Cartilha Nacao Angola Final

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Licença KOINONIA:

Licença CC BY-NC-SA 4.0


https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0

Edição e organização:
Ana Gualberto e Camila Chagas

Redação:
Mameto Laura Borges e Mameto Kuangolô

Projeto gráfico e diagramação:


Siano Editora

Revisão:
Ana Leticia Ribeiro

Fotos:
Lis Pedreira e Divulgação/Unzó Maiala

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Nação Angola: das
influências banto no
Brasil
Coleção Saberes Pretos

É com toda a força da ancestralidade que


trazemos para vocês a Coleção Saberes Pretos.
Serão várias publicações organizadas, escri-
tas e idealizadas por pessoas das comunidades
Negras Tradicionais, CNTs, com as quais dialo-
gamos e atuamos conjuntamente na busca por
uma sociedade que respeita toda a pluralidade,
reconhecendo e valorizando seus diversos ele-
mentos.

Este número traz a iniciativa de Mameto


Laura Borges, ela nos brinda com uma cartilha
de vocábulos utilizados nas casas de candom-
blé de matriz Angola do Brasil.

Somos diversos e carregamos a história de


nossa ancestralidade.

Esperamos que gostem!

Boa leitura!
Ana Gualberto
Diretora Executiva de KOINONIA

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KOINONIA
Fundada em 1994, KOINONIA Presença Ecu-
mênica e Serviço é uma organização sediada
no Rio de Janeiro (RJ), com atuação nacional e
internacional. Somos uma entidade ecumênica
de serviço composta por pessoas de diferentes
tradições religiosas, reunidas em associação
civil sem fins lucrativos. Integramos o movi-
mento ecumênico e prestamos serviços ao
movimento social. A missão de KOINONIA é
mobilizar a solidariedade ecumênica e prestar
serviços a grupos histórica e culturalmente
vulnerabilizados e em processo de emancipa-
ção social e política; além de promover o movi-
mento ecumênico e seus valores libertários.

KOINONIA presta serviços e estabelece


alianças com a população negra organizada em
comunidades urbanas e rurais, trabalhadores
rurais, mulheres, jovens, agentes de solidarie-
dade com pessoas que vivem com HIV/AIDS, e
lideranças intermediárias das igrejas.

Outro dos nossos campos de atuação é o das


organizações ecumênicas nacionais e interna-
cionais, onde a instituição não só presta ser-
viços como também é um agente político de
mobilização e disseminação de valores.

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Apresentação
Primeiramente peço bênção aos mais velhos fim de potencializar a participação dos sujei-
e agradecimentos aos meus guias espirituais. tos sociais contribuindo no processo de demo-
É muito gratificante poder dividir a minha tra-cratização das políticas sociais, ampliando os
jetória de vida. canais de participação da população na for-
mulação, fiscalização e gestão das políticas
Como Mameto de Nkisi da nação Angola tive educacional, visando o aprofundamento dos
que percorrer alguns caminhos e ultrapassar direitos. Articulando e mantenho sintonizado
algumas barreiras para chegar e afirmar a através de parceria com os movimentos sociais
minha posição atual. que desenvolvem trabalhos de acolhimento,
que promova ao público efetivação frente a
A primeira foi entender e aceitar a minha questões Jurídicas. Atuante na luta antirracista
missão enquanto Mameto de Nkisi, respei- e movimento negro para prover a igualdade de
tando e preservando os ensinamentos dos direitos da população preta da nossa cidade.
meus ancestrais e compreendendo o meu
papel para com a sociedade dentro e fora do Contudo tenho no corpo, na alma e na mente
meu Unzó. o tamanho da minha força, por ser uma mulher
negra e matriarca do axé, filha do Nkisi Rossi,
Como mulher, tive que ultrapassar as barrei- sabendo que ainda há muito o que lutar, o que
ras impostas pela sociedade. Além de exercer trilhar e o que vencer.
meu papel de mãe, tive que me conscientizar
Mameto Laura Borges
enquanto cidadã, participando da nova ordem
em que vivemos inserida com minha força (Unzó Maiala–Salvador, Bahia)
de mulher negra na política atual, buscando
sempre valorizar a importância da mulher na
sociedade e na cultura afro-brasileira, tendo
em vista que nas origens ancestrais a forma
Matriarcal era predominante nas sociedades.

Como Mulher negra, lutei e luto cotidiana-


mente contra os fantasmas do racismo, que
mesmo sendo debatido e discutido frequente-
mente pelos grupos sociais, ainda há entraves
que a cultura ainda sexista e racista coloca em
meu caminho e no caminho da comunidade
negra.

Como liderança elaboro diretamente de


projetos de geração de renda, empreende-
dorismo e afirmação principalmente para
mulheres, jovens, crianças, Comunidades Tra-
dicionais, quilombolas e população LGBTQIA+.
Efetivo assessoria aos movimentos sociais a

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Sobre o Unzó Maiala
Fundado em 1962, no bairro do Garcia, em
Salvador (BA), o Unzó Maiala realiza anual-
mente, a partir de calendário estipulado,
festas, solenes e mesas brancas de caridade
abertas ao público.

Nesse sentido contribui para a valorização


da religiosidade de matriz africana, a qual a
figura da mulher tem extrema importância na
articulação dessas ações. Somando-se as ativi-
dades de cunho religioso realiza atividades de
intercâmbio através de oficinas de valorização
da estética negra, contribuindo para o resgate
da cultura afrodiaspórica, entre elas: ofici-
nas de turbante, de tranças nagô, de dança
de Nkisi. Desde 2001, quando Laura Borges
assume o cargo de valoriza da Casa, o Unzó
Maiala desenvolve atividades lúdicas, culturais
e ações sociais, com objetivo de desenvolver
projetos que resgatem e consolidem a tradi-
ção da cultura afro-brasileira na comunidade,
bem como auxilie na busca pela autoestima da
população afrodescendente local, discutindo
temáticas sociais como machismo, violência
contra as mulheres, a saúde da mulher CIS e
Trans negra, entre outros.

Durante seus quase 60 anos de atuação, o


Unzó Maiala sempre desenvolveu atividades de
valorização da cultura AfroBrasileira. Dentre
suas produções estão registros históricos dos
festejos aos Nkisi, produção de um livro sobre
o espaço, a ser publicado, além da distribuição

de conteúdo diversos nos projetos Café com


Letras, que distribuiu livros para leitura pela
comunidade do Engenho Velho e do Garcia.

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As línguas utilizadas nos
terreiros de nação angola são o
kimbundu e o kikongo

Os negros africanos escravizados trazidos para o Brasil pertenciam a


diversos grupos étnicos, incluindo muitos subgrupos étnicos diferentes
que tinham como tronco linguístico o BANTU. Como a religiosidade tra-
zida por esses povos se tornou semi-independente entre eles, as variadas
formas de cultos diferentes se transformaram em várias nações, entre
elas a nação Angola que tem o tronco linguístico dos bantus, onde se
encontra as línguas kimbundu e kikongo até hoje presente nos terreiros
de candomblé dessa nação.

Cada nação possui suas próprias especificidades nas próprias divinda-


des cultuadas e em uma série de outros fatores distintos, mas que também
convergem entre si se forem observadas profundamente. Uma dessas
“diferenças” é a variação do idioma utilizado em cada nação.

Entre outras diferenças, ainda podem ser percebidas pelos próprios


ritmos de cada nação e toques dos ngomas (atabaques) podendo ter
kongo de ouro, barra vento, kabula, que são de tradições da nação angola,
sem contar o samba de caboclo. Ritmos esses obtidos com os toques das
mãos, uma particularidade da nação angola.

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Algumas majina (nomes)
de Nkisi:
Aluvaiá, Nkosi Mukumbi, Gongobira, Mutalombo

Katendê, Nzazi, Kafunge,kavungo,kingongo

Angorô, Angoromeia, Kitembo, Tempo

Tere-Kompenso, Matamba, Kaiango

Bamburucema, Kisimbi, Ndandalunda

Mikaia, Samba, Kaitumbá, Zumbaranda

Lemba dilê, Lembarenganga

Nkosi mukumbi, Roxi mukumbi

Nkisi esse senhor da guerra, da estrada, Nkisi que


abre caminho.

Kabila, Mutalombô, Gomgobira, Lambaranguan-


gue

Nkisi caçador, das florestas, traz a fartura na frente.

Katendê

Dono dos segredos das ”isabas” (folhas, ervas)

Nzaze, Zazi, Luango, Panzu

Nkisi responsável pela justiça.

Kaviungo, Kafunjê, Kingongo

Nkisi responsavél pela saúde.

Angorô, Hongolô, Angoromeia, Hongolo Mean

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Representado pelo arco-íris, traz a fertilidade
do solo.

Kitembo, Tempo

Nkisi responsavél pela mudança climáticas,


como chuva sol,vento. É o rei da casa de
angola, representado pela bandeira branca.

Tere-kompenso

Jovem caçador, que ora caça, ora pesca


para se sustentar.

Matamba,bamburusema, Kaiango, Nun-


vurucemavula

Nkisi feminino guerreira, ligação com


“mvumbi” (mortos).

Aluvaiá, Njila, Mpambu Njila, Nzila, Bom-


bogira

Senhor da comunicação, encruzilhada, rua,


caminho.

Aluvaiá

Gardião , é a divindade que faz acordos com


o inimigo, se faz passar pelo mesmo, sendo
o senhor que se infiltra entre os outros, que
fecha acordos.

Mavambo, Jiramavambo

Senhor das andanças, conquistador, grande


mensageiro de Nkosi.

Sinzamuzila

Senhor dos malafos, marafa que são arria-


das nos Unzós, encruzilhadas

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Malungo

Companheiro de todas horas, aquele que


protege, cuida, quando entra e sai do Unzó.

Kijanja

Mensageiro que recebe as oferendas de


todos nkisis, e faz a ligação de transmissão
das oferendas a todos do Unzó.

Mavilutango

Faz a relação com mundo através da dança,


inkisi da dança e dos movimentos, de ligação
entre vivos e mortos, encarregado de levar
o padê.

Burungangi

Nkisi dos trilhos de ferro, acompanha Biolê,


feiticeiro de grande força.

Bionatan

Patrono da da alegria, do sorriso.

Siganga, Gangaiô

Feiticeiro que habita no fundo das águas,


tando nas aguas dos rios, quanto as do pân-
tanos.

Tonã

Senhor das forças, caminhos, pássaro que


faz barulho.

Etajelungi

Representante da fertilização, da sodogo-


morra, representaçã do pênis, ou objeto
parecido.

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Korobo

Guardião da folha, homem rude do mato que


anda como uma enxada velha.

Niquerô

Aquele que recebe a oferenda ds caçado-


res, o guardião da fartura, e da distribuição,
aquele que alimenta.

Dundo Kalunga

Nkisi do silêncio, peixe de madeira, ligação


com outro lado, tem grandeza, eternidade.

Naban

guardião das árvores para feitiço, represen-


tado por um pássaro

Apavenã

Senhor das oferendas, mensageiro, dono do


dendê, guardião das portas da casa.

Kunkurunguaje

Guardião que fala pelas outras divindades, com


voz rouca, guardião da palavra, das poesias,
do jamberessu.

Embarujo

Guardião da cura, feiticeiro, veneno e remé-


dio.

Etajelungi

Representante da fertilização, da sodogo-


morra, representaçã do pênis, ou objeto
parecido.

Manawelé, mavilé

Guardião com o poder criador do esperma.

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Malusibango

Guardião da fortuna, do ganho.

Izangué

Guardião que não bebe cachaça, não come


dendê, e não usa vermelho.

Aí estão alguns guardiões, homens da rua,


senhores dos caminhos e encruzilhadas,
mensageiros dos grandes Nkisis.

Kisimbi, Ndandalunda

Nkisi feminino que representa a fertilidade,


é a grande mãe da água doce.

Kaitumbá, Mikaia, Samba

Nkisi feminino tem domínio pelas águas sal-


gadas

Zumbarana, Zumbarandá

Nkisi feminino a mais velha das mães, repre-


senta início e o fim.

Vunge, Wunge

É o mais novo dos Nkisis, representa alegria,


juventude, brincadeira.

Lemba, Lembá, Lembadilê, Lembaren-


ganga, Kassuté, Ngangazumba, Lemba-
furama

Pai criador, pai maior entre os Nkisis.

Nzambi, Nzambiapongo

Não se trata de Nkisi, mas de Deus supremo,


o grande criador.

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Vocabulário bantu
Unzó Maiala
Alubassa= Cebola Ilá= quiabo

Amazi= Água Iofele= pequena

Apoti= Banquinho Izomá=quente

Aribakan= Arroz Kalunga= mar , infinito

Baiapungo= Porque Kamba= amigo

Baquice= Quarto de santo Kandandu=abraço

Basá kacumbe= Silêncio Karamboro= galo

Biaku= Fazer fofoca Kazear= costurar

Bogé= Menstruação Kiambote= boa, boa sorte

Cajamungonsú= proteção Kiana=caçar

Cedo= zinguê Kibuko= sorte

Cuia= cargo Kimbanda= feiticeiro

Decisa= esteira Kiri= verdade

Dilonga= copo Kissicanran gombe= ogam

Ekútu= chave Kitaremi= caridade

Eledi=porco Kiuá= viva,salve

Enza= mundo Kivonda= tata que sacrifica animais

Etu= galinha da angola Kizoomba=festa

Evere, lihondo= bode Kota= mas velha

Ezú= hoje Kotó= colher

Gruruzó= prato Kta nvangi= cria barcos

Ijingu= cargo Ku zériva= ser feliz

Kudia kuafulu= comida gostosa 13


Kudiar kuabolo= comida podre

Kufumala=defumação

Kukula= crescer

Kumbi ngoma= dias de toque

Kussukala= lavar

Kutala= Ver/Algum lugar

Kuzola= amor

Kuzuka= moer, triturar

Leketo= ganso

Lezó= precisar

Liagui= barbante

Macala= carvão

Macanji=cuidado

Macuradelê= quem bebe muito

Macutende= feijão

Maiaca, inseca= farinha

Makota= Plural de kota/ cuidadora das pes-


soas em transe

Malogian= descalço

Mameto ndengue= mãe pequena

Mameto nsanxi= cuidadora das pessoas em


transi sem confirmação

Mameto ria nkisi= mãe zeladora

Mameto, mem’etu= mãe

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Maruin, maruem= mel Nakudi= sonho

Masana= leite Ndenge= pequeno

Matemo= café Ndielu= arrependimento

Mavu=terra Ndumbi= o iniciante que ainda não fez nada


no terreiro
Mona kota= filho mas velho
Nebulo=pão
Mona nkisi= filho de santo
Nengua nkisi= zeladora
Mona xikola= borizado
Ngana= senhor(a)
Mona= filho
Ngidiar,kudiá, gudiar= comer comida
Mossambura= claridade
Ngo= cama
Mucossi kuá unzo= vá pra casa
Ngoma= atabaque
Muila= vela
Ngombe, malu= boi
Muilo= sol
Ngongo= sofrimento
Mukange= fogo
Ngunji= segurança
Mukuiu, makóiu= benção
Ngunzo= forte
Mutue= cabeça
Njila= caminho
Muxima puema= bom coração
Nkisi/ mukixi= divindade
Muxima uaiba= mau coração
Nlambi’ nkise= cozinheira
Muxima= coração
Npembele= te saúdo
Muzenza= iniciado no nkisi
Nsaba= folhas
N’zo iofele= casa pequena
Nvumbi= castanha do pará, fedegoso, amo-
N’zo, unzo= casa reira

Naiaka etaba- não fume Nzala=fome

Naiáka= não Nzambi ampungo= deus poderoso

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Nzambi ia kalunga= deus supemo ifinito Sukurankisi= troca das águas das quartinhas

Nzambi ua nkuatesa= deus lhe pague/ obri- Tata kambuí= tocador de atabaque
gado
Tata ndengue= pai pequeno
Nzambi= deus
Tata nvangi = cria barcos
O njila ia kibuko, njila a i bana kua
Tata= pai
Nzambi= o caminho da felicidade, é o caminho
dado por deus. Toboso, trobosu= torço de cabeça

Zimbi= dinheiro Ufulame= felicidade, sorte

Pepeyê= pato Uiki= açucar

Pokó= faca Ungô= cozinha

Rumbomdo= filho com mas de Ungotó= cozinhar

7 anos de feitura Uzanzala= arrepiado

Sakidila= obrigado Uzeka= dorme

Samba= Rezar Uzuelelu=modo de falar

Sanji= galinha Xicarongoma, kisikarangobe= musico no


angola
Saqui mucossi kuá= como vai vc?
Zuá= chegar
Saqui= como
Zuelar= fala, conversar
Siá mucossi otala= eu vou bem!

Simarrilha= camisa

Singanga= brigão

Sopuê= lá vem

Sualemi= toalha

Sugo= panela

Sukitála= tarde

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Dendê

Conhecido também como sangue africano,


Mazi , o azeite de dendê, extraído do dende-
zeiro é muito utilizado pelos Nkisis quentes,
como Nzila, Nkosi, entre outros, mas também é
muito utilizado na culinária de matriz africana,
e nas funções no Unzó.

Azeite doce

Magi wiki–Conhecido também como azeite


doce, extraído da oliveira, utilizado também
para os Nkisis do branco, na culinária de matriz
africana é em outras funções também.

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A importância dos terreiros de Angola na
manutenção da RELIGIOSIDADE de matriz
africana no Brasil e na Bahia

Identidade, pertencimento e religiosidade


Por Mameto Kuangolô, do Unzó Mean Dandalunda–Tombensi Filho

Como comunidade humana, encontramos um prazer particular em tentar compreender a nossa


realidade e pode-se dizer que, desde sempre, criamos narrativas sobre a nossa própria experiência
como humanidade, sobre o universo que nos rodeia e sobre a nossa relação com o meio e com os
outros, talvez com o objetivo de encontrar algum sentido para a nossa existência.

Como funciona a natureza? Como surgiu? Como sobreviver? Como plantar? Como se colhe? Que
ferramenta uso? Como criar? Como ensinar? Como curar? Como cuidar?

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É na necessidade iminente de responder
a estas perguntas para viver, sobreviver e se
adaptar que criamos estas narrativas e damos
a elas a importância que precisam para serem
a liga que mantém as comunidades humanas
unidas.

Muito antes de sequer termos a escrita


como forma de registro, aprendemos a con-
tar histórias. É algo que sempre fez parte da
experiência humana e é através disso que
compreendemos o nosso lugar no mundo, a
nossa origem, delimitamos nossos valores,
conservamos nossas tradições e principal-
mente transmitimos as nossas ideias através
de gerações. É assim que se criam memórias.

A maneira como resgatamos nosso passado,


o conteúdo dessas histórias e especialmente a
forma como são contadas aparecem com uma
variedade praticamente impossível de medir, e
talvez seja nessa diversidade que se encontre
uma das grandes preciosidades da humani-
dade. Afinal de contas, no conteúdo e no modo
de contar se estabelecem as particularidades
de uma comunidade, criando entre os indiví-
duos a possibilidade de se identificarem uns
com os outros a partir do compartilhamento
de experiências comuns. Com histórias sabe-
mos que temos a mesma origem, que com-
partilhamos um passado em comum, valores,
princípios, modos de existir e de fazer. Através
de histórias se consolida a cultura de um povo
e permite ao indivíduo quem sou e de onde
venho.

Se tenho identidade é porque pertenço a


algum lugar. É porque compartilho com outros
uma existência no tempo e no espaço, e é
principalmente porque temos a capacidade
de preservar estas experiências em nossas
memórias pessoais e coletivas.

Identidade e pertencimento talvez sejam


duas das principais urgências do nosso espírito

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e o apetite pela descoberta disso orienta nosso
comportamento – de modo consciente ou não
– e dá manutenção às nossas comunidades.

Para transmitir histórias, tecer memórias,


definir identidades e possibilitar pertenci-
mento, desenvolvemos muitas formas de lin-
guagem e representação que vão da arte à
literatura, da filosofia à religião.

Longe de discutir crenças subjetivas, que


dizem respeito a experiência de cada indivíduo
ou comunidade, é necessário compreender a
importância da religiosidade no processo de
manutenção destas identidades. Afinal, além
de fazer parte da própria vida cotidiana, a
religião é muitas vezes o próprio veículo de
transmissão de narrativas que constituem as
identidades. Muito além de ritos e cultos, a
religiosidade é uma manifestação bruta da cul-
tura que põe indivíduos de uma comunidade
em contato com suas tradições e os permite
manter o passado vivo, através da conexão
com a sua ancestralidade.

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22
Colonização e identidade
cultural brasileira

Historicamente, o processo através do qual nação é consequência direta de um projeto


se cria e estabelece a identidade cultural de de dominação chamado de colonização.
um povo é consequência de um complexo con-
junto de fatores dentre os quais se identifica ao Quase que por definição, colonizar é um
menos uma constante: o intenso processo de processo essencialmente violento. Seja
transformação das culturas e tradições. Dizer pela sua necessidade de ocupação de ter-
que existe a manutenção de uma tradição não ritório alheio ou exploração de recursos
é, de modo algum, assumir que tradições são materiais, a força e a violência são recursos
elementos estanques, que permanecem inal- fundamentais para a garantia da efetivação
terados no tempo, por mais sólidos e dura- do empreendimento colonizador, especial-
douros que pareçam. Especialmente porque mente se assumimos que qualquer povo,
dificilmente uma comunidade humana per- colonizado ou não, valoriza suas próprias
manece isolada em suas próprias tradições tradições a ponto de não abrir mão delas
e, na verdade, em diferentes formas e inten- de modo passivo.
sidades, grupos humanos mantêm contato,
se comunicam e trocam experiências. Seja Do mesmo modo, já é notório perce-
por assimilação mútua, incorporação de um ber que além da iminente violência física,
pelo outro ou mesmo por dominação, comu- a campanha colonizadora incorre em um
nidade e povos exercem influência recíproca outro modo grave de violência: a violência
uns sobre os outros e tecem esta complexa simbólica.
rede de relações culturais que se manifestam
na diversidade cultural que conhecemos. Além de ocupar e explorar, colonizar
implica também em civilizar. Isso seria jus-
No Brasil, como tradicionalmente se pensa, se conta, tamente o conhecido esforço do colonizador
se ensina e se aprende; como normalmente se enuncia em em impor aos povos dominados os seus pró-
nossas representações na arte, na literatura, nas peças publi- prios parâmetros civilizacionais tais como:
citárias que habitam no nosso imaginário coletivo, somos modos de pensar e agir, modos de produzir,
afetados por um conjunto de tradições interligadas que for- modos de se relacionar com o meio, insti-
mam uma suposta identidade cultural brasileira composta tuições, moralidade, língua, religiosidade e
pela cultura indígena, europeia e negra africana. outros elementos simbólicos que definem a
identidade de um povo.
Se consideramos que a identidade cultural de um povo
Pode-se afirmar com clareza que o pró-
ou nação, como dito anteriormente, se forma também a
prio projeto de Estado-Nação chamado de
partir de trocas culturais entre os povos envolvidos, então
Brasil é uma invenção proposta pelas insti-
podemos assumir que o próprio projeto nacional brasileiro
tuições colonizadoras europeias e não um
seria uma síntese espontânea dos elementos culturais indí-
genas, europeus e africanos. fator espontâneo da convivência mútua
entre povos como sugerem as narrativas
No entanto, não se pode perder de vista um românticas sobre a miscigenação.
elemento fundamental: este Brasil da miscige-

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A escravidão vinculada ao projeto coloniza-
dor europeu que ocorreu entre os séculos XV
e XX na América e na África é um pilar funda-
mental no desenvolvimento da instituição que
mobilizou toda essa campanha colonizadora, o
capitalismo, primeiro em sua forma comercial
incipiente e depois na sua evolução industrial.

Independente de que fase do processo de


consolidação capitalista se observa, a coloni-
zação sempre se valeu de uma característica
essencial da escravidão: a completa desumani-
zação dos povos explorados. Seja como coisa a
ser comercializada para o lucro ou a produção
agrícola na américa, seja como mão de obra a
extrair a matéria prima para a industrialização
europeia, o escravizado se tornou uma fonte
de acúmulo de riqueza que claramente não
passava pela valorização de suas contribuições
no processo produtivo ou de sua humanidade,
mas de sua violenta negação.

Trata-se o sujeito escravizado como coisa


ou qualquer outra condição que lhe colocasse
numa posição de sub-humanidade, assim
como todo e qualquer produto de suas cul-
turas e tradições, pressupondo, portanto, a
superioridade natural da cultura europeia que
justificava a violência física e simbólica vincu-
lada a escravidão.

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Todo um sistema de narrativas e crenças
foi criado em torno de justificar a empresa
escravista. Primeiro os argumentos religiosos,
enunciados nos debates nos centros do cris-
tianismo europeu acerca da presença ou não
de alma nos povos escravizados. Se sim, pre-
cisavam ser salvos da danação e do paganismo
através da catequização. Se não, justifica-se
e explica-se sua condição sub-humana. De
todo modo, estariam sujeitos ao apagamento,
físico ou cultural. Séculos depois, a ciência
europeia se dedicou a tentar provar a inferio-
ridade natural dos povos africanos e indígenas
através de argumentos pseudocientíficos que
justificavam a violência escravista, resultando
na invenção do conceito de raça que orienta o
racismo científico e a eugenia do século XIX.

Esta aliança entre a exploração capitalista


colonial, a escravidão e a religiosidade cristã
europeia é, portanto, a grande força que atra-
vessa a experiência dos povos envolvidos no
processo de síntese de culturas que deu ori-
gem a isso que chamamos hoje de identidade
cultural brasileira.

Entre as muitas estratégias de dominação


cultural – como o batismo com nomes cristãos,
a catequização e a alfabetização – considero
que uma das mais eficientes é a homogenei-
zação.

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Veja, é muito clara a distinção entre os
diversos povos e países europeus envolvi-
dos na colonização muito bem delimitadas
as fronteiras de seus territórios sequestra-
dos nas colônias. Sabemos exatamente quais
colônias foram exploradas por quais países e
de que forma, com quais estratégias produti-
vas e administrativas. Tudo está devidamente
registrado.

Sabemos sobre a empresa açucareira por-


tuguesa no nordeste do Brasil e o limite entre
as colônias portuguesas e espanholas. Sabe-
mos sobre a exploração de metais praticadas
pela Espanha na américa do sul e américa cen-
tral. Sabemos sobre a ocupação holandesa no
caribe. Também sobre as estratégias coloni-
zadoras da Inglaterra nas treze colônias que
deram origem aos Estados Unidos da América,
e até sobre as incursões francesas ao longo dos
séculos de colonização. Mas principalmente,
sabemos identificar as mais sutis particula-
ridades das diferentes culturas dos países
europeus e suas permanências na cultura das
colônias. Sabemos perfeitamente diferenciar
o português do espanhol.

Mas ao mesmo tempo falamos da escravidão


“africana” ou “indígena”. A África, por exem-
plo, é o continente berço de umas das maiores
diversidades étnico-culturais que se tem notí-
cia, e ainda assim, até hoje, insiste-se na nega-
ção ativa dessa diversidade, o que se expressa
inclusive na maneira como a linguagem trata
esta diversidade ao tratar estes povos generi-
camente como “africanos”, ou “índios” no caso
dos povos originários da América.

O ato de homogeneizar, ou invisibilizar a gri-


tante diversidade étnica e cultural presente
no continente africano constitui uma forma
muito eficaz de violência simbólica, pois recusa
à grande maioria dos povos a sua particula-
ridade e aquilo que os constitui. Retira-se
do sujeito escravizado o seu pertencimento

26
quando os sequestram de seu próprio territó-
rio e socialização, e também a sua identidade,
quando lhe oferecem algo tão grave quanto a
violência ou a morte física: a morte pelo esque-
cimento.

A história negra africana no Brasil, final-


mente, não é a história da África no Brasil.
É a história da escravização e sobrevivência
dos iorubás, egbos, fulanis, hauças, ijexás, jejes,
fons, cabindas, angolas, quimbundos, quicon-
gos, congoleses, e mais um sem fim de povos e
etnias com suas respectivas línguas, religiões,
estruturas políticas, tradições e outras par-
ticularidades, gritantes quanto se pode ver
entre alemães e dinamarqueses. Povos que se
assemelham e se diferenciam com a mesma
complexidade com que se relacionam povos
de qualquer outra região do mundo.

O continente africano é, na verdade, palco


de uma complexa cosmologia de povos que
possuíam correlações de poder e geopolí-
tica própria, de modo a dificultar, inclusive,
a incursão absoluta de povos europeus na
África, restringindo-os a pequenos entrepos-
tos comerciais litorâneos no formato de forte
e feitorias. As nações europeias e suas institui-
ções capitalistas estavam, portanto, subme-
tidas também às demandas de reinos sólidos
como o Congo e o Iorubá, que muitas vezes
forçavam relações bilaterais, demonstrando
agência e autonomia ao longo dos séculos de
colonização. Sem negar o impacto da violência
escravista nos povos africanos, é fundamental
perceber que estes processos do continente
africano atravessaram o atlântico e afetaram
a dinâmica das relações políticas, econômicas,
sociais e culturais do Brasil.

As particularidades destes povos diferen-


tes afetaram de modos diferentes a cultura
e a identidade da colônia portuguesa, o que
notadamente também resvalou para a própria
Europa. Mesmo em um processo de dominação

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violento, não há nada que indique que a cul-
tura colonizadora não possa ser afetada pela
cultura colonizada. Pelo contrário, felizmente
ou infelizmente, as dinâmicas culturais não
estão sob o poder da violência colonizadora,
ao menos não como desejaria o colonizador.

A história da influência da cultura negra afri-


cana na identidade cultural brasileira não é e
não será a história da escravidão, da passivi-
dade, da subjugação e da violência. Poderá ser,
se contada com decência, a história da sobre-
vivência e da resistência. De como existiram no
mundo violento da colonização povos com uma
identidade cultural tão sólida, que mudaram a
dinâmica cultural da humanidade mesmo após
sucessivas tentativas de apagamento.

De Portugal ao Brasil, quem já não se rela-


cionou com o samba? E quantos lembram
que é possível que seja, provavelmente, uma
derivação do quimbundo semba, que significa
“umbigada”, ou do Umbundo samba, que signi-
fica estar animado ou estar excitado. Talvez não
haja um brasileiro sequer que nunca tenha ido
a uma quitanda. Talvez não saiba, entretanto,
que esta é uma apropriação direta do quim-
bundo kitanda que quer dizer, literalmente,
feira. Por desfaçatez ou ingenuidade, a igno-
rância destes e outros fenômenos só podem
ser produto de uma história muito mal con-
tada, já que são tão evidentes.

Seria justo falar que, em um determinado


momento da História do Brasil, houve uma
relativa mudança de perspectiva da cultura
negra africana como força determinante na
identidade brasileira a partir de políticas públi-
cas de valorização destas identidades. Seria, se

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este processo não estivesse, de algum modo, conectado com uma forte vontade de apropriação
destes signos culturais para a sua comercialização, resultando na exotificação para investir, por
exemplo, na inserção do Brasil nos circuitos turísticos internacionais. É confortável afirmar
isso devido ao fato de que estes processos de pretensa valorização claramente não vieram
acompanhados de políticas de reparação que alterassem a condição do negro no brasil ou
mitigassem as fissuras sociais deixadas pela escravidão.

Ainda assim, talvez seja possível dizer que há, a exemplo do que é feito pelos movimentos
negros organizados, uma valorização honesta da cultura negra no brasil a partir do resgate
de memórias, da manutenção de tradições e da identificação das contribuições dos povos
africanos no cotidiano cultural do país.

No entanto, mesmo assim, é possível identificar resquícios da violência simbólica da menta-


lidade colonizadora quando, mesmo em tentativas de resgate e valorização da cultura negra
africana no Brasil, prioriza-se o protagonismo de alguns legados e etnias em detrimentos de
outras, mesmo que suas contribuições sejam equivalentes.

Diversidade afro-brasileira na cultura e religiosidade


popular

No fim do século XIX, a abolição da escravidão não foi acompanhada de qualquer forma de
reparação dos impactos que a estrutura escravista deixou nos alicerces do brasil, fazendo com
que a sociedade brasileira permanecesse profundamente racializada. Quer dizer, afetada e

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determinada pelas relações econômicas, polí- escapam do universo afro-brasileiro e se rami-
ticas mas principalmente raciais que orienta- ficam por toda a cultura popular brasileira de
vam as relações de poder no país. Como forma um modo geral.
de controle da população negra recém-liberta,
por exemplo, temos o Código Penal de 1890, Do mesmo modo, o cenário do Brasil no
responsável pela criminalização da capoeira, pós-abolição e de uma República recém
do samba e do candomblé. Demonstra-se o constituída, era o de um país sucateado por
uso do aparato estatal para criminalizar toda e sucessivas crises políticas e econômicas que se
qualquer prática cultural de origem afro-bra- manifestam na carência de serviços e direitos
sileira na ausência da instituição escravocrata. sociais básicos para a população livre de um
modo geral, a exemplo de emprego, renda,
Como uma das principais formas de expres- educação e saúde. Nesse sentido, foi funda-
são de tradição, cultura e identidade, as reli- mental o papel dos curandeiros na vida urbana
giões de matriz africana foram um ponto de do país, que ofereciam um serviço de atenção
orientação para a resistência das populações básica que, na maioria das vezes, se sustentava
escravizadas ao longo dos séculos de escravi- sobre saberes tradicionais de cura oriundos de
dão, por isso sua criminalização era uma estra- comunidades religiosas africanas.
tégia de atacar os centros dessa resistência.
O que demonstra-se aqui, acima de tudo, é O próprio cristianismo, ferramenta da domi-
a relevância da atividade religiosa diante de nação colonial, foi apropriado e distorcido para
toda a dinâmica social de uma sociedade racia- caber nas dinâmicas e demandas próprias da
lizada. população afro-brasileira, sofrendo releituras
e adaptações nos seus valores. Nesse caso,
Por exemplo, uma das formas de punição e também o sincretismo religioso foi fundamen-
disciplinamento mais utilizadas pelos senhores tal para a sobrevivência de práticas religiosas
de escravos era a desarticulação das famílias africanas em território brasileiro, que foram
dos escravizados através de relações de com- sutilmente sintetizadas com práticas cristãs,
pra e venda dos integrantes da família, sepa- conferindo ao próprio cristianismo uma identi-
rando maridos de suas esposas, filhos de mãe, dade fortemente negra. O calendário nacional
reconhecendo que na constituição da família de feriados e festas populares, afetado princi-
e dos afetos havia um ponto de resistência palmente pelo calendário de festividades cris-
que dificultava a dominação. Neste caso, é tão, talvez só exista hoje como existe devido
muito possível que as famílias de santo que se ao fato de que foram as comunidades e cultos
constituíram nos terreiros tenham sido uma negros afro-brasileiros que, ao sustentarem
importante estratégia de estabelecimento e estas tradições, incutiram fortemente estes
manutenção de relações familiares e de afeto elementos na cultura e no imaginário popular.
que estariam escondidas do olhar vigilante da
estrutura escravista pois não necessariamente Todas estas estratégias foram gradativa-
estão limitadas as óbvias relações consanguí- mente estabelecendo uma relação de simbiose
neas. Certamente estas estruturas familiares entre a cultura popular brasileira e as manifes-
longe das definições ocidentais europeias de tações de religiosidade africana de modo que,
família foram um núcleo de preservação de hoje, seja praticamente impossível dissociar
determinadas tradições que sorrateiramente um do outro.

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A despeito de que isso tenha acontecido de
modo sutil ao longo de décadas, explicitamente
as formas de culto afro-brasileiro, como
o candomblé e a umbanda, são vítimas de
um longuíssimo processo de perseguição
e campanhas comprometidas com sua
estigmatização, demonização e difamação.
Isso encontrou palanque nos jornais e revistas
da época, que publicavam matérias e boletins
policiais para sustentar esta iniciativa e
manipular inclusive a opinião pública em
favor da criminalização da religiosidade afro-
brasileira.

Como diz o sociólogo, antropólogo e baba-


lorixá Pai Rodney de Oxóssi:

“Os terreiros foram invadidos e saqueados,


sacerdotes presos e torturados, objetos de culto
apreendidos e destruídos. Anos e anos de luta até
que o Estado assumisse a laicidade e implemen-
tasse em sua Carta Magna a liberdade religiosa.
Na prática, a perseguição continuou e até os
últimos anos da década de 1970 os terreiros da
Bahia necessitavam de autorização da Delegacia
de Jogos e Costumes para realizar seus rituais,
correndo o risco de ser interrompidos pela polícia
a qualquer momento.”

Porém, como citado anteriormente, na


metade do século XX, vemos uma iniciativa
de se subverter estas relações de perseguição
e valorizar a cultura afro-brasileira, o que se
manifesta claramente no enaltecimento dos
elementos de religiosidade afro-brasileira, a
exemplo do candomblé. Na arte e na cultura,
os elementos da religiosidade afro-brasileira
habitam a música de Dorival Caymmi e a
literatura de Jorge Amado, se popularizando
para todo o Brasil e sendo, inclusive, exportado
para o exterior. Como resultado, vemos a
ascensão de lideranças religiosas que ganham
importância geopolítica nas relações regionais,

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especialmente na Bahia. Figuras como Mãe
Menininha, Mãe Senhora e Mãe Stella de
Oxóssi, respectivamente sacerdotisas do
Terreiro do Gantois e do Ile Axe Opo Afonja,
despontam no cenário regional e nacional.
As divindades africanas estão cantadas nos
versos de Maria Bethânia e Caetano Veloso em
músicas consumidas em todo o país. Os orixás
fazem parte do imaginário coletivo do Brasil e,
principalmente, da Bahia.

É possível notar claramente, no entanto, que


toda esta dedicação possui uma particulari-
dade. Tanto na linguagem, quanto nas tradi-
ções e nas divindades retratadas, há um claro
predomínio da africanidade Iorubá – povos
também chamados de Nagos – em território
brasileiro. No candomblé isso fica represen-
tado pelo culto aos Orixás nos Candomblés de
Ketu, representado pelas lideranças religiosas
mais notadas.

Mas como dito, isso pode ser interpretado


como mais uma das faces do racismo inerente
à estrutura escravista e um legado da menta-
lidade colonizadora, que homogeneíza e invi-
sibiliza a diversidade para fins de apagamento
de culturas inferiorizadas. Os povos Iorubanos
são trazidos ao Brasil pelo empreendimento
escravista mais intenso dos séculos XVIII e
XIX, que por razões do próprio capitalismo
comercial europeu, estava mais focada na
costa ocidental africana, em regiões como a
Costa da Mina e a Costa dos Escravos, locais
de predominância Iorubá, atuais territórios da
Nigéria e parte do Togo e Benin. No entanto,
isso claramente não representa a totalidade
do tráfico internacional de escravizados, que
não se restringiu a estes séculos nem a estas
regiões.

Na verdade, nos séculos inicias da escravi-


dão e colonização transatlântica, houve, prin-
cipalmente de Portugal, uma preferência pelas
relações com outras regiões da costa africana,

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a exemplo do que hoje é a costa de Angola, o
Congo e Moçambique. Nestas regiões existe a
predominância do que é talvez um dos maiores
troncos étnico-linguísticos e culturais do con-
tinente: os povos Banto. Quimbundos, ovibun-
dos, angolas, cabindas, mbundos, quicongos e
mais quatrocentos outros grupos étnicos com-
põem o que se entende por povos Banto, o que
por si só já reserva uma absoluta diversidade
étnico-cultural.

No Brasil, a diversidade Banto é encontrada


pela diversidade de povos oriundos da África
ocidental, possibilitando uma assimilação
mútua de elementos culturais que obviamente
vão se manifestar na religiosidade afro-brasi-
leira. Devido a características específicas do
culto africano aos orixás, e as dinâmicas cul-
turais dos povos iorubás, o processo de conso-
lidação do Candomblé está intimamente rela-
cionado com a sistematização e organização
dos rituais vinculados ao culto a orixá. Porém,
isso não quer dizer que não houvesse no Bra-
sil nenhuma manifestação religiosa de outros
povos vindos da África.

Das rodas de calundu aos posteriores “can-


domblés de caboclo”, o que se observava era
menos compromisso com o rito do culto a
orixá e mais a manifestação orgânica de uma
ancestralidade muito mais próxima da cul-
tura Bantu, em síntese com a cultura popular
cristã e, principalmente, com elementos da
cultura indígena, o que é um forte indicativo
da profundidade dos ritos religiosos Bantu
no cotidiano religioso do Brasil. Talvez pela
dificuldade em se encontrar uma fronteira
entre o que é bantu e o que é “brasileiro” ou
cristão, se considere que a sistematização do
candomblé de culto a orixá seja a origem do
culto organizado afro-brasileiro. Mas talvez
isso só demonstre a mais profunda simbiose
das religiosidades Bantu com a cultura popular
brasileira.

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Com o tempo, as manifestações religiosas de tradição
Bantu também vão se valer da notoriedade adquirida pelas
lideranças religiosas dos candomblés e gradativamente serão
assimiladas por ele. O culto ao Nkisi, ancestral quimbundo/
quicongo, a aparece para o leigo como uma “vertente” do
culto a orixá, de modo que as divergências de tradição étni-
co-cultural na religiosidade se manifestam hoje no formato
das “nações” de candomblé, que inserem uma pluralidade
de ritos e cultos em um grande “guarda-chuva” chamado
Candomblé.

Lideranças religiosas vinculadas aos cultos de tradição


bantu buscam a organização e sistematização de suas prá-
ticas sob o manto do candomblé também como forma de
proteger suas tradições, articulando grandes comunidades
em torno desse objetivo. A exemplo de Maria Genoveva do
Bonfim, conhecida como Sinhá Maria Neném ou Mametu
Twenda dia Nzambia, como era conhecida pela comunidade
religiosa. Figuras como o sacerdote Joãozinho da Goméia,
vindo de tradições bantu, que foi um dos grandes responsá-
veis por popularizar o candomblé de um modo geral no Brasil
ao levar suas práticas da Bahia para o sudeste.

É possível observar particularidades muito evidentes


entre as tradições Ketu, Angola e Jeje, inclusive a manifesta-
ção de elementos da cultura Bantu mesmo fora do universo
religioso do candomblé. Um exemplo são as rodas de jarê,
manifestações religiosas que ocorrem na região da Chapada
Diamantina na Bahia, que demonstram forte inspiração nos
candomblés de caboclo outrora produto da cultura quim-
bundo. Manifestações populares anteriormente citadas como
o samba e o costume de quitandas estão também relaciona-
das com o legado da cultura bantu no cotidiano do povo bra-
sileiro. Mesmo antes do samba, manifestações culturais como
o jongo podem ser encontradas em lugares de predominância
Bantu, a exemplo da região serrana do Rio de Janeiro.

Angu, abano, banda, bunda, caçula, capanga, candango,


cachimbo, cafundó, caxumba, dendê, fubá, fundanga,
batuque, macumba, miçanga, mocotó, moleque, muamba,
muvuca, muquiço, quizila, quitute, quilombo, umbanda,
saravá, camundongo, ginga, tanga, sunga, são outras palavras
que possivelmente possui etimologia bantu e estão presentes
no nosso cotidiano. Na culinária inseriram o quiabo, o angu,
maxixe, jiló, a moqueca de peixe e a feijoada.

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