Amadora - Ana Ferreira
Amadora - Ana Ferreira
Amadora - Ana Ferreira
Ana Ferreira
AMADORA
romance
***
ANA FERREIRA
nasceu em Ribeirão
Preto e vive atualmente
em São Paulo. É
dramaturga e faz
roteiros para televisão.
Amadora é seu
primeiro livro.
***
Gênesis 6:1 - 4
ÍNDICE
ELE
DON JUAN
A PASTA AMARELA
O DESPERTAR
ESTRÉIA!
UM ACIDENTE DE PERCURSO
PIETA
O ILUSIONISTA
ELA
FLECHADOS
SEM NOME
MEU HOMEM DE DEUS
FLAGRA
O HOMEM CAVALO
LUIZ
TEDDY BEAR
GRANDE CAUSA
O VIZINHO
FURTA-COR
O PRINCIPE DA NOITE
AMOR ENCANTADO
A PASTA VERMELHA
MEUS IRMÃOS
FINAL PRATICAMENTE FELIZ
ELE
— Nicole Kidman ou Demi Moore?
— O quê?
— Qual das duas você escolheria?
— Pra?
— Pra uma noite de amor... ou manhã, tarde...
— As duas me querem...?
— Estão loucas por você.
— E eu tenho que escolher uma...
— Quem você prefere?
— Nicole Kidman ou Demi Moore?
— Qual delas?
— Nicole Kidman.
— Certo. Juliette Binoche ou Winona Ryder?
— Hum... Juliette Binoche.
— Mira Sorvino ou Julia Roberts?
— Mira Sorvino.
— Madonna ou Sharon Stone?
— Madonna.
— Kate Moss ou Gisele Bündchen?
— Kate Moss.
— Sou muito mais a Gisele Bündchen.
— Prefiro a Kate Moss.
— A Laura parece um pouco com ela...
— Você acha?!
— Ela acha...
— Nada a ver. Tom Cruise ou Keanu Reeves?
— Você responde!
— Não, agora é sua vez... Tom Cruise ou Keanu Reeves?
— Eu comecei...
— Vai, Tom Cruise ou Keanu Reeves?
— Keanu Reeves.
— Brad Pitt ou Johnny Depp?
— Johnny Depp.
— Bruce Willis ou Antonio Banderas?
— Bruce Willis!
— Lenny Kravitz ou Maxwell?
— Os dois.
— Um só.
— Kravitz.
— Raí ou Euller?
— Não sei quem é Euller...
— O Filho do Vento!
— Que filho de quem?
— O Euller do Palmeiras, o Filho do Vento, ele corre
muito...
— Fecho no Raí.
— Mike Tyson ou Hollyfield?
— Mike Tyson.
— Woody Allen ou Steven Spielberg?
— Woody Allen.
— Bob Dylan ou Bob Marley?
— Eu não lembro a cara... Bob Dylan, acho...
— Bill Clinton ou Bill Gates?
— Clinton.
— Principe Charles ou Fidel Castro?
— Nenhum.
— Tem que escolher um, se não escolher vai ser
estuprada pelos dois.
— Fidel, então...
— Maluf ou Suplicy?
— Suplicy, mil vezes.
— Toni Ramos ou Vera Fischer?
— Vera Fischer.
— Angela!!
— Você perguntou, eu respondi...
— Ulisses ou o Flávio?
— Amigo não vale.
— Vale sim. Ulisses ou Flávio?
— Dá então pra escolher uns melhores?
— Uns melhores?! Alexandre...?
— Nunca! Chega de vinho.
— E o André?
— Cansei dessa brincadeira...
— Idéia sua. Alexandre ou André?
— Você.
Ele Finge que não ouviu. Desenha uma estrela no canto
do bloquinho da Varig...
— Fora a Laura, quem mais você amou?
— Por quê...?
— Curiosidade!
— Só amei você.
— Mentiroso. Fala do seu primeiro amor...
— Já falei.
— Então o segundo...
— Não lembro.
— Uma que você só comeu...
— De jeito nenhum.
— Adoro histórias de sedução.
— Então lê um romance, assiste a um filme...
— Eu te falo cada cara que eu tive...
Ele olha pra porta, cruza os braços.
— Já sei o suficiente, não quero saber mais nada. Isso não
me excita.
— Não parece, pelo volume na sua calça...
— E o meu pau.
— Tive um namorado que só me dava presentes que
alimentavam a minha fantasia...
— Olha só que interessante!
— E eu morria de tesão imaginando outras mulheres com
ele...
— Me poupe, eu não quero saber.
— Adoro você!
— Adoro você...
— O último antes de você foi o maior de todos os meus
grandes enganos, foi muito engraçado... nomes ou
codinomes!?
— Fica a seu critério.
— Eu não tenho critério.
— Isso me irrita.
Anda em direção à porta. Recua. Segura o meu rosto e me
beija infinito com a certeza de que dali para a cama é só
alguns passos... Avanço.
— Eu adoraria saber cada segundo da sua existência.
— Prefiro as possibilidades desse momento, tanta coisa
pra descobrir...
Ele me arrebata num amasso sem saída e se esfrega em
mim de um jeito que não tem mais como parar.
— Codinomes, é melhor.
— Nomes, eu prefiro, me sinto menos otário. Quem foi o
último babaca que te comeu...? Manda...
— Você conhece.
— Fala logo.
— André.
— Caralho! Você deu pro André!?
— Foi antes de você. Foi muito engraçado...
— Engraçado!?
— É, e foi antes...
— Tudo bem, desculpa.
Ele levanta e se olha no espelho.
— Quanto antes?
— Umas duas semanas...
— Caralho!!
Mete as mãos nos bolsos da calça.
— Tudo bem... Quem mais?!
— Ninguém, esquece.
— Não, fala! E manda logo de cara a mais hard que é pra
eu já ficar bem conformado.
— Amores passam... bobagem.
— Amores?! Foi um amor o André?
— Amores, paixões, acidentes de percurso...
— Chega.
Ele senta na cama e tira a minha blusa, lambe os meus
mamilos...
— Tem uns caras que eu lembro tudo, outros mais ou
menos, acho que confundo alguns...
— Não quero saber.
— Tem gente que eu lembro o cheiro, o gosto...
— Pára.
Ele tira a minha calcinha.
DON JUAN
Só sei falar de amor.
Acordei com uma música que eu não conhecia. Na
verdade não sei se acordei com a música ou se era a trilha do
meu sonho. Não lembro o sonho, mas acordei amando... era
uma música de amor e ele surge no branco do teto do meu
quarto. E ele tocando pra mim. Don Juan em busca da
mulher ideal, e ela era eu.
Existe uma grande diferença entre sedutores e galinhas,
tenho uma teoria e pretendo fazer uma tese a respeito. O
galinha quer comer todas, o sedutor quer encontrar a amada.
O galinha busca quantidade; o sedutor, qualidade. O sedutor
é romântico, o galinha é sacaninha. O sedutor é verdadeiro,
profundo... Don Juan é um sedutor. Vou chamá-lo de Don
Juan. Ele sempre trazia uma rosa roubada do vaso da casa da
mãe, da empresa... nunca perguntei de onde vinham as rosas,
mas sei que eram roubadas. Antes do sexo sempre um
passeio marcante, ele queria ser marcante e era, é, será,
seria... No nosso primeiro encontro íntimo, eu usava uma
calcinha azul, nada intencional, se soubesse que ia dar pra
ele naquele dia teria optado por uma preta, branca... Era uma
calcinha azul básica de algodão meio velha que eu roubei da
Verônica e ele adorou.
— Você é linda só com essa calcinha azul...
— Tenho outras cores...
— Prefiro sem.
— Vem...
Tirei a azul e ele me degustou. Me torturava de prazer até
eu implorar uma penetração.
— Eu quero...
— Calma...
— Por favor!
— Espera um pouco...
— Eu quero agora!
Eu ficava num estado de agonia e euforia que se ele não
fizesse logo, acho que eu entrava em surto. Aí ele me
penetrava calmamente, até o fim, preenchia tudo, inteiro. E
se desenrolava a nossa sinfonia erótica... Andante tranqüilo,
allegro moderato, galope infernal...
Sempre acho que falei demais.
Não lembro exatamente quando nos vimos pela primeira
vez, ele me diria que foi numa Sexta-feira da Paixão, no
restaurante perto da rádio. Eu trabalhava numa rádio, era
diretora de um programa de variedades e bolava quase tudo;
tinha dicas de beleza, moda, horóscopo, e tinha um espaço
onde eram lidas histórias de amor que os ouvintes
mandavam. A gente dava um trato na narrativa, floreava um
pouco a trama e uma moça estranhérrima; mas de voz muito
sensual, lia as histórias meladas com uma interpretação
gélida e envolvente. Era o máximo esse programa,”Sol a
Pino” era o nome, de segunda a sexta, de meio— dia às duas
da tarde. Salário razoável.
Eu preferia almoçar depois do programa, sem
preocupações sem solicitações... Muito aconchegante o
restaurante perto da rádio, uma mistura de francês com
italiano e tinha ótimas saladas. Quando eu chegava, ele
estava saindo, pelo menos umas duas vezes por semana a
gente se topava, eu na entrada, ele na sobremesa. Sozinho ou
com uma morena de cabelo curto ou com uma loura chanel
ou com um cara de cavanhaque. Eu também variava a
companhia, Lurdinha, André, Eugênia, Vicente... sempre
tinha um faminto ou um louco por conversa fiada nos
corredores da rádio, mas não naquele dia. Ele também só, no
lugar do prato, um grande livro aberto.
Sento na minha mesa próxima à janela, ele levanta os
olhos e pede a conta pro mesmo garçom que anotou o meu
pedido, depois volta para o livro, lindo... eu achava,
Lurdinha achava um horror e falava que ele tinha jeito de ser
um puta galinha... Eu sabia que era um sedutor. Don Juan.
Ele olhava para as mulheres, gostava das mulheres, mas
comigo era diferente, eu era especial.
Calor tropical. O restaurante não tinha ar condicionado.
Os ventiladores levantavam a toalha de duas mesas, a dele
era uma das premiadas e pude ver que ele usava uma
bermuda. Que joelhos! Enlouqueci com os joelhos daquele
homem... nunca imaginei que um par de joelhos pudesse
alterar a minha pressão sangüínea daquele jeito. Mudei o
foco: o livro. Tentei ver o título e nesse momento ele o
fechou sem marcar a página. Fiquei sem graça, mas pude
ler”A Divina Comédia”. Eu tinha esse livro em casa, e pela
capa poderia ser a mesma edição. Chega o meu prato e a
conta dele. Preenche o cheque e não se levanta. Começo a
comer, ele não levanta. Quero olhar pra ele, mas me limito
ao quadro na parede, uma cópia; que falha seria esquecer de
mencionar o quase-beijo de Paolo e Francesca, ela com um
livro aberto e os olhos baixos, a meio segundo de ser beijada
por seu amado e proibido cunhado Paolo... Todos os dias,
quando eu via esse quadro, pelo menos por uma fração de
segundo, eu lembrava dos dois irmãos que amei. Nicolau e
Nicodemos. Mais o Nicodemos. Ele não se levanta.
Na”Divina Comédia”, Dante encontra— se com
Francesca no inferno, claro. É isso! Ele quer um gancho pra
se aproximar, vai comentar o quadro, o livro... Aplico uma
visão lateral, parece que ele me olha, fico esperta com o
passeio dos meus olhos pelas paredes, pessoas, mesas,
cadeiras, porta, pratos, joelhos, ele. Desvio. Meu Deus! Ele
contemplava o meu almoço como se fosse um quadro.
Francesca da Rimini — by Wílliam Dyce — à minha direita.
Cada mastigada era um suplício com aquele homem me
observando... Virei a Coca-Cola e veio a idéia que me
deixaria com uma fantástica ação paralela: o roteiro do
programa. Pego o calhamaço, finjo que leio, faço umas
anotações totalmente sem sentido e ele não se levanta. Me
encorajo e encaro. Ele me olhava com meio— sorriso... Ele
levanta. Eu suspiro.
— Posso sentar?
— Pode, se antes disser por que ficou me olhando assim...
— Vontade de te conhecer, desculpe.
— Pensei que estivesse me confundindo com alguém.
— De jeito nenhum, você é inconfundível.
Inconfundível era aquele par de joelhos. Eu deixo uma
lacuna, ele segue seguro...
— Te vejo sempre aqui. Já sei que você trabalha na rádio,
almoço ouvindo o seu programa, todos aqui ouvem.
— E, eu sei, ouvintes fiéis.
— É muito divertido. Inteligente, bem— humorado... vou
mandar uma história de amor.
— Pode entregar diretamente pra mim.
— Não, mando pelo correio, um dia...
Formal. Ele levanta e me estende a mão.
— Foi um grande prazer conhecer você.
— Prazer.
Dou uma última olhada nos joelhos, ele pega o livro e vai.
“A Divina Comédia”. Procurei, um por um, umas três ou
quatro vezes e não encontrei. Eu tinha a certeza de ter aquele
livro em casa. Quantas vezes o folheei, revirando os trechos
do inferno... o encontro de Dante com Francesca, condenada
pelo amor... Nicolau e Nicodemos. Sentia— me meio
Francesca quando namorei os irmãos. Um dia eu conto pra
Don Juan, tudo eu contaria pra ele... eu pensava enquanto
procurava o livro. Amei os dois. Nicolau foi o traído.
Nicodemos era o Paolo. Eu já tive um Romeu, um James
Bond, Che Guevara, Kung-fu, Don Juan...”A Divina
Comédia”. Na casa da minha mãe também não estava, nem
com meus irmãos. Pensei em ligar para alguns amigos que
teriam livros meus, mas é um sacrifício tão grande cobrar
livros emprestados... Quem pegou que tenha a iniciativa de
devolver. Sei que humanos estão sujeitos a falhas, os Nefilim
também, até os anjos erram... Notei vários volumes alheios
em minhas prateleiras... e um par de joelhos é só um par de
joelhos.
Don Juan passou a fazer parte da minha história com
muita sutileza. Moço cauteloso, certos seres não agem na
pressa. Banho— ma— ria. Foi impecável com os meus
colegas de trabalho, comentava o programa, dava uns
palpites redondos pra me impressionar e nunca mais
apareceu com a morena de cabelos curtos, nem com a loira
chanel. Lurdinha mudou de opinião à respeito dele que de
galinha passou a bem interessante... Eu estava encantada,
especialmente depois da canja que ele deu no piano do
restaurante. Uma música de amor... Meu imaginário foi a mil
e ele sumiu. Desapareceu. Um mês. Pergunto ao garçom. —
Ele sempre viaja... — Explicado o sumiço. — Ele esqueceu
um livro em cima do piano. — O garçom ainda informa. O
elo. Quem sabe se entre as páginas ele não teria deixado um
contato, uma pista... Claro! Pedi o livro ao garçom amigo.
Pois não... O meu livro! O meu livro da minha mãe!
Minhas pernas bambeiam. Sento. Logo na contracapa, a
estrela de cinco pontas que minha mãe desenhava em todos
os volumes como marca registrada. Virei as páginas. Na 119
tinha um marcador lilás e na página 357, um cartão de
empresa com o nome do pai dele, Miguel Fonseca —
presidente. Como ele teria o meu livro? Quem era aquele
cara? Segurei o braço do garçom, disse que era um livro
muito importante e que estaria mais seguro em casa. Ele
concordou imediatamente. Ouvinte fiel.
Passei o dia supondo... Ele provavelmente me seguiu e
invadiu o meu apartamento....nunca confiei no sistema de
segurança do prédio... pode ter entrado como entregador de
pizza, encanador, eletricista, qualquer coisa... Ficou
escondido me observando entre frestas, babaca. Me ouviu
falando sozinha, observou meu sono... sempre durmo nua...
Ou ele pode ter vindo a alguma festa em casa... impossível,
eu o teria notado... Emprestei esse livro e emprestaram a
ele... não... esqueci em algum lugar, alguém achou e vendeu
pra um sebo e ele comprou... Tanta coisa poderia ser...
Fiquei muito intrigada, isso me consumiu horas em
elucubrações. Acabei recuperando alguns volumes
emprestados há séculos, no entanto não localizei”A Divina
Comédia” com nenhum dos meus amigos. Só poderia ser o
meu livro. Da minha mãe, na verdade. Fiquei na espera. Don
Juan apareceria e desvendaria o mistério. Ele era familiar, se
parecia com alguém... tinha um ar de celebridade, de mito...
e eu precisava rever os joelhos.
A PASTA AMARELA
***
O DESPERTAR
Nunca lembro dos meus romances em ordem cronológica,
já fiz várias tentativas de regressão amorosa, mas sempre
desisto no meio. Aliás, acho que o começo mesmo seria uma
descrição das sensações intra— uterinas, mas sinceramente
nem uma Nefilim consegue lembrar tempos tão remotos. E
pensar que todo mundo surgiu de uma trepada... sempre
penso nisso quando olho as pessoas... todos existem porque o
pai e a mãe treparam, os cachorros também, cachorro, gato,
mosquito, tudo é conseqüência de um fuck.
Da infância, lembro vagamente de umas cenas com
primos e até com os meus irmãos, essas coisas de comparar o
sexo... Na verdade vêm só uns flashs e é bobagem tentar
contar, mesmo porque nada tem de relevante, coisa de
criança. Agora, consciente mesmo, sabendo o que estava
fazendo e querendo, eu lembro bem, foi logo que eu descobri
a pasta amarela da minha mãe. Foi um começo meio lésbico
o meu, mas não era só eu, acho que todas as meninas se
beijavam, normal. Eu beijava mesmo, beijei quatro da minha
rua. Comecei pela Fernanda. Os meninos eram muito débeis
com suas bolas e figurinhas e eu queria brincar... Fernanda
topou. E só imaginar algum ator do cinema ou da televisão,
eu sugeri. Ela imaginou. Eu preferia alguém mais próximo,
mais palpável... Secretamente escolhi o pai de Daniel. Fiquei
mais de cinco anos roçando a minha língua na inventada
língua dele, até que comprei um manual de hipnose e decidi
abordá-lo. Ele era dentista, o consultório logo na esquina de
baixo.
ESTRÉIA!
Namorei os melhores do colégio. Neto, Cláudio,
Nicolau... Tudo me inspirava: filmes, livros, quadros,
estátuas, primavera, verão, revistas, cogumelos, aspargos,
antúrios, chocolate, sorvete, iogurte, passarinho, borboleta,
trepadeira, samambaia, atletas, poetas, amigas, a pasta
amarela da minha mãe, caixa-eletrônico, horóscopo do
jornal... Meu coração batia frenético e eu suspirava por
beijos na boca.
Fui até a casa de Nicolau, meu namorado. Ele não estava,
só o irmão dele, dois anos mais velho e três vezes
impossível. Peço para entrar e esperar.
Ficamos vendo o jogo na televisão, final de algum
campeonato... Nicodemos o nome dele, do irmão, irmão do
meu namorado. Ele não tirava os olhos da TV e eu não tirava
os olhos dele. Irmão. Passo o primeiro tempo todo
observando detalhadamente os seus traços; lembra Nicolau,
não são exatamente parecidos, mas tem uns repentes iguais.
Boca, olhos, a voz... Pensei também no pai deles, não com
tesão, um tesão respeitoso talvez... Eu queria era me ajoelhar
e agradecer a Deus por aquele homem existir e produzir
filhos tão interessantes. Não tenho culpa por eles terem
nascido irmãos.
Tirei a blusa. Ele enfim me olhou e abriu a boca.
— Não sei o que deu em mim...
— Tudo bem, tá calor.
— Não foi o calor, foi um impulso. Desculpa.
— Você não precisa pedir desculpa, não tem motivo, e
sempre que tiver eu vou te perdoar. Gostei de ver...
— Eu nem devia estar aqui.
— Mas tá aqui e eu também e tem alguma coisa
acontecendo...
— Escanteio!
— Eu sempre quis pôr a mão em você...
— Olha o seu calção!
— Sabe o que é isso? O que você acha que é?
— Acho que a minha cabeça me manda embora, mas o
meu corpo quer ficar...
Me aproximei, ele apalpou os meus peitos. Eu o beijei
com fúria e sem a culpa de Francesca quando foi beijada por
seu cunhado Paolo.
— Você é do meu irmão...
— Sou de ninguém...
— Você é louca!
— Eu estou louca... Faz alguma coisa...
— Acho que eu não devia, mas eu quero.
— Eu também quero...
— Fala baixo.
— Por quê?
— Minha avó tá dormindo.
— E se ela acordar?
— E se eles chegarem? Nicolau, meu pai...
— O jogo ainda não acabou.
— Dois a zero!
— Eu quero...
— Você já fez...?
— Muitas vezes.
Era mentira. Era a primeira vez e minha saia e o sofá
ficaram com manchas de sangue. Ele percebeu, mas
continuou, cada vez mais fundo.
— Você mentiu... é a primeira vez... eu sei.
— É... eu menti.
— Como eu queria você!
— I love you!
— O que você falou?!
— Gol!
Ele se empolgou, quis ser impecável, inesquecível, o
primeiro... Muitas mulheres lamentam a primeira vez, eu
sinceramente não tenho a menor reclamação. Foi muito bom
apesar de um pouco rápido, não sei bem se gozei, mas o que
senti foi sublime, minha alma urrava de felicidade e eu tinha
vontade de colocar o Nicodemos inteiro dentro de mim.
Sugeri um sexo mais violento...
— Ai...
— Te machuquei?
— Muito... vai mais...
— Assim eu não agüento.
— E pênalti!
— Eu vou gozar...
— É gol!
São Paulo campeão. A vó acordou com os gritos e os
fogos. Éramos dois seminus estirados no tapete azul. A velha
gritava...
— Que pouca vergonha é isso?! Seu pai vai saber! E essa
menina...? É a namorada do seu irmão, seu desavergonhado
trapaceiro! E você, moça safada, vai agora embora dessa
casa!
— Não é nada disso...
— Cala a boca e sai correndo dessa casa!
Foi o que fiz. Saí correndo. Corri, corri... chorando de
alegria! Pensei na mancha de sangue no sofá... É campeão!
Eu não era mais virgem!!! Era como se eu corresse numa
outra atmosfera, outra dimensão. É campeão!!! O ar era
diferente, as cores, os sons, as pessoas, meu corpo...
Felicidade!
Nicolau não soube do ocorrido. Fugi. Ele insistiu, me
procurou muitas vezes... Acabei transando com ele, foi uma
bobagem, eu só pensava em Nicodemos... Tive que dizer que
estava apaixonada por outro cara e não dava mais. Depois de
um tempo ele acabou desistindo. Eu queria o irmão.
Suspiro.
UM ACIDENTE DE PERCURSO
Amor, paixão, acidente de percurso, tudo se confunde e se
funde. Um amor pode ser um acidente de percurso, uma
paixão pode ser um amor... enfim, não sei direito o que é o
quê, mas o Matias eu tenho certeza de que foi um gravíssimo
acidente de percurso e é incrível como lembro detalhes.
Sete e cinco. Meu colégio era bem perto de casa, eu ia
andando calmamente, quase sempre atrasada. Meu
referencial era um boy com o boné do Corinthians, mais
preciso que meu relógio.
Um coroa bonitão tipo Sean Connery passa num carro
preto olhando pra mim e quase atropela uma mulher com um
menino no colo. Alguns minutos, ele de novo. Eu olho e o
boy corintiano também. Fico constrangida, busco refugio no
relógio preso ao meu pulso de Cinderela, apresso os passos e
passo de cabeça baixa pelo boy. Antes de atravessar a rua,
olho para trás e focalizo, entre o homem de terno e a gorda
de lenço, o carro preto dobrando a esquina... e se aproxima...
O boy já está longe e só dá pra ver o boné com o brasão
alvinegro. Ando olhando pra frente como um soldado, mas
minha visão periférica acompanha o carro preto passando
praticamente na velocidade das minhas pernas trêmulas.
Penso em dar meia— volta e sair correndo na direção oposta,
mas ele enfim me ultrapassa e vai diminuindo, diminuindo,
até virar um ponto e desaparecer.
No dia seguinte ocorre tudo igual. Quase igual... O boy
corintiano usava um boné azul desbotado e o Sean Connery
do carro preto passou três vezes.
E foi assim no dia seguinte, e no outro... Na sexta-feira o
carro parou. Por sorte, eu me atrasei mais que o usual e não
cruzei com o boy.
O vidro do carro desce, e o bacana de óculos escuros me
acena.
— Vai pra onde?
— Eu? Pro colégio...
A voz dele era mais grossa que a voz do tio Marcos.
— Eu levo você, quero te conhecer...
— Eu não sei...
— Confia em mim.
— Eu não sei...
Ele abre a porta. Tiro a mochila das costas e entro no
carro meio sem jeito e com um frio vagando pela espinha...
Ele dá a partida e eu cruzo as pernas e cruzo os braços sobre
a mochila no colo e penso em nada.
— Você é muito bonita.
Só então olhei pra ele. Era impossível ver os olhos
escondidos atrás dos óculos tão escuros.
— Seu nome?
— Angela.
Eu queria que fosse Helena, ou Elizabeth com th no final,
ou Lucilla com dois eles. Eu devia ter mentido.
— Angela... Toma um café da manhã comigo?
— Café da manhã?!
— É...
— Eu já tomei, obrigada. Entra na próxima à esquerda...
Eu tenho prova.
— Prova de quê?
— Geografia. Agora à direita...
Ele ficou em silêncio e seguiu à risca a minha enxuta
indicação. Tocou um botão, acenderam— se umas luzinhas
azuis e o carro foi embalado por uma música envolvente...
Eu poderia conhecer tantas músicas, ver tanta coisa
diferente, e me casar com ele, e morar numa linda casa
branca... Poderia até virar capa de revista, estrela de
cinema... Sean Connery se casa com uma bela jovem
brasileira...
O carro pára. Sinal vermelho.
— Estudou? Se sente preparada para a prova?
Acho que ele percebeu que era mentira a prova, senti que
podia ler os meus pensamentos.
— Estudei pouco, muito pouco.
— Não sabe nada?
— Não. E já tomei café da manhã em casa.
O sinal abre. Ele avança.
— Amanhã eu te arrumo um bom atestado médico, você
mostra no colégio e fala que teve uma virose de inverno, ou
uma intoxicação. Então!?
Fiquei quieta, aquele homem me intimidava, me deixava
sem ação. Já estávamos bem longe do colégio, o bacana
entendeu que eu estava no papo e embicou o carro na entrada
de um hotel.
— Um hotel!?
— Sempre me hospedo aqui... Tem uma ótima cozinha,
você vai gostar... Angela. Você é realmente muito bonita.
Um manobrista de chapeuzinho cinza abre a porta e eu
entendo que é para sair do carro. O coroa também sai.
Finalmente tira os óculos escuros. Nada se parece com Sean
Connery e é bem mais velho do que eu supunha, embora não
apresentasse um único fio de cabelo branco.
Deve ser mais velho que tio Marcos, pensei, já querendo
sair dali correndo, entrar em qualquer ônibus, metrô,
helicóptero e ir embora sem destino... Não queria ir direto
pra casa e dava ainda pra ir pro colégio, na verdade perderia
só a primeira aula! Mas e o café da manhã? Eu nunca tinha
tomado café da manhã num hotel só eu e um homem... Em
meio segundo se dissolveu todo o meu plano de fuga. Seria
ridículo desistir... Eu ainda nem sabia o nome dele!!
Numa perfeita sincronia ele interfere:
— Não vai perguntar o meu nome?
Tive certeza. Ele lia todos os meus pensamentos. Decidi
não pensar mais.
— Ciro. Dr. Ciro Augusto Moretti, advogado.
— Dr. Ciro...
— Ciro.
Ele tinha a minha estatura, se eu estivesse usando a
sandália preta de salto seria mais alta que ele. Moretti,
Sidney Sheldon, “A Fúria dos Anjos”, Michel Moretti.
Entramos num elevador espelhado e odiei minha calça
jeans detonada e a camiseta com estrelinhas azuis na manga
e na gola, roupa sem graça, infantil...
O ascensorista usava um chapéu cinza igual ao do
manobrista que levou o carro.
— Doze.
O elevador sobe. Baixo a cabeça. O tapete era azul-
marinho e em cinza as letras grandes RPH. Deduzo que o H
é hotel, o P Palace e o R, Royal ou Real...
Décimo segundo. O elevador pára e a porta se abre.
Saímos e deslizamos num amplo corredor com muitas portas
numeradas. Quando Ciro, o coroa, introduz a chave na
fechadura do 129, meu coração dispara... Ele abriu a porta do
pesadelo e eu entrei primeiro. Ele só queria me comer, claro,
evidente que era eu o café da manhã... Na mão direita ele
tinha um anel e na esquerda não tinha aliança, mas ele
poderia ser casado, até ser avô ele poderia... Três netos.
Nove, sete e cinco anos, os netos.
Analisei detalhadamente o grande quarto. Tudo me
incomodava, especialmente a cama king size. Eu nunca tinha
estado numa cama como aquela, já tinha transado com vários
caras, em muitos lugares... Rua, garagem, sala, no carro do
pai do Neto... Na época eu namorava o Neto e tinha transado
com ele na noite anterior, havia poucas horas, naquela
caminha dele de solteiro, vulgarmente forrada com um
lençol de florzinhas amarelas que nada combinava com a
fronha listrada nem com o cobertor xadrez que me fazia
espirrar. Ele era um deus grego, mas tinha um péssimo
gosto. Era desajeitado, errava tudo nas roupas, nos sapatos,
no cabelo, na risada...
Pelo reflexo no espelho, vejo o bacana tirando a camisa...
Muitos pêlos no peito. Pêlos nas costas! Neto não tem
nenhum pêlo no peito, só do umbigo pra baixo. E também
não tem essa barriga. Neto... Por alguns segundos acreditei
que o Neto era mesmo o grande, único e derradeiro amor de
toda a minha existência. Eu amava todos os seus defeitos, me
casaria com ele naquele momento. Por que não era ele ali?!
O bacana tirou a mochila dos meus ombros e me entregou
um cardápio com as mesmas iniciais do tapete do elevador
na capa.
— Escolhe mit dear... Depois eu te levo pra casa. Relaxa,
eu não vou fazer nada que você não queira, fica tranqüila... E
lógico que estou louco pra beijar essa sua boquinha de
morango... mas não vou fazer isso. Prometo. Já tomou
champanhe alguma vez na vida!?
— Claro que já, no Natal.
Ele sorriu, apertou o número 2, fez o pedido e, em cinco
minutos, uma campainha soou. Champanhe. O bacana legal
deu uma nota de 50 pro moço do serviço de quarto. Ele era
engraçado e eu acabaria me familiarizando com os pêlos
dele. Não era a porra de um ator famoso, mas era no mínimo
um bandido refinado, portanto, adrenalina.
— Sua beleza merece um brinde e o seu nome, uma
trova...
Ele estourou o champanhe e eu fiquei imaginando o que
seria uma trova.
— À sua beleza!
Adorei as bolhinhas brincando no céu da minha boca...
O bacana tirou os sapatos, deitou na cama e bem pouco
imaginativo, fez o gesto de quem chama um gato.
— Psh, psh, psh... Vem, senta aqui...
Bebi mais um gole e me sentei a uma certa distância do
meu predador. Começou pelos cabelos... eu não me esquivei
e ele massageou meus ombros e minhas costas...Interrompeu
bruscamente a massagem para reabastecer as duas taças.
— Por que isso!?
— Porque você é linda. Fica tranqüila, eu não disse que
vou transar com você... Te convidei para tomar um café da
manhã, você aceitou e é só... O café da manhã é champanhe.
Se você quiser comer alguma coisa...
— Eu não estou com fome.
— Nem eu, olhar para você satisfaz qualquer faminto. E
viva a sua exuberante beleza, e esse charme, e as suas belas
coxas... e mesmo que não as veja, eu sei que elas estão aí e
isso só já me faz feliz!!! Tim tim!!
Eu ri muito e tive vontade de estar nua e sozinha naquele
quarto frio... Poderia pular na cama! Mas o bacana estava ali
e ousou apalpar os meus peitinhos. A cabeça rodava e eu
senti aquele frio que passeava pela espinha refletir nos meus
mamilos quando senti o toque daquelas mãos estranhas,
peludas...
— Você gosta?
— Eu não sei bem...
— Essa sensação fica muito melhor se tirar a camiseta e o
sutiã... Posso?
Não consegui responder, mas como ele podia ler todos os
meus pensamentos, foi exatamente o que fez.
— Belos peitinhos...
Ele beijou meus biquinhos e eu deixei escapar o gemido
que desencadearia a consumação daquele encontro. Eu
mesma desabotoei e desci a calça jeans. O mundo girava e a
boca pedia mais um pouco do champanhe que elevava a
minha alma e deixava o meu corpo naquele estado... Virei a
taça e me vi no espelho só de calcinha. A calcinha que um
dia foi da Sílvia, minha prima... Sempre roubei calcinhas, só
roubo calcinhas.
Vi um volume aumentando dentro da calça dele... Tirou a
calça e a cueca, estava realmente bastante excitado. O pinto,
menor que o de Davi e maior que o de Nicodemos. O urso
parou de falar “linda” e começou a falar “gostosa”,
“tesuda”... Eu preferia o “linda”, pelo menos me deixava
menos tensa... Ele mordeu levemente a parte interna das
minhas coxas, depois lambeu o meu sexo que provavelmente
ainda cheirava ao sabonete verde que eu odiava e minha mãe
insistia em comprar.
Prensei a cabeça dele com as minhas coxas fortes e então
abri as pernas, me escancarei... E ele deslizou a língua por
todas as paredes, protuberâncias e cavidades, depois apertou
a minha bunda e disse “cuzinho rosado”. Eu sabia que era
rosado, já tinha visto no espelho. Fechei os olhos e pensei
em todos os homens do planeta, de Silvio Santos ao boy
corintiano... Passei por jogadores de futebol, políticos,
cantores, uns caras da televisão que eu não lembro o nome...
os mais lindos e os mais absurdos. Terminou em Mike
Tyson. Em Neto eu não pensei nenhuma vez, nem no urso
que me chupava. De repente ele pára tudo, segura a minha
cabeça e eu entendo que é a vez dele. Tentei imaginar outras
picas, de anônimos e de famosos, mas não deu certo, não
consegui ser imaginativa o suficiente e chupei a realidade ali
na minha frente, dentro da minha boca, com muita
consciência e nenhum estímulo. Ele não se irritou.
— Quer que eu te lamba mais um pouquinho, meu anjo?
Não respondi. Deitei e abri as pernas... E ele fez tudo de
novo.
Dessa vez eu quis ver, fiquei olhando ele se lambuzar...
Aí ele parou, colocou um preservativo e crau. À cada
bombada ele gemia “Uhh!!” e eu gemia “Ai!”
Ele tenta me beijar na boca diversas vezes, eu desvio.
O sexo vai evoluindo e ficando cada vez mais violento e
eu só queria que tudo aquilo terminasse logo... As mãos
peludas, a voz fúnebre, as estocadas furiosas... Ele é do
mal... Um ritual de horror!!
— Foi bom, mas não dá mais, eu não quero, eu não
agüento...
— Agüenta sim, gostosinha... Olha como você agüenta!
— Pára, por favor...
— Eu tô quase gozando, fica quietinha, deixa que eu faço
tudo...
— Chega!!
Ele não pára, fàz tudo ainda com mais furor, e demora...
Eu queria desmaiar, apagar... Penso no biquíni estampado
que vi numa vitrine. Desejo um Marlboro... pode ser Camel,
se não tiver Marlboro, eu não sou muito fumante, só fumo
quando fico nervosa ou constrangida. Só. Agora estou os
dois, fumaria dois cigarros... Quando menos espero, ele
gruda na minha cintura e urra como um urso velho. Acabou,
deduzi aliviada. Senti um peso bem maior que o da mochila
despencar sobre as minhas costas. Finalmente eu estava
conseguindo pensar em nada.
— Você não gozou.
— Como?!
— Deita, meu anjo...
Ele força a minha cabeça, acaricia minhas costas e passa a
língua no cuzinho rosado. Eu deixo. Nunca ninguém tinha
feito isso, nem o Neto, ele já tinha posto o dedo uma vez, eu
censurei e ele não tentou mais... Pensei na minha mãe,
lembrei de um dos sonhos que ela escreveu, um dos mais
picantes, ela comenta que se superou e experimentou um dos
maiores prazeres...
“ ...latejo só de lembrar de você, feito um anjo das trevas,
me segurando os quadris num vai e vem ritmado que se
acelerava... A cada estocada uma estrela cruzava o céu e
depois de tudo eu ainda queria mais, mais, mais... Eu
implorei, põe atrás...”
Mas isso era um sonho dela com o meu pai, bem diferente
do urso bacana. Apesar do champanhe na cabeça, achei a
coragem pra ir embora e levantei bruscamente olhando para
o meu relógio.
— Chega, eu quero ir embora.
— Agora não, vamos terminar.
— Eu não quero mais!!
— Quer sim, gostosinha, você nem gozou..
— Gozei sim!
— Você vai ver quanta coisa gostosa a gente ainda pode
fazer, vai ver o que é gozar... Vou por no seu cuzinho bem
gostoso...
Eu não queria mais nada e ele me segurou com força.
Tentei me desvencilhar e ele era bem mais forte... Seria
melhor encontrar uma saída estratégica e inteligente... —
Preciso ir ao banheiro! — Foi a escapatória. Ele me soltou.
Olhei pra ele, percebi que os cabelos eram tingidos e fui pro
banheiro. Fechei a porta certa de nunca mais abri-la. Estava
tonta de tanto sexo e champanhe. Liguei o chuveiro e tomei
o melhor banho quente da minha vida. Depois rezei e saí.
Estava mais sóbria, disposta a encarar o coroa e convencê-lo
a me levar pra casa.
Ele continuava deitado. Vesti minha roupa rapidinho e só
depois de calçar os sapatos toquei no ombro dele. Nada, ele
não se moveu. Pressenti que ele estivesse morto, e ele estava.
Tiro na nuca. O travesseiro encharcado de sangue. Levantei
o lençol e vi o pinto ainda duro. Quase ri. Não sabia o que
fazer... Eu tremia... Pensei em gritar, sair correndo... Peguei
o telefone e toquei o número 2. Eu queria comunicar a morte
de Dr. Ciro, mas acabei perguntando se tinha misto quente e
pedi um no 129. Quando desliguei o aparelho, senti o quarto
desabando sobre a minha cabeça.
Verifiquei a porta. Trancada. Também as janelas estavam
fechadas. No armário aberto não tinha alguém dentro.
Cobri com o lençol o corpo do homem e despi novamente
o meu. Ainda tinha a sensação de que, mesmo morto, ele
sabia o que eu pensava...
A campainha soou e eu me vi nua no espelho. Me enrolei
numa toalha, com uma outra fiz um turbante e entreabri a
porta para pegar o meu sanduíche sem direito a gorjeta.
O misto quente cheirava muito bem. Tinha também, na
borda do prato, um alface verdinho e batatas fritas.
Liguei a televisão. Desenho animado. Piu-piu e Frajola.
Sentei de costas para o corpo e devorei, em generosas
bocadas, todo o sanduíche e as fritas. No alface eu nem
toquei, nem nos talheres. Quando terminei, desejei uma
Coca-Cola, mas acabei me contentando com o resto do
champanhe da taça do bacana que não era nada bacana.
— Preciso ir embora.
Sussurrei no ouvido dele sabendo que não se levantaria
pra me levar.
A calça do homem estava no chão e achei conveniente dar
uma conferida na carteira. Cento e cinqüenta em notas de 50,
era o que tinha em dinheiro. Muitos cartões de crédito de
Luiz Paulo Pereira de Melo — quem? —, em todos os
cartões e até no talão de cheques tinha escrito aquele nome...
Ele mentiu! Quem é esse cara? E foi assassinado! Meu Deus!
Querem que eu seja a culpada!
Levantei o lençol a fim de uma autópsia superficial. Ele
estava esfriando. Imaginei uma seqüência de possíveis
assassinatos e vi no chão, ao lado da cama, uma arma. Um
medo indescritível tomou conta de mim e, como num filme
policial, limpei compulsiva, com a toalha, todos os possíveis
lugares onde eu teria tocado, depois me sentei ao lado do
cadáver e notei que ele não lia mais os meus pensamentos.
Definitivamente, ninguém mais morava naquele corpo.
Percorri todos os canais. A previsão do tempo anuncia
chuva no final da tarde. Nova aventura de Piu— piu e
Frajola. Show de talentos. Jornal. Meio— dia. Uma matéria
sobre os garimpeiros de Serra Pelada.
A boca do morto um pouco aberta. Muito ouro. Meio—
dia e cinco. E a boca do cadáver abriu ainda mais...
Peguei o garfo e a faca e garimpei a boca de Luiz Paulo
Pereira de Melo. O espelho me olhou desconfiado, mas eu
nem liguei. Serra Pelada. Piu— piu e Frajola. Dezesseis
pepitas na taça de cristal.
Lavei as mãos. Estava pronta para deixar o quarto. Mas
como passaria por todos aqueles homens de chapéus cinza?
Teria que arriscar. Não dava pra ficar nem mais um segundo
olhando aquele cadáver desdentado que disse que o meu
cuzinho era rosado.
Desliguei a TV, peguei minha mochila e fechei sem
piedade a porta daquele quarto frio. Meio— dia e quinze. Saí
do pesadelo.
Disse térreo pro ascensorista e rezei durante toda a
descida. Piu— Piu. Um longo tapete vermelho estava
estendido para mim. Atravessei o lobby em passos
relativamente lentos e me vi livre de todos os homens de
cinza. Estava na rua!! E ia pra casa de ônibus!
Dois dias depois estava no jornal a foto do bacana
banguela. O verdadeiro nome dele era Matias Alvarez, alto
escalão do narcotráfico internacional. A polícia ainda não
tinha nenhuma conclusão sobre a morte. Vingança? Traição?
Devido aos dentes arrancados, estava descartada a hipótese
de suicídio.
“... Os funcionários do hotel onde o corpo foi encontrado
afirmaram que a vítima entrou acompanhada de uma
jovem de cabelos castanhos que deixou o local poucas
horas depois...”
Abaixo da foto dele, o retrato falado da suspeita. Nada se
parecia comigo.
PlETÁ
O ILUSIONISTA
Nunca tive queda por academias, prefiro os esportes mais
inventivos, mais artísticos... Danço, escalo, ando de bicicleta,
patins, tive a fase do skate, do trapézio... Assisti a”Asas do
Desejo”, achei que tinha tudo a ver comigo virar trapezista e
procurei um circo que oferecia uns cursos. Aprendi
rapidamente. Os anos de ginástica olímpica e o parentesco
com os anjos facilitaram os meus saltos e, em menos de três
meses, eu já voava pelos ares, sob a lona amarela e azul do
Circo Faviero. Minha performance chamou a atenção da
cúpula circense e acabou sendo eu a convidada a substituir
uma das trapezistas que engravidara. Foi emocionante a
minha primeira apresentação; apesar da emoção, fiz tudo
perfeito e fui muito aplaudida.
No circo tinha muitos gostosos, especialmente os filhos
do dono, também trapezistas. Nenhum deles me atraía
exatamente. Até fiquei com o mais novo uma vez, só pra ver
como era trepar num trailler, mas foi só aquela vez. O cara
gostou de mim, queria que queria me arrastar de novo pro
mocó ambulante, mas eu não quis, já estava de olho no
ilusionista. Ilusão, ele era casado com a partner, e o circo era
uma grande família da qual eu não levava muito jeito de
parente...
Ele não era forte como os outros, mas tinha um corpo
alto, magro e muito bem definido, era de poucas palavras e
muitos livros. Delineava os olhos e ficava com um ar ainda
mais enigmático e instigante. Tinha cara de ter pau grande e
eu tive o grande prazer de comprovar. Foi na Romênia, terra
do Conde Drácula, não poderia ser em outro lugar, não com
ele... Era um festival anual que reunia companhias do mundo
inteiro; coisa séria, profissional, eu às vezes não acreditava
que estava metida ali naquele mundo sem fronteiras e cheio
de purpurina... É tudo verdade.
Eu usava um maiô prateado que caía muito bem, mas
entrava um pouco na bunda. Puxei a lycra. Ele viu. Sempre
olhava pra mim, mesmo que não diretamente; era como se
ele dispusesse de um jogo de espelhos invisíveis, não sei
explicar quando não entendo... Era algum truque que me
fazia saber que ele estava me observando, mas quando eu
olhava, ele estava virado pra outra direção. Intrigante isso. E
no espelho invisível ele sorria, eu olhava e ele estava sério.
Nunca me entregou esse truque e ainda teve a pachorra de
falar que era coisa da minha cabeça.
Um ilusionista me pareceu muito excitante... Não que eu
tenha me envolvido só com caras de profissões exóticas,
alternativas ou marginais, nada disso, tive advogado,
executivo, dentista, bancário, banqueiro, engenheiro, agiota,
médico, professor... Aliás, eu mesma já fui tanta coisa, já
encarei os mais variados ofícios e bicos. Professora,
secretária, videomaker, produtora, maquiadora, radialista,
fotógrafa, back vocal, artista plástica, fui enfermeira,
garçonete, padeira, do lar, fui modelo, fui obra de arte,
estilista, garota— propaganda... Fiz um comercial de filtro
solar e um de sabão em pó. Gravei também o piloto de um
programa que seria bem bacana, pena que não rolou. Minha
fase mais luxuriosa foi quando lecionei. Esse papo de
profissão nada tem a ver com qualidade de performance
sexual, muitas vezes os que eu prejulguei menos criativos
surpreenderam na horizontal.
Ilusionista. Confesso que o ofício me encantou, neste
caso. Ilusionista: um mágico envolvimento. Perdi horas
adivinhando o sexo misterioso que me levaria à levitação.
Ilusionista. Tirei da cartola os meus truques de sedução, mas
deixei alguns na manga...
Pelo reflexo no espelho invisível, vi que ele estava de
olho em mim. Ajeitei o maiô... Ele sorriu e meu coração
disparou. Quase errei o vôo.
ELA
Me apaixonei por uma mulher. Nos conhecemos em maio,
mês das noivas, das mães... Cris, Dinho e Markito me
arrastaram pra um show de Verônica Maia, que tinha
acabado de ser descoberta e uma multidão cantava todas as
músicas junto com a voz dela, deliciosa e amplificada. Meus
amigos alfinetaram na minha blusa um crachá da produção.
Markito era figurinista dela, e depois do show acabei indo
com eles para o camarim. Verônica reluzia e ria... Após a
sessão de autógrafos fui informada que iríamos todos pra
casa da estrela. Uma loira bonita se encostava nela.
Em menos de uma hora foi servido o jantar. Vinte e três
pessoas. Bebemos vinho tinto. No brinde ela olhou pra mim.
Passamos a noite conversando. A loira bonita e muito
mau humorada bocejava cada vez que Verônica me lançava
um olhar ou uma palavra... Aos poucos, os convidados foram
saindo; Cris foi embora com um fotógrafo, Markito apagou
no sofá, e me vi sozinha com as anfitriãs e Dinho, que falava
por uma multidão. A loira bonita, mau humorada e exausta
beijou a boca de Verônica e se arrastou pela escada que dava
para os quartos. Dinho já me cansava. Tentei acordar
Markito, mas ele tinha sido abocanhado pelo sofá e não
conseguia se levantar. Sentei num puff, que começou a
vibrar. Verônica olhou.
— Gostou do puff?
— Assustador.
Senti meu rosto corando... A vibração plantou no meu
corpo um desejo incontrolável de abraçar Verônica com
meus braços e minhas pernas... Acho que ela percebeu e deu
um jeito de tirar o Dinho dali, ouvi a voz dele se afastando.
Fiquei de olhos fechados imaginando como seria. Uma
mulher? Nunca. Mas por que não? Cair de boca eu não vou...
Sou hetero, nunca me interessei por nenhuma mulher. Ela é
diferente. Verônica... Eu queria só beijar a boca dela. Só a
boca. Atraída por ela ou pelo desconhecido? Não sei. Não
sou sapata, é só uma vontade. Curiosidade. Gosto dos
homens. Adoro os homens. Verônica. Que coisa! Mas pode
ser bom...
No auge do meu devaneio, senti um toque no joelho. Era
ela, Verônica.
— Se você quiser ficar mais confortável num quarto...
— Não, vou chamar um táxi.
— De jeito nenhum.
Sentou-se ao meu lado, olhou a minha orelha, comentou o
meu brinco e depois beijou— me calmamente, eu a abracei e
senti seu corpo vibrando junto ao meu. Mulher. Verônica.
Nunca tinha beijado uma mulher, só as meninas da infância.
Fernanda, Rafaela, Ana Cristina e Bianca.
Ela desabotoou a minha blusa, tirou meu sutiã e passou a
língua doce nos meus mamilos entusiasmados. Eu quis fazer
o mesmo... brincar com os biquinhos dela na minha boca...
Mamar em peito de mulher é realmente uma experiência
muito boa, os bebês são felizes... Ela delirava e me
acariciava com as mãos precisas e delicadas. Meu coração
foi a mil, minha respiração acompanhou e a nossa química
reagiu instantaneamente. Bateu.
— Verônica!
A voz vinha de cima, era a loira quem a chamava.
Verônica se levantou, pegou minha blusa e meu sutiã e me
puxou. Silenciosamente, saímos por uma porta secreta que
nos levou até a garagem. Entramos no carro...
— Eu quero você... mas não vai dar pra ser aqui.
— Eu sei.
— Você... mora com alguém?
— Minha mãe e dois irmãos.
— Suas amigas costumam dormir na sua casa?
— Às vezes... Pouco.
— Posso ser sua hóspede?
— É que... Você não é qualquer hóspede...
— Não?!
— Meu irmão é seu fã.
— Sei... Tem um hotelzinho aqui perto.
— Tá muito tarde... Vamos nos ver amanhã.
— Eu quero agora!
— Amanhã.
— Ok, te deixo em casa.
Em dez minutos estávamos defronte a minha casa. Tudo
apagado. Nos beijamos. Os vidros do carro suavam por nós
duas... Fiquei nua, inteira. Verônica parecia conhecer
precisamente o meu corpo, e eu gozei uma, duas, três vezes.
Suspiro.
O sol ameaçava surgir e eu apavorada tinha que entrar
antes que alguém acordasse. Saí do carro nua, descalça e
entrei em casa na ponta dos pés, num silêncio absoluto, com
toda a cautela. Acenderam a luz. Meu irmão mais novo e
nervoso era o iluminador...
— Então o Ronaldo tinha razão, ele deve ter te comido
mesmo e eu te defendendo que nem um otário...
— Quem?!
— Ronaldo do bar... Ele disse que te comeu.
— Que cara babaca! E mentira!
— Era pra ele que você tava dando até essa hora?
— Fala baixo!
— Eu estou falando baixo, você é que está quase gritando
e entra em casa pelada... Ele te comeu onde? No portão?
Foi?
— Cala a boca! Não tinha nenhum cara comigo, eu só
tirei a roupa pra não fazer barulho... pra não acordar
ninguém... E você pára de olhar pra mim!
Nunca tinha visto meu irmão tão calmo e ele nunca tinha
me visto tão nua. De repente ele apertou meu braço e o
semblante era outro, frio, calculista, sádico, torturador
profissional, sussurrava e apertava meu braço cada vez mais,
queria me matar.
— Quem foi o filho da puta que te comeu no portão da
sua casa?
— Eu já disse! Eu tirei a roupa pra não fazer barulho!
— Isso é ridículo.
— Me solta seu idiota! Eu tô falando a verdade! Eu saí
com Mar— kito, pergunta pra mamãe!
— Você teve coragem de dar pra aquela bicha? Puta
merda! Eu não acredito!
— Tirei a roupa antes de entrar pra não acordar a minha
mãe, que demora pra dormir! E eu não te devo satisfação e
quem me trouxe foi uma amiga!
— Mentirosa.
— Uma amiga minha que você é louco pra
conhecer...Looouuuco. Ela é linda!
— Mentirosa.
— Eu não sou mentirosa!!! Markito é figurinista dela.
Verônica Maia.
— Ah, inventa outra mais absurda... Você é a pessoa mais
mentirosa que eu conheço, ninguém ganha de você.
— Eu tô falando! É verdade, ela que me trouxe pra casa!
Eu fui ao show dela. Olha o convite! Tá aqui o telefone dela,
liga lá agora!
— O pior mentiroso é o que acredita na própria mentira.
— Oh!!! Você é um babaca. Quer que eu te fale o quê?!
Que ela é lésbica? Que me beijou na boca e depois me
chupou os peitos e a xoxota...? Que lambeu tanto meu grelo
e que só com os dedos ela me fez gozar muito mais que você
faz gozar a mãe do Tiago?!
— Cala a boca!
— Pensa que eu não sei que quando o marido dela sai
você vai pra lá? Já matou aula e tudo pra comer a senhora...
Fiquei sabendo...
— Quem te falou essa besteira? Foi o cara que te comeu?
— Solta o meu braço! Que nível de conversa... Aonde
chegamos!
— Foda-se, chegamos.
— Verônica Maia. Tá aqui o número dela. Só não fala em
meu nome porque eu tenho vergonha de ter um irmão tão
idiota.
Ele ligou. A loira deve ter atendido, ele disse que era
Saulo de Paris, se desculpou pelo horário da ligação e foi
informado que Verônica tinha saído pra levar uns amigos pra
casa e voltaria em poucos minutos.
Desligou o telefone e guardou o número dela no bolso.
Me apaixonei por Verônica Maia e vivemos uma história
louca, até encarei ser back vocal em muitas turnês, eu
cantava direitinho. Em casa, ela era celebridade e minha
melhor amiga, chegou a dormir na minha cama com a
mamãe no quarto ao lado... Nunca desconfiaram de nada, e
meus caros irmãos sempre tentando seduzi-la.
FLECHADOS
Fatalmente eu ficaria com Luiz. Ele era casado com Sara,
uma amiga dos meus amigos. Na estréia da ópera de
Fernando, lá estava ela, ao lado dele. Luiz... Amor à primeira
vista, e eu que nunca acreditei nisso... Foi na escadaria do
teatro, na saída. Tropeço num degrau e, para não cair, me
apóio no braço daquele homem... Ele me segura, me salva.
— Desculpa.
— Tudo bem.
— Eu tropecei...
Continuo descendo, na frente dele e de Sara. Lá embaixo
trocamos um rápido olhar e eu sinto uma pontada nas
costas... Coloco a mão no peito, é a ponta de uma flecha.
Todos estavam preocupados em fazer comentários
inteligentes sobre a ópera e ninguém notou que eu estaria em
apuros. Fingi que nada anormal se passava... Andei com a
flecha fincada e ninguém notou. Ele me olhava. Sara percebe
e olha pras escadas. Segui o olhar dela, e exatamente onde eu
tropecei estava um anjo lindo, com um arco nas mãos, rindo
e me mandando beijos. Levei a mão ao peito atingido e tive
muito medo. Comecei a chorar. Chorei muito e todos diziam
que a ópera era emocionante. Nos despedimos com um
sorriso e ele se foi. Nas costas dele também tinha uma flecha
fincada... Eu era quem ele buscava havia milênios.
Nunca tinha visto Sara acompanhada, mas já sabia que ela
era casada. Também nunca tínhamos trocado mais que três
frases. Inconscientemente, evitei maiores contatos, por
algum motivo não deixei que ela se aproximasse muito de
mim e só entendi o porquê quando conheci o marido. Minha
intuição raramente falha.
Nosso segundo encontro foi numa festa. Só então fomos
oficialmente apresentados. Nossos olhos se encontraram e
senti o impulso de abraçá-lo, mas só olhei brava pro anjo
atrevido que zoava perto da pista de dança. Ele me mandou
beijinhos, como fazia com todos que se aventurassem a olhar
pra ele. Vi várias pessoas flechadas naquela festa.
Luiz passou a freqüentar. Ele dava um jeito de falar um
pouco comigo, muito pouco, sempre tanta gente em volta, no
meio, em cima... Passa um ano e nada passa disso, dois anos,
três anos... Tive dois maridos e alguns namorados nesse
período. Ele continuava com Sara.
Quatro anos.
— Sara e Luiz estão se separando.
A notícia ecoou na minha cabeça.
— Ele saiu de casa ontem à noite... Foi pra um flat.
Eu não sabia que expressão esboçar...
— Ela me ligou na madrugada.
Eu só sabia que ele me amava.
— Disse que ele ama outra mulher...
Eu! Finalmente ele estaria livre para olhar nos meus
olhos, e me abraçar e beijar... Eles nunca se beijaram na
minha frente, ele e Sara. Meu apetite já era... Julia continuou
com a notícia em primeira mão...
— Ele tem outra, Sara descobriu.
Como ele teria outra? Meu Luiz?! Outra mulher? Deixo
cair o garfo, o garçom me oferece outro. Agradeço e me
levanto. Dispenso saber quem levou o meu amor... Odiei
minha rival invisível e a imaginei mais atraente que Marilyn
Monroe, mais inteligente que um semáforo e mais
envolvente que o som de Morcheeba.
Toalete. Olho meu rosto estranho no espelho e tenho
medo de quebrá— lo. Meu desejo imediato era quebrar tudo,
sair e quebrar os pratos, os copos, puxar as toalhas das
mesas, destruir as cadeiras e bater a cabeça na parede. Nunca
fui exatamente possessiva, nunca tive ciúme dele com Sara,
acho um saco gente ciumenta, mas morreria se o visse
amando a mulher da minha cabeça. Fiquei tomada por um
amargo que me secou a boca e arregalou os olhos, e o meu
sangue
corria quente e rápido, e minha cabeça não parava, minha
visão escurecia, e eu queria ir para casa ficar quietinha na
minha cama olhando o nada no branco do teto.
SEM NOME
(FLASH)
Virei maquiadora e saí com a equipe da produção, depois
da filmagem. Fomos a uma casa badalada e escura que tinha
uma comida que eles anunciavam como afrodisíaca, e nos
confortáveis sofás, casais se beijavam com ardência.
Luiz na cabeça. Eu tinha que zerar o coração e abrir
espaço pra uma nova história. A música era bem sugestiva,
no entanto nenhum dos meus colegas de trabalho me
interessava. Absolutamente. Mas tinha um moreno bonito na
mesa ao lado, com outros três caras e duas loiras. Fui
dançar... Ele olhou um pouco e veio. Dançou duas músicas,
na terceira ele segura a minha cintura e cola o corpo dele no
meu. Adoro homens que dançam! Nos beijamos ainda na
pista e enfrentamos, aos amassos, a lenta fila da saída.
A casa dele era perto, o apartamento. Subimos já tirando
as roupas no elevador. Ele abriu a porta e me jogou no sofá.
Tinha um aquário com dois peixes pretos, a luz fria do
aquário era a única iluminação.
Levantou meu vestido, tirou minha calcinha e veio direto,
sem prelúdio e sem tirar a camisa e as meias. Ele tinha dois
ritmos que se alternavam; primeiro, lento e profundamente,
depois, rápido e mais superficial — um jeito que me fez
pensar em coelhos — e novamente os profundos mergulhos
que me levaram pro espaço antes dele.
— Angela, foi muito bom...
Fiquei quieta olhando o aquário. Ele sabia o meu nome,
eu não sabia o dele. Nem queria saber. Ficamos olhando os
peixes, e eu divaguei lembrando um sonho da minha mãe...
“Eu mergulhava num lago muito claro, completamente
nua. Fui à tona para respirar e ele, lindo e também nu,
me puxou pelo braço e me levou para uma pedra enorme
e prateada, onde metade da lua dormia. Nos beijamos,
nos abraçamos e voltamos para a água. Mergulhamos
feito dois peixes. Foi uma cópula espetacular..”
Não sei quanto tempo fiquei viajando no aquário; quando
olhei para o lado, vi o moço desmaiado no sofá; era ainda
mais bonito dormindo... Me levantei com cuidado, peguei
minhas roupas e a bolsa e saí do apartamento sem fazer um
ruído. Sempre fui especialista em não fazer barulho e me
virar muito bem à meia luz. É incrível como no escuro roupa
faz barulho... Só fui me vestir no elevador, era um vestido
fácil. A calcinha, guardei na bolsa. Não quis registrar o
número do apartamento, nem o andar, só sei que era alto. Saí
do prédio sem olhar a fachada, subi duas quadras e só então
olhei para trás.
Estive em algum daqueles edifícios, e aquele moço bonito
tinha um nome que eu não sei.
FLAGRA
O HOMEM CAVALO
Aqueles dias que é melhor nem acordar... Nenhuma idéia
para meu novo trabalho, nenhum amor, nenhuma vontade de
ver o dia.
A secretária se encarrega dos recados... Dois da
imobiliária, um da Julia, nenhum da Verônica... Acordo na
primeira ligação e não consigo mais dormir, também não
tenho a menor disposição para levantar.
— Dia 11, lançamento do cd...
Passo mais de duas horas olhando para o branco do teto,
relembrando cenas, inventando acontecimentos perfeitos,
estudando a vida... Umas cartelas de starfix!, ao invés de
elucubrar eu posso contar as estrelas na escuridão do meu
quarto. Grande solução. Fim dos projetos no branco do teto.
Boa idéia. Tela branca sugere imagem.
O segundo recado estridente da pentelha da maldita
imobiliária me fez encarar o relógio e abandonar a cama com
a urgência de um bombeiro. Saco. Corri pro chuveiro.
Merda. Abri a torneira e deixei a água quente criar uma
névoa arrebatadora. Caralho. Fiquei me olhando no espelho
até a imagem embaçar e desaparecer... Tirei a camiseta velha
e estava nua, linda e destruída. Um banho seria o estímulo
pra começar o dia, que já passava da metade. Entreguei—
me ao chuveiro e esqueci que estava com pressa.
— Já beijei uma mulher...
— Já?!
— Beijei uma vizinha quando eu era criança...
O primeiro encontro com Verônica foi logo depois do
show de lançamento do seu mais belo disco de todos os
tempos... eu já contei... Depois dela, beijei outras duas bocas
femininas, mas não rolou. Reencontrar Verônica fez o
mundo parar... e olha que eu não sou de ter recaída. Talvez
tivéssemos deixado coisas pendentes, inconclusas...
Reinventei Verônica e meu coração embarcou. Hoje eu
poderia ligar.
O calor do banheiro provocou uma ligeira tontura. Olhei
os dedos enrugados pela água, interrompi a ducha e os meus
movimentos se tornaram rápidos, precisos. Imobiliária. Em
dez minutos estava dentro do elevador, que por sorte veio
vazio e foi direto para o S2. Durante o percurso desejei estar
usando sutiã, mas era tarde demais pra voltar. Fuck.
O trânsito era o mesmo de todas as sextas— feiras. Não
adiantava buzinar, xingar, tentar caminhos alternativos, fiz
tudo isso e cheguei à imobiliária às 19:19 horas, exatamente.
Porta fechada. Insisti no interfone e uma mulher muito feia
apareceu...
— Eu preciso entrar..
— Só amanhã, já foi todo mundo embora.
— E a Sueli?
— Foi faz tempo...
— Tenho que pagar um aluguel hoje sem falta...
— E só com a Sueli mesmo.
— Não é possível! Não tem mais ninguém que possa...?
— Só amanhã...
Passei a mão no cabelo úmido, olhei pro céu nublado e
quando pensei em dar meia— volta surgiu na porta um
homem de terno preto. Ele passou por mim e foi abrindo um
carro também preto. Li na vaga
— DIRETORIA — e entendi a mensagem.
— Quem é esse cara?
— É o dono daqui...
— Providência divina.
Corri e dei meia dúzia de toques desesperados no vidro do
carro já se deslocando... O vidro baixou. A mulherzinha feia
olhou pra mim, deu uma risadinha de voyer e fechou a porta
com cara de quem ia assistir a tudo pelo olho mágico.
— Oi! Senhor, por favor! Olha... Eu preciso pagar um
aluguel atrasado.
— Não é comigo.
— Sei que é com a Sueli, mas ela já foi embora! Você é o
dono daqui, eu tô sabendo. Quebra essa pra mim, você pode.
— Volta amanhã...
— Eu não vou voltar amanhã, não vai dar e vai atrasar
mais um mês... Deixa eu pagar pra você. Por favor...
Ele nada respondeu, viu o quanto eu era gostosa e abriu a
porta do carro. Entrei quase chorando...
— Quebra essa pra mim!
— A imobiliária já fechou, estou indo embora...
— Eu sei.
— Toma um café comigo e você me passa os dados.
— Café? Não, café não, vai me deixar mais tensa ainda...
— E uma cerveja? Tá calor...
— Uma cerveja eu tomaria.
Ele notou que eu estava sem sutiã, percebi que ele notou.
— Tem um bar aqui perto...
Fechei a porta, e o carro ganhou a rua.
— Desculpa, eu preciso resolver essa história..
— Tudo bem. Seu nome...?
— Angela.
— Davi Almeida.
— Angela Costa.
— Angela costa, braços, pernas, peitos... Que peitos!
Ele pensou e conferiu e percebeu que eu notei que ele
olhou e retomou o tom profissional...
— Quando foi o vencimento?
— Ah, no mês passado, retrasado... Devo quatro meses.
— Quatro?!
O carro entrou na vaga exato e numa única manobra. Davi
desceu. Teve a intenção de abrir a porta pra mim, mas eu fui
mais rápida, não esperava por essa gentileza...
Só duas mesas vazias, ele escolheu a do canto, perto da
janela. O garçom se aproximou.
— Cerveja.
Ele pediu. Dois minutos de silêncio e observação. A
palavra cerveja ficou ecoando na cabeça dos dois. A cerveja
enfim chegou, gelada como Verônica.
— Saúde!
— Amor, sucesso, paz, idéias!
Brindamos e bebemos. Pousei o copo na mesa, abri a
bolsa e tirei os boletos da imobiliária e o talão de cheques.
— Empresta a sua caneta...
— Não, guarda isso!
— Eu quero pagar já.
— Não, agora não.
— Por quê?
— Não fica bem...
— Não fica bem?! Isso é ridículo!
— Deixa pra depois, pode ser?
— Você parece o Santo Expedito, o santo dos
desesperados...
— Você é a desesperada e eu o santo?
— Eu tenho um cartãozinho dele aqui. Ganhei ontem.
Olha, não parece você?
Ele observou o santo e riu como um cavalo. Mostrou
todos os dentes brancos, grandes... imaginei como seria uma
mordida na nuca.
— Angela...
— Fala Davi...
O assunto só foi retomado quando o garçom trouxe a
terceira cerveja.
— Fala um pouco de você... O que você faz?
— No momento, sou artista plástica.
— Que maravilha!
— Maravilha é ter uma imobiliária...
— Não diga essa besteira... E um stress...
— Stress é atrasar o aluguel e a imobiliária ficar ligando...
ameaçando...
— Você pinta quadros?
— Vou pintar o Santo Expedito... Posa pra mim?
— Depende do cachê...
— Não tem cachê... Pensei em te vender o quadro, ou
negociar um permuta...
— Podemos entrar num acordo. E cavalos? Você pinta
cavalos?
— Pintei um ontem!
— É mesmo?! Eu adoro cavalos. Que cavalo você pintou?
— Um cavalo que você nunca vai montar...
— Domo qualquer espécie, monto qualquer cavalo...
— Hum... Cavalo-marinho?
— Cavalo-marinho não.
— Eu pintei um Cavalo-marinho.
— Deve ser lindo.
— Que horas são!?
— Por quê? Algum compromisso?
— Não exatamente... Eu queria ligar pra alguém...
— Namorado? Marido..?
— Não... Alguém que eu amo... Esse alguém me
despreza...
— Como alguém pode desprezar uma mulher fantástica
como você!? Só pode ser um louco...
— Uma louca.
— Uma louca?!
— Hoje é o lançamento do cd dela... Eu teria um motivo
pra ligar... Você conhece, todo mundo aqui conhece o meu
amor... Logo mais toca uma música... Verônica Maia! Sou
louca por ela...
— Você é fã da Verônica...?
— Não, sou amante dela, quer dizer, fui. Estou em plena
recaída... Ele ficou mudo. O garanhão estava reduzido a uma
mula, um pangaré... Assisti ao efeito devastador da minha
confidência no semblante do homem cavalo.
— Desculpa, eu devia ter ficado quieta, esquece, bebi
demais...
— Não, eu entendo...
— Entende nada, você entende de cavalos, casas,
apartamentos...
— Posso até não entender, mas acho excitante. É
excitante duas mulheres...
— Excitante..?! Que papo de bofe. É triste. Ela não quer
saber de mim. Hoje eu posso ligar! O lançamento do cd é um
bom motivo... O que você acha?
— Acho que não sei, nem sabia que essa Verônica Maia
era...
— Lésbica?
— É... Você também eu nunca ia imaginar...
— Por que não?
— Porque você é muito bonita, deliciosa, atraente. Pode
ter o homem que você quiser.
— Ela supera muitos homens.
— Mas fica faltando...
— Não falta nada.
— Não?!
— Quem tem criatividade não precisa de pinto.
— Eu tenho os dois.
— Foram quantas cervejas...?
— Umas cinco... Eu quero você.
Emudeci e senti a manifestação dos mamilos, gostei da
sensação e adorei estar sem sutiã... “Eu quero você” numa
voz masculina caiu muito bem... Olhei para os ombros, o
pescoço, os braços torneados, o maxilar, as mãos...
— Você quer me comer pra ter o assunto mais original da
turma de bofes. Comi uma sapata, namorada daquela
cantora...
— Não pense uma coisa dessas. Vamos embora daqui e
você vai ver...
— Você não tem absolutamente nada a ver comigo, dono
de imobiliária, você é o meu oposto.
— Por isso mesmo vai ser muito bom.
— Então fala! Eu devo ligar pra ela?
— Acho que você deve me beijar.
— Beijo só se você responder. Ligo ou não ligo!?
— Não liga.
— Não!?
Oito cervejas. Segurei o rosto dele e o beijei... Ele puxou
meu cabelo como se fosse uma crina e deixou o beijo mais
violento, estava ofegante, também eu estava, vi todo o
sangue do corpo dele se concentrando no pênis.
— Vamos embora daqui.
— Me empresta o seu celular...
— O quê!? Garçom! A conta.
— Eu vou ligar... Posso?
Onze cervejas. Ele passou a perna dele na minha,
discretamente pousei a mão sobre o joelho dele, fui subindo,
atravessei a coxa e toquei o membro excitado. Ele fechou os
olhos e me estendeu o celular. Liguei.
— Verônica!? É hoje! O seu dia... Você tá por aí?
Verônica... fala comigo! Não está... então, então... toda a
sorte do mundo, meu amor. Escuta, eu estou num bar com
um amigo de infância, Fernanda é o nome da vizinha que eu
beijei quando era criança, queria te dizer isso e também
queria ver você. Verônica?!
Desliguei o aparelho e o coloquei sobre a mesa. Fechei os
olhos pra não ver o dono da imobiliária.
— Preciso ir... Garçom! A saideira!
Bebemos em silêncio. No último copo eu estava louca,
comecei a beijar a minha própria mão, acariciei meu
abdome...
— Ela me enlouquece... eu sou louca por ela, a pele dela,
o beijo... Nosso sexo é muito bom. Ela sabe como fazer tudo,
faz de um jeito que parece que ela vive em mim, e vive...
Não sai do meu corpo, nem da minha cabeça, ela me
enlouquece com a língua mágica e as mãos... objetivas.
Mãos objetivas.
— Eu posso te chupar...
— Cala a boca!
— Posso sim, se você quiser eu te chupo como ela, faço
igual, é só você falar como mais gosta e eu faço, faço
qualquer coisa...
— Olha pra você...
— Olha pro meu pau. Olha, põe a mão nele... Desculpe,
se você quiser eu nem te como, só chupo e faço você gozar
quantas vezes quiser...
— Como você é grosseiro. Cavalo. Tá aqui o cheque da
porra do aluguel.
— Eu não quero essa merda de cheque, desculpa, eu
bebi...
— Eu também.
— Você começou... disse que a Verônica te chupa e te faz
gozar feito louca...
— Eu não disse isso... assim.
— Falou da língua dela te lambendo...
— Também não foi assim que eu falei...
— Hum... que ela te leva ao êxtase usando a língua e os
dedos objetivos...
— Ela me leva ao êxtase só de me olhar.
Ele sentiu a porrada da frase. Olhou pro garçom e pediu
novamente a conta. Como!? Porra, ele é um homem, um
macho, um garanhão, situação ridícula, uma gostosa
tomando um porre com ele, contando sobre sexo com uma
mulher... O pênis pulsava, ele tinha que fazer alguma coisa,
mudar a tática.
— Deve ser lindo o amor de vocês...
— Hã?!
— Eu disse que deve ser lindo o amor de vocês...
— Essa conta não vem?
— Se você quiser, eu te deixo na casa dela.
— E se ela estiver acompanhada?
— Você também está!
— Com você?! Há há...
— Por que há há?
— E o que ela ia fazer, rir! Há há...
— Rir de mim?
— Não, de mim.
— Porque você está comigo?! Ela não sentiria ciúme?
— Nunca.
— Só se você estivesse com uma mulher?
— Não... Esquece. Meu carro ficou na sua imobiliária...
— E mesmo? Isso é muito bom!
— Viu só? Você venceu, vamos para o seu território.
Doze cervejas. Ele emudeceu e eu umedeci. Fomos
diretamente para a imobiliária. Meu carro ainda estava lá.
Ele queria que queria me mostrar os cavalos, achei tudo
muito engraçado e topei entrar. Era uma casa grande,
subimos uma escada e entramos na sala dele. Eu não tive
como não rir. Muitos cavalos! Pôster, gravuras, escultura,
ferraduras, medalhas, troféus, e eu tinha que sair dali
correndo por que ele veio selvagem me mordendo e
arrancando minha roupa... A cerveja não me deixou reagir e
ele foi direto me estocando aquele pau enorme de garanhão
puro— sangue, silvestre, e ele tinha tanto orgulho do pau...
— Você gosta que eu te coma assim?
— É bom.
— Isso é gostoso, fala...
— É bom...
— É pica, pica de verdade, você gosta de pica grande?
— E bom...
E ele foi feroz, animal, me comeu completamente. Fiquei
inchada, esfolada, mas satisfeita, feitíssima. Enquanto ele
estava no banheiro, eu preenchi o cheque do aluguel e o
deixei sobre a mesa dele. Fui pra casa abismada e não liguei
prü Verônica, nem pensei nela... Só lembrava do garanhão
galopando em mim. No dia seguinte ele não ligou, nem no
outro, nem no outro, eu também não liguei, mas a vulva
esfolada não me deixava esquecer... Depois de uma semana
quem ligou foi a Sueli da imobiliária, dizendo que ia entrar
com ação de despejo por falta de pagamento. Como fiquei
feliz! Eu iria vê-lo! Iria invadir a sala dele enfurecida e ele
iria me laçar... Provavelmente estaria usando um terno e uma
camisa de list as verticais ou xadrez... Eu nunca me
interessaria por ele, só depois de doze cervejas.
Tomei um banho de me1 e me vesti. Pensei em usar uma
saia reta, uma camisa, prender os ca »elos meio tipo
executiva, mas acabei no básico, como eu estava naquele dia,
todo dia...
Eu não sabia o que fazer e decidi ir até a banca comprar o
jornal e ler o horóscopo pelo menos pra ter uma direção.
Comprei também uma revista que tinha umas dicas e testes
de conquista...
Luiz
— Cameron Diaz ou Milla Jovovich?
— Ah não...
— Fala... Qual das duas você prefere?
— As duas são lindas.
— Mas você escolhe... um, dois, três... você escolhe...
— Milla Jovovich.
— Victoria Abril ou Susan Sarandon?
— Victoria Abril.
— Geena Daves ou Daryl Hannah?
— Geena Daves.
— Isabelle Adjani ou Kim Basinger?
— Prefiro você a todas essas...
— Isabelle Adjani ou Kim Basinger?
— Isabelle Adjani.
— Marilyn Monroe ou Rita Hayworth?
— Marilyn...
TEDDY BEAR
Jaime era um mentiroso da pior marca, gostava de mim,
mas começou mentindo e nunca mais conseguiu parar. Eu
achava que ele era só aquele tipo de homem que não quer se
envolver por mais envolvido que já esteja, então vive
histórias paralelas e finge pra si mesmo que não está muito aí
com ninguém. Assim, enquanto esteve comigo, eu tinha
certeza de que ele mantinha, simultaneamente, outras duas
ou três namoradas. Eu era a oficial, portanto a mais
enganada, só não tinha idéia de como...
As desculpas para não me ver, o mais esfarrapadas
possível. O aniversário do sobrinho foi álibi umas três vezes
no mesmo ano, reuniões de negócios, nem cito, viagens
repentinas... e todas as mulheres que ligavam pra ele eram
simpáticas senhoras obesas ou tias mumificadas. Conheço
bem os mentirosos, não acreditava em nada do que ele dizia,
sabia que ele me traía, mas não conseguia sair fora. Acho
que eu gostava das mentiras, e nosso sexo era de
primeiríssima qualidade. No começo eu sofria a dor dos
torturados quando ele sumia, depois fui me acostumando às
mentiras, fui aceitando minha condição de iludida, acabei
ficando cega, e na minha cegueira comecei a exercitar a
realidade que eu temia e desejava: ser corna. Todas as vezes
que a gente transava, eu só me excitava imaginando Jaime
com outra mulher, e delirava pensando que elas sentiam o
que eu estava sentindo, que aquele mesmo prazer ele
proporcionava a cada uma delas... Imaginava todas: atrizes,
amigas, empregada, caixa do banco, qualquer mulher.
Cheguei a pensar em propor um ménage à trois, mas eu não
bancaria ao vivo, ele se deliciando com outra, se
entranhando na carne dela... Melhor só imaginar.
Deixei-o no aeroporto e fui para casa. Antes de dormir
tentei ligar pra perguntar se ele fez boa viagem, mas o
celular estava desligado. — Tem alguma coisa
acontecendo... — O acontecendo é outra mulher. Minha
antena levantou. Desisti de dormir e acendi a luz, olhei pros
bichinhos de pelúcia, todos presentes dele. Doze. Abracei a
ursa branca e chorei como choram todas as traídas. Quando
eu desconfiava, sempre alguma coisa tinha, mas ele vinha
todo meloso, com palavras tiradas de algum filme, e um
presente bem romântico que me faria acreditar que, mais
uma vez, tudo não passava de invenção da minha cabeça
atordoada, ou de fofoca malvada de alguma amiga
intrigueira.
Uma vez eu tive certeza, vi os dois; ele e a moça da loja
de meias. Eu estava na farmácia e vi quando ele entrou na
loja e ela baixou as portas. Saí da farmácia, pra minha dor
não tinha remédio... Cheguei diante das portas fechadas da
loja, ouvi as batidas amplificadas do meu coração e as
risadas abafadas dos desgraçados ali dentro se esfregando, a
poucos metros de mim...
Esmurrei a porta de ferro e um bando de curiosos formou
uma platéia que só saiu antes do final do barraco porque a
fulana levantou a porta e Jaime apareceu, aos berros,
chacoalhando violentamente duas sacolas e mandando cada
um ir cuidar da própria vida. Uma das sacolas tinha o mesmo
logotipo da fachada e o esperto quis me convencer que só
estava comprando umas meias. Claro que eu sabia que não
era só isso, mas ele me segurou e disse que me amava, jurou
que não tinha nada com aquela mulher sem graça e fomos
para a minha casa. Na outra sacola tinha o ursinho azul e
mais uma vez ele estava me traindo... E numa revelação
divina todas as peças se encaixaram. Doze ursinhos, doze
mulheres. Cada um deles significa uma traição! E isso! Essa
ursinha foi quando ele comeu a Bete! Ela jurou que não, mas
eu sei que comeu... O de gravata xadrez foi a psicóloga que
morava no 71 e os outros eu ainda não sei, mas vou saber de
cada uma e elas vão ficar apavoradas com os jornais e a TV
anunciando, diariamente, mais uma vítima da maníaca dos
ursinhos. “...Todas as moças foram encontradas abraçadas
a um urso de pelúcia. Uma delas conseguiu escapar e disse
que a assassina é uma mulher branca, jovem, inteligente e
linda!!!” Uma por uma, depois mato ele. Te odeio. Bum. Aí
sumo e me misturo aos sem-teto, ou aos sem— terra, sem—
nada, bem sem amor, sem alegria, sem vontade de viver.
Minha cabeça não parava, investigava cada faceta
esquecida em busca das mulheres que teriam se deitado com
o meu Jaime. Meu...
Tiro não, faz muito barulho. Faca! Faca de cozinha.
Os ursinhos de pelúcia arregalaram os olhos de medo,
mas as boquinhas riam como se fossem cúmplices de uma
ardente e inesquecível cena de adultério. Meu ódio esvaziou
a estante e lançou todos os meus inimigos ao chão.
Liguei o rádio e tocava uma música triste, que fez sofrer
ainda mais o meu coração rasgado. Fui até a cozinha e fiquei
olhando o jogo de facas. Peguei a maior. Pode ser essa...
Enxuguei os olhos, bebi suco de maracujá e voltei para o
quarto com a faca na mão. Golpeei cada um dos doze
ursinhos, que riram ainda mais, depois lavei as mãos limpas
e lembrei que eu tinha as chaves do apartamento dele.
Acho um horror fuçar a vida alheia, mas nada mais
humilhante do que ser enganada, saber-se traída e não fazer
nada pra mudar esse quadro negro e cheio de borrões. Eu
precisava de alguma prova concreta, documental, pra me
convencer da minha condição miserável, estúpida e covarde,
e nada mais propício que a ausência dele pra eu me deleitar
numa blitz.
Esperei o portão da garagem abrir e entrei sem que o
porteiro me visse. O elevador parou no térreo. Caramba.
Entrou o casal do décimo terceiro e naquele segundo eu
percebi que eles sabiam de muita coisa, moravam
exatamente embaixo do Jaime e tinham pena de mim. Me
olhavam com piedade — pobre corna —, pensavam. Décimo
terceiro. O casal sai do elevador e me deseja uma boa noite.
Eles eram felizes.
Jaime nem sonhava que eu tinha aquela chave... Uma vez
ele a esqueceu no meu carro e eu fiquei bem quietinha.
A chave não girou e isso só acontecia se tivesse uma outra
chave na fechadura, pelo lado de dentro, e isso significava
que alguém estaria no apartamento. Não... Meu coração
disparou. Fui até a porta da cozinha e pela fresta vazava a luz
acesa. Ele estava lá! Não embarcou, foi tudo encenação e a
trouxa ainda o levou até o aeroporto!
A porta da cozinha estava liberada, abri e entrei na ponta
dos pés. Deixei minha bolsa e meus sapatos na área de
serviço, olhei a noite lá fora e descobri que não amava
Jaime, meu amor por ele era uma mentirinha que eu contava
pra mim, estava era metida numa doença, num vício e eu
tinha total consciência de que nossa relação era uma farsa
sustentada pelo ótimo sexo, que eu nem sei se era tão ótimo
assim, se fosse eu não precisaria ficar imaginando as minhas
rivais. Nem ele me amava, gostava dos meus orifícios e do
meu remelexo, e de me exibir nas festas, éramos bons de
conversa, mas aquilo não era amor. Amor de verdade, amor
mesmo, eu só conheci dois, e tanto os amei que nunca os
prendi e acabei até fugindo para que, de alguma forma, eles
não se esgotassem, não perdessem o encanto, não tivessem
um fim.
E o que eu temia e desejava finalmente estava ali, a
poucos metros dos meus olhos estatelados pelo torpor do
ciúme. Apurei todos os meus sentidos e meus ouvidos
detectaram duas vozes masculinas. Era tudo que eu não
esperava: Jaime gay, ou melhor, bissexual. Não acreditei e
quase tropecei na mesa de passar. Ele era um cara muito
amável com todo mundo, decididamente com todo mundo.
Capaz de seduzir até poste.
Respirei fundo e contei os meus passos no corredor, vinte
e quatro passos, andei até me encostar na porta do quarto e
ver meu Jaime deitado com outro homem. A porta do quarto
estava entreaberta e eles em plena trepada, assisti a tudo pela
fresta. Bernardo, seu grande amigo Bernardo, e Jaime
embaixo dele. Eu nem respirava, eram dois homens lindos,
mas não tive a menor vontade de participar daquele ato,
muito pelo contrário... e se fosse uma mulher ali, eu teria
sentido a mesma coisa, a única diferença é que não seria uma
surpresa.
Eles se beijavam e sorriam, tinham afeto um pelo outro,
isso destruiu o meu ódio e matou o meu amor que nem era
amor porra nenhuma. Fim. Nem chorei.
Voltei à área de serviço, calcei os meus sapatos, peguei
minha bolsa, abri a porta da cozinha e chamei o elevador.
Antes de sair fui até a sala, acendi um cigarro e escolhi uma
música bem adequada à ocasião: o Réquiem de Mozart em
alto e bom som.
Eles devem ter se assustado e obviamente souberam que
eu estive ali, pelo cigarro com batom que eu fiz questão de
deixar queimando no cinzeiro.
No sofá tinha uma sacola com um imenso urso de pelúcia
cuidadosamente embrulhado para presente.
GRANDE CAUSA
Ele agitava os braços e bradava! Tinha o ideal dos
revolucionários, a convicção dos profetas e os olhos
brilhantes como os de Che Guevara.
Movimento pelo fim dos cemitérios nas áreas urbanas. Eu
particularmente era contra aquilo, mesmo porque sabia que
minha mãe era frenqüentadora assídua. Ela nunca disse onde
meu pai estava enterrado, dizia que ele virou luz, mas eu sei
que ela passava horas no cemitério. Levava livros, flores e
cigarros. Eu a segui.
Quarta-feira. Ela começou a se arrumar e eu me enfiei na
escuridão tumular do porta-malas. Deixei destravado o
assento traseiro que, baixado, dava acesso ao interior do
carro.
Mamãe perfumadíssima. Todas as quartas-feiras ela se
punha bonita e dizia que ia para a entidade.
Rezei pra que ela não abrisse o porta-malas. Deu certo.
Sofri um pouco com as brecadas, curvas, lombadas, e o carro
parou. Dentro do porta-malas era completamente escuro e eu
nada ouvia, pois tinha duas caixas de som bem em cima de
mim. James Taylor. Ela desligou o som e bateu a porta do
carro. Esperei um pouco, já tinha planejado contar até 50,
mas no 33 desisti e baixei o banco a fim de sair. Apavorei
quando a vi voltando pro carro trazendo lírios brancos.
Rapidamente voltei a me encolher na escuridão. Rezei pra
ela não ligar o James Taylor, mas do porta-malas Deus não
pôde me ouvir. Rodamos uns quinze minutos e o carro
estacionou, Taylor se calou... Contei até 50 e saí.
Cemitério. Antes de deixar o carro, avistei minha mãe
com os lírios adentrando o portão principal. Fui atrás dela.
Dei de cara com um anjo chorando sobre um mármore frio...
E bonito cemitério. Ela dobrou uma quadra e eu acelerei os
passos. Dobrei a mesma quadra, mas não a vi. Avancei
olhando para todos os lados e não a encontrei. O cemitério
era imenso, e eu levaria horas percorrendo todos aqueles
metros quadrados de lápides geladas. Também ela
demoraria; às quartas, nunca voltava pra casa antes das seis.
Dei prosseguimento à minha busca e passei quase duas horas
andando entre os mortos. No meu mórbido percurso, cruzei
algumas figuras peculiares; uma senhora que parava em
frente a certos túmulos e conversava um pouquinho, falou
com quatro ou cinco falecidos. E me entreti também com um
adolescente branqueio, cheio de espinhas, ele vestia uma
camisa branca com rendas na gola e nas mangas, sobre a
camisa um casaco preto abotoado; calça preta, botas de cano
alto, um crucifixo no peito e um terço nas mãos. Os
funcionários do cemitério usavam macacão azul.
Assisti de longe a um enterro. Uma mulher, um pouco
afastada, acompanhava o cortejo de longe. Ela chorava se
amparando nos túmulos, chorava como quem perdeu um
amor proibido. A amante. Continuei andando pensativa,
questionando a vida e a morte como todo ser humano faz.
Pensei em quantas pessoas morrem e nascem todos os dias,
pensei no Rei Leão, no ciclo da vida, no meu pai anjo, em
como alguém podia acreditar numa história tola dessas...
Lembrei do dia em que cansei dessa ficção barata, aliás, eu
já tinha até visto muitos filmes cujo tema era o amor entre
anjos e humanas. Assistia a essas fitas até o último crédito
pra ver se constava o nome da minha mãe e também pra me
certificar de que o filme era mesmo uma obra de ficção.
Hora de acabar com o mistério. Prensei mamãe contra a
parede.
— Eu quero saber quem é o meu pai.
— Você já sabe.
— Ah mãe... até quando!? Quem é? O nome!
— Traço xis traço xis traço!!
— Isso é ridículo e você é louca e eu quero saber quem é
o meu pai! Fala!!
— Ele era americano.
— Americano?!
— Americano.
— Estados Unidos? Norte-Americano?
— É. Chega.
— O nome dele... Você não sabe o nome dele? Qual deles
pode ser? Pensa! Fala! Com qual eu me pareço?
— Cale a sua boca! Me respeite! Eu sei muito bem quem
é o seu pai.
— O nome dele. Só um nome... Inventa um, qualquer
nome...
— Tem três letras.
— Fala!
— Jim.
— Jim?!
— Ele morreu num acidente aéreo. O corpo nunca foi
encontrado. Ele é um anjo. E isso.
— Jim o quê?
— O sobrenome dele? Eu não sei...
— Como não sabe?!
— Não sei se é Jones ou Smith...
— Isso é ridículo!
— Eu não sei, naquele vôo tinha um Jim Smith e um Jim
Jones. Aí ela começou a chorar e a conversa acabou. Não
acreditei em nada do que ela disse e foi aí que parti para as
sessões de investigação.
— Angela!!
— Mãe!
— Angela... Eu vim trazer flores pra sua avó, hoje é
aniversário de morte dela.
— Onde é o túmulo?
— Ih... Lá embaixo... Uma hora eu mostro. Ah! Acho que
você já viu... Tem dois anjinhos brancos no túmulo ao lado,
lembra?
— Não.
— O que você faz aqui?
— Vim pro enterro do pai da Rô, minha amiga.
— Rô?
— Do colégio... lembra?
— Não... Morreu do quê?
— Coração.
— Novo?
— Não. 47.
— Muito novo! Você nem comentou nada...
— Era hora de almoço, achei desagradável.
O VIZINHO
Edifício à direita do meu. Dezenas de metros nos
separava. Ele morava no 15° e eu, no 17°. Só eu tinha
sacada, só eu tinha cortinas, e por estar dois andares acima,
era minha a melhor visão.
Ele morava sozinho, vestia— se com distinção e tinha o
hábito de comer maçãs na janela, na janela do quarto. Ele
fingia que não me via e, às vezes, não via mesmo, eu tinha os
meus truques de observação.
Era verão, e meu vizinho abria totalmente as janelas nuas,
fazia ginástica na sala, sem camisa, de sunga, às vezes de
cueca... O visual merecia uma análise mais profunda, mais
próxima. Comprei um binóculo. Ele saía por volta das nove
horas e só voltava à noite; saía de terno e gravata. Aproveitei
a luz da tarde pra dar uma geral no apartamento dele. A sala
era bem arrumada, com poucos móveis, não tinha plantas
nem animais. Uns livros de direito, código penal, uns
clássicos de literatura e filosofia — nada como um bom
binóculo — , revistas empilhadas, um porta— retratos que
refletia a janela e não dava pra ver a foto, um jornal sobre a
mesa de vidro, caderno de esportes.
Pesquisa na sala: advogado, organizado, bem—
informado e gosta de futebol.
Duas janelas iguais; dois dormitórios. A primeira janela,
ao lado da sala, era o escritório, dava pra ver a tela de um
computador.
Pesquisa no escritório: Conectado.
A segunda janela era o quarto dele, dava pra ver a
cabeceira, um pedaço da cama desfeita e a lateral de uma
cômoda de gavetas. Nenhum quadro ou gravura nas paredes,
pelo menos dentro do meu campo de visão. A televisão
ficava no quarto, pela luz azulada e oscilante.
Pesquisa no quarto: Não arruma a cama, nem tão
organizado assim, na medida.
Era o que dava pra eu ver. A cozinha, banheiro e área de
serviço ficavam na outra face do prédio.
Às segundas, quartas e sextas, ele chegava com roupa
esportiva. Era mais caseiro que eu, mas saía às terças e
sábados e só voltava na madrugada, às vezes acompanhado,
sempre a mesma moça. Eu já conhecia a silhueta, o cabelo...
Obs.: Fiel.
Terça-feira, 16/01 — Ele chega bem tarde, com a
namorada, e transam na sala, com a luz acesa. Vi tudo de
camarote. Ele viril, intenso, forte, ela sorria extasiada e eu
também ria e reproduzia o prazer dela na minha alma. Bela,
a pela branca e os cabelos castanhos arruivados, sardas
espalhadas pelo corpo como estrelas, longas pernas, peitos
generosos, e não eram silicone, certeza. A pele dele, mais
escura que a dela, também os cabelos. Pelo jeito que ele se
mexia sobre ela, dava pra eu imaginar a sensação. Era voraz,
mas tinha delicadeza e a beijava com amor.
Mudaram de posição, ele se sentou no sofá, ela
agachou— se sobre ele, revirou os quadris em movimentos
circulares e depois verticais. Eu, no lugar dela, faria uma
sequência de espirais. Espirais, de cima a baixo, da base ao
topo do obelisco. Não me masturbei olhando pra eles, mas
molhei a calcinha. De repente ele olhou pra mim. As luzes
do meu apartamento estavam todas apagadas, não sei como
ele me viu, se viu, olhou e continuou... Mais ou menos uma
semana depois todas as janelas do apartamento dele
ganharam persianas e as minhas observações foram
totalmente prejudicadas.
Obs. 2: Discreto. Reservado.
Sexta-feira, 29/01 — Inverti o jogo, não foi proposital.
Chamei umas dez, doze pessoas para uma festinha em casa, e
tinha um cara de Veneza, ele era brasileiro, mas morava em
Veneza, trabalhava com vidro, esculpia vidro, um trabalho
lindo... Nos encantamos e juntos ficamos depois que todos se
foram. Começamos na sacada da sala e terminamos na janela
do meu quarto. Gozei olhando para as persianas fechadas do
meu vizinho. Alguns minutos e ele surgiu na janela do
quarto comendo uma maçã.
Verão, sol da manhã. Olhei minha brancura e desejei uma
marquinha de biquíni pelo menos pra me sentir participando
da estação das peles morenas. Reclinei a cadeira e me
entreguei ao astro— rei. Segundo os meus cálculos e
projeções, do ponto de vista dele, daria pra ver parte das
minhas coxas, joelhos, braços, busto e metade da cabeça;
talvez da janela da sala ele pudesse ver minhas pernas
inteiras. Ele continuava protegido pelas persianas e eu me
libertava das cortinas e desfrutava a sacada. Sol, vento...
Depois de umas duas semanas de exposição, minha pele já
era dourada e a marca do biquíni, a nova estampa.
Infelizmente tive que parar com as sessões de bronzeamento
natural devido às reclamações de alguns vizinhos, que
classificaram o meu solzinho como atentado ao pudor.
Recebi uma carta assinada pelo síndico e adorei quando
soube que algumas adolescentes do prédio aderiram à minha
sacada da sacada e lutaram por seus direitos numa reunião de
condomínio. Não adiantou, as meninas tiveram suas vozes
caladas pela maioria do conselho, mas aceleraram a reforma
do solário e fizeram uma piscina razoável.
FURTA— COR
Vivi uma sequência de decepções amorosas que deixaram
o meu coração em farrapos. Nada a ver com medo de amar,
eu só estava decidida a apagar os homens por um tempo,
queria experimentar uma solidão inédita... E ele apareceu
num sonho louco. Tínhamos nos visto algumas vezes, em
vernissages, exposições... Eu gostava da obra, mas nunca
tinha olhado para o criador... e sonhei com ele, nós dois nus
num ateliê. Eu sobre uma mesa, posava. Ele me lambia. A
saliva era colorida e a língua funcionava como uma espátula,
acho... e o pênis era o pincel espalhando a tinta por todo o
meu corpo. Acordei e, a exemplo de minha mãe, anotei esse
sonho. Passei a olhar aquele homem de uma outra maneira.
Um dia ele liga me convidando pra uma exposição, a
conversa seguiu caminhos insanos e combinamos um jantar
naquela mesma noite. A verdade é que eu nem lembrava
direito do rosto dele, mesmo no meu sonho, era um rosto
sem contornos.
Ele passou em casa e me levou pra comer ostras.
Conversamos infinitamente, nos beijamos, na volta ele subiu
e tudo acabou na minha cama...
O sonho foi mais colorido, mas o pincel real era melhor e
o beijo um esboço perfeito do que seriam as luzes e sombras
do depois. E ele veio equipado! Todo munido de camisinhas,
e nosso sexo foi seguro e tranqüilo. Gozei e ele veio junto.
Fizemos uma breve pausa e começamos tudo de novo, um
sexo mais íntimo, vibrante...
— E muito bom...
— Tá gostoso? Fala...
— Muito gostoso...
— Ah... você é demais.
— Eu vou pro espaço...
— Já vai gozar?
— Eu vou... Ah...
— Você é linda gozando...
— Vai de novo?
— Eu vou muitas vezes se continuar assim...
Foram mais cinco. Ele veio junto na última e mesmo
exausto e saciado me beijou muito depois.
Abri a porta pra ele e embarquei num sono de tons
pastéis. Duas horas depois, ele liga dizendo que teve uma
idéia. Temi que me pedisse em casamento, meu coração
dadaísta não sabia mais como bater... Nada de casamento,
ele não viu em mim uma esposa, mais que isso, vislumbrou
uma obra de arte.
Coletiva em Nova York. Renovei meu passaporte e fui
num avião fretado. Telas, esculturas e eu. Fiquei uma
semana exposta, mas não à venda. Fui a obra mais
comentada da exposição, capa do catálogo, página de várias
revistas e jornais, até o New York Times eu estampei.
Escultura viva.”Furta-cor” era o título da obra. Pintou o
meu cabelo e meu corpo de branco perolado, criou uma
iluminação especial e me colocou vivendo numa instalação
de superfície colorida. Conforme a minha movimentação,
alteravam-se as cores no meu corpo, num efeito furta— cor.
Belíssimo trabalho. Na instalação tinha tudo o que eu
precisava para sobreviver. Eu comia, via TV, lia... Tinha até
banheiro. O banheiro era o único lugar onde eu tinha quase
privacidade: meus pés e cabeça ficavam expostos ao público
e o restante do meu corpo era protegido por uma tarja preta.
Uma semana em Nova York, numa megaexposição, numa
supergaleria... À noite, eu era a única obra de arte que saía e
voltava no dia seguinte. Não transamos mais. Ele era muito
profissional e passou a cuidar de mim como se eu fosse parte
do seu acervo. No último dia da exposição, um milionário
americano ficou louco por mim e ofereceu setecentos mil
dólares pelo “Furta-cor”. Era a obra favorita, não tinha
preço, o artista não vendeu.
O PRÍNCIPE DA NOITE
AMOR ENCANTADO
Sei sumir, me desligar é outra história... Falava que ele
me amava e que eu só era apaixonada por ele. Dizia também
que odiava paixão, queria era conquistar o meu amor...
Falava que me sentia frágil, apesar da minha panca de
poderosa... e que iria me proteger... e queria só pra ele o meu
coração, e eu era especial e linda... Falava todas essas coisas
que mulher gosta de ouvir e que sempre voltam na minha
cabeça... Tantas palavras... Amor.
Amor. Procurei e não encontrei. A palavra amor não
estava no meu dicionário! Como não?! Um poderoso Aurélio
completíssimo de uma promoção do jornal. Colecionei os
fascículos e completei o dicionário. Capa dura, mais de não
sei quantos mil verbetes e tal... Só perdi o número 3. Eu
tinha toda a intenção de ligar na editora atrás do fascículo
que me faltava, mas acabei esquecendo, deixando pra
depois... Nunca imaginei que bem amor tivesse ficado de
fora. Eu tinha em casa mais dois outros Pequenos
Dicionários da Língua Portuguesa, um de bolso bem meia-
boca e outro de mil novecentos e bolinha, com as páginas
secas e amarelas, farmácia com ph, essas coisas... Nos dois
encontrei amor, mas ambas as definições me soaram vagas e
incompletas. E não eram meus aqueles dicionários, um
pertenceu ao meu avô e o outro era do meu irmão. No meu
dicionário não constava a palavra amor. Seria um sinal?
Estaria eu fadada à solidão? Fiz um rápido balanço dos meus
últimos relacionamentos amorosos e concluí que eu me
tornava uma pessoa cada vez mais complicada, medrosa,
cínica, egoísta, insolente, solitária.
Liguei na editora e eles não puderam me ajudar, a edição
já tinha mais de cinco anos e as páginas avulsas dos
fascículos nem existiam mais, foi o que me disseram. Meu
dicionário estava condenado a ficar sem amor, mas eu não.
Deu uma vontade louca de ligar pro Luiz. Já fazia doze anos
eu não o via... Ao longo desses anos, nos procuramos
algumas vezes mas na véspera eu desistia, ou algum
empecilho surgia... Nos distanciamos, silenciamos. Mas
desligar é outra história... E é incrível, quando a gente adia
um acontecimento, ele vai ficando cada vez mais longe e
corre o risco de virar mito.
A PASTA VERMELHA
Tinha a pasta amarela e tinha a pasta vermelha. Ao
contrário da amarela, a vermelha ficava totalmente visível e
ao alcance de todos, na cabeceira da minha mãe. Essa pasta
nunca despertou minha curiosidade, era nela que minha mãe
guardava contas, contratos, certidões... Ninguém nunca
mexeu ali até ela viajar e precisar urgentemente de um
documento. Ela ligou do Canadá e acompanhou pelo
telefone toda a busca na pasta vermelha, sabia exatamente
entre quais papéis o tal documento estaria. A pasta era
abarrotada e o elástico prestes a arrebentar.
— Manda amanhã sem falta, sem isso eu não saio daqui...
— Mãe, você estava na Sicília...!
— Conheci uma senhora canadense numa excursão...
— Sei... Nunca mais eu vou te ver?
— Vai, no Natal...
— Diz isso há dois anos.
— Eu prometo, vou nesse Natal, já comprei presentes,
muitos presentes, vou ter problemas com excesso de peso...
Mas eu continuo em forma...
— Amiga ou amigo canadense!?
— Amiga. Cheryl. Quer falar com ela?
— No, thanks...
— Fechou a pasta direitinho? Olha se não caiu nada, tem
muitas notas pequenas...
— Tudo certo.
— Cuidado com o elástico, está quase se rompendo.
— Eu já fechei, ele agüentou.
— Mande um beijo pros seus irmãos, vou mandar uns
postais...
— Morro de saudade...
— Eu também.
— Então vem logo!
— No Natal. Amo você.
— Também te amo.
— Um beijo!
— Beijo!
... O último cartão vinha da Sicília.
Depois que meus irmãos se casaram eu ainda fiquei uns
três anos morando com mamãe... Nessa época ela começou a
estudar uns autores a fundo. Leu obras completas, se arriscou
a escrever umas monografias e acabou ganhando uma bolsa
em Portugal; seis meses de bolsa custeados por uma
universidade. E lá se foi mamãe toda importante cruzando o
Atlântico... Terminou a bolsa e ela foi visitar uns amigos em
Amsterdã, depois foi pra Milão, mandou um postal dizendo
que iria pro Nepal, ligou de Marte pedindo pra que eu
descobrisse o telefone de uns parentes que viviam na África
do Sul...
Minha mãe não é anjo, mas descobriu que tinha asas e
voou.
Desliguei o telefone e quis rever a pasta amarela. Abri a
porta do armário e não achei a mala cheia de roupas de
inverno e muito menos a pasta, ela levou, concluí. Temi
nunca mais reler seus escritos e esquecer os trechos gravados
em minha memória...
Molhei as plantas, fechei as janelas, fazia isso uma vez
por semana. Mamãe sugeriu que eu ficasse na casa dela
durante sua ausência, mas eu não saberia o que fazer com
todos os meus móveis.
Entrei no meu antigo quarto, ela fez questão de deixar do
meu jeito, só mudou a cor da parede de amarelo para branco.
Também o quarto dos meus irmãos era o mesmo. Senti
saudade do tempo que vivi naquela casa e abracei a pasta
vermelha. Quando fui recolocá-la na gaveta da cabeceira, o
elástico frouxo se rompeu e todos aqueles papéis importantes
fugiram do meu abraço, bailaram no espaço e forraram o
chão do quarto. Contas, contratos, duplicatas, recibos,
convites de aniversário e casamento de meio mundo,
orações, santinhos, passaporte vencido, minha certidão de
nascimento e dos meus irmãos... título de eleitor, cic, recorte
de jornal, recorte de jornal, recorte de jornal...
Eu poderia ter começado pela pasta vermelha, até tive a
intenção quando falei do Don Juan... O Don Juan dos joelhos
e da atmosfera misteriosa...”Don Juan”,”A Divina
Comédia”,”Paolo e Francesca”... Nada fazia sentido. Salada
russa. Tragédia grega.
Em partes, o que minha mãe contou sobre meu pai parecia
ser verdade... ele se foi num acidente aéreo... Mas aquele
recorte de jornal ela nunca havia me mostrado... Por que o
guardava? Por que escondia?
“Todos os corpos foram encontrados. Nenhum dos
passageiros sobreviveu. O reconhecimento foi feito pelos
familiares das vítimas...”
Na lista com os nomes das vítimas não tinha nenhum Jim,
mas um outro nome chamou minha atenção... Miguel, nome
de anjo... Seria essa a viagem da minha mãe? Do outro lado
do recorte, tinha um pedaço de uma matéria sobre a geada
que prejudicou umas plantações no nordeste do estado.
Mamãe nunca se interessou por geadas...
Miguel Fonseca. Meu pai é um anjo e aquele poderia ser o
nome dele. Eu conhecia aquele nome e também o
sobrenome. Gritei.
MEUS IRMÃOS
Naturalmente a minha vida sexual não passaria sem um
caso de incesto e, pelo título do presente capítulo,
subentende— se que a relação, no caso, acontece entre
irmãos... Mas não é bem assim.
Li numa revista de psicanálise que relações incestuosas
entre irmãos acontecem com muito maior freqüência do que
se previa, altas porcentagens. Na matéria, além de alguns
casos reais, havia histórias de incesto entre divindades da
mitologia grega, citava também uns orixás... Isso acabou
dando um tom poético ao delicado assunto e eu, ao invés de
me sentir um verme, acabei me identificando com os deuses.
Meus dois meio— irmãos, Pedro e Paulo, sempre tiveram
verdadeira adoração por mim. Já o pai deles nunca suportou
a minha presença. Por muito tempo aquele homem perturbou
a minha mãe. Mesmo estando separados, quando soube que
ela estava grávida, quase a espancou, se não fossem os
vizinhos o deterem, essas linhas tortas não seriam escritas
nem por Deus, nem por mim... Inferno. E isso porque ele a
havia trocado pela secretária especialista em sexo anal, que,
sei lá como, também engravidou e, poucos meses antes do
meu nascimento, eles tiveram um menino: Edmundo, irmão
dos meus irmãos, mas não é meu irmão... Grande família.
Pedro, meu querido irmão mais velho, doce, lindo e
inteligente, sempre me ajudou em tudo: crises escolares,
financeiras, existenciais, crises amorosas... Quando eu tinha
dezesseis anos, me apaixonei perdidamente pelo cara mais
disputado do colégio, o Cláudio (eu o reencontrei em Paris
durante a turnê com o circo). Eu era louca por ele e Pedro
não suportava o meu sofrimento por causa daquela rala
criatura... E eu saía das festas chorando porque o Cláudio
estava aos beijos com a namorada... Na festa de formatura,
me excedi na bebida e quase cometi a tolice de me declarar
pra ele. Fiquei cega, não via nada nem ninguém à minha
frente, só ele e a fulana. Pedro me abraçou forte e cantou no
meu ouvido. Qualquer coisa ele faria pra que eu parasse com
aquela histeria desenfreada. Eu queria morrer... Abri a porta
do carro e tentei saltar. Ele me segurou, perdeu a direção e
estourou o carro num poste. Meu choro duplicou. Na hora da
batida ele me xingou de todos os palavrões existentes na
língua pátria, mas, passado o susto, me abraçou com ternura
e enxugou cada lágrima que brotava nos meus olhos antes
que elas rolassem. A batida não comprometeu o motor, e o
carro andou normalmente, embora com a frente
completamente amassada. Chegamos em casa e ele me
preparou um chá. Eu não conseguia parar de chorar, já nem
sabia mais se era por Cláudio ou pelo carro, ou pela minha
vida... por tudo talvez.
Tomei o chá e deitei a minha cabeça no ombro dele. Tive
vontade de beijá-lo. Dono de irresistíveis lábios carnudos, as
meninas gostavam e divulgavam o beijo dele como
“especial”.
— Eu queria te beijar.
— Beijar?
— Na boca, de língua.
— Ficou louca?
— Falam tanto do seu beijo, dizem que é especial.
Ele recheou os lábios com seus belos dentes e passou a
mão na minha cabeça como se eu fosse um cachorro.
— Como é um beijo especial?
— É o que eu quero saber... Você tem coragem?
— Não.
— Tem vontade?
— Não.
— Um beijo de irmão...
Ele beijou minha bochecha com exagerada sonoridade.
— E um beijo de meio— irmão?
— Quer mais chá?
— Não, quero um beijo da metade não-irmão.
— Vai dormir, amanhã se arrepende por ter bebido desse
jeito...
Eu nunca conheceria aquele beijo especial.
Já meu irmão Paulo não tinha toda essa paciência comigo,
pelo contrário, vivia irritado com as minhas roupas e com os
meus namorados. Pra ele, todos eram monstros terríveis que
só queriam se aproveitar de mim... Nunca entendi esse “se
aproveitar”, como se a minha participação num romance
fosse forçada... Demente. Quando Paulo estava tranqüilo, me
tratava feito débil mental, quando ficava atacado, me reduzia
a vagabunda. Morria de ciúme toda vez que eu me
apaixonava. Era selvagem, impetuoso, encrenqueiro, e com
notável facilidade afastava todos os meus melhores
pretendentes.
Ele era ciumento e eu era tão alegre... Eu amava ver todo
mundo alegre como eu. Adorava dançar e beijar as pessoas...
Teve um carnaval, eu toda feliz em cima de um trio elétrico,
dançando e beijando muito um lindo cheio de tatuagens, me
aparece Paulo com feição de possesso, me intimando a ir
embora naquele segundo...
— Eu não vou!
— Você vai agora, bonitinha e sem discussão.
— Percebeu que ela tá a fim de ficar?
— Não pedi o seu palpite.
— É o meu irmão... Mas eu vou ficar.
— Você vai comigo!
— Depois ela vai...
— Que depois ela vai, rapaz, ela vai agora!
O grosso do Paulo foi pegando no meu braço e me puxou
sem a menor delicadeza. Eu tentei me esquivar, ele me
segurou com violência e me empurrou em direção à
escadinha do trio elétrico. O tatuado me mandou um beijinho
e não lutou por mim...
— Imbecil...
— Esse banana só queria se aproveitar de você...
— Isso é ridículo! Você é um ridículo, insuportável e só
atrapalha a minha vida!
— É por você mesma, sua trouxa.
— Deixa que eu me cuido! Eu te odeio, seu bosta!
— Caguei...
— Você me sufoca, é o pior irmão do mundo... Nenhum
cara se aproxima de mim por causa de você, insuportável!
Eu queria que você sumisse da minha vida agora!
Insuportável!
— Eu não gosto de ver esses caras se esfregando em você.
— Então olha pro céu, olha pro lado, pra baixo... Some da
minha frente! Estrume!
— Eu sei que eu pego um pouco pesado...
— Um pouco?!
— Me sobe o sangue ver um babaca qualquer quase te
comendo...
— E se eu estou ali é porque estou gostando muito!
— Você não vale nada...
— Por quê!?
E me vi no lado inverso da mesma situação, vivida na
mesma cozinha, mas com o meu outro irmão. Eles são tão
diferentes...
— Você beija todos os caras.
— Eu não beijo todos os caras, beijo só os que eu gosto.
— O tatuado você nunca tinha visto e tava lá...
— Gostei dele!
— Fica com qualquer um, até comigo se eu insistir um
pouco...
— Com você!?
— Você me beijaria como beija aqueles caras?
— Não...
Me aproximei dele, fechei os olhos...
— Me deixaria ser beijada...
Entreabri a boca esperando por um tapa na cara. Ele me
beijou, o beijo dele era como o meu. Foi relativamente
longo, eu encerrei baixando a cabeça, depois olhei bem nos
olhos dele e fui direto para o meu quarto. Nunca mais nos
beijamos, mas a partir desse ocorrido, ele passou a me tratar
com mais respeito. Também nunca comentamos aquele beijo
na cozinha, não sei dizer se foi bom... Foi estranho e
fraterno. Sempre que eu via um fdme, romance, novela, cujo
tema era incesto entre irmãos, eu lembrava desse beijo e
pensava no Paulo. Pela minha experiência com ele, eu
acreditava ser impossível me envolver com um irmão. Foi só
um beijo e não passaria daquilo, nossos glóbulos não
deixariam... imaginei.
Uma vez, num devaneio, me coloquei como uma
desconhecida do Paulo. — Nos encontramos numa feira
livre... Minha sacola arrebenta e as frutas caem rolando... Ele
me socorre. Tomamos um café e passamos a nos encontrar.
— Se ele fosse meu irmão, mesmo tendo vivido no Japão a
vida inteira, eu o reconheceria. Também o Pedro, eu saberia
que é meu irmão em qualquer situação. Sempre achei que os
glóbulos falariam mais alto.
:::: F I M ::::
Editor
Luiz Fernando Emediato
Capa
Victor Burton
Revisão
Paulo César de Oliveira
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro)
Ferreira, Ana
Amadora : romance / Ana Ferreira. — São Paulo :
Geração Editorial, 2001
Geração na Internet
www.geracaobooks. com. br
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2003
Impresso no Brasil
Printed in Brazil