A Curiosidade Infantil

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A CURIOSIDADE INFANTIL

Hilario Cid Vivas1

Alexandre Stevens, em nome da Organização deste Encontro2, pediu que eu apresentasse uma
vinheta clínica sobre a sexuação a partir da minha própria análise.
Tomarei um episódio da infância. Era o verão em que eu completaria seis anos. Eu gostava das
mulheres. Não das meninas, mas das mulheres. Eu mostrava um enorme interesse pelo corpo delas.
Aproveitava todas as ocasiões possíveis para saber sobre elas, apoiando-me na pulsão escópica. Embora
os meados dos anos 1950 na Espanha fossem tempos difíceis, o fato de ser criança me permitiu, dentre
outras coisas, ir à praia de mulheres com a minha mãe. Haviam algumas cabines onde elas trocavam seus
vestidos pelos maiôs. Longas filas de cabines deixadas no meio dos corredores que se cruzavam, sendo
no final de uma delas o balcão em que era preciso pegar a chave da cabine que estivesse vazia.
Para evitar a burocracia que consistia em chegar ao balcão afastado, pedir uma chave e, depois,
voltar para a cabine desocupada, criei um mecanismo mais simples para ver que casa havia alguém ou
não. Como todas as crianças que iam à praia levavam um baldinho e uma pá, eu colocava o balde no
chão em frente à uma porta de cabine, subia nele e olhava pelo buraco da fechadura.
Já praticava minha invenção há muito tempo, quando uma senhora cutucou minha mãe: “ – Essa
criança não pode mais estar aqui!”.
Foi assim que, com menos de seis anos de idade, fui enviado, para sempre, para a parte dos seres
falantes chamada de homens. Não nego, nem tenho ressentimentos contra aquela mulher que me pegou,
pois eu não era mais que um porta-voz da estrutura. Além disso, não foi ela quem cortou a minha
curiosidade infantil, mas um encontro inesperado que ocorreu logo depois e que vocês, graças à gentileza
de Jacques-Alain Miller, podem encontrar com detalhes no livro Quem são os seus psicanalistas3.
Como sabemos, inclusive com a lógica do depois de Lacan, os seres falantes estão localizados do
lado homem ou do lado mulher, e isso independentemente do sexo biológico. Mas, e a curiosidade?
O coração da anedota que lhes contei não é tanto a decantação por um sexo, mas a curiosidade
pelo Outro sexo. Há, no episódio que relatei, uma relação com o Outro sexo mediado pela curiosidade e,
mais concretamente, por meio de uma pulsão parcial.
Se trata, pois, de uma criança que investiga, que busca apaixonadamente, apoiada na pulsão. O
que procura? Ela, a criança, não sabe, porque, como Freud e Lacan dizem, o que a guia é a ignorância.

1
In memoriam (1949-2011). Hilario Cid Vivas era membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), membro da École
de la Cause Freudienne de París (ECF), componente do primeiro conselho de administração da Escuela Europea de
Psicoanálisis (1990-1994), e membro da Comisión de Garantía de la Escuela Europea de Psicoanálisis para España.
2
XIIº Encuentro Internacional del Campo Freudiano, “La clínica de la sexuación: imposible y determinación”, 20 e 21 de
julho de 2002, Paris.

3
Miller, J.A. e 84 amigos. Qui sont vos psychanaystes ?. Paris: Éditions du Seuil, 2002. p.27-29.
Mas encontra. E o que ela encontra é exatamente o que ela não quer saber. Isso é o que Freud chama de
A Cabeça da Medusa. Limite do encontro com o Outro sexo. Necessidade estrutural, ao mesmo tempo
em que é lugar de horror. Ponto de detenção e, talvez, para sempre, dessa busca. Verdadeiro dano
epistêmico.
O encontro com o que sem saber buscava é precisamente a razão, na clínica, do que chamamos
neurose, que entre outras coisas, consiste em dizer “não” àquele real encontrado na busca insensata.
Vemos, neste caso, como a neurose é efeito mesmo da sexuação, ou, na linguagem freudiana, que a
sexualidade é a etiologia da neurose, enquanto a sexualidade é formada por pulsões parciais.
Em os seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud (1905) diz que a pesquisa infantil
continua no fantasma inconsciente após a puberdade, e Lacan ressalta que essa é a janela por meio da
qual enxergamos a realidade. Temos, então, que todo o problema da sexuação e do saber se dirige para
o fantasma. E o fantasma empurra a curiosidade infantil pelo caminho possível, que não é outro senão o
da ignorância.
Pode acontecer que a homeostase ocorra quando o fantasma silencie o problema com uma solução
que é: colocar no lugar do abismo insondável o brilho do semblante, para o qual se dirige a paixão.
Nem sempre isso é possível. Às vezes, por exemplo, no meu caso, o sintoma como impossível de
suportar irrompe descaradamente, reivindicando a sua parte no banquete. O que fazer?
A coisa mais sensata, nesses casos, é fazer psicanálise.
Porque, além dos benefícios terapêuticos, é possível recuperar, ao menos parcialmente, a
curiosidade infantil se se atravessa o horror que a impede. Em outras palavras, há possibilidade de fazer
uso, agora não sexualizado, do que antes era curiosidade infantil. Paixão pela ignorância, mas no sentido
em que Jacques-Alain Miller desenvolve em seu curso Os signos do gozo4.
Podemos, ainda, nos perguntar se esse “não pode estar aqui”, ou seja, se a sexuação masculina, é
compatível com a posição do analista. Em outras palavras, “você pode ser homem e psicanalista, ao
mesmo tempo?”.
Não é tão seguro, pois o ser falante localizado do lado homem, com a lógica que o define, não
pode acessar senão aquilo que está medido com a vara do falo. Mas sintoma, mesmo, é desmedido. E é
por isso que vão aos nossos consultórios pacientes, homens e mulheres. Sim, o sintoma pode passar o
falo, que é o significante que escreve, no inconsciente, a relação sexual que não existe. O real, núcleo do
sintoma, é, ao mesmo, tempo, o que produz o buraco que efetua o que é claramente evidenciado no ser
falante: que não há complementariedade de um sexo ao Outro, que não há relação sexual.
Diante disso, podemos render nossas armas, mas, talvez, possamos fazer desse fundamento do
abismo a nossa causa.

4
Miller, J.A. Los signos del goce. Especialmente el capítulo XIII. Editorial Piados. Argentina 1998.
Foi exatamente isso o que encontrei no final desse procedimento chamado Passe. E também
encontrei um “sim, você pode estar aqui” entre os analistas, isto é, mais além de uma posição fálica. Você
pode estar aqui... mesmo que goste de mulheres!

RETIRADO DE:

http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=el_pase&SubSec=testimonios&File=testimonios/cidvi
vas_curiosidad.html

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