, 2007). A relação entre representação e acontecimento, assim
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como uma busca de crítica ao formato hegemônico de construção fílmica,


fizeram as diretoras atuarem de maneira diferenciada na sua colocação
enquanto sujeito do discurso no filme. As interferências que se faziam visíveis,
através da voz das diretoras, em momentos pontuais do desenrolar do filme,
mostram uma intencionalidade. Fazer-se presente e colocar a câmera como
um dispositivo de construção de realidades. Por isso, uma interface entre
realidade documental e ficção roteirizada se configurando como ponto
essencial na construção do filme.
Foucault (1977), ao utilizar o conceito de dispositivo para analisar a
sexualidade, sob o ponto de vista de um corpo-disciplinar, procurou
estabelecer, tal como na física elétrica, um mecanismo que pudesse acionar e
criar um conjunto de saberes e discursos, logo, formações de verdades. Para
nós, a maternidade terá um caráter de dispositivo, de modo que buscaremos
perceber as diversas esferas de poder e da dominação, envolvidos na reflexão
sobre a maternidade, encarando-a como um fator de relevância para se
perceber diversos elementos da subjetividade e corporificação das mulheres.
Apesar de Foucault não ter desenvolvido um olhar de gênero em sua
conceituação, e principalmente através da ampliação conceitual desenvolvida
por Giorgio Agamben, podemos entender que a maternidade pode ser
construída e introjetada socialmente, se configurando então como um
dispositivo-chave para formação da subjetividade e identidade da mãe e,
consequentemente, relacionado como ela sente e expressa essa experiência.
Investigaremos então o dispositivo da maternidade, de modo a percebê-lo
como algo "que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar,
determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas,
as opiniões e os discursos dos seres viventes" (AGAMBEN, 2009, p.13).
Emily Martin (2006), ressalta como o desenvolvimento da ciência
moderna se configurou como um sistema hegemônico para a representação do
corpo feminino, sendo também incorporado como parte do senso comum. A
autora refletiu como as práticas médicas e tratamentos de saúde oprimiram as
mulheres e influenciaram as concepções das mulheres de seus corpos,
tratando-os como uma estrutura hierárquica direcionada para a reprodução –
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

como uma máquina. A clássica oposição entre natureza e cultura está no cerne
desta discussão, sendo a biologia um forte fator para a justificação da
estratificação baseada no gênero.
Como o mundo do trabalho esteve historicamente relacionado a um
rompimento com a natureza e exigia esforço para dominar a natureza,
as mulheres, as pessoas associadas à esfera "natural" da família, eram
vistas como dominadas (MARTIN, 2006, p.53)

Elisabeth Badinter (1985) também debruça-se sobre a história do


comportamento materno e de como se construiu – e perdurou – uma
concepção instintiva da relação entre mãe e filho, percebendo os valores
dominantes e imperativos sociais, assim como a questão da luta entre os sexos
e a consequente dominação histórica de um sobre o outro. A autora, ao tratar
da problematização acerca do amor materno, traz para a cena um período, de
quase dois séculos, em que a figura da mãe esteve atrelada ao comportamento
de indiferença e rejeição, ao contrário do tão conhecido e disseminado no
senso comum, "instinto materno". Para ela, esse amor proveniente do
nascimento de um filho estaria relacionado a qualquer outro sentimento
humano, que, como eles, seria incerto, frágil e imperfeito, e que talvez,
contrariando os preconceitos, não estaria profundamente inscrito na natureza
feminina. É a partir do final do século XVIII que a concepção de amor materno
como um valor natural e social – e também mercantil – toma corpo. O combate
à mortalidade infantil, vinculado à ampliação das responsabilidades maternas
quanto ao cuidado à longo prazo das crianças, fornecia uma gama de
modificações no status e posicionamento social da mulher na sociedade.

Azevedo e Arrais (2006) enfatizam o quão prejudicial pode ser esse ideal
de maternidade apresentado como natural e instintivo para mulheres que
buscam satisfação absoluta na maternidade, configurando-se como um dos
responsáveis pela instalação e manutenção da depressão pós-parto.

Acontece, porém, que na ocasião do nascimento de um filho, a maioria


das mulheres experimentam sentimentos contraditórios e inconciliáveis
com a imagem idealizada de maternidade ditada pela cultura. Desta
forma, estabelece-se um conflito entre o ideal e o vivido e instaura-se
um sofrimento psíquico que pode se configurar como uma base para a
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

depressão após o parto. (AZEVEDO; ARRAIS, 2006, p.269)

Para as autoras, as representações sociais da maternidade estão


fortemente calcadas culturalmente no mito de mãe perfeita, acreditando numa
maternidade inata à mulher e parte intrínseca do seu ciclo evolutivo vital, de
modo a supor que a mulher, por ser quem gera os filhos, desenvolveria um
amor inato por eles, sendo assim, a pessoa melhor capacitada para cuidar
delas. A hipótese do artigo consiste de que as pressões culturais nas quais as
mulheres vivenciam na maternidade, associadas a um sentimento de
incapacidade em adequar-se a uma visão romanceada desta fase, acabam por
deixá-las ansiosas e culpadas, suscitando, assim, conflitos que predisporiam a
depressão pós-parto.
As autoras também trazem ao debate a questão da figura da mãe
moderna, que apesar da sua maior inserção no mercado de trabalho e o
consequente declínio do sistema patriarcal e da hegemonia masculina inerente
a essa mudança, ainda se configuram como o maior parâmetro para os
cuidados dos filhos pequenos. Percebe-se uma "nova mulher", porém, ela
ainda viveria sob o manto das velhas representações, pois continuaria agindo
sobre ela as cobranças do velho modelo de mãe idealizada.

O início do começo
Nessa jornada psicológica e cinematográfica do processo de gravidez de
Olivia, e da sua impossibilidade de trabalhar, vemos as ambivalências e
complexidades existentes em um âmbito que, muitas das vezes, é apresentado
como uma receita de bolo, cheia de listas e manuais de etiqueta sobre o que
uma mãe deve ou não fazer. A metáfora do Olmo, que significa, em italiano,
uma árvore que cresce incessantemente a partir das suas raízes, e da Gaivota,
um ser que alça voo e baila livre no ar, nos traz a refletir as complexas
ambivalências na experiência de conceber outro ser. Será possível sobreviver
em sua própria pele?
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Para Olivia, o início de um mergulho. Para nós, uma obra rica de


reflexões não apenas acerca da maternidade ou da condição de trabalho
perante essa realidade, mas também uma multiplicidade de interpretações
possíveis acerca da condição humana perante a vida.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? IN: o que é o contemporâneo? E outros


ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

ARAÚJO, C. Marxismo, feminismo e o enfoque de gênero. In. Dossiê Crítica marxista,


2000.

ÁVILA, M. B. Trabalho, desenvolvimento e os impactos na vida cotidiana. 2ª Escola de


Verão para juventudes Políticas Progressistas da América Latina, p. 50-75, 2011.

AZEVEDO, K. R.; ARRAIS, A. R. O mito da mãe exclusiva e seu impacto na


depressão pós-parto. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(2), 269-276, 2006.

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1985.
.____________ O conflito – a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2010.

ENGLES, F. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo:


Civilização Brasileira, 1977.

FOUCAULT. M. A história da sexualidade I: a vontade do ser. Rio de Janeiro: Edições


Graal, 1977.

MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro:


Garamond, 2006.

PARENTE, A. Cinema do dispositivo. IN: Penafria, M. e Martins I.M. Estéticas do


digital. Cinema e tecnologia. Covilhão: LABCOM, 2007.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Para atravessar o portal da dor.


Reflexões antropológicas sobre as diferentes dores associadas ao parto

Rosamaria Giatti Carneiro


Giovana Acacia Tempestai

Resumo: O paper visa estimular a reflexão sobre a noção de dor de parto,


tema candente no processo de transformação da experiência do parto no
Ocidente. Nas últimas três décadas, esta noção vem sendo problematizada e
desconstruída por atores engajados no movimento que foi chamado, no Brasil,
de “humanização” do parto e do nascimento. São mulheres mães, parteiras,
enfermeiras obstetras, médicas e doulas que defendem uma experiência de
parto mais satisfatória e respeitosa, a qual se destaca em um cenário
generalizado de práticas aviltantes contra as mulheres durante a gestação, o
parto e o puerpério, que compõem o conceito de “violência obstétrica” (Sena,
2016). Apresentaremos comentários sobre o filme Orgasmic Birth (2008), que
retrata experiências de mulheres que afirmam ter sentido prazer no momento
do parto, para identificar conexões entre ética, estética e moral no interior
desse universo composto por práticas, saberes e discursos que propõem um
senso de completude desafiador (cf. Martin, 2006), constituídos em torno da
parturição. Por outro lado, abordaremos situações em que a dor experimentada
não é a decorrente das contrações uterinas e sim do fato de não poder viver o
parto idealizado ou considerado o “belo parto” (Fonseca, 2009). Nesse sentido,
desponta, nas palavras de um grupo de mulheres, como uma dor que não é
física, ou não somente, mas como uma “dor da alma”, psíquica e emocional,
fazendo com que também este grupo busque alternativas de reinvenção ética e
estética de superação da dor (Jarecki, 2015). Dessa maneira, em diálogo com
os escritos de David Le Breton (2013), o paper busca refletir sobre a miríade
das ideias de dor no contexto da assistência ao parto no Brasil atual e sobre a
desconstrução da noção de um parto belo enquanto prescrição cultural
hierarquizante.

Palavras-chave: parto, dor, pessoa, corporalidade


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Dor de parto: um termo também polissêmico

Em nossas pesquisas sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres,


nos deparamos com diferentes concepções de dor que operam no ideário da
“humanização” do parto e do nascimento no Brasil. Esse é um movimento
social que tem como foco a reapropriação, pelas mulheres, da experiência do
parto, concebida como um evento holístico e potente. O desejo de ter um parto
satisfatório, “mais natural”, vem ganhando visibilidade desde os anos 1980,
predominantemente entre mulheres de classe média vivendo nos grandes
centros urbanos, e adquiriu os contornos de uma pauta de direitos humanos,
na medida em que as ativistas jogam luz sobre o contexto de violência
institucional sistêmica contra as mulheres – mais recentemente chamada de
“violência obstétrica” (Diniz, 2005; Minayo, 2006; Dias & Deslandes, 2006;
Carneiro, 2014 e 2015; Sena, 2016).

Em um artigo de 2005, a médica feminista Simone Diniz refletiu sobre a


polissemia do termo parto “humanizado” ou, mais precisamente, “humanização”
do parto. Segundo ela, a ideia de humanização poderia ser lida como: a)
humanização como legitimidade científica da medicina ou assistência baseada
em evidências científicas, indicada como padrão ouro de assistência; b)
humanização como legitimidade política de defesa dos direitos das mulheres
na assistência ao parto e ao nascimento; c) humanização referida ao resultado
do uso adequado de tecnologia no cuidado da saúde da população, algo
preconizado pela Organização Mundial de Saúde; d) humanização como
legitimidade profissional e de saberes, bem como do redirecionamento de
papéis na assistência, o que implica no reconhecimento de enfermeiras e
outros profissionais nas cenas de parto; e) humanização referida
à legitimidade financeira (sic) dos modelos de assistência, da racionalidade no
uso dos recursos, que questiona a relação entre mercado, planos de saúde e
procedimentos cirúrgicos; f) humanização referida à legitimidade da
participação da parturiente nas decisões sobre sua saúde, à melhora na
relação médico-paciente ou enfermeira-paciente – ênfase na importância do
diálogo com a paciente, inclusão do pai no parto, presença de doulas
(acompanhantes de parto), alguma negociação nos procedimentos de rotina, a
necessidade da gentileza e da “boa educação” na relação entre instituições e
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seus consumidores e g) humanização como direito ao alívio da dor, da


inclusão para pacientes do SUS no consumo de procedimentos tidos
como humanitários, antes restritos às pacientes privadas – como a analgesia
de parto (Diniz, 2005, p. 633-635).

Esse seu artigo foi um marco no que tange a delimitação do termo e de


suas práticas, mostrando-nos importar muito mais a amplitude de sua
semântica do que a precisão das palavras e seus contornos. Fica claro naquela
ocasião (2005) que o termo humanização do parto funciona como uma
expressão guarda-chuva de muitas práticas, atrizes e políticas.

A ideia dessas páginas é, similarmente, tratar da polissemia da dor de


parto, que, a nosso ver, é também muito mais ampla do que precisa, também
guarda-chuva para emoções, corporalidades e projeções intelectuais.
Acompanhando mulheres gestando, parindo e maternando no interior de São
Paulo por mais de dois anos, Carneiro (2015) cunhou essa ideia ao apresentar
a dor como um mosaico de emoções e significações. Segundo a antropóloga,
quatro poderiam ser os tipos de dor, segundo o material de campo encontrado:
“a dor que racha ao meio”; “a dor que se esquece”; “a dor que não é
sofrimento” e “a dor que não é dor, mas prazer”.

Na primeira franja, estiveram mulheres que, em grupo ou em entrevistas


pessoais, afirmaram terem sentido muita dor, uma “dor que parecia rachá-las
ao meio”, algo da ordem do insuportável e corporalmente intenso e negativo.
No segundo grupo, a dor teria existido, mas em um espaço e tempo do qual
depois se esqueceram, sobressaindo-se muito mais a experiência vivida, o
parto desejado, o parto conquistado ou o esgotar da possibilidade de vivê-lo.
Nesse sentido, valeria mais a experiência de parir e por isso a dor teria sido
esquecida ou se tornado inferior quando comparada ao vivido na totalidade.
Por isso, importava menos ou dela se esqueciam. Em seguida, deparamo-nos
com o grupo das mulheres que diziam que a dor não é de sofrimento e que,
dessa forma, vinha nomeada pelo que ela não é, por seu oposto. Por seu
negativo. De todo modo, é o que não é dor, é o que não é ruim ou insuportável.
Dói, mas essa sensação corpórea não pode ser lida como algo penoso. Por
isso, é algo que não é sofrimento. Essas duas faixas de mulheres, a da “dor
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que não é sofrimento” e a da “dor que se esquece”, são as que mais


acomodaram as mulheres observadas por Carneiro (2015).

Porém, para além dessas, despontaram também, em número crescente,


as que viveram uma “dor que não é dor, mas prazer”, surgindo, assim, relatos
de parto erógena e sexualmente prazerosos, nos quais a mulher anuncia sentir
prazer parindo, subvertendo, então, ideias consolidadas de que parir é a “pior
dor do mundo” e/ou de que a mãe nasceu para sofrer e de que a mulher,
assim, “pagaria” por seus pecados, como anunciado em Gênesis (3:16).

A respeito da dor vivida como prazer, gostaríamos de recuperar o


documentário Orgasmic Birth (2008), dirigido pela doula Debra Pascali-Bonaro,
no qual o parto é descrito como experiência sensual, sexual, amorosa, íntima,
espiritual, transcendental. As cenas intensas de 11 mulheres em trabalho de
parto se passam em suas casas e em instituições nos Estados Unidos.
Depoimentos de gestantes e seus companheiros antes e depois do parto são
entremeados com imagens de trabalho de parto e falas de profissionais que
criticam o modelo hegemônico de atenção ao parto. Esses profissionais
enfatizam o papel dos hormônios no desenrolar do parto fisiológico, definido
como “um projeto da mãe natureza”.

Ao som de gemidos, vocalizações e gritos lancinantes, algumas mulheres


relatam experiências incrivelmente sublimes. Alexandra, que teve um parto
domiciliar, diz o seguinte:

Desde que as mulheres saibam por que estão escolhendo um


parto em hospital, casa de parto ou nas suas casas, elas
estarão nisso 100%. Mas, se você vai para um hospital porque
é isso que todo mundo faz ou espera que você faça, então
você estará perdendo alguma coisa, você estará se rendendo
para algo que provavelmente não é verdadeiro para você. (...)
Quando eu estava tendo a pior dor, quando ela estava nas
minhas costas, quando eu realmente estava em trabalho de
parto, então eu estava dizendo: ‘Arghhhhhh’. Sabe como é,
dando este grito, esta sensação como quando você está tendo
um orgasmo e você apenas está livre e deixa acontecer. Sabe,
de certa forma, era este o tipo de energia. Senti como um
grande círculo em volta de mim, como se eu estivesse girando
pelo universo. Você tem ajuda, você tem seu marido, você tem
sua amiga, você tem sua doula e sua parteira lá, ajudando o
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seu bebê a nascer. Eu estava muito conectada com John [seu


companheiro] e, sim, como que me pendurei nele. E estar lá foi
como se nós estivéssemos fundidos um no outro, e fora de
tudo. Aí ela [a bebê] veio e foi muito agradável, fisicamente,
inclusive. Quando ela finalmente nasceu, a passagem [pelo
canal vaginal] foi quase um prazer. Confie no seu corpo,
porque é para isso que somos feitos. Você fez crescer uma
grande e linda barriga, e você pode fazer isso [parir].

De acordo com esses depoimentos, o propósito de fazer circular imagens


que condensam a possibilidade de um parto orgástico é inspirar outras
mulheres a se apropriarem de seu próprio corpo e a escolherem bem o local e
os profissionais que acompanharão o parto. A parteira Elisabeth Davis afirma
saber que, “quando uma mulher tem seu parto pelo seu próprio poder, e
encontra seu ritmo, suas posturas, seus sons e seu momento de êxtase com o
parto, ela é uma mulher transformada, uma mulher brava (fierce)”.

Se esses pontos ou conotações da miríade da dor assim foram


tematizados na etnografia de Carneiro (2015), realizada no começo nos anos
2000, de alguns anos para cá, a nosso ver, ainda mais nuançada ou
polissêmica tem se tornado a sua ideia, haja vista as discussões recentes e
pungentes acerca da “violência obstétrica” e da noção de dor divulgada, mais
recentemente, ao redor dos relatos de mulheres que, ao viverem uma cesárea
indesejada depois de uma tentativa de parto em casa, trazem à tona a noção
da cesárea como ferida na alma e a dor por não terem experimentado o parto
desejado. Fenômeno esse que, nos Estados Unidos, tem recebido o nome de
homebirth cesarean ou HBC.

A dor como anulação do sujeito: violência obstétrica

A expressão “violência obstétrica” surgiu de um conjunto amplo e


descentralizado de reflexões sobre experiências de desrespeito e abuso
durante o evento do parto, vividas por mulheres de diferentes segmentos
sociais em diferentes regiões do país. Tais reflexões puderam ser
compartilhadas pelas mulheres por meio da internet, sendo que elas se
apropriaram de resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas, bem como
do reconhecimento pioneiro dessa triste realidade por parte do sistema jurídico
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venezuelano, que, no ano de 2007, incorporou a expressão à Lei Orgânica


Sobre o Direito das Mulheres a Uma Vida Livre de Violência, definindo-a nos
seguintes termos:

Artigo 15, ponto 13. Violência obstétrica: Entende-se por


violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos
reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, que se
expressa em um tratamento desumanizador, uso abusivo de
medicação e patologização dos processos naturais, trazendo
consigo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente
sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando
negativamente a qualidade de vida das mulheres (Disponível
em: http://www.derechos.org.ve/pw/wp-content/uploads/11.-Ley-
Org%C3%A1nica-sobre-el-Derecho-de-las-Mujeres-a-una-Vida-
Libre-de-Violencia.pdf Acesso em 03 out. 2017) (nossa
tradução).

L. M. Sena (2016) realizou uma pesquisa de fôlego que focalizou relatos


de mulheres que classificaram suas próprias experiências de gestação, parto e
pós-parto, tanto na rede pública como em instituições vinculadas ao sistema de
saúde suplementar, como experiências de “violência obstétrica”, identificando
as seguintes modalidades dessa categoria específica de violência (aqui
organizadas de acordo com a fase do ciclo gravídico-puerperal, por
comodidade de exposição): i. durante o acompanhamento pré-natal: tratamento
infantilizador, paternalista, omisso, manipulador ou agressivo dispensado à
gestante; ii. durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato:
impedimento da presença de acompanhante (a despeito da vigência da Lei n.º
11.108, de 07 de abril de 2005); abandono emocional (entendido como
sinônimo de ausência de acolhimento empático, escuta qualificada e prestação
de esclarecimentos adequados); violência verbal, especialmente em
decorrência do questionamento em relação às ações que estavam sendo
executadas; imposição da cesariana; separação por longos períodos entre mãe
e recém-nascido (associada à ausência de incentivo à amamentação); iii.
durante o período pós-parto/pós-cirúrgico: tratamento grosseiro ou frio;
internação prolongada sem a apresentação de justificativas; iv. durante todo o
ciclo gravídico-puerperal, sobretudo durante o parto: uso arbitrário da
anestesia, desconsiderando-se os pedidos da mulher; realização de
procedimentos (especialmente tricotomia, enema e episiotomia, além da
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aplicação de ocitocina sintética) sem consulta à mulher ou sem o seu


consentimento expresso ou, ainda, como forma de retaliação explícita – alguns
apresentando pontos de contato com situações de abuso sexual.

As mulheres que participaram da pesquisa classificaram expressamente


como “violência obstétrica” nada menos do que 60 tipos de ações praticadas
por profissionais de saúde (Sena, 2016, p. 124-7), tornando compreensível e
apropriado o título do trabalho: ‘Ameaçada e sem voz, como num campo de
concentração’. A medicalização do parto como porta e palco para a violência
obstétrica. O trecho transcrito a seguir ilustra a intensidade da dor provocada
pela violência obstétrica:

Só lembro que eu chorava demais, soluçava, um desamparo


total. Ninguém me perguntava o que estava acontecendo,
ninguém me falou nenhuma palavra de conforto. O que eram
aquelas pessoas??? Fico pensando se uma pessoa está
naquelas condições emocionais em qualquer outro lugar – até
mesmo um anônimo chorando na rua – qualquer um por perto
se sensibiliza, se preocupa, pergunta por que o outro está tão
fragilizado; agora uma pessoa nua, prestes a ter seu ventre
cortado, prestes a receber o seu primeiro filho nos braços, aos
prantos em um momento tão íntimo e importante e ninguém
sequer teve a preocupação de perguntar o que estava
acontecendo, se eu estava me sentindo bem, se estava
sentindo alguma dor, algum mal-estar, se estava sofrendo.
Toda a minha carne estava exposta naquele momento.
(palavras de Bruna in Sena, 2016, p. 97)

Os dados oferecidos por Sena (2016) trazem densidade etnográfica aos


resultados do inquérito Nascer no Brasil, realizado nos anos de 2011 e 2012,
abrangendo quase 24 mil mulheres de 191 Municípios (Leal et al., 2014). Nos
relatos de experiência das mulheres, tais condutas e intervenções passam,
então, a ser interpretadas como a causa do estado de despersonalização,
anulação, fragilidade e vulnerabilidade da mulher que dá à luz, estado ao qual
estão associados sentimentos de medo e terror e uma dor devastadora, com
consequências físicas e psicológicas duradouras, infligida pelos atores
responsáveis por prestar um tipo de assistência que deveria estar em
consonância com os princípios dos direitos humanos (Pulhez, 2013).
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Notemos que a elaboração do relato em si e a sua divulgação por meio


das novas tecnologias de informação e comunicação compõem uma prática
simultaneamente subjetiva e política, em que a experiência individual é
canalizada para uma pressão social que tem por objetivo transformar a cultura
do nascimento. Nesse horizonte, a dor decorrente da negligência, da
infantilização, da humilhação, do abuso ou da mutilação é desnaturalizada e
surge como expoente de um modelo de assistência percebido como violento e
inadequado, que deve ser completamente reestruturado a partir de novos
princípios e diretrizes.

Sena (2016) enfatiza ainda que o acesso à internet consiste em uma


importante ferramenta de empoderamento feminino voltado à promoção da
saúde reprodutiva e aos direitos sexuais das mulheres. Com efeito, a
conectividade propiciada pelas novas tecnologias de informação e
comunicação vem exercendo papel relevante na explicitação e na
problematização das práticas e condutas profissionais voltadas para o ciclo
gravídico-puerperal, como se pode observar na circulação de um número
crescente de relatos de parto, escritos ou filmados, publicados em grupos
virtuais e blogs (Tempesta, ms.). O compartilhamento de experiências pessoais
associa-se à difusão e à apropriação de informações científicas atualizadas e
também de informações sobre cuidados paliativos e terapias alternativas,
configurando-se um campo de conhecimentos e práticas contra-hegemônicos
referentes à gestação, ao parto e ao puerpério.

Os relatos agregam a dimensão da experiência vivida e comunicam


sentimentos, sensações e reflexões variados. Por privilegiarem o aspecto
subjetivo da experiência do parto, os relatos se apresentam como veículo
potente de divulgação de um tipo específico de dor, convidando à construção
de uma consciência coletiva sobre a dor que comumente é invisibilizada pelo
ideário hegemônico da medicalização da vida.

As mulheres que tomam consciência da situação de violência


experimentada descrevem minuciosamente condutas e intervenções
protocolares dos profissionais da saúde (médicos, anestesistas, enfermeiros,
técnicos de enfermagem e recepcionistas das instituições). Muitas mulheres,
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porém, não tomam consciência da violência no momento preciso da


experiência, e sim posteriormente, a partir do contato com experiências
análogas compartilhadas por outras mulheres, tanto em grupos presenciais
como no ciberespaço, ou ainda devido a uma segunda experiência distinta da
primeira, e são muitos os casos em que a tomada de consciência motiva a
adesão ao movimento em prol do parto “humanizado” ou respeitoso, conforme
comprova o trabalho de Sena (2016).

A dor física e moral é transmudada assim em ferramenta de


sensibilização e luta, irmanando mulheres de diferentes inserções
socioeconômicas em torno de um ideal que inclui e ultrapassa o modelo de
atenção obstétrica hegemônico.

A dor do parto não vivido: desconstruindo o belo parto

Nos Estados Unidos tem crescido um grupo de mulheres que se


autodenominam pela sigla HBC ou homebirth cesarean. Diferentes daquelas
que escolheram a priori uma cesariana, mas também diferentes das mulheres
que viveram um parto em casa, parecem tentar se localizar nesse universo de
outros modos de parir (Carneiro, 2015). Segundo seus escritos, em dois livros
e em um grupo virtual em redes sociais de mesmo nome, essas mulheres
teriam, desde o início de sua gestação, buscado uma experiência de parto
domiciliar, assistido por parteiras ou midwifes. Porém, por problemas durante o
trabalho, terminaram em um hospital americano e passando por uma cesárea.
Experiência essa que as faz não pertencentes ao grupo das que pariram
vaginalmente em casa, mas tampouco das que procuraram pela cirurgia
abdominal de antemão, posto que desejavam arduamente o parto vaginal e em
casa, cujo desfecho foi o que exatamente evitavam ou resistiam.

O termo foi pensado a partir da experiência pessoal de Courtney Jarecki,


uma doula, educadora infantil e aprendiz de midwife, que teve de se submeter
a uma cesárea, depois de ter planejado o seu parto domiciliar, por conta da
presença de mecônio (fezes do bebê no líquido amniótico) significativo em seu
ventre. Em seu livro, Homebirth Cesarean. Stories and support for families and
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healthcare providers (Jarecki, 2015), nos conta que, no dia seguinte da cesárea
vivida e indesejada, abriu um arquivo em seu computador, intitulado homebirth
cesarean, e ali o deixou em branco, tendo a certeza de que a ele voltaria
brevemente e com outro intuito.

Minha experiência, e trauma do qual tento me curar, estão


diretamente relacionadas ao fato de que eu havia planejado um
parto fora do hospital. Eu fui do íntimo cuidado da minha
parteira para o hospital que eu nunca havia conhecido e onde
estavam pessoas que não conhecia, pessoas que nunca
haviam me visto antes. (...) Para muitas de nós, mães de
homebirth cesarean, estamos lidando com mais do que perda
de um parto vaginal. Estamos pondo fim as nossas
expectativas e, em alguma medida, descaracterizando nossas
identidades (JO, 2012, HBC, W. US, p. 15, nossa tradução)

Oito meses depois do nascimento da filha de Courtney, ela e sua


parteira, Laurie Perron Mednick, decidiram conversar abertamente sobre todo o
ocorrido em seu parto e fazer dessa experiência algo que pudesse auxiliar
outras mulheres, mas também a si mesmas como mulheres e mães que
viveram essa situação e como profissionais de saúde que estavam à frente de
um tipo de parto que se viu completamente transformado no inesperado. Dessa
iniciativa surgiu, em tempo recorde, nos últimos cinco anos, um grupo no
Facebook (FB), intitulado de Homebrith cesarean; uma série de rodas de
conversa, seminários e exercícios de “superação” ou de “cicatrização” do
trauma e da dor de ter experimentado com uma cesárea nada prevista ou
planejada, “uma ferida na alma”.

No que tange a dor é interessante pensar que não se trata da dor física,
da tão temida dor do trabalho de parto, mas de uma “dor emocional” que, antes
do corte no corpo, parece advir de um corte nas expectativas e naquela mulher
como pessoa, em seus projetos e leituras de mundo. Desse modo, bem
diferente do que se vê entre as mulheres que optam por um parto natural, a dor
não advém do parto vivido, fruto das contrações uterinas, da laceração
perineal, suor e lágrimas, mas do parto não experimentado, da ausência, do
não alcançado e/ou de seu vazio. E, em outro sentido, também do corte que,
antes da dor fisiológica, parece advir da ruptura ou da “violação” daquela
pessoa e de suas relações sociais estabelecidas, até então, ao redor daquele
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

parto. Essa dor seria, então, para esse grupo de mães, a “dor da cesárea
indesejada”, alojada justamente no procedimento que se faz, em tese, para
evitar a dor ou sofrimento do trabalho de parto.

Essas mulheres parecem padecer de não terem vivido o “belo parto”


descrito por Cláudia Fonseca (2009) em uma pesquisa feita em uma
maternidade francesa no começo dos anos de 1990. Segundo a antropóloga,
que ali havia parido 20 anos antes, entre a equipe que ali laborava e mulheres
que ali pariam, circulava uma ideia de parto bonito, tranquilo e ordenado:
aquele que acontecia rapidamente, sem nenhuma intercorrência e a partir do
bom trabalho da mãe e/ou da equipe; o que necessariamente não vinha
atrelado ao conhecimento técnico do assunto. Senão vejamos,

Enfim, existe uma imagem do “belo parto”, bem definido pelo


estabelecimento médico... Dir-se-á que certas mulheres são
“bem preparadas”; o termo diz respeito ostensivamente ao
curso pré-natal organizado pela maternidade, mas as parteiras
reconhecem que certas mulheres conseguem realizar o ideal
sem nunca ter feito o curso: “Tenho uma mãe que chegou
numa tal tranquilidade que eu tinha certeza de que [o parto]
não era para logo, logo. E, porém, ela estava com dilatação de
cinco dedos. Assumiu a postura do lótus, as mãos atrás da
cabeça, os olhos fechados, enquanto escutava música clássica
com seu headfone. Foi fabuloso”. (Fonseca, 2009, p. 269)

O parto domiciliar que termina uma cesárea ou HBC parece lido pelas
mulheres que o vivenciam como uma experiência de “belo parto” fracassada.
Muitos dos relatos encontrados na internet sugerem a dúvida quanto ao que
poderiam ter feito para evitar a cesárea ou a insatisfação com relação ao seu
desfecho, cicatriz e estado psíquico, bem como vínculo com a família e a
criança. Por essa razão, não são incomuns narrativas de isolamento e
distanciamento de grupos de mulheres que viveram um parto em casa,
angústia e negatividade do vivido, mostrando-nos como a ideia de um “belo
parto” pode criar hierarquias e diferenças entre mulheres.

Dor: experiência de fragmentação ou potencial de completude?

A partir dos relatos mencionados, podemos inferir que a experiência de


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gestação, parto e puerpério – tendo a dor como conceito-chave – desponta


como matéria-prima para ações de transformação das condições de vida das
mulheres em uma sociedade altamente medicalizada.

De acordo com David Le Breton, a dor

comunica uma informação não só sobre o estado físico ou moral


do indivíduo, mas também sobre o estado de suas relações com
os outros, e, sobretudo, com os outros interiorizados como uma
história encoberta. Em muitos casos, a dor preenche com
evidência, de modo imediato ou secundário, uma função
antropológica de conservação da identidade (Le Breton, 2013, p.
57).

Vimos como, no caso de experiências de violência obstétrica, a


ressignificação da dor, sob a forma de relatos compartilhados com outras
mulheres, contribui para a superação da sensação negativa e, por vezes,
também para a configuração de uma identidade entre diferentes mulheres, na
condição de ativistas em prol da mudança da cultura do parto no Brasil. Por
outro lado, a dor das contrações uterinas é transformada em prazer, beleza e
transcendência na experiência do belo parto numa maternidade francesa e na
experiência do parto orgástico, celebrado por parte do movimento em prol da
“humanização” do nascimento no Brasil.

Em sua pesquisa com mulheres norte-americanas nos anos 1980, Emily


Martin (2006) propôs que o esquartejamento simbólico do corpo feminino pela
ciência médica resulta na fragmentação da pessoa e na alienação (ou
distanciamento) da mulher em relação ao seu próprio corpo e a outras pessoas
nos diferentes ciclos de vida, incluindo a experiência de parto. Martin pôde
“notar em que sentido e a que ponto a ciência se tornou o senso comum da
mulher”, mas também pôde vislumbrar a existência de uma consciência
alternativa baseada em diferentes experiências de vida de mulheres comuns
(Martin, 2006, p. 63). O que as mulheres por ela entrevistadas diziam a respeito
de seus corpos, as imagens e metáforas utilizadas, remetem
predominantemente à passividade, à fragmentação do ser, à objetificação, a
sensações de impotência, ausência de controle, desligamento e alheamento:
“menstruação, menopausa, trabalho de parto, nascimento e seus estágios são
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estados pelos quais você passa ou fatos que acontecem com você (não ações
que você realiza)” (Martin, 2006, p. 135).

Além disso, a autora demonstrou como as novas tecnologias pré-natais


estão criando novas normas para os padrões de produção de bebês, além de
novas expectativas padronizadas para o crescimento e o desenvolvimento
fetal, ao tempo em que os direitos do feto passam a sobrepujar os direitos da
mulher. Esse processo histórico corresponderia a um movimento de
apagamento da mulher da cena do parto, apoiado em imagens depreciativas
sobre o corpo da mulher, que resultaria em seu repúdio completo na “linha de
produção de bebês perfeitos” (Martin, 2006, p. 227-232; Tempesta, 2017).

Este é o repertório cultural contra o qual vem se destacando a expressão


“violência obstétrica”, causa de dores lancinantes e duradouras para muitas
mulheres, conforme analisado por Sena (2016) e retratado pelos
documentários Violência Obstétrica. A voz das brasileira (2012) e O
Renascimento do Parto (2013). Todavia, percebemos que o ideário do
movimento da “humanização”, que combate a violência obstétrica e que
celebra a possibilidade de o parto ser um evento prazeroso e belo, também
pode dar ensejo ao surgimento de novas dores, como aquelas vividas pelas
mães de homebirth cesarean (Jarecki, 2015), dores que comunicam
sentimentos de frustração e exclusão.

Porém, Martin sugere que a experiência de parto em si parece encerrar


um senso de completude desafiador: “Aqui talvez estejam seres humanos
integrais, com todas as suas partes inter-relacionadas, engajados naquilo que
talvez seja a única forma de trabalho verdadeiramente inalienado agora
disponível para nós” (Martin, 2006, p. 256). Neste sentido, gostaríamos de
concluir este paper propondo que o caráter integral, holístico ou totalizante da
experiência de parto se desdobra em uma miríade de experiências de beleza,
prazer, transcendência, dor, violência, frustração, superação e ressignificação,
que apontam para a politização do evento do parto, bem como para a
configuração de novas subjetividades femininas, maternas e feministas (cf.
Carneiro, 2015).
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

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TEMPESTA, G. A. 2017. “Mulheres sabem parir, bebês sabem nascer”. As


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apresentada no Simpósio Temático 091. Maternidades, movimentos de
mulheres e feminismos, 13.º Mundo de Mulheres & Fazendo Gênero 11,
Florianópolis.

_________________. Manuscrito. Contestações Ritmadas. Notas sobre o


simbolismo do útero presente em relatos de parto.

Filmes e documentários

O Renascimento do Parto. Direção: Eduardo Chauvet. Produção: Érica de


Paula e Eduardo Chauvet. Brasil: Bretz Filmes, 2013. DVD.

Orgasmic Birth. The best kept secret. Direção: Debra Pascali-Bonaro.


Produção: Debra Pascali-Bonaro e Kris Liem. California: Seedsman Group,
2008. DVD.

Violência Obstétrica. A voz das brasileiras. Produção: Bianca Zorzam et al.


2012. (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eg0uvonF25M
Acesso em: 26 set. 2017)

Nota

iRosamaria Carneiro é Professora Adjunta da UnB/Faculdade de Ceilândia e realizou pesquisa


com mulheres gestantes e mães no interior de São Paulo. Giovana Tempesta é doutora em
Antropologia Social e Pesquisadora-Colaboradora Plena vinculada ao PPGAS/DAN/UnB;
desenvolve pesquisa sobre o papel que um conjunto de doulas que atuam no Distrito Federal
desempenha no processo de transformação da cultura do parto.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

"Saberes, Tradições e Ciência: Políticas do parto e suas contradições"

Felipe Medeiros Pereira

Mestrando em Políticas Públicas em Saúde – Fiocruz Brasília

Resumo

A contribuição que procuro trazer para o GT é baseada na pesquisa


etnográfica que venho desenvolvendo no Mestrado em Políticas Públicas em
Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, Brasília. A proposta do nosso programa de
pós-graduação é discutir e produzir conhecimentos sobre o Sistema Único de
Saúde com objetivo de reduzir as iniquidades em saúde. Nesse escopo, venho
acompanhando desde 2016 as atividades do Coletivo Eu Livre, principalmente a
roda de gestantes Prosas Paridas, que acontecem desde 2013 na ocupação
cultural Mercado Sul, em Taguatinga. As rodas são mediadas por parteiras pós-
modernas (DAVIS-FLOYD, 2001), com objetivo de oferecer às mulheres os
conhecimentos tradicionais que a biomedicina perseguiu sistematicamente. A
partir dessa perspectiva, discuto as políticas de saúde que impactam o universo
do partejar, particularmente a Política Nacional de Humanização do Parto e do
Nascimento, problematizando as frágeis relações que Estado e Ciência
estabelecem com a Sociedade. O legado deixado pelas estruturas patriarcais
que ainda influenciam nossas políticas e a formação de profissionais de saúde
deve ser superado para que possamos um dia alcançar um sistema obstétrico
que seja realmente focado na mulher, oferecendo a elas os saberes femininos
que vêm sendo resgatados pelo trabalho das parteiras. A biomedicina tem seu
lugar tanto do ponto de vista clínico como científico, mas não é ferramenta que
deve protagonizar os cuidados às gestantes.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução

O cenário que vivemos hoje no contexto das políticas públicas voltadas


para a atenção ao parto e ao nascimento reflete conflitos gerados em nossa
história colonial. Os corpos e os saberes femininos, neste particular os da
parteria, foram cassados pelos europeus que aqui chegaram. O parto domiciliar,
e as responsáveis por acompanha-lo, foram coibidas por lei para serem levadas
às recém-criadas maternidades, pois vazias eram por estar fora do fluxo cultural
do nascer. A justificativa para esse movimento passava por questões
administrativas do Estado, como o registro dos nascimentos, mas também
tocava a moral cristã, que apontava para o parto como um momento de falta de
pudor (AMANTINO, 2011; BRENES, 1991). Esse contexto não é exclusivo ao
Brasil, muitos países passaram por processos similares, onde a colonização dos
saberes foi um dos responsáveis pela perseguição sistemática dos
conhecimentos tradicionais, nomeadamente, para interesse de discussão neste
texto, os conhecimentos de curandeiras e terapeutas populares, como as
parteiras, erveiras, raizeiras, benzedeiras, mães e avós (GROSFOGUEL, 2016).

Esse processo deu início a medicalização do parto e do nascimento, e de


seu entendimento como patologia, que se reflete no atual cenário brasileiro com
a maior parte dos partos acontecendo em ambiente hospitalar, com altas taxas
de intervenções e cesáreas (LEAL et al., 2014). O termo humanização surge no
início do século 20, a partir do trabalho de obstetras pioneiros no uso de algumas
intervenções no trabalho de parto e parto, e consolida-se posteriormente
enquanto movimento levado adiante pelos mais diversos setores da sociedade.
Assim, uma ampla gama de entendimentos a respeito do partejar, por vezes
contraditórios, se manifestam sob a bandeira da Humanização do Parto e do
Nascimento, cuja importância leva o estado Brasileiro a chancelar a ideia na
forma de política pública homônima (DINIZ, 2005).

Partindo deste cenário situo-me na Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz


como aluna do programa de Mestrado em Políticas Públicas em Saúde,
interessada em estudar a Política Nacional de Humanização do Parto. O
programa de pós-graduação solicita às estudantes que problematizem o Sistema
Único de Saúde de forma a pensar melhorias para o sistema de saúde e
consolidar os princípios do SUS. Minha graduação em antropologia na
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Universidade de Brasília é responsável pelas ferramentas utilizadas no


desenvolvimento desta pesquisa.

Metodologia

Durante minha trajetória profissional, na Fiocruz, tive a oportunidade de


trabalhar na organização de Conferências Livres em Saúde. O evento consistia
em propor um espaço nos territórios do Distrito Federal para que as moradoras
e moradores levassem pautas a serem abordadas na 15ª Conferência Nacional
de Saúde. Assim, em uma dessas oportunidades ouvi uma das integrantes do
Eu Livre, coletivo de mulheres terapeutas que desejei estudar mais tarde, falar
sobre alguns dos problemas do SUS. O que me tocou em sua fala foi quando
referiu-se ao atendimento ginecológico recebido por mulheres lésbicas. Em seu
relato, contou que muitas mulheres deixavam de procurar ginecologistas por
serem mal tratadas. Os profissionais que as atendiam se recusavam a dar
orientações sobre a vida sexual de uma mulher homossexual, e, ainda,
conduziam os atendimentos de forma grosseira e às vezes agressiva. Quando
me vi diante da proposta do edital de seleção do Mestrado em Políticas Públicas
em Saúde, que solicitava um projeto de pesquisa relacionado com a trajetória
profissional, este relato me voltou à mente. Então, fui atrás de mais informações
sobre o Coletivo Eu Livre. Acessando sua página na interneti, descobri que o
Coletivo organizava as rodas de gestante Prosas Paridas, que despertou meu
interesse, e assim submeti a proposta ao Programa de Pós-graduação da
Fiocruz.

As Conferências Livres em Saúde não tinham sido as primeiras


experiências de contato das mulheres do Coletivo Eu Livre com ações da
Fiocruz, de maneira que minha orientadora, Luciana, também já conhecia
algumas delas e tinha seu contato. Foi assim que se deu minha entrada em
campo, a partir de uma reunião marcada para discutirmos a possibilidade de
execução da pesquisa. Luciana e eu fomos então ao Mercado Sul, em
Taguatinga – DF, ocupação culturalii onde as Prosas Paridas aconteciamiii. Lá
me reuni com as responsáveis pela organização e facilitadoras da roda, onde
pudemos conversar brevemente sobre a Política de Humanização do Parto, bem
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

como sobre a possibilidade da roda acolher nossa pesquisa, que se demonstrou


aberta não só para a presença da pesquisa, mas também sempre aberta a
comunidade em geral.

Depois de muitas rodas acompanhadas, minha pesquisa começou a


tomar outros contornos metodológicos. Antes, sempre no mesmo lugar, no
mesmo horário, acompanhando as rodas, o trabalho trazia em si características
que lembravam etnografias clássicas, conduzidas em um único sítio. Quando fui
me familiarizando mais com minhas interlocutoras, nos tornando amigas, outros
convites e oportunidades começaram a surgir, e a pesquisa foi caminhando para
outros sítios. O primeiro deles foi a casa delas, onde fui para realizar entrevistas
e poder tocar em assuntos que fugiam ao escopo da roda, como o andamento
das atividades do coletivo. Fui a uma Audiência Pública que discutia a inclusão
das parteiras no SUS, participei da conferência da Rehuna com uma delas,
participei de outras rodas de gestantes, e também uma viagem para o interior do
Pará para conhecer uma comunidade tradicional conhecida por suas parteiras.
Dessa maneira, a pesquisa começou a assumir o desenho de multisítios, onde
não somente continuei indo às Prosas Paridas, mas também onde minhas
informantes me convidavam, como descrito nos padrões de Marcus (1995) onde
seguimos as pessoas.

Por último, é necessário afirmar que os nomes citados neste texto são
reais, como autorizado pelas participantes da pesquisa por meio de Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa
CAEE 64934017.8.0000.8027.

Resultados

Me interessa focar, no desenvolvimento deste texto, na diferenciação que


marca o trabalho de minhas interlocutoras e o que preconiza a Política Nacional
de Humanização do Parto. Falar de saberes tradicionais no contexto da parteria
pode remeter a mulheres que obtiveram seus conhecimentos através da
ancestralidade, sem provavelmente nunca ter entrado em contato com os
saberes produzidos pela ciência moderna. Não é este o caso para as mulheres
do Eu Livre, já que apesar dos saberes tradicionais guiarem sua prática, são bem
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

versadas na linguagem técnica. Ritta possui formação em biologia, enquanto


Juliana é fisioterapeuta e Mariana técnica de enfermagem. O trabalho delas se
aproxima das caracterizações de Davis-Floyd como parteiras pós-modernas.

Around the world we are witnessing the emergence of a phenomenon


that I call postmodern midwifery – a term aimed at capturing those
aspects of contemporary midwifery practice that fall outside easy
distinctions between traditional birthways, professional midwifery, and
modern biomedicine. With this term, I am trying to highlight the qualities
that emerge from the practice, the discourse, and the political
engagement of a certain kind of contemporary midwife – one who often
constructs a radical critique of unexamined conventions and univariate
assumptions. Postmodern midwives as I define them are relativistic,
articulate, organized, political, and highly conscious of both their cultural
uniqueness and their global importance. By postmodern midwife I
specifically do not mean midwives who accept without criticism either
their own folk system or that of biomedicine, but rather midwives who
fully understand these in a relative way, as different ways of knowing
about birth, discrepant systems that often conflict but can be
complementary. (DAVIS-FLOYD, 2001)

Partindo das compreensões sobre o universo do partejar levantadas por


minhas informantes, em novembro de 2016 tive a oportunidade de participar da
Conferência Internacional Sobre Humanização do Parto e do Nascimento –
REHUNA. Lá pude acompanhar uma série de palestras que aconteciam no
formato de uma conferência como as outras: um amplo auditório que acolhia
grandes celebridades sobre o tema, e várias salas temáticas onde se dividiam
Grupos de Trabalho e apresentações de resultados de pesquisa. Nomes como
Michel Odent, Davis-Floyd, entre outras, compunham o rol de palestrantes do
evento.

Dentre as minhas interlocutoras, Mariana, Juliana e Ritta, não houve


demonstração de interesse em participar do evento. A não ser quando, na
véspera, Juliana me disse que iria para ver a fala de Suely Carvalho. Fundadora
da ONG C.A.I.S do Partoiv, Suely é talvez a maior representação nacional da
parteria tradicional no Brasil. Ajudou a fundar grande parte das associações de
parteiras que existem no país, e é fundadora também da ESCTA - Escola de
Saberes, Cultura e Tradição Ancestral. Juliana foi sua aluna, e resolveu ir à
conferência para reencontrar Suely. Na abertura, assisti à palestra de Robbie
Davis-Floyd, bem como a fala de outras pessoas de renome internacional, que
deram início ao evento.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em determinado momento chegou a hora da fala de Suely, e me


surpreendi por estar programada para acontecer em uma pequena sala do
complexo onde acontecia a conferência. Enquanto isso, em outros momentos
ocorriam apresentações no auditório principal, como a fala de midwifes do Royal
College of Midwifery of London. Não que as colegas inglesas não mereçam
devida atenção, mas era no mínimo intrigante que uma das maiores
representantes da parteria tradicional no Brasil fosse relegada a uma salinha de
canto.

Em sua fala, Suely contou como tinha participado ativamente do processo


de criação e consolidação da REHUNA. Contudo, com o passar dos anos e ao
ver o que o movimento e as políticas de Humanização do Parto se tornaram, o
discurso teve que mudar. Suely foi categórica: “Nós, parteiras, nos retiramos do
movimento pela Humanização do Parto”. Assim, em sua fala reforçou as críticas
que eu via aparecerem nas rodas, que detalharei mais adiante. Após a sessão,
conversei brevemente com Juliana e trocamos impressões sobre o evento. Meu
incômodo com a pouca importância dada a fala de Suely pela organização do
evento era compartilhado. Juliana falou, também, sobre suas impressões a
respeito da visão que os profissionais de saúde têm das parteiras. Muitos as
veem como algo do passado: uma figura que era necessária antes de
alcançarmos o patamar técnico e científico da biomedicina, e, agora, nos tempos
modernos, somos gratos pelo trabalho e assumimos daqui em diante.

Gostaria de apresentar agora alguns resultados de minha pesquisa que


ajudam a compreender os acontecimentos narrados, as nuances e percepções
a respeito do partejar que acabam por se contradizer a tal ponto, que não se
identificam sob a mesma bandeira, a da Humanização. Logo na minha primeira
conversa com Juliana, perguntei o que havia de errado com a Política Nacional
de Humanização do Parto e do Nascimento, a resposta foi objetiva: “Como quase
tudo nesse país, essa política veio de cima para baixo”. O texto da política e as
pessoas envolvidas em sua elaboração são, em sua maioria, médicos. Dessa
forma, as parteiras não se viam contempladas na política. Porém, me interessava
saber mais, o que faltava, o que havia de errado. As respostas foram aparecendo
nas rodas e em outras conversas com elas.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em uma das rodas foi discutido como os saberes “técnicos”, maneira


como se referiam a profissionais da saúde, era demasiadamente focado nas
exceções, naquilo que pode dar errado em um trabalho de parto. Nesse
momento, foi relembrado que devemos compreender o parto como um processo
fisiológico, algo natural que nosso corpo foi “programado” para fazer. Assim, não
se deve esperar que toda mulher apresente algum problema que requeira
intervenções médicas. O excesso de intervenções não é um problema que foge
ao escopo da política e da biomedicina, a “cascata de intervenções” já vem
sendo problematizada (DINIZ, 2001, 2005; LEAL et al., 2014), mas é tratado de
formas e em tempos diferentes por cada um dos lados. Como exemplo, podemos
observar o caso da episiotomia. Enquanto na biomedicina ainda se discute o uso
rotineiro versus seu uso seletivo (CARROLI; MIGNINI, 2012; JIANG et al., 2017)
com ausência interessante de revisões sistemáticas que contraponham o uso
rotineiro versus o não uso, ou até mesmo o uso seletivo versus o não uso. As
parteiras, por outro lado, não consideram e nem nunca consideraram realizar
esse procedimento.

Em outro momento, durante uma entrevista, perguntei a Juliana qual era


a crítica que deveria ser feita as formações da saúde para pessoas que
acompanham partos. Como ela me disse, tem a ver com a ordem e a importância
que se dá para as coisas. Nas instituições de ensino superior, o foco da atuação
está nos conhecimentos técnicos, na fisiologia e no conhecimento biológico a
respeito do corpo. A contraproposta é realizar um resgate da história dessa
mulher, quem ela é, porque quer ser doula ou aprendiz de parteira, quem foi sua
mãe, etc. Juliana explica a importância disso:

“Para você estar num parto, você tem que estar resolvido com algumas questões
suas, senão você acaba levando seus medos e a sua história para aquele
processo”

Por isso uma inversão da ordem e da importância das coisas, para as


parteiras o conhecimento técnico acontece como consequência da prática, de
uma aprendiz que aos poucos vai se familiarizando com o que há de necessário
para se saber das técnicas antes de assumir um parto como parteira.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Discussão

As Políticas Públicas brasileiras deveriam refletir, idealmente, os desejos


e anseios da população. Contudo, sabemos que não é assim que o diálogo
acontece nas arenas políticas. Os interesses e jogos de poder manipulam o que
se decide, quem é que decide e para quem servirá o que foi decidido. Quando
tive a oportunidade de acompanhar a audiência pública sobre a inclusão das
parteiras no SUSv, a deputada Janete Capiberibe, responsável por chamar a
audiência, compartilhou conosco alguns dos problemas enfrentados no que se
refere a inclusão das parteiras. Antes da reunião acontecer, Janete procurava
apoio dentre os demais parlamentares para a audiência. Quando partilhou o que
aconteceria com uma colega parlamentar enfermeira, que era natural do sul,
obteve como resposta que as colegas da região sul já estavam com dificuldades
em relação ao mercado de trabalho, e portanto ela nunca apoiaria uma proposta
como essa.

Para além da problemática envolvendo a maneira como os tensões


políticas influenciam a tomada de decisão no poder público, esse caso mais uma
vez ilustra a discrepância a respeito de como o universo do partejar é tratado nos
âmbitos institucionais e pelas parteiras. Enquanto para alguns é uma questão de
reserva de mercado, ajustes em protocolos, evidências científicas e questões
políticas, vejo as parteiras preocupadas em oferecer os melhores cuidados e
informações que as mulheres precisam. Nas Prosas Paridas nunca presenciei
alguma de minhas interlocutoras dizendo para uma mulher como deveria ser o
seu parto. A preocupação é sempre informar da melhor maneira possível e sanar
as dúvidas das mulheres que lá aparecem, independente de como pretendem
parir. O problema das portarias e protocolos é que estão sempre focados em
dizer qual o melhor modelo de parto, como um parto deve acontecer e quais
procedimentos podem ou devem ser usados. A maior parte das evidências
científicas que informam e dão base para nossas políticas, amplamente
desenhadas na forma de revisões sistemáticas, apontam para ajustes de
modelos e protocolos de atenção ao trabalho de parto e parto. Não estão
focados, como deveriam ser necessariamente, nos desejos e nas possibilidades
daquela mulher.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em verdade, como demonstra Paul Nadasdy (2003), as relações entre os


estados e seus indivíduos impõe que os últimos se curvem diante das vontades
do primeiro. Em nosso caso, a recusa em aderir ao movimento e política pela
Humanização do Parto e do Nascimento é, na realidade, uma recusa em
renunciar valores fundamentais da prática da parteria, uma vez que quem dispõe
de tinta e papel para a escrita da política são, em sua maioria, profissionais da
saúde que atuam nos campos burocráticos do Estado. Se a mulher está em
primeiro lugar, os interesses do corporativismo profissional nem deveriam ser
considerados quando observamos a questão. A preocupação, em linhas gerais,
de ambos os lados é a mesma: oferecer a melhor assistência possível a uma
mulher que esteja passando pela experiência que se inicia na gestação.
Contudo, os caminhos a serem percorridos, e o resultado onde se deseja chegar,
se diferem quando se trata de uma política que é escrita por olhares enviesados
e que elege a ciência como legítima responsável por apontar os caminhos a
serem trilhados.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

AMANTINO, M. E eram todos pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes
cobrisse suas vergonhas. In: História do Corpo no Brasil. [s.l: s.n.]. p. 568.

BRENES, A. C. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de


Saúde Pública, v. 7, n. 2, p. 135–149, 1991.

CARROLI, G.; MIGNINI, L. Episiotomy for vaginal birth (Review). Cochrane


Database of Systematic Reviews, n. Issue 1, p. CD000081. DOI:
10.1002/14651858.CD000081.pub2., 2012.

DAVIS-FLOYD, R. The technocratic, humanistic, and holistic paradigms of


childbirth. International Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 75, n.
SUPPL. 1, p. 5–23, 2001.

DINIZ, C. S. G. Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e


limites da humanização da assistência ao parto. [s.l: s.n.].

DINIZ, C. S. G. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos


sentidos de um movimento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, p. 627–637,
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GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades


ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro
genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, v. 31, n.
1, p. 25–49, 2016.

JIANG, H. et al. Selective versus routine use of episiotomy for vaginal birth
(Review). n. 2, 2017.

LEAL, M. DO C. et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e


parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cadernos de Saúde Pública,
v. 30, n. Supl, p. S17–S32, 2014.

MARCUS, G. E. ETHNOGRAPHY IN / OF THE WORLD SYSTEM : The


Emergence of Multi-Sited Ethnography. Annu. Rev. Anthropol., p. 95–117,
1995.

NADASDY, P. Hunters and Bureaucrats: Power, Knowlodge, and


Aboriginal-State Relations in the Southwest Yukon. Vancouver: UBC Press,
2003.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Notas

i http://www.eulivre.com.br/
ii Para mais informações, acesse http://www.mercadosul.org/
iii Devido à necessidade de um ambiente mais acolhedor para as gestantes e
mães, com acesso a banheiros e espaços para as crianças ficarem, em
meados de 2017 a roda mudou de localidade.
iv Mais informações em http://caisdoparto.blogspot.com.br/
v http://www.janetecapiberibe.com.br/noticias-relecionadas/item/985-parteiras-
precisam-integrar-a-sa%C3%BAde-p%C3%BAblica-dizem-parlamentares.html
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Trombofilia e Mulheres: entre as marcas de gênero, a mercantilização


da vida e os direitos reprodutivos.

Danielle Ribeiro de Moraes1

Resumo: Esta investigação explora as contradições que cercam a produção de


discursos e sentidos em torno do diagnóstico de trombofilias em mulheres.
Trombofilia é uma tendência, hereditária ou adquirida, a episódios de trombose,
por alterações dos mecanismos de coagulação sanguínea. Ao diagnóstico de
trombofilia é atribuído um risco aumentado para doenças potencialmente fatais
ou incapacitantes, condicionadas ou precipitadas por estados alterados da
coagulação: infarto agudo do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais,
embolia pulmonar e tromboses arteriais e venosas são alguns deles. As
mulheres são consideradas como um grupo de maior vulnerabilidade às
repercussões de esfera somática, psíquica e social da condição de portadoras.
Além de terem maior chance de perdas gestacionais recorrentes pela própria
trombofilia, o uso disseminado de contraceptivos de base hormonal
(anticoncepcionais) coloca as mulheres que desconhecem seu diagnóstico em
maior risco, uma vez que esses medicamentos são contraindicados a
trombofílicas, por aumentarem ainda mais o risco de trombose.
Especificamente em relação às mulheres trombofílicas que se deparam com a
(im)possibilidade dos processos de maternidade, há um aprofundamento
dessas repercussões: venho observando, como médica e portadora que, sob o
discurso médico, o diagnóstico circunscreve a (possível) gestação como de
maior risco (seja para a mulher gestante, seja para o feto) nos protocolos
médicos. Isso implica na crescente medicalização dos processos gestacionais,
com a inserção da mulher em um rol crescente de procedimentos que passa
pela indicação de técnicas de reprodução assistida, uso de anticoagulantes

1 Pesquisadora do Departamento de Endemias Samuel Pessoa – Escola Nacional de Saúde


Pública Sergio Arouca. Fundação Oswaldo Cruz. Contato: [email protected] e
[email protected]
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

injetáveis ao longo de toda a gestação e no puerpério, realização de exames


de maior complexidade, entre outros. Este cenário impõe desafios à discussão
sobre medicalização, gênero e as apropriações do conceito de risco, que
tensionam a demarcação de (novas) necessidades e acesso aos sistemas de
saúde.
Palavras-chave: Trombofilia; Gênero; Risco; Saúde; Reprodução.

Introdução
Este trabalho é um esforço preliminar de sistematização de minhas
impressões sobre algumas questões que verifico rondarem o diagnóstico e a
vivência, em mulheres, de um conjunto de condições médicas denominadas de
“trombofilias”. Essas impressões são orientadas tanto pela minha formação e
minha experiência como médica sanitarista e generalista, pesquisadora que se
dedica a investigações sobre moralização, discurso médico e apropriações do
conceito de risco pelo campo da saúde, quanto pela minha condição de mulher
trombofílica, portadora de ao menos dois tipos de trombofilias hereditárias.
Trombofilia é uma predisposição aumentada a tromboembolismo, devida
a fatores genéticos ou adquiridos (GUIMARÃES et al., 2009). Dito de outro
modo, trombofilias são um conjunto de condições de saúde caracterizadas pelo
risco aumentado de situações potencialmente fatais, chamados “eventos
trombóticos”. Devido a mecanismos de coagulação alterados, várias doenças
são comumente associadas a esses eventos, para os quais as pessoas com
diagnóstico de trombofilia têm maior probabilidade de ocorrência. Citam-se:
tromboses venosas e arteriais, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral,
infarto agudo do miocárdio, entre outros.
Em mulheres, além dos eventos descritos, destaca-se o risco
aumentado de perdas gestacionais recorrentes e de outras intercorrências
durante a gravidez e o puerpério. O diagnóstico de trombofilia é, então, uma
causa comum de busca por tecnologias de reprodução assistida na chamada
“clínica de infertilidade” (SILVA SOLIGO et al, 2007). Ainda, o uso de
contraceptivos de base hormonal (CBH - também chamados de
anticoncepcionais) em mulheres trombofílicas funciona como um fator de risco
somado à condição de base, aumentando ainda mais a probabilidade de
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

eventos trombóticos. Considera-se, de modo geral, que os CBH são


contraindicados para mulheres portadoras de trombofilia.
Apesar disso, na literatura médica são frequentes os casos de eventos
trombóticos fatais ou incapacitantes em trombofílicas não diagnosticadas que
utilizavam esses medicamentos (POLITI et al., 2013). Amputações, cirurgias
vasculares complexas decorrentes de tromboses venosas amplas, lesões
neurológicas permanentes e morte por embolia pulmonar não são infrequentes
ao observarmos também relatos de grupos de ajuda mútua de trombofílicos em
redes sociais e na mídia impressa (REVISTA ÉPOCA, 2015).
Apesar de sua considerável distribuição na população – estima-se que o
Fator V de Leiden, considerada a trombofilia hereditária mais prevalente, atinja
cerca de 5 a 7% da população caucasiana estadunidense (IHTC, 2017) -,
constituem ainda condições pouco diagnosticadas e cujo conhecimento é
pouco difundido. Avalia-se que o conhecimento clínico e as repercussões
sociais do diagnóstico das trombofilias necessite ser melhor divulgado entre as
especialidades médicas mais ligadas à atenção primária em saúde, que
habitualmente não se deparam com o acompanhamento especializado dos
eventos trombóticos (MANN, 2003; BANK, 2004).
Sendo um tema de debate candente na literatura biomédica, até o
momento não se considera imperativa a ampla testagem de rastreamento para
trombofilias (VERNON, HIEDEMANN, BOWIE, 2017). Ainda que o dispendioso
screening laboratorial obedeça a um rol de indicações específicas, há
protocolos de identificação de fatores de risco para eventos trombóticos a
serem utilizados quando da opção clínica de algum medicamento que aumenta
o risco desses eventos, sobretudo os CBH (LIMA, BORGES, 2012). Desta
forma, se por um lado a indicação de testagem para o diagnóstico de
trombofilias é restrita a determinadas situações, por outro lado, uma avaliação
criteriosa de possível risco aumentado para eventos trombóticos, a partir da
coleta cuidadosa da história clínica (anamnese), se impõe.
Trata-se de uma problemática a ser enfrentada pelos sistemas de saúde,
se levarmos em conta que os CBH são amplamente utilizados, e que não são
apenas indicados para contracepção, mas têm tido seu uso ampliado para
outras condições clínicas, como a síndrome de ovários policísticos. Ainda,
medicamentos de base hormonal análoga têm sido amplamente usados na
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

menopausa e síndrome climatérica, sob o nome de “terapia de reposição


hormonal”. Além disso, a terapia hormonal é uma das bases da redesignação
de gênero, o que pode acarretar riscos acrescidos às pessoas transgênero que
sejam eventualmente trombofílicas.
Podemos considerar que, dado o amplo uso de CBH e a magnitude de
ocorrência de eventos trombóticos entre mulheres trombofílicas, potenciais
usuárias desses medicamentos, são cabíveis reflexões tanto sobre as
estratégias de difusão de conhecimento voltadas a essa problemática entre o
público feminino, quanto sobre as marcas de gênero que rondam a questão.
Isso porque a escolha do método contraceptivo é muitas vezes orientada por
desigualdades de gênero, que têm como uma de suas características a
naturalização da manipulação e medicalização do corpo feminino (GIFFIN,
2002; VIEIRA, 2003; COSTA et al., 2006).
Essa problemática, quando acrescida da parca difusão do conhecimento
- entre profissionais de saúde e público leigo - sobre as trombofilias, implica na
impossibilidade de abordagens integrais em saúde, conforme previsto entre as
diretrizes e as orientações programáticas do Sistema Único de Saúde (BRASIL,
2004)2.

“Gente, peguei meu teste”: trombofilias, atenção em saúde e a relação


com o risco a partir de um relato pessoal.
Nesta seção faço um relato pessoal que revela uma marca de afiliação
teórica pelo processo situado de conhecimento acadêmico (HARAWAY, 1991).
E, distinguindo-se do que tenho percebido nesta trajetória de pesquisa como
fala dominante do corpo feminino, trata-se também de uma revelação política

2 Circunscrevendo essa questão ao Brasil, uma breve observação sobre o número de estudos
publicados sobre esta temática aponta para uma possível lacuna na produção de
conhecimento. Na primeira quinzena de outubro de 2017, ao buscar pelo termo “trombofilia”
entre os periódicos da biblioteca eletrônica Scielo Brasil, sem utilizar quaisquer filtros de
campo, foram recuperadas apenas 54 referências. Ao combinar “trombofilia” com o termo
“gênero”, houve recuperação de apenas uma referência cujo enfoque, no entanto, não aborda
essa questão. Possivelmente, há produções de autores de afiliação institucional brasileira em
outras bases de recuperação de referências mas, de todo modo, esse breve mapeamento
mostra a exiguidade de estudos sobre a temática em língua portuguesa, que podem funcionar
melhor para divulgar informações, seja facilitando o advocacy, seja para subsidiar a formulação
de políticas públicas no Brasil.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

de um corpo que se situa como passível de ser falado para além da função
reprodutiva.
Como mencionei, apesar de eu ter ao menos dois tipos de trombofilias
hereditárias, meu diagnóstico ocorreu, no entanto, somente há 4 anos, após
um dos vários episódios trombóticos que tive ao longo da vida. Portanto, essas
impressões remontam ao início de 2013. No episódio mencionado, apresentei
mais um dentre os vários ataques isquêmicos transitórios (AIT) que tive antes
de iniciado o tratamento por tempo indeterminado com anticoagulantes.
Diferentemente dos demais episódios, tive minhas queixas clínicas valorizadas,
o que permitiu uma breve e protocolar internação numa unidade de cuidados
intensivos (UTI) num hospital da rede suplementar do estado do Rio de
Janeiro.
A distinção desta abordagem para as demais foi que, desta vez, e
escapando ao “protocolo para AIT”, o médico plantonista permitiu uma
anamnese prolongada, que começou com a assertiva: “mas me conte sobre a
sua vida”. Apesar de ser um procedimento que deveria ser habitual para casos
como este, a abertura para investigar tal “caso atípico” desta maneira tem
perdido força no meio médico, sobretudo após as inflexões que a racionalidade
da protocolização impôs à prática clínica (CASTIEL e PÓVOA, 2002).
Ele me perguntou se eu tinha ou não filhos, ao que respondi que não, e
se eu usava contraceptivos orais. Ele se impressionou que, mesmo com 39
anos, eu não tivesse feito uso desses medicamentos. Quando me perguntou o
porquê de não usar anticoncepcionais, respondi que utilizava preservativos,
pois para mim se tratava de uma tomada de posição política feminista. Falamos
brevemente sobre gênero e ele achou interessante meu interesse nesta área.
Ainda, me perguntou se alguma vez eu havia ficado grávida, ao que respondi
que “não que eu soubesse”, pois não havia realizado nenhum aborto até então.
Perguntou por que eu não tinha tido filhos e eu disse que, apesar de ter um
companheiro de longa data, a maternidade, por sua via biológica, nunca fora
para mim um desejo.
Após me pedir licença para estudar na sala anexa, o jovem, bem-
humorado e atencioso médico retornou e me perguntou, então, se eu “toparia”
fazer um conjunto de exames de rastreamento para trombofilias. Antes, porém,
ele quis se certificar de que eu estava ciente dos possíveis desdobramentos
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

dos resultados desses exames. Na minha cabeça, veio um conjunto de


diagnósticos diferenciais e me lembrei, ao longe, dos compêndios de doenças
hematológicas que já havia estudado, atendo-me às possibilidades de suas
consequências físicas. Imaginei que talvez nem fosse o caso de eu ter um
problema hematológico, mas entendi, naquele momento, que se fosse o caso,
melhor seria sabê-lo. Mencionei que estava ciente sem, no entanto, atentar
justamente para as implicações de gênero envolvidas no diagnóstico. Ora, os
compêndios médicos geralmente não mencionam as desigualdades de gênero
como tais. E, afinal, a fragilidade da vivência de uma internação em UTI trazia a
dimensão de finitude que não me permitiu, àquela altura, imaginar que minha
vida seria atravessada por essas questões.
A alta da UTI veio no dia seguinte, com o médico chefe do setor
chamando minha mãe e meu marido (também médico) à época para insinuar
que talvez não se tratasse de um AIT, apesar da hipótese de trombofilia,
levantada pelo colega que me atendeu ao longo da madrugada e o que ele,
curiosamente, não mencionou. Minha queixa era “somente” de dormência na
face, um sintoma que, no entanto, como é comum nesses casos, não teria
respaldo em exames de imagem. Portanto, ele teria de acreditar na minha
queixa e, assim, seria obrigado a realizar o restante da investigação protocolar
de eventuais danos neurológicos. O chefe da UTI estava visivelmente
contrariado e esta abordagem repetiu as anteriores ao meu diagnóstico:
insinuações de que eu estaria “querendo chamar a atenção”, “coisa de mulher
histérica”, “coisa de filha única”, coisa de “filho de “pais não casados”, “caso
para a psiquiatria”, modos de explicar esses episódios que eu ouvi em
diferentes momentos da vida. Afinal, minhas limitações neurológicas sempre
foram, por sorte, passageiras.
Pois alguns dias depois, a “coisa de mulher histérica” tomou a forma de
um conjunto de letras marcadas no papel do resultado dos dispendiosos
exames de mapeamento genético que mostravam que eu era portadora de
uma trombofilia hereditária, chamada Fator V de Leiden. Soube depois, tendo
voltado ao hospital para agradecer ao médico que supôs o diagnóstico, que
meu “caso” tinha sido escolhido para ser estudado, possivelmente numa
atividade comum no ethos médico, chamado sessão clínica.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

De minha parte, como indicado, recorri a um colega conhecido, médico


especialista em doenças do sangue (hematologista), que teve o desprazer,
reportado por ele, de instituir para mim o tratamento, por tempo indeterminado,
com anticoagulantes3. A escolha de qual anticoagulante oral usar traz, em si,
uma disputa relacionada ao apelo de grandes laboratórios pela popularização
de medicamentos mais caros e recentes (MORAES, 2016). Apesar de
considerar ser esta disputa um caso emblemático para estudarmos
medicalização, não tratarei disto neste trabalho.
O anticoagulante que escolhemos juntos – a warfarina- é um remédio
relativamente barato, disponível há tempos no mercado e também no Sistema
Único de Saúde. No entanto, seu uso requer alguns cuidados com a
alimentação (vegetais verdes e outros alimentos ricos em vitamina K reduzem
sua atuação). Além disso, necessita de monitoramento, através de exames de
sangue, de índices relacionados ao processo de coagulação, possui efeitos
colaterais de longo prazo que podem incluir, entre outros, cansaço intenso,
queda de cabelos e maior tendência à osteoporose. É comum que as pessoas
usuárias fiquem com o corpo marcado de manchas roxas (hematomas), pelo
risco aumentado a hemorragias, o que requer um estado de alerta permanente
aos possíveis sinais de hemorragias em órgãos internos. Sua principal
vantagem é que, além de ser barato, seu efeito é facilmente revertido em caso
de acidentes, por exemplo, em que é necessário reduzir o tempo de
sangramento. Por fim, seu uso é reconhecidamente teratogênico e, portanto,
não é indicado a mulheres em tentativa de engravidar, ou grávidas,
consumirem warfarina ou outros anticoagulantes orais, pelo risco de dano ao
feto e a possibilidade de problemas ao nascer.
Frente a todas essas questões e a outros problemas crônicos de saúde
que eu apresento, decidi que não teria filhos por via biológica o que foi,
inclusive, fortalecido em outras consultas médicas, com diferentes colegas
especialistas. No entanto, como vim a perceber posteriormente que é comum,
iniciaram-se conflitos, a partir desta decisão, entre mim e meu marido à época,

3 Nem todas as pessoas diagnosticadas com trombofilias necessitam de tratamento com


anticoagulantes. De outro modo, esses medicamentos são também indicados em outras
condições chamadas de hipercoagulabilidade, em que há maior risco de trombose ou embolia,
como em portadores de próteses cardíacas e para tratamento de episódios de embolia
pulmonar e trombose venosa profunda, por exemplo.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

o que culminou com um divórcio, dois anos depois. Na época do diagnóstico


estava então escrevendo minha tese de doutoramento, licenciada do trabalho,
e lidando com as mudanças no cotidiano que o diagnóstico e o tratamento da
trombofilia interpunham, além da crise conjugal cujo estopim residia na minha
negação do naturalizado “papel feminino” de mãe biológica.
Além de fazer sessões periódicas de psicanálise há vários anos, uma
saída para este enfrentamento foi participar de grupos no Facebook, voltados
ao suporte mútuo de portadores. Passei a tomar parte de grupos em inglês que
tematizavam minha primeira trombofilia diagnosticada, chamada Fator V de
Leiden (FVL), e também grupos de usuários de warfarina. Percebi que, à
época, não havia grupos em português sobre o FVL e criei o grupo em
português, em que atuo como uma das administradoras.
Atribuo à minha participação nos grupos de Facebook muito da ajuda ao
lidar com o diagnóstico e com as dúvidas sobre a condição/doença (essa
enunciação da trombofilia ora como doença, ora como condição médica não é
um consenso nos grupos) que não constam dos manuais médicos e que se
relacionam com o cotidiano de portadores e sua potência de geração de
autonomia frente a questões de saúde. Muitas vezes, as primeiras postagens
de mulheres nos grupos têm mensagem análoga ao título desta seção: “gente,
peguei meu teste”, seguida de um pedido de ajuda: “alguém sabe o que isso
quer dizer?”.
Além disso, pude perceber pontos de convergência entre as marcações
de gênero de meu relato com o que venho observando nos grupos, entre as
quais, muitas questões que se colocam em torno da reprodução biológica,
enunciada nos grupos, majoritariamente, como um atributo eminentemente
feminino. Essas questões se apresentam desde como dilemas acerca da
contracepção, até os processos da vivência da maternidade em portadoras de
trombofilias. Busco sistematizá-las brevemente a seguir.

Corpos femininos, trombofilia e reprodução no Facebook: tragédia,


tecnologia médica e o milagre da vida (mas sem os maridos).
Nos grupos que acompanho, é comum que as mulheres participem com
um número maior de postagens que os homens. Dependendo do grupo, as
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

narrativas mostrarão o caminho pelo qual o/a participante chegou até ali 4. De
modo geral, as mulheres recorrem aos grupos: 1) após receberem o
diagnóstico de trombofilia; 2) através de uma dentre duas vias principais: a) a
ocorrência de um problema grave de saúde, muitas vezes relacionado com o
uso de CBH; b) uma ou mais perdas gestacionais atribuídas à trombofilia.
Geralmente, os grupos dedicados ao enfrentamento e suporte mútuo de
eventos trombóticos graves, como trombose venosa profunda, e os grupos de
usuários de warfarina apresentam uma narrativa trágica, com um número maior
de relatos sobre o diagnóstico de trombofilia realizado após esses eventos
graves. São comuns relatos sobre perdas de familiares, várias das vezes
jovens, ou relatos pessoais e fotografias que refletem diferentes graus de
restrições cotidianas. Muitas vezes essas restrições se prolongam, seja pelo
evento trombótico, seja pelo uso de anticoagulantes orais, durante meses ou
previsto para toda a vida. Trata-se de uma narrativa de suporte aos
portadores/usuários e, aqui, é interessante ver postagens comuns sobre uma
estética nova a que o corpo (feminino) precisa se encaixar: a existência de
manchas roxas em áreas expostas que, por um lado, integram um estigma que
cerca o uso de anticoagulantes – a existência de hemorragias ou seu risco
iminente; por outro, dão aos corpos femininos anticoagulados uma feição
distante do “padrão de beleza” propalado, o que piora naquelas que
apresentam também o efeito colateral de queda de cabelo.
Nesta primeira via, há diversas postagens que tematizam a banalização
da prescrição de anticoncepcionais e que começam a problematizar as demais
opções contraceptivas. Na maior parte das vezes, percebi que definir outra
opção, além dos CBH, é reconhecida como missão das mulheres trombofílicas
cisgênero. Pouca discussão sobre gênero alcança os posts, bem como sobre o
uso dos preservativos, ainda que haja alguns posts nos grupos de língua
inglesa sobre isso, e neles alguns homens se manifestam a favor de opções
geralmente menos interventoras sobre o corpo feminino.

4 No grupo Factor V Leiden (em língua inglesa), por exemplo, várias mulheres comentam terem
procurado o grupo após a ocorrência de algum evento trombótico, geralmente grave: são os
casos de mulheres que sofreram embolia pulmonar e/ou trombose venosa profunda. Há
postagens recorrentes de pessoas que receberam o diagnóstico e ainda estão em tratamento
com anticoagulantes, perguntando sobre a duração do tratamento e o significado dos
resultados de exames de sangue realizados.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Outro tipo recorrente de postagem versa sobre a segurança da chamada


minipílula5, sobre a qual muitos especialistas divergem – geralmente, os relatos
mencionam que os ginecologistas defendem seu uso, ao passo em que os
hematologistas a contraindicam6. É importante mencionar que, diante de
condutas divergentes, as mulheres buscam os grupos como fonte de
informações fidedignas ou de checagem sobre as condutas médicas 7. Pouco
se vê o lugar da equipe generalista na coordenação do cuidado à saúde
dessas mulheres, como prevê o SUS e outros sistemas universais8.
Uma outra via narrativa se dá de modo preponderante nos grupos que
circunscrevem a questão da trombofilia à reprodução (e ao acesso/vivência das
tecnologias de reprodução assistida - TRA). Esses grupos reúnem relatos mais
específicos sobre como o diagnóstico de trombofilia levou as mulheres a serem
encaminhadas à chamada “clínica de infertilidade”, que congrega uma gama de
custosas e ainda restritas intervenções tecnológicas sobre a reprodução.
Em muitos protocolos de TRA, trombofílicas têm indicação de uso de
anticoagulantes injetáveis, caros e cuja administração no mínimo uma vez ao
dia, durante toda a gestação e pelo menos parte do puerpério, implica em
nódulos, manchas roxas e um processo doloroso de mudança do corpo
feminino. E, algumas vezes, de judicialização da saúde. Aqui, o estigma dá
lugar à narrativa sacrificial do “ser mãe”, que se espera ser coroada pela
imagem de uma analogia ao Menino Jesus em uma manjedoura, rodeado por
todas as seringas utilizadas no processo de concepção/gestação da criança
denominada comumente de “meu milagre” (como na figura 1).
Nestes processos, pouco são evocados os pais/companheiros/maridos,
apesar da ideia de que uma “família completa tem de ter um filho” esteja
subjacente a várias postagens. Também pouco emerge em que medida a

5 Este termo se refere a CBH que contêm somente derivados sintéticos da progesterona em
sua formulação.
6 O mesmo ocorre com o DIU de base hormonal.
7 Sobre isso destaco a ação de um grupo de ativistas que possui uma página do Facebook

(“Vítimas de Anticoncepcionais. Unidas a Favor da Vida”), que vem problematizando a


discussão das escolhas dos métodos contraceptivos. Apesar deste grupo já ter conseguido
pautar alguns meios de comunicação de grande penetração, ainda são poucas iniciativas
assim de divulgação e difusão científica sobre as trombofilias e, ainda menos numerosas,
aquelas que se voltam à problemática do risco acrescido em mulheres.
8 Esse lugar da equipe generalista é comum em relatos de pessoas do Reino Unido e da

Austrália que integram o grupo Factor V Leiden (em língua inglesa). Os grupos correlatos em
língua portuguesa não percebi essa frequência.
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

vivência ou a busca da maternidade biológica participa do delineamento dessas


relações. Geralmente, isso é evocado “no privado”. Por fim, se na via anterior a
questão dos riscos em saúde ajuda a circunscrever a narrativa, nesta última os
riscos sobre a gravidez sofrem apagamento, frente à dimensão sacrificial da
maternidade.

Figura 1.

Fonte: postagem no grupo de Facebook Fator V de Leiden com link para


matéria “'Me sinto completa', diz mãe que tomou mais de 500 injeções para manter duas
gestações”. Reprodução de foto da reportagem presente no link postado no grupo.
(G1, 2017).

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in healthy individuals and their importance for daily practice. Thrombosis
Research, v.113, n.1, 2004, p.7–12.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento


de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à
saúde da mulher: princípios e diretrizes. Ministério da Saúde, Secretaria de
Grupo de Trabalho 3 II Reunião de Antropologia da Saúde

Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.


Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

CASTIEL, Luis D.; PÓVOA, Eduardo C. Medicina Baseada em Evidências:


novo paradigma assistencial e pedagógico? Interface (Botucatu), v.6, n.11,
p.117-121, 2002.

COSTA, Tonia et al. Naturalização e medicalização do corpo feminino: o


controle social por meio da reprodução. Interface (Botucatu), v.10, n.20, 2006,
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G1. 'Me sinto completa', diz mãe que tomou mais de 500 injeções para manter
duas gestações. 12 mai 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/mogi-
das-cruzes-suzano/noticia/me-sinto-completa-diz-mae-que-tomou-mais-de-500-
injecoes-para-manter-duas-gestacoes.ghtml>. Acesso em 08 out 2017.

GIFFIN, Karen. Pobreza, desigualdade e equidade em saúde: considerações a


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VIEIRA, Elisabeth. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro:


Fiocruz, 2003.
Grupo de Trabalho 4
Negociando diagnósticos e prognósticos:
interfaces da saúde, genética e epigenética
Coordenadoras: Débora Allebrandt (UFAL); Ednalva M.
Neves (UFPB) e Rosana Castro (UnB)
Grupo de Trabalho 4
Negociando diagnósticos e prognósticos: interfaces da saúde,
genética e epigenética

Cada vez mais a saúde é pensada como um processo molecularizado. Seus


diagnósticos e tratamentos têm sido pensados a partir do idioma da genética,
com reflexos sobre as subjetividades e modos de vida na contemporaneidade.
Esse GT recebe trabalhos que se propõem a discutir práticas de saúde que
dialoguem com as diferentes roupagens e entendimentos que a genética e a
epigenética podem receber/oferecer na negociação de diagnósticos e
prognósticos. Buscamos reunir etnografias de práticas de saúde que enfoquem
a tensão envolvendo, de um lado, a importância da ação e controle dos corpos
para modificar ou criar situações de saúde mais favoráveis em casos de
doenças crônicas como a hipertensão e o diabetes e, de outro lado, toma a
informação de testes genéticos como anunciadores de certo destino. Nossa
intenção é reunir pesquisadores em torno da reflexão antropológica acerca da
molecularização da vida e do cotidiano, enfatizando os processos de interações
entre sujeitos através dos/das: 1) discursos e práticas profissionais acerca dos
adoecimentos genéticos; 2) classificações e definições a partir dos
diagnósticos/prognósticos; 3) cuidados de si e subjetividades; 4) modos de vida
e relações e familiares a partir de tais definições; 5) biossocialidades e
ativismos; 6) políticas de saúde baseadas em evidências e conhecimentos
genéticos.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

“Eu tenho uma boa genética!”: reflexões sobre a difusão científica entre
homens usuários de testosterona
Lucas Tramontano1

Resumo
Esse trabalho parte de reflexões vindas de meu campo de doutorado em Saúde
Coletiva, no qual analisei 21 relatos de história de vida de homens cis e trans
usuários de testosterona, de diferentes idades, orientações sexuais e
raças/etnias, buscando compreender a relação entre o uso do hormônio e a
construção de masculinidades. Para esse trabalho, faço um recorte relativo a
uma ideia recorrente nas entrevistas, de que a magnitude dos efeitos da
testosterona dependeria da “genética” dos seus usuários. A partir de uma noção
de genética já superada no discurso biomédico mais oficial, que associa um gene
(ou conjunto de) a uma condição biológica específica, meus interlocutores
argumentavam possuir “uma boa genética”, o que favoreceria o desenvolvimento
mais pronunciado da musculatura, ou uma maior “passabilidade” na transição de
gênero. Ainda mais interessante, outros interlocutores fizeram duras críticas a
essa ideia, que consideram disseminada entre seus pares (vale ressaltar as
semelhanças entre esses grupos e os grupos de biossocialidade), argumentando
como a mesma funciona de forma a hierarquizar corpos e sujeitos numa escala
de perfeição genética. Isso aponta para uma nova organização da velha “grande
cadeia do ser” de Arthur Lovejoy, e indica uma atualização contemporânea e
molecularizada de teorias evolutivas que ranqueavam sujeitos entre os séculos
XIX e XX. Com isso, pretendo refletir sobre como se dá a apreensão da noção
de genética e epigenética no discurso popular desses homens, que alternam
entre falas muito técnicas e a manutenção de noções que seriam atualmente
consideradas obsoletas, à luz do processo de molecularização.

Palavras-chave: Testosterona. Medicalização. Genética.

1
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM-IMS-UERJ)

1
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução
Esse trabalho parte de relatos de história de vida de homens usuários do
hormônio sexual testosterona para diferentes finalidades, coletadas durante
minha pesquisa de doutorado em Saúde Coletiva, defendido em maio de 2017.
A reflexão aqui proposta busca responder a uma pergunta que me acompanhou
durante todo o campo, acerca da naturalidade ou artificialidade do corpo sob
efeito da testosterona. Havia uma preocupação disseminada entre diferentes
grupos sobre os limites do corpo “natural”, e como o uso de um hormônio sexual
parecia borrar perigosamente essa fronteira. O período anterior à minha entrada
no campo foi marcado por profundas reflexões em torno desse assunto, a partir
de uma literatura muito focada na ideia de aprimoramento, frequentemente
apresentado com um tom negativo. Na maioria dos casos, decorria de uma
crítica à prática da indústria farmacêutica de promover, simultaneamente,
patologias, diagnósticos e medicamentos, construindo doenças questionáveis, e
conferindo aos corpos características consideradas quase que sobre-humanas.
Por outro lado, entre minhas fundamentações teóricas também estavam
obras do campo de estudos de gênero e sexualidade em interface com a ciência
e a saúde, em especial os trabalhos das chamadas “feministas biólogas”, nos
quais a distinção natural x artificial era apresentada em termos da falsa dicotomia
entre natureza e cultura. Havia, portanto, uma tendência a defender que a noção
de um corpo natural seria, na verdade, uma consequência de um positivismo
empirista das Ciências Biológicas, que apresentam seus pressupostos e
hipóteses com uma aura de “verdade” absoluta conferida ao corpo e seus
processos, pensados exclusivamente a partir dessa episteme.
Um dos usos mais populares de testosterona objetiva o anabolismo
muscular (as famosas “bombas” das academias de ginástica), o que me colocou
em contato com uma literatura da Sociologia da Esporte focada na construção
do corpo do atleta, seja amador ou profissional. Nesses textos, o corpo de fato
era despido de naturalidade: nada que envolvia o intenso treinamento esportivo
soava exatamente natural, e o corpo do atleta era, consequentemente,
construído em seus pormenores, exibindo performances virtualmente
inatingíveis e características percebidas pela sociedade como sobre-humanas.
Entretanto, quando o problema deixava de girar em torno da insistência
científica na manutenção do binarismo de gênero, apresentando os corpos

2
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

masculinos e femininos como opostos e complementares (LAQUEUR, 2001); ou


da manufatura da performance do atleta de alto rendimento (VAZ, 2005), o
discurso sobre artificialidade do corpo retornava. Principalmente no que tange
ao uso de medicamentos psicotrópicos ou de alguma forma relacionados a
questões de gênero e sexualidade, o aprimoramento era descrito como algo que
seria melhor se evitado, e ganhava ares de um controle (nefasto) da biomedicina
sobre a sociedade. Um discurso muito negativo sobre o processo de
medicalização, e sobre o recurso farmacológico como primeira resposta a
qualquer “sensação mórbida”, para usar um termo de Luc Boltanski (2004),
desembocava nos trabalhos sobre farmacologização do cotidiano, que
propunha, em última instância, uma ressalva ao uso de medicamentos.
Não se trata de defender as posturas frequentemente antiéticas da
indústria farmacêutica e de parcela da clínica médica, com sua publicidade
agressiva, e sua ânsia de ampliar ainda mais lucros já astronômicos. Porém, ao
associar essa necessária crítica a uma recusa ao medicamento, num tom
denunciativo, deixa-se de analisar uma característica marcante da sociedade
contemporânea: as pessoas tendem a acionar o tratamento farmacológico
sempre que o mesmo esteja disponível, muitas vezes como primeiro, quando
não único, recurso para qualquer agravo. A meu ver, isso se justifica pelo
processo de molecularização descrito por Nikolas Rose (2013), uma nova etapa
da biopolítica, na qual a vida passa a ser pensada em termos moleculares,
favorecendo, portanto, a resposta farmacológica.
Para Rose (2013, p. 19), a biopolítica contemporânea seria marcada por
cinco mutações significativas, muito próximas às mudanças na biomedicina
descritas por Clarke et al. (2003). A primeira mutação, a já mencionada
molecularização, pode ser pensada como uma mudança epistêmica, que altera
o olhar contemporâneo para os processos vitais, consolidando-se como uma das
principais (senão a principal) matrizes de compreensão do mundo em nossa
sociedade. Contudo, importa mais diretamente nesse trabalho a segunda
mutação descrita pelo autor, a otimização. Evitando cair na dicotomia natural x
artificial, a descrição dos processos de otimização reformula a abordagem à
noção de aprimoramento num viés um pouco mais neutro de valores,
possibilitando assim uma reflexão mais fidedigna e menos panfletária de um
fenômeno em curso, fortemente presente em nosso cotidiano. Não à toa, os

3
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

principais exemplos citados para descrever a otimização envolvem o uso de


psicotrópicos; a intervenção médica no corpo feminino em processos
reprodutivos; e a medicalização do envelhecimento masculino, possibilitando um
diálogo com a literatura mencionada parágrafos acima, e demonstrando que, de
fato, esses são campos estratégicos e prioritários para se pensar os limites do
corpo. Por fim, Rose (2013, p. 34) divide as tecnologias de otimização em duas
dimensões, aprimoramento e susceptibilidade2.
A noção de aprimoramento era um tanto compulsória em meu campo.
Meus interlocutores não se consideravam doentes, e a maioria afirmou utilizar a
testosterona para fins que definiram como estéticos. A exceção estava entre
homens mais velhos diagnosticados com Deficiência Androgênica do
Envelhecimento Masculino (DAEM), para os quais a testosterona compunha
uma (legítima) terapia de reposição hormonal; e para os homens transexuais,
cujo uso foi justificado por razões identitárias e como um direito. Ainda assim,
mesmo nesses casos mais destoantes, os relatos indicam que a testosterona
produziu efeitos não esperados e não relacionados à retomada de uma
“naturalidade orgânica”, mas sim a uma maximização do funcionamento
orgânico, constituindo, portanto, um aprimoramento.
Ainda mais importante para esse trabalho é a discussão de Rose (2013)
sobre susceptibilidade. O autor descreve a mesma seria uma extensão de
antigas ideias de pré-disposição e risco. Confirmando as reflexões do autor, uma
confusa menção à “genética”, tratada como um sinônimo de “pré-disposição”,
surgia em meu campo justamente quando discutíamos os riscos associados ao
uso da testosterona.

A testosterona e a genética
Assim, é possível dizer que, para os meus interlocutores, a testosterona
funciona como uma biotecnologia de otimização do corpo. Seus efeitos são
descritos como bastante estáveis, e três principais modificações se repetem em
todos os relatos: o aumento da força física, do desejo sexual e da agressividade.

2
As outras mutações, a saber, subjetivação, expertise somática e economias de vitalidade foram muito
centrais em diferentes análises de minha tese de doutorado. Contudo, por questões de espaço, ater-me-ei
nesse trabalho à otimização, e manterei a molecularização como a episteme prioritária para descrição dos
processos vitais em nossa sociedade. Para maiores detalhes, ver Tramontano, 2017.

4
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Foge ao escopo desse trabalho descrever tais efeitos, mas a percepção uniforme
deles levantou outra questão em campo, não pensada anteriormente. Se a
testosterona tem os mesmos efeitos em todos eles, e constrói um corpo com
uma plasticidade muito semelhante (pronunciado desenvolvimento muscular,
drástica redução de gordura corporal, e alta definição muscular), por que seus
usuários têm corpos muito diferentes? Algum dos homens com quem conversei
exibiam um corpo de enormes proporções, de acordo com o estereótipo do
“bombado” usuário de anabolizantes. Outros, porém, tinham um corpo “seco”, ou
seja, com baixíssimo percentual de gordura corporal, uma evidente definição dos
músculos, mas “pequeno”, sem muito “volume”, para utilizar termos êmicos.
Alguns emagreceram (muito) com o uso, mas dificilmente seriam descritos como
“sarados”, ao passo que outros apenas pararam de engordar. Passei a incluir
essa pergunta nas entrevistas, questionando-os dos porquês da diferença nos
corpos dos usuários3. Tendia a abordar a questão utilizando o exemplo de um
“cara magro” e um “cara gordo”, que começassem a tomar o(s) mesmo(s)
composto(s) de testosterona ao mesmo tempo, nas mesmas dosagens, e pedia
que explicassem as diferenças na modificação corporal obtida.
Foi através desse exercício que emergiu uma noção muito particular de
“genética” no discurso de meus interlocutores. Ao que tudo indica, para eles,
diferentes homens exibirão diferentes plásticas corporais, ainda que sob as
mesmas condições de uso da testosterona, devido a configurações genéticas
individuais. Segundo Sérgio4, “o efeito é, pra mim, muito maior...é que vai
também muito da genética da pessoa”, apesar de não saber explicar melhor.
Existe uma ideia, tratada como óbvia por meus interlocutores, de que há
uma individualização absoluta no código genético, que nos torna únicos. Nessa
perspectiva, a testosterona interagiria com essa essência genética particular,
gerando resultados singulares. O curioso é que essa individualização não era

3
Vale ressaltar que meus interlocutores se apresentavam como estudiosos informais da testosterona, e de
fato exibiam uma expertise somática notável, utilizando termos biomédicos e descrevendo processos
metabólicos com clareza e evidente domínio do tema, maior até do que nos discursos oficiais sobre o uso
não supervisionado de testosterona. Esse ganho de expertise vinha do contato com outros usuários, os quais
constituem um grupo similar aos grupos de “biosocialidade” ou “cidadania biológica”, deixando evidente
a ideia de subjetivação mencionada por Rose (2013).
4
Os nomes aqui citados são fictícios para garantir o anonimato, e os trechos em itálico são transcrições
diretas de entrevistas. Para maiores detalhes, ver Tramontano, 2017.

5
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

tamanha a ponto de produzir efeitos idiossincráticos5, mas gerava uma diferença


de grau, algo mais quantitativo do que qualitativo. Assim, algumas pessoas
teriam uma “tendência” ou uma “pré-disposição” para ganhar, perder ou manter
gordura e massa muscular, e mesmo para desenvolver determinados grupos
musculares em detrimento de outros. Esses efeitos individuais não são
explicados nem explicáveis, mas tratados como algo dado, sabido porque
empiricamente confirmáveis, mas não merecedores de muita reflexão. Nos
relatos de minha pesquisa, mostrou-se infrutífero insistir numa explicação
dessas idiossincrasias; meus interlocutores não eram capazes de explicar em
maiores detalhes o que seria essa “genética”, nem pareciam muito interessados
em tentar.
Essa falta de interesse e conhecimento sobre as interações da
testosterona com a “genética” contrastava enormemente com a riqueza e a
profundidade de informações acerca do uso de testosterona que meus
interlocutores apresentavam. Tudo que envolve a testosterona era apresentado
por eles como resultado de intensas “pesquisas” sobre o hormônio e seus
impactos. Eles me explicavam com desenvoltura a escolha por um composto de
testosterona e não por outro; sobre como calcular a dosagem de cada um em
momentos específicos; sobre qual seria a escolha mais adequada para cada
objetivo; sobre quais as possíveis complicações do uso, como evitá-las ou
minimizá-las; e inclusive construíam hipóteses para justificar quando algo fugia
ao planejado. Essas explicações eram dadas sempre com uma riqueza notável
de detalhes bioquímicos e fisiológicos. Porém, quando envolvia a tal “genética”,
os “super especialistas” em testosterona, pouco tinham a acrescentar.
Na verdade, as contradições e hesitações nos discursos surgiam mais
comumente quando esbarrávamos no inegável fato de que, ao menos em alguns
casos, a testosterona causa agravos à saúde. Havia uma transferência dos
problemas associados ao hormônio para um difuso “Outro”. Eram esses incautos
que estavam sofrendo os revezes da testosterona, por motivos variados, mas,
principalmente, por falta de cuidado com a “pesquisa” prévia, considerada
essencial para o uso “correto”. Essas pessoas sofreram porque não ouviram

5
Nas Ciências Farmacêuticas, a idiossincrasia se refere, grosso modo, a efeitos não previstos no uso de um
determinado medicamento, e não relatados por outros usuários. Seria, portanto, individual, não explicado
pelo mecanismo de ação ou outras características farmacológicas do medicamento.

6
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

colegas mais experientes e/ou não se preocuparam em “estudar” para tomar as


decisões adequadas. Esse “Outro” da testosterona resumia em si todos os
estereótipos populares (e médicos) do usuário de testosterona, e os discursos
traziam um subtexto de que era quase que “bem feito” para eles. Tudo se
passava como se, ao deslocar para um anônimo (nunca eles próprios ou alguém
próximo deles) todos os problemas potenciais do uso, eles de alguma forma
mantivessem o seu próprio uso resguardado, livre das frequentes, e muitas
vezes injustas, acusações que todo usuário de testosterona recebe ao admitir o
uso (ou ser “descoberto”). Nesse sentido, muito me lembrava o trabalho de Guita
Debert (1997) sobre a velhice, no qual os adeptos da Terceira Idade como uma
nova forma de envelhecer conferiam aos “outros” a pecha de ser velho.
Era também em relação aos efeitos adversos que a ideia de genética
tornava a ganhar destaque, acionada para explicar o inexplicável. Ele tomou os
cuidados “necessários” na escolha da substância e na dosagem, mas não
funcionou como esperado? O problema é a genética! Ele não ouviu os conselhos
dos mais experientes? Vai agora sofrer os efeitos da genética! Ele não
interrompeu o uso no período certo? A genética dará cabo de sua insistência!
Ele simplesmente não consegue ter resultados, por razões incompreensíveis?
Culpa da genética! Assim como na susceptibilidade em Rose (2013), fatores
como a idade interagem com esse “genético”, explicando o maior ou menor
sucesso da modificação corporal. Claudio, um dos homens mais velhos de meu
campo, ao se comparar com outros mais jovens, argumenta:
Até porque os caras de 20 anos, estão na fase...estão subindo agora,
eu já estou na descendente. Então, os caras estão na fase de criar a
massa muscular, de se desenvolver, então você estimula isso, você vai
ter um boom. [...] Ao passo que, com a pessoa com metabolismo
diferente, com...a genética muda, você luta contra a sua genética para
poder ganhar alguma coisa, entendeu? Os caras estão no gráfico
subindo, eu tô descendo já.
Alternativamente, a “genética” é acionada para justificar os próprios
(nunca os dos outros) sucessos no uso. É nesse ponto que um discurso mais
frouxo sobre a genética ganha uma nova camada de significados. Surge uma
diferença, nos moldes da clássica descrição de Gayle Rubin (1984) sobre as
práticas sexuais, entre a “boa” genética e a “má” genética. Logo, se eu tenho
ganhos notáveis com a testosterona, isso é um indicativo de minha “boa”
genética; inversamente, se ele não tem ganhos da mesma monta, ou acumula
problemas, só pode ser devido à sua “má” genética. Assim, havia uma tendência

7
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

a minimizar os efeitos negativos da testosterona através do uso “correto”, mas,


novamente, tudo pode ir ladeira abaixo caso haja uma “pré-disposição”.
Se você fizer uso corretamente das drogas, não tem o que dar errado!
Teoricamente. Óbvio que se a pessoa tiver uma pré-disposição
genética, isso não tem jeito [...] Se você seguir à risca, certinho como
tem que ser, não tem porque dar merda, a não ser se você tiver uma
pré-disposição genética, pode ser que dê complicação. Fora isso, se
você fizer as coisas certinhas, não! (Claudio)
Como Claudio não relata as “complicações” do uso, podemos supor que
ele não padece das “pré-disposições genéticas”. Jorge também repete que
fazendo “direito”, não tem problema, e quando pergunto sobre um recorrente
efeito adverso do uso, afirma: “Não, nunca, nunca [tive]! Eu nem sei se tenho
propensão a ginecomastia”. Nessa fala, Jorge reivindica a “boa genética”, que o
protege do risco da ginecomastia. Assim como Claudio, também faz várias
referências a “pré-disposições”, seja para desenvolver agravos de saúde
(notadamente câncer) ou para favorecer os ganhos com a testosterona.
Apesar dessa lógica se repetir com frequência no campo, ela não era
compartilhada por todos. Alguns se incomodavam com essa divisão, e a
consideravam boba, falsa ou “hipócrita”. Otávio se dedicou a criticar duramente
as pessoas que impõe essa diferença, alterando o tom de voz, ficando
visivelmente nervoso e sarcástico. Ele acusou as pessoas de repetir essa ideia
apenas “para dizer que elas são Super Homem, assim, que elas são Mega, Top,
Blaster e que, né, genética mega boa”. Foi impossível aprofundar minhas
dúvidas sobre o tema devido ao destempero óbvio que ele causava em Otávio.
Vale ressaltar, sem querer incentivar ou reiterar a discordância, que esse
interlocutor em particular foi acusado por colegas de possuir a “má” genética, e
seus ganhos, bastante expressivos aos meus olhos, pareciam não ser
suficientes para os outros, apesar dele se dizer satisfeito.
Por fim, gostaria de destacar que essa noção de “genética” presente em
meu campo era apresentada como algo indubitavelmente imutável. Não há nada
que possa ser feito uma vez que fique claro que alguém possui a “má” genética.
É possível atenuar seus efeitos através de um programa de treino e/ou escolha
por uma substância considerada “mais forte”, ou em doses maiores em intervalos
menores, ajustando o seu “déficit genético” (termo meu, não mencionado em
campo). Analogamente, para os felizardos da “boa” genética, é possível um

8
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

relaxamento, uma menor preocupação, pois certos deslizes serão compensados


pela vantagem orgânica. A disciplina, apresentada como imprescindível para o
sucesso do uso e motivo de orgulho para todos meus interlocutores, também
precisará ser ajustada em função da “genética”: os “maus” precisarão de ainda
mais disciplina, enquanto os “bons” podem se permitir alguns excessos ou
negligências. De toda forma, não há como alterar essa “genética”, e, ainda mais
grave, não há como prever se você é possuidor de um tipo ou de outro. Apenas
no uso, “correto” ou “irresponsável” (outra curiosa oposição nativa), a sua
“genética” será desvelada. Cabe ao usuário então lidar com ela.

Considerações Finais
Em suma, a separação entre os iluminados possuidores da boa genética
e os desfavorecidos de genética ruim só poderá ser percebido no cotidiano do
uso. Como destaquei, algo que muito me chamou atenção é que a noção de
genética era bastante “solta” em comparação à precisão das outras
características orgânicas mediadas pela testosterona. Não consegui
compreender se a genética de meus interlocutores era pensada a nível de
cromossomos, ou de genes. Tive a impressão de manutenção de uma ideia um
tanto ultrapassada, a noção de um gene ou conjunto de genes para uma dada
característica, uma visão da genética humana que, como bem argumenta Rose
(2013), foi desacreditada após o sequenciamento do genoma humano. Porém,
no meu campo, permanece a ideia de que haveria algo relacionado à genética –
descrito como uma habilidade, uma aptidão ou um dom, resquício da eugenia do
início do século XX – para algo específico, no caso, a modificação corporal a
partir do uso de testosterona.
Ao invés de elucubrar o que meus interlocutores pretendiam ao falar em
genética, sigo a análise por outro caminho: a genética parece ser o locus
privilegiado de uma essência individual. É preciso considerar que esses
indivíduos estão, conscientemente ou não, desafiando os limites entre um corpo
“natural” ou “artificial”, através do uso de uma molécula produzida pelo corpo
(todo corpo, mesmo entre não-humanos), mas que é, ainda assim, acrescentada
ao organismo. A construção de uma corporalidade ideal por esses homens ataca
diretamente a pretensa distinção entre natureza e cultura. Ao longo de todo o
período em que convivem com a testosterona (para muitos, vitalício depois de

9
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

iniciado), essas dicotomias estarão em xeque. Há, num primeiro olhar, algo de
transgressor no uso da testosterona, por escancarar que nossos corpos são,
realmente, construídos; no caso deles, explicitamente. Não à toa, palavras como
“moldar”, “modelar”, “ajustar”, “adequar” e “construir” o corpo são usadas
profusamente em seus relatos. Porém, em algum lugar, interno, individual,
inacessível e imprevisível, mantém-se uma “essência” de si. Por mais cuidadoso
que alguém seja nessa modelagem de si, a modificação corporal não pode ser
infinita; ela irá esbarrar, inevitavelmente, na “genética” do indivíduo. Guarda-se,
em algum lugar difuso e de difícil definição, uma natureza imutável, e uma
“verdade” biológica, mantendo viva a atomização do indivíduo-valor que Louis
Dumont (1985) descreve, e que David LeBreton (2011) localiza dentro dos limites
da pele. A essência do indivíduo não está mais em sua subjetividade, ou na
robustez moral de seus valores, mas em algo orgânico, microscópico e invisível,
que marca indelevelmente os sujeitos.
Seguindo esse raciocínio, algo mais perigoso se avizinha a partir dessa
essencialidade genética. Ao apresentar as pessoas como possuidores de uma
genética “boa” ou “má”, acaba por se estabelecer um ranqueamento dos
indivíduos, nos quais aqueles de “boa” genética seriam superiores,
organicamente, daqueles infelizes de genética ruim. Há inegáveis vantagens por
ocupar essa posição genética hierarquicamente superior. Essa percepção me
leva a refletir sobre o lugar da noção de susceptibilidade, em consonância com
a ideia de genética de meus interlocutores (uma pré-disposição orgânica), num
mundo molecularizado. Uma vez que é imutável, presente desde o nascimento
até a morte, a “genética” se constitui numa prova cabal de superioridade ou
inferioridade de uns sobre os outros. Sugiro que se trata, portanto, de uma nova
organização da velha Grande Cadeia do Ser, conforme pensada por Arthur
Lovejoy (2005), agora em um momento molecular. Para que essa ideia pudesse
se converter numa hipótese, contudo, seria necessário um aprofundamento com
outras pesquisas, que considerassem o possível cruzamento com determinados
marcadores sociais de diferença, por exemplo. De toda forma, indico essa
possibilidade como algo que merece atenção e enseja maior aprofundamento,
de forma que pudéssemos compreender melhor o que significa esse
ordenamento humano pela “genética”.

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Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências
BOLTASNKI, Luc. 2004. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra.
CLARKE, Adele; SHIM, Janet; MAMO, Laura; FOSKET, Jennifer Ruth;
FISHMAN, Jennifer. 2003. “Biomedicalization: technoscientific transformations of
health, illness and US biomedicine”. American Sociological Review, 68: 161-194.
DEBERT, Guita. 1997. “A invenção da terceira idade e a rearticulação de formas
de consumo e demandas políticas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34
(12): 39-56.
DUMONT, Louis. 1985. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco.
LAQUEUR, Thomas. 2001. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a
Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
LeBRETON, David. 2011. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis:
Vozes.
LOVEJOY, Arthur. 2005. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo.
ROSE, Nikolas. 2013. A política da própria vida: biomedicina, poder e
subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus.
RUBIN, GAYLE. 1984. “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of
sexuality”. In: VANCE, Carole (ed.) Pleasure and Danger. New York: Routledge
& Kegan Paul. pp. 143-178.
TRAMONTANO, Lucas. 2017. Testosterona: as múltiplas faces de uma
molécula. Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
VAZ, Alexandre. 2005. “Doping, Esporte, Performance: notas sobre os ‘limites’
do corpo”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 27 (1): 23-36.

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Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Diário de Cegonha – Medicalização da concepção e Narrativas pessoais em


redes sociais

Camilla Iumatti Freitas1

RESUMO

No artigo proposto pretendo realizar breve análise de performances médicas e


pacientes que buscam Novas Tecnologias de Reprodução Humana para
entender como tais elementos referendam linguagens autorizadas e como elas
constroem homologias de classe a partir da medicalização da concepção
humana.

Palavras-chaves: Reprodução Humana; Medicalização; Linguagem Autorizada;


Performances Médicas; Eficácia Simbólica.

1. INTRODUÇÃO

A questão da ausência involuntária de filhos emergiu pra mim a partir de


um interesse pessoal, quando em junho de 2016 tive a minha segunda perda
gestacional. O interesse científico pelo tema aconteceu diante de entradas e
saídas de clínicas especializadas, baterias de exames e a busca por canais
de comunicação via web com pessoas em situação semelhante a minha para
que eu conseguisse entender a situação e quiçá fechar meu próprio
diagnóstico, tendo em vista a total falta de domínio por minha parte da
linguagem médica específica utilizada.

A construção de linguagens autorizadas e a eficácia de discursos


privativos a determinadas classes sociais e/ou categorias profissionais, é
objeto amplamente estudado nas ciências sociais, motivo pelo qual me
despertou singular interesse em observar como a construção dessas
linguagens e rituais contribuem para a criação de um poder hermético, ou
seja, ritualístico, ou quase mitológico na acepção utilizada por Paolo Grossi
(2003).

1
Cientista Social formada em 2010 pela Universidade Federal de Pernambuco. É aluna regular do Programa
de Pós Graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal de Alagoas desde janeiro de 2017.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Neste trabalho, pretendo debater como a medicalização da concepção


humana promove a construção de discursos médicos muitas vezes
inacessíveis e excludentes que provocam a constituição de redes informais
de compartilhamento de narrativas pessoais entre indivíduos que vivenciam
a situação de ausência involuntária de filhos.

Para tal empreendimento utilizarei como base teórica na construção do


meu trabalho, o debate trazido por Pierre Bourdieu em “A linguagem
Autorizada: As condições sociais da eficácia do discurso ritual” (1996)
pretendendo com esse texto entender a ideia do conflito entre agência e
estrutura e a construção de linguagens autorizadas e homologias de classe
para referendar a eficácia simbólica de determinados rituais profissionais.

Sobre a construção do desejo por filhos e a medicalização da concepção


humana pretendo fazer breve debate sobre a construção do desejo por filhos
e como esse processo pode vir a reificar a legitimidade de discursos médicos
na reprodução humana.

Por fim, pretendo trazer uma ilustração de discursos de uma usuária da


web para entender como esses discursos podem ter eficácia simbólica,
conceito trazido por Pierre Bourdieu.

2. DESENVOLVIMENTO
2.1. A linguagem autorizada e homologias de classe

Em meio à crescente medicalização da concepção humana, profissionais da


área de saúde têm lançado mão de maneira cada vez mais especializada de
Novas Técnicas de Reprodução - NTR, tecnologias estas que têm recrutado um
número muito grande de pessoas que têm o desejo de conceber um filho2. Nessa
seara, é produzida uma linguagem ultra especializada, linguagem essa
autorizada (Bourdieu, 1996) a uma camada social que muitas vezes informa ao
ouvinte o lócus o qual se situa o interlocutor.

Para Bourdieu a sociedade estaria dividida em campos que seriam territórios


de construção social com suas especificidades e seus atores. O campo definiria

2
Farei no tópico três uma discussão introdutória do tema, para saber mais, ver produção de desejo por
filho Naara Luna, Pedro Nascimento, Marilyn Strathern e Débora Allebrandt.

2
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

linguagens específicas e corresponderia a um estado de correlação de forças


entre os próprios atores que ocupam lugares homólogos que vão depender de
interesses que correspondem aos próprios hábitus do sujeito (seus
backgrounds). Para ele, “o uso da linguagem, ou melhor, tanto a maneira como
a matéria do discurso, depende da posição social do locutor que, por sua vez,
comanda o acesso que se lhe abre à língua da instituição à palavra oficial,
ortodoxa, legítima.” (BOURDIEU,1996, p. 87).

As homologias de classe, portanto, vão criar hierarquias e essas hierarquias


corresponderiam a quem tem maior ou menor legitimidade para exercer
determinada função. Esta legitimidade estaria inscrita num processo ritualístico
de eficácia social, para ele “a crença de todos, preexistente ao ritual, é a
condição de eficácia do ritual” (BOURDIEU,1996, p. 105). Dentre outras
questões, tal legitimidade estaria inscrita em signos, os quais segundo o autor:

De maneira muito mais consequente do que os signos exteriores ao


corpo (medalhas, uniformes, galões, insígnias etc.), os signos
incorporados, ou seja, tudo aquilo englobado na rubrica das maneiras
(maneiras de falar, os sotaques ou as pronúncias, maneiras de andar ou
se comportar, o andar, a pose, a postura, maneiras de comer etc.), e o
gosto enquanto princípio de produção de todas as práticas destinadas,
intencionalmente ou não, a significar e também a significar a posição
social através do jogo das diferenças distintivas, estão fadados a
funcionar como apelos mediante os quais se pode lembrar àqueles que
poderiam esquecer (ou que preferissem se esquecer) o lugar que lhes
conferem a instituição. (BOURDIEU,1996, p. 103).

Nesse sentido, faz-se compreender que a linguagem é um dos signos que


indicam o lugar do agente, pois está incorporada na ação do sujeito. Tais signos
reforçam a hierarquia necessária para que aquela posição seja exercida pelos
seus atores.

Foucault (1977), por sua vez, lançou seu olhar sobre o nascimento da
clínica realizando uma digressão no tempo para entender a partir de quando a
medicina passou a ter status de ciência clínica e a construção do discurso clínico
na sociedade ocidental. Para ele, “a clínica é, ao mesmo tempo, um novo recorte
das coisas e o principio de sua articulação em uma linguagem na qual temos o
hábito de reconhecer a linguagem de uma «ciência positiva»” (FOUCAULT,
1977, p. XVII). É essa linguagem que desperta singular interesse neste artigo,
linguagem positiva e ao mesmo tempo composta por elementos ritualísticos que
ao passo que distancia o interlocutor do agente, o referenda quanto porta-voz.

3
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Pedro Nascimento (2011) em “Juntando informação, calculando


resultados: percepções e trajetórias diversas na produção do desejo de filhos”
(2011), realizou uma pesquisa junto a pessoas com ausência involuntária de
filhos que buscavam nos hospitais do Sistema Único de Saúde de Porto Alegre
alternativas de acesso a NTR. Em sua pesquisa, Nascimento identificou que a
linguagem médica seria um elemento de reforço hierárquico que produziria
desigualdades. Segundo o autor, “ao longo de toda a pesquisa foi muito comum
ouvir comentários do tipo “eu não entendi”, “o médico não explicou direito”, “eles
não sabem explicar”, “eles não falam pra você entender” etc.” (NASCIMENTO,
2011, p. 163).

Esse dado parece se confirmar em narrativas utilizadas por usuárias de


redes sociais via web através do aplicativo de equipamentos móveis disponível
para os sistemas Apple e Andróide, Instagram, rede social de compartilhamento
de fotos e informações cotidianas. Através de incursões nesta rede em quatro
perfis com codinomes que remetem à situação da ausência involuntária de filhos
(Tentante_TCC, Tentante_Lima, Quero contato com a cegonha e
Mamãe_2018_sop)3 dos quais obtive autorização de realizar essa breve análise
por parte das usuárias4, pude perceber frequentes trocas de informações, como
uma forma de esclarecer entre semelhantes os recursos e tratamentos que
lançam mão para ‘que chegue o positivo’, apelo muito recorrente nos perfis.

Como é o caso das frequentes postagens feitas pela “Tentante 1”; com
fotos das vitaminas e remédios na palma da mão, ela relaciona os nomes dos
remédios que está tomando seguidos das hashtags5 #fiv20176, #vem Positivo e
#meuBebe. Ou mesmo da “Tentante 2” que fez um apelo “Preciso de ajuda! Estou
no 39 DC7 e até agora não desceu a menstruação. Ontem comecei a ter leves cólicas mas ia e

3
É comum a utilização de nick names ou codinomes que remetam tanto à enfermidade que acomete a
usuária do perfil, quanto a nomes que informam sobre o desejo daquelas usuárias de ser mães e/ou estarem
tentando engravidar, ao que se autodenominam como “tentantes”. Aqui, como forma de preservar suas
identidades, ainda que em codinomes, optarei por identifica-las como Tentante 1, 2, 3 e 4.
4
A autorização foi solicitada pela própria rede social através de um pedido meu de maneira privada no
Instagram de cada perfil relacionado.
5
Hashtags são localizadores via Web que etiquetam palavras, frases e/ou expressões para facilitar buscas
futuras por parte de outras pessoas, para isso basta digitar no localizador da rede social, no caso, o
Instagram, a palavra, frase ou expressão que os perfis que usaram essas Tag’s (ou etiquetas) aparecerão nos
resultados da busca.
6
FIV é a abreviação de uma técnica de reprodução assistida chamada Fertilização In Vitro.
7
DC é a abreviação das palavras “dia” do “ciclo”, referindo-se ao ciclo menstrual.

4
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

voltava até que parou e não tive mais. Fiz teste de gravidez e deu negativo. Não tenho nenhum
sintoma, hoje acordei com dor de cabeça. Se alguém já tiver passado por isso deixa aqui nos
comentários”. O mesmo relato de atrasos menstruais é frequentemente mencionado pela
“Tentante 4”.

Teoricamente tais informações de atrasos menstruais, por exemplo,


deveria ser relatado ao médico e as vitaminas e/ou remédios a serem
administrados deveriam ser prescritos pelo profissional que acompanha cada
pessoa a depender de suas especificidades. Mas por que as usuárias persistem
nesses recursos? Tais exemplos podem comprovar que esse fluxo de troca de
informações entre as pessoas usuárias dessa rede social se dá de maneira
espontânea e parecem servir de ‘alternativa’ para a linguagem médica utilizada.

Para Maria Claudia Crespo Brauner (2003), o recurso de NTR’s requer


“tempo e amadurecimento da decisão, a partir de informações fornecidas pelos
médicos e, para compreensão dos esclarecimentos, é necessário utilizar-se de
uma linguagem simples, objetiva, com a devida apresentação de documentos
que atestem o grau de sucesso e os riscos de cada uma das técnicas, levando
em consideração o caráter de vulnerabilidade e sofrimento daquela pessoa que
deseja profundamente ter um filho” (BRAUNER, 2003, p.62).

Essa espécie de tradução entre pessoas que compartilham de situações


semelhantes revela a necessidade de tornar a linguagem médica um tanto
quanto mais acessível a quem faz uso desses tratamentos para engravidar. Por
outro lado, o discurso médico é referendado como verdade absoluta, sendo
quase que inquestionável, ainda que não se entenda muito bem do que está
sendo realizado em seu próprio corpo.

Segundo Bourdieu (1993), “a especificidade do discurso de autoridade


(curso, sermão, etc.) reside no fato de que não basta que ele seja compreendido
(em alguns casos, ele pode inclusive não ser compreendido sem perder seu
poder), é preciso que ele seja reconhecido enquanto tal para que possa exercer
seu efeito próprio”. (BOURDIEU,1996, p. 91).

Sendo assim, de acordo com Bourdieu, as propriedades do discurso


carregam em si as propriedades daquele que o pronuncia e propriedade da
instituição que o autoriza a pronunciá-lo, seria a eficácia simbólica desse

5
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

discurso. Para ele, “A eficácia simbólica das palavras se exerce apenas na


medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exercê-
la de direito, ou então, o que dá no mesmo, quando se esquece de si mesma e
se ignora, sujeitando-se a tal eficácia, como se estivesse contribuindo para
fundá-la por conta do reconhecimento que lhe concede.” (BOURDIEU,1996, p.
95).

Essa eficácia simbólica estaria circunscrita nos receptores daquele


discurso, sendo, portanto, um elemento que referenda as linguagens autorizadas
e seu poder hermético. Para entender a eficácia simbólica desses discursos
médicos entre pessoas com ausência involuntária de filhos é preciso tecer breve
comentário sobre como se situa o desejo por filhos na sociedade ocidental nos
séculos XX e XXI.

2.2. O desejo por filhos e a Medicalização da Concepção humana –


Uma discussão introdutória

A construção do desejo por filhos nos tempos atuais perpassa por admitir que
as NTR têm assumido um papel central entre pessoas com ausência involuntária
de filhos, pessoas estas que se autodenominam “tentantes”. Tentantes são em
geral mulheres que estão tentando ter filhos com ou sem a ajuda de NTR, mas
comumente esse termo está associado ao uso dessas tecnologias.

Esse desejo por filhos, nos moldes ocidentais dos séculos XX e XXI,
perpassa pela noção de família nuclear, ou seja, pai, mãe e filho(s) e pela
constante associação entre fertilidade e felicidade (abundância, saúde).
Segundo Maria Claudia Crespo Brauner (2003), “parece vigorar a ideia de que a
mulher torna-se feliz e realizada quando engravida e dá à luz e, que as nulíparas
são mulheres amargas, egoístas e desequilibradas psicologicamente”
(BRAUNER, 2003, p.50).

A noção de família nuclear confirma o que Marylin Strathern (2014) trouxe


para definir a ideologia de parentesco euro-americano, ou seja, na identificação
biogenética, onde o parentesco seria visto como circunstância natural do
nascimento. Em seu texto “Dando apenas uma força à Natureza? A cessão
temporária de útero: um debate sobre tecnologia e sociedade” (2014) Marylin

6
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Strathern faz um debate sobre ciência e tecnologia afirmando que estes temas
caminham junto com a sociedade sendo então, indissociáveis. A autora conclui
que,

Afinal, do ponto de vista euro-americano (e modernista), enquanto as


finalidades sociais permanecem estáveis, a inovação tecnológica não
quer dizer inovação social. Pelo contrário, como na promoção da família
nuclear, novos procedimentos podem preencher antigos objetivos:
considera-se que a aplicação da tecnologia está assentada em valores
sociais nos quais ela não interfere (STRATHERN, 2014, p. 482).

Em “Displacing Knowledge” (1995), Strathern propõe pensar identidade


voltada para a genética afirmando ser possível pensar o biogenético sem o
genético, a criação sem procriação, a partir das novas tecnologias de
reprodução, porém chama a atenção para o deslocamento do conhecimento.
Para ela, entender o parentesco euro-americano não significaria
necessariamente entender parentesco.

Por sua vez, Débora Allebrandt (2015) em “Sobre mães e doadores –


Identidades e pertencimento sob a luz da experiência da maternidade, do direito
de filiação e acesso á reprodução assistida de famílias homoparentais do
Quebec” discute a questão da “busca hipotética da origem” (ALLEBRANDT,
2015, p. 323) em que o filho proveniente de reprodução assistida a partir de
doadores de gametas teria ou não assegurado seu direito de conhecer o doador.

Nesse contexto, a autora discute questões como identidade e herança


genética considerando que “A natureza plural da identidade se reflete não
apenas na tensão entre o papel da herança genética e os laços afetivos, mas
também entre a identidade estabelecida através do estado civil” (ALLEBRANDT,
2015, p. 316).

Trazendo esses elementos, Allebrandt (2015), propõe que essa busca


pela origem estaria de alguma forma também relacionada à ideologia de
parentesco, imbricada diretamente na questão genética. Sendo assim,
experimentar a ausência involuntária de filhos por parte de pessoas com algum
tipo de patologia ou incompatibilidade, frustra esse desejo por filhos socialmente
demarcado.

7
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em sua pesquisa, Pedro Nascimento (2011) identificou entre os casais


usuários do serviço de reprodução assistida disponibilizado pelo SUS em dois
grandes hospitais de referência de Porto Alegre/RS, o que chamou de 03 (três)
fases do processo, quais sejam: 1 – Fase da ambivalência: que estaria
demarcada pela descoberta da dificuldade de ter filho; 2 – Fase da busca:
momento da tomada de decisão para recorrer aos serviços de saúde e 3 – Fase
“luz no fim do túnel”: que demarcaria a descoberta da disponibilização do
tratamento pelo SUS.

Pedro Nascimento (2011) discute essa relação do serviço do SUS a partir do


entendimento que os usuários têm sobre o que é um serviço de saúde pública,
a percepção da hierarquia com profissionais de saúde e o domínio da linguagem
médica que muitas vezes reforçam a desigualdade. De acordo com o autor:

Para várias questões que estão sendo reportadas seja em termos de


compreensão diversa de um mesmo problema, sejam diferentes
linguagens em jogo ou relações hierárquicas entre usuários e
profissionais de saúde, há que se considerar a distância social desses
sujeitos e as formas de comunicação que inclui, entre outras coisas, um
vocabulário médico especializado que “redobra a distância linguística”
(NASCIMENTO, 2011, p. 173)

Essa distância linguística informa sobre performances médicas que


demarcam ritos específicos profissionais, essa ideia performance, portanto, seria
a pista para o exercício da eficácia simbólica, posto que é ela que localiza,
através de elementos ritualísticos, racionalizados ou não, qual o lugar que ocupa
o interlocutor e qual deve ser o lugar ocupado por quem está direcionada a sua
ação.

2.3. Performance médica no discurso de web – Uma ilustração

Bourdieu atribui os ritos de passagem trazidos por Van Gennep e Victor


Turner como ritos de instituição, presente na ideia de performance jurídica, que
aqui poderíamos comparar com a performance médica, ideia central deste artigo.
Para ele,

Falar de rito de instituição é indicar que qualquer rito tende a consagrar


ou a legitimar, isto é, a fazer desconhecer como arbitrário e a reconhecer
como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a operar
solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma transgressão dos
limites constitutivos da ordem social e da ordem mental a serem
salvaguardadas a qualquer preço, (...). (BOURDIEU,1996, p. 98).

8
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Nesse sentido, é factível concluir que são as performances quem


referenda o rito de instituição. De acordo com Foucault (1977), não foi a medicina
positiva que fez a escolha objetiva do seu campo, já que segundo o qual, tratar
de doenças já acontecia muito antes do nascimento da clínica, mas sim a
linguagem que foi modificada para referendá-la enquanto ciência. Segundo o
autor:

As figuras da dor não são conjuradas em beneficio de um conhecimento


neutralizado; foram redistribuídas no espaço em que se cruzam os
corpos e os olhares. O que mudou foi a configuração surda em que a
linguagem se apoia, a relação de situação e de postura entre o que fala
e aquilo de que se fala. (FOUCAULT, 1977, p. IX).

Nesse sentido, a performance estaria acima de tudo baseada num


discurso performático. Para Bourdieu (1996),

O efeito de conhecimento exercido pelo fato da objetivação do discurso


não depende apenas do reconhecimento concedido àquele que o detém;
depende também do grau com que o discurso anunciador da identidade
do grupo está fundado na objetividade do grupo ao qual está
endereçado, ou seja, tanto no reconhecimento e na crença que lhe
atribuem os membros desse grupo como nas propriedades econômicas
e culturais por eles partilhadas, sendo que a relação entre essas
mesmas propriedades somente pode ser evidenciada em função de um
princípio determinado de pertinência. (BOURDIEU,1996, p. 111).

Essa pertinência do discurso médico parece ser reconhecida pelas


interlocutoras desse artigo, conforme pude perceber na postagem da “Tentante
3” em que ela destaca na foto um médico que seria seu novo ‘amigo’ (também
conhecido como seguidor nessa rede social) e em agradecimento ela escreve:
“Hoje tivemos novos insta amigos por aqui, o que sempre me deixa MUUUITO FELIZ!!!
Amo a nossa troca... obrigada a todos... mas tive também uma surpresa bem especial...
Ah!!! Que felicidade quando vi!!! Sou a maior fã do dr. A8, do trabalho dele, do ser
humano que é... hoje não tenho a menor condição de sair do rio9 para fazer meu
tratamento, mas tenho MUITA vontade de conhecê-lo pessoalmente! Fiquei MUITO feliz
em tê-lo aqui no nosso espacinho de trocas...o coração transbordou de alegria e o
marido, que estava do meu lado, não entendeu nada!!! Muito bom tê-lo por “perto” dr.
A.”

8
A interlocutora registrou o nome do perfil do médico, aqui suprimido.
9
Refere-se ao estado que reside, mesmo que tenha grafado em letra minúscula, entende-se que o “rio” diz
respeito ao Rio de Janeiro, estado brasileiro.

9
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Esse relato da Tentante 3 parece reforçar a ideia de eficácia simbólica trazida


por Bourdieu em seus textos, já que de acordo com a interlocutora a pertinência
do discurso daquele médico (aqui entenda-se discurso em sua amplitude de
acepções – performances, falas, atuação) a faz querer ter a oportunidade de
conhece-lo pessoalmente, ainda que a mesma não tenha condições de tratar-se
com ele. Esse reconhecimento seria a eficácia simbólica a que se refere
Bourdieu:

O poder das palavras reside no fato de não serem pronunciadas a título pessoal
por alguém que é tão-somente “portador” delas. O porta-voz autorizado
consegue agir com palavras em relação a outros agentes e por meio de seu
trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o
capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele
é, por assim dizer, o procurador. (BOURDIEU,1996, p. 89).

Apesar desses casos específicos, como foi visto no tópico anterior, a


construção de um discurso médico muitas vezes acaba por prejudicar a
compreensão do tratamento por parte dos usuários, de acordo com Pedro
Nascimento (2011) “somada à percepção da complexidade inerente aos
procedimentos médicos, muitas vezes a compreensão contra era de que os
médicos ou não queriam ou não sabiam explicar devidamente, tirando as dúvidas
que surgiam” (NASCIMENTO, 2011, p. 172).

No mesmo sentido, a indefinição do diagnóstico gera, de acordo com Naara


Luna (2007), o sentimento de angústia e aflição. De acordo com a autora
“Vivenciar indefinição de diagnóstico pode ser mais aflitivo do que a clareza de
um diagnóstico negativo que permita tomar as providências necessárias. Um
diagnóstico não é dado, mas é uma construção, conforme se depreende dos
relatos em que falta clareza sobre o estatuto da paciente.” (LUNA, 2007, p.74).

No campo da saúde, não apenas pela linguagem falada, mas, sobretudo,


os elementos simbólicos que carregam seus interlocutores informam o lócus
ocupado por quem este investido desse poder, no caso os médicos, estando
imersos num ritual performático que teria a eficácia simbólica a partir do
reconhecimento social deste porta-voz.

3.CONCLUSÃO

10
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

No presente artigo busquei entender como se localizam a linguagem


autorizada e homologias de classe na ideia do discurso médico e como ele é
recebido por pessoas com ausência involuntária de filhos. Para tal
empreendimento busquei em Bourdieu a relação entre linguagens específicas e
a construção de elementos de eficácia simbólica.

Não obstante, fiz breve análise de como se constrói o desejo por filhos na
sociedade ocidental e como, por esse desejo, se recorre às Novas Tecnologias
de Reprodução – NTR’s, que produz um campo de discursos médicos
especializados muitas vezes inacessíveis até mesmo para quem se submete aos
tratamentos. Com essa breve discussão entre algumas autoras da área10,
procurei entender como esses discursos provocam as homologias de classe e
suas hierarquias.

Por fim, fiz um sobrevoo na performance médica num discurso da web trazido
por uma das minhas interlocutoras para ilustrar o conceito de eficácia simbólica,
entendendo que os elementos simbólicos que circundam este campo inscrevem
sobre os autores a linguagem autorizada a que é referendada por essa eficácia,
conceito trazido por Bourdieu. Segundo o autor, “(...) a ciência social deve levar
em conta o fato da eficácia simbólica dos ritos da instituição, ou seja, o poder
que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real”
(BOURDIEU,1996, p. 99).

Nesse sentido, concluo que a eficácia simbólica dos discursos médicos


acerca da medicalização da concepção humana se dá através da quase que
inacessibilidade sobre os tratamentos destinados às pessoas com ausência
involuntária de filhos que muitas vezes recorrem às redes sociais via web (ou
não, mas aqui situado especificamente em 04 perfis da rede social “Instagram”),
para o entendimento adequado sobre seus tratamentos de concepção.

10
Como a maioria das referências bibliográficas que utilizei sobre o tema eram mulheres, optei por deixar
no feminino.

11
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLEBRANDT, Débora. Sobre mães e doadores identidade e pertencimento sob


a luz da experiência da maternidade, do direito de filiação e acesso á reprodução
assistida em associação de famílias homoparentais do Quebec, Civitas, 2015. v.
15, n-2, p. 309-325.

12
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

BOURDIEU, Pierre. “A linguagem autorizada: As condições sociais da eficácia


do discurso ritual”. In: Pierre Bourdieu. A economia das trocas linguísticas. São
Paulo: Edusp, 1996: 85-128.

BRAUNER, Maria Claudia Crespo. “Direito, Sexualidade e Reprodução Humana-


Conquistas médicas e o debate bioético”.Rio de Janeiro: Renovar,2003.

FOUCAULT, Michel. “O nascimento da clínica”. Rio de Janeiro: Ed. Forense-


Universitária.Trad., 1977.

GROSSI, Paolo. “Mitología jurídica de la modernidade. Trad. Manuel Martínez


Neira. Madrid: Trotta, 2003.

LUNA, Naara. “Infertilidade e ausência de filhos – a origem do drama”. In:


Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas [on
line]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007.

NASCIMENTO, Pedro F. G. Juntando informação, calculando resultados:


percepções e trajetórias diversas na produção do desejo de filhos. Tempus –
actas da saúde coletiva, 2011, p. 161-177.

STRATHERN, Marilyn. “Dando apenas uma força à natureza? A cessão


temporária de útero: um debate sobre tecnologia e sociedade”. In: Marilyn
Strathern o efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Casac & Naify, 2014,
p. 467-486.

13
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

Narrativas sobre CADASIL: experiências de indivíduos provenientes


de famílias com históricos de uma doença genética rara.

Everson Fernandes Pereirai

Resumo

Este trabalho apresenta algumas questões que emergiram nas


narrativas em entrevistas realizadas como trabalho de campo para dissertação
de mestrado. Ainda, como membro de uma família com histórico de cadasil,
faço um diálogo de algumas de minhas experiências envolvendo a doença com
as experiências de meus interlocutores. Da dificuldade de obter um diagnóstico
de uma doença rara, passando pelo aprendizado sobre a doença, até as
decisões referentes às escolhas terapêuticas, a notícia de uma mutação
genética apresenta novas tensões às famílias envolvidas. Além disso, mobiliza
também outros familiares ao colocá-los sob a classificação de “pessoas em
risco”, com frequência provocando ansiedades sobre a possibilidade de
desenvolverem a doença. Ainda que cada família tenha uma história diferente,
tenha enfrentado um processo diferente até chegar ao diagnóstico de cadasil,
ainda que haja certas particularidades de cada uma dessas famílias, as
experiências apresentam algumas convergências no sentido de exporem
assuntos do passado às novas interpretações, reelaborando partes das
histórias familiares.

Palavras-chaves: Antropologia, Narrativas, Doenças Raras, Doenças


Genéticas, Experiências.

As reflexões neste trabalho dizem respeito, principalmente, a quatro


entrevistas feitas neste segundo semestre de 2017, como parte do trabalho de
campo para a pesquisa – ainda em fase inicial - que desenvolvo no mestrado1.
As entrevistas foram realizadas com membros de três famílias em três cidades,
duas de Santa Catarina e uma de Rio Grande do Sul. Três dessas entrevistas
foram, na verdade, uma primeira conversa para que eu apresentasse o projeto

iMestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal


de Santa Catarina, sob orientação da Profª Drª Sonia Weidner Maluf.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

de pesquisa para essas pessoas; a quarta entrevista, mais recente, foi


posterior e é o segundo momento com pessoas de uma família. Ao longo dos
próximos meses, voltarei a fazer outras entrevistas. Além disso, como membro
de uma família com histórico de CADASIL, faço alguns comentários sobre
como a doença foi tematizada na minha família. Este trabalho se inspira e
dialoga com o trabalho realizado por Waleska de Araujo Aureliano (2015), na
sua pesquisa de pós-doutorado, em que ela discute, em parte, sobre a
tematização da doença de Machado-Joseph entre famílias do Rio de Janeiro.

Sobre a cadasil

Apesar de não haver estudos epidemiológicos no Brasil para a


incidência da Arteriopatia Cerebral Autossômica Dominante Com Infartos
Subcorticais e Leucoencefalopatia2 (em inglês o acrônimo CADASIL3), estima-
se que cerca de 500 famílias no mundo foram notificadas com diagnóstico
positivo (Testi, 2011). Um dos poucos estudos nesse sentido vem da Escócia
(Razvi et al, 2005), onde se indica a existência de aproximadamente 4 casos
para cada 100 mil habitantes, o que encaixa a doença dentro dos critérios da
OMS para doenças raras: aquelas cuja prevalência é de até 65 casos para
cada 100 mil habitantes. “Cadasil” é um acrônimo relativamente recente, que
surgiu na década de 1980. De acordo com um relatório feito por Julie Rutten e
Saskia Oberstein4, antes da adoção da nomenclatura “cadasil” também se
utilizavam os termos “demência multi-infarto hereditária”, “encefalopatia
vascular familiar crônica” e “demência subcortical familiar. Cadasil é uma
doença genética rara em que basta um dos pais ter um dos alelos carregando
a mutação, localizada no gene NOTCH3, para que seus descendentes sejam
considerados “em risco”.

Silvia Testi5 (2011) ressalta que as manifestações clínicas e a


severidade da doença variam de família para família e elenca os sintomas
principais e a predominância de tipos de sintomas, que se iniciam por volta da
segunda década de vida e envolvem enxaqueca com aura, dormência no rosto
ou em membros superiores. A autora também aponta que, com o avanço da
doença, outras funções cognitivas são envolvidas, levando à disfunção da
linguagem, à perda da autonomia da vida diária e à demência. No âmbito
farmacêutico, são desenvolvidos estudos com medicamentos que visam à
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

recuperação da capacidade cognitiva perdida (Forteza et al, 2001; Ragoschke-


Schumm et al, 2005; Dichgans et al, 2008).

A descoberta do diagnóstico e a reelaboração de histórias familiares

“Pereira que é Pereira começa a arrastar as pernas até os 50 [anos de


idade]”. Em tom de brincadeira, um neurologista de um hospital universitário
comentava comigo que essa frase era uma espécie de “ditado popular” numa
cidade da região serrana de Santa Catarina – região a que, com certa
frequência, alguns interlocutores de pesquisa se referem como apresentando
bastantes casos de cadasil. Não creio ser mera coincidência o fato de que essa
seja também a região onde se localiza grande parte da minha família por parte
de pai. A frase dita pelo neurologista retrata uma das consequências da
progressão da doença: a perda da mobilidade como resultado das sequelas
causadas por acidentes vasculares cerebrais (AVCs).

Maria Lúcia da Silveira (2000, p. 29), ao discutir sobre os nervos de


mulheres de uma localidade de Florianópolis, relata que ora ela era
pesquisadora, ora nativa; ora fazia perguntas, ora respondia. Ao dizer que
compartilhava determinadas experiências com as mulheres da localidade, ela
lança as perguntas: “teria pesquisado ou partilhado experiências? Importa
responder?”. Não importa a resposta, mas a pergunta que se coloca me abre a
possibilidade de pensar nas interações que tenho tido com meus interlocutores
de pesquisa. Sempre me coloco, ou me colocam, nesse duplo papel, que é ser
pesquisador e “nativo”. Ora me perguntam sobre casos de cadasil na minha
família, ora perguntam como descobrimos, ora eu faço essas perguntas. Em
certos momentos, ainda, eles relatam experiências com as quais me identifico
e vice-versa. Esse jogo de exposições permite que, ao abrir meus relatos
pessoais, meus interlocutores vislumbrem a possibilidade de se abrirem sobre
suas experiências também.

Os meus interlocutores de pesquisa6, até o momento, são cinco


pessoas de três famílias com histórico de cadasil. Uma das famílias reside no
interior catarinense, onde estou em diálogo com dois participantes: uma
mulher, Fernanda, (25), diagnosticada com cadasil através do teste genético e
o irmão, Felipe, (28), ainda não testado. Na região da Grande Florianópolis,
mantenho contato com um homem (aproximadamente 45), José, com
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

diagnóstico de cadasil cujo único exame requerido foi uma ressonância


magnética, além da análise do histórico familiar da doença. Por fim, na região
de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, moram duas interlocutoras, irmãs (aprox.
45 – 49), Beatriz e Márcia, não testadas, cuja mãe (71) tem o diagnóstico de
cadasil confirmado por teste genético e se encontra num estágio de progressão
da doença em que há episódios de demência e dificuldades motoras.

Desde que Arthur Kleinman (1988) fez a famosa distinção entre illness
e disease, atribuindo à primeira um aspecto mais subjetivo da experiência da
doença, a ideia de illness narratives tem contribuído para dar sentido à forma
como as pessoas afetadas por alguma enfermidade ordenam suas
experiências para além do discurso biomédico. Sônia W. Maluf (1999), num
artigo intitulado “Antropologia, narrativas e a busca de sentido”, reitera que “as
narrativas das experiências de doenças são centrais para uma compreensão
dos modelos interpretativos dos grupos pesquisados, de suas explicações
sobre a doença e sobre a história vivida pelo narrador”. Jean Langdon (2014)
apontou: “a doença é uma experiência que gera narrativas que procuram dar
sentido ao sofrimento e também ajudam as pessoas a negociar decisões”. É
tendo isso em mente que procuro ouvir meus interlocutores sobre suas
experiências envolvendo a cadasil, independente dos diagnósticos que tenham,
se fizeram testes ou não, considerando a doença não apenas como um
processo biológico e corporal, mas também como resultado de um contexto
cultural e de experiências subjetivas de aflição (cf. Langdon, 1995).

É interessante lembrar que fazer o teste genético é perpassado por


uma série de questões que vão além do desejo de fazê-lo, mas também
envolve questões de classe, pelo alto preço e indisponibilidade no Sistema
Único de Saúde. Um médico do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, o qual
acompanha cerca de seis famílias com cadasil, relatou-me, numa conversa
informal, que os testes genéticos para a doença são realizados apenas em
poucos laboratórios privados no Brasil ou fora do país, como é o caso de
alguns testes realizados com as famílias que ele acompanha, cujo material
genético foi enviado também para um laboratório em Porto, Portugal, e os
envios pagos pelas famílias. Além disso, as respostas que indivíduos dão ao
fato de serem testados geneticamente são bastante heterogêneas, mesmo nos
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

casos em que há a presença de desordens causadas por um único gene (Lock


& Nguyen, 2010, p. 305).

Uma das principais queixas, assim como apontadas por famílias com
histórico de Machado-Joseph (Aureliano, 2015, p. 05), é a demora e dificuldade
de encontrar um diagnóstico, porque muitas vezes, por ser rara, a doença é
desconhecida pelos próprios médicos. Alguns estudos apontam que o
diagnóstico de uma doença rara pode demorar até trinta anos (Black et al,
2015). Por vezes, as pessoas com uma doença rara passam por diversos
outros diagnósticos e terapêuticas que acabam tornando-se ainda mais
prejudiciais aos seus quadros de saúde. Como exemplo, o trabalho de João
Biehl (2008) sobre Catarina, uma mulher com Machado-Joseph, que recebeu
diversos diagnósticos psiquiátricos e foi medicamentalizada de acordo com
esses diagnósticos - ainda que o foco do trabalho dele tenha sido outro.

Pelo menos dois casos me foram relatados em que as dificuldades de


diagnóstico – ou um diagnóstico errôneo e o uso de medicamentos para a
doença então diagnosticada – tiveram efeitos negativos sobre as pessoas
doentes. A mãe de Fernanda e Felipe foi diagnosticada com Lúpus e, portanto,
submetida ao tratamento com medicações pesadas, que a levaram a um grau
de debilidade da saúde. Tal quadro se tornou irreversível, ocasionando sua
morte aos 49 anos de idade. Assim como a mãe, um tio também teve um
diagnóstico incorreto: esclerose múltipla. As outras duas interlocutoras, Beatriz
e Márcia, também me contaram que a mãe delas foi primeiro diagnosticada
com esclerose múltipla, para só então, passado todo um percurso de exames e
consultas, quinze anos depois receber um diagnóstico de cadasil. De forma
similar, a mãe de José também foi diagnosticada com Alzheimer e morreu sem
diagnóstico de cadasil, mas sua história passa a ser reelaborada a partir dos
diagnósticos do próprio José e de seus irmãos.

Mesmo no caso de minha família, a partir do primeiro diagnóstico de


cadasil surgem novas explicações para casos passados. Desde criança,
sempre ouvi histórias confusas sobre como meu avô paterno adoeceu,
começou a perder os movimentos das pernas, a “atrofiar”, e as explicações
eram sempre pouco objetivas, confusas. Às vezes, dizia-se que tinha a ver com
a alimentação, já que se criavam porcos para consumo próprio, além de outros
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

animais, sendo que essa alimentação seria responsável por “colesterol alto”
que levava aos “derrames”. Foi a partir do diagnóstico de um tio, já falecido,
que outros casos, inclusive de meu avô, começaram a fazer sentido. Outros
casos, ainda, não apenas começaram a fazer sentido, como passaram a
“existir”, no sentido de que antes se dava pouca atenção a eles. O diagnóstico
genético deu legitimidade às “desordens” (Lock & Nguyen, 2010) de tal forma
que qualquer outra enfermidade é comumente associada à cadasil.

Vale ressaltar que a mãe de Fernanda e Felipe morreu antes de


receber o diagnóstico de cadasil. A história só é repensada e recontada, com
novos significados, a partir do diagnóstico de Fernanda, cerca de um ano após
a morte da mãe. Fernanda conta que percebeu algo estranho quando, grávida
da primeira filha, aos 21 anos, caminhava pelo shopping e sentiu dormência na
boca e no braço – era um Ataque Isquêmico Transitório (AIT); segundo o
neurologista, uma espécie de “mini-avc” que geralmente não deixa sequelas.
Feita uma ressonância magnética, as alterações nas imagens – lesões na
chamada matéria branca, parte do sistema nervoso central – e a idade de
Fernanda chamaram a atenção do radiologista, que sugeriu possível cadasil no
laudo. É curioso que nem Fernanda nem o neurologista consultado por ela
tinham ouvido falar da doença. A partir disso, Fernanda resolveu fazer o teste
genético que detecta a mutação responsável pela cadasil. Em suas palavras:
“eu queria descobrir o que que tinha, porque na família tava todo mundo tendo
esses negócios de avc, eu comecei a ter sintoma de avc... se me deu uma
sugestão de alguma coisa que eu podia ter, eu queria descobrir o que que era”.
Ao receber o teste positivo, comunicou aos familiares; e, com o tempo, outras
histórias passaram a ser reelaboradas. Como diz Márcia, “começa a clarear as
coisas”.

Quando se descobre uma mutação genética na família e a informa aos


parentes, cria-se também uma situação de responsabilidade sobre o outro, ao
mesmo tempo em que se pode também retirar a chance do outro de optar por
não saber da possibilidade de ter uma doença (Huniche, 2011). Felipe me
contou que, quando Fernanda foi diagnosticada, foi um grande choque para
ele, devido à possibilidade de ele também ter a doença. Rabinow (1999) já
ressaltava a importância do teste preditivo para as negociações relacionadas
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

ao futuro, como em casos de seguro de vida. Felipe resolveu fazer um seguro


de vida antes mesmo de fazer qualquer testagem, e o fator decisivo foi a
possibilidade de ter a doença considerando o diagnóstico da irmã. Márcia me
contou que passou pela equipe de aconselhamento genético e decidiu não
fazer o teste, mas surge uma tensão familiar no momento em que seu filho, já
na segunda década de vida, cogita fazer o teste. A tensão se dá porque o
resultado do teste dele pode ser significativo também para o diagnóstico de
Márcia, mesmo que ela não tenha interesse em saber: caso o filho seja
diagnosticado com cadasil, significa, segundo a literatura biomédica sobre a
característica da mutação genética, que necessariamente ela carrega o gene
mutante e que, portanto, em algum momento da vida, os sintomas devem
aparecer.

Nikolas Rose (2013, p. 158) aponta que “quando uma doença ou


patologia é considerada genética” ela deixa de ser apenas um assunto
individual e passa a ser também familiar. Nesses casos, a doença envolve
também o que ele chama de “responsabilidade genética”, porque “remodela a
prudência e a obrigação em relação ao casamento, ao ter filhos, ao seguimento
de uma carreira e à organização dos próprios negócios financeiros”. Fernanda,
por exemplo, conta que depois do diagnóstico precisou pensar por um tempo
antes de decidir ter outro filho, mas resolveu ter. Ela e o marido conversaram
muito – “não foi assim uma decisão de uma semana nem nada” – e chegaram
à conclusão de que já tinham uma filha e que “essa não vai poder condenar” se
ela “passou o gene”, porque naquele caso ela ainda não sabia da existência da
doença. Sobre ter um segundo filho, ela diz num tom bem-humorado: “aí eu
pensei comigo: a criança vai preferir nascer, se tiver [a doença] viver cinquenta,
sessenta anos, ou vai querer me esganar toda vez que tiver dor de cabeça? Eu
não ia querer matar minha mãe, então vamo ter mais filho”.

As experiências que tanto José como Fernanda tiveram na hora de


receber o diagnóstico – ambos não passaram por aconselhamento genético –
não foram muito diferentes: ambos relataram que a notícia foi dada de maneira
“seca” e que quase nenhuma informação sobre a doença foi disponibilizada,
deixando com que eles mesmos procurassem na internet com o que estavam
lidando. José disse que ficou desesperado quando o médico apenas respondeu
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

que era uma doença rara, e Fernanda relata que chorou muito ao chegar a
casa depois da consulta. Nesse sentido, o aconselhamento genético entra não
só como uma forma de garantir a autonomia das pessoas que recebem alguma
informação genética (Guedez & Diniz, 2009), mas também como forma de
preparar as pessoas para receber um diagnóstico como esse.

O exercício de “filosofia prática” de Annemarie Mol (2002), em que ela


acompanha as práticas envolvidas no “fazer existir” [enacting] a arteriosclerose
e em como os diferentes espaços – a clínica médica, o laboratório, o corpo –
muitas vezes divergem e precisam passar por um processo de coordenação
dos resultados laboratoriais/clínicos/subjetivos para que o diagnóstico seja
efetivado, levou-me a pensar no diagnóstico de cadasil. Para o diagnóstico de
cadasil, são levados em consideração principalmente três aspectos: histórico
de avc na família, histórico da doença, exames clínicos e exames laboratoriais.
Em alguns casos, há divergências entre os diferentes pontos de consideração:
às vezes os exames clínicos não apresentam problemas, às vezes os
laboratoriais apresentam, e assim por diante.

Uma questão que surge dessa reflexão é pensar quais desses critérios
são considerados mais relevantes pelos sujeitos que resolvem fazer os testes
quando os resultados são divergentes. José, por exemplo, considera o
diagnóstico de cadasil somente a partir do histórico familiar e da ressonância
magnética, sem necessitar do teste genético, inclusive porque o preço do teste
é alto e se torna pouco acessível. Além disso, apenas esses dois critérios
foram o suficiente para que ele conseguisse “entrar na perícia” e ficar afastado
do trabalho. Sobre isso, uma outra interlocutora – que, dias depois da primeira
entrevista me escreveu para dizer que preferia não dar continuidade às
conversas e que já tinha manifestado receio de que as pessoas, além do
marido e da irmã, acabassem descobrindo que ela tem a doença – disse: “se
tem focinho de porco, se tem rabo de porco, por que você vai fazer o teste para
descobrir que é porco?”.

Riscos e cuidados

Anne Kavanagh e Dorothy Broom (1998) desenvolvem a discussão de


“risco corporificado” como um risco corporal que é uma doença no presente
e/ou a possibilidade de uma doença no futuro. Esse risco está localizado no
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

corpo (within the body) de pessoas individualmente. Kavanagh e Broom (Idem,


p. 442) seguem afirmando que “risco corporificado [...] impõe suas ameaças de
dentro – uma pessoa tanto tem como é um corpo”. Uma discussão parecida
com essa é feita também por Rose (2013) sob a noção de “risco genético”. Em
outro trabalho (Castiel et al, 2006), os autores convergem com o exemplo ao
afirmarem que estão incluídos como em risco corporificado “indivíduos
portadores de genes anômalos ou pertencentes a famílias onde há ocorrências
de um defeito genético” (Idem, p. 190). Uma mutação genética, como a
responsável pela cadasil, é um exemplo perfeito de risco corporificado, mas
não torna o indivíduo completamente livre de culpa pelo seu adoecimento. Ou
melhor, espera-se que o indivíduo eventualmente fique doente, mas recai sobre
ele a responsabilidade de retardar o aparecimento dos sintomas ou a
progressão da doença.

Nas narrativas dos meus interlocutores, parte dessa responsabilidade


tem aparecido na forma de uma mudança de “estilo de vida”, na
automedicação e em práticas de autocuidado que vão desde prestar atenção
em possíveis sintomas, como esquecimento, assim como realizar testes para
detectar possíveis avcs. Em termos de mudança de estilo de vida, ouvi casos
em que houve uma mudança completa no tipo de alimentação: o tio de
Fernanda e Felipe trocou uma dieta vegetariana por vegana, parou de
consumir produtos industrializados e, segundo meus interlocutores, ele
“recuperou muito bem”. José passou a fazer exercícios físicos, além de tomar
um comprimido de ácido acetilsalicílico por dia para “afinar o sangue” e evitar
ou retardar os avcs.

Como não existe nenhum tratamento específico para a cadasil, há um


processo de medicalização voltado a tratar os sintomas, especialmente as
enxaquecas que são consideradas algumas vezes como incapacitantes. Um
fato interessante é que Fernanda e Felipe são médicos, o que resulta não só
numa linguagem diferente e de certa forma tecnicalizada sobre as experiências
e da própria doença – por exemplo, a forma como falam sobre os sintomas, os
nomes dos medicamentos, dos exames – como também possibilita uma quase
constante vigilância um sobre o outro. Vigilância ainda mais constante no caso
de Felipe, casado também com uma médica. Além disso, há uma certa
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

facilitação na hora de realizar prescrições de medicamentos ou exames. Felipe


diz que, quando ele está sem receitas, a irmã ou a companheira prescrevem.

O fato de estar “em risco” também gera uma série de ansiedades nas
vidas diárias das pessoas que são incluídas nesta classificação. Uma
experiência pessoal: no fim da graduação, escrevendo monografia de
conclusão de curso, estudando para a seleção de mestrado, fazendo uso
excessivo de computador, passei a ter várias crises de enxaqueca – uma delas
durou doze dias. Com frequência também esquecia palavras, objetos e outras
coisas. Possivelmente uma pessoa que não está na classificação de risco de
uma doença que causa demência precoce pode considerar tudo isso apenas
como uma manifestação de stress, mas no meu caso esse conjunto de
“sintomas” acabavam levando a um constante questionamento sobre a doença.
Inclusive, como forma de autocuidado, ainda hoje, sempre que estou com uma
dor de cabeça muito intensa, realizo exercícios que detectam a ocorrência de
algum avc.

Considerações finais

A intenção neste trabalho foi mostrar algumas das questões que tem
aparecido neste início de pesquisa [ainda no primeiro ano] de mestrado e que
serão abordadas de maneira mais aprofundada na dissertação. O que, em
princípio, se pode perceber é que o diagnóstico de cadasil de uma pessoa na
família abre a possibilidade de diversas tensões referentes aos próprios
diagnósticos, modos de organização familiar, questões ligadas à reprodução,
etc. Aqui neste trabalho não entrei na questão das políticas públicas nem
aprofundei sobre os diferentes serviços de saúde que essas famílias utilizam
para fazer acompanhamento da doença, mas essa discussão é um objetivo da
dissertação. Meus interlocutores são todos de classe média, mas com uma
variação significativa de renda. Eles oferecem três tipos de relações com
serviços de saúde a serem explorados: Fernanda e Felipe utilizam
principalmente serviços privados; José utiliza o Sistema Único de Saúde mas
por vezes recorre às clínicas particulares; Márcia e Beatriz fazem o
acompanhamento de seus quadros de saúde e de sua mãe principalmente
através do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, onde há o Serviço de
Genética Médica – hospital público, universitário.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Notas
1 Quero deixar registrado que o desenvolvimento deste trabalho só tem sido
possível graças à condição de bolsista CAPES e ao apoio do INCT Brasil Plural
para o trabalho de campo.
Grupo de Trabalho 04 II Reunião de Antropologia da Saúde

2 Arteriopatia Cerebral está relacionada à doença das artérias, vasos que


transportam sangue oxigenado do coração para o resto do corpo, do cérebro.
Herança autossômica é aquela que não está relacionada aos cromossomos
sexuais, portanto a prevalência independe de sexo biológico. Uma transmissão
dominante significa que o descendente afetado tem pelo menos um progenitor
também afetado. Infartos Subcorticais referem-se à obstrução de artérias, e
conseqüente perda de tecido, na região interna do cérebro. Leucoencefalopatia
está relacionada à doença da chamada massa branca, localizada na região
interna do cérebro.
3 Como recurso retórico, de agora em diante utilizo “cadasil” em letras
minúsculas para amenizar a sensação de urgência e destaque que a caixa-alta
evoca.
4Julie Rutten é médica vinculada ao Departamento de Genética Humana;
Saskia Oberstein é médica vinculada ao Departamento de Genética Clínica.
Ambas fazem parte do corpo de profissionais do Centro Médico da
Universidade de Leiden, Holanda.
5 Silvia Testi é pesquisadora vinculada ao departamento de ciências
neurológicas, biomédicas e dos movimentos, da Universidade de Verona, Itália.
6 Todos os nomes foram alterados para preservar a identidade de meus
interlocutores.
Grupo de Trabalho 5
Políticas públicas de saúde, direitos
reprodutivos e desigualdades
Coordenadoras: Pedro Nascimento (UFPB); Rozeli
Porto (UFRN) e Rita de Cassia Neves (UFRN)
Grupo de Trabalho 5
Políticas públicas de saúde, direitos reprodutivos e
desigualdades
Este GT busca reunir trabalhos que problematizem a forma como os
cruzamentos entre políticas públicas e desigualdades, particularmente de
gênero, classe, raça/etnia se apresentam no dia a dia do Sistema Único de
Saúde (SUS). Os temas que abrangem essa proposta são amplos, mas
gostaríamos de focar em investigações que levem em conta o marco da saúde
reprodutiva e dos direitos reprodutivos, incluindo-se aí questões sobre a
permanência de estereótipos de gênero, pressupostos sexistas e
neomalthusianos no trato de temas ligados à reprodução, contracepção,
sexualidades etc., os quais podem ser articulados transversalmente com a
especificidade étnica ou de raça. O GT ainda tem como proposta identificar
novas tendências de investigação destacando tanto os desafios teórico-
metodológicos que incluem reflexão sobre o acesso a serviços e à
implementação das políticas públicas, às experiências exitosas de trabalho,
dentre outros, tais como os avanços e/ou retrocessos a serem enfrentados
pelos estudos sobre o tema na contemporaneidade. Objetivamos, assim, reunir
trabalhos desenvolvidos a partir de pesquisas qualitativas ou relatos de
experiências que considerem a conexão entre o estabelecimento de diretrizes e
políticas para o SUS associados ao seu desenvolvimento e implementação,
levando em conta a forma como mediadores formais e informais dentre outros
sujeitos específicos, vivenciam a implementação dessa política.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Análise do acesso ao sistema de saúde por populações camponesas negras


Jamila Odeh-Moreira 1
Prof. Doutor Pedro Sadi Monteiro – Orientador 2

Resumo

______________________________________________

Este artigo traz como tema a saúde da população negra camponesa e o acesso
dessa população aos serviços de saúde oferecidos pelo Estado brasileiro. Focou-
se, inicialmente, na história da formação de um campesinato negro e depois na
questão da saúde do negro nos tempos da escravidão até a atualidade. Em
seguida, fez-se uma análise a respeito das políticas públicas direcionadas a essa
questão (saúde da população negra, saúde de comunidades quilombolas) e
também com relação à igualdade e equidade no sistema de serviços de saúde
brasileiro. Como conclusão, o artigo traz reflexões e discussões que podem ser
feitas a partir da realidade atual examinada ao longo do projeto, uma vez que é
fato que ainda há muito o que melhorar, principalmente em relação à equidade
nos serviços de saúde e também ao racismo institucional presente até hoje.
Palavras-Chave: saúde da população negra; equidade em saúde;
campesinato negro.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução
________________________________________________________________

Assim como outras populações historicamente marginalizadas na


sociedade brasileira, quilombolas e outras comunidades negras camponesas têm
sofrido em diversos – se não todos – os setores de sua estrutura. O acesso à
educação, lazer, alimentação, trabalho, saúde, entre outros, apesar de garantido
como direito enquanto cidadãos brasileiros, não acontece na realidade dos
mesmos.
Este trabalho focará na questão específica do acesso à saúde por esses
povos. É importante salientar que a saúde, além de ser de extrema importância
para compreender qualquer população, tem a vantagem de nos indicar, junto a
ela, diversos outros problemas de cunho social presentes na mesma. A partir dos
determinantes sociais da saúde (DSS), pode-se compreender como a saúde e
seu acesso são influenciados pela história, passado, sociabilização, condição
econômica e participação na sociedade nacional (inclusão/exclusão). No caso de
populações historicamente marginalizadas como povos indígenas, negros e
também povos quilombolas, é notório que o processo de exclusão histórico e
longo que sofreram influenciou seu acesso a direitos básicos, hoje assegurados
pela Constituição Brasileira de 1988, como educação e a saúde. Nota-se,
inclusive, que no caso de doenças como a poliomielite, sua forma clínica foi
erradicada no Brasil, em 1994. A obrigatoriedade de imunização de doenças
imunopreveníveis que constam no calendário básico de vacinação tem sido fator
decisivo no controle das doenças, como a tuberculose, sarampo, poliomilelite,
tétano entre outras. Ademais, doenças como a hipertensão e diabetes, são duas
das doenças mais comuns que afetam as populações negras, enquanto que na
sociedade, de uma forma geral, o acesso ao sistema de saúde geralmente é mais
fácil para o diagnóstico e tratamento dos pacientes. Um bom exemplo é o da
comunidade quilombola Mola, localizada no Pará, que apresenta índices
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

elevados de doenças crônicas. Constatou-se que “87,08% dos adultos apresenta


problemas crônicos relacionados ao sistema digestivo, 50,9% apresentaram
doenças de pele, 48,08% apresentaram algum nível de pré-hipertensão ou
hipertensão arterial e 43,63% tem afecções oftalmológicas” 1¹. Esses indicadores
são demasiadamente elevados e revelam uma grande discrepância em relação
aos indicadores da população brasileira no geral. É importante fazer a
ligação entre o processo de escravidão e seus desdobramentos com a atual
situação saúde da população negra. Assim, o estudo do acesso da população
negra camponesa aos serviços de saúde torna-se de extrema importância. Não
apenas é necessário que se garanta o acesso ao Sistema Único de Saúde, como
previsto pela lei, mas também que os problemas de saúde causados pela
exclusão histórica desses povos sejam combatidos. Os indicadores de doenças
e anomalias devem ser reduzidos e combatidos, assim como vulnerabilidade
desses povos sejam trabalhados de forma a almejar uma melhor condição de vida
as populações em referência.

Desenvolvimento
______________________________________________________

O negro camponês brasileiro

A formação do campesinato negro no Brasil está intimamente ligada ao


sistema escravocrata, ao movimento de abolição e também à formação dos
chamados quilombos. Para analisar esse processo longo e complexo, devemos
iniciar pensando nos entraves e desafios encontrados no processo de
transformação do negro escravizado por séculos em camponês. A economia no
período colonial, escravista, ao focar e predominar a monocultura de exportação,
acabou por impedir o nascer e crescer de uma cultura de subsistência. Além
disso, trouxe como resultado, também, a escassez de alimentos e consequente
miséria do trabalhador escravizado. Pensando dentro da lógica mercantilista que

1 TAVARES DE MELO, Maíra Fernanda; PEREIRA DA SILVA, Hilton. Doenças Crônicas e os


Determinantes Sociais da Saúde em comunidades quilombolas do Pará, Amazônia, Brasil.
Revista da ABPN v.7, n.16. 2015.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

utilizava o escravismo, essa cultura de subsistência não era significante e nem


digna de se promover. Assim, não era incentivada e nem permitida pelos
senhores de escravos, permitindo aos trabalhadores apenas os dias santos e
domingos para cultivarem pedaços pequenos e que não estavam em boas
condições de terra. No pensamento do senhor, o investimento que devia ser feito
nessa atividade desgastaria o escravizado e tiraria dele o tempo de cultivo nas
grandes lavouras de exportação. Temos que ter em mente, também, que o
trabalhador, vivendo em condições desumanas e com alimentação pobre e
insuficiente, além do duro esforço colocado no trabalho nos outros dias, pouco
tinha para desenvolver algum tipo de cultivo. Mesmo assim, muitos se dedicavam
à essa atividade quando lhes permitido. Podemos listar, portanto, o trabalho
forçado e praticamente ininterrupto, a apropriação latifundiária, o fato do
escravizado ser considerado mero objeto descartável e substituível, além do
reduzido tempo e disposição para o trabalho próprio como fatores que
contribuíram que a não consolidação de um campesinato negro na época anterior
à abolição no Brasil. No entanto, isso não
significou que essa atividade não tenha existido nesse período, em pequena
escala, podendo ser descrito como um protocampesinato negro. Portanto,
núcleos camponeses foram formados em decorrência do sistema escravista na
época, como uma complementação do mesmo, porém criado dentro da exclusão
inerente e também de dominação. Com o desenvolvimento e crescimento do
movimento abolicionista, muitos dos que lutavam pelos direitos dos escravizados,
como Joaquim Nabuco, passaram a defender, além da libertação da pessoa,
também a abolição do latifúndio, que era visto como um complemento inseparável
da escravidão. Constituiu-se, assim, um projeto abolicionista de democratização
do solo, como apontado por BRAZIL (2006), e que teria como objetivo a
sobrevivência e integração do negro na sociedade brasileira. No entanto, foi
barrada pela Lei de Terras estabelecida em 1850 e que garantia a continuidade
do latifúndio dentro do monopólio do poder da classe hegemônica escravista,
sendo ele um mecanismo de impedimento de acesso à terra pelos trabalhadores,
mesmo que livres. Com o passar do tempo, os trabalhadores que
ocupavam pequenas terras ao redor dos latifúndios e também os recém libertos
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

foram sendo expulsos do território por capangas, junto com também o avanço
tecnológico, que dispensou muito do trabalho que era realizado pelos
camponeses. É importante apontar que os camponeses tinham poucos laços
fortes com a terra, uma vez que eram itinerantes e migrantes no território, não
havendo a possibilidade de legalização e titulação das terras que exploravam.
Além disso, muitos voltaram a trabalhar nas lavouras com os antigos senhores e,
mesmo recebendo salário ou algum pagamento, o mesmo se mostrava
insuficiente, suprindo apenas as necessidades mais básicas e enquadrando,
novamente, o negro nas condições e imposições do capitalismo.
Podemos dizer que esse sistema branco, europeu, capitalista
foi o que impediu a formação e consolidação concreta de uma classe camponesa
de negros antes e durante a escravidão. E nos anos seguintes, mesmo com o
advento da República, a proposta de reforma fundiária foi barrada pelos
conservadores e cafeicultores que haviam se convertido ao movimento e que
entregaram o poder para as oligarquias agrárias.
Devemos analisar, também, o caso dos quilombos e quais as questões
envolvidas na transformação do quilombola em camponês brasileiro. Sabemos
que, durante a escravidão, haviam fugas de cativos e formações dos chamados
quilombos, que eram núcleos de resistência à ao sistema escravista e abrigavam
negros fugidos, índios e brancos marginalizados. Esses núcleos agrícolas
funcionavam sob um sistema de subsistência economicamente auto-suficiente no
campo,

“No interior das matas os quilombolas exploravam o


extrativismo vegetal e nas áreas de mineração faziam a extração
clandestina dos veios. No entanto havia aldeamento de fugitivos
dedicados ao cultivo de víveres, como ‘grandes plantações de milho,
feijão, mandiocas, batatas, cará e outras raízes, assim como muitas
bananas, ananazes, abóbora, fumo e algodão de que faziam panos
grossos que se cobriam’.(Correspondências/Governadores de MT-
1777-1805)” (BRAZIL, 2006)

Como no caso das pequenas produções de negros escravizados e livres,


os quilombos sofriam com a constante perseguição e falta de relação de
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

identidade com a terra, uma vez que também eram itinerantes e não podiam
depender da mesma terra sempre, tendo vínculos pouco profundos com a
mesma. Por razões políticas, o quilombola não se apegava à terra, sendo a
mesma apenas local de trabalho e não havendo uma perspectiva com a posse da
mesma. Considerando essas questões, é possível afirmar que a formação de um
campesinato negro originário dos quilombos também não foi possibilitada durante
o período escravista. Após a abolição da escravidão,
negros libertos tiveram acesso à terra por vários meios, sendo os mais comuns
por doação de terras de seus senhores ou entidades religiosas, além de ocupação
em locais considerados como terras devolutas em fazendas abandonadas. Além
desses, como vimos, negros libertos e livres também formaram pequenas
comunidades agrícolas como caboclos e plantadores rurais, junto aos quilombos
de cativos fugidos. O recente liberalismo e a recém-proclamada República nada
ofereciam a esses grupos negros rurais, por impossibilitarem a aquisição e
propriedade de terra, através de mecanismos como a Lei das Terras. Além disso,
outros mecanismos como tarifas, auxílios e a imigração europeia paga
consolidaram o objetivo de enriquecer e manter a antiga nobreza agrícola
brasileira, auxiliados pela falta de laços familiares e o caráter breve e incerto das
ocupações de negros camponeses.
O campesinato negro, assim, nasce já invisibilizado pelos grandes
latifúndios e à sombra do campesinato imigrante europeu, formando um grande
exército de trabalhadores constituído de ex-escravizados, negros, mulatos, índios
e mestiços, mantidos marginalizados pela população. Com a Marcha para o
Oeste, durante o governo Vargas, terras incluídas dentro do projeto de
interiorização do país, em sua maioria populada pelos negros, sofre grande
pressão fundiária e, sem conseguir se organizar politicamente, se mantém à
margem da disputa pelo poder.

A história da saúde do negro no Brasil

Para analisar o processo de formação de uma saúde do negro no Brasil,


me baseei nas políticas públicas específicas voltadas para esse grupo,
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

envolvendo tanto a Política Nacional de Saúde à População Negra como a


Política de Saúde e Ambiente para as Populações do Campo, da Floresta e das
Águas, que inclui as populações negras rurais e quilombos, além de artigos e
textos científicos que contemplassem o assunto, em especial os de Ângela Porto
e de Isabel Cristina Fonseca da Cruz.
Em O Negro Brasileiro e a Saúde – ontem, hoje e amanhã (1993), Cruz faz
uma análise sobre o processo saúde-doença observado entre a população negra
do país, buscando o seu início no sequestro de negros na África. Esse tema de
estudo, relativo à saúde da população negra africana escravizada, é de extrema
importância para se poder compreender como a saúde dessa população é
específica e necessita e de uma atenção específica voltada para ela. Devemos
pensar em como o processo de escravidão influenciou e é responsável pela atual
condição de miséria e desigualdade em que hoje se situa a maior parte da
população negra do país e também pela falta de informação e escassez de
material produzido com a temática da saúde negra, uma vez que percebemos a
força e permanência, até hoje, da ideologia da escravidão, que apaga e ignora a
história e condição do negro. A autora analisa o conceito de saúde a partir de sua
definição dentro das classes camponesas e operariado urbano, que é o de
capacidade de trabalho, e o usa para discutir a relação entre saúde-doença com
trabalho no caso de sua aplicação no sistema escravista. A citação de Tomazi
(1986) traz uma importante reflexão:

“As causas determinantes da saúde e da doença coletiva são, em termos


gerais, as maneiras como o homem entra em contato com a natureza,
isto é, como se apropria dela e como, nesse processo a transforma. O
processo saúde-doença é um fenômeno eminentemente social e
mutável, cujas manifestações dependem direta ou indiretamente da
estrutura social. As diferenças observadas entre as classes sociais na
maneira de adoecer e morrer têm, em última instância, pouco a ver com
os serviços médicos instalados e muita relação com a organização da
sociedade e com o papel que cada classe desempenha nela” (pg.32)

No sistema capitalista escravista, o negro africano era apenas um produto,


um instrumento de trabalho que falava, mas não era humano. Retirado da sua
terra e transportado para outro continente para ser usado com seu trabalho
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

compulsório, a sua saúde também foi enormemente afetada por esse sistema,
tanto os que foram escravizados quanto os que permaneceram na África, e é
possível detectar isso em sua descendência. Ainda em seu artigo, Cruz (1993)
traz informações que comprovam o fato: desde a caça e o aprisionamento do
escravizado até os anos de trabalho compulsório, o africano escravizado foi vítima
de diversos males e doenças, não apenas físicas, mas também mentais e
emocionais, que resultaram em uma série de deficits em seu organismo. A “caça
e aprisionamento” dos africanos escravizados afetava sua saúde mental
grandemente ao perder sua liberdade, causando uma angústia espiritual (North
American Nursing Diagnosis Association, 1989); o transporte, feito em navios
negreiros, causava problemas de saúde de todos os tipos, como de nutrição,
padrão respiratório e grande potência para infecções, que eram facilmente
passadas uns aos outros. Isso além de diversos outros problemas, como de
comunicação, crescimento e nutrição, mobilidade física, distúrbio no padrão de
sono, desenvolvimento mental e físico. Não podemos esquecer e nem ignorar os
castigos e tortura institucionalizada pelo sistema escravista, onde trabalho e
castigo não se contrapunham, pelo contrário, um complementava o outro. Nas
senzalas e nos engenhos, as condições de vida e saúde dos negros continuava
sendo deplorável e degradante, sendo a vida média de um escravo era estimada
em sete anos. Diante disso, fica claro e inegável como o sistema escravista
influenciou e causou inúmeras doenças e predisposições na população
escravizada, como aponta CRUZ (1993).

“Quatro séculos de escravidão afetaram a saúde da raça negra e de sua


descendência. O racismo contra o negro teve naquelas estruturas suas
raízes e permanece mesmo com a instituição do trabalho
juridicamente livre. Assim sendo, cinco séculos de ideologia da
escravidão ainda afetam a saúde do negro e o seu
desenvolvimento social, em particular, e da sociedade brasileira como
um todo.; Pode-se inferir que a discriminação racial (herança dos quatro
séculos de uma estrutura escravocrata e dos cinco séculos de ideologia
correspondente) é responsável na atualidade pela continuidade das
agressões à saúde dos negros, tornando os seus problemas de saúde
crônicos, complexos e, vale ressaltar, desconhecidos para os
profissionais que pretendem tratá-los. “ (pg. 323 - 24)
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Políticas Públicas e Inequidades na Saúde

Segundo artigo de VARGA e BATISTA (2016), racismo institucional é


definido como

“Fracasso coletivo de uma organização para prover um serviço


apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor, cultura
ou origem étnica. Ele
pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos
que totalizam em discriminação por preconceito involuntário, ignorância,
negligência e estereotipação racista, que causa desvantagens às
pessoas de minorias étnicas (López, 2012, p. 127).

A partir dessa definição, podemos pensar como o racismo e sua


institucionalização e presença nos serviços de saúde afetam o mesmo. A
discriminação racial pode ser observada no acesso aos serviços, mas também no
próprio atendimento e resultado/exames. O racismo é um determinante social em
saúde e tem grande peso quando se trata de saúde da população negra.
Na saúde, existe um termo, o de equidade em saúde, que
deve ser analisado aqui. Apesar de ser um termo que é cada vez mais usado
dentro do vocabulário referente à saúde e serviços, equidade em saúde é
relativamente novo, e não aparece nem na Constituição de 1988, que assegura
“acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde”, nem na lei 8.080/90,
que trata especificamente da “igualdade de assistência à saúde, sem
preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”, sendo um dos princípios que
regem o Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a formuladora do termo,
Margaret Whitehead, “Iniquidades em saúde referem-se a diferenças
desnecessárias e evitáveis e que são ao mesmo tempo consideradas injustas e
indesejáveis. O termo iniquidade tem, assim, uma dimensão ética e social”
(Whitehead, 1992). Para compreender o termo e seu uso dentro dos
processos de saúde, é necessário entender a relação que estabelece entre
igualdade e justiça. Muito mais que apenas uma igualdade nos serviços e seu
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

acesso, é imprescindível que haja uma justiça quanto à aplicação dos mesmos.
Por exemplo, os impostos cobrados aos cidadãos não são igualitários, mas são
justos, uma vez que relaciona a tributação de acordo com a capacidade de
pagamento do indivíduo. Enquanto igualdade/desigualdade é mensurável e
podem ser medidos, equidade/iniquidade são conceitos dotados de significados
políticos e levam em monta a moral com a justiça social. Considerando, portanto,
o fato de as pessoas serem diversas e, principalmente olhando o caso de minorias
em nossa sociedade, o termo de equidade surge para garantir, muito além de um
tratamento homogêneo, um tratamento diferenciado, uma vez que as
necessidades e condições dos indivíduos são diferentes.

“Se o SUS oferecesse exatamente o mesmo atendimento para todas as


pessoas, da mesma maneira, em todos os lugares, estaria
provavelmente oferecendo coisas desnecessárias para alguns, deixando
de atender às necessidades de outros, mantendo as desigualdades”
(Ministério da Saúde, 2000)

A equidade vai depender do referencial feito e comparado. Na saúde, a


equidade em seus serviços é em relação a uma equidade horizontal, sendo ela
uma igualdade entre iguais. Resumindo, é a igualdade na utilização dos serviços
de saúde considerando grupos sociais para certas necessidades de saúde que
todos têm. A equidade em saúde pode ser medida em duas instâncias: condições
de saúde (risco de adoecer e morrer) e no acesso e utilização dos serviços de
saúde (possibilidades de consumo de serviços nos diversos graus de
complexidade).

“As condições de saúde de uma população estão fortemente associadas


ao padrão de desigualdades sociais existentes na sociedade. Já
as desigualdades sociais no acesso e utilização de serviços de saúde
são expressão direta das características do sistema de
saúde. A disponibilidade de serviços e de equipamentos
diagnósticos e terapêuticos, a sua distribuição geográfica, os
mecanismos de financiamento dos serviços e a sua
organização representam características do sistema que podem
facilitar ou dificultar o acesso aos serviços de saúde. Modificações nas
características do sistema de saúde alteram diretamente as
desigualdades sociais no acesso e no uso, mas
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

não são capazes de mudar por si só as desigualdades sociais nas


condições de saúde entre os grupos sociais” (Travassos & Castro, 2008).

Assim, as políticas públicas específicas, equitativas, são um meio de se


procurar alcançar a igualdade na saúde. Seriam como se uma fase intermediária
para se chegar ao ideal, que seria a equidade de oportunidades e condições entre
os membros da população, no entanto sabemos que essa é uma visão utópica,
não tirando a importância e necessidade absoluta dessas políticas. Mesmo
atingindo-se essa igualdade utópica, as políticas ainda seriam necessárias, pelos
critérios de justiça – as pessoas sempre serão únicas e terão necessidades
diferentes. Em “Políticas de Promoção da
Equidade em Saúde” (2013), da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
do Ministério da Saúde do Brasil, o Estado reconhece e assume não apenas as
desigualdades, mas também a presença do racismo institucional nos serviços de
saúde no Brasil. Com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais e raciais do
país, tanto o Ministério quanto a própria gestão do SUS têm implementado as
chamadas políticas de promoção da equidade, querendo diminuir as
vulnerabilidades resultantes de determinantes sociais em específicos grupos
populacionais. Apesar de não
serem as únicas, as de nosso interesse são: Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra, de 2009 e a Política Nacional de Saúdes Integral das
Populações do Campo e da Floresta, instituída em 2011. A Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra, PNSIPN – Portaria nº 992 de 13 de maio de
2009 surgiu diante da constatação de que existe racismo no Brasil e de que atinge
a população negra em diversos setores da sociedade, os colocando em
desvantagem e inferior acesso aos benefícios concedidos como direitos, como
por exemplo a saúde. Neste setor, observamos que, diante das desigualdades
presentes na sociedade brasileira, as mesmas possuem reflexos que se
manifestam em dados epidemiológicos que confirmam uma diminuição tanto na
expectativa quanto qualidade de vida da população negra brasileira. Assim, a
PNSIPN tem como objetivo maior
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

“Garantir a equidade na efetivação do direito humano à saúde da


população negra em seus aspectos de promoção, prevenção, atenção,
tratamento e recuperação de doenças e agravos transmissíveis e não-
transmissíveis, incluindo aqueles de maior prevalência nesse segmento
populacional. ” (pg.07)

Citando doenças que comprovam essa maior prevalência na população


negra, como a doença falciforme, miomatose, diabetes – tipo 2, entre várias
outras, a política visa poder contribuir para um melhor e mais justo e efetivo
tratamento dessa população. Esse processo se dá por meio de várias estratégias
adotadas pelo SUS e pelo Ministério da Saúde, como incluir o tema de racismo e
saúde em seus programas de educação permanente dos trabalhadores e do
controle social da saúde, além do desenvolvimento de processos de informação
e comunicação que de fato desconstruam os preconceitos e diminuam as
vulnerabilidades da população negra, além de permitir a maior participação do
movimento social negro nos diversos setores que o dizem respeito.
A outra política de promoção de equidade em saúde que nos interessa aqui
é a Política de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta
(PNSIPCF). Essa política é importante e deve ser analisada nesse trabalho por
contemplar comunidades remanescentes de quilombos assim como outras
comunidades tradicionais, incluindo aqui a população camponesa negra.
Instituída em 2011, a política tem como principais diretrizes a diminuição dos
riscos à saúdes causadas por processos de trabalho e tecnologias agrícolas, além
de melhorar o nível de saúde e de qualidade de vida dessas populações
específicas por meio do acesso aos serviços de saúde públicos. Enfatiza-se a
necessidade de a própria gestão do SUS considerar a grande diversidade e
dinâmicas diferentes que se encontram nessas populações, como suas formas
organizacionais de comunidade, aspectos culturais e ambientais, dentre outros,
que influenciam e impactam a saúde dos membros dessas populações.

Conclusões
_____________________________________________________
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

A conclusão que podemos fazer, a partir da revisão crítica da história e


políticas públicas, é que ainda falta, e muito, para que atinjamos não apenas uma
igualdade mas uma equidade no acesso a serviços de saúde pela população
negra do Brasil. Politicas públicas exclusivas são um importante passo mas não
resolvem o problema sozinhas, além de terem vários objetivos e ações que
devem ser todos implementados para a política fazer sentido e fazer a diferença.

Apesar do fato de políticas públicas serem elaboradas e, as vezes,


conseguirem realmente amenizar as desigualdades, existe a necessidade de que
elas sejam levadas a sério e serem realmente aplicadas nas realidades da
população-alvo. Além disso, é notório que os resultados não são alcançados
imediatamente, há uma demora até que apresentem os efeitos desejados. O
racismo no Brasil está tão intrinsecamente firmado no sistema que sempre será
um problema de desigualdade em sua população, majoritariamente negra ou
miscigenada. Assim, o racismo deve ser tratado com mais firmeza e seriedade.
Politicas públicas amenizam mas devem ser realmente aplicadas e demoram a
apresentar efeitos concretos. Pela pesquisa, é possível afirmar que populações
negras em geral se encontram em estado de vulnerabilidade, não só na questão
de saúde mas também no acesso aos principais direitos civis. No caso de
populações camponesas negras, a vulnerabilidade aumenta ainda mais, por
serem considerados uma realidade que não é a brasileira, quando na verdade
são o maior retrato da mesma.
As desigualdades relativas a negros no Brasil é histórica e, como vimos, é
fruto de um longo processo de exclusão e inferiorização. Se, ao trazer africanos
que foram escravizados ao país, o processo de escravidão, não apenas no
transporte, mas também durante os três séculos que a mesma durou, debilitou
esses escravizados em todos os níveis de saúde, após o término desse período,
perpetuou-se essas desigualdades dentro da sociedade brasileira. Isso resultou
em diversos problemas de saúde específicos à população negra e seus
descendentes, mas também uma maior vulnerabilidade para certas doenças e
problemas de saúde. Além disso, temos que considerar que o processo histórico
da escravidão também condicionou a população negra às piores e mais baixas
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

condições de vida, resultando, também, numa maior vulnerabilidade na questão


de saúde. Também influencia, atualmente, no acesso e utilização de serviços de
saúde, causando um ciclo vicioso que prende negros e pobres – pobres e negros
numa situação desfavorável em comparação ao resto da sociedade brasileira.
Torna-se um objetivo imprescindível quebrar esse ciclo vicioso e oferecer outras
oportunidades e condições.

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________________________________________________

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Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Da Gestão da Escassez: uma etnografia sobre a “crise” e a


“judicialização” da saúde na cidade do Rio de Janeiro

Lucas Freire 1

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo principal discutir como vem se
construindo a ideia de “crise de saúde pública” no Rio de Janeiro, especialmente
no que diz respeito ao fenômeno da “judicialização da saúde”, a partir de uma
etnografia que vem sendo realizada na Câmara de Resolução de Litígios de
Saúde (CRLS). Fundada em setembro de 2013, a principal missão da instituição
é oferecer “resoluções administrativas” para demandas relacionadas à saúde, de
modo a reduzir tanto o tempo quanto os custos para solucionar judicialmente tais
questões. Busco refletir sobre o papel assumido por membros do Poder
Judiciário – em especial aqueles ligados à Defensoria Pública – em um contexto
que é caracterizado pela “escassez de recursos” e pela “crise político-
institucional”. Tenho intenção, ainda, de refletir sobre o papel institucional da
CRLS na gestão das tensões que perpassam o fenômeno da “judicialização da
saúde”, uma vez que o litígio em saúde conforma uma arena em que atores de
distintos setores da Sociedade Civil, do Judiciário, do Executivo e do Legislativo
disputam interesses e estabelecem alianças.

Palavras-chave: Judicialização da Saúde; Crise; Gestão Pública

1
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ)
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução
O fenômeno conhecido como “judicialização da saúde” é relativamente
recente no cenário político institucional brasileiro. Pautados na garantia do
“direito à saúde” preconizado na Constituição Federal de 1988, profissionais
ligados a Organizações Não Governamentais (ONGs) especializadas em
advocacy no campo do HIV-Aids levaram aos tribunais brasileiros os primeiros
casos de demandas por medicamentos antirretrovirais. Em algumas décadas,
esse tipo de ação se espraiou para movimentos de familiares e pacientes
acometidos por outras doenças crônicas e/ou de tratamentos de alto custo,
muitas vezes impulsionados e financiados por laboratórios farmacêuticos que
visavam utilizar a legislação brasileira em saúde para garantir a consolidação de
um mercado para seus insumos (Biehl e Petryna, 2013).
Como destacado por especialistas da saúde coletiva, da gestão pública,
do direito e de outras áreas do conhecimento correlacionadas, a crescente
judicialização de demandas no setor da saúde representa um “desafio
administrativo e fiscal” para a saúde pública no país, uma vez que o fenômeno
tem um enorme potencial de acirrar ainda mais as desigualdades na prestação
de serviços de saúde (Ferraz, 2009). Além disso, como discute Pepe et al.
(2010), o acesso a medicamentos financiados com dinheiro público via
judicialização pode causar desequilíbrios nas políticas de assistência
farmacêutica do Sistema Único de Saúde (SUS) ao fazer com que a alocação de
recursos se dê de forma distinta do planejamento orçamentário original.
Nesse cenário, as disputas entre os diversos atores são inúmeras: de um
lado, os gestores públicos do SUS acusam membros do Judiciário de
extrapolarem suas funções ao influir diretamente na distribuição dos recursos
destinados à saúde pública; do outro, juízes, promotores, defensores públicos
etc. questionam a eficiência dos administradores em alocar corretamente tais
recursos e tomam para si a missão de assegurar a efetivação dos direitos
fundamentais prestacionais (Pereira, 2015).
No contexto atual, segundo dados do CNJ, no Rio de Janeiro, os
processos judiciais envolvendo demandas de saúde saltaram de 12.208 casos
em 2007 para 29.970 processos em 2014. O progressivo aumento no número de
processos e as constantes tensões entre distintos órgãos do poder público fez
com que fosse criada a Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS), uma
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

instituição que surge da parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado, as


Procuradorias Gerais do Município e do Estado, as Defensorias Públicas do
Estado e da União e as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde. Fundada em
setembro de 2013, o principal objetivo da CRLS é oferecer “soluções
administrativas” para demandas relacionadas à saúde, de modo a reduzir tanto
o tempo quanto os custos para solucionar judicialmente tais questões.
Desde o início, os números apresentados pela coordenação da instituição
refletem o “sucesso” da iniciativa. Já nos primeiros 70 dias de funcionamento, foi
anunciado que o número de novos processos foi reduzido em 38%. Após um ano
de funcionamento, foi constatado que 60% das demandas apresentadas pelos
usuários do serviço são relativas ao acesso a medicamentos. Atualmente, desde
que a “crise da saúde pública no Rio de Janeiro” vem se configurando enquanto
tal, novas demandas e situações têm se colocado no cotidiano da CRLS. Se
antes os casos mais complexos de pedidos de medicamentos diziam respeito a
fármacos não incluídos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
(RENAME), atualmente se tornaram também comuns os casos de processos
para acesso a medicamentos que estão em falta devido problemas na
distribuição de remédios que fazem parte de políticas nacionais de saúde
consolidadas, como é o caso do fornecimento de medicamentos e outros
insumos para o tratamento de diabetes mellitus.
Assim, é de suma importância destacar que as noções de “falta”,
“escassez” e “crise” não são tomadas aqui como dadas e não possuem um
significado único. Tais ideias são fabricadas e utilizadas contextualmente para
fins políticos e administrativos específicos. Ou seja, a “retórica da crise” é capaz
de mobilizar um determinado “ritmo de gestão”, fazendo com que determinados
processos sejam interrompidos – tais como a expansão de políticas de saúde –,
e com que outros sejam acelerados – como por exemplo, a reforma da política
de “farmácia popular” do governo federal.

Um breve panorama da CRLS


A Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) é um órgão estatal
fruto da parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ), as Procuradorias
Gerais do Município e do Estado (PGM e PGE), as Defensorias Públicas do
Estado e da União (DPE e DPU), as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

(SES e SMS) e o Ministério da Saúde (MS). Localizada no Centro da cidade do


Rio de Janeiro, a instituição ocupa um anexo de três andares de um prédio da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ).
Muito resumidamente, a Câmara foi fundada em setembro de 2013 com
o objetivo de buscar “soluções administrativas” para qualquer demanda na área
de saúde e assim evitar a judicialização, ou, como veiculado em alguns portais
de notícias em reportagens de 2013 sobre a criação da câmara, a função da
instituição é resolver as demandas antes que os pacientes decidam “entrar na
justiça”. Nesse sentido, a CRLS assume uma espécie de papel de mediação e
de gestão de questões jurídicas envolvendo o “direito à saúde” através de uma
atuação “extrajudicial” que preza pela solução de litígios de maneira
“consensual” e “conciliadora”.
Para que o “atendimento inicial” possa ser realizado, é preciso que o
assistido 2 ou o seu representante apresente um determinado conjunto de
documentos, que servirão para legitimar o que foi demandado. Assim, a pessoa
precisa levar a carteira de identidade, CPF, comprovante de residência,
comprovante de renda, receita e laudo médico emitidos por profissionais
habilitados, de preferência vinculados ao SUS. Quase todos esses documentos
são considerados indispensáveis para que o atendimento seja realizado. O CPF
é fundamental para que o cadastro do assistido seja feito no sistema de
gerenciamento interno da CRLS. O comprovante de residência é necessário
para que a pessoa prove que é residente do município do Rio de Janeiro, uma
vez que a CRLS se limita a atender apenas moradores da cidade. A receita, a
guia de referência, o laudo médico e outros documentos emitidos por
profissionais de saúde são indispensáveis para a análise das solicitações.
A CRLS é composta de quatro setores: triagem, atendimento, análise
técnica e retorno. Esses setores compõem também o caminho percorrido pela
demanda dos assistidos no interior da instituição. É curioso notar como se dá a
organização do espaço físico da Câmara, pois chama atenção o fato de que as
demandas literalmente “sobem” e “descem” de acordo com seu andamento,

2
Apesar da CRLS ser uma instituição composta por funcionários oriundos de distintos órgãos e
setores governamentais, as pessoas que procuram seus serviços são chamadas de “assistidos”,
categoria que designa os sujeitos que recebem assistência da Defensoria Pública no Rio de
Janeiro.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

sendo a triagem feita no subsolo, o atendimento no primeiro andar, a análise


técnica no segundo andar e o retorno novamente no primeiro andar.

Algumas cenas
Trago aqui as narrativas de alguns casos que nos permitem visualizar de
que modo a possibilidade da judicialização dos casos é acionada pelos
profissionais da CRLS na tentativa de iluminar as questões que pretendo abordar
ao longo do texto.
O filho de Bruno 3 compareceu a CRLS no início do mês de junho de 2017
alegando que seu pai estava aguardando a marcação de uma consulta em
urologia há muito tempo. Após passar pela triagem e pelo atendimento, os
documentos do assistido foram encaminhados para o setor de análise técnica da
CRLS. No setor de análise técnica, um dos pareceristas verificou que a
solicitação havia sido inserida pelo profissional de saúde que acompanha o
quadro de Bruno no Sistema Nacional de Regulação (SISREG) em dezembro de
2016 com risco amarelo 4 e que, portanto, o prazo para a autorização do pedido
e marcação da consulta já estava ultrapassado há bastante tempo. Diante disso,
o analista da CRLS entrou em contato com a Central de Regulação Unificada
(REUNI-RJ), que solicitou que os documentos de Bruno fossem encaminhados
por e-mail. Em seu parecer, o técnico solicita uma posição da REUNI em um
prazo de 7 dias, caso contrário o caso será encaminhado para a Defensoria
Pública para que seja judicializado.
A representante de João compareceu a CRLS pela primeira vez no início
do mês de julho de 2017 informando que o assistido estava aguardando há muito
tempo a realização de um procedimento de cateterismo cardíaco. João tem 66
anos e mora na zona Oeste do Rio, apresenta quadro de cardiopatia isquêmica,
pequenas anginas e também é portador de Diabetes Melitus tipo II. Nessa
ocasião, foi feito o contato com o Núcleo Interno de Regulação (NIR) da unidade

3
Como de praxe em pesquisas antropológicas, os nomes aqui citados são pseudônimos
utilizados para proteger a identidade dos interlocutores.
4
A tabela de classificação de risco do SISREG para regulação ambulatorial está organizada por
cores, do seguinte modo:
Vermelho = até 30 dias para o atendimento
Amarelo = até 90 dias para o atendimento
Verde = até 180 dias para o atendimento
Azul = atendimento eletivo / mais de 180 dias para o atendimento
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

de saúde que atende o paciente e foi informado que o material necessário para
a realização do procedimento ainda estava em fase de licitação. Diante disso, foi
solicitado um prazo de 7 dias para que a instituição se posicionasse em relação
ao caso. No final do mês de julho, a representante compareceu novamente a
CRLS para informar que a situação ainda não havia sido resolvida. Em consulta
ao SER, foi verificado que o pedido do paciente foi inserido em meados de março
de 2017 com risco vermelho e que ele aguarda em fila desde então. Uma das
pareceristas da CRLS entrou em contato com o setor de cardiologia do SER e
foi informada por uma médica que a regulação não está sendo feita porque não
há material para a realização do procedimento e nem houve repasse de verba
para a compra dos mesmos. A profissional da Câmara contestou alegando que
o paciente era de risco vermelho, ao passo que a médica respondeu que há mais
de 100 pessoas na mesma situação que João na frente dele na fila e que
realmente não há vagas nesse momento. Diante disso, o caso de João foi
encaminhado para a Defensoria Pública e o parecer informou que foram feitas
tentativas de resolução administrativa sem sucesso.
O representante de Geraldo compareceu a CRLS em junho de 2017
solicitando fraldas geriátricas e bolsas coletoras de fezes. Geraldo tem 59 anos
e sofre de incontinência fecal. O parecerista da Câmara explicou que as bolsas
coletoras não fazem parte da lista oficial de insumos dispensados, mas que seria
possível tentar uma solução administrativa para o caso, uma vez que as bolsas
são amplamente utilizadas nas internações dos hospitais. Ele elaborou um
parecer a ser encaminhado para a UBS de referência do assistido solicitando
que a instituição se articule com os hospitais públicos e solicite a transferência
de bolsas coletoras para a unidade, para que a unidade possa fornecer ao
paciente. Ele informa que caso essa articulação não seja possível, a UBS deve
enviar um relatório a ser enviado para a Defensoria Pública detalhando os
motivos da falha na articulação interinstitucional. O parecerista solicitou também
a revisão da quantidade de fraldas solicitadas, tendo em vista que o número foi
considerado excessivo diante da constante falta de insumos nas instituições 5.

5
O funcionário da CRLS em questão me informou que “antigamente” – isto é, antes da
instauração da “crise” – não havia questionamento da quantidade de fraldas solicitadas, mas
que atualmente há um limite de 4 fraldas diárias por paciente.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

A filha de Jorge chegou na CRLS pela primeira vez em maio de 2017. Ela
alegou que seu pai tem 72 anos e aguarda a realização de uma cirurgia para
tratar de uma hérnia inguinal desde agosto de 2016. Na época em que o pedido
foi inserido no Sistema de Regulação, Jorge foi classificado como risco amarelo.
Entretanto, sua família foi informada que não havia material no hospital para a
realização do procedimento e que eles deveriam aguardar. Na ocasião de seu
primeiro atendimento na CRLS, houve uma tentativa de contato com o Hospital
Federal de Bonsucesso – local que faz o acompanhamento do paciente – e foi
solicitado um prazo para que a unidade de saúde se pronunciasse sobre o caso.
No início do mês de julho a filha de Jorge se dirigiu novamente a CRLS e recebeu
novamente uma resposta desse tipo. No fim do mês de julho, ela compareceu
mais uma vez a Câmara. Quando a demanda chegou ao setor de análises, a
parecerista da CRLS conferiu o histórico do caso e tentou entrar em contato
telefônico com o hospital para falar sobre a situação de Jorge. Na terceira
tentativa, ela conseguiu falar com um profissional do setor de cirurgias. Durante
a ligação, ela informou que o caso do paciente era grave, que o prazo para a
realização do procedimento já havia sido ultrapassado há muitos meses e que
razão de seu contato era para “evitar um mandado judicial”. O profissional do
outro lado da linha pediu que ela retornasse a ligação no turno da tarde, que ele
levaria o caso para apreciação. Enquanto aguardava para entrar em contato
novamente com o hospital, outra parecerista da CRLS emitiu um parecer
encaminhando Jorge para que a unidade básica de saúde de sua região
reinserisse o pedido no SISREG, uma vez que o Hospital Federal de Bonsucesso
não realizaria o procedimento necessário em pacientes maiores de 70 anos.
A mãe de Marcela foi pela primeira vez na CRLS no final de junho de
2017. Sua filha, de 12 anos, estava aguardando a chegada do material
necessário para a realização de uma cirurgia no fêmur direito para corrigir uma
dismetria de 10cm em relação a perna esquerda. A solicitação do material foi
feita através de um memorando em março de 2017 e a mãe de Marcela foi
informada que o procedimento seria feito imediatamente após a chegada dos
insumos. Diante da não previsão para a aquisição do material, a representante
da assistida solicitou que seu caso fosse “agilizado” com o auxílio da Defensoria
Pública da União (DPU). No final de julho, a mãe de Marcela compareceu
novamente a CRLS para informar que a situação de sua filha ainda não havia
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

sido resolvida e que a criança estava desenvolvendo outras complicações de


saúde. Nessa ocasião, a profissional da Câmara tentou entrar em contato com o
hospital diversas vezes, sem sucesso. O parecer elaborado pelo setor de análise
técnica foi um pedido de 7 dias para que a unidade de saúde se pronunciasse
sobre o caso. Dois dias depois, a analista da CRLS tentou novamente entrar em
contato com o hospital, mas uma vez sem sucesso. Diante disso, ela comentou
que ligaria para a mãe de Marcela para que a demanda seja judicializada e o
caso encaminhado para a Defensoria, uma vez que ela já esperou bastante e o
hospital não ofereceu nenhuma solução ou resposta.
O representante de Jaime foi até a CRLS no início do mês de julho solicitar
imunoglobulina humana para controlar os sintomas da polineuropatia
inflamatória desmielizante crônica (PIDC) 6 que acomete o assistido. Na ocasião,
a documentação do assistido estava incompleta, de modo que foi solicitado que
ele retornasse portando todos os documentos necessários para que o caso fosse
analisado. No início de agosto, o represente retornou à CRLS com a
documentação. Durante a análise, foi constatado que o paciente faz
acompanhamento no Hospital Federal da Lagoa. Ao consultar a planilha de
medicamentos disponibilizados pelo Componente Especializado de Assistência
Farmacêutica (CEAF), a profissional da Câmara constatou que o medicamento
é passível de disponibilização pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas que o
código da Classificação Internacional de Doenças (CID) constante no laudo do
paciente não é contemplado para dispensação na Rio Farmes. Apesar de não
ser contemplado pelo CEAF, o medicamento receitado é considerado pela
literatura médica como o tratamento adequado para o quadro clínico do paciente.
Diante dessa situação, um dos caminhos possíveis seria encaminhar o caso
diretamente para a Defensoria Pública. Contudo, a analista tentou uma buscar
uma solução administrativa para a situação. Ela entrou em contato com o
Hospital Federal da Lagoa, onde o assistido é acompanhado. Na ligação, ela foi
informada que a unidade possui o medicamento, mas que seu uso é restrito aos
pacientes internados na instituição. A funcionária da CRLS pediu então para falar

6
A PIDC é uma patologia considerada rara que causa a perda ou diminuição progressiva dos
reflexos, da sensibilidade táctil e da força muscular. Uma das formas de tratamento da doença é
a utilização recorrente da imunoglobulina humana intravenosa, um medicamento que custa cerca
de R$ 1.200,00 o frasco.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

com chefe do setor de farmácia, argumentando que caso o paciente


judicializasse o caso, quem seria processado seria o hospital que o acompanha.
Ela conversou com o chefe da farmácia do hospital, que informou que o setor
não estava ciente do caso. Ao elaborar seu parecer, a analista solicitou um prazo
de 15 dias para que a situação fosse resolvida e pediu que o assistido
comparecesse na direção do hospital na parte da manhã para explicar sua
situação e tentar solucionar a questão sem que seja preciso judicializar.

A sombra da Justiça: a possibilidade da judicialização como


estratégia de negociação e enfrentamento da “crise”
Antes de mais nada, é preciso destacar duas coisas: 1) essa não é a única
forma de atuação dos profissionais da CRLS em suas tentativas de oferecer uma
solução administrativa; 2) o recorte dos seis casos brevemente narrados se dá
por possuírem um traço em comum, fundamental para a discussão das questões
levantadas nesse texto: em todos eles, a possibilidade do caso ser encaminhado
para a Defensoria Pública – isto é, a possibilidade de que a situação seja
judicializada – é utilizada como espécie de estratégia de negociação
interinstitucional para oferecer uma “resolução administrativa” para as demandas
levadas à CRLS pelos assistidos e/ou seus representantes. Ou seja, ao
acompanhar as rotinas profissionais dos funcionários da Câmara, pude perceber
como esse domínio nebuloso e indefinido frequentemente chamado de “Justiça”
– e o seu possível acionamento – funciona como um mecanismo de pressão
capaz de mobilizar um certo conjunto de atores sociais: médicos, farmacêuticos,
chefes de setor, diretores de unidades de saúde etc.; e de fazer com que se
movimentem determinadas engrenagens no processo de gestão do “fluxo de
acesso ao Sistema Único de Saúde”.
Uma das primeiras perguntas que precisam ser feitas é o que faz com que
essa ameaça ou pressão seja eficaz em alguns casos. Como mencionado na
primeira parte do texto, o principal objetivo do setor de análise técnica – e, de
certo modo, o cerne do trabalho da CRLS – é buscar “soluções administrativas”
para os pleitos dos assistidos e essa busca consiste em basicamente tentar
estabelecer “diálogos interinstitucionais”, especialmente no que diz respeito à
comunicação entre órgãos do Poder Judiciário e instituições do setor da Saúde.
Tais diálogos são estabelecidos de diferentes maneiras, de acordo com o nível
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

de formalidade do contato: através de ligações telefônicas, troca de e-mails,


envio de ofícios etc. Obviamente, essas formas de estabelecer diálogos
possuem “pesos” distintos e implicam diferentes reações dos atores das outras
instituições, uma vez que, por exemplo, há a obrigação judicial de responder a
um ofício.
Se seguirmos as pistas desse raciocínio, acredito que é possível afirmar
que não apenas a judicialização, mas também a possibilidade de seu
acionamento, funcionam como um mecanismo resolutivo na medida em que
exercem uma determinada forma de pressão para que as outras instituições
cumpram com aquilo que é considerado como parte de suas atribuições. Tal
mecanismo só pode ser eficaz em um contexto no qual os sujeitos compartilham
a ideia de que a “judicialização” é algo que deve ser evitado, pois representa um
tipo de “perigo” não só para as instituições, mas também para os funcionários
que respondem por elas e que, por conta disso, há um tipo de acordo tácito
interinstitucional para que as situações sejam resolvidas sem que se apele para
tal mecanismo.
Para compreender a eficácia da ameaça e a movimentação por ela
imposta, é preciso recuar alguns passos e buscar entender de que modo “A
Justiça” se constitui como um domínio que possui o poder de fazer com que
ordens sejam cumpridas – o tão questionado “cumpra-se” dos mandados
judiciais. Acredito que uma das pistas para construir esse raciocínio é pensar
que no âmbito do diálogo entre a CRLS e as instituições de saúde pública, é o
desconhecimento e a imprevisibilidade do funcionamento do poder Judiciário
que sustenta essa espécie de poder simbólico contido na ameaça de que o caso
pode ser encaminhado para a Defensoria e, consequentemente, ser
judicializado.
Outro caminho de análise é pensar que a pressão pode ser eventualmente
eficaz porque há uma espécie de visão compartilhada do que seria o ideal do
“direito à saúde” e quais são as atribuições de cada instituição para sua
efetivação. Nesse sentido, ao acionar a possibilidade de encaminhar o caso para
a Defensoria, os funcionários da CRLS deixam implícitas uma denúncia de que
algo está “errado” e uma acusação de que talvez esses sujeitos do outro lado
não estejam cumprindo devidamente as suas funções. Essa argumentação
parece fazer sentido na medida em que um dos discursos mais constantes entre
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

os funcionários de todos os setores da CRLS é o de que a Câmara só existe


porque não há de fato direito à saúde para toda a população. Ou seja, a CRLS
só existe porque o Estado não cumpre efetivamente seu papel.
Assim, defendo que a CRLS sustenta sua própria existência enquanto
uma política pública nos marcos da ideia de teodiceia secular de Herzfeld (2016),
haja visto que as atuações dos funcionários – e da instituição como um todo –
se articulam e se justificam a partir de um modelo ideal de Estado e de prestação
de serviços públicos de saúde. É nesse sentido que acredito que ao mobilizar
essa figura quase fantasmagórica da “Justiça” por meio da Defensoria Pública,
a CRLS toma para si a missão de fazer com que o dever do Estado de promover
o direito à saúde seja efetivamente cumprido, ao menos nas formas de
justificação da atuação dos profissionais que trabalham na instituição.

Referências Bibliográficas

BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. 2013. “Legal Remedies: therapeutic markets


and the judicialization of the right to health”. In: Biehl, João; Petryna, Adriana
(eds.). When People Come First: critical studies in global health. Princeton:
Princeton University Press, pp. 325-346.

FERRAZ, Octavio Luiz Motta. 2009. “The right to health in the courts of Brazil:
worsening health inequities?”. Health and Human Rights: An International
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HERZFELD, Michael. 2016. A Produção Social da Indiferença: explorando as


raízes simbólicas da burocracia ocidental. Petrópolis: Vozes.

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. 2015. “Direitos Sociais, Estado de Direito e


desigualdade: reflexões sobre as críticas à judicialização dos direitos
prestacionais”. Quaestio Iuris, v. 8, n. 3, pp. 2080-2114.

PEPE, Vera Lúcia et al. 2010. “A judicialização da saúde e os novos desafios da


gestão da assistência farmacêutica”. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 5, pp.
2405-2414.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma política de (s)


culpa.

Ananda Cristine Amador de Moura1


Sérgio Henrique Fernandes Carvalho2
Fernando Ferreira Natal3

Resumo: Os homens são fortemente atingidos por mortes por causas externas como
os homicídios e os acidentes de trânsito. Apenas com motocicletas, entre 2008 e
2015, ocorreram 2.058.504 acidentes com morte ou invalidez. Estima-se que, desse
total, pelo menos 82% eram homens, segundo dados do Departamento Nacional de
Trânsito (DENATRAN). Em 2009, o Ministério da Saúde (MS) publicou os princípios
e diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, o que
evidencia um atraso em sua construção de pelo menos duas décadas quando
comparadas à políticas voltadas para outros grupos populacionais, questão difícil de
justificar à luz dos altos índices de morbimortalidade evidenciados. Em seu texto, o
MS aponta que os homens, em geral, habituaram-se a evitar o contato com os
espaços da saúde porque são avessos à prevenção e ao autocuidado, apresentam
“pensamento mágico” de invulnerabilidade, protelam a procura por atendimento e,
com isso, permitem o agravamento de sua condição com resultados que geram
maiores despesas para o sistema de saúde. A partir dessas premissas, estudantes
de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) do Distrito Federal,
orientados por docentes de Medicina e Antropologia, realizaram incursões
etnográficas na UnB entre várias pessoas que transitavam pelo campus no intuito de
capturar a realidade dos homens para sua relação com os serviços de saúde. Os
resultados trouxeram diversas falas de homens e mulheres que em nada
corroboraram com as justificativas apresentadas no texto do manual de saúde. A
análise dos dados etnográficos descontruiu a narrativa de culpabilidade imposta aos

1 Discente do curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS - DF).


2 Discente do curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS - DF).
3 Mestre em antropologia social pela UnB, médico/docente do curso de Medicina da Escola Superior

de Ciências da Saúde da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde – ESCS/FEPECS –


do Distrito Federal, Brasil.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

homens e justifica mudanças estruturais nas políticas públicas voltadas ao público


masculino.
Palavras-chaves: saúde do homem; etnografia em saúde, ensino médico.

APRESENTAÇÃO
Nos últimos anos, uma importante variável tem ganhado destaque no debate acerca
de políticas públicas, a Saúde do Homem. A percepção mais recente de que uma
grande parcela da população, 27, 43% - que corresponde aos homens entre 20 e 59
anos (DATASUS, 2012), não pode ser esquecida pelas políticas públicas de Saúde
se deve aos índices elevados de morbimortalidade nesse grupo populacional, sendo
que grande parte dos agravos que atingem essa população são considerados
evitáveis 4. O Ministério da Saúde (MS) lançou os princípios e diretrizes da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) em 2009. Sendo sua
necessidade devido aos altos índices de morbimortalidade nessa faixa da população
associados à baixa procura por assistência à saúde por esses homens,
principalmente no âmbito da prevenção. Em 2012, foi publicado o Perfil Sobre a
Situação de Saúde do Homem no Brasil, documento feito pelo Ministério da Saúde
em parceria com o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente
Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF-Fiocruz). Esse documento teve
o intuito de trazer dados sobre a Saúde do Homem nas 27 unidades da Federação e
ser um instrumento para a PNAISH. Neste documento foi então delineado um perfil
da Saúde do Homem no seguinte trecho:
“As diferenças de morbimortalidade entre homens e mulheres são amplamente
conhecidas: os homens morrem mais cedo, morrem principalmente por causas
externas (acidentes e violências), são mais suscetíveis às doenças
cardiovasculares, possivelmente pelos comportamentos de risco mais
frequentes, procuram menos os serviços de saúde, por limitação de tempo e,
principalmente, pela falsa auto percepção da sua infalibilidade física e mental”
(MOURA, 2012: 9)

4 Os agravos e as causas de mortes evitáveis ou reduzíveis são definidos como aqueles preveníveis,
total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde, bem como demais políticas públicas,
que estejam acessíveis em um determinado local e época (MALTA, 2007: 174)
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Na tentativa de explicar essa baixa procura e adesão ao sistema de saúde pelos


homens, principalmente à atenção básica, setor responsável pela prevenção, fator
determinante para a elevada morbimortalidade desta população, o manual do MS
sobre a PNAISH aponta:
“Os homens, de forma geral, habituaram-se a evitar o contato com os espaços
da saúde, sejam os consultórios médicos, sejam os corredores das unidades
de saúde pública, orgulhando-se da própria invulnerabilidade. Avessos à
prevenção e ao autocuidado, é comum que protelem a procura de atendimento,
permitindo que os casos se agravem e ocasionando, ao final, maiores
problemas e despesas para si e para o sistema de saúde, que é obrigado a
intervir nas fases mais avançadas das doenças.” (Ministério da Saúde, 2009:
7)
Tanto o manual do MS sobre a PNAISH quanto o Perfil Sobre a Situação de Saúde
do Homem apontam como uma das justificativas a suposta percepção, “pensamento
mágico” do homem de invulnerabilidade.
“Os homens têm dificuldade em reconhecer suas necessidades, cultivando
o pensamento mágico que rejeita a possibilidade de adoecer. ” (Ministério da
Saúde, 2009: 14).
No texto da PNAISH percebe-se o uso de uma política de saúde que culpabiliza o
alvo de suas ações, como mostra o trecho:
“A resistência masculina à atenção primária aumenta não somente a
sobrecarga financeira da sociedade, mas também, e sobretudo, o sofrimento
físico e emocional do paciente e de sua família [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2009: 13)
Essas justificativas apresentadas na PNAISH e no Perfil Sobre a Situação de Saúde
do Homem têm em comum o fato de apontar o homem e sua suposta natureza avessa
a cuidados em saúde como culpados pelos altos índices de morbimortalidade nesse
grupo populacional. No manual, são encontradas afirmações genéricas, sem
referências no corpo do texto, e que são socialmente propagadas como verdades
sobre o homem. Nesse contexto, buscou-se por meio de incursões etnográficas
compreender qual visão os homens têm sobre cuidados de saúde, como eles se veem
e justificam a baixa procura pelo sistema de saúde.
INCURSÕES ETNOGRÁFICAS NA UNB
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Para entender como os homens estão inseridos (ou não) na saúde, nós, estudantes,
docentes e preceptores do curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da
Saúde (ESCS), participantes de um curso para capacitação na compreensão e
execução da etnografia, com duração de três meses, ministrado pelo Mestre em
Antropologia, Médico Obstetra e Docente da ESCS, e nosso orientador, Fernando
Natal, e a Doutora e Docente em Antropologia da Universidade de Brasília (UnB),
Carla Teixeira, durante o referido curso, ao discutirmos a PNAISH, percebemos que
era importante dar voz aos próprios homens e também às mulheres no que se refere
à Saúde do Homem, e para isso fazer uso da etnografia. Decidiu-se, então, realizar
incursões etnográficas na Universidade de Brasília (UnB) pois era um local de fácil
acesso, e onde supomos que poderíamos encontrar muitos homens e mulheres de
diferentes áreas de estudo, cidades, idades, entre outras variáveis. A atividade
ocorreu no período da tarde, e nós, estudantes, docentes e preceptores, ao
chegarmos à UnB, nos dividimos e cada um seguiu para um lugar específico da
universidade. Alguns foram para a Faculdade de Tecnologia (FT), outros para o
Restaurante Universitário (RU), e outros ainda para o Instituto Central de Ciências
(ICC). Um dos locais visitados por nós, Ananda e Sérgio, foi a FT, ao chegar nela,
apesar de estar um pouco vazia, havia dois rapazes sentados. Com eles a
aproximação foi fácil, ocorreu ao perguntar a eles onde ficava um determinado Centro
Acadêmico, apresentando-se como estudante de Medicina, e a partir disso ir aos
poucos fazendo perguntas, como quais cursos eles faziam, o que estavam fazendo
naquele momento e com o desenvolver da conversa, aproveitar o fato do Novembro
Azul (a incursão foi realizada em novembro), e perguntar se eles sabiam do que se
tratava, e o que achavam dessa campanha, se era necessária. Aproximações
semelhantes foram realizadas no RU, onde outros homens e também mulheres
conversaram conosco, bem como também no ICC. Em todos os casos, foi necessário,
após um momento inicial de conversa sobre assuntos diversos, aos poucos e de
forma sutil, incluir a saúde no assunto, pois precisávamos ouvir o que as pessoas
tinham a dizer sobre tal tema. A campanha do Novembro Azul colaborou muito para
que a inserção do tema saúde fizesse sentido e para que as pessoas se sentissem à
vontade para falar sobre o tema. Nem sempre foi necessária a nossa apresentação
como profissionais ou estudantes da área da saúde, pois, em alguns momentos, como
no RU, a conversa fluiu e foi ainda melhor observar como as pessoas discorriam sobre
o assunto, sem a pressão de estar falando com alguém da área da saúde. Não que
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

isso tenha parecido intimidar aquelas pessoas às quais nos apresentamos como
estudantes do curso de Medicina, essas também falaram sem qualquer problema,
apesar de que a conversa pareceu demorar um pouco mais para fluir. Gilberto Velho
(1978) sugere que com o advento da comunicação em massa, certos ambientes e
culturas nos tornam familiares sem serem ao menos conhecidos de fato. Desse modo
ressalta que há importância no estudo do até então familiar, já que muito se pensa
que à antropologia apenas o exótico seria válido, que para fazer uma etnografia se
deva ir a uma ilha isolada como fez Malinowski. No entanto, Velho (1978) faz refletir
acerca do estranhamento do familiar, muitas vezes esse familiar é na verdade exótico
ao pesquisador, que em grande parte não lhe conhece verdadeiramente. Exemplo
disso foi a experiência na UnB, por ser um ambiente que apesar de muito
frequentarmos, geralmente apenas de passagem ou indo à Biblioteca Central da UnB
(BCE), sem nunca observar de fato as pessoas ao redor e seus costumes tem-se a
impressão de conhecimento, no entanto pela simples observação percebe-se o
quanto esse ambiente é diferente, e o quanto encontramos em nossa breve incursão
pessoas de opiniões e orientações diversas, o que colaborou bastante para ter uma
visão ampliada do que as pessoas pensam sobre saúde e como os homens e
mulheres estão inseridos nela.

O DESCUIDO COM A SAÚDE


Conversando com os entrevistados, homens e mulheres, todos na faixa dos 18 a 25
anos, percebemos muitos pontos relevantes. Muitos homens citaram que procuram
os serviços de saúde apenas quando se sentem muito doentes, pois afinal, segundo
muitos homens entrevistados, essa seria a finalidade do serviço de saúde, curar a
doença; ou para realizar algum “check-up”, como percebido na fala a seguir de um
dos homens na FT:
“Estudante: E você, vai ao médico?
Homem 1: Uai, só quando eu tô doente, mas isso não rola muito, dor de
cabeça não é doença pra mim, e é a única coisa que eu tenho direto (risos).
Estudante: Mas tem várias coisas de prevenção, né? Não precisa estar
necessariamente doente.
Homem 1: Pra mim precisa sim, precisa tá doente de verdade (risos)”
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em outros momentos, muitos homens também referiram que não procuram os


serviços de saúde simplesmente por esquecer, ou por não ser algo que é incentivado
na família, ilustrado pelo diálogo a seguir:
“Estudante: Você, o que acha disso? [Questionado sobre ir ao médico]
Homem 2: Não sei, na verdade.... Na minha família, na verdade, todo mundo
vai pouco no médico.
Estudante: Você acha que o homem não vai ao médico porque se acha
invulnerável?
Homem 2: Sei lá, não tenho dados estáticos pra isso (risos). Na minha família
o povo só é relaxado mesmo, mas aí é geral.
Estudante: Como assim relaxado?
Homem 2: Não preocupar tanto. Não sei explicar direito.
Estudante: Mas por que você acha que dizem que o homem é assim e a mulher
não?
Homem 2: Mulheres têm mais complicações que homens, eu acho, cólicas,
gravidez, sei lá, já fica no inconsciente delas procurar ajuda, mas as mulheres
lá de casa não vão muito também não. ”
Em alguns momentos, falamos também sobre violência, já que a principal causa de
morte masculina são as causas externas e dentre elas a violência é um fator dos mais
relevantes. Um dos jovens entrevistados falou que para ele o homem é violento e
irresponsável por natureza, gosta de adrenalina pois tem testosterona:
“Ah o homem morre disso [causas externas] porque não tá nem ai pra nada e
isso é da gente né, é a testosterona, eu acho, faz o homem ser violento, ligar
pra nada, beber mais, mulher não tem testosterona.”
Essa fala se assemelha ao que está escrito na PNAISH:
“A agressividade está biologicamente associada ao sexo masculino e, em
grande parte, vinculada ao uso abusivo de álcool, de drogas ilícitas e ao acesso
às armas de fogo.” 5(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009: 23)
Roque Laraia (2001) em seu livro “Cultura: Um Conceito Antropológico” vai contra a
ideia de determinação biológica para comportamentos humanos, como mostra o
seguinte recorte:

5 Grifo nosso.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

“[...]não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres


genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais. Qualquer criança
humana normal pode ser educada em qualquer cultura, se for colocada desde
o início em situação conveniente de aprendizado. ” (LARAIA, 2001:17)
Desta forma fica claro que as relações sociais determinam comportamentos. Um
homem e uma mulher têm diferenças hormonais que definem características
principalmente anatômicas. Atribuir comportamentos culturais unicamente à
existência de hormônios é atuar na esfera do determinismo biológico de modo muito
danoso ao contexto da Saúde do Homem. Pois justificam-se os fatos de os homens
abusarem de álcool e de drogas ilícitas, além de acessarem armas de fogo, por
produzirem testosterona. Associam-se comportamentos sociais à presença de uma
substância que, para o senso comum, apenas o homem têm. Dessa forma, não
haveria solução para quaisquer problemas tendo em vista a “natureza” do homem.
Outro ponto muito presente foi sobre os homens serem descuidados, relaxados,
desligados, como demonstrado no diálogo a seguir:
“Estudante: Você costuma ir ao médico, então?
Homem 3: Eu não vou por preguiça às vezes (risos) e eu não lembro de
marcar.... Até acho que tenho um problema cardíaco...
Estudante: Então é mais por preguiça?
Homem 3: Isso. Não acho muito que é pra passar uma ideia da masculinidade,
eu particularmente não sou assim, só sou esquecido e preguiçoso mesmo
(risos). ”
Assim como neste diálogo, outros entrevistados citaram a preguiça de procurar o
serviço, sendo um dos motivos dessa preguiça o fato da espera pelo atendimento ser
demorado, tanto no setor público quanto no privado, sendo que no SUS soma-se a
isso a demora também por marcações de consultas, exames e outros procedimentos,
sendo esse um dos principais motivos que levam os entrevistados a se sentirem
desestimulados a procurarem os serviços de saúde. O descuido com a saúde, dessa
forma, não ocorreria de forma proposital, não seria inerente ao homem ser
descuidado, mas isso seria o reflexo de anos de políticas públicas que priorizaram
outros grupos populacionais, facilitando o atendimento a estes grupos, deixando à
mercê o atendimento à Saúde do Homem, bem como à saúde também da mulher
quando esta sai do campo da Ginecologia e Obstetrícia. Das mulheres entrevistadas,
muitas disseram que começaram a frequentar os serviços de saúde quando da
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

ocorrência da menstruação, ou início de relações sexuais, e que isso ocorre porque


elas são orientadas pela mãe, por amigas, e propagandas a procurarem os serviços
de saúde após esses marcos, como referido nas falas a seguir:
Mulher 1: “Fui no ginecologista quando menstruei pela primeira vez e depois
só fui ir de novo quando comecei a namorar e transar, porque ai tem que fazer
aquele preventivo né, e eu não quero engravidar de jeito nenhum também
(risos), ai tem que ir lá, né”
Mulher 2: “Ah, eu nem sei pra quê é esse papanicolau direito (risos), mas vi
que tem a ver com o câncer de colo do útero né, mas tem que fazer, vei, toda
mulher sabe que tem fazer isso depois que não é mais virgem”
Nota-se nessas falas que a saúde da mulher é ainda muito referida apenas como uma
saúde ginecológica e que a partir desta a mulher adentra então os serviços de saúde.
Figueiredo (2005), diversas vezes citado na PNAISH, afirma que homens não gostam
de ir ao médico e, com exceção dos urologistas, todos os outros especialistas
atendem um número muito maior de mulheres do que de homens. Este mesmo autor,
aponta mais uma diferença na busca pelos serviços entre homens e mulheres:
"[...] nota-se que na atenção primária a demanda dos homens por atendimento
é inferior à das mulheres, devido a diferentes variáveis, uma delas aponta a
prevalência masculina na procura de serviços emergenciais, tais como
farmácias e pronto-socorro, pois nestes serviços poderiam expor melhor seus
problemas e serem atendidos mais rapidamente." (FIGUEIREDO, 2005: 106).
O trecho acima ilustra resumidamente o que se justifica atualmente em relação a não
adesão à saúde pelo homem e desse modo vai confirmar o que é apresentado na
PNAISH. O mesmo trecho ainda reitera algo que foi percebido durante os diálogos
com os entrevistados, porém é pouco explorado na PNAISH, a agilidade do serviço,
que sabidamente, ocorre de forma mais rápida no serviço de urgência, nos quais não
são necessários marcações para consultas. Comumente os entrevistados homens
afirmaram que não se sentem doentes, explicando que sua juventude e não o sexo
masculino é o que dificulta o adoecimento. Para eles estar doente é quando se tem
algo grave, uma dor de cabeça suportável, por exemplo, não seria estar doente. Estar
doente é estar improdutivo, ou seja, não conseguir ir trabalhar e/ou estudar. Para os
homens entrevistados, não entender agravos leves de saúde como “doenças” é muito
diferente de se achar invulnerável e ter “pensamento mágico”, como o texto da
PNAISH afirma. Muitos frisaram a importância de cuidar da saúde, mas sempre
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

vinculando-a com um estado de “doença”, que para eles não eram agravos leves,
como já descrito. Ao serem questionados sobre a última vez que foram ao médico,
não era incomum responderem que faz anos desde seu último “check-up” ou da última
vez que devido adoecimento foi necessário procurar atendimento médico, mas, em
geral, complementando que não ficavam doentes e que então não havia necessidade
para tal. Essa grande importância dada ao “check-up” foi muito recorrente, apesar de
muitos ainda que reconhecessem sua importância relataram não fazer. Soma-se a
isso o fato de que os agravos que mais afetam os homens são por muitos vistos como
“inevitáveis”, “acaso do destino”, “acidentes”, como dito por eles, sendo assim, seria
impossível preveni-los. Dessa forma, é questionável se as dificuldades estruturais
para conseguir atendimento em hospitais e centros de saúde, a responsabilidade
muitas vezes apenas da mulher no planejamento reprodutivo, a falta de
reconhecimento dos agravos evitáveis como de fato evitáveis não seriam os fatores
que mais afastam o homem do real cuidado com sua saúde e contribuem para a
dificuldade em se criar um reconhecimento social de uma política direcionada aos
homens, mais do que uma ideia generalizada de invulnerabilidade masculina.
CONCLUSÃO
O homem é duplamente atingido pela violência, é o agressor e o agredido. Nenhum
determinismo genético justifica essa condição intrínseca como masculina e não
parece haver nenhum esforço para explicar o que é inexplicável, afinal é visto por
muitos como biológico, ou seja, não dá para mudar. De forma geral, não há a
construção de uma política de saúde que lide com essa aparente epidemia de
violência, a qual atinge principalmente os homens. Talvez isso não ocorra, pois a
violência, muitas vezes, não é vista como um problema de saúde, mas sim um
problema social incurável e que não cabe a nenhuma outra área que não seja de um
departamento de segurança. Não foi incomum a nós, estudantes, iniciar o processo
de construção de etnografia com pressupostos muito semelhantes a estes, ou seja,
submersos em uma construção social de que o homem é violento, se imagina
invulnerável e é desleixado com sua própria saúde. De fato, alguns desses aspectos
foram encontrados nas falas de alguns dos homens, mas de forma geral, houve uma
dissonância enorme com os pressupostos e as informações coletadas com a
experiência etnográfica deste trabalho. Tal experiência possibilitou a nós perceber
que o homem se importa sim com sua saúde, mesmo que de forma diferente da
esperada por profissionais de saúde. A definição captada nas falas dos entrevistados
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

do que é estar “doente” pode explicar muito do que se justifica como descuidado e
pensamento de invulnerabilidade. Os homens e mulheres entrevistados referiram que
o homem quando percebe que está doente demonstra grande preocupação e busca
sim algum atendimento médico. A grande questão é que este grupo não julga leves
condições que afetem a saúde como passíveis de evoluir à condições mais graves,
como importantes, e não veem agravos evitáveis como situações que poderiam ser
evitadas, tudo isso dificulta a busca por serviços de saúde preventivos. E isso se
repete no grupo das mulheres, segundo as falas das entrevistadas, pois estas
referiram que vão ao médico não porque julgam que condições leves afetem sua
saúde, mas por buscar um atendimento de saúde orientadas pela mãe, amigas,
primas, geralmente para fazer o preventivo, bem como por propagandas que
estimulem a busca por esse exame. Buscam o serviço de saúde mesmo sem
condições leves. Em outras palavras, muitas vezes as mulheres procuram o
atendimento porque aprenderam com as políticas públicas que devem cuidar da
saúde dentro do espectro da prevenção. Isso não ocorre com a Saúde do Homem.
Este arcabouço teórico etnográfico nos possibilitou aprender mais sobre uma forma
diferente de entender o que é saúde e o que é doença, e o que é importante como
motivador para se procurar um serviço de saúde, tanto para homens quanto mulheres.
Ainda assim, sabendo disso e com uma nova visão acerca da Saúde do Homem, é
um desafio explicar aos colegas da área da saúde, que a culpabilização de uma certa
população não trará mudanças, os índices continuarão aumentando, o ônus ao
Estado cada vez maior e as perdas humanas muitas vezes serão irreversíveis. Assim,
é essencial uma mudança na visão de que a violência é intrínseca ao homem, que
não tem solução pois é algo biologicamente determinado, assim como traumas no
trânsito são inevitáveis, isso não pode ser uma desculpa para a construção de
serviços e políticas que mais culpabilizam do que protegem uma população.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Fernandes Figueira.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

SOBRE O TEMPO EM QUE FUI KUÑATA'I ENTRE OS AVÁ: NOTAS SOBRE


O TRABALHO EM ANTROPOLOGIA NO DSEI-MS

Ranna Iara de Pinho Chaves Almeida 1

Resumo: O texto é um relato de experiência que tem como base os três anos
(2012-2015) em que estive trabalhando na Divisão de Atenção à Saúde
Indígena (DIASI), no Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do
Sul (DSEI-MS) na cidade de Campo Grande – MS. Como profissional da área
de antropologia a trabalhar continuamente no DSEI em regime que não fosse
apenas de cooperação, mas sim de contratação direta do Ministério da Saúde
via Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), trago um breve
relato sobre as experiências profissionais, mas principalmente sobre qual é o
lugar da antropologia entre as ciências médicas e a administração pública
através da perspectiva do serviço público. O objetivo aqui é analisar as
relações de poder tanto entre os discursos biomédicos e administrativos e o
discurso da antropologia, quanto entre o discurso dos órgãos governamentais e
dos indígenas, principalmente no que diz respeito às mulheres indígenas e sua
saúde reprodutiva, através de minhas vivências durante os três anos que
trabalhei com as sete etnias que vivem no Mato Grosso do Sul.

Palavras-chave: Antropologia, Administração Pública, Saúde Reprodutiva.

“Eu mesma não sabia bem se ainda era etnógrafa”.


Jeanne Favret-Saada

INTRODUÇÃO

Há alguns anos atrás, trabalhei como antropóloga no Distrito Sanitário


Especial Indígena de Mato Grosso do Sul (DSEI-MS). A realidade que se
apresentava a mim era muito áspera: seria uma das primeiras pessoas a
ocupar esta função diariamente e com um regime de trabalho que me ligava
diretamente a Secretaria Especial de Saúde Indígena através de um Contrato
Temporário da União. Trabalhei na Divisão de Atenção à Saúde Indígena
(DIASE), mas também apoiei as ações da Divisão de Edificações e

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU).
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Saneamento Indígena. Entendia o meu trabalho como a oportunidade de


apresentar aos profissionais da saúde que ali estavam que a saúde ou doença
eram muito mais do que um fenômeno biológico, mas também poderia ser visto
por outro prisma:

Em outras palavras, o fenômeno saúde-doença não pode ser


entendido à luz unicamente de instrumentos
anátomofisiológicos da medicina (MINAYO, 1991), mas deve
considerar a visão de mundo dos diferentes segmentos da
sociedade, bem como suas crenças e cultura. Significa dizer
que nenhum ser humano deve ser observado apenas pelo lado
biológico, mas percebido em seu contexto sociocultural.
(SANTOS et. all., 2012, p. 13)

O que se segue é um brevíssimo relato sobre duas experiências onde


a concepção biomédica e sociocultural de saúde se chocam. Os dois relatos
têm como força motriz as mulheres indígenas e seus direitos sobre seus corpos
e territórios. Dentro dessa dinâmica analisa-se o papel do antropólogo em meio
aos discursos biomédicos e administrativos.

CENAS: CONSTRUÇÃO DE LUGARES DE PODER

Como dito anteriormente, o tempo passado no trabalho no DSEI – MS,


mais especificamente na Divisão de Atenção à Saúde Indígena (DIASI) foi
recheado de aprendizados e de percalços. Por serem as etnias com maior
população, os Terena e os Guarani (tanto os Ñhadeva quanto os Kaiowá)
ocupavam o maior tempo de trabalho e a maioria das solicitações surgiam das
comunidades onde estas etnias vivem.

No mês de junho de 2012 atendendo a uma solicitação da chefia do


Distrito realizei minha primeira incursão em campo, eu estava trabalhando há
três meses e algum conhecimento técnico sobre as ações realizadas pela
DIASI já havia sido acumulado. A visita se daria pela região de Dourados - MS,
onde à época existia a maior concentração de retomadas de terras indígenas
no estado. Eu visitaria o maior número possível destas retomadas em cinco
dias e retornaria com um relatório situacional.
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Veja, esta era uma situação sui generis, pelo menos em minha visão. O
que havia aprendido é que “o antropólogo” passava o máximo de tempo em
campo, vivendo e convivendo com seus interlocutores, depois desde tempo
este profissional seria capaz de elaborar um relato ou talvez até, nos moldes de
Clifford Geertz, uma descrição densa de tudo que havia acontecido e a partir
daí uma análise seria possível. O que me foi solicitado dentro da lógica da
administração pública era completamente diferente: o reconhecimento então só
poderia ser superficial, a densidade se esvairia no pouco tempo dedicado a
tarefa e as conclusões ou seriam muito óbvias ou não teriam nenhuma
profundidade teórica.

Só um ano depois conheceria com mais profundidade, através um


diálogo brevemente estabelecido com o Professor Levi Marques Pereira o
trabalho pericial realizado por antropólogos, creio que guardadas as devidas
proporções, este trabalho que se espera que seja realizado na administração
pública, algum tipo de relatório que estabeleça um parâmetro para a tomada de
decisões. Sendo assim, acompanho a visão de OLIVEIRA e PEREIRA (2012)
quando falam de seu relatório sobre a Terra Indígena Buriti:

Ainda é necessário esclarecer que o presente laudo pericial se


apresenta mais como um documento produzido em determinado
contexto sócio-histórico, tal qual compreendem os historiadores, do
que uma análise antropológica de natureza acadêmica sobre os
dados aqui apresentados. Esta consideração não diminui a relevância
da obra, tampouco impede a formulação de análises críticas a
respeito de seu conteúdo, pelo contrário. Na verdade, a qualidade de
um laudo desta natureza não pode ser aferida única e exclusivamente
por critérios acadêmicos, mas pela possibilidade de colocar a ciência
desenvolvida na academia a serviço da Justiça. (OLIVEIRA;
PEREIRA, 2012, p. 14)

A função ali seria produzir informações que cooperassem com as


decisões administrativas, o que também veio a me gerar grande desconforto,
pois uma das grandes questões para o profissional de antropologia surgiu
neste momento: para que serve a antropologia? Ou melhor: a quem serve a
antropologia que faço? A relação entre as raízes do saber antropológico e o
processo colonizador foram suscitadas em minhas reflexões, e depois de muita
batalha interna decidi que o mais sensato seria continuar com o trabalho,
buscando um objetivo: caminhar contra a tendência de remeter “de forma direta
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os indígenas a níveis destituídos de uma pertença plena à humanidade”


(TEIXEIRA, 2012, p. 586).

Com essas ideias em mente iniciei a viagem com meus colegas 2. No


primeiro dia visitamos três retomadas: Ñu Porã (também conhecido como
Mudas-MS), Tekoha Apika’y (também conhecido como Curral de Arame) e
Pacuriti. A precariedade das instalações é a primeira e mais marcante
impressão deixada em uma visita destas. Em todos os locais não há
possibilidade de instalação de rede de saneamento básico, a não ser por
decisão judicial, já que a posse da terra ainda não foi oficialmente deliberada
em favor dos indígenas, também não há como realizar obras de infraestrutura,
como a construção de postos de saúde, pelo mesmo motivo. Os atendimentos
acabam se dando a céu aberto, na maioria das vezes sentamos em algum
banco nos escondendo do sol forte do centro-oeste ou embaixo de uma árvore
ou na sombra de um dos barracos de lona preta.

Foi nesta situação, ao chegar no Tekoha Apika’y que encontrei Dona


Damiana. Damiana é a liderança local da retomada, uma senhora forte e
pequena que lidera seus parentes 3 nessa ameaçadora empreitada. Quando
cheguei até o local, acompanhada de um médico, o chefe do setor de
saneamento e o motorista que havia fui apresentada a ela. Passamos alguns
minutos conversando, confesso que não entendia muito bem o que ela dizia e
precisava muitas vezes da ajuda do médico para que a interlocução
acontecesse. Demos uma volta de reconhecimento no local, na parte mais alta
estavam os sanitários, ou melhor, os dois buracos furados na terra e cercados
com lona que eram utilizados para esta função. De dez a quinze metros para
baixo, começavam as moradias - barracos de lona preta e palha. Era possível
descer ainda mais, chegamos então a uma fonte de água e um local onde
havia um fogareiro para cozinhar as refeições.

2
Interessante notar que, apesar de não ser recorrente, nesta primeira viagem fui acompanhada
apenas de colegas homens. Muitas mulheres trabalham no DSEI-MS, mas nenhuma delas à
época fazia parte de divisão de transportes como motorista. A maioria das mulheres que
trabalham no distrito são da área da enfermagem.
3
Por parentes aqui quero dizer tanto os parentes consanguíneos de Dona Damiana, quanto os
companheiros na empreitada da retomada, sendo este um termo recorrentemente utilizado
entre os indígenas para denominarem seus pares.
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Do outro lado da estrada havia um pequeno pedaço de mata mais


fechada. Dona Damiana me convidou a atravessar e a acompanha-la. A
estrada estava em um patamar mais alto, então fomos descendo de modo que
o local ficava com a vegetação mais fechada. No lugar mais baixo do terreno
ela me mostrou o lugar onde havia enterrado seu filho e seu marido, os dois
mortos em acidentes na mesma estrada que tínhamos acabado de atravessar.
As honras e rezas foram feitas e fomos embora. Atravessamos mais uma vez,
e voltamos ao local do fogareiro, os indígenas estavam assando um pedaço de
carne de péssimo aspecto, que foi dividido irmanamente entre os que ali
estavam enquanto eu me despedia.

Retorno aqui ao conceito de cena, já anteriormente utilizado por mim


(ALMEIDA, 2011) para descrever um contexto etnográfico. Segundo
Crapanzano (2005):

Falamos com excessiva facilidade de construção social da realidade


quando deveríamos talvez falar da construção social de cenas de
realidade e – o que é ainda mais importante – da construção social do
modo como cenas e realidades são relacionadas ou não umas às
outras; do modo como elas se hierarquizam – se hierarquia for
mesmo a figura apropriada. (CRAPANZANO, 2005, p. 373)

O que ocorreu comigo nesta viagem foi presenciar uma destas “cenas
de realidade”, que foi registrada e computada como parte da realidade da
mulher indígena no DSEI-MS. O sofrimento intrínseco a condição de desalento,
abandono institucional – mitigado pelas poucas visitas dos agentes de saúde
impossibilitados de chegar ao local pela falta de estrutura – e pela ausência de
seus entes queridos potencializou ao máximo a percepção de que a mulher
indígena que ali estava era antes de tudo uma lutadora, que superava as
adversidades através de sua batalha pela terra.

Nesta mesma viagem um Avá, nomenclatura que os Kaiowá também


usam para se autodenominarem, me chamou pela primeira vez de kuñata'i,
perguntei para o chefe do saneamento o que queria dizer, já que ouvi o termo
mais de uma vez, e descobri ali que queria dizer menina, numa quase acepção
do termo adolescente ou mais conhecido por nós como moça. Naquele tempo
não refleti sobre isso, hoje vejo que a divisão era clara: eu era só uma moça
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

entre as fortes mulheres indígenas que ainda estava por aprender muito sobre
o lugar ocupado pela mulher naquela sociedade.

Durante os próximos meses não parei de pensar na condição da


mulher indígena até que um acontecimento novo mudou os rumos de minha
atuação profissional. No ano de 2013 a enfermeira responsável pela pasta de
saúde da mulher na DIASE ficou grávida e devido a sua licença maternidade
era necessário que algum técnico a substituísse. Devido a impossibilidade de
contratar alguém para esta função no momento, as atribuições de minha colega
foram subdivididas entre a equipe, sendo assim, me tornei responsável por
atualizar os dados referentes a saúde materna nas planilhas que alimentavam
o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI).

Adentrei em um mundo de números e índices antes desconhecido por


mim. Na mesma época fui solicitada para resolver uma ocorrência particular.
Algumas mulheres indígenas desejavam passar pelo procedimento de
esterilização voluntária definitiva, popularmente conhecido como laqueadura.
Todas as solicitantes haviam passado pelo procedimento padrão estabelecido
pela Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996: tinham capacidade civil plena;
eram maiores de 25 anos com pelo menos dois filhos vivos; haviam recebido,
em um prazo de 60 dias, acesso ao serviço de regulação da fecundidade,
incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a
esterilização precoce; haviam também expresso sua vontade através de
documento escrito, estado elas cientes dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos
colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis
existentes e aquelas que estavam em sociedade conjugal também possuíam
consentimento expresso de ambos os cônjuges.

Como visto, nada poderia desabonar o direito destas mulheres em


obter a esterilização voluntária definitiva. Porém, todas as solicitações de
mulheres indígenas haviam sido negadas por auditores da Coordenadoria de
Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Estado de Saúde de Mato
Grosso do Sul. A argumentação da Secretaria de Estado de Saúde levava o
procedimento ao extremo oposto da solicitação das indígenas, o que era dito é
que os médicos que realizassem o procedimento poderiam ser acusados de
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

estar dando curso a um extermínio genocida da população indígena sul-mato-


grossense. A situação era desconcertante, sendo assim era necessária uma
ação que garantisse o cumprimento da legislação, avalizando o respeito ao
direito e a vontade daquelas mulheres.

O ponto curioso é que tal discurso muito provavelmente já havia sido


utilizado, pois haviam documentos anteriores a gestão da SESAI que já
versavam sobre o assunto, como a Nota Técnica nº 028/2005/CGASI/DESAI:

Observe-se que não se pode confundir a promoção de política de


planejamento familiar com uma intenção de destruir, no todo ou em
parte, um grupo étnico como tal, situação prevista na Lei no.2.889, de
01 de outubro de 1956, que tipifica e define punições para o crime de
etnocídio. Esta Lei determina penas para quem “adotar medidas
destinadas a impedir os nascimentos ... com a intenção de destruir,
no todo ou em parte, grupo nacional, ético, racial ou religioso, como
tal”. Assim sendo, a disponibilização de métodos contraconceptivos
de forma generalizada deve ser analisada dos pontos de vista
demográfico e antropológico e ser debatida de forma clara com as
comunidades indígenas, estabelecendo o acompanhamento
participativo das comunidades. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, p. 3)

Frente a esse posicionamento buscou-se o apoio do Ministério Público


Federal, responsável pela defesa dos direitos dos povos indígenas, além da
criação de documentação que compilasse o entendimento já estabelecido
desde a Constituição de 1988 da não existência do estatuto da tutela indígena.
Deste duplo movimento surgem dois resultados: o primeiro é a redação do
Parecer Técnico n° 35/2013 – DIASI/DSEI-MS/SESAI/MS e da Nota Técnica n°
13/2013 – DASI/SESAI/MS, que busca responder e sanar as dúvidas quanto a
autorização para realização do procedimento cirúrgico da esterilização
voluntária definitiva em indígenas e o segundo é uma reunião realizada com
representantes do Ministério Público Federal, SESAI, FUNAI e Coordenadoria
de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de Estado de Saúde de Mato
Grosso do Sul.

É neste segundo movimento que se desenrola a cena a ser descrita a


seguir. No início de dezembro de 2013, após a divulgação das respostas dadas
através da nota e do parecer técnicos aqui citados ainda não haviam sido
liberados nenhum dos procedimentos solicitados. Para resolver o impasse
combinou-se uma reunião na sede do Procuradoria da República em Mato
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Grosso do Sul na cidade de Campo Grande – MS 4. Participaram da reunião um


representante da Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) de Campo Grande, representantes da Coordenadoria de Controle,
Avaliação e Auditoria da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do
Sul, um representante da Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul e
eu como representante do DSEI-MS.

As posições durante este diálogo estavam muito bem marcadas. Eu e o


representante da FUNAI insistíamos na importância do novo estatuto nascido
na Constituição de 1988, que reconhece o indígena como cidadão pleno, sendo
assim capaz de tomar decisões quanto ao planejamento familiar com
autonomia. Os representantes do estado de Mato Grosso do Sul se mostravam
temerários e alarmados com a possibilidade de realização dos procedimentos e
queriam que existisse alguma documentação que pudesse comprovar o
consentimento das indígenas, os protegendo em caso de problemas. E por fim,
o representante da Procuradoria Geral da União agia como árbitro entre estes
dois polos, tentando caminhar entre as duas visões sobre quem são os
indígenas, no limite humanos ou não-humanos.

Ao fim da reunião a decisão foi mais diplomática do que


verdadeiramente resolutiva. Decidiu-se que o antropólogo – neste caso eu –
participaria ativamente do processo de orientação descrito legalmente e que
isso seria comprovado por uma série de documentos. A primeira vista esta
parece a situação ideal, mas surgem dois problemas: primeiramente dá um
estatuto de autoridade a palavra do antropólogo indesejado – ele se torna o
tradutor das volições das indígenas e por isso digno de ser escutado, pois
reproduz o não-humano em humano e em segundo plano se houver ausência
do antropólogo não há quem traduza o discurso, o que torna as indígenas
pleiteantes da laqueadura incomunicáveis.

4
Segundo o site da instituição: “A Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul (PR/MS)
é a unidade do Ministério Público Federal (MPF) que atua no estado de Mato Grosso do Sul
nos casos de competência da Justiça Federal em primeira instância. Os procuradores da
República exercem suas funções nos processos em tramitação nas varas e juízos federais e
também nas ações ajuizadas perante o Tribunal Regional Eleitoral, por meio da Procuradoria
Regional Eleitoral”.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

A questão não findou com esta reunião e o que eu mais temia ocorreu,
em meio aos processos burocráticos e as turbulências políticas o tema foi
sendo arrastado nas instâncias superiores, até que eu mesma deixei meu
posto de trabalho no DSEI-MS, com a questão não estando definitivamente
resolvida. A insistência na interpretação das indígenas como portadoras de
uma humanidade completa e assim sendo não necessitadas da mendicância
de autorização sobre seus próprios corpos continua, nas mesmas e em novas
batalhas diuturnamente.

CONCLUSÃO

As cenas aqui narradas nos levam a reflexões sobre o papel da


antropologia entre dois discursos: o administração pública e o biomédico.
Todos os acontecimentos ocorridos, tanto os aqui narrados, quanto outros mais
que aqui não registro, dentro do período que trabalhei na chamada “saúde
indígena”, me levam a refletir sobre o questionamento de Foucault (1999):
“Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus
discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo? ” (p. 8).

Talvez, o maior perigo seja que discurso e poder andam de mãos


dadas. As necessidades técnico-administrativas imputadas ao trabalho do
antropólogo querem dominá-lo: descrever e catalogar a serviço do estado
contribui para decisões acertadas, a sua fala se torna ferramenta. As
necessidades do discurso biomédico também podem instrumentalizar a
antropologia como apenas mais um discurso confirmatório de seu próprio
estatuto de verdade. Neste cabo de guerra, quem realmente importa?

Creio eu que quem importa é a população indígena, no caso deste


relato estas mulheres, que tem suas vontades - no caso das solicitantes da
esterilização voluntária definitiva - e suas dores – como Dona Damiana –
silenciadas, pois o estatuto de humanidade muitas vezes lhes é negado. O
papel do profissional em antropologia fora da academia ainda está em
construção no Brasil. Uma coisa é certa, ele não tem relação com um impulso
adâmico classificatório entre humanos e não-humanos, mas sim com a luta por
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mais espaços discursivos para todos aqueles que possuem um estatuto de


humanidade não reconhecido, nunca acima mais ao lado destes povos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ranna Iara de Pinho Chaves. 2011. “Os sentidos da casa”:


dinâmicas entre histórias de vida e mercado imobiliário em um condomínio
horizontal. Monografia de Graduação. Universidade de Brasília.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

CORRADO, Elis Fernanda. 2013. “Acampamentos Kaiowá: variações da “forma


acampamento””. Ruris, 7(1):127 – 151.

FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. “Ser afetado”, Cadernos de Campo, 13:155-


161.

FOUCAULT, Michel. 1999. “A Ordem do Discurso”. São Paulo: Loyola.

LANGDON, Esther Jean; WIIK, Flávio Braune. 2010. “Antropologia, saúde e


doença”: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde.
Rev. Latino-Am. Enfermagem. 18(3):173-181.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2005. Nota Técnica nº 028/2005/CGASI/DESAI -


Assunto: Planejamento familiar em comunidades indígenas.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2013. Nota Técnica n° 13/2013 – DASI/SESAI/MS.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2013. Parecer Técnico n° 35/2013 – DIASI/DSEI-


MS/SESAI/MS.

OLIVEIRA, Jorge Eremites de; PEREIRA, Levi Marques. 2012. “Terra Indígena
Buriti”: perícia antropológica, arqueológica e histórica sobre uma terra terena na
Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul – Dourados: Ed. UFGD.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

SANTOS, Alessandra Carla Baia dos (et. all). 2012. “Antropologia da saúde e
da doença”: contribuições para a construção de novas práticas em saúde. Rev.
NUFEN [online]. 4(2):11-21.

TEIXEIRA, Carla Costa. 2012. “A produção política da repulsa e os manejos da


diversidade na saúde indígena brasileira”. Revista de Antropologia, 55 (2):567-
608.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

THE ZIKA EPIDEMIC IN BRAZIL: STATE AND THE (RE)PRODUCTION OF


INEQUALITIES

Adalgisa Bozi Soares 1


Abstract
The discovery that the zika virus could cause microcephaly and severe
neurological malformations in fetuses and newborns caused alarm in 2015. A
year later, it was clear that, in Brazil, most of the affected people were poor
women and children in the northeast, indicating that zika congenital syndrome is
embedded within unequal structural stratifications organized along the axes of
race, gender, class and regional differences. This article analyses if the efforts
articulated and enacted by the Brazilian state for the facing of the epidemic have
further reproduced, through discourse and practices, the biopolitical management
of the population that upholds violent structures of exclusion and end up leaving
certain people, who are racialized, gendered, regionalized and poor, more
vulnerable to certain kinds of diseases. I utilize bureaucratic documents, such as
inter-ministerial agreements, clinical protocols, executive decrees, etc.,
particularly those related to the Area II (“medical assistance to the [affected]
people”) of the “National Plan for the Combat of the Aedes Mosquito and its
Consequences” to analyze relationships of power. Their content and effects can
shed a light as to how the state constructs the categories of people affected, such
as “women,” “children” and “families”. In doing so, I seek to shed light into how
these subjects were constructed and how state actions, by utilizing these
categories, could reproduce structural inequalities that constitute these subjects
in the first place, entrenching, rather than addressing, reproductive health and
rights deficits that made certain women particularly vulnerable to the zika
epidemic.

Key-words: Biopolitics, Inequalities, Zika Virus, Reproductive Health and Rights

1
Master in Development Studies (Class of 2017), the Graduate Institute of
International and Development Studies, Geneva, Switzerland.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introduction
In the wake of the atypical increase of microcephaly cases in the Northeast
of Brazil in 2015, the Brazilian federal government declared a Public Health
Emergency of National Concern (Emergência de Saúde Pública de Importância
Nacional - ESPIN). In the scope of the ESPIN Brazilian government tried to
organize its bureaucracies and institutions, in the three administrative levels
(federal, state and municipal), in order to identify the etiology and gather
epidemiological data on the epidemic; combat the vector; produce knowledge
and educate officials and health personnel on the epidemic and its
consequences; and provide the necessary assistance and care to those affected,
with various degrees of success.
The efforts on the federal level of government were organized within the
scope of the “National Plan for the Combat of Microcephaly,” later renamed
“National Plan for the Combat of the Aedes Mosquito and its Consequences,” 2
which was a simple document consisting of three “areas” in which the government
would articulate efforts for addressing the zika virus and microcephaly. 3 The
parallels to dengue were established throughout the document, from the cover,
which highlighted the information that the “Dengue mosquito can kill and is even
more dangerous to pregnant women… it can transmit zika, which can cause
microcephaly”, to the content, which used the same lines and slogan as the
previous dengue campaign to engage people in the efforts for the control of the
Aedes mosquito. 4
This article analyses the documents by the federal government that have
framed state action in regard to area II of the national plan (“medical assistance

2
There was no official explanation for the change in the name, which happened
around April 2016. In interviews, officials claimed the modified name was more
precise and more inclusive of all actions within the plan.
3
At the declaration of the ESPIN and in the first months of action, all official
documents referred to “microcephaly”. Afterwards, it became known that zika
congenital syndromes had other symptoms and in October 2016 the Ministry of
Health Protocols would establish that microcephaly was not the primary
symptom of zika congenital syndrome.
4
“Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia”, Ministério da Saúde,
accessed 04 February, 2016,
http://portalarquivos.saude.gov.br/images/campanhas/dengue2015/Broadside_
Microcefalia_20x28_V2.pdf. Translated by the author.
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to the [affected] people”). 5 My goal is to unpack the main categories mobilized by


the state, such “women” and “affected people”, as to unveil how these subjects
were constructed and how state actions, by utilizing these categories, could
reproduce structural inequalities that constitute these subjects in the first place,
entrenching, rather than addressing, reproductive health and rights deficits that
made certain women particularly vulnerable to the zika epidemic.
This approach is based on the idea that documents have certain
characteristics which make them interesting for the analysis of power. Wendy
Espeland argues they often, and deliberately, exclude context, effectively
disconnecting and invisibilizing social relationships of power; the assumptions
and constraints which frame the production of the documents are usually not
disclosed; they feature information that is easily collected while excluding
information that is more difficult to collect and interpret; and finally, they are
usually written in a way as to “minimize conflict and foster the impression of
impartiality” (Espeland, 1993:298-99). By looking at the articulation of categories
in documents, the “patterns of inclusion and exclusion,” and “the use of passive
voice and the erasure of agency” it is possible to have a glimpse of how power is
enacted within and by bureaucracies (Ibid., 299).
In this sense, understanding how biomedical discourses and interventions
are framed within state actions is of interest in a context that is marked by
inequalities. Inequalities matter when thinking about health in more than one way.
They are embodied as illness, diseases and death and they are reproduced
through biomedical and institutional response to individual and social ill health.
Paul Farmer places inequality in the center of his analysis of structural violence,
attributing a pathogenic role to social inequality (Farmer, 2003:20). Gender, race,

5
Activities in area I of the National plan have not significantly differed from the
strategies adopted by the Federal Government in the past decades in the context
of dengue epidemics. They have mainly focused on mechanical and chemical
control of mosquito breeding sites, strategies that have been proved ineffective
in the past. In terms of constructing a narrative that justified the continued
infestation of Aedes mosquitos in the country, the government has, again
repeated the same formula employed during dengue campaigns, emphasizing
people’s “responsibility” in allowing breeding sites to exist, attributing the cause
of the infestation of people’s negligence. The issue of pubic sanitation has been
almost inexistent in this debate.
Area III of the National Plan focuses on research and development of
technologies.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

and class inequalities are embodied through epidemics, for example, leading to
death, illness and stigmatization (Farmer, 2004:308). These structures engender
a kind of systemic violence that perpetuates oppression and marginalization,
through a system that connects the social, biologic and symbolic dimensions
(Ibid., 307-8).

Facing the Zika Epidemic: Women and the Area II of the National Plan
The second axis of the National Plan, in the first moments of the epidemic,
focused on the dissemination of protocols and guidelines that explained to
doctors and medical professionals the changes in the epidemiology of
microcephaly and instructed them on the diagnostics of microcephaly (later of
zika congenital syndrome) and care for women and children affected. The
protocols addressed services which were already included in the Brazilian Public
Health System (SUS), such as laboratorial and image exams for diagnostics, that
could, in theory, be mobilized in the context of the epidemic, as well as existing
health programmes. As the complexity of the crisis increased, with a growing
number of suspected cases needing definitive diagnostics and care in a
increasing area of the territory (including areas with low density of care facilities)
other normatives, strategies and activities were added to the second axis of the
national plan.
The protocols were particularly vague about the issue of reproductive
health and rights. They mentioned the need to alert women about their
contraceptive options, reinforcing the idea that contraception was provided in
SUS. However, there was no mention to the fact that many women do not have
their contraception needs met through SUS, or any suggestion of different
approaches or strategies to deal with that. Particularly alarming was the fact that
there was no mention about the guidelines regarding the obligation to care for
women who have undergone voluntary abortions. Although voluntary abortions
are criminalized in Brazil, the Ministry of Health has normatives establishing the
obligation of hospitals and medical personal to provide adequate, non-judgmental
and unbiased care to women who have complications due to illegal abortions,
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none of which were reinforced in any of the protocols elaborated the context of
the zika epidemic. 6
Besides the protocols, another relevant federal effort in the scope of the
ESPIN was the implementation of a joint strategy, implemented by the Public
Health System (SUS) and the National Social Service System (Sistema Único de
Assistência Social - SUAS). This joint strategy, called Rapid Strategy of Action
(Estratégia de Ação Rápida - EAR), aimed at allowing states and municipalities
to actively search children with suspected and confirmed microcephaly, organize
health facilities for providing a definitive diagnosis, ensure infants diagnosed with
microcephaly were receiving adequate medical care and fast track the affected
families into social security programmes and benefits, specially the extremely
poor. To enable municipalities and states to provide these services, states
received R$ 2,200 for each children. The total amount of money could be used
at the states’ discretion – in some places, it was important to provide
transportation and accommodation for women and children who lived far away
from hospital and care facilities, other places had to pay private hospitals for the
use of tomography scanners, for example.
The strategy was supposed to last from March to May 2016 and cover
4,976 infants, that is, the infants that were notified until March; it ended up being
extended until October 2016 covering the cases notified until that point, 9,770
cases. 7 69.1% of the overall cases during the EAR were diagnosed (2,347 were
confirmed as microcephaly and 4,401 were discarded), and 30.9% were still
under investigation by the end of the strategy. Of the confirmed cases, 73.7%
were in the Northeast.
The diagnose was necessary for fast-tracking children with microcephaly
(and afterwards zika congenital syndrome) into certain social security schemes,

6
In 2014, for example, a Brazilian newspaper found that 33 women had been
arrested that year for their voluntary abortions, most of after doctors reported
them to the police, which indicates that some doctors do not comply with the
abortion normative. “33 Mulheres Foram Presas Por Aborto Em 2014 |
EXAME.com - Negócios, Economia, Tecnologia E Carreira,” Exame, December
22, 2014, http://exame.abril.com.br/brasil/33-mulheres-foram-presas-por-aborto-
em-2014/.
7
Instrução Operacional Conjunta no. 01-MS-MDSm; Ministério da Saúde,
Boletim Emidemiológico v.48, n.6, 2017.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

particularly the BPC (Benefício de Prestação Continuada – Continuous Cash


Benefit). Families with a per capita income of less than a quarter of the monthly
minimum wage and with at least one family member with significant disabilities
are eligible to this benefit. The amount of families that requested to be included
into BPC indicates that most of the affected children and families were living in
poverty. Until October 2016, 8 when the number of confirmed cases of
microcephaly was 2,347, the National Institute of Social Security reported
receiving 2,276 requests for the BPC, having approved the payment in 1,532
cases and still analyzing 111 cases. Although 633 other cases had been refused
on the basis of income, the fact that they were requested in the first place
indicates that these families were also poor, 9 although not so poor as to qualify
for the BPC. This means that around 97% of families with diagnosed children, at
that point, had requested the BPC and 65% of them had been granted the benefit
by proving their extreme poverty.
The information that well over half of the children affected lived in
households are impoverished enough to qualify for the BPC brings attention to
the issue of how these families were organizing themselves to provide affected
children with the care they needed. That is because children affected by
congenital zika syndrome need around the clock care (most of them have many
convulsions a day, it appears that many children have difficulties swallowing, they
cry a lot and are extremely irritable). As the children grow, it is becoming clear
that many of them will have very limited mobility, hearing and visual impairments
and speech difficulties. Unlike other children born without zika congenital
syndrome, it is unlikely they will ever forgo the need for care at all times, which
means that someone (most likely their mothers) will be required to provide
dedicated care for the children, likely impeding the caretaker to work outside the
household. Additionally, in order to guarantee the continuation of treatment
(going to specialists, early childhood care and early stimulation), the caretaker

8
Ministério da Saúde, “1 ano com Zika,” Presentation at the Ministry of Health,
18 November 2016,
http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2016/novembro/18/Aumento-do-
Cuidado-com-as-famlias-gestantes-e-bebes-com-edicao.pdf.
9
The criteria for the granting of the BPC are very rigid and income is determinant
for this benefit. This is why it is extremely likely that all families that apply have a
per capita income that is at least close to ¼ of the minimum monthly wage.
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

will have to be available many days a week to take the children out of the
household, a situation made difficult if the family has other children/elderly people
that need care and if they cannot afford transportation. It is obvious, then, that
guaranteeing access and continuation of care requires a closer look to gendered
family dynamics as well as to the inadequacy of state equipment that should offer
care facilities and education services that these families need. In this sense, by
addressing the issue of care/attention mostly in medical terms, the activities on
area II of the national plan further a perspective of care as a private matter, to be
solved by families, which does not favor poor families and burdens women in
particular.
Furthermore, a closer look into the issue of reproductive health and rights
is necessary. From the beginning of the crisis, women’s advocacy groups have
argued that
“pregnant and childbearing-age women all across the country are living the
stress and even the panic of giving birth to a child with microcephaly. Every
prenatal visit and every ultrasound test is a moment of emotional torture.
It is urgent and necessary that responses to the zika virus epidemic include
the issue of women’s reproductive rights” (Pitanguy, 2016:1).
From the moment when the connection between zika and neurological fetal
malformations was made, the government advised women to avoid being bitten
by mosquitoes when pregnant. Considering the historical failure of the
government in tackling the aedes infestation and the lack of short term solution
for this issue, civil society organizations demanded the government: 1) assist
women in better controlling their reproduction by improving the distribution of
contraception; 2) remove legal barriers that prevent women from deciding if they
wanted to be pregnant; and 3) protect their pregnancy from zika infection through
the distribution of mosquito repellents. 10

10
Some of these claims have been summarized by ANIS, a feminist organization
specialized in strategic litigation and research, and ANADEP, the National
Association of Public Defenders, in a lawsuit in the Brazilian Supreme Court
accusing the government of violating the fundamental rights of women regarding
the zika epidemics. In the Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI – Direct Suit
of Inconstitutionality) 5581, they claim that the state is violating fundamental
principles of the Constitution by failing to provide effective public policies to: 1-
appropriately inform citizens about zika, the risks related to neurological disorders
and effective means of prevention; 2- guarantee access to family planning, and
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

It is interesting to note the difference in the response from the government


to these different demands. A high-level decision for the purchase of R$ 300
million in mosquito repellents was almost immediate: the President signed an
executive order assigning this amount (the largest extra-budgetary allocation to
the zika crisis) in March 2016 and it became a law in July. 11 The repellents
purchased with these resources are being given to poor pregnant women who
receive the Bolsa Família benefit. Each one of them should receive two tubes of
repellent per month during their pregnancy. The implementation of this measure
has been delayed and the process of purchasing and producing the first delivery
of repellents ended in February 2017. The distribution began in March 2017.
This measure was not completely uncontroversial. While there was
widespread public support to the distribution of repellents, some specialists and
government employees opposed this measure, arguing that the investment was
not sustainable, that is, the continual provision of repellents against mosquito-
borne infections seemed to some as a poor substitution for the improving of
sanitary infrastructure. This biotechnological investment does nothing for
addressing the causes of Aedes infestation and was not matched by any
investment in public infrastructure. This is not to say that the distribution of
repellents is not important in this crisis, especially considering that middle-class
and upper-class women were immediately able to buy them and comply with
government orientations of avoiding being bitten by mosquitoes and poor women
were not. It is, however, important to stress that this does not provide any kind of
sustained, long-term solution to the problem of mosquito infestation.
If, on the one side, the legitimacy of protecting pregnant women from zika
with the use of biochemical tools was immediately recognized (even if not
immediately acted upon), on the other side, women’s reproductive health and
rights did not receive the same attention. The protocols and orientations
disseminated by the Ministry of Health did mention contraception but did not
propose any new strategy, despite the fact that existing policies fail to meet

more specific long-term reversible methods of contraception, as well as mosquito


repellents (in the context of guaranteeing healthy pregnancies); 3- guarantee
appropriate care to affected children; and 4- guarantee the voluntary interruption
of pregnancies to women who have been infected with zika.
11
Presidência da República, Lei 13.310/2016, last accessed 18 February 2017,
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13310.htm
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

women’s needs for contraception (Leal 2012: 1420–21). 12 Many factors


contribute to the high percentage of unplanned pregnancies in Brazil: women
might not be able to negotiate the use contraception with partners or use
contraceptive methods, such as the pill, properly; religious bias by medical staff
may make them less prone to prescribe and instruct women on contraception;
administrative rules regarding how to access contraception, like operating hours
of clinics, make it difficult for working women to acquire contraception; among
other possibilities. The protocols indicated that doctors and medical staff should
discuss contraception with women of reproductive age, but offered no insight or
instructions regarding the need for a different approach in terms of providing
contraception.
The problems in the provision of contraception are further aggravated by
the criminalization of abortion. Abortion is of one of the most important health
issues for women in Brazil, as 1 in 5 women will have had an abortion until the
end of their reproductive lives and half of the women who have had an abortion
needed afterwards hospital care due to complications (Diniz and Medeiros,
2010:962). Additionally, poor women who need hospital care are at risk not only
due to unsafe abortion, but also due “to the strong stigmatization of abortion and
to the ‘institutional violence’” (de Zordo, 2016:31). Evidence that women have
resorted to abortion in the scope of the zika crisis is scarce, due to the illegality
of the procedure, but it is not unreasonable to assume many women would have
resorted to illegal abortion. As mentioned before, through the protocols, medical
staff did not receive any instruction regarding how to adequately treat women
who had abortions during the time in which they feared for their pregnancy due
to the increasing number of children born with neurological malformations.
It can be argued that both the government and civil society have targeted
“women” in their response to the crisis. Nevertheless, there are fundamental
differences in how each of them has constructed the category of “women”. While
feminist and women’s organizations have focused on women as holders of rights
to their bodies (the right to choose if and when to be pregnant, as well as their
right to a safe pregnancy), the government has emphasized in their response to

12
According to this research, which is the largest of its kind in Brazil and is used
as reference by the Ministry of Health, only 45% of pregnancies “have been
planned for the time at which they eventually occurred.”
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

the zika congenital syndrome women as “mothers” or, at least, potential mothers.
Women appear, in most of the documents related to the national plan, campaigns
and in the protocols for clinical attention as mothers who want to avoid
microcephaly-zika congenital syndrome/mother of infants with microcephaly-zika
congenital syndrome. This framing avoids a discussion about abortion and
contraception.
The centrality of the idea of “women” as “mothers” is not accompanied,
however, by strategies or actions that deal with the issue of care, apart from
orientations regarding the neurological development of children. That is,
instructions about how to stimulate the neurological development of affected
infants exist, but they do not get into the complicated matter of how low income
families organize care, erasing structural violence that shapes and influences the
kind of attention and care women as mothers can actually dispense to their
children.

In lieu of a conclusion: the end of the emergency


The end of the ESPIN was announced on May 12th, 2017. The Ministry of
Health used a risk evaluation based on the parameters established by the
International Health Regulations (IHR) in order to establish that the situation in
Brazil did not constitute an emergency anymore. It is important to emphasize that
the scope of the IHR is defined as "to prevent, protect against, control and provide
a public health response to the international spread of disease in ways that are
commensurate with and restricted to public health risks, and which avoid
unnecessary interference with international traffic and trade". 13 As such, a health
emergency is defined in terms of the possibility of a disease to spread from one
state to other states and its potential impacts in international flows of goods and
people. On the occasion of the event that marked the end of the national
emergency, the “decision instrument” for the notification of events to the WHO
under IHR was simply translated into Portuguese in order to provide a technical
argument for the end of the national emergency. 14

13
“WHO | Ten Things You Need to Do to Implement the IHR,” WHO, accessed
May 16, 2017, http://www.who.int/ihr/about/10things/en/.
14
According to the PAHO website, the decision of notifying the WHO of an event
must take four points into consideration: Is the public health impact of the event
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

The data selected for the presentation 15 told one story about the zika
emergency: the story of the mosquito, which is on its way to be defeated through
technology, and its consequences, addressed by an increase in facilities and
training for dealing with neurological symptoms of children. The presentation
about the end of the ESPIN does not articulate the relationship between
investments in care (rehabilitation centers and training of doctors) and the social
world in which the affected people are inserted. Except for the numbers on
notification and diagnosis, no other relevant information was provided on the
people affected. Although some of this information can be found in other
government documents, it is worth of note that the people affected, their realities
and the challenges they face were not part of the narrative for the end of the
ESPIN. The announcement of the end of the ESPIN ended up confirming the idea
that the structural violence that is embodied as disease – the open sewages, the
risks which women who decide not to be pregnant face, the endless wait in public
hospital, the lack of transportation that causes early stimulation appointments to
be missed, the insufficient and unreliable income that determines where people
live – have little place in the official discourse about the epidemic
Gender, race, class and regional inequalities organize the environment
and social, economic and political lives of those affected by the zika epidemic.
The state response, considering the categories mobilized in the documents
analyzed, in many ways failed to address these structures. By failing to address
their sexual and reproductive rights, women are burdened with the costs and
consequences of planning their reproductive lives, in a context where adequate

serious? Is the event unusual or unexpected? Is there a significant risk of


international spread? Is there a significant risk of international travel or trade
restrictions? (Source:
http://www.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=5720
%3A2011-risk-assessment-dva&catid=3889%3Aaro-
contents&Itemid=4113&lang=en). If an event meets two or more of these criteria,
it must be reported to the WHO. In the occasion of the beginning of the
emergency, the government considered that the spike in microcephaly met the
two first criteria. In the event of the end, they considered that the neurological
consequences of zika were not unusual or unexpected anymore.
15
Presentation “Ministry of Health announces the end of the public emergency of
the zika epidemic,” accessed 11 May 2017,
http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/maio/11/11.05.2017_Coletiv
a%20Zika.pdf
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

contraception may be hard and expensive to acquire, and exposed to the risk of
illegal abortions, risks and costs that affect poor, non-white and less educated
women the most. The lack of provision of financial support to all poor families
(and the insufficient support to the extreme poor families who receive the BPC)
impacts not only the quality of care the children receive, but the lives of the
caretakers (who are mainly women), stripping them of choices regarding work,
education, political participation, and all other spheres of life.

Bibliography

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elegis/gm/2015/prt1813_11_11_20
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Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

http://www.cosemspa.com.br/word
press/wp-
Preliminary procedures content/uploads/2015/11/microcefa Ministry of Health
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for the Presidential 03/_ato2015- President of the
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and microcephalies 7_Coletiva%20Zika.pdf 11-May-17 Surveillance)
Area II
Joint Operational http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/j
Instruction 01Ministry sp/visualiza/index.jsp?data=11/04/ Ministry of Health
of Health and Ministry 2016&jornal=1&pagina=61&total and Ministry of Social
of Social Development Arquivos=88 25-Feb-16 Development
Interministerial Decree
405/2016 on the
creation of the EAR in http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saud Ministry of Health
the scope of the SUS elegis/gm/2016/pri0405_15_03_20 and Ministry of Social
and SUAS 16.html 15-Mar-16 Development
Joint Operational https://www.sigas.pe.gov.br/files/0
Instruction 02 Ministry 4252016115718- Ministry of Health
of Health and Ministry instrucao.operacional.conjunta.02. and Ministry of Social
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Lower House of SNCC-4-2016-PROTECAO-E- (Secretariat of Health
Parliament on the EAR DEFESA-CIVIL.pdf 15-Jun-16 Attention)
http://portalarquivos.saude.gov.br/i
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Presentation “One year mento-do-Cuidado-com-as-
with zika” by the famlias-gestantes-e-bebes-com-
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http://portalsaude.saude.gov.br/ind From 17 (Secretariat of Health
ex.php/o- November Surveillance and
Epidemiological ministerio/principal/secretarias/svs/ 2015 to 25 Secretariat of Health
Bulletins on zika boletim-epidemiologico#assunto March 2017 Attention)
Protocol of
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Response to the http://portalarquivos.saude.gov.br/i
Occurrence of mages/pdf/2015/dezembro/09/Micr
Microcephaly Related ocefalia---Protocolo-de-vigil--ncia- Ministry of Health
to the Infection by Zika e-resposta---vers--o-1---- (Secretariat of Health
Virus 09dez2015-8h.pdf 09-Dec-15 Surveillance)
Grupo de Trabalho 5 II Reunião de Antropologia da Saúde

Protocol of Health
Assistance and
Response to the
Occurrence of http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publi
Microcephaly Related cacoes/protocolo_resposta_microce Ministry of Health
to the Infection by Zika falia_relacionada_infeccao_virus_z (Secretariat of Health
Virus ika.pdf 14-Jan-16 Attention)
Directives of early
stimulation: children of
0 to 3 years of age with
neuropsychomotor Ministry of Health
delay due to http://portalarquivos.saude.gov.br/i (Secretariat of Health
microcephaly mages/pdf/protocolo-sas-2.pdf 13-Jan-16 Attention)
Surveillance and
Response to the
Occurrence of
Microcephaly and/or http://combateaedes.saude.gov.br/i
Alteration in the mages/sala-de-
Central Nervous situacao/Microcefalia-Protocolo- Ministry of Health
System Related to the de-vigilancia-e-resposta- (Secretariat of Health
Infection by Zika Virus 10mar2016-18h.pdf 10-Mar-16 Surveillance)
Integrated Surveillance
and Health Assistance Ministry of Health
Orientations in the (Secretariat of Health
Scope of the Public http://combateaedes.saude.gov.br/i Surveillance and
Health Emergency of mages/pdf/orientacoes-integradas- Secretariat of Health
National Concern vigilancia-atencao.pdf 12-Dec-16 Attention)
Grupo de Trabalho 6
Jovens e saúde: desigualdades, diferenças
e possibilidades
Coordenadoras: Breitner Tavares (UnB); Marcia Longhi
(UFPB) e Mónica Franch (UFPB)
Grupo de Trabalho 6
Jovens e saúde: desigualdades, diferenças, possibilidades
Este GT se destina à apresentação e debate de pesquisas, intervenções e
formulações propositivas que articulem questões de juventude e saúde na
contemporaneidade. Historicamente, a relação dos jovens com o campo da
saúde aponta para dois caminhos. Por um lado, os jovens têm sido
representados a partir de figurações de valores que os sujeitam a experiências
específicas de saúde, adoecimento e risco. Por outro lado, as práticas, estilos
de vida e de consumo juvenis têm sido, com frequência, medicalizados,
contribuindo para o controle social de suas expressões culturais e políticas.
Considerando as diferentes formas de representar e vivenciar os ciclos da vida
em contextos marcados pela diversidade sociocultural, a proposta deste GT é
compreender a articulação juventude/saúde em relação com marcadores
sociais como gênero, classe, territórios, raça, entre outros. As temáticas que
podem ser discutidas incluem questões de saúde sexual e reprodutiva
(gravidez, aborto, contracepção), de saúde mental (depressão, suicídios),
incluindo os chamados transtornos alimentares, e também questões relativas
ao consumo de álcool e outras drogas. Além disso, sabe-se hoje que a
violência na forma de homicídios é uma das principais causas de mortes não
naturais entre jovens no País. Trabalhos que tratem desse tema transversal
também serão benvindos.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

A MEDIDA DE SEGURANÇA NO DIREITO BRASILEIRO: APLICABILIDADE,


LACUNAS E PERSPECTIVAS

Flávia Siqueira Corrêa Zell1


Orientadora: Érica Quinaglia Silva2

RESUMO

A constituição Federal de 1988 atribui ao Brasil o modelo de Estado Democrático de Direito.


Este modelo tem o condão de impor limites ao poder exercido pelo governante, pois este tem
seus atos vinculados à previsão legal de uma legislação, pois o conteúdo normativo se
subsuma à ideia de legitimidade e justiça perante a população. Esta mesma Constituição que
define o Brasil como um Estado Democrático de Direito estabelece, em seu art. 196, que a
saúde (na sua conceituação ampla, abrangendo os diversos ramos, nela estando inserida saúde
mental) é direito de todos e dever do Estado, sendo garantida através de políticas públicas
(sociais e econômicas) que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem
como que este acesso deve ser universal e igualitário. A doença mental quando associada à
periculosidade, em virtude da concretude de um crime durante um estado de saúde
perturbado, recai na semi-imputabilidade ou na inimputabilidade de seu agente. Isso significa
que essa pessoa, por ser parcial ou totalmente incapaz de entender a ilicitude do ato cometido,
é absolvida. Sobre ela deve recair não uma pena, mas um tratamento. No entanto, é exaltada a
periculosidade de sua ação, e consequentemente de sua pessoa, acarretando em medidas
carcerárias contrapondo as medidas clínicas exigidas na legislação brasileira. O objetivo é
demonstrar, justamente, que mesmo que nosso ordenamento jurídico não tenha previsão legal
para a pena com caráter perpétuo, nas situações fáticas que recaem na medida de segurança, o
discurso do medo, que para muitos ganha legitimidade pela periculosidade dos sujeitos, se
sobrepõe a esta vedação legal, tendo consequência o encarceramento por prazo indeterminado
de indivíduos que cometem delito, mas que não deveriam ser penalizados em virtude de seu
estado clínico no momento do ato delituoso, estado este que subtrai deles o discernimento do
certo e errado para uma tomada de decisão racional.

Palavras-chave: Legislação. Saúde Mental. Crime. Periculosidade. Prisão Perpétua.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, Mestre em
Segurança Pública pela Universidade Federal do Pará. Especialização em Direito Público pela Universidade
Católica Dom Bosco e Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera. Graduação em Direito pela
Universidade da Amazônia. Graduação em Gestão de Riscos Coletivos pelo Instituto de Ensino de Segurança do
Pará. Servidora Pública do Estado do Pará. E-mail: [email protected].
2
Professora das Universidades de Brasília e Federal do Pará, doutora em Antropologia, Sociologia e
Demografia pela Université Paris Descartes (Sorbonne) e Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-
doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fundação
Oswaldo Cruz, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense. E-mail:
[email protected].
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

1. INTRODUÇÃO

A dicotomia loucura e racionalidade para muitos, como FOUCAULT e FRAYZE-


PEREIRA não ocupa lados opostos, pois a loucura seria interior à razão. Convivemos com
ela, mas temos dificuldade em aceitá-la, por isso preferimos falar da loucura do outro.
As acepções da loucura foram tratadas de diferentes formas, mas sempre estando
englobadas em dois grandes conjuntos: o primeiro, que considera a loucura como saber, pois
haveria desvelamento do real na recusa do mundo instituído; e o segundo, que é a tendência
mais forte, que considera a loucura como uma falha de forma pessoal associada ao desvio do
grupo social, tornando os loucos perigosos para os outros e para si mesmo. Nos dois grupos
citados, o louco se encontra isolado do mundo comum dos mortais, quer seja o louco um
doente ou um conhecedor da verdade.3
Três são as perspectivas contemporâneas sobre a natureza da loucura. A primeira traz
a fórmula de Carl Wernicke: “as doenças mentais são doenças cerebrais”. É uma perspectiva
organicista, que reduz as doenças mentais a fenômenos produzidos por distúrbios cerebrais e
constitui “o dogma da Psiquiatria Clássica”. A segunda é a perspectiva psicofuncional, que
encara a loucura como uma desorganização da “personalidade”. E a terceira perspectiva,
social, consideraria a loucura para além de suas manifestações físicas e mentais. A loucura
seria relacional, não podendo ser definida em si mesma, como um fato isolado, pois o
indivíduo é doente em relação aos outros, relativizada, portanto, por uma maneira de ser em
detrimento de outra, quando esta outra é dita como normal pelos padrões da sociedade.
Ademais, a loucura seria relativa ao contexto social e ético no qual é elaborada.4
Para Freud, o mal-estar na civilização (Ocidental) adviria da árdua tarefa de encontrar
um equilíbrio entre o indivíduo e a sociedade. O ser humano se tornaria neurótico ou
psicótico à medida que fosse submetido a privações impostas pela sociedade, pois o objetivo
é juntar indivíduos isolados, famílias, povos, nações, numa grande unidade chamada
humanidade, à custa da repressão e da sublimação de pulsões. A sociedade faz surgir, assim,
no indivíduo um sentimento de culpa, associando-o a algo que se desejou fazer e que é
reconhecido como “mau” pela sociedade. No entanto, aquilo que é considerado “mau” pela
sociedade pode proporcionar prazer ao indivíduo. Nos casos de arrependimento, há uma
“consciência de culpa” em vez de sentimento de culpa. Na neurose obsessiva, o sentimento

3
FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
4
Idem, p. 17-21.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

de culpa se impõe de modo ostensivo à consciência, gerando um quadro patológico de um


“sentimento de culpa inconsciente”, numa inconsciente necessidade do castigo.5
Segundo Grinberg, tanto na neurose, considerada como tentativas ineficazes de lidar
com conflitos e traumas inconscientes, que pode estar naturalmente presente em qualquer
pessoa; como na Psicose, considerada uma desordem psicótica que prejudica o pensamento, a
percepção e o julgamento, e que pode afetar uma pessoa que experimente um episódio
psicótico sem ter sido diagnosticada com uma doença mental; em ambos os casos, a culpa
persecutória se encontra basicamente na origem e evolução desses quadros. Cada neurose ou
psicose, como expressão de um luto patológico, será o resultado de uma modalidade
particular com que foram tratadas a ansiedade e a culpa persecutória de acordo com as
características específicas de cada caso.6
No período do século XV e XVI, os acometidos de algum desvio e descontrole
correlacionada a demência ou desrazão, eram comumente homogeneizados e enquadrados
pela expressão loucura, e circulavam livremente entre os considerados “normais”. Após o fim
das Cruzadas, as “cabeças alienadas” sofreram uma exclusão social que era justificada pela
reintegração espiritual. A medida adotada para o controle do aumento do número de loucos
foi a “higienização” da sociedade com a retirada desses doentes do convívio dos considerados
sadios. As “cabeças alienadas” passaram a sofrer a exclusão social. Uma das figuras
reportadas na obra de Foucault quando se fala da loucura é a Nau dos Loucos, retratada em
composições artísticas e literárias.7
A Narrenschiff de Brant (1497) transbordou a ilusão fantasiosa artística e teve sua
existência real. Eram barcos que tinham como cargas pessoas consideradas insanas que
circulavam de uma cidade para outra. A navegação do louco era simultaneamente a divisão
rigorosa e a passagem absoluta, pois primeiro isolava-o, evitando que ficasse vagando com
sua loucura pela cidade, depois possibilitava-se a passagem, tornando-o prisioneiro de sua
própria partida com o sentido simbólico da purificação transmitida pelo elemento água,
durante a transposição dos mares.8
No decorrer do século XVII o ambiente da loucura é voltado para a área hospitalar,
privando a loucura de alguma relação com a verdade; sabedoria e loucura se separam, a partir
do racionalismo moderno. A loucura englobava na maioria dos casos duas categorias:

5
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997.
6
GRINBERG, L. Culpa y deprestón. Buenos Aires, Paidós, 1971.
7
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008.
8
Idem, p. 84 – 87
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

pobreza e ociosidade, o que impossibilitaria o indivíduo de integrar-se ao grupo majoritário.


A loucura era correlacionada, portanto, ao “reino do mal”. 9 O internamento destinava-se aos
loucos, que incluíam, nesse século, os libertinos, os profanos, os mendigos.10
Após a Revolução Francesa (1789-1799), a Psiquiatria se apropriou da loucura como
doença. É neste período que a loucura vai ser trazida para o plano médico, transformando as
casas de internamento em asilos. FOUCAULT em sua obra A História da Loucura cita dois
grandes exemplos de asilos: um montado por S. Tuke na Inglaterra, e outro por Ph. Pinel na
França. Nenhum dos dois eram psiquiatras, mas montaram asilos com características
marcantes e diferenciadas em torno da humanização do tratamento. Tuke traz o modelo de
uma comunidade religiosa com características de um ambiente familiar, na qual a cura se
daria pela “inscrição no doente dos sentimentos de dependência, humildade, culpa,
reconhecimento, que constituem a base moral da vida familiar”. Na França, as técnicas
empregadas por Pinel são semelhantes. Em suma, “a grande tarefa do asilo era (e ainda é
até hoje) homogeneizar todas as irregularidades, denunciar tudo aquilo que se opõe às
virtudes da sociedade”. Neste espaço social, o doente sofre o processo de acusação,
julgamento e condenação.11

2. A INIMPUTABILIDADE E SEMI-IMPUTABILIDADE DO LOUCO INFRATOR

A legislação brasileira, ao trabalhar o tema, prevê por meio do Código Penal


Brasileiro que o agente do ato delituoso quando no momento do delito não está com as
faculdades mentais preservadas, influenciando na falta de discernimento entre o considerado
certo e o errado dentro das normas jurídicas pré-estabelecidas, pode ser caracterizado como
semi-imputável ou inimputável.
Ou seja, se o sujeito possui doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado e por isso era, ao tempo da ação ou da omissão que tipifica um crime, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento, diz-se que ele não possui responsabilidade penal, sendo, portanto, denominado

9
Expressão utilizada na obra O que é Loucura? De FRAYZE-PEREIRA (1994, p. 67): A sociedade moderna do
século VXII percebe e isola todo um conjunto variado de personagens que põem em jogo as proibições sexuais e
religiosas, as liberdades do pensamento e dos afetos: devassos, alquimistas, suicidas, blasfemadores,
portadores de doenças venéreas, libertinos de tod a espécie. O internamento, que representa o Bem contra o
reino do Mal e encerra uma cumplicidade entre a polícia e a religião, realiza a ideia burguesa segundo a qual
a virtude é adequada à ordem.
10
FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
11
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 84 – 87.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

inimputável, conforme prevê o art. 26 do Código Penal Brasileiro. Já os semi-


imputáveis são aqueles que, embora aparentemente sãos, e sem ter o discernimento ou
autocontrole abolidos, têm-nos reduzidos ou prejudicados por doença ou transtorno mental.
Em ambos os casos, no primeiro uma obrigatoriedade e no segundo uma faculdade, incide a
medida de segurança prevista no art. 96 do Código Penal Brasileiro, que estabelece que as
medidas de segurança são: Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou,
à falta, em outro estabelecimento adequado; e Sujeição a tratamento ambulatorial.
Nessas condições, o inimputável ou semi-imputável pratica fato previsto como crime
e é absolvido com a aplicabilidade de uma medida de segurança. Trata-se de absolvição
imprópria, já que mesmo com a absolvição há um ação obrigatória a ser executada pelo
agente que cometeu a conduta tipificada nas normas penais, com a sujeição à medida de
segurança.
Vale frisar que tem casos em que o problema psiquiátrico se origina com o sujeito já
encarcerado na penitenciária. Nestes casos, há previsão legal para a aplicação de medida de
segurança em substituição à pena privativa de liberdade, conforme podemos extrair da leitura
do art. 183 da Lei de Execução Penal (LEP): Quando, no curso da execução da pena
privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, o juiz, de
ofício, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade administrativa, poderá
determinar a substituição da pena por medida de segurança.

3. A PERICULOSIDADE COMO REQUISITO DE EXTINÇÃO DA MEDIDA DE


SEGURANÇA

A medida de segurança anteriormente ao Código Penal Brasileiro vigente era vista


como uma necessidade de qualquer sujeito que praticasse algum delito de natureza grave.
Existia o que se chama de sistema duplo binário, ou seja, o sujeito era submetido tanto à pena
privativa de liberdade quanto à medida de segurança, o que para muito significa o bis in idem,
ou seja, a dupla punição pelo mesmo fato originário, o que é vedado atualmente pela
legislação brasileira. O sistema criminal atual é vicariante, sistema de substituição, ou haverá
pena ou medida de segurança, um substituindo o outro, já que o fundamento da pena privativa
de liberdade é a culpabilidade do sujeito, e o da medida de segurança é a periculosidade.
Os discursos da psiquiatria forense em torno da periculosidade criminal e de suas
conexões com a saúde mental trazem uma problemática social à questão, pois, conforme
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Bittencourt, a periculosidade pode ser definida como um estado subjetivo mais ou menos
duradouro de antissociabilidade. É um juízo de probabilidade — tendo por base a conduta
antissocial e a anomalia psíquica do agente — de que este voltará a delinquir.12
Este juízo de probabilidade cabe a um médico, o que leva a instituição médica, em
caso de loucura, a tomar o lugar da instituição judiciária. No entanto, em contrapartida, o
sujeito submetido à medida de segurança fica sob os cuidados do sistema penitenciário do
Estado, o que causa um paradoxo não solucionado ainda na maioria dos Estados Brasileiros.
Trata-se a doença em instituições terapêuticas ou destaca-se o caráter delituoso da conduta
com a vinculação a instituições punitivas?
É inevitável a necessidade do tratamento para ter “cessada a periculosidade”, pois a
existência desta característica justifica a continuidade da internação. Mesmo após o término
do prazo mínimo de duração da medida de segurança, é verificada a cessação da
periculosidade do agente. Este procedimento é regulamentado pelo art. 175 da LEP:

Art. 175. A cessação da periculosidade será averiguada no fim do prazo


mínimo de duração da medida de segurança, pelo exame das condições
pessoais do agente, observando-se o seguinte:
I - a autoridade administrativa, até 1 (um) mês antes de expirar o prazo
de duração mínima da medida, remeterá ao Juiz minucioso relatório que
o habilite a resolver sobre a revogação ou permanência da medida;
II - o relatório será instruído com o laudo psiquiátrico;
III - juntado aos autos o relatório ou realizadas as diligências, serão
ouvidos, sucessivamente, o Ministério Público e o curador ou defensor,
no prazo de 3 (três) dias para cada um;
IV - o Juiz nomeará curador ou defensor para o agente que não o tiver;
V - o Juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, poderá
determinar novas diligências, ainda que expirado o prazo de duração
mínima da medida de segurança;
VI - ouvidas as partes ou realizadas as diligências a que se refere o inciso
anterior, o Juiz proferirá a sua decisão, no prazo de 5 (cinco) dias.

A condição para a soltura do sujeito é a cessação da periculosidade, tanto que se o


exame concluir que o agente ainda é perigoso, o juiz manterá a medida de segurança e o
exame deverá ser renovado de ano em ano, ou a qualquer tempo, se assim determinar o juiz
da execução. A necessidade desse exame demonstra o caráter perene da medida de segurança,
se assim julgar pertinente o juiz, orientado por laudo médico psiquiátrico, conforme prevê o
art. 97, §1º e §2º, do Código Penal Brasileiro. Portanto, a vida social de uma pessoa fica nas
mãos de um profissional que, às vezes envolto pelo discurso do medo, ratifica a

12
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1, 17ª ed., São Paulo, Saraiva,
2012, p. 950.
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periculosidade do sujeito, mesmo não tendo acompanhado a evolução do tratamento médico a


que este foi submetido.
No discurso do medo é constante a contradição entre as expectativas do poder
judiciário, em querer punir o indivíduo que comete delito; e os questionamentos e
relativizações que transbordam os aspectos da medicina legal sobre as relações entre a doença
mental e a periculosidade criminal. O discurso do medo é voltado para o perigo social, que
tem como função detectar o perigo e opor-se a ele, é um discurso de moralização Há,
portanto, a institucionalização das ações do Estado, seja no espaço da prisão, no polo
judiciário, ou em hospital psiquiátrico, no âmbito terapêutico.13
A coleta de informações, obtidos por documentos formais, podem não exprimir a
verdade real da situação psíquica de um indivíduo, mas são utilizados como fomentadores da
periculosidade que serve para o Judiciário como causa de justificação para permanência do
internamento de uma paciente. Esclarece Foucault:
Se eu estudei práticas como as do sequestro dos loucos, ou da medicina
clínica, ou da organização das ciências empíricas, ou da punição legal,
foi para estudar um jogo entre um código que regula maneiras de fazer
(que prescreve como selecionar as pessoas, como educar os indivíduos
etc.) e uma produção de discursos verdadeiros que servem de
fundamento, de justificação, de razões de ser e princípio de
transformações a essas mesmas maneiras de fazer. Para dizer as coisas
claramente: meu problema é saber como os homens se governam (eles
próprios e os outros) através da produção da verdade.14

No estado de Goiás, foi implementado o Programa de Atenção Integral ao Louco


Infrator (Paili), que em sua norma regulamentadora estabeleceu como algumas das
atribuições: Acompanhar os processos judiciais, encaminhados pela justiça, para auxiliar as
autoridades judiciais a realizar dentro dos prazos legais os exames de cessação de
periculosidade; promover discussão com peritos oficiais antes da realização do exame de
cessação de periculosidade, fornecendo a eles maiores informações quanto ao atual estado
de evolução do tratamento e demais informações relevantes para individualização do
exame.15

13
FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
44
14
FOUCAULT, M. (2006b). Poder e saber. In M. B. Motta (Org.). Estratégia, poder-saber (Coleção Ditos &
Escritos, Vol. 4, pp. 223-240). 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 342-343
15
CAETANO DA SILVA, Haroldo (Coord.).Paili: Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator. Goiânia:
MP/GO, 2013. Informação extraída das cláusulas do termo de convênio de corporação técnica e operacional
firmado entre o Estado do Goiás, por intermédio das Secretarias de Estado da Saúde e da Justiça, o município de
Goiânia, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e o Ministério
Público do Estado de Goiás.
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Percebe-se que há, nesse programa, um cuidado para que a emissão do laudo de
periculosidade seja confeccionado em conformidade com a verdade real do quadro clínico do
sujeito a ser examinado, pois atua nesse sistema uma equipe multidisciplinar que municia o
Judiciário com elementos comprobatórios do real estado clínico do sujeito que pleiteia a sua
liberdade. A equipe multidisciplinar é formada por no mínimo 1 advogado, 2 assistentes
sociais, 1 médico psiquiatra, 4 psicólogos e 1 enfermeira.16 Apesar de ter uma equipe
reduzida, o Paili tem abarcado toda a população em medida de segurança do estado de Goiás.
Esse estado é, aliás, o único do Brasil a não ter estabelecimentos de custódia e tratamento
psiquiátrico. O tratamento das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei no
Sistema Único de Saúde (SUS) constitui, assim, uma experiência vanguardista e exemplar.

4. ESTUDO DE CASOS DE EXTINÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA COM


NECESSIDADE DE EXAME DE CESSAÇÃO DE PERICULOSIDADE

Em consulta nos órgãos judiciários de processos públicos, mas especificamente no site


do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, podemos destacar três casos recentes que colocam
em destaque a periculosidade como característica predominante que justifica a tomada de
decisão do Judiciário:

CASO 01:
HABEAS CORPUS LIBERATORIO COM PEDIDO DE LIMINAR
PACIENTE: E. L. M. IMPETRANTES: Eliana Socorro Santos
Vasconcelos – Defensora Pública Waldir Macieira da Costa Filho – 1ª
Promotor de Justiça de Defesa da Pessoa Com Deficiência
IMPETRADO: Juízo de Direito da Vara Única da Comarca de Juruti
PROCURADOR DE JUSTIÇA: Dr. Francisco Barbosa de Oliveira
PROCESSO: N. 0009822-56.2017.8.14.0000

EMENTA: HABEAS CORPUS LIBERATORIO – MEDIDA DE


SEGURANÇA – CONVERSÃO DO TRATAMENTO
AMBULATORIAL EM INTERNAÇÃO – PACIENTE QUE OBTEVE
DESINTERNAÇÃO CONDICIONAL PELA VARA DE EXECUÇÃO
PENAL – OBRIGAÇOES IMPOSTAS CUMPRIDAS. ALEGA
AUSENCIA DE MOTIVOS ENSEJADORES DA MEDIDA DE
INTERNAÇAO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
ORDEM CONCEDIDA.
1. A revogação da medida de segurança, decorrente do
reconhecimento da cessação da periculosidade, é provisória, se no
ano posterior a desinternação ou à liberação o agente praticar algum
fato indicativo de que continua periculoso, neste caso, poderá ser

16
Idem.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

restabelecida a situação anterior (internação ou sujeição a


tratamento ambulatorial). Nesses casos, não é necessário que o fato
constitua crime, basta que dele se possa induzir periculosidade.
(grifo nosso)
2. A periculosidade se verifica como um estado subjetivo de
antissociabilidade, que não pode ser meramente presumida, mas
plenamente comprovada, é a possibilidade de voltar a delinquir do
agente, aferida pericialmente. Nesse sentido, a despeito da decisão que
regrediu a paciente para internação, com fundamento em ficha de
atendimento de familiares (filha), de que a mesma está agressiva e
descontrolada, há nos autos certidão informando que a paciente, em
tratamento ambulatorial, atendeu a todas as condições que lhe foram
impostas, cumprindo-as, bem como compareceu mensalmente em juízo
para justificar suas atividades, inclusive não há noticias de que praticou
outro ilícito penal, razão pela qual se mostra incabível a decretação de
regressão da medida de segurança de atendimento ambulatorial para de
internação, ante a ausência de motivos aptos a justifica-lo.
3. Concessão da ordem para que a paciente retorne ao tratamento
ambulatorial, mediante condições judiciais a serem impostas pelo Juiz da
Execução Penal, tendo em vista o trânsito em julgado da ação, além de
acompanhamento médico-psiquiátrico em Hospital Municipal de Juruti.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Excelentíssimos
Senhores Desembargadores, que integram a Seção de Direito Penal,
deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Pará, à unanimidade de
votos, em denegar do Writ, nos termos do voto da Excelentíssima
Senhora Desembargadora -Relatora Maria de Nazaré Silva Gouveia dos
Santos.
Feito presidido pelo Exmo. Des.
Belém, 18 de setembro de 2017.
DESA. MARIA DE NAZARÉ SILVA GOUVEIA DOS SANTOS
Relatora.17

CASO 02:
ACÓRDÃO Nº. __________________________.
SECRETARIA DA 1ª CÂMARA CRIMINAL ISOLADA
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL
PROCESSO Nº 0040734-07.2015.8.14.0000
COMARCA DE BELÉM: 1ª VARA DE EXECUÇÕES PENAIS
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL
AGRAVADO: J. F. L.
REPRESENTANTE: ELIANA SOCORRO SANTOS VASCONCELOS
PROCURADORIA DE JUSTIÇA: DR. FRANCISCO BARBOSA
OLIVEIRA
RELATORA: DESª VERA ARAÚJO DE SOUZA

EMENTA: AGRAVO DE EXECUÇAO. INCONFORMISMO


MINISTERIAL.
PRELIMINAR – ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA DECISÃO QUE
DETERMINOU A DESINTERNAÇÃO CONDICIONAL DE AGENTE
SEM A PRÉVIA OITIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO -

17
Disponível em: < http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=336892> Acesso em
06/10/2017.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

PRELIMINAR ACOLHIDA - A prévia oitiva do Ministério Público


acerca da concessão de qualquer benefício é obrigatória, é indispensável,
sob pena de gerar nulidade absoluta da decisão, em atendimento aos
princípios da ampla defesa e contraditório, bem como ao disposto no art.
67, da Lei de Execução Penal.
MÉRITO - MEDIDA DE SEGURANÇA DE DESINTERNAÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA MEDIDA.
PERICULOSIDADE DO AGENTE NÃO CESSADA. LAUDO
PSIQUIÁTRICO QUE SE APRESENTA DESFAVORÁVEL A
DESINTERNAÇÃO - RECURSO PROVIDO - Não é ilegal a decisão
que revoga a medida de desinternação e mantém o cumprimento da
medida de segurança, quando persiste a periculosidade do interno.
Precedentes jurisprudenciais. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. À
UNANIMIDADE. (grifo nosso)
ACÓRDÃO
Vistos etc.
Acordam, os Excelentíssimos Senhores Desembargadores componentes
da 1ª Câmara Criminal Isolada, à unanimidade, pelo conhecimento e
provimento do recurso de Agravo de Execução, nos termos do voto da
Relatora. Sala das Sessões do Tribunal de Justiça do Pará, aos treze dias
do mês de outubro do ano de dois mil e quinze.
Julgamento presidido pela Exmª. Srª. Desª. Mª Edwiges Miranda Lobato.
Belém/PA, 13 de outubro de 2015.
DESª. VERA ARAÚJO DE SOUZA
Relatora18

CASO 03:
ACÓRDÃO N.º
PROCESSO N° 0000406-11.2013.8.14.0063
RECURSO: APELAÇÃO PENAL
ÓRGÃO JULGADOR: 1ª CÂMARA CRIMINAL ISOLADA
COMARCA DE ORIGEM: BELÉM
APELANTE: J. R. G. M. (ADV. OMAR ADAMIL COSTA SARÉ)
APELADA: A JUSTIÇA PÚBLICA
PROC. DE JUSTIÇA: DRA. UBIRAGILDA SILVA PIMENTEL
RELATORA: DESA. VÂNIA LÚCIA SILVEIRA

APELAÇÃO PENAL MILITAR. CRIME DE TENTATIVA DE


HOMICÍDIO COMETIDO POR POLICIAL MILITAR. ART. 205 C/C
ART. 30, II DO CÓDIGO PENAL MILITAR. RÉU INIMPUTÁVEL.
SENTENÇA ABSOLUTÓRIA IMPRÓPRIA. PEDIDO DE
ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS.
IMPOSSIBILIDADE. RÉU ABSOLVIDO. PLEITO DE
SUBSTITUIÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA DE INTERNAÇÃO
POR TRATAMENTO AMBULATORIAL. IMPROCEDENTE.
RECURSO IMPROVIDO.
1. Não há que se falar em necessidade de absolvição do recorrente
quando a sentença proferida foi absolutória, em razão da condição de
inimputabilidade do acusado.

18
Disponível em: <http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=37753> Acesso em:
06/10/2017
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

2. A aplicação da medida de segurança de internação em hospital de


custódia se mostra adequada quando a periculosidade do acusado se
mostra caracterizada, em especial pelo laudo psiquiátrico constante
dos autos. Precedentes. (grifo nosso)
3. Recurso conhecido e improvido à unanimidade, nos termos do voto da
Desa. Relatora. Vistos, relatados e discutidos os presentes autos,
acordam os Excelentíssimos Senhores Desembargadores componentes da
1ª Câmara Criminal Isolada, por unanimidade em conhecer do recurso e
negar-lhe provimento, nos termos do voto da Desembargadora Relatora.
Sala das Sessões do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, aos dezessete
dias do mês de maio de 2016.
Julgamento presidido pela Excelentíssima Senhora Desembargadora
Maria Edwiges de Miranda Lobato.
Belém, 17 de maio de 2016.
Desa. VÂNIA LÚCIA SILVEIRA
Relatora
RELATÓRIO.19

Percebe-se que, nos três casos, a preocupação dos magistrados foi direcionada a
periculosidade do agente. Com esse raciocínio, poderíamos concluir que o fator
periculosidade seria predeterminante para a manutenção do internamento, ou para o retorno a
esta reclusão. O CASO 01 transcrito acima exemplifica essa situação, quando demonstra que
a periculosidade passa a ser parte integrante da vida de um ex-interno, pois mesmo que este
NÃO pratique um ato tipificado como crime, mas sendo indicativo de que continua
periculoso, o praticante da ação pode ser submetido novamente a medida de segurança.
Estas informações são ratificadas nos CASOS 2 e 3 expostos acima, pois não é
considerada ilegal a decisão que revoga a medida de desinternação e mantém a medida de
segurança, quando persiste a periculosidade do interno, esta caracterizada, em laudo
psiquiátrico médico-legal.
É certo que a Constituição da República Federativa do Brasil determina, em seu artigo
5º, XLVII, b, que no Brasil não haja penas de caráter perpétuo. O limite de cumprimento das
penas privativas de liberdade, previsto pelo Código Penal, em seu artigo 75, é de 30 anos. O
Supremo Tribunal Federal (STF), em diversos precedentes, firmou o entendimento de que o
prazo máximo da medida de segurança não pode ser superior a 30 anos, em aplicação
analógica do disposto no artigo 75 do Código Penal. O Superior Tribunal de Justiça (STJ)
seguiu esse entendimento e foi além, ao concluir que a duração máxima da medida de
segurança não deve ultrapassar nem mesmo o limite máximo da pena abstratamente
cominada para o crime praticado.

19
Disponível em: <http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=177810> Acesso em
06/10/2017
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

No entanto, podemos citar situações em que isso não é observado. Vejamos o estudo
da Debora Diniz, realizado no Brasil, em 2011. Há compilação de dados estatísticos que
demonstram um atraso, na proporção de 41% dos indivíduos em medidas de segurança no
Brasil, para a realização anual do exame de cessação de periculosidade, previsto em nosso
ordenamento jurídico. Isso favorece para a existência de casos de pessoas que continuam
enclausuradas por mais tempo que o previsto na legislação, pois a desinternação é
condicionada as informações relatadas neste laudo.20
Além disso a decretação da extinção da medida de segurança não significa a saída
desse interno dos hospitais de custódia. Pelo menos 25% (741) dos indivíduos em medida de
segurança não deveriam estar mais internados, por terem sentença de desinternação, mas
permanecem por não existirem políticas sociais voltadas à ressocialização destes indivíduos,
que têm medo, devido à desculturação e ao estigma, aos braços amiúde cruéis da sociedade.
O que vem acontecendo em alguns estados é a implantação dos serviços residenciais
terapêuticos que trabalham nesse processo de transição entre o enclausuramento e a liberdade
dos que foram considerados um dia loucos infratores.

5. CONCLUSÃO

O silêncio que recai sobre a loucura no mundo contemporâneo foi decretado mediante
internamentos. As vozes dos ditos loucos antes escutadas por plateias foram silenciadas. O
tratamento ofertado não deve estar voltado somente para a medicalização, deve priorizar
também o exercício da escuta de um, profissional, em detrimento do exercício da fala de
outro, o interno. Nesse encontro há uma relação de confiança traçada, o interno passa de uma
saber de si mesmo a uma saber de si em consonância com o mundo que lhe rodeia.
A luta antimanicomial defende uma sociedade sem manicômios. Peter Pál Pelbart
trouxe à tona uma importante distinção entre o louco e a loucura: “Por louco entendo esse
personagem social discriminado, excluído e recluso. Por loucura, que para facilitar chamarei
aqui de desrazão, entendo uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a
alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como o seu limite, o seu

20
DINIZ, Debora. A custodia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres; Editora
Universidade de Brasília, 2013.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

contrário, o seu outro, o seu além.” Ou seja, nesse sentido poderíamos afirmar que o louco é
fruto da loucura da sociedade. 21
A reforma psiquiátrica já aconteceu de forma legislativa com a Lei Federal 10.216,
sancionada em 2001, que propôs um modelo de atenção à saúde mental sem a internação em
hospícios como mecanismo de tratamento. A proposta foi oriunda do deputado federal Paulo
Delgado por meio do Projeto de Lei 3.657. A reforma psiquiátrica preconizou a abolição da
exclusão do doente mental.22
Embora a reforma psiquiátrica tenha avançado em relação à loucura, ela negligenciou
a loucura associada à criminalidade. As pessoas com transtornos mentais em conflito com a
lei continuam excluídas e silenciadas.
Pois, não basta extinguirmos os manicômios físicos, se os manicômios mentais
continuarem existindo, pois nossa razão acaba sendo carcerária. As práticas sociais devem
voltar-se à desrazão mental para contrapor a racionalidade explicativa excessiva. “O direito à
desrazão significa poder pensar loucamente” (PELBART, 1990, p. 137). Medidas de auxílio à
reintegração dessas pessoas devem ser enfatizadas, como a implantação dos serviços
residenciais terapêuticos, que são locais de moradias destinados a regressos de internações
com lapso temporal extenso que não possuem condições imediatas de retornar ao convívio
familiar.23

6. REFERÊNCIAS

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013

ASSIS, Machado de. O alienista. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994

BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1, 17ª ed., São
Paulo, Saraiva, 2012

BRASIL. Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940). 1940; 7dez.

CAETANO DA SILVA, Haroldo (Coord.).Paili: Programa de Atenção Integral ao Louco


Infrator. Goiânia: MP/GO, 2013

21
PELBART, Peter Pál. Manicômio Mental – a outra face da clausura”. In:SaúdeLoucura2. São
Paulo:Ed.Hucitec, 1990, p. 113.
22
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
23
PELBART, Peter Pál. Manicômio Mental – a outra face da clausura”. In:SaúdeLoucura2. São
Paulo:Ed.Hucitec, 1990, p. 137.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

DINIZ, Debora. A custodia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília:


LetrasLivres; Editora Universidade de Brasília, 2013

FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008

______. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes,
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Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Resumo

A corporalidade gorda constitui-se eminente alvo de regulações. Sob


justificativa de saúde, no contexto que se tem nomeado por epidemia da obesidade,
diversos grupos de indivíduos são alcançados por essas regulações. Mas, há cerca
de duas décadas, estudos apontam o gênero e a idade como um marcador
fundamental da política do tamanho e do peso corporal, indicando que as mulheres
jovens estão mais susceptíveis a pressão social e a intervenções reguladoras. Na
dinâmica imposta pelo determinismo biológico, reafirma-se para o corpo feminino,
dentre outras coisas, a magreza, constituindo, senão, um signo de feminilidade
hegemônica, densamente implicado com os padrões de beleza. Numa economia
utilitária do corpo, imbricam-se sinônimas as categorias: bela, saudável e jovem.
Contudo, em âmbitos específicos do cenário evocado, emergem algumas
experiências e narrativas de valorização da plástica gorda. A internet mostra-se um
campo potente para a reconfiguração desses corpos, a partir da interação de
pessoas que vivenciam essa condição, e que a partir daí tem mobilizado a ocupação
e diversos espaços off-line. É o caso dos grupos de gordinhas e admiradores. Estes,
estabelecem um mercado afetivo-sexual e um sistema de elogios, num âmbito de
sensibilidade particular que modula a percepção e vivência com esses corpos,
disputando para eles, outras moralidades. Nesses percursos ocorrem a retomada da
autoestima das mulheres com seus corpos, sua recolocação a modo de uma
eticalidade subalterna, implicando na retomada dos cuidados, no alargamento de
fronteiras compreensivas do que é juventude, doença e beleza, acenando para
ideias acerca da diversidade corporal (forma, peso).

Palavras Chave: Gorda. Mulher. Jovem. Sociabilidade. Saúde.


Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Gorda, bela, jovem e saudável? A experiência de gordinhas e seus


admiradores

Mirani Barros1
1

O mito moderno da saúde perfeita e bem-estar como descreve Lucien Sfez


(1996) orienta subjetividades para um corpo também perfeito, impingindo e exigindo,
não apenas o livramento das doenças, mas a capacidade de manter certas taxas,
peso, tamanho e forma. O corpo ideal para ter saúde e outros sucessos sociais
como se acredita, não é apenas um corpo livre de doenças, mas dependente do
equilíbrio de uma tríade fundada em certa musculatura (fortitude), magreza (corpo
‘livre de gordura’), e esbelteza (preservação das formas e proporções), no qual,
dentre outros, nota-se a gordura como componente degenerativo. Essa gramática
tem reservado aos corpos gordos uma compreensão negativa e ambivalente, ora
como doentes em si (obesidade), ora como fator de risco para diversos outros
estados mórbidos. Assim, aquilo que mais se aproxima do corpo ideal, segue
opostos à toda variedade de corpulência, desvelando a valoração e hierarquia a que
estão sujeitas as diversas plásticas corporais.
Os discursos médicos e os sensos sobre saúde passaram, especialmente na
virada do século XVIII para o XIX, a conjurar as justificativas e regulações da
corporalidade no tocante de sua plasticidade. Nesse momento com o uso da
fisiologia como objeto e método de investigação dos processos corporais, toma-se
notícia do tecido adiposo e das células de gordura, como elemento funcional da
corporalidade física, que promoveu uma compreensão completamente nova,
viabilizando engenhosos artifícios de regulação. Pela primeira vez, a gordura
incorporava a noção de excesso vinculada à saúde e bem-estar físico, e não apenas
como algo que feria certo padrão estético ou moral, como se via na idade média
(Santolin e Rigo, 2014). Desvelava-se uma nova matriz para as velhas
condenações, na qual os corpos gordos encarnaram a noção de ‘anormalidade’.
Atualmente, as ciências da clínica médica e epidemiologia assumem
centralidade na produção do discurso médico sobre a corporalidade gorda. A
primeira definindo tal condição como doença crônica como discute Jutel (2005), e a
segunda explorando as correlações de morbidade, além do aumento populacional

1
Instituto de Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

de gordos, que no Brasil recebe o nome de Transição Nutricional e desenha o que


os especialistas denominam epidemia da obesidade.
Esse cenário tem reforçado as crenças sobre o mito da saúde perfeita
realizada no corpo ideal, arrochado os esquemas de vigília e regulação,
engendrando uma sofisticada objetiva e subjetiva política do peso e forma corporal.
Como efeito, drasticamente produz o apagamento ou sequestro das potencialidades
de corpos que escapam da magreza, fortitude e esbelteza.
Esse esquema de regulação da forma e tamanho corporal atinge os
indivíduos de diversos modos, desde a infância. Podemos elencar o clássico bullying
contra meninas e meninos ‘gordos’; as preocupações médicas em torno da
obesidade infantil; a ampliação das políticas de saúde e o mercado de estética
corporal e controle do peso para os homens; e os cuidados com a alimentação e
forma física de pessoas mais velhas. Mas é ainda sobre as mulheres, de modo
geral, que incidem os maiores investimentos para a regulação do peso, tamanho e
forma corporal.
Através de distintas abordagens e recortes, autoras como Bordo e Heywood
(2004), Cooper (1998) Dresseler et al. (2008) e Saguy (2012), têm afirmado o
gênero como um marcador fundamental em seus trabalhos, indicando que sobre as
mulheres pesa maior pressão social e suscetibilidade a intervenções reguladoras.
Essa assimetria de gênero na apropriação médica dos corpos, segundo Rohden
(2008), pode ser compreendida na fundação do ‘sexo’ feminino pela ciência médica,
concomitante com a transformação histórica do modelo de sexo único para o de dois
sexos, como formula Laqueur (1992), que tornou a mulher o objeto médico por
excelência. Nessa dinâmica, o determinismo biológico reafirma para o corpo
feminino, dentre outras coisas, a magreza e a esbelteza como um signo de
feminilidade hegemônica, logo, um dispositivo importante na elaboração das
expectativas para realização e performação do gênero.
As pedagogias médicas para a construção do corpo magro têm colocado as
mulheres jovens em foco, exigindo delas um maior rigor no exercício de uma plástica
corporal que corresponda ao ideário estético-saudável. As recomendações médicas
para controle do peso destacam a fase reprodutiva e situações específicas da saúde
das mulheres jovens. Por exemplo, de acordo com o Protocolo da Atenção Básica
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

para Saúde das Mulheres2, deve-se atenção especial ao controle do peso na


menarca, no período reprodutivo com foco na gestação e amamentação, bem como
aqueles casos que relacionam o peso a problemas hormonais e ginecológicos, como
a síndrome de ovários policísticos, a endometriose e o câncer de mama. Tais
recomendações, ordinárias na estratégia de saúde, são também objeto frequente de
divulgação médica, ratificando a construção do senso comum de que as mulheres
jovens precisam estar ‘em dia’ com seu peso e forma corporal.
Para além do ambiente médico, a imagem jovem e magra repete-se
permanentemente, reforçando esse padrão para as mulheres, nos meios
audiovisuais e impressos, no mercado da moda e da beleza e na produção
publicitária. Nesse âmbito, o discurso de saúde encontra-se densamente implicado
em valorações estéticas firmadas no gênero, e o corpo de mulher prospectado
segue o que Morrin (2005) descreve como a boneca do amor.
“A mulher modelo desenvolvida pela cultura de massa tem a aparência da
boneca do amor. As publicidades, os conselhos estão orientados de modo
bastante preciso para os caracteres sexuais secundários (cabelos, peitos,
boca, olhos), para os atributos erógenos (roupas de baixo, vestidos, enfeites),
para um ideal de beleza delgado, esbelto – quadris, ancas, pernas. A boca
perpetuamente sangrenta, o rosto pintado seguindo o ritual são um convite
permanente a esse delírio sagrado de amor que embota, evidentemente, a
multiplicidade quotidiana do estimulo. ”
(Morrin, 2005. p.141)

A crítica do autor vai além do que tais publicidades revelam, mas certamente
sobre aquilo que elas embotam, que como ele próprio diz, a multiplicidade, a
diversidade. Da outra mão desse processo, a intensa medicalização da gordura em
função de um ideal corporal, sobretudo nas mulheres, tem provocado um sentimento
de falta constante e uma busca permanente por adequação (Bordo e Heywood,
2004). Segue-se enxergando um corpo medido e quantificado, cuja prospecção de
perfeição simétrica, mantém forte ralação com a distribuição e combinação de
diversos componentes corporais, assignada como saudável. Funda a sensibilidade
que nos permite ver, compreender e perceber esse corpo padronizado com os
auspícios da verdade científica, sacramentada e propagada como que a promessa
de ‘Deus’ de que trata Haraway (1991a). Uma metáfora com a ideia de onipresença
divina, aquele que se sabe estar em toda parte, contudo, em lugar nenhum. O que
está, porém não é tangível. E como um poderoso ‘Deus’, como questionar

2
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/protocolo_saude_mulher.pdf.
Disponível em 28/05/2016.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

materialidade semiótica desse corpo ideal/saudável, ou o semiotismo da ciência que


o produz?
A ciência médica experimenta uma disputa interna sobre as verdades
médicas para o corpo gordo. Pautadas, especialmente na imprecisão do diagnóstico
e a indefinição de uma etiologia ou causa para a obesidade, questionam o status de
doentes de indivíduos que desfrutam dessa condição. Afirmam que os métodos
clássicos para definir um indivíduo como gordo não são confiáveis, argumentando
que padrões métricos de diagnóstico como o Índice de Massa Corporal (IMC), que
definem como gordos aqueles que atingem certo peso em relação à altura, podem
ser esticados para incluir tipos mais musculosos, como um fisiculturista, por
exemplo.(Flegal KM et al., 2012, 2013). Essa imprecisão é análoga à que atinge a
numeração do vestuário, e exclui, por exemplo, os tipos de pessoa de baixa
estatura, que caberiam em tamanhos menores. Ou o caso da circunferência da
cintura, que pode dizer mais sobre a gordura localizada, do que se a pessoa deveria
ser considerada, de fato, gorda. De acordo com essas abordagens, se o IMC de 30
kg/m2 é considerado o indicador universal de obesidade, o que significaria ter um
IMC de 29kg/m2?
Parecem questões relevantes para repensar o status da gordura corporal,
contudo, todas essas seguem com menor impacto no campo científico e na
sociedade em geral. Não obstante, convocam para a necessidade de um olhar mais
abrangente sobre os corpos gordos, que aposte na reflexão sobre a diversidade
corporal como elemento crucial para uma política do peso e forma (Cooper, 1998).
Nesse caso, parece oportuno considerando as expectativas de gênero, perguntar o
que estes corpos Pe(n)saem e como contribuem em tal discussão. Afinal, o que
dizer das pessoas consideradas acima do peso que seguem suas vidas e vivem as
mais diversas experiências? O que significa ter um corpo gordo, com ele estar e se
comunicar, e dele usufruir?
Nesse cenário emergem diversas experiências com a corpulência, de modo,
que para esse trabalho elenquei recortes das análises da etnografia que realizei no
mestrado, a partir de grupos fechados na rede social Facebook da internet, que
investigou os sentidos produzidos para corpos de mulheres jovens e gordas imersas
em um cotidiano de interações com admiradores de gordura, denominado em linhas
gerais como grupos de gordinhas e admiradores.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Gordinhas, nesse trabalho são mulheres das camadas populares da região


metropolitana e da cidade do Rio de Janeiro, que se declaram pretas em franca
maioria e compõe um espectro da corporalidade gorda, desfilando os mais variados
tamanhos e formas. Os admiradores são fortes (sarados) ou magros, em sua maioria
pretos3, também das camadas populares da região metropolitana e da cidade do
Rio de Janeiro.
Tais grupos se organizam e promovem um fluxo e efluxo constante entre os
âmbitos on e offline, desenhando estilos de sociabilidade de variados graus de
intimidade e vínculo, que seguem destacando as possibilidades e qualidades de
cada um desses lugres, que se complementam na proteção e ressignificação desses
corpos, bem como na recuperação da autoestima dessas mulheres, e por fim na
constituição de uma identidade gorda além dos pressupostos médicos.
A proteção que os grupos fechados na rede social Facebook da internet figura
como elemento importante para corpos estigmatizados, gordos ou muito gordos,
paulatinamente através dessas interações tem alcançado e ocupado os espaços
públicos, em reuniões que seus adeptos nomeiam resenha, onde encontram-se
especialmente para celebrar: beber, comer, dançar, fazer amizades e promover
encontros afetivos-erótico-sexuais.
O corpo gordo é o objeto das interações e o capital das experiências. O que
para as mulheres tem possibilitado encontrar iguais, e trabalhar a autoestima
principalmente. Para os homens, o grupo configura um lugar de ampliação das
possibilidades de experimentar-se sexual e afetivamente com que determinam como
suas preferências. De todo modo, interessa que a partir do acionamento do
dispositivo erótico e estabelecimento de um mercado afetivo-erótico-sexual, essas
mulheres têm encontrado distintos significados para seus corpos, operando uma
ética própria dos subalternizados, na qual são dispensadas modificações corporais
de antemão. O que leva a crer como aponta Spivak (2015), acerca das vivências
subalternas, que essas, entre gordinhas e admiradores, também tornam visível o
que não é visto, dirigindo-se a uma camada de material que, até então, não tinha
tido pertinência para a história e que não havia sido reconhecida como tendo valor
moral e estético.

3
Pretas e pretos são categorias êmicas.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Os marcadores classe, etnia ou cor da pele, urbanidade e a configuração dos


arranjos (mulheres gordas e homens não gordos) não é exclusiva do grupo
acompanhado para a pesquisa, mas espalha-se como tendência por uma centena
de grupos de gordinha e admiradores na internet. Não deter-me-ei, de todo modo,
por uma questão de espaço a maiores detalhes analíticos das relações erótico-
afetivas que se desenvolvem nesses grupos aos pares ou coletivamente, igualmente
na produção ou consolidação de certos tipos de masculinidades e feminilidades, no
consentimento ao fetiche e, tampouco das minúcias de seus fluxos por diversos
âmbitos a partir da internet, tendo em vista que para o presente trabalho interessa
apresentar os efeitos dessa sociabilidade. Assim, guardarei para as linhas que
seguirão três dinâmicas que se entrelaçam e são fundamentais para a produção de
deslocamentos de sentidos da corporalidade gorda a partir dessas interações: o
vitrinismo na internet, o sistema de elogios e o regime de visibilidade gorda.
Há uma notada predileção pela comunicação imagética entre esses sujeitos.
A considerar que esta base imagética não foge à tendência comunicativa nos
ambientes online, no grupo de gordinhas e admiradores, também compõe o
vitrinismo fundamental do mercado afetivo-erótico-sexual que ali se estabelece;
corroborando para a definição de um estilo comunicacional fundado nas imagens.
Estas se revezam entre imagens de membros do grupo e aquilo que eles desejam
expor acerca das interações e sobre ser gorda e gostar de gorda. Assim, tais
imagens que compõe uma exposição espontânea e desejada de seus membros,
memes e enquetes, tornam-se centrais na medida em que solicitam e informam
preferências, gostos e dados pessoais, oferecendo a possibilidade de um registro
visual, e, portanto, pacificador de dúvidas e confusões acerca do que se deseja
comunicar.
Importantemente, as fotografias e selfies são o objeto imagético de maior
valor nesse vitrinismo. Todos se mostram em fotos sensuais (admiradores e
gordinhas), respeitados os limites individuais posto por cada um, e também as
regras do grupo que seguem atrelada ao contrato de privacidade do Facebook,
vedando pornografia ou fotos mais explícitas. Contudo, é muito mais comum que as
mulheres se mostrem, em regra sensualizando, em seus quartos e banheiros,
âmbitos tão privativos quanto carecem tais interações.
Como observa Baker (2015), nas análises sobre selfies no universo Fat
Women, bem como eu analiso para as ‘gordinhas’, precisa-se ir além da crítica
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

narcisista. Várias ativistas, como a feminista Kite (2016) de muita expressão nesse
debate, têm abordado o fenômeno através de uma ótica universalista e vitimista,
defendendo que o excesso do autorretrato implicaria a objetificação da mulher. Para
Baker (2015), no entanto, ainda que a indústria e o mercado tenham prejudicado, de
maneira geral, a percepção de si das mulheres através de um controle extremo das
formas corporais femininas e a pregação de um padrão inatingível, o itinerário das
selfies tem permitido colocar em tensão a ideia do que é belo, suscitando um debate
entre beleza (que seriam os atributos disponíveis e reais) e a boniteza (que seria
aquilo que a tecnologia digital e médica tem oferecido). Assim, as selfies seriam
ferramentas de ‘reclamação’ na disputa pela política de construção desses corpos,
sobretudo no grupo da pesquisa onde tais recursos de edição de imagem não são
bem-vindos, afirma-se constantemente que aquele é um lugar para “mulheres de
verdade”.
O vitrinismo desdobra o no sistema de elogios. É através desse mecanismo
de exibição e resposta – que acontece o flerte, que se expressa através de
‘curtidas’, comentários e elogios mútuos. Estes vão construindo os sinais de
interesse sexual que eventualmente progredirão para algum modo de encontro ou
relacionamento, ou também para relações de amizade.
O elogio entre mulheres é também bastante comum. Do ponto de vista delas
esse tipo de elogio serve para três fins. O primeiro seria colocar a postagem em
evidência, de modo que quanto mais comentada e mais curtida a foto, mais tempo
ela permanece no ar (seria um acordo tácitos entre as mulheres se apoiar
mutuamente nesse sentido). Em segundo, o elogio cria uma relação de proximidade
com novos membros, de modo que se estabelece um clima amistoso e elegante. E
por último, mas não menos importante, trata-se de uma forma de trabalhar a
autoestima, em que os elogios entre mulheres criam um clima de afago coletivo e
reforço positivo para essa corporalidade. Essa dinâmica de elogios entre mulheres
cria um clube de dicas, onde elas compartilham opiniões e trocam tutoriais diversos,
no qual criam seus próprios padrões em conexão com seus valores de classe, suas
experiências e capitais particulares, mas sobretudo pelo que emerge desse
aprendizado coletivo sobre a corporalidade gorda. Por fim, as selfies e o sistema de
elogios que elas suscitam são uma oportunidade para criar narrativas que possam
contar a história dessas mulheres, constituindo de modo sensível seu lugar no
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

mundo, possibilitando a construção de subjetividade acerca das reais experiências


com seus corpos reais.
Foge-se do que Wooley (2016) chama de futuro condicional, na construção de
subjetividade em torno do corpo emastreiam e irreal da propaganda. Em um
movimento próprio, gordinhas e admiradores têm proporcionado a visibilidade para o
invisível. A selfie e seus roteiros de uso nessas interações constituem um regime de
visibilidade para corpos colocados ‘fora de circulação’ pelas imagens da cultura de
massa. Ou mais drasticamente invisibilizado pela sua permanente exposição
negativada, na qual ele é negativado através do incentivo ao consumo de técnicas
que visam corrigi-lo (Wooley, 2016, p.12). E nos casos em que ele aparece de forma
mais positiva, como o das modelos plus-size, sofre a pressão de conformar uma
norma de formas e proporções, sob o risco de afastar-se do feminino desejável. Um
corpo sem silhueta, sem as proporções esperadas e os adereços certos, para além
de grande torna-se um corpo desviado da matriz da plástica corporal na qual se
performa o gênero –neste caso, feminino. Em vez de conformar o lugar assignado
ao na ordem do gênero, confundirá suas fronteiras, e por isso talvez, sua
potencialidade é mantida invisível.
Desse modo, pode-se considerar que apesar da pujante política do peso, que
historicamente tem governado a plástica corporal, o movimento de gordinhas e
admiradores parecem instituir uma importante ruptura de paradigmas para a
corporalidade gorda, a partir do acionamento do dispositivo erótico e dos exercícios
e usos diversos desses corpos.
Essas interações clarificam porosidades nos poderes que instituem os
atributos da magreza e musculatura como ideal e única forma possível de estar.
Nesse ponto, as experiências entre gordinhas e admiradores têm sido fundamentais
ao questionar e deslocar a ideia de corpo bom, saudável, útil, belo, erótico, além de
outras, consignando para estes, novos valores e sentidos. Impacta, portanto, na
dificuldade que a história recente impõe para compreender a multiplicidade real de
corpos e suas potencialidades, de modo que possam experimentar saúde, bem-
estar e diversas sensações de que o corpo possa gozar.
Por mais complexa e cuidadosa que possam ser as abordagens clínica e
epidemiológica que atualmente governam a corporalidade gorda, é preciso estar
atento para suas simplificações, que redundam em emagrecer, e especialmente
para o que não têm conseguido governar. Os serviços saúde orientados e operados
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

pelos saberes daí advindos, são agenciadores incomodados com pesos e formas.
Entretanto, no percurso desses investimentos, tais abordagens parecem deixar
escapar o cerne da questão, haja vista que as pessoas continuam a engordar, e
atualmente somam 50,8% da população no pais (Brasil, 2017). Então, de que tem
servido combater a obesidade ou regular a plástica corporal? De que saúde ou outro
valor se trata?
Diante desse desafio que visa compreender e atuar em processos de saúde
entendidos como ameaçados pelo corpo gordo, sustento que é preciso voltar o
olhar, antes para a ciência e política que temos operado; nas suas abordagens,
técnicas de investigação e, sobretudo, para a fixidez de uma ideia de saúde
vinculada exclusivamente ao corpo magro. Em segundo é preciso ampliar e
considerar estudos que tomam a experiência com a gordura, algo central nas
definições de seus objetos, considerando que as experiências de corpos não
hegemônicos podem ser pensadas como um processo constante, numa prática de
atribuição simbólica e discursiva, que interfere sistematicamente na produção das
corporalidades. Propõe refletir a experiência corporal como contestação, ao passo
que expõe os modos de construção social do corpo, abrindo possibilidades de
mudança de paradigmas para a corporalidade gorda, enquanto categoria de
conhecimento e pensamento.
Desse modo, mulheres gordas e seus admiradores nesse trabalho oferecem
pistas para verificar meios de valorização da corporalidade gorda, a importância
disso, os mecanismos de exposição de sua potência e seus limites, no modo como
produz sentidos e significados próprios a partir dessas vivências. Isso pode orientar
o olhar da ciência e sociedade em relação aos modos como tradicionalmente
classificam-se gordas e gordos em função na norma.
Os achados e principais análises desse estudo, elencam: os usos eróticos do
corpo gordo como prática que o localizam como objeto de maior valor nessas
interações, o capital dessas trocas. Recupera-se a partir daí sentidos e potencias
sequestradas pelo discurso médico. A valorização de seus atributos, pode desdobrar
em modificações corporais e retomada dos cuidados em saúde, como produto desse
processo, e não o contrário. É preciosa a atenção a esse ponto pela compreensão
de como formas de abordagem e visibilidade positiva e negativa tem repercutido
distintamente sobre a plástica corporal gorda, sugerindo que mudanças discursivas
são necessárias, para a ciência e políticas, haja vista que estão constantemente
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

representados como algo ruim, a ser corrigido, ou nos termos de Wooley (2016) e
Cooper (1998), nas formas negativadas.
Em segundo, a circulação das imagens e o sistema de elogios tem criado um
sistema de valoração e visibilidade dos corpos gordos femininos, configurando meio
de aprendizado coletivo sobre esta corporalidade e seus atributos. Nesse processo,
alargam-se as fronteiras morais da feminilidade e da masculinidade, para abarcar o
corpo gordo e sensual, bem como a inclinação dos homens ante esse corpo. Esse
cenário revela a importância de espaços coletivos para vivencia e experiência da
corporalidade gorda, e o modo como eles têm reverberado em aprendizado sobre a
condição e elevação da autoestima, que constitui ponto nevrálgico da afirmação
dessa corporalidade como identidade.
De fato, as experiências de gordinhas e admiradores têm produzido
deslocamentos importantes nas vivências íntimas e nos modos de compartilhá-las
coletiva e publicamente, desafiando a indiscrição à qual o estigma da gordura
condena. Inversamente, a admiração e desfrute do corpo gordo feminino cria estilos
e uma estética – que o reorienta e o localiza num ponto entre o corpo hegemônico e
o bizarro, acenando que muitos outros sentidos pra diversas formas de corpo podem
habitar esse espectro.
Em terceiro, as experiências observadas constituem-se no enredo da
transição nutricional. Chamo atenção para o modo como essa corporalidade torna-
se mais comum, e mais pessoas a experimentam testando seu efeito mortificante,
configurando o estigma como desafio, que permite identificar tabus, constituindo
formas coletivas de derrubá-los.
Por fim, este trabalho assinala o que tem experimentado corpos gordos
femininos e jovens nessas interações. Também não trata de uma ode a
corporalidade gorda, e nem mesmo da defesa de que sobre ele não possam se
confirmar as morbidades para que ele tem sido o candidato preferencial. Não
obstante, o corpo gordo classificado como doente, inapto e incapaz, ameaçado com
a poluição da fronteira, constitui na atualidade um lugar de conflito entre a norma e a
desordem, desafiando compreendê-lo como prazer e perigo simultaneamente. A
tarefa, talvez, seja reconhecer que saúde e doença estão disponíveis para todos os
tipos de corpos, e pensar o que experiências como a das gordinhas e seus
admiradores têm produzido no sentido de afastar de si padrões e uma moral que o
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

condena a priori, urdindo para a necessidade de ampliar o leque pelo qual beleza,
feminilidade, juventude e saúde possam ser representadas.
A valorização do corpo e das mulheres gordas, com todos seus atributos e
simbolismo, nesta pesquisa, em certa medida cumpre esse papel, desenhando
estilos de sociabilidade que tensionam as concepções estruturantes da gordura
corporal como categoria de pensamento e conhecimento. O estudo dessas
mudanças merece toda atenção, de modo a compreender as operações do poder
instituinte da regulação da plástica corporal na sociedade contemporânea, bem
como o que pessoas e coletivos podem fazer com este.

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SANTOLIN, C. B.; RIGO, L. C. O nascimento do discurso patologizante da
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SFEZ, Lucien (1996) A saúde perfeita. Crítica de uma nova utopia. São Paulo:
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SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Traducao Sandra Regina Goulart Almeida;


Marcos Pereira Feitosa; Andre Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Juventude e Transformações Corporais: (Des)Transições no Âmbito


Escolar.

Ana Luiza Profírio1

Resumo: Este trabalho pretende discutir as transformações corporais


realizadas por jovens lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT), e os
distintos significados que estas assumem para as/os sujeitos envolvidos.
Os dados que serão aqui apresentados são resultado de uma pesquisa
etnográfica ainda em andamento, com vista à elaboração da dissertação de
mestrado. Serão analisadas as vivências de três jovens estudantes do ensino
médio de uma escola pública da rede estadual de Alagoas localizada próximo
ao centro de Maceió. Dentre estas/es jovens destaco Pedro, estudante trans
que começou a transição de gênero no meio deste ano, está afastado de sua
igreja e afirma não ter dúvidas acerca de seu processo de transição, mas não
descarta o possível retorno a identidade de gênero anterior. Gisele, estudante
travesti profundamente engajada com a visibilidade LGBT na escola, e tida
enquanto referência para as/os estudantes que saíram do “armário”, ou
pensam em fazê-lo. E cujo uso de hormônios assume um aspecto vital para a
sua expressão de gênero “bem garota”; E Carlinha, estudante que se define
enquanto um “gay afeminado”, ou “bicha”. Recusando as nomeações de
travesti ou trans, registro sobre o qual foi percebido em um primeiro momento
pela pesquisadora, e que também lhe é atribuído por uma de suas colegas,
Gisele, devido ao uso de hormônios e as transformações corporais que
expressam feminilidade. Em síntese, os múltiplos significados sobre o processo
de transição de gênero, ou a exploração de outras possibilidades em relação
ao mesmo, ajudam a pensar os distintos contornos que pode assumir o gênero
e a sexualidade no cotidiano escolar.
Palavras chaves: gênero, sexualidade, transformações corporais.

1 Mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social


da Universidade Federal de Alagoas. (PPGAS- UFAL).
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução

Os dados aqui apresentados são resultado de uma pesquisa etnográfica


ainda em andamento. O trabalho de campo está sendo realizado na Escola
Estadual Manoel de Barros2, a instituição faz parte de um complexo
educacional localizado próximo ao centro de Maceió. A escola é definida por
as/os estudantes enquanto “inclusiva” no que se refere ao gênero e a
sexualidade devido a grande visibilidade LGBT. É importante mencionar que
antes da realização da pesquisa atuei nesta escola enquanto bolsista do
Programa de Iniciação à Docência (PIBID), na disciplina de Sociologia entre o
período que compreende o começo do ano de 2014 até meados de 2016.
Durante minha participação no PIBID a forte presença da religiosidade na
escola foi um elemento que chamou a minha atenção. As imagens religiosas
espalhadas pela instituição e a atuação de um grupo estudantil cristão:
“Juventude Para Cristo”, que será daqui em diante denominado “JPC” formado
por as/os estudantes do ensino médio, foram elementos que causaram
estranhamento.
Minha proposta inicial de pesquisa tinha por objetivo compreender a
atuação do grupo JPC na escola, especialmente a dimensão da participação de
estudantes LGBT nos cultos e o discurso de “acolhimento” a estes sujeitos.
O “acolhimento” se referia tanto a aceitação das expressões de gênero e
sexualidade não-heteronormativas, como também aparecia atrelado à rejeição
destas entendidas enquanto “pecado” a partir da frase “Deus condena o
pecado, mas ama o pecador”. Essa perspectiva acerca do “acolhimento”,
realizada pelo grupo religioso estudantil remetem as problematizações sobre a
homofobia religiosa, e suas técnicas de cuidado pastoral (NATIVIDADE,
OLIVEIRA; 2009). No começo deste ano passei a acompanhar a atuação do
grupo JPC na escola, porém tive que redimensionar a pesquisa a partir da
interrupção de suas atividades. Passei então a refletir acerca das experiências
juvenis entre estudantes do ensino médio que escapam dos pressupostos
heteronormativos. Venho acompanhando semanalmente a rotina destas/es

2 Todos os nomes próprios aqui apresentados são fictícios com o objetivo ético de preservar a
identidade da escola e das/dos interlocutoras/es.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

estudantes durante o intervalo e aulas vagas. A maioria das observações e


conversas informais aqui relatadas ocorreram no pátio, corredores, cantina e
no ginásio da escola. Abaixo desenvolvo os distintos significados que as
transformações corporais assumem para estas/es jovens LGBT. A partir das
vivências de três estudantes: Pedro e Gisele que fazem uso de hormônios para
se adequarem ao gênero que se identificam e Carlinha que recusa esta
associação.

PEDRO

Como dito anteriormente, minha proposta inicial de pesquisa tinha por


objetivo compreender a atuação do grupo JPC no cotidiano escolar.
O termino das atividades do grupo religioso no começo deste ano está
intimamente relacionada à trajetória do estudante trans Pedro, que antes era
conhecido pelo nome de Amanda. Ela “saiu do armário” no ano anterior e
desde então lidou com diversos questionamentos por parte de algumas
integrantes do grupo cristão e dos demais colegas, em relação ao fato de ser
lésbica e líder evangélica. Uma parte das/dos estudantes do JPC, passou a se
reunir as escondidas para discutir como poderiam retira-la do grupo. Achavam
que não era certo, uma lésbica liderar um grupo religioso, por não ser um
“bom” exemplo. Dentre estes, Dario, estudante que dividia a liderança do JPC
com Amanda teve um papel central. Outros jovens que faziam parte do JPC
não viam problema no fato de Amanda ser lésbica. A partir dessa divisão entre
as/os estudantes contra e favor da liderança de Amanda, os problemas no JPC
começaram.
Dario, para além de conspirar contra Amanda também teve um conjunto
de atitudes que iam ao desencontro do regulamento da escola acerca da
atuação do grupo religioso. Ele envolveu o pastor de sua igreja em uma das
atividades do JPC, e incentivou as/os jovens que faziam parte do grupo a
retirarem título de eleitor para votarem em um deputado cristão.
O seu argumento era de que: “cristão vota em cristão, precisamos do povo de
Deus na política”. A direção da escola suspendeu o jovem por uma semana, e
quase extinguiu o JPC. Dario muito magoado decidiu não retornar à escola e
se dedicar à atividade de pastor, ele definiu a situação enquanto “perseguição
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

a um homem de Deus”. No começo deste ano Amanda já sem a presença de


Dario decidiu abandonar o JPC e passou a liderança a dois estudantes, que
devido a disputas internas, e especialmente ao fato de não terem o “carisma”
necessário para dar continuidade ao projeto. Não tiveram a sua liderança
reconhecida, e as atividades do grupo foram interrompidas.
Amanda logo após abandonar o JPC afastou-se de sua igreja “Batista”, e
no meio deste ano deu início por conta própria ao seu processo de transição de
gênero, passando a denominar-se Pedro. O jovem participa de fóruns online
em que homens trans compartilham informações das mais diversas sobre o
transicionamento. Seu salário enquanto jovem aprendiz é utilizado quase que
totalmente para a compra dos hormônios. É notável como em pouco tempo o
corpo de Pedro mudou radicalmente, os seios praticamente sumiram, a voz
engrossou, e suas feições estão quadradas. Não havendo mais qualquer traço
de feminilidade, para além dos cabelos que se mantém na altura do ombro.
Diante do choque de diversas pessoas acerca de sua mudança, Pedro afirma
com frequência que a sua transição não é uma decisão repentina, mas algo
que vem de muito tempo desde a sua infância:

- Minha mãe acha que foi de repente, mas não foi. Isso já vem desde
sempre, e com o tempo foi crescendo. Eu sempre gostei de futebol,
de carrinho, odiava bonecas, gostava de brincar com os meninos. Eu
sei que começar a transicionar é algo arriscado, que tem um custo,
que depois que você começa não pode retornar facilmente. Tipo eu
teria que tomar hormônios femininos, e isso tem um dano no corpo.
(Diário de campo 25.07.17).

Mesmo afirmando constantemente a sua identidade de gênero


masculina, Pedro não descarta o retorno a identidade de gênero anterior,
afirma ter lido bastante sobre casos de “destransição”, e cita como exemplo
alguém de sua própria família, seu tio que é “ex gay”:

- Eu por muito tempo duvidei dessa coisa de ex-gay. Mas no caso do


meu tio foi verdade. Ele era travesti, que nem a Gisele, tinha peito e
tudo. Ele sempre foi assim, feminino, desde criança, então a família
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

meio que aceitou. Só que há uns cinco anos, ele disse que não
queria mais viver desse jeito. Entrou na Igreja. Então, não sei bem o
que ele fez, mas hoje ele tem um corpo de homem e se relaciona só
com mulheres. (Diário de campo 25.07.17).

As transformações corporais de Pedro contribuem para a sua


adequação ao gênero ao qual ele se identifica neste momento, não anulando a
possibilidade de retorno ao gênero anterior ou “destransição”.

Gisele

Gisele é uma jovem travesti que começou a sua transição acerca de três
anos. Sua primeira experiência com hormônios se deu a partir do momento que
foi expulsa de casa, quando a mãe descobriu a sua homossexualidade.
Ela foi morar com algumas amigas “viadas” e travestis que lhe aplicaram as
primeiras injeções de anticoncepcionais. Gisele retornou para a casa materna
após alguns meses, mas não deixou de fazer uso dos hormônios apesar das
críticas e negação de sua família acerca de sua expressão de gênero feminina.
Para a sua família Gisele não existe, quem existe é Gilson. Na escola Gisele é
profundamente engajada com a visibilidade LGBT, e tida enquanto referência
para as/os estudantes que saíram do “armário”, ou pensam em fazê-lo. Ela foi
a primeira travesti a ser eleita Rainha do Milho e coordena um grupo de dança
que se apresenta regularmente nos eventos da escola, e é formado por
estudantes que escapam dos pressupostos heteronormativos.
Gisele afirma que os hormônios a ajudam a ser o que ela é na realidade
alguém “bem garota”. Ele planeja no futuro realizar a cirurgia de redesignação
sexual, “mudança de sexo” para tornar-se uma “mulher trans”. Para isso Gisele
está guardando todo dinheiro advindo da prostituição e pagando uma
endocrinologista que a mandou interromper os hormônios que tomava por
conta própria. O que a deixa aflita sobre as possíveis perdas de sua
feminilidade, a diminuição dos seios e o aparecimento de pelos no rosto.
O hormônio é assim a expressão da feminilidade (LIONÇO, 2005:102).
No intervalo Gisele adora relatar suas experiências enquanto garota de
programa, e sempre conta com um número notável de ouvintes que
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

compreende alguns colegas de sala. Gisele sempre justifica a prostituição


enquanto um caminho para a realização de suas transformações corporais,
mas ao descrever as situações transparece uma junção de lucro e libido. É
também notável o desconforto que Gisele sente com o seu órgão sexual, o que
a faz desenvolver estratégias para escondê-lo de si e dos outros:

No intervalo Gisele falou sobre o programa que realizou no fim de


semana, foi à primeira vez que ela mencionou a prostituição
abertamente. Fez questão de frisar (para mim) que a prostituição
era o meio de pagar a sua transição. Suas/es colegas ouviam
atentamente o que ela dizia e não pareciam surpresos,
aparentemente é parte da diversão do intervalo ouvir as histórias
dela.

Segundo Gisele:

- Eu estava voltando do mercadinho e um cara de carro me parou


e perguntou se eu topava (o programa). Respondi que sim. Aí ele
perguntou se já tinha feito. Se sabia como era tudo. Eu disse que
entendia perfeitamente. Eu nunca tinha visto ele e estava voltando
pra casa, nem no ponto (de prostituição) estava. Dei meu número
e passou um mês e nada. Quando foi no final de semana ele ligou
e mandou o nome do motel, acertamos o preço e lá fui eu. Menina
estava super empolgada, o boy era lindo, quando cheguei lá me
deparo com a esposa dele. Ele bem assim: “Essa é a minha
esposa, ela vai participar também”. Fiquei nervosa. Assim eu já
tinha feito com casais, mas de homens, inclusive adoro, quando
são dois boys. Agora, um casal hétero! Fiquei tensa... Então eles
eram jovens e bonitos, o que tornou um pouco mais fácil sabe?
Mas foi difícil, ele me mandou tirar a calcinha, mas eu morro de
vergonha de tirar a calcinha. Não gosto de ver o meu Erê3, eu sou
garota e fico bem garota de calcinha então não suporto tirar e

3 Pênis.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

mostrar pros outros. E também tem isso, às vezes o seu Erê é


maior que o do boy e aí fica aquela situação. Assim... homens que
ficam com travesti sabem que tem (pênis), mas eu não gosto de
ver o meu e nem de usar. Minhas calcinhas já tem um buraco na
parte de trás pra deixar o Edi4 bem exposto, e aí não preciso tirar
calcinha. Carlinha estava lá em casa um dia desses e viu as
minhas calcinhas no varal e perguntou o que era aquele buraco
enorme atrás. E ficou resenhando comigo: “Milha filha...”. Pois
então, falei pro casal que não precisava tirar a calcinha, que eu
tinha vergonha e eles respeitaram. (Diário de Campo, 06.09.17).

Como demonstra esta passagem Gisele e Carlinha são grandes amigas,


assim como Gisele, Carlinha faz uso de hormônios femininos. Mas recusa as
classificações de travesti ou trans, se denominando “bicha”, ou “gay
afeminado”. O que gera atritos com Gisele que não entende a recusa de
Carlinha, visto que seu corpo é mais feminino que o dela.

Carlinha

Carlinha é um jovem que começou a utilizar hormônios femininos no fim


do ano passado. Desde então seu corpo apresenta um conjunto de
características associadas à feminilidade, feições do rosto arredondadas,
quadris largos e seios. Além disso, ele faz uso de um implante capilar, seus
cabelos estão na altura da cintura. Ao conversar sobre a minha pesquisa com
Carlinha, umas das coisas que me surpreendeu foi a sua recusa acerca do
termo travesti ou trans. Ele se descreveu enquanto um “gay afeminado” ou
“bixa”.
Gisele melhor amiga de Carlinha e uma das pessoas que lhe ajuda no
processo de hormonização, compartilhando dicas e em alguns momentos
realizando a aplicação dos anticoncepcionais. Diz que Carlinha é assim como
ela uma “travesti” e no futuro será uma “mulher trans”. Carlinha ao ouvir estas
expressões faz uma cara de tédio e costuma se afastar de Gisele, em outros

4 Ânus.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

momentos pede que ela, “o deixe em paz”. O fato de Carlinha apresentar um


conjunto de atributos associados à feminilidade, mas recusar uma identidade
de gênero feminina. Deixa intrigadas/os e confusas/os suas/eus colegas de
classe mais próximos, que veem nele alguém como Paula, uma pessoa que
está tornando-se mulher. Carlinha de sua parte nega veemente que esteja
tornando-se mulher, e não gosta de falar sobre os significados de sua
transformação corporal.
Por causa disto as/os jovens costumam elaborar teorias acerca das
razões pelas quais Carlinha faz uso de hormônios femininos. Durante uma aula
vaga, por exemplo, eu e Paula conversávamos sobre as suas fotos mais
recentes postadas em uma rede social, em que ela aparecia toda “produzida” e
“bem garota”. Gabriel colega de Carlinha, perguntou à Paula como era a sua
aparência no período em que era um “homem”, antes de tornar-se “viado”.
Felipa amiga de Paula respondeu que ela não é “viado” e sim uma “garota”.
Paula disse que Gabriel deveria ver as suas fotos mais antigas na rede social,
tudo estava documentado e a mudança era enorme. O jovem então disse que
recentemente havia visto algumas fotos de Carlinha: “Menina! Eu vi as fotos,
era todo macho. Quase não acreditei que fosse a mesma pessoa”.
Felipa disse que Douguinha era assim como Paula, “uma travesti”.
Respondi que Douguinha havia negado este termo e dita ser “uma bixa”, ou
“gay afeminado”. Paula muito irritada olhou para mim e disse: “Carlinha é
travesti, sim! Começou a se hormonizar desde o ano passado. Ela é toda
garota, sim!”. Gabriel então comentou que já havia ouvido diversas histórias
sobre a transformação de Carlinha, dentre estas, que tudo teria começado em
um carnaval, ele se fantasiou de mulher e teria gostado muito da experiência.
Paula compartilhou a sua versão sobre a transformação corporal de Carlinha:

- Olha, ela era toda machinho antes. Mas aí o irmão dela foi preso,
por que era traficante. Foi um baita perrengue pra ela e toda a
família. Ele deixou muitas dívidas, e o pessoal ficou cobrando a
Carlinha. Pra pagar o pessoal que o irmão dela estava devendo. A
Carlinha começou a fazer aviãozinho5, só que pra isso precisava de

5 Jovens que fazem transporte de drogas, em pequenas quantidades, dos traficantes para os
usuários.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

cobertura né? E assim ela é negra... antes com aquele (cabelo)


moicano, cheia das pratas6, era muito visível pra polícia. Ela
percebeu que a polícia não abordava muito as mulheres.
Aí começou a se vestir, a se maquiar, e agora tá usando hormônios.
(Diário de campo, 08.09.17).

Gabriel perguntou à Paula se a partir desta situação, Carlinha teria


gostado da experiência de “se passar por mulher”. Paula afirmou que sim.
Porém considerando o desconforto que Carlinha expressa diante de sua
transformação, é algo a ser considerado.

Considerações Finais:

O objetivo deste artigo foi discutir as transformações corporais


realizadas por jovens lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT), e os
distintos significados que estas assumem para as/os sujeitos envolvidos.
Para isso foram analisadas as vivencias de três jovens estudantes do ensino
médio: Pedro, Gisele e Carlinha cujo significado das transformações assume
contornos completamente distintos para cada um destes jovens.
Pedro faz uso de hormônios masculinos para se adequar ao gênero com
o qual se identifica, porém o jovem não descarta o possível retorno a seu
gênero anterior. Afirmando ler muito sobre casos de “destransição” e tem em
sua própria família um exemplo deste processo. Gisele leva os seus planos de
transformação corporal mais longe, estabelecendo como meta a cirurgia de
redesignação sexual, e afirmando o seu status de “travesti” enquanto algo
temporário. Carlinha recusa os termos “travesti” ou “trans”, afirmando ser um
“gay feminino” ou “bixa”, demonstrando imenso desconforto para falar sobre a
sua transformação, que a partir do relato de uma de suas amigas, expõe um
caráter estratégico da performance de gênero, nesse caso, driblar a polícia.
Todas as transformações corporais expressam a agência destes sujeitos, que
estão interferindo e agindo no mundo, mas a partir de certas condições sócio-
históricas (DAYRELL, 2003).

6 Cordões de prata.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em síntese, os múltiplos significados sobre o processo de transição de


gênero, ou a exploração de outras possibilidades em relação ao mesmo,
ajudam a pensar os distintos contornos que pode assumir o gênero e a
sexualidade no cotidiano escolar. Especialmente considerando a sociedade em
que vivemos, marcada pelas relações desiguais entre os gêneros, o
preconceito diante de formas de feminilidade, masculinidade, não
hegemônicas; e na sexualidade, as orientações sexuais não heteronormativas.

Referências Bibliográficas:

DAYRELL, Juarez. 2003. “O jovem como sujeito social”. Revista Brasileira de


Educação, 24: 40-52.

PELÚCIO, Larissa. 2005. “Toda quebrada na plástica: Corporalidade e


construção de gênero entre as travestis paulistas”. Campos, 6: 97-112.

NATIVIDADE, Marcelo Tavares; OLIVEIRA, Leandro de. 2009. “NÓS


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REGULAÇÃO DA SEXUALIDADE”. Tomo: Revista do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, 14: 204-227.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Marcadores Sociais e Sinais Diacríticos em um Estádio de Futebol

Phelipe Caldas Pontes Carvalho1

Resumo

Na essência do futebol, qualquer pessoa que se proponha a pagar um ingresso


e ir a um estádio em dia de jogo terá acesso à praça esportiva. Isso, contudo,
não significa dizer que a arquibancada é um espaço totalmente democrático,
de uso livre, destinado sem nenhum tipo de restrição a todos os aficionados
pelo esporte. Uma arquibancada de futebol, na verdade, é formada por vários
territórios, com fronteiras nem sempre bem definidas, e que permanecem em
constante relação de mediação. Em que marcadores sociais da diferença e
sinais diacríticos são fundamentais para definir onde cada tipo de torcedor
pode se posicionar e como se dará a partir daí sua relação com o outro. É bem
verdade que nem sempre essa divisão acontece de forma consciente e nunca
de forma institucionalizada. Mas, não só tal separação existe como muitas
vezes ela potencializa o preconceito. E desrespeitá-la pode levar ao conflito. O
presente artigo, pois, vai analisar esse fenômeno a partir de pesquisas de
campo realizadas no Estádio José Américo de Almeida Filho, em João Pessoa,
durante jogos do Botafogo-PB na Série C do Campeonato Brasileiro de Futebol
de 2017.

Palavras-chaves: antropologia urbana, futebol, sinais diacríticos, marcadores


sociais da diferença.

Introdução

O cenário descrito neste artigo é todo vivido no Estádio José Américo de


Almeida Filho, popularmente conhecido pelo apelido Almeidão e que é a casa
do Botafogo-PB2 em jogos em que o clube atua como mandante. Mas, a partir
dele, pretende-se descrever uma realidade que se repete em muitos outros
estádios brasileiros (ao menos com relação aos cânticos das torcidas, algo que
será abordado pelo artigo mais a frente).

1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. É


pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (GUETU/UFPB). Contato:
[email protected]
2 Nome oficial, Botafogo Futebol Clube. É o maior clube de João Pessoa e maior campeão estadual da

Paraíba. O seu nome é comumente escrito com a sigla do estado de origem para diferenciar do Botafogo
de Futebol e Regatas, o homônimo do Rio de Janeiro.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ao longo de 2017, compareci à referida praça esportiva na maioria dos


jogos do Belo (o apelido do clube pessoense) pela Série C do Campeonato
Brasileiro de Futebol, competição que corresponde à terceira divisão nacional e
na qual o time pessoense tem vaga assegurada.
Nesses jogos, inseri-me em meio aos torcedores. Fui ao estádio como
mais um dentre tantos que vão com o objetivo primário de torcer, se emocionar
e se arrepiar com o seu time do coração. E nesses momentos, tentei viver a
experiência da forma mais completa possível.
Chegava cedo ao Estádio Almeidão. Conversava com vários torcedores,
assistia aos jogos, tomava cerveja e brindava ao lado deles e com eles. No
grupo que me inseri, eram todos homens. Abraçava-os quando saíam os gols
do time da casa e me afligia tal como eles nos momentos de tensões
provocados por falhas do time da casa.
Não era uma encenação. Senti na pele, de fato, todas essas sensações.
“Deixei-me afetar”, mas “em nenhum momento resignei-me a não
compreender” (Favret-Saada, 2005:158). Enfim, vivi momentos intensos, sem
deixar escapar o objetivo principal que me levava até ali, que era compreender
as práticas e as dinâmicas, os comportamentos e os conflitos, os anseios e os
objetivos do torcedor em um estádio de futebol.
Minha principal expectativa ao adentrar no campo, a propósito, era
entender o processo formador do torcedor de futebol. Que “forças” fazem uma
pessoa ser botafoguense, por exemplo, em detrimento de todas as outras
opções existentes no espectro futebolístico e que estão à disposição de
qualquer pretenso torcedor.
Ainda estou em busca dessas respostas principais. Mas, em meio a toda
esta pesquisa, algo além me chamou a atenção. E é este assunto específico
que abordo no artigo que se segue. A saber, é curioso perceber como o
estádio, ainda que ocupado quase que totalmente por torcedores
botafoguenses, é fracionado em vários grupos. Divididos de forma muitas
vezes inconsciente. Num processo que é motivado, muito provavelmente, por
um costume futebolístico que desde muito cedo tenta ditar as regras sobre
quem pode e quem não pode consumir futebol. E consumir aqui num sentido
amplo: jogar, torcer, entender, frequentar o estádio.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

O fato é que a arquibancada, antes pensada para ser um vão único


pronto para abrigar os torcedores do time da casa, vira um verdadeiro
loteamento de territórios. Em que as identidades são postas nas fronteiras
(Barth, 2000). Definidas muito fortemente pelos sinais diacríticos, pelos
marcadores sociais da diferença, por códigos de reconhecimento existentes
entre torcedores e grupos de torcedores.
É um espaço também de violências, portanto. Nem sempre físicas,
obviamente. Mas, em regra, simbólicas. Porque a arquibancada é um ambiente
em que, não raro, se registra as mais variadas formas de preconceitos (velados
ou não).

Os territórios e suas fronteiras

Antes de falar sobre os torcedores propriamente ditos, faz-se necessário


explicar rapidamente alguns conceitos que vão nortear neste artigo as noções
de território e de fronteira.
Território, pois, será aqui pensado como “apropriação simbólica do
espaço” (Pinto, 2005:33). Ou como algo “concebido a partir da imbricação de
múltiplas relações de poder” (Haesbaert, 2011:79). A arquibancada, pois, só se
transforma em território quando ela ganha simbologias, valores e sentidos por
parte daqueles que a ocupa. Mas, quando isso acontece, esse território vai ser
defendido e cultivado como algo bem maior e mais forte do que simples
degraus em que torcedores se posicionam para assistir a uma partida.
Da mesma forma, as fronteiras. Aqui pensadas como algo além do que
meros limites entre dois grupos. Mas, na perspectiva de ser o próprio “foco da
investigação” (Barth, 2000:27) sobre as identidades. Por este ponto de vista,
um grupo só se define como tal no momento em que identifica, define e taxa
outro grupo, que obviamente é diferente de si.
E estas diferenciações, no contexto do presente artigo, vão acontecer
justamente por causa de sinais diacríticos, de marcadores sociais da diferença.
Ou, como diria Goffman, por causa dos estigmas. O termo, aliás, “usado em
referência a um atributo profundamente depreciativo” (1988:6). Mas que, como
o autor esclarece, é construído socialmente, a partir da visão do outro, e que
“não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso” (1988:6).
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

A arquibancada é heteronormativa

Ao abordar, enfim, os torcedores, o artigo pretende falar muito das


diferenças entre eles. Mas, curiosamente, começa com uma semelhança quase
universal em um estádio de futebol. E que se mostra extremamente segregador
e hostil. O estádio, pois, é majoritariamente um espaço de homens. Cujas
imagens construídas a partir de cânticos e de discursos em dia de jogo levam a
crer que são heterossexuais e, até certo ponto, machistas e homofóbicos.
Não significa dizer, claro, que os torcedores, individualmente, em suas
vidas além do futebol, tenham de fato estas características. Aliás, nem mesmo
possuo elementos ou sequer pistas mínimas que me permitam debater isso.
Mas, o fato é que, levados pela multidão, pela coletividade, pelo momento de
torpor que o futebol provoca, é exatamente esse o comportamento que os
torcedores, em seus diferentes territórios do Estádio Almeidão, reproduzem
(consciente ou inconscientemente).
Um cenário bem parecido, por certo, com o que Goffman descreve:
“Quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá
a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela
sociedade” (2002:41).
É, enfim, um comportamento tal que, obviamente, vai reprimir a livre
circulação de mulheres e de homossexuais no estádio (principalmente os
homossexuais masculinos). Sim, eles também estão presentes nas
arquibancadas. Mas, isto pôde ser observado, as mulheres não circulam
sozinhas nem vão a todos os locais da praça esportiva. E os homossexuais
masculinos não se assumem explicitamente como tal. Ao menos se não
quiserem ser expostos a cantadas ou piadas, a depender do caso.
A questão é que a masculinidade é algo fortemente presente nas
arquibancadas. E isso vai ser reproduzido nos cânticos, nos gritos de guerra,
na convulsão coletiva em apoio ao time da casa, no xingamento cruel contra o
torcedor e contra o time rival. Isso tem seu peso. Suas consequências. Sua
repressão velada a quem não se encaixa no dito “padrão”.
Para dar um exemplo da força desta opressão, vale registrar que em
todos os jogos pesquisados, sem exceção, cânticos com teor homofóbico
foram proferidos pela torcida botafoguense contra os rivais, independente de
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

quem eram eles. Pois o rival é sempre o “gay”, o “filho da puta”, o que “toma no
cu”, o “viado safado”. Enquanto que o jogador do time da casa é sempre
descrito e reverenciado como o “macho”, o “forte”, o “destemido”, o “brigão”.
A maioria do estádio costuma cantar em coro os xingamentos machistas
e homofóbicos contra o rival, com o argumento primeiro de desestabilizá-lo
num momento de decisão. Vi mulheres reproduzindo cânticos machistas. E, por
inferência, não é difícil imaginar que homossexuais possam igualmente ter
participado de cantos homofóbicos contra o outro.
Algo que Pierre Bourdieu vai chamar de “violência simbólica”, quando
“os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos
dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como
naturais” (2012:46). Trata-se, portanto, de uma “violência doce e quase
invisível” (2012:47).
Não é algo inato ao esporte, obviamente. Mas, como é praxe nestes
casos, trata-se de uma construção social que ultrapassa gerações e se inicia
ainda na infância do brasileiro:

No Brasil a formação da masculinidade passa pela construção de


uma identidade marcada na infância e na adolescência pela atuação
do jovem nos jogos de futebol. A associação entre macheza e jogar
futebol é praxe na formação do jovem viril brasileiro. É uma
identidade agregada a valores de agressividade, uma “violência
necessária” e até mesmo uma libido masculina heterossexual. (De
León, 2011:52).

Como se vê, o estádio de futebol é essencialmente um espaço de


masculinidades. Mas, como se pretenderá mostrar a partir de agora, não será
jamais uma unidade. Outros marcadores definirão uma série de separações no
estádio, que vão definir mais ou menos onde cada tipo de torcedor pode
permanecer dentro de uma mesma praça esportiva.

As identidades estão nas fronteiras

Já abordamos aqui as ideias que Fredrik Barth tem sobre fronteiras. E


muito por isso pegamos emprestado um de seus conceitos basilares para titular
este capítulo do artigo. O que nos interessa, é entender que as pessoas estão
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

sempre buscando “um elemento de contraste” (Barth, 2005:21) para, a partir


daí, definir alianças e oposições dentro de uma mesma sociedade.
Em outras palavras, “as pessoas procuram laços comunitários com
outras que estão em posições similares à sua” (Barth, 2005:21). Para se
diferenciar do outro e para se proteger, para criar um grupo em que possa se
identificar. Para criar uma relação de pertença com quem lhe é semelhante.
Não sei dizer ainda se, no caso do Estádio Almeidão, este seja um
processo consciente. Ou se, diferente disso, essas alianças acabem por
acontecer de forma mais ou menos fluida. Mas, independente da resposta, o
fato é que, notoriamente, elas existem.
Descrevamos, pois, alguns grupos que puderam ser identificados nestas
incursões ao estádio. As semelhanças internas de cada grupo são marcantes.
As diferenças, pois, são vistas nas fronteiras de um para outro. E estes, para
se reafirmarem como grupos, vão sempre ocupar os mesmos territórios dentro
das arquibancadas.
Duas torcidas organizadas majoritárias ocupam a chamada
Arquibancada Sol do Estádio Almeidão, o setor mais popular da praça
esportiva. A Torcida Jovem do Botafogo e a Fúria Independente. Ambas têm
características bem semelhantes. São compostas por jovens, de classe social
baixa, moradores de bairros periféricos da cidade. Poucos são brancos. A
maioria é de pardos e negros. A diferença entre elas é que a primeira é
originária do bairro do Cristo Redentor; enquanto que a segunda é
majoritariamente do bairro de Mangabeira (ambos de João Pessoa).
Na Arquibancada Sombra (setor de ingressos mais caros), existe uma
terceira torcida organizada, a Império Alvinegro. É igualmente formada por
jovens, mas são majoritariamente de classe média3. A incidência de brancos é
bem maior. E são, em regra, moradores de bairros mais centrais ou mesmo de
bairros identificados socialmente como nobres.
As diferenças, claro, não se resumem apenas às torcidas organizadas.
Mas vamos nos ater um pouco mais a elas. As duas primeiras vão ao estádio,
em regra, de ônibus. Por meio de transporte público superlotado. A terceira

3Ao longo de conversas informais, pude descobrir que a maioria é formada por professores, funcionários
públicos, profissionais liberais.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

tende ir ao estádio em carros particulares4. Existem outros sinais. Bermudas,


camisetas e chinelos de um lado. Moletons, agasalhos, tênis do outro.
Características de uns e de outros que apenas ressaltam as diferenças
econômicas entre os grupos. E que vão ter consequências nos estigmas que
cada torcida organizada vai carregar.
Os integrantes da Jovem e da Fúria, por exemplo, são vistos pela
população de João Pessoa, quase que automaticamente, como marginais,
bandidos, violentos. Algo que não acontece com a Império, vista com mais
complacência e cuidado, ainda que todas sejam torcidas organizadas.
Para Almeida, muito disto está em um preconceito da sociedade, que
costuma identificar o outro a partir de “sinais exteriores ancorados nos seus
corpos” (2004:17-35). É justamente isso o que ele chama de sinais diacríticos,
“que estabelecem uma diferença de sentido e significado, apesar de serem, em
si mesmos, desprovidos de sentido ou significado” (2004:17-35).
Segue o autor, ainda abordando o tema: “As categorias [...] não são
neutras ou horizontais, ou sequer simétricas. ‘Preto’ não é apenas a outra face
da moeda de ‘branco’; ‘preto’ é a face de baixo, com menos valor, da moeda”
(2004:17-35).
Tal como Alberto, o personagem negro descrito na primeira parte do
artigo do autor português, cada torcedor pobre, negro, marginalizado, “está
prisioneiro de uma armadilha que o seu corpo lhe pregou” (2004:17-35).
Ele arremata, ainda com relação ao que os sinais diacríticos expostos
em um corpo podem representar para um mundo repleto de preconceitos:

O corpo como interiorização não verbal, inconsciente, mimética,


automática, de certas disposições de desigualdade e poder; mas não
só como interiorização – também como reprodutor dessas realidades,
seu confirmador constante pelo fato simples de estar lá, de aparecer,
de ser. [...] Tal acontece em todos os níveis de identidade social que
são também níveis de desigualdade e diferença: o gênero, a
sexualidade, a raça, a etnicidade, a classe, a deficiência, a idade...
(Almeida, 2004:17-35).

Haverá outras diferenças no estádio, obviamente, e que vão além das


torcidas organizadas. Por sinal, elas ficam nos seus espaços. Não se misturam.

4 Ambas as realidades puderam ser observadas no entorno do estádio.


Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Não aceitam intrusos. São marcados. Mas, aos seus modos, marcam também.
Não pretendem dividir o espaço destinado a elas com quem não seja um deles.
A idade, por sinal, é um outro marcador social da diferença que vai se
fazer presente no estádio e que vai ter papel decisivo nas posições de cada
torcedor no estádio. Como já dito, as torcidas organizadas são espaços de
maioria jovem. Convocadas para cantar o tempo todo, para pular, para se
movimentar agilmente de tempos em tempos. Não é lugar de gente velha,
lenta, com pouca mobilidade. Eis os sinais diacríticos mais uma vez à tona.
O torcedor idoso, portanto, fica à margem. Mais para as laterais das
arquibancadas. Ou para os degraus mais acima, mais longe do campo de jogo.
Longe do tumulto, do foco principal dos acontecimentos. Sempre afastado de
onde está localizado, por exemplo, os torcedores rivais. Fica, também, muitas
vezes sentado. Mas nem sempre.
É uma espécie de segregação. De cuidado ou preocupação com os mais
velhos, talvez. De colocá-los fora do agito. De excluí-los. Ou simplesmente
mantê-los à parte dos demais. Não importa o motivo, seja ele nobre ou não. O
fato é que é mais um comportamento pautado numa construção social, de algo
que não é natural, mas que acaba sendo “naturalizado” pelo costume.

A velhice é uma categoria socialmente produzida. [...] As


representações sobre a velhice, a idade a partir da qual os indivíduos
são considerados velhos, a posição social dos velhos e o tratamento
que lhes é dado pelos mais jovens ganham significados particulares
em contextos históricos, sociais e culturais distintos (Debert, 1994:8).

É possível perceber, inclusive, ao menos nesses últimos pontos, certas


semelhanças nas práticas realizadas dentro e fora do estádio. Afinal, o estádio,
no fundo, é ocupado pelas mesmas pessoas que formam a sociedade como
um todo. Com as mesmas dificuldades de lidar com as diferenças, com os
sinais diacríticos percebidos no outro.
E se na sociedade, no mundo da publicidade, da relação interpessoal,
existe um padrão de corpo a ser seguido, isso também estará refletido de
alguma forma no mundo do futebol.
Não me restam muitas dúvidas. O estádio de futebol como o espaço
mais democrático do país, tal como ele costuma ser propagado, é, de certa
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

forma, um mito. Pois, tal como no mundo exterior, tudo o que é diferente passa
a ser visto de uma forma ou de outra como estranho nas arquibancadas.
Evita-se o abraço no torcedor muito sujo, sugere-se parcimônia ao
torcedor muito velho, ri-se do torcedor muito bêbado, aponta-se ironicamente
para o torcedor “louco” que passa todo o jogo falando sozinho. Todos esses
exemplos são reais. Retirados das observações realizadas na Série C.
Tudo isso, aliás, está em consonância com o que diz Le Breton:

A impossibilidade de nos identificarmos fisicamente com ele (por


causa de sua enfermidade, da desordem de seus gestos, de sua
velhice, de sua “feiura”, de sua origem cultural ou religiosa diferente
etc.) está na fonte de todo os preconceitos que um ator social pode
sofrer. A diferença transforma-se em estigma mais ou menos
altamente afirmado. [...] A hostilidade, aliás, é raramente manifesta,
mas os olhares não cessam de se colocar sobre eles, de comentar
(2013:213).

Claro que, eventualmente, no estádio, um homem pobre e um homem


rico, por exemplo, que em outro ambiente não seriam próximos, podem de
repente comemorar juntos a marcação de um gol, debater animadamente
sobre como o jogo está se passando diante de seus olhos, criticar juntos o
técnico ou o craque do time. São ambos aproximados pela mesma paixão a um
clube de futebol e a uma mesma modalidade esportiva. E são esses diálogos
pontuais que passam a ideia de certa democracia vigente nas arquibancadas.
Mas esses encontros, que podemos chamar talvez de aproximações
atípicas, têm um limite. São, em regra, efêmeras. Duram apenas o período do
jogo e quase nunca se expandem para além do estádio. E só acontecem até o
ponto em que as diferenças são negociáveis. Até o momento em que elas não
se tornam gritantes, incômodas ou agressivas para um dos lados. E, em regra,
é o lado do dominador quem impõe esse limite.

Conclusão

O sociólogo alemão Georg Simmel tem todo um tratado sobre relações


sociais. Ele diz, por exemplo, que sociedade “é o estar com um outro, para um
outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos,
forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais”
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

(Simmel, 1983:168). Enquanto que sociabilidade é o fenômeno em que “as


formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberados de
todos os laços” (Simmel, 1983:168).
Usando termo caro ao autor, portanto, o que se tem em um estádio de
futebol são “impulsos de sociabilidade”, quando os torcedores “sentem que a
formação de uma sociedade como tal é um valor, são impelidos para essa
forma de existência” (1983:168).
A questão é que o próprio Simmel vai ressalvar mais a frente a natureza
democrática da sociabilidade. Pois, segundo ele, a sociabilidade para se fazer
existir “demanda o mais puro, o mais transparente, o mais eventualmente
atraente tipo de interação, a interação entre iguais” (1983:172).
Eis o ponto central de nosso debate. A rigor, nos dias de jogos
analisados para este artigo, todos na torcida botafoguense eram
pretensamente iguais. Afinal, eram todos torcedores do mesmo clube que ao
longo da competição patinou perigosamente na parte de baixo da tabela até se
livrar do rebaixamento na última rodada da primeira fase da competição.
Mas, será mesmo que essa unidade existe? Será que ela é uma
realidade inconteste? Será verdade que todos os botafoguenses estão
dispostos a, conforme prega Simmel, renunciar a seus conteúdos objetivos até
o ponto de se tornarem socialmente iguais?
A resposta, me parece, é “sim” e é “não” ao mesmo tempo. “Sim” porque
de fato existe nas arquibancadas de futebol um anseio coletivo pela unidade,
pela socialização, por uma horizontalidade entre torcedores movidos por uma
mesma paixão. E ao mesmo tempo é “não” porque esta busca por unidade não
é nem absoluta, nem universal e nem indivisível como se pode supor a
princípio.
O que existe, afinal, são múltiplas sociabilidades dentro de um mesmo
estádio de futebol. Múltiplos grupos. Cada torcida organizada, cada conjunto de
torcedores com características mais ou menos semelhantes, cada reunião de
pessoas com interesses mais próximos um do outro, forma uma unidade em si
mesma, mas que será sempre distinta e muitas vezes concorrentes ao outro.
Diferente de todos aqueles que têm sinais diacríticos distintos, por exemplo.
Diferente também daqueles marcados socialmente por alguma característica
que o diferencia – e o afasta – do outro.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências

Livros:

BARTH, Fredrik. 2000. O guru, o iniciador: e outras variações antropológicas.


Trad. John Cunha Comerford. Rio de Janeiro:Contracapa.
BOURDIEU, Pierre. 2012. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner.
11ª Ed. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil.
GOFFMAN, Erving. 1988. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. Trad. Mathias Lambert. 4ª Ed. Rio de Janeiro:LTC.
________________. 2002. A representação do eu na vida cotidiana. Trad.
Maria Célia Santos Raposo. 10ª Ed. Petrópolis:Vozes.
HAESBAERT, Rogério. 2011. O mito da desterritorialização: do “fim dos
territórios” à multiterritorialidade. 6ª Ed. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil.
LE BRETON. David. 2013. Antropologia do Corpo e Modernidade. Trad. Fábio
dos Santos Creder. 3ª Ed. Petrópolis:Vozes.

Artigos em periódicos:

ALMEIDA, Miguel Vale de. 2004. O Manifesto do corpo. Manifesto, 5:17-35.


BARTH, Fredrik. 2005. Etnicidade e o conceito de cultura. Trad. Paulo Gabriel
Hilu da Rocha. Antropolítica, 10(19):15-30.
FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. “Ser afetado”. Trad. Paula Siqueira. Cadernos
de Campo, 13(13):155-161.
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. 2005. Etnicidade e nacionalismo religioso
entre os Curdos da Síria. Antropolítica, 10(19):31-61.

Artigos em coletâneas:

DE LEÓN, Adriano. 2011. Tem viado no gramado dos campos de futebol? Uma
proposta metodológica para analisar diferentes performances masculinas. In:
CharlitonMachado; MariaNunes; IdalinaSantiago (ed.). Olhares: gênero,
sexualidade e cultura. João Pessoa: Editora Universitária UFPB. pp. 47-72.
Grupo de Trabalho 6 II Reunião de Antropologia da Saúde

DEBERT, Guita Grin. 1994. Pressupostos da reflexão antropológica sobre a


velhice. In: GuitaDebert (ed.). Antropologia e Velhice. Campinas: IFCH/
Unicamp. pp. 7-30.
SIMMEL, Georg. 1983. Sociabilidade: um exemplo da sociologia pura ou
formal. In: EvaristoFilho (ed.). Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática. pp.
165-181.
Grupo de Trabalho 7
HIV/AIDS, hepatites virais e outras DSTs:
pesquisas sócio-antropológicas e suas
interfaces sobre políticas e ações em saúde
Coordenadoras: Luziana Marques Silva (UFPB); Ivia
Maksud (Fiocruz) e Larissa Polejack (UnB)
Grupo de Trabalho 7
HIV/AIDS, hepatites virais e outras DSTs: pesquisas sócio-
antropológicas e suas interfaces sobre políticas e ações
em saúde
Esse GT tem por objetivo pensar os caminhos que as pesquisas de abordagem
qualitativa têm trilhado nas análises referentes às políticas de saúde e ações sobre o
HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis como a Sífilis, o HPV e as Hepatites
Virais. Em tempos político e economicamente adversos, em que ameaças aos direitos
sociais e ataques à saúde pública se traduzem, dentre outras em formas, em
indagações sobre a Universalidade do acesso à saúde, a Antropologia da saúde, em
interface com as análises das Ciências Sociais e Humanas em Saúde que têm sido
produzidas em áreas como a Saúde Coletiva, tem se deparado com as ambigüidades
na prevenção e tratamento às doenças sexualmente transmissíveis. De um lado, se
expressa o caráter sociopolítico da biotecnologia com as inovações com testagens,
prevenção e tratamentos, como nas profilaxias pré-exposição (PrEP) e pós-exposição
(PEP) para o HIV, seja com o monopólio de patentes enquanto entrave ao acesso de
medicamentos como no caso da Hepatite C –, e de outro, a apropriação do discurso das
biotecnologias por diferentes atores sociais pensada como ampliação do leque de
abordagens, mas do mesmo modo, sendo alvo de problematizações sobre as
implicações de intervenções terapêuticas na vivência das pessoas e comunidades
vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis. Este grupo de trabalho aglutinará
trabalhos a partir de três eixos analíticos. É nosso interesse estimular a participação de
pesquisadores que tenham como foco a atenção à saúde em serviços públicos e
privados de saúde. Etnografias, estudos de caso, itinerários terapêuticos, trajetórias
assistenciais e outras abordagens que se debrucem sobre aspectos da relação médico-
paciente, processos de trabalho, aspectos institucionais, biopolítica entre outros. Outro
domínio de interesse recai sobre as análises sócio-antropológicas das políticas de
saúde, chamando atenção para análise da interação entre os variados atores que as
constroem, bem como dessa agência com os campos a que dizem respeito. Por fim,
pesquisas sócio-antropológicas e de áreas afins que investiguem o terreno das
narrativas, subjetividades, moralidades, biosociabilidades produzidas na interface da
vivência com doenças atravessadas pelos marcadores de gênero, sexualidade,
cor/raça, idade e outros definidores de seu pertencimento social.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Prevenção e Tratamento: a Profilaxia Pós-Exposição – PEP como estratégia de


prevenção ao HIV/Aids.

Adriano Henrique Caetano Costa1

RESUMO

O surgimento de novos métodos preventivos eficazes revigora a prevenção da infecção


pelo HIV e potencializa a atenção a diversas situações de vulnerabilidade e risco que as
pessoas vivenciam. Todavia, a apropriação destes avanços tecnológicos em benefício
da população exige exame e reflexão crítica sobre as práticas de saúde, a gestão dos
serviços e a organização dos processos de trabalho na rede de saúde. O objetivo deste
trabalho é investigar as concepções e práticas de profissionais da saúde dos Serviços
de Assistência Especializada no Rio Grande do Sul. Proponho refletir sobre as relações
entre a prática médica de intervenção denominada Profilaxia Pós-Exposição e a sua
implementação como política pública de prevenção. Esta estratégia de controle da
transmissão do HIV/Aids inclui ações combinadas de prevenção, assistência e
tratamento que vem sendo incorporadas aos serviços de saúde como, por exemplo, a
terapia antirretroviral disponível no Sistema Único de Saúde. Este estudo aborda os
homens (heterossexuais e homossexuais), suas motivações para a escolha dos
métodos preventivos no contexto de serviços, a percepção dos profissionais da saúde
acerca da busca por prevenção pelos homens e da adesão destes aos protocolos da
PEP. O estudo se apoia em abordagem qualitativa e utiliza as técnicas de entrevistas
narrativas com usuários, entrevistas em profundidade com profissionais de saúde e
observação etnográfica dos serviços de saúde.

Palavras-chaves: prevenção, HIV, masculinidades, saúde.

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS) em São Leopoldo/Rio Grande do Sul/Brasil.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

O presente artigo tem por objetivo principal investigar os modos de acesso dos
homens a PEP em um serviço de saúde visando à identificação de fatores associados
às limitações e possibilidades desta estratégia de prevenção do HIV. No cenário
epidemiológico atual, vários são os motivos para a implementação da PEP como parte
das política de prevenção ao HIV/Aids. Um dos principais problemas a serem
enfrentados diz respeito ao retorno de uma tendência de aumento na proporção de
casos entre os Homens que fazem Sexo com Homens - HSH2 nos últimos dez anos, a
qual passou de 34,6%, em 2004, para 43,2%, em 2013. Cabe ressaltar que, entre os
HSH, observa-se que a proporção de casos é superior entre aqueles com até 29 anos.
Ao analisar esses dados por região de residência, observa-se que há uma tendência
significativa de aumento da proporção de casos nessa categoria na Região Sul, assim
como no Sudeste e Centro-Oeste (BRASIL, 2014).
No Brasil, e no mundo, a PEP surge da ampliação do uso de antirretrovirais
como forma de prevenção da infecção pelo HIV em contexto específico de exposição a
materiais potencialmente infectados, em ambientes de exposição ocupacional, o uso
expandiu para as exposições ocorridos por violência sexual antecede, embora, se
associe a outras estratégias: testar e tratar, circuncisão masculina, Profilaxia Pré-
Exposição (PrEP) sexual e PEP. A primeira tecnologia mencionada diz respeito à
massificação da testagem para o diagnóstico do HIV que já vem sendo utilizado por
meio de campanhas como a “Fique Sabendo”, em todo o território nacional, e algumas
intervenções de testagem para populações específicas3. Ainda nessa direção, o projeto
“Viva Melhor Sabendo”, realizado em parceria entre organizações não governamentais
e o Departamento DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, objetiva a

2
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), populações-chave “são grupos definidos que,
devido a comportamentos de maior risco específicos, estão em maior risco de infecção pelo HIV,
independentemente do tipo da epidemia ou do contexto local”. A vulnerabilidade acrescida desses grupos
também se explica pelo fato de serem alvos comuns de discriminação e exclusão social, fenômenos que
têm afastando-as dos serviços e ações em saúde, e interferido negativamente na adesão ao tratamento
em caso de soropositividade. Compõem o grupo de populações-chave os homens que fazem sexo com
outros homens (HSH), travestis e transexuais, profissionais do sexo, usuários de drogas e pessoas em
prisões e outras instituições fechadas.
3 O Grupo Arco-íris – GAI, situado na cidade do Rio de Janeiro, realiza testagem na sua sede e o Grupo

Leões do Norte, situado na cidade do Recife, realiza testagem no carro que eles chamam “Kombi da
prevenção”. São ações piloto que tem apoio do DN DST/Aids e HV desde 2010.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

execução de projetos de testagem rápida com amostra de fluído oral entre populações-
chave4. Tais campanhas e intervenções, de acordo com os gestores de saúde, têm
como princípio a ideia de que quanto mais precocemente à pessoa souber de sua
condição sorológica, mais cedo iniciará o tratamento e poderá ter mais longevidade e
qualidade de vida. Recentes evidências que mostram uma redução de 96% na
transmissão para o parceiro soronegativo quando o parceiro soropositivo está em
tratamento para a doença (COHEN et al., 2011) têm fortalecido o desenvolvimento de
políticas de prevenção do HIV baseadas em estratégias biomédicas.
A circuncisão, embora ainda controverso, é outro método biomédico de
prevenção do HIV, diz respeito aos procedimento cirúrgico que consiste na remoção do
prepúcio, prega cutânea que recobre a glande do pênis por indicação médica ou
relacionadas à culturas religiosas. Algumas pesquisas realizadas na África
comprovaram que a circuncisão reduz entre 50 e 60% a infecção pelo HIV em homens
que declaram ter apenas relações heterossexuais, ou seja, somente haverá redução
significativa do risco de infecção para homens que fazem sexo com mulheres
soropositivas para o HIV (ABIA/GIV, 2011). Por enquanto, a mulher não infectada pelo
HIV não desfruta de nenhuma proteção se mantiver relações sexuais com um homem
HIV positivo5 (ABIA/GIV, 2011).
Por sua vez, a PrEP é a terapia com antirretrovirais de uso oral ou em gel 6 por
pessoas em risco de infecção iniciada antes da provável exposição ao HIV. A
segurança e a eficácia da PrEP foram analisadas em ensaios clínicos controlados
envolvendo casais heterossexuais sorodiscordantes (BAETEN et al, 2012), jovens
heterossexuais (THIGPEN et al, 2012) e HSH (GRANT et al, 2010), provenientes de

4
No Rio Grande do Sul as ONGs, no Edital 01/2015 para seleção de organizações da sociedade civil
para a realização de ações de testagem rápida do HIV com amostra de fluído oral entre populações
chaves, foram selecionadas no total de sete instituições.
5 Como não há resultados satisfatórios de proteção por meio de circuncisão em gays e homens que

fazem sexo com homens (HSH), e a epidemia de HIV/AIDS no Brasil está concentrada também nessa
população, não há recomendação oficial do Ministério da Saúde para implementar essa política, ainda
que, mesmo com menor impacto, seja um método de barreira e que estudos realizados na África do Sul e
nos Estados Unidos demonstrem a redução da transmissão de outras DSTs, como o herpes genital, em
25% dos casos, e o HPV, em 35%. (ABIA, 2011)
6A PrEP Oral, que, nos estudos atualmente em curso, se caracteriza pelo uso por via oral de comprimidos

de Tenofovir ou Truvada (Tenofovir combinado com Emtricitabina); A PrEP Tópica, que tem sido,
principalmente, pesquisada na forma de gel de Tenofovir. Trata-se de um tratamento, ainda em teste no
Brasil, que disponibiliza antirretrovirais para pessoas soronegativas para prevenir a não infecção ao HIV.
(ABIA/GIV, 2011)
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

diferentes países, incluindo o Brasil. Nesses estudos, a redução do risco de infecção


variou entre 40% e 75%, de acordo com o grau de adesão ao uso dos medicamentos.
Isso fez com que a agência reguladora norte-americana aprovasse em 2012 o registro
da combinação dos medicamentos tenofovir e emtricitabina para uso profilático, assim
como levou a diversas recomendações internacionais para o desenvolvimento de
estudos de implementação (PADIAN et al, 2011; WHO, 2012; CHANG et al, 2013;
KURTH et al, 2011; CDC, 2013; CDC, 2012; CDC, 2011). No Brasil pesquisas estão
sendo realizadas nesse sentido, como exemplo, a “PrEP Brasil – Implantação da
Profilaxia Pré-Exposição Sexual ao HIV: um projeto demonstrativo” com o objetivo de
avaliar a aceitação, segurança e viabilidade da PrEP administrada em três centros de
pesquisas no Brasil, incluindo o Sanatório Partenon em Porto Alegre, com população
HSH e mulheres transexuais em risco de contrair a infecção pelo HIV.
Por fim, a PEP (Profilaxia Pós-Exposição)7, que será objeto do presente estudo,
consiste em prevenir a infecção depois da exposição sexual ao HIV, como, por
exemplo, em uma relação sexual com pessoa soropositiva em que houve penetração
sem uso de preservativos ou no caso de acidente com o uso de preservativos, tal como
ruptura ou deslizamento. No Brasil, a profilaxia pós-exposição consensual8 está
recomendada desde 2010, para todos os indivíduos que mantiveram: (1) relação anal
receptiva, anal ou vaginal insertiva e vaginal receptiva com parceria sabidamente HIV+;
(2) relação anal receptiva com parceria de sorologia desconhecida e pertencente a um
segmento social com alta prevalência do HIV; e, dependendo da avaliação individual do
risco, para aqueles que tiveram: (3) relação anal ou vaginal insertiva, vaginal receptiva
e oral receptiva com ejaculação, ocorridas com parceria pertencente a segmentos
sociais com alta prevalência e sorologia desconhecida; e (4) relação sexual anal
receptiva com parceria sem conhecimento do status sorológico e que pertence a um
segmento populacional de baixa prevalência do HIV.

7
A recomendação do uso da PEP prevê que esta deve ser iniciada, preferencialmente, nas primeiras 2
horas ou no limite de 72 horas após a exposição sexual ao HIV, utilizando, por 28 dias, os medicamentos
zidovudina (AZT), lamivudina (3TC) e tenofovir (TDF) ou AZT, 3TC e Lopinavir/ritonavir (LPV/r), com
acompanhamento clínico e sorológico por seis meses. Para os casos com parceria HIV+ em uso de
antirretrovirais o esquema terapêutico é avaliado em consonância ao esquema utilizado pela parceria.
8 Relação consensual é quando não se trata de violência e/ou estupro.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Dados de estudos (BRASIL, 2010; TERTO JR, 1999; BERQUÓ, E; BARBOSA,


R; LIMA, L.; 2008) demonstram que o uso do preservativo como a única ferramenta de
prevenção mostrou dificuldades em conter a epidemia, especialmente em alguns
seguimentos populacionais. Nesse sentido, a combinação de métodos de barreira
biomédicos e além de estratégias visando a mudança de comportamentos - pode ser
mais eficaz considerando as diferentes necessidades das populações, a diversidade de
seus contextos sociais e práticas sexuais, bem como de seus valores e representações
sociais.
A Rede de Atendimento para PEP na Rede de Atenção à Saúde no Estado do
Rio Grande do Sul surge como importante estratégia de combate da epidemia de Aids
no país. Buscou-se fortalecer o que foi construído através da Constituição e criação do
Sistema Único de Saúde – SUS que contribuíram para que Pessoas Vivendo com
HIV/Aids – PVHA e as pessoas vulneráveis ao HIV pudessem entrar num sistema de
cuidado e responsabilidade do Estado (GRANJEIRO, 2009).
Atualmente a grande diretriz do Ministério da Saúde são as Redes de Atenção à
Saúde (RAS). “As Redes de Atenção à Saúde são arranjos organizativos de ações e
serviços de saúde de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de
sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integridade do
cuidado” (BRASIL, 2010, p: 29). Com essa regulamentação, a Atenção Primária a
Saúde é prioridade no que tange a consolidação de uma Rede de Atenção integral à
população. Como ordenadora do cuidado, parte dela a criação de fluxos e de linhas de
cuidado à saúde.
A atenção à população se dá então, prioritariamente, a partir da Atenção Básica
(UBS/ESF), que se orienta pelos fundamentos da universalidade, do território, do
vínculo e responsabilidade, da coordenação da integralidade, estímulo à participação
dos usuários, da humanização e da equidade (BRASIL, 2012). A partir disso, as Redes
de Atenção à Saúde entram em um fluxo de cuidado que é conduzido a partir do
Projeto Terapêutico Singular desenvolvido junto com cada sujeito. Nesse sentido,
constroem-se as redes a partir de Linha de Cuidado9 a qual consiste em compreender a

9
A Linha de Cuidado para Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e outras DST tem como objetivo
orientar os municípios na organização das Redes de Atenção a Saúde (RAS). Apresenta diretrizes e
recomendações gerais que subsidiam a definição de atribuições entre os níveis de atenção, buscando
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

produção de saúde de uma forma integral e sistêmica, respondendo a processos


dinâmicos focados na necessidade do usuário, como por exemplo, a necessidade de
realização da PEP.
O estabelecimento do fluxo de atendimento para usuários que necessitam da
PEP caracteriza a importância da construção de modelos de atenção que atravessam
muitos pontos de atenção, serviços de saúde, sejam intrasetoriais ou intersetoriais,
como a Política de Assistência Social, a Política de Assistência as DST/HIV/Aids,
Hepatites Virais e Tuberculose, a Rede de Urgência e Emergência, a Saúde LGBT, os
Centros de Atendimento da População de Rua, as unidades da Atenção Básica, as
Organizações da Sociedade Civil, etc. Entra neste sistema, a necessidade de se
atender a integralidade nas ações e políticas de DST/Aids no país, ampliando nossa
perspectiva sobre esse programa, compondo com outras políticas, desenvolvendo um
processo de trabalho para mudança de lógica da fragmentação articulada por
programas para a integralidade da atenção buscada por meio da constituição de Linhas
de Cuidado. Tal processo exige que ultrapassemos as fronteiras de cada setor para
garantir a atenção integral que a população tem direito. No Rio Grande do Sul, a
implantação da PEP é um desafio que está ocorrendo dentro das atividades da
Cooperação Interfederativa para o Cuidado em HIV/Aids.
A Cooperação Interfederativa do Rio Grande do Sul, firmada entre o Ministério da
Saúde (Departamento de IST/Aids e Hepatites Virais), Secretaria de Estado da Saúde
do Rio Grande do Sul (Seção de Controle das DST/Aids) e 15 municípios prioritários 10,
tem por objetivo responder a situação epidemiológica das DST/Aids e Hepatites Virais
no estado do Rio Grande do Sul através da construção de uma agenda interfederativa
organizada por prioridades e estratégias. As ações previstas neste acordo, com
vigência de dois anos, visam intervir sobre a mortalidade por AIDS, coinfecção por TB e
Hepatites Virais, prevenção para populações-chave, aumento da capacidade e

compartilhamento do cuidado entre a Atenção Básica/Estratégia de Saúde da Família (ESF), Centros de


Testagem e Aconselhamento (CTA) e Serviços de Atendimento Especializado em HIV e Aids (SAE) como
forma de garantir resposta global a epidemia. A implantação da LC deve ter como base a realidade de
cada município, recursos, potencialidades e limitações das RAS.
10 Porto Alegre, Viamão, Alvorada, Canos, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo,

Cachoeirinha, Gravataí, Guaíba, Caxias do Sul, Rio Grande, Santana do Livramento e Uruguaiana.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

eficiência dos serviços de saúde, expansão da oportunidade de acesso ao diagnóstico


rápido e aprimoramento da gestão.
Assim, desde 2010, iniciou-se oficialmente a implantação da PEP no Rio Grande
do Sul, pois é o estado de maior incidência de Aids e maior número de óbitos do país,
principalmente, entre as populações chaves. No âmbito da Cooperação a estratégia
pensada é ampliar e qualificar a oferta da PEP nos serviços da rede de urgência e
emergência, SAE e CTA dos municípios que integram a Cooperação. Para essa
estratégia foram pensadas o fortalecimento das seguintes ações: análise da
factibilidade da implantação de serviço 24h para realização da PEP nos municípios da
Cooperação Interfederativa, implantação de serviço 24h para realização da PEP nos
municípios e elaboração e edição de manual técnico para orientação dos serviços e
profissionais de saúde da Rede sobre PEP.
Destaco que as ações da Cooperação, no âmbito da qualificação e ampliação da
rede da PEP, tiveram início em 2015 com previsão de término em 2017. Nesse período,
a Seção Estadual DST/Aids do RS em conjunto com mais 15 municípios estão
construindo um fluxo para a PEP. Nesse sentido, a PEP é construída dentro do
contexto da prevenção combinada como uma estratégia para além apenas do uso de
preservativos, sendo os homens com práticas de maior risco para infecção do HIV uma
população prioritária. Esse cenário, assinalado pelo recortes entre homens está sendo
o campo de investigação da minha pesquisa de doutorado.
Focalizar os homens no contexto da busca e do uso de PEP importa não apenas
pela magnitude que estes representam dentre as populações que buscam esses
métodos de prevenção ou o uso combinado dos métodos preventivos contra a infecção
pelo HIV, mas, igualmente, pela diversidade de práticas sexuais e perfis sociais que os
mesmos representam no quadro das populações atingidas pelo HIV aids. Acrescente-
se a isso as particularidades no que toca à vivência da sexualidade pelos homens e
como estas repercutem no quadro da epidemia no país. A seguir, as especificidades
dos homens no contexto da aplicação das estratégias preventivas do HIV serão
debatidas à luz do marco teórico das relações de gênero e do conceito de
vulnerabilidade em suas articulações com a saúde.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Na área das políticas públicas de saúde, os homossexuais masculinos


assumiram lugar de destaque na cena político-acadêmica dos estudos em HIV/Aids
desde o final da década de 1980. Isso se deu pois, os primeiros casos da então
emergente epidemia ocorreram nessa população e pela atuação dos movimentos
sociais, o que culminou a elaboração de políticas públicas específicas para populações
prioritárias consideradas mais “vulneráveis”. Nessas populações, estão incluídos os
gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), Travestis e Transexuais,
mulheres profissionais do sexo e usuários de drogas.
Destaco que a concepção do Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos
(MANN et al,1993) tem como objetivo partir dos aspectos comportamentais e dos riscos
epidemiologicamente demonstrados em direção à identificação de fatores sociais e de
acesso a serviços que poderiam aumentar ou reduzir a capacidade individual de
consciência e transformação do risco de exposição ao HIV/Aids. Tal concepção foi
desenvolvida por Mann, Tarantola e Netter (1993). Atualmente, essa concepção tem
sido reformulada por Ayres, Paiva e França Jr. (2012), no contexto brasileiro, à luz dos
princípios de universalidade, equidade e integralidade do SUS. Com efeito, parece sem
sentido falar de prevenção para determinadas “populações alvo”, definição que traz
consigo valores universalistas e essencialistas sobre identidades muito abstratas ou
estereotipadas. O que melhor definiria uma abordagem atenta a vulnerabilidades e
direitos humanos são modalidades particulares de encontros, o que se deve e se pode
esperar de uma intervenção de prevenção às DST/HIV/Aids (AYRES, 2009).
Nesse sentido, também, é que se tem buscado superar a dicotomia entre o
individual e o coletivo no manejo das três dimensões constitutivas das análises de
vulnerabilidade (individual, social e programática), trabalhando-se:

a) o individual sempre já como intersubjetividade, isto é, como identidade


pessoal permanentemente construída nas interações eu-outro; b) o social já
sempre como contextos de interação, isto é, como os espaços de experiência
concreta da intersubjetividade, atravessados por normatividades e poderes
sociais baseados na organização política, estrutura econômica, tradições
culturais, crenças religiosas, relações de gênero, relações raciais, relações
geracionais etc; c) o programático já sempre como formas institucionalizadas de
interação, isto é, como conjunto de políticas, serviços e ações organizadas e
disponibilizadas em conformidade com os processos políticos dos diversos
contextos sociais, segundo os padrões de cidadania efetivamente operantes.
É, por fim, nesse mesmo sentido, que o foco orientador das análises e ações
baseadas no quadro da vulnerabilidade e direitos humanos passa a ser menos
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

as identidades pessoais/sociais (por exemplo, ser mulher, negra, adolescente,


pobre), do que as relações sociais que estão na base de situações de
vulnerabilidade e de negligência ou violação de direitos humanos (por exemplo,
relações de gênero, relações sociais, relações geracionais, relações
socioeconômicas) (AYRES et al, 2012, p. 13).

Pensando os homens nesse contexto, identificados como homens gays, numa


reflexão com o conceito de vulnerabilidade, para além do fator individual, esse grupo
sofre também do fator social e programático. A recusa a uma identidade estigmatizada,
como os gays, produz grupos masculinos de diferentes idades que mesmo adepto de
práticas homoeróticas, considera-se heterossexual, desde que em suas atitudes não
exerça comportamentos associados as práticas femininas e em uma relação sexual
com outro homem desenvolva o papel de “ativo”. Portanto, esses homens não recebem
as mensagens essenciais a respeito da prevenção, já que estas mensagens estão
focadas em grupos homossexuais.
No Rio Grande do Sul estado de maior incidência de Aids e maior número de
óbitos devido a essa patologia, a implementação da PEP é prioritária para diminuir a
incidência do HIV, principalmente, entre as populações chaves. A rede pública nacional
de serviços para a oferta da PEP abrange os centros de diagnóstico e tratamento de
HIV/aids e os serviços de emergência e pronto atendimento capacitados. No Rio
Grande do Sul, foi construído pela Secretaria Estadual da Saúde um fluxo de
atendimento para a PEP nos quinze municípios onde há maior incidência do HIV desde
2001 (SES/RS, 2014). Dentre os quinze municípios elegidos, onze encontram-se na
Região Metropolitana de Porto Alegre. Por conveniência, será selecionado um desses
municípios para a pesquisa de campo do presente estudo, a ser realizado em um
Serviço de Assistência Especializada – SAE do município, porta de entrada para o
diagnóstico e tratamento do HIV e onde a PEP vem sendo utilizada.
A Coordenação Estadual de DST/Aids do RS construiu o fluxo da PEP a partir de
uma análise situacional da Rede de Atenção à Saúde dos 15 municípios prioritários. Foi
verificada a factibilidade da Implantação de um Serviço 24h para realização de PEP e
depois identificado o Serviço Especializado de HIV/Aids para subsidiar com apoio
institucional e, também, atender a demanda nos horários de funcionamento em cada
município. Assim, foram realizadas visitas mensais aos municípios para construção da
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

rede de atendimento de acordo com a realidade de cada território, identificando a


competência de cada porta de entrada de atendimento para a PEP, como exemplo,
Unidades Básicas de Saúde (UBS), Consultórios na Rua e Centro de Atenção
Psicossocial - CAPS.
Depois de realizada a etapa da análise situacional, foi construído um projeto local
para implantação, com planejamento de formação da rede no que tange as questões da
PEP. Após a aprovação da Coordenação Estadual de DST/Aids em dezembro de 2015
ocorreu uma apresentação da Rede de Atendimento PEP estabelecida em cada
município, com participação dos profissionais de saúde que trabalham nos serviços 24
horas e na Atenção Básica, dentre outros. Além disso, foi feita a apresentação de
estratégias vinculadas aos meios de comunicação local e nas redes sociais para
divulgação da PEP entre os usuários e outros profissionais de saúde.
Todas essas ações estão elencadas e descritas na Normativa Técnica Estadual
(SES/RS, 2014). O documento apresenta orientações sobre a PEP enquanto estratégia
de prevenção a ser implantada nos Serviços de Assistência Especializada e Serviços
de Urgência e Emergência do Estado do Rio Grande do Sul, assim como sugestões de
documentos padronizados de ficha de atendimento e seguimento dos casos, formulário
de estabelecimento da rede de atendimento e guia de encaminhamento do usuário
dentro da rede local de saúde.
Utilizou-se o sistema de controle logístico de medicamento para obter os dados
referentes ao número da PEP ofertados dos 15 municípios prioritários. A coleta de
dados foi realizado em março de 2017 referentes aos anos de 2015 e 2016. Os dados
foram tabulados em uma planilha Microsoft Excel no qual foi realizada uma análise
descritiva.
Em 2015 e 2016 foram ofertadas 1.439 e 2.746 PEP, respectivamente,
representando um aumento de 90,8%. Gravataí, Cachoeirinha e Santana do Livramento
destacam-se devido ao aumento da oferta da PEP em 360,0%, 320,0% e 183,3%,
respectivamente. Já os menores aumentos percentuais da oferta da PEP entre 2015 e
2016 foram Caxias do Sul (29,1%), Guaíba (50,0%) e Alvorada (64,0%).
Observa-se um aumento na oferta da PEP em todos os 15 municípios
prioritários. Apesar da análise realizada não ter objetivado associação/causa efeito, é
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

importante salientar que no período considerado foi construído o fluxo do atendimento


da PEP entre os três governos (federal, estadual e municipal), conforme a diretriz do
Ministério da Saúde, envolvendo o serviço especializado de Aids e a rede de urgência e
emergência de cada município.
O estudo demonstrou o perfil da oferta da PEP no Rio Grande do Sul. Nesse
sentido, a PEP está situada no contexto da Prevenção Combinada e esse modelo pode
ser seguido por outros estados e municípios como mais uma política de enfrentamento
ao HIV/Aids.

Referências

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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Uma vacina na prevenção do câncer: Controvérsias em torno da


implantação da vacina HPV no SUS e seus efeitos na produção de
diferença sexual

Amanda Bartolomeu Santos1

Resumo: Este trabalho parte de uma dissertação de mestrado, em que foi


realizada uma etnografia dos documentos que decidiram pela implantação da
vacina HPV no SUS, seguindo as controvérsias em torno dos conhecimentos
científicos acionados para legitimar a política de saúde. A vacina HPV (contra
quatro subtipos virais) foi incorporada ao SUS para ser distribuída nas
unidades de saúde e em escolas desde 2014. No documento da comissão que
decide pela incorporação da vacina em 2014 apenas para “meninas” (entre 9 e
13 anos), “a doença” a ser prevenida pela tecnologia é performada
relacionando a infecção por HPV, lesões pré-cancerosas e o câncer de colo do
útero. Embora possa ser considerado um vírus sexualmente transmissível que
poderia infectar qualquer pessoa (sexualmente ativa), as justificativas para
incorporação e a divulgação da vacinação focaram a prevenção do câncer de
colo do útero em mulheres. Começando em 2014, apenas para “meninas”, em
2015 a vacinação foi ampliada para meninas e mulheres vivendo com HIV/Aids
de 9-26 anos, a partir da percepção da participação do HIV na “história natural
do HPV”. No entanto, meninos e homens vivendo com HIV/Aids da mesma
faixa etária (9-26) entraram apenas em 2017, juntamente com os “meninos” (9-
13 anos). A partir dessa divisão do público alvo, o trabalho propõe uma
discussão sobre as implicações dessa política de saúde e de conhecimento
sobre os corpos, em relação à produção de diferenças entre os sexos.

Palavras-chave: vacina HPV; saúde pública; diferença sexual.

Este texto apresenta algumas das discussões desenvolvidas em minha


pesquisa de mestrado, a partir de uma etnografia dos documentos do Ministério
da Saúde (MS) que atuaram no processo de decisão pela implantação da

1 Mestre em Antropologia Social PPGAS/UFRGS.


Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

vacina HPV no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Essa etnografia foi


realizada entre 2016 e início de 2017, considerando a inspiração de
abordagens antropológicas que já trabalharam com documentos (VIANNA
2014; FERREIRA e LOWENKRON 2014; HULL 2012) nos chamando a atenção
para levá-los a sério, considerando suas características específicas, como
construtores de realidades e que nos permitem rastrear conexões. Meu
trabalho, especificamente, também tem em vista a importância dos documentos
nas relações entre estado e ciência, permitindo seguir controvérsias2 da
inserção da vacina contra o HPV como política de saúde pública sustentada em
argumentos científicos.
A decisão pela incorporação de uma tecnologia no SUS em tese passa
por um processo de análise pela Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias no SUS (CONITEC) que, após a análise dos
argumentos/documentos do demandante, emitirá um relatório de
recomendação para subsidiar a decisão do MS. Antes da recomendação final
da CONITEC, esse relatório é também submetido a uma consulta pública. A
demanda pela incorporação pode ser feita por “qualquer” pessoa ou instituição
que apresente a documentação exigida, a qual deve incluir uma descrição da
condição de saúde e da tecnologia a ser analisada, a apresentação de
evidências científicas da eficácia dessa tecnologia em comparação àquelas já
disponibilizadas pelo SUS, bem como estudos de avaliação econômica e
análises de impacto orçamentário da perspectiva do SUS.
Em relação à vacina HPV, a CONITEC produziu o relatório Vacina contra
HPV na Prevenção do Câncer de Colo do Útero: Relatório de Recomendação
da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC –
82 (BRASIL, 2013) – doravante neste texto Relatório 82. Nele são analisados e
incorporados os argumentos e referências de três demandantes: Merck Sharp
& Dohme (MSD), empresa que produz a vacina quadrivalente3;
GlaxoSmithKline, que produz a vacina bivalente; e Secretaria de Vigilância em
Saúde (SVS). Partindo desse Relatório segui os documentos públicos que se

2 Entendidas no sentido de Jasanoff (2004, p.5) como práticas e processos pelos quais um
conjunto de ideias ganha supremacia sobre outros concorrentes ou falha em fazer isso.
3 A vacina quadrivalente é composta pela combinação de proteínas de quatro subtipos virais:

os subtipos 16 e 18, considerados principais causadores do câncer de colo do útero; e os


subtipos 6 e 11, associados à maior frequência de verrugas genitais. Já a vacina bivalente
inclui apenas os subtipos 16 e 18.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

associavam (produzidos em datas anteriores), em uma rede que possibilitou a


viabilidade dessa recomendação. Como sugerido no título do Relatório 82, a
vacina foi incorporada com o objetivo de prevenção do câncer de colo do útero,
com a vacinação começando em 2014 tendo como público alvo meninas de 9 a
13 anos que receberiam três doses (com intervalos 0, 6 e 60 meses). Nesse
sentido, posteriormente busquei também documentos que justificassem a
ampliação da vacinação para outros públicos.
Os pressupostos teóricos que inspiram meu trabalho envolvem,
principalmente, referências dos estudos feministas e estudos sociais da ciência
e tecnologia, que permitem abordar as práticas discursivas considerando que
não se separam da materialidade, e nesse sentido questionando a separação
natureza e cultura. Para Law e Mol (2002) os conhecimentos (discursos, textos,
documentos) produzidos sobre corpos e suas doenças não descrevem um
mundo pré-existente, mas são parte de práticas de intervir, performar
realidades4.
Assim, o HPV (as definições sobre o vírus, as formas de infecção e
desenvolvimento das doenças associadas) não é tomado aqui como objeto
externo, do mundo natural, cuja “verdade” a ciência teria mais acesso a partir
do melhor desenvolvimento de suas técnicas. Considero que o HPV é
performado em uma série de práticas, que envolvem, por exemplo, estudos
clínicos, tecnologias de visualização, assim como vetores institucionais,
mecanismos internacionais, avaliação dos economistas sobre seus efeitos,
entre outras. Desse modo, considerando que o HPV não é algo fixo e estável,
busco entendimentos sobre as relações investidas em sua produção durante o
processo de inscrição da tecnologia da vacina no SUS.
Nesse mesmo sentido, as diferenças entre sexos não estão na ordem do
inato, mas são produzidas nas práticas. O “sexo” não é considerado aqui como
uma condição estática de um corpo, mas como um processo de materialização
(no sentido de Butler 2001, 2003). Assim, o HPV performado nos documentos
do processo de implantação da vacina tem efeitos sobre a produção de
diferença sexual. Como sugere Mol (2008, p.13), os objetos performados não
vem sozinhos, trazem consigo modos e modulações de outros objetos, de

4O verbo performar (diferente de performatizar) trata-se de uma opção pela tradução do termo
enact proposto por Annemarie Mol (2004).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

modo que não é só a realidade do HPV que está em jogo, há muitas outras
envolvidas, como a da sexuação do corpo em polos binários.
O Relatório 82 começa com o tópico intitulado “A Doença”. No entanto,
ao longo do texto seria possível ler a doença à que o título se refere como a
infecção por HPV, como câncer de colo do útero ou como lesões percursoras
desse câncer. O HPV é descrito como um vírus de transmissão sexual e de alto
potencial transmissivo, sendo que 75% dos indivíduos que iniciaram sua vida
sexual seriam infectados em algum momento. Logo em seguida, o HPV é a
“causa necessária, ainda que não suficiente” para o câncer cervical, o qual
seria um problema de saúde pública principalmente “nas regiões mais pobres
do mundo”. No entanto, o texto também reconhece que nem toda infecção por
HPV vai evoluir para câncer, sendo que a maioria dessas infecções é
assintomática e auto-resolutiva, 80% regrediria sem intervenções (BRASIL,
2013, p.4). Dessa forma, a infecção por HPV é ao mesmo tempo algo com uma
probabilidade grande de não precisar de intervenção, mas pode “evoluir” para
“o câncer”.
Ainda na apresentação da doença, vale destacar também a menção aos
“fatores associados”, que, embora listados, não são apresentados com a
respectiva previsão de ação em relação a eles, de forma que a tecnologia
agiria na prevenção ao evitar apenas o agente infeccioso, a “causa
necessária”.
Outros fatores foram identificados como associados à presença de
lesões pré-cancerosas e desenvolvimento do câncer de colo do útero:
início precoce da atividade sexual, promiscuidade do parceiro, sexo
anal, múltiplos parceiros, imunossupressão, multiparidade,
precocidade da idade materna no primeiro parto, fumo, uso a longo
prazo de contraceptivos hormonais, co-infecção por Chlamydia
trachomatis ou vírus Herpes simplex e fatores relacionados à dieta
(BRASIL, 2013, p.4, grifo meu).

Esse parágrafo vem acompanhado de notas com as referências dos


estudos que fizeram essas associações, mas o Relatório 82 “não precisou” dar
mais detalhes a respeito de como se chegou a elas e qual seu papel em
relação “à doença”. Nele, podemos notar normatividades em relação à
quantidade de parceiros, idade ideal para início da vida sexual, necessidade de
ter filhos e em que quantidade. Como mostra Löwy (2011), a associação entre
o câncer de colo do útero (como um câncer de mulher) e a transmissão sexual
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

não começa com a “descoberta” do HPV como “causa necessária”, mas vai se
produzindo ao longo da história desse câncer.
Além dessa descrição da doença, o Relatório 82 aborda também os
estudos de custo efetividade, bem como uma análise de impacto orçamentário,
além de um pequeno histórico das discussões sobre a implantação no MS.
Antes da decisão da CONITEC (de 05/09/2013), em 31/10/2012 o Ministro da
Saúde anunciou a decisão de realizar uma parceria de desenvolvimento
produtivo da vacina HPV para o começo da vacinação em 2014. Assim, o que
me parece possível perceber após a leitura do documento da CONITEC, é que
a “decisão” pela incorporação (ou o processo que permitiu que a vacina fosse
incorporada) talvez tenha sido anterior (e concomitante) à análise da
CONITEC, embora este seja um passo fundamental e que antecederia,
segundo as normas burocráticas, a incorporação de uma tecnologia no SUS
(derivando de tal análise, inclusive, um processo de “consulta pública”). Nesse
sentido, o Relatório 82 reúne articulações heterogêneas, que ocorreram
anteriormente e em paralelo, no esforço de estabilizar um entendimento sobre
o problema de saúde pública e a melhor forma de intervenção, justificando a
incorporação da tecnologia da vacina.
A discussão sobre essa incorporação começou no MS com o registro da
primeira vacina pela ANVISA em 2007, com a criação de Grupos de Trabalho e
Comitês nos anos seguintes, sendo que até 2012, nos documentos a que tive
acesso (SILVA et al. 2008; INCA, 2010; BRASIL, 2012; NOVAES, 2012,
BRASIL, 2013), não houve um posicionamento favorável à incorporação. Em
todos os documentos acessados, é recorrente a menção a algumas “lacunas”
no conhecimento acerca da vacina. E muitas delas são apontadas também
pela Consulta Pública realizada pela CONITEC, contudo sem ser totalmente
respondidas e sem afetar efetivamente a implantação da vacinação como
recomendado pela Comissão.
Haveria incertezas quanto aos resultados finais da vacinação, na
medida em que os estudos comprovariam eficácia somente quanto à redução
das lesões pré-cancerosas. O desenvolvimento do câncer em pessoas
infectadas com HPV poderia demorar até 20 anos e não foram realizados
estudos com essa amplitude – essa duração entre a produção e as vendas não
seria interessante para indústria. Além disso, não se sabe a duração da
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

imunidade conferida pela vacina. Haveria, ainda, o risco de os subtipos virais


oncogênicos sobre os quais a vacina atua serem substituídos por outros.
Diante dessas questões, mesmo com a implantação da vacina, recomendou-se
a manutenção do rastreamento (principalmente a partir do exame papanicolau),
sem contar, no entanto, que a vacinação poderia levar à necessidade de outras
tecnologias “mais sofisticadas” para rastrear as pessoas vacinadas. Além
disso, em um primeiro momento, ainda havia dúvidas em relação à vacinação
de meninos e em como lidar com o preço elevado da vacina.
Olhando em uma sequência cronológica, todas essas questões estão
mencionadas nos primeiros documentos (SILVA et al. 2008; INCA, 2010) e
permanecem nos últimos, mas entre 2011 e 2012 deixam de ser empecilho
para a incorporação da vacina (BRASIL, 2012; NOVAES, 2012, BRASIL, 2013),
sendo que a produção da “recomendabilidade” nesse período não decorreu
apenas de “novas descobertas cientificas”. Foi possível argumentar pela
recomendação após o “consenso de especialistas” (termo utilizado em BRASIL,
2012) de que o objetivo era a prevenção do câncer de colo do útero, com
vacinação de meninas, e por meio da articulação de soluções para a
preocupação econômica. Essas “soluções” tornaram-se viáveis com o apoio da
OPAS, fornecendo um modelo para o estudo de custo-efetividade, aliado ao
desenvolvimento do campo de Avaliação de Tecnologia em Saúde brasileiro,
com pesquisadoras reconhecidas produzindo o estudo de custo efetividade. Os
custos da vacinação deixam de ser um empecilho também em função da
parceria para o desenvolvimento produtivo entre a Merck Sharp & Dohme e o
laboratório público Instituto Butatan, bem como através do planejamento do
orçamento do PNI dividindo as faixas etárias a serem vacinadas5.
Em 2017 a vacinação foi ampliada para meninos e, embora o HPV
possa infectar qualquer pessoa sexualmente ativa e seja associado a cânceres
de pênis, ânus e orofaringe (além do colo do útero), foi possível ver discursos
na divulgação da vacina que abordavam a vacinação de meninos como forma
de “ajudar as meninas”. Muitas das reportagens da época ressaltaram
principalmente a diminuição da transmissibilidade que contribuiria para redução

5No primeiro ano (2014) foram vacinadas meninas de 11 a 13 anos, em 2015 meninas de 9 a
11, e em 2016 o foco da campanha se tornou as meninas de 9 anos.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

de câncer de colo do útero em mulheres6. De forma que vacina é incorporada,


primeiro, para meninas, pessoas que carregariam o risco (devido a seu
comportamento sexual) de câncer de colo do útero no seu pressuposto futuro
como mulheres, e depois entram os meninos, de certa maneira, como aqueles
que podem ajudar a diminuir esse risco que não é deles.
Não encontrei documentos sobre a decisão de ampliação da vacinação
para meninos nas páginas na internet das unidades do MS que participaram da
discussão da incorporação da vacina. Encontrei apenas uma reportagem no
Portal da Saúde, na qual é relatado o evento de anúncio da ampliação, com a
explicação de que esta não trará “custos extras para a pasta” porque neste ano
houve a redução das doses no esquema vacinal das meninas de três para
duas.
A “decisão” pela ampliação da vacinação não passou pelos mesmos
processos da decisão pela incorporação com o objetivo de prevenção do
câncer de colo do útero. O único documento a que tive acesso sobre essa
ampliação foi a Nota Informativa 311 (BRASIL, 2016). Esta nota “informa” as
mudanças no Calendário Nacional de Vacinação para 2017, incluindo as
mudanças em relação à vacina HPV.
O objetivo da vacinação para a população do sexo masculino é prevenir os
cânceres de pênis e verrugas genitais. Além disso, por serem responsáveis
pela transmissão do vírus para suas parceiras, ao receberem a vacina, os
homens colaborarão com a redução da incidência do câncer de colo do útero e
vulva nas mulheres, prevenindo também casos de cânceres de boca,
orofaringe, bem como verrugas genitais em ambos os sexos. (BRASIL, 2017)

Nesse parágrafo, a definição do objetivo da ampliação da vacinação


diferencia os públicos alvo entre aqueles que tem o risco de câncer de pênis e
são potenciais transmissores do vírus, o sexo masculino ou homens, das
mulheres que teriam risco de câncer do colo do útero e de vulva. No parágrafo
seguinte é mencionada a associação entre câncer anal e HPV – como um
câncer menos frequente, mas com incidência crescente –, sendo possível notar
que ele não foi incluído na definição de objetivos da vacinação da “população
6 Na reportagem do Jornal da Band, por exemplo, a repórter afirma que “Embora não sejam as
principais as vítimas do HPV, os meninos são transmissores desse vírus. Por isso, se tomarem
a vacina, além de contribuir com a própria saúde estarão ajudando, e muito, na prevenção de
câncer de colo do útero nas mulheres (VACINA, 2017). Assim também na TVSaúde, canal
oficial do Ministério da Saúde (MS), uma especialista do DDAVH do MS afirma que: “Uma
intervenção que é feita nos homens pode impactar na questão do câncer de colo do útero.
Como ele é de transmissão sexual, é óbvio que se você tiver meninos imunizados essa
transmissibilidade cai mais ainda”.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

masculina”. Essa Nota Informativa termina com a afirmação de que a


persistência do vírus, gerando problemas de saúde mais graves, seria maior
em pessoas com sistema imune comprometido, citando como exemplo
pessoas que vivem com HIV/Aids. Essa informação aparece em apenas uma
frase e não há maiores desenvolvimentos com justificativas para o esquema
vacinal para meninos e homens vivendo com HIV/Aids (de 9-26 anos).
A vacinação de meninas e mulheres vivendo com HIV/Aids de mesma
faixa etária começara em 2015. A Nota Informativa Conjunta nº01/2015,
informa a ampliação da vacina HPV para meninas e mulheres vivendo com
HIV/Aids, entre 9 e 26 anos, com intervalo entre as doses de 0, 2 e 6 meses.
Nesse documento, são descritos (resumidamente) estudos que apontam para o
fato de que “a infecção por HIV e a imunossupressão desempenham um papel
importante na modulação da história natural da infecção por HPV” (BRASIL,
2015, p. 2).
Não encontrei documentos específicos que justificassem a ampliação da
vacinação para meninos e homens vivendo com HIV/Aids. A vacinação desse
público foi anunciada juntamente com a ampliação para meninos de 9-13 anos
– e as reportagens que retratam esse anúncio focaram na vacinação de
“meninos”. Apesar do reconhecimento da interferência do HIV na “história
natural” da infecção por HPV, que vimos na Nota Informativa mencionada
acima (BRASIL 2015), e a condição imunológica semelhante que poderia
justificar o esquema vacinal igual (em três doses, para a faixa etária de 9 a 26
anos) para homens e mulheres vivendo com HIV/Aids, não houve uma
proposta de vacinação de “pessoas” vivendo com HIV/Aids, mas de corpos
marcados pela diferença sexual. Primeiro, a vacinação de meninas e mulheres
vivendo com HIV/Aids (a partir de 2015) e, depois, meninos e homens vivendo
com HIV/Aids (em 2017).
Apesar das “lacunas” no conhecimento, o foco na prevenção do câncer
de colo do útero foi central para a argumentação pela necessidade da
tecnologia no sistema público de saúde. Após a incorporação, a vacinação é
ampliada, de modo que a vacina HPV no SUS não conformou apenas um
público alvo. Embora poderíamos considerá-la atualmente disponível para
todas as pessoas (de uma determinada faixa etária), desde o processo de
implantação até a divulgação da política pública são performados corpos
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

sexuados, divididos principalmente entre meninas e meninos (futuras mulheres


e futuros homens).

Referências

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vacinados contra HPV: Imunização a partir de 2017 vai reduzir a propagação
do vírus no país. Adolescentes de 12 e 13 anos, de ambos os sexos, vão
receber ainda vacina contra meningite C para garantir a proteção e queda do
número de casos. Economia gerada pela gestão permitiu a inclusão desse
público. Portal da Saúde, Brasília, 11 out.

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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Estigma da aids entre usuários de profilaxia pós-exposição sexual ao


HIV (PEP sexual): resultados do Estudo Combina!

Dulce Ferraz1,2,3, Gabriela Junqueira Calazans1,3, Eliana Miura Zucchi3,4,


Alexandre Grangeiro1, Márcia Couto Falcão1

Resumo: A história da aids é atravessada pela luta contra a estigmatização


das pessoas que vivem com HIV e de grupos mais vulneráveis à infecção,
como homossexuais e trabalhadoras do sexo. Sabe-se que o estigma da aids é
um importante obstáculo ao cuidado, limitando, ente outros, a intenção de uso
das profilaxias para o HIV. O objetivo deste estudo foi compreender como
processos de estigmatização associados à aids estão presentes na experiência
do uso da profilaxia pós-exposição sexual ao HIV (PEP sexual). Baseamo-nos
em dados do componente qualitativo do Estudo Combina!, coletados por meio
de entrevistas em profundidade com 54 pessoas que buscaram
espontaneamente PEP sexual em cinco serviços públicos de saúde, entre 2015
e 2016. Os dados foram organizados conforme as categorias temáticas que
emergiram na leitura exaustiva, com apoio do Software NVivo. Posteriormente,
foi realizada análise temática de conteúdo. Os resultados mostram que o
estigma da aids com frequência interfere na experiência de uso da PEP sexual.
Os entrevistados adotaram estratégias para não revelar que estão em uso da
profilaxia, o que significou, principalmente, cuidados para esconder o uso da
medicação, sobretudo da família. Visavam, com isso evitar serem
"confundidos" com quem tem HIV, mas também se proteger da revelação de
outras condições envolvidas no exercício da sexualidade e que levaram à
busca da profilaxia, como a homossexualidade, o trabalho sexual e a sorologia
positiva do parceiro. Uma entrevistada narrou ter sido discriminada como uma
pessoa vivendo com HIV quando colegas de trabalho sexual descobriram o uso
dos antirretrovirais. Em síntese, o estigma da aids permeia tanto a busca como

1
1Departamento de Medicina Preventiva/FMUSP; 2 Escola Fiocruz de Governo/ Fiocruz Brasília; 3 Núcleo de Estudos
para a Prevenção da AIDS (NEPAIDS/USP); 4Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica
de Santos
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

o uso da PEP, contribuindo para invisibilidade e subutilização do método. Há,


portanto, necessidade de integrar intervenções sociais focadas no
enfrentamento do estigma à implantação de tecnologias de prevenção
baseadas no uso de antirretrovirais.
Palavras chave: aids; HIV; profilaxia pós-exposição sexual; estigma;
discriminação.

Introdução
Erving Goffman (1978) definiu estigma como um tipo especial de relação
entre atributo e estereótipo que resulta em profundo descrédito do indivíduo.
Alguns atributos como, por exemplo, ter HIV, a cor da pele negra, entre outros,
se destacam por configurarem expectativas normativas em relação aos
indivíduos. Tais exigências correspondem a uma identidade social virtual em
que as características atribuídas ao indivíduo ocorrem por um retrospecto em
potencial. O estigma potencializa a discrepância entre esta identidade social
virtual e a identidade social real, entendida como a categoria e os atributos que
o sujeito, efetivamente, prova possuir (GOFFMAN, 1978). Já os estereótipos
podem ser compreendidos como generalizações culturais e normativas que se
expressam de forma abusiva (atinge uniformemente todos os membros de um
grupo), extrema (conotação superlativa) e são, frequentemente, mais negativos
do que positivos (LIMA, 1997).
Goffman também afirmava que temos uma tendência a inferir uma série
de imperfeições a partir de uma ‘imperfeição original' e que somos todos, em
algum momento da vida, estigmatizados. Na melhor das hipóteses, somos
‘desacreditáveis’ se não já ‘desacreditados’ e, dessa forma, a relação entre
normais e estigmatizados assemelha-se mais a um continuum, por vezes
intercambiável, do que a uma polarização propriamente (GOFFMAN, 1978).
Assim, o manejo interpessoal do estigma por meio do controle da
informação potencialmente prejudicial é crítico para que indivíduos
‘desacreditáveis’ possam recorrer ao acobertamento do estigma, não revelando
informações que denotam seu atributo de descrédito por temerem as sanções
sociais.
Parker & Aggleton (2003) partem da concepção original de estigma, mas
criticam a ênfase dada por Goffman ao estigma como um “atributo
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

depreciativo”, por estimular uma análise fortemente individualizada. Em diálogo


com Foucault, Bordieu, Gramsci, Williams e Castells, os autores concebem a
estigmatização como um processo social de produção de discursos e
estruturas que fundamentam os processos de discriminação - aqueles que
materializam relações de poder e dominação, notadamente de gênero,
sexualidade, classe social e raça. De forma que, nesta compreensão, “o
estigma desempenha um papel central na produção e na reprodução das
relações de poder e de controle em todos os sistemas sociais”. No caso da
epidemia de HIV e aids, tais relações de poder implicam na produção de
significados atribuídos às diferenças, entendidas como desvios da ordem
social, e associados a estereótipos que reiteram desigualdades sociais
históricas baseadas na desqualificação de pessoas homossexuais, prostitutas,
usuários de drogas, negros e pobres.
No Brasil, a história da resposta social à aids, constituída pela ação de
diferentes atores - incluindo Estado, universidades e sociedade civil -
reconhece os processos de estigmatização e discriminação relacionados ao
HIV/aids como determinantes da epidemia, demandando ações específicas
para seu enfrentamento (PAIVA & ZUCCHI, 2012). Com isso, avançou-se
substancialmente no reconhecimento e efetivação de políticas e leis que visam
proteger pessoas vivendo com HIV da discriminação com base em seu estado
sorológico no país. Porém, o estigma da aids persiste e, entre outras
consequências, representa um importante obstáculo ao cuidado, seja na
procura pelo teste anti-HIV, na intenção de uso das profilaxias pré (PrEP) e
pós-exposição sexual ao HIV (PEP sexual) e no uso de medicamentos
antirretrovirais (ARV).
No que concerne às profilaxias, compreender os fatores que interferem
no seu uso é importante, uma vez que, assim como no manejo da infecção, o
efeito preventivo dos antirretrovirais depende da adesão. Entre os fatores
individuais que podem interferir na adesão, a preocupação dos usuários das
profilaxias de serem estigmatizados como pessoas com HIV é uma
possibilidade que se coloca em função de usarem os mesmos medicamentos
que são aplicados no tratamento.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Neste estudo, dedicamo-nos a compreender como processos de


estigmatização associados à aids estão presentes na experiência do uso da
profilaxia pós-exposição sexual ao HIV.

Procedimentos Metodológicos
Baseamo-nos em dados do Estudo Combina!, que analisa a efetividade
do uso da PEP sexual em serviços públicos de saúde de cinco cidades
brasileiras. O Combina! apresenta dois componentes, um epidemiológico e
outro qualitativo, e é neste último que nos apoiamos neste trabalho. Foram
entrevistadas 57 pessoas que buscaram espontaneamente PEP sexual nos
anos de 2015 e 2016, incluindo mulheres (trabalhadoras sexuais e não-
trabalhadoras sexuais) e homens (heterossexuais, bissexuais e
homossexuais).
As entrevistas foram orientadas por roteiro que contemplou aspectos
como conhecimento sobre PEP sexual, motivações para buscar a profilaxia e
experiência de uso da profilaxia no âmbito social e familiar. Ressalte-se que o
roteiro original não focalizou o estigma como temática central, embora aspectos
relacionados ao estigma, preconceito e discriminação tenham emergido em
muitas entrevistas. Assim, selecionamos para esta análise excertos de
narrativas que remetem ao estigma relacionado ao HIV Aids como parte da
experiência de fazer uso da PEP sexual. A Tabela 1 apresenta uma síntese
das características dos entrevistados incluídos na presente análise.
As entrevistas foram realizadas por pesquisadores treinados, em local
privativo nos serviços de saúde, mediante o aceite ao convite em participar e a
anuência no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A duração média
das entrevistas foi 40 minutos e todas foram transcritas na íntegra.
Os dados foram analisados considerando os seguintes procedimentos:
leitura exaustiva de cada entrevista; estabelecimento de categorias temáticas;
organização e análise do material segundo essas categorias; e cotejamento
dos conteúdos das categorias com a literatura existente e com referências
teóricas sobre estigma, preconceito e discriminação. O software NVivo foi
utilizado para extração de dados das categorias previamente delimitadas e
como recurso auxiliar na análise temática de conteúdo.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

No contexto desta análise, ao se trabalhar com modelos de cultura


expressos em representações sociais (MOSCOVICI, 1988), consideramos que
estes atravessam os diferentes contextos, seja das representações sociais
mais amplas relacionadas às metáforas sociais do HIV e da aids (SONTAG,
1989), seja das representações acerca da experiência pessoal de passar por
situação considerada de risco de contrair o HIV, de buscar e de fazer uso de
uma medida preventiva como a PEP sexual.

Resultados

Antecipação do Estigma
Os resultados mostram que o estigma da aids com frequência interfere
na experiência de uso da PEP sexual. De maneira geral, os entrevistados
adotam estratégias para não revelar que estão em uso da profilaxia por
temerem ser estigmatizados. Há, assim, um movimento de antecipação do
estigma, no qual a principal estratégia é o controle da informação sobre o uso
da profilaxia. A experiência costuma ser compartilhada com uma ou poucas
pessoas de confiança, embora alguns optem por não comenta-la com ninguém.
Medo, vergonha e receio são palavras que aparecem nas narrativas de
entrevistados ao explicarem os motivos para não revelar o uso da PEP:
Não [conversei com ninguém]. Tive medo. Vergonha também, né?[Conversei] só
comigo mesmo, eu guardei tudo. Guardei tudo. Fui acumulando, acumulando.
[Foi] péssimo, péssimo. Não tô muito bem, ainda. Tô com muito medo, muito
receio, né? Mas busquei agora um acompanhamento psicológico". (Aislan, 30
anos, homossexual)

Eu me sentia meio envergonhado de tomar aquilo, sentia receio de alguém


descobrir aquilo na minha bolsa porque são os mesmos que um soropositivo
toma pra controlar a carga viral. Então, a pessoa poderia interpretar que eu já
estava contaminado quando eu anda estava numa dúvida, não sabia se tava
contaminado ou não. (Damião, 31 anos, heterossexual)

O temor de ser "confundido" com uma pessoa que vive com HIV resultou
na adoção de uma série de cuidados. Alguns manifestaram preocupação de
serem vistos em serviços especializados em aids ou ainda de portar materiais
que identificassem esses serviços, como nos conta Ramon:
Assim que eu saí daqui [do serviço], eu já aboli a sacolinha preta, né? (...)
Porque eu não queria ser visto com essa sacola porque automaticamente,
entendeu? As pessoas iam perceber que eu tava ali com a medicação pra HIV.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

(...) Um amigo até brinca: se você vê um veado no terminal [de ônibus] com um
saquinho preto, saiba que ele veio do [nome do serviço especializado em aids].
(Ramon, 31 anos, homossexual)

Contudo, é a gestão do uso da medicação o momento gerador de mais


ansiedade e de adoção de medidas para não serem 'descobertos'. Esconder a
medicação ‘bem escondida’ na bolsa, tomá-la no banheiro ou em outro local
privativo, escolher um horário de tomada em que se está sempre em casa e
retirar os rótulos dos potes foram estratégias frequentemente relatadas pelos
participantes. O maior cuidado esteve em esconder o medicamento da família:
No começo foi bem difícil. [Eu estava] muito irritada, brigava muito com ela
[mãe], e ainda pensava 'mas ela não sabe o que eu tô passando. E nem pode
saber'. Ela não sabe nem hoje, eu falei que eu ia no médico, mas inventei 'N'
coisas pra ela não saber, né? (Eleonora, 38 heterossexual)

Meu maior medo era minha mãe [descobrir]. Então tirei o rótulo, por que no
rótulo diz HIV e tal...e daí, principalmente, se ela achasse, ela não ia entender
que eu tava fazendo uma profilaxia, ela ia achar que eu tava infectado, ia
começar a chorar. (Noel, 33 anos, homossexual)

Não deixei ninguém lá de casa ver porque na embalagem do remédio tá


falando de HIV, tal. Daí o pessoal não entenderia, né? Acharia que eu estava
com HIV, estava tomando por conta disso, de tá infectado. (Leondes, 23 anos,
homossexual)

Estar em uma situação de dúvida quanto a sua própria sorologia, uma


vez que a confirmação do status sorológico após uma exposição só ocorre ao
final de um mês de acompanhamento, com frequência provocou reflexões
sobre como seria viver com HIV e com o estigma que a doença carrega:

Eu não quero pegar o HIV porque eu sei que é uma coisa muito inconveniente.
Eu ia ter que passar o resto da minha vida com esses remédios (...). E também
tem o estigma ainda das outras pessoas. Eu acho ia ser mais difícil eu
conseguir um relacionamento, um parceiro, porque é mais difícil encontrar
alguém porque as pessoas costumam estigmatizar isso. (...) Essa seria minha
maior preocupação. (Roberto, 32 anos, homossexual)

Essa história de dizer "gente, olha, vive vinte, quarenta [anos com HIV]",
mentira! E eu não quero viver nem mil anos com HIV, eu não quero ter HIV de
jeito nenhum! E é muito leviano de quem quer vender essa história, de que é
uma doença de que não mata mais, você vive lindo, feliz, pode casar. Mentira.
Mentira, mentira. É terrível, é um bicho de sete cabeças, é sim! O que se faz é
prolongar a vida, se vive muito mal, entendeu? A sobrevida é terrível. Ainda
tem muito preconceito. (Ramon, 31 anos, homossexual)

[Quando o teste rápido deu resultados divergentes], a primeira coisa que me


veio na cabeça foi logo mil formas de morrer, tá entendendo? A primeira coisa
que eu fiz foi logo baixar um livro sobre suicídio. (...) Até esse momento da
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

minha vida eu achava que se desse positivo ia ser tudo ok. Então, como um
quase positivo, eu já vi que não era tudo ok pra mim. (Marcone, 19 anos,
homossexual)

Expor o uso da PEP revela condições mantidas em segredo


Esconder o uso da PEP não é apenas uma maneira de evitar ser
"confundido" com quem tem HIV, mas também de proteger-se da revelação de
outras condições envolvidas no exercício da sexualidade e que levaram à
busca da profilaxia.
Entre as mulheres, destacaram-se o cuidado para manter em segredo o
fato de ser trabalhadora sexual ou de ter um companheiro com HIV, como
ilustram os relatos de Patrícia e Regina:
Tipo, a gente evita contar essas coisas, assim, que acontecem no quarto,
senão vira fofoca, uma conta pra outra e quando cê vê... Prefiro não [contar
que está usando PEP]. Na verdade, nem sabem. As minhas amigas que não
fazem programa não sabem o que eu faço. (Patrícia, 25 anos, trabalhadora
sexual)

[Minha família] nem imagina [que ele tem HIV]. A minha família ela é muito
preconceituosa. (...) nunca aceitaria eu estar com um soropositivo e nunca
iriam me perdoar por eu ser soropositiva por opção. (...) Minha família [iria]
perguntar 'porque que tu ficou com ele se no primeiro dia que vocês sentaram
e conversaram ele te disse que era [soropositivo]?'. (Ana Flávia, 42 anosl)

Para os homossexuais, a PEP remeteu ao medo de ter sua orientação


sexual revelada para a família:
Completamente corto a possibilidade deles descobrirem [que sou
homossexual] (risos)! Da minha boca [não sabem], dizem que os pais sempre
sabem, mas assim, nunca ouviram falar de mim e fingem que não sabem,
então eu prefiro manter assim. (Noel, 33 anos, homossexual)

A minha homossexualidade ninguém sabe em casa, eu não posso contar para


eles. Moro [com meus pais], tenho que tomar [os remédios] escondido.
(Alexandre, 22 anos, homossexual)

Já entre os homens heterossexuais, o constrangimento esteve


associado a terem buscado a PEP após relações com mulheres
desconhecidas, com trabalhadoras sexuais ou extraconjugais. No contexto
familiar, por exemplo, eles apontaram a necessidade de "discrição",
ocultamento da informação e mesmo mudança do tipo de exposição que os
levou a buscar PEP, o que sugere a força da vergonha de expor, no âmbito da
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

família, suas práticas sexuais. Celso, que é casado e teve a situação de


exposição com parceira eventual, comenta:
[Me senti constrangido] por causa das condições que a gente utiliza [a PEP],
de condições com relações fora do casamento. Então isso deixa a gente um
pouco constrangido, de chegar no local [serviço de saúde] e ter essa
preocupação. (Celso, 38 anos, heterossexual)

De maneira geral, o que se observa é que os julgamentos morais em


relação à sexualidade são, a um só tempo, motivadores da busca pela PEP e
produtores do sentimento de vergonha de ter recorrido à profilaxia.
Excetuando-se os casos de sorodiscordância, a busca é motivada por relações
consideradas socialmente como menos legítimas do que as relações com
parceiros com quem se mantém vínculos de afeto e aliança: são encontros
sexuais casuais, com parceiros pouco conhecidos ou no contexto do trabalho
sexual. O medo de se infectar, ademais, não se resume ao "desconhecimento"
da parceria sexual, mas passa pelo julgamento que se faz de certos
comportamentos ou características da parceria, como aceitar ter relações sem
camisinha, não se mostrar preocupado com o rompimento do preservativo,"ser
uma mulher relaxada", estar sob efeito de drogas ou mesmo ser alguém que
"dizem" que usa drogas ou que "dizem" que se relaciona sexualmente com
muitas pessoas ou com pessoas com características específicas, como
travestis.

Experiências de descoberta do uso da PEP


Mesmo adotando estratégias para ocultar o uso da PEP, alguns
participantes foram "descobertos" por pessoas de sua convivência. Rosa, que é
trabalhadora sexual, foi uma delas. "Acusada" de ter HIV pelas colegas que a
viram tomar os medicamentos, ela se viu impelida a mudar de local de trabalho:
Isso já aconteceu, sim, de eu tá num lugar, numa boate, isso era noite, e eu
tomando os remédios e as meninas falaram que eu tinha, sim, o HIV. Porque
uma até comentou 'ah, minha mãe toma esses remédios'. (…). Aí, no outro dia,
eu fui embora. Porque eu falei 'eu não tenho, eu só tô tomando, né?'. Aí, vão
falar, aí começa: se uma tem raiva, aí vai pro quarto, encontra o cliente, 'ó, não
vai com ela não porque ela...', entendeu? Tipo 'eu posso provar que ela tem,
que ela tá tomando remédio'. (Rosa, 39 anos, trabalhadora sexual)

Outros dois entrevistados que também foram 'descobertos' em uso de


PEP não relatam terem sofrido discriminação, como aconteceu com Rosa. No
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

caso de Pablo, a descoberta veio da família e ele conta que foi possível
explicar e até ir com eles ao serviço de saúde posteriormente. Já Danilo abriu a
situação para os colegas de trabalho. Diferentemente de outros entrevistados –
que criaram histórias sobre o porquê de estarem se sentindo mal, não estarem
bebendo ou que solicitaram ao médico cuidado em atestados de trabalho para
que não identificassem nada relacionado ao HIV –, Danilo não escondeu que
os problemas digestivos que estava tendo eram causados pela PEP:
Então, assim, precisei espalhar isso. As pessoas sabiam o que estava
acontecendo. Muitas vezes me viram saindo correndo pra ir no banheiro
vomitar. E aconteceu mesmo no meio do trabalho, eu tava tomando café,
conversando e vinha do nada e tinha que voar pro banheiro, senão eu
vomitava no caminho. (Danilo, 27 anos, homossexual)

Discussão
Neste estudo, exploramos como o estigma da aids interfere no uso da
PEP sexual entre pessoas que buscaram espontaneamente este método em
serviços públicos de saúde. Embora não tenhamos identificado narrativas em
que o estigma da aids tenha impedido a adesão ao medicamento - o que pode
ser explicado, em parte, pelo fato dos entrevistados serem pessoas que deram
prosseguimento ao acompanhamento no serviço - é notável nas experiências
dos usuários da PEP sexual como o estigma da aids interferiu na gestão da
informação e da tomada dos medicamentos, acrescentando dificuldades para a
efetiva consecução do tratamento profilático.
A experiência de uso da PEP sexual transporta para os indivíduos sãos
– pessoas que, em princípio, não estão infectadas pelo HIV – o atributo social
da doença, gerando considerável sofrimento e angústia para elas e reforçando
a estigmatização das pessoas que vivem com HIV. Assim, nos termos do
interacionismo simbólico, a eficiência do indivíduo nas estratégias de controle
da informação sobre o uso do método se torna central para que ele não ocupe
a posição de ‘desacreditado’.
Tomar a PEP é percebido como uma antecipação do estar com aids. O
‘desacreditado’ com menor valor da hierarquia social é justamente a pessoa
que tem HIV e, com isso, o maior temor dos entrevistados é ser
equivocadamente considerado soropositivo. Com efeito, as narrativas ilustram
ocasiões em que o controle da informação ‘falhou’ e teve como consequências
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

a associação imediata com ser uma pessoa que vive com aids e, até mesmo, a
efetiva discriminação por ser julgada como alguém que tem aids.
Além disso, há aqueles que já na busca pela PEP se apresentam, de
certo modo, como ‘desacreditados’. O sentimento de vergonha ao chegarem ao
serviço de saúde, independentemente do ‘olhar externo’, e a projeção de um
futuro com HIV – representado pela impossibilidade de manter vínculos com
parceiros afetivos e com a família e por uma saúde precária – simbolizam a
busca pela PEP como confirmação e consequência do diagnóstico de HIV.
Diferentemente do preservativo, que as pessoas se orgulham em dizer
que usam e que representou a possibilidade de uma certa liberdade para que
as práticas sexuais diante da ameaça da aids, a PEP é associada à vergonha.
Em parte, isso se explica por sua associação a situações indesejadas e
acidentais de potencial exposição ao vírus, situações que são elas mesmas
estigmatizadas – trabalho sexual, relações homossexuais, extraconjugais ou
com pessoas que vivem com HIV.
Em suma, nossos resultados mostram que o estigma da Aids permeia
tanto a busca como o uso da PEP, contribuindo para invisibilidade e
subutilização desse método preventivo. Indicam, portanto, a necessidade de
integrar intervenções sociais focadas no enfrentamento do estigma às ações
desenvolvidas nos serviços de saúde e à implantação de tecnologias de
prevenção baseadas no uso de antirretrovirais. Reconhecemos que a
ampliação de métodos para a prevenção do HIV, sobretudo os baseados no
uso dos antirretrovirais, é um avanço importante para o enfrentamento da
epidemia e que a variedade de métodos ofertados tem potencial para ampliar
as opções de prevenção e, com isso, ampliar a chance da população
incorporá-los às suas práticas sexuais (GRANGEIRO E COLS, 2015). Contudo,
reiteramos com base nos dados desse estudo o que vários autores no campo
dos estudos sociais sobre a epidemia (KENWORTHY E COLS, 2017; FERRAZ
E PAIVA, 2015; KIPPAX E NIAMH, 2012) têm destacado : para assegurar a
efetividade da proteção de quaisquer métodos de prevenção do HIV é preciso
criar condições sociais que favoreçam seu uso consistente e apropriado,
promovendo diálogo sobre sexualidade, gênero e direitos, eliminando barreiras
de acesso aos serviços e desconstruindo estigmas associados à aids.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências Bibliográficas

FERRAZ, Dulce; PAIVA, Vera. 2015. Sexo, direitos humanos e AIDS: uma
análise das novas tecnologias de prevenção do HIV no contexto brasileiro.
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GOFFMAN, Erving. 1978. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade


Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.

GRANGEIRO, Alexandre; FERRAZ, Dulce; CALAZANS, Gabriela; ZUCCHI,


Eliana Miura; DÍAZ BERMÚDEZ, Ximena Pamela. 2015. "O efeito dos métodos
preventivos na redução do risco de infecção pelo HIV nas relações sexuais e
seu potencial impacto em âmbito populacional: uma revisão da literatura".
Revista Brasileira de Epidemiologia, 18 Suppl 1, 43-62.

KENWORTHY, Nora; THOMANN, Matthew; PARKER, Richard. 2017. From a


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Revista da Universidade de Aveiros - Letras, 14, 169-81.

MANNING, Phillip. 2005. "Erving Goffman". In: RITZER, G (Ed). Encyclopedia


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MOSCOVICI, Serege. 1988. "Notes towards a description of social


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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

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aprendizado de conceitos e práticas no contexto da epidemia de HIV/Aids". In:
Paiva, Vera; Ayres, José Ricardo; Buchalla, Cássia Maria (Orgs.),
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Doença à Cidadania. Curitiba, PR: Juruá. pp. 111-143.

PARKER, Richard; AGGLETON, Peter. 2003. "HIV and AIDS-related stigma


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SONTAG, Susan. 1989. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das
Letras.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Tabela 1: Características socio-demográficas dos entrevistados no Estudo Combina! em uso de PEP


sexual.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Relação Orientação Cor


Nome Idade Religião Estável Filhos Trabalho Sexual Autorreferida Cidade
Ribeirão
Aislan 30 Evangélico, NP Não Não Professor Homossexual Branco Preto
Ribeirão
Alexandre 22 Católico, P Não Não Estudante Homossexual Branco Preto
Ana Candomblecista Porto
Flávia 42 e espírita, P Não Sim Cabeleireira Heterossexual Amarela Alegre
Ribeirão
Ângela 22 Evangélica, NP Sim Não Caixa Heterossexual Negra Preto

Antônio 43 Católico, P Sim Sim Advogado Heterossexual Branco Curitiba


Católico e
Augusto 38 espirita Não Não Gerente financeiro Homossexual Branco São Paulo

Beatriz SI SI Sim SI SI Heterossexual SI São Paulo


Ribeirão
Bertha 47 Zen Budista, P Não Sim Depiladora Heterossexual Branca Preto
Ribeirão
Bethânia 41 Evangélica, P Não Sim Atendente de loja Heterossexual Branca Preto
Setor de Ribeirão
Celso 38 Católico, NP Sim Sim combustíveis Heterossexual Pardo Preto
Atendente de call
César 28 Católico, NP Sim Não center Heterossexual Branco São Paulo
Porto
Cirilo 33 Não tem Sim Não Autônomo Heterossexual Pardo Alegre

Cleiton 35 Católico, NP Não Não Professor Bissexual Pardo São Paulo

Damião 31 Ateu SI SI Analista de Sistema Heterossexual SI Fortaleza

Daniel 26 Católico, NP Não Não Analista de Sistema Heterossexual Pardo Curitiba


Acredita em
Danilo 27 Deus Sim Não Fotógrafo Homossexual Indígena São Paulo

Dário 23 Não tem Sim Não Desempregado Heterossexual Branco Curitiba

Eleonora 38 Católica, P Não Sim Professora Heterossexual Parda Curitiba


Ribeirão
Eudésio 37 Católico, NP Não Não Escriturário Homossexual Branco Preto
Porto
Evandro 41 Espírita Sim Não Massoterapeuta Heterossexual Negro Alegre

Flora 32 Evangélica, P Sim Não Enfermeira Heterossexual SI São Paulo


Porto
Iago 29 Não tem Não Não Autônomo Heterossexual Branco Alegre

Ivan 22 Católico, NP Não Não Garçom Heterossexual Pardo São Paulo


Trabalhadora Preta e
Joana 27 Católica, NP Sim Não Sexual Heterossexual indígena São Paulo
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Trabalhadora
Judith 32 Católica, NP Não Não Sexual Heterossexual Branca São Paulo
Cabelereiro e
Juliano 22 Católico, P Não Não estudante Homossexual Negro Fortaleza
Acredita em Ribeirão
Juno 23 Deus Não Não Call Center Homossexual Pardo Preto

Karina 23 Kardecista Sim Não Estudante Heterossexual Branca Curitiba


Trabalhadora Ribeirão
Leila 23 SI Não Sim sexual e vendedora Bissexual Branca Preto

Leondes 23 Evangélico Não Não Professor Homossexual Pardo São Paulo


Coordenador
Lincoln 36 Católico, NP Não Não gastronômico Heterossexual Branco Curitiba
Designer de
Lucas 37 Católico, NP Não Não interiores Homossexual Branco São Paulo
Sim,
Marco 27 Católico, NP mulher Não Contador Heterossexual Branco São Paulo
Estudante e
Marcone 19 Não tem Não Não autônomo Homossexual SI Fortaleza

Mário 40 Não tem Sim Não Médico Homossexual Branco São Paulo
Desenvolvedor de
Michael 29 Católico, NP Não Não Sistemas Heterossexual Branco Curitiba
Umbandista e Porto
Miqueias 19 espírita Sim Não Atendente Homossexual Negro Alegre
Porto
Nelson 58 Católico, P Não Sim Aposentado Heterossexual Branco Alegre
Assistente
Noel 33 Não tem Não Não financeiro Homossexual Pardo Curitiba
Trabalhadora
Patrícia SI Católica, P Não Sim Sexual Heterossexual SI Curitiba
Sim,
Plínio 32 Não tem mulher Não Funcionário Público Bissexual Branco Ribeirão

Ramon 31 Católico, NP Não Não Professor Homossexual SI Fortaleza

Regina 46 Católica, P Sim Sim Diarista Heterossexual Branca Curitiba

Renato 42 Católico, NP Não Não Fotógrafo Bissexual Branco São Paulo

Roberto 32 Não tem Não Não Professor de inglês Homossexual Branco São Paulo
Trabalhadora
Rosa 39 Não Sim Sim Sexual Heterossexual Branca São Paulo

Samuel 30 Cristão, NP Não Não Professor Homossexual Pardo Fortaleza


Acredita em Importação/exporta
Sarmento 41 Deus Sim Sim ção Heterossexual Pardo São Paulo

Simão 20 Agnóstico Não Não Estudante Bissexual Branco São Paulo


Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Trabalhadora
Simone 27 Várias Não Sim Sexual Heterossexual Indefinida São Paulo
Ribeirão
Victor 46 Católico, NP Não Sim Atendente e livreiro Heterossexual Branco Preto

Virgínia 21 Católica, P Não Não Estudante Heterossexual Parda Fortaleza


Acredita em
Wellington 27 Deus Sim Não Fotógrafo Homossexual Amarelo São Paulo
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Mulheres soropositivas: notas bibliográficas sobre corpo, adoecimento e


medicamentos

Kátia Ovídia José de Souza1

Orientadoras: Ivia Maksud2 e Paula Gaudenzi3

Esta comunicação pretende realizar uma reflexão inicial sobre corpos


femininos alterados pela lipodistrofia em decorrência do tratamento
medicamentoso para o HIV/aids. Trata-se de uma parte da revisão bibliográfica
que embasa o estado da arte e o marco teórico de uma pesquisa de doutorado.

Vivemos em uma sociedade que valoriza a “beleza” e estigmatiza os


corpos desviantes (Malysse, 2007). Segundo Bourdieu (2014), há um paradoxo
entre a forma real dos corpos e a imagem ideal de corpo, perseguida e nunca
alcançada, pois a medida que um “ajuste estético” é atingido, outros novos,
mais caros e com mais sofrimento físico, são impostos. Para este autor, esta
equação recai ainda de forma mais perversa sobre as mulheres que, se não
recebem o olhar do outro, vivenciam seus corpos de forma insatisfatória
(Bourdieu, 2014). Com base nessa concepção, poderíamos perguntar qual
seria o lugar dos corpos femininos soropositivos em nossa sociedade?

Para travar essa reflexão, dialogamos particularmente com os estudos


sobre Aids em mulheres de Guimarães (2001) e duas dissertações recentes
sobre lipodistrofia, de Monteiro (2013) e de Levyski (2010).

1
Doutoranda do Instituto Fernandes Figueira/IFF/Fiocruz/RJ.
2
Professora e Pesquisadora do IFF/Fiocruz/RJ.
3
Professora e Pesquisadora do IFF/Fiocruz/RJ.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Para Monteiro (2013), esse olhar sobre a estética dos corpos contribui
para uma “exclusão” das mulheres soropositivas e com lipodistrofia por não “se
enquadrarem” em tal padrão de beleza e estética.

Para pensar sociologicamente os corpos, desnaturalizando-os e


demostrando sua construção social, recorremos a alguns autores. Corpos com
técnicas forjadas, reproduzidas e consolidadas em um contexto social e
temporal (Mauss; Elias, 2011). Corpos pertencentes a classes sociais
(Boltanski, 1984) a habitus (Boltanski, 1984; Medeiros, 2011) distintos. Corpos
políticos. Rodrigues (2006) demonstra como o corpo humano é afetado pela
religião, pela ocupação, pelo grupo familiar, pela classe e pelos outros
intervenientes sociais e culturais. Para este autor, no corpo está
simbolicamente impressa a estrutura social.

A lipodistrofia

No contexto do tratamento para o controle do HIV/AIDS, a introdução da


terapia antirretroviral TARV4, no ano de 1996, contribuiu para as
representações das imagens dos corpos. Podemos identificar três momentos
da epidemia e sua ação sobre os corpos: 1o) Perda de peso; 2o) Recuperação
do peso com a introdução da TARV; 3o) distribuição irregular da gordura
(lipodistrofia) (Zambenedetti, 2014). Antes da introdução da TARV, os corpos
eram caracterizados pela magreza extrema. Mas de acordo com Bastos (2006),

4 Medicamentos utilizados no tratamento do HIV/aids. Segundo o Ministério da Saúde


(http://www.aids.gov.br/pagina/quais-sao-os-antirretrovirais esses medicamentos não “matam”
o HIV, ou seja, o vírus causador da aids, mas ajudam a evitar o enfraquecimento do sistema
imunológico. Desde 1996, o Brasil distribui os antirretrovirais. Existem 22 medicamentos
divididos em 5 tipos. É necessária a utilização de três antirretrovirais combinados, sendo dois
medicamentos de classes diferentes, que poderão ser agrupados em um comprimido. De
acordo com Zambenedetti (2014), a introdução da TARV possibilitou a diminuição da
mortalidade por aids e o aumento da convivência de pessoas vivendo com HIV/aids de
gerações e de segmentos sociais diferentes. Significa que pessoas vivendo com HIV/aids
entraram no Sistema de Saúde e permanecem fazendo usos dele por tempo prolongado,
exigindo capacidade de absorção dos serviços. Deste modo, para Bastos (2006), as pessoas
que estavam à margem da interação social, por adoecimento ou morte, voltam à cena social.
Segundo o mesmo autor, a aids ainda continua na cena social contemporânea e como um
problema de saúde pública. “Aids aguda” seria o momento antes de 1996, quando não existia
distribuição gratuita de antirretroviral. “Aids crônica” seria o período pós 1996, com a introdução
dos antirretrovirais no SUS. Os corpos são afetados por essa transição entre aguda para
crônica. Para Gonçalves (2016) não houve um fim da fase aguda da aids para começar do zero
uma fase crônica. Essas fases coexistem.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

com o passar dos anos e do uso da TARV, novos desafios foram se


apresentando em consequência da TARV e da longevidade das pessoas
vivendo com HIV/aids (PVHA). Um desses desafios é o efeito colateral dos
medicamentos, como a lipodistrofia.

De acordo com a literatura programática do Ministério da Saúde (2011) a


Síndrome de Lipodistrofia associada ao HIV pode ser considerada como uma
alteração na distribuição da gordura corporal5 e mudanças metabólicas6. Nesse
caso, a distribuição da gordura se dá de forma irregular, com perdas ou
acúmulos em regiões específicas. A Lipodistrofia é considerado um efeito
adverso importante devido a dois fatores: a) deformidade e alteração corporal e
consequente estigma; b) “síndrome metabólica”, que está associada ao
aumento de riscos a doenças cardiovasculares. A lipodistrofia pode ocorrer em
diversas fases da vida. O desenvolvimento das alterações corporais em sua
decorrência é progressivo durante 18 a 24 meses, podendo estacionar durante
pelo menos dois anos. O impacto da Lipodistrofia é negativo para a vida social
do paciente e para a sua adesão ao tratamento para o HIV, podendo contribuir
para o abandono do mesmo. Outras consequências importantes mapeadas na
literatura são baixa autoestima, ansiedade, depressão e isolamento social
(Ministério da Saúde, 2011). Não foram encontrados dados sobre a ocorrência
da Lipodistrofia em pessoas vivendo com HIV/AIDS nos Boletins
Epidemiológicos HIV-Aids do Ministério da Saúde. Logo, a prevalência da
Lipodistrofia no Brasil permanece desconhecida.

Com a finalidade de realizar uma revisão de literatura sobre o meu


objeto de estudo e conhecer pesquisas anteriores em torno da temática iniciei
uma busca no Scielo (www.scielo.br), no Portal Capes
(www.periodicos.capes.gov.br) e no Banco de Teses e Dissertações do
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (bdtd.ibict.br). Para

5 Lipoatrofia (Redução da gordura como em face, nádegas, braços e pernas); Lipo-hipertrofia


(Acúmulo de gordura na região abdominal, presença de corcunda, aumento de volume nas
mamas nos homens e aumento de mamas em mulheres e acúmulo de gordura em outras
regiões; Forma Mista (associação da lipoatrofia e a lipo-hipertrofia) (Ministério da Saúde, 2011).
6 Alterações na homeostase da glicose e alterações lipídicas (Ministério da Saúde, 2011).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

orientar essa busca usei os descritores7: Síndrome de Lipodistrofia Associada


ao HIV8 e Lipodistrofia9. Como não localizei muitos trabalhos qualitativos sobre
a Lipodistrofia no Scielo, no Portal Capes e no BDTD comecei uma busca
aleatória. Um dos critérios que orientou essa busca foi a leitura do currículo
Lattes de pesquisadores que estudam HIV/aids, seus orientandos etc. Essa
estratégia mostrou-se fundamental, pois o levantamento foi mais produtivo
quando realizado por meio de consultas nas referências bibliográficas das
teses, dissertações e artigos, do que nas bases de dados.

Assim, o resultado desta busca compreende o total de 7 pesquisas


relevantes: 1 tese, 4 dissertações e 2 artigos. Os artigos são desdobramentos
de dissertações e correspondem às áreas de estudo da saúde coletiva, política
social, medicina, enfermagem e sociologia. Os outros estudos abordam de
forma indireta o HIV/aids, corpo e alterações, justificando sua pertinência. Os
dados e discussões a seguir já são frutos dos materiais levantados,
entremeados com a literatura sociológica utilizada para o estabelecimento de
um debate.

Quadro 1: Estudos encontrados e analisados sobre a Síndrome de


Lipodistrofia Associada ao HIV.

Títulos Tese, Origem Fonte Ano Objetivo Pesquisa Participantes


dissertação
ou artigo
Representações de Artigo Enfermagem Através da 2014 Compreender, Qualitativa Homens e
corpo de pessoas dissertação do ponto de mulheres
com HIV/aids: “Representa vista da pessoa
entre a visibilidade ções de infectada,
e o segredo pessoas com como as

7 Estes são descritores em ciências da saúde (decs.bvs.br).


8 Segundo o DeCs compreende “[...] metabolismo defeituoso acarretando uma distribuição
irregular da gordura em pacientes infectados com HIV. A etiologia parece ser multifatorial e
provavelmente envolve alguma combinação de alterações no metabolismo induzidas
por infecção, efeitos diretos da terapia antirretroviral e fatores relacionados com o paciente”.

9 De acordo com o DeCs seria um “[...] conjunto de afecções heterogêneas resultante do


deficiente metabolismo dos lipídeos e caracterizado por atrofia do tecido adiposo. Com
frequência há redistribuição da gordura corporal resultando em definhamento
da gordura periférica e da adiposidade central. Incluem a lipodistrofia generalizada, localizada,
congênita ou adquirida”.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

HIV/aids mudanças
sobre o corporais são
corpo: A percebidas e
construção vividas pela
da PVHA.
corporeidade
”.
Mulheres e Dissertação Saúde Através de 2013 Analisar como Qualitativa Mulheres
lipodistrofia ligada Coletiva currículo de a lipodistrofia
ao HIV: uma pesquisador associada ao
abordagem de HIV/aids afeta
gênero. a vida das
mulheres
soropositivas
em uma
abordagem de
gênero.
Percepções e Tese Sociologia Através de 2013 Tratar das Qualitativa Mulheres
sentidos da aids, do uma percepções e
corpo, da dissertação sentidos
sexualidade e do atribuídos a
amor entre aids, ao corpo,
mulheres vivendo a sexualidade e
com HIV: um ao amor por
estudo a partir da mulheres
análise de vivendo com
trajetórias de vida HIV – a partir
da análise de
suas trajetórias
de vida.
Representações de Dissertação Enfermagem Através de 2012 Compreender Qualitativa Homens e
pessoas com outra representações mulheres
HIV/aids sobre o dissertação de pessoas
corpo: A construção com HIV/aids
da corporeidade sobre o corpo e
suas
interações,
após o
diagnóstico da
infecção.
Atenção à saúde das Dissertação Política Através de 2010 Compreender e Qualitativa Mulheres
mulheres vivendo Social outra interpretar as
com HIV e Aids no dissertação percepções das
Distrito Federal: um mulheres
estudo sobre a vivendo com
síndrome HIV e aids
lipodistrófica. sobre a atenção
integral à sua
saúde em
relação à
síndrome
lipodistrófica
vivenciada por
elas.
A vida crônica é Dissertação Medicina Através de 2006 Compreender a Qualitativa Homens e
novidade na aids: as artigo experiência da Mulheres
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

transformações da enfermidade
aids aguda para a dos pacientes
aids crônica sob o de aids no
ponto de vista dos contexto da
pacientes aids crônica.
Transformações da Artigo Saúde Scielo 2008 Apresentar e Qualitativa Homens e
“aids aguda” para a Coletiva comparar as Mulheres
“aids crônica”: mudanças
percepção corporal corporais
e intervenções percebidas por
cirúrgicas entre pessoas que
pessoas vivendo vivem com
com HIV e aids. HIV e aids,
ocorridas nos
últimos anos
da epidemia,
com a
utilização dos
antirretrovirais.

Discussão

Levyski (2010) desenvolveu um estudo com o objetivo de compreender


as percepções de mulheres vivendo com HIV/aids e lipodistrofia sobre a
atenção integral à saúde. Com abordagem qualitativa, a autora identificou,
através de entrevistas e grupos focais, as palavras “sofrimento” e “tristeza” nos
discursos das mulheres participantes de seu estudo. A “beleza” não foi
reconhecida pelas mulheres como um atributo delas. Como estratégia para
“disfarçar” as alterações corporais, as mulheres utilizam, por exemplo, roupas
largas. As participantes relataram que devido às alterações corporais houve um
distanciamento nos relacionamentos sociais e afetivos, alterando os modos de
vida de antes e depois do HIV. Na opinião das mulheres desta pesquisa, as
suas alterações corporais foram desvalorizadas pelos profissionais de saúde, e
até diminuída, por ser um problema considerado pelos profissionais de saúde
como “somente estético” e não de saúde. Essa situação pode dificultar um
diálogo entre médico e paciente, como um espaço de escuta, além de
desvalorizar as queixas das mulheres. Esta falta de escuta por parte do médico
pode prejudicar a adesão ao tratamento. Levyski (2010) demonstra que as
informações iniciais sobre a lipodistrofia e sobre as cirurgias reparadoras não
foram oferecidas adequadamente às mulheres.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Na dissertação de Monteiro (2013) encontramos alguns resultados


semelhantes ao de Levyski (2010). As formas como as mulheres identificam a
lipodistrofia também são influenciadas pelos padrões de estética e beleza que
demonizam a gordura e valorizam a magreza. O aumento de gordura nas
mulheres com lipodistrofia é mais facilmente identificado como um problema. A
perda de gordura associada à magreza não é identificada de imediato,
demorando mais para ser percebida como um problema. São métodos usados
para disfarçar as alterações corporais: roupas largas, cintas e enchimentos.

Monteiro (2013) identificou a dificuldade de mulheres estabelecerem um


relacionamento afetivo em decorrência da imagem corporal alterada pela
lipodistrofia. As mulheres do estudo de Monteiro (2013) descrevem que
perceberam mudanças corporais, porém não associaram essas modificações
como possível efeito dos medicamentos ARVs. Um meio pelo qual as mulheres
identificaram modificações no corpo foi o apontamento de conhecidos e
familiares. Nesta situação, as mulheres, dificilmente, conseguiam negar tais
alterações e o diagnóstico. Nestas ocasiões algumas mulheres interpretaram
esses momentos como um risco para a quebra do sigilo do diagnóstico.

Monteiro (2013) relata que em nenhum momento as mulheres foram


informadas, espontaneamente, sobre a lipodistrofia por seus médicos. Muitas
vezes a confirmação médica da lipodistrofia foi obtida porque as mulheres
questionaram seus médicos sobre as modificações em seus corpos. Essa
dificuldade igualmente foi apontada por Levyski (2010).

Monteiro (2013) descreve que as participantes de sua pesquisa fazem o


uso de hormônios, vitaminas, academia de ginástica e cuidado com a
alimentação a fim de amenizar os efeitos da lipodistrofia. Entretanto, o autor
ressalta que nem todas as mulheres tem acesso a poder frequentar uma
academia de ginastica ou ter acompanhamento com nutricionista. Alguns
médicos não prescrevem a necessidade de cirurgia reparadora para a
lipodistrofia, não anotam em seus prontuários observações sobre as alterações
corporais e nem fazem encaminhamento para algum tipo de tratamento. As
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

participantes do estudo de Monteiro (2013) relatam não possuírem laudo ou


exame médico que comprovem o diagnóstico de lipodistrofia, todavia as
mulheres alegam ter lipodistrofia diagnosticada. Haveria um silêncio, nas
palavras de Monteiro (2013), sobre a lipodistrofia nos tratamentos para o HIV,
só sendo identificada pelas mulheres em seu estado avançado. O tempo
transcorrido até a identificação do problema e a ausência de posicionamento
do profissional de saúde podem prologar o sofrimento e dificultar as
possibilidades de uma intervenção mais imediata.

Alencar, Nemes e Velloso (2008) e Alencar (2006) demonstram que os


participantes (homens e mulheres) de seu estudo tinham dificuldade de
reconhecer seus rostos no espelho ou em foto 3x4 após o início da lipodistrofia.
Essas mulheres relataram que já foram confundidas com grávidas e afirmaram
que perderam as características femininas de seus corpos após começarem a
tomar os antirretrovirais. Os relatos de lipodistrofia foram mais frequentes nas
mulheres do que nos homens. Contudo, tanto homens e mulheres
comunicaram a percepção de incomodo estético e da marca do estigma
corporal. Os autores expõem que os enxertos e lipoesculturas são formas para
“aliviar” os efeitos da lipodistrofia. O tratamento cirúrgico poderia ser uma forma
de retirar sinais estigmatizantes e identificadores do HIV/aids. Mesmo assim, os
pesquisadores problematizam o tratamento da cirurgia plástica vinculada a
lipodistrofia e suas repercussões nas vidas das PVHAs. Portanto, a cirurgia
plástica não deve ser banalizada ou naturalizada, tornando-se uma rotina
comum para as PVHAs.

Ivo (2012)10 identificou que as PVHAs têm a preocupação com as


mudanças corporais. Esta preocupação está correlacionada ao “medo” pelo
prejuízo na funcionalidade corporal e pelas alterações poderem tornar o
diagnóstico do HIV visível a outras pessoas. Nesta pesquisa, os homens
ficaram mais receosos com a perda da funcionalidade do corpo e a
incapacidade para o trabalho. Para as mulheres, o foco de atenção era a

10
Nenhum dos entrevistados do estudo de Ivo, no momento da pesquisa, apresentavam sua “[...] condição
sorológica expressa no corpo” (Ivo, 2012: p.85).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

possibilidade da perda da capacidade de gerir o próprio sustento e a realização


de tarefas domésticas e cuidado dos filhos, além do prejuízo da aparência
física e a visibilidade do diagnóstico do HIV. Para os homens, a insatisfação
com o corpo não é tão clara e correlacionada ao HIV/aids, demonstrando
diferenças do olhar de gênero sobre um mesmo problema.

Ivo (2012) argumenta que a “não visibilidade” social do diagnóstico de


HIV pode ser interpretado pelas PVHAs como uma possibilidade de ter maior
aceitabilidade social. O cuidado com o corpo e a aparência física tornou-se
mais importante entre os participantes do estudo de Ivo após o diagnóstico de
HIV. Tanto para tentar manter o corpo como saudável e útil como para justificar
as alterações corporais, para si e para os outros. Os integrantes da pesquisa
de Ivo começaram a praticar exercícios físicos em academia de ginástica.
Então, se o corpo modificou-se foi devido “somente” à prática da academia. Os
“medos” e “preocupações” pela visibilidade do diagnóstico podem ter
implicações na forma como as PVHAs se relacionam, como a redução das
interações sociais. Guardar o segredo do diagnóstico de HIV, o possível
isolamento social, esconder o corpo que denuncia o vírus e reduzir qualquer
interação social que aponte para o HIV podem ser percebidas, segundo Ivo e
Freitas (2014) e Ivo (2012), como a dimensão negativa da vivência da
corporeidade. As experiências relativas à , como a redução do número de
parceiros ou abstinência sexual, podem ser consideradas como um dos
elementos da corporeidade que mais sofre com essa situação.

Com o objetivo de estudo de compreender os sentidos e significados de


jovens sobre a convivência com o HIV/aids e suas consequências, Gonçalves
(2016) obteve o relato de uma interlocutora, uma mulher jovem e negra, sobre
a diferenciação entre o HIV e a aids. A primeira referência utilizada foi a “cara
da aids” das décadas de 1980 e 1990. A diferenciação entre o HIV e a aids é
baseada na visibilidade de sinais e sintomas e o corpo como delator do
diagnóstico. Outra informante, no mesmo perfil que a anterior, identificou
mudanças corporais e atribui ao emagrecimento e o corpo mais infantil, sem a
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

silhueta de mulher, à doença e aos medicamentos. A imagem da lipodistrofia


está presente nas imagens que esses jovens tem sobre o HIV/aids.

No livro “O segundo armário: diário de um jovem soropositivo” (2016)


Abreu descreve sua trajetória com a descoberta do HIV. O livro autobiográfico
retrata dentre outros pontos o medo da lipodistrofia. Escrito como um diário, o
autor apresenta passagens de sua vida no ano de 2011 e seu receio da
modificação corporal. Abreu é um jovem com seus vintes e poucos anos e
aborda a sua preocupação com o estigma e a visibilidade do diagnóstico, que
pode ser identificado por outras pessoas através da lipodistrofia. Este livro está
recheado de passagens sobre o temor da “perda” da beleza e das alterações
corporais e um investimento maior em atividade físicas, após o diagnóstico,
com a finalidade de melhorar a saúde. Mesmo com a oferta de novos ARVs
pelo Ministério da Saúde, que prometem menos efeitos colaterais, jovens
possuem o “medo” de desenvolverem a lipodistrofia.

Leite (2013) trabalhou com a trajetória de vida de 3 mulheres vivendo


com HIV11, contudo sem lipodistrofia aparente. As mulheres são de faixas
etárias diferentes, mas de um mesmo grupo social, cujas características são a
baixa renda e a pouca escolaridade. O comum entre os relatos foram: as
relações dos corpos e a doença; as trajetórias afetivo-sexuais e os roteiros
sexuais antes e depois do diagnóstico.

A importância de manter a aparência saudável da mulher que vive com


HIV/aids também foi identificada por Leite. A aparência saudável afasta da
“mente” dos outros a possibilidade de descoberta do diagnóstico. Diferente das
mulheres dos outros estudos (Monteiro, 2013; Levyski, 2010), que buscam
roupas largas para esconder seus corpos, as mulheres estudadas por Leite
relatam que a partir do diagnóstico do HIV começaram a ousar mais em roupas
curtas e a mostrar seus corpos. Todavia, uma das participantes, afetada pela
neurotoxoplasmose, apresenta a preocupação com um corpo improdutivo para

11
Assintomáticas (carga viral baixa e CD4 em alta).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

o trabalho e tarefas domésticas simples, por falta de agilidade no corpo


provocada pela doença.

Ao contrário do apresentado por outros estudos, Leite destaca que uma


das mulheres, em vez de sentir o seu corpo como assimétrico devido a
lipodistrofia, começou a vê-lo como mais atraente. Para as mulheres de Leite, o
corpo é fonte de doenças, mas também das sensações de bem-estar e de
prazer.

As perspectivas dos autores (Ivo e Freitas, 2014; Monteiro, 2013; Ivo,


2012; Levyski, 2010; Alencar, Nemes e Velloso, 2008; Alencar, 2006) expostos
acima apresentam um quadro negativo, um tanto “terra arrasada”, da vida das
PVHAs e com a experiência das alterações corporais. Leite (2013) descreve
uma perspectiva menos negativa.

A questão da estética é transversal nos estudos, principalmente em


Monteiro (2013), Levyski (2010), Alencar, Nemes e Velloso (2008) e Alencar
(2006). As pesquisas de Monteiro (2013) e Levyski (2010) abordam somente
mulheres e expõem as várias dificuldades encontradas nos serviços de saúde.
As duas dissertações apresentam resultados bastante próximos. Já Alencar,
Nemes e Velloso (2008) e Alencar (2006), além de abordar a estética, trazem
para discussão o dilema das cirurgias plásticas. A visibilidade do diagnóstico
através das alterações corporais é apontada pelos estudos, com mais destaque
em Ivo e Freitas (2014) e Ivo (2012). A pesquisa de Gonçalves (2016), mais
recente, não direcionada para esta temática alterações corporais e HIV/aids,
brevemente indica a questão do corpo, alterações, medicamentos e juventude.
Os participantes dos estudos de Ivo e Freitas (2014), Leite (2013) e Ivo (2012)
não apresentavam sinais da lipodistrofia durante as pesquisas. A maioria das
pesquisas apresentadas, datadas a partir de 2006, vem identificando as
alterações corporais como o possível delator da visibilidade do diagnóstico e
estigma.

Referências bibliográficas
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Abreu, Gabriel. O segundo armário: diário de um jovem soropositivo. 2016. Rio


de Janeiro: Autografia.
Alencar, Tatianna Meireles Dantas de. 2006. A vida crônica é novidade na aids:
as transformações da aids aguda para a aids crônica sob o ponto de vista dos
pacientes. Dissertação, Universidade de São Paulo.
Alencar, Tatianna Meireles Dantas de; Nemes, Maria Inês Battistella, Velloso,
Marco Aurélio. 2008. Transformações da “aids aguda” para a “aids crônica”:
percepção corporal e intervenções cirúrgicas entre pessoas vivendo com HIV e
aids. Ciência & Saúde Coletiva, 13 (6): 1841-1849.
Bastos, Francisco Inácio. 2006. Aids na terceira década. Rio de Janeiro:
Fiocruz.
Bourdieu, Pierre. 2014. A dominação masculina: a condição feminina e a
violência simbólica. Rio de Janeiro: BestBolso.
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sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal. pp. 109-185.
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2011. In: Elias, Norbert. O processo civilizador Volume I: Uma história dos
costumes. Rio de Janeiro: Zahar. pp. 63-203.
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mulheres contraem Aids no Brasil? Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
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não ser, eis a questão: Uma etnografia com jovens com sorologia positiva para
o VIH. Dissertação, Universidade Federal Fluminense.
Ivo, Ana Monica Serakides. Representações de pessoas com HIV/aids sobre o
corpo: a construção da corporeidade. 2012. Dissertação, Universidade Federal
de Minas Gerais.
Ivo, Ana Monica Serakides; Freitas, Maria Imaculada Freitas. Representações
de corpo de pessoas com HIV/AIDS: entre a visibilidade e o segredo. 2014.
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análise de trajetórias de vida. 2013. Tese, Universidade Federal do Ceará.

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com HIV e Aids no Distrito Federal: um estudo sobre a síndrome lipodistrófica.
2010. Dissertação, Universidade de Brasília.
Mauss, Marcel. As técnicas do corpo. In: Mauss, Marcel. Sociologia e
antropologia. Disponível em:
https://monoskop.org/images/f/f2/Mauss_Marcel_Sociologia_e_antropologia_20
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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Malysse, Stéphane. Em busca dos (H) alteres-ego: olhares franceses nos


bastidores da corpolatria carioca. 2007. In: Goldenberg, Miriam (Org.). Nu &
Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro –
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Medeiros, Cristina Carta Cardoso. Habitus e corpo social: reflexões sobre o
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Rodrigues, José Carlos. 2006. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Fiocruz.
Zambenedetti, Gustavo. O paradoxo do território e as processos de
estigmatização da aids na atenção básica em saúde. 2014. Tese, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

ESTUDO SOBRE ESTRATÉGIAS DE APOIO À ADESÃO AO TRATAMENTO


ANTIRRETROVIRAL NO NÍVEL FAMILIAR – Contribuindo para as Políticas
Públicas em Moçambique
Larissa Polejack1
Eduarda Burlamaqui
Lumara Mendes
Meque Samboco2
Daniela Almeida
Introdução
No final do século passado, a população mundial deparou-se com o
surgimento da síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA ou AIDS, em inglês),
decorrente da infecção do vírus da imunodeficiência humana (VIH ou HIV, em
inglês). Tal doença cresceu e virou uma pandemia, custando milhões de vidas a
cada ano (UNAIDS, 2016), principalmente em países em via de desenvolvimento
atingindo com maior frequência, populações negras em situações de vulnerabilidade
socioeconômica (Vieira et Al., 2014).
Atualmente, devido a disponibilidade de tratamentos antirretrovirais (TARV),
as taxas de mortalidade e morbidade sofreram um declínio expressivo podendo
melhorar a qualidade de vida da população HIV positiva (Polejack e Seidl, 2010).
Com tal avanço foi importante focar em alguns conceitos como o da adesão, que
segundo Agins et al (2004) se dá por meio de um processo colaborativo, que busca
facilitar a aceitação e integração de um esquema terapêutico para o indivíduo
doente. Ou seja, o sujeito tem papel ativo nas decisões sobre o tratamento. A
adesão ao tratamento de HIV inclui se adaptar à doença, aceitar o diagnóstico e
lidar com preconceitos, estigmas e inseguranças, além de entender a complexidade
do diagnóstico, o uso e efeitos dos medicamentos, bem como conciliar essas
questões a vida social, sexual e emocional.

1
Filiação: Integra: Grupo de Estudos, Intervenção e Educação em Psicologia, Cronicidades e
Políticas Públicas em Saúde. Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da
Universidade de Brasília. Brasil.
2 Departamento de Psicologia, Faculdade de Educação. Universidade Eduardo

Mondlane.Moçambique.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Polejack (2005) aponta algumas revisões de literatura que trazem fatores que
influenciam nesse processo da adesão como o próprio sujeito, a doença em si, o
tratamento, questões interpessoais e o contexto social e organizacional. Nessa
perspectiva, a saúde é vista como um processo multifatorial em que a produção de
saúde e doença é influenciado fortemente pelas dimensões sócio-econômicas e
políticas vivenciadas pelas coletividades (Fonseca, 2007). Torna-se necessária,
além da conscientização dos profissionais, a elaboração de políticas públicas que
acessem diferentes níveis da vivência da população de um país para a efetiva
promoção de saúde, ampliação de acesso e melhoria da qualidade de vida desses
(Polejack, 2007).
É importante ter atenção ao fenômeno da globalização, em que países mais
desenvolvidos, a partir das experiências realizadas em seus territórios, transferem e
financiam algumas políticas públicas específicas para países em via de
desenvolvimento. Tais transferências, podem ocorrer de diversas formas, como
lições de aprendizagem coercitiva até imposições diretas (Milani e Lopes, 2014).
Segundo o mesmo relatório de 2016 da UNAIDS, a maioria das pessoas que
vivem com aids moram em países da região sul e leste do continente africano.
Dessa forma, é necessário que a produção científica acerca desses assuntos possa
se voltar às especificidades e necessidades dos governos e populações desta
região do globo, de forma a fortalecer atores locais e instrumentalizar a elaboração
de políticas públicas que sejam capazes de dar conta das problemáticas envolvidas
no esforço de combate à epidemia, especialmente na promoção à adesão devendo
estar contextualizadas, levando em consideração as necessidades e prioridades da
população. Nesse sentido, é importante que as informações sejam consistentes e
fidedignas para melhor contribuírem com o desenvolvimento das políticas públicas
e, consequentemente, que estas sejam essenciais para influenciarem positivamente
a qualidade de vida dos indivíduos - principalmente no contexto de vulnerabilidade.
Considerando-se o contexto de Moçambique e o histórico do HIV/Aids,
conforme Polejack (2007), observa-se a importância de construir políticas públicas
alinhadas aos direitos humanos, apoio psicossocial, desenvolvimento econômico e
governamental, bem como a capacitação profissional e redefinição dos aspectos
relacionados ao gênero, para que a adesão ao tratamento seja eficaz de modo
global, atingindo os pacientes, profissionais e trabalhando com a prevenção.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

A multiculturalidade africana diverge da ocidental em vários aspectos, desde


as manifestações religiosa e espirituais, etnolinguísticas, rituais tradicionais,
dinâmicas sociais e sua organização, crenças e costumes, entre outras expressões
culturais que variam de povo para povo dentro desse mesmo contexto. A própria
concepção que se tem de vida, morte e do mundo em África, dá-se a partir de um
referencial sociocultural muito mais holístico e dinâmico que as produções de
sentido ocidentais. O princípio da unidade cósmica, relacionado à própria noção de
vitalidade, traz fortemente a ideia de que não há separação entre elementos
individuais do total do sistema em que está inserido; e sim um dinamismo em
constante processo de mudança. Isso fica evidente nas relações orgânicas de
interdependência entre sujeitos e comunidades vivenciadas no contexto africano
(Mkhize, 2004).
A noção de família nuclear no contexto africano considera-se muito mais
ampla que a visão dada pelo ocidente, envolvendo toda uma rede hierárquica de
membros familiares vivos e mortos, que asseguram o bem-estar biopsicossocial da
comunidade e, é essencial para as noções de realidade e da construção da
identidade pessoal. Dessa forma, tornar-se pessoa é um processo relacional que
requer posicionamentos compatíveis com a construção de uma vida comunitária
(Mkhize, 2004). Pode-se compreender que ter uma enfermidade como a aids tem
dimensões completamente diferentes para comunidades que compartilham dessa
visão de mundo; e que ser marcado por um estigma que dificulta as trocas sociais e
o processo de tornar-se pessoa em comunidade interfere em todos os aspectos da
vivência dos sujeitos HIV+ que habitam o continente africano.
Diante de tal cenário o Ministério da Saúde de Moçambique apresentou a
necessidade de desenhar um manual que apresente um pacote de serviços com o
objetivo de fortalecer a estratégia de envolvimento comunitário visando, a ampliação
da cobertura de ações de apoio psicossocial e prevenção positiva melhorar a
adesão e a retenção aos cuidados e ao tratamento. Neste sentido, o MISAU em
parceria com o Instituto de Psicologia da UnB e com a Universidade Eduardo
Mondlane está desenvolvendo uma pesquisa nacional em 8 províncias com o
objetivo de conhecer as estratégias de apoio psicossocial, apoio a adesão ao TARV
e prevenção positiva que estão em curso nas comunidades no apoio a pessoas
vivendo com HIV/Aids e co-infectadas por HIV e Tuberculose no País. A pesquisa
tem metodologia qualitativa (cartografia) consistindo em três principais etapas. A
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

primeira, iniciará com a revisão de literatura considerando artigos científicos,


estudos, relatórios e outros documentos ao nível nacional e internacional que se
mostrem relevantes. A análise documental orientará a elaboração dos roteiros de
entrevistas que serão utilizados na segunda fase que ocorrerá em oito províncias do
país quando serão ouvidos gestores, profissionais da saúde, líderes comunitários,
organizações implementadoras/parceiras e usuários. A última etapa será a
apresentação e discussão dos resultados das entrevistas e pactuação com os
atores envolvidos para elaboração de uma proposta de capacitação para os
profissionais de saúde. Portanto, este trabalho visa mostrar os avanços da primeira
etapa com a revisão bibliográfica voltada para as pesquisas sobre estratégias de
apoio a adesão, principalmente àquelas desenvolvidas em de baixos recursos a
afim de identificar como os aspectos culturais têm sido considerados na
implementação de políticas públicas e programas e estratégias de tratamento TARV
possam auxiliar na criação do manual. No presente momento os artigos
encontrados tinham o foco em intervenções no nível familiar, porém ainda serão
pesquisadas no nível comunitário e individual.
Método
Para a revisão de literatura, foram definidos os seguintes critérios de
pesquisa: ano de publicação - todos os artigos escolhidos foram publicados entre
2007 e 2017 ; se os estudos foram escritos em português ou inglês; se continham
os descritores no seu título ou resumo; se partiam de um referencial biopsicossocial
de saúde; se tinham relação com o tema de adesão e HIV/Aids; se apresentavam
um caráter propositivo com sugestão de estruturação de intervenções; se
apresentam texto completo disponível e se permitiam acesso gratuito. Os artigos
que se encaixaram dentro dos critérios supracitados foram encontrados nas
seguintes bases de dados: BVS, Google Scholar. A análise foi realizada segundo a
categorização do nível de intervenção família. Observou-se alguns pontos
principais: nacionalidade dos sujeitos, contexto de baixos ou altos recursos, método
de pesquisa, conceito de adesão, objetivo, sugestão de intervenção e resultados.
Resultados
Os descritores utilizados foram “Adherence + África + Family”, “HIV + Família”
e “Family + HIV + AIDS + TARV”, no Google Acadêmico, e “Adesão + Família + HIV”
na plataforma BVS. Ao todo, 967 artigos foram encontrados, sendo que 23 se
encaixaram nos critérios definidos e foram efetivamente analisados, assim como
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

está ilustrado na tabela 1. Para organizar a análise, foi atribuída uma numeração
para cada artigo, assim como é descrito na tabela 2. Nesta tabela estão
sumarizados dados essenciais sobre os artigos, a saber: o título da publicação, a
nacionalidade dos sujeitos estudados e a nacionalidade dos pesquisadores que
realizaram cada estudo. Enquanto as pesquisas com populações brasileiras foram
feitas por pesquisadores nativos (com exceção do estudo 8 que contou com a
participação de portugueses), das 12 pesquisas analisadas feitas em outros países,
11 contaram com uma participação expressiva de pesquisadores estrangeiros,
principalmente estadunidenses, ingleses, belgas, suecos e franceses.
As metodologias adotadas variaram entre desenhos quantitativos, qualitativos
e mistos. Os objetivos mais mencionados nos estudos eram: a) Oferecer suporte a
pessoas soropositivas e aumentar a adesão; b) Avaliar, propor, comparar e
melhorar modelos de intervenção; c) Envolver a comunidade no apoio a adesão; d)
Envolver a família, aumentar sua coesão e espaço de diálogo; e) Aumentar o
suporte social e diminuir o estigma; f) Facilitar e ampliar acesso a serviços de
saúde. Os níveis de análise e intervenção incluíram o nível familiar, comunitário,
individual e o multinível. Dos estudos analisados, 86% sugerem que as intervenções
propostas sejam implementadas por meio de políticas públicas governamentais,
equipes multiprofissionais e trabalhadores comunitários. Apenas 6 estudos traziam
explicitamente definições de adesão. A maioria dos que o fizeram levaram em
consideração múltiplos fatores (biopsicossociais) e colocaram como necessário um
envolvimento ativo do paciente no processo de cuidado como um todo, mas alguns
apenas citavam a tomada de MARV, o comparecimento a consultas e o acato a
instruções como indicadores de adesão.
Além disso, apenas 11 dos 23 estudos informaram quais eram as instituições
financiadoras dos seus projetos. Dentre as entidades citadas temos: National
Institutes of Mental Health, USAID-AMPATH, PEPFAR, National Institutes of Allergy
and Infectious Diseases (International Epidemiologic Databases to Evaluate AIDS –
East Africa Regional Consortium), National Institutes of Mental Health, Médicos Sem
Fronteiras, entre outros. Quanto à estrutura das intervenções sugeridas pelos
pesquisadores, separamos os estudos em setes diferentes categorias: a)
Aconselhamento e cuidado de base domiciliar; b) Atividades de grupo com
familiares; c) Aconselhamentos antes e depois do envolvimento da família; d)
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Questões de gênero na organização da família; e) Apoio econômico e qualidade de


vida das famílias; f) Descentralizar serviços para alcançar famílias; e, g) Outros.
A categoria “Aconselhamento e cuidado de base domiciliar” inclui os estudos
2, 16, 17, 20, 21 e 22, e diz respeito a formatos de intervenção que incluam, ou
tenham como ponto principal, os domicílios de famílias com pessoas que vivem com
HIV/AIDS. Os artigos 2 e 20 sugerem visitas de profissionais a domicílios com o
objetivo de realizar atividades incluindo todo o núcleo familiar, incluindo testagens,
identificação da configuração da família e de potenciais obstáculos para a adesão,
além de dinâmicas que trabalham vínculos, confiança e diálogo entre familiares e
com os profissionais. Os artigos 16 e 21 sugerem, respectivamente, a visita de
voluntários HIV+ que circulariam por vários domicílios de uma mesma comunidade
para desempenhar Atividades de Cuidados Domiciliares e aumentar o acesso a
informações sobre a doença como forma de encontrar formas de enfrentamento
comunitárias, incentivando o compartilhamento de histórias entre diferentes famílias;
e a visita de pares que teria como objetivo promover diálogos entre familiares sobre
questões do âmbito fisiológico, afetivo e programático do processo de adesão ao
TARV. Os artigos 17 e 22 estão focados no oferecimento de suporte e capacitação
de familiares para que eles mesmos possam realizar cuidados e apoio a adesão nos
domicílios de forma a empoderar e corresponsabilizar.
Na categoria “Atividades de grupo com familiares” foram incluídos os artigos
3, 5 e 13. O estudo 3 descreve grupos com profissionais de saúde e familiares nas
unidades de saúde com uso de estratégias de educação em saúde; esses grupos
seriam espaços de apoio emocional, compartilhamento de dúvidas e informações.
Já os estudos 5 e 13 estão focados em grupos de operacionalização (que no caso
do 13 estaria combinada a outras modalidades de cuidado de acordo com o Care
Model for Chronic Conditions) de abordagem educacional crítica com ênfase na
apropriação de informações sobre direitos e deveres para a promoção de
autonomia, reflexão e fortalecimento de redes de apoio.
Dentro da categoria “Aconselhamentos antes e depois do envolvimento da
família” incluímos os estudos 4 e 11. O estudo 11, de base rogeriana, descreve a
importância de ser realizado um aconselhamento que prioriza a escuta singular,
oferece apoio emocional para ajudar sujeitos a encontrar soluções para seus
próprios problemas, incluindo as dificuldades de revelação da soropositividade para
familiares, o que caracterizamos como um aconselhamento necessário antes do
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

envolvimento da família. O estudo 4 já propõe o envolvimento de famílias no


aconselhamento e nas atividades psicoeducativas que, tendo como foco os
potenciais do grupo, ofereceria apoio, orientação terapêutica e informações que
poderiam acelerar a reabilitação e diminuir o estresse familiar.
A categoria “Questões de gênero na organização familiar” reúne as
publicações 9, 10 e 12, trazendo a perspectiva de que os papéis de gênero
socialmente atribuídos a cada membro da família vão afetar de diferentes formas a
adesão ao TARV. O artigo 12 se preocupa em abordar a dificuldade das mulheres
soropositivas de revelarem sua condição aos familiares por receios de não
receberem apoio e, pelo contrário, serem discriminadas a ponto de comprometer
toda sua posição nas relações familiares; logo, é colocado que o aconselhamento
para ajudar essas mulheres a lidar com a questão da revelação do diagnóstico deve
ser personalizado e culturalmente sensível. O artigo 10 aponta para a necessidade
de oferecer apoio ao TARV em serviços não especializados para que mais de um
membro da família possa ser atendido em um mesmo local e horário, tendo em vista
que muitas mulheres faltam consultas por estarem encarregadas do cuidado integral
de seus filhos; também é colocado que esses serviços devem ter horários de
funcionamento ampliado para que os membros da família com vínculos
empregatícios possam ser atendidos sem terem que comprometer o trabalho.
Já a publicação 9 coloca que, para haverem maiores possibilidades de
revelação que realmente possa resultar no apoio da família a mulheres
soropositivas, deve haver a implementação de políticas sociais de redução da
desigualdade de gênero a partir do empoderamento individual e coletivo das
mulheres. Neste estudo é investigado um modelo de associações comunitárias para
suporte de mulheres como forma de enfrentamento do estigma. A categoria de
“Apoio econômico e qualidade de vida das famílias”, que inclui os artigos 18 e 19, se
ocupa de tratar da questão da insegurança financeira e alimentar que se coloca
como um obstáculo para a adesão que, muitas vezes, afeta o funcionamento das
famílias e, consequentemente, o nível de suporte oferecido a PVHA. Ambos
constatam que, além da oferta de aconselhamento e assistência nutricional, é
importante que seja oferecida assistência financeira e alimentícia durante o TARV.
Quando exploramos a categoria “Descentralizar serviços para alcançar
famílias”, que inclui os artigos 14, 15 e 23, nos deparamos com propostas de uma
reformulação do aparelho estatal de saúde como forma de aumentar a capilaridade
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

do cuidado. Nos artigos 15 e 23 é sugerida uma abordagem multiprofissionais em


serviços biopsicossociais baseados em clínicas de atenção primária, implicando em
uma corresponsabilização das famílias e comunidades no trabalho de apoio a
adesão. Enquanto isso, o artigo 14 defende a estratégia de entrega direta do MARV
nas comunidades em reuniões grupais regulares, chamadas de Community Art
Groups (CAG), em que seria possível compartilhar questões relativas a adesão e
fazer contagem de pílulas. Essa abordagem requer o estabelecimento de relações
horizontais entre profissionais de saúde e PVHA e pode resultar em um aumento da
percepção de apoio familiar e comunitário.
Na categoria “Outros” foram colocados os artigos 1, 6, 7 e 8. O artigo 1 traz
uma perspectiva diferenciada que questiona as estratégias de comunicação em
saúde e propõe uma abordagem interdisciplinar, interpretativa e crítica; a partir
disso, estrutura a proposta de produção de filmes, junto a comunidades, com
narrativas de pessoas soropositivas e suas famílias que se adaptaram de forma
positiva à condição, como forma de aumentar a compreensão sobre HIV e TARV de
forma consistente para motivar adesão de jovens e incentivar a reconexão social.
Já os artigos 6, 7 e 8 trazem diretrizes mais amplas para o apoio a adesão. O
estudo 6 aponta que a melhoria de serviços de apoio ao TARV requer a visão de
que sujeitos e famílias são sistemas a serem compreendidos, além do
reconhecimento dos aparelhos sociais como instrumentais para o apoio à adesão. O
artigo 7 coloca que o estímulo ao diálogo cabe ao profissional, e pode ser feito por
meio do desenvolvimento de estratégias de educação em saúde com foco na
integralidade do cuidado. Já a publicação 8 sugere que devem ser abertos espaços
de promoção de saúde para além do cuidado individual, com possibilidade de
expressão emocional e construção de projetos de vida associados à adesão.
Discussão e Conclusão
A revisão bibliográfica realizada pode nos dar algumas pistas em relação a
alguns dos esforços que já estão sendo feitos para trabalhar o nível familiar de
apoio a adesão. No entanto, de um ponto de vista crítico acerca do tipo de cuidado
sendo ofertado, alguns incômodos surgiram e devem ser explorados.
Primeiramente, constatamos que ainda são muito escassos os estudos que
realmente tragam propostas ou que avaliem estratégias reais de intervenção no
nível familiar; grande parte dos artigos encontrados foram descartados porque
apenas se preocupava em descrever fatores facilitadores e dificultadores de adesão
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

e, a partir disso, dar sugestões superficiais sobre como deveria ser tratada a
questão do apoio. Esse tipo de sugestão geral não deixa de ser importante, mas
contribui pouco para processos de elaboração de políticas públicas se não for
melhor estruturada, testada e avaliada em microssistemas reais.
Também constatamos que grande parte dos estudos encontrados que
tratavam do suporte familiar apenas tratavam de famílias de crianças e
adolescentes soropositivas, com menor disponibilidade de artigos que reconheciam
como importante que famílias de adultos soropositivos sejam envolvidas no TARV.
Consideramos que isso seja problemático, pois a infecção de um membro de uma
família pelo vírus HIV traz consequências para toda a organização desse grupo,
seja essa pessoa um adulto ou uma criança. O contrário também verdadeiro, pois
os rituais familiares e a coesão familiar interferem na forma com que é construído o
ajustamento psicológico e a qualidade de vida de pessoas soropositivas, podendo
facilitar ou dificultar a adesão (Biale, 2014).
Pode-se dizer que colocar a família em segundo plano no tratamento de
adultos é uma consequência da predominância de um referencial ocidental
individualista no meio acadêmico. Em situações em que não há dependência direta
de outras pessoas, como ocorre entre crianças e seus cuidadores, questões sociais
são deixadas de lado e sujeitos são vistos como indivíduos isolados. Essa lógica se
torna ainda mais problemática quando existem tentativas acríticas de aplicá-la a
contextos não-ocidentais, em que as relações interpessoais e familiares são ainda
mais valorizadas culturalmente. Associado a este problema, encontramos outra
tendência preocupante. Pôde ser observado na tabela 2 que houve participação
expressiva de pesquisadores estrangeiros em estudos feitos em contextos de
baixos recursos e, além disso, que todas as 11 publicações que declararam os seus
financiadores contaram com fundos concedidos por entidades estrangeiras. A partir
disso, e levando em conta as relações de poder vigentes entre “países que
financiam” e “países que recebem financiamento”, devemos nos atentar para o teor
das estratégias propostas e de que forma envolvem comunidades e governos locais.
Por exemplo, os estudos que compõe a categoria “Apoio econômico e
qualidade de vida das famílias” propõe um modelo que perpassa pela capacidade
dos governos locais de oferecer assistência alimentícia e financeira para pessoas
soropositivas em situação de vulnerabilidade, que, de um ponto de vista
orçamentário, dificilmente poderia ser feito sem financiamento estrangeiro. E ao
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

mesmo tempo não se preocupam em encontrar desenhos institucionais que, além


de oferecerem assistência, capacitariam comunidades a produzir seus próprios
alimentos, ou que contribuiriam para a inserção de pessoas soropositivas no
mercado de trabalho; exemplo de outras políticas como o Bolsa Família, no Brasil.
Fomentando maior participação e empoderamento de comunidades, e
revisitando políticas públicas multissetorial, essas intervenções poderiam ser mais
duráveis a longo prazo e poderiam contribuir para o fortalecimento de governos
locais. O artigo 1 e os estudos da categoria “Descentralizar serviços para alcançar
famílias” , por outro lado, são mais enfáticos quanto à necessidade de repensar
desenhos institucionais das políticas de saúde de forma multidisciplinar, com o
envolvimento de comunidades e visando fortalecer sujeitos. Da mesma forma que a
publicação 9, da categoria “Questões de gênero na organização familiar” traz a
perspectiva de que o estigma, por ser um fenômeno sócio-cultural, assim como a
organização patriarcal, não pode ser trabalhado apenas no nível individual em
intervenções como a trazida pelo artigo 12, mas requerem todo um aparato de
políticas públicas e iniciativas comunitárias que de fato empoderem mulheres e
transformem as relações de gênero dos países estudados.

Anexos:

Tabela 1. Resultados numéricos de revisão de bibliografia no nível familiar

Nacionalidade Nacionalidade
Nacionalidade dos Nacionalidade dos
N.º Título dos sujeitos pesquisadores N.º Título dos sujeitos pesquisadores
An interdisciplinary study
exploring how health
communication can most
effectively explain Adherence to
Antiretroviral Medication antiretroviral treatment:
(ART) and motivate comprehensive care
adherence among young bades on the care model
1 people África do Sul África do Sul 13 for chronic conditions Brasil Brasil
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Taking hiV Testing to


Families: Designing a Adapting a community-
Family-Based intervention based ART delivery
to Facilitate hiV Testing, model to the patients’
Disclosure, and África do Sul, needs: a mixed methods
intergenerational Reino Unido e researchi n Tete, Bélgica, França e
2 communication África do Sul Estados Unidos 14 Mozambique Moçambique Moçambique
Alteração do paradigma
da gestão dos cuidados à
pessoa com infecção
Atuação do profissional de VIH : um modelo
saúde junto à família com centrado nos cuidados de
3 HIV/AIDS Brasil Brasil 15 saúde primários Portugal Portugal
Motivação e desafios dos
voluntários provedores
de cuidados
domiciliários a doentes
padecendo de SIDA: os
casos das associações
Ahitipaluxene e
Kubatsirana, incluindo
Intervenção psicoeducativa os seus respectivos
para gestantes vivendo com membros localizados nas
HIV/Aids: uma revisão da cidades de Maputo e
4 literatura Brasil Brasil 16 Chimoio. Moçambique Moçambique
HIV/AIDS Competent
Households: Interaction
between a Health-
Enabling Environment
Alimentação de crianças and Community-Based
que convivem com a AIDS: Treatment Adherence
vivências de Support for People
familiares/cuidadores em Living with HIV/AIDS Bélgica e África
5 atividade grupal Brasil Brasil 17 in South Africa África do Sul do Sul
Rationale and design of a
randomized study of
short-term food and cash
assistance to improve
adherence to
antiretroviral therapy
Manejo de risco na gestão among food insecure
do cuidado especializado a HIV-infected adults in EUA, Reino
6 pessoas vivendo com aids Brasil Brasil 18 Tanzania Tanzania Unido e Tanzania
Household Food
Insecurity Associated
with Antiretroviral
Therapy Adherence
Mulheres com AIDS: Among HIV-infected
disponibilidade e satisfação Patients in Windhoek,
7 do suporte social Brasil Brasil 19 Namibia Namibia EUA e Namibia
Adesão de crianças e
Experiência da gravidez em adolescentes à terapia
situação de seropositividade antirretroviral:
para o VIH: Revisão da Brasil e estratégias para o
8 literatura brasileira Brasil Portugal 20 cuidado Brasil Brasil
Peer support and
improved quality of life
Estigma e discriminação: among persons living
experiências de mulheres with HIV on
HIV positivo nos bairros antiretroviral treatment:
populares de Maputo, Moçambique e a randomised controlled
9 Moçambique Moçambique Brasil 21 trial from north-eastern Vietnã Suécia e Vietnã
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Vietnam.

“You Must Take the


Medications for You and
Influence of gender on loss for Me”: Family
to follow-up in a large HIV Caregivers Promoting
treatment programme in HIV Medication
10 western Kenya Kenya Kenya e EUA 22 Adherence in China China EUA e China
Success with
Revelação do diagnóstico antiretroviral treatment
da infecção pelo HIV no for children in Kigali,
contexto do Rwanda: Experience
aconselhamento: a versão with health center/nurse-
11 do usuário Brasil Brasil 23 based care Ruanda Ruanda e Bélgica
Disclosure History Among
Persons Initiating
Antiretroviral Treatment at EUA e
12 Six HIV Clinics in Oromia Ethiopia Ethiopia

Tabela 2. Relação Numeração (1 a 23) x Título do artigo x Nacionalidade dos pesquisadores


x Nacionalidade dos sujeitos.

Referências
AGINS BD (2004). “Promoting Adherence to HIV Antiretroviral Therapy.”In: Aids Institute New York
State Departament of Health.Editing Johns Hopkins University School of Medicine- Division of
infections diseases

BIALE, M. H. S. (2014). “O papel dos rituais familiares e da coesão no ajustamento psicológico e


qualidade de vida de doentes com VIH/Sida TIT.” Dissertação de mestrado, Universidade de
Coimbra, Coimbra, Portugal.

FONSECA, A.F. (2007) “O território e o processo saúde-doença.” Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz.


MARK, M. Health Promotion and Disease Prevention (2000). London: Sage.

MILANI, C. R. S., Lopes, R. N. (2014) “Cooperação Sul-Sul e Policy Transfer em Saúde Pública:
análise das relações entre Brasil e Moçambique entre 2003 e 2012.” Carta Internacional, 9(1), 59-78.

MKHIZE, N. (2004). “Psychology: An African Perspective.” Em: D. Hook (Ed.) Critical Psychology.
República da América do Sul: Creda Communications.

POLEJACK , L. B e Carvalho, W. M. do E. S. (2005). “A adesão ao tratamento em pessoas vivendo


com HIV/aids: barreiras e possibilidades.” Revista de Saúde do Distrito Federal, v. 16, nº 3/4, jul./dez.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

POLEJACK, L. B. (2007). “Compartilhando olhares, diálogos e caminhos: adesão ao tratamento anti-


retroviral e qualidade de vida em pessoas vivendo com HIV/AIDS em Maputo, Moçambique.” Tese de
doutorado, Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil.

POLEJACK, L., e Seidl, E. M. F. (2010). “Monitoramento e avaliação da adesão ao tratamento


antirretroviral para HIV/aids: desafios e possibilidades”. Ciência & Saúde Coletiva, 15(Suppl. 1), 1201-
1208. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232010000700029

Referências da figura 2, por numeração:


1. HICKSON, Warren. 2016.“An interdisciplinary study exploring how health communication can most
effectively explain Antiretroviral Medication (ART) and motivate adherence among young people”.
Tese de Doutorado, Universidade da Cidade do Cabo.

2. VAN ROOYEN, Heidi; ESSACK, Zaynab; ROCHAT, Tamsen; WIGHT, Daniel; KNIGHT, Lucia;
BLAND, Ruth; e CELUM, Connie. 2016.“Taking HIV Testing to Families: Designing a Family-Based
intervention to Facilitate HIV Testing, Disclosure, and intergenerational communication”. Frontiers in
Public Health. 4(154).

3. LEMOS, Társilla; PEREIRA, Eliane; COSTA, Daniela; SILVA, Rose; SILVA, Marcos; OLIVEIRA,
Denize. 2016. “Atuação do profissional de saúde junto à família com HIV/AIDS”. Revista Cubana de
Enfermaria. 4(32).

4. CARVALHO, Fernanda; FARIA, Evelise; GONÇALVES, Tonantzin; MOSKOVICS, Jenny;


PICCININI, Cesar. 2009.“Intervenção psicoeducativa para gestantes vivendo com HIV/Aids: uma
revisão da literatura”. Psicologia Teoria e Prática. 11(3).

5. PADOIN, Stela; PAULA, Cristiane; HOFFMANN, Izabel; VALADÃO, Maria; RODRIGUES,


Andressa; LAGENDORF, Tassiane. 2012. “Alimentação de crianças que convivem com a AIDS:
vivências de familiares/cuidadores em atividade grupal”. Revista de Enfermagem da UFSM. 2(1).

6. LEADEBAL, Oriana; MEDEIROS, Leidyanny; MORAIS, Kalline; NASCIMENTO, João; MONROE,


Aline; NOGUEIRA, Jordana. 2016.”Manejo de risco na gestão do cuidado especializado a pessoas
vivendo com AIDS”. Revista da Escola Enfermagem da USP. 50(5).

7. DURGANTE, Vânia; BUDÓ, Maria; GUIDO, Laura. 2015. “Mulheres com AIDS: disponibilidade e
satisfação do suporte social”. Ciência, Cuidado e Saúde. 14(1).

8. LEVANDOWSKI, Daniela; PEREIRA, Marco; DAS DORES, Silvana; RITT Gabriela; SCHUCK,
Lara; SANCHES, Isabela. 2014. “Experiência da gravidez em situação de seropositividade para o
VIH: Revisão da literatura brasileira”. Análise Psicológica. 32(3).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

9. ANDRADE, Rosário; IRIART, Jorge. 2015. “Estigma e discriminação: experiências de mulheres


HIV positivo nos bairros populares de Maputo, Moçambique”. Cadernos de Saúde Pública. 31(3).

10. OCHIENG-OOKO, Vincent; OCHIENG, Daniel; SIDLE, John; HOLDSWORTH, Margaret;


WOOLS-KALOUSTIAN, Kara; SIIKA, Abraham; YIANNOUTSOS, Constantin; OWITI, Michael;
KIMAIYO, Sylvester; BRAITSTEIN, Paula. 2010. “Influence of gender on loss to follow-up in a large
HIV treatment programme in western Kenya”. Bull World Health Organ. 88(9).

11. MORENO, Diva; REIS, Alberto. “Revelação do diagnóstico da infecção pelo HIV no contexto do
aconselhamento: a versão do usuário”. Temas em Psicologia. 21(3).

12. GADISAL, Tsigereda; TYMEJCZK, Olga; KULKARNI, Sarah; HOFFMAN, Susie; LAHUERTA,
Maria; REMIEN, Robert; YIGZAW, Muluneh; DABA, Shalo; ELUL, Batya; NASH, Denis; MELAKU,
Zenebe. 2016. “Disclosure History Among Persons Initiating Antiretroviral Treatment at Six HIV
Clinics in Oromia”. AIDS and Behavior. 21(1).

13. FIUZA, Maria; LOPES, Emeline; ALEXANDRE, Herta; DANTAS, Patrícia; TERESINHA, Marli;
GALVÃO, Gimeniz; PINHEIRO, Ana. 2013. “Adherence to antiretroviral treatment: comprehensive
care bades on the care model for chronic conditions”. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem.
17(4).

14. RASSCHAERT, Freya; DECROO, Tom; REMARTINEZ, Daniel; TELFER, Barbara; LESSITALA,
Faustino; BIOT, Marc; CANDRINHO, Baltazar; VAN DAMME, Wim. 2014. “Adapting a community-
based ART delivery model to the patients’ needs: a mixed methods researchi n Tete, Mozambique”.
BMC Public Health.

15. SANTOS, Jacinta. 2011. “Alteração do paradigma da gestão dos cuidados à pessoa com
infecção VIH : um modelo centrado nos cuidados de saúde primários”. Dissertação de Mestrado.
Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa.

16. NGOMANE, Joaquim. 2015. “Motivação e desafios dos voluntários provedores de cuidados
domiciliários a doentes padecendo de SIDA: os casos das associações Ahitipaluxene e Kubatsirana,
incluindo os seus respectivos membros localizados nas cidades de Maputo e Chimoio”. Dissertação
de Mestrado, Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane.

17. MASQUILIER, Caroline. WOUTERS, Edwin; MORTELMANS, Dimitri; VAN WYK,Brian;


HAUSLER, Harry; VAN DAMME, Wim. 2016. “HIV/AIDS Competent Households: Interaction between
a Health-Enabling Environment and Community-Based Treatment Adherence Support for People
Living with HIV/AIDS in South Africa”. Plos One. 11(3).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

18. MCCOY, Sandra; NJAU, Prosper; CZAICKI, Nancy; KADIYALA, Suneetha ; JEWELL, Nicholas;
DOW, William; PADIAN, Nancy. 2015. “Rationale and design of a randomized study of short-term
food and cash assistance to improve adherence to antiretroviral therapy among food insecure HIV-
infected adults in Tanzania”. BMC Infeccious Diseases. 15(490).

19. HONG, Steven; FANELLI, Theresa; JONAS, Anna; GWESHE, Justice; TJITUKA, Francina;
HEEHAN, Heidi; WANKE, Christine; TERRIN, Norma;JORDAN, Michael TANG, Alice. 2014.
“Household Food Insecurity Associated with Antiretroviral Therapy Adherence Among HIV-infected
Patients in Windhoek, Namibia”. National Institutes of Health. 67(4).

20. CARDIM, Mariana; NORTE, Monique; MOREIRA, Martha. 2013. “Adesão de crianças e
adolescentes à terapia antirretroviral: estratégias para o cuidado”. Revista de Pesquisa Cuidado é
Fundamental. 5(5).

21. VAN TAM, Vu; LARSSON, Mattias; PHARRIS, Anastasia; DIEDRICHS, Björn; NGUYEN, Hoa;
NGUYEN, Chuc; HO, Phuc; MARRONE, Gaetano; THORSON, Anna. 2012. “Peer support
and improved quality of life among persons living with HIV on antiretroviral treatment: a randomised
controlled trial from north-eastern Vietnam”. Health and Quality of Life Outcomes. 10(53).

22. FREDRIKSEN-GOLDSEN, Karen; SHIU, Cheng-Shi; STARKS, Helene; CHEN, Wei-Ti; SIMONI,
Jane; KIM, Hyun-Jun; PEARSON, Cynthia; ZHAO, Hongxin; ZHANG, Fujie. 2010. “`You Must Take
the Medications for You and for Me`: Family Caregivers Promoting HIV Medication Adherence in
China”. AIDS Patient Care and STDs. 25(12).

23. VAN GRIENSVEN, Johan; DE NAEYER, Ludwig; UWERA, Jeanine; ASIMWEE, Anita; GAZILLE,
Claire; REID, Tony. 2008. “Success with antiretroviral treatment for children in Kigali, Rwanda:
Experience with health center/nurse-based care”. BioMed Central Pediatrics. 8(39).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

POR QUE NOS TORNARAM CRÔNICOS? O DISCURSO DA CRONICIDADE


NA ATUAL CONFIGURAÇÃO DO DISPOSITIVO DA AIDS NO BRASIL1

Lucas Pereira de Melo 2

Resumo
A partir de etnografia virtual que vem sendo conduzida em uma rede social na
internet e da experiência do autor como pessoa vivendo com HIV/aids (PVHA),
busca-se analisar o discurso da cronicidade, bem como seus efeitos, na atual
configuração do dispositivo da aids no Brasil. A disponibilidade e o acesso a
medicamentos antirretrovirais no Sistema Único de Saúde possibilitaram a
construção social de uma “aids de antes” (doença fatal) e de uma “aids de
agora” (doença crônica). Nesse sentido, argumenta-se que tal deslocamento se
deu a partir da produção de um discurso da cronicidade sobre a condição de
viver com HIV/aids que tem possibilitado a operação de tecnologias do eu
(automonitoramento, autovigilância, autodisciplina, autorresponsabilização,
autocontrole, adesão e autosilenciamento) próprias das doenças compridas.
Em tempos de maturidade da epidemia, o suposto caráter de longa duração
dessa infecção tem resultado, por exemplo, no silenciamento e invisibilidade
das PVHA, em sociabilidades virtuais mediadas (ou não) pelo anonimato, na
produção de novas identidades clínicas (indetectável, soropositivo, pessoa
vivendo) e no borramento dos marcadores sociais da diferença. Diante disso, a
partir desse caso particular, este estudo discute as intencionalidades do
discurso da cronicidade e seu papel nas ações e estratégias do dispositivo da
aids. Faz-se isso por meio do questionamento do estatuto de verdade dessa
adjetivação e da ratificação do caráter transmissível da infecção e das
condições de vulnerabilidade que determinam socialmente sua nova fase de
expansão, em termos epidemiológicos, na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Experiência com adoecimentos e sofrimentos de longa
duração; HIV/aids; Políticas de saúde; Dispositivo da aids; Cronicidade.

1
Uma versão inicial deste ensaio foi apresentada na mesa redonda “Aids, sexualidade e
ativismo: 35 anos de epidemia e lutas sociais” durante as atividades do “Colóquio Saúde,
Sexualidades e Ativismo Biossocial: perspectivas e estudos antropológicos” promovido pelo
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) nos dias 05 e 06 de outubro de 2017. Sou grato, portanto, aos professores
Carlos Guilherme Octaviano Valle, Mónica Franch, Luís Felipe Rios e Rozeli Porto cujas
discussões contribuíram para o adensamento das reflexões.
2
Doutor em Ciências pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Atualmente é
estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal da Paraíba e Professor Adjunto, área
de Saúde Coletiva, no curso de Medicina da Escola Multicampi de Ciências Médicas da UFRN,
campus Caicó. Professor do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRN,
campus Santa Cruz. Líder do Laboratório de Pesquisas Sociais em Medicina e Saúde –
LAMES/UFRN/CNPq.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

O TEMPO QUE PERCORRE O MEU SANGUE

“Tenho sorte por estar vivendo com o HIV neste momento da história,
quando a cronicidade tem, gradativamente, roubado o lugar da
sentença de morte. Mas, ainda assim, o estigma e a moralidade que
cercam as pessoas que, como eu, vivem com o HIV nos rouba o
direito do acalanto da família. A cada dia, tenho me convencido de
que viver com o HIV é uma condição para si e uma ‘doença do outro’!
Espero o dia em que o tempo que percorre o meu sangue faça-me
sentir forte o bastante para enfrentar esse ‘outro’”. (Caicó-RN, 15 de
agosto de 2016. Diário pessoal do autor).

As análises apresentadas neste texto são produto de reflexões que


emergem cotidianamente a partir da minha condição de viver com o Vírus da
Imunodeficiência Humana (HIV) e, depois do diagnóstico 3, de pesquisador
sobre o tema, a partir de uma perspectiva socioantropológica sobre os
adoecimentos e sofrimentos de longa duração 4. Nesse sentido, seu objetivo é
analisar o discurso da cronicidade, bem como seus efeitos, na atual
configuração do dispositivo da aids no Brasil.
Como narrado em meu diário, o discurso da cronicidade passou a
ocupar um duplo lugar em minha vida: primeiro, como objeto teórico; depois,
como modelador da minha experiência com o HIV, sinalizada e reforçada a
cada encontro clínico com os profissionais da saúde, desde o momento do
diagnóstico.
Lembro-me, por exemplo, do acolhimento oferecido pelo enfermeiro ao
comunicar o meu resultado do teste rápido. Ele enfatizou que aquele
diagnóstico já não era uma “sentença de morte”, acionando a ideia da infecção
pelo HIV como uma “nova diabetes” (Zamboni, 2015:70). Em seguida, me abriu
a “porta de um segundo armário” 5 no qual vivi por 18 meses: o armário do
silêncio/segredo. Este “armário” se colocou, na minha experiência, como
espaço e tempo subalternos, configurando-se como um “mundo do segredo”

3
Fui diagnosticado em 30 de maio de 2015 após testagem rápida. Resolvi fazer o teste após
um amigo ter sido diagnosticado naquele mesmo mês. Além disso, saber da condição desse
amigo acionou as memórias de um teste rápido que eu mesmo fiz em mim, em abril de 2014,
durante um plantão num hospital universitário, cujo resultado considerei como falso-negativo.
Com isso, mantive o teste em segredo e não busquei uma confirmação do seu resultado,
seguindo a vida como se nada tivesse ocorrido.
4
Já trabalhava com este referencial desde meu Doutorado quando estudei pessoas que vivem
com diabetes tipo 2. Posteriormente, pesquisei a experiência de pessoas que vivem com a
Síndrome de Berardinelli-Seip no sertão do Rio Grande do Norte.
5
Segundo, pois o primeiro armário em que vivi foi o do silêncio/segredo/negação da
homossexualidade.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

(Simmel, 2009), no qual um conjunto de afetos, sentidos e estratégias passam


a ser produzidas e constantemente atualizadas. Nesse armário-mundo, me
sentia um “colega de quarto” de Gregor Samsa, protagonista do clássico
romance de Franz Kafka (1997). Mais que isso, o armário-mundo do
silêncio/segredo compunha o cardápio de recomendações e orientações dos
profissionais da saúde como se fosse parte do tratamento. Por isso, num
primeiro momento, o discurso da cronicidade se colocou para mim como um
privilégio.
Em meio aos meus agenciamentos iniciais, ganhou destaque a busca
por compartilhamento de experiências com pessoas que viviam há mais tempo
com o HIV. Em cada consulta médica, em cada artigo biomédico lido, em cada
situação social que protagonizava e nas quais o HIV ganhava relevo, ficava
nítido para mim a insuficiência do saber da biomedicina como matriz de
inteligibilidade. Nessa tripla condição de pessoa vivendo com HIV/aids
(PVHA) 6-paciente-pesquisador, as estratégias biopolíticas de governo dos
corpos abjetos, de suas sexualidades e práticas sexuais dissidentes eram
notórias nas práticas médico-sanitárias e nas formas de produção de cuidado
em saúde que elas suscitavam (Zago & Santos, 2013; Pelúcio & Miskolci,
2009). Foi tentando resistir a essas formas de governo e gerenciamento da
vida que conheci e passei a “frequentar” grupos e sites em redes e mídias
sociais.
Esses espaços se configuraram, em minha experiência, como um
“mundo social da aids” (Valle, 2008:660-1), agora virtualizado, e me ofereceram
uma rede de sociabilidade e de solidariedade na qual pude conhecer/adicionar
pessoas, encontrar apoio social, aprender, compartilhar experiências e práticas
de cuidado, elucidar dúvidas, produzir estratégias de enfrentamento do estigma
e preconceito – todas essas relações mediadas pela virtualidade de uma rede
social na internet 7. O melhor disso foi poder acessar essa rede estando, ainda,

6
Cumpre destacar a mudança recentemente proposta pelo Ministério da Saúde nesta sigla. Em
vez de PVHA, a política de saúde agora traz a PVHIV (pessoa vivendo com HIV). Alguns
grupos do movimento social de aids têm se posicionado contrários a tal mudança, uma vez que
se trata de estratégia de apagamento da aids nos documentos e discursos oficiais.
7
É importante destacar que na última década, o número de grupos de apoio/ajuda mútua
organizados por Organizações Não Governamentais em aids (ONG/aids) é cada vez menor.
Em cidades pequenas, contextos rurais e etnicamente diferenciados essa ausência pode ser
ainda mais sentida. Sobre o mundo social da aids nos anos 1990-2000, ver Valle (2008) e
Pelúcio (2009).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

dentro do meu armário-mundo. Após seis meses do diagnóstico, passei a


conhecer, pessoalmente, outras PVHA (muitas delas ativistas), o que
possibilitou outros agenciamentos, outras narrativas, outros posicionamentos
no mundo.
Soma-se a isso meus estudos sobre a temática que eram suscitados por
essas interações virtuais e as sustentavam. Esses estudos contribuíram para a
construção de uma narrativa com o adoecimento marcada pela recusa e
criticidade, o que me estimulou a se debruçar sobre o tema/condição, também,
como um pesquisador. Portanto, é a partir da vivência desse triplo lugar
(PVHA-paciente-pesquisador) que pesquiso e escrevo. É nessa posição que,
com “o tempo que percorre meu sangue”, a cronicidade passa a ser
compreendida, por um lado, como privilégio, mas, por outro, como um
problema que requer análises e aprofundamentos.

“QUERIA ALGUÉM PARA CONVERSAR”: REDES DE SOCIABILIDADE E


SOLIDARIEDADE NUMA REDE SOCIAL NA INTERNET

Minhas participações em redes e mídias sociais na internet têm sido um


espaço privilegiado para tecer redes de sociabilidade e solidariedade com
outras PVHA. Nessa perspectiva, esse espaço se tornou o campo de uma
etnografia virtual (Hine, 2004) em curso desde 2016. O meu campo tem sido
um grupo virtual secreto, administrado por uma Rede de PVHA no Facebook. O
grupo conta com mais de dois mil membros e inclui PVHA, pessoas que
convivem com o HIV (sobretudo por meio de relações sorodiscordantes) e
profissionais da saúde. A Rede foi criada em 2012. Na descrição oferecida no
site da Rede constam seus objetivos:
“A Rede [...] é um grupo virtual secreto no Facebook e
tem o objetivo de acolher, orientar, fortalecer e ajudar
mutuamente pessoas que vivem e convivem com HIV.
Nesse espaço, os membros podem obter informações
sobre a vida após o diagnóstico positivo para o HIV, fazer
amizade, compartilhar suas dúvidas, medos, experiências,
vitórias, conquistas e histórias. Dentro desse espaço,
você poderá encontrar outras pessoas que vivem
situações parecidas e pode encontrar ajuda através das
experiências” (site da Rede, acesso em 04 de outubro de
2017).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

A Rede faz parte do engajamento de seu fundador como PVHA, ativista,


profissional de comunicação social e integrante da equipe técnica do
Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, onde
atua em ações de prevenção e comunicação em saúde. A Rede é comporta
por:
“Site com informações gerais e personalizadas sobre o
HIV e aids, além de histórias dos membros do grupo. O
conteúdo do site foi gerado pelos membros do grupo e
adaptados para uma linguagem simples e adequada à
maioria das pessoas; Página Super Indetectável [página
no Facebook] é onde os interessados poderão encontrar
as últimas novidades e notícias sobre o mundo do HIV e,
também, fazer perguntas, comentários e solicitar o convite
para a entrada no grupo secreto; Grupo virtual secreto
onde os membros podem compartilhar seus posts apenas
com os outros membros, garantindo assim o sigilo, mas
permitindo que outras pessoas que vivem e convivem
com o HIV possam comentar e praticar a ajuda mútua”
(site da Rede, acesso em 04 de outubro de 2017, grifos
meu).

Além desses elementos, a Rede conta com colaboradores (nem todos


são PVHA) que também mantém páginas e canais em redes e mídias sociais.
Meu ingresso no grupo virtual secreto ocorreu em novembro de 2016. Conheci
o grupo através de uma ativista norte-rio-grandense. Fiz a solicitação de
participação no grupo na página da Rede e, após preenchimento de um
formulário on-line com informações de identificação e motivações, fui aprovado
e tive acesso ao mesmo.
A nossa participação como membros do grupo se dá por meio de
postagens de mensagens, textos, fotos, vídeos, enquetes e, sobretudo, de
comentários e respostas às postagens. Apesar da existência de moderadores,
seus papeis se concentram na observância das regras de uso do grupo 8. Estas

8
Desde que ingressei no grupo, a participação dos moderadores e administradores é muito
pequena diante do volume de postagens/comentários e de temáticas. Em geral, eles intervêm
em situações de conflitos e discussões (as “tretas”) entre membros, em comunicados que
visam reiterar as regras de convivência no grupo, em postagens administrativas ou de
recepção/convite de novos membros e na divulgação de ações dos colaboradores da Rede em
outras redes e mídias sociais. Em algumas postagens eles são incitados a “falar”,
principalmente sobre temas que problematizam a atual situação da política pública de aids e a
atuação do Ministério da Saúde – eu mesmo já fiz isso algumas vezes, porém seus
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

últimas são norteadas pelos seguintes valores e ações: colaboração,


acolhimento, fortalecimento, ajuda mútua, privacidade, liberdade de falar sobre
o viver/conviver com o HIV e o respeito.
Nesse contexto, o conteúdo das postagens está centrado em aspectos
da experiência de viver com o HIV/aids, notadamente aqueles relacionados à
adesão à medicação, a relacionamentos afetivo-sexuais, a adoecimentos e
sofrimentos derivados (principalmente isolamento social, solidão afetivo-sexual
e depressão), a estratégias para manter o silêncio/segredo ou desvelar a
sorologia, preconceitos e discriminação. Dessa forma, os conteúdos confluem
para a afirmação (não sem tensionamento por alguns membros) do imperativo
moral de adesão ao tratamento e, consequentemente, de responsabilização da
PVHA para dar conta disso.
Apesar do caráter de ajuda mútua ser marcante no conteúdo das
discussões, são notórios o alinhamento e o reforço dos discursos médico-
sanitários e as formas de cuidado que eles engendram 9. Reflexo disso é a
regra de uso do grupo que proíbe “a defesa e compartilhamento de qualquer
tratamento anti-HIV alternativo que indique a descontinuidade (parada) do
tratamento com antirretrovirais”.
Essas práticas se contrapõem, em alguma medida, à definição desses
grupos de ajuda mútua, enfatizada nos estudos socioantropológicos, como
espaços que valorizam um saber de experiência que, explicita ou
implicitamente, desafiam a autoridade dos profissionais da saúde, produzindo
resistência à dominação de suas vidas pelos saberes e práticas biomédicas
(Kelleher, 1994:113-4). Com isso não quero dizer que os membros do grupo
reproduzam de forma irrefletida tais orientações, pelo contrário, busco destacar
um “tom conciliatório” entre as normas do grupo e as ações dos sujeitos cujos
resultados, em todo caso, é a produção de estratégias próprias e criativas.
Essas questões trazidas pelo campo, associadas à minha experiência
como PVHA, passaram a se colocar como evidências de possíveis efeitos de
um discurso da cronicidade introduzido e atualizado no contexto da política e

posicionamentos (quando há) são apaziguadores e de se manterem “encima do muro”. Por


questões ética de sigilo, não exponho aqui algumas dessas postagens.
9
O que nos leva a questionar as relações entre a vinculação do fundador da Rede ao
Ministério da Saúde, suas finalidades com a criação do grupo virtual secreto e seus efeitos nas
interações entre seus membros e o conteúdo dessas interações.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

da atenção à saúde em HIV/aids a partir dos desdobramentos e importantes


conquistas do movimento social de aids e da comunidade acadêmica. Destaco
aqui o acesso à terapia antirretroviral (TARV) no Brasil a partir de 1996 e a
modificação do protocolo clínico brasileiro que instituiu, a partir de 2013, a
prescrição da TARV para todas as pessoas diagnosticadas com sorologias
reagentes para HIV que procuram os serviços especializados no Sistema Único
de Saúde (SUS) (Brasil, 2013:63-4).
Esse contexto político-sanitário permitiu à biomedicina construir uma
trama discursiva em torno da cronicidade que produz sujeitos, identidades,
práticas e relações de saber-poder. Partindo da compreensão foucaultiana que
define o discurso como práticas que formam sistematicamente os objetos de
que falam, como “o lugar onde se forma ou se deforma, onde aparece e se
apaga uma pluralidade emaranhada – ao mesmo tempo superposta e lacunar –
de objetos” (Foucault, 2010a:54), o discurso da cronicidade implica formas de
repartição e sistemas de dispersão que se manifestam não por meio de um
encadeamento lógico, mas pela heterogeneidade, repartição, jogos de
inclusão/exclusão, transformação, revezamento, posição, substituição.
Apesar disso, os estudos socioantropológicos brasileiros sobre
experiência com o adoecimento em PVHA 10 têm se centrado mais na descrição
e análise dos aspectos dessa experiência e dos processos de subjetivação
dessas pessoas e pouco têm se questionado a respeito do estatuto de verdade
dessa cronicidade, ou mesmo das intencionalidades e efeitos produzidos pelo
discurso que a toma como elemento-chave. Dessa forma, o que se questiona
aqui são as intencionalidades/papeis do discurso da cronicidade, quais sujeitos,
objetos e efeitos ele produz nas ações e estratégias do dispositivo da aids no
Brasil a partir dos anos 2000?

“OBA! ESTOU INDETECTÁVEL!” CRONICIDADE E DISPOSITIVO DA AIDS


NO BRASIL

Para Foucault (2010b:244), o dispositivo em sua obra abrange as redes


e jogos de poder-saber por meio das quais são postos em operação:

10
Tal afirmação se fundamenta nos resultados de uma revisão sistemática dessa literatura em
fase de finalização por um grupo de pesquisadores vinculados ao LAMES/UFRN/CNPq.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

“(...) um conjunto decididamente heterogêneo que


engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicos. Em suma, o dito e o não
dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a
rede que se pode estabelecer entre estes elementos”
(Foucault, 2010b:244).

Nessa perspectiva, o dispositivo é um acontecimento, cuja emergência


histórica visa atender a uma urgência. Logo, não se trata de algo abstrato, uma
vez que suas práticas e jogos de poder-saber produzem efeitos diversos
(Foucault, 2010b:243-7). García Fanlo (2011:2) destaca os processos de
subjetivação acionados pelo dispositivo que inscrevem nos corpos dos sujeitos
um modo e uma forma de ser, a partir de “um conjunto de práxis, saberes,
instituições, cujo objetivo consiste em administrar, governar, controlar, orientar,
dar um sentido que se supõe útil aos comportamentos, gestos e pensamentos
dos indivíduos” (:2).
Na literatura socioantropológica, a epidemia de HIV/aids, bem como as
respostas políticas engendradas em cada sociedade têm sido consideradas
como constitutivas de um “dispositivo da aids”, cuja emergência, feixes de
relações e de práticas têm dimensões transnacionais que se particularizam aos
contextos locais. No Brasil, o livro do antropólogo Néstor Perlongher “O que é
aids” (Perlongher, 1988) se coloca como uma das primeiras e mais importantes
sistematizações desse dispositivo – embora tenha se tornado uma bibliografia
quase esquecida (Pelúcio & Miskolci, 2000:136).
Por razões do espaço limitado para este texto, me deterei mais na
configuração atual do dispositivo da aids no Brasil e nos jogos de
inclusão/exclusão, transformação, revezamento, posição, substituição
produzidos e acionados em sua relação com aquele dispositivo que operou nos
anos 1980-90 11. O que pretendo destacar aqui são os arranjos e atualizações
do dispositivo da aids produzidos e justificados pelo discurso da cronicidade em
construção desde os anos 2000 12. Parto do pressuposto de que tal discurso

11
Sobre o dispositivo da aids nessas décadas, ver Pelúcio & Miskolci (2009).
12
Tais análises não negam que a cronicidade para o HIV é uma conquista das lutas sociais
que se travaram desde a década de 1980 e cujos resultados é uma possibilidade de vida mais
digna para as PVHA e uma estratégia de enfrentamento do estigma e dos preconceitos.
Porém, o que se destaca aqui são os usos sociais e políticos que tal conquista também passa
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

entra em cena para dar conta das transformações do modelo preventivo da


aids num contexto em que a infecção/epidemia se transforma em uma
condição com prognóstico “positivo” permitindo uma vida qualificada e mais
duradoura às PVHA. Ou seja, as tecnologias médicas e sanitárias empregadas
nos anos 1980-90, fortemente centradas em campanhas de prevenção, dão
lugar a outras tecnologias cujo objeto-alvo é o sujeito que vivencia um
adoecimento comprido, como tem sido problematizado na literatura
socioantropológica (Charmaz, 1983; Ferzacca, 2000; Rose, 2001; Pierret,
2003; Canesqui, 2007; Lopes, 2015).
Com base no conteúdo das postagens/comentários dos membros do
grupo virtual secreto da Rede e da minha experiência como PVHA, esse
retorno ao sujeito em curso na atual configuração do dispositivo da aids no
Brasil remodelou as “identidades indizíveis” abordadas por Pollak & Schiltz
(1987) fortemente atrelada a uma responsabilização produtora de culpa que se
encerrava com a morte iminente, na maioria dos casos. Nesse sentido,
concordo com Lopes (2015) e Rose (2001) quando afirmam que está em curso
uma construção de um sujeito responsável por sua saúde, principalmente em
sociedades com perfis epidemiológicos com altas taxas de prevalência de
doenças compridas – como é o caso do Brasil nos últimos 20 anos.
Nessa perspectiva, tal processo de responsabilização implica na
produção cotidiana da pessoa adoecida, num processo de introjeção e
incorporação do adoecimento ao self do sujeito. Exemplos disso são a
produção da pessoa alcoólica em grupos de Alcoólicos Anônimos (Campos,
2010) e da pessoa diabética em uma associação paulistana (Lopes, 2010).
Nessas etnografias, esses processos de subjetivação ocorreriam em contextos
de ajuda mútua e grupos de educação em saúde, ao passo que, no caso do
HIV/aids, há relatos que associam esses processos a espaços de ativismo e
militância (Valle, 2008; 2015; Pelúcio, 2009; Cunha, 2012; Zago & Santos,
2013).
No grupo virtual secreto da Rede circula e se atualiza um conjunto de
discursos e práticas, mediadas pela noção biomédica de cronicidade, que
produz e reforça esses processos de subjetivação do qual somos os objetos-

a ter dentro do dispositivo da aids. Os nossos interesses na cronificação da infecção são


sabidos, resta-nos questionar os deles!
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

alvo no “mundo do cuidado em HIV/aids” – seria o grupo um dos pontos na


rede de poder-saber do dispositivo da aids? Dessa forma, essa produção da
PVHA, na atual conformação do dispositivo da aids no Brasil, emprega
tecnologias médico-sanitárias específicas para pessoas que vivem com
adoecimentos e sofrimentos compridos – algo novo, portanto, quando
analisamos as intervenções psicossociais e médicas nas décadas de 1980-90.
Sendo assim, destacam-se as tecnologias do eu que atuam para
conformar essa PVHA-responsável-aderente ao TARV, como: autoperitagem,
autovigilância, autodisciplina, autorresponsabilização, autocontrole,
autosilenciamento. Uma dupla responsabilidade que recai sobre si mesmo e,
principalmente, nas relações com outros – e não qualquer relação, mas
aquelas de ordem afetivo-sexual. Esses “soropositivos de aparência saudável”,
novo personagem em tempos de cronicidade, é incitado à clausura do armário-
mundo do silêncio/segredo produzido num contexto de restrição discursiva
sobre a aids (Inácio, 2016) e de desmobilização do movimento social, cujos
comportamentos e práticas de autocuidado são regularmente postas em
visibilidades pelos exames (carga viral, CD4, testes bioquímicos). Sofistica-se,
assim, o modelo preventivo que agora passa a ser “prevenção combinada”.
Para finalizar, elenco alguns dos possíveis efeitos que decorrem de
dispositivo da aids como adoecimento comprido: 1) silenciamento, invisibilidade
e morte simbólica das PVHA; 2) ampliação dos espaços virtuais de
sociabilidade, uma vez que não exigem saídas do armário-mundo do
silêncio/segredo; 3) produção/atualização de identidades clínicas (como a
PVHA indetectável que nos remete à pessoa assintomática nos anos iniciais da
epidemia); e 4) o borramento/negação dos marcadores sociais da diferença na
medida em que se afirma que hoje vivemos bem com o HIV. Cumpre dizer que
hoje quem vive bem hoje com o HIV tem raça, classe, gênero, identidade de
gênero, geração, etc. Esses marcadores que se diluem e tendem a
desaparecer no discurso homogeneizador da política de saúde.

REFERÊNCIAS
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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

HIV/AIDS, ATIVISMO E CUIDADO EM SAÚDE: O OLHAR E A EXPERIENCIA


DE CIDADÃS POSITHIVAS, NO RIO DE JANEIRO.
Luciana Corrêa de Sena Cajado 1
Simone Souza Monteiro 2
Resumo:
A sociedade civil organizada guarda importante papel histórico na conquista de
direitos no campo da aids relativos às políticas de cuidado. Diante do atual
recrudescimento de intervenções biomédicas, este trabalho visa compreender
motivações e significados atribuídos ao ativismo e seus desdobramentos no
cuidado em saúde e convívio com o diagnóstico, a partir da experiência de oito
mulheres soropositivas, integrantes do Movimento Nacional das Cidadãs
Posithivas (MNCP), no Rio de Janeiro. O MNCP é uma rede nacional de
mulheres soropositivas que luta pela mobilização e fortalecimento desses
atores. Trata-se de um estudo qualitativo, realizado de julho 2014 e junho de
2015, que envolveu levantamento documental, observação direta das
atividades do MNCP e entrevistas individuais. O diagnóstico do HIV das
mulheres entrevistadas ocorreu na década de 1990 e as biografias foram
marcadas por desigualdades sociais e de gênero. A necessidade de suporte e
do pouco acolhimento nos serviços de saúde explica a entrada no movimento
social. Esse cenário desdobra-se de forma positiva na reconstrução da
identidade social pós-diagnóstico, no acesso a informação sobre o cuidado e
no apoio, caracterizando a permanência no movimento. Para algumas, o
movimento interfere negativamente no cuidado pelo tempo dedicado às tarefas
do coletivo. Observou-se pouca abordagem de pautas do movimento feminista,
do enfrentamento do estigma da aids e das condições de vulnerabilidade ao
HIV, pelo MNCP e de sua contribuição na construção de políticas. Os achados
estimulam reflexões sobre potencialidades e desafios da participação política

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé – Faculdade de Medicina;
Consultório na Rua/SMS-RJ.
2
Fundação Oswaldo Cruz – Instituto Oswaldo Cruz/LEAS.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

do movimento social de aids, num contexto de crise, bem como à mudança no


modelo de abordagem nos cenários de assistência.
Palavras-chave: HIV; gênero e saúde; apoio social; mulheres.

Introdução

Historicamente, no contexto da epidemia no Brasil e no mundo, a


atuação do movimento social das pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA)
materializaram-se enquanto “intervenção estrutural, organização comunitária,
construção de cidadania, ativismo político, ação jurídica, defesa dos Direitos
Humanos, e tudo isso passa a ser entendido como parte indissociável das
ações de prevenção e cuidado” (Ayres et al, 2013, p. 425), garantindo direitos
constitucionais.
Em anos recentes, a politica global e nacional de controle da aids tem
enfatizado a ampliação do acesso ao teste e a adesão às tecnologias de
prevenção e tratamento das PVHA, em detrimento de ações voltadas para o
enfrentamento do estigma da aids e das desigualdades sociais e de gênero
associadas a vulnerabilidade ao HIV. Nesse cenário, ocorre um
enfraquecimento da capacidade de ação e manutenção das respostas do
movimento social de aids, a partir da segunda década do século XXI,
principalmente pela redução de recursos e investimentos nesse setor. As
organizações tendem a ser vistas como pontos de apoio e prestação de serviço
às demandas das políticas criadas pelos governos, como é o caso da
ampliação da testagem, para tratamento e prevenção, no Brasil. (Aggleton,
Parker, 2015; Kippax, Stephenson, 2012).
Reconhecendo a importância histórica das organizações na sociedade
civil nas respostas sociais ao HIV, este trabalho visa refletir sobre mulheres
integrantes do movimento social da aids. Tem-se o propósito de compreender
as motivações e significados atribuídos ao ativismo em uma organização de
mulheres e seus desdobramentos no cuidado em saúde, individual e
coletivamente, e no convívio com o diagnóstico. Para isso, o trabalho analisa a
biografia de oito mulheres com HIV/aids, integrantes do Movimento Nacional
das Cidadãs Posithivas (MNCP), no Rio de Janeiro.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

O MNCP configura-se enquanto uma rede nacional de mulheres


soropositivas que se destaca, no país, pelo recorte de gênero e pela
valorização da participação popular e promoção de saúde. Surgiu como
organização frente ao aumento da infecção entre as mulheres. Além do
trabalho de prevenção da epidemia no Brasil, o fortalecimento dessas mulheres
no movimento é pautado na reconstrução de identidades, troca de informações
e experiências, e melhora da qualidade de vida (MNCP, 2007, p. 01).
O movimento e a trajetória de suas integrantes podem fornecer aos
dispositivos da saúde elementos para refletir e orientar o desenvolvimento de
outras práticas de cuidado. Permite questionar, por exemplo, o que compõe
este contexto que ainda dificulta a mudança da situação de saúde das
mulheres e que, mantendo-se e reatualizando-se, coloca-as em situação de
vulnerabilidade. Possibilita também indagar acerca da dificuldade do acesso
das mulheres e da população aos avanços no campo do diagnóstico,
prevenção e tratamento do HIV, frente a persistência do estigma relacionado
ao HIV/aids (Parker, 2013; Monteiro et al., 2013).
Com o objetivo de pensar de que modo a entrada no movimento social
impacta no cuidado em saúde, cabe salientar que a perspectiva de cuidado
aqui adotada inclui as atividades e procedimentos no sentido comum da
palavra, mas, principalmente, a concepção proposta por Ayres (2004). O autor
apresenta um modelo diferenciado e mais ampliado de pensar e executar as
práticas de saúde e de cuidado. Essa abordagem inclui ainda o olhar sobre o
“cuidado de si” (Ceccarelli, Barreto, 2014) e, nesse sentido, o autocuidado aqui
é tido como “o desempenho ou a prática de atividades executadas pelos
indivíduos em seu próprio benefício para manter a saúde, a vida e o bem-
estar”. Para tanto, a pessoa deve ter capacidades e condições mínimas para
desenvolvê-las (Barroso et al., 2010, p. 563).

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, orientado pelos fundamentos do


interacionismo simbólico. Buscou-se valorizar os significados como resultantes
da interação social e controlados por processos interpretativos, utilizados na
vida cotidiana. Parte-se da premissa de que os seres humanos agem em
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

relação às coisas com base nos seus significados e que os significados


resultam da interação social e são controlados por processos interpretativos,
utilizados na vida cotidiana. Compreende-se assim a flexibilidade dos papéis
sociais, entendo-os mutáveis a partir da demanda social exigida na atuação
cotidiana do ator social. Nessa perspectiva, as mulheres participantes são aqui
identificadas enquanto atores sociais (Flick, 2009; Carvalho; Borges; Rego,
2010; Goffman, 1975).
O trabalho de campo iniciou com a aproximação a lideranças do MNCP,
no Rio de Janeiro, na sede da ONG que apoia o movimento e onde as
participantes fazem encontros regulares. De julho de 2014 e julho de 2015,
realizaram-se conversas informais e observações das rodas de conversa e
reuniões do grupo, o que oportunizou a construção de laços de confiança,
acompanhamento das atividades do MNCP, aproximação com as mulheres da
rede e acesso a documentos. A inserção no campo consentiu a convivência
nas atividades e favoreceu a apreensão de dados não explicitados, os quais
demandam permanência no campo para surgir (Velho, 1994). Isso caracterizou
a observação como ‘participante’.
As mulheres entrevistadas individualmente foram selecionadas a partir
de indicações de uma informante (liderança do movimento) e das próprias
participantes da pesquisa. Foram incluídas aquelas maiores de 18 anos,
diagnosticadas há pelo menos dois anos e com participação no MNCP. Das
dez convidadas, oito aceitaram participar, sendo duas fundadoras do
movimento. Com base nos critérios de saturação do sentido (Gaskell, 2002) e
nos registros de observação, tal universo foi considerado suficiente para
responder as questões do estudo. Nas entrevistas semiestruturadas, foram
abordados: perfil social, relações afetivo-sexuais, conhecimento sobre aids,
práticas de cuidado, discriminação, apoio social e trajetória no MNCP e
significados atribuídos ao movimento. As entrevistas foram gravadas e as
impressões das observações anotadas em diário de campo. A análise dos
dados foi orientada pelo modelo de Análise de Conteúdo Temática (Gomes,
2013). O recorte aqui apresentado faz parte de uma pesquisa mais ampla,
aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da
ENSP/Fiocruz (1.010.090/41867415.40000.5240).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Resultados e Discussão

Sobre as mulheres
A faixa etária das oito entrevistadas variou entre 38 a 79 anos, com
prevalência de idade superior a 50 anos. Entre suas biografias, destacam-se
marcas das desigualdades sociais e de gênero, como experiências de violência
doméstica, dependência econômica em relação ao parceiro, dificuldade de
divisão de tarefas domésticas e sobrecarga de trabalho, acrescida de
responsabilidades de cuidados de familiares não compartilhados.
A maioria reside na Zona Norte do Rio de Janeiro. Duas concluíram o
ensino superior; cinco, pelo menos o ensino médio; uma não concluiu o
fundamental. Observa-se possível relação entre a escolaridade e a inserção no
mercado de trabalho, com trajetórias de ocupações profissionais em atividades
de baixa remuneração ou vínculos precários. No momento da entrevista,
grande parte recebia benefícios (em geral, o benefício de prestação
continuada) e estava ausente do mercado de trabalho, sobretudo em função do
diagnóstico do HIV. Somente uma exercia atividade remunerada numa
ONG/aids.
Todas declaram que não tiveram experiências homo ou bissexuais. As
práticas sexuais, em geral, eram desprotegidas e havia dificuldade na
negociação do uso do preservativo, principalmente nas relações conjugais
estáveis. A infecção do HIV resultou, sobretudo, de relações sexuais
desprotegidas com parceiros/maridos, já falecidos devido a aids ou parceiros
instáveis. Duas atribuem à infecção a transfusão de sangue, uma delas num
episódio de abortamento clandestino. O contexto de descoberta do HIV, a
maioria na década de 1990, deu-se pelo adoecimento próprio ou do parceiro,
no pré-natal e numa triagem para doação de sangue; apenas uma delas fez um
teste num contexto de avaliação geral da saúde.
Todas realizam tratamento regular para a infecção, a maioria em
serviços da rede pública de saúde, com acompanhamento médico e, algumas
com equipe multiprofissional, realização de exames periódicos e aquisição do
tratamento antirretroviral (TARV).

A busca pelo movimento


Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ainda não é de todo conhecido o que leva as pessoas a buscar e


permanecer nos espaços de organização coletiva. Trata-se de um objeto de
análise de poucos estudos, refletindo escassez de investigações sobre a
experiência do ativismo e a aids, no contexto brasileiro 3. As premissas do
interacionismo (Flick, 2009), por sua vez, fornecem uma visão geral para o
estudo da vida humana em grupo. Convida-nos a compreensão das ações,
nestes cenários, com um olhar sobre as interações e os significados atribuídos
e constantemente reatualizados pelos atores sociais envolvidos (Nunes, 2013).
No contexto deste trabalho, a entrada no movimento social resultou da
necessidade de suporte, diante de reações como surpresas e medo do
diagnóstico, além do acolhimento muitas vezes insatisfatório nos serviços de
saúde. Não foi incomum a experiência de participação em outras organizações
além do MNCP. A possibilidade de apoio social em organizações coletivas
entre pessoas estigmatizadas, garante ao estigmatizado um fortalecimento de
suas redes. Independente de o grupo estar ou não estabelecido, é em relação
a esse ‘grupo-de-iguais’ que será possível discutir a história natural e a carreira
moral do indivíduo estigmatizado, bem como transformar isso em ação política
(Goffman, 1988).
Sobre a dimensão da convivência coletiva, do apoio diante de um
diagnóstico e dos seus benefícios, Valla (2001) e Guimarães e colaboradores
(2009) entendem que os profissionais e o sistema de saúde pública, que
poderiam desempenhar o papel de acolhimento das demandas trazidas,
principalmente, pelas classes populares, ainda apresentam condições limitadas
de atendê-las. Isso não se dá apenas pela falta de tempo, mas pelas
características do modelo biomédico de atenção à saúde. Para ampará-los, a
população busca outras saídas e vem indicando caminhos diversos daqueles
habitualmente percorridos pela assistência.
A teoria do apoio social traça como proposta central a melhoria da saúde
das pessoas através do envolvimento em grupos diversos, normalmente entre
pessoas que se conhecem e de uma forma sistemática, frequentemente
envolvendo uma instituição ou entidade. A lógica dessa teoria é similar àquela

3
Entre os estudos encontrados, cujo foco de análise é o contexto brasileiro, destacam-se:
Carvalhaes, Teixeira, 2012; Silva, Castro-Silva, 2011; Ramos, 2010; Farias, Dimenstein, 2006;
Zaquieu, 2006; Castro-Silva, 2009; Galvão, 2002.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

que sustenta as propostas alternativas e complementares em saúde. Também


explica a grande procura das camadas populares por alternativas mais
‘acessíveis’, como as igrejas. Nestes cenários, constroem-se grupos de suporte
alternativos – e por que não, de ampliação do cuidado? – num contexto de
eficácia simbólica 4 (Valla, 2001).
Nesse sentido, as trajetórias analisadas apontaram que a participação
em um movimento fortaleceu o processo de reconstrução da identidade social
pós-diagnóstico, facilitou o acesso à informação sobre o cuidado e ampliou as
redes de apoio social dessas mulheres.
Um dos pontos positivos da permanência desses espaços de ativismo
político é o desenvolvimento de atividades para lidar com o sofrimento
psicossocial, compreender a opressão coletiva e mobilizar a cidadania em uma
direção que apoia a reinvenção pessoal e de contextos intersubjetivos. Esse
processo colabora para diminuir a vulnerabilidade à morbimortalidade. Além do
papel de ajuda mútua, esclarecem sobre direitos básicos e reconstrução de
laços sociais rompidos devido a aids, também foi observado nesse trabalho
(Parker, 2000; Silva, Castro-Silva; 2011; Castro-Silva, 2009).
Entretanto, foi observado o enfraquecimento do MNCP no estímulo à
atuação das ativistas, bem como na busca por novas integrantes. Observou-se,
entre algumas entrevistadas, uma dinâmica de ressignificações individuais
acerca da participação, comuns às experiências de longo período em espaços
desse tipo. Mas algumas (em geral, as mais antigas no movimento)
reconhecem também o distanciamento dos movimentos de aids, de outros
movimentos sociais do país, o que debilita a rede de lutas. Todavia, esse
movimento de enfraquecimento macroestrutural na dinâmica organizacional da
sociedade civil existe como um todo, e se materializa na mudança da forma
como atuam as organizações (com estreitas relações governamentais, ao
contrário do perfil de questionamento e enfrentamento do início da epidemia),
que reforça esse processo (Parker, 2011).

O movimento e alguns aspectos do cuidado observados nas biografias

4
Expressão discutida por Lévi-Strauss (1975), em suas análises sobre as dimensões
simbólicas da cura xamanística e a relação com a psicanálise.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

As experiências das mulheres sobre cuidados da assistência à saúde


revelam que todas utilizam, utilizaram ou ao menos conhecem o funcionamento
da rede de saúde para PVHA, no município do Rio de Janeiro. Apesar disso,
nem todas falaram sobre a experiência de descentralização do cuidado para a
atenção básica (Brasil, 2014). A maioria tinha conhecimento sobre espaços de
oferta de terapias integrativas e complementares e experiências de uso na
rede. Ademais, sabem sobre os efeitos da infecção do HIV para a saúde,
revelando um relativo domínio sobre o quadro clinico e o significado dos
parâmetros usados para o controle da síndrome e sua relação com a adesão
ao TARV (assunto bastante recorrente nas reuniões do movimento). Outro
dado importante é que nem todas efetuam o autocuidado de forma contínua.
Esses aspectos sugerem a importância não apenas da participação em grupos
que discutam tais temas e fortaleçam a busca pelo acompanhamento regular
com equipe de saúde, autoconhecimento e gestão do autocuidado, como
também de condições de vida que garantam a prática dessas dimensões do
cuidado.
O ‘cuidado de si’ não deve ser aquele que responsabiliza e culpabiliza a
pessoa por não ter seguido as orientações. Pelo contrário: afasta-se da
perspectiva restrita de adesão aos tratamentos e obediência. Na visão de
Ayres (2004) e de Pereira e Costa (2006), é importante compreender a
subjetividade que está por detrás do cuidado, na experiência pessoal sobre o
adoecimento e na dimensão existencial daquele que precisa da atenção,
estimulando sua autonomia.
Nas entrevistas, algumas mulheres identificaram que a participação no
movimento interfere negativamente no autocuidado pelo tempo dedicado às
tarefas do coletivo, o que talvez explique o estabelecimento de outras
prioridades em suas vidas e o afastamento de algumas delas das atividades,
criando novos sentidos para esse espaço. Entretanto, essa problematização
não apareceu no cotidiano das rodas. A despeito das peculiaridades que
diferenciam a atuação entre um movimento social e outro, no campo social do
HIV/aids, nota-se que esse achado não é incomum, pois algumas PVHA
passam a dedicar muito tempo de suas vidas à militância, outras apenas
buscam apoio social nesses cenários (Lima, 2010).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

No contexto da aids, o olhar sobre o cuidado também demanda atenção


às repercussões do estigma e as vulnerabilidades decorrentes das
desigualdades sociais presentes nas relações cotidianas. O enfrentamento
desses dois aspectos (mesmo diante de relatos de ocultação do diagnóstico
por medo de situações de discriminação e violência) foi pouco observado
durante o trabalho de campo. Também havia pouca reflexão sobre o papel
social que as mulheres exercem nas relações de poder estabelecidas e sobre o
controle dos corpos, num contexto de desigualdades. A atuação do MNCP, no
Rio de Janeiro hoje, parece ter o olhar mais direcionado ao debate da garantia
de assistência e cuidados às mulheres soropositivas. A materialização do
caráter político do movimento reduz-se a relatos de experiências pessoais de
insatisfação com a assistência, que desencadearam movimentos individuais de
busca por melhoria. Isso, de algum modo, reflete influência da experiência
adquirida dentro do ativismo, o que é reconhecido pelas entrevistadas. Por
outro lado, percebeu-se pouca participação em espaços de decisão e
construção de políticas públicas.
A ausência de pautas feministas, por sua vez, pode ser compreendida a
partir de Barbosa (1996) que, ao longo da década de 1990, já sinalizava isso
como um ponto crítico de ambos os movimentos – o feminista por não valorizar
a presença da aids dentre suas pautas prioritárias, e o movimento de aids, por
não incorporar debates polêmicos, como o do aborto. Esse afastamento de um
movimento exclusivo de mulheres soropositivas sinaliza os ruídos de uma
relação que, ao logo da história, demandou uma análise delicada: a leitura do
feminismo sobre a repercussão social da infecção pelo HIV e o que isso
transformaria nas teorias e práticas até então (re)construídas (Idem).
Historicamente, a medida que a epidemia iniciou um avanço em outros
segmentos da sociedade, como o público feminino, algumas estratégias de
enfrentamento da aids começaram a ser pensadas. Em 2007, o Ministério da
Saúde desenvolveu o Plano Integrado Nacional para Enfrentamento da
Feminização da Epidemia de HIV/aids, pautado em algumas noções de
vulnerabilidade (Brasil, 2010). Pactuava-se uma atuação em que as mulheres
pudessem ser assistidas de acordo com suas especificidades, promovendo a
integração entre diferentes áreas de defesa dos direitos das mulheres e da
saúde, para produzir respostas que contemplassem a sustentabilidade,
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

descentralização e atenção integral às mulheres. Todavia, a despeito das


conquistas identificadas na avaliação do Plano, as propostas de enfrentamento
da epidemia na prática do cuidado continuaram majoritariamente focalizadas
na transmissão da infecção, priorizando a prevenção da transmissão vertical e
estímulo ao uso de preservativos. Ou seja, poucos foram os avanços para
enfrentar as desigualdades sociais relacionadas com o crescimento da
epidemia, bem como não efetivaram a integralidade prevista pelo SUS (Rocha;
Vieira; Lyra, 2013; Barbosa, 2016).
A revisão do plano apontou como desafio a “necessidade de
fortalecimento das organizações na sociedade civil que representam as
mulheres contempladas nas agendas afirmativas, visando garantir o diálogo
necessário para a adequação do plano ao contexto político e perfil
epidemiológico dessas mulheres” (BRASIL, 2010, p.4). De acordo com Barbosa
(2016), o diálogo precário entre o governo e a população feminina não é de
hoje, mas se mantém e a questão dos diretos sexuais e reprodutivos das
mulheres vivendo com HIV/aids nunca foi um ponto importante da agenda.
Nesse sentido, cabe aprofundar outras reflexões sobre a capacidade de
organização das mulheres alvo dessas políticas; se suas experiências de
cuidado são de fato acolhidas nos espaços de decisão; e se no atual cenário
político, encontram oportunidade de participar da construção de outros modelos
possíveis de assistência.

Considerações Finais

O trabalho teve o propósito de compreender os significados atribuídos


ao ativismo e alguns desdobramentos disso no cuidado em saúde, individual e
coletivo, e convívio com o HIV, a partir da experiência de oito mulheres
soropositivas, na faixa de 38 a 79 anos, integrantes do Movimento Nacional de
Cidadãs Posithivas (MNCP), no Rio de Janeiro. Os aspectos observados
convidam a reflexões sobre as potencialidades e desafios da participação
política do movimento social de aids, num contexto de crise, bem como as
mudanças no modelo de abordagem nos cenários de assistência.
A participação em coletivos de PVHA, como o MNCP, sugere o papel
importante do apoio e da troca de experiências, no processo de administração
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

da vida com HIV/aids. Entretanto, o espaço do movimento não parece refletir


sobre o enfrentamento das desigualdades sociais e de gênero, cuja
manutenção contribui para situações de vulnerabilidade social e de saúde,
incluindo a infecção do HIV. Reconstruir relações menos assimétricas constitui
fator decisivo para a redução da vulnerabilidade da população feminina ao HIV
(Silva, Vargens, 2009). Nas ações do movimento, a ausência do diálogo com
as pautas principais dos movimentos feministas pode estar relacionada à
dificuldade de relação e fortalecimento de rede com outros movimentos.
Aparece, portanto, como possível barreira à ampliação das lutas.
Os significados atribuídos pelas mulheres ao MNCP e o desdobramento
sobre o cuidado sugere, como um dos principais desafios atuais ao movimento,
rever suas estratégias. Tais dados dialogam com a fragmentação e o
enfraquecimento dos movimentos sociais, no campo da aids, o que
corresponde não apenas a redução de financiamentos e a dificuldade da
sociedade civil em se organizar, mas ao próprio papel que a resposta social da
sociedade civil tem tido, hoje, na contestação, formulação e atuação nas
políticas de aids (Parker, 2011).
Portanto, a ampliação das lutas de atores sociais ‘coletivos’ talvez faça
mais sentido resgatando possibilidades de unificação das lutas em rede,
reconhecendo os limites de suas agendas particulares. È importante valorizar a
vivência em comum de um contexto geral de retrocessos e negação de direitos.
Trata-se, afinal, de uma permanente luta por um sistema de saúde público, de
qualidade e que baseado, sobretudo, na equidade, reconheça as diferenças e
seja capaz de atuar intersetorialmente na desconstrução das desigualdades
sociais.
Diante do desafio de como os serviços de saúde vão incorporar as
novas questões em relação à infecção, o estudo também lança a esses
dispositivos e aos profissionais de saúde o convite a pensar e ampliar as
experiências em espaços coletivos para o cuidado. E que não se restrinja
apenas ao contexto de infecção do HIV ou de determinado nível de assistência,
pois a carência de experiências novas de cuidado parece ser uma demanda
comum a várias pessoas que procuram os serviços de saúde, independente do
seu diagnóstico e do seu nível de complexidade (Brigagão, Nascimento, 2014).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Aconselhamento nos CTA: o habitus profissional e a invisibilidade da


prevenção baseada na emoção e na comunicação

Claudia Mercedes Mora Cárdenas1

Simone Souza Monteiro2

Resumo

Com base em entrevistas e observações em Centros de Testagem e


Aconselhamento (CTA) do estado do Rio de Janeiro, este trabalho analisa as
práticas de aconselhadores deste serviço. Sob o marco do conhecimento
praxiológico, partimos do pressuposto que os modos de sentir e interpretar as
emoções na ação integram o habitus profissional. Para tanto, focalizamos na
dimensão emocional do aconselhamento pré e pós teste para HIV através das
narrativas de vinte aconselhadores.

A estabilização dos sentimentos de alegria e angústia dos usuários é vista


como parte do papel do aconselhador. As estratégias de controle das emoções,
suscitadas particularmente na entrega de resultados, informam as
competências de ação destes agentes. Tais estratégias dizem respeito ao
domínio de informações técnicas, mas também à condução da gramática
emocional da interação. Os sentimentos de frustração diante das situações de
violação de direitos do usuário, somado a ausência de respostas estruturais e
programáticas perante o diagnóstico positivo, integra o habitus dos
profissionais. A compreensão do habitus dos aconselhadores expressa suas
capacidades de apoio e escuta das vulnerabilidades sociais dos usuários,
todavia, revela associações entre emoções e determinadas moralidades.
Apesar de sua relevância, tais capacidades não têm a mesma visibilidade e
reconhecimento. Na literatura sobre a prática do aconselhamento prevalecem
as discussões em torno os efeitos de poder da comunicação de informações
científicas e suas ressignificações entre os usuários.

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Instituto de Medicina Social


2 Fundação Oswaldo Cruz – Instituto Oswaldo Cruz
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Frente à trajetória dos aconselhadores como agentes de prevenção ‘baseada


na emoção e na comunicação’ e as políticas de ampliação e diversificação da
testagem no país nos anos recentes, cabe indagar sobre os rumos dos CTA.
Tal questionamento justifica-se frente à trajetória destes serviços na resposta
brasileira a Aids, desde sua implementação em 1988 como equipamento
alternativo do SUS, até o cenário atual da diretriz “Testar e Tratar”.

Palavras-chaves: emoções, aconselhamento, HIV, testagem, habitus


Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução

Denominado de COAS - Centro de Apoio e Orientação Sorológica - no


momento de sua implementação, em 1988, na cidade de Porto Alegre e logo
após em São Paulo, este serviço foi criado para absorver a demanda de
testagem dos bancos de sangue e oferecer o exame anti-HIV a pessoas
consideradas de “maior risco”. A prática do aconselhamento, inicialmente
voltada para a preparação emocional do sujeito diante do resultado positivo,
foi se ampliando dos pacientes sintomáticos para os assintomáticos e para
pessoas com “práticas de risco” (Araújo e Camargo, 2004).

Em virtude da paulatina estruturação da resposta à Aids nos serviços de


saúde e dos avanços em termos de acesso à TARV (Terapia Antiretroviral) ao
longo da década de 1990, o sentido da prática do aconselhamento foi se
deslocando do plano assistencial para o preventivo.3 Fundamentada na
abordagem da vulnerabilidade e dos direitos humanos, esta prática tem um
caráter intersubjetivo. Logo, segundo as diretrizes nacionais, a relação
usuário-profissional deve buscar o desenvolvimento de mudanças
construtivas na vida dos usuários através do diálogo, da informação e do
apoio emocional (Brasil, 2010).

Em termos operacionais os CTA devem oferecer testagem convencional


e testes rápidos e aconselhamento. Além do aconselhamento pré e pós teste, é
prevista a oferta do aconselhamento para casais (soropositivos, sorodiferentes
e do mesmo sexo); aconselhamento continuado para as pessoas que
aguardam os resultados de exames (HIV, sífilis, hepatites), entre outras
atividades (Brasil, 2010). Em 2012 o Brasil contava com 515 unidades que
realizavam aproximadamente 40% dos testes anti-HIV no país.

As escassas pesquisas focadas nos aspectos relacionais da prática ora


abordam a dimensão do poder pela via da transmissão de discursos científicos,
ora apontam desencontros nas lógicas preventivas entre usuários e
profissionais. Biehl et al (2001) oferece um olhar para a articulação entre

3 A técnica psicológica do aconselhamento, desenvolvida pela escola humanista, e as ações de


assessoria desenvolvidas pelos movimentos civis da década de 1970 (feminismo, movimento
gay) embasaram as recomendações internacionais e nacionais do aconselhamento em
infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV e Aids (Fernandes, 2013).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

tecnologia e afetos na cena de um CTA em Salvador. Segundo o autor, a


procura pela testagem ganha múltiplos sentidos, quais sejam: a perda da
virgindade ou as implicações da infidelidade sexual nas relações conjugais; a
afirmação ou negação da orientação homossexual; a busca de mudanças em
situações de opressão de gênero. Na análise de Souza et al (2008), a prática
do aconselhamento representa um espaço de tensão e configuração do saber-
poder dos atores participantes. Esta tecnologia discursiva teria então um
caráter ambivalente, por conjugar uma abordagem “emancipatória-
democrática” e ao mesmo tempo “tecnologizante-dominadora”. Já Araújo e
Camargo (2004), em pesquisa junto aos aconselhadores de um serviço no Rio
de Janeiro, observam uma descontinuidade na escuta profissional que se
relaciona com a passagem do saber formal (científico) sobre a Aids para o
senso comum.

Frente às tensões do aconselhamento nos CTA enunciadas, relativas à


expectativa do encontro intersubjetivo e ao predomínio dos discursos
preventivos universais, o presente artigo objetiva analisar como a dimensão
emocional atravessa tal prática. Sob o marco do conhecimento praxiológico
(Bourdieu, 1996), partimos do pressuposto de que os modos de sentir e
interpretar as emoções na ação integram o habitus profissional. De igual modo
auxilia na análise da noção de “gramática emocional”, que diz respeito aos
significados das emoções e sua ingerência na organização das relações de
poder (Rezende e Coelho, 2010). Em outras palavras, seguindo o olhar
construtivista do estudo das emoções, entendemos que os modos dos agentes
de perceber e de se envolver nas situações, fazem parte da linguagem e das
regras sociais, cujo reconhecimento e acionamento são contextuais.4

O material empírico e as indagações que apresentamos derivam de uma


pesquisa que buscou compreender a conformação das práticas de
aconselhamento em sete CTA do estado do Rio de Janeiro.5 Os dados

4 Os estudos pioneiros de antropólogas como Catherine Lutz, Geoffrey White, Abu-Lughod e


Michelle Rosaldo alicerçam uma visão construcionista ou também denominada como
relativismo cultural da emoção.

5 Pesquisa de doutorado desenvolvida pela primeira autora (2010-2014), intitulada


“Aconselhamento no âmbito dos Centros de Testagem no estado do Rio de Janeiro: uma
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

contemplam vinte entrevistas individuais, somado ao diário de campo de


observação de um serviço.6 Na Tabela 1 (em anexo) detalhamos o perfil social
e profissional dos entrevistados.

Uma leitura da gramática emocional do aconselhamento nos CTA

Com base no olhar da antropologia das emoções -- que compreende a


constituição das emoções na interação e na socialização e concebe o corpo
como epicentro da agência (Lyon, 1995; Reddy, 2001) --, pretendemos ilustrar
os modos de sentir, interpretar e regular as emoções sob o ponto de vista dos
aconselhadores e identificar alguns dos significados morais associados às
mesmas.

Em virtude das disposições dos profissionais para a escuta e dos


aspectos subjetivos que podem favorecer o estabelecimento do vínculo com o
usuário, os entrevistados expressaram graus de envolvimento distintos perante
as situações enfrentadas no dia a dia do CTA. Todavia, a entrega de resultados
(pós-teste), quando comparado com a entrevista inicial ao usuário (pós-teste),
mobilizou várias situações de ruptura da rotina do aconselhamento, que se
relacionam, em parte, com o fato de sentir ou de provocar estados emocionais
na interação. Cabe dizer que o fato do serviço ofertar testagem rápida,7
convencional, ou ambas, imprime variações na dinâmica e intensidade
emocional da prática.

Pode se dizer que os elementos julgados como importantes no pré-teste


dizem respeito às informações preventivas e à revelação de aspectos íntimos
dos usuários, como o uso do preservativo, os modos de transmissão do HIV e

análise das práticas e saberes na prevenção das DST/Aids”, sob orientação de Simone
Monteiro e Carlos Otávio Fiúza Moreira (ENSP-Fiocruz).

6 Observação participante realizada no marco da pesquisa “Práticas sociais e de saúde entre


usuários de CTAs do Estado do Rio de Janeiro: uma análise da contribuição dos serviços de
testagem anti-HIV e aconselhamento para a prevenção das Dst/Aids”. Simone Monteiro
(coordenadora), Elaine Brandão, Eliane Vargas, Esther Daltro, Claudia Mora e Priscilla Soares,
(IOC/Fiocruz e IESC/UFRJ), com apoio da FAPERJ (2009-2011).

7 Tecnologia utilizada segundo critérios díspares em cada serviço: alguns priorizam gestantes,
“grupos vulneráveis” ou pessoas muito “ansiosas” pelo resultado.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

de outras IST, a relativização de valores sociais (religiosos, conjugais) e o


relato ou “confissão” de parcerias e práticas sexuais.

O aconselhamento pós-teste, com resultado negativo, pode durar até 15


minutos, onde é revisitado o período de janela imunológica, bem como as
expectativas do usuário acerca do resultado. Segundo pelos menos dois
entrevistados a testagem tende ser interpretada por alguns usuários como uma
“vacina” ou ato de “limpeza”. Assim, de uma ou outra maneira, o grupo afirma
ter disposição para atender as necessidades decorrentes da forma como o
resultado ecoa no usuário, as quais são interpretadas não apenas pelo que se
diz, mas também pela expressão corporal e pela orientação sexual atribuída ao
usuário:

Heterossexual quando trai, nossa! a culpa é pior do que homossexual. Foi


nessa semana um cara, que é policial veio aqui para fazer exame por ter
traído a noiva que está com os convites na rua para casar. Ai eu falei:
“nossa você está muito angustiado!” Ai você percebe, começou a chorar,
eu falei: “calma, porque ainda não fiz o Teste Rápido: esse é um teste
fidedigno”. Você vai dizer: “ah, bem feito!” Não! Você tem que colocar para
eles que isso acontece, que é para ele rever toda a situação dele. Muitos
dizem que nunca mais vai trair, você não sabe se vai ou não vai (risos)
(Danielle, assistente social)

Em relação ao resultado negativo foi recorrente a narrativa da expressão


de alegria ou de alívio dos usuários, sentimentos que podem atrapalhar o
discurso do uso do preservativo ou outras reflexões previamente colocadas no
pré-teste: “Qualquer tipo de emoção é muito grande e não vão dar a menor
atenção ... Aí ele fica muito feliz, muito satisfeito, agradecido, quase ajoelha no
chão agradecendo a Deus porque ele não está contaminado e vai embora”.

No que se refere à postura do profissional e à disposição para a


comunicação do resultado, alguns atentam para as vantagens de conferi-lo
antes de chamar o usuário justamente para “relaxar e depois pensar” o que vai
ser dito. Para outros, conhecer o resultado antecipadamente traz uma
desvantagem para a interação, pois o semblante do profissional já pode
anunciar o resultado, especialmente quando é positivo: “Eu nunca gostei de
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olhar, porque eu acho que se olhar vou chegar na sala com uma cara assim de
“deu problema””. Nesses casos, a trajetória do usuário é retomada
detalhadamente a partir das informações do formulário individual utilizado nos
CTA.

Uma quarta parte do grupo expressou interesse em acompanhar


diretamente os usuários atendidos no pré-teste para ofertar um
aconselhamento mais continuo e personalizado. Porém, isto só é possível caso
o usuário retorne nos dias/horários do turno do profissional. O seguinte relato
do diário de campo sugere que a não continuidade do aconselhamento,
observada apenas nos serviços que apenas ofertam testagem convencional,
pode gerar desconfiança no usuário e fragilizar o vínculo estabelecido no
primeiro encontro:

“Raramente o aconselhamento pré e pós eram realizados pelo mesmo


profissional e tendo em vista que não era explicado como eles tinham
acesso as suas informações, alguns usuários expressavam
estranhamento quando sua trajetória era abordada com tanta propriedade
por um aconselhador diferente daquele do pré-teste. Este fato foi
observado quando um aconselhador, que não havia realizado o pré-teste,
ao entregar um resultado positivo comentou que já era esperado, pois o
usuário havia relatado relações desprotegidas com diversas parceiras no
primeiro encontro. O usuário demonstrou estranhamento (expressão facial
de surpresa) ao ouvir o aconselhador afirmar: “você já deve estar ciente
das chances de ter se contaminado”.”

No atendimento aos usuários com resultado positivo, diagnosticados no


CTA ou em outro local,8 o tempo do aconselhamento é prolongado quando há
outros aconselhadores no mesmo turno, caso contrário o fluxo de atendimento
se vê alterado. Numa tentativa de se contrapor à ideia de “morte”, os
participantes dizem acionar relatos alentadores em relação às possibilidades
de manter uma boa qualidade de vida através da TARV. Os exemplos

8 Observações dos treinamentos junto a profissionais de maternidades, equipes de saúde, etc.,


somado aos encaminhamentos de outros serviços (públicos e particulares) para a comunicação
do resultado positivo, nos permitem sugerir que neste serviço desaguam os receios ou mitos
(como a tentativa de suicídio) acerca dos sentimentos de tristeza e desespero associados à
soropositividade.
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fornecidos podem ser emblemáticos, como referências a figuras públicas que


têm um tempo de sobrevida de mais de 15 anos. Outros tentam se aproximar
do contexto social do usuário, possibilitando a interação com PVHA (Pessoas
Vivendo com HIV e Aids) e usuários do CTA, ou referem os grupos de adesão
da região (quando existentes), frisando a participação de adolescentes que
nasceram com o vírus.

A atenção para a estabilização dos sentimentos de angústia do usuário,


ação definida por vezes como “acolhimento”, pode representar um fim em si
mesmo ou um meio para ele se sentir capaz de tomar decisões relativas à
manutenção de sua qualidade de vida. Há variações na concepção do “apoio
emocional”, como parte do processo de cuidado, segundo a profissão. Aqueles
com formação em psicologia (4) disseram que nesse momento é preciso
possibilitar ao usuário a expressão de sentimentos. Tendo em vista os
aspectos intersubjetivos do aconselhamento, como o reconhecimento da
situação do usuário, eles dizem agir empaticamente fazendo contato físico
(abraçar, segurar a mão, chorar junto).9 Ou seja, o apoio emocional parece
representar um fim em si mesmo graças à formação de base, aos
aprendizados decorrentes do estágio no próprio CTA, ou a traços pessoais, os
quais legitimam os modos de lidar com os sentimentos suscitados na interação.

Às vezes pergunto: Qual é a sua expectativa? Você acha que você tá? Eu
já vou preparando a caminha. Às vezes a pessoa chega nervosíssima.
Então calma, vamos primeiro aguardar o resultado da parceira e tal ....
Não deixo ninguém sair daqui sem que eu perceba o impacto do primeiro
momento. Deixo ela chorar ou eu deixo ela falar, mas eu quero ver falar
sobre isso, ninguém positivo fica mudo e vai embora. Eu falo: “Pensa alto
um pouquinho pra gente conversar sobre isso”. “Ah não, eu já sabia, eu
tinha uma esperança que eu não tivesse, mas eu tive o resultado antes,
eu fiz em outro lugar”, aí as pessoas falam, entendeu. (Quésia, psicóloga)

9 As ações de suporte emocional do grupo são atravessadas pelo que Scheer (2012) define
como “práticas emocionais”, isto é, modos de fazer e de dizer que se expressam e são
vivenciados nos gestos, nos movimentos e na linguagem verbal.
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Por outra parte, para os profissionais de enfermagem (6), o principal


sentido da estabilização emocional do usuário é facilitar a assimilação das
indicações clínicas subsequentes. Assim, uma informante, cuja prática é
enquadrada pela continuidade entre o pré e pós-teste graças à testagem rápida
relatou o seguinte:

A gente leva na brincadeira e vai buscando nas perguntas alguma forma


de brincar, de relaxar esse paciente e se o resultado vier positivo eu
preciso que ele esteja relaxado pra ele entender o que a gente vai explicar
né, todo o comando que a gente tem que dar pra ele, então a gente
precisa muito, muito da perspicácia, tirar, diminuir ou até amortecer prá
depois ele voltar a ter essa ansiedade. Às vezes eles choram, aí a gente
tem que deixar ele chorar, deixar ele descarregar e depois é que vai fazer
o aconselhamento, vai fazer o encaminhamento. (Paola, enfermeira)

De modo geral, os profissionais reiteram aos usuários que o CTA lhes


servirá de âncora, se assim desejarem, nas questões subjetivas decorrentes da
revelação do diagnóstico, bem como nas orientações necessárias para acessar
e manter o vínculo com os serviços de assistência à Aids. Todavia, a
articulação do CTA a um SAE (Serviço de Assistência Especializada) por vezes
não garante que os novos usuários venham a ter uma vaga, devido à
desproporção entre número de profissionais e usuários, ou porque eles
preferem ser atendidos em unidades fora de seu território de residência. Os
resultados do mapeamento realizado por ABIA e CEDAPS em 2013 (Centro de
Promoção da Saúde) referente às dificuldades das PVHA no acesso aos
serviços no Rio de Janeiro condizem com diversas falas dos aconselhadores.

Várias informantes, com experiência em outros programas de saúde no


mesmo território do CTA, contornam as dificuldades dos usuários soropositivos
para acessarem aos serviços da rede, buscando se contrapor às
representações de morte e estigma vinculadas à Aids. Em virtude do
envolvimento dos agentes nas situações e tendo como perspectiva o
cumprimento do seu papel profissional, foi observado os sentimentos de
frustração perante os percalços associados à referência dos usuários.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Esse hospital é um lugar que não é bem visto né?, pelas pessoas, que é
muito lotado, que os pacientes são maltratados, “ah, então não, não quero
ir lá, não quero ir porque ali tem muita gente que morre lá” Fica difícil, né?
Como você vai dar uma referência dessa, você devia ter uma referência
boa para a pessoa se sentir tranquila. Lá eu sei que ele pode ser tratado,
mas desse jeito o negócio já ta estigmatizado, já é um matadouro, já é um
horror.

De qual estratégia você lança mão para tentar convencer o usuário?

Tem que ser uma coisa diferenciada, você vai lá conversa com a
assistente social explica qual é a sua situação, marca pelo menos uma
consulta que eles sabem que não vai ser para agora, vai ser lá para
janeiro, nós estamos em novembro. Mas ele tem que ter um vínculo, como
é que ele vai ficar sem atendimento. O que eu faço com essa pessoa?
Você faz a sua parte mas não tem como seguir. Ai você fica preocupado,
para essa pessoa ficar bem, encaminhar, tratar ... dá uma frustração.
(Bianca, fisioterapeuta)

No que tange ao modo como os profissionais lidam com os sentimentos


vivenciados no aconselhamento, foram relatados encontros informais da equipe
após o atendimento de “casos difíceis, pesados ou problemáticos”. Isto é,
quando a reação de angústia, tristeza ou raiva por parte do usuário ou seus
acompanhantes é exacerbada ou se prolonga mais do que esperado, ou
quando ocorrem desmaios ou queda de pressão. Particularmente, devido aos
valores relacionados à gestação, somado à corresponsabilidade pela política
pública de redução da transmissão vertical do HIV, a entrega de resultados
positivos a mulheres gestantes foi relatada como uma situação mais sensível e
desgastante para pelo menos a metade do grupo.

O apoio de um segundo aconselhador durante esses atendimentos foi


descrito como um acordo tácito para colaborar na estabilização do usuário.
Assim sendo, as trocas informais parecem representar o espaço mais próximo
de reflexão grupal sobre as práticas e como os profissionais as experimentam.
As ações restauradoras mais frequentes são o choro, o repouso e procura de
atenção psicológica individual. Todavia, alguns reivindicaram estratégias
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

institucionais para o cuidado da saúde de si mesmos enquanto trabalhadores


da saúde: Tem uma hora em que o aconselhador cansa de ouvir histórias dos
outros; a gente deveria ter duas férias por ano, tipo o pessoal de raio X, para
nossa mente descansar. A gente está muito bombardeado, e ninguém vê isso.
(Camila, farmacêutica).

Os sentimentos de ansiedade perante a entrega dos resultados podem


estar relacionados não apenas à mobilização de representações ligadas à Aids,
mas ao vácuo na formação dos habitus profissionais para abordar os aspectos
psicossociais dos usuários. Nesse sentido, etnografia de Bonet (2004) ajuda a
compreender como o cultivo do habitus profissional é atravessado pelo que ele
denomina de uma “tensão estruturante” entre o saber e o sentir nas práticas
biomédicas. Tal tensão implica a separação entre os aspectos científico-
racionais dos afetivo-sociais, na medida em que se acredita que essa cisão
maximiza a acurácia do praticante para compreender o diagnóstico do
paciente. Então podemos pressupor que essa matriz perpassa, em maior ou
menor grau, as demais áreas da saúde, imprimindo nos processos de formação
uma omissão ou minimização dos aspectos psicossociais na relação com os
usuários.

A despeito da invisibilidade e escassez de oportunidades dos formandos


na área da saúde para aprofundar na dimensão emocional das práticas (Paiva,
2010), profissionais de um CTA que oferece estágios e treinamentos teórico-
práticos lembraram algumas reflexões de distanciamento e proximidade das
situações de maior envolvimento. Contudo, eles insistem nos limites no
“ensino” da expressão ou controle das emoções:

Aqui falo isso com os aconselhadores: Tentar ajudar no máximo possível,


acolher bem, ser muito humano, tentar tirar essa postura profissional,
acolher naquele primeiro momento, mas tentar não levar para a nossa
vida. Eu aprendi sozinha isso, até porque é na prática, não tem muito
como ensinar, cada um tem seu jeito. (Joana, psicóloga)

O habitus profissional e a invisibilidade da prevenção baseada na emoção


e na comunicação
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

A expressão do usuário e a postura do profissional são aspectos que


perpassam o aconselhamento como um todo. Sob o ponto de vista dos
aconselhadores, na entrega do resultado, emoções de extrema alegria ou
angustia com frequência interferem na indução de reflexões sobre os riscos,
vulnerabilidades ou encaminhamentos. Ademais, devido às barreiras para a
inserção de novas pessoas diagnosticadas nas unidades de assistência, os
aconselhadores, enquanto agentes de prevenção e suporte emocional,
vivenciam frustração e sentimentos de desgaste.

Como analisado em outro momento (Mora et al, 2015), o cultivo das


competências para oferecer apoio emocional não é central nos treinamentos ou
nos conteúdos das recomendações nacionais, pois os organizadores e os
profissionais partilham a visão de que a própria experiência molda esse
aspecto do seu saber-fazer. Todavia, além do eventual aproveitamento no
plano técnico, os encontros informais de equipe representam uma estratégia de
proteção diante dos impactos afetivos e morais decorrentes do desempenho
como aconselhador.

Em síntese, a identificação das situações de quebra da rotina ajuda a


elucidar como e quais saberes de ação são mobilizados. Como os mesmos
informantes apontam, as práticas cotidianas perpassam o que “não está escrito
no manual” ou “o jeito de fazer que cada um tem”. Nesse sentido, cabe lembrar
que para Bourdieu (1983) a competência linguística, como uma expressão dos
usos do corpo, faz parte do senso prático. Ou seja, a competência linguística
bem como outras socialmente relevantes dos agentes, como o suporte
emocional, entram em jogo na ação: “A competência não se reduz à
capacidade propriamente linguística de engendrar um certo tipo de discurso,
mas faz intervir o conjunto das propriedades constitutivas da personalidade
social do locutor (em particular, todas as formas de capital das quais ele está
investido).” (p. 15)

Como sinalizado por Scheer (2012), apesar do Bourdieu não ter


discutido o lugar das emoções na teoria da ação, seus fundamentos
epistemológicos são compatíveis com a compreensão do habitus como
conhecimento corporificado. Assim, novos estudos podem explorar as
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maneiras em que as “práticas emocionais”, como geradoras e como resultantes


da ação, refletem outros elementos ou capacidades dos agentes, as quais
apesar de sua eficácia nas práticas de saúde não têm a mesma visibilidade ou
reconhecimento simbólico, quando comparado com o domínio dos discursos
científicos.

Estudos socioantropológicos sobre a dinâmica dos CTA têm focado


principalmente na visão dos usuários. Mas, outros processos e atores
relacionados à testagem do HIV, como gestores, formadores, aconselhadores
de ONGs, ainda não têm sido explorados. Estes aspectos ganham relevância
diante da iniciativa de descentralização da resposta à Aids no país (ex. teste
móvel, domiciliar e em ONGs), desenvolvida nos anos 2000, junto à recente
diretriz denominada “Testar e Tratar”.10 Assim, surgem questões relativas aos
efeitos sociais e simbólicos da testagem para fins do inicio precoce da TARV,
incluindo o plano da micropolítica das emoções, somado às possíveis
mudanças nos discursos e nas estratégias preventivas já consolidadas como o
aconselhamento.

Frente à trajetória dos aconselhadores como agentes de prevenção e


dos CTA como equipamento alternativo do SUS, desde sua implementação em
1990, cabe questionar os rumos da prática do aconselhamento na resposta
brasileira a Aids. Aparentemente com a descentralização e diversificação da
testagem estamos nos deparando com um modelo de ‘prevenção baseada em
evidências’, em detrimento de uma abordagem baseada ‘na emoção e na
comunicação’.

Referências

1. Araújo CLF, Camargo Jr KR. 2004. Aconselhamento em DST/HIV:


repensando conceitos e práticas. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Folha Carioca.
2. Biehl J, Coutinho D, Outeiro AL. 2001. Technology and Affect: HIV/AIDS
Testing in Brazil. Culture, Medicine and Psychiatry; 25(1): 87-129.

10 Diretriz que recomenda o início precoce da TARV entre adultos com HIV,
independentemente do estágio clínico da infecção ou da contagem do CD4, respeitando o
consentimento do usuário (ver Brasil, 2015).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

3. Fernandes, N. 2013. Vulnerabilidade ao HIV/AIDS entre casais


sorodiscordantes acompanhados no Instituto de Pesquisa Clínica
Evandro Chagas/Fiocruz. Tese de doutorado, Fiocruz.
4. Souza V, Czeresnia D, & Natividade C. 2008. Aconselhamento na
prevenção do HIV: olhar dos usuários de um centro de testagem.
Cadernos de Saúde Pública; 24(7):1536-1544.
5. Bonet O. 2004. Saber e sentir: uma etnografia da aprendizagem da
biomedicina. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
6. Bourdieu P. 1996. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad: Mariza
Correa. 1ª Ed. Campinas, SP: Papirus.
7. _________. 1983. A economia das trocas linguísticas. ORTIZ, Renato
(org.). Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática. (Coleção Grandes
Cientistas Sociais, 39), p.156-183.
8. Rezende C, Coelho C. 2010 Antropologia das emoções. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: FGV editora.
9. Lyon ML, Barbalet J. 1994. Society's Body: Emotion and the
'Somatization' of Social Theory. In: Thomas J. Csordas (ed.),
Embodiment and Experience. The Existential Ground of Culture and Self.
Cambridge: Cambridge University Press: p. 48-66.
10. Reddy W. 2001. The Navigation of Feeling. A Framework for the History
of Emotions. Cambridge, Cambridge University Press.
11. Scheer M. 2012. Are Emotions a Kind of Practice (and Is That What
Makes Them Have a History)? A Bourdieuian Approach to
Understanding Emotion. History and Theory: 193-220.
12. Mora C, Monteiro S, Moreira C O. 2015. Formação, práticas e trajetórias
de aconselhadores de centros de testagem anti-HIV do Rio de Janeiro,
Brasil. Interface (Botucatu);19(55): 1145-1156.
13. Paiva V. 2013. A dimensão psicossocial do cuidado. In: Paiva V,
Calazans G, Segurado A, organizadores. Vulnerabilidade e Direitos
Humanos: prevenção e promoção da saúde. 1ª Ed. São Paulo: Juruá;
livro 2, p. 41-72.
14. Ministério da Saúde. 2015. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas
para manejo da infecção por HIV em adultos. Brasília.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

15. ___________. 2015. Diretrizes dos Centros de Testagem e


Aconselhamento – CTA. Brasília.

Anexo 1. Tabela perfil social e profissional dos aconselhadores entrevistados

Trajetória
no CTA
Seudónimo Sexo Idade Formação (anos)
Aline F 50 Técnica de enfermagem 11

Bianca F 42 Fisioterapia 5

Camila F 49 Farmácia 7

Danielle F 55 Serviço social 19

Edna F 50 Serviço social 1

Francisca F 46 Técnica de enfermagem 0,5

Gabriela F 60 Sociologia 20

Helga F 52 Enfermagem 4

Irma F 50 Psicologia 19

Joana F 31 Psicologia 8

Kevin M 50 Serviço social 7

Luana F 30 Psicologia 6

María F 52 Enfermagem 3

Nino M 30 Enfermagem 5

Olga F 52 Técnica de enfermagem 10

Paola F 52 Enfermagem 1,5

Quésia F 52 Psicologia 0,5

Roberto M 60 Enfermagem 18

Sandra F 35 Enfermagem 5

Tatiana F 60 Técnica de enfermagem 5


Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Pílulas diárias anti-HIV: Novas tecnologias preventivas,


novos paradigmas de prevenção?

Raquel Cardoso Oscar1

Resumo:
As respostas à Aids foram, e ainda são, fruto de contextos sociais e científicos
específicos. As considerações aqui presentes fazem parte de pesquisa de
doutorado, ainda em andamento, cujo o objetivo principal é construir uma
narrativa antropológica acerca do fenômeno da Profilaxia de Pré-Exposição
(PrEP), a fim de analisar os desdobramentos que a implementação deste tipo
de tecnologia provoca nas representações políticas da epidemia. Para esta
apresentação, buscamos demonstrar que a PrEP simboliza uma mudança
significativa no paradigma de prevenção. A partir da revisão sistemática da
literatura sobre as estratégias de prevenção do HIV elaboradas ao longo dos
anos e da etnografia documental realizada em arquivos da Organização
Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde nacional a respeito do uso de
medicamentos como artifício preventivo (diretrizes, recomendações e
protocolos), argumentamos que a PrEP está inserida no cerne de um discurso
preventivo centrado no indivíduo e elaborado em torno das noções de
autonomia, responsabilidade e gestão da sexualidade (através do dualismo
“risco e prazer”). Ademais, nos lançamos especialmente ao desafio de pensar
como este método será implementado no Sistema Único de Saúde (SUS) uma
vez que o cenário de crise política e econômica não aparenta qualquer alívio.
Com o anúncio da PrEP, será necessária a dupla distribuição de fármacos:
para prevenção e para tratamento. Logo, é possível sustentar um modelo
preventivo que prevê maior circulação de insumos? E então nos perguntamos,
a adversidade pode reestabelecer estratégias que reconciliem abordagens
mais pedagógica e coletiva da prevenção?

1
Mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Bolsista CAPES. E-mail de contato:
[email protected]
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Palavras-chaves: Individualismo; Prevenção do HIV; Profilaxia de Pré-


Exposição (PrEP); Tecnologias da saúde

Introdução

É consenso entre pesquisadores, ativistas e gestores públicos da saúde


que parte fundamental do controle da epidemia da Aids se refere à detecção
precoce dos indivíduos portadores do HIV (vírus responsável pelo
desenvolvimento da doença) e o tratamento medicamentoso dos infectados.
Conforme indicam pesquisas clínicas, o indivíduo com carga viral indetectável
possui chances reduzidíssimas de contaminar outra pessoa, e por isso, o
tratamento eficaz dos pacientes vivendo com HIV também é uma forma de
prevenção da doença.
Além destas duas etapas – detecção precoce e tratamento –, a
administração dos números da Aids também depende da propagação e da
efetividade de programas públicos voltados à promoção dos chamados
“comportamentos preventivos” via distribuição de peças publicitárias
educativas, acompanhamento clínico dos segmentos populacionais em risco e
desenvolvimento de tecnologias preventivas específicas.
Dentre os métodos de prevenção recomendados, desde 2012, figura a
Profilaxia de Pré-Exposição ou PrEP. A PrEP consiste no uso de drogas
antirretrovirais de modo contínuo e necessariamente anterior à exposição ao
vírus. Atualmente o Truvada é o único fármaco com esta finalidade aprovado
pelo departamento de Food and Drugs americana (FDA-USA) e circula no
mercado internacional, inclusive aqui no país.
Desde o ano de 2015, o Ministério da Saúde do Brasil já havia sinalizado
a intenção de promover a PrEP em conjunto aos demais esquemas de
prevenção disponíveis até então no Sistema Único de Saúde (SUS). No ano
seguinte, o governo brasileiro iniciou a campanha "Aids, escolha sua forma de
prevenção" que inaugura o ciclo da campanha de Prevenção Combinada. Em
todas as peças publicitárias desenvolvidas pelo órgão - cartaz, material para
internet (Facebook e Twitter) e propagando em vídeo (televisão e YouTube) -
aparecem as opções preventivas disponíveis no SUS até então: Camisinha -
PEP - Pré-Natal - Tratamento - Teste.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

No dia 24 de janeiro de 2017,

“O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) indeferiu o pedido de patente


para a combinação tenofovir+emtricitabina (Truvada®) no PI0406760-6, feito pela
empresa Gilead Sciences em janeiro de 2004. Com a decisão, a combinação – que
poderá ser usada como Profilaxia Pré-Exposição (PrEP, sigla em inglês) e impedir a
transmissão do vírus HIV – está em domínio público e pode ser fabricada e vendida
por qualquer laboratório que tenha o registro sanitário aprovado no país. Sem a
patente, outros laboratórios podem comercializar o medicamento no Brasil a baixos
preços, o que permite ao SUS organizar uma política pública de prevenção e
tratamento que coloque Direitos Humanos no centro desta ação.” (Disponível em:
http://deolhonaspatentes.org/inpi-rejeita-pedido-de-patente-do-truvada-no-brasil/
Acesso em: 27/01/2017)

No dia 29 de maio de 2017, foram publicados no Diário Oficial da União


o registro da portaria nº 21 da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos do Ministério da Saúde que “torna pública a decisão de incorporar
o tenofovir associado a entricitabina (TDF/FTC 300/200mg) como profilaxia pré-
exposição (PrEP) para populações sob maior risco de adquirir o vírus da
imunodeficiência humana (HIV), no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”
e a aprovação da portaria nº 22 que estabelece o Protocolo Clínico e Diretrizes
Terapêuticas da profilaxia pré-exposição de risco à infecção pelo HIV (PrEP).
De acordo com o portal do DIAHV na internet,

“A diretora do DIAHV, Adele Benzaken, explica que no primeiro ano de


implementação da PrEP serão oferecidos 7 mil tratamentos em 12 cidades: Porto
Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife,
Manaus, Brasília, Florianópolis, Salvador e Ribeirão Preto. Para Adele, a medida
coloca o Brasil na vanguarda da prevenção: ‘Somos o primeiro país da América
Latina a oferecer a PrEP no sistema público de saúde. Infelizmente, ainda são poucos
os países que oferecem a PrEP nos seus sistemas públicos de saúde. A França fez a
incorporação em março deste ano’. (Disponível em:
http://www.aids.gov.br/noticia/2017/o-registro-e-o-protocolo-clinico-para-profilaxia-pre-
exposicao-ao-hiv-prep-sao-publicad Acesso em: 11/06/2017)

A incorporação da PrEP junto às políticas nacionais de prevenção foi


decretada após um acúmulo importante de discussões internacionais sobre o
tema e em meio à crise política e econômica enfrentada pelo país desde 2014.
As diretrizes publicadas no Protocolo Clínico em 2017 fazem parte de um
conjunto abrangente de recomendações afinadas com aquelas propostas nos
guias desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo
Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS). Para além
do esforço de adaptar o programa brasileiro às orientações mundiais sobre uso
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

da PrEP, o documento produzido pelo Ministério da Saúde também se revelou


inserido em uma tendência global de reorganização dos paradigmas de
prevenção.
O objetivo deste artigo é, portanto, demonstrar quais representações
estão em jogo para as políticas de prevenção do HIV hoje e apontar, através do
discurso institucional produzido pelos guias internacionais analisados, os
indícios dessas representações. De forma complementar, nos lançamos ao
desafio de pensar as possibilidades das ações de prevenção para a realidade
brasileira no atual contexto de incertezas.

O avanço do paradigma biomédico nas estratégias de controle das


infecções por HIV.

Analisar o desenvolvimento tecnológico descolado das estruturas


(desiguais) de poder fomenta o problema de intuir que todo o desenvolvimento
tecnológico é necessariamente virtuoso. O modo de pensar a tecnologia hoje
está baseada em valores que representam uma visão de mundo específica. Em
outras palavras, os aparatos tecnológicos atuais se constroem e se
estabelecem dentro de um determinado contexto moderno e dele não devem
ser separados.
Enquanto estratégia de prevenção, a PrEP acaba por simbolizar uma
mudança significativa no paradigma de respostas ao HIV. O aparente triunfo
das últimas descobertas biomédicas e a solidificação do Tratamento como
Prevenção (TasP) na qualidade de atual tática para o controle de novas
infecções promovem o que alguns autores estão chamando de remedicalização
da epidemia. (Nguyen V-K, et al, 2011; Parker, 2009a). Em linhas gerais, a
ideia de remedicalização se resume ao retorno da perspectiva exclusivamente
médica e epidemiológica na gerência e controle dos dados da doença.
Ao longo do percurso preliminar de alastramento do HIV, a condição de
ser soropositivo ou de estar exposto ao vírus foi representada como assunto
médico, passível de vigilância, tratamento e prevenção – para si e para a
sociedade. O entendimento sobre o fenômeno da Aids prevaleceu, durante os
primeiros anos, através das pesquisas biomédicas e seus modelos teóricos e
metodológicos.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Nas décadas seguintes, as propostas de enfrentamento à Aids


terminaram por admitir ideias e abordagens diferenciadas. Principalmente
através dos conceitos de solidariedade (Parker, 1994) e de vulnerabilidade
(Ayres et al, 1999), as respostas institucionais aos poucos redefiniram os
padrões de administração dos novos casos. Logo formou-se o consenso: as
estratégias de contenção da epidemia deveriam promover a execução de
projetos sociais e políticos concomitantes aos empreendimentos biomédicos.
Aos boletins epidemiológicos e aos ensaios clínicos com novas drogas,
somaram-se a agência coletiva dos grupos de militantes e a intervenção
predominante das ONGs no trabalho de prevenção e garantia de tratamento. O
ativismo cultural e a adoção progressiva dos paradigmas das ciências humanas
e sociais garantiram, nos idos de 1990 e 2000, o empenho em criar modelos de
ação menos biologizante (Camargo Jr, 2002; Monteiro, 2003). O apoio dos
programas locais e internacionais de financiamento à essas outras iniciativas
também foram de extrema importância.
A apreensão perante às recentes descobertas biomédicas de prevenção
seria, assim, o de substituição de um modo politicamente engajado de lidar
com a Aids por um regime tecnocrático e simplista, reavivando antigas
questões (Paiva et al, 2015). Trata-se do receio de que as profilaxias
medicamentosas dificultem a rearticulação de programas e organizações
sociais nos debates sobre o futuro do enfrentamento da doença.
Historicamente, o que vimos foi a Aids se propagar e matar grupos já
marginalizados – pobres, negros, travestis, homossexuais, homens que fazem
sexo com homens, mulheres... O redirecionamento das esperanças de
erradicação do vírus para a biomedicina não solucionaria um problema, mas
sim, restabeleceria outro, bem antigo: a estagnação das estruturas sociais nas
quais habitam aqueles que estão na linha de frente da epidemia.
Entretanto, a remedicalização não se desdobra apenas em decorrência
do anúncio de novas drogas, mas, de modo fundamental, com a retomada do
domínio medicamentoso e epidemiológico sobre a epidemia, especialmente
quando pensamos métodos preventivos. Se nos anos 1980 o anseio por uma
resposta técnica e científica encontrava sentido a partir da urgência em se
proporcionar um tratamento universal e acessível a todos os atingidos
(vislumbrando uma possível cura), atualmente, o viés biomédico elabora suas
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

justificativas para também atuar no campo do controle de novas infecções.


“Evidence for a virus as agent intensified scientific control over signification and
enabled scientists to rule out less relevant hypotheses and lines of research”
(Treichler, 1987, p. 279). Uma vez que um lado ‘vence’ a disputa, altera-se todo
um modo de nomear e trabalhar a verdade sobre a realidade em questão.

Tratamento versus Prevenção

Uma das condições do desenvolvimento de métodos preventivos por


parte do discurso biotecnológico é o fato de que, enquanto o campo da terapia
antirretroviral se estabeleceu de forma unânime, o campo da prevenção
permanece em disputa. Se comparado às pesquisas e políticas públicas de
tratamento, desde o início da epidemia, um montante significativamente menor
de investimento fora destinado às iniciativas que se dedicaram a discutir
prevenção. “Increased investment in treatment is welcomed, but it is profoundly
disturbing that prevention remains grossly underfunded even as treatment
budgets explode” (Nguyen, et al, 2011:291).
Ainda que se persista alguns obstáculos econômicos e culturais para a
implementação efetiva dos programas de tratamento ao redor do mundo, de
modo geral, tanto as instituições públicas como a sociedade civil incorporaram,
nos últimos anos, a noção de que o acesso aos antirretrovirais é um direito
conquistado que deve ser preservado2. A prerrogativa do direito à saúde frente
a conflitos morais ou financeiros foi, durante os anos 1990, gradativamente
estruturada, tornando a assistência um dos pontos centrais de qualquer ação
estratégica contra a disseminação do HIV.
De forma concomitante, os progressos técnicos promoveram uma
transformação significativa no imaginário negativo em torno da doença.
Sobretudo através da elaboração e distribuição de drogas mais modernas –
com efeitos colaterais reduzidos – e da consequente diminuição das taxas de
mortalidade, a Aids perdeu grande parte da aparência nociva transmitida no

2
Autores mais críticos como Biehl (2007) argumentam que a política de acesso universal ao
medicamento não é de fato universal. Podemos ter mecanismos facilitadores de aquisição dos
ARVs, mas não há meios institucionais de generalizar esse acesso, ficando restrito às classes
trabalhadoras, médias e altas, excluindo os miseráveis.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

início da epidemia. O grande número de recursos aplicados e a luta política


pelo atendimento digno e universal asseguraram a ideia de que o tratamento
deve ser provido a todos e não pode ser negligenciado (Bastos, 2012).
O sucesso do tratamento manteve o controle da epidemia atrelado à
distribuição em larga escala de substâncias químicas e o monitoramento dos
números através de boletins epidemiológicos, ampliando a distância entre
observador (cientistas e gestores da saúde) e observados (população
soropositiva). As metas internacionais propostas pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) não significou garantir que os países com altos índices de
contaminação conseguirão cumprir com o planejamento.
Com o passar dos anos, os esforços preventivos limitaram-se às
análises comportamentais dos denominados “grupos de risco” ou, mais tarde,
“populações chave”, categorias controversas cujas definições não são
suficientes para dar conta das arestas e intercessões entre diversos contextos
de conflito, de fragilidades cíveis ou de estigmas sociais. “The development of
new terminology by international organizations often feels like a distraction from
concrete action by donors, researchers and governments, or a way to maintain
a misplaced sense of optimism when things are often getting worse” (Paiva et
al, 2015:478-479).
Não obstante, as condições de sustentação do discurso biomédico sobre
a prevenção não se resumem apenas à ciência médica, à vontade política ou à
gestão pública. A seguir, discorreremos sobre as representações sociais a
partir das quais a corrida pela legitimação das novas tecnologias tipo PrEP se
justifica.

A virada individualista e as políticas de prevenção: o que dizem os


documentos

Parte fundamental da discussão sobre individualismo e que se faz


interessante para refletir sobre políticas atuais de prevenção e saúde
desenrola-se justamente através do reconhecimento do papel central que o
corpo assume nas relações sociais. O esforço, portanto, se resume em
demonstrar como o olhar acerca dos atributos corporais não reside na natureza
(como reivindicam os cientistas biológicos) mas sim nos amplos aspectos da
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

cultura e da sociabilidade. Como indica Le Breton (2013), “as representações


do corpo, e os saberes que as alcançam, são tributários de um estado social,
de uma visão de mundo, e, no interior desta última, de uma definição de
pessoa. O corpo é uma construção simbólica, não uma realidade em si” (p. 18).
O avanço do individualismo foi determinante para transformar o corpo,
no mundo moderno, em fio condutor das ações individual e coletiva, agora
percebidas enquanto instâncias diferente, embora complementares. O corpo
representa, nesta acepção, a fronteira entre um sujeito – seus valores, suas
ações e suas escolhas – e o outro. O corpo é “fator de individuação” (nos
termos durkheimianos), de autonomização e atomização. É aquilo que
interrompe a fluidez entre matéria e espírito, estabelecendo um limite crucial
entre o que dele é responsabildiade e o que afeta o todo (Dumont, 1993;
Duarte, 1999). Consequentemente, o corpo passa a ser propriedade do sujeito
e não mais parte de sua própria essência. O indivíduo torna-se valor3,
pretensamente autônomo e livre.
O avanço da perspectiva individualista sobre o corpo e o cuidado tende
a estabelecer uma interpretação racional dos processos fisiológicos em
oposição ou substituição do saber comunitário (Duarte, 2003). Estes recentes
progressos biomédicos na questão da prevenção da Aids são particularmente
esclarecedores desta premissa. O anúncio das inovações científicas gira em
torno de soluções práticas cuja dinâmica depende do empenho individual do
sujeito e a crença nos resultados positivos dos ensaios clínicos, em uma
espécie de “eficácia situacional”. Em todos os guias analisados até agora, a
justificativa para a recomendação da PrEP se constrói através dos índices de
eficiência divulgados pelos resultados de estudos de caso.
De uma maneira geral, o ethos modernista parece determinar as ações
da saúde e com as políticas anti-Aids não seria diferente. As tecnologias de
prevenção medicamentosa aparentam se reproduzir a partir do isolamento da
doença de um corpo e do uso de um fármaco por pessoas não-doentes. O
3
O individualismo enquanto estrutura de organização social não é condição intrínseca das
sociedades ocidentais aonde predomina. Antes de tudo, o individualismo moderno é mais uma
tendência dominante, característica das camadas médias e altas (de onde surgem seus
principais interlocutores), no qual se compreende a origem de nossas principais concepções
acerca do corpo. O nascimento do indivíduo moderno, nos séculos XVI e XVII, não finda as
contradições da hierarquia social nem uniformiza os modos de percepção e apreensão do
mundo pelos diferentes sujeitos alocados nas diferentes instâncias das redes sociais que
habitam (Dumont, 1993; Le Breton, 2013).
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

risco depende, assim, da percepção e do cuidado com o próprio corpo, em um


sistema de autovigilância que é aprendido através do conjunto de informações
gerados sobre determinada necessidade de prevenção – já que “tratar sem
estar doente” é contra intuitivo, integrando uma certa racionalidade, de uma
certa relação corpo-experiência, na qual “o corpo parece estar servindo como
base para uma saúde que prescinde de um oposto para ser objeto de
preocupação e investimento” (Azize, 2006).
O documento publicado pela UNAIDS em 2015 intitulado Oral Pre-
Exposure Prophylaxis: Putting a new choice in context, ilustra alguns dos
princípios deste sistema auto vigilante como demonstrado na Figura 1, retirada
do documento original.

Figura 1:

O texto aposta em uma “mudança bem sucedida" nos rumos da


prevenção, através da divulgação de informações apropriadas sobre a PrEP,
utilizando-se da propaganda científica como método para alcançar o objetivo
principal: dar fim a epidemia. O texto também propõe que, a partir do contato
com a PrEP, é possível estimular a criação de uma "conduta sexual segura"
por parte dos usuários. Segundo o documento, os ensaios clínicos indicariam
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

que as pessoas que começaram a usar PrEP demonstraram maior interesse


por estratégias safer-sex ao invés de abandonar os métodos já vigentes. O
contato com a PrEP poderia, então, "habilitar" a pessoa a considerar seu tipo
de comportamento sexual como mais ou menos seguro e ajudar a lidar com o
medo e a negação de estarem vivendo sob o risco de infecção.
Além disso, o documento fala em uma mudança do roteiro sexual, no
que tange a ação preventiva dos indivíduos. Diferente das outras tecnologias
de prevenção – cuja a prática implica, em algum nível, a participação de outras
entidades que não só um sujeito isoladamente –, a PrEP depende do consumo
individual, diário e constante de um conjunto de fármacos pelos interessados. E
aí se localiza a principal diferença entre os métodos profiláticos: o uso da
camisinha, por exemplo, requer graus mínimos de negociação e ação coletiva.
Excetuando os casos de violência sexual, sabemos que usar camisinha – seja
ela masculina ou feminina – estabelece, entre os indivíduos envolvidos, uma
situação que, de modo geral, envolve um alto grau de interação. É preciso que
em algum momento se mencione o uso do preservativo para então
desencadear uma série de ações; optar por usá-lo, vestir o látex, certificar-se
de que está colocado de forma correta, lubrificá-lo e, após o ato sexual, conferir
a integridade do material utilizado. Todas essas ações implicam engajamentos
de todos os participantes, de modo simétrico ou assimétrico, de maior ou
menor responsabilidade. Por outro lado, o uso de remédios preventivos implica,
quase exclusivamente, na ação individual de consumo do fármaco. Neste
sentido, a PrEP responderia aos anseios de autonomia, liberdade e auto
cuidado, valores medulares nas sociedades ocidentais modernas, mas que
podem ofuscar as articulações sociais pertinentes neste processo de
construção de uma profilaxia medicamentosa.
Por mais que os discursos institucionais orientem a combinação do
medicamento à outras formas de prevenção, no caso da PrEP a sua eficácia
deriva, quase exclusivamente, do engajamento do sujeito ao ritual diário de
ingestão de uma pílula. A tecnologia é produzida como eficiente em si mesma,
e, mediante o consumo da substância, pretende funcionar de forma
independente. A dinâmica do medicamento preventivo ecoa universal, embora
os documentos tenham demonstrado preocupação com os níveis comunitários
de inserção da nova tecnologia.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Entretanto, a questão que se mostra central no processo imediato de


implementação da PrEP nos sistemas de saúde nacionais, em especial o
brasileiro, é o deslocamento, dentro dos dispositivos de controle da epidemia,
da gestão mediada por diversos níveis de recursos humanos para a gestão
centralizada nas ações do indivíduo. De modo geral, o discurso adotado nos
guias e protocolos de atendimento aposta na eficiência da tecnologia e no
engajamento individual para com as rotinas de prevenção prescritas. Há uma
espécie de “racionalização” dos métodos preventivos, cujo efeito mais imediato
resultaria na economia das forças de trabalho fundamentais para a promoção
de políticas preventivas de fato eficazes – desenvolvimento de material de
campanha, dispêndio de insumos gratuitos, programas de capacitação dos
agentes de saúde, organização de parcerias com secretarias regionais de
saúde, educação e cultura, etc. – em prol do incentivo ao gerenciamento
individual tanto do uso do medicamento quanto das outras ferramentas
disponíveis no repertório das Prevenções Combinadas.
Embora o acompanhamento clínico dos usuários esteja previsto como
parte integrante das políticas de prevenção propostas, a ideia de "combinar"
métodos está diretamente relacionada a ideia de escolha do indivíduo. Como é
descrito no protocolo brasileiro,

"Devem-se ofertar às pessoas que procuram os serviços de saúde estratégias


abrangentes de prevenção, a fim de garantir uma maior diversidade de opções que
orientem suas decisões. A pessoa deve escolher o(s) método(s) que melhor se
adeque(m) às condições e circunstâncias de sua vida, tendo como princípios
norteadores a garantia de direitos humanos e o respeito à autonomia do indivíduo"
(Brasil, 2017:11-12).

Percebe-se que as instruções de implementação continuam


generalistas. É verdade que esse tipo de documento não se preocupa com as
ações práticas das políticas públicas pois estas estariam no domínio dos
agente locais e das estruturas territoriais específicas. Porém, os discursos
elaborados através de suas diretrizes são particularmente interessantes para
apreender o tipo de transformação que afeta, atualmente, o modo como as
abordagens de prevenção são estipuladas.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Conclusão

De fato, as grandes descobertas biomédicas foram (e ainda são)


essenciais para a diminuição de óbitos, a promoção de qualidade de vida dos
atingidos e o controle da epidemia. O propósito deste trabalho não é negar a
existência ou relevância das novas abordagens preventivas, mas construir uma
narrativa antropológica sem sobrepor os processos de biomedicalização às
construções sociais, políticas e morais em torno do fenômeno da Profilaxia de
Pré-Exposição.
No caso do Brasil, os mais recentes retrocessos no campo da política
representativa nacional também atingiram em cheio os programas de
prevenção nacionais, provocando uma involução das iniciativas culturais
produzidas ao redor da Aids, em especial aquelas que se dedicavam a pensar
ambientes escolares e/ou a inclusão ativa de profissionais do sexo no cerne
das campanhas de incentivo ao uso da camisinha4. A recente tentativa de
aprovação no Congresso Nacional do projeto de lei que torna crime hediondo a
transmissão deliberada do HIV (PL nº 198/2015) reacendeu as discussões
sobre a incidência desse tipo de jurisprudência a respeito dos indivíduos
soropositivos (Paiva et al, 2015). Apesar de o parecer inicial da relatora do
processo ter sido negativo, tal empreendimento acionou o sinal vermelho de
pesquisadores, movimentos sociais e instituições preocupados com o combate
à epidemia no país (Pereira et al, 2015). Soma-se ainda que a PrEP significa
um aumento do orçamento das respostas à Aids em tempos de cortes
substanciais nas áreas estratégicas do Estado, o que poderá inviabilizar, nos
próximos anos, tais programas de assistência e prevenção.
Por fim, o que buscamos construir foi um argumento sobre como a
mudança de abordagem acerca da Aids – e, principalmente, de como evitá-la –
se sustenta a partir do acirramento de um processo individualista, impactando
na forma como se orientam os valores, os comportamentos e os saberes,
formais e informais, em torno das tecnologias de prevenção mais atuais. O

4
As proibições do material de educação sexual nas escolas apelidado sarcasticamente de ‘kit
gay’ (https://goo.gl/eTYQJ3) e da campanha "Eu sou feliz sendo prostituta" sobre prevenção de
DSTs entre profissionais do sexo (https://goo.gl/2dxIR) demonstram o quanto o
conservadorismo religioso pode afetar negativamente as tentativas de se construir, na
sociedade civil, um debate qualificado e necessário sobre sexualidade e prevenção.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

estabelecimento de uma nova estratégia, embora envolvida à anúncios


entusiasmados, pode encontrar barreiras decisivas para sua efetivação,
determinando mais uma vez novas transformações nos rumos da epidemia.

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Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Prazer e Risco: o desafio entre as políticas de saúde contemporâneas relacionadas


ao HIV / AIDS e os roteiros eróticos de homens que fazem sexo com homens
Victor Hugo de Souza
Barreto1 Resumo:
Esta comunicação, baseada no método etnográfico, busca investigar as relações entre
prazer e risco existente nos “roteiros sexuais” presentes entre homens que frequentam
espaços comercias ou organizam eventos voltados ao sexo no contexto da cidade do Rio
de Janeiro. Partindo da observação de que termos como “prevenção”, “cuidado” e “risco”
são polissêmicos, isto é, seus significados e usos são sempre relacionais e contextuais,
busco nessa comunicação compreender como esses termos são ali ressignificados ou
onde tomam sentidos originais, principalmente na tensão entre o prazer e o risco. Tomo
como objeto de análise as práticas sexuais enquadradas como comportamentos para a
prevenção de doenças, o cuidado de si e a avaliação dos “riscos” – ou a ausência/falta
delas – como experiências sociais e subjetivas, analisando principalmente a maneira com
que marcadores sociais como gênero, raça, classe, sexualidade etc. podem influenciar os
sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas ações.
Palavras-chave:
Gênero; Sexualidade; Saúde; Prevenção; HIV/AIDS

Introdução
Esta comunicação, baseada no método etnográfico, busca investigar as relações
entre prazer e risco existente nos “roteiros sexuais” (Gagnon, 2006) entre homens que
frequentam espaços comercias ou organizam eventos voltados ao sexo principalmente no
contexto urbano da cidade do Rio de Janeiro. Partindo da observação de que termos
como “prevenção”, “cuidado” e “risco” são polissêmicos, isto é, seus significados e usos
são relacionais e contextuais, busco nesse trabalho compreender como esses termos são
ali ressignificados ou onde tomam sentidos originais próprios em suas práticas,
principalmente na “tensão libidinal” entre o prazer e o risco. Tomo como objeto de análise
as práticas sexuais percebendo em que medida dimensões “sensoriais” e “sensuais”
também mobilizam decisões e escolhas, colocando em cheque a racionalidade
instrumental prevalente no campo da saúde. Práticas sexuais são entendidas aqui como

1Pesquisador de Pós-Doutorado (PDJ/CNPq) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Social do Museu Nacional/UFRJ.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

experiências sociais e subjetivas, interseccionadas por fatores como gênero, etnia, classe,
sexualidade, idade etc. que influenciam significativamente os sentidos atribuídos pelos
sujeitos às suas ações.
Autores como Silva e Iriart (2010) apontam como no campo da prevenção da
infecção pelo HIV, “uma das dificuldades é se comunicar de modo adequado com grupos
populacionais com comportamentos considerados de maior risco para a saúde, o que
enfatiza a necessidade de problematizar modelos e referências utilizados na construção
de projetos para a prevenção do HIV”. No caso HSH, por exemplo, as “convenções
sociais acerca de gênero e de sexualidade que norteiam classificações, condutas e
identidades sexuais devem ser consideradas ao pensarmos tais campanhas” (Gamboa,
2013, 16). Nesse sentido, pensar como são negociadas a prevenção para esses homens
é pensar a maneira como se constrói determinados “roteiros de gênero” e “roteiros
sexuais” em contextos específicos. Fica destacado, portanto a importância de estudos
etnográficos nesses contextos e sua contribuição para a construção de conhecimento
sobre dimensões dos “roteiros sexuais” e sua relação com as práticas sexuais
enquadradas como comportamentos para a prevenção de doenças, o cuidado de si e a
avaliação dos “riscos” – ou a ausência/falta delas.
Apresento aqui alguns dos dados e das questões que apareceram durante o
trabalho de campo para a realização de minha Tese de Doutorado em Antropologia,
recentemente publicada em livro (Barreto, 2017). Ali realizei uma análise sobre a prática
do sexo grupal/coletivo realizada entre homens em reuniões ou eventos de orgia. Mais
especificamente uma etnografia de festas de orgia entre homens que acontecem na
cidade do Rio de Janeiro.
O desenvolvimento desse trabalho deu-se do acompanhamento durante dois anos
e meio (do início de 2013 à metade de 2015) de quatro dessas festas de orgia que
acontecem periodicamente no Rio2. Elas acontecem em torno de uma ou duas vezes ao
mês, uma delas semanalmente, em diferentes locais da cidade seja em clubes, saunas,
apartamentos comerciais, ou mesmo em um sítio ou em um barco. Dessas quatro festas,
duas fazem o que eles chamam de processo seletivo, isto é, há uma escolha ou avaliação
do público que pode entrar no evento. E as outras duas são abertas a quem quiser ir,
desde que corresponda à exigência de ser homem e a um perfil de masculinidade
desejado, é claro. O número de participantes varia muito, mas fica em torno de 150 a 200

2 Acrescente-se os nove meses de pesquisa durante o doutorado-sanduíche financiado pelo CNPq


realizado na cidade de Lisboa, Portugal no ISCTE-IUL.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

homens naqueles eventos que não exigem seleção e no máximo 50 naqueles onde há o
processo seletivo.

Dediquei-me, por um lado, a mapear as orgias entre homens enquanto zona de


intensidade, propondo-me a investigar antes territorialidades do que identidades, e, por
outro, a descrever e analisar o funcionamento desses eventos tal como acionado pelos
frequentadores dessas festas. A estratégia que adotei na Tese é a de tentar mapear esse
campo através do elemento do desejo, tornando-o “objeto” e fio condutor da análise. O
que proponho é me aproximar, portanto, de uma “antropologia do desejo” (Perlongher,
1993), procurando compreender de que forma são compostos ou acionados esses fluxos
de desejo e como se agenciam a outros elementos.

Percebi que esses espaços comerciais dedicados à encontros sexuais coletivos


eram importantes na medida em que ofereciam um terreno privilegiado para a
investigação da produção social, tanto material quanto simbólica, dos sujeitos e dos
corpos, “bem como das concepções e das experiências de vida e de morte implicadas
nessa produção” (Vargas, 2001,215). Nesse sentido, tal como lembra Vargas, é
importante considerar que nem sempre os humanos se definem como sujeitos e servem-
se de seus corpos de uma maneira extensiva, ou segundo critérios extensivos (op.cit.); o
que eu demonstrei na Tese é que o que a experiência (ou a experimentação) da
sexualidade nessas festas coloca em jogo são outros modos de subjetivação e
corporalização, modos propriamente intensivos, onde o “se jogar” nos instantes de
intensidade das interações sexuais possíveis nas festas é “se perder” e fazer fugir os
aspectos extensivos como trabalho, família, casa, saúde e todos os valores morais
correspondentes a eles.

Atentar para esses eventos intensivos é me aproximar aqui de etnografias que já


vêm trazendo um deslocamento de questões para uma busca de um entendimento mais
próximo ao que as pessoas dão às práticas que realizam. Pesquisadores como Vargas
(2001), Eugenio (2006), Ferreira (2006) e Rocha (2011) apontam como em diferentes
contextos como de uso de drogas, shows de música eletrônica, a prática de esportes
radicais e idas a boates, existem eventos que envolvem agenciamentos paradoxais de
autoabandono, que visam “sair de si”, o êxtase, o descentramento. Tomam a “onda”, a
“vibe”, a “loucura” (assim como eu tomei a “sacanagem” e a “putaria” na Tese e proponho
a relação entre “prazer” e “risco” aqui), como envolvendo modos singulares de
engajamento no mundo.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

O que há nesses eventos é o que Deleuze chama de “ética da potência” (Machado,


2013,72). Porém, é claro que a busca, a vontade de alcançar uma “enésima” potência, ao
mesmo tempo em que pode se apresentar como força criadora, maneira de
singularização e (por que não?) de extremo prazer, ela também tem um potencial
destruidor, de risco, de aniquilação. São como os momentos de “fissura” conceituados por
Díaz-Benitez, como aqueles instantes de fronteira, onde as práticas (ainda que
consentidas) “alcançam uma intensidade que não era possível prever ou antecipar” e “que
rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções
que evocam mais perigo do que prazer”. (2014,1). A questão que se coloca a todo tempo
nas festas de orgia tinha a ver justamente com essa manipulação dos limites, o controle
de si e a imersão nesses êxtases, devires e estados de alta intensidade. Nesse sentido, o
que passa nesses espaços seriam acontecimentos onde determinadas práticas sexuais
estariam na borda do que Gregori chama de “limites da sexualidade”, que seria “a zona
fronteiriça onde habitam norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e
dor” (2010,3). É sobre a questão dos limites, suas fissuras e sua relação sempre tensa
entre a “onda” da “putaria" e o prazer, a dor, o perigo e os riscos que irei me ocupar nas
próximas páginas.

Prazer e risco

“Se jogar” nesses espaços é, de certa forma, um “empreendimento de risco”, tal


como conceitua Gregori, um evento onde “o risco à integridade física e moral das pessoas
é uma possibilidade aberta e não dada de antemão” (op.cit.). E onde a própria ideia de um
perigo imprevisível torna-se atrativa e com alto potencial erótico. Não foram poucas as
vezes em que pude observar pessoas interagindo sem camisinha ou em que ouvi
comentários dos participantes como: “as pessoas aqui são muito loucas, todo mundo
transando sem camisinha! Porra, não é porque você tá numa putaria que precisa fazer
isso. Nem é só pela Aids, é por um monte de coisa, pela sujeira mesmo, vai ficar enfiando
o pau em qualquer cu?”. Transar sem o preservativo não seria uma ação motivada pela
falta do mesmo, já que em todas as festas acompanhadas tanto camisinhas quanto gel
lubrificante foram distribuídos ou então espalhados pela casa em grande quantidade.

Cara, a gente costuma receber uma certa quantidade do Ministério da


Saúde ou de alguma ONG e eu ainda faço questão de comprar mais com
dinheiro do meu próprio bolso. Mas vou te dizer, do que eu vejo
acontecendo nas minhas festas e do que sobra de camisinha no final, só
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

uns 30% devem usar mesmo. Claro que tem aqueles que já trazem
camisinha e gel de casa, já vêm preparados, gostam de um determinado
tipo ou marca e tal. As que eu tenho são aquelas de posto, pessoal
reclama... Mas mesmo assim, eu vejo porque sou eu que ajudo a limpar
tudo no final, né? (organizador)

Ou como me resumiu outro organizador: “não sou fiscal de foda de ninguém, sei
que tem bareback (sexo sem camisinha), mas meu papel eu faço, forneço o kit-foda”.
Segundo os organizadores, portanto, seria da responsabilidade de cada um o cuidado de
si mesmo, não são “babá de homem grande”, “até porque todo mundo sabe que vários
soropositivos frequentam a festa”. Ser soropositivo aqui é muito mais tido como uma
categoria de acusação (principalmente daqueles que “se jogam” mais) do que uma
condição que seja assumida de forma aberta e pública. Mas, certa vez, presenciei uma
exceção: numa roda de conversa com uns dez homens na área dos armários ao final de
uma festa onde o tema debatido era a PrEP e um dos presentes se pronunciou: “eu acho
ótimo! Principalmente para mim que sou soropositivo”. A informação foi recebida com um
silêncio constrangedor ao que ele continuou: “mais alguém aqui é? (novo silêncio) Claro
que tem mais, só que ninguém tem coragem pra falar isso, né?”.

Um dos fatores mais práticos para se deixar o preservativo de lado me foi apontado
por um participante: “como é que eu vou carregar camisinha e gel pelado desse jeito? A
galera aqui guarda dentro da cueca ou então colocam dentro da meia, até já vi gente com
uma bolsinha pendurada no pescoço tipo aquelas pra carregar documento e dinheiro no
Carnaval, sabe? Acho desconfortável”.

Imagina, você está naquela coisa intensa no banheiro que fica em uma das
pontas da sauna. Aí para pegar camisinha você tem que ir lá na recepção
que fica lá do outro lado da sauna. Você vai conseguir interromper, pausar,
descer até o seu armário ou então na recepção, pegar os apetrechos, voltar
e continuar de onde parou? Ou então pensando que você tá no meio de
uma galera como é aqui. Não tem como... Você consegue?

Para além de uma “dificuldade logística” e de interrupção da intensidade do


momento da interação para se procurar e colocar a camisinha, o que percebo ser
elaborado na decisão do uso ou não do preservativo é a construção do que Pelúcio, em
sua pesquisa sobre a prevenção de doenças na prostituição travesti, chama de uma
“hierarquia de riscos” (2009). Um exemplo clássico é aquele referente às posições
durante o ato sexual, da exigência da camisinha se você for atuar como passivo naquela
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

interação, mas a não obrigatoriedade se você for o ativo, “só coloco se pedem, senão vai
sem mesmo”. Esse pensamento seria justificado pela ideia de que é só quando você esta
sendo passivo é que tem mais chance de se contaminar com alguma coisa. Ou de como
após uma interação sem o preservativo que eu acompanhei, aquele que estava sendo o
passivo se virou e disse para o outro: “nossa, que loucura! A gente nem chegou a usar
nada!” e o outro respondeu: “Pode ficar tranquilo, eu sou casado”. Como se o fato de
estar casado o fizesse uma pessoa com menos perigo de contaminação, mais pura.

Esta hierarquia relaciona-se com a classificação do parceiro(a) como


alguém conhecido/familiar e desconhecido/estranho, e as associações que
daí advêm: confiança, segurança versus perigo e risco respectivamente. No
cômputo da elaboração dessa escala hierárquica entram, ainda, as práticas
eróticas e que posição se assume nelas. O ativo/penetrador/emissor, tanto
na penetração anal ou oral, vê seus riscos diminuídos. Enquanto o(a)
parceiro(a) passivo/penetrado/receptor se arrisca consideravelmente. E aí
entra todo o simbolismo, não só dos significados da cadeia passivo/
penetrado/receptor associado ao desvio, ao perigo e ao impuro, como
também as representações acerca dos fluidos corporais (op.cit, 174-175).

A ideia das práticas e dos “prazeres perigosos” é preciso ser olhada com mais
atenção. O “se jogar”, se arriscar, ou se colocar numa situação de potencial perigo
principalmente naqueles relativos a algum tipo de contaminação não acontece por algum
desconhecimento ou falta de informações técnicas sobre formas de contágio. Nem
mesmo uma “atitude rebelde” de desobediência ao controle médico dos “poros e das
paixões” (Perlongher, 1985). O que eu percebo é a elaboração de um conhecimento
outro, próprio, que usa de vários elementos, sejam eles vindos do saber médico, do
cotidiano, e/ou de experimentações próprias. O que há ali é uma “ciência do concreto”, a
elaboração de um saber construído e posto em prática (nem por isso menos “científico”)
sobre o que é risco, o que é perigoso, sobre formas de contaminação e maneiras e
técnicas para evitá-las3.
Se expor ou não a algo é um “cálculo infinitesimal” feito a partir do prazer que se
sente, da intensidade da interação e do que se percebe como riscos menores ou maiores.
Tomemos um exemplo para que fique mais claro, o do sexo oral: durante todo o trabalho

3Em “O Pensamento Selvagem” (1989), Lévi-Strauss argumenta contra a ideia de que os povos indígenas
tenham algum tipo de lógica ou pensamento menos racional que a dos europeus e chamou o pensamento
elaborado pelos nativos de “ciência do concreto”. O autor argumenta que havia ordem e método no que a
princípio poderia ser classificado como associações caóticas entre elementos da natureza como plantas e
animais e sua relação com instituições sociais. “Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo
sentido, de seu excesso”.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

de campo nunca observei alguém fazer sexo oral usando preservativo; ainda que essa
seja uma recomendação médica, sabe-se que a possibilidade de contaminação por esse
ato é muito pequena. Uma quantidade muito pequena de risco principalmente diante da
quantidade de prazer que proporciona. Isso não quer dizer que não haja várias técnicas.
Ainda no exemplo do sexo oral sem preservativo vários conhecimentos são
compartilhados: você precisa observar se o pau é muito “babão” (ou seja, se ele libera
muito líquido seminal); se sim, você pode guardar o líquido na boca e cuspir de tempos
em tempos, evitando engolir a “baba”. É melhor evitar a ejaculação direto na boca, se não
conseguir evitar, uma opção é que o esperma seja imediatamente cuspido; se não quiser
ou não conseguir cuspir, então que ele seja engolido rapidamente (“o ácido do estômago
mata todos os vírus, é mais fácil se contaminar na boca que no estômago”); lavar a boca
com enxaguante bucal depois é outro cuidado para se diminuir os riscos de alguma
contaminação. Contrário a esse “ensinamento”, certa vez ouvi no banheiro: “se você fez
sexo oral eu não indicaria fazer isso (usar o enxaguante bucal). Listerine tem ácido e pode
machucar”. Trata-se de um conjunto de conhecimentos, receitas pessoais e uma
determinada medicina particular criada e compartilhada pelas pessoas ali. Há toda uma
ideia do que se pode ou não fazer, do que pega ou não pega, do que é risco ou não,
enfim, uma profilaxia própria. Não é só a hierarquização de riscos, é uma elaboração
própria de conhecimento, tal como uma “ciência do concreto”.
Outro exemplo é o da própria penetração anal: deve-se primeiro reparar no pênis e
evitar os “paus babões”. Se a interação estiver caminhando para o não uso do
preservativo, começa-se colocando o pênis aos poucos: “vou só brincar, só colocar a
cabecinha, só mais um pouco”. O uso de bastante gel ou saliva para evitar o atrito é
recomendado. Se a penetração sem a camisinha ocorrer de fato, que se evite os
movimentos bruscos ou uma penetração mais agressiva, “assim você não rompe vaso
nenhum, não se machuca, mas é preciso estar bem relaxado e nunca, nunca, deixe gozar
dentro, porque esse é que é o perigo todo, sempre fora”.
Percebe-se toda uma gradação de riscos em que uma série de cálculos deve ser
feita para dosar o que é mais ou menos perigoso aliado ao quanto de prazer pode ou não
proporcionar. Assim são decididos e negociados os usos de preservativos, o contato com
o esperma, as práticas sexuais em geral. “Qual o perigo de pegar alguma coisa com isso?
Qual o prazer que me proporciona? O quanto estou disposto?”; são perguntas feitas a
todo momento, a cada nova interação e a cada nível de intensidade das práticas. Além
disso, outros fatores são agenciados nesses cálculos como a apresentação corporal do
outro, cheiros, toques, cor, idade etc. Você pode estar mais disposto a determinadas
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

práticas com uma pessoa que com outra levando esses fatores em consideração, aqueles
que, por inúmeras razões, podem “te passar mais confiança” (Gamboa, 2013).

Os caras escolhem com quem vão transar sem camisinha. Olham um


cara gato, corpão, com aparência saudável, tranquilo, imaginam que
uma pessoa daquela não deve ter nada. O cuidado vai aparecer
naqueles que eles acham que estão mal cuidados, magros demais, com
aparência de doentes ou que sejam muito putos que devem transar com
um número muito grande de pessoas e não se cuidam e tal…

Claro que a erotização dos riscos é algo que aparece, que não é necessariamente
o mesmo de algum desejo ou procura pela morte, mas sim de eventos ou situações que
envolvem um risco “tornando a própria vida parte integrante do jogo que se quer
jogar” (Rocha, 2011, 63). Se assemelha ao que os praticantes de esportes radicais
pesquisados por Verônica Rocha colocam como uma tensão que traz um sentido à vida
que se quer viver: colocar a vida em risco e “brincar” com ela não é de forma alguma
procurar a morte, mas sim intensificá-la, o risco e o perigo libertando de uma “morte em
vida”. O desejo de estímulos sensoriais que proporcionem um modo de vida “original”,
“grandioso”, “prazeroso”, “ativo” e “excitante” (op.cit., 78).
Não que a opção mais extrema pelo perigo também não possa ser tomada. A
prática sexual bareback e seus riscos implícitos também é muito desejada nesses
espaços4. Durante o trabalho de campo foi possível perceber a organização de várias
outras festas paralelas que se colocam como exclusivamente de prática bareback , e
também de eventos de “roleta russa” ou mesmo de “festas de conversão”, onde sabe-se
da presença de soropositivos e joga-se com uma situação de possível contaminação. São
festas diferentes (e mais específicas) daquelas que pesquisei, mas que, de certa forma,
também as atravessam, com participantes que frequentam ambas. Mas mesmo nas
festas de orgia é possível ver práticas onde se deixa “gozar dentro”, “engolir o gozo”,
“tomar o leite”, “espalhar ele pelo corpo” ou mesmo de relatos de participantes que
recolhiam camisinhas usadas do chão dessas festas para tomarem o gozo ou se
banharem. Lembro da minha surpresa ao ver um interlocutor conhecido saindo do meio
de uma aglomeração no dark se aproximar de mim e pegar minha mão para passar na
perna dele e dizendo sorrindo: “é porra seca. Tô todo colado. Acho que uns dois gozaram

4Sobre a prática barebacking, conferir artigo de Garcia (2009) que problematiza a origem do termo e busca
trazer algum entendimento sobre esse desejo dentro de um contexto maior de políticas de saúde e do que o
autor chama de “terrorismo biológico”.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

dentro”, levou a minha mão a seu ânus e disse: “sente, coloca a mão aqui para você ver
como ela está escorrendo”. Por ser uma pessoa com a qual estabeleci um contato maior
não pude evitar a reprodução de um discurso normalizador e de cuidado com a saúde, ao
que fui rebatido com um “tenho o meu direito a me foder se eu quiser”, para o qual não
tive resposta. Meu choque vinha de uma dificuldade inicial de entender (ou aceitar) que
também se pode optar pelo risco, por um caminho perigoso (ou por uma outra noção de
“cuidado”) em prol de outra coisa, daquilo que se acredita que seja o melhor. Esse direito
se relaciona com o que eles chamam de “ligar o foda-se” se jogando perdidamente no
intensivo, no excesso, em uma linha de abolição.
Na tensão entre prazer e risco, os elementos do consentimento e da
responsabilidade voltam com força, seja para consigo mesmo e/ou também com o outro.
O que meus interlocutores apontam é que mesmo os riscos também precisam ser
consentidos e que suas consequências cabem à responsabilidade individual:

“Cara, eu vi gente ali que nem via quem metia nelas, ainda mais se estavam
com camisinha ou se aquela camisinha estava sendo usada em outro. Saía
um, outro ocupava o lugar e o cara nem aí”

“Eu acho que o outro tem que ter caráter, uma coisa é o cara avisar pra
você: ‘Olha, eu sou soropositivo. Você quer fazer com ou sem camisinha?’
Ou mesmo que ele não tenha nada, tem que acordar antes! Se o cara tenta
sem perguntar, eu fico desconfiado e não transo mais com a pessoa”

“Se você tá chupando o cara, ele tem que te avisar que vai gozar antes, isso
pra mim é muito básico. Pra você se preparar, pra poder decidir se deixa ou
não. E se eu não quero? E se eu não gosto de porra? E mesmo que eu
goste, quem disse que eu vou querer engolir a tua? Eu fico muito puto
quando o cara acha que pode gozar. A mesma coisa de querer gozar no
rosto ou no cu e, principalmente essa coisa de camisinha, é “de bom tom”
pedir antes, não tô falando nem de educação não, por uma coisa meio de
ética também, sabe? Como é, já vai sair gozando ou metendo assim?”

No limite, portanto, a decisão de fazer “com capa” ou “no pelo” e do contato mais
direto com o esperma do outro deve ser acordada consensualmente e é de
responsabilidade individual de cada um. Porém, durante o trabalho de campo repercutiu
uma notícia nos meios midiáticos relacionada ao que ficou conhecido como “Clube do
Carimbo”. A polêmica que se iniciou a partir de um blog da internet e já bastante
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

comentado nas festas, ganhou repercussão após algumas matérias de tom


sensacionalista no programa dominical “Fantástico”, da Rede Globo. O blog trata do
compartilhamento de textos, fotos e vídeos sobre a prática bareback e incentivando que
pessoas soropositivas transmitam o vírus (que “carimbem”) de propósito a outras, a partir
de técnicas como furando a camisinha antes do ato ou retirando o preservativo durante o
sexo sem que o parceiro perceba. A intencionalidade da contaminação retirando o poder
de consentimento do outro fez com que durante alguns meses esse fosse o tópico de
debate durante algumas conversas na festa. Muitos pesquisadores da área relativa à
saúde se pronunciaram para desmistificarem alguns sensos comuns sobre a ideia de
contaminação colocados ali e do risco de que essa midiatização sensacionalista gerasse
um “pânico moral” (Rubin, 1998) e uma perseguição para as pessoas que convivem com
o HIV e com aqueles que, costumeiramente, são associados à doença: homossexuais,
transgêneros e profissionais do sexo.
Nas festas, a ideia de uma contaminação intencional pairou como um fantasma por
alguns meses, às vezes sendo ironizada e tratada na chave do riso como maneira de
exorcizá-la, mas nem por isso deixada de ser levada a sério: “eu, por via das dúvidas,
prefiro usar a minha camisinha e sempre confiro com a mão pra sentir se o cara tá usando
mesmo. Já fazia isso antes dessa história, mas agora redobro minha atenção, porque têm
mesmo alguns caras que tiram no meio, isso eu já vi acontecer, é muito escroto”.
Não quero afirmar que toda prática bareback tenha a intencionalidade de uma
contaminação, ou de que o sexo sem camisinha seja uma questão de abuso e muito
menos que o espaço das festas sejam “antros de doenças e contaminação”. Essa seria
uma associação injusta e inconsequente5.
O que pretendi aqui, ao trazer esses dados observados para o debate, é apontar
como a tensão “prazer-risco” torna-se essencial para se problematizar e questionar tanto
o vínculo e a intersecção entre “sexualidade”, “gênero”, “saúde” e “Estado” quanto
questões relacionadas a prevenção de doenças, o cuidado de si e a avaliação dos “riscos”
e suas formas de apropriação e ressignificação em contextos particulares assim como
para o entendimento de desejos que se colocam na fronteira com o perigo, em práticas
que se encontram nos “limites da sexualidade”.

5 Até porque a prática do sexo sem camisinha pode adquirir sentidos diferentes a depender do contexto. A
decisão de não se usar preservativo nas relações amorosas (tanto hetero quanto homossexuais) podendo
significar, por exemplo, um voto de confiança e um passo maior de intimidade entre o casal. Ou mesmo na
prática da prostituição em que o uso do preservativo é associado à dinâmica do programa e ausente nas
relações de contexto amoroso. Interessante perceber como o termo bareback se prendeu ao contexto das
relações sexuais entre homens e sempre atravessado pelo debate da contaminação.
Grupo de Trabalho 7 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências Bibliográficas
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Grupo de Trabalho 8
Pluralismo terapêutico e na
contemporaneidade
Coordenadoras: Carlos Caroso (UFSB); Fátima Tavares
(UFBA) e Octavio Bonet (UFRJ)
Grupo de Trabalho 8
Pluralismo terapêutico na contemporaneidade
A questão terapêutica na contemporaneidade compreende processos
dinâmicos em que se intensificam a pluralidade de entrecruzamentos entre
terapêuticas tradicionais e/ou populares, terapêuticas alternativas, terapêuticas
religiosas no âmbito do espaço público. Processos de disseminação,
resignificação e assimilação de práticas terapêuticas podem ser
compreendidos em sua dinâmica rizomática, um sistema aberto que “subverte”
o modelo “arbóreo” de estruturação das terapêuticas convencionais no âmbito
dos sistemas de saúde. As heterodoxias terapêuticas atravessam o espaço
público, e sem configurarem um sistema estruturado alternativo ao oficial,
mobilizam novas conexões e imprimem dinamismo à paisagem terapêutica
contemporânea. Do ponto de vista do sistema de saúde podemos pensar a
disseminação dessas terapêuticas operando por “contágio” nos meandros das
práticas “oficiais”, ora minando sua capacidade “subversiva”, ora gerando
novos processos de legitimação terapêutica. O pluralismo terapêutico pode ser
investigado em sua dimensão processual, isto é, como agenciamentos
terapêuticos: nessa perspectiva as relações entre centro (biomedicina) e
periferia (heterodoxias terapêuticas) ganham novos contornos e relativizando
repartições dualistas entre tradição e modernidade, público e privado, saberes
científicos e tradicionais, biomedicina e heterodoxia terapêutica. Assim,
podemos acompanhar os agenciamentos terapêuticos “tradicionais” (indígenas,
religiosos e outros) que podem atravessar espaços “modernos” e centrais na
sociedade contemporânea, fazendo com que o pluralismo terapêutico esteja
em muitos lugares. Enfim, a proposta desta Mesa de Trabalho é refletir sobre o
pluralismo terapêutico, investigando possíveis afinidades entre a ideologia das
terapêuticas e uma revalorização da dimensão “vivida” da experiência social.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Saberes de uma Doutora Raiz: tem uma farmácia em cada esquina

Cristina Diógenes Souza Bezerra1

Resumo

A imbricação entre saberes e práticas terapêuticas é percebida nas narrativas da Doutora


Raiz que esta pesquisa se foca. Advinda de um contexto rural no qual não havia acesso aos
recursos da biomedicina, Dona Francisca entrou em contato com as terapêuticas tradicionais das
ervas da terra desde a infância. Ao longo da sua trajetória de vida marcada por mudanças
territoriais e eventos-críticos ela teve contato com o saber médico oficial e nessa interação
descobriu-se com uma doença crônica, Artrite Reumatóide, mas nessa situação ela afirma que
“Quando acordei pra vida, vi que remédio natural vale melhor que remédio de médico” (D.
Francisca, entrevista realizada em 23 de dezembro de 2015). Baseando seu tratamento com
plantas da região, ela demonstra a interação com esse saber biomédico através: dos relatos de
atendimentos no SUS e clínicas particulares; na busca pela legitimação dos seus produtos –
garrafadas, lambedores, sabonetes – através da produção científica na área, na interação com
outros agentes terapêuticos e pesquisadores; além da eventual utilização de remédios alopáticos.
Esse entrecruzamento de saberes é latente em uma de suas frases mais recorrentes: “tem uma
farmácia em cada esquina”, se referindo à necessidade de reconhecer o potencial medicinal das
variedades vegetais que não percebemos pois são lidas como apenas “mato”. De tal forma que
esta pesquisa realizada durante dois anos, revela aspectos desse pluralismo terapêutico a partir
dos relatos de Dona Francisca que mesclando suas experiências de vida às das pessoas que a
rodeiam, frisa a necessidade do “conhecimento” e da “fé” para uma eficácia terapêutica - trazendo
a dimensão religiosa e científica ao passo que revela a capacidade de cura das ervas da terra.

Palavras-chave:
Antropologia da Saúde; Experiência da Doença; Saber Local; Eficácia Terapêutica.

Saberes de uma Doutora Raiz: tem uma farmácia em cada esquina

Essa pesquisa se baseia nos relatos de vida de Dona Francisca, advinda de uma
realidade social específica, a zona rural conhecida como baixa verde, no município de
Bento Fernandes, Rio Grande do Norte, nordeste brasileiro. Conhecida por Doutora Raiz
ou mulher das ervas no bairro que habita hoje, Pium, município de Parnamirim/RN ela
emana o conhecimento popular atrelado ao científico ao perceber o potencial medicinal de

1 Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

diversas espécies vegetais, corriqueiramente vistas como “mato” e indica “tem uma
farmácia em cada esquina”.
Imersa em um cenário de diversidade cultural e mudanças, como é o bairro
litorâneo do Pium, melhor descrito na pesquisa monográfica (BEZERRA, 2016), onde há a
presença de uma ruralidade em meio a urbanidade, construímos essa pesquisa
etnográfica a partir de seus relatos de vida (ALBERTI, 2004). Por meios dos quais ela nos
possibilita apreender algumas técnicas e rituais terapêuticos que vivenciou. Em uma das
entrevistas, explicou que seu lugar de origem, Riacho dos Paus, era muito longe de meios
urbanos e, assim, não tinha acesso médico algum. As pessoas tinham de ir, quando
doentes, para João Câmara, que fica a mais de 20 quilômetros de distância: “quando
morria colocava na rede e jogava na cova”. Nessa realidade de pouco contato com as
técnicas da medicina oficial, o habitus (BOURDIEU, 2004) ligado a segmentos
camponeses do Nordeste brasileiro fez também com que experimentasse diversos
tratamentos.
Dona Francisca narra que sua mãe, Dulce, às vezes, fazia remédio difícil e que
eles tinham uma particularidade: “ninguém podia saber do que era feito não, porque se
soubesse, não ficava bom”. Ela conta que as irmãs tinham asma, cansaço e que sua mãe
fazia um chá: “Pense num remédio difícil! Ele era feito com a entressola da sandália”.
Fiquei muito surpresa e apenas perguntei se era de couro e era. Como Dona Francisca
não tinha esses sintomas, ela podia ver o preparo. Mas o segredo fazia parte da receita.
Dentre as variedades vegetais locais encontradas no “mato” com as quais os remédios
eram preparados foram citados: Pereiro, Jurema, Fedegoso.
Sendo sua realidade social marcada pelo contato com as ervas da terra nos
processos terapêuticos que a rodiavam ela hoje apresenta um extenso repertório
etnobotânico. Ao percorrer o quintal com Dona Francisca, somos estimulados a perceber
todas essas plantas desconhecidas, talvez conhecidas apenas pelo nome, e somos
apresentados às suas utilidades, seu valor e modo de transformar em remédio. No dia
que fomos ao terreno atrás da sua casa, estávamos à procura do Mussambê, utilizado
para infecções bucais fazendo gargarejo do chá das folhas. Ela pegou pés de xanana
para um lambedor que ia fazer no dia, com a beterraba, cenoura e outros elementos para
o preparo.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Figura 1. D. Francisca no terreno atrás da sua residência após a colheita da Xanana (Turnera ulmifolia L.)
Fonte: Acervo pessoal. Maio, 2016

Sua trajetória de vida permitiu um habitus corporal vinculado à medicina popular, o


que inclui a prática terapêutica com as plantas. Isso possibilita um reconhecimento e
identidade enquanto mulher das ervas, por alguns clientes, Doutora Raiz, ou como diz
Loyola, erveira:
“Os erveiros, como os farmacêuticos de ervas industrializadas, além de venderem
seus produtos, dão consultas, fazem diagnósticos e prescrevem tratamentos;
entretanto diferentemente daqueles, comercializam produtos geralmente colhidos
e preparados por eles próprios, como folhas, raízes, “garrafadas” de ervas de
raízes em infusão, “pó tratado”, isto é, raízes tratadas e combinadas, donde o
nome “raizeiro”, pelo qual são também conhecidos. Seu local de trabalho, sua
linguagem e grau de instrução denotam desde loco sua inclusão entre as frações
mais baixas das classes populares” (LOYOLA, 1984, p. 40-41)

Há uma sutil diferença diante do trabalho de Loyola, pois Dona Francisca não dá
consultas ou faz diagnósticos, pois prefere que a pessoa já venha com um diagnóstico
médico. Ela prescreve o tratamento para a doença que já foi identificada por uma
autoridade médica. Ela produz as garrafadas a partir de folhas, raízes, cascas e sementes
com as variedades botânicas que planta e compra.
A partir do conhecimento sobre as ervas da terra de D. Francisca e sua interação
com o saber médico científico, propomos aqui a pensar sobre as interseções entre o
conhecimento científico e popular que existem na prática da Dr. Raiz:
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

“Francisca: Nunca mais tomei remédio de pressão, meu pai faleceu, uma coisa
que eu me admirei, que pedi muito a Deus eu não assisti o velório da minha mãe,
da minha irmã que faleceu, da minha tia, chega minha pressão me bota pro
hospital, eu num vejo mais sepultamento de ninguém da família, eu num suporto a
pressão. E esse de papai não, eu soube de noite, tive só uma reação na hora que
soube a notícia, travou as pernas, o treme treme. O menino “Já tomou seu
remédio hoje mãe?” era me preparando pra notícia. Falei “Não, vou tomar agora”
Botei logo uma chaleira no fogo, capim santo, amora e camomila, fiz uma garrafa
de chá, passei a noite todinha sem dormir, passei a noite todinha tomando chá, fiz
uma garrafa quente e outra gelada. Levei pra lá “Menina, o que é isso?” “É chá
gelado e chá quente, mas é do mesmo chá” “ai que chá bom, que chá gostoso é
esse?” digo é “camomila e amora é tranquilizante” Todo mundo tranquilo, eu num
senti uma dor de cabeça. Acredita? E eu digo a todo mundo, “olhe como as coisas
movimenta diferente” Por que eu não tinha como, me dava uma tremedeira, uma
coisa ruim, uma coisa tomando meu fôlego, eu morrendo se acabando, corria me
dava amansa leão no hospital, diazepan, saia doida, lerda, num sabia nem o
que tava fazendo, pra vir pra casa. Agora através dos meus chás, tá ali o
remédio, eu não tomei o remédio que o médico passou. Minhas garrafadas,
meus sucos, dentro de casa eu não paro de tomar.” (Entrevista com Dona
Francisca, 12/05/2016)

Esse trecho de entrevista nos remete à essa ligação com a medicina oficial, a
tensão e a coexistência com os saberes populares. Devido à pressão alta seguida de
dores de cabeça, ela ia para o hospital onde eram prescritos remédios que tem um efeito
colateral muito forte, tal como o diazepan. A sensação posterior não era vista como de
bem-estar. Então, a partir de seu conhecimento e efeitos dos alopáticos ela resolve não
recorrer ao tratamento biomédico, optando pelo uso de chás, realizando uma mistura de
variedades vegetais que tem a mesma propriedade medicinal, a de acalmar.
À medida em que os utilizou em si mesma, passou também a recomendá-los para
pessoas com quem se relaciona, em ambientes sociais e até rituais, por exemplo velórios.
Ela já contou mais de uma experiência de levar os chás aos funerais e as pessoas que
consumiram mudarem de atitude, melhorando consideravelmente a partir do consumo do
chá, que é tão aceito socialmente que não há receio para tomá-lo. Os diferentes níveis de
acesso à medicina científica fazem com que quanto mais acessível e próxima, mais seus
discursos e valores acabam por ser incorporados. Mas muitas vezes a prática médica
oficial também é vista com desconfiança, principalmente com base em critérios como
amabilidade do profissional de saúde, explicação detalhada sobre a doença, prescrição
de exames e eficácia do tratamento.

Francisca: Tem uma muda de anador, tem pé de menta aí, a muda de malva rosa
tá linda as malvas, foi o que me levantou, quando eu cheguei fiz um chá de
sabugueiro malva rosa e... Qual foi a outra coisa, meu deus? Mirra e Colônia, fiz
um chá bomba, tomei dois dipirona e me deitei. Suei igual a porta de geladeira.
Tem remédio melhor do que os meus? Eu vou pro hospital ver o que? Olhar
pras caras dos médicos de joelho que num olha nem pra gente, meu neto foi
lá comigo, de madrugada, com febre, 40 graus, tomou um banho aqui chegou lá
com 38. Ele pegou um germe, coçava coçava chega sangrava.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

A médica passou um remédio pra alergia, “Rodrigo isso não é alergia” “Tá
bom, a senhora quer saber mais do que o médico!” Agora deu. Ele chegou
aqui eu botei gelo, ele chega pedia mais, ele passou dormiu aqui, quando acordou
chega a pele tava calminha. Passando pomada não resolvia de nada. Foi pro
Antônio Prudente, chegou com 40,5 graus a médica disse que “Isso aqui nunca
foi alergia”, era um germe tomando de conta do menino dando febre alta era do
germe e a gente foi pra esses burro aqui de Pirangi “Não aqui é só gesso”.
Cristina: É muita imprudência.
Francisca: Se você tá precisando ir no médico, tá com o ouvido doente, uma
dor de cabeça, ele não vai examinar seu ouvido, vai só passar o remédio pra
passar a dor? Gente, é uma irresponsabilidade muita desumanidade um
negócio desse. “Mãe, vamo pro hospital” “Vou não”. (Entrevista com Dona
Francisca, 01/04/2016)

Dona Francisca tem uma variedade de plantas em casa, conhece suas funções,
tomando-os com consciência da ação no corpo e, em casos de febre, associa ao
consumo de remédios alopáticos como a dipirona, mostrando a intersecção entre os
saberes encontrada nas práticas terapêuticas. Lembrando, como foi colocado por Luc
Boltanski (2004), que os casos de febre são os que mais preocupam as camadas
populares, pois indicam que a doença é grave.
O fato é que em relação ao seu neto ela tinha um diagnóstico diferente da médica
que o atendeu em Pirangi, Parnamirim/RN, mas seu filho desacreditou do seu
conhecimento, afirmando que ela queria saber mais que a médica. Como a criança não
melhorou, na verdade a febre subiu com o passar do tempo, eles procuraram outro
médico (como pondera Boltanski, há a troca de médico quando o tratamento não é
eficiente), o que evidenciou um itinerário terapêutico (LOYOLA, 1984), ou como Soraya
Fleishcer (2016) apontou, em comunicação oral 30ª RBA, uma peregrinação. Para por
fim, no atendimento do Hospital Antônio Prudente, localizado no bairro do alecrim,
Natal/RN, ser constatado o que Dona Francisca suspeitava, um germe. Por esses
diagnósticos incongruentes, inclusive pela generalização da ideia de alergia, e pela falta
de atenção dos médicos para com o paciente, que a ida ao hospital só ocorre, para
muitas pessoas das camadas populares, numa emergência. Dona Francisca frisa que,
diversas vezes, eles só medicam para a dor, apaziguando o sintoma, e não curando a
doença, criticando a falta de atitude investigativa dos médicos que muitas vezes não
pensam as enfermidades de modo mais integrado com a realidade que o paciente está
inserido.
Mas é necessário perceber a legitimidade do saber médico quando Dona Francisca
diz que prefere que a pessoa já tenha ido ao médico e a procure já com o diagnóstico,
porque dessa maneira ela pode sugerir o tratamento adequado. Essa afirmação remete a
análise de que o advento da modernidade além do desenvolvimento de outros métodos
de tratamento também estabeleceu diferentes regras de higiene e de relação com o
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

corpo, produzindo também uma situação hierárquica, na qual o médico é visto como o
detentor do saber, enquanto o paciente é concebido como leigo. Como essa relação é
legitimada, as pessoas dão mais credibilidade quando o médico é atencioso, explica o
que causa, como se desenvolve a doença.
Para pensar sobre a concepção de doença nas camadas populares na realidade
contemporânea brasileira fomos remetidos ao trabalho “Saúde e gênero no bairro do
Ibura” de Parry Scott e Marion T. Quadros (2009) que mostra como o terreno da vivência
popular é marcado pelo cuidado das “mães”, “esposas” e “irmãs” e que não há uma única
significação da doença pois elas contêm múltiplas compreensões, que podem estar
envoltos no que Duarte (1986) chamou de “problemas físico-morais”. O que Langdon
(2014) traz quando aborda a experiência da doença é que ela é primeiro designada pela
família, e que pode recorrer à diversos especialistas terapêuticos, mas com a legitimação
da medicina oficial, é perceptível no trabalho de Scott e Quadros (2009) a ida ao médico
como uma ação subsequente prioritária. Enquanto concomitantemente procura mais
familiares e vizinhos para lidar com o problema, e também o uso de remédios caseiros à
base de ervas e raízes, ou a busca por um farmacêutico para aliviar os sintomas.
Assim, percebendo todas possibilidades imersas nas experiências da doença
durante a pesquisa de campo, fui compreendendo o itinerário terapêutico a partir dos
diversas narrativas. Das diversas vivências relatadas por Dona Francisca, a “doença nos
ossos” é a que mais marca, por ser uma dor constante e sem cura. Há eventos-críticos na
experiência da doença. E no trecho da entrevista transcrito abaixo possível compreender
alguns desses no caso de D. Francisca:
Francisca: Eu comecei a sentir depois de uma queda que eu levei em 1982.
Afetou bacia, fêmur e quadril. Começou a gravidade dai, nessa época eu
morava numa granja, num tinha médico certo, num tinha tempo pra correr atrás e
foi se agravando cada dia pior.
Quando foi agora, de 2001 eu comecei a trabalhar foi que eu comecei a sentir a
situação complicando, eu caminhava daqui pra Pirangi a pés. (...)E a gente
tinha que ir caminhando pra num chegar atrasada, e num tinha transporte nessa
época. Aí foi quando eu comecei as coisas foi se agravando, e sempre
trabalho. E qual é a máquina que trabalha direto e num estraga uma peça? E a
gente, e a peça que a gente estraga faz o que? Aí foi quando eu saí, passei o
tempo, operei o pé, que foi a sequela de uma cirurgia.
Cristina: No acidente?
Francisca: Foi do acidente que eu sofri, tive só a torsão do pé. Não quebrou,
não fraturou, foi só torsão. Foi se agravando mas foi um cisto entre o dedão
e o outro. E esse dedo foi estufado assim pra fora. Ainda hoje é torto, tá vendo?
Isso aqui foi feito uma cirurgia daqui aqui. E foi botado um pino pra poder
emendar esse osso que foi descolado pra poder tirar o cisto. Ai isso é tudo
dormente, eu não sito nadinha. E fui caminhando e sempre trabalhando. Que eu
nunca tive repouso.
(...)
Francisca: [Até 2009] Eu trabalhava de babá e de doméstica, e a noite cuidava da
menina. Ainda passei três anos, saí pra fazer tratamento, não aguentei mais
continuar.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Cristina: A senhora fez tratamento de que?


Francisca: Problema de ossos. Em 2013 deu degenerativo meu problema de
ossos, tenho três ressonâncias. Mas graças a deus quando eu comecei,
acordei pra vida e vi que remédio natural vale melhor do que remédio de
médico eu resolvi a me tratar como Deus quer e como consente. Mas se eu
tivesse naquele tempo como eu tava, em 2010 eu já tava aleijada, já tinha
atrofiado. Num conseguia tirar uma blusa, tinha que alguém ajudar, os braços não
ajudava a subir. Num tirava o sutiã.
(...)
“Dr. Fernandes o que danado é degenerativo?” Eu gosto de perguntar pra
conhecer, saber a história e o que eu sinto também.“Dona Francisca,
degenerativo… É um problema que não tem solução, a solução é se agravar a
cada dia, vai ter que estar aqui todo mês olhando pra mim e acompanhando sua
medicação”. “Dr. Fernandes, Deus é o maior”. E fui-me embora. Só vou pra ele
quando eu ia precisar de um atestado pra perícia, pra ir pro médico, pra
renovação de alguma coisa. Ai comecei a fazer fisioterapia, faça 10 assim, 10
pra fora, magoou foi mais minha filha, não tive condições de continuar. Tinha dia
que eu saía de lá pior do que chegava.
Cristina: E no outro dia num tava melhor?
Francisca: Na continuação do tempo ficava pior, eu digo, “Vou mais não”. O pior é
que eu tomo meus remédios, tomo as garrafadas que eu faço (…) Quem tem
problemas de ossos não fica bom não.
(…)
Cristina: O que foi que a senhora tomou?
Francisca: Quando eu comecei, ele [seu filho Rodrigo] me deu esse livro em 2011,
quando eu comecei a ver como é que a coisa funcionava o que era capaz, o
que causava aquele problema, aí eu comecei com os remédios. É sucupira,
aroeira, pau ferro ele é rico em cura de coluna, inflamação na coluna. Tomei
muito o coisa para bucite.Tomei muito aquela bicha grande, como é que chama?
Coité, passei mais de ano tomando coité.
Cristina: Em garrafada ou em chá?
Francisca: Isso é, só toma quem tem coragem. Que é um remédio tão ruim, tão
ruim que eu nunca encontrei um pior do que aquele. É cozinhado sem água, só o
legume dentro dele verde, tira e bora pra cozinhar em fogo baixo e ele solta
aquela água, tipo feijão preto, aquela gororoba que você coa e bota na geladeira
pra ficar tomando todo dia, 5ml, duas vezes. Mas tinha que tapar o nariz e já tinha
um negócio na mesa pra tomar por que não suportava o gosto. É ruim, mas eu
tomei um ano e resolveu. (Entrevista com Dona Francisca, 23/12/2015)

Como se pode perceber ela sofreu uma queda em 1982 e afetou o quadril e o
fêmur, passou por um acidente de carro em 1988 (ocorrido na Rota do Sol quando estava
se mudando para o Pium) no qual houve uma torsão no pé. Mais de dez anos depois ela
fez uma cirurgia no pé, mas devido à Artrite Reumatóide não teve boa recuperação. O
marcante nessa narrativa é que ao se ver em uma doença sem cura, ela se utiliza da
crença e do conhecimento sobre as ervas da terra para superar a crise inflamatória que
estava passando.
Deve-se destacar o fator relevante da percepção do itinerário terapêutico de Dona
Francisca, a autoatenção que ela teve consigo e a ligação com as plantas fez com que ela
dialogasse com os médicos e profissionais de saúde, pois ela percorreu hospitais em
Natal, Parnamirim, fez os exames como ressonância, raio-x, exame de sangue p ara
entender o que tinha. Em paralelo, ela foi manipulando os remédios naturais. Atualmente,
pelos processos advindos de sua experiência, ela se apoia em seu saber-fazer, na
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

produção de sabonetes e garrafadas artesanais como principal fonte de renda, dedicando


grande parte do seu tempo para tornar possível essa prática terapêutica, que exige tempo
de dedicação para produção e para a distribuição que ocorre em seu cotidiano no Pium e
redondezas. Ou seja, ela age e oferece os seus serviços e práticas para as pessoas que
estão ao seu redor, tanto familiares e parentes como seus vizinhos e conhecidos, que a
procuram por indicação de outras pessoas e pelo reconhecimento de seu conhecimento
tradicional e popular.
Com todos os relatos transcritos nesse artigo é possível refletir sobre como um
habitus adquirido no trabalho na roça quando criança, possibilita uma atividade produtiva
voltada paras práticas terapêuticas com elementos in natura, que manipulados
artesanalmente facilitam uma eficácia terapêutica por meio da crença, definida por Dona
Francisca como fé, o acreditar que aquilo vai acontecer, imerso também no conhecimento
das ervas da terra que se tem por perto, proporcionando assim uma eficácia terapêutica
(TAVARES e BASSI, 2012) por mais que a doença seja crônica e degenerativa.
O marcante de sua narrativa é que a partir do fato de ter que se aposentar por
invalidez, ela vê como alternativa a venda de produtos que já fazia e o desenvolvimento
de outras coisas que não dominava a técnica como sabonetes. E desde então ela
interage a clientela e transmite seu saber-fazer, fazendo notar a percepção-relação com o
ambiente e dos habitus como essenciais para a transmissão desse saber.
Foi a partir da sua agência em uma experiência da doença, pelo seu interesse de
cura, pela curiosidade da transformação dos remédios, a partir de plantas e elementos
desconhecidos, que ela chegou a tal "status" de terapeuta popular. Sua ação investigativa
colabora no diálogo com os clientes (CRAPANZANO, 1991). Nos permitindo pensar que
esse saber-fazer, isso é, o conhecimento posto em prática no próprio cotidiano, está
vinculado as estratégias de sobrevivência para manutenção da saúde na família.
Entendemos saber-fazer a partir de Michel De Certeau em seu livro “A invenção do
cotidiano” (1994), em que ponto de vista das teorias da arte de fazer, permite ver as
práticas cotidianas como procedimentos, esquemas de operações e manipulações
técnicas. Elas se relacionam com a noção de habitus que é visto como um saber social
incorporado, mas de “mão-dupla” que, ao mesmo tempo, em a pessoa internaliza as
normas sociais, o sujeito é também capaz de influenciar o meio social e criar novas
demandas alimentares e estéticas (WOORTMANN, 2013). Que nesse caso geram
produtos como os sabonetes artesanais, as garrafadas, chás e alimentos, indicados para
determinados fins terapêuticos, entrelaçados um misto de respeito pelo conhecimento e
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

pela artesã, a partir da crença nas ervas que curam, embasada pelo saber local
(GEERTZ, 2009), e no habitus desse saber-fazer (CERTEAU, 1994).
Estabelecendo uma relação de confiança com os que estão em volta, família,
amigos, clientes e sendo ela uma produtora e trabalhadora autônoma que estabelece
interações e se encontra em situações de valorização do conhecimento e da fé, que é
necessária para a eficácia terapêutica como foi abordado aqui. Ela ensina o modo de
fazer os lambedores, em especial quando não tem tempo para fazer produtos para
alguém que precisa fazer um tratamento com as ervas que curam.
Com efeito, pesquisa realizada teve a intenção de abordar alguns dos aspectos
que perpassam essas diversas práticas a fim de perceber os agenciamentos que
perpassam essa realidade, tanto o fenômeno do uso social de remédios naturais como a
manutenção de terapias alternativas e tradicionais de cura e a relação dessas com a
medicina científica, tomando o caso de uma única terapeuta popular: Dona Francisca.
Trata-se de uma eficácia terapêutica imersa no cenário das classes trabalhadoras do
meio urbano e rural, de pessoas que por mais que tenham relativo acesso à medicina
oficial, e cheguem a fazer uso dela, recorrem aos métodos e práticas terapêuticas
populares porque acreditam em sua capacidade de cura das plantas medicinais
associada à capacidade de transformação em remédios naturais através da manipulação
pela experiência da sabedoria popular e empírica.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências Bibliográficas

ALBERTI, Verena. 2004. Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV.

BEZERRA, Cristina. Saber local e práticas terapêuticas da Doutora Raiz: uma pesquisa
antropológica sobre medicina popular e crença. Trabalho de Conclusão de Curso,
Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016.

BOLTANSKI, Luc. 2004. As classes sociais e o corpo. 3 Ed. São Paulo: Paz e Terra.

BOURDIEU, Pierre. 2004. A produção da crença: contribuição para uma economia dos
bens simbólicos. São Paulo: Zouk.

CRAPANZANO, Vicent. 1980. Tuhami, portrait of a Maroccan. The University of Chicago.

DE CERTEAU, Michel. 1994. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ:


Vozes.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1986. Da vida nervosa das classes trabalhadoras urbanas.
Rio de Janeiro: J. Zahar.

FLEISCHER, Soraya. 2016. Comunicação oral. GT 002: Agenciamentos sociais e


políticas públicas de saúde: cruzando e confrontando perspectivas. João Pessoa: Reunião
Brasileira de Antropologia.

GEERTZ, Cliford. 2009. Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa.


Petrópolis: Vozes.

LANGDON, Esther Jean. 2014. “Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições
para as políticas públicas”. In: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 19 (4).
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014194.22302013 . Acesso em: 16
de agosto de 2017.

LOYOLA, Maria Andréa. 1984. Médicos e Curandeiros: Conflito social e saúde. São
Paulo: DIFEL.

SCOTT, Parry; QUADROS, Marion (orgs). 2009. A diversidade no Ibura: gênero, geração
e saúde num bairro popular do Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE.

TAVARES, Fátima; BASSI, Francesca. 2012. Para além da eficácia simbólica: estudos em
ritual, religião e saúde. Salvador: EDUFBA.

WOORTMANN, Ellen. 2013. A comida como linguagem. Goiânia: Habitus.


Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Agenciamentos terapêuticos no Sistema de cura “tradicional”


do distrito de Serra Grande, Uruçuca-BA.
Iacy Pissolato Silvera1

Resumo:
Este trabalho apresenta as primeiras impressões de meu campo de pesquisa ao
qual me dedico para realizar minha tese de doutorado a ser defendida em junho de 2020
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia.
Apresento neste trabalho meus dados iniciais de campo, recolhidos a partir dos primeiros
contatos com o lugar e com alguns interlocutores, além de dados levantados em sítios da
internet.
Minha pesquisa localiza-se na região de Serra Grande, distrito de Uruçuca – BA,
e se propõe a reconhecer os agenciamentos terapêuticos que se dão nesses contextos, que
a princípio poderiam ser considerados “tradicionais”, mas atentando para as
transformações que estão em curso nas práticas terapêuticas contemporâneas dos
profissionais da cura que ali residem. Proponho um olhar que busque perceber os mais
diversos agenciamentos, humanos e não humanos que compõem o sistema de cuidado e
cura naquela região, nos termos e cosmologia nativos, sem, portanto, tecer classificações
apriorísticas sobre o que sejam as práticas tradicionais ou modernas
Isso significa, a meu ver, em termos práticos, que a pesquisa se propõe
inicialmente a perseguir os rastros (LATOUR, 2012) daqueles que estejam envolvidos
com os “saberes tradicionais” (nos termos nativos) da cura, da saúde e do cuidado das
pessoas da região de Serra Grande, porém, deixando uma larga flexibilidade para o que o
contexto possa oferecer, ou nas palavras de Jeanne Favret-Saadad (1977), deixando-me
afetar, através do que Ingold (2014) denominou de os princípios da investigação
antropológica apropriada e criteriosa, sejam eles: “o compromisso aberto e de longo
prazo, a atenção generosa, a profundidade relacional e a sensibilidade ao contexto.”

Palavras chave: terapeutas tradicionais, erveiras, agenciamentos terapêuticos,


Serra Grande/Bahia.

1
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Introdução: o lugar da pesquisa

Serra Grande é um povoado de Uruçuca –BA, localizada na Costa do Cacau, a


aproximadamente 400 Km de Salvador e a 30 Km de Ilhéus (Figura 1). Entre o Parque
Estadual da Serra do Conduru a oeste, a APA Itacaré - Serra Grande ao norte, a APA
Lagoa Encantada, ao sul, e o Oceano Atlântico a leste (Figura 2), divide-se em Vila Alta,
localizada na parte alta da Serra, e Pé de Serra, parte do vilarejo à beira mar.

Figura 1 – Localização Serra Grande2

2
http://barracaodangola.com/pt/contato - acessado em 27/09/2017
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Figura 2 – Mapa Parque Estadual do Conduru, APA Itacaré-Serra Grande e APA Lagoa encantada3

A maior parte das atividades comerciais e de encontros sociais acontecem na Vila


Alta, mais propriamente em torno da praça principal do lugar, em que estão localizadas

3
http://barracaodangola.com/pt/contato
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

as três escolas municipais (Ensino infantil, fundamental e médio), a farmácia, a Igreja


católica, uma igreja evangélica, o posto de saúde e alguns restaurantes e lojas comerciais
(como bazar de roupas, loja de materiais de construção dois mercados, lanchonetes,
bomboniere), e outros empreendimentos que estão frequentemente abrindo4 e fechando
em uma das pequenas casas que circundam a praça.
Uma das primeiras regiões ocupadas pela coroa portuguesa após a chegada das
primeiras embarcações, a região, como contam os moradores, foi ocupada a mando dos
grandes fazendeiros e passou por diversos ciclos econômicos que se iniciaram com a
extração de madeiras nobres5, passando pela cana de açúcar, o cacau, a pecuária, e
ultimamente o turismo6.
Como a região oferece riquíssima diversidade de espécies vegetais7, tornou-se, na
década de 1990, prioridade para biólogos e outros especialistas (além, claro, de
ecologistas), a criação do Parque Estadual da Serra do Conduru (conforme informações
do guarda parque) e da APA Itacaré- Serra Grande. Uma das grandes questões atuais a
ser enfrentada na região é a guerra pelos territórios no entorno do Parque e das Apas, já
que o crescente turismo tem gerado intensa especulação imobiliária. Muitos moradores
da região não detêm título de propriedade das terras em que vivem, e muitos foram e estão
sendo desalojados de suas terras com a criação do Parque. Assim, a comunidade local
encontra-se distanciada de suas atividades econômicas anteriores, buscando lugar no
mercado turístico crescente da região.
Paralelamente a esse quadro que engloba toda a região do Parque, Itacaré, Serra
Grande e APAs, mais especificamente dentro do povoado de Serra Grande, nos últimos
15 anos, aproximadamente, tem havido um intenso fluxo de pessoas que vem morar na
região (em muitos dos casos por algum tempo), em busca de um estilo de vida

4
Nestes 20 dias em Serra Grande, dois empreendimentos foram fechados e um novo empreendimento
foi aberto na praça, ocorrências frequentes conforme me afirmaram alguns moradores da vila.

5
Quando fazíamos uma caminhada pelo Parque do Conduru, o guarda parque, que faz a caminhada
junto aos visitantes nos contou que era exatamente ali aonde os portugueses iam extrair as madeiras
para construção, destacando inclusive a inexistência atualmente do Pau Brasil, na mata, árvore que
existia ali em grande quantidade na época da chegada das primeiras embarcações portuguesas.

6
Informações retiradas do sitio: http://www.parquedoconduru.org/index.php/regiao, acessado em
26/09/2017.

7
Conforme o guarda Parque é o lugar que possui mais diversidade de espécies vegetais do mundo,
possuindo cerca de 465 espécies por hectare quadrado de terra.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

“alternativo”. Alguns dos princípios que se referem ao estilo de vida alternativo


especificamente em Serra Grande diz respeito a uma alimentação mais saudável, com
produtos menos industrializados e orgânicos; a valorização de princípios alimentares
como o veganismo, vegetarianismo e macrobiótica; a busca espiritual, apresentando-se
uma infinidade de práticas voltas ao desenvolvimento e investimento espiritual de
diversas religiões como União do Vegetal, Catolicismo, Espiritismo, Candomblé, Hare
Krishna, além do compartilhamento de um universo religioso altamente sincrético:
menções à Deusa-mãe, à natureza, as forças, aos santos, orixás, e a Nossa Senhora, são
costumeiras em reuniões ou momentos de congregação. A busca por uma vida familiar
mais simples e dedicada em grande medida ao cuidado das crianças também caracteriza
grande parte dessas pessoas, estimuladas também a virem para a vila pelo estabelecimento
da “Escola Dendê da Serra”, de orientação Antroposófica- Pedagogia Waldorf8, desde
2001, e que tem grande importância no cenário educacional alternativo no Brasil.
A Vila de Serra Grande tem se tornado, nos últimos 20 anos, um reduto de famílias
em busca de cuidados com o corpo, a espiritualidade, as crianças, a partir de uma
percepção holística que é apresentada nos discursos dos moradores forasteiros 9, de
maneira geral, como a busca por desenvolvimento espiritual individual e coletivo,
pautados pelo amor ao próximo (e principalmente às crianças), a alimentação saudável, e
a prática de uma gama diversa de terapias alternativas10, não só como usuários, mas

8
Conforme o sitio da Sociedade Antroposófica Brasileira (http://www.sab.org.br/pedag-wal/pedag.htm):
“Essa concepção leva em conta as diferentes características das crianças e adolescentes segundo sua
idade aproximada. O ensino é dado de acordo com essas características: um mesmo assunto nunca é dado
da mesma maneira em idades diferentes. Ela é uma pedagogia holística em um dos mais amplos sentidos
que se pode dar a essa palavra quando aplicada ao ser humano e à sua educação. De fato, ele é encarado
do ponto de vista físico, anímico e espiritual, e o desabrochar progressivo desses três constituintes de sua
organização é abordado diretamente na pedagogia. Assim, por exemplo, cultiva-se o querer (agir) através
da atividade corpórea dos alunos em praticamente quase todas as aulas; o sentir é incentivado por meio
de abordagem artística constante em todas as matérias, além de atividades artísticas e artesanais,
específicas para cada idade; o pensar vai sendo cultivado paulatinamente desde a imaginação dos contos,
lendas e mitos no início da escolaridade, até o pensar abstrato rigorosamente científico no ensino médio.
O fato de não se exigir ou cultivar um pensar abstrato, intelectual, muito cedo é uma das características
marcantes da pedagogia Waldorf em relação a outros métodos de ensino.” Acessado em 28/09/17.

9
Utilizo esta expressão para estabelecer uma diferenciação entre nativos e aqueles que vem de fora e se
estabelecem na cidade como moradores.

10
Utilizo terapias alternativas referindo-me a terapias que não são estritamente biomédicas, podendo,
entretanto incluir elementos da biomedicina moderna, mas que estão pautadas também em outros
pressupostos, como a espiritualidade, a intuição, o dom, o instinto, a fé, o amor, o servir.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

também como ofertantes de tratamentos terapêuticos alternativos, que eles


costumeiramente se referem como o “servir”. Em certa medida, parece que, em Serra
Grande, todos os forasteiros estão buscando a cura e ao mesmo tempo oferecendo formas
de encontrá-la.

Primeiros contatos: Dona Val e o Caminho das ervas

Quando ainda buscava um “campo de pesquisa” adequado ás questões que eu


pretendia investigar, assisti a um vídeo na internet denominado “Ervas que curam” (parte
de uma série de 10 episódios desenvolvida pelo “Coletivo de Comunicação Catarse”,
fruto da iniciativa da Associação de Apoio Comunitário Tabôa). Os vídeos encontram-se
hospedados no sítio da internet “Narrativas Artesanais”, sendo anunciados da seguinte
forma:

Narrativas Artesanais é uma série de 10 vídeos documentários de curta-


metragem sobre saberes e fazeres ancestrais, de expressivos valores
culturais, históricos e ambientais, com incidência na Área de
Preservação Ambiental (APA) Itacaré – Serra Grande, região Litoral
Sul da Bahia. (http://www.narrativasartesanais.com.br/sobre/)11

No episódio “Ervas que Curam”’, Dona Val, Dona Miúda e Dona Isabel,
apresentam-se como erveiras. As três senhoras vivem há muitos anos na região, todas
nascidas em lugarejos do interior da Bahia. Dona Miuda e Dona Izabel vieram cedo para
a região de Serra Grande com suas famílias e participaram do surgimento e crescimento
da Vila. Já Dona Val passou um tempo em Salvador antes de chegar à Vila. Conforme se
auto referem no vídeo, estas mulheres são “detentoras do saber tradicional das ervas”, da
região de Serra de Grande.
Ao assistir o vídeo, algumas questões me vieram à tona. Apesar do vídeo não
aprofundar nas origens das erveiras, os modos de linguagem, vocabulário e as narrativas
de suas experiências pessoais sobre como adquiriram seus conhecimentos apresentam não

11
Conforme indicado no sítio da internet, o financiamento desses vídeos veio através do Instituto
Arapyaú, no âmbito do Projeto Nacional de Ações Integradas Público-Privadas para Biodiversidade
(Probio II), a partir de uma parceria entre o Fundo Nacional para a Biodiversidade (FUNBIO) e o Fundo
Global para o Meio Ambiente (GEF).
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

só a diversidade do tradicional, mas a presença de referenciais alternativos “modernos”,


especialmente nas falas de Dona Val, ao afirmar que “se encantou pelas ervas quando
decidiu ‘mudar sua alimentação’12”, por exemplo. Este discurso difere do de Dona Miúda,
que afirma ter crescido no meio das ervas quando sua avó já cuidava dos males de seus
conterrâneos através das ervas cultivadas em seu quintal.
Apesar de Dona Val ser apresentada como erveira, assim como as outras duas
personagens (Dona miúda e Dona Izabel), ao longo do vídeo ela também assume uma
postura de entrevistadora, ao primeiro relatar sua experiência e depois estimular o diálogo
com as duas outras erveiras. Dona Val ainda apresenta algumas análises sobre o saber
tradicional (comuns em discursos mais intelectualizados) no diálogo com as outras
participantes do vídeo, como, por exemplo, a importância da preservação das ervas e a
conscientização de jovens para a valorização desse conhecimento13.
Fundadora da Casa “Caminho das ervas” há aproximadamente dois anos
(portanto, em torno de 2015), Dona Val apresenta-se como parteira há mais de quarenta
anos, guardiã do saber tradicional e “à serviço da força”14. Sua história de vida passa pelas
dificuldades da perda dos pais bem cedo, pelo abandono, a exploração no interior da
Bahia, até a reviravolta em sua vida, como afirmam seus filhos que contam sua história15.
Aos 20 anos Dona Val foi morar em Salvador, após dois anos vivendo em um
orfanato de freiras, onde aprendeu a fazer partos. Mudando-se para Salvador, ela casou-
se duas vezes, a primeira vez com Pitágoras, com quem teve sua primeira filha, e
permaneceu casada por pouco tempo. Depois casou-se com Noel, seu companheiro atual,
com quem teve mais três filhos. Com esse companheiro pôde: “conhecer a filosofia
macrobiótica e todo movimento alternativo da época, que na cidade de Salvador era uma

12
Se referindo à uma alimentação mais influenciada por movimentos Nova Era que tratam a alimentação
como forma de cuidado da saúde e propõem redução de alimentos animais e maior riqueza de fontes
vegetais de um modo geral.

13
Após assistir ao vídeo comecei a pesquisar mais informações sobre as erveiras de Serra Grande e
acabei por descobrir que Dona Val é uma figura central, muitas vezes chamada de mãe e avó , no
cenário do cuidado em Serra Grande.

14
Em minha primeira visita à Casa Caminho das ervas, em uma roda de gestantes, durante a rodada de
apresentações, Dona Val apresentou-se dessa forma, se referindo à uma ideia de força universal, da
natureza, expressões frequentes nos diálogos da casa Caminho das ervas.

15
O filme “Umbigo”, produzido pelo filho mais novo de Dona Val, Cauê, conta a história da Vida de Val -
http://umbigofilme.com.br/val/ - Acessado em 29/09/17.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

forte referência de afirmação existencial para muitos que buscavam romper com o sistema
existente, marcado pela forte repressão com a ditadura militar”, como nos conta seu filho
Cauê, no filme “Umbigo”. Daí em diante Dona Val trabalhou em restaurantes de comida
natural, que lhe ampliaram seus conhecimentos sobre o que ela chama de “alimentação
viva”, e fez mais de 200 partos, tornando-se ativista da causa do parto natural:

Sou mais uma guardiã da cultura ancestral, defendo que o mais


importante é a mulher vivenciar a experiência do parto, podendo se
conectar com a força interior feminina, e se depender de mim o parto
natural nunca será um privilégio só de quem pode pagar. (Dona Val em:
http://umbigofilme.com.br/val/)

O lugar de encontro principal com Dona Val é a casa “Caminho das Ervas”, a qual
já me referi anteriormente, feita a partir da iniciativa dessa erveira, em colaboração com
seus filhos, que são grandes entusiastas de seu trabalho, bem como das pessoas que a
admiram e convivem com Dona Val, e que desejam usufruir e apreender os
conhecimentos dela. A casa localiza-se na praça central de Serra Grande. Um grande
muro verde, com um portão rosa escondem um jardim florido e um quintal cheio de ervas
medicinais. Na sala de entrada encontra-se um altar de frente a porta. Nesse altar, estão
imagens de Shiva, Yogananda, Mestre Gabriel, Jesus Cristo, Santo Antônio e Nossa
senhora do bom parto, velas e incensos. Nesta sala acontecem encontros de oração,
encontros de gestantes, cine-debates, todos orientados por Dona Val, e encontros sobre a
relação da espiritualidade com a física quântica orientados por um terapeuta alternativo
da comunidade. Além das atividades na sala, acontecem vivencias semanais com as
plantas e cuidados com o jardim. Há, ainda, dois quartos, que conforme me foi informado
por Aranda, filha de Dona Val, estão disponíveis para terapeutas da comunidade que não
possuam seus espaços de atendimento ainda.
A programação mensal de atividades da casa fica colada atrás do altar, de frente
para a entrada da casa, de modo que todos possam vê-la assim que entram na sala. Dentre
as atividades encontram-se: cuidados com o jardim, vivência das plantas, oração e todas
as práticas semanais. No dia de cuidados com o jardim, acontecem cuidados com toda a
casa, faxina e arrumações. No dia de vivências das plantas, os cuidados atêm-se aos
jardins e as ervas medicinais. A oração, conforme me descreveram, dura em torno de uma
hora e envolve desde cantos xamânicos a menções cristãs e acionamento de entidades
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

como Nanã e Oxum, que costumeiramente são chamadas em cânticos durantes as diversas
vivências. Existe uma participação feminina majoritária, assim como as conversas entre
os frequentadores da casa, incluindo Dona Val, giram em torno da intuição feminina, do
amor maternal, da força da Deusa e sabedoria ancestral feminina.
Na casa “Caminho das ervas”, o tradicional e o moderno estão “em comunhão”,
para usar uma expressão do vocabulário local. Para as pessoas que ali frequentam, afirmar
a tradicionalidade, nos termos de uma ancestralidade dos saberes é uma forma de
valorizar esse saber, bem como propagar sua força agindo como guardiões dessa
sabedoria. Parece-me, também, que grande parte dessa força está na intenção e
comunicação no dizer, afirmar, desejar, além do agir. No grupo de watts app do “Caminho
das ervas” existem aproximadamente 85 integrantes, informação que foi ressaltada por
Aranda (filha de Dona Val), ao pedir ajuda financeira para a manutenção dos gastos da
casa. Devo ter conhecido 10 ou 12 participantes do grupo que frequentam a casa nas
atividades propostas em três momentos que compareci para as atividades semanais.
Entretanto nas mensagens sobre desenvolvimento espiritual e celebração de datas
religiosas, a atuação destas pessoas é intensa.
Minha percepção sobre a intensa participação na casa é também reafirmada na
convivência com as pessoas, ao se perceber que o cuidado nas palavras dirigidas aos
outros é grande: não se notam palavras negativas, que se refiram à tristeza, e quando estas
surgem são rapidamente reprimidas, acompanhadas de uma sugestão de perceber a
situação de uma maneira positiva, bem como a intensa frequência com que se usam
determinadas expressões como “estou na vibração16”, “chama que vem17”, “estou na
intuição”18. Certa vez, Aranda chegou à Casa muito animada com a ideia de ganhar um
lote para, segundo ela, “construirmos a Casa Caminho das ervas e pararmos de pagar
aluguel”. Conforme ela dizia, “nós merecemos”. Ela ainda acrescentou: “Acordei nessa
intuição e estou vibrando com toda força, vai rolar!!! E outras pessoas diziam: “Vamos
irmã! Vamos vibrar”!

16
Referindo-se à ideia de vibrar positivamente para atrair o objetivo.

17
No sentido de chamar o desejo para que ele venha até você.

18
São expressões que se referem a uma ideia ou pressentimento que surgiu e que é comumente
interpretado como um sinal do universo de que aquele é o caminho para se alcançar as conquistas que
se deseja.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Assim, ao encontrar todas estas informações, Serra Grande me pareceu um lugar


muito interessante e adequado para explorar as possibilidades de pesquisa sobre o
imbricamento entre saberes locais (tradicionais)19 e referências ao movimento nova era
articulados em redes (LATOUR, 2012) de agenciamentos de diversas ordens, humanas
e não-humanas, (INGOLD, 2012) que se entrecruzam e formulam um entremeado de
linhas que apresentam continuidades, correspondências e (co)operações entre práticas
diversas, muito mais do que separação, ou discernimento entre essas.
Neste sentido, a princípio meus esforços se voltam para mergulhar neste universo,
observando os agenciamentos que propiciam este cenário da cura e do cuidado em Serra
Grande, voltada para a compreensão do “tradicional”, buscando reconhecer quais os
significados e práticas esta categoria, no sentido local, estabelece. Vivencio a experiência
em Serra Grande a partir de minha própria participação nesta experiência coletiva, já que,
como afirma Ingold (2014), observar e participar não estão separados.

Referências Bibliográficas:

CUNHA, Manuela Carneiro da.2009. Cultura com aspas e outros ensaios de


antropologia. São Paulo: Cosac Naify.

FAVRET-SAADAD, Jeanne.1977. Les Mots, la mort, les sorts. La sorcellerie dans le


Bocage. Paris, Gallimard, NRF.

INGOLD, TIM, Trazendo as coisas de volta a vida: emaranhados criativos num


mundo de materiais. Horizontes Antropológicos. Vol. 18 n 37 Porto Alegre, 2012

INGOLD, Tim. That's enough about ethnography! In: HAU, Vol. 4, n1. London, 2014.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede.


Salvador: Edufba, 2012.

19
A denominação tradicional tem mostrado bastante polêmica na antropologia como destaca Carneiro
da Cunha (2002), entretanto utilizarei a categoria não antropologicamente, mas como discurso nativo, já
que esta é a expressão a qual Dona Val utiliza a se referir a si mesma e alguns outros terapeutas antigos
da região.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em busca da vida: a abordagem dos sintomas depressivos por médicos e


médicas de família na cidade do Rio de Janeiro
Leandro David Wenceslau1

Resumo: Apresento um breve relato extraído de minha experiência


acompanhando, por três meses, consultas e visitas domiciliares de seis
residentes de medicina de família em uma unidade de Saúde da Família na
cidade do Rio de Janeiro em 2017. Esta imersão teve como objetivo explorar os
procedimentos realizados por esses profissionais na atenção a pacientes com
sintomas depressivos em consultas “generalistas” não especializadas em saúde
mental. Nestas consultas, também chamadas de atenção primária à saúde, os
sintomas depressivos, apesar de muito frequentes, raramente são as
preocupações principais ou explícitas que trazem os pacientes às consultas. Ao
longo desses atendimentos, observei que experiências como tristeza, angústia
e “sensação de vazio” são ocultadas por diversos sintomas físicos, ditos sem
explicação médica. Sua verbalização e expressão corporal pelo choro e
movimentos que simbolizam as sensações físicas são estimuladas pelas
médicas e médicos de família através de uma abordagem particular de consulta,
a medicina centrada na pessoa. Nesta abordagem, o toque, o contato visual com
o olhar sustentado, o giro do tronco na direção do paciente em alternância com
a tela do computador são elementos que constroem uma atmosfera de
proximidade e de demonstração de interesse do profissional pelos usuários
capaz de convidá-los a manifestarem suas emoções e sensações. Além do
corpo, esses profissionais usam perguntas sobre a família, o trabalho, os
projetos para o futuro que propiciam conversas além das doenças, sobre “a vida”:
“e, como estão as coisas? ”. Neste percurso, acompanho as médicas e médicos
de família em sua busca por praticar uma atenção à experiência de perturbação
mental que vá além dos diagnósticos e medicamentos.

Palavras-chave: depressão; medicina de família; vida

1
Departamento de Medicina e Enfermagem/Universidade Federal de Viçosa
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Da pessoa à vida

A medicina de família tem sido estudada como uma das alternativas às


polarizações epistemológicas produzidas pelo individualismo moderno e suas
discrepâncias com os “holismos cotidianos” de pacientes e profissionais de
saúde. Os estudos etnográficos de Octávio Bonet têm se destacado na análise
das particularidades operativas e epistemológicas da medicina de família em
cenários públicos de atenção à saúde no Brasil.
Ao usar essa expressão “holismos cotidianos”, proponho que não seriam
apenas as classes trabalhadoras ou “menos ocidentalizadas” que teriam sua
subjetivação envolvida em representações culturais com essas características.
Elas também estão fortemente presentes, por exemplo, no interesse das classes
média e alta por medicinas alternativas e complementares e, dentro da própria,
biomedicina, como nos estudos que têm enfatizado os mecanismos
“psiconeuroimunendócricos” (Watkins, 1997) como modelo explicativo do
adoecimento. Também assumo que, atualmente, me parece menos
contextualizado na própria prática antropológica classificar “culturas” e
experiências de grupos sociais como predominantemente “holistas” ou
“individualistas”. As subjetividades contemporâneas, principalmente em cenários
urbanos, são interpeladas por uma diversidade de matrizes socioculturais que
torna difícil, ou mesmo inadequado, apresentar compreensões homogêneas de
suas “culturas”, ainda que a referência a uma ou mais “culturas” e “grupos
sociais” seja um recurso valioso na defesa de um pluralismo epistemológico das
práticas de saúde.
Em Os médicos da pessoa, Bonet (2014) apresenta os resultados de sua
pesquisa de doutorado sobre a construção da identidade dos médicos de família
como um grupo social, na Argentina e no Brasil. É descrita uma possível
alternativa à tensão estruturante da biomedicina: a experiência dos médicos de
família. Esta experiência é tratada sob duas perspectivas: a da
institucionalização e a epistemológica. Interessa-me sobretudo a segunda. A
epistemologia, para Bonet, não é vista como filosofia da ciência, mas é utilizada
num sentido batesoniano. Epistemologia é entendida como o conjunto de
premissas de pensamento que estão na base de toda interação entre as
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

pessoas. No braço epistemológico de sua da pesquisa, Bonet se dedica à análise


das observações de consulta e à maneira como os médicos de família colocam
em prática sua proposta de uma medicina centrada na pessoa, pautada pela
integralidade.
Para analisar as práticas dos médicos de família, Bonet tem utilizado de
forma recorrente a abordagem antropológica de Tim Ingold. O conceito de skill,
por exemplo, foi aplicado para descrever a forma como o médico de família
precisa recorrer à “sua trajetória, sua interioridade e seu estar no mundo” para
lidar com as irrupções de emoções e manifestações de sofrimento em suas
consultas (Bonet, 2006). Em Sentindo o Saber (Bonet, 2015), Bonet emprega o
conceito de Ingold de “educação da atenção” para mostrar como se produz o
aprendizado dos médicos de família, em um programa de residência desta
especialidade. Os residentes de medicina de família aprendem, “na prática”,
como lidar com as demandas clínicas de seus pacientes, criando habilidades
para operar em seus ambientes de trabalho, num processo de “reprodução
orientada”, um “copiar dirigido que envolve improvisação e criatividade” (p. 273,
Bonet, 2015).
No balizamento teórico geral deste trabalho, venho explorando
alternativas à matriz epistemológica dicotômica que produz as interpretações
polarizadas quanto às abordagens da experiência de sofrimento na Saúde
Mental Global (Cooper, 2016). Entendo que as práticas dos médicos de família
também não podem ser interpretadas simplesmente situando-a nos polos
psiquiatria biomédica vs. abordagem sociocultural. Como demonstrado por
Bonet, a epistemologia que produz essas práticas tem diversos elementos
“holistas” e por isso demanda um tratamento antropológico que se situe como
uma opção à falsa oposição natureza vs. cultura.
Neste trabalho, apresento um breve relato extraído da minha experiência
acompanhando, por três meses, consultas e visitas domiciliares de seis
residentes de medicina de família em uma unidade de Saúde da Família na
cidade do Rio de Janeiro em 2017. Esta imersão teve como objetivo explorar os
procedimentos realizados por esses profissionais na atenção a pacientes com
sintomas depressivos em consultas “generalistas” não especializadas em saúde
mental. Nestas consultas, também chamadas de atenção primária à saúde, os
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

sintomas depressivos, apesar de muito frequentes, raramente são as


preocupações principais ou explícitas que trazem os pacientes às consultas. Ao
longo desses atendimentos, observei que experiências como tristeza, angústia
e “sensação de vazio” são ocultadas por diversos sintomas físicos, ditos sem
explicação médica. Sua verbalização e expressão corporal pelo choro e
movimentos que simbolizam as sensações físicas são estimuladas pelas
médicas e médicos de família através de uma abordagem particular de consulta,
a medicina centrada na pessoa.
Pretendo usar de forma mais abrangente da obra de Ingold para mostrar
como os residentes atendem às pessoas com experiências de sofrimento
depressivo. Em Anthropology and/as Education, Ingold (2018) estabelece várias
semelhanças, considerando princípios e métodos, entre seu projeto
antropológico e a educação na forma como é apresentada por John Dewey.
Minha hipótese é de que essas semelhanças também podem ser estabelecidas
com a prática terapêutica da medicina de família, como já realizado por Bonet,
porém de forma ainda mais ampla.

“E, como estão as coisas? ”

Em um turno de atendimentos do residente Jaime, médico de uma equipe


“de morro” da unidade, acompanhei a consulta de Janaína. Janaína,
inicialmente, era atendida por ter sido diagnosticada com hipertensão e diabetes,
com necessidade de uso de insulina para tratamento do diabetes. No último ano,
havia apresentado perda visual do olho direito e foi diagnosticada com glaucoma.
Estava para fazer um procedimento cirúrgico para o glaucoma em um hospital
de referência e o residente havia solicitado os exames pré-operatórios para o
risco cirúrgico. Nesta consulta, Janaína veio para apresentar os exames. O
residente recebe e lê os resultados. Comenta que “está tudo bem” e pergunta:
─ E, como estão as coisas?
─ É difícil, tenho medo. Tenho uma tia com câncer que mora comigo, ela não
está bem. Liberaram morfina para que ela usasse em casa. A vida deu uma
virada do natal pra cá. Estou morando no morro lá de cima [outro morro para o
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

qual se mudou]. O caso dela não tem cura. Sinto que o esquecimento tá
aumentando [não fica claro se ela fala de um esquecimento dela ou da tia].
─ Você consegue ter algum tempo pra você todo dia?
─Tenho medo de ter problema na outra vista. Não sei, sinceramente eu não sei.
Estou chegando no meu limite. Minha chefe não quer me mandar embora. Não
sei como será voltar ao trabalho. Não tem com quem deixar ela. O que vou fazer?
Tem hora que ela dorme. Sei que é uma doença, não é da idade. A família somos
nós.
Janaína descreveu com vários detalhes a situação de dependência de sua
tia em relação a ela. O residente ouviu atento por alguns minutos e depois
interrompeu:
─ Tô vendo que você não está bem. A gente já vem conversando sobre isso e
não está ficando melhor. Acho que seria bom a gente iniciar uma medicação.
Jaime explica que vai passar fluoxetina para a paciente.
─ O remédio é apenas uma muleta, mas ele não vai andar por você. Ele é como
um casaco quando a gente está com frio dentro de casa. A gente coloca o casado
e ajuda a suportar o frio, mas não faz a gente sair de casa. Quem sai é a gente.
Vou te passar um “trabalho de casa” também. Quero que você responda no papel
três perguntas [escreve num receituário e fala em voz alta]: três coisas boas
neste momento, três coisas ruins, três coisas que estou aprendendo. Pôr no
papel é um exercício diferente, às vezes a gente não sabe porque está sofrendo.
Ajuda a organizar. Ajuda a entender como a gente está se me vendo.
─ Vou tentar, acho que consigo.
─ Isso que você está vivendo tem relação com o seu momento de vida. É muito
importante tudo o que você está fazendo, e vindo aqui se cuidar.
─ Eu sinto muita culpa em relação ao falecimento da minha mãe.
─ A gente vai conversar sobre isso. Vamos nos ver de novo na próxima sexta?
─ Sim.
Enquanto Jaime, preparava as receitas, perguntei a Janaína sobre seu
trabalho. Ela explicou que era encarregada de limpeza em uma firma que
prestava serviços na zona sul do Rio. Estava de licença do trabalho pelo
glaucoma, mas não via mais condições de seguir nesse trabalho, mesmo depois
da cirurgia.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Da pessoa à vida

Sem me ocupar da teorização desse conceito própria do campo da


medicina de família (Stewart et al., 2014), meu interesse principal foi avançar
aspectos descritivos e interpretativas iniciadas pelo trabalho de Bonet (2014) e
problematiza-los no atendimento a pessoas com sintomas depressivos. Como
exemplificado por esta consulta de Janaína e Jaime, identifiquei que “fazer
medicina centrada na pessoa”, no contexto estudado, significava pôr em prática
três tipos principais de procedimentos que designei “escuta”, “vivencia de si” e
“instrumentalização para a melhora”. Essas expressões foram usadas pelo
próprio residente Jaime para explicar como desenvolvia as consultas de
atendimento a pessoas com sintomas depressivos. Nesta abordagem, o toque,
o contato visual com o olhar sustentado, o giro do tronco na direção do paciente
em alternância com a tela do computador são elementos que constroem uma
atmosfera de proximidade e de demonstração de interesse do profissional pelos
usuários capaz de convidá-los a manifestarem suas emoções e sensações. Além
do corpo, esses profissionais usam perguntas sobre a família, o trabalho, os
projetos para o futuro que propiciam conversas além das doenças, sobre “a vida”:
“e, como estão as coisas?”.
Perguntar e observar as “coisas” implica em acompanhar os fluxos de
materiais que as constituem. Esses fluxos não são seus conectores, como se as
coisas fossem pontos de uma rede, mas são seus constituintes. As coisas se
formam nos percursos das linhas de circulação de materiais e não “entre” elas.
A vida é inerente a estas próprias circulações (Ingold, 2012)
O residente Jaime foi o que mais recorreu em sua entrevista à categoria
de vida, ao traduzir seu modo de estar presente e se movimentar nas consultas
e nas visitas. Quando perguntado sobre o que o mobilizava na sua opção pela
residência em medicina de família e no enfrentamento das dificuldades na oferta
de recursos de cuidado para a população de sua equipe, o residente Jaime se
referiu a um “compromisso com a vida”. Descreveu a vida tudo que nos move,
transforma e toda possibilidade de troca. E concluiu “a depressão é estar meio
morto”. A “valorização da vida” foi apontada por Jaime como um sentido
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

fundamental da sua prática médica. Para ele, “vida” representava toda


possibilidade de troca, de movimento, de interação entre as pessoas.
Agora tem um princípio que é muito claro pra mim, que é o
princípio de valorizar a vida. Pode até ser que eu não tenha
valorizado muito a minha antes [risos]. Mas é: vida. Tem
que estar vivo, tem que ser vivo. Fé e ideologia? Na vida.
A gente crê na vida, movimento pró vida, na melhoria da
vida, qualidade de vida. E aí nesse sentido de melhor vida,
etc eu sinto, nesse movimento, toda essa culpa. Vida,
qualquer vida. [o que é vida pra você?] Porra, acho que é
nossa única condição de existência, de troca, acho que não
existe nenhuma condição de troca, que não seja vida. Na
depressão a gente fica meio morto. (Jaime)
Usando a descrição de Jaime, que me parece traduzir muito do que vivi
com os demais residentes, proponho interpretar o eixo escuta-vivência-
instrumentalização dos residentes como um percurso de “reengajamento com a
vida” das pessoas que atravessam experiências de sofrimento. E configurar sua
experiência como “vidas em sofrimento”. É, a partir desta perspectiva, que vejo
mais conexões entre o projeto antropológico de Ingold e a medicina de família.
Ingold afirma que a tarefa da antropologia não é fazer etnografias, que ele
descreve como “estudar as pessoas em seus mundos”, mas estudar com as
pessoas em seus mundos. A antropologia “é uma investigação constante e
disciplinada das condições e potenciais da vida humana” (p. 25, Ingold, 2015). A
vida não é “um movimento em direção a um desfecho final”, mas é melhor
definida por sua capacidade de “continuamente ultrapassar as destinações que
são atiradas em seu percurso”. “A vida, em suma, é um movimento de abertura,
não de encerramento” (p. 26, Ingold, 2015).
As pessoas em experiências de sofrimento que acompanhamos se veem
sem alternativas, imobilizadas, sem vida. Francisca, paciente do morro que
apresentei no quinto capítulo descreve assim como foi o assassinato de seu filho
em seus braços e o impacto dessa memória em sua vida:
Porque ele [filho de Francisca] desceu comigo daqui até lá
em baixo na virada do acesso pra chegar na UPP. Quando
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

chegou ali uma pessoa me deu um chute, me ofendeu isso


aqui e eu caí agarrada com ele. Eu por baixo e ele por cima
e eles atiraram, entendeu? Mas Deus me guardou que não
pegou um tiro em mim, só passou assim de raspão. E ele
morreu. E dali pra cá, eu senti que eu fui assim, feito uma
árvore eu fui murchando, eu não fui mais aquela Francisca
que eu era, eu era dançarina eu era modelo e eu desfilava,
não. Eu não tenho mais, é o que Jaime fala, “Francisca, vai
viver”. Não, não vou, não vivo mais. (Francisca, paciente
do morro).
A obra de Ingold é rica e extensa em apresentar conceitos que
representam chaves interpretativas para uma antropologia que assume esse
objetivo menos descritivo e mais produtivo e criativo que coloca a “vida” no centro
do seu projeto. Entendo essas diversas chaves como modos de se mover no
mundo compatíveis com as qualidades de abertura, não acabamento e
longitudinalidade da própria vida. No caso da vida humana, sem descartar a
possibilidade dessa descrição se estender a outros animais, comparando bios e
zoe, Ingold afirma que os humanos não apenas “vivem” mas “lideram suas vidas”
(“We lead them”, Ingold, 2018). Não se trata de “liderar” no sentido de uma
“transmissão” de um modelo de vida humana, de um colocar em prática um
planejamento pré-concebido do que dever ser a vida. Transmissões de modelos
prontos encerram a vida e a limitam à reprodução do que já existe, isso impede
o seu próprio fluxo. O que produz a diferença entre “viver” e “liderar a vida” é
“atenção”. Ingold desenvole sua argumentação apontando para uma educação
e uma antropologia que sejam “contra a transmissão” e “pela atenção”.
Quando o residente Jaime passou “o trabalho de casa” para Janaína, ele
convidou Janaína a ter atenção com a sua experiência. A relação entre a
“atenção” e o “habitar” é um ponto chave para a o estudo dos movimentos da
vida humana segundo Ingold. Em Anthropology and/as Education, Ingold
emprega a aproximação de Dewey sobre o “processo de viver”, descrita em A
Arte como Experiência, para trazer diversos elementos que o apoiam nesse
argumento. Para Dewey, a vida depende uma continuidade entre atuar sobre o
ambiente e ser atuado por ele. Entre “fazer” e “se sumenter”, formam-se “hábitos”
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

no intercurso com o mundo e é possível “habitá-lo”. Ingold propõe que o “hábito”


seja entendido como um princípio operativo que dissolve uma falsa oposição
entre “fazer” e “se submeter”. Submeter-se é algo que é feito e fazer é um ato de
submissão. Todo “fazer” se finaliza pelo “submeter” que representa um novo
começo para a vida. Na experiência, é preciso, nas palavras de Dewey, “a saída
de energia para se possa recebe-la, não uma conservação da energia” (tradução
minha). Jaime faz uma referência direta ao uso da “energia” em suas consultas:
[A depressão] não é esquizofrenia, você não rompe com a
realidade, o chato é isso, você tem uma noção muito séria
do que, muito arrastada, arraigada do que que é uma
realidade, uma visão pessimista dela, entendeu? Nessa
visão você está vazio, você não tem sentido, você está
embolhado às vezes. Por isso que esse movimento inicial,
às vezes, envolve um empréstimo de energia, né? Da
gente, dos familiares, da igreja, da atividade físic,a às
vezes. Se o cara tá muito mal, cara, a energia tem que vir
de fora, não tem jeito, o cara tá esvaziado. (Jaime).
Uma das características das consultas “centradas” na pessoa era uma
certa sensação de que nada estava sendo exatamente resolvido. Neste aspecto,
me parece que é possível fazer correlações entre a visão de Ingold sobre a
antropologia e o atendimento às pessoas com depressão. Para Ingold, a
antropologia é uma prática sempre em aberto e que não tem por objetivo chegar
respostas finais que forneçam algum tipo de solução à vida social. Seu objetivo
é revelar e participar da construção dos caminhos em que essa vida social possa
continuar seguindo, em um processo de descoberta:
Mas o ponto sobre a antropologia, como Dewey afirmou
para a educação, não é que ela deva terminar em
desfechos finais, mas que ela deve se abrir para novas
experiências, tornando possível um processo de
crescimento e descoberta que não acaba e está sempre
começando. (Ingold, 2018, tradução minha).

Referências bibliográficas
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

BONET, Octavio. 2006. Emoções e sofrimentos nas consultas médicas.


Implicações de sua irupção. Teoria e Cultura, 1(1):117-138.

BONET, Octavio. 2014. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a


medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 letras.

BONET, Octavio. 2015. Sentindo o saber. Educação da atenção e medicina de


família. Horizontes Antropológicos, 21 (44): 253-277.

COOPER, Sarah. 2016. Global mental health and its critics: moving beyond the
impasse. Critical Public Health, 26, (4): 355–358

INGOLD, Tim. 2012. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos


num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, 18(37): 25-44.

INGOLD, Tim. 2018. Anthropology and/as Education. New York: Routledge.

INGOLD, Tim. 2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e


descrição. Petrópolis, RJ: Vozes.

STEWART, Moira et al. 2014. Patient-centered medicine. Transforming the


clinical method. 3rd ed. New York: Radcliffe Publishing.

WATKINS, Alan. 1997. Mind-body medicine. A clinician´s guide to


Pscyhoneuroimmunology. Churchill Livingstone: New York.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

A noção dos especialistas em cura no sistema médico indígena de


Pernambuco.
Paulidayane Cavalacanti de Lima1

Resumo: Este trabalho consiste no debate sobre o papel social dos especialistas
em cura de comunidades indígenas do Estado de Pernambuco. Nota-se que
diversidade de especialistas em cura dentro de sistemas médicos é comum à
quaisquer sistemas, assim como se outorga a eles múltiplas posições/funções
sociais. Tais funções se relacionam tanto com o seu papel enquanto agente de
cura, como também de mediador entre diferentes esferas da vida da comunidade,
sendo elas politico ou religiosas. A partir disso propõe-se analisar como os
especialistas em cura nos sistemas médicos indígenas desenvolvem seu papel
social, enquanto agentes, e como este papel se reconfigura dentro das dinâmicas
do sistema médico e se relaciona às politicas de assistência à saúde do Estado
Brasileiro. Para isto, serão analisados 3 (três) grupos indígenas: Kapinawá,
Pankararu e Fulni-ô, a partir de seus respectivos sistemas médicos. A analise terá
como base observações realizadas no encontro de pajés de Pernambuco em
2016, em visitas realizadas no biênio 2015-2017 e pelas bibliografias existentes
destinadas ao tema.
Palavras-chave: Saúde indígena, saberes tradicionais, politicas públicas.

I Os especialistas em cura no Estado de Pernambuco.

Em Pernambuco vivem 13 (treze) grupos indígenas, se localizam desde o agreste


até o sertão do são Francisco Pernambucano, dentre esses grupos forão
selecionados 3 (três) para esta analise, a escolha destas etnias especificas se
deve ao fato da maior proximidade da autora a estes grupos, proporcionando uma

1
Programa de Pós-graduanda em Antropologia pela UFPE, membro do NEPE –Núcleo de estudo e pesquisas
em Etnicidade e GESI –Grupo de Estudo em Saúde Indígena.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

analise mais cuidadosa dos seus sistemas. São eles: Kapinawá, Pankararu e
Fulni-ô.
A população indígena do Estado de Pernambuco há muito tempo sofre as
consequências do seu contato com a sociedade envolvente, que vão desde a
declaração de sua extinção pelos discursos oficiais, ocorrida depois de um forte
processo de miscigenação promovido pelo diretório pombalino (1755) e a extinção
dos aldeamentos, até o seu movimento de emergência étnica (Arruti, 1995)
quando finalmente retomam sua visibilidade enquanto populações tradicionais
frente à sociedade. Podemos destacar que apesar do contato interétnico
estabelecido desde o século XVII, os grupos étnicos do estado resistem de formas
bem particulares às duras situações sociais nas quais estão envolvidos, sendo
protagonistas de sua própria historia. Dentro deste contexto histórico, localizamos
aqui três etnias do Estado que serão objetos de estudo nesse trabalho.

Kapinawá: O povo Kapinawá ocupa as terras que se estendem entre os


municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, na área de transição entre o
Agreste e o Sertão de Pernambuco. Os Kapinawá são descendente dos índios
que habitavam a aldeia de Macaco, foram reconhecidos em 1982 após parecer
sobre a identidade indígena do grupo emitido pela antropóloga Maria Rosário
Carvalho e com equipe do Programa de Pesquisa Povos Indígenas no Nordeste
da UFBA, o levantamento de terras foi feito em 1985, e a homologação da AI
Kapinawá em 1991.
Em Kapinawá quem cura são as pessoas dotadas de ciência (conhecimentos que
ajudam a curar, trazer gente por mundo e cuidar de males físicos e espirituais),
elas receberam o conhecimento das pessoas mais velhas que foram orientadas
pelos encantados. Dentre os especialistas em cura, ou como eles chamam as
pessoas que tem ciência, estão as rezadeiras e rezadores e as parteiras. Faz
parte deste sistema também os chamados remédios de índio ou do mato.
Parteiras: São mulheres que adquiriram experiência através do que foi repassado
de geração em geração, aprendem geralmente com suas mães e com o dom. Os
atendimentos as gestantes são dados por meio de dietas, chás e massagens,
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

além de contarem com a fé, após os partos a parteira continua orientando a mãe
com as restrições dietéticas, o uso de banhos mornos com plantas e orientações
repouso. As parteiras se responsabilizam sobre as mulheres que atendem,
dedicando a elas atenção.

Atualmente, relatam que as parteiras em Kapinawá não são mais procuradas


pelas mulheres da comunidade, as mulheres acabam por se submeter
desnecessariamente à cirurgias cesáreas e partos hospitalizados. Observamos
também os que órgãos de saúde não dialogam com a comunidade tampouco
incentivam ao parto natural.

Rezadores e rezadoras: Para os Kapinawá para ser rezador/rezadeira é preciso


ter o dom, quem tem o dom aprende as práticas vendo e auxiliando os mais
velhos em seus atendimentos. As rezas são transmitidas oralmente entre as
gerações e ainda hoje são bastante procurados.

Pankararu: O território do povo Pankararu está localizado nos limites do município


Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Os Pankararus desde o início da década de 1920
estabeleceram contatos com o Padre Alfredo Dâmaso que os auxiliou na busca ao
reconhecimento identitários junto às autoridades. Em 1935, o pesquisador Carlos
Estevão de Oliveira faz sua primeira viagem ao Brejo dos Padres passando a
proferir palestras divulgando a existência do grupo, que resultou na instalação do
posto Indígena depois de três anos (1940).
A territorialidade do grupo é compreendida por dois marcos geográficos tomados
como sagrados: a cachoeira de Paulo Afonso e a cachoeira de Itaparica. A
primeira demarcação da AI Pankararu ocorreu em 1949, contudo em 1989 foi
constituída uma equipe técnica para o levantamento fundiário e topográfico da
área.
No sistema médico Pankararu nota-se a forte presença dos curadores e
benzendeiras, que dominam os conhecimentos sobre as ervas, alguns são
também representantes dos encantados com os quais se comunicam a realizam
trabalho de cura.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

A parteira é outro destaque entre os especialistas de cura , o parto pelas mãos da


parteira continua bastante valorizado e atualmente serve de modelo para outros
povos na busca pela revitalização da pratica. O parto pelas mãos da parteira
promove uma nova relação social entre a mãe e a parteira, que se tornam
próximas, muita vezes a parteira é chamada de mãe ou madrinha pela criança e
de comadre pelas mães. A noção de saúde permeia a boa relação com os
encantados e a falta de doença.

Fulni-ô: O grupo esta localizado no município de Aguas Belas ( na verdade o


município se encontra dentro da AI Fulni-ô), e são a única etnia do Nordeste que
mantem a própria língua. Em 1928 o SPI instalou o posto Indígena no Distrito de
Águas Belas e apenas em 1971 a FUNAI teria realizado a demarcação
administrativa da AI Fulni-ô.
Seu sistema médico é um conjunto de saberes usados para prevenir e tratar
doenças. Esses saberes variam de domínios, podendo ser difundidos ou
permanecerem sob o amparo de uma pessoa ou de um grupo especifico de
pessoas. A noção fundamental do sistema médico Fulni-ô é que a natureza é
sagrada, pois é nela onde se encontra tudo, desde o alimento até os povos
espirituais de sua cosmologia. A saúde esta relacionada com a natureza, com as
relações sociais e com os costumes tradicionais (rituais). De forma geral existem
dois tipos de doenças: as doenças de índios que podem ser tratadas dentro dos
seus conhecimentos e as doenças de branco que são tratadas pelos serviços de
saúde.
O itinerário terapêutico começa pela família onde o se busca diagnosticar e achar
a cura pra doença, no caso Fulni-ô os especialistas de cura são acionados em
casos mais graves para curar doenças inerentes a suas especialidades. São
considerados especialistas: Os mais velhos, o cacique, o pajé , os rezadores e
rezadeiras, as parteiras, os garrafeiros e raizeiros.
Os mais velhos, cacique e pajé: são visto como guardiões da tradição, eles
dominam o conhecimento sobre as determinadas práticas terapêuticas. Enquanto
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

os rezadores e rezadeiras fazem benzimentos para prevenir doenças e curar as


doenças de índio.
As parteiras além do atendimento durante o parto prestam cuidados e
acompanham durante a gestação e no pós-parto, orientando as gestantes sobre
cuidados para manter a sua saúde e a da criança. Raizeiro e garrafeiro: São
pessoas que produzem remédios baseados nas plantas medicinais, são
conhecedores das suas respectivas destinações. Estes remédios podem ser
preparados com diversas partes das plantas, e elaborados usando apenas uma
planta ou diversas combinações delas. No caso da segunda forma de preparo, os
responsáveis pela sua elaboração são os garrafeiros, especialistas em fazer
garrafadas.
No sistema medico Fulni-ô outro aspecto relevante para o bem-estar são as
praticas rituais, principalmente a participação no Ouricuri e os remédios caseiros.
As praticas terapêuticas entre os Fulniôs vem se fortalecendo por meio da
promoção e da valorização através do horto de plantas medicinais mantido pela
Associação Cacique Procópio Sarapó.

II - A noção de especialistas de cura entre comunidades indígenas de


Pernambuco.

Observamos que o especialista de cura nas sociedades indígenas é uma


categoria que abrange diversos atores sociais, que são detentores dos
conhecimentos tradicionais de sua etnia. Dentro do itinerário terapêutico 2 cada
individuo desempenha uma função própria, como assinala Langdon e Wilk (2010):

“No universo de cada grupo social, os especialistas têm papel


específico a desempenhar frente ao tratamento de determinada
doença, e os pacientes têm certas expectativas sobre como tal
papel será desempenhado, quais doenças o especialista pode

2
Remédios caseiros à base de plantas, estas plantas geralmente são encontradas dentro do território
indígena, seu uso se destina a prevenir e tratar diversos males.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

curar, assim como uma ideia geral acerca dos métodos


terapêuticos que serão empregados.” (p. 179).

A noção de saúde e doença está ligada a um processo mais amplo do que o


abordado pela biomedicina, nas sociedades indígenas estas noções se relacionam
com o território, corpo, dietas, missão, feitiços, espiritualidade, entre outras
categorias (Guarín 1995, Mccallum 1998) que são responsáveis pela manutenção
do bem estar social e físico dos membros destas sociedades. O sistema de saúde
é construído socialmente (Kleinman, 1970) e estão em constante reconfiguração e
interlocução e o processo de transmissão de conhecimentos segue como
resultado legitimador da resistência e da capacidade de adequação deste sistema
através dos tempos e das politicas publicas que o cercam.
Dentro do contexto restrito ao estado de Pernambuco, observa-se que as funções
dos especialistas de cura percorrem várias esferas de vida social da comunidade,
destinando-se desde a atenção primaria até os casos espirituais (Carvalho, 1998).
Entre estes especialistas pode-se identificar em comum as seguintes categorias:
1- O curador ou curandeira: Pessoas aptas à prescrever remédios do mato3
e fazer ritualísticas de cura, papel muito parecido com o dos pajés.
2- Pajés: Liderança politica e religiosa, responsável pela manutenção da
ordem espiritual da comunidade, seu papel embora semelhante ao do
curador/curandeira se difere pelo seu acesso direto ao mundo cosmológico
e pela sua autoridade perante ele. Esta função é comumente
desempenhada por homens.
3- Rezadeira ou benzendeira: Pessoas que tem o dom de curar e proteger
pelo uso de gestos e palavras. Costumeiramente fazem uso de ervas junto
às palavra ditadas. Em geral esta função é desempenhada por homens e
mulheres, embora ainda se note o numero maior de mulheres sendo
procuradas para prestar atendimentos.

3
Remédios caseiros à base de plantas, estas plantas geralmente são encontradas dentro do território
indígena, seu uso se destina a prevenir e tratar diversos males.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

4- Parteira: Função desempenhada por mulheres que responsáveis por trazer


a vida, embora esta função seja apreendida pela transmissão dos
conhecimentos no âmbito familiar (onde filha aprendeu com a mãe, que
aprendeu com a avó), também é vista como um dom. A função de
especialista de cura das parteiras esta especialmente ligada à sua
assistência pós parto, onde toda uma conjuntura envolve os cuidados com
a mãe e o recém nascido.

Essas categorias nomeadas são atribuições sociais, que conferem a tais


indivíduos, dentro da sua comunidade, posições diferenciadas, uma vez que a sua
significação social é atribuída de forma distinta nas diversas etnias e assim como
o sistema medico estão em continua ressignificação. Podemos observar que os
conhecimentos formam uma teia de saberes e significados (Geertz, 2003) que
ligam essas comunidades em rede, porém encontramos obviamente
características especificas em cada etnia que diferem seus sistemas, essas
características vão desde as nomeações até suas funções no grupo. Entre as que
foram observadas temos:
Raizeiro e garrafeiro entre os Fulniôs: São pessoas que produzem remédios
baseados nas plantas medicinais, são conhecedores das suas respectivas
destinações. Estes remédios podem ser preparados com diversas partes das
plantas, e elaborados usando apenas uma planta ou diversas combinações delas.
No caso da segunda forma de preparo, os responsáveis pela sua elaboração são
os garrafeiros, especialistas em fazer garrafadas.

Meseiros entre os Kapinawás: São os "donos de trabalho" que junto com os


pajés e as xamãs são responsáveis por promover curas no âmbito espiritual,
afastando males que acometem os membros das suas comunidades.
Outra característica das especificidades destes sistemas são suas relações com o
sistema biomédico, e como essas relações ocorrem. Já foi elencado, por exemplo,
que a relação entre as parteiras em Kapinawá e em Pankararu são bastante
diferentes, no primeiro há atualmente uma desvalorização da pratica do partejar,
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

associada a hospitalização do parto, enquanto no segundo caso a relação com a


parteira se fortificou pela sua incorporação na equipe de saúde multidisciplinar.
Contudo vamos lançar um olhar mais profundo sobre as questões de
interculturalidade, como são colocadas na teoria e na prática da comunidade.

III Os especialistas de cura e o sistema biomédico.

Dentro do panorama atual da relação entre sistema biomédico e o sistema médico


indígena, nota-se a incorporação de apenas algumas das categorias de
especialistas de cura nas equipes médicas dos postos que atendem as
populações indígenas. Como por exemplo em Pankararu, as parteiras. Porém as
categorias que ficam de fora, são postas em descrença pelos funcionários das
equipes médicas que as interpretam e as reduzem como crendices.
Embora exista a valorização das categorias que são incorporadas, como é o
exemplo das parteiras, há implícita uma forçosa mudança da forma de
atendimento, em virtude da necessidade de atender metas impostas pelo sistema
de saúde biomédico, enquadrando-as nas dinâmicas impostas pelo sistema
biomédico, as quais em sua maioria, não consideram as especificidades do
sistema médico indígena. A discussão posta por Langdon (2014) evidencia que a
falta de relativização da biomedicina enquanto ciência, e a rejeição da concepção
de doença como construção sócio-cultural caracterizam a hegemonia biomédica
posta pelas politicas publicas.
Dentro da concepção de doença trazido pela antropologia da saúde, os aspectos
simbólicos também são fundamentais para entender o processo de adoecimento e
cura, incluindo fatores sociais, psicológicos. Essa concepção de doença como
construção sócio-cultural permitem discutir as práticas terapêuticas, as religiosas
e outras como “processos simbólicos desenvolvidos para transformar e restaurar o
estado do doente, sem rotulá-las como “crenças” ou “superstições” (Langdon,
p.1024, 2013). Podemos então a partir disto observar a eficácia simbólica
discutida por Levi-strauus neste processo onde o significado da ação simbólica
para o doente aciona seu reequilíbrio.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Desta forma, ao observar as relações entre o curador/médico e o


enfermo/paciente, percebe-se que a construção imagética da intersubjetividade e
a crença na sua eficácia é presente nessa relação, no caso especifico das
benzedeiras e rezadeiras, por exemplo podemos dialogar com a ideia da cura
psicológica posta por Lévi-Strauss (1975), onde os especialistas não tem contato
com o corpo do doente nem prescreve remédios, mas “põe em causa, direta e
explicitamente o estado patológico e provem a cura”. Essa cura pode ocorrer por
cantos, rezas fumaças e outros métodos não invasivos, construindo assim a
eficácia simbólica.
A escolha dos membros da comunidade pela opção de atendimento, seja ele feito
pelos especialistas de cura ou os integrantes das equipes medicas, são norteadas
por princípios que diferem o tipo de mal que o acomete, e a identificação da
causa da doença se dá pelo doente e seus familiares próximos, a partir desse
autodiagnostico inicial se busca o atendimento considerado o mais indicado. Essa
identificação de forma geral percorre as noções de doença de índio ou doença de
branco, e são elas que definem o itinerário terapêutico que será seguido, porém
isto não significa que no decorrer do tratamento prevaleçam apenas as instruções
de um dos sistemas médicos, muitas vezes eles convivem e convergem na
escolha do paciente. Este fato aponta para a autonomia de núcleos familiares e
sociais que articulam diferentes saberes e modelos de atenção a saúde de acordo
com suas experiências frente a visível hegemonia do sistema médico.

No caso fulni-ô observamos que a auto-atenção, conceito definido por Menéndez


(2005):
“as representações e as práticas que a população utiliza no nível do
sujeito e do grupo social para diagnosticar, explicar, atender,
controlar, aliviar, aguentar, curar, solucionar ou prevenir os
processos que afetam sua saúde em termos reais ou imaginários,
sem a intervenção direta, central e intencional de curadores
profissionais”.
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Faz parte das dinâmicas relacionadas à saúde/doença, onde prevalece esta


prática, porém sem negar as possibilidades de negociação entre diferentes
práticas e formas de conhecimento, formando novos itinerários terapêuticos
quando necessários. No caso, observamos que é comum que o tratamento seja
feito associando aspectos dos dois sistemas, o indígena e o biomédico, sendo
que, muitas vezes (arrisco dizer que, quase em sua totalidade) esse diálogo entre
sistemas só acontece de um lado, no caso do sistema médico indígena.
É fundamental buscar compreender os saberes locais, as formas que os
especialistas são abordados e como se desenvolvem a relação entre os
especialistas locais e os médicos que atendem a região. Loyola (1994) aponta
pontos como a observação das linguagens usadas, e como ocorrem as relações
de aproximação com os pacientes, as relações de poder médico-paciente para
chegar a compreensão de como as relações ocorrem quando estes diálogos são
feitos por especialistas de cura ou médicos dos postos. A estreita relação de quem
vive na comunidade reflete nos atendimentos, pois a linguagem utilizada é
compreensível e familiar para ambas as partes, o que facilita no diagnostico mais
preciso dos males que afeta o enfermo.
Este é outro aspecto que elenca a importância deste agente de cura em seus
grupos, ele como agente social constrói “articulações entre os diferentes conceitos
e práticas relacionados ao processo de saúde/doença, sendo que muitas vezes
essas articulações se dão através de ações que recombinam elementos das mais
variadas esferas e produzem outros aspectos do social” (Langdon. p.1027). Esses
especialistas em todo seu contexto social e histórico são grandes exemplos da
resistência do sistema médico indígena, que apesar das dificuldades enfrentadas
diante das politicas publicas que ignoram suas especificidades, e negligenciam a
formação de profissionais, colocando a noção de interculturalidade apenas no
discurso e o mantendo longe da prática, se reinventam e ensinam como o dialogo
entre itinerários terapêuticos é possível, podendo sim prevalecer o equilíbrio e se
complementarem.

IV Conclusão:
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

Os termos interculturalidade e intermedicalidade foram incorporados aos discursos


das politicas publicas, no entanto a pratica diverge em vários aspectos desse
discurso. Assumir a perspectiva de interculturalidade em saúde requer grandes
mudanças, que vão desde o reconhecimento da autonomia de concepção de
saúde e doença pelas diversas etnias até a capacitação adequada dos
profissionais que as atendem dentro do modelo biomédico. Neste caso, aponta o
Guarín:

“A política para um sistema intercultural em saúde deve apreciar e


incorporar a coexistência das variedades de conhecimentos sobre
saúde e doença e permitir a construção de novos discursos e rituais
de cura envolvendo pessoas.”

Durante o III encontro de pajés em 2016, evento organizado pela SESAI e


conselheiros distritais, houve a indagação dos especialistas de cura (os quais, em
sua maioria não tiveram suas praticas e saberes integrados aos atendimentos do
sistema biomédico) sobre a necessidade de haver durante o evento espaço para
as trocas de conhecimentos tradicionais entre eles, em local reservado onde
apenas os especialistas pudessem participar. Dentre os muitos significados desta
fala, com certeza esta entre eles o de um grito que pede respeito aos especialistas
e seu espaço dentro do evento.
Este exemplo ilustra a falta da pratica do discurso de interculturalidade, onde o
risco de se reduzir as construções sociais e os saberes locais à interpretação
biomédica são comuns. Os aprendizados dos sabedores locais são descritos
como uma serie de processos, dos quais fazem parte aspectos do ambiente e
suas formas materiais, verbais e espirituais, onde o conhecimento é incorporado
pela relação dos espíritos da pessoa e do corpo e suas habilidades físicas,
mentais e emocionais. Ou seja, o reconhecimento de outras formas de saber são
essenciais nesta relação, assim como reconhecer a sua relação com o território,
nele esta inserido todo sua cosmologia, suas plantas e portanto é fundamental
para a manutenção da saúde entre esses povos. É importante por fim reconhecer
as sociedades indígenas como construtoras autônomas de seus parâmetros de
Grupo de Trabalho 8 II Reunião de Antropologia da Saúde

bem-estar coletivo-social-indivíduo, e fundamental para fazer que o discurso e a


noção de interculturalidade sejam efetivamente posta em prática.

Bibliografia.

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defesa constituído culturalmente e a experiência de uma vítima “espírito mau” em
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MENÉNDEZ E. Intencionalidad, experiencia y función: la articulación de los
saberes médicos. Desacatos 2005; 14:33-69.
Grupo de Trabalho 9
Autoetnografia, arte e corporalidades
Coordenadoras: Anahí Guedes Mello (UFSC); Camilla
Rocha Campos (UCAM/UFRJ), Ella Vieira (Associação
Transgênero de Sorocaba e Co.labor.ativa) e Fabiene
Gama (DAN/UnB)
Grupo de Trabalho 9
Autoetnografia, arte e corporalidades
Este GT interdisciplinar visa fornecer um espaço de experimentação criativa
para exploração do poder de trabalhos que falem de si e foquem experiências
na área da saúde e/ou as corporalidades. Partindo do gênero autoetnográfico,
que conecta o pessoal ao cultural, tendo o corpo como mediador, a partir da
exposição de um self vulnerável, o grupo privilegiará temas silenciados,
invisibilizados ou pouco abordados nas discussões acadêmicas. Quem pode
construir um self? Quem pode falar, qual jogo de visibilidade é possível? E
refletirá sobre a potência do duplo vínculo “antropólogo(a)/nativo(a)” que pode
caracterizar a prática autoetnográfica, marcada pela narração e a
experimentação como métodos de pesquisa. Nosso objetivo é reunir trabalhos
que tratem de políticas públicas, saúde e/ou corporalidades dissidentes a partir
de experiências pessoais e vieses artísticos. Acreditamos no poder reflexivo
que pode surgir do encontro entre diversas experiências e buscaremos acolher
práticas, produções e performances heterogêneas, especialmente aquelas que
reflitam criticamente sobre os impactos da corponormatividade nas
experiências de vida e produções de conhecimentos. Incentivamos
calorosamente o envio de trabalhos que desafiem as normas e fronteiras
hegemônicas, falem sobre o indizível, experimentem com formas, estruturas e
conteúdos críticos e/ou subversivos. Desejamos ampliar o debate sobre temas
sensíveis, noções de pessoa, instituições, políticas públicas e mesmo a
Antropologia e a Arte como disciplina.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

GT09 - "AUTOETNOGRAFIA, ARTE E CORPORALIDADES"

“Você não é seu transtorno alimentar”: os desafios de ser pesquisadora e


nativa

Beatriz Klimeck Gouvêa Gama1

Nesse trabalho, pretendo expor as vulnerabilidades que permeiam meu


processo de pesquisa em transtornos alimentares. Na busca por entender o
meu próprio adoecimento a partir de uma perspectiva antropológica para
utilizá-lo no auxílio de outras pessoas, tornei-me militante no combate à “cultura
da dieta” e à exaltação do corpo magro. Assim, o desenvolvimento da pesquisa
fora (e é) marcado pela minha própria história; entrar em contato com a
literatura e ouvir os relatos das entrevistas individuais que realizo é, de certa
forma, reviver a minha própria experiência, o que traz múltiplas questões tanto
para o meu lugar enquanto antropóloga quanto para minha saúde mental.
Utilizando bell hooks para falar de teoria enquanto autorrecuperação, objetivo
discutir algumas dificuldades desse processo, como o estigma de me
apresentar como nativa (e, nesse caso, portadora de um transtorno mental)
frente à Academia, e as possíveis contribuições da Antropologia da Saúde para
a prevenção dos transtornos alimentares.

Palavras-chave: transtornos alimentares, autorrecuperação, militância.

--

I. Sair do armário: do sofrimento individual à experiência coletiva

Em 17 de agosto de 2015, apertei o botão “publicar” em um texto que


estava sendo escrito há algum tempo. “Eu, feminista e com um transtorno
alimentar” foi finalmente lançado na Internet, através da plataforma Medium,

1
Aluna do oitavo período em Ciências Sociais na Fundação Getulio Vargas – Rio de
Janeiro (CPDOC/FGV). E-mail: [email protected]
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

assinado com meu nome e sobrenome e compartilhado em meu perfil no


Facebook.

Apertar aquele botão foi muito mais do que publicizar uma história
pessoal: foi um “turning point”. Em outubro de 2017, o texto tem 1.100
visualizações, tendo alcançado o primeiro resultado nas buscas do Google por
“feminismo + transtorno alimentar”. Dessa forma, aproprio-me da expressão
“sair do armário” (ou “coming out as”), mais usualmente utilizada por e sobre
homossexuais, transexuais e pessoas transgêneras, para dizer que, naquele
momento, eu saí do armário como uma pessoa que desenvolveu um transtorno
alimentar. O termo é também utilizado pela militância gorda não no sentido de
publicizar algo secreto, mas de testarem e resistirem ao estigma em relação
aos seus corpos, assumindo-os como são (SAGUY e WARD, 2011).

A partir desse texto, amigos(as), conhecidos(as) e desconhecidos(as)


tomaram conhecimento da minha condição psíquica e do meu adoecimento
silencioso. Como uma pessoa que esteve entrando e saindo de dietas
restritivas regularmente desde bem nova, na faculdade me vi com
comportamentos alimentares típicos de pessoas com transtornos. Shisslak,
Crago e Estes (1995) apontam que 35% daqueles que costumam estar de
dieta progridem para um comportamento alimentar patológico e que 20 a 25%
desses desenvolvem transtornos alimentares.

Sair do armário, no entanto, pouco foi sobre contar às pessoas sobre o


sofrimento que vivia, e sim principalmente sobre dividir o que eu acreditava ser
coletivo daquela experiência. Naquele momento, já começava a pesquisar as
relações do íntimo que vivia com questões socioculturais, principalmente às
expectativas em relação ao corpo feminino.

Recebi, ao longo desses dois anos, inúmeras mensagens agradecendo


pelo texto, pois teria possibilitado a essas pessoas enxergarem-se como parte
de um sofrimento que não atinge apenas a elas individualmente.

Em 28 de junho de 2016, divulguei pela primeira vez para meus amigos


o nascimento de um projeto: minha página no Facebook, chamada “Você não é
o seu transtorno alimentar”, onde escrevo e compartilho textos relacionados à
positividade corporal, pela aceitação da pluralidade dos corpos e no combate à
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

cultura da dieta. Hoje, escrevo publicamente sobre transtornos alimentares,


aliando a bagagem pessoal e da militância ao meu trabalho acadêmico – e vice
versa.

Tornei-me estagiária voluntária da organização internacional local-global


Endangered Bodies, que realiza diversas ações com o objetivo de combater a
cultura que promove o ódio ao corpo, e também passei a integrar o grupo
Corpo e Cultura/Endangered Bodies São Paulo, associação interdisciplinar de
pesquisadoras que se dedicam a estudar e divulgar problemáticas relacionadas
a corpo e alimentação.

Vasconcelos propõe a conceituação do termo “empowerment” como


“aumento do poder e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos
sociais nas relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles
submetidos a relações de opressão, dominação e discriminação social”
(2003:20). Utiliza o termo em inglês pela dificuldade de uma tradução para o
português que contemple sua complexidade na língua inglesa, e irei manter
esse uso.

O sofrimento psíquico, nas suas mais variadas formas, afeta das


dimensões coletivas às mais íntimas e individuais do cotidiano daquele que o
experiencia. Vasconcelos conceitua oito práticas do processo de
enfrentamento aos transtornos mentais, das quais destacarei três, com trechos
específicos que se relacionam com a experiência que narro:

a) recuperação (recovery): “(...) O processo inclui o desenvolvimento de


novos sentidos e objetivos de vida na medida em que a pessoa cresce e
ultrapassa os efeitos mais catastróficos da crise mental. Inclui também
reelaborar no nível pessoal e coletivo o estigma associado ao transtorno
mental tão difuso na sociedade, como também os efeitos iatrogênicos
dos dispositivos de assistência e dos medicamentos, bem como criar
coletivamente novas oportunidades de reinserção social e de trabalho.
(...)” (VASCONCELOS, 2003:26)

Existe divergência sobre a existência ou não de cura para os transtornos


alimentares. Muitos – e principalmente a militância – apontam para TAs como
condições psíquicas para toda a vida. Recovery, dessa forma, é um termo caro
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

à militância no combate aos transtornos alimentares, pois diz de reconhecer


uma identidade estigmatizada e aprender a se relacionar com ela ao longo da
vida. É comum ouvir ou ler comparações entre um alcoólatra, que pode nunca
mais ingerir qualquer bebida alcoólica, e uma pessoa com um transtorno
alimentar, que deverá encarar a comida pelo menos três vezes no dia até o fim
de sua vida.

b) Cuidado de si (dispositivos individuais de elaboração das vivências


pessoais, inclusive a auto-ajuda): “Por exemplo, no campo da saúde
mental é fundamental que o usuário em processo de recuperação possa
gradativamente ir reelaborando as experiências catastróficas de vida,
principalmente aquelas associadas às fases mais agudas do transtorno,
e dar um novo sentido a elas em um conjunto mais compreensivel de
eventos, sentimentos e sensações integrados em um todo, recuperando
a auto-estima e sua inserção ativa na sociedade.” (VASCONCELOS,
2003:27)

Nesse sentido, reelaborar sobre meus processos está diretamente


ligado à minha recuperação, por entender-me enquanto parte de um conjunto,
mas também à ajuda mútua, como explicitado no ponto a seguir:

c) Ajuda mútua: “Outro caminho para a ajuda mútua é constituído pelas


redes informais mais amplas de amigos e companheiros com os quais
vamos trocando regularmente as nossas experiências, vitórias, desafios
e dificuldades da vida. Uma outra forma importante de ajuda mútua
surgiu mais recentemente por meio da internet, para os que têm
computadores pessoais e acesso a ela, e que permite ajuda mútua entre
pessoas em todo o mundo, por meio de:

- páginas especializadas no assunto (...);

- páginas pessoais e bloggers abertos diretamente na internet;

- correio eletrônico, quando já conhecemos o endereço da pessoa com


quem queremos trocar mensagens pessoais, e que têm caráter
confidencial.” (VASCONCELOS, 2003:28-29)
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Através das minhas redes sociais pessoais e da página no Facebook,


recebo dezenas de mensagens privadas de pessoas pedindo ajuda ou até
mesmo apenas querendo dividir suas experiências, por estarem finalmente
compreendendo o que é o adoecimento que vivem, e estou sempre em diálogo
com pessoas que vivem essa realidade, criando uma rede difusa de troca de
experiências e vivências.

II. Teoria como autorrecuperação

"Quando nossa experiência


vivida da teorização está
fundamentalmente ligada a processos
de autorrecuperação, de libertação
coletiva, não existe brecha entre a
teoria e a prática. Com efeito, o que
essa experiência mais evidencia é o
elo entre as duas - um processo que,
em última análise, é recíproco, onde
uma capacita a outra." (HOOKS,
2013:85-86)

Enquanto não queria ser identificada como nativa desse campo, uma
das minhas maiores justificativas era o medo de que esse trabalho fosse lido
como uma auto-terapia, e, assim, desqualificado.

Decidir que me identificaria, sim, portanto, foi perceber que todo tema de
pesquisa, quando escolhido pelo pesquisador, parte de uma motivação
pessoal, muitas vezes desconhecida pelos leitores. Quando realizei, durante a
graduação, uma pesquisa sobre o “ritual” da primeira menstruação, não me
preocupei com me considerarem “pouco distante” do objeto por ter um útero.

Esse receio, inclusive, tem relação justamente com minha hipótese de


pesquisa. Se fosse eu uma mulher que, como tantas, “vive de dieta”, não teria
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

ressalvas em pesquisar o assunto: é justamente estranhar o familiar a premissa


da Antropologia Urbana.

Dessa forma, associo o receio que senti ao estigma em torno dos


transtornos alimentares, assim como de outros transtornos mentais. Caso eu
tentasse “encobrir” (GOFFMAN, 1988) esse estigma, deveria manter um
cuidado excessivo para não transparecer, no uso de minhas palavras e
reflexões, minha familiaridade pessoal com o campo. Como a Antropologia
Social hoje reforça a importância da exposição dos vieses, não seria justo
encobrí-lo, apesar do peso do estigma.

O exercício de distanciamento e desnaturalização, como disse, foi e é


um desafio constante, mas sendo principalmente parte de entender justamente
o que há de social no processo que vivi internamente. Em seu livro Ensinando
a Transgredir, bell hooks narra ter encontrado na teoria um local de cura, e
acredita que “em sua produção jaz a esperança da nossa libertação”
(2013:104). Enfatizo, nesse caso, que minha pesquisa não tem o objetivo de
curar a mim, mas sim de ampliar o conhecimento acerca do que há de coletivo
nesses comportamentos alimentares (clinicamente ditos “disfuncionais”) não só
enquanto conhecimento acadêmico, mas pensando a potencialidade da
Antropologia da Saúde na luta contra o estigma em torno dos transtornos
alimentares – e mentais como um todo.

A “autorrecuperação”, nesse caso, não é pessoal, e sim de todo um


grupo de mulheres que é afetado em seu íntimo pelo que essa pesquisa
conceituará como “cultura da dieta”, uma adaptação do termo “diet culture”2.

O estigma do qual tentei me proteger não somente me faz temer


questionamentos à validade da minha pesquisa frente à academia. São altas
as estatísticas de pessoas com transtornos mentais, mas o silêncio em todos
os espaços é, muitas vezes, fatal. Falar, portanto, é tensionar a convenção,

2
O termo na língua inglesa, popularizado na internet, aparece timidamente em textos
da historiadora Louise Foxcroft, sem conceituação. Foi encontrado, através de
pesquisa nas plataformas Google Scholar e Scielo, um único trabalho acadêmico que
utiliza a expressão, excluindo as referências que significam um tipo de alimentação
específico de uma região ou uma cultura no sentido biológico do termo, de
microorganismos. “Diet Culture and Obesity in Northern Africa” só carrega a expressão
no título, não contendo menção ou conceituação ao longo do trabalho.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

mas é também me expor a ser vista como fraca, menos digna, vulnerável –
estigmas comuns àqueles com transtornos mentais.

III. Pesquisa-terapia: minha e delas

Quando decidi escrever meu trabalho de conclusão de curso sobre


transtornos alimentares, pretendia realizar uma etnografia em um ambulatório
especializado na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, dificuldades no
processo para passar pelo Comitê de Ética da Psiquiatria do hospital que
entraria e o curto prazo para uma monografia acabaram deixando as
pretensões etnográficas para o projeto do mestrado. De todo modo, nesse
momento fui alertada por pessoas próximas dos riscos que correria ao estar
cotidianamente exposta à doença e suas lógicas.

Por esse e outros motivos, decidi iniciar nesse período sessões de


terapia com um psicólogo: separar quais questões eram minhas e quais seriam
as do outro se mostrava fundamental para a minha própria saúde mental,
assim como para qualquer pesquisa na área que pretendesse realizar.

Pensando em outros métodos de coletar informações sobre transtornos


alimentares, decidi realizar entrevistas em profundidade com pessoas
diagnosticadas ou não, mas que entendessem que têm um transtorno.
Enquanto elaborava essa proposta, pensei também em entrevistar pessoas
não diagnosticadas, mas que estavam “sempre” em dieta, para poder discutir
esses limites.

Decidi, então, recrutar através da Internet mulheres dispostas a dialogar


sobre suas relações com a comida e seus corpos. Para isso, escrevi uma
postagem pública [anexo A] em meu perfil pessoal no Facebook no dia 13 de
março de 2017 convidando “mulheres que ‘vivem de dieta’” – expressão que
encontrei para selecionar aquelas que entravam e saíam de dietas restritivas –
e que quisessem falar sobre o assunto para que entrassem em contato comigo.

Foram mais de sessenta mulheres dispostas a dar entrevista. Como


pretendia realizá-las também via Skype, não as restringi ao Rio de Janeiro no
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

convite, porém percebi que o aproveitamento seria maior com entrevistas


presenciais e assim as selecionei, considerando também compatibilidades de
horários.

Para meu trabalho final, duas entrevistas em profundidade foram


realizadas com mulheres que voluntariamente se sentiram interessadas em
dividir suas trajetórias. Ambas as entrevistas duraram mais de uma hora, sem
pausas, foram registradas por um gravador e então transcritas.

Minhas interlocutoras de pesquisa, Gaia e Bianca 3 , em muito se


assemelhavam comigo: são mulheres jovens, brancas e universitárias. Se
antes do início das entrevistas pretendia não me expor enquanto nativa do
campo, bastaram alguns minutos para que eu percebesse que me distanciar da
figura do interrogador que julga seria fundamental para que elas se sentissem
à vontade para dividir dores tão grandes. Não foram entrevistas truncadas ou
cheias de silêncio: minhas poucas perguntas disparadoras fizeram com que
elas expusessem família, traumas e intimidades.

“Ora, entre pessoas igualmente


afetadas por estarem ocupando tais
lugares, acontecem coisas às quais
jamais é dado a um etnógrafo assistir,
fala-se de coisas que os etnógrafos não
falam, ou então as pessoas se calam,
mas trata-se também de comunicação.”
(FAVRET-SAADA, 2005, p. 160)

Conversar sobre questões tão sensíveis e tão íntimas fez cada


entrevista ainda mais única para mim. Como autocrítica, acredito que poderia
ter me mantido mais em silêncio, porém acredito na necessidade que me
apareceu naquele momento de uma resposta emocional da minha parte a elas.
Frases como “não imaginava que isso era uma questão pra mais gente”
evidenciaram a mim a importância de que o conhecimento acadêmico,
principalmente na área da Antropologia da Saúde, chegue também ao público
leigo.

3
Nomes fictícios escolhidos por elas a fim de preservar suas identidades.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ambas agradeceram diversas vezes ao fim pela possibilidade de


abrirem-se sobre o tema e associaram a entrevista a uma sessão de terapia, o
que retoma a idéia de bell hooks de teoria como autorrecuperação e me põe a
pensar sobre as experiências de troca enquanto possibilidades para a pesquisa
antropológica.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

IV. Bibliografia

FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. "Ser afetado". Cadernos de Campo, 13:155-


161.

GOFFMAN, Erving. 1998. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade


deteriorada. Rio de Janeiro: LTC.

HOOKS, Bell. 2013. Ensinando a transgredir: a educação como prática da


liberdade. São Paulo, 2013.

MCKENNA, Katelyn Y.; BARGH, John A. 1998. Coming out in the age of the
Internet: Identity" demarginalization" through virtual group participation. Journal
of personality and social psychology, 75(3):681-694.

SAGUY, Abigail C.; WARD, Anna. 2011. Coming out as fat: Rethinking
stigma. Social Psychology Quarterly, 74(1):53-75.

SHISSLAK, Catherine.; CRAGO, Marjorie; ESTES, Linda. 1995. The spectrum


of eating disturbances. International Journal of Eating Disorders, 18(3):209-219.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. 2003. O poder que brota da dor e da


opressão: empowerment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo: Paulus.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Anexo A
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Grupo de Trabalho 09: Autoetnografia, arte e corporalidades

A “história única” dos transtornos alimentares: uma autoetnografia em


saúde mental

Beatriz de Lima Morais

Resumo: O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre a experiência de ter um transtorno
alimentar através de uma perspectiva autoetnográfica. Utilizando a narrativa pessoal da autora,
o artigo levanta questões sobre silenciamento e empatia em relação às sobreviventes de
anorexia nervosa e bulimia.
Palavras-chave: Transtornos alimentares, Autoetnografia, Saúde Mental, Gênero, Empatia

Coma um hambúrguer de frente ao espelho pelada. Espalhe toda a sua


comida no prato e converse animadamente, para seus pais não perceberem
que você não comeu nada. Exercite-se até o seu corpo chegar ao limite, se
você não sente vontade de desmaiar, é porque não está se esforçando o
bastante. Quando— e não se, porque nós duas sabemos que vai acontecer—
você se descontrolar, arrume um jeito de colocar tudo pra fora.
A minha história de vida, como todas as histórias, é como uma corda
formada por vários fios que se entrelaçam em uma trama, de forma que é difícil
pensá-los separadamente. A estrutura básica dessa corda é formado por três
fios: minha trajetória com transtornos mentais, a arte e a antropologia. Os
transtornos mentais, por sua vez, constituem o emaranhado de fios mais
caótico dessa corda, em que muitas coisas estão juntas e amarradas uma nas
outras. Os transtornos alimentares, que serão o foco deste artigo, aparecem
em minha vida em conjunto com a ansiedade e depressão. A metáfora da
corda, emprestada do artigo sobre autoetnografia de Tessa Muncey (2005), no
qual ela relata sua experiência com a gravidez na adolescência, é um ponto de
partida interessante para se pensar a autoetnografia. A autoetnografia busca
formular uma análise social sobre experiências de vida de sujeitos
corporificados, procurando dar conta da densidade subjetiva do trabalho de
campo, no qual o pesquisador também está inserido (MARÉCHAL, 2010).

1
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

A arte de narrar a própria história é similar à tapeçaria, no qual o todo é


muito mais do que a soma das partes (MUNCEY, 2005, p. 70). O resultado final
é um patchwork de memórias, no qual passado, presente e futuro se
encontram em um plano único.
Eu fui diagnosticada com depressão pela primeira vez aos treze anos, e,
desde então, ela retorna para a minha vida como uma força destruidora a cada
três anos. Tive outro episódio depressivo, dessa vez bem mais grave, aos
dezesseis anos. O monstro da depressão retornou depois, aos dezenove,
quando eu já estava na universidade.

O meu contato com a anorexia e, principalmente, a bulimia, se


dava de forma mais intensa nesses
períodos depressivos, em que
emagrecia bastante, e durante o
período remissivo, no qual a
tendência era que eu engajasse em
um comportamento compulsivo em
relação à comida e ganhasse um
pouco de peso. Em relação ao meu
corpo, eu frequentemente sinto que
existem duas Beatrizes dentro de
mim. Uma me ama, e a outra me
odeia. Enquanto um meu Figura 1 – Vozes (Lápis de cor e
lado
nanquim sobre papel)
sussurra palavras de apoio dizendo
que tudo vai ficar bem, a outra grita instruções para que eu mutile meu corpo
passando longas horas sem comer ou então purgando a minha refeição, para
que eu consiga aproveitar cada momento de dor.De acordo com a literatura
psiquiátrica, já é conhecida uma correlação entre transtornos alimentares e
depressão, em especial no caso de mulheres adolescentes (World Health
Organization, 2005). Ana e a Mia – apelido para anorexia e bulimia,
respectivamente - eram minhas companheiras durante a depressão e uma
forma de descontar de forma física as minhas dores psíquicas. Dentro de uma
perspectiva emocional, a comida é muitas vezes utilizada com um mecanismo
de compensação e satisfação que não está necessariamente relacionado à

2
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

fome fisiológica (SOPHIA, 2015, p. 96). A tensão entre magreza e gordura e os


aspectos simbólicos relacionados à comida e ao corpo dentro da nossa cultura
representam um anseio e perigo (SOPHIA, 2015, p. 94). A comida tinha um
papel ambivalente na minha vida, ao mesmo tempo que representava um
conforto temporário, também era uma inimiga que deveria ser expurgada por
conta do meu medo extremo de engordar.
Eu insisto na importância de refletir sobre os transtornos alimentares
tendo em perspectiva a correlação com a depressão. A correlação é tão comum
que a depressão é considerada um dos sintomas de anorexia nervosa e da
bulimia (MATTOS, 2007, p. 79). Além disso, manter essa correlação em mente
é importante para evitar que se pense sobre transtornos alimentares como
casos isolados, em que a comida e a pressão estética são as únicas questões
mobilizadas. Acredito que, em vez de tratar as pacientes com transtornos
alimentares apenas como mulheres fúteis excessivamente preocupadas com a
magreza ou como “adolescentes sugestionáveis” (SILVA, 2004, p. 26), é
importante enxergá-las como pessoas em situação de sofrimento psíquico.
Isso não significa descartar o forte impacto da cultura na busca das
mulheres por beleza. Isto já foi bem demonstrado em literaturas consideradas
clássicas nos Estudos Feministas, como o livro “O Mito da Beleza” de Naomi
Wolf (1990). Pelo contrário, significa reconhecer o impacto psíquico da pressão
estética na vida das mulheres. Isso é necessário para que se desconstrua a
ideia de que o “leque de comportamentos repugnantes e patéticos das
mulheres que sofrem de distúrbios da alimentação” são provas da fraqueza de
espírito e da irracionalidade feminina (WOLF, 1990, p. 256). No lugar dessa
representação que “outrifica” as anoréxicas/bulímicas, é importante reconhecê-
las na complexidade do seu sofrimento.
Um ponto de virada dentro da minha narrativa foi o acesso à conteúdos
da internet que faziam apologia à Ana e Mia, com tutoriais de auto-privação e
purgação e thinspos, isto é, fotos de garotas muito magras que são utilizadas
como “inspirações”. Esses conteúdos são facilmente acessíveis e estão
espalhados por toda a internet. A webetnografia “Do Outro Lado do Espelho:
anorexia e bulimia para além da imagem – uma etnografia virtual”, publicada em
2004, apresentou sites pessoais e blogs como os principais disseminadores de
informações pró-ana e pró-mia (SILVA, 2004, p. 11). A minha trajetória com

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

transtornos alimentares começa apenas em 2011, e esses conteúdos já haviam


migrado para outros formatos na internet, em especial para redes sociais como
o Tumblr, o Instagram e grupos do Facebook. O auge do meu consumo desse
conteúdo foi em 2012, quando eu coloquei em prática longos períodos de auto
privação, somados à uma intensa rotina de exercícios físicos e eventual
purgação. A minha inspiração era Cassie, uma personagem da série britânica
Skins, produzida pelo canal britânico Channel 4. Cassie sofria de anorexia
nervosa, mas era magra, loira e desejada e protegida por todos, assim como
eu almejava ser. A caracterização de Cassie entra na tendência de
caracterização dos transtornos alimentares como típicos de mulheres brancas
de classe média, quadro que vem se transformando de acordo com pesquisas
mais recentes, que demonstram a crescente incidência da anorexia e da
bulimia em países latinos e asiáticos (SILVA, 2004).
A retratação da temática sobre transtornos alimentares em obras de
ficção sempre me incomodou, o que foi um dos fatores que me levou a ter
interesse em escrever sobre a temática a partir de uma perspectiva
autoetnográfica. A forma como as narrativas são contadas e reproduzidas
envolve relações de poder, e o poder não é só a habilidade de contar a história
de outra pessoa, mas de fazer daquela a história definitiva dessa pessoa
(ADICHIE, 2009 apud ALVES et ALVES, 2016, p. 5). No caso dos transtornos
alimentares, uma das relações de poder mais explícitas é entre os corpos
loucos e os corpos sãos. A construção do saber médico acerca dos distúrbios
da alimentação mostra evidências de que estes foram concebidos como males
essencialmente femininos, associados a uma existência histérica e
neurastênica (SILVA, 2004, p. 91).
A representação de pessoas com transtornos alimentares como
mulheres jovens e fúteis, sem “problemas de verdade” é extremamente
alienante e por vezes é internalizada pelas próprias anoréxicas e bulímicas.
Mesmo em meus períodos mais restritivos, nunca fui magra como as
personagens dessas obras, de forma que eu me sentia um fracasso em ser
anoréxica. De acordo com Muncey, sua vontade de fazer autoetnografia parte
de sua insatisfação com a “versão oficial” do que significa ser uma mãe na
adolescência, isto é, com o discurso dominante sobre a gravidez na
adolescência. A autoetnografia abre a possibilidade para que a autora se

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

empodere em relação à sua própria narrativa e se sinta ouvida (MUNCEY,


2005, p. 71). Muncey é bem explícita no seu desejo de ter a própria voz ouvida
– desejo este que lhe levou a publicar um artigo contando sua história de
gravidez na adolescência no jornal local intitulado: “The Tale of a Teenage
Mom” (1998), que, mesmo contra a sua vontade, foi anonimizado. Isso a fez
sentir como se sua voz estivesse sendo silenciada, e como se ela devesse ter
vergonha da sua experiência de vida, que seria desviante do que as pessoas
ao seu redor consideravam correto ou adequado para uma adolescente
(MUNCEY, 2005, p. 68).
Ao longo da minha experiência e dos meus contatos com outras
meninas com transtornos alimentares, percebi o quanto estas são doenças
solitárias. Não é comum ou aceitável falar abertamente sobre estratégias para
passar um dia inteiro sem comer ou então como fazer para vomitar o almoço
sem que ninguém perceba. A partir dessa vontade de falar sobre o fenômeno,
comecei a iniciar algumas conversas com amigas que eu sabia que também
possuíam uma trajetória de guerra interna com o próprio corpo e a alimentação.
Ao todo, conversei de forma profunda com quatro garotas de graus de
proximidade diversos – uma delas era uma amiga muito próxima, porém as
outras não passavam de colegas. Uma questão interessante é que nenhuma
das outras meninas com as quais eu conversei admitia previamente que
realizava práticas que poderiam ser enquadradas como sintomas de um
transtorno alimentar, como privações e purgações. Embora deixassem implícito
que existia uma tensão com os próprios corpos, afirmando que se achavam
muito gordas ou que pensavam nisso de forma obsessiva em todos os
momentos do dia. Eu mesma demorei alguns anos para admitir que a minha
relação com a comida poderia ser enxergada com um problema de saúde.
Silva (2004) afirma que, entre os grupos virtuais pró-ana e pró-mia, o encontro
presencial não apenas não constava como um dos objetivos dessas
comunidades, como também era deliberadamente evitado. O desejo de
esconder e a negação em admitir o transtorno alimentar são descritos pelos
médicos como parte do próprio quadro da doença (SILVA, 2004, p. 17).
Durante o processo de escrita deste trabalho, mergulhei de corpo e alma
nessa temática, procurando a todo momento, entrar em contato com conteúdos
que tratassem do tema. Passei longas horas no website “Eating Disorders

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Hope” e em páginas de ONG similares, procurando alguma dica que me


pudesse ser útil para lidar com a vontade de vomitar após uma refeição.
Pesquisei diversos canais no Youtube de pessoas que pudessem me oferecer
relatos de superação que fossem úteis para mim e para outras pessoas. Uma
das minhas descobertas mais importantes foi o canal Alexandrismos, de
Alexandra Gurgel, uma mulher de 25 anos que possui um canal especializado
em gordofobia e amor próprio. Alexandra é muito diferente do estereótipo de
uma anoréxica - ela é uma mulher gorda e militante anti-gordofobia – e sua
franqueza ao relatar sua trajetória de auto-ódio e mutilação do próprio corpo,
que atravessa os transtornos alimentares, me deu força para continuar nos
meus piores dias.
Embora seja difícil admitir, esse processo se deu muito mais por um
instinto de autocuidado, do que pelo desejo de excelência acadêmica. Eu
queria ser útil, não somente para mim, mas também para as mulheres ao meu
redor que pareciam estarem flertando com, ou até mesmo em um
relacionamento longo e abusivo com os transtornos alimentares. Eu queria
saber o que fazer quando conversasse com elas, da mesma forma que eu
queria saber o que dizer para mim mesma quando a outra Beatriz dentro mim
começasse a gritar comigo após uma refeição.
As conversas que tive com minhas amigas foram estabelecidas de forma
casual. Para todas elas, expliquei que estava trabalhando em um artigo sobre a
temática, porém, em vez de ficar apenas preocupada em extrair pontos
relevantes para o trabalho, procurei trocar ideias, me colocando na conversa
como um sujeito que também tinha pensamentos e experiências pessoais em
relação ao que estava sendo discutido. Uma das minhas maiores
preocupações nessas conversas era também oferecer algo para aquelas
garotas que se disponibilizam a se abrir comigo sobre uma temática tão
dolorosa, nem que fosse apenas uma palavra de conforto ou um simples “eu
sinto a mesma dor que você”.
Uma das peculiaridades da autoetnografia é a necessidade de que a
autora exponha sua vulnerabilidade, de forma que feridas emocionais e
psicológicas são reabertas e expostas para o mundo (CUSTER, 2013, p. 4).
Em um processo criativo semelhante ao da arte, no qual o mundo interno do
artista é o combustível para a escrita, a autoetnografia propõe uma narrativa

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

que possa despertar a empatia dos leitores através dos significados atrelados à
experiência (ELLIS, 1999). Eu estaria sendo desonesta caso insistisse que as
conversas com as minhas interlocutoras falam somente a respeito delas e nada
sobre mim, como se minha percepção sobre os seus relatos fosse isenta de ser
contaminada pelas minhas próprias experiências.
A autoetnografia me permitiu muito mais do que apenas escrever este
artigo, pois também me ofereceu a oportunidade de impactar positivamente as
outras ao meu redor compartilhando as minhas próprias vulnerabilidades. A
autoetnografia busca formular a análise social para experiências de vida de
sujeitos corporificados, procurando dar conta da densidade subjetiva do
trabalho de campo, no qual o pesquisador também está inserido (MARÉCHAL,
2010). Um dos receios das pesquisadoras em relação à técnica da
autoetnografia é o medo de que o texto pareça uma elucubração egocêntrica e
autoindulgente, com pouco a oferecer para o entendimento dos fenômenos
sociais (WALL, 2016, p. 4). Ao longo do processo de escrita e reflexão, me
deparei algumas vezes com esse sentimento, justamente por sentir uma
estranheza em relação a essa nova experiência de pesquisa, cujos processos
são profundamente diferentes da maneira como aprendi a fazer pesquisa ao
longo da graduação em Ciências Sociais.
O processo de reflexão sobre a temática através da autoetnografia, que
consistiu na abertura de feridas emocionais e na documentação do processo
de cicatrização, me lembrava muito mais os meus processos artísticos de
pintura e desenho do que os artigos e resenhas que me habituei a fazer ao
longo da graduação. Durante o início do curso, aprendi que devemos nos
separar de nossos objetos de pesquisa (DURKHEIM, 2007 [1895]). Mais tarde,
já na Antropologia, aprendi que, o antropólogo em campo necessariamente
enfrenta sentimentos de inadequação e se sente deslocado entre seus novos
interlocutores em campo (WAGNER, 2010 [1975], p. 54). Não me senti
inadequada ou deslocada, justamente o contrário, me senti abraçada e incluída
pela primeira vez em quase quatro anos de Universidade. Expor as minhas
vulnerabilidades psicológicas e tentar tocar o interior emocional de outras
mulheres, que também estavam em sofrimento, me fez sentir como se o meu
período na Universidade finalmente tivessem um sentido, que não era apenas
acadêmico, e sim humano. Para mim, a Antropologia é, além de uma disciplina,

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

a oportunidade de firmar novas relações entre seres, através do entendimento


mútuo e da mobilização de significados emocionais. A promessa de Ingold de
trazer a Antropologia de volta à vida e de perceber a Antropologia como
“participante de uma grande conversa para moldar o mundo” (MAFRA et
BONET et VELHO et PRADO, 2014) se torna possível a partir do momento que
o antropólogo vive e está ativo no mundo (INGOLD, 2011, p. 7).
Por razões óbvias, a minha experiência com a autoetnografia na
Universidade de Brasília foi muito diferente da etnografia clássica descrita por
Roy Wagner, e a comparação entre as duas é meramente ilustrativa. Porém, o
caráter interposto do antropólogo, como aquele que é um intermediário entre
dois mundos (WAGNER, 2010 [1975], p. 55) se mostrou constante durante a
escrita deste trabalho. Eu me sentia como a intermediária entre dois mundos, o
meu mundo emocional — caótico, sem sentido e problemático— e o mundo
social. Uma das minhas maiores dificuldades ao iniciar psicoterapia, ao doze
anos, foi articular e verbalizar os meus sentimentos, que pareciam todos
misturados. Era como se eu sentisse tudo, porém ao mesmo tempo não
sentisse nada. Essa dificuldade se mantém até hoje, oito anos depois, no
sentido que eu sinto que sempre tenho que traduzir o idioma confuso dos meus
sentimentos e convencer terapeutas, médicos e professores de que meu
sofrimento é real, legítimo e constante.
A conversa mais intensa que eu tive sobre transtornos alimentares ao
longo da feitura deste trabalho foi em uma lanchonete da UnB, enquanto
almoçava com Júlia, que considero uma das minhas melhores amigas. Somos
amigas há aproximadamente três anos e meio, quando entramos na
Universidade. Com um ar confidencial, Júlia me perguntou se eu conseguia
perceber que ela estava doze quilos mais gorda. Ela confessou que, desde que
o semestre voltara, ela não conseguia pensar em outra coisa, e que quando ela
virava as costas, imaginava ouvir cochichos e comentários sobre o seu peso.
Eu perguntei quanto tempo fazia que ela se sentia dessa forma.
“Bom, desde sempre.”, ela respondeu. “Você sabe como é, Bia”.
Na realidade, eu não fazia ideia. Nós nunca tínhamos conversado sobre
isso. Então, eu confessei que quando eu tinha dezesseis anos, no auge da
minha depressão e antes de nos conhecermos, minha mãe me levou ao
médico porque eu não comia mais nada, e quando conseguia me forçar a me

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

alimentar, eu botava para fora logo em seguida - o famoso “miar”, presente nos
tutoriais pró-ana e pró-mia, e mal visto mesmo dentro da comunidade (SILVA,
2005, p. 39). Minha mãe também comprava latas e latas de Mucilon e
Sustagen, para misturar na minha comida, na esperança que eu ganhasse um
pouco de peso.

Júlia pareceu surpresa com o meu relato. Eu nunca tinha falado da


minha relação com o peso e com a
comida para ela, embora já tivéssemos
tido conversas sobre depressão e
ansiedade. Em seguida, ela me
confessou que aos catorze anos, ela ia
para a escola todos os dias de moletom,
e escrevia a palavra GORDA no braço
debaixo do casaco, para olhar toda vez
que sentia fome e tentação de comer.
Uma vez, ela fez um teste da revista
Capricho sobre “o peso ideal”, e concluiu
que precisava emagrecer 25 quilos para

chegar ao peso perfeito. Ela tinha quinze


Figura 2 - Gorda (Nanquim, grafite
e marcador sobre papel)
anos na época.Então, perguntei: “O que significa ser gorda para você?”. Ela
começou a chorar. Nessa hora fiquei com medo de ter ido longe demais e ter
feito a pergunta errada no momento errado. Eu chorei também, não consegui
evitar, e eu perguntei se eu podia abraçá-la. Continuamos chorando e
abraçadas por uns cinco minutos. “Você não está sozinha”, eu disse. E ela
respondeu “Você também não”. Nesse momento, eu chorei mais ainda, e
também chorei antes de dormir.
Ser propriamente arrebatada e mobilizada pela pesquisa é necessário
para mobilizar afetos e levar a etnografia ao próximo nível. Eu costumava
enxergar a Antropologia como um exercício de empatia entre pesquisadora e
interlocutoras, porém, com o trabalho de campo, pude perceber que ela é muito
mais que isso. É necessário turvar um pouco as fronteiras entre o eu e o outro,

9
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

para ser capaz de captar os afetos, sentir aquilo que não é possível ser
simbolizado por meio do discurso. De acordo com Favret-Saada (2005, p. 158):
Segundo a primeira acepção (indicada na Encyclopedia of Psychology), sentir empatia consistiria, para uma
pessoa, em “vicariously experiencing the feelings, perceptions and thoughts of another” . Por definição, esse
gênero de empatia supõe, portanto, a distância: é justamente porque não se está no lugar do outro que se
tenta representar ou imaginar o que seria estar lá, e quais “sensações, percepções e pensamentos” ter-se-ia
então. Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, percepções e pelos
pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em
vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa é literalmente inimaginável, sobretudo
para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, é-se
bombardeado por intensidades específícas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis.

O processo da autoetnografia altera o tempo e o espaço, alterando a


percepção dos indivíduos sobre os eventos que marcam suas trajetórias. O
tempo, como progressão entre passado, presente e futuro, sofre uma
metamorfose e se torna uma dança sem fronteiras entre si (CUSTER, 2013, p.
2).
Após essa conversa com Júlia, muitos eventos passaram pela minha
cabeça, sem uma ordem específica. Para mim,
uma das maiores dificuldades em sobreviver à Ana
e Mia é o fato de que elas nunca realmente te
deixam, mesmo depois da recuperação e do
acompanhamento psicológico. É como ser
alcóolatra. Você pode parar de miar, você pode
aprender a comer de forma saudável e equilibrada,
você pode até mesmo aprender a amar o seu
próprio corpo. Um dos motivos pelo qual este
trabalho me mobilizou tanto foi o fato de que,
mesmo quase dez anos depois, a Ana e Mia ainda
estão em mim, e eu suspeito que elas sempre
estarão, nem que seja como cicatrizes. Eu lembrei
do meu eu de 16 anos, o mais magro que eu consegui ser em toda a minha
vida (48kg). Mas ainda não magro o suficiente olhando através das minhas
lentes doentias. Lembrei do meu eu de 13 anos, colecionando fotos de
anoréxicas de cabelo colorido no Tumblr (75 kg). E também do meu namorado
com os olhos embargados de lágrimas na semana passada, implorando para

Figura 3 - Identidades (Aquarela


10 sobre papel)
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

que eu não me machucasse mais e dizendo que eu era a garota mais linda que
ele conhecia (63 kg).
A utilização dessa metodologia experimental e subjetiva, e
completamente nova para mim até o momento, não me mobilizou apenas
enquanto pesquisadora, mas também enquanto sobrevivente de Ana e Mia. Em
vez de buscar a separação entre pesquisadora e sujeito, o que aconteceu foi a
fusão entre essas duas identidades, em uma delicada aquarela na qual se
torna impossível delimitar as fronteiras entre as duas coisas. A proposta de Ellis
e Bochner, de trazer o coração para a escrita etnográfica, através do uso da
primeira pessoa e a fusão entre arte e ciência (ELLIS et BOECHNER, 2000, p.
761 apud ETORRE, 2005, p. 532), gera repercussões interessantes para o
entendimento da experiência de transtornos alimentares. A utilização da
expressividade e emotividade na Antropologia tem o potencial de fomentar a
empatia em múltiplos níveis, inclusive entre o leitor e a própria história (ELLIS
et BOECHNER, 2002 apud ETORRE, 2005, p. 532).
Dessa forma, acredito que, embora a empatia tenha suas limitações
enquanto ferramenta metodológica (FAVRET-SAADA, 2005), ela é necessária
para que se humanize as vítimas e sobreviventes dos transtornos alimentares.
A “história única” dos transtornos alimentares nos trata de forma
condescendente e até mesmo ofensiva, tratando-nos como loucas, patéticas ou
fúteis. Por outro lado, o poder de mobilização subjetiva que é latente na escrita
autoetnográfica pode auxiliar na busca de novas representações que também
escutem nossas vozes e que sejam sensíveis às nossas dores. Só assim é
possível propor um novo modelo de entendimento sobre os transtornos
alimentares, no qual a trajetória de vida e a dimensão emocional das
sobreviventes sejam a prioridade.

11
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências Bibliográficas
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12
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

GT 09 – Autoetnografia, Arte e Corporalidades

Saberes em diálogo: auto-etnografia sobre escolhas terapêuticas no


tratamento de um câncer de mama em estágio inicial
Dulce Ferraz1
Resumo:
Neste trabalho, exponho a minha experiência de ter sido diagnosticada com um
câncer de mama em estágio inicial aos 36 anos. Debruço-me, particularmente, sobre
os processos de negociação das decisões terapêuticas que vivi, compreendidas
como parte de um contexto em que há esforços para reduzir o uso de tratamentos
oncológicos clássicos quando seus benefícios são duvidosos. Escolho a auto-
etnografia como método porque me permite expor a intimidade dos processos de
negociação, mostrando como envolveram questionamentos baseados na
racionalidade científica, inclusive epidemiológica e biomédica, mas também os
sentimentos que eu experimentava e os apoios que recebia de outras pessoas
relevantes ao longo da minha trajetória. Busco mostrar o contexto intersubjetivo em
que se deram essas escolhas e para isso descrevo algumas das cenas que foram
essenciais neste processo. Finalmente, dialogo com a ideia do Cuidado conforme
proposto por Ayres (2004), a fim de explorar como os diferentes momentos
assistenciais aproximaram-se ou afastaram-se da ideia de encontros entre sujeitos,
orientada para o sucesso prático.
Palavras-chaves: auto-etnografia; câncer de mama; Cuidado em saúde;
biomedicina.

Contextualização
Escrevo este ensaio auto-etnográfico a partir da intersecção de meus
pertencimentos como pesquisadora em saúde pública e mulher jovem2 diagnosticada
com câncer de mama em estágio inicial. Meu intento é refletir criticamente sobre o
1
Escola FIOCRUZ de Governo - Fundação Oswaldo Cruz - Brasília; Depto de Medicina Preventiva - FM-USP;
NEPAIDS/USP.
2
O câncer de mama é mais prevalente entre mulheres com mais de cinquenta anos e mulheres abaixo dessa
idade são consideradas jovens para a doença. Globalmente, estima-se que cerca de 7% dos casos ocorrem
em mulheres com menos de 40 anos (ANDERS E COLS, 2009).

1
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

cuidado oferecido pela biomedicina (CAMARGO, 2005) para o tratamento desta


doença e sobre os processos de negociação possíveis, em um contexto de
questionamentos, desde a saúde pública, acerca dos modos de diagnosticá-la e tratá-
la. Assim, antes de introduzir minha experiência, é importante situar este contexto.
O câncer de mama é o tipo de câncer mais comum em mulheres, com quase
60 mil novos casos registrados anualmente no Brasil (DINIZ, 2017). A partir dos
anos 1980, a detecção precoce passou a ser tratada como a principal estratégia para
a redução da mortalidade causada pela doença. Programas de saúde pública ao
redor do mundo, inclusive no Brasil, passaram a recomendar o auto-exame das
mamas e a realização de mamografias de rotina. Contudo, o investimento nesta
estratégia não resultou na redução da mortalidade. Estudos recentes explicam que
isso dá porque os exames detectam frequentemente tumores de crescimento lento,
sem potencial de levar a doenças graves nem à morte, caracterizando o chamado
sobrediagnóstico (overdiagnosing) (WELCH E BLACK, 2010). Como consequência,
há mulheres que acabam submetidas a tratamentos de tumores que provavelmente
não evoluiriam para uma doença ameaçadora. Este fenômeno é chamado de
overtreatment, em inglês, e pode ser traduzido como tratamento excessivo.
Embora esses fenômenos sejam bastante visíveis quando analisados sobre
uma população, em nível individual eles se tornam mais difíceis de serem estimados.
Por essa razão, há recomendações atuais de que as informações acerca do
sobrediagnóstico sejam divulgadas, permitindo que as mulheres decidam quando se
submeter a exames de rastreamento (DINIZ E COLS, 2017).
Em casos como o meu, em que a identificação do tumor já aconteceu, a
questão passa a ser identificar quais os tratamentos mais adequados - ou mesmo se
deve ser feito qualquer tratamento. Vale notar que nos casos de mulheres jovens
existe uma tendência, baseada nas evidências de que este grupo tem pior
prognóstico (OWRANG E COLS, 2017), de recomendação de tratamentos mais
agressivos (ASSI E COLS, 2013). O equilíbrio entre minimizar o risco de recidiva e
maximizar a qualidade de vida a longo prazo é tido como um dos maiores desafios
para oncologistas que tratam mulheres jovens (WARNER, 2016).

2
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

As escolhas podem ser ajudadas pelo uso de tecnologias biomédicas e


epidemiológicas que permitem identificar, com certa precisão, os tipos de tratamentos
mais adequados para cada caso, como os testes genômicos que aferem risco de
recidivas (SPARANO E COLS, 2015). Contudo, o Cuidado em saúde não se resume
à simples aplicação desses tipos de tecnologias, embora também não as rejeite.
Neste ponto recorro às ponderações de Ayres (2004) que, partindo da constatação da
crise de legitimidade das práticas de saúde contemporâneas em razão de sua
excessiva tecnicidade, propõe reorientá-las pelo horizonte normativo do Cuidado.
Nesta perspectiva, os momentos assistenciais são encontros de sujeitos que, juntos,
constroem o objeto das intervenções e definem os meios para aplicá-las, mirando
não somente êxitos técnicos, mas o sucesso prático.
Nos relatos que trago a seguir, registrados em diários que fiz ao longo do
meu percurso de tratamento, selecionei aqueles que representam momentos
assistenciais relevantes para a negociação das terapêuticas na minha trajetória de
tratamento. Prevalecem cenas da minha relação com os profissionais de saúde que
busquei, mas procuro entremeá-las com diálogos com outras pessoas que foram
também relevantes no processo de construção das decisões.

Relato

31/12/2016, verão. Enxugo o colo com a mão tentando aliviar o suor. Bem na
parte superior do seio esquerdo, sinto uma bolinha. Verifico o direito. Não tem
bolinha. Mostro ao meu companheiro. 'Não deve ser nada, só algum gânglio
mais inchado por variação do ciclo hormonal. Vamos observar se desaparece
daqui uns dias'. Claro que 'não deve ser nada'. Tenho 36 anos, amamentei
duas filhas por quase dois anos cada, não fumo, não tomo hormônios, não é
possível que eu tenha câncer de mama. Aliás, nunca ninguém na minha
família teve. Apesar da racionalização, meu pedido à meia-noite é que aquilo
'não seja nada'.

Decido investigar. Consulta médica, mamografia, ecografia e a recomendação


de biópisa. 'Tem que fazer biópsia disso aí, viu?' - disse o médico radiologista parado
na porta da sala onde me examinara. Foi o primeiro momento em que senti medo.
Três dias depois volto com meu companheiro e nossas duas filhas para Suíça,
onde moramos há um ano. Dois dias depois, vou a uma consulta em um hospital

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

público, de onde saio com mais uma mamografia feita e material coletado para a
biópsia.

16/01/2017. De volta ao hospital para o resultado da biópsia. Depois de uma


checagem burocrática de dados, a médica franze a testa com ar triste: 'Nós
temos aqui o resultado da sua biópsia e, infelizmente, trata-se de um tumor
maligno'. Daí em diante não sou mais capaz de reproduzir a seqüência de
explicações que ouço. Meu corpo treme de tal maneira que eu me
chacoalho inteira sobre a cadeira. 'Eu tenho medo de não ver minhas filhas
crescerem!' - digo com as lágrimas brotando incontroláveis. 'Nós não
estamos mais no tempo em que se ouvia morte quando alguém dizia
câncer. O tumor é pequeno, não é muito agressivo, mas ele precisa ser
retirado. Depois você vai precisar de radioterapia, 25 sessões, e depois de
hormonioterapia por cinco anos, que pode te induzir à menopausa precoce'.

De repente, minha vida girava cento e oitenta graus e eu caia do lugar da


profissional de saúde pública para o lugar da paciente. Eu não sabia estar nesse
lugar. Fisicamente, a sensação era de que meu corpo estava derretendo.
As idas ao hospital se tornaram frequentes. Exames complementares
investigavam se havia outros nódulos - nas mamas, nas axilas, no peito inteiro.
Não acharam nada além da bolinha.
Eu não sabia nada sobre câncer de mama. E nem queria ler. Tinha medo.
Medo, aliás, era agora o que eu mais sentia. Ao meu lado, porém, meu
companheiro, médico epidemiologista, lia tudo que achava, tentando entender
cada item da classificação que havíamos recebido: carcinoma ductal invasivo; T1
indicava tumor de menos de 2cm; N0 que os gânglios axilares não estavam
afetados; M0 que não havia sinal de metástases; hormônio responsivo; HR2
negativo. Pesquisando, conseguimos entender que meu caso não era tão grave.
Será, então, que o tratamento que estavam me propondo era necessário? Eu
conhecia a relação da mamografia de rotina com os sobrediagnósticos de câncer
de mama, mas eu não sabia o que pensar de um tumor que não foi achado de
mamografia. Cinco anos de um tratamento hormonal que poderia me levar à
menopausa? Eu precisava disso?
Escrevi para pesquisadoras e médicas feministas que conheciam do tema.
Recebi artigos, relatos e uma delas, médica, realmente se dedicou a me ajudar a

4
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

desvendar cada nova informação que eu recebia e, sobretudo, me ajudou a


compreender que meu questionamento frente à proposta de tratamento era
pertinente: eu não estava "louca" nem "em negação", como insinuavam algumas
pessoas próximas a mim. O que eu precisava, me diziam, era encontrar um
médico em quem eu confiasse. Eu achava que confiava na médica do centro da
mama, mas não a ponto de aceitar qualquer tratamento que ela me propusesse.
Dezoito dias depois do diagnóstico passei pela cirurgia para retirada do
tumor, com preservação da mama e retirada de dois gânglios linfáticos sentinelas
para verificar se, de fato, não havia células cancerosas na região da axila. Os
resultados desta análise sairiam dez dias depois. Medo, de novo.

13/02/2017. Volto ao hospital para receber os resultados dos exames feitos


durante a cirurgia.'Os exames confirmaram que o tumor era pequeno e foi
retirado com margens de segurança. Não havia nenhum gânglio axilar
afetado', me diz a médica. 'Ah, que bom, que bom'. É a primeira vez que me
sinto aliviada neste hospital - e não dura muito. 'Houve uma mudança no
tratamento indicado porque a avaliação histopatológica do tumor mostrou
que ele não é grau 2, mas grau 3. E como é um tumor mais agressivo a
junta médica do hospital acrescentou ao seu tratamento 16 sessões de
quimioterapia'. Eu não entendo. 'Como assim? Os resultados são bons e o
tratamento fica pior?'. Ela encerra as explicações ali, quando me informa
que não será mais minha médica: 'você tem uma consulta marcada com o
oncologista pra quinta-feira, ele pode te explicar melhor. Eu sou só a
cirurgiã'.

Aquilo mudava tudo. Mudava? Novamente, eu sentia um lapso entre o que


me recomendavam e como eu percebia a doença. Decidi, novamente, ouvir outras
mulheres. Fui a uma associação de pacientes, mas era difícil achar casos como
um meu, eram mais velhas. Uma voluntária sugeriu ligar para uma mulher mais
jovem. Aceitei. Ela me contou que o caso dela tinha sido parecido com meu, mas
ela já não se lembrava das classificações. Contou que fez cirurgia, radioterapia,
quimioterapia e hormonioterapia. E o câncer voltou dois anos depois, quando ela
decidiu fazer dupla mastectomia. Tive uma crise de choro depois dessa conversa.
Não importava o que eu fizesse, eu teria que viver com o risco de recidiva.

16/02/2017. Consulta com o oncologista do hospital. 'Eu queria entender o


que quer dizer grau 2 e grau 3. Como é pode mudar de uma análise pra

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

outra? Até a cirurgia, a médica tinha me falado que eu faria radioterapia e


hormonioterapia. Agora, apesar dos bons resultados dos exames, ela falou
de acrescentar a quimioterapia'. O médico me ouve balançando a cabeça e
com um meio-sorriso que eu não sei decifrar. Ele ri do meu nervosismo? Da
minha voz trêmula? Do meu olhar assustado? 'O que vale é o resultado de
depois da cirurgia, quando uma massa maior é analisada. É por isso que o
grau mudou. Então, sim, você precisa de quimioterapia'. Eu insisto: 'mas
todos os outros resultados são tão bons! Eu estou perguntando porque sei
que a quimio tem muitos efeitos adversos e que ela detona minha
imunidade justamente quando eu mais preciso dela. Então preciso ter
certeza de que preciso da quimio antes de aceitá-la'. Ele pega uma folha de
papel que sai da impressora enquanto fala: 'É como eu digo, remédios que
não tem efeitos secundários também não têm efeitos primários. Aqui está
uma estimativa de sobrevida em dez anos, com e sem quimioterapia'. Vejo
as barras no gráfico, a diferença entre fazer ou não me parece grande. Meu
companheiro intervém: 'Mas isso é overall mortality, quer dizer que a
pessoa pode morrer de qualquer coisa, não só de câncer'. O médico
discorda, 'Não, é de câncer'. Meu companheiro insiste, mostrando a folha
que ele tinha nos entregado: 'Não é o que está escrito aqui. Overall
mortality, por definição, é morte por qualquer causa em epidemiologia'.
Percebo que não há mais espaço para diálogo. Passamos, então, para um
exame físico que acaba sendo doloroso. Me queixo da dor, ele continua me
examinando com a mesma força. Saímos da sala e passamos pela
enfermagem, onde me entregam a prescrição da quimioterapia e panfletos
de lugares onde comprar perucas. Eu choro. Fora do hospital, ando
desolada: 'Hoje é o pior dia da minha vida. Eu nunca imaginei passar por
isso'. Meu companheiro tenta me explicar os dados: 'Não se deixe
impressionar assim! O que ele mostrou é que a quimio não contribui quase
nada no seu caso! Olhe aqui as barras: isso aqui é cinco por centro! E a
mortalidade pode ser por qualquer causa! Quem me dera eu tivesse toda
essa chance de estar vivo daqui a dez anos! Ele é um tosco, ficou rindo a
consulta toda! O que era aquilo?'. Eu não conseguia lidar com explicações,
não entendia os gráficos. Naquele momento, só precisava de acolhimento.
Decidi que não voltaríamos a ver aquele médico.

Na associação de pacientes consegui indicações de oncologistas. Um deles


foi descrito como "calorosamente recomendado pelas pacientes". Liguei para ele.

22/02/2017. Dr F é simpático e ri alto. Nem parece que está me atendendo


pra tratar um câncer. Cadê aquela cara de pena que a cirurgiã fazia pra
mim? Ou o sorriso sarcástico do outro oncologista? Conto minha história,
até a recomendação inesperada de quimioterapia. Ele é objetivo: 'Eu
também acho que você precisa de quimioterapia. Mas talvez em um
esquema um pouco mais simples, que vai durar uns quatro meses'. Eu me
explico: 'Olha, eu não estou questionando a quimio por não acreditar na sua

6
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

avaliação. Mas é que eu sei que tem muitos efeitos adversos. E eu não
estou falando de cair cabelo, que as pessoas ficam pensando que eu estou
preocupada com isso, não é isso! Eu sei que a quimio é um tratamento
sofrido e que pode ter efeitos adversos graves, inclusive neurológicos,
mesmo a médio e longo prazo'. Ele me ouve: 'Você tem razão'. E eu
continuo: 'Então, se tiver que fazer, eu vou fazer, mas eu queria saber,
quanto ela acrescentaria de proteção pra mim'. 'Essa é uma ótima
pergunta, mas as respostas não são muito precisas. Digamos que tendo
feito a cirurgia o risco de uma recidiva seja de 15%. Com a quimioterapia,
cairia pra 10% e com a hormonioterapia cairia ainda pra 7%. A gente nunca
chega a risco zero'. Tento uma última opção: 'um oncologista do Brasil me
falou que existe um teste genômico que pode ser feito pra averiguar se a
quimio é indicada pra mim'. 'Sim, é verdade. Mas eu não indico esse exame
quando a paciente tem tumor de grau 3 porque nós acreditamos que grau 3
é uma indicação absoluta de quimio'. Choro. Ele explica: 'Você tem razão
nos seus questionamentos. O que nós fazemos em oncologia é
overtreatment porque nós não temos como prever quais pacientes
efetivamente se beneficiarão de cada tratamento, então nós optamos por
tratar mais para diminuir o risco de recidiva, sobretudo quando se trata de
uma mulher jovem, como você'. Eu me rendo aos argumentos dele. Saio
com a primeira sessão de quimioterapia agendada para dali duas semanas.

Em casa, mais tarde, decido ligar para uma clínica que diz fazer tratamento
integral em oncologia. Um dos médicos, Dr E, aceita fazer uma consulta por
telefone depois de receber os laudos dos meus exames.

03/03/2017. 'Alô, Dulce? Estou ligando para conversarmos sobre os seus


exames e as perguntas que você me mandou'. Ele segue com objetividade:
'Analisando aqui, o que você teve foi um tumor pequeno, que foi retirado
com margens livres e sem gânglios afetados. Eu concordo que a
quimioterapia, no seu caso, é um tratamento excessivo'. Ando de um lado
pro outro, coração acelerado de excitação. 'Existe um programa
desenvolvido pelo sistema de saúde inglês que é muito confiável e,
inserindo os seus dados nele, o resultado que eu tenho é que você, só com
a cirurgia, tem uma expectativa de sobrevida em 10 anos de 96%. A
quimioterapia te acrescentaria 0,5% de proteção e a hormonioterapia, 0,6%.
Procuro lápis e papel: 'Você pode repetir esses números, por favor?'. 'Eu
vou te mandar tudo por escrito'. Mas eu quero mais esclarecimentos: 'Isso é
overall mortality, né?Aquela que mistura todas as causas'. A resposta dele
me tranquiliza: 'Sim, infelizmente só existe esta medida. Mas ela é boa o
suficiente para ajudar a decidir quando aplicar ou não os tratamentos'. Peço
para agendarmos uma consulta pessoalmente. Sinto a adrenalina correndo
pelo meu corpo. Enfim! Eu não estou louca! O sistema de saúde inglês, o
melhor do mundo, estima que eu não estou louca!

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em nossa troca posterior de emails, Dr E sugere também que eu faça o


teste genômico que ajudaria a avaliar se preciso da quimioterapia. Decido adiar a
sessão agendada para aquela semana.
16/03/2017. Dr E nos recebe usando uma flor amarela na lapela. Falo
compulsivamente: 'Eu não questionaria a quimio se tivesse certeza que
preciso dela. Mas eu não tenho. Eu não quero ser overtreated! Tenho medo
dos efeitos neurológicos, da infertilidade'. Ele me ouve atentamente. 'E eu
sei que a oncologia faz overtreatment, o próprio Dr F reconhece isso'. Ele
brinca: 'Parece que overtreatment é sua palavra preferida!' - rimos. 'Mas,
sim, você está absolutamente correta nos seus questionamentos. Os
tratamentos precisam ser aplicados quando necessários e há muitos casos
em que há dúvidas e aí a tendência é tratar a mais. O que nós podemos
fazer é usar as ferramentas de estimativas disponíveis. No seu caso, nós
vimos que a quimioterapia acrescentaria muito pouco, não é? Você até me
corrigiu depois, eu tinha errado na inserção do tamanho do tumor. Mas,
olhe, isso não muda muita coisa' - ele diz, enquanto me mostra os dados no
computador. 'É, mas agora isso aí diz que a quimio acrescentaria 3,5% de
proteção', digo, temerosa. 'Se você quiser ainda mais segurança para sua
decisão, você pode fazer o teste genômico que avalia seu risco de recidiva'.
'Eu já pedi duas vezes para o Dr F, mas ele diz que não é adequado para o
meu caso por causa do grau 3'. Ele me orienta uma última vez: 'Bom, você
é quem decide o que vai acatar. Mas esses testes foram desenvolvidos
justamente pra isso, pra evitar quimioterapias feitas desnecessariamente'.

17 de março de 2017. 'Alô! Oi, Dr F, tudo bem? Eu queria te pedir pra gente
fazer o teste molecular. Eu sei o que você pensa sobre o grau e tal, mas eu
não quero partir pra quimio sem ter essa avaliação'. Ele concede: 'Ok, eu
posso pedir pro hospital fazer. Mas, olha, demora uns oito a dez dias o
resultado'.

Senti muito medo do que poderia vir como resultado. Em pouco mais de
uma semana um exame diria qual era a probabilidade de eu ter uma recidiva. Meu
medo, claro, era descobrir que meu risco era alto.
30/03/2017. Por um erro de comunicação, meu companheiro não chega a
tempo para a consulta. Entro sozinha no consultório. Antes que eu diga
qualquer coisa, Dr F se antecipa: 'Eu tenho novidades muito interessantes
pra você!'. Não sou muito delicada na minha resposta: 'Interessantes?! Eu
quero saber se elas são boas ou ruins!'. Ele ri alto, como de costume:
'Deixa eu te mostrar o resultado - ele me entrega um papel -, o seu score é
12, você está no grupo de baixo risco'. Agarro a mão dele: 'Caramba, isso é
maravilhoso!'. 'Sim. E o exame ainda mostra qual seria o possível
acréscimo de proteção da quimioterapia para você: 1%. É claro que diante
disso eu não posso te dar a quimioterapia'. Estou radiante: 'Você imagina o
quanto eu estou feliz, né?'. Ele ri de novo: 'Sim. E eu quero te agradecer por
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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

ter insistido em fazer o teste. Você sabe que eu não faria se não fosse pela
sua insistência. Mas, de agora em diante, vou passar a recomendá-lo mais
em casos como o seu.Talvez, daqui alguns anos, com mais uso dessas
tecnologias, a gente descubra que o grau do tumor não quer dizer tanta
coisa assim'. Minha alegria é em dobro: eu, paciente, muito feliz por mim
mesma; eu, profissional de saúde pública, feliz porque talvez minha
persistência fosse ajudar outras mulheres na travessia dessa jornada.

Quando conto para Dr E o resultado, ele também me agradece: 'Estou


muito feliz por ouvir isso. Obrigada por ter tido coragem e persistido. Isso te dará
confiança renovada no seu caminho daqui em diante'.
E o caminho ainda traria novas negociações, dúvidas, diálogos e decisões.

Algumas considerações
Os momentos assistenciais em saúde são momentos de decisão sobre o
que pode e deve ser feito diante da singularidade de cada caso. A variabilidade
das opções possíveis depende da compreensão da ideia de saúde que guia o
momento assistencial. Na abordagem biomédica, com frequência, 'o que' fazer se
restringe a um conjunto de técnicas terapêuticas para recuperação de certas
funcionalidades orgânicas, entre as quais as mais valorizadas são as cirurgias e
os medicamentos (CAMARGO, 2005). Contudo, quando o momento assistencial
se limita a esse intento, uma outra tecnologia valiosa se perde. Trata-se da
conversa. É somente por meio da conversação que o Cuidado (Ayres 2004) pode
se realizar porque é apenas através dela que saberes podem se encontrar; que
quem cuida pode vir a conhecer o projeto de felicidade de quem está em busca de
cuidado; que esses sujeitos, juntos, podem construir as decisões possíveis sobre
o que fazer. Para realizar o Cuidado, o profissional precisa abrir mão da fantasia
de poder de decisão unilateral para se tornar aquele que constrói mediações - de
saberes, de desejos, de sentimentos.
Nos recortes de minha trajetória que apresentei, são marcantes aqueles em
que o diálogo foi inviável. No primeiro, a consulta para recebimento dos resultados
dos exames pós-cirúrgicos, se destaca o abandono: logo após a recomendação
de um tratamento mais agressivo, a médica se desvencilha do delicado trabalho
de me oferecer explicações ao mesmo em que comunica que não me
9
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

acompanharia mais. Talvez a explicação para este tipo de conduta resida na


lógica organizacional do hospital, com suas fragmentações características, que
acaba por reduzir a continuidade do cuidado a uma tarefa administrativa de
encaminhamentos e referências, em lugar de um compromisso com a pessoa que
está sendo cuidada, mesmo em um momento de grande fragilidade. No segundo,
a consulta com o oncologista do hospital, toda a comunicação - não apenas
verbal, mas também corporal - aparece atravessada pela desconsideração das
dúvidas e dos sentimentos da paciente. O profissional, colocando-se como único
detentor do saber técnico (ainda que flagrado equivocando-se nele, na própria
cena), está diante de mim apenas para aplicar-me seus conhecimentos e as "mais
avançadas" tecnologias. Ali não seria possível um encontro de sujeitos - se eu era
vista pelo médico como objeto da intervenção, como ele poderia levar em
consideração meu sofrimento e mesmo meus conhecimentos técnicos de saúde?
Nos demais encontros, com Dr F e Dr E, emergiu a possibilidade de ser
ouvida. Isso não significou, absolutamente, que esses profissionais abriram mão
de seus saberes para atenderem minhas demandas de mudança do tratamento ou
de realização de um exame. Ao contrário, significou justamente que eles
trouxeram para nossos encontro seus saberes técnicos e as ferramentas
(informáticas, laboratoriais, epidemiológicas) que conheciam para dialogar com as
questões e os sentimentos que eu trazia. Com eles foi possível negociar os meus
significados de saúde e de felicidade naquele momento. Desses diálogos, desses
encontros, da aplicação das melhores tecnologias disponíveis para o meu caso
resultou a possibilidade de tomarmos, juntos, a decisão de não fazer a
quimioterapia. E apenas porque não havia neles uma determinação absoluta e a
priori de "onde e como se deveria chegar com a assistência" (Ayres, 2004).
Aproximar-se da perspectiva do Cuidado é, portanto, imprescindível para
responder às necessidades que emergem quando vivenciamos o adoecimento -
essa experiência de interrupção da ilusão de controle sobre a vida (ELLIS, 1999). A
abordagem auto-etnográfica dessas experiências pode contribuir para ampliar este
entendimento.

10
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

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12
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Grupo de Trabalho 09 - Autoetnografia, arte e corporalidades

NEGAÇÃO DE UM CORPO PELA SUA "EXTREMA SUBJETIVIDADE"

Gustavo Antonio Raimondi1


Nelson Filice de Barros2
Resumo
Buscando compreender as (in)visibilidade dos corpos não heteronormativos na
educação médica, a qual sistematicamente sustenta seus discursos
institucionais baseados na coerência biológica, olhei para o meu corpo de gay,
médico e professor para compreender essa cultura e seus desdobramentos. O
objetivo desse trabalho é discutir os enfrentamos institucionais iniciais para a
realização de uma pesquisa autoetnográfica sobre a homossexualidade
atravessada pela formação e prática médica. Em novembro de 2016 foi
enviada a proposta de pesquisa autoetnográfica sobre os corpos que (não)
importam na escola médica para o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Após
semanas de espera recebi a seguinte resposta: "considerando a extrema
subjetividade da pesquisa, uma vez que o participante é o próprio pesquisador,
o CEP entende que os resultados obtidos podem estar enviesados, levando a
entendimentos errôneos sobre o tema." Ao ler esse parecer percebo a ironia de
não ter a "autorização institucional" para falar sobre o meu corpo, sobre minhas
experiências conectadas à cultura. Compreendo, mais uma vez, o
silenciamento imposto à minha subjetividade, minha existência e minha
participação enquanto pesquisador-sujeito na "Ciência", que tem como
premissa a neutralidade e o distanciamento dos sujeitos pesquisados. "Quem
pode existir, quem pode falar para essa `Ciência`?" Em meio a um grito
emudecido de um corpo negado, com "entendimentos errôneos", ouso falar e
romper com o silêncio mortificante que a heteronormatividade médica e
"Científica" me impuseram.

1 Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade


Federal de Uberlândia (UFU); Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Saúde Coletiva
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – [email protected]
2 Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade

Estadual de Campinas (Unicamp) – [email protected]

1
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Palavras chave: Medicina. Minoria sexual. Queer. Autoetnografia.


Antropologia cultural.
O “era uma vez” 3 – interfaces Plataforma Brasil/CEP e a proteção dos
“sujeitos”
Em um local eletrônico, sem aparentemente apresentar uma materialidade
física, sem caminhos anteriores tão explícitos, que poderia ir caminhando,
percorrendo e descrevendo, mas com caminhos posteriores bem explícitos,
relacionado ao veredito “aprovado” e “reprovado”, encontramos a chamada
Plataforma Brasil. Local em que os desejos de pesquisa são encaminhados e
posteriormente avaliados por uma comissão formada por pessoas de diferentes
campos de pesquisa e de diferentes cenários, não só universitários. Cheio de
“pedras no meio do caminho”, as abas dessa plataforma vão se revelando e
exigindo pensamentos e explicações para garantir o seu objetivo: “a proteção
dos ‘sujeitos/participantes’4 da pesquisa”, fazendo com que os pesquisadores
reflitam sobre os seus desejos, intencionalidades e pesquisas.
Enquanto refletia sobre formas e estratégias de responder os inúmeros
questionamentos em cada uma das “abas” sobre minha proposta de pesquisa
de doutorado, compreendia os desafios de se pensar a pesquisa qualitativa em
uma interface eletrônica idealizada para pesquisas quantitativas 5. Tinha que
pensar quantitativamente e responder qualitativamente para assim “enquadrar”
as intencionalidades qualitativas nos espaços quantitativos. Por meio de um
recurso de objetivar o subjetivo as palavras iam preenchendo as lacunas das
“abas”. No meio dessas respostas, deparei-me com um autoquestionamento
sobre a necessidade ou não de realizar esse processo. Estava fazendo esse

3 O termo “o ‘era uma vez’” é utilizado para se referir ao ponto de partida das reflexões
desenvolvidas neste texto e que são atravessadas por uma série de estórias do passado,
presente e futuro, posteriormente abordados.
4 Opto por manter a denominação sujeito da pesquisa e participante da pesquisa junto como

forma de fazer referência a Resolução 196, de 10 de outubro de 1996 e a Resolução 510, de 7


de abril de 2016, que estabeleceram a definição desses termos, respectivamente, mantendo a
lógica a eles relacionados.
5 Hardy (2008) apontou que mesmo o sistema sendo constituído nos moldes das ciências

biomédicas, intervencionistas e quantitativas, mais de 60% das pesquisas avaliadas pelo CEP,
em 2006, era da área das ciências sociais e humanas. Em 2016, buscando solucionar alguns
entraves do enquadramento das ciências sociais e humanas em um modelo biomédico, é
assinada pelo Conselho Nacional de Saúde a Resolução 510, de 7 de abril de 2016
(http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf). Mas que no momento da
pesquisa ainda não tinha sido efetivada em sua plenitude, pela “dificuldade de compreensão” e
pela sua “recente publicação”, segundo relato do CEP que avaliou esse projeto de pesquisa em
2016.

2
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

procedimento reflexivo de enquadramento e preenchimento em um local virtual


para que pudesse publicar os resultados de minha pesquisa e ter o título de
doutor ou estava realmente reiterando a garantia da proteção dos
“sujeitos/participantes” da pesquisa? Mas quem eram esses
“sujeitos/participantes”, os Outros, ou eu, ou os Outros e eu?
Para responder esses questionamentos, interrompi o preenchimento das
inúmeras “abas” para compreender aquilo que fazia e não mais reproduzir
como uma mera formalidade acadêmica. Lembrei de um texto etnográfico de
Rui Harayama (2014) que abordava essas questões relacionadas ao Comitê de
Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP), que agora contava com a
celeridade da Plataforma Brasil para análise dos Protocolos de Pesquisa. Ao
procurar esse texto, encontrei-o em uma estante alta, em meio a muitos livros e
com uma certa camada de poeira. Limpei-o e foleei. Após encontrar algumas
linhas sublinhadas, algumas frases escritas e alguns questionamentos
marcados, encontrei uma parte que buscava historicizar o Sistema CEP-
Plataforma Brasil e o debate da regulação da pesquisa em seres humanos.
Segundo Harayama (2014), havia uma “necessidade de transformar a
ética em pesquisa científica numa questão da sociedade civil como um todo”
(p. 326) para impedir os “desvios éticos” e “controlar a ação de seus
pesquisadores”. Por isso, o Sistema CEP no Brasil, desde 1996 com sua
primeira resolução, foi vinculado ao Conselho Nacional de Saúde para efetivar
o controle social e a independência, relativa, ao Ministério da Saúde. Mesmo
não tendo um valor legal, há um respeito pela comunidade científica, tendo em
vista a certa obrigatoriedade do parecer do CEP para que as pesquisas sejam
publicadas em determinados meios de divulgação, como as revistas científicas.
Dessa forma, foram constituídos vários CEP`s pelo Brasil, os quais
“compreendiam de forma diferente os meios de efetuar a missão de proteger e
assegurar os direitos dos sujeitos da pesquisa” (Harayama, 2014:329).
Configurando uma “burocracia da virtude” (Jacob & Riles, 2007) na busca por
“cuidar” das relações entre “sujeitos” e “objeto” do conhecimento.
Diante dessa “burocracia”, voltei ao preenchimento das “abas” para
finalizar o protocolo de pesquisa. Logo que continuei, deparei me com outra
dificuldade. Como descrever uma proposta de pesquisa que tem como
metodologia a auto-etnografia que posiciona, também, o pesquisador como um

3
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

“sujeito/participante”? Sabia que, segundo Lionnet (1991), a autoetnografia é a


problematização das resistências entre os “eus” (auto) e o coletivo (etno) no ato
de escrever (grafia). E que, segundo Denzin (2003), ela é uma escrita que
pede a crítica ao nível mais básico das relações, visando às estruturas
opressivas em nossas vidas diárias. Sendo assim, a autoetnografia pode ser
considerada “uma forma de saber que tem o potencial de examinar a justiça
social, os sistemas de opressão e o neocolonialismo de nossos encontros com
experiências vividas entre identidades e mundos” (Diversi & Moreira, 2017:39).
Dessa forma, pode-se compreender que a autoetnografia amplia o interesse
teórico e crítico, pois atribui à escrita um valor político na visibilidade de certas
subjetividades, que, na relação interativa entre cultura, sociedade, sujeito e
subjetividade, constrói o self (Ellis & Bochner, 2000; Versiani, 2002; Ellis et al.,
2011). Com esse aparato teórico sobre a metodologia escolhida, para a
pesquisa do tema relacionado a corporalidades gay na escola de medicina6, eu
e meu orientador decidimos enfrentar a Plataforma Brasil/CEP com nosso
projeto.
A história que será contada nesse trabalho, portanto, não é a do “Outro”
observado, perscrutado e analisado. Nem tampouco do self do pesquisador,
como uma reflexão psicanalítica. Mas a história que é dispersada nos
sentimentos, pensamentos e ações no corpo do autoetnógrafo, a partir do
encontro com aquele que se apresenta na relação, que no caso é o parecer da
Plataforma Brasil/CEP. Trata-se, então, do desaparecimento do “Outro” e do eu
como localizações espaço-temporal fixas, para o reconhecimento do fluxo
performático do “Outro-eu” e “eu-Outro” (Denzin, 2003). Para tanto, será feito
inicialmente uma contextualização do pesquisador e do seu encontro com o
doutorado, a fim de aprimorar a compreensão dos/as leitoras sobre os
atravessamentos do encontro com o parecer da Plataforma Brasil/CEP.

“Era uma vez” minha trajetória7

6 Essa escola, bem como esse processo junto a/ao Plataforma Brasil/CEP, está vinculado a
uma instituição de ensino superior pública brasileira, com mais de 50 anos de existência.
7 O termo ‘era uma vez’ de minha história faz alusão a um possível ponto de partida de minha

caminhada. Compreendo que minha história apresenta vários pontos de partidas não lineares e
não cronológicos que compõem a trama dos sentidos de minha existência, por isso, decidi
começar com um dentro os vários “era uma vez” para contextualizar, ainda que brevemente, o
local de minha fala nesse texto.

4
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ao longo de minha formação, busquei compreender às questões de gênero e


sexualidade que atravessavam meu corpo e suas pontes ou abismos com o
cuidado em saúde. Pelo fato de ser um homem gay que experienciou uma
série de silenciamentos no setor saúde, por ter um corpo que não
(cor)respondia à heterossexualidade presumida, a qual é “esperada” para
todos os corpos, me questionava sobre as formas de cuidado destinada aos
corpos nos vários cenários de ensino aprendizagem do curso de medicina.
Diante dos inúmeros gritos emudecidos pelas relações de poder e saber,
que silenciam as vozes “desviantes” e “fora das normas” nos mais variados
espaços de cuidado em saúde, decidi buscar a graduação em Medicina como
uma estratégia de criar espaços alternativos para o cuidado integral em saúde.
Espaços, esses, que considerassem as possibilidades existenciais dos sujeitos
e reiterassem a autonomia, os direitos humanos e a promoção da diversidade
como um dos elementos primordiais para a saúde. No ano de 2007, iniciei
minha graduação no curso de medicina. Desde esse momento, envolvia-me
com as disciplinas de saúde pública, que buscavam efetivar a responsabilidade
social da escola médica com o sistema de saúde e com a população a ela
envolvida. Somado a isso, busquei desenvolver uma série de atividades de
pesquisa, ensino e extensão para aprimorar meus conhecimentos sobre
gênero e sexualidade. Buscava pensar estratégias para a minimização e
superação desses silenciamentos e violências vividos pelo meu corpo e
observado nos relatos de outros colegas gays, uma vez que não identificava
nas estruturas curriculares e extracurriculares espaços que permitissem a
reflexão crítica sobre os aspectos de gênero e sexualidade.
Muitas vezes, já observava que o local de fala sobre os corpos gays
estava atrelado as condições de desvio de comportamento
sexual/promiscuidade. Como era difícil ver que minha existência, e de outras
corporalidades não hegemônicas, para o ensino da saúde se restringia a isso.
Sentia um processo gradual e contínuo de reduções da minha possibilidade de
existência. Observava a reiteração de um discurso de desvio da norma da
coerência biologicamente referendada no campo de saúde. Norma essa que
pressupunha que o meu sexo biológico, definiria o meu gênero, que por sua
vez, determinava a minha orientação sexual, que deveria ser heterossexual
(Butler, 1993; Louro, 2013).

5
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Por isso, propus a uma pesquisadora do campo de antropologia da


saúde construir e desenvolver uma pesquisa sobre as questões de gênero e
sexualidade nos cursos de medicina. Para nossa surpresa, muito mais minha
do que dela, identificamos com os resultados da pesquisa que para docentes,
médicos residentes e estudantes de graduação em medicina havia a
reprodução da crença de que determinadas áreas de especialidade médica são
preferencialmente (pré)destinadas a determinado gênero. Por exemplo, áreas
como pediatria, ginecologia e dermatologia eram consideradas femininas,
devido a sua relação com o materno, com a genitália feminina e com a estética.
Mais um vez, o gênero e a sexualidade atravessavam a organização dos
espaços sociais, delineando os cenários socialmente construídos como
“masculinos” e “femininos”. Sentia, mais uma vez, meu corpo oprimido e
comprimido a algumas realidades de futuro profissional. Pude compreender
como a formação em saúde incluía e excluía determinados corpos, a partir de
regras e padrões construídos culturalmente e reiterados pelas (in)certezas do
discurso médico relacionada ao campo do natural (Teixeira, 2013). Regras e
padrões que diziam, e ainda dizem, quais práticas pessoais e profissionais
eram esperadas para cada gênero, sempre referendados, na ancoragem do
discurso médico, pela ordem “imutável” da “natureza inerente ao corpo”.
Após minha formatura no curso de medicina busquei desenvolver, de
forma mais sistemática, projetos e intervenções sociais que tenham como
preocupação central a questão de sexualidade e gênero, envolvendo
principalmente as políticas de acesso e atenção integral em saúde
relacionadas a (sub)alteridade (Spivak, 2014) de LGBTs. Para, com isso,
propor reflexões sobre o corpo, não apenas como fato natural, mas a sua
correlação com os corpos que (não)importam (na)para a prática médica.

“Era uma vez” o encontro com o doutorado


Em 2015/2016, enquanto pesquisador colaborador de uma investigação
sobre a qualidade do acesso em saúde da população LGBT à atenção primária
em saúde, pude identificar, novamente, vários discursos sobre a não
importância da temática para o curso de medicina. Na cultura de cuidado que
observei, as “doenças” são iguais em todos as pessoas, independente de
outros aspectos como o gênero e sexualidade. Além disso, a população LGBT

6
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

era “abordada” em relação direta com as doenças sexualmente


transmissíveis(DSTs)/HIV-aids. Por meio desses discursos que geravam um
desconforto, novamente sentia, vivia e observava em meu próprio corpo os
efeitos dos discursos e práticas de silenciamento, negligenciamento e exclusão
que dos corpos não heterossexuais.
Esse contexto animou-me na busca do aperfeiçoamento profissional
nesse campo, por meio de realização do doutorado em 2016. O doutorado me
permitiria investigar as relações de poder e saber que são (re)construídas
nesses cenários de ensino-aprendizagem e que (re)produzem a(s)
(in)visibilidade(s) no cuidado de saúde do cotidiano. Além disso, poderia
compreender como esses poderes e saberes (re)constroem estratégias para a
manutenção do corpo gay como uma “patologia”, mesmo diante da
despatologização da homossexualidade.
Além do mais, buscava no doutorado uma estratégia de pesquisa
metodológica que permitisse investigar esses objetivos em profundidade e
incluísse e considerasse as impressões, reflexões e minhas vivencias como
estratégia de não silenciamento do corpo daquele que pesquisa. Por isso, a
metodologia/análise autoetnográfica mostrou-se como um recurso potente em
associação com da teoria queer (Butler, 1993) e os estudos culturais (Hall,
2010).

“Era uma vez” o encontro com o parecer da Plataforma Brasil/CEP


Após iniciar o doutorado vivenciava, junto ao meu orientador, uma de nossas
primeiras angústias com relação ao projeto – deveríamos ou não encaminhar o
projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos? Sabia, ainda que
intuitivamente naquele momento, que propor um projeto que (in)diretamente
questionava os pressupostos do “distanciamento do objeto de pesquisa” e da
“neutralidade do pesquisador”, como elementos fundamentais para realizar
“Ciência” na lógica cartesiana ocidental, resultaria em um grande
enfrentamento “sem garantias” (Hall, 2010). Mesmo assim, decidimos enviar a
proposta de pesquisa e logo obtivemos um código. Agora integrávamos essa
plataforma digital pelo processo de codificação e posterior decodificação
daquilo que escrevemos e propusemos. Após alguns meses de espera recebo
um e-mail afirmando que o protocolo tinha sido liberado. Com o coração

7
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

acelerado, o corpo agitado e um leve frio na “espinha” entro na Plataforma


Brasil/CEP e encontro o seguinte parecer:

“Não aprovado o protocolo. Considerando a


extrema subjetividade da pesquisa, uma vez que o
participante é o próprio pesquisador, o CEP/[...]
entende que os resultados obtidos podem estar
enviesados, levando a entendimentos errôneos
sobre o tema” (PARECER CEP-[...], 2016) [grifos
meus].
.
.
.
.
.
.
.
.

Assim como essas linhas em branco, como esse espaço em branco,


como o apagamento de um possível texto que havia sido escrito nesse lugar,
senti meu corpo desaparecer. Bruscamente meu coração parou. Meu corpo
emudeceu. Meu ser sumiu! Aquele encontro com o parecer tinha provocado
uma reação, até então, nunca experenciada. Em meio a flash-backs algumas
palavras voltavam ao meu encontro.
“Não aprovado”.
“Extrema subjetividade”.
“Participante é o próprio pesquisador”.
“Resultados enviesados”.
“Entendimentos errôneos”.
Me sentia no “olho de um furacão” sendo ao mesmo tempo
deslocado/arremessado para fora e revivendo essas palavras até que então
algumas lágrimas, que se tornaram grandes torrentes, começaram a escorrer
de meus olhos. Com a visão ainda mais turva comecei a tentar identificar o que
estava sentindo. Depois de um tempo percebi que não há sentimentos! Não há
o que falar! Não há o que sentir! Não há o que refletir! Não há o que

8
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

materializar nesse processo em que a própria existência da subjetividade do


pesquisador não tem espaço, não tem direito, não tem voz. Não posso existir.
Não posso pesquisar. Não posso falar sobre o meu corpo que
sistematicamente sofreu processos de silenciamentos e exclusão durante
minha formação. Não posso falar enquanto homem gay. Não posso falar
enquanto professor universitário. Não posso falar enquanto pesquisador.
Não POSSO!
Não tenho o DIREITO!
Não tenho a AUTORIZAÇÃO!
Não tenho a APROVAÇÃO de outrem para falar sobre o meu corpo,
sobre a minha existência, sobre a relação eu-Outro. Não posso existir nessa
interface com o outro, pois existindo essa interface sou o participante como
pesquisador e o pesquisador como participante, e isso para a “Ciência” é
impossível. Tenho que estar distante na pesquisa, para supostamente reduzir a
migalhas de possibilidade o viés do pesquisador. Mas que tipo de “Ciência” é
essa que impede a interação? Que tipo de guardiões da “Ciência” são esses
que não admitem a existência pesquisador-pesquisado? O que essa “Ciência”
pretende salvaguardar? Será que querem proteger a verdade universal e
imutável, com rituais, regulações e políticas na produção dessa “Ciência”? Ou
será, como aponta Latour (2000), uma tentativa de torna a sociedade um
“laboratório” como reino da imparcialidade? Será que a “Ciência” consegue
provar que pode ser alcançada por métodos generalizáveis e reprodutíveis fora
do reducionismo, essencialismo e estereótipo? Que “Ciência” é essa que tudo
é previsível, calculado, limitado, minimizado, isolado, reproduzido e
generalizado? Onde estão as individualidades? Onde estão as pessoas? Por
que a subjetividade aterroriza esta “Ciência”, esses guardiões dos
“sujeitos/participantes”? Por que permanecer, como Latour (2000) questiona,
nesse dualismo entre objetos” humanos e não-humanos? Por que querer
manter esse paradigma, segundo Ortega (2008), entre corpos-objetos e
corpos-pessoas? Por quê?
Enquanto pensava questionando vertiginosamente minha “real”
realidade, só conseguia sentir as lágrimas descendo pelo meu rosto, tombando
diante de minha suposta materialidade, esvaindo-se pela minha subjetividade e
tornando a minha visão turva. Infelizmente, não encontrei respostas

9
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

cientificamente adequadas, testadas e reproduzidas, com um “n” de


significação altamente elevado e extremamente confiável, que pudessem
permitir representar o todo. O que me fazia lembrar dos estudos de Said (2007)
sobre a construção do Oriente a partir da visão do Ocidente. Permitindo-me,
em certa medida, pensar que a geografia corpórea de minha existência estaria
atrelada ao conhecimento dominante heteronormativo (Butler, 1993) e
quantitativamente comprovado dessa “Ciência”. Sendo a Universidade como o
“grande aparelho uniforme dos saberes” (Foucault, 1999:219), reduzindo o
conhecimento a uma identidade coletiva singela e singular, isenta de
diferenças e qualidades (Said, 2007). Exemplificando em meu próprio corpo,
em meu próprio saber, em minha interface pesquisador-pesquisado, o que
Foucault (1999) afirma sobre disciplinamento do saber a partir das operações
de seleção, normalização, hierarquização e centralização para produção dessa
“Ciência”.
Sinto, assim, a hegemonia de um grupo dominante (Hall, 2013),
relacionado a biomedicina e “A Ciência biomédica”, silenciar a minha voz, o
meu ser, através de uma cultura institucional supostamente destinada a
proteção daqueles sujeitos/participantes que estão direta ou indiretamente
envolvidos nas pesquisas. Como pensar isso se o argumento para a não
aprovação estava relacionado aos resultados? Nesse encontro com o parecer,
encontro a realidade que a “Ciência” e a Plataforma Brasil/CEP quer assegurar:
a suposta VERDADE científica sobre um objeto de conhecimento coerente com
os pressupostos científicos do distanciamento, da neutralidade e da coerência
à natureza, que pode ser sistematicamente observada, reproduzida e
generalizada.

O “último suspiro” de um encontro


Em meio a um grito emudecido de um corpo negado, com "entendimentos
errôneos", esse texto configura-se como uma ousadia de um “último suspiro”
em falar e romper com o silêncio mortificante que a heteronormatividade
médica e "Científica" me impuseram. Para, segundo Said (2007), ir “[...] rumo a
liberdade do homem” (p.26) a partir do processo de questionar/“desaprender” o
“modo dominador inerente” (p.60), aqui relacionado a essa “Ciência”.
Questionando, assim, verdades imutáveis, tencionando a robotização da

10
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

pesquisa e subvertendo a norma para, quem sabe, trazer a existência a


possibilidade daquilo que é invisível, daquilo que é silenciado, daquilo que é
excluído e negligenciado.
Recorri ao resultado e após uma sucessão de eventos consegui reverter
o parecer do CEP. Essa é outra estória em que “era uma vez...”

REFERENCIAS
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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

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12
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

GT 9 – Autoetnografia, arte e corporalidades

UM CORPO NA LINHA DE FRENTE: Autoetnografia sobre ser discente no


PET Saúde GRADUASUS

Raphael Santos Sande¹

Constituição Federal (CF) de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS)


atribuindo à sua competência, ordenar a formação de recursos humanos para a
área da saúde. Algumas estratégias interministeriais foram traçadas, tais como
as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) em 2002, o Programa Nacional de
Reorientação Profissional em Saúde (PRO SAÚDE) em 2005 e o Programa de
Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET Saúde) em 2008. No ano de 2015
foi lançado edital do PET Saúde GraduaSUS, a versão mais recente do PET
Saúde, com foco nas mudanças curriculares, integração ensino-serviço-
comunidade e formação de preceptores para o SUS. Vista pela ótica do
discente o PET assume potencialidades de mudanças, mas até onde ela tem
real eficácia? Por quais caminhos percorre a integração ensino-serviço-
comunidade? Como resolver os conflitos das diferentes visões disciplinares?
Como ser o cidadão ético, crítico e reflexivo e como espera as DCNs?
Entendendo a antropologia como uma ciência viva que se ajusta as mudanças
histórico-sociais este trabalho utiliza a autoetnografia para expor as reflexões
de um corpo na linha de frente entre a pesquisa e extensão na área da saúde

Palavras chaves: autoetnografia, SUS, trabalho interprofissional, extensão.

Abrindo a ficha

Nome, idade, sexo, estado civil, profissão, naturalidade (onde a pessoa


nasceu, porque a última coisa que vejo quando alguém faz a anamnese é ter
naturalidade) você fuma? É usuário de drogas? Quantas vezes você escova
seus dentes no dia?
Eu, aos 26 anos da minha vida acabo de me graduar em odontologia.
Antes disso fui morar por um ano num país da América Latina e antes de fazer
intercâmbio estudava ciências sociais em uma universidade federal. O que isso
representa para minha formação?
Minha trajetória me possibilitou um olhar mais apurado para as pessoas e
a (des)organização social, a graduação interrompida de ciências sociais me fez
ser um profissional de saúde questionador. Conhecendo e não aceitando a

¹ Graduando em Odontologia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.


Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

lógica vigente, a busca por espaços em que pudesse expor meus pensamentos
se fez constante e o PET GraduaSUS foi o principal espaço dentro da
Universidade.

Como vim parar aqui?

Nesse ponto reconheço que tudo é trajetória. Como na construção de


uma casa antes de entrar a decoração, até mesmo das paredes, deve existir
um alicerce, no caso em proposto ele é a educação. Se para Paulo Freire
(2001) ensinar é despertar no educando o interesse pela pesquisa,
apresentando conteúdo de maneira crítica e fomentando a construção do
pensamento o “pensar certo”, formar para a saúde não deveria ser diferente.
Em consonância de discursos, a chamada constituição cidadã, Constituição
Federal do Brasil de 1988 (CF) instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS)
atribuindo à sua competência, ordenar a formação de recursos humanos para a
área da saúde. A Lei Orgânica da Saúde (Brasil, 1990) Lei 8080, corrobora
com a CF, em seu artigo sexto, inciso III.
A nossa forma de educar nas graduações de modo geral traz um foco
muito grande nas especialidades. Diversas iniciativas se propuseram a
minimizar essa característica. Em fevereiro de 2004 nasceu a Política Nacional
de Educação Permanente (Brasil, 2004) pensando formar e capacitar
profissionais da saúde para atenderem a população, de acordo com os
princípios do SUS.
O Programa Nacional de Reorientação Profissional em Saúde (Pró-
Saúde) foi iniciado em 2005, através da Portaria Interministerial n. 2.101. O
Pró-Saúde (Ministério da saúde, 2007) traz a ideia que a reorientação curricular
ocorra ao mesmo tempo e em eixos diferente, atendendo a necessidade das
Instituições de ensino superior (IES) e ao mesmo tempo, as necessidades do
país em qualificar profissionais para atuação em suas áreas, além da prestação
de serviços à população e produção do conhecimento. Para a saúde o
programa pretende substituir do modelo tradicional de organização do cuidado
em saúde (voltado para a cura da doença e atendimento nos hospitais)
modificando para a atenção básica, com a integração ensino-serviço. Sendo
necessário então, à reorientação da formação profissional.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) foi


regulamentado pela Portaria Interministerial n.421, de 03 de março de 2010.
Ele tem por objetivo integrar o ensino-serviço-comunidade através do ensino,
pesquisa de extensão universitária e participação social. com parceria da
SGTES. (Brasil, 2010)
PET GraduaSUS é a versão mais recente do PET SAÚDE, lançado pelo
edital no - 13, de 28 de setembro de 2015. Seus eixos fundamentais são: a
mudança curricular, integração ensino-serviço-comunidade e formação de
preceptores para o SUS. (Brasil, 2015)
A universidade em que estudei, foi contemplada com esse edital e
trabalha, desde maio de 2016, com grupos tutoriais dos cursos de Medicina,
Odontologia e Enfermagem. Esses grupos são formados por estudantes
(bolsistas e voluntários), profissionais de saúde do SUS (na função de
preceptores) e professores desses cursos (na função de tutores).

Sobre ser autoetnográfo

Modelo triádico (Chang, 2008)


Etnográfica
T
Orientação cultural.
Diários de campo.
Orientação de conteúdo autobiográfica.
L
Observação participante
G
Interpretativa
Analítica
Self exposto

Ora, meus senhores, existe técnica na arte!

Um corpo na linha de frente


Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Pensando em trajetória, tudo que se construiu até agora visa um cuidado


maior para a saúde. Existe um entendimento que para ocorrer é necessário
que haja uma integração entre o ensino-serviço-comunidade, foi criada a
santíssima trindade que como boas irmãs vivem brigando entre si.
Integrar o que?
Entregar o que?
Do que falamos? Qual meta? Quais entraves?
Qual deve ser a sensação?
É a presença do meu corpo na linha de frente.
Como integrar, ser multidisciplinar utilizando o mesmo padrão de sempre?
Como preparar o humano nesse mercado global?
Como olhar a alma (sua ou do outro) se a ciência nega o espiritual? (Além
de se propor a ser neutra).
De acordo com Conselho Nacional De Educação, as DCNs de
Odontologia definem como perfil do egresso, o Cirurgião Dentista com
formação generalista/humanista, com o pensamento crítico e reflexivo, para
atuar em todos os níveis de atenção à saúde, pensando no rigor técnico e
científico (Brasil. Ministério da Educação, 2002). Capacitado ao exercício de
atividades referentes à saúde bucal da população, pautado em princípios
éticos, legais e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do
seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em
benefício da sociedade.
A LDB e as DCNs abordam como características formar um cidadão
crítico e reflexivo. Mas o que é ser cidadão? Existe crítica nesses moldes de
sociedade? Qual o real poder dela? Qual nossa capacidade de reflexão, se
estamos TODOS imersos nesse mar de lama que é nosso cotidiano?
Outro aspecto na integração ensino-serviço-comunidade se dá numa
perspectiva mais interna: como integrar o ensino e como trabalhar para que as
diferentes formas de ensinar das profissões se integrem? Como tudo na vida
queremos criar oposições e binarismos,
mente-------diferente de----- corpo
ideal---------oposto a----------material
ciência------ apartada da----- arte
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

separamos os saberes em importantes e não importantes, é difícil entender a


população quando o modelo não a considera. Vamos a campo tentar fazer
educação para a saúde, mas só ditamos regras. Me falaram durante uma das
muitas clínicas que supostamente são integradas, que deveríamos olhar o
paciente como um todo. Refleti e não encontrei nenhum exemplo disso durante
os cinco anos de graduação. O que ensinaram a valorizar passa longe do
humano.
Para que serve?
Para quem serve esse discurso?
Uma onda conservadora.
Isso faz refletir sobre a sociedade, como ela vive? Um sistema que visa o
lucro, uma internet onde se vive conto de fadas. O discurso da humanidade e
do cuidado se perdem em meio a lógica capitalista, a exposição do paciente
em inúmeros antes e depois nas redes sociais. A concepção de saúde que gira
em torno da doença. QUEM TEM MAIS PODER DE PERSUASÃO? QUAL
DISCURSO TEM MAIS FORÇA?
As DCNS falam de um perfil profissional generalista, mas quantos
professores são generalistas? Quem valoriza o generalista? Se até para a
saúde da família criamos especialização, é um forte indicativo que o que foi
pensado como ideal não funciona em prática (mais um binarismo). Seria essa
a prova maior da falência desse sistema de ensino, criar uma residência para
ensinar o que deveria durante a graduação?
A autoetnografia é um gueto!
A saúde coletiva é um gueto!
Os professores dela também!
Docentes de Saúde Coletiva (pelo menos os da minha realidade) pouco
pensam como um grupo. Os estudantes que gostam da ideia do SUS ou estão
nos pequenos grupos como o grupo no qual faço parte (PET Saúde
GraduaSUS) ou estão calados, encolhidos e envergonhados. Enquanto guetos,
precisamos nos unir por um projeto maior.
“O termo é empregado, o “gueto” denota uma área
urbana restrita, uma rede de instituições ligadas a grupos
específicos e uma constelação cultural e cognitiva (valores,
formas de pensar ou mentalidades) que implica tanto o
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

isolamento sócio moral de uma categoria estigmatizada quanto


o truncamento sistemático do espaço e das oportunidades de
vida de seus integrantes” (Wacquant, 2004: 1).
Queremos integrar as profissões para um trabalho multiprofissional, não
sabemos como! Aproximar o ensino do serviço, o serviço da comunidade
parece um caminho no mínimo razoável, mas diferente da universidade onde
se tem controlado as condições normais de temperatura e pressão, fora dos
muros a vida que pede urgência.
Quando existe uma rápida necessidade de resposta, como podemos
trabalhar para que ela aconteça da forma correta? Quais dados utilizar? Onde
buscá-los? O PET em questão assume um pouco dessa responsabilidade, são
dois anos dedicados a pensar numa integração ensino-serviço e nas mudanças
curriculares que a possibilite. Volto a pergunta, onde estão os dados?
“Não existem dados. Existem experiências vividas.
Vividas por sujeitos?
(Sujeitos enformados?)
Sujeitos não.
Pessoas.
Muitas em sofrimento... muitas em nossos hospitais... vestindo branco ou não. ”
(Brilhante e Moreira, 2016:8)

Estava eu, na linha de frente, junto com mais alguns alunos realizando
uma oficina para os trabalhadores de uma Unidade de Saúde da Família na
qual trabalhamos junto com o PET GraduaSUS (a professora nos dava
suporte) então inicia a discussão, parecia uma guerra. Por um momento
acreditei ser o responsável pela frustração daqueles trabalhadores, a presença
dos preceptores que trabalhavam na gestão deixava tudo com um ar mais
dramático.
Saio da frente, sento um pouco e escrevo no meu diário de campo
algumas perguntas: O que é saúde? Nesse contexto o que é mesmo o conceito
de saúde? Estado de bem-estar? De quem? Como promover a saúde se essa
sociedade lucra com a doença? Até mesmo a doença dos trabalhadores da
saúde.
biopsicossoci… o que?
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Como seis bolsistas, dois de cada curso, mais meia dúzia de gatos
(voluntários) pingados podem influenciar nessa situação? Ou até mesmo na
faculdade. Esses poucos professores que vivem em seus guetos podem
contagiar a maioria não reflexiva que vive seu dia voltado para uma busca
econômica de uma vida melhor?
Temos medo do conflito, do diferente, o profissional questionador era mal
visto pelo grupo participante das oficinas, isso se repetiu em todas que
participei. No SUS lidamos com todos e suas diferenças, mas estamos
preparados?
Também tivemos vários ganhos. Ampliação dos campos de estágios na
saúde da família, manuais de estágio, vislumbre da implantação de
acolhimento aos usuários nas unidades que estamos inseridos, mudança na
percepção de alguns colegas sobre o que é o Sistema Único de Saúde.
Poderia ser esse texto apenas para falar das coisas boas, mas acredito que
nesse momento precisamos nos dedicar mais nas falhas para tentar arrumar.
Questionar é um ato político!
É preciso pensar em modificações sociais. Como mudar o currículo?
Sabemos que historicamente os ambientes educativos foram organizados para
ser um local mais próximo da reprodução do modelo de sociedade que se
espera. O currículo se apresenta como reprodução do sistema que domina a
maioria da população.
Usando da teoria queer, penso no seus conceitos e questionamentos.
Talvez essa autoetnografia é justificada somente por sua influência. É preciso
estranhar!
Estranhar o currículo, é estranhar a forma em que ele se apresenta e as
condições no qual o conhecimento se constrói. Devemos questionar o que é
conhecido e de que forma vamos conhecer algumas coisas em detrimento de
outras. "A questão é: o que há para aprender com a ignorância?" (Louro, 2008).

***
Continuamos a ir para as unidades, mais uma equipe entra na sala para
oficina, mais uma leva de profissionais desmotivados, travados no processo de
trabalho, presos em pequenas burocracias. O problema da saúde pública é o
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

problema da máquina pública, se a administração vai mal à saúde acompanha


seu desempenho.
É preciso questionar, assim como sonhar, devemos nos munir da
inquietude. “Sem sonho e sem utopia, sem denúncia e sem anúncio, só resta o
treinamento técnico a que a educação é reduzida” (Freire, 2000: 124).
Por fim, eu bato o pé e mais uma vez vou de encontro ao que me
ensinaram as professoras de metodologia científica e do trabalho de conclusão
de curso, é quando percebo que eu não sou:
INTRODUÇÃO
OBJETIVOS
METODOLOGIA
DISCUSSÃO
CONCLUSÃO: Logo, imagino que a solução não pode vim por quem
pensa assim!
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

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WACQUANT, Loïc. 2004. O que é gueto?Construindo o conceito sciológico.


trad: Zena Eisenberg e João Feres Júnior. Rev. Sociol. Polít. Curitiba, (23):
155-164, nov.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

GT 9 – Autoetnografia, arte e corporalidades

Um Abraço em Nínive: O Acolhimento através do diálogo com silêncio

Thuani Coutinho Gomes1

Resumo: O artigo visa apresentar de forma sucinta os conflitos internos de uma


das interlocutoras que teve seu relato analisado na monografia de título ‘Um
Abraço ao Silêncio: A influência do núcleo familiar nos encaminhamentos de
casos de abuso sexual’ no qual o objetivo da pesquisa é refletir sobre a
importância do acolhimento familiar (ou da falta dele) para a pessoa que sofreu
abuso sexual, observando o quanto tal violência influi nas reações e ações de
seus familiares. A proposta central do artigo é expor as questões de Nínive de
três perspectivas diferentes em uma reflexão que visa expor o motivo de a
mesma ser o principal motivo da pesquisa.
Palavras-chave: Abuso sexual; acolhimento; familiar; silenciamento.

Abstract: The article aims to summarize the internal conflicts of one of the
interlocutors who had their report analyzed in the monograph titled 'An Embrace
to Silence: The influence of the family nucleus in the referrals of cases of sexual
abuse' in which the objective of the research is to reflect the importance of the
supporting reception (or lacking of if) for the person who has been sexually
abused, observing how much such violence influences the reactions and
actions of their family members. The central proposal of the article is to expose
Nínive's questions from three different perspectives in a reflection that aims to
explain why she is the main reason for the research.
Key-words: Sexual abuse; reception; familiar; silencing.

Introdução
Minha proposta inicial para este artigo era apresentar resumidamente
uma das análises feitas em meu trabalho monográfico que tem como temática

1 Recém graduada em Antropologia Social (2017.1) – Universidade Federal Fluminense.


Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

abuso sexual. Neste trabalho analisei casos reais onde conclui-se que as
interlocutoras foram silenciadas no que se refere ao compartilhamento de seus
relatos e por conseguinte não receberam o acolhimento, evidenciando a
dinâmica familiar como um dos impeditivos para a subnotificação dos casos. Eu
queria expor especificadamente o caso de Nínive. O problema é que existiam
questões sobre o acolhimento que eu mesma desconhecia, até ouso dizer que
eu não queria entender. Na busca de entender o que é o acolhimento e
encontrar pessoas com as quais me identifico eu desvalorizei a pessoa que
mais precisava do meu apoio. Desta forma, precisei rever o que propus
inicialmente e abrir espaço para que Nínive não fosse mais silenciada por mim.
Em uma conversa um grande amigo me fez uma pergunta para cada ser;
Thuani, Nínive e o Silêncio, e na necessidade de responder sinceramente a tais
perguntas encontrei o que faltava no artigo que escrevera inicialmente para
este evento. Assim, compartilho a seguir o fruto de tais questionamentos,
finalmente dando voz a pessoa mais importante pra mim.

Nínive, como se sentiu sendo objeto de estudo, sendo estudada?


A primeira coisa que me vem a cabeça é “pelo menos ela me dá alguma
atenção”. Quando Thuani decidiu escrever sobre mim fiquei feliz, ela me
escondia das pessoas e ainda esconde. Tenta fingir que não existo, até. Sinto
coisas demais e ela não sabe lidar. É incrível como eu posso lembrar de tudo,
detalhes e ela não. Recentemente tive uma crise psicológica e isso deixou ela
desestabilizada até agora. Na crise lembrei de coisas que estavam bloqueadas
e mostrei pra ela o quanto ela manipulou sua própria vida pra me manter longe
de todo mundo. Eu tenho vontade de sair, de conversar com pessoas iguais a
mim e que entendam o que eu sinto. Queria também que estas pessoas onde
quer que estejam recebam ajuda. Neste caso eu gostaria de ser exceção, eu
gostaria de ter sido a única porque não desejo o que me aconteceu nem pro
meu pior inimigo.
Sabe, aos 11 anos eu já fazia cartas suicidas onde me despedia de
minha mãe e familiares dizendo que estaria melhor onde quer que fosse.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Qualquer lugar é melhor do que aquele. Mamãe ligava para o pastor, contava
minhas peripécias com na vez em que joguei shampoo e terra no estrogonofe,
me fez passar pelo constrangimento de ter que contar detalhes de como
estraguei a comida e todos concordaram que aquilo era rebeldia por causa da
novela. “Essa novela deixa as crianças rebeldes!” era isso que repetiam e isso
era motivo o suficiente para que eu quisesse matar o bicho papão com
shampoo na comida. Pra mim, o bicho papão foi real, ele vinha todas as noites,
passava a mão pelo meu corpo e se masturbava. O que se sabe aos 8 anos
sobre isso? Nada. Mas uma vez vi um livro sobre doenças sexualmente
transmissíveis e no meio dele havia uma página dupla onde havia corpos
masculinos representando as fases de crescimento do bebe ao idoso de um
lado, e do outro o mesmo processo mas com corpos femininos. Rapidamente
procurei o meu corpo e o identifiquei em meio os outros corpos desenhados;
mas olhando curiosamente para os corpos masculinos percebi que o corpo do
bicho papão não era compatível com o meu, mas sim com o desenho igual ao
corpo de minha mãe e pensando sobre isso senti o primeiro estranhamento.
Engraçado foi que depois disso eu meio que fiquei com nojo de me sentar na
cama da minha mãe, como eles podem namorar e ele faz aquela coisa
estranha comigo? É nojento …. logo me esqueci de tudo isso, e la estava eu,
assistindo TV sentada na cama outra vez.

Olha, nem sei porque tô falando isso de novo, já contei essas paradas
algumas vezes. As pessoas não se importam, elas nem sabem o que fazer.
“Se fosse com uma filha minha eu matava o filho da puta!” é o que eles dizem
enquanto tem uma parente passando por isso embaixo do nariz. As pessoas
falam e falam, uma coleguinha da escola veio fazer trabalho aqui em casa uma
vez e eu estava tão mal que desabafei. Ela disse “porquê você não conta
nada? Se você passa por isso a tanto tempo assim parece que você gosta!”,
óbvio que logo depois me afastei dessa pessoa porque, né? Eu devia ter uns
10 anos. Quando se sofre terror psicológico para que não abra o bico, a gente
começa a pensar nas diversas formas de morrermos sem muita dificuldade. Na
volta da escola eu costumava me imaginar sendo atropelada por cada carro
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

que passava, os ônibus e caminhões são os que possibilitam imaginar mais


estrago. Era relaxante pensar que em algum lugar no meio dos meus pedaços
minha vida seria só minha e de mais ninguém. Você pode achar que isso não
tem nada a ver com a pergunta que fez, mas deixe-me te dizer algo. Aos meus
13 anos, o único lugar onde eu me sentia em paz era no terraço de casa, à
noite. Eu sentava na borda frontal e ficava olhando pra baixo, me imaginava
caindo, batendo a cabeça e depois o nada. No nada não tinha bicho papão.
Em um dos dias em que eu estava lá, chorando, questionando a Deus sobre o
desserviço da minha existência, me lembrei que ele havia feito isso com outra
pessoa e que em uma conversa ele me contou que foi abusado também. “É
uma merda de ciclo”, Já ouviu a expressão “morrer é lucro”? Nesse caso era
pra ele. Quer coisa melhor que uma vítima suicida que leva com ela todas as
tentativas de pedir ajuda e expor?

Refletindo sobre isso me fiz uma nova pergunta: Tem modo melhor de
trazer prejuízo do que continuar viva? Não, definitivamente não. E prejuízo pros
dois lados. Aos 13 eu já me cortava superficialmente, me mordia e em picos de
stress socava minha própria cara. Arranhões, afundar as unhas na pele e bater
a cabeça na parede também eram bem eficazes pra espalhar o auto ódio pelo
corpo. Minha mãe cortou meu cabelo “joãozinho“ porque eu não tinha vaidade
e era “relaxada” com a aparência e assim comecei a ser zoada na escola. Eu
sei, eu sei, já é demais né? Abuso sexual em casa e bullying na escola? Pois é,
isso mesmo. Mas óbvio que na escola eu era feliz, faladeira, animada e legal.
Eu podia ser só uma criança normal que sofre bullying, tava ótimo assim.
Quando eu tinha picos de stress pelas interações na escola ou raiva por causa
do abuso era só eu esperar, uma hora meu próprio corpo ia cuidar de tudo.
Socos no rosto, cabeçadas na parede, pode ter certeza que começaram
conscientemente, mas depois de um tempo eram involuntárias. Quando eu
perdia o controle eu prendia os braços entre as pernas e começava a respirar
rápido. Esse método funciona até hoje.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Eu não sabia o que faria de bom pra me manter viva, mas eu precisava
achar alguma coisa. Assim, conforme fui crescendo, fui tendo diversas ideias,
mas um dia, sentada dentro de uma igreja eu só pensei “Olha só, preciso
mesmo transformar isso tudo em algo bom, porque tô pensando em me matar
de novo e dessa vez eu não vou só tentar...” Não bastava só viver, e eu sabia
que encontrar pessoas que me entendem não era o suficiente. Eu só queria
que minha mãe acreditasse em mim e me apoiasse o que por uma série de
motivos isso não foi possível. Logo, eu colocava minha energia em outras
coisas, como trabalho voluntário ou coisas do tipo. Pensei que começar um
grupo de terapia coletiva seria uma boa ideia, mas com Thuani se
desenvolvendo na faculdade ela começou a pensar nos outros e esquecer de
mim, não me ouvia mais. Talvez me estudando ela fale comigo e me deixe falar
com as outras meninas também.

Eu te dei um panorama de todos esses anos só pra te mostrar que, ela


nunca me deixou sair de casa! Eu tive que ver ela crescer, namorar, ir ao
cinema e me deixar aqui, trancada! Ela anda por aí sendo essa coisa saltitante
e animada, ajuda várias pessoas e não dá a mínima pra mim! Ela nem sente
mais pesar quando conta pras pessoas o que aconteceu comigo. Segundo ela,
ela não tem tempo pra isso. Ela fica se preocupando em ajudar outras pessoas
mas esqueceu que sem mim ela não vai a lugar algum. Eu não vou deixar que
ela vá a lugar algum, a não ser que eu vá junto. Ela se casou e não me
convidou! Eu! Ela visitou lugares legais e viajou e eu fiquei no escuro do qual a
gente tanto falava quando criança. Na nossa adolescência ela começou a
gostar de meninos e se imaginar tendo uma vida normal, eu dizia pra ela que
não dava, que era melhor investirmos em outras coisas e sabe o que ela fez?
Ela chegava da escola, ajeitava a casa, ou nem ajeitava! E se deitava no sofá
ou na cama, fechava os olhos e imaginava um mundo paralelo, um mundo pra
mim. Foi assim que fui oficialmente criada, nesse mundo paralelo a gente
juntou o melhor de nós e nossas expectativas, daí ela gostava de escrever tudo
o que vivemos quando ela se levantava e no final ficou do tamanho de um livro!
Ela pensou em fazer um segundo mas aí fez cursos, pré vestibular e depois a
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

faculdade, e assim esqueceu de vez de mim. Quer dizer, ela falava comigo vez
ou outra, mas tinha medo de ficar muito tempo comigo. E aí você me pergunta
como eu me sinto sendo estudada? Me sinto enxergada, ela não pode correr e
nem se esconder, não existe mais mundo paralelo e eu quero conhecer lugares
e quero sentir as coisas, eu quero receber afeto e amparo que ela não me deu
na desculpa de que ninguém o deu a nós. Eu só quero dela o que a gente
queria da nossa mãe, um abraço.

Silêncio, qual é a sua ocorrência na pesquisa e quais consequências você


gerou para as duas personagens?
Você poderia ter perguntado onde eu estava desde a infância das duas e
aí a pergunta seria mais interessante ainda. Eu fui uma ferramenta, se tem
alguém que foi usado este sou eu! Thuani tinha tanta vontade de ser o que ela
chamava de “normal” que me usava pra esconder Nínive. Desde de pequena,
ela sempre foi genial e com uma capacidade incrível de fingir que nada
acontecia. Parecia que era só amanhecer e Nínive continuava dormindo
enquanto a Thuani se levantava e ia pra escola! Nínive podia sair às vezes,
mas geralmente corria pro banheiro da escola e começava a chorar. Thuani
acabou perdendo a paciência, ela se irritava com isso e queria ser como as
outras pessoas da escola. Queria poder agir igual as crianças que tinham
problemas como escolher qual menino beijar ou na casa de qual amiga ir. O
mundo paralelo pra onde elas iam todas as tardes era grande parte feito de
mim. Isso saciava a vontade de Nínive de sair, de viver, pois dentro daquele
mundo imaginário a principal personagem era Nínive e tudo girava entorno das
maiores vontades das duas. Uma pessoa leu esse livro, só uma. E não sei
porque esta pessoa ainda se casou com a Thuani. Eu estava na escola, na
reunião com a família, em cada risada, em cada ida a igreja, eu estava no
casamento, na noite de núpcias, eu estou e estive sempre aqui. Durante a
pesquisa ela me colocou frente a frente com Nínive e conversamos, chegamos
a pensar que no processo de escrita ela fosse acolher Nínive e até eu estava
feliz com essa possibilidade. Mas, não. Ela me usou de novo durante quase
todo o tempo. Nínive pôde conhecer as meninas pois Thuani a levou nas
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

entrevistas, mas não a deixou falar tudo que queria. Depois das entrevistas eu
tive que ficar com Nínive, tomar conta dela até que Thuani analisasse todos os
casos e por último o dela.
Resumindo, eu ainda estou aqui, e acredito que por tempo
indeterminado porque a Thuani não sabe viver sem mim! Quem você acha que
a possibilita ser a “coisa saltitante” que a Nínive tanto reclama? Olha, não
pense que sou ruim, eu penso nas consequências da minha existência todos
os dias. Se não fosse eu, ela não teria escrito, e desde a infância fui eu que
ajudei as duas a sobreviver. Como você acha que elas estão vivas agora? Eu
dei as duas o dom de conseguir transparecer uma vida normal e isso já as
livrou de mais represálias do que você pode imaginar. Ele perseguia até os
amigos dela, ela tinha que parecer normal. Admito que por minha causa hoje
elas não conseguem se aproximar direito, quando o fazem o corpo fica em um
estado ruim, é como duas almas em um corpo só. Mas eu estou tentando
colaborar pra essa melhora, tenho me afastado delas principalmente nas
últimas semanas e adivinha só, tá tudo uma bagunça! Na minha humilde
opinião, sem mim elas tem duas opções; ou uma das duas deixam de existir ou
elas se fundem e se tornam outra pessoa, é só um palpite. Particularmente
para Thuani, acredito que ela existe só por minha causa, estamos juntos desde
que ela se entende como gente e ela nem se lembra de como era a vida antes
de mim. Ela não sai pra trabalhar sem mim, e nem interage com as pessoas
sem que eu esteja junto. Ela encontrou uma menina igual a ela, e essa garota
fica dando conselhos que diminuem minha importância, mas com jeitinho acho
que ela consegue seguir sem me deixar de lado. Ela tem tentado me deixar de
fora nas interações com o marido e ela já viu que isso não dá certo porque a
Nínive vive tendo crises por isso. Falando na Nínive, ela sofre diariamente pelo
tanto que a sufoco, acho que fiz tanto mal a ela quanto bem pra Thuani. Por
minha culpa quando Nínive quer chorar a Thuani não deixa, enquanto Nínive
passa mal ela simultaneamente trabalha e sorri pras pessoas, e sabe o que é
mais bizarro? Não é falso, não é mentira! Elas são definitivamente uma obra de
arte! Por minha culpa a Nínive nunca pode chorar de verdade tudo o que tinha
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

pra chorar. Ela faz em prestações, geralmente quando elas estão sozinhas em
casa e de novo, todos os dias, Thuani esconde a Nínive em mim.

Thuani, como se sente escrevendo sobre um tema em que você tem que
esconder que é a personagem principal ?
Olha eu gostei, Nínive que não curtiu muito. Foi uma forma eficaz de
fazer algo útil com tudo o que aconteceu. Não tem porque ficar sofrendo e
sentindo as dores pra sempre. Nínive e o silêncio ficam me cobrando que eu os
dê voz, mas pra quê? Pra ficarem se lamentando e olhando pro próprio
umbigo? Sabe quantas pessoas estão sendo abusadas agora enquanto ela se
lamenta? Ela não pode sofrer pra sempre e já que ela não quer parar eu deixo
o silêncio tomando conta dela. Eu não sou ruim como parece, nesses últimos
meses eu tenho dado atenção a ela – admito que as vezes fico na dúvida se foi
uma boa ideia – e a deixo ver as coisas lá fora. Deixei ela conversar e se expor
pras pessoas, ela acha que é simples e fácil e nem valoriza todo o trabalho que
tenho pra deixá-la participar das minhas interações! Eu até tento a entender
mas ela fica com esse drama, bloqueia meu corpo e minhas sensações e eu
quero sentir como todo mundo, isso é ser normal! Sentir! Ela acha que tenho
medo de encará-la e que eu não quero ceder, mas a verdade é que eu dei
muito duro pra conseguir sair e interagir com as pessoas e se eu der espaço
pra ela tudo pode ir pelo ralo! Já tentou conviver com nós duas? Eu não sei
explicar como meu marido ainda não fugiu. Admito, bloqueio as crises e
escondo Nínive quando ele está perto, mas fala sério, quem não esconderia?
Fazer a análise do relato de Nínive por último foi muito bom pois eu pude
trabalhar em paz! Você devia ver a lambança que foi o quando ela escreveu o
relato pra mim. Uma choradeira, uma lamentação que eu não tenho mais
paciência. Ela fica vulnerável demais e me prejudica. Olha, achei muito bom,
gostei abeça. Levei ela nas entrevistas e ela contou seu relato as outras
meninas, nas semanas que se passaram ela estava com um bom humor e isso
equilibrou as coisas entre nós duas, mas depois disso ela queria ver pessoas
sempre e conversar sempre e isso já estava demais. Atualmente estamos em
um embate e por isso ela fica tendo crises psicológicas que com certeza ela
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

contou em sua resposta ( o que eu acho desnecessário porque as pessoas tem


mais o que fazer.) Eu já disse a ela e repito, vamos pegar esta merda toda e
usar pro que presta. Ela tem me ouvido ultimamente, mas em compensação
tem tomado mais força e autonomia para fazer coisas e eu acho isso ruim. Ela
está conseguindo enrolar o silêncio e se fazer presente todos os dias. Como o
silêncio e o anonimato eu consigo lidar, com ela não.

Considerações finais
Tudo isso pode parecer confuso e desconexo, mas é importante pensar
além de uma contextualização e descrição dos acontecimentos e abrir espaço
para a importância de se poder falar, pesquisar e produzir esclarecimentos
sobre questões próximas. Ainda estou para descobrir como abraçar Nínive,
acolhê-la, ouvi-la. Por tanto tempo a escondi, a privei de viver e ter
experiências. Hoje, quero aprender com ela, como se fosse a primeira vez que
a vejo. Esta foi a primeira tentativa em anos de realmente ouvi-la com a
pretensão de lhe dar lugar e voz. Eu permiti que a academia fizesse conosco o
mesmo que nossa família, nos silenciasse. Desde minha adolescência Nínive
sempre existiu e que a escondia e escondo sempre que acho necessário,
assim como me escondi atrás dela e do silêncio para conseguir escrever. Sinto
muito por isso, peço perdão a ela por todas as vezes que a negligenciei e a
convido por meio deste escrito a caminhar comigo daqui em diante, pra
sempre. Boa parte disso aconteceu pois eu tive que aprender a dar espaço a
ela e ao silêncio para escrever este artigo, para entender mais profundamente
o que é a autoetnografia.
A grande questão em relação a autoetnografia é a utilidade além
academia que a acompanha. Sempre existiu a necessidade de uma escrita
mais palatável e, mais ainda, de uma acessibilidade dos materiais que
explicitamente visam o aprimoramento e/ou a explicação de determinadas
questões e interações sociais. Escrever sobre o que se vive é redirecionar sua
sensibilidade em direção ao coletivo.
Nesse caso, usar o olhar antropológico para tal é reforçar a importância
das pesquisas que explicitem mais abertamente a perspectiva do interlocutor.
Grupo de Trabalho 09 II Reunião de Antropologia da Saúde

Certa vez ouvi um doutor em antropologia, que falava sobre sua pesquisa na
área de políticas públicas dizer algo mais ou menos assim: “O antropólogo não
pesquisa coisas nunca vistas antes, mas sim, aquilo que todos estão vendo
todos os dias e naturalizaram”. Assim, quando o antropólogo passa pela
experiência que é ligada diretamente a pesquisa emerge a sensibilidade de
uma perspectiva direcionada as individualidades que juntas criam um coletivo.
Ao compartilhar minha vida com um amigo ele me disse que eu o estava
fazendo uma crueldade, pois ao inteirá-lo sobre as questões referentes ao
abuso sexual sofrido por tantas pessoas diariamente eu estava entregando a
ele uma partícula de responsabilidade. Assim, ele se perguntou o que ele faria
com aquela partícula que eu acabava de lhe entregar.
Em tempo, entendo a autoetnografia, principalmente as que tem relação
direta com saúde e cidadania, como compartilhamento de responsabilidade
carregado de informação. Autoetnografar é o oposto de limitar-se as paredes
acadêmicas, uma escrita acessível seria a confirmação da proposta de
expansão da responsabilidade e informação.
Utilizei a autoetnografia como ferramenta para dialogar com o silêncio,
silêncio que pessoas que não sofreram abuso sexual nunca entenderiam.
Quem poderia dizer que as ferramentas disponíveis das Instituições Públicas
não são o suficiente se não as pessoas que não puderam acessá-las? Foi
necessário dialogar com o meu próprio silêncio para acolher outras histórias,
para repensar o que realmente significa o acolhimento e os danos de se viver
sem ele e mais necessário ainda dar voz a outros silêncios e dialogar com eles
para expor que abafar conflitos e não acolher pode ser tão prejudicial quanto o
abuso. Nínive foi abraçada pelos amigos, pelo marido, mas eu ainda não a
abracei. No processo de compreender e escrever abri os braços invés de
fechá-los em torno de mim. Ao compreender abracei os outros e esqueci de
mim. A nova hipótese é que caso eu me permita abraçar Nínive, ao abrir os
braços novamente caberá mais gente que antes.
Grupo de Trabalho 10
Antropologias e deficiências
Coordenadoras: Luciana Lira (UFPE); Éverton Luís
Pereira (DSC/UnB), Soraya Fleischer (DAN/UnB)
Grupo de Trabalho 10
Antropologias e deficiências
É relativamente recente, na antropologia brasileira, a discussão sobre
experiências e condições de deficiência. Esse GT pretende reforçar essa
discussão, no sentido de reunir relatos de experiências, pequenos filmes e
artigos que relatem e analisem o que é considerado deficiência, como é
percebida e vivida a partir da primeira e da terceira pessoa e, se pertinente, de
que modo é encaminhada e tratada. As explicações etiológicas e simbólicas
para a deficiência, os atores envolvidos no cuidado e acompanhamento
cotidiano, as lutas sociais e políticas para garantir sua visibilidade e
acolhimento são todos temas de interesse aqui. Etnografias e pesquisas sobre
deficiências em relação às epidemias recentes, às doenças e síndromes raras,
aos acidentes, medicamentos e genética poderão aqui encontrar espaço para
apresentação. As interfaces, nem sempre fáceis ou produtivas, com as
iniciativas e definições do Estado e da Biomedicina são de particular
importância também. Além disso, pretende-se considerar também como raça,
gênero, sexualidade, geração e classe, por exemplo, perpassam as
experiências da deficiência, dos cuidados a ela dirigidos e dos movimentos
sociais que a representam.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

A estimulação precoce como evento cotidiano de sociabilidade de bebês


nascidos com a Síndrome Congênita do Zika em Recife/PE.

Thais Maria Moreira Valim

Resumo: No primeiro semestre do ano de 2015 o Ministério da Saúde alertou


oficialmente a população brasileira que um novo arbovírus sobrevoava os
trópicos. A infecção pelo Zika Vírus (ZIKV), inicialmente pensada como uma
forma mais branda da dengue, foi alçada ao status de emergência global pela
Organização Mundial da Saúde quando casos de microcefalia e de outras
malformações congênitas passaram a ser associados ao vírus. O Ministério da
Saúde estima que dos 13.835 casos suspeitos de microcefalia associada ao
ZIKV, 2.753 foram confirmados em crianças nascidas vivas para o período de
08/11/2015 até 20/05/2017. Devido às anomalias provocadas pela microcefalia,
o discurso oficial elencou as terapias de estimulação precoce como medida
urgente para todos os casos confirmados. As terapias de reabilitação, no
contexto da microcefalia associada ao ZIKV, têm como objetivo promover o
desenvolvimento cognitivo, motor, visual e auditivo dos bebês. Apesar do
objetivo direto da estimulação ser biomédico, outras dimensões da vida são
acionadas durante a circulação dessas crianças pelos serviços terapêuticos.
Neste trabalho, discuto a terapia enquanto um evento de sociabilidade que
produz relações e identidades na vida desses bebês.
Palavras-chave: zika; microcefalia; deficiência; reabilitação.

Introdução: a Síndrome Congênita do Zika Vírus em contexto nacional


Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Dedico esta seção inicial para explicar o contexto de surgimento das


reflexões que aqui formularei. Procurarei traçar uma narrativa histórica do surto
de microcefalia que se instalou no Brasil a partir de setembro de 2015, contando
um pouco sobre como a epidemia foi descoberta e quais hipóteses foram
acionadas para explica-la, bem como a quais conclusões chegaram as
autoridades.

Em setembro de 2015, as médicas pernambucanas Ana VanDer Linden e


Vanessa VanDer Linden depararam-se com uma grande quantidade de bebês
nascidos com microcefalia nas maternidades em que trabalhavam no Recife. A
doença, caracterizada pelo tamanho reduzido da cabeça dos recém-nascidos,
possui múltiplas causas: há registros de microcefalia associada a doenças
infecciosas como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes e sífilis
(TORCHS), mas também pode ser originada por outros fatores, como doenças
genéticas ou a exposição da mãe a substâncias tóxicas durante a gestação.
(CAMPOS NETA et al, 2016).

Até o ano de 2015, a incidência de microcefalia em recém-nascidos no


Recife girava em torno de 12 notificações anuais. Em setembro do mesmo ano,
porém, foram registrados impressionantes 39 casos (VARGAS et al, 2016), o
que despertou a atenção das médicas Ana e Vanessa VanDer Linden. Foi nesse
contexto que, em outubro de 2015, a Secretaria Estadual de Saúde do estado
de Pernambuco (SES/PE) notificou formalmente o Ministério da Saúde sobre o
aumento abrupto de recém-nascidos diagnosticados com microcefalia.

A primeira explicação desenvolvida apelas autoridades levantava a


hipótese de que, na realidade, não teria havido um aumento nos casos de
microcefalia, e sim um problema de subnotificação das ocorrências do passado.
Os números, no entanto, continuavam a crescer e casos passaram a ser
relatados com frequência nos estados da Bahia, do Rio Grande do Norte, da
Paraíba e de Pernambuco, o que tornava a hipótese de subnotificação cada vez
menos plausível. Outras suposições consideradas pela comunidade científica e
pela população foram a contaminação das gestantes por larvicidas colocados
em caixas d’água, bem como a possibilidade da aplicação de um lote vencido de
vacina para a rubéola em algumas mulheres.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Foi nessa esteira de acontecimentos que a médica neonatologista Adriana


Melo, de Campina Grande/PB, percebeu, durante o exame de ultrassom de uma
de suas pacientes, uma redução considerável do volume do cérebro e do
cerebelo do feto em questão. Atenta ao alerta emitido pela SES/PE sobre a
microcefalia, iniciou uma extensa anamnese da paciente. Na anamnese, a
doutora Adriana descobriu que a paciente havia sido infectada pelo Zika Vírus
(ZIKV) logo no início da gravidez.

O ZIKV é um arbovírus transmitido por vetores artrópodes, como o


mosquito Aedes Aegypt, e sua circulação pelos trópicos brasileiros havia sido
confirmada pelo Ministério da Saúde (MS) em maio de 2015 (LUZ; SANTOS;
VIEIRA, 2015). Até aquele momento, a infecção vinha sendo associada a
manifestações clínicas consideradas de pouca gravidade: as pessoas adoecidas
apresentavam, em geral, quadros de exantemas, febre e coceira.

Apesar de não haver indicativos de que o ZIKV pudesse atravessar a


barreira placentária e contaminar o feto, a doutora Adriana Melo, suspeitando de
uma possível associação entre o ZIKV e os casos de microcefalia, coletou o
líquido amniótico de duas gestantes e encaminhou o material para ser analisado
pela Fiocruz/RJ1. O resultado da amniocintese confirmou as suspeitas da
médica: foi detectada a presença do ZIKV em grandes quantidades no material
coletado (DINIZ, 2016)

Após ampla investigação realizada pelo Ministério da Saúde em parceria


com especialistas e representantes das Secretarias de Saúde de Estados e
Municípios Afetados, o MS lançou, em novembro de 2015, o “Protocolo de
Vigilância e Resposta à Ocorrência de Microcefalia Relacionada à Infecção pelo
Vírus Zika” (BRASIL, 2015). Neste documento ficou estabelecida oficialmente a
relação entre a presença do ZIKV e os casos de microcefalia que vinham
despontando no país (PORTO; MOURA, 2017), e a epidemia foi anunciada como
uma situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional
(ESPIN).

1
A Fundação Oswaldo Cruz, doravante Fiocruz, é uma instituição de pesquisa e desenvolvimento em
ciências biológicas fundada no Rio de Janeiro nos idos anos de 1900 pelo sanitarista Oswaldo Cruz.
Atualmente, possui centros de pesquisa em 10 estados e no Distrito Federal, além de contar com uma sede
em Maputo, capital de Moçambique
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Desde a divulgação oficial do MS, em novembro de 2015, até o dia 17 de


julho de 2017, a Secretaria de Vigilância em Saúde registrou em seus boletins
epidemiológicos 2.869 casos confirmados para microcefalia associada ao ZIKV
(BRASIL, 2017). Apesar de a microcefalia ser um dos sinais mais comuns da
infecção congênita, essas crianças têm apresentado um complexo conjunto de
sintomas para além da cabeça pequenina: distúrbios de ordem ortopédica,
oftalmológica, odontológica, cardíaca, motora, dificuldade de alimentação e
respiração, paralisias cerebrais e a ocorrência de convulsões estão entre os
sintomas mais observados (FEITOSA et al, 2016). Devido a esse conjunto de
manifestações clínicas, especialistas têm entendido o fenômeno como uma
síndrome, que passou a ser chamada de “Síndrome Congênita do Zika Vírus”
(SCZV)2.

Uma das primeiras respostas do Governo Federal para lidar com a SCZV
foi o lançamento, em dezembro de 2015, do Plano Nacional de Enfrentamento à
Microcefalia. A proposta do documento era a de atuar em três frentes: I)
prevenção e combate ao mosquito Aedes Aegypti; II) Atendimento às pessoas;
e III) Desenvolvimento tecnológico, educação e pesquisa. (BRASIL, 2015b).
Como parte do eixo destinado ao atendimento das famílias, o documento previa
a disponibilização do Protocolo e Diretrizes Clínicas para o Atendimento à
Microcefalia, que foi divulgado em janeiro de 2016 sob o nome de Diretrizes de
Estimulação Precoce (BRASIL, 2016).

Nessas diretrizes, o Ministério da Saúde aponta as terapias de


estimulação precoce como orientação principal para os profissionais de saúde e
para as famílias envolvidas no cuidado das crianças diagnosticadas com a
síndrome. No documento, o MS pontua que dos 0 aos 3 anos de idade, o cérebro
da criança apresenta grande plasticidade3 e por isso quanto mais cedo os bebês
forem encaminhados às terapias, maiores as chances da terapia produzir efeitos
(BRASIL, 2016).

2
É importante acrescentar que a microcefalia é o sinal mais comum da SCZV, porém nem todos os casos
de bebês diagnosticados com a síndrome nasceram com o perímetro cefálico reduzido. Há casos em que
o bebê apresenta outros transtornos associado à infecção pelo ZIKV.
3
Para a neurociência, a plasticidade cerebral diz respeito a possibilidade do cérebro de alterar e
transformar sua estrutura. Estudos recentes revelam que mesmo cérebros maduros, de pessoas adultas
e idosos, ainda são passíveis de modificação da estrutura interna.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Devido a imensa propaganda voltada para a urgência da estimulação pelo


MS e pelos profissionais da saúde, muitas famílias diretamente afetadas pela
epidemia colocaram as terapias como prioridade absoluta de cuidado.
Conquanto as Diretrizes de Estimulação Precoce pontuem que o
desenvolvimento de uma criança não depende unicamente de fatores biológicos,
sendo também influenciado por fatores afetivos, simbólicos e ambientais, boa
parte da literatura produzida acerca do desenvolvimento das crianças nascidas
com a SCZV tem dado preferência aos marcos biomédicos da síndrome.

Na próxima seção, procurarei acompanhar as trajetórias experimentados


por dois bebês e suas mães em seus itinerários terapêuticos de estimulação,
apostando na ideia de que o dia a dia da terapia não se restringe aos elementos
técnicos da intervenção em saúde e que, apesar de envolta num processo de
normatização e biomedicalização, a reabilitação pode ser também um espaço de
reinvenção e socialização.

Estimulação precoce: vetor de normalização ou de reinvenção?

Na seção anterior, busquei contextualizar as leitoras acerca do que


convencionou-se chamar de Síndrome Congênita do Zika. A perspectiva
adotada foi a de uma leitura panorâmica do que poderia ser chamado de “história
oficial” da síndrome. Na presente seção, o enfoque se desloca para dialogar com
as narrativas e experiências locais de uma mãe e criança afetadas pela
epidemia, adotando a circulação dessa família pelas terapias de estimulação
precoce como eixo temático da reflexão.

Para nortear o texto, utilizarei dados etnográficos produzidos pelas


pesquisadoras Fernanda Vieira, Lays Venancio e Soraya Fleischer a partir do
projeto “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos
diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres
e suas famílias no estado de Pernambuco” que está sendo coordenada pela
professora Soraya Fleischer junto ao Departamento de Antropologia (DAN) da
Universidade de Brasília (UnB). O grupo realizou sua primeira imersão em
campo no Recife em outubro de 2016. A viagem resultou no primeiro Tomo de
diários de campo do projeto, material ao qual tive acesso após consentimento de
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

todas as pesquisadoras envolvidas na produção de dados e que será utilizado


no desenvolvimento deste trabalho.

Conforme foi explicitado na seção anterior, o Governo Federal e os


profissionais de saúde insistiram muito, no início da epidemia, na importância e
urgência da estimulação precoce para os casos de recém-nascidos
diagnosticados com a Síndrome Congênita do Zika Virus. A insistência teve
resultados práticos: dentre as crianças conhecidas pelas pesquisadoras, pelo
menos metade delas estava vinculada a algum programa terapêutico. Os dados
divulgados pelo MS corroboram a situação conhecida em campo pela equipe:
dos 2.869 casos confirmados de crianças nascidas com a SCZV até o dia 31 de
dezembro de 2016, 978 (39,1%, portanto) estavam em estimulação precoce
(BRASIL, 2017).

Léo4 foi uma das crianças em estimulação precoce com quem Fernanda,
Lays e Soraya dialogaram; À época da pesquisa, ele estava com 10 meses de
idade. As pesquisadoras o conheceram pela primeira vez em sua casa, numa
visita articulada pela equipe de pesquisa por meio de cartas e mensagens pelo
aplicativo de conversa WhatsApp ao longo de alguns meses com sua mãe,
Damiana, antes de partirem de Brasília para o Recife mas também puderam
acompanhar mãe e bebê em outros ambientes, como a organização não
governamental AMAR5 e o hospital Fundação Altino Ventura

Léo possui cabelos enrolados e tem os olhinhos bem fechados. Lays o


descreveu em seu diário como um bebê sorridente e atento: olhava com
curiosidade para as pesquisadoras pelas pequenas frestas de seus olhos semi-
cerrados. Os pés de Léo estão crescendo para dentro, num movimento de
eversão, e por isso a fisioterapeuta recomendou o uso de uma bota ortopédica.
Léo também possui alguns problemas de vista, mas ainda não conseguiu um par
de óculos gratuitamente. A estimulação precoce é um assunto central da vida da
família: Léo vai à fisioterapia, hidroterapia, terapia visual, terapia auditiva e a uma
fonoaudióloga cuja especialidade é a linguagem.

4
Para preservar a identidade das interlocutoras, todas as pessoas aqui citadas tiveram seus nomes
alterados.
5
A Aliança de Mães Raras (AMAR) uma organização sem fins lucrativos que desenvolve projetos
voltados para famílias de crianças diagnosticadas com síndromes e doenças raras.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Léo recebe os serviços de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia visual no


hospital Fundação Altino Ventura. As pesquisadoras puderam acompanhar a ele
e sua mãe, Damiana, durante uma das manhãs em que ele receberia esses
serviços. A primeira sessão que presenciaram foi a estimulação de
fonoaudiologia. Ao chegarem na sala de terapia, Soraya, Lays e Fernanda se
apresentaram enquanto pesquisadoras e a fonoaudióloga começou a explicar
um pouco sobre como funcionava a terapia auditiva. Para Valentina, a médica
em questão, o objetivo do seu trabalho consiste em atingir “o grau de
normalidade, não menos que isso” (DCFV, 2016:86)6.

A questão do desenvolvimento normal e natural é central em todas as


terapias e aparece sobre muitos enfoques. Ela é utilizada como uma régua:
quanto mais o bebê se afasta da média, mais problemática é sua situação. Moser
(2000) aponta que esse tipo de discurso em reabilitação promove a
marginalização do corpo deficiente pela noção de que existe uma eficiência a
ser restaurada pelo processo terapêutico.

Essa medicalização faz parte do Modelo Médico da Deficiência, que


identifica lesão e deficiência enquanto sinônimos, e aloja o fenômeno da
deficiência no campo dos fenômenos naturais e biológicos (DINIZ, 2007). Nesse
sentido, o corpo deficiente passa a ser lido como objeto de intervenção e cura
pela biomedicina, que toma como marcador o ideal de normalidade presente no
imaginário ocidental.

Apesar do vetor de normalização percebido na fala de Valência estar


inegavelmente presente na circulação dos bebês pelas terapias, o processo de
estimulação também produz discursos e narrativas que promovem a elaboração
de novos marcadores de desenvolvimento num movimento de “recomposição de
fronteiras” (MORAES e ARENDT, 2013) que permite a criação de um novo tipo
de ideia acerca da normalidade.

6
Para citação explícita dos trechos encontrados nos diários de campo, foi adotado um modelo fixo por
toda a equipe de pesquisa que consiste na apresentação da pesquisadora responsável pela autoria do
diário, seguido pelo ano de produção e a página do Tomo em que o trecho se encontra. Desta forma, a
abreviação “DCFV, 2016:86” refere-se a página 86 do Tomo produzido em 2016 por Fernanda Vieira.
Doravante, os acrônimos utilizados para a produção de Soraya Fleischer e Lays Venancio serão,
respectivamente, DCSF e DCLV. Aproveito esse espaço para, novamente, agradecer às pesquisadoras por
consentirem a leitura e utilização dos dados produzidos.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

A partir do conhecimento cotidiano do corpo de Léo, Valência e Damiana


são capazes de elencar elementos que em outros contextos seriam tomados
como anormais enquanto um tipo de marcador biológico específico, por exemplo,
à síndrome congênita do zika vírus. Ou seja: por mais que a reabilitação imprima
um vetor normativo por sobre o corpo de Léo, o próprio Léo imprime sobre a
reabilitação suas próprias categorias. O que quero dizer é que no encontro
terapêutico entre corpo e reabilitação, os dois são modificados e reinventados.

Estimulação precoce como forma de socialização

Para além das narrativas elaboradas em torno dos conceitos de


deficiência e normalidade, o processo terapêutico dos bebês diagnosticados com
a SCZV também pode ser pensado como um momento de socialização e
construção social da pessoa dos bebês.

Quando as pesquisadoras acompanharam Léo e Damiana em seus


caminhos pela Fundação Altino Ventura, elas passaram pela Sala de
Convivência, um espaço do hospital destinado às mães e bebês que estão
esperando por uma consulta, resultado de algum exame ou para levar seus filhos
às sessões de terapia. As pesquisadoras notaram que é um lugar de muita
intimidade entre as mulheres, um espaço onde podem construir e fortalecer
vínculos: mães trocam informações sobre o desenvolvimento de seus filhos,
indicam novos métodos que funcionaram com elas, discutem o acesso à
benefícios, enfim, socializam. Mas para além da sociabilidade constituída entre
as mães dos bebês na Sala de Convivência, cada bebê está vivendo também
um processo de socialização.

As pesquisadoras observaram que Léo não ficava somente no colo de


Damiana enquanto os dois esperavam pelas consultas. Pelo contrário, o bebê
circulou pelo colo de várias mães: da mesma forma que Léo ia conhecendo
outras mulheres, Damiana ia conhecendo outras crianças. Quando chegou à
sala de convivência, acompanhada das pesquisadoras, Damiana cumprimentou
as outras mães e sabia, pelo nome, quem era cada criança, se estava recebendo
acompanhamento terapêutico ou não, se estava bem ou se passava por alguma
dificuldade, se tinha dado algum “susto”, categoria local utilizada para os
adoecimentos inesperados dos bebês.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Penso que as convivências agenciadas pela terapia façam parte da


construção da identidade desses bebês. Damiana não pergunta como vão as
crianças simplesmente porque ela gosta das mães e por consequência se
preocupa com seus filhos. Ela se preocupa porque conhece cada uma daquelas
crianças, teve elas em seu colo, conviveu com elas de perto. A centralidade está
na identidade da criança e reforçar essa identidade é uma forma de criar a
pessoalidade da criança, humanizá-la, trazê-la para o universo social.

Os processos de atribuição de pessoalidade ao bebê sofreram mudanças


intensas com o advento da tecnologia de ultrassonografia. Para Strathern (apud
Machado, 2013), o que as novas tecnologias de reprodução fazem é “sobrepor
o valor da biologia e antecipar para o momento da criação da individualidade
biológica o processo de pessoalização” (Machado, 2013:103). Ou seja, a
construção da pessoalidade passa a coincidir com a construção do indivíduo
biológico.

Dessa maneira, o processo de desenvolvimento biológico do feto e do


bebê é alinhavado ao processo de construção da pessoa do bebê que passa a
ser vista também como um processo natural, como o resultado inevitável do
desenvolvimento biológico. Seguindo este raciocínio, portanto, se o
desenvolvimento biológico considerado natural não se concretiza, é possível
pensar que haverá consequentemente uma obstrução na construção da
pessoalidade.

Para abordar a questão etnograficamente, Machado (2013) traz uma


situação vivenciada por ele no nascimento prematuro de seu filho: durante o
período em que a criança passou internada na UTI neonatal, ela não era
reconhecida enquanto um indivíduo por parte do hospital. Seu nome, nas fichas
hospitalares, era “Recém-Nascido Sônia”, indicando o nome da mãe e não do
bebê. Toda a equipe de profissionais da UTI o chamava assim, muitas vezes
trocando o artigo escolhido para referenciar-se ao bebê, ora optando pelo
masculino, ora optando pelo feminino, numa evidente tentativa de
despersonalizar aquela criança.

Foi só depois do bebê atingir um peso considerado normal que os


profissionais passaram a chamar-lhe pelo nome, Gabriel. Ou seja, para o
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

hospital, a individualidade de Gabriel só foi reconhecida quando o menino


completou minimamente o ciclo do desenvolvimento, que, no caso da
experiência na UTI neonatal, era, como sugere Machado, medido em gramas.

Para Machado e sua esposa, no entanto, a pessoalidade de Gabriel nunca


foi algo colocado em suspensão, o que indica uma pluralidade de percepções do
que é uma pessoa. Ao mesmo tempo que “a pouca substância do bebê indicava
uma pessoa não formada” (Machado, 2013:101) para o hospital, a pessoalidade
do bebê enquanto ser social já havia sido criada pelos pais.

Percebo uma disputa de percepções da pessoa semelhante no caso de


Léo e de tantas outras crianças conhecidas pelas pesquisadoras. A diversidade
corporal dessas crianças muitas vezes causa reações extremas nas pessoas,
que colocam a humanidade do bebê em suspensão. Muitas mães relataram
terem escutado pessoas chamando seus filhos de “monstros”, “bichos” e “ETs”.

Por ser um espaço reservado para bebês diagnosticados com a síndrome


e suas cuidadoras, os marcadores de “não-humanidade” elaborados pelos
anônimos em suas acusações contra o corpo dessas crianças se dissipam
completamente. Nesses espaços, a imagem das cabeças pequenas, de
mulheres transportando sondas, parapódios, bandagens e outros aparatos
utilizados no cuidado dessas crianças torna-se habitual para quem convive
nesse contexto.

Além disso, é um espaço em que é possível afirmar a identidade social


dos bebês a partir do vínculo que as crianças estabelecem com as outras mães:
Por isso as mães dão tanta ênfase no nome da criança, no que ela gosta ou não
gosta. São formas de afastar a visão desumanizadora de seus filhos e a sala de
convivência é um espaço privilegiado para construir essas identidades.

Considerações Finais

A terapia é um espaço que agencia múltiplas sensações nos bebês:


enquanto circula pelo colo das mães, terapeutas e outras profissionais, o bebê
não está somente tendo sua identidade construída externamente. Ele circula por
todos esses espaços com seu corpo, sente os toques, os cheiros, vai construindo
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

sua própria rede de convivência, vai reconhecendo os elementos que fazem


parte de seu mundo.

Pensar na estimulação precoce, portanto, não envolve pensar somente a


relação profissional-paciente ou pensar nos efeitos que as terapias terão no
desenvolvimento da criança. O processo terapêutico não acontece dissociado
da vida e receber uma terapia não consiste simplesmente em deslocar-se até
um espaço e receber atendimento profissional; o tratamento não se encerra no
tratamento, ele não é algo fechado, é aberto: no processo terapêutico vão sendo
produzidas identidades, sociabilidades, afetos e espaços.

Referências Bibliográficas

BRASIL, 2015a. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). “Protocolo de


Vigilância e Resposta à Ocorrência de Microcefalia Relacionada à Infecção pelo
Vírus Zika”

_______, 2015b. Ministério da Saúde. “Plano Nacional de Enfrentamento à


Microcefalia”

_______, 2016. Ministério da Saúde. “Diretrizes de estimulação precoce:


crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor
decorrente de microcefalia.”

_______, 2017. Secretaria de Vigilância em Saúde. “Boletim Epidemiológico:


Monitoramento integrado de alterações no crescimento e desenvolvimento
relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas, até a
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Janeiro, Editora Civilização Brasileira.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

FEITOSA, Ian Mikardo et al, 2016. “Aspectos importantes da Síndrome da Zika


Congênita para o pediatra e o neonatologista”, Boletim Científico de Pediatria -
Vol. 5, N° 3.
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MACHADO, Igor José de Renó. 2013. “O inverso do embrião: reflexões sobre a
substancialidade da pessoa em bebês prematuros” In: Mana volume 19, nº1, Rio
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feita a nossa (d)eficiência”. In: universitas humanística/número 76/julho-
dezembro/ pp 327-34.
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Disability. Science as Culture, 9 (2), 201-240.
PORTO, Rozeli; MOURA, Patricia Rosalba. 2017. “O corpo marcado: A
construção do discurso midiático sobre Zika Vírus e Microcefalia”, Cadernos de
Gênero e Diversidade, Volume 03, número 02 - Mai. – Ago.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Autismo como deficiência psicossocial – contribuições da antropologia


Clarice Rios1
Resumo: O autismo é tradicionalmente definido a partir da perspectiva do déficit.
Segundo o DSM-V, o manual diagnóstico Norte-Americano que é tido como
referência no campo da psiquiatria, o autista apresentaria déficits na
comunicação e na interação social. As teorias psicológicas e neuropsicológicas
também focam nos déficits – déficit na teoria da mente, déficit no sistema de
coerência central, déficit na função executiva, déficit no processamento de
informação afetiva, etc. Nesse trabalho, tomo como ponto de partida o modelo
social da deficiência, ou seja, a noção de deficiência como resultado de
interações negativas entre uma pessoa com um impedimento (impairment) e o
seu ambiente social, para refletir sobre a natureza dessa relação no que
concerne ao autismo. No Brasil, após a ratificação da Convenção sobre os
Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU como emenda constitucional em
2008, e da promulgação da Lei 12.764 (também conhecida como Lei Berenice
Pianna ou Lei do Autismo), o autismo passa a ser considerado uma deficiência
psicossocial. Entretanto, qual seria o impedimento (impairment) por trás do
autismo como deficiência psicossocial? Ademais, sendo a deficiência uma
categoria profundamente relacional, seria possível identificar um único tipo de
impedimento (impairment) na base desse tipo de deficiência? O trabalho busca
nas conceptualizações antropológicas acerca de linguagem, cultura e sociedade
a chave para uma compreensão do autismo mais relacional e contingente, e
menos centrada na perspectiva do déficit.

Palavras-chave: autismo – deficiência – antropologia

Quando, a partir do final de 2012, o autismo passa a ser considerado por


lei como uma deficiência, torna-se claro também que a categoria deficiência é
não apenas um termo controverso no Brasil, especialmente entre profissionais
da rede de saúde mental, mas também ainda pouco compreendido em sua
história e diferentes acepções políticas. A despeito de um crescente ativismo
político por parte das pessoas com deficiência, que ganhou ainda mais força com

1 Professora substituta no Departamento de Psicologia Social da UFRJ


Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU


como emenda constitucional em 2008, e de todo um campo de estudos focado
na questão da deficiência, ela é ainda predominantemente percebida a partir da
perspectiva do déficit. Os transtornos do espectro autista (ou simplesmente, o
autismo) não são exceção nesse sentido. Segundo o DSM-V, o manual
diagnóstico Norte-Americano que é tido como referência no campo da
psiquiatria, o autista apresentaria déficits na comunicação e na interação social.
Além desses, um terceiro eixo de sintomas se refere a comportamentos
restritivos e repetitivos. As teorias psicológicas e neuropsicológicas também
focam nos déficits – falam de déficit na teoria da mente, déficit no sistema de
coerência central, déficit na função executiva, déficit no processamento de
informação afetiva, entre outros, como elementos centrais e definidores dessa
condição.
É justamente com o intuito de desafiar um olhar excessivamente
medicalizado e individualista, que as pessoas com deficiência vêm se
organizando politicamente nas últimas décadas. Ao invés do déficit biológico,
propõe-se mudar o foco para a opressão social e as barreiras ambientais que
incidem sobre as pessoas com deficiência. No lugar de uma abordagem
exclusivamente médica, propõe-se o chamado modelo social da deficiência, ou
seja, que a deficiência resultaria de interações negativas entre uma pessoa com
um impedimento (impairment) e o seu ambiente social. Entretanto, qual seria o
impedimento (impairment) por trás do autismo como deficiência? Ademais se,
como propõem Ginsburg e Rapp (2013), a deficiência é uma categoria
profundamente relacional, seria possível identificar um único tipo de
impedimento (impairment) na base desse tipo de deficiência? Por fim, visto que
o autismo é tido como uma deficiência psicossocial, qual (ou quais) seria a
contribuição da antropologia no sentido de compreender a natureza do
impedimento (impairment) que caracteriza o autismo? Nesse trabalho, busco nas
conceptualizações antropológicas acerca de linguagem, cultura e sociedade a
chave para uma compreensão do autismo mais relacional e contingente, e
menos centrada na perspectiva do déficit.
A proximidade entre autismo e antropologia já foi sinalizada por Elinor
Ochs e seu time de pesquisadores nos trabalhos publicados a partir de sua
pesquisa etnográfica com crianças e adolescentes autistas nos Estados Unidos.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Segundo Ochs, porque dificuldades com a sociabilidade “são os sintomas que


definem o autismo e porque os antropólogos deixaram de analisar esse
transtorno em relação à constituição da sociedade, o autismo apresenta uma
última e formidável fronteira para o campo da antropologia.” (Ochs e Solomon,
2007) Notem que ao trazer o autismo para o coração da antropologia enquanto
campo de saber, Ochs evita o lugar comum antropológico das comparações
transculturais para se debruçar sobre a própria natureza dos modelos de
sociabilidade e comunicação humana que orientam a teoria antropológica. Por
ser uma especialista no campo da antropologia linguística, em sua pesquisa
Ochs já parte da premissa de que a linguagem é por si só uma prática social.
Segundo ela, o uso e a interpretação da linguagem são essencialmente “sociais”.
Afinal, a competência linguística não se restringe ao conhecimento tácito de
sistemas gramaticais que independem de contexto. Ela inclui também
conhecimento sensível ao contexto da linguagem como prática, o que o
antropólogo Dell Hymes chama de “competência comunicativa”.
Além disso, Ochs (2004) resgata diferentes abordagens teóricas acerca
de “sociedade” e “cultura”, distinguindo entre modelos mais abstratos e
globalizantes, orientados para sistemas relativamente estáveis e amplamente
compartilhados de símbolos e regras de conduta; e modelos menos
globalizantes, mais focados nas estratégias formuladas por atores sociais para
interpretar e participar de interações sociais específicas, ainda que
convencionais. Autores como Durkheim, Parsons e Radcliffe-Brown por exemplo
estariam no primeiro caso; e no outro estariam Goffman, Bourdieu, Garfinkel,
Berger e Luckmann, entre outros.
A partir dessa distinção e de suas observações de campo de crianças com
graus diferentes de autismo, Ochs pôde complexificar as relações entre o que
se poderia chamar de predisposições sociais inatas de cada indivíduo e práticas
de socialização diversas. Ela observa que o conhecimento e as habilidades
necessárias para a socialização de um indivíduo não provêm apenas de
interações interpessoais, mas também de conhecimento historicamente
enraizado e de práticas socialmente organizadas. E se autistas tendem a ter
mais dificuldade na percepção e interpretação dos sinais sutis e potencialmente
ambíguos que compõem a interação face a face, há por outro lado uma clara
preferência entre eles por esquemas sócio-culturais mais estáveis e previsíveis,
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

visto que estes são uma forma de acesso a formas de sociabilidade mais
explícitas e estruturadas. Ao contrário do que se pensou por muito tempo, o
autismo não se caracteriza simplesmente por uma profunda indiferença ao
social, o dito isolamento autista. Afinal, não seria o interesse intenso e obsessivo
por cronogramas, mapas, números, entre outras coisas, comumente observado
entre autistas, também uma forma de conexão com o mundo social?
Embora as relações entre conhecimento e habilidades interpessoais e
sócio-culturais sejam complexas, sendo difícil traçar fronteiras específicas entre
um domínio e outro, é fácil notar como essa observação desestabiliza teorias
psicológicas a respeito de um suposto déficit na teoria da mente como uma das
características centrais do autismo. O termo “teoria da mente” refere-se à
capacidade de atribuir estados mentais a outras pessoas e predizer o
comportamento das mesmas em função dessas atribuições. Segundo as teorias
de desenvolvimento infantil, toda criança eventualmente desenvolve essa
capacidade ao longo de seu processo de socialização, mas a aquisição dessa
habilidade estaria comprometida no autismo. Ainda que a palavra “teoria” possa
remeter a algum processo intelectual abstrato, nesse contexto ela refere-se a um
sistema de inferências incorporado, relacionado ao senso comum e adquirido ao
longo de repetidas interações durante o processo de socialização primária.
Entretanto, mesmo que existam boas razões para associar essa suposta falha
na teoria da mente a distúrbios sensoriais e falhas no sistema de processamento
de informações em autistas, uma abordagem centrada unicamente em déficits
individuais e inatos, acabar por ignorar também a possibilidade de que existam
outras formas de aprendizado social, conforme exposto acima. Dito de outra
forma, não é apenas a criança que formula, unicamente por intermédio de suas
próprias habilidades cognitivas, uma teoria a respeito da mente dos outros. É
também o ambiente que lhe oferece os esquemas sociais e culturais através dos
quais sua sociabilidade pode ser desenvolvida.
Em um trabalho apresentado num workshop que organizamos juntas, e
que no momento está no processo de se transformar em capítulo de livro, a
antropóloga e psicóloga Elizabeth Fein traz alguns exemplos contundentes a
esse respeito, retirados de sua pesquisa de doutorado nos Estados Unidos. Fein
conta por exemplo, a história de Eric, um menino de onze anos, obcecado por
Vila Sésamo, entre outros programas de TV e filmes. Quando sai um DVD novo,
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

se é de um filme que ele gostou, ele o assiste dezenas de vezes, até memorizar
todas as falas. Pergunta a seu pai sobre o significado de expressões faciais dos
personagens, ou sobre gírias que ele não conhece ainda. Eric, como muitos
autistas, tem dificuldade no processamento auditivo, levando um tempo para
compreender o que escuta. Mas se isso lhe traz problemas especialmente na
interação face a face, o aparelho de DVD ajuda-o a minimizar essas dificuldades.
Fazendo as vezes de um professor paciente, o DVD acaba por ajudá-lo a
organizar palavras, frases, expressões faciais e gírias em um todo significativo.
Eric não é o único autista a fazer esse tipo de coisa. Um caso semelhante
aparece em um livro, já traduzido para o Português, e que virou também um
filme. Trata-se do Vida, animada!, que conta a vida de Owen Suskind. Owen teria
sofrido do que se costuma chamar de “autismo regressivo” – até os três anos de
idade era uma criança normal, alegre e brincalhona, e depois de um rápido
processo de regressão, cessou qualquer tipo de comunicação verbal. Um dia,
depois de anos sem se comunicar, Owen reproduziu uma fala do filme A
Pequena Sereia. Durante todos os anos em que permaneceu em silêncio, Owen
assistia obsessivamente as animações da Disney e foi através dos personagens
e tramas narrativas dessas animações que ele retomou contato com o mundo a
sua volta. Seus pais passaram então a se travestir desses personagens para se
comunicar com o filho autista. Até hoje, personagens e histórias da Disney
permanecem como uma forte referência para Owen, que aparece no filme já
adulto, levando uma vida relativamente independente, apesar da presença e
ajuda frequente de diversos profissionais em sua rotina diária.
A paixão pela repetição, também transformada em sintoma em manuais
psiquiátricos, seria na verdade, segundo Fein como uma forma específica de
envolvimento com a cultura. Fein resgata um argumento desenvolvido por
Geertz acerca da profunda dependência humana em relação a cultura para
embasar seu argumento. Segundo Geertz, “a cultura é melhor vista não como
complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos,
tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas como um
conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (...) –
para governar o comportamento.” (1989 [1973]: 32 grifo meu). Geertz prossegue
argumentando que “o homem é precisamente o animal mais desesperadamente
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais


programas culturais, para ordenar seu comportamento.” (33)
Fein por sua vez, argumenta que os autistas seriam pessoas que
dependem mais ainda da cultura para completá-los, pessoas para as quais a
organização e o planejamento, acontecem menos internamente, “dentro do
cérebro”, e mais entre o cérebro e o mundo. Nesse sentido, os autistas seriam
profundamente afetados pelos padrões, os contornos e o suporte material e
simbólico oferecido pelo meio cultural em que vivem. Aqui podemos listar não
apenas filmes e animações, mas também jogos onde histórias e personagens
são descritos em detalhes (por exemplo, Pokemon e Dungeon and Dragon),
assim como mapas, cronogramas e tabelas.
O antropólogo Brendan Hart inclui nessa categoria também as próprias
rotinas criadas através de terapias comportamentais, como o método ABA.
Segundo ele, essas terapias não servem exclusivamente para erradicar
idiossincrasias e submeter os autistas a sociabilidades normativas. Pelo
contrário, elas podem lhes dar acesso ao que Hart chama de um “ambiente
protético” facilitador da inclusão e sociabilização do autista em uma variedade
de ocasiões, sem eliminar comportamentos estranhos, comunicação atípica
entre outras coisas. Segundo Hart, terapias comportamentais podem até almejar
a máxima independência, autonomia e sociabilidade (ideais de subjetividade
moderna). Mas isso é geralmente atingido através de arranjos híbridos que
envolvem terapeutas e familiares que estimulam certos comportamentos na
criança, ou simplesmente traduzem suas expressões verbais e comportamentos
(Hart, 2014). A criança certamente aprende a responder as pequenas deixas e
dicas dadas pelos pais ou terapeutas, para se comportar desta ou daquela
maneira. Mas ao induzir certos comportamentos na criança, os pais também
aprendem a responder as deixas oferecidas pela própria criança. Hart relata por
exemplo, o caso de Robert, um rapaz autista de 16 anos que adora quando as
pessoas tossem, tendo um prazer especial em sentir com sua mão as vibrações
na garganta da pessoa que tosse. Assim, quando certa vez seus pais
apresentaram Robert a um de seus amigos, recorreram a um antigo truque para
quebrar o gelo depois das apresentações iniciais – perguntaram a Robert se ele
achava que esse novo amigo podia tossir, induzindo-o assim a pedir que o novo
amigo tossisse. O uso de estratégias de indução de comportamento como esta
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

(em inglês, prompting) certamente está na base das técnicas comportamentais


utilizadas pelo ABA, mas como se pode observar, elas podem ser utilizadas de
forma a tomar os interesses e comportamentos peculiares dos autistas não como
algo a ser suprimido, mas sim encorajado.
Um outro exemplo, ainda mais inusitado, vem da antropóloga e escritora
Dawn Prince, cuja belíssima autobiografia conta a história de como os gorilas a
ajudaram a sair do isolamento do autismo. Dawn, que também participou de
nosso workshop internacional, aprendeu a compreender e decodificar
comportamentos e interações sociais através da observação de gorilas no
zoológico de Seattle. Dawn passava longas horas diariamente sentada diante a
jaula dos gorilas, e simplesmente os observava em suas interações cotidianas.
Em suas palavras, “encontrei uma conexão instantânea com os gorilas ali, eles
me re-ensinaram a linguagem da plenitude, eles me ensinaram sua própria
língua, um sabor diferente no falar e no saber, e com a lentidão do seu modo de
contar histórias eles me trouxeram uma nova vida, uma vida com um final mais
feliz.” (Prince, 2010). Tive a oportunidade de experimentar um pouco de seu
modo de perceber o mundo e as pessoas que nele habitam e interagem,
sentando ao seu lado durante os dois dias de apresentações e debates de nosso
pequeno workshop. Dawn me falava dos acadêmicos ali reunidos como
primatas, cujas interações e comportamentos não eram muito diferentes das que
observou entre gorilas - seja no modo como os machos-alfa ali presentes
estabeleciam sua dominância em relação a outros membros do grupo,
especialmente as fêmeas; ou mesmo na forma como os diversos membros do
grupo que se formava ali tentava se agarrar às suas formas usuais de conhecer
e decodificar o mundo ao se defrontar com as diferenças culturais e intelectuais
que emergiam ao longo do debate.
Em minha própria pesquisa de campo, venho explorando as
especificidades da sociabilidade autista ao focar papel dos pais e cuidadores
como “tradutores radicais”, para usar um termo cunhado por Hart (2014), entre
seus filhos autistas e os mundos sociais locais nos quais eles habitam e circulam.
Durante minha pesquisa em uma associação de pais num bairro popular da
cidade do Rio de Janeiro, pude observar como muitos pais acabam por
desenvolver uma habilidade quase que etnográfica para ler o mundo à sua volta
de acordo com as necessidades e peculiaridades de seus filhos autistas. Essa
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

habilidade é um modo de atenção, mas também uma atividade de tradução –


esses pais transformam seu conhecimento tácito sobre regras de interação,
modos de socialização e de circulação por seus universos locais, em
conhecimento explícito, fatorado e decodificado, de forma a torná-lo o menos
ambíguo e impreciso para seus filhos. Eles aprendem também a organizar sua
rotina e a de seus filhos de forma estruturada e sistemática, tornando-se assim
eles também, porta-vozes de um certo modo de estar e conhecer o mundo mais
próximo da experiência autista. De certa forma, o autismo deixa de ser um
atributo exclusivo dos filhos e passa a ser uma experiência compartilhada com
pais e cuidadores.
Como espero ter demonstrado, todas essas pesquisas não só recusam
uma concepção do autismo individualizada e centrada no déficit, mas também
iluminam o caráter relacional da deficiência no caso do autismo, apontando com
isso, caminhos criativos e inusitados para a reconfiguração dessa experiência.
Se, como propõe Ochs, “o autismo apresenta uma última e formidável fronteira
para o campo da antropologia”, é no diálogo com o campo de estudos sobre a
deficiência que essa fronteira pode começar a ser explorada.

Bibliografia:

GEERTZ, Clifford. 1989 [1973]. “O impacto do conceito de cultura sobre o


conceito de homem”. In: Geertz, Clifford. A interpretação das Culturas. LTC –
Livros Técnicos e Científicos Editora.

GINSBURG, Faye e Rayna Rapp. 2013. “Disability Worlds”. Annu. Rev.


Anthropol., 42: 53-68.

HART, Brendan. 2014. “Autism parents & neurodiversity: Radical translation, joint
embodiment and the prosthetic environment”. BioSocieties, 9(3): 284-303.

OCHS, Elinor; Tamar Kremer-Sadlik, Karen Gainer Sirota e Olga Solomon. 2004.
“Autism and the social world: an anthropological perspective”. Discourse Studies,
6(2): 147-183.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

OCHS, Elinor e Olga Solomon. 2007. “Practical Logic and Autism.” In: Conerly
Casey and Robert B. Edgerton (eds.) A Companion do Psychological
Anthropology. Malden, Oxford & Carlton: Wiley-Blackwell. Pp. 140-167.

PRINCE, Dawn. 2010. “Cultural Commentary: The Silence Between: An


Autoethnographic Examination of the Language Prejudice and its Impact on the
Assessment of Autistic and Animal Intelligence.” Disability Studies Quarterly,
30(1).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Crônicas invisíveis: notas sobre incapacidades em demandas


jurídicas de cirurgias e BPC
Leonardo do Amaral Pedrete1

Resumo

A partir de uma pesquisa etnográfica que pretende acompanhar as


trajetórias e experiências de mobilização jurídica por parte de habitantes de
Santa Maria-RS que sofrem de doenças crônicas incapacitantes com sintomas
pouco visíveis, o trabalho discute a judicialização da saúde (ou da seguridade
social) em demandas de cirurgias e de Benefício de Prestação Continuada (BPC)
por deficiência ou incapacidade. Mais especificamente, com base em achados
parciais da análise de processos judiciais e inquéritos civis públicos, busca-se
compreender como a configuração da chamada “incapacidade para o trabalho”
(ou “para prover o próprio sustento”) aparece, por um lado, como uma chave de
acesso a direitos e benefícios. Por outro, coloca-se como uma experiência
peculiar de sofrimento: afinal, como tornar visível ao Estado, em suas múltiplas
mediações, o sofrimento por expressões de incapacidade pouco visíveis? Ao
articular duas bibliografias que partilham reflexões aproximáveis acerca das
práticas e tecnologias de cuidado e acompanhamento, das mediações
profissionais e das instituições estatais (as literaturas antropológicas sobre a
judicialização da saúde, tradicionalmente focada no acesso a medicamentos, e
sobre BPC), espera-se chamar a atenção para o fato de que as diferentes formas
da (aqui chamada) justicialização da seguridade social envolvem múltiplas
controvérsias, moralidades, experiências jurídicas, sofrimentos e incapacidades.

PALAVRAS-CHAVE: Judicialização; Justicialização; Saúde;


Incapacidade; Cronicidade.

I – Experiências e perspectivas múltiplas

“portadora de severa e incapacitante deformidade artrófica de


joelho esquerdo”; “a patologia é de caráter degenerativo, evolutivo, com
agravamento inexorável das condições de marcha e piora da qualidade
de vida (...) não há urgência, mas não pode ficar aguardando
indefinidamente pelo agendamento do HUSM (...) O tratamento indicado
é cirúrgico, única forma de devolver amplitude de movimentos do joelho

1 Doutorando em Antropologia Social no PPGAS/UFRGS e sociólogo da Defensoria Pública da


União em Santa Maria-RS. Agradeço ao Conselho Superior da DPU, pelo apoio recebido para
fins da apresentação deste trabalho.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

e alívio da dor da paciente, com artroplastia da articulação do joelho


esquerdo” (Perícia médica, sobre Aida, demandante de cirurgia).
“(...) ingressar em juízo postulando a realização da cirurgia não
implica 'burlar' o andamento da fila de espera2, já que, na prática, todos
os pacientes da fila eletiva estão sendo igualmente prejudicados (...) Na
situação exposta - comprovada necessidade do procedimento e a e a
completa paralisação do serviço público buscado -, (...) Negar ao
cidadão o atendimento de que necessita, sem que haja uma expectativa
real de prestação do serviço, é o mesmo que fechar os olhos para a
realidade.” (Sentença proferida no processo de Aida)
“incapacitado para o seu labor habitual e declarado, pois há
limitação funcional ao exame físico especializado (...) apresenta
incapacidade para os afazeres que exijam caminhar ou realizar esforços
intensos. Poderia fazer trabalhos burocráticos” (Perícia médica, sobre
Hélio, demandante de BPC)
“Para efeitos de concessão do benefício assistencial, a
deficiência/incapacidade deve ser avaliada pelo parâmetro da
possibilidade do beneficiário prover o seu próprio sustento ou tê-lo
provido por sua família (...) a deficiência é caracterizada como fenômeno
multidimensional que determina a análise das condições de inserção
social da pessoa. (...) caracterizado o impedimento de longo prazo, eis
que as condições socioeconômicas da parte autora não lhe possibilitaram
o desenvolvimento intelectual (...) e capacitação para um ofício
compatível com suas limitações decorrentes da incapacidade” (Sentença
judicial que estabeleceu o benefício de Hélio)
“A 'deficiência' (...) é um conceito jurídico (...) Não se trata de
conceito médico. (...) inexistem nos autos elementos que qualifiquem a
incapacidade detectada, de tal sorte a configurar a obstrução à
participação plena e efetiva em sociedade, como exige a lei: a uma, pois
a perícia médica não abordou a temática; a duas, pois inexistiu, ao longo
da instrução, elementos que permitissem a avaliação social da deficiência
(...) não se faz presente o requisito da pessoa com deficiência” (Voto
ratificado por acórdão judicial que cassou o benefício de Hélio).

Em fevereiro de 2013, Hélio, servente de pedreiro e agricultor, de 22 anos,


morador de Júlio de Castilhos, foi vítima de tentativa de homicídio, no mesmo
evento que vitimou fatalmente sua então companheira, Sônia. Como sequelas
físicas, o servente apresenta lesões nos tendões da perna direita, motivo pelo
qual se locomovia com auxílio de muletas e aguardava por cirurgia. Em março
do mesmo ano, procurou o INSS para requerer o benefício assistencial de
prestação continuada. Porém, o pedido administrativo foi negado, sob alegação
de que Hélio não está incapacitado para o trabalho e para a vida independente
a longo prazo. Em junho de 2013, Hélio procurou a Defensoria Pública da União

2 Cabe esclarecer que o Ministério Público Federal em Santa Maria instaurou Inquérito Civil
Público destinado à “verificação e acompanhamento sobre a longa espera na fila para a
realização de cirurgias eletivas na especialidade de traumatologia/ortopedia no HUSM” (BRASIL,
2013). A partir de tal inquérito, tive acesso ao processo de Aida.
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(DPU), buscando requerer judicialmente o Benefício de Prestação Continuada


(BPC). Embora concedido após decisão em primeira instância, o benefício foi
cassado em segunda instância.
Aida – uma senhora aposentada, de 82 anos, portadora de gonartrose
desde 2009 – necessitava de uma cirurgia de artroplastia total de joelho
esquerdo. Após receber do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) a
resposta de que não haveria previsão de sua realização, Aida procurou a DPU.
Após, obteve, de médico do HUSM, atestado em que constava não apenas a
declaração de sua incapacidade como motivo para o procedimento cirúrgico,
como também a justificativa de risco de agravamento do quadro clínico e mesmo
de óbito, em razão de possíveis complicações advindas da imobilidade (como
tromboses e acidentes cardiovasculares). Com o ajuizamento da ação, a perícia
médica judicial que se seguiu pontuou a piora na qualidade de vida e a
impossibilidade de Aida aguardar indefinidamente pelo procedimento, ainda que
seu caso não configurasse uma urgência, do ponto de vista médico. Após oficiar
hospital privado e o HUSM, sem sucesso na viabilização da cirurgia demandada,
a juíza federal reconheceu a necessidade do procedimento e determinou que o
poder público custeasse a cirurgia, finalmente realizada dois anos após o
encaminhamento médico original.
Começo propositadamente o texto com trechos de duas histórias que
revelam mais pontos em comum do que apenas o fato de apresentarem laudos
que versam sobre incapacidade. Hélio e Aida vivem em condições de baixíssima
renda na região central do Rio Grande do Sul. Pessoas cujas condições crônicas
de saúde limitaram suas atividades habituais e cuja incapacidade resulta de
sintomas pouco visíveis. Hélio e Aida se submeteram a avaliação de tais
condições crônicas e incapacitantes por parte de especialistas médicos e
jurídicos. Tiveram sua vulnerabilidade social, incapacidade ou urgência
questionadas pelo próprio Estado – categorias que, ao recorrerem ao sistema de
justiça, se mostraram relevantes na reivindicação e na decisão sobre direitos.
A partir de uma pesquisa etnográfica que pretende acompanhar as
trajetórias e experiências de mobilização jurídica que sofrem de doenças
crônicas incapacitantes com sintomas pouco visíveis, o trabalho discute
aspectos da judicialização da saúde (ou da seguridade social) em demandas de
cirurgias e de Benefício de Prestação Continuada (BPC) por deficiência ou
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

incapacidade. Mais especificamente, com base em achados parciais da análise


de processos judiciais e inquéritos civis públicos, busca-se compreender como
a configuração da incapacidade3 (para o trabalho, para prover o próprio sustento
ou para atividades habituais) aparece, por um lado, como uma chave de acesso
a direitos e benefícios. Por outro, coloca-se como uma experiência peculiar de
sofrimento: afinal, como tornar visível ao Estado, em suas múltiplas mediações,
o sofrimento por expressões de incapacidade pouco visíveis?
A produção de cientistas sociais brasileiros sobre o BPC tem avaliado
sobretudo os dilemas da implementação de uma das maiores políticas brasileiras
de transferência de renda, sobretudo no que se refere à falta de consenso sobre
o grau e duração de restrições a habilidades e funcionalidades para que se
considere deficiência (MEDEIROS; DINIZ; SQUINCA, 2006, 2007a, 2007b;
PENALVA; DINIZ; MEDEIROS, 2010; SANTOS, W., 2006; 2009; SANTOS;
DINIZ; PEREIRA, 2009; SQUINCA, 2007; DINIZ; SILVA, 2012). Especialmente
pertinente é a etnografia que acompanhou a judicialização do acesso aos
benefícios previdenciários no campo da Defensoria Pública da União (em Porto
Alegre/RS), na qual Liziane Matos (2015) chamou a atenção para as diferentes
versões e definições de doença, incapacidade, perícia, direitos e Estado que
circulam nos debates em torno da perícia médica previdenciária.
Uma série de antropólogos brasileiros tematizaram a judicialização da
saúde, analisando sobretudo casos de medicamentos (GERTNER, 2010; BIEHL,
2013; FLORES, 2015; GRUDZINSKI, 2013; BIEHL; PETRYNA; AMON;
PICON; 2009). A propósito do acesso a medicamentos pelo judiciário, BIEHL e
PETRYNA (2016) assinalam a existência de um sistema improvisado,
descentralizado e disfuncional de saúde pública, na ausência de um modelo
biopolítico de governança de cima pra baixo (BIEHL, 2013:422). Em um cenário
de incertezas e inseguranças em torno da judicialização da saúde4, vários
agentes jurídicos demandam que o Estado aja biopoliticamente (:432).
Ao articular duas bibliografias que partilham reflexões aproximáveis
acerca das práticas e tecnologias de cuidado e acompanhamento, das

3 Para uma abordagem da chamada incapacidade para os atos da vida civil, ver FIETZ, 2015.
4 Recentemente, por outro lado, a etnografia de Lucas Freire (2017), acerca da Câmara de
Resolução de Litígios de Saúde no Rio de Janeiro, mostra como a judicialização da saúde pode
funcionar, ao mesmo tempo, como uma razão para a criação de instâncias administrativas e
forma de ameaça ou pressão nos diálogos interinstitucionais de resolução extrajudicial.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

mediações profissionais e das instituições estatais - as literaturas antropológicas


sobre a judicialização da saúde, tradicionalmente focada no acesso a
medicamentos, e sobre BPC –, o presente texto espera chamar a atenção para
o fato de que as diferentes formas da (aqui chamada) justicialização da
seguridade social envolvem múltiplas controvérsias, moralidades, experiências
jurídicas, sofrimentos e incapacidades. Ao mesmo tempo, embora as histórias
de Aida e Hélio possuam os aspectos comuns já referidos, as invoco aqui, não
para ilustrar uma eventual apreensão generalizante de categorias universais,
mas para amplificar5 questões ligadas à indeterminação e multiplicidade das
trajetórias de determinadas demandas jurídicas.

II - Crônicas, incapacidades e sofrimentos múltiplos

Tanto em nível global (MANDERSON; SMITH-MORRIS, 2010), quanto na


realidade brasileira (BRASIL, 2011) observa-se uma clara transição
epidemiológica: nas últimas décadas, as causas mais frequentes de mortes e
incapacidades passaram a ser atribuídas a condições crônicas de saúde. Nesse
contexto, enfermidades crônicas podem causar diferentes graus de restrições à
capacidade de realizar atividades habituais, como a dificuldade de locomoção
presente nas histórias de Hélio e Aida. Todavia, como ressalta a literatura
antropológica especializada (MANDERSON; SMITH-MORRIS, 2010), as
condições crônicas de saúde são sempre fluidas e variáveis, de modo que
análises que se limitam ao jogo de forças sociais mais amplas correm o risco de
homogeneizar diferentes formas de sofrimento. Com efeito, os dramas pessoais
que envolvem o surgimento e o acompanhamento das incapacidades de Hélio e
Aida nos remetem ao alerta da literatura, no sentido de que as incertezas e
complexidades jurídicas e morais6 das enfermidades crônicas são intensificadas
por desigualdades estruturais (idem: viii).
Afora o fato de que a definição sobre o que é curável e o que é crônico
pode ser amplamente variável, de acordo com condições locais, é possível

5 Me inspiro aqui em Kohn (2013), para quem o engajamento empírico via imersão etnográfica
tem o sentido de visibilizar e amplificar problemas gerais.
6 Nesse universo, vale ressaltar que elas não apenas são dimensões indivisíveis (KLEINMAN;
KLEINMAN, 1991), mas compõem o núcleo da problemática das experiências jurídicas aqui
analisadas (FASSIN, 2013; MOL, 2008).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

verificar categorias da experiência comuns a diferentes classificações médicas


(KENDALL; HILL, 2010:12). Entretanto, o paradigma biomédico não é o único a
polarizar categoriais que tendem a reduzir a multiplicidade e a continuidade das
experiências individuais: o mundo jurídico também o faz. Afinal, em geral,
tribunais (ao separarem varas previdenciárias e varas cíveis, p. ex.) e demais
instituições jurídicas tendem a isolar o tratamento das causas cíveis que tratam
do acesso à saúde daquelas, que, mesmo motivadas por questões de saúde,
versam sobre questões relacionadas à assistência e à previdência social. Porém,
como relatado, Hélio demandara ao Estado tanto a realização de uma cirurgia
quanto o BPC. Embora diagnosticada com uma doença crônica não
transmissível (DCNT), Aida corria o risco de sofrer enfermidades agudas em
razão da condição crônica por que passava.7 Nos dois casos, observam-se
experiências de sofrimento por enfermidades crônicas8 pouco visíveis ao longo
da mobilização do sistema de justiça.
A antropologia da saúde já há algum tempo reconhece que as doenças
crônicas estão incorporadas no fluxo local da experiência moral e nas lutas
individuais em torno de questões de equidade, justiça e cuidado (KLEINMAN;
HALL-CLIFFORD; 2010: 247).Pessoas que vivem com condições crônicas são
obrigadas a equilibrar suas concepções de autonomia em sua dependência9 com
médicos e todos os terceiros envolvidos no cuidado e acompanhamento da
pessoa enferma (:249) – os quais incluem cada vez mais profissionais jurídicos.
Doenças crônicas que causam grandes perdas de produtividade ainda não

7 Como afirma Smith-Morris (2010:25), a cronicidade pode ser abordada como o processo de
identificação a que qualquer paciente (independente de diagnóstico), pode passar, à medida que
ele se passe a considerar habitado pela sua doença. Tal condição levanta uma série de questões
entrelaçadas no contexto de nossa etnografia, sobretudo no que se refere a temas como
invisibilidade, grupos específicos de pacientes, variabilidade de sintomas, dificuldade de precisão
do diagnóstico, comorbidade e dificuldade no acesso a tratamento.
8 Uso aqui a expressão enfermidade crônica, e não doença crônica, exatamente para colocar
em evidência que a experiência de sofrimento não pode ser tomada como dada por diagnósticos
médicos e institutos jurídicos. Para fugir ao risco de ignorar a continuidade da experiência
humana em prol de categorizações não antropológicas, opto por considerar histórias de pessoas
sem me ater a limitações impostas por diagnósticos médicos ou de matérias jurídicas. Assim,
independente de laudos médicos (com suas previsões de urgência, risco de morte, possibilidade
ou tempo de recuperação) ou mesmo das demandas identificadas por instituições jurídicas
(versando ou não sobre a chamada “qualidade de segurado” nos casos concretos), tenciono me
ocupar aqui com um recorte eminentemente antropológico.
9 Como aponta Matos (2017: 123), “ser ou estar inválido, e receber esta classificação, não se
constitui em algo desejável ou visto como positivo. Perder o valor enquanto força de trabalho e
atividade, temporária ou permanentemente, seria um peso negativo que superaria o valor do
benefício e o simples recebimento deste”.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

recebem a mesma atenção em termos de saúde global, em comparação com


infecções como HIV e tuberculose. Prestar atenção à cronicidade implica
tematizar não apenas a qualidade do cuidado (:250), mas também a reabilitação
e a prevenção de impedimentos graves (FRANK, BAUM, LAW; 2010) –
dimensões frequentemente negligenciadas nas discussões em torno da
judicialização da saúde (BIEHL, 2013) – bem como enseja uma questão
biopolítica por excelência10: “que doenças ou que pessoas ou que prestações
sanitárias serão atendidas, e em que extensão e profundidade, e quais não
receberão recursos, ao menos em um determinado momento histórico?” (:459).
Todos esses dilemas se tornam ainda mais complexos quando, como nos
casos de Hélio e Aida, a performance da incapacidade causada por
enfermidades crônicas se torna uma chave de acesso a direitos e benefícios.
Embora isso se torne mais evidente na demanda de Hélio, visto que o BPC tem
uma de suas modalidades condicionada legalmente pela comprovação da
incapacidade de provimento do próprio sustento, também a trajetória judicial de
Aida mostra que, ao lado das categorias “urgência” e “risco de óbito”, a afirmação
especializada da incapacidade condicionou não apenas o deferimento do
pedido, mas o prazo estabelecido para o cumprimento. Também se pode dizer
que o que está em jogo nas duas situações não é apenas a capacidade individual
para o trabalho ou provimento do sustento, mas a capacidade ou incapacidade
de o Estado de prover as prestações de saúde11 num contexto referido
midiaticamente como de “crise da saúde pública”12.

10 Um dos critérios materiais discutidos é a classificação prioritária das doenças de dor crônica,
levando em conta as consequências individuais (depressão, incapacidade para o trabalho,
perturbação nas relações sociais etc.), comorbidades como artrite, artrose e fibromialgia e a
prevalência de dor crônica (estima-se que um em cada cinco adultos sofra com ela). Por vezes,
os argumentos em torno da priorização de doenças crônicas chamam a atenção para o impacto
econômico da redução da capacidade laboral (BARCELLOS et al, 2017:462). Outros critérios
relativos às doenças incluem patologias que exigem cuidados de terceiros, doenças com
impactos coletivos e com tratamentos efetivos. Quanto as pessoas prioritárias a serem
atendidas, “situações de vulnerabilidade em geral – como a pouca idade, a senilidade, a
maternidade, a pobreza e a deficiência – tornam justificável o amparo estatal, destinando-se mais
recursos aos mais frágeis ou necessitados.” (:462).
11 Especialmente sobre a alegada falta de estrutura para realização das cirurgias traumato-

ortopédicas em Santa Maria, ver PEDRETE, 2017.


12 Cf. DIÀRIO DE SANTA MARIA (2015). Vale dizer a discussões antropológicas sobre a ideia
de cronicidade podem ser usadas para questionar discursos e procedimentos da saúde pública.
Dentre eles, nota-se que um discurso de crise (impulsionado por companhias farmacêuticas,
empresas de serviços médicos e interesses mercadológicos globais, em geral) desviam o foco,
de políticas sociais, para diagnóstico e tratamento (MANDERSON; SMITH-MORRIS, 2010: 3)
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Em se tratando de demandas de pacientes crônicos incapacitados, não


se pode pressupor uma identidade entre perspectivas médicas e jurídicas sobre
incapacidade ou deficiência, como aponta Matos (2016) e foi textualmente
expresso pelo juiz que ordenou a cassação do benefício de Hélio. Em verdade,
mesmo o ordenamento jurídico não é consensual quanto à noção de
incapacidade. Embora a literalidade do texto original da LOAS e o acórdão do
processo de Hélio se apoiem em uma associação entre deficiência e
incapacidade, típica de um paradigma capacitista13, diferentes fontes do
ordenamento jurídico corroboram a visão de que não há conexão necessária
entre deficiência e incapacidade. Com efeito, as restrições vividas por Aida e
Hélio tangenciam o conceito de incapacidade presente na Classificação
Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIF). Conforme
Di Nubilla e Buchalla (2008: 330), nela “o termo deficiência corresponde (...) a
alterações apenas no nível do corpo”, por sua vez, o termo incapacidade
indicaria “os aspectos negativos da interação entre um indivíduo (com uma
determinada condição de saúde) e seus fatores contextuais (fatores ambientais
ou pessoais)”. Mas a separação analítica entre as categorias deficiência e
incapacidade não é a única controvérsia derivada do texto legal: embora as Leis
nº 12.435/2011 e 12.470/2011 tenham alargado o conceito jurídico de deficiência,
partindo da “incapacidade para o trabalho”, para os impedimentos relacionais14,
a jurisprudência e a doutrina jurídica mostram o quão controversa é a
necessidade de caracterização de impedimentos de longo prazo .

13 Os estudos recentes sobre o tema definem como capacitismo “a forma como as pessoas com
deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de
trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações
sexuais etc.) (...). Essa postura advém de um julgamento moral que associa a capacidade
unicamente à funcionalidade de estruturas corporais e se mobiliza para avaliar o que as pessoas
com deficiência são capazes de ser e fazer para serem consideradas plenamente humanas.
(MELLO, 2016: 3272).
14 Tramita no STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 182), que

busca alterar a definição de pessoa com deficiência como “pessoa incapacitada para a vida
independente e para o trabalho” (cf. art.2º, p.2º da Lei 8.742/1993) em direção à definição da
Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (segundo a qual "Pessoas com
deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”).
A Convenção foi ratificada em 2008 e, portanto, incorporada ao ordenamento jurídico com status
de norma constitucional.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Recorrendo a discussões antropológicas em torno da biopolítica, Matos


lança luz para os conflitos “entre os próprios profissionais encarregados de avaliar e
decidir sobre a (in)capacidade ou deficiência destas pessoas para concessão de benefícios
estatais” (MATOS, 2016:84). Tais controvérsias são evidenciadas pelas histórias de Aida
e Hélio; por outro lado, estas problematizam, não apenas uma noção homogeneizante dos
juízos profissionais, mas também a concepção corrente de que “o laudo (do perito
judicial) já é a sentença” (:84). No processo de Aida, o perito foi além de uma
interpretação tradicional do termo médico “urgência”, para salientar a
necessidade imediata do procedimento cirúrgico. No processo de Hélio, o
mesmo laudo médico pericial foi interpretado de modo a embasar a concessão
e a cassação do benefício, a partir da interpretação das categorias
“incapacidade” e “reabilitação”. Assim, as duas histórias aqui invocadas
salientam, por assim dizer, o caráter indeterminado da palavra final sobre o que
é incapacidade ou deficiência.
Ademais, se há múltiplas perspectivas em disputa, em se tratando de
incapacidade, também é possível vislumbrar várias formas de sofrimento em
jogo nas trajetórias da justicialização da seguridade. Em um nível primário, o
sofrimento com o corpo, derivado dos sintomas experimentados, como dor
crônica e limitação de movimento. Em segundo lugar, o sofrimento obtido como
efeito das relações estabelecidas em torno da mobilização do Estado, tais como
a angústia pela espera por diagnósticos e decisões judiciais. Por fim, o
sofrimento social produzido relacionalmente pela situação drástica de recusa do
rótulo de invalidez, ao mesmo tempo em que a configuração jurídica e médica
da incapacidade aparece como condição de acesso à políticas de transferência
de renda ou acesso a prestações sanitárias, sem ignorar possíveis acusações
sociais de burla à fila, fraude e dependência em relação ao Estado.

III Considerações finais: horizontes múltiplos da justicialização das


incapacidades

Dentro da confluência mundial entre os temas da saúde e da justiça


(HARPER et al, 2015), seria improvável que a mudança do paradigma
epidemiológico não gerasse impactos significativos sobre a judicialização da
saúde. No entanto, as experiências de pessoas com enfermidades crônicas
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

ainda guardam potenciais pouco explorados de análise. Mais do que um rótulo


moral imposto de cima para baixo, a incapacidade aparece em diversas histórias
dessas como uma chave de acesso. Do ponto de vista das moralidades
envolvidas, a luta por direitos por parte das pessoas que sofrem de doenças
crônicas, incapacitantes e invisíveis sugerem menos uma busca por
dependência e subordinação, e mais uma maneira circunstancial, não apenas
de busca por independência e autonomia, mas de visibilização e legitimação
pública em relação a uma condição que envolve reprovações morais
incorporadas pelos próprios sujeitos.
As experiências aqui discutidas lançam luz para duas dimensões, por
vezes pouco evidentes nas discussões públicas sobre judicialização de
demandas de saúde e do BPC. Primeiro, o fato de que as crescentes demandas
jurídicas motivadas por questões de saúde não se reduzem a busca por acesso
a fármacos (vide a progressão dos pedidos de cirurgia, cf. PEDRETE, 2017) e
transbordam as matérias de assistência e previdência social (MATOS, 2016).
Além disso, a experiência de mobilização do sistema de justiça em tais casos é
condicionada por uma série de mediações estatais anteriores e externas ao
poder judiciário (p.ex., pedidos administrativos e comunicações extrajudiciais).
As inovações jurisprudenciais por força de demandas individuais e
coletivas, a força da circulação dos documentos nas conexões entre meios
médicos e jurídicos e as lutas, os mal-entendidos e controvérsias em torno da
definição das categorias que envolvem incapacidade, visibilidade e direitos nos
incitam a novos caminhos etnográficos. Especialmente no sentido de restituir a
complexidade, a não linearidade, a multiplicidade e a relativa indeterminação da
justicialização da saúde (ou mais especificamente, das incapacidades).
Inevitavelmente, tal tarefa exige a continuidade de imersão etnográfica próxima
às experiências dos demandantes.

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Universidade de Brasília.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Inclusão de Jovens com Deficiência Intelectual em contexto universitário:

Discutindo uma experiência

Gabriela Sousa de Melo Mieto

Resumo

A construção de uma sociedade inclusiva apresenta demandas que exigem


práticas inovadoras da psicologia escolar para a superação de um modelo
clínico (já ultrapassado) adaptado à escola. Pretendemos apresentar e discutir
neste trabalho uma intervenção multidisciplinar diferenciada direcionada à
inclusão de pessoas com deficiência intelectual. A proposta de intervenção
terapêutica em grupo, oferecida por jovens universitários de Psicologia aos
jovens com diagnóstico de deficiência intelectual inseridos em um programa de
formação profissional ministrado na Biblioteca Central da Universidade de
Brasília (BCE), levou à possibilidade da construção de uma exposição
fotográfica realizada em parceria com colegas universitários dos cursos de
Museologia, Direito, Arquitetura, Pedagogia e Comunicação. Todo o processo
de elaboração e realização da exposição foi colaborativo, incluindo-se o
planejamento, sessões de foto, escolha das imagens, programa educativo,
avaliação. Destaca-se, de forma inédita, a preocupação constante de que
fossem potencializados todos os posicionamentos de agencialidade das
pessoas participantes (consideradas com deficiência intelectual), atuando não
apenas como modelos da exposição, mas na tomada de decisão de aspectos
significativos para a mostra final. A exposição evidenciou a importância da
relação estabelecida entre os jovens universitários e os jovens aprendizes da
BCE, promovendo o desenvolvimento dos dois grupos, além de dar visibilidade
à experiência.

Palavras-chave: deficiência intelectual, trabalho, inclusão, educação.


Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Os processos disparados pela promoção de políticas públicas inclusivas


têm colocado inúmeros desafios à sociedade nas últimas décadas. A
construção de uma realidade mais inclusiva propõe que possamos, em nossos
atos cotidianos, refletir e transformar o convívio social em relação às pessoas
com deficiência (Bernardes & Araújo, 2015a; 2015b). Torna-se fundamental e
urgente não mais atribuir a essas pessoas a responsabilidade por sua
condição, mas, ao contrário, admitir as limitações da própria sociedade não
inclusiva, que tenta permanecer livre da reflexão sobre sua incapacidade de
enxergar potencial em todos os indivíduos (Pereira & Barbosa, 2016). Neste
trabalho pretendemos apresentar e discutir uma experiência de intervenção
multidisciplinar diferenciada direcionada à inclusão de jovens com deficiência
intelectual. Como a inserção de jovens com diagnóstico de deficiência
intelectual na universidade, sem o status de estudantes universitários, pode se
enlaçar com as rotinas e práticas de estagiários e extensionistas universitários,
contribuindo para o desenvolvimento de ambos os grupos?
Para entendermos como tudo começou, é preciso nos remeter,
inicialmente, a uma proposta inclusiva, criada em 2006: o Programa de
Conservação de Bens Culturais da APAE-DF, a partir de um convênio firmado
entre a instituição e a Fundação Universidade de Brasília. O objetivo deste
programa, ainda vigente, é a qualificação profissional de aprendizes com
deficiência intelectual, professores e instrutores nas áreas de higienização e
conservação de bens culturais.
Em 10 anos de história, o convênio passou por renovações e mantém,
atualmente, uma turma de 22 aprendizes, sob a orientação e responsabilidade
de professoras da APAE-DF. As atividades acontecem na Biblioteca Central da
Universidade de Brasília – BCE/UnB, onde todos aprendem o ofício de
higienizadores de livros e outros documentos, utilizando o próprio acervo
corrente do local como material de qualificação e, periodicamente, os acervos
especiais. Destaca-se que apenas no primeiro semestre de 2016, 2.129 livros
foram higienizados pela equipe em treinamento.
Com esta proposta, os jovens aprendizes atendidos por este Programa,
antes restritos ao convívio das instituições de ensino especial, tornaram-se
parte do cotidiano da Biblioteca da Universidade e, pela via de seu trabalho,
pessoas imprescindíveis à preservação de seu patrimônio, construindo sua
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

inclusão como colaboradores do ambiente universitário e sendo também


beneficiados por esta convivência.
Seguramente, a higienização é uma das ações mais eficazes para a
conservação de acervos bibliográficos. Porém, dedicar horas seguidas à
atividade de higienização de livros, folha por folha, incluindo cortes e capas,
não é tarefa fácil. A prática requer muita dedicação, atenção e paciência para
ações repetitivas e, por isso mesmo, abriu caminhos para a inclusão laboral de
pessoas com deficiência.
Com o passar dos anos, a informação de que a APAE, juntamente com
a Biblioteca da UnB, capacita pessoas com deficiência como higienizadores de
bens culturais desencadeou alguns processos de contração. Mais do que isso,
favoreceu uma nova modalidade de inserção profissional, o chamado trabalho
apoiado. Nele, pessoas com deficiência são contratadas conjuntamente com
profissionais apoiadores, que ficam responsáveis pela acessibilidade no
ambiente de trabalho e por garantir a qualidade dos serviços prestados. Sete
equipes qualificadas pela parceria já foram contratadas, somando mais de 50
pessoas incluídas no trabalho, em diversos órgãos localizados no Distrito
Federal, de autarquias diferenciadas, vinculadas aos órgãos executivo,
legislativo e judiciário, em âmbito Federal e Distrital.

Rotina do Treinamento

Assim que chegam à oficina de qualificação, os aprendizes do Programa


seguem uma rotina de atividades que garantem o desenvolvimento de sua
autonomia e habilidades profissionais.
As principais etapas de suas rotinas de trabalho são: Guardar pertences
pessoais nos armários (mochila, lanche e água); Assinar a folha de ponto por
ordem de chegada, observando data e turno; Vestir o jaleco adequadamente,
abotoando-o e arrumando a gola; Pegar e vestir adequadamente os
equipamentos de proteção individual (touca, máscara, luva, óculos); Pegar o kit
de trabalho e organizar as ferramentas sobre a mesa por ordem de
necessidade para a execução das tarefas; Pegar o livro no carrinho e iniciar a
higienização seguindo a técnica e etapas ensinadas pelo professor; Fazer a
limpeza dos cortes do livro com borracha, utilizando a proteção para a capa e
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

miolo; Fazer a limpeza folha a folha com trincha ou escova de juba, sem pular
páginas; Fazer a limpeza das capas com pano seco, solução com álcool,
borracha ou pó de borracha; Anotar o número de páginas do livro e o nome de
quem fez a higienização (para registro de produtividade); Guardar o livro no
carrinho de livros limpos; Limpar a mesa retirando o acúmulo de sujidades;
Recomeçar o processo com outro livro.

Enlaces
Em meio a esta rotina de trabalho e aprendizagem na Universidade,
quase que inesperadamente, foi possível a construção de um encontro. De um
lado, como já narramos, estavam os jovens com deficiência intelectual, em sua
maioria, acostumados a ouvir sobre sua impossibilidade de estarem ali, mas
que descobrem uma possibilidade de formação profissional na vivência da
Biblioteca da Universidade. De outro lado, jovens que tiveram um percurso de
vida cujo sonho previa o ingresso em uma instituição universitária, buscam uma
experiência prática dentro do curso que escolheram – Psicologia. Como estas
vidas se encontraram? Quando jovens estudantes de psicologia, foram
demandados a, semanalmente, ao longo de três anos, oferecer atendimentos
psicológicos em grupo aos jovens aprendizes da APAE. Desta forma, as mãos
que aprendiam a cuidar dos acervos começaram a ser cuidadas e a ensinarem
também.
Da relação construída entre pares, por todos estes jovens, observam-se
transformações na vida de todos os estagiários e também dos aprendizes
(Vigotski, 1997). Pouco a pouco, o que se vê são histórias que se enlaçam pelo
cuidado - de si, de uns pelos outros, e com os acervos públicos. Seus
horizontes são ampliados, suas convivências, o respeito com os próximos e a
compreensão de que todos devem ter voz nas relações que estabelecem.
Tenta-se, assim, contribuir para a transformação de suas próprias vidas, dentro
de uma Universidade que se faz inclusiva desde a sua concepção e que
pretende lançar no mundo quem se beneficia de sua formação (Caixeta, Souza
& França, 2016).
Historicamente, a deficiência é alvo de discriminação e de exclusão
social, processos que se mantêm até os dias de hoje. Por isso passamos a
defender para este público as sessões de psicologia como um espaço de
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

mediação de relações e de produção de autonomia, cujo principal objetivo é


oferecer escuta às questões espontâneas do grupo, tendo por foco terapêutico
a inserção no mercado de trabalho e o empoderamento nos espaços públicos.
O planejamento prévio das sessões propicia o aprofundamento das questões
mais relevantes, o acolhimento dos indivíduos em suas singularidades, o
envolvimento horizontal terapeuta-cliente e a expressividade.
Os beneficiários do Programa de Conservação de Bens Culturais, em
citações construídas coletivamente, tanto dirigindo-se aos estudantes de
Psicologia, como às professoras da APAE, falam sobre o processo de
aprendizagem e inclusão que vivenciam, como descrito a seguir:

Sobre cuidados que devemos ter com os livros:


“Não devemos dobrar as folhas, nem riscar e escrever nos livros; não devemos
colocar grampos e nem colar figurinhas; Não devemos tomar água e nem se
alimentar perto dos livros; Não devemos deitar em cima de um livro; É preciso
ter cuidado ao guardar na estante para que não caia”.

Sobre como se preparar para o trabalho:


“É preciso saber respeitar as normas da instituição, ser educado e gentil com
as pessoas, fazer o trabalho com responsabilidade e concentração; evitar fazer
intrigas no grupo; ser pontual e avisar sempre que precisar sair; e não dormir
durante o horário de trabalho”.

Sobre os encontros com os estagiários de psicologia:


“Nos ajudam a conviver melhor uns com os outros e com a gente mesmo. É um
bom momento para tratar as pessoas sem preconceito e racismo. Eles são
gente muito boa porque falam do que gostamos no nosso dia a dia”.

As reuniões de supervisão que realizávamos começaram a destacar que


os jovens aprendizes, à sua maneira, posicionavam-se cada vez mais como
agentes, desde que lhes fossem dadas oportunidades para serem ouvidos
(Mieto, Barbato & Rosa, 2016). Os jovens universitários de Psicologia, portanto,
aproveitaram esta constatação para construírem uma proposta que desse
ainda mais protagonismo àqueles antes segregados. Desta forma, propuseram
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

aos jovens e à equipe pedagógica da APAE que todos juntos pudessem


realizar uma exposição fotográfica sobre o projeto que comemorava dez anos.

A exposição que foi aberta ao público em outubro de 2016 procurou


compartilhar vivências proveitosas de processos inclusivos que entrelaçaram
histórias de diversas pessoas. Algumas delas, sob os holofotes - traziam em
suas trajetórias a marca de um diagnóstico e os desafios dele decorrentes. Os
demais participantes, atuando nos bastidores, carregavam a tentativa de
construir uma sociedade inclusiva na posição de coadjuvantes. Toda a
concepção da exposição buscou propiciar que o aprendiz inserido no Programa
de Conservação de Bens Culturais pudesse compreender a importância desta
atividade tão específica de higienização de livros e documentos,
compreendendo que esta é uma oportunidade que vai muito além da busca ou
conquista de um emprego. Os profissionais qualificados adquirem condições de
mostrar seu potencial e de realizar um ofício de extrema relevância para a
sociedade, focado justamente na preservação da História.
Ao longo de um semestre e meio conseguiu-se construir uma exposição
colaborativa, que ficou em cartaz na própria Biblioteca Central da UnB, por
cerca de quinze dias, que reuniu o trabalho, esforço e dedicação dos jovens em
treinamento do Programa de Conservação de Bens Culturais da APAE-DF e de
jovens universitários de diversos cursos. Neste espaço em que estudantes se
reúnem, estudam e interagem, há também um local em que jovens com
deficiência intelectual e múltipla são qualificados numa especialidade que
valoriza e resguarda nosso patrimônio documental e cultural. A exposição
fotográfica foi realizada pelos estudantes de Psicologia em parceria com
colegas universitários dos cursos de Museologia, Direito, Arquitetura,
Pedagogia e Comunicação. Todo o processo de elaboração e realização da
exposição foi colaborativo, incluindo-se o planejamento, sessões de foto,
escolha das imagens, programa educativo, avaliação. Destaca-se, de forma
inédita, a preocupação constante de que fossem potencializados todos os
posicionamentos de agencialidade das pessoas participantes (consideradas
com deficiência intelectual), atuando não apenas como modelos da exposição,
mas na tomada de decisão de aspectos significativos para a mostra final.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Aproveitamos a oportunidade da exposição para oferecer ao público


visitante do evento e da Biblioteca em geral, uma rica e intensa programação
educativa que contemplou a participação dos jovens aprendizes em vários
momentos, como Oficinas de Fotocolagem, Oficinas de Fotografia, Sessões de
Leitura Dialógica, Roda de Conversas com Profissionais.

Desmontando a Exposição

O processo de finalização da exposição foi tão intenso quanto o seu


planejamento e execução, em que todos precisaram igualmente colocar suas
mãos à disposição. Nos momentos avaliativos, discutimos muito o que
poderíamos fazer melhor e diferente, caso conseguíssemos levar o acervo
fotográfico para ser exposto em outro local - e isto ainda aguarda oportunidade.

O que tínhamos mais palpável ao final deste ciclo é que precisaríamos


abrir um novo, no ano acadêmico seguinte, e que já não nos contentaríamos
em oferecer aos jovens aprendizes, o mesmo estilo de atendimento que havia
nos aproximado deles anteriormente. Desmontar a exposição nos possibilitou
construir uma nova proposta, em curso este ano.

Resumidamente, deixamos para trás todo tipo de atendimento em


setting terapêutico fechado e restrito aos estudantes de psicologia como
mediadores. Passamos a entender que contar com a colaboração de outros
atores, a exemplo da equipe que formamos para executar a exposição, seria
fundamental não apenas para os processos inclusivos dos jovens aprendizes,
como também seria uma contribuição nossa para experiências inclusivas mais
amplas – quase a possibilidade de formarmos outros agentes, cidadãos com
foco nestes processos. Desta forma, mesmo estando constituídos neste
momento por um pequeno grupo fixo de estudantes de psicologia, armamos
parcerias significativas dentro e fora do campus Darcy Ribeiro para
conseguirmos, dentre tantas atividades, promover, por exemplo, visitas guiadas
a museus, cursos de educação financeira, visitas a salas de aula universitárias,
passeios utilizando o transporte público, vivências de atividades
esportivas/corporais/musicais etc.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

A cada novo encontro com os aprendizes temos certeza de que estamos


contribuindo para o desenvolvimento de todas as pessoas envolvidas, incluindo
os estudantes universitários, no que toca à autonomia e agencialidade (Mieto,
Barbato & Rosa, 2016). Ainda encontramos resistência nesta nova proposta,
pois se por um lado já há o reconhecimento da seriedade do grupo que realiza
as mediações, ainda se espera, como construto popular, que a psicologia
preste serviços com base em modelos tradicionais, sejam eles clínicos ou
escolares. Esta experiência nos mostra que a inclusão acontece nas relações
estabelecidas entre as pessoas, mediadas por suas experiências e produtos
culturais. A inclusão de pessoas com deficiência intelectual em uma
universidade, ainda que seja pela via de uma experiência tão técnica quanto a
higienização de livros, não pode se restringir a esta ação repetitiva. Precisamos
conversar sobre estas práticas, dar visibilidade a elas, ouvir os maiores
interessados e seguir ampliando a discussão.

Referências

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Psicologia da Reabilitação: perspectivas teóricas, metodológicas e práticas (pp.
33-50). Brasília: Liber Livro.

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MIETO, Gabriela Sousa de Melo; BARBATO, Silviane Bonnacorsi; ROSA, A.


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inicial na inclusão.” Psicologia: teoria e pesquisa (BRASÍLIA. ONLINE), v. 32, 1-
10.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Pereira, E. & Barbosa, L. (2016). Índice de Funcionalidade Brasileiro:


percepções de profissionais e pessoas com deficiência no contexto da LC
142/2013. Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.10

Vigotski, Lev S. (1997). Tratado de defectologia. La Habana, Cuba: Pueblo y


Educación.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

O presente precário das mulheres do zika: temporalidade nas narrativas de mães de crianças com
síndrome congênita do zika vírus na Bahia
K. Eliza Williamson, Rice University
II Reunião de Antropologia da Saúde-RAS: “Antropologias e políticas em contextos de crise”
Universidade de Brasília, 8 a 10 de novembro de 2017

Se diz que uma epidemia tem um início, um meio, e um fim. A epidemia do zika vírus no
Brasil teve o seu início entre 2014 e 2015. Em outubro de 2015, os primeiros casos de
microcefalia começaram a surgir. Até fevereiro de 2016, o zika já tinha atingido o status de
epidemia de porte não somente nacional como também internacional (Diniz 2016). Em maio
deste ano, diante de uma queda importante no número de bebês com síndrome congênita do zika
vírus (SCZV), o Ministério da Saúde declarou o “fim” da emergência de saúde pública no Brasil.
Muito antes, o zika e as suas vítimas tinham sido virtualmente esquecidas nas mídias e no
discurso público.
Para Debora Diniz, no entanto, “[o] zika é ainda uma epidemia” (2017: 75). O mosquito
ainda acomete a população brasileira, particularmente os setores mais pobres, e as mulheres
continuam dando à luz a, e cuidando de, crianças com má-formações neurológicas. Agora as
famílias atingidas pelo zika enfrentam um longo e incerto caminho no cuidado de crianças com
múltiplas deficiências. Disse Margaret Chan, diretora geral da Organização Mundial de Saúde,
em fevereiro deste ano: “A OMS e os países afetados precisam manejar o zika não em um
[footing] de emergência, mas na mesma maneira sostenida em que respondemos a outros
patógenos suscetíveis a epidemias estabelecidos, como a dengue e o chikungunya, aquele [fluxo
e refluxo – ebb and flow] em ondas recorrentes de infecção. […] Agora estamos na viagem de
longo percurso [the long haul] e estamos todos juntos nisso” (Human Rights Watch 2017).
Neste [paper], me detenho sobre esse “long haul” desde o ponto de vista de mulheres
mães de crianças com síndrome congênita do zika vírus. Especificamente, faço uma reflexão
sobre as experiências do tempo de mães que hoje criam filhas e filhos vítimas do zika vírus no
“depois” da epidemia. Sugiro que essas mulheres vivem o que chamo aqui de present tense—um
trocadilho mal traduzido ao português como “presente tenso.” “Present tense” é como chamamos
em inglês o tempo verbal do presente. A minha utilização do present tense aqui sinaliza, por um
lado, a permanente tensão em que essas mães vivem no cuidado de filhos com corpos precários
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

que se desestabilizam, que engasgam, que dão crises convulsivas, que não conformam a um
modelo hegemônico do filho “normal.” Elas estão sempre em alerta, atentando a sinais e
sintomas que possam sinalizar problemas mais graves. Porém a tensão do present tense não vem
somente do filho com deficiência, como irei destacar, senão já faz parte de vidas vividas em
precariedades de vários tipos. Por outro lado, present tense sinaliza a orientação ao tempo que
surgiu nas narrativas das mulheres que entrevistei até agora: um tempo que parece um eterno
presente, sem um claro futuro.
Em um ensaio sobre a própria experiência de deficiência, Ellen Samuels escreve que “[o]
tempo de deficiência [crip time] é viagem no tempo”:

A deficiência e a doença têm o poder de nos extrair do tempo linear e progressivo com os seus estágios de
vida normativos e nos lançar no buraco de minhoca de aceleração para trás e para frente, paradas e começos
espasmódicos, intervalos tédios e finais abruptos. […] Nós que ocupamos os corpos do tempo de
deficiência [crip] sabemos que nunca somos linear… [Samuels 2017: parágrafo 5]

O tempo não-linear da deficiência complica a ideia de progresso linear embutida na reabilitação


e, mais especificamente, nos conceitos fundamentais do desenvolvimento infantil (Fisher e
Goodley 2007, Landsman 2009). Zoë Wool, na sua etnografia de soldados estadunidenses em
tratamento no Hospital Walter Reed após sofrer lesões em guerras no Iraque e Afeganistão,
descreve o tempo vivido nesse espaço de reabilitação como uma faixa de Möbius, onde o corpo
permanece em um loop onde o próprio tratamento pode atrasar ou complicar o processo de cura.
Aqui, “[o] telos simples do corpo em processo de cura dava lugar aos fatos materiais de corpos
precários” (2015: 26). Este tempo circular e constantemente interrompido é o tempo do que
Wool e Livingston (2017) chamam de “pós-mundos colaterais” (collateral afterworlds), mundos
vividos na sombra de grandes desastres, sejam eles naturais ou antropogênicos (a epidemia do
zika é uma mistura dos dois), mundos “marcados especialmente pela temporalidade de um
presente difícil onde a vida é desengonçada da esperança penetrante/dominante [pervasive] de
um amanhã melhor” (2).
Esse “presente difícil” se manifesta não somente para a pessoa com deficiência (no caso,
a criança), mas também para quem a cuida. De certa forma, “embora somente um membro da
família seja deficiente, todos os demais são afetados e, até certo ponto, incapacitados por ela [a
deficiência]” (Barbosa, Massae e Gomes 2008: 47). Mas ninguém vivencia essa “incapacitação”
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

mais do que as mães, sobre quem recai a grande maioria do trabalho de cuidar (Fisher e Goodley
2007, Ginsburg e Rapp 2013, Landsman 2009, Read 2000, Traustadottir 1991). Para as
cuidadoras também, o tempo vem a ser outro. Cheryl Mattingly escreve que para pessoas “na
crise de vida,” como mães de crianças com deficiências e doenças potencialmente fatais, “o
tempo há mudado a sua velocidade; há virado concentrado, portentoso. Pode ser ou rápido
demais ou devagar demais, mas nunca é luxoso” (2010: 2). As cuidadoras também vivem entre
as eternas esperas e crises repentinas, entre a esperança e a sua falta. “A esperança mora em um
lugar incerto,” diz Mattingly, “em uma espécie de sala de espera temporal. Ela nos aponta para
um futuro que só podemos imaginar” (2010: 15).
As mães entrevistadas aqui no cuidado de filhos com SCZV, vivem um “presente tenso”
em que nada é garantido, tudo pode acontecer em qualquer momento, e o futuro é altamente
nebuloso—até impossível de imaginar. Esse present tense tem gênero, classe e cor, categorias
que condicionam profundamente a existência dessas mães e dos seus filhos, de maneira que o
nascimento da criança com SCZV é um evento desestabilizador em uma vida já cheia de
precariedades. Com essa reflexão, pretendo contribuir à construção de uma possível abordagem
ao “pós” da epidemia do zika vírus.

Metodologia
Me baseio principalmente na análise das narrativas de nove pessoas—a maioria mulheres
e mães biológicas—que cuidam de crianças com SCZV e que fazem ou já fizeram atendimento
no Centro Estadual de Prevenção e Reabilitação da Pessoa com Deficiência (Cepred), em
Salvador-BA. O Cepred é um centro de excelência, 100% SUS, que atende pessoas de todo o
estado da Bahia. Com o grande número de bebês nascendo com a SCZV, o Cepred virou um dos
principais centros de estimulação precoce, contratando novos profissionais nas áreas de
fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para atender à nova demanda. Também
fornece órteses para os que precisam. Desde maio deste ano, venho conduzindo uma série de
entrevistas semi-estruturadas com mães e pais sobre as suas experiências desde o início da
gestação do filho com SCZV até hoje. O roteiro da entrevista abrange as vivências da gravidez, o
diagnóstico da má-formação neurológica, o parto e nascimento, e os meses depois do nascimento
até agora. Embora não aparecem explicitamente aqui, minha análise é informada por entrevistas
informais e observações feitas ao longo dos últimos dois anos, como voluntária da Associação
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Abraço a Microcefalia, de observações de atendimentos de terapia ocupacional, fisioterapia, e


fonoaudiologia no Cepred e em clínicas privadas, ao convite de mães e pais, e de dois grupos de
WhatsApp que fui inserida.1
Quero sublinhar que este trabalho não pretende generalizar, senão apresentar um retrato
das experiências de algumas mulheres que trazem questões importantes a serem consideradas na
nossa busca de compreender um pouco mais a realidade de famílias afetadas pelo zika vírus.
Seguindo Pinheiro e Longhi (2017), deixo claro que estou “falando de uma realidade em
construção, mutável e dinâmica” (114). (Afinal, não existem “realidades” imutáveis das quais a
antropologia poderia falar.)

Futuro precário, present tense


Conversei com Letícia, 37, no sofá na sala da casa onde ela mora com Danilo, o marido
de nove anos, e Diego, o primeiro e único filho do casal, de um ano e seis meses na época da
entrevista. Os dois se auto-declaram “pardos.” A casa era uma laje encima da casa do pai de
Danilo em um bairro periférico do Subúrbio Ferroviário. Foi construída e mobiliada embora
esparsamente, a duras penas no tempo que Letícia ainda trabalhava como caixa no mercadinho
na frente e Danilo tinha emprego fixo em uma empresa que consertava aparelhos de ar
condicionado. Isso foi antes das irregularidades financeiras do mercadinho levar Letícia a sair,
antes de Danilo perder o emprego, e antes de Diego nascer. Com uns três meses de gravidez,
Letícia teve manchas vermelhas na barriga e fortes dores nas articulações. A ginecologista que
ela perguntou lhe disse que tinha “uma virose rolando no momento” e lhe prescreveu
paracetamol e um antialérgico. Foi com sete para oito meses que descobriram as má-formações
do filho em uma ultrassonografia. Diego nasceu em dezembro de 2015, um grau severo de
microcefalia a evidência mais imediatamente visível do dano que o vírus tinha lhe havia causado
no útero. Além da micro, o filho tinha calcificações no cérebro, disfagia, hipertonia, crises
convulsivas, e muita dificuldade no controle da coluna cervical. No dia da entrevista, quando
Letícia não estava alimentando ou dando remédios a ele, ficava no tatami no chão ouvindo as
músicas de “Galinha Pintadinha” transmitidas pelo celular de Danilo.

1
Este projeto de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Cepred (Parecer Técnico emitido no
20/09/16), do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CAAE 60894816.0.0000.5030) e da
Rice University (Parecer No. 702001-2). A coleta de dados foi financiada pela Fundação Fulbright (Fulbright-Hays
P022A150055-002) e pela Rice University (bolsa de pós-graduação).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Quando a entrevistei, Letícia e Danilo viviam de bicos—ela vendendo roupas para


pessoas conhecidas e ele consertando ar condicionado quando alguém chamava. A pouca renda
mal supria as necessidades, particularmente com um filho “especial,” e Letícia estava em pleno
processo judicial para conseguir o Benefício de Prestação Continuada do Diego, que lhe tinha
sido negado na primeira tentativa porque ainda estava recebendo o Salário-maternidade, e que
ela teve várias dificuldades de conseguir mesmo depois. A nossa conversa acabou demorando
umas sete horas, entre interrupções e as intermináveis tarefas domésticas que Letícia assumia por
inteiro—ela bateu a papinha e deu a Diego enquanto o almoço, uma moqueca de peixe,
cozinhava no forno, trocava a fralda do filho, lhe administrou os remédios nos horários certos, e
lavou os pratos que acumulavam na pia entre outras tarefas. Quando o almoço ficou pronto, o
serviu para mim e para Danilo, que tinha aparecido na hora da refeição, e depois lavou os pratos
de novo. Estava em constante movimento, atendendo a milhares de cuidados que sustentavam a
casa e a família, o que tinha que ser feito no “aqui e agora.” Quando, finalmente, chegamos ao
final da entrevista, perguntei a Letícia o que imaginava para o futuro:

Eliza: Quando você pensa no futuro—o futuro do Diego, o futuro da família—como você acha que
vai ser?
Letícia: Bem, eu não penso nem como é que vai ser. Eu tento viver o hoje, tentando buscar o melhor
para ele, em função dele. Hoje, no momento, estou buscando as terapias, tentando aprender, a
conhecer, saber o que não sabia, né. O que eu puder fazer de melhor por ele, eu vou fazer.
Agora, o restante é só Deus. Só Deus proverá. No momento não sei nem te dizer, nem sei o
que que eu penso pro futuro no momento. É como eu disse a você: eu quero tentar trabalhar,
pra poder construir alguma coisa que na minha falta, ou com a minha presença, eu possa dar
uma qualidade de vida melhor a ele. Pelo menos no que eu puder dar, e não estar passando
por esse aperto como a gente vem passando nesses últimos tempos, entendeu? Porque não foi
pouco o aperto que a gente passou não. O Abraço [Associação Abraço a Microcefalia]
também ajudou muito a gente nisso aí, na questão do leite principalmente. O leite, a fralda,
vou te dizer, viu. Não sei o que seria da gente não. […] E hoje se eu penso em ter alguma
coisa de prosperar, de aumentar, é em função dele também. Mesmo porque, eu penso o
seguinte: uma criança normal é difícil para alguém querer ficar; imagine uma criança
especial. Se eu morrer, quem que vai ficar com meu filho?

Surpreendida pela sua sugestão de que poderia morrer em um futuro próximo, perguntei:

Eliza: Você pensa nessas coisas?


Letícia: Lógico, penso sim. As pessoas [dizem], “Ah, é uma pessoa negativa.” Não sou negativa não;
minha irmã morreu com 26 anos e deixou foi um filho de meses. Graças a Deus o pai dele é
uma pessoa responsável, cuida muito bem dele, é um menino muito bem educado, muito bem
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criado. Mas e o meu filho, como é que vai ser? Tinha que pensar nele. Eu digo a ele [marido]
ainda: ‘Se eu morrer, bote ele no orfanato.’ Mas mesmo no orfanato, eu quero deixar alguma
coisa para ele.

Na fala de Letícia, evidencia-se um conjunto de precariedades que já faziam parte da sua vida
antes, mas que foram exacerbadas depois da chegada de Diego. Há as dificuldades em
providenciar as necessidades do dia-a-dia (leite e fralda), as preocupações com a qualidade de
vida do filho futuramente, a insegurança/instabilidade em relação à presença do companheiro, e
por fim, a incerteza da própria vida. Tudo isso faz com que o futuro parece algo quase
impossível de se pensar. Fica, enfim, na mão de Deus. Ao mesmo tempo, o “agora” que Letícia
vive é um agora de preparações para um futuro bastante incerto, um tempo de “construir alguma
coisa.” Diego vai andar algum dia? Vai falar? Vai poder cuidar de si mesmo, de alguma forma?
Nada disso se sabe, então tem que se preparar para tudo. E “tudo” inclui a própria morte de
Letícia, o fim da vida de quem sustenta a vida de Diego. Ela prepara—procurando as terapias,
aprendendo mais sobre a condição do filho, lutando para “construir alguma coisa” que possa
garantir que Diego seja cuidado, caso ela algum dia não esteja aqui para fazê-lo.
Me chamou a atenção que Letícia se referiu à sua morte. Me chamou a atenção também
que no caso do seu falecimento precoce, ela queria que o marido colocasse Diego em um
orfanato. Apesar de não participar muito das tarefas de casa, Danilo sempre me pareceu um “pai
presente.” Ia muito aos encontros da Abraço junto com Letícia, e acompanhou eles também nas
duas vezes que participaram no Fórum Perinatal da Rede Cegonha de Salvador. Ela me falou que
Danilo ajudava na estimulação de Diego em casa. Não havia, pelo menos ao meu ver, motivo de
achar que ele não tomaria conta do filho na ausência da esposa. Mas essa ideia parece que nem
passou pela cabeça de Letícia. E ela sabia que, por ser uma “criança especial,” teria dificuldade
em achar alguém para “ficar” com Diego. Já era difícil achar alguém para ficar com uma
“criança normal”; atender a todas as outras necessidades de uma criança com deficiências era
uma tarefa, ela imaginou, que ninguém iria querer.
Os mesmos temas—a incerteza, a precariedade cotidiana—persistiram em entrevistas
subsequentes com outras mães. Até a questão da morte potencial reapareceu, na fala de Amanda,
uma mulher de 35 anos que se auto-declara “negra.” Morava com a filha, Melissa, de um ano e
sete meses, e o marido, em um bairro periférico de uma cidade vizinha de Salvador. Melissa é a
primeira filha dos dois. Antes de ter Melissa, Amanda trabalhou em uma fábrica de cosméticos.
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Saiu de licença maternidade e não voltou. O marido ainda trabalhava como mecânico industrial,
mas tinha perdido o emprego que fornecia um plano da saúde para a família.
Amanda engravidou sem querer, depois de anos em que, me disse, “não tinha intenção
nenhuma de ser mãe.” Quando descobriu, estava com dez semanas de gestação. Foi um momento
intenso: “Não foi planejada,” me contou, “Mas também… Aí fiquei pensando: e agora? […]
Peguei e falei para ele [marido], ele aceitou, eu também aceitei. Aí comecei a fazer o pré-natal já
com três meses.” Fez em uma clínica particular, pois ainda tinha o plano de saúde do emprego do
marido. No segundo ultrassom morfológico, aos cinco meses, a imagem mostrou que Melissa
“tava com os ventrículos dilatados.” A filha nasceu às 34 semanas, de parto cesárea, à
recomendação da médica neurocirurgiã, que disse que precisava dreinar o líquido do cérebro da
menina. Melissa compartilha com Diego muitas das mesmas dificuldades: calcificações
cerebrais, disfagia, hipertonia, crises convulsivas, descontrole da coluna cervical, e também
ventriculomegalia e hidrocefalia.
Falei com Amanda em uma sala vazia no Cepred, depois dos atendimentos de Melissa—
nesse dia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. Ela segurou a menina nos braços enquanto
conversamos, reposicionando a intervalos, brincando e falando com ela, reagindo aos sons que a
menina emitia, aos olhares e sorrisos efémeros que a filha presenteava à mãe. Quando perguntei
sobre o futuro, Amanda disse:

Amanda: As minhas preocupações é não conseguir tornar ela independente. Mas eu desejo muito
que, pelos meus esforços, né, me abdiquei de coisas, eu tô lutando por ela, pra que
amanhã ou depois eu consiga ouvir ela falar ‘mamãe,’ né. Imagine quão prazeroso isso é
prà gente, mãe, ouvir o filho chamar ‘mamãe.’ E quantas pessoas dizem à gente que eles
não vão chamar.
Eliza: As pessoas dizem isso? Quem?
Amanda: Dizem. Médicos… Médicos falam que não vai falar, que não vai andar. E o desejo da
gente… Eu falo assim, ‘Se a Melissa não andar, que se torne independente, que ela
consiga me chamar, que ela consiga ir na geladeira e pegar uma água só. Mesmo que eu
tenha que adaptar a casa pra isso, mas que ela consiga fazer tudo sozinha, pra que… No
caso, imagine, ela só tem a mim. Ela só tem a mim, entre aspas. Eu tenho 35 anos. Não
sou uma pessoa que tá boa de saúde. E se eu faltar para ela? O que vai ser dela? Minha
preocupação toda é essa.

Amanda me conta que alguns dias antes da nossa entrevista, ela teve uma consulta médica em
que foi recomendado ela fazer uma cirurgia para tirar um tumor benigno da garganta. Apesar da
insistência da otorrino, Amanda sabia que não podia fazer a operação: “Eu não vou fazer a
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cirurgia,” ela teria falado para a médica. “Quem vai ficar com minha filha?” Quando soube que
na recuperação ela teria que ficar sem falar e sem pegar peso, ela teria repondido: “Não vou
poder pegar peso? Eu tenho que levar minha filha prà terapia. Quem vai conversar com minha
filha nesse período que eu tô [recuperando]? Não posso fazer.” Dias depois, Amanda fez um
preventivo cujo resultado a deixou em lágrimas. A ginecologista tentou acalmá-la. Disse
Amanda à medica: “Imagine se isso se agravar, se eu ficar doente… Quem vai ficar com minha
filha?” Continuou: “Eu fico assim, desesperada. Eu cheguei em casa e comecei a brigar. Minha
mãe falou, ‘O que é, Amanda?’ Eu falei assim, ‘Imagine se eu não conseguir chegar ao tempo de
deixar minha filha independente. O que vai ser dela?’ […] É, minha preocupação maior é essa:
eu não ter tempo para ver ela de maior e independente.”
Curiosa de ver se Amanda, como Letícia, iria excluir o companheiro do futuro
imaginado, perguntei como ela imaginava o casamento daí a cinco ou dez anos. Era “difícil de
dizer,” Amanda me disse, porque o companheiro era “uma pessoa de fases,” “uma pessoa que, na
mesma hora que tá aqui, arruma a mochila e vai embora.” Já tinha feito isso três vezes, ao longo
dos 14 anos que levavam de relacionamento. “Quem me garante que ele não vai, né?” perguntou
retoricamente. No entanto, ela “queria muito que tivesse tudo estável, tudo bem, a gente
cuidando da nossa filha, né, a gente bem, a gente com os propósitos que a gente tem para
construir uma casa maior para ela, né, já que a casa da gente é pequenininha. Mas aí eu falo por
mim.” Adicionou: “Eu penso desse jeito. […] Mas às vezes o que eu penso não é o que ele
pensa.” Se dirige à filha: “Né, gostosa?”
Amanda “se abdicou de coisas,” até os cuidados com a própria saúde, para poder ver
Melissa dizer “mamãe” algum dia. A sua preocupação é de ver a filha “independente,” mas teme
a possibilidade de “não ter tempo” para conquistá-lo. Corre contra o relógio para fazer com que a
filha possa cuidar de si mesma, podendo, por exemplo, “ir na geladeira e pegar uma água só,”
porque prevê a dificuldade de alguém cuidar da menina na sua ausência. Tudo tem que ser feito
agora para preparar Melissa para um futuro incerto. E uma cirurgia que possa prevenir maiores
problemas de saúde para Amanda é uma impossibilidade, frente aos cuidados que ela tem que
assumir na falta de qualquer outra pessoa que os faça—levar ela nas terapias, falar com ela,
“ficar com ela” em geral. Assim, Amanda se encontra em um Catch-22: não pode cuidar da
saúde porque tem que cuidar da filha, mas se os seus problemas de saúde agravarem, podem
chegar a tirá-la da vida da menina, que estaria sozinha no mundo.
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Amanda tem 14 anos de uma “brincadeira” que a deixa em um estado constante de


incerteza em relação ao companheiro. A “pessoa de fases” do seu lado é imprevisível, não
permitindo que ela confíe na sua presença ao longo prazo, sem falar em amanhã. A “estabilidade
melhor” que ela deseja criar para a filha depende, em parte, de uma constância que o
companheiro não dá e nunca deu. Ela falou dessa imprevisibilidade com uma certa naturalidade,
quase indiferência, que provavelmente mascarava angústias que ela não compartilhou comigo
naquele dia. Para ela, tal inconsistência era um aspecto da vida banalizado, esperado.
Paradoxalmente, a imprevisibilidade é esperada. Contudo, não deixa de ser uma tensão que
coloca Amanda em um lugar de persistente incerteza e dificulta imaginar o futuro.
Outras mães também expressavam grandes incertezas em relação ao futuro. Míriam (33
anos, negra, solteira, nível superior incompleto, mora no Subúrbio Ferroviário), relatou: “Tudo é
muito incerto. Você nunca tem uma garantia de que ele vai estar bem a semana toda, sem
apresentar uma coisa nova. Não existe isso. Sempre tem algo novo, pra bom e pra ruim. […]
Tudo vai surgindo muito, pros pais, muito de repente.” Algumas semanas antes da nossa
entrevista, Míriam tinha saído do trabalho que havia pouco tempo ela tinha entrado,
tentativamente, pela primeira vez depois do nascimento do filho. Para poder participar do
mercado laboral, ela tinha colocado Bruno na creche municipal perto da casa da irmã onde estava
morando até sair a sua moradia no Programa Minha Casa Minha Vida. Durante os poucos meses
que o filho ficou ao cuidado da creche, ele teve que ser internado com pneumomia três vezes.
Míriam suspeitava que foi a falta de conhecimento dos cuidadores de como alimentar uma
criança com disfagia. Às vezes ela achava comida dentro do nariz do pequeno ao buscá-lo, o que
a fazia achar que ele tinha engasgado na hora de comer. Tirou Bruno da creche e saiu do
trabalho, para depender exclusivamente do Benefício de Prestação Continuada do filho.
Míriam me conta que as crises convulsivas de Bruno foram como “choques” ao sistema
neurológico, fazendo ele “esquecer” as habilidades que já tinha aprendido, e atrasando o seu
desenvolvimento. Agora as crises estavam controladas com remédios, porém remédios que
deixam Bruno sonolento, o que às vezes atrapalha as terapias e, consequentemente, o seu
desenvolvimento. A resolução de um problema acabou causando outros. O tempo de Bruno,
nesse sentido, não é linear, uma série de passos sucessivos. É um tempo de “paradas e começos
espasmódicos” (Samuels 2017: parágrafo 5). Nesse contexto, Míriam faz o melhor que pode. De
uma forma paralela, como cuidadora principal e única de Bruno, a vida de Míriam também é
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repleta dessas paradas e desses começos—e recomeços. Embora ela tenha tentado voltar ao
trabalho depois do primeiro aniversário do filho—coisa que, para muitas outras mães da classe
trabalhadora, é a progressão normativa—não conseguiu. Acompanhou o menino nas internações
e voltou a se dedicar exclusivamente ao cuidado dele. Não sabe quando irá poder tentar trabalhar
novamente, do jeito que as coisas estão, pois “tudo vai surgindo muito…de repente.”
Vemos como o tempo vivido, e as preocupações sobre o tempo, estão intimamente
atrelados ao cuidado (care). Letícia e Amanda relataram querer preparar tudo possível para que
os seus filhos possam sobreviver e ter qualidade de vida na sua ausência. As preparações podem
ser de juntar dinheiro e expressar o desejo ao companheiro que a criança vá para um orfanato
caso a mãe morrer, ou também de buscar as terapias necessárias para tornar a criança
independente, o suficiente para “pegar uma água sozinha.” As mães estão, nesse sentido,
correndo contra o tempo, preparando os filhos para um futuro altamente incerto, em que nem a
independência, nem o cuidado e nem a vida são garantias. Cuidar aqui aparece como uma
questão de tempo—e de tempo precário. O presente é vivido na tensão de saber que o amanhã
não é garantido, e que tem que tomar todas as medidas possíveis para assegurar “alguma coisa”
para a criança.
A condição de saúde da criança também aparece como um fator que desestabiliza o
tempo, não só da criança, mas também da mãe. Essa desestabilização é uma questão de cuidado.
Letícia e o marido vivem “em função” do Diego. Amanda “se abdicou de coisas,” até os
cuidados com a próprias saúde, para cuidar da Melissa. Míriam saiu do trabalho e abriu mão de
uma fonte de renda para poder se dedicar ao Bruno. Cuidar do futuro do filho com SCZV, para
elas, é fazer sacrifícios no presente. Elas “correm atrás” das terapias, dos remédios, do BPC (a
palavra “correr” transmite bem a velocidade frenética que a vida assume). É muita coisa. Tanto
que ocupa o presente de uma maneira que oculta o futuro que, os mesmos médicos dizem, é
incerto.
Talvez as preocupações de Letícia e Amanda não deveriam surpreender tanto. Afinal,
elas pertencem a um setor da população brasileira que vive infinitas incertezas, inclusive em
relação à própria vida. As mulheres negras brasileiras, que representam a maioria das que foram
infectadas pelo zika vírus e que tiveram filhos com SCZV (Carvalho 2017: 145), têm de fato
uma menor expectativa de vida do que as mulheres brancas (Marcondes et al. 2013, Pinheiro et
al. 2009). A população negra em geral vive menos tempo do que a população branca, um efeito
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do menor acesso aos serviços de saúde e a violência, inclusive a violência praticada pelo Estado
(Alves 2014, Cerqueira et al. 2017, Marcondes et al. 2013, Martins 2006, Perpétuo 2000, Smith
2016). É nesse contexto de precariedade de vida que podemos entender a preocupação com a
morte precoce.
Além do racismo estrutural que as mulheres negras enfrentam, também pertencem, na sua
maioria, a setores da população brasileira que já vivem uma série de precariedades econômicas e
laborais—precariedades que, no pós-golpe, só aumentam a cada dia. A crescente terceirização no
mercado laboral, assim como a insegurança do mercado informal, deixa os setores menos
abastecidos em um perpétuo ciclo de idas e vindas do trabalho remunerado (Borsoi 2011, Costa
2005, Millar 2014). Entre as mães entrevistadas, todas estavam em alguma situação laboral
precária, exacerbada pela tarefa de cuidar de um filho com “necessidades especiais.” Letícia e
seu marido viviam de bicos; Míriam tentou voltar a trabalhar com Bruno na creche, mas não deu
certo; Amanda não conseguiu retornar à fábrica de cosméticos e dependia em parte do salário do
companheiro que, como ela disse, era “uma pessoa de fases.” Todas dependiam, pelo menos
parcialmente, de assistência do governo. O “aperto” que Letícia relata ter passado é com certeza
exacerbado pela chegada de um filho com deficiências, mas o aperto em si nunca está longe da
vida dessas mulheres.
Falar no companheiro “de fases” de Amanda, surgiu fortemente nos dados apresentados
os efeitos vivenciados do machismo, que permite os homens abandonar suas companheiras e
seus filhos, e que relega as tarefas domêsticas, inclusive o cuidado do(s) filho(s), integralmente
às mulheres (Hirata 2012, Silva 2014, Barbosa et al. 2007, Falkenbach et al. 2008, Scott et al.
2017). É um dado pertinente que Letícia e Amanda, duas mulheres “casadas,” não imaginavam
que na sua ausência, o companheiro tomaria conta da criança. “Quem vai ficar com meu filho?”
é uma pergunta, mas também é uma constatação: não posso contar com o pai para cuidar do
nosso filho, e sei que ninguém mais vai querer tomar conta de uma criança com deficiências.
Elas se baseiam na realidade da instabilidade marital e do preconceito contra pessoas com
deficiência.
O que eu quero destacar aqui é que o “presente tenso” que as mães vivem não é algo
novo para a maioria, e que tem gênero, classe e cor. A tensão vivida em relação ao cuidado do
filho complementa tensões de longa data da população mais atingida pelo zika vírus, para quem
pode-se dizer que a precariedade é endêmica.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Conclusão
Este trabalho é uma tentativa de pensar as experiências do tempo entre as mães de
crianças com SCZV. Trouxe uma abordagem teórica da antropologia e da área de estudos das
deficiências (disability studies) que contempla o tempo vivido das cuidadoras de crianças com
deficiência para [frame] as falas de três mães que entrevistei como parto da minha pesquisa na
Bahia. Sugeri que, nessas falas, aparece um “presente tenso” em que o corpo precário do filho se
junta às precariedades pervasivas já existentes nas vidas dessas mulheres, e em que o futuro tem
uma qualidade nebulosa e se torna quase impossível de imaginar. Esse “presente tenso,” como
destaquei, tem gênero, classe e cor. Também sugeri que os cuidados no presente, ao mesmo
tempo que preparam o caminho ao futuro, ocultam esse mesmo futuro. Cuidar do futuro talvez
seja uma forma de “praticar a esperança” (Mattingly 2010), uma esperança tímida mais presente.
Quero enfatizar, novamente, que este trabalho não pretende generalizar essas
experiências a todas as mães de crianças com SCZV, embora acho que encontraríamos fios das
temporalidades discutidas no tecido das narrativas de mulheres mães no Brasil todo. Além disso,
gostaria de dizer que pretendo representar aqui só uma parte da experiência dessas mães. Se
parece que tenho destacado o sofrimento, os aspectos “negativos” do cuidado de filhos com
deficiência, é porque o sofrimento está, de fato, muito presente para as minhas interlocutoras. O
luto, a luta, as grandes incertezas, as preocupações, o grande “straggle” que é cuidar de um filho
com múltiplas deficiências (Fleischer 2017: 104; ver também Mattingly 2014: 7, Miles 2008:
101)—esses são aspectos que não podemos ignorar. Porém, não quero dar a impressão de que ser
“mãe de micro” se resume ao sofrimento. A esperança, o amor, a auto-descoberta, a
ressignificação da condição do filho e a reconsideração de preconceitos contra pessoas com
deficiência—estes temas também surgiram nas observações e nas narrativas. Ficam, no entanto,
para um próximo trabalho, ou talvez uma expansão deste.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

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Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Para além da fala: reflexões antropológicas sobre a construção da


linguagem entre bebês nascidos com a síndrome congênita do Zika
e suas mães
André Filipe Justino1
Thais Maria Moreira Valim2
Resumo: Em outubro de 2015, a Secretaria de Saúde do Estado de
Pernambuco (SES/PE) alertou o Ministério da Saúde para um aumento
expressivo dos casos notificados de crianças nascidas com microcefalia.
Os casos pularam de nove registros notificados anualmente até o corrente
ano para impressionantes 54 casos identificados até o dia 25 de outubro de
2015. Desde o alerta, foram registrados mais de 2.000 ocorrências de
microcefalia no Brasil entre os anos de 2015 e 2017. O acompanhamento
dessas crianças revelou que a microcefalia é apenas um dos sinais das
possíveis alterações congênitas. Foram identificados também distúrbios
de diversas ordens sensoriais. Devido a esse conjunto de sintomas, o
fenômeno passou a ser interpretado como uma síndrome pela comunidade
científica, ficando então conhecido como a Síndrome Congênita do Zika
Vírus. Neste contexto, é notável a relação de cuidado que se estabelece,
envolvendo as mães das crianças afetadas pela microcefalia. Elas passam
a construir cotidianamente uma rotina de cuidado com os bebês que
envolve intensa observação e elaboração de um saber leigo acerca do
desenvolvimento de suas crianças. O argumento explorado neste trabalho é
o de que essa intensa relação funda formas alternativas de comunicação
que não são expressas pela linguagem conforma entendida amplamente,
isto é, as mães desenvolvem um modo próprio de sentir, perceber e de se
comunicar com suas crianças e saberem de seus incômodos, prazeres e
angústias por outras formas que não a fala ou a escrita. As dimensões do
corpo e da experiência são fundamentais para se entender as implicações
da relação desenvolvida neste contexto.
Palavras-chave: Síndrome Congênita do Zika Vírus; Deficiência; Tradução;
Linguagem

1 Doutorando em Antropologia Social – PPGAS/DAN/UnB.


2 Bacharel em Antropologia – DAN/UnB.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Ao final do ano de 2014, a população da região Nordeste do Brasil


assistiu à disseminação de uma doença até então desconhecida. Em meio a
um surto de sintomas semelhantes, uma quantidade enorme de pessoas
procurava por informações em longas filas de espera de farmácias, de postos
de saúde e de hospitais queixando-se de febre, manchas vermelhas pelo
corpo, coceira. Os sintomas, que duravam poucos dias, foram interpretados de
diversas maneiras na região: “virose”, “alergia medonha”, e “dengue fraca”
foram alguns dos nomes que a “doença misteriosa” ganhou nos estados do Rio
Grande do Norte, da Bahia, de Pernambuco e na Paraíba (DINIZ, 2016).
O doutor Kléber Luz, infectologista de Natal/RN, atento ao aumento
progressivo de pessoas infectadas, decidiu investigar a questão. Continuou
suas pesquisas nos enormes manuais de medicina tropical e infectologia e
cruzou com a descrição do arbovírus Zika (DINIZ, 2016), primeiramente
identificado no ano de 1947 em Uganda e posteriormente observado nas ilhas
Yap da Micronésia, em 2007, e na Polinésia francesa, em 2013 (VARGAS et al,
2016). As descrições etiológicas e clínicas coincidiam com os da situação que
o doutor observara com seus pacientes. Enviou, então, amostras contendo o
material genético de pessoas adoecidas com a recomendação de testagem
para o Zika vírus (ZIKV).
Os exames, realizados pela Fiocruz/Paraná, voltaram com resultado
positivo para o Zika vírus. A identificação foi posteriormente confirmada por
outros pesquisadores e em abril de 2015 o Ministério da Saúde (MS) divulgou
oficialmente que o agente infeccioso da “doença misteriosa” era o ZIKV.
Apesar do contágio pelo ZIKV já preocupar as autoridades médicas
devido a alguns relatos de complicações neurológicas tardias como a Síndrome
de Guillain-Barré (SGB)3 registrados em junho de 2015, a epidemia alcançou
maior notoriedade após a confirmação, pelo MS, de que o aumento expressivo
de notificações de recém-nascidos com microcefalia observado nos Estados de
Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Bahia no mês de outubro
estariam associados à infecção pelo vírus Zika durante a gestação.

3
A Síndrome de Guillain-Barré (GBS) é uma fraqueza muscular imunomediada que pode resultar em
espasmos, dores de cabeça e paralisia.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

A doença, caracterizada pelo tamanho reduzido da cabeça dos recém-


nascidos, possui múltiplas causas: há registros de microcefalia associada a
doenças infecciosas como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes e
sífilis (TORCHS), mas também pode ser originada por outros fatores, como
doenças genéticas ou a exposição da mãe a substâncias tóxicas durante a
gestação.
Desde a divulgação oficial do MS, em novembro de 2015, até o dia 17
de julho de 2017, a Secretaria de Vigilância em Saúde registrou em seus
boletins epidemiológicos 2.869 casos confirmados para microcefalia associada
ao ZIKV (BRASIL, 2017b). Essas crianças têm apresentado um complexo
conjunto de sintomas para além da microcefalia: distúrbios de ordem
ortopédica, oftalmológica, odontológica, cardíaca, motora, dificuldade de
alimentação e respiração, paralisias cerebrais e a ocorrência de convulsões
estão entre os sintomas mais observados (FEITOSA et al, 2016).
Devido a esse conjunto de manifestações clínicas, especialistas têm
entendido o fenômeno como uma síndrome, que passou a ser chamada de
“Síndrome Congênita do Zika Vírus” (SCZV), mas é importante ressaltar que
não existe um espectro de sintomas já definido para a Síndrome, estando sua
própria definição em constante mudança.
É frente a este contexto de grandes incertezas em um momento pós-
epidemia, que se desenvolvem as relações que propomos discutir aqui. A
saber, os limites e as características da comunicação travada entre mãe e bebê
que opera em graus muito profundos4. Como mostram os dados, os bebês
nascidos com a Síndrome possuem particularidades corporais e de
desenvolvimento que atrasam, ou impedem, o exercício da fala, estabelecendo
a necessidade de outras formas de comunicação e o estabelecimento de algo
que poderia ser entendido como uma “linguagem afeccional”, isto é, que
transcorre no âmbito dos afetos entre os corpos dos bebês e das mães.
As particularidades corporais dos bebês também produzem
comportamentos que as mães precisam estar o tempo todo atentas para

4 Queremos ressaltar que 1) não estamos propondo uma naturalização, ou essencialização, do


papel materno na criação dos bebês com micro; 2) que embora usemos “mãe”, deve-se
compreender que esta não é uma categoria fechadas, avós, por exemplo, também participam
desse intenso processo. Existe também outras esferas ainda não exploradas, como a dos
irmãos dos bebês de micro e como eles se relacionam entre si.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

entender e por vezes evitar, como o choro constante e agudo dos primeiros
momentos da vida. Nesse processo, estabelece-se um conjunto de saberes,
uma ciência doméstica, do qual as mães se armam quando em interface com
os discursos biomédicos. Como ressaltamos, a Síndrome ainda é envolta em
camadas de contestação e controvérsia no âmbito da ciência biomédica. Ela
não está estabelecida e os limites dos bebês nascidos com ela não são
plenamente conhecidos. Nesse contexto movediço, as mães ganham terreno
na arena de disputas de discursos e práticas médicas com seus saberes
construídos e adquiridos na convivência e no cuidado.
Para nortear o texto, utilizaremos dados etnográficos produzidos pelas
pesquisadoras Fernanda Vieira, Lays Venancio e Soraya Fleischer a partir do
projeto “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos
diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres
e suas famílias no estado de Pernambuco” que está sendo coordenada pela
professora Soraya Fleischer junto ao Departamento de Antropologia (DAN) da
Universidade de Brasília (UnB). O grupo realizou sua primeira imersão em
campo no Recife em outubro de 2016. A viagem resultou no primeiro Tomo de
diários de campo do projeto, material ao qual tivemos acesso após
consentimento de todas as pesquisadoras envolvidas na produção de dados e
que será utilizado por nós no desenvolvimento deste trabalho. Aproveitamos
para agradecer às pesquisadoras pela autorização de uso desses dados.

Entendendo relações: mães e bebês em simbiose

O que argumentamos aqui é que as relações que se desdobram entre


mães e seus bebês se dão de forma tão intensa, que é notável o
desenvolvimento de formas muito particulares de conhecimento do outro e que
a partir dessas formas, os bebês são postos em diálogo com o mundo.
As mães sentem seus bebês com intensidade, sentem suas vontades,
conseguem interpretar diferentes momentos e formas de choro, reclamações,
comportamentos e expressões. E para além desse sentir que produz
conhecimento, há uma outra via possível: a da sensibilidade do bebê em
relação ao mundo que lhe circunda (Valim, 2017). Não afirmamos que essa
relação é exclusiva deste contexto, isto é, mães de bebês sem microcefalia
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

também podem desenvolver relações profundas de conhecimento e


comunicação com suas crianças. No entanto, existem alguns elementos que
acrescentam camadas de diferença e intensidade que tornam essa relação um
fenômeno potente de análise. Analisamos dois desses elementos a seguir.

Da relação entre mãe e bebê para o mundo


O primeiro desses elementos é o rótulo da deficiência atrelado às
crianças e que engendra todo um sistema de relações sociais possíveis em
seus trajetos e trajetórias.
A rotina terapêutica dos bebês nascidos com a SCZV é intensa.
Processos de estímulo de diversas ordens são constantes em suas vidas.
Fisioterapia, consultas oftalmológicas e exames variados são alguns exemplos
daquilo que é componente da rotina de vários deles. As andanças pelas ONGs
e pelos balcões do Estado em busca de assistência são outros exemplos. Os
trajetos são quase todos realizados de ônibus, onde essas crianças, algumas
facilmente identificáveis como nascidas com a Síndrome, tornam-se alvos dos
mais diversos comentários.
Muitas mães relataram às pesquisadoras momentos de intenso
desconforto vivenciados nos transportes públicos: algumas pessoas preferem
manter distância de suas filhas, outras lançam para elas olhares de
estranhamento, e há casos mais explícitos em que essas crianças são
diretamente chamadas de “bicho”, “ET”, “coisa” e “demônio”, todos nomes
ouvidos em campo pelas pesquisadoras.
Cabe às mães a defesa de seus bebês. E, por defesa, entendemos a
negociação entre aquilo de que elas têm plena certeza, isto é, que os bebês
são como qualquer outro e que a diferença não os coloca em nenhum status de
inferioridade por um lado, e a acusação de anônimos de que essas crianças
são “monstros”, “demônios”, “bichos” ou outro nome utilizado para alocá-los na
esfera do “não-humano”, por outro.
Assim, as mães estão com suas crianças o tempo todo, falam por elas,
sentem suas angústias e têm suas angústias sentidas pelos bebês. Ao longo
de todo o percurso dessa extensa rede terapêutica, política e institucional, o
rótulo da deficiência segue os bebês, resvalando suas consequências nas
mães que os acompanham.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Os estudos da deficiência desde os anos 60 e 70 do século passado já


mostraram como a categoria opera um sistema social de opressão (Diniz,
2007; Mello, 2009). Ao deslocar a deficiência do escopo individual, como era
localizada pela biomedicina, e localizá-la no campo coletivo e social, os
estudiosos propuseram uma torção política extremamente profícua para
pensarmos que as relações sociais que as pessoas com deficiência
desenvolvem estão sempre passíveis dos ruídos discursivos que emanam do
choque entre as noções de normatividade, desenvolvimento e funcionalidade, e
da noção de que a deficiência representa uma faceta da diversidade corporal.
A esses ruídos podemos atribuir um nome: capacitismo.
Nos itinerários dos bebês nascidos com Síndrome, não faltam exemplos
desse capacitismo operando as relações sociais. Seja no espaço mais público,
como a rua e o transporte coletivo, seja no espaço institucional, biomédico e
estatal, a noção de que a deficiência como marcador de uma diferença
fundamental e perceptível, no caso da maioria dos bebês, provoca nas mães
uma reação de defesa a seus bebês, um esforço de realocação destes na
esfera da humanidade, dos direitos e do respeito. Isso fica evidente no diálogo
das pesquisadoras com Sandra.
Para contextualizar brevemente as leitoras desse texto, Sandra é a avó
de Caio, uma das crianças com micro conhecidas em campo. À época da
pesquisa, Caio tinha acabo de completar dois anos de idade. Soraya conheceu
a família na casa aonde moram Sandra, Caio e seus pais, Joyce e Manuel.
Durante a conversa, dona Sandra revelou que inicialmente, quando o
neto havia acabo de nascer, ela, apesar de esmorecida pelos comentários e
olhares lançados para Caio, não reagia a eles: “Acho que é porque eu tinha
preconceito também”, especulou para Soraya. O convívio com o neto, no
entanto, transformou as ideias de Sandra. Hoje em dia ela conta que acha tudo
mais normal, que aceita o diferente e sabe que o neto não é de outro mundo:

“Hoje, se alguém fala, ‘Tadinho do bichinho’, eu digo logo, ‘Não é


bicho, é gente’. A gente tem que lutar para incluir nossos filhos. A
gente vai pra tudo que é lugar, a gente vai pra shopping, anda
tudo lá dentro. A gente faz piquenique no parque, a gente sai
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

mesmo. Não tem essa coisa de ficar dentro de casa, escondido.


Tem que sair, tem que mostrar nossos filhos.” (DCSF, 2016:89)

Talvez essas reações sejam parte de um arsenal comum que a


socialização provê a certos papéis sociais. No entanto, é a deficiência
enquanto diferença e mobilizadora de diversas relações sociais específicas que
dispara essas reações, que elabora o contexto nas quais elas são práticas
necessárias e constituintes. A esse processo de defesa engatilhado nas mães
chamamos, a princípio, de tradução. Isto é, na intensa rotina de cuidado de
suas crianças, as mães reestabelecem suas noções de humanidade em um
processo intensamente balizado pelos afetos.
A diferença e a Síndrome tornam-se marcadores e características de
seus bebês, obviamente, mas as mais diversas estratégias surgem para
contornar qualquer tentativa de reduzi-los a esses marcadores. Destarte, as
mães acrescentam o conhecimento que elas constroem diariamente acerca de
seus bebês às noções construídas socialmente, as representações sociais
destes nascidos com a SCZV. Assim, vários graus de profundidade e
subjetividade são agregados às crianças.
Sandra, por exemplo, demarca a esfera da diferença de Caio: “Os
neuroniozinhos dele é tudo meio mortinho, você sabe. Lá dentro, assim, não
funciona como a gente, com a rapidez da gente” (DCSF, 2016:192). É por isso
que Caio ainda não chama pela mãe verbalmente, explica a Avó: “Ele tem dois
anos e ela nunca ouviu ele falar mãe pra ela. Vê só. Não é fácil isso.” (DCSF,
2016:192)
Essa aparente “falta” de capacidade de falar, no entanto, não se
estabelece enquanto marcador dominante: ela é imediatamente dissipada
dentre outras habilidades que vão sendo aos poucos reconhecidas pelas mães
e cuidadoras no processo de convivência e conhecimento dos bebês. Após
observar a dificuldade de fala do neto, Sandra continua:

“Mas ele sabe que é a gente. Quando o pai chega em casa,


ele fica doido. Ouve a voz lá de fora, olha para ele. Sabe que é o
pai, sabe que é ele. Ou quando meu pai chega do trabalho, meu
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

pai faz uma festa para ele. Ele adora, sorri, reconhece mesmo”
(DCSF, 2016: 192)

Ou seja, Sandra chama atenção para o fato de que falar é uma das
formas de reconhecer alguém, não a única. Há várias outras maneiras de estar
presente, de se construir e ser construído enquanto membro de uma família.
Se o processo que se desdobra cotidianamente entre os bebês com
Síndrome e o mundo a sua volta é o da redução às suas deficiências, a
tradução proposta pelas mães vai na direção oposta, a da expansão,
produzindo contra-ruídos, fazendo barulho e fincando a identidade de seus
bebês no escopo da humanidade, longe das concepções de monstros e
demônios.
As mães traduzem a miríade sensível percebida por elas na convivência
com suas crianças para o mundo externo, elas pegam o que de mais profundo
vai surgindo na relação intensa de cuidado e afeto e transformam em fala, em
discurso, em defesas de suas crianças frente às adversas reações públicas a
elas.
O segundo elemento que acionamos para justificar e refletir sobre a
relação diferenciada que nos propomos a analisar diz respeito à associação de
outros marcadores sociais de diferença que entram no jogo das relações
sociais produzidas a partir da Síndrome.
Como mostram diversas autoras (Lesser e Kitron, 2016; Nunes e
Pimenta, 2016; Carvalho, 2017), a Zika é uma epidemia no sentido de sua
abrangência generalizada, mas é bastante localizada no eixo da classe e da
raça. O flagelo da doença recai nas zonas negligenciadas, nas localizações
periféricas, onde a vontade do Estado de deixar viver as suas populações
chega rala, frágil, debilmente materializada nas péssimas condições sanitárias
e nas sucateadas estruturas da saúde pública. Assim, um olhar interseccional
para a realidade das mães de micro e seus bebês mostra como a Síndrome
agrava um já complicado estado de bem-estar social da família por uma via e,
por outra, na contramão, afeta o acesso dos bebês às terapias de estimulação
precoce tão imprescindíveis para o seu contínuo desenvolvimento. Os
marcadores aliam-se na produção de diferenças.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Rita Segato (2005), ao analisar a categoria de raça em um paralelo com


a linguística estruturalista, propõe que a raça é um signo e, como tal, é
interpretada e significada a partir de estruturas prévias de fundo histórico,
psicológico, político, social etc. A localização do indivíduo negro na sociedade
seria dada, no imaginário, a partir das representações coletivas. Embora um
pouco ultrapassado, o argumento ainda tem uma certa validade, principalmente
quando pensamos em paralelos que podem ser traçados com outros
marcadores de diferença.
Como já foi dito, a deficiência opera uma diferença, um sistema de
opressão, e produz ruídos nos entendimentos e classificações externas dos
indivíduos com deficiência. Nesse jogo, as mães estão a todo momento
propondo novos entendimentos acerca de seus filhos. Estão constantemente
provocando deslizamentos e micro convulsões (ou “sustos”, para usar uma
categoria local) nas estruturas de entendimento do que é um bebê normal, de
que concepções de desenvolvimento se fala no plano ideal, dos modelos ideais
de aprendizado ou aquisição de habilidades e no estabelecimento dos limites
de possibilidades de vida de seus bebês.
No nosso entendimento da tradução proposta acima, as mães realizam
um esforço para associar seus bebês com os elementos estruturais que
identificam o escopo da normalidade.

Considerações finais
No contexto da epidemia da Zika e suas consequências, um mundo foi
mobilizado, construído, demolido e reelaborado frente a um dos graves
desdobramentos da epidemia: a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Milhares
de crianças diagnosticadas com esta síndrome passaram a percorrer os
corredores do estado e terem seus corpos manipulados pelos saberes
biomédicos para serem estimulados, por um lado, e fornecerem informações
relevantes para o entendimento da SCZV, por outro.
Percorrendo esses trajetos com os bebês e se envolvendo em uma
extenuante rotina de cuidado em casa, as mães desenvolvem um poderoso
conjunto de saberes a partir da observação intensa dos corpos dos bebês com
micro. Se o bebê não consegue se comunicar, outras estratégias de
comunicação vão sendo desenvolvidas para estabelecer a transmissão de
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

mensagens que indiquem o estado de humor e a receptividade das terapias,


por exemplo.
Munidas desses saberes, as mães se interpõem entre os bebês e o
mundo, sobrepondo suas vozes e discursos aos ruídos do capacitismo, a
opressão sistemática a que estão submetidas as pessoas com deficiência. A
esse processo, chamamos de tradução como uma estratégia de provocar uma
reflexão mais ampla.
Por fim, ficam questionamentos acerca da aplicabilidade da noção de
tradução ao contexto da microcefalia conforme percebido pelas pesquisadoras
cujos dados analisamos aqui. A deficiência, a intensa rotina terapêutica, a
necessidade de construir saberes autônomos em resposta à instabilidade do
conhecimento biomédico sobre a síndrome são elementos suficientes para
afirmar que as mães teriam autonomia para traduzir seus bebês para o mundo?
O movimento político e discursivo de aproximação deles do escopo da
humanidade, aliado às estratégias que contornam a severidade da Síndrome
parecem indicar que sim.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências bibliográficas

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim


Epidemiológico: Monitoramento integrado de alterações no crescimento e
desenvolvimento relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias
infecciosas, até a Semana Epidemiológica 28/2017. Volume 48, número 24,
2017.

BRUNONI, Décio et al. “Microcefalia e outras manifestações relacionadas ao


vírus Zika: impacto nas crianças, nas famílias e nas equipes de saúde”
In: Ciênc. saúde coletiva, volume 21, nº 10, pp.3297-3302, 2016.

DINIZ, Débora. O que é deficiência? Editoria Brasiliense, São Paulo, 2007.

____________. Zika: do Sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2016.

FEITOSA, Ian Mikardo et al. Aspectos importantes da Síndrome da Zika


Congênita para o pediatra e o neonatologista. Boletim Científico de Pediatria -
Vol. 5, N° 3. 2016.

LESSER, Jeffrey; KITRON, Uriel. A geografia social do Zika no Brasil.


Estudos Avançados 30 (88), 2016.

MELLO, Anahi. Por uma abordagem antropológica da deficiência: pessoa,


corpo e subjetividade. Monografia de Graduação, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas – Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.

NUNES, João; PIMENTA, Denisa Nacif. A epidemia de Zika e os limites da


saúde global. Lua Nova, São Paulo, 98, 2016.

SEGATO, Rita Laura. Raça é signo. Série antropologia no. 372. Brasília:
Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, 2005.

VALIM, Thais. Ele sente tudo que a gente sente: um olhar antropológico sobre
a sociabilidade de bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Zika Vírus
em Recife/PE. Monografia de graduação, Departamento de Antropologia –
Universidade de Brasília, 2017.

VARGAS, Alexander et al. Características dos primeiros casos de microcefalia


possivelmente relacionados ao vírus Zika notificados na Região Metropolitana
de Recife, Pernambuco. Epidemiologia e Serviços de Saúde, volume 25,
número 4, 2016.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

“Raro sería redirse”: notas sobre as experiências de duas mães


dragoas
Júlia Campos Clímaco1
Feministas dos estudos da deficiência destacam a importância de considerarmos o cuidado na
experiência de pessoas vivendo com deficiência (ou elas próprias deficientes, ou cuidadoras/es
de pessoas com deficiência). Para elas, uma ética feminista do cuidado evidencia uma falsa
dicotomia entre cuidado e cuidador, já que o cuidado é uma das múltiplas relações de
interdependência que nos constituem como sujeitos na alteridade, nos mostrando a fragilidade
de nossos corpos, de nossas possíveis falhas e dores. O cuidado corporifica essa experiência
de alteridade, na relação, no toque, no tato. Essa relação, muitas vezes vivida no espaço
privado, pode nos dizer muito sobre a experiência de se viver com deficiências. A partir dessas
articulações e nas múltiplas possibilidades de maternidade, esse trabalho compartilha um
pouco da experiência de duas mulheres que tiveram filhos com uma doença neurodegenarativa
rara, Tay-Sachs, sem cura conhecida que causa a morte na primeira infância. Para ressignificar
o que até então compreendiam por maternidade, foi importante para elas ouvir outras mulheres
que haviam vivido experiências semelhantes de acompanhar seus filhos até a morte, que se
nomeavam de mães dragoas. Ofereço, também, alguns dilemas morais que elas parecem viver
nessa maternidade adversa, experimentando, testando e ampliando as possibilidades com o
que lhes toca viver. Reinventando suas relações com o que já conheciam, com o tempo e com
o cotidiano, encontram maneiras novas de estar no mundo, a partir e no cuidado: de si e de
seus filhos/filhas.

Palavras-chave: maternidade, cuidado, Tay-Sachs, estudos da deficiência

Esse trabalho se insere nos estudos críticos da deficiência, que pensa a


deficiência como uma narrativa sobre corpos marcados como diferentes,
produzidos como deficientes. Desde a curva normal, a eugenia, o homem-tipo,
e todas as construções hegemônicas que pautam a subjetividade
contemporânea, há um discurso de separação rígida, dicotômica, em dois
pólos antagônicos: normal e anormal. A norma que define essa separação, que
se sustenta em um empirismo reducionista, alcança os sujeitos em suas
realidades mais privadas, em seus corpos, e em sua própria representação de
humanidade desejada (Linton, 2006: 168).
Há vozes, ainda pouco ouvidas, que falam a partir de suas próprias
vivências como pessoas com deficiências ou como pessoas vivendo com a

1
Doutoranda do Programa de pós-graduação em processos de desenvolvimento humano e saúde,
Instituto de Psicologia, UnB. Analista em Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

deficiência. As narrativas das mulheres dos estudos da deficiência são


possibilidades de ouvirmos essas vozes diferentes, que falam não
necessariamente desde um corpo produzido como deficiente, mas desde a
experiência de se viver com a deficiência a partir de quem cuida de pessoas
com deficiências: filhos/as, companheiros/as ou na relação de trabalho como
cuidadoras (um trabalho majoritariamente feminino). Nessas narrativas, uma
dimensão bastante importante é o trabalho de cuidado, fundamental para a
vida cotidiana de muitas pessoas com (e sem) deficiência e doenças crônicas
(Fine, Glendinning, 2005: 610).
São essas mulheres, feministas dos estudos da deficiência, que
destacam a importância de considerarmos o cuidado na experiência de
pessoas vivendo com deficiência a partir de uma ética feminista do cuidado: o
cuidado é uma das múltiplas relações de interdependência que nos constituem
como sujeitos na alteridade, nos mostrando a fragilidade de nossos corpos, de
nossas possíveis falhas e dores. O cuidado corporifica essa experiência de
alteridade, na relação, no toque, no tato. Essa relação, muitas vezes vivida no
espaço privado, pode nos dizer muito sobre a experiência de se viver com
deficiências.
Em relação às maternidades, essas mulheres (Morris, 1996; Garland-
Thomson, 2006) têm pensado as tensões e possibilidades de se construírem
como mulheres, mães com deficiência ou mães e cuidadoras de filhos/as com
deficiência ou doenças crônicas, desconstruindo a idéia de uma maternidade
única. A partir dessas articulações e nas múltiplas possibilidades de
maternidade, esse trabalho compartilha um pouco da experiência como
mulheres, mães e cuidadoras de duas mulheres que tiveram filhos (ambos já
falecidos) com uma doença neurodegenarativa rara, Tay-Sachs, sem cura
conhecida que causa a morte de indivíduos homozigotos para a mutação que
causa a doença na primeira infância.
Para isso, utilizo as narrativas que elas produziram. A primeira é a
autora norte-americana Emily Rapp, que relata sua história e a de seu filho
Ronan desde seu diagnóstico com 09 meses em janeiro de 2011 até sua morte
em fevereiro de 2013, no livro “The Still Point of the Turning World” (2014). A
segunda é a ativista espanhola Beatriz Fernández Domínguez, fundadora da
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

associação ACTAYS (Asociación Acción y Cura para Tay-Sachs2) que narra


um pouco de sua vida e de sua filha Isabel no Blog
http://talvezisabel.blogspot.com.br, começando 08 meses depois de receber o
diagnóstico em agosto de 2012 até sua morte, narrada na última entrado no
blog, em outubro de 2014.
Sei dos universos históricos que as separam, mas ambras partilham o
universo narrativo dessa experiência extrema desse diagnóstico: ambas dizem
que o diagnóstico as fez se sentirem apartadas de todo o resto do mundo
conhecido e as aproximarem de pessoas muito diferentes, mas que
compartilhavam de seu sofrimento. Além dessa identificação com outras
pessoas que haviam passado por essa doença com seus filhos, há outra
possibilidade de dialogar com as duas: tanto Emily quanto Beatriz afirmaram
que um dos importantes caminhos encontrados para dar significado para suas
vivências e se refazerem subjetivamente como mães foi o contato com outras
mães e mulheres.
1. Mães dragoas
Para ressignificar o que até então compreendiam por maternidade, foi
importante para elas conhecer outras mulheres que haviam vivido experiências
semelhantes de acompanhar suas crianças até a morte, que se nomeavam de
mães dragoas, uma definição proposta por Emily Rapp e que, para Beatriz, era
uma categoria que parecia lhe representar.
O termo foi escolhido por Rapp porque, para ela, apenas uma criatura
mitológica, forte, amedrontadora, mas mágica, poderia dar conta do que vivem
essas mulheres em uma maternidade para o presente, em que o futuro
significa a morte da criança e na qual as conversas cotidianas são sobre
cateteres, tanques de oxigênio, decisões sobre cuidados paliativos e morte.
Explica, ainda, que a palavra dragão tem sua origem no grego e significa “ver
claramente”: “Ninguém quer ver o que nós vemos tão claramente. Ninguém
quer saber a verdade sobre seus filhos, sobre eles mesmos: nenhum de nós é
para sempre”. (Rapp, 2014: 18), especialmente nesse tempo de avanço medico
em que ninguém quer ouvir sobre a falibilidade dos corpos. Essas mães vivem

2 http://actays.org/
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

uma dor que consideram tão primeva que obriga as pessoas a verem refletidas,
em suas escamas de dragoas, seus próprios medos.
Para Beatriz, essa categoria a qual ela odeia pertencer, a representa
como nenhuma outra, porque lhe parece que somente pessoas que passaram
por isso podem compreender o que é viver apenas o presente, mas com uma
intensidade antes desconhecida, temendo o futuro (Domínguez, março de
2013).
A redefinição de suas vidas por causa da doença as leva a procurar
outras pessoas que viveram situações parecidas para que consigam entender
e transformar o que estão vivendo, para que possam, enfim, encontrar seus
lugares como mães. Essa experiência dialoga com o conceito de
biossociabilidade, definido por Paul Rabinow como uma nova localização de
identidades biológicas, não mais centrada nas clássicas categorias ocidentais
de raça, classe e idade, mas centrada no e ao redor do DNA e na tentativa de
seu mapeamento; em categorias biológicas, corporais ou médicas (Rabinow,
1999: 13). Essas categorias operam como novos modos de subjetivação,
intimamente relacionados com as tecnologias diagnósticas existentes.
Para Beatriz, encontrar outras famílias que partilhavam de sua
experiência com a doença foi fundamental para que ela pudesse encontrar um
sentido para o que estava vivendo e afirma que entrou em uma guerra com os
outros familiares contra a doença, uma guerra que busca, sobretudo, chamar a
atenção para a doença de Tay-Sachs e encontrar apoio financeiro para que se
encontre uma cura. Afirma que essa é sua missão, o que tem sido, atualmente,
sua atuação na ACTAYS.
Esses sentimentos de pertencimento e missão ficam mais claros se
pensarmos que os familiares e as crianças afetadas pela doença são
entendidas como uma comunidade, construída pelo diagnóstico, pelo DNA,
nesse caso, por mutações disfuncionais nesse DNA. Essa possibilidade de
comunidade parece especialmente relevante para o caso de deficiências ou de
doenças crônicas e raras, uma vez que esses grupos compartilham suas
experiências em seus próprios grupos, nem mesmo com sua família imediata:
são experiências individuais e isoladas que, inclusive, podem perturbar as
noções de parentesco.
2. Experimentando com e a vida com a morte:
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Essas duas mulheres, mães dragoas, a partir do diagnóstico, foram


experimentando a vida e com a vida. Uma das grandes potências de suas
narrativas é vislumbrar como a experiência da maternidade é diversa e
polissêmica. Com Jorge Larrosa (2004), entendo a experiência como “isso que
me passa” (ou isso que nos acontece) isso que nos passa e nos retira de onde
estávamos, nos suspende e nos devolve diferentes, transformados.
Cheryl Mattingly (2014) propõe a idéia de laboratórios morais como um
espaço metafórico de experimentação, em que as pessoas estão testando as
possibilidades das vidas que lhes tocam viver, muitas vezes tentando abrir
ensaiando novos caminhos contra as probabilidades. Essa metáfora nos
remete a pessoas experimentando (real ou hipoteticamente), tentando e
errando, mas tentando: são experiências arriscadas, mas que podem abrir
possibilidades para outros mundos. No caso de Emily e Beatriz, elas parecem
viver dilemas morais constantes nessa maternidade: estão experimentando,
testando e ampliando as possibilidades de suas vidas e de seus filhos.
Primeiramente, estão experimentando a vida com a eminente morte de
suas crianças e com a vida que ainda têm: como encontrar um caminho em
que não percam as esperanças de uma cura, em que consigam viver a vida
que seus filhos ainda têm sem se desesperar na tristeza de saber que os estão
acompanhando para a morte. Elas estão tentando cotidianamente, ainda, criar
mundos possíveis para seus filhos: um mundo que os receba pelo curto
período que aqui estarão e para que eles tenham vidas as melhores possíveis.
Estão experimentando, portanto, maternidades diferentes, maternidades
vividas sempre no tempo presente, centrada em cuidados cotidianos, sem
finalidade dada, apenas possível, imaginado e reimaginado, em uma constante
reescrita de suas próprias narrativas.
2.1. O diagnóstico
O diagnóstico de seus filhos traz uma ruptura, uma tragédia antes
desconhecida. Ambas relatam o horror que foi receber o diagnóstico. Beatriz já
estava há mais de um ano buscando um diagnóstico, pois sua filha Isabel havia
tido um desenvolvimento típico até pouco mais de os dois anos e, depois,
começou a perder o que já havia aprendido. Seu diagnóstico, há muito
buscado, foi um alívio para os médicos que finalmente puderam compreender o
que lhe acontecia, mas foi a pior resposta que seus pais podiam esperar. A
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

certeza do diagnóstico veio acompanhada da impossibilidade da cura, pelo


menos alguma cura conhecida.
Ronan, o filho de Emily Rapp, vinha apresentando algum atraso em seu
desenvolvimento, que seus pais estavam atribuindo a algum problema de
visão. E foi em uma consulta corriqueira com um oftalmologista desconhecido
que receberam o diagnóstico, recebido como uma sentença de morte e um
desejo desesperado de devolver o filho ao ventre, na tentativa de que
retornasse a um lugar seguro: Emily sabia o suficiente sobre a doença para
entender onde começava e qual seria o fim.
Ambas percorram caminhos diferentes depois do diagnóstico: Emily
Rapp, enquanto acompanha a progressão da doença de seu filho, escreve o
livro, sobretudo, para que seu filho tenha uma narrativa, um mito: para que sua
história não se encerre na tragédia que foi sua morte ainda antes de aprender a
falar. Para ela, a certeza da morte do filho a levou a ter que reaprender a viver,
reaprender a ser ela e a ser mãe, visto que a maternidade é orientada para o
futuro (Rapp, 2014: 13). Não havia narrativas nas quais se espelhar, não
conhecia outras maternidades que não fosse a de preparar as crianças para a
vida. Assim, ela entendeu que além de cuidar fisicamente do filho, ela deveria
contar sua história, para que sua vida se estendesse por mais tempo e para
que houvesse uma narrativa a ser compartilhada sobre ser mãe para a morte.
Já Beatriz narra como a impossibilidade de cura da sua filha e a
impotência diante dos genes a aproximou de outras famílias que haviam
passado por isso e a levou para o ativismo na busca pela cura. Hoje, depois da
morte de Isabel, é a essa associação que ela se dedica, a ACTAYS: com o
slogan, Raro seria rendírse (estranho/raro seria se render, com o trocadilho que
a palavra raro tem em espanhol), entende que a única saída para a
impossibilidade da vida de sua filha e da sua própria como mãe é lutar pela
filha, por outras crianças com a doença, por ela mesma.
Entretanto, entre o diagnóstico e a escolha por esses caminhos, há uma
explosão das categorias até então conhecidas sobre a maternidade e os
experimentos morais cotidianos para aprender a viver essa nova vida, para a
qual não há narrativas disponíveis, como já nos sinalizou Emily. O primeiro
passo parece ter sido o de conseguir dar conta de todas as expectativas e
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

projeções em relação ao bebê não apenas imaginado, mas vivido ao longo de


algum tempo, antes que começara a deterioração da saúde.
2.2. Maternidade no cotidiano
Depois do diagnóstico, elas relatam que o valor da vida passou a ser o
cotidiano e os cuidados diários. Tiveram que reinventar a vida boa de ser
vivida, as suas próprias e a de seus filhos. Entretanto, nos contam que essa
reinvenção a partir do cotidiano, apesar da profunda e terrível tristeza e
constante luto, trouxe uma sensação de liberdade inédita, um prazer
desconhecido de viver sem expectativas, de fazer com que cada dia fosse o dia
mais feliz da vida de seus filhos: “É um privilégio único e terrível testemunhar
uma vida inteira, acompanhá-la desde sei começo até seu fim. Mas é, também,
uma oportunidade de amar sem uma rede de proteção, sem o futuro, sem o
passado, mas exatamente agora”. (Rapp, 2014: 246). Para Beatriz: “Enquanto
isso, vou me encarregar de que ela seja a criança mais feliz do planeta’. Essa
era a fórmula que repetia em uma conversa depois da outra, tratando de
manter a voz firme, de conter o choro atroz que vivia na minha garganta. [...]
Era minha nova realidade, estava re-aprendendo a viver.” (Domínguez, agosto
de 2013).
A busca por encontrar o melhor caminho para suas vidas, dada a
realidade terrível com a qual foram confrontadas, nos remete ao que Mattingly
(2014) propõe sobre pais e mães que precisam imaginar novas vidas para eles
e seus filhos, muito diferentes do que haviam pensado e almejado: criar
crianças felizes e saudáveis. Têm que reinventar seu cotidiano, incluir os
circuitos terapêuticos, construir uma maternidade feita de momentos presentes,
em que cada dia a mais é um dia a menos3. A certeza da morte e também da
vida parece se tornar o novo horizonte.
Reforçam a felicidade encontrada nesse novo cenário e insistem para
que não tenham pena delas: não estão aqui para que nos sintamos bem com
nossas vidas e tampouco para nos ensinar lições. Elas e suas crianças têm
valor em si mesmas: seus filhos têm sua própria existência, independente
inclusive da tristeza de seus pais de acompanhá-los até a morte. Como afirma

3“The sky was clear, the air was soft. That’s Ronan’s day of living in this world. One more alive day, and also another day – for both
mother and son – closer to death. We could wish it weren’t true, we could wish desperately, but we could not have one without the
other.” (Rapp, 2014, p. 204)
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Beatriz: “Estou porque está Isabel”, a vida segue e é importante viver cada dia
enquanto suas crianças estão vivas: um dia todos vamos morrer, todos os
outros, estaremos vivos.
Um dilema que Emily e Beatriz compartilham é o de ter que decidirem
sobre que tipo de suporte à vida admitiriam em seus filhos: sonda nasogástrica,
sonda neoenteral, equipamentos para a sucção de secreção, auxílio
respiratório, vida ligada a aparelho... Quando decidir que essas intervenções já
não valiam na vida suficientemente boa que imaginavam para seus filhos? É
interessante ver como esses dilemas são vividos cotidianamente e que as
decisões sobre eles não são dadas nem fixas. Elas experimentam com eles,
conforme a doença avança. Emily Rapp decidiu não utilizar alimentação
forçada em seu filho e precisou ser assegurada pelos médicos de que essa não
era uma decisão cruel e teve que lutar contra a idéia de que estava matando
seu filho de fome e a culpa que sentia por essa decisão.
Já Beatriz relata que quando ouvia outras famílias contarem sobre o uso
da sonda parecia a ela que essa era uma escolha absurdamente difícil de ser
tomada, mas que quando foi sua vez de decidir pela sonda, a escolha foi a
mais fácil, uma vez que tinha acompanhado sua filha desenvolver uma reação
muito negativa em relação ao ato de alimentar-se. Assim, os experimentos
morais nos quais estavam envolvidas desafiavam cotidianamente e os limites
da vida boa de ser vivida são difusos. Quando passar da esperança no
cotidiano e decidir por começar os cuidados paliativos para sua morte?
2.3. Os múltiplos sentidos de esperança e cura
Para Beatriz, o principal dilema moral é o de manter a esperança de que
se chegue a uma cura ainda no tempo de sua vida, o que vemos no próprio
nome do blog: Tal vez Isabel. A partir daí, entender como é possível cuidar
dessa criança que ainda está viva, sem perder a esperança de que possa
haver uma cura, mas não se agarrar a essa possibilidade, sabendo o quão
difícil ela é.
No livro de Emily Rapp, não encontrei esperanças em alguma cura para
seu filho. Desde o momento em que recebeu o diagnóstico, teve a certeza de
que seu filho morreria. Assim, o dilema central da vida dela não parece ser o de
manter a esperança de que seu filho possa sobreviver a essa doença, mas de
lidar com a vida muito mais do que com a morte e de viver sabendo que vai ter
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

que se despedir dele, saber que vai ter que vê-lo morrer e sobreviver, ela, a
isso.
Assim como as maternidades são múltiplas tanto quanto o são as
pessoas e suas histórias, lendo essas narrativas descubro que a idéia de cura
também o é. Para Emily, a cura não seria seu filho amanhecer sem a doença,
visto que ela não acreditava nessa possibilidade, mas que ele tivesse seu lugar
no mundo, a cura seria que o mundo aceitasse as pessoas como elas chegam.
Tanto Beatriz quanto Emily anseiam não perder a vida de seus filhos, seja pelo
ativismo, seja pela escrita de seu mito.
Para Beatriz, a força que sua filha teve de morrer inteira: ainda
enxergando, ouvindo e sentindo o mundo, interagindo com quem amava;
parece ser um tipo de cura ou pelo menos um combate à doença: “... seu forte
caráter que com apenas um ano já começou a mostrar e com o qual se foi
desse mundo. Antes do tempo, mas encarando o monstro de Tay-Sachs de
frente, como que lhe dizendo, ‘você não terá tudo de mim” (Domínguez,
outubro de 2014). Essa experiência também indicou a Beatriz uma nova forma
de ter esperança e de manter a vida da sua filha: ela deveria ser forte no
combate à doença, deveria aproveitar o que aprendeu com sua experiência,
fortalecendo sua associação a cada dia.
3. Escrever para manter vivas suas experiências e a vida de seus filhos:
Essas duas mulheres insistem em que suas histórias não sejam vistas
como tragédias. Não escrevem para causar nem pena por elas e nem alivio
para quem lê. Escrevem para encontrarem um sentido novo para suas vidas,
para dar sentido à vida de seus filhos, escrevem para inscrevê-los no mundo,
para que aqui permaneçam quando já tiverem ido. Escrevem, também, porque
afirmam ter aprendido muito sobre as possibilidades de serem mães nesse
mundo e que não vêem essas possibilidades relatadas e compartilhadas.
Escrevem, então, para compartilhar suas experiências para que outras
mulheres em situações similares possam ter outras fontes com as quais se
subjetivar, mas também para que as pessoas saibam que suas vidas não são
uma tragédia, sem, com isso, negar a tragédia que vivem.
Suas experiências de cuidado nos confrontam com nossas idéias de
cuidar para o futuro, maternar para o desenvolvimento e vida plena. Nos
mostram, com uma força arrebatadora, que experimentaram e criaram com
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

suas vidas e de seus filhos, enfatizando a interdependência necessária para


viver e manter a vida. Não importa quão curta essa vida possa ser, a
maternidade parece se construir nos desejos e anseios de cada uma, sem
buscar universais.
A partir da ética feminista do cuidado, essas mulheres nos mostram um
horizonte possível de cuidados em que se constroem redes de sustentação não
apenas a essas crianças que necessitam de cuidados, por vezes extremos,
mas de sustentação à vida em comunidade, colocando em evidência a
reciprocidade na relação de cuidados: uma rede de dependência mútua.
Parecem nos mostrar, portanto, como é curta a medida masculina de um
mundo supostamente não-relacional e como ele esconde pessoas e relações
em prol de uma suposta autonomia e independência neutra.
Retomando Larrosa e sua imagem do sujeito da experiência como “um
território de passagem, algo como uma superfície de sensibilidade na qual
aquilo que passa afeta de algum modo, produz alguns efeitos, inscreve
algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos.” (Larrosa, 2004: 160),
as vidas dessas mulheres foram marcadas por experimentos e por
experiências. Experimentos para fazer de suas vidas e das de seus filhos e
filhas a melhor que poderiam ter até chegar o momento terrível de suas mortes.
Experiências no mundo como mulheres, como mães e como narradoras.
Grupo de Trabalho 10 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Íris Morais. 2014. Osikirip: os “especiais” Karitiana e a noção


de pessoa ameríndia. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.
DOMÍNGUEZ, Beatriz Fernández. Tal Vez Isabel: el blog de Bubi.
Entradas de 20 de março de 2013 a 31 de outubro de 2014. Endereço
eletrônico: http://talvezisabel.blogspot.com.br.
DOMÍNGUEZ, Beatriz Fernández. Asociación Acción y Cura para Tay-
Sachs http://actays.org/
FINE, Michael; GLENDINNING, Caroline. 2005. “Dependence,
independence or interdependence? Revisiting the concepts of ‘care’ and
‘dependency”. Ageing and Society, 25(04): 601-621.
GARLAND-THOMSON, Rosemarie. 2006. Integrating Disability,
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2ª ed. London/New York: Routledgs, 2006.MORRIS, Jenny. (Ed.). 1996.
Encounters with Strangers: feminism and disability. London: The Women’s
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LARROSA, Jorge. 2004. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo
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LINTON, Simi. 2006. “Reassigning meaning”. In: Davis, L. (Ed.). The
Disability Studies Reader. 2ª ed. London/New York: Routledgs, 2006.
MATTINGLY, Cheryl. 2014. Moral Laboratories: Family Peril and the
Struggle for a Good Life. Oakland, California: University of California Press.
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University of Greenwich, London.
RABINOW, Paul. 1999. French DNA: Trouble in Purgatory. Chicago: The
University of Chicago Press.
RAPP, Emily. 2014. The Still Point of the Turning World: a memoir with a
new afterword. New York, Penguin Books.
Grupo de Trabalho 11
Antropologia da Saúde
Coordenadoras: Ximena Pamela Diaz Bermudez
(DSC/UnB); Sílvia Guimarães (DAN/UnB); Rosa Virgínia
Melo (DAN/UnB)
Grupo de Trabalho 11

Antropologia da saúde
A proposta deste grupo de trabalho é acolher reflexões variadas acerca dos
sistemas de saúde, baseando-se nas perspectivas antropológicas de análise
dos fenômenos sociais.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Cuidados paliativos enquanto opção terapêutica: debates sobre


ortotanásia e distanásia no contexto de Brasília, DF

Ângelo Moreira Miranda1

O presente trabalho visa abordar o fenômeno dos cuidados paliativos enquanto


uma abordagem terapêutica que busca consolidação e reconhecimento dentro
dos debates sobre saúde, adoecimento e morte no contexto brasileiro. O
ideário constituinte dos cuidados paliativos, como as referências a uma boa
morte, digna e humanizada, remete a uma abordagem terapêutica que se
contrapõe a abordagem da distanásia, isto é, do tratamento do corpo a
qualquer custo, e do afastamento da morte, tratando-a como falha, muito
presente na prática hospitalar. Logo, sendo um movimento nascido a partir de
críticas ao sistema de saúde que submete o sujeito moribundo a uma morte
hospitalizada, impessoal e fria, os cuidados paliativos se inserem no debate em
torno de uma nova perspectiva de morte e de saúde. Como os pacientes que
recebem esse tratamento paliativo são, geralmente, pacientes que não
respondem aos tratamentos curadores de suas doenças, essa forma de terapia
se propõe a observa-los de forma holística, social, biológica, psicológica e
espiritual. Dessa forma, surge no seio desse movimento uma perspectiva de
terapia que se propõe diferente da oferecida na prática em saúde convencional,
onde a prática em torno da saúde física, biológica, do paciente é protagonista.
Logo, buscando abordar essa relação entre a abordagem terapêutica dos
cuidados paliativos e a abordagem terapêutica da distanásia, apresento
diálogos com profissionais da área de cuidados paliativos atuantes em Brasília,
DF, em que eles apresentam as diferenças e conflitos entre essas práticas
terapêuticas em seus respectivos ambientes de trabalho.

Palavras-chave – Cuidados Paliativos, morte moderna, distanásia, ortotanáisa,


práticas terapêuticas.

1
Ângelo Moreira Miranda é graduando do Departamento de Antropologia (DAN) da UnB.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Cuidados Paliativos, ortotanásia e distanásia

A origem do movimento de cuidados paliativos é caracterizada pela


bibliografia sobre o assunto como ocorrido nas décadas de 1960 e 1970. Muito
do ideário que compõe e representa o movimento paliativo é consequência de
iniciativas ocorridas nessas décadas, que se posicionavam enquanto crítica à
excessiva medicalização dos momentos do morrer. Dessa forma, a tensão que
origina o movimento é baseada em duas perspectivas terapêuticas diferentes.
Uma se baseia no tratamento do corpo como único pressuposto, levando a vida
física até seus limites mais extremos, como a vida em estado vegetativo e por
aparelhos, que caracteriza a distanásia. A outra concepção se baseia na
aceitação da temporalidade do viver e do morrer, buscando o conforto,
dignidade e protagonismo do paciente em estado terminal, conhecida como
ortotanásia.

Para a contextualização histórica da tensão entre modelos terapêuticos


para os pacientes em estado terminal se faz interessante notar tanto o conceito
de morte moderna, como também as iniciativas críticas a essa forma de morte
que deram origem aos cuidados paliativos.

O modelo de morte moderna é utilizado na literatura para englobar uma


série de características do processo do morrer provenientes da sociedade
moderna medicalizada. Alguns trabalhos são emblemáticos na constituição
desse conceito, trabalhos esses que retratam as transformações sociais
ocorridas nas formas de morrer historicamente. Nesse sentido, podemos
destacar aqui as contribuições intelectuais de Philippe Ariès, Norbert Elias e
Michel Foucault. Cada um desses autores trouxe ao debate sobre a morte e o
morrer elementos de análise que caracterizam a organização social da morte
hospitalar na sociedade moderna, e assim apresentam o cenário ao qual os
cuidados paliativos se inserem enquanto movimento crítico.

O primeiro elemento abordado aqui no contexto da morte moderna


provém da obra de Ariès. No livro a “História da morte no ocidente” ele constrói
uma reflexão sobre as mudanças na forma de pensar e vivenciar a morte.
Segundo a pesquisa do autor, que faz uma análise histórica das
representações sociais da morte desde a idade média até a era moderna,
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

ocorreu um gradual silenciamento das representações sobre esse tema na


sociedade ocidental (ARIÈS, 1975: 84). O silenciamento é um elemento
fundamental nessa análise, já que torna a morte um tema interdito, um tabu.

Outro elemento fundamental é trazido por Norbert Elias. Em seu ensaio


“A solidão dos moribundos”, de 1982, Elias apresenta as questões da solidão
no momento do morrer e das relações impessoais com os pacientes
moribundos como centrais na forma da morte moderna. Dessa forma, no
ambiente hospitalar as relações seriam técnicas e impessoais, sendo que as
pessoas próximas da morte estariam sozinhas e cerceadas de seus vínculos
pessoais (ELIAS, 2001: 36).

As análises de Foucault sobre a transformação no seio da ciência


médica também se fazem interessante na contextualização do morrer moderno.
Em seu livro “O nascimento da clínica”, de 1963, o autor apresenta a
transformação na perspectiva anátomo-clínica ocorrida na medicina a partir do
séc. XIX. Logo, apesar de não se deter sobre o tema da morte e do morrer
propriamente dito, o autor aborda as transformações ocorridas no
conhecimento médico europeu que influenciaram em larga medida os cuidados
com as doenças, com o corpo e, portanto, com os moribundos. Portanto, sua
análise demonstra como o ambiente hospitalar foi resignificado com o
desenvolvimento da prática anátomo-clínica, se tornando central para a
medicina na medida em que possibilita a observação escrupulosa da anatomia,
dos corpos e das doenças (FOUCAULT, 1980: 123-124). A partir disso se
desenvolvem maiores possibilidades em compreender e controlar as
características do corpo humano, bem como o próprio processo do morrer.

Portanto, considerando a centralidade desses autores nos debates


sobre o adoecimento e morte na sociedade moderna, pode-se delinear o
conceito de morte moderna partindo dos elementos abordados. Logo, o
silenciamento da morte no nível social, tornando-a tabu, juntamente com a
especialização médica no controle das características corporais, e a
impessoalidade das relações nos momentos de morte, formam o cerne de uma
configuração social, de uma organização social do morrer.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

É sobre esse paradigma social da morte e do morrer que o movimento


dos cuidados paliativos se opõe. A formação ideológica do movimento paliativo
remete ao atendimento do paciente fora das possibilidades de cura segundo
sua totalidade, buscando não apenas trata-lo em seus aspectos físicos, mas
também nos níveis sociais, psicológicos e espirituais. As narrativas que formam
essa base teórica dos cuidados paliativos são baseadas nas figuras de Cicely
Saunders e Elisabeth Kubler-Ross, ambas conhecidas como precursoras das
terapias em cuidados paliativos.

A primeira, Cicely Saunders, foi enfermeira, assistente social, médica e


escritora fundadora e atuante no St. Christopher’s Hospice, localizado em
Londres2. Esse Hospice, fundado em 1967, é um símbolo do movimento
paliativo, se tornando centro tanto de atendimentos aos pacientes em estado
terminal quanto da formação de profissionais na área. É a fundação desse
hospice que demarca o início dos cuidados paliativos em várias publicações
institucionais sobre essa forma de atenção à saúde (IGNACIA. y PALMA, 2007:
17).

Já Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíça radicada nos EUA, iniciou


seus trabalhos com pacientes em estágio terminal nos EUA, onde se deparou
com o isolamento e com a privação de cuidados adequados a esses pacientes
(KÜBLER-ROSS, 1998: 119). A partir desse trabalho com pacientes terminais
ela se tornou grande ativista em busca de condições dignas para o “bom
morrer”, trabalhando em hospitais, fazendo pesquisas e escrevendo obras
muito divulgadas como “Sobre a morte e o morrer”, e “A roda da vida”, sua
autobiografia.

Ambas as autoras citadas realizaram trabalhos com vistas a modificar o


paradigma do morrer descrito por Ariès e Elias, concentrando esforços em
dialogar sobre a morte e o morrer, trazê-los aos campos de saber intelectuais e
políticos, para que assim as pessoas que estivessem em condições de
morbidade e vulnerabilidade se tornassem visíveis às políticas de saúde e ao

2
Os hospices são concebidos pela bibliografia sobre cuidados paliativos como instituições de cunho
religioso que existiam durante a Idade Média. Eles tinham como objetivo propiciar abrigo e cuidado para
viajantes, moribundos e pessoas marginalizadas. Logo, o termo hospice foi retomado pelas instituições
praticantes da filosofia paliativa para denominar o movimento em prol do cuidado e acolhimento digno
aos pacientes terminais (SILVA, 2015: 7).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

cuidado digno. Dessa forma as autoras em questão inauguraram uma nova


agenda de cuidado em saúde, que se espalhou pelo mundo, tornando-se
conhecida como movimento hospice nos países de língua inglesa, e cuidados
paliativos nos países de línguas latinas.

Contexto brasileiro

Logo, a partir das contribuições e realizações dessas autoras, bem


como de outros profissionais de saúde, os cuidados paliativos se
institucionalizaram enquanto área de saúde em diversos países, como
Inglaterra, EUA, primeiramente, como também por França, Canadá, Chile,
Brasil, dentre outros países. Segundo artigo de revisão histórica do
desenvolvimento desse movimento, a chegada dos cuidados paliativos ao
cenário da saúde do Brasil data da década de 1990 (IGNACIA. y PALMA, 2007:
18).

Conforme aborda Giselle de Fátima, em tese de doutorado sobre o


tema, apesar da institucionalização de alguns serviços de cuidados paliativos
na realidade brasileira, os mesmos não contam com investimento substancial
nas políticas de saúde (SILVA, 2015: 14). Essa realidade faz com que as
premissas da filosofia paliativa não sejam incorporadas em grande escala ao
âmbito da saúde brasileira, e que assim o Brasil tenha uma defasagem no
tratamento aos pacientes terminais a partir da perspectiva paliativa em relação
aos serviços de saúde de outros países.

A constatação de Giselle de Fátima também se faz observar nos


debates na esfera pública envolvendo a regulamentação da ortotanásia
enquanto opção terapêutica. Em artigo sobre a disputa em âmbito público pela
regulamentação ou criminalização da ortotanásia enquanto prática médica,
Rachel Menezes e Miriam Ventura demonstram a diversidade de perspectivas
e valores que envolvem o debate sobre as formas de se morrer (Menezes e
Ventura, 2013). Trabalhando sobre o debate que circundou o parecer do
Conselho Federal de Medicina (CFM) datado de 2006, a respeito da
Ortotanásia, as autoras expõem os argumentos que justificam essa prática,
como também os que a denunciam, demonstrando como as premissas que
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

justificam os tratamentos dos cuidados paliativos são ainda motivo de debate,


estando muito pouco resguardadas no âmbito público brasileiro.

Defendendo a Ortotanásia se colocavam os integrantes do CFM que


apoiavam uma visão de naturalidade no morrer, onde as equipes de cuidado à
saúde intervissem até onde o corpo do moribundo respondesse. Nesse
contexto os médicos estariam resguardados pelo CFM caso optassem por
tratamentos ligados à prática da ortotanásia, deixando o tempo da morte
ocorrer de acordo com o próprio tempo do corpo do paciente. Já os grupos
contrários à prática da ortotanásia se apoiavam em interpretações da
constituição brasileira, buscando denominar a escolha por uma menor
intervenção médica em pacientes terminais como homicídio, criminalizando
essa prática médica (Menezes e Ventura, 2013: 214).

O debate em questão se estendeu até o ano de 2010, quando foi


emitido um novo código de ética médica que resguarda a posição e a tomada
de decisão do paciente em estado terminal sobre seu tratamento (Menezes e
Ventura, 2013: 222). Todo esse contexto ilustra a posição de Giselle de Fátima,
demonstrando como o movimento dos cuidados paliativos no Brasil ainda é
recente, de forma que suas práticas terapêuticas não são ainda consolidadas
no contexto da saúde.

Uma questão interessante nesse debate é a mobilização de diferentes


instituições e saberes para a defesa das diferentes práticas terapêuticas frente
ao morrer moderno. A partir de um debate sobre a justiça ou injustiça na
utilização da ortotanásia, diferentes formas de saberes foram utilizados pelos
atores envolvidos. Os saberes em questão eram tanto de ordem religiosa,
quanto científica, como também constitucionais, sendo que cada um desses
poderia ser decomposto em diferentes temáticas. Tudo isso demonstra a
amplitude de temas levantados a partir da pesquisa sobre os cuidados
paliativos.

Contexto brasiliense

A partir das disputas e tensões presentes na inserção dos cuidados


paliativos no contexto da saúde brasileira se faz interessante analisar a relação
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

entre as práticas terapêuticas de ortotanásia e distanásia através dos


depoimentos de duas profissionais de cuidados paliativos atuantes em Brasília,
DF. A intenção aqui é dar a palavra às pessoas que atuam e vivenciam em
seus ofícios as relações entre vida e morte, relações por vezes tensas. As
profissionais em questão, denominadas aqui como Paula, médica, e Helen,
psicóloga, atuaram em um hospital público de grande porte de Brasília,
compondo a equipe de cuidados paliativos nessa organização hospitalar.

O diálogo com essas profissionais de cuidados paliativos se deu no


contexto de uma pesquisa para monografia que tinha como princípio
compreender como diferia a prática paliativa em ambientes hospitalares e
domiciliares. Com o decorrer das entrevistas se tornou nítido que a tensão
entre ortotanásia e distanásia se fazia presente nos discursos dessas
profissionais de saúde. Logo, tanto a forma como elas concebiam o próprio
trabalho, quanto a forma como se posicionavam na instituição de saúde onde
trabalhavam, trazia à tona essa tensão.

O primeiro elemento para esse debate é a reflexão sobre a própria


relação com a morte nas perspectivas da distanásia e ortotanásia. Helen,
durante seus relatos sobre a prática dos cuidados paliativos, traz a história de
um paciente em estado muito grave, que após alguns dias de cuidado dentro
do hospital faleceu.

Helen - “E aí acabou que ele foi a óbito, né. E na, no cuidado paliativo a
gente lida obviamente com muitas mortes, mas uma coisa que eu aprendi
também, que a morte muitas vezes é a salvação do paciente, é a libertação da
dor, daquele incômodo que já tá... já tá em estágio de degeneração mesmo,
né. Então no caso dele, que bom que ele conseguiu morrer. Só que a morte
não precisa ser nem traumática nem sofrida, ela pode ter dignidade.”

Nessa fala Helen traz uma perspectiva de relação com a morte de


libertação do sofrimento físico, de dignidade. Aqui a vivência com a morte não
é tratada como fracasso ou incompetência da prática terapêutica, mas sim
como um processo natural que não necessita ser traumático. Outra fala, desta
vez de Paula, também traz a questão da forma de lidar com a morte nos
cuidados paliativos dentro da perspectiva da ortotanásia. É interessante
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

observar nessa passagem o papel da temporalidade, da ideia de processo na


perspectiva de Paula sobre a morte e o morrer.

Paula – “E quando chega perto do final da vida o nosso papel,


principalmente da nossa equipe aqui do Hospital, é... ajudar o médico
assistente a conversar com o paciente e a família no sentido de orientar qual
será a medida mais adequada, mais apropriada, mais proporcional pra o
doente naquele momento. Então, nosso trabalho é árduo porque a gente tem
que desmistificar um monte de coisa, a grande maioria dos médicos não sabem
lidar com isso, a maioria pensa no tudo ou nada, e não existe tudo ou nada.
Existe uma... um processo. Eu, uma questão muito bonita que eu ouvi, eu ouvi
de uma paliativista lá de São Paulo. A gente conduz o paciente até o momento
do óbito, de forma mais natural e... e, e digna possível. E não existe uma
fórmula mágica, de bolo, é uma condução, como, como o obstetra conduz uma
gestante para... É como se fosse um parto, mas é um parto em direção à
morte. Então eu digo que hoje em dia o médico tradicional faz cesariana, é tudo
artificial, e o paliativista vem pra ensinar o parto normal.”

As falas de Paula e Helen expressam a escolha terapêutica de ambas


em atuar dentro da perspectiva dos cuidados paliativos. É interessante
observar como a palavra dignidade aparece no discurso de ambas, sendo um
núcleo de sentido da abordagem paliativa. Ao redor do sentido de dignidade do
sujeito que se constroem as práticas dos cuidados paliativos, a escuta do
paciente, a realização de suas vontades.

Outra questão presente na fala de Paula é a separação da prática dos


cuidados paliativos das práticas terapêuticas tradicionais. Em vários momentos
ela se refere aos “médicos em geral”, ao “médico tradicional”. Dessa forma, ela
trata a abordagem dos cuidados paliativos como uma perspectiva específica,
onde são respeitadas as temporalidades e a dignidade no processo do morrer,
diferentemente da abordagem médica comum. Aí está a construção da própria
prática profissional, bem como da concepção de cuidados paliativos, enquanto
tensionamento com as práticas médicas comuns, com a distanásia.

Outra passagem da entrevista com Paula traz a perspectiva dela sobre


a organização do sistema de saúde em Brasília. Nesse contexto de fala ela traz
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

o assunto do texto de Menezes e Ventura sobre a judicialização da ortotanásia


na prática médica. Para Paula, o receio da judicialização por negligência
persiste entre os médicos, principalmente na iniciativa privada, o que faz com
que a distanásia se torne regra, e o trabalho em cuidados paliativos seja árduo,
conforme ela coloca em sua primeira fala.

Paula – “Mas a gente conhece as pessoas do DF, e, e como os


médicos não sabem conversar sobre fim de vida, a distanásia é regra, muito
mais regra na iniciativa privada do que na pública, porque existe o medo de...
de, de judicialização da morte, né. Então ao invés de você pedir autorização
pra entubar, pra invadir o paciente, você tem que pedir autorização pra não
entubar, pra não invadir. Isso é louco.”

Portanto, a partir da fala de Paula se vê como os cenários micro e


macro se imbricam mutuamente na análise dos cuidados paliativos. Se no
contexto brasileiro a resolução do processo no Ministério Público sobre a
regulamentação da prática da ortotanásia e dos cuidados paliativos foi
favorável à essa forma de terapia, no contexto da saúde em Brasília o medo da
judicialização da morte por parte dos médicos é ainda presente. Nesse
contexto é difícil separar um elemento para a análise. Questões éticas,
histórias de vida, processos históricos de longa duração, posições políticas e
religiosas estão todas envolvidas nesse debate.

Considerações finais

Como a reflexão sobre os cuidados paliativos e as relações entre as


perspectivas terapêuticas da distanásia e ortotanásia se apresenta de forma
tão ampla, o presente artigo tem como objetivo apresentar debates e dar
espaço às reflexões das profissionais que aqui apresentei. Aqui não proponho
conclusões, mas sim reflexões sobre o cenário amplo dos cuidados paliativos,
sua formação e sua inserção no contexto brasileiro e brasiliense.

Revendo a história do movimento paliativo pode-se atentar à


centralidade da tensão entre distanásia e ortotanásia como constituinte dessa
perspectiva de atenção à saúde. Essas práticas terapêuticas, muito distintas
em suas respectivas formas de conceber vida e morte, tornam-se motivação
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

tanto para posicionamentos e escolhas profissionais de pessoas da área da


saúde (no nível micro), quanto para debates na esfera pública e jurídica sobre
legalidade ou não de práticas médicas (no nível macro).

Logo, o trabalho com esses dois conceitos das áreas do direito e da


saúde pode abrir perspectivas de compreensão para diversos contextos
institucionais hospitalares, para histórias de vida de profissionais de saúde e
para histórias de iniciativas na área da saúde, como os cuidados paliativos.

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em Educação) -- Universidade de Brasília, 2015.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

“As experiências promovidas pelas práticas de yoga e de meditação entre as


pacientes e as profissionais de saúde no SUS.”
Miriam Vidal de Negreiros1
RESUMO:

A pesquisa em andamento investiga como as práticas integrativas e


complementares (PICS), especificamente yoga e meditação, estão sendo
incorporadas nos serviços de saúde. A análise baseia-se nas narrativas de
profissionais de saúde e de pacientes envolvidas nos grupos das práticas
integrativas e complementares de yoga e de meditação em uma Unidade
Básica de Saúde na cidade de São Paulo e entender como estas práticas
foram instituídas no âmbito desta UBS e investigar tanto o ponto de vista de
profissionais de saúde sobre estas práticas no contexto da saúde pública
quanto aquele das pacientes sobre os efeitos desse tratamento. Se, no
desenho das políticas instituídas pelo SUS, essas práticas são
complementares, como elas são entendidas pelos pacientes e profissionais em
suas práticas? A partir desse entendimento, busca-se investigar a eficácia
dessas práticas, atentando-se para as narrativas dos pacientes e profissionais.
O conceito de eficácia aqui utilizado é o de “eficácia simbólica”, de Claude Lévi-
Strauss, desenvolvido a partir da análise da prática do xamã que mobiliza
elementos presentes na cosmogonia do grupo e constrói uma narrativa junto à
paciente em trabalho de parto, para que ela consiga realizar o parto difícil.
Utiliza-se como eixo central do trabalho, ainda, o conceito de técnica corporal
de Marcel Mauss, para descrever esta prática como uma forma de uso do
corpo, inscrita em uma cultura e transmitida à coletividade como conhecimento
e prática adquiridos.
Palavras-chave: tensão, medicina, complementar, corpo, eficácia

1Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais


Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Câmpus Guarulhos
Orientadora: Profa. Cynthia Andersen Sarti
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

CONSIDERAÇÕES
Este trabalho propõe investigar a prática de yoga como técnica do corpo e
como recurso terapêutico para suas praticantes e o impacto desta prática no
sistema público de saúde, especificamente numa UBS na cidade São Paulo.
Para analisar a prática de yoga, nos termos aqui propostos, será utilizada a
noção de “técnica corporal”, fundamentada por Mauss (2003), e como
possibilidade terapêutica, a partir de sua “eficácia simbólica”, norteando-me na
concepção teórica de Lévi-Strauss (2012). No que se refere à eficácia dessa
forma terapêutica, o antropólogo indica um caminho teórico ao descrever a
“eficácia simbólica”, fundamentada a partir da prática do xamã pela qual
mobiliza elementos presentes na cosmogonia do grupo e constrói uma
narrativa junto à paciente em trabalho de parto, para que ela consiga realizar o
parto difícil. A visão de mundo da cosmogonia indígena compartilhada pelo
xamã e os mecanismos mobilizados no processo de cura são reforçados pela
crença do grupo. Assim, o ritual descrito envolve uma intervenção que é ao
mesmo tempo psicofisiológica e psicossocial.
No que diz respeito ao corpo como instrumento de uma representação coletiva,
o conceito de técnica corporal é desenvolvido por Marcel Mauss (2003), para
descrever esta prática como uma forma de uso do corpo, inscrita em uma
cultura e transmitida à coletividade como conhecimento e prática adquiridos,
concebendo a educação das técnicas corporais como um modo de adaptar o
corpo para seu uso.
Pressupostos metodológicos
Trata-se fundamentalmente de uma pesquisa de metodologia qualitativa, que
utiliza diversas técnicas de pesquisa. Além da “participação observante” da
pesquisadora, inspirada em Wacquant(2002), utiliza-se a aplicação de um
questionário inicial, entregue às/aos pacientes durante as primeiras idas à
campo e realização de entrevistas semi-estruturadas para registrar as
narrativas das/os interlocutoras/es para entender esta prática na rotina diária
de uma UBS e a história de vida das praticantes. Além destes recursos,
participo do grupo de whatsapp “Yoga profa. M.” administrado pela paciente N.
e constituído pelas alunas da prática de yoga.
O trabalho de campo foi realizado durante sete meses, de dezembro de 2016 a
julho de 2017, uma vez por semana durante as segundas-feiras e
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

esporadicamente às quintas-feiras, devido às exigências de horário de meu


próprio trabalho remunerado. Nesse período pude registrar algumas
impressões nos diários de campo, tais como os relatos de participantes dos
grupos abertos de yoga e meditação, as conversas dos corredores com as
alunas-pacientes-interlocutoras e as narrativas dos profissionais de saúde em
relação às práticas integrativas. As entrevistas forma realizadas com 24
interlocutoras, sendo 13 pacientes-usuárias do SUS e 11 profissionais de
saúde, sendo 20 mulheres e quatro homens, por isso tomarei como ponto de
partida o uso gramatical da forma feminina para referir-me às pacientes e às
profissionais de saúde, já que são a maioria no contexto da Unidade Básica de
Saúde em estudo.
Tensões e nuances nas práticas
Embora estas práticas integrativas tenham sido reconhecidas formalmente no
âmbito do SUS por meio desta portaria, a prática de yoga já era ministrada pela
enfermeira às usuárias da UBS havia dois anos e a meditação havia nove
meses, conforme relatou uma das condutoras do grupo que é fonoaudióloga.
Além destas práticas, a UBS oferece Dança Circular e Massagem Shantala às
mães e bebês, e atualmente, a auxiliar de enfermagem na área de saúde
mental consolidou um grupo para a prática de auriculoterapia (atividade não
incorporada à PNPIC).
Assim como Toniol (2015) assinala seu interesse por “processos que instituem”
a incorporação destas práticas no âmbito do SUS, esta questão incita a pensar
como as práticas de yoga e de meditação são ministradas no contexto médico
e de que modo são compreendidas pelas profissionais de saúde e pacientes
desta UBS. Passamos pensar a integração do yoga e da meditação2 no serviço
público de saúde em termos da tensão entre práticas integrativas, de base
holística, e as práticas biomédicas, centrada na perspectiva moderna do
indivíduo, tensão constitutiva dessa integração no mundo moderno.
Conforme a compreensão de Jean Langdon(2009):
“Sem descartar os avanços da biomedicina, é necessário ir além dos
limites de um modelo estritamente biológico e individual para incluir
processos sociais e coletivos. Ao final, existem questões da própria

2 A prática de yoga e de meditação foram incorporadas formalmente no Sistema Público


Brasileiro por meio da portaria nº 849 de 27 de março de 2017 que as inclui na Política
Nacional das Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) instituída no país em 2006.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

prática da biomedicina que ela mesma não consegue resolver por


causa da restrição do campo aos processos biológicos e ao método
positivista e experimental.”(Entrevista concedida à Revista Brasileira
de Enfermagem, 2009)
Trabalhamos, assim, dentro da possibilidade de que haja tensões e conflitos
entre estas práticas integrativas e a dimensão biomédica que acompanharam a
consolidação do saber médico.
Para falar de tensões e atravessamentos entre práticas integrativas no contexto
médico no âmbito do SUS, ressalto o conceito de complementariedade
utilizado por Toniol (2015), pois, conforme o pesquisador, estas práticas são
complementares e não alternativas porque estão articuladas junto ao
tratamento médico convencional. Reforço esta concepção na medida em que o
campo mostra como a equipe multidisciplinar de saúde desta UBS se torna a
principal responsável pelas indicações das pacientes para participação nestes
grupos. Portanto, esta pesquisa toma como objeto a prática de yoga e de
meditação como práticas integrativas e complementares no sistema público de
saúde, entendidas não como práticas exotéricas e místicas, abordagens não
legitimadas no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), mas na forma
como estas práticas ganharam espaço neste contexto médico.
Campo de Pesquisa
A Unidade Básica de Saúde Profa. Maria Cecília Ferro Donnangelo está
localizada entre os bairros de Freguesia do Ó e de Brasilândia, na cidade de
São Paulo e oferece as práticas integrativas de yoga, meditação, liang gong,
massagem shantala, caminhada, dança circular, auriculoterapia, reiki e
memória. Estas práticas integrativas e complementares são oferecidas no
campo de legitimidade biomédica e as narrativas apresentadas pelas
interlocutoras mostram as profissionais de saúde são, em sua maioria, as
principais condutoras destes grupos e/ou as responsáveis por indicar estas
práticas às pacientes.
Os grupos destas práticas são constituídos por pacientes indicadas pelas
profissionais de saúde desta UBS: a enfermeira, o psicólogo, a psicóloga, a
psiquiatra aposentada, a nutricionista aposentada, a auxiliar de enfermagem, a
fisioterapeuta, a fonoaudióloga, a terapeuta ocupacional, sendo as três últimas,
integrantes do NIR (Núcleo Integrado de Reabilitação).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Nota-se um entrelaçamento entre as práticas integrativas e a trajetória destas


profissionais de saúde. A psicóloga relata sua trajetória acadêmica e
profissional marcada pela inserção nas práticas integrativas de reiki e tai chi
chuan, a fisioterapeuta participa de um grupo de pesquisa relacionado às
práticas corporais, a enfermeira está realizando seu terceiro curso na área de
yoga, a auxiliar de enfermagem na área de saúde mental possui formação em
massoterapia, dança circular, reiki, auriculoterapia, e em shantala para bebês,
a psiquiatra já realizou a prática de yoga durante alguns anos de sua vida, e as
profissionais não envolvidas diretamente na condução destes grupos, indicam
suas pacientes para essas práticas como complemento ao tratamento
convencional.
O fluxo de atendimento
O fluxo de atendimento e de encaminhamento para as práticas integrativas
seguem o expediente de um atendimento convencional através do acolhimento
realizado pela auxiliar de enfermagem na área de saúde mental e pelas
especialidades da psiquiatria, fonoaudiologia, fisioterapia, psicologia, terapia
ocupacional e enfermagem. A partir destes atendimentos, as usuárias são
indicadas por estas profissionais para a realização das práticas integrativas de
yoga, meditação e demais modalidades oferecidas nesta UBS. Na prática de
yoga, todas as pacientes entrevistadas foram indicadas pelas profissionais
desta Unidade para participarem do grupo, ao passo que, na prática de
meditação, embora o grupo seja aberto, há várias pacientes indicadas pela
psiquiatria, psicologia e enfermagem.
A profissional de saúde, a auxiliar de enfermagem que atua na área saúde
mental há 16 anos, é responsável pelo acolhimento de usuários e descreve
como é o fluxo de seu atendimento para encaminhamento à especialidade
médica da psiquiatria e às práticas integrativas.
A gente vem implantando estes grupos (as práticas integrativas) aqui
na UBS e tem dado bastante resultado. No meu atendimento, esses
pacientes saem do meu acolhimento. Aqui na UBS eu faço esse
acolhimento na área de saúde mental que é a porta de entrada para o
atendimento psicológico, psiquiátrico ou algum outro tipo de
atendimento. Todos passam no acolhimento de saúde mental, quem
faz esse acolhimento sou eu, de segundas às quintas e esses
pacientes basicamente os meus são encaminhados daqui, depois do
acolhimento eu encaminho para os grupos, e assim, algum procura
espontânea, mas, normalmente, o meu encaminhamento é a partir do
acolhimento. Essas práticas ajudam a reduzir bastante o número de
consultas, tanto da parte clínica quanto da parte psicológica,
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

psiquiátrica, diminui muito esse número e a gente consegue fazer um


atendimento multidisciplinar e aí é, eu acho que reduz medicação,
reduz o número de consulta pra clínicos, porque muitas pessoas vem
com muitas dores, problemas físicos mesmos, que acabam
melhorando nas práticas né, vai reduzindo ou espaçando estas
consultas.
A enfermeira descreve sobre o perfil de suas pacientes e observa a
possibilidade da yoga como uma ferramenta de melhor resolutividade em
relação ao tratamento clínico convencional:
Hoje o perfil de pacientes não é só da psiquiatria, eu tenho pacientes
da fisioterapia, a fisioterapeuta chegou pra mim e falou: olha, eu
preciso reduzir a minha fila de espera, posso mandar alguns alunos
pra você? E assim eu falei: pode mandar e assim foi bem
interessante. São diversas idades, a gente tem diversas patologias
osteoartrose, hérnia de disco, pacientes que há anos tem essa
doença, é crônica a doença deles, e eles vem encaminhados pela
fisioterapia. Às vezes a fisioterapeuta fala: olha, não sei o que eu vou
praticar tanto com eles na fisio. Acho que a yoga vai dar uma
resolutividade melhor. A gente fica super feliz, porque a gente vê o
reconhecimento da yoga, e a gente sabe, a gente que conhece a
teoria, sabe realmente que a yoga faz a diferença.
A paciente Verônica3, uma senhora de 68 anos, branca, moradora da região,
me mostrou suas mãos trêmulas e mencionou sofrer de mal de Parkinson e
disse que no término da aula suas mãos melhoravam bastante e quase
paravam de tremer. No término da aula ela se aproximou para mostrar como
suas mãos estavam, confirmando aquilo que havia falado no início da aula.
Celina, 63 anos, tem dificuldades para dormir e foi indicada pela psiquiatra para
realizar a prática de yoga. Além desta atividade, a paciente participava dos
grupos de Lian Gong e Acupuntura na UBS do Bairro Cachoeirinha e procurava
por grupos de meditação. A paciente Laura sofre de ansiedade e insônia e
também foi indicada pela psiquiatra para realizar esta prática.
Rosangela, participante das aulas de yoga e de meditação e paciente indicada
pelo psicólogo para realizar as duas práticas integrativas. Revelou um grande
interesse em fazer um curso de formação em yoga, no entanto, suas condições
financeiras a limitavam impedindo-a de custear esta formação e que por isso,
acessava vídeos no youtube para desenvolver sua prática corporal.
Amélia, recomendada pela enfermeira, e Venâncio, indicado pela psiquiatra
para participarem do grupo de yoga e meditação. Amélia sempre me relatava
suas dificuldades em realizar algumas posturas devido ao seu problema de
distensão abdominal e Venâncio conversava sobre trabalho e espiritualidade.

3 Utilizo nome fictício para preservar a identidade das interlocutoras, conforme termo de
consentimento.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

A oferta das práticas de yoga e meditação e de sua indicação às pacientes


reflete divergências e tensões no contexto médico. A ginecologista relata:
“Não conheço. Venho aqui, cumpro o atendimento e tenho em torno
de 40 pacientes para atender, saio e vou embora. Sei que tem a
enfermeira que dá aula de yoga e recebi um cartão de uma moça
aqui [a auxiliar de enfermagem] que faz massagem pós-parto
[shantala, massagem para mães e bebês], mas não conheço essas
atividades.Não, porque não conheço. Não saberia para quais
pacientes indicar este exercício. Seria para quais pacientes? Seria
para a parte física ou emocional? Eu não sei. Tenho uma paciente
que fala que faz aula de yoga.” Não tenho conhecimento de base
científica sobre estas práticas para falar de seus efeitos físicos e
emocionais.”
As práticas funcionam em um contexto e em um ambiente de precarização,
conforme a narrativa das interlocutoras, num contexto em que a profissional de
saúde deve ser polivalente, responsável pelo preenchimento de relatórios
administrativos, atendimento aos pacientes em sua área de formação e
condutora das práticas integrativas.
Observa-se que as práticas integrativas na medida em que não são legitimadas
no campo científico, simultaneamente apresentam formas de articulação no
mesmo contexto médico oficial da saúde, com todas as tensões que isso
implica. O Estado se apropria e não descarta a eficácia destas práticas; afirma
esta finalidade e garante a possibilidade de oferta às pacientes e usuárias do
SUS. No entanto, o eixo principal dessa discussão não gira em torno da
redução na fila de espera e na melhora no fluxo de atendimento; a questão dos
efeitos negativos ou ineficácia dos remédios se torna uma questão central de
aceitação da incorporação destas práticas de yoga e de meditação na UBS.
A paciente Vanusa relatou “comecei a fazer yoga e meditação por indicação de
S. [psiquiatra], com o tempo tirei os medicamentos, quando parei de fazer,
voltou tudo de novo.
A psiquiatra S. também me passou um remédio, mas eu fui parar no
Pronto Socorro, pior do que eu tava (risos) mas aí eu voltei com ela e
falei o que aconteceu e aí ela suspendeu a medicação, tomei um
comprimido só.O outro era para ansiedade, sabe, acho que pânico
essas coisas, mas eu tomei quatro gotinhas. Foi assim: ela me
receitou ontem, daí eu comprei, tomei as quatro gotinhas, mas aí
esse eu também já parei. Ela substituiu o remédio, mas aí eu também
não tomei porque dava conflito com o da tireóide. Aí ela me deu alta e
pediu para eu fazer as terapias.”
O paciente Venâncio suas dificuldades no tratamento medicamentoso:
Qualquer remédio que eu tomava me dava dor de barriga, meu
organismo não aceitava. Depois de muita conversa com a psicóloga,
eu comecei a tomar citalopran, não tava me dando diarreia, não tava
alterando muito o meu organismo né, daí eu tomei ele por muito
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

tempo, mas sabe sem ter muita ideia de que ele estava mesmo sendo
eficaz, muito complicado falar isso, o remédio não é tudo, não muda
que nem eu pensava.
Sobre o efeito das aulas de yoga e meditação diz “estou melhor, quando saio
da aula me sinto mais calmo e meus pensamentos mais organizados.”
Verônica relata a diferença com o uso de medicamentos assim que conheceu a
prática de yoga:
“Com o AVC eu fiquei com sequelas do Parkinson, então eu tremia
que nem vara verde. Então às vezes eu chegava lá na yoga pra fazer,
e eu chegava tremendo, aí eu fazia e quando acabava, nossa, era
uma beleza!Eu estava sem tremor nenhum, até o medico diminuiu a
quantidade de Prolopa que é para o Parkinson. Eu tinha uma dor de
cabeça que era horrível, eu nunca mais tomei um remédio pra dor de
cabeça, há dois anos que eu faço yoga, nunca mais tomei remédio
para dor de cabeça, nunca mais tive crise.

Mariana, integrante do grupo de yoga e meditação relata: “Cada dia é uma luta.
Os remédios antidepressivos me fazem mal e parei de tomar. Não estou
tomando remédio, quero conseguir superar isso sem tomar os remédios, mas
só Deus sabe como estou aqui!”
Quando a farmacologia não se mostra eficaz para o tratamento médico, a
insurgência destas práticas indicadas pelas especialidades médicas se torna
um recurso para minimizar dores e ansiedade. Há uma inversão na finalidade
da prática médica na medida em que admite a ineficiência medicamentosa e o
encaminhamento para as práticas integrativas.
Celina faz a modalidade de yoga desde o início da formação da turma e relata
o significado da prática em sua vida:
Esse alívio faz falta quando não faço. Eu acho que fiz alguma coisa
pra mim, porque eu saí de casa e fiz alguma coisa, porque ficar só
dentro de casa, parece que fica muita coisa na cabeça, os problemas
ficam né , e aqui a gente vem, conversa com as pessoas, além de
físico, é pra mente também, pra mim alivia bastante.Eu sei que o
problema tá ali, mas eu tenho que tentar resolver, parece que aquele
pânico que eu tinha, porque eu sofri de síndrome de pânico, o que eu
tratava com a dra S. era isso, mas não me dá mais aquela coisa, pra
eu resolver agora, eu me tranquilizo um pouco mais, eu consigo lidar
melhor, tô conseguindo!
A paciente Amélia possui distensão abdominal e relata que já fez tratamento
médico para resolver este problema. Ela apresenta sua perspectiva sobre seu
corpo, o tratamento médico e a prática de yoga:
Eu já fiz tratamento médico, mas eles fazem assim: Qual o
pensamento nesta linha? A pessoa tem prisão de ventre e o alimento
fica no estômago, e ele estraga e é ele que causa isso. Só que no
meu caso é diferente: eu vou muito ao banheiro, vou muito, eu janto,
eu almoço e já vou ao banheiro, e questão de vinte minutos eu já tô
no banheiro, então eu não tenho prisão de ventre, mas tenho muitos
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

gases, o que provoca estes gases é o x da questão. Então vamos


tratar no alimento, evitar alimentos, e continuar fazendo yoga. Agora
eu vou entrar com os chás, diuréticos, olha, eu vim toda dolorida, eu
saio daqui [depois da aula] parecendo uma pluma. Se eu fosse
pensar e falar nossa, hoje estou com dores ali, mas eu venho e me
sinto bem.
A paciente Rosangela, praticante de yoga, durante uma das aulas do grupo de
meditação revelou sentir uma ansiedade e uma dor no peito tão grande e
afirma: “Quando tenho estas dores, não vai adiantar eu ir ao Posto de Saúde
para tomar remédio toda vez que sentir dor. Por isso eu controlo com a
meditação e com a respiração, eu sei que não é físico, é emocional”.
A psiquiatra da UBS relata como prática de yoga pode ser uma ferramenta para
lidar com ansiedade e depressão leve e como esta atividade reverberou em
mudanças na vida de suas pacientes:
Como psiquiatra de um posto de saúde, eu sempre priorizo outras
formas de ajudar as pessoas a lidar com a ansiedade, com quadro de
depressão leve, sem ser com medicação. Eu acho que é mais
fazendo com que a pessoa volte pra ela mesma, em contato com o
corpo, com as emoções, e aí, nisso todas as práticas alternativas
dadas a elas. Elas ficavam lá naquele “conversê” danado e aí a gente
foi vendo que elas foram ficando tranquilas e elas falavam: aí tô lá na
yoga! Eu fui realmente vendo que em termos de ansiedade, elas
vinham bem mais tranquilas mesmo. Eu vi algumas desaparecerem
mesmo. Eu falo assim que quando desaparecerem da psiquiatra,
muitas vezes é porque melhorou! Daí eu encontrava com elas no
corredor e elas falavam: Oi! Então, eu acho que, quer dizer, então foi
o que eu vi na experiência publica lá. Eu acho que é um privilégio
você contar, senão você vai ficar escutando... e só remédio.
A auxiliar de enfermagem na área de saúde mental relata sua avaliação relativa
aos pacientes de yoga, meditação e demais práticas integrativas:
Eu acho que eles melhoram bastante, eles entram em contato com
eles mesmos, as vezes eles chegam aqui bem angustiados e acabam
fazendo, depois que eles começam a fazer as práticas, eles
conseguem dar uma estabilizada. Tem uns que conseguem não
entrar com medicação que é o que a gente pretende de não ficar, de
não usar a medicação como primeiro recurso, a gente entende que a
medicação seria o outro recurso, o recurso pra frente... , o último
recurso, se caso as outras práticas não funcionarem, daí entra com a
medicação, mas não é o nosso primeiro recurso, por isso que a gente
encaminha pra grupo de espaço de escuta, psicoterapia, para as
práticas integrativas antes que necessariamente entrar com alguma
medicação. Tem pacientes que precisam, não tem como, mas os
pacientes tem melhorado bastante com as práticas, tem se acalmado,
tem entrado neles mesmos, tem melhorado bastante o nível de
ansiedade, melhora muito as crises de ansiedade, então a gente vê
bastante resultado nestas técnicas.

Trata-se de mais um caso em que se observa a evidência das práticas


integrativas como prioritárias, um recurso principal e o tratamento na
fisioterapia como recurso secundário para tratamento de dores crônicas.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

O psicólogo apresenta o significado do yoga como outro modo de lidar com


questões internas, em paralelo à redução de medicação:
Eu acho que quanto mais a gente conseguir promover outros tipos de
tratamentos, menos o paciente vai precisar de medicação. A
medicação é uma soma, tem gente que é contra a medicação, eu não
sou, eu acho que a medicação tem papel fundamental, mas ela tem
que ser usada com muita precisão. Quando a gente não tem outras
formas de tratamento, eu acho que, até o médico acaba pesando
mais a mão na medicação porque não tem outras formas de lidar com
os problemas que o paciente traz. Quanto mais a gente puder ofertar
para o paciente outros modos de lidar com as questões internas que
ele tem né, acho que menos ele vai precisar da medicação, cada vez
menos.
Os efeitos negativos ou a ineficácia dos remédios se tornam um eixo central da
aceitação da incorporação de práticas integrativas, especificamente, nestes
casos a prática de yoga e de meditação. Estas práticas são reconhecidas como
alternativas e possibilidades de amenizar os efeitos secundários decorrentes
dos tratamentos medicamentosos.
Yoga e meditação como técnica corporal
Para examinar o yoga e a meditação como técnicas corporais, será utilizado
Mauss (2003) e a noção de corpo como um instrumento onde são inscritas as
marcas sociais do grupo, apresenta uma enumeração das técnicas do corpo
(p.412) entre as quais as técnicas de repouso na idade adulta e que também
estão presentes nas técnicas corporais da prática de yoga, através do Yoga
Nidra (relaxamento). Há também os cuidados com o corpo em termo de
higiene, também conhecidos nesta prática como as seis purificações ou
limpezas: nasal; sistema digestivo; abdômen; reto; sistema respiratório e
ocular. A prática de yoga nidra e a de limpeza ocular são as técnicas mais
frequentes numa aula de yoga, por serem de fácil execução. Nas aulas
ministradas na UBS verifica-se a execução de yoga nidra no início e no término
da prática.
Por meio das posturas corporais ministradas nas aulas, observa-se o
aprendizado do corpo por meio do aprendizado corporal assimilado e
apreendido por meio da educação. (Mauss 2003:416). Durante as aulas, as
posturas devem ser executadas de forma correta para que os efeitos sejam
experimentados pelas praticantes não habituadas a essas posturas. A correta
execução e permanência da postura assegura a possibilidade de que o grupo
não sinta desconfortos durante a prática. Para isso, as praticantes devem
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

perceber as limitações impostas pelo corpo e entender que a força e o


alongamento muscular serão conquistados de maneira gradativa.
Algumas orientações são importantes na construção do asana (postura) para
que não haja risco de lesão muscular ou articular: ao elevar os braços para
cima, manter ombros distantes das orelhas, ou seja, relaxados e não
tensionados. Não arrebitar a região do cóccix para trás, pois poderá
comprometer a região lombar. Nas posturas em pé, o corpo não deverá estar
nem relaxado nem tensionado (duro), as contrações nos músculos dos glúteos
e das pernas são necessárias na medida em que protege o corpo de lesões
articulares. Os pés deverão estar firmes no solo e, para isso, a professora pede
para que as praticantes levem o peso para a ponta dos pés e depois para a
região dos calcanhares, sentindo toda a extensão desta parte do corpo. Após
este movimento, ela orienta as praticantes a levar a atenção para a região do
pé apoiada no solo. A postura deve ser ereta, olhar em ponto fixo a fim de
despertar a concentração, respiração profunda e tranquila, especialmente em
posturas de equilíbrio, e quadril “encaixado” são orientações que persistem
durante toda a execução desta prática. Nas posturas inversas, a professora
recomenda para que as praticantes prestem atenção na região cervical, nuca e
cabeça, para que o peso do corpo não sobrecarregue esta região e fique
distribuído entre braços, cotovelos e parte dos ombros.
Além de mobilizar os ajustes corporais, a professora ressalta os elementos
presentes nesta cosmologia. No inicio de algumas aulas, há o entoar do mantra
OM, e em algumas posturas deitadas em que a coluna está apoiada no
colchonete, ou no encerramento da aula, há a condução do yoga nidra
(relaxamento) e a orientação de que “o yoga é o cessar dos fluxos mentais” e
que “nosso fluxo energético passa por toda a região da coluna até o topo da
cabeça.”.
Yoga, meditação e eficácia simbólica
A concepção de “eficácia simbólica” formulada por Lévi-Strauss, a partir do
caso do terapeuta (xamã) que mobiliza elementos da cosmologia da paciente
para tratá-la quando está em dificuldades no parto, está presente nesta prática
corporal, configurando um recurso teórico para descrever processos de cura a
partir de uma perspectiva sociocultural, e que portanto, não são compreendidos
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

pela lógica biomédica que entende sua prática como um processo de


intervenção sobre o paciente em sua dimensão biológica.
No entanto, há aqui uma problematização a ser realizada; se em Lévi-Strauss,
a cosmologia é o elemento comum que une paciente, terapeuta e seu mundo
social compartilhado, na prática de yoga, as pacientes e o contexto de
execução desta prática não fazem parte da cosmologia de origem do yoga;
esta cosmologia é introduzida, por sua vez, no universo das praticantes e da
instrutora como “técnica corporal” no contexto do atendimento público de
saúde. Portanto, a noção de eficácia simbólica neste estudo aplica-se tal como
formulada por Lévi-Strauss em seu conhecido texto, mas com as devidas
ressalvas; ela é importante como abordagem sociocultural da cura, na medida
em que postula a melhora na saúde das pacientes quando estas incorporam
elementos da cosmologia do yoga, mas são cosmologias distintas em jogo, e
que também atuam em articulação e em tensões.
A questão que se coloca nesta pesquisa perpassa a noção do caráter social e
coletivo dos processos associados ao corpo e à doença, pois se trata de
entender a eficácia do yoga em uma articulação tensa entre cosmologias
distintas, num contexto de precariedade e em relações de poder pela
hegemonia do saber e das práticas biomédicas de cunho individualista.
A disposição em agir que é aumentada na prática de yoga e a capacidade da
pessoa de intervir em afecções negativas, substituindo-as pela alegria.
(Spinoza, 1983). Trata-se de um mergulho numa concepção anti-cartesiana em
que corpo e alma estão integrados como um mecanismo para entender as
novas enfermidades não explicadas pela prática médica.
O sentido spinosista de um corpo que produz uma afecção positiva (idem,
1983), a potência de agir que causa a alegria está presente na narrativa da
enfermeira e professora de yoga no que diz respeito ao estado de suas
pacientes praticantes de yoga:
E assim, era uma hora por semana, a gente acha que não faz efeito,
mas fazia muita diferença, dava uma estabilidade assim, a gente
percebia assim, a alegria deles, porque a yoga quando você pratica,
você faz com alegria né, você não faz assim: ah de novo eu tenho
que fazer, é uma outra sensação de trazer o prazer mesmo né, e eu
sentia isso neles, nos pacientes.
“A gente percebe a transformação dos alunos: você entra de um jeito
e sai de outro.”
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Também utilizo Houseman (2003) para mencionar que a eficácia resultante no


corpo do praticante, é ocasionada pela atuação nas relações:
“[...] a eficácia distintiva do rito deriva, antes de tudo, não de seu
simbolismo substantivo, nem de suas consequências pragmáticas,
nem, enfim, de suas qualidades performativas , mas da própria
atuação das relações especiais que sua execução desenvolve”. [...] a
eficácia deste (e de qualquer outro) rito reside precisamente no fato
de que, como resultado da performance, afirmações desse tipo
passam a ser aplicadas para além do quadro ritual, sendo
abertamente sustentadas como proposições não sobre o rito, mas
sobre o mundo. (HOUSEMAN, 2003: 80-81).”

São ressignificações que permitem com que as profissionais de saúde em suas


diversas áreas as indiquem às suas pacientes e permitem com que
kardecistas, católicas e evangélicas, messiânica e sem religião participem
destas práticas a partir da espiritualidade, “uma parte invariante da
humanidade”. ( Toniol, 2015).
São mulheres kardecistas, evangélicas, católicas, messiânicas que ocupam
esses espaços das práticas de yoga e meditação e compartilham sua
cosmologia não intrínseca a seus universos sociais de origem e que usufruem
desta cosmologia como técnica corporal que resultam numa eficácia. Elas
incorporam esta cosmologia por meio de uma prática corporal e continuam
prosseguindo com sua escolha religiosa e com sua vida cotidiana, seja como
profissionais remuneradas, ou no trabalho doméstico.

BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. “Os corpos dóceis”, in_________ Vigiar e Punir:


nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987, pp
117-142.
______________. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado, 6
edição. Rio de Janeiro. Editora Forense Universitária, 2008.
HOUSEMAN, Michael. O vermelho e o negro: um experimento para pensar o
ritual. Mana, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, 2003, p. 79-207. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v9n2/17933.pdf>.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “A Eficácia Simbólica” in ____________. Antropologia
Estrutural. Trad. Beatriz Perrone-Moises. São Paulo : CosacNaify, 2012,
pp.215-236.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

LANGDON, Esther Jean. Dialogando sobre o processo saúde/doença com a


Antropologia: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672009000200025.
MAUSS, Marcel. “As técnicas do corpo”, in ________Sociologia e Antropologia.
Trad. de Paulo Neves. São Paulo, Ed. CosacNaify. 2003, pp. 399-420.
SCHECHNER, Richard. Pontos de contato entre o pensamento antropológico e
teatral. In: Cadernos de Campo. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em
antropologia Social da USP.Tradução: Ana Letícia de Fiori, Revisão Técnica:
John Cowart Dawsey e Diana Paola Gómez Mateus. São Paulo, n.20, 2011, p
213-236. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/36807/39529.
SPINOZA, Benedictus de. Os Pensadores. Tradução de Marilena de Souza
Chauí. 3ª edição. São Paulo, Abril Cultural. 1980.
TONIOL, Rodrigo. Do espírito na saúde. Oferta e uso de terapias alternativas/
complementares nos serviços de saúde pública no Brasil / Rodrigo Toniol. –
2015. Orientador: Carlos Alberto Steil. Tese (Doutorado) - Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós- Graduação em Antropologia Social, Porto Alegre, BR-RS, 2015.
WACQUANT, Loic. Corpo e alma. Notas etnográficas de um aprendiz de boxe.
Tradução de Angela Ramalho. Rio de Janeiro. Editora Relume Dumará. 2002.

Documentos consultados:

Portaria nº 849, de 27 de março de 2017, Inclui a Arteterapia, Ayurveda,


Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia,
Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e
Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares.
Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006 dispõe sobre aprovação da Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema
Único de Saúde .
Subchefia para Assuntos Jurídicos
Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispõe sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm
Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Disponível em:
http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf

Sites consultados:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=98
591
https://www.youtube.com/watch?v=NXj1IugD1og
http://www.correiodoestado.com.br/variedades/medico-indica-menos-remedio-
e-mais-espiritualidade-contra-a-depressao/296124/
http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ioga-pode-ajudar-a-prevenir-
problemas-do-envelhecimento,70001912030
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica/medici
nas_tradicionais/index.php?p=20377
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/trabalho-e-
previdencia/506037-projeto-regulamenta-exercicio-profissional-da-ioga.html
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Avaliação do Sistema Hídrico em Meio Hospitalar – Estudo de Caso do


Hospital de Apoio de Brasília (HAB)

¹ Pedro Ricardo Braz Neto

² Orientadora: Valéria Conceição Mouro

Resumo

Segundo Gonçalves e Oliveira (1997), a conservação de água em edifícios


apresenta vários benefícios, dentre os quais se destacam: possibilidade de
aumento do número de usuários atendidos com a mesma oferta de água;
preservação dos recursos hídricos disponíveis; redução do pico de demanda
através da otimização de equipamentos e tubulações; diminuição do volume de
águas residuárias, implicando redução de investimento em seu tratamento;
além de redução da demanda de energia elétrica no sistema de fornecimento,
coleta e tratamento de esgoto.

Cada vez mais, a adoção de medidas relacionadas com a conservação de


água tem se tornado fundamental nos edifícios públicos e institucionais, devido
ao alto custo de operação dos mesmos.

Dentre as ações a serem implementadas para o uso racional da água,


destacam-se a setorização da medição, que possibilita não somente a
detecção mais ágil dos vazamentos, mas também o gerenciamento como um
todo do consumo de água; a consolidação de um sistema de manutenção
adequado, de forma a evitar que os vazamentos ocorram ou, quando se
manifestarem, que os mesmos sejam corrigidos nos menores períodos de
tempo; instalação de tecnologias economizadoras e, por fim, a realização de
campanhas de sensibilização dos usuários. Dentro da tipologia de hospitais,
alguns programas de uso racional foram desenvolvidos no Brasil, destacando-
se os apresentados por Oliveira (1999) e Barreto (1998).

Será investigada a água resultante de atividades para fins não potáveis - como
a rega de plantas, as lavagens de ambientes, as descargas nas instalações
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

sanitárias, a água resultante dos banhos técnicos, a lavagem mecânica dos


produtos da lavanderia e cozinha, a lavagem de equipamentos, entre outras –
em relação ao seu uso e descarte.

O presente plano de trabalho consiste na investigação do uso e descarte da


água, e consequente proposta de inovação do sistema hídrico do HAB.

Palavras-chave: Reuso, recursos hídricos, reciclagem da água, águas


cinzas

Revisão bibliográfica

A água é uma das substancias mais comuns existentes na natureza, onde, a


mesma, cobre cerca de 70% da superfície do planeta. Essa substancia é
essencial para a manutenção e surgimento da vida. É fundamental que os
recursos hídricos apresentem condições físicas e químicas ideais para o seu
consumo. Sendo assim, a qualidade da água deve ser satisfatória para o
atendimento das necessidades a serem utilizadas e é encontrada
principalmente no estado líquido, constituindo um recurso renovável por meio
do ciclo hidrológico.

Segundo Mauro Naghettini (2016), a circulação continua e a distribuição da


água sobre a superfície terrestre, a atmosfera e oceanos é conhecida como
ciclo hidrológico. Sendo que os principais agentes que governam esse
processo, são: a radiação solar e a gravidade. O autor ainda em seu capitulo,
cita que existe seis processos básicos no ciclo hidrológico, sendo eles:
evaporação, precipitação, infiltração, transpiração, escoamentos superficial e
subterrâneo.

Do ponto de vista dos recursos hídricos, Léo Heller (2016), diz, tanto para os
recursos superficiais quanto para os subterrâneos, verificam diversos usos
demandados pelas populações e pelas atividades econômicas, alguns deles
resultando em perdas entre o volume de água captado e o volume que retorna
ao curso de água (usos consuntivos) e outros em que essas perdas não se
verificam (usos não consultivos), embora possam implicar alteração no regime
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

hidrológico ou na qualidade desses recursos. Segundo o autor, o uso da água


pode ser separado em dois tipos, os consultivos que são: abastecimento
domestico, abastecimento industrial, irrigação e outras utilizações. E os não
consultivos que são os usos para geração de energia hidroelétrica, para
navegação, recreação e harmonia paisagística, entre outros usos.

Conforme o autor Benedito Braga e et al. (2005), existem duas formas para
caracterizar os recursos hídricos, a primeira, com relação à sua quantidade e a
segunda, em relação a sua qualidade. Aonde a qualidade da água depende
diretamente da quantidade de água existente para dissolver, diluir e transportar
as substancias benéficas e maléficas para os seres que compõem as cadeias
alimentares.

Existem lugares, como grandes centros urbanos, polos industriais e as zonas


de irrigação, que exigem uma intensa demanda de água. Essa demanda pode
superar a oferta de água, em quantitativos, um dos fatores pode ser a
qualidade da água esta prejudicada com a poluição. Tal degradação da sua
qualidade pode afetar a oferta de água.

O abastecimento humano de água, entre os vários usos da água, é


considerado segundo Benedito Braga e et al. (2005), o mais nobre e prioritário,
uma vez que o homem depende de uma oferta adequada de água para sua
sobrevivência. Ainda, conforme os autores do livro, a água usada para esse
tipo de abastecimento deve apresentar características sanitárias e toxicológicas
adequadas, tais como estar isentas de substâncias e organismos patogênicos,
para prevenir danos à saúde e ao bem estar do homem.

O autor Léo Heller (2016), assinala sobre o impacto ambiental em uma


instalação de abastecimento de água é que a água após ser consumida,
necessariamente retorna ao ambiente, em sua maior proporção em forma de
esgotos sanitários e industriais. Logo esse esgoto representa uma parcela de
potencial poluidor muito significativo no seu próprio manancial ou em outro,
caso haja transposição de bacias.

Benedito Braga e os outros autores (2005), dizem que, graças ao ciclo


hidrológico, a água é um recurso renovável. Assim quando reciclada por meio
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

de sistemas naturais, é um recurso limpo e seguro que é, pela atividade


antrópica, deteriorada a níveis diferentes de poluição. Entretanto, uma vez
poluída, a água pode ser recuperada e reusada para fins benéficos diversos. A
qualidade da água e o objetivo para o reuso redefinira os níveis de tratamento,
os critérios de seguranças a serem adotadas e os custos da operação do
tratamento da água.

No setor urbano, o potencial de reuso de efluentes é muito amplo e


diversificado. Mas, para usos que demandam água com qualidade elevada
requerem sistemas mais sofisticados de tratamento, podendo elevar os custos
de distribuição da água. Conforme os autores, citado anteriormente, os esgotos
tratados podem, no contexto urbano, servirem para as utilizações potáveis e
não potáveis.

Ainda conforme esses autores, a presença de organismos patogênicos e de


compostos orgânicos sintéticos na grande maioria dos efluentes disponíveis
para reuso faz com que sua recuperação com o objetivo de obter água potável
seja uma alternativa associada a riscos muito elevados e praticamente
inaceitável. Além disso, os custos dos sistemas que seriam necessários
levariam inviabilidade econômico-financeira do abastecimento publico, não
havendo ainda garantia de proteção da saúde publica dos consumidores.

Os usos urbanos não potáveis envolvem riscos menores e devem ser


considerados como a primeira opção de reuso na área urbana. Segundos os
autores, citado anteriormente, os problemas associados ao reuso urbano para
fins não potáveis são, principalmente, os custos elevados de sistemas duplos
de distribuição, dificuldades operacionais e riscos potenciais de ocorrência de
conexões cruzadas. Esse tipo de abastecimento pode ser utilizado: para
descarga sanitária em banheiros, irrigação de áreas ajardinadas, reserva de
proteção contra incêndio, limpeza das edificações entre outros usos não
consultivos.

Uma alternativa para as águas nas edificações é o aproveitamento da agua


pluvial e a reutilização das águas cinza que consiste em utiliza-las como fonte
alternativa para usos não potáveis. A água da chuva é uma fonte alternativa
importante, que pode ser utilizada e é uma boa alternativa econômica em
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

regiões onde o regime pluviométrico é abundante e bem distribuído ao longo do


ano.

Conforme Santos (2002), a configuração básica de um sistema de


reaproveitamento de água da chuva apresenta a área de captação (como
telhado, laje ou piso), a condução de água (calhas, condutores verticais e
horizontais), a unidade de tratamento e o reservatório de acumulação. E
conforme dependendo do nível de poluição atmosférica e dos resultados das
análises, essa água para o reuso não precisa de tratamento prévio.

A reutilização das águas cinza pode ter seu aproveitamento proveniente da


água do chuveiro e das pias para a reutiliza-la em descargas de banheiro e
conforme a qualidade de tratamento da água, esta pode ser, utilizada para
irrigações ajardinadas e limpeza da edificação, desde que sua utilização não
ofereça nenhum tipo de risco à saúde de seus usuários.

As águas cinza segundo, Simone May (2009), podem ser divididas em dois
grupos. O primeiro em águas cinza claras, essas são residuais originadas de
banheiros, chuveiros, lavatórios e maquinas de lavar roupas. E o outro grupo, é
águas cinza escuras, que tem sua origem residual da pia da cozinha e maquina
de lavar louças.

Beatriz Rapoport (2004), em seu artigo de caracterização e analise financeira


sobre águas cinza, observa que para uma implantação de um sistema de reuso
das águas cinza é necessário além de um sistema duplo de distribuição de
água, também um tratamento adequado.

E conforme Simone May (2009), em sua tese de doutorado, os sistemas de


reuso de águas cinza e sistema de aproveitamento de águas pluviais devem
seguir quatro critérios: segurança higiênica, estética, proteção ambiental e
viabilidade técnica e econômica.

Metodologia

Foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o sistema hídrico, reuso e


aproveitamento da água da chuva, e será realizado um levantamento
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

fotográfico, arquitetônico e também dos pontos e saída de agua do Hospital de


Apoio de Brasília. A partir desse levantamento, realizou um estudo sobre o
efeito da água em suas patologias, como a proliferação de mofos, vazamentos
do sistema hidráulico e infiltrações na edificação. Também foi iniciado um
estudo etnográfico sobre a relação do ambiente (com suas patologias) e da
saúde das pessoas residentes no hospital (profissionais e pacientes). E por fim,
propor inovações para que possa minimizar os efeitos cometidos pela água.

Caracterização da edificação

O Hospital de Apoio de Brasília (HAB) é um hospital criado em 1994


especializado em reabilitação de pessoas com graves sequelas neurológicas e
em cuidados paliativos. Para uma melhor compreensão da edificação, abaixo,
segue um croqui do HAB, de como está localizado cada área, como cozinha,
lavanderia e demais áreas.

Figura 01 – Croqui do Hospital de Apoio de Brasília

Para facilitar a caracterização da edificação separou-se o croqui em algumas


áreas que foram nomeadas com letras para realização da legenda. São elas:

(a) Ala “A”, cuidados paliativos oncológicos – 19 leitos;


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(b) Ala “B”, saúde funcional – 30 leitos;


(c) Ala “C”, cuidados paliativos geriátricos – 7 leitos;
(d) Cozinha e refeitório;
(e) Lavanderia;
(f) Fisioterapia;
(g) Área administrativa do hospital.

Análise e resultados

Após um estudo in loco no Hospital de Apoio de Brasília, onde foram realizados


os seguintes levantamentos: fotográfico, arquitetônico e pontos de entrada e
saída de água.

Foram obtidos os seguintes resultados: o primeiro que podemos citar é


causado pela infiltração. Como pode ser visto na Figura 2, a infiltração da água
através da laje de forro do hospital ocasionou a proliferação de mofo. O mofo é
fungo, e os mesmos, dependem de quatro fatores, que são: esporos,
alimentação, temperatura e uma quantidade considerável de umidade. A
umidade pode ser o único fator que pode ser utilizado para controlar o
crescimento do fungo, onde, ele requer uma quantidade considerável de
umidade para se proliferar.

Pode-se destacar algumas das causas para esse tipo de situação, como a
ineficiência da impermeabilização da laje. Então quando se encontra uma
quantidade de água sobre a mesma, ela infiltra por essa laje e cria fatores
positivos para a proliferação os fungos.

Outro ponto que não podemos descartar é que possa conter algum vazamento
da rede de distribuição que passa dentro da laje. Essa hipótese somente pode
ser confirmada com o auxilio do projeto hidro sanitário da edificação, para que
seja analisado os pontos onde se encontram mofos, e verificados se passam
tubulações de água fria, pois deve-se atentar que se a tubulação que passa
pelos locais de mofos for tubulação de água quente essa hipótese pode ser
eliminada, pois esse sistema foi desligado há algum tempo no hospital.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

E o último ponto que pode ser destacado para esse tipo de patologia, seria a
ineficiência do sistema de drenagem da laje. Onde o sistema não retira a água
da chuva com eficiência, permitindo o empossamento da água na laje,
tornando ineficiente o sistema de impermeabilização para conter a infiltração.

Figura 2 – Laje de forro do corredor com mofo.

Outro ponto que pode-se citar a partir da análise, se encontra na Figura 3.


Verifica na imagem a falta de revestimento cerâmico em uma das paredes do
box do banheiro, sendo frequente essa situação no hospital, permitindo a
proliferação de fungos.

Nas construções as orientações são que, para as áreas molhadas, como


cozinhas, banheiros e áreas de serviço, use-se revestimento cerâmico nas
paredes, para que as mesmas sirvam como um agente que impermeabilize, e
impeça a criação de fungos e a infiltração da água nas paredes, que podem
ocasionar patologia estrutural das paredes, como o desprendimento do reboco.
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Figura 3 – Banheiro do vestiário utilizado para os banhos dos acompanhantes.

A Figura 4 mostra uma infiltração ocasionada pelo vazamento nas tubulações e


aparelhos. Observa-se o vazamento nesse lavatório, que ocasionou infiltração
pela alvenaria, mesmo com a parede sendo revestida com tinta esmalte – a
tinta esmalte tem uma impermeabilidade maior que a tinta acrílica – sendo
ineficiente para conter a infiltração da água pela alvenaria. Pode-se observar
que parte da parede não se encontra mais o revestimento com a tinta esmalte.

Uma solução para esse tipo de patologia é analisar toda a rede do hospital,
buscando acabar com todos os vazamentos nos tubos e aparelhos,
observando o estado de conservação e condição de operação de cada
aparelho hidráulico, evitando assim o desperdício da água, que pode ser bem
significativo.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Figura 4 – Lavatório do vestiário utilizado para os banhos dos acompanhantes.

Chega-se ao último ponto abordado e bem interessante de ser analisado.


Verifica-se na Figura 5, que deve-se realizar primeiramente um apanhado de
como é realizada a geração de energia.

O Brasil tem em sua matriz as hidroelétricas como principal geradora de


energia elétrica. Basicamente, uma hidroelétrica é formada pela barragem,
sistemas de captação e adução de água, casa de força e sistema de restituição
de água ao leito natural do rio. Portanto, para geração de energia tem um forte
impacto ambiental, quanto na fauna e flora, tanto nas questões hídricas.

Outro ponto que vale salientar é sobre a importância da iluminação natural no


ambiente, que vai muito além da economia gerada pela redução do consumo
da eletricidade. Permanecer em ambientes que recebem pouca ou nenhuma
quantidade de iluminação natural pode ser prejudicial a saúde das pessoas.
Foram divulgados estudos que comprovam que a utilização da iluminação
natural traz benefícios ao bem-estar dos ocupantes. Segundo o arquiteto
Dimas Bertolotti, a luz estimula a região do cérebro responsável por avisar o
restante do organismo que esta no momento de acelerar as atividades vitais.
Assim, a ausência de iluminação faz com que o corpo tende a funcionar como
se estivesse no período de repouso, causando sintomas de depressão.

Vale ressaltar a importância da iluminação natural e da ventilação natural, para


que não se prolifere fungos. Assim é importante que se tenha uma boa
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

ventilação no ambiente, para que haja circulação do ar, para a redução dos
níveis de umidade.

A Figura 5 mostra que em alguns leitos o banheiro não tem iluminação natural,
deixando o ambiente escuro, podendo afetar a saúde das pessoas naquele
ambiente.

Figura 5 – Croqui de um dos leitos da Ala “A” do Hospital de Apoio de Brasília.

Conclusão

Pode-se concluir que é de extrema importância consertar os vazamentos,


buscando reduzir significativamente o desperdício de água. Como inovação
para o sistema hídrico do hospital, pode-se utilizar um sistema de captação da
água da chuva, para sua utilização em lavagem dos pisos e irrigação da
vegetação.

Outra inovação a ser proposta é a utilização das aguas cinzas para os usos
não potáveis, utilizando um sistema duplo de distribuição, tendo como
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benefício, quanto em questão ambiental como financeiro, superando assim o


custo de implantação desse sistema.

As implementações dessas ações podem ser estendidas a outras edificações


para que se possa aproveitar da melhor forma a utilização da água,
contribuindo para a conservação da água como também do meio ambiente.

Bibliografia

HELLER, Léo. li. PÁDUA, Valter. 2006. Abastecimento de água para consumo
humano. Ed. Belo Horizonte: UFMG.

BRAGA, Benedito e et al. 2005. Introdução a Engenharia Ambiental. 2. Ed.


Pearson.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Título do artigo: Experiências de saúde entrelaçadas: um breve panorama


histórico sobre saúde indígena no Brasil e algumas reflexões
antropológicas sobre articulações entre saberes indígenas e biomédicos

Flávia Maria Martins Vieira1

Resumo

Os sujeitos, quando enfermos, recorrem a diferentes terapêuticas e


tratamentos, podendo ou não articular diferentes saberes e práticas de saúde
ou acessar essa articulação pelo sistema público de saúde. No caso dos povos
indígenas, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas
(PNASPI) define como diretriz a articulação com o sistemas tradicionais
indígenas de saúde, mas essa questão não vem se realizando devidamente no
cotidiano destes povos. O que merece nossa atenção é mapear e entender
como esses sujeitos criam, elaboram suas próprias formas de lidar com a
articulação de saberes e como eles compreendem, vivenciam a articulação
entre sistemas médicos proposta pela PNASPI. O trabalho aqui apresentado se
trata de uma primeira tentativa de expandir a discussão teórica e os
delineamentos metodológicos definidos para a realização de meu projeto de
pesquisa de dissertação de mestrado a ser desenvolvido ao longo do ano de
2017 e 2018 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco. Tendo em isso em vista, não irei
apresentar aqui resultados de uma pesquisa já concluída, mas sim, explorar
conceitualmente o tema e objeto da pesquisa a fim de levantar algumas
questões e possibilidades de caminhos para uma pesquisa na área da
Antropologia da Saúde e Antropologia Indígena. Apresentarei alguns dados
históricos a respeito da atenção à saúde dos povos indígenas no Brasil;
discutirei alguns dos conceitos teóricos que pretendo utilizar na pesquisa;
explicarei como chego a este objeto de pesquisa e como pretendo,
metodologicamente, realizar a pesquisa junto ao povo indígena Kapinawá que

1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco


(PPGA/UFPE)
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

tem seu território situado entre os municípios de Buíque, Tupantinga e Ibimirim,


no Estado de Pernambuco, Brasil.

Palavras-chave: saúde indígena, biomedicina, Política Nacional de Atenção à


Saúde Indígena.

Breve panorama sobre a atenção à saúde dos povos indígenas no Brasil

Ao nos propormos a refletir, problematizar e pesquisar a partir de uma


perspectiva antropológica a respeito de questões em torno da temática da
saúde dos povos indígenas no Brasil, não devemos isolá-las ou desvinculá-las
de outros temas, como concepções de territórios, construções de identidades,
formas de organização social, visões cosmológicas, e também a relação
histórica que o Estado estabeleceu e ainda estabelece com esses povos. Até a
Constituição de 1988, as políticas de integração e assimilação direcionadas
aos povos indígenas no Brasil foram pautadas e aplicadas pelo Estado de
modo a construir um caminho que não correspondeu com uma perspectiva de
reconhecimento e respeito às diversidades. No contato entre indígenas e não
indígenas, o Estado brasileiro assumia uma postura assimilacionista; o ser
indígena era visto como uma categoria transitória, cabendo ao Estado brasileiro
tutelá-los e “civilizá-los” (LUCIANO, 2006).
A partir da Constituição de 1988 o respeito à diversidade passa a ser
pautada pelo Estado brasileiro, provocando um recuo em sua postura
integracionista em relação aos povos indígenas. No entanto, vemos que a ideia
de diversidade não foi completamente absorvida pelas políticas públicas, visto
que na prática elas ainda não conseguem dar conta de toda uma diversidade
existente no Brasil (BRASIL, 2013; FERREIRA, 2015). Segundo Coimbra Jr e
Santos (2017):
Até o final da década de 1990, os serviços de saúde destinados ao
atendimento dos povos indígenas eram geridos pela FUNAI. Em larga
medida, baseavam-se em atuações eminentemente curativas. A
continuidade da atenção básica à saúde nas áreas indígenas não
ocorria de forma satisfatória. (…) A partir de 1999, a responsabilidade
pela provisão de serviços de saúde aos povos indígenas passou para a
FUNASA, vinculada ao Ministério da Saúde, concretizando a
implantação de um serviço de saúde voltado para os povos indígenas e
estruturado segundo divisão territorial em distritos (os chamados
“Distritos Sanitários Especiais Indígenas” ou DSEIs), vinculados ao
Sistema Único de Saúde (SUS). (COIMBRA JR e SANTOS, 2017)
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Mesmo com estas iniciativas do Estado, Coimbra Jr e Santos (2000,


2017) afirmam que ainda persistem disparidades entre a saúde dos indígenas e
não indígenas. Segundo os autores, “as populações indígenas passam por
uma invisibilidade demográfica e epidemiológica resultante da ausência de
informações confiáveis nas bases de dados oficiais.” (COIMBRA JR e
SANTOS, 2000, 25p.). A partir do momento em que dados sobre estas
populações não são coletados de forma contínua e com a confiabilidade
necessária, torna-se mais difícil estruturar e desenvolver políticas e ações em
saúde que de fato atendam as necessidades destas populações. Ainda assim,
em 2002 foi oficializada 2002 a Política Nacional de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas (PNASPI), com o propósito de:

(…) garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde,


de acordo com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde,
contemplando a sua diversidade social, cultural, geográfica, histórica e
política. (BRASIL, 2013).

Anos depois, em 2010, foi criada a Secretaria Especial de Atenção à


Saúde Indígena (SESAI) ligada ao Ministério de Saúde que passou a ser a
responsável por coordenar a PNASPI e gerir o Subsistema de Atenção a Sáude
Indígena (SASI-SUS) ambos antes coordenados pela Fundação Nacional de
Saúde (FUNASA).

A PNASPI afirma em seu texto que o reconhecimento da diversidade


cultural e social dos povos indígenas no Brasil é imprescindível para a
execução de ações e projetos de saúde e para a elaboração de propostas de
prevenção/promoção e educação para a saúde adequadas ao contexto local
(BRASIL, 2002). Para isso uma de suas diretrizes anuncia a “articulação dos
sistemas tradicionais indígenas de saúde” (BRASIL, 2002, p.13), afirmando que
as articulações com o saberes e práticas de saúde dos povos indígenas devem
ser estimuladas desde a capacitação de recursos humanos, assim como no
cotidiano das práticas dos profissionais de saúde e no planejamento de ações
voltadas para a garantia de saúde dos povos indígenas. (BRASIL, 2002).
Nesse sentido, a PNASPI representou, por um lado, um avanço no
processo de reconhecimento da diversidade de saberes e práticas de saúde
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

desses povos. No entanto, infelizmente ainda são encontrados fortes entraves


para que esta política seja colocada em prática em sua completude, por
exemplo, a dificuldade de se formar profissionais que sejam de fato preparados
trabalhar em contextos indígenas (ATHIAS, 2004).
Ainda segundo Coimbra Jr e Santos (2012) “as políticas voltadas para os
povos indígenas tem tomado novos rumos, apoiadas no paradigma da
especificidade, da diferença, da interculturalidade e da valorização da
diversidade.” No entanto, atestam os autores, ainda continuam precários os
conhecimentos disponíveis, por exemplo, a respeito do perfil de saúde/doença
dos povos indígenas no Brasil. (COIMBRA JR e SANTOS 2012, p.930).

Ampliando o olhar sobre o direito à saúde


Quando nos referimos ao direito e acesso à saúde pelos povos
indígenas no Brasil, esbarramos na necessidade de compreender o que se
entende por saúde. Para isso, compreendo neste trabalho os saberes e
práticas de saúde como construções socioculturais, optando por me debruçar
sobre as mesmas a partir de um olhar antropológico. Vários pesquisadores
vem se dedicando ao tema e a suas possíveis abordagens no campo das
Ciências da Saúde e das Ciências Sociais, como por exemplo Minayo (1998) e
Canesqui (2010), Kleinman (2006), Langdon e Garnelo (2004), Langdon e
Cardoso (2015) e Athias (2004) contribuindo para a formação e consolidação
de debates dentro dos campos da Antropologia da Saúde e/ou da Antropologia
Indígena.
Segundo Langdon (2014) no artigo Os diálogos da antropologia com a
saúde: contribuições para as políticas públicas, saúde deve ser entendida
como experiência e construção sociocultural. Além disso a autora apresenta
algumas das contribuições proporcionadas pela antropologia para as políticas
públicas voltadas à saúde no Brasil. No texto intitulado Antropologia, saúde e
doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde,
os autores Langdon e Wiik (2010), para entender a categoria/o conceito de
saúde, partem da noção de cultura como uma visão de mundo que orienta os
conhecimentos, práticas e atitudes das pessoas que a compartilham, assim
como os saberes e práticas de saúde de um determinado povo, sociedade
(LANGDON e WIIK, 2010).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Para além da perspectiva biomédica que por sua vez subsidia e


estrutura o atual sistema público de saúde brasileiro ofertado à toda população,
existem outras e distintas racionalidades médicas (LUZ, 2000) entre os povos
indígenas brasileiros; diferentes sistemas médicos de compreensão sobre
saúde, doença, cura. No texto intitulado Medicina e racionalidades médicas:
estudo comparativo da medicina ocidental, contemporânea, homeopática,
tradicional chinesa e ayurvédica, a autora Madel Luz afirma que para além de
biomedicina existem outras racionalidades médicas, no entanto, este padrão
hegemônico – a biomedicina - insiste em compreender outros sistemas
médicos a partir de seus próprios parâmetros, de sua própria lógica e
entendimento sobre saúde e doença. No caso brasileiro, o sistema oficial de
saúde está permeado por uma “atitude etnocêntrica dos profissionais
biomédicos que não veem os saberes indígenas como sistemas completos.”
(LANGDON, 2010).
Segundo Luciane Ferreira (2015):
Ao perpetuar-se enquanto saber hegemônico respaldado pelo Estado, a
ciência instaura um processo de neocolonização cultural do saber,
subordinando conhecimentos e práticas dos povos indígenas à
racionalidade instrumental biomédica.” (FERREIRA, 2015, p.240)

Essas referências nos ajudam a lançar um olhar antropológico sobre os


contextos em que está posta a atenção a saúde indígena na realidade
brasileira. Torna-se necessário ampliar e relativizar tanto o nosso olhar sobre a
biomedicina como sobre as medicinas indígenas, entender como esses
saberes se relacionam em campo e que desafios existem no momento em que
se pensa e se tenta executar uma atenção a saúde dos povos indígenas que
de fato atenda às necessidades e reivindicações desses povos.
A biomedicina2 também pode ser colocada no centro do foco tornando-
se objeto de estudo (assim como as medicinas indígenas), objeto de
estranhamento/conhecimento por parte dos antropólogos. A partir de uma
perspectiva antropológica, podemos incitar credito a própria biomedicina, que
por vezes ainda é encarada como parâmetro para entender outras noções de

2 Não me deterei aqui nesta oportunidade a uma discussão levantada por Pereira (2012), mas deixo
registrado em nota, que segundo o autor, uma “simples crítica a objetividade médica, à diferença de
linguagem entre profissionais de saúde e pacientes, ao exercício do poder médico não consegue (…)
abarcar todas dimensões nas quais profissionais de saúde se relacionam com cosmopolíticas
ameríndias.” (PEREIRA, 2012, p.532).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

saúde, a extrapolar sua compreensão estritamente biológica de algumas


categorias (saúde, doença, corpo, cura) podendo dar espaço a uma
compressão que considere aspectos socioculturais.
Seguindo a perspectiva de ampliar o olhar sobre o direito à saúde, de
acordo com diferentes sistemas culturais haverão causas múltiplas para o
‘estado saudável’(LANGDON e WIIK, 2010) ou para a enfermidade. Na busca
pelo bem-estar, pela cura ou pela saúde, os sujeitos recorrem e se utilizam de
elementos de distintos sistemas médicos, de diferentes cosmologias; são ativos
neste processo de articular em seu itinerário terapêutico os diferentes saberes,
criando novas articulações entre os mesmos. Segundo Pereira (2012):
(…) os povos indígenas estão longe da passividade; ao contrário, num
quadro de simultaneidade de tradições epistemológicas, incorporam
artefatos e ideiais e exercem agência social, construindo algo novo. O
conhecimento indígena é dinâmico, criativo e sujeito às influências,
perfazendo negociações e renegociações constantes entre diferentes
formas de saber médico.” (PEREIRA, 2012, p.531).

As considerações de Langdon e Wiik (2010) abaixo sobre a realidade


brasileira ratificam o que foi dito por Pereira (2012):
Aqui, embora o sistema médico estatal seja o biomédico, que oferece
serviços de saúde via Sistema Único de Saúde (SUS), a população,
quando enferma, recorre a vários outros sistemas. Muitos grupos
procuram biomédicos, mas utilizam a medicina popular, outros utilizam
sistemas médico-religiosos, outros, ainda, recorrem a vários sistemas
ao longo do processo de doença e cura. Pensar o sistema de atenção à
saúde como um sistema cultural de saúde ajuda compreender esses
múltiplos comportamentos. (LANGDON e WIIK, 2010. p. 465).

Nesse sentido, no caso dos povos indígenas, mesmo havendo a


PNASPI com sua proposta de articulação entre sistemas médicos, os sujeitos
recorrem a diferentes terapêuticas e tratamentos, podendo ou não fazer
articulações entre diferentes saberes e práticas de saúde. O que desperta
nosso interesse epode ser questionado a partir de uma perspectiva
antropológica é: como esses sujeitos criam, elaboram suas próprias formas de
lidar com estas articulações? Eles articulam? Essa articulação é proposta pela
PNASPI, mas como ela é compreendida na prática pelos sujeitos em questão?.
Gostaria de destacar duas pesquisas que foram desenvolvidas no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de
Pernambuco (PPGA/UFPE). Essas pesquisas foram realizadas por Georgia
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Silva (2007) e Liliane Souza (2004) na elaboração de suas dissertações de


mestrado junto aos povos indígenas Atikum e Xukuru, respectivamente.
Segundo as autoras, na busca pela cura de alguma doença ou enfermidade os
sujeitos pesquisados recorrem tanto às práticas indígenas tradicionais de seu
povo, como às práticas da biomedicina, através de automedicação ou do
serviço público de saúde. Como afirma Silva (2007):
Associada a reza, quando a aflição é de maior grau os
rezadores/rezadeiras podem prescrever ou ministrar banhos, chás ou
preparar concentrados de espécies vegetais, chamados de remédios do
mato, remédios de pau ou mezinha. Os remédios do mato são
contrapostos aos remédios de bótica ou remédios de farmácia da
biomedicina, onde cada um tem sua eficácia dependendo do tipo de
doença a que se está acometido. (SILVA, 2007, p. 55 grifo da autora).

As definições de diagnósticos, de itinerários terapêuticos e os


tratamentos a serem realizados pelos sujeitos efermos, se dão através de
negociações e interlocuções entre diferentes atores e saberes (indígenas e não
indígenas). Souza (2004) em pesquisa realizada a respeito do modelo
etiológico do povo Xukuru, afirma que:
Existem mal-estares e doenças classificados como “doença que médico
cura” e que são sanados através das terapêuticas nativas ou da
associação dessas com tratamentos biomédicos. (...) Diferentemente,
os mal-estares ou doenças classificados como “doença que rezador
cura” podem até ser tratados com a terapêutica proveniente da
biomedicina, no entanto, a cura efetiva só ocorre a partir do momento
que são identificadas as causas últimas (da doença ou mal-estar) e
posterior cura através da terapêutica nativa de cura. (SOUZA, 2004).

Um conceito muito interessante e também colocado em destaque por


Pereira (2012) para se pensar estas articulações entre diferentes saberes e
práticas de saúde, é o conceito de intermedicalidade elaborado pela autora
Maj-Lis Fóller no texto Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos
indígenas e profissionais de saúde. Este conceito possibilita “o reconhecimento
da agência criativa exercida pelos povos indígenas na produção de suas
próprias realidades sóciomédicas” (FERREIRA, 2015, p.229). Segundo
Ferreira (2015):
o conceito de intermedicalidade reconhece os povos indígenas como
agentes de mudanças justamente por serem eles a articular sentidos e
práticas de saúde oriundos de distintos horizontes socioculturais de
modo a recriar os seus próprios sistemas sóciomédicos.” (FERREIRA,
2015, p. 227).
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

O que nos interessa na pesquisa a ser desenvolvida para elaboração de


dissertação de mestrado é mapear e entender como esses sujeitos criam,
elaboram suas próprias formas de lidar com a articulação de saberes e como
eles compreendem, vivenciam a articulação entre sistemas médicos que é
proposta pela PNASPI. Para isso, uma pesquisa que nos aproxime dos sujeitos
e do grupo social – neste caso, os povos indígenas - permite potencialmente
compreender como esses sujeitos entendem e articulam diferentes noções e
processos de saúde. A pesquisa qualitativa em questão será realizada junto ao
povo indígena Kapinawá, e, através desta aproximação, a proposta visa
aprofundar o debate acerca do conceito de intermedicalidade, se debruçando
sobre o contexto local do referido povo, mas podendo refletir e trazer
elementos para pensarmos questões globais no que tange às relações e
articulações entre distintos saberes e práticas de saúde. Trataremos mais
sobre esses pontos no tópico a seguir.

A necessidade de irmos a campo


Nos tópicos anteriores nos dedicamos a traçar um panorama de dados
históricos, trabalhos e conclusões de outras pesquisas no que tange alguns
pontos da ampla questão da saúde dos povos indígenas no Brasil. Para além
disso, ao nos dedicarmos a uma perspectiva antropológica sobre este tema, se
torna imprescindível irmos a campo, coletarmos dados, confrontarmos
conceitos, redescobrirmos e reanalisarmos resultados. Nesse sentido,
conhecer e pesquisar experiências locais pode contribuir para uma discussão
mais global sobre noções de saúde e nos ajuda a investigar de que forma
essas noções se articulam no cotidiano dos sujeitos e suas comunidades.
Como fruto desta necessidade de ir a campo, comecei a delinear meu projeto
de pesquisa a ser desenvolvido no mestrado em Antropologia pela
Universidade Federal de Pernambuco.
No início do ano de 2016, quando iniciei a escrever esta proposta de
pesquisa, eu estava trabalhando como cientista social no projeto intitulado
Projeto de Telessaúde para Saúde Indígena no Nordeste, desenvolvido pelo
Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), umas das
conveniadas da SESAI/MS para administrar parte dos recursos humanos dos
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) do Nordeste. Por trabalhar


neste projeto pude conhecer e visitar diversas unidades de saúde que atendem
as populações indígenas do Nordeste. Meu contato enquanto profissional se
restringia aos profissionais de saúde das unidades (profissionais indígenas e
não indígenas). Nas minhas visitas as unidades de saúde eu podia observar o
seu funcionamento e algumas das interações entre profissionais de saúde e
população indígena atendida. No entanto, enquanto cientista social, percebia a
necessidade de ir além das unidades de saúde para poder pesquisar sobre as
compreensões de determinado povo indígena a respeito das relações e
articulações entre seus saberes e práticas de saúde e os saberes e práticas de
saúde biomédicos.
Tendo este objetivo em vista, em maio de 2016 pude acompanhar uma
das etapas e viagem de campo do projeto de mapeamento do território
Kapinawá, território este que se situa entre os municípios de Buíque,
Tupanatinga e Ibimirim, no estado Pernambuco. O referido projeto iniciou em
2013 e foi realizado pela Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) e o
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) visando a construção do Plano de Gestão
Territorial e Ambiental deste povo indígena3. Nesta oportunidade pude conhecer
pela primeira vez o território Kapinawá e conversar com algumas de suas
lideranças indígenas que se mostraram abertas e disponíveis para uma
pesquisa sobre a articulação entre seus saberes e práticas de saúde e os
saberes biomédicos.

3
Figura 1: Vista para a Aldeia Mina Grande,
Para mais informações sobre um dos produtos que resultaram deste projeto acessar:
Território Kapinawá. Foto: Flávia Vieira.
http://cclf.org.br/noticias/lancamento-de-livros-indigenas-acontecem-nesta-sexta-no-cclf/
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Segundo dados fornecidos pela antropóloga Lara Erendira Andrade em


sua disssertação de mestrado a respeito da conformação do território
Kapinawá4, existem produções científicas acerca deste povo indígena nos anos
1980, 1990 e 2000. Essas produções se dedicaram principalmente a questões
sobre território, identidade étnica e aspectos ligados a religião e música
Kapinawá (ANDRADE, 2014, p.33-34); no entanto, nenhuma dessas produções
se debruçou explicitamente a tratar dos saberes e práticas de saúde do povo
Kapinawá. Dessa forma, a disponibilidade das lideranças Kapinawá associada
a ausência de trabalhos científicos voltados para a temática da saúde deste
povo indígena, me direcionaram a vê-los como possíveis sujeitos de minha
pesquisa a ser desenvolvida no mestrado.
Dois meses depois, em julho de 2016 também tive a oportunidade de
participar do III Encontro de Pajés e Detentores de Conhecimentos
Tradicionais de Pernambuco e do I Encontro de Parteiras realizado no território
do povo Pankararu. Nesta ocasião reencontrei algumas das lideranças Kapinawá que já
havia conhecido e também pude escutar depoimentos de lideranças de outros povos
indígenas do estado de Pernambuco a respeito de seus saberes e práticas de saúde.

Figura 2: Pajés e Detentores de Conhecimentos Tradicionais


reunidos na frente da plenária durante o III Encontro de Pajés e
Detentores de Conhecimentos Tradicionais dos Povos Indígenas de
4
Pernambuco.
Dissertação Foto: Alexandre
de mestrado apresentada Pankararu.
em 2014 ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal da Paraíba.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Nesse evento diversas lideranças e detentores de saberes tradicionais


afirmaram a necessidade de terem seus conhecimento respeitados, valorizados
e legitimados tanto pela comunidade indígena como pelo sistema público de
saúde. Escutar os próprios indígenas, no caso, os povos indígenas de
Pernambuco na figura seus representantes, se mostrou como um exercício
profícuo de diálogo entre diferentes saberes e práticas de saúde. Esses fatos
só reiteraram a necessidade de aprofundar e ouvir com mais calma e de forma
sistemática as perspectivas dos próprios indígenas (que por vezes também são
profissionais das equipes das unidades de saúde) para, por exemplo,
repensarmos e aprofundarmos o conceito de intermedicalidade, assim como
contribuirmos para a construção de políticas que atendam e respeitem de fato
os saberes e práticas de saúde destes povos.
Como afirmei no tópico anterior, uma pesquisa que nos aproxime dos
sujeitos e do grupo social em foco nos permite potencialmente compreender
como esses sujeitos compreendem e articulam diferentes noções e processos
de saúde. Para isso defini como meu objeto de pesquisa as relações e
articulações entre os saberes e as práticas de saúde do povo indígena
Kapinawá e os saberes e as práticas de saúde biomédicos. Nessa proposta,
compreendo como povo indígena Kapinawá: os detentores de conhecimentos
tradicionais, lideranças políticas, indígenas que trabalham nas Equipes
Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) e indígenas usuários de serviço
público de saúde ofertado à população indígena Kapinawá. Os saberes e
práticas de saúde deste povo serão compreendidos como o conjunto de
conhecimentos tradicionais no que tange ao entendimento e ao cuidado com a
saúde. Enquanto saberes e práticas de saúde biomédicos, me refiro aos
conhecimentos médicos em cujo sistema público de saúde brasileiro é pautado,
e que subsidia os profissionais das Equipes Multidisciplinares de Saúde
Indígena (EMSI) no atendimento aos povos indígenas brasileiros.
Propomos uma metodologia de cunho qualitativo baseada em
orientações sobre pesquisa qualitativa oferecidas por Victora, Knauth e Hassen
(2000) e Gaskell (2002).O trabalho de campo será realizado no território
Kapinawá, através da interlocução e convivência com os diferentes sujeitos
Kapinawá. Terei como interlocução principalmente sujeitos das aldeias
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Malhador, Quiridalho e Mina Grande, que são centros articuladores políticos e


de parentesco das demais aldeias (ANDRADE, 2014). A título de recorte de
pesquisa, farei entrevistas semi estruturadas com indígenas Kapinawá que:
trabalham nas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI),
detentores de conhecimentos tradicionais do povo, lideranças políticas e
indígenas usuários do serviço público de saúde ofertado à população indígena
Kapinawá. Farei observação participante nos postos de saúde indígena onde
são atendidos os Kapinawá. Também realizarei observação participante no IV
Encontro de Pajés e Detentores de saberes de Pernambuco que será realizado
no território Kapinawá em julho de 2017. E, a depender de permissão,
acompanharei os profissionais de saúde em suas visitas de atendimentos aos
Kapinawá.

Considerações finais
Como afirmei na introdução deste trabalho, o material aqui exposto se
configura como uma primeira tentativa de desenvolver e ampliar teoricamente e
metodologicamente meu projeto de pesquisa de mestrado ainda a ser
desenvolvido. De toda forma, acredito que as recuperações históricas e
conceituais aqui apresentadas podem trazer contribuições para debates dentro
das áreas da Antropologia Indígena e da Antropologia da Saúde. Ainda assim,
tenho convicção que ainda existe um longo caminho a ser trilhado por esta
pesquisa com vistas a sua efetiva consolidação e amadurecimento teórico-
metodológico.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Referências
ANDRADE, Lara Erendira de. 2014.”Kapinawá é meu, já tomei, tá tomado:”
organização social, dinâmicas territoriais e processos identitários entre os
Kapinawá. Dissertação de mestrado. Universidade Federal da Paraíba.

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índios Truká em Cabrobó, em Pernambuco”. Saúde e Sociedade. São Paulo.
22(2):566-574.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Teorias de gênero e empoderamento feminino

Lucília Mendes de Oliveira e Silva1

Resumo

O seguinte trabalho visa analisar a recente emergência do conceito de


empoderamento feminino, e pensar criticamente se este conceito pode ser
utilizado de forma a garantir maior autonomia para a mulher e combater as
desigualdades entre os sexos e o consequente papel de opressão vivido pela
mulher. A partir das análises de gênero podemos entender o surgimento do
conceito de empoderamento, dentro e fora de uma perspectiva feminista e as
repercussões da aplicação deste conceito. Por fim pretende-se avaliar se a
prática do parto humanizado possibilita a construção de um empoderamento
desta mulher, se ela consegue, através do protagonismo no parto, repensar
sua condição social de mulher e lutar por mais valorização e equidade de
direitos. Através da tomada de consciência sobre a sua posição social desigual,
a mulher pode se posicionar na luta por equidade de direitos, igualdade salarial
e liberdade de decidir sobre a sua vida, sexualidade e sobre o seu corpo.

Palavras – chave: empoderamento, gênero, indivíduo e sociedade

Introdução

Este trabalho tem por objetivo, por meio de um resgate sobre o conceito
de gênero e sua construção, analisar a emergência do conceito de
empoderamento feminino e se ele pode ser utilizado enquanto uma ferramenta
para garantir a diminuição das desigualdades entre homens e mulheres.

Com a ideia de empoderamento feminino a mulher passa a ser


associada a um sujeito de poderes que devem ser acionado e potencializados.
Neste sentido quais são as influências para a construção do feminino, não mais

1
Mestranda em Ciências Sociais pelo programa de Pós – Graduação da Universidade Federal de
Uberlândia.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

entendido enquanto a figura de pessoa frágil, restrita ao ambiente da casa e à


figura materna? Até que ponto o empoderamento realmente contribui para
alterar as relações de poder assimétricas entre homens e mulheres?

É necessário entender qual é o espaço de liberdade para este processo


de construção de si e de tomar o controle e poder sobre suas ações e
escolhas. As relações de gênero, sendo uma construção social, podem ser
transformadas através de ações e reinvindicações de empoderamento por
parte das mulheres?

Este trabalho pretende analisar estas questões a partir de uma análise


dos conceitos de empoderamento feminino, das teorias de gênero e a condição
social da mulher, pensando a possibilidade de ação da mulher e de construção
da sua autonomia.

A construção social do gênero

O conceito de gênero surgiu nos anos 1950 primeiro no meio médico.


Segundo Cyrino (2013) é o psicólogo John Money que, em 1955, define gênero
como um atributo psicológico, diferente do sexo ligado ao aspecto biológico
humano. É a partir deste estudo que surgiu a ideia de gênero enquanto um
atributo individual e psicológico, podendo ser separado entre gênero feminino,
gênero masculino e gênero neutro.

Como a autora ressalta, com a classificação médica de gênero feminino


e gênero masculino foi posta em questão “como definir o que significa se sentir
e se comportar como homem ou como mulher?” (Cyrino, 2013, p 4) O
comportamento e o sentimento de ser mulher é conceito fluido e subjetivo,
portanto de difícil definição. Se pensamos o gênero enquanto construção social
é preciso entender que esta construção é situada, heterogênea e dinâmica.

O gênero, dentro do contexto feminista e sociológico, pode ser definido


como o princípio que transforma as diferenças sexuais em desigualdades
sociais e culturais estruturando a sociedade de forma assimétrica entre homens
e mulheres, sendo os homens a ocupar o papel de dominante e a mulher o
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

papel de dominada. O feminismo surge com o objetivo de subverter essas


desigualdades.
Segundo Scott (1995) o gênero indica construções sociais e ideias sobre
os papeis adequados aos homens e às mulheres, é a forma como a diferença
sexual é interpretada socialmente. A sociedade utiliza de sistemas simbólicos
para representar o gênero, “para articular as regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência. Sem o sentido não há experiência.” (Scott,
1995, p. 11)
A autora define o gênero como uma forma de significar e decodificar as
relações de poder na sociedade, sendo assim ele implica em quatro elementos:
os símbolos culturais geradores de representações simbólicas, os conceitos
normativos que evidenciam as interpretações dos símbolos, desvelamento das
organizações responsáveis por trazer uma aspecto de permanência e rigidez à
representação binária de gênero, e a identidade de gênero como plural.
Segundo Louro (2003), ao estudarmos as relações entre homens e
mulheres não é importante a observação apenas dos sexos, mas do que se
construiu relacionado aos sexos. Assim é importante levar em consideração a
realidade social em que os atores estão inseridos.
Quando pensamos nas construções de gênero como uma análise social
e relacional, não buscamos, de maneira alguma, a negação da biologia, mas
tentamos focalizar o debate no campo social, pois, “é nele que se constroem e
se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos” (LOURO, 2003, p. 22)
Lauretis (1994) aponta para as limitações de entender-se o conceito de
gênero como diferença sexual, como ocorreu nos anos 60 e 70, e seus
conceitos derivados, como cultura da mulher, escrita feminina, maternidade. A
primeira limitação do conceito é colocar as diferenças entre homens e mulheres
como diferenças universais, cada sexo tendo um universo próprio, isto
atrapalharia a se entender as diferenças existentes entre as mulheres. A
segunda limitação diz respeito a não compreender as características para além
do sistema patriarcal, como etnia e classe social, características estas
formadoras de um sujeito múltiplo e, por vezes, contraditório. Por isso os
escritos feministas desta época focaram na crítica à utilização central da
diferença sexual na discussão de gênero.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Lauretis afirma ser preciso desconstruir essa imbricação de gênero e


diferença(s) sexual(ais) para poder-se pensar o gênero como representação e
auto representação, produto de diferentes tecnologias sociais (cinema,
aparatos biomédicos) discursos, epistemologias, práticas institucionalizadas e
práticas da vida cotidiana. A autora define gênero como uma representação
social, sempre em construção, que sofre influência inclusive dos processos de
desconstrução do gênero.
Butler (2016) vai além na definição de gênero ao compreender que ele
estabelece interseções entre raça, classe, etnia, sexualidade, identidade,
ressaltando que o gênero nem sempre se constitui da mesma forma em
diferentes contextos sociais e históricos. O gênero, por ser culturalmente
construído, não é fixo como o sexo. O sexo poder ser interpretado e
resignificado pelo gênero pois, ao se falar de mulher, pode-se estar falando de
um corpo feminino ou masculino, o mesmo ocorre ao se falar de um homem.

Ao analisar as diferentes concepções sobre gênero Butler cita a


influência das posições históricas e antropológicas que entendem o gênero
como

Uma relação entre sujeitos socialmente constituídos, em


contextos especificáveis. Este ponto de vista relacional ou
contextual sugere que o que a pessoa “é” – e a rigor, o
que o gênero “é” – refere-se sempre às relações
construídas em que ela é determinada. Como fenômeno
inconstante e contextual, o gênero não denota um ser
substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre
conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergente. (BUTLER, 2016, p. 32)

Esta convergência, por ter uma influência histórica e cultural, se


transforma de pessoa para pessoa, por isso quando falamos de mulheres
existe uma pluralidade de possibilidades do significado de ser mulher. Segundo
a autora a ideia de uma identidade feminina única seria uma ficção criada para
regular as ações das mulheres e manter os papeis sociais tradicionais. A
emancipação política, em relação ao próprio corpo, também se torna mais
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

possível de acordo com as mudanças do contexto no qual esta mulher se


encontra, qual a sua história, sua cultura, suas relações e influências.

De acordo com Scott(1995) a fonte da libertação feminina seria a


compreensão do processo de diferenciação entre homens e mulheres, inclusive
no que tange a reprodução da espécie, e as contradições entre a natureza e a
ideologia. Segundo Lauretis (1994) o sujeito emergente do feminismo está, ao
mesmo tempo, dentro e fora da ideologia de gênero por reconhecer as
desigualdades e suas origens. Mas para de fato reconstruir o gênero em outros
temos é necessário se afastar do referencial androcêntrico2 de sociedade.

A emergência do empoderamento feminino

O empoderamento feminino surge com os movimentos de direitos civis


nos Estados Unidos nas década de 1970, mas se popularizou a partir dos anos
1980. Atualmente ele é considerado um conceito importante por buscar garantir
à mulher a possibilidade de repensar sua condição desigual e buscar mais
igualdade e respeito. Melo (2014) apresenta em seu texto algumas das
principais definições de empoderamento, começando pelo feminismo que o
entender como:

uma importante ferramenta de transformação social que


proporciona um fortalecimento das posições social,
política e cultural das mulheres mediante a redistribuição
do poder dentro das relações sociais e intersubjetivas.
Magdalena León (2000) afirma que para o movimento
feminista, o empoderamento feminino implica,
necessariamente, transformações na ordem social

2
Androcêntrico é a concepção que visa supervalorizar o pensamento masculino, sendo este um
pensamento cercado de pensamentos conservadores, moralistas e machistas. Está intimamente ligado à
noção de patriarcado. Entretanto, não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também à forma
com a qual as experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos
e tidas como uma norma universal, tanto para homens quanto para mulheres, sem dar o reconhecimento
completo e igualitário à sabedoria e experiência feminina. A tendência quase universal de se reduzir a
raça humana ao termo "o homem" é um exemplo excludente que ilustra um comportamento
androcêntrico.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

visando a diminuição das desigualdades de gênero. Para


Venegas (2005), o processo de empoderamento é um
caminho subjetivo, pessoal, onde cada mulher deve
empoderar-se a si mesma, mas que para isso é preciso
que haja meios que tornem visíveis e conscientes as
desigualdades de gênero. (MELO, 2014, p.1337)

Através destas diferentes definições podemos perceber como o conceito


pode ser utilizado de maneiras opostas. Enquanto Magdalena León pensa o
empoderamento como uma arma de luta por transformação social utilizado por
um movimento social e político Venegas coloca o foco no indivíduo como se
este sozinho pudesse transformar a ordem social. Outra autora a definir
empoderamento feminino é Mageste (2008), que o entende

como ideia de as mulheres poderem decidir sobre sua


própria vida nos espaços públicos e privados, bem como
exercer poder nos espaços em que são tomadas decisões
acerca das políticas públicas e de outros acontecimentos
relativos aos rumos da sociedade e que interferem direta
ou indiretamente sobre os seus interesses. Existem duas
perspectivas para se considerar o empoderamento
(ROMANO, 2002). A primeira é a abordagem de
empoderamento, que coloca as pessoas e o poder no
centro dos processos de desenvolvimento, ou seja, parte-
se da premissa de que a ação social leva à
transformação. E a segunda é o processo pelo qual as
pessoas, as organizações e as comunidades percebem
sua competência para produzir, criar e gerir e assumem o
controle sobre seus próprios assuntos, sobre sua própria
vida, agindo em prol de uma mudança nas relações de
poder existentes. (MAGESTE, 2008, p. 2)

Se considerarmos apenas a primeira parte da sua definição podemos


entender a mulher como um indivíduo capaz de, através de uma ação
individual, transformar sua realidade e ampliar sua liberdade na sociedade. O
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

problema de se focar apenas na ação do indivíduo está no perigo do conceito


se tornar um tipo de voluntarismo, como se apenas dependesse da vontade da
mulher de se libertar das opressões e violências de gênero. Mas nesta disputa
por maior liberdade na sociedade o movimento social se faz uma necessidade
porque as transformações sociais são graduais e ocorrem quando uma parcela
da sociedade reivindica a mudança.

O processo de empoderamento implica em desenvolver capacidades


para superar as desigualdades e privações, além de construir novas opções,
exercer a capacidade de escolha e implementá-las. Conclui-se assim que as
mulheres, ao se empoderarem, questionam as relações patriarcais e exercer o
controle sobre o próprio corpo, sua sexualidade, o direito de ir e vir, e repudiam
as decisões unilaterais masculinas assim como a violência sofrida (seja física,
moral, psicológica).

De acordo com Sardenberg (2009) o empoderamento de mulheres


consiste na conquista da autonomia e da auto determinação. É, ao mesmo
tempo, um instrumento /meio e um fim em si mesmo. Através do
empoderamento as mulheres se libertariam das amarras opressoras do gênero
e questionariam seus papeis e lugares sociais, a ideologia e as relações de
poder com o objetivo de acabar com o patriarcado.

Este conceito não tem o objetivo de transformação social no nível de


redução da pobreza, fim da sociedade capitalista, fim das guerras. Mesmo as
feministas sendo a favor destas pautas o empoderamento é mais utilizado com
o objetivo final de acabar com o sistema patriarcal e as desigualdades
assimétricas de gênero. O conceito de empoderamento é polissêmico e
resultante de diferentes visões sociais, por isso é difícil definir apenas um
objetivo final para sua utilização

Outro aspecto levantado pela autora é a visão errônea do


empoderamento como um processo totalmente individual. Para se efetivar a
crítica e desconstrução das desigualdades é necessário se unir as ações
individuais com as ações coletivas. Ao se compreender os processos históricos
que geram as desigualdades de poder se torna necessário uma ação coletiva,
solidária, para transformar estas estruturas sociais. Esta transformação das
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

estruturas de subordinação ocorreria através de mudanças radicais na


legislação, no direito de propriedade e outras instituições que reforçam a
dominação masculina. O poder adquirido pela mulher pode ser entendido
também como “o controle sobre recursos materiais, intelectuais e ideologia.”
(Sardenberg, 2009, p. 5)

Para que o empoderamento ocorra são necessárias algumas


características: a pessoa precisa ser “desempoderada” para se empoderar,
ninguém empodera o outro porque é um processo auto reflexivo, o
empoderamento tem relação com a construção da autonomia e capacidade de
tomar decisões, empoderamento é um processo, em relação com o outro, e
não um produto (não existe um estágio de empoderamento absoluto).

Podemos então entender o empoderamento como um processo


importante na luta pela redução das desigualdades de gênero mas o conceito
vem sendo utilizado na mídia, em campanhas publicitárias, na internet em geral
de forma esvaziada em relação ao seu aspecto de luta por transformação
social. Na atualidade vemos a utilização deste conceito como algo ligado ao
consumo e à capacidade “feminina” de lidar com jornadas duplas, triplas, ou
quádruplas.

Como nos explica Lara (2016) a ideia de girl power, vendida nas redes
sociais, propagandas, na literatura, considera a mulher como um ser forte de
acordo com quantas dificuldades ela superou para alcançar uma posição alta
no emprego, de acordo com quais produtos de beleza ela utiliza, como ela
consegue cuidar da casa, dos filhos, do marido, do trabalho e ainda de si
mesma.

Esta ideia de mulher poderosa reduz as condições desiguais entre


mulheres e homens, até entre as próprias mulheres de classe e etnia
diferentes, à compreensão meritocrática em que as mulheres que se dedicaram
mais conseguiram alcançar seus objetivos e aquelas que não alcançaram o
sucesso não se esforçaram o suficiente. Os cuidados com a beleza deixam de
ser uma expressão de amor próprio, auto construção de uma imagem, para se
tornar um padrão de beleza e até uma exigência social.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Junto com esta ideia de subordinação vem a necessidade de controle,


da mente e do corpo, desta mulher. Na sociedade contemporânea a mulher,
principalmente a de classe média e alta, não está mais restrita ao âmbito da
casa e da família, então a forma de controle social desta mulher deve mudar.
Como nos mostra Lara (2016) este controle adquire uma característica de
pretensa liberdade de escolha para a mulher, desde que esta escolha passe
pelo consumismo capitalista e pelo acúmulo de funções.

Para Griffin (1991) é a percepção da mulher enquanto uma construção


social que permite questionar o caráter aparentemente absoluto e natural da
opressão masculina. O conceito de gênero surgiu como um elemento
importante para pensar como são construídas as representações sociais dos
sexos e como são definidos os papéis sociais destes sexos. Um avanço
importante que o conceito trouxe foi o de pensar que se as representações são
formadas na sociedade então são passíveis de transformações. É através do
questionamento sobre a atual construção da mulher que podemos
compreender os aspectos da opressão social sobre a mulher e começar o
processo de retomada do poder sobre si mesma de forma a destruir as
desigualdades e opressões.

Com o conceito de empoderamento emergem novas representações


sociais da mulher e de seu papel na sociedade. Uma das representações é que
a mulher pode conquistar poder sobre si mesma e, com isso, diminuir as
desigualdades e opressões. Nesta perspectiva a mulher é um agente
importante na luta contra o machismo e na construção de uma sociedade mais
igualitária.

Conclusão

Através da análise sobre o conceito de gênero, o aspecto social das


desigualdades entre homens e mulheres percebemos o surgimento do conceito
de empoderamento como uma das principais ferramentas de um segmento do
movimento feminista para questionar a condição de submissão da mulher na
estrutura patriarcal. Empoderar-se seria um processo fundamental para as
mulheres repensarem seu papel, compreenderem as origens da desigualdade
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

entre os sexos, construírem sua autonomia, tomarem decisões, exigirem


espaço na sociedade para serem ouvidas e exercerem poder.

O empoderamento tem um objeto político de transformação social e fim


das desigualdades e opressões, infelizmente o discurso repassado não inclui
essa característica tão fundamental para se repensar o papel da mulher na
sociedade. Podemos entender que sem a sua característica de luta política é
difícil utilizar o conceito de empoderamento para alterar as relações de poder
assimétricas e desiguais entre homens e mulheres.

O parto humanizado pressupõe uma relação com o corpo baseada em


conceitos modernos como autonomia e individualidade. Por isso percebe-se a
importância do protagonismo feminino no parto, pois este visa reconectar a
mulher com seus instintos e deixar o parto seguir o ritmo determinado pelo
corpo. Esta forma de pensar também tem o efeito de retirar o poder de decisão
sobre o corpo da equipe médica e passá-lo para a própria parturiente.

A definição de empoderamento utilizada por Melo(2014) como um


processo individual de emancipação se relaciona com o entendimento de
empoderamento do movimento pela humanização do parto, neste movimento o
empoderamento significa autonomia, informação e poder de decisão por parte
da parturiente. Nesta medida o parto humanizado pode sim ser capaz de
proporcionar, através do protagonismo da mulher e do seu empoderamento,
uma reflexão da mulher sobre o próprio corpo e sobre o seu direito de controlá-
lo.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

CYRINO, Rafaela. A categorização do masculino e do feminino e a ideia de


determinismo cultural: uma crítica epistemológica aos usos normativos do
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

gênero. In: 10º Seminário Internacional Fazendo Gênero, 16 a 20 de setembro


de 2013, Florianópolis. Anais.

GRIFFIN, Karen M. Nosso corpo nos pertence: a dialética do biológico e do


social. In: Cadernos de saúde pública. Rio de Janeiro, 1991, p.190-200.

LARA, Bruna, et al. #Meu Amigo Secreto: Feminismo para além das redes. Rio
de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa


Buarque de (org). Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva


pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2003.

MAGESTE, Giselle de Souza, et al. Empoderamento de mulheres: uma


proposta de análise para as organizações. In: V Encontro de Estudos
Organizacionais da ANPAD, 18 a 20 de junho de 2008, Belo Horizonte. Anais.

MELO, Camila P. L. Gênero, corpo e novos modos de subjetivação:


possibilidades de construção de uma nova cultura sobre o parto. In: 18º
REDOR, 2014, Recife. Anais.

SARDENBERG, Cecília. Conceituando “Empoderamento” na Perspectiva


Feminista (transcrição revisada da comunicação oral apresentada ao I
Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres – Projeto
TEMPO, NEIM/UFBA, Salvador, 2006, ampliado na versão 2009.

SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.


Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 16, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 5-22.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Componente sociocultural, educação ambiental, patologias estruturais e


computação do Projeto Eficiência Hídrica em Unidade de Saúde:
diagnóstico e soluções.

Etnografia como base no desenvolvimento de um ERP voltado para a


eficiência hídrica

Péterson Silva de Jesus 1

Resumo

Não se pode esquecer do binômio água-saúde e os consequentes riscos do consumo de água,


os problemas relacionados à sua origem e as doenças de veiculação hídrica. Todas estas
preocupações se intensificam quando são analisadas no âmbito de um recinto hospitalar, como
o caso do Hospital de Apoio de Brasília (HAB). Mas não se pode tratar a água como
componente isolado dos processos realizados no HAB, seja no consumo ou no uso higiênico,
já que estes estão relacionados com atividades administrativas que necessitam de eficiência.
Este trabalho consiste de uma etnografia das relações administrativas do HAB e suas
interconexões com a produção da informação, operação de sistemas, eficácia do serviço
público de saúde e consequentemente com a eficiência hídrica. O estudo etnográfico irá
subsidiar a construção de uma intranet no HAB capaz de reformular do processo de
comunicação, otimizar as atividades administrativas, ao mesmo tempo que conscientiza para o
problema da água. Foi levantado todas as dificuldades e necessidades dos funcionários do
HAB, por meio da compreensão das necessidades individuais de cada setor/funcionário no
âmbito de comunicação interna e externa, com o intuito de melhorar o serviço de saúde dentro
do Distrito Federal. O estudo etnográfico demonstrou que a interface homem-máquina vai além
do conceito pragmático de usabilidade e que a confiança das relações pessoais é depositada
nos softwares, por meio da espera da determinação de suas tarefas, mesmo que proveniente
de sistemas limitados.

Palavras-chaves: água, consumo, etnografia, interconexões.

1
Aluno do Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Educação de Goiás - Campus Anápolis.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

1. Introdução

Eu sou aluno de Ciência da Computação do Instituto Federal de Goiás


Campus Anápolis, essa é a minha primeira etnografia, sendo apenas um
exercício etnográfico, mas que desejo que seja uma contribuição satisfatória
para a área da antropologia, saúde e ciência da computação. Nossa equipe do
IFG2 com alunos de diversas áreas, participamos de um projeto chamado
“Componente sociocultural, educação ambiental, patologias estruturais e
computação do Projeto Eficiência Hídrica em Unidade de Saúde: diagnóstico e
soluções”, e nosso intuito é construirmos para o Hospital de Apoio de Brasília
(HAB), um hospital referência em doenças oncológicas e geriátricas em
Brasília, um protótipo modelo não apenas na área da saúde, mas também de
sistemas internos como solução para atividades do cotidiano, métodos de
economizar água no hospital internamente, estruturas patológicas e sanitárias.
Minha etnografia visa mostrar como que esse método usado para levantamento
de requisitos na metodologia de desenvolvimento de um software, a própria
etnografia, pode incrementar nos processos de construção de uma Intranet. Na
computação o levantamento de requisitos significa a listagem, a catalogação do
que seria preciso para criar e/ou inovar um projeto a partir de uma ideia, onde
levariam em consideração primeiramente os requisitos recolhidos para
começar a desenvolver o projeto de software. Outro objetivo dessa etnografia é
expor que nesse processo de desenvolvimento do projeto, os softwares que
devem ser adaptados para o seu usuário, não o inverso, colocando o usuário
em uma posição de inferioridade diante do software, e sempre que haver uma
atualização do projeto, o usuário deverá se atualizar também para conseguir
realizar os procedimentos necessários do seu dia a dia no software, pelo
motivo de não ocorrer uma conceituação de quem submete a quem.

2
Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Educação de Goiás - Campus Anápolis.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

2. Questões Metodológicas

A ciência da computação tem um papel de formalização matemática de


algoritmos, redução de problemas grandes em operações elementares, para
facilidade de acesso e simplificação de tarefas. E dentro desses papeis, a
redução de grandes problemas, se encontra os sistemas, os programas,
aqueles que resolvem a robustez de um problema cotidiano. Esses problemas
são encontrados em qualquer lugar que se pode imaginar. Na computação,
como dito anteriormente, a etnografia é considerada como forma de levantar as
necessidades de certos ambientes ou atividades, um levantamento muito eficaz
e bastante usado, porém demorado pela quantidade de tempo necessário para
que haja uma conceituação e compreensão do problema. A etnografia é um
meio que observa os indivíduos em seu ambiente, com o intuito de
compreender suas atividades do cotidiano, o modo de vida de certa sociedade,
e nesse conceito de observar, tentar trazer para o nosso contexto e entender
como aquela sociedade vive, nisso, entramos no conceito de interação dos
indivíduos com o seu ambiente. E na computação esse conceito é trazido para
a interação homem-computador, e definido como o modo que o usuário
(individuo) interage com o computador (ambiente), porém não há uma definição
estabelecida para esse termo muito utilizado não somente em nossa área. Para
isso foi desenvolvido uma caracterização do termo na computação, seguindo
como uma disciplina relacionada com o design, implementação do visual de um
sistema informativo. Que o foco é encontrado na palavra interação, a interação
entre o(s) individuo(s) e o(s) computador(es). E nesse contexto, o homem que
se movimenta, ele que chega até o local do computador, ele que impacta na
vida útil do computador, os movimentos e ações do individuo que influenciam
os resultados e ações dos computadores.

No curso de Medicina Narrativa como modalidade etnográfica, um


curso não voltado somente para a saúde, mas também a outras áreas que
desejam ser desafiadas a pensar na sua área com outros olhos, outros
parâmetros e outros argumentos. O curso é realizado pela equipe do IFG e
estou participando desde o início do ano, tratamos textos sobre etnografia,
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

medicina narrativa, alguns que se relacionam com a computação e que traz


conceitos da etnografia diretamente ligados à minha área. Percebo que as
etnografias lidas até hoje no curso, foram importantíssimas para o meu
entendimento do conceito de etnografia e compreender como realizá-la, alguns,
mostram conceitos aos quais é interessante repensar o que foi dito acima
sobre a definição de interação entre homem e máquina com base nesses
conceitos. Dito que, ao contato do individuo com o computador, não apenas o
computador é afetado pelo fato de ser uma máquina, mas o individuo é
influenciado e acionado a agir de uma forma diferente.

[...] o ser vivo resulta de problemas, não somente se adaptando, ou


seja, modificando sua relação com o meio (como uma máquina pode
fazer), mas modificando a si mesmo, inventando estruturas internas
novas, introduzindo-se completamente na axiomática dos problemas
vitais. [...] para resolver sua própria problemática, é obrigado a
intervir ele mesmo como elemento do problema, por sua ação, como
sujeito; [...] (Simondon, 1958:5-6) 3

Nesse trecho acima de Simondon, percebemos que o ser vivo está em


constante mudança, incessantemente resolvendo problemas de si mesmo e de
outros. Portanto, não há como o individuo não ser influenciado, ele
continuamente mudará sua relação com o computador. Levando em
consideração, todos esses conceitos de etnografia, interação homem-máquina,
parti a campo praticar aquilo que tive a oportunidade de conhecer e aprender,
fazer a etnografia na prática, entender como ela é vivenciada no momento em
que você participa dela. Dito isso, em agosto deste ano, viajei até Brasília para
começar meu trabalho de campo, fiquei hospedado em um albergue, que fica a
alguns metros de distância do hospital, o local alvo da minha etnografia.

3. Meu trabalho em campo

O hospital, por ser um local que possui muitos departamentos e


núcleos, consequentemente dispõe de uma quantidade elevada de
funcionários, de um lado uma minoria como chefes e responsáveis por

3Introdução do livro lida e comentada em sala de aula do curso de Medicina Narrativa como
modalidade etnográfica.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

departamentos, e de outro uma maioria como funcionário na sua área


especifica, contando os terceirizados. Precisei observar e pesquisar tanto os
usuários afetados diretamente com o uso do software, como aqueles que não
teriam nenhum contato com o sistema de intranet, mas que possivelmente
mudariam a forma de execução de suas atividades, pelo motivo de que no
diálogo com cada individuo existe uma nova descoberta diferente e importante.
Com essas definições estabelecidas, comecei minha pesquisa etnográfica.

No primeiro dia, comecei compondo uma mesa de reunião juntamente


com os outros colegas do projeto, apresentando aos chefes dos setores
administrativos de maior escalão nosso projeto. Na parte da tarde desse
mesmo dia, nossa equipe foi levada até o Núcleo de Infecção Hospitalar, onde
nos orientaram sobre o uso de materiais adequados e a lavagem das mãos
para evitar contrair doenças hospitalares. Após esse período, iniciei minha
pesquisa com os usuários alvos da minha etnografia para ter informações
necessárias para construir o sistema de intranet do HAB. As primeiras pessoas
entrevistadas foram as diretoras administrativas, para ter um levantamento
geral de como funcionava o hospital, qual local dele dentro da rede da SES-DF,
se existia e como era a hierarquia dos setores internos. Posteriormente, ao sair
das reuniões do primeiro dia, obtive as informações gerais para poder me
portar melhor dentro do hospital, e saber quais os setores a serem
pesquisados. Do segundo dia ao quinto dia, avancei em todos os setores
administrativos. No sexto e sétimo dia de campo escrevi e organizei todos os
dados recolhidos nos dias anteriores. No oitavo em diante, visitei as alas, os
setores de chefias da enfermagem e todos os departamentos da genética.

Os resultados foram importantíssimos para me indicar como era


realizado o uso da água dentro do HAB, foi perceptivo dentro dos
departamentos de genética, que a água potável é praticamente inutilizada e a
água destilada (pura) é pouco utilizada para os exames e observações. Os
setores de genética do hospital é o local onde se realiza todos os testes do
pezinho do DF, exames citogenéticos e exames de biologia molecular. Já os
setores onde se localiza os pacientes, que são as alas do hospital, se
encontram pacientes com doenças oncológicas na ala A, pacientes para
reabilitação na ala B, e pacientes com doenças geriátricas na ala C. Nessas
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

alas o uso de água é mais intenso que os demais setores do hospital, porém a
lavanderia atualmente é o setor que mais utiliza água no HAB, por ter
responsabilidade de lavar as roupas utilizadas em todo o hospital. Essas
lavagens são realizadas todos os dias, quatro a cinco lavagens pela manhã e
uma ou duas pela tarde, dependendo da quantidade de roupas e pacientes nos
leitos cotidianamente. Já nos outros locais observados do hospital, a água é
utilizada apenas nos lavatórios como meio de limpeza das mãos e meio de
limpeza dos pátios e corredores.

Além das informações sobre a água, recolhi informações sobre os


sistemas utilizados e suas funcionalidades. Os quais são muito importantes,
pois auxiliam nas atividades de aproximadamente 80% (oitenta por cento) dos
funcionários.

A maioria dos departamentos realizam suas atividades no sistema


denominado Track Care, um sistema robusto, satisfatório para várias
necessidades de alguns, porém não de todos. O sistema tem várias
funcionalidades, entre elas: controla o fluxo e informações dos pacientes de
todo o Distrito Federal, listando todo o histórico de prontuários de cada
paciente da Secretária de Saúde do DF (SES), controla as atividades e
cuidados médicos a cada paciente, possui as informações de todos os médicos
que fazem parte da SES do DF, mostra os pacientes atuais nos leitos, as
pesagens de cada paciente em cada hospital da rede, pesquisa pacientes por
vários parâmetros de busca, prescreve medicamentos e curativos. Portanto,
um sistema robusto, que atende as necessidades dos médicos e de alguns
setores administrativos melhor que o resto do hospital. Entretanto, um
problema que encontrei dentro do hospital que afeta todo o seu funcionamento,
são as conexões de redes, ou seja, a internet, um fator importantíssimo no
decorrer do cotidiano de cada servidor daquele local. E no meu penúltimo dia
de campo tive a oportunidade de ser afetado por um acontecimento que
contribuiu para uma melhor compreensão dos problemas ocorrentes no
hospital no contexto de informações, comunicação e das reclamações que
ouvia pelos corredores, dado que as minhas pesquisas ficaram inviáveis de se
realizar, porque não havia como os nativos me mostrarem como era as suas
atividades. Segundo Favret-saada (2005), é pelo motivo de não estar no lugar
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

do nativo, que se tenta representar ou imaginar o que significaria estar em seu


lugar. E que não há possibilidade de imaginar o que se passa ali sem aceitar
ocupa-lo, porque literalmente a situação que ali se passa é inimaginável,
sobretudo para um etnógrafo. O hospital permaneceu sem internet das 08 (oito)
horas da manhã às 17 (dezessete) horas da tarde. E neste período pude
perceber que as atividades do setor administrativo estagnavam por completo,
porque não havia meios de conectarem aos sistemas que possuíam todas as
informações necessárias para se realizar as atividades cotidianas de cada
departamento. Outra descoberta foi que as reclamações que ouvia sobre os
sistemas, de certo ponto 30% (trinta por cento) delas eram pelo motivo de falta
de conexão com a Internet e lentidão no sistema por ser um sistema grande.

4. Conclusão

Um aspecto muito relevante perceptivo nos diálogos obtidos ali,


somente em alguns, porém muito importante para esta etnografia, foi à
mudança das sentenças transmitidas a mim, para tentativa de uma melhor
aparência no momento das pesquisas, principalmente tentativas de
conhecimento da área da computação. Essas observações me mostraram que
as pessoas possuem comportamentos distintos dependente da situação e do
momento, ou seja, se houvesse outra pessoa ali presente com outra finalidade
divergente da minha, eles possuiriam uma conduta e expressão verbal
diferente.

Pelo fato da minha iniciativa naquele local era a partir de uma


etnografia ter uma perspectiva geral do HAB e tentar fazer um levantamento de
requisitos4 com a finalidade de obter informações, que posteriormente seria
possível desenvolver um sistema interno que complementasse os sistemas ali
já presentes, uma Intranet, foi um sucesso. As informações levantadas das
observações e pesquisas das atividades realizadas dentro do hospital durante

4
Levantamento de informações para criação e desenvolvimento de um sistema. Um dos métodos já
citados no começo desse documento sobre etnografia.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

as duas semanas, foram de extrema importância e estão introduzindo o


processo de software, para o desenvolvimento do sistema que será
implementado no hospital. Segundo Paula Filho (2009), processo de software é
uma receita para ser seguida. E segundo Pressman (2006), é como um
arcabouço para as tarefas que são necessárias para construir softwares de alta
qualidade.

Dito tudo isso, concluo minha etnografia relembrando que esse é um


mero texto de um estudante de ciência da computação, apenas um exercício
etnográfico, porém que possui como objetivo já dito no inicio do texto, apenas
mostrar que a etnografia é um meio muito útil e viável para o levantamento das
funcionalidades de um software, que o software deve ser desenvolvido para o
molde do usuário, e não o usuário se moldar para a finalidade do sistema
funcionar corretamente e sobretudo contribuir não somente para a antropologia
e ciência da computação como texto etnográfico, mas também a outras áreas
que desejam pensar com outros olhos a partir da sua área.

5. Referências Bibliográficas

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lindividuation.pdf. Acesso em 28 set. 2017.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

TEMA: Saúde da população negra em relação com a diáspora – Algumas


considerações sobre corpo e negligência
Tarcisia Emanuela Teixeira de Jesus1

Pretendo com este trabalho, me atentar em analisar alguns desdobramentos


do racismo institucional enquanto negligencia, partindo da hipótese de que a
ação negligente com o corpo negro no ambiente médico colabora com o índice
de mortalidade da população negra.
Procuro trazer um diálogo da ciência sociais com a saúde fazendo uma leitura
histórica do Brasil olhando para alguns momentos marcantes para a saúde da
população negra.
Compreendo que a diáspora africana a partir da escravidão produziu novas
concepções de saúde. Trago essa leitura partindo do trabalho de uma agente
de saúde da população negra do NGA3, Núcleo de Gestão Assistencial 3,
presente na cidade de Araraquara.

Palavras Chaves: Saúde da população negra; População negra; Diáspora;


Negligência;

Introdução

Historicamente o mundo foi palco de movimentos diásporicos de muitos povos.


Uma das diásporas mais marcadas pela história é a diáspora africana que se
inicia antes mesmo do período expansionista do ocidente europeu segundo KI-
ZERBO (1972). Porém a partir do século XV, com a partilha da África no que foi
o tratado de Tordesillas, temos o movimento de intensificação do fluxo de saída
desses povos de África, só que dessa vez, uma saída forçada, que foi
sistematizada pelo comércio de povos africanos escravizados 2 que abasteceu
o mundo em mão-de-obra.

Com este trabalho, pretendo dar alguns passos na análise de alguns


desdobramentos atuais do que foi a diáspora forçada de múltiplas etnias
africanas para o processo de escravização negra em diálogo com a saúde e as

1
Graduanda do curso de Ciências Sociais Bacharel e Licenciatura da UNESP – Araraquara;
Membro do AKOMA, grupo de estudos em africanidades, culturas diversidade e memória. E-
mail: [email protected]
2
Usar o termo “Escravizado” ao invés de “Escravo” é reconhecer que a escravidão é um processo, não
um dado da natureza.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

ciências sociais, levantando hipóteses pertinentes para a saúde da população


negra no contexto atual.

Como base teórica faço a leitura de autores clássicos das ciências sociais,
como o médico legista Raimundo Nina Rodrigues, médico psiquiatra Arthur
Ramos e o sociólogo Gilberto Freyre. Autores que discutiram a questão de raça
no Brasil no fim do século XIX e início do século XX, momento em que a
produção científica da Europa ocidental estava voltada para questões que
buscavam compreender a natureza humana de forma a dar vasão para teorias
raciais que estudavam tanto o físico como aspectos comportamentais dos
povos não europeus. De certo modo esses autores foram influenciados por
essa produção que chegava ao Brasil (DOS SANTOS, 2002).

Com o decorrer do tempo as teorias científicas do XIX alcançou o século XX,


que vivenciou grandes tensões econômicas, sociais e políticas que se
embasaram em discursos de âmbito racial, como foi a eclosão dos regimes
totalitários e a segunda guerra mundial. O Brasil nesse contexto, recém-saído
do regime escravocrata, adentrado seus primeiros anos como República se
deparava com a população negra que foi liberta e passou a ocupar lugares
marginalizados na democracia capitalista (FERNANDES, 1964).

De maneira a pensar os efeitos que este contexto histórico teve na


contemporaneidade trago enquanto campo empírico o exemplo o trabalho de
duas agentes que realizavam a política de saúde da população negra no NGA3
na cidade de Araraquara que está situada no interior paulista e fez parte do
conjunto de cidades estabelecidas da economia cafeeira como parte de um
forte conjunto econômico de São Paulo.

O NGA3 é um posto de atendimento (NGA3 – Núcleo de Gestão Assistencial


3), que realiza atendimento especializado para pacientes que são
encaminhados após o atendimento primário das UMD’s (Unidades Médicas de
Diagnóstico) que estão espalhadas pelos bairros. Funcionando a mais de 30
anos, o NGA3 está localizado na avenida José Bonifácio no centro da cidade
de Araraquara e recebe os pacientes encaminhados de todo o município para
consultas com especialistas, sejam eles Ortopedistas, Dermatologistas,
Cardiologistas, endócrinos entre outros.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Uma das políticas públicas que funcionam no NGA3 é a Política de Saúde da


População Negra que iniciou no ano de 2009 indicada pelo CNS - Conselho
Nacional de Saúde com fins de atendimento aos pacientes com anemia
Falciforme3. O aspecto que trago a respeito no NGA3 foi apreendido durante
uma palestra pública4 dessas agentes que se organizaram a fim de
compartilhar suas ações e experiências no âmbito do atendimento à pacientes
negros.

Saúda da população negra, percursos e as ciências sociais.

O século XVIII traz para o século XIX questionamentos à cerca da natureza do


homem. Um dos resultados do processo cientifico, trouxe para o “homem
moderno” os sentidos da técnica, do método e da empiria, dando forma à
racionalidade que foi considerada capaz de responder esses questionamentos
que já não seriam mais mediados pela religião e daria conta de compreender o
mundo. (DOS SANTOS, 2002).

Esse momento histórico é marcado por produções científicas que ecoaram nos
séculos seguintes gerando o nascimento das ciências que se voltam para o
homem na necessidade de compreende-lo.

Em diálogo com as ciências naturais fundou-se a antropologia, levando para a


narrativa do Ocidente Europeu teorias a respeito do contato com diversas
sociedades que foram lidas por eles em tempos históricos e de evolução
distintas. O contato com o “Outro” vem da compreensão de que houve uma
passagem do estado da natureza para a cultura. O homem europeu era
entendido como o ápice desse processo evolutivo e as demais sociedades
caminhavam para a evolução nesse sentido (DOS SANTOS, 2002).

Essa percepção foi uma das bases que legitimou a escravidão de muitos
povos, entre eles etnias africanas, pois os classificou em um estado primitivo
na evolução, ou seja, ele se encontrava em um estado mais próximo da

3
A anemia falciforme é uma doença genética e hereditária, predominante em negros. Se caracteriza por
uma alteração nos glóbulos vermelhos, que perdem a forma arredondada e elástica, adquirem o aspecto
de uma foice (daí o nome falciforme) e endurecem, o que dificulta a passagem do sangue pelos vasos de
pequeno calibre e a oxigenação dos tecidos.
4
Evento “Saúde da Mulher Negra” realizado no dia 10/04/17 pelo LASAM- Liga Acadêmica de Saúde da
Mulher, que é um grupo do curso de medicina da Universidade de Araraquara.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

natureza, desprovido da capacidade do uso da razão, apresentando a


necessidade de serem tutelados5.

O Brasil, como colônia de exploração portuguesa exportou grandes lotes de


populações africanas escravizadas para estabelecer o sistema econômico de
platantion6. Para além desse dado, ele se tornava um território
demograficamente complexo para a produção científica da época. Por conta da
característica peculiar de dominação portuguesa, que, diferente de outros
povos europeus, estabeleceu relações sexuais com as mulheres negras,
africanas e indígenas gerando uma diversa população de mestiços
(FREYRE,2010).

Gilberto Freyre, sociólogo posterior as ideias evolucionistas, escritor da famosa


obra “ Casa Grande e Senzala” de 1933, descreve aspectos culturais do
dominador português, que isento do sangue belicoso concretizou seu território
através do ventre de mulheres negras e indígenas.

O território brasileiro estava repleto da diversidade de populações africanas


como se atentou Raimundo Nina Rodrigues em resposta às provocações de
Silvio Romero crítico e membro da ABL7; ele ressaltava a importância de
termos o africano e o negro não somente no espaço de trabalho, mas também
como objeto de estudo:

É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos


consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das
religiões africanas. Quando vemos homens, como Bleek,
refugiar-se dezenas e dezenas de anos nos centros da África
somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que
temos o material em casa, que temos a África em nossas
cozinhas, como a América em nossas selvas e a Europa em
nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É uma
desgraça. Bem como os Portugueses estanciaram dois séculos
na Índia e nada ali descobriram de extraordinário para a
ciência, deixando aos ingleses a glória da revelação do
sânscrito e dos livros bramínicos, tal nós vamos levianamente
deixando morrer os nossos negros da Costa como inúteis, e
iremos deixar a outros o estudo de tantos dialetos Africanos,
que se falam em nossas senzalas! O negro não é só uma
máquina econômica; ele é antes de tudo, e mau grado sua
ignorância, um objeto de ciência. Apressem-se os
especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas,

5
Referência ao conceito de Razão para Kant, em “ crítica da Razão Pura” 1995, edições Ouro.
6
Sistema econômico agrícola baseado em monocultura, latifúndios e mão-de-obra escravizada.
7
Academia Brasileira de Letras é uma instituição literária brasileira fundada na cidade do Rio de Janeiro
em 20 de julho de 1897
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

monjolos, congos, cabindas, caçangues... vão morrendo. O


melhor ensejo, pode-se dizer, está passado com a benéfica
extinção do tráfico. Apressem-se, porém, senão terão de perdê-
lo de todo. E, todavia, que manancial para o estudo do
pensamento primitivo! Este mesmo anelo já foi feito quanto aos
índios. É tempo de continuá-lo e repeti-lo quanto aos pretos.
(Romero, Sílvio “A poesia popular no Brasil”, in Revista Brasileira,
1879, tomo I, pág. 99.)

A preocupação de Romero, expõe o modo em que o africano e o negro adentra


ao pensamento cientifico brasileiro, ocupando o lugar de “objeto de estudo”,
dono de uma natureza questionadora da razão universal proposta pela filosofia
Iluminista Euro ocidental. O corpo do Africano, do negro foi visto como uma
natureza a ser explorada. Nina Rodrigues (2010), assume o compromisso de
classificar minuciosamente a população africana aqui presente. Ele se volta ao
trabalho etnográfico para encontrar elementos que fossem capazes de dar
sustento à inferioridade de cunho natural dessa população, em busca de
esboçar e comparar seus níveis de evolução.

Não apenas no corpo e na corporeidade, ele se volta para estudo do


comportamento, da linguística, da prática religiosa para afirmar em seu projeto
de Lei para o direito criminalista que o homem negro e africano não seria capaz
de responder a um crime da mesma forma que um homem branco, devido a
sua incapacidade de raciocínio e de respostas coerentes aos seus crimes.
Esse pensamento construído por Nina Rodrigues ainda está presente nas
instituições hoje, sendo reflexo do que chamamos de racismo institucional e
violência policial que dá ao negro o estereótipo do suspeito.

Para Nina Rodrigues o problema do Brasil é a presença em grande escala de


raças inferiores. Seu percurso intelectual deixa para a ciência sociais brasileira
a pergunta: “Como desenvolver esse território, já que nele estão muitos fatores
que colaboram para o atraso? Ele se fecha a possibilidade do Brasil se tornar
uma sociedade civilizada (RODRIGUES, 2010).

Em resposta a Nina Rodrigues, Arthur Ramos (1940), seu discípulo rebate suas
ideias, explicando o “problema do negro” na chave da psicologia. Para ele, o
problema do negro não está em sua natureza, mas sim em sua cultura que tem
papel central de colonizador do Brasil fazendo com que mudasse os costumes
portugueses.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Por conseguinte, a cultura para Arthur Ramos, é como a alma de um povo e se


para ele a cultura do negro e do africano é inferior, a solução seria a mudança
desses fatores culturais para o avanço no âmbito social. Se Nina Rodrigues
afirma que a inferioridade natural do negro impede a chegada da civilização,
Arthur Ramos resolve esse problema com a educação, que para ele, se
difundida entre os negros e africanos seria um agente transformador dessa
realidade de inferioridade. Tornar a educação popular é estabelecer o processo
civilizatório alcançando a ordem social necessária.

Com isso é possível notar que o corpo do negro e africano foi compreendido
por esse pensamento científico desde o percurso de saída de África, como um
corpo que traz consigo as características do atraso. Foi dado a ele o status de
anomalia, seja no âmbito natural como cultural e esse imaginário racista esteve
presente nos espaços de socialização dos intelectuais, incluindo os médicos e
a sociedade civil. Tanto Nina Rodrigues quanto Arthur Ramos eram intelectuais
que dialogavam com a saúde e as ciências sociais, pois ambos para além de
seu papel na consolidação da antropologia brasileira, eram médicos e exerciam
influências na medicina.

Em conjunto com a educação, a saúde também fez parte da missão


civilizadora, o pensamento Higienista que eclodiu no fim do século XIX e início
do século XX, teve como dupla ação dispor a disciplina e higiene na sociedade
brasileira que colaborou com as ações de extermínio dos corpos negros dos
centros urbanos. Não obstante tivemos a criação do Ministério de Educação e
Saúde em 1930 para dar conta dessa demanda estabelecida.

A educação permeada pela ideologia disciplinadora, dialogava com a saúde


para funções semelhantes. Esse pensamento é fruto de uma sociedade pós-
colonial que ainda proporciona ao negro uma realidade traçada pela violência
racista.

Esses pensamentos caminharam junto com o projeto nação que propôs pensar
e repensar o Brasil como uma tarefa constante do poder político. Foi entendido
que para melhorar o Brasil seria necessárias políticas que tivesse o fim de
melhorar sua imagem, com isso a política pública de imigração europeia
ganhou cada vez mais suporte, pois para além da esperança de uma mão-de-
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

obra mais qualificada para o trabalho fabril, também contavam com a mudança
da paisagem demográfica brasileira pelo ideal de branqueamento, como relata
o presidente do Museu Nacional da época, João Baptista de Lacerda que era
médico e também antropólogo. Participou em 1911 no Congresso Universal
das Raças realizado em Londres, que debatia a relação de raças com o fim de
dar soluções aos aspectos negros e indígenas que haviam restado na
sociedade. (DE SOUZA, V. S., & SANTOS, R. 2012). O branqueamento da
população para Lacerda era a esperança da civilização Brasileira e para ele
essa possibilidade viria nas próximas gerações embranquecidas através das
misturas de raças.

Quando adentramos à vida da República a população negra buscava pela


inserção no mercado de trabalho, gerando nas crescentes capitais do sudeste
grande número dessa população. O Rio de Janeiro estava repleto de cortiços,
que foram associados à disseminação de epidemias. O pensamento da
medicina formal desse contexto é da higienização que buscava a ordem de
comportamento, a limpeza dos centros, formando um cenário de destruição de
cortiços gerando uma realidade de afastamento geográfico. O pensamento
higienista reforçou práticas racistas que desencadearam em apagamentos de
corpos negros. Não era comum entre as elites econômicas e intelectuais da
época, que estavam pondo em prática essa limpeza urbana pensar na situação
de amparo dos povos que estavam sendo arrancados de suas casas
(CHALHOUB, 1996).

O projeto de uma sociedade limpa tem sua continuidade no Brasil e nos anos
1960 a 1990, os projetos de esterilização de mulheres negras, indígenas e
pobres é posto em prática de modo significativo. Ter um atestado de
esterilização era um fato que colaborava para a inserção da mulher no
mercado de trabalho (WERNECK, 2003).

A saúde da população negra desde a época da colônia contou com o


movimento negro para dar atenção as demandas dessa população
negligenciada. Paralelamente, quando observamos o trato de saúde da
população negra escravizada no período da colônia, podemos perceber que
essa população cumpria um importante papel para a saúde popular, com suas
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

práticas holísticas, munidos de conhecimentos técnicos e ervas, muitos deles


ocupavam cargos de sangradores, barbeiros e curandeiros que não eram
consideradas como medicina formal no período colonial. Porém eram práticas
como essas que percorriam o repertório de doenças e curas na camada
popular da sociedade, onde podemos incluir para além de escravizados,
homens livres e forros que não tinham poder aquisitivo para os altos custos de
tratamentos médicos formais da época (BARBOSA, K., & GOMES, F. 2008).

Quando fazemos a leitura da saúde, podemos constatar que a pobreza e falta


de acesso à alimentação, moradia de qualidade é um dos fatores que
colaboram com aumento dos índices de mortalidade. E todos esses fatores que
representam as desigualdades sociais estão associadas a população negra,
como elucida o sociólogo Luiz Eduardo Batista em seu estudo “Mulheres e
Homens Negros: Saúde, Doença e Morte” (2002). Para ele o processo de
saúde, doença e morte de homens e mulheres, brancos ou negros parte de
uma estrutura social. O movimento negro tem papel histórico em todas as
políticas de saúde voltadas para o atendimento da população negra.

Não há como falar de saúde no Brasil sem falar da saúde das “classes
populares”, sem contextualizar a presença da população negra no processo de
concretização das instituições, do pensamento científico brasileiro. O corpo
negro é questionador da ordem, ao mesmo tempo em que traz para a medicina
oficial conhecimentos e práticas de saúde.

Durante os anos 80 o movimento negro realizou denúncias as práticas de


esterilização apontando-as como uma prática racista, que está diretamente
ligada à reprodução da mulher negra. (BATISTA, L. E., WERNECK, J., &
LOPES, F. 2012).

O movimento e suas reivindicações traz a necessidade de acompanhar o


processo de saúde e morte dessa população. Em 1992, o quesito de raça/cor
passou a ser considerado nos atestados de óbito e de nascidos vivos, dando
maior possibilidade de acompanhar a mortalidade da população negra.
(BATISTA, 2002).

Com a Marcha Zumbi dos Palmares em 1995 que foi realizada em busca de
Cidadania e Vida, decretou a criação do GTI – Grupo de Trabalho
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Interministerial, criando um subgrupo que atendesse a saúde da população


negra, tratando categorias de gênero etnia/raça traçando o perfil
epidemiológico. (BATISTA, L. E., WERNECK, J., & LOPES, F. 2012).

No decorrer dos anos 2000 o movimento negro veio participando intensamente


das consolidações de políticas públicas voltadas a essa população. Trazer a
conscientização de práticas negligentes em função da raça/cor para o Sistema
de Saúde é lidar com as deficiências desse sistema, posto que o Sistema
Único de Saúde (SUS), desempenha um importante papel na saúde brasileira,
pois possibilita o atendimento gratuito para 71% da população (Portal de
Saúde, 2015).

Houve reconhecimento das doenças que mais acometem a população negra,


com o lançamento do “Manual de Doenças Mais Importantes, por Razões
Étnicas, na População Brasileira Afro-descendente” (BRASIL. MINISTERIO DA
SAÚDE. SECRETARIA DE POLITICAS DE SAÚDE, 2001). Em 2006 como
resultado da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2005)
foi deliberado para o ano seguinte a “Política Nacional de Atenção às Pessoas
com Doença Falciforme”.

Nesta leitura, o NGA3 presente na cidade de Araraquara, conta com uma


agente para a efetivação dessa política voltada para a população com anemia
falciforme, porém com o passar do tempo como relata a agente da política, os
pacientes negros passaram a procura-la para o acompanhamento durante a
consulta médica, sendo ela um suporte para que a consulta fosse de fato
realizada evitando ações que negligenciariam o atendimento. Essa situação foi
relatada durante um evento realizado pela Universidade de Araraquara
(UNIARA), no ano de 2017, que contou com a participação dessa agente de
saúde para relatar a vivencia juntamente com a população negra.

Assim o intuito desse trabalho foi trazer considerações sobre o processo


diásporicos da população negra Brasileira para tentar elucidar algumas
relações de saúde produzidas nesse percurso. As ações racistas na saúde
sobre o corpo negro partem de um imaginário que compreendem que esse
corpo não carrega valores o suficiente para o respeito à vida.
Grupo de Trabalho 11 II Reunião de Antropologia da Saúde

Esse processo histórico trouxe para o século XX e XXI a necessidade de


pensarmos os efeitos dessa construção epistemológica vinda da escravidão.
Por tanto, considerar a ação negligente no âmbito da saúde de forma em que
possamos interseccionar todos os aspectos que estão ligados a essas ações
sobre o corpo negro nos dá a possibilidade de revirar as narrativas históricas e
a produção científica das ciências sociais. Também, como uma tentativa de
compreender nossa atual crise política que ao fechar os Ministérios Públicos
dando fim às políticas que se voltavam para a demanda do direito à vida dessa
população, legitima sua morte.

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