Realismo Animisma - Mia Couto
Realismo Animisma - Mia Couto
Realismo Animisma - Mia Couto
em Mia Couto
A tale of time, a river poem: animism in Mia Couto
Michelle Aranda Facchin
UNESP
Introdução
O termo “realismo animista” foi utilizado por vários escritores africanos. Pepetela foi um
dos primeiros a mencioná-lo em seu romance Lueji (1989), cuja parte que nos interessa é a que
fala sobre a adaptação de um balé europeu aos moldes africanos e, para caracterizar a cultura
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africana, trata mais especificamente da crença do africano em poderes mágicos e nas energias
existentes em amuletos e outros objetos, servindo-se do termo “realismo animista”:
– Aqui não estamos a fazer país nenhum – disse Lu. – A arte não tem
que o fazer, apenas reflecti-lo.
– Eu queria é fustigar os dogmas.
– Eu sei, Jaime. Por isso te inscreves na corrente do realismo animista...
– É. O azar é que não crio nada para exemplificar. E ainda não apareceu
nenhum cérebro para teorizar a corrente. Só existe o nome e a realidade
da coisa. Mas este bailado todo é realismo animista, duma ponta à
outra. Esperemos que os críticos o reconheçam. [...] O Jaime diz a única
estética que nos serve é a do realismo animista, explicou Lu. Como
houve o realismo e o neo, o realismo socialista e o fantástico, e outros
realismos por aí. [...] isto que andamos a fazer é sem dúvida alguma. Se
triunfamos é graças ao amuleto que a Lu tem no pescoço (PEPETELA, 1997,
p. 451-456 apud KUČEROVÁ, 2013, p. 10)
O animismo considera a força espiritual ou, como o próprio termo sugere, a anima, ou
seja, a alma que todo ser possui, seja ele humano, animal, ou até mesmo um objeto que a visão
racionalista considera inanimado. A visão animista é constituinte da África, conforme Nsang
Kabwasa afirma, é uma visão africana do mundo, que considera a força vital dos antepassados
como algo permanente, como uma força espiritual: “o respeito que os rodeia [os antepassados]
deve-se não só à sua longevidade – fenômeno raro na África – mas também à visão animista
africana do universo, segundo a qual a vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em
gerações sucessivas.” (KABWASA, 1982, p. 14)
Harry Garuba também lança algumas considerações sobre esse termo. Para ele, o
animismo vai além de uma crença religiosa em poderes mágicos, deuses e espíritos, mas atua
como prática cultural do povo africano: “O ‘aprisionamento’ do espírito dentro da matéria ou a
fusão do material e do metafórico, que a lógica animista sugere, parece então serem reproduzidos
nas práticas culturais da sociedade” (GARUBA, 2012, p. 240).
Segundo Freud:
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[Animism is a system of thought. It does not merely give an explanation of a
particular phenomenon, but allows us to grasp the whole universe as a single
unity from a single point of view. The human race, if we are to follow the
authorities, have in the course of ages developed three such systems of thought
– three great pictures of the universe: animistic (or mythological), religious and
scientific. Of these, animism, the first to be created, is perhaps the one which is
most consistent and exhaustive and which gives a truly complete explanation of
the nature of the universe.]
[The scientific view of the universe no longer affords any room for human
omnipotence; men have acknowledged their smallness and submitted resignedly
to death and to the other necessities of nature. None the less some of the
primitive belief in omnipotence still survives in men’s faith in the power of the
human mind, which grapples with the laws of reality.]
Com base no exposto, definimos o animismo não como uma prática primitiva, mas sim
como uma forma específica de enxergar o mundo, com base no que Mia Couto menciona em
entrevista cedida a Doris Wieser:
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habilidade de fazer essa permuta, essa fusão, têm habilidade de fazer o resto
porque a religião é o mais íntimo, o chão da alma das pessoas. (COUTO,
2014b, p. 216)
Baseamo-nos na ideia de que, nas literaturas africanas, a natureza animista predomina como
uma forma, dentre outras, de moldar uma realidade cultural e artística, conforme as palavras de
Tábita Wittmann (2012, p. 33) sugerem: “Nas literaturas africanas a natureza dos acontecimentos
está calcada nas crenças religiosas animistas, nos antepassados e em poderes que existem na
natureza, no sobrenatural. Escritores e críticos das literaturas africanas têm proposto a expressão
‘realismo animista’, como adjetivo adequado a uma formulação teórica para essa realidade cultural
e artística.” A pesquisadora também reitera que o animismo é uma forma de religiosidade que não
está ligada diretamente a uma doutrina teológica, mas está mais próximo de um imaginário social
que compõe as práticas culturais. (WITTMANN, 2012, p. 60)
A intenção deste artigo é primeiramente apresentar uma revisão bibliográfica sobre o
animismo tanto como prática ritualística nas sociedades africanas, como uma prática cultural que
caracteriza e especifica um modo de pensar o mundo, exemplificando esse olhar animista, em um
segundo momento, por meio da análise do poema intitulado “Viagem”, publicado na coletânea
Vagas e lumes (2014), e do conto “Nas águas do tempo”, parte da coletânea Estórias abensonhadas
(2012), ambas as obras escritas por Mia Couto.
Na África, existe a crença nas almas e no poder que cada objeto, ser ou elemento da
natureza carrega. É comum do povo Yorubá, por exemplo, o culto aos orixás e a realização de
rituais, sacrifícios, oferendas, com base na utilização dos quatro elementos da natureza: água, ar,
terra e fogo. Esses rituais têm como eixo condutor uma visão animista, considerando o poder de
ação das forças ocultas na vida do homem e a força que existe na manipulação de energias em
rituais para a obtenção de uma melhor colheita, por exemplo, ou para receber a orientação dos
ancestrais sobre algum problema que o povo esteja vivenciando.
Animismo vem do vocábulo latim anima e significa alma. A ideia de alma é ancestral e foi
considerada por alguns estudiosos como algo derivado da respiração, ou dos sonhos, por meio
dos quais as pessoas já mortas podem aparecer e, desse modo, manterem-se vivas para seus
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descendentes. A partir disso, estendeu-se a crença de que os objetos e todos os elementos da
natureza possuem almas, tendo, inclusive, personalidades atribuídas a eles: o vento, o sol, os rios,
as pedras, árvores e outros mais são detentores de poderes e inteligência, conforme relata
Parrinder (1954, p. 21).
Em 1871, Edward Tylor (apud PARRINDER, 1954, p. 20) afirmou que o animismo, ou
seja, a crença em seres espirituais ou almas, é a raiz de toda crença religiosa, informação essa que
prova ser o animismo um modo de pensar não exclusivo da cultura africana, embora esteja
fortemente presente e manifestado na África. No oeste do país, há a palavra nyama, cujo
significado é energia, força vital, e é utilizado para referir-se à essência vital dos animais, do
homem e de Deus. A cultura Bantu acredita que todos os seres possuem uma força, em graus
hierárquicos, indo do homem para os outros animais e os reinos vegetal e mineral. Em resumo, a
cultura africana acredita nos ancestrais, na sua influência sobre a vida dos seus descendentes, e
também nos poderes mágicos e divinos dos rios, oceanos, céu, sol e outros elementos naturais ou
objetos que o pensamento racional considera como inanimados, conforme afirma Garuba (2012,
p. 239): “o animismo é muitas vezes visto como a crença em objetos, como pedras, árvores ou
rios pela simples razão de que deuses e espíritos animistas são localizados e incorporados em
objetos: os objetos são a manifestação material e física dos deuses e espíritos.”
Pensando na relação dos africanos com os ancestrais, Parrinder (1954) comenta a respeito
das oferendas e rituais que são feitos para pedir orientação aos mortos ou seres divinos, seja para
controlar a natureza ou em qualquer outra questão da vida prática que seja de difícil solução:
[ancestors are regarded as having powers which are useful to men [...]. The
ancestors were human, but they have acquired additional powers and men seek
to obtain their blessing or avert their anger by due offerings. [...] magic was
older than religion; [...] there was an age of magic when men tried to control
nature by sheer force of spells and enchantements, but when they found these
to fail they looked for higher powers and accepted the belief in gods and
personal powers beyond man on whom he depends for help.]
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Nessa mesma obra, Parrinder (1954, p. 27) enfatiza que os símbolos religiosos, os ritos e
os dogmas são importantes para unificar a sociedade africana, dando-lhe coesão e persistência. O
sistema social é movido para um plano místico onde outras forças funcionam, promovendo
sanções que a sociedade por si só não supre.
Garuba (2012, p. 239) acredita que, por meio do que ele chama de realismo animista,
ocorre um reencantamento do mundo racional e científico, que é apropriado e transformado no
místico e no mágico.
2. Análises
“Viagem”
No caminho
havia um rio.
E o rio
tinha da navalha
o apurado fio.
E cortou em dois o mundo.
Chamei o peixe.
E o peixe bebeu o rio.
No céu
havia nuvens.
Eram nuvens velhas, cansadas.
Chamei o pássaro.
E o pássaro comeu o céu.
Sobejou,
sob os pés, a terra
e a sua imensidão.
Chamei o tempo.
E o tempo comeu o chão.
E o sonho
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foi ave e peixe,
foi tempo e foi céu.
Depois, aos poucos,
o sonho me devorou a vida.
E, assim,
em mim,
nasceram todas as vidas.
O título do poema sugere o que vemos no plano de conteúdo: relata-se uma espécie de
viagem metafórica, uma viagem que se dá tanto pelos caminhos materiais (o rio, o céu, a terra),
como também por cenários imagéticos e metafísicos (o sonho e a vida em essência). Desse modo,
a viagem retratada no poema é a metáfora de todas as vidas, que se localizam nos planos material
e extramaterial; podemos dizer que o poema encarna uma experiência lírica animista porque
considera todos os seres inanimados e da natureza como dotados de poder e alma. Na primeira
estrofe, é apresentada uma primeira forma de vida, o rio, que possui poderes de “cortar” o
mundo em dois. Essa vida é logo extinta porque o peixe a “bebe”, assumindo para si todos os
poderes ligados ao rio. Nessa primeira parte do poema já notamos uma forte tendência ao
realismo animista expoente na cultura africana. Esse mesmo olhar animista perpassa todas as
estrofes do poema: a viagem começa pelo rio, que se divide em dois mundos, e se extingue do
plano material quando é “bebido” pelo peixe, passando sua essência para um outro ser; o que nos
faz lembrar das práticas canibalistas e na crença da passagem dos poderes vitais daquele que é
ingerido para aquele que o ingere. Esse sentido é reiterado pelo uso dos verbos “beber” (1ª
estrofe), “comer” (2ª e 3ª estrofes) e “devorar” (na penúltima estrofe), os quais promovem uma
significação mágica por não corresponderem aos seus sentidos usuais, uma vez que figuram uma
ideia de morte, transcendência à outra vida ou a outro plano, promulgando a ideia de que todos
os seres animados ou inanimados são detentores de uma essência vital ou poder mágico.
Desse modo, o peixe bebe o rio e se torna rio; o pássaro come o céu, transformando-se
no próprio céu; o tempo come o chão que não é mais chão, e assim por diante, até serem todos
esses seres vislumbrados no sonho do eu-lírico. Tal sonho, ao ingerir todo o mundo apresentado
desde o início da viagem, torna-se completo, pois “foi ave e peixe, / foi tempo e foi céu. /
Depois, aos poucos, / o sonho me devorou a vida.”, ou seja, o sonho se torna tão completo em
essência de mundos e seres que devora e inunda toda a vida do eu-lírico, transformando-o por
meio da assunção de “todas as vidas” que foram ingeridas anteriormente por esse sonho.
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O sonho restabelece, por assim dizer, a falta do eu-lírico: faltavam-lhe terra, céu, rio,
chão; o sonho, por sua vez, contém todo esse mundo ulterior perdido pelo eu-lírico, como se
fosse o tempo original que atua na cura do presente. Conforme vemos em Mircea Eliade (1972),
é através da experiência do sagrado, do encontro com uma realidade transumana que desponta
uma realidade capaz de dar significado e explicações à vida. Tomando como base o pensamento
do mito, concluímos que a rememoração e a reatualização dos eventos primordiais ajudam o
homem a distinguir e reter o real e isso é normalmente feito por meio dos ritos. No caso do
poema de Mia Couto, retoma-se o tempo sagrado por meio do sonho, que atua como um meio
de propagar o mito fundador para curar e renovar o mundo presente do eu-lírico. Digamos que
este poema divulga um novo posicionamento do eu-lírico diante da vida, construído e
possibilitado pelo pensamento animista. Cabe ressaltar que os rios, as montanhas e toda a
natureza, para a maioria dos africanos, principalmente para aqueles que vivem na África oriental,
detêm poderes especiais: “Os espíritos podem ter morada em qualquer objeto natural, em cada
colina e embaixo de cada árvore verde” (PARRINDER, 1954, p. 52, tradução nossa). Essa vida
espiritual presente nos elementos da natureza se expressa também nos contos de Mia Couto,
dentre os quais selecionamos “Nas águas do tempo”:
Era sua advertência [do avô]. Tirar água no sentido contrário ao da corrente
pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem.
Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava.
Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se
inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra.
(COUTO, 2012, p. 10)
A força do rio está intimamente ligada ao poder dos ancestrais, isto é, os familiares que
morreram ainda permanecem vivos pela força espiritual que manifestam na natureza. De acordo
com Parrinder (1954, p. 58-60), os ancestrais são temidos pelos vivos por terem um tipo de
comportamento imprevisível e agressivo, muitas vezes, podendo estar relacionado a catástrofes
naturais, mortes e doenças na família. Os homens tentam coagir os ancestrais por meio de
sacrifícios e por comportamentos de respeito total às vontades que acreditam ser dos mortos. É
muito comum os africanos pensarem nos ancestrais, seja para justificar as desgraças como efeitos
da ira dos que já se foram, ou mesmo para pedir ajuda para curar alguma doença ou resolver
problemas sérios. Isso se manifesta no conto analisado, em que o neto tenta pisar na outra
margem do lago, mas não encontra chão. O próprio avô lhe advertira: “- Neste lugar, não há
pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.” (COUTO, 2012, p. 12). Ambos, avô e
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neto, lutam contra o abismo e são salvos quando, por ideia do avô, acenam para a margem,
supostamente para um espírito ancestral que ali habitava:
Diante do trecho citado, percebemos o poder dos ancestrais, que habitam a tradição, a
qual, por sua vez, é ensinada pelo avô:
[...] nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os
sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de
ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da
outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos
pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado
pelos panos. (COUTO, 2012, p. 13)
A preocupação do avô pela manutenção da tradição é algo que representa uma força
contra a perda da memória das novas gerações que, segundo Carmen Lúcia, “os anos de
colonialismo e a Independência fizeram esmaecer” (SECCO, 1998, p. 167).
Embora tenha vivenciado uma experiência de acenar para a outra margem, o neto só
consegue enxergar os “panos da outra margem” quando seu avô acena o seu próprio pano
vermelho, que, aos poucos, vai-se “branqueando”. Essa outra margem que o neto descobre
apenas com a morte do avô é um rio que nele “não haveria nunca de morrer” e é a esse rio que
ele conduzirá seu filho, “lhe ensinando a vislumbrar os brancos da outra margem.”
Essa narrativa pode ser pensada como um movimento de manutenção daquilo que Secco
chamou de “memória coletiva moçambicana”, como uma “forma encontrada para resistir à
morte das tradições causada pelas destruições advindas da guerra.” (SECCO, 1998, p. 161).
Essa mesma temática está presente no poema analisado. Em ambos os textos de Mia
Couto, podemos pensar em dois planos de leitura: o primeiro plano envolve uma construção
imagética na qual a natureza detém poderes vitais e animistas. No caso do poema, constrói-se o
trajeto de uma viagem pela vida através dos tempos, apresentando um ciclo que parte do
surgimento da vida até seu término e seu renascimento por meio de várias vidas acionadas pela
revivência do tempo sagrado. Já no conto, a natureza possui uma conexão com os espíritos,
sendo que ambas as forças se integram e se manifestam ao mesmo tempo, ou seja, o espírito
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controla a força do rio e o rio manifesta sua força sobrenatural por meio da integração com os
antepassados e com a tradição da terra.
O segundo plano de leitura envolve uma questão ideológica de construção da identidade
moçambicana em um cenário pós-colonial, em que se busca uma mistura harmoniosa de
elementos da tradição perdida com os ensinamentos da terra colonizada, reatualizada e atual. Essa
temática está presente, em geral, na estética de Mia Couto, que coloca as identidades em ponto de
tensão, em um processo que envolve, segundo Fonseca e Cury (2008, p. 86-88), “retomar, em
espiral, as memórias de si e do outro [...] A leitura da vivência interna do outro dentro de minha
própria identidade pode ser o conceito mediador de compreensão do mundo que partilhamos,
como possibilidade de atravessá-lo mais criticamente”. É esse movimento de “beber” a vivência
interna do outro que vemos expresso no poema “Viagem” e que estabelece esse intercâmbio
cultural do eu-lírico com outros universos que não o dele, fazendo-o um “ser” dotado de “todas
as vidas”, ou seja, identidades variadas que o compõem após a modificação total do universo ao
qual esse eu estava habituado. No conto “Nas águas do tempo”, essa reatualização dos valores
acontece pelas gerações descendentes do “avô”, representadas pelo neto, que apresenta
dificuldades de enxergar os ancestrais na outra margem do rio, e pela filha, que desconfia dos
“não propósitos” do pai.
Nesse caso, os dois textos analisados ganham um aspecto metalinguístico porque
envolvem uma reflexão sobre a escrita ficcional de Mia Couto, conforme trecho escrito em
posfácio, cujo excerto extraímos do livro O último voo do flamingo:
A terra, a árvore, o céu: é na margem desses mundos que tento a ilusão de uma costura.
É uma escrita que aspira ganhar sotaques do chão, fazer-se seiva vegetal e, de quando
em quando, sonhar o voo da asa rubra. É uma resposta pouca perante os fazedores de
guerra e construtores da miséria. Mas é aquela que sei e posso, aquela em que apostei a
minha vida e o meu tempo de viver. (COUTO, 2005, p.224-225)
O céu e a terra citados pelo autor são parte dos elementos que compõem, inclusive, o
poema “Viagem” e o conto “Nas águas do tempo”, dando-nos o caminho para compreender o
animismo como marca constante na composição da obra de Mia Couto, o que pretendemos
desenvolver e aprofundar em estudos posteriores.
Considerações finais
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Por meio do breve estudo, concluímos que o animismo é um elemento constante nos
dois textos aqui analisados, atuando no processo de representação cultural de Moçambique.
Tanto no conto quanto no poema, a tradição e o novo dialogam, ou seja, o culto aos ancestrais e
as tradições animistas convivem com as novas configurações oriundas do pós-colonialismo,
reiterando aquilo que Mia Couto menciona em entrevista: “A modernidade africana convive de
modo atribulado com isso que chamamos de tradição e está refabricando rituais e crenças.”
(COUTO, 2007, p. 6). Essa marca do animismo é constante na criação literária de Mia Couto e
parece atuar no processo de representação de uma nação em que a tradição e os valores pós-
coloniais convivem. Obviamente, pretendemos aprofundar essas questões por meio de análises
futuras, no entanto, já compreendemos o animismo como elemento importante e presente tanto
na produção ficcional do escritor como nas entrevistas em que ele reflete sobre o seu processo de
criação literária e de representação da cultura moçambicana.
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