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http://calundu.org/revista
Pluralidade Afrorreligiosa
Volume 2, Número 2, Jul-Dez 2018
EXPEDIENTE E COMISSÃO EDITORIAL
COMISSÃO EDITORIAL
EQUIPE EDITORIAL
Adélia Mathias
Aisha – Angéle Leandro Diéne
Andréa Carvalho Guimarães
Ariadne Moreira Basílio de Oliveira
Beatriz Martins Moura
Clara Jane Costa Adad
Danielle de Cássia Afonso Ramos
Guilherme Dantas Nogueira
Iyaromi Feitosa Ahualli
Luís Augusto Ferreira Saraiva
Nathália Vince Esgalha Fernandes
Francisco Phelipe Cunha Paz
ii
CONSELHO EDITORIAL
iii
A Revista Calundu é uma publicação acadêmica semestral on-line do Calundu – Grupo
de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras, que apresenta trabalhos escritos (artigos,
resenhas de livros e textos extensionistas), com a temática afrorreligiosa/calunduzeira.
http://calundu.org/revista
A Revista Calundu apresenta publicações na área das Ciências Humanas, com a temática
geral afrorreligiosa, trabalhada semestralmente por meio de números temáticos. Os textos
publicados são divididos em três grupos: (1) artigos acadêmicos; (2) resenhas de livros
recentes (publicados há no máximo 3 anos) ou antigos (públicos há pelo menos 60 anos);
e (3) textos livres com caráter extensionista, produzidos pela comunidade afrorreligiosa,
acadêmica ou não, de autoria própria ou de terceiros trabalhando com material original
de religiosos (entrevistas, ensinamentos orais, discursos e palestras, etc.).
A temática afrorreligiosa é aqui entendida como aquela das religiões afro-brasileiras, cujo
fenômeno social hodierno se deriva de toda história e experiência dos Calundus e da
resistência do povo africano/afro-brasileiro escravizado no Brasil. É intrínseco a esta
compreensão a interpretação do Grupo Calundu (concorre para tanto bibliografia
especializada, e.g. Segato, 1986, Silveira, 2005, Santos, 2006), de que as religiões afro-
brasileiras foram formadas neste país, ao longo de séculos, a partir de raízes afro-
ameríndias e interações nem sempre diretas ou pacíficas com o colonialismo católico
português. Os textos aqui publicados devem seguir esta premissa editorial, afastando-se,
portanto, da premissa de que as religiões em pauta são mais propriamente africanas no
Brasil do que afro-brasileiras.
Há espaço, contudo, para que outras formas afrorreligiosas americanas (sendo a América
entendida como um continente amplo, que vai de sul a norte) façam parte dos diálogos
aqui apresentados. Com efeito, a compreensão de que religiões afro-brasileiras são
resultantes de um processo sócio-histórico iniciado com a colonização do Brasil pode ser
estendida para outros cantos das Américas: religiões afro-americanas/ameríndias são
resultados da colonização das Américas, que contou com a trágica vinda forçada de
iv
africanas/os para este canto do planeta, para fins de trabalho escravo. O prisma teórico
desta interpretação são os estudos decoloniais.
A Revista Calundu busca, por meio de textos livres de caráter extensionista e textos
especializados, ouvir e amplificar a voz da comunidade afrorreligiosa, acadêmica ou não.
Neste sentido, a revista assume um caráter extensionista, abrindo espaço para outras
formas de conhecimento, diferentes – porém não menos importantes – do que aquela
considerada científica.
Com os textos livres o Grupo Calundu busca trabalhar na revista, ademais e sempre
horizontalmente, com pensadores considerados como mestres populares, no sentido que
vem sendo desenvolvido pelo antropólogo José Jorge de Carvalho (apoiador do Grupo
Calundu), em seu trabalho com o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa,
ligado ao INCTI - Instituto Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação/UnB/MCTI. Em
linhas gerais, mestres populares são aquelas pessoas detentoras de um saber popular
extenso e relevante, que pode perpassar conhecimentos técnicos diversos, filosofias e
modos de vida de toda uma comunidade. Exemplos de mestres populares que vivem a
temática afrorreligiosa são as/os diversas/os mães e pais de santo das religiões afro-
brasileiras.
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Pluralidade Afrorreligiosa
Volume 2, Número 2, Jul-Dez 2018
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SUMÁRIO
Apresentação 1
Adélia Mathias
Artigos
Textos livres
Laroyê Pombagira Cigana: ela parou e leu a minha mão e me disse a mais 114
pura verdade
Cláudia Mirella Pereira Ramos
vii
Novos Encontros Indígena-africanos no Candomblé: entrevista com Airy 122
Gavião e Marcelo Krahô
Gerlaine Martini
viii
PLURALISMO RELIGIOSO
APRESENTAÇÃO
Adélia Mathias1
DOI: https://doi.org/ 10.26512/revistacalundu.v2i2.20620
1
Doutoranda de literatura no Romanisches Seminar da Universidade de Mannheim, Alemanha, e integrante
do grupo de estudos sobre religiões afro-brasileiras Calundu.
1
mantido coesas/os diante de nossa proposta inicial enquanto grupo de estudos, ainda que
sejamos indivíduos completamente diversos quando olhadas/os pelas categorias sociais
contemporaneamente mais evidentes: raça, gênero, classe social, idade, etc. Acredito que
especialmente porque o exercício da fé de cada uma/um é vivido de acordo com as
religiões que escolhemos ou fomos escolhidas/os para praticar.
Em contrapartida, cada uma/um de nós tem a plena consciência de transitar por
sistemas completamente diferentes de funcionamento, e que ao mesmo tempo precisam
dialogar para que o exercício de viver com a plenitude desejada por cada uma/um de nós
seja contemplado.
O olhar de pesquisadoras/es treinadas/os pela instituição universidade pública no
Brasil, faz parte de cada integrante do grupo Calundu, temos nos munido diuturnamente
com as ferramentas que o mundo acadêmico nos oferece para darmos conta de uma
atividade de extrema importância: um olhar desde dentro das comunidades de terreiro,
das casas de axé, dos calundus, dos centros espíritas, dos cultos domésticos, para as áreas
nas quais atuamos.
Obviamente, trabalhar com a releitura de clássicos, propor atividades de debate
sobre questões como racismo religioso dentro e fora da universidade, nos lançar ao
projeto de administrarmos um periódico acadêmico, não faz de nós mais importantes do
que quem nos antecedeu ou quem nos sucederá, faz de nós apenas mais uma parte do
grande processo pelo qual nos responsabilizamos neste momento de darmos
continuidade, tanto com o senso de responsabilidade a quem nos antecedeu quanto com
a esperança de que quem virá depois fará mais do que hoje estamos habilitados a fazer.
Com o olhar de doutoranda de literatura brasileira e integrante desse grupo de
estudos ímpar, nessa apresentação trago a perspectiva do exercício de pensar nas
pluralidades e nos múltiplos fatores que me fazem estar aqui para dar corpo ao presente
dossiê, intitulado: Pluralismo religioso.
Se no nível pessoal eu me propus a lidar com elementos multifatoriais que fazem
de nós um grupo, segundo minha perspectiva, no nível de produção intelectual ao qual
esse volume da Revista Calundu se propõe, o exercício foi o mesmo, agora na escala dos
textos e suas possibilidades: de acréscimo de conteúdo para cada leitor/a, de desafio à
compreensão de uma opinião contrária, ou ainda, de respeito à alteridade, algo muito dito
e nem tanto praticado.
Enquanto leitora privilegiada, por ser convidada pelos meus colegas para escrever
essa apresentação, fui desafiada constantemente. Desejo muito poder escutá-las/os e
2
também falar sobre questões nos textos que me inquietaram ou me fizeram reforçar a
crença em algumas afirmações íntimas, e isso me fez enxergar a importância da revista.
Precisamos fomentar debates. E como leitora, a cada página finalizada fui mais
convencida de que estamos cumprindo essa meta.
Não desejamos ser unanimidade, foi nas diferenças e no respeito a elas que nosso
grupo se fundou e tem se mantido, queremos em vozes plurais poder dialogar e sermos
respeitados por nossos posicionamentos, ainda que eles nem sempre ressoem em
consonância. E eu desconfio que você, leitor/a, será arrebatado pelas mesmas sensações
e pelos pensamentos contraditórios que tive ao ler cada texto. Eu o/a desafio mais ainda
a terminar essa leitura e conseguir compreender que idiossincrasias e dissonâncias são
partes da interação entre falar e ouvir, e que é possível respeitá-las e viver bem, mesmo
diante do que pode nos causar discordância feroz ou aceitação sem dúvida.
A seguir, o mapa do caminho a ser percorrido nesse volume.
O artigo “Confluências Bantu” abre o dossiê Pluralismo Religioso com os autores
Guaraci dos Santos e Arthur Almeida abordando parte da história de Mam’etu Tabaladê
Ria N’Kosi (Mãe Cecília) e narrando os diferentes caminhos espirituais percorridos por
ela, inclusive por motivos diversos como tradição, promessa e saúde, num modelo muito
caro para a proposta do grupo Calundu, uma vez que essas retomadas de histórias não
registradas em espaços oficiais com a devida importância para as comunidades de terreiro
são umas das nossas grandes contribuições enquanto publicação de alcance nacional,
sobretudo para que a ancestralidade, conceito central em religiões afro-brasileiras, seja
contemplada. Esse artigo também traz uma grande colaboração sobre a ancestralidade
Bantu e sua maneira de interação com outras culturas.
Em “Religiones de matriz africana en la resistência”, a ética própria das religiões
de matriz africana nas Américas ganha espaço na abordagem, nos ensinando mais uma
vez sobre resistência.
É ao falar sobre especificidades do culto IFÁ-Òrìsà – inclusive quando
compartilha com o/a leitor/a um pouco sobre os Odus de Ifá – enquanto expressão da
civilização da costa do Benin, Nigéria, Togo, e Costa do Marfim que, nas Américas, os
pesquisadores Hans Guach (integrante do grupo Calundu) e Angélica López nos
evidenciam por quais motivos o culto IFÁ-Òrìsà é uma religião, inclusive reconhecida
por órgãos internacionais, ainda que por tanto tempo sofra constantes tentativas de
deslegitimação e depreciação.
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Resumo:
O Centro Espírita São Sebastião (localizado no bairro Sagrada Família, na Região
Metropolitana de Belo Horizonte/MG) congrega cultos de matriz bantu como a Umbanda,
o Candomblé de Angola e o Reinado. As trajetórias dos agentes que integram este terreiro,
em especial a de Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi (Mãe Cecília), matriarca fundadora da
casa, tornam-se significativas para revelar a dinâmica que move a vida em uma
comunidade afro-religiosa, pautada sobre princípios de acolhimento, cura e aceitação das
diferenças. Em um contexto religioso marcado pelo sincretismo, atributo esse muitas
vezes utilizado como forma de rechaçar esses cultos como ‘impuros’ ou inautênticos
quanto a uma suposta ancestralidade africana, as trajetórias em questão revelam, por outro
lado, habilidades que são próprias a essa matriz religiosa e cultural. Neste sentido,
partindo de um novo olhar que atente para a dinâmica da vida em comunidade, podemos
ver como a multiplicidade e a abertura ao diverso, ao ‘outro’, são atributos singulares a
esses cultos, ora como estratégia de resistência, ora como interesse próprio em prol da
continuidade de sua tradição. Desta maneira, os terreiros dispõem de formas de
sociabilidade diversas daquelas que predominam no meio social urbano. Neste artigo,
busca-se apresentar uma visão positiva da multiplicidade no contexto das comunidades
de terreiro, pautada nos ideais e princípios próprios a essa matriz religiosa, que incluem
o acolhimento da diversidade e o vínculo com a ancestralidade.
Palavras-chave: Bantu; Confluências; Multiplicidade; Religiões Afro-brasileiras.
1
Guaraci Maximiano dos Santos: mestre e doutorando em Ciências da Religião pela PUC-Minas/MG.
Tat’etu Yalêmi Ria Kissimbi N’dandalunda, iniciado no começo da década anos de 1970 no Candomblé de
Angola de Raiz Gomeia, rei de congado e umbandista, ex-secretário da Federação Espírita Umbandista de
Minas Gerais e vice-presidente da Associação de Umbanda e Candomblé de MG, psicólogo, especialista
em Psicanálise, e Direito Público, membro da Comissão de Espiritualidade, Laicidade, Religião e Outros
Saberes Tradicionais – CLEROT do Conselho Regional de Psicologia (CRP/04), e do Fórum Inter-religioso
contra a Violência e a Discriminação da Pastoral PUC-Minas, estudioso das religiões afro-brasileiras de
matriz bantu, é filho adotivo e de santo de Cecília Felix dos Santos (Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi), e atual
dirigente do CESS. E-mail: [email protected]
2
Arthur Henrique Nogueira Almeida: mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Pesquisador das religiosidades de matriz afro-brasileira (em especial as de matriz bantu) na região
de Belo Horizonte e Minas Gerais. Umbandista e capoeirista de Angola. E-mail:
[email protected]
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Resumen:
El Centro Espírita São Sebastião (localizado en el barrio Sagrada Família, en la Região
Metropolitana de Belo Horizonte/MG), congrega cultos de matriz bantú como la
Umbanda, el Candomblé de Angola y el Reinado. Las trayectorias de los agentes que
integran este terreiro, en especial la de Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi (Madre Cecília),
matriarca fundadora de la casa, se tornan significativas para revelar la dinámica de
acogimiento, cura y aceptación de las diferencias. En un contexto religioso marcado por
el sincretismo, atributo muchas veces utilizado como forma de rechazar esos cultos como
“impuros” o no auténticos en relación a una supuesta ancestralidad africana, las
trayectorias en cuestión revelan, por otro lado, habilidades que son propias de esa matriz
religiosa y cultural. En este sentido, partiendo de una nueva mirada que atienda para la
dinámica de la vida en comunidad, podemos ver como la multiplicidad y la abertura a lo
diversos, al “otro”, son atributos singulares a esos cultos, sea como estrategia de
resistencia, sea como interés propio en favor de la continuidad de su tradición. De esta
manera, los terreiros disponen de formas de sociabilidad diferentes de aquellas que
predominan en el medio social urbano. En este artículo, se busca presentar una visión
positiva de la multiplicidad en el contexto de las comunidades de terreiro, pautada en los
ideales y principios propios de esa matriz religiosa, que incluyen el acogimiento de la
diversidad y el vínculo con la ancestralidad.
Palabras clave: Bantú, Confluencias; Multiplicidad; Religiones Afrobrasileñas
Introdução
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As religiões afro-brasileiras de matriz bantu são aquelas pertencentes à tradição étnico-linguística bantu,
que, atualmente, se encontra em países como Angola, Guiné Bissau, Congo, Moçambique. Muitos
representantes desse grupo etno-linguístico foram trazidos – escravizados - para o Brasil e aqui
protagonizaram uma reinserção criativa de suas religiões, lidando com diferentes vertentes e configurações.
Entre estas, as mais conhecidas são o Candomblé de Angola, a Umbanda e o Omolocô (religião que, como
a Umbanda, sincretiza elementos cristãos, espíritas e do Candomblé, com a particularidade de enfatizar o
culto aos orixás). No discurso de lideranças religiosas ligadas a essas linhas, frequentemente figura o
sentimento de pertencimento étnico e espiritual a uma matriz cultural e religiosa radicada em África. Desse
modo, o termo bantu será utilizado neste trabalho em consonância com a sua categorização nativa, presente
nos discursos e práticas dos próprios adeptos e líderes religiosos.
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O Centro Espírita São Sebastião localiza-se no bairro Sagrada Família, na Região Metropolitana de Belo
Horizonte. O CESS foi fundado no ano de 1945 por Mãe Cecília, a matriarca da casa. Mãe Cecília inicia a
dar consultas com os seus guias espirituais da Umbanda (espíritos orientadores que vêm como pretos velhos,
caboclos, crianças, dentre outros) no fim da década de 1930, no terreiro de sua própria casa. Com o tempo
e a crescente procura por parte das pessoas pelos seus atendimentos, a então jovem Cecília, com o auxílio
de sua ainda emergente comunidade de terreiro, abre um novo espaço, no atual endereço onde ainda se
encontra.
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Na língua quimbundo, os minkisi são divindades bantu comparadas aos orixás, que por sua vez, pertencem
à sociocosmologia e língua ioruba. No entanto, é comum em terreiros bantu (Angola, Omolocô, Umbanda)
o culto aos orixás, que é sincretizado ao culto aos minkisi. É comum o sincretismo entre as distintas
tradições (chamadas de nações) do Candomblé, dentre as quais as de matriz étnico-cultural ioruba, que
predominam na Bahia, difundiram-se e propagaram-se para outras regiões do Brasil, influenciando o culto
de outras matrizes, como a matriz bantu por exemplo. Nesse sentido, é comum, entre os terreiros bantu, a
utilização de termos em ioruba, como o termo ‘orixá’, análogo ao termo inkise, em língua bantu. Aluvaiá,
N’kosi, Katendê, Mutalambô, N’zazi, Kitembu, Matamba, N’dandalunda são nomes de alguns minkisi.
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Utilizamos o termo sociocosmologia (BARBOSA NETO, 2012) para nos referir às relações socialmente
engendradas entre os vários seres que compõem o universo cosmológico dos cultos afro-brasileiros. Esse
conceito é mais condizente com a realidade dinâmica e criativa desses cultos, a qual envolve inter-relações
constantes entre os agentes humanos e as diversas entidades.
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ou seja, que busque se situar em seus meios de se fazer, ou seja, no cotidiano da vida
religiosa, nas trajetórias vivas dos adeptos:
Esse savoir-faire é a marca distintiva deste tipo de religião, o lugar de
uma variabilidade e criatividade que só podem embelezar o culto,
afastando-o dos monótonos códigos das grandes religiões (GOLDMAN,
2003, p. 7).
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Durante a Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, foi apresentado um documento
intitulado “Ao público e ao povo do Candomblé”, mais tarde denominado como “Manifesto anti-
sincretismo”. Este documento, assinado por algumas lideranças religiosas do Candomblé, em sua grande
maioria representante da matriz ioruba, visou à condenação da utilização de elementos cristãos e/ou
ocidentais entre cultos de matriz africana, defendendo, assim, um retorno às origens, à África primitiva.
Este documento foi impulsionado por intelectuais e acadêmicos, e reverberou de maneira significativa entre
as várias nações de Candomblé por todo o Brasil, iniciando um movimento ampliado contra o sincretismo
religioso.
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Neste sentido, o ideal da pureza, mesmo que agenciado por alguns representantes
das próprias religiões afro-brasileiras, como forma de legitimação e reconhecimento de
sua ancestralidade, acaba por obedecer a uma lógica cristalizadora, “(...) cartesiana,
petrificadora, intelectualizada” (FERRETTI, op. cit., p. 188), típica de um pensamento
sistêmico unificador, que não leva em conta a dinâmica do fenômeno religioso, com seus
agenciamentos múltiplos. Se buscados em sua gênese, ou “origem”, sabe-se que os cultos
africanos praticados no Brasil sempre trabalharam com a associação das diferenças
culturais e étnicas, as quais foram impulsionadas e trabalhadas por seus agentes face ao
processo de desagregação empregado pelo colonialismo e regime escravista, em que “(...)
negros introduzidos no Brasil pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais
variadas regiões da África” (BASTIDE 1960, p. 30, apud GOLDMAN, 2003). Sendo
assim, como adverte Goldman, “(...) a ideia de uma África pré-colonial como universo
fechado, homogêneo e autônomo, não passa, é claro, de uma imagem idealizada e falsa”
(GOLDMAN, ibid., p.3) e:
Constatamos que o sincretismo constitui uma das características
centrais das festas religiosas populares. Nas religiões afro-brasileiras o
sincretismo é uma forma de relacionar o africano com o brasileiro, de
fazer alianças como o escravo aprendeu na senzala e nos quilombos
‘sem se transformar naquilo que o senhor desejava’ (Reis, 1996, p. 20),
nem ficar ‘presos a modelos ideológicos excludentes’ (MUNANGA,
1996, p. 63 apud FERRETTI, 1998, p.195).
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15
A compreensão da realidade dos povos de terreiro como algo mais fluido do que
pretenderam as categorias e análises antropológicas ocidentais (BANAGGIA, op. cit.;
GOLDMAN, op. cit.; BARBOSA NETO, op. cit.) pautadas sobre outros modos de se
conceber o corpo, as relações comunitárias, os gêneros, dentre outros elementos
importantes da vida social, levou alguns estudiosos das religiões afro-brasileiras a
buscarem novas formas de pensar esses cultos e seus respectivos contextos
sociocosmológicos. Nesse sentido, torna-se imperativo a formulação de novas
abordagens, que atentem para as categorias dos próprios coletivos estudados, assim como
para a agência dos seres diversos que compõem as religiões e o cotidiano desses coletivos.
Destacando os perigos do ideal da pureza (presente nos autores africanistas), a teoria
antropológica deve buscar dar conta das categorias dos próprios adeptos, levando a sério
os seus conceitos e mapeando agentes e agências do mundo visível e do mundo invisível
(SANTOS, 2015). É importante também estar atento às controvérsias presentes em seus
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11
Este autor estudou o Candomblé na cidade de Ilhéus, na Bahia, em suas relações com a política, a
etnicidade e cosmologia.
12
Edgar Rodrigues Barbosa Neto (2015) realiza um estudo etnográfico em três casas de religião afro-
brasileira, localizadas em Pelotas (RS), cujo tema se centra na multiplicidade ontológica afro-brasileira. A
diversidade de linhas religiosas e o entrecruzamento entre elas são fenômenos que atestam a multiplicidade
como algo inerente às religiões de matriz afro-brasileira, presente em sua sociocosmologia, tanto na
constatação da diversidade de seres que compõem sua malha de agentes, bem como nas variadas
configurações proporcionadas pelas inter-relações entre esses, as quais se desdobraram de diversas formas
ao longo do tempo e a depender dos contextos situacionais com os quais esses se relacionam.
13
A Umbanda é uma manifestação religiosa afro-brasileira de matriz bantu, a qual trabalha na perspectiva
da caridade e da cura, por meio da manifestação de espíritos e entidades próprios a seu universo
sociocosmológico. Dentre esses, são mais comuns as consultas dos guias espirituais (caboclos, pretos
velhos, marinheiros, exus, pombagiras, erês, dentre outros), os quais trabalham incorporados em seus
médiuns (adeptos iniciados na Umbanda, e que são os canais – daí o termo médium – entre o mundo visível
(físico) e o mundo espiritual.
O Candomblé de Angola também é uma manifestação religiosa de matriz bantu, a qual cultua os minkisi
(ancestrais divinizados, sincretizados com os orixás dos ioruba). Seus cultos são realizados, no CESS, em
língua bantu, conforme a tradição deixada por Joãozinho da Gomeia (liderança religiosa sobre a qual
trataremos mais à frente no texto).
O Reinado é um termo usado para se referir às Guardas de Moçambique e de Congado, as quais se
caracterizam pela louvação a Nossa Senhora do Rosário (considerada a santa dos negros) e aos reis e rainhas
Congo, remetendo à ancestralidade africana, em consonância com o culto aos santos católicos,
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pertencem a uma mesma matriz cultural bantu. Essa matriz contribuiu para a conformação
de uma grande diversidade de cultos religiosos. De maneira análoga, também o Batuque
sulista estudado por Barbosa Neto (op. cit.) apresenta uma grande variedade de linhas e
nações religiosas, as quais se entrecruzam a depender dos agenciamentos e da trajetória
de cada terreiro específico. A este respeito, o autor chega a afirmar que “cada casa é um
caso” (BARBOSA NETO, op. cit., p.1), ou seja, cada terreiro possui seu próprio modo
de fazer religião afro-brasileira, sua própria malha de agentes (adeptos, orixás, espíritos
antepassados, etc.) construída ao longo do tempo e das relações entre esses.
Neste sentido, o sincretismo pode ser entendido de um novo modo quando
comparado aos significados deste conceito nos estudos antropológicos clássicos, uma vez
que agora é definido como uma habilidade de se promover (enquanto tradição e/ou matriz
religiosa) através do múltiplo, estendendo suas malhas de atores e fortificando os vínculos
entre esses ao longo do tempo. Essas famílias se alinham a uma ancestralidade comum.
No caso do CESS, como diz o seu atual dirigente (o zelador de santo Tat’etu Ria Kissimbi
N’dandalunda, Guaraci Maximiano dos Santos – Pai Guaraci), filho da matriarca
fundadora da casa Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi (Mãe Cecília), essa ancestralidade vem
dos povos bantu, que possuem uma matriz cultural e étnica trazida ao Brasil e posta em
prática sob diversas formas, no contato com outros povos e culturas. A Umbanda, o
Candomblé de Angola e o Reinado, possuem suas próprias trajetórias e suas redes de
agentes específicos, as quais foram congregadas ao longo da história do CESS enquanto
uma comunidade de terreiro.
Os terreiros, segundo Santos (op. cit.), são assim chamados por terem iniciado,
muitas vezes, nos terreiros das casas, com o intuito de cuidar do outro por meio do
acolhimento e dos tratamentos tradicionais fornecidos pelas religiosas. A história dos
terreiros conflui com a história dos bairros em que estão inseridos e de seus moradores,
enquanto centros de amparo e cura. A trajetória de Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi (Mãe
Cecília) demonstra esta multiplicidade de tradições religiosas, de rituais e de tratamentos
terapêuticos, e encontra-se relacionada com seus princípios religiosos centrais, que
historicamente praticados pelas irmandades negras católicas. As guardas de Moçambique e de Congado são
da mesma matriz bantu, e apresentam em seus cortejos a luta dos povos negros durante a escravidão, bem
como a força de sua fé nos santos e santas e a resistência de suas comunidades e coletivos religiosos.
Segundo Santos (2015, p.40): “O Reinado é uma manifestação religiosa afro-brasileira de tradição banto,
caracterizada pela louvação de povos negros a Nossa Senhora do Rosário”.
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Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi (Mãe Cecília) inicia sua trajetória na Umbanda,
após ter sido “convidada a se retirar”14 de um centro espírita kardecista (a União Espírita
Mineira) por estar incorporando um preto-velho15, ou seja, uma entidade proveniente do
universo umbandista. Cecília e seu preto-velho chamado Pai Cipriano iniciam seus
atendimentos no terreiro de sua própria casa realizando consultas e fornecendo
tratamentos diversos, unindo conhecimentos tanto do âmbito da medicina tradicional
(com as ervas medicinais e seus usos), quanto da homeopatia, dentre outros sistemas
terapêuticos. A jovem Cecília e seus guias espirituais, por meio do acolhimento e de suas
curas, passam a congregar uma comunidade que se nutre pelos princípios de reciprocidade
e responsabilidade mútua, em sua diversidade e particularidades.
14
De acordo com as palavras de Pai Guaraci, relatadas durante entrevista realizada em maio de 2016, no
Centro Espírita São Sebastião.
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Os pretos-velhos são guias espirituais da Umbanda, considerados os mentores e orientadores dos terreiros,
por conta de sua sabedoria e depuração espiritual (de acordo com os relatos de Pai Guaraci). Os pretos-
velhos são associados com os escravos negros, acreditando-se que muitos desses espíritos teriam de fato
vivido (em vidas passadas) enquanto escravos e que teriam assim alcançado virtudes e benções espirituais
por conta do processo de humilhação e sofrimento a que foram sujeitos durante o regime escravista. Nesse
sentido, os pretos-velhos são considerados como os maiores conhecedores das aflições e dores humanas e
possuem a sabedoria e a depuração necessárias para orientar a seus filhos, em suas consultas e atendimentos.
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16
Os exus são uma classe de espíritos da Umbanda, considerada a mais próxima ao mundo dos seres
humanos. Os exus dão consultas sobre assuntos ligados às relações humanas e suas dificuldades financeiras,
amorosas, dentre outras.
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22
racial e pela intolerância religiosa. Como forma de preservar os seus cultos umbandistas
e dar continuidade à sua prática religiosa, Cecília adota esta e outras estratégias, o que era
comum entre comunidades religiosas afro-brasileiras diante da discriminação que as
identificava como seitas inferiores em relação aos cultos católicos e espíritas, por exemplo.
A partir deste caso, podemos perceber como o sincretismo, tão atribuído ao
universo da Umbanda e das religiões afro-brasileiras de forma geral, trata-se muitas vezes
de uma estratégia particular a esses coletivos para a preservação de seus cultos e tradições
religiosas. Dessa forma, podemos sugerir que as comunidades de terreiro tiveram, ao
longo da história, de manejar símbolos de outras tradições religiosas e integrá-los a seus
cultos como forma de resistência numa sociedade discriminatória e violenta:
O sincretismo afro-brasileiro foi uma estratégia de sobrevivência e de
adaptação, que os africanos trouxeram para o Novo Mundo. No
Continente Africano, nos contatos pacíficos ou hostis com povos
vizinhos, era comum a prática de adotar divindades entre conquistados
e conquistadores (FERRETTI, 1998, p.188-189).
Cecília entra em contato com o Reinado após vários anos de trabalho na Umbanda,
com seus princípios de caridade e cura. Como parte de uma promessa feita a Nossa
Senhora do Rosário que envolve a cura da doença de sua mãe (Mãe Felicidade Divina do
Espírito Santo), Cecília se inicia no Reinado e funda, mais tarde, a Guarda de
Moçambique Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, tornando-se, com o tempo, a sua
Rainha Perpétua. Cecília passa a realizar as louvações e cortejos do Reinado, constituindo,
com o apoio de sua comunidade, a sua própria guarda de Moçambique e consolidando ao
longo do tempo.
Na década de 1970, Cecília inicia-se no Candomblé de Angola após conhecer o
senhor Otávio, conhecido como Camarão, da Raiz da Gomeia 17 , para tratar suas
recorrentes “crises de ausência” (espécies de desmaios recorrentes). Otávio havia
conhecido o Candomblé Angola em Salvador com Joãozinho da Gomeia, tornando-se,
com o tempo, pai de santo e abrindo seu próprio terreiro em Montes Claros, no norte de
Minas Gerais. No fim da década de 1960, Camarão (seu Otávio) realiza uma viagem à
17
Conforme Almeida (2016, p. 50), “Guaraci se utiliza do termo ‘Raiz da Gomeia’ para se referir a uma
tradição religiosa do Candomblé de Angola, fundada por Joãozinho da Gomeia, pai-de-santo baiano que
migrou para o Rio de Janeiro em 1946 e abriu um terreiro nesta cidade. João Alves de Torres Filho (o
Joãozinho da Gomeia) se tornou bastante conhecido no Brasil inteiro, considerado como um grande difusor
do Candomblé no Brasil para além da região do nordeste brasileiro, principalmente para a região sudeste
(Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo), influenciando, assim, por meio do sincretismo vários outros
cultos afro-brasileiros, como o caso de Tabaladê Ria N’Kosi (Mãe Cecília)”.
23
Belo Horizonte, juntamente com sua irmã, Kilondirá (ambos filhos de Joãozinho da
Gomeia).
Cecília inicia-se no Candomblé de Angola da tradição da Gomeia com Kilondirá
– filha de santo de Joãozinho da Gomeia, o pai de santo fundador da Raiz da Gomeia, e
considerado o grande difusor do Candomblé de Angola pelo Brasil, em especial na região
Sudeste. Com o tempo e o cumprimento das obrigações necessárias, Mam’etu Tabaladê
Ria N’Kosi (Mãe Cecília) torna-se Mam’etu de n’kise (mãe de santo) na religião e passa
a iniciar os adeptos, que se tornam seus filhos de santo. Em sua trajetória religiosa, Mãe
Cecília integra os cultos dessa tradição bantu àqueles já praticados no CESS, como a
Umbanda e o Reinado.
Este breve relato da trajetória de Mam’etu Tabaladê Ria N’Kosi (Mãe Cecília) é
significativo para compreender um pouco da dinâmica de uma comunidade de terreiro,
os agentes envolvidos e as tradições afro-religiosas cultuadas. Nesse sentido, deve-se
lançar mão de uma abordagem que seja sensível e atenta à dinâmica própria dessas
comunidades religiosas e à sua capacidade para fazer confluir distintas tradições,
engendrando formas singulares de associação. Ao contrário da ideia de uma mistura
indistinta de elementos diversos, essas três manifestações religiosas (Reinado,
Candomblé, Umbanda) possuem seus próprios fundamentos, assim como seu próprio
calendário litúrgico. De acordo com Santos:
Esta confluência das práticas religiosas no C.E.S.S. se faz possível na
medida em que as características espirituais de cada manifestação
religiosa são preservadas, bem como as bases ritualísticas. É importante
observar que elas possuem um eixo comum, que é a orientação pela
ancestralidade e a relação com o ciclo vital. Fato que leva seus
seguidores à necessidade constante da vida comunitária e interação com
o mundo. Um princípio da tradição Bantu que reforça o compromisso,
a interlocução e a construção de saberes comum a estes, viabilizando a
continuidade de suas práticas religiosas (SANTOS, 2015, p.61).
24
Considerações finais
25
26
Referências Bibliográficas
27
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Sociology. Vol. 103, No. 4 (Jan., 1998), pp. 962-1023.
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o Sincretismo. 2 ed. São Paulo: Edusp.
Arché Editora. 2013.
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GOLDMAN, Márcio. “Formas do Saber e Modos do Ser: observações sobre
multiplicidade e ontologia no Candomblé”. Religião e Sociedade. 25 (2): 102-120, 2005.
28
29
Resumen:
1
Profesor en Departamento de Sociología, Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail:
[email protected]
2
Investigadora independiente sobre religiones de matriz africana en Cuba. E-mail:
[email protected]
30
diversa índole (cientifica e textos litúrgicos de IFÁ), que possibilitaram demonstrar que
dita tradição se constitui como uma religião, contrariamente às designações pejorativas
das quais têm sido objeto: fetiche, bruxaria, coisas de pessoas atrasadas.
Introducción
Debido a la mencionada negación, una de las principales formas desde las cuales
las religiones de matriz africana (IFÁ-Òrìsà, en este caso) se configuran como resistencia,
se encuentra precisamente en el ámbito ontológico (HEIDEGGER, 1997). Es decir, en la
definición de su propia esencia como religión, y no como aquellas otras “cosas” a partir
de las cuales se les han intentado definir.
¿Por qué llamar a este tipo de tradiciones con términos y expresiones peyorativas,
cuando conceptualmente se ajustan a lo que actualmente entendemos por religión? Las
respuestas pueden ser disimiles. No obstante, aquí solo nos interesa demostrar los motivos
por los cuales consideramos que la tradición en cuestión se configura como una forma de
resistencia, frente a esas denominaciones despectivas de las cuales han sido objeto.
31
Las nociones sobre la resistencia han sido disímiles, no solo como resultado de
los diversos autores que las han trabajado y sus respectivas bases teóricas y disciplinarias,
sino también en correspondencia con los ámbitos donde se han pretendido entenderlas,
aplicarlas. Entre esos ámbitos, destacan, por ejemplo, el ámbito político (SHARP,
2005/2011; RANGEL, 2002; ARENDT, 1996/1999; OSTERGAARD, 1987; RANDLE,
1988) y el educacional (BOURDIEU y PASSERON, 2001; WILLIS, 1998 y GIROUX,
1981/1985). Ambos escenarios arrojan posibilidades de contribuir para el análisis de la
resistencia en otros ámbitos, como el que se pretende en este escrito: el socio-religioso.
32
Sin embargo, otros autores, como Hannah Arendt, desarrollan una noción muy
particular, a pesar de coincidir en lo que respecta a la resistencia como forma de acción
alejada de cualquier forma de coacción violenta. En este sentido, la filósofa de origen
judío asume la resistencia como forma de acción política, que tiene lugar solo en la
colectividad.
A partir de las nociones de los autores citados (Sharp y Arendt), puede asumirsela
resistencia como una forma de acción (política) consistente en la ejecución de estrategias
no violentas contra el adversario con el que se sostiene algún tipo de conflicto. Esas
estrategias simultáneamente se orientan a concientizar a la opinión pública, para que
voluntariamente se niegue a ceder ante las expresiones de la dominación y desista de la
obediencia y la cooperación respecto al poder ejercido por dicho adversario.
Sin embargo, con la intención de ampliar las nociones sobre este concepto, de
manera que permita un mejor acercamiento a las formas de poder y dominación presentes
en el ámbito socio-religioso, es oportuno hacer referencia a otros teóricos. En este caso,
teóricos que han estado relacionados con el ámbito de la educación, como son: Pierre
Bourdieu, Jean-Claude Passeron, Paul Willis y Henry Giroux.
33
A razón de que cada clase social se produce y reproduce con base en formas
culturales específicas, Giroux (1985) reconoce que desde esta realidad emanan los
principales mecanismos de resistencia, en un contexto de relaciones de poder asimétricas.
Sin embargo, esa asimetría no niega el desarrollo de campos de resistencia complejos y
creativos a través de los cuales las prácticas mediadas por la clase, la raza y el sexo a
menudo niegan, rechazan y descartan los mensajes centrales que se les intentan imponer
34
en diferentes escenarios (el autor destaca la escuela). De esta manera, el autor en cuestión
reconoce la naturaleza activa tanto de la dominación como de la resistencia.
¿Qué es IFÀ-Òrìsà?
3
Se conoce como IFÁ-Òrìsà, por el hecho de que IFÁ, como sistema de adivinación y de prácticas
religiosas, no está desvinculada de prácticas referentes a otras deidades (Òrìsàs, Irúnmólès, etc.). Para
saber más sobre el significado etimológico de IFÁ y otros asuntos relacionados, ver Hernández
(2003/2005).
35
también se practica en comunidades Yorùbá, las cuales han tenido un alto desarrollo
urbano en la África tropical. La influencia de esta cultura ha sido significativa en diversas
expresiones (cantos, bailes, mitos religiosos y costumbres), abriendo cauces para una
particular creatividad.
Tales signos, que son objetos de interpretación por el sacerdote de IFÁ para
realizar la adivinación, son conocidos como Odù y constituyen el cuerpo literario de IFÁ.
Los Odù de IFÁ hacen un total de 256, los cuales al mismo están compuestos por diversos
versos llamados “Ese de IFÁ”. El número exacto de Eses de IFÁ es desconocido, por
cuanto que se reconfiguran y aumentan constantemente, según las experiencias e
investigaciones de sus principales figuras mundiales y sus respectivos niveles de
desarrollo espiritual. Se estima que actualmente existen alrededor de 800 Ese por cada
Odù de IFÁ.
Cada uno de los 256 Odù tiene su firma adivinatoria, que es identificada por el
bàbáláwo, utilizando nueces de palma consagradas (Ìkín) o una cadena de adivinación
(Òpèlè). Los Ese de IFÁ, considerados como eje central de la adivinación a través de IFÁ,
son cantados por los sacerdotes en un lenguaje poético. Estos versos reflejan la historia,
la lengua, las creencias, la cosmovisión de los yorubas y también las cuestiones sociales
contemporáneas. Esas cuestiones contemporáneas van desde posibles problemáticas
(enfermedades, conflictos, etc.) hasta actitudes y acciones para resolverlas y/o evitarlas4.
4
Para más información sobre: ¿qué es IFÁ?, pueden ser consultadas varias fuentes. Entre ellas, la propia
página de la UNESCO (https://ich.unesco.org/es/RL/el-sistema-de-adivinacion-ifa-00146), así como los
textos de Fasina Falade: “IFÁ la llave para su entendimiento” y de Epega, Afolabi A. y Neimark, Philip
John. “El oráculo sagrado de IFÁ”.
36
con algunas reflexiones relativas al papel de las acciones colectivas en dicha tradición,
como uno de los elementos comunes a otro tipo de religiones, por ejemplo, de origen
católico.
Uno de los principales rasgos que definen las religiones5 es la manera en que se
configuran sus prácticas desde la acción colectiva. Esta noción, que incluso ha estado
presente en las definiciones de religión dadas por algunos clásicos de la Sociología (por
ejemplo, Durkheim, Weber), constituye una realidad no solo en el catolicismo y demás,
sino también en las religiones de matriz africana como IFÁ-Òrìsà. Una realidad que no
solo involucra a los seres humanos, sino también a la propia naturaleza como un todo.
5
El concepto de religión ha sido abordado desde diferentes perspectivas. Considerando algunos de esos
enfoques (DURKHEIM, 1965; WEBER, 1979/2003; HOUTART, 1992) no podemos dejar de reconocer
varios aspectos fundamentales para la definición de este concepto y que son comunes entre los autores
señalados. El primero, es concebirla como un sistema de creencias, motivaciones e interpretaciones de
carácter colectivo. La segunda, es asumirla como fenómeno que orienta conductas humanas en relación
con los otros y la realidad en general, al tiempo en que deriva de las mismas. Y tercero, seria reconocer
que, como forma de representación colectiva, implica la adquisición de saberes que derivan de lo
sobrenatural y que están orientados a facilitar la comprensión de la realidad. Por tanto, a grandes rasgos,
la religión es entendida en este trabajo como: un sistema solidario y compartido de creencias, saberes,
entendimientos, motivaciones y de prácticas colectivas relativas a las cosas sagradas y al mundo objetivo
que, uniendo en una misma comunidad a todos aquellos que las profesan, resultan constitutivas y
constituyentes de las praxis y relaciones sociales.
6
La palabra naturaleza proviene del griego physis y del latín natura. En ambas lenguas tienen varios
significados: puede designar el principio que se encuentra en la base del ser o remitir a la idea de esencia;
es decir, al conjunto de propiedades que permiten definir una idea, una problemática o una ciencia; alude
también a lo innato, aquello que una especie —eventualmente el ser humano— tiene de instintivo. Sin
embargo, en los marcos de las tradiciones africanas objeto de discusión, la naturaleza adquiere algunos
sentidos específicos.
37
dicotomía moderna entre espíritu y materia, sujeto y mundo, que deja entrever la
posibilidad de reivindicar la totalidad del mundo. De este modo, dicha reivindicación
resalta la referencia a la vida como fundamento ético y como forma de certificar lo que
es la religión: relación entre humanos y naturaleza como dos partes de una vida terrenal.
38
En relación con ese vínculo, que en los practicantes de IFÁ se revela entre
humanos y naturaleza, no debe realizarse una lectura apresurada y minimalista de dicha
práctica, caracterizándola como una “idolatría de la naturaleza”. Y cuando se habla de
idolatrar la naturaleza, por ejemplo, se refiere al hecho de ofrecer cultos a determinados
elementos naturales (sol, luna, estrella, rayo), por considerarlos dotados de voluntad y/o
personificarlos.
39
globalizante y unificadora del mundo, encierra en sí misma una noción de armonía, como
principio ontológico por excelencia. Esta idea, inclusive ha sido reconocida por
MULAGO (1978), para quien el mundo está “divido” en dos partes (visible e invisible),
regidas por un Ser Supremo al que se le subordinan ciertos seres intermediarios (òrìsàs,
espíritus, ancestros fundadores) y los hombres. Por tanto, en este sentido, la naturaleza es
considerada como prolongación y reserva de medios de vida para el hombre, que merece
una especial atención y un cierto tratamiento en aras de una armonía:
Esa armonía, que debería resultar de las correctas relaciones entre los seres
humanos y la naturaleza (a través de invocaciones, rituales, buenas prácticas y actitudes,
etc.), también engloba una perspectiva imperfecta de la naturaleza y del mundo como un
todo articulado y plural, al tiempo que pone de relieve el dinamismo interno de las
religiones africanas, como es el caso de IFÁ-Òrìsà. En esta cuestión de la armonía y del
equilibrio en las relaciones entre el hombre y la naturaleza, se observa otro ejemplo de
acción colectiva, que tiene como unos de sus componentes básicos la referencias al medio
exterior y a los/as “otros/as”, basada en el respeto y temor a la hora de abordarlos/as. El
respeto está dado por el hecho de que se supone que sean los seres vivientes portadores
de energía y fuerzas vitales, como reflejo de la voluntad divina. Por tanto, el respeto está
basado en el temor por perturbar, así sea de forma involuntaria, el orden en vigor.
7
Los ancestros son atendidos mediante rituales e invocaciones. Estos son considerados como seres que, al
morir, hicieron retroceder los límites de la ignorancia sobre los fenómenos visibles e invisibles que afectan
la vida de los hombres. Supuestamente más cercanos a la energía vital original que el común de los
mortales, tienen por misión regenerar, desde el punto de vista biológico, el linaje, al intervenir en los
40
Otro aspecto que merece ser retomado en relación con la acción colectiva, son los
significados y los símbolos, como elementos fundamentales de las prácticas de IFÁ. En
el ámbito de la Sociología, actualmente es imposible pensar acciones colectivas sin
reconocer el papel de los símbolos y significados construidos. De hecho, el propio Weber
(1979) insistía en reconocer las acciones sociales como todo tipo de conducta orientadas
por sentidos, que implican una perspectiva de reacción con referencia en los otros.
nacimientos y por una acción sobre la fertilidad del suelo. Asimismo, son los garantes del orden moral y
social, de las tradiciones, costumbres y los valores que ellos mismos conocieron cuando vivían, cuya
violación sancionan luego de haber desaparecido. Son, por decirlo de algún modo, los protectores de sus
descendientes, a quienes prodigan paz, salud y bienestar; en suma, la vida en el sentido de la expresión,
que significa fuerza vital: bienestar físico y material, pero también moral y ontológico. En sentido general,
la referencia a los ancestros a menudo es en función de las circunstancias importantes: el nacimiento, la
siembra, la cosecha, la enfermedad, las catástrofes naturales, la muerte, etc. (KASANDA, 2002).
41
Para los adeptos al sistema espiritual IFÁ-Òrìsà, existe una jerarquía divina de
seres y entidades espirituales (BRANDON, 1993, p. 12-18). El ser supremo en esa
jerarquía se denomina Olódùmarè, quien es el creador y único Dios y a quien no se le
representa pictóricamente ni se le atribuyen atributos humanos (al menos en la tradición
nigeriana). De Olódùmarè provieneel Asé que, como bien fue dicho antes, es la energía
que sostiene el universo.
42
También se pueden mencionar los Egúngún, que son los ancestros o antepasados
directos de cada familia, venerados en sus propios altares familiareso comunitarios. Su
misión es asegurar la continuación de las sociedades (Yorùbá, etc.) y la justicia social.
Son, en general, los espíritus de personas fallecidas.
Le sigue en esa jerarquía los seres humanos, que incluye tanto a las personas
nacidas en el plano terrenal como a quienes están por nacer8. Su poder es fundamental,
porque sólo los seres humanos pueden potencializar la materialización de las intenciones
y los deseos de los Òrìsàs. Sin embargo, son libres de hacer el bien o el mal.
Por último, se consideran también a las plantas, animales y otros elementos, que
hacen parte de la naturaleza como un todo. Las plantas y los animales, en alguna medida
son dependientes de los humanos, al tiempo en que estos últimos se valen de los primeros
para la supervivencia y alimentación. Son fuente de curación y alimento y, principalmente
las plantas, constituyen fuentes de ofrendas a través de sus frutos. Plantas, animales y
humanos dependen todos de la tierra, divinizada como Onílé (espíritu o dueño de la
tierra). Por su lado, los otros elementos se refieren a las piedras, algunas semillas (Ìkín),
nubes, ríos y metales, que se consideran entidades con poder e intención.
Como se puede apreciar, las entidades que conforman lo que se conoce como el
panteón Yorùbá, permite asumir un cierto carácter politeísta de la tradición que aquí se
analiza. A pesar de que estas tradiciones tienen como base la existencia de un ser supremo,
creador del universo (Olódùmarè), también existen un sin número de intermediarios
(òrìsàs, ancestros, otras espiritualidades), en los cuales los seres humanos se apoyan para
8
Esta idea está basada en el concepto nigeriano de Egbé, que constituye una especie de doble espiritual de
cada persona en otras dimensiones de existencia (o “cielo”). Es el grupo de pares celestiales de un ser
humano, que habitan en el cielo y asisten a los seres humanos en lo concerniente a los diferentes
comportamientos, entre otras cuestiones. Para más información al respecto, ver Salami (2014).
43
El papel central que adquieren no solo la idea de vida, fuerza, sino además algunas
de las funciones de una de las deidades (Òrúnmìlá) que configuran la jerarquía espiritual
antes descrita, podrá apreciarse en el siguiente poema de IFÁ:
Además de las formas de resistencias antes descritas, que se constituyen desde las
propias lógicas de IFÁ-Òrìsà como religión y no como un fetiche o una brujería, pueden
9
Una de las alabanzas a Òrúnmìlá (testigo de la creación), mas socializadas entre los devotos de IFÁ-Òrìsà.
44
ser descritas otras expresiones que instituyen modos colectivos de indocilidad contra
atribuciones externas de orden cultural (simbólicos, imaginarios, ideologías). La esencia
de estas expresiones, como ejemplos de resistencia frente a tales estigmatizaciones, es la
idea del mejoramiento de calidad humana, como piedra angular para los devotos de esta
tradición de matriz africana.
El Odù de IFÁ, Ìká Òfún, es uno de los ejemplos que pueden ser citados, en
relación con lo antes abordado. En este Odù, se hace referencia a determinados
mandamientos que deberían constituir las acciones de los devotos en relación con los
otros, sean estos religiosos o no. A su vez, el cumplimiento de los mismos, resulta un
aspecto fundamental para contribuir con el normal desarrollo de la naturaleza y el mundo,
evitando quebrantar el orden. Por solo citar algunos, entre esos mandamientos destacan:
No desorientar a los demás, ni conducirlos por falsos caminos. No engañar jamás a tus
semejantes. No tener malas intenciones con tus semejantes.
Respetar y tratar bien a las personas mayores y semejantes.
No romper tabúes, entre esos la honestidad al pensar, al hablar y al actuar, que implican
justicia, acciones libres de tentaciones, sinceridad, racionalidad, entre otros aspectos.
45
en relación con el Ser Supremo: Olódùmarè. Desde la perspectiva de IFÁ, los seres vivos
tenemos nuestras misiones en el plano terrenal, siendo que a los seres humanos les
corresponde hacer exclusivamente el bien y de forma consciente. Como creación que
somos a semejanza de Olódùmarè, nuestra esencia y nuestro designio deberán ser
contribuir para la realización del bien, aunque tengamos la capacidad para elegir otros
caminos. En Èjì Ogbèse puede constatar esta idea referente a hacer el bien:
A partir del anterior poema, nos interesa resaltar algunas ideas. El hecho de que
Òrúnmìlá haya sido el único en aplicar la honestidad del pensamiento para combatir las
malas maquinaciones (ver final del poema), tiene varias implicaciones. La primera de
ellas, es que las maquinaciones y demás actitudes negativas no son ni serán ajenas a
nuestra existencia. La segunda implicación, es que las reacciones y formas de resistencia
contra las mismas siempre serán un elección individual y social (Òrúnmìlá decidió aplicar
la honestidad contra el mal, mientras que el resto no). El hecho de decidir combatir la
maldad en sus diversas formas (envidia, desprecio injusto, egoísmo, deshonestidad, etc.)
a través de la honestidad, no solo constituye un modo de resistencia práctico orientado
desde IFÁ para sus devotos. También, significa una forma de resistencia frente a las
maquinaciones de ciertos grupos sociales, que tildan esta tradición como algo desprovisto
de valores importantes y propios de nuestra contemporaneidad.
46
El Odù de IFÁ, Ìwòrì Méjì, puede ser citado para mostrar la manera en que se
revela el resultado de obrar de manera negativa y actuar ilícita e indecentemente,
perjudicando al resto de la sociedad. En este caso, la enseñanza viene a través de dos
personajes, Ògún y Òrìsà Oko, quienes fueron al pueblo desnudos. También se hace
referencia al nacimiento de un hijo ladrón. La referencia al hecho de ir desnudos no tiene
por qué referirse expresamente a eso, pues su sentido es interpretativo y trasciende esa
simple colocación. De alguna manera, también hace alusión al hecho de quebrantar las
normas sociales, o a exponer las interioridades negativas que puedan hacer sentir mal al
resto de la comunidad, sin el necesario análisis racional de dicha actitud:
47
Aquel quien suspende sus problemas para otra persona. Es dios quien
se encargará de los problemas de las personas. Adivinaron IFÁ para
Eminlenge, en el día que iba a una misión al pueblo de Awòyé. Él fue
aconsejado ofrecer sacrificio. EI cumplió. Eminlenje ha llegado, el del
pueblo de Awòyé. Nos encontraremos con bendiciones en la casa
(CASTILLO, 2010, p. 138).
En otro Ese IFÁ del Odù Èjì Ogbè, se puede percibir no solo la clara sugerencia
de ser honesto, sino también la disyuntiva que vive la sociedad en relación con la
honestidad y la mentira. En este sentido, el bàbáláwo Ìgbín (llamado así por su lentitud al
hablar y al caminar) era perseguido en determinados pueblos (Okun, Osa e Ileyo) por
decir la verdad, durante varias consultas de adivinación para sus devotos. Estos no
supieron apreciar la buena voluntad de Ìgbín detrás de la honestidad. Por tal motivo, le
hicieron la vida difícil, siendo forzado a dejar los mencionados pueblos.
48
humanos están asustados. Los seres humanos son difíciles. Antes de que
podamos encontrar al verdadero bàbáláwo debemos de viajar lejos10.
Serare, serare (el que se daña a sí mismo). El que tira siempre cenizas
es seguido por cenizas. Serare, serare. El que hace el mal se arruina a sí
mismo por la mitad en su travesura. Se consultó el IFÁ para Inúkogún
quien sufría los estragos. Regresará a él y lo dañará. Se le aconsejó
ofrecer ofrendas y abandonar la maldad (HERNÁNDEZ, 2003, p. 79).
10
Este es un Ese IFÁ bastante socializado entre los practicantes de la tradición en cuestión, por vía oral y
escrita. Sin embargo, no encontramos un texto oficial, con datos editoriales para citarlo correctamente.
49
Conclusiones
Partiendo de las ideas que definen el concepto de religión adoptado por destacados
autores como Durkheim, Marx, Weber e Houtart, es apreciable la analogía de las mismas
con IFÁ. En cuanto la magia ha sido definida por pensadores como el mismo Durkheim
(1965) como prácticas independientes que trabajan a petición de clientelas, IFÁ se
practica desde Templos (similares a iglesias), guiados por sacerdotes, que tienen la
función de guiar a sus devotos por el buen camino dictado por Olódùmarè.
50
olvidar la presencia de rituales que, si bien hacen parte de la naturaleza de las religiones,
el punto de distinción en la magia y la brujería se encuentra en las formas de ejecución.
Por tanto, el reconocimiento de IFÁ, como una religión más entre las existentes
en el mundo y en América Latina, constituye hoy una acción necesaria como ejemplo de
defensa y aceptación de un mundo plural, que debe desarrollarse bajo principios de
respeto, armonía y reconocimiento del “otro”. Eso todo, como genuino reflejo de la
importancia que hoy requiere contribuir para la paz y la justicia en el mundo, conforme
propósito manifiesto del encuentro de Oración Interreligioso convocado por el Papa
Benedicto XVI en octubre del 2011 que, titulado“Peregrinos de la verdad, peregrinos de
la paz”, reunió a casi 300 líderes de diferentes religiones.
Referencias bibliográficas
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DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris : PUF, 1965.
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CreateSpaceIndependent Publishing Platform; Edición2: 2014.
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Editorial Nomos, 2003.
SALAMI, Ayò. Egbé. The heavenly mates of every human. Lagos: Fagbenga Ventures,
2014.
53
54
Revista Calundu – vol.2, n.2, jul-dez 2018
Jonas França1
DOI: https://doi.org/10.26512/revistacalundu.v2i2.15706
Resumo:
O presente trabalho busca trazer à luz da discussão acadêmica alguns dos desdobramentos
do fenômeno conhecido como embranquecimento do candomblé. Compreendido como
um complexo cultural de resistência religiosa afro-ameríndia brasileira numa sociedade
historicamente racista, o terreiro é um espaço demarcado por experiências de acolhimento
e compartilhamento de vivências. Mas até que ponto a correspondência essencialista entre
raça e cultura é saudável para a manutenção destes espaços sagrados? O
embranquecimento dos terreiros é um fenômeno intrinsecamente ligado à operação da
branquitude? Como se dá, nestas redomas, a perpetuação de estruturas discriminatórias
quando se tornam colonizadas pela branquitude? E, por fim, quais as responsabilidades
da comunidade para evitar a perpetuação de vícios da branquitude nas casas de axé? São
algumas das provocações que se pretende esmiuçar e agitar neste breve e inquietante
artigo.
El presente trabajo busca traer a la discusión académica algunos de los desarrollos del
fenómeno conocido como El blanqueamiento del candomblé. Entendido como um
complejo cultural de resistencia religiosa afro-amerindia brasileña en una sociedad
históricamente racista, las casas de candomblé son espacios marcados por la recepción y
el compartir de experiencias. ¿Hasta que punto la correspondência esencialista de raza y
cultura es saludable para la manutención de los espacios religiosos afro-brasileños? ¿El
blanqueamiento de las casas de candomblé es un fenómeno inseparable de la presencia
de la blanquitud en estes espacios? ¿Cómo se pratica la perpetuación de estructuras
discriminatórias cuando estas casas son colonizadas por la blanquitud? Y, por fin, ¿cuáles
son las responsabilidades de la comunidad religiosa para evitar la perpetuación de las
adicciones de la blanquitud? Son algunas de las provocaciones que este corto y inquieto
articulo pretende trabajar.
1
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania - Centro de Estudos Avançados
Multidisciplinares - Universidade de Brasília - UnB. [email protected]
55
Revista Calundu – vol.2, n.2, jul-dez 2018
“Como você enxerga o fenômeno cada vez mais expressivo de igrejas pretas e
terreiros brancos”? – Indagou-me, na II Jornada de Estudos Negros da Universidade de
Brasília, um colega que acompanhava a mesa de debate sobre Povos e Comunidades
Tradicionais, após minha apresentação sobre intolerância religiosa nas periferias cariocas.
Esta indagação se transmuta em muitas outras imprescindíveis para o debate
contemporâneo sobre a resistência dos cultos afro-ameríndios brasileiros, sobre o racismo
religioso e sobre a cidadania no Brasil, e os esforços que farei aqui serão de tecer alguns
dos diversos fios que se entrelaçam nesta discussão para, assim, propor elementos úteis a
estas reflexões que surgem.
Segundo o Censo do IBGE de 2010, pretos e pardos constituem 54% dos
evangélicos no país. De acordo com os mesmos dados, dos 167.363 praticantes
declarados do candomblé, 30,2% são brancos, 29,1% são pretos e 39,3%, pardos. Na
capital do estado de São Paulo, por exemplo, uma pesquisa da Secretaria Municipal de
Promoção da Igualdade Racial apontou que 60,6% dos seguidores das religiões afro-
ameríndias brasileiras são brancos, enquanto os pretos representam 13,1% e os pardos,
25,5%2. Diante destes dados, meu ponto central é admitir ser mais frutífero para a análise
histórico-sociológica deste fenômeno evitar estudar por que razões indivíduos brancos
ingressam no candomblé, e ao invés disso compreender como eles se comportam nestes
caminhos e de que forma se relacionam com as comunidades religiosas que os acolhem.
De fato, como demonstram as pesquisas, a indagação feita por meu colega possui
fundamento. O cenário desenhado por estas estatísticas infere que o fenômeno de
embranquecimento do candomblé é amplamente verificado; e embranquecimento, aqui,
significa tão somente a presença crescente de indivíduos de pele branca dentro dos
2
Os dados foram reunidos pelo Relatório de Diversidade Étnico-racial e Pluralismo Religioso no Município
de São Paulo sob autoria do ex-Secretário de Justiça do Estado, Hédio Silva Júnior, e publicados em matéria
da Revista Exame em 23 de dezembro de 2016, disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/brancos-
sao-maioria-nas-religioes-afro-em-sao-paulo/>.
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terreiros. Veremos que este fenômeno se diferencia em algumas medidas dos processos
pelos quais a branquitude invade estes espaços. Resta, agora, compreender de que forma
estas questões se conectam ao suposto ingresso da branquitude nas religiões afro-
ameríndias brasileiras. É uma opção lógica, portanto, iniciar esta análise pelo debate em
torno deste conceito.
Ruth Frankenberg (1999) elabora a compreensão da branquitude como um lugar
estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo; uma posição confortável
de poder a partir da qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo.
A autora ainda compreende que se trata de um fenômeno histórico, interseccional e
relacional que se desenvolve em sociedades marcadas pelas desigualdades advindas do
colonialismo. O sufixo nominal do termo branquitude designa a ideia de que é um estado,
uma qualidade ou uma instância do ser.
É, nesta leitura, um lugar estrutural de vantagem e de privilégios raciais3 baseado
em práticas e identidades culturalmente estabelecidas e cambiantes, gerando valores
simbólicos e materiais. Assim, a branquitude age “através e nas relações de poder,
produzindo violências sociais e epistemológicas” (CARDOSO, 2017, p.24). Estas
contribuições somam-se aos estudos de Seyferth (2005) e de Guimarães (1995; 2004),
que abordam o conceito de superioridade racial como construído socialmente e
sedimentado por mecanismos de legitimação que trabalham para justificar as
desigualdades que marginalizam os indivíduos não-brancos.
Autores como Lourenço Cardoso (1998; 2011) e Willian da Conceição (2017)
destacam que a branquitude permanece significando poder4. A identidade racial branca é
“um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos e materiais palpáveis que colaboram para
reprodução do preconceito racial” (CARDOSO, 2011, p.81). Neste sentido, Cardoso
completa: “considerar o branco como único grupo sinônimo do ser humano, ou ser
humano ‘ideal’, é indubitavelmente uma das características marcantes da branquitude em
nossa sociedade e em outras” (p.82). Robert Young acrescenta a este debate quando, em
3
Estes privilégios que se desenvolvem a partir de construções raciais que despontam de um longo processo
em que as hipóteses discriminatórias de diferenças entre categorias humanas e da suposta superioridade do
homem branco são fundamentadas por uma falsa ciência produzida internacionalmente. Neste aspecto, o
racismo travestido de conhecimento científico advoga a superioridade de categorias humanas em
detrimento de outras em um sistema que utiliza diferenças fenotípicas para justificar processos de
dominação colonial e de divisão do trabalho e do espaço social (SCHWARCZ, 1993; CONCEIÇÃO, 2017).
4
Aqui proponho um acesso amplo à teoria weberiana, que postula o poder como a possibilidade de impor
a própria vontade sobre a conduta alheia dentro de uma relação social (WEBER, 1991).
57
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Desejo Colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça, postula que a raça foi sempre uma
elaboração cultural, bem como política, científica e social. A imbricação entre estas
levou-as a se tornarem interdependentes e inseparáveis (2005).
Neste trabalho, vale dizer, a branquitude significa um conjunto de práticas e
pensamentos estruturantes que traduzem vícios segregacionistas, mercantilistas e racistas
da sociedade racializada desviantes do pensamento religioso afro-ameríndio brasileiro e
que podem se intrometer no contexto dos terreiros de formas diversas, sutis ou violentas.
Se, a partir da bibliografia comentada, compreendermos a branquitude como um
fenômeno mutável e percebido em diversas camadas sociais e relacionais, notamos que
sua penetração nestes espaços religiosos pode se dar também – mas não exclusivamente
– através da entrada de indivíduos brancos nestas comunidades. A branquitude precisa
ser compreendida, dada a sua complexidade de formas, como uma força que pode
instrumentalizar e operar por meio de corpos e consciências brancas e não-brancas.
É, como visto, uma ferramenta sofisticada por meio da qual as segregações
produzidas pela cisão racial das sociedades se reproduzem, muitas vezes de forma
silenciosa, embora também opere com lógicas explícitas. A prova disto é que, mesmo em
terreiros totalmente ou predominantemente compostos por indivíduos negros também
pode se verificar, em um momento ou em outro, a operação de mecanismos sutis da
branquitude como força intrometida, ou seja, práticas e comportamentos moldados pelas
estruturas históricas racistas da sociedade. Isto nos leva a reconsiderar e questionar a
noção, que nos parece naturalizada e indiscutível, de que o fenômeno de entrada de
brancos nos candomblés e o ingresso da branquitude nestas comunidades são sinônimos,
movimentos intrínsecos e inseparáveis.
O debate acadêmico sobre a dualidade entre embranquecimento e branquitude no
candomblé é um movimento em expansão nos paradigmas dos estudos afro-ameríndio-
religiosos das ciências sociais brasileiras. Seus temas ganham força a partir da inaugural
produção de Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral, A cor do axé: Brancos e negros
no candomblé de São Paulo (1993)5, em que os autores investigaram como as pessoas
classificadas como “negras” e “brancas” visualizam a associação da cor da pele com o
axé, força mágico-religiosa.
5
Um dos entrevistados por Amaral e Silva em seu trabalho de campo chega a alegar, condensando as
percepções que provocariam este debate, que o candomblé estaria perdendo adeptos negros que
debandavam para religiões socialmente aceitas, escapando da discriminação, enquanto o branco acabaria
por descaracterizar a religião, impondo a ela “sua maneira própria de ser” (1993, p.100).
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Este movimento acadêmico permanece tímido durante a primeira década dos anos
2000, quando é publicado o trabalho de Robson Rogério da Cruz (2008). Mais
recentemente tem-se observado algumas investidas neste campo, a exemplo do artigo de
Vagner Gonçalves da Silva lançado em 2011, Religião e identidade cultural negra:
católicos, afrobrasileiros e neopentecostais, e do trabalho de Jocélio Teles dos Santos e
Luiz Chateaubriand dos Santos (2013), que analisam o perfil dos pais e mães de santo de
Salvador a partir de recortes de escolaridade, gênero e cor da pele.
Uma quantidade mais expressiva de trabalhos acadêmicos, no entanto, dedica-se
a estudar a participação de expoentes brancos na representação do candomblé nas artes e
nos estudos sociais, principalmente no que tange às produções de Vinicius de Morais e
Baden Powell na música popular (SILVA, 2013; CAMPOS, 2015), às do argentino
Hector Bernabó – o Carybé – na pintura e na escultura (CHAVES, 2014; MACIEL, 2014;
PIMENTEL, 2014; AMPARO, 2015) e às de autores ao exemplo de Jorge Amado e Nina
Rodrigues6 na literatura, como os trabalhos de Ferretti (1999), Lima (2004), Araújo
(2006; 2009), Castello (2009), Prandi, (2009), Azambuja (2010), Sobrinho e Magalhães
(2010), Oliveira (2010), Carvalho (2012) e tantos outros. Mas, dentre estes exemplos, são
escassas as discussões sobre as questões étnico-raciais.
Atualmente os diversos movimentos negros brasileiros têm se agitado no sentido
de questionar o embranquecimento destes espaços ancestrais e têm trabalhado como uma
força motriz no semear de inquietações em torno deste fenômeno. É importante notar, em
alguns destes discursos, uma naturalização da correspondência entre o ingresso de
brancos no candomblé e a contaminação dos terreiros pelos vícios da branquitude – como
se, via de regra, os indivíduos brancos iniciados no candomblé traduzissem obrigatória e
inerentemente uma intromissão das práticas colonizadoras e racistas nas redomas
religiosas afro-ameríndias. São casos típicos de confundir o fenômeno do
embranquecimento com a operação da branquitude, conceitos que devem permanecer
6
Como observa Robson Cruz, “Nina Rodrigues adotou as ideias do racismo científico vigente, aplicando-
as à população da Bahia e encontrando no candomblé um traço de evidência ideal que denunciava o estágio
evolutivo dos negros baianos. O candomblé seria um ‘animismo fetichista’, a crença possível de uma raça
irredutivelmente limitada por sua biologia ao ‘estágio de barbárie’, de acordo com a combinação de autores
como Spencer, Darwin, Morgan, Blanc, Lombroso, Ferri e Garofalo”. (2008, p.45). Uma corrente
contraposta à de Nina Rodrigues seria compreendida nas contribuições de Roger Bastide, que ao afirmar
Africanus Sum “franqueia a possibilidade de todos (incluindo ele mesmo) aderirem à crença no candomblé
enquanto caminho para uma africanização pessoal. [...] Desta forma, o campo acadêmico interessado na
afro-religiosidade oscilou entre essas posições que resultaram na versão de propostas bastidianas na
produção mais recente expressada em autores de considerável influência no campo religioso e militante,
formando legiões de seguidores, como Juana Elbein dos Santos, Muniz Sodré e, agora, Lorand Matory”
(p.185).
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distintos – de certa forma relacionados, mas não interdependentes. Veremos que estas
percepções são alvo de contestações apresentadas pela literatura por mim estudada, sendo
necessário desdobrá-las em fenômenos mais complexos e cujas nuances questionam as
adversidades estabelecidas.
Paralelamente, estes temas são assuntos correntes em revistas e discussões
online7. Estas publicações, embora contribuam de forma extremamente ingênua e tímida
para o debate aqui proposto, atentam-se a estes fenômenos vinculando-os a um
movimento de aproximação da classe média urbana dos terreiros de umbanda e
candomblé.
A partir das discussões florescidas nos campos acadêmicos e midiáticos
percebemos a insurgência destes temas como um prisma atravessado por um feixe de luz,
refratando inúmeros pontos focais a serem desvendados. Para contribuir com elementos
variados e inquietos neste acanhado e necessário debate, então, estruturei o artigo em três
eixos seguintes a esta introdução: o primeiro destina-se a compreender o candomblé como
uma dinâmica de resistência e estudar o histórico de envolvimento dos brancos com seus
cultos, o segundo propõe uma avaliação dos espaços disputados e compartilhados neste
debate e o terceiro eixo, por fim, aborda as responsabilidades inerentes a estes processos.
7
Os artigos mais compartilhados neste aspecto foram publicados pela Geledés (Disponível em:
https://www.geledes.org.br/e-os-brancos-do-candomble/) e pela revista Medium (Disponível em:
https://medium.com/revistaokoto/mas-branco-tem-orix%C3%A1-304cfdeaf234). Houve também um
problemático artigo publicado em 28 de agosto de 2015 pela Revista Marie Claire, intitulado Umbanda e
Candomblé conquistam jovens descolados no Brasil (Disponível em:
https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2015/08/com-festas-e-sem-
regrastradicionais-umbanda-e-candomble-conquistam-jovens-descolados-no-brasil.html). O texto não
reúne observações que permitam um estudo do fenômeno compromissado com a realidade estrutural destes
cultos, não debate as questões raciais ou as tensões identitárias envolvidas neste processo e ainda reúne
uma série de considerações racistas feitas pelos entrevistados. Outra reportagem publicada neste contexto
foi veiculada pela Istoé em 21 de janeiro de 2016 (Disponível em:
https://istoe.com.br/374654_AS+RELIGIOES+AFRO+CONQUISTAM+A+CLASSE+MEDIA/).
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8
A cumeeira é o axé plantado sob o chão do espaço de culto dos terreiros que, ligado ao justaposto no teto
da construção, serve como ligação umbilical da comunidade com as forças divinas ali cultuadas.
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candomblecistas – seja por parte dos indivíduos brancos ou quaisquer outros – se, na
cosmovisão ancestral negra, os terreiros não são propriedades, mas constructos
comunitários?
É indiscutível a obstinação das casas de candomblé para resistir à opressão do
sistema, que por muitos anos permaneceu subjugado aos resquícios da intolerância
colonial e do racismo estrutural9. Assim, os terreiros adquiriram uma postura estratégica
para lutar contra a imposição da violência estatal e das dinâmicas segregacionistas da
sociedade, tornando-se verdadeiros oásis de humanidade e cooperação em um deserto de
discriminações.
O debate em torno da relação entre o candomblé e a identidade negra tem ocupado
vias centrais nas produções sobre o campo religioso, como visto em trabalhos a exemplo
de Mattos (1994), Freitas (1995) e Joaquim (2001); mas também nas publicações sobre a
construção da militância negra, a exemplo de Santana e Wafer (1990), D’Adesky (2001),
Goldman (2003) e Sansone (2004). É observável, neste campo, que raça e cultura parecem
ter uma continuidade necessária – e esta é uma característica preponderante nos discursos
que acusam o fenômeno do embranquecimento do candomblé como algo a ser combatido
com todas as armas à disposição de Ogum, o deus da guerra e das ferramentas. Neste
sentido, como alguns observam, o candomblé se converteria em um modo de viver
exclusivo do negro. Mas estas versões racializadas do candomblé, como a defendida em
outros momentos por Nina Rodrigues (2006), têm encontrado obstáculos em termos de
credibilidade (Maggie, 2005; 2001; Cruz, 2008).
Um outro aspecto importante deve ser debatido ao observar as consequências da
constituição de um sujeito negro por meio do amálgama entre raça e cultura,
instrumentalizado pelo candomblé. Quem contribui de forma exemplar para esta reflexão
é Robson Rogério Cruz em sua tese apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro
em 2008, intitulada Branco não tem santo: Representações de raça, cor e etnicidade no
candomblé.
9
Ao me referir a um racismo estrutural faço coro a algumas considerações de Eduardo Bonilla-Silva (1997),
muito embora reconheça as fragilidades de sua tese. Ao abordar o conceito de racismo estrutural deste autor
acrescento as contribuições de sua crítica voraz, Mara Loveman (1999), e de Rogers Brubaker (2003),
também com ressalvas. Trata-se, aqui, de um conceito que traduz a noção de um sistema complexo em que
categorias raciais são condenadas à inferioridade simbólica. Assim, o racismo não pode ser compreendido
como algo externo à fundação da estrutura do sistema social ou como um fenômeno individualizado,
estático ou irracional. Em seu estudo, como postula Brubaker, é mais produtivo “focar em categorias
práticas, idiomas culturais, esquemas cognitivos, senso comum, fontes e rotinas organizacionais, quadros
discursivos, formas institucionalizadas e projetos políticos” (2003, p.186).
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Tendo a acreditar que não geraria reflexões interessantes a este debate voltar a
atenção para as razões pelas quais os indivíduos brancos decidem se iniciar no candomblé.
Mais frutífero que isto, como já disse, é estudar o que fazem e como se comportam os
brancos aos se iniciarem nestas religiões. A decisão de se aproximar de um terreiro
envolve uma miríade de questões subjetivas e incomensuráveis, e creio não competir à
academia científica refletir sobre a validade de um branco que adentra uma festa de
candomblé e bola no santo10.
Isto posto, compreende-se que aos esforços deste trabalho torna-se mais
interessante estudar não o porquê, mas como os brancos se inserem nos espaços religiosos
de resistência ancestral afro-ameríndia11. Trata-se, portanto, de analisar as questões que
orbitam a colonização das casas de axé pela branquitude enquanto fenômeno complexo,
e as tensões decorrentes da presença de corpos e privilégios brancos em meio às insígnias
e representações culturais africanas. Afinal, como pontua brilhantemente Bhaba ao
discutir O local da cultura, os termos do embate cultural são produzidos
performaticamente e “a articulação social da diferença é uma negociação complexa e em
andamento” (1998, p.21).
Algo imprescindível a esta análise é observar como o candomblé é tratado pelas
manifestações artísticas concebidas por brancos, uma vez que a produção cultural foi um
marco importante na relação entre o embranquecimento e a branquitude no candomblé.
A primeira geração de artistas brancos que se inseriu nos terreiros teve alguns
pontos comuns em sua trajetória: foram consagrados Ogans12 das casas de candomblé e,
devido ao seu prestígio social, foram incumbidos de apresentar os cultos afro-ameríndios
brasileiros como referências dignas da atenção das elites sociais, econômicas e culturais
do país durante os anos 1950 e 1960, tidos por Roberto Conduru como os “Anos de Ouro
do candomblé” (2010, p.184).
10
Bolar no santo é o termo utilizado para identificar as primeiras manifestações da deidade – orixá, nkisi
ou vodun – na individualidade da pessoa a ser iniciada. É o fenômeno físico-corporal-sensorial que confere
o acesso mediúnico ao culto.
11
E neste ponto retorno à indagação feita por meu colega na Jornada de Estudos Negros citada no início
deste texto. Também creio ser mais interessante, na dinâmica inversa, não estudar por qual motivo os negros
se aproximam dos cultos pentecostais e neopentecostais e questionar suas escolhas filosófico-religiosas,
mas sim analisar como eles se comportam, ocupando estes espaços, em relação às suas identidades e
heranças ancestrais.
12
Ogan é o cargo dado a iniciados do sexo masculino que não entram em transe, desempenhando funções
como o manejo dos atabaques e outros instrumentos ritualísticos, o canto, o corte dos animais sacralizados
e outros papéis diplomáticos de representação de suas comunidades religiosas.
65
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13
Foi Mãe Aninha, matriarca do Ilê Axé Opó Afonjá em Salvador, quem viajou ao Rio de Janeiro e graças
à sua proximidade com Oswaldo Aranha, que frequentava sua casa, conseguiu uma audiência com Getúlio
Vargas. Nesta ocasião a zeladora obteve do Chefe do Governo o comprometimento com a promulgação do
Decreto-Lei 1.202/1939, que garantiria o livre exercício dos cultos de matriz africana no país. Quem relata
este episódio é a atual dirigente do Opó Afonjá, Mãe Stella de Oxóssi, em seu livro Meu Tempo é Agora
(Santos, 1993).
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crítica válida aos trabalhos dos primeiros artistas brancos que adentraram os terreiros de
candomblé, a exemplo da geração de Vinicius de Morais.
Muito embora exista a convicção de que as contribuições dos Afro-Sambas14
(FORMA, 1966) permitiram a divulgação das referências do candomblé enquanto fontes
artísticas válidas e reconhecidas, há de se observar que um de seus autores, Vinicius de
Morais – o soi-disant branco mais preto do Brasil – também operou, através de suas
composições e discursos, uma folclorização dos símbolos afro-religiosos. Isto demonstra
que os indivíduos brancos podem, ao mesmo tempo, promover positivamente as
referências afro-ameríndias brasileiras e também servir de canal por meio do qual a
branquitude, enquanto fenômeno perpetuador de estruturas segregacionistas, opera
habilidosamente.
É o exemplo clássico do Canto de Ossanha, que envolve a figura da divindade
das folhas com um exacerbado misticismo, ocultando a materialidade e a historicidade de
seus significados. Como pontua brilhantemente Ilka Leite (1999), a folclorização opera
por meio da “estereotipia, desqualificação e exotismo como uma eficiente manobra capaz
de tirar de cena, de fazer desaparecer os sujeitos históricos de carne e osso” (p.126). E é
a folclorização proporcionada por artistas brancos, e não apenas a entrada de seus corpos
nos terreiros, que atua como invólucro da branquitude.
O compartilhamento dos espaços dos terreiros por artistas brancos prossegue
seguindo uma lógica relacional15: é o próprio Vinicius de Morais que, alguns anos após
sua parceria com Baden Powell, apresenta Mãe Menininha do Gantois à sua amiga e
intérprete Maria Bethânia. E é no terreiro do Gantois em Salvador que, anos depois,
Bethânia, seu irmão Caetano Veloso e sua amiga Gal Costa iniciaram-se para os orixás
Iansã, Oxóssi e Obaluaê, respectivamente. Os três músicos tornar-se-iam célebres no
contexto nacional e internacional por suas composições que, atentas às diversas fontes
culturais brasileiras, promoveriam releituras da fusão entre a Música Popular Brasileira e
algumas referências afro-religiosas.
A relação entre a classe artística branca e os terreiros da Bahia pode ser vista,
então, como uma cabeça de duas faces: se, por um lado, contribui para a difusão das
14
Os Afro-Sambas também foram de autoria de Baden Powell, músico carioca nascido em 1937 cuja
produção desponta a partir de 1950. Expoente do choro, bossa-nova, jazz, samba e MPB, aproximou-se do
culto candomblecista graças a sua parceria com Vinicius de Morais. Ao final de sua vida, no entanto,
recusou qualquer forma de religiosidade afro-brasileira e declarou-se crente em Jesus Cristo.
15
O próprio Vinicius conheceu o terreiro do Opó Afonjá de Salvador por intermédio de Jorge Amado, que
também lhe apresentou Carybé, desenhista e escultor argentino.
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16
Esta etapa da pesquisa utilizou os registros que constam na biografia dos sítios virtuais destes sacerdotes,
bem como o arquivo de entrevistas brilhantemente compilado pelo Grupo de Estudos BraulioGoffman,
reunido no canal do Youtube do Ogan Jaçanã Gonçalves, disponível em:
<https://www.youtube.com/channel/UCtZmoJhP3FwO6fiLkkFbccw>.
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iniciaram-se Tat’etu Emiginã, pelas mãos de Isaura de Kafunge, filha do saudoso Rufino
do Beiru, e Tat’etu Diangirê, descendente do tradicional terreiro Viva Deus em Salvador.
Em 1979, iniciou-se o Tata Nkasumbiré, pelas mãos de Nganga Kandemina Kusuá em
Nazaré – Bahia, posteriormente tomando obrigação na raiz Tumba Junsara com Lourinho
de Ciríaco, filho carnal de Iyá Nanguê.
Uma outra geração se apresentou na década de 1980, com o exemplo de Tat’etu
Otuajô, iniciado por Otomiobá, da raiz de Cruz das Almas, na cidade do Rio de Janeiro
em 1984. José Beniste, renomado escritor e estudioso dos cultos afro-ameríndios
brasileiros, embora não tenha recebido o título de sacerdote, também merece ser citado
por sua brilhante colaboração à manutenção dos cultos no país. O Ogan foi iniciado em
1984, no Ilê Axé Opó Afonjá, por Mãe Cantu de Ayrá.
Feita esta resumida listagem, torna-se importante ressaltar que o ingresso de
brancos no candomblé: 1) não é um fenômeno recente, mas remonta aos primórdios da
organização do culto17; 2) ocorre nas mais variadas raízes e famílias religiosas; e 3) por
si só não traz problemas fundamentais à preservação do culto, inclusive proporciona
figuras comprometidas com a perpetuação destas tradições. O que traz complicações para
as religiosidades e espaços afro-ameríndios brasileiros é, portanto, a atuação de
indivíduos – de pele branca ou negra – que fecham seus olhos para suas responsabilidades
ao adentrarem os terreiros; indivíduos que, ao se iniciarem, trabalham em favor da
colonização destes espaços com pressupostos segregacionistas e alienados em favor da
branquitude.
As tensões decorrentes do embranquecimento do candomblé suscitam a partir de
posturas que negam o antagonismo entre a branquitude e os valores religiosos afro-
ameríndios. Esta conclusão nos leva de volta à necessidade de investigar como – e não
por quais razões – os brancos se inserem nos terreiros.
Muniz Sodré, em A Verdade Seduzida: por um conceito de cultura no Brasil
(1983) e O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira (1988), critica como
engodo a noção de que existe, no Brasil, uma democracia racial. Sodré denuncia a
suposição de um convívio democrático entre as categorias raciais como uma forma
hipócrita de renegar as diferenciações operantes na sociedade. Na avaliação do autor,
17
Como observa Renato da Silveira em O candomblé da Barroquinha: processo de constituição dos
primeiros terreiros de Keto (2006), indivíduos de pele branca fizeram-se presentes desde os primeiros
movimentos compreendidos na formação dos calundus, complexos religiosos que, com o passar do tempo,
transmutar-se-iam na organização religiosa conhecida como o candomblé.
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dos sincretismos, que durante muito tempo serviram como modo de sobrevivência para a
cosmologia afro-ameríndia religiosa (VALENTE, 1976; AZEVEDO, 1995; VERGER,
1997; AZEVEDO, 2001; POLI, 2011), mas atenho-me a interpretar esta apropriação de
uma figura originalmente africana por uma estética europeia como um problema
identitário a ser dissecado.
Embranquecer a poderosa divindade que vive nas águas doces e salgadas, assim
como vestir um orixá/nkisi/vodun com roupas e paramentas ocidentalizados ou construir
terreiros usando linguagens arquitetônicas não-africanas são práticas que podem ser
vistas como formas de descaracterização dos elementos fundadores do culto e, portanto,
dos próprios espaços e práticas religiosas afro-ameríndias. Para prosseguir com esta
dimensão do debate confesso carecer de contribuições acadêmicas que aprofundem estas
análises com referências históricas e etnográficas.
Os espaços
18
Estudos interessantes sobre as dinâmicas de perpetuação da divisão racial do trabalho no Brasil, como os
de Rafael Osório (2008) e Tereza Martins (2014), complementam uma leitura robusta sobre o tema.
71
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divididas nos terreiros entre negros e brancos pode ser um elemento importante para o
debate que venho esmiuçar neste artigo.
É fortuito, então, propor um exercício de análise: observar, no cotidiano dos
trabalhos de um terreiro, onde se encontram os corpos negros e onde se encontram os
corpos brancos, estabelecendo uma metodologia básica. Torna-se imprescindível analisar
estas questões a partir da divisão hierárquica dos terreiros, ou seja, dividir sua
comunidade nos graus de hierarquia – não iniciados (abian/ndumbi), filhos de santo (iaôs,
azenza, vodunsi), ogans/kambonos, ekedjis/makotas, egbomis/kotas, etc – e observar,
dentro de cada categoria, como se divide o trabalho entre negros e brancos. Assim, poder-
se-ia indagar se os filhos de santo de pele negra desempenham funções braçais enquanto
os de pele branca assumem tarefas mais brandas; ou se, entre os cargos, são as negras que
permanecem na cozinha e servem a comunidade e as brancas se resguardam de funções
que, na sociedade externa ao terreiro, correspondem a status sociais marginalizados.
A tradição religiosa afro-ameríndia não imputa diferentes status para as funções
de manutenção dos terreiros. No pensamento candomblecista, por excelência, não existe
desonra alguma em lavar os banheiros ou limpar galinhas. A valoração destas funções
como indesejáveis ou evitáveis vem do pensamento externo à tradição afro-ameríndia
brasileira; vem, indubitavelmente, de uma sociedade capitalista e racista que definiu estes
trabalhos como inferiores na dinâmica social. Esta prática advém de uma tradição
escravagista que, mesmo após a abolição, institui os trabalhadores do setor de serviços
como os que possuem menor remuneração e menor prestígio social – dos quais a maioria
é, até os dias atuais, negra e periférica.
O encargo negativo dado a funções de manutenção de um terreiro pode ser, neste
sentido, um indicativo importante da colonização das casas de axé pelas lógicas e
estruturas discriminatórias, segregacionistas e racistas da branquitude. Ele significa, na
minha leitura, uma forma regenerada do pensamento fundante da divisão racial do
trabalho e suas vertentes no Brasil contemporâneo.
Estes exercícios de observação podem, se aliados a metodologias científicas como
abordagens etnográficas, estudos de caso, observações participantes e surveys, produzir
novas conclusões importantes para o debate sobre a branquitude no candomblé. Com o
devido aporte teórico e metodológico permitirão, assim, trazer novas dimensões
provocativas em torno do fenômeno de embranquecimento das religiões afro-ameríndias
brasileiras.
72
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As responsabilidades
19
A vivência compartilhada em um terreiro de candomblé produz um espaço de desenvolvimento da
consciência ambiental, política, social e comportamental. Lúcio da Conceição (2006, p.14) observa em uma
pesquisa de campo que os iniciados no candomblé elaboram vínculos com seus terreiros ao passo em que
vão desfazendo estereótipos negativos que possuíam, sendo as relações cotidianas no espaço religioso a
dinâmica responsável por mudanças comportamentais positivas e por uma maior capacidade de resolução
de conflitos.
20
Como atestam muitos sacerdotes e iniciados no candomblé durante os depoimentos recolhidos por
Robson Cruz (2008).
73
Revista Calundu – vol.2, n.2, jul-dez 2018
21
Como pontua Danielle Sanchez, a Makota Roxi Mutaledi de meu terreiro Nzo Jimonadiá NZambi, em
Águas Lindas de Goiás, “O candomblé e a umbanda se transformam em religiões socialmente aceitas para
os não negros. [...] É importante ressaltar que ser ‘branco de alma negra’ ou um ‘ser enegrecido’ não te
colocará em situações de risco eminente por professar sua fé, afinal de contas, tais características estão
apenas internalizadas e, mesmo que sejam verbalizadas, a cor de sua pele não transmite ‘insegurança’”
(Disponível em: http://coletivoyaa.blogspot.com/2017/11/ser-de-candomble-nao-te-faz-negro.html).
74
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Considerações finais
Minhas intenções ao escrever este artigo não foram, como já coloquei, esgotar as
fontes e desdobramentos deste debate. As motivações que me moveram a estas reflexões
estão ligadas a uma vontade de contribuir com perspectivas diversas e inquietantes para
que, na academia científica, os pesquisadores possam centralizar cada vez mais as
discussões em torno do embranquecimento e da branquitude nas religiões e espaços afro-
ameríndios brasileiros. Por estes motivos parece-me cabível compreender que estes são
fenômenos distintos, com muitas tangências; mas que não são, obrigatoriamente,
intrínsecos.
O embranquecimento dos cultos afro-ameríndios pode trazer opções estratégicas
para a resistência destas comunidades e não oferecer risco à violação dos valores e saberes
ancestrais, se acompanhado de esforços que combatam a perpetuação de dinâmicas
racistas. A intromissão da branquitude nestes espaços, por outro lado, deve ser um
fenômeno admitido como evitável e incoerente.
Faço questão de pontuar as responsabilidades dos indivíduos brancos nestes
paradigmas pois, cegos a elas, tornam-se alienados e incrédulos nas dimensões
segregacionistas que seus comportamentos podem gerar. Assim, o branco que adentra o
terreiro deve evitar seguir um complexo de Poliana segundo o qual “tudo está bem, tudo
vai ficar bem, não preciso me posicionar”. É necessário, para a sobrevivência do culto,
posicionar-se na luta contra a invasão das casas de axé pelas estruturas e comportamentos
viciosos e segregacionistas da branquitude.
Caso os elementos que trago para este debate sejam ignorados por aqueles que
nele se inserem há um risco de que, se cada um pretende para sua categoria racial a
hegemonia no candomblé, acabará havendo um candomblé só para brancos e outro
candomblé só para negros. E, como me disse certa vez em uma conversa de orientação
um Tata Nkisi22 e pesquisador do candomblé, o pensamento herdado das ancestralidades
africanas não compreende as questões sociais e ontológicas a partir de um binarismo ou
de uma dicotomia estético-cromática. Reduzir as tensões sociais a esta dicotomia
preto/branco é uma característica da vivência ocidental capitalista moderna e pós-
moderna (OMARI-TUNKARA, 2008).
22
Título de autoridade nos candomblés de origem Angola-Congo.
75
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Muitas lacunas inerentes às reflexões que desenvolvi ficam em aberto, tais como
feridas incômodas e expostas. É o exemplo da necessidade de discutir, futuramente, os
entrelaces das questões de gênero com as problemáticas e fenômenos que aqui abordei.
Uma outra ramificação ainda pouco explorada deste debate é, sem dúvida, a operação dos
sincretismos e demais questões que orbitam a constituição dos cultos de Umbanda na
contemporaneidade ou, ainda, a comercialização das práticas religiosas diante dos
contextos urbanos. Mas estes tópicos, por serem dotados de naturezas complexas,
merecem momentos exclusivos para sua discussão. Creio, assim, cumprir com meu papel
de sinalizar elementos para o debate em torno dos brancos e da branquitude no candomblé
sem ignorar ou esgotar outros temas que deles surgem.
Enfim, o que está em jogo é saber com qual candomblé se opera. Se, de
um lado, é aquele fundamentado por suas regras de hierarquia, mas que
funcionam pela admissão da similaridade identitária entre os elementos
que compõem a cadeia de comando ou se, por outro lado, é aquele
fundamentado por regras onde se reforça a diferença entre os
componentes, conduzindo eventualmente a uma deslegitimação ou
mesmo exclusão de elementos supostamente menos autorizados por
estas regras (em outras palavras, os brancos). Parafraseando Anthony
Appiah, [...] nota-se que esta segunda opinião está em muito má
companhia (CRUZ, 2008, p.190, grifo meu).
Ainda é Tempo de analisar estes fenômenos e promover seus debates sem reduzir
as práticas e espaços do candomblé a meras questões de dicotomias cromáticas, mas
sempre atentando para a dinâmica de opressões racializadas que podem permear estas
vivências, advogando ambientes religiosos múltiplos, diversos, cooperativos, criativos,
autoconscientes e multidimensionais, tais como se apresentam a encruzilhada de Exu ou
a gira em que dançam e festejam os nossos deuses.
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80
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YOUNG, Robert. Desejo Colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2005.
81
Resumen:
Este artículo discute como es vista la infancia, relata y cuidada en la Umbanda y en el
Candomblé, a partir de la perspectiva de la Sociología de la Infancia. El objetivo es
evidenciar la posición de la infancia como categoría generacional en la Umbanda y en el
Candomblé, buscando reflexionar sobre las culturas infantiles, en esos contextos
religiosos, abordados en investigaciones publicadas entre 2011 y 2016. La categoría
generacional de los adultos se constituye de miradas y cuidados diferenciados en relación
a la categoría infancia. La infancia se hace presente por la participación de la familia de
los(as) niños(as) y de sus iniciaciones en la religión, no obstante, las culturas infantiles
no acostumbran ser tan discutidas como las culturas religiosas adultas. Debido al número
reducido de investigaciones sobre las culturas, hay pocas evidencias e investigaciones
acerca de los(as) infantes en la Umbanda, en cuanto que en el Candomblé ocurren mas
estudios sobre los infantes, pero relacionados con el aprendizaje y la relación escuela y
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. [email protected]
82
religión. De este modo, podemos concluir que existe una laguna en cuanto a
investigaciones giradas para los infantes en la Umbanda y en el Candomblé,
principalmente en lo que concierne a la discusión de relatos de los(as) infantes.
Introdução
Alanen (2001), Rocha (2008), Sarmento (2009), Qvortrup (2010), Corsaro (2011) e
Arenhart (2016). Assim, este artigo se baseia em quatro pesquisas publicadas sobre
Candomblé e Umbanda, nas quais aparecem questões sobre crianças que frequentam ou
são iniciadas nestas religiões, em alguns artigos científicos, e nos meus próprios relatos
de experiências tanto na Umbanda, em que fui médium no Templo a Caminho da Paz, e
agora como iaô, iniciada no Candomblé, na casa KWE CEJÀ D’ OYÀ.
A Umbanda sempre esteve presente na minha vida. Nasci em Paraíba do Sul (RJ),
onde meu avô paterno era médium e fundou em sua casa um terreiro, no qual realizava
sessões com seus guias2. Minha avó era rezadeira e parteira. Ela fez os dois partos da
minha mãe. Minha mãe teve dificuldades no meu parto e minha avó conseguiu ajudá-la,
pois nasci com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Minha mãe decidiu que os dois
seriam meus padrinhos de batismo na Igreja Católica, além de avós. Convivi com as rezas
e os guias, durante toda minha vida, mas como consulente.
Iniciei minha trajetória como médium só em 2014, quando tinha 48 anos, e decidi
fazer o curso obrigatório de iniciação na Umbanda e ingressar no Templo a Caminho da
Paz, no Engenho Novo, cidade do Rio de Janeiro. Para ingressar, todos deveriam fazer
um curso de iniciação aos sábados para conhecer a Umbanda e entender as normas da
casa. O templo tinha cinco filiais, com cerca de 500 médiuns3 e à época nesse curso,
podiam frequentar adultos e jovens de dezessete anos acompanhados de seus pais, já que
as crianças não frequentavam o curso.
Entrei na casa em uma cerimônia de recebimento da conta de Oxalá4, que nós
fazíamos a partir de um modelo ensinado neste curso. O uniforme era um jaleco
comprido, branco, com bolsos grandes e um emblema da casa bordado. Havia também
uma toalha, com nosso nome e o emblema de filial que tínhamos escolhido. Eu escolhi
ficar na Tsara de Pablo Juan, no Engenho Novo.
2
A Umbanda é uma religião na qual os chamados guias (espíritos de caboclos, boiadeiros, pretos velhos,
ciganas, exus, pombagiras, marinheiros e crianças) incorporam na pessoa que os recebe (PRANDI, 1990,
p.61).
3
De acordo com o site do Templo a Caminho da Paz, atualmente, há apenas duas filiais e uma matriz.
Fonte: http://temploacaminhodapaz.com.br/ - Acesso em novembro de 2018.
4
São 76 contas brancas, que são colocadas num fio de nylon e unidas por uma conta maior branca chamada
firma.
84
Havia na Tsara uma sala de atendimento para pessoas doentes, com médiuns que
tinham cursos de Reiki5, oferecidos pelo próprio templo. Em outra sala, ficava o curso de
evangelização para as crianças, com cadeiras e mesinhas como em uma sala de aula e
tarefas de desenho, colagem, pintura, tudo voltado para a aprendizagem sobre a Umbanda.
A Umbanda, em 1847, foi relacionada como uma religião de um grupo de escravos
que organizaram uma revolta contra seus senhores em Vassouras, Província do Rio de
Janeiro, caracterizando-se como uma associação mística e secreta, devotada a Santo
Antônio:
Na Umbanda de 1848 (a palavra existe em kimbundu e umbuntu,
significando “a arte de curar, adivinhar e induzir os espíritos a agir para
o bem ou para o mal”) a associação possivelmente era com certos
espíritos locais ou espíritos maiores da natureza, das tradições da África
Central (SLENES, 1992, p.53).
5
É uma terapia complementar, caracterizado pela imposição das mãos no ser humano com objetivo de
reestabelecer o equilíbrio, físico, mental e espiritual.
6
Termo utilizado nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, em referência às religiões
africanas ou cerimônias realizadas por elas (BASTIDE, 2001, p.311).
85
urbano industrial do segundo quartel do Século XX, justamente nos centros urbanos mais
importantes das regiões mais desenvolvidas do país.
As federações são dirigidas, sobretudo, por pessoas de classe média e que
moralizam e purificam a imagem que antes era a dos negros que faziam feitiços e
matanças7, trazendo as roupas brancas para os médiuns, os quais refletem a boa
apresentação e a limpeza. Acredita-se que é cuidando do corpo e da aparência que se
evolui espiritualmente e ascende simbolicamente na estratificação social. A limpeza vem
da retirada de rituais religiosos de origem africana, incongruente com os padrões da
sociedade, onde os rituais da Quimbanda se transformaram em magia negra, magia de
negros (ORTIZ, 1976, p.122).
Essa oposição cultural é transpassada ainda pelos valores de classe, a federações
eram dirigidas pela classe média, que usou como modelo o Kardecismo8, expresso pela
aprendizagem mediúnica pública e o desenvolvimento do médium (PRANDI, 1990,
p.55). Na Umbanda, ocorreu a eliminação quase total do sacrifício de sangue, porém
permanecem o rito cantado e dançado do Candomblé, bem como o panteão simplificado
dos orixás. A presença das entidades no transe ritual se volta mais para a cura, limpeza e
aconselhamento dos fiéis e clientes.
Mesmo participando como consulente na Umbanda, também frequentava o
Candomblé, pois minha irmã era filha de santo de Mãe Geilsa de Oyá e, por isso,
participei de vários rituais na casa, KWE CEJÀ D`OYÁ. Em 2008, ingressei no Mestrado
em Educação e o conclui em 2010, com a dissertação “Oralidade e Escrita no Candomblé”
9
, sobre os cadernos iniciáticos de três filhos de santo, de três casas diferentes. Uma das
casas pesquisadas foi a de Mãe Geilsa de Oyá, da qual agora sou filha de santo.
7
A doutrina kármica da evolução espiritual é um dos elementos mais importantes do sistema umbandista,
ela fornece aos pensadores religiosos o argumento ideológico que delimita a fronteira entre a Umbanda e
os cultos afro-brasileiros (ORTIZ, 1976, p.121).
8
Religião extremamente racionalizada desde a codificação espírita promovida por seu fundador francês na
segunda metade do século XIX, inspirou-se na doutrina kármica hindu para explicitar o sentido da
comunicação com os espíritos e no experimentalismo científico para captar suas mensagens (NEGRÃO,
1994, p.117).
9
Dissertação orientada em 2010 pela Profª Drª Adriana Hoffman, pelo Programa de Mestrado em Educação
da Universidade Católica de Petrópolis.
http://200.20.252.58/images/INSTITUCIONAL/MESTRADO_EDUC/DISSERTACOES/2010/catia_regi
na_gutman.pdf
86
10
Desde o dia 27 de janeiro fiquei recolhida na casa, e minha saída foi no dia 12 de fevereiro de 2017.
11
Lista de objetos e comidas que devem ser compradas pela pessoa que vai fazer sua iniciação no
Candomblé.
12
Orixá Iansã. Aqui nomearei as crianças de acordo com seus orixás.
13
Esteira de palha
14
Ritual litúrgico no qual animais são sacrificados.
15
Yemanjá no Candomblé é a mãe de todas as cabeças, por isso é chamada de mãe dos orixás.
87
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO/EDUCAÇÃO 6 31
INFÂNCIA 0 1
Fonte: http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/
16
É um ritual, onde o filho de santo deve pedir a benção, ficando deitado, onde, de acordo com seu orixá
de cabeça, deve executar movimentos específicos e, ao final, beijar a mão e falar: a benção.
17
Alguns trabalhos acadêmicos inseridos neste artigo não contêm as palavras-chaves, mas são citados, pois
apresentam narrativas infantis.
88
UFPI 0 1
UFMG 1 0
UFMT 0 1
UFPel 0 1
FURG 0 1
Fonte: http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/
Quadro III - Dissertações e Teses por instituição na área de Educação sobre Candomblé
UERJ 0 3
UNICENTRO 1 0
UFMT 1 0
UFSCAR 0 1
Fonte: http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/
18
É o culto umbandista muito influenciado pelo Candomblé de rito angolano, que cultua os inkisis (ou
minkisi, também chamados jinkisi), que são representantes das forças da natureza. Seus devotos rezam,
cantam e se comunicam com palavras originárias das línguas Kimbundo e Kikongo.
89
Infância na Modernidade
Na Idade Média, o adulto não tinha consciência da diferença essencial entre ele e
uma criança. Assim que a criança tinha condições de viver sem os cuidados constantes da
19
Decidi não usar essa pesquisa, pois não apresenta as vozes das crianças e nem relatos sobre as culturas
infantis.
20
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
21
Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
90
mãe, ou de qualquer outra pessoa ela, era introduzida à sociedade dos adultos (ARIÉS,
1982, p.158).
Essa passagem na Modernidade tem uma outra organização estrutural, em que a
criança é inserida na categoria infância, compreendida como um espaço social criado para
recebê-la desde o nascimento até se tornar adulta. Essa categoria infância não desaparece,
ela continua a existir para receber novas gerações de crianças. Administrações simbólicas
foram criadas pelos adultos, com instrumentos reguladores, de proteção e direitos: a
infância tanto se transforma de maneira constante assim como é uma categoria estrutural
permanente pela qual todas as crianças passam (QVORTRUP, 2010, p.637).
Quando nos referimos à infância como forma estrutural, queremos dizer que é
uma categoria ou uma parte da sociedade, como grupos de idade (CORSARO, 2011,
p.15). As crianças fazem parte da categoria infância e saem dela quando passam para a
categoria dos adultos, só que nesse caminho há uma troca de conhecimentos tanto entre
os adultos e as crianças, quanto com as crianças com seus pares. Essas trocas culturais se
traduzem em uma cultura infantil, que tem pontos de vista diferentes dos adultos, mas
não por isso são menos importantes.
A infância faz parte da sociedade, ela afeta e é afetada por tudo que acontece nela.
Ela é um fenômeno social, que caminha junto e não separada da sociedade. A infância
contribui ativamente para a cultura dos adultos e produzindo e criando sua própria cultura
(CORSARO, op. cit., p.53). O quadro exposto é o de que a categoria geracional da
infância interage com a categoria geracional dos adultos, como opostos e complementares
nessa construção da sociedade.
escolar. Os símbolos, palavras e hierarquias dentro de um meio que façam sentido para a
criança são importantes para uma transferência de saberes (ITURRA, 2002, p.139).
A criança nas religiões de matriz africana conhece e se reconhece dentro desses
símbolos, palavras e hierarquias da religião. A Umbanda e o Candomblé se baseiam nessa
transmissão de saberes, mas poucas análises ou quase nenhuma são pela ótica da criança.
Nos estudos sociológicos e antropológicos da Umbanda e do Candomblé, os adultos
sempre foram o centro das pesquisas, seus saberes e sua passagem de conhecimentos
rituais estão em livros editados e cadernos escritos por adultos.
A identidade das crianças umbandistas e das candomblecistas é também suas
identidades culturais, da sua vivência no cotidiano dessas religiões. Esses saberes não
teriam sentido fora desse contexto, pois a criança acessa a materialidade desses saberes
no inconsciente e no consciente. A continuidade desses saberes é ponto primordial da
continuidade desses e de outros grupos sociais (ITURRA, 2002, p.139).
É nesse contexto da Umbanda e do Candomblé que vamos observar e discutir
sobre as pesquisas, priorizando os relatos infantis, utilizando a Sociologia da Infância e
de acordo com os autores Mannheim (1993), Sirota (2001), Alanen (2001), Iturra (2002),
Rocha (2008), Sarmento (2009), Qvortrup (2010) e Corsaro (2011), com o objetivo de
perceber as culturas infantis nestes espaços.
A modernidade europeia influenciou tanto a visão de infância quanto a estrutura
familiar, trazendo diferentes formas de introduzir a criança no espaço religioso. Os
espaços religiosos aqui apresentados, Umbanda e Candomblé, trazem maneiras diferentes
de iniciar as crianças e de percepção de como as vozes infantis dos relatos são importantes
para compreender as culturas infantis e a relação geracional entre adultos e infância,
nestes contextos.
No Templo a Caminho da Paz, onde frequentei como médium, a categoria infância
não participava de todos os espaços da casa, a categoria geracional dos adultos que é
gira22. A infância precisava ainda ser preparada com a evangelização, que funcionava no
horário da gira; os pais médiuns levavam seus filhos e a assistência também podia
inscrever seus filhos. De acordo com o site do templo, a criança não tem poder de decisão
de frequentar a evangelização, ela deve ser levada pelos pais sem consulta prévia aos
22
Culto ritualístico, onde os médiuns recebem suas entidades e dão consultas e passes na assistência.
92
filhos. A evangelização é tida como uma forma compulsória da criança de ser inserida na
religião:
Evangelização
Aulas de Moral Cristã e iniciação a Umbanda todas as 3ª feiras, das 20h
às 21:30h e Sábados, das 15h às 16:30h durante as sessões.
Criança evangelizada = Jovem Seguro = Adulto Equilibrado
Evangelização infantil. A orientação moral recebida por uma criança,
principalmente nos sete primeiros anos de vida, quando ela está mais
receptiva, pode nortear sua encarnação atual. Nas aulas de
Evangelização Infantil são relembrados à criança – que é um espírito
milenar – através de estórias e exemplos de seu dia-a-dia, os
ensinamentos de Jesus, valorizando sentimentos como a fé, o perdão, a
amizade, o respeito e o amor a Deus e ao próximo. Nenhum pai ou mãe
pergunta ao filho se quer tomar banho, se deseja estudar ou o que acha
de ingerir o remédio receitado pelo médico. Assim, também a
frequência aos Grupos de Evangelização Infantil não deve ser decidida
pela criança. Aos pais cabe, não apenas proporcionar a seus filhos uma
orientação religiosa, mas acompanhar seu aprendizado, reforçar as
lições, valorizando cada atividade desenvolvida pela criança, bem como
o esforço dela em aprender e evoluir. A responsabilidade de cada pai,
cada mãe é enorme. Um dia lhes será perguntado o que fizeram pelo
crescimento intelectual, moral e espiritual do espírito que lhe foi
confiado nesta encarnação como filho (TEMPLO A CAMINHO DA
PAZ, 201823).
23
Publicado no site do templo, no periódico Seara Espírita
http://temploacaminhodapaz.com.br/evangelizacao-francisquinho-da-cachoeira - Acesso em novembro de
2018.
93
94
95
96
24
A palavra designa o ato de dar comida à cabeça de alguém. O bori alimenta a cabeça, como parte do
corpo especial, sagrada, com rituais de alimentos feitos específicos para esse fim (VOGUEL, 1998, p.32).
97
Aqui não importa saber o que é certo ou errado, mas perceber o olhar e o lugar da
infância nessas religiões de matriz africana. Essa perspectiva biológica, de maturação e
desenvolvimento humano é um olhar adultocêntrico de avaliar a criança. O umbandista
não questiona se uma criança pode ter mediunidade, pelo contrário, muitas vezes ela é
celebrada e é desejado que as crianças de terreiro manifestem cedo seus dons. Porém,
alguns adeptos têm dúvidas quanto à validade do seu transe, da forma como a entidade
vai atuar no terreiro, principalmente quando a entidade fuma e bebe, e outros mesmo
chegam a temer a rejeição futura da criança quando se tornar adulta:
O discurso a favor não vê nenhum problema, valoriza a continuidade
do grupo e a certeza da ancestralidade. O discurso contra considera que
o desenvolvimento espiritual pode prejudicar o seu desenvolvimento
físico e intelectual. Para eles, a criança tem um organismo frágil e
imaturo, que nem sempre acompanha o seu desenvolvimento intelectual
e vice-versa. Chegam mesmo a afirmar que a criança tem muita
98
O conceito de geração nos permite distinguir o que separa e o que une as crianças
dos adultos, nos planos estruturais e simbólicos (SARMENTO, 2005, p.366). Na
Umbanda o que separa no campo geracional a criança do adulto é a determinação da
verdade mediúnica, porque como é possível dizer que um adulto está com aquela entidade
e a criança não?
O adulto por conhecer determinadas características das entidades pode tornar mais
fácil dissimular estar incorporado e a criança que não tem essa percepção de dissimular,
enganar, pode estar mais incorporada que um adulto. Isso não significa que a criança não
brinque de estar incorporada, isso é diferente do seu envolvimento espiritual na gira, na
incorporação. Tanto o adulto como a criança podem ser afetados por imaginações
psicológicas que podem influenciar na sua incorporação, mas o poder de decisão da
participação das crianças nas giras está nas mãos dos adultos.
Assim sendo, a categoria geracional adulta impõe à categoria infância controles e
regimes de disciplina, aprendizagem e desenvolvimento diferentes. Essas fronteiras são
erguidas por uma hegemonia geracional adulta, legitimadas por meio da ideologia de
cuidado, proteção e privacidade (JENKS, 2005, p.422). A infância como categoria
geracional pressupõe pluralidades de infâncias, mas tem como contraponto a categoria
adulta:
Em outras palavras, a infância como categoria não se dissolve porque
existe uma pluralidade de infâncias; ao contrário, confirma-se por meio
destas. Qualquer categoria é caracterizada ou parcialmente determinada
pela categoria oposta ou complementar. É o que nos mostram as
pesquisas sobre gênero (mulheres e homens), os estudos de classe
(proletários e capitalistas), ou as investigações étnicas (indígenas e
grupos de imigrantes) (QVORTRUP, 2010, p.1132).
25
Tempo hierárquico da religião começa com a feitura (iniciação) e a partir daí começa uma contagem de
anos, renovando-se as obrigações com seu orixá na contagem de um ano, três anos, sete anos, quatorze anos
e vinte e um anos.
99
A partir dos relatos, concordo com Sirota (2011, p.567) quando coloca que não
podemos pensar a criança como um devir, é preciso pensá-la no presente, no que já é e
não no que pode vir a ser: a gente considera a criança em devir segundo a percepção
durkmeniana, duma transmissão de geração para geração que fazia surgir o ser social,
ser frágil, porque se precisava construir sua educação (SIROTA, 2011, p.569).
Pensar o que é importante para essa criança tanto no Candomblé quanto na
Umbanda, agora, no seu presente, ela precisa ser ouvida e conhecer suas culturas infantis,
dentro desse contexto religioso. É necessário refletir sobre os novos modos de trajetórias
de vida das crianças na modernidade (SARMENTO, 2005, p.363).
26
Abicú é uma criança que necessitará de muitos cuidados espirituais para evitar sua morte prematura,
necessitando de acompanhamento desde o nascimento.
100
102
Desse modo não são só os adultos que intervêm junto às crianças, mas as crianças
também intervêm junto aos adultos. As duas culturas, dos adultos e das crianças, são
interligadas.
Conclusão
O objetivo aqui foi trazer a partir de pesquisas e relatos como a infância é tratada
nos contextos religiosos da Umbanda e do Candomblé, mas poucas pesquisas foram
encontradas com o foco na infância. Pequenos recortes foram apresentados para elucidar
um pouco como a categoria geracional da infância é vista nesses contextos. A Umbanda
103
por ter um número menor, tanto de artigos e pesquisas, reforça que há um campo enorme
a ser explorado sobre a infância.
No Candomblé, há um número um pouco maior de pesquisas, mas com o foco
voltado para as aprendizagens e a relação com a Escola. Mesmo quando há falas das
crianças, as culturas infantis não são abordadas utilizando o campo teórico da Sociologia
da Infância. A categoria geracional infância nos permitiu distinguir no artigo um pouco o
que separa e o que une as crianças tanto da Umbanda como do Candomblé, usando como
contraponto a categoria geracional dos adultos.
Percebemos que o ponto de entrada das crianças na Umbanda e no Candomblé é
a família. Quando inseridas no contexto religioso, a visão moderna de infância, na qual
há a proteção e o cuidado dado tanto pela família quanto pelas leis de proteção às crianças,
produz um apagamento das culturas infantis, e talvez por isso haja tão poucas pesquisas
voltadas para este tema.
Na Umbanda, a categoria infância é vista como um tempo de preparação para o
médium adulto, onde a evangelização é importante, mas também compulsória, onde as
crianças devam ser levadas, mesmo que elas não queiram participar. No Candomblé, as
crianças também são levadas pelos pais, mas a liberdade de brincar e participar dos ritos
produz uma troca maior entre as categorias: adultos/crianças e crianças/crianças.
Recomenda-se que se amplie o campo de pesquisas sobre a infância na Umbanda
e no Candomblé, pois os estudos apontam que as crianças ainda sofrem um apagamento
do olhar adultocêntrico, o qual nega que elas existam nessas religiões e que construam
suas culturas nelas.
Deduzo pelo quadro aqui exposto que as pesquisas enfocam uma relação
escola/religião, mas elas não são as únicas relações que existem no campo das culturas de
pares, as crianças interagem e se comunicam nas religiões Umbanda e Candomblé.
Apenas há que se observar mais a fundo e analisar a infância nessas religiões do ponto de
vista da criança e ir além do campo de pesquisa Escola/Umbanda, Escola/Candomblé.
Referências Bibliográficas
ALANEN, Leena. Teorizando a infância. Zero- a- seis, Florianópolis, v. 10, n. 35, jan. /
jun. 2017.
ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. 2 eds. Rio de Janeiro: Guanabra,
1986. 275 p.
BARROS. José Flávio Pessoa de; TEIXEIRA, Maria Lina Leão. “O Código do Corpo:
Inscrições e Marcas de Orixás”. In: Candomblé: Religiões do Corpo e da Alma. Tipos
psicológicos das religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2004.
______________. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras.
2001.
BERGO, Renata Silva. “Eu sou Muzenza: o terreiro de umbanda como contexto de
aprendizagem na prática”. Paidéia, Belo Horizonte, n. 8, p. 81-101, jan. /jun.2010.
inglesa”. Cadernos de Pesquisas, São Paulo, n. 112, p. 33-60, mar. / jul. 2001.
SALES Jr., Dario Ribeiro. Dissertação de Mestrado: Sobre olhar e aprender: um estudo
sobre o processo de aprendizado religioso das crianças candomblecistas. UFB, Salvador,
p.85, abr.2011.
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da S.; BARROS, José Flávio P. de. A galinha-
d’angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro,
Pallas/FLACSO; Niterói, EDUFF, 1993. 204p
107
ÀS MAIS VELHAS
Esse texto tem a intenção de fazer uma breve reflexão acerca do envelhecimento,
da velhice ou do velho, enquanto categorias complexificadas a partir da minha vivência
enquanto Iaô e enquanto estudante de antropologia. Por um lado eu poderia optar em
trazer todas as teorias acerca do envelhecimento ocidentalmente construídas e me
resguardar teoricamente com as mesmas nesse texto, é isso que constantemente a
academia nos ensina a executar. Só que hoje, nesse texto, me resguardo teoricamente com
minha Mais Velha com a teoria e epistemologia da oralidade da sua fala e dos seus
conhecimentos. Então, organizo este texto inicialmente com sua fala em uma entrevista,
em seguida faço uma breve reflexão acerca do envelhecimento e por último o epílogo
(esse, nunca conclusivo).
Entrevista
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás –
UFG.
2
Antropóloga formada pela Universidade de Brasília – UnB. Graduanda em Direito pelo Centro
Universitário de Brasília – UniCEUB.
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que tem alguém Mais Novo e a obrigação do Mais Velho é passar conhecimento para os
Mais Novos. É ter cuidado. Energeticamente falando, nós somos responsáveis por
apanhar primeiro, por sustentar a demanda para proteger os nossos Mais Novos. E passar
conhecimento também é uma forma de proteção, porque é uma forma de resistência. O
candomblé é uma religião de oralidade. Então o Mais Velho, ele tem obrigação energética
de proteger, mas ele também tem essa função social e comunitária de proteger a própria
tradição e não deixar que ela morra à medida de que a sua função é ensinar os mais novos.
Ana Clara: O que é ser Mais Nova no candomblé?
Iyaromi: Ser uma Mais Nova no candomblé é ser a continuidade. Porque a lógica é você
acumular conhecimento para passar para o seu Mais Novo e assim não deixar que sua
ancestralidade morra. E tendo em vista que tudo que você tem no candomblé é ganhado,
é um Mais Velho que te deu. Então ser uma Mais Nova é se dispor a aprender, a sentir, a
estar ali da melhor maneira possível, para que você aprenda as coisas da melhor maneira
possível, para que você possa ensinar aos seus Mais Novos da sua melhor maneira
possível e possa perpetuar toda essa estrutura. A obrigação do Mais Novo é aprender para,
quando ele for Mais Velho, assumir as outras obrigações.
Ana Clara: Qual o significado da velhice e do envelhecimento no candomblé?
Iyaromi: Acho que não tem como falar de envelhecimento e velhice sem falar de
ancestralidade. Tem a questão de que enquanto zeladores e enquanto filhos de santo,
zeladores do nosso axé são todos filhos de santo que têm a responsabilidade de zelar pela
sua casa. Você está zelando por uma história, você está zelando por um passado, você
está zelando pela sua ancestralidade. Ancestralidade então é o respeito aos que vieram
primeiro, é um respeito àqueles que passaram conhecimento, respeito àqueles que nos
deram direitos, nos deram obrigações. Ancestralidade são os caminhos que fizeram com
que nós hoje, presente, chegássemos até aqui. E ele tem a obrigação de perpetuar aquela
linhagem. Tendo em vista isso, o papel do Mais Velho, do velho, ele é a
representatividade do fundamento. Porque o fundamento é oral e o Mais Velho é o
guardião do fundamento. Ele é um guardião da oralidade. Ele é o responsável por passar
e por permanecer.
Ana Clara: O que é ancestralidade?
Iyaromi: Ancestralidade é a raiz. Nós enquanto tronco, nós enquanto galhos, nós enquanto
folhas e os mais novos como a outra composição, a gente tem que respeitar a raiz. Porque
sem a raiz, sem os Mais Velhos, sem aqueles que vão nos passar os nutrientes, o
conhecimento, a gente morre, a gente não é nada. Porque a gente não é enraizado sem um
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Mais Velho, sem um ancestral. A gente só é enraizado porque tem um Mais Velho. A
gente só é enraizado porque a nossa tradição é um conhecimento antigo e os antigos são
as raízes. E sem eles, a gente não tem conhecimento. Porque em culto a ancestralidade
não tem como você inventar o fundamento. A energia, ela vai se materializar na
incorporação, ela vai se materializar nos fundamentos, através de um conhecimento e esse
conhecimento é passado oralmente. E sem os Mais Velhos, sem as raízes para nutrir os
galhos, as folhas, plantas, para nutrir o tronco, sem os Mais Velhos para nos ensinar, para
passar os nossos direitos... Porque também não adianta ter ensinamento se você não
recebeu o direito de usar o que você sabe, se você não recebeu o fundamento, não adianta
você saber. Então os Mais Velhos são esses gatilhos. Eles que nos passam nossos direitos
de pôr em prática o que sabemos.
Reflexões
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3
Abiã é uma categoria que compõe a cosmologia da hierarquia do candomblé. Epistemologicamente
definido enquanto aquele que vai nascer. Abiã são aquelas pessoas que frequentam a casa de candomblé,
contudo, ainda não passaram pelo rito iniciático.
4
É de importância a observação do fato de que não existe um “povo banto”. Aquelas nações definidas
enquanto “Nações Banto” ou “Nações de Angola” contemplam o culto com diversas línguas do tronco
linguístico banto.
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Epílogo
Quando fui iniciada no Candomblé, descobri que minha "irmã de barco" seria uma
criança de até então quatro anos: Rita de Cássia. Descobri que aquela menina iria ser a
"Mais Velha do barco" e, consequentemente, "minha Mais Velha". Eu tomaria sua
benção, ela iria sempre a minha frente na roda de Candomblé, ela faria todos os ritos antes
de mim. De início achei a situação um pouco cômica. Vivi tão mais que aquela criança.
O que aquela pequena teria a acrescentar de tão imprescindível assim? Antes de sermos
iniciadas, eu e Rita fomos estreitando nossos laços, criando afinidades (isso enquanto ela
estava sentada no meu colo). Até que um dia, descendo as escadas da Casa de Santo para
ir almoçar, eis que Rita abruptamente para, fica a minha frente, olha nos meus olhos com
um semblante tranquilo e diz: "o que em você te dá medo de você?". Fiquei paralisada,
sem saber o que responder àquela pergunta extremamente complexa e feita com tamanha
naturalidade. Rita havia me emudecido. Ainda parada, respondi ao vento (já que Rita
havia continuado andando) que muita coisa em mim ainda me dava medo. Foi nesse dia
que aprendi que "minha Mais Velha" tinha muito o que me ensinar, muito mesmo. A ser
mais leve, a não levar tudo a ferro e a fogo, a sorrir independente do clima e a dar flores.
Rita sempre me presenteia com flores do Axé sem nenhum motivo aparente e esses, além
de tantos outros ensinamentos, têm sido gratas lições aprendidas com essa “minha Mais
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Velha”.
Referências:
Iyaromi Feitosa Ahualli. Mais Velha. 2018 - Set. Brasília. Distrito Federal. Brasil.
Rita de Cássia. Mais Velha. 2017 - Nov. Sobradinho II. Distrito Federal. Brasil.
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#Oriô #Optchá
1
Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia-UFBA; no âmbito da
pesquisa desenvolvo investigações relacionadas aos Povos e Comunidades Tradicionais, Direitos Humanos
e Políticas Públicas; [email protected].
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religiosas que ocorrem nas cerimônias a cultos demoníacos. Despacho e macumba são,
hoje, palavras que integram o vocabulário do brasileiro e que carregam uma conotação
pejorativa.
Em janeiro de 2013, devido ao trabalho do meu esposo, viemos morar na cidade
de Eunápolis/BA, localizada na Região Costa do Descobrimento, extremo sul da Bahia.
Reconheço que até este momento estava enraizada de preconceitos, e não tinha sequer
curiosidade de conhecer e pesquisar sobre o Candomblé. Contudo, ao conhecer e
conviver com os baianos, aos poucos, fui conhecendo alguns termos/palavras/gírias que
foram despertando a minha curiosidade como exemplo: “é muito axé”, orixás, oferendas,
ebó de limpeza, encruzilhada macho, encruzilhada fêmea, entre outros, despertando-me
uma vontade de conhecer melhor sobre o assunto. A partir do mês de fevereiro de 2013,
começamos a passar por alguns problemas pessoais, com muita discórdia e
desentendimentos onde estava impossível dialogar. A sensação que eu tinha, era que
existia alguma coisa “oculta” que estava entre nós. Neste período, tanto eu, quanto o meu
esposo, estávamos completamente afastados da vida religiosa. A diferença era que, apesar
de não estar frequentando nenhuma religião, eu acreditava em Deus; o meu esposo ao
contrário, não acreditava mais em Deus, e dizia que a ciência estava acima de tudo. Os
problemas foram só aumentando, invadindo a vida familiar, amorosa, o trabalho e
amizades.
Diante do exposto, o meu desespero era enorme diante dos problemas. Um belo
dia, uma colega de trabalho chamada Luciana convidou-me para realizar uma consulta
com o seu “Pai de Santo”, que recebia uma pombagira de uma cigana todas as terças
feiras, e/ou o “Pai de Santo” poderia jogar os búzios. Por conseguinte, mesmo com a
minha resistência, preconceito e medo, aceitei o convite. O atendimento não foi realizado
em um “terreiro”, porque o “Pai de Santo” havia acabado de se mudar para Porto
Seguro/BA, devido ao seu trabalho profissional, e ainda não tinha um terreiro para realizar
os seus atendimentos. Assim, os atendimentos estavam sendo na residência da sua “Filha
de Santo” Luciana. No dia marcado, eu compareci e fiquei aguardando na sala de espera.
Neste momento, diversas dúvidas me passavam à cabeça, o coração acelerava, as mãos e
pés ficavam gelados, uma tremedeira incontrolável dominava o meu corpo. De repente, a
filha de santo me convida para entrar. Levantei-me lentamente, e em passos pequenos
caminhei em direção ao atendimento. Neste contexto, a minha primeira visão foi de um
homem sentado, vestido com uma saia vermelha, uma blusa colorida, diversos colares e
pulseiras, um turbante na cabeça, fumando um cigarro e tomando uma taça de cortezano.
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2
Em maio de 2013, sofri um acidente de carro na BR 367 entre as cidades de Porto Seguro/BA e
Eunápolis/BA. Quebrei o fêmur da perna direita em vários lugares. Tive muito conforto espiritual no
candomblé.
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daquele convite, falamos que aceitávamos. A cigana deu uma gargalhada e disse que já
sabia a resposta. Assim, solicitou que anotássemos o que era para providenciar. Em relato:
“Neste dia tem mais um casal; serão dois casamentos; as mulheres usarão roupa de cigana
e os homens roupa branca; vou precisar de uma garrafa de vinho, um pombo branco, um
lenço vermelho, um pano branco, um punhal, uma maçã, arroz, água benta de igreja,
girassol, rosas brancas e duas taças; o casamento será na beira da praia no dia 17 de maio
de 2014. Após o casamento, danço um pouco e os noivos comemoram com os convidados
comendo e bebendo, pois será minha festa”.
Ficamos muito comovidos com o convite. No decorrer das duas semanas seguintes
começamos a nos preocupar com os preparativos, pois o Pai de Santo ainda não tinha
confirmado se iria acontecer a festa da cigana. Ficamos meio perdidos devido a sua
desorganização tendo como consequência certo desânimo em dar prosseguimento ao
prometido. Quando chegou o dia 16 de maio de 2014, ele nos informou que iria adiar para
o dia 24 de maio, porque ainda precisava organizar algumas coisas. Nestas idas e vindas,
o lugar onde iria ser realizada a festa foi mudado várias vezes. Quando finalmente ele se
decidiu, chamou-nos para uma reunião, juntamente com o outro casal para acertar os
ajustes. A reunião foi realizada no dia 21 de maio de 2014 na residência do Pai de Santo
que tinha acabado de se mudar para cidade de Eunápolis/BA. Assim sendo, no dia e
horário marcado, comparecemos. O mesmo nos perguntou o que estávamos pensando.
Falamos que estávamos aguardando a sua orientação, pois não sabíamos como seria a
festa nem a cerimônia. O mesmo nos disse que nós juntamente com o outro casal teríamos
de arcar com as despesas de toda a festa para aproximadamente 20 a 30 pessoas. E
começou a dizer que a festa da cigana seria realizada em Arraial D´Ajuda, em Porto
Seguro/BA, em frente ao hotel Ancoradouro, em uma barraca de frente para praia. Em
relato: “Vocês vão comprar as frutas, bebidas, um bolo e os ingredientes para fazer um
caldo”. Eu disse que não estava entendendo o porquê teríamos de arcar com toda a festa
dela; que, pelo que eu tinha entendido, a festa dela iria acontecer independente da
cerimônia, e que ela iria aproveitar o momento para realizar o casamento. Disse ainda que
a Cigana Hila tinha falado que iríamos arcar apenas com as despesas da cerimônia, e não
com a festa toda. Além do mais, teríamos de arrumar lugar para dormir, já que o evento
seria à noite e em outra cidade.
Diante dos meus questionamentos, ele resolveu dividir as coisas e arcar com
algumas despesas. Observamos que ele queria transferir a responsabilidade dele de
realizar a festa para nós. Após a divisão de tarefas, nos organizamos para comprar os
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3
Nome dado de acordo com a nação do candomblé para um cargo feminino de grande valor que não entra
em transe.
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121
Gerlaine Martini1
DOI: https://doi.org/10.26512/revistacalundu.v%vi%i.20584
1
Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília. Integrante do Calundu (Grupo de Estudo sobre
Religiões Afro-Brasileiras).
2
Em junho de 2018 com Airy Gavião e em outubro de 2018 com Marcelo Krahô.
122
Airy veio de uma situação de aldeia do Povo Gavião Parkatêjê, onde sua avó era
parteira, benzedeira e realizava curas. Ela se lembra de seus pais, avós e do ambiente onde
tudo era partilhado (num povoado em Aturiaí, distrito de Augusto Corrêa no Pará), o que
marcou sua personalidade:
Na aldeia todo mundo um cuida do outro. Se eu tenho, você tem, ela
tem, ele tem. Meu pai era pescador e eu ia com meu pai pescar, a gente
chegava e fazia os montinhos de peixe e começava a distribuir porque
nós éramos poucos na época. E graças a Deus, a gente sempre teve
muita fartura de peixe tanto da água doce como da água de sal. E eu
sempre fui muito de estar ajudando não importa quem, não só indígena;
depois quando eu conheci outras pessoas eu sempre fui muito de estar
envolvida com comunidade e em todos os sentidos.
Já Marcelo Krahô não passou sua infância como aldeado e conheceu sua
ancestralidade indígena através do que sua avó contava sobre a mãe de sua bisavó, de
como havia sido seqüestrada da aldeia, mantida em cativeiro para ser “amansada” e
depois obrigada a se unir em casamento cristão com seu sequestrador. Um grupo do Povo
Krahô habitou nas proximidades do município de Carolina (MA) no passado - povo hoje
só existente na divisa do Maranhão na chamada Craolândia (TO) - de onde descende sua
família, mas ele foi criado num ambiente católico não praticante:
Indígena eu sempre fui, mas pra tomar conhecimento disso eu tive que
perambular. Pra afirmar que a minha identidade é indígena, que a minha
identidade é Krahô. Não foi fácil porque a história indígena, ao longo
dos anos, ela é apagada e toda cultura dos meus parentes sempre foi
invisibilizada por essa cultura invasora, eurocêntrica que chegou
apagando outros costumes pra impor os seus, impondo culturas e
línguas.
Airy Gavião foi adolescente para Belém e depois veio para Brasília ainda na época
em que os indígenas buscavam apoio na Casa do Ceará quando, estudante, encontrou um
companheiro (hoje separado), com quem teve três filhos. Sua espiritualidade sempre
esteve muito aflorada desde criança e ela tinha visões, que continuaram, tornando-se
inclusive premonitórias, e manifestações corporais inexplicáveis:
Minha vida religiosa é espiritual sempre, eu herdei dos meus avós, da
minha avó, dos meus pais e é uma coisa que eu não busquei por mim,
foi me dada e eu venho assim com uma espiritualidade muito forte.
Quando eu era criança me dava umas coisas e eu não entendia. Hoje eu
já entendo. Por exemplo, de repente me vem e eu choro, choro, mas eu
choro muito. E uma outra coisa que eu não tenho mais depois que eu
comecei a aceitar e trabalhar: me dava uma febre, eu não sei o que me
dava de eu não conseguir andar, mover nada. Aí me levavam para o
hospital e eu não tinha nada. Passava assim uma tarde, quando era
noitinha eu estava bem. A última vez que me aconteceu isso foi três
anos atrás. E acontece muito também de eu estar andando na rua de
123
repente uma pessoa que nem me conhece me pára. Estranho né? Agora
eu já entendo, mas antes eu não entendia. Então era isso e eu sempre
gostei muito de estar com as pessoas, mas há momentos também que eu
quero estar só. Me isolo completamente, sabe, não quero ficar com
ninguém, só eu comigo e os encantados.
124
125
fugiu disso aí foi o que foi agregado com o tempo, com o vento, não sei
dizer, são coisas que vêm ocorrendo. Sara é uma dessas ocorrências.
De alguma forma, sua caminhada anterior e as novas visões têm levado Marcelo
Krahô a encontrar sua ancestralidade indígena e a novas indagações:
E há ocorrências que em alguns momentos eu às vezes sou tomado por
um senhor, o nome dele é Caçador, ele é velho, que é essa
ancestralidade ameríndia que eu tenho. E muitas vezes eu acordei em
cima de árvore, fumando charuto, fumando cigarro de palha, isso em
cima da copa das árvores. Ou seja, não subi acordado, mas acordei lá
em cima. Isso eu atribuo muito à minha ancestralidade indígena. E eu
atribuo esses eventos que me tomam a consciência muito à minha
ancestralidade indígena. Também faço viagens astrais, faço muitas, às
vezes eu fico tão cansado, é que eu vou longe. Muitas vezes eu me
perguntei se eu não estava ficando doido. Hoje eu entendo que não. Mas
muito desses conhecimentos, essas entidades que foram agregadas na
minha história, elas surgiram dessas viagens astrais. Inclusive eu
atribuo essas viagens astrais muitas vezes a estar num lugar e daqui a
pouco acordar em outro. Eu começo só com o espírito, mas depois
termino com o corpo. Como é que eu durmo num lugar e acordo no
outro? E, muitas vezes, estou aqui conversando com você e vou lá
longe...
126
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Airy Gavião também percebe que sua relação com a ancestralidade indígena faz
conexões com o candomblé:
Minha avó me acompanha sempre, meu avô, e meu pai também vez por
outra. Mas a minha avó e meu avô é mais forte e eles andam do meu
lado sempre. Não é à toa que Nanã é uma das orixás mais antigas. E ela
é o que? Ela é terra, ela é lama, ela é água. Além da minha avó, do meu
avô, nós temos encantados vários. A gente nunca está só.
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CANÇÃO DA DIÁSPORA
1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR vinculado ao Núcleo de Estudos em Direito Administrativo, Ambiental
e Urbanístico (PROPOLIS/PPGD-UFPR) e ao Núcleo Constitucionalismo e Democracia (PPGD/UFPR). Membro da
Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO). [email protected]
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Cicatrizando memória,
Legbá, o motor da história
aceso a base de rum,
fuxica no dilogun
(peneira divinatória):
Iroko transplanta o degrego,
Iroko é o pai do segredo
do nome dos Egungun.
Iroko não se derruba,
Iroko é a escada ioruba
entre o ayé e òrun.
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