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número 49/50

ano 25
2017

temáticas
Dinâmicas migratórias haitianas no Brasil:
desafios e contribuições

revista dos pós-graduandos em ciências sociais


IFCH - Unicamp
temáticas
Publicação semestral dos alunos de Pós-Graduação em Ciências Sociais do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
ISSN 1413-2486 / e-ISSN 2595-315X
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Ana Elisa Bersani
Handerson Joseph

Dossiê
DINÂMICAS MIGRATÓRIAS
HAITIANAS NO BRASIL:
DESAFIOS E CONTRIBUIÇÕES

temáticas
revista dos pós-graduandos em ciências sociais
ano 25, nº49/50, 2017 - IFCH/UNICAMP
Dossiê
Dinâmicas migratórias haitianas no Brasil:
desafios e contribuições
SUMÁRIO

Dossiê: Dinâmicas migratórias haitianas no Brasil: desafios


contribuições

Apresentação: O Brasil e a diáspora haitiana


Ana Elisa Bersani e Handerson Joseph 9

O Haiti e suas migrações


Kassoum Dieme 17

As migrações de haitianos na Guiana Francesa: novas dinâmicas


Stéphane Granger 49

Haitianos no Brasil: capilaridades e geografias em interface


ao conceito de território-rede
Isis do Mar Marques Martins 63

Branquitude e representações sobre imigrantes haitianos


no oeste catarinense
Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola 85

Corpos fora do lugar: saúde e migração no caso de haitianos


no Sul do Brasil
Daniel Granada e Priscila Pavan Detoni 115

Trabalho, migração e gênero: a trajetória da mulher haitiana


na indústria da carne brasileira
Letícia Helena Mamed 139

Entre Santa Bárbara d’Oeste e o Haiti: Maternidade no


cotidiano transnacional
Rafaela Gava Etechebere 177
Migração haitiana em São Paulo pós-terremoto 2010: a religião
como suporte
Frantz Rousseau Déus 203

O programa Pró-Haiti nas universidades públicas brasileiras


(2011 – 2016)
Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo 233

Inserção e participação de imigrantes haitianos em


Universidades brasileiras
Wendy Ledix 271

Ensaio fotográfico: “A chegada”


Letícia Helena Mamed 299
APRESENTAÇÃO
O BRASIL E A DIÁSPORA HAITIANA

Ana Elisa Bersani 1


Handerson Joseph 2

Desde o século XIX, os haitianos circulam entre diferentes espaços


nacionais e transnacionais, notadamente no Caribe, na América do Norte,
na América do Sul e na Europa, tradicionalmente em países que constituem
a diáspora haitiana como os Estados Unidos, o Canadá, a França, a
República Dominica e Cuba. Isto é evidência de que a mobilidade é um
fenômeno antigo e estrutural no universo haitiano. Entretanto, a partir
de 2010, após o terremoto no Haiti, teve início “um quarto grande fluxo
da mobilidade internacional haitiana” (JOSEPH, 2015a, 2017a e 2017b)
em direção ao Equador, ao Peru, ao Chile, à Argentina, e sobretudo,
ao Brasil. 3

1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2010) e mestra em Antropologia
Social pela Universidade Estadual de Campinas (2015). Atualmente é doutoranda no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, onde
desenvolve pesquisa com especial interesse nas áreas de Antropologia Médica e da Saúde,
Antropologia do Desenvolvimento e da Ajuda Humanitária, com ênfase em contextos de crise
e pós-desastre. E-mail: [email protected]
2
Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ (2015), com doutorado
Sanduíche pela École Normale Supérieure (ENS) e pela École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS) em Paris. Atualmente é Professor do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Fronteira (PPGEF) da Universidade Federal do Amapá e do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia pela Université d`État d`Haïti, atuando principalmente nos
seguintes temas: Diáspora; Mobilidade; Migrações transfronteiriças; Relações Étnicorraciais;
Religiões afro-brasileiras e caribenhas; Pós-colonialismo. E-mail: [email protected]
3
Estima-se que 20 mil haitianos estejam residindo atualmente no Equador (Dirección Nacional
de Migración), 10 mil no Peru (Superintendencia Nacional de Migraciones), 50 mil no Chile
10 Ana Elisa Bersani e Handerson Joseph

Mais do que um espaço de chegada ou saída, o Brasil foi se tornando


um lugar privilegiado e estratégico nas dinâmicas das mais recentes
configurações migratórias haitianas para os referidos países da América
do Sul, bem como uma etapa em direção ao México e aos Estados Unidos.
Em um período de sete anos (de 2010 a 2017), o Brasil se transformou no
sexto país em importância no espaço da mobilidade internacional haitiana,
atrás apenas dos Estados Unidos, do Canadá, da França, da República
Dominicana e de Cuba (JOSEPH, 2017d). Atualmente, no Brasil, há o
dobro de haitianos em relação à Guiana Francesa, no qual tal presença se
faz desde a década de 1960 (JOSEPH, 2015a e 2016).
Apesar das relações entre Haiti e Brasil remontarem à década de
1940, particularmente no campo diplomático, foi a partir de 2004 que elas
se intensificaram. No referido ano, o Haiti se tornou espaço de atuação
de várias instituições brasileiras, como, por exemplo, as tropas militares da
Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH),
além de outras Organizações Não-Governamentais (ONGs) e religiosas
brasileiras já presentes no país.
Nos últimos oito anos, o espaço da mobilidade supranacional e
transfronteiriço Haiti-Brasil se constituiu na esteira da construção da ideia
do Brasil como “terra de oportunidades”, na qual é possível chache lavi
miyò (tentar uma vida melhor) (BERSANI, 2016). Tal visão é difundida
no mundo social haitiano, tanto no Haiti quanto no exterior, em razão do
papel político e econômico de destaque que o Brasil passou a ocupar no
cenário mundial. A postura pública de abertura e hospitalidade adotada
internacionalmente pelo governo brasileiro e a expectativa da existência
de uma demanda de mão de obra para o trabalho nas obras da Copa do
Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, entre outros fatores,
contribuíram para que o Brasil, além de ser um “corredor de passagem”,
uma etapa, também se tornasse um novo polo internacional da diáspora
haitiana.

(Departamento de Extranjería y Migraciones), 7 mil na Argentina (Dirección Nacional de


Migraciones), e 80 mil no Brasil (Ministério de Justiça). Tais dados devem ser, no entanto,
problematizados, uma vez que mensurar um mundo em movimento e que, em grande medida,
transita por caminhos irregulares é uma tarefa quase impossível.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 09-16, fev./dez. 2017
Apresentação 11

Nesse sentido, tendo como pano de fundo a situação dos migrantes


e refugiados no contexto global atual e a ênfase nas dinâmicas migratórias
Sul-Sul, este Dossiê nos convida a refletir e a analisar a problemática
migratória no Brasil de forma ímpar, revelando os percalços nacionais
na acolhida de um fluxo crescente de solicitantes de refúgio, ao mesmo
tempo em que, de um ponto de vista mais macro, chama atenção para
tensões que rondam os deslocamentos contemporâneos de modo geral.
Desta forma, o objetivo do Dossiê intitulado Dinâmicas migratórias
haitianas no Brasil: desafios e contribuições é reunir trabalhos que discutem,
através de uma perspectiva inter e transdisciplinar, as múltiplas relações
estabelecidas em torno dos circuitos Haiti-Brasil e da presença dos
haitianos no Brasil. Trata-se, portanto, de contribuir para a produção de
conhecimento sobre as dinâmicas que envolvem os processos migratórios
através das trajetórias e experiências vividas pelos haitianos nesse espaço,
suas atuações e contribuições em áreas diversas como saúde, trabalho,
religião, educação etc., considerando o impacto dessa presença na
transformação das relações sociais, nas paisagens locais e nas trajetórias
dos próprios haitianos.
Mais do que isso, a reflexão proposta por este Dossiê busca
escapar da linguagem da “crise” e da “emergência” mobilizada pela
imprensa nacional e internacional, ora através do viés humanitário, ora
da securitização, para trazer novos elementos na composição de um
quadro de pesquisas complexo e desafiante do ponto de vista teórico e
metodológico.

ESTRUTURA DO DOSSIÊ

Abrimos este número com o artigo de Kassoum Dieme, que aborda


o tema das migrações haitianas ao longo da história, situando o Brasil
enquanto destino recente da diáspora haitiana. O autor também reflete
sobre a política de acolhimento institucional brasileira e as condições de
existência e permanência dessa população no país nos últimos oito anos.
Em seguida, o texto de Stéphane Granger amplia a discussão a partir
da análise das novas dinâmicas migratórias na Guiana Francesa. Ao olhar

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12 Ana Elisa Bersani e Handerson Joseph

para as mudanças nos fluxos migratórios tradicionais e para a novidade


que o caminho para o Brasil representa, o autor discute o impacto desse
fenômeno nas estratégias de permanência no território franco-guianense e
lança luz sobre as vicissitudes desse trânsito.
É justamente sobre as implicações pragmáticas desse recente fluxo
que Isis do Mar Marques Martins nos convida à reflexão. Baseando-se
em conceitos contemporâneos da geografia, como capilaridade e território-
rede, a autora se propõe a pensar os atravessamentos sociais e políticos
imbricados no espaço e no tempo da permanência de haitianos no Brasil.
O artigo de Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola contribui
com uma importante discussão acerca dos significados atribuídos à
presença haitiana no oeste catarinense, estado localizado no sul do Brasil.
Os autores exploram como a ideia de branquitude, associada à identidade
europeia, é acionada nas relações entre os moradores locais e os migrantes
haitianos, fundamentando uma relação de poder baseada em uma suposta
superioridade racial, nacional e de origem.
Ainda no bojo das representações sociais sobre os migrantes
haitianos, o artigo de Daniel Granada e Priscila Pavan Detoni propõe
uma investigação acerca dos serviços de saúde a partir dos corpos dos
migrantes e das patologias associadas a eles. Os autores partem de
entrevistas realizadas, entre 2014 e 2016, com agentes comunitários de
saúde em um município de médio porte no Sul do Brasil para discutir os
possíveis efeitos de tais representações no acesso aos serviços de saúde.
A partir da perspectiva da sociologia do trabalho, a autora Letícia
Helena Mamed aborda o percurso e a experiência de migrantes haitianas
que têm suas trajetórias laborais conectadas à cadeia agroindustrial da carne
no Sul do Brasil. Ao refletir sobre os significados do projeto migratório de
migrantes mulheres negras no Brasil, a autora realiza uma análise cruzada
entre trabalho e gênero. O itinerário dessas mulheres é apresentado através
de uma etnografia multisituada, de modo a problematizar o lugar de
exploração e precariedade ocupado por elas em um mercado de trabalho
desigual e segregado.
A especificidade da condição feminina no contexto migratório
também é objeto da reflexão trazida por Rafaela Gava Etechebere, em

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Apresentação 13

um artigo que discute os acontecimentos que marcam as vidas e corpos


de haitianas que se estabeleceram em Santa Barbara d’Oeste, no interior
do estado de São Paulo. As experiências ligadas à precarização do trabalho
e ao racismo são abordadas aqui, a partir do exame das narrativas das
interlocutoras, no esforço de refletir sobre as possibilidades do exercício
da maternidade, através das ações de “prover” e de “cuidar” na vivência
cotidiana da mobilidade.
Em seguida, por meio de um outro cruzamento analítico, Frantz
Rousseau Déus investiga em seu artigo o papel desempenhado pela religião
no suporte aos migrantes haitianos que se estabelecem no Brasil. O autor
desenvolve pesquisa junto aos seguidores da religião Testemunhas de Jeová
na cidade de Campinas, interior de São Paulo, e ressalta a importância da
construção dos laços afetivos para a integração social dos haitianos na
sociedade brasileira.
Os últimos dois artigos propõem uma investigação acerca da
presença dos haitianos no ensino superior brasileiro. Fritznel Alphonse
e José Rivair Macedo analisam o programa Pró-Haiti implementado em
universidades públicas como a UNICAMP, UFSC, UFSCAR e UFRGS,
entre 2011 e 2016. Ao retraçar o histórico do programa, de um ponto
de vista bastante crítico, os autores também problematizam as relações
bilaterais entre Brasil e Haiti, apontando suas intensões e limites. O texto
apresentado tem o mérito de olhar para os resultados do programa levando
em conta a forma como ele foi executado na prática e a experiência dos
próprios sujeitos “beneficiados” por ele. Em um outro artigo, Wendy
Ledix também reflete sobre a inserção e participação dos haitianos nas
universidades brasileiras, a partir das experiências da Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó, e da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA).
Finalmente, o ensaio fotográfico “A chegada”, de Letícia Helena
Mamed, fecha esse número com um registro precioso da chegada de
migrantes haitianos no Acre, entre 2011 e 2015, na região da Tríplice
Fronteira Brasil-Bolívia-Peru, e da acomodação dessa população em
abrigos e acampamentos improvisados em diferentes cidades do estado.

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14 Ana Elisa Bersani e Handerson Joseph

O dossiê Dinâmicas migratórias haitianas no Brasil: desafios e contribuições


traz para a revista Temáticas uma reflexão acerca dos desafios teóricos e
metodológicos que a pesquisa com migrantes haitianos no universo
brasileiro evidencia, no que tange às questões raciais, educacionais, religiosas,
bem como de trabalho, gênero, saúde, entre outras. Como organizadores
nossa intenção foi reunir contribuições a partir de diferentes perspectivas
epistêmicas e abordagens metodológicas, de autores que têm como lugar
de partida universos diversos, mas que igualmente se debruçam sobre as
dinâmicas migratórias haitianas.
A proposta deste Dossiê é, portanto, contribuir para as Ciências
Sociais através de diálogos pluridisciplinares, suscitando debates sobre
as diversas possibilidades e caminhos para a reflexão em torno do tema
em questão. Uma das singularidades deste número é o fato de contar
com a contribuição de pesquisadores haitianos, como Frantz Rousseau
Déus, Fritznel Alphonse e Wendy Ledix, além de Handerson Joseph
como organizador, que vivenciam a experiência migratória e desenvolvem
pesquisas no contexto brasileiro, desempenhando um importante papel
enquanto agentes da produção de conhecimento através do circuito Haiti-
Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERSANI, Ana Elisa. “Chache lavi Deyò: uma reflexão sobre a categoria
refúgio a partir da diaspora haitiana no Brasil”. Cadernos de Campo,
São Paulo, 25, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
cadernosdecampo/article/download/129282/134127
JOSEPH, Handerson. Diaspora. As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil,
no Suriname e na Guiana Francesa. Tese de (Doutorado em Antropologia
Social) – PPGAS, Museu Nacional/Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015a. Disponível em: https://
www.academia.edu/15267521/Tese_de_doutorado_Diaspora._
As_din%C3%A2micas_da_mobilidade_haitiana_no_Brasil_no_
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Apresentação 15

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In: Louis Herns Marcelin; Toni Cela; Dorvil Henri (orgs.), Les jeunes
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Problèmes sociaux et interventions sociales. Montréal: Presses de
l’Université du Québec (PUQ). 2017a. Disponível em: https://
www.puq.ca/catalogue/themes/les-jeunes-haitiens-dans-les-
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como novo espaço migratório”. Periplos, GT Clacso – Migración Sur-
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Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fchf/issue/view/1980/
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haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2017d.
JOSEPH, Handerson e JOSEPH, Rose-Myrlie. 2015c. “As relações de
gênero, de classe e de raça: mulheres migrantes haitianas na França
e no Brasil”. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, 9 (2): 1-33.
http://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/view/17266

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O HAITI E SUAS MIGRAÇÕES 1

Kassoum Dieme 2

RESUMO: Este artigo aborda as migrações haitianas ao longo da história, baseando-se


apenas nos grandes fluxos para/ou do Haiti. De um país particularmente marcado pela
imigração antes de sua independência, o Haiti se transforma num país que registra muito
mais saídas de pessoas para viver fora do país do que chegadas em território nacional.
Entre os principais destinos dos grandes fluxos da emigração haitiana, o Brasil aparece
como o mais recente, tendo recebendo haitianos com base numa política exclusiva de
acolhimento institucional (humanitária) vigente de janeiro de 2012 a outubro de 2017.
Diante disso, o texto se detém sobre as Resoluções N° 97/12 e N° 08/06, acionadas
por razões humanitárias, levantando questões acerca das condições de existência e de
permanência de haitianos no Brasil ao longo dos últimos oito anos.
PALAVRAS-CHAVE: Migrações do Haiti; Brasil e os haitianos; Condições de existência;
Permanência.

HAITI AND ITS MIGRATIONS

ABSTRACT: This article addresses Haitian migrations throughout history, discussing


mainly the four largest flows of immigrants leaving or coming to Haiti. From a country
particularly marked by immigration before its independence, Haiti became since then a
country that registers a larger outflow of people from the country than arrivals. Among
the main destinations of these larger outflows of Haitians, Brazil becomes their latest
main destination, continuing to receive Haitians on the basis of a policy of exclusive
1
Este artigo é uma parte atualizada da minha dissertação de mestrado, financiada pelo CNPq,
orientada pelo Professor Dr. Mário Augusto Medeiros da Silva e defendida em 30 de novembro
de 2016 no PPGS do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas
2
Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: kdieme@hotmail.
com
18 Kassoum Dieme

institutional (humanitarian) reception which ran from January 2012 to October 2017. In
this regard, this article reflects on Resolutions No. 97/12 and No. 08/06, mobilized for
humanitarian reasons, raising questions about the conditions of existence and permanence
of Haitians in Brazil over the last eight years.
KEYWORDS: Haitian migrations; Brazil and the Haitians; Conditions of existence  ;
permanence.

INTRODUÇÃO

IMIGRAÇÃO NO HAITI?

A história do território que hoje corresponde à República do Haiti é


tanto marcada pela emigração quanto pela imigração. Esta ocupa um lugar
fundamental na história deste país. Os fluxos de europeus e africanos com
destino ao Haiti duraram séculos (de 1492 à véspera da Revolução Haitiana
de 1791) e foram, no seu conjunto, muito intensos, particularmente no
século XIX. Os espanhóis foram os primeiros neste processo, iniciado
já em 1492. Segundo Peregalli (1998), suas relações com os povos
americanos foram expressivamente marcadas tanto pela violência quanto
pela crueldade. Práticas dessa natureza levaram à eliminação de milhões de
ameríndios da ilha de Santo Domingos entre 1492 e 1514 (PEREGALLI,
1998). Seguy (2014), por sua vez, destaca que no que tange à colonização
do Haiti, os franceses (1697-1803) sucederam os espanhóis (1492-1697),
deixando um balanço negativo em termos ambientais. Olhando para as
disputas que houve entre a Espanha e a França, seja ligadas à ocupação ou
à permanência, percebe-se que o Haiti era, antes mesmo de ser a Pérola
das Antilhas, um território cobiçado, uma área de atração, não de expulsão.
Embora marcadas pela exploração e pela extrema violência, as
colonizações favoreceram também migrações em pequenas, médias e
longas distâncias. Por um lado, ajudaram a dizimar povos, e, por outro,
favoreceram o povoamento de outros territórios. No caso do Caribe, Hall
(2003) assinala que as populações que ali vivem atualmente são oriundas
de outros lugares. É imprescindível sublinhar que, no caso do Haiti, a
presença da população negra foi fruto de um processo de deslocamentos

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 19

forçados, que começou na África, e que tinha em vista o trabalho forçado,


sob a direção e em benefício de brancos europeus. Télémaque (2012)
fala de “meio milhão de escravos negros transplantados de Senegal e de
Dahomey” sobre os quais reinavam quase 40 mil plantadores, brancos,
nos séculos XVII e XVIII. Citando Moreau de Saint-Méry, Seguy (2014,
p.135) mostra que a imigração compulsória de africanos negros na
véspera da Revolução Haitiana era intensa. Assim, “em 1790, dois terços
da população de São Domingos teria nascido na África”. C.L.R. James
afirma que: “entre 1764 e 1771 a média das importações de escravos oscila
entre 10.000 e 15.000 por ano. Em 1786, importou-se 27 000, e a partir de
1787 a colônia absorvia mais de 40 000 escravos por ano” (JAMES apud
SEGUY, 2014, p.135).
A imigração na história do Haiti era predominantemente de negros,
que foram, segundo Pean, citado por Seguy (2014, p.135-136), escravizados
e responsáveis pela produção de grandes quantidades de riquezas para
franceses. “Assim, em 1789, São Domingos produzia 180 milhões de libras
de mercadoria, muito mais que todas as colônias inglesas e espanholas das
Antilhas, as quais, juntas, produziam em torno de 117 milhões de libras”
(Ibid. p.136). É dentro desse contexto de produção de riquezas sugadas
pela França que o Haiti foi coroado “Pérola das Antilhas” (SEGUY, 2014,
p.36).
A Revolução Haitiana, um marco da história do Haiti, da América e
do mundo moderno – e que é muitas vezes deliberadamente marginalizada
–, e os vestígios da configuração étnico-racial construída durante a
colonização,3 são devedoras de um processo migratório forçado atrelado
a uma superexploração do trabalho de escravizados da África negra em
território caribenho que, no entanto, souberam se organizar e derrotar um
sistema parasitário que, paradoxalmente, os desumanizava.
É preciso assinalar a imigração em menor quantidade, no Haiti
independente politicamente, de populações que não vieram da Europa
3
Segue a então pirâmide social na base da qual estão os Escravos negros, antes dos quais estão os
Marrons, Sang-malés, Mulâtres, Petits blancs, Grands blancs, e no topo os Affranchis (COTINGUIBA,
2014, p. 74-75). Essa configuração deixou marcas no país que acabara de conquistar sua
independência, embora o Haiti tenha se reconhecido como uma “Nation Nègre”.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


20 Kassoum Dieme

nem da África Negra, e que não estavam em busca de riquezas materiais,


mas sim, como afirmam Cotinguiba (2014) e Handerson (2015), de
proteção e de liberdade, como foi o caso com imigrantes do Oriente
Médio4 e de negros estadunidenses, discutidos respectivamente pelos
autores mencionados.
Diante do exposto, lembrando que a população autóctone era
praticamente extinta, fica evidente que o Haiti foi ao longo de séculos um
território de imigração. Omitir este fato é também perder de vista um dos
fenômenos que estão na base da história da chamada primeira República
Negra. A imigração em questão começou com a vinda de europeus
em busca de produtos, seguida da de africanos forçados a imigrar para
trabalhar compulsoriamente, de modo a sustentar os negócios dos seus
exploradores e supostos donos. Omitir a imigração ao tratar da migração
haitiana seria, portanto, de uma inconveniência notável. Cotinguiba
(2014, p.82), citando Jacobson (2003), assinala que “em quase todo o
século XIX, o país [Haiti] se tornou o lugar de destino de migrantes,
especialmente escravos” evadidos. Cabe ainda assim ressaltar que o Haiti,
tornado independente em 1804, tornou-se predominantemente um país
de emigração, embora não tenha deixado de receber pessoas de outras
partes do mundo.

A EMIGRAÇÃO HAITIANA

Os haitianos não esperaram conquistar sua independência política


para emigrar. Embora não fizesse parte de seus grandes fluxos emigratórios,
a saída de haitianos para a França foi, como sugere Handerson (2015), um
marco da emigração haitiana. Estas idas para a França são desdobramentos
patentes do processo de colonização. Indo além do mencionado na parte
anterior, a colonização se expressa não só pela imigração, mas também
pela emigração. O idioma imposto, que costuma ser um dos efeitos desse

4
No caso dos libaneses ver  : L’implantation de la communauté arabe en Haïti vue par Jean-
Henri Céant. Publicado em: 04/02/2014. Disponível em: <http://mediamosaique.com/
General/2014-02-04-21-19-34.html> Acesso em: 17/12/2015, e Les Arabes Haïtiens. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=Vm8M8_o9NJ0>. Acesso em: 08/10/2015.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 21

processo, pode também acabar vindo a ser um fator de aproximação entre


povos colonizadores e povos colonizados. É neste contexto que se entende
a saída dos primeiros haitianos, referida por Handerson (2015), para a
França em busca de formação acadêmica, antes mesmo da conquista da
independência política pelo Haiti5. Trata-se notadamente dos affranchis e
dos mulâtres:6

considerados como parte da elite e proprietários de


terras, que mandavam seus filhos, desde o final do século
XVIII, e também, posteriormente, no século XIX, após
a Independência do Haiti, para realizar seus estudos na
França. Foram inúmeros os escritores, advogados e médicos
haitianos formados na França. (HANDERSON, 2015, p.68)

Se a França metropolitana aparece como o primeiro destino da


emigração de haitianos, notadamente dos mulâtres em busca de estudo
(HANDERSON, 2015; SEGUY, 2014), Handerson (2015) mostra que
ela não figura entre os quatro maiores fluxos de saída de haitianos para
o estrangeiro. Estes ocorrem a partir do século XX e são motivados
principalmente pela busca por trabalho. Outros fatores, como a
proximidade geográfica, a economia das nações almejadas, as influências
política e cultural de outros Estados e os motivos ambientais, ajudam a
entender a emigração de haitianos ao longo dos últimos séculos.
Em ordem cronológica, o primeiro grande fluxo da emigração
haitiana, que remonta ao início do século XX, foi dirigido para a República
Dominicana e para Cuba. Os emigrantes eram trabalhadores em busca de
oportunidade de trabalho em empresas de cana-de-açúcar estadunidenses
instaladas nestes países (SCARAMAL, 2006; HANDERSON, 2015)7.
5
A relação migração/colonização é mostrada por Duroux (2011), embora o trabalho em
questão mencione apenas os fluxos das antigas colônias para as antigas metrópoles.
6
Os “affranchis [eram brancos], burocratas ligados diretamente aos representantes reais, o
governador e o intendente. [...] os mulâtres e os sang-malés (libertos) [eram] frutos das relações
sexuais entre brancos e negras.” (SCARAMAL apud COTINGUIBA, 2014, p.74-75)
7
Nos primeiros anos do século passado “tanto as Bahamas quanto as Ilhas Turks e Caicos
também receberam vários contingentes de migrantes haitianos, com reincidência de fluxos nas

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


22 Kassoum Dieme

Essa mobilidade internacional de haitianos ocorre no período em que “as


forças armadas americanas ocuparam o Haiti (1915-19[34]) e a República
Dominicana (1912-1924) simultaneamente.” (HANDERSON, 2015,
p.69). A presença respectiva de 22.579 e 19.065 haitianos nos anos 1970
em Cuba e na República Dominicana (VILLA, 1996) teria alguma relação
com essas ocupações. Nesse sentido, cabe perceber essas emigrações
haitianas como fruto de um processo de “envio” para o trabalho que
envolveu intervenção política. A emigração haitiana para a República
Dominicana é um processo ainda em curso. Vista como economicamente
mais desenvolvida, e também por conta da contiguidade geográfica,
ela tem atraído milhares de haitianos, cuja integração social, contudo, é
ainda bastante problemática. Scaramal (2006) sublinha que a República
Dominicana é um dos países em que há maior presença de haitianos, e
certamente aquele em que estes são historicamente mais hostilizados, isto
é, onde se manifesta mais intensamente o chamado “anti-haitianismo”.
No que se refere à emigração de haitianos para os Estados Unidos,
Cotinguiba (2014) parte do estudo de Jacobson (2003) para mostrar que
este é um destino emigratório de haitianos desde o último quarto do século
XVIII, e que alguns deles fundaram vilarejos no século XIX no novo
país. Para Handerson (2015), a ida de haitianos para os Estados Unidos
corresponde ao segundo grande fluxo migratório do Haiti. O autor destaca
não somente a ocupação estadunidense do Haiti entre 1915 e 1934, mas
também a influência cultural exercida, como elementos básicos para se
entender o processo de sua constituição em grande fluxo. A educação
formal e a religiosidade foram dimensões claramente impactadas, tanto
por conta da obrigatoriedade do ensino do idioma inglês na década de
1940 quanto do crescimento das igrejas protestantes estadunidenses
em território haitiano. Estas ferramentas despertam o sentimento de
pertencimento a uma só comunidade, seja ela linguística ou religiosa – o
que pode ser um fator, mesmo que entre outros, a provocar migrações
expressivas. Handerson (2015, p.70) afirma que “na década de 1950, a elite
haitiana mandava seus filhos estudarem nos Estados Unidos e alguns dos
décadas de 1970 e 1990. (...) [Havia haitianos nas Guianas e na Venezuela] nas últimas décadas
do século XX” (SCARAMAL, 2006, p.96).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 23

agricultores que já haviam residido em Cuba ou na República Dominicana


viam os Estados Unidos como uma nova possibilidade para emigrar”. Cabe
ressaltar que ocupações, tal como colonizações, de países por outros têm
provocado migrações internacionais nos dois sentidos. Não há ocupação,
nem colonização, sem migração, ainda que possa ser apenas temporária.
Os casos das respectivas relações da França e dos Estados Unidos com o
Haiti o demonstram cabalmente.
As causas da saída de haitianos do seu país para os Estados
Unidos não se esgotam na influência cultural nem na ocupação militar.
Conjunturas políticas especificamente nacionais figuram também como
fator significativo para a emigração de milhares de haitianos para o fluxo
em questão. Foi o caso da época das ditaduras dos Duvalier. Cédric
Audebert sublinhou que

A autoproclamação de “Presidente vitalício” de François


Duvalier em 1964 assustou os intelectuais e a classe
média negra (médicos, advogados, professores), que não
demoraram para ir ao exílio. Entre 1957 – o ano de ascensão
de Duvalier ao poder – e 1963, 6.800 haitianos foram para
os Estados Unidos com visto de imigrantes e outros 27.300
com visto temporário. Entre o ano da autoproclamação
em 1964 até o ano da sua morte em 1971, os serviços de
imigração estadunidense registraram 40.100 imigrantes e
100.000 não-imigrantes oriundos do Haiti. (AUDEBERT
apud HANDERSON, 2015, p.70).

A busca por trabalho num país cuja moeda garante maior poder
de compra e que apresenta maiores possibilidades de emprego e renda é
um dos fatores de atração que os Estados Unidos têm sobre cidadãos de
diversas partes do mundo, particularmente sobre aquelas fronteiriças e
economicamente menos desenvolvidas. Entre estes podemos citar como
exemplos os mexicanos, os brasileiros e os haitianos, com pelo menos um
milhão de seus respectivos cidadãos naquele país. Contudo, ainda que os
Estados Unidos sejam o destino privilegiado pelos migrantes haitianos, o
processo não ocorre de forma pacífica. Em seu estudo, Scaramal (2006)
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017
24 Kassoum Dieme

menciona altíssima taxa de devolução de haitianos que tentavam entrar


naquele país por embarcações entre 1981 e 1991, um período parcialmente
marcado pela ditadura e, como veremos adiante, pela instabilidade política.8
A emigração de haitianos para o Canadá, e em especial rumo à
capital de sua parte de expressão francesa, é parte do segundo grande fluxo
emigratório, que é anterior à década de 1940 e inicialmente relacionado à
busca de formação. O perfil dos migrantes sofre mudanças nas décadas
subsequentes, durante as quais profissionais e intelectuais emigraram tanto
para o Quebec quanto para outras partes do mundo (HANDERSON,
2015). O autor afirma, no tocante ao Quebec/Canadá:

Desde a década de 1930, alguns estudantes haitianos,


particularmente seminaristas e agrônomos, iam para o
Quebec realizar os estudos. Durante a década de 1950
e início de 60, houve mudanças no perfil migratório:
eram músicos que levavam os ritmos antilhanos para o
local. Na segunda metade da década de 1960, houve um
grande êxodo de haitianos para o Canadá, particularmente
Quebec, fugindo da ditadura. Segundo Icart (2004, p.1),
muitos foram convidados para ocupar cargos importantes
pela grande expansão dos serviços sociais, de saúde e de
educação. [...] Havia mais de duzentos médicos haitianos
em Quebec e quase mil professores. Na década de 1980,
um programa especial do Governo de Quebec concedeu o
estatuto de imigrante a 4 mil haitianos que já estavam no
local (HANDERSON, 2015, p.70-71).

Em 2001, o número de pessoas oriundas do Haiti que viviam no


Canadá ultrapassou o total de 82.000, sendo que 90% delas residiam em
Quebec, e 83% em Montreal (STATISTIQUE CANADA, 2007). Estes
dados mostram que o idioma foi, também no caso dessa migração, um
fator a levar em consideração.
8
Em suma, os dois países com maiores presenças de haitianos são paradoxalmente os que
se mostram menos acolhedores, seja por saturação seja por aplicação de políticas migratórias
abusivas, como sugerido em entrevista por Márcia Oliveira (2016). Políticas dessa natureza
foram alvo de críticas de Basso (2013), no tocante ao continente europeu.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017
O Haiti e suas migrações 25

Handerson (2015) situa o começo do terceiro fluxo da emigração


haitiana na última década do século XX. Este fluxo, cujo destino principal
foram os Estados Unidos, ocorre num período de instabilidade política,
que sucedeu a uma época ditatorial também marcada pela insegurança e
pelo medo e terror provocados pelo Estado, bem como pela emigração de
milhares de pessoas. Em Baptiste (2015), pode-se ver que, de 1987 a 1996,
o tempo maior de permanência no cargo da Presidência da República não
passou dos 18 meses.
Em 1991, Jean-Bertrand Aristide, presidente eleito e esperança dos
menos favorecidos da sociedade haitiana (Haiti-Référence), sofreu um
golpe de Estado depois de algum tempo no cargo. Sua retirada do país
naquele contexto gerou a saída de dezenas de milhares de haitianos de sua
República. Foi nesse período que “[...] aproximadamente 46.000 boat people
foram interceptados em alto mar e conduzidos aos campos de detenção
de Guantanamo Bay em Cuba. Alguns ficaram presos por mais de um
ano” (HANDERSON, 2015, p.73). Wooding e Moseley-Williams (apud
HANDERSON, 2015, p.73) estimam que “mais de 100.000 haitianos
deixaram o Haiti na época da deportação do ex-presidente Jean-Bertrand
Aristide, no ano de 1991”.
Emigrações forçadas provocadas pela instabilidade política no país
envolveram até alguns dos que chegaram à magistratura suprema. É o caso
do ex-Presidente Aristide, que se refugiou nos Estados Unidos entre 1991
e 1994 e se exilou na África do Sul entre 2004 e 2011 após ter renunciado
sob protestos.9 Antes dele, Michel Domingue, Lysius Félicité Salomon e
Nord Alexis, por exemplo, que governaram o país, respectivamente, de
junho de 1874 a abril de 1876, de outubro de 1879 a agosto de 1888 e de
dezembro de 1902 a dezembro de 1908, viveram em exílio10.
Se a imigração haitiana teve o trabalho forçado, a exploração de
centenas de milhares de negros por algumas dezenas de milhares de brancos,

9
Ver: Ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide está em prisão domiciliar. Disponível em:
< http://www1.folha.uol.com.br>. Acesso em 30 de agosto de 2017.
10
HAITI-REFERENCE. Liste des Chefs d’État Haitiens. Disponível em: <http://haiti-reference.
com/pages/plan/histoire-et-societe/notables/chefs-detat/>. Acesso em 30 de agosto de
2017.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


26 Kassoum Dieme

o racismo e a produção de grandes quantidades de mercadorias para a


França como elementos que a caracterizaram, sua emigração esteve, desde
a independência até o fim do século XX, estreitamente ligada à economia
(busca por trabalho) e à política (por conta do isolamento infligido, da
instabilidade das instituições do Estado, das políticas econômicas impostas
ao país, das suas ditaduras, das ocupações militares). Sassen (2010) afirma
que as dificuldades causadas às famílias, empresas e governos no Sul global
por uma política macroeconômica têm provocado fluxos migratórios. No
que tange a essa política, Galeano (2014, p.462; tradução nossa) constata:
“país submisso às ordens do Banco Mundial e do Fundo Monetário,
o Haiti havia obedecido suas instruções sem murmúrios”, para depois
concluir que tais instruções provocaram migrações de camponeses, cujas
mortes em águas do Mar do Caribe não foram devidamente noticiadas.
Isto sugere que, tanto para Galeano (2014) quanto para Sassen (2010),
buscar alcançar o Norte global se torna uma estratégia de sobrevivência.
Nas palavras da segunda autora:

Inserir-se nas migrações de trabalho globais torna-se cada


vez mais uma estratégia de sobrevivência dos habitantes
destes países [do “Sul global”]11, para seus governos
mediante transferências de dinheiro dos migrantes e para os
‘empresários’ do tráfico de pessoas – sobretudo de mulheres
(SASSEN, 2010, p.27).

Aliás, no caso do Haiti, as remessas atingiram em torno um quarto


do PIB (24,8%) ao longo das últimas décadas.12 É preciso somar às causas
estruturais da migração aquelas endógenas, específicas, embora sem que
com isso se ignore a porosidade da fronteira que divide o micro do macro,
desde os primeiros anos de independências.
De acordo com Handerson (2015, p.74), hoje “chèche lavi:
busca daquilo não encontrado no país, isto é, estabilidade política e
11
Tanto o Sul quanto o Norte global se referem, não a regiões geográficas, mas a conjuntos
políticos (SASSEN, 2010, p. 27).
12
O valor é de 109 milhões em 1995, de 876 milhões de dólares em 2005, e estimado em 1,5
bilhão de dólares em 2011 (FERNANDES; CASTRO, 2014, p. 11).
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017
O Haiti e suas migrações 27

socioeconômica, serviços de saúde, infraestrutura, estudo, trabalho,


dinheiro para enviar aos próximos” está na base da emigração de haitianos.
O que, a nosso ver, não invalida as referidas análises de Sassen (2010) e
Galeano (2014), sobretudo quando se considera o primeiro grande fluxo
da emigração haitiana.
Embora não tenham sido os únicos destinos da emigração haitiana,
a República Dominicana, Cuba, Estados Unidos, Canadá e Brasil estão
entre os territórios que receberam maiores números de haitianos. A terceira
parte deste artigo trata da imigração de haitianos no Brasil a partir de
2010, processo que, para Handerson (2015), é parte destacada do quarto
grande fluxo de mobilidade destes cidadãos para fora do seu país.

EMIGRAÇÃO HAITIANA PARA O BRASIL

A emigração haitiana para o Brasil ocorre antes do final do


século XX. Essa presença é mencionada por Villa (1996) e Télémaque
(2012), porém, não chamou a atenção das sociedades de origem nem
de acolhimento. Importa, portanto, destacar que tanto o terremoto que
abalou o Haiti em janeiro de 2010 quanto a MINUSTAH13 não levaram
diretamente à imigração de haitianos no Brasil. No entanto, esse fenômeno
natural está dentre os principais fatores que permitem entender o quarto
fluxo de mobilidade haitiana.14 Tal como aquelas que se dirigiram a outros
13
O Conselho de segurança das Nações Unidas decidiu, na sua Resolução de 30 de abril de 2004,
“estabelecer, sob o nome de Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti - MINUSTAH,
a força de estabilização almejada na sua resolução 1529 (2004), por um período inicial de seis
meses que pretende renovar, e solicita que a transferência de poder da Força Multinacional
Interina para a MINUSTAH seja feita em 1 de junho de 2004” (ONU, 2004, tradução
nossa). Disponível em: <http://www.un.org/fr/documents/view_doc.asp?symbol=S/
RES/1542(2004)>. Acesso em 31/08/2017. A MINUSTAH se estendeu até outubro de 2017,
quando “uma nova operação de manutenção da paz no país – Missão das Nações Unidas para
o apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH), composta apenas por civis e unidades de polícia” se
estabeleceu. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/relacoes-internacionais/missoes-de-
paz/o-brasil-na-minustah-haiti> Acesso em 30/01/2018.
14
As migrações de haitianos relacionadas ao terremoto de janeiro de 2012 não foram somente
internacionais. As internas foram, em números, muito maiores do que aquelas que se dirigiram
a outros países. É o que apontam os trabalhos de Thomaz (2010), Godoy (2011) e Bersani
(2015). Thomaz (2010) e Bersani (2015), sobretudo, evidenciam que o acolhimento a haitianos

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


28 Kassoum Dieme

destinos, só é possível entender a emigração de haitianos para a República


Federativa do Brasil considerando diversos fatores, humanos na sua
maioria, mas também naturais, endógenos e exógenos.
Como mostrado anteriormente, o final da década de 1980 e a
década seguinte foram marcadas pela instabilidade política no Haiti, o que
justificou intervenções da comunidade internacional. Para Bersani (2015,
p.15), “desde o início dos anos 1990, até os dias de hoje, o país vem sendo
palco de intervenções pró-desenvolvimento, ou humanitárias, comandadas
por organizações internacionais15 que insistem em permanecer ali para
reconstruir e consolidar o aparato estatal”. No tocante à MINUSTAH,
que é uma das referidas intervenções internacionais, Thomaz (2010, p.24)
afirma que “para a esmagadora maioria dos haitianos, não há nenhuma
marca especial: se trata apenas de mais uma missão internacional, como
outras que passaram por este país nos últimos dezessete anos”. Segundo
o Itamaraty, a participação do Brasil nessa missão aproximou ainda mais
o Brasil e o Haiti, dois países que mantêm relações diplomáticas desde
1928.16 Nessa aproximação, a dimensão cultural não foi marginalizada
no pós-terremoto de janeiro de 2010 é antes de tudo um assunto interno, um acolhimento
de haitianos por haitianos. Aquele que ocorreu entre haitianos fora do país, depois desse
terremoto, também é um assunto que merece ser devidamente estudado.
15
São algumas das Missões das Nações Unidas concluídas no Haiti a United Nations Mission In
Haiti – UNMIH (set./1993 – jun./1996), a United Nations Support Mission in Haiti – UNSMIH
(jul./1996 – jul./1997), a United Nations Transition Mission in Haiti – UNTMIH (ago. – nov./1997),
a United Nations Civilian Police Mission in Haiti – MIPONUH (dez./1997 – mar./2000). Fonte:
ONU. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmihbackgr1.
html>. Acesso em: 30/08/2017.
16
“As relações entre Brasil e o Haiti ganharam grande densidade a partir da decisão brasileira de
participar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), em 2004.
O terremoto de 2010, que vitimou mais de 100 mil pessoas e gerou prejuízos equivalentes a 120%
do PIB do país, demandou a intensificação da cooperação brasileira ao desenvolvimento do
Haiti. Há iniciativas bilaterais em diversas áreas, dentre as quais destacam-se: [as de] segurança,
tanto na atuação MINUSTAH quanto na cooperação para o fortalecimento da Polícia Nacional
do Haiti (PNH); econômica, com a ajuda no âmbito do Fundo de Reconstrução do Haiti
e outras iniciativas; social, por meio da assistência humanitária e programas de cooperação
nas áreas de segurança alimentar, saúde e educação; e político/institucional, pelo intercâmbio
de experiências entre os Judiciários brasileiro e haitiano e o apoio ao processo eleitoral e à
facilitação do diálogo entre os Poderes constituídos. O Brasil exerce o comando das tropas
da MINUSTAH desde sua criação”. MRE. República do Haiti. Disponível em <http://www.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 29

pelo Brasil. Eventos como a organização do “Jogo pela Paz” em 2004 e a


inauguração, na capital Porto Príncipe, do Centro de Estudos Brasileiros
“Celso Ortega Terra”, em 2008, mostram que ela foi levada em conta
dentre as estratégias de busca pela paz no Haiti e de visibilização do Brasil
naquele país.
Essas intervenções internacionais são justificadas pelo contexto
nacional, avaliado como conturbado. Referindo-se aos fatores internos
ligados à migração, Handerson (2015) destaca que a insegurança, no
sentido amplo da palavra, que afeta a sociedade haitiana, junto com o
terremoto de janeiro de 2010, estariam na origem da ampliação deste
fenômeno constitutivo da sociedade haitiana. Em suas palavras:

Diante dos diversos tipos de insegurança: pública, política,


socioeconômica, alimentícia, educacional, incluindo a área
da saúde e do saneamento básico, todas elas em decorrência
do quadro empobrecido e precário do Haiti, agravado pela
tragédia provocada pelo terremoto de janeiro do referido ano
[2010], a mobilidade haitiana ganhou especial significância,
volume e crescimento de novos sujeitos e circuitos no
espaço migratório internacional. (HANDERSON, 2015,
p.73).

Dessas inseguranças, a econômica, a política e a social são centrais,


e todas ligadas aos fatores que levaram haitianos a emigrarem. No caso da
emigração de haitianos para o Brasil, aos fatores de expulsão referidos por
Handerson (2015) é preciso acrescentar aqueles comumente chamados de
fatores de atração: além das relações entre o Brasil e o Haiti, as experiências
migratórias anteriores dos sujeitos, as redes de “coiotes” e também de
familiares. As relações entre o Haiti e outros países, que tornam estes
mais visibilizados para os haitianos têm seu lugar nessa análise. Com a
MINUSTAH, o Brasil ganhou visibilidade, não só perante o Haiti, mas
itamaraty.gov.br/pt-BR/ficha-pais/5221-republica-do-haiti> Acesso em 31 de agosto de 2017.
A estreita colaboração ressaltada pelo MRE diverge da análise feita por Seguy (2014), de acordo
com a qual era o Haiti que estava ajudando todo mundo, isto é, todos os países colaboradores
da MINUSTAH.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


30 Kassoum Dieme

perante o mundo. A relação entre essa Missão e uma boa imagem do


Brasil diante dos haitianos e de outras nações participantes é ressaltada
por Moreira (2010). Embora a MINUSTAH não tenha diretamente
provocado a vinda de haitianos para o Brasil, ela está mesmo assim, na
ótica de Patarra (2012) e Cotinguiba (2014), ligada ao afluxo de haitianos
para o Brasil nos últimos anos. Por sua vez, Seguy (2014, p.29) sugere que
a MINUSTAH é um entre outros instrumentos atuais de colonização do
Haiti pelo “capital transnacional”, lembrando que “[e]m certos períodos
a recolonização é assumida oficialmente, em outros não. (...) [O] que é
claro é que o Haiti país independente não passa de uma ilusão”. Embora
os efeitos da colonização sobre as migrações possam, às vezes, surgir bem
depois, a relação entre esses dois fenômenos é demonstrada em Sayad
(1998).
A visibilidade do Brasil em escala mundial aumentou ainda
mais, sobretudo, a partir de 2010 e gerou, na ótica de Cogo e Badet
(2013), aumento do número de imigrantes no país, que se justifica pelo
crescimento da economia entre 2010 e 2013 e pela efetivação de obras
relativas à organização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos
(COGO; BADET, 2013). A visibilidade referida coincide com o advento
do mais devastador terremoto da história do Haiti, que, como afirmam
algumas fontes (THOMAZ, 2010; GODOY, 2011; MORAES et al., 2013;
IHSI/BM/DIAL, 2014), abalou profundamente a capital Porto Príncipe,
provocando deslocamentos para o interior e para fora do país. De acordo
com Godoy (2011), daqueles que se deslocaram (estimados em 661
mil), pelo menos 160 mil se dirigiram rumo à fronteira com a República
Dominicana. Dentre eles, milhares de feridos em busca de atendimento
no país vizinho.
O Brasil começa a receber haitianos vindos do Haiti em fevereiro
de 2010 (COSTA, 2012). A relação entre o terremoto e tanto a migração
interna quanto a emigração para a República Dominicana já foi abordada
nestas páginas. Com relação ao Brasil, por sua vez, é preciso ressaltar que o
referido desastre natural justificaria plenamente o estabelecimento de uma
relação direta entre suas consequências e a vinda dos primeiros haitianos
que saíram do seu país e adentraram o Brasil: seja de forma indocumentada,

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 31

pela fronteira terrestre da região norte brasileira, seja documentada, como


foi, em 2011, o caso dos estudantes selecionados no âmbito do “Programa
Emergencial em Educação Superior Pró-Haiti–Graduação”17; e depois
de terem potencialmente passado por países como Panamá, Equador,
Peru e Bolívia, um percurso referido por diversos estudos (GODOY,
2011; PATARRA, 2012; FERNANDES e CASTRO, 2014; BAPTISTE,
2015) e por pessoas envolvidas no acolhimento a haitianos que foram
entrevistadas18. Haitianos continuariam vindo para o Brasil se os primeiros
que aqui chegaram fossem deportados (ou acolhidos, mas sem direito
a nenhum documento)? Passariam por esses países para chegar aqui se
antes tivessem conseguido documentos e neles houvesse um crescimento
econômico - como era o caso no Brasil – que sugerisse boas expectativas
de conseguir trabalho, ter uma boa renda e melhores condições de vida?
Conseguiriam entrar no Brasil, mesmo pagando caro a coiotes, se aqui
ainda houvesse um anti-haitianismo institucional, como no passado?
Pensando a respeito dos fatores externos que teriam provocado a
vinda de haitianos para o Brasil, Fernandes e Castro (2014) assinalam que,
em 2010, haitianos poderiam ter preferido migrar para outros países da
América do Sul (Argentina, Chile, Equador e Peru), que não lhes teriam
exigido visto de entrada em caso de turismo, mas que não o fizeram.
Nesse sentido, esses autores ressaltam que a chamada entrada facilitada
não basta para explicar a vinda desses haitianos para o Brasil. É preciso
assinalar que Handerson (2015) apontou ser o Brasil um lugar de trânsito
para alguns desses migrantes iniciais, visto que o destino almejado era a
Guiana Francesa. Portanto, buscando identificar os principais motivos que

17
Este Programa “é coordenado pela Capes, em conjunto com a Secretaria de Educação
Superior (SESu) do Ministério da Educação (MEC) e o Ministério das Relações Exteriores
(MRE), e foi criado para auxiliar na reconstrução do Haiti, atuando no fortalecimento e na
recomposição do Sistema de Educação Superior do país. O programa baseia-se na concessão
de bolsas de estudos a estudantes das instituições de ensino superior de Porto Príncipe em
instituições de ensino superior brasileiras (IES)”. Ver: CAPES, Resultado do Programa
Emergencial Pró-Haiti. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/cooperacao-internacional/
haiti/pro-haiti>. Acesso em: 31/08/2017.
18
Trata-se de Padre Molinari, em Manaus em 2014; do sociólogo Pereira, em Campinas em
2014; e do Padre Paolo Parise, em São Paulo em 2015.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


32 Kassoum Dieme

atraíram haitianos para o Brasil, aponta-se o crescimento econômico19 do


país, no momento em que os Estados Unidos da América e demais países
desse continente, os países europeus, o Japão, em suma, boa parte dos
países do mundo, estavam em plena crise econômica, como um motivo
fundamentalmente relevante. Cabe mencionar as falsas promessas de
empregos com ganhos de até USD 2.000, em certos casos, feitas por
“coiotes” (PATARRA, 2012). Acrescenta-se “o fechamento de alguns
países que historicamente mantiveram relações de migração com o Haiti
ou talvez até o saturamento, como é o caso da República Dominicana,
Equador, Estados Unidos, França [...]” (OLIVEIRA, 2016, p.129), referido
pela pesquisadora Márcia de Oliveira, e sugerido também por Jorge
(2014), cujo estudo indica que quase 90% dos imigrantes da República
Dominicana são haitianos. A possibilidade de obter documentos brasileiros
é um diferencial na combinação de fatores que atraíram posteriormente
milhares de haitianos, como mostrado por Patarra (2012). Conforme essa
autora, a regularização dos primeiros haitianos em 2011, com vistos de
permanência, “levou à ampliação do número de haitianos que chegavam
pela fronteira do Brasil.” (PATARRA, 2012, p.14).
A vinda de haitianos para o Brasil passa a não ser causada apenas
por fatores internos ao país caribenho, mas a ser também motivada pelas
respostas a sua presença no Brasil, bem como por reações surgidas em
destinos anteriores do último fluxo da mobilidade haitiana pelo mundo.
Patarra (2012), Fernandes e Castro (2014) e Handerson (2015) assinalaram
que houve, depois de 2010, a imigração para o Brasil de haitianos que
residiam em países como a República Dominicana e a Venezuela. A
possibilidade de chegar ao Brasil com grande expectativa de ganhar
salários altos até para o padrão brasileiro, de obter quase imediatamente
uma documentação, mesmo provisória, ou de imigrar já com o Visto
Humanitário, emitido no Haiti ou em alguns outros países20, que garantisse

19
Lembrando que Cogo e Badet (2013) o citam entre as justificativas do aumento de imigrantes
no Brasil nos últimos anos.
20
Foram países onde o Visto Humanitário podia ser emitido: a República Dominicana, Peru,
Equador e Panamá (CONECTAS DIREITOS HUMANOS). Disponível em: <www.conectas.
org>. Acesso em: 06/02/2015. O objetivo principal do Visto Humanitário, que é pôr fim à

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 33

o direito de trabalhar e de usufruir de serviços públicos como os de saúde,


por exemplo, são outros fatores ligados ao Brasil que mobilizaram muitos
haitianos.
As causas, bem como os caminhos, da imigração de haitianos no
Brasil são múltiplas. Neste processo migratório, a comunicação entre os
próprios haitianos situados em diferentes localidades, como no Haiti, no
Brasil, no trajeto e em outros países, bem como o apoio por eles recebido,
que inclui o acolhimento de haitianos por seus conterrâneos, além das
decisões que decorrem dessa comunicação entre familiares, embora apenas
mencionadas aqui, ocupam um lugar central nas razões para migrar, de
acordo com o entrevistado Pereira (2014), e também com Handerson
(2015). Pergunta-se a seguir como são acolhidos os haitianos no Brasil.

ACOLHIMENTO E CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DE


HAITIANOS NO BRASIL

Se Sayad (1998, p.16) diz que “a imigração é um fato social


completo”, o acolhimento a imigrantes ou estrangeiros, de modo geral,
é também uma questão altamente complexa.21 Pereira (2016, p.102)
afirma que “como questão humanitária, social e política, a acolhida torna-
se complexa e desafiadora à medida que se multiplica, se diversificam,
tornam-se cada vez mais as migrações [...] nesse primeiro quadrante do
século XXI”. Portanto, pretende-se tratar apenas, nesse caso, de alguns
dos seus aspectos, notadamente políticos, econômicos e institucionais. No
tocante ao acolhimento a haitianos no Brasil, o Visto Humanitário não é
o primeiro sinal institucional público diante de sua mobilidade espacial.
imigração indocumentada de haitianos e formalizar a vinda de haitianos ao Brasil, foi muito mais
visível no último bimestre de 2015, quando se observou que quase todas as entradas no país
foram por via aérea, que pressupõe visto. (DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL,
ATÉ 20/03/20116 apud CONARE, 2016, p. 4). Disponível em: <http://pt.slideshare.net/
justicagovbr/sistema-de-refgio-brasileiro-balano-at-abril-de-2016>. Acesso em: 13/05/2016.
Este visto expressa também o compromisso do Brasil de combater as quadrilhas de coiotes e
ressalta o caráter acolhedor do país perante cidadãos do Haiti.
21
Essa complexidade do acolhimento a estrangeiros é mostrada na obra dirigida por Alain
Montandon: O livro da Hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo:
Editora Senac, 2011.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017
34 Kassoum Dieme

Pode-se afirmar que o afluxo migratório de haitianos para o Brasil a


partir de 2010 encontra uma política de acolhimento institucional cuja
compreensão se faz necessária para melhor analisar esse acolhimento,
particularmente entre 2010 e 2011, quando ainda não existia o referido
Visto Humanitário, exclusivo para haitianos que desejassem vir ao Brasil.
De acordo com Patarra (2012, p.13), essa imigração foi marcada pelo
seu ingresso indocumentado no Brasil, e “o caso da vinda de haitianos
para o Brasil se reveste de especial importância, pois desde o fim da 2a
Guerra Mundial não se via no país um afluxo tão expressivo de imigrantes,
originários do Hemisfério Norte, que chegaram ao país em situação
migratória indocumentada”.
O acolhimento institucional, público ou não, oferecido aos primeiros
haitianos no bimestre inicial daquele ano foi, como dito anteriormente,
importante para situar o Brasil como um novo destino, que se tornou, em
poucos anos, o quarto grande fluxo da emigração haitiana. Quando se olha
justamente para as políticas migratórias europeias e da América do Norte,
cada vez mais restritivas até mesmo com relação a solicitações de refúgio,
e também para a nebulosa situação jurídica de haitianos e seus descentes
na República Dominicana, discutida por Jorge (2014), compreende-se a
busca por novos horizontes, “a diversificação das rotas migratórias que
questionam noções estáticas como ‘país de origem’, ‘país de destino’ ou
ainda migrações do ‘Sul para o Norte’ do mundo” (PEREIRA, 2016,
p.102), bem como a afirmação de Barreto (2010) de que a legislação
brasileira de Refúgio (Lei N° 9474, de 1997) em vigor é reconhecida como
avançada pelas Nações Unidas.
Uma vez na fronteira da região norte do país, os primeiros haitianos
que ali chegaram solicitaram refúgio. Tais solicitações foram registradas e
encaminhados pela Polícia Federal ao Comitê Nacional para Refugiados
(CONARE), órgão do Ministério de Justiça responsável por sua análise
(PATARRA, 2012). Os pedidos dessa natureza dão aos solicitantes o direito
de tirar a carteira de trabalho e trabalhar legalmente no Brasil. É cabível
supor que, se no lugar de uma legislação de refúgio avançada, que respeita
a humanidade dos solicitantes dessa condição - respeito que se traduz em
possibilidade de aquisição imediata de documentação provisória, em direito

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 35

de circular livremente e de trabalhar legalmente no território nacional -


houvesse medidas repressivas como detenções provisórias, devoluções ou
não recebimento dos pedidos de refúgio, o afluxo cessaria precocemente.
Mas caberia a algum país participante da MINUSTAH adotar tais medidas
severas diante de pedidos de refúgio de cidadãos de um Estado palco de
intervenção internacional para estabilizá-lo?
Os primeiros momentos de chegada pelo norte brasileiro,
principalmente pelo Acre e Amazonas, foram desafiadores seja para o
Estado (no caso do Acre) seja para os scalabrinianos da Igreja Católica
em Manaus.22 A situação dos abrigos, em que foram alojados aqueles
que demandavam tais serviços, foi um meio para veicular a imagem de
uma imigração de “miseráveis” e, portanto, de um Brasil que estaria
acolhendo “a miséria alheia”. De acordo com Portes (1999), em matéria
de migração, os mais pobres não tomam a dianteira do processo. Aquelas
situações de carência nos abrigos, bastante exploradas pela mídia
(TÉLÉMAQUE, 2012), e que, a nosso ver, contribuíram neste caso para
que se subestimasse a oferta de trabalho e consequentemente o salário
proposto a esses migrantes23, estavam ligadas, na ótica de Patarra (2012),
à pouca infraestrutura dos municípios diante de uma crescente demanda
por atendimento de imigrantes. Acrescentemos a isso as difíceis condições
de travessia, que custava muito mais caro do que uma viagem regular.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, em 2015 a Agência Brasileira de
Inteligência – ABIN estimou em US$ 60 milhões o faturamento dos
coiotes com a imigração de haitianos.24 Contar com essas caras e perigosas
redes exploradoras de migrantes remete tacitamente às boas expectativas
destes sujeitos com relação a seus destinos, e também ao rigor das políticas
migratórias dos países almejados.
22
Patarra (2012) e Handerson (2015) mostram a função central da Pastoral da Mobilidade
Humana no processo de acolhimento a haitianos no Brasil.
23
Os modestos salários desses trabalhadores imigrantes remetem também aos históricos
índices de pobreza da população negra brasileira referidos por Silva (2013).
24
Ver: O Estado de São Paulo: Rede de ‘coiotes’ já faturou US$ 60 mi com haitianos, diz
relatório. Publicado em 23/05/2015. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/
geral,rede-de-coiotes-ja-faturou-us-60-mi-com-haitianos-diz-relatorio,1692709>. Acesso em:
31/08/2017.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


36 Kassoum Dieme

Em menos de dois anos de imigração, “de acordo com os dados


da Coordenação Geral do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE),
2.186 haitianos ingressaram no Brasil e solicitaram refúgio, desde o
terremoto de janeiro de 2010 até setembro de 2011” (GODOY, 2011,
p.47). Dois anos depois Moraes et al. (2013) assinalam que o Ministério de
Relações Exteriores brasileiro estimava que havia mais 10.000 haitianos no
Brasil, sendo mais da metade deles portadores de vistos de permanência
até junho de 2013.
É fundamental destacar que as solicitações de refúgio formuladas
por haitianos e encaminhadas ao CONARE pelas autoridades na fronteira
não eram deferidas por este Comitê (PATARRA, 2012), visto que para o
Estado brasileiro a causa principal da migração era ambiental, não política,
e nem de outra natureza que fosse contemplada pela Convenção de
Genebra de 1951. Segundo Patarra (2012), não sendo possível atendê-los
conforme essa Convenção, suas solicitações foram sendo encaminhadas,
como previsto pela lei, para o Conselho Nacional de Imigração (CNIg)
para serem apreciadas numa ótica humanitária. A regularização da situação
dessas pessoas por razões humanitárias pelo CNIg se baseou na Resolução
Recomendada n° 08/06 e iniciada em março de 2011, quando 199
haitianos obtiveram visto permanente. Em novembro de 2015, o governo
brasileiro tornou público o fato de ter regularizado a situação de estadia de
43.871 haitianos que entraram sem visto pela região norte do Brasil desde
2010, e que tinham “documentos provisórios de solicitação de refúgio”.
Junto a esse mecanismo de regularização, foi criada em 12 janeiro de
2012, pelo CNIg, a Resolução Normativa N° 97, especialmente destinada
à criação de um visto especial para haitianos, essencialmente por razões
humanitárias. No seu parágrafo único, esse documento oficial ressalta
que “consideram-se razões humanitárias, para efeito dessa Resolução
Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da
população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em
12 de janeiro de 2010”. Com isso, o Estado brasileiro admite claramente a
relação entre o terremoto de 2010 e a imigração haitiana no Brasil, além de
reconhecer indiretamente as difíceis condições de vida antes do advento
do referido terremoto. Ademais, ele assume oficialmente o compromisso

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 37

de receber regularmente haitianos que desejarem vir do Haiti para residir


no país, porém condicionados a renovar sua situação de estadia mediante
comprovação de vínculo laboral. Cabe ressaltar que, para Pereira (2016,
p.118), emigrar “é um direito previsto na declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948 e em vários tratados internacionais. No entanto, imigrar
ou entrar em um país não é um direito previsto em nenhuma declaração
ou tratado de direitos internacionais.” Reis (2007) também destacou que
receber ou não estrangeiros em seu território é privilégio dos Estados.
O acolhimento institucional público a migrantes em questão sofreu
alterações, notadamente com a anulação, em 2013, da cota de 1.200 vistos
por ano estabelecida quando autorizada pela RN N° 97 a criação do Visto
Humanitário em 2012,25 com a descentralização dos locais de solicitação
tanto deste Visto no Caribe e na América do Sul quanto da Carteira de
Trabalho, com a criação de estabelecimentos voltados para o público
imigrante,26 com as discussões em âmbito nacional relativas a imigrações,
além de com a adoção de uma nova Lei de Migração brasileira, sancionada
em junho de 2017 pelo Presidente da República, cuja elaboração levou de
alguma forma em conta as propostas dos próprios imigrantes, de modo
a substituir o tão criticado Estatuto do Estrangeiro de 19 de agosto de
1980. Essa nova Lei reconhece e considera a migração na perspectiva de
Direitos Humanos.
Como amplamente sabido, a imigração de haitianos no Brasil é
fortemente associada ao trabalho, tanto na ótica dos representantes das
instituições públicas envolvidas no acolhimento de imigrantes, como
na de pesquisadores sobre o tema, que lograram recolher informações
junto aos haitianos. Quando entrevistado em 21 de janeiro de 2015, o
então presidente do CNIg, Paulo Sérgio de Almeida, disse que, de forma
25
Não tendo suscitado imediatamente os efeitos esperados, a RN N° 97 foi criticada,
particularmente no que tange ao teto de vistos fixado por ano. As críticas contribuíram para a
retirada deste e para a prorrogação da vigência dessa RN.
26
Essas ações não são necessariamente federais. Algumas delas ocorreram apenas em
determinadas cidades, como São Paulo, por exemplo, onde foi criado em 2014 o Centro de
Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI). Pereira fala da criação, nessa cidade, da Lei
Municipal de Migração (LEI Nº 16.478/2016), que “prevê a facilitação para os processos de
acolhida e inserção social do migrante [...]” (PEREIRA, 2016, p.106).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


38 Kassoum Dieme

geral, as haitianas não procuram trabalhos industriais que exigem força


física, nos quais seus compatriotas encontram trabalho. Ele afirma que
a imigração para o Brasil é uma migração em busca de trabalho. Sendo
assim, um dos espaços destacados para o acolhimento a haitianos no país
é o mercado de trabalho nacional. Este acolheu formalmente milhares de
haitianos ao longo dos anos. De acordo com Oliveira (2016) e Cavalcanti
(2014), os haitianos constituíram a principal nacionalidade, em 2013, no
mercado formal de trabalho brasileiro. Essa posição foi mantida até o ano
2015, quando representavam 26,4% (OLIVEIRA, 2016, p.60). Os dados
do Ministério do Trabalho mostram que, das 169.506 carteiras de trabalho
emitidas entre 2010 e 2015, 49.155 eram de nacionais do Haiti, o que
representa 29% do total.
De modo geral, o efetivo de imigrantes no mercado de trabalho
formal brasileiro teve um aumento expressivo, quando se compara os anos
de 2010 e 2015. De um total de 54.333 em 2010, passou-se para 125.535 em
2015 (OLIVEIRA, 2016, p.70). Esse cenário mostra que o capital nacional
e estrangeiro, no Brasil, necessitava da força de trabalho estrangeira, que
foi efetivamente empregada em diversas atividades necessárias para sua
dinâmica.
Sayad (1998) diz que o trabalho justifica a migração e também
a permanência do migrante no lugar de instalação. Segundo ele, a
comprovação de residência é também imprescindível para arrumar trabalho.
Se a migração dos últimos anos para o Brasil é, como foi dito anteriormente,
uma migração para trabalho, o impacto dos trabalhadores haitianos sobre as
estatísticas relativas à força de trabalho estrangeira no Brasil nos últimos
anos é mais do que esperado, pois para essa nacionalidade, muitos são
beneficiários do Visto Humanitário, cuja renovação depende da situação
laboral de seu detentor. Este aumento é nítida e fortemente influenciado
pela entrada de haitianos no mercado de trabalho formal brasileiro.
Porém, o Brasil que acolheu formalmente milhares de imigrantes
em seu mercado de trabalho também atravessa nos últimos tempos uma
crise econômica que causa desemprego para milhões de brasileiros. No
tocante aos imigrantes, o estudo de Cavalcanti et al. (2016) mostrou que no
primeiro semestre de 2016, ao contrário do saldo Admissão X demissão de

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 39

haitianos, positivo em 2015, o desemprego afetou claramente esse grupo


de modo geral, mas também os trabalhadores imigrantes de nacionalidade
haitiana. Esses ficaram com saldo negativo de -3.259 na relação admitidos/
demitidos. É o maior saldo negativo, seguido respectivamente pelo de
argentinos (-182), portugueses (-166) e senegaleses (-164). O mercado
de trabalho formal, no qual os haitianos se destacaram de 2013 a 2015,
foi também o que demitiu posteriormente milhares de trabalhadores
haitianos, gerando um saldo negativo para essa nacionalidade muito maior
que o de outras consideradas pelo estudo de Cavalcanti et al. (2016). Ainda
de acordo com este estudo, a média salarial de haitianos no momento da
admissão e da demissão no mercado de trabalho no primeiro semestre de
2016 era de, respectivamente, R$ 1.101 e de R$ 1.183.27
Neste mesmo período, as principais ocupações que mais admitiram
estrangeiros foram respectivamente: Servente de Obras, Alimentador
de Linha de Produção, Faxineiro, Cozinheiro Geral, Pedreiro, Abatedor,
dentre outras. No mesmo sentido, aquelas em que estrangeiros foram mais
demitidos foram, respectivamente: Servente de Obras, Alimentador de
Linha de Produção, Faxineiro, Pedreiro, Magarefe, Abatedor, Cozinheiro
em Geral (CAVALCANTI et al., 2016). Estes postos relativamente
marginais não costumam ser os mais almejados pelos trabalhadores
nacionais, e certamente por isso concentram altos percentuais de migrantes.
O acolhimento a trabalhadores imigrantes de forma geral, e haitianos
em particular, deve reconhecimento às ações de acolhimento promovidas
principalmente pelos scalabrinianos, seja em Manaus ou na cidade de
São Paulo, para citar apenas dois exemplos. O caso do acolhimento
oferecido pela Missão Paz a haitianos na capital paulista contribuiu não
só para a formalização dos vínculos laborais, como também para valorizar
um pouco mais o trabalho dos migrantes, para prevenir situações de
exploração de trabalhadores imigrantes, para o conhecimento da lei
e da cultura brasileiras, para entender que a migração é um fenômeno
27
Na admissão, ela era menor que a de senegaleses (R$ 1.122), argentinos (R$ 1.227),
paraguaios (R$ 1.150) e bolivianos (R$ 1.249), mas na demissão era maior que a de senegaleses
(R$ 1.171) e de paraguaios (R$ 1.169) (CAGED/CTPS – MINISTÉRIO DO TRABALHO
apud CAVALCANTI et al., 2016, p. 123).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


40 Kassoum Dieme

humano tanto antigo quanto muito atual, sobre o qual as autoridades


públicas devem se preocupar no intuito de promover políticas públicas
voltadas para os migrantes, considerando barreiras socioinstitucionais
recorrentes, tais como o preconceito, a negrofobia, a desconsideração
de suas competências, o racismo, o abuso de poder, as dificuldades de
acesso à documentação, à justiça, a serviços públicos de saúde, à educação,
formação e aos trabalhos decentes e dignamente remunerados.
É preciso dizer que as médias salariais referidas anteriormente
não distinguem a situação de homens e de mulheres. Padres envolvidos
no acolhimento a haitianos28 – e de outros imigrantes – entrevistados
respectivamente em novembro de 2014 e 2015 em Manaus e São Paulo
afirmaram que os desafios para a inserção laboral das mulheres era bem
maior, não só por causa da pouca oferta de vagas para elas, mas também
porque, no caso de Manaus, o mercado que a elas se abriu era dos menos
esperados e procurados por essas: o de trabalho doméstico.
Sem o acolhimento e orientação dos scalabrinianos, poder-se-ia
esperar que, mesmo os portadores do Visto Humanitário acabassem mais
expostos a situações abusivas e de exploração, pois, como afirma o padre
Molinari,29 a respeito das empresas que iam para a Paróquia contratar
trabalhadores haitianos: “não tem empresa capitalista que visa dar bem-
estar. Elas visam lucro, precisam de mão-de-obra. Quanto mais mão de
obra tiver e quanto mais ela for barata, melhor é”. Mas como considerar
a ajuda dada pelos migrantes a seus próprios familiares diante dessas
condições?
Sem o trabalho de informação, mediação e negociação entre
empregadores e trabalhadores imigrantes do Haiti, no caso de São Paulo,
por exemplo, a inserção laboral e social desses imigrantes, que ocorreu na
periferia do mercado de trabalho, seria ainda mais precária, colocando em
risco o caráter humanitário, o que se liga tanto à regularização daqueles
que entraram pelo norte, quanto à vinda de haitianos autorizados por
razões humanitárias mediante visto. Por outro lado, sem a regularização
28
Trata-se dos Padres Paolo Parise, da Missão Paz, em São Paulo, e Valdecir Molinari, da
Paróquia São Geraldo, em Manaus.
29
Entrevistado pelo pesquisador em 5 novembro de 2014 em Manaus.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 41

proporcionada pelo documento oficial de identidade, várias iniciativas


da sociedade civil poderiam esbarrar em vários obstáculos. Por exemplo,
negociar uma pequena elevação do salário dos migrantes depende da
possibilidade de registrar o resultado do acordo em Carteira de Trabalho
e Previdência Social.
Os desafios anteriormente referidos, que se colocam (não só) aos
haitianos no Brasil, não dependem do tipo de Resolução mobilizada para
permitir que residam no Brasil. Foi possível perceber que cidadãos do
Haiti no Brasil não foram poupados nem pelo desemprego, nem de se
situar na periferia do mercado oficial de trabalho, o que significa que
migrações tanto internas, já assinaladas por Baeninger e Peres (2015),
para localidades consideradas mais favoráveis, quanto internacionais,
de haitianos que já estavam no Brasil, e referidas por Lauro Bocchi,30
continuam ocorrendo. Ademais, cabe destacar que o desafio de encontrar
emprego nos tempos de crise econômica colocam seriamente em risco a
possibilidade de renovação de visto para imigrantes portadores do visto
humanitário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história das migrações haitianas é secular e bastante complexa.


Como disse Handerson (2015), a migração é parte constitutiva da
sociedade haitiana. Considerando a eliminação dos povos indígenas que ali
residiam antes da chegada dos europeus, a história que se conhece depois
disso é estreitamente vinculada às migrações, seja antes ou depois de sua
independência política. Ela está ligada não só à economia, mas também à
política, à raça, à colonização, ao meio ambiente e também à cultura.
O território que hoje é a República do Haiti recebeu numerosos
europeus, africanos, asiáticos e também americanos, sobretudo antes
de conquistar sua independência política. Considerando o ano de 1804
30
Lauro Bocchi, diretor do CIBAI MIGRAÇÕES, afirma que “ultimamente se fala em
10.000 haitianos que deixaram o Brasil, não necessariamente voltaram para o Haiti.
Buscaram outros países”. Ver Jornal Zero Hora: Sonhos partidos. Publicado em: 02/10/2015.
Disponível em: <http://videos.clicrbs.com.br/rs/zerohora/video/geral/2015/10/sonhos-
partidos/137856/>. Acesso em: 06/10/2015.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017
42 Kassoum Dieme

como marco divisório, caberia dizer que dessa data aos dias de hoje o
Haiti passou a ser mais um país de emigração do que de imigração, sendo
o inverso no período em que era colônia. Se os haitianos emigraram
para diversos destinos antes e durante o século XVIII e desde então,
Cotinguiba (2014, p.83) sublinhou, contudo, que “a emigração só se torna
um fenômeno social no país a partir do século XX e isso se justifica, em
parte, por questões econômicas e políticas consideradas desastrosas para
o país”. Os motivos na base das emigrações de haitianos variam de um
fluxo para outro e também dentro de cada um dos quatro grandes fluxos,
cujos destinos foram a República Dominicana e Cuba, os Estados Unidos
e o Canadá e Brasil. Podem ser tanto endógenos quanto exógenos, ou
mesmo uma combinação de ambos. A colonização, a influência cultural, a
proximidade geográfica, a economia, a política de acolhimento institucional
a imigrantes ou solicitantes de refúgio, a situação ambiental, a instabilidade
política são alguns deles.
No que tange à vinda de haitianos para o Brasil a partir de 2010,
último grande fluxo e objeto de análise mais detida neste artigo, a
dimensão ambiental é destacada, mas sabe-se que a economia e a política
são centrais neste processo. Embora tenham sido acolhidos no Brasil por
razões humanitárias, boa parte dos haitianos depende da condição laboral,
da capacidade comprovada de contribuir para o desenvolvimento do
Brasil para aqui permanecer regularmente, e está, em conjunto com outros
migrantes, em postos de trabalho pouco almejados por trabalhadores
nacionais, além de receberem remuneração modesta. Neste sentido, a
contribuição destes migrantes ao desenvolvimento poderia ser maior se a
eles se abrissem mais oportunidades que considerassem suas competências.
No primeiro semestre de 2016, o desemprego, que já os vinha
afetando, ultrapassou as admissões no mercado de trabalho brasileiro. Em
termos de rendas baixas, o caso das haitianas é ainda mais emblemático.
Foi possível observar em estudo anterior que, no geral, seus empregadores
colocam os imigrantes negros em posições socialmente reservadas aos
negros brasileiros, o que faz com que, muitas vezes, as competências
destes trabalhadores migrantes não cheguem a ser sequer avaliadas, pois
os trabalhos a que são direcionados não exigem muitas habilidades,

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 17-48, fev./dez. 2017


O Haiti e suas migrações 43

mas apenas resistência física, apesar de o acolhimento ser oficialmente


embasado em razões humanitárias. Com efeito, oficialmente o caráter
humanitário está mais ligado à forma de ingressar e à regularização da
estadia de quem ingressou sem documentação brasileira. A RN N° 97 de
2012, uma medida salutar e exemplar de acolhimento de migrantes negros
na história das migrações, não poupou seus beneficiários de sofrerem atos
racistas, do desemprego, dos modestos salários, nem das dificuldades de
inserção no mercado de trabalho, sobretudo para as mulheres.
As ações de acolhimento institucional público ganharam em
qualidade com o passar do tempo. De um acolhimento tímido e pontual
entre 2010 e 2011, chegou-se a uma oficialização da abertura do Brasil para
receber haitianos, até sua ampliação, em 2013. O acolhimento promovido
pelos scalabrinianos a haitianos ocupa um lugar central neste processo
de receber imigrantes com humanidade e respeito por ser notadamente
abrangente, dinâmico e aberto às necessidades e solicitações dos migrantes.

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AS MIGRAÇÕES DE HAITIANOS NA GUIANA
FRANCESA: NOVAS DINÂMICAS

Stéphane Granger1

RESUMO: A Guiana Francesa, tradicional refúgio de migrações haitianas, surinamenses


e brasileiras no Norte da América do Sul, vem conhecendo desde 2015 um aumento
significativo da imigração haitiana, bem como novas migrações africanas e sírias. Se
antigamente essas migrações chegavam pelo Suriname, porta de entrada das migrações
caribenhas por conta de sua situação de interface entre os mundos amazônicos e
caribenhos, elas agora também transitam pelo Brasil, país que se tornou recentemente
um novo destino da emigração haitiana. Os novos migrantes haitianos estão agora
buscando, além desse novo caminho, uma nova maneira de permanecer no território
franco-guianense, pelo pedido de asilo político. O objetivo deste artigo, a partir de fontes
estatísticas, pesquisas recentes, artigos da imprensa e estudos de campo, é o de analisar as
novas dinâmicas das migrações haitianas na Guiana Francesa. Dentro de um contexto de
alteração dos fluxos migratórios tradicionais, tentaremos explicar as novas estratégias dos
migrantes haitianos para chegar e permanecer na Guiana Francesa, fazendo uso tanto da
nova interface constituída pelo Brasil quanto de falhas da legislação francesa em relação
aos estatutos migratórios.
PALAVRAS-CHAVE: Migrações; Fronteiras; Guiana Francesa; Haiti; Brasil; Suriname.

HAITIAN MIGRATIONS IN FRENCH GUIANA:


NEW DYNAMICS

ABSTRACT: French Guiana, a traditional receptacle of Haitian, Surinamese and Brazilian


migrations in North South America, has since 2015 witnessed a significant increase in
Haitian immigration, as well as new African and Syrian migrations. If in the past these
1
Doutor em Geografia pela Universidade de Paris 3 Sorbonne-Nouvelle, e pesquisador
associado ao OHM Hommes-Milieux, CNRS, França. E-mail: [email protected]
50  Stéphane Granger

migrations arrived in Suriname, the gateway of the Caribbean migrations due to their
interface between the Amazonian and Caribbean worlds, they now also transit through
Brazil, a country that has recently become a new destination for Haitian emigration. The
new Haitian migrants are now, in addition to this new path, trying to find a new way of
staying in French-Guyanese territory, for the application for political asylum. The aim of
this article is to analyze, on the basis of statistical data sources, recent research, leading
articles and field studies, these new dynamics of Haitian migrations in French Guiana.
Within a context of changing traditional migration flows, we will try to explain the new
strategies of the Haitian migrants for arriving and staying in French Guiana, using both
the new interface made up of Brazil and the flaws of the French legislation regarding the
migratory statutes.
KEYWORDS: Migrations; Borders; French Guiana; Haiti; Brazil; Suriname.

INTRODUÇÃO

UM NOVO CONTEXTO MIGRATÓRIO NA GUIANA FRANCESA

Território francês de ultramar situado na costa Norte da América do


Sul, a Guiana Francesa é, desde 1964, com a construção do centro espacial
de Kourou, um destino tradicional de migrações: 37% da população é
composta por estrangeiros, segundo o último censo oficial, sem falar da
presença marcada de uma população clandestina, o que se explica tanto
pela porosidade das fronteiras deste território, muito mais rico que seus
vizinhos, quanto por sua situação de território francês, beneficiado pelas
redistribuições nacionais e europeias (GRANGER, 2016).
Essas migrações são principalmente caribenhas: Haiti e República
Dominicana, além de pequenos fluxos oriundos de ilhas anglófonas das
Antilhas, e vindos dos países vizinhos das Guianas: Suriname e República
da Guiana. Mas essa situação de interface também faz da Guiana um
destino de migrações sul-americanas: brasileiras, colombianas e, mais
recentemente, peruanas, além de venezuelanas, desde a crise política e
econômica (ver quadro abaixo).
Assim, os fluxos brasileiros, de início essencialmente fronteiriços
e ligados a trabalhos manuais no litoral (a parte povoada e explorada
da Guiana Francesa), foram sendo reduzidos. Segundo informações

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017


As migrações de haitianos... 51

dadas pelo Consulado-geral do Brasil em Caiena e a Polícia francesa


das Fronteiras (PAF), tais fluxos agora dizem respeito principalmente a
garimpeiros vindos do interior, em sua maior parte naturais do Maranhão,
como também é o caso com o vizinho Suriname. Os fluxos colombianos,
por sua vez, quase desapareceram, apesar de tentativas dois anos atrás de
algumas famílias de obter, sem sucesso, o estatuto de refugiados políticos,
devido à situação de guerra civil do país.
Os fluxos haitianos e dominicanos, pelo contrário, permaneceram,
não só chegando frequentemente pelo Suriname, como antigamente,
mas agora também pelo Brasil. Pois o Brasil também se tornou a porta
de entrada de novos fluxos de origens mais remotas, como a África
(Marrocos e África ocidental) e o Oriente Médio, principalmente a Síria.
Isso confirma a situação deste país como etapa de novas migrações em
direção à Guiana Francesa, mesmo que este não tivesse sido o destino
inicial desses migrantes (GRANGER, 2014).
Devido ao forte caráter de segredo das estatísticas nacionais,
inclusive no setor escolar, no qual os dados relativos a nacionalidade e etnia
são proibidos, bem como pelo fato de se tratar de migrações informais,
não se pode quantificar adequadamente a proporção desses fluxos
recentes. Segundo o instituto nacional francês de estatísticas INSEE, 29,0
% dos 252.338 habitantes da Guiana Francesa eram em 2014 considerados
imigrantes, isto é, estrangeiros nascidos num país estrangeiro (INSEE,
2017). Mas este número precisa ser relativizado: nessa categoria não
aparecem os filhos de estrangeiros nascidos em solo francês. Além disso,
entre 18 a 21% da população da Guiana Francesa vive em situação de
ilegalidade, e nem sempre é levada em conta e registrada pelos censos
oficiais (PIANTONI, 2011).
Se oficialmente os surinamenses constituem a primeira nacionalidade
estrangeira registrada na Guiana Francesa, a população haitiana é a segunda,
com 15.880 pessoas (INSEE, 2012). Mas algumas fontes da Préfecture
(representação do Estado francês em Caiena) e das ONG locais apontam
uma população haitiana que chegaria a 20.000 pessoas, legalizadas ou
clandestinas. O deputado nacional Gabriel Serville, baseando-se também
nos pedidos de asilo e no número médio de filhos por família, estima que
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017
52  Stéphane Granger

o número de haitianos fica em torno de 25.000 (CARTESSE, 2016). As


estimativas do pesquisador Frédéric Piantoni até certo ponto confirmam
as de Serville, apontando uma população haitiana de 23.654 pessoas em
2009, o que a torna a nacionalidade estrangeira mais populosa na Guiana
Francesa, à frente dos surinamenses, desse modo constituindo 30% dos
estrangeiros e mais de 10% da população total do país (PIANTONI,
2011).

1974 1982 1990 1999 2009


População
57.348 73.012 114.808 157.274 229.000
total
77.704
População 8.041 (14% 17.346 (24% 37.286 (32% 46.576
(30% da (34% da
estrangeira da pop. total) da pop. total) da pop. total)
pop. total ) pop. total)

Brasileiros
1.559 3.123 5.962 7.171 17.990
(33,16%) (18,51%) (15,99%) (15,40%) (23,15%)

479 5.287 9.263 14.143 23.654


Haitianos (10,19%) (31,34%) (24,84%) (30,37%) (30,44%)

1.237 2.453 13.762 17.654 19.748


Surinamenses (26,31%) (14,54%) (36,91%) (37,90%) (25,41%)

Quadro 1. Evolução das populações de nacionalidade brasileira, haitiana e surinamense de


1974 a 2009 em relação à totalidade da população estrangeira na Guiana Francesa. Fonte:
Frédéric Piantoni (2011, p. 32), estimativas a partir dos censos INSEE.

Essa evolução traduz tanto uma notoriedade maior da Guiana


Francesa dentro de um continente ao qual durante muito tempo virou as
costas, como segue a evolução política (fechamento dos Estados Unidos,
emergência do Brasil) e econômica (crises, impactos de catástrofes
naturais) dos países envolvidos (GRANGER, 2016).

NOVOS CAMINHOS DA IMIGRAÇÃO HAITIANA

Assim, a imigração haitiana é agora uma das mais importantes na


Guiana Francesa, apesar de ser também bastante recente, tendo se tornado
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017
As migrações de haitianos... 53

significativa só a partir dos anos 1980. Os primeiros haitianos vinham


principalmente do Sul, de Aquin e Jacmel, bem como da capital Porto-
Príncipe (HANDERSON, 2015). A forte demanda de mão de obra na
construção civil que conheceu a Guiana francesa, após uma modificação
estatutária que dava mais poderes ao governo estadual (a Région, em 1982),
faz com que esses primeiros migrantes tenham chamado familiares da
mesma região haitiana. Mas a partir dos anos 90 e da crise econômica
que conheceu a Guiana Francesa, em conjunto com os outros territórios
ultramarinos, as condições de entrada se endureceram e as autoridades
francesas, apoiadas pela população local também vítima de um forte
desemprego, praticaram uma política de forte repressão e expulsões
não só contra haitianos como os demais clandestinos, principalmente
surinameses e brasileiros (LAETHIER, 2011).
Esse endurecimento das condições de entrada fez com que os
haitianos buscassem passar pelo Suriname para tentar chegar nas cidades
franco-guianenses oferecendo as melhores opções de trabalho: Caiena
e Kourou. No começo, o Suriname só pedia dos haitianos um visto de
turismo, fácil de obter. Uma vez em Paramaribo por via aérea, os haitianos
passavam clandestinamente para a Guiana Francesa, o que se dava com
facilidade, devido à porosidade da fronteira (o rio Maroni), e apesar dos
numerosos controles da polícia e da Gendarmerie (polícia militar) francesas
(HANDERSON, 2015).
A vinda dos haitianos foi também facilitada pela entrada do Haiti
no CARICOM2 em 2002, mercado comum caribenho ao qual também
pertence o Suriname: todos os Estados membros suspenderam a
necessidade de visto entre eles. Assim, a partir do final dos anos 2000, os
haitianos chegavam livremente no Suriname, sem visto, e depois tentavam
passar clandestinamente para a Guiana Francesa (GRANGER, 2016).
O terremoto de 2010 permitiu uma brecha na repressão francesa,
além de ter provocado uma forte emigração de haitianos no Brasil, destino
que se tornou mais conhecido e fácil graças à sua atuação na MINUSTAH:
2
Caribean Common Market, mercado comum dos países anglófonos do Caribe criado em
1973, ao qual se juntaram mais tarde o Suriname e Haiti. Com a República Dominicana, está
constituíndo o CARIFORUM.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017


54  Stéphane Granger

por motivos diplomáticos, o país não podia ao mesmo tempo assumir uma
missão militar no Haiti e impedir a entrada de haitianos em seu próprio
território, tendo por isso lhes concedido “vistos humanitários” (SANTOS;
BURGEILE, 2017).
A forte demanda de mão de obra no Brasil permitiu o emprego
de milhares de haitianos, regularizados ou não, na construção civil
(equipamentos para a Copa do mundo de futebol de 2014, ou as Olimpíadas
de 2016), ou nas fazendas do Goiás ou do Mato Grosso do Sul. Por isso,
a porta de entrada dessas migrações, que antigamente passavam por
Tabatinga (AM) vindas da Colômbia ou do Equador, foi substituída por
Brasileia (AC), passando pelo Peru, com a cidade de São Paulo sendo um
dos grandes destinos dessa nova migração (GRANGER, 2014; SANTOS;
BURGEILE, 2017). Aliás, até se criou na metrópole paulista um novo
bairro “haitiano”, com igrejas onde se reza em crioulo e francês.
Mas a tolerância das autoridades francesas, que provisoriamente
concederam com maior facilidade autorizações de permanência na
Guiana Francesa após o terrível terremoto de 2010 no Haiti, ofereceu
também outras oportunidades para esses haitianos chegados em território
brasileiro. Segundo testemunhas recolhidas em Brasileia, alguns haitianos,
principalmente aqueles com família já estabelecida na Guiana Francesa,
viajaram até Manaus para pegar um navio trazendo-os até Macapá, e
entraram na Guiana Francesa pela fronteira do Oiapoque (GRANGER,
2014). Depois, pode-se supor que se hospedaram em bairros mais ou
menos informais de Caiena e sua periferia, acolhidos por familiares.
Essa tolerância das autoridades francesas foi de pouca duração. Mas
hoje, dois fatos estão reforçando as migrações de haitianos até a Guiana
Francesa: o furacão Mathew em 2016, que provocou a fuga de centenas
de haitianos do sul do país, e a crise econômica assolando o Brasil, que
faz muitos migrantes deixarem o país para tentar a sorte nos EUA,
mas também na Guiana Francesa. As autoridades da Polícia federal do
Oiapoque, bem como o Centro de cooperação policial de Saint-Georges,
cidade franco-guianense fronteiriça com o Brasil, registraram um aumento
recente dos fluxos de haitianos para a Guiana Francesa.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017


As migrações de haitianos... 55

Mapa 1. Os caminhos das migrações haitianas para o Brasil e a Guiana Francesa. Fonte:
Stéphane Granger (2014).

Do outro lado da Guiana Francesa, também se constatou um forte


aumento de haitianos cruzando ou tentando cruzar a fronteira franco-
surinamense: conforme já dito, os haitianos aproveitavam a pertença comum
do Haiti e do Suriname ao CARICOM, que suspendeu a necessidade de
vistos entre países membros. Depois da testemunha do prefeito de Saint-
Laurent, cidade franco-guianense fazendo fronteira com o Suriname à
beira do rio Maroni, evocando 4 a 5.000 haitianos refugiados na periferia
dessa cidade franco-guianense após ter atravessado o rio, o Estado francês
pressionou o governo do Suriname para esse restabelecer o visto de
entrada no Suriname para os haitianos, o que foi aceito (GRANGER,
2016). Esse fato, que significou a ingerência de um Estado poderoso na
política diplomática de um Estado mais fraco e contradizendo as medidas
do conjunto econômico ao qual esse último pertence (o CARICOM),

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017


56  Stéphane Granger

testemunha a amplitude desses novos fluxos oriundos do Haiti, bem como


a preocupação dos Estados envolvidos.
Mas essa amplitude faz com que o Estado francês não tenha mais
como expulsar os clandestinos para seus países de origem pela via aérea,
como era o caso antigamente, devido ao custo das passagens aéreas.
Atualmente, contentam-se em deportá-los até a cidade fronteiriça por
onde entraram na Guiana Francesa e, às vezes, foram registrados: Albina,
no Suriname, e Oiapoque, no Brasil. O que, dada a forte porosidade
das fronteiras, constituídas por simples rios, em nada impede uma nova
tentativa de penetrar o território francês no dia seguinte...

ESTRATÉGIAS NOVAS

Se não é possível quantificar o aumento desses fluxos migratórios


por serem eles clandestinos, testemunhas das autoridades policiais e
escolares da Guiana Francesa mencionam o aumento recente de prisões
de haitianos por falta de documentação. Além disso, foi constatado um
grande aumento dos pedidos de escolarização de jovens haitianos, que
devem passar pelo CEFISEM3 para que sejam definidas as estruturas
responsáveis por acolhê-los. Os haitianos assim se tornaram novamente
a primeira nacionalidade estrangeira escolarizada por essa estrutura,
ultrapassando os surinamenses4.
Muitos desses haitianos estão agora tentando uma outra maneira
de conseguir a regularização: pelo pedido de asilo político. Desde 2015
formam-se filas impressionantes de haitianos, como também de africanos
subsaarianos na frente dos escritórios do OFII (Office Français de
l’Immigration et de l’Intégration) e da Cruz-Vermelha. Assim, fontes da
Préfecture mencionam que, em 2016, 88,5% dos pedidos de asilo político
provinham de haitianos, muito à frente dos dominicanos e dos bissau-

3
Centres de Formation et d’Information pour la Scolarisation des Enfants de Migrants, organismo nacional
encarregado de testar o nível de língua e alfabetização de menores estrangeiros recem chegados
no território francês. Pois o Estado francês tem a obrigação de escolarizar qualquer jovem até
os 16 anos, seja ele regularizado ou não.
4
Fonte: CEFISEM de Caiena (outubro de 2016).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 49-62, fev/dez. 2017


As migrações de haitianos... 57

guineenses. A Préfecture registrou, em 2014, 969 pedidos de asilo, 2.651 em


2015; 5.122 em 2016, e os 7 primeiros meses de 2017 já apontam 3 500
pedidos. Mas as capacidades de acolhimento, pela Cruz Vermelha, mal
chegam a 150 vagas.
Mas só 2,6% dos pedidos foram satisfeitos, entre os quais 1,5%
dos pedidos de haitianos (MAROT, 2017): as atuais condições políticas
do Haiti, que não é uma ditadura e tampouco está em estado de guerra,
impediram a esses migrantes de conseguir o asilo, diferentemente de alguns
migrantes africanos e sírios. Mesmo assim, os pedidos serviram para que
ganhassem tempo: o simples pedido registrado no OFII garante uma
permanência no território francês sem expulsão possível, além de garantir
uma pequena renda, provida pelo Estado francês durante o tratamento
do dossiê (de 263 € mensais, um pouco mais de R$ 900) para solteiros
a 700 € (aproximadamente R$ 2.450) para as famílias com 2 filhos, mas
sem que tenham o direito de trabalhar. O processo, que geralmente tem o
prazo de 9 a 18 meses devido ao forte aumento constatado, pode acabar
garantindo tempo suficiente para que o candidato ao asilo encontre um
terreno, uma casa (mas raramente de modo oficial), tenha filhos nascidos
ou escolarizados em território francês (o que, ao menos em princípio,
impede a expulsão, ainda que isso nem sempre seja respeitado), ou até um
parceiro francês, dando assim sinais visíveis de integração, o que facilita a
obtenção do visto.
Aliás, essa estratégia dá certo: outras fontes da Préfecture indicam que,
dos 5.000 estrangeiros expulsos da Guiana Francesa em 2016, só 20% eram
haitianos, a maioria sendo surinamenses (40%) ou brasileiros (30%). Essa
fraca proporção em relação ao número de haitianos na Guiana Francesa
se explica tanto pelo custo da expulsão para o Haiti por via aérea, do
apelo à justiça para contestar a expulsão, promovido por associações bem
organizadas, o que não é o caso com as brasileiras, quanto, principalmente,
pela proteção permitida pelo pedido de asilo político.
Contudo, esses fluxos se tornaram tão intensos que o Préfet
(representante do Estado francês na Guiana Francesa, responsável pela
ordem pública e da administração nacional), decidiu fechar, durante
algumas semanas de agosto de 2016, o guichê dos pedidos de asilo, por
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conta de seu número excessivo, que tornava impossível conduzi-los


devidamente. Este fato, além da visão de filas de centenas de pessoas que
se sabe não possuírem condições de conseguir esse asilo, bem como do
aumento de invasões em áreas periféricas e até perigosas, de desmatamentos
selvagens em áreas ambientais protegidas como em Baduel, perto do
centro de Caiena, que triplicou sua população desde 2015 (FERRARINI,
2017), estão gerando uma certa xenofobia crescente, inclusive por parte
de migrantes já regularizados, tendo o Préfet respondido também a uma
demanda da classe política e de algumas associações, como os 500 Frères.5
Essa milícia informal fechou, em 26 de outubro 2017, sem legitimidade e
pela força, o guichê do OFII e o centro de acolhimento da Cruz Vermelha,
aproveitando a visita do presidente francês Emmanuel Macron, para atrair
a atenção ao problema. Mas essa ação mostra o perigo do problema, que
está começando a gerar tensões étnicas desconhecidas, devido à fraca
importância numérica das populações nativas (45% de crioulos, ou seja,
mestiços afrodescendentes, índios de 7 etnias diferentes e quilombolas) e
à imensidão e ao vazio do território6.
Ao que tudo indica, os haitianos na Guiana Francesa, apesar das
péssimas condições de vida que podem ter populações clandestinas,
mesmo que num país considerado rico (moradias que são fruto de
invasões, perseguições policiais...), preferem ficar em território francês,
custe o que custar. A exploração clandestina de uma pequena roça, cada
vez mais numerosa inclusive em lugares protegidos ou perigosos, permite
a subsistência, o objetivo sendo conseguir 10 anos de permanência no
território francês, que permitirão a obtenção da famosa carte de séjour,
o documento oficial autorizando permanência e trabalho na França
5
“500 irmãos”, associação de policiais (anônimos) ou ex-policiais, mascarados,
quermascaradaendo oficialmente apoiar as ações da polícia e da Gendarmerie (polícia militar
francesa) de forma não violenta. Denunciada como milícia, essa associação, que teve destaque
no famoso movimento social de março-abril de 2017 na Guiana Francesa, bloqueou durante
um dia os consulados do Haiti e do Suriname, países acusados de não terem assinado um
acordo de extradição e readmissão dos clandestinos e ex-presidiários com a França.
6
As estatísticas étnicas e raciais estão proibidas na França. Baseando-se no lugar de nascimento,
o INSEE estima os franco-guianenses nativos em 45% da população, e os outros franceses
(metropolitanos e antilheses) em 20%, sendo os demais estrangeiros 35% da população).

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(PALISSE, 2016). Se forem expulsos (caso só dos candidatos não


sucedidos), só serão deportados até a fronteira, de onde é fácil voltar de
novo.
Por isso, o governo francês, através do OFII, para tentar resolver
o problema migratório numa região e no país com um forte desemprego,
adotou uma política de apoio à volta de migrantes (“aide au retour”),
de modo a auxiliar o retorno aos países de origem. Assim, o OFII da
Guiana Francesa assinou convênios com órgãos e empresas no Haiti
para favorecer a reinserção desses migrantes que retornam, chegando
inclusive a fornecer auxílio financeiro para a criação de empresas. Porém,
apenas 133 candidatos se apresentaram, o que é um número muito pouco
significativo em relação aos pedidos de asilo, que em sua maior parte não
serão concedidos (FERRARINI, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica claro que a Guiana Francesa conhece uma situação de interface


entre os mundos europeus, caribenhos e sul-americanos, o que provoca
numerosos fluxos migratórios devido a sua situação de porta giratória com
relação ao Suriname e ao Brasil, primeiras etapas dos fluxos com destino
a esse território francês e europeu na América do Sul. Assim, fluxos que
passavam – e continuam passando – pelo Suriname, agora também passam
pelo Brasil, país que foi outro destino de permanência ou de trânsito, em
conjunto com fluxos oriundos da África do Norte ou do Sul do Saara,
bem como do Oriente Médio. Esses fluxos, principalmente haitianos,
fizeram com que a população da Guiana Francesa crescesse em mais 6%
desde 2015.
Mas a proximidade entre a cultura haitiana e a cultura crioula da
Guiana Francesa, que é majoritária, embora não seja a única, a semelhança
dos sobrenomes e dos tipos físicos com os de grande parte da população
franco-guianense de origem crioula, bem como a assimilação decorrente
do sistema escolar francês, ao qual os haitianos são muito agarrados, são
fatores que estão pouco a pouco permitindo uma crescente integração,
visível por meio da entrada de jovens haitianos da segunda geração nos
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mundos profissional, político ou cultural da Guiana Francesa (LAETHIER,


2011).
Porém, a importância dos fluxos atuais, dentro de um contexto de
forte desemprego e insegurança na sociedade franco-guianense, pouco
numerosa e pouco segura culturalmente, provoca uma intensificação nas
formas de controle e repressão dos migrantes, principalmente haitianos,
bem como da xenofobia, constatada tanto pela imprensa quanto por
pesquisadores como Marianne Palisse (2016). Os migrantes são vistos
como os principais responsáveis pela delinquência, o tráfico de drogas e o
forte sentimento de insegurança (metade dos presos no presídio de Caiena
são estrangeiros), embora poucos sejam os haitianos envolvidos.
Visitando a Guiana Francesa em 27 de outubro de 2017, o presidente
francês Emmanuel Macron atendeu ao pedido da classe política local e
dos “500 irmãos”, e, referindo-se expressamente aos candidatos haitianos,
declarou:

A Guiana Francesa hoje está atrativa demais para os


candidatos ao asilo que não precisam de verdade de uma
proteção e já vivem em países onde se aplicam regras efetivas
de proteção internacional. É o caso dos haitianos, que estão
morando no Brasil já há muitos anos [...] Não se pode ter
uma situação onde se paga durante doze meses, dezoito, até
vinte e quatro meses um subsídio para candidatos ao asilo
que seja superior ao salário médio na totalidade dos países
vizinhos7.

E anunciou, para o maior prazer da plateia, a redução do pagamento


do subsídio de candidato refugiado a dois meses. A situação particular
da imigração na Guiana Francesa provocou assim uma derrogação das
leis nacionais em relação ao asilo político, que também prejudicará os
refugiados, bem como as centenas de sírios que chegaram no Brasil desde
2015.

7
Discurso em Caiena, 27/10/2017. Disponível em: <http://la1ere.francetvinfo.fr/guyane/
emissions/guyane-soir>

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Mas a dificuldade de conseguir estatísticas certas, como os novos


caminhos e estratégias para conseguir permanecer na Guiana Francesa
mostram que a luta dos Estados contra os fluxos migratórios indesejáveis
ou informais será vã enquanto persistirem tantas desigualdades dentro dos
mundos caribenhos e sul-americanos, com fronteiras mais simbólicas do
que dissuasivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARTESSE, Océlia. ‘Quel peut être le nombre réel de migrants haïtiens


en Guyane ?’. Guyane la 1ère, 20/10/2016. http://la1ere.francetvinfo.
fr/guyane/quel-peut-etre-nombre-reel-mig rants-haitiens-
guyane-408391.html
FERRARINI, Hélène. ‘Immigration  : les exceptions ultramarines
dénoncées.’  Caiena: Guyaweb, 06/10/2017. Disponível em:
<http://www.guyaweb.com/actualites/immigration-exceptions-
ultramarines-denoncees/>. Acesso em 6/10/2017.
GRANGER, Stéphane. ‘L’Amazonie brésilienne, nouvelle interface
migratoire entre les Caraïbes et l’Amérique du Sud ?’ Mercator,
Fortaleza, v. 13, n. 1, p.7-17, 2014.
_____ ‘Intégrations régionales et diversification des flux migratoires dans
les mondes caribéen et amazonien  : la Guyane entre ouverture et
isolement’. In: COLLOMB, Gérard  ; MAM LAM FOUCK, Serge
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_____ Population par sexe, âge et situation quant à l’immigration en 2014, Région
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Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa. Rio de Janeiro. Doutorado em
Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.

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62  Stéphane Granger

LAETHIER, Maud. Être migrant et Haïtien en Guyane. Paris: Éditions du


CTHS, 2011.
MAROT, Laurent, ‘La Guyane face à une vague migratoire sans précédent’.
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guyane-face-a-une-vague-migratoire-sans-precedent_5205748_8>.
Acesso em 25/10/2017.
PALISSE, Marianne. ‘Les pratiques agricoles des migrants haïtiens en
Guyane: entre insertion et stigmatisation’. In: COLLOMB, Gérard ;
MAM LAM FOUCK, Serge (dir.). La Guyane entre Surinam et Brésil :
mobilités, ethnicités, diversité culturelle. Matoury: Ibis Rouge, p.189-206,
2016.
PIANTONI, Frédéric. Migrants en Guyane, Arles/Caiena: Actes Sud/
Maison des Cultures guyanaises, 2011.
SANTOS, Ednaldo Tartaglia; BURGEILE, Odete. “O deslocamento
espacial de imigrantes haitianos: da desterritorialização à
reterritorialização’’. Confins [Online], 2017. Disponível em: http://
confins.revues.org/12176 . Acesso em 08/10/2017.

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HAITIANOS NO BRASIL: CAPILARIDADES E
GEOGRAFIAS EM INTERFACE AO CONCEITO
DE TERRITÓRIO-REDE

Isis do Mar Marques Martins1

RESUMO: O presente artigo visa refletir sobre o recente fluxo de haitianos no Brasil
e suas implicações práticas, considerando aspectos sociais e políticos imbricados no
espaço e no tempo da permanência de haitianos no país. Busca-se, também, perceber
as implicações de ordem conceitual, sobretudo à luz de conceitos contemporâneos da
geografia que promovem a ideia de movimento e mobilidade. Entendendo a singularidade
da imigração haitiana ao Brasil e seus reflexos, dentre eles o poder de capilaridade
expressivo dos haitianos no território brasileiro, a proposta é analisar a ideia de território-
rede, caracterizada pela promoção de diversas relações de poder no espaço, atraída por
diversos agentes, no qual a capilaridade aponta certamente a importância das redes
múltiplas que grupos haitianos apostam em suas estratégias de permanência.
PALAVRAS-CHAVE: Imigrantes Haitianos; Capilaridade; Território-Rede; Agentes
Espaciais.

HAITIANS IN BRAZIL: CAPILARITIES AND


GEOGRAPHIES IN INTERFACE AT THE
CONCEPTO OF TERRITORY-NETWORK

1
Doutora pelo Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Bolsista CNPq. Pesquisadora vinculada ao Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Migratórios. E-mail: [email protected].
64  Isis do Mar Marques Martins

ABSTRACT: The work sees to reflect about the mobility actually of Haitians in Brazil
and your practices implication, or your social and polices way in the space and time of
Haitians here. Also, your implications in conceptual order, especially from the point of
view of Geographic’s recent concepts what movement and mobility idea are promoters.
Understanding the Haitian’s immigration in Brazil singularities and your reflects, mainly
the power of Haitian’s capillarity in the Brazil, the proposer is to analyses the territory-
network, what is the promotion of powerships in the space, agencies multiply attract, what
this capillarity this is a target the understand the multiply networks to Haitians groups.
KEYWORDS: Haitians Immigrants; Capillarity; Territory-Network; Spacial Agents.

INTRODUÇÃO

“Cada pessoa vai viajar, vai no outro país, vai buscar a vida
melhor...”. A frase, de um haitiano em Caxias do Sul, talvez seja uma
das mais mencionadas por migrantes no mundo. Em muitos casos, o
migrante é visto sem cidadania na execução de políticas públicas, por
ser considerado efêmero. Para parte da intelectualidade, por exemplo, o
migrante é desprovido de cidadania por sua superficial apropriação de
bens e serviços que acarretem diretamente uma mudança mais complexa
de sua realidade. Ora, nos interessa saber se realmente é isso que ocorre.
É certo que muitos discursos legitimam para a sociedade um sentido
de barganha em relação ao termo cidadania. Nesse sentido, é salutar o
entendimento do papel do migrante no lugar de chegada, considerando
suas transformações e compreendendo as dinâmicas de espacialidades
que envolvem o migrante. Torna-se também iminente a construção de
políticas públicas concernentes às escolhas desses migrantes, ainda que
essas escolhas partam de um alheamento, ou de fatores que subordinam
ainda mais sua condição. A reflexão geográfica, por meio de categorias
como espaço e território, são fundamentais para constituir uma análise
conjunta das espacialidades de imigrantes e de políticas públicas que
garantam a cidadania.
Destarte, o presente artigo propõe compreender esse processo de
mobilidade haitiana no Brasil, sobretudo àquela iniciada após o terremoto
de 12 de janeiro de 2010 no Haiti. Tal mobilidade foi impulsionada por

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uma diversidade de fatores, dentre eles a política brasileira de integração


à Mission des Nations Unies pour la stabilisationen Haiti (MINUSTAH), a
abertura política e econômica do Brasil vivenciada no início do século XXI
até meados da década de 2010, e a postura do governo brasileiro, com uma
diplomacia solidária, em atender demandas e articular suas táticas políticas
em escala global.
No caso do Haiti, a fragilidade política e econômica transborda
em uma diversidade de problemas sociais e sócio-espaciais. A diáspora,
historicamente abortada como base não só da economia como da
sociedade haitiana, é um dos caminhos possíveis de construir estratégias
de sobrevivência, principalmente coletiva, já que a mobilidade haitiana,
conforme vários pesquisadores apontam, é pensada e praticada de forma
inteiramente coletiva. Essa coletividade reflete no poder de territorialização
da mobilidade haitiana no Brasil, sobretudo por três características: a
capilaridade de suas relações sócio-espaciais; o caráter coletivo de sua
mobilidade; e o poder associativista dos lugares por onde os haitianos
passam.
Nesse sentido, o presente artigo analisa a ideia de território-
rede presente na análise geográfica, que entende as relações de poder
e as potencialidades da formação de redes como a de imigrantes, que
produzem novas formas de ver práticas políticas para imigrantes. O artigo
está estruturado da seguinte maneira: apresenta-se os encargos conceituais
da ideia território-rede para a geografia e suas implicações a imigrantes no
espaço; elabora-se uma discussão da capilaridade de grupos haitianos no
Brasil na década de 2010; e se produz um cruzamento da ideia território-
rede e o poder dessa capilaridade.

GEOGRAFIA, MOBILIDADE E O TERRITÓRIO-REDE:


PERSPECTIVAS CONCEITUAIS

A problemática da “rede” na ciência geográfica, em paráfrase a


Souza (2013), tornou-se “coqueluche” no Brasil em meados da década de
1990, embora tenha sido alavancado por geógrafos franceses, americanos
e outros uma década antes. É notório em sua apreensão que o estudo das
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66  Isis do Mar Marques Martins

redes na geografia segue dois caminhos: primeiro, o estudo dos pontos


de relação entre um ou mais espaços, de âmbito mais material e prático;
e, segundo, o estudo das redes que interligam e produzem contiguidades
espaciais, sobretudo o exemplo das redes de ativismo social, que mobilizam
espaços e transformam o poder de decisão e de mutação desses espaços.
O sentido mais pragmático da rede constitui a análise das políticas e
das transformações nas escalas da categoria do pensamento geográfico –
rede urbana, rede regional etc. – e apreende o poder de comando e decisão
dessas redes em optar por transformações no espaço que garantam a
primazia de um determinado grupo social. Essa segunda apreensão, das
contiguidades, é aprazível cara, pois as redes sócio-espaciais promovem o
vaivém constante das políticas espaciais, regionais e territoriais conforme
a emergência da mobilização social.

O fato é que, se, além da própria rede urbana, também as


redes viárias, e particularmente as ferroviárias, estiveram na
pauta dos geógrafos desde cedo, atualmente os geógrafos
e outros profissionais vinculados à pesquisa sócio-
espacial já iniciaram a exploração do conceito a partir de
numerosas e muito variegadas perspectivas. Uma trincheira
particularmente interessante de aplicação do conceito
de rede, pelas ciências da sociedade, é aquela que busca
capturar aspectos fundamentais da dinâmica e do modo de
estruturação de protestos e ativismos sociais com o auxílio
desse conceito (SOUZA, 2013, p. 168).

Nessa perspectiva, é salutar também a contribuição de Haesbaert


(2009) no entendimento e na sistematização do estudo das redes na
geografia e na problemática do território-rede. Para tal, há um problema
na análise das redes que aponta para a dualização entre território e rede,
e que dificulta a apreensão de um conceito que está imbricado por si só.
Para o autor, redes constituem territórios e vice-versa. Esse dualismo na
geografia, sobretudo na relação euclidiana ou não euclidiana, escamoteia
uma realidade no qual torna explícito que a sociedade em rede não implica
no fim de territórios, mas na formação de novas territorialidades.
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Vale ressaltar que para a geografia o território, em resumo, significa


toda atuação no espaço que forma relações de poder. Por isso, Haesbaert
(2009) em O mito da desterritorialização, aponta que o discurso do fim de
territórios não existe, e que o engendramento de relações de poder no
espaço não se finda com a globalização, ao contrário, as relações se tornam
cada vez mais balizadas pelas relações de poder e, portanto, instituídas de
territórios. No tocante aos territórios-rede, segundo o autor:

Identificamos três grandes perspectivas teóricas na relação


entre território e rede: uma que subordina a rede ao território
(como em muitas leituras da geografia mais tradicional),
outra que, dicotomicamente, separa claramente território e
rede (como na abordagem de Bertrand Badie), e, finalmente,
uma terceira, que trabalha com o binômio território-rede,
historicamente relativizado, a rede atuando ora como feitos
territorializadores, ora com efeitos desterritorializadores
[...] as redes podem assim estar a serviço tanto de
processos sociais que estruturam quanto de processos que
desestruturam territórios. Mas a dinâmica do elemento rede
tornou-se tão importante no mundo “pós-moderno” que
não parece equivocado afirmar que a própria rede pode
tornar-se um território (HAESBAERT, 2009, p. 298).

Assim, os territórios-rede são vias de movimento e circulação de


espacialidades diversas, cujo movimento e diversidade são os atrativos.
Vale ressaltar que a perspectiva de rede, ou de territórios-rede, embora
complementares, diferem da análise metodológica aplicada às redes
sociais de imigração, que possibilitam visualizar o migrante numa gama
de relações (dentre elas, a comunicação, os cenários políticos, as interfaces
sociais), e admite a análise relacional em plenitude.
Essas redes sociais implicam um processo de articulação entre
sociedade e ação – isto é, apreendem o momento da decisão de migrar,
os sentidos e as perspectivas sociais e subjetivas de quem migra –, que
constituem socialmente relações de vida e mobilizam não só o sentido do
migrante no lugar que de chegada, como suas relações interpessoais, sua

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68  Isis do Mar Marques Martins

condição de sujeito e de grupo coletivo, suas articulações de sobrevivência


e de escolhas. Além disso, as redes sociais de migração sugerem que o
espaço de hoje poderá ser o lugar do amanhã, assim como um território
e vice-versa. É, portanto, uma categoria de análise destacada nos dos
estudos migratórios, como a de território-rede.
No tocante à mobilidade, Haesbaert (2009) enfatiza dois cenários
importantes na constituição de territórios-rede a partir da migração.
O primeiro é da potencialização em construir novas relações que não
sejam as instituídas pelo poder hegemônico, como o Estado e as grandes
empresas, que são hoje as que mais funcionalizam espaços de poder versus
espaços subordinados, no qual os territórios-rede possuiriam a capacidade
de promover o conflito às contradições sócio-espaciais. Mas, também,
promovem novos territórios-rede e novas relações de poder, como, por
exemplo, as relações entre facções do tráfico nas favelas do Rio de Janeiro
ou das organizações extremistas no Oriente Médio. O segundo cenário diz
respeito ao fato de que esses territórios-rede enfatizam espaços nos quais
a migração e a marginalização tangenciam, e onde as possibilidades de
transformação sócio-espaciais se tornam paulatinamente escassas (que é o
caso dos aglomerados de exclusão). Conforme o autor aponta:

Os aglomerados de exclusão, mais do que espaços à parte,


claramente identificáveis, são fruto de uma condição social
extremamente precarizada, onde a construção de territórios
“sob controle” (termo redundante) ou “autônomos” se
torna muito difícil, ou completamente subordinada a
interesses alheios à população que ali se reproduz [...] No
caso dos aglomerados, maior mobilidade não está ligada à
manutenção da segurança, ao controle e mesmo à opção
diante dos circuitos de deslocamento, como no caso da elite
de grandes executivos (...) mas à falta de opção, à insegurança
(principalmente frente ao emprego) e à perda de controle
sobre seus espaços de vida (HAESBAERT, 2009, p. 327).

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Nessa perspectiva, os aglomerados de exclusão representam a maior


parte das situações em que o imigrante se insere hoje, no mundo globalizado.
Privado da construção de territórios e principalmente territorialidades,
muitas vezes se fazem sentir a insegurança e a subordinação de seu próprio
poder de decisão e de sua escolha.

A CAPILARIDADE HAITIANA NO BRASIL

Por um lado, temos as idiossincrasias do processo de diáspora, no


qual a emigração e imigração fazem parte da mesma sessão de estratégias,
como da população haitiana, que, conforme destaca Handerson (2015),
articula a mobilidade como estratégia de ascensão econômica e social.
Por outro lado, temos a articulação de uma rede de espacialidades que
constituem uma estratégia migratória por vezes até peculiar no caso dos
haitianos. Isso se dá pela profunda capilaridade demonstrada histórica e
espacialmente do haitiano na diáspora, conforme o mapa a seguir:

Fonte: Handerson (2015)

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70  Isis do Mar Marques Martins

A partir da imagem se observa uma reflexão de ordem geopolítica,


tanto no que se refere às influências de países assentados pela ideia de
soberania moderna que foram importantes para o senso do sujeito
diáspora ratificados por Handerson (2015), cujas mobilidades tendem a
percorrer tais influências e outras além (França, Estados Unidos, República
Dominicana, Cuba, Bahamas e África dentre outros) e uma reflexão de
ordem sócio-espacial, quanto no que se refere à construção de redes e
zonas políticas de apoio, espraiamento e novas estratégias diásporas.
Tal fluxo é consolidado, em primeiro lugar, a partir da intensificação
das redes de violência, seja nas comunas rurais ou no raio da capital Porto
Príncipe, seja na profunda desigualdade espacial promovida entre a capital
e as demais localidades do país. Junto a isso, as políticas de intensificação
da violência legitimada de Papa Doc e baby Doc2, bem como a ditadura de
Cedrás, já no final do século XX, contribuíram para a formação de milícias
que até hoje rescindem no Haiti e inclusive interferem no processo
democrático. Em segundo lugar, a capilaridade migratória de imigrantes
haitianos participa de uma conjuntura da política do medo de países atuantes
politicamente no Haiti, como Estados Unidos, República Dominicana,
França dentre outros que promovem uma série de entraves no sentido de
conter a mobilidade para tais países.
No tocante à capilaridade da migração de haitianos via América
do Sul, tomemos dois elementos importantes para situar não só as
potencialidades, mas as relações de poder contidas no processo, seja dos
2
Temos como exemplo uma notícia do final de 2016, momento no qual ocorreu a última
eleição no Haiti, em meio a uma série de conflitos entre milícias locais controlando as principais
favelas de Porto Príncipe até o caráter duvidoso do resultado da maior parte das eleições
haitianas neste século: “la tension est montéeaucoursdesvingt-quatredernièresheuresdansl’atte
ntedesrésultats. Des tirs d’armes automatiques ont résonné tôt, lundi matin, dans les quartiers
populaires de Belair, de Solino et de Delmas, à Port-au-Prince, la capitale. Une barricade de
pneus enflammés a interrompu la circulation sur une artère fréquentée [...]. Venus des quartiers
les plus pauvres de Port-au-Prince, des partisans de Maryse Narcisse ont manifesté en début de
semaine, dénonçant « un coup d’Etat électoral » en préparation. Rudy Hérivaux, le porte-parole
du PHTK, le parti fondé par l’ancien président Michel Martelly, avait proclamé la victoire de
Jovenel Moïse, violant la règle interdisant aux partis d’annoncer des résultats avant le CEP.”
Disponível em: http://www.lemonde.fr/ameriques/article/2016/11/29/jovenel-moise-petit-
paysan-qui-reussit-nouveau-president-haitien_5040106_3222.html.

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Haitianos no Brasil:... 71

grupos migrantes, mas sobretudo dos agentes pelos quais esses migrantes
passam. O primeiro elemento se refere ao que denominou essa política do
medo. Tal política tem pelo menos duas escalas importantes: a primeira,
a escala do migrante haitiano e o medo do fracasso no trânsito ao lugar
chegado, que se reflete na multiplicação das trajetórias e das possibilidades
de fluxos entre Américas; e, a segunda, a escala dos países cuja importância
política é intrínseca à migração, como no caso dos Estados Unidos e
da França (no sentido da primazia política e econômica para o Haiti),
e da República Dominicana (no sentido da articulação política, social
e geográfica como país vizinho). Tanto os Estados Unidos e a França
quanto a República Dominicana arrefecem em meados da década de
2010 – e no transcurso da década, como em 2017/2018 – a entrada de
haitianos em seus territórios. Isso fica claro no relato de Handerson (2015),
acompanhando o trajeto de um de seus entrevistados haitianos:

Quando James chegara a Grand Turck, decepcionara-se


com a infraestrutura, melhor dizer, a falta dela, comparando
com a República Dominicana onde residira. Segundo ele,
a Ilha “era no meio do mato” (nanrakbwa), as construções
de madeira e precárias. O fato de ser um lugar pequeno
(18 km²) nos termos dele, “era possível passar de uma ponta
da Ilha a outra em dez minutos”, já logo queria deixar o
local. Somando-se a isso os dias passando sem trabalho
ou dinheiro e o medo de serem deportados pelos policiais,
eles evitavam circular nas ruas de Grand Turck. Nessa
época, os policiais ingressavam nas casas para procurar
pessoas em situações indocumentadas para deportá-las e,
ao mesmo tempo, multavam o proprietário da casa onde
elas se abrigavam. Por conta disso, James ficara uma semana
dormindo no carro do amigo (HANDERSON, 2015,
p.207).

Essa política do medo, no qual é possível visualizar em todo o histórico


de processos emigratórios do Haiti, resulta de um projeto maior de
construção de barreiras à migração de oriundos de países pobres/e ou em
conflito e /ou discordantes da lógica global financeira (Sassen: 1991,1996,
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72  Isis do Mar Marques Martins

2016; Harvey: 2003; Brown: 2011 etc.), que acentuam as desigualdades e


intensificam as relações de poder aos quais esses países estão submetidos.
É um jogo de cartas bem marcadas.
O segundo elemento se refere aos trâmites à rota sul-americana.
Podemos apontar os acordos multilaterais entre o Mercado Comum do
Sul – Mercosul – e Américas (Acordo do México e Acordo Mercosul)
como impulsionadores à entrada de novos migrantes. Eles tonalizaram
as possibilidades de passagem para países como Equador, Colômbia,
Peru e Bolívia. Essa política vinculada à diplomacia solidária, consolidada
na gestão do governo Lula no Brasil e às resignificâncias dos percursos
migratórios devidos ao arrefecimento das fronteiras no mundo,
possibilitou novas referências para rotas migratórias. Não que as atitudes
diplomáticas da América do Sul acolheram as demandas de imigrantes em
toda a sua conjuntura, ao contrário. Como veremos adiante, as estratégias
de mobilidade do Estado podem ser o revés em relação aos dos migrantes.
Nesse ponto, Handerson destaca que:

No caso dos haitianos, há um duplo nível: 1) os agentes


estatais brasileiros, peruanos, equatorianos, franceses e
surinameses constituíram mecanismos e dispositivos de
barreiras para controlar a chegada de novos migrantes;
2) os haitianos desenvolviam novas estratégias, criando
novos circuitos e rotas migratórias para alcançar os lugares,
constituindo novos territórios da mobilidade (Faret, 2003).
O conjunto dos lugares constitutivos de um território da
mobilidade não são pontos isolados, eles se interligam através
dos circuitos e das redes de mobilidade (HANDERSON,
2015, p. 181).

A capilaridade, então, possui várias justificativas e, em muitos casos,


a estratégia de migrar para o Brasil conflita com as ações políticas adversas
a dos próprios migrantes. Não existe inimigo ou dualismo nesse processo,
é um constructo político. Essa capilaridade fica perceptível no mapa
abaixo, sobretudo considerando as rotas de haitianos na década de 2010
no Brasil e na América Latina.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017
Haitianos no Brasil:... 73

FONTE: NIEM e pesquisa de Campo. Elaboração própria.

Se, por um lado, empreende-se que essas estratégias não passam de


arranjos nos quais o imigrante não participa plenamente de suas escolhas,
ou que é uma estratégia funcional com a finalidade de participar do melhor
mercado de trabalho, é exatamente pelo constructo subjetivo e coletivo
dos migrantes haitianos em se moverem e mobilizarem suas táticas de
sobrevivência que a escolha política ressalta da possível falta de plenitude
delas. Parece cada vez mais que o discurso do trabalho é uma reprodução
da necessidade do Estado em legitimar suas estratégias conflitantes em
relação aos migrantes do que a relevância maior à mobilidade. Na realidade,
é o que oferece o trabalho – recursos, garantia de sustento e sobrevivência
– o que realmente o migrante almeja.
Nesse sentido, a globalização transforma – e progride – as relações
do capitalismo para acirrar ainda mais as diferenças e os conflitos, voltados
aos interesses que buscam ainda a tomada de porções de territórios

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


74  Isis do Mar Marques Martins

buscando mais capital. Novos dispositivos para velhas estratégias. Não


definir as barreiras de restrição, portanto, só se torna presente para as
grandes corporações atrás de promoção invariavelmente de capital.
Restringir e acirrar ainda mais a construção de muros em fronteiras,
frontiers, borders etc., é a afinação conveniente a essa liberdade induzida.

HAITIANOS NO BRASIL: REDES DE MOBILIDADE OU


AGLOMERADOS DE EXCLUSÃO?

“A gente traz sonhos, traz metas. Traz as malas nas costas querendo
vencer na vida. As pessoas acabam se aproveitando, nos fazendo passar
fome, sono.. Os meus sonhos são muito altos...”. O relato é de Abel
Marti, imigrante haitiana no Brasil desde 2011.3 Ela chegou a São Paulo,
ficou primeiro em hotéis, e a partir de um grupo de haitianos conheceu
a Casa do Migrante, onde permaneceu 22 dias instalada, recorrendo às
orientações disponíveis (documentação, busca por emprego, as palestras e
a própria estadia). Conseguiu um emprego pela mediação do eixo trabalho
em uma empresa paranaense, onde ficou por um mês. Mas, segundo ela,
“lá brasileiro fica em um lugar diferente dos haitianos. Trabalho muito
difícil, então voltei pra São Paulo...”. Abel retornou cerca de quatro vezes
na Missão Paz até se fixar no trabalho presente em 2014: “trabalhei
em restaurante, ganhando quinhentos reais pagando quatrocentos de
aluguel... Conseguiram trabalho que seria de babá, mas cheguei lá, era
como doméstica. Agora estou há um ano e nove meses como babá de
uma procuradora”.
O vaivém de Abel não é uma exceção entre imigrantes nos
recentes fluxos. Na tentativa de estabelecer não somente um local, mas
principalmente uma atividade que gere um retorno para viver e enviar
recursos ao seu grupo, a surpresa de encontrar um país cujas desigualdades

3
Em novembro de 2014 ocorreu a terceira edição do Seminário Vozes e Olhares Cruzados,
que ocorre anualmente na Missão Paz, com vistas a trocar experiências entre imigrantes e a
própria entidade. O público é composto por pesquisadores na área, outras entidades, bem
como representantes cuja temática abordada é migração e migrantes. É neste evento que
ocorreu a fala de Abel.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


Haitianos no Brasil:... 75

e relações sociais permeiam uma série de contradições impulsiona, por um


lado, a identificação e, por outro, a desilusão. A procura por melhores
condições, vinculado a sistemática reivindicação – em particular aos
haitianos, a mobilização de entidades públicas, filantrópicas e/ou privadas
a estes recentes fluxos, a política solidária a partir do terremoto, dentre
outros elementos –, trazem peculiaridades às estratégias de mobilidade
de haitianos no Brasil. Mas é também na capilaridade e nas reivindicações
locais, como as de Abel ao retornar a São Paulo até encontrar um trabalho
que abarcasse suas demandas, nas consoantes denúncias aos trabalhos que
ferem a dignidade humana, ao vaivém de migrantes e na consolidação de
grupos imigrantes que promovem novas redes sociais de migração, que as
estratégias de permanência se destacam.
As estratégias de permanência possuem três elementos intrínsecos
à sua consolidação. O primeiro elemento consiste nos agenciamentos dos
migrantes, isto é, no conjunto de práticas e discursos dos imigrantes que
os levam até o Brasil e que os fazem se mobilizar pelo país. A capilaridade,
aqui, é um dos reflexos de suas estratégias de mobilidade, tal qual também é
de permanência. Entretanto, verifica-se que as estratégias de permanência
estão numa escala menor que as de mobilidade nesse sentido. As relações
entre o local são muito mais definidas e definem também o próximo passo
do migrante. As redes sociais de migração são de profunda importância no
desenrolar destas estratégias.
Um dos suportes de apoio e savoir-faire (saber-fazer) dos imigrantes
haitianos é o sentido dado ao encontro e à promoção de diálogo via o que
se denomina por baz pelos mesmos. No baz, os encontros estabelecem
primeiramente uma territorialidade, já que os pontos de determinado
grupo serão sempre em um local fixo, escolhido pelos imigrantes. Após,
eles aportam novos contatos e novas redes de imigrantes já no Brasil ou
ao chegar. Conforme Handerson (2015), em ocasião de conversa com
haitiano na Guiana Francesa:

Em 2011, na frente da casa de Toussaint em Cabassou,


alguns haitianos começaram a reunir-se no local e pediram
para ele se podiam sentar lá. Com o tempo, outros foram

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76  Isis do Mar Marques Martins

chegando, um trazia outro e assim a baz foi formando.


Quando perguntei a Toussaint o que significava baz, ele
respondeu: “Bazé quando dois, três ou quatro pessoas se
reúnem, aí formam uma baz. Baz não se faz com uma pessoa,
deve ter mais de um” (HANDERSON, 2015, p.258).

Ao mesmo tempo, esse território e essa territorialidade


(HAESPAERT, 2007) podem se deslocar conforme os acontecimentos
e as disputas do determinado lugar. O mais importante é que o poder de
mobilização é reforçado a partir dessas territorialidades, e fundamentalmente
na promoção de territorialidades, das relações de poder e das formações
de espaços, sejam de diálogo ou de enfrentamento promovidos. No que
são promovidos, a insurgência em relação ao estabelecido e contrário aos
agenciamentos dos imigrantes se torna mais frágil.

Baz (e aqui mais uma vez nos referimos a todas elas


evidentemente, não só às bazamè, as bases armadas) é
um lugar de pertencimento e de proteção, um espaço de
sociabilidade (basicamente masculina, como dissemos,
embora as lideranças femininas possam falar também a
linguagem da baz), ao mesmo tempo um espaço concreto
localizado no território e um espaço moral mais ou menos
abstrato, cujas fronteiras e escalas são, como já vimos,
móveis e maleáveis (NEIBURG, NICAISE E BRAUM,
apud HANDERSON, 2015, p. 262).

Nesse sentido, a fragilidade dos agenciamentos, das práticas e dos


discursos dos outros que, como vimos, apontam o migrante como um
problema, acentuam as disparidades, mas também a consolidação de
um debate e de um enfrentamento à realidade vivida por estes mesmos
imigrantes. Do enfrentamento e da discussão é possível a promoção de
políticas públicas ou de inclusão social para migrantes que, assim, são
postas à mesa.
O segundo elemento das estratégias de permanência se refere
aos agenciamentos dos outros, isto é, as ações que acentuaram ou

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


Haitianos no Brasil:... 77

escamotearam a vinda de imigrantes. Vários são os aspectos que


possibilitaram a mobilidade para o Brasil. É notório que o terremoto foi
um vetor de entrada, assim como a aparente resposta do Brasil à entrada
de haitianos. Mas foi também a justificativa ilusória de contratar imigrantes
em trabalhos menos qualificados, tal como Handerson (2015) aponta:

O terremoto do Haiti e a situação empobrecida do país


sensibilizaram algumas pessoas da população brasileira que
veem na oferta do emprego a um haitiano uma maneira
de ajudar o país e os próprios haitianos. A condição do
ser migrante coloca o indivíduo numa situação de aceitar
o trabalho mais penoso e menos remunerado. Mas, a
experiência haitiana mostra ser mais complexa essa situação
visto os haitianos reclamarem do salário e deixarem seus
empregos para buscarem outros por causa de baixos salários,
da precariedade e dos maus tratos nos locais de trabalho.
Isto desmistifica a ideia de os migrantes serem passivos
quanto aos baixos salários, ou reféns em trabalhos menos
qualificados e precários. (HANDERSON, 2015, p.167).

Os desdobramentos dos encontros e o formato coletivo da diáspora


haitiana permitem confrontar essa passividade na relação trabalho. Outro
aspecto que dá poder de mobilização é o fato de muitas organizações de
apoio aos migrantes estimularam a criação de entidades pelos próprios, e isso
ocorreu rapidamente pelos migrantes haitianos. Conforme vimos a partir
de Handerson (2015), as Associações de Imigrantes Haitianos espalhados
pelo país são inúmeras. Posteriormente discutir-se-á essa questão mais a
fundo, mas vale adiantar o caráter associativista dos imigrantes haitianos,
que permitem uma maior consolidação das estratégias de permanência.
No sentido da precarização do trabalho, destaca-se o trabalho
de Magalhães e Baeninger (2016) desvendando os agenciamentos das
empresas contratantes de imigrantes, em particular no estado de Santa
Catarina, no qual se demonstra a superexploração destes, ainda que sob os
básicos direitos trabalhistas.

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78  Isis do Mar Marques Martins

Os primeiros haitianos em Balneário Camboriú trabalhavam


como garis no município e no porto de Itajaí. Alguns haviam
sido recrutados no Acre para trabalhar na construção civil
em Navegantes, mas os atrativos em Balneário Camboriú
(especialmente a maior oferta de emprego e acesso a
serviços e a proximidade com os haitianos residentes em
Balneário Camboriú) rapidamente os atraíram. Realizavam,
portanto, tarefas mais intensas no uso da força física, menos
qualificadas. Foi apenas posteriormente que os trabalhadores
haitianos dirigiram-se ao trabalho nos outros setores,
principalmente o de supermercados. Nos supermercados,
desempenham funções relacionadas ao trabalho no setor
de cozinha (como cozinheiros dos próprios colegas de
trabalho, que fazem suas refeições nos supermercados),
estoque e reposição de produtos, horti-fruti e açougue.
Não há registro de trabalhadores haitianos em funções de
gerência ou mesmo de caixa de supermercados na cidade
de Balneário Camboriú (MAGALHÃES E BAENINGER,
2016, p.10).

A citada Abel, por exemplo, chegou a trabalhar em uma oficina de


costura com vários outros haitianos, cuja proprietária ofertou empregos à
Missão de Paz, mas omitiu as reais condições no qual intencionava contratá-
los. Tomar um posicionamento claro, ou minimamente ter consciência
da superexploração do trabalho, é crucial na produção de estratégias de
permanência. Para tanto, é preciso ter claro os agenciamentos dos outros,
sobretudo quando eles não convergem aos dos imigrantes.
Nesse ínterim, o terceiro elemento consiste na indissociação das
estratégias de mobilidade. Na tentativa de sistematizar estratégias de
mobilidade e de permanência, é preciso deixar claro que uma não sobrepõe
a outra, nem uma deixa de existir na formação da outra – elas operam
concomitantemente. É importante ressaltar também que a compreensão
das estratégias de permanência não cessa as estratégias de mobilidade,
muito menos que o imigrante se torna impedido de se mobilizar ao
promover estratégias de permanência. O fato de promover outros fluxos
e consolidar novas rotas, como no caso dos imigrantes haitianos, não

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


Haitianos no Brasil:... 79

caracteriza o fim de suas estratégias de permanência no Brasil. Seus


agenciamentos concernem à permanência e à mobilidade a partir de seu
bem-estar e bem-viver.
As estratégias de permanência são coladas às estratégias de mobilidade
de imigrantes. Vale ressaltar a necessidade dessas estratégias no tocante à
inclusão destes imigrantes e de salientar, igualmente, que eles possuem
um projeto – no caso dos haitianos um projeto coletivo – de melhoria
de suas condições. Tais estratégias revelam, portanto, a necessidade de
debates quanto aos agenciamentos, práticas e discursos entre os sujeitos e
os processos revelados na mobilidade. Sujeitos e processos esses que nos
incluem, como migrantes ou como produtores do espaço.
O caso do Brasil é peculiar quanto às políticas de mobilidade. Embora
haja um consenso discursivo de abertura das portas aos estrangeiros, os
atravessamentos são contraditórios. No caso dos haitianos no Brasil, por
exemplo, da entrada pela fronteira boliviana e peruana, a entrada pelo
Sudeste e pelo Sul, passando pelas suas condições de permanência no
país, são deslocamentos marcados por um longo e cansativo processo de
inserção, tanto para com a sociedade local quanto aos dispositivos políticos
que constituem o lugar de chegada, mas ratificam diferenças e formam
lócus de diferenças propositais. Um exemplo é a condição entre o legal
e o ilegal, e a garantia de sobrevivência no lugar em que se instala, onde
na maioria das vezes, e por várias razões, vão para as periferias. Também,
a falta de diálogo recorrente com o poder local em garantir o acesso à
“cidadania” em amplo sentido. Da mesma maneira que os muros físicos,
as fronteiras da política que apartam e ratificam a segregação e o discurso
de “invasão” são partes desse processo apresentado.
Afinal, a imigração haitiana no Brasil reflete a potencialidade da
formação de novas redes e ao questionamento ao instituído que diverge
com a realidade sócio-espacial dos migrantes ou ela se enquadra na
formação de aglomerados de exclusão?
Vale ressaltar que os aglomerados de exclusão não são fixos, eles
são temporários e podem ser transformados em novas redes e ter novas
territorialidades. Mas ainda parece um pouco nebuloso esse processo, ao
analisarmos mais a fundo um fluxo como o dos haitianos, profundamente
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017
80  Isis do Mar Marques Martins

marcado pela capilaridade desde o início, até que ponto eles contemplam
sua espacialização de maneira subordinada ou até que ponto a capilaridade
deixa de potencializar politicamente o papel de suas escolhas em sair do
Haiti.
A reflexão das relações de poder imbricadas nos espaços formando
novos territórios possui também o caráter dinamizador de novas
territorialidades construídas nestes, que muitas vezes divergem dessas
relações de poder. Parece, portanto, que a mobilidade haitiana no Brasil
anunciou uma série de transformações na política brasileira, tirou da zona
de conforto uma série de debates e perspectivas no qual o instituído era o
resoluto, e propiciou novas fontes de relação entre imigrantes, em várias
escalas.
Contudo, os imigrantes haitianos continuam vítimas de uma série
de ações, sejam discursos racistas, ou superexploração escusa – muitos
alegam que visivelmente trabalham mais que funcionários locais em
fábricas ou empresas no qual empregam imigrantes, ainda que com os
mesmos direitos e ganhando o mesmo salário – ou movimentam um
mercado imobiliário alternativo das periferias pela falta de documentos
exigidos em um aluguel regularizado (como é o caso de boa parte dos
haitianos que vivem na serra sul-rio-grandense).
Entende-se que essa apreensão da constituição de territórios-rede
por haitianos no Brasil não é e nem deve ser maniqueísta, e talvez esse
seja o caráter nebuloso da ideia de aglomerados de exclusão. É do próprio
vaivém característico do migrante, inclusive na forma de compreender e
agir no espaço. Da maneira em que é subordinado a determinadas decisões,
as atitudes e os conflitos são postos e são cotidianamente convertidos em
luta sócio-espacial.
A corrupção, a violência e a dependência são as três marcas
profundas no Haiti, e são as marcas que romperam outras fissuras com
o agravamento de caráter geomorfológico – o terremoto é uma ponte
para tal – donde qualquer problema de ordem ambiental se torna mais
grave se unido a problemas muito mais abrangentes de natureza política
e socioeconômica. Por isso, além de ressaltar o terremoto como um dos
motivos para a intensificação da saída de haitianos, também é preciso

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


Haitianos no Brasil:... 81

visualizarmos o conjunto de fatores no qual o terremoto é a ponta, ou


seja, o caráter das estratégias de mobilidade, aliado aos agenciamentos da
imigração, que se tornam fragmentos de um enredo muito bem amarrado.
Não por acaso as múltiplas táticas para imigrar, costurando a cada
impossibilidade de realizar o traço da diáspora em novas rotas, novos
trânsitos e perspectivas. Não por acaso, também, a resignação em atravessar
as adversidades e as relações exploratórias dos trajetos perpetrados, a fim de
evitar confusão, como muitos dos haitianos em que conversei apontaram.
Não por acaso, por fim, a diversidade de formas de expressão no qual eles
conseguiram se posicionar no Brasil, principalmente nas associações de
imigrantes espalhadas pelo país.
Entendemos que estratégias de mobilidade não são divergentes
ou contraditórias. Isso quer dizer que tais estratégias participam de uma
coetaneidade, ou seja, elas convivem juntas no tocante ao fazer migrante
e ao ser migrante. Nesse sentido, na permanência coexiste a mobilidade
e vice-versa. E essa coexistência fica clara na mobilidade haitiana para o
Brasil, quando os agenciamentos perpetrados pelos imigrantes vêm e voltam
conforme a emergência de suas próprias necessidades. Em trabalhos de
campo no Acre, Rio Grande do Sul e São Paulo e nas conversas com os
imigrantes foi possível perceber um conhecimento dimensionado do Brasil
e suas principais características quanto a ofertas de trabalho e a condições
de melhoria de vida, muito pelos emaranhados de redes existentes a partir
de outros grupos que chegaram antes.
É válido refletirmos, principalmente, sobre os desencontros entre
o discurso do Estado, que em grande medida vincula a relação trabalho
das intenções de trabalho dos migrantes haitianos. Toda construção e
sensibilidade em pesquisas que apontam o fluxo de haitianos no Brasil
apontam a questão do trabalho como preponderante. Parece-nos, contudo,
que o salutar é o trabalho para a melhoria das condições de vida de um
grupo, de uma família e dos próprios migrantes que chegam ao Brasil.

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82  Isis do Mar Marques Martins

PARA NÃO CONCLUIR: NOVAS ESPACIALIDADES, VELHOS


PROBLEMAS

Na imigração de haitianos para o Brasil, não somente a busca e


a tentativa da ação diáspora são apontadas, como – e principalmente –
os mecanismos que essa prática de ser diáspora são espraiadas conforme
estratégias de um grupo, de um apoio de toda uma família, e ainda que
novas redes de antigos desconhecidos que se encontram vão surgindo, as
famílias, no seu sentido mais amplo, vão se comunicando e se articulando
a partir da migração. Esse sentido diaspórico e parte dessa ação que era
um desacordo das próprias articulações políticas entre grupos minoritários
urbanos e ricos se tornam uma ação, um verbo a partir do migrar de grupos
pobres, das zonas rurais.
Mas as assimetrias de poder acontecem. O desacordo das políticas
de migração e das heranças sociais produzem e reproduzem estigmas
em relação à migração e ao migrante, e isso aliado a um ideal de um
Brasil dotado de inúmeras possibilidades e escolhas (representatividades
construídas ainda no Haiti). A entrada recente de imigrantes no Brasil, tal
o caso dos haitianos, mas também senegaleses, ganeses, angolanos, sírios,
dominicanos, equatorianos, colombianos, peruanos, bolivianos, e muitos
outros, possuem múltiplas facetas que questionam essas dualidades da
política e da constituição social que trazem como reflexo dessas políticas.
Não só pelo fato do país estar em um contexto no qual faz jus aos anos de
tentativa de progressão ao seu crescimento – o que acarreta, tal como em
países chamados desenvolvimentistas – na entrada de imigrantes pobres
à procura de qualidade de vida, mas, também, porque suas relações não
foram e nunca serão duais.
Isso implica dizer que a compreensão da imigração haitiana para o
Brasil envolve uma multiplicidade de agenciamentos, uma pluralidade de
eventos cujo trabalho é um elemento, e não o meio e o fim para chegar
ao processo desencadeador da emigração haitiana. Daí as estratégias
de permanência e de mobilidade possibilitarem a compreensão dessa
multiplicidade, na mobilidade enquanto tática política de mudança,
desencadeada por fatores tão plurais quanto a própria mobilidade.

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Haitianos no Brasil:... 83

Da mesma maneira, a capilaridade envolvendo processos sócio-


espaciais reformulam práticas espaciais, e promovem novas territorialidades
para com imigrantes haitianos bem como aos brasileiros. Embora as
escalas dos acontecimentos permeiam uma série de implicações, é preciso
não tornar o imigrante um problema, e construir políticas que englobem,
de fato, as perspectivas, as territorialidades e as práticas espaciais desses
imigrantes o caminho real e efetivo.
A capilaridade dos haitianos, bem como as transformações políticas
imbricadas nessa capilaridade, pode ser considerada territórios-rede, assim
como suas práticas políticas de caráter associativo, na formação de uma
política de base para assistência e acolhimento a chegada e permanência
de imigrantes haitianos no Brasil. Da mesma maneira, o preconceito, a
subordinação dentre outros processos no qual o espaço se restringe, bem
como suas práticas sócio-espaciais ingeridas, muitas vezes alheiamente por
esses imigrantes, precisam ser repensadas também enquanto políticas de
acesso pleno à cidadania.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2011.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios”
à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
HANDERSON, Joseph. Diáspora: As dinâmicas da mobilidade haitiana
no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa. Rio de Janeiro, Tese de
doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional,
2015.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; BAENINGER, Rosana. Trabalhadores
Imigrantes: haitianos e haitianas em Santa Catarina – SC. In.:
VIICongreso de la Asociación Latino-Americana de Población e XX Encontro
Nacional de Estudos Populaiconais, 2016.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


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SASSEN, Saskia. Expulsions: brutality and complexity in the global


economy. Cambridge: Harvard University Press, 2016.
______ Losing control? Sovereignty in an age of globalization. New York:
Columbia University Press, 1996.
______ The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton
University Press, 1991.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 63-84, fev/dez. 2017


BRANQUITUDE E REPRESENTAÇÕES SOBRE
IMIGRANTES HAITIANOS NO
OESTE CATARINENSE

Claudete Gomes Soares1


Neuri José Andreola2

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir princípios e ideias
norteadoras de uma pesquisa em andamento sobre os significados atribuídos à presença
haitiana no oeste catarinense cuja constituição local está fortemente associada à identidade
branca, marcadamente italiana e alemã, em prejuízo de outras identidades: caboclos e
povos indígenas. O objetivo é evidenciar como essa branquitude hegemônica tem sido
acionada nas relações entre moradores locais e imigrantes haitianos. Como forma de
organizar os caminhos da pesquisa, revisitamos as categorias “preconceito de marca”
e “preconceito de origem” cunhadas por Oracy Nogueira e acionamos as categorias de
“estabelecidos” e “outsiders” de Elias e Scotson (2000). O trabalho de campo tem mostrado
um processo de estereotipagem racial (STUART HALL, 2016) dos imigrantes haitianos
pelos moradores brasileiros, fundamentado na suposta superioridade da origem europeia.
PALAVRAS-CHAVE: Relações Raciais; Imigração; Haiti; Santa Catarina.

WHITENESS AND REPRESENTATIONS ON


HAITIAN IMMIGRANTS IN THE WEST OF
SANTA CATARINA
1
É doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas, professora do curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul e coordenadora do NEABI- UFFS-
CH. É líder do grupo de pesquisa Cultura Política e Diversidade, atuando na linha de pesquisa
Política, Gênero e Identidade. E-mail: [email protected]
2
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Chapecó.
E-mail: [email protected]. Autor da monografia de trabalho de conclusão de curso
“Brasileiros e estrangeiros: as relações de sociabilidade entre o grupo de brancos e o grupo de
negros em um bairro em Chapecó”.
86  Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola

ABSTRACT: This paper aims at presenting and discussing guiding principles and ideas
of an ongoing research regarding the meanings assigned to Haitian presence in the west
area of Santa Catarina, which local constitution is strongly associated to Caucasian identity,
specially Italian and German over other identities: “caboclos” and indigenous groups.
The goal is to make evident how this hegemonic whiteness have been trigged in the
social relations between local habitants and Haitian immigrants. As a mean for organizing
the research path, we have revisited “mark prejudice” and “origin prejudice” categories,
named by Oracy Nogueira, and we have used Elias e Scotson (2000) “established” and
“outsiders” categories. The fieldwork has been showing a process of racial stereotyping
(STUART HALL, 2016) of Haitian immigrants by Brazilian residents, built on the
supposed superiority of the European origin.
KEYWORDS: Racial Relations; Immigration; Haiti; Santa Catarina.

INTRODUÇÃO

Esse artigo é resultado de um esforço de interpretação dos


significados atribuídos à presença haitiana no oeste catarinense.3 A presença
de imigrantes haitianos em uma região do Brasil hegemonicamente branca
trouxe como desafio a compreensão da relação de interdependência entre
o grupo de trabalhadores estrangeiros, negros, com o grupo de brasileiros,
de maioria branca, a partir da ideia de interdependência entre grupos,
explorada por Norbert Elias e John Scotson no livro “Estabelecidos e
Outsiders” (2000). Esse processo de interdependência grupal local tem sido
marcado por representações e discursos construídos a partir da diferença
racial, repertoriados no processo colonial brasileiro, na história do estado
de Santa Catarina e do oeste catarinense como territórios com poucas
ligações com a experiência da escravidão no Brasil.
Apesar de a região oeste catarinense contar também com a
presença de senegaleses que poderiam fazer parte dessa análise, nossas
3
Os dados e as discussões apresentados nesse artigo são parte dos resultados parciais do
projeto “Negritude e Branquidade: uma análise da integração haitiana no Oeste Catarinense”
com apoio financeiro da FAPESC - Fundação de Amparo à pesquisa e inovação do estado
de Santa Catarina - Edital de chamada pública FAPESC nº 07/2015. A pesquisa conta com
a colaboração das bolsistas Taíse Staudt e Vivian Stefany Ribeiro. A pesquisa também conta
com a participação da estudante Eliziane Tamanho Oliverira que desenvolveu um trabalho de
monografia sobre a relação entre estudantes haitianos e brasileiros no contexto da Universidade
Federal da Fronteira Sul, no compus Chapecó.
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Branquitudes e representações... 87

considerações nesse artigo terão como foco a integração haitiana, em razão


desse grupo de imigrante estrangeiro estar no contexto local desde 2011 e
ser em número maior do que os imigrantes senegaleses. Pesquisas futuras
poderão abarcar os imigrantes senegaleses, imersos no mesmo processo
de interdependência grupal. A escolha dos haitianos como ponto de
partida da pesquisa foi uma consequência do fato de eles serem em maior
número na cidade e contarem com maiores recursos institucionais para a
sua integração. É importante ressaltar os desdobramentos da presença do
Brasil no Haiti, por meio da Missão das Nações Unidas para Estabilizar
o Haiti (MINUSTAH) e acordos firmados, depois do terremoto de 2010,
que preveem a regularização da situação de trabalhadores e estudantes
haitianos no Brasil.
Em um primeiro momento, a entrada dos imigrantes haitianos
em solo brasileiro foi respaldada pelo Estatuto dos Refugiados (Lei
9.474 de 22 de julho de 1997). A partir de 2012, um novo marco legal
foi constituído especificamente para normatizar a entrada de imigrantes
haitianos no Brasil, trata-se da Instrução Normativa 97/2012, aprovada
pelo Conselho Nacional de Imigração, que resolve atribuir um caráter
diferenciado ao nacional do Haiti, concedendo-lhe o visto humanitário
(Resolução Normativa CNIg nº 97 de 12/01/2012).
Nesse artigo pretendemos apresentar e discutir alguns elementos
que têm norteado a pesquisa em andamento que tem como objetivo
desvendar as relações de poder, status e prestígio, presentes nos processos
de interdependência entre os grupos locais e estrangeiros. A integração
desses imigrantes no mercado de trabalho (frigoríficos, construção
civil, comércio local), na educação - por meio do Programa Pro-Haiti-
UFFS, que criou uma política de vagas suplementares para haitiano na
Universidade Federal da Fronteira Sul (UNIVERSIDADE FEDERAL
DA FRONTEIRA SUL, 2013) - e nas formas de sociabilidade cotidianas
tem sido analisada tendo em consideração as relações de interdependência
entre brancos e não-brancos no marco de um regime racializado de
representação, produtor de estereótipos (HALL, 2016). A pesquisa tem
se desenvolvido por meio de observação participante, entrevistas, grupos
de discussão, conversas informais, levantamento de dados na imprensa
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88  Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola

local. Com o uso desses recursos, da pesquisa qualitativa, procura-se


verificar como as relações e representações mediadas por categorias raciais
e étnicas, construídas em um processo de longa duração (ELIAS, 1994),
são acionadas, revisitadas, atualizadas, na interdependência de haitianos e
a população local, nesse curto período de presença haitiana na região oeste
catarinense.
O mito fundador do oeste catarinense tem como protagonista
o imigrante europeu de origem europeia, imaginário que encontra
correspondência nos dados censitários do IBGE. De acordo com os dados
do perfil de cor do censo do IBGE de 2010 para a cidade de Chapecó:
76,6% da população é branca; 19,2% parda; 2,6% preta; 0,7%, indígena e
0,5% amarela.
Com um contraponto a essa realidade, os imigrantes do presente
têm a negritude de seus corpos como marcadores da diferença. É
forçoso indagar de que forma esse corpo negro é significado em um
contexto formado majoritariamente por brancos e constituído por
meio da hegemonia da branquitude4, caracterizada pela atribuição de
maior valor social e prestígio ao grupo branco e pela associação desse
grupo ao progresso, trabalho, desenvolvimento e civilização. É possível
encontrar na figuração específica das relações entre os moradores locais
e estrangeiros haitianos em Chapecó e região atualizações das relações
de poder entre brancos e não-brancos construídas no marco histórico da
colonização e da escravidão moderna e do racismo estrutural que organiza
lugares de brancos e não brancos na sociedade brasileira, com toques de
particularidades regionais.
Diante dessa problemática, uma questão que se coloca é a do lugar
do estado de Santa Catarina na construção das representações e discursos
marcados pela diferença racial no contexto da sociedade brasileira. A
representação dominante sobre a formação social do estado catarinense
4
Nesse texto estamos usando os termos branquitude e branquidade como sinônimos, ambos
fazem referência ao lugar de poder e privilégio associados ao fenótipo branco, euroreferenciado.
Estudos têm utilizado o termo com o mesmo significado. Os exemplos são: o livro organizado
por Vron Ware (2004), cujo título na tradução brasileira é “Branquidade: identidade branca e
multiculturalismo”, e o trabalho de Maria Aparecida Bento (2014), que têm utilizado o termo
branquidade; enquanto Lia Vainer Schucman (2013) tem utilizado o termo branquitude.
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Branquitudes e representações... 89

coloca-o fora da narrativa que caracteriza o Brasil como mestiço e associado


à cultura ibérica. O estado de Santa Catarina teria se constituído a partir
do seu distanciamento do centro da economia colonial e nele, portanto, a
presença africana e negra e as relações de poder mediadas pela racialização
de povos seriam mínimas ou não seriam significativas.
As entrevistas utilizadas nesse artigo foram realizadas pelo graduado
em Ciências Sociais (UFFS) Neuri José Andreola, no segundo semestre
de 2015, durante a realização de seu Trabalho de Conclusão de Curso
intitulado Brasileiros e estrangeiros: as relações de sociabilidade entre o grupo de
brancos e o grupo de negros em um bairro em Chapecó. Os nomes utilizados para
identificar os entrevistados são fictícios.

BRANQUITUDE E PRESENÇA NEGRA NO ESTADO DE SANTA


CATARINA

É importante sinalizar que um país da dimensão territorial do Brasil


experimentou e experimenta diferentes configurações demográficas que
foram condicionadas pelos fluxos econômicos, intensidade da presença do
trabalho escravo, ocupação do território e a permanência ou extermínio
das populações originárias.
O estado de Santa Catarina é o estado brasileiro com maior
percentual de população identificada como branca, 84% de sua população,
segundo dados do censo do IBGE de 2010. Segundo Ilka Boaventura
Leite (1996, p.39), isso faz com que ele e a região sul, de maneira mais
ampla, sejam vistos como uma “Europa incrustada no Brasil” e como
“lócus do projeto imigrantista implantado desde meados do século XIX”.
É preciso lembrar que entre o final do século XIX e começo do
século XX o projeto desenhado pelas elites e pelo estado brasileiro para o
Brasil era o do branqueamento da nação, por meio do incentivo à imigração
europeia, especialmente, alemã e italiana. Schwarcz (1995) mostra como as
oscilações a que esteve submetida a identidade nacional brasileira giraram
em torno de uma mestiçagem particular, que de racial e detratora, se fez
moral e nacional.

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90  Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola

A primeira apropriação da particularidade racial como definidora de


Brasil se deu sob a influência das teorias científicas raciais do século XIX.
Alguns pensadores, autorizados pela legitimidade científica, passaram a
defender a ideia de diferenças entre as pessoas, enfatizando a existência
de raças diversas. Essa discussão influenciou a interpretação do Brasil
no que tangia as expectativas de sucesso e fracasso da jovem nação. Na
lógica do determinismo racial, que substituíra a ideia de indivíduos iguais,
presente no liberalismo clássico, pela de grupo, os indivíduos passaram
a ser entendidos e julgados pelos traços físicos e morais de sua raça de
origem.
O ideal de uma nação branca levou as elites a rechaçarem tudo o
que pudesse lembrar a presença negra na definição do que era o Brasil e a
criar a expectativa de que em razão da diminuição da entrada de africanos,
com fim da escravidão, e com o incentivo do Estado à presença europeia, a
transformação do Brasil em uma nação branca era uma questão de tempo:

A defesa do branqueamento foi unânime, porém diversificada


na sua fundamentação. Passou por diversos argumentos,
mas principalmente pela crença de que seu sucesso iria ser
conseguido pela via do Sul, quer pela presença irrelevante
de negros, que pela expectativa de intensa mestiçagem entre
“europeus brancos imigrantes” (LEITE, 1996, p.39).

Na década de 1930, as representações sobre as diferenças raciais


são reconfiguradas em um novo projeto de identidade nacional pautado
nas raízes brasileiras, o que levou à incorporação do negro no nacional.
Ele deixa de ser “o problema brasileiro” para ser aquilo que particulariza a
nação, que lhe confere elementos de identificação, não mais como negro,
mas como mestiço. Os referenciais biológicos, até então utilizados para se
pensar as relações raciais, são minimizados e substituídos por argumentos
de ordem econômica e cultural (SCHWARCZ, 1995). É nesse contexto
que se define a política racial brasileira: sustentada ideologicamente pelo
mito da democracia racial, sistematizado por Freyre (1995) e legitimado
pelo Estado; fundamentada em uma visão romantizada sobre as relações
sociais no período da escravidão e nas especificidades da cultura ibérica
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Branquitudes e representações... 91

no contato com outros povos. O mito de fundação do Brasil, como o


encontro das três raças (ORTIZ, 1985), teve como consequência, para
a população negra e indígena, o silenciamento sobre as permanências e
atualizações das relações de poder com base na diferença racial.
Apesar do novo projeto de identidade nacional ter como base a
incorporação simbólica dos elementos culturais associados à herança
africana, a política de Estado de Vargas mantinha-se alinhada ao o projeto
de branqueamento. É o que nos mostra Fábio Koifman (2012) em sua
análise sobre o serviço de vistos do Ministério da Justiça e Negócios
Interiores, no período de 1941-1945, caracterizado por ele como um
nacionalismo de caráter xenófobo do Estado Novo. A tese de Koifman
é a de que Vargas interferiu direta e impositivamente na política de
imigração de forma a restringir grupos que não se encaixassem em seu
projeto nacionalista. Segundo o autor, a matriz étnica, cultural e religiosa
dos brasileiros defendida por Vargas era a portuguesa, o que teve como
consequência uma política de imigração livre para todos os portugueses,
considerados imigrantes desejáveis e um fechamento de portas para outros
povos europeus, em razão das ameaças políticas que podiam significar
para o Estado Novo. Além do motivo político, acreditava-se ainda que
os portugueses se casavam mais com os não-brancos, favorecendo,
portanto, o projeto do Brasil mestiço. Segundo Koifman, “os judeus
eram considerados ‘inassimiláveis’ e ‘infusíveis’, pois dessa maneira eram
classificados como indesejáveis” (KOIFMAN, 2012, posição 529, kindle).
Além dos judeus, na lista dos indesejáveis estavam os orientais, negros,
indígenas e todos os considerados não brancos, bem como pessoas com
deficiência e homens e mulheres fora da idade produtiva.
É por meio desses dois contextos – o projeto deliberado de
branqueamento do Brasil e do projeto de mestiçagem, fundamentado na
cultura ibérica, que devemos procurar entender o discurso hegemônico
sobre o estado de Santa Catarina como a “Europa encrustada no Brasil”,
fundamentado na assertiva de uma relação distanciada desse estado
com a escravidão e, portanto, com a herança africana. O dinamismo
econômico do estado tem sido frequentemente associado à presença de
colônias de imigrantes europeus: alemães e italianos e poloneses, depois
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92  Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola

de 1850. Contudo, um movimento recente na historiografia brasileira vem


mostrando o caráter ideológico e marcado racialmente dessa representação,
que tem como consequência negar a presença negra no estado.
É essa a orientação que encontramos nos trabalhos de Beatriz
Mamigonian (2006), Paulino Cardoso (2007) e Ilka Boaventura Leite
(1996). Ao se referir à história de Florianópolis, Mamigonian contesta essa
representação. Segundo ela, se é verdade que a economia da Ilha e do
Litoral não estavam fundadas na produção para o mercado externo, por
meio dos latifúndios, muito das atividades econômicas da Ilha dependiam
do trabalho escravo: “não podem ser vistas com desprezíveis as atividades
econômicas que se sustentavam sobre a escravização de algo entre um
quarto e um terço da população na primeira metade do século XIX”
(MAMIGONIAN, 2006, p.5). A autora destaca uma significativa presença
de africanos escravizados em torno do estabelecimento de armações
baleeiras, as “grandes unidades escravistas no litoral catarinense”. Também
Ilka Leite enfatiza a invisibilidade do negro em Santa Catarina como
resultado de um olhar colonialista que minimizou a presença de africanos
ao tomar a economia voltada para o mercado externo como modelo.

Assiste-se, portanto, desde o século XIX, tanto nas práticas


como nas representações ao branqueamento do Sul. Além
de ser forçada pela historiografia, a população descendente
de africanos vai se tornando proporcionalmente menor no
quadro do crescimento cada vez maior dos descendentes
europeus – confirmando, portanto, o sucesso da política
imigratória e da ideologia racista (LEITE, 1996, p.42).

A recuperação dessa percepção hegemônica sobre o desenvolvimento


do estado de Santa Catarina é um importante elemento da análise na
integração dos haitianos na região oeste catarinense, pois transforma a
presença haitiana em um contrapondo negro à hegemonia branca.
A vinda de haitianos para o Brasil é resultado de uma série de
fatores relacionados à experiência do Haiti como colônia francesa e
ao seu processo de independência marcado por conflitos intensos e às
sanções econômicas dele derivadas; às intervenções dos Estados Unidos
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Branquitudes e representações... 93

no país; e às experiências políticas internas marcadas por golpes de estado


e governos ditatoriais. Além das catástrofes naturais, que têm atingido o
país. De acordo com Magalhães e Baeninger (2016), 1.134.000 haitianos
vivem foram do Haiti, o que corresponde a 11,05% da população haitiana.
A tese dos autores é a de que esse fluxo migratório intenso se explica
pela dependência de muitas famílias que vivem no Haiti das remessas
de recursos dos haitianos que estão fora do país. O que os autores
denominam de “dependência de remessas”. Em sua tese de doutorado,
Magalhães (2017, p.197) aponta que o estado de Santa Catarina era em
2014 “o estado que possuía o maior volume de imigrantes haitianos como
também o estado que mais admitiu trabalhadores desta nacionalidade”.

RACIALIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO OESTE CATARINENSE

A cidade de Chapecó, principal cidade da região oeste catarinense, é


considerada um polo agroindustrial no seguimento de abate de aves e suínos,
contava em 2010 com 183.530 habitantes, segundo dados do último censo
do IBGE. A população estimada para 2015, pelo mesmo órgão, era de
205.795. O que mostra um provável crescimento populacional de mais de
20.000 habitantes nos últimos cinco anos. Esse crescimento populacional
relaciona-se às potencialidades de desenvolvimento econômico associadas
à cidade. Por ocasião do 97º aniversário de Chapecó, em 2014, o portal de
notícias da Globo, o G1 - Santa Catarina, ressalta: “Aos 97 anos, Chapecó
se destaca por ofertas de emprego e crescimento”. O enfoque da matéria
é o crescimento econômico promissor e a abundante oferta de trabalho:

O mercado em Chapecó tem dificuldades para encontrar profissionais


que trabalhem fora do horário convencional e nos fins de semana.
Só o setor de construção civil tem 450 vagas de emprego
para serem preenchidas. Conseguir mão de obra para
os frigoríficos tem sido um desafio. Uma das empresas
do ramo, por exemplo, tem 5,3 mil funcionários. Desses,
1,4 vieram de outros lugares, até mesmo fora do país. Há
trabalhadores de Senegal e Haiti na agroindústria. Eles vêm

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em grupos em busca de uma vida melhor e geralmente


ganham oportunidade na indústria (grifos nossos).

É em razão desse contexto que os imigrantes haitianos, que estavam


chegando ao Brasil, foram sendo atraídos para o oeste catarinense e
absorvidos como força de trabalho, principalmente pela agroindústria
de Chapecó, Xaxim e Nova Erechim, para atuar em áreas de trabalhos
muitas vezes indesejadas pelos trabalhadores locais. De acordo com dados
levantados por Felipe Aires Magalhães (2017), a cidade de Chapecó é a
cidade que mais incluiu haitianos no mercado formal de trabalho, à frente
de algumas das principais capitais do Brasil que têm recebido imigrantes
haitianos. Durante o seu trabalho de campo em Balneário Camboriú, o
pesquisador presenciou reuniões de recrutamento nas quais recrutadores
de Chapecó faziam promessas sobre salário, condições de trabalho e
alojamento, com o intuito de fazer com que os imigrantes haitianos se
deslocassem para aquela cidade. O movimento migratório dos haitianos
para o Brasil é, inicialmente, caracterizado pela presença masculina, com
reduzida presença de mulheres. Outro dado relevante diz respeito ao perfil
etário da migração haitiana para o Brasil. “Em relação à idade, mas de
30% destes imigrantes [dados nacionais] estão concentrados na faixa etária
de 25 a 29 anos, seguida daqueles no grupo etário de 30 a 34 anos ... ”
(FERNANDES & CASTRO, 2014, p.55). Os dados indicam que a maioria
dessa população se encontra na fase mais produtiva e reprodutiva da vida,
além do que, segundo registros do Ministério das Relações Exteriores,
80% dos imigrantes haitianos que solicitaram visto nas representações
consulares brasileiras se declaram solteiros (MAGALHÃES, 2017).
Certamente esses dados: uma população negra, jovem, masculina,
solteira, em fase produtiva e reprodutiva, impactam o tipo de integração e
socialização nos espaços sociais em uma região de maioria branca.
É preciso considerar que a primeira leva de imigrantes haitianos não
chegou ao oeste catarinense de forma espontânea, houve um movimento
empreendido por empresários locais de ir buscá-los no Acre, em razão da
falta de braços na região oeste catarinense. Os empresários arcaram com os
custos da viagem do Acre para Chapecó e com subsídios para alojamento

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Branquitudes e representações... 95

desses trabalhadores, como forma de estímulo para a permanência na


cidade. Embora a maior concentração de trabalhadores estrangeiros esteja
atualmente nas agroindústrias locais e na construção civil, uma volta
pelos estabelecimentos comerciais do centro da cidade de Chapecó revela
trabalhadores haitianos trabalhando em supermercados e padarias.
Sandra Bordignon (2016), em sua dissertação de mestrado sobre
a inserção dos imigrantes haitianos nos contextos educativos escolares e
não-escolares, caracterizou a presença haitiana no oeste catarinense por
meio de três movimentos. O momento inaugural da presença haitiana
na região oeste seria resultado da demanda das empresas frigoríficas e
agroindústrias que patrocinaram a vinda dos primeiros haitianos para a
região. Essa presença seria hegemonicamente masculina. O segundo
movimento seria caracterizado pela vinda de mulheres haitianas e um
terceiro movimento caracterizado pela vinda dos filhos dos imigrantes
haitianos.
O fato de que a vinda de haitianos para a região oeste catarinense
seja consequência da falta de braços para determinados tipos de trabalho
não torna essa presença desejável. Em matéria divulgada no dia 02 de abril
de 2015, um portal de notícias da cidade de Xaxim, vizinha à cidade de
Chapecó, o Click Xaxim, destacou a preocupação da câmara de vereadores
da cidade com a presença dos imigrantes haitianos, apontada quase em
termos de uma invasão haitiana. A cidade de Xaxim tem aproximadamente
vinte e sete mil habitantes. Um dos vereadores, mencionado na matéria,
requereu um levantamento do número de haitianos na cidade, pois “teria
ouvido falar” que um número de quatro ou cinco mil haitianos chegaria
à cidade:

[...] o vereador questiona como serão prestados serviços de


saúde, assistência médica, educação, alimentação, moradia,
como o município irá se comprometer com essa gente [...]
Agenor Junior Maier, vereador do (PP), disse que é preciso
saber que parceria foi efetuada entre as empresas que
trouxeram essas pessoas para trabalhar na região (Aurora
e Rafitec), se eles chegaram com boas condições de saúde

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e as empresas se comprometeram em dar saúde, educação,


moradia, alimentação aos haitianos [...] Já, o futuro dessas
crianças preocupa o vereador Amarildo Maroco (PSD).
Segundo ele, muitas grávidas haitianas estão circulando pela
cidade, em outros casos, famílias inteiras estão vindo ao
Brasil. Contudo, o que preocupa o vereador é como será
dada assistência a essas pessoas, como será a adaptação
desse povo e como será a aceitação dos brasileiros” (grifos nossos).

Apesar da vinda dos haitianos para o Brasil estar respaldada pela


presença brasileira no Haiti, por meio da Missão das Nações Unidas para
Estabilizar o Haiti (MINUSTAH) – que, após o terremoto de 2010, fez
com que o Brasil fosse inserido na rota migratória haitiana (METZNER,
2014) – e em acordos para facilitar a entrada dos imigrantes haitianos no
Brasil, os vereadores, mencionados na matéria, comportam-se como se o
local, no caso a cidade de Xaxim, não estivesse subordinada às normativas
nacionais, ao suporem que deveriam ser consultados sobre a vinda dos
imigrantes haitianos.
As falas reproduzidas pelo informativo Click Xaxim são feitas de
forma a transformar os haitianos em outros, estranhos, ameaçadores,
indesejáveis e inaceitáveis. A resistência presente nas falas de vereadores
também é reproduzida por pessoas comuns, que convivem com os
trabalhadores haitianos no trabalho ou nos bairros, nas formas de
sociabilidade cotidiana de uma forma ainda mais explícita, como
demostram os dados coletados em um bairro de trabalhadores na cidade
de Chapecó em 2015:

Eu acho que as vagas de trabalhos deveriam ser para os


brasileiros, eles, estão deixando pessoas sem trabalho, não
é racismo nada, as empresas estão mandando embora os
brasileiros para segurar eles, estão em todos os setores.
(Entrevistada Chica)

Acho que esse pessoal tem direito de ter trabalho, de uma


condição de vida melhor, mas acho que o governo tem que
se preocupar para não deixar trazer muita gente de fora,

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Branquitudes e representações... 97

e deixando faltar às coisas para a nossa gente, eu penso


assim, a gente precisa de saúde, de educação, de emprego.
(Entrevistado Nico)

[...] Se pensar para nós (brasileiros) influencia a presença


deles (estrangeiros), pois faltará para nós, o emprego, no
posto de saúde. (Entrevistado Adão)

[...] chega, nós temos bastante problemas de desemprego, de


saúde, e eles estão em todas as partes por aqui. (Entrevistada
Chica)

Do ponto de vista dos estudos de imigração, o número de haitianos


no Brasil e na região oeste é estatisticamente insignificante (PERAZA-
BREEDY, 2014). Estima-se que a cidade de Chapecó abrigue em torno
de 2.500 haitianos e que esse número seja de 55.000 para todo o Brasil.
Contudo, do ponto de vista das relações sociais e intergrupais esse número
é suficiente para revelar a qualidade dessas relações e os significados que
as permeiam. Em uma região que constrói a sua imagem valorizando
a origem europeia, esse número tem como efeito alterar as paisagens
demográficas e inserir de forma radical, pelo contraste com os corpos
brancos, a presença negra no espaço urbano, gerando nos moradores a
sensação de que “eles estão em toda parte”.
Embora os brasileiros que ocupam o oeste catarinense não sejam
homogêneos em sua origem, em seus discursos sobre a presença haitiana eles
se constituem em “um nós” e transformam o haitiano, negro e estrangeiro
em um outro, em outsiders. Na estratégia de se atribuir um maior valor “ao
nós”, recorrente nos grupos estabelecidos (ELIAS & SCOTSON, 2000),
a referência ao outro é sempre permeada por indicativos de desprezo:
“essa gente” “essas pessoas” “esse povo”, “eles”. Na matéria em questão, os
haitianos em nenhum momento são nominados por meio de sua origem
e nacionalidade: o povo haitiano, os trabalhadores haitianos, os imigrantes
haitianos, as pessoas oriundas do Haiti, mas sim por termos que os
distanciam da comunidade local, em termos que estabelecem fronteiras.

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A recepção à presença haitiana no oeste catarinense - seja pelos


políticos locais, seja pelos moradores - tem ecos no regime racializado de
representação que cerca o estado de Santa Catarina e o oeste catarinense
como território branco/europeu. Está ligada a um longo processo de
estereotipagem racial (HALL, 2016) que atinge os indígenas da região,
os caboclos e agora os haitianos. Todos esses grupos têm passando por
um processo de racialização que os coloca como o “Outro” da história
do oeste catarinense e nas relações de sociabilidade cotidiana na cidade.
Embora haitianos tenham a sua identidade constituída por elementos
históricos muito distintos daqueles que permeiam a constituição das
identidades brasileiras, seus corpos são lidos por meio das categorias
binárias e reducionistas repertoriadas na representação das diferenças
raciais construídas a partir da escravidão dos africanos e descendentes
no Brasil, da ideologia da mestiçagem, que ancora a identidade nacional
brasileira, da suposta singularidade histórica do estado de Santa Catarina,
como território europeu e do colono desbravador e trabalhador como
ícone do oeste catarinense. Qual é o funcionamento do processo de
estereotipagem? De acordo com Hall, a estereotipagem é uma prática
de produção de significados que: “reduz, essencializa, naturaliza e fixa a
diferença. Em segundo lugar, a estereotipagem implanta uma estratégia
de ‘cisão’, que divide o normal e aceitável do anormal e do inaceitável,
em seguida exclue [sic] ou expele tudo o que não cabe, o que é diferente”
(HALL, 2016, p.191). É exatamente esse movimento que temos visto
acontecer com os imigrantes haitianos no oeste catarinense, visível no
depoimento do professor voluntário do curso de português para haitianos
promovido pela então Associação de Haitianos de Chapecó, coletado por
Sandra Bourdignon (2016):

Vi então a necessidade de não só ensinar a eles [haitianos]


gramática e tantas outras coisas complicadas que nossa
língua tem, mas também ensinar a eles se defenderem nas ruas de
Chapecó. Se um dia alguém assistir minhas aulas verá que
dou aula sobre xingamentos também, xingamentos que
eles sofrem e precisam saber como se defender e entender

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Branquitudes e representações... 99

o que o outro está dizendo a ele. Dentro dessa questão já


ouvi inúmeras histórias de preconceito que precisei ser forte
para não chorar na sala de aula e todas elas se passaram em
Chapecó. Na minha cidade. Abordo em toda a aula nossas
expressões do oeste de SC e do Brasil, exemplo como o
nosso famoso: “Cremm” e um que eles gostam muito: Que
massa! E quando sou questionado sobre o que ensino aos
meus alunos, respondo que: Os ajudo a saber como viver em
Chapecó, a Chapecó que é fácil pra mim por ser branco e brasileiro,
mas totalmente diferente para eles (grifos nossos).

Fica evidente na fala do professor que os xingamentos dirigidos aos


haitianos e haitianas nas ruas de Chapecó estão inscritos na representação
racial da diferença (HALL, 2016), uma vez que ele coloca a sua condição
de branco como algo que o protege e que facilita as suas vivências na
cidade. E nesse sentido, desvela a partir desse lugar, com sua visão crítica,
a branquitude como um lugar de poder (SCHUCMAN, 2013). São os
corpos negros dos haitianos e haitianas o elemento provocador dos
xingamentos e não o fato serem estrangeiros. Por serem negros, tornam-
se de imediato imigrantes indesejáveis na terra que construiu a sua história
supervalorizando a presença imigrante. É essa relação de poder, com base
nos significados atribuídos à raça, que faz com que sejam constantemente
nominados como “eles”. O fato de a história da região oeste catarinense
ter sido construída por meio da ideia do vazio demográfico e do mito
do desbravador, associado ao imigrante europeu, visto como aquele que
trouxe o desenvolvimento local, tem como consequência a negação de
qualquer traço da presença africana e de seus descendentes na região,
bem como a invisibilidade das populações indígenas, cuja presença física
pode ser percebida nas ruas da cidade. Um depoimento bastante citado
pelos pesquisadores que têm se dedicado a desvelar a história regional do
oeste catarinense (RENK, 2000, 2014; POLI, 2014; HASS, 2012) é do
Wenceslau de Souza Breves. A narrativa de Breves é uma espécie de relato
de viajante, fornece algumas impressões sobre o poder local e as formas
de organização da cidade de Chapecó, no período de 1920 a 1924, quanto
esteve na região como funcionário da Comissão Técnica Administradora
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100  Claudete Gomes Soares e Neuri José Andreola

de Terras, com o objetivo de demarcar as terras que estavam sendo


concedidas às empresas colonizadoras. Breves era originário do estado do
Rio de Janeiro e de uma família de proprietário de terras e escravocrata.
Quanto à formação da população de Chapecó descreve o autor:

Em 1920 a população de Chapecó era praticamente cem por


cento constituída por brasileiros da velha estirpe. Percebia-se
em quase todos uma distante mistura de brancos com índios.
Também em seu método de trabalho, em seus defeitos e
qualidades se percebia a velha ascendência indígena. Quanto
a pretos, eram raríssimos. (BREVES, 1985, p.19)

O brasileiro da velha estirpe nas categorias nativas do oeste


catarinense é o brasileiro miscigenado, conhecido por “brasileiro” ou
caboclo, cuja presença no território é anterior à chegada dos imigrantes
alemães, italianos, poloneses e seus descendentes, que segundo Alcides
Goulart Filho (2002) se dirigiram ao oeste catarinense entre 1917 e 1950 e
fizeram parte das frentes pioneiras de colonização capitalista.
De acordo com Poli (2014), os caboclos podem ser considerados
os primeiros desbravadores do oeste catarinense, embora não seja essa
a representação dominante em torno da cidade. De certa forma teriam
preparado o terreno para as empresas colonizadoras, responsáveis pela
marcação de terras que foram vendidas aos imigrantes europeus e aos
seus descendentes. O encontro desses grupos (brasileiros e europeus),
permeado por diferentes interesses, implicou em disputa pela terra e
pela forma de cultivá-la. Com a presença italiana e alemã na região, a
“pureza” dos corpos brancos tornou-se um marcador de virtude e de
distinção em favor daqueles que ficaram conhecidos regionalmente como
colonos de origem (RENK, 2014): puros, pioneiros, desbravadores,
corajosos, trabalhadores, capitalistas, modernos, europeus, sob a batuta
dos quais, finalmente, teria ocorrido o desenvolvimento regional. Virtudes
essas utilizadas como dispositivos de poder no processo de exclusão e
marginalização dos povos indígenas e do caboclo, indígena miscigenado,
transformado em negro, no contraste com o branco. O próprio relato
de Breves, mencionado acima, está impregnado de juízos de valor que
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Branquitudes e representações... 101

associam a população cabocla à pobreza e ao atraso e a população de


colonos ao progresso e à prosperidade.
Do ponto de vista da constituição da cidadania os colonos de
“origem” são brasileiros – uma vez que a maioria (descendentes) nasceu
em solo brasileiro – têm direitos e deveres que tocam a todos os brasileiros
e se utilizam dos serviços sociais enquanto brasileiros. Contudo, o
monopólio dos recursos de poder pelos “de origem”, referenciado nos
corpos brancos e nos nomes de família, estabelece uma hierarquia violenta
entre os grupos, que é estruturante das relações sociais e da forma como
se distribui o poder, o prestígio e o status no oeste catarinense.

O QUE A IMIGRAÇÃO HAITIANA TEM A DIZER SOBRE AS


RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL?

A região oeste catarinense é marcada pelo discurso da presença


estrangeira associada ao projeto de ocupação territorial e desenvolvimento
local. Não obstante esse histórico, a presença haitiana é percebida como
uma ameaça, como vimos acima. As representações sobre os haitianos
no imaginário local estão repletas de estigmas grupais raciais, que os
transforma em outsiders (ELIAS & SCOTSON, 2000) na relação com os
moradores locais.
Em pesquisa sobre as formas de sociabilidade entre haitianos e a
população local de Chapecó em um bairro próximo a uma agroindústria
da cidade, era bastante comum o entrevistador, identificado como branco,
se deparar com falas e discursos dos trabalhadores locais que os colocavam
em uma posição de maior valor humano, justificada pela origem. É assim
que o entrevistado abaixo explica o desenvolvimento do estado de Santa
Catarina: “Os fatores sociais de índices bons do estado [Santa Catarina]
tem relação com a imigração europeia, os traços o jeito do povo europeu,
povo guerreiro, batalhador, isso vem ficando, uma herança genética que
fica, e a gente carrega isso” (Entrevistado Nico).
Em seu livro Cultura e Representação, Stuart Hall (2016) evidencia
a tendência dos brancos à naturalização da diferença, essa naturalização
incidiria mais fortemente sobre a cultura negra, como uma forma
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de aprisionar os negros em um estado de natureza e de negar-lhes a


possibilidade de mudança. No entanto, na fala acima, a fixidez das virtudes
atribuídas ao grupo branco, também são explicadas pela natureza: “uma
herança genética que fica”. O que sugere que no universo do senso comum
ainda é possível encontrar o que Frantz Fanon chamou de racismo vulgar:
“o racismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia encontrar no biológico a
base material da doutrina” (FANON, 1980, p.36).
O atual fluxo migratório para a região oeste de Santa Catarina
diferencia-se dos fluxos passados, não se trata de uma imigração
incentivada pelo Estado com fins de “ocupação do território”. Outra
diferença é o caráter urbano das atividades laborais desenvolvidas pelos
imigrantes haitianos, em contraposição ao destino em atividades agrícolas
dos imigrantes ou descendentes que vieram do Rio Grande do Sul para
o oeste catarinense, entre 1917 e 1950. E principalmente, pela marcação
da diferença racial, da qual os brancos estão protegidos pelo poder que a
branquitude lhes confere (SCHUCMAN, 2013).
A investigação das relações entre os moradores locais e imigrantes
haitianos tem revelado aspectos da dinâmica sociocultural regional e
nacional muitas vezes romantizada pela ideia de igualdade, cordialidade,
hospitalidade e democracia racial que convencionou-se associar ao caráter
brasileiro.
No contexto geral, não têm sido raros os casos de conflitos
envolvendo brasileiros e haitianos, com características xenofóbicas e
racistas. Além do mais, estamos no Brasil em um momento de intensificação
das tensões raciais, em razão, do desmoronamento do mito da democracia
racial, da implementação de políticas públicas específicas para a população
negra e de um processo de identificação estética associado à negritude.
Respaldados em Kabengele Munanga (2012), ressaltamos que a negritude,
tendo sua origem na cor da pele negra, transcende o biológico, é uma
de tomada de consciência, ligada à identidade, sobre o processo de
desumanização ao qual foram submetidos os não-brancos, a partir do
encontro com o Ocidente.
As tensões e conflitos entre brancos e negros no Brasil, outrora
silenciados, em razão dos diferenciais de poder, começam a aparecer

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Branquitudes e representações... 103

abertamente, em razão de uma retomada de valorização da identidade negra


no Brasil e de uma ocupação mínima de espaços de poder por pessoas
negras. Não apenas os imigrantes haitianos têm vivenciado situações que
remetem ao regime racializado de representação brasileiro, como também
têm ganhado visibilidade casos de racismo contra a população negra em
geral, principalmente pelo efeito de compartilhamento possibilitado pelas
redes sociais.
Na conjuntura atual é possível supor que nem a narrativa nacional
da brasilidade mestiça nem a “narrativa das origens”, presente no
oeste catarinense, favoreça a integração haitiana no contexto brasileiro.
Afirmação que aponta para a necessidade de pesquisas comparativas sobre
os elementos que permeiam as relações entre brasileiros e haitianos em
diferentes regiões do Brasil. Nas entrevistas e conversas informais com
os haitianos e haitianas, percebe-se que eles têm vivenciado um choque
de representações. Desde o Haiti havia uma expectativa dos haitianos
de que o Brasil seria um país de acolhimento em razão de uma história
compartilhada com o Haiti a partir da experiência da colonização e da
escravidão e pelo fato de identificarem o Brasil como um país de população
negra. Contudo, o processo de colonização no Haiti e no Brasil tiveram
desdobramentos muito diferentes. A assimilação da cultura africana à
cultura popular brasileira, por exemplo, como elemento de brasilidade se
deu subordinada à matriz europeia e ao poder simbólico do branco. Foram
os brancos que definiram o lugar da cultura africana no Brasil, inclusive
descaracterizando-a enquanto cultura africana. No Haiti, embora também
haja uma disputa entre os elementos de origem africana e a presença
europeia, marcadamente francesa, a ruptura com o sistema colonial por
meio de uma luta revolucionária possibilitou uma ligação mais direta entre
a cultura haitiana e a cultura africana, expressa seja na prática religiosa do
vodu, seja no uso do creole como língua (HANDERSON, 2010).
Nessas conversas e entrevistas com haitianos e haitianas temos
descoberto que o povo haitiano estabelece com Brasil, desde o Haiti,
uma relação emocional, de torcedores, em razão do impacto do futebol
na representação haitiana sobre o Brasil. A ideia que o haitiano tem do
Brasil, antes de sair do Haiti, é mediada pela imagem vendida pelo futebol
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brasileiro, pela concepção de que o Brasil é um país em desenvolvimento


e pela alegria associada às festas, em especial ao carnaval. No contraponto
desse imaginário, são recebidos no Brasil como pessoas indesejáveis
e sofrem hostilidades diárias em seu cotidiano. Em março de 2017, o
NEABI (Núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas) da UFFS, campus
Chapecó, produziu e divulgou um vídeo com o depoimento de uma
estudante haitiana, falando de suas experiências com a cidade, revelando
o contato inesperado com o racismo e, acima de tudo, a sua racialização
enquanto mulher negra. O vídeo foi veiculado pelo canal Youtube e desde
então atingiu 7.953 visualizações e 353 comentários. Parte significativa
dos comentários é no sentido de dizer que a estudante haitiana é uma
equivocada e que deveria voltar para o Haiti. Embora o vídeo seja de
março de 2017, ele continua recebendo comentários. Um dos comentários
mais recentes revela elementos de estereotipagem racial (HALL, 2016),
ao contrapor as virtudes do povo do sul aos vícios e fraqueza moral dos
haitianos:

Vai pro Rio de Janeiro ou pra Bahia se não tá gostando daqui.


Além de mamar nas tetas dos governos sulistas e tirar da
boca do povo do Sul, ainda tem coragem de reclamar. Viva
o povo trabalhador do Sul. Imigrantes alemães, italianos,
poloneses, portugueses e espanhóis que construíram esse
lugar a partir do suor do seu trabalho, hoje ter que ver
gente que vem lá da pqp, não trabalham e nada fazem pra
contribuir com o crescimento e prosperidade do local, ainda
reclamarem de barriga cheia. Lamentável!5

As experiências iniciais do grupo estrangeiro são permeadas pela


incompreensão. Um haitiano relata que “aqui no bairro ninguém ajuda
ninguém, a gente não conversa com os brasileiros, parece que eles têm
medo da gente” (Entrevistado Sérgio). Outro “não sei por que no trabalho

5
Ver comentários em NEABI-UFFS-CH. Vídeo Ser imigrante e negra no Sul do Brasil.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3bDrSEZgtvw&t=14s Acesso em:
1/02/2018.

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Branquitudes e representações... 105

tem pessoas ruins que ficam dizendo coisa para a gente que é de fora”
(Entrevistado Pablo).
Como o país do racismo cordial pode ser experimentando como
um lugar de racismo intenso? O racismo intenso experimentado pelos
haitianos na região oeste se revela na aversão ao contato com os novos
imigrantes, uma das características da exclusão imposta aos outsiders pelo
grupo estabelecido e nos discursos de desprezo. Nas representações da
população, os haitianos não são limpos, são portadores de doença, são
mortos de fome, preguiçosos, perdulários, e os homens são vistos como
uma ameaça às mulheres.
Nas relações de sociabilidade cotidiana os moradores locais evitam
sentar ao lado de pessoas haitianas (por exemplo no transporte público) ou
evitam frequentar os mesmos espaços públicos. Outro aspecto observado
pelo trabalho de campo é a ausência de interação entre os dois grupos
fora de espaços onde ela ocorre de forma obrigatória: escolas e locais de
trabalho. “o povo [do bairro] gosta de olhar, há quem diga, eles [haitianos]
vão trazer doenças, mas acho que é só um pouco de disfarce para não
se misturarem” (Entrevistada Maria). Uma outra entrevistada revela
mecanismos para evitar o contato: “No bairro, eles ficam com o celular na
rua, vivem na esquina, ali tem o ginásio e a academia, minhas meninas iam
lá e das vizinhas fazer academia, não dá para deixar, eles ficam lá, acho que
eles não são acostumados a ficar dentro de casa, parece”. (Entrevistada
Chica).
A cidade, bem como o bairro, tem uma população que se
autodenomina “desbravadora e trabalhadora” e que compreende a cidade
como um lugar de trabalho e privilégio, associada às virtudes da presença
europeia. Em contraposição à imagem positiva que essa população produz
de si, a cor dos trabalhadores haitianos é utilizada como um mecanismo
de rebaixamento social, assim como o suposto vínculo à pobreza. Um
senhor do grupo estabelecido, faz referência explicita a cor: “a diferença
entre brasileiro e estrangeiro, no começo deu um baque [impacto,
estranhamento] aquele negócio da cor deles, os brasileiros não aceitam
bem, é estranho”. Segundo os relatos, é comum os vizinhos brasileiros se
referirem aos vizinhos haitianos como “essa pretaiada”.
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Outro importante aspecto a ser considerado é a tentativa por parte


dos moradores locais de subtrair dos haitianos as virtudes relacionadas ao
trabalho, tão valorizadas no contexto da imigração europeia. Os haitianos
vieram para Chapecó para trabalharem em lugares muitas vezes não
desejados pelos trabalhadores locais e em trabalhos pesados. Alguns, entre
esses trabalhadores, chegam a ter dois empregos. No entanto, no regime
racializado de representação a associação ao trabalho como virtude lhes
é negada. Uma trabalhadora de uma das agroindústrias da região avalia
que: “eles são preguiçosos, não querem nada com nada, eles sentam nas
cadeiras aquelas que abrem pra trás, ou deitam nas cadeiras, e chegam
a roncar, querem vida boa, por que lá (país de origem) sofriam como
cachorros, passavam fome” (Entrevistada Chica).
Esse é outro estigma bastante presente nas representações dos
moradores locais em relação aos haitianos: a pobreza. Embora as
entrevistas realizadas no trabalho de campo tenham sido feitas em um
bairro de trabalhadores, cuja maioria da população exerce os mesmos tipos
de trabalho que os haitianos na agroindústria, em suas representações a
pobreza está associada aos haitianos. Nesse sentido, há uma expectativa
desses moradores do bairro de que o comportamento e o consumo dos
haitianos correspondam à imagem de pobreza por eles construída. Quando
isso não acontece, a pobreza é associada a uma postura irresponsável
e perdulária em relação ao dinheiro: “eu não entendo, quero que você
veja por aí, e veja se um dos nossos tem um celular que nem os deles”
(Entrevistado Adão). Não é por acaso que o morador diga que não
entende, pois há uma inadequação entre a representação que ele tem de si,
como parte de um grupo de maior valor, e do grupo outsider como pobre,
morto de fome e o fato de serem os haitianos portadores de aparelhos
com melhor tecnologia que os moradores brasileiros do bairro. O que
implica em mais uma forma de julgamento moral “se eles economizassem,
eles não teriam que imigrar” (Entrevistado Adão).
Quais os usos os moradores locais, trabalhadores ou de origem
trabalhadora têm feito de sua branquitude? Esse é um aspecto que os
estudos sobre a branquidade (VON WARE, 2004) têm explorado. Segundo
Roediger, os marxistas, que têm uma longa tradição nos estudos sobre

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a classe trabalhadora, ignoraram o lugar e papel da raça na constituição


da identidade de classe: “o mais grave talvez seja a tendência contínua a
romancear os membros da classe trabalhadora branca, não levantando o
problema de porque eles passaram a se considerar brancos, e com que
resultados” (ROEDIGER, 2004, p.53). Citando Du Bois, Roediger lembra
que os trabalhadores brancos ao adotarem ideias racistas passam a pensar a
si mesmo como brancos e a defenderem os seus interesses como brancos.
Os estigmas direcionados aos haitianos são os mesmos direcionados
à população negra brasileira, com o agravamento de virem de um país em
situação precária do ponto de vista do desenvolvimento econômico e de
não dominarem a representação racial hegemônica.
Mesmo sem conhecer a história do Haiti – não é raro os moradores
do oeste catarinense acharem que os haitianos são africanos – cria-se um
imaginário sobre os haitianos como uma “população de coitados”. A
pergunta que Elias e Scotson (2000) nos provocam a responder é como
diferenciais de poder são traduzidos em diferenciais de valor humano nas
relações intergrupais? Os brasileiros são os trabalhadores mais antigo no
bairro, em comparação aos haitianos, o que lhes garante inclusive alguns
diferenciais econômicos. Muitos são proprietários de suas casas e contam
com mais uma casa em seu terreno para aluguel, o que é revertido em
vantagem econômicas por significar uma renda extra e a prerrogativa de
decidirem para quem alugar esses imóveis. Essa situação fixa uma relação
de poder entre trabalhadores brasileiros ou brasileiros que têm sua origem
como trabalhadores e os trabalhadores haitianos. Outro recurso de poder
dos trabalhadores brasileiros sobre os haitianos é o fato de dominarem a
língua e os códigos locais e acima de tudo os valores associados aos corpos
brancos.
Se a narrativa oficial do Brasil mestiço camuflava revelações tão
explícitas à raça na afirmação de poder do grupo branco em relação aos
Outros, no oeste catarinense, onde essa presença negra é minoritária e
onde a origem é sempre reivindicada, a branquitude é acionada de forma
muito espontânea. O que para um observador desavisado pode parecer
uma reação à presença estrangeira, é, no final, uma reação à presença
negra na suposta terra dos brancos. É como brancos que os moradores
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locais constroem os seus discursos sobre os imigrantes haitianos. Ao


se conceberem como um “nós” traçam uma fronteira entre locais e
estrangeiros que não é apenas delimitada pela nacionalidade, mas também
pela forma como os corpos haitianos são racialmente significados. Os
estrangeiros haitianos, o “eles” do discurso dominante, são acima de
tudo concebidos pelo prisma da ameaça: ameaça aos empregos, às filhas,
à saúde, e por fim, à branquitude. Muitos dos elementos presentes no
discurso dos moradores locais implicam no desejo de manter os outsiders
distantes, uma vez que o encontro dos corpos, dos corpos negros com
os corpos brancos, poderia desfigurar aquilo que é tão caro a essas
pessoas, a convicção da pureza de suas origens. O “povo do bairro tem
medo de perder status, e principalmente, de haver atrito de cor e raça,
tem medo com uma nova convivência, mistura, o povo do Sul não é de
mistura” (Entrevistada Maria). Do medo resulta o desejo do controle, da
diminuição da presença que ameaça: “o governo deve controlar, para não
aumentar muita a população, porque aumentando a população [haitiana]
com certeza vai começar a dar problema social, vai misturar raça, vai
modificar costumes, vai alterar o jeito de nosso estado, país” (Entrevistado
Nico). É explícita, nessa fala, a ideia do controle como forma de evitar o
contato entre os dois grupos e de que a mistura traria prejuízos para os
costumes e para o grupo considerado superior, assim como defendiam as
teorias racialistas do século XIX.
A categorização feita por Oracy Nogueira sobre as relações raciais
no Brasil pode nos dar algumas pistas para a compreensão das relações de
poder entre brancos e não-brancos no oeste catarinense. Nogueira batizou
de preconceito de marca a política racial brasileira em contraposição à forma
como essas relações se estruturariam na configuração norte-americana,
denominada por ele como preconceito de origem: “o preconceito de
marca determina uma preterição, o de origem, uma exclusão incondicional
dos membros do grupo atingido, em relação a situações ou recursos pelos
quais venham a competir com os membros do grupo discriminador”
(NOGUEIRA, 2006, p.293).
Nessa acepção, o preconceito de marca se manifestaria por meio dos
significados atribuídos ao fenótipo dos indivíduos, enquanto o preconceito

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Branquitudes e representações... 109

de origem se processaria por meio da leitura da ascendência. Onde


predomina o preconceito de marca, alguns indivíduos com ascendência
africana podem furar o bloqueio racial e se inserir no meio do grupo
racial hegemônico, branco, sem que as relações de poder intergrupais
sejam alteradas. Como o Brasil tem como fundamento ideológico de sua
política racial a mestiçagem, os limites e as restrições à população negra
estão condicionados às classificações fenotípicas, que, quando associadas
a outros elementos, podem alterar o status do indivíduo negro (preto e
pardo), mas não o do grupo.
A valorização da suposta particularidade do processo de ocupação
da região oeste de Santa Catarina faz com que o discurso sobre a raça
seja utilizado em oposição à mistura e à miscigenação. Na região oeste de
Santa Catarina os grupos demográficos que compõem o cenário local são
identificados por suas diferentes origens e há uma hierarquização entre
eles que repõe o lugar da raça de forma explicita, mesmo que em vários
momentos encoberta pela noção de etnia. Nesse aspecto é possível dizer
que mais do que o preconceito de marca, na região oeste predomina o
preconceito de origem. O contato com os não brancos é sentido como
uma ameaça, o desejo de distanciamento é espontaneamente explicitado,
o que evidencia que os brancos estão investidos de recursos para proteger
os seus privilégios enquanto grupo hegemônico e um desses recursos é a
forma como representam os imigrantes haitianos.
As percepções que os moradores locais produzem sobre si,
enquanto parte de um grupo de maior valor humano e dos haitianos
como outsiders evidenciam a relevância social da categoria raça não só para
pensar as formas de subordinação dos não-brancos, mas também para
pensar como os brancos se significam e se auto percebem no processo de
interdependência entre locais e estrangeiros.

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CORPOS FORA DO LUGAR: SAÚDE E MIGRAÇÃO
NO CASO DE HAITIANOS NO SUL DO BRASIL1

Daniel Granada2
Priscila Pavan Detoni3

RESUMO: A mobilidade humana é um fenômeno que cada vez mais tem sido notado em
função das consequências para a saúde, tanto das populações locais quanto das migrantes
em ambos os polos do circuito. Partindo de uma revisão de alguns autores que abordam
as patologias associadas aos corpos dos imigrantes, o artigo problematiza as questões
relacionadas com as representações sociais das agentes comunitárias de saúde sobre os
novos imigrantes haitianos em uma cidade de médio porte no Sul do Brasil. A pesquisa foi
realizada etnograficamente, por meio de observações participantes, entrevistas, conversas
formais e informais com imigrantes, gestores do sistema de saúde e agentes comunitárias
de saúde entre 2014 e 2016. Os resultados apontam para a necessidade de se qualificar
o acolhimento aos imigrantes junto aos serviços de saúde com o objetivo de prevenir
possíveis situações de sofrimento e dificuldade de acesso aos serviços de saúde por parte
desta população vulnerável.
PALAVRAS-CHAVE: Corpo; Saúde e doença; Migração haitiana; Saúde e migrações.

1
Agradecemos os comentários e contribuições dos pareceristas anônimos da revista Temáticas
que auxiliaram na elaboração desta versão final.
2
É cientista social, Mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Doutor em Etnologia e História pela Université de Paris Ouest Nanterre la Défense e University of
Essex. Professor adjunto na Universidade Federal de Santa Catarina, no Departamento de Ciências
Naturais do Centro de Ciências Rurais de Curitibanos. Membro colaborador do Centro de Estudos
das Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI) da Universidade Aberta de Lisboa no projeto
de pesquisa Saúde, Cultura e Desenvolvimento. E-mail: [email protected].
3
É Psicóloga, Mestra e Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul; Membro do Núcleo de Pesquisa em Relações de Gênero e Sexualidade
(Nupsex/UFRGS) e do Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de Gênero,
Diversidade Sexual e de Raça (CRDH/UFRGS); Docente na Universidade do Vale do Taquari -
Univates, junto ao Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. E-mail: [email protected].
116  Daniel Granada e Priscila Pavan Detoni

OUT OF PLACE BODIES: HEALTH AND


MIGRATION IN THE CASE OF HAITIANS IN
THE SOUTH OF BRAZIL

ABSTRACT: Human mobility is a phenomenon that has increasingly been noted


in terms of the health consequences of both local populations and migrants at both
poles of the circuits. Starting from a review of the authors who address the pathologies
associated with the bodies of immigrants, the article discusses issues related to the social
representations of community health agents of the new Haitian immigrants in a medium-
sized city in the South of Brazil. The research was carried out through participant
observation, interviews, formal and informal conversations with immigrants, health
service managers and community health agents between 2014 and 2016. The results point
to the need to qualify health services professionals for the reception of immigrants in
order to prevent possible situations of suffering and difficulty in accessing health services
by this vulnerable population.
KEYWORDS: Body; Health and disease; Haitian migration; Health and migrations.

INTRODUÇÃO

As relações entre saúde e mobilidade humana são históricas no Brasil.


Desde o século XIX já se discutiam políticas sanitárias que carregavam
consigo a ideia da mobilidade humana, seja como fonte de melhorias
para o país ou como fonte de problemas. Pensar a mobilidade humana
e suas relações com os processos de saúde e adoecimento nos conduz a
entender o próprio processo migratório como um determinante social de
saúde altamente complexo, com impacto em ambos os polos do circuito:
entre as populações migrantes, mas também entre as populações locais.
No contexto contemporâneo onde as mobilidades se intensificaram, cabe
estar vigilante aos fenômenos associados à saúde das populações tocadas
pelo fenômeno das migrações (GRANADA et al., 2017).
Fassin (2000) chama a atenção para os problemas associados
à patologização da “saúde dos imigrantes”, afirmando que há algum
tempo eles ocupam os manuais de saúde pública e de medicina tropical.
Nestes, podem ser identificadas três condições relacionadas à saúde que
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Corpos fora do lugar:... 117

são associadas à imigração: a “patologia de importação”, correspondente


às doenças parasitárias, mas também hereditárias que os emigrantes
carregam consigo aos seus países de destino; as “patologias de aquisição”,
que refletem as condições ambientais novas em que o imigrante se
encontra e que favorecem o desenvolvimento de doenças infecciosas e
cardiovasculares e a “patologia de adaptação”, que traduz as dificuldades
de adaptação à sociedade de acolhimento começando por problemas
psíquicos que necessitam de atenção especial (FASSIN, 2000, p.5).
Essa lógica penaliza duplamente o migrante como vetor e receptor
de doenças, ocasionando a patologização do seu corpo, logo um corpo
que não deveria estar naquele lugar. Assim, se naturaliza a associação de
doenças ao corpo do migrante. Sugere Fassin (2000), que mais do que
falar das doenças como inscritas nos corpos, é preciso compreender
os processos sociais em que elas são construídas por atores sociais.
Neste sentido, dois desafios precisam ser enfrentados: a construção da
diferença em termos de cultura nas instituições médico-sanitárias e o
desenvolvimento da cidadania social com relação ao corpo e à doença
(FASSIN, 2000). Buscando-se, assim, trabalhar para identificar quais são
os desafios em termos de saúde e migrações que devem ser enfrentados
pelas sociedades multiculturais e pensar as relações complexas entre saúde,
doença, sofrimento e migrações, partimos das representações sociais das
agentes comunitárias de saúde sobre os novos imigrantes haitianos em
uma cidade de médio porte no Sul do Brasil, por meio de observações
participantes, entrevistas, conversas formais e informais com imigrantes,
gestores do sistema de saúde e agentes comunitários de saúde entre 2014
e 2016, fundamentada no método etnográfico (STRATHERN, 1995), e
na etnografia multisite (MARCUS, 1995; 2002)4. Foram realizados cinco
grupos focais com as ACS em diferentes unidades de saúde do município,
os grupos focais contavam com a presença de cinco a seis agentes
comunitárias. Em três ocasiões as ACS foram acompanhadas nas visitas
4
Utilizaremos no texto no feminino – Agentes Comunitárias de Saúde, porque a maioria das
profissionais entrevistas nesta pesquisa são mulheres, e pela importância do reconhecimento
das interseccionalidades como gênero, raça, etnia, geração, classe social, profissão, etc.
(PISCITELLI, 2008).

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118  Daniel Granada e Priscila Pavan Detoni

domiciliares à residência de imigrantes. As entrevistas foram gravadas e


transcritas com assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido
por parte das ACS.
Fassin, estudando o caso francês, discute sobre a “biopolítica
da alteridade” (biopolitics of otherness) (FASSIN, 2001, p.4-5) e afirma
que existe uma política de patologização dos corpos dos migrantes em
que, paradoxalmente, a doença serviria como “salvo conduto” para a
permanência em território francês. Deste modo, a doença é legitimada
a tal ponto que se torna a única justificativa legal para a sua presença. Se
até os anos 1980 se reconhecia a necessidade dos corpos imigrantes como
fonte de mão de obra, atualmente, com a mecanização das indústrias e
a redução da necessidade de trabalhadores, a doença passa a ser a única
justificativa que a sociedade estaria pronta para aceitar. Assim, de acordo
com o autor, a “biopolítica da alteridade” deve ser entendida “como uma
redução extrema do social ao biológico em que o corpo parece ser o
último refúgio de uma humanidade comum” (FASSIN, 2001, p.5, tradução
nossa)5.
Outro exemplo pode ser encontrado no trabalho de Pusseti (2017)
sobre a Síndrome de Ulisses. Nas palavras da autora:

Esta categoria diagnóstica apareceu em concomitância com


o endurecimento das políticas migratórias, e a patologia que
ela define tornou-se, nos últimos anos, uma emergência

5
A biopolítica pode ser entendida como a forma de governo que se dá por meio da constituição
de políticas direcionadas à vida. Ao pensarmos sobre as políticas públicas podemos destacá-las
como estratégias de condução da conduta, nas quais os sujeitos se constituem pelas relações
de poder. Contudo, o poder não é exercido somente pelos chamados poderes de Estado,
sob a forma jurídica, legislativa e administrativa, mas também nas práticas disciplinares das
diferentes instituições que produzem sujeitos, como as escolas, as famílias e as instituições de
saúde. O termo biopolítica surge pela primeira vez na conferência “O Nascimento da Medicina
Social”, proferida por Michel Foucault (2007), na qual ele traz a ideia de que o poder passa
a se concentrar no corpo dos indivíduos, ou seja, o corpo seria uma realidade biopolítica. A
análise foucaultina afirma que vários saberes e estratégias compõem o governo da população
conforme as contingências de cada época (FOUCAULT, 2008). Como assinala Fassin (2001),
Foucault (2002) não estendeu sua análise para as migrações, mas contribuiu muito para pensar
o racismo de Estado, nas formas de deixar viver e deixar morrer.

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Corpos fora do lugar:... 119

de saúde pública. Podemos considerar a Síndrome de


Ulisses como um claro exemplo de patologização – sob
a forma de uma perturbação psíquica – da experiência
migratória. Em primeiro lugar, porque traduz conflitos
sociais no léxico da psicopatologia, desviando a atenção
do contexto político e econômico mais amplo, para se
concentrar no indivíduo como corpo despolitizado e
naturalizado. Em segundo lugar, porque homogeneíza e
reifica a experiência migratória, reduzindo-a ao perímetro
restrito de uma definição nosológica, criando, assim, uma
imagem estereotipada do sujeito imigrante como paciente
psiquiátrico, cujos problemas podem ser monitorizados e
resolvidos farmacologicamente. Em terceiro lugar, porque
não considera que as próprias políticas migratórias podem
contribuir ao aumento do risco de patologia: as constrições
políticas, sociais, burocráticas e económicas que bloqueiam
os imigrantes às margens da sociedade de acolhimento são
completamente esquecidas. (PUSSETI, 2017, p. 267).

Com relação à saúde, muitas vezes se torna problemática a associação


da origem nacional com a suscetibilidade para o desenvolvimento de
determinadas doenças, inclusive as relacionadas a adaptação, sem integrar
as condições de precariedades ambientais e sociais, as quais os imigrantes
estão expostos, a qual pretendemos nos debruçar. Atualmente, o avanço
da crítica ao “nacionalismo metodológico”, que consiste na contestação
da naturalização do estado-nação nas ciências sociais como entidade
pré-existente (WIMMER & GLICK-SCHILLER, 2002), vem colaborar
com a desconstrução da essencialização do corpo dos migrantes, quando
identificados apenas pela nacionalidade do país de origem, como vetor
potencial de doenças, levando consequentemente à problematização das
condições de vida nos locais de assentamento.
Um exemplo dos problemas causados pela associação das condições
de saúde à nacionalidade do país de origem pode ser encontrado nos
casos de saturnismo entre crianças de origem maliana que moravam na
França. As questões relacionadas às condições de vida das crianças que
eram contaminadas pela presença de chumbo nas pinturas dos velhos
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apartamentos ─ moradias com aluguel moderado (Habitations à Loyer


Moderé6) ─ onde viviam, tinham sido inicialmente confundidas com
questões associadas ao modo de vida, à origem geográfica e questões
“raciais”, e não às condições de vida no país de acolhimento (FASSIN &
NAUDÉ, 2004). O que se assemelha a análise desta pesquisa que identifica
os corpos dos imigrantes haitianos como vetores e receptores de doenças
no Sul do Brasil.

SAÚDE E IMIGRAÇÃO NO SUL DO BRASIL CONTEMPORÂNEO:


O CASO DOS HAITIANOS

A presença de novos fluxos de imigração para o Brasil tem


levantado questões sobre o acesso à saúde e a integração desta população
na sociedade e no mercado de trabalho local. A produção acadêmica
sobre o tema também tem acompanhado esse crescimento enfocando
diferentes aspectos sobre os estudos relacionados às temáticas de
imigração e emigração no Brasil7. Apesar desta crescente produção, ainda
são necessários estudos que analisem os efeitos da imigração, seja na
saúde ou no trabalho fora de grandes metrópoles (GLICK-SCHILLER
& ÇAGLAR, 2011). A questão escalar da imigração e seu impacto sobre
populações em pequenas e médias cidades do interior do Brasil ainda é
pouco estudada e, por isso, faz-se necessário compreender o fenômeno da
imigração dentro da escala das cidades nas quais ele ocorre.
Nesse novo quadro ganha relevo o fluxo de haitianos que buscam no
Brasil melhores condições de vida e trabalho. Muitos deixam suas famílias
e partem em busca de uma vida melhor no Brasil. Segundo relatório da
OB Migrar, o número de haitianos com vínculo de trabalho formal em
2013 já superava o de portugueses (DUTRA et al., 2014). Primeiramente,
temos que assinalar que a análise da população objeto do estudo a partir

6
Moradias com aluguel moderado na França são prédios em que os apartamentos são
destinados a famílias com rendimentos modestos (BRUN et al., 2003, p.211).
7
Ver Silva (2012), Cavalcanti et al. (2015), Ferreira et al. (2010), Zanini et al. (2013), Gediel &
Godoy (2016) e Baeninger et al. (2017).

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Corpos fora do lugar:... 121

da categoria “haitianos” pode induzir erroneamente a pensar em uma


homogeneidade no perfil do imigrante reduzido à nacionalidade do país de
origem. Convém ressaltar que os imigrantes haitianos na região estudada
possuem um perfil bastante diversificado. Eles provêm de diferentes
regiões do Haiti, a maior parte fala Kréole e os que tiveram acesso à educação
formal no país de origem falam francês e inglês, e alguns também falam
espanhol. De acordo com os dados nacionais, dentre os que possuíam
vínculo de trabalho formal em 2013 a maior parte tem ensino médio
completo (DUTRA et al. 2014, p.60). É importante frisar que a categoria
nacionalidade não deve apagar, portanto, a diversidade de experiências que
compõem o fenômeno migratório e a relação de uma pesquisa etnográfica
localizada e datada (STRATHERN, 1995).
Em segundo lugar, devemos compreender o fluxo de haitianos
para o Brasil dentro da realidade da dispersão histórica do povo haitiano
que ocorre de maneira intensa desde a segunda metade do século XX,
tornando-se um fenômeno estrutural a partir dos anos 1960 (AUDEBERT,
2012)8. Apesar das estimativas serem apenas aproximativas com relação
ao número de haitianos vivendo fora do país de origem, calcula-se que a
população haitiana residindo no exterior represente em torno de 20% da
população do país (AUDEBERT, 2012, p.9)9. Silva (2012) lembra ainda
questões relacionadas à conjuntura internacional, como a crise econômica
dos países de “primeiro mundo”, além do endurecimento das leis de
imigração e criminalização dos imigrantes nestes países influenciaram o
direcionamento dos fluxos para o Brasil (SILVA, 2012, p.303).
Quando perguntamos informalmente ou em entrevistas aos
haitianos as razões da escolha por buscar emigrar, muitos relatam que
após o terremoto que destruiu boa parte do país, em 12 de dezembro de
2010, as condições de vida, que já eram difíceis, pioraram bastante. Deste

8
É preciso notar que o Haiti é um país caracterizado pela emigração de sua população. O
fenômeno é notável mesmo nas primeiras três décadas do século XX (PERUSEK, 1984),
entretanto, ganha amplitude considerável a partir dos anos 60 do século XX.
9
A população haitiana residente no país em 2014 é estimada em 9.996.731 habitantes.
Disponível em: <http://www.statistiques-mondiales.com/haiti.htm>. Acesso em: 11 nov.
2014.

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modo, a catástrofe ambiental é vista como o elemento decisivo que afeta


a racionalidade individual na explicação das motivações de se lançar no
processo migratório. Entretanto, é necessário compreender o movimento
“diaspórico” haitiano em um quadro mais amplo das migrações históricas
a partir deste país, o que faz com que a população haitiana tenha a
experiência da imigração como uma das características centrais de sua
formação10. Audebert (2012) assinala que, além das causas associadas à
catástrofe ambiental, é preciso a compreensão do contexto histórico e o
papel dos governos ditatoriais da família Duvalier, entre 1956 e 1986, e
o que o autor chama de imigração como fenômeno estrutural, durante o
período de 1986 a 2011.
A rota terrestre para a vinda ao Brasil, apesar de mais cara e mais
perigosa do que a via aérea, se tornou uma opção frequente dos haitianos
em função das dificuldades de conseguirem a emissão de vistos rapidamente
na embaixada brasileira em Porto Príncipe. Silva (2017, p. 179-181) explica
que a rota amazônica e a solicitação do status de refúgio se tornaram
estratégia de entrada, já que o Brasil, enquanto signatário da convecção
de Genebra de 1951, não pode negar-lhes a solicitação. Explica ainda o
autor que apesar de o Estatuto do Estrangeiro de 1980, legislação em
vigor na época da chegada destes haitianos, não prever concessão de visto
por “razões humanitárias”, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg),
que pode legislar na temática em casos omissos na legislação, justificava tal
concessão em virtude das condições de violação generalizada dos direitos
fundamentais dos haitianos, agravada pelo terremoto de 2010.
Em 2012, uma parcela de população haitiana que se encontrava no
Acre começa a ser recrutada por empresas no Sul e Sudeste do Brasil. Um
dos destinos é o Vale do Taquari, localizado na porção centro-oriental
do estado do Rio Grande do Sul, constituído por 36 municípios e uma

10
Handerson (2015a, 2015b) faz importante contribuição sobre os usos do termo diáspora
como categoria nativa (emic) e seus diversos usos e significados empregados pelos haitianos.
Assinala o autor que diáspora é uma categoria organizadora do mundo, pois designa pessoas,
objetos, qualificando dinheiro, bens e ações. Explica ainda que o termo está relacionado com
residir no exterior, mas manter vínculos com o país, retornando a ele periodicamente, ou
através do envio de recursos financeiros e bens (HANDERSON, 2015b, p.52-54).

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Corpos fora do lugar:... 123

população de 329.258 habitantes em 2011 (FEE, 2013)11. Atualmente, a


agropecuária tem sua base social e econômica alicerçada na “propriedade
familiar, em minifúndios, caracterizada pela diversidade de culturas
e criações, estas sempre em regime confinado e na maioria das vezes
organizadas em sistema integrado com a indústria de alimentos” (BDR,
2011, p. 24).
Nos últimos anos, no Vale de Taquari, partes do setor empresarial,
principalmente das indústrias de produtos alimentícios que trabalham
com o abate e beneficiamento de frangos e suínos e da construção civil,
vêm enfrentando o problema da falta de mão de obra para atuar nos
serviços vistos como mais pesados e com menor remuneração. Deste
modo, o primeiro impulso para a imigração haitiana na região é dado por
empresas do ramo alimentício e da construção civil, na busca de pessoas
que aceitem o tipo de trabalho que os locais não querem mais realizar.
A vinda de haitianos, recrutados diretamente na região Norte do Brasil,
tem-se constituído como possibilidade de suprir essa carência. Uma vez
em Brasileia (Acre), os haitianos, após negociações com empresários da
região, são recrutados e vêm para preencher as vagas de emprego no Vale
de Taquari, em uma longa viagem de ônibus que dura em média quatro
dias e atravessa o país de Norte a Sul.
Estudos que relacionam a imigração e o acesso à saúde no Brasil
realizados em São Paulo com imigrantes bolivianos trazem resultados
relevantes sobre as interfaces entre imigração e saúde. Em um deles
constatou-se um quadro crescente de patologias associadas às precárias
condições de vida e trabalho: ressaltou-se a alta presença de tuberculose
(TBC) em um dos distritos da cidade, com maior incidência sobre a
população imigrante em comparação com a população local (GOLDBERG
& SILVEIRA, 2013). A presença da tuberculose e de problemas
dermatológicos e respiratórios também foi registrada em outro trabalho
sobre a população de imigrantes bolivianos em São Paulo, problemas que
11
Fundação de Economia e Estatística – FEE. Disponível em: <http://www.fee.tche.br/
sitefee/pt/content/resumo/pg_coredes_detalhe.php?corede=Vale+do+Taquari>. Acesso
em: 29 out. 2013.

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124  Daniel Granada e Priscila Pavan Detoni

estão associados à precariedade das condições de vida e trabalho (MELO


& CAMPINAS, 2010). Em uma terceira pesquisa, as autoras identificam a
existência de políticas nacionais e locais de acesso ao serviço de saúde para
essa população migrante e assinalam igualmente a valorização positiva por
parte dos bolivianos em relação ao acesso ao Sistema Único de Saúde
(SUS), dentro de um quadro comparativo com relação ao país de origem
onde o acesso aos serviços de saúde, apesar de ser universal como no
Brasil, ainda se encontra em fase de implementação e menos desenvolvido
que no caso brasileiro (MARTES & FALEIROS, 2013).
Com relação aos imigrantes haitianos, um estudo realizado na
cidade de Tabatinga, no Amazonas, mostra o impacto da chegada de um
grande número de imigrantes na cidade de cerca 50 mil habitantes, situada
na região da tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia (VÉRAN et
al., 2014). Os autores traçam um perfil dos imigrantes e relatam casos de
precariedade de condições de acolhimento, exploração dos haitianos nos
valores cobrados pelos aluguéis privados em residências frequentemente
insalubres, além do “medo sanitário” fomentado pelos próprios moradores
da região. Assinalam que ao se medir o impacto do processo migratório na
saúde mental desses indivíduos foram relatados maus tratos sistemáticos
com relação ao tráfico de pessoas, irresolução administrativa, condições
de alojamento desumanas, acesso insuficiente a alimentos, distorção da
imagem no nível da população local, estereótipo e “discriminação cordial”.
Os autores também expõem o vácuo existente entre as diferentes esferas
de governo para a atenção a essa população e a preocupação de não se
“facilitar” a assistência, evitando-se, assim, uma possível intensificação do
fluxo migratório já considerado acelerado para o município.
Outro trabalho que analisa o acesso à saúde dos imigrantes haitianos
assinala a falta de acesso à informação como fator de dificuldade de
obtenção dos serviços. Considera a avaliação dos serviços de saúde por
parte dos haitianos como heterogênea, alguns avaliando positivamente o
atendimento junto ao SUS, o qual preconiza o acesso universal, enquanto
outros reclamam de demora no atendimento e dificuldade de acolhimento
(FERNANDES & CASTRO, 2014).

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Corpos fora do lugar:... 125

No caso das migrações recentes na região Sul do Brasil no Vale do


Taquari, cabe ressaltar a habitação em moradias insalubres, as dificuldades
relativas ao trabalho árduo nos frigoríficos ou na construção civil, bem
como os problemas associados às dificuldades do domínio do idioma, o
que opera como um fator limitador das possibilidades de comunicação e
acesso aos serviços de saúde, bem como alguns postos de trabalho.
A imigração recente de haitianos para o Vale do Taquari apresenta
ainda certas especificidades. A principal delas é o fato de esta população
ter sido recrutada e ter vindo com uma oferta de trabalho já existente
no local. A primeira leva, em torno de 50 imigrantes, chegou ao final de
2012 para trabalhar em uma cooperativa de alimentos do município de
Encantado. De maneira concomitante, os jornais começaram a noticiar a
vinda de haitianos para trabalhar em empresas da construção civil.
Cinco anos depois da primeira chegada, há cerca de 400 haitianos
em Encantado e estima-se que um número semelhante esteja instalado
na cidade vizinha de Lajeado. O número é aproximado, pois o fluxo e a
circulação de indivíduos são permanentes: muitos continuam chegando
não mais através da empresa de alimentos, mas através das redes sociais de
contato com amigos e familiares, com recursos próprios ou com o auxílio
dos que já se encontram instalados, por indicação de parentes e amigos
previamente assentados nestes municípios.

AS AGENTES COMUNITÁRIAS DE SAÚDE E A DESCOBERTA


DOS IMIGRANTES EM LAJEADO

Enquanto que no município de Encantado o volume de imigrantes


contratados para trabalhar na empresa rapidamente chamou a atenção da
comunidade e foi noticiado pela imprensa local, no caso da cidade vizinha
de Lajeado, a descoberta da presença dos imigrantes pelo poder público
se deu de maneira distinta. Segundo o relato da Secretária de Assistência
Social, Trabalho e Habitação do município, as primeiras informações
sobre a presença de haitianos na cidade vieram a partir das Agentes
Comunitárias de Saúde (ACS). Segundo a secretária, já em 2012 as ACS
relatavam a presença de pessoas que “falavam uma língua diferente” e
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que elas não conseguiam se comunicar para fazer as entrevistas durante


as visitas domiciliares, relatando inclusive a presença de mulheres grávidas
entre essas pessoas. Foi somente com a grande enchente do Rio Taquari,
ocorrida em agosto de 2013, que o poder público tomou conhecimento
do grande número de imigrantes presentes na cidade. Segundo seu relato,
começaram a chegar caminhões lotados com imigrantes no ginásio de
esportes que havia sido disponibilizado para acolher os desabrigados.
Calcula-se que em torno de trezentos imigrantes foram trazidos para o
ginásio, além de haitianos (a maioria), havia também bengaleses, senegaleses
e ganenses12.
No plano internacional, diversas questões têm sido levantadas com
relação às especificidades da condição dos imigrantes e às desvantagens
cumulativas sofridas por essa população no acesso à saúde. Os problemas
relacionados com a imigração e o acesso à saúde se potencializam com
as dificuldades de domínio do idioma do país de acolhida, a aceitação
de postos de trabalho pesados e mal remunerados, a falta de suporte
formal e informal, ou seja, falta de contatos, laços e redes sociais e a falta
de acesso aos serviços (RAMOS, 2008; 2009). Bem como exposição ao
preconceito e ao isolamento social, passagem pelo processo de aculturação
e sofrimento psicológico dele decorrente, habitação em moradias precárias
e insalubres em regiões desfavorecidas e sujeitas às catástrofes naturais e
violência, deficiência alimentar, uso de drogas e álcool, entre outros, são
fatores que tornam essa população sensivelmente mais vulnerável do que
as populações locais.
A partir da experiência de vulnerabilidade dos imigrantes, a prefeitura
municipal de Lajeado começou a pensar estratégias para promover formas
de assistência a essa população. Uma interrogação que surgiu durante a
reunião entre as diferentes secretarias foi que a assistência aos imigrantes
poderia ter como efeito o aumento do fluxo. Uma vez que a prefeitura
municipal oferecesse apoio a essa população, eles poderiam se comunicar
no sentido de intensificar o fluxo, o que, a longo prazo, certamente

12
Depoimento recolhido durante reunião ocorrida em maio de 2014 no CRAS do município
de Lajeado.

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acarretaria uma série de problemas para a administração municipal. Sem


solução para o paradoxo, se decidiu convidar as outras prefeituras da região
e os empregadores para discutir o assunto e preparar a COMIGRAR
2014. Segundo relatos, os empregadores não compareceram, tampouco as
outras prefeituras convidadas enviaram representantes para Lajeado.
A falta de atenção por parte das autoridades locais cria um vazio
na assistência oferecida à população imigrante. Essa lacuna é preenchida
por iniciativas da sociedade civil, notadamente grupos pertencentes a
congregações religiosas (os escalabrinianos em Encantado e o setor jovem
da igreja evangélica em Lajeado), com realização de palestras e debates
para os haitianos. Somam-se a esses esforços a dedicação de professores
da universidade regional que buscam agir criando cursos de português
para estrangeiros e projetos de integração com os imigrantes com impacto
ainda bastante limitado. Em relação ao poder público, há a existência de
acolhimento por parte de um imigrante haitiano no espaço de um Centro
de Referência de Assistência Social (CRAS) na cidade de Lajeado para
encaminhar as documentações para acesso a outras políticas públicas, em
especial educação e saúde aos imigrantes e suas famílias.
O caso dos haitianos da região não difere do perfil encontrado
nacionalmente, e a migração pode ser entendida como um determinante
social de saúde que afeta as múltiplas dimensões da vida desses indivíduos
(GRANADA et al., 2017). Em 2014, a média salarial nacional dos
imigrantes haitianos era de R$ 988,00 (CAVALCANTI, 2016, p.238),
dado que mostra que eles se inserem no grupo de trabalhadores de baixa
qualificação, trabalhando na construção civil e em frigoríficos da região.
Portanto, no caso desses imigrantes, a inserção nas escalas salariais mais
baixas da sociedade potencializa as precariedades oriundas da condição de
imigrante. Ou seja, além de terem baixos salários, os haitianos são vítimas
de preconceito, discriminação, fracos laços sociais no local de acolhimento
e dificuldade de domínio da língua portuguesa. Em relação às mulheres,
somam-se as dificuldades de encontrar um trabalho porque sofrem
discriminação dos empregadores que as acusam de engravidarem tão
logo tenham acesso a um posto de trabalho. Homens e mulheres sofrem
a falta de parentes que ficaram no país de origem e a impotência gerada
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pela impossibilidade de enviar recursos aos que lá ficaram, visto que suas
imigrações não são projetos individuais, mas investimentos familiares.
Muitos deixam seus familiares próximos, inclusive esposas, maridos e
filhos na busca de uma melhor condição de vida.
No caso dos haitianos e das haitianas, as observações de Massey
(2013) possuem grande pertinência, pois afirma que a imigração é um
projeto da família ou do casal. Frequentemente, a inserção de um membro
da família no circuito migratório é fruto de um esforço coletivo em que
diversos familiares colaboram financeiramente para a sua realização, na
expectativa de retribuição uma vez o emigrante instalado em seu novo
país. Ocorre que no Brasil, em função dos baixos salários, do custo de vida
e das variações cambiais frequentes, o envio de recursos para os familiares
que ficaram no país de origem se torna difícil, senão impossível. Esse fator
gera estresse e sofrimento no migrante em função da impossibilidade de
auxiliar suas famílias de maneira satisfatória.
Os haitianos da região podem ser classificados como
“transmigrantes”, pessoas que reconfiguram suas identidades em função de
mais de um pertencimento nacional (BASCH et al., 1993). Recentemente,
tem ocorrido na região um fenômeno de repetição da migração ou
“remigração”, que “pode ser definido como o movimento de pessoas que
fizeram um primeiro deslocamento inter-regional e realizam outro um ou
dois anos depois, alguns voltando para seus países de origem enquanto
outros mudam para outras regiões” (GRANT & VANDERKAMP, 1986,
p.299).
Em função da crise que se instalou no país, depois de 2015 muitos
haitianos estão estabelecendo novas rotas migratórias. Nesta região
temos identificado o surgimento de rotas para o Chile e Guiana Francesa,
enquanto outros partem em uma longa e perigosa migração para a
fronteira entre México e Estados Unidos, rota que estava sendo bastante
utilizada durante o ano de 2016. Contudo, é provável que com a ascensão
do presidente Donald Trump ao poder nos Estados Unidos e com as
políticas de imigração cada vez mais restritivas, novas rotas se estabeleçam
e que novos países passem a fazer parte do circuito, fazendo com que os
imigrantes sejam vistos como corpos “indesejados”, ou seja, fora do lugar,

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bem como seus modos de vida, como analisa Fassin (2004), através da
biopolítica que opera em cada local.

AS AGENTES COMUNITÁRIAS DE SAÚDE E OS NOVOS


IMIGRANTES

Tendo monitorado o início da imigração dos haitianos em Lajeado,


as ACS são fonte de informação privilegiada sobre a integração e acesso
aos serviços de saúde no município, uma vez que em pesquisa sobre o
Sistema de Informação da Atenção Básico (SIAB) (CARRENO et al., 2015;
BRASIL, 2006), elas abordaram em grupo focal e entrevistas individuais
suas relações com a população imigrante. Essas profissionais relatam que
começaram a perceber os novos moradores na cidade já em 2012, sendo
que no início a presença mais significativa era de homens, mas que cada
vez mais se tornou possível encontrar famílias, com gestantes ou filhos
pequenos na região. Descrevem as dificuldades iniciais de comunicação
como algo novo, falam da necessidade de lançarem mão de gestos e
linguagem corporal para conseguirem se comunicar com os imigrantes.
Destacam também que nas famílias em que há crianças escolarizadas
elas se comunicam mais facilmente do que os adultos e, frequentemente,
exercem o papel de tradutores entre as ACS e seus pais e mães.
Para as ACS, chama a atenção a mobilidade dessa população: “eles
se movimentam bastante e é bem complicado, porque faço o registro e
logo tem que tirar”. Também percebem os problemas enfrentados pelos
imigrantes para conseguir uma moradia digna: “eles têm um pouco
de dificuldade com as locações, são casas que não oferecem muitas
condições de moradia, percebo é que eles têm bastante dificuldade com
as locações. São residências ruins, com problemas de esgoto, problema
de infiltração”. De fato, como notam as ACS, os imigrantes da região
encontram dificuldades em alugar residências adequadas para morar, pois
os aluguéis que conseguem frequentemente se localizam e zonas menos
valorizadas, zonas inundáveis em época de cheia do Rio Taquari ou casas
com problemas estruturais, falta de segurança, infiltrações e instalações
elétricas e sanitárias de baixa qualidade.
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As condições precárias de moradia, de acordo com as ACS,


certamente apresentam um impacto negativo nas condições de saúde
dessa população imigrante. Ao sofrimento do deslocamento de seu país
de origem se associam outros problemas relacionados com as condições
de vida difíceis no local de assentamento, causando uma maior exposição
e vulnerabilidade dessa população que fica exposta a riscos evidentes à sua
saúde e integridade física e mental13.
Nas suas representações as ACS, designam os “haitianos” como
uma população que é diferente da brasileira, pois possuem uma “cultura
diferente da nossa”, expressando assim uma visão etnocêntrica sobre os
imigrantes. Afirmam que os haitianos procuram a unidade de saúde por
prevenção e não por doença, sendo notável sua frequência nas Unidades
de Saúde da rede municipal. Em suas falas, caracterizam os haitianos como
cuidadosos em questões relacionadas à higiene e à vacinação das crianças
e afirmam que com frequência é mais fácil lidar com eles do que com
os próprios brasileiros. Os imigrantes têm acesso ao SUS como qualquer
cidadão brasileiro, sendo que a primeira iniciativa quando acessam o
serviço é o fornecimento do cartão SUS e da carteira de vacinação para
as crianças, inclusive porque para terem acesso às creches as crianças
precisam estar com a carteira de vacinação atualizada.

OS IMIGRANTES E O PRECONCEITO NO ACESSO À SAÚDE

Pelo fato de estarem em contato com os imigrantes nas ruas,


visitando e entrando em suas residências, as ACS afirmam que possuem
uma visão diferenciada dessas pessoas, pois já estariam acostumados a elas,
13
O conceito de saúde aqui evocado é entendido conforme o previsto na Lei 8.080 (BRASIL,
1990), a partir da qual se modifica de maneira profunda a política de Estado com relação à
saúde da população. A saúde passa a ser reconhecida como direito fundamental de todo o
ser humano. O Estado passa então a ter o dever de garantir a saúde da população através de
políticas públicas e sociais visando o acesso universal e igualitário ao sistema de saúde. Desta
perspectiva, em síntese, a saúde passa a ser entendida com sentido ampliado, compreendendo
o resultado das condições de vida, acesso à educação, moradia e trabalho. Dentre os princípios
e diretrizes que orientam o SUS, destacam-se a universalidade de acesso aos serviços de saúde
e integralidade da assistência (FERLA & ROCHA, 2013).

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Corpos fora do lugar:... 131

conseguindo entendê-las de maneira diferente. Entretanto, essa aceitação


não é partilhada por todos os membros das equipes das Estratégias Saúde
da Família (ESF). De acordo com os depoimentos, o pessoal dentro
da unidade não possui o mesmo olhar e, desse modo, faz-se a divisão
entre os funcionários que trabalham dentro da unidade e aqueles que
circulam nas casas. Os profissionais que trabalham na unidade pensam
que esses imigrantes são marginais, enquanto certas ACS os representam
como pessoas educadas e com estudo, os quais vêm trabalhar no Brasil
em condições precárias, e acreditam também que sua instabilidade nas
empresas estaria relacionada a questões psicológicas oriundas da desilusão
com as condições de vida no Brasil.
Segundo as ACS, os moradores os veem como pessoas que não
param no emprego e que não querem trabalhar, buscando somente
usufruir dos benefícios do país. Acreditam que sofrem com o preconceito
e os trabalhos precários dentro das empresas: na indústria alimentícia são
acusados de problemas de higiene como, por exemplo, não lavarem as
mãos com a mesma frequência dos brasileiros. Em contrapartida, as ACS
comentam que suas residências são simples, mas bem cuidadas. Afirmam
que eles são limpos, mas que têm características próprias para se vestir, o
que causa estranhamento nos moradores locais. Afirmam ainda que falta
um preparo maior para que os agentes lidem com questões interculturais,
inclusive para que não façam pré-julgamentos, uma vez que não tiveram
nenhum tipo de formação para lidar com essa população estrangeira e
encontram dificuldades na comunicação.
Esse debate reacende as ideias de Fassin (2000) que trouxemos no
início deste trabalho: o imigrante como pessoa suspeita de má higiene
ou que sempre está sendo colocado em posição de inferioridade, sendo
passível de julgamento sobre suas condições de higiene por parte dos
agentes comunitários de saúde e população local. O imigrante carrega
consigo esse duplo pertencimento, uma cidadania incompleta e inacabada,
vítima de avaliações e julgamentos etnocêntricos por parte daqueles que
atuam junto ao serviço de saúde e seus vizinhos locais. As representações
sobre os imigrantes acabam oscilando entre uma certa desconfiança por
sua origem estrangeira e uma certa compaixão com sua desgraça.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos demonstram que o corpo do imigrante é


a vítima preferencial dos processos de estigmatização relacionados aos
processos de saúde e adoecimento. Na medida em que a condição de
imigrante carrega consigo um caráter suplementar de vulnerabilidade em
função do próprio estatuto individual diferenciado face ao Estado e à
sociedade de acolhimento, ele também é percebido como um corpo fora
do lugar e, por vezes, “indesejável”. Sempre sendo vigiado e avaliado em
suas “boas intenções”, em sua higiene impecável ou pela forma com que
educa seus filhos. Nesse sentido, o processo migratório acarreta consigo
a passagem por um processo de aculturação, em que é preciso que aquele
que chega ao local de acolhimento passe a adotar desde a língua até os
traços mais profundos de inclusão da sociedade de acolhimento para
poder ser aceito e ali circular, provando sua capacidade de ser assimilado.
Weintraub e Vasconcellos (2013), ao refletirem as contribuições
de Didier Fassin (2000) em suas análises nas questões de saúde e
doença pelos fenômenos migratórios, compreendem os usos políticos
e biopolíticos por trás das razões humanitárias em oposição às razões
traumáticas, operadores fundamentais na sociedade atual para entender
as migrações como uma questão social, de saúde, de segurança e moral.
Afinal, a economia moral (FASSIN, 2014) marca o contexto institucional
dos serviços de saúde, os pressupostos ético-políticos de cuidado; bem
como os princípios compartilhados como certos ou errados na sociedade
e, igualmente compartilhados pelas ACSs e outros profissionais de saúde.
À vulnerabilidade dessa condição somam-se o desconhecimento
da legislação, a falta de vínculos com a população local, a dificuldade de
comunicação em função do desconhecimento da língua, a dificuldade
de acesso aos direitos sociais e à saúde e as interseções de desvantagens
cumulativas em que se combinam preconceito em razão da cor da pele e da
origem estrangeira. Essas desvantagens afetam diretamente a experiência
dos haitianos e geram como consequência a existência de um contingente
de trabalhadores vulneráveis.

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Cabe ressaltar a importância das ACS no monitoramento da


população, extrapolando suas funções de elo entre a comunidade e
a Estratégia Saúde da Família, e se constituindo em informantes da
administração municipal sobre as mudanças populacionais da região,
bem como a necessidade de se oferecer uma preparação adequada para
todos os profissionais de saúde e demais políticas públicas a fim de que
orientem o cuidado e o acesso em saúde na população de novos imigrantes.
Conforme Knobloch (2015), compartilhamos o desafio de uma formação
de trabalhadores no atendimento à saúde física e mental dos migrantes
para dar suporte a um encontro que compreenda a representação da saúde
e da doença no contexto de origem e as especificidades atuais de vida
dessas pessoas sem produzir maior preconceito às condições já vulneráveis
de imigrante ou de refugiado.

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TRABALHO, MIGRAÇÃO E GÊNERO: A
TRAJETÓRIA DA MULHER HAITIANA NA
INDÚSTRIA DA CARNE BRASILEIRA

Letícia Helena Mamed1

RESUMO: O artigo objetiva discutir a recente imigração haitiana para o Brasil a partir
da experiência feminina, visando à construção de uma análise centrada em agentes
frequentemente silenciados e invisibilizados, para quem o significado do projeto migratório
reforça uma perspectiva laboral e familiar, englobando tanto os membros que permanecem
na terra natal quanto os que partem em busca de alternativas. Acompanhando seus pais
ou companheiros, mas também de maneira independente ou como chefes de família,
manifestam aspirações básicas de trabalhar, obter renda suficiente para sua manutenção
no Brasil e da família no Haiti. A abordagem do percurso feminino nesse processo, sob a
perspectiva crítica da Sociologia do Trabalho, é construída em diálogo com a etnografia
multisituada de itinerários de haitianos que residem e trabalham na região Sul do Brasil,
conectados à cadeia agroindustrial da carne. Em vista da modernização dependente do
capitalismo em uma sociedade de base escravista, a haitiana, como imigrante, mulher e
negra, socialmente vulnerável, enfrenta um mercado de trabalho desigual e segregado, em
termos ocupacionais e salariais, segundo o gênero, a raça e a origem, que a direciona ao
polo dos trabalhos mais precários e explorados.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Migração; Gênero; Mulher Haitiana; Agroindústria;
Brasil.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de
Campinas, com bolsa do Programa de Formação Doutoral Docente (Prodoutoral/UFAC/
CAPES). É professora de Teoria Social/Sociologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal do Acre, e membro dos grupos de pesquisa Mundos do Trabalho na
Amazônia (UFAC-CNPq) e Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (CNPq/UNICAMP).
Contato: [email protected]

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140 Letícia Helena Mamed

LABOR, MIGRATION AND GENDER: THE


TRAJECTORY OF HAITIAN WOMEN IN
BRAZILIAN MEAT INDUSTRY

ABSTRACT: This article aims to discuss the recent Haitian immigration to Brazil from
the female experience; it aims to construct an analysis centered on agents that are often
silenced and invisible, for whom the meaning of the migration project reinforces a work
and family perspective, including both members who remain in the homeland and those
who leave in search of alternatives. They accompany their parents or partners, but,
whether independently or as heads of families, they manifest basic aspirations to work, to
obtain sufficient income for their maintenance in Brazil and their families in Haiti. From
the critical perspective of Sociology of Work, the approach of women in this process
is constructed in dialogue with the multi located ethnography of itineraries of Haitians
residing and working in the South region of Brazil, connected to the agribusiness meat
network. In view of the modernization dependent on capitalism in a slave-based society,
Haitian women - being an immigrant, a black and a socially vulnerable woman - faces an
unequal and segregated labor market, in terms of employment and wages, according to
nationality, race and the genre, which leads to more precarious and exploited jobs.
KEYWORDS: Job; Migration; Genre; Haitian Women; Agroindustry; Brazil.

INTRODUÇÃO

Tratar a imigração como um fato histórico e estrutural, que transcende


eventos específicos, posicionando-a em um contexto mais amplo no
tempo e no espaço, é o passo inicial para melhor entendimento da sua
feição no Haiti. Essa abordagem permite compreender a sua edificação ao
longo do processo de formação social, econômica e política do país, que
em convergência com situações de desastres socioambientais, assentou os
seus elementos caracterizadores (DESROSIER, 2014; JACKSON, 2011;
HANDERSON, 2015a, 2015b; SEGUY, 2014). Destarte, historicamente
a sociedade haitiana expande as redes do seu espaço social, que assume
dimensão transnacional (BACSH et al., 1994; MARCELINO, 2013) em
meio a um processo que é síntese da produção e reprodução de fatores

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Trabalho, Migração e Gênero:... 141

de expulsão dos seus nacionais (HALLWARD, 2006). É diante desse


panorama que está assentada a proposta deste artigo – discutir a recente
imigração haitiana para o Brasil a partir da experiência feminina2.
Conjuntamente aos fatores internos de expulsão, que gestam tensões
e fluxos migratórios, concorrem as dinâmicas responsáveis por interligar
sociedades de origem e de destino dos imigrantes. A conexão entre países,
por meio de empresas multinacionais ou investimentos estrangeiros, por
exemplo, suscitam condições materiais e tipos de imaginários, elementos
importantes para configuração da mobilidade (SASSEN, 2011). Desse
modo, o fenômeno da imigração, complexo e particularmente referenciado
em termos sociais, econômicos, políticos e culturais, é um “fato social
total”, pois atinge e altera todas as esferas com as quais está em contato,
seja no país de emigração e/ou de imigração (SAYAD, 1998), estando
aberto ao exame a partir de múltiplas dimensões.
Conforme os propósitos deste trabalho, uma dimensão em especial
será explorada, que é o caráter estrutural das migrações internacionais
para o funcionamento do mercado de trabalho no modo de produção
capitalista (FERNANDES, 1973; MARX, 2014). Para tanto, o ponto de
partida são as desigualdades de desenvolvimento existentes no mercado
mundial, entre classes, povos e nações (BASSO, 2013). Isso significa
reconhecer que os desequilíbrios estruturais de desenvolvimento, gestados
desde o colonialismo, com todas as instituições financeiras e militares que
os favorecem, são reproduzidos e desigualmente combinados no atual
contexto de mundialização (CHESNAIS, 1996; CHOSSUDOVSKY,
2003).
Essa engrenagem retroalimenta as imigrações dos países
empobrecidos, endividados e dominados, em direção aos ricos e dominantes,
constituídos à sua custa. Na mesma proporção em que relações de tipo
2
O artigo é desdobramento da pesquisa de tese da autora, em fase de finalização, que versa
sobre a imigração haitiana no Brasil, entre os anos de 2010 e 2016, pela fronteira amazônica
do Estado do Acre, e cuja orientação primordial foi o recrutamento para o trabalho na
agroindústria da carne do país. A pesquisa utiliza metodologia de natureza qualitativa e
procedimentos técnicos que combinam exame bibliográfico e documental, com investigação
de campo. Orientada como etnografia multissituada, a investigação empírica se desenvolveu
em 5 campos geográficos e 10 períodos distintos, englobando 4 países e 18 cidades.

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142 Letícia Helena Mamed

colonial entre o chamado Norte e Sul continuarem a existir, movimentos


migratórios tenderão a perdurar. Contudo, não se trata apenas de aferir
uma relação entre blocos, como se fossem entidades homogêneas no
plano territorial e social, pois os processos se diversificaram nos últimos
anos (BASSO, 2013). Seguindo essa pista analítica, aborda-se o caso do
Haiti, que representa o êxito de um projeto colonial resistente na América
Latina e Caribe, e como ele pode condicionar os caminhos de um país.
Entre o final do século XVIII e ao longo do século XIX, a França
foi o primeiro destino dos haitianos. No decorrer do século XX, outros
passaram a recebê-los, notadamente a República Dominicana, Cuba,
Estados Unidos e Canadá (DIEME, 2016; HANDERSON, 2015a;
SEGUY, 2014). Embora não seja um fenômeno novo, a emigração
haitiana cresce sistematicamente desde a década de 1960, em especial para
países capitalistas centrais. Localizado no esquema migratório Sul-Norte,
esse fluxo possui conteúdo histórico e lança luzes sobre a atual presença
haitiana no Brasil. França e Estados Unidos historicamente exercem
controle econômico, político e militar sobre o Haiti. Enquanto a presença
francesa inscreveu-se no marco da economia colonial e fragmentou-se com
a Independência haitiana em 1804, a ocupação militar norte-americana
iniciou em 1915, e, apesar de destituída em 1934, institucionalizou-se no
sistema econômico e político do país (CASTOR, 1971; HALLWARD,
2006).
Os Estados Unidos sedimentaram sua presença no Haiti dominando
as estruturas produtivas e influenciando a política nacional de acordo
com o interesse de suas empresas. Nas últimas décadas do século XX,
essa dinâmica intensificou a polarização de classe e agravou as condições
sociais. Logo, sucessivos golpes e deposições tornaram-se a face mais
visível de um país profundamente desigual (CASTOR, 2008; HALLWARD,
2006), ao passo que a presença militar externa precisou ser renovada. Foi
nesse contexto que a Organização das Nações Unidas (ONU) interveio
por meio da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti
(MINUSTAH), definida para atuar por 6 meses, com início em junho de
2004, mas que foi continuadamente ampliada por 13 anos, sob liderança

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Trabalho, Migração e Gênero:... 143

do Exército Brasileiro (KÜHN, 2006; SEGUY, 2014).3


Nesse mesmo período aconteceu a diversificação dos destinos
haitianos, emergindo um esquema migratório Sul-Sul, notadamente
direcionado ao Brasil. Com a eclosão da crise global de 2007-2008 e
recrudescimento das políticas imigratórias nos países centrais, o Brasil
apareceu como destino interessante a emigrantes em busca de trabalho
ou oportunidade de inserção profissional. À época, na contracorrente da
conjuntura internacional, divulgava-se uma imagem positiva do Brasil,
discurso que a mídia difundia e a presença militar no Haiti reforçava. Um
“país emergente”, em pleno processo de “crescimento e desenvolvimento”,
o que, em geral, era exemplificado pelo fato de sediar grandes eventos
esportivos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
Esses elementos modelaram um vetor ideológico, cujo papel foi decisivo
na construção da “obsessão de migrar” (SAYAD, 1998), bem como na
“indução e direcionamento dos fluxos” (SASSEN, 1998).
Ao acompanhar a imigração haitiana no Brasil a partir do Estado
do Acre, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Bolívia e Peru, esta
pesquisa, em várias incursões a campo entre os anos de 2010 e 2016,
constatou oscilações entre crescimento e redução do fluxo, assim como
sua paulatina diversificação, pois composto por imigrantes oriundos
de várias regiões do Haiti, de diferentes classes sociais, gerações e com
significativo contingente feminino. Segundo a base de dados do Sistema de
Tráfego Internacional (STI), gestada pela Polícia Federal, de 2010 a 2016,
registrou-se a entrada de 95.691 e a saída de 21.283 haitianos do Brasil,
com saldo de 74.408, equivalente a 77% positivo, maior destaque entre as

3
Durante as atividades de campo da pesquisa no Haiti, entre março e abril de 2017, com vivência
e entrevistas no âmbito do Batalhão brasileiro, registrou-se parte do processo de encerramento
da Minustah. Posteriormente, em 31 de agosto, foi oficialmente declarado o seu término, com
retirada das tropas do país entre outubro e novembro daquele ano. Desde então teve início
uma nova operação da ONU, chamada Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no
Haiti - Minujusth, uma espécie de programa para fortalecimento das instituições haitianas.
Em uma atuação marcada por críticas e controvérsias, que englobam desde a disseminação
de epidemias (FOLHA, 2016) a denúncias de abuso e exploração sexual cometidos por seus
militares (BRASIL, 2017), a Minustah apresentou gastos anuais da ordem de U$ 400 milhões e
envolveu 37,5 mil militares brasileiros no país (FÉLIX, 2017).

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21 nacionalidades com maior movimentação no período (STI, 2017 apud


OLIVEIRA, 2017). Outra referência é oferecida pela União Social dos
Imigrantes Haitianos (USIH), uma das maiores entidades representativas
deles no país, que estimou, até 2016, a chegada e permanência de 60 a 70
mil pessoas (BACOURT, mar. 2017, São Paulo, SP).
Considerando especificamente o ingresso pelas fronteiras da
Amazônia, desde o início da década, cerca de 44 mil haitianos acessaram
o país. Nessa região, foram duas as principais rotas de entrada adotadas,
sendo uma pela cidade de Tabatinga, no Estado do Amazonas, que existiu
até o ano de 2013, e outra por Assis Brasil, no Estado do Acre, que
permanece ativa. Em torno de 7 mil chegaram por Tabatinga, de 2010
a 2013 (HANDERSON, 2015a), e 37 mil por Assis Brasil, entre 2010 e
2015 (SEDS/AC; SEJUDH/AC, 2016). De acordo com o mapeamento
realizado pela pesquisa no Acre, posteriormente confrontado com o
acervo documental do acampamento oficial de imigrantes instaurado no
estado, delineou-se um perfil social do haitiano que chegou por aquela
fronteira: (i) de 2010 a 2012, os grupos eram compostos, em sua maioria,
por homens jovens, com idade entre 20 e 35 anos, em fluxo bastante
irregular; (ii) de 2012 a 2016, os grupos se diversificaram, apresentando,
além de homens, jovens e maduros, cada vez mais mulheres (com filhos
e/ou gestantes), crianças, adolescentes e famílias; (iii) de 2013 a meados
de 2015, o fluxo assumiu certa regularidade, com picos de elevação em
determinados momentos, com chegada média de 30 a 50 pessoas por dia
ao acampamento mantido pelo poder público (MAMED, 2016a, 2016b).
De modo geral, o público recebido era composto de 80% de
homens, 15% de mulheres e 5% de crianças. Pela fronteira do Acre, que
representou, de 2010 a 2016, a principal porta de acesso de haitianos ao
Brasil, observou-se que as mulheres desempenharam papel determinante
na configuração do fluxo de entrada e posteriormente das comunidades
estabelecidas, não só em termos de sua representação numérica crescente,
mas como agentes econômicos e sociais, capazes de mobilização e
organização em prol de demandas específicas. Muitas imigraram seguindo
seus pais ou companheiros, mas número expressivo também de maneira
independente ou como chefes de família, motivadas por aspirações

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


Trabalho, Migração e Gênero:... 145

básicas de trabalhar, obter renda suficiente para manter-se no Brasil e,


principalmente, garantir remessas financeiras necessárias à sobrevida da
família na terra natal. O significado do projeto migratório, no caso das
mulheres, reforça uma perspectiva laboral e familiar, englobando tanto os
membros que permanecem no Haiti quanto os que partem em busca de
alternativas.
No Brasil, é preciso pontuar que por certo tempo houve relativo
déficit de estudos sobre imigração feminina. A partir da década de 1980
é que começaram a ser desenvolvidos estudos abrangentes e específicos
referentes ao tema, suprindo a considerável lacuna na historiografia sobre
a mulher imigrante, suas estratégias e projetos autônomos (MATOS, 2002;
MENEZES, 1992; RAGO, 1991). Na abordagem deste artigo, pretende-se
examinar a inserção da mulher imigrante, no caso a haitiana, no mercado de
trabalho brasileiro. Para tanto, pretende-se superar a visão geral da imigração
como “fenômeno masculino”, na qual a mulher aparece somente como
“acompanhante” e “dependente” do homem no projeto e na experiência.
Do mesmo modo, não se intenciona pensar sua visibilidade a partir da
“miséria” ou da “passividade”, tendências que reproduzem estereótipos
da imigrante como aquela que precisa “ser assistida”, ocultando suas
“iniciativas autônomas”, e que até as torna reféns da “estigmatização
moral”, por reproduzir um olhar que enaltece os “custos sociais da sua
emigração” para com a sociedade de origem, decorrentes, por exemplo,
da “separação da família e dos filhos” (MOROKVASIC, 2011, p. 36-37).
O ponto de partida deste exame é o reconhecimento de que a maior
“vulnerabilidade objetiva e subjetiva” da imigrante implica em um risco
maior à imposição de condições precárias e da exploração do trabalho.
A análise da sua inserção laboral no contexto brasileiro passa pela
compreensão dos condicionantes da divisão sócio-sexual e internacional
do trabalho, que agem em escala mundial e estão sedimentados
historicamente no mercado de trabalho nacional. Assim, serão resgatados
aspectos relacionados à desigualdade e segregação, em termos ocupacionais
e salariais, por critérios de gênero, raça e nacionalidade, na perspectiva
de melhor compreender e reposicionar a condição da imigrante haitiana,
mulher e negra nesse processo.
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Essa discussão será construída em diálogo com o material


etnográfico elaborado durante o estudo de trajetórias de haitianos e
haitianas que ingressaram pelo Acre e seguiram para trabalhar e organizar
suas vidas no Centro-Sul do Brasil. Para tanto, o artigo está estruturado em
três seções. A primeira apresenta a história de Veronique Delfort, haitiana
cuja trajetória é ressaltada como experiência social do mundo do trabalho,
dado que personifica uma conjunção de elementos imprescindíveis ao
debate. Já na segunda, esses elementos são examinados para caracterizar
o contexto socioeconômico e o horizonte de precarização e exploração
do trabalho encontrado no país por imigrantes negras, mas diante do qual
elas constroem estratégias de resistência. Por fim, na terceira, destinada às
considerações finais, são alinhados os principais pontos do debate para a
reflexão em torno da experiência feminina na recente imigração haitiana
no Brasil.

ENTRE O SONHO E A REALIDADE: UMA EXPERIÊNCIA


FEMININA DA IMIGRAÇÃO HAITIANA

Em outubro de 2015, na cidade de Toledo, região Oeste do Estado


do Paraná, a pesquisa conheceu Veronique Delfort4, imigrante haitiana
cuja história ilustra o debate deste trabalho. Mãe autônoma de cinco filhos,
com idades entre 6 e 21 anos, abandonados pelos pais, ela é natural de
Petite Rivière de l’Artibonite, cidade do interior do Departamento de
Artibonite, no Noroeste do Haiti. Aos 36 anos, partiu para o Brasil no dia
15 de dezembro de 2011, chegando ao Acre em 4 de janeiro de 2012, em
um momento do fluxo que preponderava a entrada de homens jovens por
essa fronteira, aspecto que notabiliza muito sua trajetória.
Com seus pais, irmãos e filhos, Delfort residia na propriedade rural
da família, de onde nunca havia saído, até viajar para o Brasil. Filha e
neta de pequenos agricultores, desde cedo trabalhou no cultivo de milho e
arroz, negociados no comércio regional e principal fonte da renda familiar.

4
Nome fictício adotado para garantir o sigilo da identidade, proteção da privacidade e
individualidade da imigrante, conforme o protocolo de ética adotado pela pesquisa.

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Trabalho, Migração e Gênero:... 147

A necessidade de se dedicar a essa atividade a obrigou a interromper os


estudos. Ao longo dos anos, assumiu o papel de chefe da sua família,
especialmente demonstrado na decisão de emigrar sozinha em busca de
trabalho, recursos e oportunidades, aspirações de todo o núcleo familiar.
Com habilidade apenas na língua Creole e o ensino fundamental,
seguiu para aquele que, segundo ela, era o único lugar do mundo aberto
para os haitianos no momento:

Vinha procurando um país que estivesse aberto. Tem um


amigo meu que foi para os Estados Unidos. Mas eu não
tinha dinheiro suficiente para conseguir chegar lá, que é mais
caro e difícil. Então só tinha o Brasil, onde todo mundo
entra, onde é mais fácil. Aí eu vim na frente para trabalhar,
ajudar os meus filhos e os meus pais no Haiti (DELFORT,
out. 2015, Toledo, PR).

Sua família reuniu as economias de quase cinco anos de trabalho


no campo para que ela conseguisse pagar a viagem, que, incluindo o custo
das passagens rodoviárias e aéreas, as despesas durante o deslocamento
e os valores cobrados pelos coiotes, custou em torno de U$ 5.000. Ao
ser questionada sobre o que conhecia do país antes de aqui chegar, ela
respondeu de modo simples e breve: “nada, nada”.
Delfort recorda de ter chegado à fronteira entre Peru e Brasil muito
apreensiva e doente. Quando recebida no acampamento de imigrantes,
que à época funcionava na cidade acreana de Brasileia, solicitou refúgio e
aguardou a regularização da sua documentação, onde também foi medicada
e recebeu alimentação diferenciada. “Sentia muito cansaço, tinha dor e
febre, porque a viagem foi longa, cansativa, difícil. Eu não comia direito,
passava necessidade”, lembra.
Permaneceu no local pouco mais de um mês, quando saiu contratada,
junto com outros 18 haitianos (2 homens e 16 mulheres), para trabalhar
em uma fazenda de cultivo de flores, na cidade de Holambra (SP). Uma
empresa do setor dirigiu-se até o Acre para recrutar o grupo, custeando
as passagens rodoviárias e a alimentação, até a cidade do interior paulista.

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148 Letícia Helena Mamed

Trabalhei uns sete meses nessa fazenda. Lá, trabalhava


todos os dias, das 7h30 às 16h ou 17h, dependendo da
quantidade de trabalho que tinha pra fazer. Ganhava muito
pouco. Tinha carteira assinada com um salário mínimo,
mas ganhava menos de R$ 600,00, porque descontavam a
comida e a moradia (DELFORT, outubro de 2015, Toledo,
PR).

Frustrada com as condições de trabalho e principalmente com a


pouca remuneração, que comprometia as suas remessas para a família no
Haiti, Delfort passou a procurar outro trabalho. Por meio das redes de
imigrantes já estabelecidos no Brasil, ouviu falar de Cascavel (PR), para
onde se dirigiu após encerrar o trabalho na fazenda. Ao chegar à cidade
paranaense, polo importante do agronegócio nacional, rapidamente
conseguiu emprego na obra de construção do Centro Universitário
Fundação Assis Gurgacz (FAG)5, na área de serviços gerais, para atuar na
limpeza.
Tinha sempre muito trabalho pra fazer, mas lá eu tinha
carteira assinada, ganhava um salário, mais alimentação e
transporte. E isso era bem melhor que na fazenda. Fiquei
1 ano e 6 meses na FAG. Muitos haitianos trabalharam
nessa construção, na obra e na limpeza. Mas depois que a
obra terminou, o chefe demitiu a gente. Aí recebi o seguro
desemprego, fiquei cinco meses sem trabalhar, até que fui
para a Coopavel (DELFORT, outubro de 2015, Toledo,
PR).
5
Corresponde a uma fundação privada que integra o grupo empresarial da União Cascavel
de Transporte e Turismo Ltda. (Eucatur), a maior empresa de transporte rodoviário da
região Norte. Entre os anos de 2013 e 2015, o governo do Acre contratou essa empresa para
operar o deslocamento e distribuição de trabalhadores imigrantes nas regiões Centro-Oeste,
Sudeste e Sul do país, o que posteriormente tornou-se objeto de inquérito civil conduzido
pelo Ministério Público Estadual, que apura denúncias de superfaturamento no procedimento
(MELO, 2018). O grupo Eucatur é liderado por Assis Gurgacz e seu filho, o senador Acir
Gurgacz (PDT-RO). Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ele corresponde
ao terceiro parlamentar mais rico do Senado Federal, dada a dimensão do patrimônio familiar
que representa, englobando importantes empresas dos ramos de mineração, construção civil,
agropecuária (fazendas e frigoríficos), comunicação e ensino, em diversas cidades do Paraná e
de Rondônia (SENRA, 2016).
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Trabalho, Migração e Gênero:... 149

Na Cooperativa Agroindustrial de Cascavel (Coopavel)6, onde


trabalhou pouco mais de um mês, a vida de Delfort mudou definitivamente.
Logo que começa a descrever sua traumática experiência em um dos
maiores frigoríficos do Oeste paranaense, a ansiedade e a tensão a
dominam. Sua voz aumenta de tom e ritmo, suas expressões corporais
refletem dor e angústia:

Quando procurei trabalho na Coopavel [planta frigorífica


de Cascavel], fui contratada no mesmo dia. Fiz os exames
e já me mandaram para o setor de limpeza. Eu chegava
pra trabalhar por volta das 16h, até 17h, no máximo. Aí
trabalhava direto até 4h ou 5h [turno da noite/madrugada].

(...) No primeiro dia, no segundo, tudo bem. Mas no terceiro


o chefe disse pra entrar na máquina de fazer salsicha e limpar
por dentro. Aí eu disse: “chefe, eu tenho medo de máquina.
Tenho medo de entrar nela. Por favor, não faz eu entrar”.
O chefe não gostou e disse: “por que você tem medo? (...)
você trabalha aqui, tem que entrar”. Mas eu insisti: “não,
chefe, não posso entrar”. Então ele disse: “você vai brigar
comigo? (...) se você tem medo, vai ficar só 45 dias e vou
te dispensar”. Falou isso na frente de todo mundo (...).
Perguntei: “por quê? (...) eu trabalho muito, chefe”. E ele
disse: “Não adianta, se você não entrar na máquina (...), vai
sair!”. Como não entrei na máquina, naquele dia me deram
um papel dizendo que eu tinha recebido advertência.

6
Fundada em 1970, por um grupo de 45 agricultores, a cooperativa visava concentrar a produção
de grãos da região de Cascavel. Hoje é uma das 20 maiores empresas do agronegócio brasileiro,
contando com 26 filiais instaladas em 17 municípios do Oeste e Sudoeste paranaenses. Possui
4.398 associados e 5.169 empregados diretos, com faturamento de mais de R$ 1,6 bi em 2014.
Conta com unidades de pesquisa, ensino, laboratórios e incubadoras, além de um parque de
produção composto por 11 indústrias, que recebem os produtos in natura e os processam.
Essas indústrias, que vão da soja à carne (aves, suínos e bovinos), contribuem para 75% do seu
faturamento, com produtos comercializados em todo o país e no exterior. Essas informações
estão indicadas no perfil da empresa, em sua página oficial na internet. Disponível em: <http://
www.coopavel.com.br>.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


150 Letícia Helena Mamed

(...) Dali em diante eu comecei a entrar na máquina, mesmo


com medo. Porque se a pessoa não faz o que o chefe manda,
dão um papel de advertência e a gente leva suspensão, que
desconta no salário (...). Tive que entrar porque era obrigada.
Trabalhava na pressão. A gente limpava todos os setores da
fábrica, desde as salas de corte até a parte das máquinas.
E todo dia eu entrava na máquina pra fazer limpeza. A
máquina é muito grande e lá dentro é escuro. Subia as
escadas e depois descia dentro dela. Jogava sabão em pó e
pegava a esponja para esfregar com a mão para tirar todo
o resto de carne e gordura que ficava grudado no cilindro,
porque não podia usar escovão”.

(...) No dia que eu fazia 30 dias lá, quando eu tava dentro da


máquina, fazendo a limpeza, aconteceu o acidente que tirou
metade do meu braço direito. Nesse dia, tava eu e outra
colega dentro da mesma máquina. A gente sempre entrava
de duas, porque a máquina é grande pra limpar. Eu tava
na parte debaixo e ela na parte de cima. A máquina, que é
automática, pensou que o meu braço fosse carne e começou
a funcionar. Tudo muito rápido. Na hora, não senti nada.
A minha colega, que estava em cima, foi quem começou a
gritar (...). Depois de uns minutos paralisada, ouvindo os
gritos da minha colega, é que eu me dei conta do que tinha
acontecido. Meu Deus! Aí eu também comecei a gritar (...).
Na hora não deu sangue porque tava muito gelado. Ficou
muito tempo sem sangrar, só duas horas depois é que
começou”.

(...) Os meus colegas haitianos vieram e me ajudaram a sair


da máquina. Eles ficaram me consolando. Depois é que
chegou o pessoal da empresa pra me levar ao hospital. Não
chamaram nada de polícia (...). Também não chamaram
ambulância (...). O pessoal da empresa é que me levou (...).
Meus colegas ficaram na empresa, trabalhando.

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Trabalho, Migração e Gênero:... 151

(...) Fui atendida no Hospital Universitário. Fiquei uns quatro


dias lá. O médico me atendeu bem, conservou comigo e
explicou as coisas. Disse pra empresa procurar uma mão
mecânica pra mim, mas nunca fizeram nada (...). Todos os
haitianos da cidade foram me visitar. Era muita gente, todo
dia. Aí o médico disse que eles faziam bagunça. Então me
mandaram logo pra casa (...). É que todos queriam me ver e
saber o que tinha acontecido.

(...) Enquanto eu tava no hospital, a empresa mandava todo


dia umas pessoas pra me visitar e conversar comigo. Depois
passou. Eu é que fiquei indo ao hospital todo dia durante
um mês. Eu ia lá pra saber como estava o meu curativo. A
empresa comprava os remédios pra mim, mas só isso. Eu
falava pra eles que tava sem comida, sem dinheiro pra pagar
o aluguel da casa onde morava (...), mas eles diziam que não
tinham como me ajudar.

(...) Depois do acidente, a empresa me mandou para o


INSS e eu fui aposentada lá. Passei a ganhar uns R$ 900 por
mês, mas este mês ganhei menos e também já me disseram
que vai diminuir mais. Não sei como isso funciona (...), tô
procurando entender pra mudar isso (...). Eu até ligo pra
empresa, pedindo ajuda, mas não fazem nada (DELFORT,
outubro de 2015, Toledo, PR).

No dia do primeiro encontro e entrevista à pesquisa, em outubro


de 2015, Delfort lembrou que naquele mês completava um ano do
acidente, que aconteceu quando ela cumpria período de experiência na
empresa. À época da contratação, seu salário era de R$ 1.014,00, contudo,
após o acidente, passou a receber um benefício social de menor valor.
Com o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT) encaminhado pela
empresa, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) avaliou o caso e
concedeu a ela o direito a um “auxílio por incapacidade laboral”, voltado
para sua subsistência, no valor de R$ 970,00 mensais, até que pudesse
ser reabilitada profissionalmente. Seguindo os conselhos de amigos
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017
152 Letícia Helena Mamed

haitianos, Delfort precisou procurar um advogado particular para lhe


ajudar nos procedimentos, já que o sindicato do setor nunca a assistiu.
Posteriormente, também ingressou na Justiça do Trabalho com pedido de
indenização da empresa por danos morais.
Além do choque físico e emocional provocado pelo acidente,
ela passou a se sentir atormentada diante da desconhecida legislação e
burocracia brasileiras. Considerando que a cada seis meses precisava
comparecer ao INSS e se submeter a nova perícia para renovação do
benefício, isso se converteu em um fantasma em sua vida, pois temia
perdê-lo. Ao avaliar sua condição, ela própria se reconhece incapacitada.
No hospital, recomendaram que ela aprendesse pouco a pouco a manusear
o braço esquerdo para suprir a ausência do direito, mas ela afirmava não
conseguir, tendo que pedir ajuda a outras pessoas para realizar suas tarefas
pessoais mais rotineiras, como comer, tomar banho, cozinhar, limpar casa e
lavar roupa. Também como desdobramento do acidente, desenvolveu um
quadro de pressão alta, controlada diariamente à base de medicamentos,
sem os quais sente palpitação, dores musculares e enxaqueca.
Em virtude desse conjunto de circunstâncias, Delfort oscila
entre estados de impaciência, tristeza e depressão. Por conseguinte, a
possibilidade de continuar o seu projeto migratório no Brasil, de trabalhar
para amparar a família, ficou comprometido.

(...) sempre trabalhei muito na vida, desde pequena. E nunca


tive nenhum problema de saúde. Mas agora tudo tá doendo.
Sinto dor no meu braço e o susto do acidente também me
deu problema no coração e na cabeça. Agora eles não vivem
bem (...) mas eu vou continuar (DELFORT, outubro de
2015, Toledo, PR).

A estratégia de Delfort foi convocar para o Brasil dois dos seus cinco
filhos mais velhos, para que pudessem trabalhar e seguir o projeto. Para
tanto, novamente a família levantou os recursos suficientes para a viagem
dos jovens. Posteriormente, a própria mãe de Delfort chegou para ajudá-la
nas atividades domésticas e buscar trabalho na região. Reunidos no Brasil,

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Trabalho, Migração e Gênero:... 153

ela decidiu mudar-se para Toledo, cidade vizinha a Cascavel, onde o custo
de vida é menor e, conforme as redes, os frigoríficos ofereciam mais vagas
de trabalho naquele momento.
Conforme assinalado, Delfort cumpria jornada diária de 10 a
13 horas, trabalhando de segunda a sábado. No seu turno, o da noite,
a proporção era de mais haitianos que brasileiros, e no seu setor, mais
mulheres que homens. Diariamente, todos procuravam fazer hora extra,
inclusive aos sábados, pois isso ajudava no salário. Para se deslocar até
o trabalho, ela utilizava o transporte assegurado pela empresa e também
fazia uma refeição no próprio frigorífico. Do salário previsto para os que
estavam começando, eram realizados os descontos regulares como INSS,
seguro de vida obrigatório e contribuição sindical, razão pela qual todos
buscavam, na hora extra e nas pequenas economias diárias, formas de
compensação dessas subtrações.
O diálogo da pesquisa com Delfort suscitou muitos questionamentos
sobre o processo de orientação e treinamento oferecido pela empresa aos
operários recém-contratados, especialmente aos de origem estrangeira,
que desconhecem o idioma nacional e sequer compreendem os contratos
de trabalho que assinam:

(...) Falo e entendo pouco o Português (...). Ninguém me


explicou nada na minha língua. Essa era a pior coisa que
tinha lá. Cada um fazia um contrato, com muitas páginas,
e você não tem uma pessoa pra te explicar na sua língua.
Os meus amigos haitianos é que me ajudavam quando eu
trabalhava na empresa e também me ajudam agora que
estou desse jeito. Quando comecei lá, também ninguém
me ensinou nada. Mandavam fazer e eu obedecia, porque
precisava daquele trabalho (...). Depois do que aconteceu
comigo, alguém disse que tempos atrás uma pessoa tinha
morrido dentro da máquina. Mas eu não sabia de muita
coisa, não tinha informação sobre nada, pois só trabalhava
lá há poucos dias (...) (DELFORT, outubro de 2015, Toledo,
PR).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


154 Letícia Helena Mamed

Mesmo em um contexto de dificuldades e limitações, a solidariedade


entre os trabalhadores imigrantes é algo presente e essencial para a
resistência deles, principalmente no interior da fábrica. Isso parece ser tão
decisivo que a própria direção tentava controlar e superar:

(...) Dentro da fábrica, os haitianos se ajudam. Mas se o


chefe vê, ele não deixa. Se mandam uma pessoa fazer um
serviço e ela não entende ou não sabe, então ela chama
outro haitiano pra explicar como é pra fazer. Aí o chefe diz
“não, não pode, vai levar advertência” (...) Antes, quando a
pessoa ficava mais ligada na língua, quando aprendia mais
o Português, logo ela era mandada embora (...), mas agora
muitas pessoas estão há mais tempo e estão aprendendo (...)
(DELFORT, outubro de 2015, Toledo, PR).

Por duas vezes a pesquisa tentou contato com a empresa Coopavel,


que por meio de sua assessoria de comunicação, declarou não ter interesse
em colaborar com o estudo. De modo similar, o sindicato responsável
pela representação dos seus trabalhadores – Sindicato dos Trabalhadores
em Cooperativas de Cascavel e Região (SINTRACOOP - FETRACOOP/
PR - UGT/PR) – não retornou às solicitações de entrevista feitas durante
os dois períodos de campo na cidade, em outubro de 2015 e novembro de
2016. Na comunidade, empresa e sindicato são conhecidos por manterem
uma histórica atuação conjunta, prática essencialmente prejudicial à luta
operária.
Quando perguntada sobre o que achava do Brasil e o que desejava
conseguir, Delfort surpreendeu ao manter uma percepção positiva sobre
o país e a esperança de continuar:

(...) O problema foi perder o braço, só isso me faz triste,


muito, muito. O resto foi tudo bem (...). Agora eu quero
é trabalho. Penso todo dia em como ajudar minha família,
que é muito pobre. Tenho saudade dos meus filhos (...).
Não penso em voltar para o Haiti (...). Quero é conseguir
dinheiro e trazer todos pra cá, entendeu? (...) Vou ver como

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


Trabalho, Migração e Gênero:... 155

ficam as coisas aqui em Toledo. Se aqui não tiver serviço,


vou continuar procurando (...) vou para qualquer lugar, não
tem problema (...) (DELFORT, outubro de 2015, Toledo,
PR).

No segundo e último encontro com a pesquisa, em novembro


de 2016, ela estava residindo na cidade de Cascavel, para onde retornou
após a intenção frustrada de conseguir trabalho para a mãe e os filhos
em Toledo. Nessa ocasião, morava com a mãe e outros três amigos
haitianos – uma mulher e dois homens –, em um bairro universitário
da cidade, com custo da moradia mais econômico para que juntos
pudessem ratear. Contou ter conseguido patrocinar a viagem dos filhos
para os Estados Unidos, acionando redes de coiotagem com os recursos
obtidos da indenização judicial. Mas, logo que eles chegaram em território
americano, a partir da fronteira terrestre com o México, foram detidos
e, naquele momento, estavam em processo de deportação para o Haiti.
Mesmo aflita pela ausência e desencontro de informações sobre a real
situação dos filhos, Delfort havia decidido trazê-los de volta ao Brasil na
primeira oportunidade. Sua mãe, por outro lado, depois de muito procurar
emprego na região, dominada pelas agroindústrias, acabou chegando ao
mesmo frigorífico Coopavel. A empresa a selecionou e encaminhou para
os exames admissionais, mas quando verificou o parentesco entre as duas,
recusou-se a contratá-la.
A síntese dessa trajetória exemplifica o conjunto de muitas outras
registradas pela pesquisa, de homens e mulheres, jovens e maduros, cujo
elo de conexão é o fato de terem sido gestadas no interior do processo
de desenvolvimento da cadeia global da carne e da sua configuração na
modernização dependente do Brasil, cuja característica estrutural é a
precarização do trabalho, aprofundada pela desigualdade e segregação,
ocupacional e salarial, por gênero e raça.

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156 Letícia Helena Mamed

MULHER NEGRA E IMIGRANTE OPERÁRIA NO BRASIL:


DESIGUALDADE, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIA

A história de Veronique Delfort guia o debate deste artigo sobre


trabalho, gênero, raça e imigração no Brasil, demarcado a partir de fluxos
oriundos de realidade social periférica, marcados pela indocumentação.
Embora o país receba fluxos dessa natureza desde os anos 1960, quando
a chegada de coreanos e bolivianos começou a se manifestar, os haitianos
expuseram de modo amplo essa tendência da atualidade do fenômeno
no país (BAENINGER, 2013, 2015). Para eles, a porta se abriu de forma
emergencial ou subterrânea e demandou processos de regularização, ao
tempo que os direcionou a setores tradicionalmente identificados pela
precarização, como a indústria têxtil, construção civil, serviços domésticos
e de limpeza, e a agroindústria da carne (VILLEN, 2016).
Ao Brasil, portanto, eles chegaram pelas fronteiras, superando
viagens longas e arriscadas, conduzidos por agenciadores, com a
necessidade básica e inseparável de documentação e trabalho. Nesse
processo de padrão neoliberal de imigração (DREHER, 2007), enfrentam
as condicionantes do trabalho em um regime de acumulação flexível
e modernização dependente, imbricadas às desigualdades de gênero
(HIRATA & KERGOAT, 2003) e raça (FERNANDES, 1973,1964). A
posição do país na divisão internacional do trabalho e as especificidades
da sociedade brasileira caracterizam, assim, uma particular inserção da
imigrante haitiana.
A vivência etnográfica no Oeste do Paraná assegurou à pesquisa
a apreensão empírica de como essas questões se interpenetram. De
modo geral, o entendimento da realidade social e do percurso laboral
de imigrantes “periféricos na periferia” (VILLEN, 2016), demanda uma
análise à luz da relação dialética do negro e do branco no mercado de
trabalho assalariado, que evidencia o movimento de rebaixamento e
exploração da força de trabalho negra e de outros grupos sociais em uma
sociedade de base escravista (VILLEN, 2015). Ao conservar os traços
característicos de sua formação social, a sociedade brasileira apresenta
uma estrutura sexual e racialmente hierarquizada do seu mercado, estando

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


Trabalho, Migração e Gênero:... 157

a maior parte da população, em particular mulheres e negros, nos estratos


mais baixos e de menores salários (POCHMANN, 2012).
Nos últimos anos, o crescimento das atividades agroindustriais no
Oeste paranaense concorreu para o aumento significativo dos empregos
formais ocupados por mulheres e imigrantes haitianos/as, mas que são
direcionados a determinados setores, onde os postos de trabalho são menos
reconhecidos e remunerados, mais cansativos e desgastantes. Embora
isso possa confirmar a tendência de que o mercado está cada vez mais
feminino, com mudanças significativas para as mulheres e suas famílias,
essa “feminização” permanece incompleta e inacabada, pois associada à
desigualdade e à precariedade em relação ao trabalho masculino (HIRATA
& KERGOAT, 2003).
Considerando o Estado do Paraná, a quantidade de empregos
formais designados para as mulheres praticamente dobrou em dez anos:
em 2000 existiam 642.935, já em 2010 eram 1.194.155. Ao observar
especificamente o Oeste do Estado, também se verifica o mercado gerando
mais vagas para mulheres – 57.852 no ano de 2000 e 128.408 em 2010 –,
efeito direto da instalação de importantes indústrias de frigorificação de
carne. Porém, ao mesmo tempo que cresceram essas vagas, persiste na
região uma significativa diferença de rendimento médio entre os sexos: em
2000, mulheres recebiam cerca de 23% a menos que homens, sendo que
dez anos depois, em 2010, a diferença permaneceu no mesmo patamar de
23% (BECKER, 2014).
O Oeste paranaense é formado por 53 municípios e uma população
estimada em 1,3 milhão, tendo por núcleo econômico a cidade de Cascavel,
com cerca de 316 mil habitantes. À época da pesquisa de campo, de 4 a 5
mil imigrantes residiam na cidade, entre os quais a haitiana Delfort, cuja
trajetória espelha a discussão deste trabalho. A região é destaque no cenário
estadual e nacional por suas atividades agroindustriais, principalmente
de abate de aves e suínos, que faz o Paraná ocupar, respectivamente, o
primeiro e segundo lugar no processamento e exportação dessas carnes
no país. A dinâmica de geração de empregos na região, liderada por 8
grandes frigoríficos, com 20 plantas industriais e 14 cooperativas, atraiu
expressiva parcela de imigrantes caribenhos e africanos nos últimos anos
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017
158 Letícia Helena Mamed

(BECKER, 2014; GEMELLI, 2011; MAMED, 2016b, 2018).


Ao longo da cadeia da agroindústria nessa região, as mulheres
estão no campo, no cultivo e comercialização de alimentos, e também no
ambiente fabril, onde exercem funções especificamente destinadas a elas,
e mesmo quando estão em funções equivalentes às masculinas, recebem
salários inferiores. No campo ou na cidade, a participação da mulher
segue condicionada pelas relações desiguais, hierarquizadas, assimétricas,
de exploração e de opressão, entre duas categorias de sexo socialmente
construídas (HIRATA, 2002). Nas atividades rurais, se ao homem estão
designadas tarefas de gerenciamento e uso de maquinário, à mulher, de
modo geral, competem as mais rotineiras e manuais, relacionadas à casa,
agricultura e criação de animais. O mesmo se estende para a indústria, com
homens e mulheres em marcados postos da linha de produção.
As distinções entre trabalho feminino e masculino decorrem de uma
estrutura de sociedade patriarcal, na qual há uma destinação prioritária dos
homens à esfera produtiva e das mulheres à reprodutiva (recomposição
da força de trabalho e todos os afazeres domésticos envolvidos),
simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor
social agregado (políticas, religiosas, militares etc.). Nela, produção “vale”
mais que reprodução, produção masculina “vale” mais que a feminina,
tanto em termos de valorização social quanto econômica. Assim, embora
possa variar no tempo e no espaço, a divisão sexual do trabalho segue
dois princípios organizadores: o da separação, que indica a existência
de trabalhos de homens e de mulheres; e o de hierarquia, que indica um
trabalho de homem valer mais que um trabalho de mulher (KERGOAT,
2009).
Essa diferenciação, no entanto, é uma construção social e não
produto de um destino biológico. Em outras palavras, são reforçadas
e legitimadas por uma ideologia que naturaliza a desigualdade e a
hierarquia, pois rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduzindo práticas
sociais a papéis sociais sexuados, que remetem ao destino natural da
espécie. Institucionalizada na sociedade como um todo, essa percepção
sedimenta uma relação de submissão da mulher em relação ao homem
e está reportada na organização do trabalho no interior da indústria,

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Trabalho, Migração e Gênero:... 159

uma vez que produção e reprodução são elementos indissociáveis. Na


sociedade capitalista, ainda que edificada sobre uma falsa separação dos
lugares e dos tempos de produção e de reprodução, não é possível isolar
trabalho doméstico do trabalho assalariado. As relações de sexo e as de
classe, portanto, são coextensivas, pois se interpenetram, e não apenas se
recortam ou se articulam (HIRATA & KERGOAT, 2003).
O mundo do trabalho vem acentuando a divisão sexual do
trabalho, pois a abertura para o ingresso das mulheres significa reservar
à elas espaços específicos que, na maioria das vezes, se caracterizam
por inferioridade hierárquica, salários menores e atividades adaptadas a
capacidades supostamente inatas. O contexto da agroindústria paranaense
bem ilustra essa a tendência de “feminização do mundo do trabalho”,
segundo a qual, em diversos países ocidentais, 40% ou mais da força
de trabalho está composta por mulheres. Mas, ainda que essa tendência
represente emancipação, também é preciso examiná-la como precarização,
ou seja, uma estratégia ao processo de valorização do capital, ao reforçar a
segregação ocupacional e incrementar a competição entre trabalhadores e
trabalhadoras com rebaixamento salarial (NOGUEIRA, 2004).
No contexto industrial do Oeste paranaense, as mulheres estão
centralmente alocadas na área interna da planta, nos setores de escaldagem,
corte, desossa, miúdos e embalagem, controlados por nórias (que circulam
os animais abatidos pela linha de produção) e esteiras (que encaminham
os animais para as mesas de corte), ou no serviço de limpeza, este
majoritariamente desempenhado por mulheres imigrantes negras, como
foi o caso de Delfort. Já os homens estão mais presentes na área externa,
nos setores de pendura e sangria (abate), na pesagem e no transporte,
como motoristas de empilhadeira, agentes de fiscalização e expedição
de produtos embalados. O circuito produtivo também apresenta setores
mistos, compostos por homens e mulheres, como a sala de temperos e a
graxaria, porém as atividades de gerência e do Sistema de Inspeção Federal
(SIF) são exclusivamente conduzidas por homens.
Segundo essa lógica de organização sexual do trabalho, as mulheres
estão inseridas nos setores que exigem mais atenção e paciência, maior
pressão por produtividade, com ritmo de trabalho demarcado pela cadência
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017
160 Letícia Helena Mamed

do maquinário e pela presença fiscalizadora de gerentes. Quanto a esse


aspecto, lembre-se, por exemplo, a imposição coercitiva do gerente para
que Delfort, a despeito de suas alegações subjetivas de desconhecimento
e medo, e da ausência objetiva de treinamento de segurança, cumprisse a
atividade de limpeza no interior de uma máquina automatizada, mediante
ameaças de suspensão e demissão. Para as ocupações femininas não se
exige escolaridade ou conhecimento prévios, mas fundamentalmente vigor
físico, pois nelas as atividades são executadas manualmente, em compasso
intensivo e reiterado, com necessidade de concentração, agilidade e
destreza para cumprir série de movimentos fortes e repetitivos.
Entretanto, quando se compara o trabalho executado por homens
e mulheres, tradicionalmente o feminino é considerado “mais leve” e
o masculino “mais pesado e complexo”, por demandar, por exemplo,
instruções para monitorar empilhadeira ou realizar procedimentos de
inspeção. Essa apreciação escamoteia a realidade do trabalho feminino e
remete a uma qualificação prévia das mulheres para o trabalho doméstico.
Se estão colocadas nos postos de cuidados ou semelhantes, não é porque
não possuam aprendizado anterior, mas, ao contrário, porque foram
justamente treinadas para tal no percurso da socialização feminina na
família. Da mesma forma, a fábrica conta com essa qualificação distintiva
para assentar suas funcionárias em setores nos quais é preciso saber
“limpar”, manusear com “cuidado” e “destreza” os animais, “suportar”
as condições adversas e até insalubres do frigorífico, toda uma série de
habilidades adquiridas no trabalho doméstico. Ao ser menos valorizado, o
trabalho das mulheres possui um custo menor em relação ao dos homens,
associados a funções de planejamento, gerenciamento, controle e domínio,
mais valorizadas e com remuneração superior (NOGUEIRA, 2010).
O universo produtivo dos frigoríficos é um contexto exemplar
de precarização das condições de trabalho das mulheres. Ainda que
representem a maior parcela dos trabalhadores e estejam submetidas a
postos e jornadas exaustivos e a salários inferiores, isso não é suficiente para
a adoção de ações estruturais mínimas nas plantas, como um igual número
de banheiros, e para cumprimento de normas básicas de segurança e saúde,
menos ainda daquelas que interessam mais diretamente as mulheres, como

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


Trabalho, Migração e Gênero:... 161

licença-maternidade e auxílio creche. A esse respeito, há constantes relatos


de descumprimento de direitos, como também a manifestação de formas
diversificadas de assédio moral sofrido por homens e mulheres, mais
intensamente por mulheres (CNTA Afins, 2016; FERREIRA, 2015), e em
especial por mulheres imigrantes negras como Delfort.
A posição das imigrantes no mercado de trabalho brasileiro às
aproxima da maioria da população nacional. Sua condição de classe
e de mulher, em conjunto com sua proveniência periférica, faz essa
categoria partilhar a atuação de um racismo secular, que, no que se refere
ao funcionamento do mercado de trabalho, soube se renovar, mesmo
após as bases legais escravagistas terem sido suplantadas. Diante disso,
a sua peculiaridade como força de trabalho se revela na combinação de
aspectos ligados à sua própria qualidade de imigrante (cultural, linguística,
de direitos, carência de proteção da família ou redes sociais) com todo o
processo de imigração imposto, desde a partida, a quem precisa se deslocar
com meios escassos ou se endividando (VILLEN, 2015, 2016).
Dessa vulnerabilidade deriva uma maior exposição à exploração, no
trabalho e em todas as esferas sociais em que sua presença possa se tornar
lucrativa, considerando, por exemplo, os agentes organizadores da viagem
e atravessadores das fronteiras, as altas taxas dos serviços de remessas e
o mercado de aluguéis voltados para imigrantes. Ao chegarem no Brasil,
os haitianos não contaram inicialmente com nenhuma garantia de direitos
sociais ou de instituições que os representassem em sua condição de
trabalhador. No que se refere à sua relação com os sindicatos, a pesquisa
constatou nos três estados do Sul visitados, níveis diferenciados de maior
ou menor distanciamento dentro e fora do local de trabalho. Nos três
contextos, porém, distante do que costumava ser para os imigrantes
no passado, essa entidade não é mais uma referência direta de apoio e
segurança. Exemplo disso foi observado em Cascavel, onde o sindicato
é reconhecido pela comunidade como um braço do patronato e no caso
do acidente sofrido pela trabalhadora haitiana, não se manifestou para lhe
prestar solidariedade, assistência e representação jurídica.
Embora o contexto evidencie uma crise de representação
sindical, que na verdade é internacional e envolve os próprios brasileiros
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017
162 Letícia Helena Mamed

(ANTUNES & SILVA, 2015; BRAGA & SANTANA, 2015), ele


não é indicativo de apatia política, pois trabalhadores e trabalhadoras
permanecem manifestando suas inquietações em diferentes espaços de
luta, inclusive no círculo do trabalho. A reação solidária dos haitianos
diante da tragédia de Delfort, no momento do socorro após o acidente, e
depois nas massivas visitas durante sua internação, incentivando-a a buscar
reparo judicial, é uma expressão da ajuda mútua e do interesse recíproco
que modela as redes sociais e experiências associativas de imigrantes que
se estruturam no país (HANDERSON, 2016; MAGALHÃES, 2017;
MAMED, 2016b). Como parte desse processo de inserção, em especial dos
mais vulneráveis, é importante registrar que existe certa disputa de forças
para conduzir espaços de organização política e cultural dos imigrantes no
país, por parte de entidades religiosas, partidos políticos e organizações
não governamentais, assim como também há ações coletivas construídas
por eles de modo mais independente (DUTRA, 2016; GUILHERME,
2017; SANTOS, 2014; YAMAMOTO, 2017).
A vivência em um contexto como a cidade de Cascavel, onde a
agroindústria é a força motriz para funcionamento da economia, comércio,
serviços e poder público, consentiu à pesquisa acompanhar muitas histórias
de vida profundamente marcadas pela relação com essa indústria, tanto
de imigrantes como de brasileiros. Todos os relatos concordam quanto
a percepção do frigorífico como lugar de “moer gente”, expressão que
evidencia a ironia do trabalho humano em fábricas de processamento de
carne. Ao utilizarem essa expressão ou outras assemelhadas, sinalizam que
o trabalho nessa indústria adoece, mutila e mata. Não à toa, ela lidera o
ranking de acidentes de trabalho no ramo alimentício do país, com registro
médio de 54 ocorrências por dia (CAVALCANTE et al., 2017; MORAES,
2015) e algumas plantas produtivas chegam a apresentar rotatividade de
100% da força de trabalho dentro de um mesmo ano, o que pode significar
uma rejeição expressiva a esse tipo de trabalho (HECK, 2013; CARNE e
OSSO, 2011; SANTOS FILHO & VARUSSA, 2016).
Esses elementos evidenciam a intensa movimentação de
trabalhadores gestado pela cadeia produtiva da carne, no plano nacional e
global, espelhada na mobilização e contratação de imigrantes haitianos/as

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017


Trabalho, Migração e Gênero:... 163

no Brasil. A partir de 2010, ao passo que o país se tornou um dos principais


produtores mundiais de carnes, o setor frigorífico foi apresentando maior
necessidade de contratação e fixação de trabalhadores, em razão das
características específicas do seu processo produtivo. Com a intensificação
crescente do ritmo de trabalho para cumprir metas diárias de produção,
longas jornadas, condições precárias de trabalho e reduzidos salários,
associados a elevado índice de doenças laborais, amputações e mortes a
exigir uma recomposição rápida da força de trabalho, eles enfrentavam
dificuldades para contratar e firmar trabalhadores, mesmo contando com
a ampla oferta disponível nos locais onde se estabelecem.
Face a isso, grandes e médias empresas sediadas no interior do
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, inicialmente experimentaram
o recrutamento de trabalhadores nas cidades próximas às plantas
produtivas, o que não foi o suficiente. Então ampliaram suas estratégias e
empreenderam o recrutamento em lugares mais distantes, como o interior
do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, ou de países vizinhos, como
o Paraguai. Algumas também testaram a contratação de indígenas em
diversas áreas do próprio Sul. Mesmo assim, a demanda não era suprida,
quando então essas empresas passaram a ser presença constante nos
acampamentos existentes no Acre, em busca da seleção e recrutamento de
imigrantes (MAMED, 2016b).
O recurso à força de trabalho imigrante está presente na história da
cadeia produtiva da carne, mas no Brasil isso se configurou plenamente
a partir da presença do haitiano no país, cujo perfil corresponde à
demanda da indústria frigorífica. Do ponto de vista das relações sociais
de produção, em todo mundo, os frigoríficos comportam as atividades
mais precarizadas, com menor remuneração e maior perigo, em termos
de acidentes e doenças laborais. Mesmo nos Estados Unidos, o centro
mais industrializado, as fábricas do setor atraem os trabalhadores mais
empobrecidos, em especial imigrantes hispânicos, afrodescendentes e
asiáticos. Também na Alemanha, o expoente europeu dessa cadeia, as
plantas apresentam os piores índices de condições de trabalho, com grande
parcela dos operários composta por imigrantes da Europa Oriental, de
países como Polônia, Ucrânia e Bielorrússia, integrantes do antigo bloco
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 139-176, fev/dez. 2017
164 Letícia Helena Mamed

soviético (REICHERTR & WATCH, 2016).


Desde a segunda metade do século XIX, a linha de produção dos
frigoríficos americanos, vitrine para o mundo, mobilizava e empregava
milhares de imigrantes, notadamente irlandeses, lituanos, eslovenos,
italianos e russos (SINCLAIR, 1965). Ainda hoje, as atividades dessa
indústria continuam sendo executadas, em sua maioria, por trabalhadores
estrangeiros, atualmente representados por latino-americanos
indocumentados (JACOBS et al., 2011). Embora a inserção desses
imigrantes no mercado estadunidense aconteça em diferentes ramos
da estrutura produtiva, a maior concentração está no Sul do país, nas
agroindústrias (SASSEN, 1998). Na Califórnia, por exemplo, na década
de 1990, 50% da força de trabalho dos imigrantes nessas atividades era
considerada irregular (DREHER, 2007). Em virtude da situação jurídica
de indocumentação, eram contratados informalmente, o que os tornava
mais fragilizados e expostos a violações de direitos, ameaças, coações e
exploração (GRAIN, 2010).
Entre 1972 e 2001 os empregos em frigoríficos estadunidenses
saltaram de 106 mil para 258 mil, a despeito de uma mecanização extensiva
das plantas produtivas e do uso de tecnologias intensificadoras de trabalho
(KANDEL, 2006). Até então esse tipo de ocupação oferecia relativa
estabilidade e salários tidos como razoáveis, mesmo para trabalhadores
com escolaridade abaixo da média. Esse crescimento tem sido marcado
justamente pelo aumento da presença de trabalhadores latinos e de
seus descendentes, que em 2000 preenchiam quase 30% dos postos de
trabalho, geralmente os mais difíceis, pesados e perigosos (KANDEL &
PARRADO, 2006).
O valor de U$ 18,00 pagos a trabalhadores sindicalizados para cada
hora de trabalho em 1981, declinou para U$ 6,00 pagos a trabalhadores
mexicanos e guatemaltecos, em 2000 (BARBOZA, 2001). Assim, a
contratação dessa força de trabalho tem sido uma estratégia das empresas,
pois os operários estadunidenses estavam organizando sindicatos
combativos, ampliando a pressão para melhoria das condições de trabalho.
Em uma clara tentativa de frear essa mobilização dos nacionais, as empresas
passaram a intensificar a contratação de imigrantes de perfil vulnerável

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Trabalho, Migração e Gênero:... 165

(GRAIN, 2010). Acompanhando a tendência do que acontece na ponta


mais dinâmica da cadeia de valor, os frigoríficos brasileiros assimilaram as
estratégias internacionais, amoldando-as às circunstâncias locais.
O forte movimento de recrutamento de imigrantes para o setor,
considerando basicamente o perfil de vulnerabilidade social dos haitianos/
as, comprova isso. Desde então, é possível considerar que as táticas de
produtividade e acumulação da indústria da carne e as trajetórias de
resistência desses imigrantes se conectaram historicamente no Brasil.
Atualmente, é na parte final da cadeia do agronegócio, representada
pelos frigoríficos, que se encontra o maior percentual dos imigrantes
formalizados, com destaque para os haitianos. Ao tempo que o país se
tornou um dos destinos mais procurados por eles, em 2013 tornaram-
se a principal nacionalidade no mercado formal de trabalho, com 14.579
contratados, posição reconfirmada em 2014, com 17.577, e em 2015, com
33.507. E embora na transição entre 2015 e 2016, tenha havido diminuição
para 25.782, eles seguem liderando o número de contratações, que efetivam
especialmente nos frigoríficos do Centro-Sul brasileiro (CAVALCANTI et
al., 2014; 2015; 2016; 2017).
O cenário encontrado pelos imigrantes nos frigoríficos é o mesmo
vivenciado pelos brasileiros que laboram no setor, como as duras condições
de trabalho, baixa remuneração, longas e intensas jornadas, risco iminente
de adoecimento e falta de sindicatos fortes e atuantes. Entretanto, os
imigrantes provenientes de países periféricos, como é o caso dos haitianos,
além de representarem os “braçais pela vida” (SAYAD, 1998), retratam de
forma mais contundente os “precários pela vida”, espécie de “protótipos
do trabalhador flexível” (BASSO, 2013), pois sujeitos a uma precariedade
que se prolonga. A vulnerabilidade que os caracteriza conforma um
padrão de inserção precarizada, que permeia tanto as suas condições de
trabalho como de vida no país, em termos de educação, saúde, habitação,
assistência social e jurídica.
De modo pontual, a partir do que a pesquisa registrou em campo,
esse horizonte de vida precarizada é moldada pela (a) condição de
estrangeiro, sem conhecimento da língua, burocracia e legislação nacional,
o que os torna vítimas em potencial dos circuitos de empregabilidade,
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166 Letícia Helena Mamed

exploração e opressão, mas que não o impedem de resistir, seja do


ponto de vista individual, como tentou Delfort, ou coletivo, via redes
e associações; (b) necessidade imperiosa de trabalhar, muitas vezes sob
quaisquer condições, horários e ritmos, suscetíveis a assédios e abusos,
para conseguir assegurar sua sobrevivência no país e efetuar remessas;
(c) especulação imobiliária, pois sem moradia própria e redes de contatos
que facilitem a locação, tornam-se seus alvos fáceis; (e) contexto de
preconceito social, racial e étnico do país (MAMED, 2016a, 2016b). No
caso específico das imigrantes haitianas, ante o mercado de trabalho
brasileiro, desigual e hierarquizado segundo o gênero e a raça, todas essas
questões se entrelaçam, concorrendo para que sejam reservadas a elas, em
maior proporção, atividades tipicamente precárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após ingressarem de modo indocumentado e endividado,


enfrentando uma viagem longa, cara e perigosa, em acentuada condição de
vulnerabilidade, imigrantes haitianos encontraram no complexo frigorífico,
o principal caminho para inserção laboral e social no país, a partir do qual
muitos acessaram pela primeira vez na vida o trabalho formal e assalariado.
No período de 2010 a 2016, analisado por esta investigação, os recordes
de produção e lucro dessa indústria foram obtidos a partir da continuada
dilapidação das condições de trabalho e vida dos operários que laboram no
setor. Mas esse período contou com um diferencial estratégico, que foi a
mobilização e integração, auxiliada estruturalmente pelos aparatos estatais,
de milhares de imigrantes haitianos, homens e mulheres, ao circuito dessa
cadeia industrial, onde serviram como elemento essencial à recomposição
orgânica do capital na periferia, alçando os frigoríficos brasileiros ao posto
de líderes mundiais.
Isso significa dizer que, ao adensarem a superpopulação relativa
do país, a vulnerabilidade dos haitianos converteu-se em fator objetivo
de rebaixamento geral do valor da força de trabalho e instrumento de
erosão de garantias sociais. Assim como observado historicamente, a
condição migratória, adensada à discriminação ocupacional por gênero
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Trabalho, Migração e Gênero:... 167

e raça do país, vem sendo instrumentalizada para o recrudescimento da


intensificação do trabalho, manutenção dos baixos patamares salariais e
renegociação de acordos sindicais, além da substituição do número de
trabalhadores desgastados física e psicologicamente a cada ciclo pelas
características próprias da indústria frigorífica. Como resultado, essa
renovada pressão econômica e social impulsionou o crescimento do setor
no país (MAMED, 2016b).
No atual quadro da imigração no Brasil, a experiência de Delfort é
síntese do processo que conectou trajetórias haitianas de sobrevivência e
resistência aos caminhos da cadeia global da carne. As mãos que cuidaram
de cinco filhos e as tornaram chefe de sua família, engendradas no árduo
trabalho no campo, na produção de grãos e flores, hoje também estão
marcadas pela exploração do trabalho nos frigoríficos brasileiros. Do seu
percurso social como mulher negra e imigrante operária, apreende-se a
imbricação de três discriminações ativas no mercado nacional de trabalho
– gênero, raça e origem.
No plano geral, sua trajetória proporciona o entendimento sobre a
atuação das cadeias globais de valor, entre as quais a da carne é emblemática,
pois historicamente mobiliza trabalhadores ao redor do mundo, renovando
suas estratégias de valorização mediante a conjugação de características
locais de exploração. No particular, sua inserção no mercado exaspera
as especificidades do capitalismo brasileiro, no qual a modernização
dependente da indústria frigorífica incorpora o trabalho feminino negro
e imigrante como elemento de intensificação da precarização, com
repercussões sobre todos os trabalhadores do setor.
Portanto, como prisma do debate, a história de Veronique Delfort
tanto ilumina o processo que viabilizou a industrialização da carne, iniciada
há 150 anos (SINCLAIR, 1965) e aproximadamente há 100 no Brasil
(BOSI, 2016; PESAVENTO, 1980; VARUSSA, 2016), como reposiciona
a precarização tal como ela se apresenta hoje, seu significado e dimensões
no capitalismo brasileiro, mas cuja fronteira essencial é a capacidade
de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras, mobilizados por uma
solidariedade que os unifica e fortalece para lutar e sonhar.

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ENTRE SANTA BÁRBARA D’ OESTE E O
HAITI: MATERNIDADE NO COTIDIANO
TRANSNACIONAL

Rafaela Gava Etechebere1

RESUMO: Procuro discutir neste artigo alguns acontecimentos que marcaram as vidas
e os corpos das haitianas Marli e Rose e, a partir de suas narrativas e das nossas vivências
cotidianas, apresento algumas reflexões sobre “ser mãe” entre essas haitianas que se
estabeleceram em Santa Bárbara d’Oeste. Através de suas experiências com trabalhos
precários, com o racismo em sua violência mais diluída e corriqueira, como ocorre no
Brasil, elas mostram as possibilidades de “ser mãe” em contextos em que o “prover” e o
“cuidar” não podem ser feitos presencialmente e no dia a dia. Apresenta-se, assim, nas
estratégias de construto de laços pelas de remessas, do contato frequente por meio de
novas tecnologias, uma forma de resiliência à saudade que permeia seu cotidiano.
PALAVRAS-CHAVE: Migração; Transmigração; Haiti; Maternidade.

BETWEEN SANTA BÁRBARA D ‘OESTE AND


HAITI: MATERNITY IN THE TRANSNATIONAL
DIALOGUE

ABSTRACT: In this article I intend to discuss some events that marked the lives and
bodies of Haitians Marli and Rose and from their narratives and our daily experience
I present some reflections on “being a mother” among these Haitians who settled in
Santa Barbara d’Oeste. Through their experiences with precarious work, with racism in
1
Graduada em Ciências Socias pela Universidade Federal de São Carlos. Mestra pelo Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. E-mail:
[email protected]  
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their most diluted and commonplace violence, as is common in Brazil, they show the
possibilities of “being a mother” in contexts where “providing” and “caring” can not be
done face-to-face and day-to-day. In this way, it presents itself in the strategies of building
bonds through remittances, through frequent contact through new technologies, a form
of resilience to the constant missing that permeates everyday life.
KEYWORDS: Migration; Transmigration; Haiti; Mothering.

INTRODUÇÃO

No estudo referente à diáspora entre as haitianas para Santa Bárbara


d’Oeste, foram traçadas as principais redes migratórias pelas quais elas
chegaram ao município onde realizei a pesquisa. Com elas, verificou-se
que os primeiros haitianos que se instalaram no interior do Estado de São
Paulo eram todos homens. E conforme estes se instalavam em uma casa,
encontravam trabalho e verificavam possibilidades de prosperar no Brasil,
chamavam então seus amigos, irmãos, vizinhos, além de suas irmãs, tias,
primas e amigas para, num momento seguinte, chamarem suas esposas.
Com isso, o “amor romântico” se tornou uma via de novos fluxos de
pessoas e remessas que acabou por reconfigurar relacionamentos no Haiti
e no Brasil.
Mesmo sendo uma das principais vias de chegada ao Brasil, não se
pode definir a reunião familiar ou o início de uma relação amorosa como os
únicos motivos de todas as haitianas migrarem. No período que estive em
contato com essas mulheres, pude conferir outro aspecto de mobilização
das haitianas para o Brasil. As mães que não tinham um relacionamento
amoroso que implicava obrigações de trocas econômicas, migravam para
o Brasil em busca de meios de criar seus filhos que deixaram no Haiti.
Muitas mulheres haitianas com quem conversei eram mães que
deixaram suas crianças para trás. Quanto a isso, não há nada de novo ou
inesperado. Nos trabalhos de Feldman-Bianco (1997), Machado (2015),
Kebbe (2011), Bumachar (2012) e Canales (2005) fica claro que deixar
entes queridos em busca de melhores oportunidades é uma constante
na imigração. Com a recente intensificação da migração transnacional
e, sobretudo, a crescente feminilização da migração, ocorreu um novo

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tipo de configuração da família transnacional, em que a mulher, sozinha,


também deixa os filhos para trás, estando à procura de oportunidades
de melhora de vida através do emprego e não somente da reprodução
familiar (MADIANOU & MILLER, 2012; PARREÑAS, 2001).
Essas mulheres, em recepções informais em suas casas, mostraram
o lado mais vulnerável das haitianas com quem convivi. Enfrentando
trabalhos precários, o racismo em sua violência mais diluída e corriqueira
como ocorre no Brasil, elas me falaram sobre as possibilidades de “ser
mãe” em contextos em que o “prover” e o “cuidar” não podem ser feitos
presencialmente e no dia a dia. Seguindo o esforço metodológico de Glenn
(1994), vejo nas possibilidades que essas haitianas me apresentam, um “ser
mãe” como relacionamento variável histórica e culturalmente,

em que um indivíduo provê e cuida de outro. Mothering


ocorre em um contexto social específico em que variam os
termos de recursos materiais, culturais e constrangimentos.
Como a maternidade é concebida, organizada e realizada
não é simplesmente determinado por estas condições, no
entanto. Mothering é construída por meio de ações de homens
e mulheres dentro de circunstâncias históricas específicas
e não biologicamente construídas (GLENN, 1994, p. 3,
tradução minha)

Na coletânea em que esse texto se encontra2, o movimento das


organizadoras e das demais autoras dos artigos3, além de expandir a
definição de “maternidade” construída no século XIX e XX nos Estados
Unidos em torno da mulher branca de classe média e dona de casa, é
também o de recolocar a questão do “ser mãe” em outros contextos de
classe e raça, e nesse movimento, outras facetas da maternidade ligadas,
2
Glenn, Evelyn N.; Chang, Grace; Forcey, Linda R. Mothering: Ideology, Experience, and
Agency. Routledge, New York. 1994.
3
Eileen Boris, Linda M. Burton, Grace Chang, Barbara Christian, Patricia Hill Collins, Linda
Rennie Forcey, Evelyn Nakano Glenn, E. Ann Kaplan, Ellen Lewin, Margaret K. Nelson,
Barbara Katz Rothman, Denise A. Segura, Stephanie J. Shaw, Rickie Solinger, Carol B. Stack,
Susan L. Tananbaum, Sau-Ling C. Wong.

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por exemplo, ao que se refere a trabalhar fora4, apareceriam e trariam


pontos importantes que atingem uma grande população no mundo.
Nesse artigo, através de temas como trabalho, racismo e novos meios de
comunicação, pretendo refletir sobre a maneira pela qual as histórias das
haitianas com quem trabalhei colocam novas possibilidades de se pensar
a maternidade, trazendo essa maternidade “marginal” para o centro da
reflexão (GLENN, 1994, p.5).
Por a migração se tratar de um aspecto recente na vida dessas
haitianas, analiso o seu cotidiano pela bagagem cultural que elas trazem
das regiões em que viviam, em que eram consideradas “marginais” em
relação ao próprio sistema haitiano de parentesco, visto que não possuem
marido e nem pais que as auxiliam financeiramente na criação de seus
filhos. O fato de já terem sido casadas desobriga seus pais de ajudá-las.
Além disso, a obrigação de “prover” um núcleo familiar vem do marido
e pai. Com essa figura ausente, Marli e Rose, com poucas oportunidades
de serviço no Haiti e tendo que “ser mãe” de mais de uma criança, veem
como a melhor possibilidade de vida imigrar para o Brasil sozinhas. E
é a partir das histórias dessas mulheres que desenvolverei as temáticas
abordadas.
Para tanto, o texto se desenvolverá em três partes. Na primeira
delas, trarei a história de Marli. Ao narrá-la, fica evidente a finalidade
da migração, econômica, para o Brasil e a precariedade nas relações de
trabalho descritas pela haitiana, empregada como separadora de lixo
reciclável. Além disso, sua história evidencia meios na solidificação das
relações de afeto transnacionais através das remessas enviadas aos filhos.
Na segunda parte, dando continuidade as reflexões sobre as maneiras de
“ser mãe”, apresentarei o cotidiano de Rose, em que as novas tecnologias se
apresentam como um meio de se fazer presente e cuidar dos filhos. O texto
se concluirá, na terceira parte, com uma reflexão sobre os agenciamentos
dessas mães haitianas através das redes estabelecidas no Brasil.

4
“Working at motherhood: Chicana an Mexican immigrant mothers and employment”, Denise
A. Segura

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AS REMESSAS E O TRABALHO COM O LIXO

Em campo, meus dias geralmente começavam com a ida até a


casa de Mercina. Por ser uma das haitianas mais próximas de Luíza, meu
primeiro contato brasileiro com o campo, ela se tornou um nó essencial
da trama que eu traçava no cotidiano com as haitianas e que transferia, de
certo modo, a confiança dos haitianos por Luíza para mim. Além disso,
em sua vizinhança, haviam várias casas de haitianos, sendo mais fácil
estacionar o carro em frente à sua e seguir o campo a pé. Na tarde de 14
de junho de 2015, um sábado, foi um desses dias que segui para a casa de
Mercina. Saí do carro e vi uma grande aglomeração. Naquele dia, o culto
haitiano do Pastor Eddy5, da cidade de Americana, estava acontecendo na
garagem. Ao lado da garagem, no corredor já lotado de roupas de adultos
masculinas e femininas estendidas, estava Mercina lavando a roupinha de
Luciana, sua filha caçula. Perguntei se Marli estava e Mercina, com um
sorriso, me apontou a edícula no fundo da casa.
Além de Mercina e Luciana, mais três famílias residiam nesta casa,
totalizando oito pessoas: o cunhado de Mercina e um primo deste, um
casal que havia mudado há pouco para Santa Barbara d’Oeste, Marli e
José. Haviam 3 cozinhas na casa, além de 4 banheiros, o que dava certa
privacidade aos moradores, que tinham somente um grande corredor
lateral – no qual Mercina trabalhava naquele dia – como a única ligação
entre as casas e como único acesso à rua. Desci esse corredor, dei um
beijo em Luciana, que brincava ao final dele, e encontrei dois haitianos
conversando com José enquanto este tinha o cabelo trançado por Marli.
José e Marli deram um sorriso e me disseram para entrar e me sentar. Os
dois haitianos foram embora e o casal perguntou se eu faria a entrevista
naquele dia. Nós havíamos nos conhecido na semana anterior, momento
no qual combinei com eles a entrevista que gostaria de fazer com Marli.
A casa de Marli estava limpa, com a comida pronta. O konpa6 tocava
no computador de José, sendo que este tinha aberto, em seu navegador,
5
Esses eram cultos evangélicos ministrados em crioulo haitiano. Eles se passavam em cada
semana na casa de um haitiano diferente, geralmente pertencente ao mesmo bairro.
6
Gênero musical haitiano.

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a página da rede social Facebook, local em que José mantinha algumas


conversas em andamento. Sentei-me e ela me perguntou se poderia
continuar trançando os cabelos de José, ao que eu respondi que sim. Marli
tinha 35 anos, mas aparentava ser mais nova. Seus cabelos estavam presos
em pequenas tranças que se juntavam em um “rabo de cavalo” baixo.
Como ela entendia pouco o português, pediu para que José ficasse para
traduzir a entrevista. Vi que ela ficou mais à vontade com seu companheiro
por perto, então disse a ela que não seria um problema. Ela me contou que
a vida não era nem boa e nem ruim no Haiti. Pa pi mal. Ela fazia comércio,
era uma madanm sara, descrita por eles como uma função parecida com
a de “sacoleira” no Brasil. Elas são comerciantes que garantem a oferta
de produtos de boa parte dos mercados de Porto Príncipe e de outras
cidades centrais para a economia do Haiti. Elas conectam as cidades mais
centrais com as regiões rurais do país e são responsáveis, muitas vezes,
pelos circuitos entre Haiti e a República Dominicana, Estados Unidos e
Panamá (THOMAZ, 2010).
Marli chegou ao Brasil no final de 2013 pela cidade de Brasileia,
depois de uma difícil viagem pelo Peru. Quando perguntei a ela sobre
como se sentiu na viagem, ela me respondeu: “em um país que tem ‘pè’
(‘medo’, em crioulo haitiano) no nome, eu não poderia ter me sentido
diferente”. Ela descreve que foram recorrentes as vezes em que o ônibus
com que atravessavam o país foi parado pela polícia peruana. Eram feitas
“revistas” nos haitianos, que perdiam todo o dinheiro que carregavam
consigo no processo. José narrou que chegou a ser preso por não ter
dinheiro para dar aos policiais.
De Brasileia, José e Marli seguiram para Cascavel, no Paraná, onde
se encontraram e começaram a namorar. Lá, José tinha um emprego que
perdeu depois de algum tempo. Marli nunca conseguiu achar um. Foi
um amigo de José que lhe contou sobre o município de Santa Bárbara
d’Oeste. Sem o trabalho de José e sem a perspectiva de Marli conseguir um
emprego, os dois voltaram a migrar, agora para São Paulo. Chegaram no
interior paulista em abril de 2015. No momento em que conversávamos,
José se encontrava empregado, mas Marli não. Ele sustentava a casa que
os dois dividiam no Brasil além de ajudar seus dois filhos que ficaram no

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Haiti. Seria um cenário comum se, primeiro, o casal estivesse no Haiti e


segundo, se os filhos fossem de Marli. Como esse não era o cenário que se
configurava, Marli estava muito desconfortável com a situação.
As haitianas mais jovens com quem conversei almejavam isso: ter
todos os custos bancados pelo companheiro. As mais velhas me narravam
suas experiências no Haiti nas quais maridos e companheiros pagavam
quase tudo para suas esposas, namoradas e amantes, ajudando, inclusive,
a cuidar de filhos que não fossem seus. Quando questionadas se no Brasil
isso também ocorria, elas diziam que não. Por mais que esse fosse seu
ideal de uma relação, “todo mundo que está fora é para trabalhar”, como
me conta Phahidra, e para Marli não seria diferente. Marli, que residia na
periferia da capital do Haiti, desistiu dos últimos anos de escola para se
casar. Com isso, perdeu o contato com o pai, que não aceitou o casamento
da filha aos 17 anos. O marido de Marli construiu uma casa e eles tiveram
três filhos. Quando seu filho mais novo tinha poucos meses de idade, o
casal se separou. Ela ficou com a casa e com as três crianças para sustentar.
Marli chegou a trabalhar costurando uniformes escolares, mas
conseguiu ter mais sucesso ao trabalhar com comércio. Chegou a namorar
mais um moço, mas o relacionamento também não deu certo. “A vida
foi ficando mais difícil”, como ela me disse. Quando sua filha mais velha
completou 14 anos, Marli pediu para a irmã, que morava na França,
para cuidar da menina. No entanto, a situação financeira não melhorou.
Foi quando ela ouviu no mercado sobre o Brasil. Ela então juntou suas
economias com dinheiro de seus familiares, deixou os outros dois filhos
aos cuidados de outra irmã que residia no Haiti e veio para o Brasil. No
dia em que conversávamos, a única renda que auxiliava as crianças era a
que vinha do aluguel da casa, construída pelo primeiro marido, no Haiti.
Duas semanas depois dessa primeira conversa, retornei à casa de
Mercina. Marli estava na porta da cozinha da amiga. Tinha em sua face
um aspecto mais cansado, marcado por suas olheiras mais intensas. Ela
me contou que havia conseguido um emprego na empresa Reciclagem
S.A., local em que muitas haitianas trabalhavam. Perguntei se ela estava
feliz com isso e a resposta foi um longo suspiro e um aceno negativo
com a cabeça: “Mas preciso do dinheiro pro Haiti. Não tem como dizer
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não pra trabalho”. Depois de conversar algumas amenidades sobre a


escolinha de Luciana com Mercina, fui à casa localizada no final da rua,
pertencente à Phahidra, com quem iria trabalhar naquele dia. Phahidra e
eu nos sentamos no sofá que ficava na garagem. Enquanto olhávamos o
movimento da rua, vi José indo ao mercado e logo me lembrei de Marli.
Perguntei à Phahidra porque tantas mulheres trabalhavam e odiavam seus
trabalhos na Reciclagem S.A.
“Entra e sai muita gente de lá. Ninguém vai te contar, mas lá dá um
pouco de medo de trabalhar, porque tem homens com armas e tudo. E o
trabalho é horrível. Elas trabalham com lixo”. Falei que reciclagem não era
lixo, eram vidros, plásticos e papéis que deveriam ser separados. Com um
aceno negativo de cabeça, Phahidra continuou: “Fralda é reciclável? Papel
higiênico é reciclável? Cachorro morto é reciclável? Eu acho que não. Isso
tudo é lixo”. Tive que concordar com ela, que prosseguiu:

Eu não trabalharia lá. Eugini me contou que todas as


mulheres se sentam ao chão, com suas próprias roupas,
avental, luvas e uma máscara. Abrem as pernas e um homem
vem e despeja o lixo no meio delas e elas começam a separar
o material reciclável do lixo. E vem muito bicho, verme,
coisa estragada no meio. Eu não trabalho com isso não!

Phahidra, tinha 23 anos no dia em que conversávamos. Ela era


considerada pelos outros haitianos como uma menina, como uma
adolescente que saíra a pouco da infância, e assim como outras jovens
haitianas solteiras e sem filhos de Santa Barbara d’Oeste tem uma maior
liberdade de escolher seus empregos. Durante os quatro meses que eu
estava em campo, Phahidra ficou três deles desempregada procurando por
um emprego em que ganhasse melhor, em que tivesse melhores condições
de trabalho. Marli, assim como Mercina e Rose – e outras haitianas –,
tinha poucas opções e muita urgência. Diferentemente de Phahidra, que
tinha uma vasta rede de ajuda, incluindo mãe, pai, tios e irmãos, e que não
tinha obrigação de enviar remessas e ajuda a algum dependente seu que
estivesse no Haiti – o que permitia a ela ter mais tempo para selecionar o

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seu trabalho –, Marli precisava sustentar quase que totalmente sozinha sua
vida no Brasil pagando aluguel, contas e alimentação, além de sustentar os
filhos que estão longe e auxiliar as pessoas que se prontificaram a cuidar
deles. Sua localização social a posiciona em um espaço muito mais definido e
sem muitas possibilidades de mobilidade.
As poucas mulheres jovens e solteiras com quem tive contato (uma
delas, Phahidra) vinham para o Brasil para estudar e trabalhar, tornando
a qualificação profissional um motivo das haitianas migrarem. Entre as
haitianas, as jovens são definidas menos no sentido da faixa etária e mais
no sentido da localização social, pois eram mulheres solteiras, sem filhos,
com uma vasta rede de ajuda que incluía remessas de parentes que residem
principalmente na República Dominicana e nos Estados Unidos. Diferente
das mães haitianas, as quais divido parte de suas histórias nesse artigo,
mulheres como Phahidra, migram para o Brasil não porque a vida estava
difícil no Haiti, mas porque ouviram que aqui, além de trabalhar, elas
poderiam estudar em instituições brasileiras. Essa era a principal vantagem
para estas jovens na escolha do Brasil ao invés dos Estados Unidos, local
em que só poderiam estudar se possuíssem o Green Card7. Ou seja, o
trabalho não era uma prioridade na trajetória de migração dessas jovens,
diferentemente das mães que estão nesse artigo e das outras mães que não
tem marido e não podiam contar com a ajuda de seus familiares.
Quando nos voltamos ao mercado de trabalho, a única “vantagem”
que Phahidra tem sobre Marli diz respeito somente ao tempo que ela tem
para selecionar um emprego, mas não diz respeito aos tipos de emprego
que são ofertados aos haitianos e haitianas que estão vindo ao Brasil.
No decorrer da pesquisa acompanhei, não apenas no próprio campo,
mas também através de várias reportagens, a precariedade dos trabalhos
atribuídos aos imigrantes haitianos8. Em duas destas notícias, publicadas
7
O Green Card se refere ao processo de imigração para que qualquer estrangeiro nos Estados Unidos
se torne um residente permanente. O Green Card serve como prova de que o seu titular é um residente
permanente legal (lawful permanent resident – LPR), ao qual foi concedido oficialmente benefícios de
imigração, que incluem a permissão para residir e ter um emprego nos Estados Unidos.
8
Entendo trabalho precário a partir da definição de Hirata (2009), que traz, através das pesquisas
realizadas sobre o trabalho e o desemprego em âmbito internacional, três indicadores do trabalho
precário: 1) ausência de proteção social e de direitos sociais, inclusive de direitos sindicais; 2) horas

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por dois jornais distintos, em datas apartadas, é narrado o sentimento de


indignação dos haitianos diante das possibilidades e condições de trabalho
que encontram no Brasil, comparando tais condições ao trabalho escravo,
assim como conta Robert ao jornal televisivo dominical da Rede Globo,
o “Fantástico”9.
Os trabalhos em que os haitianos se empregam são descritos por
empregadores, voluntários e outros brasileiros como “serviços que os
brasileiros não querem fazer”. Esse movimento é definido por Sayad
(1998) como o paradoxo da alteridade, uma vez que esses trabalhos são
um recurso para quem migra, na tentativa de melhoria, mas é também
um recurso a ser explorado pelo capital desejoso de força de trabalho.
No entanto, as formas de inserção do imigrante nessas condições são
marcadas pela tensão, e por mais que ele viva em um lugar, será sempre
um estrangeiro. Glick-Schiller (2009) também fala desse paradoxo da
imigração em que as transferências financeiras de migrantes têm figurado
em políticas de poderosas instituições do globo, sendo que o próprio
Banco Mundial declarou que as remessas dos migrantes se tornaram
o novo agente do desenvolvimento. Entretanto, Glick-Schiller (2009)

reduzidas de trabalho, que resultam em salários baixos e que levam frequentemente à precariedade; 3)
níveis baixos de qualificação: a ausência de qualificação formal e a consequente baixa renda levam, em
inúmeros casos, à precariedade e ao desemprego. Esses indicadores direcionam-se para uma marcada
divisão sexual da precariedade, já que as mulheres são mais numerosas do que os homens tanto no
trabalho informal quanto no trabalho em tempo parcial, além do número inferior de horas trabalhadas
e de níveis mais baixos na escala de qualificação (Hirata, 2009).
9
“Robert tem quatro filhas. Professor de matemática no Haiti, em São Paulo, ele conseguiu
emprego de operário, mas não gostou do que viu. ‘Encontro muitas injustiças. Muitos brasileiros ou
brasileiras consideram os haitianos, nas empresas, como escravos’, afirma.”. Imigrante diz que muitos
brasileiros consideram haitianos como escravos. Disponível em: <http://g1.globo.com/fantastico/
noticia/2015/07/imigrante-diz-que-muitos-brasileiros-consideram-haitianos-como-escravos.html>.
Acesso em: 07/03/2016. “Laurie Jeanty: Alguns brasileiros usam os haitianos, eles não têm direitos
iguais aos dos outros empregados. Nem todo mundo é assim, mas alguns [empregadores] manipulam
bem. Alguns tratam os haitianos como escravos. Eles não conseguem fazer nada quanto a isso, como
vão conseguir ajuda, se não sabem falar bem a língua portuguesa? Não tem ninguém para interagir, não
tem ninguém para falar por eles.” “Alguns brasileiros tratam os haitianos como escravos”, diz organização
de defesa dos imigrantes. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/43152/
alguns+brasileiros+tratam+os+haitianos+como+escravos+diz+organizacao+de+defesa+dos+imigrantes.
shtmlhttp://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/43152/
alguns+brasileiros+tratam+os+haitianos+como+escravos+diz+organizacao+de+defesa+dos+imigrantes.
shtml>. Acesso em 07/03/2016.

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verificou um descompasso entre este discurso com o discurso de políticos,


imprensa e opinião pública, que retratam os migrantes transnacionais
como ameaças à segurança nacional.
Nessa lógica, afinal, o que é um imigrante? Sayad (1998) define um
imigrante essencialmente como uma força de trabalho – e uma força de
trabalho provisória temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio,
um “trabalhador imigrante” se torna quase um pleonasmo (SAYAD, 1998,
p. 54). A análise do autor é categórica em relação à dicotomia imigração
e trabalho, sendo que essas duas complementam-se e a primeira só tem
sentido quando contemplada pela segunda, pois um imigrante só tem
razão de ser no modo do provisório e com a condição de que se conforme
ao que se espera dele. Ele só está aqui e tem sua razão de ser pelo trabalho
e no trabalho, porque se precisa dele, enquanto se precisa dele, para aquilo
que se precisa dele e lá onde se precisa dele (SAYAD, p. 55).
No entanto, quanto à definição do trabalho do imigrante como uma
força de trabalho provisória e precarizada, deve-se ainda ter mais atenção
quando a maioria das oportunidades de trabalho que esses haitianos têm são
racializadas. Assim como há centenas de anos os trabalhos precários foram
designados às pessoas negras, pobres e residentes da periferia no Brasil, tal
trabalho também se define pela mão de obra negra e imigrante do século
XXI. No caso das mulheres, assim como as mulheres negras brasileiras,
isso fica ainda mais evidente quando o setor de serviços domésticos foi
um dos únicos espaços no qual essas mulheres encontraram trabalho. Os
homens haitianos, entendidos como “negros e fortes”, são empregados
por tais características. Por sua dificuldade em se mover socialmente à
procura de melhores oportunidades, são empregados em serviços com
grande rotatividade, como siderurgia, frigorífico, ou outros empregos sem
espaço de ascensão. Sendo assim, é importante frisar que a raça é um dos
temas mais relevantes no que tange ao mercado de trabalho.
Todavia, o marcador “raça” não é único. Ao se fazer uma reflexão
sobre trabalho, gênero e migração, é impossível não trazer para a discussão
as questões que envolvem as mulheres migrantes pobres e racializadas dos
países do Sul que se tornam trabalhadoras domésticas e trabalhadoras do

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care10 nos países do Norte (“países ricos”), questões presentes em várias


investigações atuais. Handerson e Joseph (2015) fazem uma reflexão
em seu artigo “As Relações de Gênero, de Classe e de Raça: mulheres
migrantes haitianas na França e no Brasil” sobre a trajetória de quatro
mulheres haitianas – duas que migraram para a França e duas que migraram
para o Brasil – que trabalham nos serviços de care. Para essas mulheres, a
oportunidade de trabalho nesse tipo de serviço geralmente é recusável, a
não ser quando se apresenta como única opção. Do ponto de vista dessas
mulheres, as atividades que consistem na limpeza de objetos e de pessoas
são consideradas sujas (JOSEPH, 2011). O “trabalho sujo” (sale boulot),
analisado por vários autores no setor do trabalho doméstico (BENELLI,
2011), e o care (MOLINIER, 2004) são os principais aspectos da decadência
do status social das mulheres migrantes haitianas.
Os autores colocam que esses aspectos materiais da decadência
estão articulados com os aspectos simbólicos e devem ser levados em
consideração para apreender em que medida o trabalho pode parecer
degradante do ponto de vista delas. Algumas pessoas podem estranhar
e se surpreender pelo fato de essas mulheres haitianas recusarem o setor
doméstico – “um trabalho digno”, alguns poderiam dizer. Mas, é importante
compreender que essas mulheres haitianas assimilaram e interiorizaram
essa desvalorização do setor doméstico, a partir de suas referências sociais.
No Haiti, esse tipo de serviço é desvalorizado, e as mulheres haitianas se
referem sistematicamente à situação das empregadas domésticas no Haiti
para criticar o desprezo associado ao serviço doméstico (HANDERSON,
2015).
Mas o que acontece quando o referencial deixa de ser mulheres
próximas, de um status inferior ao seu e que lidam com o serviço doméstico
– como uma empregada doméstica –, e passa a ser uma pessoa “realmente
pobre” – como uma catadora – que manuseia o lixo dos outros para
ganhar a vida? É com esse tipo de comparação que muitas haitianas que
trabalham com “lixo” lidam todos os dias. Por serem avaliadas por suas
10
Entendo o care como esse trabalho de cuidado à pessoa será considerado como parte do
trabalho doméstico (gratuito ou pago), mesmo que o cuidado à pessoa seja uma atividade
particular no setor doméstico.

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qualidades e não por suas qualificações elas são empregadas no setor da


separação da reciclagem. Se estas mulheres possuem ensino fundamental,
médio ou superior, não importa. Não importa se falam três línguas ou
no que elas trabalhavam no Haiti, o que importa aos empregadores são
as qualidades consideradas, social e historicamente, inerentes e naturais
a elas como mulheres, como atenção, cuidado e organização do espaço
(FREITAS, 2010).
“Eu me sinto um lixo”, Marli me disse três meses após o nosso
último encontro, em frente à casa de Mercina. Acabados os três meses
de treinamento, a empresa de reciclagem a demitiu. Nesse dia, eu havia
me dirigido à casa para falar com a irmã de Mercina e aproveitei para ver
Marli. A encontrei, em pleno sábado, no meio da manhã, deitada no sofá,
acordada, olhando para a tela do computador desligado. Seus cabelos não
estavam mais trançados como de costume, estava de pijama, com olheiras
profundas. Ela me deu um sorriso de olá. Eu a abracei e ela então me
contou que havia sido demitida sem nem saber o porquê, mas que também
não queria mais trabalhar lá. Se sentia como um lixo. Depois, com lágrimas
nos olhos, disse que precisava do emprego, por mais que não gostasse dele.
O movimento que Handerson e Joseph (2015) viram em seus respectivos
campos ficou evidenciado para mim: o da desvalorização do self que essas
mulheres passam ao trabalharem em serviços desvalorizados e em pensar
que essas são as únicas oportunidades que elas têm no país que escolheram
viver.
Os aspectos materiais da decadência concretizaram-se no emprego
com o lixo de Marli, e em sua fala “eu me sinto um lixo” ela evidencia não
só a desvalorização do self como a substancialização de seu corpo no objeto
com o qual trabalha. Ao pensarmos o corpo a partir de Csordas (1990)
ele passa a ser visto não como fato bruto da natureza nem um fato dado,
mas como um processo construído histórica e culturalmente, um sujeito
e agente da/na cultura. Sendo assim, a cultura é corporificada (embodied)
e não dada exteriormente à experiência do sujeito. Nesse sentido, em
um curto espaço de tempo, Marli em seus cabelos destrançados, roupas
desalinhadas e em sua casa desorganizada, acabou por corporificar os
aspectos negativos de seu trabalho.
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190  Rafaela Gava Etechebere

Não foi somente a decadência corporificada de Marli que fez com


que ela se desvalorizasse. O fato de ela não conseguir enviar as remessas
aos seus filhos era outro grande motivo da tristeza para haitiana. Logo
chegaria o aniversário do seu filho mais novo e ela não poderia enviar
dinheiro para roupas novas. Não tinha conseguido comprar um celular
para as duas crianças que ficaram no Haiti e que ainda dependiam do
telefone da avó para falar com sua mãe. Com a filha mais velha que mora
na França, Marli quase não tem mais contato, não podendo ajudar sequer
com a comida dela. Esses foram problemas que encontrei não só com
Marli, mas com outras haitianas que, por não conseguirem manter um
emprego, não conseguiam manter o fluxo contínuo de remessas para seus
filhos que ficaram para trás.
Lajan, ou o dinheiro, que aqui trago como remessa, é frequentemente
o primeiro assunto a ser resolvido entre os haitianos que estão na
diáspora e aqueles que estão no Haiti. Mesmo entre mães e filhos que
ainda não estejam na idade adulta, ele é o primeiro tema resolvido em
ligações telefônicas, mensagens instantâneas ou em videoconferências.
Isso porque, mesmo tendo um visto humanitário, os haitianos, em sua
maioria, são imigrantes econômicos, tendo no envio de remessas um dos
principais motivos para migrarem. No caso das mulheres com filhos que
não tem marido nem uma vasta rede de ajuda e que tem poucos recursos,
trabalhar para enviar remessas era o principal objetivo na vida que elas
estabeleceram no Brasil. Quando se trata de remessa, não é só o prover a
vida, mas é cuidar da vida de quem ficou.
Com isso, a remessa pode ser entendida como muito mais que um
meio para alimentar, vestir e educar os filhos que ficaram para trás, ou como
no caso de Marli, que também migraram para outros países. A remessa é
uma substância que realiza a manutenção dos laços de parentalidade entre
mães e filhos que estão distantes. Não digo que essas mulheres deixem de
ser mães dessas crianças quando não dão conta de enviar remessas aos seus
filhos, pois o sangue é mais forte que qualquer outra substância quando
se trata da constituição do parentesco no Haiti. Mas a remessa, pensada
a partir da noção de relatedness de Carsten (2004), constitui e estrutura
uma maternidade para essas mulheres a partir da qual Marli daria conta

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Entre Santa Bárbara d’Oeste e o Haiti:... 191

de prover tudo o que seus filhos precisassem: comida, roupas, uniformes,


sapatos, brinquedos, celulares, estudos e o que mais as crianças pudessem
desejar e isso é uma parte de como uma haitiana da diáspora pode ser uma
boa mãe.
Ao não conseguir enviar o dinheiro da remessa, se coloca em jogo,
para essas mulheres não somente o cuidado da criança que ficou para trás,
mas o quanto elas se preocupam com seus filhos. A tristeza e o desgaste de
Marli eram muito mais que mera frustração por não conseguir manter um
trabalho no Brasil. Um processo ainda mais grave do que a própria haitiana
tornar-se “lixo”. A perda do emprego tratava também da incapacidade
dela de cuidar de seus filhos.

O COTIDIANO NA DIÁSPORA

Sentadas na varanda, Phahidra e eu ouvíamos konpa. A música


My Life, do grupo 5 etwal, embalou quase todos os dias em que estive
com as haitianas. Naquele dia não havia muito movimento na rua como
costumávamos observar, talvez por que fosse uma segunda-feira à tarde.
Phahidra, Rose, Wesley (irmão de Phahidra) e eu havíamos combinado
de eu dar a eles uma carona para o distrito industrial de Santa Bárbara
d’Oeste para que Rose pudesse comparecer a uma entrevista de emprego
em uma siderúrgica e Phahidra e Wesley aproveitariam para entregar seus
currículos nessa empresa e em outras próximas. Era meio de agosto, e a
crise econômica, que vi chegando aos poucos a partir no meu campo de
pesquisa, se tornava uma realidade contra a qual os haitianos e suas redes
buscavam novas estratégias de enfrentamento.
Terminada a entrevista – que Rose descreveu como não muito boa
– fomos para casa que Phahidra e Rose dividiam com mais duas haitianas e
dois haitianos, casa que apelidei como Kap Kay, ou a casa do Cabo Haitiano
– porque todos seus moradores já se conheciam da cidade de Limonade,
na Região do Cabo Haitiano, norte do Haiti.
A casa não era muito grande. Tinha dois quartos, uma cozinha/sala,
um banheiro e uma garagem. A garagem tinha um grande sofá e cadeiras
distribuídas, além de duas máquinas de lavar que não funcionavam e várias
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bacias nas quais as roupas eram lavadas. Phahidra e eu ficamos na garagem


enquanto Wesley foi buscar o tablet da irmã no quarto e Rose seguiu para
a cozinha. Phahidra e Wesley me mostraram um vídeo gravado no celular
da haitiana no culto do dia anterior em que Wesley cantava uma música
gospel em português. Aplaudi o moço que estava em minha frente e pedi
por uma demonstração que, como no vídeo, não deixou espaços para
defeitos, tanto em seu português quanto em sua afinação. Novamente,
batemos palmas e ouvimos as palmas de Rose vindas da cozinha. Chamei
Rose para se sentar conosco, mas foi Phahidra quem respondeu: “Rose
está fazendo fritay11 pra você! Falei que você gostava muito de banana frita
e ela quis fazer pra você. Ela também vai fazer salami. Você conhece salami?
Na República Dominicana a gente chama assim”. Não demorou para que
Rose trouxesse um prato grande com muitas bananas da terra verdes e
fritas acompanhadas de mortadela frita, ou salami.
Rose voltou para a cozinha para preparar um suco e, enquanto
Phahidra, Wesley e eu dividíamos o prato, o celular dela tocou. Era o
filho mais novo de Rose. Os dois conversaram por poucos minutos e
depois de encerrada a ligação, Rose voltou até a garagem para pedir que
Wesley emprestasse a ela o tablet de Phahidra, pois seu filho logo faria
uma chamada por Skype12. Rose, assim como Marli, era mãe, e seus dois
filhos ficaram no Haiti. Rose nasceu e cresceu em Limonade, uma cidade
importante do Norte do país. Nessa cidade, ela chegou a cursar até o
equivalente ao ensino Fundamental I brasileiro e, com este concluído, foi
11
Fritay é um termo usado para comidas fritas no Haiti. Nas ruas do país é comum encontrar
mulheres vendendo esses pratos. O fritay pode incluir carne de porco, carne de vaca, banana da
terra (verde) e linguiça, e é acompanhado por pikliz, que é repolho cortado de forma fina, com
cenoura ralada, temperado com vinagre e pimenta.
12
O Skype é uma ferramenta de comunicação on-line por texto, áudio e videochamada que,
segundo o site da criadora Microsoft, “serve para ajudar as pessoas a fazerem coisas juntas
quando estão separadas. O chat e as chamadas de voz e com vídeo do Skype facilitam a troca
de experiências com quem mais importa na sua vida, onde quer que vocês estejam. Com o
Skype, você pode compartilhar uma história, comemorar um aniversário, aprender um idioma,
realizar uma reunião, colaborar com colegas – praticamente qualquer coisa que vocês precisem
fazer juntos todos os dias. Você pode usar o Skype como for melhor para você: no seu telefone,
computador ou em uma TV com o Skype instalado. Você pode começar a usar o Skype de
graça, para falar com outras pessoas, vê-las e trocar mensagens de chat com elas, por exemplo.

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Entre Santa Bárbara d’Oeste e o Haiti:... 193

ajudar a mãe com o comércio. Foi nesse período que aprendeu com sua
mãe a fazer negócios em Dajabón13. Já mais velha, Rose se casou com seu
marido e teve dois filhos. Nessa época ela não precisou trabalhar fora, pois
seu marido mantinha um emprego na capital, Porto Príncipe, e provia o
que a família precisava em Limonade.
Essa realidade mudou no dia 12 de janeiro de 2010. O marido de
Rose estava trabalhando quando o relógio começava a aproximar seus
ponteiros das 17 horas e os abalos do grande terremoto que assolou o
país foram sentidos na capital haitiana. Era um terremoto de magnitude
7,0 na escala Richter. Metade da capital haitiana ficara destruída. Estima-
se que 250 mil pessoas foram feridas, 1,5 milhão de habitantes ficaram
desabrigados e o número de mortos ultrapassou 200 mil14. Entre os
mortos, estava o marido de Rose. Viúva, Rose voltou a trabalhar com
comércio para sustentar seus filhos. No início de 2015, ela ficou sabendo
pela avó de Phahidra que seus netos estavam conseguindo bons trabalhos
no Brasil e decidiu deixar os filhos para trás e se mudar, em maio deste
ano, para a casa onde sempre nos encontrávamos em meu trabalho de
campo. Nos primeiros meses, ela conseguiu um emprego em uma fábrica
e investiu, com seu primeiro salário, em um tablet para o filho. Um mês se
passou e ela foi demitida. “Eu ia comprar um smartphone pra mim”.
Rose e Marli, assim como Mercina, Marlene, Alina, Santana e
tantas outras haitianas de Santa Bárbara d’Oeste procuram meios para se
comunicarem com seus filhos que ficaram no Haiti. Ao se comunicarem
com essas crianças e adolescentes, essas mães não só obtêm notícias e
dão informações sobre o que está se passando: elas cuidam efetivamente
dos seus filhos. A distância, que apartaria a participação dessas mulheres
13
Dajabón é uma cidade localizada na República Dominicana, na fronteira com o Haiti. Ela
é descrita como uma cidade mercado. Às segundas-feiras até sextas-feiras, os haitianos estão
autorizados a atravessar temporariamente a ponte para vender seus produtos. A maioria dos
produtos são roupas usadas, sapatos, produtos secos a granel, e eletrodomésticos. Nesses dias,
uma área de vários acres na borda ocidental da cidade torna-se um lugar de negócios lotado.
Além dos haitianos, dominicanos vão ao mercado para vender alimentos (legumes cultivados
em sua parte do país).
14
Disponível em <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1446514-5602,00-COBER
TURA+COMPLETA+TERREMOTO+NO+HAITI.html>.

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194  Rafaela Gava Etechebere

na criação de seus filhos, se dilui, pelo menos no espaço de tempo em


que essa mulher se conecta com seu país, e mais uma cena do cotidiano
transnacional acontece com a manutenção de várias vidas em dois lugares
diferentes. Naquela tarde de segunda-feira, vi na chamada por Skype que
Rose fazia para seu filho, que conectava o tablet emprestado da amiga
no Brasil com o tablet da criança no Haiti, que esta não parecia ser uma
relação “lesionada” pela distância espacial. O menino, que já trajava uma
camisa grande e confortável, com uma bermuda também “desleixada”,
tomou uma bronca da mãe porque não estava “com uma roupa boa”
para falar com as visitas – no caso eu, muito distante dele. O menino,
com vergonha, saiu para trocar de blusa e eu pude ver no seu quarto um
uniforme pendurado ao fundo. Phahidra e eu conversávamos com ele,
enquanto Rose terminava de fazer o suco para nós. Ao retornar, o menino
nos descreveu seu dia na escola, algumas de suas brincadeiras e falou que
o irmão estava bem e que estava na casa da tia deles. Depois que Rose
terminou o suco, pegou o tablet para si e os dois começaram a discutir
sobre as remessas e Phahidra e eu voltamos à garagem.
A manutenção dos vínculos entre mães e filhos separados pela
migração transnacional, que faz com que a “família transnacional
conectada” se mantenha de forma intensa nos dias atuais, se dá por meio
da explosão de oportunidades comunicativas proporcionadas pelas novas
mídias (BUMACHAR, 2011). Conforme os anos passam, as mídias de
comunicação acabam por “denunciar” a época em que produzimos nosso
material de campo. Richman (2005), por exemplo, que desenvolveu seu
trabalho de campo entre haitianos migrantes nos Estados Unidos e entre
parentes desses imigrantes no Haiti, acompanhou essa busca de conexão e
proximidade ser colocada em prática por meio da gravação e do envio de
fitas cassetes. Nos fluxos atuais cada vez mais intensos, barreiras temporais
e espaciais são desafiadas, por sua vez, a cada instante de um “click” em
uma notificação de chegada de uma mensagem em tempo real15 em um
aplicativo, que está no smartphone, em nossas mãos.

15
Depende da conexão com a internet.

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Entre Santa Bárbara d’Oeste e o Haiti:... 195

Além do Skype, as haitianas de Santa Bárbara d’Oeste também


utilizam com regularidade o Whatsapp e o Facebook. Também existe
a possibilidade da realização de chamadas internacionais, realizadas
com o uso do cartão telefônico “Africard”. Cada uma das mídias tem
possibilidades de ação a partir da interseção de marcadores sociotécnicos,
tais como “interatividade, temporalidade, capacidade de armazenamento,
durabilidade do conteúdo, replicabilidade, alcance e visiblidade, mobilidade,
pistas, natureza pública/privada, custo e capacidade informacional”
(BUMACHAR, 2011). Para entender tanto a comunicação quanto como
se dá a maternidade transnacional no contexto das haitianas de Santa
Bárbara d’Oeste, é necessário compreender os marcadores sóciotécnicos
em cada possibilidade de comunicação e como elas são acionadas.
Primeiro, é necessário pensar sobre os equipamentos e acessórios
aos quais os migrantes haitianos têm acesso. Quando chegam, na maioria
das vezes, eles não têm nenhum equipamento: celular, tablet, smartphone,
notebook ou computador. Nas primeiras semanas, eles emprestam o
celular de outros haitianos para se comunicarem com parentes e amigos.
Não demora até que comprem seus próprios celulares de modelos mais
simples. Nesses celulares, eles realizam chamadas internacionais através
do uso do cartão “Africard”. Comprado em Campinas e revendido em
Santa Barbara d’Oeste por 10 reais, os haitianos conseguem ligar para
seu país durante 10 minutos para cada cartão, o que barateia os custos
em relação a uma ligação internacional simples, mas ainda é muito caro
e restritivo. Mesmo que adquiram aqui no Brasil ou tragam do Haiti ou
da República Dominicana celular, tablet, notebook ou computador, todos
têm alguma limitação comparado ao smartphone. O celular, mesmo sendo
o equipamento mais barato, é de comunicação mais cara. O notebook e
o computador têm a dificuldade do transporte e de, assim como o tablet,
não ter a possibilidade de comunicação via Whatsapp.
Esse software para smartphone é utilizado para troca de mensagens
de texto instantaneamente, além de vídeos, fotos e áudios através de uma
conexão à internet. Ou seja, com a internet instalada na casa e transmitida

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196  Rafaela Gava Etechebere

via Wi-Fi16, todos os haitianos conseguem se comunicar instantaneamente


com outros haitianos que estão também conectados à internet no Haiti e
em outros lugares da diáspora. Conselhos, piadas, comentários, paqueras
atingem um tom de cotidiano e proximidade mais difícil de ser atingido
em conversas por Skype, que também podem ser feitas via smartphone.
Com esse equipamento os haitianos podem acessar de forma rápida e
prática o Facebook, outra ferramenta de comunicação muito importante
para eles. Assim como por Whatsapp, a rede social permite que aqueles que
se utilizam dela enviem mensagens instantâneas para parentes e amigos.
Mesmo que esse seja o uso mais recorrente da rede social, o uso mais
interessante foi o envio, recebimento e o armazenamento de fotos.
Um dia de festa, um dia de culto, uma ida ao shopping, toda semana
nas aulas de português, uma touca, um par de óculos ou uma roupa nova
sempre foram justificativas para haitianos e haitianas posarem e fazerem
fotos para postar em suas páginas pessoais no Facebook. Perguntei para
Phahidra o porquê daquilo e ela me respondeu que não havia jeito melhor
da sua família saber se ela estava bem se não através das fotos postadas. As
fotos sempre eram tiradas em situações em que se sentiam bem, estavam
arrumados e estavam em um lugar bonito, “chique”, como me descreve
Phahidra, para todos saberem que estão bem. Mas não só os haitianos
que estão na diáspora têm esse hábito. Os haitianos que ficaram no Haiti
também registram seus bons momentos para que seus amigos e parentes
saibam que estão bem. Mães, tias, irmãos e avós registram seus filhos,
sobrinhos, irmãos e netos arrumados para seu primeiro dia de aula ou
para irem à igreja para que os pais, as mães, os tios, avós das crianças, que
enviam remessas para ajudar na educação e nos cuidados, saibam que ela
está bem.
Com o smartphone, fotografar e compartilhar fotografias torna-se
muito mais rápido e prático, aproximando os cotidianos, o que adiciona
mais um motivo pela preferência desse equipamento. Por isso, quando
Rose diz que teria comprado um smartphone com seu próximo salário,
16
Wi-Fi é uma abreviação de “Wireless Fidelity”, que significa fidelidade sem fio, em português.
Wi-Fi, ou wireless é uma tecnologia de comunicação que não faz uso de cabos, e geralmente é
transmitida através de frequências de rádio, infravermelhos etc.

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Entre Santa Bárbara d’Oeste e o Haiti:... 197

ela está dizendo que teria comprado o meio para entrar no cotidiano de
seus filhos, amigos e parentes que estão no Haiti e fora dele via Whatsapp,
além de que, sempre que possível, faria videoconferências com as crianças
via Skype pelo aparelho. Cada vez que tivesse saudades ou estivesse
preocupada, poderia ver, através do aparelho, as fotos de seus filhos
arrumados e saberia que eles ficariam menos preocupados quando vissem
as suas fotos no Facebook. Além disso, ela poderia se sentir mais próxima
do seu país ao poder ouvir rádios haitianas pelo aparelho quando estivesse
conectada à internet ou ouvir suas músicas favoritas, compartilhadas via
Bluetooth17 com outros haitianos próximos. Sendo assim, Rose poderia se
fazer mais presente na criação dos seus filhos, atendendo suas necessidades
de maneira mais eficaz.

AGENCIANDO AFETOS

Marli e Rose ocupam um espaço entre os haitianos com quem


estive que é diferente das outras mães com quem conversei, pois uma
questão se destacava constantemente no recontar de suas narrativas: “eles
[seus filhos] não tem ninguém”; “eu não tenho ninguém”. As mulheres migrantes
ocupam na imaginação do social o espaço de acompanhantes de seus
maridos. Esse movimento merece ainda mais ênfase quando se trata do
contexto haitiano em que o homem ocupa um lugar claro de provedor,
lugar daquele que trabalha para fora e ganha o dinheiro para manutenção
da casa. No entanto, essas mulheres, separada e viúva, não podem contar
com a ajuda de seus ex-companheiros. Como elas tiveram filhos, elas são
responsáveis por essas crianças. Mesmo que a criação das crianças no
Haiti não pertença somente aos pais18, são eles que proveem o básico aos
17
O Bluetooth é uma tecnologia de comunicação sem fio que permite que computadores,
smartphones, tablets e afins troquem dados entre si e se conectem a mouses, teclados, fones
de ouvido, impressoras e outros acessórios a partir de ondas de rádio. A ideia consiste em
possibilitar que dispositivos se interliguem de maneira rápida, descomplicada e sem uso de
cabos, bastando que um esteja próximo do outro.
18
Tratei sobre o tema no artigo “Criando Crianças: Reflexões sobre o Parentesco Haitiano em
meio a Dyaspora”, apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia e na ANPOCS de
2014.

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filhos. Os avós e tios delas também ajudam financeiramente, mas a ajuda


é esporádica. Por isso, essas mulheres dizem não contar com ninguém
mais a não ser elas mesmas e sua força de trabalho. Força esta que tem
urgência de ser empregada, pois paga comida, educação e roupas para os
filhos. Não há tempo para seleção do emprego que mais as interessa. Há a
necessidade de se ter um salário.
As duas passaram pela empresa Reciclagem S.A. Seus corpos se
modificaram: “para quê se arrumar tanto se vou trabalhar com lixo”, dizia
Rose. O processo de Marli exemplifica de forma mais contundente essas
mudanças: os cabelos antes minuciosamente trançados agora estavam
soltos, quando muito cobertos por uma touca. Seus olhos, antes com uma
leve maquiagem para os encontros casuais em um sábado à tarde, agora
estão marcados por profundas olheiras.
A vaidade perde espaço para a necessidade de responder a demanda
de cuidar dos filhos. Em razão disso, e por serem mulheres negras que
emigraram do Haiti, elas acabam por selecionar os trabalhos ofertados
pela determinação da classe e da raça, muito mais que a partir de suas
qualificações. Mesmo que tenham companheiros, como é o caso de Marli,
ou que tenham amigos com quem possam contar, como é o caso de Rose
com Phahidra, essas pessoas, diferente de um núcleo familiar, têm suas
próprias obrigações com suas redes, tendo pouca possibilidade de ajuda a
não ser em pequenezas do cotidiano. Sendo assim, a ajuda “extra”, quando
vem, geralmente não vem na forma de dinheiro, que é o único componente
da remessa que Marli e Rose enviam para o Haiti.
Ainda que essas mulheres estabeleçam redes aqui no Brasil, o fato de
serem mães transnacionais pertencentes a uma rede de possibilidades de
ajuda limitada é determinante em suas estratégias, escolhas e agenciamentos
no país em que residem. Essas mulheres enfrentam situações de
adversidades em que sua cor da pele e a dificuldade de compreensão do
português, colocam em cheque a sua capacidade de prover e cuidar de seus
filhos. Rose não conseguiu comprar o aparelho eletrônico que desejava,
mas conta com a ajuda de sua pequena rede para falar com seus dois filhos.
Por essa dependência, não é sempre que a saudade chega que ela consegue
falar com eles, assim como Marli, que depende muito de José.

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Entre Santa Bárbara d’Oeste e o Haiti:... 199

Nesse cotidiano em que é tão precário “prover”, e o “cuidar” física


e emocionalmente implica em uma constante negociação do que é melhor
para o futuro das crianças, a falta das crianças em sua rotina tem grande
impacto no emocional dessas mulheres. Mas, apesar da saudade, o medo
da influência da cultura do país para o qual imigraram na formação de seus
filhos faz com que essas mulheres tenham a certeza de que deixar seus
filhos para trás ao migrarem é a melhor escolha para as próprias crianças.
A maioria das haitianas acredita que “é melhor que os mais pequenos
cresçam no Haiti. A escola é melhor, lá tem respeito, tem igreja, tem Deus.
Aqui fica muito difícil dar limite, cuidar de tudo”, como me disse Marli
certa vez.
Ao pensar o movimento migratório transnacional das mulheres
haitianas que tem como finalidade “prover” bens materiais para os filhos,
trabalhar com o cotidiano e a precariedade do trabalho, que passa pela
nacionalidade, classe, raça e gênero, revelou muito mais do que vítimas dos
percalços da migração. Mesmo que elas vissem seus sonhos e ambições
se diluírem de maneira drástica na correnteza do dia a dia em suas vidas
na diáspora, ao entenderem que seus objetivos não seriam atingidos no
tempo que estimavam, assim como outras haitianas, elas continuaram a
agenciar suas possibilidades e suas necessidades através de suas redes de
trabalho, amor e amizade.
Desse modo, dia após dia, procuraram uma melhor qualidade de
vida no país em que escolheram estar e proporcionar o melhor para aqueles
que estavam distantes, fisicamente. Visto assim, as vivências enquanto
estiveram no Brasil não foram capazes de destruir as expectativas das
haitianas, mas ressignificaram a experiência de migração dessas. Foi na
construção do corriqueiro que se verificou agenciamentos possíveis,
tanto do cuidado quanto da saudade. Com ajuda de suas estreitas redes
e a facilidade a um “clique” das novas tecnologias de comunicação, a
administração dos afetos entre Rose e Marli com os filhos tornam possível
a realização dessa migração transnacional.

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200  Rafaela Gava Etechebere

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MIGRAÇÃO HAITIANA EM SÃO PAULO PÓS-
TERREMOTO DE 2010: A RELIGIÃO
COMO SUPORTE1

Frantz Rousseau Déus2

RESUMO: O presente artigo investiga o suporte oferecido e o papel desempenhado pela


religião na construção de laços afetivos e religiosos que facilitaram a integração social dos
imigrantes haitianos na sociedade brasileira de 2012 a 2015. Para alcançar esse objetivo,
realizei observação acompanhante no Salão do Reino (Testemunha de Jeová) localizado no
Jardim Londres em Campinas. Também, acompanhei várias atividades religiosas feitas pelas
Testemunhas de Jeová no Brasil, presencialmente e online. Analisei, ainda, o corpus textual
relacionado à questão da religião e da migração; além de outros textos importantes como
artigos de jornal, dentre outros. A partir desse estudo, foi possível entender que a religião
Testemunhas de Jeová, na tentativa de pregar e converter migrantes haitianos, construiu
laços de amizade e de afetividade que facilitam a aceitação dos estudos bíblicos por parte
destes imigrantes. Faz parte da própria política de pregação construir tais laços de uma
maneira simbólica. Imigrantes com quem conversei durante essa pesquisa mencionaram
o apoio que eles recebem dos seguidores dessa religião, como informações acerca do
cotidiano da sociedade brasileira e suporte linguístico (ensino de português por alguns
membros).
PALAVRAS-CHAVE: Migração Haitiana; Religião Testemunhas de Jeová; Congregação
Crioulo; Suporte.

1
Este trabalho contempla os resultados da iniciação científica desenvolvida em 2015 sob a
orientação do prof. Dr. Ronaldo de Almeida, do Departamento de Antropologia da Unicamp.
2
Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Licenciado em
Ciências Sociais e Bacharel em Sociologia e em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas. E-mail: [email protected]
204  Frantz Rousseau Déus

HAITIAN MIGRATION IN SÃO PAULO AFTER


THE 2010 EARTHQUAKE: RELIGION
AS SUPPORT

ABSTRACT: This article investigates the support offered and the role played by religion
in the building of affective and religious ties that facilitated the social integration of Haitian
immigrants into Brazilian society from 2012 to 2015. In order to achieve this goal, I made
an accompanying observation in the Kingdom Hall of Jehovah, located in Jardim Londres
in Campinas. Also, I followed several religious activities done by Jehovah’s Witnesses in
Brazil personally and online. I have also analyzed the textual corpus related to the question
of religion and migration; as well as other important texts such as newspaper articles, etc.
From this study, it was possible to understand that the Jehovah’s Witness religion, in the
attempt to preach and convert Haitian migrants, built bonds of friendship and affection
that facilitate the acceptance of the biblical studies by these immigrants. It is part of the
preaching policy itself to build such ties in a symbolic way. Immigrants I talked to during
this research mentioned the support they receive from followers of this religion, such
as information about the daily life of Brazilian society and linguistic support (teaching
Portuguese by some members).
KEYWORDS: Haitian Migration; Jehovah’s Witness; Creole Congregation; Support.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, inicialmente apresenta-se um panorama histórico da


migração haitiana e algumas das suas motivações. No tocante ao contexto
brasileiro, pergunta-se como a diáspora haitiana se espalha nos grandes
centros urbanos e por que esses imigrantes escolhem principalmente São
Paulo. Em seguida, apresenta-se alguns aspectos do suporte oferecido e do
papel desempenhado pela religião Testemunhas de Jeová para a integração
de certos imigrantes haitianos na sociedade brasileira. Para tanto, realizei
visitas ao Salão do Reino (templo Testemunha de Jeová) localizado no
Jardim Londres em Campinas, no qual realizei observação acompanhante. Além
disso, foram acompanhadas muitas outras atividades religiosas feitas pelas
Testemunhas de Jeová no Brasil, presencialmente e também online. Analisei
ainda o corpus textual relacionado à questão da religião e da migração,
além de outros textos pertinentes para a discussão proposta neste trabalho.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017
Migração haitiana em São Paulo... 205

Na tentativa de explicitar o suporte que a religião Testemunha de


Jeová oferece a certos haitianos, apresentei as principais atividades que
esta religião realiza para atingir esses imigrantes. Tais atividades são em
sua maioria de cunho religioso (pregação, tradução de publicações para
o crioulo haitiano etc.). Constatei com isso que o suporte recebido pelos
imigrantes para se adaptar à sociedade brasileira faz parte do próprio
processo de pregação e de conversão.
Assim, este trabalho aborda os pontos a seguir: Migração haitiana
e a escolha do Brasil como destino; Suporte da religião e a escolha das
Testemunhas de Jeová em Campinas como caso de análise: a) Presença das
Testemunhas de Jeová no evento “Campinas pou tout pèp”, b) O congresso
de outubro de 2015, c) Congregação Crioulo, d) Reunião em crioulo
haitiano no Salão do Reino no Jardim Londres; Pregação da palavra de
Jeová; e segue-se as considerações finais.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


206  Frantz Rousseau Déus

MIGRAÇÃO HAITIANA E A ESCOLHA DO BRASIL COMO


DESTINO

Antes de tudo, deve-se salientar que há anos o Haiti vem enfrentando


situações políticas e econômicas difíceis, pois a trajetória histórica deste
país, depois da sua independência em 1804, é marcada por acontecimentos
que precarizaram o funcionamento do Estado e da sociedade como
um todo. Dentre esses acontecimentos, destacamos a ocupação militar
estadunidense (1915-1934)3; a ditadura dos Duvalier (1957-1986)4; e
golpes de Estado (1991 e 2014)5, sem esquecer a ingerência permanente
3
O dia de 27 de julho de 1915 é uma data que ficará gravada na memória coletiva do povo
haitiano, pois neste dia assistiu-se à invasão de seu território por soldados estadunidenses, que
impuseram uma ocupação militar sem precedentes, e que durou dezenove anos (1915-1934).
Tal ocupação foi vista pela maioria da população como uma segunda colonização, pois ela
transformava o Haiti em verdadeira colônia dos Estados Unidos, de modo que o supremo
comissário da ocupação tinha mais poder do que o presidente do país. Se a ocupação se deu
em razão de crises políticas internas, importa igualmente frisar que a velha pretensão das
grandes potências como França, Alemanha e Estados Unidos em controlar o Haiti, igualmente
contribuíram para desencadeá-la. Dessa forma, crises políticas internas foram utilizadas
apenas como pretextos para a invasão dos marines estadunidenses. Isto é, a ocupação militar
estadunidense do Haiti se inscrevia nas grandes linhas da política exterior do governo norte
americano no decorrer do século XX. Pois, como se sabe, um dos objetivos capitais daquele
governo da época foi o de impedir que as potências europeias interviessem nas políticas internas
da região, com sua famosa doutrina da época ─ comumente chamada “doutrina de Monroe”
─ , de James Monroe (1758-1831), presidente dos EUA entre 1818 e 1825: “a América para os
americanos” (NICHOLLS 1975; BELLEGARDE 2012 ).
4
O Haiti foi governado por uma ditadura que durou 29 anos (1957-1986). François Duvalier,
conhecido como Papa Doc, conquistou o poder em 1957, por meio de uma eleição fraudulenta,
e em 1964 ele se declarou president à vie. Assim, instaurou uma ditadura cruel, que foi apoiada
pelos Estados Unidos e sustentada por sua milícia, chamada Tonton Macoute (literalmente “Tio
do Saco”, em português). Essa última foi criada pelo ditador François Duvalier sob o nome
de Milice Volontaires de la Sécurité Nationale, MVSN (em português, Milícia de Voluntários da
Segurança Nacional). Depois da morte do Papa Doc em 1971, seu filho, Jean Claude Duvalier,
conhecido como Baby Doc, e que tinha 19 anos naquele momento, substituiu o Papa Doc e
permaneceu até 1986 no poder. Segundo Hurbon (1987), durante o período ditatorial muitas
pessoas foram exterminadas e exiladas, o que teve um impacto pronunciado no segundo fluxo
de mobilidade haitiana para o exterior, como demonstra Handerson (2015).
5
Em 29 de setembro de 1991, um golpe militar encerrou o governo de Jean-Bertrand Aristide.
Esse foi o primeiro presidente democraticamente eleito no Haiti depois da ditadura dos
Duvalier. O golpe desencadeou um novo período de instabilidade e agitação política em um

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


Migração haitiana em São Paulo... 207

da comunidade internacional nos negócios internos desse país.


É importante destacar que a emigração é algo que faz parte da
realidade social dos haitianos. De acordo com Handerson (2015), haitianos
já começaram a emigrar bem antes de conquistarem a independência
política de seu país. Desde esta conquista até os dias atuais, o país teve
vários fluxos migratórios. O primeiro grande fluxo foi no período da
ocupação estadunidense no Haiti (1915-1934) e na República Dominicana
(1912-1924), simultaneamente. O autor destaca que desde o final do
século XIX e o início do século XX, com a escassez de mão de obras
produzida pelo crescimento das indústrias americanas de cana-de-açúcar
país que estava apenas começando a se recuperar de 29 anos de ditadura. Nesse sentido, o
golpe acabou com a esperança de muitos haitianos de viver uma vida digna. Jean Bertrand
Aristide era padre, e ao chegar no poder, prometeu melhorar a condição social, política e
econômica da massa popular. Além disso, prometeu restabelecer direitos dos cidadãos nesse
país. Após o golpe de Estado e depois das negociações entre o regime militar dirigido por Roul
Cédras, o presidente Aristide foi exilado para a Venezuela. No entanto, a parcela da comunidade
internacional que não se conformou com esse acontecimento condenou esse golpe de Estado
e as violações dos direitos humanos perpetuadas pelos militares. O que levou as Organizações
dos Estados Americanos (OEA) a exigir o retorno do presidente Aristide, ao mesmo tempo
que impôs sanções econômicas ao Haiti para forçar os militares a cumprir suas exigências.
No final de janeiro de 1992, o presidente Aristide acusou o regime militar de ser responsável
pela morte de 1.500 a 2.000 pessoas e pelo exílio de 10 mil refugiados políticos (CANADA:
Immigration and Refugee Board of Canada). Assim, a instabilidade política criada pelo golpe
propiciou o terceiro grande fluxo de mobilidade de haitianos para países estrangeiros. Depois
do exílio, Jean-Bertrand Aristide voltou ao Haiti em 1994. Em 2000 foi reeleito presidente
com uma porcentagem de votos estimada em 90 % segundo a ONU. Porém, a forma que ele
atuou no poder não agradou a elite econômica do país, tampouco os países imperialistas. Em
2003, Aristide exigiu que a França devolvesse para o Haiti mais de 21 bilhões de dólares, o que,
segundo ele, era o equivalente em dinheiro daquela época aos 90 milhões de francos-ouro que a
jovem República do Haiti foi forçada a pagar a França, depois de obter independência, durante
a Revolução Haitiana em 1804. Ao longo do mandato, apoiando em uma força paramilitar,
chamada chimè, Aristide se tornou cada vez mais autoritário – reprimindo manifestações etc.,
o que suscitou a revolta de parte da população haitiana. Então, depois de vários meses de
manifestações populares e pressão da comunidade internacional, particularmente da França e
dos Estados Unidos, Aristide é forçado, em 29 de fevereiro de 2004, a deixar o país sob comando
de forças especiais dos EUA. Como foi previsto na constituição de 1987, o presidente do
Tribunal de Cassação naquela época, Boniface Alexandre, atuou como presidente provisório.
Os Estados Unidos pediram uma resolução da ONU para enviar uma força internacional para
garantir paz e segurança no Haiti, resultando disso a criação da força conhecida como Missão
de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) (OLLIVER, 2005).

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208  Frantz Rousseau Déus

no Caribe, particularmente em Cuba e na República Dominicana, a mão de


obra haitiana foi usada para preencher tal lacuna. Por sua vez, o segundo
grande fluxo começou a partir do momento em que os Estados Unidos se
tornaram mais familiares no universo haitiano6. Assim, por volta dos anos
1950, a elite haitiana começou a enviar seus filhos para realizarem seus
estudos em território estadunidense. Além disso, o autor sublinha que a
partir da década 1960, com o ditador François Duvalier no poder (1957-
1971), a emigração haitiana foi reconfigurada7 nos seguintes aspectos:
amplitude, composição e orientação dos fluxos das pessoas oriundas de
diferentes camadas sociais, gerações e regiões (HANDERSON, 2015
p.70).
Na metade da década de 1990, no contexto do golpe de Estado e
do exílio do ex-presidente haitiano Jean Bertrand Aristide, foi iniciado um
terceiro grande fluxo8 de mobilidade haitiana. Por último, foi registrado o
quarto grande fluxo de mobilidade haitiana, que se iniciou a partir de 2010
(HANDERSON, 2015, p.73).

6
Handerson (2015, p.70) salienta que: no plano cultural, no Governo Élie Lescot (1941-1946),
o inglês tornou-se obrigatório no sistema educacional do país e cresceram significativamente
as igrejas protestantes americanas. Na década de 1950, a elite haitiana mandava seus filhos
estudarem nos Estados Unidos e alguns dos agricultores que já haviam residido em Cuba
ou na República Dominicana viam os Estados Unidos como uma nova possibilidade para a
emigração.
7
Destaca-se que no contexto de ditadura, em um primeiro momento, haitianos oriundos de
várias camadas sociais passaram a deixar o país, conforme exemplifica Handerson (2015);
o autor também comenta que ao longo da década de 1960 a maioria dos haitianos que se
instalaram em Nova York eram profissionais e intelectuais. Mais tarde, haitianos com o mesmo
perfil se ampliaram em Boston, Chicago, Miami (Estados Unidos), Montreal e Quebec (Canadá)
e em certos países africanos francófonos, como Senegal, Benin e República do Congo. O autor
salienta também que a migração haitiana para Bahamas se iniciou em 1960; já para Guiana
Francesa, em 1963; (HANDERSON, 2015, p.71).
8
Handerson enfatizou que em torno de 46.000 boat people foram interceptados em alto mar e
conduzidos aos campos de detenção de Baía de Guantánamo em Cuba. Foi constatado que mais
de 100.000 haitianos deixaram o Haiti na época da deportação do ex-presidente Jean-Bertrand
Aristide, no ano de 1991. Alguns dirigiram-se para os países vizinhos, cruzaram a fronteira da
República Dominicana de ônibus, enquanto outros navegaram para Guantânamo, Cuba e os
Estados Unidos (WOODING E MOSELEY-WILLIAMS 2009, apud HANDERSON, 2015,
p.73).

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Migração haitiana em São Paulo... 209

Olhando para a migração haitiana numa perspectiva histórica, é


perceptível que ela não é algo novo, pois haitianos e haitianas sempre
migraram para países como França, Estados Unidos, Canadá, República
Dominicana etc. De modo geral, os fluxos migratórios são provocados
por acontecimentos múltiplos. Como ressalta Singer (1976), a migração
internacional é um fenômeno social determinado por fatores de natureza
social, econômica, cultural e ambiental. Porém, na sociedade haitiana, além
desses fatores existe o sonho de viajar, que é algo presente no imaginário de
muitos. Handerson (2015) ressalta que não seria um exagero dizer que o
sonho da maioria da população é pati (partir) ou vwayaje (viajar). Na medida
em que se pode dizer que muitos haitianos têm o sonho de viajar, não
seria exagerado também afirmar que, quando aparece a oportunidade de
sair do país, só quem não tenha condições efetivas ou quem não possua
esse sonho não a aproveitará. Como todos os grandes fluxos migratórios
haitianos são marcados por algum tipo de acontecimento (político,
econômico, ambiental etc.), pode-se dizer que a catástrofe de 12 de janeiro
é o acontecimento que incentiva o quarto fluxo migratório nesses últimos
anos. Antes do referido terremoto, o país já estava enfrentando problemas
de diversas ordens, que podem ser sintetizados na palavra insegurança:
pública, política, socioeconômica, alimentícia, educacional, relativa à saúde,
ao saneamento básico, entre outros fatores. O terremoto apenas agravou o
difícil quadro do país, deixando tanto o Estado quanto a população numa
situação de perplexidade. Assim, diante dos grandes danos causados pelo
terremoto, o Estado se tornou impotente não só para atender às novas
demandas da população, mas também para negociar com a comunidade
internacional e controlar as ONGs que atuaram no Haiti, principalmente
depois da tragédia. Ou seja, o terremoto apenas agravou e dificultou ainda
mais a possibilidade de uma atuação política adequada e eficaz por parte
do Estado (SEGUY, 2014).
Desta forma, essa catástrofe apenas desmascara a verdadeira figura
do Estado haitiano, evidenciando como esse último tratava e ainda trata os
cidadãos do país e como ele, por sua vez, é tratado pelos órgãos estrangeiros.
De um lado, ele oferece um tratamento diferenciado à elite urbana, e, de
outro, marginaliza a massa desfavorecida e esmaga os camponeses. Talvez a
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017
210  Frantz Rousseau Déus

sua relação com a comunidade internacional, as ONGs, os funcionários da


ONU, as tropas da MUNISTAH etc. seja mais significativa para entender
a sua impotência, pois esses órgãos mencionados atuaram/atuam no Haiti
ignorando a existência do Estado (THOMAZ, 2011 p. 278).
Diante disso, depois da catástrofe, uma parte significativa da
população haitiana procurou diversas formas de sobrevivência, como
participação no mercado informal e a migração. Para Handerson (2015,
p.73), o terremoto provocou um duplo movimento na mobilidade dos
haitianos: 1) muitos haitianos se deslocaram para o interior; 2) outros,
geralmente os que tinham recursos, se deslocaram para os países etranje
(estrangeiros).
Após a ocorrência do terremoto, os haitianos têm deixado suas
famílias e buscado melhores condições de vida em território estrangeiro;
nesse sentido, o Brasil se tornou, desde então, um dos destinos escolhidos
por estes imigrantes. A quantidade de haitianos que chegaram ao Brasil
depois de 2010 faz considerar essa onda migratória como a maior dos
últimos cem anos no país, levando em conta, inclusive, a migração italiana
e japonesa no período imperial e nos primeiros anos da República (ZENI,
2014, p.8).
Além do Terremoto, outros fatores secundários que desencadearam
o fluxo migratório em questão podem ser destacados, como: a condição
econômica desfavorável dos imigrantes no seu país de origem, presença
dos militares brasileiros que comandavam a MINUSTAH e o crescimento
econômico do Brasil, que tem marcado o cenário econômico internacional
(ARAÚJO E JAVORSKI, 2014; DUTRA, 2014; VIEIRA, 2017).
De acordo com Vieira (2017, p.229), os primeiros haitianos que
chegaram à fronteira brasileira, em 2010 e 2011, estavam em trânsito rumo
à Guiana Francesa. Apesar de alguns haitianos terem chegado ao Brasil,
a questão da mobilidade haitiana entra na agenda pública nos primeiros
meses de 2011. Com isso, passou a envolver agências variadas ligadas a
propiciar o ingresso no Brasil de pessoas vindas do Haiti. A preocupação
com a chegada de grande quantidade de haitianos em território brasileiro
levou as autoridades brasileiras a tentar várias formas de controle da
entrada desses imigrantes, visto que países como Peru e o Equador não

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


Migração haitiana em São Paulo... 211

exigiam vistos aos haitianos para ingressar nesses lugares como turistas.
A primeira tentativa foi um pedido feito pelos agentes do Ministério
de Relações Exteriores, Ministério da Justiça, Depar­tamento da Polícia
Federal e da ABIN no dia 28 de fevereiro de 2011 às autoridades peruanas
e equatorianas para exigir visto aos haitianos. O Peru concordou e o
Equador refutou tal proposta (VIEIRA, 2017, p.240).
Mesmo com vários jornais brasileiros publicando manchetes que
denunciavam as más condições de imigrantes haitianos em vários estados
brasileiros, a mídia haitiana seguia apresentando o Brasil como um país
dotado de uma política estabelecida para receber os haitianos, fornecendo
informações positivas e passando ao largo das dificuldades reais existentes.
O jornal haitiano Le Nouveliste publicou um artigo no dia sete de outubro
de 2015, intitulado Le Brésil, bras ouverts, attend tous les haïtiens9 em que
Fernando Vidal, embaixador brasileiro no Haiti, destaca:

Você não precisa ter uma profissão, nem dar garantia de


que vai ter uma, é nossa política de acolher quem quer viver
no nosso país”, declarou o Embaixador Fernando Vidal,
que apresenta o Brasil como uma terra de acolhimento.
“[...] no Brasil há empresas especializadas na contratação
de trabalhador haitiano. As empresas gostam de contratar
os haitianos. Os haitianos têm boa reputação nas empresas
brasileiras, eles fazem bem seus trabalhos”, apontou o
Embaixador (LE NOUVELISTE, 2015, tradução nossa).

Foi nessa mesma lógica propagandista da imprensa haitiana que o


discurso proferido pela Presidenta Dilma Rousseff no dia primeiro de
fevereiro de 2012 se popularizou. Nele, ela ressaltou o seguinte:

Reiterei que continuaremos cooperando com vistas a criar,


para os haitianos, condições melhores de vida no próprio

9
Le Nouveliste: Le Brésil, bras ouverts, attend tous les haïtiens “O Brasil, braços abertos, esperando
todos os haitianos”. Disponível em http://lenouvelliste.com/lenouvelliste/article/150801/
Le-Bresil-bras-ouverts-attend-tous-les-Haitiens.Acesso 10/09/2015.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


212  Frantz Rousseau Déus

Haiti. Deixei claro, no entanto, que, como é de natureza dos


brasileiros, estamos abertos a receber os cidadãos haitianos
que optem por buscar oportunidades no Brasil10.

Esse discurso teve uma repercussão significativa na sociedade


haitiana no sentido de oferecer um certo grau de confiança aos haitianos
que desejam deixar o país para buscar oportunidades no território
brasileiro (MACHADO, 2012). Assim, o conjunto de medidas tomadas
pelo governo brasileiro para facilitar a entrada dos haitianos no Brasil –
como a já mencionada concessão de vistos – não correspondeu à dimensão
da demanda de vistos na embaixada brasileira no Haiti (ARAÚJO E
JAVORSKI, 2014). Como consequência, houve a proliferação de viagens
clandestinas, que fizeram com que o Estado do Acre se tornasse uma das
principais portas de entrada para os imigrantes haitianos, que em muitos
casos já teriam passado por vários países da América Latina (ANDRADE
DE PAULA, 2013).
Em alguns trabalhos consultados, percebo que a representação dos
haitianos acerca de como seria viver no Brasil não corresponde totalmente
à realidade socioeconômica brasileira (PIMENTEL E COTINGUIBA,
2014). Segundo Staffen e Nistle (2014, p. 1544), quando os haitianos
pisam em terras brasileiras, eles se deparam com abrigos humanitários
lotados, instalações precárias, nas quais muitas vezes chega mesmo a haver
falta de comida.
Maroni da Silva (2014, p. 201) por sua vez, afirma que a chegada
de muitos haitianos ao Acre, de maneira inesperada, somada à ameaça de
possíveis desastres provocados pelos alagamentos recorrentes no inverno
amazônico, dificultam que eles sejam atendidos e provocam pânico no
governo do Amazonas. Essa preocupação se confirmou com a cheia
do rio Madeira em fevereiro de 2014, que deixou o Acre em estado de
calamidade, impondo aos habitantes um estado de isolamento territorial.
10
Declaração à imprensa da Presidenta da República, Dilma Rousseff, em Porto Príncipe.
Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-
da-presidenta/declaracao-a-imprensa-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-em-porto-
principi-haiti . Acesso 01/11/2015.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


Migração haitiana em São Paulo... 213

Tal fato, segundo Araújo e Javorski (2014), foi uma das causas para o
grande número de imigrantes que começou a chegar a São Paulo em 2014.
Porém, mesmo antes disso, Maroni da Silva (2014, p. 201) explica
que, a partir de 25 de janeiro de 2012, a emissora de TV da região do
Acre anunciou que alguns empresários iriam à região para contratar
imigrantes haitianos. E o fato de os imigrantes estarem procurando
melhores oportunidades de trabalho fez com que eles se orientassem
rumo aos grandes centros urbanos do Brasil. Então, foi dessa maneira que
os imigrantes haitianos começaram a se espalhar pelos outros estados do
Brasil.
Em um artigo intitulado “Região Sul receberá mais 800 haitianos”11,
do Jornal do Comércio, estão registradas as seguintes informações:

De acordo com a prefeitura de São Paulo, 23 ônibus vão


seguir para a capital paulista e 20 terão como destino os
estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do
Sul. Estima-se que 920 haitianos cheguem a São Paulo e
800 desembarquem no Sul. Também é ressaltado no artigo
que o padre Paolo Parisi, da Paróquia Nossa Senhora da
Paz, é a referência em São Paulo na recepção de haitianos.
Pois ele, além do alojamento, oferece outros tipos de
ajuda, principalmente na questão de fazer documentos
para regularizar os haitianos no Brasil, além de auxiliá-los a
conseguirem trabalho (JORNAL DO COMÉRCIO, 2015).

Se o padre Paolo Parisi é considerado como principal referência dos


haitianos que chegam a São Paulo, de certa forma, é possível dizer que
a religião oferece algum suporte aos haitianos e desempenha um papel
preponderante para sua integração na sociedade brasileira.
É importante evidenciar que, depois dos imigrantes se estabelecerem
em diversas cidades de São Paulo, o parentesco (relações familiares, de
amizade etc.) se torna um elemento forte para que outros imigrantes se
11
Jornal do Comércio: Região Sul receberá mais 800 haitianos, 2015, p.23. Disponível em:
http://edicao.jornaldocomercio.com.br/jornal/jcomercio/2015/06/23/1505/pdf/23-JC023.
pdf. Acesso 11/11/2015.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


214  Frantz Rousseau Déus

estabeleçam na mesma cidade. Como salienta Durhan (1973), o parentesco


é um fator relevante no ato de migrar. Isto quer dizer que o migrante passa
a ser um contato entre a sociedade na qual se estabelece e a comunidade de
origem. Uma vez informados que o Brasil abriu suas portas para recebê-
los, os parentes e amigos de haitianos (no Haiti ou no Brasil) se tornaram
fundamentais não só para que o deslocamento acontecesse em termos
estruturais, mas também na troca das experiências e ideias a respeito de
trabalho, de custo de vida, dos lugares em que estão vivendo. Em outras
palavras, o apoio (material e imaterial) de famílias, de amigos etc., é
fundamental para se pensar a vinda dos haitianos pelo Brasil. Um exemplo
marcante desta observação encontra-se no distrito de Barão Geraldo –
Campinas/SP, onde a fixação de um grupo de imigrantes haitianos
influenciou a vinda de novos migrantes, dentre os quais é recorrente a
menção ao apoio enfático de seus familiares para que a viagem aconteça,
muitas vezes sob a forma de empréstimos com o intuito de financiar a
viagem. Há também aqueles que já se estabeleceram no Brasil e fazem o
procedimento para trazer parentes, filhos, esposas e amigos.

SUPORTE A IMIGRANTES PELAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ


EM CAMPINAS

Esta parte analisa o suporte que as religiões oferecem para a


integração social dos imigrantes haitianos na sociedade brasileira, bem como
a metodologia que elas adotam para atrair os imigrantes. A investigação se
focaliza sobre a religião Testemunha de Jeová (Salão do Reino), no Jardim
Londres em Campinas, por intermédio da “Congregação Crioulo”, o que
se justifica, no contexto deste trabalho, pelo fato de essa religião oferecer
elementos relevantes para se pensar a questão de integração dos haitianos
na sociedade brasileira.
Com base nas leituras e observações realizadas, percebo que as
religiões desempenham papéis importantes na vida dos indivíduos.
Como sustenta Durkheim (1996), a principal prerrogativa da religião é a
organização da existência social, agregando os indivíduos ao todo social,
de modo a contribuir para sua coesão. Dessa forma, a religião é entendida
como uma realidade essencialmente coletiva.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017
Migração haitiana em São Paulo... 215

Deve-se ressaltar, também, que a ideia de que certas religiões


oferecem suporte aos imigrantes que se estabelecem em um país ou em um
lugar diferente não é nova. Mariz (2009), em sua pesquisa sobre as “novas
comunidades” e igrejas pentecostais brasileiras no exterior, baseando-se
em Cristina Martes (1999) e Teresa Salles (2005), salienta que as igrejas,
tanto a católica como as evangélicas, apoiam a população brasileira que
vive em Massachusetts, nos EUA, por vezes de forma ilegal. Tais religiões
lhes servem como órgão de proteção. A religião Testemunhas de Jeová,
objeto de nossa investigação neste trabalho, é uma dentre outras religiões
que desempenham um papel análogo no acolhimento de haitianas e
haitianos no Brasil.
Buscando entender o papel das religiões na integração dos imigrantes
haitianos em São Paulo, consideramos profícua a abordagem realizada por
Assunção (2004, p.32) na tese intitulada Religião e migração; nela, é salientado
que, quando os imigrantes se estabelecem nas grandes cidades, sentem-
se perdidos, inseguros, por terem saído de uma comunidade ordenada,
regrada, e correm assim o risco de se perder em sociedades regidas por
outros princípios, que lhes são estranhos. Nesse contexto, a religião seria
uma forma de estabelecer laços com a nova sociedade na qual os imigrantes
tentam se inserir. Os imigrantes haitianos com os quais conversei durante
a pesquisa, mencionaram que as Testemunhas de Jeová lhes ofereceram
diversas formas de apoio. Essa afirmação de Assunção (2004) é relevante,
especialmente se pensarmos na primeira vinda dos imigrantes haitianos do
estado de Acre para São Paulo.
Para entender a maneira pela qual as religiões servem como suporte
de integração para os imigrantes haitianos, realizei observação acompanhante
em diversas atividades feitas pelas Testemunhas. Tal método foi também
usado pela pesquisadora María Elvira Diaz Benitez (2007) em seu trabalho
intitulado Dark Room aqui: Um ritual de escuridão e silêncio; neste, a autora
revela as dificuldades e mesmo a impossibilidade de participar efetivamente
nas atividades que ocorreram dentro da boate Dark Room, por ser um
espaço especificamente masculino. Segundo a autora, sua presença na
boate representava um tipo de transgressão, tendo em vista que o espaço
é voltado ao público masculino e ela ser uma mulher (DÍAZ BENÍTEZ,
2007, p.94).
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017
216  Frantz Rousseau Déus

No Congresso de Testemunhas de Jeová, um evento nacional que


reuniu todas as Congregações Crioulo de Testemunhas no Brasil, observei
e acompanhei as atividades realizadas.12 Também conversei com dirigentes
religiosos brasileiros e imigrantes haitianos que praticam essa religião.
Constato que, na tentativa de propagar suas crenças sobre a palavra
de Deus, as Testemunhas de Jeová desempenham papéis relevantes no
acolhimento dos imigrantes haitianos, oferecendo-lhes alguns tipos de
suportes. Pode-se destacar: a) o suporte espiritual, que se expressa na
transmissão da palavra de Jeová aos imigrantes, isto é, pregar e ensinar a
bíblia para os imigrantes haitianos, tendo em vista sua conversão; b) o
suporte social, construindo laços de solidariedade e de amizade entre
haitianos e brasileiros. Isso é percebido a partir de várias manifestações,
como o ensino da língua portuguesa a alguns haitianos, visitas às suas casas,
convites para participar das atividades religiosas, ou mesmo atividades não
religiosas, como passeios. Com o objetivo de pregar e ensinar a palavra
de Jeová aos haitianos, várias Testemunhas de Jeová aprenderam a falar o
crioulo haitiano; além disso, eles distribuem revistas que contém a palavra
de Jeová nessa mesma língua.
De acordo com algumas Testemunhas de Jeová com as quais
conversei durante a pesquisa, a aprendizagem da língua dos haitianos é
uma estratégia para abordá-los de maneira mais fácil. De tal modo, na
transmissão da palavra bíblica, as Testemunhas de Jeová não transmitem só
a crença, mas também a relação social, a afeição, a amizade etc. Nesse viés,
Silva (2010, p.79) ressalta:

Todos os relatos que ouvi, a respeito do contato e conversão


das Testemunhas, envolvem a criação e consolidação de
laços afetivos durante o estudo bíblico. Isso quer dizer que
a efetividade deste estudo, que pretende culminar com a
conversão do estudante, simboliza também uma conquista
afetiva. Independente de haver laços familiares com

12
Porém, minha presença não foi uma transgressão como a presença de Díaz Benítez (2007).
Mesmo não pertencendo às Testemunhas de Jeová , considero ter sido bem recebido pela
comunidade.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


Migração haitiana em São Paulo... 217

Testemunhas ou de o primeiro contato ser estabelecido


durante a pregação, é fundamental que instrutor e estudante
tornem-se amigos.

Com base nas conversas realizadas com algumas Testemunhas


brasileiras, pode-se ressaltar que falar o crioulo haitiano é uma maneira
de aproximar-se dos haitianos, o que faz com que eles se sintam em casa.
Com isso, as Testemunhas de Jeová da “Congregação Crioulo” conseguem
estabelecer uma relação de amizade com alguns haitianos. Tais laços de
amizade abrem caminho para a pregação e o oferecimento de estudo
bíblico, também possibilitando o convite para visitas ao Salão do Reino.
A título de exemplo, dois haitianos da congregação crioulo apontam que
graças aos amigos Testemunhas de Jeová, “mantemos contato com muitos
brasileiros e muitas brasileiras, aprendemos a falar um pouco de português,
conhecemos lugares diferentes, obtemos informações cotidianas sobre a
realidade brasileira”.
As testemunhas de Jeová não só aprendem a falar o crioulo
haitiano, mas também distribuem revistas no referido idioma. A questão
da pregação será posteriormente abordada de maneira particular, pois ela,
a nosso ver, faz parte da metodologia usada para atrair fiéis de todas as
nacionalidades para esta religião, sendo o caso dos imigrantes haitianos
apenas um exemplo dessa dinâmica.
Além das visitas feitas ao Salão do Reino no Jardim Londres em
Campinas, observei e acompanhei a participação dos Testemunhas de
Jeová em uma atividade organizada pela prefeitura de Campinas, por
intermédio da Secretaria da Cidadania, intitulada: Campinas pou tout pèp –
“Campinas para todos os povos”, no domingo, dia dois de agosto de 2015,
na Estação Cultura de Campinas; e acompanhei também um congresso
organizado pelas Testemunhas de Jeová.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


218  Frantz Rousseau Déus

A) PRESENÇA DAS TESTEMUNHAS NO EVENTO “CAMPINAS


POU TOUT PÈP”

Segundo Behrman Garçon (haitiano que participou na organização


e realização desse evento), a atividade cultural Campinas Pou Tout Pèp teve
como objetivo principal ajudar a população oriunda do Haiti que vive em
Campinas a fortalecer seus vínculos e discutir as dificuldades enfrentadas,
tais como: o problema do idioma, os preconceitos, entre outros. Cientes
desse evento, as Testemunhas de Jeová entraram em contato com os
responsáveis por ele e foram autorizadas, sem dificuldades, a participar,
conforme relata um membro do grupo religioso. No dia da realização do
evento, as Testemunhas de Jeová estavam presentes, tendo comparecido
antes de quase todos os participantes, instalando várias estantes com
revistas em crioulo haitiano para distribuição e aproveitando o tempo para
conversar e pregar. O sentido da pregação para as Testemunhas de Jeová
pode se encontrar na citação a seguir:

Ao ENVIAR seus discípulos, Jesus Cristo instruiu-os:


“Ao irdes, pregai, dizendo: ‘O reino dos céus se tem
aproximado.’” (Mat. 10:7) E, em sua ordem profética a
cristãos genuínos que estivessem vivos na terminação do
sistema de coisas, ele disse: “Estas boas novas do reino
serão pregadas em toda a terra habitada, em testemunho”.
O que significa isso? Não significa que tinham de construir
igrejas, tocar um sino e esperar que uma congregação se
reunisse para ouvi-los proferir um sermão semanal. “Fazer
proclamação como arauto”. A ideia não é o proferir sermões
para um grupo restrito de discípulo, mas fazer declaração
franca pública (TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, 1993,
p.556).

O trecho acima permite entender que o objetivo das Testemunhas


de Jeová é pregar o reino de Deus amplamente, o que explica e justifica seu
esforço em estarem presentes naquele evento de cunho social e cultural.
Os haitianos eram interpelados pelos religiosos em crioulo haitiano, os

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Migração haitiana em São Paulo... 219

quais começavam as conversas com assuntos triviais, perguntando coisas


comuns, e apenas depois de um bom tempo de conversa, apresentavam
alguma revista da Testemunha de Jeová, passando então a abordar seus
conteúdos. No final, elas convidavam a pessoa interpelada para participar
da reunião no Salão do Reino, trocar contatos, etc.13
As Testemunhas desempenharam um papel fundamental nesse
evento, posto que eram, no momento inicial, o maior grupo brasileiro
presente, e também pelo fato de a instalação de estandes com materiais
religiosos ter feito com que estivessem em evidência ao longo de todo
o evento. De tal forma que no dia seguinte, o jornal Correio Popular
publicou um artigo sobre o evento, intitulado Desafios à migração: Prefeitura
busca a integração de haitianos que vieram para Campinas14, com uma foto das
Testemunhas de Jeová em sua reportagem de capa.

B) O CONGRESSO DE OUTUBRO DE 2015

Para as Testemunhas de Jeová, o Congresso ocupa um lugar de


destaque em sua forma de organização, como podemos perceber na
citação a seguir:

Os congressos se tornaram um aspecto regular da


organização das Testemunhas de Jeová nos tempos
modernos. [...] os congressos das Testemunhas de Jeová
nos tempos atuais têm como ponto central os interesses
espirituais. Para os observadores sinceros, esses congressos
dão evidência inegável de que as Testemunhas estão unidas
por fortes laços de fraternidade cristã (TESTEMUNHAS
DE JEOVÁ, 1993, p. 254).

13
Como eu estava presente com o objetivo de fazer pesquisa, conversei com várias Testemunhas
de Jeová e constatei que quase todas me abordavam da mesma maneira.
14
Desafios a migração: Prefeitura busca a integração de haitianos que vieram para Campinas,
disponível em: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2015/08/capa/campinas_e_rmc/307742-
integracao-de-haitianos-e-desafio-a-ser-superado.html acesso 27/12/2015.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


220  Frantz Rousseau Déus

Dessa forma, tal congresso foi realizado nos dias 16, 17 e 18 de


outubro de 2015, em Vargem Grande Paulista, sendo realizado em
crioulo haitiano. A princípio, importa esclarecer que este relato se refere
ao último dia do Congresso. De acordo com as Testemunhas de Jeová
com as quais conversei, foi esta a primeira vez em que o Congresso foi
realizado em crioulo haitiano no Brasil. Elas ressaltaram que o Congresso
reuniu presencialmente um efetivo de seiscentas pessoas, contando com
quatrocentos brasileiros e duzentos haitianos. Havia, também, cerca de
mil membros das Testemunhas de Jeová, além de outros convidados que
assistiram ao congresso online, incluindo brasileiros, haitianos e pessoas de
outras nacionalidades. Importa salientar que não só os haitianos residentes
no estado de São Paulo participaram do evento, mas também haitianos e
brasileiros de todas as “Congregações Crioulo” das Testemunhas de Jeová,
de diversos estados do Brasil, que viajaram para assistir ao congresso.
O Congresso foi organizado em torno do tema “An nou imite Jezi”
(Imite a Jesus). Ele foi dirigido pelos “anciãos”15 brasileiros e haitianos
(são anciãos haitianos que já moravam no Brasil antes do grande fluxo
migratório de haitianos nos últimos anos). O objetivo principal do
congresso está contido em seu próprio tema, que é Aprann Imite Jezi
(Aprender a imitar Jesus). Com base nesse objetivo, os seguintes elementos
foram abordados: kiltive lamou pou prochen nou – cultivar amor pelos nossos
próximos; kiltive sajès – cultivar sabedoria; kiltive konpasyon – cultivar
compaixão; kiltive jenerozite – cultivar generosidade; padone – perdoar. São
essas as características, segundo as Testemunhas de Jeová, que precisam
ser praticadas para se imitar a Jesus.

15
Em sentido religioso, um Ancião é um Ministro de Culto ordenado para servir numa igreja
ou congregação. São superintendentes “vigilantes”, “bispos”, no sentido de serem guardiões
da verdadeira doutrina religiosa, da disciplina religiosa e como pastores de almas. Podem ser
juízes nos casos de transgressão religiosa. (Estudo Perspicaz das Escrituras, Vol. 1 pág. 128-
131) Ou seja, Ancião é a qualificação religiosa que lhe é reconhecida pela liderança da religião,
enquanto Superintendente, o cargo que exerce. A Comissão de Tradução da Tradução do Novo
Mundo da Bíblia não usa os termos bíblicos clássicos Presbítero e Presbitério, usando em seu
lugar Ancião e Corpo de Anciãos. (Enciclopédia das Testemunha de Jeová, online), consultado
03/02/2018, disponível: http://testemunhas.wikia.com/wiki/Anci%C3%A3o

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Migração haitiana em São Paulo... 221

De acordo com Aristilde Sténio16, para melhor elucidar as pessoas


que estavam assistindo ao Congresso, os organizadores apresentaram um
vídeo relacionado a cada tema abordado. Percebi que as pessoas presentes
no Congresso podiam assistir e receber os materiais distribuídos no
Congresso. Porém, não houve espaço para quem estava na assembleia
realizar quaisquer perguntas relacionadas aos discursos pronunciados
sobre os assuntos abordados.
Além de outras atividades, como a pregação e o ensino da palavra
de Jeová, foi também realizado o lançamento da Bíblia em crioulo haitiano
e de um livro intitulado “Tounen Vin Jwenn Jeová” (Volte para encontrar
Jeová), cujo objetivo, segundo Aristilde Sténio, é o de sensibilizar e chamar
as pessoas que eram Testemunhas de Jeová e afastaram-se da religião,
por alguma razão, para retornar às práticas religiosas, voltando ao Reino
de Jeová. Houve, além disso, o lançamento de um vídeo com o título:
“Se Kisa Vrè Lanmou an ye” (O que é o verdadeiro amor). Esse vídeo teve
como objetivo demonstrar com clareza o que seria o verdadeiro amor que
Jeová queria que as pessoas cultivassem.
Com relação ao lançamento de materiais em crioulo haitiano,
conversei com um membro das Testemunhas de Jeová, que ressaltou que
o lançamento da Bíblia em uma língua depende da disponibilidade dos
recursos necessários para a tradução, como pessoas para traduzir, outras
ferramentas linguísticas disponíveis no idioma, quantidade de pessoas
que estudam a língua, dentre outros. É possível dizer que a presença de
uma grande quantidade de imigrantes haitianos no Brasil fez com que
as Testemunhas de Jeová buscassem colocar materiais de ensino bíblico

16
Aristilde Sténio é um haitiano, estudante da Bíblia com Testemunhas de Jeová desde que
residia no Haiti, tendo começado a frequentar o Salão do Reino no Brasil em 2011, onde foi
batizado. A primeira vez que foi conversar com uma testemunha de Jeová, ele tinha menos de
8 dias no Brasil. Naquele dia eu estava junto com ele e, por falar espanhol, fui eu quem iniciei
a conversa com um senhor testemunha de Jeová, chamado Sebastião. Depois da conversa,
o senhor Sebastião pediu nosso endereço, e começou a nos visitar, convidando-nos para
participar nas reuniões. O senhor Sebastião orientou Sténio Aristilde para o Salão do reino
mais próximo da casa dele. Como eu não tinha interesse, não dei continuidade ao contato.
No entanto, nessa época, todo sábado o senhor Sebastião dava aula de português para dois
haitianos que moravam na mesma casa que eu.

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222  Frantz Rousseau Déus

adequado à disposição dos haitianos. Por conseguinte, muitas Testemunhas


brasileiras aprenderam a falar o crioulo haitiano.

C) CONGREGAÇÃO CRIOULO EM JARDIM LONDRES

Ainda de acordo com Aristilde Sténio, antes de haver a Congregação


Crioulo em Campinas, foi uma Congregação Inglesa que iniciou, em inglês,
a pregação aos haitianos. Por constatar a grande quantidade de haitianos
que vivem em Campinas, os anciãos da Congregação Inglesa perceberam
a importância de haver um “grupo” para pregar em crioulo haitiano.
Assim, eles escreverem para um órgão superior da religião Testemunha
de Jeová, salientando tal necessidade. A ideia foi bem recebida, tendo sido
enviado para Campinas um professor de crioulo haitiano para ensinar a
certos anciãos brasileiros. Ao mesmo tempo, foram feitos anúncios em
várias outras congregações em busca de pessoas que pudessem participar
da composição do grupo crioulo. Em fevereiro de 2015, foi criada a
Congregação Crioulo em Campinas; isto é, passou-se desde então a haver
um corpo de anciãos disponível para dirigir e conduzir a congregação em
crioulo haitiano, com uma quantidade suficiente de pessoas dispostas a
participar nas atividades. De acordo com Aristilde Sténio, existem em
torno de 30 membros permanentes, entre brasileiros e haitianos, além de
pessoas não membros que assistem às reuniões. O corpo de anciãos é
composto de quatro brasileiros (um coordenador; um responsável para
questão jurídica, sendo também o secretário; um responsável para a questão
de território; e um responsável pelo discurso). Ainda segundo Aristilde, já
há em torno de quatro haitianos que ocupam funções importantes dentro
desta congregação.

D) REUNIÃO EM CRIOULO HAITIANO NO SALÃO DO REINO


NO JARDIM LONDRES

Para as Testemunhas de Jeová, as reuniões são elementos importantes


em suas atividades, pois elas são consideradas como momentos para os
membros das Testemunhas se juntarem para fazer a exortação bíblica.
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Migração haitiana em São Paulo... 223

Assim, ressaltam em seu livro: “Consideremo-nos uns aos outros para


nos estimularmos ao amor e obras excelentes, não deixando de nos juntar,
como é costume de alguns, mas encorajando-nos uns aos outros, e tanto
mais quanto vedes chegar o dia,” (Heb. 10: 20) (TESTEMUNHAS DE
JEOVÁ, 1993, p.236).
As reuniões de domingo iniciam-se com uma canção; em seguida, o
dirigente apresenta aos participantes o integrante que vai fazer o discurso,
o qual, após realizado, é seguido pela volta do dirigente que, igualmente,
apresenta a pessoa responsável por conduzir o estudo sobre a revista
semanal. Este, por sua vez, consiste na apresentação do conteúdo da
revista e formulação de perguntas dirigidas à assembleia. Durante esse
momento da reunião, as pessoas que quiserem fazer comentários levantam
a mão e aguardam serem escolhidas para darem a resposta. Todavia, os
comentários são baseados na revista que todos os membros receberam
com antecedência, a fim de poderem preparar suas intervenções. Depois
de serem esgotadas as perguntas e comentários, apresenta-se o cântico e
a oração final. Após terminar a reunião, os membros ficam conversando
entre si sobre a vida cotidiana. Também alguns oferecem carona para levar
outros de volta a suas casas.
Às quintas-feiras, acompanhei do mesmo modo reuniões que
possuem todas as características das reuniões de domingo, bem como
ensinamentos de algumas técnicas de pregação, de abordagem das pessoas
na língua estrangeira. Conforme ressaltou um Testemunha de Jeová,
todas as atividades (Congresso, reuniões, pregação) que concernem às
Testemunhas de Jeová apresentadas nesse texto, são realizadas na língua
dos haitianos, o que permite uma compreensão maior da palavra de Jeová por
parte dos mesmos. Com base nas reuniões assistidas, é possível observar
que os brasileiros leem e falam a língua nativa dos haitianos com bastante
precisão, quase como os próprios haitianos.

PREGAÇÃO DA PALAVRA DE JEOVÁ

Durante as conversas realizadas com alguns membros da


Congregação Crioulo, foi ressaltado que conhecer a língua nativa das
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224  Frantz Rousseau Déus

pessoas a quem se pretende pregar é muito importante, pois por intermédio


desta é muito mais fácil atrair a atenção das pessoas que serão interpeladas.
Por isso, a pregação, segundo as Testemunhas de Jeová, necessita de um
preparo prévio, como ressalta Da Silva (2010, p.82):

[...] há um conjunto de atividades nas congregações que


constituem um preparo formativo em relação ao conteúdo,
ou seja, “no que crer”, mas também performativo, que
as orienta “no que dizer”, “aonde dizer” e “como dizer”,
fundamentais ao preparo de seus membros para o propósito
através dos quais as Testemunhas buscam sua identidade e
distinção: o trabalho de pregação.

Quando o pregador (Testemunha de Jeová) fala a língua materna


do grupo para o qual pretende pregar, ele consegue abordar melhor seus
integrantes. Para os religiosos, a pregação na língua nativa permite tocar
mais fácil o coração da pessoa a quem se prega. É importante ressaltar que
seis Testemunhas de Jeová integrantes da Congregação Crioulo Haitiano –
abordadas em conversas realizadas em diferentes momentos – ressaltaram
a mesma justificava para aprendizado e pregação no idioma nativo de
outros povos.
Percebi que as Testemunhas dão destaque à necessidade de falar
bem a língua nativa do grupo ao qual pretendem pregar. Observei durante
a reunião de quinta-feira que as Testemunhas de Jeová enfatizaram muito a
importância de pronunciar bem a língua haitiana. Pois, conforme ressaltou
um ancião, “quando pronunciada e falada adequadamente sua língua de
origem, os nativos prestarão atenção no conteúdo da mensagem, ao invés
de prestar atenção nos erros que poderiam ocorrer durante a fala”.
Assim, como destaca Almeida (2004, p.42), para os missionários das
missões transculturais, só quando for possível expressar-se na língua nativa
poderá ser efetivamente iniciada a evangelização e a tradução. Com base
nas observações feitas, percebemos essa mesma preocupação na religião
Testemunhas de Jeová.

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Migração haitiana em São Paulo... 225

Considerando a pregação na sua dimensão conteudista, os


missionários que pregavam aos grupos de indígenas da Amazônia
buscavam, em seus procedimentos de tradução, origens históricas, como
por exemplo, lendas e mitos indígenas para traçar paralelos com os
fatos bíblicos. Isso ocorria não propriamente para marcar um processo
de evolução no tempo, mas para encontrar verdades eternas universais
(ALMEIDA, 2004, p.43), sendo a língua um elemento chave para fazer
essa mediação.
Logo, no caso dos imigrantes haitianos, o procedimento não
parece muito diferente, embora os haitianos sejam diferentes dos grupos
indígenas da Amazônia, no que tange ao fato de a maioria deles já
professar a crença evangélica ou católica e reconhecer a existência de um
Deus único. Nesse sentido, as Testemunhas de Jeová buscam elementos
nas concepções e representações já partilhadas pelos haitianos acerca de
Deus para introduzirem a sua pregação.
Exemplificando melhor, duas testemunhas de Jeová me abordaram
um dia. Depois de se apresentarem, começaram a falar sobre problemas do
mundo atual, tomando alguns exemplos como os terremotos que ocorrem
no mundo, as guerras ocorridas em diversas regiões etc., e me perguntaram:
“Você sabe que tudo que está acontecendo foi anunciado pelo Reino de
Jeová?”. Depois da minha resposta, elas intervieram, utilizando uma revista
e a Bíblia em crioulo haitiano, buscando me demonstrar como Deus tinha
previsto esses acontecimentos catastróficos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se que as principais atividades realizadas pelas Testemunhas


de Jeová da Congregação Crioulo no Jardim Londres e em outras
Congregações Crioulo no Brasil, têm como objetivo central fazer com
que a verdade atinja os imigrantes haitianos. Por isso, a pregação, tradução,
e outras atividades realizadas pelas Testemunhas de Jeová são elementos
usados para alcançar esse alvo. Essa análise me permitiu perceber que os
suportes prestados pelas Testemunhas de Jeová em favor dos imigrantes
haitianos fazem parte do processo de evangelização.
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226  Frantz Rousseau Déus

Constatou-se no processo realizado pelas Testemunhas de Jeová a


mesma lógica da religião pentecostal e da Umbanda, de acordo com o que
Assunção (2004) aponta em seu trabalho. Esse autor afirma que:

[...] primeiro a abordar a existência de grupos religiosos – tais


como a Umbanda e o pentecostalismo – como alternativas
de adaptação do migrante à vida urbana, ao afirmar que
“nas áreas mais caracteristicamente urbanas e industriais
do país, cresce de maneira rápida o número de conversões
às seitas pentecostais e divulgam-se práticas de Umbanda”.
Estas religiões de massas representariam “a resposta
religiosa à situação de anomia e privação, para segmentos
populacionais desenraizados de formas tradicionais de
organização econômica e social” (ASSUNÇÃO 2004, p.32).

Nas principais atividades descritas anteriormente como no Congresso


em crioulo haitiano, a Congregação Crioulo explica a proximidade entre
a abordagem de Assunção e nossa análise. A congregação haitiana conta
com mais integrantes haitianos a cada dia, afirmou Aristilde Sténio.
Além disso, as conversas realizadas com alguns imigrantes haitianos
que frequentam essa religião não deixam nenhuma dúvida de que as
Testemunhas de Jeová oferecem elementos (valores morais, informações
sobre busca de trabalho, ensino da língua portuguesa) importantes para
a adaptação daqueles estrangeiros na sociedade brasileira. Como foi
destacado anteriormente, dois haitianos ressaltam que as Testemunhas de
Jeová tornam possível que mantenham contato com muitos brasileiros
e brasileiras, que aprendam um pouco de português, conheçam lugares
diferentes etc. Em relação ao suporte da religião aos imigrantes, Assunção
(2004, p.32) afirma que as religiões pentecostais são vistas como alternativas
no processo de adaptação individual à sociedade moderna.
De acordo com minha observação, cabe dizer que essa afirmação
é válida para a religião Testemunha de Jeová na atualidade. Seis haitianos
com quem conversamos ressaltaram como as testemunhas de Jeová lhes
ajudaram, deixando evidente o que as Testemunhas representam para eles.

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Migração haitiana em São Paulo... 227

Três haitianos enfatizam: “frè temwen Jewova yo, se moun ke nou ka konfye nan yo,
yo p-ap ba nou move konsèy, yo viv avek nou kòm frè” (Os irmãos Testemunhas
de Jeová são pessoas em quem podemos confiar, eles não vão enganar a
gente, nós temos uma relação de fraternidade).
É importante ressaltar que, além da religião Testemunha de
Jeová oferecer um suporte aos imigrantes haitianos que lhes permite se
adaptarem à sociedade brasileira, elas também inculcam valores morais que
visam preservar os imigrantes diante da vida mundana. Isso é percebido
na fala de vários haitianos e várias haitianas com quem conversei durante
essa pesquisa, que ressaltam como o ensino que eles/elas receberam, por
intermédio das Testemunhas de Jeová, guia as suas vidas cotidianamente.
Um deles afirma “fanmi mwen gen isit la se temwen yo, se ak yo mwen soti, paske yo
pap mennen mwen nan sa ki pa bom. Pafwa mwen konn al pase fen semèn ak yon fanmi
temwen, mwen santi mwen vrèman byen”. (Tenho os membros da Testemunha
de Jeová são como família aqui, é com eles que eu passeio, eles não vão me
incentivar a fazer coisa errada. Às vezes eu passo meus fins de semana na
casa de uma família testemunha, com eles me sinto realmente bem).
Acerca das atitudes diante da vida mundana, o Congresso realizado
em crioulo haitiano no mês de outubro de 2015 em Vargem Grande
Paulista e a Grande Assembleia – realizada nos dias 06 e 07 de fevereiro
de 2016 em Curitiba, e que reuniu todas as Congregações haitianas de
Testemunhas de Jeová, tendo como principal tema “Imite Jewova” (Imite
a Jeová) – reforçaram os ensinamentos sobre como as Testemunhas de
Jeová precisam viver para agradar a Deus. O Congresso e a Assembleia
são atividades de amplitude nacional, isto é, todas as “congregações
e grupos haitianos” da religião Testemunha de Jeová assistiram a esse
evento presencialmente ou online por meio de transmissão. Portanto, por
meio desta religião, os haitianos conseguem manter contato com outros
haitianos vivendo no Brasil e estabelecer laços de solidariedade e amizade
tanto com seus conterrâneos quanto com outros brasileiros.
Em suma, foi exposto nesse trabalho que a presença de uma diáspora
haitiana no Brasil é devida ao terremoto que abalou o Haiti em janeiro de
2010 e deixou o país em estado de precariedade. Isso fez com que o Estado
haitiano não conseguisse responder às demandas da população, de modo
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228  Frantz Rousseau Déus

que muitos haitianos começaram a deixar o país regular e irregularmente,


sendo que uma grande parte destes imigrantes veio para o Brasil em busca
de novas oportunidades. Assim, grandes centros urbanizados são os alvos
privilegiados da imigração haitiana. A presença de uma grande quantidade
de haitianos no estado de São Paulo evidencia a atuação de certas religiões
como órgãos de acolhimento. Como demonstra Dieme (2016) em sua
dissertação, intitulada Imigração Haitiana e Política de Acolhimento Institucional
na Cidade de São Paulo: 2010-2015, muitos dos haitianos foram acolhidos e
ajudados em muitas coisas pela Igreja Católica, no caso da cidade de São
Paulo, que é parte referência do Estado de São Paulo. De mesmo modo,
mesmo que seja em grau menor e de maneira diferente, percebi que as
Testemunhas de Jeová desempenham um papel importante na cidade de
Campinas pela sua participação no processo de acolhimento de haitianos.
Observando certas atividades religiosas feitas pelos membros
da religião em questão por intermédio das “Congregações Crioulo”
e conversando com alguns de seus membros, tanto brasileiros como
haitianos, entendo que essa religião fornece amparo aos muitos haitianos
que moram em Campinas, facilitando sua adaptação à sociedade brasileira.
Sendo que isso faz parte do processo de converter novas almas à religião
Testemunha de Jeová.
Tendo em vista que o objetivo das “Congregações Crioulo” das
Testemunhas de Jeová é fazer com que a “verdade” desta religião atinja os
imigrantes em questão, neste processo, elas promovem muitas atividades
para alcançar o objetivo-alvo: a aprendizagem do crioulo haitiano, a
pregação nessa mesma língua, a tradução e a distribuição de revistas em
crioulo haitiano e a realização de Assembleias e reuniões nessa mesma
língua. Essas atividades não são feitas exclusivamente para os imigrantes
haitianos, dado que isso faz parte de suas políticas missionárias em geral.
Razão pela qual elas distribuem revistas em muitas outras línguas e
possuem Congregações em que se falam outros idiomas além do português
e da língua haitiana. As Testemunhas de Jeová constroem, por meio da
pregação, laços de amizades e de afetividade, que por sua vez facilitam a
aceitação do estudo bíblico por parte dos imigrantes haitianos.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 203-232, fev/dez. 2017


Migração haitiana em São Paulo... 229

A pesquisa demonstrou que as atividades promovidas pelas


Testemunhas de Jeová para atrair os haitianos à sua religião têm sido
eficazes. Penso que tal eficácia se deve muito especialmente ao domínio
do Crioulo Haitiano por parte dos membros dessa religião. Nesse
sentido, poderia concluir com o seguinte questionamento: mesmo que os
objetivos não sejam os mesmos nos dois casos, não seria proveitoso se os
planejadores de políticas públicas olhassem a maneira como as religiões,
principalmente a das Testemunhas de Jeová, trabalham com os imigrantes?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE DE PAULA, Elder. Entre desastres e transgressões.


A chegada dos imigrantes haitianos no “Reino deste mundo
Amazônico”. Novos Cadernos NAEA, v. 16, n. 2, 2013.
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O PROGRAMA PRÓ-HAITI NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS BRASILEIRAS (2011-2016)1

Fritznel Alphonse2
José Rivair Macedo3

RESUMO: O presente artigo se propõe a efetuar uma análise do programa Pró-Haiti


implementado nas universidades públicas brasileiras UNICAMP, UFSC, UFSCAR e
UFRGS, nos anos de 2011 a 2016, no âmbito da proposição feita por vários países de
possibilitar que jovens haitianos continuassem seus estudos universitários no exterior
afim de fortalecer a educação superior haitiana no contexto pós-terremoto que abalou o
Haiti em 2010. Analisaremos brevemente a historicidade e desenvolvimento das relações
bilaterais entre Brasil e Haiti; o histórico do Pró-Haiti e suas propostas para o Haiti;
a implementação e os resultados alcançados pelo Programa nas quatro Universidades
parceiras. Com isso, pretende-se verificar de que modo o Brasil cumpriu essa promessa
com o Haiti. As reflexões propostas buscam problematizar em que medida o Programa
Pró-Haiti foi inserido como uma das promessas feitas pelo Brasil ao Haiti no período pós-
terremoto de 2010 do país, a fim de constatar que o Brasil não cumpriu e não vai cumprir
essa promessa e que, por isso, o Brasil não estaria contribuindo para a reconstrução do
Haiti por meio desse programa.
PALAVRAS-CHAVES: Relação Internacional Haiti/Brasil; MINUSTAH; Pró-Haiti –
apoio a Instituições de Ensino Superior Haitianas; Formação de Recursos Humanos no
Haiti.
1
Agradeço muito aos meus amigos brasileiros e à professora Dra. Denise Maria Cogo, da
Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM, pelas revisões e valiosas contribuições
ao texto.
2
Graduado em Educação pela Universidade Autônoma de Porto Príncipe/Haiti (2010), Mestre
em Educação na Área Interdisciplinar de Ciências Sociais da Educação pela Universidade
Estadual de Campinas e Doutorando e Bolsista do Programa de Excelência Acadêmica -
PROEX da CAPES do Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
3
Orientador da pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em História
-PPGHist/IFCH/UFRGS. E-mail: [email protected]

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


234 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

THE PRO-HAITI PROGRAM IN BRAZILIAN


PUBLIC UNIVERSITIES (2011- 2016)

ABSTRACT: The present article intends to analyze of the program Pró-Haiti implemented
in the Brazilian public universities UNICAMP, UFSC, UFSCAR and UFRGS in the years
from 2011 to 2016, in the extent of the proposition done by several countries of making
possible that Haitian youths continued their academical studies in the exterior in order to
strengthen the Haitian superior education in the context powder-earthquake that affected
Haiti in 2010. We will analyze the historicity and development of the bilateral relationships
shortly between Brazil and Haiti; the report of Pró-Haiti and their proposals to Haiti; the
implementation and the results reached by the Program in the four Universities partners.
The proposed reflections look for to problematize in that measured the Program Pro
- Haiti was inserted as one of the promises done by Brazil to Haiti in the period powder-
earthquake of 2010 of the parents, in order to verify that Brazil didn’t accomplish and it
won’t accomplish that promise and that for that, Brazil would not be contributing to the
reconstruction of Haiti for middle of that program.
KEYWORDS: Relationship International-Haiti/Brazil; MINUSTAH; Pro-Haiti -
Support to the Haitian Institution of Higher education; Formation of Human resources
in Haiti.

INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe a efetuar uma análise do programa


Pró-Haiti implementado nas universidades públicas brasileiras, como a
UNICAMP, UFSC, UFSCAR e UFRGS, nos anos de 2011 a 2016, no
âmbito da proposição feita por vários países de possibilitar que jovens
haitianos continuassem seus estudos universitários no exterior a fim de
fortalecer a educação superior haitiana no contexto pós-terremoto que
abalou o Haiti no dia de 12 de janeiro de 2010. No marco desse objetivo,
o Pró-Haiti visa contribuir com o processo de reconstrução do Haiti por
meio do apoio à formação de recursos humanos e à reestruturação das
Instituições de Ensino Superior Haitianas (IESH). Para isso, analisaremos
brevemente o desenvolvimento das relações bilaterais entre Brasil e Haiti
no século XXI; o histórico do Pró-Haiti e suas propostas para o Haiti; e

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 235

a implementação e os resultados alcançados pelo Programa nas quatro


Universidades parceiras acima mencionadas no período investigado. Com
isso, pretende-se verificar se o Brasil cumpriu a promessa feita ao Haiti.
O sismo de magnitude de 7,3 na escala Richter que abalou a república
do Haiti no dia 12 de janeiro de 2010 deixou um balanço de mais de 300.000
mortos e 300.000 feridos, entre os quais 5.000 amputados e mais de 1,5
milhões de desabrigados na região metropolitana de Porto Príncipe, além
de mais de 600.000 pessoas nas regiões abaladas para se abrigar no resto
do país (HAITI, 2010).4 Diante de tal quadro, as inúmeras promessas5 de
ajuda feitas ao Haiti se multiplicaram de modo significativo, fomentando
as expectativas de um Haiti reconstruído e recuperado – o que, no entanto,
não correspondeu à realidade que passou a ser vivenciada pela sociedade
haitiana.
Os primeiros migrantes não demoraram muito tempo para se espalhar
pelo mundo, sobretudo em direção a destinos não habituais na história da

4
Os danos materiais foram avaliados da seguinte forma: “105.000 residências foram destruídas,
mais de 208.000 irreversivelmente danificadas, mais de 1.300 estabelecimentos de educação,
mais de 50 hospitais e centros de saúde desabaram ou ficaram inutilizados dentre os principais
estabelecimentos públicas que foram destruídos nesta tragédia”. Dessa forma o valor total
de danos e perdas materiais causados pelo terremoto “foi avaliado e estimado em US$
79.000.000.000, o equivalente a 120% de produto interno bruto do país (PIBP) em 2009”
(HAITI, 2010, p.7). Esses dados devem ser problematizados, já que a pesquisa nos materiais
disponíveis sobre o Haiti no período pós-terremoto demonstra não haver nenhum consenso
entre as agências e os autores que produziram os dados estatísticos sobre essa tragédia no que
diz respeito ao número de mortos pelo terremoto, e tampouco aos amputados, desabrigados,
os danos materiais, os desabamentos e o número de estabelecimentos que ficaram inutilizados
nesse terremoto, o valor total de danos e perdas materiais, os deslocados para as regiões do
interior e de fora do país. Mas, de qualquer forma, eles são importantes na medida em que
mostram tanto o quadro de destruição material quanto de pessoas afetadas.
5
Com efeito, logo após o terremoto, a propaganda em torno da reconstrução do Haiti
impõe-na enquanto a mais nova e próspera indústria neste país, transformado em paraíso das
Organizações não governamentais (ONGs) nos últimos três decênios. Em 1987, quando foi
criada a Unité de coordination des activités d’ONG (UCAONG), o número total do conjunto de
ONGs computadas no território haitiano era ainda abaixo de 1.000 (LOUIS-JUSTE, 2007, p.
106). Já em fevereiro de 2010 (um mês depois do terremoto), o então Primeiro-Ministro Jean-
Max Bellerive lançara a seguinte acusação contra os grandes financiadores de ONGs: “São eles
que permitem que as ONGs façam o que querem. (...)” Jean Michel (2010).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


236 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

diáspora haitiana6 como, por exemplo o Brasil. Até novembro de 2015, o


número de migrantes haitianos que tiveram seus processos deferidos no
Brasil foram contabilizados em 43.871, entrando sem documentos pela
fronteiras brasileiras. De acordo com dados do Governo Federal brasileiro,
a maioria deles com a “ajuda” de coiotes e outros aliciadores. Estes, por
sua vez, já lucraram 60 milhões de dólares com o negócio. Há que se levar
em conta também aqueles migrantes que entraram de forma regular, já
com visto permanente de trabalhador (SEGUY, 2015).
De acordo com os dados oficiais do Ministério dos Haitianos
Residentes no Exterior (MHAVE), aproximadamente entre 4 e 5 milhões
de haitianos estão espalhados pelo mundo7. Dentre as promessas de
auxílio e reconstrução, o Brasil, que está presente no território haitiano
desde 2004, por meio de seus exércitos, liderando8 as forças de ocupação
das Nações Unidas no Haiti, por meio da MINUSTAH, e fazendo seus
negócios por meio de suas ONGs, se propõe a ajudar o Haiti ainda no
contexto do terremoto de 2010. Essa ajuda abrange principalmente as
áreas da Educação Superior, além da saúde, por meio do “Pró-Haiti”.
O programa visa, antes de tudo, contribuir para a reconstrução do Haiti
através do apoio à formação de recursos humanos e à reestruturação
das IES haitianas, prevendo, ainda, a inclusão de outras modalidades

6
A respeito da diáspora haitiana espalhada pelo mundo, cf. o livro Espace et Liberté en Haïti
de Georges Anglade (1982, p. 132). Nesse livro, o geógrafo haitiano produziu um mapa para
ilustrar os diferentes espaços internacionais das mobilidades haitianas. A partir desse estudo
sobre a diáspora haitiana espalhada pelo mundo, o referido autor cunhou a expressão “novo
espaço haitiano”.
7
De acordo com os dados do Congresso Mundial Haitiano (CMH) do ano de 2005, em Nova
York e Nova Jersey, são estimados em 1 milhão; em Miami, 750 mil; em Boston, Chicago e
Los Angeles, 150 mil; no Canadá, 120 mil; na França, 100 mil, incluindo os Departamentos
Ultramar; na República Dominicana, 750 mil; em Cuba, 400 mil, e nos demais países da América
Latina, 75 mil, além daqueles instalados na África e na Ásia (CAHIER nº 1, p. 16, janeiro 2005).
8
Dentre as Motivações brasileiras para liderar MINUSTAH no marco da Política Externa: “De
um lado, condiz com as narrativas de política externa humanista e diplomacia da solidariedade
construídas durante a gestão do então presidente Lula. De outro lado, responde as aspirações
mais pragmáticas como a obtenção de um assento no Conselho de Segurança da ONU -
CSONU, possíveis ganhos econômicos indiretos e a possibilidade de aperfeiçoar a atuação de
tropas nacionais” (WAISBICH & POMEROY, 2014, p.4).

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O programa pró-Haiti nas universidades... 237

constantes no Memorando de Entendimento (ANEXO I DA PORTARIA


DO PROGRAMA, 2010).
A escolha desse tema de pesquisa tem os seguintes pontos como
principais motivações: 1º) iniciar um estudo inédito sobre este convênio
educacional implementado, a partir de 2011, nas quatro Universidades
públicas brasileiras citadas – UNICAMP, UFSC, UFSCAR e UFRGS;
2º) oferecer informações gerais a respeito do programa, principalmente
sobre os resultados alcançados no período estudado. Entende-se que a
análise proposta nesta pesquisa poderá colaborar com um resgate sobre
essa temática tanto no que se refere aos objetivos traçados para o estudo
quanto em termos de respostas às questões norteadoras deste trabalho de
pesquisa.
Nessa perspectiva, este trabalho propõe uma problematização a partir
das seguintes perguntas norteadoras: quais são os objetivos e metas do Pró-
Haiti e como se deram os processos de implementação e transformação
do programa entre 2011 e 2012? Será que o Brasil conseguiu abrir mão de
seus negócios pessoais (geopolíticos) para cumprir os objetivos e as metas
que nortearam esse programa nas quatro Universidades escolhidas para o
estudo? A partir dos posicionamentos adotados pelo Brasil na liderança da
MINUSTAH no Haiti desde 2004, quais são os resultados desse programa
no período de 2011-2016? Será que o Brasil conseguiu contribuir na
reconstrução do Haiti por meio desse programa?
A hipótese desse trabalho é que as relações internacionais
vivenciadas pelo Haiti com a Comunidade Internacional há mais de dois
séculos nunca trouxeram resultado positivo para o país, que continua
padecendo dos mesmos problemas sociais, políticos e econômicos. Este
trabalho se constrói a partir de uma pesquisa documental operada numa
perspectiva sócio-histórica e está apoiado em documentos e informações
oficiais disponíveis em sites como o da CAPES e do MEC, como, por
exemplo, tabelas estatísticas, e, ainda, em artigos de jornais, relatórios
de avaliação, revistas, cartas, filmes, fotografias etc. publicados nos sites
oficiais das universidades parceiras do Pró-Haiti. Os dados coletados
foram organizados e processados, primeiro em alguns softwares, como
MSWord, MSExcel etc., para serem posteriormente tratados, analisados,
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017
238 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

interpretados e sintetizados​​, de acordo com os eixos norteadores desse


estudo.

AS RELAÇÕES BRASIL-HAITI E A MINUSTAH

Ainda que as relações entre Brasil e Haiti remontem no mínimo a


1928, foi somente em 1954 que o nível de representação foi elevado ao
de Embaixada. Desde o ano de 1982, os dois países firmaram um Acordo
Básico de Cooperação Técnica e Científica. Embora o Brasil tenha retirado
seu Embaixador do Haiti, ainda assim sua Missão em funcionamento,
mesmo que apenas em nível de Encarregado de Negócios (VALLER
FILHO, 2007). Na primeira década do século XXI se consolidou uma
nova fração da burguesia brasileira ligada ao mercado internacional não
mais pela simples exportação de mercadorias, mas também pela geração de
capitais na forma de investimentos diretos, implicando na recente expansão
das multinacionais brasileiras. Este processo de internacionalização da
burguesia brasileira coincide com os seguintes objetivos:

o aumento de conflitos envolvendo a burguesia brasileira


em países da América do Sul - empresários da soja em terras
paraguaias e bolivianas, Petrobrás na Bolívia e Odebrecht
do Equador -, e com ii) uma orientação da política externa
brasileira de maior destaque internacional, não só buscando
assento no Conselho de Segurança da ONU, mas também
por ventura para poder comandar as tropas da Missão das
Nações Unidas para a Estabilização no Haiti desde 2004
com objetivo de ampliar sua pasta de políticas externas de
cunho subimperialista na região (BUENO, SEABRA, 2009,
p.1).

De acordo com Luce (2007), a política externa brasileira dos


governos Lula leva traços significativos de uma política subimperialista,
sobretudo no que se refere à cooperação antagônica. O autor destaca como

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 239

traços principais do subimperialismo brasileiro a inserção das empresas


brasileiras no cenário internacional, bem como a construção da Iniciativa
para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). Tal
inserção é feita por empresas brasileiras que atuam em setores de baixo
valor agregado, como alimentos e recursos naturais.
Com base nos marcos conceituais do subimperialismo propostos
por Ruy Mauro Marini, esta etapa do capitalismo poderia ser traduzida
como a expressão política e econômica da integração dos sistemas de
produção dos países dependentes à etapa monopolista da economia dos
centros imperialistas. Nesse sentido, o subimperialismo traduz-se também
na vigência de determinadas alianças entre frações da burguesia que buscam
ativamente a ampliação da influência política e do controle de mercados
externos. Segundo Claudio (2009, p.28), “(...) el acierto más perdurable de
los primeros teóricos del subimperialismo fue captar la transformación de
las viejas burguesías nacionales, en burguesías locales”.
Enquanto isso, no Haiti a situação de crise geral que perdurou no país
durante os anos de 1990 teve como resultado o fato de os desdobramentos
dessas crises terem ensejado uma intervenção militar dos EUA e missões
da ONU no país nos anos de 1991-2004. Logo após essa intervenção, no
dia de 30 de abril de 2004, a ONU criou a Missão das Nações Unidas para
a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) por meio da Resolução n.1542.
Na época, o Brasil foi eleito para liderar essa missão por meio de setores
de seu exército já presentes no Haití, tendo assumido o comando militar
da MINUSTAH de junho de 2004 até outubro de 20179. O referido
9
Desde o início da ocupação internacional liderada pelo Brasil, o país teve o maior contingente
de tropas brasileiras. Japão, Chile, Nepal, Jordânia, Uruguai, Paraguai, Coreia do Sul, Sri Lanka,
Argentina, Bolívia, Guatemala, Peru, Filipinas e Equador também enviaram tropas ao país.
Durante esse período de 13 anos de ocupação do Haiti, o componente militar da MINUSTAH
sempre foi liderado por comandantes brasileiros. O último oficial a exercer o cargo foi o
General Ajax de Porto Pinheiros. Desde 2004, cerca de 37.500 militares brasileiros trabalharam
nessa ocupação. Desde o dia 16 de outubro de 2017, a MINUSTAH foi substituída pela Missão
das Nações Unidas para o apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH), conforme a resolução
2.350 do conselho de Segurança. (...) A MINUJUSTH se concentrará especificamente no
sistema de justiça e na polícia. De acordo com o discurso do Dr. Mamadou Diallo, vice-
representante especial do secretário-geral da ONU no Haiti e diretor interino da nova missão,
proferido no dia 16 de outubro de 2017, seu propósito seria o de aprofundar o trabalho da

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


240 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

Acordo Básico de Cooperação Técnica e Científica existente entre Brasil


e Haiti viria a entrar em vigor apenas em novembro de 2004, por meio
do Decreto no. 5.284 (VALLER FILHO, 2007). Assim, o conjunto das
missões técnicas10 iniciais que o Brasil mantém no Haiti resultou em um
número de doze projetos, aos quais se somariam outros dois identificados
posteriormente, perfazendo um total de quatorze projetos11 que deveriam
ser implementados no período que ultrapassou o mês de dezembro de
2006.
A ocupação ocorrida no Haiti, a partir da Missão, foi justificada
por meio da construção da falsa ideia de que o país estava em guerra e
precisava ser pacificado. Durante os 13 anos de ocupação da ONU no
país por meio da MINUSTAH12, dentre os muitos prejuízos que a Missão
provocou para população haitiana, vale destacar que, no dia 19 de outubro
de 2010, foi anunciada oficialmente a relação entre a disseminação da
epidemia de cólera e a presença de soldados integrantes da Missão – o
que, vale notar, ocorreu meses depois do abalo que arrasou o país. O
representante da Organização dos Estados Unidos (OEA) no Haiti em
2010, o diplomata Ricardo Seitenfus, em uma entrevista ao jornal suíço Le
Temps no dia 23 de dezembro de 2008 reconheceu o caso do Haiti como
prova do fracasso da ajuda internacional.
MINUSTAH de forma a intensificar a segurança e fortalecer a democracia e as instituições da
nação. Disponível em: https://minustah.unmissions.org/ e https://minujusth.unmissions.org.
Acesso em 10/01/2018.
10
Nesse contexto, os técnicos da EMBRAPA, Infraero, Ministério da Saúde, Ministério do
Meio Ambiente e SENAI estiveram no Haiti em diferentes oportunidades de trabalhos nos
anos de 2004 e 2005.
11
As informações encontradas no site oficial da Agência de Cooperação Brasileira (ABC)
mostram que, dentre os projetos elencados, onze deles já foram executados no país desde 2009,
sem que tenham causado nenhum impacto positivo para a população haitiana em termos de
criação de emprego, além de 3 projetos bilaterais e 5 projetos trilaterais que estão em execução
no Haiti.
12
É uma missão complexa, baseada no capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Segundo
o mandato, as funções da missão dividir-se-iam em três seguintes esferas: i) criação de um
ambiente seguro e estável; ii) garantia do respeito aos direitos humanos; e iii) apoio ao processo
político no Haiti (MORNEAU, 2006, p. 74-75). A missão deve ser entendida como uma
operação de imposição da paz, envolvendo tanto missões ofensivas como ações tradicionais de
manutenção da paz e de estabilização, além de distribuição de assistência humanitária.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 241

Em 22 de dezembro, começaram as primeiras manifestações


populares exigindo a apuração de denúncias de compra de votos nas
eleições haitianas de 2010 reprimidas pela MINUSTAH (SEGUY, 2014).
Em 27 de dezembro de 2010, o representante da Organização dos Estados
Americanos - OEA no Haiti, Ricardo Seitenfus, foi demitido por críticas
feitas à ocupação e publicadas na imprensa. De acordo com um documento
da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH, 2011), muitos
agentes da MINUSTAH estiveram envolvidos “em casos de estupro, roubo,
assassinato e detenções ilegais e arbitrárias”, inclusive um caso de abuso e
exploração sexual de menores. Vieira (2017), citando a escritora de origem
haitiana Edwidge Danticat, em texto veiculado na revista americana The
New Yorker publicado no dia 19 de outubro, afirma que

(…) as tropas chegaram a subir no telhado da igreja onde


seu avô era pastor para atirar nas pessoas que andavam pela
vizinhança. Ela também relembra um episódio em Cité
Soleil, um dos bairros mais pobres e populosos da capital
haitiana, em que a MINUSTAH13 teria usado mais de 22 mil
balas e 78 granadas para executar indivíduos classificados
como “membros de gangues”.

De acordo com Chade (2017), em Genebra houve investigações


internas da ONU que revelaram que tropas brasileiras foram acusadas
de abusos sexuais. Os dados foram revelados pela agência Associated
Press (AP), segundo a qual as forças de paz das Nações Unidas no Haiti
enfrentam denúncias de mais de 2 mil casos de abusos14, muitas vezes de
menores e daqueles que deveriam ser protegidos. Nessas denúncias feitas
contra os contingentes da MINUSTAH15 no Haiti, o Brasil está classificado
13
Considerando assim, a MINUSTAH foi uma operação militar contínua em um país que não
estava em guerra.
14
Para maiores informações, ver https://conduct.unmissions.org/sea-overview. Acesso em 10
de jan. 2018.
15
Agora, os soldados dessa missão já não estão mais no país, mas deixaram para trás vítimas
de abuso, de exploração, crianças que nunca conhecerão seus pais e famílias inteiras que foram
marcadas com o ferro vermelho da vergonha (MILFORT, 2017, tradução nossa).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


242 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

entre os 23 países cujos soldados são acusados de abusos sexuais enquanto


serviam em missões de paz da ONU pelo mundo. A informação é da
agência Associated Press e diz respeito às missões promovidas pela
organização nos últimos 12 anos. As tropas brasileiras teriam praticado as
violações no Haiti. Ao todo, são avaliadas mais de 2.000 denúncias, 300
delas envolvendo crianças16.
Seguy (2014) afirma, sobre a “Guerra do Haiti” ou “Missão de Paz
no Haiti”, que o seu país nunca precisou de missão de paz, pois nunca
esteve em guerra. Lembra que, ao estar no Brasil, observou que a situação
de desordem que levou à intervenção internacional no Haiti, comparada
aos conflitos dentro das favelas do Rio de Janeiro, leva a concluir que,
por mais que esses conflitos existam, e que justifiquem muitas coisas,
não bastam para dizer que o Brasil esteja em guerra civil e precise ser
pacificado (SEGUY, 2014). O autor se pergunta sobre qual foi o papel da
MINUSTAH no Haiti durante todo esses 13 anos, destacando que o papel
do Brasil no Haiti foi de repressor dos movimentos sociais de contestação:
“um papel de policial reprimindo qualquer movimento contra esta ordem
que se está caracterizando no Haiti”. Para o autor, o Haiti de hoje é um
país sem soberania, onde o governo nacional tem menos poder que um
governador de Estado: se o Haiti fosse anexado aos EUA, seu governador
teria mais autonomia que os dirigentes haitianos têm agora (SEGUY,
2014).

HISTÓRICO DO PROGRAMA PRÓ-HAITI

O Pró-Haiti é um Programa Emergencial em Educação Superior


no Brasil que foi inserido como uma das promessas oferecidas ao Haiti
no período pós-terremoto. Este foi formulado por meio de constatações
feitas pelo governo federal brasileiro neste período, presente no Haiti
desde 2004, como já referido. Como se deu a criação do Pró-Haiti? Na
verdade, o Pró-Haiti foi criado por meio da Portaria Nº 092, que estabelece

16
Cf.https://noticias.r7.com/internacional/fotos/brasileiros-estao-entre-soldados-das-forcas-
de-paz-da-onu-acusados-de-abuso-sexual-no-haiti-18042017#!/foto/1

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 243

o Programa Emergencial Pró-Haiti em Educação Superior e dispõe sobre


os procedimentos para operacionalização das atividades do programa,
orientado pelo Memorando de Entendimento assinado pelo Brasil e Haiti
no dia de 25 de fevereiro de 2010 para a reconstrução, o fortalecimento
e a recomposição do Sistema de Educação Superior do Haiti. Logo
depois da assinatura desse Memorando, Thomaz & Nascimento (2012,
p. 2) relatam que com grande fanfarra se anunciou que o Brasil ofereceria
pelo menos 500 bolsas a estudantes da rede universitária haitiana, atingida
de modo particularmente devastador pelo terremoto. Por todo o Brasil,
universidades ofereceram vagas para recebê-los. Nessa época, este anúncio
era crucial e motivou os estudantes a virem rapidamente, posto que suas
faculdades estavam em ruínas, seus estudos paralisados e a continuidade
de sua formação seria decisiva para a reconstrução do Haiti.
Nesse programa poderiam ser incluídas outras modalidades que
pudessem ser consideradas pertinentes ao Programa (art.1º. da portaria
n.092). O Pró-Haiti concede bolsas de estudos de graduação sanduíche
em universidades públicas brasileiras para os estudantes das instituições de
ensino superior de Porto Príncipe, mas foram incluídos também estudantes
oriundos de outras cidades do país no resultado da seleção do programa.
A adesão das IES ao Programa que ofereceria vagas para os candidatos a
serem selecionados seria feita exclusivamente com base em cartas-convite,
por serem remetidas às mesmas instituições que participam do Programa
de Estudantes de Convênio de Graduação (PEC-G) - coordenado pela
Secretaria de Educação Superior (SESU) do Ministério da Educação e
pelo Ministério das Relações Exteriores.
Seria dada prioridade às áreas e cursos definidos pelo relatório
diagnóstico, conforme informação contida no Anexo I do Portaria n.
092 do Pró-Haiti. Quais eram as propostas do programa para o Haiti?
Ele operaria principalmente em duas grandes modalidades de apoio
previstas, podendo abranger, entre outras, o que se segue: a) Formação
de recursos humanos em Educação Superior; b) Apoio à reestruturação
das instituições de ensino superior haitianas (parágrafo único do art.1º
da portaria n. 092). Este seria promovido em parceira com o Ministério
das Relações Exteriores (MRE) por meio de missões de especialistas para
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017
244 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

realizar diagnóstico e o acompanhamento do Programa, sob o amparo do


Acordo Básico de Cooperação Técnica e Científica entre Brasil e Haiti,
firmado em 15 de outubro de 1982 (art. 2º da portaria n.092). Os objetivos
do Pró-Haiti norteiam-se pelos seguintes princípios:

Apoiar às instituições de ensino superior brasileiras na


apresentação de projetos de pesquisa (...); b) Propiciar a
realização de graduação sanduíche de estudantes haitianos
em instituições de ensino superior brasileiras; c) Apoiar as
instituições de ensino superiores brasileiras que mantêm
cursos de português para estrangeiros, (...) d) Conceder
bolsas de graduação e pós-graduação, (...); e) Contribuir para
reestruturação das instituições de ensino superior haitiana,
(...) (ANEXO I DA PORTARIA N.092, 2010, p.1).

De acordo com o Anexo I da Portaria n.192, 2010, as modalidades


do programa orientam pelas seguintes diretrizes:

Apoio de projeto de diagnóstico de pesquisador, (...); 2) Bolsa


de graduação sanduíche, (...); 3) Apoio à reconstrução da
universidade; (...); 4) Programa de Pós-Graduação especial
ou PEC-PG; (...); 5) Apoio aos cursos de português para
estrangeiros. (...). Analisando as modalidades estabelecidas
pelo Pró-Haiti, merecendo destacar três dentro as cinco
modalidades que estruturaram esse programa, vale apena de
dizer que, na nossa opinião, isto não vai contribuir para nada
no nosso sistema de Ensino Superior. Na 1ª modalidade,
tinha sido contemplada apenas os interesses pessoais do
Brasil na área de pesquisa sobre o Haiti. E a 2ª modalidade
se enquadrou como uma política de apoio adequado para
o sistema. A 3ª modalidade encontra-se enquadrada, sem
dúvida, como algo complementário à primeira modalidade
do programa já referida (ANEXO I, PP.1-3 DA PORTARIA
N. 192, 2010).

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O programa pró-Haiti nas universidades... 245

A continuidade do programa depende do desempenho acadêmico


de estudantes beneficiados e será avaliado unicamente pelas IES
brasileiras, que decidirão a cada período letivo sobre a renovação da bolsa
de estudos e a permanência do estudante na instituição. No que concerne
aos financiamentos do Programa, estes serão executados de acordo com a
disponibilidade orçamentária17.

1. TABELA DE FINANCIAMENTO DO PRÓ - HAITI 2011-2012

Fonte: Manual do coordenador do pró-Haiti, 2010, p.6 & anexo I da portaria nº092, de 28 de
abril de 2010.

Analisando esta tabela, descobrimos que os dois coordenadores


do programa consumiram a maioria do orçamento do programa (R$
30.000,00 / ano), enquanto aos bolsistas receberam uma mixaria para
sobreviverem no Brasil, pois desde 2011, o custo de vida tem crescido.
Os bolsistas são obrigados ainda a pagar todas as despesas no Brasil,
tais como aluguel, comida, roupas, sapatos e outros itens importantes,
inclusive cópias, livros, remédios etc. com a mixaria que receberam como
bolsa de estudos no país (R$ 750,00), somada aos R$500 para o custeio
da instalação dos estudantes. Nós, como participantes do Pró-Haiti, na
primeira fase do programa conhecido como intercâmbio (2011-2012), não
17
Conforme o Parágrafo único do Art. 2º. Da Portaria N.092 do Pro-Haiti, este Programa será
financiado por meio do recurso de orçamento regular da Diretoria de Relações Internacionais
(DRI) da CAPES, podendo ser descentralizado a outros Ministérios ou instituições com vistas
a garantir a racionalização de recursos dadas as dificuldades logísticas inerentes a este apoio.
Deverá ainda ter caráter emergencial no ano de 2010, podendo ser reestruturado, regularmente,
de acordo com as diferentes modalidades do Programa. Os valores utilizados pela CAPES para
o financiamento das mobilidades de estudantes são regidos, de acordo com as portarias nº 92,
de 28 de abril de 2010 e n.206, de 22 de outubro de 2010.

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246 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

registramos nenhum momento em que os estudantes foram beneficiados


com itens como o valor previsto para custeio (R$5.000,00). Nesse sentido,
não sabemos como foi gasto esse dinheiro.

A SELEÇÃO DOS CANDIDATOS EM 2010-2011

Como procedimento usual no Brasil, a seleção de candidatos foi


realizada por meio de lançamento de um edital. A seleção priorizou
candidatos oriundos de áreas como Enfermagem; Medicina; Arquitetura
e Urbanismo; Engenharia; Plano para cidade ou Capital e Regional;
Ciência Agrária – Agronomia, Conservação de solo; Medicina veterinária
e zootecnia, Ciências e Tecnologia para alimentação; Gestão de sistema
informatização e ciência informática; Ciências Humanas, entre outras
áreas (ver: edital da seleção do pró-Haiti, 2010, p.1, tradução nossa). Para
participar na seleção desse programa, os candidatos deveriam preencher
as condições seguintes:

Ser cidadão haitiano; 2) Ser estudante em IES haitiana; 3)


Não possuir visto permanente ou visto temporário brasileiro;
3.1 É proibida a participação de qualquer cidadão brasileiro,
ou cidadão que possua dupla nacionalidade ou mãe ou pai
que seja brasileiro. A inscrição no programa pode se realizar
em um desses três lugares, seja na Embaixada do Brasil, em
Porto príncipe, no Setor de Cooperação Técnica; no Setor
Cultural Brasil-Haiti em Porto príncipe; ou no Ministério de
Educação Nacional e de Formação Professional – MENFP,
mas antes de realizá-la, os candidatos devem comparecer
em um desses locais para pegar o formulário, preencher e
assiná-lo para poder enviá-la juntos com os documentos
exigidos no item 5 desse edital de seleção (EDITAL DA
SELEÇÃO DO PRÓ-HAITI, 2010, tradução nossa).

De acordo com o edital, a recepção de candidatos se realizou nos


locais mencionados acima, entre 01 e 30 de outubro de 2010. Previa-se
a seleção de 200 candidatos, dentre os quais 25 seriam classificados para
uma lista de espera da seleção e 175 seriam selecionados e classificados
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017
O programa pró-Haiti nas universidades... 247

em cada uma das etapas da seleção do programa. Essa etapa foi composta
de três fases, com caráter eliminatório e classificatório, de acordo com
a tradição brasileira na maioria dos processos seletivos, não cabendo
recurso em nenhuma das fases dessa seleção. Conforme foi descrito nesse
edital, para se candidatar a uma bolsa do Programa Federal de Graduação
sanduíche Pró-Haiti, os candidatos deveriam entregar em um dos locais
mencionados anteriormente os documentos a seguir:

1. Formulário de inscrição retirado nos locais mencionados


acima; 2. Carta de motivação explicando por que manifestou
o interesse para o Programa (...); 3. Histórico escolar do
curso em andamento em IES haitiano; 4. Um memorial e
pelo menos duas cartas de recomendações (...); 5.CV (...)
(EDITAL DA SELEÇÃO DO PRÓ-HAITI, 2010, p. 2-3,
tradução nossa).

Durante o processo de seleção ocorreu uma denúncia considerada


muito grave contra o Ministério da Educação e da Formação Professional
- MENFP, no Haiti, acusado de parcialidade na seleção prévia dos
candidatos. Esta situação levou a Embaixada brasileira a eliminar as
primeiras fases da seleção do programa e abrir uma nova seleção na sede
da Instituição, e também ocasionou atraso na publicação do resultado
final. De acordo com Thomaz & Nascimento (2012, p.3), numa irônica
coincidência, foram informados que a Embaixada do Brasil recebeu
cerca 3.500 inscrições para o programa, que teria sido com isso o maior
programa de intercâmbio internacional da história da educação brasileira.
Embora a inscrição do programa tenha sido realizada logo após a
passagem do terremoto em janeiro de 2010, constatamos que a publicação
dos resultados desse programa demorou um ano e meio, provocando um
grande atraso na divulgação das 500 bolsas anunciadas nesse período.
O Brasil publicou os resultados finais da seleção do programa no
dia 16 de junho de 2011, via portal CAPES. Foram selecionados apenas
89 candidatos em diversas áreas de conhecimento, mas nesse número
de candidatos selecionados pela CAPES não identificamos nenhum

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


248 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

candidato selecionado na lista de espera, conforme havia sido previsto no


edital da seleção do Programa. O número de candidatos selecionados pelo
programa ficou distribuído em apenas quatro Universidades: UNICAMP
(45); UFSC (32); UFSCAR (7) e UFRGS (5), de acordo com o edital de
resultado da seleção programa (2011).

GRÁFICO I- RESULTADOS DO EDITAL DA SELEÇÃO DO PRÓ-


HAITI EM 2011

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados da Capes.

Analisando o resultado final da seleção do programa publicado no


site da CAPES, vimos que entre as IES que aderiram ao programa Pró-
Haiti, a UNICAMP se destaca em 1º lugar, com 45 estudantes, depois a
UFSC, com 32, a UFSCAR, com 7 estudantes, e a UFRGS, com apenas
5 estudantes. Nessa perspectiva, podemos dizer que o sucesso desse
programa esteve ligado às duas primeiras IES (UNICAMP e UFSC), que
ocuparam a pirâmide do Programa no sentido de recebimento do maior
número de estudantes em 2011. Conforme o referido edital da seleção,
os candidatos selecionados e classificados deveriam entregar os seguintes
documentos na Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, para retirar os
vistos de estudante de tipo item IV com duração de 12 meses e:

Certificado médico físico e mental válido de 90 dias no


máximo; Passaporte válido; 2) Certidão de antecedente
criminal; 3) Uma taxa de visto, incluindo a taxa para

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 249

legalização dos documentos acadêmicos, como histórico


escolar de graduação no Haiti [mais o menos 60 dólares],
entre outros documentos que a embaixada poderia solicitar
no momento de entrega do pedido de visto de entrada.

Após retirar os vistos de entrada, os selecionados receberiam


a passagem aérea de forma eletrônica para que fosse apresentada no
aeroporto, onde receberiam o cartão embarque para viagem ao Brasil,
o passaporte, visto e outros documentos pessoais válidos, formulário
de visto e a carta de concessão de bolsa da CAPES. De acordo com o
manual do bolsista (2010), após sua chegada ao país os bolsistas deveriam
providenciar, com orientação do coordenador acadêmico, os documentos
necessários para o recebimento da bolsa. Além disso, o bolsista deveria
observar as seguintes regras:

1º) Dedicar-se integral e exclusivamente ao desenvolvimento


do plano de estudos proposto pelo Coordenador. 2º)
Solicitar anuência da CAPES para a interrupção das
atividades previstas, se plenamente justificada, em casos
especiais, com a ciência do coordenador acadêmico;
3º) Apresentar relatório final circunstanciado sobre as
atividades desenvolvidas, (...); 4º) Devolver à CAPES o
montante de recursos financeiros recebidos quando do não
cumprimento da missão de estudo, conforme avaliação da
CAPES. (MANUAL DO BOLSISTA, 2010, p.4).

Por meio desses acordos educacionais, previam-se certas relações


entre os dois países. No seu começo, o programa deveria prever a vinda
de estudantes, técnicos e professores haitianos para o Brasil, bem como a
ida ao Haiti de quadros técnicos, profissionais e acadêmicos brasileiros em
distintas fases da sua formação. Contudo, isso não foi possível por conta
de falta de recursos (NASCIMENTO & THOMAZ, 2010).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


250 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

IMPLEMENTAÇÃO E EXECUÇÃO DO PROGRAMA: 2011-2016

A viagem dos candidatos selecionados do Pró-Haiti para o Brasil


foi realizada no mês de agosto de 2011 com acesso exclusivamente ao
visto de estudantes de tipo Item IV, por transporte aéreo em diferentes
voos, partindo da capital haitiana, Porto Príncipe-Panamá e conexão aérea
de Panamá para São Paulo. Com a chegada dos bolsistas do Pró-Haiti ao
Brasil, o Coordenador do programa de graduação-sanduíche, Professor
Carlos Roberto Fernandes, deveria encaminhar os seguintes documentos
à CAPES:

Cópia do passaporte (incluindo a página com o carimbo de


entrada no país); b) Cópia do CPF; c) Cópia do contrato
de abertura de conta d) Cópia da reserva da passagem de
volta (COORDENADOR DO PRÓ-HAITI, 2010, p.7).
(...) Este termo de compromisso datado e assinado; Cópia
do histórico de graduação, referente às matérias cursadas
semestralmente; Relatório Parcial das atividades exercidas
até dezembro de cada ano. Comprovante de matrícula
apresentado semestralmente; Cópia anual da renovação do
visto; Declaração da Instituição constando o prazo para
conclusão do curso, (TERMO DE COMPROMISSO DO
PROGRAMA PRÓ-HAITÍ, 2010, p.1).

De acordo com a informação encontrada no site da CAPES,


publicado no dia de 25 de agosto de 2010, vimos que entre os dias 8 e 10
de agosto, os 76 primeiros bolsistas dos 89 aprovados no Pró-Haiti em
Educação Superior chegaram ao Aeroporto Internacional de Guarulhos –
SP e logo foram direcionados para as respectivas Universidades onde iriam
iniciar as atividades do Programa. A UNICAMP recebeu 40 estudantes em
seu campus principal, localizado na cidade de Campinas, no Bairro de Barão
Geraldo, sendo 29 estudantes, no dia 9 de agosto, e outros 11 estudantes,
no dia 11 de agosto de 2011. Dias depois a mesma universidade recebeu
mais 1 estudante, somando 41 estudantes dentre os 45 alunos que deveriam
ser acolhidos pela universidade. Dos quatro restantes, dois alunos não

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 251

foram localizados no Haiti e dois tiveram problemas com a documentação


(SUGUIMOTO; AMORIN; SILVA, 2011).
A UFSC recebeu 24 alunos, dentre os 32 candidatos que deveriam
ser acolhidos na Universidade. Além da UNICAMP e da UFSC, a UFSCAR
recebeu também 5 estudantes, do total de 7 candidatos selecionados, e que
deveriam chegar nos Campi da Universidade no mesmo mês de agosto de
2011, de acordo com notícia publicada no site da UFSCAR em 2011, em
nome do Reitor da UFSCAR, Targino de Araújo Filho. A UFRGS, por sua
vez, recebeu 8 alunos no âmbito do programa. O número em questão é
superior à quantidade estipulada de 5 alunos destinados à UFRGS. O que
significa que esta universidade recebeu 3 alunos a mais do que constava
no edital do resultado do Pró-Haiti, conforme a notícia publicada na sua
página da internet, no dia de 29 de abril de 2015.
Nesta perspectiva, vale apena ressaltar que esses estudantes vêm
especialmente para realizar uma graduação “sanduíche” em diversas áreas,
com duração de um ano e meio, com seis meses dedicados a um curso de
português para estrangeiros, e depois devem cumprir um ano de atividades
em disciplinas de seus respectivos cursos nessas instituições. Também estava
previsto um curso sobre cultura brasileira, a fim de facilitar a integração
dos haitianos à comunidade, algo que não ocorreu nessa rede universitária
desde então até os dias atuais.
Qual foi o número de candidatos selecionados do programa Pró-
Haiti que entraram no Brasil e nas IES nesse mês de agosto de 2011? No
que se refere aos 89 candidatos selecionados no Programa pela CAPES,
Thomaz & Nascimento (2012) afirmam que não foram mais que 78
estudantes ingressados no Brasil na época para iniciar as atividades do Pró-
Haiti. O motivo apontado é o fato de 11 estudantes selecionados terem
tido sua bolsa cancelada ou limitada mesmo antes de virem para o Brasil,
sem que o Ministério da Educação – MEC tenha sido capaz de explicar os
motivos do ocorrido, nem oferecer quaisquer garantias de continuidade
do programa. O número de estudantes que chegaram ao Brasil dentro
desse programa pode ser observado nesse gráfico abaixo:

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


252 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

II- GRÁFICO DE NÚMERO REAL DE ESTUDANTES DO


PRÓ-HAITI INGRESSADOS NAS IES BRASILEIRAS E O DE
SELECIONADO EM DE 2011

Fonte: Elaborado pelos autores com base de dado da CAPES


As atividades do programa começaram com o curso de português
para estrangeiros, com efetivo de 78 de alunos18 matriculados no regime de
estudantes especiais, em todas as Universidades parceiras do programa no
mês de agosto de 2011. O curso deveria ocorrer ao longo de 6 meses, mas
teve apenas entre 4 e 5 meses de duração, de agosto a novembro de 2011,
mesmo que os alunos não tivessem nenhuma noção da língua portuguesa
antes de viajarem para o Brasil, o que indica que passaram por muitas
dificuldades com a língua antes de chegar a entendê-la.
Com a conclusão do curso de língua portuguesa nas IES, e após
uma série de análises de documentos, os alunos do Programa iniciaram
suas atividades acadêmicas. Nesse processo, identificou-se que vários
alunos mudaram de área de conhecimento com relação às áreas pelas
quais haviam sido selecionados pela CAPES. Sob o estatuto de alunos
especiais nessas redes de ensino, a situação pior foi para os alunos que
se matricularam nos cursos de Pós-Graduação, uma vez que, de acordo
com as normas que regulam esses programas, os estudantes especiais só
tinham direitos a cursar de duas a três disciplinas por período letivo em
alguns dos programas. Sendo assim, eles se matricularam em disciplinas
que podiam cursar nesse regime e conseguiram se adaptar gradativamente,
18
Além de receber bolsa do governo brasileiro (R$ 750 e mais R$ 500 como valor custeio a
instalação), identificamos que quase todos os alunos foram contemplados com bolsas sociais
(transporte e alimentação - BAT) no período de 2011- 2012.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 253

mesmo com muitas dificuldades, demonstrando motivação e disciplina.


Tudo isso contribuiu para que os alunos do Programa apresentassem um
bom desempenho nas atividades do Programa nas referidas IES. Tais
resultados contribuíram muito na implementação de um segundo curso de
português, o qual foi chamado “reforço em português”, de duração de um
semestre, no ano de 2012, para ajudá-los a se adaptar melhor às exigências
dos cursos nas IES no Brasil.
As restrições que encontraram nessas IES, devido ao regime de
estudante especial, impulsionaram a luta pela transformação do Programa.
Elas não foram fáceis, custando um ano de negociações para a aprovação
das mudanças por vários atores envolvidos na gestão e com grande
participação dos estudantes do Programa. Nesse processo, observamos que
as IES parceiras ao programa aproveitaram muito bem os desempenhos
dos alunos dessa fase do Programa para convencer os ministérios como
MEC, MRE e a CAPES finalizarem o processo de transformação do
programa por meio da publicação da Portaria Nº171, de 06 de dezembro
de 2012.

Esse resultado permitiu a regularização legal de todos os


alunos do programa. No caso da UNICAMP, houve 36
alunos haitianos que foram regulamente matriculados em
março de 2013 e, dentre eles se destacaram 29 nos cursos de
graduação e 7 nos cursos de pós-graduação. Identificamos
4 que desistiram, seja no meio das negociações pelas
mudanças ou no final dessas negociações com todas as
entidades.19

Vale destacar que, dentre esse grupo de 7 alunos que ingressaram nos
cursos de Pós-Graduação da UNICAMP, identificamos que 2 desistiram

19
Como Institutos, Faculdades e as Pró-reitorias de Graduação e de Pós-Graduação, bem
como a Coordenação das Relações Internacionais (CORI), vinculadas ao Programa por meio
da UNICAMP. Houve também o envolvimento da Diretoria de Relações Internacionais (DRI)
da CAPES, Embaixada do Haiti no Brasil, Ministério de Relações Exteriores – MRE e da
Delegacia da Polícia Federal, conforme esclarece a professora Dra. Eliana Amaral, assessora da
Pró-Reitoria de Graduação e responsável do Pró-Haiti. (KÄMPF, 2012).

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254 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

do Programa Pró-Haiti por terem sido aprovados também na seleção


do PEC-PG de 2012. Em função disso, eles optaram por receber bolsa
do PEC-PG em abril de 2013, pois no Brasil é proibido por lei receber
duas bolsas de estudos em programas de Pós-Graduação. Assim, o grupo
de 7 alunos ficou reduzido a 5. Quanto à realidade dos estudantes do
Programa nas universidades federais, como a UFSC, houve a regularização
de apenas 17 alunos nos cursos de graduação em 2013, de um total de 24
alunos ingressados nessa IES no regime de estudantes especiais em 2011.
A UFRGS regularizou 8 alunos, e a UFSCAR promoveu a regularização
de apenas 5 alunos em suas redes de ensino superior. Todos ingressaram
exclusivamente nos cursos de graduação, com exceção do caso da
Unicamp, em que houve alunos haitianos matriculados na Graduação e
na Pós-Graduação, de acordo com o Art. 1º da Portaria Nº 171, de 06
de dezembro de 2012, que alterou o item “b” do Anexo I da Portaria nº
92/2010. Essa nova realidade do Pró-Haiti nas IES pode ser observada
no gráfico a seguir.

Gráfico III - Dados gerais do Pró-Haiti: alunos especiais,


regulares e desistentes ou desligados (2011-2013)

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados da UNICAMP; UFSC; UFSCAR; UFRGS

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O programa pró-Haiti nas universidades... 255

Nesta perspectiva, a vigência do Pró-Haiti passou de 18 para 60


meses. Nesse período, foram incluídos os seis meses de curso português
para estrangeiros realizado no período de agosto a dezembro de 2011
afim de que todos os alunos que ingressaram nos cursos de graduação
pudessem concluir seus cursos nas Universidades parceiras do programa
(ver: anexo I da portaria n.171/2012). Isso quer dizer que os alunos teriam
54 meses para finalizar os seus cursos, com a prorrogação do prazo até
2018. Quase todos os alunos de graduação foram obrigados a recomeçar
os cursos nas universidades brasileiras devido a vários procedimentos
de análise de documentação realizados entre os anos 2011 e 2012. Esses
alunos deveriam retornar ao Haiti imediatamente após o término de seus
cursos nessas IES, de acordo com termo de compromisso do programa
em 2010; contudo, trata-se de algo que não ocorreu em vários casos de
alunos concluintes de seus cursos desde 2015. Constatamos que, além de
problemas financeiros, de clima e de racismo enfrentados pelos estudantes
do Programa Pró-Haiti no Brasil, destaca-se o fato da maioria dos alunos
ter sido obrigada a recomeçar seus estudos nessas universidades apenas
no início de 2013, com a transformação definitiva do Pró-Haiti no final
de 2012, principalmente com a publicação da referida Portaria de Nº
171/2012. A partir daí o estatuto dos estudantes do Pró-Haiti nas IES
se transformou completamente, pois passou de graduação sanduíche a
graduação plena, o que possibilitou a obtenção de um diploma após o
cumprimento de todas as normas exigidas pelas IES brasileiras, de uma
bolsa de estudos20 garantida até a conclusão de cursos nessas respectivas
IES.

EXPOSIÇÃO DE RESULTADOS DO PROGRAMA

Os resultados alcançados pelo programa no período de 2011 a 2016


mostram que sua implementação ocorreu em dois períodos diferentes
20
Todos eles recebem bolsa-auxílio do governo brasileiro, que varia entre R$ 830 e R$ 1,5 mil,
de acordo com a CAPES (2013). Além disso, nas Universidades parceiras do Programa, esses
alunos têm direito a receber também bolsa de moradia - BM (interna ou externa), transporte
e alimentação.

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256 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

(2011 a 2012, e 2013 a 2016). Esses dois períodos são considerados muito
importantes para nossa análise do Programa, tendo em vista que:

1º) o resultado do programa no primeiro período (2011-


2012) foi muito bem sucedido, tanto no curso de português
para estrangeiros quanto nas atividades acadêmicas do
programa nas universidades parcerias nesse período; 2º) no
segundo período, de 2013 a 2016, os resultados do Pró-Haiti
são resumidos com apenas 34 estudantes que concluíram
seus cursos, ou seja, uma porcentagem de 51,5% dentre os
66 estudantes que permanecem nas IES parceiras (DADOS
DAS IES DO PROGRAMA, 2015 & 2016).

Os egressos do programa são repartidos nessas IES da seguinte


forma: 25 alunos, ou seja, uma porcentagem de 73,5%, (20 na graduação,
e 5 na pós-graduação) na UNICAMP, dentre os 51, 5% de estudantes que
concluíram seus cursos nessas IES. Nessa Universidade, identificamos 9
alunos que estão cursando a graduação e uma aluna que desistiu em 2014.
No Pró-Haiti, 29 estudantes haviam ingressado nos cursos de graduação,
em março de 2013, mesmo que a maioria desses alunos tenha recomeçado
os cursos nessa rede (esses dados foram obtidos com colegas haitianos na
UNICAMP, em 2016).
Nesse grupo de estudantes concluintes de cursos (Graduação e
Pós-Graduação) na Unicamp, principalmente entre os alunos de Pós-
Graduação, constatamos que todos os 5 estudantes concluíram seus
respectivos cursos, sendo que 4 deles21 receberam notas com conceitos
A e B nas avaliações das bancas examinadoras de defesa das dissertações
nos respectivos Institutos e Faculdades da UNICAMP. Na UFSC, houve
um grupo de 8 alunos que concluiu seus cursos de graduação nos anos
de 2013-2016, ou seja, uma porcentagem de 47,5%, dentre os 17 alunos
regulares do Programa nessa universidade em 2013. Além disso, houve

21
Nesse grupo de estudantes, alguns deles do programa na UNICAMP, sejam nos cursos de
graduação ou de mestrado, ingressaram nos cursos de mestrado e doutorado na instituição por
desejarem continuar estudando no Brasil.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 257

também 3 alunos que desistiram neste grupo de 17 alunos, de acordo com


dados repassados pelo responsável pelo Pró-Haiti na UFSC, no dia 11
março de 2016.
Quanto à UFSCAR, identificamos que 5 alunos ingressaram
na universidade em 2013, sendo que 1 deles já concluiu seu curso de
graduação, ou seja, uma porcentagem de 20%, dentre os 5 alunos que
ingressaram nessa IES. Os outros 4 alunos estão com seus cursos em
andamento, de acordo com Portal da UFSCAR. Da mesma forma, na
UFRGS, identificamos que 8 alunos ingressaram nessa universidade em
2013, mas nenhum deles ainda concluiu seu curso de graduação nesse
período. Esses dados podem ser visualizados no gráfico 3 a seguir:

GRÁFICO IV - DADOS SOBRE OS RESULTADOS DO PRÓ - HAITI


NAS UNICAMP, UFSC, UFSCAR, UFRGS NO PERÍODO DE 2013-
2016

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados da UNICAMP; UFSC; UFSCAR; UFRGS

Observando o gráfico acima sobre os dados gerais do Programa,


identificamos uma grande disparidade no número de alunos regulares que
foram matriculados na UFSC no ano de 2013, quando comparado ao de
2011, quando houve 24 estudantes matriculados haitianos como alunos
especiais. Em 2013, por exemplo, identificamos apenas 17 daqueles 24
nessa categoria. Apesar dessa disparidade em relação ao número de alunos
que a Universidade deveria ter regularizado, algo que não ocorreu em
2013, vimos que, dentre esses 17 alunos que ingressaram nessa IES, 3 deles
desistiram ou tiveram suas bolsas canceladas depois da transformação

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


258 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

do programa entre 2013 e 2016. Quanto à UNICAMP, a situação foi


bem diferente. No ano de 2011, identificamos 41 alunos do programa
na categoria de especial, mas com a transformação do programa no final
de 2012, houve, em 2013, uma diminuição também neste número de
alunos. Assim, a UNICAMP regularizou a situação de 36 alunos em 2013,
dentre um total de 41 alunos recebidos em 2011, sendo 5 deles alunos
de Pós-Graduação, o que poderia ser vistos como um ponto positivo
comparativamente à situação dos alunos na UFSC em 2011 e 2013.

GRÁFICO V - DADOS DE ALUNOS DESISTENTES, ATUAIS,


CONCLUINTES DO PRÓ-HAITI NAS UNICAMP, UFSC, UFSCAR,
UFRGS NO PERÍODO DE 2013-2016

Fonte: Elaborado pelo autor na base do Gráfico IV

Analisando os resultados alcançados pelo Pró-Haiti nas universidades


parceiras no período de 2011-2016, vimos que o desempenho do programa
foi muito tímido. Há uma disparidade entre os 89 candidatos selecionados
em 2011 e o número de 78 candidatos que ingressaram nas IES brasileiras,
comparado com a meta do programa, que era de 500 bolsas prometidas
pelo Governo brasileiro no período de 2011 a 2016. Verificamos ainda
que o programa não realizou mais nenhum processo seletivo para ampliar
o número de estudantes ou compensar essa disparidade entre candidatos
selecionados e alunos ingressados nas IES parceiras.
Descobrimos também que o número de 78 estudantes que
ingressaram nas IES brasileiras em 2011 foi ainda mais reduzido,

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 259

chegando a um número que não ultrapassou 60 entre 2013-2016. No


período de 2011 a 2016, identificamos 18 alunos que desistiram dos
cursos ou tiveram suas bolsas canceladas nas duas IES, sendo 12 alunos
especiais nos anos de 2011 e 2012, e mais 6 alunos regulares nos anos
de 2013 a 2016. Considerando o objetivo do programa, que é contribuir
para a reconstrução do Haiti por meio do apoio à formação de recursos
humanos e à reestruturação das instituições de ensino superior haitianas,
tal programa não chegou a contemplar números razoáveis de estudantes
para gerar resultados suficientes para atingir esse objetivo, uma vez que
houve um número muito grande de alunos desistentes ao longo desse
período estudado.
No caso da UFSC, havia inicialmente 24 alunos ingressados em 2011
no regime de estudantes especiais, dentre os 32 candidatos selecionados
nessa instituição no mesmo ano. Este número foi reduzido a 17 alunos
regulares em março de 2013, em virtude da desistência ou cancelamento
de bolsas entre 2011-2012. No período de 2013 a 2016, também foi
possível identificar 3 alunos regulares que desistiram ou tiveram suas
bolsas canceladas, de um total de 17 alunos regulares do Programa na
UFSC desde 2013.
Na Unicamp, no entanto, a situação foi menos grave porque dentre
os 41 estudantes ingressantes em 2011, 36 deles foram regularizados em
2013, e 3 desistiram entre 2013 e 2015. E o número de alunos desistentes
foi de 14 e 33, respectivamente, na UFSC e na UNICAMP (GRÁFICO
III; IV; V). Nas outras universidades, como UFSCAR e UFRGS, não
houve nenhum caso de desistência de alunos no ano de 2011 devido à
configuração do Programa e ao número de alunos recebidos nessas
instituições.
O programa não chegou a selecionar nem 100 alunos para as
500 bolsas prometidas. Assim, chegamos à conclusão de que esse tipo
de Programa não vai realizar a tão prometida melhoria na Educação
Superior haitiana, pois em vez de ajudar o sistema de ensino superior do
país caribenho, conforme descrito em todos os documentos analisados,
verificamos que o Brasil se comportou desde 2004 como um país
subimperialista na sua relação com o Haiti. O que se percebe é que o Brasil
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017
260 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

tem buscado se aproveitar das crises ou momentos difíceis do Haiti para


fazer todos os tipos de negócios no país, seja por meio de suas diversas
ONGs, seja por meio de seu exército integrante e líder da MINUSTAH,
desde 2004, no país.
A ampliação das ações brasileiras no Haiti se dá por meio de falsas
propagandas ou promessas não cumpridas, com o início do processo
migratório haitiano para o Brasil em 2010, bem como o Pró-Haiti e juntando
com a migração haitiana iniciada naquele mesmo ano. Em relação a isso,
Thomaz & Nascimento (2012, p.2) afirmam que logo após o terremoto,
e apoiando-se numa opinião pública francamente solidária, o governo
brasileiro havia anunciado projetos ambiciosos de intercâmbio e formação
de quadros haitianos em áreas estratégicas, como a saúde e a educação,
para os quais dotações orçamentárias foram rapidamente aprovadas. No
entanto, os autores afirmam também que esses projetos nunca chegaram
a ser executados, além de dirigirem outras críticas à atuação e à postura do
governo brasileiro diante dos problemas do Haiti. Implicitamente, fica a
sensação do conhecimento de causa e de levantamento de informações
para sustentar as situações abordadas por eles:

Também na área da saúde, havia sido anunciada a construção


de dez Unidades de Pronto Atendimento em Porto
Príncipe, dotadas de anexos para a formação de agentes
comunitários. Deveriam entrar em funcionamento ainda
em 2010. Nenhuma sequer foi construída e apenas uma
equipe haitiana formada por um médico e duas enfermeiras
esforça-se por atuar sem sede definida. (...) (THOMAZ &
NASCIMENTO, 2012, p.3).

Se tais alegações são verdadeiras, seria válida a crítica de que esses


projetos iniciais serviram principalmente para dar imensa visibilidade ao
governo brasileiro, blindando a opinião pública com informações fiáveis
e negando aos haitianos a possibilidade de falarem por si (THOMAZ &
NASCIMENTO, 2012, p.3). Vimos que desde 2010 o Programa Pró-Haiti
contribuiu muito no incentivo ao processo de transformação do Haiti em

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


O programa pró-Haiti nas universidades... 261

laboratório22 de pesquisa, algo iniciado no país desde 2004. Tal processo


faz com que os participantes (estagiários ou pesquisadores) vindos de
todas as partes do mundo pudessem entrar no país para realizar quaisquer
tipos de pesquisa e publicarem quaisquer coisas sem ter o mínimo de
respeito em relação ao povo haitiano. Nesse esquema, o Brasil encontra-se
muito bem inserido por meio da MINUSTAH, suas ONGs, do processo
migratório haitiano do Pró-Haiti através de um volume de projetos de
pesquisas financiados pelo Brasil nas suas IES. Esse volume de projetos
nos programas de Pós-Graduação é desenvolvido por estudantes ou
docentes brasileiros, sendo que a maioria dos estagiários23 não possuem
nenhum tipo de experiência na área de pesquisa. Para grande parte do
povo haitiano, esse tipo de dominação é uma vergonha para o país.
Assim, finalizando este trabalho, afirmamos que o Brasil não cumpriu
e não vai cumprir essa promessa e que, por isso, ele não contribuiria
também na reconstrução do Haiti por meio desse programa. Os resultados
do programa deixaram muito claro que ele foi inserido apenas como uma
das ações brasileiras visando a reforçar os negócios brasileiros no Haiti a
partir de 2004. Tal programa incentivou também a campanha internacional
iniciada pelo Brasil há muito tempo, cujo objetivo é conseguir uma vaga
no Conselho de Segurança Permanente da ONU. Por isso, sua candidatura
foi apresentada ao Conselho Superior das Nações Unidas (CSONU) entre
os anos 2010 e 2011, tendo em vista atingir o objetivo de permanecer no
comando das tropas da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no
22
Em sua denúncia, o professor brasileiro Ricardo Seitenfus, então Representante Especial
do Secretário Geral da OEA e Chefe do Escritório da mesma instituição no Haiti em 2010,
pinta o quadro sem meias-palavras: “O país oferece um campo livre para todas as experiências
humanitárias. É inaceitável do ponto de vista moral considerar o Haiti como um laboratório. A
reconstrução do Haiti e a promessa de 11 bilhões de dólares que fazemos brilhar inflamam muitos interesses.
Parece que um monte de gente veio ao Haiti, não para o Haiti, mas para fazer negócios” (ROBERT, 2010;
grifos nossos). Essa oportunidade de fazer negócios tem sido ainda reforçada pela bactéria
de cólera importada pela ONU através do contingente militar nepalês da MINUSTAH e
diagnosticada 9 meses depois do terremoto, no dia 19 de outubro de 2010. Em pouco tempo,
ela se espalhou por todo o território haitiano (KLARREICH; POLMAN, 2012).
23
A CAPES poderá, de acordo com os projetos apresentados, conceder bolsas de estágio à
docência a alunos de pós-graduação, de acordo com suas normas (ANEXO I DA PORTARIA
N.092, 2010).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


262 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

Haiti – MINUSTAH, a qual o Brasil liderou desde 2004 até final de 2017,
além de ampliar sua pasta de políticas externas de cunho subimperialista
na região.
O Haiti apresentara-se como uma vitrine do savoir-faire (saber-fazer)
brasileiro, e por isso denotava importância estratégica (VÉRAN; NOAL;
FAINSTAT, 2014). Nessa perspectiva, o posicionamento do governo
brasileiro no processo de recolonização do Haiti por meio da MINUSTAH
a partir de 2004, do Pró–Haiti, bem como do processo migratório haitiano
para seu território desde 2010, visa apenas priorizar a possibilidade de
aumentar a reputação internacional do Brasil. Tudo isso acabou elevando
a projeção de poder econômico e político do país, contribuindo para
garantir o seu peso regional na América Latina, a sua presença em assuntos
militares e econômicos internacionais (BRACEY, 2011).
A respeito do processo de recolonização do Haiti, Franck Seguy
afirmou que tal projeto já ficava claro no texto do “Plano de Ação para a
Recuperação e o Desenvolvimento o Haiti” (PARDN), apresentado pelo governo
haitiano dois meses depois do terremoto. O governo haitiano escreveu um
plano de reconstrução que ele apresenta aos seus parceiros da chamada
comunidade internacional, e não à sociedade civil haitiana (SEGUY, 2014).
Segundo o pesquisador, esse plano foi apenas uma versão atualizada de
um estudo realizado por um economista da Universidade de Oxford, Paul
Collier, que foi enviado ao Haiti pelo Secretário Geral da ONU, tendo
publicado seu relatório em janeiro de 2009. Assim, podemos dizer o que
está sendo implementado hoje no Haiti, como ‘reconstrução’, na verdade
é um plano anterior ao terremoto (SEGUY, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que a educação é, sem dúvida, uma atividade


fundamental em qualquer sociedade, entendemos que ela é tida como
um dos fatores de desenvolvimento socioeconômico e também um dos
componentes fundamentais para o desenvolvimento sociocultural, político
e econômico de cidadãos e da sociedade (ALPHONSE, 2015, p.1 apud
DELORS, 1996). Considerando também que durante o último século o
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017
O programa pró-Haiti nas universidades... 263

mundo conheceu um desenvolvimento econômico sem precedentes, estes


avanços se devem, em grande parte, à ciência e à educação. Nesse sentido,
é patente a necessidade de redefinir a educação não apenas na perspectiva
dos seus efeitos sobre o crescimento econômico, mas com uma visão mais
ampla sobre o desenvolvimento humano (ALPHONSE, 2015, p.1 apud
DELORS, 1996).
Partindo desse pressuposto, Frigotto (2000) reafirma que o
ensino superior, assim como a escola, é visto como um dos motores de
desenvolvimento econômico. Para esse autor, essa ideia foi e é amplamente
disseminada como a “panaceia” para solucionar os problemas das
desigualdades existentes entre os países e os indivíduos, “mediante os
organismos internacionais como (BID, BIRD, OIT, UNESCO, FMI,
USAID, UNICEF) e os organismos regionais (CEPAL e CINTEFOR),
que representam dominantemente a visão e os interesses do capitalismo
integrado ao grande capital” (ALPHONSE 2015, p.1 apud FRIGOTTO,
2000).
Comparando os objetivos e metas com os resultados efetivos
alcançados pelo Pró-Haiti no período analisado, vimos que existe uma
distância muito grande entre esses três componentes. Além disso, pode-se
perguntar: se os resultados alcançados pelo programa são muitos tímidos,
por que a CAPES não lançou nenhum novo edital para ampliar o número
de alunos haitianos nas universidades públicas brasileiras para melhorar o
desempenho do programa nessas Universidades no sentido de cumprir a
promessa? Por outro lado, conforme indicado acima, o referido programa
contribuiu apenas com o incentivo da transformação do Haiti em um
laboratório de pesquisa para os pesquisadores e estagiários brasileiros
realizarem suas pesquisas.
Concluímos afirmando que o Brasil não cumpriu e não irá cumprir
a promessa e que, portanto, ele não contribuirá para a reconstrução
do Haiti através desse programa. Por isso, enquanto as autoridades
haitianas não tomarem consciência disso e romperem com as práticas
que o Haiti mantém com países subimperialistas para passarem a investir
adequadamente no sistema de educação do país, nenhuma recuperação
será possível.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017
264 Fritznel Alphonse e José Rivair Macedo

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Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 233-270, fev/dez. 2017


INSERÇÃO E PARTICIPAÇÃO DE IMIGRANTES
HAITIANOS EM UNIVERSIDADES BRASILEIRAS

Wendy Ledix1

RESUMO: A migração é um fato social que consiste no entrar e no sair de indivíduos


em um ou de um determinado espaço geográfico. A partir de 2010, o Brasil passou a ser
o destino de milhares de haitianos em busca de melhores condições de vida, logo depois
do desmoronamento do Haiti pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010. A presença dos
mesmos no território brasileiro gerou um fato imperativo para a inserção no mercado
de trabalho e no ensino superior. Nesta perspectiva, este presente artigo possui como
objetivo principal retraçar a migração haitiana, enfatizando a inserção e a participação de
imigrantes haitianos em universidades brasileiras, especificamente a Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS), no campus de Chapecó, e na Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA).
PALAVRAS-CHAVE: Migração; Haiti; Brasil; Educação; Universidades.

INSERTION AND PARTICIPATION OF HAITIAN


IMMIGRANTS IN BRAZILIAN UNIVERSITIES

ABSTRACT: Migration is a social fact that consists of individuals entering and leaving
a given geographic space. From 2010, Brazil became the destination of many Haitians
in search of better living conditions, soon after the collapse of Haiti by the January 12,
2010 earthquake. Their presence in Brazilian territory generated the necessity of their
insertion into the labor market and in higher education. In this perspective, this article
has as main objective to retrace the Haitian migration, emphasizing the insertion and
1
Graduando em Saúde Coletiva na Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
E-mail: [email protected].

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


272 Wendy Ledix

participation of Haitian immigrants in Brazilian universities, specifically in the Federal


University Southern Border (UFFS), Chapecó campus, and the Federal University of
Latin American Integration (UNILA).
KEYWORDS: Migration; Haiti; Brazil; Education; Universities.

INTRODUÇÃO

A República do Haiti, comumente chamada de Haiti, enfrenta


muitos desafios em termos de planejamento socioeconômico e esforços
para assegurar o crescimento econômico e a criação de empregos num
contexto mundial de crise econômica. Na escala nacional, o contexto atual
é o da alta vulnerabilidade ecológica, desequilíbrios sociais e comerciais e a
falta geral de infraestrutura adequada, de energia sustentável e instituições
suficientemente fortes para apoiar sua integração à economia mundial.
Porém, da perspectiva de seus fluxos de emigração, o país já se encontra
bem integrado ao sistema global.
No entanto, o Haiti é o primeiro país negro tanto a conquistar
a abolição da escravidão no mundo por meio de uma revolta geral dos
escravizados quanto a declarar independência. Esta antiga colônia
francesa tem uma história bastante conturbada. Nela, 80% da população
vive abaixo da linha da pobreza e dois terços sobrevivem da pesca e da
agricultura praticada em espaços erosivos, marcados pela superexploração,
nos períodos das colonizações espanhola e francesa (SEGUY, 2010), e o
desmatamento, restando 2% de áreas de florestas, em 2006. À precariedade
das condições de produção e de vida somam-se problemas sociais
decorrentes de conflitos políticos (CEOLIN, 2014).
Diante desta situação precária do país, um número significativo de
haitianos encontrou-se na obrigação de sair do Haiti em direção a diversos
cantos do mundo. Estudantes, professores, trabalhadores, funcionários
públicos, desempregados, todos são sujeitos a ser migrantes. Para a
Organização das Nações Unidas, o “migrante” é qualquer pessoa que vive,
permanentemente ou temporariamente, num país no qual não nasceu e no
qual criou relações.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 273

O Haiti, pela sua história, vem conhecendo uma forte migração.


Um de seus fluxos mais recentes – além da migração haitiana rumo ao
Chile – é voltado para o Brasil. Muitos deles vêm ao Brasil para trabalhar e
estudar. O mercado de trabalho foi o campo mais explorado por eles, pois
o Brasil sempre vem requerendo mão-de-obra barata. O que despertou as
autoridades locais sobre a pertinência de se pensar uma forma de propiciar
uma inserção viva dos imigrantes haitianos na educação foi pela simples
hipótese de que muitos deles estudavam no Haiti, mas, chegando aqui, não
teriam como continuar seus estudos.
Tendo em vista o exposto, este artigo possui como objetivo principal
retraçar a migração haitiana, enfatizando a inserção e a participação de
imigrantes haitianos em universidades brasileiras, especificamente na
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), no campus de Chapecó, e
na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

METODOLOGIA
O estudo aqui apresentado é de natureza quantitativa e qualitativa
e busca contribuir para: apresentar as linhas gerais da história da
migração haitiana, ainda que sem uma análise de suas causas mais
profundas; além disso, informar de que forma está sendo feita a inserção
de imigrantes haitianos no ensino superior no Brasil, especialmente em
duas universidades federais, a saber, a Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS) e a Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA); e, por fim, mostrar como esses imigrantes estão participando
no tripé da universidade: ensino-pesquisa-extensão.
Oriundo de uma observação empírica, o estudo foi feito pelas
seguintes perguntas de pesquisa: Com que sentimento você deixou o
Haiti? O que fez você migrar para o Brasil? Como foi a adaptação no meio
universitário? Você já pensou em abandonar tudo e voltar definitivamente
para o seu país? Como você encara o desafio de ser estudante num país
estrangeiro? Você recebe alguns auxílios por parte da Universidade? Você
participa em alguns projetos de extensão e/ou pesquisa?

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


274 Wendy Ledix

A vinda dos Haitianos para o Brasil tem sido considerada como


sendo a maior onda migratória ao país em cem anos, comparada
historicamente àquela de italianos e japoneses que aportaram no país
ainda no período imperial e nos primeiros anos da República (FOLHA,
2012). Este fato gerou uma redefinição de políticas públicas em termos de
acolhimento. Assim surgiu o Pró-Haiti, programa de inserção de haitianos
em universidades brasileiras.
A coleta de dados ocorreu no mês de julho/2017, por meio da
aplicação de um questionário semiestruturado; também por meio de
fontes relacionadas ao assunto de estudo (livros, artigos, documentários,
entre outros); e por meio de uma observação de campo feita através de
uma observação participante.
De acordo com Demo (2000, p.21), a observação participante é
intrínseca à prática, pois há nela um fundamento que possibilita discutir
a importância do processo de investigação tendo por perspectiva a
intervenção na realidade social. Segundo esse autor, a pesquisa prática é
ligada à práxis, ou seja, à prática histórica em termos de usar conhecimento
científico para fins explícitos de intervenção; nesse sentido, não esconde
sua ideologia, sem com isso necessariamente perder de vista o rigor
metodológico.
Após a coleta, os dados foram analisados buscando garantir o sigilo,
sem mencionar os nomes dos participantes. Nesta pesquisa, participaram
seis estudantes do campus de Chapecó da UFFS, repartidos em vários
cursos, tais como: Agronomia, Engenharia Ambiental e Sanitária,
Filosofia e Matemática; e dezenove estudantes da UNILA, matriculados
nos seguintes cursos: Administração Pública e Políticas Públicas,
Biotecnologia, Ciências Biológicas, Ciências Econômicas, Cinema e
Audiovisual, Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar, Engenharia
Física, Engenharia Química, História- América-latina, Letras, Relações
Internacionais e Integração, Saúde Coletiva e Serviço Social.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 275

HISTÓRIADA MIGRAÇÃO NO HAITI

ÉPOCA COLONIAL

A migração haitiana, em contexto nenhum, pode ser considerada


como algo recente, já que o povoamento da ilha do Haiti começou em
4000 a.C. com migrações sucessivas da América Central ou da Península
de Iucatã de um grupo cuja presença dominou a ilha durante um intervalo
de tempo de, aproximadamente, três milênios, até cerca de 400 a.C. Esta
cultura, chamada Casimiroide, misturou-se à cultura cerâmica, agrícola e
sedentária dos Saladoides que migrara da América do Sul e que, rapidamente,
colonizaram as ilhas do arquipélago, estabelecendo sua presença nas ilhas
de Porto Rico e Hispaniola2 por volta de 400 a.C.. Esta história continua
com os povos Taino/Arawak, que pertenciam igualmente à cultura
Saladoide e que ocuparam o espaço desenvolvendo instalações agrícolas
sedentárias para quase dois milênios (REID, 2009).
As sucessivas invasões em 1492 acabaram com esta civilização na
ilha do Haiti com a remoção pela escravidão, a propagação de doenças
e massacres durante quatro décadas de guerra que seguiram-se ao
estabelecimento da escravidão americana nativa. Este ano é marcado
pela invasão da tropa espanhola, liderada por Cristóvão Colombo.
Os espanhóis ocuparam a ilha do Haiti por 205 anos (1492-1697). Os povos
que ali viviam foram submetidos a trabalhos forçados sob o comando dos
invasores e não resistiram. Com a chegada dos espanhóis, o genocídio
de quatro quintos da população nativa no Haiti, estimada entre 1,5
e 2 milhões de habitantes (LAURENT COPA, 1993, p.25), marcou o início
da utilização da ilha como uma colônia de exploração e foi acompanhado
e seguido pelo início da importação de cativos africanos a partir de 1503.
Assim, começou o tráfico negreiro para a ilha.
No século XVII, corsários franceses começaram a se estabelecer na
ilha vizinha de “LaTortue”, território que pertence à República do Haiti.
Chamam-se pomposamente de “Irmãos da costa.” Eles eram caçadores,
estimados em 3.000 indivíduos, e foram também piratas e corsários
2
Nome dado à ilha do Haiti pelos invasores espanhóis, que significa “Pequena Espanha”.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


276 Wendy Ledix

predando galeões espanhóis. Em agosto de 1640, os corsários franceses


expulsaram os seus rivais ingleses que ali tinham invadido e desembarcaram
no norte da ilha de Hispaniola.
No meio das brigas entre os diferentes invasores, em 1697, a
Espanha legalmente cedeu à França a parte ocidental de Hispaniola
(atualmente conhecida como Haiti), o que ficou registrado no Tratado de
Ryswick3, que pôs fim à Guerra da Liga de Augsburg. Esta aquisição marca
o verdadeiro início das ambições coloniais da França, que colonizou o
país por 106 anos (1697-1803), fortalecendo a mão-de-obra escrava com
o tráfico negreiro.
Esta atividade de tráfico de cativos africanos durou cerca de 150
anos. De acordo com a lógica do Código Negro4, a população da ilha do Haiti
em 1780 foi estimada da seguinte forma: 450.000 escravos, 28.000 mulatos
(pessoas nascido de grupos europeus e africanos étnicos) e negros livres,
30.000 brancos (WARGNY, 2008, p. 31). A extensão massiva do fluxo
migratório rumo à ilha atingiu uma estimativa de 800.000 cativos africanos
entre 1680 e 1786. A economia do Haiti era completamente orientada para
o exterior e exportava produtos destinados à elaboração secundária e ao
consumo. A importação de Negros advindos de vários lugares da África
também fazia parte de um sistema de criação de riqueza colonial e imperial
da época. No final de seu período como colônia francesa, em 1791,
a população de escravos do Haiti chegou a 500.000 habitantes.

NA AURORA DA REPÚBLICA DO HAITI

A imigração de cativos africanos para a ilha foi definitivamente


interrompida com a Revolução Haitiana (1791-1804). Contudo, os líderes

3
O Tratado de Ryswick gerou a cisão da ilha do Haiti em República do Haiti que representa
um terço do território, sob o controle da França e da República Dominicana – que, por sua vez,
representa os dois terços sob o controle da Espanha. É esse ato jurídico e histórico que justifica
o porquê de se falar francês na República do Haiti e espanhol na República Dominicana.
4
O Código negro é um documento no qual o legislador finge considerar a humanidade do
escravo negro, apresentando-o, do ponto de vista jurídico, como uma mercadoria submetida às
leis do mercado e ao desejo do seu dono.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 277

da nova República do Haiti imediatamente começaram uma política de


atração de mão-de-obra para o país. O imperador Jean-Jacques I (Jean-
Jacques Dessalines), o primeiro presidente do Haiti, recrutou cidadãos
da República vizinha dos Estados Unidos da América, oferecendo
recompensas aos capitães marítimos para facilitar a chegada de negros
norte-americanos ao Haiti (ALEXANDER, 2013, p. 199). A definição de
uma política migratória de incentivo à imigração continuou sob os regimes
contemporâneos do Rei Henri Christophe e Presidente Alexandre Pétion:

Esse país chamado de Haiti, e por favor chame-o por seu


nome Haiti e não outra coisa que você ouve outras pessoas
chamando. Essa é uma terra que os fundadores definiram
que seria o refúgio para todas as pessoas negras do mundo.
[...] Não é a propriedade do pequeno grupo que estava ali,
mas a visão deles era a seguinte: nós vamos criar um espaço
aqui, um espaço onde qualquer pessoa negra fugindo de
qualquer tipo de estrago opressivo, qualquer caos opressivo,
ela pode vir aqui e instantaneamente qualquer pessoa negra
que pisar os pés nessa terra se tornará automaticamente
livre e um cidadão...(relato de Bayyinah Bello, professora e
historiadora).

O regime do Pétion, terceiro presidente do Haiti, produziu a


Constituição revisada de 1806, e o artigo 44 permitiu a concessão da
cidadania haitiana a pessoas de origem africana ou indígena que tivessem
vivido no Haiti por pelo menos um ano. O artigo também afirma que
essas pessoas são automaticamente consideradas cidadãs haitianas até que
se mudem do país, fazendo com que a concessão de cidadania permaneça
condicional. O objetivo desta iniciativa era estender as liberdades
conquistadas durante a Revolução Haitiana, além de beneficiar a economia
haitiana através do acesso à mão de obra qualificada (ALEXANDER,
2013, p. 199).
A resposta entre a população negra dos Estados Unidos da América
foi afirmativa e a criação de Haitian Emigration Societies (Sociedades de
Emigração Haitiana) foi iniciada em cidades como Nova Iorque, Boston,
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278 Wendy Ledix

Filadélfia e Baltimore. A chegada ao poder do presidente Jean Pierre


Boyer e a reunificação posterior da República do Haiti conheceram a
implementação de um programa acelerado de recrutamento. A abordagem
do presidente Boyer incluiu uma campanha de recrutamento ativo nos
Estados Unidos, em parceria com instituições religiosas afro-americanas, e
também o investimento financeiro na facilitação da mobilidade de pessoas-
alvo. A política migratória de Boyer, que incluía concessões de terras e
subsídios para o transporte de imigrantes, considerava o desenvolvimento
econômico por meio da importação de mão-de-obra qualificada e a
possibilidade de uma reaproximação com os Estados Unidos da América
e os benefícios potenciais do reconhecimento do Haiti por Washington
para as relações comerciais e diplomáticas.

MIGRAÇÃO NO SÉCULO XX

O final da década de 1880 foi marcado pela criação de condições


econômicas, políticas e tecnológicas propícias para o surgimento da empresa
multinacional moderna. No Caribe, a aquisição de terras produtivas por
empresas britânicas, como Tate e Lyle e empresas americanas como United
Fruit Company permitiram a organização da produção (açúcar, café,
bananas) numa escala sem precedente. O deslocamento dos agricultores
de suas terras era uma prática muito conhecida na região (HEADLY,
1996) e contribuiu para a conversão da economia de subsistência agrícola
numa economia de trabalhadores independentes à procura de emprego,
especialmente pela migração para grandes cidades ou para outros países
da região.
Com a construção do Canal do Panamá,surgiram práticas de
recrutamento por agências governamentais norte-americanas, além
de também empresas multinacionais de trabalhadores (especialmente
homens) do Caribe para trabalhar não somente na construção deste,
mas também em plantações agrícolas da América Central e afora a
partir de 1904 (RICHARDSON, 1985, p.105-107). Concluída em 1914,
a construção de Canal também destacou a importância estratégica das

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 279

Ilhas de trânsito da América Central para os Estados Unidos. O governo


dos EUA, que havia,desde 1898, começado a consolidar sua influência
geopolítica na região com a ocupação de várias ilhas, incluindo Cuba e
Porto Rico, invadiu o Haiti e a República Dominicana em 1915 e 1916,
respectivamente (PETRAS, 1988, p.127; BULMER-THOMAS, 2001,
p. 6). Assim, teve início a ocupação americana no Haiti, reforçada pela
doutrina de Monroe: “A América aos [Nortes] Americanos”. No Haiti,
esta durou cerca de 19 anos (1915-1934).
Durante este período, milhares de camponeses, expropriados pelo
invasor e submetidos à labuta, emigraram como cortadores de cana nos
canaviais americanos da República Dominicana e de Cuba. A situação
piorou tanto que, em 1937, ou seja, dois anos depois da ocupação, a burguesia
dominicana havia organizado o massacre de mais de 30 mil trabalhadores
haitianos, com a cumplicidade da burguesia haitiana. O racismo da
ultradireita dominicana, como foi demonstrado através da Sentença No.
168-13 do Tribunal Constitucional, alimentava constantemente o temor
de que a presença haitiana não se revelasse demasiado significativa em
termos quantitativos na República Dominicana.
Em torno dos anos 1950, registrou-se cerca de 19.000 haitianos
ainda presentes na República Dominicana, mas a partir de 1964, a
população haitiana aumentou consideravelmente para 60.000 e, em 1970,
300.000 habitantes. Nos Estados-Unidos, mesmo para os anos 50, a
presença haitiana foi praticamente insignificante. Para os anos 60 e 70, os
trabalhadores imigrantes haitianos chegaram até 200.000, mas os serviços
da imigração não puderam mais controlar as chegadas.
A convergência da consolidação da influência geopolítica
estadunidense e a expansão da produção multinacional agrícola teve
ramificações importantes para os fluxos migratórios no Haiti. A ocupação
americana foi acompanhada pelo aprofundamento da centralização
da educação e do poder administrativo. A desmontagem da produção
camponesa também foi realizada em outras ilhas da região. No entanto, o
confisco e a apropriação de terras produtivas por empresas e investidores
americanos nas áreas designadas como rurais causaram um êxodo rural
para as grandes cidades e também para a República Dominicana e Cuba
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017
280 Wendy Ledix

(também ocupados por forças norte-americanas) (WARGNY, 2008,


p. 63). De fato, esta dotação feita pela repressão e expulsões forçadas foi
acompanhada de recrutamento de mão-de-obra haitiana para as plantações
de açúcar dos estadunidenses na República Dominicana (FATTON, 2014,
p. 61-62).
Neste período de intensa mudança econômica, então, o país já
mostrou duas das três principais tendências atuais, ou seja, migração
interna, das áreas rurais para as grandes cidades e particularmente a
capital do país, Port-au-Prince, e a emigração de trabalhadores para os
países vizinhos do Haiti, especialmente Cuba e República Dominicana.
No entanto, além do deslocamento da comunidade germano-haitiana
durante a invasão americana, o êxodo de força de trabalho altamente
qualificada e estudantes de nível superior para as metrópoles nortes-
americanas e a Europa não era ainda notável. Como o afirma Olibri (2014,
p. 24):

Antes da primeira ocupação americana do país (1915-1934),


havia alguns haitianos oriundos especialmente da pequena
burguesia urbana, que podia pagar-se o luxo de mudar para
os Estados Unidos, a França ou as colônias britânicas do
Caribe, seja para estudos ou para escapar das turbulências
políticas internas; mas isto não era suficientemente
desenvolvido a ponto de afetar a economia do país. A
evolução da formação social do país vai causar uma espécie
de inclinação; no sentido de que diferentes fatores (sociais,
econômicos e políticos) iam combinar-se para transformar
grande parte da população em potenciais migrantes. O
que faz com que, com o passar do tempo, de certo modo,
todos os estratos da sociedade vêm sendo mais ou menos
envolvidos com a questão da migração.

Com o fim da ocupação americana, o Haiti continuou a experimentar


a fuga generalizada das áreas rurais para a capital. Esta tendência foi
acompanhada pelo crescimento da população devido ao declínio da
mortalidade e ao aumento da taxa de natalidade no país. A migração rumo

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 281

a Cuba também persistiu até a Revolução Cubana em 1959. Na República


Dominicana, o recrutamento de trabalhadores continuou com o acordo
bilateral entre o Haiti e a República Dominicana para a exportação de
cerca de 16.500 trabalhadores haitianos em 1952 (VEGA, 1988, p. 272).
A República do Haiti participou de pleno direito à fundação da
organização das Nações Unidas após a Segunda Guerra Mundial. Tendo
adotado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o país
promulgou devidamente uma nova Constituição em 1950 que seguiu o
sentido da Declaração confirmando, entre outros, o direito dos cidadãos
haitianos de votarem , de participarem na direção dos negócios públicos e
de acessarem aos serviços públicos. Princípios estes que seriam derrotados
com a chegada ao poder do presidente ditador François Duvalier.
A ditadura assinalou uma ruptura quase imediata com as considerações
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, exemplificada pela
revogação do artigo 95 da Declaração com a renovação do acordo bilateral
entre o Haiti e a República Dominicana para a exportação de mão-de-obra
haitiana em 1959. Este instrumento continuou servindo de ferramenta
financeira importante do regime do F. Duvalier e o do seu filho, Presidente
Jean-Claude Duvalier até seu exílio em 1986 (FATTON, 2014, p. 64-65).
O uso do pretexto do anticomunismo e a exploração das diferenças
históricas de classe e cor na sociedade haitiana acarretaram um período
de repressão política e social onde, segundo Olibri (2014), um número
impressionante de haitianos da burguesia tradicional, da burguesia urbana,
intelectuais da classe média (professores, médicos, engenheiros), vão fugir
o país. Uma boa parte instalou-se nos centros metropolitanos nas regiões
francófonas da África Ocidental e Canadá, o Nordeste dos Estados Unidos
e a França (OLIBRI, 2014). Bellegarde-Smith (2013, p. 274) estima que a
maior parte da classe profissional do país (aproximadamente 80%) já havia
se exilado na primeira década do regime do presidente ditador F. Duvalier.
Levando em consideração essa fuga dos haitianos rumo a diversos
cantos do mundo, alguns autores passaram a se preocupar pelo assunto

5
O artigo 9 da declaração Universal dos Direitos Humanos estipula que ninguém pode ser
arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


282 Wendy Ledix

a fim de tratá-lo. É exatamente nesta perspectiva que Georges Anglade6


apresentou numa figura, ainda em 2005, a repartição dos haitianos no
mundo:
Figura 1. Os Haitianos no mundo

Fonte: www.canalplushaiti.net (2012) ; Georges Anglade, 1982, 2005.


6
Nascido em Porto Príncipe (capital do Haiti) em 1944, foi estudar geografia aplicada em
Strasbourg-Franca em 1965, e em seguida no Canadá em 1969. Georges Anglade foi um dos
fundadores da Universidade do Quebec em Montreal (UQAM), onde ensinou a geografia
social até 2002. Rebelde da ditadura militar, ele foi preso, exilado e ameaçado de morte várias
vezes. Porta-voz do Movimento Haitiano de Solidariedade em 1986, autor do manifesto “la
Chance que passe” (a Sorte que passa) em 1990, ele foi igualmente conselheiro dos presidentes
Jean-Bertrand Aristid e René Préval até 1996 (Grégoire, 2012). Autor de numerosos livros
consagrados à sua ilha natal, tais como “Mon pays d’Haiti”(1997), “Espace de liberté en Haiti”(1982)
e “Ce pays m’habite”(2002), Georges morreu junto com a sua esposa Mireille no terremoto que,
violentamente, abalou o Haiti no dia 12 de janeiro de 2010.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 283

Este êxodo não se realizou apenas do Haiti para outros países.


Deu-se igualmente dentro do próprio país. Os campesinos e/ou citadinos
passaram a migrar para a capital do país (Porto Príncipe) em busca de
emprego. Por exemplo, “Em 1970, previa-se para 1972 um aumento de
15,8% da população de Porto Príncipe, e que chegaria a uma taxa recorde
de 20%, somente em 1982. Ora, este limiar foi atingido já desde 1971”
(HURBON, op. cit. p. 29). Evidenciou-se assim que a urbanização, no
país, se deu de forma anárquica, sem planejamento. É dali que se explicam
as pesadas construções anárquicas que se observam em Porto Príncipe. A
vulnerabilidade dos citadinos de Porto Príncipe aos desastres ecológicos
e sanitários já em pauta nos anos de 1940 (TOBIN, 2013), tem sido
exacerbada sob o regime dos Duvalier, assim criando as condições para a
perda massiva de vida e consequentemente a tragédia que foi o resultado,
em 12 de janeiro de 2010, da ocorrência do terremoto.

O CENÁRIO PÓS-TERREMOTO

O dia 12 de janeiro de 2010 marcou a história do Haiti e a vida


de todos os haitianos, tanto os que permaneceram no país quanto aqueles
na diáspora. O terrível terremoto que desabou o país nesta data expôs
vivamente ao mundo inteiro a miséria cotidiana que o reprimia há séculos.
Diante desse terror, numerosos resgatados decidiram deixar o país em
direção ao Brasil. Com sentimentos distintos, muitos foram obrigados a
partir:

Eu deixei meu país com uma mistura de vários sentimentos:


tristeza, pois eu nunca pensei em viajar para ficar longe da
família durante todo esse tempo, mas deixei-os com pouca
alegria, pois sei que meus projetos vão continuar, isto é o
prolongamento dos meus estudos superiores (UFFS, 2013,
p. 2).

Eu migrei para o Brasil na ótica de poder dar continuidade


aos meus estudos superiores e ao mesmo tempo poder
trabalhar (UNILA, 2014, p. 17).
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284 Wendy Ledix

O povo haitiano tem uma afinidade extrema pelo Brasil. O futebol


e o carnaval representam as referências. A identidade cultural entre Brasil
e Haiti trouxe uma certa dose de familiaridade. Em ambos os países houve
a colonização de exploração, a existência de indígenas nos primórdios, o
comércio de cana-de-açúcar, os imigrantes como sustento do povoamento
que caracterizou a miscigenação, tanto por europeus, quanto por africanos,
que, no dizer de Darcy Ribeiro (2014), seriam povos “transplantados”.
Posteriormente, as relações foram ainda mais veementes, com a visita
de Pelé, da seleção brasileira de futebol e do ex-Presidente Lula no Haiti
(HANDERSON, 2015). A presença da MINUSTAH7 no Haiti, liderada
pela tropa brasileira, ajudou bastante nesta aproximação.
Assim, meses depois da tragédia, chegou um primeiro grupo
de haitianos ilegais no Acre, usando a seguinte rota: Haiti-República
Dominicana-Equador-Peru-Brasil. Alguns nem sequer passaram pela
República Dominicana, pois com o visto dominicano, é possível entrar
no Equador. Para frear esse fluxo ilegal, o Brasil  ampliou a emissão de
vistos pelas embaixadas  em Porto Príncipe (Haiti), Quito (Equador) e
Lima (Peru). Em 2015, houve uma queda de 96% no número de haitianos
ilegais que chegaram ao Brasil pelo estado.
Em quatro anos, foram emitidos 38.065 vistos permanentes para
haitianos pelas embaixadas do Brasil – 30.385 em Porto Príncipe, 7.655
em Quito, e 25 em Lima, segundo o Itamaraty. Enquanto em 2012 foram
emitidos 1.255 vistos, em 2015 o número saltou para 20.548. Dados da
Divisão de Imigração do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty)
apontam que a emissão de vistos a haitianos subiu 1.537% de 2012 a 2015.
Isso mostra que os imigrantes têm entrado no país regularizados por
capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, em vez de fazer a longa e cara
viagem para entrar ilegalmente pelo Acre.
7
A Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti  (MINUSTAH) foi criada
por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro 2004, para restabelecer a
segurança e normalidade institucional do país após sucessivos episódios de turbulência política
e violência, que culminaram com a partida do então presidente, Jean Bertrand Aristide, para
o exílio. O Brasil sempre comandou o componente militar da Missão (2004-2017), que teve
a participação de tropas de outros 15 países, além do efetivo brasileiro de capacetes azuis
da Marinha, do Exército e da Força Aérea (Ministério da Defesa).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 285

Mesmo com essa estratégia da parte do Brasil, a erradicação da


migração ilegal não foi possível, pois o processo para conseguir o visto nas
embaixadas citadas acima demorava bastante. A partir de Quito, chegar à
fronteira com o Peru pode levar dois dias ou mais, caso seja necessário
esperar por um número maior de pessoas para realizar a viagem em grupo.
Assim, a rota é percorrida desde que se tenha reunido o número suficiente
de pessoas ou se acumulado o montante de dinheiro necessário. O visto
de entrada no Peru é cobrado dos haitianos desde 25 de janeiro de 2012,
medida que tornou muito difícil, caro e perigoso o deslocamento regular
deles por este país. Logo, o trânsito pelo território peruano é organizado
por redes de tráfico de pessoas, que adotam rotas e caminhos não oficiais
para passagens dos imigrantes.
Diante das dificuldades de acesso ao visto de imigração temporária
como turista no Peru, ampliou-se a vulnerabilidade dos haitianos durante
a passagem pelo país andino, sendo inúmeros os relatos deles referentes à
extorsão, violência e medo. Nesse circuito, onde eles dependem das redes
de tráfico e seus coiotes para realizar a passagem pelo território peruano,
driblando ou negociando com a fiscalização das fronteiras, os haitianos
guardam na memória especialmente os abusos sistemáticos sofridos por
parte de agentes policiais e civis peruanos.
Em relatos mais pontuais sobre a viagem , imigrantes lembram que
nesse trecho muitos se tornam vítimas de roubo, cárcere, espancamentos,
estupros e até mortes, situação que é agravada pelo desconhecimento da
rota, do idioma local e especialmente pela condição de indocumentados.

Deixei o Haiti no dia 26 de maio do ano 2015 cheguei ao


Panamá no mesmo dia, no dia seguinte fui pro Equador.
Passei quatro dias em vários ônibus partindo do Equador
para o Peru e do Peru até chegar no Brasil. A rota era muito
arriscada porque não era uma passagem legal, fiz parte um
grupo de pessoas que estavam sob a responsabilidade de
uma rede de traficantes de seres humanos UFFS, 2013, p. 3).

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286 Wendy Ledix

A INSERÇÃO DOS HAITIANOS NO ENSINO SUPERIOR

O Brasil e o Haiti mantêm relações diplomáticas desde 1928 (ano


em que foram estabelecidas ligações entre ambos países), apesar de elas
terem se tornado mais evidentes a partir de 2010, com o terremoto. Ocorre
que, a partir de 2010, com o fluxo migratório de haitianos para o Brasil, as
relações ganham novas perspectivas e exigências. Uma delas foi a vigência
do Acordo Básico de Cooperação Técnica e Científica, firmado em 15 de
outubro de 1982, e que somente entraria em vigor em novembro de 2004,
através do Decreto no. 5.2848 (DIEME, 2016).
Ademais, anteriormente, mais especificamente em 05 de julho de
1966, a relação bilateral entre os dois países se deu com a assinatura do
Convênio de Intercâmbio Cultural entre os Estados Unidos do Brasil e a
República do Haiti, o qual, no artigo III, previu a concessão de bolsas de
estudo, ipsis literis:

Convênio de Intercâmbio Cultural entre os Estados Unidos


do Brasil e a República do Haiti, 05/07/1966
Artigo III – Cada Parte Contratante considerará a
possibilidade de conceder anualmente bolsas de estudo a
estudantes pós-graduados, profissionais liberais, técnicos,
cientistas ou artistas, enviados por um país ao outro para
aperfeiçoarem seus conhecimentos.
2. Aos brasileiros e haitianos, beneficiários dessas bolsas,
será concedida dispensa de quaisquer taxas escolares.

Tendo em vista estas normas legais, em 25 de fevereiro de 2010,


ocasião em que o Presidente Lula visita o Haiti, essa relação bilateral entre
ambos se consolida ainda mais, com o “Memorando de entendimento
entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da
8
Decreto nº 5.284/2004
Artigo III - A cooperação a ser promovida pelas Partes Contratantes na implementação
deste Acordo poderá abranger, entre outras, as seguintes modalidades: (...) b) promoção de
programas de formação e aperfeiçoamento, através de cursos ou estágios específicos, de
recursos humanos.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


Inserção e participação de imigrantes haitianos... 287

República do Haiti para a reconstrução, o fortalecimento e a recomposição


do Sistema de Educação Superior do Haiti”9.
Deste modo, a Portaria nº 092/2010, editada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e publicada no
Diário Oficial da União em 29 de abril de 2010, entrou em vigor na data
da publicação e criou o Programa Emergencial Pró-Haiti em Educação
Superior, dispondo de regras gerais para implementação de atividades
relacionadas à prestação de auxílio às universidades haitianas, como
também de concessão de bolsas de estudo para estudantes que já são
universitários no Haiti estudarem no Brasil, na modalidade sanduíche.
A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) implementou o
Pró-Haiti em 2011, nos moldes preconizados pela Portaria da Capes. Os
estudantes saem do Haiti rumo ao Brasil, a fim de fazer graduação ou
pós-graduação sanduíche em áreas distintas, recebem bolsa no valor que
pode variar de R$ 830,00 a R$ 1.500,00, a depender do curso, durante os
18 meses de duração (MARINO, 2016).
Logo depois, outras universidades, tais como a Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) (Resolução Normativa nº 27/Cun/2012), a
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e a Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) iriam seguir o mesmo modelo da Unicamp.
Se, por um lado, o Pró-Haiti abre espaço para estudantes do Haiti
virem para o Brasil para continuar estudando, por outro, ele só admite
haitianos residindo no Brasil, que já têm o ensino médio completo e que
não têm curso superior para ingressarem cursos de graduação. Tal é o caso
da UFFS e da UNILA.

9
Memorando de entendimento entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo
da República do Haiti para a reconstrução, o fortalecimento e a recomposição do Sistema de
Educação Superior do Haiti, 25/02/2010.

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288 Wendy Ledix

NA UFFS (CAMPI CHAPECÓ)

A Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) é uma instituição


de ensino superior pública, criada pela lei no 12.029, de 15 de setembro
de 2009. Ela abrange mais de 400 municípios da Mesorregião Grande
Fronteira Mercosul – Sudoeste do Paraná, Oeste de Santa Catarina e
Noroeste do Rio Grande do Sul. O seu processo de criação começou com
cinco campi: Chapecó (SC) – sede da instituição, Realeza e Laranjeiras do
Sul (PR), e Cerro Largo e Erechim (RS). Recentemente a cidade de Passo
Fundo também passou a receber um campus.
Com a Resolução No 32/2013 - CONSUNI, que institui o Programa
de Acesso à Educação Superior da UFFS para estudantes haitianos,
atendendo também à Resolução Normativa No 97, de 12 de janeiro de
2012, do Conselho Nacional de Imigração, que dispõe sobre a concessão
de visto permanente por razões humanitárias a nacionais do Haiti, e à
Lei no 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração,
a UFFS tornou-se um espaço que vem acolhendo haitianos que têm o
ensino médio completo em diversos cursos de graduação, tais como
Administração, Agronomia, Ciência da Computação, Ciências Sociais,
Engenharia Ambiental, Filosofia, Geografia, História, Letras: Português e
Espanhol, Matemática, Pedagogia etc.
As inscrições são feitas na Secretaria Acadêmica do campus, seja
pessoalmente, por procuração simples ou por e-mail com opção de

Artigo 3 – Objetivos
O presente Memorando de Entendimento tem como objetivos:
a) Criar mecanismos para o envio de pesquisadores brasileiros ao Haiti com vistas a apresentar
diagnósticos da situação das instituições de ensino superior do país;
b) Possibilitar a implementação de programa de graduação sanduíche para estudantes haitianos
em instituições de ensino superior brasileiras;
c) Apoiar os cursos de português para estrangeiros nas universidades brasileiras, por meio de
concessão de recursos de custeio;
d) Conceder bolsas de mestrado e de doutorado, nos moldes do Programa Estudante Convênio
– PEC-PG, para estudantes haitianos;
e) Contribuir para a reestruturação das instituições de ensino superior haitianas por meio
do envio de professores brasileiros em nível de pós-doutorado para ministrar aulas nas
universidades e realizar seminários e missões de diagnóstico.

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Inserção e participação de imigrantes haitianos... 289

confirmação de leitura. Para isso, é preciso que o(a) candidato(a) apresente


certos documentos, tais como: Requerimento de inscrição preenchido
e assinado, passaporte com visto vigente, cadastro de pessoa física
(CPF), cédula de identidade de estrangeiro, comprovante de residência e
comprovação de conclusão do ensino médio. Uma vez feita a inscrição, o
candidato terá que fazer uma prova de redação, em caráter eliminatório,
e uma prova com algumas perguntas de múltipla escolha, para avaliar
os conhecimentos do(a) candidato(a) em Língua Portuguesa, em caráter
eliminatório.
A efetividade deste programa leva em consideração vários pontos
cruciais, tais como: O esforço brasileiro para apoiar a reconstrução do
Haiti; a decisão do Conselho Nacional de Imigração de conceder visto
permanente por razões humanitárias a cidadãos Haitianos; a comunidade
haitiana existente na região de abrangência da UFFS, em especial do
campus de Chapecó; interesse da UFFS na proteção dos direitos humanos;
e a importância de promover o intercâmbio e integração cultural entre
estudantes haitianos e brasileiros no contexto da UFFS.
A Universidade oferece auxílios para a permanência dos ingressantes;
entretanto, segundo a observação participante da pesquisa, percebe-se
que muitos ingressantes não conseguiram permanecer dentro do espaço
acadêmico devido às suas responsabilidades para com os familiares do
Haiti. Além de estudar, outros tiveram que trabalhar para poder ajudar
com as despesas no país de origem.

NA UNILA

A Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)


começou a ser estruturada em 2007 pela Comissão de Implantação com
a proposta de criação do Instituto Mercosul de Estudos Avançados
(IMEA), em convênio com a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
a Itaipu Binacional. A Comissão de Implantação da UNILA foi instituída
pela SESu/MEC, por meio da Portaria nº 43 de 17 de janeiro de 2008,
presidida por Hélgio Trindade, professor titular de Ciência Política, ex-
reitor da UFRGS e membro da Câmara de Educação Superior do CNE.

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290 Wendy Ledix

No dia 12 de dezembro de 2007, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da


Silva apresentou, ao Congresso Nacional, o projeto de lei que viria, mais
tarde, a criar da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, a
UNILA. Como uma prova inconteste do interesse da sociedade em criar
uma Universidade inovadora e voltada à integração latino-americana, o
Projeto de Lei foi aprovado por unanimidade em todas as comissões por
que passou, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal.
E, finalmente, no dia 12 de janeiro de 2010, exatamente no mesmo dia
em que ocorreu o terremoto que aniquilou o Haiti, a  Lei 12.189  foi
sancionada pelo presidente Lula, em cerimônia realizada em Brasília. A
UNILA, instalada provisoriamente no Parque Tecnológico Itaipu (PTI),
em Foz do Iguaçu, iniciou suas atividades acadêmicas ainda em 2010, no
dia 16 de agosto. Na ocasião, a Universidade já tinha cerca de 200 alunos
oriundos do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, subdivididos em seis
cursos de graduação.
Um ano depois da UFFS, a Universidade Federal da Integração
Latino-Americana seguiu o passo através do edital No 004/2014/
PROINT-UNILA, de 17 de dezembro de 2014. Em termos de
requisitos para a candidatura, o sujeito tem que residir no Brasil sem ter
a nacionalidade brasileira nem curso superior, deve ser maior de dezoito
anos, e ter a nacionalidade haitiana, legalmente comprovada. No caso do
campus de Chapecó da UFFS, a inscrição tem que ser feita na Secretaria
Acadêmica; no caso da UNILA, ela deve ser efetuada online. Durante
a mesma, o candidato deve imprimir, preencher corretamente todos os
campos e assinar de próprio punho a ficha de Declaração, e uma cópia
deve ser anexada ao formulário eletrônico (anteriormente preenchido) em
formato PDF. Outros documentos, como registro nacional de estrangeiro,
histórico escolar, declaração de conclusão do ensino médio e certidão de
nascimento, também devem ser anexados.
Todos os estudantes matriculados no quadro do Programa estão
Assistência Estudantil integral (alimentação, moradia, transporte) ofertada
pela UNILA, de acordo com sua disponibilidade orçamentária ou em
razão de bolsas ofertadas por outras instituições nacionais ou estrangeiras,
sem prejuízo da possibilidade de concorrer às bolsas de iniciação científica,

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Inserção e participação de imigrantes haitianos... 291

monitoria e extensão, de acordo com as regras e editais a serem publicados


pela Universidade.
No dia da cerimônia que marcou a recepção dos Haitianos na
UNILA, a pró-reitora da época, Gisle Ricobom, e o embaixador do
Haiti, Madsen Chérubin, fizeram falas que contém as seguintes linhas,
respectivamente:

A diferença desse programa em relação a outros é que a


UNILA está concedendo a vaga e a assistência estudantil
por reconhecer que esses estudantes não teriam condições
de vir a Foz do Iguaçu sem apoio para que pudessem
permanecer e concluir o curso(...). A UNILA está dando
um passo importante e a gente espera que isso seja replicado
em outras universidades.(...) Não podemos achar que eles
são apenas uma força de trabalho, mas oferecer condições
para que eles possam voltar ao Haiti e contribuir com seu
país nas áreas nas quais serão formados.

Vejo de maneira muito positiva a iniciativa da UNILA


e a busca de haitianos por melhores condições de vida.
O importante é o acesso à  educação. Acredito que se a
oportunidade estiver presente, a pessoa pode mudar a sua
situação.

Três haitianos que viviam em Cascavel iniciaram seus cursos na


UNILA, no primeiro semestre de 2015. Para eles, estudar na UNILA
significa uma oportunidade para melhorar de vida, seja no Brasil ou no
Haiti. “Esperava uma oportunidade assim faz tempo. A gente tem que
aproveitar para poder mudar nosso futuro e de nossas famílias”, afirma
Benile Esidor, estudante de Administração Pública e Políticas Públicas.
A mesma linha de pensamento tem Valando Lubérisse, que obteve
uma vaga no curso de Biotecnologia. “O que a gente espera é que a gente
se torne um profissional na carreira que escolheu. Se voltarmos para o
Haiti, queremos ser os profissionais que o país esperava, chegar lá e dar o
fruto do Brasil”, disse. Ele está em Foz do Iguaçu com a irmã, Clerdine

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


292 Wendy Ledix

Lubérisse, que está fazendo Arquitetura e Urbanismo. “Estou feliz de fazer


parte de uma universidade daqui”, completou ela. Todos estão dispostos
a se esforçar para conseguir seus objetivos. “Tenho certeza que 80% dos
haitianos que conseguiram as vagas na UNILA vão estudar muito e vão
tirar as melhores notas da faculdade”, garante Valando.
Com tendência anual, no primeiro ano (2015), a UNILA selecionou
83 haitianos em diversos cursos. No ano seguinte, só 10 conseguiram
entrar, enquanto havia um monte de inscritos. No ano de 2017, não houve
processo seletivo, devido à situação econômica e política da universidade.
Segundo a lista de matrículas ativas de Haitianos liberada pela
Pró-Reitoria de Relações Institucionais e Internacionais – PROINT,
dos 93 (83 em 2015 e 10 em 2016) só restavam 62. As causas dessa evasão
são profundas. Muitos abandonaram porque não conseguir conciliar
estudo e trabalho - se é que existe trabalho para imigrante negro na região.
Vale frisar também que muitos estudantes trancaram a matrícula para irem
para outras universidades a fim de fazer outros cursos que buscavam.

A PARTICIPAÇÃO DOS HAITIANOS NO ENSINO SUPERIOR

No Brasil, segundo a legislação, o tripé formado pelo ensino, pela


pesquisa e pela extensão constitui o eixo fundamental da Universidade e não
pode ser secionado. O artigo 207 da Constituição Brasileira de 1988 dispõe
que “as universidades [...] obedecerão ao princípio da indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão”. Equiparadas, essas funções básicas
merecem igualdade em tratamento por parte das instituições de ensino
superior, que, do contrário, violarão o preceito legal.
Como ressalta Silva (2000), as relações entre ensino, pesquisa e
extensão decorrem dos conflitos em torno da definição da identidade e do
papel da universidade ao longo da história. Assim, nas duas universidades
estudadas percebe-se que além do ensino, a extensão e a pesquisa figuram
no tecido acadêmico.
Ao entrar na universidade, os haitianos buscam uma forma de
participar nesses três eixos fundamentais. Em relação à pesquisa e extensão,
muitos deles participam como voluntários e/ou bolsistas.
Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017
Inserção e participação de imigrantes haitianos... 293

No ano passado (2016), participei como voluntário no projeto


de extensão “Cine foto clube Ta’anga” cujo foco é de levar
Oficinas de Fotografia nas comunidades. Paralelamente,
desde Março de 2016, participo como membro de equipe
e bolsista do projeto “RASANBLEMAN” (Primeira e
segunda edição) Como tentativa de contribuir para o
desenvolvimento de políticas de acolhimento linguísticas,
culturais, sociais e acadêmicas para as comunidades
migrantes haitianas, abrindo espaço de interação entre
as culturas do Haiti e a sociedade brasileira... Também,
desde 2016, faço parte da equipe dos projetos de pesquisa
“LINGUAGENS, INTEGRAÇÃO E CULTURAS
MIGRANTES: UNIVERSIDADE PÚBLICA E
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS” e “LINGUAGENS E
CULTURAS MIGRANTES: UNIVERSIDADE PÚBLICA
E POLÍTICAS DE ACOLHIMENTO” (UNILA, 2014, p.
5).

Participo num projeto de extensão cujo nome é UNILA


FALA FRANCÊS. Este visa o ensino da língua francesa à
comunidade acadêmica. É uma experiência muito agradável.
Consigo compartilhar meu conhecimento (UNILA, 2014,
p.11).

Eu participo como voluntário num projeto de pesquisa


chamado “DESENVOLVIMENTO DE PORTA-
ENXERTOS DO GÊNERO Prumus spp. PARA
--PESSEGUEIROS, NECTARINEIRAS E AMEIXEIRAS:
REDE BRASILEIRA DE AVALIAÇÃO-UNIDADE DE
OBSERVAÇÃO COM PORTA ENXERTOS CLONAIS
NAS CONDIÇÕES EDAFOCLIMÁTICAS DE
CHAPECÓ”. Um outro pelo qual sou responsável (bolsista)
é “MELHORAMENTO GENÉTICO DE GOIABEIRA,
AVALIAÇÃO DE GENÓTIPO X AMBIENTE,
RESISTÊNCIA A DOENÇAS E FENOLOGIA DA
FLORAÇÃO E FRUTIFICAÇÃO”. Inclusive em outros
que estou ajudando meus colegas de pesquisa que não
menciono aqui (UFFS, 2013, p. 3).

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


294 Wendy Ledix

Além de participar em atividades de extensão e pesquisa da


Universidade, alguns deles conseguem fazer estágio.

Minha experiência no meio universitário está sendo bem.


Pois, além de ter um índice de desempenho acadêmico
razoável, consegui conciliar meus estudos com atividades
extracurriculares, tanto para realizar estágios remunerados
no campo do curso que estou realizando, como para integrar
projetos de extensão e de iniciação científica da comunidade
acadêmica da UNILA. No momento participo do projeto
de extensão: curso de ensino de língua: “ KreyòlAyisyen:
kreyòlpale, kreyòlkonprann!”. Também, realizo estágio
numa autarquia municipal chamada Foz Previdência
(UNILA, 2014, p. 8).

Os que não estão participando em nenhum projeto de extensão ou


pesquisa, devido à carga horária do curso ou pelo simples fato de serem
calouros, pretendem fazer isso antes de terminar a graduação. Com ajuda
de professores, alguns já estão escrevendo projetos.

Estou desenvolvendo um projeto da educação ambiental...


um projeto que tem como objetivo de estudar no bresil o
q fazia pra melhorar as situacoes ambientais e compatilha
esses conhecimentos com meu povo pra poder melhorar
também a nossa situação ambiental (UFFS, 2013,
p. 4).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca das melhores condições de vida levou numerosos cidadãos


haitianos a tentar suas chances fora da sua terra natal, seja em situações de
migração irregular ou por emigração regular para outros países da região ou
fora. A tomada em consideração dessas populações expatriadas, seja na sua
integração em estratégias de desenvolvimento e reconstrução do país, seja
pela sua reintegração em casos de retorno voluntário, é um dos principais
impulsos de uma política de gestão de migração e desenvolvimento.

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Inserção e participação de imigrantes haitianos... 295

Na ausência de uma política migratória clara, as leis internas em


vigor sobre a migração arriscam produzir efeitos perversos, privilegiando
a clandestinidade e a informalidade. A ausência de um quadro de direito
internacional adequado representa também um desafio para o Haiti, apesar
dos recentes esforços para estudar as implicações da adesão aos principais
tratados sobre os direitos humanos dos migrantes.
Tanto a UFFS quanto a UNILA mencionaram nas suas resoluções
que a inserção dos haitianos no ensino superior no Brasil é uma das formas
cruciais para contribuir na reconstrução e no desenvolvimento do Haiti.
No entanto, os Haitianos inseridos foram selecionados no Brasil e não no
Haiti e sem a assinação de nenhum termo de compromisso garantindo a
volta deles. Isto é, eles não vão ter a obrigação de voltar ao Haiti a fim de
cumprir a missão. Depois deles se formarem, eles poderão optar por ficar
no Brasil ou também ir para outros cantos do mundo.
Entretanto, segundo a pesquisa participante que foi feita, percebe-
se que todos os participantes têm essa enorme vontade de ajudar o
país de origem. Mesmo os que não voltarem à terra natal para morar
definitivamente, vão, de certo modo, contribuir de longe.

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Inserção e participação de imigrantes haitianos... 297

PETRAS, Elizabeth. Jamaican labor migration: white capital and black labor,
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RICHARDSON, Bonham. Panama Money in Barbados, 1900-1920.
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SEGUY, Franck. A catástrofe de janeiro de 2010, a “Internacional Comunitária”
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AMERICANA. Relatório do encontro do embaixador com um grupo
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em: https://www.unila.edu.br/noticias/haiti-0
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WARGNY, Christophe. Haïti n’existe pas 1804-2004: deux cents ans de
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Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 271-298, fev./dez. 2017


ENSAIO FOTOGRÁFICO:
A CHEGADA

LETÍCIA HELENA MAMED


Ensaio fotográfico: A chegada 301

Foto 01: Acampamento superlotado de imigrantes caribenhos e africanos na fronteira

25 de março de 2014 - Na cidade de Brasileia (AC), na região da tríplice


fronteira Brasil-Bolívia-Peru, a sexta unidade do acampamento de
imigrantes improvisado pelo poder público apresentava capacidade máxima
para 300 pessoas, mas chegou a abrigar mais de 1,2 mil, o que saturou as
condições de salubridade do local e determinou a sua transferência para
Rio Branco, a capital do estado.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


302  Letícia Helena Mamed

Foto 02: Cadastro de imigrantes caribenhos e africanos no Acre

30 de abril de 2014 - No acampamento oficial em Rio Branco (AC),


estrutura improvisada e mantida em parceria pelos governos estadual
e federal, funcionário público cadastra os imigrantes recebidos para
administrar o fluxo estabelecido pela fronteira amazônica do Acre.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


Ensaio fotográfico: A chegada 303

Foto 03: Imigrantes haitianas aguardam vaga em ônibus para sair do Acre

23 de abril de 2015 - No acampamento Chácara Aliança, na capital acreana,


o governo estadual organiza listas de imigrantes para embarque em
transporte rodoviário com destino ao Centro-Sul do país, viagem custeada
com verba pública que os encaminhava a regiões com oferta de trabalho.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


304  Letícia Helena Mamed

Foto 04: No Natal de 2014, mãe e filha haitianas chegam ao Brasil pelo Acre

24.12.2014 - No abrigo de imigrantes Chácara Aliança, em Rio Branco


(AC), na véspera de Natal, havia 850 haitianos, dominicanos e africanos.
A chegada dos imigrantes é intensa e a situação do acolhimento se
deteriora. Por sua vez, o governo do Acre alega não dispor de recursos
para administrar a unidade e transportá-los a outras regiões do país.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


Ensaio fotográfico: A chegada 305

Foto 05: Haitiano abrigado em arquibancada de ginásio de esportes

Fevereiro de 2011 - O ginásio poliesportivo localizado no centro da cidade


de Epitaciolândia (AC), na região da tríplice fronteira Brasil-Bolívia-Peru,
serviu de primeiro acampamento aos imigrantes caribenhos e africanos
que chegaram ao Acre a partir de dezembro de 2010.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


306  Letícia Helena Mamed

Foto 06: Irmãos haitianos passam primeiro Natal no Brasil

25.12.2014 - Irmãos haitianos acompanham celebração ecumênica entre


imigrantes católicos, evangélicos e mulçumanos no acampamento Chácara
Aliança, em Rio Branco (AC), no Natal de 2014.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


Ensaio fotográfico: A chegada 307

Foto 07: Gallis Cesar, jovem haitiana no acampamento Chácara Aliança

Julho de 2014 - Grávida de oito meses, haitiana de 18 anos viajou por mais
de quatro semanas do Haiti até o Acre e foi recebida no acampamento
Chácara Aliança, em Rio Branco (AC). Seu destino final era Chapecó (SC),
onde sua mãe trabalhava e a aguardava.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


308  Letícia Helena Mamed

Foto 08-09: Devolução de passaportes a imigrantes em acampamento

Novembro de 2014 - Após registro de entrada no Brasil pela Polícia Federal,


no acampamento Chácara Aliança, em Rio Branco (AC), imigrantes
recebem passaportes das mãos de funcionários do governo do Acre.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


Ensaio fotográfico: A chegada 309

Foto 08-09: Devolução de passaportes a imigrantes em acampamento

Novembro de 2014 - Após registro de entrada no Brasil pela Polícia Federal,


no acampamento Chácara Aliança, em Rio Branco (AC), imigrantes
recebem passaportes das mãos de funcionários do governo do Acre.

Temáticas, Campinas, 25, (49/50): 299-310, fev/dez. 2017


temáticas
Revista dos Pós-Graduandos
em Ciências Sociais

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