Carla Diacov
Carla Diacov
Carla Diacov
apresentação - 9
por Yasmin Nigri
efetuar pagamento - 17
graças a deus entre nós - 19
lhufas vão bem com vinho turvo - 21
hojendia - 23
a porca - 25
delivery - 27
nós nas bolhas - 29
todo o amor do mundo - 31
você que chega da padaria - 33
o aniversário dos minutos - 35
apareceu no sabonete verde - 37
a cidade foi cercada - 39
como sempre ali na beira - 41
guidom - 43
constantemente - 45
soledade anda pelo cais - 47
um jeito de dizer o corpo sem a carcaça - 49
vou comprar um rifle - 51
o dia em que Frida cortou a própria orelha - 53
é como dormir com um pão - 55
uma cadeira um prego um cego - 57
senti uma pausa - 59
um título que não chega ao coração - 61
sobe a anágua - 63
quando menino meu menino - 65
então um gesto idoso - 67
há nela o guanumbiguaçu da velhice - 69
embora esta noite pouca - 71
esganadura - 73
Apresentação
por Yasmin Nigri
veja bem
como é desnecessária a bula para perder a cabeça
em
pleno safári íntimo
9
Para entrar neste livro, ou “safári íntimo”,
basta estar disposto a rasgar as bulas e perder
a cabeça. Seguindo as recomendações, leitora e
leitor estarão aptos a embarcar no amanhecer de
um mundo indócil e virulento.
O belíssimo poema de abertura “nós nas
bolhas” apresenta um indivíduo não capturado
pelas regras sociais e, por conseguinte, as disso-
nâncias entre um comportamento adulto e
civilizado e um comportamento “selvagem”. Carla
faz uso de uma série de imagens escatológicas
para retratar comportamentos socialmente into-
leráveis (ou mesmo patológicos) após o processo
de socialização e de entrada na linguagem.
Escrito em primeira pessoa o poema diz:
como um bebê
eu haveria de passar pelos dias
...
esperar que cresçam unhas nas pontas dos dedos
e arranhar as gengivas
brincar com as pernas no ar
dar nós nas bolhas de baba
morder o dedo do médico
não enxergar a tradução no que dizem
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vomitar no teu ombro
me cagar de dez em dez minutos
chorar só um pouquinho
engolir moedas
não enxergar a tradução no que dançam e cantam
ter os sentimentos cercados de barras
como um poeta
eu haveria de passar pelos dias
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de circular à margem, instaurar outros arranjos,
criticar os modos de ser e pensar o mundo.
Na obra, as relações se estabelecem numa
espécie de jogo entre desejo e violência, que agem
tanto de fora pra dentro quanto de dentro pra
fora. É curioso notar que neste jogo há lugar para
a ternura e também o humor, não por acaso, o
livro é permeado de imagens inusitadas. O poema
“vou comprar um rifle” ilustra este jogo:
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justamente a compreensão de que cada um
enxerga aquilo que suas experiências possibilitam,
e quanto menor é a relação reflexiva que o
sujeito estabelece com as suas experiências mais
empobrecido fica o olhar diante do mundo. No
poema “a porca”, a poeta e também desenhista se
refere a uma de suas pinturas feitas com sangue
menstrual:
quem vê o gato no
desenho menstruado
também vê minhas combinações
com o vermelho usado
vê uns ovos quebrados e
quem não vê o gato vê
o pentagrama subliminar
o bruxedo aplicado com severidade e negligência
quem vê viado sapatão no
gato de sangue
vê o vermelho nos meus olhos
...
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subalterna. Ao entrarmos na trama tecida por
Carla é inevitável que as verdades deem lugar
ao espanto. Neste projeto fascinante podemos
vislumbrar uma espécie de retrato borrado,
permeado por brechas e lacunas, por onde
entrevemos a trajetória de autoafirmação da
poeta.
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efetuar pagamento
17
muito mais parecido comigo
e já o peso do lápis confere o documento que segue
meu pai então
protocolado
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graças a deus entre nós
19
lhufas vão bem com vinho turvo
21
esperar para que a noite chegue
inculta
cabendo a tudo
o dia na noite com salada
sujeira de pássaros
lhufas um filho uma saída
22
hojendia
23
a porca
quem vê o gato no
desenho menstruado
também vê minhas combinações
com o vermelho usado
vê uns ovos quebrados e
quem não vê o gato vê
o pentagrama subliminar
o bruxedo aplicado com severidade e negligência
quem vê viado sapatão no
gato de sangue
vê o vermelho nos meus olhos
noturnos aflitos gordos
vê os planetas intrometidos
nas minhas datas
minhas frases e fases intrometidas
nos palavrões
vê a música que minha avó
cantaria hoje vê meu pai
preocupado com a primeira vez
que deu gato em mim vê o gato
quem não vê
uns ovos inteiros desperdiçados
vê a filha que seria a filha com
o nome da avó da mãe dela
não vê o gato quem vê antecâmara
não vê o gato quem vê a porca
25
vê o gato quem fecha os olhos para
o azul vê o gato chinês em 1975
vê um museu e uma rodoviária vê
uma mosca o nome da freira o nome
do toureiro o nome da cantora o nome
da poltrona do marinheiro
que eu seria até o dia em que
deu gato pingado no jeans na escola
na blusa do uniforme amarrada na cintura
ou mais depressa
quem decifra o sorriso da sardinha
na goela do gato vê o marinheiro
a cantora a freira vê a poltrona
o toureiro injuriado na biografia da minha neta
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delivery
27
nós nas bolhas
como um bebê
eu haveria de passar pelos dias
sentir cócegas nos ossos
não enxergar a tradução dos letreiros
subir as escadas pelos olhos dos outros
engatinhando para apanhar o frasco de aspirinas
os ansiolíticos
vomitar no álbum de lembranças que não são minhas
esperar que cresçam unhas nas pontas dos dedos
e arranhar as gengivas
brincar com as pernas no ar
dar nós nas bolhas de baba
morder o dedo do médico
não enxergar a tradução no que dizem
vomitar no teu ombro
me cagar de dez em dez minutos
chorar só um pouquinho
engolir moedas
não enxergar a tradução no que dançam e cantam
ter os sentimentos cercados de barras
e tomar um bom trago de vodca barata no fim da manhã
antes da papinha cheia de saliva da mamãe
como um poeta
eu haveria de passar pelos dias
29
todo o amor do mundo
31
você que chega da padaria
e traz pão e salame e o queijo de nome impronunciável
você que diz todas as árvores do caminho
você que diz
com tanto carinho com toda propriedade
todos os fogos do caminho você
que toca a maçaneta aprisionando teu próprio rosto
você que põe a toalha com o bordado para baixo
canta a música inventada puxa meu braço e
minha dança torta você que
apanha a faca e os copinhos você
33
o aniversário dos minutos
35
apareceu no sabonete verde
a cara de uma senhora que não me é
estranha
anoto o evento no bafo da janela
saio do banho com o sabonete na mão direita
não me enxugo
agora tudo tanto
desde o registro aberto tudo não me é estranho
o sabonete está ali
opera mínimos milagres em seu nicho de toalha de rosto
sabonete
senhora
janela
mão
registro
milagres
nicho
toalha
ergui um forte entre minhas suspeitas
37
a cidade foi cercada
e vem a noite
e de milhares de leões
um
a cidade foi devastada
e de milhares de barrigas
uma
e vem a manhã
o mar arredou
há uma concha trincada
debaixo de tão pequeno pé
há séculos a cidade sangra pelos teu canais
porque a poeira
que sempre vaza os lençóis
assim desejou
a cidade foi inundada
também
pelos teus canais
agora a noite precisa ser mentida
39
como sempre ali na beira
seduzir as sardinhas
como sempre ali na beira
ali na noite clara demais
ali na palestra da fogueira
desembrulhando as mãos vazias
espantada nada com as aves mortas
as aves mortas do dia
as orelhas envelhecendo junto do mundo natimorto
respirarespira ainda respirando natimorto ladrilho
[molhado
uns olhos fritos de viver jorradas as sardinhas
a carne solta do couro tudo com céu por cima
que aberração
seduzir sardinhas
cair no sono da areia fresca
pedir talheres ao chinês do sono
voltar e seduzir outras espécies
que aberração o fogo sempre metido na sedução
amanhecer com palitos do oriente entre os dedos
o peso da mão e a corrente
sede frutos com garras e
cinzas de um mês passado ontem
digna aberração
cercar de mar um beijo desesperado
seduzir girafas marinhas
41
guidom
essa bicicleta
que muito se assemelha a um vulcão em plena erupção
foi construída depois da finalidade do uso que se faria
[dessas rodas nela
essa bicicleta
que muito se assemelha a um balcão de estiramento
seria necessária depois da fundição dos nossos carinhos
depois da ideia bicicleta que arranquei da tua boca
esse clarinete
que muito se assemelha a um colóquio emburrado
foi destituído do cargo clarinete
logo após a desobediência sonar civilizada
estou a dizer-te
meu amor
com tanto cafuné nos conceitos
que eu não sei andar de bicicleta
43
constantemente
a xícara pergunta pelo céu
escrevo isso porque
confere-se
porque
ao se conferir
confere-se
quero mesmo é comover teus trígonos
tygertyger
constantemente o ponto de ônibus
é invadido por criaturas com muita
lã nos gestos ensopados
constantemente o edifício ao lado é
desmedido por pombas atiçadas
constantemente as xícaras também estão em
línguas em outros apartamentos constantemente
o céu faz falta no peso do corpo de cima
constantemente os tigres se
desafiam a viver como lésbicas
constantemente vibrantes e ensolaradas
tygertyger teus trígonostyger
45
soledade anda pelo cais
caminha as retas olhando os pés
segue as retas dos pés ao pássaro
pinta navios da cor do sexo pinta
penas da cor das cordas no cais
soledade chega devagar
47
um jeito de dizer o corpo sem a carcaça
do outro cadáver uma maneira de calar o mundo sem
calar os golpes do mundo de fora do
mundo de dentro e um copo virado sobre a mesa
prendendo a barata sem prender o amor por ela
o amador a amadora o adorável verniz que não que nunca
49
vou comprar um rifle
comprar
mais pão
a munição compro depois
ou peço para o vizinho da tua prima
51
o dia em que Frida cortou a própria orelha
53
é como dormir com um pão
sobre o olho direito
acorda-se
que faz o mundo
além de denunciar o homem e a porcelana
com o café já tão frio?
que faz o dia
além de facilitar a volúpia entre pombos da mesma
[tonalidade?
que traz o dia
além da oportunidade em estar à pia com a faca
com a cebola
com o mapa astral?
que traz o dia
além da narração inversa do passante cheio de sinônimos
[na boca?
55
uma cadeira um prego um cego um
monge e três maneiras de ler o acidente:
um monge dois pregos
o estofado um trapo de roupa íntima
ninguém sabe o sexo do pano
e mais uma maneira de ler
o acidente:
uma chaleira
que foi colocada na fogueira
sem que o sexo se fizesse percebido
a cor que pode ser sangue que pode ser merda
um nome apregoado sem que o pano:
uma planta um jarro e
qualquer maneira de deixar que o acidente seja:
meio chumaço de algodão doce
uma boneca sem os braços
uma poltrona sem uns baços
todo o estofado de todo o acidente e
todo o tempo na ponta do prego:
ninguém sabe falar o acidente sem
derramar o doce estofado:
57
senti uma pausa
na configuração do nome da flor
entre os teus dentes
sinto que isso revela
e que não importa o mistério revelado
importa o tiro no éter importa a pausa
a conotação do espinho o espanto suave
importa sentir a pausa
importa atravessar a mata proposta entre tuas orelhas
importa me debruçar na rocha final sem me fazer
[percebida
pela revelação
59
um título que não chega ao coração
a coisa dita noutra pose
uma arma que serve a outros propósitos
a mala descarrilhada da viagem
a gente diz
perder a cabeça
como se fosse
água-viva
como se não
as letras do título
espalhadas no saguão do sanatorinho
veja bem
como é desnecessária a bula para perder a cabeça em
pleno safári íntimo
61
sobe a anágua
cai a luva
63
pro Rolim.
65
então um gesto idoso
67
há nela o guanumbiguaçu da velhice
nela é puro
porque desaba na frente de tudo
quebra as asas no ferro dos sinos
sem pancada
digo
do aviso
à merda à merda
que gente besta que a gente é
justamente entre omoplatas
69
embora esta noite pouca
o corpo entre a faca e o boi
tão agressivo um rumor de filhote
tão sucessivo o couro da vaca com mesa por sobre
inda isto tanto
cantam ali
faz a mania moderna
sangrar a dizer até dormir com
amigos e fogueiras
um ou dois amores embora o corte entre as
pernas embora as pernas
supostas poucas asas
que absurdo
absurdas papilas
pouca crueldade
absurdo absurdo
71
esganadura
73
Editora Cozinha Experimental
Editores Responsáveis
Marcelo Reis de Mello
Germano Alberto Patel Weiss
Revisão
Marcelo Reis de Mello
Projeto Gráfico
Germano Alberto Patel Weiss
Barateza Duran
Produção Gráfica
Oficina do Prelo
D537m
Diacov, Carla.
76 p. ; 18 cm.
ISBN 978-85-919089-8-1
CDD: 869.1
Este livro foi composto em Adobe
Caslon Pro 11⁄14. Miolo impresso
em papel Pólen Bold 90g/m² e
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São Paulo, para Editora
Cozinha Experimental.