Cartilha Nacao Angola Final
Cartilha Nacao Angola Final
Cartilha Nacao Angola Final
Edição e organização:
Ana Gualberto e Camila Chagas
Redação:
Mameto Laura Borges e Mameto Kuangolô
Revisão:
Ana Leticia Ribeiro
Fotos:
Lis Pedreira e Divulgação/Unzó Maiala
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Nação Angola: das
influências banto no
Brasil
Coleção Saberes Pretos
Boa leitura!
Ana Gualberto
Diretora Executiva de KOINONIA
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KOINONIA
Fundada em 1994, KOINONIA Presença Ecu-
mênica e Serviço é uma organização sediada
no Rio de Janeiro (RJ), com atuação nacional e
internacional. Somos uma entidade ecumênica
de serviço composta por pessoas de diferentes
tradições religiosas, reunidas em associação
civil sem fins lucrativos. Integramos o movi-
mento ecumênico e prestamos serviços ao
movimento social. A missão de KOINONIA é
mobilizar a solidariedade ecumênica e prestar
serviços a grupos histórica e culturalmente
vulnerabilizados e em processo de emancipa-
ção social e política; além de promover o movi-
mento ecumênico e seus valores libertários.
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Apresentação
Primeiramente peço bênção aos mais velhos fim de potencializar a participação dos sujei-
e agradecimentos aos meus guias espirituais. tos sociais contribuindo no processo de demo-
É muito gratificante poder dividir a minha tra-cratização das políticas sociais, ampliando os
jetória de vida. canais de participação da população na for-
mulação, fiscalização e gestão das políticas
Como Mameto de Nkisi da nação Angola tive educacional, visando o aprofundamento dos
que percorrer alguns caminhos e ultrapassar direitos. Articulando e mantenho sintonizado
algumas barreiras para chegar e afirmar a através de parceria com os movimentos sociais
minha posição atual. que desenvolvem trabalhos de acolhimento,
que promova ao público efetivação frente a
A primeira foi entender e aceitar a minha questões Jurídicas. Atuante na luta antirracista
missão enquanto Mameto de Nkisi, respei- e movimento negro para prover a igualdade de
tando e preservando os ensinamentos dos direitos da população preta da nossa cidade.
meus ancestrais e compreendendo o meu
papel para com a sociedade dentro e fora do Contudo tenho no corpo, na alma e na mente
meu Unzó. o tamanho da minha força, por ser uma mulher
negra e matriarca do axé, filha do Nkisi Rossi,
Como mulher, tive que ultrapassar as barrei- sabendo que ainda há muito o que lutar, o que
ras impostas pela sociedade. Além de exercer trilhar e o que vencer.
meu papel de mãe, tive que me conscientizar
Mameto Laura Borges
enquanto cidadã, participando da nova ordem
em que vivemos inserida com minha força (Unzó Maiala–Salvador, Bahia)
de mulher negra na política atual, buscando
sempre valorizar a importância da mulher na
sociedade e na cultura afro-brasileira, tendo
em vista que nas origens ancestrais a forma
Matriarcal era predominante nas sociedades.
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Sobre o Unzó Maiala
Fundado em 1962, no bairro do Garcia, em
Salvador (BA), o Unzó Maiala realiza anual-
mente, a partir de calendário estipulado,
festas, solenes e mesas brancas de caridade
abertas ao público.
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As línguas utilizadas nos
terreiros de nação angola são o
kimbundu e o kikongo
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Algumas majina (nomes)
de Nkisi:
Aluvaiá, Nkosi Mukumbi, Gongobira, Mutalombo
Katendê
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Representado pelo arco-íris, traz a fertilidade
do solo.
Kitembo, Tempo
Tere-kompenso
Aluvaiá
Mavambo, Jiramavambo
Sinzamuzila
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Malungo
Kijanja
Mavilutango
Burungangi
Bionatan
Siganga, Gangaiô
Tonã
Etajelungi
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Korobo
Niquerô
Dundo Kalunga
Naban
Apavenã
Kunkurunguaje
Embarujo
Etajelungi
Manawelé, mavilé
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Malusibango
Izangué
Kisimbi, Ndandalunda
Zumbarana, Zumbarandá
Vunge, Wunge
Nzambi, Nzambiapongo
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Vocabulário bantu
Unzó Maiala
Alubassa= Cebola Ilá= quiabo
Kufumala=defumação
Kukula= crescer
Kussukala= lavar
Kuzola= amor
Leketo= ganso
Lezó= precisar
Liagui= barbante
Macala= carvão
Macanji=cuidado
Macutende= feijão
Malogian= descalço
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Maruin, maruem= mel Nakudi= sonho
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Nzambi ia kalunga= deus supemo ifinito Sukurankisi= troca das águas das quartinhas
Nzambi ua nkuatesa= deus lhe pague/ obri- Tata kambuí= tocador de atabaque
gado
Tata ndengue= pai pequeno
Nzambi= deus
Tata nvangi = cria barcos
O njila ia kibuko, njila a i bana kua
Tata= pai
Nzambi= o caminho da felicidade, é o caminho
dado por deus. Toboso, trobosu= torço de cabeça
Simarrilha= camisa
Singanga= brigão
Sopuê= lá vem
Sualemi= toalha
Sugo= panela
Sukitála= tarde
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Dendê
Azeite doce
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A importância dos terreiros de Angola na
manutenção da RELIGIOSIDADE de matriz
africana no Brasil e na Bahia
Como funciona a natureza? Como surgiu? Como sobreviver? Como plantar? Como se colhe? Que
ferramenta uso? Como criar? Como ensinar? Como curar? Como cuidar?
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É na necessidade iminente de responder
a estas perguntas para viver, sobreviver e se
adaptar que criamos estas narrativas e damos
a elas a importância que precisam para serem
a liga que mantém as comunidades humanas
unidas.
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e o apetite pela descoberta disso orienta nosso
comportamento – de modo consciente ou não
– e dá manutenção às nossas comunidades.
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Colonização e identidade
cultural brasileira
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A escravidão vinculada ao projeto coloniza-
dor europeu que ocorreu entre os séculos XV
e XX na América e na África é um pilar funda-
mental no desenvolvimento da instituição que
mobilizou toda essa campanha colonizadora, o
capitalismo, primeiro em sua forma comercial
incipiente e depois na sua evolução industrial.
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Todo um sistema de narrativas e crenças
foi criado em torno de justificar a empresa
escravista. Primeiro os argumentos religiosos,
enunciados nos debates nos centros do cris-
tianismo europeu acerca da presença ou não
de alma nos povos escravizados. Se sim, pre-
cisavam ser salvos da danação e do paganismo
através da catequização. Se não, justifica-se
e explica-se sua condição sub-humana. De
todo modo, estariam sujeitos ao apagamento,
físico ou cultural. Séculos depois, a ciência
europeia se dedicou a tentar provar a inferio-
ridade natural dos povos africanos e indígenas
através de argumentos pseudocientíficos que
justificavam a violência escravista, resultando
na invenção do conceito de raça que orienta o
racismo científico e a eugenia do século XIX.
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Veja, é muito clara a distinção entre os
diversos povos e países europeus envolvi-
dos na colonização muito bem delimitadas
as fronteiras de seus territórios sequestra-
dos nas colônias. Sabemos exatamente quais
colônias foram exploradas por quais países e
de que forma, com quais estratégias produti-
vas e administrativas. Tudo está devidamente
registrado.
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quando os sequestram de seu próprio territó-
rio e socialização, e também a sua identidade,
quando lhe oferecem algo tão grave quanto a
violência ou a morte física: a morte pelo esque-
cimento.
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violento, não há nada que indique que a cul-
tura colonizadora não possa ser afetada pela
cultura colonizada. Pelo contrário, felizmente
ou infelizmente, as dinâmicas culturais não
estão sob o poder da violência colonizadora,
ao menos não como desejaria o colonizador.
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este processo não estivesse, de algum modo, conectado com uma forte vontade de apropriação
destes signos culturais para a sua comercialização, resultando na exotificação para investir, por
exemplo, na inserção do Brasil nos circuitos turísticos internacionais. É confortável afirmar
isso devido ao fato de que estes processos de pretensa valorização claramente não vieram
acompanhados de políticas de reparação que alterassem a condição do negro no brasil ou
mitigassem as fissuras sociais deixadas pela escravidão.
Ainda assim, talvez seja possível dizer que há, a exemplo do que é feito pelos movimentos
negros organizados, uma valorização honesta da cultura negra no brasil a partir do resgate
de memórias, da manutenção de tradições e da identificação das contribuições dos povos
africanos no cotidiano cultural do país.
No fim do século XIX, a abolição da escravidão não foi acompanhada de qualquer forma de
reparação dos impactos que a estrutura escravista deixou nos alicerces do brasil, fazendo com
que a sociedade brasileira permanecesse profundamente racializada. Quer dizer, afetada e
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determinada pelas relações econômicas, polí- escapam do universo afro-brasileiro e se rami-
ticas mas principalmente raciais que orienta- ficam por toda a cultura popular brasileira de
vam as relações de poder no país. Como forma um modo geral.
de controle da população negra recém-liberta,
por exemplo, temos o Código Penal de 1890, Do mesmo modo, o cenário do Brasil no
responsável pela criminalização da capoeira, pós-abolição e de uma República recém
do samba e do candomblé. Demonstra-se o constituída, era o de um país sucateado por
uso do aparato estatal para criminalizar toda e sucessivas crises políticas e econômicas que se
qualquer prática cultural de origem afro-bra- manifestam na carência de serviços e direitos
sileira na ausência da instituição escravocrata. sociais básicos para a população livre de um
modo geral, a exemplo de emprego, renda,
Como uma das principais formas de expres- educação e saúde. Nesse sentido, foi funda-
são de tradição, cultura e identidade, as reli- mental o papel dos curandeiros na vida urbana
giões de matriz africana foram um ponto de do país, que ofereciam um serviço de atenção
orientação para a resistência das populações básica que, na maioria das vezes, se sustentava
escravizadas ao longo dos séculos de escravi- sobre saberes tradicionais de cura oriundos de
dão, por isso sua criminalização era uma estra- comunidades religiosas africanas.
tégia de atacar os centros dessa resistência.
O que demonstra-se aqui, acima de tudo, é O próprio cristianismo, ferramenta da domi-
a relevância da atividade religiosa diante de nação colonial, foi apropriado e distorcido para
toda a dinâmica social de uma sociedade racia- caber nas dinâmicas e demandas próprias da
lizada. população afro-brasileira, sofrendo releituras
e adaptações nos seus valores. Nesse caso,
Por exemplo, uma das formas de punição e também o sincretismo religioso foi fundamen-
disciplinamento mais utilizadas pelos senhores tal para a sobrevivência de práticas religiosas
de escravos era a desarticulação das famílias africanas em território brasileiro, que foram
dos escravizados através de relações de com- sutilmente sintetizadas com práticas cristãs,
pra e venda dos integrantes da família, sepa- conferindo ao próprio cristianismo uma identi-
rando maridos de suas esposas, filhos de mãe, dade fortemente negra. O calendário nacional
reconhecendo que na constituição da família de feriados e festas populares, afetado princi-
e dos afetos havia um ponto de resistência palmente pelo calendário de festividades cris-
que dificultava a dominação. Neste caso, é tão, talvez só exista hoje como existe devido
muito possível que as famílias de santo que se ao fato de que foram as comunidades e cultos
constituíram nos terreiros tenham sido uma negros afro-brasileiros que, ao sustentarem
importante estratégia de estabelecimento e estas tradições, incutiram fortemente estes
manutenção de relações familiares e de afeto elementos na cultura e no imaginário popular.
que estariam escondidas do olhar vigilante da
estrutura escravista pois não necessariamente Todas estas estratégias foram gradativa-
estão limitadas as óbvias relações consanguí- mente estabelecendo uma relação de simbiose
neas. Certamente estas estruturas familiares entre a cultura popular brasileira e as manifes-
longe das definições ocidentais europeias de tações de religiosidade africana de modo que,
família foram um núcleo de preservação de hoje, seja praticamente impossível dissociar
determinadas tradições que sorrateiramente um do outro.
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A despeito de que isso tenha acontecido de
modo sutil ao longo de décadas, explicitamente
as formas de culto afro-brasileiro, como
o candomblé e a umbanda, são vítimas de
um longuíssimo processo de perseguição
e campanhas comprometidas com sua
estigmatização, demonização e difamação.
Isso encontrou palanque nos jornais e revistas
da época, que publicavam matérias e boletins
policiais para sustentar esta iniciativa e
manipular inclusive a opinião pública em
favor da criminalização da religiosidade afro-
brasileira.
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especialmente na Bahia. Figuras como Mãe
Menininha, Mãe Senhora e Mãe Stella de
Oxóssi, respectivamente sacerdotisas do
Terreiro do Gantois e do Ile Axe Opo Afonja,
despontam no cenário regional e nacional.
As divindades africanas estão cantadas nos
versos de Maria Bethânia e Caetano Veloso em
músicas consumidas em todo o país. Os orixás
fazem parte do imaginário coletivo do Brasil e,
principalmente, da Bahia.
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a exemplo do que hoje é a costa de Angola, o
Congo e Moçambique. Nestas regiões existe a
predominância do que é talvez um dos maiores
troncos étnico-linguísticos e culturais do con-
tinente: os povos Banto. Quimbundos, ovibun-
dos, angolas, cabindas, mbundos, quicongos e
mais quatrocentos outros grupos étnicos com-
põem o que se entende por povos Banto, o que
por si só já reserva uma absoluta diversidade
étnico-cultural.
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Com o tempo, as manifestações religiosas de tradição
Bantu também vão se valer da notoriedade adquirida pelas
lideranças religiosas dos candomblés e gradativamente serão
assimiladas por ele. O culto ao Nkisi, ancestral quimbundo/
quicongo, a aparece para o leigo como uma “vertente” do
culto a orixá, de modo que as divergências de tradição étni-
co-cultural na religiosidade se manifestam hoje no formato
das “nações” de candomblé, que inserem uma pluralidade
de ritos e cultos em um grande “guarda-chuva” chamado
Candomblé.
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